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Fernando Paulo do Carmo Baptista A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO NO TRAJECTO ASCENSIONAL DA HUMANIZAÇÃO DO MUNDO — Tributo lusíada de jubilosa gratulação a Sua Santidade o PAPA FRANCISCO, seu encantador “Maestro” e “Mensageiro-Poeta” Planetário — EDIÇÕES PIAGET 53 sinfonia univer:51 lei de deus 4/24/17 3:29 PM Page 4 Título: A Sinfonia Universal do Amor Fraterno no Trajecto Ascensional da Humanização do Mundo Autor: Fernando Paulo do Carmo Baptista © EDIÇÕES PIAGET, 2017 Rua Engenheiro Cunha Leal – 1950-105 LISBOA • Tel. 21 836 40 20 E-mail: infoeditora@ipiaget.pt Colecção: Crença e Razão, sob a direcção de António Oliveira Cruz Capa: António Sousa Baptista Paginação: Sá Pinto Encadernadores – Viseu Impressão e acabamento: Sá Pinto Encadernadores – Viseu Depósito legal: 425874/17 ISBN: 978-989-759-090-0 Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer processo electrónico, mecânico ou fotográfico, incluindo fotocópia, xerocópia ou gravação, sem autorização prévia e escrita do editor. 53 sinfonia univer:51 lei de deus 4/24/17 1:04 PM Page 5 FERNANDO PAULO DO CARMO BAPTISTA FERNANDO PAULO BAPTISTA aA SINFONIAuniversal sinfonia UNIVERSAL do DO amor AMORfraterno FRATERNO TRAJECTO ASCENSIONAL NO noDAtrajecto ascensional HUMANIZAÇÃO DO MUNDO da humanização do mundo – Tributo lusíada de jubilosa Tributo lusíada de jubilosa gratulação gratulação a Sua Santidade a Sua Santidade o PAPA FRANCISCO, o PAPA FRANCISCO, seu encantador «Maestro» seu encantador “Maestro” e «Mensageiro-Poeta» e Planetário – “Mensageiro-Poeta” Planetário A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO NO TRAJECTO ASCENSIONAL DA HUMANIZAÇÃO DO MUNDO — Tributo lusíada de jubilosa gratulação a Sua Santidade o PAPA FRANCISCO, seu encantador “Maestro” e “Mensageiro-Poeta” Planetário — A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO I. ABERTURA: 1. Este nome “Francisco” 2. Irmão Francisco (poema de Manuel Alegre) 9 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO Este nome “FRANCISCO”... O nome próprio “Francisco” aparece em documentos italianos dos séculos XI e XII, sob as formas latinizadas de “Francescus” e “Franciscus”, dando origem, a primeira, ao antropónimo italiano “Francesco” e a segunda, ao seu homólogo hispânico “Francisco”. Estes dois nomes próprios e o adjectivo “frank / franc” são lexemas pertencentes à mesma família e integram o “inventário” lexical do “frâncico” que era a língua da etnia dos Francos, antigo povo germânico que habitava uma região situada no oeste do Reno e que dominou grande parte da Europa Central, desde o século V. Assim, quer o adjectivo “frank / franc”, quer o nome etno- gentílico “Franco” apresentam no fulcro da sua morfo-estrutura a mesma raiz “frank- / franc-” que está na base da semântica identificacional de todo um povo — os Francos — e da sua língua histórica o “frâncico”. Por outro lado, é ainda esta mesma raiz “frank- / franc-” que está presente no adjectivo medieval latinizado “francus (> franco)”, com que se identificava e caracterizava um cidadão daquela etnia e, por extensão semântica, um cidadão que (porque beneficiário de “franquias”) circulava isento do pagamento de taxas, um cidadão de condição livre e com práticas de liberalidade e altruísmo e que se 11 Fernando Paulo do Carmo Baptista exprimia livremente, dizendo o que pensava», revelando, em suma, um carácter de nobreza e fidalguia de espírito... Por metonímia e com o evoluir do processo histórico-político, o adjectivo francus > franco passou a designar também, mais especificamente, a pequena região do norte de Paris habitada pelos Francos e, mais tarde, a identificar, mais alargadamente, aquele que veio a ser o “País dos Franceis ou dos Français”: a “France” [< Francia, em latim medieval], projectando-se, em plenitude, na “França” da “Liberté”, da “Égalité” e da “Fraternité” que vem pervivendo como Grande Nação Europeia até aos dias de hoje... *** A partir da semântica matricial inseminada na raiz “frank- / franc-”(*) — e no quadro interactivo dos específicos contextos e (*) Cf. Roberto Faure Sabater: Diccionario de nombres propios, Madrid, Editorial Espasa Calpe, 2002, entradas «Francisco» e «Franco»; Emidio De Felice: Dizionario dei nomi italiani: origine, etimologia, storia, diffusione e frequenza di oltre 18000 nomi, Milano, A. Mondadori, 1986; Robert K. Barnhart (edit.): Chambers Dictionary of Etymology Edinburg / New York Chambers Harrap Publishers 2001, entrada «frank1»; T. F. Hoad (edit.): The Concise Oxford Dictionary of English Etymology, Oxford, Oxford, University Press, 2003, entradas «frank» e «Frank»; Emmanuèlle Baumgartner et Philippe Ménard (dir.): Dictionnaire étymologique et historique du français, Paris, Librairie Générale Française, 2007, entradas «franc», «français», «franco»; Jacqueline Picoche: Dictionnaire étymologique du français, 1999, Paris, Le Robert, 1996, entrada «franc»; Jean Dubois, Henri Mitterand et Albert Dauzat: Dictionnaire étymologique et historique du français, Paris, Larousse, 1999, entrada «franc», «français»; Alain Rey (Dir.): Dictionnaire historique de la langue française, 12 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO dinamismos histórico-sociais de natureza geo-etno-cultural e política —, foram-se configurando diacronicamente “conteúdos noético- eidéticos” como os de liberdade, libertação, franqueza, liberalidade, generosidade, magnanimidade, candura, sinceridade, simplicidade, autenticidade... Na minha convicção de filólogo, esta sintética abordagem de natureza etimológico-lexicológica põe em evidência traços semânticos matriciais que corroboram A ENORME COERÊNCIA entre o “significado primigénio” do nome próprio “Francisco” e o “conteúdo etológico” da acção protagonizada pelo seu titular — o Papa Francisco —, acção comovente e exemplarmente mobilizadora que está indelevelmente marcada pelos valores da libertação, magnanimidade, candura, simplicidade, autenticidade... Numa palavra: Jorge Mario Bergoglio, ao ter escolhido “São Francisco de Assis” para seu “Padrinho Pontificial”, não só soube escolher, mas também está a fazer jus celebratório ao “Poverello” e a honrar condignamente o seu “santo nome”, não o invocando, pois, em vão... E tem sido esta coerência profunda entre “palavra e acção” que (parafraseando adaptativamente Walter Benjamin) vem permitindo e garantindo, com encantadora e cativante consistência, que em asas de anjo, venha pairando a Música e que o mistério se venha afirmando como o fundamento existencial e divino da revelação da própria Beleza. E tudo isso, porque a Verdade é descoberta na essência da linguagem (cf. Walter Benjamin: Ensaios sobre Literatura [edição e tradução de João Barrento], Lisboa, Assírio & Alvim, 2016, pp. 129 ss). Essa “descoberta” não deixa de convocar, neste contexto, a famosa “lição” de Heidegger, quando, na Carta sobre o Humanismo (cf. Martin Heidegger: Lettre sur l’Humanisme, Paris, Aubier Montaigne, edição bilingue, 1964, pp. 76-77, 162-163), nos dá, através das célebres e belíssimas metáforas aí consignadas, «o Homem como o Pastor do Ser» [«der Mensch ist der Hirt des Seins»] e a linguagem como sendo, ao mesmo tempo, «a morada do Ser» e «o abrigo da essência do Homem» [«ist die Sprache zumal das Haus des Seins und die Behausung des Menschenwesens»], significando, com isso, que é na mais funda interioridade de cada um de nós e para lá de qualquer Paris, Le Robert, 1992, entradas «Franc, Franche», «Franc, Franque», «Français, Française»... 13 Fernando Paulo do Carmo Baptista “jogo de máscaras”, que germina, se desvela e se move todo o enigma do homem e todo o mistério da vida e do mundo» (Cf. Fernando Paulo Baptista: Tributo à Madre Língua, Coimbra, Pé de Página Editores, 2003, p. 164). *** São várias as figuras do universo da religiosidade e do sagra- do que imortalizaram o nome “Francisco” pelo “exemplo de vida” que protagonizaram: Francisco de Assis (1181-1226), Francisco de Paula (1416-1507), Francisco Xavier (1506-1552), Francisco de Borja (1510- 1572), Francisco Caracciolo (1563-1608), Francisco de Sales (1567- 1622)... Mas, DE TODOS ELES, AQUELE QUE CONDUZIU A SUA VIDA MAIS EM SINTONIA COM A SEMÂNTICA FUNDACIONAL DO SEU NOME E ATINGIU O PONTO MAIS ALTO DO ENCAN- TAMENTO MOBILIZADOR PARA A “POÉTICA DA TRANSFOR- MAÇÃO HUMANIZADORA DO MUNDO” FOI FRANCISCO DE ASSIS, tal como ressalta da sua famosa “Oração”: «Senhor, fazei de mim um instrumento de Vossa Paz. Onde houver ódio, que eu leve o Amor; Onde houver ofensa, que eu leve o Perdão; Onde houver discórdia, que eu leve a União; Onde houver dúvida, que eu leve a Fé; Onde houver erro, que eu leve a Verdade; Onde houver desespero, que eu leve a Esperança; Onde houver tristeza, que eu leve a Alegria; Onde houver trevas, que eu leve a Luz. Mestre, fazei com que eu procure mais consolar, que ser consolado; compreender, que ser compreendido; amar, que ser amado. Pois é dando que se recebe, é perdoando que se é perdoado... e é morrendo que se vive para a Vida Eterna». 14 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO Oração que se projecta, em comovedor registo poético, no “Laudato Si, mi’ Signore”: (...) pela nossa irmã, a mãe Terra, que nos sustenta e governa e produz variados frutos com flores coloridas e verduras». Foi, pois, com inteira coerência que o CARDEAL JORGE MARIO BERGOGLIO, uma vez eleito para ocupar a “Cátedra de São Pedro”, escolheu o simbolicamente tão simples nome identitário de “Francisco”, inspirando-se naquele que tomou como “paradigma”: S. Francisco de Assis. E fê-lo, assumindo o seu “Cantico di Frate Sole” como emblemático “Poema” modelador da sua “Acção Pastoral”: Altissimu, onnipotente, bon Signore, tue so’ le laude, la gloria e l’honore et onne benedictione. Ad te solo, Altissimo, se konfano, et nullu homo ène dignu te mentovare. Laudato sie, mi’ Signore, cum tucte le tue creature, spetialmente messor lo frate sole, lo qual’è iorno, et allumini noi per lui. Et ellu è bellu e radiante cum grande splendore: de te, Altissimo, porta significatione. Laudato si’, mi’ Signore, per sora luna e le stelle: in celu l’ài formate clarite et pretiose et belle. Laudato si’, mi’ Signore, per frate vento et per aere et nubilo et sereno et onne tempo, per lo quale a le tue creature dài sustentamento. Laudato si’, mi’ Signore, per sor’aqua, la quale è multo utile et humile et pretiosa et casta. Laudato si’, mi’ Signore, per frate focu, per lo quale ennallumini la nocte: ed ello è bello et iocundo et robustoso et forte. Laudato si’, mi’ Signore, per sora nostra matre terra, la quale ne sustenta et governa, et produce diversi fructi con coloriti flori et herba. Laudato si’, mi’ Signore, per quelli ke perdonano per lo tuo amore et sostengo infirmitate et tribulatione. 15 Fernando Paulo do Carmo Baptista Beati quelli ke ’l sosterrano in pace, ka da te, Altissimo, sirano incoronati. Laudato si’, mi’ Signore, per sora nostra morte corporale, da la quale nullu homo vivente pò skappare: guai a·cquelli ke morrano ne le peccata mortali; beati quelli ke trovarà ne le tue sanctissime voluntati, ka la morte secunda no ’l farrà male. Laudate e benedicete mi’ Signore et rengratiate e serviateli cum grande humilitate. (Cf. Mario Pazzaglia: Gli Autori della letteratura italiana — Antologia ad uso dei Licei e degli Istituti Magistrali, Bologna, Zanichelli, 1980, volume primo, pp. 105-107) E foi também na harmonia da transparência irradiante que construiu e promulgou uma das mais belas “partituras” sapienciais e doutrinais — a Carta Encíclica «Laudato si’» — sobre o cuidado holístico-sistémico a ser dedicado à “Casa Comum Planetária”, partitura essa, marcada pela presença incontornável do seu “Angelus” inspirador, não só enquanto poético “Patrono” neo-baptismal, mas também enquanto “Modelo” de referência para a Pastoral da “Pater- nosterização do Mundo” e, consequentemente, da sua “Fraterização”: — FRANCISCO DE ASSIS — Na verdade, nesse encantador e estelar “Εὐαγγέλιον (Evangelium) Pastoral” que fundamenta e orienta o “Magistério Social” do Papa Francisco aparece explicado, com toda a clareza e candura comunicativa, não só “o porquê”, mas também “o para quê” da escolha do “Poeta de Assis”, para seu modelo e bússola: «10. Não quero prosseguir esta encíclica sem invocar um modelo belo e motivador. Tomei o seu nome por guia e inspiração, no momento da minha eleição para Bispo de Roma. Acho que Francisco é o exemplo por excelência do cuidado pelo que é frágil e por uma ecologia integral, vivida com alegria e autenticidade. É o santo padroeiro de todos os que estudam e trabalham no campo da ecologia, 16 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO amado também por muitos que não são cristãos. Manifestou uma atenção particular pela criação de Deus e pelos mais pobres e abandonados. Amava e era amado pela sua alegria, a sua dedicação generosa, o seu coração universal. Era um místico e um peregrino que vivia com simplicidade e numa maravilhosa harmonia com Deus, com os outros, com a natureza e consigo mesmo. Nele se nota até que ponto são inseparáveis a preocupação pela natureza, a justiça para com os pobres, o empenhamento na sociedade e a paz interior. 11. O seu testemunho mostra-nos também que uma ecologia integral requer abertura para categorias que transcendem a linguagem das ciências exactas ou da biologia e nos põem em contacto com a essência do ser humano. Tal como acontece a uma pessoa quando se enamora por outra, a reacção de Francisco, sempre que olhava o sol, a lua ou os minúsculos animais, era cantar, envolvendo no seu louvor todas as outras criaturas. Entrava em comunicação com toda a criação, chegando mesmo a pregar às flores «convidando-as a louvar o Senhor, como se gozassem do dom da razão». A sua reacção ultrapassava de longe uma mera avaliação intelectual ou um cálculo económico, porque, para ele, qualquer criatura era uma irmã, unida a ele por laços de carinho. Por isso, sentia-se chamado a cuidar de tudo o que existe. São Boaventura, seu discípulo, contava que ele, «enchendo-se da maior ternura ao considerar a origem comum de todas as coisas, dava a todas as criaturas – por mais desprezíveis que parecessem — o doce nome de irmãos e irmãs». Esta convicção não pode ser desvalorizada como romantismo irracional, pois influi nas opções que determinam o nosso comportamento. Se nos aproximarmos da natureza e do meio ambiente sem esta abertura para a admiração e o encanto, se deixarmos de falar a língua da fraternidade e da beleza na nossa relação com o mundo, então as nossas atitudes serão as do dominador, do consumidor ou de um mero explorador dos recursos naturais, incapaz de pôr um limite aos seus interesses imediatos. Pelo contrário, se nos sentirmos intimamente unidos a tudo o que existe, então brotarão de modo espontâneo a sobriedade e a solicitude. A pobreza e a austeridade de São Francisco não eram simplesmente um ascetismo exterior, mas algo de mais radical: uma renúncia a fazer da realidade um mero objecto de uso e domínio. 12. Por outro lado, São Francisco, fiel à Sagrada Escritura, propõe-nos reconhecer a natureza como um livro esplêndido onde 17 Fernando Paulo do Carmo Baptista Deus nos fala e transmite algo da sua beleza e bondade: «Na grandeza e na beleza das criaturas, contempla-se, por analogia, o seu Criador» (Sab 13, 5) e «o que é invisível n’Ele — o seu eterno poder e divindade — tornou-se visível à inteligência, desde a criação do mundo, nas suas obras» (Rm 1, 20). Por isso, Francisco pedia que, no convento, se deixasse sempre uma parte do horto por cultivar para aí crescerem as ervas silvestres, a fim de que, quem as admirasse, pudesse elevar o seu pensamento a Deus, autor de tanta beleza. O mundo é algo mais do que um problema a resolver; é um mistério gozoso que contemplamos na alegria e no louvor. O MEU APELO 13. O urgente desafio de proteger a nossa casa comum inclui a preocupação de unir toda a família humana na busca de um desenvolvimento sustentável e integral, pois sabemos que as coisas podem mudar. O Criador não nos abandona, nunca recua no seu projecto de amor, nem Se arrepende de nos ter criado. A humanidade possui ainda a capacidade de colaborar na construção da nossa casa comum. Desejo agradecer, encorajar e manifestar apreço a quantos, nos mais variados sectores da actividade humana, estão a trabalhar para garantir a protecção da casa que partilhamos. Uma especial gratidão é devida àqueles que lutam, com vigor, por resolver as dramáticas consequências da degradação ambiental na vida dos mais pobres do mundo. Os jovens exigem de nós uma mudança; interrogam- se como se pode pretender construir um futuro melhor, sem pensar na crise do meio ambiente e nos sofrimentos dos excluídos. 14. Lanço um convite urgente a renovar o diálogo sobre a maneira como estamos a construir o futuro do planeta. Precisamos de um debate que nos una a todos, porque o desafio ambiental, que vivemos, e as suas raízes humanas dizem respeito e têm impacto sobre todos nós. O movimento ecológico mundial já percorreu um longo e rico caminho, tendo gerado numerosas agregações de cidadãos que ajudaram na consciencialização. Infelizmente, muitos esforços na busca de soluções concretas para a crise ambiental acabam, com frequência, frustrados não só pela recusa dos poderosos, mas também 18 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO pelo desinteresse dos outros. As atitudes que dificultam os caminhos de solução, mesmo entre os crentes, vão da negação do problema à indiferença, à resignação acomodada ou à confiança cega nas soluções técnicas. Precisamos de nova solidariedade universal. Como disseram os bispos da África do Sul, «são necessários os talentos e o envolvimento de todos para reparar o dano causado pelos humanos sobre a criação de Deus». Todos podemos colaborar, como instrumentos de Deus, no cuidado da criação, cada um a partir da sua cultura, experiência, iniciativas e capacidades. 15. Espero que esta carta encíclica, que se insere no magistério social da Igreja, nos ajude a reconhecer a grandeza, a urgência e a beleza do desafio que temos pela frente. Em primeiro lugar, farei uma breve resenha dos vários aspectos da actual crise ecológica, com o objectivo de assumir os melhores frutos da pesquisa científica actualmente disponível, deixar-se tocar por ela em profundidade e dar uma base concreta ao percurso ético e espiritual seguido. A partir desta panorâmica, retomarei algumas argumentações que derivam da tradição judaico-cristã, a fim de dar maior coerência ao nosso compromisso com o meio ambiente. Depois procurarei chegar às raízes da situação actual, de modo a individuar não apenas os seus sintomas, mas também as causas mais profundas. Poderemos assim propor uma ecologia que, nas suas várias dimensões, integre o lugar específico que o ser humano ocupa neste mundo e as suas relações com a realidade que o rodeia. À luz desta reflexão, quereria dar mais um passo, verificando algumas das grandes linhas de diálogo e de acção que envolvem seja cada um de nós seja a política internacional. Finalmente, convencido – como estou – de que toda a mudança tem necessidade de motivações e dum caminho educativo, proporei algumas linhas de maturação humana inspiradas no tesouro da experiência espiritual cristã.» (Cf. Papa Francisco: Carta Encíclica “Laudato Si’ sobre o cuidado da casa comum”: http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals/documents/papa- francesco_20150524_enciclica-laudato-si.html) 19 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO IRMÃO FRANCISCO Há muitos anos já o San Lorenzo de Almagro ganhou em Lisboa por dez e no Porto por nove. Foi a melhor equipa que já vi. Só não imaginava que um seu adepto chamado Bergoglio viria a ser Papa. Ainda guarda a camisola mas hoje a bola é sua irmã Terra e o seu clube a humanidade sua irmã. Ele lava os pés aos pobres e as suas palavras lavam a nossa alma. Francisco trouxe um novo Mundo ao Mundo porque veio clamar justiça contra a injustiça e ao capitalismo chamou capitalismo contra o bezerro de oiro e o império do dinheiro como outro Francisco ele é irmão dos que precisam à desigualdade chamou desigualdade e à guerra chamou guerra desocultou o pecado a hipocrisia a corrupção a palavra do homem estava pervertida com Francisco a palavra libertou-se e voltou a ser palavra que liberta. Lisboa, 21.04.2017 Manuel Alegre 21 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO II. Rapsódia Ensaística 23 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO 1. Segredo... Mistério... Fé... Deus e o Homem... «Os altíssimos e impressionantes silêncios dos espaços siderais são (...) simbolicamente quebrados pelo canto da fé.» «... o universo contém uma “música teológica” silenciosa.» «Os grandes meios de comunicação, a partir da televisão e da internet, ensinam-nos tudo sobre as modas e os modos de viver, sobre a alimentação e o consumo, mas ignoram qualquer interrogação e resposta sobre o sentido da vida.»1 1 Gianfranco Ravasi: O Grande Encontro entre Deus e sua Criatura, Prior Velho, Paulinas Editora, 2012, pp. 29, 31, 95, respectivamente. 25 Fernando Paulo do Carmo Baptista A questão do “SEGREDO”, pensada no estrito contexto da dimensão religiosa da Fé e sob um enfoque filológico-linguístico, simbólico e antropológico-cultural2, não dispensa uma referência, ainda que sumária, à multiplicidade de áreas, instâncias e instituições da vida social e comunitária e respectivas práticas comunicacionais e relacionais em que o termo ‘segredo’ aparece como recorrente designador conceptual. Basta pensar, a título de exemplo, em lexias, colocações, frasemas ou quase-frasemas3 já tão consagrados como os seguintes: «segredo de Estado», «segredo militar», «serviços secretos» (Política, Defesa, Segurança), «segredo de justiça» (Direito, Tribunais), «segredo [sigilo] de confissão» (Religião Católica — Direito Canónico), «segredo científico» (Investigação e Experimentação Científicas), «segredo [sigilo] profissional» (Deontologia Profissional), «segredo [sigilo] bancário» (Economia / Finanças), «segredo das fontes» (Comunicação Social)4... E se avançarmos no sentido da interpretação e da compreensão do conteúdo noético-noemático do conceito nomeado por este lexema, torna-se imprescindível postular (como sistemático, direccionante e 2 Tal foi a proposta do tão desafiante quanto honroso convite que me foi dirigido pelo Secretariado do Santuário de Fátima, para colaborar na revista Fátima XXI, Fátima, Santuário de Nossa Senhora do Rosário de Fátima (cf. o n.º 0 da revista, com data de 13 de Maio, 2014, pp. 49-53). 3 Sobre estes conceitos, ver Álvaro Iriarte Sanromán: A Unidade Lexicográfica – Palavras, Colocações, Frasemas, Pragmatemas (dissertação de Doutoramento), Braga, Centro de Estudos Humanísticos, Universidade do Minho, 2001, pp. 138-149 e 169-204. 4 Cf., a título documentativo, a Lei n.º 6/94, de 7 de Abril; Luísa Maria Pinto Teixeira: Segredo de Justiça (dissertação de Mestrado em Direito Judiciário), Braga, Universidade do Minho, 2011, com a ampla e diversificada bibliografia que a suporta, do ponto de vista da informação, fundamentação e argumentação; o Acórdão nº. 1560/08.3TBOAZ.P1.S1 do Supremo Tribunal de Justiça, 16 de Março de 2011; o Decreto-Lei nº. 278/2009, de 02 de Outubro de 2009; o artigo jornalístico de opinião, intitulado «Segredos e sigilo, fontes confidenciais e confidencialidade», subscrito por Óscar Mascarenhas no DN, de 1 de Dezembro de 2012; Carlos Mateus: Deontologia Profissional (I e II cursos de Estágio de Advogados), Lisboa, VerboJurídico, 2011; Carlos Mateus: Deontologia Forense — Limites ao exercício da profissão de advogado, Póvoa de Varzim, Carlos Mateus & Associados, VerboJurídico, 2011; cf. também António Leite: artigo «segredo [sigilo]», com suas especificações, na Enciclopédia Verbo Luso-Brasileira de Cultura, Edição Século XXI, 2003, vol. 26, pp. 607-609. 26 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO activador pressuposto hermenêutico de uma sua sustentada e contextualizada inteligibilidade...) a interacção analítico-dialéctica e dialógico-articulatória com uma vasta rede sapiencial, nominalmente condensada e enciclopaideuticamente polarizada em configurações gnosiológicas tão complexas como as seguintes: universo, tempo, espaço, duração, matéria, natureza, evolução, vida, animalidade, hominização, homem (anthropos), corpo, mente, sensibilidade, (auto)consciência, imaginação, criatividade, alma, espírito, Deus, tudo, nada, relativo, absoluto, imanência, transcendência, finito, infinito, física, metafísica, natural, sobrenatural, indivíduo, identidade, diferença, ipseidade, alteridade, subjectividade, intersubjectividade, sociedade, comunidade, público, privado, sagrado, profano, necessidade, liberdade, alienação, angústia, niilismo, absurdo, racionalidade, irracionalidade, trans- racionalidade, superstição, ignorância, informação, conhecimento, cultura, civilização, valores, historicidade, tradição, modernidade, ciência, arte (poesia, música, arquitectura...), imperfeição, perfeição, pecado, santidade, dogma, problema, silêncio, sigilo, confidencialidade, enigma, mistério, milagre, crítica, agnosticismo, fé, religião, misticismo, catarse, soteriologia, escatologia, eternidade...5 5 Cf. Giuseppe Tanzella Nitti e Alberto Strumia (coords.): Dizionario Interdisciplinare di Scienza e Fede, Urbaniana University Press, Città del Vaticano, 2002, 2 vols, nos seguintes artigos, entre outros: Agnosticismo, Anima, Antropico (Principio), Ateismo, Bellezza, Biologia, Cielo, Cosmo (Osservazione), Creazione, Cultura, Cuore, Determinismo, Dialogo Scienze-Teologia, Dio, Epistemologia, Ermeneutica, Evoluzione, Etica del lavoro scientifico, Fideismo, Genetica, Gesù Cristo, Infinito, Informazione, Materia, Miracolo, Mistero, Mito, Panteismo, Positivismo, Preghiera, Progresso, Ragione, Resurrezione, Scienza, Scienze Naturali (utilizzo in Teologia), Simbolo, Spirito, Tempo, Unità del Sapere, Universo, Uomo (identità biologica e culturale), Vangeli, Verità; cf., igualmente, Mariano Moreno Villa (dir.): Diccionario de Pensamiento Contemporáneo, Madrid, San Pablo, 1997, nos seguintes artigos (com suas conexões e implicações dialógicas): Absoluto, Absurdo, Agnosticismo, Alma, Amor, Angustia, Antropología, Ateísmo, Axiología personalista, Belleza, Bien y bien común, Carácter, Carisma, Ciencia, Compasión, Compromiso, Comunicación, Comunidad, Confianza, Contemplación, Contingencia, Corazón, Creencia, Cristianismo, Cuerpo (corporeidad-corporalidad), Culpa e inocencia, Cultura, Deber, Derechos humanos, Deseo, Determinismo e indeterminismo, Diálogo, Dios, Donación, Encuentro, Esperanza, Espiritualidad, Estética, Ética, Existencia, Fe, Felicidad, Fidelidad, Finitud, Fraternidad, 27 Fernando Paulo do Carmo Baptista Importa, pois, que essa “rede” poli-sófica esteja sempre presente, ainda que de modo implícito (como background sapiencial potenciador da delimitação e especificação semântico-semiósica do termo e conceito de “segredo”), na presente e condensada reflexão... Todavia, em assumida consonância com o primigénio ensinamento “cosmo(texto)gónico” de que «no princípio está o verbo» (João: Ev.,1), a abordagem ao complexo conteúdo eidético-conceptual do “SEGREDO” não pode nem deve prescindir da consciência da profundidade genealógico-significante da palavra que o identifica, demarca e singulariza, na medida em que, em meu entendimento, a palavra, pensada, por um lado, em sua estrita singularidade de «monema lexical», não deixa de ser um búzio polifónico, espiral e verticalmente carregado de fundura histórica, de memória, de mistério e de potencial semiogénico e, mais holisticamente perspectivada, pelo outro, em sua universal dimensão antropológica e essência semiótico- linguística como «faculdade simbólico-comunicacional», é, para Heidegger, «simultaneamente a morada do Ser e o abrigo da essência do Homem»6 ou, no belo e incisivo encadeamento metafórico do Hedonismo, Hermenéutica, Hombre (varón-mujer), Humanismo, Igualdad, Infinito, Interpersonalidad e intersubjetividad, Justicia, Lenguaje, Libertad, Mal, Materia, Metafisica, Misterio, Muerte, Mundo y cosmos, Nada y nihilismo, Naturaleza, Palabra, Persona, Política, Razón y racionalidad, Religión, Respeto, Responsabilidad, Revelación y epifanía del otro, Rostro, Sabiduría, Secularización y secularismo, Sentido de la vida, Sentimiento, Ser, Solidaridad, Sufrimiento, Sujeto, Teleología, Tener, Teología, Tolerancia, Totalidad, Trabajo, Trascendencia, Trinidad, Utopía, Valor, Verdad, Vida, Virtud, Vocación, Yo y tú; cf. também, nas entradas respectivas ou com elas correlacionáveis, a Enciclopédia Einaudi, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1984-2000, vols. 1, 5, 9, 10, 12, 14, 18, 22, 33, 34, 35, 36, 37, 39, 40, 41; a Enciclopédia Verbo Luso-Brasileira de Cultura - Edição Século XXI, Lisboa / São Paulo, Editorial Verbo, 1998-2003, onde se encontram importantes artigos nas correspondentes entradas disseminadas pelos seus 29 volumes; a Catholic Encyclopedia (http://www.catholic.org/encyclopedia/), a Gran Enciclopedia Rialp [GER] http://www.canalsocial.net/GER/busquedaav.asp) e, ainda, Maryanne Cline Horowitz (ed.): New Dictionary of the History of Ideas, New York – London, Thomson Gale, 2005, 6 vols. 6 «... ist die Sprache zumal das Haus des Seins und die Behausung des Menschenwesens» (cf. Martin Heidegger: Lettre sur l’humanisme [edição bilingue, com tradução de Roger Munier], Paris, Aubier, 1970, pp. 162-163). 28 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO inspirado poeta e ensaísta argentino Hugo Mujica7, «umbral y altar del ser y el deseo...». Por outro lado, depois da “lição” do consagrado linguista M.A.K. Halliday, não é convalidável a conjectura de que se possa engendrar, construir, constituir e organizar verbo-discursivamente (logo-fanicamente) o conhecimento de qualquer área do “real” ou do “ôntico” (seja ela antrópica ou meta-antrópica, cósmica ou meta- cósmica, física ou meta-física, empírica ou ficcional...) que fenomenologicamente se nos coloque à consideração e à reflexão, sem o accionamento do “código lexical”, sem o recurso aos “lexemas” de um dado “sistema linguístico”8. É assim que se nos impõe como preludial condição uma clarificadora “radicação” de natureza etimológico-filológica e linguístico-lexicológica acerca da origem e significado do termo ‘segredo’. Na verdade, se por um lado, e com Arnaldo de Pinho9, genericamente aceitarmos que «toda a linguagem é lírica e crítica» e que «a linguagem religiosa não constitui excepção à regra», e se, pelo outro, reconhecermos que uma abordagem séria à problemática do “SEGREDO” e do “SAGRADO”, seja qual for o prisma da sua perspectivação, muito dificilmente poderá dispensar o inestimável contributo reflexivo da Teologia, «o discurso teológico (como adverte aquele nosso consagrado pensador desta profunda área sapiencial...), 7 Cf. Hugo Mujica: Flecha en la Niebla: Identidad, Palabra y Hendidura, Madrid, Editorial Trotta, 1997, p. 167. 8 Na verdade, e em consonância com Halliday, é na lexicogramática (e mais focadamente no léxico...) que reside «o coração da linguagem» («the heart of language» [Halliday: 2003, 194]) e «a fonte da sua energia semiótica» («the source of its semiotic energy» [Halliday: 2003, 276]), constituindo, assim, «a casa do poder semiogénico de uma língua» («the semogenic powerhouse of a language» [Halliday: 2003, 248]), poder que transforma o léxico no “centro nevrálgico” da construção de todas as significações e de todos os sentidos, numa palavra, de todo o conhecimento, uma vez que é ele o insubstituível codificador, ordenador, sistematizador e informante noético-noemático e semiósico e, assim, o imprescindível sustentáculo operatório da acção verbo-comunicativa interpretante e expressante... Cf. M.A.K. Halliday: On Language and Linguistics, London / New York, Continuum, 2003, nas páginas referenciadas; cf. também Fernando Paulo Baptista: Nesta nossa doce língua de Camões e de Aquilino, Sernancelhe, edição da CM de Sernancelhe, 2010, p. 59. 9 Cf. Arnaldo de Pinho: Teologia e Interpretação, vol. I, S. M. da Feira, Letras & Coisas, 2012, pp. 171, 398, 400-401 e passim. 29 Fernando Paulo do Carmo Baptista dissecado e cortado de suas raízes (que, importa sublinhá-lo bem, são “raízes” verbo-simbólicas e, à partida e substantemente, semântico- lexicais!...), arrisca-se a transformar-se num simples repertório lógico» e muito dificilmente será aquela “instância da linguagem” capaz de garantir a “função hermenêutica” de articular as enunciações simbólicas com as enunciações doutrinais, potenciar o confronto com os mitos10 e os símbolos11 da Sagrada Escritura e de outras meta- narrativas religiosas, disponibilizar as formas e os meios de representação e comunicação semiótica «no interior das quais as questões mais profundas da vida profana podem ser reagrupadas, compreendidas e redimidas», bem como promover o desenvolvimento entre «o pensamento revelador e o pensamento expressivo». Tudo no pressuposto de que «a cultura é, em primeiro lugar, o horizonte onde a fé é vivida, com seu feixe de significações, de símbolos, de mitos e de conceitos»12. Comecemos, então, pela supra-anunciada e justificada “radicação” em torno da origem e significado do termo ‘segredo’. O nuclear, incindível e irredutível constituinte morfo- semiogénico do corpo estrutural da palavra ‘segredo’ é a raiz indo- europeia *[s]ker- / [s]kṛ- > [s]kar- / [s]kr-a- / [s]kr-e- / [s]kor-13, 10 Sobre o conceito de “mito”, dada a sua relevância e na perspectiva de um seu mais adequado entendimento, considerar a informação veiculada, no fim, em ANOTAÇÕES: 1. 11 Sobre o conceito de “símbolo”, e com o mesmo objectivo, considerar, analogamente, a informação apresentada, no fim, também em ANOTAÇÕES: 2. 12 Cf. Arnaldo de Pinho: op. cit., p. 398. 13 O lexema ‘segredo’ é um nome proveniente do substantivo neutro latino ‘secretum, -i’, da mesma família do verbo secerno, -is, -ere, secrevi, secretum (= cortar, separar, dividir, colocar à parte, retalhar separativamente com um instrumento cortante [acepção físico-anatómica] ou com a mente [acepção distintivo-discernente, intelectivo-cognitiva], de onde, o significado de «separar ou retirar algo do domínio público para o circunscrever à esfera recatada, sigilosa e íntima de pessoas ou instituções»...); o verbo secerno é, como se pode verificar através da sua análise ou decomposição morfémica (< sē + cer- + -no), um cognato prefixal formado a partir do verbo cerno, -is, -ere, crevi, cretum (= cortar, separar, distinguir, discernir, ajuizar, decidir...), em que o prefixo «se-» (também ele proveniente do indo-europeu *s(w)e- , base do inglês «self» e base, também, do nosso pronome pessoal reflexo «-se»: alegrar-se, alimentar-se, arrepender-se, cortar-se, lavar-se...) introduz uma função de retro-flexidade (de retro-jectividade) do conteúdo semântico inseminado na raiz do verbo em direcção ao “sujeito da enunciação”: «secedere», «secernere», «secludere», 30 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO naturalmente modelada, em suas configurações concretas, por variações de natureza morfogénica e por ampliamentos sufixais... Esta importantíssima raiz, veiculadora do significado genealógico e fundacional de cortar14, separar, apartar, marcar limites ou fronteiras, em sentido próprio e em sentido figurado ou tropológico (este último, através do “código retórico-estilístico”, com destaque para as figuras da metáfora, do símbolo, da alegoria, da metonímia, da hipérbole...), está na base (com muito próxima isomorfia e afinidade lexical na generalidade das “línguas românicas”: espanhol, francês, italiano...) de «seducere», «segregare»...; por sua vez, o verbo cerno (< cer- + -no) apresenta no seu «tema temporal» de “presente” a variante da raiz indo-europeia cer- (< ker-) no «grau e», com a adjunção do sufixo verbal –no, típico de alguns presentes latinos e gregos (exs: dam-no, -as, -are; dãk-nv [dak-no]...), raiz com a qual se relacionam morfo- semanticamente lexemas latinos como carpere (= colher, cortar o fruto da árvore), certamen (= luta, combate), cerniculum (= julgamento, crivo), concernere (= juntar, misturar as sementes [ou as ideias] no crivo para as seleccionar), concretum, corium (= couro, pele que foi esfolada), coriaceus, corticeus, -a, -um (= relativo à casca do sobreiro; cortiça), cribrare, cribrum (ex.: «per cribrum cernere: passar pelo crivo, passar a pente fino), crimen, criminalis, curtare, curtus, decorticatio (= descascagem), decorticare (= descascar), discernere, discretio, discretum, discrimen, discriminator, discriminare, excorticare (= tirar a casca, descascar, esfolar a pele), secretarium (lat. medieval: sala de reuniões sigilosas, feitas à parte, em segredo, como é o caso da generalidade das reuniões dos júris...), secretarius (lat. medieval: = pessoa pressupostamente culta e competente, incumbida do cargo de elaborar e redigir documentos institucionais importantes e reservados e de tratar, de modo distintivo e criterioso e com a devida segurança e confidencialidade, assuntos de natureza sigilosa; secretário), secrete, secretim, secretio, secretiora, secreto, secretus, -a, -um (= separado, colocado à parte, fora do alcance da vista, escondido...), scribere (= fazer incisões [grafémicas], escrever), scriptor (= escritor), scriptura (= escritura), scrobis (= escavação, cova, fossa), scortum (= couro), scortea (= casacão de pele), scrutinium (= escrutínio, exame cuidadoso e pormenorizado)... 14 Com a consciência bem clara de que a ideia de “cortar” não deixa de implicar também consigo as ideias de ferir, esfolar, descascar, arrancar a pele ou o couro, magoar, fazer doer, causar dor e sofrimento..., cabendo, todavia, complementar toda esta carga semântica matricial com o valorador, humanizador e poiético entendimento de Hugo Mujica, segundo o qual, «el dolor es el don de la hondura», que «duele todo aquello que abre y que cava más hondo de onde uno ya llegó», que «por un lado, el dolor ahonda y, por otro, desde esa honhura el amor se expande» e que «(...) ésos son los dos movimientos, el flujo y el reflujo de la vida». (Hujo Mujica apud Gabriel Aranovich, Marta Rodríguez Santamaría, Marta Santamaría (orgs.): La Argentina pensada: diálogos para un país posible, Buenos Aires, Editorial Biblos, 1998, p. 196). 31 Fernando Paulo do Carmo Baptista um vasto conjunto de vocábulos da mesma família, de que fazem parte, entre outros, os seguintes: carne, carnificina, carnívoro, carpo, certame, certeza, certificar, certo, charcutaria, concernente, concertar, córtex, cortiça, couraça, couro, crise, critério, crítico, crivo, curto, decreto, descarnar, diacrítico, discernimento, discernir, encarnação, encarnar, encurtar, endócrino, escaramuça, escarpa, escassez, escoriação, escorpião, escrever, escritura, escrúpulo, escrupuloso, escrutinar, escrutínio, excremento, exócrino, hipocrisia, sarcasmo, sarcástico, secretaria, secretariado, secretário...15 15 De sublinhar, numa perspectiva de comparação inter-linguística e inter-lexical, a presença desta fecundíssima raiz (para além, como vimos, da matricial língua latina...) no inventário lexical de várias outras línguas indo-europeias, transportando em si o sema genómico e transversal de «cortar» (tanto em sentido próprio, como em sentido figurado); assim e por exemplo: em grego: ke€rv [keiro] (= cortar, podar), kermat€zv [kermatizo] (= cortar em pequenos pedaços), kormÒw [kormos] (= pequeno pedaço ou fatia que resulta de um corte), karpÒw [karpos] (= o que se corta ou retira da árvore para ser comido, fruto), kr€nv [krino] (= cortar, separar, fazer a triagem, escolher, distinguir o essencial do acessório, para poder ajuizar do que é verdadeiramente importante e, depois, decidir...), diakr€nv [diakrino] (= separar), kr€ma [krima] (= julgamento, decisão), kr€siw [krisis] (= corte analítico de exigente aprofundamento e diagnóstico clarificador, de acurada destrinça mental para discernir com inteligência os fenómenos, sua étio-génese e expressão patológica, ajuizar com competência e rigor, tomar decisões ajustadas e equitativas (justas) e abrir caminhos alternativos para uma superação criativa, inovadora, transformadora e humanizadora, face a uma situação de rara complexidade problemática e aporética, com inusitadas e alarmantes consequências sociais, como é a situação que vivemos...), kritÆr [kriter] (= juiz, decisor), kritÆrion (= padrão de referência que ajuda a cortar mentalmente, a separar, a clarificar, a discernir, a distinguir e a diferenciar; princípio ou regra que permite distinguir entre bem e mal, entre verdadeiro e falso, entre justo e injusto, etc...); kritikÒw ([kritikos] (= preparado, qualificado para discernir, distinguir; crítico...), sarkãzv [sarkazo] (= esfacelar a carne), sarkasmÒw [sarcasmos] (= sarcasmo, figura de estilo que se caracteriza pela sua contundência e mordacidade), sãrj, -kÒw [sarx, -kos] (= carne), sarkÒfagow [sarcofagos] (= sarcófago), skãrifow [scariphos] (= estilete para escrever, para fazer as incisões grafémicas nas tabuinhas da escrita); em sânscrito: kar (= mover de um lado para o outro, destacar), kart (= cortar), krnati (= ferir), krtíh (= cutelo)...; em inglês: apocrine, carnage (= carnificina), certain, concern, concert, cork (= cortiça para fazer rolhas), crime, criminal, crisis, criterion, critic, decree, diacritic, discern, disconcert, eccrine, endocrine, epicritic, excrete, exocrine, hematocrit (= tipo de análise hematológica que tem por objectivo medir a percentagem do volume do sangue total que é composto pelas células vermelhas; esta 32 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO O conteúdo singularizante e significante do conceito de “SEGREDO” institui-se efectivamente através de uma “linha de separação e de fronteira”, de “corte” discernente e distintivo entre público e privado, entre sagrado e profano, físico e metafísico, efémero e lábil e perene e eterno, de tal modo que a fundura onto-antropológica do ser humano se assume como a zona ou esfera reservada, sigilosa, protegida e inviolável do “tesouro” (thesaurus) que o “MISTÉRIO” é16... medição depende do número destas células e do seu tamanho), hypocrisy, garble, incertitude, plowshare (= arado, alfaia agrícola que rasga, corta ou retalha a terra em pedaços, deixando sulcos), recriminate, scar (= cicatriz), share (= partir em pedaços), shear (= podar, tosquiar), shears (= tesouras), scabbard (= bainha da espada...), scrape (= raspar), secretary, shard (= fragmento de uma peça de cerâmica, caco), sharp (= afiar), short (= curto), skirmish (= escaramuça)...; em alemão: scheren (= podar), Schere (= tesoura), schreiben (= escrever), Schriften (= escritura), Schroten (= cortar, talhar), Schrot (= tronco), herbsten (= colher), Skrupel (= escrúpulo), Herbst (= Outono, estação das colheitas), Kork (= cortiça para fazer rolhas, ou seja, a casca cortada e extraída do tronco dos sobreiros), Scherbe (= fragmento de uma peça de cerâmica, caco), Scharf (= talhante), schröpfen (= cortar superficialmente; escarificar as sementes); em antigo norueguês: skarfr (= corte em diagonal), skyrta (= camisa de manga curta) skor (= talhar), skrapa (= desfazer em pedaços)... Cf., entre vários outros, nas entradas respeitantes à raiz em análise: Alfred Ernout / Antoine Meillet: Dictionnaire étymologique de la langue latine: histoire des mots, Paris, Klincksieck, 4 2001; Pierre Chantraine: Dictionnaire étymologique de la langue grecque: histoire des mots, Paris, Klincksieck, 1999; Joan Corominas e José A. Pascoal: Diccionario Crítico Etimológico Castellano e Hispánico, Madrid, Editorial Gredos, 1991-1997, 5 vols; Robert Grandsaignes d’Hauterive: Dictionnaire des racines des langues européennes, Paris, Larousse, 1994 (ed. facs.); Calvert Watkins: The American Heritage Dictionary of Indo-European Roots, Boston-New York, Hougton Mifflin Company, 22000; Edward Roberts e Barbara Pastor: Diccionario Etimológico Indoeuropeo de la Lengua Española, Madrid, Alianza Editorial, 2007; Santiago Segura Munguía: Nuevo diccionario etimológico Latín – Español y de las voces derivadas, Bilbao, Universidad de Deusto, 2001; Idem: Diccionario por Raíces del Latín y de las voces derivadas, 2006; Julius Pokorny: Indogermanisches Etymologisches Wörterbuch, 2 vols., Tübingen, Francke A. Verlag, 2005; Douglas Harper: Online Etymology Dictionary: http://www.etymonline.com/index.php. 16 Cf. Jean Chevalier | Alain Gheerbrant: Dictionnaire des Symboles, Paris, Éditions Robert Laffont, 1982, entrada «Trésor», p. 967: «Le Trésor caché» não só é «le symbole de l’ Essence divine non manifestée» (...), mas é também «le symbole de la vie intérieure (...)». «Le trésor n’est pas un don gratuit du ciel; il se découvre au terme de longues épreuves». De um modo geral, os tesouros «são símbolos do conhecimento, da imortalidade, dos depósitos espirituais, que só uma busca arriscada permite alcançar. (...) O tesouro está geralmente no fundo das cavernas ou 33 Fernando Paulo do Carmo Baptista E o MISTÉRIO (que «é o “segredo” de Deus relativamente ao mundo»17), por mais que dele se tente dizer, por maior que seja o esforço de racionalidade interpretativo-compreensiva e explicativa (exegética e hermenêutica) que sobre ele se faça incidir, “resistirá” como uma inatacável “fortaleza” de silencioso, meditativo e tremendo “mutismo”18 encantatório que só a energia alumiante da FÉ consegue transformar na desveladora, veritativa e reveladora élÆyeia [alétheia]19 que se faz sentir, entender e viver em cada acto de amorável partilha com o CRIADOR... Essa poderá ser a “lição” maior da “Mística” e do “Misticismo”, alicerçada numa forte base civilizacional e cultural, proporcionada pelo vastíssimo e fascinante universo do Saber, desde a modelação antropo- agógica, paidêutico-simbólica, onírico-ideativa, aisthésico-poiésica e enterrado em subterrâneos. Esta situação simboliza as dificuldades inerentes à sua procura, mas sobretudo a necessidade de um esforço humano. O tesouro não é um dom gratuito do céu; descobre-se no fim de longas provações» (cf. a tradução portuguesa deste mesmo Dicionário de Símbolos, Lisboa, Círculo de Leitores, 1997, pp. 643-644). 17 Cf. Danielle Fouilloux et aliae: Dicionário Cultural da Bíblia, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1996, entrada «Mistério», pp. 180-181. Mas, «ainda que oculto ao entendimento de muitos, o “segredo” de Deus revela-se: Deus ama o mundo e não quer que se perca; todos os homens foram chamados à salvação. A essência, o cerne do “mistério“ no NT, é a vida, a cruz (o sofrimento partilhado por Deus) e a ressurreição de Jesus, que antecipa a salvação final do universo. É por isso que, no vocabulário cristão, o “mistério” designa sobretudo a “Páscoa” de Jesus e a sua actualização na Eucaristia (...)» (ibidem). 18 Cabe lembrar que o lexema ‘mistério’ provém do nome latino ‘mysterium’ que tem a sua matriz genética na raiz — *meu - / *m - / mu - —, portadora do significado fundacional de «ficar em silêncio, permanecer mudo e de boca cerrada», postura típica dos ritos “iniciáticos” e práticas “mistéricas” (“secretas”) como acontecia, por exemplo, nos famosos Mistérios de Elêusis; esta raiz está igualmente presente no seu homólogo grego mustÆrion (= segredo) — do qual foi decalcado para latim — e que pertence à mesma família do verbo mÊv (= cerrar a boca, não dizer palavra), todos eles relacionados com o adjectivo latino mutus, -a, -tum, no qual radicam os lexemas ‘mudo’, ‘mudez’ e ‘mutismo”... 19 Considerar, a propósito, o conceito heideggeriano de “verdade” como élÆyeia [alétheia] (cf. Martin Heidegger: A Essência da Verdade; marcas do Caminho [tradução de Enio Paulo Giachini e Ernildo Stein], Petrópolis, Vozes, 2008, pp. 25 ss.); relembrar também, neste contexto, a carta encíclica de Bento XVI: Caritas in Veritate” apud: http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/encyclicals/documents/hf_ben- xvi_enc_20090629_caritas-in-veritate_lt.html 34 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO arquitectante das Humanidades (Línguas e Literaturas, Antropologia, Psicologia, Sociologia, Direito, Filosofia, Teologia, etc...) e das Belas Artes (com especial destaque para a Grande Poesia, a Grande Arquitectura, a Grande Escultura, a Grande Pintura e o Grande Cinema e, sobretudo, a Grande Música...) até à racionalidade paradigmática e nomológico-explicativa das Ciências Puras e à operatividade metrológica, tecnúrgica, instrumental, pragmática e mediadora das Ciências Aplicadas e das Tecnologias... Na construção desse universo educativo-formativo tem a Universidade uma insubstituível missão na ascensional, plenificante e perfectivante caminhada social e comunitária em direcção ao Futuro, enquanto “Alma Mater” que alimenta e alumia a realização das nossas potencialidades e faculdades antrópicas mais poderosas: a imaginação criadora, a racionalidade crítica, argumentativa e judicativa, a sensibilidade poética e estética, a memória informante, identificante e referencializadora, a inteligência intuitiva, conjectural, teorética e práxico-realizadora, a vontade resiliente, destemida, direccionante e decisional... A partir dessa base cultural e sapiencialmente mais exigente e mais forte (mas de modo intersubjectivamente dialógico-dialéctico e epistemológica e metodologicamente aberto e plural, problematizador, indagante e interrogante...), a alma e o espírito do Homem ganham um especial e sempre renovado alento para a sua empenhada e apaixonante “náutica” em busca do “velo de ouro” de um sentido e de um horizonte sem limites para a Vida e para o seu voo anabático em direcção ao numinoso, ao santo, ao sagrado, ao divino ou último, numa dinâmica transcendente que simbolicamente se dirige ao céu, como “lugar” da divindade 20... Toda essa energética da “procura”, numa trans- popperiana «búsqueda sin término», tem o seu foco irradiante no “MISTÉRIO ” e na “FÉ”21. E hoje, mais do que nunca, «é preciso 20 Cf. Juan Antonio Estrada: El sentido y el sinsentido de la vida — Preguntas a la filosofía y a la religión, Madrid, Editorial Trotta, 2010, p. 53. 21 Considere-se o seguinte passo do importante e bem informado artigo «Mistero» de Tanzella-Nitti, op. cit., p. 987: «La riflessione dello scienziato sulla sua attività di ricerca gli mostra il mondo come un mistero. Sono un mistero l’essere e l’esistenza dell’universo, la sua coerenza, la nostra vita intelligente in esso. L’esperienza con cui si percepisce la presenza di questo «mistero» è, in un certo senso, un’esperienza di stupore, di riverenza ma anche di rivelazione: è la natura stessa a mostrarsi, a 35 Fernando Paulo do Carmo Baptista acreditar!...» (Leonel Neves / Luiz Goes22) que o homem só se humaniza, em plenitude, através da vivência dialógica com os «mistérios de Deus» — Ele que é o “Alfa” fundamentante (mas sem fundamentação) de todas as coisas e o “Ómega” alumiante da infinita e absoluta “finalidade” sem fronteiras nem limites... É assim que dos inenarráveis abismos das principialidades sem princípio e das ultimidades sem fim, de onde tudo afinal toma começo, irradia a “Luz” arquetípica e benfazeja do «Autor e Senhor da própria Luz»23: Autor e Senhor que «no es el ser máximo, sino el totalmente svelarsi. Lo scienziato semplicemente ci si imbatte. Infine, la realtà profonda cui rimanda l’appello al mistero o al mistico non si esprime, non si formalizza, ma costituisce piuttosto una base che sostiene il mondo dei fatti, il mondo di ciò che si può esprimere o formalizzare. Così come in quella teologica, anche nella riflessione scientifica il termine «mistero» non può identificarsi con i concetti di chiusura, limite o preclusione, anche se ne contiene alcuni elementi. La percezione del mistero rappresenta piuttosto un’apertura che attraversa l’esperienza del limite, ma la supera; non con gli strumenti della conoscenza scientifica, ma mediante una conoscenza che la trascende, sostanzialmente di tipo estetico, contemplativo o mistico. Il mistero di cui parlano a volte gli scienziati pare assumere i caratteri di un’apertura dall’interno della scienza verso qualcosa che trascende la scienza stessa». Mas o que deveras nos espanta, «o que, efectivamente, constitui o carácter incompreensível da encarnação e da graça»... é que «o finito humano possa receber o infinito divino» (cf. Arnaldo de Pinho, artigo «mistério» in Enciclopédia Verbo Luso-Brasileira de Cultura - Edição Século XXI, op. cit., 2001, vol. 20, p. 53); importa, assim, ter também na devida conta que, na Teologia cristã, «el misterio se refiere a la doctrina revelada por Dios, esto es, a la revelación de los secretos de la vida íntima de Dios y de sus planes sobre el hombre y el universo, que el fiel debe creer y que, sin ser irracional, está situado más allá de lo que la pura razón especulativa solitaria puede probar, ya que nunca es alcanzado racionalmente por completo, por lo que a ese misterio solo se puede acceder gracias a la revelación que el mismo Dios hace de sí. Cuando Dios no se revela, el acceso a su conocimiento o bien está vedado al hombre o bien siempre es desmedidamente precario» (cf. Mariano Moreno Villa: artigo «Misterio» in Mariano Moreno Villa [dir.]: Diccionario de Pensamiento Contemporáneo, op. cit., p. 791). 22 Escutar esta motivadora balada coimbrã: https://www.youtube.com/watch?v=035FUgVlnyY 23 Porque «la pregunta por el sentido de la vida es constitutiva del hombre» e «la religión (construção cultural e criação humana) está vinculada a la búsqueda de lo absoluto, lo inmutable y no contingente, que puede dar sentido y ofrecer salvación al hombre», tanto mais que «lo primario es la referencia a lo sagrado y misterico» (cf. Juan Antonio Estrada: op. cit., pp. 11 e 53; ver também Hugo Mujica: La Palabra Inicial, Madrid, Editorial Trotta, 2003, p. 31: «Sentido es el horizonte y no lo 36 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO otro, el diferente, que rompe las características del universo físico» e que «sólo una comunicación divina, la revelación» poderia esclarecer quem era e como actuava... Para «explicar su presencia en un mundo totalmente diferente de él», procuraram os cristãos a “ponte” em Jesus de Nazaré, cujo exemplo e modo de vida o transformaram não só no «“Eixo da História” mas também em “Paradigma” da dignidade e em “Critério” da busca intelectiva, humanizadora e anti-niilista de um sentido global para o “MISTÉRIO” de Deus, do Cosmos, da Natureza, da Vida e do Homem — busca essa, intentada pela reflexão filosófico-teológica dos pensadores mais antigos até à dos actuais, incluindo o decisivo contributo dos cientistas24... Ora, o “SEGREDO”, em sua acepção mais genuína, mais elevada e mais nobre (fora, portanto, da “fronteira” ou da “reserva” perversa, degradante e desumana do “secretismo” típico dos contextos ocultantes e intransparentes em que se movem, de modo antidemocrático, maquiavélico e politiqueiro, “os jogos e os negócios do(s) poder(es)”...), é esse misterioso e inesgotável “potencial”, guardado e blindado como o mais precioso e intransaccionável dos “tesouros” na “arca” humano-divina da fundura abissalmente mais íntima e mais recortado sobre él, es aquello que sin aparecer hace que todo lo que aparece tenga profundidad, que todo lo que se manifiesta tenga hondura, que cada parte manifieste al todo y el todo se abra a cada parte. Es lo que otorgando espacio y dimension, valor y hierarquia a cada cosa, hace que cada cosa tenga su propio nombre»); sobre o modo de perspectivar «Alfa e Ómega» e a «Luz», ver Hans Küng: O Princípio de Todas as Coisas, Lisboa, Edições 70, 2011, pp. 139-140 e 168; por outro lado, de um ponto de vista estritamente etimológico, filológico e lexicológico, Deus, pela semântica deste Seu nome identificador, é também o «Eterno Dia»: efectivamente, os lexemas ‘Deus’, ‘dies’, ‘deváh’ (= divindade, em sânscrito), ‘da va-’ (deus do mal, em avéstico), tal como ‘Zeus’, ‘Júpiter’ e ‘Dyaus’, têm como base constitutiva a mesma raiz genómica indo-europeia: *dyew- / diw- / dyu-/ deyw-o- (cf. Fernando Paulo Baptista: ensaio intitulado «Sob o signo da luz ou a “centelha” [scintilla] de Zeus na palavra “teoria” [ α (theoria)]», pp. 6-7, notas 18 a 25, apud: http://www.academia.edu; cf. também o estudo de Rubens C. Romanelli «Os Nomes de Deus no Indo-Europeu e no Semítico»: http://www.rubensromanelli.net/nomesdeus.html). Mas esta «luz» que cria, alumia, faz crescer e maturar... nada tem que ver com o feérico brilho que encandeia, deslumbra, entontece e faz enceguecer... 24 CF. Juan Antonio Estrada: op. cit., pp. 61-103. 37 Fernando Paulo do Carmo Baptista profunda do nosso corpo-alma (body-mind) peregrinante, indagativo, intuitivo, meditativo, crente e criador... Esse intransaccionável “potencial”, inseminado ao longo do Tempo e da História da Civilização e da Cultura na essência do “SEGREDO” e do “MISTÉRIO”, foi sendo, selectiva, criteriosa e electivamente “cortado”, “separado”, “descarnado”, “depurado”25 e, assim, “purificado”, entre Fé, Esperança e Amor (de par com misticismo, ascese e sofrimento26...), do território das “banalidades” imediatistas de um imanentismo sem horizonte e sem sentido que povoam as rotinas do quotidiano: daí, a sua dimensão de transcendência, superadora da angústia da finitude e da morte e do sem- sentido do absurdo e do nada... É assim que, em consonante paráfrase com Gianfranco Ravasi27, não podemos deixar de alimentar a esperançosa e serenante perspectiva de que a apetência do ser humano pela divindade não só é potenciada pelo fascínio que irrompe das funduras do mistério mas também pela interpelação numinosa e pelo respeito profundo motivado pela epifania divina e pela sublimidade da dimensão da transcendência», uma vez que, tal como sublinha Tanzella-Nitti28, «nonostante il peso 25 Tenha-se presente a semântica “genómico-genealógica” inseminada, como já vimos, na raiz indo-europeia — *[s]ker- / [s]kor- / [s]kṛ- > [s]kra- / [s]kar-, — do vocábulo seu nomeador... 26 “Cortar”... dói... e implica as capacidades de sofrer e de suportar: «... supporter, c’est se tenir soi-même, de gré ou de force, sous la puissance d’agir de l’autre»; (...) «supporter devient subir, lequel confine à souffrir. En ce point, la théorie de l’action s’étend des hommes agissants aux hommes souffrants. (...) «À vrai dire, toute action a ses agentes et ses patientes». Tudo isto tem que ver, afinal, com a questão do poder e da violência, tudo isto atinge o limiar da ideia de justiça enquanto regra que visa igualizar os pacientes e os agentes da acção (cf. Paul Ricoeur: Soi-même comme un autre, Paris, Seuil, 1990, p. 186). 27 Cf. Gianfranco Ravasi: O que é o Homem? — Sentimentos e Laços Humanos na Bíblia, Prior Velho, Paulinas Editora, 2012, p. 42. 28 Cf. Giuseppe Tanzella-Nitti: artigo «Mistero», op. cit., p. 979, sendo pertinente considerar também o seguinte complemento reflexivo: «Il «mistero» si colloca dunque al vertice di una delicata tensione fra nascondimento e rivelazione, fra chiusura ed apertura, fra desiderio di espansione e necessità imperiosa di tacere. Esso possiede una dinamica, quasi una traiettoria, che conduce dal silenzio alla comunicazione, dal segreto alla conoscenza, sebbene secondo modalità che ne rendono il messaggio indisponibile alla maggioranza degli uomini ed accessibile solo a coloro che vi si accostano con le dovute disposizioni religiose. Pare tuttavia 38 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO insostenibile del divino, esso si presenta in modo affascinante, qualcosa che suscita “meraviglia”». Importa, todavia, ter sempre bem vivo na memória o impressionante e desolado testemunho de Stig Dagerman, quando escreve: «Falta-me a fé e, portanto, nunca poderei ser um homem feliz, porque um homem feliz não pode ter o receio de que a sua vida seja apenas um caminhar insensato para uma morte certa...»29. É, pois, NUMA PERSPECTIVA DE FÉ E DE TRANSCENDÊNCIA (e sempre no respeitoso e aberto pluralismo e ecumenismo de perspectivas, entendimentos, práticas, caminhos e horizontes, quanto à universalidade do amor de Deus e à sua acção salvífico-revelacional na História30...), que se coloca indistintamente a todos os homens (com nome... ou sem nome...), em seu agónico e escatológico paroxismo, a questão da Vida e da Morte, do Ser e do Nada e, no seu âmbito, a relação entre Tempo e Eternidade... Ora esta relação «foi captada diferentemente ao longo da tradição filosófica e teológica. Mais que identificar eternidade com o fundamento estático ou adveniente do tempo, é preciso repensá-la em termos de mistério. Não se trata com isso de impedir a especulação, mas de mostrar o seu limite. Com isso, reconhecemos que qualquer riduttivo intendere il concetto di mistero, come fa il linguaggio comune ordinario, in termini di enigmaticità, incomprensibilità o perfino di irrazionalità». 29 Stig Dagerman: «A nossa necessidade de consolação», citado por Gianfranco Ravasi no seu interpelante e motivador ensaio «A Flor do Diálogo», apud: O Átrio dos Gentios, Prior Velho, Paulinas Editora, 2012, p. 15. 30 Sendo de sublinhar o decisivamente influente, inovador, arquitectante e propulsor contributo antropo-teológico, sistematicamente indagativo («Para mim mesmo e para o mundo, eu sou uma pergunta infinita...»), inclusor, ecuménico e «cristo-cêntrico» («toda a graça de Deus é gratia Christi»), de Karl Rahner (com a sua monumental e diversificada obra, elaborada ao longo de mais de 40 anos de estudo e de reflexão...), com particular repercussão no memorável Concílio Vaticano II; contributo, a ser naturalmente complementado com a crítica que lhe tem sido feita sobretudo quanto ao risco de «absolutização do testemunho cristão» relativamente à pluralidade de credos ou mesmo à ausência deles e a uma «cristologia trinitária» e «pneumológica» e quanto à fragilização do «direito à diferença» (cf. o bem elaborado ensaio-síntese da autoria do teólogo Faustino Teixeira, pós-doutorado em Teologia pela Pontifícia Universidade de Roma: «Karl Rhaner e as Religiões», com o diversificado e credenciado suporte bibliográfico em que se fundamenta; cf. também, para uma perspectiva mais abrangente, a importante obra deste mesmo teólogo brasileiro: Teologia e Pluralismo Religioso, São Bernardo do Campo, São Paulo, Nhanduti Editora. 2012). 39 Fernando Paulo do Carmo Baptista palavra sobre o fundamento faz parte do nosso esforço imperfeito e incompleto de compreensão e interpretação. Por outro lado, se falamos desde a perspectiva da teologia cristã, o mistério não é somente aquilo que está escondido, mas aquilo que se revela. Nesse sentido, falar de eternidade como fundamento do tempo, é falar do Deus que se dá a conhecer chamando do nada o ser, os entes e o tempo, através da criação, mas assumindo igualmente, através da encarnação do Filho na plenitude dos tempos, aquilo que é próprio do tempo, dos entes e do ser, ou seja, tornando-se ele mesmo aquilo que cria. Uma teologia do tempo deve, portanto, conduzir-nos a uma teologia da criação. Nas Escrituras judaico-cristãs, essa teologia recorre também à narração para dizer o indizível»31. Por outro lado, precisamente numa época marcada, como é a nossa, por tão rápidas e tão profundas transformações a todos os níveis e, consequentemente, por tão fortes e preocupantes desenraizamentos e por tão soturnas e perturbantes desorientações geradas a partir das polémicas controvérsias em torno da origem e formação do Universo, da Vida e do Homem, é ainda a FÉ32 que, muito embora não acrescente nada ao conhecimento disponível que a ciência tanto enriqueceu, nos proporciona um saber orientador. Efectivamente, ela permite que o homem descubra um sentido na existência e no processo evolutivo e lhe consagre uma escala de valores para a sua acção e uma derradeira segurança neste universo incomensuravelmente grande... Por isso, acreditar hoje em dia no criador do universo, tendo como horizonte a cosmologia científica, significa afirmar, com esclarecida confiança, que o universo e o 31 Cf. Geraldo De Mori apud Élio Estanislau Gasda (org.): Sobre a Palavra de Deus – Hermenêutica Bíblica e Teologia Fundamental, Petrópolis, Editora Vozes, 2012, p. 222. 32 Permita-se-me evocar aqui, com sentida e grata emoção, a ambiência intelectual e social de profunda crise que preludiou a realização, por iniciativa de João XXIII, do «Concílio Ecuménico Vaticano II» (convocado em 25 de Dezembro de 1961, iniciado em 11 de Outubro de 1962 e encerrado em 8 de Dezembro de 1962). Dessa ambiência, fazia parte a leitura, entre outras, de obras integradas na colecção “Filosofia e Religião” da Livraria Tavares Martins, do Porto, tão importantes como as seguintes: Pierre Teilhard de Chardin: O fenómeno humano; Jacques de Bivort de La Saudée (dir.): Deus, o Homem e o Universo; C. G. Jung: O Homem à descoberta da sua alma; Frederick Copleston: Nietzsche; Eusebi Colomer: A morte de Deus; Sören Kierkegaard: O desespero humano... 40 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO homem jamais podem permanecer, lado a lado, como dois “ilustres desconhecidos”33 quanto à sua origem primigénia, que o universo e o homem não foram atirados absurdamente do nada para o nada, mas que ambos são valiosos e fazem sentido enquanto totalidade, que não são caos mas cosmos, porque têm em Deus o seu último fundamento, o seu autor e criador e uma primeira e última segurança34. Só que a [archê], o transfundo e sustentáculo de tudo quanto existe, ou seja, “o princípio dos princípios” e “o fundamento dos fundamentos”, lembra-no-lo Hans Küng35, «não pode ser fundamentado». «Mas para a tradição judaica, cristã e muçulmana, sublinha ainda este sábio, profundo e clarividente teólogo, uma coisa é certa: Deus não é um abismo das trevas — a escuridão não gera qualquer luz. Pelo contrário, só a Luz, em sua infinita plenitude, torna possível o «Fiat lux!» no Cosmos. Em todas as religiões, a luz é uma extraordinária metáfora de uma antiga palavra imagética para a realidade suprema: Deus36. E a moderna investigação científica em torno do espantosamente tão maravilhoso como enigmático fenómeno da “luz” não deixa de contribuir também para uma compreensão mais aprofundada do significado simbólico-religioso deste fascinante fenómeno. É assim que, na ininterrupta e persistente continuação desse odisseico esforço investigativo por parte da Ciência, se afigura altamente relevante o contributo dado por Niels Bohr com o princípio dialéctico da «complementaridade» («a natureza da matéria e da energia é dual e os aspectos ondulatório e corpuscular não são contraditórios, mas inter-complementares, sendo ambos detectáveis separadamente, em consonância com o tipo de experiência levada a cabo (e.g.: a) o efeito electrónico-difractor da dupla fenda; b) o efeito 33 Bilateralizando, aqui, co-implicativamente, o famoso título de Alexis Carrel: O homem, esse desconhecido (trad. de Adolfo Casais Monteiro), Porto, Editora Educação Nacional, 1944 (ou, numa versão mais recente, na trad. de Isabel St. Aubyn, Lisboa-Mem Martins, Europa-América, 2002). 34 Cf. Hans Küng: O Princípio de todas as coisas, Lisboa, Edições 70, 2011, pp. 137- 139, cuja reflexão aqui temos vindo a seguir de perto, com pontuais ajustamentos enunciativos, entre citação e paráfrase de nossa exclusiva responsabilidade. 35 Idem: ibidem, p. 139. 36 Ver supra a nota 23. 41 Fernando Paulo do Carmo Baptista foto-eléctrico»)37, a significar que «a essência da luz» continua a ser investigada e que talvez virá um dia em que se consiga decifrar o seu “segredo”... Uma verdade se apresenta, todavia, como incontornável e intranscendível, aos olhos de quem acredita: o “Mistério” de Deus, mesmo com a analógica adjuvância investigativa de uma “complementaridade” foto-epistémica apoiada na mais avançada tecnologia, vai seguramente continuar a manter-se indecifrável... Ele permanecerá cada vez mais o Infinito, o Incomensurável e o Imperscrutável, oculto no alumiante e fecundador dinamismo energético-fotónico que atravessa magnanimamente, sem fronteiras e sem limites, toda a vastidão cósmica, até chegar a Deméter e encarnar transfigurado na “Pessoa” tão amorável, tão simples, tão pura e tão comovedoramente autêntica de Jesus de Nazaré, para se acolher soteriologicamente no afectuoso recôndito dos corações e das almas e aí nos segredar e revelar, persistentemente, no silêncio interior38 de todos os dias, que nos devemos amar uns aos outros como Ele nos amou e insuflar em todos os nossos actos a prístina bondade e a natalícia candura da criança que importa preservar integralmente dentro de nós39... 37 «... a dialética da complementaridade de Niels Bohr merece destaque porque através dela podem ser superados os conflitos dos paradoxos (...) entre a teoria corpuscular e a teoria ondulatória da luz.» (Cf. Claudiomir Selner: Método para análise de sistemas de conhecimento, inspirado no princípio da complementaridade de Niels Bohr (dissertação complementar de pós-graduação, para obtenção do grau de “Doutor em Engenharia de Produção”), Florianópolis, Universidade Federal de Santa Catarina, 2006, p. 76; ver também: http://www.fis.ufba.br/dfg/pice/ff/ff- 03.htm; http://sabedoriaquantica.blogspot.pt/2012/02/fisica-quantica-para-todos-4.html; ver ainda: http://www.ecientificocultural.com/ECC3/polar02_03.htm http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1413- 24782008000100007&script=sci_arttext http://biosofia.net/2001/01/19/a-luz-perspectiva-esoterica-2/ 38 «Il silenzio è, segundo Gregório Magno, la casa del mistico e, per il mistico, Dio è il “Signore del silenzio”» (cf. Massimo Baldini, artigo «Mistica» apud Giuseppe Tanzella Nitti e Alberto Strumia [coords.]: op. cit., p. 995). 39 Porque, com Jesus de Nazaré, «il mistero... del Regno di Dio... è ora oggetto di rivelazione ai piccoli, ai semplici, ai quali non è richiesto un linguaggio da iniziati, ma un cuore puro» (cf. Tanzella-Nitti: op. cit., p. 981); depois, como “cristicamente” 42 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO Este é o “Mistério”, este é o “Segredo” que poderá e deverá levar-nos a enfrentar, entre outros, o combate derradeiro desta nossa transiente vida, com a esperançosa lucidez e serenidade de um Hans Küng, quando a Morte vier... Será seguramente «uma despedida para dentro», um emudecente e porventura lacrimoso “adeus” no «regresso ao lar do universo», mas jamais será ou terá que ser uma angustiante, desesperada e absurda redução ao Nada40!... Por isso, importa, em todas as circunstâncias e sazões da nossa existência efémera, reassumir poeticamente a nossa própria infância, convocando-a memorantemente com a inebriante mas respeitosa vitalidade genesíaca, plasmada no belo poema de Miguel Torga41: Segredo Sei um ninho. E o ninho tem um ovo. E o ovo, redondinho, Tem lá dentro um passarinho Novo. Mas escusam de me atentar: Nem o tiro, nem o ensino. Quero ser um bom menino também no-lo recorda o nosso Fernando Pessoa, no seu poema “Liberdade”: «Grande é a poesia, a bondade e as danças... / Mas o melhor do mundo são as crianças»!... E os três pastorinhos “videntes”, da Fátima de 1917, eram crianças de coração simples e alma pura, consubstanciando plenamente, portanto, o famoso episódio evangélico narrado por Lucas (Lucas: 18, 15-17), segundo o qual, Jesus repreendeu os seus discípulos, dizendo-lhes: «Deixai vir a mim as criancinhas e não as impeçais de o fazerem, pois delas é o Reino de Deus. Em verdade vos digo: quem não receber o Reino de Deus como uma criança jamais entrará nele». (Ver também Mateus: 19, 13- 15). Cf. Bíblia Sagrada, Lisboa, Difusora Bíblica (Franciscanos Capuchinhos), 41994, pp. 1173 e 1112, respectivamente. 40 Cf. Hans Küng: ibidem, pp. 217-218. 41 Miguel Torga: Poesia Completa, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2000, p. 585. 43 Fernando Paulo do Carmo Baptista E guardar Este segredo comigo. E ter depois um amigo Que faça o pino A voar... ANOTAÇÕES 1. Sobre o conceito de “MITO”, considerar, entre outros, o iluminante artigo de Jean-Michel Maldamé apud Giuseppe Tanzella Nitti e Alberto Strumia (coords.): op. cit., na entrada respectiva (pp. 1000 ss), com especial enfoque para os seguintes andamentos discursivos: «Mito e scienza contemporanea» e «Mito, religione e fede»; para outros aprofundamentos complementares, além da entrada «Mito» nas enciclopédias referidas na nota 5 (ver supra), consultar, também, apud Maryanne Cline Horowitz (ed.): op. cit., os seguintes desenvolvimentos tópicos: Myth in Antiquity, Myth in Biblical Times, Myth in the Middle Ages and the Renaissance, Myth in English Literature: Seventeenth and Eighteenth Centuries, Myth in the Eighteenth and Early Nineteenth Centuries, Myth in the Nineteenth and Twentieth Centuries; considerar, também, a seguinte e muito clarificadora síntese apud Rafael Gil Colomer (dir.): Filosofía de la Educación Hoy — Diccionario filosófico-pedagógico, Madrid, Editorial Dykinson, 1997, entrada «Símbolo», pp. 513-514: «La antropología ha definido el mito como aquel relato que se refiere a acontecimientos sucedidos in principio, in illo tempore, en un primer instante, fuera del tiempo histórico. El mito se halla necesariamente fuera del tiempo, precisamente porque él es la causa fundamentadora del devenir histórico. El mito es el relato fundador. (...) El universo simbólico — mítico — juega un papel preponderante. La lógica del lenguaje científico no puede dar razón de toda la organización cultural de la que el ser humano anda necesitado. Las preguntas por el “después de la muerte”, por el origen del mundo y 44 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO su orden, por el sufrimiento..., en definitiva: la cuestión suscitada por Kant en las «antinomias de la razón pura», solo resulta lúcida desde la óptica mítica. (...) El mito, a la luz de la antropología contemporánea, se concibe “arquetípicamente”. Jung define el “arquetipo” como formas o imagines de la naturaleza colectiva que se dan casi universalmente como constituyentes de los mitos y, al mismo tiempo, como productos individuales y autóctonos de origen inconsciente. Los arquetipos son universales e formales. El ser humano no se construye desde el vacío, al modo de una tabula rasa, sino desde unos universales. El arquetipo es a priori; pero además es “formal”, es una facultas praeformandi. No depende ni del individuo ni del mundo de la vida, sino todo lo contrario: irrumpe en la conciencia individual y determina la construcción del «ser-en-mundo», entendido éste no solamente como un “para-sí” sino fundamentalmente como un “para otro” (p. 514). 2. Sobre o conceito de “SÍMBOLO”, dada a sua inquestionável relevância neste contexto, considerar o denso ensaio de Umberto Eco — “Symbol” — (cf. Umberto Eco: Semiotics and the Philosophy of Language, Bloomington, Indiana University Press, 1986, capítulo 4, pp. 130-163), dedicado ao conceito de «Símbolo» [Symbol], pedindo me seja permitido fazer uma especial chamada de atenção para o seguinte passo das conclusões respeitantes ao «modo simbólico» [symbolic mode]: «The main characteristic of the symbolic mode is that the text, when this mode is not realized interpretatively, remains, endowed with the sense — at its literal or figurative level. In the mystical experience, the symbolic contents are in some way suggested by a preceding tradition, and the interpreter is convinced (he must be convinced) that they are not cultural unit but referents, aspects of an extrasubjective and extracultural reality» [p. 163] (nota: este estudo de U. Eco está traduzido em Português no vol. 31 da Enciclopédia Einaudi, Lisboa, IN-CM, 1994, pp. 138-176, na entrada respectiva «Símbolo»); ainda sobre este conceito, considerar o bem elaborado artigo de Jean-Michel Maldamé apud Giuseppe Tanzella Nitti e Alberto Strumia (coords.): op. cit., na entrada «Simbolo», pp. 1301-1308, artigo do qual se destacam as seguintes passagens: «Il simbolo è un segno che permette la conoscenza e che concettualizza l’esperienza vissuta in una comunità fatta di scambi di sapere, di relazioni.» (...) «In quanto segno, il simbolo 45 Fernando Paulo do Carmo Baptista serve ad interpretare i fenomeni studiati, constatati, misurati e legati ad una spiegazione generale. La funzione del simbolo, estesa in questo senso, si applica a tutto ciò che è oggetto dell’esperienza per esprimere le relazioni dell’uomo con se stesso, con gli altri e con il cosmo. Così, dal senso preciso del simbolismo matematico a quello più generale dell’attività umana sociale o religiosa, il simbolo è un mezzo privilegiato di comunicazione e di interpretazione della realtà», de «costruzione di un’immagine del mondo o della natura [p. 1303]» (...), de «articolare il singolare e l’universale», de mediatizar «la creatività dello spirito» e de dinamizar e transportar consigo «le forze della vita, permettendo all’essere umano di trasformare le proprie energie vitali», convocando em analógica sintonia «i simboli che i cristiani usano nei sacramenti e che suppongono una partecipazione attiva di tutti i fedeli [p. 1304]». «Nel linguaggio religioso si usa l’expressione «simbolo della fede» per indicare una serie di verità confessate da una comunità credente, verità che accomunano i suoi membri e stanno alla base della sua unità [p. 1301].» (...) Todos os símbolos, verbais e não verbais, constituem «il mezzo efficace attraverso il quale si realizza la comunicazione tra Dio e gli uomini, oltre ad essere un’espressione del contenuto della fede in un Dio salvatore. Il simbolo appare dunque come il linguaggio appropriato per dire il mistero, cioè la comunione con una vita divina alla quale l’uomo è invitato a partecipare [p. 1302]»; no mesmo sentido, concorre a seguinte síntese: o símbolo, além da sua “função representativa” («algo está em vez de algo»), encerra «un fondo metafísico que presupone secretas afinidades, casi una mística compenetración recíproca entre el mundo visible y lo divino invisible» (cf. Lamberto Boni [coord.]: Enciclopedia Garzanti de la Filosofía, Barcelona, Ediciones B, S.A., 1992, entrada «símbolo», p. 907. Os símbolos abrem a realidade e, em vez de a clausurar, revelam a dimensão oculta da vida e do mundo, em sua mais abissal fundura, fundura à qual não é possível aceder de outro modo (cf. Rafael Gil Colomer [dir.]: op. cit., p. 513; em suma: «Il simbolo è dunque come “il luogo della nascita” dell’umanità, in quanto è allo stesso tempo strumento della comunicazione umana» (Jean-Michel Maldamé: no seu já supracitado artigo «Simbolo», p. 1307). 46 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS E INTERNÉTICAS • ARANOVICH, Gabriel, Rodríguez Marta Santamaría (orgs.): La Argentina pensada: diálogos para un país posible, Buenos Aires, Editorial Biblos, 1998. • BAPTISTA, Fernando Paulo: «Sob o signo da luz ou a «centelha» [scintilla] de Zeus na palavra “teoria” [ yevr€a (theoria)]»: http://www.academia.edu. • BAPTISTA, Fernando Paulo: Nesta nossa doce língua de Camões e de Aquilino, Sernancelhe, edição da CM de Sernancelhe, 2010. • BENTO XVI: Caritas in Veritate” apud: http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/encyclicals/document s/hf_ben-xvi_enc_20090629_caritas-in-veritate_lt.html • BÍBLIA Sagrada, Lisboa, Difusora Bíblica (Franciscanos Capuchinhos), 41994. • BONI, Lamberto [coord.]: Enciclopedia Garzanti de la Filosofía, Barcelona, Ediciones B, S.A., 1992. • CATHOLIC Encyclopedia (http://www.catholic.org/encyclopedia/) • CHANTRAINE, Pierre: Dictionnaire étymologique de la langue grecque: histoire des mots, Paris, Klincksieck, 1999. • CHEVALIER, Jean | GHEERBRANT, Alain: Dictionnaire des Symboles, Paris, Éditions Robert Laffont, 1982 (há tradução portuguesa deste mesmo Dicionário de Símbolos, Lisboa, Círculo de Leitores, 1997). • CLAUDIOMIR SELNER: Método para análise de sistemas de conhecimento, inspirado no princípio da complementaridade de Niels Bohr (dissertação de pós-graduação), Florianópolis, Universidade Federal de Santa Catarina, 2006. • COROMINAS, Joan e PASCOAL, José A.: Diccionario Crítico Etimológico Castellano e Hispánico, Madrid, Editorial Gredos, 1991- 1997, 5 vols. • D’HAUTERIVE, Robert Grandsaignes: Dictionnaire des racines des langues européennes, Paris, Larousse, 1994 (ed. facs.). • DE MORI, Geraldo apud Gasda, Élio Estanislau (org.): Sobre a Palavra de Deus – Hermenêutica Bíblica e Teologia Fundamental, Petrópolis, Editora Vozes, 2012. • ECO, Umberto: Semiotics and the Philosophy of Language, Bloomington, Indiana University Press, 1986. 47 Fernando Paulo do Carmo Baptista • ENCICLOPÉDIA Einaudi, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1984-2000. • ENCICLOPÉDIA Verbo Luso-Brasileira de Cultura - Edição Século XXI, Lisboa / São Paulo, Editorial Verbo, 1998-2003. • ERNOUT, Alfred / MEILLET, Antoine: Dictionnaire étymologique de la langue latine: histoire des mots, Paris, Klincksieck, 42001. • ESTRADA, Juan Antonio: El sentido y el sinsentido de la vida — Preguntas a la filosofía y a la religión, Madrid, Editorial Trotta, 2010. • FOUILLOUX, Danielle et aliae: Dicionário Cultural da Bíblia, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1996. • GIL, Rafael Colomer (dir.): Filosofía de la Educación Hoy — Diccionario filosófico-pedagógico, Madrid, Editorial Dykinson, 1997. • Gran Enciclopedia Rialp [GER] (http://www.canalsocial.net/GER/busquedaav.asp). • HALLIDAY, M.A.K.: On Language and Linguistics, London / New York, Continuum, 2003. • HARPER, Douglas: Online Etymology Dictionary: http://www.etymonline.com/index.php. • HEIDEGGER, Martin: A Essência da Verdade; marcas do Caminho [tradução de Enio Paulo Giachini e Ernildo Stein], Petrópolis, Vozes, 2008. • HEIDEGGER, Martin: Lettre sur l’humanisme (edição bilingue, com tradução de Roger Munier), Paris, Aubier, 1970. • HOROWITZ, Maryanne Cline (ed.): New Dictionary of the History of Ideas, New York – London, Thomson Gale, 2005, 6 vols. • IRIARTE, Álvaro Sanromán: A Unidade Lexicográfica – Palavras, Colocações, Frasemas, Pragmatemas (dissertação de doutoramento), Braga, Centro de Estudos Humanísticos, Universidade do Minho, 2001. • KÜNG, Hans: O Princípio de Todas as Coisas, Lisboa, Edições 70, 2011. • LEITE, António: artigo «segredo [sigilo]», com suas especificações, na Enciclopédia Verbo Luso-Brasileira de Cultura, Edição Século XXI, 2003, vol. 26. • MATEUS, Carlos: Deontologia Forense — Limites ao exercício da profissão de advogado, Póvoa de Varzim, Carlos Mateus & Associados, VerboJurídico, 2011. • MATEUS, Carlos: Deontologia Profissional (I e II cursos de Estágio de Advogados), Lisboa, VerboJurídico, 2011. 48 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO • MORENO, Mariano Villa (dir.): Diccionario de Pensamiento Contemporáneo, Madrid, San Pablo, 1997. • MUJICA, Hugo: Flecha en la Niebla: Identidad, Palabra y Hendidura, Madrid, Editorial Trotta, 1997. • MUJICA, Hugo: La Palabra Inicial, Madrid, Editorial Trotta, 2003. • NITTI, Giuseppe Tanzella e STRUMIA, Alberto (coords.): Dizionario Interdisciplinare di Scienza e Fede, Urbaniana University Press, Città del Vaticano, 2002, 2 vols. • PINHO, Arnaldo de: Teologia e Interpretação, vol. 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Da “Condição Humana” (*) «Magnum, o Asclepi, miraculum est homo» Pico della Mirandola42: «Verdade esta do homem como o último pressuponente horizonte de todo o universo prático (prático-cultural) em que se implica a dignidade humana, da ética ao direito, da política à pedagogia.» A. Castanheira Neves43 «Ser Homem é ser em Si, sempre e ao mesmo tempo, o Próprio e o Outro, sem exclusão de Ninguém.» F. Paulo Baptista44 Nos conturbadíssimos tempos que correm, coloca-se-nos, cada vez mais, como um intransgredível dever, a inadiável participação (*) Reelaboração do ensaio publicado em “Studia Iuridica”— Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (n.º 90 «Ad Honorem» — 3, Coimbra, Coimbra Editora, 2008, pp. 231-288). 42 Pico della Mirandola: Oratio de hominis dignitate (a cura di Eugenio Garin), Pordenone, Edizioni Studio Tesi, 1994, p. 2. (cf.: http://www.lyber-eclat.net/lyber/mirandola/piclatin.html); ver também: “Progetto Pico Project” — De hominis dignitate — Un progetto di collaborazione tra Università degli Studi di Bologna e Brown University — — http://www.brown.edu/Departments/Italian_Studies/pico/oratio.html —, §1, 2. 43 A. Castanheira Neves: «Apresentação-comentário» ao meu livro intitulado Tributo à Madre Língua, Coimbra, Pé de Página Editores, 2003, pp. 27-28. 44 Fernando Paulo Baptista: Tributo à Madre Língua, Coimbra, Pé de Página Editores, 2003, p. 542. 51 Fernando Paulo do Carmo Baptista cidadã num colegial processo de questionamento (muito mais vasto, intenso e profundo...), no sentido de se tentar compreender melhor O QUE É O HOMEM e a sua relação essencial e vital consigo mesmo, com o(s) outro(s), com a vida, com a natureza, com o universo e com o mistério e qual o seu “estatuto”, a sua situação e missão no mundo... Por essa via e desse modo, vamos estar, seguramente, em estreita sintonia com a mais desassossegada inquietude e preocupação do pensamento contemporâneo em torno dos princípios e valores fundamentais, transversais ao(s) humanismo(s)45, princípios e valores 45 Sobre o(s) humanismo(s), considerar, entre outros: Giovanni Pico della Mirandola: Oratio De Hominis Dignitate, Paris, Éditions de l’Éclat, 32002 (edição bilingue [latim > francês] de Yves Hersant); Jacques Maritain: L’Humanisme Intégrale, Paris, Éditions Aubier-Montaigne, 1936; Emmanuel Mounier: O Personalismo, Lisboa, Livraria Morais Editora, 21964; Auguste Etcheverry: O Conflito Actual dos Humanismos, Porto, Livraria Tavares Martins, 1958; Martin Heidegger: Carta sobre o Humanismo, Paris, Aubier, 1970; Jean-Paul Sartre: O Existencialimo é um Humanismo (tradução de Vergílio Ferreira precedida de um substancioso prefácio- ensaio, escrito nos inícios dos “anos 60”, que continua actual em seus nucleares aspectos temático-problemáticos e em sua fina e englobante dimensão interpretativo- compreensiva [pp. 7-169], Lisboa, Editorial Presença, 1962; Emmanuel Lévinas: Humanisme de l’autre homme, Fata Morgana, Paris, 1972; Emmanuel Lévinas: Totalité et Infini. Essai sur l’extériorité, Paris, LGF Livre de Poche, 1990; Emmanuel Lévinas: artigo «Les droits de l’homme et les droits d’autrui» in Hors sujet, Fata Morgana, Paris, 1997, pp. 157-170; Martin Buber: ¿Qué es el Hombre?, México- Madrid-Buenos Aires, Breviários, FCE, 131986; Juan de Sahagún Lucas (dir.): Nuevas antropologías del siglo XX, Salamanca, Ediciones Sígueme, 1994; Pedro Laín Entralgo: Idea del Hombre, Barcelona, Galáxia Gutenberg / Círculo de Lectores, 1996; Mário Pacheco: artigo «Humanismo», in Logos — Enciclopédia Luso- Brasileira de Filosofia, Lisboa / São Paulo, Editorial Verbo, tomo 2, 1990, pp. 1213- 1217; Michel Malherbe e Philipe Godin: As Filosofias da Humanidade, Lisboa, Edições Piaget, 2001; José Lorite Mena: artigo «Hombre», in A. Ortiz-Osés y P. Lanceros (dir.): Diccionario de Hermenéutica: Bilbao, Universidad de Deusto, 42004, pp. 221-228; Luís Garagalza: artigo «Humanismo Hermenéutico», ibidem, pp. 229- 232; Hannah Arendt: La Condición Humana, Barcelona, Paidós, 1993; Amelia Valcárcel: Ética para un mundo global: una apuesta por el humanismo frente al fanatismo, Madrid, Ediciones Temas de hoy, 2002; Ulrich Beck, Anthony Giddens y Scott Lash: Modernización reflexiva: política, tradición y estética en el orden social moderno, Madrid, Alianza Universidad, 1997; Erich Fromm: «El humanismo como filosofía global del hombre» in Sobre la desobediencia y otros ensayos, Barcelona, Paidós Ibérica, 1984; Bruno Jarrosson: Humanismo e Técnica, Lisboa, Edições Piaget, 1998; Adams, D. L., & Others: «Science, technology, and human values: An interdisciplinary approach to science education», apud “Journal of College Science 52 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO esses que não podem deixar de ser assumidos coerentemente como expressão esclarecida, enérgica e frontal, dir-se-ia mesmo sábia e profética46, do compromisso intelectual com o que, a nível antropológico, cultural e axiológico, possa haver de mais relevante e significativo ao longo dos complexos processos da filogénese e da ontogénese em que se originou e fundou e em que se vem configurando e desenvolvendo a “HUMANIDADE DO HOMEM”, perspectivado este, tanto em sua ipseidade como em sua alteridade e, assim, em seu protagonismo e afirmação pessoal, colegial e comunitária na desafiante e intérmina aventura do Tempo e da História... Todos os grandes criadores (sejam eles poetas, escritores, artistas em geral, pensadores ou cientistas...) se realizam e se revelam como os agudamente despertos e inconfundivelmente carismáticos sensores das humanas emoções e comoções, desde as mais leves e suaves às mais densas, tensas e profundas, na estesia da vibração, da escuta e da memória, na inquietude e no silêncio da interrogação e da procura ou na maravilha do espanto... E são eles que instituem, com o operar onírico-gerativo e expressional das suas obras, e constituem, com o subsequente co-operar analítico-interpretativo e compreensivo (hermenêutico) e Teaching”, 1986, 15(4), pp. 254-258; Giuseppe Longo: Homo technologicus, Roma, Meltemi, 2001; Emilio Martínez Navarro: Ética para el Desarrollo de los Pueblos, Madrid, Trotta, 2000, pp. 127 ss, 189 ss; Rémi Brague: A Sabedoria do Mundo, Lisboa, Edições Piaget, 2002; Javier Echeverría: Ciencia y Valores, Barcelona, Ediciones Destino, 2002, pp. 117 ss, 211 ss; Xavier Zubiri: El Hombre y Dios, Madrid, Alianza Editorial, 1994; Xavier Zubiri: Sobre el Hombre, Madrid, Alianza Editorial, 1998; Xavier Zubiri: El Hombre y la Verdad, Madrid, Alianza Editorial, 2001; Ernesto Grassi: La filosofia dell’umanesimo un problema epocale, Napoli, Tempi Moderni, 1986; Ernesto Grassi: La filosofia del humanismo. Preeminencia de la palabra, Barcelona, Anthropos, 1993; Paul Ricœur: Soi-même comme un autre, Paris, Seuil, 1997; Paul Ricœur: La mémoire, l’histoire, l’oubli, Paris, Seuil, 2003; Jervolino Domenico: Paul Ricœur. Une herméneutique de la condition humaine, Paris, Éditions Ellipses Marketing, 2002; Gerald A. Larue: «Human Values for the 21st Century» in Humanism Today, vol. 12, 1998; Joseph Gevaert: El Problema del Hombre — Introducción a la Antropología Filosófica, Salamanca, Ediciones Sígueme, 2003; José Luis Molinuevo: Humanismo y Nuevas Tecnologías, Madrid, Alianza, 2004, pp. 67-230; Edgar Morin e Boris Cyrulnik: Diálogo sobre a Natureza Humana, Lisboa, Edições Piaget, 2004. 46 Cf. Georges Charpak e Roland Omnès: Sede Sábios, Tornai-vos Profetas, Lisboa, Publicações Europa-América, 2005, pp. 13, 239. 53 Fernando Paulo do Carmo Baptista inelutavelmente estético47 dos seus interlocutores, leitores e fruidores, uma perene memória e um inesgotável tesouro histórico e cultural e um 47 De sublinhar, neste contexto, que a “estética” (nome proveniente do adjectivo grego a syhtikÒw, -Æ, -Òn, portador da mesma raiz au- /ai- (*) [susceptível de ampliamentos do tipo: au-dh-, awis-th-, awisdh-yo > audh-yo] e, portanto, com a etimologia e semântica profunda de lexemas gregos como (< awio = perceber através dos sentidos, nomeadamente o da audição-escuta), a syãnomai, a‡syhma, a syhs€a, a‡syhsiw, a syhtÒw, -Æ, -Òn e de lexemas latinos como audio, -is, -ire [= ouvir, escutar, percepcionar], audibilis, -e, auditio, -onis, audito, -as, -are, auditor, auditorium, auditus, oboedio (*), oboedientia (*) (com os correspondentes vocábulos portugueses daí provenientes: estesia, estese, estético, audível, audição, auditar, auditor, auditoria, auditório, obedecer, obediência...), com ser a dimensão, por excelência, da sensibilidade artística e da específica reflexão filosófica em torno da categoria do “belo”, não deixa de se configurar também como uma “teoria geral da recepção artística” e ocupar, assim (dada a sua qualitativa complexidade e exigência de afinamento competencial, procedimental e operatório...), um lugar de inquestionável relevo numa “teoria geral da recepção” (e da interpretação...), a alimentar todos os processos criativos, podendo mesmo dizer-se que, sem a‡syhsiw [aisthesis], não há po€hsiw [poiesis] e que esta convoca imediatamente aquela, nos decisivos momentos do labor hermenêutico (interpretativo-compreensivo (*) e da fruição sensivo-inteligente das suas realizações semio-expressionais... (*) Obs.: a) – A raiz au- / ai-, dada, por um lado, a esfera de pertença ôntica para que remete e, pelo outro, a sua contiguidade referencial e semântica, não deixa de evocar e convocar também a raiz ous- / aus- > aur- [ouvir, escutar, perceber através do ouvido], presente em lexemas latinos como aus, auris [< ausis (= orelha) com rotacismo: s > r], auricula [> aurícula e orelha], auricularis, auscultatio, auscultator, ausculto, -as, -are... e no lexema grego ο , [= orelha, órgão da escuta], cujo radical ot- é um constituinte morfogénico de um significativo conjunto de lexemas de uso especializado, com particular destaque para as ciências médicas: otálgico, otalgia, otária, otite, otocefalia, otólito, otoplastia, otorreia, otorrino, otorrinolaringologista, otoscopia, otoscópio, ototerapia, parótico, parótide/a, parotidite... b) – Sem prejuízo das pertinentes e prudentes observações feitas por Andrew L. Sihler (Andrew L. Sihler: New Comparative Grammar of Greek and Latin, New York / Oxford, Oxford University Press, 1995, § 59 a. e §70, 3. a., pp. 54-55 e p. 64, respectivamente), os lexemas oboedio e oboedientia são, pelo menos desde os gramáticos Sextus Pompeius Festus (sécs. II-III d. C.) e Saxo Grammaticus (séc. XII- XIII d. C.), considerados como derivados do verbo audio, por prefixação (< prefixo ob (= ao encontro de, em direcção a...) + audio, segundo uma linha de evolução fonética e de expressão grafemática próxima do seguinte: ob + audio > ob + oidio > oboedio > obedio; de onde, o significado de «direccionar o ouvido, a escuta, para a “fonte” de onde vem a mensagem falada, a fim de prestar ouvidos à voz de comando», ou seja, obedecer; a oboedientia / obedientia [> obediência] (que não deve confundir- 54 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO fecundante manancial crítico e criativo onde partilham e modelam um desígnio comum que, no fundo, os interpela e inquieta, os faz mover e comover, os inspira e sustenta: elaborar, a partir de diferentes concepções, perspectivas ou “visões do mundo” e em diversos modos, géneros, formas e estilos, o “discorrer” dum pensar e dum sentir próprios, as modelações dum conhecimento e dum saber, desejavelmente duma sabedoria, o mesmo é dizer, as “emergências”, as “efluências”, os excursos e os textos dum processo criativo- semiósico sempre in fieri e sempre in progress, acerca do “humano” do homem e seus problemas maiores... Daí, a evocação, aqui, da inconformada e socrática confissão de José Saramago48: «Não sei que passos darei, não sei que espécie de verdade busco: apenas sei que se tornou intolerável não saber»... se com subserviência...) é, assim, a postura de quem sabe ouvir, escutar e respeitar a voz da autoridade... c) Sobre a problemática da “interpretação”, ver, entre outros: Umberto Eco: Lector in fabula. La cooperazione interpretativa nei testi narrativi, Milano, Bompiani, 1979, p. 24, onde se parte da ideia de que o texto é «una macchina pigra che esige dal lettore un fiero lavoro cooperativo per riempire spazi di non-detto o di già-detto rimasti per così dire in bianco»; idem: Os limites da Interpretação, Lisboa, Difel, 1992; idem: Interpretation and overinterpretation, New York, Cambridge University Press, 1992; Hans-Georg Gadamer: Verdad y Método I, Salamanca, Ediciones Sígueme, 1999, pp. 331-377; A. Castanheira Neves: O Actual Problema Metodológico da Interpretação Jurídica I, Coimbra, Coimbra Editora, 2003, pp. 11-44; Fernando José Fraga de Azevedo: A Teoria da Cooperação Interpretativa de Umberto Eco, Porto, Porto Editora, 1995; Hans Albert e Dario Antiseri: Epistemologia, Ermeneutica e Scienze Sociali, Roma, Luiss Edizioni, 2002; Giorgio Bertolotti et alii: Ermeneutica, Milano, Raffaello Cortina Edittore, 2003; Hugg J. Silverman: Testualità tra Ermeneutica e Decostruzione, Milano, Spirali, 2003; Francesco Crapanzano: Tra Epistemologia ed Ermeneutica, Firenze, Phasar Edizioni, 2003; Manuel Alexandre Júnior: Hermenêutica Retórica, Lisboa, Livraria Espanhola, 2004, 195-239; ver, também, vários e importantes estudos de natureza filosófica e teológica, constantes da já monumental obra que vem sendo editada por Andrzej Wiercinski: (vol. I) Between the Human and the Divine: Philosophical and Theological Hermeneutics, Toronto, The Hermeneutics Press, 2002; (vol. II) Inspired Metaphysics? Gustav Siewerth’s Hermeneutic Reading of the Onto-Theological Tradition, Toronto, The Hermeneutic Press, 2003; (vol. III) Between Suspicion and Sympathy: Paul Ricoeur’s Unstable Equilibrium, Toronto, The Hermeneutic Press, 2003; (vol. IV) Between description and interpretation: the hermeneutic turn in phenomenology, Toronto, The Hermeneutic Press, 2005. 48 José Saramago: Manual de Pintura e Caligrafia, Lisboa, Editorial Caminho, 1983, p. 49. 55 Fernando Paulo do Carmo Baptista É por isso que, nessa «tentativa de reconstruir tudo pelo lado de dentro, medindo e pesando todas as engrenagens, as rodas dentadas, aferindo os eixos milimetricamente, examinando o oscilar silencioso das molas e a vibração rítmica das moléculas no interior dos aços»49, sejam eles, literalmente, os constructos técnico-científicos do mundo empírico-factual, sejam eles, simbólico-alegoricamente, os constructos ficcionais dos mundos possíveis, faz todo o sentido regressar ciclicamente ao magno território e “arquivo” dos inconsumptíveis bens simbólicos, dos bens da Cultura, em busca da energizante revitalização daqueles “potenciais de humanidade” que constituem e configuram uma mesma e universal identidade e condição antrópica: TODOS SOMOS EM DEVIR, NA UNIDADE E NA DIFERENÇA, ESTES HUMANOS QUE SOMOS... Por outro lado, articular e conjugar a pluralidade diversa, contraditória e multímoda de perspectivas e experiências e, com elas e através delas, abrir contactos e estabelecer pontes de diálogo compreensivo e de respeito solidário entre culturas e civilizações, transcendendo os opostos, reconcilia-nos a todos enquanto “cidadãos do mundo”, pois, por um lado, como no-lo recorda Octavio Paz50 (através de suas “personae” lírica e ensaística), «somos constelaciones», «reino de pronombres enlazados», «todos somos la vida» e, pelo outro, «universalidad significa pluralidad» e «el diálogo» é, porventura, «la más alta de las formas de la simpatía cósmica»51: «Al hablar con las cosas y con nosostros / el universo habla consigo mismo: / somos su lengua y su oreja, sus palabras y sus silêncios. / El viento oye lo que dice el universo / y nosostros oímos lo que dice el viento / al mover los follajes submarinos del lenguaje / y las vegetaciones secretas del subsuelo y el subcielo: / los sueños de las cosas el hombre los sueña, / los sueños de los hombres el tiempo los piensa»52... Todavia, essa universalidade e essa dialogicidade cósmica e antrópica e, ao mesmo tempo, onírica, estética, poética e reflexiva, não 49 Idem: ibidem, p. 54. 50 Octavio Paz: Lo mejor de Octavio Paz — El fuego de cada día, Barcelona, Seix Barral, 1990, pp. 98-99, 206. 51 Cf. Octavio Paz: Hombres en su siglo, México, Seix Barral, 1990, p. 77. 52 Octavio Paz: Lo mejor..., op. cit., pp. 322-323. 56 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO devem confinar-se apenas (nem talvez sobretudo...) «al diálogo de la razón»: devem alargar-se, empenhada e integradoramente, «al diálogo de los hombres y las culturas»53, pois, quando eles se sabem assumir, sem preconceitos, em sua autenticidade ontológica e em sua dignidade axiológica, «los hombres hablan con los hombres»54. É, na verdade, da assunção da nossa capacidade de diálogo e de escuta («oirse llorar en medio de la sordera universal»...) que podemos concluir que somos «carencia y búsqueda»55, é do exercício do espírito crítico, da reflexividade reconstrutiva de matrizes, arquétipos, paradigmas, modelos e referências e do accionamento dos mecanismos eutróficos da receptividade estésica (a‡syhsiw) e dos potenciais eugénicos da criatividade poiésica (po€hsiw)56 que se pode projectar uma nova luz por sobre o obscuro semideiro e preocupante trajecto que vem sendo percorrido pela história do nosso tempo, comandada pelo poderoso “quadrimotor louco” de que fala Edgar Morin57 e que co- envolve, em descontrolada e devastadora sinergia, a Ciência, a Técnica e a Tecnologia, a Indústria e o “capitalismo selvagem”... A defesa vigorosa da integridade e da dignidade do homem (de cada homem e de todos os homens) e do respeito preservador de Deméter, nossa materna-paterna casa planetária58, constitui um dever sagrado e intransferível e um desafio premente e irrecusável de uma cidadania lúcida, adulta e generosa: ou seja, o dever e o desafio do cidadão universal59 que cada um de nós é, e, agora mais do que nunca, de modo irreversível... 53 Cf. Octavio Paz: Hombres en su siglo, op. cit., p. 77. 54 Octavio Paz: Lo mejor..., op. cit., p. 283. 55 Cf. Octavio Paz: Itinerario, México, FCE, 1993, p. 36. 56 Para um melhor entendimento da interacção “estética <> poética” nos processos expressionais e comunicacionais, ver, supra, nota 47. 57 Cf. Edgar Morin: O Método V. — A Humanidade da Humanidade, Lisboa, Publicações Europa-América, 2003, p. 236. 58 Cf. Michel Serres: O Contrato Natural, Lisboa, Edições Piaget, 1994, pp. 184 ss. 59 Sobre os conceitos de «Citizenship» e «World Citizenship», ver: Bernand Crick: Essays on Citizenship, London – New York, Continuum, 2000, pp. 3-11, 136-145; Derek Heater: World Citizenship — Cosmopolitan Thinking and Its Opponents, London – New York, Continuum, 2002, pp. 1-25, 180-188; Fernando Bárcena: El oficio de la ciudadanía — Introducción a la educación política, Barcelona, Ediciones Paidós, 1997; Adela Cortina: Los ciudadanos como protagonistas, Barcelona, Galaxia Gutenberg, 1999. 57 Fernando Paulo do Carmo Baptista Nisso consiste a nossa vinculação ético-política à intencionalidade que no essencial subjaz ao “princípio de responsabilidade” [Das Prinzip der Verantwortung] enunciado por Hans Jonas60 (numa formulação homóloga do “imperativo categórico” de Kant...) e entendível como um compromisso de ordem superior que, face aos efeitos ecologicamente perversos da “Tecno-Ciência”, nos convoca a não pôr em risco, com os nossos actos, as condições perpetuadoras da vida humana no futuro: «AGE DE TAL MODO QUE OS EFEITOS DA TUA ACÇÃO SEJAM COMPATÍVEIS COM A PERMANÊNCIA DE UMA VIDA HUMANA AUTÊNTICA NA TERRA». E se, em consonância com Heidegger61, o ser do homem é tempo, ou melhor, temporalidade em constante movimento a ser clarificada, em seu mais fundo sentido, pela abertura à «luz do ser»62 e (acrescentaria eu...) à noitidão do nada e ao enigma do mistério, a dimensão temporal não pode deixar de constituir a estruturante e identitária condição antrópica do homem enquanto «ser do tempo», «ser no tempo» e «ser tempo» ou «tempo em ser», na dialéctica dialogia entre finito e infinito, entre efémero e eterno, entre mortal e imortal... Dito num denso e belo fragmento poético de A. Oliveira Cruz63, de extásica ressonância agustiniana: «tempo p’ra ser / nós o somos / somos de tempo / no tempo / dentro do tempo que fomos!...». É por isso que nunca «somos» inteiramente e de uma vez por todas: mortais, estamos sempre a ser — somos «el presente [que] es perpetuo»64 — porque somos, suspensos em nossa finitude, poder-ser e abertura a todas as possibilidades... 60 Cf. Hans Jonas: Le Principe Responsabilité, Paris, Les Éditions du Cerf, 1990, pp. 30, 57 ss. 61 Cf. Martin Heidegger: El concepto de tiempo, Madrid, Editorial Trotta, 2003, pp. 23-61 (especialmente p. 58: «el ser-ahí es el tiempo, el tiempo es temporal. (...) El ser-ahí no es el tiempo, sino la temporalidad»); Sein und Zeit, Tübingen, Max Niemeyer, 1967, na tradução de José Gaos: El Ser y el Tiempo, México, FCE, 1971, pp. 253 ss; Carlos Másmela: Martin Heidegger: El tiempo del Ser, Madrid, Editorial Trotta, 2000. 62 Cf. Martin Heidegger: Carta sobre o Humanismo, Paris, Aubier, 1970, p. 79. 63 Cf. António Oliveira Cruz: Poética do Tempo, Lisboa, Edições Piaget, 1995, p. 106. 64 Octavio Paz: Lo mejor..., op. cit., pp. 189-194. 58 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO «Poema inacabado do ser», na bela metáfora de Heidegger65, o homem não deixa de constituir o eterno e incontornável problema do próprio homem, sabendo-se, como se sabe, que as intentadas “soluções” dos homens para este seu problema são inelutavelmente soluções conjunturais e epocais, sempre precárias, provisórias e falíveis e que é no mistério e na fundura dos abismos do seu ser e poder-ser que importa ir inspiradoramente sonhá-las, arquitectá-las e construí-las em indomável, persistente, incisiva e anti-sofística interpelação dialéctico- indagativa (ironia66) e naquela inamovível e serena postura de reflexivo e problematizador questionamento que rasga caminhos e alumia horizontes, criando, assim, as condições propulsoras da recorrente parturição (maiêutica67) de novas dúvidas, novos problemas, novas controvérsias, novas ideias, novos saberes, novos paradigmas, novos sentidos, novas configurações da verdade... De facto, «o homem, como no-lo sublinha Castanheira Neves68, não conhece de si senão o que as especificações do seu poder-ser historicamente lhe manifestam». Mas esta sua diacrónica epifania semiósico-discursiva não é dissociável (porquanto dela deflui...) da intensa, dinâmica, inestancável e complexificante espiral dialógica e dialéctica entre divergência e convergência, a desaguar, imparavelmente, na emergência de inovadoras plataformas sapienciais que alimentam e renovam (ainda que circunstancial e contextualizadamente...) essa nossa sempre circunscrita autognose... É aqui que, a meu ver, cobra o seu inteiro sentido e alcance a radical, sistemática e orientadora assunção, com Sócrates, do délfico e irrenunciável gn«yi sautÒn (gnothi sauton: conhece-te a ti mesmo), a ser sempre replasmado na docta ignorantia do «só sei que nada sei»... Imperfeito, inconcluído, frágil, evanescente, errante, lábil, enigmático, misterioso, sortílego, uno e múltiplo, ipseídico e alterídico, agórico e alegórico, simétrico e assimétrico, sapiens e demens, solar e 65 Cf. Michel Malherbe e Philippe Gaudin: As Filosofias da Humanidade, Lisboa, Edições Piaget, 2001, p. 443. 66 Em grego: e rone€a [eironeia] > ironia. Para um entendimento mais desenvolvido do que seja a “ironia socrática”, ver, infra, nota 160. 67 Em grego: maieutikÆ [subentendido: t°xnh] = a arte de ajudar a dar à luz, o ofício de parteira. 68 A. Castanheira Neves: Digesta, vol. 1.º, Coimbra, Coimbra Editora, 1995, p. 313: ensaio «A imagem do homem no universo prático», pp. 311-336. 59 Fernando Paulo do Carmo Baptista nocturno, simbólico e diabólico69, anjo e besta, divino e demoníaco, em suma, paradoxalmente detentor das capacidades de amar, sonhar, intuir, analisar, interpretar, compreender, integrar, esperar, acreditar, duvidar, indagar, imaginar, visionar, inventar, inovar, criar e realizar e, assim, de se “imortalizar”, por exemplo, através da Religião, da Política, do Direito, da Filosofia, da Cultura, da Literatura, da Arte, da Ciência, da Técnica e da Tecnologia, mas igualmente senhor do absurdo e fatídico “poder negro” de odiar, humilhar, desprezar, segregar, excluir, perseguir, explorar, poluir, destruir, violentar, torturar, queimar e matar e, assim também, de se “notabilizar” pela malvadez e pelo crime, o homem «siempre inacabado, sólo se completa cuando sale de sí e se inventa70, sólo en su semejante se trasciende71: el hombre... está siempre más allá»72, em cada átimo da vida que lhe foi dada e lhe permite conceber um projecto e traçar um rumo, sempre reajustável, que dê sentido à sua existência... A imparável movência de instantes em que «o fenómeno humano» se vai revelando na linha do tempo é culturalmente codificada e plasmada no vasto e rico legado antropológico, sapiencial e criativo 69 Cabe sublinhar que o adjectivo ‘simbólico’ provém do seu genealógico e homólogo grego sumbolikÒw, -Æ, -Òn, da mesma família do verbo sumbãllv (< sum + bãllv) que tem o significado originário de lançar (bãllv) de modo combinado (sum = syn = cum > com), isto é, lançar as coisas de modo que permaneçam juntas, unidas; por sua vez, o adjectivo ‘diabólico’ provém do grego diabolikÒw, -Æ, -Òn, da mesma família de diabãllv (dia + bãllv), com o significado matricial de lançar (bãllv) de modo separativo, dispersivo, desagregador [dia > dia = dis > des], ou seja, lançar as coisas de modo que fiquem separadas, desunidas; de notar que a raiz bal- do verbo bãllv é a mesma do lexema ‘balística’, com o qual se designa a «ciência que se ocupa do estudo do lançamento, movimento e trajectória dos projécteis»; tendo em conta a semântica profunda que irrompe da etimologia, poderá dizer-se que a essência do “simbólico” reside na sua “energia unitiva e congregante”, ao passo que a essência do “diabólico” assenta na sua “força dissociante e desagregante” (cf. Leonardo Boff: O despertar da águia – o dia-bólico e o sim-bólico na construção da realidade, Petrópolis, Editora Vozes, 61998, pp. 11-24). 70 Cf. Octavio Paz: Cuadrivio, México, J. Mortiz, 1991, p. 90. 71 Cf. Octavio Paz: Libertad bajo palabra, Madrid, Fondo de Cultura Económica, Sucursal para España, 1990, p. 109 (poema “El Prisionero”): «El hombre está habitado por silencio y vacío. /¿Cómo saciar esta hambre, / cómo acallar y poblar su vacío? / ¿Cómo escapar a mi imagen? / Sólo en mi semejante me trasciendo, / Sólo su sangre da fe de otra existencia». 72 Octavio Paz: Lo mejor..., op. cit., p. 328. 60 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO dos quatro planetários CIDADÃOS que aqui se evocam e, assim, nos convocam à reflexão e à meditação: Sócrates, Octavio Paz, Michel Serres e José Saramago. Corporiza-se esse seu legado e tesouro numa laboriosa e exigente construção simbólica, singularmente protagonizada por cada um deles, num constante e empenhado compromisso que bem pode identificar-se com aquela mesma radical assunção e limiar autodeterminação de Octavio Paz, segundo a qual, ser é um desejo germinal, uma pulsão intensa, um recorrente e imparável querer ser, metabolicamente consubstanciado e configurado no acto de criar-se a cada instante e em permanente, simbiósica e comungante abertura à “outridade” («el ser del hombre contiene ya a ese otro que quiere ser»73), implicando-se, desse modo, na construção polifónica da humanitas de cada homem e de todos os homens, numa espécie de navegante aventura noética, sófica, ética, estésica e poiésica que parte de uma antropologia, de uma axiologia e de uma pedagogia para se ir transformando numa eco- antropagogia ou, talvez melhor ainda, numa cosmo-antropo-sinfónica, potenciada por uma espiralar, galopante e humanizadora antropo- poiese realizadora da universal ideia de que «todos los hombres son este hombre que es otro y yo mismo»74, de que «Ser Homem é ser em Si, sempre e ao mesmo tempo, o Próprio e o Outro, sem exclusão de Ninguém.»75... 73 Cf. Octavio Paz: El arco y la lira, Madrid, Fondo de Cultura Económica de España, 2004, pp. 180-181: «La voz poética, la otra voz es mi voz. El ser del hombre contiene ya a ese otro que quiere ser. (...) La amada está ya en nuestro ser, como sed y “otredad”. (...) Más allá, fuera de mí, en la espesura verde y oro, entre las ramas trémulas, canta lo desconocido. Me llama. (...) Todos los hombres son este hombre que es otro y yo mismo. Yo es tú. Y también él y nosotros y vosotros y esto y aquello»; cf. o bem fundamentado estudo de María del Carmen Ruiz de la Cierva — «Imagen intelectual de Octavio Paz» —, publicado em: México en la encrucijada, Universidad Complutense, Madrid, Gondo, 2000: pp. 173-181 (http://www.ensayistas.org/filosofos/mexico/paz/ruiz/). 74 Ver citação feita na nota anterior [n.º 73]. 75 Cf. Fernando Paulo Baptista: Tributo à Madre Língua, Coimbra, Pé de Página Editores, 2003, p. 542; este princípio está em inteira consonância com o lema renaniano das almas nobres que Ortega y Gasset tomou como seu: «excluir la exclusión» (cf. Diego Gracia, Pedro Cerezo Galán y otros: La empresa de vivir — Estudios sobre la vida y la obra de Pedro Laín Entralgo, Barcelona, Galáxia Gutenberg / Círculo de Lectores, 2003, p. 51. 61 Fernando Paulo do Carmo Baptista Tudo isso, mediatizado por uma “sinagógica” trans-científica e meta-tecnológica e por uma “bio-artónica”76 metodologicamente orquestral, criticamente radicadas numa anthropo-sophia plural, intercultural e integradora e (por que não?...) numa “theo-sophia”77, capaz de inspirar e fundamentar um «Novo Paradigma Teológico»78, marcado por uma forte preocupação ecuménica, profética e exodal e gerador e promotor da polilogia reflexiva, heurística e exegética, do trans-academismo unicitarista, da superação dos dogmatismos instalados e obsoletos e, nesse sentido, “meta-dogmático” e, assim, menos propenso, por um lado, às tentações do exercício de um poder imperial, cesarista, faustoso e autoritário e do exorcismo e do anátema condenatórios ou excludentes, e mais sensível, pelo outro, à dimensão existencial e histórico-concreta da vida humana, aos valores da 76 Com esta metáfora inspirada numa sintetizante combinatória de “Biónica” com “Artónica”, pretendo sugerir a assunção, no plano metodológico, de um Novo Paradigma Educacional e Formativo que retire das “engenharias” e das “tecnologias” que se ocupam da análise, estudo e imitação dos “sistemas da vida, da natureza e da arte” (esta última, por exemplo, nas suas relações com a construção de edifícios e a modelação de equipamentos específicos da área da saúde...) o que eles encerram em si de mais inovador e criativo. Assim, e clarificando: 1) «Bionics (also known as Biomimetics, Biognosis or Biomimicry...) is the application of methods and systems found in nature to the study and design of engineering systems and modern technology» (cf.: en.wikipedia.org/wiki/Bionics); 2) por sua vez, «... Artonic encompasses this creative spirit (...): artists, at their best, reflect a concern for humanity; engagement in making an artwork is very often a response to the wonder of the human experience and attempts to express and understand this; it is often generous and can even be noble; it is something of this that makes it so good in health; there is a natural affinity between the arts and the health communities; buildings are understood in many different ways; there are of course the mechanics, the layout, the function, the organisation of circulation space and clinical space for example, but there is also the mood, the feel of the building; there are of course more practical reasons, very often new buildings take over from old, these can have sentimental attachments for those who worked in them, carrying some elements of the old into the new can smooth the transition...». Cf. http://www.lustre.co.uk/artonic_web/bckgrnd_pages/health.html; e também: http://www.rogermichell.co.uk/artonic_web/bckgrnd_pages/artonic.html. 77 Fernando Paulo Baptista: ibidem, p. 555. 78 Ver, por exemplo, Juan José Tamayo-Acosta: Nuevo Paradigma Teológico, Madrid, Editorial Trotta, 22004, pp. 11-14 e Johan Baptist Metz: Dios y tiempo — Nueva teología política, Madri, Editorial Trotta, 2002, especialmente, pp. 13-38, 39- 70, 71-84, 85-97 e 109-139. 62 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO tolerância, da compreensão, da solidariedade, da justiça e da equidade na base do amor fraterno, às mediações culturais, filosófico-teológicas, técnico-científicas, político-económicas e sociais, eclesiais e contextuais, que a alimentam e configuram, sem esquecer as dimensões do sonho e da esperança e a utopia de uma «terra nova» e de um «céu novo» também79... Mas, quando no específico contexto antropológico da propositura que venho fazendo de uma “Nova Paideia” que seja uma “Sinfónica do Humano” digo «meta-dogmático», não digo nem quero dizer «anti- dogmático». Com efeito, face à profunda, gravíssima e arrastada crise de valores80 (dos valores em geral e dos valores éticos em particular...) que vem atravessando radialmente o nosso mundo contemporâneo, afigura-se-me da maior relevância (no humilde mas convicto entendimento do simples “filo-filósofo” que tento ser...) a presença operante de uma summa crística ou evangelho sinóptico fundamental (que não fundamentalista!), de uma archê originária e originante, matriz e base doutrinal de referência, de meditação e de mediação, teologicamente coerente e forte e, ao mesmo tempo, dinâmica, aberta e projectiva, instituidora dos grandes princípios e valores e irradiadora dos sentidos polares que devem inspirar e nortear o diálogo quotidiano e o agir social, político e religioso, a nível pessoal, inter-pessoal, institucional e comunitário, e impulsionar, aquecer e incandescer os fluxos relacionais do homem com «o profano», com «o sagrado» e com 79 Isto é: limpo de todas as “teias de aranha” que o vêm povoando e desfigurando... 80 Gilles Lipovetsky, por exemplo, tenta caracterizar a actual «crise de valores», condensadamente, sob as famosas e sugestivas metáforas de «a era do vazio» e de «o crepúsculo do dever»... Cf. Gilles Lipovetsky: a) A era do vazio [trad. de Miguel Serras Pereira e Ana Luísa Faria], Lisboa, Relógio d’Água, 1989; b) O crepúsculo do dever — A ética indolor dos novos tempos democráticos, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1994; Fernando Paulo Baptista: Tributo à Madre Língua..., op. cit., pp. 544- 545; José Alcina Franch y Marisa Calés Bourdet (eds.): Hacia una ideología para el siglo XXI — Ante la crisis civilizatoria de nuestro tiempo, Madrid, Ediciones Akal, 2000; Enrique Dussel: Ética de la liberación en la edad de la globalización y de la exclusión, Madrid, Editorial Trotta, 32000; Juliana González: Ética y Libertad, México, Fondo de Cultura Económica, 21997; Anthony Giddens: Modernity and Self- identify — Self and Society in the Late Modern Age, London, Polity Press / Basil Blackwell, 1991; José Antonio Pérez Tapias: Filosofía y crítica de la cultura, Madrid, Editorial Trotta, 22000. 63 Fernando Paulo do Carmo Baptista o «divino», com «o outro» e «o totalmente outro»81, bem como as vias e os modos diversos de ir realizando na Terra e nesta vida «o reino de Deus», antecipando, assim, a chegada, post mortem, à prometida (mas adiada...) «Jerusalém Celeste»82... A presença de uma tal summa, reconduzida à pureza prístina e genuína das suas fontes e raízes, sem a mácula das conivências de conveniência, das dependências interesseiras e das alianças cúmplices e tragicamente alienantes com as instâncias do poder secular («o meu reino não é deste mundo», «a César o que é de César»...), teria como finalidade semaforizar, em planante horizonte de crítica e transfinita transcendência, os caminhos, as dinâmicas e os movimentos anabáticos ou ascensivos, contra os impulsos, as tentações ou as derivas catódicas que venalizam, satanizam, idolizam ou endeusam o ser humano e, assim, o corrompem, desfiguram, pervertem e fazem perder... É urgente, pois, levantarmo-nos do chão!... Numa tal perspectiva e no poético entendimento partilhado com Octavio Paz83 de que «la tierra es un hombre... pero el hombre no es la tierra, el hombre no es este mundo ni los otros mundos que hay en este mundo y en los otros...», de que, pelo contrário, «el hombre es el momento en que la tierra duda de ser tierra y el mundo de ser mundo», será ou não será pertinente e urgente, se não mesmo inadiável, levar a cabo um clarificador e isento questionamento, em largueza, profundidade e elevação, em torno do humano e do divino, da imanência e da transcendência?... 81 Sobre as dimensões do “outro” e do “totalmente outro”, ver, por exemplo: Emmanuel Levinas: Totalidad e Infinito – Ensayo sobre la exterioridad, Salamanca, Ediciones Sígueme, 72002, pp. 57-127; La realidad y su sombra. Libertad y mandato, Transcendencia y altura, Madrid, Editorial Trotta, 2001, pp. 120-122; Paul Ricœur: Sí mismo como otro, Madrid, Siglo Veintiuno de España Editores, 1996, pp. 365 ss; Ángel Gabilondo: La Vuelta del Otro — Diferencia, Identidad y Alteridad, Madrid, Editorial Trotta, 2001, pp. 9-15, 199 ss; Martin Buber: ¿Qué es el Hombre?, México- Madrid-Buenos Aires, Breviários, FCE, 131986, pp. 93 ss, 107 ss, 141-151; Joseph Gevaert: El Problema del Hombre — Introducción a la Antropología Filosófica, Salamanca, Ediciones Sígueme, 2003, capítulo «Ser hombre es ser con otros», pp. 29- 62. 82 Cf., a título de exemplo, Anna-Teresa Tymieniecka: From the Sacred to the Divine: A New Phenomenological Approach (Analecta Husserliana), Dordrecht, Netherlands, Springer, 1994. 83 Octavio Paz: Lo mejor..., op. cit., p. 328. 64 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO Poderá contribuir, ou não, tal questionamento para melhor compreender a «treva geral no interior dos homens»84, decifrar «el eclipse de las claridades»85 e combater «a epidemia geral de cegueira branca»86 que vem assolando sombriamente a comunidade humana, através da acção iludente, alienante e barbarizante que decorre da globalização meramente economicista e consumista e da homogenização neutralizadora e silenciadora das grandes referências ético-axiológicas, culturais e identitárias que iluminam, por dentro, as alumiantes focalizações de um olhar trans-oftálmico, verdadeiramente inteligente e sensível e superadoramente sábio e crítico?... Será luz autêntica aquela excessiva luz que apenas encandeia e obnubila?... Não será tragicamente cego aquele que, olhando, não sabe ou não quer ver?... No pressuposto de que a prova da mais autêntica fidelidade do homem à sua condição e ao seu destino reside, por certo, na obstinada procura das suas origens e das suas ultimidades, terá ou não terá cabimento prosseguir na rota dessa questionante indagação sedenta de cada vez mais saber acerca de si próprio e do mundo?... Que somos e quem somos?... De onde vimos e para onde vamos?... Foi ou não foi um «deus» que criou a maravilhosa “máquina” do universo (globalmente pensado em sua integrada unidade e expressão cosmo- eco-bio-sócio-antropológica...) em que nos foi dado aparecer?... Essa “máquina” gerou-se a si mesma ou é obra aleatória e arbitrária do acaso ou de um destino cego?... O que é que havia ou não havia, há cerca de quinze ou vinte mil milhões de anos, antes da eclosão do big bang?... E, pressupondo ainda que «a ordem que caracteriza o nosso universo actual não é uma ordem sobrevivente a uma degradação progressiva, mas sim uma ordem gerada durante uma explosão entrópica original, uma ordem de que a radiação fóssil nos permite avaliar o custo gigantesco»87, o que é que passará a haver, quando, entre expansão e arrefecimento, se vier a consumar a «morte térmica» do cosmos e, com ela, a do planeta e a do homem, no quadro da entropia crescente, da dissipatividade, da desorganização e do colapso geral, previsíveis na 84 José Saramago: Memorial..., op. cit., p. 144. 85 Octavio Paz: Lo mejor..., op. cit., p. 285. 86 José Saramago: Ensaio sobre a Lucidez, Lisboa, Editorial Caminho, 2004, p. 238. 87 Cf. Ilya Prigogine / Isabelle Stengers: Entre o Tempo e a Eternidade, Lisboa, Gardiva, 1990, p. 179. 65 Fernando Paulo do Carmo Baptista “segunda lei da termodinâmica” enunciada por Kelvin88?... Será o regresso ao puro e perpétuo nada, sob a acção aniquilante, arrasadora e esmagadora de um big crunch89 intra e inter-galáctico, a ser (se vier a ser...) desencadeado pelo poder hipergravítico, supermassivo, curvaturante, atractor, implosivo-capturante e rádio-energo-fágico dos “buracos negros”?... Cumprir-se-á a escatológica promessa da ressurreição e da transfiguração dos mortos e da fruição, para sempre, de uma outra vida no além?... E, se assim for, «onde» é que fica esse «além», se é que ele tem um «onde»?... Ou, pelo contrário, continuará a haver lugar para novas singularidades, sob a forma de novas explosões entrópicas, geradoras e propulsoras de «novas temporalidades» e de «novas existências», numa palavra, consubstanciadoras de uma “variância” recorrente e cíclica a operar por sobre o transfundo dinâmico e o lastro evolutivo de uma “constância” motora, metabólica e morfogénica, 88 Sobre a «segunda lei da termodinâmica, ver: Julio Güémez, Carlos Fiolhais e Manuel Fiolhais: Fundamentos de Termodinâmica do Equilíbrio, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1998; Michel J. Moran & Howard N. Shapiro: Fundamentals of Engineering Thermodynamics, New York, John Wiley & Sons, 41999; Gordon Van Wylen & Richard E. Sonntag: Fundamentos da Termodinâmica, São Paulo, Editora Edgard Blücher Lda., 51998; Göran Wall: «Exergy — a useful concept» (apud: http://www.exergy.se/goran/thesis/index.html#1), considerando que «exergy is the maximum amount of work that can be extracted from a physical system by exchanging matter and energy with large reservoirs in a reference state; this work potential is due to either a potential due to a force, temperature, or the degree of physical disorder; while energy is conserved, exergy can be destroyed; while there is a constant amount of energy in the universe, the amount of exergy is constantly decreasing with every physical process». Cf: en.wikipedia.org/wiki/Exergy.); cf. também: http://www.if.ufrj.br/teaching/fis2/segunda_lei/segunda_lei.html; http://www.christiananswers.net/portuguese/q-eden/edn- thermodynamics-port.html; http://www.members.tripod.com/alkimia/cientificos/2_lei.htm;. Cf: en.wikipedia.org/wiki/Exergy.); cf. também: http://www.if.ufrj.br/teaching/fis2/segunda_lei/segunda_lei.html; http://www.christiananswers.net/portuguese/q-eden/edn- thermodynamics-port.html; http://www.members.tripod.com/alkimia/cientificos/2_lei.htm; 89 Cf . Stephen Hawking: O Fim da Física, Lisboa, Gradiva, 1994, pp. 28-41. 66 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO auto-cosmogónica e auto-poiésica, no horizonte eterno e sem limites de uma physics of the immortality90?... Afinal, qual o sentido de tudo isto, se é que isto tem (ou tem de ter...) algum sentido?... E mesmo que, com o nosso Camões (Lus., X, 80), em jeito de auto-justificação se possa defender que «... o que é Deus, ninguém o entende, / que a tanto o engenho humano não se estende», bastará acreditarmos afirmando, ou não acreditarmos negando, sempre ancorados, num caso como no outro, no “código” das mundividências 90 Sobre a problemática da «morte térmica» do cosmos e suas implicações filosófico- metafísicas e teológico-religiosas, ver: Frank J. Tipler: The Physics of Immortality: Modern Cosmology, God and the Resurrection of the Dead, New York, Doubleday, 1994; Concílio Ecuménico Vaticano II, Braga, SNAO, 1967: «Constituição pastoral — A Igreja no mundo actual», ponto 39, pp. 370-371; Catecismo da Igreja Católica, Coimbra, Gráfica de Coimbra, 1993, pp. 77 ss; Sebastião J. Formosinho e J. Oliveira Branco: O Brotar da Criação — Um olhar dinâmico pela Ciência, a Filosofia e a Teologia, Lisboa, Universidade Católica Editora, 1997; Roger Trigg: Racionalidade e Religião — Precisará a Fé da Razão, Lisboa, Edições Piaget, 2001; Carl Sagan: Cosmos, Lisboa, Gradiva, 1984, pp. 281-309; Heinz R. Pagels: O Código Cósmico, Lisboa, Gradiva, 1987, pp. 369-380, 403-410; Stephen Hawking: Breve História do Tempo — Do Big Bang aos Buracos Negros, Lisboa, Gradiva, 1988, pp. 117-228; Heinz R. Pagels: Os Sonhos da Razão, Lisboa, Gradiva, 1990, 191-225; John D. Barrow, Frank J. Tipler: The Anthropic Cosmological Principle, Oxford, Oxford University Press, 1988; John D. Barrow: Teorias de Tudo — A procura de uma explicação para o universo, Lisboa, Editorial Presença, 1996; Nikos Prantzos: Our Cosmic Future: Humanity’s Fate in the Universe, Cambridge, Cambridge University Press, 2000; James N. Gardner: Biocosm: The New Scientific Theory of Evolution: Intelligent Life Is the Architect of the Universe, Inner Ocean Publishing Inc., Makawao, Maui (Hawaii), 2003; John D. Barrow (edit.), Paul C. W. Davies (edit.), Jr, Charles L. Harper: Science and Ultimate Reality: Quantum Theory, Cosmology, and Complexity, Cambridge, Cambridge University Press, 2004. Sobre os «buracos negros», considerar o interessante estudo subscrito por Thaisa Storchi Bergmann, Fausto Kuhn Berenguer Barbosa e Rodrigo Nemmen da Silva: http://www.if.ufrgs.br/~thaisa/bn/index.htm#indice, bem como os artigos e estudos localizáveis nas seguintes e-fontes, entre outras: http://www.observatorio.ufmg.br/pas19.htm http://observatoriophoenix.astrodatabase.net/e_teoria/24_E15.htm http://www.terravista.pt/meco/1351/Bnegros.html, http://www.spaceref.com/tools/imagecathp.html?cid=1 67 Fernando Paulo do Carmo Baptista ou das convicções pessoais91?... Como explicar, por um lado, a irrasurável fanerose ( ανέ ι ), a espantosa presença ou expressão fânica do divino e do sagrado na arte (arquitectura, escultura, pintura, literatura, música, cinema...) e na filosofia e, pelo outro, a origem e a existência do mal, das guerras e dos cataclismos e demais desgraças, da doença, da dor e da morte?... E como aceitar o sofrimento das crianças e dos inocentes, dos bons e dos justos, a condenação dos injustiçados e a impunidade dos criminosos?... Qual a “posição” e o “papel” da divindade em tudo isto?... E, por mais heterodoxo que tal possa parecer, será descabido relançar, aqui, a provocadora e radical pergunta formulada por Hans Küng — «Existiert Gott?»92 [Será que Deus existe?] — com que, nos fins da década de setenta, deu expressão à sua famosa e aturada procura em busca de um «sim» ou de um «não»?... Terá razão Edgar Morin quando vaticina93 que «os deuses morrerão todos quando nós deixarmos de existir»?... Mas, independentemente das razões de auto-convencimento (mais ou menos consistente...) que possam defluir da assunção de cada credo, não será de persistir no agónico e inconformado questionamento que não cessa de indagar, mesmo que as respostas continuem a ser a do silêncio do «Dios mudo, que al silencio del hombre que pregunta contesta / sólo con silencio que ahoga»94, a da revolta e da indignação, do cepticismo, do desalento ou da indiferença ou do espanto gerador de novas e irresignadas tentativas interrogantes?... E não será belo e até mesmo reconfortante admitir, ainda assim (como que em clave mística e ao mesmo tempo épica e para além de todas as concepções, figurações 91 Na verdade, nem mesmo o campo das convicções pessoais, em sua autenticidade, poderá deixar de ponderar devidamente «la complexidad del movimiento que ha llevado de la afirmación a la negación de Dios», na medida em que «no en toda afirmación se estaba expressando una actitud religiosa ni en toda negación se estaba manifestando un rechazo de Dios». Cf. Luís Miguel Arroyo Arrayás na sua «Introducción» a Martin Buber: Eclipse de Dios, Salamanca, Ediciones Sígueme, 2003, p. 10. 92 Cf. Hans Küng: ¿ Existe Dios?, Madrid, Editorial Trotta, 2005, pp. 17-19. 93 Cf. Edgar Morin: O Problema Epistemológico da Complexidade, Lisboa, Publicações Europa-América, 1983, p. 29. 94 Cf. Octavio Paz: Libertad Bajo Palabra — Obra Poética (1935-1957), Madrid, Fondo de Cultura Económica, Sucursal para España, 1990, p. 94. 68 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO ou representações, antropomórficas95 ou outras, do que seja «o divino»...), que «Deus é o silêncio do universo e o homem é o grito que dá sentido a esse silêncio»96?... Será que o “mérito” da busca residirá mais nas metas atingidas e reveladas no cerimonial dos rituais ou na retórica dos discursos do que nas fendas rasgadas na desafiante clausura do segredo que vive e medita em solidão o mistério e o enigma?... Ou aceitamos com Vergílio Ferreira97, e sem mais luta, que «o mistério é o intervalo vertiginoso entre nós e o que existe e que um deus não pode preencher»?... Haverá limites ou fronteiras para as ânsias e os dinamismos do ser e do conhecer, do pensar e do questionar, do confiar e do não confiar, do crer e do não crer?... Ou não será pertinente reafirmar, com Kierkegaard, que «ter fé é a coragem de sustentar a dúvida»98?... 95 Considere-se, a propósito, a seguinte ironia de José Saramago (Memorial..., op. cit., p. 238), no quadro da tradicional visão antropomórfica de Deus, dialogicamente partilhada, entre outros, pelos «rústicos e analfabetos» Manuel Milho e Baltazar Sete- Sóis: «Deus não tem a mão esquerda porque é à sua direita que senta os seus eleitos, e uma vez que os condenados vão para o inferno, à esquerda de Deus não vem a ficar ninguém, ora, se não fica lá ninguém, para que quereria Deus a mão esquerda, se a mão esquerda não serve, quer dizer que não existe, a minha não serve porque não existe, é só a diferença, Talvez à esquerda de Deus esteja outro deus, talvez Deus esteja sentado à direita doutro deus, talvez Deus seja só um eleito doutro deus, talvez sejamos todos deuses sentados...». Sobre as figurações “másculas” ou outras de “Deus”, ver a clarificadora reflexão de Hans Küng, op. cit., pp. 728-765, especialmente o excurso em torno da questão «¿Un Dios varón?» (pp. 733-735), em que conclui: «Dios no es varon y no debe ser contemplado a través de la falsilla de lo masculino y paterno, como tantas veces ha hecho una teología excesivamente masculina. En él se ha de reconocer también la dimensión femenino-materna». 96 José Saramago, citado por Juan Arias in «O Amor Impossível» (El País, 9 de Outubro de 1998), apud http://www.instituto-camoes.pt/revista/impespanha.htm; cf. também Juan José Tamayo-Acosta: op. cit., p. 211. 97 Cf. Vergílio Ferreira: Pensar, Lisboa, Bertrand Editora, 1992, p. 215. 98 Cf. Adolphe Gesché: Dios para pensar, II, Salamanca, Ediciones Sígueme, 1997, p. 11. Cf. também: Milene Costa dos Santos de Castro: Razão e Fé — Uma leitura da obra Temor e Tremor de Kierkegaard (dissertação de Mestrado em Filosofia da Religião), Belo Horizonte, Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, 2009, p. 92: «a coragem da fé é o único acto de humildade que é possível àquele que se vê absolutamente isolado em sua prova ou tentação»; Elias Gomes da Silva: Kierkegaard e Tillich: possibilidades que se abrem, in Revista Eletrônica Correlatio v. 13, n. 26 - Dezembro de 2014. 69 Fernando Paulo do Carmo Baptista Na liberdade de escolha de que, apesar de tudo, a esse nível, ainda vamos fruindo, terá este tipo de questões de se considerar forçosamente alienante, distractor ou inibidor da formulação de perguntas de natureza mais sensível e mais directa (menos “metafísicas”, digamos assim...) e, portanto, mais consonantes com o sentido e o horizonte da existência concreta, do mundo da vida (LebensWelt) e da historicidade?... Assim, por exemplo: em nome de que «deuses» e de que «divinas» causas se perseguiu e queimou nas «sacras» fogueiras das inquisições e dos holocautos99?... Em nome de que «deuses» e de que «divinas» razões continua a matança arbitrária, criminosa e assassina, sob a dominação estrangeira e genocida, às mãos da violência fanática e impune dos kamikazes jihadistas e daeshistas de toda a espécie ou da sofisticada, poderosa e letal máquina de guerra accionada, ao arrepio do direito internacional, pelos neo-bárbaros senhores das “tecnológicas” e devastadoras armas do nosso tempo?... Em nome de que «deuses» e com que «divinos» argumentos se vem permitindo a crescente existência de tanta fome, tanta miséria, tanta exploração e tanta destruição, de par com tantos e tão “lavados”, incontrolados e impunes “paraísos fiscais”100?... Que é feito dos códigos que nos declaram «irmãos», porque «filhos do mesmo Pai / da mesma Mãe» e, assim, com o mesmo e universal direito de todos crescermos e povoarmos a Terra?... Que “divina” esperança de futuro poderá brilhar ainda no olhar espantado, inocente e mudo de tanta criança sem pão, sem carinho e sem abrigo?... Não será já este nosso globalizado mundo o novo e geral palco- lixeira onde o bíblico Job volta a reencarnar no corpo dilacerado de todos quantos (à semelhança do que aconteceu com Sócrates e Jesus 99 Ou, então, muito dificilmente se compreenderá a veemente e frontal posição de Johan Baptist Metz (Dios y tiempo..., op. cit., p. 110), quando nos diz que, para si, «ser cristão» significa «ser cristão olhando de caras para Auschwitz, olhando de caras para o Holocausto», uma vez que «o Holocausto não é apenas uma catástrofre alemã: é também uma catástrofe cristã»; que não há para si, portanto, um Deus «a quem seja possível rezar de costas voltadas para Auschwitz», não lhe sendo possível seguir a Jesus Cristo «de costas voltadas a Auschwitz (...) nem fazer teologia de costas voltadas ao sofrimento mudo dos pobres e oprimidos do mundo»... 100 Cf. Fernando Paulo Baptista: op. cit., p. 550. 70 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO Cristo...) estão condenados a espiar o “grave crime” de serem simples e autênticos, justos e bons, generosos e corajosos, mas, ao mesmo tempo, “subversivamente” lúcidos e interpelantes ou contestatários, transparentes e coerentes, autónomos e solidários, por sentença do implacável julgamento (muito “legal”: a Lei é o Direito!...) protagonizado por aquele mesmo tipo de “juízes” soturnos, enigmáticos e invertebrados que perversamente presidiram ao anónimo, burocrático e decapitante “processo” de Joseph K(afka)?... Onde moram afinal a justiça e a equidade e quem é o seu garante?101... Por outras palavras: quando é que o direito e a justiça passam a ser, cumpridamente e em definitivo, «a suprema axiologia da existência humana comunitária», de modo a que todos os homens, sem qualquer espécie de distinção ou discriminação, vejam realizado o verdadeiramente fundamental e, por isso mesmo, irrevogável e inalienável direito de ter «direito ao direito»102?... São improrrogáveis as respostas, porque, sobretudo, inadiáveis as decisões... Mas porque a “navegação” é agora outra, simultaneamente ao perto e ao longe (local e global: “glocal”) e marcada por uma turbulenta instabilidade e incontrolável “risco invisível” (Ulrich Beck103), o mesmo é dizer, com Saramago104, pela «gravidade e diversidade de mazelas de toda a espécie que vêm ameaçando a já precária sobrevivência do género humano», não se pode dispensar o decisivo contributo de um “mapeamento” antropológico multiculturalmente “mestiçado”105, linguística e discursivamente heteroglóssico, 101 Idem: ibidem, p. 549. 102 Cf. A. Castanheira Neves: O Direito hoje e com Que Sentido? — O problema actual da autonomia do direito, Lisboa, Edições Piaget, 2002, pp. 70-73; ver, também, A. Gomes Canotilho na sua interpelante reflexão «O direito aos direitos humanos», apud Desafios à Igreja de Bento XVI, Lisboa, Casa das Letras, 2005, pp. 13-19. 103 Cf. Ulrich Beck: La sociedad del riesgo — Hacia una nueva modernidad, Barcelona – Buenos Aires – México, Paidós, 1998. 104 José Saramago: Ensaio sobre a Lucidez, op. cit., p. 79. 105 É complexo (e, por isso mesmo, difícil de equacionar...) o problema da “multiculturalidade”. Afigura-se-me, todavia, residir nas soluções a ir sendo construídas numa lógica de “mestiçagem” integradora e inclusora, mas não “assimilacionista” e/ou homegeneizante, a melhor e mais humana via de coexistência entre “maiorias” e “minorias”, entre “colonizantes” e “colonizandos” e “ex- colonizadores” e “ex-colonizados”... Na verdade, como reconhece o renomado 71 Fernando Paulo do Carmo Baptista multivocal ou polifónico106, de uma “cartografia” sapiencial e epistemologicamente interdisciplinar e transdisciplinar e, do ponto de vista metodológico, englobante e inclusora, numa palavra, pléctica, na acepção de Murray Gell-Mann107, e, por isso mesmo, co-implicativa da Arte, da Religião, da Filosofia, da Política, do Direito, da Ciência, da Tecnologia, do Trabalho, da Guerra e da Paz e, sobretudo, dessa “utopia” cada vez mais necessária e desse “tesouro” sempre por achar que dá pelo nome de Educação108... Uma tal cartografia pode e deve configurar-se simbolicamente na elaboração de um novo ATLAS ou MAGNA CHARTA SAPIENTIAE ET HUMANITATUM 109. politólogo e académico Bhiku Parekh (in Repensando el multiculturalismo, Madrid, Ediciones Istmo, 2005, p. 502): «Las sociedades multiculturales plantean problemas que no tienen parangón en la historia. Deben encontrar la forma adecuada de reconciliar las legítimas demandas de unidad y diversidad y lograr la unidad política sin llegar a la uniformidad cultural. Deben ser inclusivistas sin ser assimilacionistas, cultivar entre sus ciudadanos un sentimiento comun de pertenencia, respetando a la vez sus ligítimas diferencias culturales y cuidar de las identidades culturales plurales sin debilitar la identidad compartida y preciosa de la ciudadania. Esto es una tarea política formidable y, hasta ahora, ninguna sociedad multicultural ha sido capaz de llevarla a buen término». 106 Cf. Mikhail Bakhtin et alii: The Dialogic Imagination: Four Essays, Austin, University of Texas Press, 1983; Tzvetan Todorov: Mikhail Bakhtine, le principe dialogique, Paris, Seuil, 1981; Katerina Clark e Michael Holquist: Bakhtin, São Paulo, Perspectiva, 1998; Julia Kristeva: Polylogue, Paris, Éditions du Seuil, 1977. 107 Sobre o conceito de “pléctica”: cf. John Brockman: The Third Culture — Beyond the Scientific Revolution, London, Simon & Schuster, 1995, cap. 19: «Murray Gell- Mann “Plectics”» (complexity is the next big problem, pelo que se torna urgente e inevitável the study of simplicity, complexity of various kinds, and complex adaptive systems, with some consideration of complex nonadaptive systems as well); Murray Gell-Mann: The Quark and the Jaguar: Adventures in the Simple and the Complex, New York, Freeman, 1994 (versão portuguesa: O Quark e o Jaguar, Lisboa, Gradiva, 1997). 108 Cf. Michel Serres: Le Tiers-Instruit, Paris, François Bourin, 1991 (O Terceiro Instruído, Lisboa, Edições Piaget, 1996); Jacques Delors (coord.): Educação: um tesouro a descobrir — relatório da Comissão Internacional sobre Educação para o século XXI (UNESCO), Porto, Edições ASA, 1996. 109 A sugestão decorre, naturalmente, de Michel Serres: Atlas, Lisboa, Edições Piaget, 1997, pp. 11-20 ss. 72 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO Assim, e no que diz respeito mais directamente ao 110 CONHECIMENTO CIENTÍFICO, importa ter presente, com Michel Serres , que A CIÊNCIA, se é uma sólida e rigorosa construção a nível dos conteúdos sapienciais, programas e “protocolos” de cognição e metacognição, pesquisa e experimentação, suportada numa base racionalmente consistente e poderosa, constituída por um conjunto de enunciados teoréticos legiformes dotados de grande coerência intrínseca e de largo e universalizável potencial iluminante e alcance conjectural, descritivo-explicativo, preditivo e retroditivo, não deixa de ser, também, um incontornável «modo de circulação» operatoriamente sustentado numa rede e numa dinâmica de vectores, relações, categorias e modalidades de saber simultaneamente instituintes e constituintes que, na base de uma metódica essencial, visam «um máximo de resultado»111; que, nesse exigente e rigoroso esforço reticular de intelecção, emerge, por um lado, um objecto global — a Terra — e constitui-se, pelo outro, um sujeito igualmente global — a Comunidade Humana Planetária —, faltando-nos todavia, ainda, pensar e desenvolver, mais e melhor, as relações e as modalidades sapienciais englobantes dessas duas globalidades emergentes... Importa, pois, aprender a «dominar a nossa dominação», de modo a que seja o homem a “pilotar”, lúcida, articulada e integradoramente, o comando que nos vem sendo “imposto” pela cibernética mágica e cega da “Tecno- Ciência”. E esse é, sem dúvida, um dos grandes desafios que nos coloca o século XXI112... Daí, a necessidade de uma teoria geral e sistémica, co-implicativa das relações e das modalidades de saber, e a imprescindibilidade de um sentido imaginante verdadeiramente sentiens et intelligens113, ético, 110 Cf. Michel Serres: Diálogo sobre a Ciência, a Cultura e o Tempo, Lisboa, Edições Piaget, 1996, pp. 135, 144, 150-155, 160, 162, 231-232. 111 Método, consubstanciado num “protocolo” processual e procedimental que não dispensa a observação e a analítica sistemáticas nem a experimentação, a problematização e a testagem contrastiva e refutativa, probatória e validadora... 112 Cf. Edgar Morin: O Desafio do Século XXI — Religar os Conhecimentos, Lisboa, Edições Piaget, 2001. 113 Sobre as relações “inteligência <> sensibilidade”, ver Xavier Zubiri: Sobre el Hombre, Madrid, Alianza Editorial, 1998, p. 238: Os valores «son videntes porque son modulación de una inteligencia sentiente, porque la inteligencia está internamente inscrita en la estructura del sentir, y el sentir es un sentir intelectivo». Este entendimento filosófico-antropológico de Zubiri é partilhado, no essencial, por 73 Fernando Paulo do Carmo Baptista estético, eidético, sófico e poético, a alimentar e a orientar as capacidades da inovação, da inventiva e da criatividade, no pressuposto de que tais capacidades abrem imparavelmente caminho a uma infinidade de inovações, invenções e criações (creatio continua...), «alumiando assim [ao largo] o largo Mundo» (Camões: Lus., I, 56, II, 60)... Todavia, no que concerne ainda à problemática do conhecimento científico, pensado em todas as suas envolventes, aplicações e consequências, se, com Michel Serres, é serenante a conjectura de que «a ciência se tornará sábia quando se moderar a si mesma e fizer tudo o que pode fazer», a hipótese de corrermos os riscos diagnosticados, entre outros, por Ulrich Beck, Anthony Giddens, Henri Atlan, Almeida- Filho ou Mesquita Ayres114, também só muito provavelmente será superada, «quando a ciência e a razão tiverem atingido a beleza»115, isto é, quando se consumar definitivamente a pessoana116 paridade estética (e ética...) entre o binómio de Newton e a Vénus de Milo, o mesmo é dizer, o sacral e íntimo conúbio da Ciência com a Arte e das Tecnologias com as Humanidades... É por isso que se torna imperioso não só aprender a dominar e a regular estrategicamente o efectivo e tremendo poder que já vimos exercendo sobre a natureza, sobre o homem e sobre o mundo, mas António Damásio nas suas consabidas “teses” de matriz neurobiólogica acerca da consciência, do sentimento e da emoção (cf. António Damásio: Ao Encontro de Espinosa — As Emoções Sociais e a Neurologia do Sentir, Lisboa, Publicações Europa-América, 2003, p. 192: «Os seres humanos não só demonstram compaixão pelo sofrimento de um outro ser, coisa que variadas espécies não humanas podem também demonstrar, como sabem que sentem essa compaixão». 114 Cf., além de Ulrich Beck, já referido, o estudo de Naomar de Almeida-Filho: «Anotações sobre o conceito epidemiológico de risco» e a bibliografia aí citada, in http://www.ensp.fiocruz.br/projetos/esterisco/risc_epid.html; José Ricardo de Carvalho Mesquita Ayres: Sobre o risco: Para Compreender a Epidemiologia, São Paulo, Hucitec, 1997; Maurice Tubiana, Constantin Vrousos, Catherine Carde, Jean- Pierre Pagès (eds.): Risque et Société, Paris, Éditions NucléoN, 1999; Henri Atlan: La fin du tout génétique? Nouveaux paradigmes en biologie, Paris, INRA Éditions, 1999; La science est-elle inhumaine? Essai sur la libre nécessité, Paris, Bayard, 2002. 115 Cf. Michel Serres: O Terceiro Instruído, Lisboa, Edições Piaget, 1996, pp. 119- 120. 116 Fernando Pessoa (Álvaro de Campos): Poesia, Lisboa, Assírio & Alvim, 2002, p. 587: «O binómio de Newton é tão belo como a Vénus de Milo. / O que há é pouca gente para dar por isso». 74 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO também instituir a “mathesis”, a “aletheutica”, a “metrica”, a “sophia” e a “sophrosyne” de uma nova Educação, de uma nova Ética e de um novo Direito117: natura siue humanitas > humanitas siue cultura siue paideia > magister siue discipulus > creator siue creatura > pater siue filius > gubernator siue gubernatus > ius siue homo118 & siue uita > factum siue derectum... O farol iluminante (que não deslumbrante e, assim, ofuscante e ensombrante...) dessa conjugal e conjugada aprendizagem estratégica e dessa dinâmica fundadora reside, antes de mais, no potencial educativo e formativo da Arte e das Humanidades, das Humanae Litterae, dos Studia Humanitatis... «O nosso erro contemporâneo», lembra-no-lo, uma vez mais, José Saramago119, com lúcida pertinência, reside na 117 Sobre um imprescindível novo modo de perspectivar a práxis jurídica, «... há que ser consciente de que no fundo de tudo se impõe uma capital opção antropológico- cultural de que dependerá o sentido do direito e inclusive a sua própria subsistência autenticamente como direito. Com efeito, o homem dos nossos dias terá de perguntar- se que sentido se propõe conferir à sua prática e, através desse sentido, que compreensão assimilará de si próprio na sua existência histórico-comunitária. Uma prática referida a uma validade, seja porventura problemática mas não prescindindo nunca de interrogar por ela, a implicar um fundamento axiologicamente crítico e o homem transcendendo-se assim a um sentido materialmente vinculante em que assuma o projecto responsabilizante da sua própria humanidade...», uma vez que «... no vértice da actual compreensão autêntica da existência humana deparamos com a pessoa», daí decorrendo «a compreensão e a assunção de nós próprios como pessoas»; na verdade, «o homem-pessoa e a sua dignidade» constituem «o pressuposto decisivo, o valor fundamental e o fim último que preenche a inteligibilidade do mundo humano do nosso tempo (...). A condição existencialmente cultural — e a condição decisiva — refere uma exigência de virtude. Que o homem não se compreenda apenas como destinatário do direito e titular de direitos, mas autenticamente como o sujeito do próprio direito e assim não apenas beneficiário dele mas comprometido com ele — o direito não reivindicado no cálculo e sim assumido na existência, e então não como uma externalidade apenas referida pelos seus efeitos, sancionatórios ou outros, mas como uma responsabilidade vivida no seu sentido. O direito só concorrerá para a epifania da pessoa se o homem lograr culturalmente a virtude desse compromisso». A. Castanheira Neves: O Direito hoje e com Que Sentido, op. cit., pp. 49-50, 68-69, 75. 118 Porque, «se formos à raiz das coisas como que passando do exterior ao interior ou do contexto que ajuíza e exige ao fundamento que constitui e justifica», poderemos dizer com R. MARCIC que «quem quer o homem tem de querer o direito» (sublinhei). Cf. Castanheira Neves: ibidem, pp. 13-14. 119 José Saramago: A Jangada de Pedra, op. cit., p. 281. 75 Fernando Paulo do Carmo Baptista «persistência duma atitude céptica em relação às lições da antiguidade». Nesse humanizado e humanizador ensino e aprendizagem, nessa antropo-agógica, coral e sinfónica Paideia, ir-se-á moldando e configurando o disseminável e universalizável “arquétipo” do Sábio do nosso tempo — Le Tiers-Instruit120 —, síntese criativa resultante da combinatória do «legislador dos tempos heróicos» com «o moderno titular do saber rigoroso», simbiose harmoniosa e fecundante do humanista e do artista com o pensador e o cientista... Paradigma e referência do cidadão generoso, atento e lúcido, audacioso e prudente andarilho da natureza e da sociedade, inquieto e devoto peregrino do orbe inteiro, movido da paixão pelos pássaros, pelos prados e pelas flores, pelos lírios do campo, pelas fontes, pelos rios, pelas areias, pelas nuvens e pelos ventos, pelas montanhas, pelos mares, pelos céus e pelas estrelas, vagueando sem parar pelo intervalo que medeia entre, por um lado, a opulência, a riqueza, a abundância e o esbanjamento e, pelo outro, a miséria, a pobreza, a indigência e a fome, entre o tudo e o nada, a vida e a morte, a esperança e o desespero, a alegria e a festa e as lágrimas e o luto, a sombra e a luz, o conhecimento, o saber e a sabedoria e o analfabetismo, a iliteracia e a ignorância... Jovem e senhor, fidalgo e plebeu, monge e vagabundo, crente e descrente, santo e pecador, solitário e solidário, local e global e, acima de tudo, ardendo de amor pela Humanidade e pela Terra... 120 Reescrita, em paráfrase a Michel Serres: O Contrato Natural, op. cit., pp. 146-147. 76 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO Essa hominescente121, incandescente,122 naturante, religante e serenante sabedoria anamnética e cronopédica, respeitadora, integradora e harmonizadora das diferenças («apesar de todos os seus defeitos, a vida ama o equilíbrio»123) vai-se construindo, desconstruindo e reconstruindo nas diuturnas controvérsias suscitadas na linha do tempo e da flecha do seu sentido, com a paixão, a convicção e a loucura de quem ama, de quem sonha e realiza, de quem trabalha e de quem sofre, e num persistente exercício entre cegueira e lucidez, entre cepticismo, esperança e utopia, entre o enraizamento telúrico-social e a errância e a itinerância existencial do homo viator124 que somos... 121 O termo (e conceito de) «hominescência» foi cunhado por Michel Serres, a partir de certas analogias morfo-lexicogénicas (por ex: com adolescência, luminescência, incandescência, etc.), para traduzir, no quadro dum jogo que se desdobra por três campos de nucleares relações, uma constante dialéctica de afirmação e de negação, de vida e de morte: considere-se, a título de exemplo, o fenómeno da “apoptose” (em grego épÒptvsiw, -evw: queda, derrocada, fracasso...) que se traduz na morte ou destruição programada e “suicida” das células, implicando investimento de energia proteica, numa estreita relação homeostática com a regulação da fisiologia dos tecidos e numa função diferente da do processo de cariocinese... A «hominescência» constitui uma poíesis e uma dinâmica de antropomorfose (superadora dum evolucionismo imanentista e de uma concepção “utensilar e protética” da técnica e da tecnologia...) e configura a irrupção ou emergência de um processo neo-humanizador da sociedade, potenciado pela crescente libertação criativa do corpo humano dos ancestrais constrangimentos e dependências que o afectavam e limitavam. Essa libertação assenta num imparável e integrador processo de antropo-tecnicização e bioculturação, com o objectivo de se estabelecer uma nova teia de relações connosco próprios, com o mundo e com os outros. Nesse contexto e tendo em conta o facto de vivermos na sociedade da comunicação, da informação e do conhecimento, marcada por uma malha de relações cada vez mais intensas e interdependentes, corre-se o risco do advento de uma espécie de avalanche informativa, estranguladora das possibilidades de elaboração crítica do saber e, consequentemente, da construção autónoma e reflexiva da própria sabedoria, pelo que não deixa de ser emblemática e carregada de alegorismo a afirmação de Michel Serres, segundo a qual, «l’avenir appartient aux ordres contemplatifs» (cf. Michel Serres: Hominescence, Paris, Le Pommier, 2001, pp. 1-95 e passim [agora também nas Edições Piaget]). 122 Michel Serres: L’Incandescent, Paris, Éditions Le Pommier, Paris, 2001 (agora também nas Edições Piaget). 123 José Saramago: A Caverna, Lisboa, Editorial Caminho, 2000, pp. 170-171. 124 Gabriel Marcel: Homo Viator, Paris, Aubier, 1945: homem peregrinante e reflexivo (dir-se-ia “socrático”), em busca de respostas para as questões que lhe vão surgindo ao longo da caminhada: o outro, a família, a imortalidade, o mistério, os valores, a salvação... Experiência vivida na intimidade funda de si próprio e no contexto da 77 Fernando Paulo do Carmo Baptista Porque, «mesmo que a rota da minha vida me leve a uma estrela, nem por isso fui dispensado de correr os caminhos do mundo»125... Mas a realização inteligível porventura maior da criatividade humana (por se revelar singularmente uma das mais complexas, misteriosas, originais, profundas, consistentes, perenes e transformadoras...) é, em minha cada vez mais funda (e fundamentada...) convicção, A GRANDE POESIA... Todavia, a generalidade dos líderes políticos actuais, em razão do seu manifesto deficit cultural e consequente miopia, estrabismo ou heterotropia estratégica, parece andar esquecida (seguramente por culpa nossa também...) de que é Homero “O Educador da Grécia” e “O Educador do Mundo”!... Insisto: a grande maioria dos dirigentes e dos responsáveis pelas coisas públicas parece ignorar que é nos potenciais plasmáticos, holossémicos, “holofóticos” e modulatórios da «música do pensamento» — que é a poesia, no lapidar entendimento de George Steiner126 — que se organiza e se revela o inesgotável e tensional paroxismo das mais fundas, mais ricas e mais belas polissemias inseminadas e disseminadas na semântica, na sintaxe e na pragmática dos seus módulos textuais, a irredutível singularidade e diversidade das “visões do mundo” aí inscritas com os seus segredos, enigmas e mistérios, com seus anseios e aporias, temas, problemas e projectos, a imemorial memória dos tempos primevos e sagrados das logofanias dos deuses, da revelação dos mitos cosmogónicos e antropogénicos, da instituição das praxes e dos ritos127 e da instauração comunitária dos ancestrais trabalhos e deveres de garantir a sustentação e a sobrevivência, do descanso, das festas, dos jogos, dos cantares e das danças, de par com o dinamismo genesíaco, alternante e cíclico, dos fluxos e refluxos vitais: «una vez Yin, otra vez Yang»128... Dito em complementar e reiterante reforço: num momento como o actual, em que estratégicos sectores da vida pública e comunitária estão transversalmente dominados pela «barbárie da ignorância» (e não ocupação nazi, sempre na perspectiva optimista do valor sagrado da vida, pelo qual vale a pena sofrer e lutar e semear sonhos de esperança... 125 José Saramago: A Jangada de Pedra, op. cit., p. 271. 126 Cf. George Steiner: La idea de Europa, Madrid, Ediciones Siruela, 2005, p. 53. 127 Com suas rezas e esconjuros, feitiços e maldições, chamamentos e respostas, gestos, súplicas e silêncios, evocações e celebrações... 128 Octavio Paz: El arco y la lira, op. cit., p. 59. 78 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO pela docta ignorantia...) e por uma generalizada e insanável mediocridade (sempre atrevida e sofisticamente anti-socrática...) e mergulhados numa despudorada e pantanosa atmosfera de corrupção moral e degradação ética, promotoras do silenciamento, cancelamento ou narcotização, na ágora e em suas “próteses” comunicacionais, das grandes referências históricas e axiológicas, das grandes narrativas da cultura, da palavra sábia, polar e cardinal (o que suscitou a Lipovetsky129 e a Steiner130, entre outros, as conhecidas reflexões crepusculares em torno da «era do vazio» e do «tempo da pós- cultura»...), a Pólis globalmente considerada e, no coração dela, a “cidade educativa”, a “cidade política” e a “cidade mediática” parecem não querer ou não saber entender que é na diversa polimorfia das texturas, metros, figuras, registos ou estilos, que é no fascínio e na fulgurância do enleio imagético («el río de las imágenes»... «el sueño, el delírio, la hipnosis»... «la onda luminosa» que nos arrebata para junto de «las orillas del puro existir»...) e no sortilégio da musicalidade e na magia do ritmo encantatório dos poemas que tudo quanto há de mais profundamente humano, bom e belo está cifrado... Mais ainda: parecem não querer ou não saber perspectivar e visionar que é, conjuntamente com a Grande Filosofia, a Grande Ciência131, as Belas Artes e as Humanae Litterae em geral que tudo isso 129 Cf. supra, nota 80. 130 Sobre as reflexões em torno do «crepúsculo» da cultura e da palavra, ver: George Steiner: No Castelo do Barba Azul. Algumas Notas para a Redefinição da Cultura: Lisboa, Relógio d’Água,1992, pp. 14-17, 112-130, 128-141; Presenças Reais, Lisboa, Editorial Presença, 1993, pp. 84 ss; La barbarie de la ignorancia, Madrid, Taller de Mario Muchnik, 2000, pp. 65-66; Pasión Intacta, Madrid, Ediciones Siruela, 1997; Gramáticas da Criação, Lisboa Relógio d’Água Editores, 2002, pp. 11-62 e passim; Lenguaje y Silêncio [muito especialmente o substancioso ensaio: «El silencio y el poeta»], Barcelona, Editorial Gedisa, 2003, pp. 53-72; Extraterritorial [muito especialmente o importante estudo: «En una poscultura»], Madrid, Ediciones Siruela, 2002, pp. 163-178; After Babel. Aspects of Language and Translation, Oxford, Oxford University Press, 21992. Ver também Ernesto Sabato: Resistir, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2005, pp. 37-59; Thomas De Koninck: A nova ignorância e o problema da cultura, Lisboa, Edições 70, 2003, especialmente: pp. 17-35, 69-133. 131 Não a ciência “instrumentificante” do que há de “humano” no Homem, mas a Ciência “poiésica” da espantada e entusiástica tentativa de descrever e explicar os fenómenos do Cosmos, do Mundo e da Vida e, assim, contribuir para a esclarecida, melhorativa e axiológica transformação naturante e humanizadora da Humanidade e do Planeta... 79 Fernando Paulo do Carmo Baptista nos foi legado, quer como singularizante matriz fundadora e configuradora da nossa compartilhável identidade antrópica e universalista, quer como territórios maiores da criação e da expressão cultural e simbólica onde se consuma a epifania da mais pura e generosa dádiva e a plasmagem das mais poderosas, saudáveis e regeneradoras energias espirituais e arquetípicas da antropogénese e da humanização132. A sua convocação inadiável, forte e destemida afigura- se-me constituir a incontornável saída de superação de uma crise etiologicamente tão profunda e patologicamente tão grave como é aquela que atravessamos e nos atravessa... Na verdade, é lá bem dentro da aguda, silente e constitutiva primordialidade do sentir, do e-mover-se e do co-mover-se, do intuir e do imaginar — e importa não esquecer, com Herberto Helder133, que nós «somos o imaginário do imaginário»!... —, é no interior fundo e quente das preludiais e originantes galerias da sensibilidade, da emoção, da comoção, do afecto, da intuição e da imaginação — lá onde, afinal, reside a alma, o coração e a luz de tudo... —, que se instauram as relações seminais e fontais do eu ao outro e de si ao mundo e ao cosmos, conjugando-se, com elas, em fecunda interacção e arquitectante projecção, configuradoras dos actos semiósicos de que nascem as mais belas criações e realizações da Cultura, entre elas, os poemas134... E os poemas são as inspiradas, esplendorosas e divinas “criaturas” órficas, melódicas, rítmicas, métricas, noéticas, eidéticas, magnéticas e matéticas, são as aladas composições verbo-musicais dessa celebração maior que é a Poesia, onde, no sábio dizer de Octavio Paz, «el poeta pone en libertad su materia»135, ao plasmar com o seu canto e a sua lira «la experiencia original» da «otredad esencial del 132 Cf. Octavio Paz: El arco y la lira, op. cit., 49-67, no ensaio intitulado «el ritmo». De facto, o poeta não é apenas metropoios (criador de métricas) e mythopoios (criador de mitos): é também eidopoios e noematopoios, isto é, criador de formas, ideias e saberes; mais ainda: é eikonopoios e melopoios (criador imagens e de música); cf. Cornelius Castoriadis: Figuras do Pensável, Lisboa, Edições Piaget, 2000, p. 53. 133 Herberto Helder: Photomaton & Vox, Lisboa, Assírio & Alvim, 1995, p. 57. 134 Cf. Fernando Paulo Baptista: Tributo à Madre Língua, op. cit., pp. 507-508. 135 Octavio Paz: El arco y la lira, Madrid, Fondo de Cultura Económica – España, 2 2004, p. 22. 80 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO hombre»136, e onde sentir e pensar se fundem em «ritmo perpetuamente creador»137, em harmoniosa e inconfundível ontopáthesis e ontopoíesis138 e simétrica expressão vital, ética e estética, incorporando, num mesmo deveniente e eterno instante, o cosmos e a natureza, o mundo e o homem, o finito e o infinito, o vazio e a plenitude, a esperança e a beleza, a liberdade e o amor... E porque «somos vida que es muerte» e «muerte que es vida» (o que equivale a dizer, com Saramago139, que «vida e morte é tudo um», que «morte e vida são o mesmo») e também porque «in hac quasi mundana scena (...), nihil spectari homine mirabilius»140, tudo a significar, em humanística sintonia com Pico della Mirandola141, que «o grande milagre... é o homem» («magnum, o Asclepi, miraculum est homo») e, ainda em homóloga consonância com o nosso Nobel da Literatura142, que não há «milagre maior que este simples facto de existirmos», no arco vital e identitário que define as fronteiras quálicas da realização histórica do DaSein, em seus enraizados modos de ser e aparecer, existir e coexistir (In-Sein e MitSein)143, «ser mundo / é ser 136 Idem: Pasión Crítica, Barcelona, Seix Barral, 21990, pp. 184-185; para Octavio, «un texto es un tejido no solo de palabras sino de experiencias y de visiones» (p. 85) e «poesía y pensamiento no viven en casas separadas» (p. 84). 137 Idem: El arco y la lira, op. cit., p. 26. 138 Importa sublinhar, a propósito, que o ser humano «is not primarily one who knows, but one who creates (...), que ele «is essentially creative» (cf. Nancy Mardas, no seu bem fundamentado estudo intitulado «Creative Imagination – The Primogenital Force of Human Life», apud: http://www.phenomenology.org/mardas04.htm#_edn3); cf. as importantes obras dirigidas pela filósofa polaca Anna-Teresa Tymieniecka (ed.): Imaginatio Creatrix: The Pivotal Force Of The Genesis/Ontopoiesis Of Human Life And Reality (Analecta Husserliana), Kluwer Academic Publishers, Dordrecht, 2004; Metamorphosis: Creative Imagination in Fine Arts Between Life-Projects and Human Aesthetic Aspirations, Dordrecht, Netherlands, Kluwer Academic Publishers, 2004. 139 José Saramago: O Ano da Morte de Ricardo Reis, Lisboa, Editorial Caminho, 1984, p. 279. 140 Giovanni Pico della Mirandola: Oratio De Hominis Dignitate, Paris, Éditions de L’Éclat, 32002, §1 (edição bilingue [latim > francês] de Yves Hersant). 141 Idem, ibidem. 142 José Saramago: O Ano da Morte de Ricardo Reis, op. cit., p. 281. 143 Sobre os conceitos heideggerianos de “In-Sein” e “Mit-Sein”, ver: Martin Heidegger: Sein und Zeit, Tübingen, Max Niemeyer, 1993, § 26, p. 118: «Die Welt des Daseins ist Mitwelt. Das In-Sein ist Mitsein mit Anderen. Das innerweltliche Ansichsein dieser ist Mitdasein»; cf. também o seguinte passo da tradução francesa de Sein und Zeit, da autoria de Rudolf Boehms et Alphonse de Waelhens: L’être et le 81 Fernando Paulo do Carmo Baptista mecha do instante»144, no agudo, visionário, impulsionante e auto- exigente entendimento, porém, de que «cada instante es todo el tiempo»145, de que «só na consciência, / pula íngreme a existência»146 e de que «predestinar / é ir-se destinando um horizonte / a gravitar / já dentro»147... Mas cada instante só convoca, vertical e centradamente em si, o tempo todo e em plenitude, se ele for «grande como la vida de cién soles»148, se ele for protagonizado como o intenso e denso momento instaurador e propagador do «fogo poético» («el fuego de cada dia»), se ele se configurar radicalmente como o germinal êxtase criador em que «sobre la hoja de papel / el poema se hace / como el día / sobre la palma del espacio»149 e em que, desse modo, a poesia passa a habitar efectivamente entre os homens150, por sobre o chão fremente da Terra... Por outras palavras: se cada momento se revelar como um tempo (in)augural e auroral, profético e anamnésico, catártico e soteriológico, purificador de maldades e tentações, libertador de traumas e recalcamentos, expiador de crimes e pecados, exorcizador de fantasmas e demónios, tempo mensageiro e promotor da paz, da justiça, da equidade, da solidariedade, da fraternidade, do bem e do belo, em suma, tempo solar do esplendor da verdade e do amor... De contrário, sempre que a cultura, a sensibilidade, a imaginação e a criação poéticas, estiveram adormecidas ou anestesiadas, andaram arredias ou foram escorraçadas da cidade, as superadoras saídas para os temps, Paris, Éditions Gallimard, 1969, p. 150: «Le monde auquel je suis est toujours un monde que je partage avec d’autres, parce que l’être-au-monde est un l’être-au- monde-avec... Le monde de l’être-lá est un monde commun. L’être-à... est un être- avec-autrui. L’être-en-soi intramondain d’autrui est coexistence.»; cf., ainda, Michaela Ott, no seu substancioso estudo: «Ethik und Ästhetik in der Philosophie der Phänomenologie und des Poststrukturalismus», apud http://www.momo-berlin.de/Ott_Ethik_Aesthetik.html. 144 António Oliveira Cruz: Synthesis II, Lisboa, Edições Piaget, 1988, p. 40. 145 Cf. Octavio Paz: La búsqueda del comienzo. Escritos sobre el surrealismo, Madrid, Fundamentos, 1983, pp. 74-75; Las peras del olmo, Barcelona, Seix Barral, 1986, p. 171; Puertas al campo, Barcelona, Seix Barral, 1989, p. 64. 146 António Oliveira Cruz: ibidem, p. 61. 147 Idem, ibidem, p. 60. 148 Octavio Paz: Lo mejor..., op. cit., p. 96. 149 Octavio Paz: ibidem, pp. 231, 232. 150 Martin Heidegger: Ensaios e Conferências, Petrópolis, Editora Vozes, 2002, pp. 165-181. 82 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO fundamentais problemas do homem e da humanidade ficaram irremediavelmente comprometidas... É pena chegar a tão triste e desiludente conclusão, mas não deixa de dar que pensar aquele desencantado desabafo de Saramago, em que nos diz que, «no geral dos casos, a voz dos poetas é uma incompreendida voz»151!... Por tudo isso, ouso questionar à face dos homens e à luz do sol: sem a «pasión crítica»152 que tenta interpretar e explicar a magia, «el poder eléctrico» incandescente e fulminante das palavras, «la repentina aparición de frases caídas del cielo», os «signos en rotación»153 na inestancável mobilidade da linguagem e das línguas154, para assim melhor compreender os enigmas e os labirintos e os segredos e os mistérios do homem e do mundo, sem a «corriente alterna» que alimenta as «máquinas transparentes del delirio [que son] «los libros»155 e que faz mover «el arco y...» tanger «... la lira»156 na execução das humanas “partituras”, sem a sabedoria criadora e iluminante dos poetas, sem o inconformado grito de alerta dos profetas, sem as fulgurações que irrompem da arte e do sagrado, sem a freática e edáfica uberdade das matrizes mais genuínas, mais fundas e mais fortes do pensamento e da cultura de todos os povos e de todas as gentes, pergunto: será possível governar orquestralmente a pólis ou dirigir sinagogicamente e com justa equidade e fraterna solidariedade este planeta outrora azul?... Mais ainda: sem tudo isso, alguma vez poderá estar garantida, neste «mundo desenfreado» (runaway world)157, uma regeneradora e vitalizante antropo-poiese, uma resgatadora e inseminante antropo- náutica, uma humanizadora e inebriante antropo-sinfónica que permitam «recibir a la noche que viene con personajes azules y pájaros de fiesta, ... saludar a la muerte con una salva de geranios, ... decirle buenos días al día que llega sin jamás preguntarle de dónde viene y 151 José Saramago: A Jangada de Pedra, Lisboa, Editorial Caminho, 1986, p. 318. 152 Octavio Paz: Pasión Crítica, Barcelona, Seix Barral, 21985. 153 Octavio Paz: Los signos en rotación y otros ensayos, Madrid, Alianza, 1971. 154 Cf. Octavio Paz: El arco y la lira, México, Fondo de Cultura Económica, 1995: ensaio intitulado «el ritmo», pp. 73-88, já citado. 155 Octavio Paz: Lo mejor..., op. cit., p. 277. 156 Octavio Paz: Corriente alterna, México, Siglo XXI, 171988; El arco y la lira, México, Fondo de Cultura Económica, 61986. 157 A metáfora provém de um famoso título de Anthony Giddens: Runaway World: How Globalisation is Reshaping Our Lives, London, Profile Books, 2000 (e também: New York, Routledge, 2003). 83 Fernando Paulo do Carmo Baptista adónde va» e, sobretudo, «construir sobre este espacio inestable la casa de la mirada, la casa de aire y de agua donde la música duerme, el fuego vela y pinta el poeta»158?... Será possível, enfim e em culminativa síntese com Oliveira Cruz159, «fermentar a terra e o céu» e «cantar a sinfonia universal do universo»?... Mas, em tal construção, não pode deixar de assumir intranscendível relevância a vital e enzimática dimensão axiológica do humano, em cujo cerne se coloca angularmente a crucial questão da verdade. Assim, saramaguianamente despertos e conscientes de que «o que chamamos falso prevaleceu sobre o que chamamos verdadeiro»160, tomando o seu lugar, e de que «este mundo (...) é uma comédia de enganos»161, a todos se nos impõe cada vez mais (ponderada a sua sofística, subversora e alarmante degradação...) a afincada procura e afirmação da verdade. Da verdade possível, decerto, mas também dos possíveis e impossíveis da verdade, se entendida e perspectivada como “referencial absoluto” para as nossas sempre relativas e precárias verdades... Até porque, independentemente das diferentes razões por que o fazem, «os humanos são universalmente conhecidos como os únicos animais capazes de mentir»162 e a Cidade, a Pólis («pastora de siglos, madre que nos engendra y nos devora, nos inventa y nos olvida»163), se tem vindo a transformar numa «termiteira de mentirosos»164, onde a verdade, em seu mais fundo sentido, é sistematicamente deturpada, vilipendiada, negada ou mesmo renegada... Mas para que a verdade possa ser mais do que «uma cara sobreposta às infinitas máscaras variantes» e mais do que a lição que dela sempre nos vai dando a autoridade magistral165, para que ela possa 158 Octavio Paz: Lo mejor..., op. cit., pp. 319, 329. 159 António Oliveira Cruz: Synthesis II, Lisboa, Edições Piaget, 1988, p. 57; Synthesis I, Lisboa, 1988, p. 58. 160 José Saramago: História do Cerco de Lisboa, Lisboa, Editorial Caminho, 1989, p. 50. 161 José Saramago: A Jangada de Pedra, op. cit., p. 79. 162 José Saramago: Ensaio sobre a Lucidez, op. cit., p. 50. 163 Octavio Paz: Lo mejor..., op. cit., p. 300. 164 José Saramago: ibidem, p. 55. 165 José Saramago: História do Cerco de Lisboa, op. cit., pp. 26-27. 84 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO erigir-se em «relatividade generalizada dos pontos de vista» a ser constituída para além dos respectivos sujeitos perspécticos e a ser conformada numa espécie de leibniziano “centro geométrico” superadoramente englobante e integrador das singularidades, das diferenças, das tensionalidades e dos dissídios, mesmo se em seu máximo agonismo dialéctico-polémico166, jamais pode dispensar (como se um invisível e irrevogável imperativo categórico no-lo ordenasse ou exigisse...) o inexaurível esforço heurístico, exegético e hermenêutico, orientado para a sempre inconclusa construção e propositura de novas interpretações e explicações, seja na «galáxia pulsante» dos livros, seja na «poeira cósmica» das palavras167, seja, matricialmente, na fonte radical, inesgotável, neguentrópica e replasmante da vida, da experiência, das realizações e até mesmo das frustrações e desencantos de todos os dias, competindo-nos, assim, tomar em nossas mãos o destino que nos coube em sorte e que decidimos re-destinar e concretizar de modo determinado e honrar e dignificar como nosso projecto de vida: «é [...] a vontade dos homens que segura as estrelas»168!... Porque, afinal de contas, «o importante foi ter vindo, o importante é o caminho que se fez, a jornada que se andou»169... Tudo no pressuposto de que «assim como vão variando as explicações do universo, também a sentença que antes parecera imutável para todo sempre oferece subitamente outra interpretação, a possibilidade duma contradição latente, a evidência do seu erro próprio»170... De facto, «saberíamos muito mais das complexidades da vida se nos aplicássemos a estudar com afinco as suas contradições»171. E se é verdade que é no sonhar, no pensar e no agir poéticos que, com Hölderlin172, verdadeiramente habitamos o mundo e ele se nos faz “mundos” em nós, se é verdade que é «inventando» que «somos iguais 166 Cf. Pierre Bourdieu: El oficio de científico – ciencia de la ciencia y reflexividad, Barcelona, Anagrama, 2003, p. 198. 167 Idem, ibidem, p. 26. 168 José Saramago: Memorial do Convento, Lisboa, Editorial Caminho, 1982, p. 124. 169 José Saramago: A Caverna, op. cit., p. 45. 170 José Saramago: História do Cerco de Lisboa, op. cit., p. 26. 171 José Saramago: A Caverna, op. cit., p. 26. 172 Cf. Martin Heidegger: Hinos de Hölderlin, Lisboa, Edições Piaget, 2004, pp. 70- 78. 85 Fernando Paulo do Carmo Baptista aos deuses»173, que é criando que ficcionamos e configuramos a própria «arte e maneira de juntar o acaso e a certeza»174, então, em circunstância alguma, podemos deixar de nos afirmar, ousada e frontalmente, antes e depois de todos os deuses, como o intranscendível demiurgo do humano no homem, tanto em sua terna, comovente e divina humanidade como em sua monstruosa, brutal e sanguinária crueldade: Buda (Siddharta Gautama), como Job, Sócrates, Jesus Cristo, Francisco de Assis, Mahatma Gandhi, Luther King, Oscar Romero ou Nelson Mandela; mas também, Caim, como Nero, Adolfo Hitler, Benito Mussolini, Joseph Stalin, Idi Amin, Pinochet, Pol Pot (Saloth Sar) e os seus hediondos e macabros “sósias” de todas as épocas e de todos os tempos!... Não há, pois, que imputar responsabilidades a deus algum nem tão-pouco invocar, em vão, o seu «santo nome», como bode expiatório!... Dentro ou fora da «caverna», na sombra e na luz, somos e seremos sempre nós próprios, em nossa intransferível liberdade e em nossa exclusiva e indescartável responsabilidade, o mesmo é dizer, em nosso inteiro modo de ser e estar, pensar e agir: humanos, demasiado humanos, com os nossos excessos e os nossos limites, as nossas virtudes e os nossos defeitos, as nossas potencialidades e as nossas carências, as nossas loucuras e as nossas vertigens, os nossos transes e os nossos desatinos... Assim, tal-qualmente nos vamos modelando e plasmando na hesiodiana gesta de «os trabalhos e os dias» em que, cosmogónica e ontogenesicamente, nos vamos sendo, conformando, aparecendo, revelando e transformando, sem iludir, todavia, o lúcido e partilhado reconhecimento, com Saramago, de que «os trabalhos dos homens sempre foram mais longos e pesados que os [trabalhos] dos deuses»175... Mas é no trabalho produtivo e criativo, no trabalho que gera obras, bens e riqueza, no trabalho que escuta e interpreta o mundo e, a partir daí, nele e para ele sonha e cria novos seres e novos mundos, é nesse decisivo e operante labor quotidiano de qualitativa e ascensional metamorfose de nós próprios e dos outros que afinal se define e se mede 173 José Saramago: Os Poemas Possíveis, Lisboa, Editorial Caminho, 41998, p. 55. 174 Idem, ibidem, p. 19. 175 José Saramago: A Caverna, op. cit., p. 227. 86 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO a nossa real grandeza e se pode aferir do mérito relativo de cada um «no projecto monumental da criação»176... Mortais viventes ou viventes mortais, é entre o nascimento e a morte que transcorre, como já vimos, a nossa sazão e tempo de ser homens: «no vamos ni venimos: estamos en las manos del tiempo»177; «o tempo é que manda, o tempo é o parceiro que está a jogar do outro lado da mesa, e tem na mão todas as cartas do jogo»178... E porque «somos uma pequena e trémula chama que a cada instante ameaça apagar-se»179, é no sempre curto e crítico intervalo da nossa existência histórica que nos cabe cumprir o já invocado destino de sonharmos, criarmos e realizarmos, à medida do que formos capazes, as obras valerosas que, no memorante e celebrante cantar do nosso Épico180, nos vão da lei da morte libertando... Na verdade, a morte mais letal e mais mortífera, a morte que inapelavelmente arrasa, pulveriza e nadifica não é a do universal e nivelador cessar da vida que, na esfera do biológico, a todos nos toca indistintamente, de modo irreversível e absoluto, com o exalar do derradeiro suspiro: a morte mais letal e mais mortífera é a do silêncio perpétuo e sem memória, é a do esquecimento que ignora ou despreza, oculta ou rasura, expunge ou proscreve, expulsa ou excomunga... É assim que, numa perspectiva de humanista e solidária simpatia de dimensão antropo-bio-cósmica, ganha o seu mais actual sentido e alcance aquele ajuizamento aforístico-afectivo, segundo o qual «não há maior respeito que chorar por alguém que não se conheceu»181, sendo certo que, pelo menos desde Vergílio182, «há lágrimas nas próprias coisas e as coisas da morte tocam-nos a alma»: «sunt lacrimae rerum et mentem mortalia tangunt»!... Daí que, contra toda e qualquer discriminação e em simbólica homenagem consonante com a mesma universal e transtemporal condição e estatuto de cidadãos e habitantes de Geia ou Gaia — α α — e em memória de “todos os nomes”, isto é, dos nomes inscritos nos 176 José Saramago: Ensaio sobre a Lucidez, op. cit., p. 145. 177 Octavio Paz: Lo mejor..., op. cit., p. 263. 178 José Saramago: Ensaio sobre a Cegueira, Lisboa, Editorial Caminho, 1995, p. 303. 179 José Saramago: Ensaio sobre a Lucidez, op. cit., p. 58. 180 Camões: Os Lusíadas, I, vv. 5-6. 181 José Saramago: ibidem, p. 139. 182 Vergílio: Eneida, I, v. 462. 87 Fernando Paulo do Carmo Baptista verbetes dos registos das conservatórias ou nos epitáfios das necrópoles de todas as eras e civilizações, desde o “anónimo” nome do simples camponês, pescador ou artesão, ao renomado nome do rei famoso, do estadista notável, do sábio prudente, do cientista iluminado ou do artista inspirado e criativo, importa proclamar, com indómita frontalidade, que, mesmo mumificados, segregados, silenciados e condenados pela ignorância intranscendida ou pela expiação persecutória, no soturno interior estalagmítico de qualquer gruta ou caverna macabra, «aqueles homens e aquelas mulheres são muito mais do que simples pessoas mortas»183: essas mulheres e esses homens... essas pessoas... somos nós!184 E «o processo de uma pessoa é o processo de todas»!185 Mais ainda: impõe-se-nos, mesmo, a todos quantos de nós (seguindo muito embora diferenciadamente o exemplo e a prática do ficcional “auxiliar de escrita” de nome José...) se dedicam a escrever e a mover «os papéis da vida e da morte» reunir «em um só arquivo, a que passaremos a chamar simplesmente histórico, os mortos e os vivos, tornando-os inseparáveis neste lugar»; igualmente se nos impõe proceder «à reintegração dos mortos do passado no arquivo que passará a ser o presente de todos», cientes como estamos, por um lado, de que um tal projecto «levará muitas dezenas de anos a realizar» e de que, pelo outro, «já não estaremos vivos, nem provavelmente o estará a seguinte geração, quando os papéis do último morto, feitos em farrapos, comidos pelas traças, escurecidos pelo pó dos séculos, regressarem ao mundo donde, por uma última e desnecessária violência, haviam sido retirados». Por isso é que, com Saramago, em verdade e em memorante memento se poderá dizer: «assim como a morte definitiva é o fruto último da vontade de esquecimento, assim a vontade de lembrança poderá perpetuar-nos a vida»186... Que A VERDADEIRA LEMBRANÇA, acrescentaria eu, É SEMPRE A EXPRESSÃO DE UMA MEMÓRIA E DE UM AFECTO QUE A NÃO DEIXAM MORRER... 183 José Saramago: A Caverna, op. cit., p. 337. 184 Idem, ibidem, p. 334. 185 José Saramago: Todos os Nomes, Lisboa, Editorial Caminho, 1997, p. 63. 186 Idem, ibidem, p. 209. 88 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO Mas, neste universal contexto de memorial celebração (e independentemente das circunstanciais alusões ou implic(it)ações que, ao longo deste meu excurso, aqui e ali fui fazendo do seu pensamento e legado...), não pode deixar de emergir do “panteão dos imortais”, para se nos fazer mais presente e fecundante, a figura tutelar, fascinante e luminosa de Sócrates187, com o thesaurus imperecível do seu magistério fundador e arquetípico... 187 Sobre a figura de Sócrates, e nesta sua breve “evocação”, foi tida em conta a seguinte bibliografia de referência: Maurice Croiset: Platon — Oeuvres Completes, tome I, Paris, Société D’Édition «Les Belles Lettres», 1959, designadamente o texto grego aí estabelecido quer para a Apologia de Sócrates quer para o Críton, pp. 140- 173 e 216-233; Werner Jaeger: Paideia: los ideales de la cultura griega, México – Buenos Aires, Fondo de Cultura Económica, 1962, 2.ª ed., pp. 389-457; Nicola Abbagnano: História da Filosofia, vol. I, Lisboa, Editorial Presença, 1969, pp. 115- 132; Platão: Apologia de Sócrates, Êutifron, Críton (prefácio, tradução e notas de Manuel Oliveira Pulquério): Lisboa, Editorial Verbo, 1972; Giovanni Reale – Dario Antiseri: Storia della Filosofia (vol. 1: Dall’Antichità al Medioevo), Brescia, Editrice La Scuola, 2000, 5.ª ed., pp. 71-120; Maria Helena da Rocha Pereira: Estudos de História da Cultura Clássica, vol. I, Cultura Grega, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1998, 8ª. ed., pp. 456-466; Maria Helena da Rocha Pereira: artigo «Sócrates» in Enciclopédia Verbo Luso-Brasileira de Cultura, Edição Século XXI, Lisboa / São Paulo, Editorial Verbo, 2003, vol. 27, pp. 308-309; P. A. T. Silva Pereira: artigo «Sócrates» in Logos – Enciclopédia Verbo Luso-Brasileira de Filosofia, Lisboa / São Paulo, Editorial Verbo, 1992, vol. 4, pp. 1216-1221; Roger Texier: Socrate Enseignant — De Platon à nous, Paris, Éditions L’Harmattan, 1992; Gregório Luri Medrano: El Processo de Sócrates, Madrid, Editorial Trotta, 1998; Gregório Luri Medrano: Guia para no entender a Sócrates (Reconstrucción de la atopía socrática), Madrid, Editorial Trotta, 2004; Jean-Pierre Vernant y otros: El Hombre Griego, Madrid, Alianza Editorial, 2000, 2.ª ed.; Jacques Brunschwig e Geoffrey Lloyd: El Saber Griego — Diccionario Crítico, Madrid, Ediciones Akal, 2000, artigos «Sócrates» (pp. 581-592), «Sofística» (pp. 744-757); Fernando Cabral Pinto: Sócrates um filósofo bastardo, Lisboa, Edições Piaget, 2002; Bruno Giuliani: O Amor da Sabedoria, Lisboa, Edições Piaget, 2002; Catherine Vallée: Hannah Arendt, Sócrates e a Questão do Totalitarismo, Lisboa, Edições Piaget, 2003; Mark Forstater: Os ensinamentos espirituais de Sócrates, Lisboa – Cruz Quebrada, Estrela Polar, 2005; artigos sobre Sócrates nas seguintes e-fontes, entre outras: http://encyclopedia.thefreedictionary.com/ http://en.wikipedia.org/wiki/Socrates http://www.bartleby.com/65/so/Socrates.html http://plato.stanford.edu/ http://www.san.beck.org/C%26S-Contents.html http://www.forma-mentis.net/Filosofia/Socrate.html 89 Fernando Paulo do Carmo Baptista Tendo nascido e tendo começado a amadurecer como homem e como cidadão em pleno contexto social, político e cultural da Atenas de Péricles188 (a esplendorosa Pólis da «idade do ouro» da cultura Grega e do seu “milagre”, após a decisiva vitória sobre os Persas...), Sócrates (perspectivado, agora, já mais no interior da conjuntura de profunda crise marcada pela desgastante guerra do Peloponeso, pela vigência da despótica e persecutória governação dos Trinta Tiranos e, depois, pela reinstauração formal da democracia...) desempenha, no plano ético e paidêutico, um papel influenciador e modelador de certo modo homólogo ao que havia sido protagonizado pelo sábio Sólon a nível jurídico-constitucional e político-social na implantação originária do regime democrático. De tal modo que Sócrates, como acentua Werner Jaeger189, não só se converte no «eixo da história da formação do homem grego» pela acção própria, autónoma e transformadora do seu dinamismo interior, como configura «o fenómeno pedagógico mais notável da história do Ocidente». Tocado, desde criança, pela singularidade do influxo do ofício de sua mãe, Fenarete, de presidir e dar assistência obstétrica ao mistério e milagre da epifania da vida, foi gravando em seu coração de adolescente e no contexto da educação fundamental que lhe foi proporcionada (geometria, astronomia, literatura, gramática, retórica, dialéctica, música, ginástica...), o sentido criativo, estruturante e transformador da Arte, através da exercitação dos movimentos, colocações e harmonizações corpóreo-expressionais da dança, da coreografia, do 188 Com uma incomparável galeria (cronológica e implicativamente aqui mais alargada, relativamente às fronteiras temporais da governação de Péricles...) de figuras pertencentes aos campos do pensamento, da política, da ciência, da literatura e demais belas artes (escultura, pintura, arquitectura, música...), que constituem a «alma» que verdadeiramente funda e modela a cidade: Anaxágoras, Antifonte, Aristófanes, Aristóteles, Aristoxeno, Arquitas, Calícrates, Crícias, Demócrito, Empédocles, Epicteto, Ésquilo, Eudóxio, Eurípides, Fídias, Filolau, Górgias, Heraclito, Heródoto, Hípias, Hipócrates, Ictino, Isócrates, Leucipo, Lísias, Lisipo, Míron, Parménides, Péricles, Píndaro, Pitágoras, Platão, Policleto, Polignoto, Praxíteles, Pródico, Protágoras, Sólon, Sócrates, Sófocles, Temístocles, Trasímaco, Tucídides, Xenofonte... 189 Cf. Werner Jaeger: Paideia, op. cit., pp. 403-404. Para uma contextualização histórico-cultural global, ver: Albin Lesky: Historia de la Literatura Griega, Madrid, Gredos, 1968, cap. V, pp. 269-671; H. D. F. Kitto: Os Gregos, Coimbra, Arménio Amado, Editor, Sucessor, 1960, caps. V, VI, VII, VIII e IX, pp. 103-317. 90 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO canto coral, do dedilhar de ritmos e acordes nas cordas da lira ou da cítara, seguindo, assim, o tradicional exemplo de Orfeu e de Pitágoras. Tudo corroborado, mais tarde, pela aprendizagem que fez, ao vivo, dos gestos e das incisões de seu pai, Sofronisco, nos inertes blocos de mármore em que terá chegado a cinzelar, segundo Diógenes Laércio190, o conjunto escultórico das Três Graças que exornavam o ádito ou o pórtico da Acrópole... Ainda jovem, pôde não só testemunhar a penetração em Atenas do pensamento dos chamados pré-socráticos acerca do cosmos, da natureza, do homem e da vida e da decisiva “viragem antropocêntrica” 190 Cf. Diogene Laerzio: Vite di filosofi (trad. di Marcello Gigante), Bari – Milano, Laterza – TEA, 1998, vol. 2, p. 19. 91 Fernando Paulo do Carmo Baptista proposta pelo “Projecto Educador”191 dos Grandes Sofistas192, mas também, e sobretudo, ir tomando consciência das implicações 191 A inspirar esse Projecto, a nortear o seu “programa de educação para a cidadania”, estava o conceito de [aretê], re-investido da centralidade dos mais altos valores espirituais e traduzido na propositura de um novo “paradigma educacional” para a velha Atenas, de que ressaltam, entre outros, os seguintes traços nucleares: • centralidade do homem no processo educativo — αι α [paideia];
 • transferência das preocupações cosmológicas para um decidido e assumido envolvimento nas problemáticas antropológicas;
 • consagração do fundamento antrópico e subjectal do conhecimento e da relativização dos princípios ético-filosóficos;
 • itinerância pedagógica como modo de levar a educação e o saber aos cidadãos que viessem a integrar a classe dirigente;
 • contraposição da aristrocracia do espírito à tradicional aristocracia do sangue;
 • promoção do desenvolvimento das capacidades basilares dos futuros homens de estado (o tacto, a presença de espírito e a previsão [prudência], de par com uma aptidão intelectual de cunho enciclopédico e multi-sapiencial [dianoética, polimatética...], argumentativo e discursivo [oratória e eloquência]);
 • crença na plasticidade — ὐ λα ν (euplastón) e educabilidade da alma juvenil e no poder modelador e reconstrutor da arte — α λ ι αι έ ναι [ai plástikai téchnai] — sobre a natureza — ι [physis];
 • similitude da “cultura animi” (bom educando, bom educador, boa mensagem educativa) com a “cultura agri” (bom terreno, bom lavrador, boa semente); • radicação do processo educativo na natureza — ι [physis] — e seu desenvolvimento dialéctico, através do ensino — ι α αλ α [didaskalía] —, da aprendizagem — ι [máthesis] e da exercitação, treino ou prática — ι [áskesis] — configurando a conhecida “tríade pedagógica” dos sofistas; • propositura de um novo “plano curricular” de inspiração pitagórica, que contempla, simultaneamente com a gramática, a retórica e a dialéctica, a aritmética, a geometria, a astronomia e a música, preludiando, assim, os canónicos trivium e quadrivium da Escolástica Medieval; • forte vinculação à tradição formadora da poesia e dos poetas, no sentido do culto da [aretê] ética, política, sapiencial e artística, através da retoma do exemplo matricial de Homero (“o Educador da Grécia”), no pressuposto de que a poesia, tal como a música, sua irmã gémea, pelo incisivo influxo do ritmo e da harmonia, exerce na alma afeiçoável do educando uma insuperável acção modelante... (Cf. Fernando Paulo Baptista: Tributo à Madre Língua, op. cit., pp. 545-548). 192 Que não devem ser confundidos com os pseudo-sofistas, “casta” social que, com distintiva intencionalidade, venho denominando de “sofistas sofísticos” e que, hoje 92 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO formativas dos apotegmas e das gnomas (sentenças ou máximas) atribuídas aos famosos Sete Sábios da Grécia e ir interiorizando o que de mais relevante esse pensamento, essa viragem e esse projecto lhe ofereciam, conjugadamente com o azimute e a linha de rumo potenciados por essa bússola da introspecção, da autognose e da construção da raiz e do sentido da autonomia que é a já citada máxima délfica do gn«yi sautÒn... Essa conscientizante e, sobretudo, conscientificante interiorização foi-se reforçando e aprofundando, porém, com um conjunto de substanciais práticas ontopoiésicas, atitudinais e metodológicas que configuram um incontornável e paradigmático «projecto de vida e de cidadania»: assunção liminar da postura e da virtude da humildade intelectual: ainda que a pitonisa tenha dito o contrário, «sei muito bem que não sou sábio, nem muito nem pouco»193: «sei que nada sei»; exame exigente e rigoroso (§j°taziw)194 de si próprio e dos outros e do quotidiano existencial195, mediatizado pelo recurso à técnica probatória do ¶legxow196, no pressuposto de que «uma como então, por toda a parte proliferam com o mesmo ousado descaramento que emerge da sua “iliteracia científico-cultural”, ainda que “diplomada”... 193 Cf. Platão: Apologia... 21b: « γ γ ο έγα ο ι ν νοι α α ο ν...» [«sei muito bem que não sou sábio, nem muito nem pouco»]. 194 Também expresso por outros lexemas nominais ou verbais pertencentes ao mesmo universo semântico: §jetãzein, diaskope›n, ¶reuna, §reunãv... 195 Sobre o exame (§j°taziw) do dia-a-dia existencial, ver Platão (Apologia... 37e-38): «ÉEãn te går l°gv ˜ti t“ ye“ épeiye›n toËtÉ §st‹n ka‹ diå toËtÉ édÊnaton sux€an êgein, oÈ pe€sesy° moi ...w e rvneuom°nv: §ãn tÉ a l°gv ˜ti ka‹ tugxãnei m°giston égayÚn ¯n ényr pƒ toËto, §kãsthw m°raw per‹ éret w toÁw lÒgouw poie›syai ka‹ t«n êllvn per‹ œn Íme›w §moË ékoÊete dialegom°nou ka‹ §mautÚn ka o w jetãzontow, d nej tastow €ow o ivt w n r pƒ». [= «Se disser que isso [i.e.: retirar-me da cidade e reduzir-me ao silêncio] seria desobedecer à divindade e que, portanto, seria impossível manter-me inactivo, não me tomareis a sério e pensareis que estou a ironizar... Se, por outro lado, disser que o maior bem que pode caber em sorte a um homem consiste em discorrer [produzir discursos] todos os dias sobre a virtude e outros temas acerca dos quais me tendes ouvido falar, examinando-me a mim próprio e aos outros, e que uma vida sem exame não é digna de ser vivida...»]. 196 A técnica argumentativa, refutatória e probatória do ¶legxow, usada por Sócrates nos seus exames (§j°taziw), consistia em indagar, com obstinação e rigor, os fundamentos e a natureza definitória dos conceitos e das categorias gnosiológicas e axiológicas (e.g.: os conceitos de sabedoria, virtude, justiça, verdade, coragem...), tendo em vista, em sua vertente “construtiva”, a elaboração e a organização 93 Fernando Paulo do Carmo Baptista vida sem exame não é digna de ser vivida»: « d nej tastow €ow o iotÒw»; auscultação da misteriosa, admonitória e orientadora voz interior do seu da€mvn197, sobretudo nos momentos críticos do ajuizamento e da tomada de decisão; aprofundamento do autodomínio ( gkrãteia), da autonomia (a tãrkeia) e do sentido do questionamento indagativo (e rone€a) e da conjectura prospectiva na busca de respostas mais consistentes para a ânsia e a curiosidade de saber; activação da consciência ética e cidadã, ora em registo de moscardo (a picada incomodativa), ora em registo de tremelga (a descarga electrizante), no sentido de despertar a cidade do geral estado de letargia, inércia e turpor; exercício da razão crítica na busca dos fundamentos do conhecimento e do rigor conceptual198; desenvolvimento da coerência entre palavra, pensamento e acção («vrai discours et action vraie»199) e, em consonância, de uma séria e adequada dialogia e dialéctica argumentativa... Mas tudo consistente e coerente do saber e, em sua vertente “destrutiva”, a refutação e rejeição da pseudo-sabedoria alardeada pelos sofistas sofísticos, chegando, em última instância, a desencadear um novo e ainda mais rigoroso exame que podia conduzir mesmo a uma situação aporética insolúvel... 197 Cf. Albin Lesky: Historia de la Literatura Griega, op. cit., p. 529; sobre o da€mvn socrático, ver, entre outros, os seguintes estudos: Roger Texier: Socrate Enseignant — De Platon à nous, op. cit., pp. 277-284; Valcicléia Pereira da Costa: «O “daimon” de Sócrates: conselho divino ou reflexão?», in Cadernos de Actas da ANPOF, n.º 1, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, São Paulo, Brasil, 2001; «El Daimon Socrático», in http://clientes.vianetworks.es/empresas/lua911/html/daimon.html. 198 A título exemplificativo, considere-se o seguinte “auto-testemunho” registado por Platão: Fédon, 96 b) (introdução, versão do grego e notas de Maria Teresa Schiappa de Azevedo, Coimbra, INIC, 1983, pp. 99-100): «... Na minha juventude (...), senti- me extraordinariamente atraído para esse ramo do saber que dá pelo nome de «Ciência da Natureza». Que interessante não será (pensava eu) conhecer as causas de cada coisa, a razão por que cada uma surge, por que cada uma desaparece ou existe! (...) E muitas vezes dava comigo às voltas a examinar, antes de mais, questões deste teor: será realmente, como alguns dizem, a partir de um estado de putrefacção, em que entram o quente e o frio, que os seres vivos se constituem? É graças ao sangue que pensamos, ou ao ar ou ao fogo? Ou nada disto conta, e é sim o cérebro que nos permite as sensações do ouvido, da vista e do olfacto, sensações estas que estarão na base da memória e da opinião, dando origem, uma vez consolidadas, a conhecimentos correspondentes?». 199 Cf. Roger Texier: Socrate Enseignant — De Platon à nous, Paris, Éditions L’Harmattan, 1998, pp. 201-249. 94 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO subjacentemente alicerçado na constante assunção da dimensão ética, consubstanciada na prática angular e intransigente da virtude (éretÆ)200, prática essa, iluminada pelos mais altos valores e desígnios conformadores do já referido «projecto de vida e de cidadania»: tÚ kalÚn te ka‹ égayÚn [kalokégay€a] (o belo e o bem, a perfeição...), §leuyer€a (a liberdade), dikaiosÊnh (a justiça), eÈnom€a (a boa ordem), em suma, sof€a (a sabedoria) e svfrosÊnh (a sageza, a moderação, o bom senso...), tendo como horizonte uma verdadeira eÈdaimon€a (felicidade) prioritariamente assente na realização espiritual e sapiencial do ser humano201 enquanto pessoa e cidadão... Sem que, de algum modo, deva dissociá-lo da mensagem global (verdadeiramente arquitectante do ponto de vista antropológico, filosófico, axiológico, político e educacional...) que é o legado reflexivo, interventivo e cultural de Sócrates, seja-me permitida uma breve palavra, ainda, acerca do que ficou conhecido por «método socrático»: refiro-me essencialmente à ironia e à maiêutica, pela específica importância e actualidade de que se revestem no plano procedimental e operatório (práxico) por que se desenvolve a acção educativa e formadora. O lexema grego e rone€a202 (através da mediação do latim ironia) está na origem do vocábulo português ironia e adquiriu, na época de 200 Cf. Platão: Críton (tradução de Manuel Oliveira Pulquério, op. cit., p. 134): «A virtude e a justiça são o que há de mais precioso para o homem»; Apologia... (trad. já citada, p. 89): «não sou homem para ceder a ninguém contra a justiça por medo da morte». 201 Cf. Platão: Apologia... (trad. já citada, p. 96): «... é mais importante cada um cuidar de si próprio do que daquilo que lhe pertence, de forma a tornar-se o melhor e mais sábio possível, não se preocupando tanto com as coisas da cidade como com a própria cidade...»; idem: Críton, pp. 123-124: «O que verdadeiramente importa não é viver, mas viver em conformidade com o bem» [... «oÈ tÚ z n per‹ ple€stou poiht°on, éllå tÚ e z n.» (Críton, 48b), porque «o bem, o belo e o justo são uma e a mesma coisa» («tÚ d¢ e ka‹ kal«w ka‹ dika€vw ˜ti taÈtÒn §stin...» (Críton, 48b). 202 Sobre o significado fundacional desta importante palavra, cabe esclarecer (para efeitos de uma articulação semântica filologicamente fundamentada...) que ela tem como constituinte nuclear da sua morfo-estrutura a raiz indo-europeia *wer-/wor- > wur-/wr [> wre-/ >re-], susceptível de ampliamentos derivativos do tipo wer-dh- / wr- dh- / wre-mn e com a ideia de “falar” como seu núcleo “sémio-genético”. Esta raiz, com ligeiras variantes de natureza morfo-evolutiva, está igualmente presente, entre outros, nos lexemas gregos = ma, = siw, = tore€a, = toreÊv, = torikÒw, -Æ, -Òn, 95 Fernando Paulo do Carmo Baptista Sócrates e no agir discursivo por si protagonizado, o significado inconfundível de fala proferida com uma intencionalidade interpelante e interrogante, suscitadora da dúvida e promotora da reflexão crítica e da indagação, embora modelada no estilo e no tom (ingénuo, autêntico, reservado... ou mesmo ensaiado, dissimulado ou fingido...) de uma assumida ignorância. É este o significado que, no essencial, subjaz à assim chamada “ironia socrática”. De facto, esta prática discursiva dialéctica e dialógica «faite de gravité souriante, de douce insistance, d’une modestie qui respecte le parcours intellectuel des interlocuteurs»203, consubstanciava-se numa hábil e perspicaz atitude metodológica que punha a descoberto, através do diálogo vivo e directo, as inconsistências, as falácias, as incongruências ou contradições existentes na “enciclopédia sapiencial” e no modo e tipo de “argumentação” de importantes sectores da vida intelectual e pública da Atenas do séc. IV a. C.204 e no contexto da profunda crise social e política relacionada com a Guerra do Peloponeso e suas sequelas, designadamente, na retórica “sofística” dominante e corrente205, difusora dos saberes instituídos, “oficiais” ou canonizados como verdadeiros, mas que, na realidade, eram saberes preconceituosos, acríticos e erróneos, numa palavra, pseudo- saberes206... =Ætvr..., nos latinos uerbum, uerbalis, aduerbium, prouerbium, no gótico waurd, no proto-germânico *wurdan, no alemão Wort, no norueguês e no sueco ord, nos ingleses word, wording, wordy, nos portugueses verbo, verbal, advérbio, provérbio, rema, remático, retórica, etc... Na sua acepção mais corrente (e em consonância com o uso que lhe deu nomeadamente Sócrates), tinha o significado de «fala proferida com uma intencionalidade interpelante, questionante e indagativa, embora fingindo ignorância», significado este que subjaz, no fundamental, à assim denominada “ironia socrática”. 203 Cf. Roger Texier: ibidem, p. 269. 204 A seguir ao “século de ouro” — o século V a. C. — em que se inscreve a acção governativa de Péricles... 205 A “retórica sofística” corrente e dominante no tempo de Sócrates não se confunde, necessariamente, nem com a paideia nem com a retórica protagonizadas pelos grandes mestres da Sofística (Protágoras, Górgias...), muito embora se afigure pertinente e fundamentada a contraposição entre “paideia socrática” e “paideia sofística”, atentos os respectivos pressupostos, métodos e finalidades (cf. Werner Jaeger: Paideia..., op. cit., pp. 263-302, 389-457, 489-548. 206 Sobre a presença e a influência do “espírito sofístico” na actualidade, cabe salientar que tal situação, salvaguardadas as naturais diferenças de contexto histórico-epocal, 96 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO A ironia socrática, complementada metodologicamente com a maiêutica ( maieutikÆ t°xnh), que, em sentido literal, significa «a arte da parteira» e, em sentido tropológico, a arte de ir dando à luz, de ir construindo por si próprio e, como já ficou dito, o caminho da verdade e da sabedoria, através da suscitação de novas dúvidas, da formulação de novos problemas, da enunciação de novos paradoxos, da abertura de novos horizontes, do lançamento de novas ideias...), visava a superação eurístico-probatória de tais “saberes” por saberes novos, criticamente construídos, fundamentados, testados e validados e, assim, a busca sistemática e a construção permanente de uma verdadeira sof€a. Em não deixa de continuar a marcar profundamente a lógica concepcional, a organização e o funcionamento do nosso Sistema Educativo e Formativo, desde a base até ao topo. De facto, em vez de se promover, de modo responsável e responsabilizante, o livre desenvolvimento da autonomia poiética de cada sujeito na construção da identidade pessoal e comunitária, do mundo da vida (LebensWelt) e da visão do mundo, do espírito crítico, da “enciclopédia” sapiencial e experiencial, própria e irrepetível, contrapõe-se-lhe uma dinâmica de base heteronómica, dominantemente orientada para a mimese ou o decalque de estereótipos adinâmicos e distróficos, para o “folclore” e o ludismo infantilizantes se não mesmo estupidificantes e para a reprodução de saberes (tantas vezes já cristalizados e obsoletos...) legitimados e canonizados de forma corporativa, burocrática e dogmática, longe, portanto, da prioritária implicação da criatividade inventivo-inovadora e consagradora da diferenciante singularidade dos ritmos de aprendizagem dos reais protagonistas e destinatários do processo educativo e formativo: os alunos, os estudantes. Em suma: fomenta-se a paralizante fixação e memorização, sem suporte inteligente e crítico, dos “conhecimentos”, das “verdades” e das “certezas” que os “sábios sofísticos” (que, mercenariamente e contra o espírito socrático, enxameiam a instituição escolar em todos os seus ciclos e níveis curriculares...) querem que se saibam... É assim, por exemplo, que se exige às crianças e aos jovens (no quadro de uma cerrada lógica de “avaliação” controladora, segregadora, exclusora e desumanizadamente elitista...) que repitam ou reproduzan, com a exactidão e o rigor das clonagens, aquilo que, transmissivamente, se lhes ensinou, em vez de se lhes solicitar a visão pessoal e própria, vivida e autêntica, que foram elaborando, estruturando e ajustando a partir de si. Tudo à margem do fundamental postulado pedagógico, segundo o qual, os alunos são o princípio e o fim de todo o processo educativo e formativo (o mesmo é dizer, a sua inderrogável razão de ser e os seus insubstituíveis actores...), consumando-se, desse modo, o letal e discriminatório esquecimento de que todas as crianças, todos os adolescentes e todos os adultos têm o direito e o dever de se formarem até aos limiares últimos das suas insondáveis e inter-incomparáveis pontencialidades... Por isso, se pergunta: de que vale o slogan do “todos diferentes, todos iguais”, se ele não passar, como vem acontecendo, de um inconsequente e demagógico “ornato de retórica”?... 97 Fernando Paulo do Carmo Baptista suma: a ironia socrática configura «la sottovalutazione che Socrate fa di se stesso nei confronti degli avversari con cui discutte»207 e antecipa não só o papel nuclear da “dúvida metódica” cartesiana na construção do conhecimento, mas também o sentido estratégico do “falsificabilismo popperiano” na testagem e validação das hipóteses ou conjecturas que sustentam as teorias científicas.208 E se foi decisiva a constante de(s)construção crítica e a homóloga (re)construção superadora e criativa do seu trajecto ontopoiésico, práxico e auto e hetero-paidêutico e sapiencial, como sumariamente deixei descrito, não menos importante e significativa foi a aprendizagem que ele fez, em plena idade adulta e enquanto hoplita209, nas duras batalhas, entre outras, de Potideia, Délios e Anfípolis, travadas durante a Guerra do Peloponeso, onde deu exemplos de invulgar coragem, valentia (éndre€a), resistência, solidariedade e presença de espírito, enfrentando, nos limites e com o risco da própria vida, todos os perigos surgentes para salvar a vida de companheiros de combate (e.g.: Alcibíades e Xenofonte) e revelando uma incomparável capacidade de sofrimento, ao resistir, descalço, ao próprio rigor da intempérie e da neve, ao mesmo tempo que cultivava o recolhimento meditativo e o sentido místico da vida... 207 Cf. Nicola Abbagnano e Giovanni Fornero: Dizionario di Filosofia, Torino UTET, 3 1998, entrada «Ironia»: pp. 615-616. 208 A ironia socrática é, em síntese, a incisiva e anti-sofística interpelação dialógico- indagativa assente em perguntas, interrogações e provocações paradoxais, tendo em vista suscitar a dúvida sobre os próprios conhecimentos e a tomada de consciência da sua fragilidade, destruir a vã presunção de tudo saber e provocar o constante empenhamento na procura da verdade, através da superação de concepções preconceituosas, inconsistentes, ilusórias e enganadoras. 209 Cf. Wikipedia, la enciclopedia libre: http://es.wikipedia.org/wiki/Hoplita: «Hoplita [ p €thw] en la Antigua Grecia era el soldado de infantería pesada. Su armadura constaba de: una coraza metálica sobre una túnica corta, grebas, un escudo redondo y un casco (como elementos defensivos) y una lanza y una espada como instrumentos de ataque. Formaba parte de los diez regimientos de que constaba el ejército. Luchaban formando bloques compactos llamados falanges. Eran hoplitas los ciudadanos de pleno derecho con solvencia para costearse y mantener la panoplia. La larga duración de la Guerra del Peloponeso provocó la aparición de la figura del hoplita profesional y mercenario a partir del siglo V adC. Los hoplitas alcanzaron su cénit en las Guerras Médicas y las guerras del Peloponeso; su decadencia empezó con la aparición de la falange macedónica. Su nombre proviene de la palabra hoplon ( p on = escudo)». 98 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO No exercício da sua acção política, revelou aquele mesmo arrojado destemor, desobediente rebeldia e indignada e antitotalitária frontalidade210, sempre que a iniquidade, a prepotência e o terror dos Trinta Tiranos se fez sentir e, no limiar dos limiares, quando, depois de recusar, com lúcida, radical e coerente serenidade, o convite à fuga salvadora, a cicuta se encarregou de esculpir, para sempre, nas lápides do Tempo e na memória da Humanidade a dimensão da sua real grandeza: «Homens de Atenas: tenho por vós consideração e afecto, mas prefiro obedecer à divindade a ter de obedecer a vós; e, enquanto tiver um sopro de vida, enquanto me restar um átimo de energia, não deixarei de filosofar e de vos chamar à razão e aconselhar, a qualquer de vós que eu encontre. Dir-vos-ei, segundo o meu costume: “Meu caro amigo, tu és ateniense, natural de uma cidade que é a maior e a mais famosa pela sabedoria e pelo poder, e não te envergonhas de só curares de riquezas e dos meios de as aumentares o mais que puderes, de só pensares em glória e honrarias, sem a mínima preocupação com a sabedoria, com a verdade e com a maneira de tornar a tua alma o melhor possível?” «E, se algum de vós me replicar que com tudo isto se preocupa, não o largarei imediatamente, não me irei logo embora, mas interrogá- lo-ei, analisarei e refutarei as suas opiniões e, se chegar à conclusão de que não possui a virtude, embora o afirme, censurá-lo-ei de ter em tão pouca conta as coisas mais preciosas e prezar tanto as mais desprezíveis. Assim procederei com quantos encontrar, novos ou velhos, estrangeiros ou oriundos da cidade, mas mais ainda convosco, meus concidadãos, que sois mais próximos de mim pelo próprio nascimento. São ordens que recebi da divindade, podeis estar certos; e creio que nunca nada foi mais útil à cidade do que o meu ministério ao serviço do divino. «Efectivamente, nas minhas deambulações, não faço outra coisa senão persuadir-vos, novos e velhos, a que não vos preocupeis mais, nem tanto, com o vosso corpo e as vossas riquezas do que com a vossa alma, para a tornardes o melhor possível, dizendo-vos que não é das 210 Cf. Catherine Vallée: Hannah Arendt, Sócrates e a Questão do Totalitarismo, op. cit., 2003, pp. 53, 61, 121. 99 Fernando Paulo do Carmo Baptista riquezas que nasce a virtude, mas que é da virtude que provêm as riquezas e todos os outros bens, tanto públicos como privados. Se é com estas palavras que corrompo os jovens, é porque elas devem ser prejudiciais; mas, se alguém afirma que não é isto o que eu digo, não fala verdade. Em face disto, dir-vos-ei mais, Homens de Atenas, tanto faz que acrediteis em Ânito como não, podeis absolver-me ou não me absolver, a minha atitude no futuro manter-se-á inalterável, nem que eu tenha de sofrer mil vezes a morte211». O destino de Sócrates ficara assim definitivamente traçado e assumido... Horas mais tarde, a implacável e mortífera taça cumpria a sua função entorpecente e liquidatária... «Entretanto, aquele que lhe ministrara o veneno, palpando-lhe o corpo, observava-lhe de tempos a tempos os pés e as pernas. Em seguida, carregando com força num pé, perguntou-lhe se ainda sentia, ao que ele respondeu que não. Recomeçou depois pela parte inferior das pernas; e, assim subindo, nos fez ver que se tornava frio e hirto. Sem deixar de o palpar, observou-nos que, quando lhe atingisse o coração, seria o fim... E já praticamente toda a região do ventre estava gelada quando Sócrates, descobrindo o rosto — pois tinha-o, com efeito, coberto —, disse estas palavras, as últimas que proferiu: — Críton, devemos um galo a Asclépio... Paguem-lhe, não se esqueçam! (...)»212 Consumava-se, deste modo, a vital missão terrena daquele que era o melhor, o mais sábio e o mais justo dos homens de Atenas... E se o galo pôde cantar a final libertação das clausurantes e penalizantes algemas corpóreas, abrindo caminho a um ansiado e imaginário além213, não deixou, igualmente, de anunciar a catártica e ressurgente aurora — «... el sol nace, / morir es despertar214 ...» — de um tempo novo no horizonte da História e na ágora da Pólis Planetária: a universal 211 Cf. Platão: Apologia..., 29d-30c. 212 Cf. Platão: Fédon, na tradução já citada de Maria Teresa Schiappa de Azevedo, pp. 129-130. 213 Cf. Platão: Apologia..., 40c-d, 41d. 214 Octavio Paz: Lo mejor..., op. cit., pp. 96-97: «... Sócrates en cadenas (el sol nace, / morir es despertar: “Critón, un gallo / a Esculapio, ya sano de la vida”)». 100 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO sagração do AMOR À SABEDORIA — filosof€a — e, com ela, a inabalável e imorredoura esperança na capacidade que os humanos têm de sonhar, pensar e criar... Por isso é que no congenial diálogo da vida com a morte, na movência intranscendível e inelutável do processo de metamorfose em que, com ou sem intermitências, nada se perde e tudo se transforma, de tal maneira que, na imparável girândola da biosfera, a novas vidas se sucedem novas mortes e a novas mortes se sucedem novas vidas, até que se verifique o estertor final da necrósico-tanática implosão do cosmos215, só nos resta retomar o mito primevo e genesíaco do oleiro bíblico (na memorante e alegórica “lição” de apaixonada e procriadora rejuvenescência do velho Cipriano Algor e da viúva Isaura Madruga de A Caverna...)216, para, sob o influxo criador de Eros («aquele mesmo amor que devora...») fecundar todas as esterilidades e superar todas as morbidezas e desencantos de que vem padecendo sombriamente Deméter... Mas, nessa inabalável convicção soteriológica, alimentada na utopia e na esperança que faz mover o Mundo e transformar a História, importa olhar de novo para o barro adâmico e repensar-lhe e redestinar- lhe o futuro, a partir dos potenciais biogénicos, onírico-poiésicos, imaginais e imaginantes com que, nós, os humanos, afinal somos dotados: «... tudo ali estava como coberto de barro, não sujo de barro, somente da cor que ele tem, da cor de todas as cores com que saiu da barreira, o que foi sendo deixado por três gerações que todos os dias mancharam as mãos no pó e na água do barro, e também, lá fora, a cor de cinza viva do forno, a derradeira e esmorecente mornidão de quando o deixavam vazio, como uma casa donde saíram os donos e que se deixa ficar, paciente, à espera, e amanhã, se tudo isto não se acabou já para sempre, outra vez a primeira chama da lenha, o primeiro bafo quente que vai rodear como uma carícia a argila seca, e depois, aos poucos e poucos, a tremulina do ar, uma cintilação rápida de brasa, o alvorecer do esplendor, a irrupção deslumbrante do fogo pleno.» 217 215 Cf. José Saramago: As Intermitências da Morte, Lisboa, Editorial Caminho, 2005, pp. 78 ss. 216 José Saramago: A Caverna, Lisboa, Editorial Caminho, 2000, pp. 337 ss. 217 Idem, ibidem, p. 35. 101 Fernando Paulo do Carmo Baptista Essa “ígnea irrupção” transformar-se-á em irradiação fulgurante e incandescente, em tonificante, estelar e radial vento venturo, polifónica e mestiçadamente semeador e reconfigurador das categorias do Belo e do Bem — αλ ν α γα ν — numa nova “oficina-olaria” alimentada por um também novo paradigma educacional e formativo de matriz multicultural, intercultural e transcultural218 verdadeiramente sin-agógico e sin-antropagógico e, assim, inabalavelmente estruturante e coesor, em cuja dinâmica de realização concretizadora, tudo se vai principiando e tudo se vai ultimando, para de novo tudo se poder recomeçar diferentemente para melhor, numa caminhada sem fim, em que todos nos vamos sinergicamente criando em cada passo em que se forja cada acto criador... Sempre, porém, na atitude visionante e visionária de uma intercambiante “escuta-mirada” corpóreo-espiritualmente hologramática e pléctica do mundo e da vida, em que cada lance ou simples gesto levede, cresça e se eleve, contra-burocraticamente e meta-tecnologicamente, às mais altas dimensões da Poética e da Estética da Arte, do Humano e do Sagrado, em definitiva e ascensional antropo-poiese e na intransferível e cordial “sístole-diástole” duma englobante, sinfónica e realimentadora ágape [ γ ] de pão e de vinho, de sabedoria e virtude, de dignidade e justiça, de paz e amor... No fundo, a esperançosa resposta, local e global, humana e divina, ao mítico desafio de instaurar, na Terra, uma nova “idade do ouro”, essa utópica flor azul demandada por todos os cavaleiros do sonho... Mas, para isso, é inadiável travar desde já, e em consonância com Ernesto Sabato219, o combate decisivo: «recuperar (antes del fin...) quanto de humanidade houvermos perdido»... Visionante e apaixonante mirada que, em sua desassossegada inquietude e seminal insatisfação perfectiva de radicar e cumprir o futuro desde os abismos e funduras do passado e na voragem transiente dum presente que não cessa de mover-se, bem pode estar simbólico- alegoricamente figurada e plasmada na «Fábula de Joan Miró» do 218 Em que tenham igual dignidade os palhaços, os bobos, os esquimós, os mandarins, as enfermeiras ou os assírios de barbas... que não deixam de ser figurações alegóricas da real, concreta e singular diversidade antrópica. Cf. José Saramago: ibidem, p. 349. 219 Ernesto Sabato: Antes del fin, Barcelona, Editorial Seix Barral, 2003, p. 188. 102 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO imortal, porque sempre activamente justo e belo e amoravelmente fascinante e originante, Octavio Paz220: «(...) El azul estaba inmovilizado, nadie lo miraba, nadie lo oía: el rojo era un ciego, el negro un sordomudo. El viento iba y venía preguntando ¿ por donde anda Joan Miró? Estaba aí desde el principio pero el viento no lo veía: inmovilizado entre el azul y el rojo, el negro y el amarillo, Miró era una mirada transparente, una mirada de siete manos. Siete manos en forma de orejas para oír a los siete colores, siete manos en forma de pies para subir los siete escalones del arco íris, siete manos en forma de raíces para estar en todas partes y a la vez en Barcelona. Miró era una mirada de siete manos. Con la primera golpeaba el tambor de la luna, con la segunda sembraba pájaros en el jardín del viento, con la tercera agitaba el cubilete de las constelaciones, con la cuarta escribía la leyenda de los siglos de los caracoles, con la quinta plantaba islas en el pecho del verde, con la sexta hacía una mujer mezclando noche y agua, música y electricidad, con la séptima borraba todo lo que había echo y comenzaba de nuevo. 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IV) Between description and interpretation: the hermeneutic turn in phenomenology, Toronto, The Hermeneutic Press, 2005. • WIKIPEDIA, la enciclopedia libre. • ZUBIRI, Xavier: El Hombre y Dios, Madrid, Alianza Editorial, 1994. • ZUBIRI, Xavier: Sobre el Hombre, Madrid, Alianza Editorial, 1998. • ZUBIRI, Xavier: El Hombre y la Verdad, Madrid, Alianza Editorial, 2001. • ARTIGOS e estudos vários sobre os mais diversos temas (desde Sócrates, Platão, Octavio Paz, Saramago... aos «buracos negros»...) localizáveis nas seguintes e-fontes, entre outras: http://www.if.ufrgs.br/~thaisa/bn/index.htm#indice http://www.observatorio.ufmg.br/pas19.htm http://observatoriophoenix.astrodatabase.net/e_teoria/24_E15.htm http://www.terravista.pt/meco/1351/Bnegros.html, http://www.spaceref.com/tools/imagecathp.html?cid=1 http://clientes.vianetworks.es/empresas/lua911/html/daimon.html. http://en.wikipedia.org/wiki/Socrates http://encyclopedia.thefreedictionary.com/ http://observatoriophoenix.astrodatabase.net/e_teoria/24_E15.htm 113 Fernando Paulo do Carmo Baptista http://plato.stanford.edu/ http://www.bartleby.com/65/so/Socrates.html http://www.forma-mentis.net/Filosofia/Socrate.html http://www.san.beck.org/C%26S-Contents.html http://www.spaceref.com/tools/imagecathp.html?cid=1 http://www.terravista.pt/meco/1351/Bnegros.html, http://www.ensayistas.org/filosofos/mexico/paz/ruiz/ http://www.ensp.fiocruz.br/projetos/esterisco/risc_epid.html http://es.wikipedia.org/. www.forma-mentis.net http://www.instituto-camoes.pt/revista/impespanha.htm http://www.observatorio.ufmg.br./pas19.htm. 114 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO 3. “MISERICÓRDIA” — um projecto e um trajecto semiótico-hermenêutico de natureza ética e práxica: da palavra para a acção (*)— «Usque misericordiae mysterium contemplari necesse habemus. Laetitiae, tranquillitatis pacisque est fons. Condicio est nostrae salutis. (...) Misericordia: lex est fundamentalis quae cuiusque personae insidet in corde...» 221 (Franciscus: Misericordiae Vultus, § 2; datum Romae, apud Sanctum Petrum, die undecimo mensis Aprilis (...), anno Domini bis millesimo quinto decimo) «In principio erat Verbum, et Verbum erat apud Deum, et Deus erat Verbum» (Iohannes: I:1) «... ist die Sprache zumal das Haus des Seins und die Behausung des Menschenwesens» [«... a linguagem é, simultaneamente, a morada do ser e o abrigo da essência do homem»] (Martin Heidegger: Carta sobre o Humanismo, Paris, Aubier, 1970, pp. 162-163) (*) Reprodução, com pontuais retoques, do texto da comunicação feita na sessão de abertura do “Colóquio” que teve lugar em Viseu, no dia 27 de Setembro de 2016, em homenagem ao Eng.º Manuel Engrácia Carrilho, antigo Provedor da Santa Casa da Misericórdia. 221 «Precisamos sempre de contemplar o mistério da misericórdia. É fonte de alegria, serenidade e paz. É condição da nossa salvação. (...) É a lei fundamental que mora no coração de cada pessoa...» (cf.:http://w2.vatican.va/content/francesco/la/bulls/documents/papa- francesco_bolla_20150411_misericordiae-vultus.html) 115 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO “MISERICÓRDIA” I. PRELÚDIO (enquadramento semiótico-filológico e doutrinal) a) “DE MISERICORDIA” No acto solene da celebração jubilatória dos 500 anos da criação da Santa Casa da Misericórdia de Viseu, começar pelo princípio (in principio erat verbum) significa radicar o discurso na palavra matricial, identitária e teleológica que caracteriza e distingue a essência do “projecto”, do “compromisso”, da “missão” e da “acção benfazeja”, singular e colegial, de quantos integram a nossa Instituição Confrádica, para cumprir, com toda a elevação e dignidade, a sublime mensagem das “obras de misericórdia”. Essa palavra primigénia, principial, almante e divino- humanizadora é a palavra “MISERICÓRDIA”: «O nome de Deus é Misericórdia»222. Na verdade, diz-nos o Papa Francisco (numa clara alusão à etimologia desta palavra223...) que «misericórdia significa abrir 222 Papa Francisco: O nome de Deus é Misericórdia (tradução portuguesa de Catarina Mourão), Lisboa, Grupo Planeta, 2016 (original italiano: Papa Francesco: Il nome di Dio è Misericordia. Una conversazione con Andrea Tornielli, Segrate, Edizioni Piemme, 2016). 223 Efectivamente, a Etimologia ensina-nos que o substantivo ‘misericórdia’ provém do seu homólogo latino misericordia(m), palavra da mesma família do adjectivo misericors, -dis. Este adjectivo formou-se com base na junção de duas raízes: — a raiz “miser-” que está presente no adjectivo miserus, -a,-um [= batido pela desgraça, desditado, infeliz] e igualmente presente no verbo misereor, -eris, -eri [= ter piedade, compadecer-se, ser misericordioso, ser compadecido, ser clemente...]; — a raiz “cor(d)-” que é uma variante da multivarietal raiz indo-europeia “ker(d)- / kor(d)- / kar(d)- / heor(t)-” que exprime a ideia de “coração”, cabendo sublinhar que o actual vocábulo 117 Fernando Paulo do Carmo Baptista o coração ao infeliz»224, interpretando-a, do ponto de vista teológico- pastoral, como sendo a atitude divina que abraça, o dom de Deus que acolhe e que perdoa. Daí, concluir o nosso humaníssimo e encantador Sumo Pontífice que «a misericórdia é o primeiro atributo de Deus», ao ponto de configurar o Seu “cartão único” identitário225. Esta acolhedora “abertura do coração” aos míseros mortais, aos infelizes de toda a sorte, isto é, àqueles que, batidos pela “passio” do sofrimento tantas vezes escondido na nocturna e silenciosa solidão de todas as amarguras e agonias da vida, clamam pelo afecto piedoso e solidário dos corações que se compadecem, esta carinhosa e solícita “abertura do nosso coração à miséria” — permita-se-me a insistência!... —, não pode deixar de ser o indelével e distintivo “carisma” ético e, ao mesmo tempo, a “certidão de nascimento” de uma instituição de solidariedade social que pratica actos e realiza obras de bem-fazer, consagrando, por essa via, os valores humano-cristãos da compaixão (compassio, ια [sympatheia] // ια [empatheia], pietas...), da caridade, da partilha e da solidariedade, em suma, do amor fraterno, junto dos que mais precisam e mais sofrem no corpo e na alma... E o “Catecismo da Igreja Católica” constitui, para o efeito, uma formativa e alumiante “referência sapiencial” que não pode ser esquecida, nomeadamente quando proclama (em perfeita sintonia com o referido entendimento do Papa Francisco...) que «as obras de misericórdia são as acções caridosas (sublinhei) pelas quais vamos em inglês “heart” (coração) é proveniente do Old English ‘heorte’; esta raiz está também presente na constituição morfo-semântica de outros vocábulos portugueses (ex.: coração, coragem, corajoso..., cordato, cordial, cordialidade..., acordar, acórdão, acorde, acordo, concordar, concordância, concordata, concórdia, cordiforme, discordância, discordar, discórdia, recordação, recordar... // cardíaco, cardial, cardialgia, cardiforme, cardiologia, cardiologista, cardiovascular, electrocardiograma, bradicardia, taquicardia, endocárdio, epicárdio, miocárdio, pericárdio... Cf., por exemplo, o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Lisboa, Temas & Debates, 2005, nas entradas «cor(d)», «cardi(o)-», «-cardia» e afins. 224 Papa Francisco: op. cit.: p. 26. 225 Papa Francisco: op. cit.: pp. 71, 26. 118 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO ajuda do nosso próximo, nas suas necessidades corporais e espirituais»226. b) “DE CARITATE” ( γ [agape]) Por constituir a matriz essenciante, modeladora e distintiva do que significa a virtude, a qualidade e a capacidade da “Misericórdia”, não menos importante é o entendimento plasmado no Catecismo, a propósito do conceito de “caridade”, conceito designado, do ponto de vista lexical e terminológico, por um nome que tem como instância genealógica o substantivo latino “caritas, -itatis”, formado a partir do adjectivo “carus, -a, -um”, cuja base morfo-semiogénica é a raiz indo- europeia “ka(r)-”, veiculadora dos traços semânticos codificados nos adjectivos caro, custoso, precioso, querido, desejado, amável... Esta raiz está presente em palavras cognatas como caridade, caridoso, caritativo..., carícia, carinho, carinhoso, acariciar..., careiro, carestia, encarecer, encarecimento227... 226 Ver Catecismo da Igreja Católica, Coimbra, Gráfica de Coimbra, 21997, p. 593, § 2447. 227 Está igualmente presente em homólogas palavras de outras importantes euro- línguas e dialectos: em inglês: caress, charity, charitable, charitably, cherish...; em espanhol: caro, caridad, encarecer, caricia...; em francês: cher, charité, charitable, chérir...; em italiano: caro, carità, caritatevole, caritativo, carizia, carezza, accarezzare, carezzevole...; em alemão: Karitas, karitativ...; em romeno: caritate, caritabil...; em provençal: car; em sardo-logudorês: karu; em friulano: kar...; em irlandês antigo: caraim (amar); em persa: k ma (desejo); em sânscrito: c ruh, K ma (deus índio do amor, que fez nascer no espírito do Criador o desejo de ter companhia), k ma-s tra (tratado erótico, escrito em sânscrito, que faz parte da literatura religiosa da Índia)... Cf. Calvert Watkins: The American Heritage – Dictionary of Indo- 2 European Roots, Boston / New York, Houghton Mifllin Company, 2000, entrada «ka-» (gostar, desejar); Edward A. Roberts y Bárbara Pastor: Diccionario etimológico indoeuropeo de la lengua española, Madrid, Alianza Editorial, 1997, entrada «k -» (gostar, desejar); R. Grandsaignes d’Hauterive: Dictionnaire des Racines des Langues Européennes, Paris, Larousse, 1994, entrada «ka(r)- I» (querido); Franco Rendich: Dizionario etimológico comparato delle lingue classiche indoeuropee, Roma, Palombi Editori, 2010, p. 25: raiz «ka- / «[ka+m]- »: em sânscrito: k ma (amor, desejo), K ma (deus do amor); os equivalentes latinos do sânscrito são os lexemas 119 Fernando Paulo do Carmo Baptista Cabe sublinhar, neste contexto, que o lexema ‘caridade’ foi introduzido na linguagem eclesial como tradutor da palavra grega γ (agape), com que se designava o «amor fraternal». É em consonância com estas significações seminais (bem depuradas de toda a espécie de degradações semânticas...) que A CARIDADE aparece definida naquela importante obra de instrução catequética e de (in)formação religiosa como «a virtude teologal pela qual amamos a Deus sobre todas as coisas (...) e ao próximo como a nós mesmos, por amor de Deus»228. Nela se consubstancia «o mandamento novo» proclamado e protagonizado por Jesus Cristo, ao amar os seus «até ao fim»: «É ESTE O MEU MANDAMENTO: QUE VOS AMEIS UNS AOS OUTROS, 229 COMO EU VOS AMEI» . E é ainda o Catecismo230 que, citando muito especialmente o testemunho epistolar de São Paulo, entre outros apóstolos, nos apresenta a porventura mais expressiva das caracterizações e o mais lapidar dos ajuizamentos sobre esta “virtude maior”: A CARIDADE é superior a todas as virtudes; é a primeira das virtudes teologais, na medida em que o exercício de todas as outras é animado e inspirado por ela; é ela o vínculo da perfeição e o seu código “modelador”; ao articulá-las e ao ordená-las entre si, a CARIDADE assegura e purifica a nossa capacidade humana de amar e eleva-a à perfeição sobrenatural do amor divino. Os seus frutos são: a alegria, a paz e a misericórdia, exigindo a prática do bem e a correcção fraterna; é benevolente; suscita a reciprocidade, é desinteressada e liberal; é amizade e comunhão. «amor» e seus cognatos «amare», «amabilis», etc., em que se verifica a supressão do «k» inicial. Digno de registo, é o seguinte comentário de Franco Rendich: «Si noti che la realtà finita e mortale è creata da m t “madre”, termine che deriva dalla radice m , “misurare”, “delimitare”. L’amore è il limite, la misura umana [m] della gioia luminosa [ka] delle Acque [ka] di eka (o Uno). Ovvero l’ incontro tra ciò che è eterno [ka] e ciò che è limitato [m]». 228 Ver Catecismo, op. cit., p. 464, § 1823. 229 Ibidem, p. 464, § 1823. 230 Ibidem, p. 464, § 1825. 120 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO Tudo isto, a convergir, augustinianamente, numa síntese conclusiva, segundo a qual, «a consumação de todas as nossas obras é o amor. É nele que está o fim: é para a conquista dele que corremos; corremos para lá chegar e, uma vez chegados, é nele que descansamos»231. Mas essa caminhada colectiva da Humanidade rumo ao Amor Universal, só pode ser mediada pela FRATERNIDADE. E esta carece de ser incessantemente proclamada, explicada, promovida e, sobretudo, vivida e praticada... Eis aí a razão de ser e de existir das “Confrarias” e das “Irmandades Cristãs”, ou seja, o “PODER” instituidor, estruturante e direccionante que está na génese da nossa “Santa Casa da Misericórdia de Viseu”... II. DESENVOLVIMENTO a) “DE FRATERNITATE”(*) (sintético excurso, configurador de uma reflexão sobre aquela que é o “coração vivo e pulsante” da MISERICÓRDIA: — a FRATERNIDADE) Caríssimos Confrades [Con-Fratres Carissimi]: Ao dirigir-me a todos Vós, saudando-Vos nestes exactos termos (em sintonia, aliás, como ireis ver, com o sentido profundo do tema 231 Ibidem, p. 465, § 1829, com referência a Santo Agostinho [In epistolam Iohannis ad Parthos tractatus 10, 4], na nota 83. (*) Nota: o tratamento deste tópico teve em conta aspectos nucleares abordados na “oração de sapiência” que proferi em 7 de Maio de 2008, na abertura do “IV Capítulo da Confraria Gastronómica do Dão”, comunicação essa, posteriormente retocada e repetida em 23 de Novembro de 2008, no Pavilhão Multiusos Monsenhor Nunes Pereira da CM de Pampilhosa da Serra, no “V Capítulo da Real Confraria do Maranho”. Cf. Mário Nunes e José Espírito Santo (orgs.): Real Confraria do Maranho – História e Tradição [com prefácio de Marcelo Rebelo de Sousa], Coimbra, Real Confraria do Maranho, 2011, pp. 191-210. 121 Fernando Paulo do Carmo Baptista da presente reflexão...), faço-o com a clara e assumida consciência de que a palavra frater (e, com ela, soror232, consoror e confrater...) é uma das mais fabulosas palavras da língua latina e da cultura clássica que, conjuntamente com mater e pater remetem para as matrizes genésico-vitais, afectivas e antropológico-culturais e planetárias da nossa condição humana. É, na verdade, esta remotíssima e fascinante tríade lexical — mater / pater / frater — que, desde o indo-europeu233, designa e nomeia a base natural em que assenta a essência da progenição do parentesco humano-sanguíneo (relação familiar entre pais e filhos e entre irmãos...) e da filiação e vinculação simbólico-identitária e paritária, a nível comunitário, filosófico-doutrinal, ético-axiológico, educativo- formativo, convivial, lúdico, desportivo, clubístico, associativo, profissional, empresarial, partidário, sindical, etc., etc., e das mais profundas e duradoiras relações de mundividência (Weltanschauung) e mundivivência, sensibilidade e afectividade intra-familiar, inter-familiar e trans-familiar: parentes, amigos, companheiros, colegas, consócios, confrades... Repare-se, a propósito, que esta sua origem indo-europeia está sintomaticamente presente em sânscrito (matar / pitar / bhrátár), em 232 Cujo feminino é soror, com a raiz swesor- (< s esor-, que apresenta também as variantes: swesr-, swestr-, swesr-ino), raiz igualmente presente em: svasar (sânscrito), de swester (alto alemão), sweostor (inglês antigo), sister (inglês actual), systir (antigo norueguês), siur (ant. irlandês), soeur (francês), suora e sorella (italiano), sor (catalão), sor (espanhol), serora [< sorora] (euskara), sorre, seror, sor (provençal)... Em latim: novem, doctae sorores (= as nove, as doutas irmãs [as Musas]). Para a ponderação desta raiz, considerar: The American Heritage Dictionary of The English Language, Boston / New York, Houghton Mifflin Company, 2000, 4.ª edição, 2000, na entrada «sister», com a respectiva remissão para o Appendix I. 233 A língua genética de uma vasta família de línguas, antigas e actuais, que os estudos comparatísticos conjecturam haver sido falada desde a Europa até à Índia e à China... Cf.: http://pt.wikipedia.org/wiki/L%C3%ADnguas_indo europeias; http://pt.wikipedia.org/wiki/Proto-indo-europeu. 122 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO 234 grego ( / α / ), em irlandês antigo (mathir / fathir / brathir), em inglês (mother / father / brother), em alemão (mutter / vater / bruder), em português (madre / padre / frade), em francês (mère / père / frère), o mesmo se passando, genericamente, com as demais línguas românicas, verificando-se, inclusivamente, o facto de que o lexema homólogo do latino frater, isolamente perspectivado fora daquela tríade, aparece, entre outras línguas, em gótico (brótar), em prussiano antigo (brati) e em persa igualmente antigo (brata). Desta sumária abordagem linguístico-lexicológica, creio ressaltar bem a universalidade da palavra frater e, consequentemente, da sua derivada fraternitas, de cujo acusativo (fraternitate-[m]) provém não só o substantivo português fraternidade mas também os equivalentes românicos mais próximos de nós (o espanhol fraternidad, o francês fraternité, o italiano fraternità, o romeno fraternitate...) com que se designa, afinal, uma das ideias verdadeiramente fundadoras, naturantes e coligantes e, assim, constitutivas das COMUNIDADES HUMANAS existentes no Planeta. De tal maneira que bem podemos concluir com o pensador romano Lucius Annaeus Seneca (Córdova: 4 a.C. — Roma: 65 d.C.) que a natureza fez de nós uma família: «natura nos cognatos edidit»235. 234 Suplantado por λ (= irmão), a nível da estrutura familiar, pervive todavia, na forma de plural — — no plano das organizações sociais, políticas e religiosas, com o significado de membro de uma α α («fratria», ou seja, cada um dos grupos ou clãs em que se dividiam as tribos na Grécia antiga; e também, associação ou grupo de cidadãos movidos por ideais, causas ou interesses comuns e partilhados (ex: um dado conjunto de «irmãos» ou «confrades» — frãterew —, a que presidia um fratr€arxow ou frÆtarxow. (Cf. Pierre Chantraine: Dictionnaire étymologique de la langue grecque: histoire des mots, Paris, Klincksieck, 1999 e Anatole Bailly: Dictionnaire Grec Français, Paris, Hachette, 1984, nas entradas respectivas: frãthr e édelfÒw). 235 Cf. Lucius Annaeus Seneca: Epistulae morales ad Lucilium, Liber XV, Epistula XCV, 52, 53 (apud: http://www.intratext.com/IXT/LAT0230/_P2N.HTM): 123 Fernando Paulo do Carmo Baptista Por outro lado (e do ponto de vista antropológico-cultural, teológico, filosófico e histórico...), a ideia de “FRATERNIDADE” configura-se, de modo inquestionável, como um dos mais importantes e decisivos patrimónios ou legados de relações e de laços unitivos e coesivos que se foram radicando, constituindo e consolidando no interior da poliédrica e abissal complexidade dos dinamismos filogónicos, isto é, geradores de ιλ α (philia) ou amicitia, perspectivadas estas, nas suas nucleares manifestações modais e na múltipla diversidade dos seus registos expressionais. Não cabendo na economia do cronograma deste magno evento celebratório da criação da nossa já penta-secular Instituição de Solidariedade Social uma analítica reflexiva, a ser conduzida segundo um alinhamento histórico-diacrónico mais conforme com a complexidade do tema236, não posso deixar de evocar, todavia, o polifónico e diversificado contributo sapiencial e arquitectante do pensamento de Platão e de Aristóteles, passando por Cícero, Terêncio, Séneca, Santo Agostinho, São Tomás de Aquino, Espinosa, Kant, Hegel, Marx, Nietzsche..., até Ernst Bloch, Karl Barth, Heidegger, Gadamer, Sartre, Adorno, Karl Popper, Dietrich Bonhoeffer, Hannah «[52] omne hoc quod vides, quo divina atque humana conclusa sunt, unum est; membra sumus corporis magni. Natura nos cognatos edidit, cum ex isdem et in eadem gigneret; haec nobis amorem indidit mutuum et sociabiles fecit. Illa aequum iustumque composuit; ex illius constitutione miserius est nocere quam laedi; ex illius imperio paratae sint iuvandis manus. [53] Ille versus et in pectore et in ore sit: homo sum, humani nihil a me alienum puto». (Os itálicos são meus). Aquele verso (que Séneca deseja no coração e nos lábios) é o emblemático verso 77 do Heautontimoroumenos, de Terêncio: «sou homem, nada do que é humano me é alheio». 236 Sem esquecer o contexto englobante, nomeadamente, do legado da Cultura Hebraico Cristã, com a matricial Bíblia, das Humanidades Clássicas Greco Latinas (com os hoje quase silenciados textos de seus grandes pensadores e escritores...) da Cultura Árabe, com os seus Al Khwarizmis, Al Majritis e Ibn Sinas e, sobretudo, com o seu fundacional Corão, e das Culturas Orientais, com natural destaque para os quatro livros Veda e para as figuras de Lao Tsé e de Buda... 124 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO Arendt, Hans Kung e tantos outros237...), para a poiésica constituição e hermenêutica inteligibilidade desta fulcral e arquetípica dimensão antropo-ontológica e axiológica que dá pelo nome de «FRATERNIDADE». Assim, seja ela a ιλ α (philia) benevolente e desinteressada, defendida por Platão (e.g.: Lísis, Fedro e Banquete...), tendo como referenciais de transcendência e de progressivo aperfeiçoamento «o supremo bem e a suprema beleza»238, seja ela a έλ ια ιλ α (amizade perfeita) proposta por Aristóteles que a identifica com a ética virtuosa, 237 Platão (428/27 a.C. – 347 a.C.), Aristóteles (384 a.C. – 322 a.C.), Cícero (106 a.C. -– 43 a.C.), Séneca (4 a.C. – 65 d.C.), Santo Agostinho (354. – 430), São Tomás de Aquino (1225 – 1274), Montaigne (1533 – 1592), Descartes (1596 – 1650), Pascal (1623 – 1662), Espinosa (1632 – 1677), Lock (1632 – 1704), Leibniz (1646 – 1716), Berkeley (1685 – 1753), Voltaire (1694 – 1778), David Hume (1711 – 1776), Rousseau (1712 – 1778), Kant (1724 – 1804), Hegel (1770-1831), Kierkegaard (1813 – 1855), Karl Marx (1818 – 1883), Nietzsche (1844 – 1900), Edmund Husserl (1859 – 1938), Max Scheler (1874 – 1928), Martin Buber (1878 – 1965), Jacques Maritain (1882 – 1973), Ortega y Gasset (1883 – 1955), Karl Jaspers (1883 – 1969), Ernst Bloch (1885 – 1977), Karl Barth (1886 – 1968), Martin Heidegger (1889 – 1976), Gabriel Marcel (1889 – 1973), Xavier Zubiri (1898 – 1983), Hans-Georg Gadamer (1900 – 2002), Karl Popper (1902 – 1994), Theodor Adorno (1903 – 1969), María Zambrano (1904 – 1996), Jean-Paul Sartre (1905 – 1980), Emmanuel Mounier (1905 – 1950), Dietrich Bonhoeffer (1906-1945), Hannah Arendt (1906 - 1975), Emmanuel Lévinas (1906 – 1995), Merleau-Ponty (1908 – 1961), Pedro Laín Entralgo (1908 – 2001), Simone de Beauvoir (1908 – 1986), Paul Ricoeur (1913 – 2005), Luigi Pareyson (1918 – 1991), Donald Davidson (1917 – 2003), Anna-Teresa Tymieniecka (1920 – ), Karl-Otto Apel (1922 – ), Hans Kung (1928 – ), Jürgen Habermas (1929 – ), Emanuele Severino (1929 – ), Carlo Sini (1933 – ), Gianni Vattimo (1936 – ), Remo Bodei (1938 – ), Mario Perniola (1941 –), Umberto Galimberti (1942 – ), Giacomo Marramao (1946 –)... Cf. Fernando Paulo Baptista: Nesta nossa doce Língua de Camões e de Aquilino, Sernancelhe, C.M. de Sernancelhe, 2010, p. 255. 238 Cf. Platão: Lísis (introdução, versão do grego e notas de Francisco de Oliveira): Coimbra INIC, Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos, 21990, pp. 40-43. 125 Fernando Paulo do Carmo Baptista bondosa e altruísta dos que praticam o bem239, seja ela a amicitia ciceroniana da «omnium divinarum humanarumque rerum cum benevolentia et caritate consensio [a bondosa e afectuosa harmonização das coisas divinas com as coisas humanas]»240, seja, ainda, a “dilectio” agustiniana241 com que, em plena e desinteressada liberdade242, se ama o outro em razão de si mesmo enquanto pessoa, ou «o amor fraterno e cristão» com que São Tomás243 identifica a caritas 239 Uma vez que «só os bons são amigos em sentido próprio e verdadeiro». Cf. Aristóteles: Ética a Nicomaco, 1157b4. Este entendimento é igualmente partilhado por Séneca, quando afirma que «só a virtude nos proporciona um prazer perene», além de que «o verdadeiro bem é o que decorre da boa consciência, das rectas intenções e das boas acções» [«ex bona conscientia, ex honestis consiliis, ex rectis actionibus»]). Cf. Séneca, edição do jornal «Público», 313, 303. Para o texto em latim, ver Séneca: Epistulae Morales Ad Lucilium, XXIII, 6-7: «[6] Fac, oro te, Lucili carissime, quod unum potest praestare felicem: dissice et conculca ista quae extrinsecus splendent, quae tibi promittuntur ab alio vel ex alio; ad verum bonum specta et de tuo gaude. Quid est autem hoc ‘de tuo’? te ipso et tui optima parte. Corpusculum bonum esse credideris: veri boni aviditas tuta est. [7] Quod sit istud interrogas, aut unde subeat? Dicam: ex bona conscientia, ex honestis consiliis, ex rectis actionibus, ex contemptu fortuitorum, ex placido vitae et continuo tenore unam prementis viam» (apud: http://www.intratext.com/IXT/LAT0230/_PN.HTM). 240 Cf. Marcus Tullius Cicero: Laelius de Amicitia, 20b-21, apud http://thelatinlibrary.com/cicero/amic.shtml: «Est enim amicitia nihil aliud nisi omnium divinarum humanarumque rerum cum benevolentia et caritate consensio; qua quidem haud scio an excepta sapientia nihil melius homini sit a dis immortalibus datum». 241 Cf. Santo Agostinho: Sermo 165, 4.4.: «Si amas, gratis ama: si vere amas, ipse sit merces quem amas» [«se amas, ama graciosamente»: se amas de verdade, aquele a quem amas seja ele próprio a tua recompensa»]; In Ioannem 8.7. e In Epistolam Ioannis Tractatus decem, VII, 8: «Dilige, et quod vis fac (...): radix sit intus dilectionis, non potest de ista radice nisi bonum exsistere» [Ama, e faz o que quiseres (...): pois, se a raiz do amor está dentro de ti, só o bem poderá sair de tal raiz]». 242 Para Santo Agostinho (Epistolae: 167, §§ 5.16, 5.19 e 6.19), a «caritas» não só é a «plenitudo legis» [a plenitude da lei] e a «lex libertatis» [a lei da liberdade], mas também a «magna et vera virtus» [a grande e verdadeira virtude]; por outro lado, a «misericordia» é a «medicina pro peccatis quotidianis» [o remédio para os pecados do dia-a-dia]. Para as obras de Santo Agostinho em latim, ver: http://sant- agostino.it/latino/commento_vsg/index.htm 243 Cf. São Tomás de Aquino: Summa Theologiae, Secunda Secundae Partis, Quaestiones 23-46 126 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO teologal para com o próximo, A CONCLUSÃO, sempre inconclusa, que, em todo o caso, daí se pode retirar, será, em seus traços mais relevantes, a seguinte: — a FRATERNIDADE não é o amor-paixão erótico-carnal ou sensual, na recíproca biunivocidade inter-egótica, fulcralmente suscitado pelo fascínio da beleza corpórea e movido pelo desejo concupiscente da pertença; — a FRATERNIDADE é, antes e pelo contrário, aquela sympathetic emotion, aquela primigénia, alterocêntrica e universalista pulsão do nosso pãyow [pathos] amorável e magnânimo que placentariamente sustenta, alimenta e modela uma cordial postura de fundo, marcada de afectuosa abertura e solícita disponibilidade em direcção ao «outro» e ao «totalmente outro»244 (o estrangeiro, o emigrado, o exilado, o desfigurado, o desconhecido, o abandonado, o desprezado, o perseguido, o excluído...), olhando-o e acolhendo-o de braços abertos como se ele já fosse «um dos nossos», «um dos de casa», gerado nas mesmas seminais entranhas, comendo do mesmo pão, bebendo do mesmo vinho e abrigado sob o mesmo tecto... Impulso autêntico, livre e desinteressado de amor ao próximo, encarnado mas não carnal, movimento generoso de filantropia, suscitado originalmente pela pura bondade, consubstanciado numa ética da justiça e da equidade e numa práxis universalista da virtude e do bem e na assunção autêntica do nosso modo de ser, de estar e de agir como serviço, comprometimento e dádiva... (cf. http://www.newadvent.org/summa/3.htm): «... caritas importat dilectionem Dei et proximi.» (quaest. 24, artic. 12); «... caritas, quae in cordibus nostris per spiritum sanctum diffunditur, facit nos liberos, quia ubi spiritus domini, ibi libertas...» (quaest. 44, artic. 1); «... caritatis actus non solum est dilectio, sed gaudium, pax, beneficentia» (quaest. 44, artic. 3). Para o texto latino da Summa Theologiae, ver: http://www.corpusthomisticum.org/iopera.html. 244 Cf. Emmanuel Lévinas: Totalidad e Infinito — Ensayo sobre la exterioridad, Salamanca, Ediciones Sígueme, 2002, especialmente o cap.º 3 – «El rostro y la exterioridad», pp. 201-261; cf. também o importante ensaio de Benedito Eliseu Leite Cintra: «Emmanuel Lévinas e a ideia do infinito», in Margem (revista da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), n.º 16 Dez/2002, pp. 107-117. 127 Fernando Paulo do Carmo Baptista Na FRATERNIDADE (com toda a sua teia de relações interpessoais, grupais e inter-grupais, desde a família e as comunidades naturais de pertença, às demais instituições e organizações sociais...) cabem sempre, portanto, as mais diversas formas e modos de expressão e manifestação: o amor a Deus e ao próximo, a concórdia, a harmonia, a ternura, o carinho, a caridade, a bondade, a solicitude, o cuidado, o aconselhamento sábio e prudente, a piedade (a humaníssima, sensibilíssima e comovedora pietas de Vergílio e de Séneca, mas também aquela abissal sabedoria que María Zambrano245 vê a guiar e a alumiar a razão criadora na plasmagem poética das mais íntimas pulsões da vida...), a compaixão, a benevolência, o perdão, a solidariedade, a interajuda, a reciprocidade, a compreensão, a tolerância... Em suma: na FRATERNIDADE, condensa-se uma ancestral e sábia mistura de sabedoria e de fé, de aceitação e de adesão, de convergência, desprendimento, disponibilidade, serenidade e paz, que envolve o homem por inteiro246. De tal maneira que esse envolvimento será tanto mais forte e tanto mais firme, consistente e constante, quanto mais amplo for o horizonte e o campo de partilha inter pares e quanto mais profundamente enraizado e ancorado se encontrar nos territórios da justiça, da verdade, do bem e do belo247, o mesmo será dizer, na esfera transcendental do “divino”, na plenitude do seu esplendor... Mas a existência de «fratres» e de «confratres», a existência de «irmãos» e de «irmãs», de «confrades» e de «consorores» ou «confreiras»248 muito dificilmente seria possível ou pensável fora da «matriz antrópica» (mater <> pater) que tem protagonizado o maravilhoso processo da fecundação, parturição, alimentação, 245 Carmen Revilla: Claves de la razón poética: María Zambrano, un pensamiento en el orden del tiempo, Madrid, Editorial Trotta, 1998, p. 117. 246 Cf. Antonio Calvo Orcal: artigo «Fraternidad», apud Mariano Moreno Villa (dir.): Diccionario de Pensamiento Contemporáneo, Madrid, 1997, pp. 577-582. 247 Cf. Platão, Aristóteles, Santo Agostinho, São Tomás: nas obras já citadas. 248 Que, quando autenticamente o são e na medida em que o são, são, quase sempre, originário fruto duma mesma instância progenitora, materno-paternal, filiadora, afectiva e simbólica; estou a pensar naturalmente no que tem sido até hoje, por enquanto e até ver, a “norma” ou “padrão” cultural, sociológico e axiológico das dinâmicas de reprodução familiar, educacional e cultural e da interacção «progenição <> descendência»... 128 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO protecção, educação e formação livre, responsável, crítica e criteriosa, plural e poiésica da vida humana, muito dificilmente seria possível ou pensável fora do contributo, a solo ou em simultâneo, de um par ou casal de corpos vivos que, numa práxis de amor paritário e paritante, bipolar e unificiente, garantem ao mundo a continuidade da espécie, através do milagre do nascimento de uma criança... E todas as crianças que se geram, nascem, evoluem e pervivem paritariamente a partir da mesma fonte, “madre” ou “placenta” genético-vital, afectiva e simbólico-cultural têm o nome de «filhos», porque a instância sua progenitora e filiadora249 tem sido uma figura feminina, uma femina ou fêmea, palavra que, etimologicamente, quer dizer «aquela que amamenta» e que, por isso mesmo, gera felicidade!... Pois bem: cabe esclarecer, a propósito, que os lexemas filho, filiar, filiação, fecundação, feto, feminino, femina, fêmea, feliz e felicidade, tal como fellare (latim: mamar, sugar), dh ru (sânscrito: dar a mamada), dêls (letão: filho), de par com vários outros vocábulos, têm como núcleo sémio-morfológico a mesma raiz indo-europeia dhē(i)- / dh -250 (evolucionada para fē-/ f -) que é portadora dos significados “arqueológicos” de «sugar, chupar, mamar, amamentar»... Assim, e em conformidade com esses significados inscritos na raiz dessas 249 Salvaguardadas a autenticidade própria de um estado embrionário e fetal e a normalidade de um processo de fecundação e de maiêuse [ma€eusiw] natural... 250 Raiz que (descrevendo, aqui, com mais pormenor...) entra, como acabámos de ver, na morfogénese de lexemas como: fêmea (em latim: femina, ou seja, aquela que amamenta), feminino, feto, fetal, fecundo, feno (= erva sagrada e seca, que serve de forragem ou alimento para o gado e que também é conhecida pelos nomes de sanfeno, fenacho, fenasco), fellare (latim: chupar, mamar), feliz (< latim: felix, -cis, fecundo, fértil, bem amamentado, feliz...), felicidade, yhlÆ (thele = mamilo), yhlãzv (thelazo = amamentar), yhlukÒw (thelykos: feminino), endotélio, epitélio, mesotélio, filho (< f lius, aquele que é amamentado), filiar, filiação, fidalgo, afilhado, dh ru (sânscrito: dar a mama, dar o seio), d l (lituânio: sanguessuga), dêls (letão: filho), d le (letão: veado de mama)... Todos estes lexemas têm como núcleo sémio-morfológico constitutivo a mesma e já referida raiz indo-europeia dhē(i)-/dh - (cf. The American Heritage Dictionary of The English Language, Boston / New York, Houghton Mifflin Company, 2000, 4.ª edição, 2000, por exemplo, na entrada «female», com o respectivo reenvio para o Appendix I.) que, com ampliamentos sufixais morfogénicos e evoluções fonéticas, tanto vocálicas como consonânticas, que já estão devidamente estudadas, está na origem de um importante conjunto lexical, dotado do mesmo e transversal “adn semântico”, portador dos significados primitivos de «sugar, chupar, mamar, amamentar»... 129 Fernando Paulo do Carmo Baptista palavras: femina é aquela que amamenta; filius, por sua vez, é aquele que suga no mamilo da mama e que, portanto, é amamentado e é feliz... Significa isto que o estatuto de «ser frater» («irmão»), deflui directamente do facto de «ser filius» («filho»), isto é, de ser «amamentado» biológica, afectiva e culturalmente pela mesma mãe, em princípio (ainda que nem sempre...), estreitamente coadjuvada pelo mesmo pai... O que equivale a dizer que a condição de «irmão» assenta numa «geminalidade» de natureza bio-ontológica identitária: irmão, proveniente do latim germanum significa isso mesmo: aquele que tem o mesmo gérmen (em latim: germen < gen + men251), ou seja, a mesma base genética e a mesma origem genésica, aquele que vem da mesma gente ou linhagem e que, por isso mesmo, é gémeo ou germano, hermano, irmão... É, na verdade, a ideia de alimento intra-uterino e extra-uterino (biológico, afectivo, educacional e cultural, partilhado de modo paritário e parificante, equitativo, livre e universalizado e sem qualquer espécie de discriminação...) que constitui a base antropológica, simbólica, semiogénica e axiológica da ideia e do valor de «FRATERNIDADE» e, com ela, da célebre, utópica, interactiva e dialéctica «trilogia» («Liberté, Egalité, Fraternité») consagrada no ideário da Revolução Francesa que, volvidos muito embora já mais de duzentos anos (1789-1799 —> 2017), continua ainda bem longe de se cumprir em aspectos essenciais... Mas esta radicação antropo-ontogenética252, semiogénica e culturomorfósica que, num mesmo abraço, nos faz «filhos» e nos faz «irmãos» e que levou à instituição, em todas as grandes civilizações e culturas da Humanidade, da dimensão antropológica e da categoria axiológica da “FRATERNIDADE”, pressupõe sempre a intervenção do humano corpo vivo que todos somos, ou seja, do unitário «corpo- 251 A evolução fonética «germen < gen + men» (substantivo da mesma família de gens, -tis [= gente, linhagem] e do verbo gigno, -is, -ere, genui, genitum [= gerar, dar à luz], entre tantos outros lexemas...) configura uma dissimilação do grupo nm para rm, tal como acontece em «carmen < can + men > car + men»; carmen > carme, canto, poema, pois a raiz é a mesma do verbo cano, -is-, -ere [= cantar]. 252 Sem esquecer as implicações filogenética e epigenética no processo evolutivo, adaptativo, metamorfósico e auto-inter-poiésico que, no fundo, configura a imparável dinâmica da antropogénese. 130 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO espírito»-«corpo-alma»-«corpo-mente» (body-mind) que, entre os Cristãos, tem como referente e símbolo maior o nascido, crucificado mas ressuscitado, o uno, incindível e glorioso «Corpo de Cristo»: Corpus Christi!... O que significa que todos nós, concidadãos que somos, constituímos uma «fraternidade de humanos corpos vivos conviventes» que cantam e dançam, que vivem saudavelmente a alegria e a festa, que repartem o pão e o vinho, que celebram a Natureza e a Divindade e cultivam o diálogo entre o sagrado e o profano, que sofrem e se emocionam, que meditam, que sonham e que rezam... É por tudo isso que todo aquele (seja ele quem for!...) que se compraz em reduzir à escravidão ou à escravatura esta maravilha que é o nosso divino-humano corpo vivo, em o agredir ou maltratar, sobretudo, na pessoa dos mais frágeis, dos mais vulneráveis e dos mais indefesos — as crianças, os jovens, as mulheres e os velhinhos... —, em o violar ou violentar, em o impedir de crescer e de se desenvolver em todas as suas potencialidades e faculdades, negando-lhe o pão, o afecto, a educação e a cultura, cavando o fosso cada vez maior entre a abundância e o esbanjamento, por um lado, e a fome e a miséria, pelo outro, entre o saber e a sabedoria, e a iliteracia e a ignorância, todo aquele que assim procede pratica a injustiça, nega a equidade, clausura a liberdade e, com elas, sepulta inexoravelmente a Fraternidade!... Numa palavra: ESSE QUE ASSIM É, ASSIM PENSA E ASSIM AGE NÃO É DIGNO DE SE CHAMAR «HOMEM» NEM «IRMÃO»!... Daí, o irrecusável apelo à parte melhor (i.e., à parte não “patológica”) do nosso pãyow (pathos), na polaridade da “passio” (paixão) e da “compassio” (compaixão)... b) Do ο («pathos») na constante dialéctica e dialogia entre “passio” [paixão] e “compassio” [compaixão]... 131 Fernando Paulo do Carmo Baptista É no ο [pathos]253 que reside, porventura, a dimensão mais singular e mais complexa da nossa condição humana que nele se institui, se constitui e se organiza e de que diuturna, multímoda e polissemicamente se alimenta, se configua e se revela: desde a escuta, a visão e a previsão, o cheiro, o tacto, o paladar e o saborear, à suspeição, ao pressentimento, ao agoiro, ao presságio e à premonição <> premunição... É no ο [pathos] que, a meu ver, radica a possibilidade primeira e última de toda a criatividade e de todo o pensar e agir humanos... para o bem e para o mal... Tudo irrompe, afinal, desse transracional e enigmático “território” do nosso ser, que se desdobra irruptiva e epifanicamente em alegria, em cântico, em amorável celebração e em festa, em angústia, em desespero, em sofrimento, em dor e em desgraça, em paciência, em esperança, em serenidade, em prudência e em sabedoria, mas também em inconsciência, em insensatez e em irresponsabilidade e, no limite, nos paradoxais, oximóricos e incontrolados turbilhões da desmedida loucura da ι [hybris] e da frieza letalmente mortífera (tantas vezes calculada e programada...) da violência e do próprio crime... É ele, ο [pathos], esse livre, desmedido e inclausurável oceano que (com a inesgotável νέ γ ια [energueia] ondulatória e translativa dos instintos latentes e impulsivos e das brusquidões reactivas e repentinas, da misteriosa movência das pulsões libidinais, oníricas, ilógicas, absurdas e metafísicas, tanto “divinas” como “demoníacas”...) constitui o universal transfundo e a úbere e possibilitante matriz genealógica, genológica e genotípica da “mecânica dos fluidos” psicosférica e, dentro dela, da semiósica “poliglotia” e intercomunicabilidade social... É dele que eclodem, em última instância, as brisas e maresias da lírica, as marés vivas e tensas do drama, as ousadas e argonáuticas gestas da epopeia, a inelutável, irreversível e patética fatalidade dos naufrágios da tragédia, mas é também em seu desconcertante, 253 Entendido na máxima tensão, latitude, amplitude, fundura, descensão e elevação e na corpóreo-anímica e contraditória abissalidade dos sentires e dos sentidos: psicopatia, apatia, dispatia, antipatia, eupatia, simpatia, empatia... Cf., com pontuais ajustamentos: Fernando Paulo Baptista: Tributo à Madre Língua, Coimbra, Pé de Página Editores, 2003, p. 53 e Nesta nossa doce Língua de Camões e de Aquilino, op. cit., pp. 319-320. 132 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO contraditório e dialéctico horizonte que desponta a “Estrela d’Alva” da Esperança e do Amor, inspiradoradoramente alumiante da Utopia > Eutopia e da Poiese de uma Humanidade Melhor... Assim, tendo motivadoramente presente na nossa memória poético-cultural e alegorético-simbólica o vergiliano e humaníssimo exemplo do «Pius Aeneas»254 e o camoniano épico-lírico e trágico “episódio” da «mísera e mesquinha / que despois de ser morta foi Rainha»255, cabe-nos reassumir, com serena e jubilosa esperança256, a consciência eclesial e pastoral de que «... onde for necessário, segundo as circunstâncias dos tempos e dos lugares, a Igreja pode e deve suscitar obras destinadas ao serviço de todos, principalmente dos pobres»257. 254 Nicholas Moseley, consagrado Professor da Yale University, apresenta o seguinte registo, a propósito da marca identitária da “pietas” que caracteriza a dimensão religiosa da “personalidade” de Eneias, no poema épico de que ele é o protagonista- herói: «... In the very beginning of his poem Vergil points out to us that the hero [Aeneas] is bearing his Gods to Latium, that he is a man insignis pietate, who is nevertheless harassed by the queen of the gods. (...) Moreover in the course of the twelve books of the Aeneid Vergil applies to Aeneas the epithet pius fifteen times in the narrative, has the other characters refer to him as pius, pietate insignis or some equivalent expression eight times, and finally has Aeneas speak of himelf twice as pius. So it is evident that the poet meant to impress the reader with this side of his hero’s character». (Cf. Nicholas Moseley no seu famoso artigo intitulado “Pius Aeneas”, apud The Classical Journal, vol. 20, nº. 7, Abril de 1925, p. 387). 255 O celebérrimo e sempre emocionante e incomparável “episódio” lírico-amoroso de Inês de Castro; reler Camões: Lus., III, 118 (segundo uma versão fac-similada da edição princeps de 1572 [p. 118], prefaciada pelo Prof. Doutor Vítor Aguiar e Silva): «Passada esta tão próspera vitoria, Tornado Afonso à Lusitana terra, A se lograr da paz com tanta glória Quanta soube ganhar na dura guerra, O caso triste, e dino da memória, Que do sepulcro os homens desenterra, Aconteceu da mísera e mesquinha Que despois de ser morta foi Rainha.» 256 Ver a Gaudium et Spes do Concílio Vaticano II, Coimbra, Gráfica de Coimbra, 1998, p. 230. 257 Concílio Vaticano II, Coimbra, Gráfica de Coimbra, 1998, p. 230. Para uma perspectiva “enciclopaidêutica” da História da Cultura e dos vários ramos do Saber 133 Fernando Paulo do Carmo Baptista Na verdade, «as excessivas desigualdades económicas e sociais, entre os membros ou os povos da única família humana, causam escândalo e são contrários à justiça social, à equidade, à dignidade da pessoa humana e à paz social e internacional»258. É por isso que o dedicado envolvimento na urgente “MISSÃO” superadora de tão degradado e tão desumano “estado de coisas”259 deve ter sempre no seu horizonte teleológico de concretização «A INSTAURAÇÃO DA FRATERNIDADE UNIVERSAL»260, sempre em perfeita sintonia com o “sentido identitário”, plasmado na incomparável “oração” que é o “PAI NOSSO”: NÓS, OS HUMANOS, locais e globais (incluindo os “filhos pródigos” de toda a origem e condição...), SOMOS FILHOS DE DEUS-PAI E IRMÃOS EM JESUS CRISTO!... c) Conclusão Considerando, em afectuosa e respeitosa sintonia com o Papa Francisco261, que a Misericórdia é «a arquitrave que suporta a vida da Igreja»; Considerando que a Misericórdia é «a força que tudo vence, enche o coração de amor e consola com o perdão»; na Idade Média e, mais especificamente, do que já era, então, o estado da Economia e da Sociedade e, no seu contexto, a “pobreza” (com a curiosa particularidade da terminologia catalogadora dos “pauperi”: pauper famelicus, pauper pannosus, pauper infirmus, pauper peregrinus, pauper verecundus, pauper Christi, pauper abiectus... ver a p. 265), o modo organizativo da “caritas” e dos cuidados de saúde, etc., considerar a iluminante e substanciosa obra organizada pelo saudoso e enorme Umberto Eco: Idade Média: Bárbaros, Cristãos e Muçulmanos, versão em pdf apud: Academia.edu (online). 258 Concílio Vaticano II, op. cit., p. 215. 259 Missão verdadeiramente dignificadora, parificadora [iso-poiésica] e teo-ascensiva [teo-anabática] da “condição humana”... 260 Ibidem, p. 185. 261 Ver Papa Francisco: O nome de Deus é Misericórdia (versão portuguesa já citada), pp. 126, 124, 103; considerar também, agora de modo englobante: Misericordiae Vultus — Bula de Proclamação do Jubileu Extraordinário da Misericórdia, 11 de Abril de 2015, apud: https://w2.vatican.va/content/francesco/pt.html 134 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO Considerando que a Misericórdia é «o acto último e supremo pelo qual Deus vem ao nosso encontro; é a lei fundamental que mora no coração de cada pessoa, quando vê com olhos sinceros o irmão que encontra no caminho da Vida (...) — caminho que une Deus e o Homem»; Considerando tudo isto e bem conscientes da nossa efemeridade, imperfeição e finitude existencial, partilhemos, como uma orientadora “bússola” do nosso quotidiano, o seguinte pensamento (ainda ele de Lucius Annaeus Seneca262...) tão carregado de lucífero e humaníssimo encantamento: «... Iam istum spiritum expuemus. Interim, dum trahimus, dum inter homines sumus, colamus humanitatem!...»263. Passo a traduzir: «... Dentro em breve, exalaremos o último suspiro. Mas enquanto nos arrastarmos, enquanto estivermos entre os humanos, cultivemos a humanidade!...». Finalmente, seguindo, uma vez mais, o avisado conselho do nosso Frater-Pater Franciscus, «nunca nos devemos esquecer das seguintes palavras de São João da Cruz»264: «NO OCASO DA VIDA, SEREMOS JULGADOS SOBRE O AMOR!...» Inspirados, portanto, pelo “Sopro” fecundante que paira por sobre as águas desta memorante celebração centenária, vamos, «magno cum jubilo» e animados de um fortíssimo sentido poiético e humanista, ajudar a rasgar as amplas avenidas que hão-de conduzir a Humanidade inteira à prometida e cantada «TERRA DA FRATERNIDADE» — DEMÉTER: TERRA-MÃE, TERRA-DE-IRMÃOS... — e à inadiável e progressiva instauração duma «ÉTICA DO AMOR COMUNITÁRIO», tal como a sonhou, 262 Retirado do seu De Ira, livro III, 5; correlacionar esta encantadora mensagem de humanismo com o emblemático verso 77 do Acto I do Heautontimoroumenos, de Terêncio: «Homo sum, humani nihil a me alienum puto» [«sou homem, nada do que é humano me é alheio»] (cf., supra, nota 236). 263 Cf.: http://www.thelatinlibrary.com/sen/sen.ira3.shtml 264 Papa Francisco: O nome de Deus é Misericórdia, op. cit., p. 103. 135 Fernando Paulo do Carmo Baptista por exemplo, Ernst Bloch265... Ética «cordial e amorável», sem a qual — importa sublinhá-lo bem!... —, não haverá, nem fraternidade, nem igualdade, nem liberdade!... Da minha parte e para finalizar, resta-me pedir-Vos que, à maneira de um fraterno, frontal e mobilizador “manifesto órfico”, me acompanheis na “ecuménica” proclamação, plasmada por Miguel Torga no seu arrebatador poema intitulado “UNIVERSALIDADE”266: «Aqui declaro que não tem fronteiras. Filho da sua pátria e do seu povo, A mensagem que traz é um grito novo, Um metro de medir coisas inteiras. Redonda e quente como um grande abraço De pólo a pólo, a sua humanidade, Tendo raízes e localidade, É um sonho aberto que fugiu do laço. Vento da primavera que semeia Nas montanhas, nos campos e na areia A mesma lúdica semente, Se parasse de medo no caminho, Também parava a vela do moinho Que mói depois o pão de toda a gente.» 265 Só através da instauração duma ética de natureza «cordial» e «amorável» e de dimensão verdadeiramente universal se poderá promover a eliminação de toda a espécie de miséria e de servidão que vêm negando, humilhantemente, a humanitas da pessoa humana, ou seja, a sua dignidade e sublimidade intranscendíveis. Cf. Francisco Serra: História, política y derecho en Ernst Bloch, Madrid, Editorial Trotta, 1998, pp. 53, 161, 218. 266 Miguel Torga: Poesia Completa («Nihil Sibi»: poema «UNIVERSALIDADE»), Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2000, p. 298. 136 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Para além da bibliografia citada nas notas de rodapé, considerar, do campo da Dicionarística com preocupação etimológica, muito especialmente as seguintes obras: • BAILLY, A.: Dictionnaire Grec Français, Paris, Hachette, 1984.
 • BARNHART, Robert K. (edit.): Chambers Dictionary of Etymology, Edinburg / New York, Chambers Harrap Publishers, 2001.
 • CHANTRAINE, Pierre: Dictionnaire Étymologique de la Langue Grecque – Histoire des Mots, Paris, Librairie C. Klincksieck, 1999.
 • COROMINAS, Joan, con la colaboración de José Antonio Pascual: Diccionário Crítico Etimológico Castelhano e Hispânica, Madrid, Gredos Editorial, 6 vols, 1991.
 • D’HAUTERIVE, R. Grandsaignes: Dictionnaire des Racines des Langues Européennes, Paris, Librairie Larousse, 1994. • ERNOUT, Alfred et Meillett, Antoine: Dictionnaire Etymologique de La Langue Latine — Histoire des mots, Paris, Librairie C. Klincksieck, 1967.
 • HARPER, Douglas: Online Etymology Dictionary (http://www.etymonline.com) • HOAD, T. F. (edit.): The Concise Oxford Dictionary of English Etymology, Oxford, Oxford University Press, 2003. • HOUAISS, Antônio, VILLAR, Salles e FRANCO, Mello (dir.): Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Lisboa, Temas & Debates, 2005.
 • MALLORY, J. P. and ADAMS, D. Q.: The Oxford Introduction to Proto-Indo- European and the Proto-Indo-European World, Oxford – New York, Oxford University Press, 2009. • MILLER, Gary: Latin Suffixal Derivatives in English and their Indo- European Ancestry, Oxford / New York, Oxford University Press, 2006. • POKORNY, Julius: Indogermanisches etymologisches Wörterbuch (IEW): http://www.utexas.edu/cola/centers/lrc/ielex/PokornyMaster-R.html
 • RENDICH, Franco: Dizionario etimológico comparato delle lingue classiche indoeuropee, Roma, Palombi Editori, 2010. • ROBERTS, Edward A. / Pastor, Bárbara: Diccionario etimológico indoeuropeo de la lengua española, Madrid, Alianza Editorial, 1997.
 • ROMIZI, Renato: Greco Antico – Vocabolario Greco Italiano Etimologico e Ragionato, Bologna, Zanichelli, 2006.
 • SEGURA, Santiago Munguía: Diccionario Etimológico de Medecina, Bilbao, Universidad de Deusto, 2004.
 137 Fernando Paulo do Carmo Baptista • SEGURA, Santiago Munguía: Diccionario por raíces del latín y de las voces derivadas, Bilbao, Universidad de Deusto, 2006.
 • SEGURA, Santiago Munguía: Nuevo diccionario etimológico Latín – Español y de las voces derivadas, Bilbao, Universidad de Deusto, 2001.
 • WATKINS, Calvert: The American Heritage – Dictionary of Indo-European 2 Roots, Boston / New York, Houghton Mifllin Company, 2000. 138 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO 4. A “CENTELHA” (‘SCINTILLA’) DE ZEUS NA PALAVRA ‘TEORIA’(*) (*) NOTA PRÉVIA: O presente ensaio resulta da reformulação de uma comunicação apresentada no Colóquio sobre “O Trabalho da Teoria”, ocorrido na Universidade dos Açores, em 15 e 16 de Novembro de 2007, em homenagem ao Prof. Doutor Vítor Manuel de Aguiar e Silva. Cabe referir que a “divisa” desta Universidade, consignada na versão dos seus primeiros Estatutos, era a seguinte: «Sicut aurora scientia lucet, sicut aurora humanitates lucent, sicut aurora theoria lucet». Foi pena que o tão expressivo e inspirador símile da “Aurora” tenha passado a confinar-se à «theoria»: «Sicut Aurora Theoria Lucet» (cf. http://novoportal.uac.pt/). Pensando sobretudo nos Estudantes, seja-me permitido chamar a atenção para o específico interesse de que se poderão revestir as sistemáticas notas de rodapé, a nível lexicológico, metalínguístico, metaconceptual, cultural e pedagógico, para além dos registos multidisciplinares e mesmo interdisciplinares, dos efeitos estereofónicos e das ressonâncias polifónicas de natureza informativa diversa de que um texto é feito... 139 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO — PARA UMA FUNDAMENTAÇÃO DE BASE FILOLÓGICA267, ANTROPOLÓGICO-CULTURAL E FILOSÓFICO-EPISTEMOLÓGICA DO CONCEITO DE “TEORIA” — «Sapientis oculi in capite eius.» (Ecclesiastes: 2, 14), «Nós somos a “luz” que vê a luz que vemos.» (Fernando Paulo Baptista) 267 A opção aqui recorrentemente assumida pelo estudo analítico (feito por imperativa necessidade de fundamentação, dilucidação e rigor conceptual e hermenêutico...) de raízes constitutivas de lexemas nucleares que integram o léxico da nossa língua (plano da langue) e o nosso vocabulário concreto de intervenientes activos (plano da parole) nos mais elaborados processos de comunicação e de semiose linguística, literária, científica, filosófica, cultural e artística em geral decorre da consciência de duas fundamentais ordens de razões: a) por um lado, o reconhecimento provado e comprovado de que os lexemas/vocábulos dotados de maior potencial significante, interpretante (recepção interpretativo-compreensiva, hermenêutica e estésica [a‡syhsiw (aisthesis)]: escuta e leitura) e sofo-poiésico-expressante (emissão produtora e criativa: fala e escrita mais ou menos elaboradas e, sobretudo, qualitativamente enquadráveis nos modos e nos padrões próprios da arte poético-literária [po€hsiw: poiesis]), da ciência e da sabedoria, são dominantemente de matriz indo-europeia e, mais directamente, de proveniência e conformação greco-latina; b) pelo outro lado, o insuperado facto de a capacidade da palavra não ter ainda uma verdadeira alternativa antrópica para tudo quanto seja a imaginação e a criatividade sapiencial e artística, o engendramento, a construção e a formalização dos diversos conteúdos de «rêverie», paixão, vivência, memória, experiência, experimentação e aprendizagem humana integrada (afectiva, relacional, comunicacional, cognitiva e metacognitiva...), a ideação, visionamento, visualização, projecção e conceptualização rigorosa em todas as áreas do conhecimento e da investigação científica, em suma, a arquitectónica e a orgânica dos saberes, bem como a sua modelação e orquestração sistematizadora em discurso, com as específicas estratégias subjacentes aos diferentes actos, modos e planos de enunciação e textualização... Por tudo isso, se pergunta: não deverá ser esse o ciclópico e morfogénico labor da palavra (aos níveis atómico, sub-atómico, molecular e tecidular), a ser conduzido em simbiótica interacção com o exigente, rigoroso e iluminante trabalho da teoria?... Será possível uma teorização rigorosa explícita, fora do rigor explicitante da palavra?... 141 Fernando Paulo do Carmo Baptista Se pensarmos bem, não será difícil chegar à conclusão de que é a ideia de “luz”268, com o seu inconfundível e transcendental 268 O verbo latino luceo, -es, -ere apresenta como sua constitutiva base morfológica a raiz indo-europeia — leuk- / luk- / louk- —, presente no substantivo «luz» [< do latim: luce(m)] e cujo “adn semântico” remete (quer por via literal, quer por via tropológica) para as ideias de «luz», «brilho», «esplendor», «clareza», «visibilidade», «inteligibilidade»... Esta lexicogenicamente fecundíssima raiz está na origem de um vasto conjunto de lexemas (ver a entrada «lu(c)-» no Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa) que integram o léxicon ou léxico (repertório ou inventário total das palavras...) de diferentes línguas europeias. Assim, por exemplo, EM ALEMÃO ACTUAL: licht, lichten, lichtung, leuchte, leuchten; EM VELHO ALTO ALEMÃO: lioht, liuhten; EM GERMÂNICO ANTIGO: *leukhtam, *linkhtijan; EM GÓTICO: liuhtjan, leihts); EM VELHO FRISÃO: liacht; EM INGLÊS: light (proveniente do «old english»: lehot > leht), lighten (proveniente do «old english»: lihtan), limn, limnen, lumen, luminary, luminous; illuminate, phillumenist; EM IRLANDÊS ANTIGO: loche, luchair; EM VELHO SAXÃO: lioth; EM GALÊS: llug (= brilho); EM SUECO: lätt; EM LITUANO: laukas (= pálido, sem brilho); EM ARMÊNIO: lois, lusin (= lua); EM HITITA: lukezi; EM SÂNSCRITO: lócate, «olhar» (cf. Robert K. Barnhart [ed.]: Chambers Dictionary of Etymology, Edinburgh, Chambers Harrap Publishers, 2001, entrada «light1»); EM GREGO (cf. Pierre Chantraine: Dictionnaire étymologique de la langue grecque: histoire des mots, Paris, Klincksieck, 1999 e Anatole Bailly: Dictionnaire Grec Français, Paris, Hachette, 1984, nas entradas respectivas: leukÒw, -Æ, -Òn (= brilhante, branco; deste adjectivo leukÒw, são oriundas, entre tantas outras, leucemia, leucócito, leucoma...), leÊssv (= ver, contemplar); luxn€w, -€dow (= pedra preciosa que brilha na escuridão), luxne›on (= lâmpada, candeeiro), luxn€a (= candeeiro), lÊxnow (= lâmpada); dois lexemas que suscitam reservas quanto a esta sua radicação etimológica: lÊkow (= lobo; lat: lupus) e lÊgj (= lince, lobo-cerval, gato-bravo, felídeo dotado de um olhar invulgarmente penetrante e vivo; de onde, a expressão: «ter olhos de línce»; é de notar que os animais em referência têm como característica comum, para além da rapacidade, o olhar «fosforescente» e penetrante, próprio de uma habituação sistemática à escuridão da noite e dos covis...); EM LATIM: alluceo, allucinatio, diluceo, diluculum, eluceo, elucubro, illuceo, lucens, luceo, lucerna, lucernarium, lucesco, lucidus, lucifer, lucifugus, Lucinia, lucubratio, lucubro, luculentus, luculus, lucus, lumen, luna, lux, perluceo, praeluceo, reluceo, transluceo, translucidus...(cf. Santiago Segura Munguía: Nuevo diccionario etimológico Latín – Español y de las voces derivadas, Bilbao, Universidad de Deusto, 2001, entrada «lux»); EM PORTUGUÊS (com evidente isomorfia, relativamente aos correspondentes lexemas da generalidade das línguas românicas e, mesmo, das não românicas): alucinante, alucinar, alucinatório, alucinogénio, alumiar, deslumbramento, deslumbrar, dilucidar, dilucular, dilúculo, elucidar, elucidário, elucubrar, filumenismo, iluminado, iluminar, iluminismo, ilustrar, ilustre, lua, luar, luarento, lucarna, lucente, lucerna, lucidez, lúcido, Lúcifer, luciferino, lucífero, lucilante, lucilar, lucina, lucubração, lucubrar, luculento, lume, lúmen, luminar, luminária, luminescência, luminosidade, luminoso, luminotecnia, luna, lunação, lunar, lunático, 142 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO simbolismo, que aparece a inspirar e a iluminar o destino, o desígnio e o horizonte académico e social de uma instituição com a razão de ser, a natureza e a teleologia de uma Universidade, ou seja, de que é a ideia de “luz” que alimenta o sonho e faz mover a vida e a globalidade da sua missão arquitectora, estruturante e dinamizadora ao nível da investigação, da criação, da comunicação e da divulgação do conhecimento, da ciência, do saber, da cultura, da arte e da acção pedagógica e formadora, tanto na tendencialmente mais cartesiana e mais metrológica, mais descritivo-explicativa, mais experimental, mais experiencial e mais aplicativa, mais material, mais tecnúrgica269 e mais operativa área das Ciências, das Tecnologias e da Tecnociência, como na propensivamente mais fundadora, mais modeladora, mais paidêutica, mais sófica, mais imaterial, mais pascaliana e mais aisthésico-poiésica270 área das Humanidades, das Belas Letras e das Belas Artes... Foi, pois, sob o signo da “luz”, que se concebeu, implantou e radicou tão vasto, tão decisivo e tão magno “Projecto Investigativo e Formativo”, protagonizado por uma Academia Universitária: luz auroral da vitalidade energética e procriadora, da alegria e da esperança que tudo possibilita, ou não fosse a Aurora271 «a mais bela de todas as belezas» [Rig-Veda: I, 113], «pulchra ut luna, electa ut sol» [Bíblia: Cântico dos Cânticos: VI, 9; Provérbios: 4, Ben Sira: 24, 32, 47]!... Mas também luz merídia da luminosidade irradiante, alumiante e elucidante, da plenitude clarificadora e coalescente, da sof€a [sophia] e da svfrosÊnh [sofrosyne] superadora, prudencial, sensata, luneta, lustral, lustre, lustro, luz, luzeiro, luzerna, luzidio, luzilume, luzir, reluzir, sublunar, translúcido... 269 Digo tecnúrgica(o), tecnurgia ou tecnurgo, do mesmo modo que se diz cirurgia, cirúrgico e cirurgo (ou também quirurgo), demiurgia, demiúrgico e demiurgo, dramaturgia, dramatúrgico e dramaturgo, liturgia, litúrgico e liturgo, metalurgia, metalúrgico e metalurgo, taumaturgia, taumatúrgico e taumaturgo, siderurgia, siderúrgico e siderurgo, teurgia, teúrgico e teurgo... 270 De a‡syhsiw [aisthesis] e po€hsiw [poiesis]: faculdade da sensibilidade inteligente (sensibilidade, em geral, e sensibilidade artística, em especial) e criatividade (criatividade artística, em geral, e criatividade poético-literária, em particular). 271 Filha do Céu, Deusa da luz primigénia, Deusa do sorriso... Cf. J.P. Mallory and D.Q. Adams: The Oxford Introduction to Proto-Indo-European and the Proto-Indo- European World, Oxford, Oxford University Press, 2009, p. 409: Aurōra em latim; Aušrine em lituano; Ἕως em grego; Uṣás em sânscrito... 143 Fernando Paulo do Carmo Baptista vertical e transparente e da fecundação seminal, almante, hominescente272, metamorfósica e cosmogónica... Porque a verdade é esta: sem luz, andaríamos todos às escuras, sejam quais forem os sentidos (literais ou tropológicos...) em que a “escuridão” possa ser pensada... Lá diz, bem certeira, a sabedoria do nosso Povo: quem não sabe é como quem não vê!... Mas, se não sabe e não vê... é, seguramente, porque lhe falta a luz... A “CENTELHA” [‘SCINTILLA’] DE ZEUS... No seu conhecido ensaio intitulado «Elogio da Teoria»273, Hans-Georg Gadamer, no contexto do “andamento” discursivo em que protrepticamente274 evoca os específicos contributos reflexivos de 272 Sobre o termo e o conceito de “hominescência”, ver Michel Serres: Hominescence: Paris, Le Pommier, 2001 (também disponível na tradução portuguesa das Edições Piaget [Michel Serres: Hominescência, Lisboa, Edições Piaget, 2004, pp. 20-23]) e Fernando Paulo Baptista: Polifonia, Poiese & Antropopoiese — Para uma Sinfónica do Humano, Lisboa, Edições Piaget, 2006, pp. 63-64. 273 Cf. Hans-Georg Gadamer: Elogio da Teoria, Lisboa, Edições 70, 2001, pp. 23 ss. Mas Gadamer não se limita a evocar o legado reflexivo plasmado por Platão e por Aristóteles nos respectivos discursos em torno do tema da “teoria”: assume a sua identificação com a posição de fundo, com a posição essencial, por eles expressa: «Defendo a opinião de que a teoria, a atitude teórica, é também um comportamento fundamental do homem» (p. 66). E, de seguida, transforma essa opinião em “tese”: «Eis a minha tese: a teoria é um datum antropológico tão originário como o comportamento de poder prático e político» (...) «é uma possibilidade humana fundamental», sendo importante estabelecer um equilíbrio estável entre estas «duas forças do homem». 274 Advérbio derivado do adjectivo protréptico, por sua vez, proveniente do grego protreptikÒw, -Æ, -Òn (< prÒ [= para a frente e em favor de] + tr°ptv [= dirigir, direccionar, voltar, virar, fazer evoluir em determinado sentido, transformar..., sendo de salientar que este verbo tem a mesma raiz — trep- / trop- — que está presente em lexemas como trópico, tropo, tropismo, troféu, raiz detentora do mesmo “adn semântico” que transporta em si as ideias de «movimento direccionado», «mudança», «revolução»...]), com o significado de «ser capaz de levar por diante, de arrastar consigo, de mobilizar» e, portanto, «ser persuasivo, exortativo, mobilizador». Não é outro o sentido do ProtreptikÒw, de Aristóteles, obra de inspiração platónica (Eutidemo) em favor da vida contemplativa (yevr€a), como fundamento da governação política e como condição da verdadeira felicidade e em favor da 144 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO Sócrates, Platão e Aristóteles sobre o tema, diz-nos, por um lado, que, no seu mais íntimo fundamento, o homem é um «ser teórico» e, pelo outro, que é ao nível da «pura teoria» que se situa a expressão mais elevada da sua felicidade, ao passo que os empíricos e os pragmáticos vivem num mundo de sombras, em natural conformidade, portanto, com a sua condição de subterrâneos e agrilhoados habitantes da caverna... E é essa, a meu ver, a fundamental “lição” que ressalta da famosa alegoria platoniana (cf. Platão: A República, VII, 514a ss275...): o caminho para a mais alta inteligibilidade de tudo é o caminho da luz, ou seja, o caminho das clareiras abertas pelo fulgor da “teoria”. Afigura-se-me, em razão disso, para mais num ensaio que, no fundo, se propõe uma reflexão demonstrativa da importância da teoria no Ensino Superior, ser pertinente questionar: que relação é que existirá entre a ideia de “TEORIA” e a ideia de “LUZ”?... Ou talvez melhor dito: entre as ideias de “LUZ”, de “TEORIA” e de “INTELECÇÃO / INTELIGIBILIDADE”?... Tendo em vista a fundamentação de uma resposta clarificadora, cumpre, desde já, sublinhar que a ideia de “teoria” (em grego: α [theoria]) mantém estreitas conexões culturais e directas implicações de natureza semântica (onde avulta inequivocamente uma forte relação contiguitária ou metonímica...) com as ideias de “divindade” e de “luz”276, sabendo-se como se sabe (por exemplo, através da palavra autorizada do nosso Luís de Camões, em amplificante e odisseica valorização e dignificação (por influência de Isócrates) de uma retórica filosófica (anti-sofística); ou, então, o ProtreptikÒw prÚw ÜEllenaw [Exortação aos Gregos], de Clemente de Alexandria (nome por que se celebrizou Tito Flávio Clemente, nascido, em Atenas, por volta de 150 e falecido em 215), primeiro doutor da Igreja e um dos mais famosos apologistas da doutrina cristã. 275 Cf. Platão: A República, VII, 514a ss, na tradução de Maria Helena da Rocha Pereira, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 92001, pp. 315 ss. 276 YeÒw (ZeÊw [< Zeus < *dyew+s], Juppiter [< *dyews + piter < dyews + pater], deus, diva, devah (= deus(a), em sânscrito), dies [< *dyew+es / diyew+es]), yeÒw (= deus, criador e senhor da luz); ZeÊw (= Zeus, criador e senhor da luz); Juppiter (= deus pai, criador e senhor da luz); dies (= dia, a fase luminosa do dia solar, por oposição à noite); fãow, fãeow > fãouw // > f«w, fvtÒw (= a luz cósmica), lexemas da mesma família do verbo fa€nv (= fazer brilhar, fazer ver, tornar visível, fazer (a)parecer). 145 Fernando Paulo do Carmo Baptista convergência com Homero277...) que os habitantes do «Olimpo278 luminoso», «os eternos moradores do luzente, estelífero pólo e claro assento»... são «deuses». Por outro lado, dos estudos de especialidade levados a cabo no âmbito do indo-europeu e projectados e sintetizados nas “entradas” respectivas dos mais credenciados dicionários (etimológicos e outros) da língua grega, da língua latina e do próprio sânscrito279, é-nos dado 277 Cf. Camões: Os Lusíadas, I, 20-24; cf., igualmente, Homero: Odisseia, VI, 41-47, na tradução de Frederico Lourenço, Lisboa, Livros Cotovia, 2003, p. 107: «Assim falando, partiu Atena, a deusa de olhos garços, em direcção ao Olimpo, onde dizem ficar a morada eterna dos deuses: não é abalada pelos ventos, nem molhada pela chuva, nem sobre ela cai neve. Mas o ar estende-se límpido, sem nuvens; por cima paira uma luminosa brancura. Aí se aprazem os deuses bem-aventurados, dia após dia» (os itálicos são meus). 278 Embora sob reserva, face ao geral silêncio dos etimologistas, não me parece desprovida de sentido nem morfologicamente desconforme a conjectura, por mim aqui avançada, de que o nome próprio «Olimpo» (em grego: λ ο ) se tenha formado com base na raiz lymp- / lamp-, com a prótese do o- inicial e o sufixo nominal -os [Olimpo < o + lymp- + -os], tal como acontece com o substantivo νο α, -α ο , [> o + noma, -atos], homólogo do substantivo latino nomen, -minis, do sânscrito nama, do gótico namo e do inglês name (entre outras línguas) que, como se vê, não apresentam qualquer prótese], sendo que o seu “adn semântico” remeteria, então, para as ideias de «luz», «fogo», «brilho», «fulgor», «transparência», «translucidez»; esta raiz seria, assim, aquela mesma raiz que está presente em lexemas como linfa (< lympha [com a variante poética: nympha] / lumpa: água pura e translúcida, água límpida), limpar, limpidez, límpido, limpo... (variante lymp- / lump- da raiz), alampar, alampado, eclampsia, lampa, lâmpada, lampadário, (re)lampejar, lampejo, lampião, lampirídeo, lampiro, lampo, lanterna (< lampterna), pirilampo, relâmpado / relâmpago... (variante lamp- da raiz), lexemas, todos eles, atravessados pelos traços semânticos (literais, metafóricos, metonímicos, simbólicos...) que remetem para as ideias de «luz» e de «brilho», acabadas de referir... 279 Considerar, nomeadamente, nas entradas respectivas: Alfred Ernout / Antoine Meillet: Dictionnaire étymologique de la langue latine: histoire des mots, Paris, Klincksieck, 42001; Pierre Chantraine: Dictionnaire étymologique de la langue grecque: histoire des mots, Paris, Klincksieck, 1999; Robert Grandsaignes d’ Hauterive: Dictionnaire des racines des langues européennes, Paris, Larousse, 1994 (ed. facs.); Edward A. Roberts e Bárbara Pastor: Diccionario etimológico indoeuropeo de la lengua española, Madrid, Alianza Editorial, 1997; Julius Pokorny: Indogermanisches Etymologisches Wörterbuch, 2 vols., Tübingen, Francke A. Verlag, 2005; Joan Corominas e José A. Pascoal: Diccionario Crítico Etimológico Castellano e Hispánico, Madrid, Editorial Gredos, 1991-1997, 5 vols; José Maria Quintana Cabanas: Raíces Griegas del Léxico Castellano, Científico y Médico, Madrid, Editorial DYKINSON, 2006; Gianluca Bocchi e Mauro Ceruti (a cura di): Le 146 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO saber que os nomes Zeus, Júpiter e Deus têm inscrito na sua raiz — *dyew- / diw- / dyu-/ deyw-o-280 — o mesmo “adn semântico” presente na raiz da palavra dies, diei (o dia, a luz solar, o céu luminoso), a convocar, em constitutiva identidade, ideias como as de luz, brilho, luminosidade, claridade e, por via tropológica, as de lucidez, clareza, clarificação, esclarecimento, inteligibilidade281... radici prime dell’Europa. Gli intrecci genetici, linguistici, storici, Milano, Bruno Mondadori, 2001; de Émile Benveniste: Le vocabulaire des institutions indo- européennes (vols. 1 e 2), Paris, Les Éditions de Minuit, 1969; Origines de la formation des noms en indo-européen, Paris, Éditions Adrien Maisonneuve, 1984; Francisco Villar: Los Indoeuropeos y los Orígenes de Europa — Lenguaje e Historia, Madrid, Gredos, 21996; Philip Baldi: The Foundations of Latin, Berlin / New York, Mouton de Gruyter, 2002; A. Meillet et J. Vendryes: Traité de Grammaire Comparée des Langues Classiques, Paris, Librairie Ancienne Honoré Champion, 31963; Andrew L. Sihler: New Comparative Grammar of Greek and Latin, New York / Oxford, Oxford University Press, 1995; J.P. Mallory and D.Q. Adams: The Oxford Introduction to Proto-Indo-European and the Proto-Indo-European World, Oxford, Oxford University Press, 2009, pp. 124, 129, 300, 301, 303, 305, 408-409, 427, 428. http://www.utexas.edu/cola/centers/lrc/index.html. 280 Cf. J.P. Mallory and D.Q. Adams: The Oxford Introduction to Proto-Indo- European and the Proto-Indo-European World, op. cit., pp. 124, 129, 300, 301, 303, 305, 408, 427, 428; Andrew L. Sihler, op. cit., pp. 337-339, §§ 325-339; A. Meillet et J. Vendryes, op. cit., pp. 485-486, §729; Alfred Ernout / Antoine Meillet, op. cit., na entrada «dies». 281 Daí, a radicação na palavra e na ideia de «luz», de um movimento como o do «Iluminismo», também dito «Época das Luzes» ou da «Ilustração» ou, como se diz em inglês, «Age of Enlightenment» [lit.: idade do esclarecimento ou da iluminação; «século das luzes»] ou, em alemão, «Zeitalter der Aufklärung» que, à letra, significa «tempo, idade ou era do esclarecimento», ou seja, a época em que, como é sabido, todo o dinamismo do pensamento e da cultura está nuclearmente marcado pelo “espírito geométrico”, pela fusão de intelectualismo e empirismo, pelo rigor do método e o sentido da experiência e da experimentação, em suma, pela afirmação optimista, universalista, libertadora, harmonizadora, explicativa, legitimante e reguladora da dimensão da racionalidade (que é o Sol que, com a sua coroa de raios luminosos, dissipa, progressiva e superadoramente, o negrume de todas as nuvens e a escuridão de todas as trevas: o erro, a ignorância, a estupidez, a má-fé...), tanto no mundo da natureza como no mundo do homem, tal como transparece do próprio título daquela que é seguramente a mais emblemática obra dessa época: a Crítica da Razão Pura, de Immanuel Kant. Para uma perspectiva mais desenvolvida do que o breve registo aqui consignado, ver, de Manuel Antunes, o importante artigo «Iluminismo», in Enciclopédia Verbo Luso-Brasileira de Cultura, Edição Século XXI, Lisboa / São Paulo, Editorial Verbo, 2000, volume 15, na entrada respectiva, pp. 482-492; ver também, de Michael C. Carhart, o artigo «Enlightenment», apud Maryanne Cline 147 Fernando Paulo do Carmo Baptista Não é, pois, sem fundamento o facto de as narrativas da Mitologia282 atribuírem a Zeus e a Júpiter283 os epítetos, entre outros, de «deuses da luz e do céu luminoso», «senhores do raio e do trovão», «seres imortais e supremos que governam o céu estrelado», em flagrante contraposição com a condição dos humanos, dos homines284, dos humiles (porque nascidos da terra, do húmus...), ou seja, dos mortais de barro adâmico que se arrastam, enceguecidos285, na cerrada e labiríntica escuridão da embrutecedora e fatídica caverna... Melhor se entenderá, assim, a relevância do significado de contemplatio que acabou por se conferir, com Platão, à palavra α [theoria], a remeter, portanto, para o ideal de uma vida direccionada para a contemplação do “Bem” e do “Belo”286 (valores cimeiros da Horowitz (ed.): New Dictionary of the History of Ideas, Thomson Gale, New York – London, 2005, volume 2, na entrada respectiva, pp. 673-676. 282 Ver, por todos, Pierre Grimal: Dicionário de Mitologia Grega e Romana, Lisboa, Difel, 1992. 283 Em grego: α ; em latim: J p ter (< Dj + P ter); em ilírico: Dei- Pátrous; em sânscrito: Dyáus Pit (cf. J.P. Mallory and D.Q. Adams: op. cit., p. 409 e Andrew L. Sihler: ibidem, 339, § 327). 284 Cf. Alfred Ernout / Antoine Meillet: op. cit. (ver, supra, nota 12), na entrada «homo, -inis». 285 Estado que não deixa de convocar, aqui, «a epidemia geral de cegueira branca» a que alude o comissário de polícia em o Ensaio sobre a Lucidez (cf. José Saramago: Ensaio sobre a Lucidez, Lisboa, Editorial Caminho, 2004, p. 186) e, mais desenvolvidamente, a mensagem de fundo do Ensaio sobre a Cegueira (cf. José Saramago: Ensaio sobre a Cegueira, Lisboa, Editorial Caminho, 1995), mediada pela mulher do médico: «... o mundo está cheio de cegos vivos (...) E agora morreremos também porque estamos cegos, quero dizer, morreremos de cegueira e de cancro, de cegueira e de tuberculose, de cegueira e de sida, de cegueira e de enfarte, as doenças poderão ser diferentes de pessoa para pessoa, mas o que verdadeiramente agora nos está a matar é a cegueira, Não somos imortais, não podemos escapar à morte, mas ao menos devíamos não ser cegos, [p. 282]...» (...) «cegos estamos nós todos» [p. 306] (...) «Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não vêem. [p. 310]». 286 Cf. Platão: A República (540a-c), na edição e na tradução já citadas (ver, supra, nota 8): «Quando tiverem cinquenta anos, os que sobreviverem e se tiverem evidenciado, em tudo e de toda a maneira, no trabalho e na ciência, deverão ser já levados até ao limite, e forçados a inclinar a luz radiosa da alma para a contemplação do ser que dá luz a todas as coisas [genomen«n d¢ penthkontout«n toËw diasv ntaw ka riste santaw pãnta pãnt n rgoiw t ka pistÆmaiw prÚw t°low dh ékt°on, ka‹ énagkãsteon énakl€nantaw tØn t w cux w aÈgØn e w aÈtÚ épobl°cai tÚ pçsi f«w par°xon]. Depois de terem visto o bem em si, usá-lo-ão 148 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO escala axiológica287, consonantes com a essência do divino...) como inderrogável condição do próprio acesso e ascenso à verdadeira ο α [sophia]288, ou para a postura de quem observa, examina e questiona, de como paradigma, para ordenar a cidade, os particulares e a si mesmos, cada um por sua vez, para o resto da vida, mas consagrando a maior parte dela à filosofia; porém, quando chegar a vez deles, aguentarão os embates da política, e cada um deles assumirá a chefia do governo, por amor à cidade, fazendo assim, não porque é bonito, mas porque é necessário. Depois de teram ensinado continuamente outros assim, para serem como eles, e de os terem deixado como guardiões da cidade, na vez deles, retirar-se-ão para habitar nas Ilhas dos Bem-Aventurados. A cidade erigir-lhes-á monumentos e [ofertar-lhes-á] sacrifícios públicos, na qualidade de divindades, se a Pítia o autorizar; caso contrário, [na qualidade de] bem-aventurados e divinos». Cf. ainda: Teeteto (173c-175d) e Simpósio (210b-212a). De notar, no excerto acabado de reproduzir intencionalmente em língua grega, a presença dos dois substantivos que exprimem a ideia de luz: aÈgÆ [= luz brilhante, luz que permite ver bem; da mesma família do verbo aÈgãzv = iluminar, ver claramente] (tØn t w cux w aÈgØn) e f«w [= a luz cósmica que vem da esfera da divindade] (e w aÈtÚ épobl°cai tÚ pçsi f«w par°xon). Para uma perspectiva articuladora, já «clássica», dos valores do Bem, da Verdade e do Belo com as dimensões do humano e do divino, ver o sempre «actual» Werner Jaeger: Paideia: los ideales de la cultura griega, México – Buenos Aires, Fondo de Cultura Económica, 21962, libro tercero: «En busca del centro divino», pp. 371-778; considerar, também, Jacques Brunschwig e Geoffrey Lloyd (dir.): El saber griego — Diccionario crítico (com um prefácio de Michel Serres), Madrid, Akal Ediciones, 2000; Maria Helena da Rocha Pereira: Estudos de História da Cultura Clássica — I volume / Cultura Grega, Lisboa, Fundação Calouste Gulkbenkian, 8 1998; Idem: Hélade — Antologia da Cultura Grega, Coimbra, Instituto de Estudos Clássicos, 1998; José Ribeiro Ferreira: Polis — Antologia de Textos Gregos, Coimbra, Livraria Minerva, 1994; Giorgio Colli: La sabiduría griega, Madrid, Editorial Trotta, 2 1998; Alberto Bernabé (ed.): Hieros logos — Poesía órfica sobre los dioses, el alma y el más allá, Madrid, Akal / Clásica, 2003; Frederico Lourenço: Grécia Revisitada, Lisboa, Livros Cotovia, 2004; Jean-Pierre Vernant y otros: El Hombre Griego, Madrid, Alianza Editorial, 2000; Francisco de Oliveira e outros (coords.): Mar Greco- Latino, Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2006; para as questões de natureza conceptual e terminológica: André Lalande: Vocabulaire Tecnique et Critique de la Philosophie, Paris, PUF, 101968; Nicola Abbagnano e Giovanni Fornero: Dizionario di Filosofia, Torino, UTET, 1998; Robert Audi (ed.): Diccionario de Filosofía, Madrid, Ediciones Akal, 2004. 287 A sugerir aqui, também, a «pirâmide axiológica», tal como a enuncia Manuel Ferreira Patrício no seu belo ensaio «A escola cultural: uma escola promotora dos valores» apud: http://www.aepec.pt/apresenta.htm 288 Não é, pois, arbitrariamente que Aristóteles (Ética a Nicómaco: X, 1177a-b), criticando muito embora a teoria platónica do Bem (cf. Ética a Nicómaco: I, 1096a- 1097), considera a «teoria» como sendo «a mais alta virtude». 149 Fernando Paulo do Carmo Baptista modo absorto e espantado, a cintilação e a configuração constelada das estrelas, na curiosa e empenhada expectativa de tentar captar e decifrar os sinais, de interpretar e compreender (ou mesmo “adivinhar”289...), para além deles, o mistério do movimento dos astros e outros enigmas ou augúrios provenientes das regiões habitadas pelos deuses... Melhor se entenderá, também, o seu reenvio para a atitude de encantamento, fruição e atencioso respeito, a ser assumida por um protagonista, emissário observador-espectador (sublinho: observador- 290 espectador), de nome [theoros], no contexto de uma viagem 289 Derivado de ad+divinare que, por sua vez, se formou do nome divinus; o adivinho (ad+divinus) é aquele ser humano que, porque neles acredita e neles confia, se dirige (ad-) aos deuses (aos seres divinos, aos omniscientes senhores da luz...) para neles se inspirarem e, desse modo, pressagiarem e predizerem o que pode vir a acontecer... E não será esta «adivinhação» do que se desconhece relativamente ao futuro e ao passado, sobretudo ao passado distante, o énãlogon [analogon] ou simétrico da capacidade preditiva e retroditiva de uma verdadeira teoria científica?... Cf. Vítor Manuel de Aguiar e Silva: Competência Linguística e Competência Literária, Coimbra, Almedina, 1977, p. 31. 290 A estrutura morfológica do lexema yevrÒw é constituída pela combinatória de y°a + *sWorow, em que y°a é um nome feminino com o significado de «lugar onde há luz, onde há condições de visibilidade e, portanto, de onde se pode observar, de onde se pode contemplar» (exs.: uma praça, ágora ou fórum, para cerimónias públicas; um templo, para a auscultação dos oráculos ou outras celebrações religiosas; um anfiteatro ou auditório, para um espectáculo literário, teatral ou musical; um estádio, para um evento desportivo...). À família do substantivo y°a pertencem lexemas como: yeãomai (= comtemplar, examinar, participar num espectáculo como espectador...), y°asiw (= contemplação) y°atron (= teatro, lugar onde se observa, contemplando e fruindo, um espectáculo dramático); obs.: não é de excluir a hipótese de uma interferência (“contaminação”) semântico-cultural do sema da «luz» inscrito na raiz de y°a (= deusa, divindade, feminino de yeÒw) no significado do seu homónimo y°a (= lugar, como vimos, de onde se pode observar, de onde se pode contemplar), porquanto, por um lado, os deuses (senhores da luz), para mais numa sociedade politeísta, estão presentes em tudo e, pelo outro, sem a luz (real ou simbólica, externa ou interna...) não é possível a observação, a contemplação... Por sua vez, *sWorow é um constituinte nominal pertencente à família do verbo rãv (= olhar, lançar os olhos, prestar atenção, observar, cuidar de, indagar, procurar...), da mesma família lexical dos nomes ˜rasiw (= o sentido da vista, visão) e ˜rama (aquilo que se vê, espectáculo...), entre vários outros, e cuja raiz está na origem de palavras portuguesas como: alporama, ciclorama, cosmorama, diaporama, panorama, piloro (pulvrÒw < pÊlh [= porta, entrada, abertura, fenda] + rãv [= ver, vigiar, guardar]; o piloro é, literalmente falando, uma pequena entrada, fenda ou porta, que estabelece a ligação entre o estômago e o duodeno: funciona, assim, como uma espécie de «porteiro» ou 150 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO ou missão de natureza diplomático-protocolar, de uma celebração religiosa, de uma solenidade pública ou de uma competição desportiva ou espectáculo artístico... Mas as verdadeiras posturas presenciais e observacionais dos ο [theoroi], os autênticos actos contemplativos da α [theoria] (perspectivados por Aristóteles, em dialéctico contraponto «guardião da porta»)... De notar, todavia, que a raiz constitutiva do verbo rãv ( s or-) apresenta, como se vê, o grau forte («grau o») da raiz indo-europeia s(w)er- / s(w)or- [com variantes diacrónicas e fono-morfológicas diversas: swar- / war- / wahr- / wehr- / ver- / guar- / gar- ], raiz cujo “adn semântico” remete para as ideias de «observar», «ver atentamente», «respeitar», «guardar», «resguardar», «preservar» e que está presente no léxico de diferentes línguas de matriz indo-europeia. Exemplificando, por amostragem: EM GREGO e directamente relacionados com o lexema evrÒw: evr v (= observar, examinar, contemplar, assistir como espectador...), ye rema (= aquilo que se pode contemplar, espectáculo, aquilo que constitui objecto de estudo ou de meditação...), evretikÒw (que gosta de contemplar, que tem o hábito de contemplar, que tem uma atitude contemplativa e especulativa...), evr€a (= acção de ver, observar, examinar, contemplar; contemplação, meditação, estudo, teoria e também: comunidade dos evro€), evrikÒw (= que concerne aos lugares no teatro, que diz respeito às teorias...), etc.; EM LATIM (raiz no «grau e»): servare (= respeitar, manter, conservar), servator, conservare, observare, observator, observantia, observatio, preservare, reservare, servus (= servo, escravo, criado), servire (= servir), servilis, servitium, vereor (= observar, prestar atenção, respeitar, venerar...), verecundia (= respeito, atenciosidade, vergonha, pudor), reverendus...; EM SÂNSCRITO: varutá (= protector); EM GÓTICO: war (observar, vigiar, estar atento, ser atencioso), warnjan (= avisar, advertir); EM INGLÊS: aware (= estar consciente de, ter cuidado com, prestar atenção a...), beware, warren, warrant, ward, warn..., serf, sergeant...; EM VELHO ISLANDÊS varr (= prestar atenção, vigiar); EM VELHO ALTO ALEMÃO bewaron (= despertar); EM ALEMÃO: gewähren, wahren, wahrung, währung, gewähr, warten, wheren, wehr, warnung...; EM FRANCÊS: serf, servir, sergent, serviette, service, concierge [< *conservius], conserver, observer, préserver, réserver..., guarir, guarison, guarite, guarnir, gare, garer, égarer, guérir, guérison, garder, regarder, égard, regard...; EM PORTUGUÊS (com evidente isomorfia, relativamente aos correspondentes lexemas da generalidade das línguas românicas e, mesmo, das não românicas): conservar, conserva, conservador, conservatório, conservantismo, observar, observador, observatório, observância, preservar, preservativo, reservar, reserva, reservista, reservado..., servo, serva, servir, servil, servilismo, serviço, servidão, serviçal, servente, serventia, serventuário, subserviência, servofreio, servocomando, servossistema, sargento..., vergonha, vergonhoso, reverendo, reverência..., garante, garantia, garantir, guarda / Guarda, guardião, guardar, aguardar, resguardar, garagem, guarida, guarita, guarir, guarnir, guarnecer, guarnição... 151 Fernando Paulo do Carmo Baptista com os comportamentos que configuram a prãjiw [praxis]291, como os mais densos, intensos, vivos e dinâmicos e os mais conformes com a essência e o agir do “Primeiro Motor”292 — Pr«ton KinoËn [Proton Kinoun] — e com um ideal supremo de eÈdaimon€a [eudaimonia]293), 291 Considerar, neste contexto, o que, acerca da questão da «teoria», diz Paul de Man (in A Resistência à Teoria, Lisboa, Edições 70, 1989, pp. 14-15): «Etimologicamente, o termo [teoria] vem do verbo grego theorein, observar, contemplar, inspeccionar. E, em grego, não entra em oposição com praxis — uma oposição construída na filosofia idealista e mais tarde utilizada para combater esta última — mas antes com aesthesis...» [p. 14]. «(...) A cidade necessitava de uma forma de conhecimento mais oficial e mais averiguável (...)». Ora, «a theoria fornecia a solidez de certeza pretendida: aquilo que declarava ter visto podia tornar-se objecto de dissertação pública», porque «só o acontecimento teoricamente atestado podia ser tratado como facto» [p. 15]. Mas quem estava incumbido dessa missão eram os theoroi, cidadãos que gozavam de reconhecido prestígio público e que «constituíam colectivamente uma theoria» [p. 14]. Em meu entender, esse qualificado e credível “colégio” de observadores atentos e contemplantes configura, de certo modo, o protótipo daquilo que vieram a ser as actuais “comunidades científicas”. 292 Aristóteles: Metafísica, 1070b, 1072b, 1073a, 1074a. 293 O substantivo eÈdaimon€a (da mesma família do adjectivo eÈda€mvn, -vn, -on = feliz, afortunado, que merece os favores dos deuses...) formou-se através da combinatória do advérbio eÔ (= nobremente, bem, de modo elevado e justo...) + da€mvn, -onow [= divindade, deus, poder divino, boa fortuna, boa sorte...]; eÈdaimon€a remete, assim, para as ideias de «nobreza» e de «bem-estar espiritual» e para um «estado próprio de quem vive sob a protecção benéfica da divindade e em harmonia com ela»; daí, o significado de «felicidade», de «supremo bem prático» que consiste na «contemplação», na yevr€a. Considere-se, a propósito, o seguinte passo de Aristóteles (Ética a Nicómaco, X, 8): «Now if you take away from a living being action, and still more production, what is left but contemplation? Therefore the activity of God, which surpasses all others in blessedness, must be contemplative; and of human activities, therefore, that which is most akin to this must be most of the nature of happiness. This is indicated, too, by the fact that the other animals have no share in happiness, being completely deprived of such activity. For while the whole life of the gods is blessed, and that of men too in so far as some likeness of such activity belongs to them, none of the other animals is happy, since they in no way share in contemplation. Happiness extends, then, just so far as contemplation does, and those to whom contemplation more fully belongs are more truly happy, not as a mere concomitant but in virtue of the contemplation; for this is in itself precious. Happiness, therefore, must be some form of contemplation (...). If happiness is activity in accordance with virtue, it is reasonable that it should be in accordance with the highest virtue; and this will be that of the best thing in us. Whether it be reason or something else that is this element which is thought to be our natural ruler and guide and to take thought of things noble and divine, whether it be 152 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO não deixam de pressupor sempre a presença real ou simbólica da “LUZ”, ou seja, aquela iluminação superior e intranscendível, aquela divina e sábia iluminação proporcionada e mediatizada, na Pólis Humana, pela Paideia e que permite superar a ensandecente noitidão da incultura, da ignorância e da barbárie... Luz, todavia, que de modo algum se deve identificar com a perversa e totalitária unidimensionalidade de uma “razão” monofónica, sobretudo, em sua dinâmica funcional, instrumental e calculatória e em sua orgânica tecno-burocrática, administrativística e gestionária, itself also divine or only the most divine element in us, the activity of this in accordance with its proper virtue will be perfect happiness. That this activity is contemplative we have already said (os itálicos são meus).» Cf. Aristóteles: Ética a Nicómaco, X, 8, na versão em inglês da autoria de W. D. Ross, apud: http://ebooks.adelaide.edu.au/a/aristotle/nicomachean/. Compare-se com o seguinte passo de Platão (Simpósio, 220b): «So when he [o ser humano] has begotten a true virtue and has reared it up he is destined to win the friendship of Heaven; he, above all men, is immortal» (os itálicos são meus). Em suma: Aristóteles perspectiva a felicidade (eÈdaimon€a) como aquele tipo de prãjiw que é consonante com a éretÆ ([= virtude] ibidem: I, 1097a-b), mas, para ele, a mais excelsa das virtudes é a yevr€a (ibidem: X, 1177a-b), tal como, mais tarde, será para Plotino (ÉEnn°adaw: III, 8, 2-7) a principal actividade da alma. (Para uma dilucidação dos importantes conceitos da Cultura Grega aqui implicados, ver F. E. Peters: Termos Filosóficos Gregos — Um léxico histórico, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1977). Mas este ideal de «felicidade», tal como o enuncia Aristóteles, não deixa de convocar, para um dialéctico contraponto, a actualmente tão falada «felicidade do hiperconsumo» que tem como protagonista o homo consumericus, uma espécie de «turbo-consumidor», figura insaciável e voraz, na procura de mais prazer, de mais «qualidade de vida», de novas experiências, novas compras e «exóticas» fruições que lhe são proporcionadas pelo império do mercado e do marketing, até como terapia de nevroses e frustrações... Personagem, todavia, paradoxalmente, mais insatisfeita, mais desencantada e crescentemente dilacerada pelo sentido do vazio, do abandono e da solidão, configurador de um clima emocional e afectivo não raramente gerador de fortes tensões e descontrolados desequilíbrios de natureza psíquica, propulsores de condutas esquizofrénicas, agressivas e violentas... É que a dimensão quântica do «ter», só por si e face aos constantes desequilíbrios económicos e financeiros e à consequente redução do poder de compra, não consegue ser alternativa à dimensão quálica da sophia e da paideia que modelam e afeiçoam as mais altas faculdades e potencialidades do «ser»... Sobre tão contraditório modo de procurar ser «feliz» (?...), ver o recente ensaio de Gilles Lipovetsky: Le bonheur paradoxal – Essai sur la société d’hyperconsommation, Paris, Gallimard, 2006 (ou, na tradução portuguesa de Edições 70, Lisboa, 2007: A Felicidade Paradoxal – Ensaio sobre a Sociedade do Hiperconsumo). 153 Fernando Paulo do Carmo Baptista quando sabemos como tudo isso é comandado, em última instância, por um obsessivo t°low [telos] economicista, motivo, fundamento e argumento para todas as eficácias, eficiências e competitividades, mas bloqueador (se não mesmo liquidador...) da independência de espírito, da liberdade criadora e da autonomia académica e inspirador e propulsor de políticas educacionais marcadas pela crescente secundarização (para não dizer: ostracização...) das áreas das Humanidades, das Belas Letras e das Belas Artes, áreas que sempre foram a verdadeira alma mater..., a “almar” todo o processo investigativo e formativo e a “geratriz” e a “placenta” alimentadora da própria ideia de Universidade294... Por isso é que importa manter bem viva e bem acesa a perspectiva e a convicção de que a luz, aquela luz que vem das estrelas e a elas nos faz retornar, pelo fascínio da sua cintilância e pela generosa e universal bondade com que se nos dá, continua a ser o símbolo maior da inteligibilidade de tudo... A SABEDORIA (SOF€A [SOPHIA]) COMO FONTE DE ILUMINAÇÃO DA TEORIA O consagrado historiador, epistemólogo e professor inglês, Alan Francis Chalmers295, na sua conhecidíssima obra intitulada What is this thing called Science?296 (obra propedêutica dedicada à problemática da 294 Considerar, neste contexto, o estelar e acutilante ensaio de Vítor Aguiar e Silva «As Humanidades e a Cultura Pós-Moderna» apud Fernando Paulo Baptista (org.): Vítor Aguiar e Silva: a poética cintilância da palavra, da sabedoria e do exemplo, op. cit., pp. 179-193. 295 Antigo aluno de Imre Lakatos e seguidor, nomeadamente, do pensamento de Karl Popper. 296 Cuja recente tradução em Espanha, sob o título de «¿Qué es esa cosa llamada ciencia?» já conhece 14 reedições. Ver Alan Francis Chalmers: ¿Qué es esa cosa llamada ciencia?, Madrid, siglo veintiuno de españa editores, sa, 142000. 154 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO Ciência), referindo-se ao modo como se desenvolve o processo observacional297 na actividade científica, escreve o seguinte298: «Não podemos observar com precisão o que queremos. Todavia, se é verdade que as imagens das nossas retinas fazem parte do processo do que nos é dado observar, não é menos verdade que também faz parte desse mesmo processo uma componente constituída pelo estado interno das nossas mentes ou cérebros, estado esse que, por sua vez, depende da nossa educação cultural, do nosso conhecimento e das nossas expectativas, não sendo determinado, portanto, unicamente pelas propriedades ou condições físicas dos nossos olhos e da cena observada.»299 Palavras lúcidas estas, que realçam bem o facto de que os processos de “observação” desenvolvidos no âmbito da investigação científica, na diversidade multímoda das configurações e estilos que podem assumir, co-envolvem sempre, na mesma e unitária instância corpóreo-mental — o ser humano, ênyrvpow300 [anthropos] —, uma 297 E importa ter presente que a acção de observar se dizia, em grego, yevr€a [theoria] e também ye resiw [theoresis], substantivos que, conjuntamente com yevrÒw [theoros], pertencem à mesma família lexical do verbo yevr°v [theoreo] (= observar, examinar, contemplar). Cf. supra, nota 290. 298 Chalmers: op. cit., p. 9: «No podemos ver precisamente lo que queremos. Sin embargo, mientras que las imágenes de nuestras retinas forman parte de la causa de lo que vemos, otra parte muy importante de esa causa está constituida por el estado interno de nuestras mentes o cerebros, el cual dependerá a su vez de nuestra educación cultural, nuestro conocimiento y nuestras expectativas, y no estará determinado únicamente por las propiedades físicas de nuestros ojos y de la escena observada». No mesmo sentido, vai também a tese de Norwood Russell Hanson: Patrones de descubrimiento. Observación y explicación, Madrid, Alianza Editorial, 1996, quando afirma: «La visión es una experiencia. Una reacción de la retina es solamente un estado físico, una excitación fotoquímica» (p. 79). «La visión es una acción que lleva una “carga teórica”. La observación de x está moldeada por un conocimiento previo de x. El lenguaje o las notaciones usados para expresar lo que conocemos, y sin los cuales habría mui poco que pudiera reconocerse como conocimiento, ejercen también influencias sobre las obervaciones» (p. 99). 299 Os itálicos são meus. 300 Reitero, aqui, o meu distancimento quer de um dualismo cartesiano («res extensa VS res cogitans»), quer de um monismo «materialista», para subscrever a tese de um 155 Fernando Paulo do Carmo Baptista função oftálmica (normalmente reforçada e ampliada, pelas “próteses” adjuvantes proporcionadas pela “maquinaria” tecnológica: laboratórios, raios x, raios laser, tumografia axial computorizada [TAC], ressonância magnética [RM], microscópios, telescópios, aceleradores de partículas, sondas, satélites...), função essa, sustentada, pilotada e iluminada, porém, por uma dÊnamiw [dynamis] de natureza intelectual, educativa, cultural e sapiencial301. monismo emergentista, dinâmico, estruturante, complexificante (consubstanciador e comprovador da «lei de complexidade crescente») e personificante, com fundamento na hipótese de que, no quadro de um longo processo evolutivo a nível cósmico (cosmogénese), filogenético (filogénese), ontogenético (ontogénese) e histórico- social e cultural (antropogénese), se criaram as condições para a emergência de um ser configurado e instanciado num corpo-mente (num bodymind como diria o especialista em bioquímica cerebral Candace Pert), um ser «holístico» estruturado no contexto do dinamismo evolutor global do cosmos, em que, consonantemente com Hugo Mujica, «en el hombre todo es carne y nada de la carne deja de ser espírito», uma vez que «el cuerpo... es el modo de ser del espírito» (cf. Hugo Mujica: Flecha en la niebla — Identidad, palabra y hendidura, Madrid, Editorial Trotta, 1997, 148), e com Pedro Laín Entralgo e repetindo Unamuno: «Es mi cuerpo vivo el que piensa, quiere y siente» (...). Na verdade, o corpo vivo do homem é «la realidad en que se actualiza y manifiesta el dinamismo propio de la suidad de cada persona» (Cf. Pedro Laín Entralgo: Idea del hombre: Barcelona, Círculo de Lectores / Galáxia Gutenberg, 1996, cap. III («Posesión de lo real»), pp. 157-172; Idem: Alma, cuerpo y persona, Barcelona, Círculo de Lectores / Galáxia Gutenberg, 21998, cap. III («La realidad constituitva del hombre»), pp. 173-202). No mesmo e fundamental sentido vai a posição de Xavier Zubiri (recorrentemente invocado por Laín...), quando, em Sobre el Hombre (Madrid, Alianza Editorial, 1998, p. 670), afirma: «(...) la corporeidad tiene un sentido primariamente psíquico y anímico: es la corporeidad anímica sin la cual no habría en el mundo estructuras humanas. (...) Esta unidad con el cuerpo hace que haya en la psique animación, pero sin psique lo que hay en el cuerpo no sería animación. Todo lo que hay en el hombre en el orden constitutivo constituye en forma de corporeidad una sola sustantividad humana. En la unidad estructural en forma de corporeidad no hay sino una sola sustantividad, aunque haya muchas sustancias, y en esa sustantividad una está la unidad del hombre (os itálicos são meus)...»; cf. também o interessante ensaio de Fernando Rosel Lana (aqui sintonizado em convergência): «Salud, enfermedad y psiquismo: una apuesta por el cambio hacia la conducta saludable, a partir del uso consciente y responsable de nuestra mente», in Anales de Ciencias de la Salud da la E. U. de Ciencias de la Salud de la Universidad de Zaragoza, Zaragoza, 2002, n.º 5, pp. 35-56; cf., ainda, Fernando Paulo Baptista: A Rede Lexical do «Imaginário» — Clave para uma leitura deste conceito, Lisboa, Edições Piaget, 2007, p. 20, nota 17, e p. 23. 301 Esse potencial pode variar profundamente de observador para observador, de tal modo que, por exemplo, na «mesmíssima» amostra de sangue, o observador A (menos 156 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO Efectivamente, os processos de observação estão longe de se identificar, simplistamente, com uma relação oftálmica ou de se esgotar na focalização ou mirada de um qualquer fenómeno que, à partida, tem uma proveniência exógena ou externa relativamente ao observador (ao «sujeito epistémico»): também se observa e se contempla, por exemplo, uma ideia302, um projecto em fase de ideação, uma construção conceptual, uma configuração noemática, um ficto imaginário ou qualquer outra figuração, sem que aí opere directa e imediatamente qualquer relação de natureza óptico-visual: trata-se daquele tipo de postura ou atitude interior (aquele «olhar de olhos fechados»...), umas vezes mais analítico-reflexiva e crítica, outras vezes mais intuitiva, imaginativa, onírica e poiésico-inventiva, assumida pela nossa psique. É tudo isso que, afinal, se coloca no centro neuronal-mental de competente e experiente, menos preparado, em suma, menos culto...), «vê» uma simples anemia, ao passo que o observador B (melhor preparado, com outra cultura experiencial e sapiencial...) «vê» uma leucemia... Evoque-se, a propósito, o “parabólico” poema — «Impressão digital» —, de António Gedeão: Poesias Completas, Lisboa, Livraria Sá da Costa Editora, 91983, p. 5: «Os meus olhos são uns olhos. / E é com esses olhos uns / que eu vejo no mundo escolhos / onde outros, com outros olhos, / não vêem escolhos nenhuns. (...) Inútil seguir vizinhos, / querer ser depois ou ser antes. / Cada um é seus caminhos. Onde Sancho vê moinhos / D. Quixote vê gigantes. / Vê moinhos? São moinhos. / Vê gigantes? São gigantes». 302 Cabe lembrar, a propósito, que o lexema ‘ideia’ (em grego: έα) tem a mesma raiz do verbo latino video (= ver), começando por significar, literalmente, «o que aparece de modo a poder ser visto» e, daí, «aparência», «aspecto exterior», com as subsequentes notações de «representação», «elaboração mental», «construção noética e eidética», decorrentes das interacções neurais e mentais desencadeadas por aquele “acto de ver” e respectivos resultados e «cartografias» e que passam a constar do arquivo memorial disposicional de quem vê e a funcionar, na polimorfa diversidade dos contextos e das motivações existenciais, como lastro mnésico substante a um complexo processo metamorfósico e poiésico-constitutivo protagonizado pelo psiquismo humano, em que tudo isso se pode vir a transformar em «unidade noemática, integrada e integradora», em «princípio de essencialidade e perenidade gnosiológica e axiológica», em «objecto inteligível e pensável», em «ficto onírico», em «forma semiótica», em «potencial de intelecção, significação, organização, regulação e orientação», em «arquétipo sapiencial luminoso e iluminante», em «matriz de sonho e imaginação criadora»... (Cf. o interessante ensaio de Nayla Farouki: O que é uma ideia?, Lisboa, Edições Piaget, 2005 e o bem elaborado e fundamentado artigo «Idea», da autoria de Julián Velarde Lombrana, apud Jacobo Muñoz y Julián Velarde (eds.): Compendio de Epistemología, Madrid, Editorial Trotta, 2000, pp. 299-304). 157 Fernando Paulo do Carmo Baptista observação-contemplação, onde opera a nossa capacidade memorial (mnésica), problematizadora, hermenêutica, noética, crítica, imaginante e criadora303. Em amplificante paráfrase a Gadamer304, poderá, portanto, dizer-se que ν [theorein] é νο ν [noein], que ν [theorein] é οι ν [poiein]: que observar-contemplar é pensar e meditar, é imaginar e criar... Ganha, assim, especial relevância e expressividade a “tese” de Pierre Bourdieu305, inspirada e enquadrada na sua «teoria dos campos» 303 Diz Damásio, a propósito das potencialidades noogénicas da memória: «os objectos recordados são tão capazes de gerar consciência nuclear como os objectos percebidos agora» (cf. António Damásio: O Sentimento de Si, op. cit., p. 192); para uma perspectiva clarificadora deste dinamismo neuro-mental, ver ainda este nosso prestigiado neurocientista: ibidem, pp. 200-202; para um aprofundamento das questões relacionadas com o dinamismo «corpo <> cérebro <> mente», ver António Damásio: O Sentimento de Si, Lisboa, Publicações Europa-América, 2000, pp. 355 ss (capítulo 11) e passim e Ao Encontro de Espinosa, Lisboa, Publicações Europa- América, 2003, pp. 207-247 (capítulo 5) e passim e John Searle: Mente, Cérebro e Ciência, Lisboa, Edições 70, 1997, pp. 17 ss, 53 ss. 304 Op. cit., pp. 26, 27, 39. 305 Cf. Pierre Bourdieu: Science de la science et réflexivité, Paris, Éditions Raisons d’agir, 2001 (de que existe tradução portuguesa com o título de Para uma Sociologia da Ciência, Lisboa, Edições 70, 2004, e que aqui cito através da versão em espanhol, com o título de: El ofício de científico — Ciencia de la ciencia y reflexividad, Barcelona, Editorial Anagrama, 2003, pp. 77-78: «Un sabio es un campo científico hecho hombre, cuyas estructuras cognitivas son homólogas de la estructura del campo y, por ello, se ajustan de manera constante a las expectativas inscritas en el campo. Las reglas y las regularidades que determinan, por decirlo de algún modo, el comportamiento del científico sólo existen como tales, es decir, en cuanto instancias eficientes, capaces de orientar la práctica de los científicos en el sentido de la conformidad con las exigencias de cientificidad, porque son percibidas por unos científicos dotados del habitus que les permite percibirlas y apreciarlas, y a la vez predispuestos y capazes de ponerlas en práctica. En suma, esas reglas y esas regularidades sólo los determinan porque ellos se determinan mediante un acto de conocimiento y de reconocimiento práctico que les confiere su poder determinante, o en otras palabras, porque están dispuestos (al término de un trabajo de socialización específico) de tal manera que son sensibles a las conminaciones que contienen y están preparados para responder a ellas de manera sensata». De notar que Bourdieu, neste seu andamento reflexivo, opera com os conceitos de «habitus», «campo» e «poder» que, como se sabe, são três conceitos nucleares na arquitectónica conceptual do seu quadro teórico. Para uma dilucidação destes conceitos, que são transversais a algumas das suas mais importantes obras de análise filosófico-sociológica (La distinction, Le 158 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO e plasmada na lapidar metáfora de que «um sábio é um campo científico feito homem», com a ressalva, porém, de que a sabedoria (sof€a [sophia]), num ajuizamento que se me afigura pertinente, correcto e sustentável, vai muito para além dos territórios e dos horizontes específicos da ciência... Tudo isto só vem confirmar e validar a eloquente justeza do milenar dito do Ecclesiastes (2, 14), segundo o qual, os olhos do sábio estão na sua cabeça: «sapientis oculi in capite eius»!... É, na verdade, da “cabeça” [caput] dos sábios, é das úberes matrizes da sabedoria de que eles são os “auctores” e os titulares mais credenciados (mas também mais silenciados nestes tempos de détresse de l’esprit...) que irrompe a §n°rgeia [energeia] observante, contemplante, elaborante, poiésico-instituidora e iluminante (e, por isso mesmo, incomparável expressão neuro-cinética, mental e vital [não propriamente muscular...] da «vita activa»306...) que uma autêntica TEORIA não pode deixar de ser, se perspectivada em sua mais funda essencialidade, “ebuliente dinamismo” e “geotectónica” motricidade... Nem é outro, o entendimento que deflui da mais consistente reflexão epistemológica em torno da «ciência», do «conhecimento científico», da «racionalidade científica», da «teorização científica» e sens pratique, Questions de sociologie, Ce que parler veut dire, Homo academicus, Les règles de l’art — Génese et structure du champ littéraire, Méditations pascaliennes...), ver Pierre Bourdieu: Choses Dites, Paris, Les Éditions de Minuit, 1987, pp. 19 ss, 32 ss, 50 ss, 90 ss, 124 ss, 150 ss, 160 ss; O Poder Simbólico, Lisboa, Difel, 1989, pp. 27, 64-73, 288-298 e passim (campo); pp. 60-64, 81-106 e passim (habitus); pp. 15, 28, 29, 150-158, 236-276 e passim (poder); Les règles de l’art — Génese et structure du champ littéraire, Paris, Éditions du Seuil, 1992, 298 ss e passim. Mas, salvaguardando o princípio de que nada substitui o esforço hermenêutico próprio, centrado na efectiva leitura das obras, não deixa de ser útil, também, a bem sistematizada introdução de Pierre Mounier: Pierre Bourdieu, une introduction, Paris, La Découverte, 2001: I. Présentation de l’œuvre, pp. 19-183. 306 Para uma perspectiva mais alargada da oposição dialéctica «vida contemplativa VS vida activa» (e da oposição sua correlata: «otium VS negotium»), considerar, entre outras, as «teses» de Platão na República (VII, 514a ss), de Cícero no De Officiis (I, 153), de Nietzsche em Morgenröthe (§§ 41-43, [apud: http://www.geocities.com/thenietzschechannel/mgv.htm]) e de Hannah Arendt em The Human Condition (Chicago, University of Chicago Press, 1958) e em The Life of the Mind (London, Secker & Warburg, 1978). 159 Fernando Paulo do Carmo Baptista da «metodologia da investigação científica»307 e, ainda, do modo como se constituem, se testam, se validam e se aplicam as próprias «teorias científicas». E essa reflexão, tão vasta quanto exigente e complexa (e, não raro, tão polémica como contraditória...), não pode deixar de se direccionar projectivamente para dois grandes planos que se co- implicam em estreita e recíproca articulação e interacção: — o plano da personalidade singular e ipseídica do ser humano (cidadã ou cidadão...) teorizador, investigador e cientista; — o plano da sua condição e do seu estatuto institucional, interpessoal e alterídico, de membro de uma específica “comunidade científica” e/ou de uma “academia”, co-envolvendo a ponderação, entre outras, de temáticas e problemáticas tão cruciais como as da caracterização da racionalidade científica e do método científico, da demarcação criterial entre ciência, senso comum, não-ciência, pseudo- ciência e ficção científica, da selecção e estabelecimento de campos fenoménicos e sua transformação em campos epistemológicos, com a inerente definição dos objectos epistémicos e análise integrada dos dados observacionais e experienciais respectivos, a suscitação de problemas e a subsequente formulação de conjecturas ou de hipóteses, o desencadear do processo investigativo (research process) e de elaboração (e reelaboração...) do conhecimento e a convocação, para o efeito, das mais fecundas propostas da Epistemologia e da Filosofia da Ciência, nomeadamente, a pluralidade dos contributos trans-lógico- empiristas de Gaston Bachelard, Karl Popper, Russell Hanson, Imre Lakatos, Thomas Khun, Paul Feyerabend, Joseph Sneed, Wolfgang Stegmüller e Larry Lauden308, para além dos desenvolvimentos que têm merecido, entre outros, o «teorema de Thomas Bayes» em torno da problemática da probabilidade (conditional probabilities; subjectivist 307 Sobre esta complexa e apaixonante problemática, existe uma vastíssima bibliografia de que se apresenta, no fim, uma razoavelmente diversificada amostragem. Mas, pela clareza, pelo rigor, pela fundamentação, pela consistência e pela coerência verdadeiramente exemplares, continua a ser uma referência incontornável a reflexão, então pioneira, desenvolvida (há já quarenta [40] anos!...) por Vítor Aguiar e Silva no seu iluminante e prospectivo ensaio (imediatamente traduzido para espanhol [pela Gredos] e para japonês): Competência Linguística e Competência Literária, Coimbra, Almedina, 1977, pp. 26-38. 308 Ver, no fim, na listagem alfabeticamente ordenada, a bibliografia fundamental e nominal de cada um. 160 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO models of learning: prior probability VS posterior probability...), com os diferenciados contributos de Jon Dorling, Paul Horwich, Roger Rosenkrantz e John Earman, a «tese de Duhem / Quine»309, face ao falsificacionismo popperiano, bem como as correntes do «Novo Experimentalismo», a envolver figuras como Ian Hacking, Allan Franklin, Peter Galison, David Gooding, Robert Ackermann e Deborah Mayo310, etc., etc... A caracterização e a demarcação acabadas de referir não dispensam a assunção de uma postura de fundo de que não pode deixar de fazer parte integrante a institucionalização de um exigente “código” ético-paidêutico e praxiológico (embrionária geratriz de um plano [e programa] estratégico mais vasto...) que inscreva expressamente, em seu corpo canónico, objectivos como os que a seguir se enunciam: • Proporcionar a formação consistentemente e polifonicamente fundamentada e estruturada, do ponto de vista filosófico e epistemológico, do que é a ciência, a investigação científica, o método científico e do que deve ser o verdadeiro espírito científico; • Refrear a tentação duma adesão precipitada e acrítica a modas e modismos disfarçados sob a capa da “inovação” ou da “actualização”; • Promover a produção, a divulgação e o ensino-aprendizagem de um conhecimento científico, teoricamente enquadrado, criticamente fundamentado e adequadamente apetrechado a nível conceptual, terminológico e metodológico, tendo em vista um mais fecundo tratamento hermenêutico, heurístico, experimental e processológico dos dados da experiência e demais dados da fenomenologia do real; • Fomentar o constante sentido do rigor, da clareza, da propriedade e da coerência nas práticas discursivas e comunicacionais, através de um adequado e contextualizado accionamento dos modos, modalidades, registos e estilos de linguagem; • Rejeitar o recurso a processos e a esquemas simplistas, reducionistas, monofónicos ou “cinzentos” que põem em causa a 309 Também conhecida por «tese dos holismos» (holismo da confirmação e holismo do significado). 310 Cf. León Olivé (ed.): Racionalidad epistémica, Madrid, Editorial Trotta, 1995, pp. 148 ss, 226 ss e passim; Alan F. Chalmers:¿Qué es esa cosa llamada ciencia?, op. cit., pp. 25-199. 161 Fernando Paulo do Carmo Baptista essência da racionalidade científica e o seu verdadeiro sentido e alcance; • Combater o fundamentalismo, o dogmatismo, o cepticismo, o anarquismo e o “terrorismo” teoréticos, bem como os proselitismos ideológicos; • Promover a propositura e a defesa de matrizes curriculares bem demarcadas e fortes, sob o ponto de vista específico e singular de cada uma das disciplinas que integram os planos de estudos, matrizes essas que vão ser tomadas como base de sustentação das tão pretendidas articulações interdisciplinares, no pressuposto de que não há verdadeira interdisciplinaridade à margem das ontologias, das fenomenologias e das metodologias por que se fundam e constituem as disciplinas, e de que certas “misturas” multidisciplinares, organizadas sem critério e sem nexo, raramente passam de espartilhados e confusos amálgamas ou de ornamentais mosaicos de muito duvidosa erudição; • Proceder, no quadro da organização e da operacionalização pedagógico-didáctica do ensino-aprendizagem do conhecimento científico, à clarificadora desmontagem das “máscaras” pseudo- científicas, à oportuna activação de reguladores e depuradores “filtros” e à neutralização do efeito “torniquete”311, tão característico dos excessos teoréticos e das exorbitações e extravagâncias hermenêutico- interpretativas; • Estabelecer mecanismos de regulação aberta e crítica para a “práxis científica”, em consonância com os princípios, as exigências e os critérios próprios do “espírito científico” e da “racionalidade científica”; • Projectar em todos os actos de (in)formação científica o sentido “mathésico”312 do estudo fundamentado e fundamentante e do rigor conceptual, tendo em vista o reforço da especificidade e da autonomia das comunidades e das instituições de ciência, nas áreas da investigação e do ensino; • Desencadear dinâmicas de formação e actualização ao longo da vida (lifelong learning) que promovam em todos os estratos da 311 Cf. Vítor Aguiar e Silva: «As relações entre a Teoria da Literatura e a Didáctica da Literatura: Filtros, Máscaras e Torniquetes», in AA.VV.: Didáctica da Língua e da Literatura, vol. I, Coimbra, Almedina, 2000, pp. 3-9. 312 De mãyhsiw [mathesis], aprendizagem inteligente, diligente e rigorosa. 162 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO sociedade, e muito para além do indispensável patamar da “literacia básica”, uma cada vez mais esclarecida consciência da imperiosa necessidade de uma forte cultura científica e humanística para os mais qualificados cargos e desempenhos sociais e para o exercício responsável da cidadania; • Consciencializar e, sobretudo, conscientificar as instituições de Ensino Superior, especialmente as Universidades, para o imperioso desenvolvimento de uma estratégia de investigação e de formação, de directa implicação interdepartamental e de alcance nacional, capaz de articular, em todas as Academias e em criativa e fecundante orquestração sinérgica, a área da Ciência e das Tecnologias com a área das Humanidades, das Belas Letras e das Belas Artes. Por outro lado, e nesse contexto de global enquadramento reflexivo, importará proceder à clarificação crítica e ao apuramento teorético e meta-teorético de questões tão decisivas como as da subjectividade, intersubjectividade, objectividade313, (in)certeza, (in)determinismo, causalidade (multicausalidade), acaso, probabilidade, verdade (verdade de razão, verdade de facto, verdade de crença...), transcendentalidade, relativismo, fiabilidade..., bem como à ponderação das suas implicações com os métodos e procedimentos de refutação, falsificação, testagem, avaliação, validação e legitimação das teorias e das “revoluções” científicas, à luz de um adequado referencial paramétrico-criteriológico que contemple os planos formal, semântico, axiomático-epistemológico, metodológico e cosmo-ontológico, nos termos em que o propõe, por exemplo, Mario Bunge314, sem esquecer os fundamentais níveis de 313 “Objectividade”, pensada tanto na perspectiva singular-pessoal como na perspectiva colegial. Ponderada a incontornável “teia” de correlações e de interacções de natureza noético-noemática, importa ter na devida conta a clarificadora obra ensaística de Donald Davidson: Subjective, Intersubjective, Objective, New York, Oxford University, Clarendon Press, 2001 — que se ocupa, entre outros aspectos, das profundas e complexas conexões de ordem sapiencial e verbo-semiósica entre a nossa mente, a mente dos outros e o mundo externo... 314 Cf. Mario Augusto Bunge: Philosophy of Science – From Explanation to Justification (revised edition), vol. 2, New Brunswick and London, Transaction Publishers, 1998, pp. 394-400: a) FORMAL CRITERIA: 1. well-formedness; 2. internal consistency; 3. validity; 4. independence; 5. strength; b) SEMANTIC CRITERIA: 6. linguistic exactness; 7. conceptual unity; 8. empirical interpretability; 9. 163 Fernando Paulo do Carmo Baptista adequação mundividencial, pressupositivo-assumptiva, metodológico- processual e orientativo-reguladora, com seus desdobramentos fásicos315 e respectivas operações de contrastação, correcção e afinamento melhorativo: adequação fundamentante, focalizadora, analítica, problematizadora, indagativa, heurística, avaliativa, validadora, descritiva, explicativa e discursivo-enunciativa (textualizadora). Na verdade, e quanto ao primeiro plano atrás mencionado, o cidadão teorizador, investigador e cientista316 (sujeito activo e reflexivo do ν [theorein] e, em certo sentido, “herdeiro” legítimo do ιλ ο ο [philosophos] socrático e do [theoros] platónico- aristotélico...), na sua postura curiosa, perscrutante, inteligente e imaginativa, na sua focalização exoscópica e endoscópica, extra-muros e intra-muros, microscópica e macroscópica, merorâmica e panorâmica, na sua mirada observante, indagante, determinada e persistente e no seu agir interpretativo, descritivo e explicativo, suscitado pelo “campo fenoménico” que o toca, entusiasma e fascina e que ele toma e assume como “objecto epistémico”, isto é, como «objectum cognoscendum», «describendum» e «explanandum», não deixa de mobilizar mnésico-noeticamente, e de modo autocrítico, criterioso e selectivo, o “capital” noemático, semiósico, conceptual, imagético e memorial, a “enciclopédia” semiosférica, informativa, cognitiva, hermenêutica e sapiencial, depurada e integrante, que foi construindo, configurando, arquivando e actualizando ao longo da sua experiência vital, em toda a diacronia do seu Lebenswelt que é, na representativeness; c) EPISTEMOLOGICAL CRITERIA: 10. external consistency; 11. inclusiveness; 12. depth; 13. originality; 14. unifying power; 15. heuristic power; 16. stability; d) METHODOLOGICAL CRITERIA: 17. testability; 18. methodological simplicity; e) ONTOLOGICAL CRITERIA: 19. level-parsimony; 20. world-view compatibility. 315 Porque não consegui encontrar em nenhum dicionário de língua portuguesa, digo, não obstante, fásico (< de fase), como se diz básico (< de base), frásico (< de frase), homeostásico (< de homeostase)... 316 Para um interessante esboço de “perfil” caracteriológico do «homem de ciência», configurado na pessoa do «investigador», ver John Ziman: Real Science — What it is, and what it means, Cambridge, Cambridge University Press, 2001, pp. 22-23, 44-46, 53-54 e passim. 164 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO expressiva e afectiva metáfora de Castanheira Neves317, «a pátria a que a ciência sempre terá de voltar»... Tudo isso, no horizonte englobante e aberto da Weltanshauung que também foi conformando, ajustando e aperfeiçoando, sem, todavia, descurar ou desconsiderar as contribuições congéneres da comunidade científica de pertença (e de outras comunidades de saber...) ou rejeitar o diálogo polifónico ou mesmo a controvérsia e o dissentimento, a polémica, o debate vivo, problematizador e antidogmático, na incessante procura e construção activa da indispensável consensualidade epistemológica, regulada não só pelos mais altos níveis de rigor teorético, axiomático-conceptual, metodológico, processológico, lógico-discursivo e argumentativo, mas também por irrenunciáveis padrões ético-axiológicos e deontológicos, consagradores dos interpelantes e areteicos (“virtuosos”) valores da humildade intelectual, da probidade, da seriedade, da honestidade, da isenção, da dignidade, da verdade e da excedência (auto-superação), rumo à excelência318... Quanto ao segundo plano igualmente já atrás referido (ou seja, o plano da “condição” e “estatuto” institucional de “cientista”, de “investigador” e de “académico”), vai nele pressuposto e implicado o desenvolvimento de uma forte, estruturada e permanentemente actualizada consciência filosófico-epistemológica, cultural e crítica, holística e holofótica, quanto ao seu específico “território fenoménico” de referência e de incidência, de modo a permitir-lhe assumir e sustentar, em todas as circunstâncias, aquele correcto e fundamentado entendimento de Vítor Aguiar e Silva319, segundo o qual, «uma teoria 317 Cf. António Castanheira Neves no seu denso e interpelante ensaio: «Da “verdade” especulativa e dogmática da filosofia às “verdades” exactas e controláveis da ciência — ou o erro da pretensa superação da filosofia pela ciência?», in revista Lusografias, n.º 6/7/8, ano III, Lisboa, Edições Piaget, 2007, pp. 20-31: «(...) o mundo da vida (...) é a pátria a que a ciência sempre terá de voltar, numa assimilação humano- cultural de sentido, sob pena de uma sua alienação humana e de inumanos resultados.» (p. 23). 318 A excelência (em grego: éretÆ [arete]), por nós perseguível, mas nunca atingível..., tem um “horizonte” transcronotópico (ou se se preferir: utópico, transcendental, “metafísico”...), doador de sentido e semaforizador dos rumos de todo e qualquer projecto humano. 319 Cf. Vítor Aguiar e Silva: «As relações entre a Teoria da Literatura e a Didáctica da Literatura: Filtros, Máscaras e Torniquetes», op. cit., pp. 3-9. Este entendimento formulado por Vítor Aguiar e Silva do que deve ser uma «teoria científica» está em 165 Fernando Paulo do Carmo Baptista científica deve ser uma construção sistemática de conceitos, de proposições e de hipóteses que proporcionam uma descrição e uma explicação globais e coerentes de uma determinada área de fenómenos». Mas sem esquecer também a prudencial salvaguarda de que essa construção não é alheia nem imune às contingências e aos dinamismos de evolução e metamorfose que marcam o processo global do conhecimento científico, como o não é, aos conflitos entre teorias, modelos e paradigmas, aos condicionamentos de protocolos, programas e políticas de investigação, bem como às tensões geradas pelos próprios jogos de interesses, influências e disputas de concepção e exercício do poder que se travam no interior das academias e das comunidades científicas e fora delas e que Pierre Bourdieu, no contexto do diagnóstico hermenêutico-sociológico da etiologia da crise do “Maio de 68”, retratou com impiedosa e percuciente lucidez e frontalidade, nas famosas análises plasmadas no seu Homo Academicus320. consonância com a concepção que, por exemplo, Rom Harré (As Filosofias da Ciência, Lisboa, Edições 70, 1988, p. 79) apresenta da «ciência», quando a perspectiva como «um conjunto de teorias bem verificadas, que explicam padrões, regularidades e irregularidades entre fenómenos cuidadosamente estudados» ou com Morris H. Shamos, quando considera que «the design of conceptual schemes, models, and theories» consiste em «to account for major segments of our experience with nature, and ultimately form the bases for all explanation in science» (cf. Morris H. Shamos: The Myth of Scientific Literacy, New Brunswick / New Jersey, Rutgers University Press, 1995, p. 46) e revela-se bem mais abrangente e melhor definido e especificado do que nomeadamente o de Paul de Man (op. cit., p. 14) que se limita a ver na teoria «um sistema de conceitos que visa dar uma explicação global a uma área do conhecimento». 320 Análise de questões, por exemplo, como as da articulação entre academia e estratos e classes sociais, elitismo e cultura do status quo, hierarquia, prestígio e «estatuto» académico, influência institucional e curricular, tensão entre ortodoxia, heterodoxia e «heresia», conservadorismo, renovação e inovação, critérios e mecanismos de selecção, controlo, reprodução do corpo professoral e gestão de carreiras, provas e dissertações académicas, os habitus dominantes na academia, o sistema doxástico e os códigos de avaliação, validação e legitimação instituídos, etc., etc... (Cf. Pierre Bourdieu: Homo Academicus, Paris, Les Éditions de Minuit, 1984). 166 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO OS “FENÓMENOS” (tå fainÒmena) ENQUANTO MANIFESTAÇÃO “FÓTICA” DO REAL E INCONTORNÁVEL “SUBSTÂNCIA” CONSTITUTIVA DOS “OBJECTOS EPISTÉMICOS”... Dos contributos que têm vindo a ser avançados para a dilucidação do conceito de «teoria», ressaltou o consensualizado entendimento de que uma “teoria científica”, correctamente concebida e construída, deve proporcionar uma “narrativa” descritivo-explicativa, global e coerente, de «uma determinada área de fenómenos», o que conduz à irresgatável (porque incontornável...) assunção de que, em Ciência, são os “fenómenos” das diferentes e respectivas áreas cartográficas de pertença que constituem a “matéria prima” sobre que se configuram, nas objectivações / objectificações protagonizadas pelo “sujeito epistémico”, os “objectos”321 da teorização, da investigação e da experimentação. Mas essa focalização “objectivante” e “objectificante”322 que “estabiliza” e configura um fenómeno na forma de “objecto simbólico-semiósico”, no quadro da dinâmica corpóreo- mental em que os dados hiléticos sensório-perceptivamente captados se transformam, pela noese (nÒhsiw [noesis]) e pela semiose (shme€osiw 321 Os «objectos» do conhecimento que se pretende rigoroso e devidamente posto à prova e que com toda a pertinência se denominam de «objectos epistémicos». 322 Em que, de modo relacional, intencional e interactivo, se institui e constitui um «objecto» para aquele «sujeito» e, homologamente, um «sujeito» para aquele «objecto»... Considerar, neste contexto, o meu estudo breve «A querela em torno do “sujeito” — subjectivismo, subjectividade, objectividade...» (cf. Fernando Paulo Baptista: Tributo à Madre Língua, Coimbra, Pé de Página Editores, 2003, pp. 195- 198, bem como a bibliografia aí apresentada). Nota: Para um aprofundamento mais especializado desta decisiva problemática do campo da «teoria do conhecimento», constitui um importante contributo o conjunto de ensaios de Donald Davidson: Subjective, Intersubjective, Objective, New York, Oxford University, Clarendon Press, 2001, pp. 3 ss, 93 ss e 135 ss, sem prejuízo da clara apresentação feita na «Introduction» (pp. xiii ss). Estes mesmos ensaios estão disponíveis em espanhol (Donald Davidson: Subjetivo, Intersubjetivo, Objetivo [trad. de Olga Fernández Prat] Madrid, Ediciones Cátedra, col. teorema, 2003) e em italiano (Donald Davidson: Soggettivo, intersoggettivo, oggettivo [trad. de Sergio Levi], Milano, Raffaello Cortina Editore, 2003). 167 Fernando Paulo do Carmo Baptista [semeiosis]), em conteúdos noético-noemáticos ou noemas323 e em unidades sémicas (semas e sememas) pressupõe e implica sempre a sua dialéctica subjectivação / subjectificação num “sujeito”: o sujeito cognoscente, o sujeito epistémico, o sujeito semiótico... Sujeito esse que, todavia, não é uma instância qualquer, porquanto se trata, reconhecidamente, de uma entidade dotada de um “estatuto” onto- gnosiológico, institucional e simbólico, intersubjectivamente avaliado, validado e legitimado na base de uma rigorosa objectivação324 analítico- judicativa e de uma criteriosa, exigente, testada e comprovada ponderação valoradora do seu perfil académico e competencial e do seu desempenho e curriculum reais, com especial destaque para a sua produção investigativa e sapiencial nas áreas científicas e disciplinares respectivas. É assim que, em lógica e implicativa consequência, importa sublinhar que “os objectos epistémicos”325 não existem a se ou propter naturam: são, pelo contrário, na perspectiva de Remo Bodei326, «unidades intencionais, pontos nodais da rede de coordenadas com que 323 Também ditos, peircianamente, «significados» ou «objectos imediatos». Cf. Umberto Eco: Leitura do Texto Literário — Lector in Fabula, Lisboa, Editorial Presença, 1983, 33-35. 324 Sobre este processo de «objectivação», ver, com os indispensáveis ajustamentos, Pierre Bourdieu: El ofício de científico..., op. cit., 160-165, destacando, desde já, o seguinte ajuizamento que bem pode inscrever-se no que ele denomina de princípio de vigilância ou de prudência epistemológica: «Una tarea de objectivación sólo está científicamente controlada en proporción a la objectivación a que ha sido sometido previamente el sujeto de la objectivación» (p. 160). Igualmente importante se afigura a abordagem aí feita ao problema do “ponto de vista” no contexto daquele processo (cf. pp. 164 ss); ver também, pela sua fundacional pertinência na construção e validação dialógico-colegial do conheciemento, Donald Davidson: Subjective, Intersubjective, Objective, New York, Oxford University, Clarendon Press, 2001: p. 209: «the source of the concept of objective truth is interpersonal communication»; «thought depends on communication»; «only communication with another can supply an objective check»; p. 218: «a community of minds is the basis of knowledge»; p. p. 220: «the clarity and effectiveness of our concepts grows with the growth of our understanding of others»; «there are no definite limits to how far dialogue can or will take us»; p. 220: «our propositional knowledge has its basis not in the impersonal but in the interpersonal». 325 E é desses “objectos” que aqui se trata!... 326 Cf. Remo Bodei: A Filosofia no Século XX, Lisboa, Edições 70, 2005, p. 133, no contexto da sua abordagem a Husserl e à Fenomenologia. 168 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO o mundo está estruturado» por acção do poder imaginante, conjecturante, noético-constitutivo, conceptualizante e configurante da “mente” daquele mesmo “sujeito cognoscente” e das “mentes” de seus confrades no respectivo “colégio académico”. Por outro lado, dadas, como vimos, a natureza “substante” dos fenómenos, a sua condição “arqueológica” e a sua “matricialidade” interpelante, suscitante e co-originante, no processo do conhecimento, não pode deixar de se impor aqui, e a partir de agora, uma prévia (porque indispensável...) tentativa de clarificação do termo (e do conceito...) através do qual eles, fenómenos, são nomeados, instituídos, designados, identificados, singularizados e universalizados... Julius Pokorny327, no seu monumental Indogermanisches Etymologisches Wörterbuch328 (que, do ponto de vista filológico, continua a ser, sem dúvida, um dos thesauri mais importantes para o estudo do indo-europeu...), regista, em outras tantas páginas, mais de mil raízes lexémicas devidamente individualizadas e organizadas por “entrada” e distribuídas por dois grossos volumes329. Desse tão copioso 327 Um dos mais destacados filólogos do século XX, pelas suas relevantes investigações na área do indo-europeu, nasceu em Praga em 12 de Junho de 1887, concluiu os seus estudos superiores na Universidade de Viena, onde foi professor, entre 1913 e 1920. Sob o regime nazi, foi titular da cátedra de Filologia Celta na Universidade Humboldt, de Berlim, de 1920 a 1935. Mas, não obstante ser católico e ser publicamente reconhecido como um patriota alemão, ficou a saber o que significava e quanto custava ser oriundo de uma família judia: aos olhos do nazismo, ele não era alemão, era apenas um judeu tal como os seus avós... Em 1943, teve de emigrar para a Suíça, onde exerceu a docência nas Universidades de Berna e de Zurique até à jubilação. Em 1954, foi-lhe conferido o estatuto de «professor honorário» da Universidade Luís-e- Maximiliano de Munique, onde leccionou, com algumas intermitências, até 1965. Faleceu em Zurique em 8 de Abril de 1970, três semanas depois de ter sido atropelado por um carro eléctrico. Ficou-se-lhe a dever o monumental Indogermanisches Etymologisches Wörterbuch que continua a ser uma obra de referência no âmbito dos estudos do indo-europeu. 328 Cf. Julius Pokorny: Indogermanisches Etymologisches Wörterbuch, 2 vols., Tübingen, Francke A. Verlag, 2005, recentemente reeditado. Este monumental thesaurus filológico é fruto de um árduo e persistente labor de décadas e caracteriza- se por uma criteriosa e minuciosa actividade de recolha, contrastação poliglótica e reconstituição comparatística. 329 Há uma edição on line, complementada com outros desenvolvimentos de natureza lexicológica, de que se destaca a seguinte informação: «The database represents the updated text of J. Pokorny’s “Indogermanisches Etymologisches Wörterbuch”, scanned and recognized by George Starostin (Moscow), who has also added the 169 Fernando Paulo do Carmo Baptista acervo assim lematizado, procedi à selecção de duas raízes que, para além do prioritário e específico interesse da sua carga sémica para a presente reflexão, têm, como aliás frequentemente acontece com outras raízes, a adicional curiosidade de apresentarem a mesma textura morfémica: — uma, identificada no Wörterbuch (p. 104), através da “entrada” bha-1 (assinalado com o expoente 1); — a outra, igualmente identificada no Wörterbuch (p. 105), através da “entrada” bha-2 (assinalado com o expoente 2). A primeira330 delas — a raiz bha-1 — apresenta variantes morfémicas decorrentes de uma complexa evolução histórico- civilizacional com as específicas diferenciações e singularizações geo- etno-culturais e idiolectais331, traduzidas quer ao nível da configuração meanings. The database was further refurnished and corrected by A. Lubotsky. Pokorny’s text is given practically unchanged (only a few obvious typos were corrected), except for some rearrangement of the material». (cf.: https://marciorenato.files.wordpress.com/2012/01/pokorny-julius-proto-indo- european-etymological-dictionary.pdf); cf. também: http://dnghu.org/Indo-European-Language-Europe/ 330 Primeira, porque lematizada por Pokorny em primeiro lugar, sem todavia aduzir, para tal “prioridade”, qualquer justificação linguístico-diacronicamente fundamentada: por exemplo, a comprovada (e datada...) anterioridade de uma face à outra... J.P. Mallory and D.Q. Adams: The Oxford Introduction to Proto-Indo- European and the Proto-Indo-European World, Oxford, Oxford University Press, 2009, p. 328-329, referem a raiz * bheh2-, com o significado genético de “brilhar”, raiz presente, por exemplo, no lexema grego α ν , no sânscrito bh ti e bh s-, no antigo irlandês b n... 331 O indo-europeu integra dez vastas «famílias de línguas» que passo a referir, a partir da apresentação feita por Jonathan Slocum, do «Linguistics Research Center (LRC), da Universidade do Texas (cujo «e-portal» é o seguinte: http://www.utexas.edu/cola/centers/lrc/eieol/IEfam.html): 1. Celtic, with languages spoken in the British Isles, in Spain and across southern Europe to central Turkey; 2. Germanic, with languages spoken in England and throughout Scandinavia & central Europe to Crimea; 3. Italic, with languages spoken in Italy and, later, throughout the Roman Empire including modern-day Portugal, Spain, France, and Romania; 4. Balto-Slavic, with Baltic languages spoken in Latvia & Lithuania, and Slavic throughout eastern Europe plus Belarus & the Ukraine & Russia; 5. Balkan (exceptional, as discussed below), with languages spoken mostly in the Balkans and far western Turkey; 6. Hellenic, spoken in Greece and the Aegean Islands and, later, in other areas conquered by Alexander (but mostly around the Mediterranean); 7. Anatolian, with languages spoken in Anatolia, a.k.a. Asia Minor, i.e. modern Turkey; 8. Armenian, spoken in Armenia and nearby areas including 170 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO fonémica (e.g: fenómenos de vocalismo e consonantismo), quer ao nível da morfo-estruturação (e.g: fenómenos de ampliamento morfemático das bases lexicais, alargamentos sufixais da matriz do tema...) no interior de cada língua concreta — *bhee-, / *bhae-, / *bhe- w- / *bhe-w-es- > be- / ba- / be-w- / ba-w- / fe- / fa- [ > fo-] — e revela um forte potencial lexicogénico, bem patente no léxico de várias línguas de cultura, desde as mais antigas até às actuais 332. Da “babélica” galáxia de lexemas disseminados, aqui e além, pelo polifónico “território” das cento e oitenta e oito (188) línguas e dialectos que integram a comunidade das dez famílias interlinguísticas do indo-europeu (céltica, germânica, itálica, balto-eslávica, balcânica, helénica, anatoliana, armeniana, indo-iraniana e tocariana333), limitei- me a organizar um muito circunscrito inventário ilustrativo334 para, eastern Turkey; 9. Indo-Iranian, with languages spoken from India through Pakistan and Afghanistan to Iran and Kurdish areas of Iraq and Turkey; 10. Tocharian, spoken in the Tarim Basin of Xinjiang, in far western China. 332 Aquele que é o nuclear, incindível e irredutível constituinte morfo-semântico do corpo estrutural de qualquer lexema e que, em terminologia linguística, dá pelo nome de «raiz» configura-se, no caso em análise, nesta concreta raiz indo-europeia bha- que está, efectivamente, na génese de um vasto legado lexical interlinguístico, como se pode inferir da amostragem (mesmo circunscrita...) que se apresenta, já a seguir, na nota 334. Para o termo e conceito linguístico de «raiz», consultar: Hadumod Bussmann (dir.): Routledge Dictionary of Language and Linguistics, London and New York, Routledge, 2004, entrada «root», pp. 409-410; David Crystal: An Encyclopedic Dictionary of Language and Languages, Oxford, Blackwell Publishers, 1992, entrada «root», p. 336; Maria Francisca Xavier e Maria Helena Mateus (org.): Dicionário de Termos Linguísticos, Lisboa, 1992, vol. 2, entrada «raiz», p. 321; Jean Dubois et alii: Dictionnaire de Linguistique, Paris, Larousse, 1974, entrada «racine», p. 403. 333 Ver, supra, nota 331. 334 Esse inventário está assim distribuído: — EM GREGO CLÁSSICO (e facilmente se compreenderá o destaque, mesmo circunscrito, que aqui se lhe dá, enquanto língua arquitectante por excelência da cultura europeia e planetária...): fãow, fãouw // f«w, fvtÒw (= luz cósmica), Fa°yvn (= Faetonte, filho de ÜHliow [Hélio, o Sol] e desastrado condutor do carro do pai, que acabou por ser fulminado por Zeus, caindo no rio Erídano), fae€nv (= brilhar), fa€nv (= fazer brilhar, tornar(-se) visível, tornar(-se) presente, revelar(-se), apresentar(-se), dar(-se) a conhecer, explicar(-se), aparecer, mostrar-se, manifestar-se...), fanerÒw, - ã, - Òn (= visível, que se pode ver, que se mostra, aparente...), fanÆ, - w (archote, tocha...), fanÒw, -Æ, - Òn (= brilhante, luminoso, claro, evidente, manifesto...), tå fainÒmena (= as constelações visíveis, os fenómenos celestes...), fantasiÒv (= fazer nascer uma ideia, inventar, imaginar, fantasiar, ver através da imaginação...), 171 Fernando Paulo do Carmo Baptista subsequentemente, proceder à comparação (num direccionado intento de corroboração probatória...) com os lemas respectivos de vários outros dicionários (nomeadamente, etimológicos e terminológicos), segundo o predominante critério da afinidade linguístico-cultural e histórica. Da análise e ponderação dos respectivos significados basilares e primigénios, creio poder-se concluir que o núcleo de semas essenciais e comuns aos lexemas seleccionados é constituído pelas ideias de luz, brilho, manifestação, visibilidade..., configurando uma espécie de “molécula” orgânico-identitária que contém e armazena a informação semântica fundamental de uma dada família de palavras, invariantemente subjacente aos processos de significação e de comunicação verbal, “molécula” que venho designando pela metáfora de “adn semântico”. Abre-se, deste modo, uma clareira para o desafio que se nos colocou, face à irredutível assunção de que é nos “fenómenos” fãntasiw (= visão), fantas€a (= acção de se mostrar, aparição, visão, figuração imaginária, espectáculo dirigido à fantasia...), tÚ fantastikÒn (= a imaginação, o imaginário...)... — EM GREGO BÍBLICO: yeofan€a / yeofãneia (= aparição ou revelação da divindade)... — EM LATIM (aportações resultantes dos processos, entre outros, da helenização e da cristianização): epiphania, Phaethon, phantasia, phantasma, theophania..., bandum (em latim tardio e de origem gótica: estandarte ou insígnia que dá nas vistas e que, sobretudo no pré-feudalismo e no feudalismo, passou a simbolizar e a afirmar o poder instituído; daí, com sucessivas interacções metonímicas e contextuais: bando, bandeira, bandeirola, bandoleiro, bandarilha...)... — EM PORTUGUÊS (com evidente isomorfia, relativamente aos correspondentes lexemas da generalidade das línguas românicas e mesmo das não românicas): diáfano, ênfase, epifania, Faetonte, fanal, fânero, fanerófito, fanerogâmico, faneróide, fantasia, fantasma, fantástico, fase, fénico, fenil, fenol, fenomenal, fenoménico, fenómeno, fenomenologia, fenotexto, fenótipo, fosfeno, fosfóreo, fosforescente, fósforo, fotão, fótico, fotocópia, fotoelectrão, fotogenia, fotografia, fotogravura, fotomagnetismo, fotoquímica, fotossíntese, hierofanta, sicofanta, teofania... E ainda (sobretudo a título de reforço probatório e de curiosidade comparativística): — EM INGLÊS: beacon1 (verbo = dar luz a, guiar), beacon2 (substantivo = farol)... — EM SÂNSCRITO: bhati (= brilhar, cintilar)... — EM INDIANO ANTIGO: vi-bhā van- (= irradiar, brilhar)... — EM GÓTICO E GERMÂNICO: bandwa (= insígnia, estandarte, e também (através do latim tardio: bandum...) bando, ou seja, grupo armado constituído sob a mesma bandeira)... 172 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO (conceptualmente enquadrados...) que, como acaba de ser dito, reside a base de sustentação e a fonte de alimentação de toda a actividade científica. É que um “fenómeno”, em consonância com a semântica arqueológica do nome que o nomeia, é uma «manifestação de luz»: na verdade, o plural neutro — tå fainÒmena — designava, na velha Grécia, «as constelações visíveis», «os fenómenos celestes» e, por extensão, tudo quanto podia ser observado, contemplado e explicado. Porque, sem luz, sem a luz que vinha dos deuses e sem a “luz” que irradiava da sof€a [sophia] dos yevro€ [theoroi] e da Paideia, não era possível a yevr€a [theoria]... Um “fenómeno” é, efectivamente, aquele auroral e genesíaco “aparecer” que começa por desencadear o espanto da admiração e da curiosidade e a concentração meditativa da contemplatio e que, através de uma inconformada e aprofundante indagação, através de uma popperiana «búsqueda sin término»335, se vai transformando em “objecto epistémico”, a ser interpretado, compreendido, descrito, caracterizado e explicado, de forma rigorosa, clara, coerente e global, pelo potencial de racionalidade e de intelecção proporcionado pelas teorias científicas, com a sua “arquitectónica” de princípios e axiomas, leis, protocolos e demais mecanismos de regulação operatória, com a sua rede sistemática de termos e conceitos, proposições, hipóteses, problemas (“quebra-cabeças”), paradigmas, modelos, métodos e procedimentos... Os “fenómenos”336 consubstanciam, assim, a luminosa manifestação, no aparecer, de tudo quanto nesse aparecimento se pode tornar captável e concebível (do latim: capere e concipere), constituindo o puro e simples desvelar-se do ser em si, num jogo e num desafio intérminos: o aberto e interpelante jogo e desafio da verdade 335 Tal é o título, em espanhol, da autobiografia intelectual de Karl Popper, um fascinante roteiro do que foi a derradeira fase da sua vida reflexiva e indagativa em torno da problemática das «teorias científicas» (cf. Karl R. Popper: Búsqueda sin término — Una autobiografía intelectual, Madrid, Editorial Tecnos, 1985). 336 Sobre o termo e o conceito de «fenómeno», ver, na entrada respectiva: Nicola Abbagnano e Giovanni Fornero: Dizionario di Filosofia, Torino, UTET, 1998, pp. 472-473 e André Lalande: Vocabulaire Tecnique et Critique de la Philosophie, Paris, PUF, 101968, pp. 365 ss. 173 Fernando Paulo do Carmo Baptista ( λ ια [aletheia]) de que nos fala Heidegger337 e de que o Da-sein, o humano e reflexivo «pastor do ser», é, entre ocultação e revelação, o intransferível protagonista, o desassossegado, insatisfeito e criativo indagador e construtor... Perspectivados à escala cósmica, à luz de uma teoria como a «M-theory de supercordas»338 e no horizonte global de um processo evolutivo e metamórfico de complexificação e expansão crescentes339 que culminou na epifania do Homem no ventre acolhedor de Deméter, todos os “fenómenos”, no âmago dos diferentes modos de irrupção manifestativa e de configuração expressional da sua natureza, materialidade e/ou simbolicidade, transportam sempre consigo as prístinas radiações “fotónicas” daquelas elementais, super-quentes, super-densas e super-vibráteis nano-partículas340 que se libertaram na Grande Explosão ou Big Bang com que, segundo a conjectura mais generalizadamente aceite entre astrónomos, cosmólogos, físicos de partículas e físicos em geral, se terá inaugurado, a singularidade do processo da cosmogénese, para, nas condições de adequabilidade receptiva que foram proporcionadas por milhões de anos de evolução, suscitarem, como “réplica”, a “contra-radiação” neuronal, inteligente, reflexiva e alumiante, saída das corpóreas entranhas da antropogénese: no fundo, uma luz ao desvelador e dialógico encontro e confronto com outra luz... Por isso é que, independentemente das concretas consequências de natureza epistemológica originadas pela viva controvérsia que, nos começos do século XX, a tríade relacional «fenómeno <> observador <> teoria»341 suscitou no seio da comunidade científica dos Físicos, ao 337 Cf. Martin Heidegger: Sein und Zeit (na tradução de José Gaos: El Ser y El Tiempo, México, Fondo de Cultura Económica, 41971), § 44, pp. 233-252. 338 Teoria que, ao que tudo indica, tende cada vez mais a vir a ser, na Física, «The Magic, Mystery or Matrix Theory of Everything»... Cf. Brian Greene: O Universo Elegante, Lisboa, Gradiva, 22004, pp. 171 ss. 339 De facto, para o bem e para o mal, o aparecimento do Homem na Terra constitui seguramente o mais maravilhoso de todos os fenómenos, de tal modo que Teilhard de Chardin o consagrou, perenizou e singularizou numa obra célebre, com o nome (e título inesquecivelmente bem significativo...) de «O Fenómeno Humano». Cf. Teilhard de Chardin: O Fenómeno Humano, Porto, Livraria Tavares Martins, 1965. 340 Nomeadas e identificadas pelas metáforas músico-instrumentais das violínicas «cordas» e «supercordas». 341 Que bem poderá dizer-se «tríade epistémica». 174 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO convocar teses como as de Pierre Duhem342 e ao envolver directamente, na polémica, figuras tão destacadas como Niels Bohr, Schröedinger, Heisenberg e Einstein, não deixa de ganhar uma forte dimensão simbólica a famosa posição anti-positivista enunciada pelo genial teorizador da relatividade, segundo a qual, «there is no observation without theory»343!... E isso (acrescentaria agora eu, se me fosse 342 Em que ele defende, nomeadamente, que «an experiment in Physics can never condemn an isolated hypothesis but only a whole theoretical group»; numa palavra, que «the physicist can never subject an isolated hypothesis to experimental test, but only a whole group of hypothesis» e que, «when the experiment is in desagreement with his predictions, what he learns is that at least one of the hypothesis constituting this group is unacceptable and ought to be modified; but the experiment does not designate which one should be changed.» (cf. Martin Curd & J. A. Cover (eds.): Philosophy of Science — The Central Issues, New York / London, W. W. Norton & Company, 1998, pp. 302 ss). Defende, ainda, que não se pode falsificar, de modo concludente, uma teoria, uma vez que não é possível excluir a hipótese de que o responsável por uma predição errónea seja parte da complexa situação de comprovação, e não, a teoria submetida à prova, que a concordância com a experiência é o único critério de verdade para uma teoria física, que uma experimentação não é apenas a observação de um fenómeno, mas é, além disso, a sua interpretação teorética e que as teorias não explicam as leis nem fazem com que as leis expliquem os factos, porquanto a explicação é do domínio da metafísica e não da ciência... Para além de tudo isso, inspirado na pascaliana «raison du cœur», dá grande relevância «à fineza de espírito» e ao papel orientador e regulador do «bom senso»: «Pure logic is not the only rule of our judgements; certain opinions which do not fall under the hammer of the principle of contradiction are in any case perfectly unreasonable. These motives which do not proceed from logic and yet direct our choices, these ‘reasons which reason does not know’ and which speak to the ample ‘mind of finesse’ but not to the ‘geometric mind’, constitute what is appropriately called good sense» (idem: ibidem, p. 309). 343 Enunciação feita no contexto do questionamento da importância das «consequências empírico-experimentais» proclamada por Pierre Duhem (relativamente à teoria), da tese da complementaridade lógico-matemática de Niels Bohr, em contraponto com o paradoxo do chamado «gato de Schröedinger», da «teoria das variáveis escondidas», de Einstein (contra Bohr), e da preocupação consensualizadora revelada por Heisenberg: para Einstein, é a teoria que decide o que se pode observar; para Heisenberg, é a teoria que deve adequar-se ao que é possível observar (cf. Giuseppe Tanzella-Nitti e Alberto Strumia (curat.): Dizionario Interdisciplinare di Scienza e Fede, Città del Vaticano, Urbaniana University Press, 2002, vol. 2, entradas: «Duhem» (pp. 1076 ss), «Einstein» (pp. 1728 ss), «Heisenberg» (pp. 1835 ss); cf. também Thomas J. Hickey: History of Twentieth- Century Philosophy of Science, www.philsci.com., 2005, cap. IV: «Werner Heisenberg and the semantics of quantum mechanics». 175 Fernando Paulo do Carmo Baptista permitida a ousadia...), na mesma medida em que não há fenómenos sem luz, como, verdadeiramente, também não “há” luz nem fenómenos fora da mediação modelizante, instituidora e constitutiva da palavra!344... E essa “condição” já está inseminada desde tempos imemoriais no “adn semântico” da raiz indo-europeia — bhā-1 345— para o caso da «luz». Mas está igualmente inscrita no coração da raiz sua “homozigótica”346 — bhā-2 347 —, cujo “adn semântico” remete para as ideias de falar, falar em público, assumir a palavra abertamente, falar de forma clara, audível, entendível, evidenciante e “alumiante”, com o convergente reforço de várias outras raízes do mesmo universo semântico348, sendo naturalmente conjecturável a ocorrência de interacções e/ou “contaminações” de natureza tropológica: do lado da metáfora e do seu “phoretic pole”349, dada a evidente analogia entre as ideias de luminosidade, brilho, fulgor e clareza e as ideias de falar de modo claro e inteligível, exprimir-se e explicar-se bem, tornar bem visíveis, entendíveis e claras as coisas, falar e/ou escrever com 344 Cabe recordar, neste contexto, o jovem professor do romance Para Sempre (Vergílio Ferreira: Para Sempre, Lisboa, Bertrand, 1985), quando na aula em torno do tema da linguagem diz o seguinte: «Não há (...) um mundo real traduzido em palavras, mas um nundo de palavras sobreposto a esse real (p. 195).» E um pouco mais adiante (p. 197): « — Ninguém pode sair das fronteiras da língua, a objectividade da razão está na rede que uma língua teceu. As palavras vivem por si, pensar é articular um sistema de vocábulos, de sons ocos». 345 Ver, supra, nota 334. 346 Ou “irmã gémea”, do ponto de vista da textura mórfica. Todavia, importa ter na devida conta a informação constante em J.P. Mallory and D.Q. Adams: The Oxford Introduction to Proto-Indo-European and the Proto-Indo-European World, Oxford, Oxford University Press, 2009, p. 355, em que é apresentada a conjectura da forma originária da raiz: * bheha-, presente, por exemplo, em palavras como as latinas for, f ris, f tus sum, aff bilis, f bula, f bulor, f bulator, f cundia, f ma, etc., as gregas e , o russo báju, o arménio bay... 347 Esta raiz indo-europeia bh -2 (com a forma originária *bheh2- [cf. J.P. Mallory and D.Q. Adams: op. cit., p. 329] e com as variantes bh -/bhē- // ph -/phē- [> f -/fē-) está na génese de um vasto legado lexical interlinguístico, de que, nas ANOTAÇÕES finais se apresenta uma significativa amostragem, dada a sua específica relevância para o tema da presente reflexão. 348 Ver exemplificação nas ANOTAÇÕES finais. 349 O pólo metaforizante da luz (exs: a luz ou o brilho da palavra; a palavra é a luz»; um discurso brilhante, uma lição fulgurante...). 176 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO brilhantismo...; do lado da metonímia, dada a relação de contiguidade da palavra (e de quem a acciona, profere ou enuncia...) com os deuses, senhores da luz e das estrelas, com as teofanias mediadas pelos textos da revelação e pelas prédicas, homilias e discursos apologéticos, parenéticos e celebratórios e restantes rituais da esfera do sagrado: convocações, eclesias [§kklhs€ai], sinagogias [sunagvg€ai], concílios, proclamações, anunciações, profecias, oráculos, vaticínios, premonições, adivinhações, rezas, preces, orações, cânticos, litanias, maldições, esconjuros, exorcismos, imprecações, augúrios, agoiros350... Manifestações todas elas, em que, no fundo, a palavra aparece a partilhar da ubiquidade e da essência dos próprios deuses. Basta recordar figuras míticas dos Poemas Homéricos como o sacerdote Crises ou o adivinho Tirésias ou, então, de uma pitonisa grega como a do templo de Apolo, em Delfos, de um patriarca bíblico como Abraão ou de um profeta como Isaías... Todavia, a plenitude dessa relação contiguitária com o “divino”, em que a palavra verdadeiramente tange a esfera da luz inextinguível e primigénia, consuma-se, na minha perspectiva, nos efeitos ilocutórios (fotogónicos) da frase imperativa enunciada por Deus no Génesis (1, 3): «E Deus disse: “Faça-se a luz!” E a luz foi feita.» Creio poder encontrar-se, neste passo do Génesis, o eco intertextual que terá levado o intuitivo e “misterioso” autor351 do Apocalipse a “descobrir” o incomparável poder cosmogónico da palavra, ao ponto de a “identificar” (metaforicamente que seja...) com a Divindade, com a Vida e com a Luz, plasmando essa identificação nas páginas imorredouras do seu Evangelho (cf. Joannes: I, 1-14) para memória dos Homens, da História e da Cultura: «o Verbo é Deus, é 350 De notar que a generalidade dos lexemas desta enumeração/acumulação (prédicas, homilias, discursos apologéticos, parenéticos e celebratórios, convocações, eclesias, sinagogias, concílios, proclamações, anunciações, profecias, oráculos, vaticínios, premonições, adivinhações, rezas, preces, orações, cânticos, litanias, maldições, esconjuros, exorcismos, imprecações, augúrios, agoiros...) têm raízes cujo “adn semântico” reenvia para a ideia de «palavra», numa constante relação de contiguidade com as dimensões do sagrado e do divino... 351 Em nome do rigor exegético e hermenêutico, não pode deixar de se referir que se trata de uma «autoria conjectural», ponderando a polémica que se vem desenvolvendo em torno da verdadeira autoria, quer do Apocalipse, quer do chamado IV Evangelho, que, como se sabe, são atribuídos (conjuntamente com três epístolas) ao apóstolo São João, pelo cânone bíblico... 177 Fernando Paulo do Carmo Baptista Vida, é Luz que ilumina todos os homens» — Verbum est Deus, Vita, Lux omnem hominem illuminans. Por outro lado, as duas homozigóticas raízes indo-europeias — bhā e bhā2 — vieram também dizer que, se a luz é pertença dos deuses, 1 a palavra é a faculdade, a possibilidade e a condição antrópica da sua inteligibilidade, ou seja, é a “luz” da própria luz. De facto, sem a linguagem verbal, o mundo não era «mundo»: seria o caos mais negro, mais cego e mudo que imaginar se pode!... Sem a verbosfera, sem as construções que ela possibilita, sem a informação que ela liberta, organiza e distribui, o saber sobre o Cosmos, sobre a Terra, sobre a Vida e sobre o próprio Homem seria impossível. Sem a palavra, toda a energia criadora da Humanidade ficaria irrevelável. No universo inteiro, mesmo povoado de seres de toda a espécie, mesmo recamado dos milhões de galáxias repletas de miríades de estrelas superluminosas, reinaria a escuridão negra do mais absoluto silêncio... Tudo «olharia» para tudo sem qualquer sentido que iluminasse essa mirada... Nada nem ninguém, porque seria a mudez de tudo352... Porque são luz e senhores da luz (di-lo a raiz constitutiva dos nomes que os nomeiam — Zeus, Iupiter, Deus —, como já nos foi dado ver logo no início desta reflexão...), foi aos deuses que coube sobre ela — luz — o poder supremo: a nós, humanos, caber-nos-á a “socrática” contra-partida (até para prevenir prometeicos desvarios ou narcísicas miragens...) de ter sempre presente a convergente lição de Platão e de 352 Cf. Fernando Paulo Baptista: Tributo à Madre Língua, Coimbra, Pé de Página Editores, 2003, pp. 61-62. Na verdade, a criação de um mundo com um sentido genuinamente humano afigura-se de muito difícil consecução fora das fronteiras da palavra, tal como o sublinha Hugo Mujica, quando, em heideggeriano registo, escreve: «como palabra del ser, el hombre se convierte en el privilegiado lugar en el que acontece la irrupción, el despliegue y la expresión del sentido de la existência» (cf. Hugo Mujica: Flecha en la niebla — Identidad, palabra y hendidura, Madrid, Editorial Trotta, 1997, 158); ou Fernando Bárcena (repetindo Agamben...), quando, em lapidar síntese, afirma que «crear es decir y nombrar» (cf. Fernando Bárcena: El delírio de las palabras, Barcelona, Herder Editorial, 2004, p. 95). Isso, sem esquecer, entre outras, a essencial e convergente sintonia com esta perspectiva do poder instituidor, criador, modelador e revelador da palavra, expressa, por exemplo, no pensamento antropológico de Joseph Gevaert (Cf. Joseph Gevaert: El Problema del Hombre — Introducción a la Antropología Filosófica, Salamanca, Ediciones Sígueme, 2003, pp. 46-49). 178 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO Hegel, na expressiva síntese de Remo Bodei353: na pura luz, vê-se tão pouco como na mais cerrada escuridão... Resta-nos, apesar de tudo, uma singular e distintiva prerrogativa (mesmo se confinada aos balizadores, e porventura discutíveis, “limites” de que fala Wittgenstein354...), prerrogativa essa que Aristóteles consignou na sua Política (1253a, 9-10), nos seguintes e consabidos termos: o homem é o único dos seres vivos dotado de palavra — «lÒgon d¢ mÒnon ênyrvpow ¶xei t«n ν». E se é em poética sintonia com Nemésio355 (memorável filho das amorosas e oceânicas ilhas de Deméter, povoadas dos perspicazes, ágeis e capturantes falconídeos que lhes deram o nome — Açores356), se é em órfica consonância com ele que sentimos que é «da vaga vocálica que dependemos / como alga que a onda leva à areia», também, em homóloga convergência com Vergílio Ferreira357, nos cabe «inventar a realidade nas palavras que a inventam», ainda que tão- somente sustentados no limitado poder dessa trémula e perdida “centelha” (scintilla) que Zeus nos outorgou desde o Big Bang... Poder limitado, sim, mas, em todo o caso, poder demiúrgico, consubstanciado, em última instância, na faculdade modelizante e configuradora da palavra, “fotão» semiogénico e protoplásmico da texto-gonia e da texto- fania de todos os discursos: desde os mais simples e mais informais das práticas comunicativas do quotidiano, aos mais elaborados e mais complexos da Ciência, das Humanidades e das Belas Letras... 353 Cf. Remo Bodei: A Filosofia no Século XX, op. cit., p. 192. 354 Ludwig Wittgenstein: Tratado Lógico-Filosófico * Investigações Filosóficas, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1987, p. 115, 5.63. 355 Soneto intitulado «Verbo e Abismo», in Vitorino Nemésio: Obras Completas, vol. II — Poesia, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1989, p. 318. 356 O topónimo ‘Açores’ provém, metonimicamente, do nome da ave falconiforme assim chamada — ‘açor’ —, nome que tem por étimo o lexema latino ‘acceptor’, uma variante morfológica alterada do substantivo ‘accipiter’ (< ad + cip [< cap] + pit [< pet-] + -or / -er) que, em sua semântica originária, significa: «[ave] que, para capturar (capio, -is, -ere) a sua presa, para ela (ad-) se lança em voo picado e ágil (peto, -is, - ere); o «açor» é, assim, em sintonia com a semântica «arqueológica» (com o “adn semântico”) das suas raízes constitutivas, o símbolo da perspicácia e da agilidade mentais, da captação racional e da conceptualização dos fenómenos por que se revela o real. 357 Vergílio Ferreira: Para Sempre, Lisboa, Bertrand, 1984, p. 194. 179 Fernando Paulo do Carmo Baptista Verbo ao abismo idêntico, toado Sobre os traços de fogo que precedem A presença de Deus no monte irado358... É por tudo isso que cada vez mais admiro o velho e enigmático Heraclito (frg. 11), quando o imagino, espantado e perplexo, a concluir: O raio tudo governa!... Porque a verdade é esta: com Zeus ou sem Zeus, nós somos a “luz” que vê a luz que vemos... ANOTAÇÕES E ADENDA 1. A raiz indo-europeia bhā-2 e o seu legado lexical em várias línguas: — EM GÓTICO, FRÂNCICO, GERMÂNICO, FRANCÊS, NORUEGUÊS E INGLÊS (estas três últimas, sobretudo em suas variantes diacrónicas “old”: old french, old norse, old english...), assumindo especial relevância em certas práticas comunicacionais inerentes à organização social e às dinâmicas institucionais daí decorrentes, nos domínios religioso, político e militar do pré-feudalismo e do feudalismo e no quadro da dialéctica «palavra VS poder». Assim, por exemplo, tanto as autoridades religiosas como as civis e militares tinham, entre outras, a prerrogativa de fazer convocações, intimações e proclamações públicas, práticas estas, marcadas por uma clara centralidade e preeminência da palavra. De tal modo que aquele que, simultaneamente, tinha o poder da palavra e a palavra do poder configurada em actos linguísticos institucionais e públicos como os já mencionados (actos de convocação, de intimação e de proclamação...) se designava e identificava, — EM FRANCÊS ANTIGO, pelo nome ban (lexema constituído pela raiz bh -, com adjunção do sufixo -n) que, por isso mesmo, também significava (numa relação metonímica de «dominador <> dominado», «soberano <> vassalo», «subordinante <> subordinado», «causante <> 358 Vitorino Nemésio: Obras Completas, vol. II, op. cit., p. 318. 180 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO causado»...) autoridade, senhor, chefe, comandante... Ainda na mesma linha de sentido e tomando sempre como base a já citada e comum raiz fundacional bh - / bhē-, no que diz respeito especificamente às proclamações, cabe sublinhar que os lexemas que as nomeiam apresentam o mesmo designador ban [< bh - + -n], com ligeiras ampliações sufixais. Exemplificando: — EM GERMÂNICO, proclamar dizia-se banwan [< ban + -wan]; — EM GÓTICO, proibir ou impedir, dizia-se bannan [< ban- + -nan]; — EM NORUEGUÊS ANTIGO, banna [< ban- + -na] significava anunciar publicamente a proibição (proibir) ou proclamar a maldição (amaldiçoar); — EM INGLÊS ANTIGO, gebann [< ge- + ban- + -n] significava proclamação; — EM FRÂNCICO, o verbo bannjan [< ban- + njan] tinha o significado de banir, ou seja, proclamar a exclusão, declarar publicamente a condição de proscrito e, daí, expulsar, desterrar, proibir, silenciar, suprimir... — EM GREGO: o substantivo fÆmh, -hw (homólogo do nome latino fama, -ae = fama, revelação e publicitação pela palavra; oráculo, augúrio, presságio ou advertência vinda dos deuses; reputação [favorável ou desfavorável, boa ou má] posta a circular em público acerca de alguém); o verbo fhm€ (= falar, tornar manifesto o seu pensamento através da palavra, revelar, anunciar em público...); o verbo blasfhm°v (equivalente ao verbo latino maledicere = ‘maldizer’; cabe sublinhar a conjectura, segundo a qual, este lexema grego se terá constituído na base da combinação da raiz *m s [portadora da ideia de “mau” e de onde provém o adjectivo latino «malus, -a, -um»], com a raiz “ph -” [> ph / phē-”], presente no já referido verbo fhm [f mi = falar]: o verbo blasfhm°v significa, assim e literalmente, «maldizer, dizer mal, proferir palavras ofensivas, blasfemar, praguejar» e, no contexto das práticas sacrificiais de natureza religiosa, assumia o significado específico de «fazer afirmações de mau agoiro, proferir expressões ofensivas da divindade»); o substantivo blasfhm€a (= maledicência, impropério, insulto, blasfémia, palavra ou expressão injuriosa ou desrespeitosa do sagrado e do divino...); fvnÆ (= som vocal, forte e nítido, voz...); f nhma (= som vocal, palavra, discurso, fonema [este, em sentido “técnico” especializado]...), verbo fvn°v (= falar alto, dar voz de comando, emitir sons vocais, audíveis e claros...), profhtÆw (= 181 Fernando Paulo do Carmo Baptista profeta, aquele que interpreta a vontade dos deuses e que fala publicamente em seu nome, aquele que anuncia o futuro...); — EM LATIM: *for, faris, fari, fatus sum (= falar, dizer...), fatalis, -e, (fatal, isto é, que foi predito ou vaticinado pelos oráculos dos deuses, ou pelo fatum ou destino), fateor, -eris, -eri, fassus sum (= confessar, manifestar, declarar; com os seus derivados: confiteor, confessio, confessor, confessus, profiteor, professor, professio, professus...), fatidicus (< fatum + dicere: fatídico, isto é, agoirado ou vaticinado pelo (mau) destino]), fama, -ae (= revelação e publicitação pela palavra; oráculo, augúrio, presságio ou advertência vinda dos deuses; fama, reputação [favorável ou desfavorável, boa ou má] posta a circular em público acerca de alguém); — EM PORTUGUÊS (com evidente isomorfia, relativamente aos correspondentes lexemas da generalidade das línguas românicas e, mesmo, das não românicas): abandono, afabilidade, afasia, afásico, afável, afonia, afónico, antífona, banal, banir, blasfemar, blasfémia, blasfemo, brasfemar, brasmar, confabulação, confabular, confessar, confissão, difamação, difamar, difamatório, disfasia, disfemismo, efabulação, efabular, eufemia, Eufémia, eufemismo, eufemístico, eufonia, fábula, fabulação, fabular, fabulário, fabuloso, fada, fadário, fado, facúndia, fala, fama, famigerado, famoso, fandango, fando, fone, fonema, fonética, inefável, infame, infâmia, infância, infando, infantaria, infantário, infante, infantil, nefando, polifonia, prefácio, profecia, professar, professor, profissão, profético, profetizar sinfonia, telefone, telefonia... Para outros desenvolvimentos, ver a nota 34 da minha comunicação intitulada «A “lição” do Professor...» in Fernando Paulo Baptista (org.): Vítor Aguiar e Silva: A Poética Cintilância da Palavra, da Sabedoria e do Exemplo, op. cit., pp. 94-95. 2. Raízes do mesmo universo semântico da “ideia de falar”, de “comunicar através da palavra”: são várias as raízes indo-europeias que exprimem as ideias de “fala”, de “palavra”, de “linguagem verbal”, variando consoante os conteúdos, as situações e os contextos de comunicação. Assim e a título ilustrativo: a) a raiz werə- /wr- [> wor-] / wr - [> re-] está na base da constituição, entre outros, de lexemas como: em inglês: word; em germânico: 182 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO *wurdam; em alemão: Wort; em português: verbo, retórica, rema, ironia [< do grego e rvne€a [eironeia]...; b) a raiz leg- / log- (presente num vasto e diversificado elenco de lexemas: analogia, antologia, apólogo, colecção, colectânea, colégio, decálogo, dialecto, diálogo, dislexia, eleger, epílogo, homólogo, inteligência, legenda, legível, leitura, lexema, léxico, lição, logaritmo, lógica, prólogo, relógio [< horologium], selecta, silogismo...) remete para a ideia de «palavra», enquanto faculdade ou capacidade de captar, colher, escolher, distinguir e nomear dados de toda a ordem, de estabelecer relações e nexos entre eles (de raciocinar...), de os nomear e identificar, de «ler», compreender e «explicar»: é esta a raiz constitutiva do substantivo grego lÒgow e do verbo latino legere; c) a raiz kelə-2, com as variantes kle - / kla - [> kla- / kal- ] / kol - e respectivas ampliações sufixais (presente em lexemas como: aclamar, aclarar, calendário, calendas, clamar, clamor, clarividência, claro, conciliatório, concílio (< lat.: concilium < concalium), declamar, declarar, ecclesia (lat.), esclarecer, exclamar, intercalar, nomenclatura, Paracleto, proclamar, reclamar, reconciliar...) reenvia para a ideia de «palavra proferida em voz alta», de «palavra bem audível, clara e esclarecedora»: é esta, como acabámos de ver, a raiz conformadora do substantivo clamor, do adjectivo claro e dos verbos clamar, declamar, exclamar, proclamar, aclarar, clarificar, declarar...; d) a raiz deik- / dik- / doik- (igualmente presente num vasto e diversificado elenco de lexemas: EM INGLÊS: teach [= mostrar, ensinar], token [= amostra]; EM GREGO: de€knumi [= mostrar, fazer ver, indicar], de›jiw [= acto de mostrar, de fazer ver, de indicar]; EM LATIM: dicere [= dizer, mostrar, exprimir por palavras e por gestos], digitus [= dedo (< digitum > diitum > deedo), o dedo indicador, que serve para mostrar, para apontar], digitalis, digitare, digitatus, indigitare, indigitatus, benedicere, dictare, dedicare, interdicere, iudicare, praedicare...; EM PORTUGUÊS: dizer, dedo, dedal, dígito, digital, sendo que só o verbo dico, de forma mais ou menos evidente, está na base de mais de 300 lexemas portugueses: desde abdicar, passando por dicionário e índice, até verídico, vindicar, reivindicar e vingar [< do latim: vindicare] (Cf., a propósito, o quase exaustivo inventário constante do Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, op. cit., na entrada «diz-»); 183 Fernando Paulo do Carmo Baptista e) a raiz indo-europeia wekw- / wokw-, com as configurações wep- / wok- / wop- (em consequência não só da alternância vocálica qualitativa («grau e / grau o»), mas também da evolução da lábio-velar – kw –), tem como “adn semântico” a ideia de «emitir sons vocais, soltar a voz, falar e cantar», remetendo, de um modo muito especial, para a ideia de «voz» e de «palavra» por excelência, ou seja, para «a voz e a palavra poéticas que cantam os grandes feitos de um povo», ou seja, o seu «epos» [¶pow], a sua «epopeia» [§popoΐa]: «As armas e os barões assinalados (...) / E também as memórias gloriosas (...) / E aqueles, que por obras valerosas (...), / Cantando espalharei por toda parte, / Se a tanto me ajudar o engenho e arte.» [os itálicos são meus] (Camões: Lus., I, 1-2). Esta raiz wekw- / wokw- // wep- / wok- / wop- está na origem, entre outros, dos lexemas gregos §pikÒw, §popoΐa, §popoiÛkÒw, ¶pv, ˆc, ÙpÒw (= voz, voz duma divindade, duma musa), KalliopÆ [< kalÒw (belo, lindo) + ˆc, ÙpÒw (= voz), ou seja, a musa da bela voz], de onde provêm, nomeadamente, os lexemas portugueses épico, epopeia, epopeico / epopaico, Calíope, ortoépia, ortoépico..., todos eles, com um “adn semântico” a remeter para as ideias de «soltar a voz, falar, dizer, cantar» (em sentido poético). Esta raiz wekw- / wokw, através do latim, está na base de um importante conjunto de lexemas muito ligados ao substantivo uox, -cis (uocem > voz), integrando alguns deles um específico «conjunto terminológico» ligado às Ciências da Linguagem: vocabulário, vocábulo, vocal, vocálico, vocalismo, vocalização, vocalizar, vocativo, vogal, semivogal, voz [activa vs passiva]... Mas, como se pode verificar, trata- se predominantemente de lexemas de uso mais vasto, ainda que circunstancialmente especializado num ou noutro sector de actividade (e.g.: a vida jurídico-administrativa): avocar, convocatória, advogado, advogar, advogável, avocação, avocar, avocatória/o, avocatura, avocável, convocatória, convocar, convocável, equivocidade, equívoco, evocação, evocar, evocativo, evocatório, invocação, invocar, invocativo, invocatório/a, invocável, provocador, provocante, provocar, provocatório, revocação, revocar, revocatória/o, revogação, revogabilidade, revogar, revogável, revogatória/o, vocação, vocacional, vocacionar, vocalista, vocalizo, vociferar, vociferante, vogal (= membro de um júri), voz, vozear, vozearia, vozeio, vozeirada, vozeirão... 184 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS • ABBAGNANO, Nicola e FORNERO, Giovanni: Dizionario di Filosofia, Torino, UTET, 1998. • AGUIAR E SILVA, Vítor Manuel de: «As relações entre a Teoria da Literatura e a Didáctica da Literatura: Filtros, Máscaras e Torniquetes», in AA.VV.: Didáctica da Língua e da Literatura, vol. 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DA EDUCAÇÃO, DA INVESTIGAÇÃO E DA FORMAÇÃO (em referência à “ideia-mater” de “Universidade”) «Universidade: Magno Projecto Académico de Investigação, Formação e Divulgação em todos as áreas do Saber, iluminado pelos supremos valores da Sabedoria, da Virtude, da “Aristeia” e do Mérito... — Projecto Maior da Cidadania.» «Cada criança é um poeta; cada criança é um artista; cada criança é um cientista.» «Professores: protagonistas da palavra fundadora, estruturante, sábia e artística; “Engenheiros-Arquitectos-Poetas” dos horizontes vitais... (F. Paulo Baptista) 199 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO À luz do que está consignado na Declaração Universal dos Direitos do Homem (artigos 1.º e 26.º), adoptada e proclamada pela Assembleia Geral da ONU, na sua resolução 217A (III), de Dezembro de 1948, e em conformidade com o que vem sendo defendido em conferências internacionais específicas (e.g.: a Conferência Mundial sobre o Ensino Superior, UNESCO, Paris, Outubro de 1998), TODO E QUALQUER CIDADÃO DO PLANETA TEM O DIREITO DE ACEDER A TODOS OS NÍVEIS DA EDUCAÇÃO E DO ENSINO, desde o Ensino Básico ao Ensino Superior, inclusive, em coerente sintonia com o sentido da caminhada evolutiva e progressiva narrada pela História da Civilização, da Cultura e da Pedagogia, em direcção à plena humanização do Homem e de harmonia com as dinâmicas morfoplásmicas subjacentes aos três fundamentais estádios ou períodos vitais por que se desenvolve o processo antropo-ontogenético: Infância > Adolescência > Adultez Importa sublinhar que um Sistema Educativo e Formativo, coerentemente organizado, contempla, isomorficamente e em princípio, nos planos da “sintaxe” curricular e da prestação de serviço público, três grandes e homólogas sequências ou fases educativo- formativas que deveriam estar adequadamente articuladas entre si ao nível da concepção, do planeamento, da estruturação orgânica e do funcionamento: Ensino Básico > Ensino Secundário > Ensino Superior (—> Universidade) Na decorrência de uma tal perspectiva ontogenética, antropológica, político-jurídica e organizacional, a “arquitectura” global desse estratégico Sistema, mais do que inspirar-se num “paradigma científico-tecnológico” instrumentificante dos actos educativos e formativos e gerador do poderoso “quadrimotor louco” 201 Fernando Paulo do Carmo Baptista (co-envolvendo a ciência, a técnica e a tecnologia, a indústria e o lucro desenfreado do “capitalismo selvagem”) de que fala Edgar Morin360 e que vem avassalando sombriamente Deméter, a nossa Terra-Mãe, deverá ser, em meu convicto entendimento, a expressão consubstanciadora de um novo e inovador “paradigma humanista” de matriz artística (poiésico-aisthésica [lato sensu]), antropológico- cultural e axiológica que coloque o ser humano — ênyrvpow — no coração do processo educativo e formador, enquanto protagonista maior desse mesmo processo, ou seja, enquanto sujeito de todas as aprendizagens, livre, responsável e solidariamente activo e criativo, por forma a situar a técnica, a ciência e a tecnologia — a tecnociência — no pólo dos meios e a integrá-las, de forma inclusora mas subordinada, na lógica dos princípios e na teleonomia dos fins361. É por isso que proponho como ideia fundadora para a nossa educação da infância (que, em meu convicto entendimento, deveria constituir a “pedra angular” do nosso Sistema Educativo e Formativo...) o lema de que «CADA CRIANÇA É UM POETA», de que «CADA CRIANÇA É UM ARTISTA»... E faço-o, em clara e profiláctica sobre- posição (mas não: contra-posição...) teleológica ao slogan do «EVERY 362 CHILD A SCIENTIST» que tem vindo a atravessar os jardins de infância dos Estados Unidos da América!... Por outro lado, parece ter todo o cabimento e sentido desmontar, com fundamentada reflexão crítica, o preconceito do elitismo e a usura do marketing da excelência apriorística e virtual contra os princípios antropológicos e demótico-génicos da isogenia, da isotopia, da 360 Cf. Edgar Morin: O Método V. — A Humanidade da Humanidade, Lisboa, Publicações Europa-América, 2003, p. 236. 361 Cf. Adams, D. L., & Others: «Science, technology and human values: An interdisciplinary approach to science education», apud “Journal of College Science Teaching”, 1986, 15(4), pp. 254-258; Giuseppe Longo: Homo technologicus, Roma, Meltemi, 2001; Emilio Martínez Navarro: Ética para el Desarrollo de los Pueblos, Madrid, Trotta, 2000, pp. 127 ss, 189 ss; Rémi Brague: A Sabedoria do Mundo, Lisboa, Edições Piaget, 2002, passim; Javier Echeverría: Ciencia y Valores, Barcelona, Ediciones Destino, 2002, pp. 117 ss, 211 ss; José Luis Molinuevo: Humanismo y Nuevas Tecnologías, Madrid, Alianza, 2004, pp. 67-230); Pedro Ortega Ruiz y Ramón Mínguez Vallejos: Los valores en la educación, Barcelona, Ariel Educación, 2001, pp. 205-253. 362 Cf. a proposta subscrita pelo National Council, plasmada na divulgadíssima brochura intitulada “«Every Child a Scientist». 202 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO isonomia, da iso-agoria, em suma, da isopaideia e da isopoliteia, o mesmo é dizer, da parificação ôntico-ontológica, axiológica e antropo- agógica e da efectiva igualdade de acesso e de oportunidades, devidamente sustentada... Ou seja, torna-se cada vez mais urgente e pertinente o empenhamento ético-político na construção da real e efectiva igualdade de todos em tudo363, e sempre na base do constante respeito pela “diferença”... Mas essa reflexão crítica e esse empenhamento axiológico não dispensam (não podem dispensar...) a assunção de uma adequada postura de fundo relativamente à questão da cidadania (em grego: polite€a), se esta for entendida (como julgo que deve ser...) como a qualidade, a condição e o estatuto identitário, inerentes ao facto de ser cidadão ( po €thw), isto é, ser, de corpo inteiro, membro constitutivo e integrante de uma comunidade política ( koinon€a politikÆ), o mesmo é dizer, de uma «comunidade de cidadãos», bem como o sistema e o regime organizativo e jurídico-administrativo da vida em sociedade, configurada, outrora, nas multímodas dinâmicas da PÒliw (Polis) ou da Ciuitas e, actualmente, do Estado-Nação e, mais alargada e englobantemente ainda, da Comunidade das Nações ou da Comunidade Humana Planetária. Todavia, uma concepção da cidadania que se pretenda actualizada e inovadora não pode deixar de considerar, hoje, as cinco dimensões essenciais a que, com inteira pertinência, se refere Roberto Carneiro364: 1) a dimensão da democraticidade, fundada na centralidade do valor e da dignidade da pessoa humana, com toda a espécie de implicações daí decorrentes, nomeadamente: o acesso efectivo à educação, à grande arte, à grande cultura e à grande ciência, à formação ao longo da vida (lifelong learning), à 363 Cf. Noberto Bobbio: Teoría General de la Política, Madrid, Editorial Trotta, 2003, pp. 323 ss; Rosa Maria Rodríguez Magda: Transmodernidad, Barcelona, Anthropos Editorial, 2004, pp. 147 ss e passim; Michelangelo Bovero: Una gramatica de la democracia — contra el gobierno de los peores, Madrid, Editorial Trotta, 2002, pp. 15-33, 117 ss); Francisco Serra: História, política y derecho en Ernst Bloch, Madrid, Editorial Trotta, 1998, pp. 27-30, 44. 364 Cf. Roberto Carneiro: Fundamentos da Educação e da Aprendizagem, Vila Nova de Gaia, Fundação Manuel Leão, 2001, pp. 264-267. 203 Fernando Paulo do Carmo Baptista multimedialidade e à enciclomedialidade365, ao domínio das novas linguagens da comunicação, o direito ao exercício da livre crítica na desmontagem argumentativa das mensagens manipuladoras, à garantia do pluralismo no pensamento e na acção...; 2) a dimensão da socialidade, co-envolvendo a formação de uma forte consciência dos direitos e dos deveres sociais e de um sentido solidário e pró- activo perante fenómenos como os da pobreza, da exclusão e da marginalidade, a realização dos valores da justiça e da equidade, o incremento da igualdade de oportunidades, a defesa dos desvalidos e dos mais fracos...; 3) a dimensão da paridade, com a promoção despreconceituosa do desenvolvimento superador de toda a espécie de assimetrias e, assim, a valorização simétrica, harmoniosa e trans-elitista das potencialidades do ser humano, através do combate, sem tréguas, a todo e qualquer tipo de discriminação, exclusão, segregação ou violência...; 4) a dimensão da interculturalidade, com a defesa universal da diversidade das culturas, o respeito pela afirmação da singularidade de cada uma, ainda que minoritária, o cultivo do diálogo polifónico, aberto e compreensivo e a recusa de qualquer tipo de tentação de natureza imperial, hegemónica ou neocolonialista...; 5) a dimensão da ambientalidade ecossistémica, com o sagrado respeito pela Terra 366a imperativa preservação dos bens da natureza, da biodiversidade e do 365 Cf. http://www.tecnicocavour-vc.it/multimedialita.htm; http://www.mediamente.rai.it/HOME/BIBLIOTE/intervis/m/maraglia.htm; http://www.mediamente.rai.it/HOME/BIBLIOTE/intervis/m/maragl03.htm; http://www.sepbcs.gob.mx/tics/enciclomedia.htm#inicio; http://www.enciclomedia.edu.mx/Conoce_Enciclomedia/Conozca_mas.htm. http://ciberhabitat.gob.mx/academia/proyectos/enciclomedia.htm; http://enciclopedagogia0.tripod.com/ 366 “Deméter” [Terra-Mãe], nossa fraterna e maternal “casa comum”. Cabe invocar, aqui, a crucial “mensagem de conscientificação e alerta”, plasmada pelo Papa Francisco na sua carta-encíclica “LAUDATO SI”, dedicada ao englobante e sinérgico cuidado e preservação do Planeta Terra. Como motivação para a sua leitura integral, considere-se o seguinte excerto (§ 10 e §11) respeitante à figura de SÃO FRANCISCO DE ASSIS, de quem o Santo Padre tomou o nome episcopal-identitário de “Francisco” como guia e inspirador da Sua acção: «Eius nomen veluti ducem auctoremque Nobis indidimus...»]: «10. Não quero prosseguir esta encíclica sem invocar um modelo belo e motivador. Tomei o seu nome por guia e inspiração, no momento da minha eleição para Bispo de Roma. Acho que Francisco é o exemplo por excelência do cuidado pelo que é frágil 204 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO equilíbrio e sanidade dos elementos, no quadro de uma estratégia de desenvolvimento sustentável e na perspectiva da salvaguarda da vida e do futuro humano do Planeta... Essa postura multidimensional de fundo implica necessariamente a defesa intransigente da já referida parificação relativamente a todo e qualquer cidadão, contra toda e qualquer manifestação preconceituosa, xenófoba, discriminatória e exclusora ou contra o não reconhecimento do inviolável direito de sermos diferentes, no pressuposto ontopoiésico de que o outro, longe de ser o inferno («l’enfer c’est les autres»367), é, pelo contrário, o constituinte primigénio da nossa própria ontidade e identidade368... O que significa que, na Cidade, na Pólis, todos devemos ser iguais de facto e de direito (ou mais explicitamente: de direitos e de deveres, de obrigações e de condições...), designadamente no que toca àquela legítima garantia que, nas três fundamentais fases, estádios ou períodos da nossa ontogénese — infância > adolescência > adultez —, nos permite aceder (sem outras restrições ou limites que não sejam os da nossa finitude existencial...) ao tesouro mais precioso da Humanidade: e por uma ecologia integral, vivida com alegria e autenticidade. É o santo padroeiro de todos os que estudam e trabalham no campo da ecologia, amado também por muitos que não são cristãos. Manifestou uma atenção particular pela criação de Deus e pelos mais pobres e abandonados. Amava e era amado pela sua alegria, a sua dedicação generosa, o seu coração universal. Era um místico e um peregrino que vivia com simplicidade e numa maravilhosa harmonia com Deus, com os outros, com a natureza e consigo mesmo. Nele se nota até que ponto são inseparáveis a preocupação pela natureza, a justiça para com os pobres, o empenhamento na sociedade e a paz interior. 11. O seu testemunho mostra-nos também que uma ecologia integral requer abertura para categorias que transcendem a linguagem das ciências exactas ou da biologia e nos põem em contacto com a essência do ser humano. Tal como acontece a uma pessoa quando se enamora por outra, a reacção de Francisco, sempre que olhava o sol, a lua ou os minúsculos animais, era cantar, envolvendo no seu louvor todas as outras criaturas. Entrava em comunicação com toda a criação, chegando mesmo a pregar às flores «convidando-as a louvar o Senhor, como se gozassem do dom da razão». http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals/documents/papa- francesco_20150524_enciclica-laudato-si.html 367 Cf. Jean-Paul Sartre: Huis Clos, Paris, Gallimard, 1986, 41. 368 Cf. Fernando Paulo Baptista: Polifonia, Poiese & Antropopoiese — Para uma Sinfónica do Humano, Lisboa, Edições Piaget, 2006, pp. 15, 17, 54. 205 Fernando Paulo do Carmo Baptista a Educação, a Formação, a Cultura, a Arte, a Ciência, o Saber, a Sabedoria... Por tudo isso, não consigo deixar de pensar e imaginar o que é que não viria a acontecer com cada uma das crianças do nosso País e do Mundo inteiro, se lhe fosse dada a possibilidade e a oportunidade de percorrer, do princípio ao fim, os três naturais e atrás referidos grandes estádios ou períodos evolutivos e educativo-formativos, para poder crescer e ser mais e ser melhor, à sua maneira e à medida do que for sendo capaz, e partilhar activamente, em sua diferença e autonomia, em sua liberdade e em sua responsabilidade, a intérmina construção da Catedral da Humanidade... É, ainda assim, que não desisto de me interrogar: não será essa Paideia Global e Avançada o mais importante dos «rios a norte do futuro» que importa que todos atravessem, por forma a potenciar a antrópica e sapiencial «explosão de todos os sóis», se me é permitido dizê-lo com estas esperançosas e plenificantes metáforas de Paul Celan369?... E não será essa, também, a mais bela das utopias, alimentadora de todas os sonhos e desejos e propulsora de uma verdadeira Termodinâmica ou Mecânica Quálica da Humanidade, de uma inspirada e neguentrópica Poética da Antropogénese?... Há que proporcionar, então, os indispensáveis meios e condições para que cada ser possa criar-se e desenvolver-se, vitalmente e sem limites, no fascínio, no sortilégio e no paradoxo de ser, concretamente, um ser singular e universal!... DA EDUCAÇÃO Da consideração do inventário de significados suscitados na nossa mente pelo lexema ‘educação’ (através de um exercício de consulta levado a cabo nos nossos dicionários de língua portuguesa), ressaltam quatro fundamentais pólos de interpretação, compreensão e inteligibilidade conceptual e cognitiva, interligados e integrados num alinhamento sintáctico de natureza fenomenológica e processológica 369 Cf. Paul Celan: Sete Rosas Mais Tarde — Antologia Poética (ed. bilingue de João Barrento e Y. K. Centeno), Lisboa, Edições Cotovia, 21996, pp. 121, 109. 206 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO por que se distribui um forte sentido arquitectónico e sistematizador, tanto de intenção teorética como práxica: – a educação370 — enquanto acção endógena e exogenamente orientada e conduzida para o “alimento” e o desenvolvimento integrado do ser humano (considerado, antidualisticamente, em sua complexa e intrínseca unidade “corpo- mente” [body-mind], “corpo-espírito”371...), designadamente das qualidades e capacidades corpóreas, sensoriais, afectivas, noéticas, intelectuais, axiológicas, poéticas, estéticas, éticas, atitudinais, sociais, etc.; – a educação — enquanto efeito e metamorfose, decorrentes dessa acção; – a educação — enquanto processo de instrução, ensino e formação, com diferentes graus e níveis de institucionalização, formalização, exigência e consecução; – a educação — enquanto específico sistema e serviço social, constitutivamente fundamentado em princípios antropológico-culturais, históricos, político-sociológicos, filosófico-axiológicos e epistemológicos que comporta os indispensáveis meios organizacionais, institucionais, estruturais e funcionais, tendo em vista a consecução dos fins que justificam e legitimam a sua existência. No modo de conceber e entender a ideia de “educação”, importa destacar a omnipresença das vertentes teorética, práxica, crítica, poiésica, estésica e axiológica por que ela se desdobra, bem como a irredutível dimensão cultural em que ela concretamente se institui, organiza e desenvolve, enquanto possibilidade da evolução sapiencial e formativa estruturantemente modeladora de pessoas, instituições e 370 O nome ‘educação’ provém do substantivo latino educatio, -onis [em sentido literal: criação de animais ou de crianças, alimentação...; em sentido figurado: formação, instrução, ensino...], portador da mesma raiz — duc- — presente nos verbos educare [= fazer crescer, nutrir, alimentar, cuidar de, criar... educar, formar...] e educere [< e + ducere = fazer sair de, conduzir e orientar, a partir de dentro, promovendo o desenvolvimento integral...]. 371 Creio não estar errado quando penso que o «corpo glorioso» de que, no contexto da ressurreição final, se fala no Evangelho (cf.: Mt 22, 23-33) consubstancia bem essa irredutível unidade definitivamente consagradora do valor do corpo humano, tanto mais que, na própria celebração do sacramento da eucaristia, não se recebe o spiritus ou a anima Christi: o que se recebe é, sim, inteira e unitariamente, o corpus Christi, o corpo de Cristo. Na verdade, no momento da sagração e transubstanciação da hóstia, o sacerdote diz: «hoc est enim corpus meum»; e não: «hoc est enim anima mea» ou «hoc est enim spiritus meus»... 207 Fernando Paulo do Carmo Baptista sociedades, enquanto capacitação maior da constante e sistemática interpretação e compreensão antropológica e da antrópica superação do homem por si próprio, enquanto imprescindível condição não só para a concepção, melhor fundamentada, de uma “visão” holística do Universo, mas também, e sobretudo, para a realização integrada e desejavelmente integral da humanidade do Homem ( ν ο — anthropos)372, assumindo-se, desse modo, como motor sereno do processo global da humanização... Defluente de uma construção epistemologicamente mais consistente e coerente e, assim, mais adequadamente iluminante dos próprios actos, caminhos e projectos que configuram a sua yevr€a (theoria) prospectiva, descritiva e explicativa, a sua prãjiw (praxis) empenhada e transformadora, a sua a‡syhsiw (aisthesis) receptora, compreensiva e interiorizadora, a sua kr€siw (krisis) judicativa, distintiva, diferenciadora e decisional e a sua po€hsiw (poiesis) instauradora e inventivo-inovadora, a Educação configura a irrenunciável e inesgotável utopia e o inalienável thesaurus tão afincadamente defendidos pela Comissão Delors373, em suma, a libertadora MAGNA CHARTA HUMANITATIS, perpetuadora daquela mesma Paide€a (Paideia) que os mais famosos Sábios da Velha Hélade imortalizaram para sempre na Cultura da Europa e do Mundo... DO ENSINO SUPERIOR, COM NATURAL ÊNFASE PARA A UNIVERSIDADE, ENQUANTO “REFERÊNCIA” E “PARADIGMA” Neste contexto e atentas as suas especiais responsabilidades, é missão do Ensino Superior374 garantir a todos os cidadãos, sem qualquer 372 Somatosférico, psicosférico, sociosférico, biosférico, cosmo-geosférico... 373 Cf. Jacques Delors (org.): «La educación o la utopia necesaria», apud AAVV: La educación encierra un tesoro, Madrid, Grupo Santillana de Ediciones / UNESCO, 1996, p. 13. 374 Designação por que se consagrou e universalizou o mais alto e mais elaborado serviço e ciclo de estudos da estrutura curricular dos sistemas educativos e formativos... 208 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO espécie de discriminação, as indispensáveis condições para que possam desenvolver, até aos limites do sem-limite, a globalidade das suas capacidades e, mais focadamente, as mais poderosas e mais nobres: a imaginação criadora, a sensibilidade, a afectividade, a inteligência, a razão, a memória, o espírito crítico, a vontade resiliente e determinada..., em estreita articulação com o sentido ético-axiológico da vida, a hermenêutica (interpretação e compreensão) das diversas “textualidades”, a expressão discursivo-comunicativa... Cabe-lhe, em suma, criar, com esclarecida visão estratégica direccionada para o desempenho competencial dos mais exigentes, especializados e mais responsabilizantes cargos e missões sociais, as indispensáveis condições para que eles possam combinar e inseminar no intérmino e paradoxal processo da sua ontogénese informante e sapientante e, assim, qualitativamente maturante e adultante a dimensão da ipseidade com a da alteridade, ou seja, o sentido da singularidade concreta que individualiza, distingue, diferencia e liberta com o da universalidade que transcende, integra, solidariza, responsabiliza e dignifica. Mas os projectos de educação e formação a conceber em consonância com essa visão estratégica de modo algum devem fazer esquecer o estado-de-coisas em que se tem vindo a arrastar o Sistema Educativo e Formativo desde a base até ao topo, a orientação que lhe vem sendo imprimida, no fundo, a situação concreta de que se parte e que se visa superar e transformar... E essa situação não deixa de ser deveras preocupante. De facto, em vez de se promover, de modo responsável e responsabilizante, o livre desenvolvimento da autonomia de cada sujeito na construção da identidade pessoal e comunitária, do mundo da vida (Lebenswelt) e da visão do mundo (Weltanschauung), do espírito crítico, da enciclopédia sapiencial e experiencial própria, progrediente, qualitativa e irrepetível, contrapõe-se-lhe uma dinâmica de base heteronómica, dominantemente orientada para a mimese ou o decalque de estereótipos adinâmicos, distróficos e banais, para o folclore e o ludismo infantilizantes, se não mesmo estupidificantes, e para a reprodução de conhecimentos e saberes (tantas vezes já cristalizados e obsoletos ou, então, exóticos, deslocados e inadequados...) legitimados e canonizados de forma dogmática e burocrática, longe, portanto, da prioritária implicação da criatividade inventivo-inovadora (poiésica) e 209 Fernando Paulo do Carmo Baptista consagradora da diferenciante singularidade dos ritmos de aprendizagem375 dos reais protagonistas e destinatários do processo educativo e formativo: os alunos, os formandos376. Ou seja: fomenta-se a paralizante fixação e memorização, sem suporte inteligente e crítico, dos “conhecimentos”, das “verdades” e das “certezas” que os “sábios sofísticos” (que, mercenariamente e contra o espírito socrático, enxameiam a instituição escolar em todos os seus ciclos e níveis curriculares...) querem que se saibam... É assim, por exemplo, que se exige às crianças e aos jovens (no quadro de uma cerrada lógica de avaliação controladora, segregadora, exclusora e desumanizadamente elitista...) que repitam ou reproduzam, com a exactidão e o rigor das clonagens, aquilo que, transmissivamente377, se lhes ensinou, em vez de fomentar neles o sentido da curiosidade científica, da autoconstrução consistente, sustentada e séria, de uma visão cognitiva, metacognitiva e sapiencial, pessoal e própria, vivida e autêntica, a ser coadjuvadamente elaborada, estruturada e ajustada a partir de si, em solidária, sistemática e sinagógica interacção dialéctica e crítica com os outros. Tudo à margem do fundamental postulado pedagógico, segundo o qual, os alunos são o princípio e o fim de todo o processo educativo e formativo (o mesmo é dizer, a sua inderrogável razão de ser e os seus insubstituíveis actores), consumando-se, desse modo, o discriminatório e letal esquecimento de que todas as crianças, todos os adolescentes e todos os adultos têm o direito e o dever de se formarem até aos limiares últimos das suas insondáveis e inter-incomparáveis pontencialidades: «l’anthropos, como certeiramente no-lo recorda Octavi Fullat378, est 375 A ser radicados numa saudável, séria e motivadora relação pedagógica e num processo didáctico marcado por grande exigência sapiencial e consagrador da diversidade de perspectivas [multiperspectivismo] e do pluralismo metodológico... 376 Alunos e formandos que são ênyrvpoi [anthropoi] e, portanto, «criaturas polirrítmicas», criadoras de mutações imprevisíveis. Cf. Carmen Revilla (ed.): Claves de la razón poética. Maria Zambrano: un pensamiento en el orden del tiempo, Madrid, Editorial Trotta, 1998, p. 133. 377 Não me parece sustentável, hoje, nem a exclusividade nem mesmo a relativa dominância da chamada “transmissão de conhecimentos” no processo de ensino/aprendizagem... Para outros desenvolvimentos desta posição, ver, no fim deste capítulo: ANOTAÇÕES. 378 Cf. Octavi Fullat i Genis: «Sens et éducation», apud Jean Houssaye (dir.): Éducation et Philosophie – Approches contemporaines, Paris, ESF Éditeur, 1999, p. 209. 210 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO insondable et son éducation, en conséquence, est inépuisable»... Por isso, se pergunta: de que vale o slogan do “todos diferentes, todos iguais”, se ele não passar, como vem acontecendo, de um inconsequente “ornato de retórica”?... Na verdade (amargurante e acabrunhante verdade esta...), quantos dos nossos melhores concidadãos não têm vindo a ficar irremediavelmente arredados das estradas que acedem aos mais altos patamares do Saber, não por falta de capacidades ou potencialidades intrínsecas, mas tão-somente por falta de condições, de meios ou de oportunidades?!... Daí, a necessidade de um mais justo e mais humanizado modo de perspectivar a causa da Educação e a Cidade Educativa, de uma nova e mais fecunda dinâmica de integração e inclusão social, de uma gestão dos bens pedagógicos e dos bens simbólicos mais alargadamente democrática e menos elitista, de uma mais produtiva estratégia do ensino e da aprendizagem, da adopção de práticas metodológicas mais criativas, mais eficazes e mais adequadas do ponto de vista sociológico e psicopedagógico, face ao imparável e cada vez mais complexo progresso da investigação, à mudança de “paradigmas”, à incessante circulação do saber e da informação, à relativização e interacção dialógica das culturas (interculturalidade), à aceleração dos ritmos sociais e históricos, à crescente interdependência dos povos... Mas sempre com um enfoque muito especial para a necessidade que o País tem de vencer os seus ancestrais atrasos, promovendo o desenvolvimento e o progresso sectorial e global e dando resposta aos cruciais problemas que atingem o Homem, a Vida e o Mundo do nosso tempo. Tudo isso consubstancia um enorme desafio à Sociedade e à Escola do presente e do futuro, a exigir que se proporcionem, implicadamente, as melhores e as mais condignas condições de “hardware” e de “software”, de materialidade e de espiritualidade, polifonicamente direccionadas para a mais completa e apurada formação dos recursos humanos, de modo a permitir tecer diferentes saberes numa visão plural e integradora das diferenças e das singularidades e sempre no pressuposto de que a mais alta qualidade 211 Fernando Paulo do Carmo Baptista dos quadro humanos se desenvolve no contexto da mais alta qualidade dos sistemas educativos379. Toda a dinâmica formativa e investigativa deve ser marcada por uma constante preocupação meta-analítica e crítica, de natureza interdisciplinar e mesmo transdisciplinar e por um englobante sentido holístico e orquestral, orientado para a pretendida «unidade teleológica do saber», por forma a que o horizonte aberto e largo do discurso do “texto múltiplo” venha a superar, harmónica e criativamente, o horizonte fechado e estreito do discurso do “texto único”380. Por outro lado, não é menos decisiva a consciência de que «o desafio global da construção da nova sociedade baseada no conhecimento» — a Sociedade do Saber e, mais utopicamente, a Sociedade da Sabedoria... — só terá êxito, se erigida a partir da solidez dos fundamentais pilares que sustentam essa construção: os pilares, entre outros, da cidadania, da cultura, da arte, da ciência, da técnica, da tecnologia, da criatividade e da inovação381, transversalmente alicerçados numa forte base de natureza humanística, artístico-literária, antropológico-cultural, filosófico-epistemológica e axiológica e animados e iluminados por um perene e incandescente sentido poético e estético. Mas para que haja sucesso na acção educativa e formadora, não basta o efeito de articulação e hierarquização introduzido nos campos de saber específicos das diferentes disciplinas curriculares pelos imprescindíveis contributos defluentes de um enquadramento de fundo epistemológico (que se ocupe, teorética e criticamente, dos princípios e 379 Cf. O preâmbulo do «Relatório», de 1 de Março de 2000, da Task Force on Higher Education and Society, da iniciativa conjunta do World Bank (Washington DC) e da UNESCO; no mesmo sentido concorre o pensamento de Malcolm Gillis, Presidente da Rice University, quando, em 12 Fevereiro de 1999, afirmou: «Today, more than ever before in human history, the wealth – or poverty – of nations depends on the quality of higher education». 380 Cf. José Veiga Simão, in Documenta, n.º 5, Setembro, 2002, p. 23. 381 Cf. José Veiga Simão, Sérgio Machado dos Santos e António de Almeida Costa: Ensino Superior — uma visão para a próxima década, Lisboa, Gradiva, 2002, pp. 39- 50; de recordar que o relatório da “Comissão Delors” avança igualmente com a metáfora arquitectónica de «quatro pilares» para a educação: 1. aprender a conhecer; 2. aprender a fazer; 3. aprender a viver juntos; 4. aprender a ser (cf. Jacques Delors: op. cit., pp. 96-108); cf. também Roberto Carneiro: Fundamentos da Educação e da Aprendizagem, op. cit., p. 268. 212 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO finalidades, dos modelos e paradigmas, bem como da produtividade, alcance, importância e valor das diversas ciências...), nem o contributo trazido aos processos de aprendizagem por um enquadramento de fundo psicológico que permite explicar, descrever e caracterizar e, assim, ajudar a compreender os estádios ou fases de desenvolvimento ontogenético e os níveis de maturidade psico-sociológica dos alunos, sabida a inércia ou mesmo a reactividade opositiva, inerentes a certas posturas “corporativistas” do desempenho docente que, sobretudo em momentos de acelerada mudança e dinamismo, como é o actual, tendem a marcar os actos pedagógicos através dos quais se vão cumprindo as diferentes componentes curriculares e transcurriculares, lectivas e não lectivas, que integram qualquer “programa formativo” (o “currículo” l.s.)382. Nessa perspectiva, o sentido integrador e harmonioso que se pretende introduzir no processo educativo e formativo e o protagonismo nuclear que, em tal processo, se reconhece caber a formandos e a formadores (que nunca devem deixar de estar em formação e que, por isso mesmo, são formandos in aeternum: é esse o seu “sacerdócio”, é esse o seu “compromisso”!...) só encontram a sua consagração no quadro de um enquadramento sintetizador dos dois anteriores: um enquadramento antropo-agógico ou formativo. Só dessa forma, passará a ser adequadamente considerada a dimensão científico-cultural dos grandes saberes humanos (papel das epistemologias), a dimensão psicosférica e psicossomática da formação (papel das psicologias), a realidade socioprofissional e o “código de deveres” dos professores (papel das deontologias)383, bem como o vasto feixe de condicionalismos e interacções que decorrem da influência do meio, designadamente dos contextos local, regional, nacional, internacional e planetário (focalização ecossistémica e holística), ou seja, a complexa 382 Cf. CRSE: Proposta Global de Reforma — Relatório Final, Lisboa, Ministério da Educação, 1988, pp. 97-98. 383 Contemplando, nomeadamente, a nobreza de carácter, o sentido elevatório do compromisso iluminado pela virtude, a consciência de missão, os valores do decoro, da honestidade (seriedade e rectidão) intelectual, da dedicação, da exemplaridade... Cf. os importantes e substanciosos artigos «Virtue Ethics» e «Deontological Ethics», in Stanford Encyclopedia of Philosophy: https://plato.stanford.edu/entries/ethics-virtue/; https://plato.stanford.edu/entries/ethics-deontological/#WeaDeoThe. 213 Fernando Paulo do Carmo Baptista teia de co-implicações entre metassistemas <> diassistemas <> sistemas <> subsistemas <> entorno / meio <> processo <> produto / resultado / metamorfose... É com base num tal modo de ver as coisas que se me afigura deverem ser estruturados os currículos escolares e, isomorficamente, os currículos de formação de professores e respectivos planos de estudos, com a adicional preocupação de que a sua sintaxe e a sua semântica curriculares respeitem, no plano histórico, os saberes melhor fundamentados e verdadeiramente estruturantes e, no plano social e numa perspectiva de actualidade, o pensar e o sentir mais esclarecidos e a orientação mais consensual das comunidades científica, pedagógica e didáctica, relativamente às diferentes áreas do saber, das suas correlações e interacções com o sistema global da cultura e, mais especificamente, com o seu determinante e insubstituível papel no processo ontogenético do ser humano, nas dinâmicas de aprendizagem proporcionadas pela Cidade Educativa e, de um modo geral, na gestão dos bens simbólicos e na capacidade de intervenção nas mais diversas manifestações da vida da Pólis, no próprio rumo da História e no destino da Humanidade. A crescente complexidade, mobilidade e mundialização do tempo em que vivemos384 impõe uma cada vez mais auto-exigente mudança de perspectiva intelectual e de postura metodológica, relativamente a tudo quanto seja fruto da acção criadora do homem: habituarmo-nos a conviver mais com o problema do que com o dogma, mais com a dúvida do que com a certeza e a tomar, como prioritário campo de referência, a ideia de que viver hoje significa assumir definitivamente a incerteza e a conjectura, o devir e a mudança... Até porque «homem culto (como no-lo lembra Manuel Sérgio, em paráfrase a Paulo Freire385) é o que 384 É manifesta a consonância do modo de ver de Manuel Sérgio quando (em Um Corte Epistemológico — Da educação física à motricidade humana, Lisboa, Edições Piaget, 1999, p. 21) afirma que «a emergência de níveis de complexidade crescente diz-nos que tudo está em movimento: o Homem, a Natureza, a Sociedade e a História...». 385 Cf. Manuel Sérgio: Para um novo paradigma do saber e ... do ser, Coimbra, Ariadne Editora, 2005, pp. 93-94. 214 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO problematiza, o que transforma em novas perguntas os seus problemas»386. E se «ser é agir» e se é no agir que o homem se faz387, não é possível deixar de ter em conta que toda a práxis humana, seja na vertente da criação/produção, seja na vertente da recepção, se não é imune a fenómenos de crise, também não é neutra nem asséptica em seus efeitos e consequências, uma vez que leva ínsita, no mais fundo de si própria, quer as marcas de uma visão do mundo, quer os pressupostos de uma axiomática de matriz epistemológica (mais ou menos intuída e/ou explícita) e de inspiração axiológica (mais ou menos assumida e partilhada), com directas implicações com um determinado modo de conceber e programar a realidade, isto é, com a ideação, elaboração e operacionalização de um dado projecto de homem, de sociedade e de cultura. Tal projecto constitui a carta de navegação orientadora e o cânone da estratégia organizativa das dinâmicas de transformação, hominizante e humanizante (hominitas et humanitas), visada pelos processos culturais e, no coração deles, pela acção educativa e formativa potenciada pelo respectivo sistema organizador — o Sistema Educativo e Formativo, a Instituição Escolar —, com especial atenção para a pedagogia e a didáctica da língua materna, dado o seu inquestionável poder e primordial papel na modelização dos realia e a sua insubstituível mediação em todas as aprendizagens subjacentes ao desenvolvimento das capacidades superiores, à interiorização do sistema axiológico e à construção dos saberes que configuram os grandes desígnios estruturantes de qualquer projecto e trajecto curricular, académico e profissional, designadamente a matemática e as ciências básicas. Nem parece ser outro «o caminho sem limites do conhecimento», sobretudo se ele for percorrido em paralelo diálogo e fecundante interacção com essoutro “caminho sem fim” que é o das 386 Sendo de acentuar, neste contexto e em consonância com Kurt Hübner, que «nem a existência de leis físicas nem a verdade de teorias físicas constitui uma evidência, como permanentemente nos é sugerido, mas algo de problemático» [sublinhei] (cf. Kurt Hübner: Crítica da Razão Científica, Lisboa, Edições 70, 1993, p. 13). 387 Cf. Manuel Sérgio: Para um novo paradigma..., op. cit., p. 23 e também Um Corte Epistemológico, op. cit., pp. 165-180. 215 Fernando Paulo do Carmo Baptista Humanidades, das Belas Letras e das Belas Artes, com especial destaque para a Música e a Poesia388... Todavia, as dinâmicas da educação e da formação não podem dispensar os fluxos actualizadores e inovadores, desencadeados pela globalidade da acção fundamentante, estruturante, articuladora e integradora da “INSTITUIÇÃO DE REFERÊNCIA” que é (e deveria ser sempre!...) a “UNIVERSIDADE”, com indeclinável e prioritária atenção para as “estratégias investigativas”, como adiante se verá. DA UNIVERSIDADE389 A palavra ‘UNIVERSIDADE’ nomeia e identifica historicamente (logo lá desde a sua aurora eclesial e medieva, sob a designação de Studium Generale...) aquele singular e inconfundível tipo de instituição que assume como intranscendível razão antropo-poiésica a sublime “missão” plasmada num “MAGNO PROJECTO ACADÉMICO DE INVESTIGAÇÃO, FORMAÇÃO E DIVULGAÇÃO EM TODOS AS ÁREAS DO SABER, PROJECTO ESSE, ILUMINADO PELOS SUPREMOS VALORES DA SABEDORIA, DA VIRTUDE, DA “ARISTEIA” E DO MÉRITO, configuradores de uma ÉTICA INTELECTUAL DE NÍVEL SUPERIOR390... O desenvolvimento desse “PROJECTO MAIOR DA CIDADANIA” é protagonizado por «comunidades de Sábios e de Estudantes», afincadamente dedicados à intérmina procura das relações “onto- fânicas” e “onto-génicas” do Universo, da Terra, da Vida e do Homem e das correlatas verdades fenomenais391 e numenais... 388 Cf. Manuel Sérgio: Tanta Coisa Verdadeira, Coimbra, Ariadne Editora, 2004, p. 22. 389 Cf. Fernando Paulo Baptista: Por Amor à Língua Portuguesa, Lisboa, Edições Piaget, 22016, pp. 211-218. 390 Cf. Fernando Paulo Baptista: Polifonia, Poiese & Antropopoiese, Lisboa, Edições Piaget, 2006, pp. 23 ss. 391 «The phenomena we experience are simultaneously a reflection of world reality and of our specific mind. Thus, education should be, in part, the cultivation of the 216 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO E são essas comunidades (hoje, cada vez mais inter-activamente reticuladas e globalizadas à escala planetária...) que, com um bem determinado propósito antropo-paidêutico, capacitante e habilitante — domínio da “competence”... —, vão concretizando esse inesgotável e desafiante “Projecto”, ao ritmo quotidiano do cumprimento curricular e trans-curricular e através de um exigente e superador processo poiésico-metamorfósico contra a tendência entrópica e a aco-modação rotineira e obsolescente das práticas instaladas e cristalizadas, sempre à luz do se mafórico e indescartável axioma de que «the only skill that does not become obsolete is the skill of learning new skills392, axioma inscrito no coração metacrónico dos verdadeiros programas de formação ao longo da vida (Lifelong Learning Programmes)393... Esse processo, assim pensado e assumido, não pode deixar de se inspirar no mais fundo, mais autêntico e mais responsável sentido da liberdade ideativo-conceptiva, criadora, inventiva, realizadora e inovadora, que potencia, de modo integrado («mind, heart, and spirit») e pléctico394 (disciplinar, multidisciplinar, interdisciplinar e transdisciplinar), a transformação perfectivante (corpóreo-mental, intelectual e espiritual...) do ser humano, nos planos competencial e ético-deontológico e nas dimensões pessoal, interpessoal e comunitária 395 (dimensões transmassísticas)... mind so that the breadth and depth of world can be explored». Cf. Parker J. Palmer & Arthur Zajonc with Megan Scribner: The Heart of Higher Education — A Call to Renewal, San Francisco, CA /USA, 2010, p. 68. 392 Cf. Michael Gibbons (Secretary General Association of Commonwealth Universities): Higher Education Relevance in the 21st Century, Washington, World Bank, 1998, p. 12 (Paper prepared as a contribution to the United Nations Educational, Social, and Cultural Organization World Conference on Higher Education [Paris, France, 1998, pp. 5-8]); trata-se de um documento bem sistematizado e de inegável interesse analítico-informativo. 393 «Strategic framework for European cooperation in education and training (“ET 2020”)», apud: http://ec.europa.eu/education/lifelong-lear-ning-policy/policy-framework_en.htm; e também: http://www.kslll.net/Default.cfm 394 Sobre os fenómenos de “esquizo-sofia”, de “ruptura” e “desagregação” ético- axiológica e sapiencial que afectam as “instituições formadoras”, designadamente a “universidade” e que marcam a actual “situação de crise”, ver no fim as ANOTAÇÕES. 395 Cf. Karl Jaspers: The Idea of the University, London, Peter Owen, 1965, pp. 64-65 e passim... 217 Fernando Paulo do Carmo Baptista Importa sublinhar que tal transformação é cres-cen-te-men-te reclamada pela qualidade pressuposta nos exigentes e responsabilizantes desempenhos profissionais e de “missão” – domínio da “performance” –, enquadrados, sustentados e iluminados por um cada vez mais urgente e actualizado potencial (background) sofo-espistémico, tecnológico, cultural, artístico, axiológico-humanístico e metodológico-atitudinal (etológico) e, desse modo, desejavelmente também em sistemática e solidária conectividade, orquestral articulação e sinérgica disseminação cooperativa (através da institucionalização, nacional e internacional, de parcerias, protocolos, co-projectos, co-laboratórios e intercâmbios, orientados para a produção, a distribuição e a partilha do conhecimento...) com as demais entidades e organizações promotoras dos valores, do desenvolvimento sustentado e sustentável e do progresso social a todos os níveis396. É a Universidade a privilegiada instância que alimenta (que deveria alimentar...) o sonho e faz mover a vida no quadro englobante da sua missão arquitectora, estruturante, articuladora e dinamizadora ao nível da busca, da investigação, da invenção, da descoberta, da criação, da transmissão e da divulgação do conhecimento e da acção pedagógica e formadora, qualitativamente direccionada para uma aprendizagem problematizadora, indagativa e aprofundante das capacidades humano-relacionais, afectivas, cognitivas, ideativas, organizativas, metodológicas, discursivo-textuais e comunicacionais, tanto na tendencialmente mais cartesiana e mais metrológica, mais descritivo-explicativa, mais experimental e mais aplicativa, mais material, mais tecnúrgica397 e mais operativa área das Ciências e das Tecnologias, como na propensivamente mais fundadora, mais modeladora, mais antropo-paidêutica, mais imaterial, mais pascaliana 396 Cf. OCDE (2011), Lessons from PISA for the United States, Strong Performers and Successful Reformers in Education, OECD Publishing. http://dx.doi.org/10.1787/9789264096660-en; cf. também o importante relatório elaborado por: Philip G. Altbach, Liz Reisberg, Laura E. Rumbley: Trends in Global Higher Education: Tracking an Academic Revolution (A Report Prepared for the UNESCO 2009 World Conference on Higher Education). 397 Digo tecnúrgica(o), tecnurgia ou tecnurgo, do mesmo modo que se diz cirurgia, cirúrgico e cirurgo (ou também quirurgo), demiurgia, demiúrgico e demiurgo, dramaturgia, dramatúrgico e dramaturgo, liturgia, litúrgico e liturgo, metalurgia, metalúrgico e metalurgo, taumaturgia, taumatúrgico e taumaturgo, siderurgia, siderúrgico e siderurgo, teurgia, teúrgico e teurgo... 218 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO e mais poiésico-aistésica398 área das Humanidades, das Belas Letras e das Belas Artes399... É desse modo que ela se configura como «o memorial do mais alto conhecimento ou reflexão», nas palavras de Eduardo Lourenço400, como o determinante lugar, onde, na perspectiva de Karl Jaspers401, cada época histórica «pode cultivar a mais lúcida consciência de si própria» e constituir o inderrogável e estratégico centro e “laboratório” dos mais experimentados, testados, reflectidos, debatidos e convalidados conhecimentos, saberes e valores... Em suma, A UNIVERSIDADE enquanto REFERENCIAL HISTÓRICO E PARADIGMA AXIOLÓGICO, à luz dos quais se desenham os traços porventura mais nobres, mais densos e mais fortes da identidade de qualquer Povo e de qualquer País, constitui a incomparável ALMA E CORAÇÃO DA CIDADE... Por tudo isso é que, em relação a ela, de seus Professores e de seus Estudantes, outra atitude não será de esperar senão a da mais exigente, devotada e exemplar dedicação na forma de estudo (em latim: studium) diligente e quotidiano, que é o modo académico mais genuíno de conjugar o verbo amar: no fundo, o inconformado modo dessa insaciável, curiosa e iluminante paixão pela busca, pela investigação, pela descoberta, pela sabedoria... Nela, portanto, não deveria haver lugar para a rotina “rotineira”, a displicência, a incúria ou a “fossilização” científica e pedagógica nos actos investigativo-formativos, nem tão-pouco para o “turismo” académico do “dolce far niente” ou, pior ainda, para os consabidos e sistemáticos desregramentos pautados por “padrões” próprios da vida nocturna, sob pena de ficar irremediavelmente comprometido o investimento no futuro qualitativo do País, investimento esse que todos 398 De po€hsiw [poiesis]: «criatividade» (criatividade artística, em geral, e criatividade poético-literária, em particular); e de a‡syhsiw [aisthesis]: «faculdade da sensibilidade inteligente» (sensibilidade, em geral, e sensibilidade artística, em especial). 399 Cf. Fernando Paulo Baptista: ensaio «Sob o signo da luz ou a “centelha” [scintilla] de Zeus na palavra «teoria» [yevr€a (theoria)]», apud: Rosa Maria Goulart, Maria do Céu Fraga e Paulo Meneses (coords.): O Trabalho da Teoria, Ponta Delgada, Universidade dos Açores, 2008, p. 43. Sublinhe-se a intencional recorrência desta mesma caracterização diferenciadora no ensaio «A centelha (scintilla) de Zeus na palavra “teoria”», também incluído neste volume. 400 Cf. Eduardo Lourenço: Nós e a Europa ou as duas razões, Lisboa, IN-CM, 1988, p. 73. 401 Cf. Karl Jaspers: ibidem, pp. 19, 51 e ss. 219 Fernando Paulo do Carmo Baptista nós custeamos com os impostos que esperançosa e generosamente pagamos... Nela, de modo algum se pode abdicar do Valor, do Mérito, da Virtude e da Dignidade ao mais alto nível, tudo consubstanciado e plasmado num trabalho intelectual, metódico, rigoroso, perseverante e sério, ou seja, o «honesto estudo» de que fala Camões (Lus., x, 154). A Universidade, pela sua origem, natureza e missão, tem o dever de impor a quem nela trabalha e a quem a frequenta um “CÓDIGO ÉTICO” da máxima exigência, porque, na verdade, quem a não sabe merecer, quem não sabe ser digno dela... está ali a mais... É pelas razões acabadas de invocar que a Universidade não pode deixar de ser apresentada aos nossos jovens, na perspectiva da sua ascensional, plenificante e perfectiva caminhada em direcção ao futuro, como a “Alma Mater” que alimenta e alumia a realização das suas potencialidades e faculdades antrópicas mais poderosas: a imaginação criadora, a racionalidade organizacional, crítica e judicativa, a sensibilidade poética e estética, a memória informante, identificante e situadora, a inteligência intuitiva, conjectural, teorética e projectiva, a vontade resiliente, determinante e decisional... Daí, a multi-sectorial responsabilidade dos Dirigentes do Sistema Educativo e Formativo pela qualidade da formação literácica (englobantemente entendida...) que, desde bem cedo, deve ir preparando, de modo determinado, graduado, consistente, exigente e laborioso, aquelas potencialidades e faculdades, na perspectiva estratégica do devir académico e da formação universitária ao mais alto nível... DA INVESTIGAÇÃO402 A investigação, em sua acepção mais ampla, tenta responder a um profundo impulso e a uma cada vez mais espantada e imperiosa necessidade do ser humano que o levam a tentar interpretar, compreender e descrever explicativamente os fenómenos por que se 402 Ver infra, em REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS, algumas obras especificamente dedicadas à problemática da «Investigação». 220 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO revela o complexo dinamismo do real, na diversa multiplicidade de seus modos manifestativos. São estes que, à partida, constituem o território vestigial (do latim: vestigium, lexema da mesma família de investigar e de investigação...) ou epifânico da presença desse misterioso dinamismo. E é da persistente indagação operada por sobre tal território, é da afincada e apaixonada perseguição das pegadas, rastos, traços, cifras e sulcos que nele se revelam, é dessa permanente, sistemática e aprofundante desvelação arqueológica, desventradora de arquivos, arcas, arcanos e escaninhos de todos os tempos e de todas as memórias, que resulta a iluminante e superadora ascensão da caverna do inominado, nebuloso e desconhecido, para a aberta e desassombrada morada da inteligibilidade e da luz. Não tem sido outro o caminho que se vem trilhando, ao longo da História, na épica construção da CATEDRAL (sempre inacabada...) DO SABER... Essa gigantesca construção não dispensa, não pode dispensar, a base testemunhal deixada por esse tantas vezes imperceptível e silencioso caminhar, cujos protagonistas maiores são, no fundo, o Universo, a Natureza, a Vida, o Mistério e o próprio Homem, considerado em suas nucleares dimensões somatosférica, psicosférica e sociosférica. Por outro lado, não pode o processo investigativo deixar de ser considerado nas diferentes modalidades e registos organizacionais e metodológico-operatórios em que ele próprio se vai configurando: desde a investigação-acção (mais iniciática e informal ou mais formalizada sob o ponto de vista teorético e práxico e mais imediatamente interventiva no plano da pesquisa), passando pela elaboração de modelos de enquadramento e dinamização heurística, concebidos e orientados para a descoberta, a inventiva e a criação, pela investigação pura, pela investigação aplicada até à complexidade epistemológica da mais alta e fundamental investigação estratégica para o desenvolvimento sectorial e global do Homem e das Comunidades Humanas, nos mais diversos domínios, ora concebendo e planeando, ora executando e avaliando projectos investigativos de interesse nacional, internacional e, mesmo, planetário. 221 Fernando Paulo do Carmo Baptista Considerando a galopante globalização de todas as grandes temáticas e problemáticas que dizem respeito ao Homem e à Humanidade, à Vida, ao Planeta e ao Cosmos, desde a saúde à educação, à cultura, à ciência, à técnica e à tecnologia, à arte, ao sagrado, ao património natural e construído, passando pelo ambiente, o clima, os recursos naturais, a energia, a economia, a indústria, o comércio, os serviços, a segurança, a doença, a pobreza, a droga, a guerra, a paz e a violência..., ponderando tudo isso, torna-se cada vez mais urgente a promoção da investigação fundamental com alcance estratégico para todas essas áreas tão complexas e tão cruciais, promovendo o constante aprofundamento do saber, da experimentação e do sentido da descoberta, da criação e da inovação, sempre em sintonia com as iluminantes “linhas de força” que configuram um “paradigma” antropológico-cultural, axiológico e artístico que coloca o ser humano no coração de todos os processos, medidas e decisões, enquanto seu princípio e seu fim (seu alfa e seu ómega), enquanto seu protagonista livre, mas igualmente responsável, e que situa a ciência, a técnica, a tecnologia e a economia, como já ficou dito, no pólo instrumental dos recursos e dos meios e as integra a todas elas, subordinadamente, na lógica dos princípios e dos fins. Todo o processo investigativo (sobretudo o que se desenvolve através da grande ou alta investigação, da investigação fundamental, da investigação pura ou da investigação aplicada...) deve ser iluminado pelo “perfil” ou “arquétipo” de homem e de cidadão local e global, político e cosmopolítico, a ser tomado como inderrogável “referência” plasmática e poiésica, inspiradora de todo o processo educativo e formativo... Através da disseminação dos seus mais importantes e consistentes resultados, conclusões ou recomendações, através do efeito neguentrópico, soteriológico e verdadeiramente revitalizador gerado pela informação nova por ela produzida, construída e organizada, é possível fazer retornar à Madre-Terra em perigo — a Deméter!... — a esperança auroral da prístina harmonia do “paraíso” e do “paradigma” perdidos... Praticadas sobretudo no âmbito de uma programação dirigida quer na perspectiva da obtenção de graus académicos (mestrados, doutoramentos e pós-doutoramentos), quer na perspectiva da realização de projectos institucionais ou inter-institucionais, socialmente 222 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO relevantes, tanto a nível científico e pedagógico, como a nível cultural, artístico, literário, filosófico e antropológico, a investigação fundamental, a investigação pura, ou mesmo a investigação aplicada, de configuração mais formal, mais canónica e mais responsável, não dispensam o cumprimento de um árduo protocolo e programa metodológico-processual que comporta uma sintaxe codificadora de uma espécie de “longa metragem” que não deixa de implicar um prévio e elucidante tratamento reflexivo de fundo filosófico-epistemológico, centrado sobre tópicos como os seguintes: paradigmas e métodos de investigação científica (ex: o paradigma hermenêutico-interpretativo e o método da observação participativa; o paradigma sociocrítico e a investigação-acção, colaborativa e cooperativa...); a dimensão empírica e a controvérsia entre métodos qualitativos e métodos quantitativos; complementaridade e pluralismo metodológico; escolha dos métodos e técnicas procedimentais; limites da investigação e códigos deontológicos; concepção e planeamento dos projectos de investigação — seus constituintes estruturantes: a emergência do problema-foco e o questionamento preliminar: identificação e formulação; a revisão bibliográfica e das demais fontes de informação; objectivos e hipóteses: formulação; variáveis (controláveis e não controláveis) e constantes dinâmicas; a amostragem: selecção e condicionantes; processologia de recolha e tratamento de dados; instrumentos e equipamento (caracterização, avaliação e operacionalidade); temporalização e cronogramagem; execução do projecto e seu condicionamento interno e externo; o ensaio-piloto e os reajustamentos; a recolha de dados (onde, quando e como), sua análise e tratamento (gráfico e/ou numérico); o tratamento qualitativo: triangulação, contraste dialéctico, análise paramétrica, ajuizamento criterial-referencial e relativização; interpretação crítica dos resultados e sua validação; relatório final e sua elaboração; exigências técnicas e deontológicas (autonomia VS heteronomia); publicitação, etc... É de sublinhar, todavia, que a investigação, seja qual for a sua modalidade ou configuração tipológica, deverá estar prioritariamente ao serviço da formação que, em meu entendimento, deve constituir a função cardinal ou maior, numa palavra, a “pedra angular” de todo o Ensino Superior. 223 Fernando Paulo do Carmo Baptista A investigação-acção (também conhecida pela designação, entre outras, de action research, practitioner research403) é praticada, em princípio, com carácter permanente e sistemático, a partir das necessidades surgentes das dinâmicas do quotidiano e na decorrência de situações problemáticas ou de casos marcados por uma singularidade aporética a eles intrínseca, suscitadora de mais aplicado estudo, a envolver adequada pesquisa / indagação... A investigação-acção visa, antes de mais, o imediato aperfeiçoamento da qualidade dos processos de conhecimento, de organização e de formação aos diferentes níveis do seu desenvolvimento, com um forte sentido pró-reflexivo e pró-activo, um pronto empenhamento de pesquisa e inteligibilidade interpretativo- compreensiva e explicativa dos fenómenos do real e, também, um envolvimento implicativo nas mudanças prementes e intransferíveis, ritmando o próprio andamento e desenvolvimento dos projectos de investigação mais complexos e formalmente mais exigentes. Centrada na análise de ocorrências concretas do dia-a-dia, a investigação-acção tenta contribuir para a resolução de cada problema real (problem-solving), em sua singularidade, com o objectivo de obter, projectivamente, melhorias teórico-práticas num determinado contexto de acção404. A investigação-acção, assentando na experiência vivida e na observação directa e imediata, na colheita de dados, na sua análise e tratamento, na (auto)reflexão conjecturante, na intervenção e na avaliação circunscritas a situações singulares e concretas, é decidida e programada, com forte carga operatória e expedita, pelos directos protagonistas, intervenientes em tais situações, segundo um trajecto processológico que comporta uma sintaxe operativa, marcada por uma crescente implicação de configuração espiralar: identificar um foco de interesse ou um problema > recolher dados e elaborar as suas representações organizadas > analisar dados, formular hipóteses e conceber cenários e protocolos de intervenção > planear as fases e o 403 Cf. Department of Education and Training Professional Learning and Leadership Development Directorate: What is Action Research?, State of New South Wales, 2010, pp. 1-4. 404 Cf. Rafael Alzina Bisquerra (coord.): Modelos de orientación e intervención psicopedagógica, Barcelona, Praxis, 1998; Idem: Métodos de investigación educativa. Guía Práctica. Barcelona, CEAC, 1996. 224 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO cronograma de acção > desenvolver as fases de acção > constituir as bases para a mudança de monitoragem > analisar e avaliar... Tem como primordial objectivo a transformação qualitativa e superadora, imediata e célere, dos processos em curso, convocando, assim, numa assumida preocupação de cientificidade, saberes especializados e específicos para contextos igualmente específicos. Quando, porém, as situações ou os casos apresentam maior complexidade etiológica, problemática, metodológica e processológica, ela tende, naturalmente, a transformar-se em investigação fundamental, estratégica e formal: são as translações determinadas pela própria fundura problemática e espiralar da fenomenologia do real e da vida... Em suma: a investigação-acção é uma forma de pesquisa desenvolvida no quadro de uma actuação orientada para promover, a partir da acção cientificamente sustentada de cada protagonista ou grupo de actores e segundo o princípio do learning by doing («caminante, no hay camino, / se hace camino al andar»405...), a melhoria da qualidade estrutural e funcional duma instituição ou duma organização e respectivos desempenhos. É tipicamente concebida e conduzida por “práticos” que agem, simbioticamente, quer como colectores de dados, quer como seus analistas e questionadores, quer ainda como intérpretes dos resultados, com o objectivo nuclear de aperfeiçoarem a sua própria prática. A investigação-acção pode ser levada a cabo tanto individualmente como em grupo, devendo todavia sublinhar-se que a abordagem em grupo se tem revelado extremamente fecunda do ponto de vista pedagógico, metodológico e humano: na verdade, não deixa de ser sintomático o facto de esta modalidade ser conhecida, identificada e nomeada por designações como as seguintes: investigação participativa, investigação cooperativa, investigação emancipatória (participatory, collaborative, emancipatory research)... A investigação-acção tem o potencial de gerar melhorias genuínas e sustentadas, na medida em que, todos os dias, proporciona aos professores, educadores e formadores novas oportunidades para reflectirem sobre o seu ensino e para o avaliarem, para lançarem novas ideias e ensaiarem e testarem novos métodos e novos recursos, para 405 António Machado: Poesías Completas, Madrid, Espasa-Calpe, 1989, tomo I, CXXXVI, XXIX, Proverbios y cantares, p. 575. 225 Fernando Paulo do Carmo Baptista aferirem da eficácia das novas experiências, partilharem o feedback com os restantes companheiros de grupo e para tomarem decisões “pró- activas” sobre que novas abordagens merecem ser incluídas no seu projecto e nos respectivos planos de formação, avaliação e investigação. DA QUALIDADE DAS INSTITUIÇÕES FORMADORAS Qualidade e Imperfeição... Pode entender-se a categoria da “qualidade” como o irredutível horizonte e processo de permanente possibilização construtiva e evolutora e de singularização identificacional e, assim, de dinâmica e progressiva modelação caracterizadora, diferenciadora e distintiva do pensar, do agir, do ser, do estar e do devir. Deste modo e a meu ver, qualquer avaliação sincrónica da sua manifestação não deveria prescindir do indispensável enquadramento diacrónico (retrospectivo/retrojectivo [dimensão do passado] e prospectivo/projectivo [dimensão do futuro]) que lhe dá o correcto sentido, ao ser perspectivada, com Platão, como «aquilo pelo qual as coisas se dizem tais», determinando, assim, o que elas vão sendo tanto em sua essencialidade como em sua acidentalidade406. Para mim, as institutições de ensino superior (ou outras), tal como as pessoas, nascem, crescem e evoluem no quadro das suas potencialidades vitais, das suas reais capacidades gerativas, criativas e transformadoras e, também, dentro dos condicionalismos e constrangimentos circunstanciais e históricos em que se processa o seu desenvolvimento. 406 Cf. Celestino Pires: Logos — Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia, vol. 4, Lisboa / São Paulo, Editorial Verbo, 1992, entrada «Qualidade», pp. 510-515; Nicola Abbagnano e Giovanni Fornero: Dizionario di Filosofia, Torino, UTET, 31998, entrada «Qualità», pp. 886-887. 226 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO Todas elas, segundo for o «projecto» que as anima e sustenta, têm coisas boas e coisas menos boas: algumas delas, porém, distinguem-se pela sua “alma” social, pela sua criatividade e ritmo de inovação, pela sua capacidade de investimento e de risco não menos que pela sua abertura e disponibilidade para fazer e ser comunidade e para se transcenderem melhorativamente... «Mas graças a Deus que há imperfeição no Mundo...», lembra-no-lo Fernando Pessoa / Alberto Caeiro407, como que a concitar-nos para o exigente e empenhado exercício da sua quotidiana superação, enquanto incontornável território, matéria e condição possibilitante do nosso próprio agir perfectivo: todos os dias, a toda a hora e em cada momento, nos cabe ir per-fazendo o por-fazer!... Qualidade e “Excelência”... É por isso que a qualidade não pode ser nem um slogan, nem um rótulo, nem um preconceito ou uma presunção: ela deve ser assumida, pelo contrário, como a categoria-piloto de um intérmino processo que exige um forte e persistente empenhamento melhorativo, a ser levado a cabo com muita humildade e trabalhosa e diuturna dedicação. Em boa verdade, quando alguém, pessoa ou instituição, alguma vez pensar que já conquistou a qualidade é porque seguramente já a perdeu... Depois, não parece ter sentido o recorrente e acrítico recurso ao chamado “marketing da excelência” tão em voga nestes tempos de “pós-modernidade” e de “transmodernidade”408: primeiro, porque a “excelência”, pelo que intrinsecamente pressupõe e exige, em sua substancialidade e transcendentalidade categorial, não deveria ser objecto de qualquer tipo de marketing; segundo, porque a dinâmica social de vertigem e paroxismo consumista, marcada pela mercatorização de tudo e pelo fascínio imediato e light do 407 Cf. Fernando Pessoa / Alberto Caeiro: Poesia (ed. de Fernando Cabral Martins e Richard Zenith), Lisboa, Assírio & Alvim, 2001, p. 77 (poema O Guardador de Rebanhos, XLI: No Entardecer). 408 Cf. Rosa Maria Rodríguez Magda, Transmodernidad, Barcelona, Anthropos Editorial, 2004, pp. 147 ss. 227 Fernando Paulo do Carmo Baptista “significante” esvaziado da sua fundura («deepness») prospectora, gerativa e criativa409 e da densidade constitutiva dos “sentidos”, das “significações” e dos “valores” em que tal marketing se vem processando é a sua negação... Importa, na verdade, ter bem presente que a ideia de “excelência” (em grego: éretÆ [aretê]) é uma das categorias valorativas que não pertencem geneticamente a este mundo: desde a Cultura Grega ela é, matricialmente, uma caprichosa e arbitrária outorga dos deuses aos mortais410... É por isso que se me afigura crucial que ela permaneça intacta, lá onde fica o seu natural território de origem e de pertença — ou seja: a região dos deuses, dos mitos e das utopias... —, por forma a poder continuar a exercer a transcendental função semafórica de orientação e motivação energizante do sonho e da esperança e de recarga ressemantizadora de significações e de sentidos... Mas tudo isso melhor se compreenderá, se se tiver na devida conta o facto de estarmos a viver ainda sob o signo e o «império do efémero» e mergulhados na «era do vazio» e do «crepúsculo do dever», para o dizer sinteticamente com as famosas metáforas que titulam as agudas análises filosófico-sociológicas “pós-modernas” de Gilles Lipovestky, confrontando-nos, assim, com um desconcertante «paradoxo ético» em que os próprios valores fundamentais da Cultura e da Civilização tendem a ser apresentados como redutíveis a “bens mercatórios” e, assim, substituíveis pelas respectivas “marcas”. Daí, a generalizada “usura” apriorística que, acerca de pessoas, instituições ou de complexos processos organizacionais ou transformacionais se vem fazendo dos qualificantes de semântica superlativa ou hiperbólica 409 Cf., com os adequados ajustamentos analógicos, o importante relatório (elaborado no âmbito do «Process Management») dedicado ao «EU-US Seminar: New Technology Foresight, Forecasting & Assessment Methods, IPTS-JRC, Seville, 13- 14 May 2004. 410 Cf. Homero: Ilíada, XX, 242-243 («ZeÁw dÉ éretØn êndresin Ùf°llei te minÊyei te ppvw ken sin g r kãrtistow p ntvn. [= Mas Zeus aumenta ou diminui a aretê [valor] dos homens, / conforme lhe apraz, pois ele é o mais poderoso de todos]»; Odisseia, XVII, 322-323: « mis gãr t ret w poa€n tai e r opa e w n row, e t n min kat do ion mar sin [= Zeus que vê ao longe retira ao homem metade da sua aretê [valor] /, no dia em que a escravidão se apodera dele]»; cf. Maria Helena da Rocha Pereira, Hélade, Coimbra, IEC, 71998, pp. 39 e 87-88, respectivamente; e também: Estudos de História da Cultura Clássica — I volume / Cultura Grega, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 81998, pp. 135-136. 228 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO (super, hiper, óptimo, perfeito, excelente, brilhante, excepcional...), usura essa que não pode deixar de constituir um dos mais preocupantes sintomas da banalização e desvitalização, se não mesmo da perversão, do “sistema axiológico”... Quanto esquecida parece andar a “lição” da célebre metáfora de Hegel, quando, no Prefácio aos Fundamentos da Filosofia do Direito, a propósito do tempo necessário ao desenvolvimento e maturação dos processos do real e ao subsequente desencadear da reflexão e construção do conhecimento acerca desse mesmo real (reflexão e conhecimento, indispensáveis à fundamentação do próprio ajuizamento valorativo...), nos diz que «o mocho de Minerva só começa a voar ao descerrar do crepúsculo» («die Eule der Minerva beginnt erst mit der einbrechenden Dämmerung ihren Flug» 411)!... Sejamos claros e frontais: fora de uma visão ou concepção preconceituosa e elitista do mundo e da vida, não há homens nem instituições excelentes!... Há, sim, o empenhamento sério, humilde e generoso (“socrático” e “franciscano”...) de quem sonha, cria e realiza diferentemente, num constante esforço de superação ou excedência 411 «Um noch über das Belehren, wie die Welt sein soll, ein Wort zu sagen, so kommt dazu ohnehin die Philosophie immer zu spät. Als der Gedanke der Welt erscheint sie erst in der Zeit, nachdem die Wirklichkeit ihren Bildungsprozeß vollendet und sich fertig gemacht hat. Dies, was der Begriff lehrt, zeigt notwendig ebenso die Geschichte, daß erst in der Reife der Wirklichkeit das Ideale dem Realen gegenüber erscheint und jenes sich dieselbe Welt, in ihrer Substanz erfaßt, in Gestalt eines intellektuellen Reichs erbaut. Wenn die Philosophie ihr Grau in Grau malt, dann ist eine Gestalt des Lebens alt geworden, und mit Grau in Grau läßt sie sich nicht verjüngen, sondern nur erkennen; die Eule der Minerva beginnt erst mit der einbrechenden Dämmerung ihren Flug.» Georg Wilhelm Friedrich Hegel, Grundlinien der Philosophie des Rechts, «Vorrede», Bd. 7, s. 9-10. («Per dire ancora una parola a proposito del dare insegnamenti su come dev’essere il mondo, ebbene, per tali insegnamenti in ogni caso la filosofia giunge sempre troppo tardi. In quanto pensiero del mondo essa appare soltanto dopo che la realtà ha compiuto il suo processo di formazione e s’è bell’e assestata. Questo, che il concetto insegna, mostra necessario parimenti la storia, che soltanto nella maturità della realtà l’ideale appare di fronte al reale e che quell’ideale si costruisce il medesimo mondo, appreso nella sostanza di esso, dandogli la figura d’un regno intellettuale. Quando la filosofia dipinge il suo grigio su grigio, allora una figura della vita è invecchiata, e con grigio su grigio essa non si lascia ringiovanire, ma soltanto conoscere; la nottola di Minerva inizia il suo volo soltanto sul far del crepuscolo.» Hegel, Lineamenti di filosofia del diritto, trad. di Giuliano Marini, Roma, Laterza, 1987). 229 Fernando Paulo do Carmo Baptista melhorativa na plenitude da dádiva, tentando plasmar em tudo quanto se pensa e se faz o perfume das rosas e a lucilação das estrelas... Avaliação: modo, substância e contexto; temporalidade... É por isso que penso que a avaliação de qualquer instituição do ensino superior (e, com ela, a sua acreditação e certificação...) deveria ser levada a cabo através de um adequado, criterioso e periódico acompanhamento e verificação in loco daquilo que é o seu constituir- se e o seu configurar-se enquanto ser real e concreto, situado num horizonte espácio-temporal que é aquele e não outro, isto é, no respectivo “ecossistema” social e cultural em que ela vive e se move... É aí, através da observação directa, rigorosa e séria do que é o seu andamento ontogenético nas nucleares dimensões da reflexão profunda, da formação, da investigação, da dinamização social e cultural e da produção bibliográfica e afim, é nesse mergulhar no âmago das próprias coisas, captando os dados no seu “ambiente” próprio, analisando (em referência a parâmetros e a critérios adequadamente estabelecidos, definidos e discutidamente partilhados e no isento equilíbrio da intersubjectividade cognoscente e judicante) pressupostos e concepções, projectos e planos, práticas, processos, métodos e procedimentos, instalações, equipamentos e documentos e registando, supletivamente, depoimentos colhidos ao vivo junto dos estudantes e dos professores e, naturalmente, junto das direcções e demais órgãos e serviços institucionais, é aí e desse modo que, sem formalismos estéreis e sem legalismos estreitos, se pode tentar ajuizar, com razoável justeza e inerente sentido de justiça, do mérito relativo de uma instituição, por forma a que ela venha a ser fundamentadamente acreditada e certificada... Ponderada, todavia, a complexidade que caracteriza o processo ontogenético institucional e, no coração dele, a decisiva dimensão da temporalidade, mais agudamente crucial se me afigura o problema da consciência que se tem, ou não, da primigénia importância do tempo... 230 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO Na verdade, desde as tradições mitológicas mais antigas da Cultura Europeia (com o nome de Cronos, de Saturno ou outro...), não deixa de ter especial significado a ligação do tempo à esfera transtemporal do divino e do sagrado... Depois, mais explicitamente com os Pitagóricos, quando no-lo apresentam como ciclicidade deveniente, ordenada, regular e mensurável mas indissociável do mistério dos movimentos celestes e como «esfera que tudo abarca», passando pelos Pré-socráticos, agonicamente divididos entre a heraclitiana e inestancável movência de tudo (pãnta =e› [panta rei]) e a parmenídica unidade, imutabilidade e completude do ser («nada existe ou existirá para além do que é, pois que o Destino o vinculou de modo a ser um todo inamovível»412), até culminar no vislumbre fulgurante de Platão, no Timeu413, quando o perspectiva como «imagem móvel da eternidade», o tempo vai-se configurando, incontornavelmente, como a fundacional, estruturante e identificacional condição antropológica do Homem como «ser do tempo», «ser no tempo» e «ser tempo» ou «tempo em ser», na dialéctica dialogia entre finito e infinito, entre efémero e eterno, entre mortal e imortal414... Mas essa reflexão não cessa de ir cumprindo o seu diacrónico “programa” com as insuperadas análises de Aristóteles (na Física) em torno das categorias ou leges entis, em torno do conceito de “instante” bem como do fluxo sequencial “antes > depois” e da “ordem mensurável do movimento”, posteriormente reforçadas com a postura “interiorizante” (ou “intimista”) de Plotino ao assumir o tempo como «a vida da alma» e, sobretudo, com a singularíssima reflexão de Santo 412 Cf. Maria Helena da Rocha Pereira: Hélade — Antologia da Cultura Grega, Coimbra, IEC, 71998, p. 143. 413 Cf. Platão: Timeu, Lisboa, Edições Piaget, 2003, p. 76: «Ora, quando o pai que o gerou percebeu que tinha gerado uma imagem dos deuses eternos, dotada de movimento e de vida, alegrou-se e, de satisfeito que estava, reflectiu na maneira de a tornar ainda mais semelhante ao paradigma. E, como o paradigma é um ser vivo eterno, empreendeu tornar este universo, na medida do possível, igualmente eterno. Porém, acontecendo que a natureza daquele ser vivo é eterna, não era possível adaptá- la completamente ao universo gerado; foi por isso que concebeu produzir uma imagem móvel da eternidade. Assim, ao ordenar o céu, produziu uma imagem eterna da eternidade que permanece na unidade, imagem essa que se move segundo o número, e que é aquilo a que chamamos tempo» (os sublinhados são meus). 414 Cf. Fernando Paulo Baptista: Polifonia..., op. cit., p. 12. 231 Fernando Paulo do Carmo Baptista Agostinho sobre a extensio e a distensio animi, sobre os “êxtases”, a memória, a intuição e a expectativa, numa palavra, sobre a “dimensão da consciência” (nas Confissões), com o ulterior e decisivo contributo, entre outros, de Newton (com o conceito de tempo absoluto, verdadeiro e matemático, de tempo-duração que por si só flui uniformemente sem relação com nenhuma coisa externa...), de Leibniz (para quem o tempo é, conjuntamente com o espaço, um aparato de intelecção e descrição das relações inter-monádicas de coexistência e sucessão eventiva...), de Kant (em torno das antinomias, da analítica dos princípios e das formas e categorias a priori, na Crítica da Razão Pura, em que tempo e espaço são entendidos como condições subjectivas e necessárias da sensibilidade e da possibilidade da experiência, como puras formas da intuição...), de Husserl (ao tentar provar, sobretudo na Fenomenologia da consciência íntima do tempo, a sua epifania fenoménica na consciência, através do incontornável dinamismo da sua intencionalidade e acção constitutiva (mais ou menos durativa) dos fluxos experienciais primevos415, conformadores do «horizonte vital» de todos os «agoras», contra a tese kantiana da «invisibilidade» do tempo...), de Bergson416 (ao perspectivar o tempo como emergência subjectiva e relativa, como sucessão, continuidade e mudança, como memória e criação, em suma, como o próprio tecido do real...), de Heidegger (quando, em Ser e Tempo417, assume o tempo como incontornável condição ontogénica e ontofânica do Dasein, da existência e do devir humanos...), sem esquecer contributos reflexivos tão importantes como os de Bachelard418, Jacques Garelli419 e Paul Ricœur420, bem como as percucientes interpretações, elaborações, formulações e propostas teoréticas vindas do campo da Astrofísica e da 415 «Every act of apprehension is itself a constituted immanent duration unity». Cf. Jane Chamberlain: «Thinking time: Ricoeur’s Husserl in Time and Narrative», apud: http://www.ul.ie/~philos/vol2/husserl.html. 416 Designadamente em: Essai sur les données immédiates de la conscience, Paris, PUF, 1998; Matière et mémoire, Paris, PUF, 1998; L’évolution créatrice, Paris, PUF, 1991; La pensée et le mouvent, Pris, PUF, 1993; L’énergie spirituelle, Paris, PUF, 1993. 417 E também: em Tempo e Ser, em Contribuições..., em O conceito de tempo... 418 Em Dialéctica da Duração. 419 Em O tempo dos signos. 420 Em Tempo e Narrativa, em A Memória, a História e o Esquecimento... 232 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO Física de Partículas (com Planck, Einstein, Lorentz, Schrödinger, Heisenberg, Stephan Hawking, Weinberg, Ilya Prigogine, entre outros...)421 e do campo das Ciências Cognitivas e das Neurosciências (nomeadamente com Warren H. Meck, Eric R. Kandel, M. A. Pastor, C. M. Bradshaw, Frederik R. Martin, Fred W. Turek, Joseph S. Takahashi, António Damásio...)422... Em suma: na base de um tal enquadramento reflexivo, tão clarificador e tão conscientificante quanto possível e sempre no 421 Abarcando uma vasta e complexa problemática que contempla questões como as seguintes: as relações «espaço <> tempo <> duração»; invariância e variação; objectividade e subjectividade; realidade e ficção; métrica do tempo (precisão e rigor, calendários, relógios e escalas...); simetria e assimetria; sincronia, assincronia e diacronia; entropia e neguentropia; o curso e a flecha ou seta do tempo; efemeridade e eternidade; absoluto e relativo; o princípio antrópico... Sobre a problemática global do tempo, ver: Samuel L. Macey (ed.): Encyclopedia of Time, New York-Oxford, Garland Science Publishing, 1994; Steven Weinberg: Os Três Primeiros Minutos do Universo, Lisboa, Gradiva, 1987; Maurice Jacob: Au coeur de la matière — La physique des particules élémentaires, Paris, Éditions Odile Jacob, 2001, pp. 267-290; Étienne Klein: O Tempo, Lisboa, Edições Piaget, 1995; Stephen Hawking: Breve história do tempo. Do Big Bang aos buracos negros, Lisboa, Gradiva, 1988; Ilya Prigogine: O Nascimento do Tempo, Lisboa, Edições 70, 1991; Ilya Prigogine e Isabelle Stengers: Entre o Tempo e a Eternidade, Lisboa, Gradiva, 1991; Henri Atlan: O Livro do Conhecimento, vol. II, Lisboa, Edições Piaget, 2005, pp. 307 ss; ver, também, a pertinente e aguda reflexão desenvolvida por Carlos Artur Trindade de Sá Furtado: Uma excursão pela ciência, Lisboa, Edições Piaget, 2006, pp. 51-76. 422 Ocupando-se de temas como os seguintes: ciclos naturais e periodicidades eco- vitais; dinamismo dos ritmos circadianos (isto é, que se desenvolvem em torno de um dia [em latim: circa dies]) e eventos neuroquímicos, moleculares e celulares nele envolvidos: sua génese, sedeação, estrutura celular e neural e expressão comportamental; os relógios biológicos internos e os (in)fluxos endócrinos; os fenómenos do metabolismo, do sono e da insónia, da corrente da consciência, da memória, da atenção, da emoção, da percepção, da noese, do ajuizamento, do processo de aprendizagem... Ver: Eric R. Kandel, James H. Schwartz e Thomas M. Jessell: Principles of Neural Science, New York, McGraw – Hill / Appleton & Lange, 42000; Alain Reinberg: O Tempo Humano e os Ritmos Bilógicos, Lisboa, Edições Piaget, 2000; António Damásio: O Erro de Descartes — Emoção, Razão e Cérebro Humano, Lisboa, Publicações Europa-América, 1995, pp. 111-112; Warren H. Meck: Function and Neural Mechanisms of Interval Timing, London, CRC Press UK, 2003; Eric R. Kandel: In Search of Memory: The Emergence of a New Science of Mind, New York, W. W. Norton & Co Inc, 2006; Samuel L. Macey (ed.): Patriarchs of Time: Dualism in Saturn-Cronus, Father Time, the Watchmaker God & Father Christmas, Athens, University of Georgia Press, 1987; Samuel L. Macey (ed.): Dynamics of Progress: Time, Method, & Measure, Athens, University of Georgia Press, 1989. 233 Fernando Paulo do Carmo Baptista pressuposto de que ser é ser-tempo e de que «o presente é todo o passado e todo o futuro» (Fernando Pessoa/Álvaro de Campos, «Ode Triunfal»423), em qualquer actual(izador) ajuizamento atinente a tudo quanto é humano, não deveria deixar de estar presente o sentido da temporalidade fundadora, o trajecto da caminhada feita, o ritmo das mutações operadas em seu real contexto de duração, historicidade e enraizamento existencial... Há, na verdade, um tempo germinal, um tempo instituinte e arquitector, para que a complexidade ôntico-ontológica (e o inerente modo de ser, de estar, de agir e de criar...) de uma instituição com a natureza e a missão duma Universidade se possa constituir, configurar, revelar e afirmar, sendo absurda e descabida qualquer avaliação conduzida antes desse tempo-eixo-e-geratriz essenciante e projectante424... Bastará, neste contexto, tentar imaginar em que condições concretas (por exemplo: com que “projecto”, corpo docente [doutores], instalações, equipamento, orçamento...) é que surgiram, por exemplo, a mais antiga universidade da Europa — Bolonha — e a mais antiga universidade de Portugal — Coimbra —, de cuja criação se celebraram, recentemente, os respectivos centenários425 e tirar as 423 Cf. Fernando Pessoa / Álvaro de Campos: Poesia (ed. de Teresa Rita Lopes), Lisboa, Assírio & Alvim, 2002, p. 81. 424 As instituições que têm como missão específica proporcionar e promover o ensino, a educação, a investigação e a formação não podem deixar de ser marcadas geneticamente pelo modo como assumem, gerem e incorporam o seu tempo educativo, tempo que «é radicalmente generativo» e que institui e constitui todo um processo de modelização orquestral, não de uma realidade cristalizada ou pré- estabelecida, mas de uma realidade potencial fundada em tudo quanto de mais valioso pensa e deseja a comunidade humana. Por isso é que, na perspectiva de Clara Romero Pérez, o tempo educativo se deve orientar para o que ela denomina de «futuros presentes», através da mediação de projectos que direccionem os processos reais para a gestação das imprescindíveis aberturas ao dinamismo criador que vai configurando e plasmando, no presente, os sonhos do futuro, dinamismo esse, porém, a ser sempre sustentado no lastro da mais funda sabedoria e dos mais sólidos valores que, vindos do passado, mas transcendendo-o, se vão afirmando, em cada momento e ao mesmo tempo, quer como érxÆ, quer como t°low, dando sentido à existência humana (cf. a este propósito o importante ensaio de Clara Romero Pérez: El conocimiento del tiempo educativo, Barcelona, Editorial Laertes, 2000, pp. 258-259). 425 Bolonha, com o seu IX centenário [1088-1988], efeméride que está na origem da “Magna Charta Universitatum” que, como sabemos, é o documento inspirador do 234 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO convenientes ilações da própria espessura histórico-simbólica dos séculos de vida que, entretanto, já transcorreram depois dessa criação... Ora, uma avaliação de tipo essencialmente legalista e formalista, baseada quase exclusivamente na análise de documentos, desligada do real e de seus contextos e fora do sentido da temporalidade, pode correr o risco de se transformar numa indesejável denegação do respeito, da compreensão e do sentido da proporcionalidade que, em princípio, todas as instituições devem merecer, pela sua dignidade e pela própria diferença que as caracteriza e singulariza... Mas, no caso das instituições mais jovens, quando elas se encontram ainda na sua “infância” ou mesmo na sua “adolescência” institucional, deveria ter lugar, a meu ver, uma avaliação mais de natureza prognóstico-prospectiva e de intencionalidade motivadora e encorajadora, geradora e propulsora da indispensável auto-confiança no futuro e da maturação criadora, nos potenciais de vitalidade fecundante e dinamismo progrediente, nas capacidades de sonho, de risco e ousadia e de realização diferenciadora, seja no sentido da inovação sustentada, seja na entusiástica assunção daquele inconformado desassossego que conduz ao rasgar de novos horizontes, seja no discreto exercício e constante seguimento do “exemplo” do velho Sócrates e do seu “espírito” que deve inspirar e iluminar o imprescindível questionamento e exame de tudo, na perspectiva de um “maiêutico” auto-aperfeiçoamento, mediado pela quotidiana auto- correcção aos diferentes níveis orgânico-funcionais de competência e desempenho... DO FOMENTO DE “HÁBITOS” DE ESTUDO, LEITURA E REFLEXÃO... Os efeitos da profunda crise de valores que se vem arrastando no quadro da dialéctica entre modernidade e pós-modernidade, sem que para ela se tenha encontrado ainda uma saída satisfatória, revelam-se, entre outras, em concretas configurações fenomenológicas, marcadas “processo” de reforma que tem o nome desta pioneira cidade universitária; Coimbra, com o seu “VII Centenário” [1290-1990]... 235 Fernando Paulo do Carmo Baptista por uma gestão desproporcionada ou desviante dos tempos de estudo e de lazer, pela falta de hábitos de leitura, de concentração mental e de reflexão, pelas dificuldades em aspectos elementares dos processos de cognição e metacognição, de organização heurística, de operacionalização e sistematização metodológica, pela fragilidade da preparação em domínios fundamentais das Ciências Básicas, das Ciências Humanas e Sociais, das Línguas Estrangeiras e, de um modo especial, da Língua Portuguesa e da Matemática. Por outro lado, nas comunidades científicas e nas instituições académicas, existe, hoje, entre os respectivos dirigentes e corpo de professores, cada vez mais a consciência de que o ritmo que preside à investigação e à divulgação dos seus resultados (sobretudo nos centros onde estas assumem maior desenvolvimento, relevância e produtividade) torna rapidamente obsoletos os conhecimentos anteriormente construídos ou conquistados e só uma estratégia de actualização permanente será capaz de responder aos desafios e aos padrões de exigência, próprios das dinâmicas de formação que caracterizaram um ensino superior digno desse nome. Nesse contexto, O LIVRO DE CULTURA, DE CIÊNCIA, DE REFLEXÃO E DE FORMAÇÃO (enquanto criação das mais profundas — “verticalidade” — e mais elevadas — “ascensionalidade” — do ser humano e expressão porventura maior da sua espiritualidade...) CONSTITUI UM DOS NUCLEARES RECURSOS DE QUALQUER PROJECTO DE FORMAÇÃO SUPERIOR426. A preparação harmoniosa e fecunda dos futuros professores, educadores e demais quadros superiores, sobretudo quando orientada para a dinamização de um verdadeiro projecto de cidadania, singular e colectivo, a desenvolver no quadro das possibilidades das instituições académicas, implicando-se nele com os seus pares, com os demais técnicos no exercício de funções ou em formação e com os seus educandos e formandos, é, acima de tudo, um apaixonante desafio 426 Nestes tempos da «aldeia global» em que nos é dado viver, não podem deixar de ser incluídos no conceito de “livro”, o e-book (livro electrónico), o CDrom, o DVD, o site internético, com os seus artigos, estudos, ensaios na forma de downloads, as suas bibliotecas, dicionários e enciclopédias, sem esquecer o imprescindível e prestidigitador papel dos motores de pesquisa: a) a nível nacional: sapo, clix, niceday, aeiou, cusco...; b) a nível internacional: altavista, yahoo, google, lycos... 236 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO antropológico e humanista, por isso mesmo, englobantemente integrador das já referidas dimensões maiores do ser humano: a dimensão onírico-imaginante, a dimensão histórico-mnésisca, a dimensão noético-eidética, a dimensão teorética, a dimensão práxico- etológica, a dimensão crítica, a dimensão ético-axiológica, a dimensão estésica, a dimensão poiésico-morfogénica e metamorfósica... Nessa perspectiva, o que cada vez mais se pede às instâncias formadoras é que se preocupem em formar bem427 (isto é, formar em todas aquelas dimensões maiores, na medida em que são elas que nos singularizam e distinguem à escala biológica e antropológica), fomentando prioritariamente a auto-capacitação intelectual dos estudantes, através do desenvolvimento de largos leques de potencialidades e competências sapienciais, metodológicas e axiológicas, estimulando, neles, a assunção do sonho e da imaginação criadora, a autónoma construção de paradigmas de pensamento, acção e regulação, mais do que de estereotipadas destrezas operativas de concepção e orientação tecnológica, se não mesmo burocrática e tecnocrática. O domínio do saber-fazer (isto é, dos desempenhos técnico-instrumentais) surgirá, naturalmente, nos diferentes contextos em que a vida os envolverá e em que eles se envolverão nela, sem que alguma vez sacrifiquem alienantemente aos bezerros-de-ouro de qualquer época a sua infinita capacidade de sonhar, inventar e de criar... Mas, em toda a acção modeladora de nós próprios e dos outros, da nossa ipseidade e da nossa alteridade e, simetricamente, da outridade e da mesmidade dos outros, é insubstituível a acção informante, crítica e morfogénica da avaliação, seja na regulação validadora do ensino-aprendizagem, seja na (re)orientação dos desempenhos ou na (re)organização das dinâmicas formativas, tudo direccionado para o caminho do crescimento qualitativo e dignificante de quantos se dedicam, com espírito de missão, à nobre causa de educar, formar e investigar... E se essa causa, do lado da auto-construção das aprendizagens, tem como verdadeiros protagonistas os alunos e os formandos, do lado 427 Cf. Edgar Morin: Repensar e Reforma, Reformar o Pensamento, A Cabeça Bem Feita, Lisboa, Edições Piaget, 2002; Os Sete Saberes Para a Educação do Futuro, Lisboa, Edições Piaget, 2002; Amor, Poesia, Sabedoria, Lisboa, Edições Piaget, 1999; Edgar Morin, Raul Motta, Emílio Roger Ciurana: Educar para a Era Planetária, Lisboa, Edições Piaget, 2004. 237 Fernando Paulo do Carmo Baptista da efectiva preparação das suas condições organizacionais e operatórias, da sua condução inteligente e criteriosa e da sua dinamização inovadora e criativa não deixa de ter como seus orquestradores estratégicos, como seus “Maestros” (“Magistri”), os Professores... ESTA PALAVRA ‘PROFESSOR’ A palavra ‘professor’, segundo os melhores dicionários etimológicos428, provém do latim professor, -oris429) e apresenta no fulcro da sua constituição morfológica a raiz indo-europeia *bhā-2 430 que é portadora do significado matricial de “falar, manifestar-se em público e com clareza, através da palavra”. Esta raiz que apresenta variantes mórficas do tipo bh - / bhē- // ph - / phē- [ > f - / fē- ] e está na origem, entre outras, de palavras gregas como o verbo (= falar, tornar manifesto o seu pensamento através da palavra, revelar, anunciar em público...), os substantivos , - 431, e ο (= profeta, aquele que interpreta a vontade dos deuses e que fala publicamente em seu nome, aquele que anuncia o futuro...), o adjectivo ο ι (profético), etc.; está também presente em latim em lexemas como o verbo f t or, 428 E.g.: Santiago Munguía Segura: Nuevo diccionario etimológico Latín-Español y de las voces derivadas; Bilbao, Universidad de Deusto, 2001, entradas “pr f t or, - ēris, -ēri, -fessus sum [pro + f t or]”, “f t or, - ēris - ēri, fassus sum”; “for, faris, f ri, f tus sum”; A. Ernout et A. Meillet: Dictionnnaire Étymologique de La Langue Latine — Histoire des mots, Paris, Librairie C. Klincksieck, 41967, entrada “for, faris, fari, fatus sum”. 429 Nome da mesma família do verbo profiteor [< pro + f t or, com evolução apofónica: f > f ], -eris, -eri, fessus sum, que significa professar, falar em público e abertamente, proclamar diante de e em favor de, falar para a frente, anunciar o futuro... 430 Com as variantes bhē-/ bh - > f -/ fē-/ f -. Cf. Calvert Watkins: The American Heritage – Dictionary of Indo-European Roots, Boston / New York, Houghton 2 Mifllin Company, 2000, entrada “bh -2. 431 Homólogo do nome latino fama, -ae, com o significado de “fama, revelação e publicitação pela palavra; oráculo, augúrio, presságio ou advertência vinda dos deuses, reputação [favorável ou desfavorável, boa ou má] posta a circular em público acerca de alguém”. 238 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO - ēris -ēri, fassus sum (= confessar, manifestar, declarar) e seus derivados: confiteor, confessor, profiteor, professio, professus... Esta importante e fecunda raiz está igualmente presente em português (com evidente isomorfia, relativamente aos correspondentes lexemas da generalidade das línguas românicas e, mesmo, das não românicas...) num significativo elenco lexicológico que integra palavras como afabilidade, afasia, afásico, afável, afonia, afónico, antífona, blasfemar, blasfémia, blasfemo, brasfemar, brasmar, confabulação, confabular, confessar, confissão, difamação, difamar, difamatório, disfasia, disfemismo, efabulação, efabular, eufemia, Eufémia, eufemismo, eufemístico, eufonia, fábula, fabulação, fabular, fabulário, fabuloso, fada, fadário, fado, facúndia, fala, falar, fama, famigerado, famoso, fandango, fando, fone, fonema, fonética, inefável, infame, infâmia, infância, infando, infantário, infante, infantil, nefando, polifonia, prefácio, profecia, professar, professor, profissão, profético, profetizar sinfonia, telefone, telefonia... Por outro lado, esta raiz é isomórfica da raiz *bhā-1 432, que significa “brilhar” e que está na base da constituição de lexemas gregos como [< ο ], ο (= luz, luz do sol, luz do dia...), α ν (= brilhar, irradiar luz, tornar-se visível, aparecer, manifestar-se), αν (= visível), ι ν ια (= epifania, aparição, manifestação), sendo de sublinhar que a esta mesma família semântico-lexical pertencem lexemas portugueses (e os correspondentes “cognatos” românicos...) como epifania, fanerogâmico, farol, fenómeno, fósforo, fosforescência, fotão, diáfano, fantástico, fase, ênfase, fosfeno, fósforo, fosfóreo, fosforescente, fótico, hierofanta, sicofanta... Dos estudos dedicados à Mitologia, sabemos, também, que a ideia de “luz” é indissociável da ideia de “deus”433, sendo naturalmente conjecturável a ocorrência de interacções semânticas por via tropológica entre a ideia de “falar com clareza” (por forma a tornar “visíveis” ou entendíveis as coisas...) e a ideia de “luz”, “brilho”, “lucidez”... 432 Com as variantes bhē- > b -/ b - >/ f -/ f -. Cf. Calvert Watkins: ibidem, entrada “bh -1”. 433 E.g.: Deus, Zeus, Jupiter [*Djeu + P ter] são os “senhores da luz”. Cf., neste volume, o ensaio intitulado «A “centelha” (‘scintilla’) de Zeus na palavra ‘teoria’». 239 Fernando Paulo do Carmo Baptista Assim, em consonância com a “bilateralidade” genético- semântica que emerge da radicação etimológica e das aludidas interacções, OS PROFESSORES (tal como os Profetas... e os Poetas...), quando sabem ser coerentes protagonistas da palavra fundadora, alumiante e criativa, não deixam de ser, em sua missão arquitectante, modeladora e formativa, OS “INSPIRADOS INTÉRPRETES DOS DEUSES” E “OS ESTELARES E PROFÉTICOS MENSAGEIROS- POETAS DO FUTURO”... DA PROFUNDA CRISE434 QUE VEM ATRAVESSANDO O NOSSO TEMPO ACTUAL... O forte sentido da responsabilidade que muito especialmente deve distinguir os professores e educadores reflexivos e, por isso mesmo, conscientes e preocupados e seriamente empenhados na CAUSA MAIOR DA EDUCAÇÃO, conduz, decerto, ao reconhecimento de que tem inteira pertinência uma abordagem, ainda que sumária, ao preocupante momento histórico, cultural, social e político que o mundo do nosso tempo vem atravessando, atingido pela eclosão de uma complexa teia de fenómenos com que quotidianamente não podemos deixar de conviver, dadas as suas graves incidências, mais directas umas, mais indirectas outras, em todo o processo educativo... De facto, em consequência dos efeitos simultâneos da acção radical, iconoclasta, dissolvente e niilista, desvalorizadora das “grandes narrativas” filosófico-literárias (narrativas fundamentantes) e dos valores que as conformavam, levada a cabo pelos movimentos pós- modernistas em cruzada e convergente sinergia com a exacerbada hiperbolização hedonista das vantagens e benefícios configurados no bem-estar material trazido pela revolução científico-tecnológica, herdeira “legítima” das luzes da racionalidade galileico-cartesiana, com a subalternização, se não mesmo a rasura, da pascaliana «raison 434 A problemática da “crise” que vem atravessando tão preocupantemente o tempo em que vivemos não podia deixar de estar bem presente e bem vincada, de modo transversal e reiterado, ao longo da “sintaxe” desta “rapsódia” ensaística. 240 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO du coeur», a que se veio seguindo gradativamente o quase silenciamento do sistema axiológico (que, pacientemente e não sem sofrimento, foi sendo construído ao longo da História...) vem-se impondo, seminal e larvarmente, nas sociedades actuais (sobretudo nos países economicamente mais fortes), sob o eco e sob o signo tumular do «Gott ist tot» da turbulenta “rosa dos ventos” de Nietzsche, de par com a sombra neutra e fatídica de um pragmatismo esvaziado, decantado ou depurado da carga do axiológico, um generalizado “código de conduta” assente num “grau zero ético” ou numa “ética minimal e indolor”, para usar os conhecidos registos expressionais de Gilles Lipovetsky435... É assim que, atingida de modo tão barulhento como acrítico a memória cultural, o coração e a alma axiológica e sapiencial da Cidade, vem ocorrendo, às mãos da tecnocrática eficácia e da robótica irreflexão do homo agens (do homo operator...), seu titânico e demiúrgico protagonista, uma exponencial e generalizada degradação, com o Planeta a ficar galopantemente transformado (via globalização economicista...) numa senhorial herdade ou coutada, mortiferamente explorada, a nível dos recursos naturais e dos recursos humanos, por cada vez mais poderosas e apátridas oligarquias internacionais... Veja- se, por exemplo, quem cumpre (e como se cumpre...) o protocolo ecológico de Quioto ou quem comanda (e como se comandam...) as deslocalizações das empresas!... Mas é, sobretudo, através do poder manipulador proporcionado pelos diferentes programas mediados por um dos mais emblemáticos artefactos criados pela Ciência e pela Tecnologia — a Televisão — que nos é dado assistir a fenómenos tão inquietantes e tão preocupantes como os seguintes436: • crescente marginalização dos grandes paradigmas e das grandes referências culturais, éticas e políticas, com o consequente nivelamento 435 Cf. Gilles Lipovetsky: A era do vazio [trad. de Miguel Serras Pereira e Ana Luísa Faria], Lisboa, Relógio d’Água, 1989; O crepúsculo do dever — a ética indolor dos novos tempos democráticos, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1994; Métamorphoses de la culture libérale. Éthique, médias, entreprise, Montréal, Liber, 2002 (este último, uma espécie de “abrégé” do pensamento do autor). 436 Cf. Fernando Paulo Baptista: Polifonia, Poiese e Antropopoiese ..., já citado, nota 39, pp. 16 e 53-54. 241 Fernando Paulo do Carmo Baptista rasteiro do trabalho, do valor e do mérito, o generalizado aviltamento do sistema axiológico e a sistemática e inflaccionária “vulgarização” da sua categoria valorativa e referencial maior: a “excelência”; • mediocratização da vida pública pela promoção dos dirigentes populistas e oportunistas e dos mitos e ídolos de pés de barro de todas as espécies: desde as milionárias “estrelas” da pop music e dos media televisivos aos “astros” do futebol e da “fórmula um”, às “vedetas” da pornografia e aos protagonistas do enriquecimento fácil, nebuloso (“branqueado”) e sem escrúpulos; • banalização de realidades tão sérias e tão trágicas como as da doença, do sofrimento, da guerra e da morte; • perversão contra naturam da sexualidade e da intimidade; • desproporcionada promoção de deprimentes e estupidificantes espectáculos televisivos como os dos reality shows (e certos talk shows marcados pelo cinismo e pela futilidade...) ou dos números de humor imbecilizante e rasca; • narcotráfego, produção, comércio e candonga de armas; • pobreza, marginalização, exploração, exclusão e discriminação social; • criminalidade animalesca e brutal, abuso e violação de crianças, de menores e de mulheres, violência e terrorismo; • irreverência desrespeitosa e ofensiva do sagrado e da autoridade (sobreposta àquela saudável irreverência prometeica e afirmativa, própria das gerações mais jovens...); • contestação sem critério e sem regras decorrente do diagnosticado “crepúsculo do dever” (Lipovestky), com a irresponsável e generalizada tendência para apenas se reclamarem “direitos” como se já não houvesse “deveres” ou “obrigações”; • predomínio do egoísmo hedonista e materialista e do consumismo acrítico e desregrado; • alastramento de toda a espécie de poluição e agressão moral e ecológica e da fruição sem ética, sem estética, sem autodomínio e sem bússola; • em suma: desfiguração da alma e do rosto do homem pelo esvaziamento da sua própria dignidade e humanidade... Tudo numa lógica de “lotaria mortal” (subjacente e inerente aos riscos de toda a ordem, com especial destaque para os da incontrolada contaminação das águas, dos ares e dos mares e da desnaturada e 242 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO gananciosa composição bioquímica dos alimentos...), a desaguar numa sempre latente e insuperada conflitualidade e numa terrífica e generalizada violência imparavelmente vagabunda e sem fronteiras (ou não estivéssemos a viver na globalizada «sociedade do risco»437), analisada e descrita por Ulrich Beck com rara agudeza e clarividência... Lógica que a retórica inerte do discurso político dominante (quase sempre correcto ou mascaradamente distorcido e, por isso mesmo, hipocritamente fingido e só muito raramente transparente, frontal e indignado e verticalmente saudável e digno...) não consegue fazer reverter... Num tal contexto, vem-se assistindo a uma práxis secundarizadora do diálogo autêntico e da concertação justa e equitativa, afirmadora do rosto humano do outro e consagradora do consonante desenlace num compromisso ético e num consenso social solidariamente construídos, como resposta às perversões imperiais duma oligo-globalização economicista e de um neo-malthusianismo financeiro drasticamente redutor do mercado de trabalho e, por isso mesmo, conducente ao desemprego generalizado, à precariedade das condições de vida, à instabilidade, à insegurança, à contestação e à violência social... Em síntese: não só se vem confirmando a “canonização” da “época da pós-verdade”, mas também se vem configurando o advento da “era da pós-justiça”, ou seja, uma deriva social e civilizacional que prenuncia a derrocada do “sistema ético-axiológico”... DOS CAMINHOS DA SUPERAÇÃO: A “REVOLUÇÃO DAS CONSCIÊNCIAS”... A meu ver, a estratégia e a terapia superadoras de tal estado-de- coisas jamais podem prescindir de um profundo exercício de 437 Cf. Ulrich Beck: La sociedad del riesgo — hacia una nueva modernidad, Barcelona, Editorial Paidós, 2001, pp. 85 ss: «... la sociedad del riesgo no es una sociedad revolucionaria, sino más bien una sociedad de las catástrofes. En ella, el estado de excepción amenaza con convertirse en el estado normal.» (p. 87); «... con el crecimiento de los peligros surgen en la sociedad del riesgo desafíos completamente nuevos a la democracia.» (p. 88). 243 Fernando Paulo do Carmo Baptista questionante reflexão e gnose, de um exigente, ascético e catártico trajecto (re)criador do conhecimento profundo, de uma radicante “Sophia” (que seja, simultaneamente, uma antropo-sofia e uma teo- sofia), conducente à elevação do nível intelectual, cultural e axiológico, em suma, da enciclopédia sapiencial de cada um e de todos, alicerçando, primigeniamente, todo esse processo de antropo-poiese, de antropo-arquitectura, na paidêutica promoção de uma serena mas firme “revolução das consciências”, tendo em vista a formação de um forte sentido ético e social, inspirador e a repositor de uma nova esperança... “REVOLUÇÃO DAS CONSCIÊNCIAS”!... Tal é a lúcida e pacífica proposta enunciada pelo filósofo e teólogo Karol Woityla438 para todos os homens do nosso tempo, a ser orientada para a reconstrução e redensificação axiológica da subjectividade, sobretudo, em suas capitais faculdades e energias superiores, tanto racionais como transracionais: a razão, a análise, o cálculo, a conjectura, o sentido do método, a experimentação, a reflexão, o espírito crítico, mas também o coração, a sensibilidade, a afectividade, o sofrimento, a vontade, a ousadia, a decisão, a aventura, a paixão, o sonho, a fantasia, a imaginação, a inventiva, a criatividade... Instituir-se-á, a partir daí e em contraponto, uma regeneradora e reestruturante base antropo- arquitectónica, semiogénica e culturofânica, um verdadeiro centro energético, revitalizador das relações intersubjectivas, interpessoais, institucionais e sociais em geral, «modernizador da modernidade», o mesmo é dizer, propulsor de uma «modernização reflexiva» ou de uma «segunda modernidade», na acepção de Ulrich Beck439 e, assim, propositor à comunidade humana de uma alternativa fundada, fundamentada e fundamentante, responsável, credível e credibilizadora e conformadora de uma nova visão do mundo e de uma nova estratégia de desenvolvimento e de progresso, de tal modo que «ser homem» — ser ênyrvpow — recupere o seu mais genuíno e universal sentido... Mas esse «eu» a formar e onde está implantado e sediado o «espírito criador», se, por um lado, é um «eu ipseídico», não pode deixar de ser também e pelo outro, congenitamente e ao mesmo tempo, um «eu-com-os-outros-e-para-os-outros», um «eu alterídico», 438 Cf. Fernando Paulo Baptista: Tributo..., op. cit., p. 550. 439 Cf. Ulrich Beck: op. cit., p. 197 ss. 244 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO interpessoal e pontificiente, o mesmo é dizer, uma nostridade sin- antrópica e inter-animante «del hombre con el hombre», nostridade essa, em cuja instauradora conformação intervém, em incontornável e constitutiva dialogia, o “outro”, o “tu”: «É O TU QUE ME FAZ EU!», proclama lapidarmente Martin Buber440, logo secundado, em estreita consonância poética, por Paul Celan441: «SOU TU QUANDO SOU EU». Em síntese e na assumida perspectiva de uma lógica universal, inclusora e integradora442: Ser Homem é ser em Si, sempre e ao mesmo tempo, o Próprio e o Outro, sem exclusão de Ninguém!... PALAVRA DE PROFESSORES!... Em coerente sintonia, portanto, com a semântica arcaica e nuclear que, como acabámos de ver, se liberta das matrizes etimológicas e das interacções sémicas potenciadas pela respectiva rede de lexemas, bem como das relações de natureza tropológica ou da influência de contextos comunicacionais e práxicos com afinidades de fronteira no dinamismo da significação, os Professores, pela singularidade da sua condição de “ESPECIALISTAS EM HUMANIDADE”, de PROTAGONISTAS DA PALAVRA FUNDADORA, ESTRUTURANTE, ENERGÉTICA, SEDUTORA, SÁBIA E ARTÍSTICA, de “ENGENHEIROS- ARQUITECTOS-POETAS” DOS HORIZONTES VITAIS, pela nobreza incomparável da sua missão formadora e transformadora, enquanto acurados “INTÉRPRETES DOS DEUSES” e esperançosos “MENSAGEIROS- POETAS DO FUTURO”, em circunstância alguma deverão assumir para com aqueles que transportam em si o “divino” em sua expressão mais pura e genuína — as crianças e os jovens — práticas educacionais e comunicacionais que não sejam dignas deles e de si próprios, em circunstância alguma deverão conceber e desenvolver um tão alto 440 Cf. Martin Buber: Qué es el hombre?, México – Madrid – Buenos Aires, Fondo de Cultura Económica, 1986: pp. 98, 100-101, 104, 140, 141-151. 441 Paul Celan: Sete Rosas Mais Tarde (Antologia Poética), Lisboa, Edições Cotovia, 2 1996, pp. 12-13; ver também Arte poética — O meridiano e outros textos, Lisboa, Edições Cotovia, 1996, pp. 81-82. 442 Cf. Fernando Paulo Baptista: op. cit., p. 550, nota 11; cf. também: http://www.liberalfondazione.it/archivio/Fl/numero7/sanpietro.htm 245 Fernando Paulo do Carmo Baptista projecto e processo, na base de um “discurso” que viesse a merecer o epíteto de “blasfemo” ( blãsfhmow lÒgow), na acepção que este adjectivo tem em grego, ou seja, um discurso maculador dessa pureza e ofensor dessa “divindade” genuína e prístina... Pelo contrário, impõe- se-nos escutar as vozes proféticas e sábias que irrompem do passado, nascidas da pureza e dos abismos do ser; impõe-se-nos seguir novamente a “lição” ética e culturalmente forte dos «GRANDES MESTRES», daqueles «MESTRES DE ESTOFO E DE ESTATURA» de que nos fala George Steiner nas suas Lessons of the Masters443, com a consequente recusa e superação do que não presta, do que não tem elevação, nem sentido, nem grandeza e a permanente assunção de uma inconformada libido sciendi, de uma diuturna ascese melhorativa e de uma inextinguível, porque sempre jovem, paixão pelo intranscendido, propulsor e fecundante “LEGADO DE HOMERO”, “EDUCADOR DA GRÉCIA”, “EDUCADOR DO MUNDO”... Na verdade, quando um Professor digno desse nome consegue tocar com a sua postura ética auto-exigente e iluminante e com o seu agir sapiencial e poiésico as raízes do ser e o coração da alma dos seus discípulos, desenhando e rasgando aquela largueza de horizontes e de oceanos que lhes garante a autonómica aventura de todas as navegações, pode, depois, quedar-se só, recolhido na serena discrição do seu silêncio, porque ficará gravado, para sempre, na gratidão e na memória daqueles a quem ele ajudou a crescer. A “LIÇÃO” DOS GRANDES MESTRES (“MAESTROS”), TAL COMO A “PALAVRA” DOS GRANDES POETAS, PORQUE É FUNDADORA, É IMPERECÍVEL... E «porque a realidade profunda da palavra é o espírito que nela mora ou o espírito que por ela passa», então, a nossa palavra — Palavra de Professores... — poderá configurar, com Vergílio Ferreira444, a «furtiva correlação de referências que nos orientam do filósofo ao poeta, ao homem quotidiano», a «mágica e real (...) tessitura que em si mesma se resolve (...) para nela sermos a totalidade do que somos com a aventura do desconhecido e o apelo do mais que nunca é». E quem 443 George Steiner: Lessons of the Masters, Harvard, Harvard University Press, 2003 (que cito através da versão em espanhol: Lecciones de Los Maestros, Madrid, Ediciones Siruela, 2003, pp. 11-15, 171-172). 444 Cf. Vergílio Ferreira: Invocação ao meu corpo, Lisboa, Bertrand, 21978: pp. 295, 298-299. 246 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO sabe?... Com ela no coração meigo e puro e na mente sem maldade e sem pecado e inspirados naquela mesma «arte de roseira» que leva Herberto Helder a trazer para dentro da morada quente, alumiante e fascinante de seus fabulosos poemas as crianças que há no mundo... vindas das mais diversas lunações... a correr com braços e cabelo... como se movessem água... todas metidas no vento..., plasmaremos com Makarenko, mas para além dele, UM “POEMA” PEDAGÓGICO NOVO, inaugurador de um mundo novo também... Assim: «Não cortem o cordão que liga o corpo à criança do sonho, o cordão astral à criança aldebarã, não cortem o sangue, o ouro. A raiz da floração coalhada com o laço o centro das madeiras negras. A criança do retrato revelada lenta às luzes de quando se dorme. Como já pensa, como tem unhas de mármore. Não talhem a placenta por onde o fôlego do mundo lhe ascende à cabeça. A veia que a liga à morte. Não lhe arranquem o bloco de água abraçada aonde chega braço a braço. Sufoca. Mas não desatem o abraço louco. Move a terra quando se move. Não limpem o sal na boca. Esse objecto asteróide, não o removam. A árvore de alabastro que as ribeiras frisam, deixem-na rasgar-se: — Das entranhas, entre duas crianças, a que era viva e a criança do sopro, suba tanta opulência. O trabalho confuso: que seja brilhante a púrpura. Fieiras de enxofre, ramais de quartzo, flúor agreste nas bolsas 247 Fernando Paulo do Carmo Baptista pulmonares. Deixem que se espalhem as redes da respiração desde o caos materno ao sonho da criança exacerbada, única.»445 ANOTAÇÕES E ADENDA 1. Para a superação dos fenómenos de “esquizo-sofia”, de “ruptura” e “desagregação” ético-axiológica e sapiencial que afectam as instituições formadoras, designadamente as Universidades, cf. Parker J. Palmer & Arthur Zajonc with Megan Scribner: op. cit.. Importa, na verdade, superar as lacerações, as divisões e as rupturas que subjazem à etiologia profunda (endógena e exógena...) da patológica e agónica situação denunciada no polémico mas interpelante título de Bill Readings «A Universidade em Ruínas» (Bill Readings: The University In Ruins, Cambridge and London, Harvard University Press, 1996). Esse estilhaçamento ou dilaceração decorre também (entre outras variadíssimas razões intrínsecas aos fenómenos da “massificação dos sistemas educativos e formativos” e da “globalização economicista” e aos radicalismos pós-modernistas e neo-liberais...) do que tem sido a incapacidade de se reconhecer o valor e a importância da solidariedade ético-axiológica e gnosiológica e da inter-conectividade dos saberes e dos valores: «Those divisions, rooted in our failure to recognize the reality of interconnectedness, are found not only in the ontology, epistemology, pedagogy, and ethics that form a silent backdrop to university life.» (Parker J. Palmer et alii: op. cit., p. 127). Neste contexto, além da reflexão plasmada no ensaio acabado de citar, são igualmente importantes os contributos reflexivos consignados nas seguintes obras (todas elas, de leitura obrigatória): Mark C. Taylor: Crisis on Campus — A Bold Plan for Reforming Our Colleges and Universities, New York, Alfred A. Knopf, 2010: «There can be no meaningful reform of higher education without redesigning 445 Herberto Helder: Ou o Poema Contínuo [Última Ciência], Lisboa, Assírio & Alvim, 2004: pp. 430-431. 248 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO departments in ways that will support more extensive collaboration among faculty members and students working in different fields. It is also necessary to make structural changes in the curriculum that will facilitate the introduction of new interdisciplinary programs focused on specific problems and themes. Departments and programs should have the openness and flexibility that allow them to adapt to the constant evolving structure of knowledge.» (p. 139); Martha C. Nussbaum: Not For Profit — Why Democracy Needs The Humanities, Princeton, NJ / USA, Princeton University Press, 2010 («... what schools can and should do to produce citizens in and for a healthy democracy?» (pp. 45- 46); «Democracies have great rational and imaginative powers. They also are prone to some serious flaws in reasoning, to parochialism, haste, sloppiness, selfishness, narrowness of the spirit. Education based mainly on profitability in the global market magnifies these deficiencies, producing a greedy obtuseness and technically trained docility that threaten the very life of democracy itself, and that certainly impede the creation of a decent world culture. If the real clash of civilization is, as I believe, a clash within the individual soul, as greed and narcissism contend against respect and love, all modern societies are rapidly losing the battle, as they feed the forces that lead to violence and dehumanization and fail to feed the forces that lead to cultures of equality and respect. If we do not insist on the crucial importance of the humanities and the arts, they will drop away, because they do not make money. They only do what is much more precious than that, make a world that is worth living in, people who are able to see other human beings as full people, with thoughts and feelings of their own that deserve respect and empathy, and nations that are able to overcome fear and suspicion in favour of sympathetic and reasoned debate» (pp. 142- 143). Todos estes contributos se revelam crucialmente decisivos, sobretudo quando verificamos que, nesta «era do vazio» (Lipovetsky), há tanta iliteracia, prolifera tanto «analfabetismo» (mesmo se «diplomado»...), se silenciam cada vez mais, e de modo catastrófico, os textos maiores da nossa Língua, da nossa Cultura, da nossa Literatura, da nossa Poesia e da nossa Reflexão (filosófica, teológica, científica e sapiencial em geral...), textos plasmados nas obras (literárias ou afins...) dos nossos Grandes Clássicos, Antigos e Modernos, o mesmo é dizer, quando se ostraciza o “Património” imaterial, imorredoiro, energizante e sempre criativa e inovadoramente potenciador e propulsor (aos mais 249 Fernando Paulo do Carmo Baptista diversos níveis da nossa condição antrópica e lusíada...) das Humanidades, das Belas Letras e das Belas Artes... Cf. Fernando Paulo Baptista; Polifonia..., op. cit., pp. 28-30. 2. Sem recusar a ideia de que, face a situações problemáticas marcadas por profundas e graves carências de conhecimentos e destrezas basilares e, portanto, comprometedoras das aprendizagens subsequentes ou futuras, se torna imprescindível a supridora transmissão desses saberes e destrezas alicerçantes, importa clarificar previamente de que modo e em que condições se poderá operar uma tal transmissão. Assim, ponderando bem a complexidade de tão grave estado de coisas como é o actual, não me parece que o recurso, por exemplo, à lição, exposição ou dissertação magistral seja a via ou caminho ([meta-] odos) mais adequado para a colmatagem de tais carências, mesmo no assim chamado ensino superior... Pelo contrário, no contexto global da situação concreta em que se encontram a educação e o ensino, situação generalizadamente reconhecida como altamente deficitária a nível do domínio da língua materna (com especial destaque para a leitura/interpretação, o vocabulário e a escrita...) e a nível do desenvolvimento das capacidades e faculdades cardinais (imaginação criadora, sensibilidade, inteligência, vontade, memória, razão, espírito crítico...), dos saberes cruciais e estruturantes, das posturas, destrezas e operações mentais constitutivas e arquitectantes (atenção, concentração, resistência, conjecturalidade, dedutividade, raciocínio, análise, síntese, sistematização, sentido do método, hábitos de estudo e de trabalho...), afigura-se-me muito mais adequada, eficaz e produtiva a constante interpelação dialógico- dialéctica (“irónica”, na acepção socrática do termo...), a implicar, problematizadora, heurística e maieuticamente, o envolvimento e a participação directa e activa dos alunos... Todavia, tal modo de conduzir as coisas exige inquestionavelmente mais trabalho aos professores, mas o «método» do velho Sócrates, devidamente ajustado e adequadamente complementado, por exemplo, com o recurso aos multimédia e enciclomédia, parece-me actualíssimo em seus aspectos essenciais... Considere-se, a propósito, um exemplo prático: pressupondo sempre a melhor preparação científica por parte do professor, tendo como objectivo levar a turma a aprender os conhecimentos implicados na célebre fórmula de Einstein respeitante à 250 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO equivalência entre energia e matéria (e = mc2) e considerando, nessa aprendizagem, o significado e alcance científicos da equação em causa, pergunta-se: transmitir, expositiva e exlusivamente, através do desenvolvimento discursivo protagonizado unipolarmente e a solo pelo emissor-professor será a mesma coisa que envolver e implicar, orquestral e sinagogicamente, compositiva e inclusivamente, todos os alunos da turma (de modo activo, heurístico, «construtor» [poiésico] e multipolar), na interacção, circulação e alternância dialéctico- dialógica (emissor <> receptor / receptor <> emissor...), visando a reflexão explicativo-compreensiva dessa fórmula?... Imagine-se uma estratégia pedagógico-didáctica em que o professor propõe à turma um “itinerário” como o seguinte: 1º. pesquisar, previamente, nas bibliotecas e na internet informação específica acerca daquela equação einsteiniana; 2º. levar a cabo, de modo disciplinado e metódico, um debate em torno daquela equação; 3º. ensaiar imaginativamente a aplicabilidade daquela equação e elaborar uma síntese sistematizadora dos fundamentais conhecimentos envolvidos; 4º. retirar as conclusões, redigir o sumário e, melhor ainda, um relatório condigno do trajecto percorrido... Alguém terá dúvidas quanto à produtividade formativa, nos planos científico, cultural e pedagógico, de um e de outro método?... E qual dos dois é mais exigente quanto ao investimento de estudo e de trabalho por parte de todos: professor e alunos?... É assim que, sem prejuízo da concordância que genericamente me merecem as críticas formuladas por Nuno Crato (cf. Nuno Crato: O ‘Eduquês’ em discurso directo — Uma crítica da pedagogia romântica e construtivista, Lisboa, Gradiva, 62006; ver síntese conclusiva: pp. 115- 121) em torno das razões do estado a que chegou a Educação em Portugal, não posso, todavia, deixar de discordar não só de algumas das soluções por si avançadas, como do modo como interpreta a questão, entre outras, da competência (pp. 75-79) e da sua relação (ou não...) com a aprendizagem dos conhecimentos, com a construção do saber... Na verdade e do meu ponto de vista, a competência, deverá ser entendida (de acordo com a semântica originária e profunda da raiz indo-europeia — pet- [> ped-] > / pt- / pot-: com-pet-ência — que lexicogenicamente está na sua origem constitutiva...) como o movimento sinérgico, ágil, fluido e euplástico direccionado para a aprendizagem ou encorporação/interiorização de saberes, experiências e destrezas, movimento esse, a ser criteriosamente conduzido segundo 251 Fernando Paulo do Carmo Baptista um desígnio edificacional (constructor [con-stru-c-tor]) et erector) potenciador de desempenhos originais, fecundos e produtivos. Poderá mesmo dizer-se (num registo analógico de inspiração e articulação saussureana e chomskiana...) que a competência é o paradigma e que o desempenho ou performance é o sintagma ou texto que a concretizam e manifestam; ou, também (socorrendo-me, desta vez, do legado aristotélico), que a competência é a potência (dÊnamiw) e o desempenho é o acto (§n°rgeia / ¶rgon). Se considerarmos, agora, esta questão, na perspectiva do processo avaliativo, é evidente que aquilo que objectiva(da)mente se avalia são os desempenhos através dos actos e das realizações que em cada momento os configuram... Mas é a partir desses desempenhos que é possível inferir, com relativo fundamento (tendo em conta a sua frequência, a sua constância ou inconstância, a sua progressão, paralisia ou mesmo regressão...), da qualidade da competência que lhes vai subjacente e os potencia, sendo pertinente falar, então, de desempenhos mais ou menos conseguidos ou, no caso vertente, de professores e de alunos mais ou menos competentes (ou incompetentes) nas diferentes disciplinas que integram a estrutura do currículo: literatura, filosofia, história, matemática, física, química, biologia... Ou seja: o professor de filosofia é (ou não é...) competente em filosofia; o professor de matemática é (ou não é...) competente em matemática e assim por diante... O que significa não se afigurar defensável a ideia de uma competência meramente eidética, vazia de conteúdos sapienciais (teóricos ou práticos): parafraseando Husserl, a competência (tal como a consciência...) é sempre competência em alguma coisa, é um potencial dinâmico apetente, isto é, sinergicamente direccionado para a apropriação dos saberes de toda a ordem que estão na génese, fundamentação e sustentação dos nossos desempenhos reais e concretos. Parece-me mais correcta, portanto, a seguinte sequência, co-implicativamente ordenada: capacidades > competências <> saberes / destrezas > desempenhos, sublinhando o facto de, de modo algum, se me afigurar defensável uma concepção amnésica do saber, da ciência, da cultura ou da educação... Não deixo, todavia, de propugnar a sobreposição hierarquizada da dimensão poiésico-criativa do conhecimento e do saber relativamente à sua dimensão meramente “arquivística” do tipo «eu transmito e vós arquivais»; esta modalidade, desenvolvida com maior ou menor “perversão”, pode conhecer enunciações do seguinte teor: «eu digo / eu dito e vós escreveis / 252 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO registais»; «e, porque eu é que sei (mas vós não...), eu mando e vós obedeceis»... É assim que prefiro, claramente, uma formulação deste género: «vou esforçar-me por dar, conjuntamente convosco, tudo quanto posso e sei, implicando, nesse dar, os melhores e mais completos conhecimentos e saberes e os mais fecundos métodos, técnicas e procedimentos de que for capaz (que quando não for, pedirei ajuda...), no sentido de desenvolverdes em vós e por vós, de modo autónomo e criativo e com espírito crítico e exigência ética, as competências de ordem cognitiva e metacognitiva e o domínio teórico e prático (e sempre que for possível, insisto, «poiésico»...) dos conteúdos disciplinares, científicos, sapienciais e culturais, concretamente exigidos nos planos de estudos que integram a estrutura programática dos vossos currículos». 3. Em reforço do significado “arqueológico” do lexema ‘competência’, importa referir que a raiz indo-europeia — pet- [> ped- ] > /pt- /pot- — tem como “ADN SEMÂNTICO” a ideia de pôr-se ou lançar-se em movimento ágil num ambiente fluido [ar ou água] e que está igualmente presente num vasto e curiosíssimo elenco de vocábulos (cerca de trezentos), uns provenientes directamente do latim, outros do grego (e em sua larga maioria, de uso especializado...), mas todos eles transversalmente atravessados por aquele mesmo fio semântico matricial e identitário, ainda que morfologicamente sujeitos aos fenómenos de metamorfose, próprios da evolução fonética e do dinamismo semântico-tropológico: açor (do lat.: accippitor = ave de rapina, isto é, que se lança em voo ágil para captar a presa), alagóptera, anóptero, apetecer, apetecível, apetência, apetite (= movimento fisiológico em direcção ao alimento; vontade de comer...), apetitoso, apteranto, aptéria, apterila, apterino, aptério, áptero, apterodícero, apterogénico, apterogénio, apterologia, apterológico, apterologista, apterólogo, apteronoto, apterópode, apterórnis, apterornite, apterota, apteruro, assimptota, assimptótico, braquíptero, carióptera, carióptere, coleóptero, coleopterologia, coleopterológico, competição, competição, competidor, competir, competitividade, competitivo, cóptera, dermóptero, despedimento, despedir, diplóptero, díptero, expedição, expediente, expedir, fenicoptérida, fenicopterídeo, fenicopteriforme, fenicóptero, gonóptera, helicóptero (= artefacto tecnológico que se põe em movimento por acção de uma hélice), 253 Fernando Paulo do Carmo Baptista hipopótamo, impedimento, impedir, ímpeto, impetuosidade, impetuoso, lepidopterista, lepidopterologia, lepidopterológico, lepidopterologista, lepidopterólogo, leptidóptero, leucóptera, Mesopotâmia (= território situado no meio das águas que se movem, concretamente, as águas dos rios Tigre e Eufrates), miopótamo, monóptero, pedinte, pedir (do lat.: petere = movimentar-se em direcção a alguém para obter algo...), pena (= pluma), penacho, pendão, pêndulo, penhasco, períptero, perpetuar, perpétuo, péssimo (do latim pessimum < petsimum = que se estatela pelo chão fora, que cai aparatosamente, tanto em sentido próprio como em sentido figurado), petição, petulante, pináculo, potâmea, potâmeo, potâmico, potamila, pótamis, potamita, potamófilo, potamofobia, potamofóbico, potamófobo, potamogalídeo, potamógalo, potamogeto, potamogetonácea, potamogetonáceo, potamogetonínea, potamografia, potamográfico, potamógrafo, potamolatra, potamólatra, potamolatria, potamolátrico, potamologia, potamológico, potamologista, potamólogo, potamometria, potamométrico, potamónico, potamonimia, potamonímia, potamonímico, potamoplancto, potamoplâncton, potamoquero, potamotério, potamótoco, potável, propiciar, propiciatório, propício (do lat.: propitium = que se põe em movimento em favor de alguém [para prestar ajuda]), pteracanta, pteracanto, pteranto, pterela, pterial, ptericoco, pterobrânquio, pterocacto, pterocária, pterocaule, pterocéfalo, pterócera, pteroclídeo, pterodáctilo, pterodáctilo, pterodisco, pterodonte, pterofagia, pterofágico, pteróforo, pterogina, pteroglosso, pterógono, pteróide, pteróide, pterolóbio, pteroma, pteromedusa, pterónia, pterópego, pterospermo, pterósporo, pterossauro, pterostilo, pteroteca, pteróxilo, queropótamo, quiróptero, repetência, repetente, repetição, repetir, repetitivo, sintoma (do grego: symptoma), talóptera... 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Paulo Baptista) (*) Nota prévia: o presente estudo é a re-escrita mais desenvolvida de uma comunicação apresentada ao «II Fórum Ibérico de Tele-Medicina» que teve lugar em Viseu (Portugal), nos dias 5, 6, 7 e 8 de Outubro de 2005. 261 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO RESSURGIR EM PLENITUDE!... O tema da “ressurreição 446 / ressurgimento”, independentemente da singularidade do significado que assume no interior das comunidades religiosas, com os seus dogmas, as suas crenças e os seus rituais específicos, pela riqueza da sua semântica e pela importância dos seus pressupostos conceptuais, simbólicos e sapienciais, justifica, só 446 A palavra «ressurreição» é proveniente do acusativo — resurrectione-(m) — do substantivo latino resurrectio, -onis, da mesma família do verbo resurgo, -is, -ere, resurrexi, resurrectum que significa «retomar a posição erecta, isto é, a posição orientada segundo a linha recta; levantar-se de novo; voltar a pôr-se de pé; retomar a vida depois de a ter perdido». Ressurgo deriva de re + surgo, apresentando a seguinte estrutura morfológica e fono-evolutiva: sub + rego > sub + rigo > sur + rigo > surr(i)go > sur(i)go > surgo (com apofonia [e > i], assimilação [br > rr], simplificação / redução [rr > r] e síncope da vogal breve pós-tónica [i]). De notar que o verbo primitivo e originante rego, -is, -ere, rexi, rectum (= reger, orientar, conduzir...) faz parte de uma vasta família lexical da língua latina: rectus, / rectitudo, -inis, / rectio, -onis, / regio, -onis, / regimen, -inis, / rex, regis, / regina, / regula, / regularis, -e / regulo, -as, -are, / regulatio, -onis, / corrigo, -is, -ere, / correctio, -onis, / correctus, / corrector, / rector, / arrigo, -is. -ere / dirigo, -is, -ere, / directus, / director, / directio, -onis / erigo, -is, -ere / erectus, / erectio, -onis, / pergo, -is, -ere, / porrigo, -is, -ere, / porrectus, / exporrigo, -is, -ere, / surgo, -is, -ere, / exsurgo, -is, - ere, / insurgo, -is, -ere, / resurgo, -is, -ere, / rogo, -as, -are..., com forte projecção e presença na nossa língua e, analogamente, nas línguas românicas: recto, rectidão, reitor, regente, regime, regimento, região, régio, régulo, reino, correcto, corrigir, correcção, directo, erecto, incorrigível, rectângulo, rectificar, rectilíneo, surgir, ressurgir, ressurgimento, rogatório, abrogar, arrogar, derrogar, interrogar, prerrogativa, prorrogar...; e, ainda, rajá (proveniente do sânscrito: rj / rjan > rajah [= rei])... Toda esta família tem como base morfogénica a raiz indo-europeia *re - / ro - / ṛ - presente, nomeadamente, no sânscrito ṛjyati / ṛñjáti, no grego Ùr°gv, no antigo islandês rēttr, no antigo irlandês reraig, no gótico raihts, no antigo frisão riucht, no antigo alto alemão recchen, no germânico recht, no inglês antigo riht, no inglês actual right, no norueguês rett, no dinamarquês ret, no sueco rät... Esta raiz apresenta como “adn semântico” a ideia de «movimento em linha recta»: na verdade, rego, -is, -ere significa «dirigir em linha recta; guiar, conduzir com rectidão...». Pelo que «ressuscitar» não pode deixar de se traduzir numa re-assunção da vida em sua acepção «rectitudinária», de tal modo que não dispensa o constante investimento nos grandes valores humano-divinos do bem, do belo, da justiça, da verdade, em suma, da prática da virtude... 263 Fernando Paulo do Carmo Baptista por si, uma reflexão, ainda que breve, em torno do valor da «vida humana» e do bem da «saúde»... Na verdade, a vida humana encarnada na galáxia pulsante de mais de sete mil milhões de habitantes que actualmente povoam a Terra447 (ou seja, no corpo vivo e singular de cada um de nós e dos demais biliões de nossos concidadãos planetários...), quando perspectivada sob um enfoque reflexivo e dialéctico entre a parte e o todo, o local e o global, o finito e o infinito..., pode bem configurar-se como uma antropo-biosfera, ou seja, como um mega-sistema animado, pensante, imaginante, criativo, actuante, comunicante, informante, organizativo, operativo... Ao longo da sua existência efémera ao nível individual, esse mega-sistema revela-se, em seu quotidiano devir, através de uma complexa fenomenologia e de uma dinâmica exponencial de dimensões e potencialidades incalculáveis, com múltiplas funções e operações em simultâneo, podendo definir-se aberta e multidimensionalmente, com Rudy Rucker448, como «a fractal in Hilbert space». Fractal esse, todavia, impossível de ser exaustivamente descrito e explicado, por exemplo, em toda a sua actividade sonhadora, criadora, semiogénica e cultural e em toda a sua interactividade comunicacional, seja ela simplesmente emissiva e receptiva ou meramente pragmática, 447 Cf. http://www.worldometers.info/pt/. Uma estimativa constante de um Relatório das Nações Unidas aponta para uma população mundial da ordem dos 9,6 mil milhões, em 2050 (cf. http://www.unric.org/pt/actualidade/31160-relatorio-das-nacoes- unidas-estimaque-a-populacao-mundial-alcance-os-96-mil-milhoes-em-2050-). 448 Cf. Rudy Rucker: Mind Tools: The Five Levels of Mathematical Reality, Boston, Houghton Mifflin, 1987, pp. 248: «Life is a fractal in Hilbert space», sendo que «the mathematical concept of a «Hilbert space», named after David Hilbert, generalizes the notion of Euclidean space. It extends the methods of vector algebra from the two- dimensional plane and three-dimensional space to infinite-dimensional spaces. In more formal terms, a Hilbert space is an inner product space — an abstract vector space in which distances and angles can be measured — which is “complete”, meaning that if a sequence of vectors is Cauchy, then it converges to some limit in the space. Hilbert spaces arise naturally and frequently in mathematics, physics, and engineering, typically as infinite-dimensional function spaces. They are indispensable tools in the theories of partial differential equations, quantum mechanics, and signal processing. The recognition of a common algebraic structure within these diverse fields generated a greater conceptual understanding, and the success of Hilbert space methods ushered in a very fruitful era for functional analysis» (Cf.: http://en.wikipedia.org/wiki/Hilbert_space.). 264 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO seja ela hermenêutica, retórico-argumentativa ou estésico-poiésica e artística em geral... Assim, perante a angustiante e intranscendível aporia da nossa transiência, efemeridade e finitude existenciais, só nos resta assumi-la, vivê-la e perenizá-la com a mais esperançosa, criativa e dignificante elevação possível... O fenómeno da vida humana (há que reconhecê-lo com adoradora humildade e, ao mesmo tempo, com maravilhado espanto!...) é inquestionavelmente o “acontecimento” mais prodigioso de quantos tiveram lugar no Universo: «Magnum, o Asclepi, miraculum est homo!»449... De facto, a lenta caminhada que, desde o singular momento do Big Bang, as partículas elementares tiveram de percorrer até ao aparecimento do Homem na Terra configura, a meu ver, a maior e mais fascinante “epopeia” que alguma vez pudera ser escrita e cantada, sob a cintilação das estrelas!... Quantas amoráveis combinatórias não tiveram de ocorrer, quantos apaixonantes enleios não tiveram de eclodir ao longo desse evolutor, complexificante, qualitativo e silencioso trajecto e dinamismo de que veio a florir, culminativamente, a primeira célula viva e, a partir dela, a possibilidade de conformação dessa maravilhosa “máquina” que é o nosso corpo humano, dotado do mistério da mente com o conjunto das faculdades superiores e “nobres” que constituem a dimensão maior da nossa espiritualidade: sentir, pensar, sofrer, acreditar, desejar, querer, apaixonar-se, amar, sonhar, imaginar, criar, inventar, realizar?!... Por sua vez, a «saúde» é, por definição, a sólida, integral, intacta e global harmonia de tudo isso (tal como ressalta da semântica remota e profunda da palavra latina salus, -lutis e de outras palavras da mesma família etimológica: salvar, saudar, saudável, salutar, holismo, holístico, sólido, solícito, solicitude, consolidar, solene...), constituindo “o bem fundador” dos demais bens de que nos é dado fruir... Nela se joga e se decide a garantia da salvaguarda e integridade desse valor capital e verdadeira pedra angular da construção de todos os códigos da Humanidade — o «Valor da Vida»!... 449 «Grande maravilha é o Homem, ó Asclépio!» (Cf. Giovanni Pico della Mirandola: Oratio De Hominis Dignitate, Paris, Éditions de L’Éclat, 32002, §1 [edição bilingue (latim > francês) de Yves Hersant]). 265 Fernando Paulo do Carmo Baptista A «SAÚDE», seja pensada a nível pessoal, seja perspectivada no plano social, está (deveria estar!...) institucionalmente resguardada por uma estratégica rede de organismos, mecanismos e práticas que visam prever, prevenir, reduzir ou mesmo neutralizar qualquer prenúncio de natureza étio-sintomatológica que possa pôr em risco a já referida harmonia estrutural e funcional da nossa bio-somato-psicosfera, e, com ela, da própria sociosfera... Por isso é que, EM NOME DESSE PRIMORDIAL VALOR QUE É A VIDA HUMANA (esteja ela, promissoramente, encarnada na figura da criancinha que mal acaba de abrir os olhos com que inaugura o sempre inconcluso processo de “ler” (interpretar e compreender) o mundo, esteja ela, palidamente desfigurada no rosto nostálgico do velhinho, cujo cansado coração já mal pode bater a derradeira pancada com que do mesmo mundo se despede...), se torna imprescindível que TODOS QUANTOS À CAUSA DA VIDA E DA SAÚDE SE DEDICAM (desde logo, os estudiosos e investigadores, os médicos e enfermeiros, passando pelos demais quadros técnicos até aos mais humildes trabalhadores dos hospitais e centros de saúde...) SAIBAM SER SEMPRE, EM SEU QUOTIDIANO AGIR, DIGNOS DESSE MESMO VALOR SUPREMO QUE EM SI PRÓPRIOS TRANSPORTAM, dedicando aos doentes de todas as condições e de todas as idades o melhor do seu cuidar450 (ou seja, aquele empenhado e quase “febril” estado de consciência, marcado por activa, reflexiva, direccionada, direccionante e interveniente preocupação com as coisas...), prestado na forma de um competente desempenho humano-cultural, sapiencial, artístico, científico e técnico, de um acompanhamento carinhoso e humanista e de uma dedicação aquecida e iluminada por um fortíssimo sentido ético-deontológico, consonante com uma formação verdadeiramente superior (porque pensada em sua asclepíada pureza primigénia e em sua magnanimidade axiológica) e com aquela sempre renovada e inovadora experiência que, com as lágrimas dos próprios doentes, se vai quotidianamente configurando e (re)construindo... Por tudo isso, aqui fica uma saudação a todos, em nome do sagrado “VALOR DA VIDA” que nos habita e em nós se move, nos emove e nos comove, porque ela é, soberanamente, passio e compassio: paixão e compaixão!... Saudação feita também em nome do salvador 450 Do latim: cogitare [< co + ag + itare]. 266 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO “BEM DA SAÚDE” que se abre auspiciosamente nas rosas de afecto e de ternura dos cuidadosos cuidados que mãos sábias e generosas a todos indistintamente vão prestando!... O t°low [telos] da Medicina e a fundamentação e instanciação da “deontologia médica” O presente ensaio configura o desenvolvimento discursivo de uma reflexão assente numa base antropológica, filosófica, cultural e humanística sobre a MEDICINA (entendida quer como criação sapiencial e civilizacional do homem, quer como especializada e essencial organização social dos cuidados de saúde, pensada, concebida e planeada para realizar uma finalidade e consumar um destino: fazer e tentar fazer tudo para proteger e manter a vida humana naquele englobante estado de equilíbrio dinâmico e de homeostase identitária e estabilizadora que preserva a serena harmonia do bem-estar interior e exterior...). Essa reflexão envolve directamente problemas como os da VIDA HUMANA, da DOENÇA, da SAÚDE e SISTEMAS DE SAÚDE, dos DOENTES e do PAPEL NUCLEAR DOS MÉDICOS NUMA ORGANIZAÇÃO HOLÍSTICA E “ORQUESTRAL” DOS CUIDADOS DE SAÚDE («um médico é um homem que vale por muitos outros», Homero: Ilíada, XI, 514), da PRÁXIS, da ÉTICA e da DEONTOLOGIA MÉDICAS, da CIDADANIA, das POLÍTICAS DE SAÚDE (estabelecidas à luz de um novo modelo de democracia: ou seja, uma democracia ética em que a humanitas de cada homem passe a ser a real e concreta medida da dignidade de todos os homens), da EDUCAÇÃO e da CIDADE PLANETÁRIA DA SAÚDE... O OBJECTIVO NUCLEAR deste ensaio consiste em CONTRIBUIR PARA O DESENVOLVIMENTO DAS DIMENSÕES HUMANÍSTICA E HUMANITÁRIA AO NÍVEL DA FORMAÇÃO ACADÉMICA E PROFISSIONAL DOS CURSOS DE MEDICINA E DEMAIS CURSOS DA ÁREA DA SAÚDE E PARA EVITAR O PERIGO DE UMA CEGA E ESTRANGULADORA “TECNIFICAÇÃO” DOS DESEMPENHOS MÉDICOS, ATRAVÉS DE UMA INDESEJÁVEL INVERSÃO OU SUBVERSÃO ÉTICA DOS FINS PELOS MEIOS. Essa reflexão é sempre sustentada numa consistente base filológica e linguística, com especial 267 Fernando Paulo do Carmo Baptista ênfase para as raízes lexicais de origem grega e latina (raízes, em última análise, de matriz indo-europeia...), tendo em conta o rigor do pensamento e da conceptualização e uma clara consciência dos usos do vocabulário e das terminologias... Dialogia e interacção «t°low [telos] <> t le [tele]» (finalidade <> distância) Enquanto criação sapiencial e civilizacional do homem, a Medicina foi pensada para realizar um fim, cumprir um desígnio ou propósito e consumar um destino. A sua imparável po€hsiw (poiesis) científica, a sua avisada, prudente e criteriosa prãjiw (praxis) metodológica, decisional e realizadora e a sua prometeica inventiva e constante inovação451 experimental e tecnológica, por um lado, de par com a sua conformação sistémica e institucional e a sua orgânica estrutural e funcional, pelo outro, foram sendo sonhadas, instituídas, configuradas e direccionadas por um t°low452 (telos) ou ratio essendi et 451 Em grego e em latim: eÏresiw/eÈmexan€a [heuresis/eumekhania]; inventio/inovatio. 452 O nome neutro t°low, -eow (-ouw) que significa «movimento realizador e perfectivo, fim, finalidade, termo, acabamento», provém da raiz indo-europeia kwel- / kwel - / kwl- [> kwal > pal-] / kwol- [> col- / cul- [> pol-], cujo “adn semântico” suscita em nós as ideias de “mover, remover, movimentar, desencadear um movimento actuante, dar voltas, rodar, circular, cultivar (o campo, as ideias...)”... Esta raiz, na sua variante de “grau zero” — kwl- [> kwal > pal- —, está na base do advérbio grego pãlin ([palin] = de novo, voltando atrás, retornando, agindo ao inverso...), bem como na estrutura morfológica (através da sua variante de “grau e”: kwel-) do adjectivo t°leiow -a, -on (= acabado, completo, perfeito...), por sua vez, “gerador” de um conjunto de lexemas do campo filosófico e tecno-científico: teleologia, teleológico, teleólogo, teleomitose, teleonomia, teleossáurio, teleósteo, teleóstomo, telese, telésia... Esta raiz indo- europeia, na variância de natureza fono-morfológica de que se reveste, caracteriza-se por um grande potencial lexicogénico de que deflui um vasto e diversificado universo de lexemas cognatos de que fazem parte, entre outros, os seguintes: agricultura, atelocardia, atelognatia, bucólico, bucolismo, caleche, ciclo, ciclóstomo, colar, colete, colo, colónia, colono, culto, cultura, enciclopédia, enteléquia, hemiciclo, inquilino, palimpsesto, palíndromo, palinfrasia, palingénese, palingenesia, palinódia, polar, pólo, talismã... (cf. Edward A. Roberts e Bárbara Pastor: 268 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO vis operandi, por uma intencionalidade axiológica, principial e finalístico-perfectivante, e por uma lógica interna, global e própria, de natureza programadora, condutora, adaptativa, reguladora, processual, instrumentante e (re)alimentadora (interacção dialógico-dialéctica «teleologia <> teleonomia»453) que não só explicam e justificam a sua existência, mas também lhe conferem a indispensável produtividade e eficácia e o seu real sentido e valor: fazer e tentar fazer tudo quanto estiver ao seu alcance para preservar, o mais e o melhor possível, a vida humana na geradora e elaborativa fecundidade da sua motricidade e tonicidade primevas e, assim, na plenitude eurrítmica e multímoda dos seus potenciais energéticos, operativos, transformacionais e criadores; fazer e tentar fazer tudo para resguardar e manter a vida humana (perspectivada enquanto bem fundador de que dependem os demais bens de que nos é dado fruir...) naquele seu englobante estado de Diccionario Etimológico Indoeuropeo de la Lengua Española, Madrid, Alianza Editorial, 2001, entrada kwel- 1, pp. 89-90; Anatole Bailly: Dictionnaire Grec Français, Paris, Hachette, 1984 e Santiago Segura Munguía: Nuevo diccionario etimológico LATÍN-ESPAÑOL y de las voces derivadas, Bilbao, Universidad de Deusto, 2001, respectivamente, nas «vozes» gregas e latinas correlacionáveis. Para os conceitos de «telos», «teleologia» e «teleonomia», ver, nas entradas respectivas: Mariano Moreno Villa (dir.): Diccionario de Pensamiento Contemporâneo, Madrid, San Pablo, 1997, pp. 1151-1155; Nicola Abbagnano e Giovanni Fornero: Dizionario de Filosofia, Torino, UTET, 1998, p. 1075; José Ferrater Mora: Diccionario de Filosofía de Bolsillo 2, Madrid, Alianza Editorial, 1999, pp. 784-791; Robert Audi (ed.): Diccionario Akal de Filosofía, Madrid, Akal, 2004, p. 932. 453 Sobre os conceitos de «teleologia» e de «teleonomia», ver, nas entradas respectivas: Celestino Pires in Enciclopédia Verbo Luso-Brasileira de Cultura, Edição Século XXI, 2003, vol. 27, pp. 1195-1196; José Ferrater Mora: Diccionario de Filosofía de Bolsillo (compilado por Priscilla Cohn) Madrid, Alianza Editorial, 1999, vol 2, pp. 784-787, 790-791; Mariano Moreno Villa (dir.): Diccionario de Pensamiento Contemporáneo, Madrid, San Pablo, 1997, pp. 1151-1155; Nicola Abbagnano e Giovanni Fornero: Dizionario di Filosofia, Torino, UTET, 1998, pp. 1074-1075; Robert Audi (ed.): Diccionario Akal de Filosofía, Madrid, Ediciones Akal, 2004, p. 931; Rupert Sheldrake: http://www.sheldrake.org/glossary/ Para as correlações mais especificamente distintivas daqueles dois conceitos, ver, com as devidas reservas críticas: http://www.laputan.org/chaos/chaos.html http://en.wikipedia.org/wiki/Teleology http://en.wikipedia.org/wiki/Teleonomy 269 Fernando Paulo do Carmo Baptista equilíbrio dinâmico e homeostasia identitária e estabilizante, de capacitante harmonia essencial, integrada e integradora, e chave nuclear do bem-estar interior e exterior, reconhecidamente considerada como a condição mais favorável ao desenvolvimento das nossas qualidades e faculdades (designadamente as mais nobres) e ao daí decorrente exercício das nossas aptidões, habilidades, destrezas e competências... Esse estado dá pelo nome de “saúde”. Ou seja (dito, agora, em consonância com a conhecida definição da Organização Mundial de Saúde): «a dynamical state of complete physical, mental, spiritual and social wellbeing and not merely the absence of disease or infirmity»454. É em adjuvante apoio e serviço deste t°low (telos) que está ou deve estar o t le455 (tele) com que, linguística e conceptualmente, marcamos não só o “obstáculo” da distância espácio-temporal a transpor, mas também a superadora mediação proporcionada pelos recursos tecnológicos com que se visa reduzir, minorar, neutralizar ou mesmo suprimir a demora e as dificuldades de acesso dos doentes aos cuidados de saúde e ao atendimento médico. Dificuldades que 454 WHO’s New Proposed Definition. 101 st Session of the WHO Executive Board, Geneva, January 1998. Resolution EB 101.R2. 455 T le [tele], advérbio construído na base na raiz indo-europeia — kwel- / kwl- [> k al-] / kwal-ai- [> palai-] —, cujo “adn semântico” é constituído a ideia de “lonjura”, w de “distância”, no espaço ou no tempo. Desta raiz, na sua variante de “grau zero” ampliada — kwal-ai- [> palai-] — deriva o advérbio grego pãlai ([palai] = outrora, antigamente), bem como o adjectivo palaiÒw, -ã, -Òn ([palaios] = velho, antigo, distante no tempo...), de que provém o radical prefixal paleo-, constituinte morfológico de um significativo conjunto de lexemas de uso técnico-científico: paleoantroplogia, paleofitologia, paleoceno, paleografia, paleobotânica, paleolítico, paleontologia, paleozóico...; o radical do advérbio t le (tele-) é utilizado como constituinte prefixal morfogénico de um vastíssimo elenco de termos especializados do campo da ciência, da técnica e da tecnologia: teleangiectasia, telecardiograma, telecinesia, telecinético, telecomando, telecomunicações, teleconferência, telecópia, telediagnóstico, teledifusão, teledinâmica, telefax, teleférico, telefone, telefonia, telefoto, telégrafo, telegrama, teleguiar, telejornal, telemática, telemedicina, telemetria, telemóvel, telenovela, telepatia, telerradiografia, telescola, telescópio, teletexto, televisão, telex... Sobre esta raiz, ver Edward A. Roberts e Bárbara Pastor: Diccionario Etimológico Indoeuropeo de la Lengua Española, op. cit., entrada kwel- 2 , p. 90; ver também: Anatole Bailly: Dictionnaire Grec Français, Paris, Hachette, 1984 e Santiago Segura Munguía: Nuevo diccionario etimológico LATÍN-ESPAÑOL y de las voces derivadas, Bilbao, Universidad de Deusto, 2001, respectivamente, nas «vozes» gregas e latinas correlacionáveis. 270 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO decorrem, por via de regra, da perifericidade e da interioridade, numa palavra, do isolamento e demais carências assistenciais que a e- Medicina, com a Medicina à Distância, a Tele-Medicina, a Tele-Saúde, os serviços de Saúde Pública e os movimentos da Educação para a Saúde vêm tentando resolver... A “vida humana”: doente e médico, cidadãos planetários Se bem pensarmos, os próprios eventos ou iniciativas de natureza antropo-médica, científica, metodológica, tecnológica, cultural e ético-axiológica (tanto a nível local e regional, como à escala europeia ou planetária), ao centrarem-se nas grandes questões da Medicina, da TeleMedicina ou da Saúde Pública em geral, não deixam de ir, em última instância, buscar a sua matriz originante e placentária ao fenómeno mais espantoso e misterioso de quantos povoam o universo: O FENÓMENO GLOBAL DA VIDA E, DENTRO DELE E COM ELE, O 456 FENÓMENO DA VIDA HUMANA !... Mas porque (tal como no-lo recorda Octavio Paz457...) «somos vida que es muerte» e «muerte que es vida», pensar a vida458 é sempre 456 Sobre a «vida» em geral e a «vida humana» em particular, ver: Enciclopédia Verbo Luso-Brasileira de Cultura, Edição Século XXI, Lisboa, Editorial Verbo, 2003, pp. 431-437: entrada «vida» (artigos de Luís Archer, J. Godinho de Lima e Roque Cabral); AAVV: Filosofia de la Educación Hoy – Diccionario filosófico-pedagógico, Madrid, Editorial Dykinson, 1997, pp. 573-575: entrada «vida» (artigo de José Luís Cañas Fernandez y Teresa Maria Hernández Vera); Francis Crick: Vida – O Mistério da sua Origem e Natureza, Lisboa, Gradiva, 1988, pp. 33-116; David Bohm e F. David Peat: Ciência, Ordem e Criatividade, Lisboa, Gradiva, 1989, pp. 263 ss; Albert Jacquard: Inventar o Homem, Lisboa, Terramar, 1990; Andrew Scott: A Criação da Vida, Lisboa, Terramar, 1991, pp. 132-140, 269-348. 457 Octavio Paz: Las peras del olmo, Barcelona, Seix Barral, 1986, p. 171. 458 O nome ‘vida’ é proveniente do latim uita, -ae, lexema constituído, por sua vez, a partir da raiz indo-europeia gwei-, com diversas variantes — gweie- / gwyee- / gwyoe- / gwyo- / gwi-wo- / gwi-wo-ta- / yu-gwie-es-... — que estão na base de um fecundo conjunto de radicais, prefixos e sufixos lexicogénicos e, assim, de uma vasta e diversificada família de palavras, presentes em várias línguas antigas e actuais: bio- [biólogo, biónica, biópsia, biotério, biótipo, biótopo...]; vit- [vital, desvitalizar, vitalidade, vitamina, vitalício, vitualha...]; viv- [avivar, conviver, pervivência, 271 Fernando Paulo do Carmo Baptista e inelutavelmente pensar a morte... E pensar a morte... é pensar a saúde e a doença, é pensar a família, a aldeia e a cidade em sua fremente energia vital e, no coração delas, o seu constituinte e protagonista maior: O SER HUMANO... Por isso é que se me afigura ter inteiro cabimento uma reflexão em torno da VIDA HUMANA, o mesmo é dizer, em torno do homem- indivíduo, pensado em sua singularidade ipseídica, e do homem-pessoa e do homem-cidadão, considerados em sua alteridade interpessoal e colegialidade social e comunitária e em sua dimensão política de expressão local e global (“glocal”), isto é, nacional, europeia e planetária... Tudo no pressuposto de que, se somos cidadãos (pol€tai) da terra onde nascemos e/ou onde vivemos, não somos menos os habitantes de Deméter e, assim, cidadãos do cosmos (kosmopol€tai): tal é, hoje, a condição e o estatuto político fundamental quer do doente que procura o médico para reconquistar a saúde, quer do médico que tudo tenta fazer para que tal reconquista seja bem sucedida... Não é, pois, por mero acaso que estas questões da vida e da morte, da saúde e da doença estão seguramente (de par com as da educação e da justiça...) entre os problemas maiores da Cidade e da Comunidade Humana globalmente pensada; como também não é por qualquer aleatória razão que existe um organismo que dá pelo nome de “World Health Organization” (WHO) e que a Medicina, através da mediação de publicações profissionais, congressos e simpósios, através vivacidade, viveiro, viver, vivificar, vivíparo, vivo...]; zoo- [zoologia, zoológico, zoólogo, zoobia, zoobiótico, zoogénese, zoomórfico, zooplasma, zootecnia...]; -zoário [actinozoário, briozoário, entozoário, metazoário, protozoário...]; -zóico [agnostozóico, arqueozóico, cenozóico, mesozóico, paleozóico...]; –zóide [anterozóide, espermatozóide, gastrozóide, gonozóide...]; azoto, zodíaco, micróbio, simbiose, víbora, viand, quick, whisky, etc., entre as quais, o nome que em grego designa a “saúde”— Íg€eia [hygíeia] — e que tem a mesma raiz e, portanto, a mesma semântica profunda do lexema higiene (cf. Edward A. Roberts e Bárbara Pastor: Diccionario Etimológico Indoeuropeo de la Lengua Española, op. cit., entrada gwei-, pp. 68-69; ver também: Anatole Bailly: Dictionnaire Grec Français, Paris, Hachette, 1984 e Santiago Segura Munguía: Nuevo diccionario etimológico LATÍN-ESPAÑOL y de las voces derivadas, Bilbao, Universidad de Deusto, 2001, respectivamente, nas «vozes» gregas e latinas correlacionáveis: b€ow, z“on, vita, -ae, etc... Sobre as relações de implicação “vida <> morte”, ver o importante estudo de Nicole Belmont «Vida/Morte», in Enciclopédia Einaudi, Lisboa, IN-CM, 1997, vol. 36, pp. 11-60. 272 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO da disseminada criação e combinada reticulação de associações e institutos nacionais e internacionais e da crescente mundialização da Tele-Medicina, da Tele-Saúde e da Saúde Pública, vem afirmando cada vez mais a sua agoricidade459 planetária em todos os fóruns do orbe da Terra onde os problemas da saúde e da doença se identificam, se estudam, se investigam ou se debatem... Isso, porque tanto o doente como o médico, em sua existencial e finita condição antrópica, transportam consigo, na intransferível singularidade do seu «eu», essa constitutiva relação de si a si, de si ao «outro» e ao «totalmente outro»460 e de si à vida, ao mundo, ao cosmos e ao mistério... O que desde logo significa que as problemáticas da vida e da morte, as problemáticas da saúde e da doença, são universais e, por isso mesmo, convocam (deveriam convocar...) sempre uma visão estratégica e uma dinâmica organizacional, metodológica e operativa, articuladora, integradora, inclusiva, harmonizadora, sinagógica, orquestral, polifónico-sinfónica e global. Basta pensar no sintomatológico e paradigmático facto de que, ao recentíssimo grito de alarme de que «vem aí a gripe das aves!», de imediato, o planeta médico-sanitário começou a entrar em preocupada dinâmica de preventivo alerta!... Da cidade, da cidadania, da vida humana e do sistema e serviço de saúde É numa tal perspectiva que se me afigura pertinente (e mesmo indispensável...) partir do compartilhado entendimento segundo o qual a cidadania (em grego: polite€a [e politeia]) é perspectivada como 459 Neologismo derivado do nome grego êgora [agora], equivalente ao seu homólogo latino forum = assembleia ou praça pública. 460 Emmanuel Levinas: Totalidad e Infinito – Ensayo sobre la exterioridad, Salamanca, Ediciones Sígueme, 72002, pp. 57-127; Paul Ricœur: Sí mismo como otro, Madrid, Siglo Veintiuno de España Editores, 1996, pp. 365 ss; Ángel Gabilondo: La Vuelta del Otro — Diferencia, Identidad y Alteridad, Madrid, Editorial Trotta, 2001, pp. 9-15, 199 ss; Martin Buber: ¿Qué es el Hombre?, México-Madrid-Buenos Aires, Breviários, FCE, 131986, pp. 93 ss, 107 ss, 141-151. 273 Fernando Paulo do Carmo Baptista a qualidade, a condição e o estatuto inerentes ao facto de ser cidadão (pol€thw [polites]), isto é, ser membro constitutivo e integrante de uma «comunidade política» (em grego: koinvn€a politikÆ [e koinonia e politike]), o mesmo é dizer, de uma «comunidade de cidadãos», bem como o sistema e o regime organizativo e jurídico-administrativo da vida em sociedade, configurada, outrora, nas multímodas dinâmicas da pÒliw ou da ciuitas e, actualmente, do estado-nação, e mais alargada e englobantemente ainda, da comunidade das nações ou da comunidade humana planetária461... O paradigma de referência (tal como aconteceu, com a Medicina, relativamente ao Corpus Hippocraticum462 [séc. V a. C.]...) remonta à cultura da velha Hélade, sendo incontornável, a tal propósito, o reenvio para o específico labor reflexivo levado a cabo por Aristóteles. De facto, na sua Política463 (1.2.8, 1252b 27-33), a pÒliw (polis) é-nos por ele apresentada como sendo «uma comunidade completa, formada a partir de várias aldeias464 e que atinge, por assim dizer, o máximo de poder próprio ou de auto-suficiência (aÈtãrkeia 461 Cf. Fernando Paulo Baptista: Tributo à Madre Língua, Coimbra, Pé de Página Editores, 2003, pp. 47 ss. 462 Para uma visão panorâmica do que foi a Medicina na antiga Grécia, considerar o importante artigo de Pierre Pellegrin, intitulado «Medicina», apud Jacques Brunschwig e Geoffrey Lloyd (orgs.): El saber griego (diccionario), Madrid, Ediciones Akal, 2000, pp. 331-343. 463 Cf. Aristóteles: Política, (trad. de António Campelo Amaral e Carlos de Carvalho Gomes), Lisboa, Vega Universidade, 1998, pp. 48-55. 464 Aldeia, em grego, diz-se k mh, nome cuja estrutura morfológica assenta na raiz indo-europeia kei- / ki -/ koi-, cujo “adn semântico” remete para a ideia de “repouso, sossego”. Esta raiz está presente, por exemplo, na palavra inglesa home (= casa [que é, por excelência, um lugar de repouso e de sossego]), nos lexemas gregos ke›mai [= estar deitado, repousar, jazer], koimãv (= ficar de cama, dormir, mergulhar no sono), α (= coma, sono profundo, estado de forte adinamia cerebral), koimhtÆrion (em latim: coemeterium, dormitório, lugar do sono e do repouso absolutos, cemitério...), dos vocábulos latinos ciuis, ciuitas, ciuilis, cunae (= berço, ninho), incunabula -orum, etc. Sobre esta raiz, cf. Edward A. Roberts e Bárbara Pastor: Diccionario Etimológico Indoeuropeo de la Lengua Española, op. cit., entrada kei-1, p. 77; ver também: Anatole Bailly: Dictionnaire Grec Français, Paris, Hachette, 1984 e Santiago Segura Munguía: Nuevo diccionario etimológico LATÍN-ESPAÑOL y de las voces derivadas, Bilbao, Universidad de Deusto, 2001, respectivamente, nas «vozes» gregas e latinas correlacionáveis. 274 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO [autarkeia]). Constituída em razão da vida (sublinhei) — (toË z n ©neken [tou zen eneken]) —, ela existe para que a vida (voltei a sublinhar) seja bem sucedida (toË eÔ z n [tou eu zen])». A cidade (e no interior dela, a cidade da saúde, a cidade educativa, a cidade da justiça, etc.) é, assim, uma das realidades que existem por natureza (t«n fÊsei pÒliw §st€ [ton physei e polis esti])». Como acabámos de ver, a vida é, para Aristóteles, não só a ideia mater, o princípio fundador e instituidor da cidade, mas também o t°low (telos) e horizonte omnipossibilitante e omniprojectante que dá sentido à própria razão da sua existência enquanto comunidade de cidadãos... No mesmo sentido vai igualmente o pensamento de Tucídides465 quando afirma que «a pÒliw [polis] são os cidadãos e não as muralhas nem os barcos viúvos de homens», o que equivale a dizer que, sem a incontornável presença viva dos seres humanos, poderá haver necrópole, mas o que não há, nem pode haver, é cidade... Comunidade de ênyrvpoi [anthropoi], isto é, de homens e de mulheres, a cidade começa, assim, por se revelar, antes de mais e acima de tudo, como uma incomparável constelação de humanos corpos vivos... Existencialmente alicerçada nas potencialidades e nos limites do corpo vivo que somos (que, morto, se diz em latim cadauer e em grego sãrj, sarkÒw [sarks, sarkos]...), uma comunidade de cidadãos, seja qual for o seu âmbito expressional, o seu nível organizativo e a sua extensão cartográfica, jamais pode dispensar uma prévia e adequada reflexão, a partir da implicada consideração das três nucleares dimensões constitutivas do nosso ser antrópico: a dimensão somatosférica (esfera orgânico-funcional), a dimensão psicosférica (esfera mental e espiritual) e a dimensão sociosférica (esfera das relações e interacções com os outros), co-envolvendo, implicativa e constitutivamente, a verbo-semiosfera (esfera da palavra, da cultura e das dimensões simbólicas): tudo, naturalmente, no quadro ecossistémico e integrador de uma cosmo-geo-biosfera... De facto, o apelo-convite ao conhecimento de nós próprios que nos vem sendo feito de forma irrecusável, ao menos desde a famosa 465 Cf. José Ribeiro Ferreira: Polis — Antologia de Textos Gregos, Coimbra, Edições Minerva, 1995, p. 53. 275 Fernando Paulo do Carmo Baptista inscrição esculpida na mítica portada do Templo de Delfos — gn«yi sautÚn [gnothi sauton]: conhece-te a ti próprio! —, não dispensa, não pode nem deve dispensar, sobretudo depois do sábio magistério de Sócrates, uma inaugural e alicerçante reflexão sobre a nossa corporeidade466. Visa tal abordagem uma imprescindível ponderação consciencializadora e uma prévia e inderrogável interiorização do valor matricial da vida humana que nela, corporeidade, encarna, se realiza e se revela em sua complexidade maior... Na verdade, a vida humana encarnada na galáxia pulsante dos mais sete mil milhões de habitantes que actualmente povoam a Terra467 (ou seja, no corpo vivo e singular de cada um de nós e dos demais biliões de nossos concidadãos planetários...), quando perspectivada sob um enfoque gnosiológico e dialéctico entre a parte e o todo, o local e o global, o finito e o infinito, pode configurar-se como um super- estruturado sistema aberto, ideativo-conceptivo, informante, organizativo e operativo. Ao longo da sua existência mutável e efémera, esse sistema move-se e revela-se, em seu quotidiano devir, através de uma complexa fenomenologia e de uma dinâmica exponencial, de dimensões e potencialidades incalculáveis, com múltiplas funções e operações em simultâneo, podendo definir-se, com Rudy Rucker468, como «a fractal in Hilbert space». Fractal esse, todavia, impossível de ser exaustivamente descrito e explicado, por exemplo, em toda a sua actividade sonhadora, criadora, semiogénica, cultural e sapiencial e em toda a sua interactividade comunicacional, seja ela simplesmente emissiva e receptiva ou meramente pragmática, seja ela hermenêutica, retórico-argumentativa ou poiésico-estésica... Por isso, e face à nossa existencial transiência e finitude, só nos resta assumi-la, vivê-la e realizá-la com o maior prazer e a maior fecundidade e dignidade possíveis... Essa complexidade tem a sua muito especial epifania no impressionante dinamismo das relações e interacções do cérebro com a 466 Cf. Fernando Paulo Baptista: Tributo à Madre Língua..., op. cit., p. 49. 467 Segundo a estimativa das Nações Unidas. 468 Cf. Rudy Rucker: Mind Tools: The Five Levels of Mathematical Reality, Boston, Houghton Mifflin, 1987, p. 248: «Life is a fractal in Hilbert space». 276 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO mente (tal como explicativamente no-las descreve, por exemplo, António Damásio469), na natureza, organização e funcionamento do inconsciente e do subconsciente, da sensibilidade e do sentimento, da emoção e da comoção, em suma, do pãyow [pathos]) das patologias e dos afectos, da paixão e da compaixão (sumpãyeia [sympatheia]), bem como na construção e no papel da «consciência nuclear» e «da consciência alargada» e nos modos como se constitui e opera a identidade, a memória (autobiográfica e heterobiográfica...), a linguagem, o pensamento, a razão, o cálculo, o espírito crítico, o imaginário, o sonho (rêverie), a fantasia, a criatividade... Complexidade, em suma, tal como ela se pode colher do insubstituível (ainda que inacabado e, portanto, sempre revisível...) contributo das Ciências do Homem e, mais especificamente, das Ciências Médicas com o mais recente e igualmente importante apport das Ciências Cognitivas e Neurológicas... Dessa esclarecida tomada de consciência deverá decorrer, em lógica coerência e indeclinável imperatividade ética (enunciada em estreita consonância com a invocada aristotélica razão vital que, como acabámos de ver, está na génese, constituição e teleologia de uma «comunidade de cidadãos») a assunção da vida humana como inderrogável principium principial e intranscendível t°low [telos] ultimal, animante, morfogénico e complexificante deste nosso planetário modo de existir... A vida humana é, ao mesmo tempo, princípio, raiz, eixo, flecha, 469 António Damásio: O Sentimento de Si — O Corpo, a Emoção e a Neurobiologia da Consciência, Lisboa, Publicações Europa-América, 2001, pp. 199-269; retenha- se, a propósito daquele dinamismo interactivo, o seguinte excerto de Ao Encontro de Espinosa — As Emoções Sociais e a Neurologia do Sentir, Lisboa, Publicações Europa-América, 2003, p. 192: «Os seres humanos não só demonstram compaixão pelo sofrimento de um outro ser, coisa que variadas espécies não humanas podem também demonstrar, como sabem que sentem essa compaixão»; ver também, entre outros: Jean-Pierre Changeux/Alain Connes: Matéria Pensante, Lisboa, Gradiva, 1991, pp. 111- 159; Albert Ducrocq: O Espírito e a Neurociência — Indícios sobre o fenómeno da consciência, Lisboa, Edições Piaget, 2000, pp. 63-275; John Searle: A Redescoberta da Mente, Lisboa, Edições Piaget, 1998; John Searle: Mente, Cérebro e Ciência, Lisboa, Edições 70, 1997; Edgar Morin e outros: O Problema Epistemológico da Complexidade, Lisboa, Publicações Europa- América, 2002, pp. 23-34; Karl Popper y John Eccles: El yo y su cerebro, Barcelona, Editorial Labor, 1982; John Eccles: A Evolução do Cérebro — A Criação do Eu, Lisboa, Edições Piaget, 1995, pp. 226-260, 263-371. 277 Fernando Paulo do Carmo Baptista motor e fim do biológica e molecularmente mais estruturado, complexo, poderoso e sortílego dos organismos vivos: o corpo humano. É ela essa mágica pulsão e élan genético-mental, espiritual, simbólico e auto-endo-exo-movente que, irrompendo das lonjuras primigénias e granulares da matéria cósmica, radialmente a atravessa para, em espiralar pléctica470, a transcender, por força de um evolutor t°low [telos] intrínseco e de uma invisível energia cibernética (kubernhtikÆ471 §n°rgeia) auto-projectiva e modelante, o mesmo será dizer, por acção de uma imanente, autónoma, eficaz e perfectiva enteléquia (§ntel°xeia472) que lhe é singularmente própria e que lhe permite auto-organizar-se, auto-(re)produzir-se, auto-desenvolver-se, auto-complexificar-se, auto-(trans)formar-se, auto-regular-se, auto- replicar-se, auto-perenizar-se... Foi no englobante e pressuposto quadro desse espantoso potencial genésico e morfoplástico que Fernando Namora473 pôde cantar que «viver é a maravilha / de viver milhões de vidas», mesmo que, com Miguel Torga474, haja de se reconhecer também, e em contraponto, que, para nós, pobres mortais, «a vida é irremediavelmente um dom provisório»!... Numa palavra: a vida humana é, ao mesmo tempo, ordo orninatus e ordo ordinans e re- 470 Na acepção de Murray Gell-Mann. Cf. John Brockman: The Third Culture — Beyond the Scientific Revolution, London, Simon & Schuster, 1995, cap. 19: «Murray Gell-Mann “Plectics”» (complexity is the next big problem, pelo que se torna urgente e inevitável the study of simplicity, complexity of various kinds, and complex adaptive systems, with some consideration of complex nonadaptive systems as well); Murray Gell-Mann: The Quark and the Jaguar: Adventures in the Simple and the Complex, New York, Freeman, 1994 (versão portuguesa: O Quark e o Jaguar, Lisboa, Gradiva, 1997). 471 “Energia-piloto”, energia cibernética ou gubernatória... 472 “Enteléquia” = princípio intrínseco à existência, que comporta em si a energia originante e actuante, a motricidade propulsora e auto-realizadora e a auto-finalização perfectivante e perfeccionante; configura o efectivo e plenificante movimento de passagem da potência ao acto; nessa perspectiva, a alma imersa no corpo vivo é a sua enteléquia (cf. Aristóteles: De Anima, II, 1, 412b, 5-30; cf. também: Anatole Bailly: Dictionnaire Grec Français, op. cit., na «voz» §ntel°xeia. 473 Cf. Fernando Namora: Marketing, Lisboa, Livraria Bertrand, 51982, p. 150. 474 Cf. Miguel Torga: Diário XVI, Coimbra, 1993, p. 185, a fazer evocar Camões (Lus., I, 106): «Onde pode acolher-se um fraco humano / Onde terá segura a curta vida, / Que se não arme e se indigne o Céu sereno / Contra um bicho da terra tão pequeno?» 278 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO ordinans das energias entropicamente dissipadas (Prigogine475) — energias a serem neguentropicamente regeneradas nos fluxos e refluxos de re-equilíbrio homeostásico, o mesmo é dizer, na série de «catástrofes» de instabilidade caógena que emergem da própria estabilidade dinâmica e cosmógena em que ela, vida humana, se afirma e se move até se consumar o seu colapso final no advento da morte476... E é, porventura, no horizonte perspéctico desse colapso que se consegue a sua mais nítida inteligibilidade e, assim, a mais clara e aguda consciência da nossa condição humana... Na verdade, como sublinha Vergílio Ferreira477, é na tentativa de «aprender a morte» que reside «o modo mais perfeito de aprender a vida», e isso, pela simples razão de que esta é um bem que de que se não sabe bem o que é. Dito num outro registo de convergente e complementar sintonia: a vida humana, essa «força misteriosa e criadora, tão surda como rítmica»478 (na densa e expressiva síntese do turdetanamente inteiriço, indomável e telúrico Aquilino), «essa coisa enorme que prende tudo e tudo une»479 (no poético espanto do multiplex e genial Pessoa / Álvaro de Campos), quando consubstanciada, plasmada e configurada na humanidade de cada corpo vivo, constitui a matriz tectónica, metabólica, organísmico- mentalmente activa e reactiva, plástica, produtora, liberadora e criadora (poiésica) que funda as comunidades humanas existentes no orbe da Terra. 475 Cf. Ilya Prigogine e Isabelle Stengers: A Nova Aliança, Lisboa, Gradiva, 1987, pp. 376 ss e 423 ss; Ilya Prigogine e Isabelle Stengers: Entre o Tempo e a Eternidade, Lisboa, Gradiva, 1990, pp. 87-114, 149-203, 205-233. 476 Cf. Fernando Paulo Baptista: Tributo à Madre Língua..., op. cit., pp. 47-59. 477 «Porque tu, como quase toda a gente, não sabes a vida ou sabe-la de cor. É na doença que se aprende a saúde, é na miséria que se sabe o bem-estar. Não sabes a vida porque não imaginas a sua privação. Vê se consegues ter uma ideia da morte e saberás a maravilha que te coube, que tiveste a sorte incrível de te caber. Mas se aprenderes a vida, saberás que ela é maravilhosa para além de ti. Quando morreres, morrerá o universo contigo». (Cf. Vergílio Ferreira: Pensar, Lisboa, Bertrand, 1992, pp. 266- 267). 478 Aquilino Ribeiro: A Casa Grande de Romarigães, Lisboa, Livraria Bertrand, 3 1957, p. 437. 479 Fernando Pessoa / Álvaro de Campos: Poesia, Lisboa, Assírio & Alvim, 2002, pp. 251-255 (excerto do poema cujo “incipit” é «Afinal, a melhor maneira de viajar é sentir»). 279 Fernando Paulo do Carmo Baptista É por tudo isso que ela não pode deixar de ser a geratriz, o alicerce e o vector de um condigno sistema e serviço de saúde no quadro homólogo de um projecto de cidadania digno desse nome: in principio est uita — no princípio está a vida!... Da vital imprescindibilidade dos Médicos e da Medicina e de uma estratégia organizativa “orquestral” Seja-me permitida ainda uma nova e insistente reiteração: como acabámos de ver, é inquestionavelmente a Vida, pensada em sua concreta expressão e configuração bio-organísmica, antrópica, pessoal e social, cultural, ecológica e holística, a érxÆ (arche) e o t°low (telos) da Medicina, o seu princípio primigénio e fundador e a sua ultimidade progrediente e perfectiva (ambos constitutivos e propulsores de um horizonte de questionamento e de inteligibilidade muito mais vasto e mais profundo, do ponto de vista das exigências hermenêuticas, sapienciais e organizacionais...), que postula, a partir da sua assunção, a convocação sinérgica e sinagógica480 dos domínios do sonhar, do criar, do inventar, do pensar, do meditar, do medir, do moderar, do modificar, do (re)modelar e do modernizar inventivo e criativo (verbos que têm mesma raiz e, portanto, a mesma semântica profunda das palavras ‘medicina’, ‘médico’ e ‘medicamento”, entre tantas outras481...), em suma, do «olhar clínico» atento e fixo e com o poder penetrante e fulgurante (mas reversamente metamorfósico...) do olhar 480 Ao menos em suas mais relevantes implicações, extrapolações e consequências nos contextos institucionais, organizacionais, metodológicos e operacionais do sistema e do serviço de saúde... 481 A propósito da raiz med- / mod- (semanticamente próxima da sua congénere me-, veiculadora da ideia matricial de “medida” e de onde provêm lexemas como metro, métrica, medir [do latim: metiri], medida, comedido, desmedido, mensura, mesura, mensurar, mensurável, comensurável, incomensurável, dimensão, dimensionar, imensidão, imenso), afigura-se-me oportuno considerar o vasto campo lexemático a partir dela gerado, bem como a reflexão semântico-conceptual que ele não deixa de motivar (cf. no fim as ANOTAÇÕES). 280 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO de M°dousa482 (Medousa) e, assim, do criterioso diagnóstico, cuidadoso cuidar e dedicado agir profiláctico e terapêutico, directa e/ou (tele)mediaticamente, protagonizados pelos médicos, sem qualquer hipótese de solução mais segura, mais consistente e mais válida que a sua... Que não haja ilusões: não há alternativa sapiencialmente fundamentada (e, por isso mesmo, digna e credível...) para a missão e acção dos Médicos!... É assim que, se o seu intransferível protagonismo configura um privilégio, não deixa de constituir, igualmente, uma acrescida e indescartável responsabilidade... Por isso, sendo a saúde483 um englobante e holístico estado de equilíbrio dinâmico e de homeostasia vital, de capacitante harmonia integrada, solidária e polifónica, não dispensa uma sempre renovada e sólida estratégia e, tal como na música, uma inspirada, sensível e afinadora agógica orquestral nas áreas da organização, da metodologia e da processologia, não devendo prescindir, nomeadamente, de uma concepção e de um planeamento de natureza multidisciplinar, interdisciplinar e transdisciplinar, numa palavra, conjugadamente envolvente e implicante (ou pléctico) dos desempenhos orgânicos, relacionais, sapienciais (teóricos e práticos) e formativos do sistema e do serviço de saúde... Ora, no quadro dessa estratégia global, o maestro dessa incomparável orquestração polifónico-sinfónica é cada vez mais o médico, mas um médico não apenas científica e clinicamente dos mais competentes, mas também, e acima de tudo, um especialista do saber global e das combinatórias colegiais e sinérgicas, que seja um 482 Cf. Michel Serres e Nayla Farouki (dir.): O Livro da Medicina – O dicionário da medicina de hoje: Lisboa, Edições Piaget, 2004, 17, prefácio de Michel Serres, onde se estabelece uma relação semântica com esta figura mítica, cujo nome — ‘Medusa’ — tem a mesma raiz — med- — das palavras médico e medicina; claro que o assim chamado “olho clínico” dos médicos, mesmo possuindo análogas virtudes oftálmicas de fixação, penetrabilidade e fulgurância irradiante e iluminante nos actos de diagnóstico, não se destina a originar os efeitos perversos e maléficos atribuídos à mais terrífica das três Górgonas: pelo contrário, visa o benefício da cura dos males que afligem o doente... 483 Cf. os pontos 1. e 2. do “Manifesto” intitulado “Irmandade Científica para a TeleMecinina”, documento que tive a honra de elaborar para o já referido «II Fórum Ibérico» e que, na sequência textual que mais interessa para a presente reflexão, vai transcrita, no fim, nas ANOTAÇÕES E ADENDA. 281 Fernando Paulo do Carmo Baptista paradigma e um exemplo de estesia e afectividade plural, inclusora e integradora, um estudioso e um humanista da estirpe de um Pedro Laín Entralgo que, tal como ele, entenda que «la actitud más humanamente digna ante el enigma insondable que es la realidad del hombre consiste en avanzar en el empeño de conocerla cada vez mejor, sabiendo que jamás la humanidad le dará término484». Do pãyow [pathos] enquanto território fundador de uma “visão antropo-ética” do exercício da Medicina e da radicação da deontologia médica Neste especial contexto, afigura-se-me de inteira pertinência lembrar palavras sábias de Michelangelo Peláez, Professor de Ética e Antropologia na Università Campus Bio-Medico de Roma, acerca da Medicina485: 484 Cf. Pedro Laín Entralgo: Idea del hombre, Barcelona, Galaxia Gutenberg, Círculo de Lectores, 1996, p. 202. 485 Cf. o seu artigo «Medicina» (apud Giuseppe Tanzella-Nitti e Alberto Strumia (curat.): Dizionario Interdisciplinare di Scienza e Fede, Roma, Urbaniana University Press – Città Nuova Editrice, 2002, pp. 901 ss), de que transcrevo o seguinte excerto, tomado como base desta minha tradução e adaptação (e, por isso, também, pontualmente “traição” [tradutore <> traditore]): «Disciplina di originaria dignità universitaria, essa riunisce gli aspetti di una scienza, teorica e sperimentale, e quelli di un’arte pratica; soprattutto si presenta con un oggetto assai peculiare, per il quale ogni definizione non potrebbe essere che riduttiva: l’essere umano con le sue esperienze di salute e di malattia, di benessere e di sofferenza. Costitutivamente aperta all’interdisciplinarità, la medicina incontra all’interno del suo orizzonte lo sbocciare della vita, ma anche il suo termine: l’uomo può essere aiutato a prevenire e guarire le sue malattie, può riacquistare la salute, ma non può evitare in maniera definitiva la morte. La medicina è inerente alla stessa condizione umana: anche se ha in comune con gli animali superiori la sensibilità al dolore, l’uomo soltanto ha il potere di prestare aiuto a se stesso e agli altri esseri umani con atti specifici che costituiscono una prassi ed una tradizione universale fondata sulla compassione (vc. dotta, lat. tardo: compassione(m) = sentimento o atteggiamento di sofferenza, compartito insieme*), radice della stessa moralità. Le cure mediche sono un esercizio della compassione tra esseri umani: l’uomo che patisce un’affezione è, in tal senso, un “paziente”. Curare vuol dire prendersi cura del paziente. Il rapporto tra vulnerabilità (malattia) e compassione (cura) costituisce 282 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO «Disciplina de originária dignidade universitária, ela reúne em si os fundamentais aspectos de uma ciência teórica experimental e os de uma arte prática, ocupando-se de um objecto extremamente peculiar: o ser humano com as suas experiências de saúde e de doença, de bem-estar e de sofrimento. Constitutivamente aberta à interdisciplinaridade, a Medicina depara-se, dentro do seu horizonte, com o desabrochar da vida, mas depara-se também com o seu termo: o homem pode ser ajudado a prevenir e a curar as suas doenças, pode reconquistar a saúde, mas de modo algum consegue evitar a morte. A Medicina é co-natural à própria condição humana: mesmo se ele partilha com os animais biologicamente mais estruturados a sensibilidade à dor, apenas o homem tem o poder de prestar ajuda não só a si próprio mas também aos demais seres humanos, através de actos específicos que constituem uma prática e uma tradição universal fundada na compaixão486, raiz da moralidade e da própria ética. Os cuidados médicos são um exercício de compaixão entre seres humanos: o homem que padece de uma afecção é, nesse sentido, um “paciente”. Cuidar significa prestar a devida atenção ao paciente. A relação entre vulnerabilidade (doença) e compaixão (cuidado) constitui o fundamento ético-antropológico da Medicina em todas as épocas (...). Não há doença sem saúde, tal como não há saúde sem doença. (...) Mas é necessário integrar as experiências universais de sofrimento e de doença numa visão do mundo, do homem e do desenvolvimento científico da Medicina, que permita compreender a sua natureza, as causas e os modos possíveis de as prevenir e tratar.» la struttura etico-antropologica della medicina di ogni epoca (...). Non c’è malattia senza salute e non c’è salute senza malattia. (...) È necessario inserire le esperienze universali di sofferenza e di malattia, in una visione del mondo, dell’uomo e dello sviluppo scientifico della medicina che permetta di comprendere la loro natura, le cause e i modi possibili di prevenirle e di curarle.» (cf. também: http://www.disf.org/Voci/84.asp). * Nota: permiti-me introduzir no original italiano uma ligeira alteração relacionada com a etimologia. 486 Proveniente do latim tardio compassio, -onis, nome da mesma família do verbo compatior [< cum + patior], -eris, -ti, -passus sum, com o significado de padecer com, sofrer em conjunto, sofrer solidariamente (cf. Santiago Segura Munguía: op. cit., na «voz» respectiva). 283 Fernando Paulo do Carmo Baptista Como acabamos de ver, é na base da fundacional relação entre padecimento e compaixão, entre passio e compassio, que não só se institui ontologicamente toda a dÊnamiw (dynamis) inerente ao agir médico, como também nela radica, trans-epocalmente, a dimensão axiológica e, dentro dela, o sentido antrópico-ético do exercício da Medicina, com seus códigos deontológicos. E porque passio e compassio são manifestações profundas daquele mesmo e universal pãyow (pathos)487 que constitui, desde as suas mais fundas e misteriosas funduras, a “região” porventura mais fluida e proteica da nossa corpórea e viva existência humana, com seu deveniente, plástico e moldável modo de ser, impõe-se-nos, a esse propósito, uma abordagem ainda que breve. Território instável e incerto dos abissais abismos e dos insolúveis paradoxos tensionais (tanto quanto nos é possível, fenomenicamente, pensá-lo, perspectivá-lo ou julgá-lo...), o pãyow (pathos) desdobra-se, em emersiva e reveladora epifania, em alegria e em cântico, em celebração e em festa, em angústia e desespero, em dor, sofrimento e desgraça, em paciência, esperança e serenidade, em prudência e em sabedoria, mas também em inconsciência, insensatez e irresponsabilidade e, no limite, nos incontrolados turbilhões da desmedida loucura da Ïbriw [hybris] e da frieza letalmente mortífera, tantas vezes calculada e programada, do próprio crime... É no pãyow (pathos), entendido na máxima latitude, amplitude e corpóreo-anímica profundidade dos sentidos de que multímoda e diuturnamente se alimenta e polissemicamente se organiza: desde a escuta, a visão e a previsão, o cheiro, o tacto, o paladar e o saborear, à suspeição, ao palpite, ao pressentimento, ao agoiro, ao presságio e à premonição...), é no pãyow (pathos) que, a meu ver, radica a possibilidade primeira e última, positiva e negativa, luminosa e sombria, de toda a criatividade e de todo o agir humanos... É ele o transracional, livre e “não-enclausurável” oceano que, com a inesgotável §n°rgeia (energueia) ondulatória e translativa dos instintos latentes e incontroláveis e das brusquidões repentinas, da 487 Reescrevo, aqui, parte de uma reflexão inserta no meu Tributo à Madre Língua..., op. cit., p. 53; para os lexemas gregos e latinos, cf., respectivamente: Anatole Bailly: Dictionnaire Grec Français e Santiago Segura Munguía: Nuevo diccionario etimológico LATÍN-ESPAÑOL y de las voces derivadas, já citados. 284 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO misteriosa movência das pulsões libidinais, oníricas, ilógicas, absurdas e metafísicas (demoníacas ou divinas...), constitui o universal transfundo e a úbere e possibilitante matriz genealógica, genológica, genotípica e patológica (sublinho: patológica) da “mecânica dos fluidos” psicosférica (e até mesmo noosférica...) e, dentro dela, da semiósica poliglotia e intercomunicabilidade humanas. É dele que eclodem, em última instância, as brisas e maresias da lírica, as marés vivas e tensas do drama, as ousadas e argonáuticas gestas da epopeia, mas também a inelutável, irreversível e patética fatalidade dos naufrágios da tragédia, com a arrastada e nocturna sofridão da doença incurável e macabramente desfiguradora e com o estertor final e os lances lancinantes do agónico cessar da vida... Da irreversível caminhada para a planetária “Cidade da Saúde” Curativamente superadas ou minoradas (com a humana, dedicada e fraterna sumpãyeia [sympatheia], se não mesmo §mpãyeia [empatheia], da arte, da técnica e da iátrica, holística e orquestral488 sabedoria dos nossos Esculápios, Hipócrates e Galenos...) as transtornantes turbulências numénico-fenoménicas das patologias que por todos os lados vêm afectando a saúde e a vida dos nossos concidadãos, todos eles, nossos irmãos antrópicos, porque filhos e habitantes da mesma Madre-Terra, doentes (dolentes) ou padecentes (patientes) e, assim, suscitadores da nossa humana e solidária compaixão (compassio)489 e piedade (pietas), iremos caminhando em 488 Isto é, que não dispensa a adjuvante e harmoniosa colaboração de uma vasta e diversificada equipa de trabalho que vai desde os serviços de gestão e administração, aos técnicos de paramedicina, enfermagem, farmácia, laboratório e demais tecnologias, nutricionismo e dietética, não esquecendo os serviços de cozinha, limpeza e higiene ambiental, etc., etc... 489 Este meu entendimento converge com o conceito de «socialidade», enunciado por Michel Maffesoli (O Eterno Instante – O Retorno do Trágico nas Sociedades Pós- Modernas, Lisboa, Edições Piaget, 2000, pp. 190-192), quando afirma: «É o mundo partilhado, o “mundo com”, o que não deixa de suscitar novas formas de generosidade e de solidariedade». Maffesoli, embora no contexto mais alargado da «celebração de mistérios e paixões» e dos respectivos territórios etológicos, fala 285 Fernando Paulo do Carmo Baptista direcção à planetária “Cidade da Saúde”, verdadeiramente hominescente490, isto é, poiesicamente transformável numa nova e saudável humanidade a ser construída a partir do “exílio” em que nos encontramos, neste pós-moderno tempo-espaço enlouquecido... Pátria-Deméter, porém, a ser governada por um outro modelo de democracia: uma democracia ética em que a humanitas de cada homem é a real e concreta medida da dignidade de todos os homens... Pátria-Global em que cada cidadão é sempre e ao mesmo tempo o próprio e o outro sem exclusão de ninguém... Materna-paterna Pólis da gestação contínua no sonho imaginante, no pensamento projectivo e na acção exodal, agonística e poiésica de todos os dias, alimentada pela “utopia”, cada vez mais necessária, da Educação e da Formação ao longo da vida (life-long learning)... mesmo na emergência de «uma “atracção apaixonada” que se exprime nos múltiplos frémitos da vida social». 490 O termo (e conceito de) «hominescência» foi cunhado por Michel Serres, a partir de certas analogias morfo-lexicogénicas (por ex: com adolescência, luminescência, incandescência, etc.), para traduzir, no quadro dum jogo que se desdobra por três campos de nucleares relações, uma constante dialéctica de afirmação e de negação, de vida e de morte: considere-se, a título de exemplo, o fenómeno da “apoptose” (em grego épÒptvsiw, -evw: queda, derrocada, fracasso...) que se traduz na morte ou destruição programada e “suicida” das células, implicando investimento de energia proteica, numa estreita relação homeostática com a regulação da fisiologia dos tecidos e numa função diferente da do processo de cariocinese... A «hominescência» constitui uma poiésica e uma dinâmica de antropomorfose (superadora dum evolucionismo imanentista e de uma concepção “utensilar e protética” da técnica e da tecnologia...) e configura a irrupção ou emergência de um processo neo-humanizador da sociedade, potenciado pela crescente libertação criativa do corpo humano dos ancestrais constrangimentos e dependências que o afectavam e limitavam. Essa libertação assenta num imparável e integrador processo de antropo-tecnicização e bio- culturação, com o objectivo de se estabelecer uma nova teia de relações connosco próprios, com o mundo e com os outros. Nesse contexto e tendo em conta o facto de vivermos na sociedade da comunicação, da informação e do conhecimento, marcada por uma malha de relações cada vez mais intensas e interdependentes, corre-se o risco do advento de uma espécie de avalanche informativa, estranguladora das possibilidades de elaboração crítica do saber e, consequentemente, da construção autónoma e reflexiva da própria sabedoria, pelo que não deixa de ser emblemática e carregada de alegorismo a afirmação de Michel Serres, segundo a qual, «l’avenir appartient aux ordres contemplatifs» (cf. Michel Serres: Hominescence, Paris, Le Pommier, 2001, pp. 1-95 e passim [agora também nas Edições Piaget]). 286 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO Poema real da esperança e do futuro sempre em movimento... E porque, aí, os homens vão ser todos eles HOMENS, é possível proclamar, com Hölderlin491, no seu Hipérion: «Onde quer que um povo ame a beleza e honre o génio nos seus artistas, aí circula, como um sopro de vida, um espírito universal (...). Um povo assim é a pátria de todos homens...». No horizonte efémero e lábil da nossa existência, definido pelas fronteiras do nascimento e da morte, está sempre presente a figura tutelar e serenante dos médicos, enquanto “DIVINOS”492 ARTISTAS DA POÉTICA DA SAÚDE E DA VIDA, ao serviço da cura e da salvação dos homens de todas as idades e de todas as condições... Foi, pois, com inteira pertinência e justiça e com o maior sentido e alcance profético que Homero os imortalizou, na sua Ilíada (XI, 514493), quando, acerca deles, na rítmica melodia e no sortilégio e fascínio da sua epopeia imperecível, plasmou e cantou para sempre: « htrÒw går énÆr poll«n éntãjiow êllvn». («um médico é homem que vale por muitos outros») In honor of the DIRECTORS AND ALL THOSE WHO WORK in the “WORLD HEALTH ORGANIZATION” (WHO), and ANTÓNIO GUTERRES, the current United Nations Secretary-General 491 Cf. Friedrich Hölderlin: Hiperión, Madrid, Hiperión, 1976, p. 206; considerar também a tradução portuguesa de Maria Teresa Dias Furtado: Hipérion ou o Eremita da Grécia, Lisboa, Assírio & Alvim, 1997, pp. 198-199. 492 E digo “divinos”, porque, metonimicamente, mantêm (pela sua específica “práxis” e desempenho competencial...) uma estreita relação de contiguidade identitária com todos aqueles que pertenciam à linhagem dos Asclepíades, fundada por Asclépio (em latim: Aesculapius > Esculápio), filho de Apolo e deus da Medicina, sendo de notar que a tradição mitológica ligava a família de Hipócrates a Asclépio... 493 Homero: Ilíada (trad. de Frederico Lourenço), Lisboa, Livros Cotovia, 2005, p. 233. 287 Fernando Paulo do Carmo Baptista — The Word and the Concept of “HEALTH”: its noetical-anthropological richness and its ethical-praxis and undelayable universality; towards a theoretically, semantically, and conceptually more comprehensive perspective — HEALTH is the condition that enables the integrated and integrating vital harmony of the all-encompassing state of dynamic equilibrium, of the self-regulating, stabilizing, and substantive homeostasis, and of corporeal and mental well-being (bio-socio- psycho-physical). That condition places HEALTH at the top of the axiological scale (judicative and evaluative) as A FOUNDATIONAL GOOD, on which depend all other goods that we may enjoy. HEALTH is, therefore, one of the primordial areas of the social and political domains, because it constitutes the safeguard of the capital value, as well as the true cornerstone in the construction of all of humanity’s codes, THE VALUE OF LIFE. For all the above reasons, HEALTH needs to be protected institutionally through a strategic network of services, mechanisms, and dynamics that aim at predicting, preventing, resolving, or even neutralizing and eradicating any harbinger of an ethio-symptomatologic nature, which might threaten the aforementioned structural and functional (anatomical and physiological) harmony of our somato- psycho-sociosphere in its constitutive, endogenous, and exogenous factors. 494 The problematic dialectic between HEALTH and ILLNESS brings to light, in a most deep, flagrant, and radical manner, the fragile, precarious, and finite nature of our human condition, and, for that reason, it invokes and suggests a sense of priority and solidarity in our thinking and in our action... And, in the “limit situations” [Grenzsituationen] to which Karl Jaspers refers, it leads us, even more 494 Cf. Baptista, Fernando Paulo (2010-2011): “Toward a Holistic, Intercultural, and Polyphonic Perspective on Health Care: Journal of the Indiana Academy of the Social Sciences, Volume 14: 2010-2011, pp. 11-17. (See, please: https://www.academia.edu/). 288 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO so, to call forth (or to convoke) the transcendental intervention of Divinity... It is not by chance that the most universalized linguistic designation for the idea of “HEALTH” —whether through the Latin words “salus, salutis” and their Romanic derivatives495, or whether through the words “health” in English, “hesle” in Norwegian, “hälsa” in Swedish, “hailith ” in Germanic, or “heisla” in Icelandic, among many others—has age-old and profound connections with the concepts of the “sacred” and the “divine.” In fact, the Indo-European root *sol- / sal- / sel- (with its evolved morphed variant hol- / - hal- / heal-), which constitutes the semogenic nucleus of the Latin lexeme “salus, salutis”, is present in the constitution of innumerable words of the lexical inventory of different languages, with special prominence for words of Romance languages, such as safe, safeguard, safety, sage, salubrious, salubrity, save, saving, salvation, savior, salutary, salute, salutation, holism, holistic, health, healthy, healthful, solid, solidity, solidarity... But it is also equally present in other English words, such as hale, holy, holiday, and whole, in Old English h l and h lig; in Old Saxon hēlag, in Old Norse heill; in Old Frisian hēlich; in German heilig; in Old High German heilag; in Greek λο [hólos; in Latin saluus; in Sanskrit sarvah, etc., all of which are “carriers” of the transversal semantic markers of the “sacred, saint, saved, intact, entire, integral, total.”496 It is within this context that the word “HEALTH” (which designates and identifies the correspondent and thus named “ontological, noetic, sophist-epistemic, cultural and axiological content”, conceptualizing the object, the objectives, and the finalities of Medicine’s existence, as a specific curricular ground of specialized knowledge of a theoretical, technical-praxis, clinical-therapeutic, reconstructive-surgical, plastic-poiesic, and ethical-deontological 495 Let us consider, for this purpose, the designators of the idea of “health” in the universe of the Romance languages: in Portuguese saúde, in French santé, in Spanish salud, in Catalan salut, in Italian salute, in Romanian s n tate. 496 Cf. Barnhart, Robert K. (2001): Chambers Dictionary of Etymology, London: Chambers Harrap Publishers Ltd., the entries, “health,” “holy,” “holism,” “safe,” “salute,” “save,” “whole.” See also the same entries in Online Etymology Dictionary, http://www.etymonline.com/index.php. 289 Fernando Paulo do Carmo Baptista nature...)—evokes and convokes terms and concepts such as saving, salvation, salubrity, holism, solidity, solidarity, and solicitude, which, on their own accord, bring forth, isotopically, ideas such as those of totality, wholeness, integrity, inclusion, density, combination, articulation, orchestration, harmonization, and of an enlarged and profound synchronization of everything related to the organic and functional complexity of our living body and its ecosystem. Thus HEALTH, correctly understood, is a holistic, cosmic, integral and sacred state of dynamic harmony, in such a way that doctors (when they care for patients...) set in motion the former’s genealogy of “divine” origin: doctors are indeed, on Earth, the descendants of Asclepius or Aesculapius... And their universal emblem is the “caduceus,” the unmistakable symbol of Medicine, which is so well represented, indeed, on the flag of the World Health Organization (WHO).497 In conclusion: it seems to be within the perspective, made possible by this very synthetic philological-anthropologic framing, that all health care and services acquire a much more consistent and profound meaning and reach. However, without ever forgetting that, above all, when CHILDREN AND THE ELDEST ARE AT RISK, it is very important to discover the transcending horizons of poietic creativity that confer to Life its highest greatness as guarantee of the Future of Mankind on Earth (Demeter)... 497 See the image. 290 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO It seems, therefore, entirely pertinent to recall the following verses of the genial Portuguese Poet—FERNANDO PESSOA498—, which say: «Grande é a poesia, a bondade e as danças... Mas o melhor do mundo são as crianças...». [Great is the poetry, the kindness and the dances... But the best in the world are the children...] In this context of holistic tenderness towards, above all, the youngest people of the entire World, I conclude this “short essay” with my best wishes of strong health to my compatriot ANTÓNIO GUTERRES—(the current United Nations Secretary-General— so that he may continue to promote his humanist, inclusive, and encompassing “vision” of Mankind, as well as his universal and supportive engagement on behalf of Peace, Justice, and Fraternity, without which it will be very difficult to protect, develop, and expand HEALTH on Planet Earth, our Common Home... On my part, I will do my best in order to continue to be worthy of this HUGE AND EXCITING HONOR, which touched me in my Life, of being a simple but engaged reviewer of our wonderful “WHO – BULLETIN.” ANOTAÇÕES E ADENDA 1. «A lição da etimologia, suscitada pelas correlações estabelecidas com base na análise desencadeada a partir da raiz indoeuropeia med- / mod- que está na base dos lexemas médico e medicina, apresenta-nos este fundamental constituinte morfo-lexical como sendo portador das 498 Fernando Pessoa: Poesias, Lisboa, Edições Ática, 11.ª edição, 1980, p. 248: «Grande é a poesia, a bondade e as danças... / Mas o melhor do mundo são as crianças...». 291 Fernando Paulo do Carmo Baptista ideias de “meditar, cuidar de, medir...” e como estando na génese de um vasto e diversificado conjunto de vocábulos de que fazem parte, entre outros, os verbos gregos mÆdomai (= meditar, preocupar-se com, cuidar de...), med°v (= ter cuidado de, proteger...), m°dv (= regrar, pôr dentro da justa medida, governar, dirigir...), m°domai (= preocupar-se com, cuidar de...), o nome próprio M°dousa (> Medusa, uma das três Górgonas, com o significado literal de “aquela que mede com o seu olhar cintilante e penetrante, que tira as medidas com rigor”...]), os verbos latinos meditor (= pensar, ponderar, meditar...), medeor (= cuidar de, tratar de...), modero (= regrar, submeter às regras, moderar...), modulor (= modular, dispor em conformidade com a medida, que, em latim, se diz modus (de onde, o aforismo horaciano do «est modus in rebus»: há uma justa medida para as coisas: nada de exageros! [Horácio: Sátiras: 1, 1, 106]), modifico (= refazer dentro das medidas, pôr em ordem, modificar uma situação que está desregulada...), medico, -as, -are (= medicar, prescrever e administrar medicamentos), etc... A raiz indo-europeia med- / mod-, caracterizada por um fenómeno de alternância vocálica de duplo grau (grau “e” / grau “o”) que está, como se pode verificar, na base destes lexemas da classicidade greco-latina e na constituição das duas palavras portuguesas provenientes da língua falada pelos Romanos — medicina e médico — transporta consigo o mesmo “adn semântico” que distingue, sémio-geneticamente, um significativo e diversificado elenco de outros vocábulos da nossa língua que, por isso mesmo, pertencem à mesma família lexical: medicar, medicação, medicamento, medicinal, Medusa / medusa, mezinha (do latim: medicina-), remédio, remediar, irremediável, como (do latim: quo modo = de que modo, com que medida?...), cómodo (do latim: commodus = que tem a medida ajustada ou proporcionada e que, portanto, é confortável...), cómoda, comodidade, acomodar, incómodo, moderar, moderado (em italiano: moderato, usado especificamente na metalinguagem musical para notar um movimento entre andante e allegro), moderação, módico, modicamente, modéstia, modesto, módulo, modelo, modem, molde, modelar, modular, modificar, modal, modalidade, módio, modíolo, moio, moda, moderno, modernidade... Da fieira semântica que a partir daquela raiz reticularmente se tece bem pode inferir-se uma razoável tentativa de definição da Medicina como sendo a ciência, a técnica e, sobretudo, a arte (a poética) de criar (modelar), de modo reflexivo e 292 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO ponderado (isto é, meditado e medido), as condições multi-sapienciais, académica, social, deontológica e institucionalmente legitimadas e que são intrínsecas ao “estatuto de médico” isto é, intrínsecas aos especializados protagonistas do meditar, do medir e modelar, do medicar e modificar (o mesmo é dizer: aos protagonistas da práxis científica e técnico-poética da Medicina), por forma a estabelecerem os esquemas de acção decisional e prescritiva (e.g.: diagnóstico genérico e/ou especializado, receituário e respectiva posologia/dosologia, internamento/alta, terapia [farmacoterapia, terapia cirúrgica, terapia a laser, radioterapia, quimioterapia, fisioterapia, etc...], prevenção [vacinação, profilaxia], aconselhamento, manutenção, etc...), ou seja, as modalidades, os modelos, os módulos e os modos clínicos, em suma, os “algoritmos” de natureza conceptual, organizacional, metodológica, relacional e operatório-prática, configuradores do “acto médico” em suas fundamentadas, pertinentes, ajustadas e eficazes modulações e medidas concretizadoras, para, atenuando, debelando, erradicando ou neutralizando superadoramente as causas e os efeitos da doença, re- instaurar na “corpórea casa”, de modo regulado e regulador, o normal [o “modelar”] estado de saúde». Sobre esta tão importante raiz, cf. Edward A. Roberts e Bárbara Pastor: Diccionario Etimológico Indoeuropeo..., já citado, entrada med-, 102-103; cf. Fernando Paulo Baptista: Tributo à Madre Língua..., op. cit., pp. 447-449. 2. Excerto do “Manifesto” intitulado “Irmandade Científica para a TeleMecinina”: «Tal como ressalta da significação primigénia inscrita na raiz indo- europeia *sol- [ > hol-] / sal- que constitui o núcleo semiogénico da palavra ‘saúde’ (nome proveniente do latim salus, -tis), designadora e identificadora do correspondente e assim nomeado “conteúdo ontológico e sapiencial” (conceptualizador do objectivo e da finalidade da existência da Medicina enquanto específico conjunto de saberes especializados), que convoca palavras cognatas como salvar, salvação, salubridade, holismo, holístico, sólido, solidez, consolidar, solidariedade, solicitude... e que, por força delas, suscita em nós, isotopicamente, ideias como as de totalidade, inteireza, integridade, inclusão, densidade, combinatória, articulação, orquestração, harmonização e sintonia profunda e alargada de tudo com tudo quanto 293 Fernando Paulo do Carmo Baptista diz respeito à complexidade orgânico-funcional (anatómico- fisiológica) do nosso corpo vivo e ao seu ecossistema, a saúde é muito justamente entendida, por um lado, como o englobante estado de equilíbrio dinâmico e homeostasia, de capacitante harmonia vital integrada e integrante e de bem-estar bio-sócio-psico-físico e valorada, pelo outro, como o bem fundador de que dependem os demais bens de que nos é dado fruir. A saúde configura, assim, uma das áreas primordiais do domínio do “social” e do “político”, na medida em que nela se joga e cada vez mais se decide, solidariamente, a garantia da salvaguarda do valor capital e verdadeira pedra angular na construção de todos os códigos da Humanidade — o valor da vida —, institucionalmente resguardado por uma estratégica rede de serviços, de mecanismos e de dinâmicas que visam prever, prevenir, resolver ou mesmo neutralizar e erradicar qualquer prenúncio de natureza étio- sintomatológica que possa pôr em risco a referida harmonia estrutural e funcional da nossa somato-psico-sociosfera, em seus constituintes endógenos e em seus factores exógenos». Cf. o meu Tributo à Madre Língua..., op. cit., pp. 449-450, sendo de notar, para o efeito, que a base lexicogénica da palavra ‘saúde’ (proveniente do nome latino salus, -tis) é a raiz indo-europeia — sol- [ > hol-] / sal- —, cujo “adn semântico” é constituído pelas ideias de «todo, inteiro, intacto, íntegro, sólido, integrado...» e está presente numa vasta família de palavras, quer de matriz grega, quer de matriz latina, assim distribuídas: a) lexemas gregos com base na variante “sol- > hol-” da raiz: ˜low, -h, -on (holos [> sol-(w)os] = inteiro, todo, completo, integral, universal), €zv ([holizo] = unir, reunir, juntar, congregar num todo), os matow (= que diz respeito ao corpo todo), ote w (= completamente, inteiramente), Òf now (= que fala ou que grita a plena voz, a plenos pulmões), Òf tow (= quer ilumina tudo, a plena luz, holofote)... b) lexemas latinos com base na variante “sol-” da raiz: sollus, -a, -um [= inteiro, íntegro, intacto], solidus [= propriedade dos corpos cujos elementos constitutivos formam um todo consistente e firme], soldus, soliditas -tatis, solido -as -are, sollicitus [= que está inteiramente disponível para ser prestável; dedicado...], sollicitudo, - dinis [= inteira disponibilidade, total prontidão...], sollicito -as -are [= pedir com todo o empenhamento, com insistência...], sollicitatio, 294 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO sollemnis [< sollus+annus = o que de único [porque mais denso, consistente, integrado, congregador de todos e de tudo em tudo...] e, por isso mesmo, de mais representativo, singular e importante acontece no espaço de um ano], sollemnitas -tatis, sollers -tis [< sollus+ars = que acciona, por inteiro, as suas habilidades, as suas artimanhas; daí: astucioso, finório, solerte...]... c) lexemas latinos com base na variante “sal-” da raiz: salue! [< salueo, -es, -ere... = salve!, eu te saúdo!, goza de boa saúde!], saluus -a -um [< saluos = salvo, intacto...], saluator, saluo -as -are, salus -tis [salute- > saúde], saluia (planta medicinal = sálvia ou salva), saluber, salutaris... I. léxico português de base grega: católico [< kayolikÒw (kata+hol+ikos) = geral, universal], holismo, holístico, holopatia, holoblástico, holotomia, holócrino, holofonia, holófrase, holofrástico, hologénese, holografia, holograma, holómetro, holomórfico, holofote, holofótico, holocausto, holomorfose... II. léxico português de base latina: sólido, solidez, solidificar, consolidar, soldo, soldar, soldado, soldagem, soldadura, solidário, solidariedade, solícito, solicitar, solicitude, solene, solenidade, solerte... saúde, saudar, saudação, saudável, salva ou sálvia, salvo, salvar, salvação, salvador, salvamento, salvaguarda, salubre, salubridade, salutar... Sobre esta tão fecunda raiz, cf. Edward A. Roberts e Bárbara Pastor: Diccionario Etimológico Indoeuropeo..., já citado, entrada sol-, pp. 164-165; cf. igualmente os já citados Anatole Bailly: Dictionnaire Grec Français e Santiago Segura Munguía: Nuevo diccionario etimológico LATÍN-ESPAÑOL..., respectivamente, nas «vozes» gregas e latinas inventariadas. 295 Fernando Paulo do Carmo Baptista REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS • AAVV: Filosofia de la Educación Hoy – Diccionario filosófico-pedagógico, Madrid, Editorial Dykinson, 1997. • ABBAGNANO, Nicola e FORNERO, Giovanni: Dizionario de Filosofia, Torino, UTET, 1998. • ARISTÓTELES: Política (trad. de António Campelo Amaral e Carlos de Carvalho Gomes), Lisboa, Vega Universidade, 1998. • AUDI, Robert (ed.): Diccionario Akal de Filosofía, Madrid, Akal, 2004. • BAILLY, Anatole: Dictionnaire Grec Français, Paris, Hachette, 1984. • BAPTISTA, Fernando Paulo: Tributo à Madre Língua, Coimbra, Pé de Página Editores, 2003. • BAPTISTA, Fernando Paulo: texto intitulado «Irmandade Científica para a TeleMecinina» (Viseu, 2005). • BAPTISTA, Fernando Paulo: Tributo à Madre Língua, Coimbra, Pé de Página Editores, 2003. • BARNHART, Robert K.: Chambers Dictionary of Etymology, London: Chambers Harrap Publishers Ltd, 2001. • BOHM, David E PEAT, F. 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A crise mundial, que investe as finanças e a economia, põe a descoberto os seus próprios desequilíbrios e sobretudo a grave carência de uma orientação antropológica que reduz o ser humano apenas a uma das suas necessidades: o consumo.» «... a autonomia absoluta dos mercados» / «a especulação financeira» / «uma corrupção ramificada e uma evasão fiscal egoísta, à escala mundial» / «a rejeição da ética, habitualmente olhada com um certo desprezo sarcástico.» «A dignidade de cada pessoa humana e o bem comum são questões que deveriam estruturar toda a política económica, mas às vezes parecem somente apêndices acrescentados de fora para completar um discurso político sem perspectivas nem programas de verdadeiro desenvolvimento integral. Quantas palavras se tornaram incómodas para este sistema! Incomoda que se fale de ética, incomoda que se fale de solidariedade mundial, incomoda que se fale de distribuição dos bens, incomoda que se fale de defender os postos de trabalho, incomoda que se fale da dignidade dos fracos, incomoda que se fale de um Deus que exige um compromisso em prol da justiça. (...) Não podemos mais confiar nas forças cegas e na mão invisível do mercado. (...) Peço a Deus que cresça o número de políticos capazes de entrar num autêntico diálogo que vise efectivamente sanar as raízes profundas e não a aparência dos males do nosso mundo. A política, tão denegrida, é uma sublime vocação, é uma das formas mais preciosas da caridade, porque busca o bem comum. Temos de nos convencer de que a caridade «é o princípio não só das micro- relações estabelecidas entre amigos, na família, no pequeno grupo, mas também das macro-relações como relacionamentos sociais, económicos, políticos. Rezo ao Senhor para que nos conceda mais políticos que tenham verdadeiramente a peito a sociedade, o povo, a vida dos pobres. É indispensável que os governantes e o poder financeiro levantem o olhar e alarguem as suas perspectivas, procurando que haja trabalho digno, instrução e cuidados de saúde para todos os cidadãos.» (Cf. Papa Francisco: A Alegria do Evangelho — Exortação Apostólica Evangelli Gaudium, Lisboa, Prior Velho, Paulinas Editora, 2013, pp. 44-45, 141-143) (*) Reflexão crítico-interventiva, tendo por base o texto de uma comunicação feita durante o “Fórum Identidade e Missão da UASP” [União das Associações dos Antigos Alunos dos Seminários Portugueses] que ocorreu no Auditório do Seminário Maior de Lamego, nos dias 22 e 23 de Setembro de 2012. 301 Fernando Paulo do Carmo Baptista 1.º “ANDAMENTO”: DO ACTUAL ESTADO DE GENERALIZADA MORBIDEZ MORAL ... No contexto da vastíssima bibliografia que se reporta às análises antropológico-culturais, filosóficas, teológicas, sociológicas, politológicas..., seja a que se dedica à interpretação, compreensão e explicação da multiplicidade dos seus “sinais” manifestativos (da sua sintomatologia...), seja a que se ocupa da sua causalidade originante (da sua etio-patogenia...), tudo converge no sentido de que o “epicentro” do actual estado de generalizada morbidez moral verdadeiramente cataclísmica que vem atravessando o Mundo inteiro (e, consequentemente, também o nosso País) não se afigura ser dissociável do controverso período ou estádio histórico-cultural (com todo o seu cinetismo e agonismo intelectual...) que dá pelos nomes de «PÓS- MODERNIDADE » e de «PÓS -MODERNISMO », com a complexidade da sua intrincada fenomenologia e da sua indagadora problematização499... Mas, pelo seu valor simbólico e alegórico, seja-me permitido, em todo o caso, destacar, uma vez mais, os famosos títulos do filósofo e sociólogo francês Gilles Lipovetsky — A Era do Vazio, O Império do Efémero e O Crepúsculo do Dever — para, através deles, remeter para a preocupante marginalização a que tem vindo a ser votado o “sistema 499 Para uma perspectivação, ainda que sumária, dos fenómenos da “P ÓS - MODERNIDADE ” e do “P ÓS - MODERNISMO ”, considerar, entre outros: Victor E. Taylor – Charles E. Winquist (eds.): Enciclopedia del posmodernismo, Madrid, Editorial Síntesis, 2002, entrada «posmodernidad», pp. 350-354; Frederic Jameson: Postmodernism, or, The Cultural Logic of Late Capitalism, Durham, Duke University Press, 1991; Diego Bermejo: Posmodernidad: pluralidad y transversalidad, Barcelona, Anthropos Editorial, 2005; Fernando Paulo Baptista (org.): Vítor Aguiar e Silva: a poética cintilação da palavra, da sabedoria e do exemplo, Viseu, edição do Governo Civil do Distrito de Viseu, 2007, ensaio «A “lição” do Professor» pp. 79-99, com o respectivo suporte bibliográfico; Fernando Paulo Baptista: Nesta nossa doce língua de Camões e de Aquilino, Sernancelhe, edição da C. M. de Sernancelhe, 2010, pp. 159-176 e 187-189; e também: http://www.iep.utm.edu/processp/ http://www.iep.utm.edu/frankfur/ http://www.iep.utm.edu/nihilism/ 302 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO axiológico”, nomeadamente os valores éticos, em consequência da proclamação da «morte de Deus», por Nietzshe (com a outorga da prerrogativa de superador substituto ao mito do “Super-Homem”...) e do “decretamento”, por Lyotard, do «fim das meta-narrativas»500. Esse “esvaziamento” ou “exílio” da presença do “Divino” da face do Mundo e dos Homens abre caminho ao relativismo, ao niilismo e à ausência de sentido para a vida, consagrando o advento do “nada” e do “absurdo” por sobre o horizonte existencial da nossa condição humana501... Complementarmente, sobrevém a ruptura epistemológica e ético- axiológica que dissolve os parâmetros concepcionais, gnosiológicos, sapienciais, doxásticos e etológicos de referência, inspirados ou radicados na “Ideia de Deus” (perspectivada até então como “o Referente dos referentes”...), ficando assim abalados os “arquétipos” fundacionais, os significados e as conotações axiais do tempo e do espaço, do aqui e do além, do passado, do presente e do futuro, da biografia, da memória e do sonho, do mapeamento eidético das próprias matrizes histórico-geográficas... Corre-se, por essa via, o risco do abastardamento estrangeirificante (se não mesmo do apagamento liquidatário..) das “identidades” locais (paroquiais502), regionais e nacionais, porque, por força da alienante “mercatorização” e “mercantilização” de tudo (incluindo a cultura, o corpo e a própria alma...) e sob um delirante e desenfreado ímpeto hedonista e consumista, tudo passou a ser “global”, através dos mecanismos tecnológicos de comunicação, informação e mediação planetária, potenciados pela cibernética > cibernáutica e pelas dinâmicas internéticas... Considere-se, a propósito, o que, salvo raríssimas e honrosas excepções, tem vindo a ser a invertebrada “subserviência” ou “submissão” dos nossos governantes e representantes políticos às 500 Cf. Jean-François Lyotard: La Condition Postmoderne: Rapport sur le Savoir, Paris, Les Éditions de Minuit, 1979... 501 Cf. Martin Buber: Eclipse de Dios – Estudios sobre las relaciones entre religión y filosofía, Salamanca, Ediciones Sígueme, 2003, sobretudo o denso ensaio «Religión y pensamiento moderno», em que se estabelece um fecundo «diálogo» entre as posições de Nietzshe, Heidegger, Jung, Kant e Sartre em torno do problema de Deus, pp. 91-120. 502 Na acepção grega da palavra “ α οι α” [paroikía])... 303 Fernando Paulo do Carmo Baptista directivas económico-financeiras dos directórios do eixo franco- germânico e da “troika”, comandados por tecnocratas e burocratas, intelectualmente “formatados” para o exercício lucrativo do “jogo” monetário e banqueiro... Por sua vez, a arquitectante e nevralgicamente estratégica área da “EDUCAÇÃO / FORMAÇÃO”, com a depreciadora secundarização das Humanidades Clássicas e Modernas, das Belas Letras e das Belas Artes, descurando, por essa via, a formação para os perenes e sublimes valores da “espiritualidade”, passou a ser obsidiante e tecno- burocraticamente concebida e programada para a desumanizadora unidimensionalidade das tão apregoadas competitividade, eficácia e eficiência produtivas e subjugada aos interesses do neo-liberalismo, emparceirado com o capitalismo financeiro, usurário e neo-selvagem... Consonantemente com essa “lassidão” político-curricular do processo educativo-formativo, canonizaram-se (subliminarmente...) como seus pilares estruturantes e direccionantes o “princípio da sobrevivência” e o “princípio da dominação” que, em última instância, conduzem à identitária convergência das grandes “finalidades pedagógico-didácticas” com os “objectivos” pragmático-lucrativos e acumulativos do sistema produtivo e seus detentores e administradores, em detrimento do “princípio da solidariedade” e do “princípio da realização” que, nas dinâmicas educativo-formativas, nunca deveria deixar de envolver e desenvolver, em sinérgica, reticular e orquestral colaboração, as capacidades e destrezas que verdadeiramente fazem crescer a humanidade do ser humano em todas as suas potencialidades e dimensões: a imaginação criadora, a racionalidade crítica, fundamentante, argumentativa e judicativa, a sensibilidade poiésica e estésica, a memória informante, identificante e referenciadora, a inteligência intuitiva, conjectural, teorética, onírica, visionária e realizadora, a vontade resiliente, destemida, direccionante e decisional...503 503 Cf. Jérôme Bindé [coord.]: Rumo às Sociedades do Conhecimento — Relatório Mundial da UNESCO, Lisboa, Edições Piaget, 2008, pp. 187-192, 313; Martha C. Nussbaum: Not for Profit — Why Democracy Needs the Humanities, Princeton and Oxford, Princeton University Press, 2010; Fernando Cabral Pinto: Idade da Realização — Na História da Vida / Na Vida da História, Lisboa, Edições Piaget, 2011, pp. 24 ss, 71 ss e 179 ss. 304 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO É assim que essa alarmante situação “patológica” de dimensão planetária nos traz à memória o premonitório e consonante “diagnóstico” lapidarmente plasmado por Fernando Pessoa no seguinte excerto do seu heterónimo Bernardo Soares, no Livro do Desassossego504: «Nascemos já em plena angústia metafísica, em plena angústia moral, em pleno desassossego político. Ébrias das fórmulas externas, dos meros processos da razão e da ciência, as gerações que nos precederam aluíram todos os fundamentos da fé cristã, porque a sua crítica bíblica, subindo de crítica dos textos a crítica mitológica, reduziu os evangelhos e a anterior hierografia dos judeus a um amontoado incerto de mitos, de legendas e de mera literatura...». E muito embora (ainda segundo o pessoano entendimento) «em qualquer espírito que não seja disforme exista a crença em Deus»505, a verdade é que, «indiferentes ao divino e desprezadores do humano»506, os nossos “Sátrapas” da economia e da política, em hipócrita e cínico conúbio e na medida em que se arrogam o estatuto de intocáveis “Super-homens” nietszchianos, transformam o nosso resignado e sofredor Povo (que é “Povo de Deus”!...) em mero joguete laboral do seu egoísmo e dos seus interesses intocáveis, insensíveis a quaisquer exemplos auto-abdicatórios, completamente “esquecidos” de que ESTES... DEVERIAM VIR SEMPRE “DOS DE CIMA”!... 2.º “ANDAMENTO”: MOTIVAÇÃO PARA UMA INTERVENÇÃO COMUNITÁRIA, CONCRETAMENTE COMPROMETIDA COM OS QUE MAIS SOFREM: do escândalo das altas remunerações em tempos de austeridade à indispensabilidade da prática fraterna da “solidariedade” e do “compromisso”... 504 Cf. Bernardo Soares: Livro do Desassossego, Lisboa, Assírio & Alvim, 1998, p. 187. 505 Idem: ibidem, p. 414. 506 Idem: ibidem, p. 45. 305 Fernando Paulo do Carmo Baptista Ponderando tudo quanto no “1.º andamento” desta reflexão centrada na “Dimensão Ética da Crise do nosso Tempo” ficou dito a propósito dos aspectos mais desumanizantes e desorientantes dos movimentos «pós-modernistas», designadamente, a desmedida relevância que os «valores materiais e instrumentais» da Economia, da Finança e da Tecnociência, direccionados para o edonismo e o consumismo, vêm conquistando relativamente aos «valores espirituais e formativos» da escala axiológica consagrada ao longo da História da Civilização e da Cultura, não espanta que, sepultada a fundante e estelar referência a Deus — Gott ist tot!... 507 — e desprezada a religiosa dimensão “evangélica” da Fraternidade — Amarás ao teu próximo como a ti mesmo! 508 —, se assista ao retorno do endeusado “bezerro de ouro” de que fala a Bíblia509, metamorfoseado, agora, nesse novo “ídolo” que é o “cifrão”, chame-se “Dólar” ou “ uro”, tanto faz!... É assim que as escandalosas “benesses” do “lauto banquete” proporcionado, por exemplo, pela privatização da EDP não reverteram para um “FUNDO DE SOLIDARIEDADE NACIONAL”, tendo em vista acorrer aos nossos concidadãos mais necessitados e mais desfavorecidos, nem foram aplicadas para efeitos de redução das tarifas da energia... Foram, pelo contrário, candidamente aceites pelos seus “beneficiários” (designadamente ex-ministros urófilos...), dando ensejo a um tipo de argumentação auto-justificativa e auto-valorativa digna dos mais refinados sofistas sofísticos da Antiga Grécia, quando se chega ao ponto de presumir uma “cotação de mercado” comparável à das super-vedetas do futebol, sem que da sua competência governativa tenha ficado rasto qualitativo-transformador que se visse (a não ser o arruinante abandono da agricultura e das pescas, a labiríntica e paralisante morosidade dos Serviços de Justiça sem qualquer resgatador fio de Ariadne ou a crescente sombra despesista do tristemente célebre e devorador “monstro” orçamental, alimentado pelo eufórico desgoverno e desmando euro-monetarista da improvisada, impreparada e precipitada adesão à CEE...) e sem que da sua “genialidade” académica se tenha gerado qualquer espécie de “prognóstico” economo-lógico ou outra qualquer medida que, 507 Nietzsche: A Gaia Ciência, §125. 508 Mateus: Evangelho, 22, 37-40. 509 Êxodo: 32, 1-35. 306 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO preventivamente, pudesse estar disponível para nos resguardarmos dos massacrantes “tormentos” que desabaram sobre o nosso Povo... Todos temos o direito de assumir, no espaço público da ÁGORA, o livre exercício da cidadania, através do recurso à crítica responsável e frontal, seja no estilo anti-sofístico do “velho” Sócrates da Hélade, seja no registo anti-farisaico de Jesus de Nazaré... Mas também temos o dever bíblico-evangélico de proclamar, perante os circunstanciais detentores do Poder, a nossa indignação e, sobretudo, de praticar a bondade e a fraternidade cristã (seguindo o exemplo dos generosos “cireneus” do voluntariado solidário...) a favor dos que mais sofrem na carne e na alma as negras consequências da mortífera “política” de austeridade, de empobrecimento e de fome, nomeadamente em situações em que se verifica a intocada e escandalosa manutenção das desproporcionadas e douradas reformas, subvenções e outras “mordomias” e o chocante aumento das já “milionárias” remunerações de políticos e altos administradores e gestores510... Neste contexto, que dizer do despudorado descaramento e malabarista “chico-espertismo” com que alguns de entre os titulares governativos (do passado e do presente...), sem “queimarem as pestanas” no autêntico labor intelectual pressuposto no camoniano “HONESTO ESTUDO” (Camões: Lusíadas, x, 154), têm vindo a obter os seus “diplomas” académicos?... Que dizer, ainda, do dissimulador modo como ocultam, nos “portais” institucionais da Net, as suas medíocres e falaciosas classificações?!... Essa “iliteracia” gnosiológica e essas práticas de expedientismo oportunista e de falta de transparência configuram, eloquentemente, a “marca” distintiva do que é a incompetência, a mediocridade intelectual e a irresponsabilidade ético-deontológica, potenciadas pela “praga” das “universidades” politiqueiras, mercantilistas e vendilhoneiras... Onde é que está, pois, a garantia da “competência sapiencial” (ética, cultural, humanística, científica, técnica...), imprescindível para alicerçar e sustentar iluminadoramente 510 Exs.: um ex-banqueiro passou a receber mais de 160 mil uros por mês; um Presidente do Conselho Geral e de Supervisão da EDP passou a receber mais de 600 mil euros anuais, a juntar a uma reforma mensal da ordem dos 10 mil euros; a CP, a Carris e a Docapesca, todas elas com prejuízos, aumentaram os salários de gestores, em mais de 50%... 307 Fernando Paulo do Carmo Baptista o desempenho dos mais exigentes e mais responsáveis cargos e desempenhos político-sociais?... E que dizer dos “sábios” conselheiros ou consultores económico- financeiros, “equipados” de bornais insaciáveis e “formatados” pelos “padrões” e “cânones” práxico-etológicos à “Goldman Sachs” e à “FMI”?... Devidamente analisado e ponderado tudo isto no quadro da complexidade das suas tão graves implicações e consequências a nível social e comunitário, não podemos deixar de nos interrogar reflexivamente, tendo em vista a “MISSÃO TRANSFORMADORA” que, em consciência, nos cumpre levar a cabo: à luz de uma esclarecida consciência semântico-lexical do que verdadeiramente significa a palavra ‘CORRUPÇÃO’511, um tal estado de coisas é ou não é a expressão patológica do que é a negação dos mais altos e mais nobres princípios e valores sóficos da éretÆ, [arête: a “virtude”, enquanto caminho em direcção à “excelência”...], da élÆyeia [aletheia, a “verdade” enquanto busca e “desvelação” permanente...], da dikaiosÊnh [dikaiosyne, a “justiça”], do «tÚ kalÒn te ka‹ égayÒn» [to kalon te kai agathon, o “belo” e o “bem”, a “perfeição”...], da frÒnhsiw [phronesis, a “sageza”, a “prudência”...], da svfrosÊnh [sophrosyne, a “sensatez”, a “moderação”...], da §gkrãteia [enkrateia, o “autodomínio”...], do gn«yi seautÒn [gnothi sauton: “conhece-te a ti mesmo”...], da sof€a [sophia: a sabedoria], da virtus, da veritas, da iustitia, da aequitas, da honestas, da rectitudo, da pietas, da verecundia, da prudentia, da gravitas, da dignitas?... Em suma: estamos ou não estamos perante o ostracizante silenciamento das irrenunciáveis dimensões da Axiologia, da Ética e da Deontologia, dimensões estas que, no passado, se aprendiam, em sua nuclearidade constitutiva, no diuturno convívio com os textos clássicos 511 Cujo étimo é o acusativo latino ‘corruptionem’ (do substantivo ‘corruptio, -onis’, pertencente à mesma família lexical do verbo ‘corrumpo, -is, -ere, -rupi,- ruptum’ que, por sua vez, é um cognato derivado por prefixação do verbo ‘rumpo, -is, -ere, rupi, ruptum’ (lexema que tem como núcleo semiogénico a raiz indo-europeia “reu- p- / rou-p- > ru-p-”, com o significado genealógico de romper, desfazer em pedaços, fazer ruir abruptamente, conduzir à ruína, em sentido próprio e figurado, físico e ético... 308 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO da Paideia Grega, da Humanitas Romana512 e da Caritas, da ÉAgãph [Agápe], da Fil€a [Philia] e do LÒgow [Lógos] da Christianitas Universalis?...513 O sentido profundo que se liberta do já referido valor sapiencial do “HONESTO ESTUDO” celebrado pelo nosso Camões (Lusíadas, x, 154), com tudo o que daí decorre para o terreno concreto da práxis social, leva-me a defender a ideia de que O EXERCÍCIO DEMOCRÁTICO, LIVRE E RESPONSÁVEL DOS DIREITOS E DOS DEVERES DE CIDADANIA não pode continuar a confinar-se à precariedade dos esporádicos actos eleitorais: tem de passar a configurar-se e a organizar-se em NOVAS FORMAS E MÉTODOS DE CONSTANTE INTERVENÇÃO CÍVICA E CRÍTICO- CONSTRUTIVA trans-partidária, muito mais exigente, criativa e inovadora e sempre marcada pela elevação, pela correcção e pelo sentido da dignidade e da honorabilidade próprias da nossa Grande Cultura Lusíada, Humanista e Universalista, ético-axiologicamente orientada para a construção da Pólis Humana Planetária. E se é verdade que «o Sol quando nasce é para todos», também as searas que aloirecem, amadurecem e se transformam em pão e em vida deveriam estar, eucarística e fraternalmente, ao alcance da mesa de toda a gente, sem exclusão de ninguém: até porque dar de comer a quem tem fome é, em sentido literal e simbólico, uma das mais belas obras de misericórdia, ou seja, um dos mais nobres actos do coração 512 Cf. Werner Jaeger: Paideia: los ideales de la cultura griega, México-Buenos Aires, Fondo de Cultura Económica, 1962; Giorgio Colli: La Sabiduría Griega, Madrid, Editorial Trotta, 1998; Jacques Brunschwig e Geoffrey Lloyd: El Saber Griego, Madrid, Ediciones Akal, 2000; Maria Helena da Rocha Pereira: Estudos de História da Cultura Clássica, I Volume / Cultura Grega, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 81998; Idem: Hélade – Antologia da Cultura Grega, Coimbra, Instituto de Estudos Clássicos, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 71998; Idem: Estudos de História da Cultura Clássica – II volume / Cultura Romana, Lisboa, Fundação Callouste Gulbenkian, 21990; Idem: Romana – Antologia da Cultura Latina, Coimbra, Instituto de Estudos Clássicos, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1986; Frederico Lourenço: Grécia Revisitada: Lisboa, Edições Cotovia, 2004. Cf. Bento XVI: Carta Encíclica Caritas in Veritate, apud: http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/encyclicals/documents/hf_ben- xvi_enc_20090629_caritas-in-veritate_po.html 513 Cf. Bento Bento XVI: Carta Encíclica Deus Caritas Est, apud: http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/encyclicals/documents/hf_ben- xvi_enc_20051225_deus-caritas-est_lt.html 309 Fernando Paulo do Carmo Baptista que pulsa em universal sintonia com os que mais sofrem e mais precisam... Mas, para a conscientificação mobilizadora, em direcção a esse PROJECTO DE TRANSFORMAÇÃO FRATERNA E SOLIDÁRIA, tem todo o cabimento e sentido DAR, DE NOVO, A VOZ AOS POETAS... Na verdade, tendo bem presente aquele irrenunciável “Ensinamento” que deflui da antiquíssima “tradição” que, pelo menos desde o lendário Homero e do bíblico Salomão dos Provérbios e do Cântico dos Cânticos, nos dá OS POETAS como OS DIVINOS E SINGULARES ARQUITECTOS E EDUCADORES (PAIDEUTAS) DA PÓLIS E DA “HUMANITAS” DOS SERES HUMANOS QUE SOMOS, afigura-se-me inadiável, sobretudo quando a noitidão do desencanto e do desalento desaba esmagadoramente por sobre a alma do nosso Povo e do nosso País, convocar novamente, cá bem dentro de nós, a “VOZ POÉTICO- DEMÓTICA” do nosso irresignável e inamordaçável épico-lírico MANUEL ALEGRE, tanto mais que, como ele diz, «fulgura ainda o amor e nós cantamos / seu legado de primavera e música», com «a palavra por dentro da guitarra» e «a guitarra por dentro da palavra» — «guitarras que sois a voz / da voz que há dentro de mim»!... 514: «Pergunto ao vento que passa notícias do meu país e o vento cala a desgraça e o vento nada me diz. (...) Mas há sempre uma candeia dentro da própria desgraça há sempre alguém que semeia canções no vento que passa. 514 Manuel Alegre: Obra Poética, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1999, poema “São como deuses” (p. 45); poema “Guitarra” (p. 457); poema “Trova do vento que passa”, pp. 117-119; poema “Apresentação”, pp. 60-61; poema “Guitarras do meu País”, pp. 245-246; 310 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO Mesmo na noite mais triste Em tempo de servidão Há sempre alguém que resiste Há sempre alguém que diz não.» Por outro lado e em coerente sintonia, jamais podemos esquecer o seu “destino-e-projecto” de Poeta e a sua assumida “missão-e- compromisso” ético-camoniano: «Já disse: planto espadas e transformo destinos. E para isso basta-me tocar os sinos Que cada homem tem no coração.» (...) «Em trovador me tornei. Se a voz do povo me chama eu com ela cantarei. Em trovador me tornei Ao dobrar a Taprobana Destes caminhos que andei.» Nesta capacidade resistente e alumiante de saber «dizer não», nesta enérgica assunção do “dever” poético-profético e solidário da denúncia agórica e do combate politeico do melodioso TROVADOR LUSÍADA E ACADÉMICO DA LUSA ATENAS E DE LISBOA — que é MANUEL ALEGRE —, está implantada e bem viva a “mensagem” germinal, vertical, frontal e destemida do nosso Imortal Camões, condensada e cifrada no seu lema-e-destino de «N a mão sempre a espada e noutra a pena» (Lus.: VII, 79-87 e IX, 27-28 [...] e 93): «Olhai que há tanto tempo que, cantando O vosso Tejo e os vossos Lusitanos, A fortuna me traz peregrinando, 311 Fernando Paulo do Carmo Baptista Novos trabalhos vendo e novos danos: Agora o mar, agora experimentando Os perigos Mavórcios inumanos, Qual Cánace, que à morte se condena, N a mão sempre a espada e noutra a pena; Agora, com pobreza avorrecida, Por hospícios alheios degradado; Agora, da esperança já adquirida, De novo, mais que nunca, derribado; Agora às costas escapando a vida, Que dum fio pendia tão delgado Que não menos milagre foi salvar-se Que para o Rei Judaico acrescentar-se. E ainda, Ninfas minhas, não bastava Que tamanhas misérias me cercassem, Senão que aqueles, que eu cantando andava Tal prémio de meus versos me tornassem: A troco dos descansos que esperava, Das capelas de louro que me honrassem, Trabalhos nunca usados me inventaram, Com que em tão duro estado me deitaram! Vede, Ninfas, que engenhos de senhores O vosso Tejo cria valorosos, Que assim sabem prezar com tais favores, A quem os faz, cantando, gloriosos! Que exemplos a futuros escritores, Para espertar engenhos curiosos, Para porem as coisas em memória Que merecerem ter eterna glória! Pois logo, em tantos males, é forçado Que só vosso favor me não faleça, Principalmente aqui, que sou chegado Onde feitos diversos engrandeça: Dai-mo vós sós, que eu tenho já jurado 312 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO Que não no empregue em quem o não mereça, Nem por lisonja louve algum subido, Sob pena de não ser agradecido. Nem creiais, Ninfas, não, que a fama desse A quem ao bem comum e do seu Rei Antepuser seu próprio interesse, Imigo da divina e humana Lei. Nenhum ambicioso, que quisesse Subir a grandes cargos, cantarei, Só por poder com torpes exercícios Usar mais largamente de seus vícios; Nenhum que use de seu poder bastante Para servir a seu desejo feio, E que, por comprazer ao vulgo errante, Se muda em mais figuras que Proteio. Nem, Camenas, também cuideis que cante Quem, com hábito honesto e grave, veio, Por contentar ao Rei, no ofício novo, A despir e roubar o pobre povo! Nem quem acha que é justo e que é direito Guardar-se a lei do Rei severamente, E não acha que é justo e bom respeito, Que se pague o suor da servil gente; Nem quem sempre, com pouco experto peito, Razões aprende, e cuida que é prudente, Para taxar, com mão rapace e escassa, Os trabalhos alheios que não passa. Aqueles sós direi, que aventuraram Por seu Deus, por seu Rei, a amada vida, Onde, perdendo-a, em fama a dilataram, Tão bem de suas obras merecida. Apolo e as Musas que me acompanharam, Me dobrarão a fúria concedida, Enquanto eu tomo alento, descansado, 313 Fernando Paulo do Carmo Baptista Por tornar ao trabalho, mais folgado.» [...] «E vê do mundo todo os principais, Que nenhum no bem público imagina; Vê neles que não têm amor a mais Que a si sòmente, e a quem Filáucia ensina. Vê que esses que frequentam os reais Paços, por verdadeira e sã doutrina Vendem adulação, que mal consente Mondar-se o novo trigo florescente. Vê que aqueles que devem à pobreza Amor divino e ao povo caridade, Amam sòmente mandos e riqueza, Simulando justiça e integridade. Da feia tirania e de aspereza Fazem direito e vã severidade: Leis em favor do Rei se estabelecem, As em favor do povo só perecem. [...] E ponde na cobiça um freio duro,
 E na ambição também, que indignamente Tomais mil vezes, e no torpe e escuro Vício da tirania infame e urgente: Porque essas honras vãs, esse ouro puro, Verdadeiro valor não dão à gente: Melhor é merecê-los, sem os ter,
 Que possuí-los sem os merecer.» Importa, pois, na própria perspectiva de uma consciente e fraterna partilha inter-geracional do “Pão Poético”, questionarmo-nos sobre o paradoxal “mistério” da finitude e da eternizante transcendência 314 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO da condição dos Poetas — os hölderlinianos fundadores do que efectivamente permanece515 —, a tensa densidade reflexivo-meditativa, genesíaco-modelizadora e epifânica que caracteriza o “Agir Poético” — a o€ siw [Poíesis] —, em sua agónica odisseia pela desvairada imensidão e fundura dos oceanos da Existência e do Universo, questionarmo-nos, em suma, sobre a “essência” da Poesia (suas origens genesíacas, suas configurações textuais e características estéticas, seu tempo e modo manifestativos...), o seu porquê e para quê, ou seja, a sua “missão” neste Mundo em que nos foi dado conhecer a Vida e em que talvez ainda nos vá sendo permitido continuar a existir e a conviver... QUE CONCLUSÕES retirar, pois, de tudo isto?... A meu ver, evocando, agora, o famoso intertexto dostoievskiano- sartriano, segundo o qual, «se Deus não existisse, tudo seria permitido»516, a essencial conclusão a ser extraída consubstancia-se na “lição” de que, sem a reassunção da elevatória, morigeradora e dignificante referência ao “Divino” — Matriz e Paradigma de toda a Perfeição... —, aprofundar-se-á, ainda mais, a iniquidade do mercatório e perverso “vale tudo”, imposta pela “ditadura” do relativismo ético-axiológico e permitida pela amnésia, pela indiferença e pelo desprezo (hoje, apreensivamente dominantes...) a que vêm sendo votados os Grandes Valores Espirituais, Civilizacionais e Culturais... Na verdade, como lucidamente no-lo adverte Bento XVI (Encíclica Spe Salvi, 23), «O HOMEM TEM NECESSIDADE DE DEUS, PORQUE , SE ASSIM NÃO FOR , FICA PRIVADO DE ESPERANÇA »... Ora, A PRIVAÇÃO DA ESPERANÇA não pode deixar de significar O OBNUBILANTE E ABSURDO FECHAMENTO DE SER HUMANO AOS HORIZONTES DO FUTURO, sendo decisivo prevenir, desde já, que este ficará perigosamente comprometido, sem o suporte generoso, universal e samaritanamente sóbrio da SOLIDARIEDADE PARTILHADA E PRATICADA, em primeira instância, NA FAMÍLIA E NO MUNDO DO TRABALHO E DA DIÁSPORA... 515 «Was bleibet aber, stiften die Dichter!...» (cf. Friedrich Hölderlin: Hinos Tardios (trad. de Maria Teresa Dias Furtado), Lisboa, Assírio & Alvim, 2000, pp. 122-123). 516 Cf. Jean-Paul Sartre: O Existencialismo é um Humanismo, Lisboa, Editorial Presença, 1962, tradução de Vergílio Ferreira, pp. 193-194. 315 Fernando Paulo do Carmo Baptista É assim que, como motivação humanizadoramente energizante do coração e da alma, me parece pertinentíssima e oportuna, para coroamento desta reflexão (marcada por uma assumida intencionalidade antropo-agógica e agórico-interventiva...), a leitura meditativa do substancioso e conscientificante “ensaio” do Cardeal Dionigi Tettamanzi: Non c’ è futuro senza solidarietà517. Essa meditação constituirá um tonificante contributo para a superação do sentimento de perplexidade e de angústia, decorrente da sensação de “ausência” de referenciais a todos os níveis, com especial destaque, como já foi sublinhado, para o “Sistema Axiológico”, sobretudo em consequência da “Crise da Metafísica”, indiciada, como já atrás ficou dito, pelo tragicamente famoso grito nietzcheiano anunciador da “tumulação de Deus” — grito que, em seu simbolismo profundo, continua a ecoar pelo nosso tempo adentro como um rebate de orfandade e de luto, como uma deriva sem sentido ou com o sentido do absurdo e da morte518... Em tão lancinante como patético grito, viu Heidegger cifrada uma mensagem de «geral decadência», defluente do despojamento da Divindade e da consequente subalternização de códigos tão importantes como aqueles em que se inscrevem os valores (e projectos) do Belo, do Bem, da Verdade e da Justiça, negado que fora “Aquele e Aquilo” que era o seu fundamento: “o Divino” 519... 517 Dionigi Tettamanzi: Non c’ è futuro senza solidarietà, Milano, Edizioni San Paolo, 2009 (ensaio de que também há versão portuguesa, pelas prestimosas Edições Paulinas). 518 Parafraseando J. J. Ferreira de Farias (in «A Teologia como Memória Crítico- Profética na Era da Globalização», “oração de sapiência” proferida na sessão solene académica comemorativa do 30.° Aniversário da Faculdade de Teologia, Lisboa, 5 de Novembro de 1998 (cf. revista “Didaskalia”, xxix (1999), pp. 129-162: Como fim da metafísica, a Morte de Deus é sinónimo de niilismo, isto é, da impossibilidade de responder à pergunta “porquê?”, o que implica deixar o humano Dasein ao abandono historial de um destino marcado pela fatalalidade... (Para outros aprofundamentos, considerar a importante dissertação doutoral de Thales Azevedo de Araújo: A Ética sobre a linha — Finitude, técnica e linguagem em Martin Heidegger, Coimbra, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2014. 519 Cf. Martin Heidegger: Chemins qui ne mènent nulle part, Paris, Gallimard, 1968, pp. 182, ss... Considerar, para outros aprofundamentos, a importante dissertação de Thales Azevedo de Araújo: A Ética sobre a linha — Finitude, técnica e linguagem em Martin Heidegger, Coimbra, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2014. 316 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO Esta atmosfera de desiludente negrume, se não mesmo de deceptivo e desolador desconcerto, não deve, todavia, dar lugar ao pessimismo e ao desalento... Tanto a “lição” da História como as potencialidades da Civilização e da Cultura nos motivam para o envolvimento no labor quotidiano que de modo algum pode dispensar a reflexão questionante, indagativa e meditativa, o estudo diligente e rigoroso, o empenhamento sério e solidário e, sobretudo, a reassunção auto-poiésica, com Oliveira Cruz, da dimensão (e missão...) principial e teleonómica daquele que é «Nosso Fim»520: Nosso fim é dar-nos alma desde o ponto de partida dar à alma o seu sentido dar sentido à propria vida! Com a Vida assim “re-almada”, voltará a cintilar no agora tão escuro firmamento sideral do Mundo, uma nova “Estrela d’Alva” que, para além da sua celebração e consagração pela voz inconfundível de Zeca Afonso como a suavíssima e melodiosa «Canção de Embalar»521 da tradição trovadoresca da Academia de Coimbra, passará a ser também, e acima de tudo, A CELESTE MENSAGEIRA DA EPIFANIA, NA TERRA, DE UMA NOVA ESPERANÇA DE PAZ E FRATERNIDADE PARA TODA A HUMANIDADE!... 520 Cf. A. Oliveira Cruz: Antologia Poética, Lisboa, Instituto Piaget, 2010, p. 305. 521 https://www.youtube.com/watch?v=h8TpRnMU09M&spfreload=10 317 Fernando Paulo do Carmo Baptista REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS E INTERNÉTICAS • ALEGRE, Manuel: Obra Poética, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1999. • ARAÚJO, Thales Azevedo de: A Ética sobre a linha — Finitude, técnica e linguagem em Martin Heidegger, Coimbra, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2014. • BAPTISTA, Fernando Paulo (org.): Vítor Aguiar e Silva: a poética cintilação da palavra, da sabedoria e do exemplo, Viseu, edição do Governo Civil do Distrito de Viseu, 2007. • BAPTISTA, Fernando Paulo: Nesta nossa doce língua de Camões e de Aquilino, Sernancelhe, edição da C. 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Gregório de Nissa) «Il futuro del mondo è intimamente connesso al futuro della libertà nel mondo.» (Amartya Sen) 522 O presente ensaio é o desenvolvimento aprofundado da comunicação que apresentei às «5.as Conferências Internacionais de Filosofia e Epistemologia» que tiveram lugar no Campus Universitário de Viseu do Instituto Piaget, nos dias 23, 24 e 25 de Novembro de 2009, sob o seguinte lema programático: «Da “condição humana”, a partir de Espinosa, António Damásio, George Steiner e Miguel Torga». 321 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO Na reflexão que, sobre o tema enunciado no título, me propus levar a cabo, parto do entendimento da díade «A Liberdade e o Sentido» (enquanto decisiva polaridade histórico-cultural de referência...) para a perspectivação do processo interpretativo-compreensivo (hermenêutico) e poiésico-transformacional da “condição humana”, neste tempo de profunda deriva e perplexidade em que nos é dado viver... O alinhamento sintáctico configurador dessa reflexão distribui- se pelos dois seguintes “andamentos” discursivos: 1.º Da crise do nosso tempo ou do iminente risco de derrocada («débâcle») simbólico-civilizacional que impende sobre a nossa “condição humana”; 2.º A Liberdade e o Sentido — Sentidos da Liberdade. 1.º ANDAMENTO: — DA CRISE DO NOSSO TEMPO OU DO IMINENTE RISCO DE DERROCADA («DÉBÂCLE») SIMBÓLICO-CIVILIZACIONAL QUE IMPENDE SOBRE A NOSSA “CONDIÇÃO HUMANA” Sempre que me ponho a pensar sobre o estado geral em que se encontra o nosso mundo contemporâneo, este «necessário» mundo onde se deu a epifania ôntico-antrópica da nossa existência e onde nos é dado viver, um álgido calafrio me percorre ondulatoriamente o corpo e a alma e um angustiante desassossego se apodera de mim, ao ponderar (num registo meditativo que, por força das circunstâncias, não pode deixar de ser sintético e condensado...) os tão preocupantes fenómenos que marcam a patotologia da profunda crise do nosso tempo523... 523 Retomo, aqui, em versão mais expandida, o núcleo essencial de um «diagnóstico» feito no estudo intitulado «A “lição” do Professor», incluído na obra por mim concebida e organizada aquando da homenagem pública prestada ao Prof. Doutor Vítor Manuel de Aguiar e Silva, em Penalva do Castelo e em Viseu, no dia 11 de Novembro de 2007: Vítor Aguiar e Silva: a poética cintilância da palavra, da sabedoria e do exemplo, Viseu, edição do Governo Civil de Viseu, 2007, pp. 79 ss. 323 Fernando Paulo do Carmo Baptista Assim e pelo menos, da rede de análises como as que vêm sendo levadas a cabo, entre outros, por Gilles Lipovetsky sobre «a era do vazio», «o império do efémero» e «o crepúsculo do dever», por George Steiner sobre «a pós-cultura» e a «barbárie da ignorância», por Ulrich Beck sobre «a sociedade do risco» e «o risco invisível», por Anthony Giddens sobre as descontroladas dinâmicas deste globalizado Runway World, marcado pela vertigem das mutações e pela angústia das incertezas, sob o comando do poderoso «quadrimotor louco» de que fala Edgar Morin524 e que co-envolve, em devastadora sinergia, a ciência, a técnica e a tecnologia, a indústria e o capitalismo selvagem, ressalta a insofismável conclusão de que se torna urgente e inevitável uma mais lúcida, mais aguda e mais inquieta tomada de consciência acerca do preocupante “estado-de-coisas” a que o mundo chegou e que caracteriza este nosso tempo histórico525... E esse desiludente e inquietante “estado-se-coisas” não se me afigura dissociável das nefastas consequências potenciadas por certos “movimentos pós-modernistas”526 na abertura de “rumos sem rumo”, 524 Cf. Edgar Morin: O Método V. — A Humanidade da Humanidade, Lisboa, Publicações Europa-América, 2003, p. 236. 525 Cf. José María García Gómez-Hera: Teorías de la Moralidad — Introducción a la Ética Comparada, Madrid, Editorial Síntesis, 2003, pp. 292 ss; Bruno Forte: A la Escucha del Otro, Salamanca, Ediciones Sígueme, 2005, pp. 155-173; Martin Buber: Eclipse de Dios – Estudios sobre las relaciones entre religión y filosofía, Salamanca, Ediciones Sígueme, 2003, sobretudo o denso ensaio «Religión y pensamiento moderno», em que se estabelece um fecundo «diálogo» entre as posições de Nietzshe, Heidegger, Jung, Kant e Sartre em torno do problema de Deus, pp. 91-120; cf. também o meu Tributo à Madre Língua, Coimbra, Pé de Página Editores, 2003, pp. 169-174, 545 ss e a bibliografia aí indicada, especificamente a que se reporta aos autores acabados de referir. 526 Para a indispensável dilucidação conceptual implicada na problemática da «modernidade» e da «pós-modernidade», considerar, entre outros: Nicola Abbagnano e Giovanni Fornero: Dizionario di Filosofia, Torino, UTET, 1998: entradas «Moderno» (pp. 723-724), «Modernismo» (pp. 722-723), «Postmoderno» (pp. 841- 842); Mariano Moreno Villa (dir.): Diccionario de Pensamiento Contemporáneo, Madrid, San Pablo, 1997: entradas «Modernidad» (pp. 796-802) e «Posmodernidad» (pp. 967-973); Michela Nacci: artigo «Postmoderno», apud: Paolo Rossi (dir.): La Filosofia — IV Stili e modelli teorici del Novecento, Torino, UTET, 1995, pp. 361- 397; Victor E. Taylor – Charles E. Winquist (eds.): Enciclopedia del Posmodernismo, Madrid, Editorial Síntesis, 2002; Thomas Docherty (ed.): Postmodernism. A Reader, New York, Columbia University Press, 1993; Paula E. Geyh: artigo «Postmodernism» apud Maryanne Cline Horowitz (ed.): New Dictionary of the History of Ideas, Thomson Gale, New York – London, 2005, vol. 5, pp. 1867-1870; José Antonio Pérez 324 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO suscitada pela reflexão anarquizante e iconoclasta e pelas an- axiológicas, a-télicas e, assim, desreguladas e descontroladas energéticas e dinâmicas sociais daí decorrentes... Caracterizam-se, na verdade, tais movimentos pelo exacerbamento que deflui dos vectores semiogénicos mais «radicais» que atravessam as análises e as posições, entre outras, de Lyotard, Baudrillard, Foucault, Roland Barthes, Derrida, Deleuze, Guattari, Venturi, Vattimo, Rovatti, Harvey, Fredric Jameson, Paul Feyerabend, Rorty, Terry Eagleton... Esses vectores consubstanciam o fulcro genético-propulsor, se não mesmo fomentador, dos fenómenos de contestação, laceração e Tapias: Filosofía y Crítica de la Cultura, Madrid, Editorial Trotta, 22000, pp. 260 ss; Luis Sáez Rubra: Movimientos filosóficos actuales, Madrid, Editorial Trotta, 2001: «Crisis de la Modernidad y Pensamiento de la Diferencia», pp. 411-490; Mariano Fazio e Francisco Fernández Labastida: Historia de la Filosofía — IV. Filosofía Contemporánea, Madrid, Ediciones Palabra, 2004, pp. 383 ss; Jürgen Habermas: O Discurso Filosófico da Modernidade, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1990; Anthony Giddens: Le Conseguenze della Modernità, Bologna, Il Mulino, 1994; Anthony Giddens: Modernidad e identidad del yo — el yo y la sociedad en la época contemporánea, Barcelona, Ediciones Península, 1995; Miguel Baptista Pereira: Modernidade e Tempo, Coimbra, Livraria Minerva, 1990; Miguel Baptista Pereira: Modernidade e Secularização, Coimbra, Almedina, 1990; Alain Touraine: Crítica da Modernidade, Lisboa, Edições Piaget, 1994; Fernando Cabral Pinto: A Formação Humana no Projecto da Modernidade, Lisboa, Edições Piaget, 1996; Philippe Engelhard: O Homem Mundial – Poderão as Sociedades Humanas Sobreviver?, Lisboa, Edições Piaget, 1998; Remo Ceserani: Raccontare il postmoderno, Torino, Bollati Boringhieri, 1997; Michele Pellerey: L’agire educativo. La pratica pedagogica tra modernità e postmodernità, Roma, LAS, 1998; Fredric Jameson: Teoría de la postmodernidad, Madrid, Editorial Trotta, 21998; Fredric Jameson: Las semillas del tiempo, Madrid, Editorial Trotta, 2000; Hans-Georg Gadamer: Hermenéutica de la Modernidad – Conversaciones con Silvio Vietta, Madrid, Editorial Trotta, 2004; Rosa María Rodríguez Magda: Transmodernidad, Barcelona, Anthropos Editorial, 2004; Diego Bermejo: Postmodernidad: pluralidad y transversalidad, Barcelona, Anthropos Editorial, 2005 (importante e clarificador ensaio, muito centrado sobre o pensamento e a obra de Wolfgang Welsch em torno desta problemática). Para um mais aprofundado entendimento dos referidos «modos» da razão (instrumental, funcional) e suas «perversões», considerar, entre outras, as esclarecedoras e bem elaboradas «introduções» de Juan José Sánchez a Max Horkheimer: Crítica de la Razón Instrumental, Madrid, Editorial Trotta, 2002, pp. 9- 38 e a Max Horkheimer e Theodor Adorno: Dialéctica de la Ilustración — Fragmentos Filosóficos, Madrid, Editorial Trotta, 42001, pp. 9-46. 325 Fernando Paulo do Carmo Baptista dissolução, não raramente decisivos (importa sublinhá-lo!) sob o ponto de vista das acelerações e reacções enzimático-catalíticas desencadeadas nos processos e na dialéctica da Cultura... Trata-se, em todo o caso, de movimentos significativamente «distantes» e distintos (embora sempre nela implicados...) daquela «pós-modernidade» de intencionalidade crítico-construtiva ou crítico- poiésica (também dita «segunda modernidade», «modernidade reflexiva», «modernidade líquida», «alta modernidade», «modernidade pós-moderna»..., configurável nas inelidíveis e substantes marcas de complexidade, multiplicidade, pluralidade, polilogia, poliglotia, intertextualidade, intercomplementaridade e transversalidade) que é conformada pelas linhas de força do pensamento iluminante e morfogénico da sustentabilidade radicada, multipolar, reticular, evolutora e transformadora («aprofunde-se crítico-perfectivamente, mas não se “proscreva”, o legado fundamental da grande modernidade»!...) e que decorre de contributos tão diferenciados como, por exemplo, os de Karl Popper, Thomas Kuhn, Zigmund Bauman, Jürgen Habermas, Karl Otto-Apel, Hans-Georg Gadamer, Anthony Giddens, Ulrich Beck, Wolfgang Welsch... Esta «pós-modernidade» (crítica, poiésica e polifónica e lúcida e motivadamente metamorfósica, comunicante, imbricante, includente, transitiva e superadora) que, por um lado, reconhece, na “modernidade”, «o ensaio do plural» e que, pelo outro, conquista definitivamente «o transversal» (Welsch), não é, em sentido estrito, nem pós-moderna nem anti-moderna nem trans-moderna, não está fora da modernidade, nem a rejeita in toto: ela é modernidade auto- reflexiva, transformada e transformante; ela é, na paradoxal expressão de Wolfgang Welsch, «modernidade pós-moderna», ou seja, o modo criativo, inovador e actual de realizar os conteúdos mais nobres do «projecto da modernidade»527, denunciando assim, e bem, as anormalidades do totalitarismo unidimensional e monofónico da «Razão», entendida como a mathesis universalis ou como a instância suprema e última da orientação do ser humano em seu conhecer e em 527 Cf. Diego Bermejo: Posmodernidad: pluralidad y transversalidad, Madrid, Anthropos Editorial, 2005, pp. 143 ss. 326 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO seu agir existenciais528, pelo que constitui um inderrogável libelo acusatório das manipulações e desvios operados, sobretudo, pela «razão instrumental» e pela «razão funcional», calculatória, tecnoburocratizante e administrativístico-gestionária... Pela «razão instrumental», na medida em que ela, no pressuposto de que conhecer é dominar, controlar e explorar a natureza e o homem, desemboca avassaladoramente numa «lógica de domínio» («ídolo a que tudo se sacrifica»...); pela «razão funcional», porquanto esta tem as suas raízes no pensamento «técnico-pragmático», «estruturalístico», «parametrizante», «orçamentante», heteronómico e unidireccionante (gerador de relações de implicação e de subordinação lógico-necessitária, orgânico-institucional, actancial e «mecânica») e a sua finalidade, na acção operativo-produtiva, eficaz e lucrativa... Mas, tanto de um lado como do outro, ao operar-se a «perversa» metamorfose hegemónica e manipuladora do poder-capacidade em poder-dominação, tudo acaba por convergir no «esquecimento» ou obliteração do que há de mais essencial e profundo quer no homem quer na natureza, chegando-se mesmo ao ponto de «a máquina prescindir do piloto» (ou de «o violino dispensar o violinista») — teses da «morte do homem», da «morte do sujeito», da «morte do autor»... —, com a consequente promoção daquela «ignorância programada» (atrofiadora da faculdade de auto-reflexão crítica, do desenvolvimento da fundura paidêutico-cultural, da imaginação criadora e do sentido da autonomia, da liberdade e da responsabilidade...) que vem atravessando, burocrática e economicisticamente, os sistemas educativos, com a crescente desqualificação humanística, filosófica, literária e artística e a homóloga, acrítica e instrumentificante tecnologização desumanizadora do processo de ensino e aprendizagem e da acção educativa e formativa, a todos os níveis do desenvolvimento e da organização curricular. É assim que, no certeiro diagnóstico de Vítor Aguiar e Silva529, «os tempos da pós-modernidade são tempos inóspitos para as 528 Cf. Antonio Staglianò: artigo «Ragione», apud Giuseppe Tanzella-Nitti e Alberto Strumia (cur.): Dizionario Interdisciplinare di Scienza e Fede, Roma, Urbaniana University Press, Città Nuova Editrice, 2002, vol. 2, pp. 1167-1181. 529 Cf. Vítor Aguiar e Silva no seu estelar e acutilante ensaio: «As Humanidades e a Cultura Pós-Moderna», separata do livro de ACTAS do Colóquio de Estudos Clássicos A Antiguidade Clássica e nós: Herança e identidade cultural, Braga, Centro de 327 Fernando Paulo do Carmo Baptista humanidades, saberes enraizados em seculares tradições linguísticas, culturais, literárias, filosóficas e historiográficas — enraizados em primeiro lugar na matriz primordial da Antiguidade Clássica — e fundados na escrita e na leitura de textos (...), ou seja, fundados na preeminência da palavra, do discurso verbal».530 Numa linha de implicação etio-axiológica, portanto, com a acção potenciada por aqueles movimentos marcados, em suma e como ficou dito, pela iconoclastia desenfreada, vertiginosa e dissolvente, monádica, nomádica, fracturante, descentrante e caotizante e pelo egocentrismo narcisista531, dogmático, intolerante e exclusor, tem lugar a desqualificação indiscriminada das «grandes narrativas» (filosófico- doutrinais, ideológico-políticas, teórico-científicas, histórico-culturais, artístico-literárias...) e o ataque aos princípios, fundamentos, finalidades e valores, entre eles, «os valores supremos» (Jérôme Bindé532) que as conformavam e legitimavam. Daí, o questionante sinal de alarme dado, no dealbar deste novo século e milénio, pela UNESCO, no contexto dos seus já famosos «Debates do Século XXI»: Para onde vão os valores?533... Estudos Humanísticos da Universidade do Minho, 2006, p. 622; Idem: As Humanidades, Os Estudos Culturais, O Ensino da Literatura e a Política da Língua Portuguesa, Coimbra, Almedina, 2010, pp. 75-92. No mesmo e fundamental sentido, ver também: Martha C. Nussbaum: Cultivating Humanity — A Classical Defense of Reform in Liberal Education, Cambridge, Massachusetts / London, England, 72003; Idem: Not for Profit — Why Democracy Needs the Humanities, Princeton, Princeton University Press, 2010. 530 Bem consciente das «insuficiências» e das «limitações» deste meu abreviado “apontamento” suscitado pelas posturas «pós-modernistas» mais radicais e tendo em vista um mais aprofundado entendimento dos já referidos «modos» da razão (os modos instrumental e funcional) e suas «perversões», bem como a indispensável dilucidação conceptual implicada na problemática da «modernidade» e da «pós- modernidade, convoco, no fim deste meu ensaio, as referências bibliográficas específicas. 531 Cf. Gilles Lipovetsky: A era do vazio [trad. de Miguel Serras Pereira e Ana Luísa Faria], Lisboa, Relógio d’Água, 1989, pp. 11 ss e Fernando Paulo Baptista: Tributo à Madre Língua..., op. cit., pp. 550-551. 532 Jérôme Bindé (dir.): Para onde vão os valores?, Lisboa, Edições Piaget, 2006, p. 21. 533 Este importante volume, coordenado por Jérôme Bindé, inclui intervenções de um vasto e diversificado elenco de cinquenta intelectuais de reconhecida craveira a nível mundial, entre os quais, figuras tão conhecidas como: Edgar Morin, Nadine Gordimer (Nobel da Literatura em 1991), Julia Kristeva, Jacques Derrida, Jean Baudrillard, 328 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO Ao mesmo tempo e por outro lado, em sinérgica interacção com a apologia acrítica e desbragada do consumismo hedonista e em consonância com a industrialização da cultura e da arte e a objectificação, mercatorização e idolização das suas ficções, criações e contrafacções, verdadeiros “simulacros” (na famosa e insubstancial metáfora de Baudrillard534), amnesicamente desvinculados das placentas genealógicas e genológicas respectivas e dos processos histórico-diacrónicos desenvolvidos a partir das matrizes da tradição e dos paradigmas e modelos clássicos...), o marketing mitificador e hiperbolizador dos poderes e da eficácia da revolução científico- tecnológica, electrónica e cibernáutica opera, massivamente, o quase silenciamento, anestesia ou cancelamento do “sistema de valores”: «o dia da técnica é a noite do mundo», no crepuscular agoiro de Martin Heidegger535... Tal situação não deixa de estar, assim, em simbólica sintonia com a mensagem de fundo de «o homem sem conteúdo» das análises estético-semióticas de Giorgio Agamben536 em torno da problemática do «fim da arte», ou com nucleares aspectos de um mundo envelhecido Jacques Delors, Xuan Thuan Trinh, Claude Hagège, Michel Maffesoli, Paul Ricœur, Michel Serres, Gianni Vattimo, Wolfgang Welsch, Edward Wilson... 534 Cf. Jean Baudrillard: Simulacre et simulation, Paris, Galilée, 1981. Já no seu L’Échange symbolique et la mort (Paris, Gallimard, 1976), Jean Baudrillard sustenta a tese de que as sociedades ocidentais sofreram uma «precessão», de tal modo que «o simulacro» (termo afim do ídolo bíblico) passou a ser «a verdade ocultadora da facticidade». O conceito físico (cinético-óptico) de «precessão» traduz o efeito observado num corpo que executa um movimento de rotação em torno de um eixo, quando se lhe aplica um binário, de tal modo que tende a modificar a direcção do eixo de rotação. Segundo Baudrillard, a precessão toma a forma de «arranjo de simulacros», sendo que, vivemos numa época em que «a cópia passou a substituir o original». Ver, com a devida reserva crítica: http://fr.wikipedia.org/wiki/Jean_Baudrillard#Simulacres_et_simulation. 535 Cf. Martin Heidegger: Holzwege, aqui citado na versão francesa de Wolfgang Brokmeier: Chemins qui mènent nulle part, Paris, Gallimard, 1968 (ensaio «Pourquoi des poètes?»), p. 241: «L’essence de la tecnique ne vient que lentement au jour. Et ce jour est la nuit du monde, revue et corrigée en jour technique». 536 Cf. Giorgio Agamben: El hombre sin contenido, Barcelona, Ediciones Altera, 1998: «Según el principio que afirma que tan solo en la casa en llamas es posible ver por primera vez el problema arquitectónico fundamental, así el arte, una vez que ha llegado al punto extremo de su destino, permite que pueda verse su proyecto original». 329 Fernando Paulo do Carmo Baptista nas suas formas de organização e profundamente marcado pelo declínio dos “cânones axiológicos” e por um sentido de irreversível e generalizada decadência, tal como se revela no romance «O homem sem qualidades», de Robert Musil537, a partir, desde logo, das sugestões que irrompem da própria literalidade do título: Der Mann ohne Eigenschaften538... Dentro dos parâmetros que configuram aquele desqualificante “padrão de conduta” têm vindo a ocupar, em ritmo crescente, um lugar de preeminência, ao nível do Sistema Educativo e Formativo e ao nível 537 Cf. Robert Musil: O homem sem qualidades, I e II (trad. de João Barrento), Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2008. Sobre o significado deste famoso romance, e no que mais directamente diz respeito à problemática da crise de que nos estamos ocupando, considerar o seguinte apontamento: O romance O homem sem qualidades remete-nos, logo a partir do título, para a situação homóloga (mas fragmentária) de, no plano abstracto, haver qualidades sem homem, corroborando, assim, o pressuposto de que a falta de qualidades significa uma irrecuperável perda de substância na forma da perda do Eu. Por outro lado, para além de outras vastíssimas e complexas implicações, esta longa narrativa configura também, a nível ficcional e na perspectiva de Michael Hanke (aqui seguido de perto), uma tentativa de resolver o problema da realidade a partir do ponto de vista da consciência moderna. Na verdade, no quadro dos seus desígnios narrativos, inscreve-se como um dos objectivos nucleares a crítica a importantes aspectos da sociedade em geral, razão pela qual a «Kakânia» e a sua população funcionam como paradigmas do mundo moderno e como símbolos de uma problemática universal de que Viena é apenas uma sinédoque simbólica do que é a vida numa cidade grande e O homem sem qualidades não deixa de ser, em grande medida, uma narrativa educativo-formativa — um BildungsRoman — em que se focaliza o modo de constituição urbana da personalidade individual. É assim que Thomas Rentsch estabelece uma relação directa entre a categoria central da falta de qualidades e a temática principal da vida intelectual da modernidade vienense na viragem do século, ou seja, a temática da dissolução, da erosão e do colapso de um mundo envelhecido com suas formas de organização. Essa dissolução da ordem antiga, circunscrita com os termos «decadência dos valores», «vazio de valores» e «perda do sistema de valores centrais» cria uma consciência própria mediada pela «problemática do indivíduo» numa sociedade em decadência. Essa crise (e mudança) da consciência europeia influencia os fenómenos da experiência do tempo e do espaço, da constituição da realidade e da auto-imagem. Trata-se de uma mudança que, desde a Idade Média, não tinha alcançado dimensões tão grandes e que se apoderou tanto da linguagem, quanto dos conteúdos e das formas da literatura. (cf. Michael Hanke: «A qualidade de O homem sem qualidades», in revista ALCEU, Jan./Jun. 2004, vol. 4, nº. 8, pp. 128-140). 538 Der Mann ohne Eigenschaften: O homem sem qualidades (eigenschaft = qualidade, propriedade, característica). 330 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO da chamada “escola paralela” (com destaque para o papel da TV e da Internet), a depreciação do sagrado e do divino, a espectaculização e banalização mediática da guerra e da morte, a devassa pública das dimensões da intimidade e da privacidade, a “pornográfica” depravação do erotismo e da sexualidade, a despudorada promoção da palavra rasca, rasteira e obscena que degrada e envilece, com o simétrico e depreciador rebaixamento da palavra elaborada, cuidada e culta que eleva e nobilita. Assim, ao nível da influentíssima “comunicação televisiva”, em vez da linguagem de qualidade que se aprende nos textos intemporais dos Grandes Clássicos, dos Grandes Poetas, dos Grandes Filósofos e dos Grandes Sábios e Humanistas, faz-se gala da linguagem descuidada e despadronizada de certos programas televisivos, onde pontifica o recurso aos estereótipos e aos chavões, de braço dado com a trivialidade, a futilidade, a bisbilhotice, coscuvilhice ou fofoquice: «Vivimos en una cultura (diz, com sombrio desencanto, George Steiner539, lúcido protagonista da palavra sábia, da Filologia e da Hermêutica da Cultura e da Arte...) que es, de manera cresciente, una gruta eólica del chismorreo»540... Mas como se isso não bastasse, usa-se e abusa-se, sem qualquer sentimento de vergonha ou de decoro, dos registos expressionais da linguagem de caserna ou de sarjeta, com o recurso ao insulto, ao impropério e à asneira, a configurar um autêntico e cavernoso “antro da prostituição linguística”... Ressalta, na verdade, da patologia de tais práticas (como ainda bem recentemente o denunciei em público) que a nossa língua (à semelhança aliás do que, a outro nível, se passa com as mulheres, as crianças e os velhinhos...) vem sendo vítima das mais violentas agressões semântico-lexicais (vocabulário paupérrimo, inadequado, impróprio, descaracterizador e inexpressivo, ou utilizado sem critério, sem bases cognitivas ou culturais e sem consciência lexicológica e pragmática...), de comatosos traumatismos ou oncológicas dismorfoses ao nível da construção sintáctica (tão desalicerçada, tão distorcida, tão desarticulada, tão desconexa e tão desfigurada que nem mesmo certas 539 George Steiner: Lenguaje y silencio, Barcelona, Editorial Gedisa, 2003, p. 72. 540 Expressiva metáfora esta, a de George Steiner: «gruta eólica da bisbilhotice [coscuvilhice ou fofoquice]»!... 331 Fernando Paulo do Carmo Baptista edificações da construção civil clandestinas (e, portanto, à margem de qualquer controlo regulador...), de delirante anarquia ortográfica541 e, não menos, de um despudor estilístico-retórico e expressional, a raiar o grotesco se não mesmo o patético e o macabro (de tão grosseiro e tão falho de higiene mental e atitudinal, desprezadas que são regras tão basilares da “sanidade” textual como as clássicas bienséances, segundo as quais, «liberdade de expressão» jamais se pode confundir com libertinagem, deselegância e falta de asseio, de respeito e de decoro!... É assim que, atingida a memória cultural e ferida, com ela, a alma profunda da Cidade (se é que ela ainda tem alma...), tem vindo a ter lugar (sob o influxo de uma espécie de “utopia negra”542 e no contexto de uma práxis em que o niilismo se configura e afirma cada vez mais como «horizonte e processo histórico»...) uma exponencial e generalizada degradação, patologicamente complexa, que afecta transversalmente as comunidades humanas, com fenómenos como os do analfabetismo e da iliteracia, da fome e da exclusão social, das pandemias incontroladas, de par com os fundamentalismos, o ódio e a violência cega (na forma de guerras locais e regionais, de misopedia, pedofilia, plexiginia543, terrorismo, genocídio, homicídio [que chega, 541 Potenciada pelas desregulações, dissonâncias e controvérsias que vêm marcando o processo de lançamento e ratificação do polémico (porque incoerente e mal fundamentado do ponto de vista filológico-genealógico, científico-linguístico e pedagógico-didáctico...) e paradoxalmente fonocêntrico acordo «ortográfico»... 542 Sobre os conceitos de «utopia», «distopia» («utopia branca», «utopia negra»)..., cf. o importante estudo de María Nieves Alonso (coord.) et alii: «“Donde nadie ha estado todavia”: Utopía, Retórica, Esperanza», in revista Atenea, n.º 491, I Sem. de 2005, pp. 29-56; cf. também: Christian Retamal: «La utopia después del nihilismo», in revista Estudios Públicos, Universidade de Santiago de Chile, n.º 71/1998. 543 Neologismo por mim criado, com que pretendo significar «a agressão, o espancamento causador de ferimentos à mulher»: do grego pl jiw, evw [pleksis, -eos = pancada, golpe, ferimento, espancamento] + gunÆ, -aikÒw [gyne, -aikos = mulher]; de notar que o nome pl jiw [pleksis] é da mesma família do verbo plÆssv [plesso], morfo-semanticamente próximo do francês blesser (pless > bless = ferir), e apresenta a mesma raiz pleg- / plag- do verbo latino plango (presente formado com infixação nasal: pla(n)g-o = ferir, golpear) e do nome plaga, de onde provêm os lexemas portugueses chaga e praga [= maldição, imprecação, palavrão que fere] bem como os espanhóis llaga e plaga, o italiano piaga, o inglês plague, o alemão plage... O bater golpeante, o espancar causador de ferimento (em francês: blessure) produz chagas físicas e/ou morais ou psicológicas... Homologamente, a recorrência de casos de «agressão ou espancamento violento» ao homem «ândrico», não deixa de justificar 332 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO como acabámos de saber, ao cúmulo da barbárie sanguinária de se matar com o exclusivo intuito de extrair gordura destinada à indústria de cosméticos!...), a corrupção, o narcotráfego, o comércio de armas, a redução drástica do mercado de trabalho, a deslocalização arbitrária das empresas, a poluição, os incêndios criminosos e a desflorestação indiscriminada, arrastando a nossa Terra-Mãe — Deméter — para os abismos do não retorno, com a sua “alma biosférica” exposta aos mais altos riscos544... Num tal contexto, a sociedade globalmente considerada e, em seu cerne vital, a cidade educativa (co-envolvendo a família e a escola — a institucional e a paralela —, com os respectivos entornos sociais...), a cidade jurídica, a cidade política e a cidade mediática, com a perda dos sentidos angulares, axiais ou cardeais da vida e na ausência de uma busca forte de um fundamento e de um novo rumo para ela, parecem não se dar conta das graves patologias que as afectam, parecem não querer ou não saber entender e perspectivar que a sua terapia e a sua cura muito dificilmente serão possíveis fora da acção formativa e replasmante da ciência pura, das belas artes, das belas letras e das humanidades545, estas últimas, hoje praticamente silenciadas e marginalizadas, porque quase desterradas dos planos curriculares do também a criação de um neologismo isomórfico — plexiandria — (< igualmente do grego pl jiw, evw [pleksis, -eos = pancada, golpe, ferimento, espancamento] + énÆr, éndrÒw [aner, andros = homem, por oposição a mulher, ou seja, o homem varonil e viril, o homem considerado em sua masculinidade: em latim: vir, viri]). Cabe recordar, neste contexto, que do grego énÆr, éndrÒw provém o nome próprio André, além de um vasto conjunto de outros lexemas de uso mais erudito e/ou mais especializado: androceu, androcéfalo, androfagia, andróforo, androgenia, androgénio, androginia, andrógino, andróide, androlepsia, andrologia, andronímia, andrónimo, androsterona, sinandria... 544 Cf. Fernando Paulo Baptista: Tributo à Madre Língua..., op. cit., p. 548. 545 Sobre o valor do Humanismo e das Humanidades, face ao actual «olvido y descenso del hombre», considerar as pertinentes e oportunas reflexões avançadas em Rafael Alvira e Kurt Sprang (eds.): Humanidades para el siglo XXI, Pamplona, Ediciones Universidad de Navarra, S.A., 2006; considerar, também, o empenhado «combate» de Francisco Rodríguez Adrados: Humanidades y Enseñanza – Una Larga Lucha, Madrid, Santillana (Taurus), 2002 e, ainda, as alumiantes e já citadas obras de Martha C. Nussbaum: Cultivating Humanity — A Classical Defense of Reform in Liberal Education, Cambridge, Massachusetts, London, England, Harvard University Press, 1997 e Not For Profit — Why Democracy Needs the Humanities, Princeton and Oxford, Princeton University Press, 2010. 333 Fernando Paulo do Carmo Baptista Sistema Educativo e Formativo, desde a escola básica e secundária até à universidade, inclusive, validando inteiramente o diagnóstico de George Steiner546, assim lapidarmente expresso: Nuestra escolaridad, hoy, es amnesia planificada... Desse modo, a «geórgica da alma» que (na densa e telúrica metáfora «clássica» de Francis Bacon547...) é a cultura, entendida em sua máxima fundura e amplitude antropológica, corre o risco de ver drasticamente reduzido o seu estratégico campo de acção e de influência e o papel criador e arquitector de seus mais diligentes e qualificados «lavradores» (artistas em geral, escritores — poetas, dramaturgos, ficcionistas... —, pensadores, ensaístas, cientistas, investigadores, professores...), com o consequente e avassalador avanço da incultura e da barbárie548... Isso, a augurar, se não mesmo a 546 Cf. George Steiner / Cécile Ladjali: Elogio de la transmisión. Maestro y alumno, Madrid, Ediciones Siruela, 2005, p. 79. 547 Cf. Francis Bacon: De dignitate et augmentis scientiae, VII, 1; metáfora inspirada em Cícero e em Vergílio e na esteira do próprio Hesíodo: cf. Maria Helena da Rocha Pereira: Estudos de História da Cultura Clássica – II vol. Cultura Romana, Lisboa, Fundação Callouste Gulbenkian, 21990, pp. 417-430; Romana – Antologia da Cultura Latina, Coimbra, Instituto de Estudos Clássicos, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1986, pp. 50-51, 54-55, 59, 66-68 (para Cícero) e 128-130 (para Vergílio); Hélade – Antologia da Cultura Grega, Coimbra, Instituto de Estudos Clássicos, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 71998, pp. 97-98 (para Hesíodo); cf. também (para Hesíodo...) Frederico Lourenço: Grécia Revisitada: Lisboa, Edições Cotovia, 2004, pp. 31-35: ensaio «Hesíodo: A Enxada das Musas». 548 Cf. George Steiner: No Castelo do Barba Azul. Algumas Notas para a Redefinição da Cultura [trad. port. de Miguel Serras Pereira], Lisboa, Relógio d’Água, 1992, pp. 14-17, 112- 130, 128-141, sobretudo quando se refere ao «enfraquecimento de uma efectiva cultura literária», às «transformações de uma cultura triunfante numa pós ou subcultura», no generalizado «recuo da palavra» e homólogo «declínio dos ideais tradicionais da linguagem instruída» de par com o crescente fenómeno, entre os jovens, da “pop-musicalização” da cultura e quando, pelo outro, evoca nostalgicamente «o latim nas salas de aula e a subtileza apostólica dos anfiteatros universitários; as livrarias autênticas e os debates parlamentares inteligíveis», sublinhando que «os homens de cultura ‘sabem’, num sentido peculiar, e simbolicamente definido da palavra, que houve um tempo em que uma produção universitária e literária séria, economicamente acessível, era sinónimo da descoberta de um público extenso e dotado de competência crítica». Cf. também, no mesmo e fundamental sentido, o precioso livrinho de bolso, ainda de George Steiner: La barbarie de la ignorancia, Madrid, Taller de Mario Muchnik, 2000, pp. 65-66, quando, ao «sudor del alma» das aprendizagens estruturantes, se contrapõe a triste verificação de que «en este planeta el noventa y nueve por ciento de los seres humanos prefieren (...) la televisión más idiota, la lotería, el Tour de Francia, el fútbol, el bingo antes que Esquilo o Platón»; sobre a importância da «cultura» no contexto da crise do 334 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO confirmar, o trágico desencanto de George Steiner, quando, desiludido, confessa549: «En toda mi obra, he tratado de poner en evidencia el terrible fracaso de la cultura humanista frente al terror de nuestro siglo, que no sólo no impedió la barbarie, sino que muchas veces acudió en su ayuda». Face, pois, ao sombrio panorama e ao desequilibrado dinamismo gerado pelo fascínio do poder e da mítica eficácia dos usos e aplicações (tantas vezes «selvagens»...) da Ciência, da Técnica e da Tecnologia, sob o comando parasitário dos altos interesses de natureza meramente economicista e financista, mas com directa repercussão destrutiva e desorganizadora nos ecossistemas da natureza e nos sistemas e diassistemas sociais e culturais, a pilotagem estratégica da vida em geral e da vida em sociedade em particular tem de voltar a fazer-se, a meu ver, sob o signo de Homero, Educador da Grécia e Educador do Mundo, e ao som da lira dos Poetas, o mesmo é dizer, sob o energizante influxo da Poesia, essa fabulosa «música do pensamento», na expressão densamente sugestiva de George Steiner550... Na verdade — e tal como já nas «IV.as Conferências Internacionais de Epistemologia e Filosofia551 tive a oportunidade de poder afirmar... —, «sempre que a cultura, a sensibilidade, a imaginação e a criação poéticas (l.s.) estiveram adormecidas ou anestesiadas, andaram arredias ou foram escorraçadas da Cidade, as superadoras saídas para os fundamentais problemas do homem e da humanidade (numa palavra, para a nossa condição humana...) ficaram irremediavelmente comprometidas»... nosso tempo, ver Thomas De Koninck: A Nova Ignorância e o Problema da Cultura, Lisboa, Edições 70, 2003, cap. III («A cultura do espírito»), pp. 69-96. 549 Cf. George Steiner / Cécile Ladjali: Elogio de la transmisión. Maestro y alumno, op. cit., p. 111. 550 Cf. George Steiner: La idea de Europa, Madrid, Ediciones Siruela, 2005, p. 53. 551 Conferências subordinadas ao tema «SÉCULO XXI — O DESAFIO SOCRÁTICO DE COMO DEVIR HUMANO, UNO E MÚLTIPLOS...» (em referência ao legado antropológico, cultural, poético-literário e filosófico de Sócrates, Octavio Paz, Michel Serres e José Saramago), conferências de cuja concepção e organização fui incumbido pelo Presidente do Instituto Piaget, Prof. António Oliveira Cruz, e que tiveram lugar no Campus Universitário do Instituto Piaget, em Viseu, nos dias 9, 10, 11 e 12 de Dezembro de 2005. Cf. Fernando Paulo Baptista: Polifonia, Poiese & Antropoiese, Lisboa, Edições Piaget, 2006, p. 32. 335 Fernando Paulo do Carmo Baptista Por isso é que, tal como nas problemáticas da superação dos saberes instituídos já obsoletos e caducos (ou mesmo daqueles saberes que, tantas vezes ilusoriamente, se consideram ainda válidos ou inquestionáveis...) bem como das verdades dogmatizadas e já cristalizadas se não pode dispensar a postura bachelardiana da «filosofia do não»552 no alternativo desencadear das dinâmicas da criação e da inovação científica, conducentes à formulação de novos problemas, de novos «quebra-cabeças»» e de novas conjecturas e à instituição de novos saberes, de novas verdades consistentemente testadas e validadas e de novos paradigmas, assim também, na análise e ponderação das patologias do social, se torna imperioso o assumir, com Adorno553, da atitude dialéctica da negação, seja através da «astúcia»554, da «ironia», da resistência, da recusa e da indignação, seja através da denúncia agórica e frontal, por forma a daí poder decorrer o revitalizador surgimento e desenvolvimento de uma Física Quálica do Humano, de uma Antropo-paideia ou, melhor ainda, de uma Antropo- agógica qualitativa que potencie uma nova Ars Gubernatoria ou Arte da Timonagem (em grego: kubernhtikÆ t°xnh [e kybernetike techne]), ao serviço dessa náutica maior que é a condução ético-política e poiética dos destinos da Terra e das comunidades que a povoam e, assim, de um PROJECTO DE CIDADANIA LOCAL, REGIONAL, NACIONAL, EUROPEIA E PLANETÁRIA, a ser concebido, planeado e realizado orquestralmente por todos, segundo os cânones de uma nova «gramática»555 permanentemente vivificada pela criatividade, pela inventiva, pela inovação e pela articulação pléctica, mestiçada e de sentido holístico dos diferentes saberes, experiências e «visões do mundo». Projecto, em suma, respeitador das singularidades idiossincrásicas («ideolectais») de pessoas e de comunidades e 552 Cf. Gaston Bachelard: La philosophie du non, Paris, PUF, 2002. 553 Cf. Marta Tafalla: Theodor W. Adorno – Una filosofía de la memoria, Barcelona, Herder, 2003, pp. 67 ss; José António Zamora: Theodor W. Adorno – Pensar contra la barbarie, Madrid, Editorial Trotta, 2004, pp. 11-19, 21 ss. 554 Cf. Luis Sáez Rueda: Movimientos filosóficos actuales, Madrid, Editorial Trotta, 2001, p. 361. 555 Cf. George Steiner: Gramáticas da Criação, Lisboa, Relógio d’Água, 2002, p. 16: «Por gramática, entendo aqui a organização articulada da percepção, da reflexão e da experiência, a estrutura nervosa da consciência quando esta comunica consigo própria e com os outros». 336 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO promotor da inclusão da diversidade étnica e da integração intercultural, da prática paritária e polifónica do pluralismo, mas de um pluralismo que seja a garantia de uma afirmação pessoal saudável, criteriosa, compreensiva e tolerante, sempre balizada pelo sagrado reconhecimento de que é «o outro» (e a sua «diferença»...) o intranscendível referencial da dignidade de nós próprios, e não, daquele «pluralismo radical» que constitui o núcleo definidor da pós- modernidade556 e que funciona como arbitrário pretexto para os exacerbamentos e absolutismos subjectivistas, impeditivos ou bloqueadores de qualquer hipótese de diálogo construtivo... Na verdade, os radicalismos subjectivistas, os relativismos e os criticismos sem referências axiológicas ético-estéticas, sem bases filosófico- epistémicas, sem âncoras, sem remos, sem velas, sem bússolas e sem rumo, conjuntamente com o niilismo, conduzem à corrosão não só do sentido genuíno da nossa «condição humana», pessoal e comunitária, mas também do sentido que subjaz e que preside às grandes criações e construções da História e da Cultura (a arte, a poesia [a literatura], a religião, a política, o direito, a filosofia, a ciência, a técnica, a tecnologia...) e dos valores polares que as inspiram, as enformam e as sustentam: o Belo, o Bem, a Verdade, a Justiça, a Virtude, a Sabedoria, o Amor... 2.º ANDAMENTO: — A LIBERDADE E O SENTIDO — SENTIDOS DA LIBERDADE 2.1. O sentido do sentido: as polaridades histórico-culturais e os contextos diacrónico-civilizacionalmente globais A História da Velha Europa (“comunidade cidadã”, hoje tão preocupantemente envelhecida!...), na centralidade, no dinamismo e na diacronia das fundamentais fases epifânicas da sua Cultura polimórfica, apresenta, como referência e lastro constitutivo e identitário e como 556 Cf. Diego Bermejo: Posmodernidad: pluralidad y transversalidad, Barcelona, Anthropos Editorial, 2005, pp. 145-150. 337 Fernando Paulo do Carmo Baptista motor e vector evolucionante, uma forte sequência de tensas polaridades — «agónicas matrizes» lhes chama Castanheira Neves557 — que, num plano antropológico-simbólico mais alargado e mesmo universalizável, marcam, de modo singular e decisivo, a identidade das comunidades e dos povos em sua mais funda expressão e sentido — «o Ser e a tragédia», «Deus e o pecado», «o homem e a ciência», «a liberdade e o sentido» —, conjuntamente, e em estreita interacção dialógica, com outras díades dialécticas de pendor mais especificamente ontológico-existencial e/ou axiológico: «a origem e o destino», «a vida e a morte», «a saúde e a doença», «a abundância e a fome», «o saber e a ignorância», «a virtude e o vício», «o bem e o mal», «o justo e o injusto», «o humano e o desumano/inumano», «a paz e a guerra»... Assim, por exemplo, para o homem da Antiga Grécia, é a polaridade de «o Ser e a tragédia» que marca profundamente o sentido da vida e da existência, sendo que o Ser constituía para ele, homem grego, a última referência ontológica e a “necessária” e metafísica pré- determinação de tudo quanto existe, do mundo enquanto tal e dos homens e da sua acção. E de tal modo que o poder e a força dessa intranscendível “necessidade” excluía qualquer hipótese de irrupção da novidade e da própria história. O contraponto agónico a essa “ordem” definitiva, acabada e perfeita, a essa “arrumação” apolínea e serena da plenitude do Ser — contraponto que, convém sublinhá-lo, era vivido na excepção, na fatalidade sofrida (chame-se mo›ra [moira], chame-se tÊxh [tyche]...), mas também no desafio, na transgressão e na insolência (Ïbriw [hybris]) aos deuses, na ruptura e no apelo que transcende, na espontaneidade transracional e na pulsão ou élan vital, na surpresa do acontecimento ou no acaso em que se revela a nossa fragilidade e vulnerabilidade —, esse contraponto no fio da navalha encontravam-no 557 Considerar o denso, profundo, «obrigante» e iluminante ensaio de António Castanheira Neves: «Pensar o Direito num tempo de perplexidade» (texto policopiado), ensaio aqui seguido de perto, no «andamento» discursivo desta sinóptica paráfrase «translativa», menos «cifrada» que o original, por intencional adaptação (com a devida vénia...) ao tema e suas circunstâncias... Devo desde já sublinhar que, nesta minha «contaminada» translação, apesar da intentada preocupação com o rigoroso respeito pelo sentido da matriz, me ficou a clara consciência de que não fui capaz de evitar aquele tipo de «intrusões» que o tradicional trocadilho do «tradutore / traditore» tão bem exprime... 338 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO os gregos na tragédia... Basta pensar nas grandes cenas agonais e “polemo-máquicas” dos Poemas Homéricos e, mais especificamente, nos textos imorredouros dos maiores trágicos de sempre: Ésquilo, Sófocles e Eurípides... Por sua vez, para o homem da Idade Média, essencialmente plasmado numa cultura de predominância hebraico-cristã e de matriz bíblica, a polaridade de referência é a de «Deus e o pecado». Todavia, nunca no quadro tensivo desta polaridade o homem foi impedido de transgredir os mandamentos divinos, nunca ele viu anulada nem tão- pouco reduzida a possibilidade de protagonizar a sua prometeica rebeldia contra o próprio Deus que, em Sua absoluta omnipotência e infinita sabedoria, o criou inteiramente livre, sem excluir, portanto, do horizonte dessa mesma liberdade, a hipótese de pecar... E se, no paradoxal agonismo desta tão funda contraposição, é verdade, por um lado, que Deus proíbe o homem quando ordena que não se faça, também não é menos verdade, pelo outro, que essa “proibição” de modo algum significa “impedimento”, uma vez que continua a ser senhor da irrevogável e absoluta liberdade de pensar, optar, decidir e agir, mesmo que seja contra a lei divina... Contudo, os abusos da sua liberdade não podem isentá-lo de sofrer as consequências da culpa e do pecado e de, desse modo, assumir a inerente responsabilidade, na confissão do arrependimento e com o perdão da graça... Com o advento da Modernidade558, o primeiro pólo desta agonal “matriz” medieva (constituído, como acabámos de ver, por «Deus», pois que a díade é: «Deus e o pecado»), cede, agora, o seu lugar ao «homem», operando-se, assim, uma radical reviravolta na linha de tensão daquela que vai ser, no plano histórico, cultural e simbólico, a nova configuração agónico-dialéctica, ou seja — «o homem e a ciência». Tão profunda transmutação operada na esfera do ontológico — a instituir uma nova hierarquia, com a desvalorizadora secundarização 558 Com início no séc. XV [invenção da imprensa de caracteres móveis por Gutenberg (1440); tomada de Constantinopla pelos turcos otomanos, em 1453; descoberta da América, por Cristóvão Colombo (1492); descoberta do caminho marítimo para a Índia, por Vasco da Gama (1497); viagem de circum-navegação, iniciada em 1519, por Fernão de Magalhães...] e com o seu prolongado aprofundamento ao longo dos sécs. XVI, XVII e XVIII, até à consumação da Revolução Francesa (5 de Maio de 1789 – 9 de Novembro de 1799)... 339 Fernando Paulo do Carmo Baptista do «teocêntrico» face ao «antropocêntrico»... — significa o reconhecimento de uma antropológica reivindicação e assunção de libertadora autonomia relativamente a toda a transcendência: de Deus, da comunidade e da história... E isso, para que se operasse a desvinculante “des-tutoria” do «cogito» e se afirmasse a ipseidade do «sujeito» em sua resgatada autenticidade, não sem que, no entanto, se lhe continuasse a contrapor o mundo, o mundo-natureza, não já como expressão do Ser, mas, antes, como lugar e condição da realização e manifestação da experiência empírica... Esta contraposição «homem <> mundo» — a evocar a oposição sua simétrica: «res cogitans <> res extensa» — veio a ter a sua determinação na ciência e, num último e culminativo projecto de domínio, veio a envolver com ela, também, a técnica... E de tal maneira que, numa dialéctica de preponderância evolutiva, o homem, na plenitude da sua assumida liberdade e nas práticas que esta potenciou, instituiu e consignou, passou a ser ele próprio, enquanto ser entre os demais seres do mundo e da natureza, «objecto de ciência» e «objecto experimental», ou seja, desdobrou-se bipolarmente em «sujeito» e «objecto», numa irreversível “esquizofrenia” sapiencial, semiótica e curricular, bem patente, hoje, no dissídio ou na conflitualidade (tantas vezes mal disfarçada...) entre «ciências exactas» e «ciências humanas»... A ciência, estribada na sua universal “plenipotenciariedade”, converte-se na instância última de todos os fundamentos, explicações e legitimações... E vai ser contra esse seu avassalador poder que Kant, em sua forte reacção crítico-reflexiva, define os respectivos limites, ao mesmo tempo que proclama não só os direitos mas também a irredutibilidade da «razão prática», com os seus postulados metafísicos... Essa exacerbada hipertrofia do pólo da ciência (e, por sinérgico arrastamento, da técnica e da tecnologia...) veio a traduzir-se paradoxalmente (e por obra dele...) na negação do próprio homem em sua essencialidade polar... Mais ainda, com a fragilização das dimensões da religiosidade e da ética e a consequente eclosão e crescimento do jogo de interesses, à hipertrofia do científico- tecnológico (a suscitar a ideia do estabelecimento de uma espécie de bíblia universal para a «condução científica do mundo mundano» e que 340 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO poderia denominar-se, com Michel Serres, de «epistemodiceia»559, como alternativa à tradicional «teodiceia»...) vem associar-se o económico que, por sua vez, acaba por impor a sua soberania, o seu imperium, sobretudo com a entrada em acção do já referido «quadrimotor louco» de que fala Edgar Morin. Que não haja ilusões: hoje, mais do que nunca, e a nível planetário, estamos sob o jugo imperial do económico, poderio avassalador que nem a ocasional pujança das artes plásticas, da literatura e da música conseguiu contrabalançar ou simplesmente atenuar, tendo, pelo contrário, vindo gradativamente a ter lugar um processionário cortejo de cangalheiros, proclamando em diferentes claves e tons de reflexão uma impressionante série de cruciais finamentos560: a morte de Deus, com a tumulação das referências de fundamentação e de sentido à transcendência...), o fim da história (a significar não só o termo da criação ou da irrupção de novidade mas também o cancelamento da abertura ao futuro e bem ainda da responsabilidade do seu vínculo imanente...), o fim da arte, o fim da palavra, a morte da filosofia, a morte do homem com os ilusórios valores de um «humanismo» imanentista e pretensamente auto-poiético e demiúrgico em que ele se realizaria como homem... Mas, pensando bem, se não tivermos que perspectivar este nosso actual mundo humano como sendo necessariamente «um mundo de morte» que se afunda e se anula no vazio e na poeira do nada e se, pelo contrário, perante tantas mortes e finamentos anunciados, decidirmos assumir frontalmente a liberdade do espanto e da ironia maiêutica para perguntar: mortes todas essas, afinal, para que viva o quê?... A resposta que, de imediato, irrompe não se afigura ser outra senão a de um veemente e frontal grito emancipatório: «a liberdade!... Para que viva a liberdade!...» Rasgam-se, por esta via, os horizontes para a conformação de uma nova polaridade, mas uma polaridade que nos implica a todos, homens e mulheres deste nosso tempo actual... 559 Cf. Michel Serres: O Contrato Natural, Lisboa, Edições Piaget, 1994, p. 44. 560 Desde logo, com Nietzsche à cabeça e, na sua peugada, Francis Fukuyiama, Perry Anderson, Michel Foucault, entre outros, protagonizam, em simbólica sinédoque, esses tumulares pronunciamentos... 341 Fernando Paulo do Carmo Baptista Contudo, essa liberdade pela qual emancipatoriamente gritamos por sobre o lastro “fúnebre” de tantos perecimentos, não pode configurar-se numa abertura vazia — porquanto se trataria do absurdo de uma liberdade que, com ser absurda, a si mesma se negaria... — nem tão-pouco na abertura plena da vontade absoluta duma autonomia incondicional que em si mesma assumisse o infinito, pois que, nem num nem no outro desses dois modos de liberdade, nos reconheceríamos autenticamente como homens, uma vez que o homem só o é na sua existência no ser e na história pelo transcender-se a algo convocante com que dialogue na procura da resposta às fundamentais perguntas sobre as origens, as profundidades, as ultimidades561 (princípios, fundamentos, génese, matrizes instituintes, “arquê”, razão fundadora e constitutiva, fins...); por outras palavras: o de onde, o onde, o quando, o como, o porquê, o para onde, o para quê... Tudo no assumido pressuposto de que existimos sempre numa polaridade de agónica dialéctica. Essa nova «polaridade» que nos envolve constitutivamente a todos e para a qual aponta a profunda e complexa reflexão desenvolvida por Castanheira Neves (reflexão que venho tentando «decifrar» e explicitar, argumento por argumento e taco a taco, em translativa paráfrase de muito apertada «vizinhança» discursiva...), mais do que na dialéctica entre «crise» e «crítica», deve radicar, como ele propõe, na dialéctica entre «o termo civilizacionalmente cultural» e «a superação culturalmente reconstituinte». Ou seja: porque é grave «o termo (ou o desfecho do ég n [«agon»]) civilizacionalmente cultural» que estamos a viver, mais exigente e de irrenunciável responsabilidade será «o reconstituinte superador» (o mesmo é dizer: a «abertura de reconstitutiva superação»). O que nos coloca perante uma «dialéctica negativa» de exigências fundamentais. Essas exigências poderão decerto encontrar-se na polaridade «a liberdade e o sentido», querendo com isso significar que a liberdade não pode ser entendida hoje como mera disponibilidade de um vazio residual e redutor que, como tal, nos anulasse, mas antes, como a abertura convocada e responsabilizada por referências de transcendência que nos realizem em nossa humanidade. Pela proclamação das «mortes» atrás referidas (e seja ou não seja fundada 561 Cf. George Steiner: Gramáticas da Criação, op. cit., pp. 11, 20-23. 342 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO essa proclamação...), não se pretenderá que regressemos radicalmente a nós, à nossa humana condição e «nostridade», para aí ficarmos vazios, e sim, para nos abrirmos sem obstáculos à possibilidade dessa nossa realização... Pelo que a polaridade agora enunciada — a liberdade e o sentido — será hoje a nossa tarefa, e a sua assunção, a nossa responsabilidade. Ora o sentido, como lapidarmente sublinha Castanheira Neves, é isso mesmo: a referência transcendentemente convocante que possibilita a realização da liberdade... «Presença real» (de que afinal Deus não está ausente...), assim disse George Steiner. E se do singular que converge se passar à pluralidade da sua manifestação, poderá dizer- se, num registo explicitador, que «os sentidos são assim as referências espiritualmente culturais que convocam ao transcender da realização humana como fundamentos, orientações e compromissos da liberdade». Assim se compreenderá melhor, penso eu, o porquê da análise do próprio Steiner quando expressamente sustenta que «a aposta no sentido do sentido, o potencial de compreensão e de resposta que existe quando uma voz humana se dirige a outra, quando nos confrontamos com o texto e com a obra de arte ou a forma musical, quer dizer, quando encontramos o outro na sua condição de liberdade, é uma aposta na transcendência. Essa aposta — que é a de Descartes, de Kant e de todos os poetas, artistas ou compositores de que temos explicitamente notícia — afirma a presença de uma realidade, de uma «substanciação» (é óbvio o alcance teológico deste termo) no interior da linguagem e da forma. Supõe uma passagem, para além do fictício ou meramente pragmático, do sentido à plenitude do sentido. A hipótese é aqui, sublinha Steiner, não a de que «Deus» é por a nossa gramática ser inactual, mas a de que a gramática vive e engendra mundos porque aposta no ser de Deus»562. Para, por outro lado e mais adiante563, acentuar e reforçar que «a história, enquanto história humana, é a história do sentido». Mas não sem formular, também, a seguinte condição preliminar que decorre, a meu ver, da assunção confiante e autodeterminada (e por isso mesmo responsável) da liberdade: 562 Cf. George Steiner: Presenças Reais; Lisboa, Editorial Presença, 1993, p. 16. 563 Idem: ibidem, 86. 343 Fernando Paulo do Carmo Baptista «Não haveria história tal como a conhecemos, nem religião, metafísica, política ou estética conforme a nossa experiência as vive, sem um acto inicial de confiança, de convicção, acto mais fundamental, mais axiomático, e de longe, do que qualquer «contrato social», do que qualquer acordo de postulação do divino. Esta instauração da confiança, esta entrada do homem na cidade do homem, é a relação que se trava entre a palavra e o mundo. Só à luz de tal confiança pode existir uma história do sentido que, numa contrapartida exacta, é um sentido da história». Indaguemos então, agora, acerca da nuclear questão dos «sentidos da liberdade»... 2.2. «Sentidos da liberdade»... Se procedermos a uma análise «arqueológica» inter-linguística e inter-lexical adequadamente conduzida e direccionada para as proto- matrizes do léxico (lá onde dormitam, sob a poeira do tempo, as significações primigénias e genuínas das palavras, verificamos que a ideia de “liberdade” aparece verbalmente expressa através de lexemas ou vocábulos que, do ponto de vista sémio-morfológico, assentam em duas importantes raízes indo-europeias: a) – a raiz leudh- / loudh-, com as variantes leuth-/ louth-/ loub-/ l b-; b) – e a raiz *pr i- / pr i- / pr -, com as variantes frei- / free- / fri-. De facto, a raiz leudh- / loudh- (com as suas variantes), além das palavras gregas §leuyer€a [eleutheria] e §leuy°riow [eleutherios] (de onde provém o nome próprio ‘Eleutério” que significa «homem livre, homem generoso») e demais vocábulos da mesma família léxica564, aparece, desde logo, em lexemas cartograficamente pertencentes ao universo da grande família inter-linguística mais directamente ligada à 564 Ver, por exemplo, Pierre Chantraine: Dictionnaire éthymologique de la langue grecque, Paris, Klinchsieck, 1999, entrada «§leÊyerow». 344 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO cultura clássica greco-latina (com especial destaque para as línguas românicas), como se pode comprovar com (entre outras...) a palavra portuguesa liberdade, a espanhola libertad, a francesa liberté, a italiana libertá e a própria liberty do inglês romanizado... Estas palavras, conjuntamente com as respectivas cognatas, são lexemas predominantemente construídos na base da variante l b- da primeira das duas raízes565 acabadas de referir... Mas está igualmente presente em vocábulos pertencentes ao vasto e diversificado território das línguas nórdicas, germano-góticas e anglo- saxónicas, como acontece, entre vários outros exemplos, com o velho alto germânico liut (= gente, pessoa), com o antigo inglês leod (= povo, gente), com o antigo irlandês luid (= subir), com o gótico liudan (= crescer), com o lituano ljaudis (= povo), com o russo ljudi (= povo), com o germânico leute (= povo, gente), etc., etc... Por sua vez, a raiz *pr i- / pr i- / pr - (com as já citadas variantes frei- / free- / fri-566) está presente, entre várias outras línguas, no antigo inglês frien [= esposa, mulher amada], no velho saxão friohan [= cortejar, galantear], no antigo islandês frj [= amar], no antigo eslávico 565 Cf. Robert K. Barnhart (ed.): Chambers Dictionary of Etymology, Edinburgh, Chambers Harrap Publishers, 2001, entradas «liberal», «liberate», «liberty»... Ver, também, nas mesmas entradas: Online Etymology Dictionnary, apud: http://www.etymonline.com/index.php. Para as questões de fonologia histórico-evolutiva (vocalismo e consonantismo) ver: Andrew L. Sihler: New Comparative Grammar of Greek and Latin, Oxford, Oxford University Press, 1995, pp. 36-129, 130-241. 566 Cf. Robert K. Barnhart (ed.): Chambers Dictionary of Etymology, op. cit., entradas «free» e «friend», pp. 407 e 409; cf. igualmente: The American Heritage Dictionary of The English Language, op. cit., Appendix I, entrada «pr -», 2044; cf. ainda Ivonne Bordelois: Etimología de las pasiones, Buenos Aires, Libros del Zorzal, 2006, p. 118: «Es curioso que en las lenguas germánicas aparezca Leute, gente, pueblo, grupo étnico nacido del mismo tronco, que proviene de la raíz * leudh-, subir, crecer. *Leudh dio a su vez liber, eleuteros en griego y libertas en latín. Es decir, encontramos aquí nuevamente una raiz que se asocia a los significados de grupo cohesionado y de libertad, aunque a través de diferentes lenguas esta vez. El sentido de libertad, tanto en las lenguas griega y latina (de la raíz *leudh-) como en las germánicas (de la raíz *pri-), no es individual, no es la ausencia de coerción, sino la condición de hombre superior, de hombre noble, de «buena cuna», que se tiene, por formar parte de un grupo especial, el propio. Libertad, en su origen, tiene sentido colectivo.». Cf. ainda: Online Etymology Dictionnary, apud: http://www.etymonline.com/index.php, nas entradas em análise. 345 Fernando Paulo do Carmo Baptista priyá [= amar], no sânscrito priyah [= amar], no antigo alto alemão fridu [= paz], no alemão actual freiheit [= liberdade] e até mesmo em nomes próprios567 como Fridric (> Frederico = que tem o poder [- ric] do amor e da paz [frid-]) e Fridnand (> Fernando = empenhado lutador [-nand] pelo amor e pela paz [frid-])... *** Uma adequada contrastação inter-lexémica e inter-sémica permite chegar à conclusão de que o potencial semântico que se liberta destas duas raízes indo-europeias remete, quer para as ideias de subir, trepar, superar as leis da gravidade, crescer, ser gente, ser povo, quer para as ideias de amizade, carinho, magnanimidade, enamoramento, paixão amorosa, amor, paz... Ou seja: a semântica primigénia da palavra ‘liberdade’ começa por reenviar para o significado de impulso ascensional, liberador, soltor568 e superador de todas as formas de atracção (ou de «capturação»...) gravítica, física ou simbólica e, assim, para a capacidade de romper liames ou vínculos impositivos e «aprisionantes» e, por isso mesmo, indesejados, não queridos... (Abro, aqui, um parêntesis para sublinhar a sintonia do pensamento de Espinosa com esta originária e arqueológica linha de sentido quando, no seu Tratado Político, advoga que «os homens devem ser conduzidos de modo a que não se vejam a si próprios conduzidos, mas a viver, segundo o seu engenho e a sua livre decisão» [homines ita ducendi sunt, ut non duci, sed ex suo ingenio et libero suo decreto vivere sibi videantur569]). Se perspectivarmos e ponderarmos, agora, «a carga sémica» («a 567 Para a semântica dos nomes próprios, ver Roberto Faure Sabater: Diccionario de nombres propios, Madrid, Editorial Espasa Calpe, 2002, nas entradas respectivas. 568 Adjectivo que fiz derivar do verbo «soltar», com o significado de promotor do estado de ficar solto, que promove a soltura, a desvinculação. 569 Cf. Benedicti de Spinoza: Tratactus Politicus, cap. X, 8. (Ver Tratado Político, Lisboa, Círculo de Leitores / Temas & Debates, 2008, p. 204: «os homens devem ser conduzidos de modo a que não se vejam a si próprios conduzidos, mas a viver, segundo o seu engenho e a sua livre decisão»). 346 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO carga dos traços semânticos») inscrita no léxico morfo-geneticamente oriundo destas duas raízes à luz dos ensinamentos, nomeadamente, das Neurociências570, das Ciências Cognitivas, da Psicologia Genética, da Psicologia do Desenvolvimento, da Psico-Sociologia e da Antropologia Social, melhor se compreenderá que o fenómeno do «crescimento» antropo-ontogenético não dispensa um forte envolvimento afectivo com uma diversificada gama fenomenológico-epifânica (que vai desde a amizade e a cortesia, ao enamoramento e ao conúbio amoroso...) e tem a sua expressão evolutivo-culminativa num dinâmico processo de complexificação crescente, sequenciado no continuum de uma mesma e substante «linha da existência», singularizada diferenciadoramente por três nucleares «idades» ou «estádios» interligados e inter-activos — a infância, a adolescência e a adultez — que, no fundo, se direccionam, subindo e crescendo como que numa teleologia de perfectiva, amorável e serenante completude (a magnanimidade, o amor e a paz), para um «fazer-se e ser-se gente», para um «fazer-se e ser-se pessoa», para um «fazer-se e ser-se cidadão», para um «fazer-se e ser-se povo», em suma, para um «fazer-se e ser-se comunidade humana planetária», atingindo aí o seu clímax. Afigura-se-me, assim e ao jeito de uma conclusão interpretativo- compreensiva, poder entender-se e assumir-se, com razoável coerência semântica e hermenêutica, A IDEIA DE «LIBERDADE» como sendo a essencial e essenciante e-movência consciente e intencionalmente desiderativo-volitiva, inter-constitutiva, inter-determinante, inter- direccionante, inter-organizadora e inter-reguladora do pensar e do agir humanos na complexa e polimorfa diversidade dos seus modos e registos manifestativos, práxicos, poiésicos, etológicos e atitudinais571, 570 Onde se destaca, cada vez mais, a obra incontornável do nosso António Damásio consubstanciada nos seus três já mundializados volumes: O Erro de Descartes, O Sentimento de Si e Ao Encontro de Espinosa e, mais recentemente: O livro da consciência — A construção do cérebro consciente, Lisboa, Temas & Debates, Círculo de Leitores, 2010. A título de exemplo, e a partir do que nesta última obra é dito a pp. 44-47, consideram-se as implicações metamorfósicas inerentes ao «processo de complexificação crescente» e ao papel bio-regulador da «homeostase», subjacentes ao fenómeno do «crescimento» antropo-ontogenético. 571 Desde o imaginativo, conceptivo e inventivo, passando pelo reflexivo, teorizador, investigativo, operativo e experiencial, pelo crítico, avaliativo, judicativo, opcional, deliberativo, decisional e executivo... até ao inovador, superador e criativo [poiésico]... 347 Fernando Paulo do Carmo Baptista seja em sua dimensão, expressão e implicação exclusiva e exclusoramente singular, ipseídica, monádica e privada (a minha liberdade), seja em sua dimensão, expressão e implicação, inclusiva e inclusoramente colegial e comunitária, alterídica e pública (a nossa liberdade)572. Esta, porém, no pressuposto de que ser homem é ser em si, sempre e ao mesmo tempo, o próprio e o outro sem exclusão de ninguém. Ela, A LIBERDADE, configura-se, portanto, como a ôntica, antrópica, ontológica e axiológica vitalidade e substancialidade polirrítmica, imaterial, dinâmica, contra-gravítica e, assim, elevatória («subir»), incrementante, impulsionante e concrescente («crescer»), coalescente, congregante e coesiva que institui a condição, a dignidade e o estatuto de sermos gente, isto é, de sermos pessoas e cidadãos, de sermos universal humanidade capaz da amizade, do enamoramento, do amor, da generosidade e da paz, sendo que «a situação de escravo» é, superlativamente, o inumano, desumano e dramaticamente eloquente contra-ponto do que é a negação, a privação ou a ausência contra naturam desse mesmo estatuto, dignidade e condição... É assim que se me afigura ser da maior relevância a posição hermenêutica de Bento Espinosa573 quando afirma que a liberdade é uma virtude, ou seja, uma perfeição — «est namque libertas virtus seu perfectio»574—, mas é uma virtude que, por definição, é a própria potência humana: «virtus est ipsa humana potentia»575)... E na medida em que, enquanto virtude e potência, é também e simultaneamente «intellectus», «laetitia», «felicitas» e «beatitudo», ela é, em plenitude, a concretização e a expressão integrada da «liberdade radical» (liberdade profundamente enraizada ou radicada na «natureza» do homem...) que António Damásio576 reconhece em Espinosa, ou seja, a «summa libertas» superadora da nossa «dependência» de tudo quanto nos escraviza... 572 De recordar o ajuizamento de Ivonne Bordelois: Etimología de las pasiones, op. cit., segundo o qual, «libertad, en su origen, tiene sentido colectivo». 573 Cf. Espinosa: ibidem, 83. 574 Cf. Benedicti de Spinoza: Tractatus Politicus, II, 7. 575 Cf. Espinosa: Ethica, 4, prop. XX, demonst. 576 Cf. António Damásio: Ao Encontro de Espinosa, Lisboa, Publicações Europa- América, 32003, p. 308. 348 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO Mas a «libertas» espinosana, além de ser congenial à energia (§n°rgeia [enérgeia]) poiésico-perfectiva (ela é «virtus seu perfectio»...) e ao conatus577 impulsionante, auto-e-movente e auto- preservador que irrompe da nossa corporeidade viva, é atravessada pelo influxo do “divino”, uma vez que, além de ser «beatitudo» e «vera vita et religio», «se funda num constante e eterno amor para com Deus, o mesmo é dizer, no amor de Deus para com os homens» («beatitudo sive libertas nostra consistit in constanti et aeterno erga Deum amore sive in amore Deum erga homines»), ganhando, assim, um inquestionável sentido e dimensão de transcendência578. Neste contexto, se, por sua vez (e agora, em consonância com o grande filósofo e humanista italiano Luigi Pareyson579...), partilharmos a pressuposta e tautológica co-implicação de que «a liberdade não é liberdade sem o ser» e de que «o ser não é ser sem liberdade»580 e aceitarmos que o «ser-se homem» não é uma realidade (ou «ontidade») estática, acabada e configurada, mas auto-movência deveniente, configurante e configuranda que se transcende e se projecta a partir de si e do mundo, no mundo, com o mundo e com os outros; numa palavra, 577 Cf. Espinosa, por exemplo: Ethica, Pars III, Prop. VII: «potentia sive conatus, quo in suo esse perseverare conatur». O nome conatus (= potência ou energia originária e originante, auto-movente e prestimosa, esforço energético desencadeado a partir de si próprio...) é da família lexical do verbo conor, -ari, -atus sum (= pôr-se em movimento, preparar-se e disponibilizar-se para, esforçar-se...), tendo ambos como base constitutiva a raiz indo-europeia * ken-1 / kon-, cujo «ADN SEMÂNTICO» veicula em si a ideia de «potencial intrínseco para se pôr em movimento rápido e activo, originar-se, surgir, levantar-se prontamente, esforçar-se por...»; esta raiz está na base do lexema grego diãkonow (diã + kon + ow [dia + kon + os]), que à letra significa «aquele que se põe prontamente em movimento, que se levanta de imediato, disponibilizando-se para servir os outros, a comunidade, designadamente a comunidade religiosa»; do nome diãkonow, através do latim diaconus, provém o substantivo português diácono (da mesma família de diaconado, diaconal, diaconato, diaconisa, bem como dos lexemas, quase isomorfos, que são seus equivalentes nas demais línguas românicas...), o inglês deacon, o alemão Diakon... 578 Cf. Espinosa: Ethica, P. 2, prop. XLIX, schol.; P. 4, prop. XX, dem.; P. 5, prop. XXXVI, schol. 579 Luigi Pareyson [1918-1991] é, reconhecidamente, um dos grandes filósofos do séc. XX. Foi professor de pensadores famosos como Umberto Eco, Gianni Vattimo e Mario Perniola. 580 Cf. Giovanni Fornero: entrada «ontologia della libertà», apud Nicola Abbagnano e Giovanni Fornero: Dizionario di Filosofia, Torino, UTET, 31998, p. 640. 349 Fernando Paulo do Carmo Baptista se, em sintonia com Heidegger581, assumirmos que o mundo da existência humana concreta é o mundo da comum e partilhada coexistência com outros homens, então, o próprio «ser» deve ser caracterizado como «una libertà primigenia»582, isto é, como absoluta e originária motricidade primordial, placentariamente inseminada e radicada na nossa existência, de tal maneira que, como sublinha ainda Pareyson583, «essere e libertà sono i due poli dell’operosità dall’uomo», na medida em que a liberdade não só «è il cuore stesso del reale», mas também a sua abissal, insondável e inexaurível porque ilimitada profundidade584... Em suma e para rematar com palavras de S. Gregório de Nissa585: «Es la libertad la que hace al hombre deiforme y santo». 581 Cf. Martin Heidegger: Sein und Zeit, Tübingen, Max Niemeyer, 1993, § 26, p. 118: «Die Welt des Daseins ist Mitwelt. Das In-Sein ist Mitsein mit Anderen. Das innerweltliche Ansichsein dieser ist Mitdasein»; cf. também o seguinte passo da tradução francesa de Sein und Zeit, da autoria de Rudolf Boehms et Alphonse de Waelhens: L’être et le temps, Paris, Éditions Gallimard, 1969, 150: «Le monde auquel je suis est toujours un monde que je partage avec d’autres, parce que l’être-au-monde est un l’être-au-monde-avec... Le monde de l’être-lá est un monde commun. L’être- à... est un être-avec-autrui. L’être-en-soi intramondain d’autrui est coexistence.», ou, do mesmo modo, o seguinte excerto da tradução de José Gaos (cf. Martin Heidegger: El Ser y El Tiempo, México, Fondo de Cultura Económica, 41971: «El mundo del “ser ahí” es un “mundo del con”. El “ser en” es “ser con” otros. El “ser en sí” intramundano de éstos es “ser ahí con”». Ver, ainda, Michaela Ott, no seu substancioso estudo: «Ethik und Ästhetik in der Philosophie der Phänomenologie und des Poststrukturalismus», apud: http://www.momo-berlin.de/Ott_Ethik_Aesthetik.html. 582 Cfr. Luigi Pareyson: Ontologia della Libertà, Torino, Einaudi, 1995, considerado o seu opus magnum. Ver também: Luigi Pareyson: Essere libertà ambiguità, Milano, Mursia (Gruppo Editoriale), 1998; Luigi Pareyson: Dostoevskij, Milano, Mursia (Gruppo Editoriale), 1993. Uma interessante perspectiva sobre o pensamento de Pareyson é o estudo de Mauro Cinquetti, intitulado «L’uomo nell’«ontologia della libertà» di Luigi Pareyson», que pode encontrar-se em: http://mondodomani.org/dialegesthai/mci01.htm Também é rico de informação sobre o pensamento de Pareyson, o seguinte site do Centro Studi Filosofico-Religiosi — «Luigi Pareyson»: http://www.pareyson.unito.it/Pareyson.html 583 Cf. L. Pareyson: Esistenza e Persona, Genova, Il Melangolo, 1985, p. 267. 584 Cf. L. Pareyson: Ontologia della Libertà, Torino, Einaudi, 22000, pp. 21-22. 585 Citado por Adolphe Gesché: El Sentido, p. 88. 350 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO Por isso é que, mais do que subscrever o famoso ajuizamento de Sartre586, segundo o qual, estamos condenados a ser livres [«l’homme est condamné à être libre»], ouso assumir, em toda a sua radical fundura, que «ser... é ser livre» e que ser livre... é voar co’o pensamento a toda a parte587, é escolher-se, inventar-se e reinventar-se incessantemente, e contra todos os constrangimentos, como acção criadora, inventiva e instituinte588, como «projecto de ser» e como «ser em projecto», mesmo no condicionante e limitador horizonte da finitude existencial e da intranscendibilidade das leis que governam os misteriosos dinamismos do Cosmos, da Vida e do Homem!... A LIBERDADE é, assim, e em meu entendimento, O ABSOLUTO ANTRÓPICO DO RELATIVO EXISTENCIAL que, investido orquestralmente no universo dos valores589 e dos sentidos que subjazem à enunciação, entre outros, do «imperativo categórico» de Kant, do «princípio 586 Cf. Jean-Paul Sartre: O Existencialismo é um Humanismo (tradução, prefácio e notas de Vergílio Ferreira), Lisboa, Editorial Presença, 1962, pp. 193-194: «Dostoiewsky escreveu: «Se Deus não existisse, tudo seria permitido». Aí se situa o ponto de partida do existencialismo. Com efeito, tudo é permitido se Deus não existe, fica o homem, por conseguinte, abandonado, já que não encontra em si, nem fora de si, uma possibilidade a que se apegue. Antes de mais nada, não há desculpas para ele. Se, com efeito, a existência precede a essência, não será nunca possível referir uma explicação a uma natureza dada e imutável; por outras palavras, não há determinismo, o homem é livre, o homem é liberdade. Se, por outro lado, Deus não existe, não encontramos diante de nós valores ou imposições que nos legitimem o comportamento. Assim, não temos nem atrás de nós, nem diante de nós, no domínio luminoso dos valores, justificações ou desculpas. Estamos sós e sem desculpas. É o que traduzirei dizendo que o homem está condenado a ser livre. Condenado, porque não se criou a si próprio; e no entanto livre, porque uma vez lançado ao mundo, é responsável por tudo quanto fizer.» (O sublinhado é meu). 587 Camões: Os Lusíadas, VIII, 89. 588 Cf. Adolphe Gesché: El Sentido, op. cit., pp. 56-58: «La creación es acceso a la libertad y la libertad es llamada a la creación» (58). 589 «Investimento» igualmente preconizado por António Braz Teixeira, ainda que num registo pressupositivo e argumentativo algo diferente do nosso. Cf. António Braz Teixeira: Sentido e Valor do Direito, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, Lisboa, 32006, pp. 132-135. 351 Fernando Paulo do Carmo Baptista dialógico» de Martin Buber590, do «princípio dialéctico da negação» de Adorno591, do «princípio da responsabilidade» de Hans Jonas592, mas também do «princípio da esperança» (enquanto «catálogo» ou «enciclopédia» dos mais belos sonhos, anseios e utopias da humanidade e a expressão mais acabada do êxodo em direcção ao «reino da 590 Cf. Martin Buber: Do diálogo e do dialógico (trad. de Marta Ekstein de Souza Queiroz e Regina Weinberg), São Paulo, Perspectiva, 1982, p. 112. O «diálogo» é, no fundo, aquele dinâmico, inteiro, intenso e antropo-ontológico «sair-de-si-em- direcção-ao-outro», à procura da mais funda e recíproca identidade, em que o «eu» se afirma, como pessoa, na relação, na abertura e no encontro com o «tu», em sintonia com o princípio onto-poiético ou ôntico-constitutivo, segundo o qual, «é o tu que me faz eu»... Efectivamente, a condição existencial do homem constitui-se e configura- se ontológica e axiologicamente na fundura e na autenticidade do encontro dialógico e na esfera do inter-subjectivo, do inter-humano e do inter-pessoal. Para uma adequada perspectivação do que é o «princípio dialógico», ver: Newton Aquiles von Zuben: Martin Buber: cumplicidade e diálogo, Bauru, EDUSC, 2003 e, sobretudo: Martin Buber: Eu e Tu (trad. de Newton Aquiles von Zuben), São Paulo, Cortez e Moraes, 1977 (ou Martin Buber: Yo y Tú (trad. de Carlos Díaz), Madrid, Caparrós, 1993); Do diálogo e do dialógico (trad. de Marta Ekstein de Souza Queiroz e Regina Weinberg), São Paulo, Perspectiva, 1982; Encontro: fragmentos autobiográficos, Petrópolis, Vozes, 1991; Martin Buber: Qué es el hombre? (trad. de Eugenio Ímaz), México, Fondo de Cultura Económica, 131986: «la esencia del hombre se halla en la unidad del hombre con el hombre» (pp. 98 e 146), homem que comunica com o outro, numa esfera comum: «la esfera del “entre”» (p. 147); e isso, na assunção de que ser homem é ser o dialógico «estar-dos-en-recíproca-presencia»... «nel encuentro del “uno” con el “otro”» (p. 151); também Hans Urs von Balthasar, no mesmo fundamental sentido, e evocando Fichte, afirma: «a liberdade existe especulativamente só como intersubjectividade, como livre comunhão» e «realiza-se de modo dialógico, no ser-interpelado pelo tu e no interpelar o tu.» Cf. Hans Urs von Balthasar: Córdula ou o momento decisivo, Lisboa, Assírio & Alvim, 2009, p. 47. 591 Cf. Marta Tafalla: Theodor W. Adorno — Una filosofía de la memoria, Barcelona, Herder, 2003, pp. 67 ss; José António Zamora: Theodor W. Adorno – Pensar contra la barbarie, Madrid, Editorial Trotta, 2004, pp. 11-19, 21 ss, 286 ss. 592 Cf. Hans Jonas: Das Prinzip der Verantwortung [Le Principe Responsabilité], Paris, Les Éditions du Cerf, 1990, pp. 30, 57 ss: «Age de tal modo que os efeitos da tua acção sejam compatíveis com a permanência de uma vida humana autêntica na Terra». 352 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO liberdade»...) de Ernst Bloch593, nos permite concluir, com Jaspers594: eu posso, porque devo!... E acrescentaria também eu, em jeito de silogístico 593 Considerar o importante prólogo de Francisco Serra (seguramente um dos seus mais credenciados estudiosos) à edição espanhola de Das Prinzip Hoffnung: El principio esperanza, Madrid, Editorial Trotta, 2004 /2006 (vols. [1] e [2]), pp. 11-21 do vol. [1]; nesse prefácio intitulado «La actualidad de Ernst Bloch», escreve Francisco Serra, a pp. 14-15: «... la esperanza es principio, porque el mundo aún no está concluso, porque los hombres estamos siempre en el camino y esperamos que lo mejor aún esté por llegar. Frente al pesimismo de gran parte del pensamiento contemporáneo, Bloch es partidario de un «optimismo militante», pero teniendo presente siempre que la esperanza en el futuro no significa meramente confianza en él, sino trabajo en el sentido de la construcción de ese horizonte emancipador. Esa consideración antropológica se despliega en una multiplicidad de variaciones que ha hecho que se pueda considerar El principio esperanza como una «enciclopedia de las utopías», pues no hay autor en que alcance tal variedad de manifestaciones. (...) Bloch parte de la categoría de la «posibilidad», indagando algo apenas hasta ahora preanunciado: la idea de que no hay nada concluso, que la realidad es proceso, que lo posible está siempre surgiendo de lo real. La función utópica, que lleva al hombre a intentar rebasar el horizonte de lo inmediato, se extiende en Bloch de tal manera que incluso en las ideologías encuentra un «excedente utópico», algo aún por realizar.». Considerar, ainda, Francisco Serra (in História, política y derecho en Ernst Bloch, Madrid, Editorial Trotta, 1998, pp. 95 ss), quando perspectiva o princípio esperança como sendo a «“suma” de los anhelos utópicos de la humanidad, de los dreams of a better life (...)», e quando sublinha que «la esperanza es entendida como principio que se hallaba desde siempre en el proceso del mundo, aunque durante tanto tiempo haya sido ignorado filosóficamente», citando, a propósito, o próprio Bloch: «En tanto que no hay en absoluto ninguna construcción consciente de la historia, en cuya ruta y tendencia el objetivo no sea también todo, el concepto utópico y de principio — en el buen sentido de la palabra — de la esperanza y de sus contenidos humanos es, sin más, un concepto central» (Ernst Bloch: PE, I, XV).» (Francisco Serra: op. cit., p. 95). Em suma, para Francisco Serra (ibidem, 97), «... El principio esperanza es la expresión más completa del éxodo hacia el “reino de la libertad”...». 594 Karl Jaspers: Philosophie II, pp. 186, 195, em sintonia com Kant quando afirma: «Tu deves, portanto podes», fórmula que resume a dedução transcendental kantiana no domínio moral (cf. Nicola Abbagnano: História da Filosofia, Lisboa, Editorial Presença, 1970, vol. VIII, p. 146; cf. ainda Abbagnano, para Jaspers, neste ponto, ibidem, vol. XIV, pp. 232-233). 353 Fernando Paulo do Carmo Baptista fechamento: e, porque devo... não posso deixar de respeitar595!... Ora se é certo que a liberdade é, como a entende o teólogo Hans von Balthasar596, «o absoluto, mas em forma finita», ela, liberdade, em sua projectiva e epifânica dimensão agórica e comunitária, não pode ser assumida nem realizada como cedência ou concessão à libertinagem, à demagogia, à imoralidade, à corrupção, à hipocrisia, à permissividade, à arbitrariedade, ao egoísmo, à arrogância, à violência, à opressão, ao crime, à prepotência, à exclusão, à exploração, ao esmagamento, à escravatura, à escravidão, aos fundamentalismos, aos fanatismos, às ortodoxias, aos dogmatismos, às contra-dialogias e aos totalitarismos do “eu”, das massas, das multidões, das igrejas, dos partidos, das corporações, dos sindicatos, das organizações patronais..., quando se miram, especular e narcisicamente, como se fossem mónadas isoladas da comunidade englobante... O que vem significar que um exercício verdadeiramente responsável da liberdade e das liberdades (de pensamento, de expressão, de manifestação, de intervenção...) não pode deixar de se constituir e desenvolver no quadro de um autónomo, preservador e regulador limite (ela, como já foi sublinhado, é finita!...), assente no primado da Ética e da Razão Crítica e, portanto, consubstanciado na sistemática convocação do Dever, da Responsabilidade, do Diálogo, da Tolerância, da Dignidade e do Respeito... Tudo, portanto, no horizonte englobante de uma Cultura e de uma “Paideia” dos Valores e das 595 A convocação, aqui, destes nucleares «princípios» não pode nem deve dispensar, todavia, o insubstituível contributo (a ser articulado em orquestral sinergia...) do «espírito» que presidiu à enunciação (bem como dos sentidos angulares da relativização crítica, do antidogmatismo, da abertura à diferença, etc., que dela se libertam...) de teoremas como os da indecidibilidade e da incompletude (Gödel), igualmente conjugados com outros princípios mais, como sejam: os princípios da indeterminação ou da incerteza (Heisenberg), da complementaridade (Niels Bohr), da subsidiariedade, do contraditório, da razoabilidade, da proporcionalidade, da isonomia, da boa fé, do pluralismo, da polilogia, da polifonia, da «mestiçagem», da multiculturalidade... É dessa orquestração participada, integradora e criativa, é desse empenhado esforço comunitário para a denúncia frontal e superação real da generalizada hipocrisia consubstanciada na farisaica e improcedente «retórica» da tão apregoada defesa dos «direitos humanos» que pode resultar, mais claro e mais aperfeiçoado, o valor da «dignidade» da pessoa humana e do «respeito» universal que lhe é devido... 596 Cf. Hans Urs von Balthasar: ibidem, p. 47. 354 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO Virtudes Maiores da Cidadania597, tal como ficaram e vão ficando plasmados, com as marcas indeléveis da intemporalidade, nos melhores textos das Humanidades (textos do Sagrado e do Profano, textos da Poesia, da Literatura, da Filosofia598, da Teologia, do Direito, da Política e da Ciência Pura...) e em referência ao alumiante magistério e encarnado, edificante e referencial exemplo do que de melhor há em Lao Tsé, Buda, Abraão, Job, Sócrates, Paulo de Tarso, Maomé, Francisco de Assis, Mahatma Gandhi, Luther King ou Nelson Mandela e, bem acima de todos, de Jesus de Nazaré, o ungido e divino «Filho do Homem»... É essa virtuosa “Paideia” direccionada para a excelência cultural e axiológica, é esse imperecível, iluminante e integrador legado e paradigma antropo-etológico que podem, a meu ver, alicerçar a esperança, com Amartya Sen, de que «il futuro del mondo è intimamente connesso al futuro della libertà nel mondo»599... Reflectir, portanto, sobre «a liberdade» é ter a coragem e a confiança de quem acredita que é possível, com afectuosa dedicação, com auto-exigente rigor, com transparente seriedade e com lúcida e consistente competência, construir a «Terra da Fraternidade» que a canção prometeu e que vem sendo desiludentemente adiada em aspectos essenciais do exercício da cidadania, do funcionamento da democracia, do desenvolvimento ecologicamente sustentável, da realização da justiça social e do respeito pela pessoa humana... 597 O Bem, o Belo, a Verdade, a Justiça, a Prudência, a Humildade, a Temperança, a Magnanimidade, etc., como recorrentemente o venho defendendo... 598 E.g.: de Platão, Aristóteles, Cícero, Séneca, Santo Agostinho, S. Tomás de Aquino, Descartes, Pascal, Hobbes, Locke, Espinosa, Leibniz, Hume, Kant, Hegel, Max Scheler, Heidegger, Jaspers, Stevenson, Norberto Bobbio, Scarpelli, Donald Davidson, Mervyn Hare, Bernard Williams, Ronald Dworkin, J. Habermas, K. Otto Apel, Amartya K. Sen, J. Rawls... 599 Cf. Amartya Sen: Globalizzazione e Libertà, Milano, Arnoldo Mondadori Editore, 2003, p. 133: «Il futuro del mondo, ritengo, è intimamente connesso al futuro della libertà nel mondo. E questo per due ragioni distinte: la libertà è sia un fine di prima importanza sia un mezzo determinante del progresso. Ciò che è cruciale per il futuro del mondo è il consolidamento delle diverse istituzioni che contribuiscono ad accrescere la libertà economica, politica, sociale e culturale. La strada per il nostro futuro ci deve essere indicata da una visione integrata della libertà, una prospettiva che tende ad andare perduta nei dibattiti su mercati, globalizzazione, democrazie, opportunità sociali, diffusione dell’ informazione e rapporti internazionali». 355 Fernando Paulo do Carmo Baptista Mas, para o futuro de “Grândola”, de todas as “Grândolas” de Deméter, é imperiosamente decisivo que a liberdade nunca deixe de ser a sua própria memória... Por isso, esperançosamente a celebramos na ágora da República!... Por amor às nossas crianças, que, como no-lo ensina a semântica «arcaica» e «genética» desta fabulosa palavra — LIBERDADE — hão-de, em paz, continuar a subir... a crescer... a apaixonar-se e a amar... a ser gente... a ser povo... a ser, em plenitude, cidadãos do mundo inteiro!... E se algum dia a nuvem negra e letal da sua negação pairar, ameaçadora, na linha de horizonte, a lição maior, mais bela e mais comovedora será ainda a do Poeta «a rezar o padre- nosso» a «essa flor que nunca desespera / no jardim da perpétua primavera»!... Será, no limite, o grito irreprimível e inamordaçável do canto indómito de «Orfeu Rebelde»: Orfeu rebelde, canto como sou: Canto como um possesso Que na casca do tempo, a canivete, Gravasse a fúria de cada momento; Canto, a ver se o meu canto compromete A eternidade no meu sofrimento. Outros, felizes, sejam os rouxinóis... Eu ergo a voz assim, num desafio: Que o céu e a terra, pedras conjugadas Do moinho cruel que me tritura, Saibam que há gritos como há nortadas, Violências famintas de ternura. Bicho instintivo que adivinha a morte No corpo dum poeta que a recusa, Canto como quem usa Os versos em legítima defesa. Canto, sem perguntar à Musa Se o canto é de terror ou de beleza. Miguel Torga: Poesia Completa, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2000, p. 540. 356 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS (SISTEMATIZAÇÃO) • ABBAGNANO, Nicola e FORNERO, Giovanni: Dizionario di Filosofia, Torino, UTET, 1998. • AGUIAR E SILVA, Joana: A prática judiciária entre direito e literatura, Coimbra, Almedina, 2001. • AGUIAR E SILVA, Vítor: «As Humanidades e a Cultura Pós-Moderna», separata do livro de ACTAS do Colóquio de Estudos Clássicos A Antiguidade Clássica e nós: Herança e identidade cultural, Braga, Centro de Estudos Humanísticos da Universidade do Minho, 2006. • ALVIRA, Rafael e SPRANG, Kurt (eds.): Humanidades para el siglo XXI, Pamplona, Ediciones Universidad de Navarra (EUNSA), S.A., 2006. • ARENDT, Hannah: The Human Condition, Chicago, University of Chicago Press, 1958. • ARENDT, Hannah: On Revolution, New York, Viking Press, 21963. • ARENDT, Hannah: Crises of the Republic, New York, Harcourt Brace Jovanovich, 1972. • ARENDT, Hannah: The Life of the Mind, New York, Harcourt Brace Jovanovich, 1978 (tradução portuguesa: A Vida do Espírito [vol. 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É com esse objectivo que se torna pertinente (e mesmo indispensável...) partir do compartilhado entendimento segundo o qual a “cidadania” (em grego: po ite€a) é perspectivada como a qualidade, a condição e o estatuto inerentes ao facto de ser cidadão ( po €t w), isto é, de ser membro constitutivo e integrante de uma «comunidade política» ( koinvn€a politikÆ), o mesmo é dizer, de uma «comunidade de cidadãos», bem como o sistema e o regime organizativo e jurídico-administrativo da vida em sociedade, configurada, outrora, nas multímodas dinâmicas da λι (Pólis) ou da Ciuitas e, actualmente, do Estado-Nação, e mais alargada e englobantemente ainda, da “Comunidade das Nações” ou da “Comunidade Humana Planetária”... Comunidade de ênyrvpoi, isto é, de homens e de mulheres, de crianças e de velhinhos, a Pólis, a Cidade, começa por se revelar, antes de mais e acima de tudo, como uma incomparável “constelação de humanos corpos vivos”, de que importa tomar funda consciência para lhe medir o significado, o alcance e o valor, pois como ensinou Tucídides, «A Pólis são os cidadãos, e não, as muralhas nem os barcos viúvos de homens»... Existencialmente alicerçada nas potencialidades e nos limites do corpo que somos, uma comunidade de cidadãos, seja qual for o seu âmbito expressional, o seu nível organizativo e a sua extensão “cartográfica”, jamais pode dispensar uma prévia e adequada reflexão, a partir da implicada consideração das três nucleares dimensões constitutivas do nosso ser “antrópico”: a dimensão somatosférica, a dimensão psicosférica e a dimensão sociosférica (co-envolvendo, implicativa e constitutivamente, a verbo-semiosfera): tudo, naturalmente, no quadro integrador de uma eco-bio-geosfera... 365 Fernando Paulo do Carmo Baptista De facto, o apelo-convite ao conhecimento de nós próprios que nos vem sendo feito de forma irrecusável, ao menos desde a famosa inscrição esculpida na mítica portada do templo de Delfos — gn«yi sautÚn [conhece-te a ti próprio] —, não dispensa, não pode nem deve dispensar, sobretudo depois do sábio magistério de Sócrates, uma inaugural e alicerçante reflexão sobre a nossa corporeidade, no sentido de uma imprescindível ponderação e interiorização prévia do valor fundacional da Vida Humana que nela (corporeidade) encarna, se realiza e se revela em sua complexidade maior, expressa muito especialmente no impressionante dinamismo das interacções do cérebro com a mente, na natureza, organização e funcionamento do inconsciente e do subconsciente, do sentimento, da sensibilidade, da emoção, da afectividade e da paixão (pãyow), na construção e no papel da “consciência nuclear” e da “consciência alargada” tal como explicativamente no-las descreve, por exemplo, António Damásio, nos modos como se constitui e opera a identidade, a memória (“autobiográfica” e “heterobiográfica”...), o imaginário, o pensamento, a linguagem, a razão, o cálculo, a emoção, o espírito crítico, a fantasia, a criatividade... — complexidade, em suma, tal como ela se pode colher do insubstituível (ainda que inacabado e efémero e, por isso mesmo, sempre revisível...) contributo das Ciências do Homem e, mais especificamente, das jovens Neurociências600. Da esclarecida tomada de consciência de tudo isso, deverá assumir-se (em lógica coerência e indeclinável imperatividade ética, enunciada em estreita consonância com a aristotélica “razão vital” que está na génese, constituição e teleologia de uma “comunidade de 600 Cf., entre outros, António Damásio: O Sentimento de Si — O Corpo, a Emoção e a Neurobiologia da Consciência, Lisboa, Publicações Europa-América, 2000, pp. 105 ss, 199 ss, 227 ss, 319 ss; Jean-Pierre Changeux/Alain Connes: Matéria Pensante, Lisboa, Gradiva, 1991, pp. 111-159; Albert Ducrocq: O Espírito e a Neurociência — Indícios sobre o fenómeno da consciência, Lisboa, Edições Piaget, 2000, pp. 63-275; John Searle: A Redescoberta da Mente, Lisboa, Edições Piaget, 1998; John Searle: Mente, Cérebro e Ciência, Lisboa, Edições 70, 1997; Edgar Morin e outros: O Problema Epistemológico da Complexidade, Lisboa, Publicações Europa-América, 2002, pp. 23-34; Karl Popper y John Eccles: El yo y su cerebro, Barcelona, Editorial Labor, 1982; John Eccles: A Evolução do Cérebro — A Criação do Eu, Lisboa, Edições Piaget, 1995, pp. 226-260, 263-371. 366 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO cidadãos”) o supremo Valor da Vida Humana601 como inderrogável princípio principial (principium a se) animante, morfogénico e complexificante deste nosso planetário modo de existir... Princípio, eixo e raiz do biologicamente mais estruturado, complexo, poderoso, misterioso e sortílego dos sistemas vivos, pulsão e “élan” genético-mental, espiritual, simbólico e endo-exo-movente que, irrompendo das lonjuras primigénias e granulares da matéria cósmica, radialmente a atravessa para a transcender, por força de uma teleonomia, de uma “cibernética” e de uma ν λέ ια [entelecheia]602 que lhe são singularmente próprias e lhe permitem auto-organizar-se e auto-regular-se, a Vida Humana é, ao mesmo tempo, ordo ordinatus e ordo ordinans e re-ordinans das energias dissipadas603 nos fluxos e refluxos de re-equilíbrio neguentrópico, o mesmo é dizer, na série de “catástrofes de instabilidade” caógena que emergem da própria estabilidade dinâmica em que se afirma e se move... Por outras palavras e em consonância com Aristóteles: a Vida Humana, concretada e configurada na humanidade de cada corpo vivo, constitui a matriz tectónica, metabólica, organísmico-espiritualmente activa e reactiva, plástica, (re)produtora, liberadora e criadora que funda as comunidades humanas existentes no orbe da Terra. Por tudo isso, ela não pode deixar de ser a geratriz, o alicerce e o vector de um condigno “Projecto de Cidadania”: in principio est vita [no princípio está a vida]!... E se ênyrvpow [§st‹] fÊsei politikÚn z“on604, não é menos certo que ele é, mais do que nunca, um kosmopolitikÚn z“on605, a significar que a sua condição biótica e cultural se projecta imersiva e placentariamente num ecossistema global, à escala geo-cósmica. É, na verdade, a Vida, em sua expressão bio-organísmica, antrópica, filosófico-axiológica, ecológica e planetária, o princípio primordial, constitutivo de um horizonte antropológico, 601 Cf. Hans Jonas: El principio vida — Hacia una biología filosófica, Madrid, Editorial Trotta, 2000, pp. 13-19. 602 Energia actuante e eficaz; «a acabada realização da potência» (Aristóteles). 603 Cf. Ilya Prigogine e Isabelle Stengers: Entre o Tempo e a Eternidade, Lisboa, Gradiva, 1990; Ilya Prigogine: O fim das certezas, Lisboa, Gradiva, 1996; David Bohm e F. David Peat: Ciência, Ordem e Criatividade, Lisboa, Gradiva, 1989. 604 «o homem é por natureza um animal político (sociável)». 605 «um animal cosmo-político». 367 Fernando Paulo do Carmo Baptista perspecticamente mais vasto e mais fundo, que postula, a partir da sua assunção, a convocação sinérgica (ao menos em suas mais relevantes implicações, extrapolações e consequências nos domínios do pensar e do agir...) de outros princípios606, valores e atitudes: os princípios da “indeterminação” ou “incerteza” [Heisenberg: «é impossível medirmos simultaneamente a posição e a velocidade de um objecto quântico com precisão arbitrariamente alta»], da “incompletude” e da “indecidibilidade” (Gödel: «Toda a teoria T coerente, que seja adequada à aritmética elementar, contém pelo menos uma proposição aritmética não demonstrável nem refutável, ou seja, indecidível em T»), da “complementaridade” (Niels Bohr e o recurso à diversidade de modelos: «onda e partícula são dois modos complementares, ainda que incompatíveis, de representar objectos quânticos»], os valores da liberdade, da dignitas, da probitas, da uerecundia, da bona fides, do “LebensWelt”607 (Husserl), da solidariedade, da compreensão, da tolerância, da equidade, da justiça, do bem, da verdade (entendida como “procura sistemática e sem fim”...), etc., tudo conjugado com o “princípio dialógico” (em que «o tu me faz eu», Martin Buber) e do incondicional e integrador “reconhecimento do outro” e mesmo do “totalmente outro” (Karl Barth, Horkheimer, Ricœur, Lévinas), o “princípio de correlação” (entre o homem que suplica e Deus que concede, Paul Tillich), da “falibilidade” (inerente ao “homo fallibilis” [Ricœur]), da “diferença” e da “diversidade”, com o sentido do “respeito” [por si próprio e pelo “estrangeiro”, pelo “mendigo”...] e do “dever” (Kant [com «o céu estrelado por sobre mim e a lei moral, o dever, dentro de mim»] e para além de Kant), com o “princípio de responsabilidade” [Max Weber, Hans Jonas], o “princípio de esperança” [«o que importa é aprender a esperar», Ernst Bloch] e contra a “angústia da finitude e da morte”, o “esquecimento do ser”, “o tempo 606 Sobre os vários princípios a seguir enunciados e os principais autores neles implicados, cf. Giovanni Reale — Dario Antiseri: Storia della Filosofia, vol. 3 (dal Romanticismo ai giorni nostri), Brescia, La Scuola, 2000 (obra com sistematizações bem conseguidas e adequadamente documentada sob o ponto de vista antológico- autoral); cf. também: Nicola Abbagnano e Giovanni Fornero: Dizionario di Filosofia, Torino, UTET, 1998, nas entradas respectivas (excelente instrumento de trabalho, rigoroso e actualizado). 607 dignitas: dignidade; probitas: probidade; uerecundia: recato, comedimento, vergonha; bona fides: boa fé; “LebensWelt”: “mundo-da-vida”. 368 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO da indigência e da noite do mundo”, a idade da “abissal ausência dos deuses” (Hölderlin e Heidegger)608, o inelutável e final “naufrágio da existência” (Jaspers) ou a jonasiana propositura de uma “heurística do medo”, a superar pela “vita activa” e pela afirmação, na ágora, da nossa “condição humana”609 através da valorização da acção política (“ser livre e agir são o mesmo”, o que equivale a assumir “o direito ao direito” [Hannah Arendt]), a permanente “invenção do homem” pelo homem (Sartre), o poético “cantar do sagrado” (Hölderlin) e o intrépido destemor de uma “heurística e uma práxis da ousadia e da coragem” (F. Paulo Baptista), nimbada pelo sonho da “utopia” (Thomas Morus, Ernst Bloch e Karl Mannheim, embora com registos muito diferentes). Tudo isso, a reclamar a reassunção valorizadora do tÒpow [topos], do g°now [genos], do ¶ynow [ethnos], do pãyow [pathos], do yow/¶yow [ethos], do lÒgow [logos] e do ¶pow [epos]610. Do tÒpow, enquanto geo-possibilidade de radicação, situação e abrigo do nascimento e da morte, do berço e da sepultura: “nacionais” ou “estrangeiros”, vindos do “centro”, da “periferia” ou das “margens”, todos (mas mesmo todos!...) somos “naturais” de um dado lugar, esse mesmo e exacto lugar onde o ancestral g°now genealógico-progenitor (que nos tem vindo a ser legado de geração em geração pelos nossos maiores desde os perdidos longes imemoriais da pré-história e da história...) se faz carne e natal vagido e onde, uma vez consumado o tão efémero e tão lábil excurso da nossa existência tão precária e tão frágil, a finitude se volve em cinza, silêncio, lágrimas e luto e, talvez também, em transtópica e/ou utópica esperança numa outra vida além da vida... 608 Martin Heidegger: «Porquoi des poètes», in Chemins qui ne mènent nulle part, Paris, Gallimard, 1968, pp. 220, ss; cf. também: Rudiger Safranski: Um Mestre da Alemanha — Heidegger e o seu tempo, Lisboa, Edições Piaget, 2000, pp. 335-339; Otto Poggeler: A Via do Pensamento de Martin Heidegger, Lisboa, Edições Piaget, 2000, pp. 206-224. 609 Hannah Arendt: The Human Condition, Chicago, University Chicago Press, 1958, pp. 179, 187, 188, 192, 205, 211; cf. Richard Wolin: Labirintos — Em torno a Benjamin, Habermas, Schmitt, Arendt, Derrida, Marx, Heidegger e outros, Lisboa, Edições Piaget, 1998, pp. 255-273. 610 tÒpow [topos]: lugar; g°now [genos]: origem genética, raça; ¶ynow [ethnos]: povo, nação; pãyow [pathos]: capacidade de sofrer, sensibilidade profunda; yow/¶yow [ethos]: hábitos, costumes, carácter > ética; lÒgow [logos]: fala, faculdade da linguagem; ¶pow [epos]: voz, palavra, discurso > canto épico (cf. nota 348, alínea d) ). 369 Fernando Paulo do Carmo Baptista Por aí passa a saudade, o culto e a prece em memória de nossos finados e, igualmente, em solidária e coextensiva memória da isógena progénie de todos quantos transportam consigo o inadulterável e inclonável “adn” de um rosto humano... No fundo, o povo-¶ynow que se universaliza, desmultiplica, dissemina e cresce alocentricamente em infinitas searas antrópicas à superfície da Terra e se afirma e localiza, identitária e singularizantemente, em cada povo-pátria-e-país, com a força inclusora, coesora e integradora das consonantes modulações e registos de sensibilidade, simpatia, empatia, afectividade, amor e sofrimento, em agónica e contraditória dialéctica, porém, com a apatia, a indiferença, a antipatia, a repulsão e o próprio ódio exclusor, racista e xenófobo... Mas tudo a irromper sempre dessa “região” maior e abissal do nosso ser que é o pãyow611, que se desdobra emersiva e epifanicamente em alegria, em cântico, em celebração e em festa, em angústia, em desespero, em dor e em desgraça, em paciência, em esperança, em serenidade, em prudência e em sabedoria, mas também em inconsciência, em insensatez e em irresponsabilidade e, no limite, nos paradoxais, oximóricos e incontrolados turbilhões da desmedida loucura da Ïbriw612 e da frieza letalmente mortífera, tantas vezes calculada e programada, do próprio crime... É no pãyow (entendido, como já vimos, na máxima latitude, amplitude e corpóreo-anímica profundidade dos sentidos de que multímoda e diuturnamente se alimenta e polissemicamente se organiza: desde a escuta, a visão e a previsão, o cheiro, o tacto, o paladar e o saborear, à suspeição, ao pressentimento, ao agoiro, ao presságio e à premonição...), é no pãyow que radica a possibilidade primeira e última de toda a criatividade e de todo o agir humanos. É ele o trans- racional, livre e inclausurável oceano que, com a inesgotável νέ γ ια613 ondulatória e translativa dos instintos latentes e incontroláveis e das brusquidões repentinas, da misteriosa movência das pulsões libidinais, oníricas, ilógicas, absurdas e metafísicas (“demoníacas” ou “divinas”...), constitui o universal transfundo e a 611 Cf. Nicola Abbagnano e Giovanni Fornero: op. cit., entradas: «Emozione», pp. 340-361; «Empatia», pp. 361-362; «Passione», pp. 796-799. 612 ι [hybris]: insolência, desrespeito desmedido. 613 νέ γ ια [energeia]: energia. 370 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO úbere e possibilitante matriz genealógica, genológica, genotípica e patológica da “mecânica dos fluidos” psicosférica e, dentro dela, da semiósica poliglotia e intercomunicabilidade humanas. É dele que eclodem, em última instância, as brisas e maresias da lírica, as marés vivas e tensas do drama, as ousadas e argonáuticas gestas da epopeia, a inelutável, irreversível e patética fatalidade dos naufrágios da tragédia... É nesse e com esse plasma adâmico primigénio e genuíno que é a Vida que em nós encarnou e que possibilita a estreita e sinfónica sinergia da acção contemplativa e iluminante da α614 com a acção criativamente instituidora, instauradora, fundadora, operante e configuradora da ο ι 615, complementarizadas pela adequante e consolidante acção da ι 616 reflexiva, racionalizadora, crítica e transformadora, nos domínios filosófico, teológico, historiológico, epistemológico, científico, pedagógico, etc., é nesse mesmo plasma adâmico, sublinho, que se foi modelando e construindo a “personalidade” de quantos têm vindo a integrar o “cânone” das nossas “referências maiores” nos diferentes fóruns e ágoras da História e do Mundo. E são estas “referências” que agem, ao longo do tempo, como incontornáveis semáforos ou transcendentais bússolas ou cartas náuticas da orientação e da regulação ético-axiológica, de dimensão e alcance simultaneamente local e universal617. Por isso é que elas (elas todas, sem excepção e em sua ilimitada ubiquidade!), de modo algum podem deixar de constituir “o magno e polifónico panteão” cultural e civilizacional da humanidade, ou seja, a cósmica placenta de toda a reflexão, codificação e agir axiologicamente fundamentados e direccionados. É aí que o λ γο e o ο cumprem o seu transcendente destino e missão ao serviço da nobre causa da Cidadania, sobretudo quando activados na voz inconformada, frontal e vertical, inclausurável e insubmissa dos profetas e dos poetas, dos professores e dos oradores618, 614 α [theoria]: observação, contemplação > teoria. 615 ο ι [poiesis]: poiese, poesia. 616 ι [praxis]: práxis, prática, acção. 617 Cf. Hans Küng: Projecto Para uma Ética Mundial, Lisboa, Edições Piaget, 1996, pp. 11, 14, 40, ss, 161, sendo de sublinhar a geral convergência de perspectivas. 618 Não terá sido por mero acaso que estas palavras apresentam, em sua “arqueológica” constituição morfo-semântica, raízes — fe- / fa- e os- > or- (e.g.: em lat: fabulare = falar; professor [de: pro+fiteor, pro+fessus] = aquele que fala diante de alguém e em 371 Fernando Paulo do Carmo Baptista na “voz” alta e grandíloqua das sagradas escrituras de todas as religiões, do corpus legum619, dos mitos cosmogónicos e fundadores, das narrativas literárias e historiográficas que celebram a memória de todas as culturas e civilizações, voz essa que se prolonga, inovadora e revitalizadoramente, na voz dos textos sapienciais de pensadores, cientistas e investigadores, dos escritos e das obras dos criadores de todas as épocas e lugares, o mesmo é dizer, de todas as cronotopias... Por isso é que, numa dinâmica de permanente, aberta e plural interlocução poliglótica, interlinguística, interdiscursiva e transdiscursiva, assente numa fecundante e elucidante hermenêutica interpretativo-compreensiva, tanto “em directo” como “em diferido” (via tradução ou via glosa...), dentro da escola e fora da escola, importa defender, afirmar e assumir, para o realizar, aquilo que de melhor houver nesse intransaccionável legado e thesaurus dos textos da arte e do sagrado, dos textos, entre tantos outros, da grande poesia e da grande literatura — os eternos clássicos —, da religião, do direito, da filosofia, da historiografia, do ensaio, da ciência, da politologia, da pedagogia, em suma, do inexaurível “pantexto” da Cultura. São, na verdade, os maiores de entre os “nossos” maiores e de entre os maiores dos “outros” que, sinfonicamente, nesse englobante legado e património se perenizaram e memorialmente pervivem com inquestionável valor e mérito e irrasurável exemplaridade, inspiradora e alimentadora de todos os códigos, modelos e paradigmas axiológicos (de natureza poético-estética, teorético-epistémica, praxiológico-ética ο / ο ]...) de todos os nossos plurais modos de ser, estar e agir enquanto cidadãos. Assim, no nosso Portugal europeu, nos demais povos e países da CPLP ou no mais recôndito dos lugares do Planeta, na língua e com a língua portuguesa — a nossa materna ou madre língua —, nas textualizações e nas interpretações que, em sua plasticidade manifestativo-expressional e sémio-comunicativa, ela possibilita, torna-se cada vez mais urgente e imperioso conceber e desenvolver, a partir desse inestimável “património histórico-memorial” e favor de algo; os, oris = boca; orator = orador) — que as ligam orgânico- funcionalmente ao corpo humano através do aparelho fonador e, mais concretamente ainda, à boca... 619 “corpo de leis”. 372 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO arquitectante, um humanizador, polifónico e orquestral “Projecto de Cidadania”, configurador de uma “identidade eco-bio-antropológica e histórico-cultural”, simultaneamente singular e colegial, local, nacional (que não “nacionalista” e xenófoba!...) e mundial, ou seja, de uma nova concepção e redimensionamento da materna e paternal ο ο / ο α620 com o retorno a (de) Deméter e ao (do) franciscano «cantico di frate sole»621 [ou «laudes creaturarum»], com a proclamação e a defesa do “código” de valores ecológicos, com o incremento, em suma, de uma renovada axiologia, eticamente forte e de alcance verdadeiramente universal que, recuperando o sentido mais fundo, mais alto e mais “nobre” do homem, da vida, da terra, do cosmos, da cultura, da arte, do sagrado e do divino (humanamente encarnados, desmi(s)tificados e desdogmatizados...), dê fundamento e sentido às dinâmicas do Sistema Educativo e Formativo e a todo o pensar e agir implicáveis nos processos de educação, formação e investigação, desde a escolaridade básica até ao ensino superior inclusive... Desse prévio e fundador desenho e lastro, emergirá, naturalmente, uma recontruída Paideia e, com ela, uma desmitificada e relativizada “visão” da ciência e das tecnologias, mais em consonância com o seu “estatuto” medial e instrumental de prestimosas “ancillae hominis”622... A nossa “condição de homens” afirmar-se-á, superadoramente, por sobre todos os fechamentos solipsistas ou narcisicamente egolátricos e individualistas, através da multidimensional e rasgada abertura à nossa irrasuravelmente alterídica “condição de pessoas”. Desse modo, tudo o que de mais decisivo e fundamental se coloca ao homem de cada época (de todas as épocas) passará a ser re- perspectivado e pensado em sua mais funda radicalidade: o tudo e o nada, a vida e a morte, o bem e o mal, o finito e o infinito... 620 ο ο / ο α [oikos/oikia]: casa, habitação / família. É de notar que a raiz woik- / weik- / wik- (= casa, habitação, aldeia) está presente, entre outras, em palavras como: ecologia, economia, ecossistema, paróquia, vicinal, vizinho, vila... 621 “cântico do irmão sol”: «[...] Laudato sie, mi’ Signore, cum tucte le tue creture, / spetialmente messor lo frate sole, / lo qual’è iorno, et allumini noi per lui [...]». O texto integral pode ver-se em M. Pazzaglia: Gli Autori della letteratura italiana, vol. I, Bologna, Zanichelli, 1980, pp. 104-107; «laudes creaturarum»: hinos de louvor às criaturas. 622 «Servas ou criadas do homem». 373 Fernando Paulo do Carmo Baptista E isso, com a autenticidade que deflui, dialógica, intersubjectiva e interactivamente, da nossa inteira liberdade e homóloga responsabilidade, por forma a que tudo quanto ao homem diga respeito tenha sentido, isto é, possa ser sonhado, pensado, concebido, planeado e erigido como perene “monumento” e referenciável “bem público” em que toda a comunidade se reveja e reconheça. Obra em acto e em permanente e desassossegada construção, a ser levada a cabo com cada vez mais tensa, criativa e humanizadora dignidade, no pressuposto de que é sempre possível fazer aportar ao “humano” que já somos e já temos o “divino-humano” que ainda nos falta: de facto, o homem, sem essa chama do “divino” a arder e a lampejar como um farol lá bem dentro de si, é como o gélido silêncio dum templo vazio, porque deserto da alma fervorosa de seus crentes... A constante, dedicada e apaixonada aprendizagem dos fundacionais e, por isso mesmo, fundamentais saberes (saber-pensar, saber-escutar, saber-dizer, saber-ser, saber-estar, saber-agir, saber- acreditar, saber-esperar, saber-sonhar, saber-sofrer, saber- realizar...) assim orientada e conduzida sob o ponto de vista antropológico, axiológico, pedagógico e epistemológico, pode e deve contribuir, por um lado, para a formação de uma “consciência política”, intelectual e sapiencialmente mais esclarecida, mais sólida, estruturada e consistente e, pelo outro, eticamente mais ampla, mais englobante, mais robusta e mais responsável e adulta, porque reconduzida à original e iluminante “verdade” da imperfeição e incompletude da nossa humana e limitada condição... A partir daí, por essa via e desse modo, todos e cada um nós, movidos de um novo e partilhado “espírito”, seremos capazes de protagonizar, na singularidade da respectiva “visão do mundo”, no ritmo, no estilo e na cadência que nos são peculiares, um outro mais fecundo, inovador, desassombrado, frontal e sempre empenhado e respeitoso “modo de intervir” na vida política de todos os dias. Mais lúcidos, mais anti-letárgicos e vigilantes, melhor preparados e mais ponderados e competentes, em suma, socraticamente mais “sábios” e cristicamente mais simples no nosso assumido “estatuto” de cidadãos loco-globais [glocais], isto é, telúrico- localmente radicados e situados e dialéctica e simultaneamente orientados e projectados para o sentido e o rumo de um integrador e universal transcender-se, estaremos em condições de começar a erguer 374 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO na Terra, com liberdade e responsabilidade, com espírito crítico e prudencial sageza, mas também, e sobretudo, com amoroso afecto e determinado afinco, a sonhada “Catedral do Homem” na esperançosa e fraterna “Cidade do Ser” de que nos fala Erich Fromm623, num inspirado eco intertextual tocado pelo augustiniano sopro da humanizada e humanizante sublimidade da Ciuitas Dei... 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MANHà E-MERSA (jamais “Sub-mersa”!...) — a “lição” de uma memória... — (*) (na celebração dos cinquenta anos da “presença” dos Padres Combonianos em Portugal) «Ser santo, sábio e são.» (lema educativo-formativo dos Padres Combonianos) (*) “Memória” da celebração solene comemorativa do cinquentenário da presença dos Combonianos em Portugal, ocorrida em Viseu, no dia 22 de Abril de 1997, no Auditório da Igreja Nova. Com ligeiros retoques, este “memento” reproduz o texto da comunicação de que, na qualidade de representante dos Antigos Alunos, fui incumbido pelo então Superior Geral da Congregação, PE. MANUEL AUGUSTO FERREIRA. Essa comemoração, ocorrida há 20 anos, contou com a presença, na mesa da presidência, da nossa inesquecível, encantadora e humaníssima Concidadã, DRA. MARIA DE JESUS BARROSO. Jamais poderei esquecer as palavras de tão afectuoso apreço que Ela me dirigiu no final da sessão... O único gesto de gratidão que está ao meu alcance resume-se a estas bem simples palavras: continuar a fazer o que de melhor em mim houver para ser digno da sua magnanimidade!... 377 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO Que me perdoe o Saudoso e Grande Vergílio Ferreira a contraditante subversão que vou fazer do seu famoso título! Mas, naquela manhã emersa (não mais: sub-mersa; mas antes: e-mersa...) do ancestral horizonte de frio e denso nevoeiro, contemporâneo ainda das narrativas que consagraram o mítico Malhadinhas e demais heróis das Terras do Demo — lá «onde a gente comia calhaus e ladrava como os cães e nunca Cristo rompeu as sandálias, passou el-rei a caçar ou os apóstolos da Igualdade em propaganda» —, da velha Barrelas a que aportara aos meus dois anitos, mal saído do berço desta sempre adorada Viseu por imperativo do exercício de funções de meu saudoso Pai, aqui retornei como um príncipe, munido agora da libertadora e mágica chave do alfabeto. Àquelas remotas e agrestes paragens de que a citada metáfora- hipérbole construída por esse incomparável “Patriarca” montesino das nossas Belas Letras — Aquilino Ribeiro — para nos dar, em impressiva síntese, o agonismo dramático e patético do que significava, então, a luta pela sobrevivência num contexto de isolamento e de atraso social, cultural e político, que se perde na noite imemorial do tempo, àquelas paragens, dizia, tinha acabado de chegar, desta vez, um inesperado e exótico mensageiro, portador de fartas barbas e do sopro fecundante que paira sobre as águas: o inesquecível Padre Carlesi. As suas convicções serenamente profundas, a sua fé contagiante e cálida, a sua palavra iluminante e apaixonada, tocam sedutoramente, aqui e além, os jovens da quarta classe: «Quereis, também vós, lançar as redes, semear o trigo, matar a fome, levar a luz ao mundo, cantar, como o Poverello, «il cantico di frate sole»? Vinde comigo: sereis, como eu, pescadores de almas!» E assim aconteceu que o Aquiles de Sá Alves, neto do alfaiate- artesão que talhava os fatos de Mestre Aquilino, foi tocado pelo “sopro”. E assim aconteceu, igualmente, que o “milagre da onda arrebatadora” não esmoreceu na insondável e oculta influência do seu movimento. O vento primordial, mais forte e misterioso ainda, sopra na alma de um outro jovem: filho de Rosa e de Júlio, recebeu na pia baptismal o nome carismático de um profeta bíblico; era ele, então, 379 Fernando Paulo do Carmo Baptista aquele que é hoje, à distância de cinquenta anos, o nosso muito querido e igualmente sábio e culto Padre Isaías da Rocha Pereira 624. Mas o impulso sedutor e movente daquele vento primigénio não parou e transmitiu-se às sonhadoras leivas, aos promissores roseirais de outras almas juvenis, no gesto fecundante da palavra poética, viva, inspirada e autêntica de outro recém-chegado polinizador de vocações: o Padre Dante. E, um ano depois, mais três jovens deixam Barrelas: o Adolfo dos Reis Milheiro, o Augusto da Rocha Pereira e o Fernando Paulo Baptista, juntando-se a uma boa vintena de outros mais que, como eles, vinham de vários pontos da mesma e idiossincrásica interioridade das nossas Beiras: o Aníbal Cautela Mateus, o José de Sousa, o Luís de Albuquerque... Que me perdoem os demais, os lapsos ou os involuntários silêncios desta memorante fragilidade na quentura dum mesmo e envolvente afecto que, mesmo anonimamente, os não esquece. Foi em 1950. Na casa mater de Viseu, acabava de entrar a terceira leva. A primeira havia sido aquela que integrou os cinco ou seis alunos da inaugural epifania dos combonianos lusíadas e que, por sinédoque, pode ser referenciada pelos nomes do Manuel Cunha, de Barbeita, e do António Augusto Martins, de Canas (então chamada de Sabugosa e, hoje, Canas de Santa Maria): alunos distintos, belos colegas, um exemplo para os mais novos. Depois, foi a geração do Padre Isaías, com cerca de uma dúzia, salvo erro, à qual se seguiu a nossa com mais de vinte. Depois ainda, num crescendo imparável de novas vagas, ultrapassou-se largamente a centena... E o exemplo de Viseu, feito milagre, desmultiplicou-se por outras zonas do país: da Maia a Famalicão, de Coimbra a Santarém, assistindo-se em Portugal à miniatural homologia do que tem sido a expansão da planetária presença dos Combonianos, lá onde é preciso pregar as bem-aventuranças, saciar os famintos, curar os enfermos, limpar os leprosos, dar vista aos cegos, fazer andar os paralíticos, libertar os oprimidos, ressuscitar os mortos, realizando, assim, a saga de uma autêntica e apaixonante Imitatio Vitae Christi. 624 Cálculo cronológico, feito com referência à data dia 22 de Abril de 1997. Em 16 de Abril de 2004, o Pe. Isaías acabou de cumprir, com exemplar dedicação, a sua missão evangelizadora, intelectual e educativo-formativa na Terra... Paz à sua alma!... 380 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO De quantos são chamados para os trabalhos da messe são bem poucos aqueles que chegam ao termo da exauriente jornada. Todavia, um carisma inconfundível nos fica a marcar a todos para sempre: aos que, mãos ungidas, tocam a pedra de ara para sagrar o pão e o vinho; aos que, no meio da nave, formam o coral dos que cantam ou o coro dos que rezam; aos que voltam as costas ao templo no sonho perdido de outras enigmáticas sendas desta peregrinante vida... Todos nos recordamos, decerto, de como na Manhã Submersa da ficção vergiliana se afirmam, em alegórica sinédoque, os espaços de clausura e de opressão dum país-seminário de horizontes cerrados, marcado por um destino, ao mesmo tempo singular e colectivo, negador das liberdades e dos direitos fundamentais do homem e do cidadão e mutilador dos sonhos adolescentes de todos os Antónios Lopes, corpórea, espiritual e culturalmente condenados à condição carceral de um frustrante e desumanizador huis clos de unidimensional solitude e solidão, sob o governo de um “reitor” com seus prefeitos e professores autoritários e repressivos que não deixam de remeter, em sua “indirecta” e “oblíqua” significação, para o regime de ditadura então vigente em Portugal e protagonizado pela figura de um “reitor outro” que também andara no seminário e havia sido quase padre... Por isso é que a uma tal manhã ouso contrapor aquela que foi a nossa libertadora Manhã Emersa: manhã auroral, radiante e luminosa, limpa de nuvens e de trevas, inauguradora de um novo estatuto de cidadania e de um promissor e humanizante destino, estatuto e destino esses, matricialmente moldados numa ética e numa cultura de liberdade sempre em diálogo com uma ética e uma cultura de responsabilidade, ambas orientadas para a defesa incondicional da dignidade da pessoa humana e para a afirmação e a prática daquela universal fraternidade que decorre da mesma e fundacional condição e do mesmo “código de honra” que consagra cada homem como um filho de Deus e, assim, como um irmão entre irmãos. Mas foi o modelo ímpar de um revitalizante e transformador processo educativo e cultural trazido pelos Padres Combonianos para o Instituto da cidade-fortaleza de Viriato e privilegiado domínio de Henrique, o Navegador, que activou e dinamizou inovadoramente essa mensagem, numa criativa interacção entre sagrado e profano. Do profano fazia parte o estudo das Ciências e das Humanidades. Na verdade, do programa dos primeiros cinco anos de 381 Fernando Paulo do Carmo Baptista formação fundamental (que equivalia aos actuais 2.º e 3.º ciclos da nossa escolaridade obrigatória), não posso esquecer a análise lógico- gramatical como iniciação ao estudo do Latim, logo no primeiro ano, a Matemática, a História e a Geografia, as Ciências da Natureza, a Música (clássica e gregoriana, com solfejo e canto), o Desenho, a Religião e Moral, as Regras de Etiqueta e de Civilidade, o Português, o Francês e o Italiano (sendo estas três línguas vivas, divididas entre aprendizagem oral e aprendizagem escrita, cada qual com um autónomo processo metodológico-didáctico, avaliativo e classificativo), o Latim e o Grego, com as consabidas dificuldades no campo da morfologia, da sintaxe e da tradução. Mas, muito para além destas disciplinas programáticas que, assim, constituíam uma rigorosa e exigente componente curricular lectiva distribuída em ponderada harmonia pela manhã e pela tarde de cada dia, o projecto educativo que os Padres Combonianos conceberam para nós, contemplava também integradoras actividades e ocupações de complemento formativo que iam desde as academias literárias, com os recitais de poesia, canto e música (em que a auto-aprendizagem de tocar órgão, por exemplo, consubstanciava um estimulante prémio para os melhores alunos), o teatro, a opereta (quem não se lembra de Marco Il Pescatore e de Il Menestrello della Morte?...), o visionamento de filmes de aventura e de temática edificante, as inesquecíveis sessões de bonifrates (boni fratres, que não fantoches!...), a prandial leitura feita pelo hebdomadário no refeitório, o salão de estudo de manhã, à tarde e à noite, a permanente realização de exercícios ou tarefas de auto- aplicação, concretização e consolidação das aprendizagens feitas na sala de aula. Que produtivo modelo aquele, o da organização do trabalho escolar semanal, distribuído por dois andamentos com um ponto de paragem intermédia à quinta-feira! Para estudar, cantar, rezar, reflectir e meditar e dar um tonificante e higiénico passeio em ecológico diálogo, vivo e directo, com a madre natureza. As actividades lectivas desenvolvidas de sexta a sábado geravam tarefas idênticas às de quinta- feira, a ser projectadas para os salões de estudo de fim de semana, conjuntamente com os ensaios musicais e corais e a preparação, entre outras, das actividades religiosas e dos deveres dominicais, com a realização de novo passeio ecológico, a sempre reconfortante visita dos 382 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO pais, os inderrogáveis salões de estudo e as indispensáveis e estruturantes práticas de reflexão e de meditação. Face ao que acaba de ser descrito, haverá de reconhecer-se que o nosso Sistema Educativo e Formativo tem estado bem longe de preparar os jovens para o desenvolvimento daquela que é, sem dúvida, a mais nobre das capacidades humanas: pensar, reflectir, meditar... E é pena que os vários responsáveis pelas coisas da educação e do ensino no nosso país não tenham tido ainda a clara consciência disso. Como tudo correria melhor se também eles tivessem por hábito e por princípio reflectir em profundidade primeiro e agir e decidir depois!... O programa de formação iniciava-se todos os dias pelas 6 e 30 da manhã e terminava por volta das 22 da noite, contemplando específicos momentos de oração e de meditação, de manhã, à tarde e à noite, a prática do desporto, a ginástica e os jogos de salão sobretudo quando as condições meteorológicas o impunham. Uma inesquecível galeria de padres extraordinariamente humanos, cultos, sábios e experientes (em nada, mas mesmo em nada, parecidos com o Reitor, ou, por exemplo, com o Padre Tomás, o Padre Martins ou o Padre Lino de Manhã Submersa!...) estava inteiramente disponível para nos ensinar, ajudar e orientar: desde o bondoso e clarividente Reitor, Padre Giorgio Ferrero, a quem veio a suceder essa distinta figura de gentleman que era o Padre Ernesto Calderola, ao dinâmico e metódico Vice-reitor e fluentísssimo orador que veio a ser Vigário Geral, Padre Severino Peano, passando pelo místico director espiritual, Padre Angelo La Salandra, até aos dedicados, metódicos e disciplinadores prefeitos e aos competentíssimos professores de que não posso esquecer, até porque representam simbolicamente todos os outros que não vou poder nomear aqui, mas que merecem a mesma partilhada estima e grata admiração, os nomes sempre saudosos dos Padres Lorenzo Osgnach, Giuseppe Semionato, Guido Piccoli, Ezio Sorio, Alfredo Bellini, Carlo Naldi, Luigi Nesi, Anselmi Romualdo e também os dos exemplarmente briosos compatriotas nossos, Padre Amadeu Gonçalves, então pároco de Ranhados, e Padre Joaquim Dias Coelho, professor muito distinto do seminário maior da nossa diocese e inspirado regente do respectivo grupo coral, não falando já no excelente grupo de irmãos coadjutores e no seu imprescindível e mais específico papel operativo: na cozinha (o irmão Catterino), na quinta (o irmão António), na construção civil (o irmão Elísio, verdadeiro 383 Fernando Paulo do Carmo Baptista “catedrático” do betão), na carpintaria (o irmão Higino). Sejam-me relevadas todas as omissões!... Mas se era esta, em traços largos, a nossa mais específica relação com o profano (sempre imbricada, como vimos, no sagrado e orientada para o divino), a nossa atitude para com o sagrado tinha a sua expressão maior nos vários e quotidianos momentos de diálogo interior com as nossas mediações e representações espirituais da divindade, através da oração e da reflexão meditativa e da autognose, das celebrações rituais e, essencialmente, da assunção de uma postura atitudinal de fundo, enraizada na autenticidade e na procura da verdade e revelada no testemunho vivo, feito em estreita sintonia com os mistérios maiores do Cristianismo: a criação e a queda, a encarnação e a paixão, a eucaristia, a redenção, a ressurreição e a escatologia... Do que era ou do que foi a interpretação e a compreensão desse “Divino”, resta-me hoje a grata consciência de, muito antes de ter lido na Universidade a famosa obra de Max Scheler a cujo título me vou expressamente referir, haver intuído, no âmbito das práticas reflexivas e das pausas e silêncios meditativos que, desde bem cedo, aqueles nossos Mestres foram, como vimos, desenvolvendo em nós, o significado fundamental do que é “A POSIÇÃO DO HOMEM NO COSMOS” (Die Stellung des Menchen im Kosmos) entendida como ec-sistente finitude que só na sua abertura à Revelação e ao Infinito encontra sentido para a Vida e saída para a História e entendida também como ontológica condição da pessoa concreta que cada um de nós é e, assim, sujeito de valores e centro de intersubjectiva espiritualidade onde se enunciam valorações e se plasmam decisões, numa pendular e essencial conexão de fluxo e refluxo convivial e dialógico com o Mundo, com a Vida e com os Outros. E nem mesmo depois de, na sequência da radical racionalização operada pela modernidade iluminista com a razão do cogito cartesiano, mas sem «as razões» do coeur de Pascal, verificarmos que, por um lado, Renan (1823-1892), em L’ Avenir de La Science, elevou a ciência ao estatuto de «religião» e que, pelo outro, Nitzsche (1844-1900), em A Gaia Ciência, (através do «tresloucado»), soltou o alucinado grito do «Gott is tott!», gestos estes seguramente dos mais perturbantemente decisivos que estão, conjuntamente com outros mais, na origem do arrastamento axiológico do mundo contemporâneo para o beco sem saída dum estreito antropocentrismo sem horizonte e sem grandeza, 384 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO nem mesmo depois disso, vinha eu dizendo, vamos renunciar à defesa e à afirmação de que o «Divino» continua, não obstante, a ser a matriz e o fundamento de qualquer hierarquia de valores digna desse nome e bem assim o referencial absoluto e intranscendível da suprema excelência que interpela todas as práticas axiológicas do homem na perspectiva do seu constante aperfeiçoamento quer enquanto pessoa singular quer enquanto cidadão colegial, seja na recatada intimidade do lar em que habita, seja no tópos institucional dos seus desempenhos profissionais e deontológicos, seja nas diferentes ágoras da Pólis em que é chamado a intervir. E um tal entendimento afigura-se-me bem mais crucial e importante do que a própria questão de saber, por exemplo, em qual dos três mundos do modelo teorético de Karl Popper [mundo 1, mundo 2, mundo 3] se deverá situar o Ser que tem por nome o nome de «Deus», ou se, em contrapartida, não haverá que postular um alternativo trans-mundo ou trans-cosmos, um novo empíreo ou um novo olimpo que, antes e para lá da singularidade de qualquer cosmogónico big-bang conjecturado pela astrofísica contemporânea (v.g.: Stephen W. Hawking: Breve História do Tempo, Lisboa, Gradiva, 1988), envolva e absorva em si aquela tríade do famoso epistemólogo deste século que bem recentemente nos deixou. O modelo comboniano de formação, inspirava-se no rigor intelectual dos colégios dos Jesuítas e na humanidade e mundividência ética e cultural de educadores da craveira de João Bosco e nas doutrinas pedagógicas de Maria Montessori (1870-1952) que, como é sabido, «con intelletto d’amore» e convicta profissão de fé, defendia que o dinamismo estruturante do psiquismo infantil assentava em processos criativos defluentes das insondáveis potencialidades do «embrião de espiritualidade» [«lo spirituale embrione»] que, desde a gestação, existe inseminado na interioridade de cada criança e que, à semelhança da encarnação do verbo divino, se revela na capacidade absortiva e elaboradora da inderrogavelmente misteriosa e secreta fundura pulsional de sensibilidade, afectividade, trans-racionalidade e liberdade que ontologicamente nos marca, caracteriza e distingue enquanto seres humanos. Esse modelo tomava como princípio orientador e condutor a célebre tríade de objectivos, assim tão incisiva quanto simplesmente enunciados: a) um comboniano deve ser saudável (educação corporal) 385 Fernando Paulo do Carmo Baptista b) um comboniano deve ser sábio (educação intelectual) c) um comboniano deve ser santo (educação ético-religiosa) Dito em articulada, hierarquizada e unitiva interacção: um comboniano deve ser santo, sábio e são. Visava-se, deste modo e antes de mais, uma educação corporal integral, no respeito pelo repouso nocturno assente num mínimo de oito horas, com uma alimentação diversificada e equilibrada e a tempo certo, a prática do desporto e dos exercícios gímnicos, o culto do autodomínio das impulsividades, a assunção de hábitos regrados e a homóloga rejeição do vício, o controlo médico periódico, o sentido primordial da vida, a prática da virtude e a sublimação valorizadora da dor e do sofrimento. Por outro lado, e numa perspectiva de complementaridade crescente e integrante, do próprio modo como se processava a gestão organizacional da semana pedagógica e religiosa com os seus já referidos andamentos e ritmos determinados pela interacção «actividade/pausa» creio poder inferir-se que todo o processo educativo se orientava num mesmo e determinante sentido de elevação e de excelência a todos os níveis: no pensar, no sentir e no agir, no ajuizar e no dizer, no sonhar, no criar e no empreender, a partir da inculcada instauração na nossa consciência do imperativo categórico de um auto- exigente e permanente desafio de crescimento e aperfeiçoamento na construção da nossa própria identidade e autonomia. Foi assim que nos foi legado um tão precioso tesouro, projecto ímpar de uma dinâmica auto-valorização pessoal sempre in fieri e sempre in progress e de uma crescente e alargada cidadania, de dimensão local, nacional e planetária, projecto esse em que, como vimos, o sagrado sempre dialogou com o profano numa síntese fecunda e harmoniosa da religião com a ciência e com a arte. Lição memorável, intemporal e imorredoura com que modelámos ao longo da vida as nossas posturas e as nossas condutas, com que potenciámos os nossos saberes matriciais e estratégicos e as nossas capacidades teóricas, práticas, críticas e poéticas, com que reassumimos a universal axiologia do Belo, do Bem, da Justiça, da Verdade e do Amor, enquanto referencial permanente na nossa relação e interacção com os outros. 386 A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO Lição suscitadora de respeito profundo e de gratidão imensa pelo exemplo de sonho e de vida que tão saudosos quanto sábios e virtuosos Mestres nos legaram em sua amorável e generosa paixão de Pastores. Importa, pois, que a recriemos com redobrada esperança e amor contra o egoísmo edonista e sem altura, contra o consumismo sem critério e sem freios, contra a droga e toda a espécie de poluição e agressão moral e ecológica, contra a fruição sem ética, sem estética, sem autodomínio e sem bússola, contra a contestação radicalista e sem regras, contra a desfiguração da alma e do rosto do homem pelo esvaziamento da sua própria e divina humanidade.625 Mas a evocativa “viagem” que na condição de antigo aluno venho fazendo mais voltada, naturalmente, para o “paradigma educacional” e para a formação fundamental que alicerçou e plasmou a construção da minha personalidade (e também, pelo que me é dado saber, a dos meus antigos colegas...) em todas as suas nucleares dimensões constitutivas e que marcou, de modo indelével, todo o meu destino académico, profissional, cultural e cívico está longe de significar, só por si, a “lição plena” deste memorandum da presença de 50 anos de Comboni em Portugal. Na verdade, não posso nem devo esquecer a razão primeira dessa esperançosa e inaugural vinda, singularmente concretizada através da figura profética do inesquecível Padre Cotta, na sequência da decisão histórica que, no já distante ano de 1947, pela Direcção da Congregação foi tomada de escolher Portugal para o lançamento de um novo projecto missionário, orientado para o incremento da acção evangelizadora do Mundo, com especial incidência no território da então colónia de Moçambique (de onde, a génese da revista “Além- Mar” com o seu bem sugestivo título). Como apóstolos de primeiríssimo plano que eram, conheciam bem, aqueles sábios dirigentes, o papel pioneiro de Portugal na História da Evangelização. De facto, ainda que num registo sintético e breve, feito a partir da figura maior da Gesta dos Descobrimentos Portugueses — o Infante D. Henrique, “o Navegador”, Iº. Duque de Viseu —, importa recordar 625 Cf. supra o tópico sobre «A profunda crise que vem atravessando o nosso tempo actual». 387 Fernando Paulo do Carmo Baptista esse papel pioneiro, através da seguinte síntese-paráfrase do importante artigo «Evangelização Ultramarina» (in Joel Serrão [dir.]: Dicionário de História de Portugal, Lisboa, Iniciativas Editoriais, 1971, vol. II, pp. 141-145), da autoria de António Brázio, reconhecido especialista no estudo do tema: Em nenhum outro aspecto, a acção portuguesa foi mais eficiente e mais brilhante do que no apostolado missionário nas terras virgens do ultramar. O apostolado missionário moderno, a metodologia e a estratégia da evangelização nasceram em Portugal sob a égide do Infante de Sagres. Não há documento emanado da Cúria Romana que não tenha sido suscitado pelos mentores da política ultramarina portuguesa, fossem eles D. João I, D. Duarte, o Infante D. Pedro, D. Afonso V, o Infante D. Henrique ou D. João II. O objectivo ético das Descobertas, tido por aquele estudioso como sua razão primeira (naturalmente de par com outras que a secundavam nos planos económico, social e político...), era “o serviço de Deus”, argumento que atesta a indesmentível espiritualidade e finalidade missionária daquele histórico empreenedimento, não deixando de ser sintomático, a esse propósito, o próprio facto de o primeiro posto missionário português em África ter sido criado em Ceuta e confiado em 1420 aos Franciscanos do Poverello, poucos anos depois, portanto, da conquista desta cidade, em 21 de Agosto d