Fernando Paulo do Carmo Baptista
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
NO TRAJECTO ASCENSIONAL DA HUMANIZAÇÃO DO MUNDO
— Tributo lusíada de jubilosa gratulação
a Sua Santidade o PAPA FRANCISCO, seu encantador “Maestro”
e “Mensageiro-Poeta” Planetário —
EDIÇÕES PIAGET
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Título: A Sinfonia Universal do Amor Fraterno
no Trajecto Ascensional da Humanização do Mundo
Autor: Fernando Paulo do Carmo Baptista
© EDIÇÕES PIAGET, 2017
Rua Engenheiro Cunha Leal – 1950-105 LISBOA • Tel. 21 836 40 20
E-mail: infoeditora@ipiaget.pt
Colecção: Crença e Razão, sob a direcção de António Oliveira Cruz
Capa: António Sousa Baptista
Paginação: Sá Pinto Encadernadores – Viseu
Impressão e acabamento: Sá Pinto Encadernadores – Viseu
Depósito legal: 425874/17
ISBN: 978-989-759-090-0
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FERNANDO PAULO DO CARMO BAPTISTA
FERNANDO PAULO BAPTISTA
aA SINFONIAuniversal
sinfonia UNIVERSAL
do DO
amor
AMORfraterno
FRATERNO
TRAJECTO ASCENSIONAL
NO
noDAtrajecto ascensional
HUMANIZAÇÃO DO MUNDO
da humanização do mundo
– Tributo lusíada de jubilosa
Tributo lusíada de jubilosa gratulação
gratulação a Sua Santidade
a Sua Santidade o PAPA FRANCISCO,
o PAPA FRANCISCO,
seu encantador «Maestro»
seu encantador “Maestro”
e «Mensageiro-Poeta» e
Planetário –
“Mensageiro-Poeta” Planetário
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
NO TRAJECTO ASCENSIONAL
DA HUMANIZAÇÃO DO MUNDO
— Tributo lusíada de jubilosa gratulação
a Sua Santidade o PAPA FRANCISCO, seu encantador
“Maestro”
e “Mensageiro-Poeta” Planetário —
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
I. ABERTURA:
1. Este nome “Francisco”
2. Irmão Francisco (poema de Manuel Alegre)
9
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
Este nome “FRANCISCO”...
O nome próprio “Francisco” aparece em documentos italianos
dos séculos XI e XII, sob as formas latinizadas de “Francescus” e
“Franciscus”, dando origem, a primeira, ao antropónimo italiano
“Francesco” e a segunda, ao seu homólogo hispânico “Francisco”.
Estes dois nomes próprios e o adjectivo “frank / franc” são
lexemas pertencentes à mesma família e integram o “inventário” lexical
do “frâncico” que era a língua da etnia dos Francos, antigo povo
germânico que habitava uma região situada no oeste do Reno e que
dominou grande parte da Europa Central, desde o século V.
Assim, quer o adjectivo “frank / franc”, quer o nome etno-
gentílico “Franco” apresentam no fulcro da sua morfo-estrutura a
mesma raiz “frank- / franc-” que está na base da semântica
identificacional de todo um povo — os Francos — e da sua língua
histórica o “frâncico”.
Por outro lado, é ainda esta mesma raiz “frank- / franc-” que
está presente no adjectivo medieval latinizado “francus (> franco)”,
com que se identificava e caracterizava um cidadão daquela etnia e, por
extensão semântica, um cidadão que (porque beneficiário de
“franquias”) circulava isento do pagamento de taxas, um cidadão de
condição livre e com práticas de liberalidade e altruísmo e que se
11
Fernando Paulo do Carmo Baptista
exprimia livremente, dizendo o que pensava», revelando, em suma, um
carácter de nobreza e fidalguia de espírito...
Por metonímia e com o evoluir do processo histórico-político, o
adjectivo francus > franco passou a designar também, mais
especificamente, a pequena região do norte de Paris habitada pelos
Francos e, mais tarde, a identificar, mais alargadamente, aquele que
veio a ser o “País dos Franceis ou dos Français”: a “France” [<
Francia, em latim medieval], projectando-se, em plenitude, na
“França” da “Liberté”, da “Égalité” e da “Fraternité” que vem
pervivendo como Grande Nação Europeia até aos dias de hoje...
***
A partir da semântica matricial inseminada na raiz “frank- /
franc-”(*) — e no quadro interactivo dos específicos contextos e
(*) Cf. Roberto Faure Sabater: Diccionario de nombres propios, Madrid, Editorial
Espasa Calpe, 2002, entradas «Francisco» e «Franco»; Emidio De Felice: Dizionario
dei nomi italiani: origine, etimologia, storia, diffusione e frequenza di oltre 18000
nomi, Milano, A. Mondadori, 1986; Robert K. Barnhart (edit.): Chambers Dictionary
of Etymology Edinburg / New York Chambers Harrap Publishers 2001, entrada
«frank1»; T. F. Hoad (edit.): The Concise Oxford Dictionary of English Etymology,
Oxford, Oxford, University Press, 2003, entradas «frank» e «Frank»; Emmanuèlle
Baumgartner et Philippe Ménard (dir.): Dictionnaire étymologique et historique du
français, Paris, Librairie Générale Française, 2007, entradas «franc», «français»,
«franco»; Jacqueline Picoche: Dictionnaire étymologique du français, 1999, Paris, Le
Robert, 1996, entrada «franc»; Jean Dubois, Henri Mitterand et Albert Dauzat:
Dictionnaire étymologique et historique du français, Paris, Larousse, 1999, entrada
«franc», «français»; Alain Rey (Dir.): Dictionnaire historique de la langue française,
12
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
dinamismos histórico-sociais de natureza geo-etno-cultural e política
—, foram-se configurando diacronicamente “conteúdos noético-
eidéticos” como os de liberdade, libertação, franqueza, liberalidade,
generosidade, magnanimidade, candura, sinceridade, simplicidade,
autenticidade...
Na minha convicção de filólogo, esta sintética abordagem de
natureza etimológico-lexicológica põe em evidência traços semânticos
matriciais que corroboram A ENORME COERÊNCIA entre o “significado
primigénio” do nome próprio “Francisco” e o “conteúdo etológico” da
acção protagonizada pelo seu titular — o Papa Francisco —, acção
comovente e exemplarmente mobilizadora que está indelevelmente
marcada pelos valores da libertação, magnanimidade, candura,
simplicidade, autenticidade... Numa palavra: Jorge Mario Bergoglio,
ao ter escolhido “São Francisco de Assis” para seu “Padrinho
Pontificial”, não só soube escolher, mas também está a fazer jus
celebratório ao “Poverello” e a honrar condignamente o seu “santo
nome”, não o invocando, pois, em vão...
E tem sido esta coerência profunda entre “palavra e acção”
que (parafraseando adaptativamente Walter Benjamin) vem permitindo
e garantindo, com encantadora e cativante consistência, que em asas de
anjo, venha pairando a Música e que o mistério se venha afirmando
como o fundamento existencial e divino da revelação da própria
Beleza. E tudo isso, porque a Verdade é descoberta na essência da
linguagem (cf. Walter Benjamin: Ensaios sobre Literatura [edição e
tradução de João Barrento], Lisboa, Assírio & Alvim, 2016, pp. 129 ss).
Essa “descoberta” não deixa de convocar, neste contexto, a
famosa “lição” de Heidegger, quando, na Carta sobre o Humanismo
(cf. Martin Heidegger: Lettre sur l’Humanisme, Paris, Aubier
Montaigne, edição bilingue, 1964, pp. 76-77, 162-163), nos dá, através
das célebres e belíssimas metáforas aí consignadas, «o Homem como o
Pastor do Ser» [«der Mensch ist der Hirt des Seins»] e a linguagem
como sendo, ao mesmo tempo, «a morada do Ser» e «o abrigo da
essência do Homem» [«ist die Sprache zumal das Haus des Seins und
die Behausung des Menschenwesens»], significando, com isso, que é
na mais funda interioridade de cada um de nós e para lá de qualquer
Paris, Le Robert, 1992, entradas «Franc, Franche», «Franc, Franque», «Français,
Française»...
13
Fernando Paulo do Carmo Baptista
“jogo de máscaras”, que germina, se desvela e se move todo o enigma
do homem e todo o mistério da vida e do mundo» (Cf. Fernando Paulo
Baptista: Tributo à Madre Língua, Coimbra, Pé de Página Editores,
2003, p. 164).
***
São várias as figuras do universo da religiosidade e do sagra-
do que imortalizaram o nome “Francisco” pelo “exemplo de vida” que
protagonizaram: Francisco de Assis (1181-1226), Francisco de Paula
(1416-1507), Francisco Xavier (1506-1552), Francisco de Borja (1510-
1572), Francisco Caracciolo (1563-1608), Francisco de Sales (1567-
1622)...
Mas, DE TODOS ELES, AQUELE QUE CONDUZIU A SUA
VIDA MAIS EM SINTONIA COM A SEMÂNTICA FUNDACIONAL
DO SEU NOME E ATINGIU O PONTO MAIS ALTO DO ENCAN-
TAMENTO MOBILIZADOR PARA A “POÉTICA DA TRANSFOR-
MAÇÃO HUMANIZADORA DO MUNDO” FOI FRANCISCO DE
ASSIS, tal como ressalta da sua famosa “Oração”:
«Senhor, fazei de mim um instrumento de Vossa Paz.
Onde houver ódio, que eu leve o Amor;
Onde houver ofensa, que eu leve o Perdão;
Onde houver discórdia, que eu leve a União;
Onde houver dúvida, que eu leve a Fé;
Onde houver erro, que eu leve a Verdade;
Onde houver desespero, que eu leve a Esperança;
Onde houver tristeza, que eu leve a Alegria;
Onde houver trevas, que eu leve a Luz.
Mestre, fazei com que eu procure mais
consolar, que ser consolado;
compreender, que ser compreendido;
amar, que ser amado.
Pois é dando que se recebe,
é perdoando que se é perdoado...
e é morrendo que se vive para a Vida Eterna».
14
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
Oração que se projecta, em comovedor registo poético, no
“Laudato Si, mi’ Signore”: (...) pela nossa irmã, a mãe Terra, que nos
sustenta e governa e produz variados frutos com flores coloridas e
verduras».
Foi, pois, com inteira coerência que o CARDEAL JORGE MARIO
BERGOGLIO, uma vez eleito para ocupar a “Cátedra de São Pedro”,
escolheu o simbolicamente tão simples nome identitário de
“Francisco”, inspirando-se naquele que tomou como “paradigma”: S.
Francisco de Assis. E fê-lo, assumindo o seu “Cantico di Frate Sole”
como emblemático “Poema” modelador da sua “Acção Pastoral”:
Altissimu, onnipotente, bon Signore,
tue so’ le laude, la gloria e l’honore et onne benedictione.
Ad te solo, Altissimo, se konfano,
et nullu homo ène dignu te mentovare.
Laudato sie, mi’ Signore, cum tucte le tue creature,
spetialmente messor lo frate sole,
lo qual’è iorno, et allumini noi per lui.
Et ellu è bellu e radiante cum grande splendore:
de te, Altissimo, porta significatione.
Laudato si’, mi’ Signore, per sora luna e le stelle:
in celu l’ài formate clarite et pretiose et belle.
Laudato si’, mi’ Signore, per frate vento
et per aere et nubilo et sereno et onne tempo,
per lo quale a le tue creature dài sustentamento.
Laudato si’, mi’ Signore, per sor’aqua,
la quale è multo utile et humile et pretiosa et casta.
Laudato si’, mi’ Signore, per frate focu,
per lo quale ennallumini la nocte:
ed ello è bello et iocundo et robustoso et forte.
Laudato si’, mi’ Signore, per sora nostra matre terra,
la quale ne sustenta et governa,
et produce diversi fructi con coloriti flori et herba.
Laudato si’, mi’ Signore, per quelli ke perdonano per lo tuo amore
et sostengo infirmitate et tribulatione.
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Fernando Paulo do Carmo Baptista
Beati quelli ke ’l sosterrano in pace,
ka da te, Altissimo, sirano incoronati.
Laudato si’, mi’ Signore, per sora nostra morte corporale,
da la quale nullu homo vivente pò skappare:
guai a·cquelli ke morrano ne le peccata mortali;
beati quelli ke trovarà ne le tue sanctissime voluntati,
ka la morte secunda no ’l farrà male.
Laudate e benedicete mi’ Signore et rengratiate
e serviateli cum grande humilitate.
(Cf. Mario Pazzaglia: Gli Autori della letteratura italiana
— Antologia ad uso dei Licei e degli Istituti Magistrali,
Bologna, Zanichelli, 1980, volume primo, pp. 105-107)
E foi também na harmonia da transparência irradiante que
construiu e promulgou uma das mais belas “partituras” sapienciais e
doutrinais — a Carta Encíclica «Laudato si’» — sobre o cuidado
holístico-sistémico a ser dedicado à “Casa Comum Planetária”,
partitura essa, marcada pela presença incontornável do seu “Angelus”
inspirador, não só enquanto poético “Patrono” neo-baptismal, mas
também enquanto “Modelo” de referência para a Pastoral da “Pater-
nosterização do Mundo” e, consequentemente, da sua “Fraterização”:
— FRANCISCO DE ASSIS —
Na verdade, nesse encantador e estelar “Εὐαγγέλιον
(Evangelium) Pastoral” que fundamenta e orienta o “Magistério Social”
do Papa Francisco aparece explicado, com toda a clareza e candura
comunicativa, não só “o porquê”, mas também “o para quê” da escolha
do “Poeta de Assis”, para seu modelo e bússola:
«10. Não quero prosseguir esta encíclica sem invocar um
modelo belo e motivador. Tomei o seu nome por guia e inspiração, no
momento da minha eleição para Bispo de Roma. Acho que Francisco é
o exemplo por excelência do cuidado pelo que é frágil e por uma
ecologia integral, vivida com alegria e autenticidade. É o santo
padroeiro de todos os que estudam e trabalham no campo da ecologia,
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A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
amado também por muitos que não são cristãos. Manifestou uma
atenção particular pela criação de Deus e pelos mais pobres e
abandonados. Amava e era amado pela sua alegria, a sua dedicação
generosa, o seu coração universal. Era um místico e um peregrino que
vivia com simplicidade e numa maravilhosa harmonia com Deus, com
os outros, com a natureza e consigo mesmo. Nele se nota até que ponto
são inseparáveis a preocupação pela natureza, a justiça para com os
pobres, o empenhamento na sociedade e a paz interior.
11. O seu testemunho mostra-nos também que uma ecologia
integral requer abertura para categorias que transcendem a linguagem
das ciências exactas ou da biologia e nos põem em contacto com a
essência do ser humano. Tal como acontece a uma pessoa quando se
enamora por outra, a reacção de Francisco, sempre que olhava o sol,
a lua ou os minúsculos animais, era cantar, envolvendo no seu louvor
todas as outras criaturas. Entrava em comunicação com toda a
criação, chegando mesmo a pregar às flores «convidando-as a louvar
o Senhor, como se gozassem do dom da razão». A sua reacção
ultrapassava de longe uma mera avaliação intelectual ou um cálculo
económico, porque, para ele, qualquer criatura era uma irmã, unida a
ele por laços de carinho. Por isso, sentia-se chamado a cuidar de tudo
o que existe. São Boaventura, seu discípulo, contava que ele,
«enchendo-se da maior ternura ao considerar a origem comum de
todas as coisas, dava a todas as criaturas – por mais desprezíveis que
parecessem — o doce nome de irmãos e irmãs». Esta convicção não
pode ser desvalorizada como romantismo irracional, pois influi nas
opções que determinam o nosso comportamento. Se nos aproximarmos
da natureza e do meio ambiente sem esta abertura para a admiração e
o encanto, se deixarmos de falar a língua da fraternidade e da beleza
na nossa relação com o mundo, então as nossas atitudes serão as do
dominador, do consumidor ou de um mero explorador dos recursos
naturais, incapaz de pôr um limite aos seus interesses imediatos. Pelo
contrário, se nos sentirmos intimamente unidos a tudo o que existe,
então brotarão de modo espontâneo a sobriedade e a solicitude. A
pobreza e a austeridade de São Francisco não eram simplesmente um
ascetismo exterior, mas algo de mais radical: uma renúncia a fazer da
realidade um mero objecto de uso e domínio.
12. Por outro lado, São Francisco, fiel à Sagrada Escritura,
propõe-nos reconhecer a natureza como um livro esplêndido onde
17
Fernando Paulo do Carmo Baptista
Deus nos fala e transmite algo da sua beleza e bondade: «Na grandeza
e na beleza das criaturas, contempla-se, por analogia, o seu Criador»
(Sab 13, 5) e «o que é invisível n’Ele — o seu eterno poder e divindade
— tornou-se visível à inteligência, desde a criação do mundo, nas suas
obras» (Rm 1, 20). Por isso, Francisco pedia que, no convento, se
deixasse sempre uma parte do horto por cultivar para aí crescerem as
ervas silvestres, a fim de que, quem as admirasse, pudesse elevar o seu
pensamento a Deus, autor de tanta beleza. O mundo é algo mais do que
um problema a resolver; é um mistério gozoso que contemplamos na
alegria e no louvor.
O MEU APELO
13. O urgente desafio de proteger a nossa casa comum inclui
a preocupação de unir toda a família humana na busca de um
desenvolvimento sustentável e integral, pois sabemos que as coisas
podem mudar. O Criador não nos abandona, nunca recua no seu
projecto de amor, nem Se arrepende de nos ter criado. A humanidade
possui ainda a capacidade de colaborar na construção da nossa casa
comum. Desejo agradecer, encorajar e manifestar apreço a quantos,
nos mais variados sectores da actividade humana, estão a trabalhar
para garantir a protecção da casa que partilhamos. Uma especial
gratidão é devida àqueles que lutam, com vigor, por resolver as
dramáticas consequências da degradação ambiental na vida dos mais
pobres do mundo. Os jovens exigem de nós uma mudança; interrogam-
se como se pode pretender construir um futuro melhor, sem pensar na
crise do meio ambiente e nos sofrimentos dos excluídos.
14. Lanço um convite urgente a renovar o diálogo sobre a
maneira como estamos a construir o futuro do planeta. Precisamos de
um debate que nos una a todos, porque o desafio ambiental, que
vivemos, e as suas raízes humanas dizem respeito e têm impacto sobre
todos nós. O movimento ecológico mundial já percorreu um longo e
rico caminho, tendo gerado numerosas agregações de cidadãos que
ajudaram na consciencialização. Infelizmente, muitos esforços na
busca de soluções concretas para a crise ambiental acabam, com
frequência, frustrados não só pela recusa dos poderosos, mas também
18
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
pelo desinteresse dos outros. As atitudes que dificultam os caminhos de
solução, mesmo entre os crentes, vão da negação do problema à
indiferença, à resignação acomodada ou à confiança cega nas soluções
técnicas. Precisamos de nova solidariedade universal. Como disseram
os bispos da África do Sul, «são necessários os talentos e o
envolvimento de todos para reparar o dano causado pelos humanos
sobre a criação de Deus». Todos podemos colaborar, como
instrumentos de Deus, no cuidado da criação, cada um a partir da sua
cultura, experiência, iniciativas e capacidades.
15. Espero que esta carta encíclica, que se insere no
magistério social da Igreja, nos ajude a reconhecer a grandeza, a
urgência e a beleza do desafio que temos pela frente. Em primeiro
lugar, farei uma breve resenha dos vários aspectos da actual crise
ecológica, com o objectivo de assumir os melhores frutos da pesquisa
científica actualmente disponível, deixar-se tocar por ela em
profundidade e dar uma base concreta ao percurso ético e espiritual
seguido. A partir desta panorâmica, retomarei algumas argumentações
que derivam da tradição judaico-cristã, a fim de dar maior coerência
ao nosso compromisso com o meio ambiente. Depois procurarei chegar
às raízes da situação actual, de modo a individuar não apenas os seus
sintomas, mas também as causas mais profundas. Poderemos assim
propor uma ecologia que, nas suas várias dimensões, integre o lugar
específico que o ser humano ocupa neste mundo e as suas relações com
a realidade que o rodeia. À luz desta reflexão, quereria dar mais um
passo, verificando algumas das grandes linhas de diálogo e de acção
que envolvem seja cada um de nós seja a política internacional.
Finalmente, convencido – como estou – de que toda a mudança tem
necessidade de motivações e dum caminho educativo, proporei
algumas linhas de maturação humana inspiradas no tesouro da
experiência espiritual cristã.»
(Cf. Papa Francisco: Carta Encíclica “Laudato Si’
sobre o cuidado da casa comum”:
http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals/documents/papa-
francesco_20150524_enciclica-laudato-si.html)
19
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
IRMÃO FRANCISCO
Há muitos anos já o San Lorenzo de Almagro
ganhou em Lisboa por dez e no Porto por nove.
Foi a melhor equipa que já vi. Só não imaginava
que um seu adepto chamado Bergoglio
viria a ser Papa. Ainda guarda a camisola
mas hoje a bola é sua irmã Terra
e o seu clube a humanidade sua irmã.
Ele lava os pés aos pobres
e as suas palavras lavam a nossa alma.
Francisco trouxe um novo Mundo ao Mundo
porque veio clamar justiça contra a injustiça
e ao capitalismo chamou capitalismo
contra o bezerro de oiro e o império do dinheiro
como outro Francisco ele é irmão dos que precisam
à desigualdade chamou desigualdade
e à guerra chamou guerra
desocultou o pecado a hipocrisia a corrupção
a palavra do homem estava pervertida
com Francisco a palavra libertou-se
e voltou a ser palavra que liberta.
Lisboa, 21.04.2017
Manuel Alegre
21
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
II. Rapsódia Ensaística
23
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
1. Segredo... Mistério... Fé... Deus e o Homem...
«Os altíssimos e impressionantes silêncios
dos espaços siderais são (...) simbolicamente
quebrados pelo canto da fé.»
«... o universo contém
uma “música teológica” silenciosa.»
«Os grandes meios de comunicação,
a partir da televisão e da internet,
ensinam-nos tudo
sobre as modas e os modos de viver,
sobre a alimentação e o consumo,
mas ignoram qualquer interrogação
e resposta sobre o sentido da vida.»1
1
Gianfranco Ravasi: O Grande Encontro entre Deus e sua Criatura, Prior Velho,
Paulinas Editora, 2012, pp. 29, 31, 95, respectivamente.
25
Fernando Paulo do Carmo Baptista
A questão do “SEGREDO”, pensada no estrito contexto da
dimensão religiosa da Fé e sob um enfoque filológico-linguístico,
simbólico e antropológico-cultural2, não dispensa uma referência, ainda
que sumária, à multiplicidade de áreas, instâncias e instituições da vida
social e comunitária e respectivas práticas comunicacionais e
relacionais em que o termo ‘segredo’ aparece como recorrente
designador conceptual. Basta pensar, a título de exemplo, em lexias,
colocações, frasemas ou quase-frasemas3 já tão consagrados como os
seguintes: «segredo de Estado», «segredo militar», «serviços secretos»
(Política, Defesa, Segurança), «segredo de justiça» (Direito,
Tribunais), «segredo [sigilo] de confissão» (Religião Católica —
Direito Canónico), «segredo científico» (Investigação e
Experimentação Científicas), «segredo [sigilo] profissional»
(Deontologia Profissional), «segredo [sigilo] bancário» (Economia /
Finanças), «segredo das fontes» (Comunicação Social)4...
E se avançarmos no sentido da interpretação e da compreensão
do conteúdo noético-noemático do conceito nomeado por este lexema,
torna-se imprescindível postular (como sistemático, direccionante e
2
Tal foi a proposta do tão desafiante quanto honroso convite que me foi dirigido pelo
Secretariado do Santuário de Fátima, para colaborar na revista Fátima XXI, Fátima,
Santuário de Nossa Senhora do Rosário de Fátima (cf. o n.º 0 da revista, com data de
13 de Maio, 2014, pp. 49-53).
3
Sobre estes conceitos, ver Álvaro Iriarte Sanromán: A Unidade Lexicográfica –
Palavras, Colocações, Frasemas, Pragmatemas (dissertação de Doutoramento),
Braga, Centro de Estudos Humanísticos, Universidade do Minho, 2001, pp. 138-149
e 169-204.
4
Cf., a título documentativo, a Lei n.º 6/94, de 7 de Abril; Luísa Maria Pinto Teixeira:
Segredo de Justiça (dissertação de Mestrado em Direito Judiciário), Braga,
Universidade do Minho, 2011, com a ampla e diversificada bibliografia que a suporta,
do ponto de vista da informação, fundamentação e argumentação; o Acórdão nº.
1560/08.3TBOAZ.P1.S1 do Supremo Tribunal de Justiça, 16 de Março de 2011; o
Decreto-Lei nº. 278/2009, de 02 de Outubro de 2009; o artigo jornalístico de opinião,
intitulado «Segredos e sigilo, fontes confidenciais e confidencialidade», subscrito por
Óscar Mascarenhas no DN, de 1 de Dezembro de 2012; Carlos Mateus: Deontologia
Profissional (I e II cursos de Estágio de Advogados), Lisboa, VerboJurídico, 2011;
Carlos Mateus: Deontologia Forense — Limites ao exercício da profissão de
advogado, Póvoa de Varzim, Carlos Mateus & Associados, VerboJurídico, 2011; cf.
também António Leite: artigo «segredo [sigilo]», com suas especificações, na
Enciclopédia Verbo Luso-Brasileira de Cultura, Edição Século XXI, 2003, vol. 26,
pp. 607-609.
26
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
activador pressuposto hermenêutico de uma sua sustentada e
contextualizada inteligibilidade...) a interacção analítico-dialéctica e
dialógico-articulatória com uma vasta rede sapiencial, nominalmente
condensada e enciclopaideuticamente polarizada em configurações
gnosiológicas tão complexas como as seguintes:
universo, tempo, espaço, duração, matéria, natureza, evolução,
vida, animalidade, hominização, homem (anthropos), corpo, mente,
sensibilidade, (auto)consciência, imaginação, criatividade, alma,
espírito, Deus, tudo, nada, relativo, absoluto, imanência,
transcendência, finito, infinito, física, metafísica, natural,
sobrenatural, indivíduo, identidade, diferença, ipseidade, alteridade,
subjectividade, intersubjectividade, sociedade, comunidade, público,
privado, sagrado, profano, necessidade, liberdade, alienação,
angústia, niilismo, absurdo, racionalidade, irracionalidade, trans-
racionalidade, superstição, ignorância, informação, conhecimento,
cultura, civilização, valores, historicidade, tradição, modernidade,
ciência, arte (poesia, música, arquitectura...), imperfeição, perfeição,
pecado, santidade, dogma, problema, silêncio, sigilo,
confidencialidade, enigma, mistério, milagre, crítica, agnosticismo, fé,
religião, misticismo, catarse, soteriologia, escatologia, eternidade...5
5
Cf. Giuseppe Tanzella Nitti e Alberto Strumia (coords.): Dizionario
Interdisciplinare di Scienza e Fede, Urbaniana University Press, Città del Vaticano,
2002, 2 vols, nos seguintes artigos, entre outros: Agnosticismo, Anima, Antropico
(Principio), Ateismo, Bellezza, Biologia, Cielo, Cosmo (Osservazione), Creazione,
Cultura, Cuore, Determinismo, Dialogo Scienze-Teologia, Dio, Epistemologia,
Ermeneutica, Evoluzione, Etica del lavoro scientifico, Fideismo, Genetica, Gesù
Cristo, Infinito, Informazione, Materia, Miracolo, Mistero, Mito, Panteismo,
Positivismo, Preghiera, Progresso, Ragione, Resurrezione, Scienza, Scienze Naturali
(utilizzo in Teologia), Simbolo, Spirito, Tempo, Unità del Sapere, Universo, Uomo
(identità biologica e culturale), Vangeli, Verità; cf., igualmente, Mariano Moreno
Villa (dir.): Diccionario de Pensamiento Contemporáneo, Madrid, San Pablo, 1997,
nos seguintes artigos (com suas conexões e implicações dialógicas): Absoluto,
Absurdo, Agnosticismo, Alma, Amor, Angustia, Antropología, Ateísmo, Axiología
personalista, Belleza, Bien y bien común, Carácter, Carisma, Ciencia, Compasión,
Compromiso, Comunicación, Comunidad, Confianza, Contemplación, Contingencia,
Corazón, Creencia, Cristianismo, Cuerpo (corporeidad-corporalidad), Culpa e
inocencia, Cultura, Deber, Derechos humanos, Deseo, Determinismo e
indeterminismo, Diálogo, Dios, Donación, Encuentro, Esperanza, Espiritualidad,
Estética, Ética, Existencia, Fe, Felicidad, Fidelidad, Finitud, Fraternidad,
27
Fernando Paulo do Carmo Baptista
Importa, pois, que essa “rede” poli-sófica esteja sempre
presente, ainda que de modo implícito (como background sapiencial
potenciador da delimitação e especificação semântico-semiósica do
termo e conceito de “segredo”), na presente e condensada reflexão...
Todavia, em assumida consonância com o primigénio
ensinamento “cosmo(texto)gónico” de que «no princípio está o verbo»
(João: Ev.,1), a abordagem ao complexo conteúdo eidético-conceptual
do “SEGREDO” não pode nem deve prescindir da consciência da
profundidade genealógico-significante da palavra que o identifica,
demarca e singulariza, na medida em que, em meu entendimento, a
palavra, pensada, por um lado, em sua estrita singularidade de
«monema lexical», não deixa de ser um búzio polifónico, espiral e
verticalmente carregado de fundura histórica, de memória, de mistério
e de potencial semiogénico e, mais holisticamente perspectivada, pelo
outro, em sua universal dimensão antropológica e essência semiótico-
linguística como «faculdade simbólico-comunicacional», é, para
Heidegger, «simultaneamente a morada do Ser e o abrigo da essência
do Homem»6 ou, no belo e incisivo encadeamento metafórico do
Hedonismo, Hermenéutica, Hombre (varón-mujer), Humanismo, Igualdad, Infinito,
Interpersonalidad e intersubjetividad, Justicia, Lenguaje, Libertad, Mal, Materia,
Metafisica, Misterio, Muerte, Mundo y cosmos, Nada y nihilismo, Naturaleza,
Palabra, Persona, Política, Razón y racionalidad, Religión, Respeto,
Responsabilidad, Revelación y epifanía del otro, Rostro, Sabiduría, Secularización y
secularismo, Sentido de la vida, Sentimiento, Ser, Solidaridad, Sufrimiento, Sujeto,
Teleología, Tener, Teología, Tolerancia, Totalidad, Trabajo, Trascendencia,
Trinidad, Utopía, Valor, Verdad, Vida, Virtud, Vocación, Yo y tú; cf. também, nas
entradas respectivas ou com elas correlacionáveis, a Enciclopédia Einaudi, Lisboa,
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1984-2000, vols. 1, 5, 9, 10, 12, 14, 18, 22, 33,
34, 35, 36, 37, 39, 40, 41; a Enciclopédia Verbo Luso-Brasileira de Cultura - Edição
Século XXI, Lisboa / São Paulo, Editorial Verbo, 1998-2003, onde se encontram
importantes artigos nas correspondentes entradas disseminadas pelos seus 29
volumes; a Catholic Encyclopedia (http://www.catholic.org/encyclopedia/), a Gran
Enciclopedia Rialp [GER]
http://www.canalsocial.net/GER/busquedaav.asp) e, ainda, Maryanne Cline Horowitz
(ed.): New Dictionary of the History of Ideas, New York – London, Thomson Gale,
2005, 6 vols.
6
«... ist die Sprache zumal das Haus des Seins und die Behausung des
Menschenwesens» (cf. Martin Heidegger: Lettre sur l’humanisme [edição bilingue,
com tradução de Roger Munier], Paris, Aubier, 1970, pp. 162-163).
28
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
inspirado poeta e ensaísta argentino Hugo Mujica7, «umbral y altar del
ser y el deseo...».
Por outro lado, depois da “lição” do consagrado linguista
M.A.K. Halliday, não é convalidável a conjectura de que se possa
engendrar, construir, constituir e organizar verbo-discursivamente
(logo-fanicamente) o conhecimento de qualquer área do “real” ou do
“ôntico” (seja ela antrópica ou meta-antrópica, cósmica ou meta-
cósmica, física ou meta-física, empírica ou ficcional...) que
fenomenologicamente se nos coloque à consideração e à reflexão, sem
o accionamento do “código lexical”, sem o recurso aos “lexemas” de
um dado “sistema linguístico”8.
É assim que se nos impõe como preludial condição uma
clarificadora “radicação” de natureza etimológico-filológica e
linguístico-lexicológica acerca da origem e significado do termo
‘segredo’.
Na verdade, se por um lado, e com Arnaldo de Pinho9,
genericamente aceitarmos que «toda a linguagem é lírica e crítica» e
que «a linguagem religiosa não constitui excepção à regra», e se, pelo
outro, reconhecermos que uma abordagem séria à problemática do
“SEGREDO” e do “SAGRADO”, seja qual for o prisma da sua
perspectivação, muito dificilmente poderá dispensar o inestimável
contributo reflexivo da Teologia, «o discurso teológico (como adverte
aquele nosso consagrado pensador desta profunda área sapiencial...),
7
Cf. Hugo Mujica: Flecha en la Niebla: Identidad, Palabra y Hendidura, Madrid,
Editorial Trotta, 1997, p. 167.
8
Na verdade, e em consonância com Halliday, é na lexicogramática (e mais
focadamente no léxico...) que reside «o coração da linguagem» («the heart of
language» [Halliday: 2003, 194]) e «a fonte da sua energia semiótica» («the source
of its semiotic energy» [Halliday: 2003, 276]), constituindo, assim, «a casa do poder
semiogénico de uma língua» («the semogenic powerhouse of a language» [Halliday:
2003, 248]), poder que transforma o léxico no “centro nevrálgico” da construção de
todas as significações e de todos os sentidos, numa palavra, de todo o conhecimento,
uma vez que é ele o insubstituível codificador, ordenador, sistematizador e informante
noético-noemático e semiósico e, assim, o imprescindível sustentáculo operatório da
acção verbo-comunicativa interpretante e expressante... Cf. M.A.K. Halliday: On
Language and Linguistics, London / New York, Continuum, 2003, nas páginas
referenciadas; cf. também Fernando Paulo Baptista: Nesta nossa doce língua de
Camões e de Aquilino, Sernancelhe, edição da CM de Sernancelhe, 2010, p. 59.
9
Cf. Arnaldo de Pinho: Teologia e Interpretação, vol. I, S. M. da Feira, Letras &
Coisas, 2012, pp. 171, 398, 400-401 e passim.
29
Fernando Paulo do Carmo Baptista
dissecado e cortado de suas raízes (que, importa sublinhá-lo bem, são
“raízes” verbo-simbólicas e, à partida e substantemente, semântico-
lexicais!...), arrisca-se a transformar-se num simples repertório
lógico» e muito dificilmente será aquela “instância da linguagem”
capaz de garantir a “função hermenêutica” de articular as enunciações
simbólicas com as enunciações doutrinais, potenciar o confronto com
os mitos10 e os símbolos11 da Sagrada Escritura e de outras meta-
narrativas religiosas, disponibilizar as formas e os meios de
representação e comunicação semiótica «no interior das quais as
questões mais profundas da vida profana podem ser reagrupadas,
compreendidas e redimidas», bem como promover o desenvolvimento
entre «o pensamento revelador e o pensamento expressivo». Tudo no
pressuposto de que «a cultura é, em primeiro lugar, o horizonte onde a
fé é vivida, com seu feixe de significações, de símbolos, de mitos e de
conceitos»12.
Comecemos, então, pela supra-anunciada e justificada
“radicação” em torno da origem e significado do termo ‘segredo’.
O nuclear, incindível e irredutível constituinte morfo-
semiogénico do corpo estrutural da palavra ‘segredo’ é a raiz indo-
europeia *[s]ker- / [s]kṛ- > [s]kar- / [s]kr-a- / [s]kr-e- / [s]kor-13,
10
Sobre o conceito de “mito”, dada a sua relevância e na perspectiva de um seu mais
adequado entendimento, considerar a informação veiculada, no fim, em ANOTAÇÕES:
1.
11
Sobre o conceito de “símbolo”, e com o mesmo objectivo, considerar,
analogamente, a informação apresentada, no fim, também em ANOTAÇÕES: 2.
12
Cf. Arnaldo de Pinho: op. cit., p. 398.
13
O lexema ‘segredo’ é um nome proveniente do substantivo neutro latino ‘secretum,
-i’, da mesma família do verbo secerno, -is, -ere, secrevi, secretum (= cortar, separar,
dividir, colocar à parte, retalhar separativamente com um instrumento cortante
[acepção físico-anatómica] ou com a mente [acepção distintivo-discernente,
intelectivo-cognitiva], de onde, o significado de «separar ou retirar algo do domínio
público para o circunscrever à esfera recatada, sigilosa e íntima de pessoas ou
instituções»...); o verbo secerno é, como se pode verificar através da sua análise ou
decomposição morfémica (< sē + cer- + -no), um cognato prefixal formado a partir
do verbo cerno, -is, -ere, crevi, cretum (= cortar, separar, distinguir, discernir, ajuizar,
decidir...), em que o prefixo «se-» (também ele proveniente do indo-europeu *s(w)e-
, base do inglês «self» e base, também, do nosso pronome pessoal reflexo «-se»:
alegrar-se, alimentar-se, arrepender-se, cortar-se, lavar-se...) introduz uma função de
retro-flexidade (de retro-jectividade) do conteúdo semântico inseminado na raiz do
verbo em direcção ao “sujeito da enunciação”: «secedere», «secernere», «secludere»,
30
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
naturalmente modelada, em suas configurações concretas, por
variações de natureza morfogénica e por ampliamentos sufixais... Esta
importantíssima raiz, veiculadora do significado genealógico e
fundacional de cortar14, separar, apartar, marcar limites ou fronteiras,
em sentido próprio e em sentido figurado ou tropológico (este último,
através do “código retórico-estilístico”, com destaque para as figuras da
metáfora, do símbolo, da alegoria, da metonímia, da hipérbole...), está
na base (com muito próxima isomorfia e afinidade lexical na
generalidade das “línguas românicas”: espanhol, francês, italiano...) de
«seducere», «segregare»...; por sua vez, o verbo cerno (< cer- + -no) apresenta no seu
«tema temporal» de “presente” a variante da raiz indo-europeia cer- (< ker-) no «grau
e», com a adjunção do sufixo verbal –no, típico de alguns presentes latinos e gregos
(exs: dam-no, -as, -are; dãk-nv [dak-no]...), raiz com a qual se relacionam morfo-
semanticamente lexemas latinos como carpere (= colher, cortar o fruto da árvore),
certamen (= luta, combate), cerniculum (= julgamento, crivo), concernere (= juntar,
misturar as sementes [ou as ideias] no crivo para as seleccionar), concretum, corium
(= couro, pele que foi esfolada), coriaceus, corticeus, -a, -um (= relativo à casca do
sobreiro; cortiça), cribrare, cribrum (ex.: «per cribrum cernere: passar pelo crivo,
passar a pente fino), crimen, criminalis, curtare, curtus, decorticatio (=
descascagem), decorticare (= descascar), discernere, discretio, discretum, discrimen,
discriminator, discriminare, excorticare (= tirar a casca, descascar, esfolar a pele),
secretarium (lat. medieval: sala de reuniões sigilosas, feitas à parte, em segredo, como
é o caso da generalidade das reuniões dos júris...), secretarius (lat. medieval: = pessoa
pressupostamente culta e competente, incumbida do cargo de elaborar e redigir
documentos institucionais importantes e reservados e de tratar, de modo distintivo e
criterioso e com a devida segurança e confidencialidade, assuntos de natureza
sigilosa; secretário), secrete, secretim, secretio, secretiora, secreto, secretus, -a, -um
(= separado, colocado à parte, fora do alcance da vista, escondido...), scribere (= fazer
incisões [grafémicas], escrever), scriptor (= escritor), scriptura (= escritura), scrobis
(= escavação, cova, fossa), scortum (= couro), scortea (= casacão de pele), scrutinium
(= escrutínio, exame cuidadoso e pormenorizado)...
14
Com a consciência bem clara de que a ideia de “cortar” não deixa de implicar
também consigo as ideias de ferir, esfolar, descascar, arrancar a pele ou o couro,
magoar, fazer doer, causar dor e sofrimento..., cabendo, todavia, complementar toda
esta carga semântica matricial com o valorador, humanizador e poiético entendimento
de Hugo Mujica, segundo o qual, «el dolor es el don de la hondura», que «duele todo
aquello que abre y que cava más hondo de onde uno ya llegó», que «por un lado, el
dolor ahonda y, por otro, desde esa honhura el amor se expande» e que «(...) ésos
son los dos movimientos, el flujo y el reflujo de la vida». (Hujo Mujica apud Gabriel
Aranovich, Marta Rodríguez Santamaría, Marta Santamaría (orgs.): La Argentina
pensada: diálogos para un país posible, Buenos Aires, Editorial Biblos, 1998, p. 196).
31
Fernando Paulo do Carmo Baptista
um vasto conjunto de vocábulos da mesma família, de que fazem parte,
entre outros, os seguintes:
carne, carnificina, carnívoro, carpo, certame, certeza,
certificar, certo, charcutaria, concernente, concertar, córtex, cortiça,
couraça, couro, crise, critério, crítico, crivo, curto, decreto, descarnar,
diacrítico, discernimento, discernir, encarnação, encarnar, encurtar,
endócrino, escaramuça, escarpa, escassez, escoriação, escorpião,
escrever, escritura, escrúpulo, escrupuloso, escrutinar, escrutínio,
excremento, exócrino, hipocrisia, sarcasmo, sarcástico, secretaria,
secretariado, secretário...15
15
De sublinhar, numa perspectiva de comparação inter-linguística e inter-lexical, a
presença desta fecundíssima raiz (para além, como vimos, da matricial língua latina...)
no inventário lexical de várias outras línguas indo-europeias, transportando em si o
sema genómico e transversal de «cortar» (tanto em sentido próprio, como em sentido
figurado); assim e por exemplo: em grego: ke€rv [keiro] (= cortar, podar), kermat€zv
[kermatizo] (= cortar em pequenos pedaços), kormÒw [kormos] (= pequeno pedaço ou
fatia que resulta de um corte), karpÒw [karpos] (= o que se corta ou retira da árvore
para ser comido, fruto), kr€nv [krino] (= cortar, separar, fazer a triagem, escolher,
distinguir o essencial do acessório, para poder ajuizar do que é verdadeiramente
importante e, depois, decidir...), diakr€nv [diakrino] (= separar), kr€ma [krima] (=
julgamento, decisão), kr€siw [krisis] (= corte analítico de exigente aprofundamento e
diagnóstico clarificador, de acurada destrinça mental para discernir com inteligência
os fenómenos, sua étio-génese e expressão patológica, ajuizar com competência e
rigor, tomar decisões ajustadas e equitativas (justas) e abrir caminhos alternativos para
uma superação criativa, inovadora, transformadora e humanizadora, face a uma
situação de rara complexidade problemática e aporética, com inusitadas e alarmantes
consequências sociais, como é a situação que vivemos...), kritÆr [kriter] (= juiz,
decisor), kritÆrion (= padrão de referência que ajuda a cortar mentalmente, a separar,
a clarificar, a discernir, a distinguir e a diferenciar; princípio ou regra que permite
distinguir entre bem e mal, entre verdadeiro e falso, entre justo e injusto, etc...);
kritikÒw ([kritikos] (= preparado, qualificado para discernir, distinguir; crítico...),
sarkãzv [sarkazo] (= esfacelar a carne), sarkasmÒw [sarcasmos] (= sarcasmo,
figura de estilo que se caracteriza pela sua contundência e mordacidade), sãrj, -kÒw
[sarx, -kos] (= carne), sarkÒfagow [sarcofagos] (= sarcófago), skãrifow [scariphos]
(= estilete para escrever, para fazer as incisões grafémicas nas tabuinhas da escrita);
em sânscrito: kar (= mover de um lado para o outro, destacar), kart (= cortar), krnati
(= ferir), krtíh (= cutelo)...; em inglês: apocrine, carnage (= carnificina), certain,
concern, concert, cork (= cortiça para fazer rolhas), crime, criminal, crisis, criterion,
critic, decree, diacritic, discern, disconcert, eccrine, endocrine, epicritic, excrete,
exocrine, hematocrit (= tipo de análise hematológica que tem por objectivo medir a
percentagem do volume do sangue total que é composto pelas células vermelhas; esta
32
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
O conteúdo singularizante e significante do conceito de
“SEGREDO” institui-se efectivamente através de uma “linha de
separação e de fronteira”, de “corte” discernente e distintivo entre
público e privado, entre sagrado e profano, físico e metafísico, efémero
e lábil e perene e eterno, de tal modo que a fundura onto-antropológica
do ser humano se assume como a zona ou esfera reservada, sigilosa,
protegida e inviolável do “tesouro” (thesaurus) que o “MISTÉRIO” é16...
medição depende do número destas células e do seu tamanho), hypocrisy, garble,
incertitude, plowshare (= arado, alfaia agrícola que rasga, corta ou retalha a terra em
pedaços, deixando sulcos), recriminate, scar (= cicatriz), share (= partir em pedaços),
shear (= podar, tosquiar), shears (= tesouras), scabbard (= bainha da espada...),
scrape (= raspar), secretary, shard (= fragmento de uma peça de cerâmica, caco),
sharp (= afiar), short (= curto), skirmish (= escaramuça)...; em alemão: scheren (=
podar), Schere (= tesoura), schreiben (= escrever), Schriften (= escritura), Schroten
(= cortar, talhar), Schrot (= tronco), herbsten (= colher), Skrupel (= escrúpulo), Herbst
(= Outono, estação das colheitas), Kork (= cortiça para fazer rolhas, ou seja, a casca
cortada e extraída do tronco dos sobreiros), Scherbe (= fragmento de uma peça de
cerâmica, caco), Scharf (= talhante), schröpfen (= cortar superficialmente; escarificar
as sementes); em antigo norueguês: skarfr (= corte em diagonal), skyrta (= camisa de
manga curta) skor (= talhar), skrapa (= desfazer em pedaços)... Cf., entre vários
outros, nas entradas respeitantes à raiz em análise: Alfred Ernout / Antoine Meillet:
Dictionnaire étymologique de la langue latine: histoire des mots, Paris, Klincksieck,
4
2001; Pierre Chantraine: Dictionnaire étymologique de la langue grecque: histoire
des mots, Paris, Klincksieck, 1999; Joan Corominas e José A. Pascoal: Diccionario
Crítico Etimológico Castellano e Hispánico, Madrid, Editorial Gredos, 1991-1997, 5
vols; Robert Grandsaignes d’Hauterive: Dictionnaire des racines des langues
européennes, Paris, Larousse, 1994 (ed. facs.); Calvert Watkins: The American
Heritage Dictionary of Indo-European Roots, Boston-New York, Hougton Mifflin
Company, 22000; Edward Roberts e Barbara Pastor: Diccionario Etimológico
Indoeuropeo de la Lengua Española, Madrid, Alianza Editorial, 2007; Santiago
Segura Munguía: Nuevo diccionario etimológico Latín – Español y de las voces
derivadas, Bilbao, Universidad de Deusto, 2001; Idem: Diccionario por Raíces del
Latín y de las voces derivadas, 2006; Julius Pokorny: Indogermanisches
Etymologisches Wörterbuch, 2 vols., Tübingen, Francke A. Verlag, 2005; Douglas
Harper: Online Etymology Dictionary:
http://www.etymonline.com/index.php.
16
Cf. Jean Chevalier | Alain Gheerbrant: Dictionnaire des Symboles, Paris, Éditions
Robert Laffont, 1982, entrada «Trésor», p. 967: «Le Trésor caché» não só é «le
symbole de l’ Essence divine non manifestée» (...), mas é também «le symbole de la
vie intérieure (...)». «Le trésor n’est pas un don gratuit du ciel; il se découvre au terme
de longues épreuves». De um modo geral, os tesouros «são símbolos do
conhecimento, da imortalidade, dos depósitos espirituais, que só uma busca
arriscada permite alcançar. (...) O tesouro está geralmente no fundo das cavernas ou
33
Fernando Paulo do Carmo Baptista
E o MISTÉRIO (que «é o “segredo” de Deus relativamente ao
mundo»17), por mais que dele se tente dizer, por maior que seja o esforço
de racionalidade interpretativo-compreensiva e explicativa (exegética e
hermenêutica) que sobre ele se faça incidir, “resistirá” como uma
inatacável “fortaleza” de silencioso, meditativo e tremendo
“mutismo”18 encantatório que só a energia alumiante da FÉ consegue
transformar na desveladora, veritativa e reveladora élÆyeia
[alétheia]19 que se faz sentir, entender e viver em cada acto de amorável
partilha com o CRIADOR...
Essa poderá ser a “lição” maior da “Mística” e do “Misticismo”,
alicerçada numa forte base civilizacional e cultural, proporcionada pelo
vastíssimo e fascinante universo do Saber, desde a modelação antropo-
agógica, paidêutico-simbólica, onírico-ideativa, aisthésico-poiésica e
enterrado em subterrâneos. Esta situação simboliza as dificuldades inerentes à sua
procura, mas sobretudo a necessidade de um esforço humano. O tesouro não é um
dom gratuito do céu; descobre-se no fim de longas provações» (cf. a tradução
portuguesa deste mesmo Dicionário de Símbolos, Lisboa, Círculo de Leitores, 1997,
pp. 643-644).
17
Cf. Danielle Fouilloux et aliae: Dicionário Cultural da Bíblia, Lisboa, Publicações
Dom Quixote, 1996, entrada «Mistério», pp. 180-181. Mas, «ainda que oculto ao
entendimento de muitos, o “segredo” de Deus revela-se: Deus ama o mundo e não
quer que se perca; todos os homens foram chamados à salvação. A essência, o cerne
do “mistério“ no NT, é a vida, a cruz (o sofrimento partilhado por Deus) e a
ressurreição de Jesus, que antecipa a salvação final do universo. É por isso que, no
vocabulário cristão, o “mistério” designa sobretudo a “Páscoa” de Jesus e a sua
actualização na Eucaristia (...)» (ibidem).
18
Cabe lembrar que o lexema ‘mistério’ provém do nome latino ‘mysterium’ que tem
a sua matriz genética na raiz — *meu - / *m - / mu - —, portadora do significado
fundacional de «ficar em silêncio, permanecer mudo e de boca cerrada», postura típica
dos ritos “iniciáticos” e práticas “mistéricas” (“secretas”) como acontecia, por
exemplo, nos famosos Mistérios de Elêusis; esta raiz está igualmente presente no seu
homólogo grego mustÆrion (= segredo) — do qual foi decalcado para latim — e que
pertence à mesma família do verbo mÊv (= cerrar a boca, não dizer palavra), todos
eles relacionados com o adjectivo latino mutus, -a, -tum, no qual radicam os lexemas
‘mudo’, ‘mudez’ e ‘mutismo”...
19
Considerar, a propósito, o conceito heideggeriano de “verdade” como élÆyeia
[alétheia] (cf. Martin Heidegger: A Essência da Verdade; marcas do Caminho
[tradução de Enio Paulo Giachini e Ernildo Stein], Petrópolis, Vozes, 2008, pp. 25
ss.); relembrar também, neste contexto, a carta encíclica de Bento XVI: Caritas in
Veritate” apud:
http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/encyclicals/documents/hf_ben-
xvi_enc_20090629_caritas-in-veritate_lt.html
34
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
arquitectante das Humanidades (Línguas e Literaturas, Antropologia,
Psicologia, Sociologia, Direito, Filosofia, Teologia, etc...) e das Belas
Artes (com especial destaque para a Grande Poesia, a Grande
Arquitectura, a Grande Escultura, a Grande Pintura e o Grande Cinema
e, sobretudo, a Grande Música...) até à racionalidade paradigmática e
nomológico-explicativa das Ciências Puras e à operatividade
metrológica, tecnúrgica, instrumental, pragmática e mediadora das
Ciências Aplicadas e das Tecnologias...
Na construção desse universo educativo-formativo tem a
Universidade uma insubstituível missão na ascensional, plenificante e
perfectivante caminhada social e comunitária em direcção ao Futuro,
enquanto “Alma Mater” que alimenta e alumia a realização das nossas
potencialidades e faculdades antrópicas mais poderosas: a imaginação
criadora, a racionalidade crítica, argumentativa e judicativa, a
sensibilidade poética e estética, a memória informante, identificante e
referencializadora, a inteligência intuitiva, conjectural, teorética e
práxico-realizadora, a vontade resiliente, destemida, direccionante e
decisional...
A partir dessa base cultural e sapiencialmente mais exigente e
mais forte (mas de modo intersubjectivamente dialógico-dialéctico e
epistemológica e metodologicamente aberto e plural, problematizador,
indagante e interrogante...), a alma e o espírito do Homem ganham um
especial e sempre renovado alento para a sua empenhada e apaixonante
“náutica” em busca do “velo de ouro” de um sentido e de um horizonte
sem limites para a Vida e para o seu voo anabático em direcção ao
numinoso, ao santo, ao sagrado, ao divino ou último, numa dinâmica
transcendente que simbolicamente se dirige ao céu, como “lugar” da
divindade 20... Toda essa energética da “procura”, numa trans-
popperiana «búsqueda sin término», tem o seu foco irradiante no
“MISTÉRIO ” e na “FÉ”21. E hoje, mais do que nunca, «é preciso
20
Cf. Juan Antonio Estrada: El sentido y el sinsentido de la vida — Preguntas a la
filosofía y a la religión, Madrid, Editorial Trotta, 2010, p. 53.
21
Considere-se o seguinte passo do importante e bem informado artigo «Mistero» de
Tanzella-Nitti, op. cit., p. 987: «La riflessione dello scienziato sulla sua attività di
ricerca gli mostra il mondo come un mistero. Sono un mistero l’essere e l’esistenza
dell’universo, la sua coerenza, la nostra vita intelligente in esso. L’esperienza con
cui si percepisce la presenza di questo «mistero» è, in un certo senso, un’esperienza
di stupore, di riverenza ma anche di rivelazione: è la natura stessa a mostrarsi, a
35
Fernando Paulo do Carmo Baptista
acreditar!...» (Leonel Neves / Luiz Goes22) que o homem só se
humaniza, em plenitude, através da vivência dialógica com os
«mistérios de Deus» — Ele que é o “Alfa” fundamentante (mas sem
fundamentação) de todas as coisas e o “Ómega” alumiante da infinita
e absoluta “finalidade” sem fronteiras nem limites...
É assim que dos inenarráveis abismos das principialidades sem
princípio e das ultimidades sem fim, de onde tudo afinal toma começo,
irradia a “Luz” arquetípica e benfazeja do «Autor e Senhor da própria
Luz»23: Autor e Senhor que «no es el ser máximo, sino el totalmente
svelarsi. Lo scienziato semplicemente ci si imbatte. Infine, la realtà profonda cui
rimanda l’appello al mistero o al mistico non si esprime, non si formalizza, ma
costituisce piuttosto una base che sostiene il mondo dei fatti, il mondo di ciò che si
può esprimere o formalizzare. Così come in quella teologica, anche nella riflessione
scientifica il termine «mistero» non può identificarsi con i concetti di chiusura, limite
o preclusione, anche se ne contiene alcuni elementi. La percezione del mistero
rappresenta piuttosto un’apertura che attraversa l’esperienza del limite, ma la supera;
non con gli strumenti della conoscenza scientifica, ma mediante una conoscenza che
la trascende, sostanzialmente di tipo estetico, contemplativo o mistico. Il mistero di
cui parlano a volte gli scienziati pare assumere i caratteri di un’apertura dall’interno
della scienza verso qualcosa che trascende la scienza stessa». Mas o que deveras nos
espanta, «o que, efectivamente, constitui o carácter incompreensível da encarnação
e da graça»... é que «o finito humano possa receber o infinito divino» (cf. Arnaldo
de Pinho, artigo «mistério» in Enciclopédia Verbo Luso-Brasileira de Cultura -
Edição Século XXI, op. cit., 2001, vol. 20, p. 53); importa, assim, ter também na
devida conta que, na Teologia cristã, «el misterio se refiere a la doctrina revelada por
Dios, esto es, a la revelación de los secretos de la vida íntima de Dios y de sus planes
sobre el hombre y el universo, que el fiel debe creer y que, sin ser irracional, está
situado más allá de lo que la pura razón especulativa solitaria puede probar, ya que
nunca es alcanzado racionalmente por completo, por lo que a ese misterio solo se
puede acceder gracias a la revelación que el mismo Dios hace de sí. Cuando Dios no
se revela, el acceso a su conocimiento o bien está vedado al hombre o bien siempre
es desmedidamente precario» (cf. Mariano Moreno Villa: artigo «Misterio» in
Mariano Moreno Villa [dir.]: Diccionario de Pensamiento Contemporáneo, op. cit.,
p. 791).
22
Escutar esta motivadora balada coimbrã:
https://www.youtube.com/watch?v=035FUgVlnyY
23
Porque «la pregunta por el sentido de la vida es constitutiva del hombre» e «la
religión (construção cultural e criação humana) está vinculada a la búsqueda de lo
absoluto, lo inmutable y no contingente, que puede dar sentido y ofrecer salvación al
hombre», tanto mais que «lo primario es la referencia a lo sagrado y misterico» (cf.
Juan Antonio Estrada: op. cit., pp. 11 e 53; ver também Hugo Mujica: La Palabra
Inicial, Madrid, Editorial Trotta, 2003, p. 31: «Sentido es el horizonte y no lo
36
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
otro, el diferente, que rompe las características del universo físico» e
que «sólo una comunicación divina, la revelación» poderia esclarecer
quem era e como actuava...
Para «explicar su presencia en un mundo totalmente diferente
de él», procuraram os cristãos a “ponte” em Jesus de Nazaré, cujo
exemplo e modo de vida o transformaram não só no «“Eixo da História”
mas também em “Paradigma” da dignidade e em “Critério” da busca
intelectiva, humanizadora e anti-niilista de um sentido global para o
“MISTÉRIO” de Deus, do Cosmos, da Natureza, da Vida e do Homem —
busca essa, intentada pela reflexão filosófico-teológica dos pensadores
mais antigos até à dos actuais, incluindo o decisivo contributo dos
cientistas24...
Ora, o “SEGREDO”, em sua acepção mais genuína, mais elevada
e mais nobre (fora, portanto, da “fronteira” ou da “reserva” perversa,
degradante e desumana do “secretismo” típico dos contextos ocultantes
e intransparentes em que se movem, de modo antidemocrático,
maquiavélico e politiqueiro, “os jogos e os negócios do(s)
poder(es)”...), é esse misterioso e inesgotável “potencial”, guardado e
blindado como o mais precioso e intransaccionável dos “tesouros” na
“arca” humano-divina da fundura abissalmente mais íntima e mais
recortado sobre él, es aquello que sin aparecer hace que todo lo que aparece tenga
profundidad, que todo lo que se manifiesta tenga hondura, que cada parte manifieste
al todo y el todo se abra a cada parte. Es lo que otorgando espacio y dimension, valor
y hierarquia a cada cosa, hace que cada cosa tenga su propio nombre»); sobre o
modo de perspectivar «Alfa e Ómega» e a «Luz», ver Hans Küng: O Princípio de
Todas as Coisas, Lisboa, Edições 70, 2011, pp. 139-140 e 168; por outro lado, de um
ponto de vista estritamente etimológico, filológico e lexicológico, Deus, pela
semântica deste Seu nome identificador, é também o «Eterno Dia»: efectivamente, os
lexemas ‘Deus’, ‘dies’, ‘deváh’ (= divindade, em sânscrito), ‘da va-’ (deus do mal,
em avéstico), tal como ‘Zeus’, ‘Júpiter’ e ‘Dyaus’, têm como base constitutiva a
mesma raiz genómica indo-europeia: *dyew- / diw- / dyu-/ deyw-o- (cf. Fernando
Paulo Baptista: ensaio intitulado «Sob o signo da luz ou a “centelha” [scintilla] de
Zeus na palavra “teoria” [ α (theoria)]», pp. 6-7, notas 18 a 25, apud:
http://www.academia.edu; cf. também o estudo de Rubens C. Romanelli «Os Nomes
de Deus no Indo-Europeu e no Semítico»:
http://www.rubensromanelli.net/nomesdeus.html). Mas esta «luz» que cria, alumia,
faz crescer e maturar... nada tem que ver com o feérico brilho que encandeia,
deslumbra, entontece e faz enceguecer...
24
CF. Juan Antonio Estrada: op. cit., pp. 61-103.
37
Fernando Paulo do Carmo Baptista
profunda do nosso corpo-alma (body-mind) peregrinante, indagativo,
intuitivo, meditativo, crente e criador...
Esse intransaccionável “potencial”, inseminado ao longo do
Tempo e da História da Civilização e da Cultura na essência do
“SEGREDO” e do “MISTÉRIO”, foi sendo, selectiva, criteriosa e
electivamente “cortado”, “separado”, “descarnado”, “depurado”25 e,
assim, “purificado”, entre Fé, Esperança e Amor (de par com
misticismo, ascese e sofrimento26...), do território das “banalidades”
imediatistas de um imanentismo sem horizonte e sem sentido que
povoam as rotinas do quotidiano: daí, a sua dimensão de
transcendência, superadora da angústia da finitude e da morte e do sem-
sentido do absurdo e do nada...
É assim que, em consonante paráfrase com Gianfranco Ravasi27,
não podemos deixar de alimentar a esperançosa e serenante perspectiva
de que a apetência do ser humano pela divindade não só é potenciada
pelo fascínio que irrompe das funduras do mistério mas também pela
interpelação numinosa e pelo respeito profundo motivado pela epifania
divina e pela sublimidade da dimensão da transcendência», uma vez
que, tal como sublinha Tanzella-Nitti28, «nonostante il peso
25
Tenha-se presente a semântica “genómico-genealógica” inseminada, como já
vimos, na raiz indo-europeia — *[s]ker- / [s]kor- / [s]kṛ- > [s]kra- / [s]kar-, — do
vocábulo seu nomeador...
26
“Cortar”... dói... e implica as capacidades de sofrer e de suportar: «... supporter,
c’est se tenir soi-même, de gré ou de force, sous la puissance d’agir de l’autre»; (...)
«supporter devient subir, lequel confine à souffrir. En ce point, la théorie de l’action
s’étend des hommes agissants aux hommes souffrants. (...) «À vrai dire, toute action
a ses agentes et ses patientes». Tudo isto tem que ver, afinal, com a questão do poder
e da violência, tudo isto atinge o limiar da ideia de justiça enquanto regra que visa
igualizar os pacientes e os agentes da acção (cf. Paul Ricoeur: Soi-même comme un
autre, Paris, Seuil, 1990, p. 186).
27
Cf. Gianfranco Ravasi: O que é o Homem? — Sentimentos e Laços Humanos na
Bíblia, Prior Velho, Paulinas Editora, 2012, p. 42.
28
Cf. Giuseppe Tanzella-Nitti: artigo «Mistero», op. cit., p. 979, sendo pertinente
considerar também o seguinte complemento reflexivo: «Il «mistero» si colloca
dunque al vertice di una delicata tensione fra nascondimento e rivelazione, fra
chiusura ed apertura, fra desiderio di espansione e necessità imperiosa di tacere.
Esso possiede una dinamica, quasi una traiettoria, che conduce dal silenzio alla
comunicazione, dal segreto alla conoscenza, sebbene secondo modalità che ne
rendono il messaggio indisponibile alla maggioranza degli uomini ed accessibile solo
a coloro che vi si accostano con le dovute disposizioni religiose. Pare tuttavia
38
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
insostenibile del divino, esso si presenta in modo affascinante, qualcosa
che suscita “meraviglia”». Importa, todavia, ter sempre bem vivo na
memória o impressionante e desolado testemunho de Stig Dagerman,
quando escreve: «Falta-me a fé e, portanto, nunca poderei ser um
homem feliz, porque um homem feliz não pode ter o receio de que a sua
vida seja apenas um caminhar insensato para uma morte certa...»29.
É, pois, NUMA PERSPECTIVA DE FÉ E DE TRANSCENDÊNCIA (e
sempre no respeitoso e aberto pluralismo e ecumenismo de
perspectivas, entendimentos, práticas, caminhos e horizontes, quanto à
universalidade do amor de Deus e à sua acção salvífico-revelacional
na História30...), que se coloca indistintamente a todos os homens (com
nome... ou sem nome...), em seu agónico e escatológico paroxismo, a
questão da Vida e da Morte, do Ser e do Nada e, no seu âmbito, a relação
entre Tempo e Eternidade...
Ora esta relação «foi captada diferentemente ao longo da
tradição filosófica e teológica. Mais que identificar eternidade com o
fundamento estático ou adveniente do tempo, é preciso repensá-la em
termos de mistério. Não se trata com isso de impedir a especulação,
mas de mostrar o seu limite. Com isso, reconhecemos que qualquer
riduttivo intendere il concetto di mistero, come fa il linguaggio comune ordinario, in
termini di enigmaticità, incomprensibilità o perfino di irrazionalità».
29
Stig Dagerman: «A nossa necessidade de consolação», citado por Gianfranco
Ravasi no seu interpelante e motivador ensaio «A Flor do Diálogo», apud: O Átrio
dos Gentios, Prior Velho, Paulinas Editora, 2012, p. 15.
30
Sendo de sublinhar o decisivamente influente, inovador, arquitectante e propulsor
contributo antropo-teológico, sistematicamente indagativo («Para mim mesmo e para
o mundo, eu sou uma pergunta infinita...»), inclusor, ecuménico e «cristo-cêntrico»
(«toda a graça de Deus é gratia Christi»), de Karl Rahner (com a sua monumental e
diversificada obra, elaborada ao longo de mais de 40 anos de estudo e de reflexão...),
com particular repercussão no memorável Concílio Vaticano II; contributo, a ser
naturalmente complementado com a crítica que lhe tem sido feita sobretudo quanto
ao risco de «absolutização do testemunho cristão» relativamente à pluralidade de
credos ou mesmo à ausência deles e a uma «cristologia trinitária» e «pneumológica»
e quanto à fragilização do «direito à diferença» (cf. o bem elaborado ensaio-síntese
da autoria do teólogo Faustino Teixeira, pós-doutorado em Teologia pela Pontifícia
Universidade de Roma: «Karl Rhaner e as Religiões», com o diversificado e
credenciado suporte bibliográfico em que se fundamenta; cf. também, para uma
perspectiva mais abrangente, a importante obra deste mesmo teólogo brasileiro:
Teologia e Pluralismo Religioso, São Bernardo do Campo, São Paulo, Nhanduti
Editora. 2012).
39
Fernando Paulo do Carmo Baptista
palavra sobre o fundamento faz parte do nosso esforço imperfeito e
incompleto de compreensão e interpretação. Por outro lado, se falamos
desde a perspectiva da teologia cristã, o mistério não é somente aquilo
que está escondido, mas aquilo que se revela. Nesse sentido, falar de
eternidade como fundamento do tempo, é falar do Deus que se dá a
conhecer chamando do nada o ser, os entes e o tempo, através da
criação, mas assumindo igualmente, através da encarnação do Filho
na plenitude dos tempos, aquilo que é próprio do tempo, dos entes e do
ser, ou seja, tornando-se ele mesmo aquilo que cria. Uma teologia do
tempo deve, portanto, conduzir-nos a uma teologia da criação. Nas
Escrituras judaico-cristãs, essa teologia recorre também à narração
para dizer o indizível»31.
Por outro lado, precisamente numa época marcada, como é a
nossa, por tão rápidas e tão profundas transformações a todos os níveis
e, consequentemente, por tão fortes e preocupantes desenraizamentos e
por tão soturnas e perturbantes desorientações geradas a partir das
polémicas controvérsias em torno da origem e formação do Universo,
da Vida e do Homem, é ainda a FÉ32 que, muito embora não acrescente
nada ao conhecimento disponível que a ciência tanto enriqueceu, nos
proporciona um saber orientador.
Efectivamente, ela permite que o homem descubra um sentido
na existência e no processo evolutivo e lhe consagre uma escala de
valores para a sua acção e uma derradeira segurança neste universo
incomensuravelmente grande... Por isso, acreditar hoje em dia no
criador do universo, tendo como horizonte a cosmologia científica,
significa afirmar, com esclarecida confiança, que o universo e o
31
Cf. Geraldo De Mori apud Élio Estanislau Gasda (org.): Sobre a Palavra de Deus
– Hermenêutica Bíblica e Teologia Fundamental, Petrópolis, Editora Vozes, 2012, p.
222.
32
Permita-se-me evocar aqui, com sentida e grata emoção, a ambiência intelectual e
social de profunda crise que preludiou a realização, por iniciativa de João XXIII, do
«Concílio Ecuménico Vaticano II» (convocado em 25 de Dezembro de 1961, iniciado
em 11 de Outubro de 1962 e encerrado em 8 de Dezembro de 1962). Dessa ambiência,
fazia parte a leitura, entre outras, de obras integradas na colecção “Filosofia e
Religião” da Livraria Tavares Martins, do Porto, tão importantes como as seguintes:
Pierre Teilhard de Chardin: O fenómeno humano; Jacques de Bivort de La Saudée
(dir.): Deus, o Homem e o Universo; C. G. Jung: O Homem à descoberta da sua alma;
Frederick Copleston: Nietzsche; Eusebi Colomer: A morte de Deus; Sören
Kierkegaard: O desespero humano...
40
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
homem jamais podem permanecer, lado a lado, como dois “ilustres
desconhecidos”33 quanto à sua origem primigénia, que o universo e o
homem não foram atirados absurdamente do nada para o nada, mas
que ambos são valiosos e fazem sentido enquanto totalidade, que não
são caos mas cosmos, porque têm em Deus o seu último fundamento, o
seu autor e criador e uma primeira e última segurança34.
Só que a [archê], o transfundo e sustentáculo de tudo
quanto existe, ou seja, “o princípio dos princípios” e “o fundamento dos
fundamentos”, lembra-no-lo Hans Küng35, «não pode ser
fundamentado». «Mas para a tradição judaica, cristã e muçulmana,
sublinha ainda este sábio, profundo e clarividente teólogo, uma coisa é
certa: Deus não é um abismo das trevas — a escuridão não gera
qualquer luz. Pelo contrário, só a Luz, em sua infinita plenitude, torna
possível o «Fiat lux!» no Cosmos.
Em todas as religiões, a luz é uma extraordinária metáfora de
uma antiga palavra imagética para a realidade suprema: Deus36. E a
moderna investigação científica em torno do espantosamente tão
maravilhoso como enigmático fenómeno da “luz” não deixa de
contribuir também para uma compreensão mais aprofundada do
significado simbólico-religioso deste fascinante fenómeno.
É assim que, na ininterrupta e persistente continuação desse
odisseico esforço investigativo por parte da Ciência, se afigura
altamente relevante o contributo dado por Niels Bohr com o princípio
dialéctico da «complementaridade» («a natureza da matéria e da
energia é dual e os aspectos ondulatório e corpuscular não são
contraditórios, mas inter-complementares, sendo ambos detectáveis
separadamente, em consonância com o tipo de experiência levada a
cabo (e.g.: a) o efeito electrónico-difractor da dupla fenda; b) o efeito
33
Bilateralizando, aqui, co-implicativamente, o famoso título de Alexis Carrel: O
homem, esse desconhecido (trad. de Adolfo Casais Monteiro), Porto, Editora
Educação Nacional, 1944 (ou, numa versão mais recente, na trad. de Isabel St. Aubyn,
Lisboa-Mem Martins, Europa-América, 2002).
34
Cf. Hans Küng: O Princípio de todas as coisas, Lisboa, Edições 70, 2011, pp. 137-
139, cuja reflexão aqui temos vindo a seguir de perto, com pontuais ajustamentos
enunciativos, entre citação e paráfrase de nossa exclusiva responsabilidade.
35
Idem: ibidem, p. 139.
36
Ver supra a nota 23.
41
Fernando Paulo do Carmo Baptista
foto-eléctrico»)37, a significar que «a essência da luz» continua a ser
investigada e que talvez virá um dia em que se consiga decifrar o seu
“segredo”...
Uma verdade se apresenta, todavia, como incontornável e
intranscendível, aos olhos de quem acredita: o “Mistério” de Deus,
mesmo com a analógica adjuvância investigativa de uma
“complementaridade” foto-epistémica apoiada na mais avançada
tecnologia, vai seguramente continuar a manter-se indecifrável... Ele
permanecerá cada vez mais o Infinito, o Incomensurável e o
Imperscrutável, oculto no alumiante e fecundador dinamismo
energético-fotónico que atravessa magnanimamente, sem fronteiras e
sem limites, toda a vastidão cósmica, até chegar a Deméter e encarnar
transfigurado na “Pessoa” tão amorável, tão simples, tão pura e tão
comovedoramente autêntica de Jesus de Nazaré, para se acolher
soteriologicamente no afectuoso recôndito dos corações e das almas e
aí nos segredar e revelar, persistentemente, no silêncio interior38 de
todos os dias, que nos devemos amar uns aos outros como Ele nos amou
e insuflar em todos os nossos actos a prístina bondade e a natalícia
candura da criança que importa preservar integralmente dentro de
nós39...
37
«... a dialética da complementaridade de Niels Bohr merece destaque porque
através dela podem ser superados os conflitos dos paradoxos (...) entre a teoria
corpuscular e a teoria ondulatória da luz.» (Cf. Claudiomir Selner: Método para
análise de sistemas de conhecimento, inspirado no princípio da complementaridade
de Niels Bohr (dissertação complementar de pós-graduação, para obtenção do grau
de “Doutor em Engenharia de Produção”), Florianópolis, Universidade Federal de
Santa Catarina, 2006, p. 76; ver também: http://www.fis.ufba.br/dfg/pice/ff/ff-
03.htm;
http://sabedoriaquantica.blogspot.pt/2012/02/fisica-quantica-para-todos-4.html; ver
ainda:
http://www.ecientificocultural.com/ECC3/polar02_03.htm
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1413-
24782008000100007&script=sci_arttext
http://biosofia.net/2001/01/19/a-luz-perspectiva-esoterica-2/
38
«Il silenzio è, segundo Gregório Magno, la casa del mistico e, per il mistico, Dio è
il “Signore del silenzio”» (cf. Massimo Baldini, artigo «Mistica» apud Giuseppe
Tanzella Nitti e Alberto Strumia [coords.]: op. cit., p. 995).
39
Porque, com Jesus de Nazaré, «il mistero... del Regno di Dio... è ora oggetto di
rivelazione ai piccoli, ai semplici, ai quali non è richiesto un linguaggio da iniziati,
ma un cuore puro» (cf. Tanzella-Nitti: op. cit., p. 981); depois, como “cristicamente”
42
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
Este é o “Mistério”, este é o “Segredo” que poderá e deverá
levar-nos a enfrentar, entre outros, o combate derradeiro desta nossa
transiente vida, com a esperançosa lucidez e serenidade de um Hans
Küng, quando a Morte vier...
Será seguramente «uma despedida para dentro», um
emudecente e porventura lacrimoso “adeus” no «regresso ao lar do
universo», mas jamais será ou terá que ser uma angustiante,
desesperada e absurda redução ao Nada40!...
Por isso, importa, em todas as circunstâncias e sazões da nossa
existência efémera, reassumir poeticamente a nossa própria infância,
convocando-a memorantemente com a inebriante mas respeitosa
vitalidade genesíaca, plasmada no belo poema de Miguel Torga41:
Segredo
Sei um ninho.
E o ninho tem um ovo.
E o ovo, redondinho,
Tem lá dentro um passarinho
Novo.
Mas escusam de me atentar:
Nem o tiro, nem o ensino.
Quero ser um bom menino
também no-lo recorda o nosso Fernando Pessoa, no seu poema “Liberdade”: «Grande
é a poesia, a bondade e as danças... / Mas o melhor do mundo são as crianças»!... E
os três pastorinhos “videntes”, da Fátima de 1917, eram crianças de coração simples
e alma pura, consubstanciando plenamente, portanto, o famoso episódio evangélico
narrado por Lucas (Lucas: 18, 15-17), segundo o qual, Jesus repreendeu os seus
discípulos, dizendo-lhes: «Deixai vir a mim as criancinhas e não as impeçais de o
fazerem, pois delas é o Reino de Deus. Em verdade vos digo: quem não receber o
Reino de Deus como uma criança jamais entrará nele». (Ver também Mateus: 19, 13-
15). Cf. Bíblia Sagrada, Lisboa, Difusora Bíblica (Franciscanos Capuchinhos), 41994,
pp. 1173 e 1112, respectivamente.
40
Cf. Hans Küng: ibidem, pp. 217-218.
41
Miguel Torga: Poesia Completa, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2000, p. 585.
43
Fernando Paulo do Carmo Baptista
E guardar
Este segredo comigo.
E ter depois um amigo
Que faça o pino
A voar...
ANOTAÇÕES
1. Sobre o conceito de “MITO”, considerar, entre outros, o iluminante
artigo de Jean-Michel Maldamé apud Giuseppe Tanzella Nitti e Alberto
Strumia (coords.): op. cit., na entrada respectiva (pp. 1000 ss), com
especial enfoque para os seguintes andamentos discursivos: «Mito e
scienza contemporanea» e «Mito, religione e fede»; para outros
aprofundamentos complementares, além da entrada «Mito» nas
enciclopédias referidas na nota 5 (ver supra), consultar, também, apud
Maryanne Cline Horowitz (ed.): op. cit., os seguintes desenvolvimentos
tópicos: Myth in Antiquity, Myth in Biblical Times, Myth in the Middle
Ages and the Renaissance, Myth in English Literature: Seventeenth and
Eighteenth Centuries, Myth in the Eighteenth and Early Nineteenth
Centuries, Myth in the Nineteenth and Twentieth Centuries; considerar,
também, a seguinte e muito clarificadora síntese apud Rafael Gil
Colomer (dir.): Filosofía de la Educación Hoy — Diccionario
filosófico-pedagógico, Madrid, Editorial Dykinson, 1997, entrada
«Símbolo», pp. 513-514: «La antropología ha definido el mito como
aquel relato que se refiere a acontecimientos sucedidos in principio, in
illo tempore, en un primer instante, fuera del tiempo histórico. El mito
se halla necesariamente fuera del tiempo, precisamente porque él es la
causa fundamentadora del devenir histórico. El mito es el relato
fundador. (...) El universo simbólico — mítico — juega un papel
preponderante. La lógica del lenguaje científico no puede dar razón de
toda la organización cultural de la que el ser humano anda necesitado.
Las preguntas por el “después de la muerte”, por el origen del mundo y
44
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
su orden, por el sufrimiento..., en definitiva: la cuestión suscitada por
Kant en las «antinomias de la razón pura», solo resulta lúcida desde la
óptica mítica. (...) El mito, a la luz de la antropología contemporánea,
se concibe “arquetípicamente”. Jung define el “arquetipo” como formas
o imagines de la naturaleza colectiva que se dan casi universalmente
como constituyentes de los mitos y, al mismo tiempo, como productos
individuales y autóctonos de origen inconsciente. Los arquetipos son
universales e formales. El ser humano no se construye desde el vacío,
al modo de una tabula rasa, sino desde unos universales. El arquetipo
es a priori; pero además es “formal”, es una facultas praeformandi. No
depende ni del individuo ni del mundo de la vida, sino todo lo contrario:
irrumpe en la conciencia individual y determina la construcción del
«ser-en-mundo», entendido éste no
solamente como un “para-sí” sino fundamentalmente como un “para
otro” (p. 514).
2. Sobre o conceito de “SÍMBOLO”, dada a sua inquestionável relevância
neste contexto, considerar o denso ensaio de Umberto Eco — “Symbol”
— (cf. Umberto Eco: Semiotics and the Philosophy of Language,
Bloomington, Indiana University Press, 1986, capítulo 4, pp. 130-163),
dedicado ao conceito de «Símbolo» [Symbol], pedindo me seja
permitido fazer uma especial chamada de atenção para o seguinte passo
das conclusões respeitantes ao «modo simbólico» [symbolic mode]:
«The main characteristic of the symbolic mode is that the text, when
this mode is not realized interpretatively, remains, endowed with the
sense — at its literal or figurative level. In the mystical experience, the
symbolic contents are in some way suggested by a preceding tradition,
and the interpreter is convinced (he must be convinced) that they are
not cultural unit but referents, aspects of an extrasubjective and
extracultural reality» [p. 163] (nota: este estudo de U. Eco está
traduzido em Português no vol. 31 da Enciclopédia Einaudi, Lisboa,
IN-CM, 1994, pp. 138-176, na entrada respectiva «Símbolo»); ainda
sobre este conceito, considerar o bem elaborado artigo de Jean-Michel
Maldamé apud Giuseppe Tanzella Nitti e Alberto Strumia (coords.):
op. cit., na entrada «Simbolo», pp. 1301-1308, artigo do qual se
destacam as seguintes passagens: «Il simbolo è un segno che permette
la conoscenza e che concettualizza l’esperienza vissuta in una comunità
fatta di scambi di sapere, di relazioni.» (...) «In quanto segno, il simbolo
45
Fernando Paulo do Carmo Baptista
serve ad interpretare i fenomeni studiati, constatati, misurati e legati ad
una spiegazione generale. La funzione del simbolo, estesa in questo
senso, si applica a tutto ciò che è oggetto dell’esperienza per esprimere
le relazioni dell’uomo con se stesso, con gli altri e con il cosmo. Così,
dal senso preciso del simbolismo matematico a quello più generale
dell’attività umana sociale o religiosa, il simbolo è un mezzo
privilegiato di comunicazione e di interpretazione della realtà», de
«costruzione di un’immagine del mondo o della natura [p. 1303]» (...),
de «articolare il singolare e l’universale», de mediatizar «la creatività
dello spirito» e de dinamizar e transportar consigo «le forze della vita,
permettendo all’essere umano di trasformare le proprie energie vitali»,
convocando em analógica sintonia «i simboli che i cristiani usano nei
sacramenti e che suppongono una partecipazione attiva di tutti i fedeli
[p. 1304]». «Nel linguaggio religioso si usa l’expressione «simbolo
della fede» per indicare una serie di verità confessate da una comunità
credente, verità che accomunano i suoi membri e stanno alla base della
sua unità [p. 1301].» (...) Todos os símbolos, verbais e não verbais,
constituem «il mezzo efficace attraverso il quale si realizza la
comunicazione tra Dio e gli uomini, oltre ad essere un’espressione del
contenuto della fede in un Dio salvatore. Il simbolo appare dunque
come il linguaggio appropriato per dire il mistero, cioè la comunione
con una vita divina alla quale l’uomo è invitato a partecipare [p. 1302]»;
no mesmo sentido, concorre a seguinte síntese: o símbolo, além da sua
“função representativa” («algo está em vez de algo»), encerra «un
fondo metafísico que presupone secretas afinidades, casi una mística
compenetración recíproca entre el mundo visible y lo divino invisible»
(cf. Lamberto Boni [coord.]: Enciclopedia Garzanti de la Filosofía,
Barcelona, Ediciones B, S.A., 1992, entrada «símbolo», p. 907. Os
símbolos abrem a realidade e, em vez de a clausurar, revelam a
dimensão oculta da vida e do mundo, em sua mais abissal fundura,
fundura à qual não é possível aceder de outro modo (cf. Rafael Gil
Colomer [dir.]: op. cit., p. 513; em suma: «Il simbolo è dunque come
“il luogo della nascita” dell’umanità, in quanto è allo stesso tempo
strumento della comunicazione umana» (Jean-Michel Maldamé: no seu
já supracitado artigo «Simbolo», p. 1307).
46
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
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• PINHO, Arnaldo de: Teologia e Interpretação, vol. I, S. M. da Feira,
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• SEGURA, Santiago Munguía: Diccionario por Raíces del Latín y de las
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Mestrado em Direito Judiciário), Braga, Universidade do Minho, 2011.
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European Roots, Boston-New York, Hougton Mifflin Company, 22000.
49
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
2. Da “Condição Humana” (*)
«Magnum, o Asclepi, miraculum est homo»
Pico della Mirandola42:
«Verdade esta do homem
como o último
pressuponente horizonte
de todo o universo
prático (prático-cultural)
em que se implica a
dignidade humana,
da ética ao direito, da
política à pedagogia.»
A. Castanheira Neves43
«Ser Homem é ser em Si, sempre e ao mesmo tempo,
o Próprio e o Outro, sem exclusão de Ninguém.»
F. Paulo Baptista44
Nos conturbadíssimos tempos que correm, coloca-se-nos, cada
vez mais, como um intransgredível dever, a inadiável participação
(*) Reelaboração do ensaio publicado em “Studia Iuridica”— Boletim da Faculdade
de Direito da Universidade de Coimbra (n.º 90 «Ad Honorem» — 3, Coimbra,
Coimbra Editora, 2008, pp. 231-288).
42
Pico della Mirandola: Oratio de hominis dignitate (a cura di Eugenio Garin),
Pordenone, Edizioni Studio Tesi, 1994, p. 2.
(cf.: http://www.lyber-eclat.net/lyber/mirandola/piclatin.html);
ver também: “Progetto Pico Project” — De hominis dignitate — Un progetto di
collaborazione tra Università degli Studi di Bologna e Brown University —
— http://www.brown.edu/Departments/Italian_Studies/pico/oratio.html —, §1, 2.
43
A. Castanheira Neves: «Apresentação-comentário» ao meu livro intitulado Tributo
à Madre Língua, Coimbra, Pé de Página Editores, 2003, pp. 27-28.
44
Fernando Paulo Baptista: Tributo à Madre Língua, Coimbra, Pé de Página Editores,
2003, p. 542.
51
Fernando Paulo do Carmo Baptista
cidadã num colegial processo de questionamento (muito mais vasto,
intenso e profundo...), no sentido de se tentar compreender melhor O
QUE É O HOMEM e a sua relação essencial e vital consigo mesmo, com
o(s) outro(s), com a vida, com a natureza, com o universo e com o
mistério e qual o seu “estatuto”, a sua situação e missão no mundo...
Por essa via e desse modo, vamos estar, seguramente, em estreita
sintonia com a mais desassossegada inquietude e preocupação do
pensamento contemporâneo em torno dos princípios e valores
fundamentais, transversais ao(s) humanismo(s)45, princípios e valores
45
Sobre o(s) humanismo(s), considerar, entre outros: Giovanni Pico della Mirandola:
Oratio De Hominis Dignitate, Paris, Éditions de l’Éclat, 32002 (edição bilingue [latim
> francês] de Yves Hersant); Jacques Maritain: L’Humanisme Intégrale, Paris,
Éditions Aubier-Montaigne, 1936; Emmanuel Mounier: O Personalismo, Lisboa,
Livraria Morais Editora, 21964; Auguste Etcheverry: O Conflito Actual dos
Humanismos, Porto, Livraria Tavares Martins, 1958; Martin Heidegger: Carta sobre
o Humanismo, Paris, Aubier, 1970; Jean-Paul Sartre: O Existencialimo é um
Humanismo (tradução de Vergílio Ferreira precedida de um substancioso prefácio-
ensaio, escrito nos inícios dos “anos 60”, que continua actual em seus nucleares
aspectos temático-problemáticos e em sua fina e englobante dimensão interpretativo-
compreensiva [pp. 7-169], Lisboa, Editorial Presença, 1962; Emmanuel Lévinas:
Humanisme de l’autre homme, Fata Morgana, Paris, 1972; Emmanuel Lévinas:
Totalité et Infini. Essai sur l’extériorité, Paris, LGF Livre de Poche, 1990; Emmanuel
Lévinas: artigo «Les droits de l’homme et les droits d’autrui» in Hors sujet, Fata
Morgana, Paris, 1997, pp. 157-170; Martin Buber: ¿Qué es el Hombre?, México-
Madrid-Buenos Aires, Breviários, FCE, 131986; Juan de Sahagún Lucas (dir.): Nuevas
antropologías del siglo XX, Salamanca, Ediciones Sígueme, 1994; Pedro Laín
Entralgo: Idea del Hombre, Barcelona, Galáxia Gutenberg / Círculo de Lectores,
1996; Mário Pacheco: artigo «Humanismo», in Logos — Enciclopédia Luso-
Brasileira de Filosofia, Lisboa / São Paulo, Editorial Verbo, tomo 2, 1990, pp. 1213-
1217; Michel Malherbe e Philipe Godin: As Filosofias da Humanidade, Lisboa,
Edições Piaget, 2001; José Lorite Mena: artigo «Hombre», in A. Ortiz-Osés y P.
Lanceros (dir.): Diccionario de Hermenéutica: Bilbao, Universidad de Deusto, 42004,
pp. 221-228; Luís Garagalza: artigo «Humanismo Hermenéutico», ibidem, pp. 229-
232; Hannah Arendt: La Condición Humana, Barcelona, Paidós, 1993; Amelia
Valcárcel: Ética para un mundo global: una apuesta por el humanismo frente al
fanatismo, Madrid, Ediciones Temas de hoy, 2002; Ulrich Beck, Anthony Giddens y
Scott Lash: Modernización reflexiva: política, tradición y estética en el orden social
moderno, Madrid, Alianza Universidad, 1997; Erich Fromm: «El humanismo como
filosofía global del hombre» in Sobre la desobediencia y otros ensayos, Barcelona,
Paidós Ibérica, 1984; Bruno Jarrosson: Humanismo e Técnica, Lisboa, Edições
Piaget, 1998; Adams, D. L., & Others: «Science, technology, and human values: An
interdisciplinary approach to science education», apud “Journal of College Science
52
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
esses que não podem deixar de ser assumidos coerentemente como
expressão esclarecida, enérgica e frontal, dir-se-ia mesmo sábia e
profética46, do compromisso intelectual com o que, a nível
antropológico, cultural e axiológico, possa haver de mais relevante e
significativo ao longo dos complexos processos da filogénese e da
ontogénese em que se originou e fundou e em que se vem configurando
e desenvolvendo a “HUMANIDADE DO HOMEM”, perspectivado este,
tanto em sua ipseidade como em sua alteridade e, assim, em seu
protagonismo e afirmação pessoal, colegial e comunitária na desafiante
e intérmina aventura do Tempo e da História...
Todos os grandes criadores (sejam eles poetas, escritores, artistas
em geral, pensadores ou cientistas...) se realizam e se revelam como os
agudamente despertos e inconfundivelmente carismáticos sensores das
humanas emoções e comoções, desde as mais leves e suaves às mais
densas, tensas e profundas, na estesia da vibração, da escuta e da
memória, na inquietude e no silêncio da interrogação e da procura ou
na maravilha do espanto...
E são eles que instituem, com o operar onírico-gerativo e
expressional das suas obras, e constituem, com o subsequente co-operar
analítico-interpretativo e compreensivo (hermenêutico) e
Teaching”, 1986, 15(4), pp. 254-258; Giuseppe Longo: Homo technologicus, Roma,
Meltemi, 2001; Emilio Martínez Navarro: Ética para el Desarrollo de los Pueblos,
Madrid, Trotta, 2000, pp. 127 ss, 189 ss; Rémi Brague: A Sabedoria do Mundo,
Lisboa, Edições Piaget, 2002; Javier Echeverría: Ciencia y Valores, Barcelona,
Ediciones Destino, 2002, pp. 117 ss, 211 ss; Xavier Zubiri: El Hombre y Dios, Madrid,
Alianza Editorial, 1994; Xavier Zubiri: Sobre el Hombre, Madrid, Alianza Editorial,
1998; Xavier Zubiri: El Hombre y la Verdad, Madrid, Alianza Editorial, 2001;
Ernesto Grassi: La filosofia dell’umanesimo un problema epocale, Napoli, Tempi
Moderni, 1986; Ernesto Grassi: La filosofia del humanismo. Preeminencia de la
palabra, Barcelona, Anthropos, 1993; Paul Ricœur: Soi-même comme un autre, Paris,
Seuil, 1997; Paul Ricœur: La mémoire, l’histoire, l’oubli, Paris, Seuil, 2003; Jervolino
Domenico: Paul Ricœur. Une herméneutique de la condition humaine, Paris, Éditions
Ellipses Marketing, 2002; Gerald A. Larue: «Human Values for the 21st Century» in
Humanism Today, vol. 12, 1998; Joseph Gevaert: El Problema del Hombre —
Introducción a la Antropología Filosófica, Salamanca, Ediciones Sígueme, 2003;
José Luis Molinuevo: Humanismo y Nuevas Tecnologías, Madrid, Alianza, 2004, pp.
67-230; Edgar Morin e Boris Cyrulnik: Diálogo sobre a Natureza Humana, Lisboa,
Edições Piaget, 2004.
46
Cf. Georges Charpak e Roland Omnès: Sede Sábios, Tornai-vos Profetas, Lisboa,
Publicações Europa-América, 2005, pp. 13, 239.
53
Fernando Paulo do Carmo Baptista
inelutavelmente estético47 dos seus interlocutores, leitores e fruidores,
uma perene memória e um inesgotável tesouro histórico e cultural e um
47
De sublinhar, neste contexto, que a “estética” (nome proveniente do adjectivo grego
a syhtikÒw, -Æ, -Òn, portador da mesma raiz au- /ai- (*) [susceptível de ampliamentos
do tipo: au-dh-, awis-th-, awisdh-yo > audh-yo] e, portanto, com a etimologia e
semântica profunda de lexemas gregos como (< awio = perceber através dos
sentidos, nomeadamente o da audição-escuta), a syãnomai, a‡syhma, a syhs€a,
a‡syhsiw, a syhtÒw, -Æ, -Òn e de lexemas latinos como audio, -is, -ire [= ouvir,
escutar, percepcionar], audibilis, -e, auditio, -onis, audito, -as, -are, auditor,
auditorium, auditus, oboedio (*), oboedientia (*) (com os correspondentes vocábulos
portugueses daí provenientes: estesia, estese, estético, audível, audição, auditar,
auditor, auditoria, auditório, obedecer, obediência...), com ser a dimensão, por
excelência, da sensibilidade artística e da específica reflexão filosófica em torno da
categoria do “belo”, não deixa de se configurar também como uma “teoria geral da
recepção artística” e ocupar, assim (dada a sua qualitativa complexidade e exigência
de afinamento competencial, procedimental e operatório...), um lugar de
inquestionável relevo numa “teoria geral da recepção” (e da interpretação...), a
alimentar todos os processos criativos, podendo mesmo dizer-se que, sem a‡syhsiw
[aisthesis], não há po€hsiw [poiesis] e que esta convoca imediatamente aquela, nos
decisivos momentos do labor hermenêutico (interpretativo-compreensivo (*) e da
fruição sensivo-inteligente das suas realizações semio-expressionais...
(*) Obs.:
a) – A raiz au- / ai-, dada, por um lado, a esfera de pertença ôntica para que remete e,
pelo outro, a sua contiguidade referencial e semântica, não deixa de evocar e convocar
também a raiz ous- / aus- > aur- [ouvir, escutar, perceber através do ouvido], presente
em lexemas latinos como aus, auris [< ausis (= orelha) com rotacismo: s > r], auricula
[> aurícula e orelha], auricularis, auscultatio, auscultator, ausculto, -as, -are... e no
lexema grego ο , [= orelha, órgão da escuta], cujo radical ot- é um constituinte
morfogénico de um significativo conjunto de lexemas de uso especializado, com
particular destaque para as ciências médicas: otálgico, otalgia, otária, otite,
otocefalia, otólito, otoplastia, otorreia, otorrino, otorrinolaringologista, otoscopia,
otoscópio, ototerapia, parótico, parótide/a, parotidite...
b) – Sem prejuízo das pertinentes e prudentes observações feitas por Andrew L. Sihler
(Andrew L. Sihler: New Comparative Grammar of Greek and Latin, New York /
Oxford, Oxford University Press, 1995, § 59 a. e §70, 3. a., pp. 54-55 e p. 64,
respectivamente), os lexemas oboedio e oboedientia são, pelo menos desde os
gramáticos Sextus Pompeius Festus (sécs. II-III d. C.) e Saxo Grammaticus (séc. XII-
XIII d. C.), considerados como derivados do verbo audio, por prefixação (< prefixo
ob (= ao encontro de, em direcção a...) + audio, segundo uma linha de evolução
fonética e de expressão grafemática próxima do seguinte: ob + audio > ob + oidio >
oboedio > obedio; de onde, o significado de «direccionar o ouvido, a escuta, para a
“fonte” de onde vem a mensagem falada, a fim de prestar ouvidos à voz de comando»,
ou seja, obedecer; a oboedientia / obedientia [> obediência] (que não deve confundir-
54
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
fecundante manancial crítico e criativo onde partilham e modelam um
desígnio comum que, no fundo, os interpela e inquieta, os faz mover e
comover, os inspira e sustenta: elaborar, a partir de diferentes
concepções, perspectivas ou “visões do mundo” e em diversos modos,
géneros, formas e estilos, o “discorrer” dum pensar e dum sentir
próprios, as modelações dum conhecimento e dum saber,
desejavelmente duma sabedoria, o mesmo é dizer, as “emergências”,
as “efluências”, os excursos e os textos dum processo criativo-
semiósico sempre in fieri e sempre in progress, acerca do “humano” do
homem e seus problemas maiores...
Daí, a evocação, aqui, da inconformada e socrática confissão de
José Saramago48: «Não sei que passos darei, não sei que espécie de
verdade busco: apenas sei que se tornou intolerável não saber»...
se com subserviência...) é, assim, a postura de quem sabe ouvir, escutar e respeitar a
voz da autoridade...
c) Sobre a problemática da “interpretação”, ver, entre outros: Umberto Eco: Lector in
fabula. La cooperazione interpretativa nei testi narrativi, Milano, Bompiani, 1979, p.
24, onde se parte da ideia de que o texto é «una macchina pigra che esige dal lettore
un fiero lavoro cooperativo per riempire spazi di non-detto o di già-detto rimasti per
così dire in bianco»; idem: Os limites da Interpretação, Lisboa, Difel, 1992; idem:
Interpretation and overinterpretation, New York, Cambridge University Press, 1992;
Hans-Georg Gadamer: Verdad y Método I, Salamanca, Ediciones Sígueme, 1999, pp.
331-377; A. Castanheira Neves: O Actual Problema Metodológico da Interpretação
Jurídica I, Coimbra, Coimbra Editora, 2003, pp. 11-44; Fernando José Fraga de
Azevedo: A Teoria da Cooperação Interpretativa de Umberto Eco, Porto, Porto
Editora, 1995; Hans Albert e Dario Antiseri: Epistemologia, Ermeneutica e Scienze
Sociali, Roma, Luiss Edizioni, 2002; Giorgio Bertolotti et alii: Ermeneutica, Milano,
Raffaello Cortina Edittore, 2003; Hugg J. Silverman: Testualità tra Ermeneutica e
Decostruzione, Milano, Spirali, 2003; Francesco Crapanzano: Tra Epistemologia ed
Ermeneutica, Firenze, Phasar Edizioni, 2003; Manuel Alexandre Júnior:
Hermenêutica Retórica, Lisboa, Livraria Espanhola, 2004, 195-239; ver, também,
vários e importantes estudos de natureza filosófica e teológica, constantes da já
monumental obra que vem sendo editada por Andrzej Wiercinski: (vol. I) Between
the Human and the Divine: Philosophical and Theological Hermeneutics, Toronto,
The Hermeneutics Press, 2002; (vol. II) Inspired Metaphysics? Gustav Siewerth’s
Hermeneutic Reading of the Onto-Theological Tradition, Toronto, The Hermeneutic
Press, 2003; (vol. III) Between Suspicion and Sympathy: Paul Ricoeur’s Unstable
Equilibrium, Toronto, The Hermeneutic Press, 2003; (vol. IV) Between description
and interpretation: the hermeneutic turn in phenomenology, Toronto, The
Hermeneutic Press, 2005.
48
José Saramago: Manual de Pintura e Caligrafia, Lisboa, Editorial Caminho, 1983,
p. 49.
55
Fernando Paulo do Carmo Baptista
É por isso que, nessa «tentativa de reconstruir tudo pelo lado de
dentro, medindo e pesando todas as engrenagens, as rodas dentadas,
aferindo os eixos milimetricamente, examinando o oscilar silencioso
das molas e a vibração rítmica das moléculas no interior dos aços»49,
sejam eles, literalmente, os constructos técnico-científicos do mundo
empírico-factual, sejam eles, simbólico-alegoricamente, os constructos
ficcionais dos mundos possíveis, faz todo o sentido regressar
ciclicamente ao magno território e “arquivo” dos inconsumptíveis bens
simbólicos, dos bens da Cultura, em busca da energizante revitalização
daqueles “potenciais de humanidade” que constituem e configuram
uma mesma e universal identidade e condição antrópica: TODOS SOMOS
EM DEVIR, NA UNIDADE E NA DIFERENÇA, ESTES HUMANOS QUE SOMOS...
Por outro lado, articular e conjugar a pluralidade diversa,
contraditória e multímoda de perspectivas e experiências e, com elas e
através delas, abrir contactos e estabelecer pontes de diálogo
compreensivo e de respeito solidário entre culturas e civilizações,
transcendendo os opostos, reconcilia-nos a todos enquanto “cidadãos
do mundo”, pois, por um lado, como no-lo recorda Octavio Paz50
(através de suas “personae” lírica e ensaística), «somos
constelaciones», «reino de pronombres enlazados», «todos somos la
vida» e, pelo outro, «universalidad significa pluralidad» e «el diálogo»
é, porventura, «la más alta de las formas de la simpatía cósmica»51:
«Al hablar con las cosas y con nosostros / el universo habla
consigo mismo: / somos su lengua y su oreja, sus palabras y sus
silêncios. / El viento oye lo que dice el universo / y nosostros oímos lo
que dice el viento / al mover los follajes submarinos del lenguaje / y las
vegetaciones secretas del subsuelo y el subcielo: / los sueños de las
cosas el hombre los sueña, / los sueños de los hombres el tiempo los
piensa»52...
Todavia, essa universalidade e essa dialogicidade cósmica e
antrópica e, ao mesmo tempo, onírica, estética, poética e reflexiva, não
49
Idem: ibidem, p. 54.
50
Octavio Paz: Lo mejor de Octavio Paz — El fuego de cada día, Barcelona, Seix
Barral, 1990, pp. 98-99, 206.
51
Cf. Octavio Paz: Hombres en su siglo, México, Seix Barral, 1990, p. 77.
52
Octavio Paz: Lo mejor..., op. cit., pp. 322-323.
56
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
devem confinar-se apenas (nem talvez sobretudo...) «al diálogo de la
razón»: devem alargar-se, empenhada e integradoramente, «al diálogo
de los hombres y las culturas»53, pois, quando eles se sabem assumir,
sem preconceitos, em sua autenticidade ontológica e em sua dignidade
axiológica, «los hombres hablan con los hombres»54.
É, na verdade, da assunção da nossa capacidade de diálogo e de
escuta («oirse llorar en medio de la sordera universal»...) que podemos
concluir que somos «carencia y búsqueda»55, é do exercício do espírito
crítico, da reflexividade reconstrutiva de matrizes, arquétipos,
paradigmas, modelos e referências e do accionamento dos mecanismos
eutróficos da receptividade estésica (a‡syhsiw) e dos potenciais
eugénicos da criatividade poiésica (po€hsiw)56 que se pode projectar
uma nova luz por sobre o obscuro semideiro e preocupante trajecto que
vem sendo percorrido pela história do nosso tempo, comandada pelo
poderoso “quadrimotor louco” de que fala Edgar Morin57 e que co-
envolve, em descontrolada e devastadora sinergia, a Ciência, a Técnica
e a Tecnologia, a Indústria e o “capitalismo selvagem”...
A defesa vigorosa da integridade e da dignidade do homem (de
cada homem e de todos os homens) e do respeito preservador de
Deméter, nossa materna-paterna casa planetária58, constitui um dever
sagrado e intransferível e um desafio premente e irrecusável de uma
cidadania lúcida, adulta e generosa: ou seja, o dever e o desafio do
cidadão universal59 que cada um de nós é, e, agora mais do que nunca,
de modo irreversível...
53
Cf. Octavio Paz: Hombres en su siglo, op. cit., p. 77.
54
Octavio Paz: Lo mejor..., op. cit., p. 283.
55
Cf. Octavio Paz: Itinerario, México, FCE, 1993, p. 36.
56
Para um melhor entendimento da interacção “estética <> poética” nos processos
expressionais e comunicacionais, ver, supra, nota 47.
57
Cf. Edgar Morin: O Método V. — A Humanidade da Humanidade, Lisboa,
Publicações Europa-América, 2003, p. 236.
58
Cf. Michel Serres: O Contrato Natural, Lisboa, Edições Piaget, 1994, pp. 184 ss.
59
Sobre os conceitos de «Citizenship» e «World Citizenship», ver: Bernand Crick:
Essays on Citizenship, London – New York, Continuum, 2000, pp. 3-11, 136-145;
Derek Heater: World Citizenship — Cosmopolitan Thinking and Its Opponents,
London – New York, Continuum, 2002, pp. 1-25, 180-188; Fernando Bárcena: El
oficio de la ciudadanía — Introducción a la educación política, Barcelona, Ediciones
Paidós, 1997; Adela Cortina: Los ciudadanos como protagonistas, Barcelona, Galaxia
Gutenberg, 1999.
57
Fernando Paulo do Carmo Baptista
Nisso consiste a nossa vinculação ético-política à
intencionalidade que no essencial subjaz ao “princípio de
responsabilidade” [Das Prinzip der Verantwortung] enunciado por
Hans Jonas60 (numa formulação homóloga do “imperativo categórico”
de Kant...) e entendível como um compromisso de ordem superior que,
face aos efeitos ecologicamente perversos da “Tecno-Ciência”, nos
convoca a não pôr em risco, com os nossos actos, as condições
perpetuadoras da vida humana no futuro: «AGE DE TAL MODO QUE OS
EFEITOS DA TUA ACÇÃO SEJAM COMPATÍVEIS COM A PERMANÊNCIA DE
UMA VIDA HUMANA AUTÊNTICA NA TERRA».
E se, em consonância com Heidegger61, o ser do homem é tempo,
ou melhor, temporalidade em constante movimento a ser clarificada,
em seu mais fundo sentido, pela abertura à «luz do ser»62 e
(acrescentaria eu...) à noitidão do nada e ao enigma do mistério, a
dimensão temporal não pode deixar de constituir a estruturante e
identitária condição antrópica do homem enquanto «ser do tempo»,
«ser no tempo» e «ser tempo» ou «tempo em ser», na dialéctica dialogia
entre finito e infinito, entre efémero e eterno, entre mortal e imortal...
Dito num denso e belo fragmento poético de A. Oliveira Cruz63, de
extásica ressonância agustiniana: «tempo p’ra ser / nós o somos / somos
de tempo / no tempo / dentro do tempo que fomos!...».
É por isso que nunca «somos» inteiramente e de uma vez por
todas: mortais, estamos sempre a ser — somos «el presente [que] es
perpetuo»64 — porque somos, suspensos em nossa finitude, poder-ser
e abertura a todas as possibilidades...
60
Cf. Hans Jonas: Le Principe Responsabilité, Paris, Les Éditions du Cerf, 1990, pp.
30, 57 ss.
61
Cf. Martin Heidegger: El concepto de tiempo, Madrid, Editorial Trotta, 2003, pp.
23-61 (especialmente p. 58: «el ser-ahí es el tiempo, el tiempo es temporal. (...) El
ser-ahí no es el tiempo, sino la temporalidad»); Sein und Zeit, Tübingen, Max
Niemeyer, 1967, na tradução de José Gaos: El Ser y el Tiempo, México, FCE, 1971,
pp. 253 ss; Carlos Másmela: Martin Heidegger: El tiempo del Ser, Madrid, Editorial
Trotta, 2000.
62
Cf. Martin Heidegger: Carta sobre o Humanismo, Paris, Aubier, 1970, p. 79.
63
Cf. António Oliveira Cruz: Poética do Tempo, Lisboa, Edições Piaget, 1995, p. 106.
64
Octavio Paz: Lo mejor..., op. cit., pp. 189-194.
58
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
«Poema inacabado do ser», na bela metáfora de Heidegger65, o
homem não deixa de constituir o eterno e incontornável problema do
próprio homem, sabendo-se, como se sabe, que as intentadas
“soluções” dos homens para este seu problema são inelutavelmente
soluções conjunturais e epocais, sempre precárias, provisórias e falíveis
e que é no mistério e na fundura dos abismos do seu ser e poder-ser que
importa ir inspiradoramente sonhá-las, arquitectá-las e construí-las em
indomável, persistente, incisiva e anti-sofística interpelação dialéctico-
indagativa (ironia66) e naquela inamovível e serena postura de reflexivo
e problematizador questionamento que rasga caminhos e alumia
horizontes, criando, assim, as condições propulsoras da recorrente
parturição (maiêutica67) de novas dúvidas, novos problemas, novas
controvérsias, novas ideias, novos saberes, novos paradigmas, novos
sentidos, novas configurações da verdade...
De facto, «o homem, como no-lo sublinha Castanheira Neves68,
não conhece de si senão o que as especificações do seu poder-ser
historicamente lhe manifestam». Mas esta sua diacrónica epifania
semiósico-discursiva não é dissociável (porquanto dela deflui...) da
intensa, dinâmica, inestancável e complexificante espiral dialógica e
dialéctica entre divergência e convergência, a desaguar,
imparavelmente, na emergência de inovadoras plataformas sapienciais
que alimentam e renovam (ainda que circunstancial e
contextualizadamente...) essa nossa sempre circunscrita autognose... É
aqui que, a meu ver, cobra o seu inteiro sentido e alcance a radical,
sistemática e orientadora assunção, com Sócrates, do délfico e
irrenunciável gn«yi sautÒn (gnothi sauton: conhece-te a ti mesmo), a
ser sempre replasmado na docta ignorantia do «só sei que nada sei»...
Imperfeito, inconcluído, frágil, evanescente, errante, lábil,
enigmático, misterioso, sortílego, uno e múltiplo, ipseídico e alterídico,
agórico e alegórico, simétrico e assimétrico, sapiens e demens, solar e
65
Cf. Michel Malherbe e Philippe Gaudin: As Filosofias da Humanidade, Lisboa,
Edições Piaget, 2001, p. 443.
66
Em grego: e rone€a [eironeia] > ironia. Para um entendimento mais desenvolvido
do que seja a “ironia socrática”, ver, infra, nota 160.
67
Em grego: maieutikÆ [subentendido: t°xnh] = a arte de ajudar a dar à luz, o ofício
de parteira.
68
A. Castanheira Neves: Digesta, vol. 1.º, Coimbra, Coimbra Editora, 1995, p. 313:
ensaio «A imagem do homem no universo prático», pp. 311-336.
59
Fernando Paulo do Carmo Baptista
nocturno, simbólico e diabólico69, anjo e besta, divino e demoníaco, em
suma, paradoxalmente detentor das capacidades de amar, sonhar, intuir,
analisar, interpretar, compreender, integrar, esperar, acreditar, duvidar,
indagar, imaginar, visionar, inventar, inovar, criar e realizar e, assim,
de se “imortalizar”, por exemplo, através da Religião, da Política, do
Direito, da Filosofia, da Cultura, da Literatura, da Arte, da Ciência, da
Técnica e da Tecnologia, mas igualmente senhor do absurdo e fatídico
“poder negro” de odiar, humilhar, desprezar, segregar, excluir,
perseguir, explorar, poluir, destruir, violentar, torturar, queimar e matar
e, assim também, de se “notabilizar” pela malvadez e pelo crime, o
homem «siempre inacabado, sólo se completa cuando sale de sí e se
inventa70, sólo en su semejante se trasciende71: el hombre... está siempre
más allá»72, em cada átimo da vida que lhe foi dada e lhe permite
conceber um projecto e traçar um rumo, sempre reajustável, que dê
sentido à sua existência...
A imparável movência de instantes em que «o fenómeno
humano» se vai revelando na linha do tempo é culturalmente codificada
e plasmada no vasto e rico legado antropológico, sapiencial e criativo
69
Cabe sublinhar que o adjectivo ‘simbólico’ provém do seu genealógico e homólogo
grego sumbolikÒw, -Æ, -Òn, da mesma família do verbo sumbãllv (< sum + bãllv)
que tem o significado originário de lançar (bãllv) de modo combinado (sum = syn
= cum > com), isto é, lançar as coisas de modo que permaneçam juntas, unidas; por
sua vez, o adjectivo ‘diabólico’ provém do grego diabolikÒw, -Æ, -Òn, da mesma
família de diabãllv (dia + bãllv), com o significado matricial de lançar (bãllv)
de modo separativo, dispersivo, desagregador [dia > dia = dis > des], ou seja, lançar
as coisas de modo que fiquem separadas, desunidas; de notar que a raiz bal- do verbo
bãllv é a mesma do lexema ‘balística’, com o qual se designa a «ciência que se
ocupa do estudo do lançamento, movimento e trajectória dos projécteis»; tendo em
conta a semântica profunda que irrompe da etimologia, poderá dizer-se que a essência
do “simbólico” reside na sua “energia unitiva e congregante”, ao passo que a essência
do “diabólico” assenta na sua “força dissociante e desagregante” (cf. Leonardo Boff:
O despertar da águia – o dia-bólico e o sim-bólico na construção da realidade,
Petrópolis, Editora Vozes, 61998, pp. 11-24).
70
Cf. Octavio Paz: Cuadrivio, México, J. Mortiz, 1991, p. 90.
71
Cf. Octavio Paz: Libertad bajo palabra, Madrid, Fondo de Cultura Económica,
Sucursal para España, 1990, p. 109 (poema “El Prisionero”): «El hombre está
habitado por silencio y vacío. /¿Cómo saciar esta hambre, / cómo acallar y poblar su
vacío? / ¿Cómo escapar a mi imagen? / Sólo en mi semejante me trasciendo, / Sólo
su sangre da fe de otra existencia».
72
Octavio Paz: Lo mejor..., op. cit., p. 328.
60
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
dos quatro planetários CIDADÃOS que aqui se evocam e, assim, nos
convocam à reflexão e à meditação: Sócrates, Octavio Paz, Michel
Serres e José Saramago.
Corporiza-se esse seu legado e tesouro numa laboriosa e exigente
construção simbólica, singularmente protagonizada por cada um deles,
num constante e empenhado compromisso que bem pode identificar-se
com aquela mesma radical assunção e limiar autodeterminação de
Octavio Paz, segundo a qual, ser é um desejo germinal, uma pulsão
intensa, um recorrente e imparável querer ser, metabolicamente
consubstanciado e configurado no acto de criar-se a cada instante e em
permanente, simbiósica e comungante abertura à “outridade” («el ser
del hombre contiene ya a ese otro que quiere ser»73), implicando-se,
desse modo, na construção polifónica da humanitas de cada homem e
de todos os homens, numa espécie de navegante aventura noética,
sófica, ética, estésica e poiésica que parte de uma antropologia, de uma
axiologia e de uma pedagogia para se ir transformando numa eco-
antropagogia ou, talvez melhor ainda, numa cosmo-antropo-sinfónica,
potenciada por uma espiralar, galopante e humanizadora antropo-
poiese realizadora da universal ideia de que «todos los hombres son este
hombre que es otro y yo mismo»74, de que «Ser Homem é ser em Si,
sempre e ao mesmo tempo, o Próprio e o Outro, sem exclusão de
Ninguém.»75...
73
Cf. Octavio Paz: El arco y la lira, Madrid, Fondo de Cultura Económica de España,
2004, pp. 180-181: «La voz poética, la otra voz es mi voz. El ser del hombre contiene
ya a ese otro que quiere ser. (...) La amada está ya en nuestro ser, como sed y
“otredad”. (...) Más allá, fuera de mí, en la espesura verde y oro, entre las ramas
trémulas, canta lo desconocido. Me llama. (...) Todos los hombres son este hombre
que es otro y yo mismo. Yo es tú. Y también él y nosotros y vosotros y esto y aquello»;
cf. o bem fundamentado estudo de María del Carmen Ruiz de la Cierva — «Imagen
intelectual de Octavio Paz» —, publicado em: México en la encrucijada, Universidad
Complutense, Madrid, Gondo, 2000:
pp. 173-181 (http://www.ensayistas.org/filosofos/mexico/paz/ruiz/).
74
Ver citação feita na nota anterior [n.º 73].
75
Cf. Fernando Paulo Baptista: Tributo à Madre Língua, Coimbra, Pé de Página
Editores, 2003, p. 542; este princípio está em inteira consonância com o lema
renaniano das almas nobres que Ortega y Gasset tomou como seu: «excluir la
exclusión» (cf. Diego Gracia, Pedro Cerezo Galán y otros: La empresa de vivir —
Estudios sobre la vida y la obra de Pedro Laín Entralgo, Barcelona, Galáxia
Gutenberg / Círculo de Lectores, 2003, p. 51.
61
Fernando Paulo do Carmo Baptista
Tudo isso, mediatizado por uma “sinagógica” trans-científica e
meta-tecnológica e por uma “bio-artónica”76 metodologicamente
orquestral, criticamente radicadas numa anthropo-sophia plural,
intercultural e integradora e (por que não?...) numa “theo-sophia”77,
capaz de inspirar e fundamentar um «Novo Paradigma Teológico»78,
marcado por uma forte preocupação ecuménica, profética e exodal e
gerador e promotor da polilogia reflexiva, heurística e exegética, do
trans-academismo unicitarista, da superação dos dogmatismos
instalados e obsoletos e, nesse sentido, “meta-dogmático” e, assim,
menos propenso, por um lado, às tentações do exercício de um poder
imperial, cesarista, faustoso e autoritário e do exorcismo e do anátema
condenatórios ou excludentes, e mais sensível, pelo outro, à dimensão
existencial e histórico-concreta da vida humana, aos valores da
76
Com esta metáfora inspirada numa sintetizante combinatória de “Biónica” com
“Artónica”, pretendo sugerir a assunção, no plano metodológico, de um Novo
Paradigma Educacional e Formativo que retire das “engenharias” e das “tecnologias”
que se ocupam da análise, estudo e imitação dos “sistemas da vida, da natureza e da
arte” (esta última, por exemplo, nas suas relações com a construção de edifícios e a
modelação de equipamentos específicos da área da saúde...) o que eles encerram em
si de mais inovador e criativo. Assim, e clarificando: 1) «Bionics (also known as
Biomimetics, Biognosis or Biomimicry...) is the application of methods and systems
found in nature to the study and design of engineering systems and modern
technology» (cf.: en.wikipedia.org/wiki/Bionics); 2) por sua vez, «... Artonic
encompasses this creative spirit (...): artists, at their best, reflect a concern for
humanity; engagement in making an artwork is very often a response to the wonder
of the human experience and attempts to express and understand this; it is often
generous and can even be noble; it is something of this that makes it so good in health;
there is a natural affinity between the arts and the health communities; buildings are
understood in many different ways; there are of course the mechanics, the layout, the
function, the organisation of circulation space and clinical space for example, but
there is also the mood, the feel of the building; there are of course more practical
reasons, very often new buildings take over from old, these can have sentimental
attachments for those who worked in them, carrying some elements of the old into the
new can smooth the transition...».
Cf. http://www.lustre.co.uk/artonic_web/bckgrnd_pages/health.html;
e também: http://www.rogermichell.co.uk/artonic_web/bckgrnd_pages/artonic.html.
77
Fernando Paulo Baptista: ibidem, p. 555.
78
Ver, por exemplo, Juan José Tamayo-Acosta: Nuevo Paradigma Teológico,
Madrid, Editorial Trotta, 22004, pp. 11-14 e Johan Baptist Metz: Dios y tiempo —
Nueva teología política, Madri, Editorial Trotta, 2002, especialmente, pp. 13-38, 39-
70, 71-84, 85-97 e 109-139.
62
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
tolerância, da compreensão, da solidariedade, da justiça e da equidade
na base do amor fraterno, às mediações culturais, filosófico-teológicas,
técnico-científicas, político-económicas e sociais, eclesiais e
contextuais, que a alimentam e configuram, sem esquecer as dimensões
do sonho e da esperança e a utopia de uma «terra nova» e de um «céu
novo» também79...
Mas, quando no específico contexto antropológico da propositura
que venho fazendo de uma “Nova Paideia” que seja uma “Sinfónica do
Humano” digo «meta-dogmático», não digo nem quero dizer «anti-
dogmático». Com efeito, face à profunda, gravíssima e arrastada crise
de valores80 (dos valores em geral e dos valores éticos em particular...)
que vem atravessando radialmente o nosso mundo contemporâneo,
afigura-se-me da maior relevância (no humilde mas convicto
entendimento do simples “filo-filósofo” que tento ser...) a presença
operante de uma summa crística ou evangelho sinóptico fundamental
(que não fundamentalista!), de uma archê originária e originante,
matriz e base doutrinal de referência, de meditação e de mediação,
teologicamente coerente e forte e, ao mesmo tempo, dinâmica, aberta e
projectiva, instituidora dos grandes princípios e valores e irradiadora
dos sentidos polares que devem inspirar e nortear o diálogo quotidiano
e o agir social, político e religioso, a nível pessoal, inter-pessoal,
institucional e comunitário, e impulsionar, aquecer e incandescer os
fluxos relacionais do homem com «o profano», com «o sagrado» e com
79
Isto é: limpo de todas as “teias de aranha” que o vêm povoando e desfigurando...
80
Gilles Lipovetsky, por exemplo, tenta caracterizar a actual «crise de valores»,
condensadamente, sob as famosas e sugestivas metáforas de «a era do vazio» e de «o
crepúsculo do dever»... Cf. Gilles Lipovetsky: a) A era do vazio [trad. de Miguel
Serras Pereira e Ana Luísa Faria], Lisboa, Relógio d’Água, 1989; b) O crepúsculo do
dever — A ética indolor dos novos tempos democráticos, Publicações Dom Quixote,
Lisboa, 1994; Fernando Paulo Baptista: Tributo à Madre Língua..., op. cit., pp. 544-
545; José Alcina Franch y Marisa Calés Bourdet (eds.): Hacia una ideología para el
siglo XXI — Ante la crisis civilizatoria de nuestro tiempo, Madrid, Ediciones Akal,
2000; Enrique Dussel: Ética de la liberación en la edad de la globalización y de la
exclusión, Madrid, Editorial Trotta, 32000; Juliana González: Ética y Libertad,
México, Fondo de Cultura Económica, 21997; Anthony Giddens: Modernity and Self-
identify — Self and Society in the Late Modern Age, London, Polity Press / Basil
Blackwell, 1991; José Antonio Pérez Tapias: Filosofía y crítica de la cultura, Madrid,
Editorial Trotta, 22000.
63
Fernando Paulo do Carmo Baptista
o «divino», com «o outro» e «o totalmente outro»81, bem como as vias
e os modos diversos de ir realizando na Terra e nesta vida «o reino de
Deus», antecipando, assim, a chegada, post mortem, à prometida (mas
adiada...) «Jerusalém Celeste»82...
A presença de uma tal summa, reconduzida à pureza prístina e
genuína das suas fontes e raízes, sem a mácula das conivências de
conveniência, das dependências interesseiras e das alianças cúmplices
e tragicamente alienantes com as instâncias do poder secular («o meu
reino não é deste mundo», «a César o que é de César»...), teria como
finalidade semaforizar, em planante horizonte de crítica e transfinita
transcendência, os caminhos, as dinâmicas e os movimentos anabáticos
ou ascensivos, contra os impulsos, as tentações ou as derivas catódicas
que venalizam, satanizam, idolizam ou endeusam o ser humano e,
assim, o corrompem, desfiguram, pervertem e fazem perder... É
urgente, pois, levantarmo-nos do chão!...
Numa tal perspectiva e no poético entendimento partilhado com
Octavio Paz83 de que «la tierra es un hombre... pero el hombre no es la
tierra, el hombre no es este mundo ni los otros mundos que hay en este
mundo y en los otros...», de que, pelo contrário, «el hombre es el
momento en que la tierra duda de ser tierra y el mundo de ser mundo»,
será ou não será pertinente e urgente, se não mesmo inadiável, levar a
cabo um clarificador e isento questionamento, em largueza,
profundidade e elevação, em torno do humano e do divino, da
imanência e da transcendência?...
81
Sobre as dimensões do “outro” e do “totalmente outro”, ver, por exemplo:
Emmanuel Levinas: Totalidad e Infinito – Ensayo sobre la exterioridad, Salamanca,
Ediciones Sígueme, 72002, pp. 57-127; La realidad y su sombra. Libertad y mandato,
Transcendencia y altura, Madrid, Editorial Trotta, 2001, pp. 120-122; Paul Ricœur:
Sí mismo como otro, Madrid, Siglo Veintiuno de España Editores, 1996, pp. 365 ss;
Ángel Gabilondo: La Vuelta del Otro — Diferencia, Identidad y Alteridad, Madrid,
Editorial Trotta, 2001, pp. 9-15, 199 ss; Martin Buber: ¿Qué es el Hombre?, México-
Madrid-Buenos Aires, Breviários, FCE, 131986, pp. 93 ss, 107 ss, 141-151; Joseph
Gevaert: El Problema del Hombre — Introducción a la Antropología Filosófica,
Salamanca, Ediciones Sígueme, 2003, capítulo «Ser hombre es ser con otros», pp. 29-
62.
82
Cf., a título de exemplo, Anna-Teresa Tymieniecka: From the Sacred to the Divine:
A New Phenomenological Approach (Analecta Husserliana), Dordrecht, Netherlands,
Springer, 1994.
83
Octavio Paz: Lo mejor..., op. cit., p. 328.
64
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
Poderá contribuir, ou não, tal questionamento para melhor
compreender a «treva geral no interior dos homens»84, decifrar «el
eclipse de las claridades»85 e combater «a epidemia geral de cegueira
branca»86 que vem assolando sombriamente a comunidade humana,
através da acção iludente, alienante e barbarizante que decorre da
globalização meramente economicista e consumista e da
homogenização neutralizadora e silenciadora das grandes referências
ético-axiológicas, culturais e identitárias que iluminam, por dentro, as
alumiantes focalizações de um olhar trans-oftálmico, verdadeiramente
inteligente e sensível e superadoramente sábio e crítico?... Será luz
autêntica aquela excessiva luz que apenas encandeia e obnubila?... Não
será tragicamente cego aquele que, olhando, não sabe ou não quer
ver?...
No pressuposto de que a prova da mais autêntica fidelidade do
homem à sua condição e ao seu destino reside, por certo, na obstinada
procura das suas origens e das suas ultimidades, terá ou não terá
cabimento prosseguir na rota dessa questionante indagação sedenta de
cada vez mais saber acerca de si próprio e do mundo?... Que somos e
quem somos?... De onde vimos e para onde vamos?... Foi ou não foi
um «deus» que criou a maravilhosa “máquina” do universo
(globalmente pensado em sua integrada unidade e expressão cosmo-
eco-bio-sócio-antropológica...) em que nos foi dado aparecer?... Essa
“máquina” gerou-se a si mesma ou é obra aleatória e arbitrária do acaso
ou de um destino cego?... O que é que havia ou não havia, há cerca de
quinze ou vinte mil milhões de anos, antes da eclosão do big bang?...
E, pressupondo ainda que «a ordem que caracteriza o nosso universo
actual não é uma ordem sobrevivente a uma degradação progressiva,
mas sim uma ordem gerada durante uma explosão entrópica original,
uma ordem de que a radiação fóssil nos permite avaliar o custo
gigantesco»87, o que é que passará a haver, quando, entre expansão e
arrefecimento, se vier a consumar a «morte térmica» do cosmos e, com
ela, a do planeta e a do homem, no quadro da entropia crescente, da
dissipatividade, da desorganização e do colapso geral, previsíveis na
84
José Saramago: Memorial..., op. cit., p. 144.
85
Octavio Paz: Lo mejor..., op. cit., p. 285.
86
José Saramago: Ensaio sobre a Lucidez, Lisboa, Editorial Caminho, 2004, p. 238.
87
Cf. Ilya Prigogine / Isabelle Stengers: Entre o Tempo e a Eternidade, Lisboa,
Gardiva, 1990, p. 179.
65
Fernando Paulo do Carmo Baptista
“segunda lei da termodinâmica” enunciada por Kelvin88?... Será o
regresso ao puro e perpétuo nada, sob a acção aniquilante, arrasadora e
esmagadora de um big crunch89 intra e inter-galáctico, a ser (se vier a
ser...) desencadeado pelo poder hipergravítico, supermassivo,
curvaturante, atractor, implosivo-capturante e rádio-energo-fágico dos
“buracos negros”?...
Cumprir-se-á a escatológica promessa da ressurreição e da
transfiguração dos mortos e da fruição, para sempre, de uma outra vida
no além?... E, se assim for, «onde» é que fica esse «além», se é que ele
tem um «onde»?... Ou, pelo contrário, continuará a haver lugar para
novas singularidades, sob a forma de novas explosões entrópicas,
geradoras e propulsoras de «novas temporalidades» e de «novas
existências», numa palavra, consubstanciadoras de uma “variância”
recorrente e cíclica a operar por sobre o transfundo dinâmico e o lastro
evolutivo de uma “constância” motora, metabólica e morfogénica,
88
Sobre a «segunda lei da termodinâmica, ver: Julio Güémez, Carlos Fiolhais e
Manuel Fiolhais: Fundamentos de Termodinâmica do Equilíbrio, Fundação Calouste
Gulbenkian, Lisboa, 1998; Michel J. Moran & Howard N. Shapiro: Fundamentals of
Engineering Thermodynamics, New York, John Wiley & Sons, 41999; Gordon Van
Wylen & Richard E. Sonntag: Fundamentos da Termodinâmica, São Paulo, Editora
Edgard Blücher Lda., 51998; Göran Wall: «Exergy — a useful concept» (apud:
http://www.exergy.se/goran/thesis/index.html#1), considerando que «exergy is the
maximum amount of work that can be extracted from a physical system by exchanging
matter and energy with large reservoirs in a reference state; this work potential is
due to either a potential due to a force, temperature, or the degree of physical
disorder; while energy is conserved, exergy can be destroyed; while there is a
constant amount of energy in the universe, the amount of exergy is constantly
decreasing with every physical process».
Cf: en.wikipedia.org/wiki/Exergy.); cf. também:
http://www.if.ufrj.br/teaching/fis2/segunda_lei/segunda_lei.html;
http://www.christiananswers.net/portuguese/q-eden/edn-
thermodynamics-port.html;
http://www.members.tripod.com/alkimia/cientificos/2_lei.htm;.
Cf: en.wikipedia.org/wiki/Exergy.); cf. também:
http://www.if.ufrj.br/teaching/fis2/segunda_lei/segunda_lei.html;
http://www.christiananswers.net/portuguese/q-eden/edn-
thermodynamics-port.html;
http://www.members.tripod.com/alkimia/cientificos/2_lei.htm;
89
Cf . Stephen Hawking: O Fim da Física, Lisboa, Gradiva, 1994, pp. 28-41.
66
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
auto-cosmogónica e auto-poiésica, no horizonte eterno e sem limites
de uma physics of the immortality90?... Afinal, qual o sentido de tudo
isto, se é que isto tem (ou tem de ter...) algum sentido?...
E mesmo que, com o nosso Camões (Lus., X, 80), em jeito de
auto-justificação se possa defender que «... o que é Deus, ninguém o
entende, / que a tanto o engenho humano não se estende», bastará
acreditarmos afirmando, ou não acreditarmos negando, sempre
ancorados, num caso como no outro, no “código” das mundividências
90
Sobre a problemática da «morte térmica» do cosmos e suas implicações filosófico-
metafísicas e teológico-religiosas, ver: Frank J. Tipler: The Physics of Immortality:
Modern Cosmology, God and the Resurrection of the Dead, New York, Doubleday,
1994; Concílio Ecuménico Vaticano II, Braga, SNAO, 1967: «Constituição pastoral
— A Igreja no mundo actual», ponto 39, pp. 370-371; Catecismo da Igreja Católica,
Coimbra, Gráfica de Coimbra, 1993, pp. 77 ss; Sebastião J. Formosinho e J. Oliveira
Branco: O Brotar da Criação — Um olhar dinâmico pela Ciência, a Filosofia e a
Teologia, Lisboa, Universidade Católica Editora, 1997; Roger Trigg: Racionalidade
e Religião — Precisará a Fé da Razão, Lisboa, Edições Piaget, 2001; Carl Sagan:
Cosmos, Lisboa, Gradiva, 1984, pp. 281-309; Heinz R. Pagels: O Código Cósmico,
Lisboa, Gradiva, 1987, pp. 369-380, 403-410; Stephen Hawking: Breve História do
Tempo — Do Big Bang aos Buracos Negros, Lisboa, Gradiva, 1988, pp. 117-228;
Heinz R. Pagels: Os Sonhos da Razão, Lisboa, Gradiva, 1990, 191-225; John D.
Barrow, Frank J. Tipler: The Anthropic Cosmological Principle, Oxford, Oxford
University Press, 1988; John D. Barrow: Teorias de Tudo — A procura de uma
explicação para o universo, Lisboa, Editorial Presença, 1996; Nikos Prantzos: Our
Cosmic Future: Humanity’s Fate in the Universe, Cambridge, Cambridge University
Press, 2000; James N. Gardner: Biocosm: The New Scientific Theory of Evolution:
Intelligent Life Is the Architect of the Universe, Inner Ocean Publishing Inc.,
Makawao, Maui (Hawaii), 2003; John D. Barrow (edit.), Paul C. W. Davies (edit.),
Jr, Charles L. Harper: Science and Ultimate Reality: Quantum Theory, Cosmology,
and Complexity, Cambridge, Cambridge University Press, 2004.
Sobre os «buracos negros», considerar o interessante estudo subscrito por Thaisa
Storchi Bergmann, Fausto Kuhn Berenguer Barbosa e Rodrigo Nemmen da Silva:
http://www.if.ufrgs.br/~thaisa/bn/index.htm#indice, bem como os artigos e estudos
localizáveis nas seguintes e-fontes, entre outras:
http://www.observatorio.ufmg.br/pas19.htm
http://observatoriophoenix.astrodatabase.net/e_teoria/24_E15.htm
http://www.terravista.pt/meco/1351/Bnegros.html,
http://www.spaceref.com/tools/imagecathp.html?cid=1
67
Fernando Paulo do Carmo Baptista
ou das convicções pessoais91?... Como explicar, por um lado, a
irrasurável fanerose ( ανέ ι ), a espantosa presença ou expressão
fânica do divino e do sagrado na arte (arquitectura, escultura, pintura,
literatura, música, cinema...) e na filosofia e, pelo outro, a origem e a
existência do mal, das guerras e dos cataclismos e demais desgraças, da
doença, da dor e da morte?... E como aceitar o sofrimento das crianças
e dos inocentes, dos bons e dos justos, a condenação dos injustiçados e
a impunidade dos criminosos?... Qual a “posição” e o “papel” da
divindade em tudo isto?... E, por mais heterodoxo que tal possa parecer,
será descabido relançar, aqui, a provocadora e radical pergunta
formulada por Hans Küng — «Existiert Gott?»92 [Será que Deus
existe?] — com que, nos fins da década de setenta, deu expressão à sua
famosa e aturada procura em busca de um «sim» ou de um «não»?...
Terá razão Edgar Morin quando vaticina93 que «os deuses morrerão
todos quando nós deixarmos de existir»?...
Mas, independentemente das razões de auto-convencimento
(mais ou menos consistente...) que possam defluir da assunção de cada
credo, não será de persistir no agónico e inconformado questionamento
que não cessa de indagar, mesmo que as respostas continuem a ser a do
silêncio do «Dios mudo, que al silencio del hombre que pregunta
contesta / sólo con silencio que ahoga»94, a da revolta e da indignação,
do cepticismo, do desalento ou da indiferença ou do espanto gerador de
novas e irresignadas tentativas interrogantes?... E não será belo e até
mesmo reconfortante admitir, ainda assim (como que em clave mística
e ao mesmo tempo épica e para além de todas as concepções, figurações
91
Na verdade, nem mesmo o campo das convicções pessoais, em sua autenticidade,
poderá deixar de ponderar devidamente «la complexidad del movimiento que ha
llevado de la afirmación a la negación de Dios», na medida em que «no en toda
afirmación se estaba expressando una actitud religiosa ni en toda negación se estaba
manifestando un rechazo de Dios». Cf. Luís Miguel Arroyo Arrayás na sua
«Introducción» a Martin Buber: Eclipse de Dios, Salamanca, Ediciones Sígueme,
2003, p. 10.
92
Cf. Hans Küng: ¿ Existe Dios?, Madrid, Editorial Trotta, 2005, pp. 17-19.
93
Cf. Edgar Morin: O Problema Epistemológico da Complexidade, Lisboa,
Publicações Europa-América, 1983, p. 29.
94
Cf. Octavio Paz: Libertad Bajo Palabra — Obra Poética (1935-1957), Madrid,
Fondo de Cultura Económica, Sucursal para España, 1990, p. 94.
68
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
ou representações, antropomórficas95 ou outras, do que seja «o
divino»...), que «Deus é o silêncio do universo e o homem é o grito que
dá sentido a esse silêncio»96?...
Será que o “mérito” da busca residirá mais nas metas atingidas e
reveladas no cerimonial dos rituais ou na retórica dos discursos do que
nas fendas rasgadas na desafiante clausura do segredo que vive e medita
em solidão o mistério e o enigma?... Ou aceitamos com Vergílio
Ferreira97, e sem mais luta, que «o mistério é o intervalo vertiginoso
entre nós e o que existe e que um deus não pode preencher»?... Haverá
limites ou fronteiras para as ânsias e os dinamismos do ser e do
conhecer, do pensar e do questionar, do confiar e do não confiar, do crer
e do não crer?... Ou não será pertinente reafirmar, com Kierkegaard,
que «ter fé é a coragem de sustentar a dúvida»98?...
95
Considere-se, a propósito, a seguinte ironia de José Saramago (Memorial..., op. cit.,
p. 238), no quadro da tradicional visão antropomórfica de Deus, dialogicamente
partilhada, entre outros, pelos «rústicos e analfabetos» Manuel Milho e Baltazar Sete-
Sóis: «Deus não tem a mão esquerda porque é à sua direita que senta os seus eleitos,
e uma vez que os condenados vão para o inferno, à esquerda de Deus não vem a ficar
ninguém, ora, se não fica lá ninguém, para que quereria Deus a mão esquerda, se a
mão esquerda não serve, quer dizer que não existe, a minha não serve porque não
existe, é só a diferença, Talvez à esquerda de Deus esteja outro deus, talvez Deus
esteja sentado à direita doutro deus, talvez Deus seja só um eleito doutro deus, talvez
sejamos todos deuses sentados...». Sobre as figurações “másculas” ou outras de
“Deus”, ver a clarificadora reflexão de Hans Küng, op. cit., pp. 728-765,
especialmente o excurso em torno da questão «¿Un Dios varón?» (pp. 733-735), em
que conclui: «Dios no es varon y no debe ser contemplado a través de la falsilla de
lo masculino y paterno, como tantas veces ha hecho una teología excesivamente
masculina. En él se ha de reconocer también la dimensión femenino-materna».
96
José Saramago, citado por Juan Arias in «O Amor Impossível» (El País, 9 de
Outubro de 1998), apud http://www.instituto-camoes.pt/revista/impespanha.htm; cf.
também Juan José Tamayo-Acosta: op. cit., p. 211.
97
Cf. Vergílio Ferreira: Pensar, Lisboa, Bertrand Editora, 1992, p. 215.
98
Cf. Adolphe Gesché: Dios para pensar, II, Salamanca, Ediciones Sígueme, 1997,
p. 11. Cf. também: Milene Costa dos Santos de Castro: Razão e Fé — Uma leitura da
obra Temor e Tremor de Kierkegaard (dissertação de Mestrado em Filosofia da
Religião), Belo Horizonte, Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, 2009, p. 92: «a
coragem da fé é o único acto de humildade que é possível àquele que se vê
absolutamente isolado em sua prova ou tentação»; Elias Gomes da Silva:
Kierkegaard e Tillich: possibilidades que se abrem, in Revista Eletrônica Correlatio
v. 13, n. 26 - Dezembro de 2014.
69
Fernando Paulo do Carmo Baptista
Na liberdade de escolha de que, apesar de tudo, a esse nível, ainda
vamos fruindo, terá este tipo de questões de se considerar forçosamente
alienante, distractor ou inibidor da formulação de perguntas de natureza
mais sensível e mais directa (menos “metafísicas”, digamos assim...) e,
portanto, mais consonantes com o sentido e o horizonte da existência
concreta, do mundo da vida (LebensWelt) e da historicidade?...
Assim, por exemplo: em nome de que «deuses» e de que
«divinas» causas se perseguiu e queimou nas «sacras» fogueiras das
inquisições e dos holocautos99?...
Em nome de que «deuses» e de que «divinas» razões continua a
matança arbitrária, criminosa e assassina, sob a dominação estrangeira
e genocida, às mãos da violência fanática e impune dos kamikazes
jihadistas e daeshistas de toda a espécie ou da sofisticada, poderosa e
letal máquina de guerra accionada, ao arrepio do direito internacional,
pelos neo-bárbaros senhores das “tecnológicas” e devastadoras armas
do nosso tempo?...
Em nome de que «deuses» e com que «divinos» argumentos se
vem permitindo a crescente existência de tanta fome, tanta miséria,
tanta exploração e tanta destruição, de par com tantos e tão “lavados”,
incontrolados e impunes “paraísos fiscais”100?...
Que é feito dos códigos que nos declaram «irmãos», porque
«filhos do mesmo Pai / da mesma Mãe» e, assim, com o mesmo e
universal direito de todos crescermos e povoarmos a Terra?...
Que “divina” esperança de futuro poderá brilhar ainda no olhar
espantado, inocente e mudo de tanta criança sem pão, sem carinho e
sem abrigo?...
Não será já este nosso globalizado mundo o novo e geral palco-
lixeira onde o bíblico Job volta a reencarnar no corpo dilacerado de
todos quantos (à semelhança do que aconteceu com Sócrates e Jesus
99
Ou, então, muito dificilmente se compreenderá a veemente e frontal posição de
Johan Baptist Metz (Dios y tiempo..., op. cit., p. 110), quando nos diz que, para si,
«ser cristão» significa «ser cristão olhando de caras para Auschwitz, olhando de caras
para o Holocausto», uma vez que «o Holocausto não é apenas uma catástrofre alemã:
é também uma catástrofe cristã»; que não há para si, portanto, um Deus «a quem seja
possível rezar de costas voltadas para Auschwitz», não lhe sendo possível seguir a
Jesus Cristo «de costas voltadas a Auschwitz (...) nem fazer teologia de costas
voltadas ao sofrimento mudo dos pobres e oprimidos do mundo»...
100
Cf. Fernando Paulo Baptista: op. cit., p. 550.
70
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
Cristo...) estão condenados a espiar o “grave crime” de serem simples
e autênticos, justos e bons, generosos e corajosos, mas, ao mesmo
tempo, “subversivamente” lúcidos e interpelantes ou contestatários,
transparentes e coerentes, autónomos e solidários, por sentença do
implacável julgamento (muito “legal”: a Lei é o Direito!...)
protagonizado por aquele mesmo tipo de “juízes” soturnos, enigmáticos
e invertebrados que perversamente presidiram ao anónimo, burocrático
e decapitante “processo” de Joseph K(afka)?...
Onde moram afinal a justiça e a equidade e quem é o seu
garante?101... Por outras palavras: quando é que o direito e a justiça
passam a ser, cumpridamente e em definitivo, «a suprema axiologia da
existência humana comunitária», de modo a que todos os homens, sem
qualquer espécie de distinção ou discriminação, vejam realizado o
verdadeiramente fundamental e, por isso mesmo, irrevogável e
inalienável direito de ter «direito ao direito»102?...
São improrrogáveis as respostas, porque, sobretudo, inadiáveis as
decisões...
Mas porque a “navegação” é agora outra, simultaneamente ao
perto e ao longe (local e global: “glocal”) e marcada por uma turbulenta
instabilidade e incontrolável “risco invisível” (Ulrich Beck103), o
mesmo é dizer, com Saramago104, pela «gravidade e diversidade de
mazelas de toda a espécie que vêm ameaçando a já precária
sobrevivência do género humano», não se pode dispensar o decisivo
contributo de um “mapeamento” antropológico multiculturalmente
“mestiçado”105, linguística e discursivamente heteroglóssico,
101
Idem: ibidem, p. 549.
102
Cf. A. Castanheira Neves: O Direito hoje e com Que Sentido? — O problema
actual da autonomia do direito, Lisboa, Edições Piaget, 2002, pp. 70-73; ver, também,
A. Gomes Canotilho na sua interpelante reflexão «O direito aos direitos humanos»,
apud Desafios à Igreja de Bento XVI, Lisboa, Casa das Letras, 2005, pp. 13-19.
103
Cf. Ulrich Beck: La sociedad del riesgo — Hacia una nueva modernidad,
Barcelona – Buenos Aires – México, Paidós, 1998.
104
José Saramago: Ensaio sobre a Lucidez, op. cit., p. 79.
105
É complexo (e, por isso mesmo, difícil de equacionar...) o problema da
“multiculturalidade”. Afigura-se-me, todavia, residir nas soluções a ir sendo
construídas numa lógica de “mestiçagem” integradora e inclusora, mas não
“assimilacionista” e/ou homegeneizante, a melhor e mais humana via de coexistência
entre “maiorias” e “minorias”, entre “colonizantes” e “colonizandos” e “ex-
colonizadores” e “ex-colonizados”... Na verdade, como reconhece o renomado
71
Fernando Paulo do Carmo Baptista
multivocal ou polifónico106, de uma “cartografia” sapiencial e
epistemologicamente interdisciplinar e transdisciplinar e, do ponto de
vista metodológico, englobante e inclusora, numa palavra, pléctica, na
acepção de Murray Gell-Mann107, e, por isso mesmo, co-implicativa da
Arte, da Religião, da Filosofia, da Política, do Direito, da Ciência, da
Tecnologia, do Trabalho, da Guerra e da Paz e, sobretudo, dessa
“utopia” cada vez mais necessária e desse “tesouro” sempre por achar
que dá pelo nome de Educação108...
Uma tal cartografia pode e deve configurar-se simbolicamente na
elaboração de um novo ATLAS ou MAGNA CHARTA SAPIENTIAE ET
HUMANITATUM 109.
politólogo e académico Bhiku Parekh (in Repensando el multiculturalismo, Madrid,
Ediciones Istmo, 2005, p. 502): «Las sociedades multiculturales plantean problemas
que no tienen parangón en la historia. Deben encontrar la forma adecuada de
reconciliar las legítimas demandas de unidad y diversidad y lograr la unidad política
sin llegar a la uniformidad cultural. Deben ser inclusivistas sin ser assimilacionistas,
cultivar entre sus ciudadanos un sentimiento comun de pertenencia, respetando a la
vez sus ligítimas diferencias culturales y cuidar de las identidades culturales plurales
sin debilitar la identidad compartida y preciosa de la ciudadania. Esto es una tarea
política formidable y, hasta ahora, ninguna sociedad multicultural ha sido capaz de
llevarla a buen término».
106
Cf. Mikhail Bakhtin et alii: The Dialogic Imagination: Four Essays, Austin,
University of Texas Press, 1983; Tzvetan Todorov: Mikhail Bakhtine, le principe
dialogique, Paris, Seuil, 1981; Katerina Clark e Michael Holquist: Bakhtin, São Paulo,
Perspectiva, 1998; Julia Kristeva: Polylogue, Paris, Éditions du Seuil, 1977.
107
Sobre o conceito de “pléctica”: cf. John Brockman: The Third Culture — Beyond
the Scientific Revolution, London, Simon & Schuster, 1995, cap. 19: «Murray Gell-
Mann “Plectics”» (complexity is the next big problem, pelo que se torna urgente e
inevitável the study of simplicity, complexity of various kinds, and complex adaptive
systems, with some consideration of complex nonadaptive systems as well); Murray
Gell-Mann: The Quark and the Jaguar: Adventures in the Simple and the Complex,
New York, Freeman, 1994 (versão portuguesa: O Quark e o Jaguar, Lisboa, Gradiva,
1997).
108
Cf. Michel Serres: Le Tiers-Instruit, Paris, François Bourin, 1991 (O Terceiro
Instruído, Lisboa, Edições Piaget, 1996); Jacques Delors (coord.): Educação: um
tesouro a descobrir — relatório da Comissão Internacional sobre Educação para o
século XXI (UNESCO), Porto, Edições ASA, 1996.
109
A sugestão decorre, naturalmente, de Michel Serres: Atlas, Lisboa, Edições Piaget,
1997, pp. 11-20 ss.
72
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
Assim, e no que diz respeito mais directamente ao
110
CONHECIMENTO CIENTÍFICO, importa ter presente, com Michel Serres ,
que A CIÊNCIA, se é uma sólida e rigorosa construção a nível dos
conteúdos sapienciais, programas e “protocolos” de cognição e
metacognição, pesquisa e experimentação, suportada numa base
racionalmente consistente e poderosa, constituída por um conjunto de
enunciados teoréticos legiformes dotados de grande coerência
intrínseca e de largo e universalizável potencial iluminante e alcance
conjectural, descritivo-explicativo, preditivo e retroditivo, não deixa de
ser, também, um incontornável «modo de circulação» operatoriamente
sustentado numa rede e numa dinâmica de vectores, relações, categorias
e modalidades de saber simultaneamente instituintes e constituintes
que, na base de uma metódica essencial, visam «um máximo de
resultado»111; que, nesse exigente e rigoroso esforço reticular de
intelecção, emerge, por um lado, um objecto global — a Terra — e
constitui-se, pelo outro, um sujeito igualmente global — a Comunidade
Humana Planetária —, faltando-nos todavia, ainda, pensar e
desenvolver, mais e melhor, as relações e as modalidades sapienciais
englobantes dessas duas globalidades emergentes... Importa, pois,
aprender a «dominar a nossa dominação», de modo a que seja o homem
a “pilotar”, lúcida, articulada e integradoramente, o comando que nos
vem sendo “imposto” pela cibernética mágica e cega da “Tecno-
Ciência”. E esse é, sem dúvida, um dos grandes desafios que nos coloca
o século XXI112...
Daí, a necessidade de uma teoria geral e sistémica, co-implicativa
das relações e das modalidades de saber, e a imprescindibilidade de um
sentido imaginante verdadeiramente sentiens et intelligens113, ético,
110
Cf. Michel Serres: Diálogo sobre a Ciência, a Cultura e o Tempo, Lisboa, Edições
Piaget, 1996, pp. 135, 144, 150-155, 160, 162, 231-232.
111
Método, consubstanciado num “protocolo” processual e procedimental que não
dispensa a observação e a analítica sistemáticas nem a experimentação, a
problematização e a testagem contrastiva e refutativa, probatória e validadora...
112
Cf. Edgar Morin: O Desafio do Século XXI — Religar os Conhecimentos, Lisboa,
Edições Piaget, 2001.
113
Sobre as relações “inteligência <> sensibilidade”, ver Xavier Zubiri: Sobre el
Hombre, Madrid, Alianza Editorial, 1998, p. 238: Os valores «son videntes porque
son modulación de una inteligencia sentiente, porque la inteligencia está
internamente inscrita en la estructura del sentir, y el sentir es un sentir intelectivo».
Este entendimento filosófico-antropológico de Zubiri é partilhado, no essencial, por
73
Fernando Paulo do Carmo Baptista
estético, eidético, sófico e poético, a alimentar e a orientar as
capacidades da inovação, da inventiva e da criatividade, no pressuposto
de que tais capacidades abrem imparavelmente caminho a uma
infinidade de inovações, invenções e criações (creatio continua...),
«alumiando assim [ao largo] o largo Mundo» (Camões: Lus., I, 56, II,
60)...
Todavia, no que concerne ainda à problemática do conhecimento
científico, pensado em todas as suas envolventes, aplicações e
consequências, se, com Michel Serres, é serenante a conjectura de que
«a ciência se tornará sábia quando se moderar a si mesma e fizer tudo
o que pode fazer», a hipótese de corrermos os riscos diagnosticados,
entre outros, por Ulrich Beck, Anthony Giddens, Henri Atlan, Almeida-
Filho ou Mesquita Ayres114, também só muito provavelmente será
superada, «quando a ciência e a razão tiverem atingido a beleza»115, isto
é, quando se consumar definitivamente a pessoana116 paridade estética
(e ética...) entre o binómio de Newton e a Vénus de Milo, o mesmo é
dizer, o sacral e íntimo conúbio da Ciência com a Arte e das
Tecnologias com as Humanidades...
É por isso que se torna imperioso não só aprender a dominar e a
regular estrategicamente o efectivo e tremendo poder que já vimos
exercendo sobre a natureza, sobre o homem e sobre o mundo, mas
António Damásio nas suas consabidas “teses” de matriz neurobiólogica acerca da
consciência, do sentimento e da emoção (cf. António Damásio: Ao Encontro de
Espinosa — As Emoções Sociais e a Neurologia do Sentir, Lisboa, Publicações
Europa-América, 2003, p. 192: «Os seres humanos não só demonstram compaixão
pelo sofrimento de um outro ser, coisa que variadas espécies não humanas podem
também demonstrar, como sabem que sentem essa compaixão».
114
Cf., além de Ulrich Beck, já referido, o estudo de Naomar de Almeida-Filho:
«Anotações sobre o conceito epidemiológico de risco» e a bibliografia aí citada, in
http://www.ensp.fiocruz.br/projetos/esterisco/risc_epid.html; José Ricardo de
Carvalho Mesquita Ayres: Sobre o risco: Para Compreender a Epidemiologia, São
Paulo, Hucitec, 1997; Maurice Tubiana, Constantin Vrousos, Catherine Carde, Jean-
Pierre Pagès (eds.): Risque et Société, Paris, Éditions NucléoN, 1999; Henri Atlan: La
fin du tout génétique? Nouveaux paradigmes en biologie, Paris, INRA Éditions, 1999;
La science est-elle inhumaine? Essai sur la libre nécessité, Paris, Bayard, 2002.
115
Cf. Michel Serres: O Terceiro Instruído, Lisboa, Edições Piaget, 1996, pp. 119-
120.
116
Fernando Pessoa (Álvaro de Campos): Poesia, Lisboa, Assírio & Alvim, 2002, p.
587: «O binómio de Newton é tão belo como a Vénus de Milo. / O que há é pouca
gente para dar por isso».
74
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
também instituir a “mathesis”, a “aletheutica”, a “metrica”, a “sophia”
e a “sophrosyne” de uma nova Educação, de uma nova Ética e de um
novo Direito117: natura siue humanitas > humanitas siue cultura siue
paideia > magister siue discipulus > creator siue creatura > pater siue
filius > gubernator siue gubernatus > ius siue homo118 & siue uita >
factum siue derectum...
O farol iluminante (que não deslumbrante e, assim, ofuscante e
ensombrante...) dessa conjugal e conjugada aprendizagem estratégica e
dessa dinâmica fundadora reside, antes de mais, no potencial educativo
e formativo da Arte e das Humanidades, das Humanae Litterae, dos
Studia Humanitatis... «O nosso erro contemporâneo», lembra-no-lo,
uma vez mais, José Saramago119, com lúcida pertinência, reside na
117
Sobre um imprescindível novo modo de perspectivar a práxis jurídica, «... há que
ser consciente de que no fundo de tudo se impõe uma capital opção antropológico-
cultural de que dependerá o sentido do direito e inclusive a sua própria subsistência
autenticamente como direito. Com efeito, o homem dos nossos dias terá de perguntar-
se que sentido se propõe conferir à sua prática e, através desse sentido, que
compreensão assimilará de si próprio na sua existência histórico-comunitária. Uma
prática referida a uma validade, seja porventura problemática mas não prescindindo
nunca de interrogar por ela, a implicar um fundamento axiologicamente crítico e o
homem transcendendo-se assim a um sentido materialmente vinculante em que
assuma o projecto responsabilizante da sua própria humanidade...», uma vez que «...
no vértice da actual compreensão autêntica da existência humana deparamos com a
pessoa», daí decorrendo «a compreensão e a assunção de nós próprios como pessoas»;
na verdade, «o homem-pessoa e a sua dignidade» constituem «o pressuposto decisivo,
o valor fundamental e o fim último que preenche a inteligibilidade do mundo humano
do nosso tempo (...). A condição existencialmente cultural — e a condição decisiva
— refere uma exigência de virtude. Que o homem não se compreenda apenas como
destinatário do direito e titular de direitos, mas autenticamente como o sujeito do
próprio direito e assim não apenas beneficiário dele mas comprometido com ele — o
direito não reivindicado no cálculo e sim assumido na existência, e então não como
uma externalidade apenas referida pelos seus efeitos, sancionatórios ou outros, mas
como uma responsabilidade vivida no seu sentido. O direito só concorrerá para a
epifania da pessoa se o homem lograr culturalmente a virtude desse compromisso».
A. Castanheira Neves: O Direito hoje e com Que Sentido, op. cit., pp. 49-50, 68-69,
75.
118
Porque, «se formos à raiz das coisas como que passando do exterior ao interior ou
do contexto que ajuíza e exige ao fundamento que constitui e justifica», poderemos
dizer com R. MARCIC que «quem quer o homem tem de querer o direito» (sublinhei).
Cf. Castanheira Neves: ibidem, pp. 13-14.
119
José Saramago: A Jangada de Pedra, op. cit., p. 281.
75
Fernando Paulo do Carmo Baptista
«persistência duma atitude céptica em relação às lições da
antiguidade».
Nesse humanizado e humanizador ensino e aprendizagem, nessa
antropo-agógica, coral e sinfónica Paideia, ir-se-á moldando e
configurando o disseminável e universalizável “arquétipo” do Sábio do
nosso tempo — Le Tiers-Instruit120 —, síntese criativa resultante da
combinatória do «legislador dos tempos heróicos» com «o moderno
titular do saber rigoroso», simbiose harmoniosa e fecundante do
humanista e do artista com o pensador e o cientista...
Paradigma e referência do cidadão generoso, atento e lúcido,
audacioso e prudente andarilho da natureza e da sociedade, inquieto e
devoto peregrino do orbe inteiro, movido da paixão pelos pássaros,
pelos prados e pelas flores, pelos lírios do campo, pelas fontes, pelos
rios, pelas areias, pelas nuvens e pelos ventos, pelas montanhas, pelos
mares, pelos céus e pelas estrelas, vagueando sem parar pelo intervalo
que medeia entre, por um lado, a opulência, a riqueza, a abundância e
o esbanjamento e, pelo outro, a miséria, a pobreza, a indigência e a
fome, entre o tudo e o nada, a vida e a morte, a esperança e o desespero,
a alegria e a festa e as lágrimas e o luto, a sombra e a luz, o
conhecimento, o saber e a sabedoria e o analfabetismo, a iliteracia e a
ignorância... Jovem e senhor, fidalgo e plebeu, monge e vagabundo,
crente e descrente, santo e pecador, solitário e solidário, local e global
e, acima de tudo, ardendo de amor pela Humanidade e pela Terra...
120
Reescrita, em paráfrase a Michel Serres: O Contrato Natural, op. cit., pp. 146-147.
76
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
Essa hominescente121, incandescente,122 naturante, religante e
serenante sabedoria anamnética e cronopédica, respeitadora,
integradora e harmonizadora das diferenças («apesar de todos os seus
defeitos, a vida ama o equilíbrio»123) vai-se construindo, desconstruindo
e reconstruindo nas diuturnas controvérsias suscitadas na linha do
tempo e da flecha do seu sentido, com a paixão, a convicção e a loucura
de quem ama, de quem sonha e realiza, de quem trabalha e de quem
sofre, e num persistente exercício entre cegueira e lucidez, entre
cepticismo, esperança e utopia, entre o enraizamento telúrico-social e a
errância e a itinerância existencial do homo viator124 que somos...
121
O termo (e conceito de) «hominescência» foi cunhado por Michel Serres, a partir
de certas analogias morfo-lexicogénicas (por ex: com adolescência, luminescência,
incandescência, etc.), para traduzir, no quadro dum jogo que se desdobra por três
campos de nucleares relações, uma constante dialéctica de afirmação e de negação,
de vida e de morte: considere-se, a título de exemplo, o fenómeno da “apoptose” (em
grego épÒptvsiw, -evw: queda, derrocada, fracasso...) que se traduz na morte ou
destruição programada e “suicida” das células, implicando investimento de energia
proteica, numa estreita relação homeostática com a regulação da fisiologia dos tecidos
e numa função diferente da do processo de cariocinese... A «hominescência» constitui
uma poíesis e uma dinâmica de antropomorfose (superadora dum evolucionismo
imanentista e de uma concepção “utensilar e protética” da técnica e da tecnologia...)
e configura a irrupção ou emergência de um processo neo-humanizador da sociedade,
potenciado pela crescente libertação criativa do corpo humano dos ancestrais
constrangimentos e dependências que o afectavam e limitavam. Essa libertação
assenta num imparável e integrador processo de antropo-tecnicização e bioculturação,
com o objectivo de se estabelecer uma nova teia de relações connosco próprios, com
o mundo e com os outros. Nesse contexto e tendo em conta o facto de vivermos na
sociedade da comunicação, da informação e do conhecimento, marcada por uma
malha de relações cada vez mais intensas e interdependentes, corre-se o risco do
advento de uma espécie de avalanche informativa, estranguladora das possibilidades
de elaboração crítica do saber e, consequentemente, da construção autónoma e
reflexiva da própria sabedoria, pelo que não deixa de ser emblemática e carregada de
alegorismo a afirmação de Michel Serres, segundo a qual, «l’avenir appartient aux
ordres contemplatifs» (cf. Michel Serres: Hominescence, Paris, Le Pommier, 2001,
pp. 1-95 e passim [agora também nas Edições Piaget]).
122
Michel Serres: L’Incandescent, Paris, Éditions Le Pommier, Paris, 2001 (agora
também nas Edições Piaget).
123
José Saramago: A Caverna, Lisboa, Editorial Caminho, 2000, pp. 170-171.
124
Gabriel Marcel: Homo Viator, Paris, Aubier, 1945: homem peregrinante e reflexivo
(dir-se-ia “socrático”), em busca de respostas para as questões que lhe vão surgindo
ao longo da caminhada: o outro, a família, a imortalidade, o mistério, os valores, a
salvação... Experiência vivida na intimidade funda de si próprio e no contexto da
77
Fernando Paulo do Carmo Baptista
Porque, «mesmo que a rota da minha vida me leve a uma estrela, nem
por isso fui dispensado de correr os caminhos do mundo»125...
Mas a realização inteligível porventura maior da criatividade
humana (por se revelar singularmente uma das mais complexas,
misteriosas, originais, profundas, consistentes, perenes e
transformadoras...) é, em minha cada vez mais funda (e
fundamentada...) convicção, A GRANDE POESIA...
Todavia, a generalidade dos líderes políticos actuais, em razão do
seu manifesto deficit cultural e consequente miopia, estrabismo ou
heterotropia estratégica, parece andar esquecida (seguramente por
culpa nossa também...) de que é Homero “O Educador da Grécia” e “O
Educador do Mundo”!... Insisto: a grande maioria dos dirigentes e dos
responsáveis pelas coisas públicas parece ignorar que é nos potenciais
plasmáticos, holossémicos, “holofóticos” e modulatórios da «música do
pensamento» — que é a poesia, no lapidar entendimento de George
Steiner126 — que se organiza e se revela o inesgotável e tensional
paroxismo das mais fundas, mais ricas e mais belas polissemias
inseminadas e disseminadas na semântica, na sintaxe e na pragmática
dos seus módulos textuais, a irredutível singularidade e diversidade das
“visões do mundo” aí inscritas com os seus segredos, enigmas e
mistérios, com seus anseios e aporias, temas, problemas e projectos, a
imemorial memória dos tempos primevos e sagrados das logofanias dos
deuses, da revelação dos mitos cosmogónicos e antropogénicos, da
instituição das praxes e dos ritos127 e da instauração comunitária dos
ancestrais trabalhos e deveres de garantir a sustentação e a
sobrevivência, do descanso, das festas, dos jogos, dos cantares e das
danças, de par com o dinamismo genesíaco, alternante e cíclico, dos
fluxos e refluxos vitais: «una vez Yin, otra vez Yang»128...
Dito em complementar e reiterante reforço: num momento como
o actual, em que estratégicos sectores da vida pública e comunitária
estão transversalmente dominados pela «barbárie da ignorância» (e não
ocupação nazi, sempre na perspectiva optimista do valor sagrado da vida, pelo qual
vale a pena sofrer e lutar e semear sonhos de esperança...
125
José Saramago: A Jangada de Pedra, op. cit., p. 271.
126
Cf. George Steiner: La idea de Europa, Madrid, Ediciones Siruela, 2005, p. 53.
127
Com suas rezas e esconjuros, feitiços e maldições, chamamentos e respostas,
gestos, súplicas e silêncios, evocações e celebrações...
128
Octavio Paz: El arco y la lira, op. cit., p. 59.
78
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
pela docta ignorantia...) e por uma generalizada e insanável
mediocridade (sempre atrevida e sofisticamente anti-socrática...) e
mergulhados numa despudorada e pantanosa atmosfera de corrupção
moral e degradação ética, promotoras do silenciamento, cancelamento
ou narcotização, na ágora e em suas “próteses” comunicacionais, das
grandes referências históricas e axiológicas, das grandes narrativas da
cultura, da palavra sábia, polar e cardinal (o que suscitou a
Lipovetsky129 e a Steiner130, entre outros, as conhecidas reflexões
crepusculares em torno da «era do vazio» e do «tempo da pós-
cultura»...), a Pólis globalmente considerada e, no coração dela, a
“cidade educativa”, a “cidade política” e a “cidade mediática” parecem
não querer ou não saber entender que é na diversa polimorfia das
texturas, metros, figuras, registos ou estilos, que é no fascínio e na
fulgurância do enleio imagético («el río de las imágenes»... «el sueño,
el delírio, la hipnosis»... «la onda luminosa» que nos arrebata para junto
de «las orillas del puro existir»...) e no sortilégio da musicalidade e na
magia do ritmo encantatório dos poemas que tudo quanto há de mais
profundamente humano, bom e belo está cifrado...
Mais ainda: parecem não querer ou não saber perspectivar e
visionar que é, conjuntamente com a Grande Filosofia, a Grande
Ciência131, as Belas Artes e as Humanae Litterae em geral que tudo isso
129
Cf. supra, nota 80.
130
Sobre as reflexões em torno do «crepúsculo» da cultura e da palavra, ver: George
Steiner: No Castelo do Barba Azul. Algumas Notas para a Redefinição da Cultura:
Lisboa, Relógio d’Água,1992, pp. 14-17, 112-130, 128-141; Presenças Reais, Lisboa,
Editorial Presença, 1993, pp. 84 ss; La barbarie de la ignorancia, Madrid, Taller de
Mario Muchnik, 2000, pp. 65-66; Pasión Intacta, Madrid, Ediciones Siruela, 1997;
Gramáticas da Criação, Lisboa Relógio d’Água Editores, 2002, pp. 11-62 e passim;
Lenguaje y Silêncio [muito especialmente o substancioso ensaio: «El silencio y el
poeta»], Barcelona, Editorial Gedisa, 2003, pp. 53-72; Extraterritorial [muito
especialmente o importante estudo: «En una poscultura»], Madrid, Ediciones Siruela,
2002, pp. 163-178; After Babel. Aspects of Language and Translation, Oxford,
Oxford University Press, 21992. Ver também Ernesto Sabato: Resistir, Lisboa,
Publicações Dom Quixote, 2005, pp. 37-59; Thomas De Koninck: A nova ignorância
e o problema da cultura, Lisboa, Edições 70, 2003, especialmente: pp. 17-35, 69-133.
131
Não a ciência “instrumentificante” do que há de “humano” no Homem, mas a
Ciência “poiésica” da espantada e entusiástica tentativa de descrever e explicar os
fenómenos do Cosmos, do Mundo e da Vida e, assim, contribuir para a esclarecida,
melhorativa e axiológica transformação naturante e humanizadora da Humanidade e
do Planeta...
79
Fernando Paulo do Carmo Baptista
nos foi legado, quer como singularizante matriz fundadora e
configuradora da nossa compartilhável identidade antrópica e
universalista, quer como territórios maiores da criação e da expressão
cultural e simbólica onde se consuma a epifania da mais pura e generosa
dádiva e a plasmagem das mais poderosas, saudáveis e regeneradoras
energias espirituais e arquetípicas da antropogénese e da
humanização132. A sua convocação inadiável, forte e destemida afigura-
se-me constituir a incontornável saída de superação de uma crise
etiologicamente tão profunda e patologicamente tão grave como é
aquela que atravessamos e nos atravessa...
Na verdade, é lá bem dentro da aguda, silente e constitutiva
primordialidade do sentir, do e-mover-se e do co-mover-se, do intuir e
do imaginar — e importa não esquecer, com Herberto Helder133, que
nós «somos o imaginário do imaginário»!... —, é no interior fundo e
quente das preludiais e originantes galerias da sensibilidade, da
emoção, da comoção, do afecto, da intuição e da imaginação — lá
onde, afinal, reside a alma, o coração e a luz de tudo... —, que se
instauram as relações seminais e fontais do eu ao outro e de si ao mundo
e ao cosmos, conjugando-se, com elas, em fecunda interacção e
arquitectante projecção, configuradoras dos actos semiósicos de que
nascem as mais belas criações e realizações da Cultura, entre elas, os
poemas134...
E os poemas são as inspiradas, esplendorosas e divinas
“criaturas” órficas, melódicas, rítmicas, métricas, noéticas, eidéticas,
magnéticas e matéticas, são as aladas composições verbo-musicais
dessa celebração maior que é a Poesia, onde, no sábio dizer de Octavio
Paz, «el poeta pone en libertad su materia»135, ao plasmar com o seu
canto e a sua lira «la experiencia original» da «otredad esencial del
132
Cf. Octavio Paz: El arco y la lira, op. cit., 49-67, no ensaio intitulado «el ritmo».
De facto, o poeta não é apenas metropoios (criador de métricas) e mythopoios (criador
de mitos): é também eidopoios e noematopoios, isto é, criador de formas, ideias e
saberes; mais ainda: é eikonopoios e melopoios (criador imagens e de música); cf.
Cornelius Castoriadis: Figuras do Pensável, Lisboa, Edições Piaget, 2000, p. 53.
133
Herberto Helder: Photomaton & Vox, Lisboa, Assírio & Alvim, 1995, p. 57.
134
Cf. Fernando Paulo Baptista: Tributo à Madre Língua, op. cit., pp. 507-508.
135
Octavio Paz: El arco y la lira, Madrid, Fondo de Cultura Económica – España,
2
2004, p. 22.
80
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
hombre»136, e onde sentir e pensar se fundem em «ritmo perpetuamente
creador»137, em harmoniosa e inconfundível ontopáthesis e
ontopoíesis138 e simétrica expressão vital, ética e estética, incorporando,
num mesmo deveniente e eterno instante, o cosmos e a natureza, o
mundo e o homem, o finito e o infinito, o vazio e a plenitude, a
esperança e a beleza, a liberdade e o amor...
E porque «somos vida que es muerte» e «muerte que es vida» (o
que equivale a dizer, com Saramago139, que «vida e morte é tudo um»,
que «morte e vida são o mesmo») e também porque «in hac quasi
mundana scena (...), nihil spectari homine mirabilius»140, tudo a
significar, em humanística sintonia com Pico della Mirandola141, que «o
grande milagre... é o homem» («magnum, o Asclepi, miraculum est
homo») e, ainda em homóloga consonância com o nosso Nobel da
Literatura142, que não há «milagre maior que este simples facto de
existirmos», no arco vital e identitário que define as fronteiras quálicas
da realização histórica do DaSein, em seus enraizados modos de ser e
aparecer, existir e coexistir (In-Sein e MitSein)143, «ser mundo / é ser
136
Idem: Pasión Crítica, Barcelona, Seix Barral, 21990, pp. 184-185; para Octavio,
«un texto es un tejido no solo de palabras sino de experiencias y de visiones» (p. 85)
e «poesía y pensamiento no viven en casas separadas» (p. 84).
137
Idem: El arco y la lira, op. cit., p. 26.
138
Importa sublinhar, a propósito, que o ser humano «is not primarily one who knows,
but one who creates (...), que ele «is essentially creative» (cf. Nancy Mardas, no seu
bem fundamentado estudo intitulado «Creative Imagination – The Primogenital Force
of Human Life», apud: http://www.phenomenology.org/mardas04.htm#_edn3); cf. as
importantes obras dirigidas pela filósofa polaca Anna-Teresa Tymieniecka (ed.):
Imaginatio Creatrix: The Pivotal Force Of The Genesis/Ontopoiesis Of Human Life
And Reality (Analecta Husserliana), Kluwer Academic Publishers, Dordrecht, 2004;
Metamorphosis: Creative Imagination in Fine Arts Between Life-Projects and Human
Aesthetic Aspirations, Dordrecht, Netherlands, Kluwer Academic Publishers, 2004.
139
José Saramago: O Ano da Morte de Ricardo Reis, Lisboa, Editorial Caminho, 1984,
p. 279.
140
Giovanni Pico della Mirandola: Oratio De Hominis Dignitate, Paris, Éditions de
L’Éclat, 32002, §1 (edição bilingue [latim > francês] de Yves Hersant).
141
Idem, ibidem.
142
José Saramago: O Ano da Morte de Ricardo Reis, op. cit., p. 281.
143
Sobre os conceitos heideggerianos de “In-Sein” e “Mit-Sein”, ver: Martin
Heidegger: Sein und Zeit, Tübingen, Max Niemeyer, 1993, § 26, p. 118: «Die Welt
des Daseins ist Mitwelt. Das In-Sein ist Mitsein mit Anderen. Das innerweltliche
Ansichsein dieser ist Mitdasein»; cf. também o seguinte passo da tradução francesa
de Sein und Zeit, da autoria de Rudolf Boehms et Alphonse de Waelhens: L’être et le
81
Fernando Paulo do Carmo Baptista
mecha do instante»144, no agudo, visionário, impulsionante e auto-
exigente entendimento, porém, de que «cada instante es todo el
tiempo»145, de que «só na consciência, / pula íngreme a existência»146 e
de que «predestinar / é ir-se destinando um horizonte / a gravitar / já
dentro»147...
Mas cada instante só convoca, vertical e centradamente em si, o
tempo todo e em plenitude, se ele for «grande como la vida de cién
soles»148, se ele for protagonizado como o intenso e denso momento
instaurador e propagador do «fogo poético» («el fuego de cada dia»),
se ele se configurar radicalmente como o germinal êxtase criador em
que «sobre la hoja de papel / el poema se hace / como el día / sobre la
palma del espacio»149 e em que, desse modo, a poesia passa a habitar
efectivamente entre os homens150, por sobre o chão fremente da Terra...
Por outras palavras: se cada momento se revelar como um tempo
(in)augural e auroral, profético e anamnésico, catártico e soteriológico,
purificador de maldades e tentações, libertador de traumas e
recalcamentos, expiador de crimes e pecados, exorcizador de fantasmas
e demónios, tempo mensageiro e promotor da paz, da justiça, da
equidade, da solidariedade, da fraternidade, do bem e do belo, em suma,
tempo solar do esplendor da verdade e do amor...
De contrário, sempre que a cultura, a sensibilidade, a imaginação
e a criação poéticas, estiveram adormecidas ou anestesiadas, andaram
arredias ou foram escorraçadas da cidade, as superadoras saídas para os
temps, Paris, Éditions Gallimard, 1969, p. 150: «Le monde auquel je suis est toujours
un monde que je partage avec d’autres, parce que l’être-au-monde est un l’être-au-
monde-avec... Le monde de l’être-lá est un monde commun. L’être-à... est un être-
avec-autrui. L’être-en-soi intramondain d’autrui est coexistence.»; cf., ainda,
Michaela Ott, no seu substancioso estudo: «Ethik und Ästhetik in der Philosophie der
Phänomenologie und des Poststrukturalismus», apud
http://www.momo-berlin.de/Ott_Ethik_Aesthetik.html.
144
António Oliveira Cruz: Synthesis II, Lisboa, Edições Piaget, 1988, p. 40.
145
Cf. Octavio Paz: La búsqueda del comienzo. Escritos sobre el surrealismo, Madrid,
Fundamentos, 1983, pp. 74-75; Las peras del olmo, Barcelona, Seix Barral, 1986, p.
171; Puertas al campo, Barcelona, Seix Barral, 1989, p. 64.
146
António Oliveira Cruz: ibidem, p. 61.
147
Idem, ibidem, p. 60.
148
Octavio Paz: Lo mejor..., op. cit., p. 96.
149
Octavio Paz: ibidem, pp. 231, 232.
150
Martin Heidegger: Ensaios e Conferências, Petrópolis, Editora Vozes, 2002, pp.
165-181.
82
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
fundamentais problemas do homem e da humanidade ficaram
irremediavelmente comprometidas... É pena chegar a tão triste e
desiludente conclusão, mas não deixa de dar que pensar aquele
desencantado desabafo de Saramago, em que nos diz que, «no geral dos
casos, a voz dos poetas é uma incompreendida voz»151!...
Por tudo isso, ouso questionar à face dos homens e à luz do sol:
sem a «pasión crítica»152 que tenta interpretar e explicar a magia, «el
poder eléctrico» incandescente e fulminante das palavras, «la repentina
aparición de frases caídas del cielo», os «signos en rotación»153 na
inestancável mobilidade da linguagem e das línguas154, para assim
melhor compreender os enigmas e os labirintos e os segredos e os
mistérios do homem e do mundo, sem a «corriente alterna» que
alimenta as «máquinas transparentes del delirio [que son] «los libros»155
e que faz mover «el arco y...» tanger «... la lira»156 na execução das
humanas “partituras”, sem a sabedoria criadora e iluminante dos poetas,
sem o inconformado grito de alerta dos profetas, sem as fulgurações
que irrompem da arte e do sagrado, sem a freática e edáfica uberdade
das matrizes mais genuínas, mais fundas e mais fortes do pensamento
e da cultura de todos os povos e de todas as gentes, pergunto: será
possível governar orquestralmente a pólis ou dirigir sinagogicamente e
com justa equidade e fraterna solidariedade este planeta outrora azul?...
Mais ainda: sem tudo isso, alguma vez poderá estar garantida,
neste «mundo desenfreado» (runaway world)157, uma regeneradora e
vitalizante antropo-poiese, uma resgatadora e inseminante antropo-
náutica, uma humanizadora e inebriante antropo-sinfónica que
permitam «recibir a la noche que viene con personajes azules y pájaros
de fiesta, ... saludar a la muerte con una salva de geranios, ... decirle
buenos días al día que llega sin jamás preguntarle de dónde viene y
151
José Saramago: A Jangada de Pedra, Lisboa, Editorial Caminho, 1986, p. 318.
152
Octavio Paz: Pasión Crítica, Barcelona, Seix Barral, 21985.
153
Octavio Paz: Los signos en rotación y otros ensayos, Madrid, Alianza, 1971.
154
Cf. Octavio Paz: El arco y la lira, México, Fondo de Cultura Económica, 1995:
ensaio intitulado «el ritmo», pp. 73-88, já citado.
155
Octavio Paz: Lo mejor..., op. cit., p. 277.
156
Octavio Paz: Corriente alterna, México, Siglo XXI, 171988; El arco y la lira,
México, Fondo de Cultura Económica, 61986.
157
A metáfora provém de um famoso título de Anthony Giddens: Runaway World:
How Globalisation is Reshaping Our Lives, London, Profile Books, 2000 (e também:
New York, Routledge, 2003).
83
Fernando Paulo do Carmo Baptista
adónde va» e, sobretudo, «construir sobre este espacio inestable la casa
de la mirada, la casa de aire y de agua donde la música duerme, el fuego
vela y pinta el poeta»158?... Será possível, enfim e em culminativa
síntese com Oliveira Cruz159, «fermentar a terra e o céu» e «cantar a
sinfonia universal do universo»?...
Mas, em tal construção, não pode deixar de assumir
intranscendível relevância a vital e enzimática dimensão axiológica do
humano, em cujo cerne se coloca angularmente a crucial questão da
verdade.
Assim, saramaguianamente despertos e conscientes de que «o que
chamamos falso prevaleceu sobre o que chamamos verdadeiro»160,
tomando o seu lugar, e de que «este mundo (...) é uma comédia de
enganos»161, a todos se nos impõe cada vez mais (ponderada a sua
sofística, subversora e alarmante degradação...) a afincada procura e
afirmação da verdade. Da verdade possível, decerto, mas também dos
possíveis e impossíveis da verdade, se entendida e perspectivada como
“referencial absoluto” para as nossas sempre relativas e precárias
verdades... Até porque, independentemente das diferentes razões por
que o fazem, «os humanos são universalmente conhecidos como os
únicos animais capazes de mentir»162 e a Cidade, a Pólis («pastora de
siglos, madre que nos engendra y nos devora, nos inventa y nos
olvida»163), se tem vindo a transformar numa «termiteira de
mentirosos»164, onde a verdade, em seu mais fundo sentido, é
sistematicamente deturpada, vilipendiada, negada ou mesmo
renegada...
Mas para que a verdade possa ser mais do que «uma cara
sobreposta às infinitas máscaras variantes» e mais do que a lição que
dela sempre nos vai dando a autoridade magistral165, para que ela possa
158
Octavio Paz: Lo mejor..., op. cit., pp. 319, 329.
159
António Oliveira Cruz: Synthesis II, Lisboa, Edições Piaget, 1988, p. 57; Synthesis
I, Lisboa, 1988, p. 58.
160
José Saramago: História do Cerco de Lisboa, Lisboa, Editorial Caminho, 1989, p.
50.
161
José Saramago: A Jangada de Pedra, op. cit., p. 79.
162
José Saramago: Ensaio sobre a Lucidez, op. cit., p. 50.
163
Octavio Paz: Lo mejor..., op. cit., p. 300.
164
José Saramago: ibidem, p. 55.
165
José Saramago: História do Cerco de Lisboa, op. cit., pp. 26-27.
84
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
erigir-se em «relatividade generalizada dos pontos de vista» a ser
constituída para além dos respectivos sujeitos perspécticos e a ser
conformada numa espécie de leibniziano “centro geométrico”
superadoramente englobante e integrador das singularidades, das
diferenças, das tensionalidades e dos dissídios, mesmo se em seu
máximo agonismo dialéctico-polémico166, jamais pode dispensar (como
se um invisível e irrevogável imperativo categórico no-lo ordenasse ou
exigisse...) o inexaurível esforço heurístico, exegético e hermenêutico,
orientado para a sempre inconclusa construção e propositura de novas
interpretações e explicações, seja na «galáxia pulsante» dos livros, seja
na «poeira cósmica» das palavras167, seja, matricialmente, na fonte
radical, inesgotável, neguentrópica e replasmante da vida, da
experiência, das realizações e até mesmo das frustrações e desencantos
de todos os dias, competindo-nos, assim, tomar em nossas mãos o
destino que nos coube em sorte e que decidimos re-destinar e
concretizar de modo determinado e honrar e dignificar como nosso
projecto de vida: «é [...] a vontade dos homens que segura as
estrelas»168!... Porque, afinal de contas, «o importante foi ter vindo, o
importante é o caminho que se fez, a jornada que se andou»169...
Tudo no pressuposto de que «assim como vão variando as
explicações do universo, também a sentença que antes parecera
imutável para todo sempre oferece subitamente outra interpretação, a
possibilidade duma contradição latente, a evidência do seu erro
próprio»170... De facto, «saberíamos muito mais das complexidades da
vida se nos aplicássemos a estudar com afinco as suas contradições»171.
E se é verdade que é no sonhar, no pensar e no agir poéticos que,
com Hölderlin172, verdadeiramente habitamos o mundo e ele se nos faz
“mundos” em nós, se é verdade que é «inventando» que «somos iguais
166
Cf. Pierre Bourdieu: El oficio de científico – ciencia de la ciencia y reflexividad,
Barcelona, Anagrama, 2003, p. 198.
167
Idem, ibidem, p. 26.
168
José Saramago: Memorial do Convento, Lisboa, Editorial Caminho, 1982, p. 124.
169
José Saramago: A Caverna, op. cit., p. 45.
170
José Saramago: História do Cerco de Lisboa, op. cit., p. 26.
171
José Saramago: A Caverna, op. cit., p. 26.
172
Cf. Martin Heidegger: Hinos de Hölderlin, Lisboa, Edições Piaget, 2004, pp. 70-
78.
85
Fernando Paulo do Carmo Baptista
aos deuses»173, que é criando que ficcionamos e configuramos a própria
«arte e maneira de juntar o acaso e a certeza»174, então, em
circunstância alguma, podemos deixar de nos afirmar, ousada e
frontalmente, antes e depois de todos os deuses, como o intranscendível
demiurgo do humano no homem, tanto em sua terna, comovente e
divina humanidade como em sua monstruosa, brutal e sanguinária
crueldade: Buda (Siddharta Gautama), como Job, Sócrates, Jesus
Cristo, Francisco de Assis, Mahatma Gandhi, Luther King, Oscar
Romero ou Nelson Mandela; mas também, Caim, como Nero, Adolfo
Hitler, Benito Mussolini, Joseph Stalin, Idi Amin, Pinochet, Pol Pot
(Saloth Sar) e os seus hediondos e macabros “sósias” de todas as épocas
e de todos os tempos!... Não há, pois, que imputar responsabilidades a
deus algum nem tão-pouco invocar, em vão, o seu «santo nome», como
bode expiatório!...
Dentro ou fora da «caverna», na sombra e na luz, somos e
seremos sempre nós próprios, em nossa intransferível liberdade e em
nossa exclusiva e indescartável responsabilidade, o mesmo é dizer, em
nosso inteiro modo de ser e estar, pensar e agir: humanos, demasiado
humanos, com os nossos excessos e os nossos limites, as nossas
virtudes e os nossos defeitos, as nossas potencialidades e as nossas
carências, as nossas loucuras e as nossas vertigens, os nossos transes e
os nossos desatinos... Assim, tal-qualmente nos vamos modelando e
plasmando na hesiodiana gesta de «os trabalhos e os dias» em que,
cosmogónica e ontogenesicamente, nos vamos sendo, conformando,
aparecendo, revelando e transformando, sem iludir, todavia, o lúcido e
partilhado reconhecimento, com Saramago, de que «os trabalhos dos
homens sempre foram mais longos e pesados que os [trabalhos] dos
deuses»175...
Mas é no trabalho produtivo e criativo, no trabalho que gera
obras, bens e riqueza, no trabalho que escuta e interpreta o mundo e, a
partir daí, nele e para ele sonha e cria novos seres e novos mundos, é
nesse decisivo e operante labor quotidiano de qualitativa e ascensional
metamorfose de nós próprios e dos outros que afinal se define e se mede
173
José Saramago: Os Poemas Possíveis, Lisboa, Editorial Caminho, 41998, p. 55.
174
Idem, ibidem, p. 19.
175
José Saramago: A Caverna, op. cit., p. 227.
86
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
a nossa real grandeza e se pode aferir do mérito relativo de cada um «no
projecto monumental da criação»176...
Mortais viventes ou viventes mortais, é entre o nascimento e a
morte que transcorre, como já vimos, a nossa sazão e tempo de ser
homens: «no vamos ni venimos: estamos en las manos del tiempo»177;
«o tempo é que manda, o tempo é o parceiro que está a jogar do outro
lado da mesa, e tem na mão todas as cartas do jogo»178... E porque
«somos uma pequena e trémula chama que a cada instante ameaça
apagar-se»179, é no sempre curto e crítico intervalo da nossa existência
histórica que nos cabe cumprir o já invocado destino de sonharmos,
criarmos e realizarmos, à medida do que formos capazes, as obras
valerosas que, no memorante e celebrante cantar do nosso Épico180, nos
vão da lei da morte libertando...
Na verdade, a morte mais letal e mais mortífera, a morte que
inapelavelmente arrasa, pulveriza e nadifica não é a do universal e
nivelador cessar da vida que, na esfera do biológico, a todos nos toca
indistintamente, de modo irreversível e absoluto, com o exalar do
derradeiro suspiro: a morte mais letal e mais mortífera é a do silêncio
perpétuo e sem memória, é a do esquecimento que ignora ou despreza,
oculta ou rasura, expunge ou proscreve, expulsa ou excomunga...
É assim que, numa perspectiva de humanista e solidária simpatia
de dimensão antropo-bio-cósmica, ganha o seu mais actual sentido e
alcance aquele ajuizamento aforístico-afectivo, segundo o qual «não há
maior respeito que chorar por alguém que não se conheceu»181, sendo
certo que, pelo menos desde Vergílio182, «há lágrimas nas próprias
coisas e as coisas da morte tocam-nos a alma»: «sunt lacrimae rerum
et mentem mortalia tangunt»!...
Daí que, contra toda e qualquer discriminação e em simbólica
homenagem consonante com a mesma universal e transtemporal
condição e estatuto de cidadãos e habitantes de Geia ou Gaia — α α
— e em memória de “todos os nomes”, isto é, dos nomes inscritos nos
176
José Saramago: Ensaio sobre a Lucidez, op. cit., p. 145.
177
Octavio Paz: Lo mejor..., op. cit., p. 263.
178
José Saramago: Ensaio sobre a Cegueira, Lisboa, Editorial Caminho, 1995, p. 303.
179
José Saramago: Ensaio sobre a Lucidez, op. cit., p. 58.
180
Camões: Os Lusíadas, I, vv. 5-6.
181
José Saramago: ibidem, p. 139.
182
Vergílio: Eneida, I, v. 462.
87
Fernando Paulo do Carmo Baptista
verbetes dos registos das conservatórias ou nos epitáfios das necrópoles
de todas as eras e civilizações, desde o “anónimo” nome do simples
camponês, pescador ou artesão, ao renomado nome do rei famoso, do
estadista notável, do sábio prudente, do cientista iluminado ou do artista
inspirado e criativo, importa proclamar, com indómita frontalidade,
que, mesmo mumificados, segregados, silenciados e condenados pela
ignorância intranscendida ou pela expiação persecutória, no soturno
interior estalagmítico de qualquer gruta ou caverna macabra, «aqueles
homens e aquelas mulheres são muito mais do que simples pessoas
mortas»183: essas mulheres e esses homens... essas pessoas... somos
nós!184 E «o processo de uma pessoa é o processo de todas»!185
Mais ainda: impõe-se-nos, mesmo, a todos quantos de nós
(seguindo muito embora diferenciadamente o exemplo e a prática do
ficcional “auxiliar de escrita” de nome José...) se dedicam a escrever e
a mover «os papéis da vida e da morte» reunir «em um só arquivo, a
que passaremos a chamar simplesmente histórico, os mortos e os vivos,
tornando-os inseparáveis neste lugar»; igualmente se nos impõe
proceder «à reintegração dos mortos do passado no arquivo que
passará a ser o presente de todos», cientes como estamos, por um lado,
de que um tal projecto «levará muitas dezenas de anos a realizar» e de
que, pelo outro, «já não estaremos vivos, nem provavelmente o estará
a seguinte geração, quando os papéis do último morto, feitos em
farrapos, comidos pelas traças, escurecidos pelo pó dos séculos,
regressarem ao mundo donde, por uma última e desnecessária
violência, haviam sido retirados».
Por isso é que, com Saramago, em verdade e em memorante
memento se poderá dizer: «assim como a morte definitiva é o fruto
último da vontade de esquecimento, assim a vontade de lembrança
poderá perpetuar-nos a vida»186...
Que A VERDADEIRA LEMBRANÇA, acrescentaria eu, É SEMPRE A
EXPRESSÃO DE UMA MEMÓRIA E DE UM AFECTO QUE A NÃO DEIXAM
MORRER...
183
José Saramago: A Caverna, op. cit., p. 337.
184
Idem, ibidem, p. 334.
185
José Saramago: Todos os Nomes, Lisboa, Editorial Caminho, 1997, p. 63.
186
Idem, ibidem, p. 209.
88
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
Mas, neste universal contexto de memorial celebração (e
independentemente das circunstanciais alusões ou implic(it)ações que,
ao longo deste meu excurso, aqui e ali fui fazendo do seu pensamento
e legado...), não pode deixar de emergir do “panteão dos imortais”, para
se nos fazer mais presente e fecundante, a figura tutelar, fascinante e
luminosa de Sócrates187, com o thesaurus imperecível do seu magistério
fundador e arquetípico...
187
Sobre a figura de Sócrates, e nesta sua breve “evocação”, foi tida em conta a
seguinte bibliografia de referência: Maurice Croiset: Platon — Oeuvres Completes,
tome I, Paris, Société D’Édition «Les Belles Lettres», 1959, designadamente o texto
grego aí estabelecido quer para a Apologia de Sócrates quer para o Críton, pp. 140-
173 e 216-233; Werner Jaeger: Paideia: los ideales de la cultura griega, México –
Buenos Aires, Fondo de Cultura Económica, 1962, 2.ª ed., pp. 389-457; Nicola
Abbagnano: História da Filosofia, vol. I, Lisboa, Editorial Presença, 1969, pp. 115-
132; Platão: Apologia de Sócrates, Êutifron, Críton (prefácio, tradução e notas de
Manuel Oliveira Pulquério): Lisboa, Editorial Verbo, 1972; Giovanni Reale – Dario
Antiseri: Storia della Filosofia (vol. 1: Dall’Antichità al Medioevo), Brescia, Editrice
La Scuola, 2000, 5.ª ed., pp. 71-120; Maria Helena da Rocha Pereira: Estudos de
História da Cultura Clássica, vol. I, Cultura Grega, Lisboa, Fundação Calouste
Gulbenkian, 1998, 8ª. ed., pp. 456-466; Maria Helena da Rocha Pereira: artigo
«Sócrates» in Enciclopédia Verbo Luso-Brasileira de Cultura, Edição Século XXI,
Lisboa / São Paulo, Editorial Verbo, 2003, vol. 27, pp. 308-309; P. A. T. Silva Pereira:
artigo «Sócrates» in Logos – Enciclopédia Verbo Luso-Brasileira de Filosofia, Lisboa
/ São Paulo, Editorial Verbo, 1992, vol. 4, pp. 1216-1221; Roger Texier: Socrate
Enseignant — De Platon à nous, Paris, Éditions L’Harmattan, 1992; Gregório Luri
Medrano: El Processo de Sócrates, Madrid, Editorial Trotta, 1998; Gregório Luri
Medrano: Guia para no entender a Sócrates (Reconstrucción de la atopía socrática),
Madrid, Editorial Trotta, 2004; Jean-Pierre Vernant y otros: El Hombre Griego,
Madrid, Alianza Editorial, 2000, 2.ª ed.; Jacques Brunschwig e Geoffrey Lloyd: El
Saber Griego — Diccionario Crítico, Madrid, Ediciones Akal, 2000, artigos
«Sócrates» (pp. 581-592), «Sofística» (pp. 744-757); Fernando Cabral Pinto: Sócrates
um filósofo bastardo, Lisboa, Edições Piaget, 2002; Bruno Giuliani: O Amor da
Sabedoria, Lisboa, Edições Piaget, 2002; Catherine Vallée: Hannah Arendt, Sócrates
e a Questão do Totalitarismo, Lisboa, Edições Piaget, 2003; Mark Forstater: Os
ensinamentos espirituais de Sócrates, Lisboa – Cruz Quebrada, Estrela Polar, 2005;
artigos sobre Sócrates nas seguintes e-fontes, entre outras:
http://encyclopedia.thefreedictionary.com/
http://en.wikipedia.org/wiki/Socrates
http://www.bartleby.com/65/so/Socrates.html
http://plato.stanford.edu/
http://www.san.beck.org/C%26S-Contents.html
http://www.forma-mentis.net/Filosofia/Socrate.html
89
Fernando Paulo do Carmo Baptista
Tendo nascido e tendo começado a amadurecer como homem e
como cidadão em pleno contexto social, político e cultural da Atenas
de Péricles188 (a esplendorosa Pólis da «idade do ouro» da cultura Grega
e do seu “milagre”, após a decisiva vitória sobre os Persas...), Sócrates
(perspectivado, agora, já mais no interior da conjuntura de profunda
crise marcada pela desgastante guerra do Peloponeso, pela vigência da
despótica e persecutória governação dos Trinta Tiranos e, depois, pela
reinstauração formal da democracia...) desempenha, no plano ético e
paidêutico, um papel influenciador e modelador de certo modo
homólogo ao que havia sido protagonizado pelo sábio Sólon a nível
jurídico-constitucional e político-social na implantação originária do
regime democrático. De tal modo que Sócrates, como acentua Werner
Jaeger189, não só se converte no «eixo da história da formação do
homem grego» pela acção própria, autónoma e transformadora do seu
dinamismo interior, como configura «o fenómeno pedagógico mais
notável da história do Ocidente».
Tocado, desde criança, pela singularidade do influxo do ofício de
sua mãe, Fenarete, de presidir e dar assistência obstétrica ao mistério e
milagre da epifania da vida, foi gravando em seu coração de adolescente
e no contexto da educação fundamental que lhe foi proporcionada
(geometria, astronomia, literatura, gramática, retórica, dialéctica,
música, ginástica...), o sentido criativo, estruturante e transformador da
Arte, através da exercitação dos movimentos, colocações e
harmonizações corpóreo-expressionais da dança, da coreografia, do
188
Com uma incomparável galeria (cronológica e implicativamente aqui mais
alargada, relativamente às fronteiras temporais da governação de Péricles...) de
figuras pertencentes aos campos do pensamento, da política, da ciência, da literatura
e demais belas artes (escultura, pintura, arquitectura, música...), que constituem a
«alma» que verdadeiramente funda e modela a cidade: Anaxágoras, Antifonte,
Aristófanes, Aristóteles, Aristoxeno, Arquitas, Calícrates, Crícias, Demócrito,
Empédocles, Epicteto, Ésquilo, Eudóxio, Eurípides, Fídias, Filolau, Górgias,
Heraclito, Heródoto, Hípias, Hipócrates, Ictino, Isócrates, Leucipo, Lísias, Lisipo,
Míron, Parménides, Péricles, Píndaro, Pitágoras, Platão, Policleto, Polignoto,
Praxíteles, Pródico, Protágoras, Sólon, Sócrates, Sófocles, Temístocles, Trasímaco,
Tucídides, Xenofonte...
189
Cf. Werner Jaeger: Paideia, op. cit., pp. 403-404. Para uma contextualização
histórico-cultural global, ver: Albin Lesky: Historia de la Literatura Griega, Madrid,
Gredos, 1968, cap. V, pp. 269-671; H. D. F. Kitto: Os Gregos, Coimbra, Arménio
Amado, Editor, Sucessor, 1960, caps. V, VI, VII, VIII e IX, pp. 103-317.
90
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
canto coral, do dedilhar de ritmos e acordes nas cordas da lira ou da
cítara, seguindo, assim, o tradicional exemplo de Orfeu e de Pitágoras.
Tudo corroborado, mais tarde, pela aprendizagem que fez, ao vivo, dos
gestos e das incisões de seu pai, Sofronisco, nos inertes blocos de
mármore em que terá chegado a cinzelar, segundo Diógenes Laércio190,
o conjunto escultórico das Três Graças que exornavam o ádito ou o
pórtico da Acrópole...
Ainda jovem, pôde não só testemunhar a penetração em Atenas
do pensamento dos chamados pré-socráticos acerca do cosmos, da
natureza, do homem e da vida e da decisiva “viragem antropocêntrica”
190
Cf. Diogene Laerzio: Vite di filosofi (trad. di Marcello Gigante), Bari – Milano,
Laterza – TEA, 1998, vol. 2, p. 19.
91
Fernando Paulo do Carmo Baptista
proposta pelo “Projecto Educador”191 dos Grandes Sofistas192, mas
também, e sobretudo, ir tomando consciência das implicações
191
A inspirar esse Projecto, a nortear o seu “programa de educação para a cidadania”,
estava o conceito de [aretê], re-investido da centralidade dos mais altos valores
espirituais e traduzido na propositura de um novo “paradigma educacional” para a
velha Atenas, de que ressaltam, entre outros, os seguintes traços nucleares:
• centralidade do homem no processo educativo — αι α [paideia];
• transferência das preocupações cosmológicas para um decidido e assumido
envolvimento nas problemáticas antropológicas;
• consagração do fundamento antrópico e subjectal do conhecimento e da
relativização dos princípios ético-filosóficos;
• itinerância pedagógica como modo de levar a educação e o saber aos cidadãos
que viessem a integrar a classe dirigente;
• contraposição da aristrocracia do espírito à tradicional aristocracia do
sangue;
• promoção do desenvolvimento das capacidades basilares dos futuros homens
de estado (o tacto, a presença de espírito e a previsão [prudência], de par com
uma aptidão intelectual de cunho enciclopédico e multi-sapiencial [dianoética,
polimatética...], argumentativo e discursivo [oratória e eloquência]);
• crença na plasticidade — ὐ λα ν (euplastón) e educabilidade da alma
juvenil e no poder modelador e reconstrutor da arte — α λ ι αι έ ναι [ai
plástikai téchnai] — sobre a natureza — ι [physis];
• similitude da “cultura animi” (bom educando, bom educador, boa mensagem
educativa) com a “cultura agri” (bom terreno, bom lavrador, boa semente);
• radicação do processo educativo na natureza — ι [physis] — e seu
desenvolvimento dialéctico, através do ensino — ι α αλ α [didaskalía] —,
da aprendizagem — ι [máthesis] e da exercitação, treino ou prática —
ι [áskesis] — configurando a conhecida “tríade pedagógica” dos
sofistas;
• propositura de um novo “plano curricular” de inspiração pitagórica, que
contempla, simultaneamente com a gramática, a retórica e a dialéctica, a
aritmética, a geometria, a astronomia e a música, preludiando, assim, os
canónicos trivium e quadrivium da Escolástica Medieval;
• forte vinculação à tradição formadora da poesia e dos poetas, no sentido do
culto da [aretê] ética, política, sapiencial e artística, através da retoma do
exemplo matricial de Homero (“o Educador da Grécia”), no pressuposto de que
a poesia, tal como a música, sua irmã gémea, pelo incisivo influxo do ritmo e da
harmonia, exerce na alma afeiçoável do educando uma insuperável acção
modelante...
(Cf. Fernando Paulo Baptista: Tributo à Madre Língua, op. cit., pp. 545-548).
192
Que não devem ser confundidos com os pseudo-sofistas, “casta” social que, com
distintiva intencionalidade, venho denominando de “sofistas sofísticos” e que, hoje
92
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
formativas dos apotegmas e das gnomas (sentenças ou máximas)
atribuídas aos famosos Sete Sábios da Grécia e ir interiorizando o que
de mais relevante esse pensamento, essa viragem e esse projecto lhe
ofereciam, conjugadamente com o azimute e a linha de rumo
potenciados por essa bússola da introspecção, da autognose e da
construção da raiz e do sentido da autonomia que é a já citada máxima
délfica do gn«yi sautÒn...
Essa conscientizante e, sobretudo, conscientificante
interiorização foi-se reforçando e aprofundando, porém, com um
conjunto de substanciais práticas ontopoiésicas, atitudinais e
metodológicas que configuram um incontornável e paradigmático
«projecto de vida e de cidadania»: assunção liminar da postura e da
virtude da humildade intelectual: ainda que a pitonisa tenha dito o
contrário, «sei muito bem que não sou sábio, nem muito nem pouco»193:
«sei que nada sei»; exame exigente e rigoroso (§j°taziw)194 de si
próprio e dos outros e do quotidiano existencial195, mediatizado pelo
recurso à técnica probatória do ¶legxow196, no pressuposto de que «uma
como então, por toda a parte proliferam com o mesmo ousado descaramento que
emerge da sua “iliteracia científico-cultural”, ainda que “diplomada”...
193
Cf. Platão: Apologia... 21b: « γ γ ο έγα ο ι ν νοι α
α ο ν...» [«sei muito bem que não sou sábio, nem muito nem pouco»].
194
Também expresso por outros lexemas nominais ou verbais pertencentes ao mesmo
universo semântico: §jetãzein, diaskope›n, ¶reuna, §reunãv...
195
Sobre o exame (§j°taziw) do dia-a-dia existencial, ver Platão (Apologia... 37e-38):
«ÉEãn te går l°gv ˜ti t“ ye“ épeiye›n toËtÉ §st‹n ka‹ diå toËtÉ édÊnaton
sux€an êgein, oÈ pe€sesy° moi ...w e rvneuom°nv: §ãn tÉ a l°gv ˜ti ka‹ tugxãnei
m°giston égayÚn ¯n ényr pƒ toËto, §kãsthw m°raw per‹ éret w toÁw lÒgouw
poie›syai ka‹ t«n êllvn per‹ œn Íme›w §moË ékoÊete dialegom°nou ka‹ §mautÚn
ka o w jetãzontow, d nej tastow €ow o ivt w n r pƒ». [= «Se
disser que isso [i.e.: retirar-me da cidade e reduzir-me ao silêncio] seria desobedecer
à divindade e que, portanto, seria impossível manter-me inactivo, não me tomareis a
sério e pensareis que estou a ironizar... Se, por outro lado, disser que o maior bem que
pode caber em sorte a um homem consiste em discorrer [produzir discursos] todos os
dias sobre a virtude e outros temas acerca dos quais me tendes ouvido falar,
examinando-me a mim próprio e aos outros, e que uma vida sem exame não é digna
de ser vivida...»].
196
A técnica argumentativa, refutatória e probatória do ¶legxow, usada por Sócrates
nos seus exames (§j°taziw), consistia em indagar, com obstinação e rigor, os
fundamentos e a natureza definitória dos conceitos e das categorias gnosiológicas e
axiológicas (e.g.: os conceitos de sabedoria, virtude, justiça, verdade, coragem...),
tendo em vista, em sua vertente “construtiva”, a elaboração e a organização
93
Fernando Paulo do Carmo Baptista
vida sem exame não é digna de ser vivida»: « d nej tastow €ow o
iotÒw»; auscultação da misteriosa, admonitória e orientadora voz
interior do seu da€mvn197, sobretudo nos momentos críticos do
ajuizamento e da tomada de decisão; aprofundamento do autodomínio
( gkrãteia), da autonomia (a tãrkeia) e do sentido do
questionamento indagativo (e rone€a) e da conjectura prospectiva na
busca de respostas mais consistentes para a ânsia e a curiosidade de
saber; activação da consciência ética e cidadã, ora em registo de
moscardo (a picada incomodativa), ora em registo de tremelga (a
descarga electrizante), no sentido de despertar a cidade do geral estado
de letargia, inércia e turpor; exercício da razão crítica na busca dos
fundamentos do conhecimento e do rigor conceptual198;
desenvolvimento da coerência entre palavra, pensamento e acção («vrai
discours et action vraie»199) e, em consonância, de uma séria e
adequada dialogia e dialéctica argumentativa... Mas tudo
consistente e coerente do saber e, em sua vertente “destrutiva”, a refutação e rejeição
da pseudo-sabedoria alardeada pelos sofistas sofísticos, chegando, em última
instância, a desencadear um novo e ainda mais rigoroso exame que podia conduzir
mesmo a uma situação aporética insolúvel...
197
Cf. Albin Lesky: Historia de la Literatura Griega, op. cit., p. 529; sobre o da€mvn
socrático, ver, entre outros, os seguintes estudos: Roger Texier: Socrate Enseignant
— De Platon à nous, op. cit., pp. 277-284; Valcicléia Pereira da Costa: «O “daimon”
de Sócrates: conselho divino ou reflexão?», in Cadernos de Actas da ANPOF, n.º 1,
Universidade Estadual de Campinas, Campinas, São Paulo, Brasil, 2001; «El Daimon
Socrático»,
in http://clientes.vianetworks.es/empresas/lua911/html/daimon.html.
198
A título exemplificativo, considere-se o seguinte “auto-testemunho” registado por
Platão: Fédon, 96 b) (introdução, versão do grego e notas de Maria Teresa Schiappa
de Azevedo, Coimbra, INIC, 1983, pp. 99-100): «... Na minha juventude (...), senti-
me extraordinariamente atraído para esse ramo do saber que dá pelo nome de
«Ciência da Natureza». Que interessante não será (pensava eu) conhecer as causas
de cada coisa, a razão por que cada uma surge, por que cada uma desaparece ou
existe! (...) E muitas vezes dava comigo às voltas a examinar, antes de mais, questões
deste teor: será realmente, como alguns dizem, a partir de um estado de putrefacção,
em que entram o quente e o frio, que os seres vivos se constituem? É graças ao sangue
que pensamos, ou ao ar ou ao fogo? Ou nada disto conta, e é sim o cérebro que nos
permite as sensações do ouvido, da vista e do olfacto, sensações estas que estarão na
base da memória e da opinião, dando origem, uma vez consolidadas, a conhecimentos
correspondentes?».
199
Cf. Roger Texier: Socrate Enseignant — De Platon à nous, Paris, Éditions
L’Harmattan, 1998, pp. 201-249.
94
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
subjacentemente alicerçado na constante assunção da dimensão ética,
consubstanciada na prática angular e intransigente da virtude
(éretÆ)200, prática essa, iluminada pelos mais altos valores e desígnios
conformadores do já referido «projecto de vida e de cidadania»: tÚ
kalÚn te ka‹ égayÚn [kalokégay€a] (o belo e o bem, a perfeição...),
§leuyer€a (a liberdade), dikaiosÊnh (a justiça), eÈnom€a (a
boa ordem), em suma, sof€a (a sabedoria) e svfrosÊnh (a
sageza, a moderação, o bom senso...), tendo como horizonte uma
verdadeira eÈdaimon€a (felicidade) prioritariamente assente na
realização espiritual e sapiencial do ser humano201 enquanto pessoa e
cidadão...
Sem que, de algum modo, deva dissociá-lo da mensagem global
(verdadeiramente arquitectante do ponto de vista antropológico,
filosófico, axiológico, político e educacional...) que é o legado
reflexivo, interventivo e cultural de Sócrates, seja-me permitida uma
breve palavra, ainda, acerca do que ficou conhecido por «método
socrático»: refiro-me essencialmente à ironia e à maiêutica, pela
específica importância e actualidade de que se revestem no plano
procedimental e operatório (práxico) por que se desenvolve a acção
educativa e formadora.
O lexema grego e rone€a202 (através da mediação do latim ironia)
está na origem do vocábulo português ironia e adquiriu, na época de
200
Cf. Platão: Críton (tradução de Manuel Oliveira Pulquério, op. cit., p. 134): «A
virtude e a justiça são o que há de mais precioso para o homem»; Apologia... (trad.
já citada, p. 89): «não sou homem para ceder a ninguém contra a justiça por medo da
morte».
201
Cf. Platão: Apologia... (trad. já citada, p. 96): «... é mais importante cada um cuidar
de si próprio do que daquilo que lhe pertence, de forma a tornar-se o melhor e mais
sábio possível, não se preocupando tanto com as coisas da cidade como com a
própria cidade...»; idem: Críton, pp. 123-124: «O que verdadeiramente importa não
é viver, mas viver em conformidade com o bem» [... «oÈ tÚ z n per‹ ple€stou
poiht°on, éllå tÚ e z n.» (Críton, 48b), porque «o bem, o belo e o justo são uma e
a mesma coisa» («tÚ d¢ e ka‹ kal«w ka‹ dika€vw ˜ti taÈtÒn §stin...» (Críton, 48b).
202
Sobre o significado fundacional desta importante palavra, cabe esclarecer (para
efeitos de uma articulação semântica filologicamente fundamentada...) que ela tem
como constituinte nuclear da sua morfo-estrutura a raiz indo-europeia *wer-/wor- >
wur-/wr [> wre-/ >re-], susceptível de ampliamentos derivativos do tipo wer-dh- / wr-
dh- / wre-mn e com a ideia de “falar” como seu núcleo “sémio-genético”. Esta raiz,
com ligeiras variantes de natureza morfo-evolutiva, está igualmente presente, entre
outros, nos lexemas gregos = ma, = siw, = tore€a, = toreÊv, = torikÒw, -Æ, -Òn,
95
Fernando Paulo do Carmo Baptista
Sócrates e no agir discursivo por si protagonizado, o significado
inconfundível de fala proferida com uma intencionalidade interpelante
e interrogante, suscitadora da dúvida e promotora da reflexão crítica
e da indagação, embora modelada no estilo e no tom (ingénuo,
autêntico, reservado... ou mesmo ensaiado, dissimulado ou fingido...)
de uma assumida ignorância. É este o significado que, no essencial,
subjaz à assim chamada “ironia socrática”.
De facto, esta prática discursiva dialéctica e dialógica «faite de
gravité souriante, de douce insistance, d’une modestie qui respecte le
parcours intellectuel des interlocuteurs»203, consubstanciava-se numa
hábil e perspicaz atitude metodológica que punha a descoberto, através
do diálogo vivo e directo, as inconsistências, as falácias, as
incongruências ou contradições existentes na “enciclopédia sapiencial”
e no modo e tipo de “argumentação” de importantes sectores da vida
intelectual e pública da Atenas do séc. IV a. C.204 e no contexto da
profunda crise social e política relacionada com a Guerra do
Peloponeso e suas sequelas, designadamente, na retórica “sofística”
dominante e corrente205, difusora dos saberes instituídos, “oficiais” ou
canonizados como verdadeiros, mas que, na realidade, eram saberes
preconceituosos, acríticos e erróneos, numa palavra, pseudo-
saberes206...
=Ætvr..., nos latinos uerbum, uerbalis, aduerbium, prouerbium, no gótico waurd, no
proto-germânico *wurdan, no alemão Wort, no norueguês e no sueco ord, nos ingleses
word, wording, wordy, nos portugueses verbo, verbal, advérbio, provérbio, rema,
remático, retórica, etc... Na sua acepção mais corrente (e em consonância com o uso
que lhe deu nomeadamente Sócrates), tinha o significado de «fala proferida com uma
intencionalidade interpelante, questionante e indagativa, embora fingindo
ignorância», significado este que subjaz, no fundamental, à assim denominada “ironia
socrática”.
203
Cf. Roger Texier: ibidem, p. 269.
204
A seguir ao “século de ouro” — o século V a. C. — em que se inscreve a acção
governativa de Péricles...
205
A “retórica sofística” corrente e dominante no tempo de Sócrates não se confunde,
necessariamente, nem com a paideia nem com a retórica protagonizadas pelos
grandes mestres da Sofística (Protágoras, Górgias...), muito embora se afigure
pertinente e fundamentada a contraposição entre “paideia socrática” e “paideia
sofística”, atentos os respectivos pressupostos, métodos e finalidades (cf. Werner
Jaeger: Paideia..., op. cit., pp. 263-302, 389-457, 489-548.
206
Sobre a presença e a influência do “espírito sofístico” na actualidade, cabe salientar
que tal situação, salvaguardadas as naturais diferenças de contexto histórico-epocal,
96
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
A ironia socrática, complementada metodologicamente com a
maiêutica ( maieutikÆ t°xnh), que, em sentido literal, significa «a arte
da parteira» e, em sentido tropológico, a arte de ir dando à luz, de ir
construindo por si próprio e, como já ficou dito, o caminho da verdade
e da sabedoria, através da suscitação de novas dúvidas, da formulação
de novos problemas, da enunciação de novos paradoxos, da abertura de
novos horizontes, do lançamento de novas ideias...), visava a superação
eurístico-probatória de tais “saberes” por saberes novos, criticamente
construídos, fundamentados, testados e validados e, assim, a busca
sistemática e a construção permanente de uma verdadeira sof€a. Em
não deixa de continuar a marcar profundamente a lógica concepcional, a organização
e o funcionamento do nosso Sistema Educativo e Formativo, desde a base até ao topo.
De facto, em vez de se promover, de modo responsável e responsabilizante, o livre
desenvolvimento da autonomia poiética de cada sujeito na construção da identidade
pessoal e comunitária, do mundo da vida (LebensWelt) e da visão do mundo, do
espírito crítico, da “enciclopédia” sapiencial e experiencial, própria e irrepetível,
contrapõe-se-lhe uma dinâmica de base heteronómica, dominantemente orientada
para a mimese ou o decalque de estereótipos adinâmicos e distróficos, para o
“folclore” e o ludismo infantilizantes se não mesmo estupidificantes e para a
reprodução de saberes (tantas vezes já cristalizados e obsoletos...) legitimados e
canonizados de forma corporativa, burocrática e dogmática, longe, portanto, da
prioritária implicação da criatividade inventivo-inovadora e consagradora da
diferenciante singularidade dos ritmos de aprendizagem dos reais protagonistas e
destinatários do processo educativo e formativo: os alunos, os estudantes. Em suma:
fomenta-se a paralizante fixação e memorização, sem suporte inteligente e crítico, dos
“conhecimentos”, das “verdades” e das “certezas” que os “sábios sofísticos” (que,
mercenariamente e contra o espírito socrático, enxameiam a instituição escolar em
todos os seus ciclos e níveis curriculares...) querem que se saibam... É assim, por
exemplo, que se exige às crianças e aos jovens (no quadro de uma cerrada lógica de
“avaliação” controladora, segregadora, exclusora e desumanizadamente elitista...)
que repitam ou reproduzan, com a exactidão e o rigor das clonagens, aquilo que,
transmissivamente, se lhes ensinou, em vez de se lhes solicitar a visão pessoal e
própria, vivida e autêntica, que foram elaborando, estruturando e ajustando a partir
de si. Tudo à margem do fundamental postulado pedagógico, segundo o qual, os
alunos são o princípio e o fim de todo o processo educativo e formativo (o mesmo é
dizer, a sua inderrogável razão de ser e os seus insubstituíveis actores...),
consumando-se, desse modo, o letal e discriminatório esquecimento de que todas as
crianças, todos os adolescentes e todos os adultos têm o direito e o dever de se
formarem até aos limiares últimos das suas insondáveis e inter-incomparáveis
pontencialidades... Por isso, se pergunta: de que vale o slogan do “todos diferentes,
todos iguais”, se ele não passar, como vem acontecendo, de um inconsequente e
demagógico “ornato de retórica”?...
97
Fernando Paulo do Carmo Baptista
suma: a ironia socrática configura «la sottovalutazione che Socrate fa
di se stesso nei confronti degli avversari con cui discutte»207 e antecipa
não só o papel nuclear da “dúvida metódica” cartesiana na construção
do conhecimento, mas também o sentido estratégico do
“falsificabilismo popperiano” na testagem e validação das hipóteses ou
conjecturas que sustentam as teorias científicas.208
E se foi decisiva a constante de(s)construção crítica e a homóloga
(re)construção superadora e criativa do seu trajecto ontopoiésico,
práxico e auto e hetero-paidêutico e sapiencial, como sumariamente
deixei descrito, não menos importante e significativa foi a
aprendizagem que ele fez, em plena idade adulta e enquanto hoplita209,
nas duras batalhas, entre outras, de Potideia, Délios e Anfípolis,
travadas durante a Guerra do Peloponeso, onde deu exemplos de
invulgar coragem, valentia (éndre€a), resistência, solidariedade e
presença de espírito, enfrentando, nos limites e com o risco da própria
vida, todos os perigos surgentes para salvar a vida de companheiros de
combate (e.g.: Alcibíades e Xenofonte) e revelando uma incomparável
capacidade de sofrimento, ao resistir, descalço, ao próprio rigor da
intempérie e da neve, ao mesmo tempo que cultivava o recolhimento
meditativo e o sentido místico da vida...
207
Cf. Nicola Abbagnano e Giovanni Fornero: Dizionario di Filosofia, Torino UTET,
3
1998, entrada «Ironia»: pp. 615-616.
208
A ironia socrática é, em síntese, a incisiva e anti-sofística interpelação dialógico-
indagativa assente em perguntas, interrogações e provocações paradoxais, tendo em
vista suscitar a dúvida sobre os próprios conhecimentos e a tomada de consciência da
sua fragilidade, destruir a vã presunção de tudo saber e provocar o constante
empenhamento na procura da verdade, através da superação de concepções
preconceituosas, inconsistentes, ilusórias e enganadoras.
209
Cf. Wikipedia, la enciclopedia libre: http://es.wikipedia.org/wiki/Hoplita: «Hoplita
[ p €thw] en la Antigua Grecia era el soldado de infantería pesada. Su armadura
constaba de: una coraza metálica sobre una túnica corta, grebas, un escudo redondo y
un casco (como elementos defensivos) y una lanza y una espada como instrumentos
de ataque. Formaba parte de los diez regimientos de que constaba el ejército.
Luchaban formando bloques compactos llamados falanges. Eran hoplitas los
ciudadanos de pleno derecho con solvencia para costearse y mantener la panoplia. La
larga duración de la Guerra del Peloponeso provocó la aparición de la figura del
hoplita profesional y mercenario a partir del siglo V adC. Los hoplitas alcanzaron su
cénit en las Guerras Médicas y las guerras del Peloponeso; su decadencia empezó con
la aparición de la falange macedónica. Su nombre proviene de la palabra hoplon
( p on = escudo)».
98
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
No exercício da sua acção política, revelou aquele mesmo
arrojado destemor, desobediente rebeldia e indignada e antitotalitária
frontalidade210, sempre que a iniquidade, a prepotência e o terror dos
Trinta Tiranos se fez sentir e, no limiar dos limiares, quando, depois de
recusar, com lúcida, radical e coerente serenidade, o convite à fuga
salvadora, a cicuta se encarregou de esculpir, para sempre, nas lápides
do Tempo e na memória da Humanidade a dimensão da sua real
grandeza:
«Homens de Atenas: tenho por vós consideração e afecto, mas
prefiro obedecer à divindade a ter de obedecer a vós; e, enquanto tiver
um sopro de vida, enquanto me restar um átimo de energia, não
deixarei de filosofar e de vos chamar à razão e aconselhar, a qualquer
de vós que eu encontre. Dir-vos-ei, segundo o meu costume: “Meu caro
amigo, tu és ateniense, natural de uma cidade que é a maior e a mais
famosa pela sabedoria e pelo poder, e não te envergonhas de só curares
de riquezas e dos meios de as aumentares o mais que puderes, de só
pensares em glória e honrarias, sem a mínima preocupação com a
sabedoria, com a verdade e com a maneira de tornar a tua alma o
melhor possível?”
«E, se algum de vós me replicar que com tudo isto se preocupa,
não o largarei imediatamente, não me irei logo embora, mas interrogá-
lo-ei, analisarei e refutarei as suas opiniões e, se chegar à conclusão
de que não possui a virtude, embora o afirme, censurá-lo-ei de ter em
tão pouca conta as coisas mais preciosas e prezar tanto as mais
desprezíveis. Assim procederei com quantos encontrar, novos ou
velhos, estrangeiros ou oriundos da cidade, mas mais ainda convosco,
meus concidadãos, que sois mais próximos de mim pelo próprio
nascimento. São ordens que recebi da divindade, podeis estar certos; e
creio que nunca nada foi mais útil à cidade do que o meu ministério ao
serviço do divino.
«Efectivamente, nas minhas deambulações, não faço outra coisa
senão persuadir-vos, novos e velhos, a que não vos preocupeis mais,
nem tanto, com o vosso corpo e as vossas riquezas do que com a vossa
alma, para a tornardes o melhor possível, dizendo-vos que não é das
210
Cf. Catherine Vallée: Hannah Arendt, Sócrates e a Questão do Totalitarismo, op.
cit., 2003, pp. 53, 61, 121.
99
Fernando Paulo do Carmo Baptista
riquezas que nasce a virtude, mas que é da virtude que provêm as
riquezas e todos os outros bens, tanto públicos como privados. Se é com
estas palavras que corrompo os jovens, é porque elas devem ser
prejudiciais; mas, se alguém afirma que não é isto o que eu digo, não
fala verdade. Em face disto, dir-vos-ei mais, Homens de Atenas, tanto
faz que acrediteis em Ânito como não, podeis absolver-me ou não me
absolver, a minha atitude no futuro manter-se-á inalterável, nem que
eu tenha de sofrer mil vezes a morte211».
O destino de Sócrates ficara assim definitivamente traçado e
assumido... Horas mais tarde, a implacável e mortífera taça cumpria a
sua função entorpecente e liquidatária...
«Entretanto, aquele que lhe ministrara o veneno, palpando-lhe o
corpo, observava-lhe de tempos a tempos os pés e as pernas. Em
seguida, carregando com força num pé, perguntou-lhe se ainda sentia,
ao que ele respondeu que não. Recomeçou depois pela parte inferior
das pernas; e, assim subindo, nos fez ver que se tornava frio e hirto.
Sem deixar de o palpar, observou-nos que, quando lhe atingisse o
coração, seria o fim... E já praticamente toda a região do ventre estava
gelada quando Sócrates, descobrindo o rosto — pois tinha-o, com
efeito, coberto —, disse estas palavras, as últimas que proferiu: —
Críton, devemos um galo a Asclépio... Paguem-lhe, não se esqueçam!
(...)»212
Consumava-se, deste modo, a vital missão terrena daquele que
era o melhor, o mais sábio e o mais justo dos homens de Atenas... E se
o galo pôde cantar a final libertação das clausurantes e penalizantes
algemas corpóreas, abrindo caminho a um ansiado e imaginário além213,
não deixou, igualmente, de anunciar a catártica e ressurgente aurora —
«... el sol nace, / morir es despertar214 ...» — de um tempo novo no
horizonte da História e na ágora da Pólis Planetária: a universal
211
Cf. Platão: Apologia..., 29d-30c.
212
Cf. Platão: Fédon, na tradução já citada de Maria Teresa Schiappa de Azevedo, pp.
129-130.
213
Cf. Platão: Apologia..., 40c-d, 41d.
214
Octavio Paz: Lo mejor..., op. cit., pp. 96-97: «... Sócrates en cadenas (el sol nace,
/ morir es despertar: “Critón, un gallo / a Esculapio, ya sano de la vida”)».
100
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
sagração do AMOR À SABEDORIA — filosof€a — e, com ela, a
inabalável e imorredoura esperança na capacidade que os humanos têm
de sonhar, pensar e criar...
Por isso é que no congenial diálogo da vida com a morte, na
movência intranscendível e inelutável do processo de metamorfose em
que, com ou sem intermitências, nada se perde e tudo se transforma,
de tal maneira que, na imparável girândola da biosfera, a novas vidas
se sucedem novas mortes e a novas mortes se sucedem novas vidas, até
que se verifique o estertor final da necrósico-tanática implosão do
cosmos215, só nos resta retomar o mito primevo e genesíaco do oleiro
bíblico (na memorante e alegórica “lição” de apaixonada e procriadora
rejuvenescência do velho Cipriano Algor e da viúva Isaura Madruga de
A Caverna...)216, para, sob o influxo criador de Eros («aquele mesmo
amor que devora...») fecundar todas as esterilidades e superar todas as
morbidezas e desencantos de que vem padecendo sombriamente
Deméter...
Mas, nessa inabalável convicção soteriológica, alimentada na
utopia e na esperança que faz mover o Mundo e transformar a História,
importa olhar de novo para o barro adâmico e repensar-lhe e redestinar-
lhe o futuro, a partir dos potenciais biogénicos, onírico-poiésicos,
imaginais e imaginantes com que, nós, os humanos, afinal somos
dotados:
«... tudo ali estava como coberto de barro, não sujo de barro,
somente da cor que ele tem, da cor de todas as cores com que saiu da
barreira, o que foi sendo deixado por três gerações que todos os dias
mancharam as mãos no pó e na água do barro, e também, lá fora, a
cor de cinza viva do forno, a derradeira e esmorecente mornidão de
quando o deixavam vazio, como uma casa donde saíram os donos e que
se deixa ficar, paciente, à espera, e amanhã, se tudo isto não se acabou
já para sempre, outra vez a primeira chama da lenha, o primeiro bafo
quente que vai rodear como uma carícia a argila seca, e depois, aos
poucos e poucos, a tremulina do ar, uma cintilação rápida de brasa, o
alvorecer do esplendor, a irrupção deslumbrante do fogo pleno.» 217
215
Cf. José Saramago: As Intermitências da Morte, Lisboa, Editorial Caminho, 2005,
pp. 78 ss.
216
José Saramago: A Caverna, Lisboa, Editorial Caminho, 2000, pp. 337 ss.
217
Idem, ibidem, p. 35.
101
Fernando Paulo do Carmo Baptista
Essa “ígnea irrupção” transformar-se-á em irradiação fulgurante
e incandescente, em tonificante, estelar e radial vento venturo,
polifónica e mestiçadamente semeador e reconfigurador das categorias
do Belo e do Bem — αλ ν α γα ν — numa nova
“oficina-olaria” alimentada por um também novo paradigma
educacional e formativo de matriz multicultural, intercultural e
transcultural218 verdadeiramente sin-agógico e sin-antropagógico e,
assim, inabalavelmente estruturante e coesor, em cuja dinâmica de
realização concretizadora, tudo se vai principiando e tudo se vai
ultimando, para de novo tudo se poder recomeçar diferentemente para
melhor, numa caminhada sem fim, em que todos nos vamos
sinergicamente criando em cada passo em que se forja cada acto
criador...
Sempre, porém, na atitude visionante e visionária de uma
intercambiante “escuta-mirada” corpóreo-espiritualmente
hologramática e pléctica do mundo e da vida, em que cada lance ou
simples gesto levede, cresça e se eleve, contra-burocraticamente e
meta-tecnologicamente, às mais altas dimensões da Poética e da
Estética da Arte, do Humano e do Sagrado, em definitiva e ascensional
antropo-poiese e na intransferível e cordial “sístole-diástole” duma
englobante, sinfónica e realimentadora ágape [ γ ] de pão e de
vinho, de sabedoria e virtude, de dignidade e justiça, de paz e amor...
No fundo, a esperançosa resposta, local e global, humana e divina, ao
mítico desafio de instaurar, na Terra, uma nova “idade do ouro”, essa
utópica flor azul demandada por todos os cavaleiros do sonho...
Mas, para isso, é inadiável travar desde já, e em consonância com
Ernesto Sabato219, o combate decisivo: «recuperar (antes del fin...)
quanto de humanidade houvermos perdido»...
Visionante e apaixonante mirada que, em sua desassossegada
inquietude e seminal insatisfação perfectiva de radicar e cumprir o
futuro desde os abismos e funduras do passado e na voragem transiente
dum presente que não cessa de mover-se, bem pode estar simbólico-
alegoricamente figurada e plasmada na «Fábula de Joan Miró» do
218
Em que tenham igual dignidade os palhaços, os bobos, os esquimós, os mandarins,
as enfermeiras ou os assírios de barbas... que não deixam de ser figurações alegóricas
da real, concreta e singular diversidade antrópica. Cf. José Saramago: ibidem, p. 349.
219
Ernesto Sabato: Antes del fin, Barcelona, Editorial Seix Barral, 2003, p. 188.
102
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
imortal, porque sempre activamente justo e belo e amoravelmente
fascinante e originante, Octavio Paz220:
«(...) El azul estaba inmovilizado, nadie lo miraba, nadie lo oía:
el rojo era un ciego, el negro un sordomudo.
El viento iba y venía preguntando ¿ por donde anda Joan Miró?
Estaba aí desde el principio pero el viento no lo veía:
inmovilizado entre el azul y el rojo, el negro y el amarillo,
Miró era una mirada transparente, una mirada de siete manos.
Siete manos en forma de orejas para oír a los siete colores,
siete manos en forma de pies para subir los siete escalones del
arco íris,
siete manos en forma de raíces para estar en todas partes y a la
vez en Barcelona.
Miró era una mirada de siete manos.
Con la primera golpeaba el tambor de la luna,
con la segunda sembraba pájaros en el jardín del viento,
con la tercera agitaba el cubilete de las constelaciones,
con la cuarta escribía la leyenda de los siglos de los caracoles,
con la quinta plantaba islas en el pecho del verde,
con la sexta hacía una mujer mezclando noche y agua, música y
electricidad,
con la séptima borraba todo lo que había echo y comenzaba de
nuevo.
(...)»
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http://www.if.ufrgs.br/~thaisa/bn/index.htm#indice
http://www.observatorio.ufmg.br/pas19.htm
http://observatoriophoenix.astrodatabase.net/e_teoria/24_E15.htm
http://www.terravista.pt/meco/1351/Bnegros.html,
http://www.spaceref.com/tools/imagecathp.html?cid=1
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114
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
3. “MISERICÓRDIA”
— um projecto e um trajecto semiótico-hermenêutico de
natureza ética e práxica: da palavra para a acção (*)—
«Usque misericordiae mysterium
contemplari necesse habemus.
Laetitiae, tranquillitatis pacisque est fons.
Condicio est nostrae salutis.
(...) Misericordia: lex est fundamentalis
quae cuiusque personae insidet in corde...» 221
(Franciscus: Misericordiae Vultus, § 2;
datum Romae, apud Sanctum Petrum,
die undecimo mensis Aprilis (...),
anno Domini bis millesimo quinto decimo)
«In principio erat Verbum,
et Verbum erat apud Deum,
et Deus erat Verbum»
(Iohannes: I:1)
«... ist die Sprache zumal das Haus des Seins
und die Behausung des Menschenwesens»
[«... a linguagem é, simultaneamente,
a morada do ser e o abrigo
da essência do homem»]
(Martin Heidegger: Carta sobre o Humanismo,
Paris, Aubier, 1970, pp. 162-163)
(*) Reprodução, com pontuais retoques, do texto da comunicação feita na sessão de
abertura do “Colóquio” que teve lugar em Viseu, no dia 27 de Setembro de 2016, em
homenagem ao Eng.º Manuel Engrácia Carrilho, antigo Provedor da Santa Casa da
Misericórdia.
221
«Precisamos sempre de contemplar o mistério da misericórdia. É fonte de alegria,
serenidade e paz. É condição da nossa salvação. (...) É a lei fundamental que mora
no coração de cada pessoa...»
(cf.:http://w2.vatican.va/content/francesco/la/bulls/documents/papa-
francesco_bolla_20150411_misericordiae-vultus.html)
115
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
“MISERICÓRDIA”
I. PRELÚDIO
(enquadramento semiótico-filológico e doutrinal)
a) “DE MISERICORDIA”
No acto solene da celebração jubilatória dos 500 anos da
criação da Santa Casa da Misericórdia de Viseu, começar pelo princípio
(in principio erat verbum) significa radicar o discurso na palavra
matricial, identitária e teleológica que caracteriza e distingue a essência
do “projecto”, do “compromisso”, da “missão” e da “acção benfazeja”,
singular e colegial, de quantos integram a nossa Instituição Confrádica,
para cumprir, com toda a elevação e dignidade, a sublime mensagem
das “obras de misericórdia”.
Essa palavra primigénia, principial, almante e divino-
humanizadora é a palavra “MISERICÓRDIA”: «O nome de Deus é
Misericórdia»222. Na verdade, diz-nos o Papa Francisco (numa clara
alusão à etimologia desta palavra223...) que «misericórdia significa abrir
222
Papa Francisco: O nome de Deus é Misericórdia (tradução portuguesa de Catarina
Mourão), Lisboa, Grupo Planeta, 2016 (original italiano: Papa Francesco: Il nome di
Dio è Misericordia. Una conversazione con Andrea Tornielli, Segrate, Edizioni
Piemme, 2016).
223
Efectivamente, a Etimologia ensina-nos que o substantivo ‘misericórdia’ provém
do seu homólogo latino misericordia(m), palavra da mesma família do adjectivo
misericors, -dis. Este adjectivo formou-se com base na junção de duas raízes:
— a raiz “miser-”
que está presente no adjectivo miserus, -a,-um [= batido pela desgraça, desditado,
infeliz] e igualmente presente no verbo misereor, -eris, -eri [= ter piedade,
compadecer-se, ser misericordioso, ser compadecido, ser clemente...];
— a raiz “cor(d)-”
que é uma variante da multivarietal raiz indo-europeia “ker(d)- / kor(d)- / kar(d)- /
heor(t)-” que exprime a ideia de “coração”, cabendo sublinhar que o actual vocábulo
117
Fernando Paulo do Carmo Baptista
o coração ao infeliz»224, interpretando-a, do ponto de vista teológico-
pastoral, como sendo a atitude divina que abraça, o dom de Deus que
acolhe e que perdoa.
Daí, concluir o nosso humaníssimo e encantador Sumo
Pontífice que «a misericórdia é o primeiro atributo de Deus», ao ponto
de configurar o Seu “cartão único” identitário225.
Esta acolhedora “abertura do coração” aos míseros mortais,
aos infelizes de toda a sorte, isto é, àqueles que, batidos pela “passio”
do sofrimento tantas vezes escondido na nocturna e silenciosa solidão
de todas as amarguras e agonias da vida, clamam pelo afecto piedoso e
solidário dos corações que se compadecem, esta carinhosa e solícita
“abertura do nosso coração à miséria” — permita-se-me a insistência!...
—, não pode deixar de ser o indelével e distintivo “carisma” ético e, ao
mesmo tempo, a “certidão de nascimento” de uma instituição de
solidariedade social que pratica actos e realiza obras de bem-fazer,
consagrando, por essa via, os valores humano-cristãos da compaixão
(compassio, ια [sympatheia] // ια [empatheia],
pietas...), da caridade, da partilha e da solidariedade, em suma, do amor
fraterno, junto dos que mais precisam e mais sofrem no corpo e na
alma...
E o “Catecismo da Igreja Católica” constitui, para o efeito,
uma formativa e alumiante “referência sapiencial” que não pode ser
esquecida, nomeadamente quando proclama (em perfeita sintonia com
o referido entendimento do Papa Francisco...) que «as obras de
misericórdia são as acções caridosas (sublinhei) pelas quais vamos em
inglês “heart” (coração) é proveniente do Old English ‘heorte’; esta raiz está também
presente na constituição morfo-semântica de outros vocábulos portugueses (ex.:
coração, coragem, corajoso..., cordato, cordial, cordialidade..., acordar, acórdão,
acorde, acordo, concordar, concordância, concordata, concórdia, cordiforme,
discordância, discordar, discórdia, recordação, recordar... // cardíaco, cardial,
cardialgia, cardiforme, cardiologia, cardiologista, cardiovascular,
electrocardiograma, bradicardia, taquicardia, endocárdio, epicárdio, miocárdio,
pericárdio... Cf., por exemplo, o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Lisboa,
Temas & Debates, 2005, nas entradas «cor(d)», «cardi(o)-», «-cardia» e afins.
224
Papa Francisco: op. cit.: p. 26.
225
Papa Francisco: op. cit.: pp. 71, 26.
118
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
ajuda do nosso próximo, nas suas necessidades corporais e
espirituais»226.
b) “DE CARITATE” ( γ [agape])
Por constituir a matriz essenciante, modeladora e distintiva do
que significa a virtude, a qualidade e a capacidade da “Misericórdia”,
não menos importante é o entendimento plasmado no Catecismo, a
propósito do conceito de “caridade”, conceito designado, do ponto de
vista lexical e terminológico, por um nome que tem como instância
genealógica o substantivo latino “caritas, -itatis”, formado a partir do
adjectivo “carus, -a, -um”, cuja base morfo-semiogénica é a raiz indo-
europeia “ka(r)-”, veiculadora dos traços semânticos codificados nos
adjectivos caro, custoso, precioso, querido, desejado, amável...
Esta raiz está presente em palavras cognatas como caridade,
caridoso, caritativo..., carícia, carinho, carinhoso, acariciar...,
careiro, carestia, encarecer, encarecimento227...
226
Ver Catecismo da Igreja Católica, Coimbra, Gráfica de Coimbra, 21997, p. 593, §
2447.
227
Está igualmente presente em homólogas palavras de outras importantes euro-
línguas e dialectos: em inglês: caress, charity, charitable, charitably, cherish...; em
espanhol: caro, caridad, encarecer, caricia...; em francês: cher, charité, charitable,
chérir...; em italiano: caro, carità, caritatevole, caritativo, carizia, carezza,
accarezzare, carezzevole...; em alemão: Karitas, karitativ...; em romeno: caritate,
caritabil...; em provençal: car; em sardo-logudorês: karu; em friulano: kar...; em
irlandês antigo: caraim (amar); em persa: k ma (desejo); em sânscrito: c ruh, K ma
(deus índio do amor, que fez nascer no espírito do Criador o desejo de ter companhia),
k ma-s tra (tratado erótico, escrito em sânscrito, que faz parte da literatura religiosa
da Índia)... Cf. Calvert Watkins: The American Heritage – Dictionary of Indo-
2
European Roots, Boston / New York, Houghton Mifllin Company, 2000, entrada
«ka-» (gostar, desejar); Edward A. Roberts y Bárbara Pastor: Diccionario etimológico
indoeuropeo de la lengua española, Madrid, Alianza Editorial, 1997, entrada «k -»
(gostar, desejar); R. Grandsaignes d’Hauterive: Dictionnaire des Racines des Langues
Européennes, Paris, Larousse, 1994, entrada «ka(r)- I» (querido); Franco Rendich:
Dizionario etimológico comparato delle lingue classiche indoeuropee, Roma,
Palombi Editori, 2010, p. 25: raiz «ka- / «[ka+m]- »: em sânscrito: k ma (amor,
desejo), K ma (deus do amor); os equivalentes latinos do sânscrito são os lexemas
119
Fernando Paulo do Carmo Baptista
Cabe sublinhar, neste contexto, que o lexema ‘caridade’ foi
introduzido na linguagem eclesial como tradutor da palavra grega
γ (agape), com que se designava o «amor fraternal».
É em consonância com estas significações seminais (bem
depuradas de toda a espécie de degradações semânticas...) que A
CARIDADE aparece definida naquela importante obra de instrução
catequética e de (in)formação religiosa como «a virtude teologal pela
qual amamos a Deus sobre todas as coisas (...) e ao próximo como a
nós mesmos, por amor de Deus»228.
Nela se consubstancia «o mandamento novo» proclamado e
protagonizado por Jesus Cristo, ao amar os seus «até ao fim»:
«É ESTE O MEU MANDAMENTO: QUE VOS AMEIS UNS AOS OUTROS,
229
COMO EU VOS AMEI» .
E é ainda o Catecismo230 que, citando muito especialmente o
testemunho epistolar de São Paulo, entre outros apóstolos, nos
apresenta a porventura mais expressiva das caracterizações e o mais
lapidar dos ajuizamentos sobre esta “virtude maior”:
A CARIDADE é superior a todas as virtudes; é a primeira das
virtudes teologais, na medida em que o exercício de todas as outras é
animado e inspirado por ela; é ela o vínculo da perfeição e o seu código
“modelador”; ao articulá-las e ao ordená-las entre si, a CARIDADE
assegura e purifica a nossa capacidade humana de amar e eleva-a à
perfeição sobrenatural do amor divino. Os seus frutos são: a alegria,
a paz e a misericórdia, exigindo a prática do bem e a correcção
fraterna; é benevolente; suscita a reciprocidade, é desinteressada e
liberal; é amizade e comunhão.
«amor» e seus cognatos «amare», «amabilis», etc., em que se verifica a supressão do
«k» inicial. Digno de registo, é o seguinte comentário de Franco Rendich: «Si noti che
la realtà finita e mortale è creata da m t “madre”, termine che deriva dalla radice m ,
“misurare”, “delimitare”. L’amore è il limite, la misura umana [m] della gioia
luminosa [ka] delle Acque [ka] di eka (o Uno). Ovvero l’ incontro tra ciò che è eterno
[ka] e ciò che è limitato [m]».
228
Ver Catecismo, op. cit., p. 464, § 1823.
229
Ibidem, p. 464, § 1823.
230
Ibidem, p. 464, § 1825.
120
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
Tudo isto, a convergir, augustinianamente, numa síntese
conclusiva, segundo a qual, «a consumação de todas as nossas obras é
o amor. É nele que está o fim: é para a conquista dele que corremos;
corremos para lá chegar e, uma vez chegados, é nele que
descansamos»231.
Mas essa caminhada colectiva da Humanidade rumo ao Amor
Universal, só pode ser mediada pela FRATERNIDADE. E esta carece de
ser incessantemente proclamada, explicada, promovida e, sobretudo,
vivida e praticada...
Eis aí a razão de ser e de existir das “Confrarias” e das
“Irmandades Cristãs”, ou seja, o “PODER” instituidor, estruturante e
direccionante que está na génese da nossa “Santa Casa da Misericórdia
de Viseu”...
II. DESENVOLVIMENTO
a) “DE FRATERNITATE”(*)
(sintético excurso, configurador de uma reflexão sobre aquela
que é o “coração vivo e pulsante”
da MISERICÓRDIA: — a FRATERNIDADE)
Caríssimos Confrades [Con-Fratres Carissimi]:
Ao dirigir-me a todos Vós, saudando-Vos nestes exactos termos
(em sintonia, aliás, como ireis ver, com o sentido profundo do tema
231
Ibidem, p. 465, § 1829, com referência a Santo Agostinho [In epistolam Iohannis
ad Parthos tractatus 10, 4], na nota 83.
(*) Nota: o tratamento deste tópico teve em conta aspectos nucleares abordados na
“oração de sapiência” que proferi em 7 de Maio de 2008, na abertura do “IV Capítulo
da Confraria Gastronómica do Dão”, comunicação essa, posteriormente retocada e
repetida em 23 de Novembro de 2008, no Pavilhão Multiusos Monsenhor Nunes
Pereira da CM de Pampilhosa da Serra, no “V Capítulo da Real Confraria do
Maranho”. Cf. Mário Nunes e José Espírito Santo (orgs.): Real Confraria do Maranho
– História e Tradição [com prefácio de Marcelo Rebelo de Sousa], Coimbra, Real
Confraria do Maranho, 2011, pp. 191-210.
121
Fernando Paulo do Carmo Baptista
da presente reflexão...), faço-o com a clara e assumida consciência de
que a palavra frater (e, com ela, soror232, consoror e confrater...) é
uma das mais fabulosas palavras da língua latina e da cultura clássica
que, conjuntamente com mater e pater remetem para as matrizes
genésico-vitais, afectivas e antropológico-culturais e planetárias da
nossa condição humana.
É, na verdade, esta remotíssima e fascinante tríade lexical —
mater / pater / frater — que, desde o indo-europeu233, designa e nomeia
a base natural em que assenta a essência da progenição do parentesco
humano-sanguíneo (relação familiar entre pais e filhos e entre irmãos...)
e da filiação e vinculação simbólico-identitária e paritária, a nível
comunitário, filosófico-doutrinal, ético-axiológico, educativo-
formativo, convivial, lúdico, desportivo, clubístico, associativo,
profissional, empresarial, partidário, sindical, etc., etc., e das mais
profundas e duradoiras relações de mundividência (Weltanschauung) e
mundivivência, sensibilidade e afectividade intra-familiar, inter-familiar
e trans-familiar: parentes, amigos, companheiros, colegas, consócios,
confrades...
Repare-se, a propósito, que esta sua origem indo-europeia está
sintomaticamente presente em sânscrito (matar / pitar / bhrátár), em
232
Cujo feminino é soror, com a raiz swesor- (< s esor-, que apresenta também as
variantes: swesr-, swestr-, swesr-ino), raiz igualmente presente em: svasar (sânscrito),
de swester (alto alemão), sweostor (inglês antigo), sister (inglês actual), systir (antigo
norueguês), siur (ant. irlandês), soeur (francês), suora e sorella (italiano), sor (catalão),
sor (espanhol), serora [< sorora] (euskara), sorre, seror, sor (provençal)... Em latim:
novem, doctae sorores (= as nove, as doutas irmãs [as Musas]). Para a ponderação
desta raiz, considerar: The American Heritage Dictionary of The English Language,
Boston / New York, Houghton Mifflin Company, 2000, 4.ª edição, 2000, na entrada
«sister», com a respectiva remissão para o Appendix I.
233
A língua genética de uma vasta família de línguas, antigas e actuais, que os estudos
comparatísticos conjecturam haver sido falada desde a Europa até à Índia e à China...
Cf.:
http://pt.wikipedia.org/wiki/L%C3%ADnguas_indo europeias;
http://pt.wikipedia.org/wiki/Proto-indo-europeu.
122
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
234
grego ( / α / ), em irlandês antigo (mathir / fathir
/ brathir), em inglês (mother / father / brother), em alemão (mutter /
vater / bruder), em português (madre / padre / frade), em francês (mère
/ père / frère), o mesmo se passando, genericamente, com as demais
línguas românicas, verificando-se, inclusivamente, o facto de que o
lexema homólogo do latino frater, isolamente perspectivado fora
daquela tríade, aparece, entre outras línguas, em gótico (brótar), em
prussiano antigo (brati) e em persa igualmente antigo (brata).
Desta sumária abordagem linguístico-lexicológica, creio ressaltar
bem a universalidade da palavra frater e, consequentemente, da sua
derivada fraternitas, de cujo acusativo (fraternitate-[m]) provém não só
o substantivo português fraternidade mas também os equivalentes
românicos mais próximos de nós (o espanhol fraternidad, o francês
fraternité, o italiano fraternità, o romeno fraternitate...) com que se
designa, afinal, uma das ideias verdadeiramente fundadoras, naturantes
e coligantes e, assim, constitutivas das COMUNIDADES HUMANAS
existentes no Planeta. De tal maneira que bem podemos concluir com o
pensador romano Lucius Annaeus Seneca (Córdova: 4 a.C. — Roma:
65 d.C.) que a natureza fez de nós uma família: «natura nos cognatos
edidit»235.
234
Suplantado por λ (= irmão), a nível da estrutura familiar, pervive todavia,
na forma de plural — — no plano das organizações sociais, políticas e
religiosas, com o significado de membro de uma α α («fratria», ou seja, cada
um dos grupos ou clãs em que se dividiam as tribos na Grécia antiga; e também,
associação ou grupo de cidadãos movidos por ideais, causas ou interesses comuns e
partilhados (ex: um dado conjunto de «irmãos» ou «confrades» — frãterew —, a que
presidia um fratr€arxow ou frÆtarxow. (Cf. Pierre Chantraine: Dictionnaire
étymologique de la langue grecque: histoire des mots, Paris, Klincksieck, 1999 e
Anatole Bailly: Dictionnaire Grec Français, Paris, Hachette, 1984, nas entradas
respectivas: frãthr e édelfÒw).
235
Cf. Lucius Annaeus Seneca: Epistulae morales ad Lucilium, Liber XV, Epistula
XCV, 52, 53
(apud: http://www.intratext.com/IXT/LAT0230/_P2N.HTM):
123
Fernando Paulo do Carmo Baptista
Por outro lado (e do ponto de vista antropológico-cultural,
teológico, filosófico e histórico...), a ideia de “FRATERNIDADE”
configura-se, de modo inquestionável, como um dos mais importantes
e decisivos patrimónios ou legados de relações e de laços unitivos e
coesivos que se foram radicando, constituindo e consolidando no
interior da poliédrica e abissal complexidade dos dinamismos
filogónicos, isto é, geradores de ιλ α (philia) ou amicitia,
perspectivadas estas, nas suas nucleares manifestações modais e na
múltipla diversidade dos seus registos expressionais.
Não cabendo na economia do cronograma deste magno evento
celebratório da criação da nossa já penta-secular Instituição de
Solidariedade Social uma analítica reflexiva, a ser conduzida segundo
um alinhamento histórico-diacrónico mais conforme com a
complexidade do tema236, não posso deixar de evocar, todavia, o
polifónico e diversificado contributo sapiencial e arquitectante do
pensamento de Platão e de Aristóteles, passando por Cícero, Terêncio,
Séneca, Santo Agostinho, São Tomás de Aquino, Espinosa, Kant,
Hegel, Marx, Nietzsche..., até Ernst Bloch, Karl Barth, Heidegger,
Gadamer, Sartre, Adorno, Karl Popper, Dietrich Bonhoeffer, Hannah
«[52] omne hoc quod vides, quo divina atque humana conclusa sunt, unum est;
membra sumus corporis magni. Natura nos cognatos edidit, cum ex isdem et in eadem
gigneret; haec nobis amorem indidit mutuum et sociabiles fecit. Illa aequum
iustumque composuit; ex illius constitutione miserius est nocere quam laedi; ex illius
imperio paratae sint iuvandis manus. [53] Ille versus et in pectore et in ore sit: homo
sum, humani nihil a me alienum puto». (Os itálicos são meus). Aquele verso (que
Séneca deseja no coração e nos lábios) é o emblemático verso 77 do
Heautontimoroumenos, de Terêncio: «sou homem, nada do que é humano me é
alheio».
236
Sem esquecer o contexto englobante, nomeadamente, do legado da Cultura
Hebraico Cristã, com a matricial Bíblia, das Humanidades Clássicas Greco Latinas
(com os hoje quase silenciados textos de seus grandes pensadores e escritores...) da
Cultura Árabe, com os seus Al Khwarizmis, Al Majritis e Ibn Sinas e, sobretudo, com
o seu fundacional Corão, e das Culturas Orientais, com natural destaque para os quatro
livros Veda e para as figuras de Lao Tsé e de Buda...
124
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
Arendt, Hans Kung e tantos outros237...), para a poiésica constituição e
hermenêutica inteligibilidade desta fulcral e arquetípica dimensão
antropo-ontológica e axiológica que dá pelo nome de
«FRATERNIDADE».
Assim, seja ela a ιλ α (philia) benevolente e desinteressada,
defendida por Platão (e.g.: Lísis, Fedro e Banquete...), tendo como
referenciais de transcendência e de progressivo aperfeiçoamento «o
supremo bem e a suprema beleza»238, seja ela a έλ ια ιλ α (amizade
perfeita) proposta por Aristóteles que a identifica com a ética virtuosa,
237
Platão (428/27 a.C. – 347 a.C.), Aristóteles (384 a.C. – 322 a.C.), Cícero (106 a.C.
-– 43 a.C.), Séneca (4 a.C. – 65 d.C.), Santo Agostinho (354. – 430), São Tomás de
Aquino (1225 – 1274), Montaigne (1533 – 1592), Descartes (1596 – 1650), Pascal
(1623 – 1662), Espinosa (1632 – 1677), Lock (1632 – 1704), Leibniz (1646 – 1716),
Berkeley (1685 – 1753), Voltaire (1694 – 1778), David Hume (1711 – 1776),
Rousseau (1712 – 1778), Kant (1724 – 1804), Hegel (1770-1831), Kierkegaard (1813
– 1855), Karl Marx (1818 – 1883), Nietzsche (1844 – 1900), Edmund Husserl (1859
– 1938), Max Scheler (1874 – 1928), Martin Buber (1878 – 1965), Jacques Maritain
(1882 – 1973), Ortega y Gasset (1883 – 1955), Karl Jaspers (1883 – 1969), Ernst
Bloch (1885 – 1977), Karl Barth (1886 – 1968), Martin Heidegger (1889 – 1976),
Gabriel Marcel (1889 – 1973), Xavier Zubiri (1898 – 1983), Hans-Georg Gadamer
(1900 – 2002), Karl Popper (1902 – 1994), Theodor Adorno (1903 – 1969), María
Zambrano (1904 – 1996), Jean-Paul Sartre (1905 – 1980), Emmanuel Mounier (1905
– 1950), Dietrich Bonhoeffer (1906-1945), Hannah Arendt (1906 - 1975), Emmanuel
Lévinas (1906 – 1995), Merleau-Ponty (1908 – 1961), Pedro Laín Entralgo (1908 –
2001), Simone de Beauvoir (1908 – 1986), Paul Ricoeur (1913 – 2005), Luigi
Pareyson (1918 – 1991), Donald Davidson (1917 – 2003), Anna-Teresa Tymieniecka
(1920 – ), Karl-Otto Apel (1922 – ), Hans Kung (1928 – ), Jürgen Habermas (1929 –
), Emanuele Severino (1929 – ), Carlo Sini (1933 – ), Gianni Vattimo (1936 – ), Remo
Bodei (1938 – ), Mario Perniola (1941 –), Umberto Galimberti (1942 – ), Giacomo
Marramao (1946 –)... Cf. Fernando Paulo Baptista: Nesta nossa doce Língua de
Camões e de Aquilino, Sernancelhe, C.M. de Sernancelhe, 2010, p. 255.
238
Cf. Platão: Lísis (introdução, versão do grego e notas de Francisco de Oliveira):
Coimbra INIC, Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos, 21990, pp. 40-43.
125
Fernando Paulo do Carmo Baptista
bondosa e altruísta dos que praticam o bem239, seja ela a amicitia
ciceroniana da «omnium divinarum humanarumque rerum cum
benevolentia et caritate consensio [a bondosa e afectuosa
harmonização das coisas divinas com as coisas humanas]»240, seja,
ainda, a “dilectio” agustiniana241 com que, em plena e desinteressada
liberdade242, se ama o outro em razão de si mesmo enquanto pessoa, ou
«o amor fraterno e cristão» com que São Tomás243 identifica a caritas
239
Uma vez que «só os bons são amigos em sentido próprio e verdadeiro». Cf.
Aristóteles: Ética a Nicomaco, 1157b4. Este entendimento é igualmente partilhado
por Séneca, quando afirma que «só a virtude nos proporciona um prazer perene»,
além de que «o verdadeiro bem é o que decorre da boa consciência, das rectas
intenções e das boas acções» [«ex bona conscientia, ex honestis consiliis, ex rectis
actionibus»]). Cf. Séneca, edição do jornal «Público», 313, 303. Para o texto em latim,
ver Séneca: Epistulae Morales Ad Lucilium, XXIII, 6-7: «[6] Fac, oro te, Lucili
carissime, quod unum potest praestare felicem: dissice et conculca ista quae
extrinsecus splendent, quae tibi promittuntur ab alio vel ex alio; ad verum bonum
specta et de tuo gaude. Quid est autem hoc ‘de tuo’? te ipso et tui optima parte.
Corpusculum bonum esse credideris: veri boni aviditas tuta est. [7] Quod sit istud
interrogas, aut unde subeat? Dicam: ex bona conscientia, ex honestis consiliis, ex
rectis actionibus, ex contemptu fortuitorum, ex placido vitae et continuo tenore unam
prementis viam» (apud:
http://www.intratext.com/IXT/LAT0230/_PN.HTM).
240
Cf. Marcus Tullius Cicero: Laelius de Amicitia, 20b-21, apud
http://thelatinlibrary.com/cicero/amic.shtml:
«Est enim amicitia nihil aliud nisi omnium divinarum humanarumque rerum cum
benevolentia et caritate consensio; qua quidem haud scio an excepta sapientia nihil
melius homini sit a dis immortalibus datum».
241
Cf. Santo Agostinho: Sermo 165, 4.4.: «Si amas, gratis ama: si vere amas, ipse sit
merces quem amas» [«se amas, ama graciosamente»: se amas de verdade, aquele a
quem amas seja ele próprio a tua recompensa»]; In Ioannem 8.7. e In Epistolam Ioannis
Tractatus decem, VII, 8: «Dilige, et quod vis fac (...): radix sit intus dilectionis, non
potest de ista radice nisi bonum exsistere» [Ama, e faz o que quiseres (...): pois, se a
raiz do amor está dentro de ti, só o bem poderá sair de tal raiz]».
242
Para Santo Agostinho (Epistolae: 167, §§ 5.16, 5.19 e 6.19), a «caritas» não só é
a «plenitudo legis» [a plenitude da lei] e a «lex libertatis» [a lei da liberdade], mas
também a «magna et vera virtus» [a grande e verdadeira virtude]; por outro lado, a
«misericordia» é a «medicina pro peccatis quotidianis» [o remédio para os pecados
do dia-a-dia]. Para as obras de Santo Agostinho em latim, ver: http://sant-
agostino.it/latino/commento_vsg/index.htm
243
Cf. São Tomás de Aquino: Summa Theologiae, Secunda Secundae Partis,
Quaestiones 23-46
126
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
teologal para com o próximo, A CONCLUSÃO, sempre inconclusa, que,
em todo o caso, daí se pode retirar, será, em seus traços mais relevantes,
a seguinte:
— a FRATERNIDADE não é o amor-paixão erótico-carnal ou
sensual, na recíproca biunivocidade inter-egótica, fulcralmente
suscitado pelo fascínio da beleza corpórea e movido pelo desejo
concupiscente da pertença;
— a FRATERNIDADE é, antes e pelo contrário, aquela sympathetic
emotion, aquela primigénia, alterocêntrica e universalista pulsão do
nosso pãyow [pathos] amorável e magnânimo que placentariamente
sustenta, alimenta e modela uma cordial postura de fundo, marcada de
afectuosa abertura e solícita disponibilidade em direcção ao «outro» e
ao «totalmente outro»244 (o estrangeiro, o emigrado, o exilado, o
desfigurado, o desconhecido, o abandonado, o desprezado, o
perseguido, o excluído...), olhando-o e acolhendo-o de braços abertos
como se ele já fosse «um dos nossos», «um dos de casa», gerado nas
mesmas seminais entranhas, comendo do mesmo pão, bebendo do
mesmo vinho e abrigado sob o mesmo tecto... Impulso autêntico, livre
e desinteressado de amor ao próximo, encarnado mas não carnal,
movimento generoso de filantropia, suscitado originalmente pela pura
bondade, consubstanciado numa ética da justiça e da equidade e numa
práxis universalista da virtude e do bem e na assunção autêntica do
nosso modo de ser, de estar e de agir como serviço, comprometimento
e dádiva...
(cf. http://www.newadvent.org/summa/3.htm): «... caritas importat dilectionem Dei
et proximi.» (quaest. 24, artic. 12); «... caritas, quae in cordibus nostris per spiritum
sanctum diffunditur, facit nos liberos, quia ubi spiritus domini, ibi libertas...» (quaest.
44, artic. 1); «... caritatis actus non solum est dilectio, sed gaudium, pax, beneficentia»
(quaest. 44, artic. 3). Para o texto latino da Summa Theologiae, ver:
http://www.corpusthomisticum.org/iopera.html.
244
Cf. Emmanuel Lévinas: Totalidad e Infinito — Ensayo sobre la exterioridad,
Salamanca, Ediciones Sígueme, 2002, especialmente o cap.º 3 – «El rostro y la
exterioridad», pp. 201-261; cf. também o importante ensaio de Benedito Eliseu Leite
Cintra: «Emmanuel Lévinas e a ideia do infinito», in Margem (revista da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo), n.º 16 Dez/2002, pp. 107-117.
127
Fernando Paulo do Carmo Baptista
Na FRATERNIDADE (com toda a sua teia de relações
interpessoais, grupais e inter-grupais, desde a família e as comunidades
naturais de pertença, às demais instituições e organizações sociais...)
cabem sempre, portanto, as mais diversas formas e modos de expressão
e manifestação: o amor a Deus e ao próximo, a concórdia, a harmonia,
a ternura, o carinho, a caridade, a bondade, a solicitude, o cuidado, o
aconselhamento sábio e prudente, a piedade (a humaníssima,
sensibilíssima e comovedora pietas de Vergílio e de Séneca, mas
também aquela abissal sabedoria que María Zambrano245 vê a guiar e a
alumiar a razão criadora na plasmagem poética das mais íntimas
pulsões da vida...), a compaixão, a benevolência, o perdão, a
solidariedade, a interajuda, a reciprocidade, a compreensão, a
tolerância...
Em suma: na FRATERNIDADE, condensa-se uma ancestral e sábia
mistura de sabedoria e de fé, de aceitação e de adesão, de convergência,
desprendimento, disponibilidade, serenidade e paz, que envolve o
homem por inteiro246. De tal maneira que esse envolvimento será tanto
mais forte e tanto mais firme, consistente e constante, quanto mais
amplo for o horizonte e o campo de partilha inter pares e quanto mais
profundamente enraizado e ancorado se encontrar nos territórios da
justiça, da verdade, do bem e do belo247, o mesmo será dizer, na esfera
transcendental do “divino”, na plenitude do seu esplendor...
Mas a existência de «fratres» e de «confratres», a existência de
«irmãos» e de «irmãs», de «confrades» e de «consorores» ou
«confreiras»248 muito dificilmente seria possível ou pensável fora da
«matriz antrópica» (mater <> pater) que tem protagonizado o
maravilhoso processo da fecundação, parturição, alimentação,
245
Carmen Revilla: Claves de la razón poética: María Zambrano, un pensamiento en
el orden del tiempo, Madrid, Editorial Trotta, 1998, p. 117.
246
Cf. Antonio Calvo Orcal: artigo «Fraternidad», apud Mariano Moreno Villa (dir.):
Diccionario de Pensamiento Contemporáneo, Madrid, 1997, pp. 577-582.
247
Cf. Platão, Aristóteles, Santo Agostinho, São Tomás: nas obras já citadas.
248
Que, quando autenticamente o são e na medida em que o são, são, quase sempre,
originário fruto duma mesma instância progenitora, materno-paternal, filiadora,
afectiva e simbólica; estou a pensar naturalmente no que tem sido até hoje, por
enquanto e até ver, a “norma” ou “padrão” cultural, sociológico e axiológico das
dinâmicas de reprodução familiar, educacional e cultural e da interacção «progenição
<> descendência»...
128
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
protecção, educação e formação livre, responsável, crítica e criteriosa,
plural e poiésica da vida humana, muito dificilmente seria possível ou
pensável fora do contributo, a solo ou em simultâneo, de um par ou
casal de corpos vivos que, numa práxis de amor paritário e paritante,
bipolar e unificiente, garantem ao mundo a continuidade da espécie,
através do milagre do nascimento de uma criança...
E todas as crianças que se geram, nascem, evoluem e pervivem
paritariamente a partir da mesma fonte, “madre” ou “placenta”
genético-vital, afectiva e simbólico-cultural têm o nome de «filhos»,
porque a instância sua progenitora e filiadora249 tem sido uma figura
feminina, uma femina ou fêmea, palavra que, etimologicamente, quer
dizer «aquela que amamenta» e que, por isso mesmo, gera felicidade!...
Pois bem: cabe esclarecer, a propósito, que os lexemas filho,
filiar, filiação, fecundação, feto, feminino, femina, fêmea, feliz e
felicidade, tal como fellare (latim: mamar, sugar), dh ru (sânscrito: dar
a mamada), dêls (letão: filho), de par com vários outros vocábulos, têm
como núcleo sémio-morfológico a mesma raiz indo-europeia dhē(i)- /
dh -250 (evolucionada para fē-/ f -) que é portadora dos significados
“arqueológicos” de «sugar, chupar, mamar, amamentar»... Assim, e
em conformidade com esses significados inscritos na raiz dessas
249
Salvaguardadas a autenticidade própria de um estado embrionário e fetal e a
normalidade de um processo de fecundação e de maiêuse [ma€eusiw] natural...
250
Raiz que (descrevendo, aqui, com mais pormenor...) entra, como acabámos de ver,
na morfogénese de lexemas como: fêmea (em latim: femina, ou seja, aquela que
amamenta), feminino, feto, fetal, fecundo, feno (= erva sagrada e seca, que serve de
forragem ou alimento para o gado e que também é conhecida pelos nomes de sanfeno,
fenacho, fenasco), fellare (latim: chupar, mamar), feliz (< latim: felix, -cis, fecundo,
fértil, bem amamentado, feliz...), felicidade, yhlÆ (thele = mamilo), yhlãzv (thelazo
= amamentar), yhlukÒw (thelykos: feminino), endotélio, epitélio, mesotélio, filho (<
f lius, aquele que é amamentado), filiar, filiação, fidalgo, afilhado, dh ru (sânscrito:
dar a mama, dar o seio), d l (lituânio: sanguessuga), dêls (letão: filho), d le (letão:
veado de mama)... Todos estes lexemas têm como núcleo sémio-morfológico
constitutivo a mesma e já referida raiz indo-europeia dhē(i)-/dh - (cf. The American
Heritage Dictionary of The English Language, Boston / New York, Houghton Mifflin
Company, 2000, 4.ª edição, 2000, por exemplo, na entrada «female», com o
respectivo reenvio para o Appendix I.) que, com ampliamentos sufixais morfogénicos
e evoluções fonéticas, tanto vocálicas como consonânticas, que já estão devidamente
estudadas, está na origem de um importante conjunto lexical, dotado do mesmo e
transversal “adn semântico”, portador dos significados primitivos de «sugar, chupar,
mamar, amamentar»...
129
Fernando Paulo do Carmo Baptista
palavras: femina é aquela que amamenta; filius, por sua vez, é aquele
que suga no mamilo da mama e que, portanto, é amamentado e é feliz...
Significa isto que o estatuto de «ser frater» («irmão»), deflui
directamente do facto de «ser filius» («filho»), isto é, de ser
«amamentado» biológica, afectiva e culturalmente pela mesma mãe, em
princípio (ainda que nem sempre...), estreitamente coadjuvada pelo
mesmo pai...
O que equivale a dizer que a condição de «irmão» assenta numa
«geminalidade» de natureza bio-ontológica identitária: irmão,
proveniente do latim germanum significa isso mesmo: aquele que tem
o mesmo gérmen (em latim: germen < gen + men251), ou seja, a mesma
base genética e a mesma origem genésica, aquele que vem da mesma
gente ou linhagem e que, por isso mesmo, é gémeo ou germano,
hermano, irmão...
É, na verdade, a ideia de alimento intra-uterino e extra-uterino
(biológico, afectivo, educacional e cultural, partilhado de modo
paritário e parificante, equitativo, livre e universalizado e sem qualquer
espécie de discriminação...) que constitui a base antropológica,
simbólica, semiogénica e axiológica da ideia e do valor de
«FRATERNIDADE» e, com ela, da célebre, utópica, interactiva e
dialéctica «trilogia» («Liberté, Egalité, Fraternité») consagrada no
ideário da Revolução Francesa que, volvidos muito embora já mais de
duzentos anos (1789-1799 —> 2017), continua ainda bem longe de se
cumprir em aspectos essenciais...
Mas esta radicação antropo-ontogenética252, semiogénica e
culturomorfósica que, num mesmo abraço, nos faz «filhos» e nos faz
«irmãos» e que levou à instituição, em todas as grandes civilizações e
culturas da Humanidade, da dimensão antropológica e da categoria
axiológica da “FRATERNIDADE”, pressupõe sempre a intervenção do
humano corpo vivo que todos somos, ou seja, do unitário «corpo-
251
A evolução fonética «germen < gen + men» (substantivo da mesma família de
gens, -tis [= gente, linhagem] e do verbo gigno, -is, -ere, genui, genitum [= gerar, dar
à luz], entre tantos outros lexemas...) configura uma dissimilação do grupo nm para
rm, tal como acontece em «carmen < can + men > car + men»; carmen > carme,
canto, poema, pois a raiz é a mesma do verbo cano, -is-, -ere [= cantar].
252
Sem esquecer as implicações filogenética e epigenética no processo evolutivo,
adaptativo, metamorfósico e auto-inter-poiésico que, no fundo, configura a imparável
dinâmica da antropogénese.
130
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
espírito»-«corpo-alma»-«corpo-mente» (body-mind) que, entre os
Cristãos, tem como referente e símbolo maior o nascido, crucificado
mas ressuscitado, o uno, incindível e glorioso «Corpo de Cristo»:
Corpus Christi!...
O que significa que todos nós, concidadãos que somos,
constituímos uma «fraternidade de humanos corpos vivos conviventes»
que cantam e dançam, que vivem saudavelmente a alegria e a festa, que
repartem o pão e o vinho, que celebram a Natureza e a Divindade e
cultivam o diálogo entre o sagrado e o profano, que sofrem e se
emocionam, que meditam, que sonham e que rezam...
É por tudo isso que todo aquele (seja ele quem for!...) que se
compraz em reduzir à escravidão ou à escravatura esta maravilha que é
o nosso divino-humano corpo vivo, em o agredir ou maltratar,
sobretudo, na pessoa dos mais frágeis, dos mais vulneráveis e dos mais
indefesos — as crianças, os jovens, as mulheres e os velhinhos... —,
em o violar ou violentar, em o impedir de crescer e de se desenvolver
em todas as suas potencialidades e faculdades, negando-lhe o pão, o
afecto, a educação e a cultura, cavando o fosso cada vez maior entre a
abundância e o esbanjamento, por um lado, e a fome e a miséria, pelo
outro, entre o saber e a sabedoria, e a iliteracia e a ignorância, todo
aquele que assim procede pratica a injustiça, nega a equidade, clausura
a liberdade e, com elas, sepulta inexoravelmente a Fraternidade!...
Numa palavra:
ESSE QUE ASSIM É, ASSIM PENSA E ASSIM AGE
NÃO É DIGNO DE SE CHAMAR «HOMEM» NEM «IRMÃO»!...
Daí, o irrecusável apelo à parte melhor (i.e., à parte não
“patológica”) do nosso pãyow (pathos), na polaridade da “passio”
(paixão) e da “compassio” (compaixão)...
b) Do ο («pathos»)
na constante dialéctica e dialogia entre “passio” [paixão]
e “compassio” [compaixão]...
131
Fernando Paulo do Carmo Baptista
É no ο [pathos]253 que reside, porventura, a dimensão mais
singular e mais complexa da nossa condição humana que nele se
institui, se constitui e se organiza e de que diuturna, multímoda e
polissemicamente se alimenta, se configua e se revela: desde a escuta,
a visão e a previsão, o cheiro, o tacto, o paladar e o saborear, à
suspeição, ao pressentimento, ao agoiro, ao presságio e à premonição
<> premunição...
É no ο [pathos] que, a meu ver, radica a possibilidade
primeira e última de toda a criatividade e de todo o pensar e agir
humanos... para o bem e para o mal...
Tudo irrompe, afinal, desse transracional e enigmático “território”
do nosso ser, que se desdobra irruptiva e epifanicamente em alegria, em
cântico, em amorável celebração e em festa, em angústia, em desespero,
em sofrimento, em dor e em desgraça, em paciência, em esperança, em
serenidade, em prudência e em sabedoria, mas também em
inconsciência, em insensatez e em irresponsabilidade e, no limite, nos
paradoxais, oximóricos e incontrolados turbilhões da desmedida
loucura da ι [hybris] e da frieza letalmente mortífera (tantas vezes
calculada e programada...) da violência e do próprio crime...
É ele, ο [pathos], esse livre, desmedido e inclausurável
oceano que (com a inesgotável νέ γ ια [energueia] ondulatória e
translativa dos instintos latentes e impulsivos e das brusquidões
reactivas e repentinas, da misteriosa movência das pulsões libidinais,
oníricas, ilógicas, absurdas e metafísicas, tanto “divinas” como
“demoníacas”...) constitui o universal transfundo e a úbere e
possibilitante matriz genealógica, genológica e genotípica da
“mecânica dos fluidos” psicosférica e, dentro dela, da semiósica
“poliglotia” e intercomunicabilidade social...
É dele que eclodem, em última instância, as brisas e maresias da
lírica, as marés vivas e tensas do drama, as ousadas e argonáuticas
gestas da epopeia, a inelutável, irreversível e patética fatalidade dos
naufrágios da tragédia, mas é também em seu desconcertante,
253
Entendido na máxima tensão, latitude, amplitude, fundura, descensão e elevação e
na corpóreo-anímica e contraditória abissalidade dos sentires e dos sentidos:
psicopatia, apatia, dispatia, antipatia, eupatia, simpatia, empatia... Cf., com pontuais
ajustamentos: Fernando Paulo Baptista: Tributo à Madre Língua, Coimbra, Pé de
Página Editores, 2003, p. 53 e Nesta nossa doce Língua de Camões e de Aquilino, op.
cit., pp. 319-320.
132
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
contraditório e dialéctico horizonte que desponta a “Estrela d’Alva” da
Esperança e do Amor, inspiradoradoramente alumiante da Utopia >
Eutopia e da Poiese de uma Humanidade Melhor...
Assim, tendo motivadoramente presente na nossa memória
poético-cultural e alegorético-simbólica o vergiliano e humaníssimo
exemplo do «Pius Aeneas»254 e o camoniano épico-lírico e trágico
“episódio” da «mísera e mesquinha / que despois de ser morta foi
Rainha»255, cabe-nos reassumir, com serena e jubilosa esperança256, a
consciência eclesial e pastoral de que «... onde for necessário, segundo
as circunstâncias dos tempos e dos lugares, a Igreja pode e deve
suscitar obras destinadas ao serviço de todos, principalmente dos
pobres»257.
254
Nicholas Moseley, consagrado Professor da Yale University, apresenta o seguinte
registo, a propósito da marca identitária da “pietas” que caracteriza a dimensão
religiosa da “personalidade” de Eneias, no poema épico de que ele é o protagonista-
herói:
«... In the very beginning of his poem Vergil points out to us that the hero [Aeneas]
is bearing his Gods to Latium, that he is a man insignis pietate, who is nevertheless
harassed by the queen of the gods. (...) Moreover in the course of the twelve books of
the Aeneid Vergil applies to Aeneas the epithet pius fifteen times in the narrative, has
the other characters refer to him as pius, pietate insignis or some equivalent expression
eight times, and finally has Aeneas speak of himelf twice as pius. So it is evident that
the poet meant to impress the reader with this side of his hero’s character».
(Cf. Nicholas Moseley no seu famoso artigo intitulado “Pius Aeneas”, apud The
Classical Journal, vol. 20, nº. 7, Abril de 1925, p. 387).
255
O celebérrimo e sempre emocionante e incomparável “episódio” lírico-amoroso de
Inês de Castro; reler Camões: Lus., III, 118 (segundo uma versão fac-similada da
edição princeps de 1572 [p. 118], prefaciada pelo Prof. Doutor Vítor Aguiar e Silva):
«Passada esta tão próspera vitoria,
Tornado Afonso à Lusitana terra,
A se lograr da paz com tanta glória
Quanta soube ganhar na dura guerra,
O caso triste, e dino da memória,
Que do sepulcro os homens desenterra,
Aconteceu da mísera e mesquinha
Que despois de ser morta foi Rainha.»
256
Ver a Gaudium et Spes do Concílio Vaticano II, Coimbra, Gráfica de Coimbra,
1998, p. 230.
257
Concílio Vaticano II, Coimbra, Gráfica de Coimbra, 1998, p. 230. Para uma
perspectiva “enciclopaidêutica” da História da Cultura e dos vários ramos do Saber
133
Fernando Paulo do Carmo Baptista
Na verdade, «as excessivas desigualdades económicas e sociais,
entre os membros ou os povos da única família humana, causam
escândalo e são contrários à justiça social, à equidade, à dignidade da
pessoa humana e à paz social e internacional»258.
É por isso que o dedicado envolvimento na urgente “MISSÃO”
superadora de tão degradado e tão desumano “estado de coisas”259 deve
ter sempre no seu horizonte teleológico de concretização «A
INSTAURAÇÃO DA FRATERNIDADE UNIVERSAL»260, sempre em perfeita
sintonia com o “sentido identitário”, plasmado na incomparável
“oração” que é o “PAI NOSSO”:
NÓS, OS HUMANOS, locais e globais (incluindo os “filhos
pródigos” de toda a origem e condição...),
SOMOS FILHOS DE DEUS-PAI E IRMÃOS EM JESUS CRISTO!...
c) Conclusão
Considerando, em afectuosa e respeitosa sintonia com o Papa
Francisco261, que a Misericórdia é «a arquitrave que suporta a vida da
Igreja»;
Considerando que a Misericórdia é «a força que tudo vence,
enche o coração de amor e consola com o perdão»;
na Idade Média e, mais especificamente, do que já era, então, o estado da Economia
e da Sociedade e, no seu contexto, a “pobreza” (com a curiosa particularidade da
terminologia catalogadora dos “pauperi”: pauper famelicus, pauper pannosus,
pauper infirmus, pauper peregrinus, pauper verecundus, pauper Christi, pauper
abiectus... ver a p. 265), o modo organizativo da “caritas” e dos cuidados de saúde,
etc., considerar a iluminante e substanciosa obra organizada pelo saudoso e enorme
Umberto Eco: Idade Média: Bárbaros, Cristãos e Muçulmanos, versão em pdf apud:
Academia.edu (online).
258
Concílio Vaticano II, op. cit., p. 215.
259
Missão verdadeiramente dignificadora, parificadora [iso-poiésica] e teo-ascensiva
[teo-anabática] da “condição humana”...
260
Ibidem, p. 185.
261
Ver Papa Francisco: O nome de Deus é Misericórdia (versão portuguesa já citada),
pp. 126, 124, 103; considerar também, agora de modo englobante: Misericordiae
Vultus — Bula de Proclamação do Jubileu Extraordinário da Misericórdia, 11 de Abril
de 2015, apud: https://w2.vatican.va/content/francesco/pt.html
134
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
Considerando que a Misericórdia é «o acto último e supremo pelo
qual Deus vem ao nosso encontro; é a lei fundamental que mora no
coração de cada pessoa, quando vê com olhos sinceros o irmão que
encontra no caminho da Vida (...) — caminho que une Deus e o
Homem»;
Considerando tudo isto e bem conscientes da nossa efemeridade,
imperfeição e finitude existencial, partilhemos, como uma orientadora
“bússola” do nosso quotidiano, o seguinte pensamento (ainda ele de
Lucius Annaeus Seneca262...) tão carregado de lucífero e humaníssimo
encantamento: «... Iam istum spiritum expuemus. Interim, dum
trahimus, dum inter homines sumus, colamus humanitatem!...»263.
Passo a traduzir: «... Dentro em breve, exalaremos o último suspiro.
Mas enquanto nos arrastarmos, enquanto estivermos entre os
humanos, cultivemos a humanidade!...».
Finalmente, seguindo, uma vez mais, o avisado conselho do nosso
Frater-Pater Franciscus, «nunca nos devemos esquecer das seguintes
palavras de São João da Cruz»264:
«NO OCASO DA VIDA, SEREMOS JULGADOS SOBRE O AMOR!...»
Inspirados, portanto, pelo “Sopro” fecundante que paira por sobre
as águas desta memorante celebração centenária, vamos, «magno cum
jubilo» e animados de um fortíssimo sentido poiético e humanista,
ajudar a rasgar as amplas avenidas que hão-de conduzir a Humanidade
inteira à prometida e cantada «TERRA DA FRATERNIDADE» — DEMÉTER:
TERRA-MÃE, TERRA-DE-IRMÃOS... — e à inadiável e progressiva
instauração duma «ÉTICA DO AMOR COMUNITÁRIO», tal como a sonhou,
262
Retirado do seu De Ira, livro III, 5; correlacionar esta encantadora mensagem de
humanismo com o emblemático verso 77 do Acto I do Heautontimoroumenos, de
Terêncio: «Homo sum, humani nihil a me alienum puto» [«sou homem, nada do que
é humano me é alheio»] (cf., supra, nota 236).
263
Cf.: http://www.thelatinlibrary.com/sen/sen.ira3.shtml
264
Papa Francisco: O nome de Deus é Misericórdia, op. cit., p. 103.
135
Fernando Paulo do Carmo Baptista
por exemplo, Ernst Bloch265...
Ética «cordial e amorável», sem a qual — importa sublinhá-lo
bem!... —, não haverá, nem fraternidade, nem igualdade, nem
liberdade!...
Da minha parte e para finalizar, resta-me pedir-Vos que, à
maneira de um fraterno, frontal e mobilizador “manifesto órfico”, me
acompanheis na “ecuménica” proclamação, plasmada por Miguel
Torga no seu arrebatador poema intitulado “UNIVERSALIDADE”266:
«Aqui declaro que não tem fronteiras.
Filho da sua pátria e do seu povo,
A mensagem que traz é um grito novo,
Um metro de medir coisas inteiras.
Redonda e quente como um grande abraço
De pólo a pólo, a sua humanidade,
Tendo raízes e localidade,
É um sonho aberto que fugiu do laço.
Vento da primavera que semeia
Nas montanhas, nos campos e na areia
A mesma lúdica semente,
Se parasse de medo no caminho,
Também parava a vela do moinho
Que mói depois o pão de toda a gente.»
265
Só através da instauração duma ética de natureza «cordial» e «amorável» e de
dimensão verdadeiramente universal se poderá promover a eliminação de toda a
espécie de miséria e de servidão que vêm negando, humilhantemente, a humanitas da
pessoa humana, ou seja, a sua dignidade e sublimidade intranscendíveis. Cf. Francisco
Serra: História, política y derecho en Ernst Bloch, Madrid, Editorial Trotta, 1998, pp.
53, 161, 218.
266
Miguel Torga: Poesia Completa («Nihil Sibi»: poema «UNIVERSALIDADE»),
Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2000, p. 298.
136
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Para além da bibliografia citada nas notas de rodapé, considerar,
do campo da Dicionarística com preocupação etimológica,
muito especialmente as seguintes obras:
• BAILLY, A.: Dictionnaire Grec Français, Paris, Hachette, 1984.
• BARNHART, Robert K. (edit.): Chambers Dictionary of Etymology, Edinburg
/ New York, Chambers Harrap Publishers, 2001.
• CHANTRAINE, Pierre: Dictionnaire Étymologique de la Langue Grecque –
Histoire des Mots, Paris, Librairie C. Klincksieck, 1999.
• COROMINAS, Joan, con la colaboración de José Antonio Pascual:
Diccionário Crítico Etimológico Castelhano e Hispânica, Madrid, Gredos
Editorial, 6 vols, 1991.
• D’HAUTERIVE, R. Grandsaignes: Dictionnaire des Racines des Langues
Européennes, Paris, Librairie Larousse, 1994.
• ERNOUT, Alfred et Meillett, Antoine: Dictionnaire Etymologique de La
Langue Latine — Histoire des mots, Paris, Librairie C. Klincksieck, 1967.
• HARPER, Douglas: Online Etymology Dictionary
(http://www.etymonline.com)
• HOAD, T. F. (edit.): The Concise Oxford Dictionary of English Etymology,
Oxford, Oxford University Press, 2003.
• HOUAISS, Antônio, VILLAR, Salles e FRANCO, Mello (dir.): Dicionário
Houaiss da Língua Portuguesa, Lisboa, Temas & Debates, 2005.
• MALLORY, J. P. and ADAMS, D. Q.: The Oxford Introduction to Proto-Indo-
European and the Proto-Indo-European World, Oxford – New York, Oxford
University Press, 2009.
• MILLER, Gary: Latin Suffixal Derivatives in English and their Indo-
European Ancestry, Oxford / New York, Oxford University Press, 2006.
• POKORNY, Julius: Indogermanisches etymologisches Wörterbuch (IEW):
http://www.utexas.edu/cola/centers/lrc/ielex/PokornyMaster-R.html
• RENDICH, Franco: Dizionario etimológico comparato delle lingue classiche
indoeuropee, Roma, Palombi Editori, 2010.
• ROBERTS, Edward A. / Pastor, Bárbara: Diccionario etimológico
indoeuropeo de la lengua española, Madrid, Alianza Editorial, 1997.
• ROMIZI, Renato: Greco Antico – Vocabolario Greco Italiano Etimologico e
Ragionato, Bologna, Zanichelli, 2006.
• SEGURA, Santiago Munguía: Diccionario Etimológico de Medecina, Bilbao,
Universidad de Deusto, 2004.
137
Fernando Paulo do Carmo Baptista
• SEGURA, Santiago Munguía: Diccionario por raíces del latín y de las voces
derivadas, Bilbao, Universidad de Deusto, 2006.
• SEGURA, Santiago Munguía: Nuevo diccionario etimológico Latín – Español
y de las voces derivadas, Bilbao, Universidad de Deusto, 2001.
• WATKINS, Calvert: The American Heritage – Dictionary of Indo-European
2
Roots, Boston / New York, Houghton Mifllin Company, 2000.
138
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
4. A “CENTELHA” (‘SCINTILLA’) DE ZEUS
NA PALAVRA ‘TEORIA’(*)
(*) NOTA PRÉVIA: O presente ensaio resulta da reformulação de uma comunicação
apresentada no Colóquio sobre “O Trabalho da Teoria”, ocorrido na Universidade
dos Açores, em 15 e 16 de Novembro de 2007, em homenagem ao Prof. Doutor Vítor
Manuel de Aguiar e Silva. Cabe referir que a “divisa” desta Universidade, consignada
na versão dos seus primeiros Estatutos, era a seguinte: «Sicut aurora scientia lucet,
sicut aurora humanitates lucent, sicut aurora theoria lucet». Foi pena que o tão
expressivo e inspirador símile da “Aurora” tenha passado a confinar-se à «theoria»:
«Sicut Aurora Theoria Lucet» (cf. http://novoportal.uac.pt/).
Pensando sobretudo nos Estudantes, seja-me permitido chamar a atenção para o
específico interesse de que se poderão revestir as sistemáticas notas de rodapé, a nível
lexicológico, metalínguístico, metaconceptual, cultural e pedagógico, para além dos
registos multidisciplinares e mesmo interdisciplinares, dos efeitos estereofónicos e
das ressonâncias polifónicas de natureza informativa diversa de que um texto é feito...
139
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
— PARA UMA FUNDAMENTAÇÃO DE BASE
FILOLÓGICA267, ANTROPOLÓGICO-CULTURAL
E FILOSÓFICO-EPISTEMOLÓGICA
DO CONCEITO DE “TEORIA” —
«Sapientis oculi in capite eius.»
(Ecclesiastes: 2, 14),
«Nós somos a “luz” que vê a luz que vemos.»
(Fernando Paulo Baptista)
267
A opção aqui recorrentemente assumida pelo estudo analítico (feito por imperativa
necessidade de fundamentação, dilucidação e rigor conceptual e hermenêutico...) de
raízes constitutivas de lexemas nucleares que integram o léxico da nossa língua (plano
da langue) e o nosso vocabulário concreto de intervenientes activos (plano da parole)
nos mais elaborados processos de comunicação e de semiose linguística, literária,
científica, filosófica, cultural e artística em geral decorre da consciência de duas
fundamentais ordens de razões:
a) por um lado, o reconhecimento provado e comprovado de que os
lexemas/vocábulos dotados de maior potencial significante, interpretante (recepção
interpretativo-compreensiva, hermenêutica e estésica [a‡syhsiw (aisthesis)]: escuta
e leitura) e sofo-poiésico-expressante (emissão produtora e criativa: fala e escrita mais
ou menos elaboradas e, sobretudo, qualitativamente enquadráveis nos modos e nos
padrões próprios da arte poético-literária [po€hsiw: poiesis]), da ciência e da
sabedoria, são dominantemente de matriz indo-europeia e, mais directamente, de
proveniência e conformação greco-latina;
b) pelo outro lado, o insuperado facto de a capacidade da palavra não ter ainda
uma verdadeira alternativa antrópica para tudo quanto seja a imaginação e a
criatividade sapiencial e artística, o engendramento, a construção e a formalização dos
diversos conteúdos de «rêverie», paixão, vivência, memória, experiência,
experimentação e aprendizagem humana integrada (afectiva, relacional,
comunicacional, cognitiva e metacognitiva...), a ideação, visionamento, visualização,
projecção e conceptualização rigorosa em todas as áreas do conhecimento e da
investigação científica, em suma, a arquitectónica e a orgânica dos saberes, bem como
a sua modelação e orquestração sistematizadora em discurso, com as específicas
estratégias subjacentes aos diferentes actos, modos e planos de enunciação e
textualização... Por tudo isso, se pergunta: não deverá ser esse o ciclópico e
morfogénico labor da palavra (aos níveis atómico, sub-atómico, molecular e
tecidular), a ser conduzido em simbiótica interacção com o exigente, rigoroso e
iluminante trabalho da teoria?... Será possível uma teorização rigorosa explícita, fora
do rigor explicitante da palavra?...
141
Fernando Paulo do Carmo Baptista
Se pensarmos bem, não será difícil chegar à conclusão de que é
a ideia de “luz”268, com o seu inconfundível e transcendental
268
O verbo latino luceo, -es, -ere apresenta como sua constitutiva base morfológica a
raiz indo-europeia — leuk- / luk- / louk- —, presente no substantivo «luz» [< do latim:
luce(m)] e cujo “adn semântico” remete (quer por via literal, quer por via tropológica)
para as ideias de «luz», «brilho», «esplendor», «clareza», «visibilidade»,
«inteligibilidade»... Esta lexicogenicamente fecundíssima raiz está na origem de um
vasto conjunto de lexemas (ver a entrada «lu(c)-» no Dicionário Houaiss da Língua
Portuguesa) que integram o léxicon ou léxico (repertório ou inventário total das
palavras...) de diferentes línguas europeias. Assim, por exemplo, EM ALEMÃO
ACTUAL: licht, lichten, lichtung, leuchte, leuchten; EM VELHO ALTO ALEMÃO: lioht,
liuhten; EM GERMÂNICO ANTIGO: *leukhtam, *linkhtijan; EM GÓTICO: liuhtjan, leihts);
EM VELHO FRISÃO: liacht; EM INGLÊS: light (proveniente do «old english»: lehot >
leht), lighten (proveniente do «old english»: lihtan), limn, limnen, lumen, luminary,
luminous; illuminate, phillumenist; EM IRLANDÊS ANTIGO: loche, luchair; EM VELHO
SAXÃO: lioth; EM GALÊS: llug (= brilho); EM SUECO: lätt; EM LITUANO: laukas (=
pálido, sem brilho); EM ARMÊNIO: lois, lusin (= lua); EM HITITA: lukezi; EM SÂNSCRITO:
lócate, «olhar» (cf. Robert K. Barnhart [ed.]: Chambers Dictionary of Etymology,
Edinburgh, Chambers Harrap Publishers, 2001, entrada «light1»); EM GREGO (cf.
Pierre Chantraine: Dictionnaire étymologique de la langue grecque: histoire des mots,
Paris, Klincksieck, 1999 e Anatole Bailly: Dictionnaire Grec Français, Paris,
Hachette, 1984, nas entradas respectivas: leukÒw, -Æ, -Òn (= brilhante, branco; deste
adjectivo leukÒw, são oriundas, entre tantas outras, leucemia, leucócito, leucoma...),
leÊssv (= ver, contemplar); luxn€w, -€dow (= pedra preciosa que brilha na escuridão),
luxne›on (= lâmpada, candeeiro), luxn€a (= candeeiro), lÊxnow (= lâmpada); dois
lexemas que suscitam reservas quanto a esta sua radicação etimológica: lÊkow (=
lobo; lat: lupus) e lÊgj (= lince, lobo-cerval, gato-bravo, felídeo dotado de um olhar
invulgarmente penetrante e vivo; de onde, a expressão: «ter olhos de línce»; é de notar
que os animais em referência têm como característica comum, para além da
rapacidade, o olhar «fosforescente» e penetrante, próprio de uma habituação
sistemática à escuridão da noite e dos covis...); EM LATIM: alluceo, allucinatio,
diluceo, diluculum, eluceo, elucubro, illuceo, lucens, luceo, lucerna, lucernarium,
lucesco, lucidus, lucifer, lucifugus, Lucinia, lucubratio, lucubro, luculentus, luculus,
lucus, lumen, luna, lux, perluceo, praeluceo, reluceo, transluceo, translucidus...(cf.
Santiago Segura Munguía: Nuevo diccionario etimológico Latín – Español y de las
voces derivadas, Bilbao, Universidad de Deusto, 2001, entrada «lux»); EM
PORTUGUÊS (com evidente isomorfia, relativamente aos correspondentes lexemas da
generalidade das línguas românicas e, mesmo, das não românicas): alucinante,
alucinar, alucinatório, alucinogénio, alumiar, deslumbramento, deslumbrar,
dilucidar, dilucular, dilúculo, elucidar, elucidário, elucubrar, filumenismo,
iluminado, iluminar, iluminismo, ilustrar, ilustre, lua, luar, luarento, lucarna,
lucente, lucerna, lucidez, lúcido, Lúcifer, luciferino, lucífero, lucilante, lucilar,
lucina, lucubração, lucubrar, luculento, lume, lúmen, luminar, luminária,
luminescência, luminosidade, luminoso, luminotecnia, luna, lunação, lunar, lunático,
142
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
simbolismo, que aparece a inspirar e a iluminar o destino, o desígnio e
o horizonte académico e social de uma instituição com a razão de ser, a
natureza e a teleologia de uma Universidade, ou seja, de que é a ideia
de “luz” que alimenta o sonho e faz mover a vida e a globalidade da sua
missão arquitectora, estruturante e dinamizadora ao nível da
investigação, da criação, da comunicação e da divulgação do
conhecimento, da ciência, do saber, da cultura, da arte e da acção
pedagógica e formadora, tanto na tendencialmente mais cartesiana e
mais metrológica, mais descritivo-explicativa, mais experimental, mais
experiencial e mais aplicativa, mais material, mais tecnúrgica269 e mais
operativa área das Ciências, das Tecnologias e da Tecnociência, como
na propensivamente mais fundadora, mais modeladora, mais
paidêutica, mais sófica, mais imaterial, mais pascaliana e mais
aisthésico-poiésica270 área das Humanidades, das Belas Letras e das
Belas Artes...
Foi, pois, sob o signo da “luz”, que se concebeu, implantou e
radicou tão vasto, tão decisivo e tão magno “Projecto Investigativo e
Formativo”, protagonizado por uma Academia Universitária: luz
auroral da vitalidade energética e procriadora, da alegria e da esperança
que tudo possibilita, ou não fosse a Aurora271 «a mais bela de todas as
belezas» [Rig-Veda: I, 113], «pulchra ut luna, electa ut sol» [Bíblia:
Cântico dos Cânticos: VI, 9; Provérbios: 4, Ben Sira: 24, 32, 47]!...
Mas também luz merídia da luminosidade irradiante, alumiante
e elucidante, da plenitude clarificadora e coalescente, da sof€a
[sophia] e da svfrosÊnh [sofrosyne] superadora, prudencial, sensata,
luneta, lustral, lustre, lustro, luz, luzeiro, luzerna, luzidio, luzilume, luzir, reluzir,
sublunar, translúcido...
269
Digo tecnúrgica(o), tecnurgia ou tecnurgo, do mesmo modo que se diz cirurgia,
cirúrgico e cirurgo (ou também quirurgo), demiurgia, demiúrgico e demiurgo,
dramaturgia, dramatúrgico e dramaturgo, liturgia, litúrgico e liturgo, metalurgia,
metalúrgico e metalurgo, taumaturgia, taumatúrgico e taumaturgo, siderurgia,
siderúrgico e siderurgo, teurgia, teúrgico e teurgo...
270
De a‡syhsiw [aisthesis] e po€hsiw [poiesis]: faculdade da sensibilidade inteligente
(sensibilidade, em geral, e sensibilidade artística, em especial) e criatividade
(criatividade artística, em geral, e criatividade poético-literária, em particular).
271
Filha do Céu, Deusa da luz primigénia, Deusa do sorriso... Cf. J.P. Mallory and
D.Q. Adams: The Oxford Introduction to Proto-Indo-European and the Proto-Indo-
European World, Oxford, Oxford University Press, 2009, p. 409: Aurōra em latim;
Aušrine em lituano; Ἕως em grego; Uṣás em sânscrito...
143
Fernando Paulo do Carmo Baptista
vertical e transparente e da fecundação seminal, almante,
hominescente272, metamorfósica e cosmogónica...
Porque a verdade é esta: sem luz, andaríamos todos às escuras,
sejam quais forem os sentidos (literais ou tropológicos...) em que a
“escuridão” possa ser pensada... Lá diz, bem certeira, a sabedoria do
nosso Povo: quem não sabe é como quem não vê!... Mas, se não sabe e
não vê... é, seguramente, porque lhe falta a luz...
A “CENTELHA” [‘SCINTILLA’] DE ZEUS...
No seu conhecido ensaio intitulado «Elogio da Teoria»273,
Hans-Georg Gadamer, no contexto do “andamento” discursivo em que
protrepticamente274 evoca os específicos contributos reflexivos de
272
Sobre o termo e o conceito de “hominescência”, ver Michel Serres: Hominescence:
Paris, Le Pommier, 2001 (também disponível na tradução portuguesa das Edições
Piaget [Michel Serres: Hominescência, Lisboa, Edições Piaget, 2004, pp. 20-23]) e
Fernando Paulo Baptista: Polifonia, Poiese & Antropopoiese — Para uma Sinfónica
do Humano, Lisboa, Edições Piaget, 2006, pp. 63-64.
273
Cf. Hans-Georg Gadamer: Elogio da Teoria, Lisboa, Edições 70, 2001, pp. 23 ss.
Mas Gadamer não se limita a evocar o legado reflexivo plasmado por Platão e por
Aristóteles nos respectivos discursos em torno do tema da “teoria”: assume a sua
identificação com a posição de fundo, com a posição essencial, por eles expressa:
«Defendo a opinião de que a teoria, a atitude teórica, é também um comportamento
fundamental do homem» (p. 66). E, de seguida, transforma essa opinião em “tese”:
«Eis a minha tese: a teoria é um datum antropológico tão originário como o
comportamento de poder prático e político» (...) «é uma possibilidade humana
fundamental», sendo importante estabelecer um equilíbrio estável entre estas «duas
forças do homem».
274
Advérbio derivado do adjectivo protréptico, por sua vez, proveniente do grego
protreptikÒw, -Æ, -Òn (< prÒ [= para a frente e em favor de] + tr°ptv [= dirigir,
direccionar, voltar, virar, fazer evoluir em determinado sentido, transformar..., sendo
de salientar que este verbo tem a mesma raiz — trep- / trop- — que está presente em
lexemas como trópico, tropo, tropismo, troféu, raiz detentora do mesmo “adn
semântico” que transporta em si as ideias de «movimento direccionado», «mudança»,
«revolução»...]), com o significado de «ser capaz de levar por diante, de arrastar
consigo, de mobilizar» e, portanto, «ser persuasivo, exortativo, mobilizador». Não é
outro o sentido do ProtreptikÒw, de Aristóteles, obra de inspiração platónica
(Eutidemo) em favor da vida contemplativa (yevr€a), como fundamento da
governação política e como condição da verdadeira felicidade e em favor da
144
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
Sócrates, Platão e Aristóteles sobre o tema, diz-nos, por um lado, que,
no seu mais íntimo fundamento, o homem é um «ser teórico» e, pelo
outro, que é ao nível da «pura teoria» que se situa a expressão mais
elevada da sua felicidade, ao passo que os empíricos e os pragmáticos
vivem num mundo de sombras, em natural conformidade, portanto, com
a sua condição de subterrâneos e agrilhoados habitantes da caverna...
E é essa, a meu ver, a fundamental “lição” que ressalta da
famosa alegoria platoniana (cf. Platão: A República, VII, 514a ss275...):
o caminho para a mais alta inteligibilidade de tudo é o caminho da luz,
ou seja, o caminho das clareiras abertas pelo fulgor da “teoria”.
Afigura-se-me, em razão disso, para mais num ensaio que, no fundo, se
propõe uma reflexão demonstrativa da importância da teoria no Ensino
Superior, ser pertinente questionar: que relação é que existirá entre a
ideia de “TEORIA” e a ideia de “LUZ”?... Ou talvez melhor dito: entre
as ideias de “LUZ”, de “TEORIA” e de “INTELECÇÃO /
INTELIGIBILIDADE”?...
Tendo em vista a fundamentação de uma resposta clarificadora,
cumpre, desde já, sublinhar que a ideia de “teoria” (em grego: α
[theoria]) mantém estreitas conexões culturais e directas implicações
de natureza semântica (onde avulta inequivocamente uma forte relação
contiguitária ou metonímica...) com as ideias de “divindade” e de
“luz”276, sabendo-se como se sabe (por exemplo, através da palavra
autorizada do nosso Luís de Camões, em amplificante e odisseica
valorização e dignificação (por influência de Isócrates) de uma retórica filosófica
(anti-sofística); ou, então, o ProtreptikÒw prÚw ÜEllenaw [Exortação aos Gregos],
de Clemente de Alexandria (nome por que se celebrizou Tito Flávio Clemente,
nascido, em Atenas, por volta de 150 e falecido em 215), primeiro doutor da Igreja e
um dos mais famosos apologistas da doutrina cristã.
275
Cf. Platão: A República, VII, 514a ss, na tradução de Maria Helena da Rocha
Pereira, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 92001, pp. 315 ss.
276
YeÒw (ZeÊw [< Zeus < *dyew+s], Juppiter [< *dyews + piter < dyews + pater],
deus, diva, devah (= deus(a), em sânscrito), dies [< *dyew+es / diyew+es]), yeÒw (=
deus, criador e senhor da luz); ZeÊw (= Zeus, criador e senhor da luz); Juppiter (= deus
pai, criador e senhor da luz); dies (= dia, a fase luminosa do dia solar, por oposição à
noite); fãow, fãeow > fãouw // > f«w, fvtÒw (= a luz cósmica), lexemas da mesma
família do verbo fa€nv (= fazer brilhar, fazer ver, tornar visível, fazer (a)parecer).
145
Fernando Paulo do Carmo Baptista
convergência com Homero277...) que os habitantes do «Olimpo278
luminoso», «os eternos moradores do luzente, estelífero pólo e claro
assento»... são «deuses».
Por outro lado, dos estudos de especialidade levados a cabo no
âmbito do indo-europeu e projectados e sintetizados nas “entradas”
respectivas dos mais credenciados dicionários (etimológicos e outros)
da língua grega, da língua latina e do próprio sânscrito279, é-nos dado
277
Cf. Camões: Os Lusíadas, I, 20-24; cf., igualmente, Homero: Odisseia, VI, 41-47,
na tradução de Frederico Lourenço, Lisboa, Livros Cotovia, 2003, p. 107: «Assim
falando, partiu Atena, a deusa de olhos garços, em direcção ao Olimpo, onde dizem
ficar a morada eterna dos deuses: não é abalada pelos ventos, nem molhada pela
chuva, nem sobre ela cai neve. Mas o ar estende-se límpido, sem nuvens; por cima
paira uma luminosa brancura. Aí se aprazem os deuses bem-aventurados, dia após
dia» (os itálicos são meus).
278
Embora sob reserva, face ao geral silêncio dos etimologistas, não me parece
desprovida de sentido nem morfologicamente desconforme a conjectura, por mim
aqui avançada, de que o nome próprio «Olimpo» (em grego: λ ο ) se tenha
formado com base na raiz lymp- / lamp-, com a prótese do o- inicial e o sufixo nominal
-os [Olimpo < o + lymp- + -os], tal como acontece com o substantivo νο α, -α ο ,
[> o + noma, -atos], homólogo do substantivo latino nomen, -minis, do sânscrito
nama, do gótico namo e do inglês name (entre outras línguas) que, como se vê, não
apresentam qualquer prótese], sendo que o seu “adn semântico” remeteria, então, para
as ideias de «luz», «fogo», «brilho», «fulgor», «transparência», «translucidez»; esta
raiz seria, assim, aquela mesma raiz que está presente em lexemas como linfa (<
lympha [com a variante poética: nympha] / lumpa: água pura e translúcida, água
límpida), limpar, limpidez, límpido, limpo... (variante lymp- / lump- da raiz), alampar,
alampado, eclampsia, lampa, lâmpada, lampadário, (re)lampejar, lampejo, lampião,
lampirídeo, lampiro, lampo, lanterna (< lampterna), pirilampo, relâmpado /
relâmpago... (variante lamp- da raiz), lexemas, todos eles, atravessados pelos traços
semânticos (literais, metafóricos, metonímicos, simbólicos...) que remetem para as
ideias de «luz» e de «brilho», acabadas de referir...
279
Considerar, nomeadamente, nas entradas respectivas: Alfred Ernout / Antoine
Meillet: Dictionnaire étymologique de la langue latine: histoire des mots, Paris,
Klincksieck, 42001; Pierre Chantraine: Dictionnaire étymologique de la langue
grecque: histoire des mots, Paris, Klincksieck, 1999; Robert Grandsaignes d’
Hauterive: Dictionnaire des racines des langues européennes, Paris, Larousse, 1994
(ed. facs.); Edward A. Roberts e Bárbara Pastor: Diccionario etimológico
indoeuropeo de la lengua española, Madrid, Alianza Editorial, 1997; Julius Pokorny:
Indogermanisches Etymologisches Wörterbuch, 2 vols., Tübingen, Francke A.
Verlag, 2005; Joan Corominas e José A. Pascoal: Diccionario Crítico Etimológico
Castellano e Hispánico, Madrid, Editorial Gredos, 1991-1997, 5 vols; José Maria
Quintana Cabanas: Raíces Griegas del Léxico Castellano, Científico y Médico,
Madrid, Editorial DYKINSON, 2006; Gianluca Bocchi e Mauro Ceruti (a cura di): Le
146
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
saber que os nomes Zeus, Júpiter e Deus têm inscrito na sua raiz —
*dyew- / diw- / dyu-/ deyw-o-280 — o mesmo “adn semântico” presente
na raiz da palavra dies, diei (o dia, a luz solar, o céu luminoso), a
convocar, em constitutiva identidade, ideias como as de luz, brilho,
luminosidade, claridade e, por via tropológica, as de lucidez, clareza,
clarificação, esclarecimento, inteligibilidade281...
radici prime dell’Europa. Gli intrecci genetici, linguistici, storici, Milano, Bruno
Mondadori, 2001; de Émile Benveniste: Le vocabulaire des institutions indo-
européennes (vols. 1 e 2), Paris, Les Éditions de Minuit, 1969; Origines de la
formation des noms en indo-européen, Paris, Éditions Adrien Maisonneuve, 1984;
Francisco Villar: Los Indoeuropeos y los Orígenes de Europa — Lenguaje e Historia,
Madrid, Gredos, 21996; Philip Baldi: The Foundations of Latin, Berlin / New York,
Mouton de Gruyter, 2002; A. Meillet et J. Vendryes: Traité de Grammaire Comparée
des Langues Classiques, Paris, Librairie Ancienne Honoré Champion, 31963; Andrew
L. Sihler: New Comparative Grammar of Greek and Latin, New York / Oxford,
Oxford University Press, 1995; J.P. Mallory and D.Q. Adams: The Oxford
Introduction to Proto-Indo-European and the Proto-Indo-European World, Oxford,
Oxford University Press, 2009, pp. 124, 129, 300, 301, 303, 305, 408-409, 427, 428.
http://www.utexas.edu/cola/centers/lrc/index.html.
280
Cf. J.P. Mallory and D.Q. Adams: The Oxford Introduction to Proto-Indo-
European and the Proto-Indo-European World, op. cit., pp. 124, 129, 300, 301, 303,
305, 408, 427, 428; Andrew L. Sihler, op. cit., pp. 337-339, §§ 325-339; A. Meillet et
J. Vendryes, op. cit., pp. 485-486, §729; Alfred Ernout / Antoine Meillet, op. cit., na
entrada «dies».
281
Daí, a radicação na palavra e na ideia de «luz», de um movimento como o do
«Iluminismo», também dito «Época das Luzes» ou da «Ilustração» ou, como se diz
em inglês, «Age of Enlightenment» [lit.: idade do esclarecimento ou da iluminação;
«século das luzes»] ou, em alemão, «Zeitalter der Aufklärung» que, à letra, significa
«tempo, idade ou era do esclarecimento», ou seja, a época em que, como é sabido,
todo o dinamismo do pensamento e da cultura está nuclearmente marcado pelo
“espírito geométrico”, pela fusão de intelectualismo e empirismo, pelo rigor do
método e o sentido da experiência e da experimentação, em suma, pela afirmação
optimista, universalista, libertadora, harmonizadora, explicativa, legitimante e
reguladora da dimensão da racionalidade (que é o Sol que, com a sua coroa de raios
luminosos, dissipa, progressiva e superadoramente, o negrume de todas as nuvens e a
escuridão de todas as trevas: o erro, a ignorância, a estupidez, a má-fé...), tanto no
mundo da natureza como no mundo do homem, tal como transparece do próprio título
daquela que é seguramente a mais emblemática obra dessa época: a Crítica da Razão
Pura, de Immanuel Kant. Para uma perspectiva mais desenvolvida do que o breve
registo aqui consignado, ver, de Manuel Antunes, o importante artigo «Iluminismo»,
in Enciclopédia Verbo Luso-Brasileira de Cultura, Edição Século XXI, Lisboa / São
Paulo, Editorial Verbo, 2000, volume 15, na entrada respectiva, pp. 482-492; ver
também, de Michael C. Carhart, o artigo «Enlightenment», apud Maryanne Cline
147
Fernando Paulo do Carmo Baptista
Não é, pois, sem fundamento o facto de as narrativas da
Mitologia282 atribuírem a Zeus e a Júpiter283 os epítetos, entre outros, de
«deuses da luz e do céu luminoso», «senhores do raio e do trovão»,
«seres imortais e supremos que governam o céu estrelado», em
flagrante contraposição com a condição dos humanos, dos homines284,
dos humiles (porque nascidos da terra, do húmus...), ou seja, dos mortais
de barro adâmico que se arrastam, enceguecidos285, na cerrada e
labiríntica escuridão da embrutecedora e fatídica caverna...
Melhor se entenderá, assim, a relevância do significado de
contemplatio que acabou por se conferir, com Platão, à palavra α
[theoria], a remeter, portanto, para o ideal de uma vida direccionada
para a contemplação do “Bem” e do “Belo”286 (valores cimeiros da
Horowitz (ed.): New Dictionary of the History of Ideas, Thomson Gale, New York –
London, 2005, volume 2, na entrada respectiva, pp. 673-676.
282
Ver, por todos, Pierre Grimal: Dicionário de Mitologia Grega e Romana, Lisboa,
Difel, 1992.
283
Em grego: α ; em latim: J p ter (< Dj + P ter); em ilírico: Dei-
Pátrous; em sânscrito: Dyáus Pit (cf. J.P. Mallory and D.Q. Adams: op. cit., p. 409
e Andrew L. Sihler: ibidem, 339, § 327).
284
Cf. Alfred Ernout / Antoine Meillet: op. cit. (ver, supra, nota 12), na entrada
«homo, -inis».
285
Estado que não deixa de convocar, aqui, «a epidemia geral de cegueira branca» a
que alude o comissário de polícia em o Ensaio sobre a Lucidez (cf. José Saramago:
Ensaio sobre a Lucidez, Lisboa, Editorial Caminho, 2004, p. 186) e, mais
desenvolvidamente, a mensagem de fundo do Ensaio sobre a Cegueira (cf. José
Saramago: Ensaio sobre a Cegueira, Lisboa, Editorial Caminho, 1995), mediada pela
mulher do médico: «... o mundo está cheio de cegos vivos (...) E agora morreremos
também porque estamos cegos, quero dizer, morreremos de cegueira e de cancro, de
cegueira e de tuberculose, de cegueira e de sida, de cegueira e de enfarte, as doenças
poderão ser diferentes de pessoa para pessoa, mas o que verdadeiramente agora nos
está a matar é a cegueira, Não somos imortais, não podemos escapar à morte, mas
ao menos devíamos não ser cegos, [p. 282]...» (...) «cegos estamos nós todos» [p. 306]
(...) «Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que,
vendo, não vêem. [p. 310]».
286
Cf. Platão: A República (540a-c), na edição e na tradução já citadas (ver, supra,
nota 8): «Quando tiverem cinquenta anos, os que sobreviverem e se tiverem
evidenciado, em tudo e de toda a maneira, no trabalho e na ciência, deverão ser já
levados até ao limite, e forçados a inclinar a luz radiosa da alma para a contemplação
do ser que dá luz a todas as coisas [genomen«n d¢ penthkontout«n toËw
diasv ntaw ka riste santaw pãnta pãnt n rgoiw t ka pistÆmaiw prÚw
t°low dh ékt°on, ka‹ énagkãsteon énakl€nantaw tØn t w cux w aÈgØn e w aÈtÚ
épobl°cai tÚ pçsi f«w par°xon]. Depois de terem visto o bem em si, usá-lo-ão
148
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
escala axiológica287, consonantes com a essência do divino...) como
inderrogável condição do próprio acesso e ascenso à verdadeira ο α
[sophia]288, ou para a postura de quem observa, examina e questiona, de
como paradigma, para ordenar a cidade, os particulares e a si mesmos, cada um por
sua vez, para o resto da vida, mas consagrando a maior parte dela à filosofia; porém,
quando chegar a vez deles, aguentarão os embates da política, e cada um deles
assumirá a chefia do governo, por amor à cidade, fazendo assim, não porque é bonito,
mas porque é necessário. Depois de teram ensinado continuamente outros assim,
para serem como eles, e de os terem deixado como guardiões da cidade, na vez deles,
retirar-se-ão para habitar nas Ilhas dos Bem-Aventurados. A cidade erigir-lhes-á
monumentos e [ofertar-lhes-á] sacrifícios públicos, na qualidade de divindades, se a
Pítia o autorizar; caso contrário, [na qualidade de] bem-aventurados e divinos». Cf.
ainda: Teeteto (173c-175d) e Simpósio (210b-212a). De notar, no excerto acabado de
reproduzir intencionalmente em língua grega, a presença dos dois substantivos que
exprimem a ideia de luz: aÈgÆ [= luz brilhante, luz que permite ver bem; da mesma
família do verbo aÈgãzv = iluminar, ver claramente] (tØn t w cux w aÈgØn) e f«w
[= a luz cósmica que vem da esfera da divindade] (e w aÈtÚ épobl°cai tÚ pçsi f«w
par°xon). Para uma perspectiva articuladora, já «clássica», dos valores do Bem, da
Verdade e do Belo com as dimensões do humano e do divino, ver o sempre «actual»
Werner Jaeger: Paideia: los ideales de la cultura griega, México – Buenos Aires,
Fondo de Cultura Económica, 21962, libro tercero: «En busca del centro divino», pp.
371-778; considerar, também, Jacques Brunschwig e Geoffrey Lloyd (dir.): El saber
griego — Diccionario crítico (com um prefácio de Michel Serres), Madrid, Akal
Ediciones, 2000; Maria Helena da Rocha Pereira: Estudos de História da Cultura
Clássica — I volume / Cultura Grega, Lisboa, Fundação Calouste Gulkbenkian,
8
1998; Idem: Hélade — Antologia da Cultura Grega, Coimbra, Instituto de Estudos
Clássicos, 1998; José Ribeiro Ferreira: Polis — Antologia de Textos Gregos, Coimbra,
Livraria Minerva, 1994; Giorgio Colli: La sabiduría griega, Madrid, Editorial Trotta,
2
1998; Alberto Bernabé (ed.): Hieros logos — Poesía órfica sobre los dioses, el alma
y el más allá, Madrid, Akal / Clásica, 2003; Frederico Lourenço: Grécia Revisitada,
Lisboa, Livros Cotovia, 2004; Jean-Pierre Vernant y otros: El Hombre Griego,
Madrid, Alianza Editorial, 2000; Francisco de Oliveira e outros (coords.): Mar Greco-
Latino, Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2006; para as questões de
natureza conceptual e terminológica: André Lalande: Vocabulaire Tecnique et
Critique de la Philosophie, Paris, PUF, 101968; Nicola Abbagnano e Giovanni
Fornero: Dizionario di Filosofia, Torino, UTET, 1998; Robert Audi (ed.):
Diccionario de Filosofía, Madrid, Ediciones Akal, 2004.
287
A sugerir aqui, também, a «pirâmide axiológica», tal como a enuncia Manuel
Ferreira Patrício no seu belo ensaio «A escola cultural: uma escola promotora dos
valores» apud: http://www.aepec.pt/apresenta.htm
288
Não é, pois, arbitrariamente que Aristóteles (Ética a Nicómaco: X, 1177a-b),
criticando muito embora a teoria platónica do Bem (cf. Ética a Nicómaco: I, 1096a-
1097), considera a «teoria» como sendo «a mais alta virtude».
149
Fernando Paulo do Carmo Baptista
modo absorto e espantado, a cintilação e a configuração constelada das
estrelas, na curiosa e empenhada expectativa de tentar captar e decifrar
os sinais, de interpretar e compreender (ou mesmo “adivinhar”289...),
para além deles, o mistério do movimento dos astros e outros enigmas
ou augúrios provenientes das regiões habitadas pelos deuses...
Melhor se entenderá, também, o seu reenvio para a atitude de
encantamento, fruição e atencioso respeito, a ser assumida por um
protagonista, emissário observador-espectador (sublinho: observador-
290
espectador), de nome [theoros], no contexto de uma viagem
289
Derivado de ad+divinare que, por sua vez, se formou do nome divinus; o adivinho
(ad+divinus) é aquele ser humano que, porque neles acredita e neles confia, se dirige
(ad-) aos deuses (aos seres divinos, aos omniscientes senhores da luz...) para neles se
inspirarem e, desse modo, pressagiarem e predizerem o que pode vir a acontecer... E
não será esta «adivinhação» do que se desconhece relativamente ao futuro e ao
passado, sobretudo ao passado distante, o énãlogon [analogon] ou simétrico da
capacidade preditiva e retroditiva de uma verdadeira teoria científica?... Cf. Vítor
Manuel de Aguiar e Silva: Competência Linguística e Competência Literária,
Coimbra, Almedina, 1977, p. 31.
290
A estrutura morfológica do lexema yevrÒw é constituída pela combinatória de y°a
+ *sWorow, em que y°a é um nome feminino com o significado de «lugar onde há
luz, onde há condições de visibilidade e, portanto, de onde se pode observar, de onde
se pode contemplar» (exs.: uma praça, ágora ou fórum, para cerimónias públicas; um
templo, para a auscultação dos oráculos ou outras celebrações religiosas; um
anfiteatro ou auditório, para um espectáculo literário, teatral ou musical; um estádio,
para um evento desportivo...). À família do substantivo y°a pertencem lexemas como:
yeãomai (= comtemplar, examinar, participar num espectáculo como espectador...),
y°asiw (= contemplação) y°atron (= teatro, lugar onde se observa, contemplando e
fruindo, um espectáculo dramático); obs.: não é de excluir a hipótese de uma
interferência (“contaminação”) semântico-cultural do sema da «luz» inscrito na raiz
de y°a (= deusa, divindade, feminino de yeÒw) no significado do seu homónimo y°a
(= lugar, como vimos, de onde se pode observar, de onde se pode contemplar),
porquanto, por um lado, os deuses (senhores da luz), para mais numa sociedade
politeísta, estão presentes em tudo e, pelo outro, sem a luz (real ou simbólica, externa
ou interna...) não é possível a observação, a contemplação... Por sua vez, *sWorow é
um constituinte nominal pertencente à família do verbo rãv (= olhar, lançar os
olhos, prestar atenção, observar, cuidar de, indagar, procurar...), da mesma família
lexical dos nomes ˜rasiw (= o sentido da vista, visão) e ˜rama (aquilo que se vê,
espectáculo...), entre vários outros, e cuja raiz está na origem de palavras portuguesas
como: alporama, ciclorama, cosmorama, diaporama, panorama, piloro (pulvrÒw <
pÊlh [= porta, entrada, abertura, fenda] + rãv [= ver, vigiar, guardar]; o piloro é,
literalmente falando, uma pequena entrada, fenda ou porta, que estabelece a ligação
entre o estômago e o duodeno: funciona, assim, como uma espécie de «porteiro» ou
150
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
ou missão de natureza diplomático-protocolar, de uma celebração
religiosa, de uma solenidade pública ou de uma competição desportiva
ou espectáculo artístico...
Mas as verdadeiras posturas presenciais e observacionais dos
ο [theoroi], os autênticos actos contemplativos da α
[theoria] (perspectivados por Aristóteles, em dialéctico contraponto
«guardião da porta»)... De notar, todavia, que a raiz constitutiva do verbo rãv
( s or-) apresenta, como se vê, o grau forte («grau o») da raiz indo-europeia s(w)er-
/ s(w)or- [com variantes diacrónicas e fono-morfológicas diversas: swar- / war- /
wahr- / wehr- / ver- / guar- / gar- ], raiz cujo “adn semântico” remete para as ideias
de «observar», «ver atentamente», «respeitar», «guardar», «resguardar», «preservar»
e que está presente no léxico de diferentes línguas de matriz indo-europeia.
Exemplificando, por amostragem: EM GREGO e directamente relacionados com o
lexema evrÒw: evr v (= observar, examinar, contemplar, assistir como
espectador...), ye rema (= aquilo que se pode contemplar, espectáculo, aquilo que
constitui objecto de estudo ou de meditação...), evretikÒw (que gosta de contemplar,
que tem o hábito de contemplar, que tem uma atitude contemplativa e especulativa...),
evr€a (= acção de ver, observar, examinar, contemplar; contemplação, meditação,
estudo, teoria e também: comunidade dos evro€), evrikÒw (= que concerne aos
lugares no teatro, que diz respeito às teorias...), etc.; EM LATIM (raiz no «grau e»):
servare (= respeitar, manter, conservar), servator, conservare, observare, observator,
observantia, observatio, preservare, reservare, servus (= servo, escravo, criado),
servire (= servir), servilis, servitium, vereor (= observar, prestar atenção, respeitar,
venerar...), verecundia (= respeito, atenciosidade, vergonha, pudor), reverendus...; EM
SÂNSCRITO: varutá (= protector); EM GÓTICO: war (observar, vigiar, estar atento, ser
atencioso), warnjan (= avisar, advertir); EM INGLÊS: aware (= estar consciente de, ter
cuidado com, prestar atenção a...), beware, warren, warrant, ward, warn..., serf,
sergeant...; EM VELHO ISLANDÊS varr (= prestar atenção, vigiar); EM VELHO ALTO
ALEMÃO bewaron (= despertar); EM ALEMÃO: gewähren, wahren, wahrung, währung,
gewähr, warten, wheren, wehr, warnung...; EM FRANCÊS: serf, servir, sergent,
serviette, service, concierge [< *conservius], conserver, observer, préserver,
réserver..., guarir, guarison, guarite, guarnir, gare, garer, égarer, guérir, guérison,
garder, regarder, égard, regard...; EM PORTUGUÊS (com evidente isomorfia,
relativamente aos correspondentes lexemas da generalidade das línguas românicas e,
mesmo, das não românicas): conservar, conserva, conservador, conservatório,
conservantismo, observar, observador, observatório, observância, preservar,
preservativo, reservar, reserva, reservista, reservado..., servo, serva, servir, servil,
servilismo, serviço, servidão, serviçal, servente, serventia, serventuário,
subserviência, servofreio, servocomando, servossistema, sargento..., vergonha,
vergonhoso, reverendo, reverência..., garante, garantia, garantir, guarda / Guarda,
guardião, guardar, aguardar, resguardar, garagem, guarida, guarita, guarir,
guarnir, guarnecer, guarnição...
151
Fernando Paulo do Carmo Baptista
com os comportamentos que configuram a prãjiw [praxis]291, como os
mais densos, intensos, vivos e dinâmicos e os mais conformes com a
essência e o agir do “Primeiro Motor”292 — Pr«ton KinoËn [Proton
Kinoun] — e com um ideal supremo de eÈdaimon€a [eudaimonia]293),
291
Considerar, neste contexto, o que, acerca da questão da «teoria», diz Paul de Man
(in A Resistência à Teoria, Lisboa, Edições 70, 1989, pp. 14-15): «Etimologicamente,
o termo [teoria] vem do verbo grego theorein, observar, contemplar, inspeccionar. E,
em grego, não entra em oposição com praxis — uma oposição construída na filosofia
idealista e mais tarde utilizada para combater esta última — mas antes com
aesthesis...» [p. 14]. «(...) A cidade necessitava de uma forma de conhecimento mais
oficial e mais averiguável (...)». Ora, «a theoria fornecia a solidez de certeza
pretendida: aquilo que declarava ter visto podia tornar-se objecto de dissertação
pública», porque «só o acontecimento teoricamente atestado podia ser tratado como
facto» [p. 15]. Mas quem estava incumbido dessa missão eram os theoroi, cidadãos
que gozavam de reconhecido prestígio público e que «constituíam colectivamente
uma theoria» [p. 14]. Em meu entender, esse qualificado e credível “colégio” de
observadores atentos e contemplantes configura, de certo modo, o protótipo daquilo
que vieram a ser as actuais “comunidades científicas”.
292
Aristóteles: Metafísica, 1070b, 1072b, 1073a, 1074a.
293
O substantivo eÈdaimon€a (da mesma família do adjectivo eÈda€mvn, -vn, -on =
feliz, afortunado, que merece os favores dos deuses...) formou-se através da
combinatória do advérbio eÔ (= nobremente, bem, de modo elevado e justo...) +
da€mvn, -onow [= divindade, deus, poder divino, boa fortuna, boa sorte...];
eÈdaimon€a remete, assim, para as ideias de «nobreza» e de «bem-estar espiritual» e
para um «estado próprio de quem vive sob a protecção benéfica da divindade e em
harmonia com ela»; daí, o significado de «felicidade», de «supremo bem prático» que
consiste na «contemplação», na yevr€a. Considere-se, a propósito, o seguinte passo
de Aristóteles (Ética a Nicómaco, X, 8):
«Now if you take away from a living being action, and still more production, what is
left but contemplation? Therefore the activity of God, which surpasses all others in
blessedness, must be contemplative; and of human activities, therefore, that which is
most akin to this must be most of the nature of happiness. This is indicated, too, by
the fact that the other animals have no share in happiness, being completely deprived
of such activity. For while the whole life of the gods is blessed, and that of men too in
so far as some likeness of such activity belongs to them, none of the other animals is
happy, since they in no way share in contemplation. Happiness extends, then, just so
far as contemplation does, and those to whom contemplation more fully belongs are
more truly happy, not as a mere concomitant but in virtue of the contemplation; for
this is in itself precious. Happiness, therefore, must be some form of contemplation
(...). If happiness is activity in accordance with virtue, it is reasonable that it should
be in accordance with the highest virtue; and this will be that of the best thing in us.
Whether it be reason or something else that is this element which is thought to be our
natural ruler and guide and to take thought of things noble and divine, whether it be
152
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
não deixam de pressupor sempre a presença real ou simbólica da
“LUZ”, ou seja, aquela iluminação superior e intranscendível, aquela
divina e sábia iluminação proporcionada e mediatizada, na Pólis
Humana, pela Paideia e que permite superar a ensandecente noitidão
da incultura, da ignorância e da barbárie...
Luz, todavia, que de modo algum se deve identificar com a
perversa e totalitária unidimensionalidade de uma “razão” monofónica,
sobretudo, em sua dinâmica funcional, instrumental e calculatória e em
sua orgânica tecno-burocrática, administrativística e gestionária,
itself also divine or only the most divine element in us, the activity of this in
accordance with its proper virtue will be perfect happiness. That this activity is
contemplative we have already said (os itálicos são meus).» Cf. Aristóteles: Ética a
Nicómaco, X, 8, na versão em inglês da autoria de W. D. Ross, apud:
http://ebooks.adelaide.edu.au/a/aristotle/nicomachean/.
Compare-se com o seguinte passo de Platão (Simpósio, 220b): «So when he [o ser
humano] has begotten a true virtue and has reared it up he is destined to win the
friendship of Heaven; he, above all men, is immortal» (os itálicos são meus). Em
suma: Aristóteles perspectiva a felicidade (eÈdaimon€a) como aquele tipo de prãjiw
que é consonante com a éretÆ ([= virtude] ibidem: I, 1097a-b), mas, para ele, a mais
excelsa das virtudes é a yevr€a (ibidem: X, 1177a-b), tal como, mais tarde, será para
Plotino (ÉEnn°adaw: III, 8, 2-7) a principal actividade da alma. (Para uma dilucidação
dos importantes conceitos da Cultura Grega aqui implicados, ver F. E. Peters: Termos
Filosóficos Gregos — Um léxico histórico, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian,
1977). Mas este ideal de «felicidade», tal como o enuncia Aristóteles, não deixa de
convocar, para um dialéctico contraponto, a actualmente tão falada «felicidade do
hiperconsumo» que tem como protagonista o homo consumericus, uma espécie de
«turbo-consumidor», figura insaciável e voraz, na procura de mais prazer, de mais
«qualidade de vida», de novas experiências, novas compras e «exóticas» fruições que
lhe são proporcionadas pelo império do mercado e do marketing, até como terapia de
nevroses e frustrações... Personagem, todavia, paradoxalmente, mais insatisfeita, mais
desencantada e crescentemente dilacerada pelo sentido do vazio, do abandono e da
solidão, configurador de um clima emocional e afectivo não raramente gerador de
fortes tensões e descontrolados desequilíbrios de natureza psíquica, propulsores de
condutas esquizofrénicas, agressivas e violentas... É que a dimensão quântica do
«ter», só por si e face aos constantes desequilíbrios económicos e financeiros e à
consequente redução do poder de compra, não consegue ser alternativa à dimensão
quálica da sophia e da paideia que modelam e afeiçoam as mais altas faculdades e
potencialidades do «ser»... Sobre tão contraditório modo de procurar ser «feliz» (?...),
ver o recente ensaio de Gilles Lipovetsky: Le bonheur paradoxal – Essai sur la société
d’hyperconsommation, Paris, Gallimard, 2006 (ou, na tradução portuguesa de Edições
70, Lisboa, 2007: A Felicidade Paradoxal – Ensaio sobre a Sociedade do
Hiperconsumo).
153
Fernando Paulo do Carmo Baptista
quando sabemos como tudo isso é comandado, em última instância, por
um obsessivo t°low [telos] economicista, motivo, fundamento e
argumento para todas as eficácias, eficiências e competitividades, mas
bloqueador (se não mesmo liquidador...) da independência de espírito,
da liberdade criadora e da autonomia académica e inspirador e
propulsor de políticas educacionais marcadas pela crescente
secundarização (para não dizer: ostracização...) das áreas das
Humanidades, das Belas Letras e das Belas Artes, áreas que sempre
foram a verdadeira alma mater..., a “almar” todo o processo
investigativo e formativo e a “geratriz” e a “placenta” alimentadora da
própria ideia de Universidade294... Por isso é que importa manter bem
viva e bem acesa a perspectiva e a convicção de que a luz, aquela luz
que vem das estrelas e a elas nos faz retornar, pelo fascínio da sua
cintilância e pela generosa e universal bondade com que se nos dá,
continua a ser o símbolo maior da inteligibilidade de tudo...
A SABEDORIA (SOF€A [SOPHIA]) COMO FONTE
DE ILUMINAÇÃO DA TEORIA
O consagrado historiador, epistemólogo e professor inglês, Alan
Francis Chalmers295, na sua conhecidíssima obra intitulada What is this
thing called Science?296 (obra propedêutica dedicada à problemática da
294
Considerar, neste contexto, o estelar e acutilante ensaio de Vítor Aguiar e Silva
«As Humanidades e a Cultura Pós-Moderna» apud Fernando Paulo Baptista (org.):
Vítor Aguiar e Silva: a poética cintilância da palavra, da sabedoria e do exemplo, op.
cit., pp. 179-193.
295
Antigo aluno de Imre Lakatos e seguidor, nomeadamente, do pensamento de Karl
Popper.
296
Cuja recente tradução em Espanha, sob o título de «¿Qué es esa cosa llamada
ciencia?» já conhece 14 reedições. Ver Alan Francis Chalmers: ¿Qué es esa cosa
llamada ciencia?, Madrid, siglo veintiuno de españa editores, sa, 142000.
154
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
Ciência), referindo-se ao modo como se desenvolve o processo
observacional297 na actividade científica, escreve o seguinte298:
«Não podemos observar com precisão o que queremos.
Todavia, se é verdade que as imagens das nossas retinas
fazem parte do processo do que nos é dado observar, não é
menos verdade que também faz parte desse mesmo processo
uma componente constituída pelo estado interno das nossas
mentes ou cérebros, estado esse que, por sua vez, depende
da nossa educação cultural, do nosso conhecimento e das
nossas expectativas, não sendo determinado, portanto,
unicamente pelas propriedades ou condições físicas dos
nossos olhos e da cena observada.»299
Palavras lúcidas estas, que realçam bem o facto de que os
processos de “observação” desenvolvidos no âmbito da investigação
científica, na diversidade multímoda das configurações e estilos que
podem assumir, co-envolvem sempre, na mesma e unitária instância
corpóreo-mental — o ser humano, ênyrvpow300 [anthropos] —, uma
297
E importa ter presente que a acção de observar se dizia, em grego, yevr€a
[theoria] e também ye resiw [theoresis], substantivos que, conjuntamente com
yevrÒw [theoros], pertencem à mesma família lexical do verbo yevr°v [theoreo] (=
observar, examinar, contemplar). Cf. supra, nota 290.
298
Chalmers: op. cit., p. 9: «No podemos ver precisamente lo que queremos. Sin
embargo, mientras que las imágenes de nuestras retinas forman parte de la causa de
lo que vemos, otra parte muy importante de esa causa está constituida por el estado
interno de nuestras mentes o cerebros, el cual dependerá a su vez de nuestra educación
cultural, nuestro conocimiento y nuestras expectativas, y no estará determinado
únicamente por las propiedades físicas de nuestros ojos y de la escena observada».
No mesmo sentido, vai também a tese de Norwood Russell Hanson: Patrones de
descubrimiento. Observación y explicación, Madrid, Alianza Editorial, 1996, quando
afirma: «La visión es una experiencia. Una reacción de la retina es solamente un
estado físico, una excitación fotoquímica» (p. 79). «La visión es una acción que lleva
una “carga teórica”. La observación de x está moldeada por un conocimiento previo
de x. El lenguaje o las notaciones usados para expresar lo que conocemos, y sin los
cuales habría mui poco que pudiera reconocerse como conocimiento, ejercen también
influencias sobre las obervaciones» (p. 99).
299
Os itálicos são meus.
300
Reitero, aqui, o meu distancimento quer de um dualismo cartesiano («res extensa
VS res cogitans»), quer de um monismo «materialista», para subscrever a tese de um
155
Fernando Paulo do Carmo Baptista
função oftálmica (normalmente reforçada e ampliada, pelas “próteses”
adjuvantes proporcionadas pela “maquinaria” tecnológica:
laboratórios, raios x, raios laser, tumografia axial computorizada [TAC],
ressonância magnética [RM], microscópios, telescópios, aceleradores de
partículas, sondas, satélites...), função essa, sustentada, pilotada e
iluminada, porém, por uma dÊnamiw [dynamis] de natureza intelectual,
educativa, cultural e sapiencial301.
monismo emergentista, dinâmico, estruturante, complexificante (consubstanciador e
comprovador da «lei de complexidade crescente») e personificante, com fundamento
na hipótese de que, no quadro de um longo processo evolutivo a nível cósmico
(cosmogénese), filogenético (filogénese), ontogenético (ontogénese) e histórico-
social e cultural (antropogénese), se criaram as condições para a emergência de um
ser configurado e instanciado num corpo-mente (num bodymind como diria o
especialista em bioquímica cerebral Candace Pert), um ser «holístico» estruturado no
contexto do dinamismo evolutor global do cosmos, em que, consonantemente com
Hugo Mujica, «en el hombre todo es carne y nada de la carne deja de ser espírito»,
uma vez que «el cuerpo... es el modo de ser del espírito» (cf. Hugo Mujica: Flecha en
la niebla — Identidad, palabra y hendidura, Madrid, Editorial Trotta, 1997, 148), e
com Pedro Laín Entralgo e repetindo Unamuno: «Es mi cuerpo vivo el que piensa,
quiere y siente» (...). Na verdade, o corpo vivo do homem é «la realidad en que se
actualiza y manifiesta el dinamismo propio de la suidad de cada persona» (Cf. Pedro
Laín Entralgo: Idea del hombre: Barcelona, Círculo de Lectores / Galáxia Gutenberg,
1996, cap. III («Posesión de lo real»), pp. 157-172; Idem: Alma, cuerpo y persona,
Barcelona, Círculo de Lectores / Galáxia Gutenberg, 21998, cap. III («La realidad
constituitva del hombre»), pp. 173-202). No mesmo e fundamental sentido vai a
posição de Xavier Zubiri (recorrentemente invocado por Laín...), quando, em Sobre
el Hombre (Madrid, Alianza Editorial, 1998, p. 670), afirma: «(...) la corporeidad
tiene un sentido primariamente psíquico y anímico: es la corporeidad anímica sin la
cual no habría en el mundo estructuras humanas. (...) Esta unidad con el cuerpo hace
que haya en la psique animación, pero sin psique lo que hay en el cuerpo no sería
animación. Todo lo que hay en el hombre en el orden constitutivo constituye en forma
de corporeidad una sola sustantividad humana. En la unidad estructural en forma de
corporeidad no hay sino una sola sustantividad, aunque haya muchas sustancias, y
en esa sustantividad una está la unidad del hombre (os itálicos são meus)...»; cf.
também o interessante ensaio de Fernando Rosel Lana (aqui sintonizado em
convergência): «Salud, enfermedad y psiquismo: una apuesta por el cambio hacia la
conducta saludable, a partir del uso consciente y responsable de nuestra mente», in
Anales de Ciencias de la Salud da la E. U. de Ciencias de la Salud de la Universidad
de Zaragoza, Zaragoza, 2002, n.º 5, pp. 35-56; cf., ainda, Fernando Paulo Baptista: A
Rede Lexical do «Imaginário» — Clave para uma leitura deste conceito, Lisboa,
Edições Piaget, 2007, p. 20, nota 17, e p. 23.
301
Esse potencial pode variar profundamente de observador para observador, de tal
modo que, por exemplo, na «mesmíssima» amostra de sangue, o observador A (menos
156
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
Efectivamente, os processos de observação estão longe de se
identificar, simplistamente, com uma relação oftálmica ou de se esgotar
na focalização ou mirada de um qualquer fenómeno que, à partida, tem
uma proveniência exógena ou externa relativamente ao observador (ao
«sujeito epistémico»): também se observa e se contempla, por exemplo,
uma ideia302, um projecto em fase de ideação, uma construção
conceptual, uma configuração noemática, um ficto imaginário ou
qualquer outra figuração, sem que aí opere directa e imediatamente
qualquer relação de natureza óptico-visual: trata-se daquele tipo de
postura ou atitude interior (aquele «olhar de olhos fechados»...), umas
vezes mais analítico-reflexiva e crítica, outras vezes mais intuitiva,
imaginativa, onírica e poiésico-inventiva, assumida pela nossa psique.
É tudo isso que, afinal, se coloca no centro neuronal-mental de
competente e experiente, menos preparado, em suma, menos culto...), «vê» uma
simples anemia, ao passo que o observador B (melhor preparado, com outra cultura
experiencial e sapiencial...) «vê» uma leucemia... Evoque-se, a propósito, o
“parabólico” poema — «Impressão digital» —, de António Gedeão: Poesias
Completas, Lisboa, Livraria Sá da Costa Editora, 91983, p. 5: «Os meus olhos são uns
olhos. / E é com esses olhos uns / que eu vejo no mundo escolhos / onde outros, com
outros olhos, / não vêem escolhos nenhuns. (...) Inútil seguir vizinhos, / querer ser
depois ou ser antes. / Cada um é seus caminhos. Onde Sancho vê moinhos / D. Quixote
vê gigantes. / Vê moinhos? São moinhos. / Vê gigantes? São gigantes».
302
Cabe lembrar, a propósito, que o lexema ‘ideia’ (em grego: έα) tem a mesma
raiz do verbo latino video (= ver), começando por significar, literalmente, «o que
aparece de modo a poder ser visto» e, daí, «aparência», «aspecto exterior», com as
subsequentes notações de «representação», «elaboração mental», «construção noética
e eidética», decorrentes das interacções neurais e mentais desencadeadas por aquele
“acto de ver” e respectivos resultados e «cartografias» e que passam a constar do
arquivo memorial disposicional de quem vê e a funcionar, na polimorfa diversidade
dos contextos e das motivações existenciais, como lastro mnésico substante a um
complexo processo metamorfósico e poiésico-constitutivo protagonizado pelo
psiquismo humano, em que tudo isso se pode vir a transformar em «unidade
noemática, integrada e integradora», em «princípio de essencialidade e perenidade
gnosiológica e axiológica», em «objecto inteligível e pensável», em «ficto onírico»,
em «forma semiótica», em «potencial de intelecção, significação, organização,
regulação e orientação», em «arquétipo sapiencial luminoso e iluminante», em
«matriz de sonho e imaginação criadora»... (Cf. o interessante ensaio de Nayla
Farouki: O que é uma ideia?, Lisboa, Edições Piaget, 2005 e o bem elaborado e
fundamentado artigo «Idea», da autoria de Julián Velarde Lombrana, apud Jacobo
Muñoz y Julián Velarde (eds.): Compendio de Epistemología, Madrid, Editorial
Trotta, 2000, pp. 299-304).
157
Fernando Paulo do Carmo Baptista
observação-contemplação, onde opera a nossa capacidade memorial
(mnésica), problematizadora, hermenêutica, noética, crítica,
imaginante e criadora303.
Em amplificante paráfrase a Gadamer304, poderá, portanto,
dizer-se que ν [theorein] é νο ν [noein], que ν
[theorein] é οι ν [poiein]: que observar-contemplar é pensar e
meditar, é imaginar e criar...
Ganha, assim, especial relevância e expressividade a “tese” de
Pierre Bourdieu305, inspirada e enquadrada na sua «teoria dos campos»
303
Diz Damásio, a propósito das potencialidades noogénicas da memória: «os
objectos recordados são tão capazes de gerar consciência nuclear como os objectos
percebidos agora» (cf. António Damásio: O Sentimento de Si, op. cit., p. 192); para
uma perspectiva clarificadora deste dinamismo neuro-mental, ver ainda este nosso
prestigiado neurocientista: ibidem, pp. 200-202; para um aprofundamento das
questões relacionadas com o dinamismo «corpo <> cérebro <> mente», ver António
Damásio: O Sentimento de Si, Lisboa, Publicações Europa-América, 2000, pp. 355 ss
(capítulo 11) e passim e Ao Encontro de Espinosa, Lisboa, Publicações Europa-
América, 2003, pp. 207-247 (capítulo 5) e passim e John Searle: Mente, Cérebro e
Ciência, Lisboa, Edições 70, 1997, pp. 17 ss, 53 ss.
304
Op. cit., pp. 26, 27, 39.
305
Cf. Pierre Bourdieu: Science de la science et réflexivité, Paris, Éditions Raisons
d’agir, 2001 (de que existe tradução portuguesa com o título de Para uma Sociologia
da Ciência, Lisboa, Edições 70, 2004, e que aqui cito através da versão em espanhol,
com o título de: El ofício de científico — Ciencia de la ciencia y reflexividad,
Barcelona, Editorial Anagrama, 2003, pp. 77-78: «Un sabio es un campo científico
hecho hombre, cuyas estructuras cognitivas son homólogas de la estructura del campo
y, por ello, se ajustan de manera constante a las expectativas inscritas en el campo.
Las reglas y las regularidades que determinan, por decirlo de algún modo, el
comportamiento del científico sólo existen como tales, es decir, en cuanto instancias
eficientes, capaces de orientar la práctica de los científicos en el sentido de la
conformidad con las exigencias de cientificidad, porque son percibidas por unos
científicos dotados del habitus que les permite percibirlas y apreciarlas, y a la vez
predispuestos y capazes de ponerlas en práctica. En suma, esas reglas y esas
regularidades sólo los determinan porque ellos se determinan mediante un acto de
conocimiento y de reconocimiento práctico que les confiere su poder determinante, o
en otras palabras, porque están dispuestos (al término de un trabajo de socialización
específico) de tal manera que son sensibles a las conminaciones que contienen y están
preparados para responder a ellas de manera sensata». De notar que Bourdieu, neste
seu andamento reflexivo, opera com os conceitos de «habitus», «campo» e «poder»
que, como se sabe, são três conceitos nucleares na arquitectónica conceptual do seu
quadro teórico. Para uma dilucidação destes conceitos, que são transversais a algumas
das suas mais importantes obras de análise filosófico-sociológica (La distinction, Le
158
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
e plasmada na lapidar metáfora de que «um sábio é um campo científico
feito homem», com a ressalva, porém, de que a sabedoria (sof€a
[sophia]), num ajuizamento que se me afigura pertinente, correcto e
sustentável, vai muito para além dos territórios e dos horizontes
específicos da ciência...
Tudo isto só vem confirmar e validar a eloquente justeza do
milenar dito do Ecclesiastes (2, 14), segundo o qual, os olhos do sábio
estão na sua cabeça: «sapientis oculi in capite eius»!...
É, na verdade, da “cabeça” [caput] dos sábios, é das úberes
matrizes da sabedoria de que eles são os “auctores” e os titulares mais
credenciados (mas também mais silenciados nestes tempos de détresse
de l’esprit...) que irrompe a §n°rgeia [energeia] observante,
contemplante, elaborante, poiésico-instituidora e iluminante (e, por
isso mesmo, incomparável expressão neuro-cinética, mental e vital
[não propriamente muscular...] da «vita activa»306...) que uma autêntica
TEORIA não pode deixar de ser, se perspectivada em sua mais funda
essencialidade, “ebuliente dinamismo” e “geotectónica” motricidade...
Nem é outro, o entendimento que deflui da mais consistente
reflexão epistemológica em torno da «ciência», do «conhecimento
científico», da «racionalidade científica», da «teorização científica» e
sens pratique, Questions de sociologie, Ce que parler veut dire, Homo academicus,
Les règles de l’art — Génese et structure du champ littéraire, Méditations
pascaliennes...), ver Pierre Bourdieu: Choses Dites, Paris, Les Éditions de Minuit,
1987, pp. 19 ss, 32 ss, 50 ss, 90 ss, 124 ss, 150 ss, 160 ss; O Poder Simbólico, Lisboa,
Difel, 1989, pp. 27, 64-73, 288-298 e passim (campo); pp. 60-64, 81-106 e passim
(habitus); pp. 15, 28, 29, 150-158, 236-276 e passim (poder); Les règles de l’art —
Génese et structure du champ littéraire, Paris, Éditions du Seuil, 1992, 298 ss e
passim. Mas, salvaguardando o princípio de que nada substitui o esforço
hermenêutico próprio, centrado na efectiva leitura das obras, não deixa de ser útil,
também, a bem sistematizada introdução de Pierre Mounier: Pierre Bourdieu, une
introduction, Paris, La Découverte, 2001: I. Présentation de l’œuvre, pp. 19-183.
306
Para uma perspectiva mais alargada da oposição dialéctica «vida contemplativa VS
vida activa» (e da oposição sua correlata: «otium VS negotium»), considerar, entre
outras, as «teses» de Platão na República (VII, 514a ss), de Cícero no De Officiis (I,
153), de Nietzsche em Morgenröthe (§§ 41-43, [apud:
http://www.geocities.com/thenietzschechannel/mgv.htm]) e de Hannah Arendt em
The Human Condition (Chicago, University of Chicago Press, 1958) e em The Life of
the Mind (London, Secker & Warburg, 1978).
159
Fernando Paulo do Carmo Baptista
da «metodologia da investigação científica»307 e, ainda, do modo como
se constituem, se testam, se validam e se aplicam as próprias «teorias
científicas». E essa reflexão, tão vasta quanto exigente e complexa (e,
não raro, tão polémica como contraditória...), não pode deixar de se
direccionar projectivamente para dois grandes planos que se co-
implicam em estreita e recíproca articulação e interacção:
— o plano da personalidade singular e ipseídica do ser humano
(cidadã ou cidadão...) teorizador, investigador e cientista;
— o plano da sua condição e do seu estatuto institucional,
interpessoal e alterídico, de membro de uma específica “comunidade
científica” e/ou de uma “academia”, co-envolvendo a ponderação, entre
outras, de temáticas e problemáticas tão cruciais como as da
caracterização da racionalidade científica e do método científico, da
demarcação criterial entre ciência, senso comum, não-ciência, pseudo-
ciência e ficção científica, da selecção e estabelecimento de campos
fenoménicos e sua transformação em campos epistemológicos, com a
inerente definição dos objectos epistémicos e análise integrada dos
dados observacionais e experienciais respectivos, a suscitação de
problemas e a subsequente formulação de conjecturas ou de hipóteses,
o desencadear do processo investigativo (research process) e de
elaboração (e reelaboração...) do conhecimento e a convocação, para o
efeito, das mais fecundas propostas da Epistemologia e da Filosofia da
Ciência, nomeadamente, a pluralidade dos contributos trans-lógico-
empiristas de Gaston Bachelard, Karl Popper, Russell Hanson, Imre
Lakatos, Thomas Khun, Paul Feyerabend, Joseph Sneed, Wolfgang
Stegmüller e Larry Lauden308, para além dos desenvolvimentos que têm
merecido, entre outros, o «teorema de Thomas Bayes» em torno da
problemática da probabilidade (conditional probabilities; subjectivist
307
Sobre esta complexa e apaixonante problemática, existe uma vastíssima
bibliografia de que se apresenta, no fim, uma razoavelmente diversificada
amostragem. Mas, pela clareza, pelo rigor, pela fundamentação, pela consistência e
pela coerência verdadeiramente exemplares, continua a ser uma referência
incontornável a reflexão, então pioneira, desenvolvida (há já quarenta [40] anos!...)
por Vítor Aguiar e Silva no seu iluminante e prospectivo ensaio (imediatamente
traduzido para espanhol [pela Gredos] e para japonês): Competência Linguística e
Competência Literária, Coimbra, Almedina, 1977, pp. 26-38.
308
Ver, no fim, na listagem alfabeticamente ordenada, a bibliografia fundamental e
nominal de cada um.
160
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
models of learning: prior probability VS posterior probability...), com
os diferenciados contributos de Jon Dorling, Paul Horwich, Roger
Rosenkrantz e John Earman, a «tese de Duhem / Quine»309, face ao
falsificacionismo popperiano, bem como as correntes do «Novo
Experimentalismo», a envolver figuras como Ian Hacking, Allan
Franklin, Peter Galison, David Gooding, Robert Ackermann e Deborah
Mayo310, etc., etc...
A caracterização e a demarcação acabadas de referir não
dispensam a assunção de uma postura de fundo de que não pode deixar
de fazer parte integrante a institucionalização de um exigente “código”
ético-paidêutico e praxiológico (embrionária geratriz de um plano [e
programa] estratégico mais vasto...) que inscreva expressamente, em
seu corpo canónico, objectivos como os que a seguir se enunciam:
• Proporcionar a formação consistentemente e polifonicamente
fundamentada e estruturada, do ponto de vista filosófico e
epistemológico, do que é a ciência, a investigação científica, o método
científico e do que deve ser o verdadeiro espírito científico;
• Refrear a tentação duma adesão precipitada e acrítica a modas
e modismos disfarçados sob a capa da “inovação” ou da “actualização”;
• Promover a produção, a divulgação e o ensino-aprendizagem
de um conhecimento científico, teoricamente enquadrado, criticamente
fundamentado e adequadamente apetrechado a nível conceptual,
terminológico e metodológico, tendo em vista um mais fecundo
tratamento hermenêutico, heurístico, experimental e processológico
dos dados da experiência e demais dados da fenomenologia do real;
• Fomentar o constante sentido do rigor, da clareza, da
propriedade e da coerência nas práticas discursivas e comunicacionais,
através de um adequado e contextualizado accionamento dos modos,
modalidades, registos e estilos de linguagem;
• Rejeitar o recurso a processos e a esquemas simplistas,
reducionistas, monofónicos ou “cinzentos” que põem em causa a
309
Também conhecida por «tese dos holismos» (holismo da confirmação e holismo
do significado).
310
Cf. León Olivé (ed.): Racionalidad epistémica, Madrid, Editorial Trotta, 1995, pp.
148 ss, 226 ss e passim; Alan F. Chalmers:¿Qué es esa cosa llamada ciencia?, op.
cit., pp. 25-199.
161
Fernando Paulo do Carmo Baptista
essência da racionalidade científica e o seu verdadeiro sentido e
alcance;
• Combater o fundamentalismo, o dogmatismo, o cepticismo, o
anarquismo e o “terrorismo” teoréticos, bem como os proselitismos
ideológicos;
• Promover a propositura e a defesa de matrizes curriculares
bem demarcadas e fortes, sob o ponto de vista específico e singular de
cada uma das disciplinas que integram os planos de estudos, matrizes
essas que vão ser tomadas como base de sustentação das tão pretendidas
articulações interdisciplinares, no pressuposto de que não há verdadeira
interdisciplinaridade à margem das ontologias, das fenomenologias e
das metodologias por que se fundam e constituem as disciplinas, e de
que certas “misturas” multidisciplinares, organizadas sem critério e sem
nexo, raramente passam de espartilhados e confusos amálgamas ou de
ornamentais mosaicos de muito duvidosa erudição;
• Proceder, no quadro da organização e da operacionalização
pedagógico-didáctica do ensino-aprendizagem do conhecimento
científico, à clarificadora desmontagem das “máscaras” pseudo-
científicas, à oportuna activação de reguladores e depuradores “filtros”
e à neutralização do efeito “torniquete”311, tão característico dos
excessos teoréticos e das exorbitações e extravagâncias hermenêutico-
interpretativas;
• Estabelecer mecanismos de regulação aberta e crítica para a
“práxis científica”, em consonância com os princípios, as exigências e
os critérios próprios do “espírito científico” e da “racionalidade
científica”;
• Projectar em todos os actos de (in)formação científica o
sentido “mathésico”312 do estudo fundamentado e fundamentante e do
rigor conceptual, tendo em vista o reforço da especificidade e da
autonomia das comunidades e das instituições de ciência, nas áreas da
investigação e do ensino;
• Desencadear dinâmicas de formação e actualização ao longo
da vida (lifelong learning) que promovam em todos os estratos da
311
Cf. Vítor Aguiar e Silva: «As relações entre a Teoria da Literatura e a Didáctica
da Literatura: Filtros, Máscaras e Torniquetes», in AA.VV.: Didáctica da Língua e
da Literatura, vol. I, Coimbra, Almedina, 2000, pp. 3-9.
312
De mãyhsiw [mathesis], aprendizagem inteligente, diligente e rigorosa.
162
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
sociedade, e muito para além do indispensável patamar da “literacia
básica”, uma cada vez mais esclarecida consciência da imperiosa
necessidade de uma forte cultura científica e humanística para os mais
qualificados cargos e desempenhos sociais e para o exercício
responsável da cidadania;
• Consciencializar e, sobretudo, conscientificar as instituições
de Ensino Superior, especialmente as Universidades, para o imperioso
desenvolvimento de uma estratégia de investigação e de formação, de
directa implicação interdepartamental e de alcance nacional, capaz de
articular, em todas as Academias e em criativa e fecundante
orquestração sinérgica, a área da Ciência e das Tecnologias com a área
das Humanidades, das Belas Letras e das Belas Artes.
Por outro lado, e nesse contexto de global enquadramento
reflexivo, importará proceder à clarificação crítica e ao apuramento
teorético e meta-teorético de questões tão decisivas como as da
subjectividade, intersubjectividade, objectividade313, (in)certeza,
(in)determinismo, causalidade (multicausalidade), acaso,
probabilidade, verdade (verdade de razão, verdade de facto, verdade
de crença...), transcendentalidade, relativismo, fiabilidade..., bem
como à ponderação das suas implicações com os métodos e
procedimentos de refutação, falsificação, testagem, avaliação,
validação e legitimação das teorias e das “revoluções” científicas, à
luz de um adequado referencial paramétrico-criteriológico que
contemple os planos formal, semântico, axiomático-epistemológico,
metodológico e cosmo-ontológico, nos termos em que o propõe, por
exemplo, Mario Bunge314, sem esquecer os fundamentais níveis de
313
“Objectividade”, pensada tanto na perspectiva singular-pessoal como na
perspectiva colegial. Ponderada a incontornável “teia” de correlações e de interacções
de natureza noético-noemática, importa ter na devida conta a clarificadora obra
ensaística de Donald Davidson: Subjective, Intersubjective, Objective, New York,
Oxford University, Clarendon Press, 2001 — que se ocupa, entre outros aspectos, das
profundas e complexas conexões de ordem sapiencial e verbo-semiósica entre a nossa
mente, a mente dos outros e o mundo externo...
314
Cf. Mario Augusto Bunge: Philosophy of Science – From Explanation to
Justification (revised edition), vol. 2, New Brunswick and London, Transaction
Publishers, 1998, pp. 394-400: a) FORMAL CRITERIA: 1. well-formedness; 2. internal
consistency; 3. validity; 4. independence; 5. strength; b) SEMANTIC CRITERIA: 6.
linguistic exactness; 7. conceptual unity; 8. empirical interpretability; 9.
163
Fernando Paulo do Carmo Baptista
adequação mundividencial, pressupositivo-assumptiva, metodológico-
processual e orientativo-reguladora, com seus desdobramentos
fásicos315 e respectivas operações de contrastação, correcção e
afinamento melhorativo: adequação fundamentante, focalizadora,
analítica, problematizadora, indagativa, heurística, avaliativa,
validadora, descritiva, explicativa e discursivo-enunciativa
(textualizadora).
Na verdade, e quanto ao primeiro plano atrás mencionado, o
cidadão teorizador, investigador e cientista316 (sujeito activo e reflexivo
do ν [theorein] e, em certo sentido, “herdeiro” legítimo do
ιλ ο ο [philosophos] socrático e do [theoros] platónico-
aristotélico...), na sua postura curiosa, perscrutante, inteligente e
imaginativa, na sua focalização exoscópica e endoscópica, extra-muros
e intra-muros, microscópica e macroscópica, merorâmica e
panorâmica, na sua mirada observante, indagante, determinada e
persistente e no seu agir interpretativo, descritivo e explicativo,
suscitado pelo “campo fenoménico” que o toca, entusiasma e fascina e
que ele toma e assume como “objecto epistémico”, isto é, como
«objectum cognoscendum», «describendum» e «explanandum», não
deixa de mobilizar mnésico-noeticamente, e de modo autocrítico,
criterioso e selectivo, o “capital” noemático, semiósico, conceptual,
imagético e memorial, a “enciclopédia” semiosférica, informativa,
cognitiva, hermenêutica e sapiencial, depurada e integrante, que foi
construindo, configurando, arquivando e actualizando ao longo da sua
experiência vital, em toda a diacronia do seu Lebenswelt que é, na
representativeness; c) EPISTEMOLOGICAL CRITERIA: 10. external consistency; 11.
inclusiveness; 12. depth; 13. originality; 14. unifying power; 15. heuristic power; 16.
stability; d) METHODOLOGICAL CRITERIA: 17. testability; 18. methodological
simplicity; e) ONTOLOGICAL CRITERIA: 19. level-parsimony; 20. world-view
compatibility.
315
Porque não consegui encontrar em nenhum dicionário de língua portuguesa, digo,
não obstante, fásico (< de fase), como se diz básico (< de base), frásico (< de frase),
homeostásico (< de homeostase)...
316
Para um interessante esboço de “perfil” caracteriológico do «homem de ciência»,
configurado na pessoa do «investigador», ver John Ziman: Real Science — What it is,
and what it means, Cambridge, Cambridge University Press, 2001, pp. 22-23, 44-46,
53-54 e passim.
164
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
expressiva e afectiva metáfora de Castanheira Neves317, «a pátria a que
a ciência sempre terá de voltar»... Tudo isso, no horizonte englobante
e aberto da Weltanshauung que também foi conformando, ajustando e
aperfeiçoando, sem, todavia, descurar ou desconsiderar as
contribuições congéneres da comunidade científica de pertença (e de
outras comunidades de saber...) ou rejeitar o diálogo polifónico ou
mesmo a controvérsia e o dissentimento, a polémica, o debate vivo,
problematizador e antidogmático, na incessante procura e construção
activa da indispensável consensualidade epistemológica, regulada não
só pelos mais altos níveis de rigor teorético, axiomático-conceptual,
metodológico, processológico, lógico-discursivo e argumentativo, mas
também por irrenunciáveis padrões ético-axiológicos e deontológicos,
consagradores dos interpelantes e areteicos (“virtuosos”) valores da
humildade intelectual, da probidade, da seriedade, da honestidade, da
isenção, da dignidade, da verdade e da excedência (auto-superação),
rumo à excelência318...
Quanto ao segundo plano igualmente já atrás referido (ou seja,
o plano da “condição” e “estatuto” institucional de “cientista”, de
“investigador” e de “académico”), vai nele pressuposto e implicado o
desenvolvimento de uma forte, estruturada e permanentemente
actualizada consciência filosófico-epistemológica, cultural e crítica,
holística e holofótica, quanto ao seu específico “território fenoménico”
de referência e de incidência, de modo a permitir-lhe assumir e
sustentar, em todas as circunstâncias, aquele correcto e fundamentado
entendimento de Vítor Aguiar e Silva319, segundo o qual, «uma teoria
317
Cf. António Castanheira Neves no seu denso e interpelante ensaio: «Da “verdade”
especulativa e dogmática da filosofia às “verdades” exactas e controláveis da ciência
— ou o erro da pretensa superação da filosofia pela ciência?», in revista Lusografias,
n.º 6/7/8, ano III, Lisboa, Edições Piaget, 2007, pp. 20-31: «(...) o mundo da vida (...)
é a pátria a que a ciência sempre terá de voltar, numa assimilação humano-
cultural de sentido, sob pena de uma sua alienação humana e de inumanos
resultados.» (p. 23).
318
A excelência (em grego: éretÆ [arete]), por nós perseguível, mas nunca
atingível..., tem um “horizonte” transcronotópico (ou se se preferir: utópico,
transcendental, “metafísico”...), doador de sentido e semaforizador dos rumos de todo
e qualquer projecto humano.
319
Cf. Vítor Aguiar e Silva: «As relações entre a Teoria da Literatura e a Didáctica
da Literatura: Filtros, Máscaras e Torniquetes», op. cit., pp. 3-9. Este entendimento
formulado por Vítor Aguiar e Silva do que deve ser uma «teoria científica» está em
165
Fernando Paulo do Carmo Baptista
científica deve ser uma construção sistemática de conceitos, de
proposições e de hipóteses que proporcionam uma descrição e uma
explicação globais e coerentes de uma determinada área de
fenómenos». Mas sem esquecer também a prudencial salvaguarda de
que essa construção não é alheia nem imune às contingências e aos
dinamismos de evolução e metamorfose que marcam o processo global
do conhecimento científico, como o não é, aos conflitos entre teorias,
modelos e paradigmas, aos condicionamentos de protocolos, programas
e políticas de investigação, bem como às tensões geradas pelos próprios
jogos de interesses, influências e disputas de concepção e exercício do
poder que se travam no interior das academias e das comunidades
científicas e fora delas e que Pierre Bourdieu, no contexto do
diagnóstico hermenêutico-sociológico da etiologia da crise do “Maio
de 68”, retratou com impiedosa e percuciente lucidez e frontalidade,
nas famosas análises plasmadas no seu Homo Academicus320.
consonância com a concepção que, por exemplo, Rom Harré (As Filosofias da
Ciência, Lisboa, Edições 70, 1988, p. 79) apresenta da «ciência», quando a
perspectiva como «um conjunto de teorias bem verificadas, que explicam padrões,
regularidades e irregularidades entre fenómenos cuidadosamente estudados» ou com
Morris H. Shamos, quando considera que «the design of conceptual schemes, models,
and theories» consiste em «to account for major segments of our experience with
nature, and ultimately form the bases for all explanation in science» (cf. Morris H.
Shamos: The Myth of Scientific Literacy, New Brunswick / New Jersey, Rutgers
University Press, 1995, p. 46) e revela-se bem mais abrangente e melhor definido e
especificado do que nomeadamente o de Paul de Man (op. cit., p. 14) que se limita a
ver na teoria «um sistema de conceitos que visa dar uma explicação global a uma área
do conhecimento».
320
Análise de questões, por exemplo, como as da articulação entre academia e estratos
e classes sociais, elitismo e cultura do status quo, hierarquia, prestígio e «estatuto»
académico, influência institucional e curricular, tensão entre ortodoxia, heterodoxia e
«heresia», conservadorismo, renovação e inovação, critérios e mecanismos de
selecção, controlo, reprodução do corpo professoral e gestão de carreiras, provas e
dissertações académicas, os habitus dominantes na academia, o sistema doxástico e
os códigos de avaliação, validação e legitimação instituídos, etc., etc... (Cf. Pierre
Bourdieu: Homo Academicus, Paris, Les Éditions de Minuit, 1984).
166
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
OS “FENÓMENOS” (tå
fainÒmena)
ENQUANTO MANIFESTAÇÃO “FÓTICA” DO REAL
E INCONTORNÁVEL “SUBSTÂNCIA” CONSTITUTIVA
DOS “OBJECTOS EPISTÉMICOS”...
Dos contributos que têm vindo a ser avançados para a
dilucidação do conceito de «teoria», ressaltou o consensualizado
entendimento de que uma “teoria científica”, correctamente concebida
e construída, deve proporcionar uma “narrativa” descritivo-explicativa,
global e coerente, de «uma determinada área de fenómenos», o que
conduz à irresgatável (porque incontornável...) assunção de que, em
Ciência, são os “fenómenos” das diferentes e respectivas áreas
cartográficas de pertença que constituem a “matéria prima” sobre que
se configuram, nas objectivações / objectificações protagonizadas pelo
“sujeito epistémico”, os “objectos”321 da teorização, da investigação e
da experimentação. Mas essa focalização “objectivante” e
“objectificante”322 que “estabiliza” e configura um fenómeno na forma
de “objecto simbólico-semiósico”, no quadro da dinâmica corpóreo-
mental em que os dados hiléticos sensório-perceptivamente captados se
transformam, pela noese (nÒhsiw [noesis]) e pela semiose (shme€osiw
321
Os «objectos» do conhecimento que se pretende rigoroso e devidamente posto à
prova e que com toda a pertinência se denominam de «objectos epistémicos».
322
Em que, de modo relacional, intencional e interactivo, se institui e constitui um
«objecto» para aquele «sujeito» e, homologamente, um «sujeito» para aquele
«objecto»... Considerar, neste contexto, o meu estudo breve «A querela em torno do
“sujeito” — subjectivismo, subjectividade, objectividade...» (cf. Fernando Paulo
Baptista: Tributo à Madre Língua, Coimbra, Pé de Página Editores, 2003, pp. 195-
198, bem como a bibliografia aí apresentada).
Nota: Para um aprofundamento mais especializado desta decisiva problemática do
campo da «teoria do conhecimento», constitui um importante contributo o conjunto
de ensaios de Donald Davidson: Subjective, Intersubjective, Objective, New York,
Oxford University, Clarendon Press, 2001, pp. 3 ss, 93 ss e 135 ss, sem prejuízo da
clara apresentação feita na «Introduction» (pp. xiii ss). Estes mesmos ensaios estão
disponíveis em espanhol (Donald Davidson: Subjetivo, Intersubjetivo, Objetivo [trad.
de Olga Fernández Prat] Madrid, Ediciones Cátedra, col. teorema, 2003) e em italiano
(Donald Davidson: Soggettivo, intersoggettivo, oggettivo [trad. de Sergio Levi],
Milano, Raffaello Cortina Editore, 2003).
167
Fernando Paulo do Carmo Baptista
[semeiosis]), em conteúdos noético-noemáticos ou noemas323 e em
unidades sémicas (semas e sememas) pressupõe e implica sempre a sua
dialéctica subjectivação / subjectificação num “sujeito”: o sujeito
cognoscente, o sujeito epistémico, o sujeito semiótico... Sujeito esse
que, todavia, não é uma instância qualquer, porquanto se trata,
reconhecidamente, de uma entidade dotada de um “estatuto” onto-
gnosiológico, institucional e simbólico, intersubjectivamente avaliado,
validado e legitimado na base de uma rigorosa objectivação324 analítico-
judicativa e de uma criteriosa, exigente, testada e comprovada
ponderação valoradora do seu perfil académico e competencial e do seu
desempenho e curriculum reais, com especial destaque para a sua
produção investigativa e sapiencial nas áreas científicas e disciplinares
respectivas.
É assim que, em lógica e implicativa consequência, importa
sublinhar que “os objectos epistémicos”325 não existem a se ou propter
naturam: são, pelo contrário, na perspectiva de Remo Bodei326,
«unidades intencionais, pontos nodais da rede de coordenadas com que
323
Também ditos, peircianamente, «significados» ou «objectos imediatos». Cf.
Umberto Eco: Leitura do Texto Literário — Lector in Fabula, Lisboa, Editorial
Presença, 1983, 33-35.
324
Sobre este processo de «objectivação», ver, com os indispensáveis ajustamentos,
Pierre Bourdieu: El ofício de científico..., op. cit., 160-165, destacando, desde já, o
seguinte ajuizamento que bem pode inscrever-se no que ele denomina de princípio de
vigilância ou de prudência epistemológica: «Una tarea de objectivación sólo está
científicamente controlada en proporción a la objectivación a que ha sido sometido
previamente el sujeto de la objectivación» (p. 160). Igualmente importante se afigura
a abordagem aí feita ao problema do “ponto de vista” no contexto daquele processo
(cf. pp. 164 ss); ver também, pela sua fundacional pertinência na construção e
validação dialógico-colegial do conheciemento, Donald Davidson: Subjective,
Intersubjective, Objective, New York, Oxford University, Clarendon Press, 2001: p.
209: «the source of the concept of objective truth is interpersonal communication»;
«thought depends on communication»; «only communication with another can supply
an objective check»; p. 218: «a community of minds is the basis of knowledge»; p. p.
220: «the clarity and effectiveness of our concepts grows with the growth of our
understanding of others»; «there are no definite limits to how far dialogue can or will
take us»; p. 220: «our propositional knowledge has its basis not in the impersonal but
in the interpersonal».
325
E é desses “objectos” que aqui se trata!...
326
Cf. Remo Bodei: A Filosofia no Século XX, Lisboa, Edições 70, 2005, p. 133, no
contexto da sua abordagem a Husserl e à Fenomenologia.
168
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
o mundo está estruturado» por acção do poder imaginante,
conjecturante, noético-constitutivo, conceptualizante e configurante da
“mente” daquele mesmo “sujeito cognoscente” e das “mentes” de seus
confrades no respectivo “colégio académico”.
Por outro lado, dadas, como vimos, a natureza “substante” dos
fenómenos, a sua condição “arqueológica” e a sua “matricialidade”
interpelante, suscitante e co-originante, no processo do conhecimento,
não pode deixar de se impor aqui, e a partir de agora, uma prévia
(porque indispensável...) tentativa de clarificação do termo (e do
conceito...) através do qual eles, fenómenos, são nomeados, instituídos,
designados, identificados, singularizados e universalizados...
Julius Pokorny327, no seu monumental Indogermanisches
Etymologisches Wörterbuch328 (que, do ponto de vista filológico,
continua a ser, sem dúvida, um dos thesauri mais importantes para o
estudo do indo-europeu...), regista, em outras tantas páginas, mais de
mil raízes lexémicas devidamente individualizadas e organizadas por
“entrada” e distribuídas por dois grossos volumes329. Desse tão copioso
327
Um dos mais destacados filólogos do século XX, pelas suas relevantes investigações
na área do indo-europeu, nasceu em Praga em 12 de Junho de 1887, concluiu os seus
estudos superiores na Universidade de Viena, onde foi professor, entre 1913 e 1920.
Sob o regime nazi, foi titular da cátedra de Filologia Celta na Universidade Humboldt,
de Berlim, de 1920 a 1935. Mas, não obstante ser católico e ser publicamente
reconhecido como um patriota alemão, ficou a saber o que significava e quanto
custava ser oriundo de uma família judia: aos olhos do nazismo, ele não era alemão,
era apenas um judeu tal como os seus avós... Em 1943, teve de emigrar para a Suíça,
onde exerceu a docência nas Universidades de Berna e de Zurique até à jubilação. Em
1954, foi-lhe conferido o estatuto de «professor honorário» da Universidade Luís-e-
Maximiliano de Munique, onde leccionou, com algumas intermitências, até 1965.
Faleceu em Zurique em 8 de Abril de 1970, três semanas depois de ter sido atropelado
por um carro eléctrico. Ficou-se-lhe a dever o monumental Indogermanisches
Etymologisches Wörterbuch que continua a ser uma obra de referência no âmbito dos
estudos do indo-europeu.
328
Cf. Julius Pokorny: Indogermanisches Etymologisches Wörterbuch, 2 vols.,
Tübingen, Francke A. Verlag, 2005, recentemente reeditado. Este monumental
thesaurus filológico é fruto de um árduo e persistente labor de décadas e caracteriza-
se por uma criteriosa e minuciosa actividade de recolha, contrastação poliglótica e
reconstituição comparatística.
329
Há uma edição on line, complementada com outros desenvolvimentos de natureza
lexicológica, de que se destaca a seguinte informação: «The database represents the
updated text of J. Pokorny’s “Indogermanisches Etymologisches Wörterbuch”,
scanned and recognized by George Starostin (Moscow), who has also added the
169
Fernando Paulo do Carmo Baptista
acervo assim lematizado, procedi à selecção de duas raízes que, para
além do prioritário e específico interesse da sua carga sémica para a
presente reflexão, têm, como aliás frequentemente acontece com outras
raízes, a adicional curiosidade de apresentarem a mesma textura
morfémica:
— uma, identificada no Wörterbuch (p. 104), através da
“entrada” bha-1 (assinalado com o expoente 1);
— a outra, igualmente identificada no Wörterbuch (p. 105),
através da “entrada” bha-2 (assinalado com o expoente 2).
A primeira330 delas — a raiz bha-1 — apresenta variantes
morfémicas decorrentes de uma complexa evolução histórico-
civilizacional com as específicas diferenciações e singularizações geo-
etno-culturais e idiolectais331, traduzidas quer ao nível da configuração
meanings. The database was further refurnished and corrected by A. Lubotsky.
Pokorny’s text is given practically unchanged (only a few obvious typos were
corrected), except for some rearrangement of the material». (cf.:
https://marciorenato.files.wordpress.com/2012/01/pokorny-julius-proto-indo-
european-etymological-dictionary.pdf);
cf. também: http://dnghu.org/Indo-European-Language-Europe/
330
Primeira, porque lematizada por Pokorny em primeiro lugar, sem todavia aduzir,
para tal “prioridade”, qualquer justificação linguístico-diacronicamente
fundamentada: por exemplo, a comprovada (e datada...) anterioridade de uma face à
outra... J.P. Mallory and D.Q. Adams: The Oxford Introduction to Proto-Indo-
European and the Proto-Indo-European World, Oxford, Oxford University Press,
2009, p. 328-329, referem a raiz * bheh2-, com o significado genético de “brilhar”,
raiz presente, por exemplo, no lexema grego α ν , no sânscrito bh ti e bh s-, no
antigo irlandês b n...
331
O indo-europeu integra dez vastas «famílias de línguas» que passo a referir, a partir
da apresentação feita por Jonathan Slocum, do «Linguistics Research Center (LRC),
da Universidade do Texas (cujo «e-portal» é o seguinte:
http://www.utexas.edu/cola/centers/lrc/eieol/IEfam.html):
1. Celtic, with languages spoken in the British Isles, in Spain and across southern
Europe to central Turkey; 2. Germanic, with languages spoken in England and
throughout Scandinavia & central Europe to Crimea; 3. Italic, with languages spoken
in Italy and, later, throughout the Roman Empire including modern-day Portugal,
Spain, France, and Romania; 4. Balto-Slavic, with Baltic languages spoken in Latvia
& Lithuania, and Slavic throughout eastern Europe plus Belarus & the Ukraine &
Russia; 5. Balkan (exceptional, as discussed below), with languages spoken mostly in
the Balkans and far western Turkey; 6. Hellenic, spoken in Greece and the Aegean
Islands and, later, in other areas conquered by Alexander (but mostly around the
Mediterranean); 7. Anatolian, with languages spoken in Anatolia, a.k.a. Asia Minor,
i.e. modern Turkey; 8. Armenian, spoken in Armenia and nearby areas including
170
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
fonémica (e.g: fenómenos de vocalismo e consonantismo), quer ao
nível da morfo-estruturação (e.g: fenómenos de ampliamento
morfemático das bases lexicais, alargamentos sufixais da matriz do
tema...) no interior de cada língua concreta — *bhee-, / *bhae-, / *bhe-
w- / *bhe-w-es- > be- / ba- / be-w- / ba-w- / fe- / fa- [ > fo-] — e revela
um forte potencial lexicogénico, bem patente no léxico de várias línguas
de cultura, desde as mais antigas até às actuais 332.
Da “babélica” galáxia de lexemas disseminados, aqui e além,
pelo polifónico “território” das cento e oitenta e oito (188) línguas e
dialectos que integram a comunidade das dez famílias interlinguísticas
do indo-europeu (céltica, germânica, itálica, balto-eslávica, balcânica,
helénica, anatoliana, armeniana, indo-iraniana e tocariana333), limitei-
me a organizar um muito circunscrito inventário ilustrativo334 para,
eastern Turkey; 9. Indo-Iranian, with languages spoken from India through Pakistan
and Afghanistan to Iran and Kurdish areas of Iraq and Turkey; 10. Tocharian, spoken
in the Tarim Basin of Xinjiang, in far western China.
332
Aquele que é o nuclear, incindível e irredutível constituinte morfo-semântico do
corpo estrutural de qualquer lexema e que, em terminologia linguística, dá pelo nome
de «raiz» configura-se, no caso em análise, nesta concreta raiz indo-europeia bha- que
está, efectivamente, na génese de um vasto legado lexical interlinguístico, como se
pode inferir da amostragem (mesmo circunscrita...) que se apresenta, já a seguir, na
nota 334. Para o termo e conceito linguístico de «raiz», consultar: Hadumod
Bussmann (dir.): Routledge Dictionary of Language and Linguistics, London and
New York, Routledge, 2004, entrada «root», pp. 409-410; David Crystal: An
Encyclopedic Dictionary of Language and Languages, Oxford, Blackwell Publishers,
1992, entrada «root», p. 336; Maria Francisca Xavier e Maria Helena Mateus (org.):
Dicionário de Termos Linguísticos, Lisboa, 1992, vol. 2, entrada «raiz», p. 321; Jean
Dubois et alii: Dictionnaire de Linguistique, Paris, Larousse, 1974, entrada «racine»,
p. 403.
333
Ver, supra, nota 331.
334
Esse inventário está assim distribuído:
— EM GREGO CLÁSSICO (e facilmente se compreenderá o destaque, mesmo
circunscrito, que aqui se lhe dá, enquanto língua arquitectante por excelência da
cultura europeia e planetária...): fãow, fãouw // f«w, fvtÒw (= luz cósmica), Fa°yvn
(= Faetonte, filho de ÜHliow [Hélio, o Sol] e desastrado condutor do carro do pai, que
acabou por ser fulminado por Zeus, caindo no rio Erídano), fae€nv (= brilhar), fa€nv
(= fazer brilhar, tornar(-se) visível, tornar(-se) presente, revelar(-se), apresentar(-se),
dar(-se) a conhecer, explicar(-se), aparecer, mostrar-se, manifestar-se...), fanerÒw, -
ã, - Òn (= visível, que se pode ver, que se mostra, aparente...), fanÆ, - w (archote,
tocha...), fanÒw, -Æ, - Òn (= brilhante, luminoso, claro, evidente, manifesto...), tå
fainÒmena (= as constelações visíveis, os fenómenos celestes...), fantasiÒv (= fazer
nascer uma ideia, inventar, imaginar, fantasiar, ver através da imaginação...),
171
Fernando Paulo do Carmo Baptista
subsequentemente, proceder à comparação (num direccionado intento
de corroboração probatória...) com os lemas respectivos de vários
outros dicionários (nomeadamente, etimológicos e terminológicos),
segundo o predominante critério da afinidade linguístico-cultural e
histórica.
Da análise e ponderação dos respectivos significados basilares
e primigénios, creio poder-se concluir que o núcleo de semas essenciais
e comuns aos lexemas seleccionados é constituído pelas ideias de luz,
brilho, manifestação, visibilidade..., configurando uma espécie de
“molécula” orgânico-identitária que contém e armazena a informação
semântica fundamental de uma dada família de palavras,
invariantemente subjacente aos processos de significação e de
comunicação verbal, “molécula” que venho designando pela metáfora
de “adn semântico”.
Abre-se, deste modo, uma clareira para o desafio que se nos
colocou, face à irredutível assunção de que é nos “fenómenos”
fãntasiw (= visão), fantas€a (= acção de se mostrar, aparição, visão, figuração
imaginária, espectáculo dirigido à fantasia...), tÚ fantastikÒn (= a imaginação, o
imaginário...)...
— EM GREGO BÍBLICO: yeofan€a / yeofãneia (= aparição ou revelação da
divindade)...
— EM LATIM (aportações resultantes dos processos, entre outros, da helenização e da
cristianização): epiphania, Phaethon, phantasia, phantasma, theophania..., bandum
(em latim tardio e de origem gótica: estandarte ou insígnia que dá nas vistas e que,
sobretudo no pré-feudalismo e no feudalismo, passou a simbolizar e a afirmar o poder
instituído; daí, com sucessivas interacções metonímicas e contextuais: bando,
bandeira, bandeirola, bandoleiro, bandarilha...)...
— EM PORTUGUÊS (com evidente isomorfia, relativamente aos correspondentes
lexemas da generalidade das línguas românicas e mesmo das não românicas): diáfano,
ênfase, epifania, Faetonte, fanal, fânero, fanerófito, fanerogâmico, faneróide,
fantasia, fantasma, fantástico, fase, fénico, fenil, fenol, fenomenal, fenoménico,
fenómeno, fenomenologia, fenotexto, fenótipo, fosfeno, fosfóreo, fosforescente,
fósforo, fotão, fótico, fotocópia, fotoelectrão, fotogenia, fotografia, fotogravura,
fotomagnetismo, fotoquímica, fotossíntese, hierofanta, sicofanta, teofania... E ainda
(sobretudo a título de reforço probatório e de curiosidade comparativística):
— EM INGLÊS: beacon1 (verbo = dar luz a, guiar), beacon2 (substantivo = farol)...
— EM SÂNSCRITO: bhati (= brilhar, cintilar)...
— EM INDIANO ANTIGO: vi-bhā van- (= irradiar, brilhar)...
— EM GÓTICO E GERMÂNICO: bandwa (= insígnia, estandarte, e também (através do
latim tardio: bandum...) bando, ou seja, grupo armado constituído sob a mesma
bandeira)...
172
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
(conceptualmente enquadrados...) que, como acaba de ser dito, reside a
base de sustentação e a fonte de alimentação de toda a actividade
científica.
É que um “fenómeno”, em consonância com a semântica
arqueológica do nome que o nomeia, é uma «manifestação de luz»: na
verdade, o plural neutro — tå fainÒmena — designava, na velha
Grécia, «as constelações visíveis», «os fenómenos celestes» e, por
extensão, tudo quanto podia ser observado, contemplado e explicado.
Porque, sem luz, sem a luz que vinha dos deuses e sem a “luz” que
irradiava da sof€a [sophia] dos yevro€ [theoroi] e da Paideia, não era
possível a yevr€a [theoria]...
Um “fenómeno” é, efectivamente, aquele auroral e genesíaco
“aparecer” que começa por desencadear o espanto da admiração e da
curiosidade e a concentração meditativa da contemplatio e que, através
de uma inconformada e aprofundante indagação, através de uma
popperiana «búsqueda sin término»335, se vai transformando em
“objecto epistémico”, a ser interpretado, compreendido, descrito,
caracterizado e explicado, de forma rigorosa, clara, coerente e global,
pelo potencial de racionalidade e de intelecção proporcionado pelas
teorias científicas, com a sua “arquitectónica” de princípios e axiomas,
leis, protocolos e demais mecanismos de regulação operatória, com a
sua rede sistemática de termos e conceitos, proposições, hipóteses,
problemas (“quebra-cabeças”), paradigmas, modelos, métodos e
procedimentos...
Os “fenómenos”336 consubstanciam, assim, a luminosa
manifestação, no aparecer, de tudo quanto nesse aparecimento se pode
tornar captável e concebível (do latim: capere e concipere),
constituindo o puro e simples desvelar-se do ser em si, num jogo e num
desafio intérminos: o aberto e interpelante jogo e desafio da verdade
335
Tal é o título, em espanhol, da autobiografia intelectual de Karl Popper, um
fascinante roteiro do que foi a derradeira fase da sua vida reflexiva e indagativa em
torno da problemática das «teorias científicas» (cf. Karl R. Popper: Búsqueda sin
término — Una autobiografía intelectual, Madrid, Editorial Tecnos, 1985).
336
Sobre o termo e o conceito de «fenómeno», ver, na entrada respectiva: Nicola
Abbagnano e Giovanni Fornero: Dizionario di Filosofia, Torino, UTET, 1998, pp.
472-473 e André Lalande: Vocabulaire Tecnique et Critique de la Philosophie, Paris,
PUF, 101968, pp. 365 ss.
173
Fernando Paulo do Carmo Baptista
( λ ια [aletheia]) de que nos fala Heidegger337 e de que o Da-sein,
o humano e reflexivo «pastor do ser», é, entre ocultação e revelação, o
intransferível protagonista, o desassossegado, insatisfeito e criativo
indagador e construtor...
Perspectivados à escala cósmica, à luz de uma teoria como a
«M-theory de supercordas»338 e no horizonte global de um processo
evolutivo e metamórfico de complexificação e expansão crescentes339
que culminou na epifania do Homem no ventre acolhedor de Deméter,
todos os “fenómenos”, no âmago dos diferentes modos de irrupção
manifestativa e de configuração expressional da sua natureza,
materialidade e/ou simbolicidade, transportam sempre consigo as
prístinas radiações “fotónicas” daquelas elementais, super-quentes,
super-densas e super-vibráteis nano-partículas340 que se libertaram na
Grande Explosão ou Big Bang com que, segundo a conjectura mais
generalizadamente aceite entre astrónomos, cosmólogos, físicos de
partículas e físicos em geral, se terá inaugurado, a singularidade do
processo da cosmogénese, para, nas condições de adequabilidade
receptiva que foram proporcionadas por milhões de anos de evolução,
suscitarem, como “réplica”, a “contra-radiação” neuronal, inteligente,
reflexiva e alumiante, saída das corpóreas entranhas da antropogénese:
no fundo, uma luz ao desvelador e dialógico encontro e confronto com
outra luz...
Por isso é que, independentemente das concretas consequências
de natureza epistemológica originadas pela viva controvérsia que, nos
começos do século XX, a tríade relacional «fenómeno <> observador
<> teoria»341 suscitou no seio da comunidade científica dos Físicos, ao
337
Cf. Martin Heidegger: Sein und Zeit (na tradução de José Gaos: El Ser y El Tiempo,
México, Fondo de Cultura Económica, 41971), § 44, pp. 233-252.
338
Teoria que, ao que tudo indica, tende cada vez mais a vir a ser, na Física, «The
Magic, Mystery or Matrix Theory of Everything»... Cf. Brian Greene: O Universo
Elegante, Lisboa, Gradiva, 22004, pp. 171 ss.
339
De facto, para o bem e para o mal, o aparecimento do Homem na Terra constitui
seguramente o mais maravilhoso de todos os fenómenos, de tal modo que Teilhard de
Chardin o consagrou, perenizou e singularizou numa obra célebre, com o nome (e
título inesquecivelmente bem significativo...) de «O Fenómeno Humano». Cf.
Teilhard de Chardin: O Fenómeno Humano, Porto, Livraria Tavares Martins, 1965.
340
Nomeadas e identificadas pelas metáforas músico-instrumentais das violínicas
«cordas» e «supercordas».
341
Que bem poderá dizer-se «tríade epistémica».
174
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
convocar teses como as de Pierre Duhem342 e ao envolver directamente,
na polémica, figuras tão destacadas como Niels Bohr, Schröedinger,
Heisenberg e Einstein, não deixa de ganhar uma forte dimensão
simbólica a famosa posição anti-positivista enunciada pelo genial
teorizador da relatividade, segundo a qual, «there is no observation
without theory»343!... E isso (acrescentaria agora eu, se me fosse
342
Em que ele defende, nomeadamente, que «an experiment in Physics can never
condemn an isolated hypothesis but only a whole theoretical group»; numa palavra,
que «the physicist can never subject an isolated hypothesis to experimental test, but
only a whole group of hypothesis» e que, «when the experiment is in desagreement
with his predictions, what he learns is that at least one of the hypothesis constituting
this group is unacceptable and ought to be modified; but the experiment does not
designate which one should be changed.» (cf. Martin Curd & J. A. Cover (eds.):
Philosophy of Science — The Central Issues, New York / London, W. W. Norton &
Company, 1998, pp. 302 ss). Defende, ainda, que não se pode falsificar, de modo
concludente, uma teoria, uma vez que não é possível excluir a hipótese de que o
responsável por uma predição errónea seja parte da complexa situação de
comprovação, e não, a teoria submetida à prova, que a concordância com a
experiência é o único critério de verdade para uma teoria física, que uma
experimentação não é apenas a observação de um fenómeno, mas é, além disso, a sua
interpretação teorética e que as teorias não explicam as leis nem fazem com que as
leis expliquem os factos, porquanto a explicação é do domínio da metafísica e não da
ciência... Para além de tudo isso, inspirado na pascaliana «raison du cœur», dá grande
relevância «à fineza de espírito» e ao papel orientador e regulador do «bom senso»:
«Pure logic is not the only rule of our judgements; certain opinions which do not fall
under the hammer of the principle of contradiction are in any case perfectly
unreasonable. These motives which do not proceed from logic and yet direct our
choices, these ‘reasons which reason does not know’ and which speak to the ample
‘mind of finesse’ but not to the ‘geometric mind’, constitute what is appropriately
called good sense» (idem: ibidem, p. 309).
343
Enunciação feita no contexto do questionamento da importância das
«consequências empírico-experimentais» proclamada por Pierre Duhem
(relativamente à teoria), da tese da complementaridade lógico-matemática de Niels
Bohr, em contraponto com o paradoxo do chamado «gato de Schröedinger», da
«teoria das variáveis escondidas», de Einstein (contra Bohr), e da preocupação
consensualizadora revelada por Heisenberg: para Einstein, é a teoria que decide o que
se pode observar; para Heisenberg, é a teoria que deve adequar-se ao que é possível
observar (cf. Giuseppe Tanzella-Nitti e Alberto Strumia (curat.): Dizionario
Interdisciplinare di Scienza e Fede, Città del Vaticano, Urbaniana University Press,
2002, vol. 2, entradas: «Duhem» (pp. 1076 ss), «Einstein» (pp. 1728 ss),
«Heisenberg» (pp. 1835 ss); cf. também Thomas J. Hickey: History of Twentieth-
Century Philosophy of Science, www.philsci.com., 2005, cap. IV: «Werner
Heisenberg and the semantics of quantum mechanics».
175
Fernando Paulo do Carmo Baptista
permitida a ousadia...), na mesma medida em que não há fenómenos
sem luz, como, verdadeiramente, também não “há” luz nem fenómenos
fora da mediação modelizante, instituidora e constitutiva da
palavra!344...
E essa “condição” já está inseminada desde tempos imemoriais
no “adn semântico” da raiz indo-europeia — bhā-1 345— para o caso da
«luz».
Mas está igualmente inscrita no coração da raiz sua
“homozigótica”346 — bhā-2 347 —, cujo “adn semântico” remete para as
ideias de falar, falar em público, assumir a palavra abertamente, falar
de forma clara, audível, entendível, evidenciante e “alumiante”, com
o convergente reforço de várias outras raízes do mesmo universo
semântico348, sendo naturalmente conjecturável a ocorrência de
interacções e/ou “contaminações” de natureza tropológica: do lado da
metáfora e do seu “phoretic pole”349, dada a evidente analogia entre as
ideias de luminosidade, brilho, fulgor e clareza e as ideias de falar de
modo claro e inteligível, exprimir-se e explicar-se bem, tornar bem
visíveis, entendíveis e claras as coisas, falar e/ou escrever com
344
Cabe recordar, neste contexto, o jovem professor do romance Para Sempre
(Vergílio Ferreira: Para Sempre, Lisboa, Bertrand, 1985), quando na aula em torno
do tema da linguagem diz o seguinte: «Não há (...) um mundo real traduzido em
palavras, mas um nundo de palavras sobreposto a esse real (p. 195).» E um pouco
mais adiante (p. 197): « — Ninguém pode sair das fronteiras da língua, a
objectividade da razão está na rede que uma língua teceu. As palavras vivem por si,
pensar é articular um sistema de vocábulos, de sons ocos».
345
Ver, supra, nota 334.
346
Ou “irmã gémea”, do ponto de vista da textura mórfica. Todavia, importa ter na
devida conta a informação constante em J.P. Mallory and D.Q. Adams: The Oxford
Introduction to Proto-Indo-European and the Proto-Indo-European World, Oxford,
Oxford University Press, 2009, p. 355, em que é apresentada a conjectura da forma
originária da raiz: * bheha-, presente, por exemplo, em palavras como as latinas for,
f ris, f tus sum, aff bilis, f bula, f bulor, f bulator, f cundia, f ma, etc., as gregas
e , o russo báju, o arménio bay...
347
Esta raiz indo-europeia bh -2 (com a forma originária *bheh2- [cf. J.P. Mallory and
D.Q. Adams: op. cit., p. 329] e com as variantes bh -/bhē- // ph -/phē- [> f -/fē-) está
na génese de um vasto legado lexical interlinguístico, de que, nas ANOTAÇÕES finais
se apresenta uma significativa amostragem, dada a sua específica relevância para o
tema da presente reflexão.
348
Ver exemplificação nas ANOTAÇÕES finais.
349
O pólo metaforizante da luz (exs: a luz ou o brilho da palavra; a palavra é a luz»;
um discurso brilhante, uma lição fulgurante...).
176
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
brilhantismo...; do lado da metonímia, dada a relação de contiguidade
da palavra (e de quem a acciona, profere ou enuncia...) com os deuses,
senhores da luz e das estrelas, com as teofanias mediadas pelos textos
da revelação e pelas prédicas, homilias e discursos apologéticos,
parenéticos e celebratórios e restantes rituais da esfera do sagrado:
convocações, eclesias [§kklhs€ai], sinagogias [sunagvg€ai],
concílios, proclamações, anunciações, profecias, oráculos, vaticínios,
premonições, adivinhações, rezas, preces, orações, cânticos, litanias,
maldições, esconjuros, exorcismos, imprecações, augúrios, agoiros350...
Manifestações todas elas, em que, no fundo, a palavra aparece a
partilhar da ubiquidade e da essência dos próprios deuses. Basta
recordar figuras míticas dos Poemas Homéricos como o sacerdote
Crises ou o adivinho Tirésias ou, então, de uma pitonisa grega como a
do templo de Apolo, em Delfos, de um patriarca bíblico como Abraão
ou de um profeta como Isaías...
Todavia, a plenitude dessa relação contiguitária com o “divino”,
em que a palavra verdadeiramente tange a esfera da luz inextinguível e
primigénia, consuma-se, na minha perspectiva, nos efeitos ilocutórios
(fotogónicos) da frase imperativa enunciada por Deus no Génesis (1,
3): «E Deus disse: “Faça-se a luz!” E a luz foi feita.»
Creio poder encontrar-se, neste passo do Génesis, o eco
intertextual que terá levado o intuitivo e “misterioso” autor351 do
Apocalipse a “descobrir” o incomparável poder cosmogónico da
palavra, ao ponto de a “identificar” (metaforicamente que seja...) com
a Divindade, com a Vida e com a Luz, plasmando essa identificação
nas páginas imorredouras do seu Evangelho (cf. Joannes: I, 1-14) para
memória dos Homens, da História e da Cultura: «o Verbo é Deus, é
350
De notar que a generalidade dos lexemas desta enumeração/acumulação (prédicas,
homilias, discursos apologéticos, parenéticos e celebratórios, convocações, eclesias,
sinagogias, concílios, proclamações, anunciações, profecias, oráculos, vaticínios,
premonições, adivinhações, rezas, preces, orações, cânticos, litanias, maldições,
esconjuros, exorcismos, imprecações, augúrios, agoiros...) têm raízes cujo “adn
semântico” reenvia para a ideia de «palavra», numa constante relação de contiguidade
com as dimensões do sagrado e do divino...
351
Em nome do rigor exegético e hermenêutico, não pode deixar de se referir que se
trata de uma «autoria conjectural», ponderando a polémica que se vem desenvolvendo
em torno da verdadeira autoria, quer do Apocalipse, quer do chamado IV Evangelho,
que, como se sabe, são atribuídos (conjuntamente com três epístolas) ao apóstolo São
João, pelo cânone bíblico...
177
Fernando Paulo do Carmo Baptista
Vida, é Luz que ilumina todos os homens» — Verbum est Deus, Vita,
Lux omnem hominem illuminans.
Por outro lado, as duas homozigóticas raízes indo-europeias —
bhā e bhā2 — vieram também dizer que, se a luz é pertença dos deuses,
1
a palavra é a faculdade, a possibilidade e a condição antrópica da sua
inteligibilidade, ou seja, é a “luz” da própria luz. De facto, sem a
linguagem verbal, o mundo não era «mundo»: seria o caos mais negro,
mais cego e mudo que imaginar se pode!... Sem a verbosfera, sem as
construções que ela possibilita, sem a informação que ela liberta,
organiza e distribui, o saber sobre o Cosmos, sobre a Terra, sobre a
Vida e sobre o próprio Homem seria impossível. Sem a palavra, toda a
energia criadora da Humanidade ficaria irrevelável. No universo
inteiro, mesmo povoado de seres de toda a espécie, mesmo recamado
dos milhões de galáxias repletas de miríades de estrelas
superluminosas, reinaria a escuridão negra do mais absoluto silêncio...
Tudo «olharia» para tudo sem qualquer sentido que iluminasse essa
mirada... Nada nem ninguém, porque seria a mudez de tudo352...
Porque são luz e senhores da luz (di-lo a raiz constitutiva dos
nomes que os nomeiam — Zeus, Iupiter, Deus —, como já nos foi dado
ver logo no início desta reflexão...), foi aos deuses que coube sobre ela
— luz — o poder supremo: a nós, humanos, caber-nos-á a “socrática”
contra-partida (até para prevenir prometeicos desvarios ou narcísicas
miragens...) de ter sempre presente a convergente lição de Platão e de
352
Cf. Fernando Paulo Baptista: Tributo à Madre Língua, Coimbra, Pé de Página
Editores, 2003, pp. 61-62. Na verdade, a criação de um mundo com um sentido
genuinamente humano afigura-se de muito difícil consecução fora das fronteiras da
palavra, tal como o sublinha Hugo Mujica, quando, em heideggeriano registo,
escreve: «como palabra del ser, el hombre se convierte en el privilegiado lugar en el
que acontece la irrupción, el despliegue y la expresión del sentido de la existência»
(cf. Hugo Mujica: Flecha en la niebla — Identidad, palabra y hendidura, Madrid,
Editorial Trotta, 1997, 158); ou Fernando Bárcena (repetindo Agamben...), quando,
em lapidar síntese, afirma que «crear es decir y nombrar» (cf. Fernando Bárcena: El
delírio de las palabras, Barcelona, Herder Editorial, 2004, p. 95). Isso, sem esquecer,
entre outras, a essencial e convergente sintonia com esta perspectiva do poder
instituidor, criador, modelador e revelador da palavra, expressa, por exemplo, no
pensamento antropológico de Joseph Gevaert (Cf. Joseph Gevaert: El Problema del
Hombre — Introducción a la Antropología Filosófica, Salamanca, Ediciones
Sígueme, 2003, pp. 46-49).
178
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
Hegel, na expressiva síntese de Remo Bodei353: na pura luz, vê-se tão
pouco como na mais cerrada escuridão...
Resta-nos, apesar de tudo, uma singular e distintiva prerrogativa
(mesmo se confinada aos balizadores, e porventura discutíveis,
“limites” de que fala Wittgenstein354...), prerrogativa essa que
Aristóteles consignou na sua Política (1253a, 9-10), nos seguintes e
consabidos termos: o homem é o único dos seres vivos dotado de
palavra — «lÒgon d¢ mÒnon ênyrvpow ¶xei t«n ν».
E se é em poética sintonia com Nemésio355 (memorável filho das
amorosas e oceânicas ilhas de Deméter, povoadas dos perspicazes,
ágeis e capturantes falconídeos que lhes deram o nome — Açores356),
se é em órfica consonância com ele que sentimos que é «da vaga
vocálica que dependemos / como alga que a onda leva à areia»,
também, em homóloga convergência com Vergílio Ferreira357, nos cabe
«inventar a realidade nas palavras que a inventam», ainda que tão-
somente sustentados no limitado poder dessa trémula e perdida
“centelha” (scintilla) que Zeus nos outorgou desde o Big Bang... Poder
limitado, sim, mas, em todo o caso, poder demiúrgico, consubstanciado,
em última instância, na faculdade modelizante e configuradora da
palavra, “fotão» semiogénico e protoplásmico da texto-gonia e da texto-
fania de todos os discursos: desde os mais simples e mais informais das
práticas comunicativas do quotidiano, aos mais elaborados e mais
complexos da Ciência, das Humanidades e das Belas Letras...
353
Cf. Remo Bodei: A Filosofia no Século XX, op. cit., p. 192.
354
Ludwig Wittgenstein: Tratado Lógico-Filosófico * Investigações Filosóficas,
Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1987, p. 115, 5.63.
355
Soneto intitulado «Verbo e Abismo», in Vitorino Nemésio: Obras Completas, vol.
II — Poesia, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1989, p. 318.
356
O topónimo ‘Açores’ provém, metonimicamente, do nome da ave falconiforme
assim chamada — ‘açor’ —, nome que tem por étimo o lexema latino ‘acceptor’, uma
variante morfológica alterada do substantivo ‘accipiter’ (< ad + cip [< cap] + pit [<
pet-] + -or / -er) que, em sua semântica originária, significa: «[ave] que, para capturar
(capio, -is, -ere) a sua presa, para ela (ad-) se lança em voo picado e ágil (peto, -is, -
ere); o «açor» é, assim, em sintonia com a semântica «arqueológica» (com o “adn
semântico”) das suas raízes constitutivas, o símbolo da perspicácia e da agilidade
mentais, da captação racional e da conceptualização dos fenómenos por que se revela
o real.
357
Vergílio Ferreira: Para Sempre, Lisboa, Bertrand, 1984, p. 194.
179
Fernando Paulo do Carmo Baptista
Verbo ao abismo idêntico, toado
Sobre os traços de fogo que precedem
A presença de Deus no monte irado358...
É por tudo isso que cada vez mais admiro o velho e enigmático
Heraclito (frg. 11), quando o imagino, espantado e perplexo, a concluir:
O raio tudo governa!...
Porque a verdade é esta: com Zeus ou sem Zeus, nós somos a
“luz” que vê a luz que vemos...
ANOTAÇÕES E ADENDA
1. A raiz indo-europeia bhā-2 e o seu legado lexical em várias línguas:
— EM GÓTICO, FRÂNCICO, GERMÂNICO, FRANCÊS, NORUEGUÊS E INGLÊS
(estas três últimas, sobretudo em suas variantes diacrónicas “old”: old
french, old norse, old english...), assumindo especial relevância em
certas práticas comunicacionais inerentes à organização social e às
dinâmicas institucionais daí decorrentes, nos domínios religioso,
político e militar do pré-feudalismo e do feudalismo e no quadro da
dialéctica «palavra VS poder». Assim, por exemplo, tanto as autoridades
religiosas como as civis e militares tinham, entre outras, a prerrogativa
de fazer convocações, intimações e proclamações públicas, práticas
estas, marcadas por uma clara centralidade e preeminência da palavra.
De tal modo que aquele que, simultaneamente, tinha o poder da palavra
e a palavra do poder configurada em actos linguísticos institucionais e
públicos como os já mencionados (actos de convocação, de intimação
e de proclamação...) se designava e identificava,
— EM FRANCÊS ANTIGO, pelo nome ban (lexema constituído pela raiz
bh -, com adjunção do sufixo -n) que, por isso mesmo, também
significava (numa relação metonímica de «dominador <> dominado»,
«soberano <> vassalo», «subordinante <> subordinado», «causante <>
358
Vitorino Nemésio: Obras Completas, vol. II, op. cit., p. 318.
180
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
causado»...) autoridade, senhor, chefe, comandante... Ainda na mesma
linha de sentido e tomando sempre como base a já citada e comum raiz
fundacional bh - / bhē-, no que diz respeito especificamente às
proclamações, cabe sublinhar que os lexemas que as nomeiam
apresentam o mesmo designador ban [< bh - + -n], com ligeiras
ampliações sufixais. Exemplificando:
— EM GERMÂNICO, proclamar dizia-se banwan [< ban + -wan];
— EM GÓTICO, proibir ou impedir, dizia-se bannan [< ban- + -nan];
— EM NORUEGUÊS ANTIGO, banna [< ban- + -na] significava anunciar
publicamente a proibição (proibir) ou proclamar a maldição
(amaldiçoar);
— EM INGLÊS ANTIGO, gebann [< ge- + ban- + -n] significava
proclamação;
— EM FRÂNCICO, o verbo bannjan [< ban- + njan] tinha o significado
de banir, ou seja, proclamar a exclusão, declarar publicamente a
condição de proscrito e, daí, expulsar, desterrar, proibir, silenciar,
suprimir...
— EM GREGO: o substantivo fÆmh, -hw (homólogo do nome latino fama,
-ae = fama, revelação e publicitação pela palavra; oráculo, augúrio,
presságio ou advertência vinda dos deuses; reputação [favorável ou
desfavorável, boa ou má] posta a circular em público acerca de alguém);
o verbo fhm€ (= falar, tornar manifesto o seu pensamento através da
palavra, revelar, anunciar em público...); o verbo blasfhm°v
(equivalente ao verbo latino maledicere = ‘maldizer’; cabe sublinhar a
conjectura, segundo a qual, este lexema grego se terá constituído na
base da combinação da raiz *m s [portadora da ideia de “mau” e de onde
provém o adjectivo latino «malus, -a, -um»], com a raiz “ph -” [> ph
/ phē-”], presente no já referido verbo fhm [f mi = falar]: o verbo
blasfhm°v significa, assim e literalmente, «maldizer, dizer mal,
proferir palavras ofensivas, blasfemar, praguejar» e, no contexto das
práticas sacrificiais de natureza religiosa, assumia o significado
específico de «fazer afirmações de mau agoiro, proferir expressões
ofensivas da divindade»); o substantivo blasfhm€a (= maledicência,
impropério, insulto, blasfémia, palavra ou expressão injuriosa ou
desrespeitosa do sagrado e do divino...); fvnÆ (= som vocal, forte e
nítido, voz...); f nhma (= som vocal, palavra, discurso, fonema [este,
em sentido “técnico” especializado]...), verbo fvn°v (= falar alto, dar
voz de comando, emitir sons vocais, audíveis e claros...), profhtÆw (=
181
Fernando Paulo do Carmo Baptista
profeta, aquele que interpreta a vontade dos deuses e que fala
publicamente em seu nome, aquele que anuncia o futuro...);
— EM LATIM: *for, faris, fari, fatus sum (= falar, dizer...), fatalis, -e,
(fatal, isto é, que foi predito ou vaticinado pelos oráculos dos deuses,
ou pelo fatum ou destino), fateor, -eris, -eri, fassus sum (= confessar,
manifestar, declarar; com os seus derivados: confiteor, confessio,
confessor, confessus, profiteor, professor, professio, professus...),
fatidicus (< fatum + dicere: fatídico, isto é, agoirado ou vaticinado pelo
(mau) destino]), fama, -ae (= revelação e publicitação pela palavra;
oráculo, augúrio, presságio ou advertência vinda dos deuses; fama,
reputação [favorável ou desfavorável, boa ou má] posta a circular em
público acerca de alguém);
— EM PORTUGUÊS (com evidente isomorfia, relativamente aos
correspondentes lexemas da generalidade das línguas românicas e,
mesmo, das não românicas): abandono, afabilidade, afasia, afásico,
afável, afonia, afónico, antífona, banal, banir, blasfemar, blasfémia,
blasfemo, brasfemar, brasmar, confabulação, confabular, confessar,
confissão, difamação, difamar, difamatório, disfasia, disfemismo,
efabulação, efabular, eufemia, Eufémia, eufemismo, eufemístico,
eufonia, fábula, fabulação, fabular, fabulário, fabuloso, fada, fadário,
fado, facúndia, fala, fama, famigerado, famoso, fandango, fando, fone,
fonema, fonética, inefável, infame, infâmia, infância, infando,
infantaria, infantário, infante, infantil, nefando, polifonia, prefácio,
profecia, professar, professor, profissão, profético, profetizar sinfonia,
telefone, telefonia...
Para outros desenvolvimentos, ver a nota 34 da minha comunicação
intitulada «A “lição” do Professor...» in Fernando Paulo Baptista (org.):
Vítor Aguiar e Silva: A Poética Cintilância da Palavra, da Sabedoria
e do Exemplo, op. cit., pp. 94-95.
2. Raízes do mesmo universo semântico da “ideia de falar”, de
“comunicar através da palavra”: são várias as raízes indo-europeias
que exprimem as ideias de “fala”, de “palavra”, de “linguagem verbal”,
variando consoante os conteúdos, as situações e os contextos de
comunicação. Assim e a título ilustrativo:
a) a raiz werə- /wr- [> wor-] / wr - [> re-] está na base da constituição,
entre outros, de lexemas como: em inglês: word; em germânico:
182
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
*wurdam; em alemão: Wort; em português: verbo, retórica, rema,
ironia [< do grego e rvne€a [eironeia]...;
b) a raiz leg- / log- (presente num vasto e diversificado elenco de
lexemas: analogia, antologia, apólogo, colecção, colectânea, colégio,
decálogo, dialecto, diálogo, dislexia, eleger, epílogo, homólogo,
inteligência, legenda, legível, leitura, lexema, léxico, lição, logaritmo,
lógica, prólogo, relógio [< horologium], selecta, silogismo...) remete
para a ideia de «palavra», enquanto faculdade ou capacidade de captar,
colher, escolher, distinguir e nomear dados de toda a ordem, de
estabelecer relações e nexos entre eles (de raciocinar...), de os nomear
e identificar, de «ler», compreender e «explicar»: é esta a raiz
constitutiva do substantivo grego lÒgow e do verbo latino legere;
c) a raiz kelə-2, com as variantes kle - / kla - [> kla- / kal- ] / kol - e
respectivas ampliações sufixais (presente em lexemas como: aclamar,
aclarar, calendário, calendas, clamar, clamor, clarividência, claro,
conciliatório, concílio (< lat.: concilium < concalium), declamar,
declarar, ecclesia (lat.), esclarecer, exclamar, intercalar,
nomenclatura, Paracleto, proclamar, reclamar, reconciliar...) reenvia
para a ideia de «palavra proferida em voz alta», de «palavra bem
audível, clara e esclarecedora»: é esta, como acabámos de ver, a raiz
conformadora do substantivo clamor, do adjectivo claro e dos verbos
clamar, declamar, exclamar, proclamar, aclarar, clarificar,
declarar...;
d) a raiz deik- / dik- / doik- (igualmente presente num vasto e
diversificado elenco de lexemas: EM INGLÊS: teach [= mostrar, ensinar],
token [= amostra]; EM GREGO: de€knumi [= mostrar, fazer ver, indicar],
de›jiw [= acto de mostrar, de fazer ver, de indicar]; EM LATIM: dicere [=
dizer, mostrar, exprimir por palavras e por gestos], digitus [= dedo (<
digitum > diitum > deedo), o dedo indicador, que serve para mostrar,
para apontar], digitalis, digitare, digitatus, indigitare, indigitatus,
benedicere, dictare, dedicare, interdicere, iudicare, praedicare...; EM
PORTUGUÊS: dizer, dedo, dedal, dígito, digital, sendo que só o verbo
dico, de forma mais ou menos evidente, está na base de mais de 300
lexemas portugueses: desde abdicar, passando por dicionário e índice,
até verídico, vindicar, reivindicar e vingar [< do latim: vindicare] (Cf.,
a propósito, o quase exaustivo inventário constante do Dicionário
Houaiss da Língua Portuguesa, op. cit., na entrada «diz-»);
183
Fernando Paulo do Carmo Baptista
e) a raiz indo-europeia wekw- / wokw-, com as configurações wep- /
wok- / wop- (em consequência não só da alternância vocálica qualitativa
(«grau e / grau o»), mas também da evolução da lábio-velar – kw –), tem
como “adn semântico” a ideia de «emitir sons vocais, soltar a voz, falar
e cantar», remetendo, de um modo muito especial, para a ideia de «voz»
e de «palavra» por excelência, ou seja, para «a voz e a palavra poéticas
que cantam os grandes feitos de um povo», ou seja, o seu «epos» [¶pow],
a sua «epopeia» [§popoΐa]: «As armas e os barões assinalados (...) / E
também as memórias gloriosas (...) / E aqueles, que por obras valerosas
(...), / Cantando espalharei por toda parte, / Se a tanto me ajudar o
engenho e arte.» [os itálicos são meus] (Camões: Lus., I, 1-2).
Esta raiz wekw- / wokw- // wep- / wok- / wop- está na origem, entre
outros, dos lexemas gregos §pikÒw, §popoΐa, §popoiÛkÒw, ¶pv, ˆc, ÙpÒw
(= voz, voz duma divindade, duma musa), KalliopÆ [< kalÒw (belo,
lindo) + ˆc, ÙpÒw (= voz), ou seja, a musa da bela voz], de onde provêm,
nomeadamente, os lexemas portugueses épico, epopeia, epopeico /
epopaico, Calíope, ortoépia, ortoépico..., todos eles, com um “adn
semântico” a remeter para as ideias de «soltar a voz, falar, dizer, cantar»
(em sentido poético).
Esta raiz wekw- / wokw, através do latim, está na base de um importante
conjunto de lexemas muito ligados ao substantivo uox, -cis (uocem >
voz), integrando alguns deles um específico «conjunto terminológico»
ligado às Ciências da Linguagem: vocabulário, vocábulo, vocal,
vocálico, vocalismo, vocalização, vocalizar, vocativo, vogal,
semivogal, voz [activa vs passiva]... Mas, como se pode verificar, trata-
se predominantemente de lexemas de uso mais vasto, ainda que
circunstancialmente especializado num ou noutro sector de actividade
(e.g.: a vida jurídico-administrativa): avocar, convocatória, advogado,
advogar, advogável, avocação, avocar, avocatória/o, avocatura,
avocável, convocatória, convocar, convocável, equivocidade,
equívoco, evocação, evocar, evocativo, evocatório, invocação, invocar,
invocativo, invocatório/a, invocável, provocador, provocante,
provocar, provocatório, revocação, revocar, revocatória/o, revogação,
revogabilidade, revogar, revogável, revogatória/o, vocação,
vocacional, vocacionar, vocalista, vocalizo, vociferar, vociferante,
vogal (= membro de um júri), voz, vozear, vozearia, vozeio, vozeirada,
vozeirão...
184
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A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
5. DA EDUCAÇÃO, DA INVESTIGAÇÃO
E DA FORMAÇÃO
(em referência à “ideia-mater” de “Universidade”)
«Universidade: Magno Projecto Académico de Investigação,
Formação e Divulgação em todos as áreas do Saber,
iluminado pelos supremos valores da Sabedoria,
da Virtude, da “Aristeia” e do Mérito...
— Projecto Maior da Cidadania.»
«Cada criança é um poeta;
cada criança é um artista;
cada criança é um cientista.»
«Professores: protagonistas
da palavra fundadora,
estruturante, sábia e artística;
“Engenheiros-Arquitectos-Poetas”
dos horizontes vitais...
(F. Paulo Baptista)
199
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
À luz do que está consignado na Declaração Universal dos
Direitos do Homem (artigos 1.º e 26.º), adoptada e proclamada pela
Assembleia Geral da ONU, na sua resolução 217A (III), de Dezembro
de 1948, e em conformidade com o que vem sendo defendido em
conferências internacionais específicas (e.g.: a Conferência Mundial
sobre o Ensino Superior, UNESCO, Paris, Outubro de 1998), TODO E
QUALQUER CIDADÃO DO PLANETA TEM O DIREITO DE ACEDER
A TODOS OS NÍVEIS DA EDUCAÇÃO E DO ENSINO, desde o Ensino
Básico ao Ensino Superior, inclusive, em coerente sintonia com o
sentido da caminhada evolutiva e progressiva narrada pela História da
Civilização, da Cultura e da Pedagogia, em direcção à plena
humanização do Homem e de harmonia com as dinâmicas
morfoplásmicas subjacentes aos três fundamentais estádios ou períodos
vitais por que se desenvolve o processo antropo-ontogenético:
Infância > Adolescência > Adultez
Importa sublinhar que um Sistema Educativo e Formativo,
coerentemente organizado, contempla, isomorficamente e em
princípio, nos planos da “sintaxe” curricular e da prestação de serviço
público, três grandes e homólogas sequências ou fases educativo-
formativas que deveriam estar adequadamente articuladas entre si ao
nível da concepção, do planeamento, da estruturação orgânica e do
funcionamento:
Ensino Básico > Ensino Secundário > Ensino Superior (—>
Universidade)
Na decorrência de uma tal perspectiva ontogenética,
antropológica, político-jurídica e organizacional, a “arquitectura”
global desse estratégico Sistema, mais do que inspirar-se num
“paradigma científico-tecnológico” instrumentificante dos actos
educativos e formativos e gerador do poderoso “quadrimotor louco”
201
Fernando Paulo do Carmo Baptista
(co-envolvendo a ciência, a técnica e a tecnologia, a indústria e o lucro
desenfreado do “capitalismo selvagem”) de que fala Edgar Morin360 e
que vem avassalando sombriamente Deméter, a nossa Terra-Mãe,
deverá ser, em meu convicto entendimento, a expressão
consubstanciadora de um novo e inovador “paradigma humanista” de
matriz artística (poiésico-aisthésica [lato sensu]), antropológico-
cultural e axiológica que coloque o ser humano — ênyrvpow — no
coração do processo educativo e formador, enquanto protagonista
maior desse mesmo processo, ou seja, enquanto sujeito de todas as
aprendizagens, livre, responsável e solidariamente activo e criativo, por
forma a situar a técnica, a ciência e a tecnologia — a tecnociência —
no pólo dos meios e a integrá-las, de forma inclusora mas subordinada,
na lógica dos princípios e na teleonomia dos fins361.
É por isso que proponho como ideia fundadora para a nossa
educação da infância (que, em meu convicto entendimento, deveria
constituir a “pedra angular” do nosso Sistema Educativo e Formativo...)
o lema de que «CADA CRIANÇA É UM POETA», de que «CADA
CRIANÇA É UM ARTISTA»... E faço-o, em clara e profiláctica sobre-
posição (mas não: contra-posição...) teleológica ao slogan do «EVERY
362
CHILD A SCIENTIST» que tem vindo a atravessar os jardins de infância
dos Estados Unidos da América!...
Por outro lado, parece ter todo o cabimento e sentido desmontar,
com fundamentada reflexão crítica, o preconceito do elitismo e a usura
do marketing da excelência apriorística e virtual contra os princípios
antropológicos e demótico-génicos da isogenia, da isotopia, da
360
Cf. Edgar Morin: O Método V. — A Humanidade da Humanidade, Lisboa,
Publicações Europa-América, 2003, p. 236.
361
Cf. Adams, D. L., & Others: «Science, technology and human values: An
interdisciplinary approach to science education», apud “Journal of College Science
Teaching”, 1986, 15(4), pp. 254-258; Giuseppe Longo: Homo technologicus, Roma,
Meltemi, 2001; Emilio Martínez Navarro: Ética para el Desarrollo de los Pueblos,
Madrid, Trotta, 2000, pp. 127 ss, 189 ss; Rémi Brague: A Sabedoria do Mundo,
Lisboa, Edições Piaget, 2002, passim; Javier Echeverría: Ciencia y Valores,
Barcelona, Ediciones Destino, 2002, pp. 117 ss, 211 ss; José Luis Molinuevo:
Humanismo y Nuevas Tecnologías, Madrid, Alianza, 2004, pp. 67-230); Pedro Ortega
Ruiz y Ramón Mínguez Vallejos: Los valores en la educación, Barcelona, Ariel
Educación, 2001, pp. 205-253.
362
Cf. a proposta subscrita pelo National Council, plasmada na divulgadíssima
brochura intitulada “«Every Child a Scientist».
202
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
isonomia, da iso-agoria, em suma, da isopaideia e da isopoliteia, o
mesmo é dizer, da parificação ôntico-ontológica, axiológica e antropo-
agógica e da efectiva igualdade de acesso e de oportunidades,
devidamente sustentada... Ou seja, torna-se cada vez mais urgente e
pertinente o empenhamento ético-político na construção da real e
efectiva igualdade de todos em tudo363, e sempre na base do constante
respeito pela “diferença”...
Mas essa reflexão crítica e esse empenhamento axiológico não
dispensam (não podem dispensar...) a assunção de uma adequada
postura de fundo relativamente à questão da cidadania (em grego:
polite€a), se esta for entendida (como julgo que deve ser...) como a
qualidade, a condição e o estatuto identitário, inerentes ao facto de ser
cidadão ( po €thw), isto é, ser, de corpo inteiro, membro constitutivo
e integrante de uma comunidade política ( koinon€a politikÆ), o
mesmo é dizer, de uma «comunidade de cidadãos», bem como o
sistema e o regime organizativo e jurídico-administrativo da vida em
sociedade, configurada, outrora, nas multímodas dinâmicas da PÒliw
(Polis) ou da Ciuitas e, actualmente, do Estado-Nação e, mais alargada
e englobantemente ainda, da Comunidade das Nações ou da
Comunidade Humana Planetária.
Todavia, uma concepção da cidadania que se pretenda
actualizada e inovadora não pode deixar de considerar, hoje, as cinco
dimensões essenciais a que, com inteira pertinência, se refere Roberto
Carneiro364:
1) a dimensão da democraticidade, fundada na centralidade do valor e da
dignidade da pessoa humana, com toda a espécie de implicações daí decorrentes,
nomeadamente: o acesso efectivo à educação, à grande arte, à grande cultura e
à grande ciência, à formação ao longo da vida (lifelong learning), à
363
Cf. Noberto Bobbio: Teoría General de la Política, Madrid, Editorial Trotta, 2003,
pp. 323 ss; Rosa Maria Rodríguez Magda: Transmodernidad, Barcelona, Anthropos
Editorial, 2004, pp. 147 ss e passim; Michelangelo Bovero: Una gramatica de la
democracia — contra el gobierno de los peores, Madrid, Editorial Trotta, 2002, pp.
15-33, 117 ss); Francisco Serra: História, política y derecho en Ernst Bloch, Madrid,
Editorial Trotta, 1998, pp. 27-30, 44.
364
Cf. Roberto Carneiro: Fundamentos da Educação e da Aprendizagem, Vila Nova
de Gaia, Fundação Manuel Leão, 2001, pp. 264-267.
203
Fernando Paulo do Carmo Baptista
multimedialidade e à enciclomedialidade365, ao domínio das novas linguagens da
comunicação, o direito ao exercício da livre crítica na desmontagem
argumentativa das mensagens manipuladoras, à garantia do pluralismo no
pensamento e na acção...;
2) a dimensão da socialidade, co-envolvendo a formação de uma forte
consciência dos direitos e dos deveres sociais e de um sentido solidário e pró-
activo perante fenómenos como os da pobreza, da exclusão e da marginalidade,
a realização dos valores da justiça e da equidade, o incremento da igualdade de
oportunidades, a defesa dos desvalidos e dos mais fracos...;
3) a dimensão da paridade, com a promoção despreconceituosa do
desenvolvimento superador de toda a espécie de assimetrias e, assim, a
valorização simétrica, harmoniosa e trans-elitista das potencialidades do ser
humano, através do combate, sem tréguas, a todo e qualquer tipo de
discriminação, exclusão, segregação ou violência...;
4) a dimensão da interculturalidade, com a defesa universal da diversidade das
culturas, o respeito pela afirmação da singularidade de cada uma, ainda que
minoritária, o cultivo do diálogo polifónico, aberto e compreensivo e a recusa de
qualquer tipo de tentação de natureza imperial, hegemónica ou neocolonialista...;
5) a dimensão da ambientalidade ecossistémica, com o sagrado respeito pela
Terra 366a imperativa preservação dos bens da natureza, da biodiversidade e do
365
Cf. http://www.tecnicocavour-vc.it/multimedialita.htm;
http://www.mediamente.rai.it/HOME/BIBLIOTE/intervis/m/maraglia.htm;
http://www.mediamente.rai.it/HOME/BIBLIOTE/intervis/m/maragl03.htm;
http://www.sepbcs.gob.mx/tics/enciclomedia.htm#inicio;
http://www.enciclomedia.edu.mx/Conoce_Enciclomedia/Conozca_mas.htm.
http://ciberhabitat.gob.mx/academia/proyectos/enciclomedia.htm;
http://enciclopedagogia0.tripod.com/
366
“Deméter” [Terra-Mãe], nossa fraterna e maternal “casa comum”. Cabe invocar,
aqui, a crucial “mensagem de conscientificação e alerta”, plasmada pelo Papa
Francisco na sua carta-encíclica “LAUDATO SI”, dedicada ao englobante e sinérgico
cuidado e preservação do Planeta Terra. Como motivação para a sua leitura integral,
considere-se o seguinte excerto (§ 10 e §11) respeitante à figura de SÃO FRANCISCO
DE ASSIS, de quem o Santo Padre tomou o nome episcopal-identitário de “Francisco”
como guia e inspirador da Sua acção: «Eius nomen veluti ducem auctoremque Nobis
indidimus...»]:
«10. Não quero prosseguir esta encíclica sem invocar um modelo belo e motivador.
Tomei o seu nome por guia e inspiração, no momento da minha eleição para Bispo de
Roma. Acho que Francisco é o exemplo por excelência do cuidado pelo que é frágil
204
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
equilíbrio e sanidade dos elementos, no quadro de uma estratégia de
desenvolvimento sustentável e na perspectiva da salvaguarda da vida e do futuro
humano do Planeta...
Essa postura multidimensional de fundo implica necessariamente
a defesa intransigente da já referida parificação relativamente a todo e
qualquer cidadão, contra toda e qualquer manifestação preconceituosa,
xenófoba, discriminatória e exclusora ou contra o não reconhecimento
do inviolável direito de sermos diferentes, no pressuposto ontopoiésico
de que o outro, longe de ser o inferno («l’enfer c’est les autres»367), é,
pelo contrário, o constituinte primigénio da nossa própria ontidade e
identidade368...
O que significa que, na Cidade, na Pólis, todos devemos ser iguais
de facto e de direito (ou mais explicitamente: de direitos e de deveres,
de obrigações e de condições...), designadamente no que toca àquela
legítima garantia que, nas três fundamentais fases, estádios ou períodos
da nossa ontogénese — infância > adolescência > adultez —, nos
permite aceder (sem outras restrições ou limites que não sejam os da
nossa finitude existencial...) ao tesouro mais precioso da Humanidade:
e por uma ecologia integral, vivida com alegria e autenticidade. É o santo padroeiro
de todos os que estudam e trabalham no campo da ecologia, amado também por
muitos que não são cristãos. Manifestou uma atenção particular pela criação de Deus
e pelos mais pobres e abandonados. Amava e era amado pela sua alegria, a sua
dedicação generosa, o seu coração universal. Era um místico e um peregrino que vivia
com simplicidade e numa maravilhosa harmonia com Deus, com os outros, com a
natureza e consigo mesmo. Nele se nota até que ponto são inseparáveis a preocupação
pela natureza, a justiça para com os pobres, o empenhamento na sociedade e a paz
interior.
11. O seu testemunho mostra-nos também que uma ecologia integral requer abertura
para categorias que transcendem a linguagem das ciências exactas ou da biologia e
nos põem em contacto com a essência do ser humano. Tal como acontece a uma
pessoa quando se enamora por outra, a reacção de Francisco, sempre que olhava o sol,
a lua ou os minúsculos animais, era cantar, envolvendo no seu louvor todas as outras
criaturas. Entrava em comunicação com toda a criação, chegando mesmo a pregar às
flores «convidando-as a louvar o Senhor, como se gozassem do dom da razão».
http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals/documents/papa-
francesco_20150524_enciclica-laudato-si.html
367
Cf. Jean-Paul Sartre: Huis Clos, Paris, Gallimard, 1986, 41.
368
Cf. Fernando Paulo Baptista: Polifonia, Poiese & Antropopoiese — Para uma
Sinfónica do Humano, Lisboa, Edições Piaget, 2006, pp. 15, 17, 54.
205
Fernando Paulo do Carmo Baptista
a Educação, a Formação, a Cultura, a Arte, a Ciência, o Saber, a
Sabedoria...
Por tudo isso, não consigo deixar de pensar e imaginar o que é
que não viria a acontecer com cada uma das crianças do nosso País e
do Mundo inteiro, se lhe fosse dada a possibilidade e a oportunidade de
percorrer, do princípio ao fim, os três naturais e atrás referidos grandes
estádios ou períodos evolutivos e educativo-formativos, para poder
crescer e ser mais e ser melhor, à sua maneira e à medida do que for
sendo capaz, e partilhar activamente, em sua diferença e autonomia, em
sua liberdade e em sua responsabilidade, a intérmina construção da
Catedral da Humanidade...
É, ainda assim, que não desisto de me interrogar: não será essa
Paideia Global e Avançada o mais importante dos «rios a norte do
futuro» que importa que todos atravessem, por forma a potenciar a
antrópica e sapiencial «explosão de todos os sóis», se me é permitido
dizê-lo com estas esperançosas e plenificantes metáforas de Paul
Celan369?... E não será essa, também, a mais bela das utopias,
alimentadora de todas os sonhos e desejos e propulsora de uma
verdadeira Termodinâmica ou Mecânica Quálica da Humanidade, de
uma inspirada e neguentrópica Poética da Antropogénese?... Há que
proporcionar, então, os indispensáveis meios e condições para que cada
ser possa criar-se e desenvolver-se, vitalmente e sem limites, no
fascínio, no sortilégio e no paradoxo de ser, concretamente, um ser
singular e universal!...
DA EDUCAÇÃO
Da consideração do inventário de significados suscitados na nossa
mente pelo lexema ‘educação’ (através de um exercício de consulta
levado a cabo nos nossos dicionários de língua portuguesa), ressaltam
quatro fundamentais pólos de interpretação, compreensão e
inteligibilidade conceptual e cognitiva, interligados e integrados num
alinhamento sintáctico de natureza fenomenológica e processológica
369
Cf. Paul Celan: Sete Rosas Mais Tarde — Antologia Poética (ed. bilingue de João
Barrento e Y. K. Centeno), Lisboa, Edições Cotovia, 21996, pp. 121, 109.
206
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
por que se distribui um forte sentido arquitectónico e sistematizador,
tanto de intenção teorética como práxica:
– a educação370 — enquanto acção endógena e exogenamente orientada
e conduzida para o “alimento” e o desenvolvimento integrado do ser humano
(considerado, antidualisticamente, em sua complexa e intrínseca unidade “corpo-
mente” [body-mind], “corpo-espírito”371...), designadamente das qualidades e
capacidades corpóreas, sensoriais, afectivas, noéticas, intelectuais, axiológicas,
poéticas, estéticas, éticas, atitudinais, sociais, etc.;
– a educação — enquanto efeito e metamorfose, decorrentes dessa acção;
– a educação — enquanto processo de instrução, ensino e formação, com
diferentes graus e níveis de institucionalização, formalização, exigência e
consecução;
– a educação — enquanto específico sistema e serviço social,
constitutivamente fundamentado em princípios antropológico-culturais, históricos,
político-sociológicos, filosófico-axiológicos e epistemológicos que comporta os
indispensáveis meios organizacionais, institucionais, estruturais e funcionais,
tendo em vista a consecução dos fins que justificam e legitimam a sua existência.
No modo de conceber e entender a ideia de “educação”, importa
destacar a omnipresença das vertentes teorética, práxica, crítica,
poiésica, estésica e axiológica por que ela se desdobra, bem como a
irredutível dimensão cultural em que ela concretamente se institui,
organiza e desenvolve, enquanto possibilidade da evolução sapiencial
e formativa estruturantemente modeladora de pessoas, instituições e
370
O nome ‘educação’ provém do substantivo latino educatio, -onis [em sentido
literal: criação de animais ou de crianças, alimentação...; em sentido figurado:
formação, instrução, ensino...], portador da mesma raiz — duc- — presente nos
verbos educare [= fazer crescer, nutrir, alimentar, cuidar de, criar... educar,
formar...] e educere [< e + ducere = fazer sair de, conduzir e orientar, a partir de
dentro, promovendo o desenvolvimento integral...].
371
Creio não estar errado quando penso que o «corpo glorioso» de que, no contexto
da ressurreição final, se fala no Evangelho (cf.: Mt 22, 23-33) consubstancia bem essa
irredutível unidade definitivamente consagradora do valor do corpo humano, tanto
mais que, na própria celebração do sacramento da eucaristia, não se recebe o spiritus
ou a anima Christi: o que se recebe é, sim, inteira e unitariamente, o corpus Christi,
o corpo de Cristo. Na verdade, no momento da sagração e transubstanciação da hóstia,
o sacerdote diz: «hoc est enim corpus meum»; e não: «hoc est enim anima mea» ou
«hoc est enim spiritus meus»...
207
Fernando Paulo do Carmo Baptista
sociedades, enquanto capacitação maior da constante e sistemática
interpretação e compreensão antropológica e da antrópica superação do
homem por si próprio, enquanto imprescindível condição não só para a
concepção, melhor fundamentada, de uma “visão” holística do
Universo, mas também, e sobretudo, para a realização integrada e
desejavelmente integral da humanidade do Homem ( ν ο —
anthropos)372, assumindo-se, desse modo, como motor sereno do
processo global da humanização...
Defluente de uma construção epistemologicamente mais
consistente e coerente e, assim, mais adequadamente iluminante dos
próprios actos, caminhos e projectos que configuram a sua yevr€a
(theoria) prospectiva, descritiva e explicativa, a sua prãjiw (praxis)
empenhada e transformadora, a sua a‡syhsiw (aisthesis) receptora,
compreensiva e interiorizadora, a sua kr€siw (krisis) judicativa,
distintiva, diferenciadora e decisional e a sua po€hsiw (poiesis)
instauradora e inventivo-inovadora, a Educação configura a
irrenunciável e inesgotável utopia e o inalienável thesaurus tão
afincadamente defendidos pela Comissão Delors373, em suma, a
libertadora MAGNA CHARTA HUMANITATIS, perpetuadora daquela
mesma Paide€a (Paideia) que os mais famosos Sábios da Velha Hélade
imortalizaram para sempre na Cultura da Europa e do Mundo...
DO ENSINO SUPERIOR, COM NATURAL ÊNFASE
PARA A UNIVERSIDADE, ENQUANTO “REFERÊNCIA”
E “PARADIGMA”
Neste contexto e atentas as suas especiais responsabilidades, é
missão do Ensino Superior374 garantir a todos os cidadãos, sem qualquer
372
Somatosférico, psicosférico, sociosférico, biosférico, cosmo-geosférico...
373
Cf. Jacques Delors (org.): «La educación o la utopia necesaria», apud AAVV: La
educación encierra un tesoro, Madrid, Grupo Santillana de Ediciones / UNESCO,
1996, p. 13.
374
Designação por que se consagrou e universalizou o mais alto e mais elaborado
serviço e ciclo de estudos da estrutura curricular dos sistemas educativos e
formativos...
208
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
espécie de discriminação, as indispensáveis condições para que possam
desenvolver, até aos limites do sem-limite, a globalidade das suas
capacidades e, mais focadamente, as mais poderosas e mais nobres: a
imaginação criadora, a sensibilidade, a afectividade, a inteligência, a
razão, a memória, o espírito crítico, a vontade resiliente e
determinada..., em estreita articulação com o sentido ético-axiológico
da vida, a hermenêutica (interpretação e compreensão) das diversas
“textualidades”, a expressão discursivo-comunicativa...
Cabe-lhe, em suma, criar, com esclarecida visão estratégica
direccionada para o desempenho competencial dos mais exigentes,
especializados e mais responsabilizantes cargos e missões sociais, as
indispensáveis condições para que eles possam combinar e inseminar
no intérmino e paradoxal processo da sua ontogénese informante e
sapientante e, assim, qualitativamente maturante e adultante a dimensão
da ipseidade com a da alteridade, ou seja, o sentido da singularidade
concreta que individualiza, distingue, diferencia e liberta com o da
universalidade que transcende, integra, solidariza, responsabiliza e
dignifica.
Mas os projectos de educação e formação a conceber em
consonância com essa visão estratégica de modo algum devem fazer
esquecer o estado-de-coisas em que se tem vindo a arrastar o Sistema
Educativo e Formativo desde a base até ao topo, a orientação que lhe
vem sendo imprimida, no fundo, a situação concreta de que se parte e
que se visa superar e transformar...
E essa situação não deixa de ser deveras preocupante. De facto,
em vez de se promover, de modo responsável e responsabilizante, o
livre desenvolvimento da autonomia de cada sujeito na construção da
identidade pessoal e comunitária, do mundo da vida (Lebenswelt) e da
visão do mundo (Weltanschauung), do espírito crítico, da enciclopédia
sapiencial e experiencial própria, progrediente, qualitativa e irrepetível,
contrapõe-se-lhe uma dinâmica de base heteronómica,
dominantemente orientada para a mimese ou o decalque de estereótipos
adinâmicos, distróficos e banais, para o folclore e o ludismo
infantilizantes, se não mesmo estupidificantes, e para a reprodução de
conhecimentos e saberes (tantas vezes já cristalizados e obsoletos ou,
então, exóticos, deslocados e inadequados...) legitimados e canonizados
de forma dogmática e burocrática, longe, portanto, da prioritária
implicação da criatividade inventivo-inovadora (poiésica) e
209
Fernando Paulo do Carmo Baptista
consagradora da diferenciante singularidade dos ritmos de
aprendizagem375 dos reais protagonistas e destinatários do processo
educativo e formativo: os alunos, os formandos376. Ou seja: fomenta-se
a paralizante fixação e memorização, sem suporte inteligente e crítico,
dos “conhecimentos”, das “verdades” e das “certezas” que os “sábios
sofísticos” (que, mercenariamente e contra o espírito socrático,
enxameiam a instituição escolar em todos os seus ciclos e níveis
curriculares...) querem que se saibam... É assim, por exemplo, que se
exige às crianças e aos jovens (no quadro de uma cerrada lógica de
avaliação controladora, segregadora, exclusora e desumanizadamente
elitista...) que repitam ou reproduzam, com a exactidão e o rigor das
clonagens, aquilo que, transmissivamente377, se lhes ensinou, em vez de
fomentar neles o sentido da curiosidade científica, da autoconstrução
consistente, sustentada e séria, de uma visão cognitiva, metacognitiva e
sapiencial, pessoal e própria, vivida e autêntica, a ser
coadjuvadamente elaborada, estruturada e ajustada a partir de si, em
solidária, sistemática e sinagógica interacção dialéctica e crítica com os
outros. Tudo à margem do fundamental postulado pedagógico, segundo
o qual, os alunos são o princípio e o fim de todo o processo educativo
e formativo (o mesmo é dizer, a sua inderrogável razão de ser e os seus
insubstituíveis actores), consumando-se, desse modo, o discriminatório
e letal esquecimento de que todas as crianças, todos os adolescentes e
todos os adultos têm o direito e o dever de se formarem até aos limiares
últimos das suas insondáveis e inter-incomparáveis pontencialidades:
«l’anthropos, como certeiramente no-lo recorda Octavi Fullat378, est
375
A ser radicados numa saudável, séria e motivadora relação pedagógica e num
processo didáctico marcado por grande exigência sapiencial e consagrador da
diversidade de perspectivas [multiperspectivismo] e do pluralismo metodológico...
376
Alunos e formandos que são ênyrvpoi [anthropoi] e, portanto, «criaturas
polirrítmicas», criadoras de mutações imprevisíveis. Cf. Carmen Revilla (ed.): Claves
de la razón poética. Maria Zambrano: un pensamiento en el orden del tiempo,
Madrid, Editorial Trotta, 1998, p. 133.
377
Não me parece sustentável, hoje, nem a exclusividade nem mesmo a relativa
dominância da chamada “transmissão de conhecimentos” no processo de
ensino/aprendizagem... Para outros desenvolvimentos desta posição, ver, no fim deste
capítulo: ANOTAÇÕES.
378
Cf. Octavi Fullat i Genis: «Sens et éducation», apud Jean Houssaye (dir.):
Éducation et Philosophie – Approches contemporaines, Paris, ESF Éditeur, 1999, p.
209.
210
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
insondable et son éducation, en conséquence, est inépuisable»... Por
isso, se pergunta: de que vale o slogan do “todos diferentes, todos
iguais”, se ele não passar, como vem acontecendo, de um inconsequente
“ornato de retórica”?... Na verdade (amargurante e acabrunhante
verdade esta...), quantos dos nossos melhores concidadãos não têm
vindo a ficar irremediavelmente arredados das estradas que acedem aos
mais altos patamares do Saber, não por falta de capacidades ou
potencialidades intrínsecas, mas tão-somente por falta de condições, de
meios ou de oportunidades?!...
Daí, a necessidade de um mais justo e mais humanizado modo de
perspectivar a causa da Educação e a Cidade Educativa, de uma nova e
mais fecunda dinâmica de integração e inclusão social, de uma gestão
dos bens pedagógicos e dos bens simbólicos mais alargadamente
democrática e menos elitista, de uma mais produtiva estratégia do
ensino e da aprendizagem, da adopção de práticas metodológicas mais
criativas, mais eficazes e mais adequadas do ponto de vista sociológico
e psicopedagógico, face ao imparável e cada vez mais complexo
progresso da investigação, à mudança de “paradigmas”, à incessante
circulação do saber e da informação, à relativização e interacção
dialógica das culturas (interculturalidade), à aceleração dos ritmos
sociais e históricos, à crescente interdependência dos povos... Mas
sempre com um enfoque muito especial para a necessidade que o País
tem de vencer os seus ancestrais atrasos, promovendo o
desenvolvimento e o progresso sectorial e global e dando resposta aos
cruciais problemas que atingem o Homem, a Vida e o Mundo do nosso
tempo.
Tudo isso consubstancia um enorme desafio à Sociedade e à
Escola do presente e do futuro, a exigir que se proporcionem,
implicadamente, as melhores e as mais condignas condições de
“hardware” e de “software”, de materialidade e de espiritualidade,
polifonicamente direccionadas para a mais completa e apurada
formação dos recursos humanos, de modo a permitir tecer diferentes
saberes numa visão plural e integradora das diferenças e das
singularidades e sempre no pressuposto de que a mais alta qualidade
211
Fernando Paulo do Carmo Baptista
dos quadro humanos se desenvolve no contexto da mais alta qualidade
dos sistemas educativos379.
Toda a dinâmica formativa e investigativa deve ser marcada por
uma constante preocupação meta-analítica e crítica, de natureza
interdisciplinar e mesmo transdisciplinar e por um englobante sentido
holístico e orquestral, orientado para a pretendida «unidade teleológica
do saber», por forma a que o horizonte aberto e largo do discurso do
“texto múltiplo” venha a superar, harmónica e criativamente, o
horizonte fechado e estreito do discurso do “texto único”380.
Por outro lado, não é menos decisiva a consciência de que «o
desafio global da construção da nova sociedade baseada no
conhecimento» — a Sociedade do Saber e, mais utopicamente, a
Sociedade da Sabedoria... — só terá êxito, se erigida a partir da solidez
dos fundamentais pilares que sustentam essa construção: os pilares,
entre outros, da cidadania, da cultura, da arte, da ciência, da técnica,
da tecnologia, da criatividade e da inovação381, transversalmente
alicerçados numa forte base de natureza humanística, artístico-literária,
antropológico-cultural, filosófico-epistemológica e axiológica e
animados e iluminados por um perene e incandescente sentido poético
e estético.
Mas para que haja sucesso na acção educativa e formadora, não
basta o efeito de articulação e hierarquização introduzido nos campos
de saber específicos das diferentes disciplinas curriculares pelos
imprescindíveis contributos defluentes de um enquadramento de fundo
epistemológico (que se ocupe, teorética e criticamente, dos princípios e
379
Cf. O preâmbulo do «Relatório», de 1 de Março de 2000, da Task Force on Higher
Education and Society, da iniciativa conjunta do World Bank (Washington DC) e da
UNESCO; no mesmo sentido concorre o pensamento de Malcolm Gillis, Presidente
da Rice University, quando, em 12 Fevereiro de 1999, afirmou: «Today, more than
ever before in human history, the wealth – or poverty – of nations depends on the
quality of higher education».
380
Cf. José Veiga Simão, in Documenta, n.º 5, Setembro, 2002, p. 23.
381
Cf. José Veiga Simão, Sérgio Machado dos Santos e António de Almeida Costa:
Ensino Superior — uma visão para a próxima década, Lisboa, Gradiva, 2002, pp. 39-
50; de recordar que o relatório da “Comissão Delors” avança igualmente com a
metáfora arquitectónica de «quatro pilares» para a educação: 1. aprender a conhecer;
2. aprender a fazer; 3. aprender a viver juntos; 4. aprender a ser (cf. Jacques Delors:
op. cit., pp. 96-108); cf. também Roberto Carneiro: Fundamentos da Educação e da
Aprendizagem, op. cit., p. 268.
212
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
finalidades, dos modelos e paradigmas, bem como da produtividade,
alcance, importância e valor das diversas ciências...), nem o contributo
trazido aos processos de aprendizagem por um enquadramento de
fundo psicológico que permite explicar, descrever e caracterizar e,
assim, ajudar a compreender os estádios ou fases de desenvolvimento
ontogenético e os níveis de maturidade psico-sociológica dos alunos,
sabida a inércia ou mesmo a reactividade opositiva, inerentes a certas
posturas “corporativistas” do desempenho docente que, sobretudo em
momentos de acelerada mudança e dinamismo, como é o actual, tendem
a marcar os actos pedagógicos através dos quais se vão cumprindo as
diferentes componentes curriculares e transcurriculares, lectivas e não
lectivas, que integram qualquer “programa formativo” (o “currículo”
l.s.)382.
Nessa perspectiva, o sentido integrador e harmonioso que se
pretende introduzir no processo educativo e formativo e o protagonismo
nuclear que, em tal processo, se reconhece caber a formandos e a
formadores (que nunca devem deixar de estar em formação e que, por
isso mesmo, são formandos in aeternum: é esse o seu “sacerdócio”, é
esse o seu “compromisso”!...) só encontram a sua consagração no
quadro de um enquadramento sintetizador dos dois anteriores: um
enquadramento antropo-agógico ou formativo. Só dessa forma, passará
a ser adequadamente considerada a dimensão científico-cultural dos
grandes saberes humanos (papel das epistemologias), a dimensão
psicosférica e psicossomática da formação (papel das psicologias), a
realidade socioprofissional e o “código de deveres” dos professores
(papel das deontologias)383, bem como o vasto feixe de
condicionalismos e interacções que decorrem da influência do meio,
designadamente dos contextos local, regional, nacional, internacional e
planetário (focalização ecossistémica e holística), ou seja, a complexa
382
Cf. CRSE: Proposta Global de Reforma — Relatório Final, Lisboa, Ministério da
Educação, 1988, pp. 97-98.
383
Contemplando, nomeadamente, a nobreza de carácter, o sentido elevatório do
compromisso iluminado pela virtude, a consciência de missão, os valores do decoro,
da honestidade (seriedade e rectidão) intelectual, da dedicação, da exemplaridade...
Cf. os importantes e substanciosos artigos «Virtue Ethics» e «Deontological Ethics»,
in Stanford Encyclopedia of Philosophy:
https://plato.stanford.edu/entries/ethics-virtue/;
https://plato.stanford.edu/entries/ethics-deontological/#WeaDeoThe.
213
Fernando Paulo do Carmo Baptista
teia de co-implicações entre metassistemas <> diassistemas <>
sistemas <> subsistemas <> entorno / meio <> processo <> produto
/ resultado / metamorfose...
É com base num tal modo de ver as coisas que se me afigura
deverem ser estruturados os currículos escolares e, isomorficamente, os
currículos de formação de professores e respectivos planos de estudos,
com a adicional preocupação de que a sua sintaxe e a sua semântica
curriculares respeitem, no plano histórico, os saberes melhor
fundamentados e verdadeiramente estruturantes e, no plano social e
numa perspectiva de actualidade, o pensar e o sentir mais esclarecidos
e a orientação mais consensual das comunidades científica, pedagógica
e didáctica, relativamente às diferentes áreas do saber, das suas
correlações e interacções com o sistema global da cultura e, mais
especificamente, com o seu determinante e insubstituível papel no
processo ontogenético do ser humano, nas dinâmicas de aprendizagem
proporcionadas pela Cidade Educativa e, de um modo geral, na gestão
dos bens simbólicos e na capacidade de intervenção nas mais diversas
manifestações da vida da Pólis, no próprio rumo da História e no
destino da Humanidade.
A crescente complexidade, mobilidade e mundialização do tempo
em que vivemos384 impõe uma cada vez mais auto-exigente mudança
de perspectiva intelectual e de postura metodológica, relativamente a
tudo quanto seja fruto da acção criadora do homem: habituarmo-nos a
conviver mais com o problema do que com o dogma, mais com a dúvida
do que com a certeza e a tomar, como prioritário campo de referência,
a ideia de que viver hoje significa assumir definitivamente a incerteza
e a conjectura, o devir e a mudança... Até porque «homem culto (como
no-lo lembra Manuel Sérgio, em paráfrase a Paulo Freire385) é o que
384
É manifesta a consonância do modo de ver de Manuel Sérgio quando (em Um
Corte Epistemológico — Da educação física à motricidade humana, Lisboa, Edições
Piaget, 1999, p. 21) afirma que «a emergência de níveis de complexidade crescente
diz-nos que tudo está em movimento: o Homem, a Natureza, a Sociedade e a
História...».
385
Cf. Manuel Sérgio: Para um novo paradigma do saber e ... do ser, Coimbra,
Ariadne Editora, 2005, pp. 93-94.
214
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
problematiza, o que transforma em novas perguntas os seus
problemas»386.
E se «ser é agir» e se é no agir que o homem se faz387, não é
possível deixar de ter em conta que toda a práxis humana, seja na
vertente da criação/produção, seja na vertente da recepção, se não é
imune a fenómenos de crise, também não é neutra nem asséptica em
seus efeitos e consequências, uma vez que leva ínsita, no mais fundo de
si própria, quer as marcas de uma visão do mundo, quer os pressupostos
de uma axiomática de matriz epistemológica (mais ou menos intuída
e/ou explícita) e de inspiração axiológica (mais ou menos assumida e
partilhada), com directas implicações com um determinado modo de
conceber e programar a realidade, isto é, com a ideação, elaboração e
operacionalização de um dado projecto de homem, de sociedade e de
cultura.
Tal projecto constitui a carta de navegação orientadora e o
cânone da estratégia organizativa das dinâmicas de transformação,
hominizante e humanizante (hominitas et humanitas), visada pelos
processos culturais e, no coração deles, pela acção educativa e
formativa potenciada pelo respectivo sistema organizador — o Sistema
Educativo e Formativo, a Instituição Escolar —, com especial atenção
para a pedagogia e a didáctica da língua materna, dado o seu
inquestionável poder e primordial papel na modelização dos realia e a
sua insubstituível mediação em todas as aprendizagens subjacentes ao
desenvolvimento das capacidades superiores, à interiorização do
sistema axiológico e à construção dos saberes que configuram os
grandes desígnios estruturantes de qualquer projecto e trajecto
curricular, académico e profissional, designadamente a matemática e as
ciências básicas. Nem parece ser outro «o caminho sem limites do
conhecimento», sobretudo se ele for percorrido em paralelo diálogo e
fecundante interacção com essoutro “caminho sem fim” que é o das
386
Sendo de acentuar, neste contexto e em consonância com Kurt Hübner, que «nem
a existência de leis físicas nem a verdade de teorias físicas constitui uma evidência,
como permanentemente nos é sugerido, mas algo de problemático» [sublinhei] (cf.
Kurt Hübner: Crítica da Razão Científica, Lisboa, Edições 70, 1993, p. 13).
387
Cf. Manuel Sérgio: Para um novo paradigma..., op. cit., p. 23 e também Um Corte
Epistemológico, op. cit., pp. 165-180.
215
Fernando Paulo do Carmo Baptista
Humanidades, das Belas Letras e das Belas Artes, com especial
destaque para a Música e a Poesia388...
Todavia, as dinâmicas da educação e da formação não podem
dispensar os fluxos actualizadores e inovadores, desencadeados pela
globalidade da acção fundamentante, estruturante, articuladora e
integradora da “INSTITUIÇÃO DE REFERÊNCIA” que é (e deveria ser
sempre!...) a “UNIVERSIDADE”, com indeclinável e prioritária
atenção para as “estratégias investigativas”, como adiante se verá.
DA UNIVERSIDADE389
A palavra ‘UNIVERSIDADE’ nomeia e identifica historicamente
(logo lá desde a sua aurora eclesial e medieva, sob a designação de
Studium Generale...) aquele singular e inconfundível tipo de instituição
que assume como intranscendível razão antropo-poiésica a sublime
“missão” plasmada num “MAGNO PROJECTO ACADÉMICO DE
INVESTIGAÇÃO, FORMAÇÃO E DIVULGAÇÃO EM TODOS AS ÁREAS DO
SABER, PROJECTO ESSE, ILUMINADO PELOS SUPREMOS VALORES DA
SABEDORIA, DA VIRTUDE, DA “ARISTEIA” E DO MÉRITO, configuradores
de uma ÉTICA INTELECTUAL DE NÍVEL SUPERIOR390...
O desenvolvimento desse “PROJECTO MAIOR DA CIDADANIA” é
protagonizado por «comunidades de Sábios e de Estudantes»,
afincadamente dedicados à intérmina procura das relações “onto-
fânicas” e “onto-génicas” do Universo, da Terra, da Vida e do Homem
e das correlatas verdades fenomenais391 e numenais...
388
Cf. Manuel Sérgio: Tanta Coisa Verdadeira, Coimbra, Ariadne Editora, 2004, p.
22.
389
Cf. Fernando Paulo Baptista: Por Amor à Língua Portuguesa, Lisboa, Edições
Piaget, 22016, pp. 211-218.
390
Cf. Fernando Paulo Baptista: Polifonia, Poiese & Antropopoiese, Lisboa, Edições
Piaget, 2006, pp. 23 ss.
391
«The phenomena we experience are simultaneously a reflection of world reality
and of our specific mind. Thus, education should be, in part, the cultivation of the
216
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
E são essas comunidades (hoje, cada vez mais inter-activamente
reticuladas e globalizadas à escala planetária...) que, com um bem
determinado propósito antropo-paidêutico, capacitante e habilitante —
domínio da “competence”... —, vão concretizando esse inesgotável e
desafiante “Projecto”, ao ritmo quotidiano do cumprimento curricular
e trans-curricular e através de um exigente e superador processo
poiésico-metamorfósico contra a tendência entrópica e a aco-modação
rotineira e obsolescente das práticas instaladas e cristalizadas, sempre
à luz do se mafórico e indescartável axioma de que «the only skill that
does not become obsolete is the skill of learning new skills392, axioma
inscrito no coração metacrónico dos verdadeiros programas de
formação ao longo da vida (Lifelong Learning Programmes)393...
Esse processo, assim pensado e assumido, não pode deixar de se
inspirar no mais fundo, mais autêntico e mais responsável sentido da
liberdade ideativo-conceptiva, criadora, inventiva, realizadora e
inovadora, que potencia, de modo integrado («mind, heart, and spirit»)
e pléctico394 (disciplinar, multidisciplinar, interdisciplinar e
transdisciplinar), a transformação perfectivante (corpóreo-mental,
intelectual e espiritual...) do ser humano, nos planos competencial
e ético-deontológico e nas dimensões pessoal, interpessoal e
comunitária 395 (dimensões transmassísticas)...
mind so that the breadth and depth of world can be explored». Cf. Parker J. Palmer
& Arthur Zajonc with Megan Scribner: The Heart of Higher Education — A Call to
Renewal, San Francisco, CA /USA, 2010, p. 68.
392
Cf. Michael Gibbons (Secretary General Association of Commonwealth
Universities): Higher Education Relevance in the 21st Century, Washington, World
Bank, 1998, p. 12 (Paper prepared as a contribution to the United Nations Educational,
Social, and Cultural Organization World Conference on Higher Education [Paris,
France, 1998, pp. 5-8]); trata-se de um documento bem sistematizado e de inegável
interesse analítico-informativo.
393
«Strategic framework for European cooperation in education and training (“ET
2020”)», apud:
http://ec.europa.eu/education/lifelong-lear-ning-policy/policy-framework_en.htm; e
também:
http://www.kslll.net/Default.cfm
394
Sobre os fenómenos de “esquizo-sofia”, de “ruptura” e “desagregação” ético-
axiológica e sapiencial que afectam as “instituições formadoras”, designadamente a
“universidade” e que marcam a actual “situação de crise”, ver no fim as ANOTAÇÕES.
395
Cf. Karl Jaspers: The Idea of the University, London, Peter Owen, 1965, pp.
64-65 e passim...
217
Fernando Paulo do Carmo Baptista
Importa sublinhar que tal transformação é cres-cen-te-men-te
reclamada pela qualidade pressuposta nos exigentes e responsabilizantes
desempenhos profissionais e de “missão” – domínio da “performance” –,
enquadrados, sustentados e iluminados por um cada vez mais urgente e
actualizado potencial (background) sofo-espistémico, tecnológico,
cultural, artístico, axiológico-humanístico e metodológico-atitudinal
(etológico) e, desse modo, desejavelmente também em sistemática e
solidária conectividade, orquestral articulação e sinérgica disseminação
cooperativa (através da institucionalização, nacional e internacional, de
parcerias, protocolos, co-projectos, co-laboratórios e intercâmbios,
orientados para a produção, a distribuição e a partilha do
conhecimento...) com as demais entidades e organizações promotoras
dos valores, do desenvolvimento sustentado e sustentável e do progresso
social a todos os níveis396.
É a Universidade a privilegiada instância que alimenta (que
deveria alimentar...) o sonho e faz mover a vida no quadro englobante
da sua missão arquitectora, estruturante, articuladora e dinamizadora
ao nível da busca, da investigação, da invenção, da descoberta, da
criação, da transmissão e da divulgação do conhecimento e da acção
pedagógica e formadora, qualitativamente direccionada para uma
aprendizagem problematizadora, indagativa e aprofundante das
capacidades humano-relacionais, afectivas, cognitivas, ideativas,
organizativas, metodológicas, discursivo-textuais e comunicacionais,
tanto na tendencialmente mais cartesiana e mais metrológica, mais
descritivo-explicativa, mais experimental e mais aplicativa, mais
material, mais tecnúrgica397 e mais operativa área das Ciências e das
Tecnologias, como na propensivamente mais fundadora, mais
modeladora, mais antropo-paidêutica, mais imaterial, mais pascaliana
396
Cf. OCDE (2011), Lessons from PISA for the United States, Strong Performers
and Successful Reformers in Education, OECD Publishing.
http://dx.doi.org/10.1787/9789264096660-en; cf. também o importante relatório
elaborado por: Philip G. Altbach, Liz Reisberg, Laura E. Rumbley: Trends in Global
Higher Education: Tracking an Academic Revolution (A Report Prepared for the
UNESCO 2009 World Conference on Higher Education).
397
Digo tecnúrgica(o), tecnurgia ou tecnurgo, do mesmo modo que se diz cirurgia,
cirúrgico e cirurgo (ou também quirurgo), demiurgia, demiúrgico e demiurgo,
dramaturgia, dramatúrgico e dramaturgo, liturgia, litúrgico e liturgo, metalurgia,
metalúrgico e metalurgo, taumaturgia, taumatúrgico e taumaturgo, siderurgia,
siderúrgico e siderurgo, teurgia, teúrgico e teurgo...
218
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
e mais poiésico-aistésica398 área das Humanidades, das Belas Letras e
das Belas Artes399...
É desse modo que ela se configura como «o memorial do mais
alto conhecimento ou reflexão», nas palavras de Eduardo Lourenço400,
como o determinante lugar, onde, na perspectiva de Karl Jaspers401,
cada época histórica «pode cultivar a mais lúcida consciência de si
própria» e constituir o inderrogável e estratégico centro e
“laboratório” dos mais experimentados, testados, reflectidos,
debatidos e convalidados conhecimentos, saberes e valores...
Em suma, A UNIVERSIDADE enquanto REFERENCIAL HISTÓRICO E
PARADIGMA AXIOLÓGICO, à luz dos quais se desenham os traços
porventura mais nobres, mais densos e mais fortes da identidade de
qualquer Povo e de qualquer País, constitui a incomparável ALMA E
CORAÇÃO DA CIDADE... Por tudo isso é que, em relação a ela, de seus
Professores e de seus Estudantes, outra atitude não será de esperar
senão a da mais exigente, devotada e exemplar dedicação na forma de
estudo (em latim: studium) diligente e quotidiano, que é o modo
académico mais genuíno de conjugar o verbo amar: no fundo, o
inconformado modo dessa insaciável, curiosa e iluminante paixão pela
busca, pela investigação, pela descoberta, pela sabedoria...
Nela, portanto, não deveria haver lugar para a rotina “rotineira”,
a displicência, a incúria ou a “fossilização” científica e pedagógica nos
actos investigativo-formativos, nem tão-pouco para o “turismo”
académico do “dolce far niente” ou, pior ainda, para os consabidos e
sistemáticos desregramentos pautados por “padrões” próprios da vida
nocturna, sob pena de ficar irremediavelmente comprometido o
investimento no futuro qualitativo do País, investimento esse que todos
398
De po€hsiw [poiesis]: «criatividade» (criatividade artística, em geral, e criatividade
poético-literária, em particular); e de a‡syhsiw [aisthesis]: «faculdade da sensibilidade
inteligente» (sensibilidade, em geral, e sensibilidade artística, em especial).
399
Cf. Fernando Paulo Baptista: ensaio «Sob o signo da luz ou a “centelha” [scintilla]
de Zeus na palavra «teoria» [yevr€a (theoria)]», apud: Rosa Maria Goulart, Maria
do Céu Fraga e Paulo Meneses (coords.): O Trabalho da Teoria, Ponta Delgada,
Universidade dos Açores, 2008, p. 43. Sublinhe-se a intencional recorrência desta
mesma caracterização diferenciadora no ensaio «A centelha (scintilla) de Zeus na
palavra “teoria”», também incluído neste volume.
400
Cf. Eduardo Lourenço: Nós e a Europa ou as duas razões, Lisboa, IN-CM, 1988, p.
73.
401
Cf. Karl Jaspers: ibidem, pp. 19, 51 e ss.
219
Fernando Paulo do Carmo Baptista
nós custeamos com os impostos que esperançosa e generosamente
pagamos... Nela, de modo algum se pode abdicar do Valor, do Mérito,
da Virtude e da Dignidade ao mais alto nível, tudo consubstanciado e
plasmado num trabalho intelectual, metódico, rigoroso, perseverante e
sério, ou seja, o «honesto estudo» de que fala Camões (Lus., x, 154).
A Universidade, pela sua origem, natureza e missão, tem o dever
de impor a quem nela trabalha e a quem a frequenta um “CÓDIGO
ÉTICO” da máxima exigência, porque, na verdade, quem a não sabe
merecer, quem não sabe ser digno dela... está ali a mais...
É pelas razões acabadas de invocar que a Universidade não pode
deixar de ser apresentada aos nossos jovens, na perspectiva da sua
ascensional, plenificante e perfectiva caminhada em direcção ao futuro,
como a “Alma Mater” que alimenta e alumia a realização das suas
potencialidades e faculdades antrópicas mais poderosas: a imaginação
criadora, a racionalidade organizacional, crítica e judicativa, a
sensibilidade poética e estética, a memória informante, identificante e
situadora, a inteligência intuitiva, conjectural, teorética e projectiva, a
vontade resiliente, determinante e decisional...
Daí, a multi-sectorial responsabilidade dos Dirigentes do Sistema
Educativo e Formativo pela qualidade da formação literácica
(englobantemente entendida...) que, desde bem cedo, deve ir preparando,
de modo determinado, graduado, consistente, exigente e laborioso,
aquelas potencialidades e faculdades, na perspectiva estratégica do devir
académico e da formação universitária ao mais alto nível...
DA INVESTIGAÇÃO402
A investigação, em sua acepção mais ampla, tenta responder a um
profundo impulso e a uma cada vez mais espantada e imperiosa
necessidade do ser humano que o levam a tentar interpretar,
compreender e descrever explicativamente os fenómenos por que se
402
Ver infra, em REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS, algumas obras especificamente
dedicadas à problemática da «Investigação».
220
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
revela o complexo dinamismo do real, na diversa multiplicidade de seus
modos manifestativos. São estes que, à partida, constituem o território
vestigial (do latim: vestigium, lexema da mesma família de investigar e
de investigação...) ou epifânico da presença desse misterioso
dinamismo.
E é da persistente indagação operada por sobre tal território, é da
afincada e apaixonada perseguição das pegadas, rastos, traços, cifras e
sulcos que nele se revelam, é dessa permanente, sistemática e
aprofundante desvelação arqueológica, desventradora de arquivos,
arcas, arcanos e escaninhos de todos os tempos e de todas as memórias,
que resulta a iluminante e superadora ascensão da caverna do
inominado, nebuloso e desconhecido, para a aberta e desassombrada
morada da inteligibilidade e da luz.
Não tem sido outro o caminho que se vem trilhando, ao longo da
História, na épica construção da CATEDRAL (sempre inacabada...) DO
SABER...
Essa gigantesca construção não dispensa, não pode dispensar, a
base testemunhal deixada por esse tantas vezes imperceptível e
silencioso caminhar, cujos protagonistas maiores são, no fundo, o
Universo, a Natureza, a Vida, o Mistério e o próprio Homem,
considerado em suas nucleares dimensões somatosférica, psicosférica
e sociosférica.
Por outro lado, não pode o processo investigativo deixar de ser
considerado nas diferentes modalidades e registos organizacionais e
metodológico-operatórios em que ele próprio se vai configurando:
desde a investigação-acção (mais iniciática e informal ou mais
formalizada sob o ponto de vista teorético e práxico e mais
imediatamente interventiva no plano da pesquisa), passando pela
elaboração de modelos de enquadramento e dinamização heurística,
concebidos e orientados para a descoberta, a inventiva e a criação, pela
investigação pura, pela investigação aplicada até à complexidade
epistemológica da mais alta e fundamental investigação estratégica
para o desenvolvimento sectorial e global do Homem e das
Comunidades Humanas, nos mais diversos domínios, ora concebendo
e planeando, ora executando e avaliando projectos investigativos de
interesse nacional, internacional e, mesmo, planetário.
221
Fernando Paulo do Carmo Baptista
Considerando a galopante globalização de todas as grandes
temáticas e problemáticas que dizem respeito ao Homem e à
Humanidade, à Vida, ao Planeta e ao Cosmos, desde a saúde à
educação, à cultura, à ciência, à técnica e à tecnologia, à arte, ao
sagrado, ao património natural e construído, passando pelo ambiente, o
clima, os recursos naturais, a energia, a economia, a indústria, o
comércio, os serviços, a segurança, a doença, a pobreza, a droga, a
guerra, a paz e a violência..., ponderando tudo isso, torna-se cada vez
mais urgente a promoção da investigação fundamental com alcance
estratégico para todas essas áreas tão complexas e tão cruciais,
promovendo o constante aprofundamento do saber, da experimentação
e do sentido da descoberta, da criação e da inovação, sempre em
sintonia com as iluminantes “linhas de força” que configuram um
“paradigma” antropológico-cultural, axiológico e artístico que coloca o
ser humano no coração de todos os processos, medidas e decisões,
enquanto seu princípio e seu fim (seu alfa e seu ómega), enquanto seu
protagonista livre, mas igualmente responsável, e que situa a ciência, a
técnica, a tecnologia e a economia, como já ficou dito, no pólo
instrumental dos recursos e dos meios e as integra a todas elas,
subordinadamente, na lógica dos princípios e dos fins.
Todo o processo investigativo (sobretudo o que se desenvolve
através da grande ou alta investigação, da investigação fundamental,
da investigação pura ou da investigação aplicada...) deve ser iluminado
pelo “perfil” ou “arquétipo” de homem e de cidadão local e global,
político e cosmopolítico, a ser tomado como inderrogável “referência”
plasmática e poiésica, inspiradora de todo o processo educativo e
formativo...
Através da disseminação dos seus mais importantes e consistentes
resultados, conclusões ou recomendações, através do efeito
neguentrópico, soteriológico e verdadeiramente revitalizador gerado
pela informação nova por ela produzida, construída e organizada, é
possível fazer retornar à Madre-Terra em perigo — a Deméter!... — a
esperança auroral da prístina harmonia do “paraíso” e do “paradigma”
perdidos...
Praticadas sobretudo no âmbito de uma programação dirigida
quer na perspectiva da obtenção de graus académicos (mestrados,
doutoramentos e pós-doutoramentos), quer na perspectiva da realização
de projectos institucionais ou inter-institucionais, socialmente
222
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
relevantes, tanto a nível científico e pedagógico, como a nível cultural,
artístico, literário, filosófico e antropológico, a investigação
fundamental, a investigação pura, ou mesmo a investigação aplicada,
de configuração mais formal, mais canónica e mais responsável, não
dispensam o cumprimento de um árduo protocolo e programa
metodológico-processual que comporta uma sintaxe codificadora de
uma espécie de “longa metragem” que não deixa de implicar um prévio
e elucidante tratamento reflexivo de fundo filosófico-epistemológico,
centrado sobre tópicos como os seguintes: paradigmas e métodos de
investigação científica (ex: o paradigma hermenêutico-interpretativo e
o método da observação participativa; o paradigma sociocrítico e a
investigação-acção, colaborativa e cooperativa...); a dimensão
empírica e a controvérsia entre métodos qualitativos e métodos
quantitativos; complementaridade e pluralismo metodológico; escolha
dos métodos e técnicas procedimentais; limites da investigação e
códigos deontológicos; concepção e planeamento dos projectos de
investigação — seus constituintes estruturantes: a emergência do
problema-foco e o questionamento preliminar: identificação e
formulação; a revisão bibliográfica e das demais fontes de informação;
objectivos e hipóteses: formulação; variáveis (controláveis e não
controláveis) e constantes dinâmicas; a amostragem: selecção e
condicionantes; processologia de recolha e tratamento de dados;
instrumentos e equipamento (caracterização, avaliação e
operacionalidade); temporalização e cronogramagem; execução do
projecto e seu condicionamento interno e externo; o ensaio-piloto e os
reajustamentos; a recolha de dados (onde, quando e como), sua análise
e tratamento (gráfico e/ou numérico); o tratamento qualitativo:
triangulação, contraste dialéctico, análise paramétrica, ajuizamento
criterial-referencial e relativização; interpretação crítica dos
resultados e sua validação; relatório final e sua elaboração; exigências
técnicas e deontológicas (autonomia VS heteronomia); publicitação,
etc...
É de sublinhar, todavia, que a investigação, seja qual for a sua
modalidade ou configuração tipológica, deverá estar prioritariamente
ao serviço da formação que, em meu entendimento, deve constituir a
função cardinal ou maior, numa palavra, a “pedra angular” de todo o
Ensino Superior.
223
Fernando Paulo do Carmo Baptista
A investigação-acção (também conhecida pela designação, entre
outras, de action research, practitioner research403) é praticada, em
princípio, com carácter permanente e sistemático, a partir das
necessidades surgentes das dinâmicas do quotidiano e na decorrência
de situações problemáticas ou de casos marcados por uma
singularidade aporética a eles intrínseca, suscitadora de mais aplicado
estudo, a envolver adequada pesquisa / indagação...
A investigação-acção visa, antes de mais, o imediato
aperfeiçoamento da qualidade dos processos de conhecimento, de
organização e de formação aos diferentes níveis do seu
desenvolvimento, com um forte sentido pró-reflexivo e pró-activo, um
pronto empenhamento de pesquisa e inteligibilidade interpretativo-
compreensiva e explicativa dos fenómenos do real e, também, um
envolvimento implicativo nas mudanças prementes e intransferíveis,
ritmando o próprio andamento e desenvolvimento dos projectos de
investigação mais complexos e formalmente mais exigentes.
Centrada na análise de ocorrências concretas do dia-a-dia, a
investigação-acção tenta contribuir para a resolução de cada problema
real (problem-solving), em sua singularidade, com o objectivo de obter,
projectivamente, melhorias teórico-práticas num determinado contexto
de acção404.
A investigação-acção, assentando na experiência vivida e na
observação directa e imediata, na colheita de dados, na sua análise e
tratamento, na (auto)reflexão conjecturante, na intervenção e na
avaliação circunscritas a situações singulares e concretas, é decidida
e programada, com forte carga operatória e expedita, pelos directos
protagonistas, intervenientes em tais situações, segundo um trajecto
processológico que comporta uma sintaxe operativa, marcada por uma
crescente implicação de configuração espiralar: identificar um foco de
interesse ou um problema > recolher dados e elaborar as suas
representações organizadas > analisar dados, formular hipóteses e
conceber cenários e protocolos de intervenção > planear as fases e o
403
Cf. Department of Education and Training Professional Learning and Leadership
Development Directorate: What is Action Research?, State of New South Wales,
2010, pp. 1-4.
404
Cf. Rafael Alzina Bisquerra (coord.): Modelos de orientación e intervención
psicopedagógica, Barcelona, Praxis, 1998; Idem: Métodos de investigación
educativa. Guía Práctica. Barcelona, CEAC, 1996.
224
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
cronograma de acção > desenvolver as fases de acção > constituir as
bases para a mudança de monitoragem > analisar e avaliar...
Tem como primordial objectivo a transformação qualitativa e
superadora, imediata e célere, dos processos em curso, convocando,
assim, numa assumida preocupação de cientificidade, saberes
especializados e específicos para contextos igualmente específicos.
Quando, porém, as situações ou os casos apresentam maior
complexidade etiológica, problemática, metodológica e processológica,
ela tende, naturalmente, a transformar-se em investigação fundamental,
estratégica e formal: são as translações determinadas pela própria
fundura problemática e espiralar da fenomenologia do real e da vida...
Em suma: a investigação-acção é uma forma de pesquisa
desenvolvida no quadro de uma actuação orientada para promover, a
partir da acção cientificamente sustentada de cada protagonista ou
grupo de actores e segundo o princípio do learning by doing
(«caminante, no hay camino, / se hace camino al andar»405...), a
melhoria da qualidade estrutural e funcional duma instituição ou duma
organização e respectivos desempenhos.
É tipicamente concebida e conduzida por “práticos” que agem,
simbioticamente, quer como colectores de dados, quer como seus
analistas e questionadores, quer ainda como intérpretes dos resultados,
com o objectivo nuclear de aperfeiçoarem a sua própria prática.
A investigação-acção pode ser levada a cabo tanto
individualmente como em grupo, devendo todavia sublinhar-se que a
abordagem em grupo se tem revelado extremamente fecunda do ponto
de vista pedagógico, metodológico e humano: na verdade, não deixa de
ser sintomático o facto de esta modalidade ser conhecida, identificada
e nomeada por designações como as seguintes: investigação
participativa, investigação cooperativa, investigação emancipatória
(participatory, collaborative, emancipatory research)...
A investigação-acção tem o potencial de gerar melhorias
genuínas e sustentadas, na medida em que, todos os dias, proporciona
aos professores, educadores e formadores novas oportunidades para
reflectirem sobre o seu ensino e para o avaliarem, para lançarem novas
ideias e ensaiarem e testarem novos métodos e novos recursos, para
405
António Machado: Poesías Completas, Madrid, Espasa-Calpe, 1989, tomo I,
CXXXVI, XXIX, Proverbios y cantares, p. 575.
225
Fernando Paulo do Carmo Baptista
aferirem da eficácia das novas experiências, partilharem o feedback
com os restantes companheiros de grupo e para tomarem decisões “pró-
activas” sobre que novas abordagens merecem ser incluídas no seu
projecto e nos respectivos planos de formação, avaliação e
investigação.
DA QUALIDADE DAS INSTITUIÇÕES FORMADORAS
Qualidade e Imperfeição...
Pode entender-se a categoria da “qualidade” como o irredutível
horizonte e processo de permanente possibilização construtiva e
evolutora e de singularização identificacional e, assim, de dinâmica e
progressiva modelação caracterizadora, diferenciadora e distintiva do
pensar, do agir, do ser, do estar e do devir.
Deste modo e a meu ver, qualquer avaliação sincrónica da sua
manifestação não deveria prescindir do indispensável enquadramento
diacrónico (retrospectivo/retrojectivo [dimensão do passado] e
prospectivo/projectivo [dimensão do futuro]) que lhe dá o correcto
sentido, ao ser perspectivada, com Platão, como «aquilo pelo qual as
coisas se dizem tais», determinando, assim, o que elas vão sendo tanto
em sua essencialidade como em sua acidentalidade406.
Para mim, as institutições de ensino superior (ou outras), tal como
as pessoas, nascem, crescem e evoluem no quadro das suas
potencialidades vitais, das suas reais capacidades gerativas, criativas e
transformadoras e, também, dentro dos condicionalismos e
constrangimentos circunstanciais e históricos em que se processa o seu
desenvolvimento.
406
Cf. Celestino Pires: Logos — Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia, vol. 4,
Lisboa / São Paulo, Editorial Verbo, 1992, entrada «Qualidade», pp. 510-515; Nicola
Abbagnano e Giovanni Fornero: Dizionario di Filosofia, Torino, UTET, 31998,
entrada «Qualità», pp. 886-887.
226
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
Todas elas, segundo for o «projecto» que as anima e sustenta, têm
coisas boas e coisas menos boas: algumas delas, porém, distinguem-se
pela sua “alma” social, pela sua criatividade e ritmo de inovação, pela
sua capacidade de investimento e de risco não menos que pela sua
abertura e disponibilidade para fazer e ser comunidade e para se
transcenderem melhorativamente... «Mas graças a Deus que há
imperfeição no Mundo...», lembra-no-lo Fernando Pessoa / Alberto
Caeiro407, como que a concitar-nos para o exigente e empenhado
exercício da sua quotidiana superação, enquanto incontornável
território, matéria e condição possibilitante do nosso próprio agir
perfectivo: todos os dias, a toda a hora e em cada momento, nos cabe ir
per-fazendo o por-fazer!...
Qualidade e “Excelência”...
É por isso que a qualidade não pode ser nem um slogan, nem um
rótulo, nem um preconceito ou uma presunção: ela deve ser assumida,
pelo contrário, como a categoria-piloto de um intérmino processo que
exige um forte e persistente empenhamento melhorativo, a ser levado a
cabo com muita humildade e trabalhosa e diuturna dedicação. Em boa
verdade, quando alguém, pessoa ou instituição, alguma vez pensar que
já conquistou a qualidade é porque seguramente já a perdeu...
Depois, não parece ter sentido o recorrente e acrítico recurso ao
chamado “marketing da excelência” tão em voga nestes tempos de
“pós-modernidade” e de “transmodernidade”408: primeiro, porque a
“excelência”, pelo que intrinsecamente pressupõe e exige, em sua
substancialidade e transcendentalidade categorial, não deveria ser
objecto de qualquer tipo de marketing; segundo, porque a dinâmica
social de vertigem e paroxismo consumista, marcada pela
mercatorização de tudo e pelo fascínio imediato e light do
407
Cf. Fernando Pessoa / Alberto Caeiro: Poesia (ed. de Fernando Cabral Martins e
Richard Zenith), Lisboa, Assírio & Alvim, 2001, p. 77 (poema O Guardador de
Rebanhos, XLI: No Entardecer).
408
Cf. Rosa Maria Rodríguez Magda, Transmodernidad, Barcelona, Anthropos
Editorial, 2004, pp. 147 ss.
227
Fernando Paulo do Carmo Baptista
“significante” esvaziado da sua fundura («deepness») prospectora,
gerativa e criativa409 e da densidade constitutiva dos “sentidos”, das
“significações” e dos “valores” em que tal marketing se vem
processando é a sua negação...
Importa, na verdade, ter bem presente que a ideia de “excelência”
(em grego: éretÆ [aretê]) é uma das categorias valorativas que não
pertencem geneticamente a este mundo: desde a Cultura Grega ela é,
matricialmente, uma caprichosa e arbitrária outorga dos deuses aos
mortais410... É por isso que se me afigura crucial que ela permaneça
intacta, lá onde fica o seu natural território de origem e de pertença —
ou seja: a região dos deuses, dos mitos e das utopias... —, por forma a
poder continuar a exercer a transcendental função semafórica de
orientação e motivação energizante do sonho e da esperança e de
recarga ressemantizadora de significações e de sentidos...
Mas tudo isso melhor se compreenderá, se se tiver na devida conta
o facto de estarmos a viver ainda sob o signo e o «império do efémero»
e mergulhados na «era do vazio» e do «crepúsculo do dever», para o
dizer sinteticamente com as famosas metáforas que titulam as agudas
análises filosófico-sociológicas “pós-modernas” de Gilles Lipovestky,
confrontando-nos, assim, com um desconcertante «paradoxo ético» em
que os próprios valores fundamentais da Cultura e da Civilização
tendem a ser apresentados como redutíveis a “bens mercatórios” e,
assim, substituíveis pelas respectivas “marcas”. Daí, a generalizada
“usura” apriorística que, acerca de pessoas, instituições ou de
complexos processos organizacionais ou transformacionais se vem
fazendo dos qualificantes de semântica superlativa ou hiperbólica
409
Cf., com os adequados ajustamentos analógicos, o importante relatório (elaborado
no âmbito do «Process Management») dedicado ao «EU-US Seminar: New
Technology Foresight, Forecasting & Assessment Methods, IPTS-JRC, Seville, 13-
14 May 2004.
410
Cf. Homero: Ilíada, XX, 242-243 («ZeÁw dÉ éretØn êndresin Ùf°llei te minÊyei
te ppvw ken sin g r kãrtistow p ntvn. [= Mas Zeus aumenta ou
diminui a aretê [valor] dos homens, / conforme lhe apraz, pois ele é o mais poderoso
de todos]»; Odisseia, XVII, 322-323: « mis gãr t ret w poa€n tai e r opa
e w n row, e t n min kat do ion mar sin [= Zeus que vê ao longe retira
ao homem metade da sua aretê [valor] /, no dia em que a escravidão se apodera dele]»;
cf. Maria Helena da Rocha Pereira, Hélade, Coimbra, IEC, 71998, pp. 39 e 87-88,
respectivamente; e também: Estudos de História da Cultura Clássica — I volume /
Cultura Grega, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 81998, pp. 135-136.
228
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
(super, hiper, óptimo, perfeito, excelente, brilhante, excepcional...),
usura essa que não pode deixar de constituir um dos mais preocupantes
sintomas da banalização e desvitalização, se não mesmo da perversão,
do “sistema axiológico”...
Quanto esquecida parece andar a “lição” da célebre metáfora de
Hegel, quando, no Prefácio aos Fundamentos da Filosofia do Direito,
a propósito do tempo necessário ao desenvolvimento e maturação dos
processos do real e ao subsequente desencadear da reflexão e
construção do conhecimento acerca desse mesmo real (reflexão e
conhecimento, indispensáveis à fundamentação do próprio ajuizamento
valorativo...), nos diz que «o mocho de Minerva só começa a voar ao
descerrar do crepúsculo» («die Eule der Minerva beginnt erst mit der
einbrechenden Dämmerung ihren Flug» 411)!...
Sejamos claros e frontais: fora de uma visão ou concepção
preconceituosa e elitista do mundo e da vida, não há homens nem
instituições excelentes!... Há, sim, o empenhamento sério, humilde e
generoso (“socrático” e “franciscano”...) de quem sonha, cria e realiza
diferentemente, num constante esforço de superação ou excedência
411
«Um noch über das Belehren, wie die Welt sein soll, ein Wort zu sagen, so kommt
dazu ohnehin die Philosophie immer zu spät. Als der Gedanke der Welt erscheint sie
erst in der Zeit, nachdem die Wirklichkeit ihren Bildungsprozeß vollendet und sich
fertig gemacht hat. Dies, was der Begriff lehrt, zeigt notwendig ebenso die
Geschichte, daß erst in der Reife der Wirklichkeit das Ideale dem Realen gegenüber
erscheint und jenes sich dieselbe Welt, in ihrer Substanz erfaßt, in Gestalt eines
intellektuellen Reichs erbaut. Wenn die Philosophie ihr Grau in Grau malt, dann ist
eine Gestalt des Lebens alt geworden, und mit Grau in Grau läßt sie sich nicht
verjüngen, sondern nur erkennen; die Eule der Minerva beginnt erst mit der
einbrechenden Dämmerung ihren Flug.» Georg Wilhelm Friedrich Hegel,
Grundlinien der Philosophie des Rechts, «Vorrede», Bd. 7, s. 9-10. («Per dire ancora
una parola a proposito del dare insegnamenti su come dev’essere il mondo, ebbene,
per tali insegnamenti in ogni caso la filosofia giunge sempre troppo tardi. In quanto
pensiero del mondo essa appare soltanto dopo che la realtà ha compiuto il suo
processo di formazione e s’è bell’e assestata. Questo, che il concetto insegna, mostra
necessario parimenti la storia, che soltanto nella maturità della realtà l’ideale appare
di fronte al reale e che quell’ideale si costruisce il medesimo mondo, appreso nella
sostanza di esso, dandogli la figura d’un regno intellettuale. Quando la filosofia
dipinge il suo grigio su grigio, allora una figura della vita è invecchiata, e con grigio
su grigio essa non si lascia ringiovanire, ma soltanto conoscere; la nottola di Minerva
inizia il suo volo soltanto sul far del crepuscolo.» Hegel, Lineamenti di filosofia del
diritto, trad. di Giuliano Marini, Roma, Laterza, 1987).
229
Fernando Paulo do Carmo Baptista
melhorativa na plenitude da dádiva, tentando plasmar em tudo quanto
se pensa e se faz o perfume das rosas e a lucilação das estrelas...
Avaliação: modo, substância e contexto;
temporalidade...
É por isso que penso que a avaliação de qualquer instituição do
ensino superior (e, com ela, a sua acreditação e certificação...) deveria
ser levada a cabo através de um adequado, criterioso e periódico
acompanhamento e verificação in loco daquilo que é o seu constituir-
se e o seu configurar-se enquanto ser real e concreto, situado num
horizonte espácio-temporal que é aquele e não outro, isto é, no
respectivo “ecossistema” social e cultural em que ela vive e se move...
É aí, através da observação directa, rigorosa e séria do que é o seu
andamento ontogenético nas nucleares dimensões da reflexão profunda,
da formação, da investigação, da dinamização social e cultural e da
produção bibliográfica e afim, é nesse mergulhar no âmago das próprias
coisas, captando os dados no seu “ambiente” próprio, analisando (em
referência a parâmetros e a critérios adequadamente estabelecidos,
definidos e discutidamente partilhados e no isento equilíbrio da
intersubjectividade cognoscente e judicante) pressupostos e
concepções, projectos e planos, práticas, processos, métodos e
procedimentos, instalações, equipamentos e documentos e registando,
supletivamente, depoimentos colhidos ao vivo junto dos estudantes e
dos professores e, naturalmente, junto das direcções e demais órgãos e
serviços institucionais, é aí e desse modo que, sem formalismos estéreis
e sem legalismos estreitos, se pode tentar ajuizar, com razoável justeza
e inerente sentido de justiça, do mérito relativo de uma instituição, por
forma a que ela venha a ser fundamentadamente acreditada e
certificada...
Ponderada, todavia, a complexidade que caracteriza o processo
ontogenético institucional e, no coração dele, a decisiva dimensão da
temporalidade, mais agudamente crucial se me afigura o problema da
consciência que se tem, ou não, da primigénia importância do tempo...
230
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
Na verdade, desde as tradições mitológicas mais antigas da
Cultura Europeia (com o nome de Cronos, de Saturno ou outro...), não
deixa de ter especial significado a ligação do tempo à esfera
transtemporal do divino e do sagrado... Depois, mais explicitamente
com os Pitagóricos, quando no-lo apresentam como ciclicidade
deveniente, ordenada, regular e mensurável mas indissociável do
mistério dos movimentos celestes e como «esfera que tudo abarca»,
passando pelos Pré-socráticos, agonicamente divididos entre a
heraclitiana e inestancável movência de tudo (pãnta =e› [panta rei]) e
a parmenídica unidade, imutabilidade e completude do ser («nada
existe ou existirá para além do que é, pois que o Destino o vinculou de
modo a ser um todo inamovível»412), até culminar no vislumbre
fulgurante de Platão, no Timeu413, quando o perspectiva como «imagem
móvel da eternidade», o tempo vai-se configurando,
incontornavelmente, como a fundacional, estruturante e
identificacional condição antropológica do Homem como «ser do
tempo», «ser no tempo» e «ser tempo» ou «tempo em ser», na dialéctica
dialogia entre finito e infinito, entre efémero e eterno, entre mortal e
imortal414...
Mas essa reflexão não cessa de ir cumprindo o seu diacrónico
“programa” com as insuperadas análises de Aristóteles (na Física) em
torno das categorias ou leges entis, em torno do conceito de “instante”
bem como do fluxo sequencial “antes > depois” e da “ordem
mensurável do movimento”, posteriormente reforçadas com a postura
“interiorizante” (ou “intimista”) de Plotino ao assumir o tempo como
«a vida da alma» e, sobretudo, com a singularíssima reflexão de Santo
412
Cf. Maria Helena da Rocha Pereira: Hélade — Antologia da Cultura Grega,
Coimbra, IEC, 71998, p. 143.
413
Cf. Platão: Timeu, Lisboa, Edições Piaget, 2003, p. 76: «Ora, quando o pai que o
gerou percebeu que tinha gerado uma imagem dos deuses eternos, dotada de
movimento e de vida, alegrou-se e, de satisfeito que estava, reflectiu na maneira de a
tornar ainda mais semelhante ao paradigma. E, como o paradigma é um ser vivo
eterno, empreendeu tornar este universo, na medida do possível, igualmente eterno.
Porém, acontecendo que a natureza daquele ser vivo é eterna, não era possível adaptá-
la completamente ao universo gerado; foi por isso que concebeu produzir uma
imagem móvel da eternidade. Assim, ao ordenar o céu, produziu uma imagem eterna
da eternidade que permanece na unidade, imagem essa que se move segundo o
número, e que é aquilo a que chamamos tempo» (os sublinhados são meus).
414
Cf. Fernando Paulo Baptista: Polifonia..., op. cit., p. 12.
231
Fernando Paulo do Carmo Baptista
Agostinho sobre a extensio e a distensio animi, sobre os “êxtases”, a
memória, a intuição e a expectativa, numa palavra, sobre a “dimensão
da consciência” (nas Confissões), com o ulterior e decisivo contributo,
entre outros, de Newton (com o conceito de tempo absoluto, verdadeiro
e matemático, de tempo-duração que por si só flui uniformemente sem
relação com nenhuma coisa externa...), de Leibniz (para quem o tempo
é, conjuntamente com o espaço, um aparato de intelecção e descrição
das relações inter-monádicas de coexistência e sucessão eventiva...), de
Kant (em torno das antinomias, da analítica dos princípios e das formas
e categorias a priori, na Crítica da Razão Pura, em que tempo e espaço
são entendidos como condições subjectivas e necessárias da
sensibilidade e da possibilidade da experiência, como puras formas da
intuição...), de Husserl (ao tentar provar, sobretudo na Fenomenologia
da consciência íntima do tempo, a sua epifania fenoménica na
consciência, através do incontornável dinamismo da sua
intencionalidade e acção constitutiva (mais ou menos durativa) dos
fluxos experienciais primevos415, conformadores do «horizonte vital»
de todos os «agoras», contra a tese kantiana da «invisibilidade» do
tempo...), de Bergson416 (ao perspectivar o tempo como emergência
subjectiva e relativa, como sucessão, continuidade e mudança, como
memória e criação, em suma, como o próprio tecido do real...), de
Heidegger (quando, em Ser e Tempo417, assume o tempo como
incontornável condição ontogénica e ontofânica do Dasein, da
existência e do devir humanos...), sem esquecer contributos reflexivos
tão importantes como os de Bachelard418, Jacques Garelli419 e Paul
Ricœur420, bem como as percucientes interpretações, elaborações,
formulações e propostas teoréticas vindas do campo da Astrofísica e da
415
«Every act of apprehension is itself a constituted immanent duration unity». Cf.
Jane Chamberlain: «Thinking time: Ricoeur’s Husserl in Time and Narrative», apud:
http://www.ul.ie/~philos/vol2/husserl.html.
416
Designadamente em: Essai sur les données immédiates de la conscience, Paris,
PUF, 1998; Matière et mémoire, Paris, PUF, 1998; L’évolution créatrice, Paris, PUF,
1991; La pensée et le mouvent, Pris, PUF, 1993; L’énergie spirituelle, Paris, PUF,
1993.
417
E também: em Tempo e Ser, em Contribuições..., em O conceito de tempo...
418
Em Dialéctica da Duração.
419
Em O tempo dos signos.
420
Em Tempo e Narrativa, em A Memória, a História e o Esquecimento...
232
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
Física de Partículas (com Planck, Einstein, Lorentz, Schrödinger,
Heisenberg, Stephan Hawking, Weinberg, Ilya Prigogine, entre
outros...)421 e do campo das Ciências Cognitivas e das Neurosciências
(nomeadamente com Warren H. Meck, Eric R. Kandel, M. A. Pastor,
C. M. Bradshaw, Frederik R. Martin, Fred W. Turek, Joseph S.
Takahashi, António Damásio...)422...
Em suma: na base de um tal enquadramento reflexivo, tão
clarificador e tão conscientificante quanto possível e sempre no
421
Abarcando uma vasta e complexa problemática que contempla questões como as
seguintes: as relações «espaço <> tempo <> duração»; invariância e variação;
objectividade e subjectividade; realidade e ficção; métrica do tempo (precisão e rigor,
calendários, relógios e escalas...); simetria e assimetria; sincronia, assincronia e
diacronia; entropia e neguentropia; o curso e a flecha ou seta do tempo; efemeridade
e eternidade; absoluto e relativo; o princípio antrópico... Sobre a problemática global
do tempo, ver: Samuel L. Macey (ed.): Encyclopedia of Time, New York-Oxford,
Garland Science Publishing, 1994; Steven Weinberg: Os Três Primeiros Minutos do
Universo, Lisboa, Gradiva, 1987; Maurice Jacob: Au coeur de la matière — La
physique des particules élémentaires, Paris, Éditions Odile Jacob, 2001, pp. 267-290;
Étienne Klein: O Tempo, Lisboa, Edições Piaget, 1995; Stephen Hawking: Breve
história do tempo. Do Big Bang aos buracos negros, Lisboa, Gradiva, 1988; Ilya
Prigogine: O Nascimento do Tempo, Lisboa, Edições 70, 1991; Ilya Prigogine e
Isabelle Stengers: Entre o Tempo e a Eternidade, Lisboa, Gradiva, 1991; Henri Atlan:
O Livro do Conhecimento, vol. II, Lisboa, Edições Piaget, 2005, pp. 307 ss; ver,
também, a pertinente e aguda reflexão desenvolvida por Carlos Artur Trindade de Sá
Furtado: Uma excursão pela ciência, Lisboa, Edições Piaget, 2006, pp. 51-76.
422
Ocupando-se de temas como os seguintes: ciclos naturais e periodicidades eco-
vitais; dinamismo dos ritmos circadianos (isto é, que se desenvolvem em torno de um
dia [em latim: circa dies]) e eventos neuroquímicos, moleculares e celulares nele
envolvidos: sua génese, sedeação, estrutura celular e neural e expressão
comportamental; os relógios biológicos internos e os (in)fluxos endócrinos; os
fenómenos do metabolismo, do sono e da insónia, da corrente da consciência, da
memória, da atenção, da emoção, da percepção, da noese, do ajuizamento, do processo
de aprendizagem... Ver: Eric R. Kandel, James H. Schwartz e Thomas M. Jessell:
Principles of Neural Science, New York, McGraw – Hill / Appleton & Lange, 42000;
Alain Reinberg: O Tempo Humano e os Ritmos Bilógicos, Lisboa, Edições Piaget,
2000; António Damásio: O Erro de Descartes — Emoção, Razão e Cérebro Humano,
Lisboa, Publicações Europa-América, 1995, pp. 111-112; Warren H. Meck: Function
and Neural Mechanisms of Interval Timing, London, CRC Press UK, 2003; Eric R.
Kandel: In Search of Memory: The Emergence of a New Science of Mind, New York,
W. W. Norton & Co Inc, 2006; Samuel L. Macey (ed.): Patriarchs of Time: Dualism
in Saturn-Cronus, Father Time, the Watchmaker God & Father Christmas, Athens,
University of Georgia Press, 1987; Samuel L. Macey (ed.): Dynamics of Progress:
Time, Method, & Measure, Athens, University of Georgia Press, 1989.
233
Fernando Paulo do Carmo Baptista
pressuposto de que ser é ser-tempo e de que «o presente é todo o
passado e todo o futuro» (Fernando Pessoa/Álvaro de Campos, «Ode
Triunfal»423), em qualquer actual(izador) ajuizamento atinente a tudo
quanto é humano, não deveria deixar de estar presente o sentido da
temporalidade fundadora, o trajecto da caminhada feita, o ritmo das
mutações operadas em seu real contexto de duração, historicidade e
enraizamento existencial...
Há, na verdade, um tempo germinal, um tempo instituinte e
arquitector, para que a complexidade ôntico-ontológica (e o inerente
modo de ser, de estar, de agir e de criar...) de uma instituição com a
natureza e a missão duma Universidade se possa constituir, configurar,
revelar e afirmar, sendo absurda e descabida qualquer avaliação
conduzida antes desse tempo-eixo-e-geratriz essenciante e
projectante424... Bastará, neste contexto, tentar imaginar em que
condições concretas (por exemplo: com que “projecto”, corpo docente
[doutores], instalações, equipamento, orçamento...) é que surgiram, por
exemplo, a mais antiga universidade da Europa — Bolonha — e a mais
antiga universidade de Portugal — Coimbra —, de cuja criação se
celebraram, recentemente, os respectivos centenários425 e tirar as
423
Cf. Fernando Pessoa / Álvaro de Campos: Poesia (ed. de Teresa Rita Lopes),
Lisboa, Assírio & Alvim, 2002, p. 81.
424
As instituições que têm como missão específica proporcionar e promover o ensino,
a educação, a investigação e a formação não podem deixar de ser marcadas
geneticamente pelo modo como assumem, gerem e incorporam o seu tempo
educativo, tempo que «é radicalmente generativo» e que institui e constitui todo um
processo de modelização orquestral, não de uma realidade cristalizada ou pré-
estabelecida, mas de uma realidade potencial fundada em tudo quanto de mais valioso
pensa e deseja a comunidade humana. Por isso é que, na perspectiva de Clara Romero
Pérez, o tempo educativo se deve orientar para o que ela denomina de «futuros
presentes», através da mediação de projectos que direccionem os processos reais para
a gestação das imprescindíveis aberturas ao dinamismo criador que vai configurando
e plasmando, no presente, os sonhos do futuro, dinamismo esse, porém, a ser sempre
sustentado no lastro da mais funda sabedoria e dos mais sólidos valores que, vindos
do passado, mas transcendendo-o, se vão afirmando, em cada momento e ao mesmo
tempo, quer como érxÆ, quer como t°low, dando sentido à existência humana (cf. a
este propósito o importante ensaio de Clara Romero Pérez: El conocimiento del
tiempo educativo, Barcelona, Editorial Laertes, 2000, pp. 258-259).
425
Bolonha, com o seu IX centenário [1088-1988], efeméride que está na origem da
“Magna Charta Universitatum” que, como sabemos, é o documento inspirador do
234
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
convenientes ilações da própria espessura histórico-simbólica dos
séculos de vida que, entretanto, já transcorreram depois dessa criação...
Ora, uma avaliação de tipo essencialmente legalista e formalista,
baseada quase exclusivamente na análise de documentos, desligada do
real e de seus contextos e fora do sentido da temporalidade, pode correr
o risco de se transformar numa indesejável denegação do respeito, da
compreensão e do sentido da proporcionalidade que, em princípio,
todas as instituições devem merecer, pela sua dignidade e pela própria
diferença que as caracteriza e singulariza...
Mas, no caso das instituições mais jovens, quando elas se
encontram ainda na sua “infância” ou mesmo na sua “adolescência”
institucional, deveria ter lugar, a meu ver, uma avaliação mais de
natureza prognóstico-prospectiva e de intencionalidade motivadora e
encorajadora, geradora e propulsora da indispensável auto-confiança
no futuro e da maturação criadora, nos potenciais de vitalidade
fecundante e dinamismo progrediente, nas capacidades de sonho, de
risco e ousadia e de realização diferenciadora, seja no sentido da
inovação sustentada, seja na entusiástica assunção daquele
inconformado desassossego que conduz ao rasgar de novos horizontes,
seja no discreto exercício e constante seguimento do “exemplo” do
velho Sócrates e do seu “espírito” que deve inspirar e iluminar o
imprescindível questionamento e exame de tudo, na perspectiva de um
“maiêutico” auto-aperfeiçoamento, mediado pela quotidiana auto-
correcção aos diferentes níveis orgânico-funcionais de competência e
desempenho...
DO FOMENTO DE “HÁBITOS” DE ESTUDO, LEITURA
E REFLEXÃO...
Os efeitos da profunda crise de valores que se vem arrastando no
quadro da dialéctica entre modernidade e pós-modernidade, sem que
para ela se tenha encontrado ainda uma saída satisfatória, revelam-se,
entre outras, em concretas configurações fenomenológicas, marcadas
“processo” de reforma que tem o nome desta pioneira cidade universitária; Coimbra,
com o seu “VII Centenário” [1290-1990]...
235
Fernando Paulo do Carmo Baptista
por uma gestão desproporcionada ou desviante dos tempos de estudo e
de lazer, pela falta de hábitos de leitura, de concentração mental e de
reflexão, pelas dificuldades em aspectos elementares dos processos de
cognição e metacognição, de organização heurística, de
operacionalização e sistematização metodológica, pela fragilidade da
preparação em domínios fundamentais das Ciências Básicas, das
Ciências Humanas e Sociais, das Línguas Estrangeiras e, de um modo
especial, da Língua Portuguesa e da Matemática.
Por outro lado, nas comunidades científicas e nas instituições
académicas, existe, hoje, entre os respectivos dirigentes e corpo de
professores, cada vez mais a consciência de que o ritmo que preside à
investigação e à divulgação dos seus resultados (sobretudo nos centros
onde estas assumem maior desenvolvimento, relevância e
produtividade) torna rapidamente obsoletos os conhecimentos
anteriormente construídos ou conquistados e só uma estratégia de
actualização permanente será capaz de responder aos desafios e aos
padrões de exigência, próprios das dinâmicas de formação que
caracterizaram um ensino superior digno desse nome.
Nesse contexto, O LIVRO DE CULTURA, DE CIÊNCIA, DE
REFLEXÃO E DE FORMAÇÃO (enquanto criação das mais profundas
— “verticalidade” — e mais elevadas — “ascensionalidade” — do ser
humano e expressão porventura maior da sua espiritualidade...)
CONSTITUI UM DOS NUCLEARES RECURSOS DE QUALQUER
PROJECTO DE FORMAÇÃO SUPERIOR426.
A preparação harmoniosa e fecunda dos futuros professores,
educadores e demais quadros superiores, sobretudo quando orientada
para a dinamização de um verdadeiro projecto de cidadania, singular e
colectivo, a desenvolver no quadro das possibilidades das instituições
académicas, implicando-se nele com os seus pares, com os demais
técnicos no exercício de funções ou em formação e com os seus
educandos e formandos, é, acima de tudo, um apaixonante desafio
426
Nestes tempos da «aldeia global» em que nos é dado viver, não podem deixar de
ser incluídos no conceito de “livro”, o e-book (livro electrónico), o CDrom, o DVD, o
site internético, com os seus artigos, estudos, ensaios na forma de downloads, as suas
bibliotecas, dicionários e enciclopédias, sem esquecer o imprescindível e
prestidigitador papel dos motores de pesquisa: a) a nível nacional: sapo, clix, niceday,
aeiou, cusco...; b) a nível internacional: altavista, yahoo, google, lycos...
236
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
antropológico e humanista, por isso mesmo, englobantemente
integrador das já referidas dimensões maiores do ser humano: a
dimensão onírico-imaginante, a dimensão histórico-mnésisca, a
dimensão noético-eidética, a dimensão teorética, a dimensão práxico-
etológica, a dimensão crítica, a dimensão ético-axiológica, a dimensão
estésica, a dimensão poiésico-morfogénica e metamorfósica...
Nessa perspectiva, o que cada vez mais se pede às instâncias
formadoras é que se preocupem em formar bem427 (isto é, formar em
todas aquelas dimensões maiores, na medida em que são elas que nos
singularizam e distinguem à escala biológica e antropológica),
fomentando prioritariamente a auto-capacitação intelectual dos
estudantes, através do desenvolvimento de largos leques de
potencialidades e competências sapienciais, metodológicas e
axiológicas, estimulando, neles, a assunção do sonho e da imaginação
criadora, a autónoma construção de paradigmas de pensamento, acção
e regulação, mais do que de estereotipadas destrezas operativas de
concepção e orientação tecnológica, se não mesmo burocrática e
tecnocrática. O domínio do saber-fazer (isto é, dos desempenhos
técnico-instrumentais) surgirá, naturalmente, nos diferentes contextos
em que a vida os envolverá e em que eles se envolverão nela, sem que
alguma vez sacrifiquem alienantemente aos bezerros-de-ouro de
qualquer época a sua infinita capacidade de sonhar, inventar e de criar...
Mas, em toda a acção modeladora de nós próprios e dos outros,
da nossa ipseidade e da nossa alteridade e, simetricamente, da
outridade e da mesmidade dos outros, é insubstituível a acção
informante, crítica e morfogénica da avaliação, seja na regulação
validadora do ensino-aprendizagem, seja na (re)orientação dos
desempenhos ou na (re)organização das dinâmicas formativas, tudo
direccionado para o caminho do crescimento qualitativo e dignificante
de quantos se dedicam, com espírito de missão, à nobre causa de educar,
formar e investigar...
E se essa causa, do lado da auto-construção das aprendizagens,
tem como verdadeiros protagonistas os alunos e os formandos, do lado
427
Cf. Edgar Morin: Repensar e Reforma, Reformar o Pensamento, A Cabeça Bem
Feita, Lisboa, Edições Piaget, 2002; Os Sete Saberes Para a Educação do Futuro,
Lisboa, Edições Piaget, 2002; Amor, Poesia, Sabedoria, Lisboa, Edições Piaget,
1999; Edgar Morin, Raul Motta, Emílio Roger Ciurana: Educar para a Era
Planetária, Lisboa, Edições Piaget, 2004.
237
Fernando Paulo do Carmo Baptista
da efectiva preparação das suas condições organizacionais e
operatórias, da sua condução inteligente e criteriosa e da sua
dinamização inovadora e criativa não deixa de ter como seus
orquestradores estratégicos, como seus “Maestros” (“Magistri”), os
Professores...
ESTA PALAVRA ‘PROFESSOR’
A palavra ‘professor’, segundo os melhores dicionários etimológicos428,
provém do latim professor, -oris429) e apresenta no fulcro da sua
constituição morfológica a raiz indo-europeia *bhā-2 430 que é portadora
do significado matricial de “falar, manifestar-se em público e com
clareza, através da palavra”. Esta raiz que apresenta variantes mórficas
do tipo bh - / bhē- // ph - / phē- [ > f - / fē- ] e está na origem, entre
outras, de palavras gregas como o verbo (= falar, tornar manifesto
o seu pensamento através da palavra, revelar, anunciar em público...),
os substantivos , - 431, e ο (= profeta, aquele que
interpreta a vontade dos deuses e que fala publicamente em seu nome,
aquele que anuncia o futuro...), o adjectivo ο ι (profético),
etc.; está também presente em latim em lexemas como o verbo f t or,
428
E.g.: Santiago Munguía Segura: Nuevo diccionario etimológico Latín-Español y
de las voces derivadas; Bilbao, Universidad de Deusto, 2001, entradas “pr f t or, -
ēris, -ēri, -fessus sum [pro + f t or]”, “f t or, - ēris - ēri, fassus sum”; “for, faris, f ri,
f tus sum”; A. Ernout et A. Meillet: Dictionnnaire Étymologique de La Langue Latine
— Histoire des mots, Paris, Librairie C. Klincksieck, 41967, entrada “for, faris, fari,
fatus sum”.
429
Nome da mesma família do verbo profiteor [< pro + f t or, com evolução
apofónica: f > f ], -eris, -eri, fessus sum, que significa professar, falar em público e
abertamente, proclamar diante de e em favor de, falar para a frente, anunciar o
futuro...
430
Com as variantes bhē-/ bh - > f -/ fē-/ f -. Cf. Calvert Watkins: The American
Heritage – Dictionary of Indo-European Roots, Boston / New York, Houghton
2
Mifllin Company, 2000, entrada “bh -2.
431
Homólogo do nome latino fama, -ae, com o significado de “fama, revelação e
publicitação pela palavra; oráculo, augúrio, presságio ou advertência vinda dos
deuses, reputação [favorável ou desfavorável, boa ou má] posta a circular em público
acerca de alguém”.
238
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
- ēris -ēri, fassus sum (= confessar, manifestar, declarar) e seus
derivados: confiteor, confessor, profiteor, professio, professus... Esta
importante e fecunda raiz está igualmente presente em português (com
evidente isomorfia, relativamente aos correspondentes lexemas da
generalidade das línguas românicas e, mesmo, das não românicas...)
num significativo elenco lexicológico que integra palavras como
afabilidade, afasia, afásico, afável, afonia, afónico, antífona,
blasfemar, blasfémia, blasfemo, brasfemar, brasmar, confabulação,
confabular, confessar, confissão, difamação, difamar, difamatório,
disfasia, disfemismo, efabulação, efabular, eufemia, Eufémia,
eufemismo, eufemístico, eufonia, fábula, fabulação, fabular, fabulário,
fabuloso, fada, fadário, fado, facúndia, fala, falar, fama, famigerado,
famoso, fandango, fando, fone, fonema, fonética, inefável, infame,
infâmia, infância, infando, infantário, infante, infantil, nefando,
polifonia, prefácio, profecia, professar, professor, profissão, profético,
profetizar sinfonia, telefone, telefonia...
Por outro lado, esta raiz é isomórfica da raiz *bhā-1 432, que
significa “brilhar” e que está na base da constituição de lexemas gregos
como [< ο ], ο (= luz, luz do sol, luz do dia...), α ν (=
brilhar, irradiar luz, tornar-se visível, aparecer, manifestar-se),
αν (= visível), ι ν ια (= epifania, aparição, manifestação),
sendo de sublinhar que a esta mesma família semântico-lexical
pertencem lexemas portugueses (e os correspondentes “cognatos”
românicos...) como epifania, fanerogâmico, farol, fenómeno, fósforo,
fosforescência, fotão, diáfano, fantástico, fase, ênfase, fosfeno, fósforo,
fosfóreo, fosforescente, fótico, hierofanta, sicofanta...
Dos estudos dedicados à Mitologia, sabemos, também, que a ideia
de “luz” é indissociável da ideia de “deus”433, sendo naturalmente
conjecturável a ocorrência de interacções semânticas por via
tropológica entre a ideia de “falar com clareza” (por forma a tornar
“visíveis” ou entendíveis as coisas...) e a ideia de “luz”, “brilho”,
“lucidez”...
432
Com as variantes bhē- > b -/ b - >/ f -/ f -. Cf. Calvert Watkins: ibidem, entrada
“bh -1”.
433
E.g.: Deus, Zeus, Jupiter [*Djeu + P ter] são os “senhores da luz”. Cf., neste
volume, o ensaio intitulado «A “centelha” (‘scintilla’) de Zeus na palavra ‘teoria’».
239
Fernando Paulo do Carmo Baptista
Assim, em consonância com a “bilateralidade” genético-
semântica que emerge da radicação etimológica e das aludidas
interacções, OS PROFESSORES (tal como os Profetas... e os Poetas...),
quando sabem ser coerentes protagonistas da palavra fundadora,
alumiante e criativa, não deixam de ser, em sua missão arquitectante,
modeladora e formativa, OS “INSPIRADOS INTÉRPRETES DOS
DEUSES” E “OS ESTELARES E PROFÉTICOS MENSAGEIROS-
POETAS DO FUTURO”...
DA PROFUNDA CRISE434 QUE VEM ATRAVESSANDO
O NOSSO TEMPO ACTUAL...
O forte sentido da responsabilidade que muito especialmente deve
distinguir os professores e educadores reflexivos e, por isso mesmo,
conscientes e preocupados e seriamente empenhados na CAUSA MAIOR
DA EDUCAÇÃO, conduz, decerto, ao reconhecimento de que tem inteira
pertinência uma abordagem, ainda que sumária, ao preocupante
momento histórico, cultural, social e político que o mundo do nosso
tempo vem atravessando, atingido pela eclosão de uma complexa teia
de fenómenos com que quotidianamente não podemos deixar de
conviver, dadas as suas graves incidências, mais directas umas, mais
indirectas outras, em todo o processo educativo...
De facto, em consequência dos efeitos simultâneos da acção
radical, iconoclasta, dissolvente e niilista, desvalorizadora das “grandes
narrativas” filosófico-literárias (narrativas fundamentantes) e dos
valores que as conformavam, levada a cabo pelos movimentos pós-
modernistas em cruzada e convergente sinergia com a exacerbada
hiperbolização hedonista das vantagens e benefícios configurados no
bem-estar material trazido pela revolução científico-tecnológica,
herdeira “legítima” das luzes da racionalidade galileico-cartesiana,
com a subalternização, se não mesmo a rasura, da pascaliana «raison
434
A problemática da “crise” que vem atravessando tão preocupantemente o tempo
em que vivemos não podia deixar de estar bem presente e bem vincada, de modo
transversal e reiterado, ao longo da “sintaxe” desta “rapsódia” ensaística.
240
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
du coeur», a que se veio seguindo gradativamente o quase
silenciamento do sistema axiológico (que, pacientemente e não sem
sofrimento, foi sendo construído ao longo da História...) vem-se
impondo, seminal e larvarmente, nas sociedades actuais (sobretudo nos
países economicamente mais fortes), sob o eco e sob o signo tumular
do «Gott ist tot» da turbulenta “rosa dos ventos” de Nietzsche, de par
com a sombra neutra e fatídica de um pragmatismo esvaziado,
decantado ou depurado da carga do axiológico, um generalizado
“código de conduta” assente num “grau zero ético” ou numa “ética
minimal e indolor”, para usar os conhecidos registos expressionais de
Gilles Lipovetsky435...
É assim que, atingida de modo tão barulhento como acrítico a
memória cultural, o coração e a alma axiológica e sapiencial da Cidade,
vem ocorrendo, às mãos da tecnocrática eficácia e da robótica irreflexão
do homo agens (do homo operator...), seu titânico e demiúrgico
protagonista, uma exponencial e generalizada degradação, com o
Planeta a ficar galopantemente transformado (via globalização
economicista...) numa senhorial herdade ou coutada, mortiferamente
explorada, a nível dos recursos naturais e dos recursos humanos, por
cada vez mais poderosas e apátridas oligarquias internacionais... Veja-
se, por exemplo, quem cumpre (e como se cumpre...) o protocolo
ecológico de Quioto ou quem comanda (e como se comandam...) as
deslocalizações das empresas!...
Mas é, sobretudo, através do poder manipulador proporcionado
pelos diferentes programas mediados por um dos mais emblemáticos
artefactos criados pela Ciência e pela Tecnologia — a Televisão — que
nos é dado assistir a fenómenos tão inquietantes e tão preocupantes
como os seguintes436:
• crescente marginalização dos grandes paradigmas e das grandes
referências culturais, éticas e políticas, com o consequente nivelamento
435
Cf. Gilles Lipovetsky: A era do vazio [trad. de Miguel Serras Pereira e Ana Luísa
Faria], Lisboa, Relógio d’Água, 1989; O crepúsculo do dever — a ética indolor dos
novos tempos democráticos, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1994;
Métamorphoses de la culture libérale. Éthique, médias, entreprise, Montréal, Liber,
2002 (este último, uma espécie de “abrégé” do pensamento do autor).
436
Cf. Fernando Paulo Baptista: Polifonia, Poiese e Antropopoiese ..., já citado, nota
39, pp. 16 e 53-54.
241
Fernando Paulo do Carmo Baptista
rasteiro do trabalho, do valor e do mérito, o generalizado aviltamento do
sistema axiológico e a sistemática e inflaccionária “vulgarização” da sua
categoria valorativa e referencial maior: a “excelência”;
• mediocratização da vida pública pela promoção dos dirigentes
populistas e oportunistas e dos mitos e ídolos de pés de barro de todas
as espécies: desde as milionárias “estrelas” da pop music e dos media
televisivos aos “astros” do futebol e da “fórmula um”, às “vedetas” da
pornografia e aos protagonistas do enriquecimento fácil, nebuloso
(“branqueado”) e sem escrúpulos;
• banalização de realidades tão sérias e tão trágicas como as da doença,
do sofrimento, da guerra e da morte;
• perversão contra naturam da sexualidade e da intimidade;
• desproporcionada promoção de deprimentes e estupidificantes
espectáculos televisivos como os dos reality shows (e certos talk shows
marcados pelo cinismo e pela futilidade...) ou dos números de humor
imbecilizante e rasca;
• narcotráfego, produção, comércio e candonga de armas;
• pobreza, marginalização, exploração, exclusão e discriminação social;
• criminalidade animalesca e brutal, abuso e violação de crianças, de
menores e de mulheres, violência e terrorismo;
• irreverência desrespeitosa e ofensiva do sagrado e da autoridade
(sobreposta àquela saudável irreverência prometeica e afirmativa,
própria das gerações mais jovens...);
• contestação sem critério e sem regras decorrente do diagnosticado
“crepúsculo do dever” (Lipovestky), com a irresponsável e generalizada
tendência para apenas se reclamarem “direitos” como se já não
houvesse “deveres” ou “obrigações”;
• predomínio do egoísmo hedonista e materialista e do consumismo
acrítico e desregrado;
• alastramento de toda a espécie de poluição e agressão moral e
ecológica e da fruição sem ética, sem estética, sem autodomínio e sem
bússola;
• em suma: desfiguração da alma e do rosto do homem pelo
esvaziamento da sua própria dignidade e humanidade...
Tudo numa lógica de “lotaria mortal” (subjacente e inerente aos
riscos de toda a ordem, com especial destaque para os da incontrolada
contaminação das águas, dos ares e dos mares e da desnaturada e
242
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
gananciosa composição bioquímica dos alimentos...), a desaguar numa
sempre latente e insuperada conflitualidade e numa terrífica e
generalizada violência imparavelmente vagabunda e sem fronteiras (ou
não estivéssemos a viver na globalizada «sociedade do risco»437),
analisada e descrita por Ulrich Beck com rara agudeza e clarividência...
Lógica que a retórica inerte do discurso político dominante (quase
sempre correcto ou mascaradamente distorcido e, por isso mesmo,
hipocritamente fingido e só muito raramente transparente, frontal e
indignado e verticalmente saudável e digno...) não consegue fazer
reverter...
Num tal contexto, vem-se assistindo a uma práxis
secundarizadora do diálogo autêntico e da concertação justa e
equitativa, afirmadora do rosto humano do outro e consagradora do
consonante desenlace num compromisso ético e num consenso social
solidariamente construídos, como resposta às perversões imperiais
duma oligo-globalização economicista e de um neo-malthusianismo
financeiro drasticamente redutor do mercado de trabalho e, por isso
mesmo, conducente ao desemprego generalizado, à precariedade das
condições de vida, à instabilidade, à insegurança, à contestação e à
violência social...
Em síntese: não só se vem confirmando a “canonização” da
“época da pós-verdade”, mas também se vem configurando o advento
da “era da pós-justiça”, ou seja, uma deriva social e civilizacional que
prenuncia a derrocada do “sistema ético-axiológico”...
DOS CAMINHOS DA SUPERAÇÃO: A “REVOLUÇÃO
DAS CONSCIÊNCIAS”...
A meu ver, a estratégia e a terapia superadoras de tal estado-de-
coisas jamais podem prescindir de um profundo exercício de
437
Cf. Ulrich Beck: La sociedad del riesgo — hacia una nueva modernidad,
Barcelona, Editorial Paidós, 2001, pp. 85 ss: «... la sociedad del riesgo no es una
sociedad revolucionaria, sino más bien una sociedad de las catástrofes. En ella, el
estado de excepción amenaza con convertirse en el estado normal.» (p. 87); «... con el
crecimiento de los peligros surgen en la sociedad del riesgo desafíos completamente
nuevos a la democracia.» (p. 88).
243
Fernando Paulo do Carmo Baptista
questionante reflexão e gnose, de um exigente, ascético e catártico
trajecto (re)criador do conhecimento profundo, de uma radicante
“Sophia” (que seja, simultaneamente, uma antropo-sofia e uma teo-
sofia), conducente à elevação do nível intelectual, cultural e axiológico,
em suma, da enciclopédia sapiencial de cada um e de todos,
alicerçando, primigeniamente, todo esse processo de antropo-poiese,
de antropo-arquitectura, na paidêutica promoção de uma serena mas
firme “revolução das consciências”, tendo em vista a formação de um
forte sentido ético e social, inspirador e a repositor de uma nova
esperança...
“REVOLUÇÃO DAS CONSCIÊNCIAS”!... Tal é a lúcida e pacífica
proposta enunciada pelo filósofo e teólogo Karol Woityla438 para todos
os homens do nosso tempo, a ser orientada para a reconstrução e
redensificação axiológica da subjectividade, sobretudo, em suas
capitais faculdades e energias superiores, tanto racionais como
transracionais: a razão, a análise, o cálculo, a conjectura, o sentido do
método, a experimentação, a reflexão, o espírito crítico, mas também
o coração, a sensibilidade, a afectividade, o sofrimento, a vontade, a
ousadia, a decisão, a aventura, a paixão, o sonho, a fantasia, a
imaginação, a inventiva, a criatividade... Instituir-se-á, a partir daí e
em contraponto, uma regeneradora e reestruturante base antropo-
arquitectónica, semiogénica e culturofânica, um verdadeiro centro
energético, revitalizador das relações intersubjectivas, interpessoais,
institucionais e sociais em geral, «modernizador da modernidade», o
mesmo é dizer, propulsor de uma «modernização reflexiva» ou de uma
«segunda modernidade», na acepção de Ulrich Beck439 e, assim,
propositor à comunidade humana de uma alternativa fundada,
fundamentada e fundamentante, responsável, credível e
credibilizadora e conformadora de uma nova visão do mundo e de uma
nova estratégia de desenvolvimento e de progresso, de tal modo que
«ser homem» — ser ênyrvpow — recupere o seu mais genuíno e
universal sentido... Mas esse «eu» a formar e onde está implantado e
sediado o «espírito criador», se, por um lado, é um «eu ipseídico», não
pode deixar de ser também e pelo outro, congenitamente e ao mesmo
tempo, um «eu-com-os-outros-e-para-os-outros», um «eu alterídico»,
438
Cf. Fernando Paulo Baptista: Tributo..., op. cit., p. 550.
439
Cf. Ulrich Beck: op. cit., p. 197 ss.
244
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
interpessoal e pontificiente, o mesmo é dizer, uma nostridade sin-
antrópica e inter-animante «del hombre con el hombre», nostridade
essa, em cuja instauradora conformação intervém, em incontornável e
constitutiva dialogia, o “outro”, o “tu”: «É O TU QUE ME FAZ EU!»,
proclama lapidarmente Martin Buber440, logo secundado, em estreita
consonância poética, por Paul Celan441: «SOU TU QUANDO SOU EU». Em
síntese e na assumida perspectiva de uma lógica universal, inclusora e
integradora442: Ser Homem é ser em Si, sempre e ao mesmo tempo, o
Próprio e o Outro, sem exclusão de Ninguém!...
PALAVRA DE PROFESSORES!...
Em coerente sintonia, portanto, com a semântica arcaica e
nuclear que, como acabámos de ver, se liberta das matrizes
etimológicas e das interacções sémicas potenciadas pela respectiva rede
de lexemas, bem como das relações de natureza tropológica ou da
influência de contextos comunicacionais e práxicos com afinidades de
fronteira no dinamismo da significação, os Professores, pela
singularidade da sua condição de “ESPECIALISTAS EM HUMANIDADE”,
de PROTAGONISTAS DA PALAVRA FUNDADORA, ESTRUTURANTE,
ENERGÉTICA, SEDUTORA, SÁBIA E ARTÍSTICA, de “ENGENHEIROS-
ARQUITECTOS-POETAS” DOS HORIZONTES VITAIS, pela nobreza
incomparável da sua missão formadora e transformadora, enquanto
acurados “INTÉRPRETES DOS DEUSES” e esperançosos “MENSAGEIROS-
POETAS DO FUTURO”, em circunstância alguma deverão assumir para
com aqueles que transportam em si o “divino” em sua expressão mais
pura e genuína — as crianças e os jovens — práticas educacionais e
comunicacionais que não sejam dignas deles e de si próprios, em
circunstância alguma deverão conceber e desenvolver um tão alto
440
Cf. Martin Buber: Qué es el hombre?, México – Madrid – Buenos Aires, Fondo de
Cultura Económica, 1986: pp. 98, 100-101, 104, 140, 141-151.
441
Paul Celan: Sete Rosas Mais Tarde (Antologia Poética), Lisboa, Edições Cotovia,
2
1996, pp. 12-13; ver também Arte poética — O meridiano e outros textos, Lisboa,
Edições Cotovia, 1996, pp. 81-82.
442
Cf. Fernando Paulo Baptista: op. cit., p. 550, nota 11;
cf. também: http://www.liberalfondazione.it/archivio/Fl/numero7/sanpietro.htm
245
Fernando Paulo do Carmo Baptista
projecto e processo, na base de um “discurso” que viesse a merecer o
epíteto de “blasfemo” ( blãsfhmow lÒgow), na acepção que este
adjectivo tem em grego, ou seja, um discurso maculador dessa pureza
e ofensor dessa “divindade” genuína e prístina... Pelo contrário, impõe-
se-nos escutar as vozes proféticas e sábias que irrompem do passado,
nascidas da pureza e dos abismos do ser; impõe-se-nos seguir
novamente a “lição” ética e culturalmente forte dos «GRANDES
MESTRES», daqueles «MESTRES DE ESTOFO E DE ESTATURA» de que nos
fala George Steiner nas suas Lessons of the Masters443, com a
consequente recusa e superação do que não presta, do que não tem
elevação, nem sentido, nem grandeza e a permanente assunção de uma
inconformada libido sciendi, de uma diuturna ascese melhorativa e de
uma inextinguível, porque sempre jovem, paixão pelo intranscendido,
propulsor e fecundante “LEGADO DE HOMERO”, “EDUCADOR DA
GRÉCIA”, “EDUCADOR DO MUNDO”...
Na verdade, quando um Professor digno desse nome consegue
tocar com a sua postura ética auto-exigente e iluminante e com o seu
agir sapiencial e poiésico as raízes do ser e o coração da alma dos seus
discípulos, desenhando e rasgando aquela largueza de horizontes e de
oceanos que lhes garante a autonómica aventura de todas as
navegações, pode, depois, quedar-se só, recolhido na serena discrição
do seu silêncio, porque ficará gravado, para sempre, na gratidão e na
memória daqueles a quem ele ajudou a crescer.
A “LIÇÃO” DOS GRANDES MESTRES (“MAESTROS”), TAL COMO A
“PALAVRA” DOS GRANDES POETAS, PORQUE É FUNDADORA, É
IMPERECÍVEL...
E «porque a realidade profunda da palavra é o espírito que nela
mora ou o espírito que por ela passa», então, a nossa palavra — Palavra
de Professores... — poderá configurar, com Vergílio Ferreira444, a
«furtiva correlação de referências que nos orientam do filósofo ao
poeta, ao homem quotidiano», a «mágica e real (...) tessitura que em si
mesma se resolve (...) para nela sermos a totalidade do que somos com
a aventura do desconhecido e o apelo do mais que nunca é». E quem
443
George Steiner: Lessons of the Masters, Harvard, Harvard University Press, 2003
(que cito através da versão em espanhol: Lecciones de Los Maestros, Madrid,
Ediciones Siruela, 2003, pp. 11-15, 171-172).
444
Cf. Vergílio Ferreira: Invocação ao meu corpo, Lisboa, Bertrand, 21978: pp. 295,
298-299.
246
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
sabe?... Com ela no coração meigo e puro e na mente sem maldade e
sem pecado e inspirados naquela mesma «arte de roseira» que leva
Herberto Helder a trazer para dentro da morada quente, alumiante e
fascinante de seus fabulosos poemas as crianças que há no mundo...
vindas das mais diversas lunações... a correr com braços e cabelo...
como se movessem água... todas metidas no vento..., plasmaremos com
Makarenko, mas para além dele, UM “POEMA” PEDAGÓGICO NOVO,
inaugurador de um mundo novo também...
Assim:
«Não cortem o cordão que liga o corpo à criança do sonho,
o cordão astral à criança aldebarã, não cortem
o sangue, o ouro. A raiz da floração
coalhada com o laço
o centro das madeiras
negras. A criança do retrato
revelada lenta às luzes de quando
se dorme. Como já pensa, como tem unhas de mármore.
Não talhem a placenta por onde o fôlego
do mundo lhe ascende à cabeça.
A veia que a liga à morte.
Não lhe arranquem o bloco de água abraçada aonde chega
braço a braço. Sufoca.
Mas não desatem o abraço louco.
Move a terra quando se move.
Não limpem o sal na boca. Esse objecto asteróide,
não o removam.
A árvore de alabastro que as ribeiras
frisam, deixem-na rasgar-se:
— Das entranhas, entre duas crianças, a que era viva
e a criança do sopro, suba
tanta opulência. O trabalho confuso:
que seja brilhante a púrpura.
Fieiras de enxofre, ramais de quartzo, flúor agreste nas bolsas
247
Fernando Paulo do Carmo Baptista
pulmonares. Deixem que se espalhem as redes
da respiração desde o caos materno ao sonho da criança
exacerbada,
única.»445
ANOTAÇÕES E ADENDA
1. Para a superação dos fenómenos de “esquizo-sofia”, de “ruptura” e
“desagregação” ético-axiológica e sapiencial que afectam as
instituições formadoras, designadamente as Universidades, cf. Parker
J. Palmer & Arthur Zajonc with Megan Scribner: op. cit.. Importa, na
verdade, superar as lacerações, as divisões e as rupturas que subjazem
à etiologia profunda (endógena e exógena...) da patológica e agónica
situação denunciada no polémico mas interpelante título de Bill
Readings «A Universidade em Ruínas» (Bill Readings: The University
In Ruins, Cambridge and London, Harvard University Press, 1996).
Esse estilhaçamento ou dilaceração decorre também (entre outras
variadíssimas razões intrínsecas aos fenómenos da “massificação dos
sistemas educativos e formativos” e da “globalização economicista” e
aos radicalismos pós-modernistas e neo-liberais...) do que tem sido a
incapacidade de se reconhecer o valor e a importância da solidariedade
ético-axiológica e gnosiológica e da inter-conectividade dos saberes e
dos valores: «Those divisions, rooted in our failure to recognize the
reality of interconnectedness, are found not only in the ontology,
epistemology, pedagogy, and ethics that form a silent backdrop to
university life.» (Parker J. Palmer et alii: op. cit., p. 127). Neste
contexto, além da reflexão plasmada no ensaio acabado de citar, são
igualmente importantes os contributos reflexivos consignados nas
seguintes obras (todas elas, de leitura obrigatória): Mark C. Taylor:
Crisis on Campus — A Bold Plan for Reforming Our Colleges and
Universities, New York, Alfred A. Knopf, 2010: «There can be no
meaningful reform of higher education without redesigning
445
Herberto Helder: Ou o Poema Contínuo [Última Ciência], Lisboa, Assírio &
Alvim, 2004: pp. 430-431.
248
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
departments in ways that will support more extensive collaboration
among faculty members and students working in different fields. It is
also necessary to make structural changes in the curriculum that will
facilitate the introduction of new interdisciplinary programs focused on
specific problems and themes. Departments and programs should have
the openness and flexibility that allow them to adapt to the constant
evolving structure of knowledge.» (p. 139); Martha C. Nussbaum: Not
For Profit — Why Democracy Needs The Humanities, Princeton, NJ /
USA, Princeton University Press, 2010 («... what schools can and
should do to produce citizens in and for a healthy democracy?» (pp. 45-
46); «Democracies have great rational and imaginative powers. They
also are prone to some serious flaws in reasoning, to parochialism,
haste, sloppiness, selfishness, narrowness of the spirit. Education based
mainly on profitability in the global market magnifies these deficiencies,
producing a greedy obtuseness and technically trained docility that
threaten the very life of democracy itself, and that certainly impede the
creation of a decent world culture. If the real clash of civilization is, as
I believe, a clash within the individual soul, as greed and narcissism
contend against respect and love, all modern societies are rapidly losing
the battle, as they feed the forces that lead to violence and
dehumanization and fail to feed the forces that lead to cultures of
equality and respect. If we do not insist on the crucial importance of the
humanities and the arts, they will drop away, because they do not make
money. They only do what is much more precious than that, make a
world that is worth living in, people who are able to see other human
beings as full people, with thoughts and feelings of their own that
deserve respect and empathy, and nations that are able to overcome fear
and suspicion in favour of sympathetic and reasoned debate» (pp. 142-
143). Todos estes contributos se revelam crucialmente decisivos,
sobretudo quando verificamos que, nesta «era do vazio» (Lipovetsky),
há tanta iliteracia, prolifera tanto «analfabetismo» (mesmo se
«diplomado»...), se silenciam cada vez mais, e de modo catastrófico, os
textos maiores da nossa Língua, da nossa Cultura, da nossa Literatura,
da nossa Poesia e da nossa Reflexão (filosófica, teológica, científica e
sapiencial em geral...), textos plasmados nas obras (literárias ou afins...)
dos nossos Grandes Clássicos, Antigos e Modernos, o mesmo é dizer,
quando se ostraciza o “Património” imaterial, imorredoiro, energizante
e sempre criativa e inovadoramente potenciador e propulsor (aos mais
249
Fernando Paulo do Carmo Baptista
diversos níveis da nossa condição antrópica e lusíada...) das
Humanidades, das Belas Letras e das Belas Artes... Cf. Fernando Paulo
Baptista; Polifonia..., op. cit., pp. 28-30.
2. Sem recusar a ideia de que, face a situações problemáticas
marcadas por profundas e graves carências de conhecimentos e
destrezas basilares e, portanto, comprometedoras das aprendizagens
subsequentes ou futuras, se torna imprescindível a supridora
transmissão desses saberes e destrezas alicerçantes, importa clarificar
previamente de que modo e em que condições se poderá operar uma tal
transmissão. Assim, ponderando bem a complexidade de tão grave
estado de coisas como é o actual, não me parece que o recurso, por
exemplo, à lição, exposição ou dissertação magistral seja a via ou
caminho ([meta-] odos) mais adequado para a colmatagem de tais
carências, mesmo no assim chamado ensino superior... Pelo contrário,
no contexto global da situação concreta em que se encontram a
educação e o ensino, situação generalizadamente reconhecida como
altamente deficitária a nível do domínio da língua materna (com
especial destaque para a leitura/interpretação, o vocabulário e a
escrita...) e a nível do desenvolvimento das capacidades e faculdades
cardinais (imaginação criadora, sensibilidade, inteligência, vontade,
memória, razão, espírito crítico...), dos saberes cruciais e estruturantes,
das posturas, destrezas e operações mentais constitutivas e
arquitectantes (atenção, concentração, resistência, conjecturalidade,
dedutividade, raciocínio, análise, síntese, sistematização, sentido do
método, hábitos de estudo e de trabalho...), afigura-se-me muito mais
adequada, eficaz e produtiva a constante interpelação dialógico-
dialéctica (“irónica”, na acepção socrática do termo...), a implicar,
problematizadora, heurística e maieuticamente, o envolvimento e a
participação directa e activa dos alunos... Todavia, tal modo de
conduzir as coisas exige inquestionavelmente mais trabalho aos
professores, mas o «método» do velho Sócrates, devidamente ajustado
e adequadamente complementado, por exemplo, com o recurso aos
multimédia e enciclomédia, parece-me actualíssimo em seus aspectos
essenciais... Considere-se, a propósito, um exemplo prático:
pressupondo sempre a melhor preparação científica por parte do
professor, tendo como objectivo levar a turma a aprender os
conhecimentos implicados na célebre fórmula de Einstein respeitante à
250
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
equivalência entre energia e matéria (e = mc2) e considerando, nessa
aprendizagem, o significado e alcance científicos da equação em causa,
pergunta-se: transmitir, expositiva e exlusivamente, através do
desenvolvimento discursivo protagonizado unipolarmente e a solo pelo
emissor-professor será a mesma coisa que envolver e implicar,
orquestral e sinagogicamente, compositiva e inclusivamente, todos os
alunos da turma (de modo activo, heurístico, «construtor» [poiésico] e
multipolar), na interacção, circulação e alternância dialéctico-
dialógica (emissor <> receptor / receptor <> emissor...), visando a
reflexão explicativo-compreensiva dessa fórmula?... Imagine-se uma
estratégia pedagógico-didáctica em que o professor propõe à turma um
“itinerário” como o seguinte: 1º. pesquisar, previamente, nas
bibliotecas e na internet informação específica acerca daquela equação
einsteiniana; 2º. levar a cabo, de modo disciplinado e metódico, um
debate em torno daquela equação; 3º. ensaiar imaginativamente a
aplicabilidade daquela equação e elaborar uma síntese sistematizadora
dos fundamentais conhecimentos envolvidos; 4º. retirar as conclusões,
redigir o sumário e, melhor ainda, um relatório condigno do trajecto
percorrido... Alguém terá dúvidas quanto à produtividade formativa,
nos planos científico, cultural e pedagógico, de um e de outro
método?... E qual dos dois é mais exigente quanto ao investimento de
estudo e de trabalho por parte de todos: professor e alunos?... É assim
que, sem prejuízo da concordância que genericamente me merecem as
críticas formuladas por Nuno Crato (cf. Nuno Crato: O ‘Eduquês’ em
discurso directo — Uma crítica da pedagogia romântica e
construtivista, Lisboa, Gradiva, 62006; ver síntese conclusiva: pp. 115-
121) em torno das razões do estado a que chegou a Educação em
Portugal, não posso, todavia, deixar de discordar não só de algumas das
soluções por si avançadas, como do modo como interpreta a questão,
entre outras, da competência (pp. 75-79) e da sua relação (ou não...)
com a aprendizagem dos conhecimentos, com a construção do saber...
Na verdade e do meu ponto de vista, a competência, deverá ser
entendida (de acordo com a semântica originária e profunda da raiz
indo-europeia — pet- [> ped-] > / pt- / pot-: com-pet-ência — que
lexicogenicamente está na sua origem constitutiva...) como o
movimento sinérgico, ágil, fluido e euplástico direccionado para a
aprendizagem ou encorporação/interiorização de saberes, experiências
e destrezas, movimento esse, a ser criteriosamente conduzido segundo
251
Fernando Paulo do Carmo Baptista
um desígnio edificacional (constructor [con-stru-c-tor]) et erector)
potenciador de desempenhos originais, fecundos e produtivos. Poderá
mesmo dizer-se (num registo analógico de inspiração e articulação
saussureana e chomskiana...) que a competência é o paradigma e que o
desempenho ou performance é o sintagma ou texto que a concretizam
e manifestam; ou, também (socorrendo-me, desta vez, do legado
aristotélico), que a competência é a potência (dÊnamiw) e o desempenho
é o acto (§n°rgeia / ¶rgon). Se considerarmos, agora, esta questão, na
perspectiva do processo avaliativo, é evidente que aquilo que
objectiva(da)mente se avalia são os desempenhos através dos actos e
das realizações que em cada momento os configuram... Mas é a partir
desses desempenhos que é possível inferir, com relativo fundamento
(tendo em conta a sua frequência, a sua constância ou inconstância, a
sua progressão, paralisia ou mesmo regressão...), da qualidade da
competência que lhes vai subjacente e os potencia, sendo pertinente
falar, então, de desempenhos mais ou menos conseguidos ou, no caso
vertente, de professores e de alunos mais ou menos competentes (ou
incompetentes) nas diferentes disciplinas que integram a estrutura do
currículo: literatura, filosofia, história, matemática, física, química,
biologia... Ou seja: o professor de filosofia é (ou não é...) competente
em filosofia; o professor de matemática é (ou não é...) competente em
matemática e assim por diante... O que significa não se afigurar
defensável a ideia de uma competência meramente eidética, vazia de
conteúdos sapienciais (teóricos ou práticos): parafraseando Husserl, a
competência (tal como a consciência...) é sempre competência em
alguma coisa, é um potencial dinâmico apetente, isto é, sinergicamente
direccionado para a apropriação dos saberes de toda a ordem que estão
na génese, fundamentação e sustentação dos nossos desempenhos reais
e concretos. Parece-me mais correcta, portanto, a seguinte sequência,
co-implicativamente ordenada: capacidades > competências <>
saberes / destrezas > desempenhos, sublinhando o facto de, de modo
algum, se me afigurar defensável uma concepção amnésica do saber,
da ciência, da cultura ou da educação... Não deixo, todavia, de
propugnar a sobreposição hierarquizada da dimensão poiésico-criativa
do conhecimento e do saber relativamente à sua dimensão meramente
“arquivística” do tipo «eu transmito e vós arquivais»; esta modalidade,
desenvolvida com maior ou menor “perversão”, pode conhecer
enunciações do seguinte teor: «eu digo / eu dito e vós escreveis /
252
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
registais»; «e, porque eu é que sei (mas vós não...), eu mando e vós
obedeceis»... É assim que prefiro, claramente, uma formulação deste
género: «vou esforçar-me por dar, conjuntamente convosco, tudo
quanto posso e sei, implicando, nesse dar, os melhores e mais
completos conhecimentos e saberes e os mais fecundos métodos,
técnicas e procedimentos de que for capaz (que quando não for, pedirei
ajuda...), no sentido de desenvolverdes em vós e por vós, de modo
autónomo e criativo e com espírito crítico e exigência ética, as
competências de ordem cognitiva e metacognitiva e o domínio teórico
e prático (e sempre que for possível, insisto, «poiésico»...) dos
conteúdos disciplinares, científicos, sapienciais e culturais,
concretamente exigidos nos planos de estudos que integram a estrutura
programática dos vossos currículos».
3. Em reforço do significado “arqueológico” do lexema
‘competência’, importa referir que a raiz indo-europeia — pet- [> ped-
] > /pt- /pot- — tem como “ADN SEMÂNTICO” a ideia de pôr-se ou
lançar-se em movimento ágil num ambiente fluido [ar ou água] e que
está igualmente presente num vasto e curiosíssimo elenco de vocábulos
(cerca de trezentos), uns provenientes directamente do latim, outros do
grego (e em sua larga maioria, de uso especializado...), mas todos eles
transversalmente atravessados por aquele mesmo fio semântico
matricial e identitário, ainda que morfologicamente sujeitos aos
fenómenos de metamorfose, próprios da evolução fonética e do
dinamismo semântico-tropológico: açor (do lat.: accippitor = ave de
rapina, isto é, que se lança em voo ágil para captar a presa), alagóptera,
anóptero, apetecer, apetecível, apetência, apetite (= movimento
fisiológico em direcção ao alimento; vontade de comer...), apetitoso,
apteranto, aptéria, apterila, apterino, aptério, áptero, apterodícero,
apterogénico, apterogénio, apterologia, apterológico, apterologista,
apterólogo, apteronoto, apterópode, apterórnis, apterornite, apterota,
apteruro, assimptota, assimptótico, braquíptero, carióptera,
carióptere, coleóptero, coleopterologia, coleopterológico, competição,
competição, competidor, competir, competitividade, competitivo,
cóptera, dermóptero, despedimento, despedir, diplóptero, díptero,
expedição, expediente, expedir, fenicoptérida, fenicopterídeo,
fenicopteriforme, fenicóptero, gonóptera, helicóptero (= artefacto
tecnológico que se põe em movimento por acção de uma hélice),
253
Fernando Paulo do Carmo Baptista
hipopótamo, impedimento, impedir, ímpeto, impetuosidade, impetuoso,
lepidopterista, lepidopterologia, lepidopterológico, lepidopterologista,
lepidopterólogo, leptidóptero, leucóptera, Mesopotâmia (= território
situado no meio das águas que se movem, concretamente, as águas dos
rios Tigre e Eufrates), miopótamo, monóptero, pedinte, pedir (do lat.:
petere = movimentar-se em direcção a alguém para obter algo...), pena
(= pluma), penacho, pendão, pêndulo, penhasco, períptero, perpetuar,
perpétuo, péssimo (do latim pessimum < petsimum = que se estatela
pelo chão fora, que cai aparatosamente, tanto em sentido próprio como
em sentido figurado), petição, petulante, pináculo, potâmea, potâmeo,
potâmico, potamila, pótamis, potamita, potamófilo, potamofobia,
potamofóbico, potamófobo, potamogalídeo, potamógalo, potamogeto,
potamogetonácea, potamogetonáceo, potamogetonínea, potamografia,
potamográfico, potamógrafo, potamolatra, potamólatra, potamolatria,
potamolátrico, potamologia, potamológico, potamologista,
potamólogo, potamometria, potamométrico, potamónico,
potamonimia, potamonímia, potamonímico, potamoplancto,
potamoplâncton, potamoquero, potamotério, potamótoco, potável,
propiciar, propiciatório, propício (do lat.: propitium = que se põe em
movimento em favor de alguém [para prestar ajuda]), pteracanta,
pteracanto, pteranto, pterela, pterial, ptericoco, pterobrânquio,
pterocacto, pterocária, pterocaule, pterocéfalo, pterócera, pteroclídeo,
pterodáctilo, pterodáctilo, pterodisco, pterodonte, pterofagia,
pterofágico, pteróforo, pterogina, pteroglosso, pterógono, pteróide,
pteróide, pterolóbio, pteroma, pteromedusa, pterónia, pterópego,
pterospermo, pterósporo, pterossauro, pterostilo, pteroteca, pteróxilo,
queropótamo, quiróptero, repetência, repetente, repetição, repetir,
repetitivo, sintoma (do grego: symptoma), talóptera...
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259
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
6. DO VALOR DA VIDA E DO BEM DA SAÚDE (*)
(para um necessário e urgente “ressurgimento”
axiológico-cultural do ser humano...)
«A vida humana é, ao mesmo tempo,
princípio, raiz, eixo, flecha, motor e fim
do biológica e molecularmente mais estruturado,
complexo, poderoso e sortílego dos organismos vivos:
o corpo humano.»
«Pensar a morte... é pensar a saúde e a doença,
é pensar a família, a aldeia e a cidade
em sua fremente energia vital.»
«No horizonte efémero e lábil da nossa existência,
definido pelas fronteiras do nascimento e da morte,
está sempre presente a figura tutelar e serenante dos
MÉDICOS:
OS “DIVINOS” ARTISTAS DA POÉTICA DA SAÚDE E DA VIDA...»
(F. Paulo Baptista)
(*) Nota prévia: o presente estudo é a re-escrita mais desenvolvida de uma
comunicação apresentada ao «II Fórum Ibérico de Tele-Medicina» que teve lugar em
Viseu (Portugal), nos dias 5, 6, 7 e 8 de Outubro de 2005.
261
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
RESSURGIR EM PLENITUDE!...
O tema da “ressurreição 446 / ressurgimento”, independentemente
da singularidade do significado que assume no interior das
comunidades religiosas, com os seus dogmas, as suas crenças e os seus
rituais específicos, pela riqueza da sua semântica e pela importância dos
seus pressupostos conceptuais, simbólicos e sapienciais, justifica, só
446
A palavra «ressurreição» é proveniente do acusativo — resurrectione-(m) — do
substantivo latino resurrectio, -onis, da mesma família do verbo resurgo, -is, -ere,
resurrexi, resurrectum que significa «retomar a posição erecta, isto é, a posição
orientada segundo a linha recta; levantar-se de novo; voltar a pôr-se de pé; retomar
a vida depois de a ter perdido». Ressurgo deriva de re + surgo, apresentando a
seguinte estrutura morfológica e fono-evolutiva: sub + rego > sub + rigo > sur + rigo
> surr(i)go > sur(i)go > surgo (com apofonia [e > i], assimilação [br > rr],
simplificação / redução [rr > r] e síncope da vogal breve pós-tónica [i]). De notar que
o verbo primitivo e originante rego, -is, -ere, rexi, rectum (= reger, orientar,
conduzir...) faz parte de uma vasta família lexical da língua latina: rectus, / rectitudo,
-inis, / rectio, -onis, / regio, -onis, / regimen, -inis, / rex, regis, / regina, / regula, /
regularis, -e / regulo, -as, -are, / regulatio, -onis, / corrigo, -is, -ere, / correctio, -onis,
/ correctus, / corrector, / rector, / arrigo, -is. -ere / dirigo, -is, -ere, / directus, /
director, / directio, -onis / erigo, -is, -ere / erectus, / erectio, -onis, / pergo, -is, -ere, /
porrigo, -is, -ere, / porrectus, / exporrigo, -is, -ere, / surgo, -is, -ere, / exsurgo, -is, -
ere, / insurgo, -is, -ere, / resurgo, -is, -ere, / rogo, -as, -are..., com forte projecção e
presença na nossa língua e, analogamente, nas línguas românicas: recto, rectidão,
reitor, regente, regime, regimento, região, régio, régulo, reino, correcto, corrigir,
correcção, directo, erecto, incorrigível, rectângulo, rectificar, rectilíneo, surgir,
ressurgir, ressurgimento, rogatório, abrogar, arrogar, derrogar, interrogar,
prerrogativa, prorrogar...; e, ainda, rajá (proveniente do sânscrito: rj / rjan > rajah
[= rei])... Toda esta família tem como base morfogénica a raiz indo-europeia *re - /
ro - / ṛ - presente, nomeadamente, no sânscrito ṛjyati / ṛñjáti, no grego Ùr°gv, no
antigo islandês rēttr, no antigo irlandês reraig, no gótico raihts, no antigo frisão
riucht, no antigo alto alemão recchen, no germânico recht, no inglês antigo riht, no
inglês actual right, no norueguês rett, no dinamarquês ret, no sueco rät... Esta raiz
apresenta como “adn semântico” a ideia de «movimento em linha recta»: na verdade,
rego, -is, -ere significa «dirigir em linha recta; guiar, conduzir com rectidão...». Pelo
que «ressuscitar» não pode deixar de se traduzir numa re-assunção da vida em sua
acepção «rectitudinária», de tal modo que não dispensa o constante investimento nos
grandes valores humano-divinos do bem, do belo, da justiça, da verdade, em suma,
da prática da virtude...
263
Fernando Paulo do Carmo Baptista
por si, uma reflexão, ainda que breve, em torno do valor da «vida
humana» e do bem da «saúde»...
Na verdade, a vida humana encarnada na galáxia pulsante de mais
de sete mil milhões de habitantes que actualmente povoam a Terra447
(ou seja, no corpo vivo e singular de cada um de nós e dos demais
biliões de nossos concidadãos planetários...), quando perspectivada sob
um enfoque reflexivo e dialéctico entre a parte e o todo, o local e o
global, o finito e o infinito..., pode bem configurar-se como uma
antropo-biosfera, ou seja, como um mega-sistema animado, pensante,
imaginante, criativo, actuante, comunicante, informante, organizativo,
operativo...
Ao longo da sua existência efémera ao nível individual, esse
mega-sistema revela-se, em seu quotidiano devir, através de uma
complexa fenomenologia e de uma dinâmica exponencial de dimensões
e potencialidades incalculáveis, com múltiplas funções e operações em
simultâneo, podendo definir-se aberta e multidimensionalmente, com
Rudy Rucker448, como «a fractal in Hilbert space».
Fractal esse, todavia, impossível de ser exaustivamente descrito e
explicado, por exemplo, em toda a sua actividade sonhadora, criadora,
semiogénica e cultural e em toda a sua interactividade comunicacional,
seja ela simplesmente emissiva e receptiva ou meramente pragmática,
447
Cf. http://www.worldometers.info/pt/. Uma estimativa constante de um Relatório
das Nações Unidas aponta para uma população mundial da ordem dos 9,6 mil milhões,
em 2050 (cf. http://www.unric.org/pt/actualidade/31160-relatorio-das-nacoes-
unidas-estimaque-a-populacao-mundial-alcance-os-96-mil-milhoes-em-2050-).
448
Cf. Rudy Rucker: Mind Tools: The Five Levels of Mathematical Reality, Boston,
Houghton Mifflin, 1987, pp. 248: «Life is a fractal in Hilbert space», sendo que «the
mathematical concept of a «Hilbert space», named after David Hilbert, generalizes
the notion of Euclidean space. It extends the methods of vector algebra from the two-
dimensional plane and three-dimensional space to infinite-dimensional spaces. In
more formal terms, a Hilbert space is an inner product space — an abstract vector
space in which distances and angles can be measured — which is “complete”,
meaning that if a sequence of vectors is Cauchy, then it converges to some limit in the
space. Hilbert spaces arise naturally and frequently in mathematics, physics, and
engineering, typically as infinite-dimensional function spaces. They are indispensable
tools in the theories of partial differential equations, quantum mechanics, and signal
processing. The recognition of a common algebraic structure within these diverse
fields generated a greater conceptual understanding, and the success of Hilbert space
methods ushered in a very fruitful era for functional analysis»
(Cf.: http://en.wikipedia.org/wiki/Hilbert_space.).
264
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
seja ela hermenêutica, retórico-argumentativa ou estésico-poiésica e
artística em geral...
Assim, perante a angustiante e intranscendível aporia da nossa
transiência, efemeridade e finitude existenciais, só nos resta assumi-la,
vivê-la e perenizá-la com a mais esperançosa, criativa e dignificante
elevação possível...
O fenómeno da vida humana (há que reconhecê-lo com adoradora
humildade e, ao mesmo tempo, com maravilhado espanto!...) é
inquestionavelmente o “acontecimento” mais prodigioso de quantos
tiveram lugar no Universo: «Magnum, o Asclepi, miraculum est
homo!»449...
De facto, a lenta caminhada que, desde o singular momento do
Big Bang, as partículas elementares tiveram de percorrer até ao
aparecimento do Homem na Terra configura, a meu ver, a maior e mais
fascinante “epopeia” que alguma vez pudera ser escrita e cantada, sob
a cintilação das estrelas!... Quantas amoráveis combinatórias não
tiveram de ocorrer, quantos apaixonantes enleios não tiveram de eclodir
ao longo desse evolutor, complexificante, qualitativo e silencioso
trajecto e dinamismo de que veio a florir, culminativamente, a primeira
célula viva e, a partir dela, a possibilidade de conformação dessa
maravilhosa “máquina” que é o nosso corpo humano, dotado do
mistério da mente com o conjunto das faculdades superiores e “nobres”
que constituem a dimensão maior da nossa espiritualidade: sentir,
pensar, sofrer, acreditar, desejar, querer, apaixonar-se, amar, sonhar,
imaginar, criar, inventar, realizar?!...
Por sua vez, a «saúde» é, por definição, a sólida, integral, intacta
e global harmonia de tudo isso (tal como ressalta da semântica remota
e profunda da palavra latina salus, -lutis e de outras palavras da mesma
família etimológica: salvar, saudar, saudável, salutar, holismo,
holístico, sólido, solícito, solicitude, consolidar, solene...), constituindo
“o bem fundador” dos demais bens de que nos é dado fruir... Nela se
joga e se decide a garantia da salvaguarda e integridade desse valor
capital e verdadeira pedra angular da construção de todos os códigos da
Humanidade — o «Valor da Vida»!...
449
«Grande maravilha é o Homem, ó Asclépio!» (Cf. Giovanni Pico della Mirandola:
Oratio De Hominis Dignitate, Paris, Éditions de L’Éclat, 32002, §1 [edição bilingue
(latim > francês) de Yves Hersant]).
265
Fernando Paulo do Carmo Baptista
A «SAÚDE», seja pensada a nível pessoal, seja perspectivada no
plano social, está (deveria estar!...) institucionalmente resguardada por
uma estratégica rede de organismos, mecanismos e práticas que visam
prever, prevenir, reduzir ou mesmo neutralizar qualquer prenúncio de
natureza étio-sintomatológica que possa pôr em risco a já referida
harmonia estrutural e funcional da nossa bio-somato-psicosfera, e, com
ela, da própria sociosfera...
Por isso é que, EM NOME DESSE PRIMORDIAL VALOR QUE É A VIDA
HUMANA (esteja ela, promissoramente, encarnada na figura da
criancinha que mal acaba de abrir os olhos com que inaugura o sempre
inconcluso processo de “ler” (interpretar e compreender) o mundo,
esteja ela, palidamente desfigurada no rosto nostálgico do velhinho,
cujo cansado coração já mal pode bater a derradeira pancada com que
do mesmo mundo se despede...), se torna imprescindível que TODOS
QUANTOS À CAUSA DA VIDA E DA SAÚDE SE DEDICAM (desde logo, os
estudiosos e investigadores, os médicos e enfermeiros, passando pelos
demais quadros técnicos até aos mais humildes trabalhadores dos
hospitais e centros de saúde...) SAIBAM SER SEMPRE, EM SEU
QUOTIDIANO AGIR, DIGNOS DESSE MESMO VALOR SUPREMO QUE EM SI
PRÓPRIOS TRANSPORTAM, dedicando aos doentes de todas as condições
e de todas as idades o melhor do seu cuidar450 (ou seja, aquele
empenhado e quase “febril” estado de consciência, marcado por
activa, reflexiva, direccionada, direccionante e interveniente
preocupação com as coisas...), prestado na forma de um competente
desempenho humano-cultural, sapiencial, artístico, científico e técnico,
de um acompanhamento carinhoso e humanista e de uma dedicação
aquecida e iluminada por um fortíssimo sentido ético-deontológico,
consonante com uma formação verdadeiramente superior (porque
pensada em sua asclepíada pureza primigénia e em sua magnanimidade
axiológica) e com aquela sempre renovada e inovadora experiência que,
com as lágrimas dos próprios doentes, se vai quotidianamente
configurando e (re)construindo...
Por tudo isso, aqui fica uma saudação a todos, em nome do
sagrado “VALOR DA VIDA” que nos habita e em nós se move, nos
emove e nos comove, porque ela é, soberanamente, passio e compassio:
paixão e compaixão!... Saudação feita também em nome do salvador
450
Do latim: cogitare [< co + ag + itare].
266
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
“BEM DA SAÚDE” que se abre auspiciosamente nas rosas de afecto e
de ternura dos cuidadosos cuidados que mãos sábias e generosas a
todos indistintamente vão prestando!...
O t°low [telos] da Medicina e a fundamentação
e instanciação da “deontologia médica”
O presente ensaio configura o desenvolvimento discursivo de
uma reflexão assente numa base antropológica, filosófica, cultural e
humanística sobre a MEDICINA (entendida quer como criação sapiencial
e civilizacional do homem, quer como especializada e essencial
organização social dos cuidados de saúde, pensada, concebida e
planeada para realizar uma finalidade e consumar um destino: fazer e
tentar fazer tudo para proteger e manter a vida humana naquele
englobante estado de equilíbrio dinâmico e de homeostase identitária e
estabilizadora que preserva a serena harmonia do bem-estar interior e
exterior...). Essa reflexão envolve directamente problemas como os da
VIDA HUMANA, da DOENÇA, da SAÚDE e SISTEMAS DE SAÚDE, dos
DOENTES e do PAPEL NUCLEAR DOS MÉDICOS NUMA ORGANIZAÇÃO
HOLÍSTICA E “ORQUESTRAL” DOS CUIDADOS DE SAÚDE («um médico é
um homem que vale por muitos outros», Homero: Ilíada, XI, 514), da
PRÁXIS, da ÉTICA e da DEONTOLOGIA MÉDICAS, da CIDADANIA, das
POLÍTICAS DE SAÚDE (estabelecidas à luz de um novo modelo de
democracia: ou seja, uma democracia ética em que a humanitas de cada
homem passe a ser a real e concreta medida da dignidade de todos os
homens), da EDUCAÇÃO e da CIDADE PLANETÁRIA DA SAÚDE... O
OBJECTIVO NUCLEAR deste ensaio consiste em CONTRIBUIR PARA O
DESENVOLVIMENTO DAS DIMENSÕES HUMANÍSTICA E HUMANITÁRIA AO
NÍVEL DA FORMAÇÃO ACADÉMICA E PROFISSIONAL DOS CURSOS DE
MEDICINA E DEMAIS CURSOS DA ÁREA DA SAÚDE E PARA EVITAR O
PERIGO DE UMA CEGA E ESTRANGULADORA “TECNIFICAÇÃO” DOS
DESEMPENHOS MÉDICOS, ATRAVÉS DE UMA INDESEJÁVEL INVERSÃO OU
SUBVERSÃO ÉTICA DOS FINS PELOS MEIOS. Essa reflexão é sempre
sustentada numa consistente base filológica e linguística, com especial
267
Fernando Paulo do Carmo Baptista
ênfase para as raízes lexicais de origem grega e latina (raízes, em última
análise, de matriz indo-europeia...), tendo em conta o rigor do
pensamento e da conceptualização e uma clara consciência dos usos do
vocabulário e das terminologias...
Dialogia e interacção «t°low [telos] <> t le [tele]»
(finalidade <> distância)
Enquanto criação sapiencial e civilizacional do homem, a
Medicina foi pensada para realizar um fim, cumprir um desígnio ou
propósito e consumar um destino. A sua imparável po€hsiw (poiesis)
científica, a sua avisada, prudente e criteriosa prãjiw (praxis)
metodológica, decisional e realizadora e a sua prometeica inventiva e
constante inovação451 experimental e tecnológica, por um lado, de par
com a sua conformação sistémica e institucional e a sua orgânica
estrutural e funcional, pelo outro, foram sendo sonhadas, instituídas,
configuradas e direccionadas por um t°low452 (telos) ou ratio essendi et
451
Em grego e em latim: eÏresiw/eÈmexan€a [heuresis/eumekhania];
inventio/inovatio.
452
O nome neutro t°low, -eow (-ouw) que significa «movimento realizador e perfectivo,
fim, finalidade, termo, acabamento», provém da raiz indo-europeia kwel- / kwel - / kwl-
[> kwal > pal-] / kwol- [> col- / cul- [> pol-], cujo “adn semântico” suscita em nós as
ideias de “mover, remover, movimentar, desencadear um movimento actuante, dar
voltas, rodar, circular, cultivar (o campo, as ideias...)”... Esta raiz, na sua variante de
“grau zero” — kwl- [> kwal > pal- —, está na base do advérbio grego pãlin ([palin]
= de novo, voltando atrás, retornando, agindo ao inverso...), bem como na estrutura
morfológica (através da sua variante de “grau e”: kwel-) do adjectivo t°leiow -a, -on
(= acabado, completo, perfeito...), por sua vez, “gerador” de um conjunto de lexemas
do campo filosófico e tecno-científico: teleologia, teleológico, teleólogo, teleomitose,
teleonomia, teleossáurio, teleósteo, teleóstomo, telese, telésia... Esta raiz indo-
europeia, na variância de natureza fono-morfológica de que se reveste, caracteriza-se
por um grande potencial lexicogénico de que deflui um vasto e diversificado universo
de lexemas cognatos de que fazem parte, entre outros, os seguintes: agricultura,
atelocardia, atelognatia, bucólico, bucolismo, caleche, ciclo, ciclóstomo, colar,
colete, colo, colónia, colono, culto, cultura, enciclopédia, enteléquia, hemiciclo,
inquilino, palimpsesto, palíndromo, palinfrasia, palingénese, palingenesia,
palinódia, polar, pólo, talismã... (cf. Edward A. Roberts e Bárbara Pastor:
268
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
vis operandi, por uma intencionalidade axiológica, principial e
finalístico-perfectivante, e por uma lógica interna, global e própria, de
natureza programadora, condutora, adaptativa, reguladora, processual,
instrumentante e (re)alimentadora (interacção dialógico-dialéctica
«teleologia <> teleonomia»453) que não só explicam e justificam a sua
existência, mas também lhe conferem a indispensável produtividade e
eficácia e o seu real sentido e valor: fazer e tentar fazer tudo quanto
estiver ao seu alcance para preservar, o mais e o melhor possível, a vida
humana na geradora e elaborativa fecundidade da sua motricidade e
tonicidade primevas e, assim, na plenitude eurrítmica e multímoda dos
seus potenciais energéticos, operativos, transformacionais e criadores;
fazer e tentar fazer tudo para resguardar e manter a vida humana
(perspectivada enquanto bem fundador de que dependem os demais
bens de que nos é dado fruir...) naquele seu englobante estado de
Diccionario Etimológico Indoeuropeo de la Lengua Española, Madrid, Alianza
Editorial, 2001, entrada kwel- 1, pp. 89-90; Anatole Bailly: Dictionnaire Grec
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conceitos de «telos», «teleologia» e «teleonomia», ver, nas entradas respectivas:
Mariano Moreno Villa (dir.): Diccionario de Pensamiento Contemporâneo, Madrid,
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453
Sobre os conceitos de «teleologia» e de «teleonomia», ver, nas entradas
respectivas:
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Para as correlações mais especificamente distintivas daqueles dois conceitos, ver, com
as devidas reservas críticas:
http://www.laputan.org/chaos/chaos.html
http://en.wikipedia.org/wiki/Teleology
http://en.wikipedia.org/wiki/Teleonomy
269
Fernando Paulo do Carmo Baptista
equilíbrio dinâmico e homeostasia identitária e estabilizante, de
capacitante harmonia essencial, integrada e integradora, e chave
nuclear do bem-estar interior e exterior, reconhecidamente considerada
como a condição mais favorável ao desenvolvimento das nossas
qualidades e faculdades (designadamente as mais nobres) e ao daí
decorrente exercício das nossas aptidões, habilidades, destrezas e
competências...
Esse estado dá pelo nome de “saúde”. Ou seja (dito, agora, em
consonância com a conhecida definição da Organização Mundial de
Saúde): «a dynamical state of complete physical, mental, spiritual and
social wellbeing and not merely the absence of disease or infirmity»454.
É em adjuvante apoio e serviço deste t°low (telos) que está ou
deve estar o t le455 (tele) com que, linguística e conceptualmente,
marcamos não só o “obstáculo” da distância espácio-temporal a
transpor, mas também a superadora mediação proporcionada pelos
recursos tecnológicos com que se visa reduzir, minorar, neutralizar ou
mesmo suprimir a demora e as dificuldades de acesso dos doentes aos
cuidados de saúde e ao atendimento médico. Dificuldades que
454
WHO’s New Proposed Definition. 101 st Session of the WHO Executive Board,
Geneva, January 1998. Resolution EB 101.R2.
455
T le [tele], advérbio construído na base na raiz indo-europeia — kwel- / kwl- [>
k al-] / kwal-ai- [> palai-] —, cujo “adn semântico” é constituído a ideia de “lonjura”,
w
de “distância”, no espaço ou no tempo. Desta raiz, na sua variante de “grau zero”
ampliada — kwal-ai- [> palai-] — deriva o advérbio grego pãlai ([palai] = outrora,
antigamente), bem como o adjectivo palaiÒw, -ã, -Òn ([palaios] = velho, antigo,
distante no tempo...), de que provém o radical prefixal paleo-, constituinte
morfológico de um significativo conjunto de lexemas de uso técnico-científico:
paleoantroplogia, paleofitologia, paleoceno, paleografia, paleobotânica, paleolítico,
paleontologia, paleozóico...; o radical do advérbio t le (tele-) é utilizado como
constituinte prefixal morfogénico de um vastíssimo elenco de termos especializados
do campo da ciência, da técnica e da tecnologia: teleangiectasia, telecardiograma,
telecinesia, telecinético, telecomando, telecomunicações, teleconferência, telecópia,
telediagnóstico, teledifusão, teledinâmica, telefax, teleférico, telefone, telefonia,
telefoto, telégrafo, telegrama, teleguiar, telejornal, telemática, telemedicina,
telemetria, telemóvel, telenovela, telepatia, telerradiografia, telescola, telescópio,
teletexto, televisão, telex... Sobre esta raiz, ver Edward A. Roberts e Bárbara Pastor:
Diccionario Etimológico Indoeuropeo de la Lengua Española, op. cit., entrada kwel-
2
, p. 90; ver também: Anatole Bailly: Dictionnaire Grec Français, Paris, Hachette,
1984 e Santiago Segura Munguía: Nuevo diccionario etimológico LATÍN-ESPAÑOL y
de las voces derivadas, Bilbao, Universidad de Deusto, 2001, respectivamente, nas
«vozes» gregas e latinas correlacionáveis.
270
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
decorrem, por via de regra, da perifericidade e da interioridade, numa
palavra, do isolamento e demais carências assistenciais que a e-
Medicina, com a Medicina à Distância, a Tele-Medicina, a Tele-Saúde,
os serviços de Saúde Pública e os movimentos da Educação para a
Saúde vêm tentando resolver...
A “vida humana”: doente e médico, cidadãos planetários
Se bem pensarmos, os próprios eventos ou iniciativas de
natureza antropo-médica, científica, metodológica, tecnológica,
cultural e ético-axiológica (tanto a nível local e regional, como à escala
europeia ou planetária), ao centrarem-se nas grandes questões da
Medicina, da TeleMedicina ou da Saúde Pública em geral, não deixam
de ir, em última instância, buscar a sua matriz originante e placentária
ao fenómeno mais espantoso e misterioso de quantos povoam o
universo: O FENÓMENO GLOBAL DA VIDA E, DENTRO DELE E COM ELE, O
456
FENÓMENO DA VIDA HUMANA !...
Mas porque (tal como no-lo recorda Octavio Paz457...) «somos
vida que es muerte» e «muerte que es vida», pensar a vida458 é sempre
456
Sobre a «vida» em geral e a «vida humana» em particular, ver: Enciclopédia Verbo
Luso-Brasileira de Cultura, Edição Século XXI, Lisboa, Editorial Verbo, 2003, pp.
431-437: entrada «vida» (artigos de Luís Archer, J. Godinho de Lima e Roque
Cabral); AAVV: Filosofia de la Educación Hoy – Diccionario filosófico-pedagógico,
Madrid, Editorial Dykinson, 1997, pp. 573-575: entrada «vida» (artigo de José Luís
Cañas Fernandez y Teresa Maria Hernández Vera); Francis Crick: Vida – O Mistério
da sua Origem e Natureza, Lisboa, Gradiva, 1988, pp. 33-116; David Bohm e F.
David Peat: Ciência, Ordem e Criatividade, Lisboa, Gradiva, 1989, pp. 263 ss; Albert
Jacquard: Inventar o Homem, Lisboa, Terramar, 1990; Andrew Scott: A Criação da
Vida, Lisboa, Terramar, 1991, pp. 132-140, 269-348.
457
Octavio Paz: Las peras del olmo, Barcelona, Seix Barral, 1986, p. 171.
458
O nome ‘vida’ é proveniente do latim uita, -ae, lexema constituído, por sua vez, a
partir da raiz indo-europeia gwei-, com diversas variantes — gweie- / gwyee- / gwyoe- /
gwyo- / gwi-wo- / gwi-wo-ta- / yu-gwie-es-... — que estão na base de um fecundo
conjunto de radicais, prefixos e sufixos lexicogénicos e, assim, de uma vasta e
diversificada família de palavras, presentes em várias línguas antigas e actuais: bio-
[biólogo, biónica, biópsia, biotério, biótipo, biótopo...]; vit- [vital, desvitalizar,
vitalidade, vitamina, vitalício, vitualha...]; viv- [avivar, conviver, pervivência,
271
Fernando Paulo do Carmo Baptista
e inelutavelmente pensar a morte... E pensar a morte... é pensar a saúde
e a doença, é pensar a família, a aldeia e a cidade em sua fremente
energia vital e, no coração delas, o seu constituinte e protagonista
maior: O SER HUMANO...
Por isso é que se me afigura ter inteiro cabimento uma reflexão
em torno da VIDA HUMANA, o mesmo é dizer, em torno do homem-
indivíduo, pensado em sua singularidade ipseídica, e do homem-pessoa
e do homem-cidadão, considerados em sua alteridade interpessoal e
colegialidade social e comunitária e em sua dimensão política de
expressão local e global (“glocal”), isto é, nacional, europeia e
planetária...
Tudo no pressuposto de que, se somos cidadãos (pol€tai) da
terra onde nascemos e/ou onde vivemos, não somos menos os
habitantes de Deméter e, assim, cidadãos do cosmos (kosmopol€tai):
tal é, hoje, a condição e o estatuto político fundamental quer do doente
que procura o médico para reconquistar a saúde, quer do médico que
tudo tenta fazer para que tal reconquista seja bem sucedida...
Não é, pois, por mero acaso que estas questões da vida e da
morte, da saúde e da doença estão seguramente (de par com as da
educação e da justiça...) entre os problemas maiores da Cidade e da
Comunidade Humana globalmente pensada; como também não é por
qualquer aleatória razão que existe um organismo que dá pelo nome de
“World Health Organization” (WHO) e que a Medicina, através da
mediação de publicações profissionais, congressos e simpósios, através
vivacidade, viveiro, viver, vivificar, vivíparo, vivo...]; zoo- [zoologia, zoológico,
zoólogo, zoobia, zoobiótico, zoogénese, zoomórfico, zooplasma, zootecnia...]; -zoário
[actinozoário, briozoário, entozoário, metazoário, protozoário...]; -zóico
[agnostozóico, arqueozóico, cenozóico, mesozóico, paleozóico...]; –zóide
[anterozóide, espermatozóide, gastrozóide, gonozóide...]; azoto, zodíaco, micróbio,
simbiose, víbora, viand, quick, whisky, etc., entre as quais, o nome que em grego
designa a “saúde”— Íg€eia [hygíeia] — e que tem a mesma raiz e, portanto, a mesma
semântica profunda do lexema higiene (cf. Edward A. Roberts e Bárbara Pastor:
Diccionario Etimológico Indoeuropeo de la Lengua Española, op. cit., entrada gwei-,
pp. 68-69; ver também: Anatole Bailly: Dictionnaire Grec Français, Paris, Hachette,
1984 e Santiago Segura Munguía: Nuevo diccionario etimológico LATÍN-ESPAÑOL y
de las voces derivadas, Bilbao, Universidad de Deusto, 2001, respectivamente, nas
«vozes» gregas e latinas correlacionáveis: b€ow, z“on, vita, -ae, etc... Sobre as
relações de implicação “vida <> morte”, ver o importante estudo de Nicole Belmont
«Vida/Morte», in Enciclopédia Einaudi, Lisboa, IN-CM, 1997, vol. 36, pp. 11-60.
272
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
da disseminada criação e combinada reticulação de associações e
institutos nacionais e internacionais e da crescente mundialização da
Tele-Medicina, da Tele-Saúde e da Saúde Pública, vem afirmando cada
vez mais a sua agoricidade459 planetária em todos os fóruns do orbe da
Terra onde os problemas da saúde e da doença se identificam, se
estudam, se investigam ou se debatem...
Isso, porque tanto o doente como o médico, em sua existencial
e finita condição antrópica, transportam consigo, na intransferível
singularidade do seu «eu», essa constitutiva relação de si a si, de si ao
«outro» e ao «totalmente outro»460 e de si à vida, ao mundo, ao cosmos
e ao mistério...
O que desde logo significa que as problemáticas da vida e da
morte, as problemáticas da saúde e da doença, são universais e, por isso
mesmo, convocam (deveriam convocar...) sempre uma visão
estratégica e uma dinâmica organizacional, metodológica e operativa,
articuladora, integradora, inclusiva, harmonizadora, sinagógica,
orquestral, polifónico-sinfónica e global. Basta pensar no
sintomatológico e paradigmático facto de que, ao recentíssimo grito de
alarme de que «vem aí a gripe das aves!», de imediato, o planeta
médico-sanitário começou a entrar em preocupada dinâmica de
preventivo alerta!...
Da cidade, da cidadania, da vida humana
e do sistema e serviço de saúde
É numa tal perspectiva que se me afigura pertinente (e mesmo
indispensável...) partir do compartilhado entendimento segundo o qual
a cidadania (em grego: polite€a [e politeia]) é perspectivada como
459
Neologismo derivado do nome grego êgora [agora], equivalente ao seu homólogo
latino forum = assembleia ou praça pública.
460
Emmanuel Levinas: Totalidad e Infinito – Ensayo sobre la exterioridad,
Salamanca, Ediciones Sígueme, 72002, pp. 57-127; Paul Ricœur: Sí mismo como otro,
Madrid, Siglo Veintiuno de España Editores, 1996, pp. 365 ss; Ángel Gabilondo: La
Vuelta del Otro — Diferencia, Identidad y Alteridad, Madrid, Editorial Trotta, 2001,
pp. 9-15, 199 ss; Martin Buber: ¿Qué es el Hombre?, México-Madrid-Buenos Aires,
Breviários, FCE, 131986, pp. 93 ss, 107 ss, 141-151.
273
Fernando Paulo do Carmo Baptista
a qualidade, a condição e o estatuto inerentes ao facto de ser cidadão
(pol€thw [polites]), isto é, ser membro constitutivo e integrante de uma
«comunidade política» (em grego: koinvn€a politikÆ [e koinonia
e politike]), o mesmo é dizer, de uma «comunidade de cidadãos», bem
como o sistema e o regime organizativo e jurídico-administrativo da
vida em sociedade, configurada, outrora, nas multímodas dinâmicas da
pÒliw ou da ciuitas e, actualmente, do estado-nação, e mais alargada e
englobantemente ainda, da comunidade das nações ou da comunidade
humana planetária461...
O paradigma de referência (tal como aconteceu, com a
Medicina, relativamente ao Corpus Hippocraticum462 [séc. V a. C.]...)
remonta à cultura da velha Hélade, sendo incontornável, a tal propósito,
o reenvio para o específico labor reflexivo levado a cabo por
Aristóteles.
De facto, na sua Política463 (1.2.8, 1252b 27-33), a pÒliw (polis)
é-nos por ele apresentada como sendo «uma comunidade completa,
formada a partir de várias aldeias464 e que atinge, por assim dizer, o
máximo de poder próprio ou de auto-suficiência (aÈtãrkeia
461
Cf. Fernando Paulo Baptista: Tributo à Madre Língua, Coimbra, Pé de Página
Editores, 2003, pp. 47 ss.
462
Para uma visão panorâmica do que foi a Medicina na antiga Grécia, considerar o
importante artigo de Pierre Pellegrin, intitulado «Medicina», apud Jacques
Brunschwig e Geoffrey Lloyd (orgs.): El saber griego (diccionario), Madrid,
Ediciones Akal, 2000, pp. 331-343.
463
Cf. Aristóteles: Política, (trad. de António Campelo Amaral e Carlos de Carvalho
Gomes), Lisboa, Vega Universidade, 1998, pp. 48-55.
464
Aldeia, em grego, diz-se k mh, nome cuja estrutura morfológica assenta na raiz
indo-europeia kei- / ki -/ koi-, cujo “adn semântico” remete para a ideia de “repouso,
sossego”. Esta raiz está presente, por exemplo, na palavra inglesa home (= casa [que
é, por excelência, um lugar de repouso e de sossego]), nos lexemas gregos ke›mai [=
estar deitado, repousar, jazer], koimãv (= ficar de cama, dormir, mergulhar no sono),
α (= coma, sono profundo, estado de forte adinamia cerebral), koimhtÆrion (em
latim: coemeterium, dormitório, lugar do sono e do repouso absolutos, cemitério...),
dos vocábulos latinos ciuis, ciuitas, ciuilis, cunae (= berço, ninho), incunabula -orum,
etc. Sobre esta raiz, cf. Edward A. Roberts e Bárbara Pastor: Diccionario Etimológico
Indoeuropeo de la Lengua Española, op. cit., entrada kei-1, p. 77; ver também:
Anatole Bailly: Dictionnaire Grec Français, Paris, Hachette, 1984 e Santiago Segura
Munguía: Nuevo diccionario etimológico LATÍN-ESPAÑOL y de las voces derivadas,
Bilbao, Universidad de Deusto, 2001, respectivamente, nas «vozes» gregas e latinas
correlacionáveis.
274
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
[autarkeia]). Constituída em razão da vida (sublinhei) — (toË z n
©neken [tou zen eneken]) —, ela existe para que a vida (voltei a
sublinhar) seja bem sucedida (toË eÔ z n [tou eu zen])».
A cidade (e no interior dela, a cidade da saúde, a cidade
educativa, a cidade da justiça, etc.) é, assim, uma das realidades que
existem por natureza (t«n fÊsei pÒliw §st€ [ton physei e polis esti])».
Como acabámos de ver, a vida é, para Aristóteles, não só a ideia
mater, o princípio fundador e instituidor da cidade, mas também o
t°low (telos) e horizonte omnipossibilitante e omniprojectante que dá
sentido à própria razão da sua existência enquanto comunidade de
cidadãos...
No mesmo sentido vai igualmente o pensamento de Tucídides465
quando afirma que «a pÒliw [polis] são os cidadãos e não as muralhas
nem os barcos viúvos de homens», o que equivale a dizer que, sem a
incontornável presença viva dos seres humanos, poderá haver
necrópole, mas o que não há, nem pode haver, é cidade...
Comunidade de ênyrvpoi [anthropoi], isto é, de homens e de
mulheres, a cidade começa, assim, por se revelar, antes de mais e acima
de tudo, como uma incomparável constelação de humanos corpos
vivos...
Existencialmente alicerçada nas potencialidades e nos limites
do corpo vivo que somos (que, morto, se diz em latim cadauer e em
grego sãrj, sarkÒw [sarks, sarkos]...), uma comunidade de cidadãos,
seja qual for o seu âmbito expressional, o seu nível organizativo e a sua
extensão cartográfica, jamais pode dispensar uma prévia e adequada
reflexão, a partir da implicada consideração das três nucleares
dimensões constitutivas do nosso ser antrópico: a dimensão
somatosférica (esfera orgânico-funcional), a dimensão psicosférica
(esfera mental e espiritual) e a dimensão sociosférica (esfera das
relações e interacções com os outros), co-envolvendo, implicativa e
constitutivamente, a verbo-semiosfera (esfera da palavra, da cultura e
das dimensões simbólicas): tudo, naturalmente, no quadro
ecossistémico e integrador de uma cosmo-geo-biosfera...
De facto, o apelo-convite ao conhecimento de nós próprios que
nos vem sendo feito de forma irrecusável, ao menos desde a famosa
465
Cf. José Ribeiro Ferreira: Polis — Antologia de Textos Gregos, Coimbra, Edições
Minerva, 1995, p. 53.
275
Fernando Paulo do Carmo Baptista
inscrição esculpida na mítica portada do Templo de Delfos — gn«yi
sautÚn [gnothi sauton]: conhece-te a ti próprio! —, não dispensa, não
pode nem deve dispensar, sobretudo depois do sábio magistério de
Sócrates, uma inaugural e alicerçante reflexão sobre a nossa
corporeidade466.
Visa tal abordagem uma imprescindível ponderação
consciencializadora e uma prévia e inderrogável interiorização do valor
matricial da vida humana que nela, corporeidade, encarna, se realiza e
se revela em sua complexidade maior...
Na verdade, a vida humana encarnada na galáxia pulsante dos
mais sete mil milhões de habitantes que actualmente povoam a Terra467
(ou seja, no corpo vivo e singular de cada um de nós e dos demais
biliões de nossos concidadãos planetários...), quando perspectivada sob
um enfoque gnosiológico e dialéctico entre a parte e o todo, o local e o
global, o finito e o infinito, pode configurar-se como um super-
estruturado sistema aberto, ideativo-conceptivo, informante,
organizativo e operativo.
Ao longo da sua existência mutável e efémera, esse sistema
move-se e revela-se, em seu quotidiano devir, através de uma complexa
fenomenologia e de uma dinâmica exponencial, de dimensões e
potencialidades incalculáveis, com múltiplas funções e operações em
simultâneo, podendo definir-se, com Rudy Rucker468, como «a fractal
in Hilbert space». Fractal esse, todavia, impossível de ser
exaustivamente descrito e explicado, por exemplo, em toda a sua
actividade sonhadora, criadora, semiogénica, cultural e sapiencial e em
toda a sua interactividade comunicacional, seja ela simplesmente
emissiva e receptiva ou meramente pragmática, seja ela hermenêutica,
retórico-argumentativa ou poiésico-estésica... Por isso, e face à nossa
existencial transiência e finitude, só nos resta assumi-la, vivê-la e
realizá-la com o maior prazer e a maior fecundidade e dignidade
possíveis...
Essa complexidade tem a sua muito especial epifania no
impressionante dinamismo das relações e interacções do cérebro com a
466
Cf. Fernando Paulo Baptista: Tributo à Madre Língua..., op. cit., p. 49.
467
Segundo a estimativa das Nações Unidas.
468
Cf. Rudy Rucker: Mind Tools: The Five Levels of Mathematical Reality, Boston,
Houghton Mifflin, 1987, p. 248: «Life is a fractal in Hilbert space».
276
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
mente (tal como explicativamente no-las descreve, por exemplo,
António Damásio469), na natureza, organização e funcionamento do
inconsciente e do subconsciente, da sensibilidade e do sentimento, da
emoção e da comoção, em suma, do pãyow [pathos]) das patologias e
dos afectos, da paixão e da compaixão (sumpãyeia [sympatheia]), bem
como na construção e no papel da «consciência nuclear» e «da
consciência alargada» e nos modos como se constitui e opera a
identidade, a memória (autobiográfica e heterobiográfica...), a
linguagem, o pensamento, a razão, o cálculo, o espírito crítico, o
imaginário, o sonho (rêverie), a fantasia, a criatividade...
Complexidade, em suma, tal como ela se pode colher do insubstituível
(ainda que inacabado e, portanto, sempre revisível...) contributo das
Ciências do Homem e, mais especificamente, das Ciências Médicas
com o mais recente e igualmente importante apport das Ciências
Cognitivas e Neurológicas...
Dessa esclarecida tomada de consciência deverá decorrer, em
lógica coerência e indeclinável imperatividade ética (enunciada em
estreita consonância com a invocada aristotélica razão vital que, como
acabámos de ver, está na génese, constituição e teleologia de uma
«comunidade de cidadãos») a assunção da vida humana como
inderrogável principium principial e intranscendível t°low [telos]
ultimal, animante, morfogénico e complexificante deste nosso
planetário modo de existir...
A vida humana é, ao mesmo tempo, princípio, raiz, eixo, flecha,
469
António Damásio: O Sentimento de Si — O Corpo, a Emoção e a Neurobiologia
da Consciência, Lisboa, Publicações Europa-América, 2001, pp. 199-269; retenha-
se, a propósito daquele dinamismo interactivo, o seguinte excerto de Ao Encontro de
Espinosa — As Emoções Sociais e a Neurologia do Sentir, Lisboa, Publicações
Europa-América, 2003, p. 192: «Os seres humanos não só demonstram compaixão
pelo sofrimento de um outro ser, coisa que variadas espécies não humanas podem
também demonstrar, como sabem que sentem essa compaixão»; ver também, entre
outros: Jean-Pierre Changeux/Alain Connes: Matéria Pensante, Lisboa, Gradiva, 1991, pp. 111-
159; Albert Ducrocq: O Espírito e a Neurociência — Indícios sobre o fenómeno da consciência,
Lisboa, Edições Piaget, 2000, pp. 63-275; John Searle: A Redescoberta da Mente, Lisboa,
Edições Piaget, 1998; John Searle: Mente, Cérebro e Ciência, Lisboa, Edições 70, 1997; Edgar
Morin e outros: O Problema Epistemológico da Complexidade, Lisboa, Publicações Europa-
América, 2002, pp. 23-34; Karl Popper y John Eccles: El yo y su cerebro, Barcelona, Editorial
Labor, 1982; John Eccles: A Evolução do Cérebro — A Criação do Eu, Lisboa, Edições Piaget,
1995, pp. 226-260, 263-371.
277
Fernando Paulo do Carmo Baptista
motor e fim do biológica e molecularmente mais estruturado, complexo,
poderoso e sortílego dos organismos vivos: o corpo humano.
É ela essa mágica pulsão e élan genético-mental, espiritual,
simbólico e auto-endo-exo-movente que, irrompendo das lonjuras
primigénias e granulares da matéria cósmica, radialmente a atravessa
para, em espiralar pléctica470, a transcender, por força de um evolutor
t°low [telos] intrínseco e de uma invisível energia cibernética
(kubernhtikÆ471 §n°rgeia) auto-projectiva e modelante, o mesmo será
dizer, por acção de uma imanente, autónoma, eficaz e perfectiva
enteléquia (§ntel°xeia472) que lhe é singularmente própria e que lhe
permite auto-organizar-se, auto-(re)produzir-se, auto-desenvolver-se,
auto-complexificar-se, auto-(trans)formar-se, auto-regular-se, auto-
replicar-se, auto-perenizar-se...
Foi no englobante e pressuposto quadro desse espantoso
potencial genésico e morfoplástico que Fernando Namora473 pôde
cantar que «viver é a maravilha / de viver milhões de vidas», mesmo
que, com Miguel Torga474, haja de se reconhecer também, e em
contraponto, que, para nós, pobres mortais, «a vida é
irremediavelmente um dom provisório»!... Numa palavra: a vida
humana é, ao mesmo tempo, ordo orninatus e ordo ordinans e re-
470
Na acepção de Murray Gell-Mann. Cf. John Brockman: The Third Culture —
Beyond the Scientific Revolution, London, Simon & Schuster, 1995, cap. 19: «Murray
Gell-Mann “Plectics”» (complexity is the next big problem, pelo que se torna urgente
e inevitável the study of simplicity, complexity of various kinds, and complex adaptive
systems, with some consideration of complex nonadaptive systems as well); Murray
Gell-Mann: The Quark and the Jaguar: Adventures in the Simple and the Complex,
New York, Freeman, 1994 (versão portuguesa: O Quark e o Jaguar, Lisboa, Gradiva,
1997).
471
“Energia-piloto”, energia cibernética ou gubernatória...
472
“Enteléquia” = princípio intrínseco à existência, que comporta em si a energia
originante e actuante, a motricidade propulsora e auto-realizadora e a auto-finalização
perfectivante e perfeccionante; configura o efectivo e plenificante movimento de
passagem da potência ao acto; nessa perspectiva, a alma imersa no corpo vivo é a sua
enteléquia (cf. Aristóteles: De Anima, II, 1, 412b, 5-30; cf. também: Anatole Bailly:
Dictionnaire Grec Français, op. cit., na «voz» §ntel°xeia.
473
Cf. Fernando Namora: Marketing, Lisboa, Livraria Bertrand, 51982, p. 150.
474
Cf. Miguel Torga: Diário XVI, Coimbra, 1993, p. 185, a fazer evocar Camões (Lus.,
I, 106): «Onde pode acolher-se um fraco humano / Onde terá segura a curta vida, /
Que se não arme e se indigne o Céu sereno / Contra um bicho da terra tão pequeno?»
278
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
ordinans das energias entropicamente dissipadas (Prigogine475) —
energias a serem neguentropicamente regeneradas nos fluxos e refluxos
de re-equilíbrio homeostásico, o mesmo é dizer, na série de
«catástrofes» de instabilidade caógena que emergem da própria
estabilidade dinâmica e cosmógena em que ela, vida humana, se afirma
e se move até se consumar o seu colapso final no advento da morte476...
E é, porventura, no horizonte perspéctico desse colapso que se
consegue a sua mais nítida inteligibilidade e, assim, a mais clara e aguda
consciência da nossa condição humana... Na verdade, como sublinha
Vergílio Ferreira477, é na tentativa de «aprender a morte» que reside «o
modo mais perfeito de aprender a vida», e isso, pela simples razão de
que esta é um bem que de que se não sabe bem o que é. Dito num outro
registo de convergente e complementar sintonia: a vida humana, essa
«força misteriosa e criadora, tão surda como rítmica»478 (na densa e
expressiva síntese do turdetanamente inteiriço, indomável e telúrico
Aquilino), «essa coisa enorme que prende tudo e tudo une»479 (no
poético espanto do multiplex e genial Pessoa / Álvaro de Campos),
quando consubstanciada, plasmada e configurada na humanidade de
cada corpo vivo, constitui a matriz tectónica, metabólica, organísmico-
mentalmente activa e reactiva, plástica, produtora, liberadora e criadora
(poiésica) que funda as comunidades humanas existentes no orbe da
Terra.
475
Cf. Ilya Prigogine e Isabelle Stengers: A Nova Aliança, Lisboa, Gradiva, 1987, pp.
376 ss e 423 ss; Ilya Prigogine e Isabelle Stengers: Entre o Tempo e a Eternidade,
Lisboa, Gradiva, 1990, pp. 87-114, 149-203, 205-233.
476
Cf. Fernando Paulo Baptista: Tributo à Madre Língua..., op. cit., pp. 47-59.
477
«Porque tu, como quase toda a gente, não sabes a vida ou sabe-la de cor. É na
doença que se aprende a saúde, é na miséria que se sabe o bem-estar. Não sabes a vida
porque não imaginas a sua privação. Vê se consegues ter uma ideia da morte e saberás
a maravilha que te coube, que tiveste a sorte incrível de te caber. Mas se aprenderes a
vida, saberás que ela é maravilhosa para além de ti. Quando morreres, morrerá o
universo contigo». (Cf. Vergílio Ferreira: Pensar, Lisboa, Bertrand, 1992, pp. 266-
267).
478
Aquilino Ribeiro: A Casa Grande de Romarigães, Lisboa, Livraria Bertrand,
3
1957, p. 437.
479
Fernando Pessoa / Álvaro de Campos: Poesia, Lisboa, Assírio & Alvim, 2002, pp.
251-255 (excerto do poema cujo “incipit” é «Afinal, a melhor maneira de viajar é
sentir»).
279
Fernando Paulo do Carmo Baptista
É por tudo isso que ela não pode deixar de ser a geratriz, o
alicerce e o vector de um condigno sistema e serviço de saúde no quadro
homólogo de um projecto de cidadania digno desse nome: in principio
est uita — no princípio está a vida!...
Da vital imprescindibilidade dos Médicos e da Medicina
e de uma estratégia organizativa “orquestral”
Seja-me permitida ainda uma nova e insistente reiteração: como
acabámos de ver, é inquestionavelmente a Vida, pensada em sua
concreta expressão e configuração bio-organísmica, antrópica, pessoal
e social, cultural, ecológica e holística, a érxÆ (arche) e o t°low (telos)
da Medicina, o seu princípio primigénio e fundador e a sua ultimidade
progrediente e perfectiva (ambos constitutivos e propulsores de um
horizonte de questionamento e de inteligibilidade muito mais vasto e
mais profundo, do ponto de vista das exigências hermenêuticas,
sapienciais e organizacionais...), que postula, a partir da sua assunção,
a convocação sinérgica e sinagógica480 dos domínios do sonhar, do
criar, do inventar, do pensar, do meditar, do medir, do moderar, do
modificar, do (re)modelar e do modernizar inventivo e criativo (verbos
que têm mesma raiz e, portanto, a mesma semântica profunda das
palavras ‘medicina’, ‘médico’ e ‘medicamento”, entre tantas
outras481...), em suma, do «olhar clínico» atento e fixo e com o poder
penetrante e fulgurante (mas reversamente metamorfósico...) do olhar
480
Ao menos em suas mais relevantes implicações, extrapolações e consequências
nos contextos institucionais, organizacionais, metodológicos e operacionais do
sistema e do serviço de saúde...
481
A propósito da raiz med- / mod- (semanticamente próxima da sua congénere me-,
veiculadora da ideia matricial de “medida” e de onde provêm lexemas como metro,
métrica, medir [do latim: metiri], medida, comedido, desmedido, mensura, mesura,
mensurar, mensurável, comensurável, incomensurável, dimensão, dimensionar,
imensidão, imenso), afigura-se-me oportuno considerar o vasto campo lexemático a
partir dela gerado, bem como a reflexão semântico-conceptual que ele não deixa de
motivar (cf. no fim as ANOTAÇÕES).
280
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
de M°dousa482 (Medousa) e, assim, do criterioso diagnóstico,
cuidadoso cuidar e dedicado agir profiláctico e terapêutico, directa e/ou
(tele)mediaticamente, protagonizados pelos médicos, sem qualquer
hipótese de solução mais segura, mais consistente e mais válida que a
sua... Que não haja ilusões: não há alternativa sapiencialmente
fundamentada (e, por isso mesmo, digna e credível...) para a missão e
acção dos Médicos!...
É assim que, se o seu intransferível protagonismo configura um
privilégio, não deixa de constituir, igualmente, uma acrescida e
indescartável responsabilidade...
Por isso, sendo a saúde483 um englobante e holístico estado de
equilíbrio dinâmico e de homeostasia vital, de capacitante harmonia
integrada, solidária e polifónica, não dispensa uma sempre renovada e
sólida estratégia e, tal como na música, uma inspirada, sensível e
afinadora agógica orquestral nas áreas da organização, da metodologia
e da processologia, não devendo prescindir, nomeadamente, de uma
concepção e de um planeamento de natureza multidisciplinar,
interdisciplinar e transdisciplinar, numa palavra, conjugadamente
envolvente e implicante (ou pléctico) dos desempenhos orgânicos,
relacionais, sapienciais (teóricos e práticos) e formativos do sistema e
do serviço de saúde...
Ora, no quadro dessa estratégia global, o maestro dessa
incomparável orquestração polifónico-sinfónica é cada vez mais o
médico, mas um médico não apenas científica e clinicamente dos mais
competentes, mas também, e acima de tudo, um especialista do saber
global e das combinatórias colegiais e sinérgicas, que seja um
482
Cf. Michel Serres e Nayla Farouki (dir.): O Livro da Medicina – O dicionário da
medicina de hoje: Lisboa, Edições Piaget, 2004, 17, prefácio de Michel Serres, onde
se estabelece uma relação semântica com esta figura mítica, cujo nome — ‘Medusa’
— tem a mesma raiz — med- — das palavras médico e medicina; claro que o assim
chamado “olho clínico” dos médicos, mesmo possuindo análogas virtudes oftálmicas
de fixação, penetrabilidade e fulgurância irradiante e iluminante nos actos de
diagnóstico, não se destina a originar os efeitos perversos e maléficos atribuídos à
mais terrífica das três Górgonas: pelo contrário, visa o benefício da cura dos males
que afligem o doente...
483
Cf. os pontos 1. e 2. do “Manifesto” intitulado “Irmandade Científica para a
TeleMecinina”, documento que tive a honra de elaborar para o já referido «II Fórum
Ibérico» e que, na sequência textual que mais interessa para a presente reflexão, vai
transcrita, no fim, nas ANOTAÇÕES E ADENDA.
281
Fernando Paulo do Carmo Baptista
paradigma e um exemplo de estesia e afectividade plural, inclusora e
integradora, um estudioso e um humanista da estirpe de um Pedro Laín
Entralgo que, tal como ele, entenda que «la actitud más humanamente
digna ante el enigma insondable que es la realidad del hombre consiste
en avanzar en el empeño de conocerla cada vez mejor, sabiendo que
jamás la humanidad le dará término484».
Do pãyow [pathos] enquanto território fundador
de uma “visão antropo-ética” do exercício da Medicina
e da radicação da deontologia médica
Neste especial contexto, afigura-se-me de inteira pertinência
lembrar palavras sábias de Michelangelo Peláez, Professor de Ética e
Antropologia na Università Campus Bio-Medico de Roma, acerca da
Medicina485:
484
Cf. Pedro Laín Entralgo: Idea del hombre, Barcelona, Galaxia Gutenberg, Círculo
de Lectores, 1996, p. 202.
485
Cf. o seu artigo «Medicina» (apud Giuseppe Tanzella-Nitti e Alberto Strumia
(curat.): Dizionario Interdisciplinare di Scienza e Fede, Roma, Urbaniana University
Press – Città Nuova Editrice, 2002, pp. 901 ss), de que transcrevo o seguinte excerto,
tomado como base desta minha tradução e adaptação (e, por isso, também,
pontualmente “traição” [tradutore <> traditore]):
«Disciplina di originaria dignità universitaria, essa riunisce gli aspetti di una
scienza, teorica e sperimentale, e quelli di un’arte pratica; soprattutto si presenta con
un oggetto assai peculiare, per il quale ogni definizione non potrebbe essere che
riduttiva: l’essere umano con le sue esperienze di salute e di malattia, di benessere e
di sofferenza. Costitutivamente aperta all’interdisciplinarità, la medicina incontra
all’interno del suo orizzonte lo sbocciare della vita, ma anche il suo termine: l’uomo
può essere aiutato a prevenire e guarire le sue malattie, può riacquistare la salute,
ma non può evitare in maniera definitiva la morte. La medicina è inerente alla stessa
condizione umana: anche se ha in comune con gli animali superiori la sensibilità al
dolore, l’uomo soltanto ha il potere di prestare aiuto a se stesso e agli altri esseri
umani con atti specifici che costituiscono una prassi ed una tradizione universale
fondata sulla compassione (vc. dotta, lat. tardo: compassione(m) = sentimento o
atteggiamento di sofferenza, compartito insieme*), radice della stessa moralità. Le
cure mediche sono un esercizio della compassione tra esseri umani: l’uomo che
patisce un’affezione è, in tal senso, un “paziente”. Curare vuol dire prendersi cura
del paziente. Il rapporto tra vulnerabilità (malattia) e compassione (cura) costituisce
282
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
«Disciplina de originária dignidade universitária, ela reúne em
si os fundamentais aspectos de uma ciência teórica experimental e os
de uma arte prática, ocupando-se de um objecto extremamente
peculiar: o ser humano com as suas experiências de saúde e de doença,
de bem-estar e de sofrimento. Constitutivamente aberta à
interdisciplinaridade, a Medicina depara-se, dentro do seu horizonte,
com o desabrochar da vida, mas depara-se também com o seu termo:
o homem pode ser ajudado a prevenir e a curar as suas doenças, pode
reconquistar a saúde, mas de modo algum consegue evitar a morte. A
Medicina é co-natural à própria condição humana: mesmo se ele
partilha com os animais biologicamente mais estruturados a
sensibilidade à dor, apenas o homem tem o poder de prestar ajuda não
só a si próprio mas também aos demais seres humanos, através de actos
específicos que constituem uma prática e uma tradição universal
fundada na compaixão486, raiz da moralidade e da própria ética. Os
cuidados médicos são um exercício de compaixão entre seres humanos:
o homem que padece de uma afecção é, nesse sentido, um “paciente”.
Cuidar significa prestar a devida atenção ao paciente. A relação entre
vulnerabilidade (doença) e compaixão (cuidado) constitui o
fundamento ético-antropológico da Medicina em todas as épocas (...).
Não há doença sem saúde, tal como não há saúde sem doença. (...) Mas
é necessário integrar as experiências universais de sofrimento e de
doença numa visão do mundo, do homem e do desenvolvimento
científico da Medicina, que permita compreender a sua natureza, as
causas e os modos possíveis de as prevenir e tratar.»
la struttura etico-antropologica della medicina di ogni epoca (...). Non c’è malattia
senza salute e non c’è salute senza malattia. (...) È necessario inserire le esperienze
universali di sofferenza e di malattia, in una visione del mondo, dell’uomo e dello
sviluppo scientifico della medicina che permetta di comprendere la loro natura, le
cause e i modi possibili di prevenirle e di curarle.» (cf. também:
http://www.disf.org/Voci/84.asp).
* Nota: permiti-me introduzir no original italiano uma ligeira alteração relacionada
com a etimologia.
486
Proveniente do latim tardio compassio, -onis, nome da mesma família do verbo
compatior [< cum + patior], -eris, -ti, -passus sum, com o significado de padecer com,
sofrer em conjunto, sofrer solidariamente (cf. Santiago Segura Munguía: op. cit., na
«voz» respectiva).
283
Fernando Paulo do Carmo Baptista
Como acabamos de ver, é na base da fundacional relação entre
padecimento e compaixão, entre passio e compassio, que não só se
institui ontologicamente toda a dÊnamiw (dynamis) inerente ao agir
médico, como também nela radica, trans-epocalmente, a dimensão
axiológica e, dentro dela, o sentido antrópico-ético do exercício da
Medicina, com seus códigos deontológicos.
E porque passio e compassio são manifestações profundas
daquele mesmo e universal pãyow (pathos)487 que constitui, desde as
suas mais fundas e misteriosas funduras, a “região” porventura mais
fluida e proteica da nossa corpórea e viva existência humana, com seu
deveniente, plástico e moldável modo de ser, impõe-se-nos, a esse
propósito, uma abordagem ainda que breve.
Território instável e incerto dos abissais abismos e dos
insolúveis paradoxos tensionais (tanto quanto nos é possível,
fenomenicamente, pensá-lo, perspectivá-lo ou julgá-lo...), o pãyow
(pathos) desdobra-se, em emersiva e reveladora epifania, em alegria e
em cântico, em celebração e em festa, em angústia e desespero, em dor,
sofrimento e desgraça, em paciência, esperança e serenidade, em
prudência e em sabedoria, mas também em inconsciência, insensatez e
irresponsabilidade e, no limite, nos incontrolados turbilhões da
desmedida loucura da Ïbriw [hybris] e da frieza letalmente mortífera,
tantas vezes calculada e programada, do próprio crime...
É no pãyow (pathos), entendido na máxima latitude, amplitude
e corpóreo-anímica profundidade dos sentidos de que multímoda e
diuturnamente se alimenta e polissemicamente se organiza: desde a
escuta, a visão e a previsão, o cheiro, o tacto, o paladar e o saborear, à
suspeição, ao palpite, ao pressentimento, ao agoiro, ao presságio e à
premonição...), é no pãyow (pathos) que, a meu ver, radica a
possibilidade primeira e última, positiva e negativa, luminosa e
sombria, de toda a criatividade e de todo o agir humanos...
É ele o transracional, livre e “não-enclausurável” oceano que,
com a inesgotável §n°rgeia (energueia) ondulatória e translativa dos
instintos latentes e incontroláveis e das brusquidões repentinas, da
487
Reescrevo, aqui, parte de uma reflexão inserta no meu Tributo à Madre Língua...,
op. cit., p. 53; para os lexemas gregos e latinos, cf., respectivamente: Anatole Bailly:
Dictionnaire Grec Français e Santiago Segura Munguía: Nuevo diccionario
etimológico LATÍN-ESPAÑOL y de las voces derivadas, já citados.
284
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
misteriosa movência das pulsões libidinais, oníricas, ilógicas, absurdas
e metafísicas (demoníacas ou divinas...), constitui o universal
transfundo e a úbere e possibilitante matriz genealógica, genológica,
genotípica e patológica (sublinho: patológica) da “mecânica dos
fluidos” psicosférica (e até mesmo noosférica...) e, dentro dela, da
semiósica poliglotia e intercomunicabilidade humanas.
É dele que eclodem, em última instância, as brisas e maresias
da lírica, as marés vivas e tensas do drama, as ousadas e argonáuticas
gestas da epopeia, mas também a inelutável, irreversível e patética
fatalidade dos naufrágios da tragédia, com a arrastada e nocturna
sofridão da doença incurável e macabramente desfiguradora e com o
estertor final e os lances lancinantes do agónico cessar da vida...
Da irreversível caminhada para a planetária
“Cidade da Saúde”
Curativamente superadas ou minoradas (com a humana,
dedicada e fraterna sumpãyeia [sympatheia], se não mesmo §mpãyeia
[empatheia], da arte, da técnica e da iátrica, holística e orquestral488
sabedoria dos nossos Esculápios, Hipócrates e Galenos...) as
transtornantes turbulências numénico-fenoménicas das patologias que
por todos os lados vêm afectando a saúde e a vida dos nossos
concidadãos, todos eles, nossos irmãos antrópicos, porque filhos e
habitantes da mesma Madre-Terra, doentes (dolentes) ou padecentes
(patientes) e, assim, suscitadores da nossa humana e solidária
compaixão (compassio)489 e piedade (pietas), iremos caminhando em
488
Isto é, que não dispensa a adjuvante e harmoniosa colaboração de uma vasta e
diversificada equipa de trabalho que vai desde os serviços de gestão e administração,
aos técnicos de paramedicina, enfermagem, farmácia, laboratório e demais
tecnologias, nutricionismo e dietética, não esquecendo os serviços de cozinha,
limpeza e higiene ambiental, etc., etc...
489
Este meu entendimento converge com o conceito de «socialidade», enunciado por
Michel Maffesoli (O Eterno Instante – O Retorno do Trágico nas Sociedades Pós-
Modernas, Lisboa, Edições Piaget, 2000, pp. 190-192), quando afirma: «É o mundo
partilhado, o “mundo com”, o que não deixa de suscitar novas formas de
generosidade e de solidariedade». Maffesoli, embora no contexto mais alargado da
«celebração de mistérios e paixões» e dos respectivos territórios etológicos, fala
285
Fernando Paulo do Carmo Baptista
direcção à planetária “Cidade da Saúde”, verdadeiramente
hominescente490, isto é, poiesicamente transformável numa nova e
saudável humanidade a ser construída a partir do “exílio” em que nos
encontramos, neste pós-moderno tempo-espaço enlouquecido...
Pátria-Deméter, porém, a ser governada por um outro modelo
de democracia: uma democracia ética em que a humanitas de cada
homem é a real e concreta medida da dignidade de todos os homens...
Pátria-Global em que cada cidadão é sempre e ao mesmo tempo o
próprio e o outro sem exclusão de ninguém...
Materna-paterna Pólis da gestação contínua no sonho
imaginante, no pensamento projectivo e na acção exodal, agonística e
poiésica de todos os dias, alimentada pela “utopia”, cada vez mais
necessária, da Educação e da Formação ao longo da vida (life-long
learning)...
mesmo na emergência de «uma “atracção apaixonada” que se exprime nos múltiplos
frémitos da vida social».
490
O termo (e conceito de) «hominescência» foi cunhado por Michel Serres, a partir
de certas analogias morfo-lexicogénicas (por ex: com adolescência, luminescência,
incandescência, etc.), para traduzir, no quadro dum jogo que se desdobra por três
campos de nucleares relações, uma constante dialéctica de afirmação e de negação,
de vida e de morte: considere-se, a título de exemplo, o fenómeno da “apoptose” (em
grego épÒptvsiw, -evw: queda, derrocada, fracasso...) que se traduz na morte ou
destruição programada e “suicida” das células, implicando investimento de energia
proteica, numa estreita relação homeostática com a regulação da fisiologia dos tecidos
e numa função diferente da do processo de cariocinese... A «hominescência» constitui
uma poiésica e uma dinâmica de antropomorfose (superadora dum evolucionismo
imanentista e de uma concepção “utensilar e protética” da técnica e da tecnologia...)
e configura a irrupção ou emergência de um processo neo-humanizador da sociedade,
potenciado pela crescente libertação criativa do corpo humano dos ancestrais
constrangimentos e dependências que o afectavam e limitavam. Essa libertação
assenta num imparável e integrador processo de antropo-tecnicização e bio-
culturação, com o objectivo de se estabelecer uma nova teia de relações connosco
próprios, com o mundo e com os outros. Nesse contexto e tendo em conta o facto de
vivermos na sociedade da comunicação, da informação e do conhecimento, marcada
por uma malha de relações cada vez mais intensas e interdependentes, corre-se o risco
do advento de uma espécie de avalanche informativa, estranguladora das
possibilidades de elaboração crítica do saber e, consequentemente, da construção
autónoma e reflexiva da própria sabedoria, pelo que não deixa de ser emblemática e
carregada de alegorismo a afirmação de Michel Serres, segundo a qual, «l’avenir
appartient aux ordres contemplatifs» (cf. Michel Serres: Hominescence, Paris, Le
Pommier, 2001, pp. 1-95 e passim [agora também nas Edições Piaget]).
286
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
Poema real da esperança e do futuro sempre em movimento...
E porque, aí, os homens vão ser todos eles HOMENS, é possível
proclamar, com Hölderlin491, no seu Hipérion:
«Onde quer que um povo ame a beleza e honre o génio nos seus
artistas, aí circula, como um sopro de vida, um espírito universal (...).
Um povo assim é a pátria de todos homens...».
No horizonte efémero e lábil da nossa existência, definido pelas
fronteiras do nascimento e da morte, está sempre presente a figura
tutelar e serenante dos médicos, enquanto “DIVINOS”492 ARTISTAS DA
POÉTICA DA SAÚDE E DA VIDA, ao serviço da cura e da salvação dos
homens de todas as idades e de todas as condições...
Foi, pois, com inteira pertinência e justiça e com o maior sentido
e alcance profético que Homero os imortalizou, na sua Ilíada (XI,
514493), quando, acerca deles, na rítmica melodia e no sortilégio e
fascínio da sua epopeia imperecível, plasmou e cantou para sempre:
« htrÒw går énÆr poll«n éntãjiow êllvn».
(«um médico é homem que vale por muitos outros»)
In honor of the DIRECTORS AND ALL THOSE WHO WORK
in the “WORLD HEALTH ORGANIZATION” (WHO),
and ANTÓNIO GUTERRES, the current United Nations
Secretary-General
491
Cf. Friedrich Hölderlin: Hiperión, Madrid, Hiperión, 1976, p. 206; considerar
também a tradução portuguesa de Maria Teresa Dias Furtado: Hipérion ou o Eremita
da Grécia, Lisboa, Assírio & Alvim, 1997, pp. 198-199.
492
E digo “divinos”, porque, metonimicamente, mantêm (pela sua específica “práxis”
e desempenho competencial...) uma estreita relação de contiguidade identitária com
todos aqueles que pertenciam à linhagem dos Asclepíades, fundada por Asclépio (em
latim: Aesculapius > Esculápio), filho de Apolo e deus da Medicina, sendo de notar
que a tradição mitológica ligava a família de Hipócrates a Asclépio...
493
Homero: Ilíada (trad. de Frederico Lourenço), Lisboa, Livros Cotovia, 2005, p.
233.
287
Fernando Paulo do Carmo Baptista
— The Word and the Concept of “HEALTH”:
its noetical-anthropological richness and its ethical-praxis
and undelayable universality; towards a theoretically,
semantically, and conceptually more comprehensive
perspective —
HEALTH is the condition that enables the integrated and
integrating vital harmony of the all-encompassing state of dynamic
equilibrium, of the self-regulating, stabilizing, and substantive
homeostasis, and of corporeal and mental well-being (bio-socio-
psycho-physical).
That condition places HEALTH at the top of the axiological scale
(judicative and evaluative) as A FOUNDATIONAL GOOD, on which depend
all other goods that we may enjoy.
HEALTH is, therefore, one of the primordial areas of the social
and political domains, because it constitutes the safeguard of the capital
value, as well as the true cornerstone in the construction of all of
humanity’s codes, THE VALUE OF LIFE.
For all the above reasons, HEALTH needs to be protected
institutionally through a strategic network of services, mechanisms, and
dynamics that aim at predicting, preventing, resolving, or even
neutralizing and eradicating any harbinger of an ethio-symptomatologic
nature, which might threaten the aforementioned structural and
functional (anatomical and physiological) harmony of our somato-
psycho-sociosphere in its constitutive, endogenous, and exogenous
factors. 494
The problematic dialectic between HEALTH and ILLNESS brings to
light, in a most deep, flagrant, and radical manner, the fragile,
precarious, and finite nature of our human condition, and, for that
reason, it invokes and suggests a sense of priority and solidarity in our
thinking and in our action... And, in the “limit situations”
[Grenzsituationen] to which Karl Jaspers refers, it leads us, even more
494
Cf. Baptista, Fernando Paulo (2010-2011): “Toward a Holistic, Intercultural, and
Polyphonic Perspective on Health Care: Journal of the Indiana Academy of the Social
Sciences, Volume 14: 2010-2011, pp. 11-17.
(See, please: https://www.academia.edu/).
288
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
so, to call forth (or to convoke) the transcendental intervention of
Divinity...
It is not by chance that the most universalized linguistic
designation for the idea of “HEALTH” —whether through the Latin
words “salus, salutis” and their Romanic derivatives495, or whether
through the words “health” in English, “hesle” in Norwegian, “hälsa”
in Swedish, “hailith ” in Germanic, or “heisla” in Icelandic, among
many others—has age-old and profound connections with the concepts
of the “sacred” and the “divine.”
In fact, the Indo-European root *sol- / sal- / sel- (with its evolved
morphed variant hol- / - hal- / heal-), which constitutes the semogenic
nucleus of the Latin lexeme “salus, salutis”, is present in the
constitution of innumerable words of the lexical inventory of different
languages, with special prominence for words of Romance languages,
such as safe, safeguard, safety, sage, salubrious, salubrity, save, saving,
salvation, savior, salutary, salute, salutation, holism, holistic, health,
healthy, healthful, solid, solidity, solidarity...
But it is also equally present in other English words, such as hale,
holy, holiday, and whole, in Old English h l and h lig; in Old Saxon
hēlag, in Old Norse heill; in Old Frisian hēlich; in German heilig; in
Old High German heilag; in Greek λο [hólos; in Latin saluus; in
Sanskrit sarvah, etc., all of which are “carriers” of the transversal
semantic markers of the “sacred, saint, saved, intact, entire, integral,
total.”496
It is within this context that the word “HEALTH” (which
designates and identifies the correspondent and thus named
“ontological, noetic, sophist-epistemic, cultural and axiological
content”, conceptualizing the object, the objectives, and the finalities of
Medicine’s existence, as a specific curricular ground of specialized
knowledge of a theoretical, technical-praxis, clinical-therapeutic,
reconstructive-surgical, plastic-poiesic, and ethical-deontological
495
Let us consider, for this purpose, the designators of the idea of “health” in the
universe of the Romance languages: in Portuguese saúde, in French santé, in Spanish
salud, in Catalan salut, in Italian salute, in Romanian s n tate.
496
Cf. Barnhart, Robert K. (2001): Chambers Dictionary of Etymology, London:
Chambers Harrap Publishers Ltd., the entries, “health,” “holy,” “holism,” “safe,”
“salute,” “save,” “whole.” See also the same entries in Online Etymology Dictionary,
http://www.etymonline.com/index.php.
289
Fernando Paulo do Carmo Baptista
nature...)—evokes and convokes terms and concepts such as saving,
salvation, salubrity, holism, solidity, solidarity, and solicitude, which,
on their own accord, bring forth, isotopically, ideas such as those of
totality, wholeness, integrity, inclusion, density, combination,
articulation, orchestration, harmonization, and of an enlarged and
profound synchronization of everything related to the organic and
functional complexity of our living body and its ecosystem.
Thus HEALTH, correctly understood, is a holistic, cosmic, integral
and sacred state of dynamic harmony, in such a way that doctors (when
they care for patients...) set in motion the former’s genealogy of
“divine” origin: doctors are indeed, on Earth, the descendants of
Asclepius or Aesculapius... And their universal emblem is the
“caduceus,” the unmistakable symbol of Medicine, which is so well
represented, indeed, on the flag of the World Health Organization
(WHO).497
In conclusion: it seems to be within the perspective, made
possible by this very synthetic philological-anthropologic framing, that
all health care and services acquire a much more consistent and
profound meaning and reach. However, without ever forgetting that,
above all, when CHILDREN AND THE ELDEST ARE AT RISK, it is very
important to discover the transcending horizons of poietic creativity
that confer to Life its highest greatness as guarantee of the Future of
Mankind on Earth (Demeter)...
497
See the image.
290
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
It seems, therefore, entirely pertinent to recall the following
verses of the genial Portuguese Poet—FERNANDO PESSOA498—,
which say:
«Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças...».
[Great is the poetry, the kindness and the dances...
But the best in the world are the children...]
In this context of holistic tenderness towards, above all, the
youngest people of the entire World, I conclude this “short essay” with
my best wishes of strong health to my compatriot ANTÓNIO
GUTERRES—(the current United Nations Secretary-General— so that
he may continue to promote his humanist, inclusive, and encompassing
“vision” of Mankind, as well as his universal and supportive
engagement on behalf of Peace, Justice, and Fraternity, without which
it will be very difficult to protect, develop, and expand HEALTH on
Planet Earth, our Common Home...
On my part, I will do my best in order to continue to be worthy
of this HUGE AND EXCITING HONOR, which touched me in my Life,
of being a simple but engaged reviewer of our wonderful “WHO –
BULLETIN.”
ANOTAÇÕES E ADENDA
1. «A lição da etimologia, suscitada pelas correlações estabelecidas
com base na análise desencadeada a partir da raiz indoeuropeia med- /
mod- que está na base dos lexemas médico e medicina, apresenta-nos
este fundamental constituinte morfo-lexical como sendo portador das
498
Fernando Pessoa: Poesias, Lisboa, Edições Ática, 11.ª edição, 1980, p. 248:
«Grande é a poesia, a bondade e as danças... / Mas o melhor do mundo são as
crianças...».
291
Fernando Paulo do Carmo Baptista
ideias de “meditar, cuidar de, medir...” e como estando na génese de
um vasto e diversificado conjunto de vocábulos de que fazem parte,
entre outros, os verbos gregos mÆdomai (= meditar, preocupar-se com,
cuidar de...), med°v (= ter cuidado de, proteger...), m°dv (= regrar, pôr
dentro da justa medida, governar, dirigir...), m°domai (= preocupar-se
com, cuidar de...), o nome próprio M°dousa (> Medusa, uma das três
Górgonas, com o significado literal de “aquela que mede com o seu
olhar cintilante e penetrante, que tira as medidas com rigor”...]), os
verbos latinos meditor (= pensar, ponderar, meditar...), medeor (=
cuidar de, tratar de...), modero (= regrar, submeter às regras,
moderar...), modulor (= modular, dispor em conformidade com a
medida, que, em latim, se diz modus (de onde, o aforismo horaciano do
«est modus in rebus»: há uma justa medida para as coisas: nada de
exageros! [Horácio: Sátiras: 1, 1, 106]), modifico (= refazer dentro das
medidas, pôr em ordem, modificar uma situação que está
desregulada...), medico, -as, -are (= medicar, prescrever e administrar
medicamentos), etc... A raiz indo-europeia med- / mod-, caracterizada
por um fenómeno de alternância vocálica de duplo grau (grau “e” / grau
“o”) que está, como se pode verificar, na base destes lexemas da
classicidade greco-latina e na constituição das duas palavras
portuguesas provenientes da língua falada pelos Romanos — medicina
e médico — transporta consigo o mesmo “adn semântico” que
distingue, sémio-geneticamente, um significativo e diversificado
elenco de outros vocábulos da nossa língua que, por isso mesmo,
pertencem à mesma família lexical: medicar, medicação, medicamento,
medicinal, Medusa / medusa, mezinha (do latim: medicina-), remédio,
remediar, irremediável, como (do latim: quo modo = de que modo, com
que medida?...), cómodo (do latim: commodus = que tem a medida
ajustada ou proporcionada e que, portanto, é confortável...), cómoda,
comodidade, acomodar, incómodo, moderar, moderado (em italiano:
moderato, usado especificamente na metalinguagem musical para notar
um movimento entre andante e allegro), moderação, módico,
modicamente, modéstia, modesto, módulo, modelo, modem, molde,
modelar, modular, modificar, modal, modalidade, módio, modíolo,
moio, moda, moderno, modernidade... Da fieira semântica que a partir
daquela raiz reticularmente se tece bem pode inferir-se uma razoável
tentativa de definição da Medicina como sendo a ciência, a técnica e,
sobretudo, a arte (a poética) de criar (modelar), de modo reflexivo e
292
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
ponderado (isto é, meditado e medido), as condições multi-sapienciais,
académica, social, deontológica e institucionalmente legitimadas e que
são intrínsecas ao “estatuto de médico” isto é, intrínsecas aos
especializados protagonistas do meditar, do medir e modelar, do
medicar e modificar (o mesmo é dizer: aos protagonistas da práxis
científica e técnico-poética da Medicina), por forma a estabelecerem os
esquemas de acção decisional e prescritiva (e.g.: diagnóstico genérico
e/ou especializado, receituário e respectiva posologia/dosologia,
internamento/alta, terapia [farmacoterapia, terapia cirúrgica, terapia a
laser, radioterapia, quimioterapia, fisioterapia, etc...], prevenção
[vacinação, profilaxia], aconselhamento, manutenção, etc...), ou seja,
as modalidades, os modelos, os módulos e os modos clínicos, em suma,
os “algoritmos” de natureza conceptual, organizacional, metodológica,
relacional e operatório-prática, configuradores do “acto médico” em
suas fundamentadas, pertinentes, ajustadas e eficazes modulações e
medidas concretizadoras, para, atenuando, debelando, erradicando ou
neutralizando superadoramente as causas e os efeitos da doença, re-
instaurar na “corpórea casa”, de modo regulado e regulador, o normal
[o “modelar”] estado de saúde». Sobre esta tão importante raiz, cf.
Edward A. Roberts e Bárbara Pastor: Diccionario Etimológico
Indoeuropeo..., já citado, entrada med-, 102-103; cf. Fernando Paulo
Baptista: Tributo à Madre Língua..., op. cit., pp. 447-449.
2. Excerto do “Manifesto” intitulado “Irmandade Científica para a
TeleMecinina”:
«Tal como ressalta da significação primigénia inscrita na raiz indo-
europeia *sol- [ > hol-] / sal- que constitui o núcleo semiogénico da
palavra ‘saúde’ (nome proveniente do latim salus, -tis), designadora e
identificadora do correspondente e assim nomeado “conteúdo
ontológico e sapiencial” (conceptualizador do objectivo e da finalidade
da existência da Medicina enquanto específico conjunto de saberes
especializados), que convoca palavras cognatas como salvar, salvação,
salubridade, holismo, holístico, sólido, solidez, consolidar,
solidariedade, solicitude... e que, por força delas, suscita em nós,
isotopicamente, ideias como as de totalidade, inteireza, integridade,
inclusão, densidade, combinatória, articulação, orquestração,
harmonização e sintonia profunda e alargada de tudo com tudo quanto
293
Fernando Paulo do Carmo Baptista
diz respeito à complexidade orgânico-funcional (anatómico-
fisiológica) do nosso corpo vivo e ao seu ecossistema, a saúde é muito
justamente entendida, por um lado, como o englobante estado de
equilíbrio dinâmico e homeostasia, de capacitante harmonia vital
integrada e integrante e de bem-estar bio-sócio-psico-físico e valorada,
pelo outro, como o bem fundador de que dependem os demais bens de
que nos é dado fruir. A saúde configura, assim, uma das áreas
primordiais do domínio do “social” e do “político”, na medida em que
nela se joga e cada vez mais se decide, solidariamente, a garantia da
salvaguarda do valor capital e verdadeira pedra angular na construção
de todos os códigos da Humanidade — o valor da vida —,
institucionalmente resguardado por uma estratégica rede de serviços,
de mecanismos e de dinâmicas que visam prever, prevenir, resolver ou
mesmo neutralizar e erradicar qualquer prenúncio de natureza étio-
sintomatológica que possa pôr em risco a referida harmonia estrutural
e funcional da nossa somato-psico-sociosfera, em seus constituintes
endógenos e em seus factores exógenos». Cf. o meu Tributo à Madre
Língua..., op. cit., pp. 449-450, sendo de notar, para o efeito, que a base
lexicogénica da palavra ‘saúde’ (proveniente do nome latino salus, -tis)
é a raiz indo-europeia — sol- [ > hol-] / sal- —, cujo “adn semântico”
é constituído pelas ideias de «todo, inteiro, intacto, íntegro, sólido,
integrado...» e está presente numa vasta família de palavras, quer de
matriz grega, quer de matriz latina, assim distribuídas:
a) lexemas gregos com base na variante “sol- > hol-” da raiz:
˜low, -h, -on (holos [> sol-(w)os] = inteiro, todo, completo, integral,
universal), €zv ([holizo] = unir, reunir, juntar, congregar num todo),
os matow (= que diz respeito ao corpo todo), ote w (=
completamente, inteiramente), Òf now (= que fala ou que grita a
plena voz, a plenos pulmões), Òf tow (= quer ilumina tudo, a plena
luz, holofote)...
b) lexemas latinos com base na variante “sol-” da raiz:
sollus, -a, -um [= inteiro, íntegro, intacto], solidus [= propriedade dos
corpos cujos elementos constitutivos formam um todo consistente e
firme], soldus, soliditas -tatis, solido -as -are, sollicitus [= que está
inteiramente disponível para ser prestável; dedicado...], sollicitudo, -
dinis [= inteira disponibilidade, total prontidão...], sollicito -as -are [=
pedir com todo o empenhamento, com insistência...], sollicitatio,
294
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
sollemnis [< sollus+annus = o que de único [porque mais denso,
consistente, integrado, congregador de todos e de tudo em tudo...] e, por
isso mesmo, de mais representativo, singular e importante acontece no
espaço de um ano], sollemnitas -tatis, sollers -tis [< sollus+ars = que
acciona, por inteiro, as suas habilidades, as suas artimanhas; daí:
astucioso, finório, solerte...]...
c) lexemas latinos com base na variante “sal-” da raiz:
salue! [< salueo, -es, -ere... = salve!, eu te saúdo!, goza de boa saúde!],
saluus -a -um [< saluos = salvo, intacto...], saluator, saluo -as -are,
salus -tis [salute- > saúde], saluia (planta medicinal = sálvia ou salva),
saluber, salutaris...
I. léxico português de base grega: católico [< kayolikÒw
(kata+hol+ikos) = geral, universal], holismo, holístico, holopatia,
holoblástico, holotomia, holócrino, holofonia, holófrase, holofrástico,
hologénese, holografia, holograma, holómetro, holomórfico, holofote,
holofótico, holocausto, holomorfose...
II. léxico português de base latina: sólido, solidez, solidificar,
consolidar, soldo, soldar, soldado, soldagem, soldadura, solidário,
solidariedade, solícito, solicitar, solicitude, solene, solenidade,
solerte... saúde, saudar, saudação, saudável, salva ou sálvia, salvo,
salvar, salvação, salvador, salvamento, salvaguarda, salubre,
salubridade, salutar...
Sobre esta tão fecunda raiz, cf. Edward A. Roberts e Bárbara Pastor:
Diccionario Etimológico Indoeuropeo..., já citado, entrada sol-, pp.
164-165; cf. igualmente os já citados Anatole Bailly: Dictionnaire Grec
Français e Santiago Segura Munguía: Nuevo diccionario etimológico
LATÍN-ESPAÑOL..., respectivamente, nas «vozes» gregas e latinas
inventariadas.
295
Fernando Paulo do Carmo Baptista
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A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
7. CONSCIÊNCIA AXIOLÓGICA E INTERVENÇÃO
COMUNITÁRIA
299
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
— EM BUSCA DA ÉTICA PERDIDA (*)... —
«A crise financeira que atravessamos faz-nos esquecer que, na sua origem, há uma
crise antropológica profunda: a negação da primazia do ser humano. Criámos
novos ídolos. A adoração do antigo bezerro de ouro (cf. Êxodo: 32, 1-35) encontrou
uma nova e cruel versão no fetichismo do dinheiro e na ditadura de uma economia
sem rosto e sem um objectivo verdadeiramente humano. A crise mundial, que
investe as finanças e a economia, põe a descoberto os seus próprios desequilíbrios e
sobretudo a grave carência de uma orientação antropológica que reduz o ser
humano apenas a uma das suas necessidades: o consumo.»
«... a autonomia absoluta dos mercados» / «a especulação financeira» / «uma
corrupção ramificada e uma evasão fiscal egoísta, à escala mundial» / «a rejeição
da ética, habitualmente olhada com um certo desprezo sarcástico.»
«A dignidade de cada pessoa humana e o bem comum são questões que deveriam
estruturar toda a política económica, mas às vezes parecem somente apêndices
acrescentados de fora para completar um discurso político sem perspectivas nem
programas de verdadeiro desenvolvimento integral. Quantas palavras se tornaram
incómodas para este sistema! Incomoda que se fale de ética, incomoda que se fale
de solidariedade mundial, incomoda que se fale de distribuição dos bens, incomoda
que se fale de defender os postos de trabalho, incomoda que se fale da dignidade
dos fracos, incomoda que se fale de um Deus que exige um compromisso em prol da
justiça. (...) Não podemos mais confiar nas forças cegas e na mão invisível do
mercado. (...) Peço a Deus que cresça o número de políticos capazes de entrar num
autêntico diálogo que vise efectivamente sanar as raízes profundas e não a
aparência dos males do nosso mundo. A política, tão denegrida, é uma sublime
vocação, é uma das formas mais preciosas da caridade, porque busca o bem
comum. Temos de nos convencer de que a caridade «é o princípio não só das micro-
relações estabelecidas entre amigos, na família, no pequeno grupo, mas também
das macro-relações como relacionamentos sociais, económicos, políticos. Rezo ao
Senhor para que nos conceda mais políticos que tenham verdadeiramente a peito a
sociedade, o povo, a vida dos pobres. É indispensável que os governantes e o poder
financeiro levantem o olhar e alarguem as suas perspectivas, procurando que haja
trabalho digno, instrução e cuidados de saúde para todos os cidadãos.»
(Cf. Papa Francisco: A Alegria do Evangelho — Exortação Apostólica Evangelli Gaudium,
Lisboa, Prior Velho, Paulinas Editora, 2013, pp. 44-45, 141-143)
(*) Reflexão crítico-interventiva, tendo por base o texto de uma comunicação feita
durante o “Fórum Identidade e Missão da UASP” [União das Associações dos
Antigos Alunos dos Seminários Portugueses] que ocorreu no Auditório do Seminário
Maior de Lamego, nos dias 22 e 23 de Setembro de 2012.
301
Fernando Paulo do Carmo Baptista
1.º “ANDAMENTO”: DO ACTUAL ESTADO
DE GENERALIZADA MORBIDEZ MORAL ...
No contexto da vastíssima bibliografia que se reporta às análises
antropológico-culturais, filosóficas, teológicas, sociológicas,
politológicas..., seja a que se dedica à interpretação, compreensão e
explicação da multiplicidade dos seus “sinais” manifestativos (da sua
sintomatologia...), seja a que se ocupa da sua causalidade originante (da
sua etio-patogenia...), tudo converge no sentido de que o “epicentro”
do actual estado de generalizada morbidez moral verdadeiramente
cataclísmica que vem atravessando o Mundo inteiro (e,
consequentemente, também o nosso País) não se afigura ser dissociável
do controverso período ou estádio histórico-cultural (com todo o seu
cinetismo e agonismo intelectual...) que dá pelos nomes de «PÓS-
MODERNIDADE » e de «PÓS -MODERNISMO », com a complexidade da
sua intrincada fenomenologia e da sua indagadora problematização499...
Mas, pelo seu valor simbólico e alegórico, seja-me permitido, em
todo o caso, destacar, uma vez mais, os famosos títulos do filósofo e
sociólogo francês Gilles Lipovetsky — A Era do Vazio, O Império do
Efémero e O Crepúsculo do Dever — para, através deles, remeter para
a preocupante marginalização a que tem vindo a ser votado o “sistema
499
Para uma perspectivação, ainda que sumária, dos fenómenos da “P ÓS -
MODERNIDADE ” e do “P ÓS - MODERNISMO ”, considerar, entre outros: Victor E.
Taylor – Charles E. Winquist (eds.): Enciclopedia del posmodernismo, Madrid,
Editorial Síntesis, 2002, entrada «posmodernidad», pp. 350-354; Frederic Jameson:
Postmodernism, or, The Cultural Logic of Late Capitalism, Durham, Duke University
Press, 1991; Diego Bermejo: Posmodernidad: pluralidad y transversalidad,
Barcelona, Anthropos Editorial, 2005; Fernando Paulo Baptista (org.): Vítor Aguiar e
Silva: a poética cintilação da palavra, da sabedoria e do exemplo, Viseu, edição do
Governo Civil do Distrito de Viseu, 2007, ensaio «A “lição” do Professor» pp. 79-99,
com o respectivo suporte bibliográfico; Fernando Paulo Baptista: Nesta nossa doce
língua de Camões e de Aquilino, Sernancelhe, edição da C. M. de Sernancelhe, 2010,
pp. 159-176 e 187-189; e também:
http://www.iep.utm.edu/processp/
http://www.iep.utm.edu/frankfur/
http://www.iep.utm.edu/nihilism/
302
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
axiológico”, nomeadamente os valores éticos, em consequência da
proclamação da «morte de Deus», por Nietzshe (com a outorga da
prerrogativa de superador substituto ao mito do “Super-Homem”...) e
do “decretamento”, por Lyotard, do «fim das meta-narrativas»500.
Esse “esvaziamento” ou “exílio” da presença do “Divino” da face
do Mundo e dos Homens abre caminho ao relativismo, ao niilismo e à
ausência de sentido para a vida, consagrando o advento do “nada” e do
“absurdo” por sobre o horizonte existencial da nossa condição
humana501...
Complementarmente, sobrevém a ruptura epistemológica e ético-
axiológica que dissolve os parâmetros concepcionais, gnosiológicos,
sapienciais, doxásticos e etológicos de referência, inspirados ou
radicados na “Ideia de Deus” (perspectivada até então como “o
Referente dos referentes”...), ficando assim abalados os “arquétipos”
fundacionais, os significados e as conotações axiais do tempo e do
espaço, do aqui e do além, do passado, do presente e do futuro, da
biografia, da memória e do sonho, do mapeamento eidético das próprias
matrizes histórico-geográficas...
Corre-se, por essa via, o risco do abastardamento
estrangeirificante (se não mesmo do apagamento liquidatário..) das
“identidades” locais (paroquiais502), regionais e nacionais, porque, por
força da alienante “mercatorização” e “mercantilização” de tudo
(incluindo a cultura, o corpo e a própria alma...) e sob um delirante e
desenfreado ímpeto hedonista e consumista, tudo passou a ser “global”,
através dos mecanismos tecnológicos de comunicação, informação e
mediação planetária, potenciados pela cibernética > cibernáutica e
pelas dinâmicas internéticas...
Considere-se, a propósito, o que, salvo raríssimas e honrosas
excepções, tem vindo a ser a invertebrada “subserviência” ou
“submissão” dos nossos governantes e representantes políticos às
500
Cf. Jean-François Lyotard: La Condition Postmoderne: Rapport sur le Savoir,
Paris, Les Éditions de Minuit, 1979...
501
Cf. Martin Buber: Eclipse de Dios – Estudios sobre las relaciones entre religión y
filosofía, Salamanca, Ediciones Sígueme, 2003, sobretudo o denso ensaio «Religión
y pensamiento moderno», em que se estabelece um fecundo «diálogo» entre as
posições de Nietzshe, Heidegger, Jung, Kant e Sartre em torno do problema de Deus,
pp. 91-120.
502
Na acepção grega da palavra “ α οι α” [paroikía])...
303
Fernando Paulo do Carmo Baptista
directivas económico-financeiras dos directórios do eixo franco-
germânico e da “troika”, comandados por tecnocratas e burocratas,
intelectualmente “formatados” para o exercício lucrativo do “jogo”
monetário e banqueiro...
Por sua vez, a arquitectante e nevralgicamente estratégica área da
“EDUCAÇÃO / FORMAÇÃO”, com a depreciadora secundarização das
Humanidades Clássicas e Modernas, das Belas Letras e das Belas
Artes, descurando, por essa via, a formação para os perenes e sublimes
valores da “espiritualidade”, passou a ser obsidiante e tecno-
burocraticamente concebida e programada para a desumanizadora
unidimensionalidade das tão apregoadas competitividade, eficácia e
eficiência produtivas e subjugada aos interesses do neo-liberalismo,
emparceirado com o capitalismo financeiro, usurário e neo-selvagem...
Consonantemente com essa “lassidão” político-curricular do
processo educativo-formativo, canonizaram-se (subliminarmente...)
como seus pilares estruturantes e direccionantes o “princípio da
sobrevivência” e o “princípio da dominação” que, em última instância,
conduzem à identitária convergência das grandes “finalidades
pedagógico-didácticas” com os “objectivos” pragmático-lucrativos e
acumulativos do sistema produtivo e seus detentores e administradores,
em detrimento do “princípio da solidariedade” e do “princípio da
realização” que, nas dinâmicas educativo-formativas, nunca deveria
deixar de envolver e desenvolver, em sinérgica, reticular e orquestral
colaboração, as capacidades e destrezas que verdadeiramente fazem
crescer a humanidade do ser humano em todas as suas potencialidades
e dimensões: a imaginação criadora, a racionalidade crítica,
fundamentante, argumentativa e judicativa, a sensibilidade poiésica e
estésica, a memória informante, identificante e referenciadora, a
inteligência intuitiva, conjectural, teorética, onírica, visionária e
realizadora, a vontade resiliente, destemida, direccionante e
decisional...503
503
Cf. Jérôme Bindé [coord.]: Rumo às Sociedades do Conhecimento — Relatório
Mundial da UNESCO, Lisboa, Edições Piaget, 2008, pp. 187-192, 313; Martha C.
Nussbaum: Not for Profit — Why Democracy Needs the Humanities, Princeton and
Oxford, Princeton University Press, 2010; Fernando Cabral Pinto: Idade da
Realização — Na História da Vida / Na Vida da História, Lisboa, Edições Piaget,
2011, pp. 24 ss, 71 ss e 179 ss.
304
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
É assim que essa alarmante situação “patológica” de dimensão
planetária nos traz à memória o premonitório e consonante
“diagnóstico” lapidarmente plasmado por Fernando Pessoa no seguinte
excerto do seu heterónimo Bernardo Soares, no Livro do
Desassossego504:
«Nascemos já em plena angústia metafísica, em plena angústia
moral, em pleno desassossego político. Ébrias das fórmulas externas,
dos meros processos da razão e da ciência, as gerações que nos
precederam aluíram todos os fundamentos da fé cristã, porque a sua
crítica bíblica, subindo de crítica dos textos a crítica mitológica,
reduziu os evangelhos e a anterior hierografia dos judeus a um
amontoado incerto de mitos, de legendas e de mera literatura...».
E muito embora (ainda segundo o pessoano entendimento) «em
qualquer espírito que não seja disforme exista a crença em Deus»505, a
verdade é que, «indiferentes ao divino e desprezadores do humano»506,
os nossos “Sátrapas” da economia e da política, em hipócrita e cínico
conúbio e na medida em que se arrogam o estatuto de intocáveis
“Super-homens” nietszchianos, transformam o nosso resignado e
sofredor Povo (que é “Povo de Deus”!...) em mero joguete laboral do
seu egoísmo e dos seus interesses intocáveis, insensíveis a quaisquer
exemplos auto-abdicatórios, completamente “esquecidos” de que
ESTES... DEVERIAM VIR SEMPRE “DOS DE CIMA”!...
2.º “ANDAMENTO”: MOTIVAÇÃO PARA UMA INTERVENÇÃO
COMUNITÁRIA, CONCRETAMENTE COMPROMETIDA
COM OS QUE MAIS SOFREM:
do escândalo das altas remunerações em tempos de austeridade
à indispensabilidade da prática fraterna
da “solidariedade” e do “compromisso”...
504
Cf. Bernardo Soares: Livro do Desassossego, Lisboa, Assírio & Alvim, 1998, p.
187.
505
Idem: ibidem, p. 414.
506
Idem: ibidem, p. 45.
305
Fernando Paulo do Carmo Baptista
Ponderando tudo quanto no “1.º andamento” desta reflexão
centrada na “Dimensão Ética da Crise do nosso Tempo” ficou dito a
propósito dos aspectos mais desumanizantes e desorientantes dos
movimentos «pós-modernistas», designadamente, a desmedida
relevância que os «valores materiais e instrumentais» da Economia, da
Finança e da Tecnociência, direccionados para o edonismo e o
consumismo, vêm conquistando relativamente aos «valores espirituais
e formativos» da escala axiológica consagrada ao longo da História
da Civilização e da Cultura, não espanta que, sepultada a fundante e
estelar referência a Deus — Gott ist tot!... 507 — e desprezada a religiosa
dimensão “evangélica” da Fraternidade — Amarás ao teu próximo
como a ti mesmo! 508 —, se assista ao retorno do endeusado “bezerro de
ouro” de que fala a Bíblia509, metamorfoseado, agora, nesse novo
“ídolo” que é o “cifrão”, chame-se “Dólar” ou “ uro”, tanto faz!...
É assim que as escandalosas “benesses” do “lauto banquete”
proporcionado, por exemplo, pela privatização da EDP não reverteram
para um “FUNDO DE SOLIDARIEDADE NACIONAL”, tendo em vista
acorrer aos nossos concidadãos mais necessitados e mais
desfavorecidos, nem foram aplicadas para efeitos de redução das tarifas
da energia... Foram, pelo contrário, candidamente aceites pelos seus
“beneficiários” (designadamente ex-ministros urófilos...), dando
ensejo a um tipo de argumentação auto-justificativa e auto-valorativa
digna dos mais refinados sofistas sofísticos da Antiga Grécia, quando
se chega ao ponto de presumir uma “cotação de mercado” comparável
à das super-vedetas do futebol, sem que da sua competência
governativa tenha ficado rasto qualitativo-transformador que se visse (a
não ser o arruinante abandono da agricultura e das pescas, a labiríntica
e paralisante morosidade dos Serviços de Justiça sem qualquer
resgatador fio de Ariadne ou a crescente sombra despesista do
tristemente célebre e devorador “monstro” orçamental, alimentado pelo
eufórico desgoverno e desmando euro-monetarista da improvisada,
impreparada e precipitada adesão à CEE...) e sem que da sua
“genialidade” académica se tenha gerado qualquer espécie de
“prognóstico” economo-lógico ou outra qualquer medida que,
507
Nietzsche: A Gaia Ciência, §125.
508
Mateus: Evangelho, 22, 37-40.
509
Êxodo: 32, 1-35.
306
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
preventivamente, pudesse estar disponível para nos resguardarmos dos
massacrantes “tormentos” que desabaram sobre o nosso Povo...
Todos temos o direito de assumir, no espaço público da ÁGORA,
o livre exercício da cidadania, através do recurso à crítica responsável
e frontal, seja no estilo anti-sofístico do “velho” Sócrates da Hélade,
seja no registo anti-farisaico de Jesus de Nazaré...
Mas também temos o dever bíblico-evangélico de proclamar,
perante os circunstanciais detentores do Poder, a nossa indignação e,
sobretudo, de praticar a bondade e a fraternidade cristã (seguindo o
exemplo dos generosos “cireneus” do voluntariado solidário...) a favor
dos que mais sofrem na carne e na alma as negras consequências da
mortífera “política” de austeridade, de empobrecimento e de fome,
nomeadamente em situações em que se verifica a intocada e
escandalosa manutenção das desproporcionadas e douradas reformas,
subvenções e outras “mordomias” e o chocante aumento das já
“milionárias” remunerações de políticos e altos administradores e
gestores510...
Neste contexto, que dizer do despudorado descaramento e
malabarista “chico-espertismo” com que alguns de entre os titulares
governativos (do passado e do presente...), sem “queimarem as
pestanas” no autêntico labor intelectual pressuposto no camoniano
“HONESTO ESTUDO” (Camões: Lusíadas, x, 154), têm vindo a obter os
seus “diplomas” académicos?...
Que dizer, ainda, do dissimulador modo como ocultam, nos
“portais” institucionais da Net, as suas medíocres e falaciosas
classificações?!... Essa “iliteracia” gnosiológica e essas práticas de
expedientismo oportunista e de falta de transparência configuram,
eloquentemente, a “marca” distintiva do que é a incompetência, a
mediocridade intelectual e a irresponsabilidade ético-deontológica,
potenciadas pela “praga” das “universidades” politiqueiras,
mercantilistas e vendilhoneiras... Onde é que está, pois, a garantia da
“competência sapiencial” (ética, cultural, humanística, científica,
técnica...), imprescindível para alicerçar e sustentar iluminadoramente
510
Exs.: um ex-banqueiro passou a receber mais de 160 mil uros por mês; um
Presidente do Conselho Geral e de Supervisão da EDP passou a receber mais de 600
mil euros anuais, a juntar a uma reforma mensal da ordem dos 10 mil euros; a CP, a
Carris e a Docapesca, todas elas com prejuízos, aumentaram os salários de gestores,
em mais de 50%...
307
Fernando Paulo do Carmo Baptista
o desempenho dos mais exigentes e mais responsáveis cargos e
desempenhos político-sociais?...
E que dizer dos “sábios” conselheiros ou consultores económico-
financeiros, “equipados” de bornais insaciáveis e “formatados” pelos
“padrões” e “cânones” práxico-etológicos à “Goldman Sachs” e à
“FMI”?...
Devidamente analisado e ponderado tudo isto no quadro da
complexidade das suas tão graves implicações e consequências a nível
social e comunitário, não podemos deixar de nos interrogar
reflexivamente, tendo em vista a “MISSÃO TRANSFORMADORA” que, em
consciência, nos cumpre levar a cabo: à luz de uma esclarecida
consciência semântico-lexical do que verdadeiramente significa a
palavra ‘CORRUPÇÃO’511, um tal estado de coisas é ou não é a expressão
patológica do que é a negação dos mais altos e mais nobres princípios
e valores sóficos da éretÆ, [arête: a “virtude”, enquanto caminho em
direcção à “excelência”...], da élÆyeia [aletheia, a “verdade” enquanto
busca e “desvelação” permanente...], da dikaiosÊnh [dikaiosyne, a
“justiça”], do «tÚ kalÒn te ka‹ égayÒn» [to kalon te kai agathon, o
“belo” e o “bem”, a “perfeição”...], da frÒnhsiw [phronesis, a “sageza”,
a “prudência”...], da svfrosÊnh [sophrosyne, a “sensatez”, a
“moderação”...], da §gkrãteia [enkrateia, o “autodomínio”...], do
gn«yi seautÒn [gnothi sauton: “conhece-te a ti mesmo”...], da sof€a
[sophia: a sabedoria], da virtus, da veritas, da iustitia, da aequitas, da
honestas, da rectitudo, da pietas, da verecundia, da prudentia, da
gravitas, da dignitas?...
Em suma: estamos ou não estamos perante o ostracizante
silenciamento das irrenunciáveis dimensões da Axiologia, da Ética e da
Deontologia, dimensões estas que, no passado, se aprendiam, em sua
nuclearidade constitutiva, no diuturno convívio com os textos clássicos
511
Cujo étimo é o acusativo latino ‘corruptionem’ (do substantivo ‘corruptio, -onis’,
pertencente à mesma família lexical do verbo ‘corrumpo, -is, -ere, -rupi,- ruptum’
que, por sua vez, é um cognato derivado por prefixação do verbo ‘rumpo, -is, -ere,
rupi, ruptum’ (lexema que tem como núcleo semiogénico a raiz indo-europeia “reu-
p- / rou-p- > ru-p-”, com o significado genealógico de romper, desfazer em pedaços,
fazer ruir abruptamente, conduzir à ruína, em sentido próprio e figurado, físico e
ético...
308
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
da Paideia Grega, da Humanitas Romana512 e da Caritas, da ÉAgãph
[Agápe], da Fil€a [Philia] e do LÒgow [Lógos] da Christianitas
Universalis?...513
O sentido profundo que se liberta do já referido valor sapiencial
do “HONESTO ESTUDO” celebrado pelo nosso Camões (Lusíadas, x,
154), com tudo o que daí decorre para o terreno concreto da práxis
social, leva-me a defender a ideia de que O EXERCÍCIO DEMOCRÁTICO,
LIVRE E RESPONSÁVEL DOS DIREITOS E DOS DEVERES DE CIDADANIA não
pode continuar a confinar-se à precariedade dos esporádicos actos
eleitorais: tem de passar a configurar-se e a organizar-se em NOVAS
FORMAS E MÉTODOS DE CONSTANTE INTERVENÇÃO CÍVICA E CRÍTICO-
CONSTRUTIVA trans-partidária, muito mais exigente, criativa e
inovadora e sempre marcada pela elevação, pela correcção e pelo
sentido da dignidade e da honorabilidade próprias da nossa Grande
Cultura Lusíada, Humanista e Universalista, ético-axiologicamente
orientada para a construção da Pólis Humana Planetária.
E se é verdade que «o Sol quando nasce é para todos», também
as searas que aloirecem, amadurecem e se transformam em pão e em
vida deveriam estar, eucarística e fraternalmente, ao alcance da mesa
de toda a gente, sem exclusão de ninguém: até porque dar de comer a
quem tem fome é, em sentido literal e simbólico, uma das mais belas
obras de misericórdia, ou seja, um dos mais nobres actos do coração
512
Cf. Werner Jaeger: Paideia: los ideales de la cultura griega, México-Buenos Aires,
Fondo de Cultura Económica, 1962; Giorgio Colli: La Sabiduría Griega, Madrid,
Editorial Trotta, 1998; Jacques Brunschwig e Geoffrey Lloyd: El Saber Griego,
Madrid, Ediciones Akal, 2000; Maria Helena da Rocha Pereira: Estudos de História
da Cultura Clássica, I Volume / Cultura Grega, Lisboa, Fundação Calouste
Gulbenkian, 81998; Idem: Hélade – Antologia da Cultura Grega, Coimbra, Instituto
de Estudos Clássicos, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 71998; Idem:
Estudos de História da Cultura Clássica – II volume / Cultura Romana, Lisboa,
Fundação Callouste Gulbenkian, 21990; Idem: Romana – Antologia da Cultura
Latina, Coimbra, Instituto de Estudos Clássicos, Faculdade de Letras da Universidade
de Coimbra, 1986; Frederico Lourenço: Grécia Revisitada: Lisboa, Edições Cotovia,
2004.
Cf. Bento XVI: Carta Encíclica Caritas in Veritate, apud:
http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/encyclicals/documents/hf_ben-
xvi_enc_20090629_caritas-in-veritate_po.html
513
Cf. Bento Bento XVI: Carta Encíclica Deus Caritas Est, apud:
http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/encyclicals/documents/hf_ben-
xvi_enc_20051225_deus-caritas-est_lt.html
309
Fernando Paulo do Carmo Baptista
que pulsa em universal sintonia com os que mais sofrem e mais
precisam...
Mas, para a conscientificação mobilizadora, em direcção a esse
PROJECTO DE TRANSFORMAÇÃO FRATERNA E SOLIDÁRIA, tem todo o
cabimento e sentido DAR, DE NOVO, A VOZ AOS POETAS...
Na verdade, tendo bem presente aquele irrenunciável
“Ensinamento” que deflui da antiquíssima “tradição” que, pelo menos
desde o lendário Homero e do bíblico Salomão dos Provérbios e do
Cântico dos Cânticos, nos dá OS POETAS como OS DIVINOS E
SINGULARES ARQUITECTOS E EDUCADORES (PAIDEUTAS) DA PÓLIS E DA
“HUMANITAS” DOS SERES HUMANOS QUE SOMOS, afigura-se-me
inadiável, sobretudo quando a noitidão do desencanto e do desalento
desaba esmagadoramente por sobre a alma do nosso Povo e do nosso
País, convocar novamente, cá bem dentro de nós, a “VOZ POÉTICO-
DEMÓTICA” do nosso irresignável e inamordaçável épico-lírico
MANUEL ALEGRE, tanto mais que, como ele diz,
«fulgura ainda o amor e nós cantamos / seu legado de primavera
e música», com «a palavra por dentro da guitarra» e «a guitarra por
dentro da palavra» — «guitarras que sois a voz / da voz que há dentro
de mim»!... 514:
«Pergunto ao vento que passa
notícias do meu país
e o vento cala a desgraça
e o vento nada me diz.
(...)
Mas há sempre uma candeia
dentro da própria desgraça
há sempre alguém que semeia
canções no vento que passa.
514
Manuel Alegre: Obra Poética, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1999, poema
“São como deuses” (p. 45); poema “Guitarra” (p. 457); poema “Trova do vento que
passa”, pp. 117-119; poema “Apresentação”, pp. 60-61; poema “Guitarras do meu
País”, pp. 245-246;
310
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
Mesmo na noite mais triste
Em tempo de servidão
Há sempre alguém que resiste
Há sempre alguém que diz não.»
Por outro lado e em coerente sintonia, jamais podemos esquecer
o seu “destino-e-projecto” de Poeta e a sua assumida “missão-e-
compromisso” ético-camoniano:
«Já disse: planto espadas
e transformo destinos.
E para isso basta-me tocar os sinos
Que cada homem tem no coração.»
(...)
«Em trovador me tornei.
Se a voz do povo me chama
eu com ela cantarei.
Em trovador me tornei
Ao dobrar a Taprobana
Destes caminhos que andei.»
Nesta capacidade resistente e alumiante de saber «dizer não»,
nesta enérgica assunção do “dever” poético-profético e solidário da
denúncia agórica e do combate politeico do melodioso TROVADOR
LUSÍADA E ACADÉMICO DA LUSA ATENAS E DE LISBOA — que é
MANUEL ALEGRE —, está implantada e bem viva a “mensagem”
germinal, vertical, frontal e destemida do nosso Imortal Camões,
condensada e cifrada no seu lema-e-destino de «N a mão sempre a
espada e noutra a pena» (Lus.: VII, 79-87 e IX, 27-28 [...] e 93):
«Olhai que há tanto tempo que, cantando
O vosso Tejo e os vossos Lusitanos,
A fortuna me traz peregrinando,
311
Fernando Paulo do Carmo Baptista
Novos trabalhos vendo e novos danos:
Agora o mar, agora experimentando
Os perigos Mavórcios inumanos,
Qual Cánace, que à morte se condena,
N a mão sempre a espada e noutra a pena;
Agora, com pobreza avorrecida,
Por hospícios alheios degradado;
Agora, da esperança já adquirida,
De novo, mais que nunca, derribado;
Agora às costas escapando a vida,
Que dum fio pendia tão delgado
Que não menos milagre foi salvar-se
Que para o Rei Judaico acrescentar-se.
E ainda, Ninfas minhas, não bastava
Que tamanhas misérias me cercassem,
Senão que aqueles, que eu cantando andava
Tal prémio de meus versos me tornassem:
A troco dos descansos que esperava,
Das capelas de louro que me honrassem,
Trabalhos nunca usados me inventaram,
Com que em tão duro estado me deitaram!
Vede, Ninfas, que engenhos de senhores
O vosso Tejo cria valorosos,
Que assim sabem prezar com tais favores,
A quem os faz, cantando, gloriosos!
Que exemplos a futuros escritores,
Para espertar engenhos curiosos,
Para porem as coisas em memória
Que merecerem ter eterna glória!
Pois logo, em tantos males, é forçado
Que só vosso favor me não faleça,
Principalmente aqui, que sou chegado
Onde feitos diversos engrandeça:
Dai-mo vós sós, que eu tenho já jurado
312
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
Que não no empregue em quem o não mereça,
Nem por lisonja louve algum subido,
Sob pena de não ser agradecido.
Nem creiais, Ninfas, não, que a fama desse
A quem ao bem comum e do seu Rei
Antepuser seu próprio interesse,
Imigo da divina e humana Lei.
Nenhum ambicioso, que quisesse
Subir a grandes cargos, cantarei,
Só por poder com torpes exercícios
Usar mais largamente de seus vícios;
Nenhum que use de seu poder bastante
Para servir a seu desejo feio,
E que, por comprazer ao vulgo errante,
Se muda em mais figuras que Proteio.
Nem, Camenas, também cuideis que cante
Quem, com hábito honesto e grave, veio,
Por contentar ao Rei, no ofício novo,
A despir e roubar o pobre povo!
Nem quem acha que é justo e que é direito
Guardar-se a lei do Rei severamente,
E não acha que é justo e bom respeito,
Que se pague o suor da servil gente;
Nem quem sempre, com pouco experto peito,
Razões aprende, e cuida que é prudente,
Para taxar, com mão rapace e escassa,
Os trabalhos alheios que não passa.
Aqueles sós direi, que aventuraram
Por seu Deus, por seu Rei, a amada vida,
Onde, perdendo-a, em fama a dilataram,
Tão bem de suas obras merecida.
Apolo e as Musas que me acompanharam,
Me dobrarão a fúria concedida,
Enquanto eu tomo alento, descansado,
313
Fernando Paulo do Carmo Baptista
Por tornar ao trabalho, mais folgado.»
[...]
«E vê do mundo todo os principais,
Que nenhum no bem público imagina;
Vê neles que não têm amor a mais
Que a si sòmente, e a quem Filáucia ensina.
Vê que esses que frequentam os reais
Paços, por verdadeira e sã doutrina
Vendem adulação, que mal consente
Mondar-se o novo trigo florescente.
Vê que aqueles que devem à pobreza
Amor divino e ao povo caridade,
Amam sòmente mandos e riqueza,
Simulando justiça e integridade.
Da feia tirania e de aspereza
Fazem direito e vã severidade:
Leis em favor do Rei se estabelecem,
As em favor do povo só perecem.
[...]
E ponde na cobiça um freio duro,
E na ambição também, que indignamente
Tomais mil vezes, e no torpe e escuro
Vício da tirania infame e urgente:
Porque essas honras vãs, esse ouro puro,
Verdadeiro valor não dão à gente:
Melhor é merecê-los, sem os ter,
Que possuí-los sem os merecer.»
Importa, pois, na própria perspectiva de uma consciente e
fraterna partilha inter-geracional do “Pão Poético”, questionarmo-nos
sobre o paradoxal “mistério” da finitude e da eternizante transcendência
314
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
da condição dos Poetas — os hölderlinianos fundadores do que
efectivamente permanece515 —, a tensa densidade reflexivo-meditativa,
genesíaco-modelizadora e epifânica que caracteriza o “Agir Poético”
— a o€ siw [Poíesis] —, em sua agónica odisseia pela desvairada
imensidão e fundura dos oceanos da Existência e do Universo,
questionarmo-nos, em suma, sobre a “essência” da Poesia (suas origens
genesíacas, suas configurações textuais e características estéticas, seu
tempo e modo manifestativos...), o seu porquê e para quê, ou seja, a
sua “missão” neste Mundo em que nos foi dado conhecer a Vida e em
que talvez ainda nos vá sendo permitido continuar a existir e a
conviver...
QUE CONCLUSÕES retirar, pois, de tudo isto?...
A meu ver, evocando, agora, o famoso intertexto dostoievskiano-
sartriano, segundo o qual, «se Deus não existisse, tudo seria
permitido»516, a essencial conclusão a ser extraída consubstancia-se na
“lição” de que, sem a reassunção da elevatória, morigeradora e
dignificante referência ao “Divino” — Matriz e Paradigma de toda a
Perfeição... —, aprofundar-se-á, ainda mais, a iniquidade do
mercatório e perverso “vale tudo”, imposta pela “ditadura” do
relativismo ético-axiológico e permitida pela amnésia, pela indiferença
e pelo desprezo (hoje, apreensivamente dominantes...) a que vêm sendo
votados os Grandes Valores Espirituais, Civilizacionais e Culturais...
Na verdade, como lucidamente no-lo adverte Bento XVI
(Encíclica Spe Salvi, 23), «O HOMEM TEM NECESSIDADE DE DEUS,
PORQUE , SE ASSIM NÃO FOR , FICA PRIVADO DE ESPERANÇA »...
Ora, A PRIVAÇÃO DA ESPERANÇA não pode deixar de significar O
OBNUBILANTE E ABSURDO FECHAMENTO DE SER HUMANO AOS
HORIZONTES DO FUTURO, sendo decisivo prevenir, desde já, que este
ficará perigosamente comprometido, sem o suporte generoso,
universal e samaritanamente sóbrio da SOLIDARIEDADE PARTILHADA E
PRATICADA, em primeira instância, NA FAMÍLIA E NO MUNDO DO
TRABALHO E DA DIÁSPORA...
515
«Was bleibet aber, stiften die Dichter!...» (cf. Friedrich Hölderlin: Hinos Tardios
(trad. de Maria Teresa Dias Furtado), Lisboa, Assírio & Alvim, 2000, pp. 122-123).
516
Cf. Jean-Paul Sartre: O Existencialismo é um Humanismo, Lisboa, Editorial
Presença, 1962, tradução de Vergílio Ferreira, pp. 193-194.
315
Fernando Paulo do Carmo Baptista
É assim que, como motivação humanizadoramente energizante
do coração e da alma, me parece pertinentíssima e oportuna, para
coroamento desta reflexão (marcada por uma assumida
intencionalidade antropo-agógica e agórico-interventiva...), a leitura
meditativa do substancioso e conscientificante “ensaio” do Cardeal
Dionigi Tettamanzi: Non c’ è futuro senza solidarietà517.
Essa meditação constituirá um tonificante contributo para a
superação do sentimento de perplexidade e de angústia, decorrente da
sensação de “ausência” de referenciais a todos os níveis, com especial
destaque, como já foi sublinhado, para o “Sistema Axiológico”,
sobretudo em consequência da “Crise da Metafísica”, indiciada, como
já atrás ficou dito, pelo tragicamente famoso grito nietzcheiano
anunciador da “tumulação de Deus” — grito que, em seu simbolismo
profundo, continua a ecoar pelo nosso tempo adentro como um rebate
de orfandade e de luto, como uma deriva sem sentido ou com o sentido
do absurdo e da morte518...
Em tão lancinante como patético grito, viu Heidegger cifrada uma
mensagem de «geral decadência», defluente do despojamento da
Divindade e da consequente subalternização de códigos tão importantes
como aqueles em que se inscrevem os valores (e projectos) do Belo, do
Bem, da Verdade e da Justiça, negado que fora “Aquele e Aquilo” que
era o seu fundamento: “o Divino” 519...
517
Dionigi Tettamanzi: Non c’ è futuro senza solidarietà, Milano, Edizioni San Paolo,
2009 (ensaio de que também há versão portuguesa, pelas prestimosas Edições
Paulinas).
518
Parafraseando J. J. Ferreira de Farias (in «A Teologia como Memória Crítico-
Profética na Era da Globalização», “oração de sapiência” proferida na sessão solene
académica comemorativa do 30.° Aniversário da Faculdade de Teologia, Lisboa, 5 de
Novembro de 1998 (cf. revista “Didaskalia”, xxix (1999), pp. 129-162: Como fim da
metafísica, a Morte de Deus é sinónimo de niilismo, isto é, da impossibilidade de
responder à pergunta “porquê?”, o que implica deixar o humano Dasein ao
abandono historial de um destino marcado pela fatalalidade... (Para outros
aprofundamentos, considerar a importante dissertação doutoral de Thales Azevedo de
Araújo: A Ética sobre a linha — Finitude, técnica e linguagem em Martin Heidegger,
Coimbra, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2014.
519
Cf. Martin Heidegger: Chemins qui ne mènent nulle part, Paris, Gallimard, 1968,
pp. 182, ss...
Considerar, para outros aprofundamentos, a importante dissertação de Thales
Azevedo de Araújo: A Ética sobre a linha — Finitude, técnica e linguagem em Martin
Heidegger, Coimbra, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2014.
316
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
Esta atmosfera de desiludente negrume, se não mesmo de
deceptivo e desolador desconcerto, não deve, todavia, dar lugar ao
pessimismo e ao desalento... Tanto a “lição” da História como as
potencialidades da Civilização e da Cultura nos motivam para o
envolvimento no labor quotidiano que de modo algum pode dispensar
a reflexão questionante, indagativa e meditativa, o estudo diligente e
rigoroso, o empenhamento sério e solidário e, sobretudo, a reassunção
auto-poiésica, com Oliveira Cruz, da dimensão (e missão...) principial
e teleonómica daquele que é «Nosso Fim»520:
Nosso fim
é dar-nos alma
desde o ponto
de partida
dar à alma
o seu sentido
dar sentido
à propria vida!
Com a Vida assim “re-almada”, voltará a cintilar no agora tão
escuro firmamento sideral do Mundo, uma nova “Estrela d’Alva” que,
para além da sua celebração e consagração pela voz inconfundível de
Zeca Afonso como a suavíssima e melodiosa «Canção de Embalar»521
da tradição trovadoresca da Academia de Coimbra, passará a ser
também, e acima de tudo, A CELESTE MENSAGEIRA DA EPIFANIA, NA
TERRA, DE UMA NOVA ESPERANÇA DE PAZ E FRATERNIDADE PARA TODA
A HUMANIDADE!...
520
Cf. A. Oliveira Cruz: Antologia Poética, Lisboa, Instituto Piaget, 2010, p. 305.
521
https://www.youtube.com/watch?v=h8TpRnMU09M&spfreload=10
317
Fernando Paulo do Carmo Baptista
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Coimbra, Instituto de Estudos Clássicos, Faculdade de Letras da Universidade
de Coimbra, 71998.
• PINTO, Fernando Cabral: Idade da Realização — Na História da Vida / Na
Vida da História, Lisboa, Edições Piaget, 2011.
• SARTRE, Jean-Paul: O Existencialismo é um Humanismo, Lisboa, Editorial
Presença, 1962.
• SOARES, Bernardo: Livro do Desassossego, Lisboa, Assírio & Alvim, 1998.
• TAYLOR, Victor E.– WINQUIST, Charles E. (eds.): Enciclopedia del
posmodernismo, Madrid, Editorial Síntesis, 2002.
• TETTAMANZI, Dionigi: Non c’ è futuro senza solidarietà, Milano, Edizioni
San Paolo, 2009.
319
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
8. DE LIBERTATE522...
«A liberdade é o absoluto antrópico do relativo existencial.»
(Fernando Paulo Baptista)
«Es la libertad la que hace al hombre deiforme y santo»
(S. Gregório de Nissa)
«Il futuro del mondo è intimamente connesso
al futuro della libertà nel mondo.»
(Amartya Sen)
522
O presente ensaio é o desenvolvimento aprofundado da comunicação que
apresentei às «5.as Conferências Internacionais de Filosofia e Epistemologia» que
tiveram lugar no Campus Universitário de Viseu do Instituto Piaget, nos dias 23, 24
e 25 de Novembro de 2009, sob o seguinte lema programático: «Da “condição
humana”, a partir de Espinosa, António Damásio, George Steiner e Miguel Torga».
321
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
Na reflexão que, sobre o tema enunciado no título, me propus
levar a cabo, parto do entendimento da díade «A Liberdade e o Sentido»
(enquanto decisiva polaridade histórico-cultural de referência...) para a
perspectivação do processo interpretativo-compreensivo
(hermenêutico) e poiésico-transformacional da “condição humana”,
neste tempo de profunda deriva e perplexidade em que nos é dado
viver...
O alinhamento sintáctico configurador dessa reflexão distribui-
se pelos dois seguintes “andamentos” discursivos:
1.º Da crise do nosso tempo ou do iminente risco de derrocada
(«débâcle») simbólico-civilizacional que impende sobre a nossa
“condição humana”;
2.º A Liberdade e o Sentido — Sentidos da Liberdade.
1.º ANDAMENTO: — DA CRISE DO NOSSO TEMPO
OU DO IMINENTE RISCO DE DERROCADA («DÉBÂCLE»)
SIMBÓLICO-CIVILIZACIONAL QUE IMPENDE
SOBRE A NOSSA “CONDIÇÃO HUMANA”
Sempre que me ponho a pensar sobre o estado geral em que se
encontra o nosso mundo contemporâneo, este «necessário» mundo
onde se deu a epifania ôntico-antrópica da nossa existência e onde nos
é dado viver, um álgido calafrio me percorre ondulatoriamente o corpo
e a alma e um angustiante desassossego se apodera de mim, ao ponderar
(num registo meditativo que, por força das circunstâncias, não pode
deixar de ser sintético e condensado...) os tão preocupantes fenómenos
que marcam a patotologia da profunda crise do nosso tempo523...
523
Retomo, aqui, em versão mais expandida, o núcleo essencial de um «diagnóstico»
feito no estudo intitulado «A “lição” do Professor», incluído na obra por mim
concebida e organizada aquando da homenagem pública prestada ao Prof. Doutor
Vítor Manuel de Aguiar e Silva, em Penalva do Castelo e em Viseu, no dia 11 de
Novembro de 2007: Vítor Aguiar e Silva: a poética cintilância da palavra, da
sabedoria e do exemplo, Viseu, edição do Governo Civil de Viseu, 2007, pp. 79 ss.
323
Fernando Paulo do Carmo Baptista
Assim e pelo menos, da rede de análises como as que vêm sendo
levadas a cabo, entre outros, por Gilles Lipovetsky sobre «a era do
vazio», «o império do efémero» e «o crepúsculo do dever», por George
Steiner sobre «a pós-cultura» e a «barbárie da ignorância», por Ulrich
Beck sobre «a sociedade do risco» e «o risco invisível», por Anthony
Giddens sobre as descontroladas dinâmicas deste globalizado Runway
World, marcado pela vertigem das mutações e pela angústia das
incertezas, sob o comando do poderoso «quadrimotor louco» de que
fala Edgar Morin524 e que co-envolve, em devastadora sinergia, a
ciência, a técnica e a tecnologia, a indústria e o capitalismo selvagem,
ressalta a insofismável conclusão de que se torna urgente e inevitável
uma mais lúcida, mais aguda e mais inquieta tomada de consciência
acerca do preocupante “estado-de-coisas” a que o mundo chegou e que
caracteriza este nosso tempo histórico525...
E esse desiludente e inquietante “estado-se-coisas” não se me
afigura dissociável das nefastas consequências potenciadas por certos
“movimentos pós-modernistas”526 na abertura de “rumos sem rumo”,
524
Cf. Edgar Morin: O Método V. — A Humanidade da Humanidade, Lisboa,
Publicações Europa-América, 2003, p. 236.
525
Cf. José María García Gómez-Hera: Teorías de la Moralidad — Introducción a la
Ética Comparada, Madrid, Editorial Síntesis, 2003, pp. 292 ss; Bruno Forte: A la
Escucha del Otro, Salamanca, Ediciones Sígueme, 2005, pp. 155-173; Martin Buber:
Eclipse de Dios – Estudios sobre las relaciones entre religión y filosofía, Salamanca,
Ediciones Sígueme, 2003, sobretudo o denso ensaio «Religión y pensamiento
moderno», em que se estabelece um fecundo «diálogo» entre as posições de Nietzshe,
Heidegger, Jung, Kant e Sartre em torno do problema de Deus, pp. 91-120; cf. também
o meu Tributo à Madre Língua, Coimbra, Pé de Página Editores, 2003, pp. 169-174, 545 ss e
a bibliografia aí indicada, especificamente a que se reporta aos autores acabados de referir.
526
Para a indispensável dilucidação conceptual implicada na problemática da
«modernidade» e da «pós-modernidade», considerar, entre outros: Nicola Abbagnano
e Giovanni Fornero: Dizionario di Filosofia, Torino, UTET, 1998: entradas
«Moderno» (pp. 723-724), «Modernismo» (pp. 722-723), «Postmoderno» (pp. 841-
842); Mariano Moreno Villa (dir.): Diccionario de Pensamiento Contemporáneo,
Madrid, San Pablo, 1997: entradas «Modernidad» (pp. 796-802) e «Posmodernidad»
(pp. 967-973); Michela Nacci: artigo «Postmoderno», apud: Paolo Rossi (dir.): La
Filosofia — IV Stili e modelli teorici del Novecento, Torino, UTET, 1995, pp. 361-
397; Victor E. Taylor – Charles E. Winquist (eds.): Enciclopedia del Posmodernismo,
Madrid, Editorial Síntesis, 2002; Thomas Docherty (ed.): Postmodernism. A Reader,
New York, Columbia University Press, 1993; Paula E. Geyh: artigo «Postmodernism»
apud Maryanne Cline Horowitz (ed.): New Dictionary of the History of Ideas,
Thomson Gale, New York – London, 2005, vol. 5, pp. 1867-1870; José Antonio Pérez
324
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
suscitada pela reflexão anarquizante e iconoclasta e pelas an-
axiológicas, a-télicas e, assim, desreguladas e descontroladas
energéticas e dinâmicas sociais daí decorrentes...
Caracterizam-se, na verdade, tais movimentos pelo
exacerbamento que deflui dos vectores semiogénicos mais «radicais»
que atravessam as análises e as posições, entre outras, de Lyotard,
Baudrillard, Foucault, Roland Barthes, Derrida, Deleuze, Guattari,
Venturi, Vattimo, Rovatti, Harvey, Fredric Jameson, Paul Feyerabend,
Rorty, Terry Eagleton...
Esses vectores consubstanciam o fulcro genético-propulsor, se
não mesmo fomentador, dos fenómenos de contestação, laceração e
Tapias: Filosofía y Crítica de la Cultura, Madrid, Editorial Trotta, 22000, pp. 260 ss;
Luis Sáez Rubra: Movimientos filosóficos actuales, Madrid, Editorial Trotta, 2001:
«Crisis de la Modernidad y Pensamiento de la Diferencia», pp. 411-490; Mariano
Fazio e Francisco Fernández Labastida: Historia de la Filosofía — IV. Filosofía
Contemporánea, Madrid, Ediciones Palabra, 2004, pp. 383 ss; Jürgen Habermas: O
Discurso Filosófico da Modernidade, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1990;
Anthony Giddens: Le Conseguenze della Modernità, Bologna, Il Mulino, 1994;
Anthony Giddens: Modernidad e identidad del yo — el yo y la sociedad en la época
contemporánea, Barcelona, Ediciones Península, 1995; Miguel Baptista Pereira:
Modernidade e Tempo, Coimbra, Livraria Minerva, 1990; Miguel Baptista Pereira:
Modernidade e Secularização, Coimbra, Almedina, 1990; Alain Touraine: Crítica da
Modernidade, Lisboa, Edições Piaget, 1994; Fernando Cabral Pinto: A Formação
Humana no Projecto da Modernidade, Lisboa, Edições Piaget, 1996; Philippe
Engelhard: O Homem Mundial – Poderão as Sociedades Humanas Sobreviver?,
Lisboa, Edições Piaget, 1998; Remo Ceserani: Raccontare il postmoderno, Torino,
Bollati Boringhieri, 1997; Michele Pellerey: L’agire educativo. La pratica
pedagogica tra modernità e postmodernità, Roma, LAS, 1998; Fredric Jameson:
Teoría de la postmodernidad, Madrid, Editorial Trotta, 21998; Fredric Jameson: Las
semillas del tiempo, Madrid, Editorial Trotta, 2000; Hans-Georg Gadamer:
Hermenéutica de la Modernidad – Conversaciones con Silvio Vietta, Madrid,
Editorial Trotta, 2004; Rosa María Rodríguez Magda: Transmodernidad, Barcelona,
Anthropos Editorial, 2004; Diego Bermejo: Postmodernidad: pluralidad y
transversalidad, Barcelona, Anthropos Editorial, 2005 (importante e clarificador
ensaio, muito centrado sobre o pensamento e a obra de Wolfgang Welsch em torno
desta problemática).
Para um mais aprofundado entendimento dos referidos «modos» da razão
(instrumental, funcional) e suas «perversões», considerar, entre outras, as
esclarecedoras e bem elaboradas «introduções» de Juan José Sánchez a Max
Horkheimer: Crítica de la Razón Instrumental, Madrid, Editorial Trotta, 2002, pp. 9-
38 e a Max Horkheimer e Theodor Adorno: Dialéctica de la Ilustración —
Fragmentos Filosóficos, Madrid, Editorial Trotta, 42001, pp. 9-46.
325
Fernando Paulo do Carmo Baptista
dissolução, não raramente decisivos (importa sublinhá-lo!) sob o ponto
de vista das acelerações e reacções enzimático-catalíticas
desencadeadas nos processos e na dialéctica da Cultura...
Trata-se, em todo o caso, de movimentos significativamente
«distantes» e distintos (embora sempre nela implicados...) daquela
«pós-modernidade» de intencionalidade crítico-construtiva ou crítico-
poiésica (também dita «segunda modernidade», «modernidade
reflexiva», «modernidade líquida», «alta modernidade», «modernidade
pós-moderna»..., configurável nas inelidíveis e substantes marcas de
complexidade, multiplicidade, pluralidade, polilogia, poliglotia,
intertextualidade, intercomplementaridade e transversalidade) que é
conformada pelas linhas de força do pensamento iluminante e
morfogénico da sustentabilidade radicada, multipolar, reticular,
evolutora e transformadora («aprofunde-se crítico-perfectivamente,
mas não se “proscreva”, o legado fundamental da grande
modernidade»!...) e que decorre de contributos tão diferenciados como,
por exemplo, os de Karl Popper, Thomas Kuhn, Zigmund Bauman,
Jürgen Habermas, Karl Otto-Apel, Hans-Georg Gadamer, Anthony
Giddens, Ulrich Beck, Wolfgang Welsch...
Esta «pós-modernidade» (crítica, poiésica e polifónica e lúcida
e motivadamente metamorfósica, comunicante, imbricante, includente,
transitiva e superadora) que, por um lado, reconhece, na
“modernidade”, «o ensaio do plural» e que, pelo outro, conquista
definitivamente «o transversal» (Welsch), não é, em sentido estrito,
nem pós-moderna nem anti-moderna nem trans-moderna, não está fora
da modernidade, nem a rejeita in toto: ela é modernidade auto-
reflexiva, transformada e transformante; ela é, na paradoxal expressão
de Wolfgang Welsch, «modernidade pós-moderna», ou seja, o modo
criativo, inovador e actual de realizar os conteúdos mais nobres do
«projecto da modernidade»527, denunciando assim, e bem, as
anormalidades do totalitarismo unidimensional e monofónico da
«Razão», entendida como a mathesis universalis ou como a instância
suprema e última da orientação do ser humano em seu conhecer e em
527
Cf. Diego Bermejo: Posmodernidad: pluralidad y transversalidad, Madrid,
Anthropos Editorial, 2005, pp. 143 ss.
326
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
seu agir existenciais528, pelo que constitui um inderrogável libelo
acusatório das manipulações e desvios operados, sobretudo, pela «razão
instrumental» e pela «razão funcional», calculatória,
tecnoburocratizante e administrativístico-gestionária...
Pela «razão instrumental», na medida em que ela, no
pressuposto de que conhecer é dominar, controlar e explorar a
natureza e o homem, desemboca avassaladoramente numa «lógica de
domínio» («ídolo a que tudo se sacrifica»...); pela «razão funcional»,
porquanto esta tem as suas raízes no pensamento «técnico-pragmático»,
«estruturalístico», «parametrizante», «orçamentante», heteronómico e
unidireccionante (gerador de relações de implicação e de subordinação
lógico-necessitária, orgânico-institucional, actancial e «mecânica») e a
sua finalidade, na acção operativo-produtiva, eficaz e lucrativa...
Mas, tanto de um lado como do outro, ao operar-se a «perversa»
metamorfose hegemónica e manipuladora do poder-capacidade em
poder-dominação, tudo acaba por convergir no «esquecimento» ou
obliteração do que há de mais essencial e profundo quer no homem quer
na natureza, chegando-se mesmo ao ponto de «a máquina prescindir do
piloto» (ou de «o violino dispensar o violinista») — teses da «morte do
homem», da «morte do sujeito», da «morte do autor»... —, com a
consequente promoção daquela «ignorância programada» (atrofiadora
da faculdade de auto-reflexão crítica, do desenvolvimento da fundura
paidêutico-cultural, da imaginação criadora e do sentido da autonomia,
da liberdade e da responsabilidade...) que vem atravessando,
burocrática e economicisticamente, os sistemas educativos, com a
crescente desqualificação humanística, filosófica, literária e artística e
a homóloga, acrítica e instrumentificante tecnologização
desumanizadora do processo de ensino e aprendizagem e da acção
educativa e formativa, a todos os níveis do desenvolvimento e da
organização curricular.
É assim que, no certeiro diagnóstico de Vítor Aguiar e Silva529,
«os tempos da pós-modernidade são tempos inóspitos para as
528
Cf. Antonio Staglianò: artigo «Ragione», apud Giuseppe Tanzella-Nitti e Alberto
Strumia (cur.): Dizionario Interdisciplinare di Scienza e Fede, Roma, Urbaniana
University Press, Città Nuova Editrice, 2002, vol. 2, pp. 1167-1181.
529
Cf. Vítor Aguiar e Silva no seu estelar e acutilante ensaio: «As Humanidades e a
Cultura Pós-Moderna», separata do livro de ACTAS do Colóquio de Estudos Clássicos
A Antiguidade Clássica e nós: Herança e identidade cultural, Braga, Centro de
327
Fernando Paulo do Carmo Baptista
humanidades, saberes enraizados em seculares tradições linguísticas,
culturais, literárias, filosóficas e historiográficas — enraizados em
primeiro lugar na matriz primordial da Antiguidade Clássica — e
fundados na escrita e na leitura de textos (...), ou seja, fundados na
preeminência da palavra, do discurso verbal».530
Numa linha de implicação etio-axiológica, portanto, com a
acção potenciada por aqueles movimentos marcados, em suma e como
ficou dito, pela iconoclastia desenfreada, vertiginosa e dissolvente,
monádica, nomádica, fracturante, descentrante e caotizante e pelo
egocentrismo narcisista531, dogmático, intolerante e exclusor, tem lugar
a desqualificação indiscriminada das «grandes narrativas» (filosófico-
doutrinais, ideológico-políticas, teórico-científicas, histórico-culturais,
artístico-literárias...) e o ataque aos princípios, fundamentos,
finalidades e valores, entre eles, «os valores supremos» (Jérôme
Bindé532) que as conformavam e legitimavam. Daí, o questionante sinal
de alarme dado, no dealbar deste novo século e milénio, pela UNESCO,
no contexto dos seus já famosos «Debates do Século XXI»: Para onde
vão os valores?533...
Estudos Humanísticos da Universidade do Minho, 2006, p. 622; Idem: As
Humanidades, Os Estudos Culturais, O Ensino da Literatura e a Política da Língua
Portuguesa, Coimbra, Almedina, 2010, pp. 75-92. No mesmo e fundamental sentido,
ver também: Martha C. Nussbaum: Cultivating Humanity — A Classical Defense of
Reform in Liberal Education, Cambridge, Massachusetts / London, England, 72003;
Idem: Not for Profit — Why Democracy Needs the Humanities, Princeton, Princeton
University Press, 2010.
530
Bem consciente das «insuficiências» e das «limitações» deste meu abreviado
“apontamento” suscitado pelas posturas «pós-modernistas» mais radicais e tendo em
vista um mais aprofundado entendimento dos já referidos «modos» da razão (os
modos instrumental e funcional) e suas «perversões», bem como a indispensável
dilucidação conceptual implicada na problemática da «modernidade» e da «pós-
modernidade, convoco, no fim deste meu ensaio, as referências bibliográficas
específicas.
531
Cf. Gilles Lipovetsky: A era do vazio [trad. de Miguel Serras Pereira e Ana Luísa Faria],
Lisboa, Relógio d’Água, 1989, pp. 11 ss e Fernando Paulo Baptista: Tributo à Madre Língua...,
op. cit., pp. 550-551.
532
Jérôme Bindé (dir.): Para onde vão os valores?, Lisboa, Edições Piaget, 2006, p.
21.
533
Este importante volume, coordenado por Jérôme Bindé, inclui intervenções de um
vasto e diversificado elenco de cinquenta intelectuais de reconhecida craveira a nível
mundial, entre os quais, figuras tão conhecidas como: Edgar Morin, Nadine Gordimer
(Nobel da Literatura em 1991), Julia Kristeva, Jacques Derrida, Jean Baudrillard,
328
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
Ao mesmo tempo e por outro lado, em sinérgica interacção com
a apologia acrítica e desbragada do consumismo hedonista e em
consonância com a industrialização da cultura e da arte e a
objectificação, mercatorização e idolização das suas ficções, criações e
contrafacções, verdadeiros “simulacros” (na famosa e insubstancial
metáfora de Baudrillard534), amnesicamente desvinculados das
placentas genealógicas e genológicas respectivas e dos processos
histórico-diacrónicos desenvolvidos a partir das matrizes da tradição e
dos paradigmas e modelos clássicos...), o marketing mitificador e
hiperbolizador dos poderes e da eficácia da revolução científico-
tecnológica, electrónica e cibernáutica opera, massivamente, o quase
silenciamento, anestesia ou cancelamento do “sistema de valores”: «o
dia da técnica é a noite do mundo», no crepuscular agoiro de Martin
Heidegger535...
Tal situação não deixa de estar, assim, em simbólica sintonia
com a mensagem de fundo de «o homem sem conteúdo» das análises
estético-semióticas de Giorgio Agamben536 em torno da problemática
do «fim da arte», ou com nucleares aspectos de um mundo envelhecido
Jacques Delors, Xuan Thuan Trinh, Claude Hagège, Michel Maffesoli, Paul Ricœur,
Michel Serres, Gianni Vattimo, Wolfgang Welsch, Edward Wilson...
534
Cf. Jean Baudrillard: Simulacre et simulation, Paris, Galilée, 1981. Já no seu
L’Échange symbolique et la mort (Paris, Gallimard, 1976), Jean Baudrillard sustenta
a tese de que as sociedades ocidentais sofreram uma «precessão», de tal modo que «o
simulacro» (termo afim do ídolo bíblico) passou a ser «a verdade ocultadora da
facticidade». O conceito físico (cinético-óptico) de «precessão» traduz o efeito
observado num corpo que executa um movimento de rotação em torno de um eixo,
quando se lhe aplica um binário, de tal modo que tende a modificar a direcção do eixo
de rotação. Segundo Baudrillard, a precessão toma a forma de «arranjo de
simulacros», sendo que, vivemos numa época em que «a cópia passou a substituir o
original».
Ver, com a devida reserva crítica:
http://fr.wikipedia.org/wiki/Jean_Baudrillard#Simulacres_et_simulation.
535
Cf. Martin Heidegger: Holzwege, aqui citado na versão francesa de Wolfgang
Brokmeier: Chemins qui mènent nulle part, Paris, Gallimard, 1968 (ensaio «Pourquoi
des poètes?»), p. 241: «L’essence de la tecnique ne vient que lentement au jour. Et ce
jour est la nuit du monde, revue et corrigée en jour technique».
536
Cf. Giorgio Agamben: El hombre sin contenido, Barcelona, Ediciones Altera,
1998: «Según el principio que afirma que tan solo en la casa en llamas es posible ver
por primera vez el problema arquitectónico fundamental, así el arte, una vez que ha
llegado al punto extremo de su destino, permite que pueda verse su proyecto original».
329
Fernando Paulo do Carmo Baptista
nas suas formas de organização e profundamente marcado pelo declínio
dos “cânones axiológicos” e por um sentido de irreversível e
generalizada decadência, tal como se revela no romance «O homem
sem qualidades», de Robert Musil537, a partir, desde logo, das sugestões
que irrompem da própria literalidade do título: Der Mann ohne
Eigenschaften538...
Dentro dos parâmetros que configuram aquele desqualificante
“padrão de conduta” têm vindo a ocupar, em ritmo crescente, um lugar
de preeminência, ao nível do Sistema Educativo e Formativo e ao nível
537
Cf. Robert Musil: O homem sem qualidades, I e II (trad. de João Barrento), Lisboa,
Publicações Dom Quixote, 2008. Sobre o significado deste famoso romance, e no que
mais directamente diz respeito à problemática da crise de que nos estamos ocupando,
considerar o seguinte apontamento: O romance O homem sem qualidades remete-nos,
logo a partir do título, para a situação homóloga (mas fragmentária) de, no plano
abstracto, haver qualidades sem homem, corroborando, assim, o pressuposto de que a
falta de qualidades significa uma irrecuperável perda de substância na forma da
perda do Eu. Por outro lado, para além de outras vastíssimas e complexas implicações,
esta longa narrativa configura também, a nível ficcional e na perspectiva de Michael
Hanke (aqui seguido de perto), uma tentativa de resolver o problema da realidade a
partir do ponto de vista da consciência moderna. Na verdade, no quadro dos seus
desígnios narrativos, inscreve-se como um dos objectivos nucleares a crítica a
importantes aspectos da sociedade em geral, razão pela qual a «Kakânia» e a sua
população funcionam como paradigmas do mundo moderno e como símbolos de uma
problemática universal de que Viena é apenas uma sinédoque simbólica do que é a
vida numa cidade grande e O homem sem qualidades não deixa de ser, em grande
medida, uma narrativa educativo-formativa — um BildungsRoman — em que se
focaliza o modo de constituição urbana da personalidade individual. É assim que
Thomas Rentsch estabelece uma relação directa entre a categoria central da falta de
qualidades e a temática principal da vida intelectual da modernidade vienense na
viragem do século, ou seja, a temática da dissolução, da erosão e do colapso de um
mundo envelhecido com suas formas de organização. Essa dissolução da ordem
antiga, circunscrita com os termos «decadência dos valores», «vazio de valores» e
«perda do sistema de valores centrais» cria uma consciência própria mediada pela
«problemática do indivíduo» numa sociedade em decadência. Essa crise (e mudança)
da consciência europeia influencia os fenómenos da experiência do tempo e do
espaço, da constituição da realidade e da auto-imagem. Trata-se de uma mudança que,
desde a Idade Média, não tinha alcançado dimensões tão grandes e que se apoderou
tanto da linguagem, quanto dos conteúdos e das formas da literatura. (cf. Michael
Hanke: «A qualidade de O homem sem qualidades», in revista ALCEU, Jan./Jun.
2004, vol. 4, nº. 8, pp. 128-140).
538
Der Mann ohne Eigenschaften: O homem sem qualidades (eigenschaft =
qualidade, propriedade, característica).
330
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
da chamada “escola paralela” (com destaque para o papel da TV e da
Internet), a depreciação do sagrado e do divino, a espectaculização e
banalização mediática da guerra e da morte, a devassa pública das
dimensões da intimidade e da privacidade, a “pornográfica” depravação
do erotismo e da sexualidade, a despudorada promoção da palavra
rasca, rasteira e obscena que degrada e envilece, com o simétrico e
depreciador rebaixamento da palavra elaborada, cuidada e culta que
eleva e nobilita.
Assim, ao nível da influentíssima “comunicação televisiva”, em
vez da linguagem de qualidade que se aprende nos textos intemporais
dos Grandes Clássicos, dos Grandes Poetas, dos Grandes Filósofos e
dos Grandes Sábios e Humanistas, faz-se gala da linguagem descuidada
e despadronizada de certos programas televisivos, onde pontifica o
recurso aos estereótipos e aos chavões, de braço dado com a
trivialidade, a futilidade, a bisbilhotice, coscuvilhice ou fofoquice:
«Vivimos en una cultura (diz, com sombrio desencanto, George
Steiner539, lúcido protagonista da palavra sábia, da Filologia e da
Hermêutica da Cultura e da Arte...) que es, de manera cresciente, una
gruta eólica del chismorreo»540...
Mas como se isso não bastasse, usa-se e abusa-se, sem qualquer
sentimento de vergonha ou de decoro, dos registos expressionais da
linguagem de caserna ou de sarjeta, com o recurso ao insulto, ao
impropério e à asneira, a configurar um autêntico e cavernoso “antro da
prostituição linguística”...
Ressalta, na verdade, da patologia de tais práticas (como ainda
bem recentemente o denunciei em público) que a nossa língua (à
semelhança aliás do que, a outro nível, se passa com as mulheres, as
crianças e os velhinhos...) vem sendo vítima das mais violentas
agressões semântico-lexicais (vocabulário paupérrimo, inadequado,
impróprio, descaracterizador e inexpressivo, ou utilizado sem critério,
sem bases cognitivas ou culturais e sem consciência lexicológica e
pragmática...), de comatosos traumatismos ou oncológicas dismorfoses
ao nível da construção sintáctica (tão desalicerçada, tão distorcida, tão
desarticulada, tão desconexa e tão desfigurada que nem mesmo certas
539
George Steiner: Lenguaje y silencio, Barcelona, Editorial Gedisa, 2003, p. 72.
540
Expressiva metáfora esta, a de George Steiner: «gruta eólica da bisbilhotice
[coscuvilhice ou fofoquice]»!...
331
Fernando Paulo do Carmo Baptista
edificações da construção civil clandestinas (e, portanto, à margem de
qualquer controlo regulador...), de delirante anarquia ortográfica541 e,
não menos, de um despudor estilístico-retórico e expressional, a raiar o
grotesco se não mesmo o patético e o macabro (de tão grosseiro e tão
falho de higiene mental e atitudinal, desprezadas que são regras tão
basilares da “sanidade” textual como as clássicas bienséances, segundo
as quais, «liberdade de expressão» jamais se pode confundir com
libertinagem, deselegância e falta de asseio, de respeito e de decoro!...
É assim que, atingida a memória cultural e ferida, com ela, a
alma profunda da Cidade (se é que ela ainda tem alma...), tem vindo a
ter lugar (sob o influxo de uma espécie de “utopia negra”542 e no
contexto de uma práxis em que o niilismo se configura e afirma cada
vez mais como «horizonte e processo histórico»...) uma exponencial e
generalizada degradação, patologicamente complexa, que afecta
transversalmente as comunidades humanas, com fenómenos como os
do analfabetismo e da iliteracia, da fome e da exclusão social, das
pandemias incontroladas, de par com os fundamentalismos, o ódio e a
violência cega (na forma de guerras locais e regionais, de misopedia,
pedofilia, plexiginia543, terrorismo, genocídio, homicídio [que chega,
541
Potenciada pelas desregulações, dissonâncias e controvérsias que vêm marcando o
processo de lançamento e ratificação do polémico (porque incoerente e mal
fundamentado do ponto de vista filológico-genealógico, científico-linguístico e
pedagógico-didáctico...) e paradoxalmente fonocêntrico acordo «ortográfico»...
542
Sobre os conceitos de «utopia», «distopia» («utopia branca», «utopia negra»)..., cf.
o importante estudo de María Nieves Alonso (coord.) et alii: «“Donde nadie ha estado
todavia”: Utopía, Retórica, Esperanza», in revista Atenea, n.º 491, I Sem. de 2005,
pp. 29-56; cf. também: Christian Retamal: «La utopia después del nihilismo», in
revista Estudios Públicos, Universidade de Santiago de Chile, n.º 71/1998.
543
Neologismo por mim criado, com que pretendo significar «a agressão, o
espancamento causador de ferimentos à mulher»: do grego pl jiw, evw [pleksis, -eos
= pancada, golpe, ferimento, espancamento] + gunÆ, -aikÒw [gyne, -aikos = mulher];
de notar que o nome pl jiw [pleksis] é da mesma família do verbo plÆssv [plesso],
morfo-semanticamente próximo do francês blesser (pless > bless = ferir), e apresenta
a mesma raiz pleg- / plag- do verbo latino plango (presente formado com infixação
nasal: pla(n)g-o = ferir, golpear) e do nome plaga, de onde provêm os lexemas
portugueses chaga e praga [= maldição, imprecação, palavrão que fere] bem como os
espanhóis llaga e plaga, o italiano piaga, o inglês plague, o alemão plage... O bater
golpeante, o espancar causador de ferimento (em francês: blessure) produz chagas
físicas e/ou morais ou psicológicas... Homologamente, a recorrência de casos de
«agressão ou espancamento violento» ao homem «ândrico», não deixa de justificar
332
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
como acabámos de saber, ao cúmulo da barbárie sanguinária de se
matar com o exclusivo intuito de extrair gordura destinada à indústria
de cosméticos!...), a corrupção, o narcotráfego, o comércio de armas, a
redução drástica do mercado de trabalho, a deslocalização arbitrária das
empresas, a poluição, os incêndios criminosos e a desflorestação
indiscriminada, arrastando a nossa Terra-Mãe — Deméter — para os
abismos do não retorno, com a sua “alma biosférica” exposta aos mais
altos riscos544...
Num tal contexto, a sociedade globalmente considerada e, em
seu cerne vital, a cidade educativa (co-envolvendo a família e a escola
— a institucional e a paralela —, com os respectivos entornos
sociais...), a cidade jurídica, a cidade política e a cidade mediática,
com a perda dos sentidos angulares, axiais ou cardeais da vida e na
ausência de uma busca forte de um fundamento e de um novo rumo
para ela, parecem não se dar conta das graves patologias que as afectam,
parecem não querer ou não saber entender e perspectivar que a sua
terapia e a sua cura muito dificilmente serão possíveis fora da acção
formativa e replasmante da ciência pura, das belas artes, das belas letras
e das humanidades545, estas últimas, hoje praticamente silenciadas e
marginalizadas, porque quase desterradas dos planos curriculares do
também a criação de um neologismo isomórfico — plexiandria — (< igualmente do
grego pl jiw, evw [pleksis, -eos = pancada, golpe, ferimento, espancamento] + énÆr,
éndrÒw [aner, andros = homem, por oposição a mulher, ou seja, o homem varonil e
viril, o homem considerado em sua masculinidade: em latim: vir, viri]). Cabe
recordar, neste contexto, que do grego énÆr, éndrÒw provém o nome próprio André,
além de um vasto conjunto de outros lexemas de uso mais erudito e/ou mais
especializado: androceu, androcéfalo, androfagia, andróforo, androgenia,
androgénio, androginia, andrógino, andróide, androlepsia, andrologia, andronímia,
andrónimo, androsterona, sinandria...
544
Cf. Fernando Paulo Baptista: Tributo à Madre Língua..., op. cit., p. 548.
545
Sobre o valor do Humanismo e das Humanidades, face ao actual «olvido y
descenso del hombre», considerar as pertinentes e oportunas reflexões avançadas em
Rafael Alvira e Kurt Sprang (eds.): Humanidades para el siglo XXI, Pamplona,
Ediciones Universidad de Navarra, S.A., 2006; considerar, também, o empenhado
«combate» de Francisco Rodríguez Adrados: Humanidades y Enseñanza – Una Larga
Lucha, Madrid, Santillana (Taurus), 2002 e, ainda, as alumiantes e já citadas obras de
Martha C. Nussbaum: Cultivating Humanity — A Classical Defense of Reform in
Liberal Education, Cambridge, Massachusetts, London, England, Harvard University
Press, 1997 e Not For Profit — Why Democracy Needs the Humanities, Princeton and
Oxford, Princeton University Press, 2010.
333
Fernando Paulo do Carmo Baptista
Sistema Educativo e Formativo, desde a escola básica e secundária até
à universidade, inclusive, validando inteiramente o diagnóstico de
George Steiner546, assim lapidarmente expresso: Nuestra escolaridad,
hoy, es amnesia planificada...
Desse modo, a «geórgica da alma» que (na densa e telúrica
metáfora «clássica» de Francis Bacon547...) é a cultura, entendida em
sua máxima fundura e amplitude antropológica, corre o risco de ver
drasticamente reduzido o seu estratégico campo de acção e de
influência e o papel criador e arquitector de seus mais diligentes e
qualificados «lavradores» (artistas em geral, escritores — poetas,
dramaturgos, ficcionistas... —, pensadores, ensaístas, cientistas,
investigadores, professores...), com o consequente e avassalador
avanço da incultura e da barbárie548... Isso, a augurar, se não mesmo a
546
Cf. George Steiner / Cécile Ladjali: Elogio de la transmisión. Maestro y alumno,
Madrid, Ediciones Siruela, 2005, p. 79.
547
Cf. Francis Bacon: De dignitate et augmentis scientiae, VII, 1; metáfora inspirada
em Cícero e em Vergílio e na esteira do próprio Hesíodo: cf. Maria Helena da Rocha
Pereira: Estudos de História da Cultura Clássica – II vol. Cultura Romana, Lisboa,
Fundação Callouste Gulbenkian, 21990, pp. 417-430; Romana – Antologia da Cultura
Latina, Coimbra, Instituto de Estudos Clássicos, Faculdade de Letras da Universidade
de Coimbra, 1986, pp. 50-51, 54-55, 59, 66-68 (para Cícero) e 128-130 (para
Vergílio); Hélade – Antologia da Cultura Grega, Coimbra, Instituto de Estudos
Clássicos, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 71998, pp. 97-98 (para
Hesíodo); cf. também (para Hesíodo...) Frederico Lourenço: Grécia Revisitada:
Lisboa, Edições Cotovia, 2004, pp. 31-35: ensaio «Hesíodo: A Enxada das Musas».
548
Cf. George Steiner: No Castelo do Barba Azul. Algumas Notas para a Redefinição da
Cultura [trad. port. de Miguel Serras Pereira], Lisboa, Relógio d’Água, 1992, pp. 14-17, 112-
130, 128-141, sobretudo quando se refere ao «enfraquecimento de uma efectiva cultura
literária», às «transformações de uma cultura triunfante numa pós ou subcultura», no
generalizado «recuo da palavra» e homólogo «declínio dos ideais tradicionais da linguagem
instruída» de par com o crescente fenómeno, entre os jovens, da “pop-musicalização” da cultura
e quando, pelo outro, evoca nostalgicamente «o latim nas salas de aula e a subtileza apostólica
dos anfiteatros universitários; as livrarias autênticas e os debates parlamentares inteligíveis»,
sublinhando que «os homens de cultura ‘sabem’, num sentido peculiar, e simbolicamente
definido da palavra, que houve um tempo em que uma produção universitária e literária séria,
economicamente acessível, era sinónimo da descoberta de um público extenso e dotado de
competência crítica». Cf. também, no mesmo e fundamental sentido, o precioso livrinho de
bolso, ainda de George Steiner: La barbarie de la ignorancia, Madrid, Taller de Mario
Muchnik, 2000, pp. 65-66, quando, ao «sudor del alma» das aprendizagens estruturantes, se
contrapõe a triste verificação de que «en este planeta el noventa y nueve por ciento de los seres
humanos prefieren (...) la televisión más idiota, la lotería, el Tour de Francia, el fútbol, el bingo
antes que Esquilo o Platón»; sobre a importância da «cultura» no contexto da crise do
334
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
confirmar, o trágico desencanto de George Steiner, quando, desiludido,
confessa549: «En toda mi obra, he tratado de poner en evidencia el
terrible fracaso de la cultura humanista frente al terror de nuestro
siglo, que no sólo no impedió la barbarie, sino que muchas veces
acudió en su ayuda».
Face, pois, ao sombrio panorama e ao desequilibrado
dinamismo gerado pelo fascínio do poder e da mítica eficácia dos usos
e aplicações (tantas vezes «selvagens»...) da Ciência, da Técnica e da
Tecnologia, sob o comando parasitário dos altos interesses de natureza
meramente economicista e financista, mas com directa repercussão
destrutiva e desorganizadora nos ecossistemas da natureza e nos
sistemas e diassistemas sociais e culturais, a pilotagem estratégica da
vida em geral e da vida em sociedade em particular tem de voltar a
fazer-se, a meu ver, sob o signo de Homero, Educador da Grécia e
Educador do Mundo, e ao som da lira dos Poetas, o mesmo é dizer, sob
o energizante influxo da Poesia, essa fabulosa «música do
pensamento», na expressão densamente sugestiva de George
Steiner550...
Na verdade — e tal como já nas «IV.as Conferências
Internacionais de Epistemologia e Filosofia551 tive a oportunidade de
poder afirmar... —, «sempre que a cultura, a sensibilidade, a
imaginação e a criação poéticas (l.s.) estiveram adormecidas ou
anestesiadas, andaram arredias ou foram escorraçadas da Cidade, as
superadoras saídas para os fundamentais problemas do homem e da
humanidade (numa palavra, para a nossa condição humana...) ficaram
irremediavelmente comprometidas»...
nosso tempo, ver Thomas De Koninck: A Nova Ignorância e o Problema da Cultura,
Lisboa, Edições 70, 2003, cap. III («A cultura do espírito»), pp. 69-96.
549
Cf. George Steiner / Cécile Ladjali: Elogio de la transmisión. Maestro y alumno,
op. cit., p. 111.
550
Cf. George Steiner: La idea de Europa, Madrid, Ediciones Siruela, 2005, p. 53.
551
Conferências subordinadas ao tema «SÉCULO XXI — O DESAFIO SOCRÁTICO DE
COMO DEVIR HUMANO, UNO E MÚLTIPLOS...» (em referência ao legado antropológico,
cultural, poético-literário e filosófico de Sócrates, Octavio Paz, Michel Serres e José
Saramago), conferências de cuja concepção e organização fui incumbido pelo
Presidente do Instituto Piaget, Prof. António Oliveira Cruz, e que tiveram lugar no
Campus Universitário do Instituto Piaget, em Viseu, nos dias 9, 10, 11 e 12 de
Dezembro de 2005. Cf. Fernando Paulo Baptista: Polifonia, Poiese & Antropoiese,
Lisboa, Edições Piaget, 2006, p. 32.
335
Fernando Paulo do Carmo Baptista
Por isso é que, tal como nas problemáticas da superação dos
saberes instituídos já obsoletos e caducos (ou mesmo daqueles saberes
que, tantas vezes ilusoriamente, se consideram ainda válidos ou
inquestionáveis...) bem como das verdades dogmatizadas e já
cristalizadas se não pode dispensar a postura bachelardiana da
«filosofia do não»552 no alternativo desencadear das dinâmicas da
criação e da inovação científica, conducentes à formulação de novos
problemas, de novos «quebra-cabeças»» e de novas conjecturas e à
instituição de novos saberes, de novas verdades consistentemente
testadas e validadas e de novos paradigmas, assim também, na análise
e ponderação das patologias do social, se torna imperioso o assumir,
com Adorno553, da atitude dialéctica da negação, seja através da
«astúcia»554, da «ironia», da resistência, da recusa e da indignação, seja
através da denúncia agórica e frontal, por forma a daí poder decorrer o
revitalizador surgimento e desenvolvimento de uma Física Quálica do
Humano, de uma Antropo-paideia ou, melhor ainda, de uma Antropo-
agógica qualitativa que potencie uma nova Ars Gubernatoria ou Arte
da Timonagem (em grego: kubernhtikÆ t°xnh [e kybernetike
techne]), ao serviço dessa náutica maior que é a condução ético-política
e poiética dos destinos da Terra e das comunidades que a povoam e,
assim, de um PROJECTO DE CIDADANIA LOCAL, REGIONAL, NACIONAL,
EUROPEIA E PLANETÁRIA, a ser concebido, planeado e realizado
orquestralmente por todos, segundo os cânones de uma nova
«gramática»555 permanentemente vivificada pela criatividade, pela
inventiva, pela inovação e pela articulação pléctica, mestiçada e de
sentido holístico dos diferentes saberes, experiências e «visões do
mundo». Projecto, em suma, respeitador das singularidades
idiossincrásicas («ideolectais») de pessoas e de comunidades e
552
Cf. Gaston Bachelard: La philosophie du non, Paris, PUF, 2002.
553
Cf. Marta Tafalla: Theodor W. Adorno – Una filosofía de la memoria, Barcelona,
Herder, 2003, pp. 67 ss; José António Zamora: Theodor W. Adorno – Pensar contra
la barbarie, Madrid, Editorial Trotta, 2004, pp. 11-19, 21 ss.
554
Cf. Luis Sáez Rueda: Movimientos filosóficos actuales, Madrid, Editorial Trotta,
2001, p. 361.
555
Cf. George Steiner: Gramáticas da Criação, Lisboa, Relógio d’Água, 2002, p. 16:
«Por gramática, entendo aqui a organização articulada da percepção, da reflexão e
da experiência, a estrutura nervosa da consciência quando esta comunica consigo
própria e com os outros».
336
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
promotor da inclusão da diversidade étnica e da integração
intercultural, da prática paritária e polifónica do pluralismo, mas de um
pluralismo que seja a garantia de uma afirmação pessoal saudável,
criteriosa, compreensiva e tolerante, sempre balizada pelo sagrado
reconhecimento de que é «o outro» (e a sua «diferença»...) o
intranscendível referencial da dignidade de nós próprios, e não, daquele
«pluralismo radical» que constitui o núcleo definidor da pós-
modernidade556 e que funciona como arbitrário pretexto para os
exacerbamentos e absolutismos subjectivistas, impeditivos ou
bloqueadores de qualquer hipótese de diálogo construtivo... Na
verdade, os radicalismos subjectivistas, os relativismos e os criticismos
sem referências axiológicas ético-estéticas, sem bases filosófico-
epistémicas, sem âncoras, sem remos, sem velas, sem bússolas e sem
rumo, conjuntamente com o niilismo, conduzem à corrosão não só do
sentido genuíno da nossa «condição humana», pessoal e comunitária,
mas também do sentido que subjaz e que preside às grandes criações e
construções da História e da Cultura (a arte, a poesia [a literatura], a
religião, a política, o direito, a filosofia, a ciência, a técnica, a
tecnologia...) e dos valores polares que as inspiram, as enformam e as
sustentam: o Belo, o Bem, a Verdade, a Justiça, a Virtude, a Sabedoria,
o Amor...
2.º ANDAMENTO: — A LIBERDADE E O SENTIDO
— SENTIDOS DA LIBERDADE
2.1. O sentido do sentido: as polaridades histórico-culturais
e os contextos diacrónico-civilizacionalmente globais
A História da Velha Europa (“comunidade cidadã”, hoje tão
preocupantemente envelhecida!...), na centralidade, no dinamismo e na
diacronia das fundamentais fases epifânicas da sua Cultura polimórfica,
apresenta, como referência e lastro constitutivo e identitário e como
556
Cf. Diego Bermejo: Posmodernidad: pluralidad y transversalidad, Barcelona,
Anthropos Editorial, 2005, pp. 145-150.
337
Fernando Paulo do Carmo Baptista
motor e vector evolucionante, uma forte sequência de tensas
polaridades — «agónicas matrizes» lhes chama Castanheira Neves557
— que, num plano antropológico-simbólico mais alargado e mesmo
universalizável, marcam, de modo singular e decisivo, a identidade das
comunidades e dos povos em sua mais funda expressão e sentido — «o
Ser e a tragédia», «Deus e o pecado», «o homem e a ciência», «a
liberdade e o sentido» —, conjuntamente, e em estreita interacção
dialógica, com outras díades dialécticas de pendor mais
especificamente ontológico-existencial e/ou axiológico: «a origem e o
destino», «a vida e a morte», «a saúde e a doença», «a abundância e a
fome», «o saber e a ignorância», «a virtude e o vício», «o bem e o mal»,
«o justo e o injusto», «o humano e o desumano/inumano», «a paz e a
guerra»...
Assim, por exemplo, para o homem da Antiga Grécia, é a
polaridade de «o Ser e a tragédia» que marca profundamente o sentido
da vida e da existência, sendo que o Ser constituía para ele, homem
grego, a última referência ontológica e a “necessária” e metafísica pré-
determinação de tudo quanto existe, do mundo enquanto tal e dos
homens e da sua acção. E de tal modo que o poder e a força dessa
intranscendível “necessidade” excluía qualquer hipótese de irrupção da
novidade e da própria história. O contraponto agónico a essa “ordem”
definitiva, acabada e perfeita, a essa “arrumação” apolínea e serena da
plenitude do Ser — contraponto que, convém sublinhá-lo, era vivido na
excepção, na fatalidade sofrida (chame-se mo›ra [moira], chame-se
tÊxh [tyche]...), mas também no desafio, na transgressão e na insolência
(Ïbriw [hybris]) aos deuses, na ruptura e no apelo que transcende, na
espontaneidade transracional e na pulsão ou élan vital, na surpresa do
acontecimento ou no acaso em que se revela a nossa fragilidade e
vulnerabilidade —, esse contraponto no fio da navalha encontravam-no
557
Considerar o denso, profundo, «obrigante» e iluminante ensaio de António
Castanheira Neves: «Pensar o Direito num tempo de perplexidade» (texto
policopiado), ensaio aqui seguido de perto, no «andamento» discursivo desta
sinóptica paráfrase «translativa», menos «cifrada» que o original, por intencional
adaptação (com a devida vénia...) ao tema e suas circunstâncias... Devo desde já
sublinhar que, nesta minha «contaminada» translação, apesar da intentada
preocupação com o rigoroso respeito pelo sentido da matriz, me ficou a clara
consciência de que não fui capaz de evitar aquele tipo de «intrusões» que o tradicional
trocadilho do «tradutore / traditore» tão bem exprime...
338
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
os gregos na tragédia... Basta pensar nas grandes cenas agonais e
“polemo-máquicas” dos Poemas Homéricos e, mais especificamente,
nos textos imorredouros dos maiores trágicos de sempre: Ésquilo,
Sófocles e Eurípides...
Por sua vez, para o homem da Idade Média, essencialmente
plasmado numa cultura de predominância hebraico-cristã e de matriz
bíblica, a polaridade de referência é a de «Deus e o pecado». Todavia,
nunca no quadro tensivo desta polaridade o homem foi impedido de
transgredir os mandamentos divinos, nunca ele viu anulada nem tão-
pouco reduzida a possibilidade de protagonizar a sua prometeica
rebeldia contra o próprio Deus que, em Sua absoluta omnipotência e
infinita sabedoria, o criou inteiramente livre, sem excluir, portanto, do
horizonte dessa mesma liberdade, a hipótese de pecar... E se, no
paradoxal agonismo desta tão funda contraposição, é verdade, por um
lado, que Deus proíbe o homem quando ordena que não se faça, também
não é menos verdade, pelo outro, que essa “proibição” de modo algum
significa “impedimento”, uma vez que continua a ser senhor da
irrevogável e absoluta liberdade de pensar, optar, decidir e agir, mesmo
que seja contra a lei divina... Contudo, os abusos da sua liberdade não
podem isentá-lo de sofrer as consequências da culpa e do pecado e de,
desse modo, assumir a inerente responsabilidade, na confissão do
arrependimento e com o perdão da graça...
Com o advento da Modernidade558, o primeiro pólo desta agonal
“matriz” medieva (constituído, como acabámos de ver, por «Deus»,
pois que a díade é: «Deus e o pecado»), cede, agora, o seu lugar ao
«homem», operando-se, assim, uma radical reviravolta na linha de
tensão daquela que vai ser, no plano histórico, cultural e simbólico, a
nova configuração agónico-dialéctica, ou seja — «o homem e a
ciência».
Tão profunda transmutação operada na esfera do ontológico —
a instituir uma nova hierarquia, com a desvalorizadora secundarização
558
Com início no séc. XV [invenção da imprensa de caracteres móveis por Gutenberg
(1440); tomada de Constantinopla pelos turcos otomanos, em 1453; descoberta da
América, por Cristóvão Colombo (1492); descoberta do caminho marítimo para a
Índia, por Vasco da Gama (1497); viagem de circum-navegação, iniciada em 1519,
por Fernão de Magalhães...] e com o seu prolongado aprofundamento ao longo dos
sécs. XVI, XVII e XVIII, até à consumação da Revolução Francesa (5 de Maio de
1789 – 9 de Novembro de 1799)...
339
Fernando Paulo do Carmo Baptista
do «teocêntrico» face ao «antropocêntrico»... — significa o
reconhecimento de uma antropológica reivindicação e assunção de
libertadora autonomia relativamente a toda a transcendência: de Deus,
da comunidade e da história...
E isso, para que se operasse a desvinculante “des-tutoria” do
«cogito» e se afirmasse a ipseidade do «sujeito» em sua resgatada
autenticidade, não sem que, no entanto, se lhe continuasse a contrapor
o mundo, o mundo-natureza, não já como expressão do Ser, mas, antes,
como lugar e condição da realização e manifestação da experiência
empírica...
Esta contraposição «homem <> mundo» — a evocar a oposição
sua simétrica: «res cogitans <> res extensa» — veio a ter a sua
determinação na ciência e, num último e culminativo projecto de
domínio, veio a envolver com ela, também, a técnica... E de tal maneira
que, numa dialéctica de preponderância evolutiva, o homem, na
plenitude da sua assumida liberdade e nas práticas que esta potenciou,
instituiu e consignou, passou a ser ele próprio, enquanto ser entre os
demais seres do mundo e da natureza, «objecto de ciência» e «objecto
experimental», ou seja, desdobrou-se bipolarmente em «sujeito» e
«objecto», numa irreversível “esquizofrenia” sapiencial, semiótica e
curricular, bem patente, hoje, no dissídio ou na conflitualidade (tantas
vezes mal disfarçada...) entre «ciências exactas» e «ciências
humanas»...
A ciência, estribada na sua universal “plenipotenciariedade”,
converte-se na instância última de todos os fundamentos, explicações e
legitimações... E vai ser contra esse seu avassalador poder que Kant,
em sua forte reacção crítico-reflexiva, define os respectivos limites, ao
mesmo tempo que proclama não só os direitos mas também a
irredutibilidade da «razão prática», com os seus postulados
metafísicos...
Essa exacerbada hipertrofia do pólo da ciência (e, por sinérgico
arrastamento, da técnica e da tecnologia...) veio a traduzir-se
paradoxalmente (e por obra dele...) na negação do próprio homem em
sua essencialidade polar... Mais ainda, com a fragilização das
dimensões da religiosidade e da ética e a consequente eclosão e
crescimento do jogo de interesses, à hipertrofia do científico-
tecnológico (a suscitar a ideia do estabelecimento de uma espécie de
bíblia universal para a «condução científica do mundo mundano» e que
340
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
poderia denominar-se, com Michel Serres, de «epistemodiceia»559,
como alternativa à tradicional «teodiceia»...) vem associar-se o
económico que, por sua vez, acaba por impor a sua soberania, o seu
imperium, sobretudo com a entrada em acção do já referido
«quadrimotor louco» de que fala Edgar Morin. Que não haja ilusões:
hoje, mais do que nunca, e a nível planetário, estamos sob o jugo
imperial do económico, poderio avassalador que nem a ocasional
pujança das artes plásticas, da literatura e da música conseguiu
contrabalançar ou simplesmente atenuar, tendo, pelo contrário, vindo
gradativamente a ter lugar um processionário cortejo de cangalheiros,
proclamando em diferentes claves e tons de reflexão uma
impressionante série de cruciais finamentos560: a morte de Deus, com a
tumulação das referências de fundamentação e de sentido à
transcendência...), o fim da história (a significar não só o termo da
criação ou da irrupção de novidade mas também o cancelamento da
abertura ao futuro e bem ainda da responsabilidade do seu vínculo
imanente...), o fim da arte, o fim da palavra, a morte da filosofia, a
morte do homem com os ilusórios valores de um «humanismo»
imanentista e pretensamente auto-poiético e demiúrgico em que ele se
realizaria como homem...
Mas, pensando bem, se não tivermos que perspectivar este
nosso actual mundo humano como sendo necessariamente «um mundo
de morte» que se afunda e se anula no vazio e na poeira do nada e se,
pelo contrário, perante tantas mortes e finamentos anunciados,
decidirmos assumir frontalmente a liberdade do espanto e da ironia
maiêutica para perguntar: mortes todas essas, afinal, para que viva o
quê?...
A resposta que, de imediato, irrompe não se afigura ser outra
senão a de um veemente e frontal grito emancipatório: «a liberdade!...
Para que viva a liberdade!...»
Rasgam-se, por esta via, os horizontes para a conformação de
uma nova polaridade, mas uma polaridade que nos implica a todos,
homens e mulheres deste nosso tempo actual...
559
Cf. Michel Serres: O Contrato Natural, Lisboa, Edições Piaget, 1994, p. 44.
560
Desde logo, com Nietzsche à cabeça e, na sua peugada, Francis Fukuyiama, Perry
Anderson, Michel Foucault, entre outros, protagonizam, em simbólica sinédoque,
esses tumulares pronunciamentos...
341
Fernando Paulo do Carmo Baptista
Contudo, essa liberdade pela qual emancipatoriamente gritamos
por sobre o lastro “fúnebre” de tantos perecimentos, não pode
configurar-se numa abertura vazia — porquanto se trataria do absurdo
de uma liberdade que, com ser absurda, a si mesma se negaria... — nem
tão-pouco na abertura plena da vontade absoluta duma autonomia
incondicional que em si mesma assumisse o infinito, pois que, nem num
nem no outro desses dois modos de liberdade, nos reconheceríamos
autenticamente como homens, uma vez que o homem só o é na sua
existência no ser e na história pelo transcender-se a algo convocante
com que dialogue na procura da resposta às fundamentais perguntas
sobre as origens, as profundidades, as ultimidades561 (princípios,
fundamentos, génese, matrizes instituintes, “arquê”, razão fundadora e
constitutiva, fins...); por outras palavras: o de onde, o onde, o quando,
o como, o porquê, o para onde, o para quê... Tudo no assumido
pressuposto de que existimos sempre numa polaridade de agónica
dialéctica.
Essa nova «polaridade» que nos envolve constitutivamente a
todos e para a qual aponta a profunda e complexa reflexão desenvolvida
por Castanheira Neves (reflexão que venho tentando «decifrar» e
explicitar, argumento por argumento e taco a taco, em translativa
paráfrase de muito apertada «vizinhança» discursiva...), mais do que na
dialéctica entre «crise» e «crítica», deve radicar, como ele propõe, na
dialéctica entre «o termo civilizacionalmente cultural» e «a superação
culturalmente reconstituinte». Ou seja: porque é grave «o termo (ou o
desfecho do ég n [«agon»]) civilizacionalmente cultural» que estamos
a viver, mais exigente e de irrenunciável responsabilidade será «o
reconstituinte superador» (o mesmo é dizer: a «abertura de
reconstitutiva superação»). O que nos coloca perante uma «dialéctica
negativa» de exigências fundamentais.
Essas exigências poderão decerto encontrar-se na polaridade «a
liberdade e o sentido», querendo com isso significar que a liberdade não
pode ser entendida hoje como mera disponibilidade de um vazio
residual e redutor que, como tal, nos anulasse, mas antes, como a
abertura convocada e responsabilizada por referências de
transcendência que nos realizem em nossa humanidade. Pela
proclamação das «mortes» atrás referidas (e seja ou não seja fundada
561
Cf. George Steiner: Gramáticas da Criação, op. cit., pp. 11, 20-23.
342
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
essa proclamação...), não se pretenderá que regressemos radicalmente
a nós, à nossa humana condição e «nostridade», para aí ficarmos vazios,
e sim, para nos abrirmos sem obstáculos à possibilidade dessa nossa
realização... Pelo que a polaridade agora enunciada — a liberdade e o
sentido — será hoje a nossa tarefa, e a sua assunção, a nossa
responsabilidade.
Ora o sentido, como lapidarmente sublinha Castanheira Neves,
é isso mesmo: a referência transcendentemente convocante que
possibilita a realização da liberdade... «Presença real» (de que afinal
Deus não está ausente...), assim disse George Steiner. E se do singular
que converge se passar à pluralidade da sua manifestação, poderá dizer-
se, num registo explicitador, que «os sentidos são assim as referências
espiritualmente culturais que convocam ao transcender da realização
humana como fundamentos, orientações e compromissos da
liberdade».
Assim se compreenderá melhor, penso eu, o porquê da análise
do próprio Steiner quando expressamente sustenta que «a aposta no
sentido do sentido, o potencial de compreensão e de resposta que existe
quando uma voz humana se dirige a outra, quando nos confrontamos
com o texto e com a obra de arte ou a forma musical, quer dizer,
quando encontramos o outro na sua condição de liberdade, é uma
aposta na transcendência. Essa aposta — que é a de Descartes, de Kant
e de todos os poetas, artistas ou compositores de que temos
explicitamente notícia — afirma a presença de uma realidade, de uma
«substanciação» (é óbvio o alcance teológico deste termo) no interior
da linguagem e da forma. Supõe uma passagem, para além do fictício
ou meramente pragmático, do sentido à plenitude do sentido. A
hipótese é aqui, sublinha Steiner, não a de que «Deus» é por a nossa
gramática ser inactual, mas a de que a gramática vive e engendra
mundos porque aposta no ser de Deus»562. Para, por outro lado e mais
adiante563, acentuar e reforçar que «a história, enquanto história
humana, é a história do sentido». Mas não sem formular, também, a
seguinte condição preliminar que decorre, a meu ver, da assunção
confiante e autodeterminada (e por isso mesmo responsável) da
liberdade:
562
Cf. George Steiner: Presenças Reais; Lisboa, Editorial Presença, 1993, p. 16.
563
Idem: ibidem, 86.
343
Fernando Paulo do Carmo Baptista
«Não haveria história tal como a conhecemos, nem religião,
metafísica, política ou estética conforme a nossa experiência as vive,
sem um acto inicial de confiança, de convicção, acto mais fundamental,
mais axiomático, e de longe, do que qualquer «contrato social», do que
qualquer acordo de postulação do divino. Esta instauração da
confiança, esta entrada do homem na cidade do homem, é a relação
que se trava entre a palavra e o mundo. Só à luz de tal confiança pode
existir uma história do sentido que, numa contrapartida exacta, é um
sentido da história».
Indaguemos então, agora, acerca da nuclear questão dos
«sentidos da liberdade»...
2.2. «Sentidos da liberdade»...
Se procedermos a uma análise «arqueológica» inter-linguística e
inter-lexical adequadamente conduzida e direccionada para as proto-
matrizes do léxico (lá onde dormitam, sob a poeira do tempo, as
significações primigénias e genuínas das palavras, verificamos que a
ideia de “liberdade” aparece verbalmente expressa através de lexemas
ou vocábulos que, do ponto de vista sémio-morfológico, assentam em
duas importantes raízes indo-europeias:
a) – a raiz leudh- / loudh-, com as variantes leuth-/ louth-/ loub-/ l b-;
b) – e a raiz *pr i- / pr i- / pr -, com as variantes frei- / free- / fri-.
De facto, a raiz leudh- / loudh- (com as suas variantes), além das
palavras gregas §leuyer€a [eleutheria] e §leuy°riow [eleutherios] (de
onde provém o nome próprio ‘Eleutério” que significa «homem livre,
homem generoso») e demais vocábulos da mesma família léxica564,
aparece, desde logo, em lexemas cartograficamente pertencentes ao
universo da grande família inter-linguística mais directamente ligada à
564
Ver, por exemplo, Pierre Chantraine: Dictionnaire éthymologique de la langue
grecque, Paris, Klinchsieck, 1999, entrada «§leÊyerow».
344
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
cultura clássica greco-latina (com especial destaque para as línguas
românicas), como se pode comprovar com (entre outras...) a palavra
portuguesa liberdade, a espanhola libertad, a francesa liberté, a italiana
libertá e a própria liberty do inglês romanizado...
Estas palavras, conjuntamente com as respectivas cognatas, são
lexemas predominantemente construídos na base da variante l b- da
primeira das duas raízes565 acabadas de referir...
Mas está igualmente presente em vocábulos pertencentes ao vasto
e diversificado território das línguas nórdicas, germano-góticas e anglo-
saxónicas, como acontece, entre vários outros exemplos, com o velho
alto germânico liut (= gente, pessoa), com o antigo inglês leod (= povo,
gente), com o antigo irlandês luid (= subir), com o gótico liudan (=
crescer), com o lituano ljaudis (= povo), com o russo ljudi (= povo),
com o germânico leute (= povo, gente), etc., etc...
Por sua vez, a raiz *pr i- / pr i- / pr - (com as já citadas variantes
frei- / free- / fri-566) está presente, entre várias outras línguas, no antigo
inglês frien [= esposa, mulher amada], no velho saxão friohan [=
cortejar, galantear], no antigo islandês frj [= amar], no antigo eslávico
565
Cf. Robert K. Barnhart (ed.): Chambers Dictionary of Etymology, Edinburgh,
Chambers Harrap Publishers, 2001, entradas «liberal», «liberate», «liberty»... Ver,
também, nas mesmas entradas: Online Etymology Dictionnary, apud:
http://www.etymonline.com/index.php.
Para as questões de fonologia histórico-evolutiva (vocalismo e consonantismo) ver:
Andrew L. Sihler: New Comparative Grammar of Greek and Latin, Oxford, Oxford
University Press, 1995, pp. 36-129, 130-241.
566
Cf. Robert K. Barnhart (ed.): Chambers Dictionary of Etymology, op. cit., entradas
«free» e «friend», pp. 407 e 409; cf. igualmente: The American Heritage Dictionary
of The English Language, op. cit., Appendix I, entrada «pr -», 2044; cf. ainda Ivonne
Bordelois: Etimología de las pasiones, Buenos Aires, Libros del Zorzal, 2006, p. 118:
«Es curioso que en las lenguas germánicas aparezca Leute, gente, pueblo, grupo étnico
nacido del mismo tronco, que proviene de la raíz * leudh-, subir, crecer. *Leudh dio
a su vez liber, eleuteros en griego y libertas en latín. Es decir, encontramos aquí
nuevamente una raiz que se asocia a los significados de grupo cohesionado y de
libertad, aunque a través de diferentes lenguas esta vez. El sentido de libertad, tanto
en las lenguas griega y latina (de la raíz *leudh-) como en las germánicas (de la raíz
*pri-), no es individual, no es la ausencia de coerción, sino la condición de hombre
superior, de hombre noble, de «buena cuna», que se tiene, por formar parte de un
grupo especial, el propio. Libertad, en su origen, tiene sentido colectivo.». Cf. ainda:
Online Etymology Dictionnary, apud:
http://www.etymonline.com/index.php, nas entradas em análise.
345
Fernando Paulo do Carmo Baptista
priyá [= amar], no sânscrito priyah [= amar], no antigo alto alemão
fridu [= paz], no alemão actual freiheit [= liberdade] e até mesmo em
nomes próprios567 como Fridric (> Frederico = que tem o poder [- ric]
do amor e da paz [frid-]) e Fridnand (> Fernando = empenhado lutador
[-nand] pelo amor e pela paz [frid-])...
***
Uma adequada contrastação inter-lexémica e inter-sémica
permite chegar à conclusão de que o potencial semântico que se liberta
destas duas raízes indo-europeias remete, quer para as ideias de subir,
trepar, superar as leis da gravidade, crescer, ser gente, ser povo, quer
para as ideias de amizade, carinho, magnanimidade, enamoramento,
paixão amorosa, amor, paz...
Ou seja: a semântica primigénia da palavra ‘liberdade’ começa
por reenviar para o significado de impulso ascensional, liberador,
soltor568 e superador de todas as formas de atracção (ou de
«capturação»...) gravítica, física ou simbólica e, assim, para a
capacidade de romper liames ou vínculos impositivos e
«aprisionantes» e, por isso mesmo, indesejados, não queridos... (Abro,
aqui, um parêntesis para sublinhar a sintonia do pensamento de
Espinosa com esta originária e arqueológica linha de sentido quando,
no seu Tratado Político, advoga que «os homens devem ser conduzidos
de modo a que não se vejam a si próprios conduzidos, mas a viver,
segundo o seu engenho e a sua livre decisão» [homines ita ducendi
sunt, ut non duci, sed ex suo ingenio et libero suo decreto vivere sibi
videantur569]).
Se perspectivarmos e ponderarmos, agora, «a carga sémica» («a
567
Para a semântica dos nomes próprios, ver Roberto Faure Sabater: Diccionario de
nombres propios, Madrid, Editorial Espasa Calpe, 2002, nas entradas respectivas.
568
Adjectivo que fiz derivar do verbo «soltar», com o significado de promotor do estado
de ficar solto, que promove a soltura, a desvinculação.
569
Cf. Benedicti de Spinoza: Tratactus Politicus, cap. X, 8. (Ver Tratado Político,
Lisboa, Círculo de Leitores / Temas & Debates, 2008, p. 204: «os homens devem ser
conduzidos de modo a que não se vejam a si próprios conduzidos, mas a viver,
segundo o seu engenho e a sua livre decisão»).
346
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
carga dos traços semânticos») inscrita no léxico morfo-geneticamente
oriundo destas duas raízes à luz dos ensinamentos, nomeadamente, das
Neurociências570, das Ciências Cognitivas, da Psicologia Genética, da
Psicologia do Desenvolvimento, da Psico-Sociologia e da Antropologia
Social, melhor se compreenderá que o fenómeno do «crescimento»
antropo-ontogenético não dispensa um forte envolvimento afectivo com
uma diversificada gama fenomenológico-epifânica (que vai desde a
amizade e a cortesia, ao enamoramento e ao conúbio amoroso...) e tem
a sua expressão evolutivo-culminativa num dinâmico processo de
complexificação crescente, sequenciado no continuum de uma mesma
e substante «linha da existência», singularizada diferenciadoramente
por três nucleares «idades» ou «estádios» interligados e inter-activos —
a infância, a adolescência e a adultez — que, no fundo, se direccionam,
subindo e crescendo como que numa teleologia de perfectiva, amorável
e serenante completude (a magnanimidade, o amor e a paz), para um
«fazer-se e ser-se gente», para um «fazer-se e ser-se pessoa», para um
«fazer-se e ser-se cidadão», para um «fazer-se e ser-se povo», em suma,
para um «fazer-se e ser-se comunidade humana planetária», atingindo
aí o seu clímax.
Afigura-se-me, assim e ao jeito de uma conclusão interpretativo-
compreensiva, poder entender-se e assumir-se, com razoável coerência
semântica e hermenêutica, A IDEIA DE «LIBERDADE» como sendo a
essencial e essenciante e-movência consciente e intencionalmente
desiderativo-volitiva, inter-constitutiva, inter-determinante, inter-
direccionante, inter-organizadora e inter-reguladora do pensar e do agir
humanos na complexa e polimorfa diversidade dos seus modos e
registos manifestativos, práxicos, poiésicos, etológicos e atitudinais571,
570
Onde se destaca, cada vez mais, a obra incontornável do nosso António Damásio
consubstanciada nos seus três já mundializados volumes: O Erro de Descartes, O
Sentimento de Si e Ao Encontro de Espinosa e, mais recentemente: O livro da
consciência — A construção do cérebro consciente, Lisboa, Temas & Debates,
Círculo de Leitores, 2010. A título de exemplo, e a partir do que nesta última obra é
dito a pp. 44-47, consideram-se as implicações metamorfósicas inerentes ao
«processo de complexificação crescente» e ao papel bio-regulador da «homeostase»,
subjacentes ao fenómeno do «crescimento» antropo-ontogenético.
571
Desde o imaginativo, conceptivo e inventivo, passando pelo reflexivo, teorizador,
investigativo, operativo e experiencial, pelo crítico, avaliativo, judicativo, opcional,
deliberativo, decisional e executivo... até ao inovador, superador e criativo
[poiésico]...
347
Fernando Paulo do Carmo Baptista
seja em sua dimensão, expressão e implicação exclusiva e
exclusoramente singular, ipseídica, monádica e privada (a minha
liberdade), seja em sua dimensão, expressão e implicação, inclusiva e
inclusoramente colegial e comunitária, alterídica e pública (a nossa
liberdade)572. Esta, porém, no pressuposto de que ser homem é ser em
si, sempre e ao mesmo tempo, o próprio e o outro sem exclusão de
ninguém.
Ela, A LIBERDADE, configura-se, portanto, como a ôntica,
antrópica, ontológica e axiológica vitalidade e substancialidade
polirrítmica, imaterial, dinâmica, contra-gravítica e, assim, elevatória
(«subir»), incrementante, impulsionante e concrescente («crescer»),
coalescente, congregante e coesiva que institui a condição, a dignidade
e o estatuto de sermos gente, isto é, de sermos pessoas e cidadãos, de
sermos universal humanidade capaz da amizade, do enamoramento, do
amor, da generosidade e da paz, sendo que «a situação de escravo» é,
superlativamente, o inumano, desumano e dramaticamente eloquente
contra-ponto do que é a negação, a privação ou a ausência contra
naturam desse mesmo estatuto, dignidade e condição...
É assim que se me afigura ser da maior relevância a posição
hermenêutica de Bento Espinosa573 quando afirma que a liberdade é
uma virtude, ou seja, uma perfeição — «est namque libertas virtus seu
perfectio»574—, mas é uma virtude que, por definição, é a própria
potência humana: «virtus est ipsa humana potentia»575)... E na medida
em que, enquanto virtude e potência, é também e simultaneamente
«intellectus», «laetitia», «felicitas» e «beatitudo», ela é, em plenitude,
a concretização e a expressão integrada da «liberdade radical»
(liberdade profundamente enraizada ou radicada na «natureza» do
homem...) que António Damásio576 reconhece em Espinosa, ou seja, a
«summa libertas» superadora da nossa «dependência» de tudo quanto
nos escraviza...
572
De recordar o ajuizamento de Ivonne Bordelois: Etimología de las pasiones, op.
cit., segundo o qual, «libertad, en su origen, tiene sentido colectivo».
573
Cf. Espinosa: ibidem, 83.
574
Cf. Benedicti de Spinoza: Tractatus Politicus, II, 7.
575
Cf. Espinosa: Ethica, 4, prop. XX, demonst.
576
Cf. António Damásio: Ao Encontro de Espinosa, Lisboa, Publicações Europa-
América, 32003, p. 308.
348
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
Mas a «libertas» espinosana, além de ser congenial à energia
(§n°rgeia [enérgeia]) poiésico-perfectiva (ela é «virtus seu
perfectio»...) e ao conatus577 impulsionante, auto-e-movente e auto-
preservador que irrompe da nossa corporeidade viva, é atravessada
pelo influxo do “divino”, uma vez que, além de ser «beatitudo» e «vera
vita et religio», «se funda num constante e eterno amor para com Deus,
o mesmo é dizer, no amor de Deus para com os homens» («beatitudo
sive libertas nostra consistit in constanti et aeterno erga Deum amore
sive in amore Deum erga homines»), ganhando, assim, um
inquestionável sentido e dimensão de transcendência578.
Neste contexto, se, por sua vez (e agora, em consonância com o
grande filósofo e humanista italiano Luigi Pareyson579...), partilharmos
a pressuposta e tautológica co-implicação de que «a liberdade não é
liberdade sem o ser» e de que «o ser não é ser sem liberdade»580 e
aceitarmos que o «ser-se homem» não é uma realidade (ou «ontidade»)
estática, acabada e configurada, mas auto-movência deveniente,
configurante e configuranda que se transcende e se projecta a partir de
si e do mundo, no mundo, com o mundo e com os outros; numa palavra,
577
Cf. Espinosa, por exemplo: Ethica, Pars III, Prop. VII: «potentia sive conatus, quo in
suo esse perseverare conatur». O nome conatus (= potência ou energia originária e
originante, auto-movente e prestimosa, esforço energético desencadeado a partir de si
próprio...) é da família lexical do verbo conor, -ari, -atus sum (= pôr-se em movimento,
preparar-se e disponibilizar-se para, esforçar-se...), tendo ambos como base
constitutiva a raiz indo-europeia * ken-1 / kon-, cujo «ADN SEMÂNTICO» veicula em si
a ideia de «potencial intrínseco para se pôr em movimento rápido e activo, originar-se,
surgir, levantar-se prontamente, esforçar-se por...»; esta raiz está na base do lexema
grego diãkonow (diã + kon + ow [dia + kon + os]), que à letra significa «aquele que se
põe prontamente em movimento, que se levanta de imediato, disponibilizando-se para
servir os outros, a comunidade, designadamente a comunidade religiosa»; do nome
diãkonow, através do latim diaconus, provém o substantivo português diácono (da
mesma família de diaconado, diaconal, diaconato, diaconisa, bem como dos lexemas,
quase isomorfos, que são seus equivalentes nas demais línguas românicas...), o inglês
deacon, o alemão Diakon...
578
Cf. Espinosa: Ethica, P. 2, prop. XLIX, schol.; P. 4, prop. XX, dem.; P. 5, prop.
XXXVI, schol.
579
Luigi Pareyson [1918-1991] é, reconhecidamente, um dos grandes filósofos do séc.
XX. Foi professor de pensadores famosos como Umberto Eco, Gianni Vattimo e
Mario Perniola.
580
Cf. Giovanni Fornero: entrada «ontologia della libertà», apud Nicola Abbagnano
e Giovanni Fornero: Dizionario di Filosofia, Torino, UTET, 31998, p. 640.
349
Fernando Paulo do Carmo Baptista
se, em sintonia com Heidegger581, assumirmos que o mundo da
existência humana concreta é o mundo da comum e partilhada
coexistência com outros homens, então, o próprio «ser» deve ser
caracterizado como «una libertà primigenia»582, isto é, como absoluta
e originária motricidade primordial, placentariamente inseminada e
radicada na nossa existência, de tal maneira que, como sublinha ainda
Pareyson583, «essere e libertà sono i due poli dell’operosità dall’uomo»,
na medida em que a liberdade não só «è il cuore stesso del reale», mas
também a sua abissal, insondável e inexaurível porque ilimitada
profundidade584... Em suma e para rematar com palavras de S. Gregório
de Nissa585: «Es la libertad la que hace al hombre deiforme y santo».
581
Cf. Martin Heidegger: Sein und Zeit, Tübingen, Max Niemeyer, 1993, § 26, p. 118:
«Die Welt des Daseins ist Mitwelt. Das In-Sein ist Mitsein mit Anderen. Das
innerweltliche Ansichsein dieser ist Mitdasein»; cf. também o seguinte passo da
tradução francesa de Sein und Zeit, da autoria de Rudolf Boehms et Alphonse de
Waelhens: L’être et le temps, Paris, Éditions Gallimard, 1969, 150: «Le monde auquel
je suis est toujours un monde que je partage avec d’autres, parce que l’être-au-monde
est un l’être-au-monde-avec... Le monde de l’être-lá est un monde commun. L’être-
à... est un être-avec-autrui. L’être-en-soi intramondain d’autrui est coexistence.», ou,
do mesmo modo, o seguinte excerto da tradução de José Gaos (cf. Martin Heidegger:
El Ser y El Tiempo, México, Fondo de Cultura Económica, 41971: «El mundo del “ser
ahí” es un “mundo del con”. El “ser en” es “ser con” otros. El “ser en sí” intramundano
de éstos es “ser ahí con”». Ver, ainda, Michaela Ott, no seu substancioso estudo:
«Ethik und Ästhetik in der Philosophie der Phänomenologie und des
Poststrukturalismus», apud:
http://www.momo-berlin.de/Ott_Ethik_Aesthetik.html.
582
Cfr. Luigi Pareyson: Ontologia della Libertà, Torino, Einaudi, 1995, considerado
o seu opus magnum. Ver também: Luigi Pareyson: Essere libertà ambiguità, Milano,
Mursia (Gruppo Editoriale), 1998; Luigi Pareyson: Dostoevskij, Milano, Mursia
(Gruppo Editoriale), 1993. Uma interessante perspectiva sobre o pensamento de
Pareyson é o estudo de Mauro Cinquetti, intitulado «L’uomo nell’«ontologia della
libertà» di Luigi Pareyson», que pode encontrar-se em:
http://mondodomani.org/dialegesthai/mci01.htm
Também é rico de informação sobre o pensamento de Pareyson, o seguinte site do
Centro Studi Filosofico-Religiosi — «Luigi Pareyson»:
http://www.pareyson.unito.it/Pareyson.html
583
Cf. L. Pareyson: Esistenza e Persona, Genova, Il Melangolo, 1985, p. 267.
584
Cf. L. Pareyson: Ontologia della Libertà, Torino, Einaudi, 22000, pp. 21-22.
585
Citado por Adolphe Gesché: El Sentido, p. 88.
350
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
Por isso é que, mais do que subscrever o famoso ajuizamento de
Sartre586, segundo o qual, estamos condenados a ser livres [«l’homme
est condamné à être libre»], ouso assumir, em toda a sua radical
fundura, que «ser... é ser livre» e que ser livre... é voar co’o pensamento
a toda a parte587, é escolher-se, inventar-se e reinventar-se
incessantemente, e contra todos os constrangimentos, como acção
criadora, inventiva e instituinte588, como «projecto de ser» e como «ser
em projecto», mesmo no condicionante e limitador horizonte da
finitude existencial e da intranscendibilidade das leis que governam os
misteriosos dinamismos do Cosmos, da Vida e do Homem!...
A LIBERDADE é, assim, e em meu entendimento, O ABSOLUTO
ANTRÓPICO DO RELATIVO EXISTENCIAL que, investido orquestralmente
no universo dos valores589 e dos sentidos que subjazem à enunciação,
entre outros, do «imperativo categórico» de Kant, do «princípio
586
Cf. Jean-Paul Sartre: O Existencialismo é um Humanismo (tradução, prefácio e
notas de Vergílio Ferreira), Lisboa, Editorial Presença, 1962, pp. 193-194:
«Dostoiewsky escreveu: «Se Deus não existisse, tudo seria permitido». Aí se situa o
ponto de partida do existencialismo. Com efeito, tudo é permitido se Deus não existe,
fica o homem, por conseguinte, abandonado, já que não encontra em si, nem fora de
si, uma possibilidade a que se apegue. Antes de mais nada, não há desculpas para ele.
Se, com efeito, a existência precede a essência, não será nunca possível referir uma
explicação a uma natureza dada e imutável; por outras palavras, não há determinismo,
o homem é livre, o homem é liberdade. Se, por outro lado, Deus não existe, não
encontramos diante de nós valores ou imposições que nos legitimem o comportamento.
Assim, não temos nem atrás de nós, nem diante de nós, no domínio luminoso dos
valores, justificações ou desculpas. Estamos sós e sem desculpas. É o que traduzirei
dizendo que o homem está condenado a ser livre. Condenado, porque não se criou a si
próprio; e no entanto livre, porque uma vez lançado ao mundo, é responsável por tudo
quanto fizer.» (O sublinhado é meu).
587
Camões: Os Lusíadas, VIII, 89.
588
Cf. Adolphe Gesché: El Sentido, op. cit., pp. 56-58: «La creación es acceso a la
libertad y la libertad es llamada a la creación» (58).
589
«Investimento» igualmente preconizado por António Braz Teixeira, ainda que num
registo pressupositivo e argumentativo algo diferente do nosso. Cf. António Braz
Teixeira: Sentido e Valor do Direito, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda,
Lisboa, 32006, pp. 132-135.
351
Fernando Paulo do Carmo Baptista
dialógico» de Martin Buber590, do «princípio dialéctico da negação» de
Adorno591, do «princípio da responsabilidade» de Hans Jonas592, mas
também do «princípio da esperança» (enquanto «catálogo» ou
«enciclopédia» dos mais belos sonhos, anseios e utopias da humanidade
e a expressão mais acabada do êxodo em direcção ao «reino da
590
Cf. Martin Buber: Do diálogo e do dialógico (trad. de Marta Ekstein de Souza
Queiroz e Regina Weinberg), São Paulo, Perspectiva, 1982, p. 112. O «diálogo» é, no
fundo, aquele dinâmico, inteiro, intenso e antropo-ontológico «sair-de-si-em-
direcção-ao-outro», à procura da mais funda e recíproca identidade, em que o «eu» se
afirma, como pessoa, na relação, na abertura e no encontro com o «tu», em sintonia
com o princípio onto-poiético ou ôntico-constitutivo, segundo o qual, «é o tu que me
faz eu»... Efectivamente, a condição existencial do homem constitui-se e configura-
se ontológica e axiologicamente na fundura e na autenticidade do encontro dialógico
e na esfera do inter-subjectivo, do inter-humano e do inter-pessoal. Para uma
adequada perspectivação do que é o «princípio dialógico», ver: Newton Aquiles von
Zuben: Martin Buber: cumplicidade e diálogo, Bauru, EDUSC, 2003 e, sobretudo:
Martin Buber: Eu e Tu (trad. de Newton Aquiles von Zuben), São Paulo, Cortez e
Moraes, 1977 (ou Martin Buber: Yo y Tú (trad. de Carlos Díaz), Madrid, Caparrós,
1993); Do diálogo e do dialógico (trad. de Marta Ekstein de Souza Queiroz e Regina
Weinberg), São Paulo, Perspectiva, 1982; Encontro: fragmentos autobiográficos,
Petrópolis, Vozes, 1991; Martin Buber: Qué es el hombre? (trad. de Eugenio Ímaz),
México, Fondo de Cultura Económica, 131986: «la esencia del hombre se halla en la
unidad del hombre con el hombre» (pp. 98 e 146), homem que comunica com o outro,
numa esfera comum: «la esfera del “entre”» (p. 147); e isso, na assunção de que ser
homem é ser o dialógico «estar-dos-en-recíproca-presencia»... «nel encuentro del
“uno” con el “otro”» (p. 151); também Hans Urs von Balthasar, no mesmo
fundamental sentido, e evocando Fichte, afirma: «a liberdade existe
especulativamente só como intersubjectividade, como livre comunhão» e «realiza-se
de modo dialógico, no ser-interpelado pelo tu e no interpelar o tu.» Cf. Hans Urs von
Balthasar: Córdula ou o momento decisivo, Lisboa, Assírio & Alvim, 2009, p. 47.
591
Cf. Marta Tafalla: Theodor W. Adorno — Una filosofía de la memoria, Barcelona,
Herder, 2003, pp. 67 ss; José António Zamora: Theodor W. Adorno – Pensar contra la
barbarie, Madrid, Editorial Trotta, 2004, pp. 11-19, 21 ss, 286 ss.
592
Cf. Hans Jonas: Das Prinzip der Verantwortung [Le Principe Responsabilité],
Paris, Les Éditions du Cerf, 1990, pp. 30, 57 ss: «Age de tal modo que os efeitos da
tua acção sejam compatíveis com a permanência de uma vida humana autêntica na
Terra».
352
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
liberdade»...) de Ernst Bloch593, nos permite concluir, com Jaspers594: eu
posso, porque devo!... E acrescentaria também eu, em jeito de silogístico
593
Considerar o importante prólogo de Francisco Serra (seguramente um dos seus
mais credenciados estudiosos) à edição espanhola de Das Prinzip Hoffnung: El
principio esperanza, Madrid, Editorial Trotta, 2004 /2006 (vols. [1] e [2]), pp. 11-21
do vol. [1]; nesse prefácio intitulado «La actualidad de Ernst Bloch», escreve
Francisco Serra, a pp. 14-15: «... la esperanza es principio, porque el mundo aún no
está concluso, porque los hombres estamos siempre en el camino y esperamos que lo
mejor aún esté por llegar. Frente al pesimismo de gran parte del pensamiento
contemporáneo, Bloch es partidario de un «optimismo militante», pero teniendo
presente siempre que la esperanza en el futuro no significa meramente confianza en
él, sino trabajo en el sentido de la construcción de ese horizonte emancipador. Esa
consideración antropológica se despliega en una multiplicidad de variaciones que ha
hecho que se pueda considerar El principio esperanza como una «enciclopedia de las
utopías», pues no hay autor en que alcance tal variedad de manifestaciones. (...)
Bloch parte de la categoría de la «posibilidad», indagando algo apenas hasta ahora
preanunciado: la idea de que no hay nada concluso, que la realidad es proceso, que
lo posible está siempre surgiendo de lo real. La función utópica, que lleva al hombre
a intentar rebasar el horizonte de lo inmediato, se extiende en Bloch de tal manera
que incluso en las ideologías encuentra un «excedente utópico», algo aún por
realizar.». Considerar, ainda, Francisco Serra (in História, política y derecho en Ernst
Bloch, Madrid, Editorial Trotta, 1998, pp. 95 ss), quando perspectiva o princípio
esperança como sendo a «“suma” de los anhelos utópicos de la humanidad, de los
dreams of a better life (...)», e quando sublinha que «la esperanza es entendida como
principio que se hallaba desde siempre en el proceso del mundo, aunque durante tanto
tiempo haya sido ignorado filosóficamente», citando, a propósito, o próprio Bloch:
«En tanto que no hay en absoluto ninguna construcción consciente de la historia, en
cuya ruta y tendencia el objetivo no sea también todo, el concepto utópico y de
principio — en el buen sentido de la palabra — de la esperanza y de sus contenidos
humanos es, sin más, un concepto central» (Ernst Bloch: PE, I, XV).» (Francisco
Serra: op. cit., p. 95). Em suma, para Francisco Serra (ibidem, 97), «... El principio
esperanza es la expresión más completa del éxodo hacia el “reino de la libertad”...».
594
Karl Jaspers: Philosophie II, pp. 186, 195, em sintonia com Kant quando afirma:
«Tu deves, portanto podes», fórmula que resume a dedução transcendental kantiana
no domínio moral (cf. Nicola Abbagnano: História da Filosofia, Lisboa, Editorial
Presença, 1970, vol. VIII, p. 146; cf. ainda Abbagnano, para Jaspers, neste ponto,
ibidem, vol. XIV, pp. 232-233).
353
Fernando Paulo do Carmo Baptista
fechamento: e, porque devo... não posso deixar de respeitar595!...
Ora se é certo que a liberdade é, como a entende o teólogo Hans
von Balthasar596, «o absoluto, mas em forma finita», ela, liberdade, em
sua projectiva e epifânica dimensão agórica e comunitária, não pode ser
assumida nem realizada como cedência ou concessão à libertinagem, à
demagogia, à imoralidade, à corrupção, à hipocrisia, à permissividade,
à arbitrariedade, ao egoísmo, à arrogância, à violência, à opressão, ao
crime, à prepotência, à exclusão, à exploração, ao esmagamento, à
escravatura, à escravidão, aos fundamentalismos, aos fanatismos, às
ortodoxias, aos dogmatismos, às contra-dialogias e aos totalitarismos
do “eu”, das massas, das multidões, das igrejas, dos partidos, das
corporações, dos sindicatos, das organizações patronais..., quando se
miram, especular e narcisicamente, como se fossem mónadas isoladas
da comunidade englobante...
O que vem significar que um exercício verdadeiramente
responsável da liberdade e das liberdades (de pensamento, de
expressão, de manifestação, de intervenção...) não pode deixar de se
constituir e desenvolver no quadro de um autónomo, preservador e
regulador limite (ela, como já foi sublinhado, é finita!...), assente no
primado da Ética e da Razão Crítica e, portanto, consubstanciado na
sistemática convocação do Dever, da Responsabilidade, do Diálogo, da
Tolerância, da Dignidade e do Respeito... Tudo, portanto, no horizonte
englobante de uma Cultura e de uma “Paideia” dos Valores e das
595
A convocação, aqui, destes nucleares «princípios» não pode nem deve dispensar,
todavia, o insubstituível contributo (a ser articulado em orquestral sinergia...) do
«espírito» que presidiu à enunciação (bem como dos sentidos angulares da
relativização crítica, do antidogmatismo, da abertura à diferença, etc., que dela se
libertam...) de teoremas como os da indecidibilidade e da incompletude (Gödel),
igualmente conjugados com outros princípios mais, como sejam: os princípios da
indeterminação ou da incerteza (Heisenberg), da complementaridade (Niels Bohr),
da subsidiariedade, do contraditório, da razoabilidade, da proporcionalidade, da
isonomia, da boa fé, do pluralismo, da polilogia, da polifonia, da «mestiçagem», da
multiculturalidade... É dessa orquestração participada, integradora e criativa, é desse
empenhado esforço comunitário para a denúncia frontal e superação real da
generalizada hipocrisia consubstanciada na farisaica e improcedente «retórica» da
tão apregoada defesa dos «direitos humanos» que pode resultar, mais claro e mais
aperfeiçoado, o valor da «dignidade» da pessoa humana e do «respeito» universal que
lhe é devido...
596
Cf. Hans Urs von Balthasar: ibidem, p. 47.
354
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
Virtudes Maiores da Cidadania597, tal como ficaram e vão ficando
plasmados, com as marcas indeléveis da intemporalidade, nos melhores
textos das Humanidades (textos do Sagrado e do Profano, textos da
Poesia, da Literatura, da Filosofia598, da Teologia, do Direito, da
Política e da Ciência Pura...) e em referência ao alumiante magistério e
encarnado, edificante e referencial exemplo do que de melhor há em
Lao Tsé, Buda, Abraão, Job, Sócrates, Paulo de Tarso, Maomé,
Francisco de Assis, Mahatma Gandhi, Luther King ou Nelson Mandela
e, bem acima de todos, de Jesus de Nazaré, o ungido e divino «Filho do
Homem»...
É essa virtuosa “Paideia” direccionada para a excelência cultural
e axiológica, é esse imperecível, iluminante e integrador legado e
paradigma antropo-etológico que podem, a meu ver, alicerçar a
esperança, com Amartya Sen, de que «il futuro del mondo è
intimamente connesso al futuro della libertà nel mondo»599...
Reflectir, portanto, sobre «a liberdade» é ter a coragem e a
confiança de quem acredita que é possível, com afectuosa dedicação,
com auto-exigente rigor, com transparente seriedade e com lúcida e
consistente competência, construir a «Terra da Fraternidade» que a
canção prometeu e que vem sendo desiludentemente adiada em
aspectos essenciais do exercício da cidadania, do funcionamento da
democracia, do desenvolvimento ecologicamente sustentável, da
realização da justiça social e do respeito pela pessoa humana...
597
O Bem, o Belo, a Verdade, a Justiça, a Prudência, a Humildade, a Temperança, a
Magnanimidade, etc., como recorrentemente o venho defendendo...
598
E.g.: de Platão, Aristóteles, Cícero, Séneca, Santo Agostinho, S. Tomás de Aquino,
Descartes, Pascal, Hobbes, Locke, Espinosa, Leibniz, Hume, Kant, Hegel, Max
Scheler, Heidegger, Jaspers, Stevenson, Norberto Bobbio, Scarpelli, Donald
Davidson, Mervyn Hare, Bernard Williams, Ronald Dworkin, J. Habermas, K. Otto
Apel, Amartya K. Sen, J. Rawls...
599
Cf. Amartya Sen: Globalizzazione e Libertà, Milano, Arnoldo Mondadori Editore,
2003, p. 133:
«Il futuro del mondo, ritengo, è intimamente connesso al futuro della libertà nel
mondo. E questo per due ragioni distinte: la libertà è sia un fine di prima importanza
sia un mezzo determinante del progresso. Ciò che è cruciale per il futuro del mondo
è il consolidamento delle diverse istituzioni che contribuiscono ad accrescere la
libertà economica, politica, sociale e culturale. La strada per il nostro futuro ci deve
essere indicata da una visione integrata della libertà, una prospettiva che tende ad
andare perduta nei dibattiti su mercati, globalizzazione, democrazie, opportunità
sociali, diffusione dell’ informazione e rapporti internazionali».
355
Fernando Paulo do Carmo Baptista
Mas, para o futuro de “Grândola”, de todas as “Grândolas” de
Deméter, é imperiosamente decisivo que a liberdade nunca deixe de ser
a sua própria memória... Por isso, esperançosamente a celebramos na
ágora da República!... Por amor às nossas crianças, que, como no-lo
ensina a semântica «arcaica» e «genética» desta fabulosa palavra —
LIBERDADE — hão-de, em paz, continuar a subir... a crescer... a
apaixonar-se e a amar... a ser gente... a ser povo... a ser, em plenitude,
cidadãos do mundo inteiro!... E se algum dia a nuvem negra e letal da
sua negação pairar, ameaçadora, na linha de horizonte, a lição maior,
mais bela e mais comovedora será ainda a do Poeta «a rezar o padre-
nosso» a «essa flor que nunca desespera / no jardim da perpétua
primavera»!... Será, no limite, o grito irreprimível e inamordaçável do
canto indómito de «Orfeu Rebelde»:
Orfeu rebelde, canto como sou:
Canto como um possesso
Que na casca do tempo, a canivete,
Gravasse a fúria de cada momento;
Canto, a ver se o meu canto compromete
A eternidade no meu sofrimento.
Outros, felizes, sejam os rouxinóis...
Eu ergo a voz assim, num desafio:
Que o céu e a terra, pedras conjugadas
Do moinho cruel que me tritura,
Saibam que há gritos como há nortadas,
Violências famintas de ternura.
Bicho instintivo que adivinha a morte
No corpo dum poeta que a recusa,
Canto como quem usa
Os versos em legítima defesa.
Canto, sem perguntar à Musa
Se o canto é de terror ou de beleza.
Miguel Torga: Poesia Completa, Lisboa,
Publicações Dom Quixote, 2000, p. 540.
356
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
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A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
9. Abertura antropo-axiológica
a um “Projecto de Cidadania”
«A Cidade [ λι ] é Mestra do Homem.»
Simónides [sécs. vI-v a. C.]: frg. 53 Diehl (*)
«A Pólis são os cidadãos, e não, as muralhas
nem os barcos viúvos de homens»
Tucídides (apud: José Ribeiro Ferreira:
Polis — Antologia de Textos Gregos,
Coimbra, Minerva, 1995, p. 53)
(*) Cf. Maria Helena da Rocha Pereira: Hélade — Antologia da Cultura Grega,
Coimbra, 71998, p. 158.
363
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
— EM NOME DA VIDA!...
Tema recorrente no “discurso” dos políticos em geral e, muito
particularmente, nas preocupações dos responsáveis pelas coisas da
Educação, a questão da Cidadania não pode dispensar uma reflexão que
lhe aprofunde o sentido e lhe revitalize a importância. É com esse
objectivo que se torna pertinente (e mesmo indispensável...) partir do
compartilhado entendimento segundo o qual a “cidadania” (em grego:
po ite€a) é perspectivada como a qualidade, a condição e o estatuto
inerentes ao facto de ser cidadão ( po €t w), isto é, de ser membro
constitutivo e integrante de uma «comunidade política» ( koinvn€a
politikÆ), o mesmo é dizer, de uma «comunidade de cidadãos», bem
como o sistema e o regime organizativo e jurídico-administrativo da
vida em sociedade, configurada, outrora, nas multímodas dinâmicas da
λι (Pólis) ou da Ciuitas e, actualmente, do Estado-Nação, e mais
alargada e englobantemente ainda, da “Comunidade das Nações” ou da
“Comunidade Humana Planetária”...
Comunidade de ênyrvpoi, isto é, de homens e de mulheres, de crianças
e de velhinhos, a Pólis, a Cidade, começa por se revelar, antes de mais
e acima de tudo, como uma incomparável “constelação de humanos
corpos vivos”, de que importa tomar funda consciência para lhe medir
o significado, o alcance e o valor, pois como ensinou Tucídides, «A
Pólis são os cidadãos, e não, as muralhas nem os barcos viúvos de
homens»...
Existencialmente alicerçada nas potencialidades e nos limites do
corpo que somos, uma comunidade de cidadãos, seja qual for o seu
âmbito expressional, o seu nível organizativo e a sua extensão
“cartográfica”, jamais pode dispensar uma prévia e adequada reflexão,
a partir da implicada consideração das três nucleares dimensões
constitutivas do nosso ser “antrópico”: a dimensão somatosférica, a
dimensão psicosférica e a dimensão sociosférica (co-envolvendo,
implicativa e constitutivamente, a verbo-semiosfera): tudo,
naturalmente, no quadro integrador de uma eco-bio-geosfera...
365
Fernando Paulo do Carmo Baptista
De facto, o apelo-convite ao conhecimento de nós próprios que
nos vem sendo feito de forma irrecusável, ao menos desde a famosa
inscrição esculpida na mítica portada do templo de Delfos — gn«yi
sautÚn [conhece-te a ti próprio] —, não dispensa, não pode nem deve
dispensar, sobretudo depois do sábio magistério de Sócrates, uma
inaugural e alicerçante reflexão sobre a nossa corporeidade, no sentido
de uma imprescindível ponderação e interiorização prévia do valor
fundacional da Vida Humana que nela (corporeidade) encarna, se
realiza e se revela em sua complexidade maior, expressa muito
especialmente no impressionante dinamismo das interacções do
cérebro com a mente, na natureza, organização e funcionamento do
inconsciente e do subconsciente, do sentimento, da sensibilidade, da
emoção, da afectividade e da paixão (pãyow), na construção e no papel
da “consciência nuclear” e da “consciência alargada” tal como
explicativamente no-las descreve, por exemplo, António Damásio, nos
modos como se constitui e opera a identidade, a memória
(“autobiográfica” e “heterobiográfica”...), o imaginário, o pensamento,
a linguagem, a razão, o cálculo, a emoção, o espírito crítico, a fantasia,
a criatividade... — complexidade, em suma, tal como ela se pode colher
do insubstituível (ainda que inacabado e efémero e, por isso mesmo,
sempre revisível...) contributo das Ciências do Homem e, mais
especificamente, das jovens Neurociências600.
Da esclarecida tomada de consciência de tudo isso, deverá
assumir-se (em lógica coerência e indeclinável imperatividade ética,
enunciada em estreita consonância com a aristotélica “razão vital” que
está na génese, constituição e teleologia de uma “comunidade de
600
Cf., entre outros, António Damásio: O Sentimento de Si — O Corpo, a Emoção e
a Neurobiologia da Consciência, Lisboa, Publicações Europa-América, 2000, pp. 105
ss, 199 ss, 227 ss, 319 ss; Jean-Pierre Changeux/Alain Connes: Matéria Pensante,
Lisboa, Gradiva, 1991, pp. 111-159; Albert Ducrocq: O Espírito e a Neurociência —
Indícios sobre o fenómeno da consciência, Lisboa, Edições Piaget, 2000, pp. 63-275;
John Searle: A Redescoberta da Mente, Lisboa, Edições Piaget, 1998; John Searle:
Mente, Cérebro e Ciência, Lisboa, Edições 70, 1997; Edgar Morin e outros: O
Problema Epistemológico da Complexidade, Lisboa, Publicações Europa-América,
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Edições Piaget, 1995, pp. 226-260, 263-371.
366
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
cidadãos”) o supremo Valor da Vida Humana601 como inderrogável
princípio principial (principium a se) animante, morfogénico e
complexificante deste nosso planetário modo de existir...
Princípio, eixo e raiz do biologicamente mais estruturado,
complexo, poderoso, misterioso e sortílego dos sistemas vivos, pulsão
e “élan” genético-mental, espiritual, simbólico e endo-exo-movente
que, irrompendo das lonjuras primigénias e granulares da matéria
cósmica, radialmente a atravessa para a transcender, por força de uma
teleonomia, de uma “cibernética” e de uma ν λέ ια [entelecheia]602
que lhe são singularmente próprias e lhe permitem auto-organizar-se e
auto-regular-se, a Vida Humana é, ao mesmo tempo, ordo ordinatus e
ordo ordinans e re-ordinans das energias dissipadas603 nos fluxos e
refluxos de re-equilíbrio neguentrópico, o mesmo é dizer, na série de
“catástrofes de instabilidade” caógena que emergem da própria
estabilidade dinâmica em que se afirma e se move... Por outras palavras
e em consonância com Aristóteles: a Vida Humana, concretada e
configurada na humanidade de cada corpo vivo, constitui a matriz
tectónica, metabólica, organísmico-espiritualmente activa e reactiva,
plástica, (re)produtora, liberadora e criadora que funda as comunidades
humanas existentes no orbe da Terra.
Por tudo isso, ela não pode deixar de ser a geratriz, o alicerce e o
vector de um condigno “Projecto de Cidadania”: in principio est vita
[no princípio está a vida]!...
E se ênyrvpow [§st‹] fÊsei politikÚn z“on604, não é menos
certo que ele é, mais do que nunca, um kosmopolitikÚn z“on605, a
significar que a sua condição biótica e cultural se projecta imersiva e
placentariamente num ecossistema global, à escala geo-cósmica.
É, na verdade, a Vida, em sua expressão bio-organísmica,
antrópica, filosófico-axiológica, ecológica e planetária, o princípio
primordial, constitutivo de um horizonte antropológico,
601
Cf. Hans Jonas: El principio vida — Hacia una biología filosófica, Madrid,
Editorial Trotta, 2000, pp. 13-19.
602
Energia actuante e eficaz; «a acabada realização da potência» (Aristóteles).
603
Cf. Ilya Prigogine e Isabelle Stengers: Entre o Tempo e a Eternidade, Lisboa,
Gradiva, 1990; Ilya Prigogine: O fim das certezas, Lisboa, Gradiva, 1996; David
Bohm e F. David Peat: Ciência, Ordem e Criatividade, Lisboa, Gradiva, 1989.
604
«o homem é por natureza um animal político (sociável)».
605
«um animal cosmo-político».
367
Fernando Paulo do Carmo Baptista
perspecticamente mais vasto e mais fundo, que postula, a partir da sua
assunção, a convocação sinérgica (ao menos em suas mais relevantes
implicações, extrapolações e consequências nos domínios do pensar e
do agir...) de outros princípios606, valores e atitudes: os princípios da
“indeterminação” ou “incerteza” [Heisenberg: «é impossível medirmos
simultaneamente a posição e a velocidade de um objecto quântico com
precisão arbitrariamente alta»], da “incompletude” e da
“indecidibilidade” (Gödel: «Toda a teoria T coerente, que seja
adequada à aritmética elementar, contém pelo menos uma proposição
aritmética não demonstrável nem refutável, ou seja, indecidível em T»),
da “complementaridade” (Niels Bohr e o recurso à diversidade de
modelos: «onda e partícula são dois modos complementares, ainda que
incompatíveis, de representar objectos quânticos»], os valores da
liberdade, da dignitas, da probitas, da uerecundia, da bona fides, do
“LebensWelt”607 (Husserl), da solidariedade, da compreensão, da
tolerância, da equidade, da justiça, do bem, da verdade (entendida como
“procura sistemática e sem fim”...), etc., tudo conjugado com o
“princípio dialógico” (em que «o tu me faz eu», Martin Buber) e do
incondicional e integrador “reconhecimento do outro” e mesmo do
“totalmente outro” (Karl Barth, Horkheimer, Ricœur, Lévinas), o
“princípio de correlação” (entre o homem que suplica e Deus que
concede, Paul Tillich), da “falibilidade” (inerente ao “homo fallibilis”
[Ricœur]), da “diferença” e da “diversidade”, com o sentido do
“respeito” [por si próprio e pelo “estrangeiro”, pelo “mendigo”...] e do
“dever” (Kant [com «o céu estrelado por sobre mim e a lei moral, o
dever, dentro de mim»] e para além de Kant), com o “princípio de
responsabilidade” [Max Weber, Hans Jonas], o “princípio de
esperança” [«o que importa é aprender a esperar», Ernst Bloch] e contra
a “angústia da finitude e da morte”, o “esquecimento do ser”, “o tempo
606
Sobre os vários princípios a seguir enunciados e os principais autores neles
implicados, cf. Giovanni Reale — Dario Antiseri: Storia della Filosofia, vol. 3 (dal
Romanticismo ai giorni nostri), Brescia, La Scuola, 2000 (obra com sistematizações
bem conseguidas e adequadamente documentada sob o ponto de vista antológico-
autoral); cf. também: Nicola Abbagnano e Giovanni Fornero: Dizionario di Filosofia,
Torino, UTET, 1998, nas entradas respectivas (excelente instrumento de trabalho,
rigoroso e actualizado).
607
dignitas: dignidade; probitas: probidade; uerecundia: recato, comedimento,
vergonha; bona fides: boa fé; “LebensWelt”: “mundo-da-vida”.
368
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
da indigência e da noite do mundo”, a idade da “abissal ausência dos
deuses” (Hölderlin e Heidegger)608, o inelutável e final “naufrágio da
existência” (Jaspers) ou a jonasiana propositura de uma “heurística do
medo”, a superar pela “vita activa” e pela afirmação, na ágora, da nossa
“condição humana”609 através da valorização da acção política (“ser
livre e agir são o mesmo”, o que equivale a assumir “o direito ao
direito” [Hannah Arendt]), a permanente “invenção do homem” pelo
homem (Sartre), o poético “cantar do sagrado” (Hölderlin) e o intrépido
destemor de uma “heurística e uma práxis da ousadia e da coragem” (F.
Paulo Baptista), nimbada pelo sonho da “utopia” (Thomas Morus, Ernst
Bloch e Karl Mannheim, embora com registos muito diferentes).
Tudo isso, a reclamar a reassunção valorizadora do tÒpow [topos],
do g°now [genos], do ¶ynow [ethnos], do pãyow [pathos], do yow/¶yow
[ethos], do lÒgow [logos] e do ¶pow [epos]610.
Do tÒpow, enquanto geo-possibilidade de radicação, situação e
abrigo do nascimento e da morte, do berço e da sepultura: “nacionais”
ou “estrangeiros”, vindos do “centro”, da “periferia” ou das “margens”,
todos (mas mesmo todos!...) somos “naturais” de um dado lugar, esse
mesmo e exacto lugar onde o ancestral g°now genealógico-progenitor
(que nos tem vindo a ser legado de geração em geração pelos nossos
maiores desde os perdidos longes imemoriais da pré-história e da
história...) se faz carne e natal vagido e onde, uma vez consumado o tão
efémero e tão lábil excurso da nossa existência tão precária e tão frágil,
a finitude se volve em cinza, silêncio, lágrimas e luto e, talvez também,
em transtópica e/ou utópica esperança numa outra vida além da vida...
608
Martin Heidegger: «Porquoi des poètes», in Chemins qui ne mènent nulle part,
Paris, Gallimard, 1968, pp. 220, ss; cf. também: Rudiger Safranski: Um Mestre da
Alemanha — Heidegger e o seu tempo, Lisboa, Edições Piaget, 2000, pp. 335-339;
Otto Poggeler: A Via do Pensamento de Martin Heidegger, Lisboa, Edições Piaget,
2000, pp. 206-224.
609
Hannah Arendt: The Human Condition, Chicago, University Chicago Press, 1958,
pp. 179, 187, 188, 192, 205, 211; cf. Richard Wolin: Labirintos — Em torno a
Benjamin, Habermas, Schmitt, Arendt, Derrida, Marx, Heidegger e outros, Lisboa,
Edições Piaget, 1998, pp. 255-273.
610
tÒpow [topos]: lugar; g°now [genos]: origem genética, raça; ¶ynow [ethnos]: povo,
nação; pãyow [pathos]: capacidade de sofrer, sensibilidade profunda; yow/¶yow
[ethos]: hábitos, costumes, carácter > ética; lÒgow [logos]: fala, faculdade da
linguagem; ¶pow [epos]: voz, palavra, discurso > canto épico (cf. nota 348, alínea d)
).
369
Fernando Paulo do Carmo Baptista
Por aí passa a saudade, o culto e a prece em memória de nossos
finados e, igualmente, em solidária e coextensiva memória da isógena
progénie de todos quantos transportam consigo o inadulterável e
inclonável “adn” de um rosto humano... No fundo, o povo-¶ynow que
se universaliza, desmultiplica, dissemina e cresce alocentricamente em
infinitas searas antrópicas à superfície da Terra e se afirma e localiza,
identitária e singularizantemente, em cada povo-pátria-e-país, com a
força inclusora, coesora e integradora das consonantes modulações e
registos de sensibilidade, simpatia, empatia, afectividade, amor e
sofrimento, em agónica e contraditória dialéctica, porém, com a apatia,
a indiferença, a antipatia, a repulsão e o próprio ódio exclusor, racista e
xenófobo...
Mas tudo a irromper sempre dessa “região” maior e abissal do
nosso ser que é o pãyow611, que se desdobra emersiva e epifanicamente
em alegria, em cântico, em celebração e em festa, em angústia, em
desespero, em dor e em desgraça, em paciência, em esperança, em
serenidade, em prudência e em sabedoria, mas também em
inconsciência, em insensatez e em irresponsabilidade e, no limite, nos
paradoxais, oximóricos e incontrolados turbilhões da desmedida
loucura da Ïbriw612 e da frieza letalmente mortífera, tantas vezes
calculada e programada, do próprio crime...
É no pãyow (entendido, como já vimos, na máxima latitude,
amplitude e corpóreo-anímica profundidade dos sentidos de que
multímoda e diuturnamente se alimenta e polissemicamente se
organiza: desde a escuta, a visão e a previsão, o cheiro, o tacto, o paladar
e o saborear, à suspeição, ao pressentimento, ao agoiro, ao presságio e
à premonição...), é no pãyow que radica a possibilidade primeira e
última de toda a criatividade e de todo o agir humanos. É ele o trans-
racional, livre e inclausurável oceano que, com a inesgotável
νέ γ ια613 ondulatória e translativa dos instintos latentes e
incontroláveis e das brusquidões repentinas, da misteriosa movência
das pulsões libidinais, oníricas, ilógicas, absurdas e metafísicas
(“demoníacas” ou “divinas”...), constitui o universal transfundo e a
611
Cf. Nicola Abbagnano e Giovanni Fornero: op. cit., entradas: «Emozione», pp.
340-361; «Empatia», pp. 361-362; «Passione», pp. 796-799.
612
ι [hybris]: insolência, desrespeito desmedido.
613
νέ γ ια [energeia]: energia.
370
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
úbere e possibilitante matriz genealógica, genológica, genotípica e
patológica da “mecânica dos fluidos” psicosférica e, dentro dela, da
semiósica poliglotia e intercomunicabilidade humanas. É dele que
eclodem, em última instância, as brisas e maresias da lírica, as marés
vivas e tensas do drama, as ousadas e argonáuticas gestas da epopeia, a
inelutável, irreversível e patética fatalidade dos naufrágios da tragédia...
É nesse e com esse plasma adâmico primigénio e genuíno que é
a Vida que em nós encarnou e que possibilita a estreita e sinfónica
sinergia da acção contemplativa e iluminante da α614 com a acção
criativamente instituidora, instauradora, fundadora, operante e
configuradora da ο ι 615, complementarizadas pela adequante e
consolidante acção da ι 616 reflexiva, racionalizadora, crítica e
transformadora, nos domínios filosófico, teológico, historiológico,
epistemológico, científico, pedagógico, etc., é nesse mesmo plasma
adâmico, sublinho, que se foi modelando e construindo a
“personalidade” de quantos têm vindo a integrar o “cânone” das nossas
“referências maiores” nos diferentes fóruns e ágoras da História e do
Mundo. E são estas “referências” que agem, ao longo do tempo, como
incontornáveis semáforos ou transcendentais bússolas ou cartas
náuticas da orientação e da regulação ético-axiológica, de dimensão e
alcance simultaneamente local e universal617.
Por isso é que elas (elas todas, sem excepção e em sua ilimitada
ubiquidade!), de modo algum podem deixar de constituir “o magno e
polifónico panteão” cultural e civilizacional da humanidade, ou seja, a
cósmica placenta de toda a reflexão, codificação e agir
axiologicamente fundamentados e direccionados.
É aí que o λ γο e o ο cumprem o seu transcendente destino
e missão ao serviço da nobre causa da Cidadania, sobretudo quando
activados na voz inconformada, frontal e vertical, inclausurável e
insubmissa dos profetas e dos poetas, dos professores e dos oradores618,
614
α [theoria]: observação, contemplação > teoria.
615
ο ι [poiesis]: poiese, poesia.
616
ι [praxis]: práxis, prática, acção.
617
Cf. Hans Küng: Projecto Para uma Ética Mundial, Lisboa, Edições Piaget, 1996,
pp. 11, 14, 40, ss, 161, sendo de sublinhar a geral convergência de perspectivas.
618
Não terá sido por mero acaso que estas palavras apresentam, em sua “arqueológica”
constituição morfo-semântica, raízes — fe- / fa- e os- > or- (e.g.: em lat: fabulare =
falar; professor [de: pro+fiteor, pro+fessus] = aquele que fala diante de alguém e em
371
Fernando Paulo do Carmo Baptista
na “voz” alta e grandíloqua das sagradas escrituras de todas as religiões,
do corpus legum619, dos mitos cosmogónicos e fundadores, das
narrativas literárias e historiográficas que celebram a memória de todas
as culturas e civilizações, voz essa que se prolonga, inovadora e
revitalizadoramente, na voz dos textos sapienciais de pensadores,
cientistas e investigadores, dos escritos e das obras dos criadores de
todas as épocas e lugares, o mesmo é dizer, de todas as cronotopias...
Por isso é que, numa dinâmica de permanente, aberta e plural
interlocução poliglótica, interlinguística, interdiscursiva e
transdiscursiva, assente numa fecundante e elucidante hermenêutica
interpretativo-compreensiva, tanto “em directo” como “em diferido”
(via tradução ou via glosa...), dentro da escola e fora da escola, importa
defender, afirmar e assumir, para o realizar, aquilo que de melhor
houver nesse intransaccionável legado e thesaurus dos textos da arte e
do sagrado, dos textos, entre tantos outros, da grande poesia e da
grande literatura — os eternos clássicos —, da religião, do direito, da
filosofia, da historiografia, do ensaio, da ciência, da politologia, da
pedagogia, em suma, do inexaurível “pantexto” da Cultura. São, na
verdade, os maiores de entre os “nossos” maiores e de entre os maiores
dos “outros” que, sinfonicamente, nesse englobante legado e
património se perenizaram e memorialmente pervivem com
inquestionável valor e mérito e irrasurável exemplaridade, inspiradora
e alimentadora de todos os códigos, modelos e paradigmas axiológicos
(de natureza poético-estética, teorético-epistémica, praxiológico-ética
ο / ο ]...) de todos os nossos plurais modos de ser, estar e agir
enquanto cidadãos.
Assim, no nosso Portugal europeu, nos demais povos e países da
CPLP ou no mais recôndito dos lugares do Planeta, na língua e com a
língua portuguesa — a nossa materna ou madre língua —, nas
textualizações e nas interpretações que, em sua plasticidade
manifestativo-expressional e sémio-comunicativa, ela possibilita,
torna-se cada vez mais urgente e imperioso conceber e desenvolver, a
partir desse inestimável “património histórico-memorial” e
favor de algo; os, oris = boca; orator = orador) — que as ligam orgânico-
funcionalmente ao corpo humano através do aparelho fonador e, mais concretamente
ainda, à boca...
619
“corpo de leis”.
372
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
arquitectante, um humanizador, polifónico e orquestral “Projecto de
Cidadania”, configurador de uma “identidade eco-bio-antropológica e
histórico-cultural”, simultaneamente singular e colegial, local, nacional
(que não “nacionalista” e xenófoba!...) e mundial, ou seja, de uma nova
concepção e redimensionamento da materna e paternal ο ο / ο α620
com o retorno a (de) Deméter e ao (do) franciscano «cantico di frate
sole»621 [ou «laudes creaturarum»], com a proclamação e a defesa do
“código” de valores ecológicos, com o incremento, em suma, de uma
renovada axiologia, eticamente forte e de alcance verdadeiramente
universal que, recuperando o sentido mais fundo, mais alto e mais
“nobre” do homem, da vida, da terra, do cosmos, da cultura, da arte, do
sagrado e do divino (humanamente encarnados, desmi(s)tificados e
desdogmatizados...), dê fundamento e sentido às dinâmicas do Sistema
Educativo e Formativo e a todo o pensar e agir implicáveis nos
processos de educação, formação e investigação, desde a escolaridade
básica até ao ensino superior inclusive...
Desse prévio e fundador desenho e lastro, emergirá,
naturalmente, uma recontruída Paideia e, com ela, uma desmitificada
e relativizada “visão” da ciência e das tecnologias, mais em
consonância com o seu “estatuto” medial e instrumental de prestimosas
“ancillae hominis”622...
A nossa “condição de homens” afirmar-se-á, superadoramente,
por sobre todos os fechamentos solipsistas ou narcisicamente
egolátricos e individualistas, através da multidimensional e rasgada
abertura à nossa irrasuravelmente alterídica “condição de pessoas”.
Desse modo, tudo o que de mais decisivo e fundamental se
coloca ao homem de cada época (de todas as épocas) passará a ser re-
perspectivado e pensado em sua mais funda radicalidade: o tudo e o
nada, a vida e a morte, o bem e o mal, o finito e o infinito...
620
ο ο / ο α [oikos/oikia]: casa, habitação / família. É de notar que a raiz woik- /
weik- / wik- (= casa, habitação, aldeia) está presente, entre outras, em palavras como:
ecologia, economia, ecossistema, paróquia, vicinal, vizinho, vila...
621
“cântico do irmão sol”: «[...] Laudato sie, mi’ Signore, cum tucte le tue creture, /
spetialmente messor lo frate sole, / lo qual’è iorno, et allumini noi per lui [...]». O
texto integral pode ver-se em M. Pazzaglia: Gli Autori della letteratura italiana, vol.
I, Bologna, Zanichelli, 1980, pp. 104-107; «laudes creaturarum»: hinos de louvor às
criaturas.
622
«Servas ou criadas do homem».
373
Fernando Paulo do Carmo Baptista
E isso, com a autenticidade que deflui, dialógica, intersubjectiva
e interactivamente, da nossa inteira liberdade e homóloga
responsabilidade, por forma a que tudo quanto ao homem diga respeito
tenha sentido, isto é, possa ser sonhado, pensado, concebido, planeado
e erigido como perene “monumento” e referenciável “bem público” em
que toda a comunidade se reveja e reconheça.
Obra em acto e em permanente e desassossegada construção, a
ser levada a cabo com cada vez mais tensa, criativa e humanizadora
dignidade, no pressuposto de que é sempre possível fazer aportar ao
“humano” que já somos e já temos o “divino-humano” que ainda nos
falta: de facto, o homem, sem essa chama do “divino” a arder e a
lampejar como um farol lá bem dentro de si, é como o gélido silêncio
dum templo vazio, porque deserto da alma fervorosa de seus crentes...
A constante, dedicada e apaixonada aprendizagem dos
fundacionais e, por isso mesmo, fundamentais saberes (saber-pensar,
saber-escutar, saber-dizer, saber-ser, saber-estar, saber-agir, saber-
acreditar, saber-esperar, saber-sonhar, saber-sofrer, saber-
realizar...) assim orientada e conduzida sob o ponto de vista
antropológico, axiológico, pedagógico e epistemológico, pode e deve
contribuir, por um lado, para a formação de uma “consciência política”,
intelectual e sapiencialmente mais esclarecida, mais sólida, estruturada
e consistente e, pelo outro, eticamente mais ampla, mais englobante,
mais robusta e mais responsável e adulta, porque reconduzida à
original e iluminante “verdade” da imperfeição e incompletude da
nossa humana e limitada condição...
A partir daí, por essa via e desse modo, todos e cada um nós,
movidos de um novo e partilhado “espírito”, seremos capazes de
protagonizar, na singularidade da respectiva “visão do mundo”, no
ritmo, no estilo e na cadência que nos são peculiares, um outro mais
fecundo, inovador, desassombrado, frontal e sempre empenhado e
respeitoso “modo de intervir” na vida política de todos os dias.
Mais lúcidos, mais anti-letárgicos e vigilantes, melhor
preparados e mais ponderados e competentes, em suma,
socraticamente mais “sábios” e cristicamente mais simples no nosso
assumido “estatuto” de cidadãos loco-globais [glocais], isto é, telúrico-
localmente radicados e situados e dialéctica e simultaneamente
orientados e projectados para o sentido e o rumo de um integrador e
universal transcender-se, estaremos em condições de começar a erguer
374
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
na Terra, com liberdade e responsabilidade, com espírito crítico e
prudencial sageza, mas também, e sobretudo, com amoroso afecto e
determinado afinco, a sonhada “Catedral do Homem” na esperançosa
e fraterna “Cidade do Ser” de que nos fala Erich Fromm623, num
inspirado eco intertextual tocado pelo augustiniano sopro da
humanizada e humanizante sublimidade da Ciuitas Dei...
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376
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
10. MANHÃ E-MERSA
(jamais “Sub-mersa”!...)
— a “lição” de uma memória... — (*)
(na celebração dos cinquenta anos da “presença” dos Padres
Combonianos em Portugal)
«Ser santo, sábio e são.»
(lema educativo-formativo dos Padres Combonianos)
(*) “Memória” da celebração solene comemorativa do cinquentenário da presença dos
Combonianos em Portugal, ocorrida em Viseu, no dia 22 de Abril de 1997, no
Auditório da Igreja Nova. Com ligeiros retoques, este “memento” reproduz o texto da
comunicação de que, na qualidade de representante dos Antigos Alunos, fui
incumbido pelo então Superior Geral da Congregação, PE. MANUEL AUGUSTO
FERREIRA. Essa comemoração, ocorrida há 20 anos, contou com a presença, na mesa
da presidência, da nossa inesquecível, encantadora e humaníssima Concidadã, DRA.
MARIA DE JESUS BARROSO. Jamais poderei esquecer as palavras de tão afectuoso
apreço que Ela me dirigiu no final da sessão... O único gesto de gratidão que está ao
meu alcance resume-se a estas bem simples palavras: continuar a fazer o que de
melhor em mim houver para ser digno da sua magnanimidade!...
377
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
Que me perdoe o Saudoso e Grande Vergílio Ferreira a
contraditante subversão que vou fazer do seu famoso título! Mas,
naquela manhã emersa (não mais: sub-mersa; mas antes: e-mersa...) do
ancestral horizonte de frio e denso nevoeiro, contemporâneo ainda das
narrativas que consagraram o mítico Malhadinhas e demais heróis das
Terras do Demo — lá «onde a gente comia calhaus e ladrava como os
cães e nunca Cristo rompeu as sandálias, passou el-rei a caçar ou os
apóstolos da Igualdade em propaganda» —, da velha Barrelas a que
aportara aos meus dois anitos, mal saído do berço desta sempre adorada
Viseu por imperativo do exercício de funções de meu saudoso Pai, aqui
retornei como um príncipe, munido agora da libertadora e mágica chave
do alfabeto.
Àquelas remotas e agrestes paragens de que a citada metáfora-
hipérbole construída por esse incomparável “Patriarca” montesino das
nossas Belas Letras — Aquilino Ribeiro — para nos dar, em impressiva
síntese, o agonismo dramático e patético do que significava, então, a
luta pela sobrevivência num contexto de isolamento e de atraso social,
cultural e político, que se perde na noite imemorial do tempo, àquelas
paragens, dizia, tinha acabado de chegar, desta vez, um inesperado e
exótico mensageiro, portador de fartas barbas e do sopro fecundante
que paira sobre as águas: o inesquecível Padre Carlesi. As suas
convicções serenamente profundas, a sua fé contagiante e cálida, a sua
palavra iluminante e apaixonada, tocam sedutoramente, aqui e além, os
jovens da quarta classe:
«Quereis, também vós, lançar as redes, semear o trigo, matar a
fome, levar a luz ao mundo, cantar, como o Poverello, «il cantico di
frate sole»? Vinde comigo: sereis, como eu, pescadores de almas!»
E assim aconteceu que o Aquiles de Sá Alves, neto do alfaiate-
artesão que talhava os fatos de Mestre Aquilino, foi tocado pelo
“sopro”.
E assim aconteceu, igualmente, que o “milagre da onda
arrebatadora” não esmoreceu na insondável e oculta influência do seu
movimento. O vento primordial, mais forte e misterioso ainda, sopra na
alma de um outro jovem: filho de Rosa e de Júlio, recebeu na pia
baptismal o nome carismático de um profeta bíblico; era ele, então,
379
Fernando Paulo do Carmo Baptista
aquele que é hoje, à distância de cinquenta anos, o nosso muito querido
e igualmente sábio e culto Padre Isaías da Rocha Pereira 624.
Mas o impulso sedutor e movente daquele vento primigénio não
parou e transmitiu-se às sonhadoras leivas, aos promissores roseirais de
outras almas juvenis, no gesto fecundante da palavra poética, viva,
inspirada e autêntica de outro recém-chegado polinizador de vocações:
o Padre Dante. E, um ano depois, mais três jovens deixam Barrelas: o
Adolfo dos Reis Milheiro, o Augusto da Rocha Pereira e o Fernando
Paulo Baptista, juntando-se a uma boa vintena de outros mais que,
como eles, vinham de vários pontos da mesma e idiossincrásica
interioridade das nossas Beiras: o Aníbal Cautela Mateus, o José de
Sousa, o Luís de Albuquerque... Que me perdoem os demais, os lapsos
ou os involuntários silêncios desta memorante fragilidade na quentura
dum mesmo e envolvente afecto que, mesmo anonimamente, os não
esquece.
Foi em 1950. Na casa mater de Viseu, acabava de entrar a
terceira leva. A primeira havia sido aquela que integrou os cinco ou seis
alunos da inaugural epifania dos combonianos lusíadas e que, por
sinédoque, pode ser referenciada pelos nomes do Manuel Cunha, de
Barbeita, e do António Augusto Martins, de Canas (então chamada de
Sabugosa e, hoje, Canas de Santa Maria): alunos distintos, belos
colegas, um exemplo para os mais novos.
Depois, foi a geração do Padre Isaías, com cerca de uma dúzia,
salvo erro, à qual se seguiu a nossa com mais de vinte. Depois ainda,
num crescendo imparável de novas vagas, ultrapassou-se largamente a
centena...
E o exemplo de Viseu, feito milagre, desmultiplicou-se por
outras zonas do país: da Maia a Famalicão, de Coimbra a Santarém,
assistindo-se em Portugal à miniatural homologia do que tem sido a
expansão da planetária presença dos Combonianos, lá onde é preciso
pregar as bem-aventuranças, saciar os famintos, curar os enfermos,
limpar os leprosos, dar vista aos cegos, fazer andar os paralíticos,
libertar os oprimidos, ressuscitar os mortos, realizando, assim, a saga
de uma autêntica e apaixonante Imitatio Vitae Christi.
624
Cálculo cronológico, feito com referência à data dia 22 de Abril de 1997. Em 16
de Abril de 2004, o Pe. Isaías acabou de cumprir, com exemplar dedicação, a sua
missão evangelizadora, intelectual e educativo-formativa na Terra... Paz à sua alma!...
380
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
De quantos são chamados para os trabalhos da messe são bem
poucos aqueles que chegam ao termo da exauriente jornada. Todavia,
um carisma inconfundível nos fica a marcar a todos para sempre: aos
que, mãos ungidas, tocam a pedra de ara para sagrar o pão e o vinho;
aos que, no meio da nave, formam o coral dos que cantam ou o coro
dos que rezam; aos que voltam as costas ao templo no sonho perdido
de outras enigmáticas sendas desta peregrinante vida...
Todos nos recordamos, decerto, de como na Manhã Submersa
da ficção vergiliana se afirmam, em alegórica sinédoque, os espaços de
clausura e de opressão dum país-seminário de horizontes cerrados,
marcado por um destino, ao mesmo tempo singular e colectivo, negador
das liberdades e dos direitos fundamentais do homem e do cidadão e
mutilador dos sonhos adolescentes de todos os Antónios Lopes,
corpórea, espiritual e culturalmente condenados à condição carceral de
um frustrante e desumanizador huis clos de unidimensional solitude e
solidão, sob o governo de um “reitor” com seus prefeitos e professores
autoritários e repressivos que não deixam de remeter, em sua
“indirecta” e “oblíqua” significação, para o regime de ditadura então
vigente em Portugal e protagonizado pela figura de um “reitor outro”
que também andara no seminário e havia sido quase padre...
Por isso é que a uma tal manhã ouso contrapor aquela que foi a
nossa libertadora Manhã Emersa: manhã auroral, radiante e luminosa,
limpa de nuvens e de trevas, inauguradora de um novo estatuto de
cidadania e de um promissor e humanizante destino, estatuto e destino
esses, matricialmente moldados numa ética e numa cultura de liberdade
sempre em diálogo com uma ética e uma cultura de responsabilidade,
ambas orientadas para a defesa incondicional da dignidade da pessoa
humana e para a afirmação e a prática daquela universal fraternidade
que decorre da mesma e fundacional condição e do mesmo “código de
honra” que consagra cada homem como um filho de Deus e, assim,
como um irmão entre irmãos.
Mas foi o modelo ímpar de um revitalizante e transformador
processo educativo e cultural trazido pelos Padres Combonianos para o
Instituto da cidade-fortaleza de Viriato e privilegiado domínio de
Henrique, o Navegador, que activou e dinamizou inovadoramente essa
mensagem, numa criativa interacção entre sagrado e profano.
Do profano fazia parte o estudo das Ciências e das
Humanidades. Na verdade, do programa dos primeiros cinco anos de
381
Fernando Paulo do Carmo Baptista
formação fundamental (que equivalia aos actuais 2.º e 3.º ciclos da
nossa escolaridade obrigatória), não posso esquecer a análise lógico-
gramatical como iniciação ao estudo do Latim, logo no primeiro ano, a
Matemática, a História e a Geografia, as Ciências da Natureza, a Música
(clássica e gregoriana, com solfejo e canto), o Desenho, a Religião e
Moral, as Regras de Etiqueta e de Civilidade, o Português, o Francês e
o Italiano (sendo estas três línguas vivas, divididas entre aprendizagem
oral e aprendizagem escrita, cada qual com um autónomo processo
metodológico-didáctico, avaliativo e classificativo), o Latim e o Grego,
com as consabidas dificuldades no campo da morfologia, da sintaxe e
da tradução.
Mas, muito para além destas disciplinas programáticas que,
assim, constituíam uma rigorosa e exigente componente curricular
lectiva distribuída em ponderada harmonia pela manhã e pela tarde de
cada dia, o projecto educativo que os Padres Combonianos conceberam
para nós, contemplava também integradoras actividades e ocupações de
complemento formativo que iam desde as academias literárias, com os
recitais de poesia, canto e música (em que a auto-aprendizagem de tocar
órgão, por exemplo, consubstanciava um estimulante prémio para os
melhores alunos), o teatro, a opereta (quem não se lembra de Marco Il
Pescatore e de Il Menestrello della Morte?...), o visionamento de filmes
de aventura e de temática edificante, as inesquecíveis sessões de
bonifrates (boni fratres, que não fantoches!...), a prandial leitura feita
pelo hebdomadário no refeitório, o salão de estudo de manhã, à tarde e
à noite, a permanente realização de exercícios ou tarefas de auto-
aplicação, concretização e consolidação das aprendizagens feitas na
sala de aula.
Que produtivo modelo aquele, o da organização do trabalho
escolar semanal, distribuído por dois andamentos com um ponto de
paragem intermédia à quinta-feira! Para estudar, cantar, rezar, reflectir
e meditar e dar um tonificante e higiénico passeio em ecológico
diálogo, vivo e directo, com a madre natureza. As actividades lectivas
desenvolvidas de sexta a sábado geravam tarefas idênticas às de quinta-
feira, a ser projectadas para os salões de estudo de fim de semana,
conjuntamente com os ensaios musicais e corais e a preparação, entre
outras, das actividades religiosas e dos deveres dominicais, com a
realização de novo passeio ecológico, a sempre reconfortante visita dos
382
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
pais, os inderrogáveis salões de estudo e as indispensáveis e
estruturantes práticas de reflexão e de meditação.
Face ao que acaba de ser descrito, haverá de reconhecer-se que
o nosso Sistema Educativo e Formativo tem estado bem longe de
preparar os jovens para o desenvolvimento daquela que é, sem dúvida,
a mais nobre das capacidades humanas: pensar, reflectir, meditar... E é
pena que os vários responsáveis pelas coisas da educação e do ensino
no nosso país não tenham tido ainda a clara consciência disso. Como
tudo correria melhor se também eles tivessem por hábito e por princípio
reflectir em profundidade primeiro e agir e decidir depois!...
O programa de formação iniciava-se todos os dias pelas 6 e 30
da manhã e terminava por volta das 22 da noite, contemplando
específicos momentos de oração e de meditação, de manhã, à tarde e à
noite, a prática do desporto, a ginástica e os jogos de salão sobretudo
quando as condições meteorológicas o impunham.
Uma inesquecível galeria de padres extraordinariamente
humanos, cultos, sábios e experientes (em nada, mas mesmo em nada,
parecidos com o Reitor, ou, por exemplo, com o Padre Tomás, o Padre
Martins ou o Padre Lino de Manhã Submersa!...) estava inteiramente
disponível para nos ensinar, ajudar e orientar: desde o bondoso e
clarividente Reitor, Padre Giorgio Ferrero, a quem veio a suceder essa
distinta figura de gentleman que era o Padre Ernesto Calderola, ao
dinâmico e metódico Vice-reitor e fluentísssimo orador que veio a ser
Vigário Geral, Padre Severino Peano, passando pelo místico director
espiritual, Padre Angelo La Salandra, até aos dedicados, metódicos e
disciplinadores prefeitos e aos competentíssimos professores de que
não posso esquecer, até porque representam simbolicamente todos os
outros que não vou poder nomear aqui, mas que merecem a mesma
partilhada estima e grata admiração, os nomes sempre saudosos dos
Padres Lorenzo Osgnach, Giuseppe Semionato, Guido Piccoli, Ezio
Sorio, Alfredo Bellini, Carlo Naldi, Luigi Nesi, Anselmi Romualdo e
também os dos exemplarmente briosos compatriotas nossos, Padre
Amadeu Gonçalves, então pároco de Ranhados, e Padre Joaquim Dias
Coelho, professor muito distinto do seminário maior da nossa diocese
e inspirado regente do respectivo grupo coral, não falando já no
excelente grupo de irmãos coadjutores e no seu imprescindível e mais
específico papel operativo: na cozinha (o irmão Catterino), na quinta (o
irmão António), na construção civil (o irmão Elísio, verdadeiro
383
Fernando Paulo do Carmo Baptista
“catedrático” do betão), na carpintaria (o irmão Higino). Sejam-me
relevadas todas as omissões!...
Mas se era esta, em traços largos, a nossa mais específica
relação com o profano (sempre imbricada, como vimos, no sagrado e
orientada para o divino), a nossa atitude para com o sagrado tinha a sua
expressão maior nos vários e quotidianos momentos de diálogo interior
com as nossas mediações e representações espirituais da divindade,
através da oração e da reflexão meditativa e da autognose, das
celebrações rituais e, essencialmente, da assunção de uma postura
atitudinal de fundo, enraizada na autenticidade e na procura da verdade
e revelada no testemunho vivo, feito em estreita sintonia com os
mistérios maiores do Cristianismo: a criação e a queda, a encarnação e
a paixão, a eucaristia, a redenção, a ressurreição e a escatologia...
Do que era ou do que foi a interpretação e a compreensão desse
“Divino”, resta-me hoje a grata consciência de, muito antes de ter lido
na Universidade a famosa obra de Max Scheler a cujo título me vou
expressamente referir, haver intuído, no âmbito das práticas reflexivas
e das pausas e silêncios meditativos que, desde bem cedo, aqueles
nossos Mestres foram, como vimos, desenvolvendo em nós, o
significado fundamental do que é “A POSIÇÃO DO HOMEM NO COSMOS”
(Die Stellung des Menchen im Kosmos) entendida como ec-sistente
finitude que só na sua abertura à Revelação e ao Infinito encontra
sentido para a Vida e saída para a História e entendida também como
ontológica condição da pessoa concreta que cada um de nós é e, assim,
sujeito de valores e centro de intersubjectiva espiritualidade onde se
enunciam valorações e se plasmam decisões, numa pendular e essencial
conexão de fluxo e refluxo convivial e dialógico com o Mundo, com a
Vida e com os Outros.
E nem mesmo depois de, na sequência da radical racionalização
operada pela modernidade iluminista com a razão do cogito cartesiano,
mas sem «as razões» do coeur de Pascal, verificarmos que, por um lado,
Renan (1823-1892), em L’ Avenir de La Science, elevou a ciência ao
estatuto de «religião» e que, pelo outro, Nitzsche (1844-1900), em A
Gaia Ciência, (através do «tresloucado»), soltou o alucinado grito do
«Gott is tott!», gestos estes seguramente dos mais perturbantemente
decisivos que estão, conjuntamente com outros mais, na origem do
arrastamento axiológico do mundo contemporâneo para o beco sem
saída dum estreito antropocentrismo sem horizonte e sem grandeza,
384
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
nem mesmo depois disso, vinha eu dizendo, vamos renunciar à defesa
e à afirmação de que o «Divino» continua, não obstante, a ser a matriz
e o fundamento de qualquer hierarquia de valores digna desse nome e
bem assim o referencial absoluto e intranscendível da suprema
excelência que interpela todas as práticas axiológicas do homem na
perspectiva do seu constante aperfeiçoamento quer enquanto pessoa
singular quer enquanto cidadão colegial, seja na recatada intimidade do
lar em que habita, seja no tópos institucional dos seus desempenhos
profissionais e deontológicos, seja nas diferentes ágoras da Pólis em
que é chamado a intervir. E um tal entendimento afigura-se-me bem
mais crucial e importante do que a própria questão de saber, por
exemplo, em qual dos três mundos do modelo teorético de Karl Popper
[mundo 1, mundo 2, mundo 3] se deverá situar o Ser que tem por nome
o nome de «Deus», ou se, em contrapartida, não haverá que postular
um alternativo trans-mundo ou trans-cosmos, um novo empíreo ou um
novo olimpo que, antes e para lá da singularidade de qualquer
cosmogónico big-bang conjecturado pela astrofísica contemporânea
(v.g.: Stephen W. Hawking: Breve História do Tempo, Lisboa, Gradiva,
1988), envolva e absorva em si aquela tríade do famoso epistemólogo
deste século que bem recentemente nos deixou.
O modelo comboniano de formação, inspirava-se no rigor
intelectual dos colégios dos Jesuítas e na humanidade e mundividência
ética e cultural de educadores da craveira de João Bosco e nas doutrinas
pedagógicas de Maria Montessori (1870-1952) que, como é sabido,
«con intelletto d’amore» e convicta profissão de fé, defendia que o
dinamismo estruturante do psiquismo infantil assentava em processos
criativos defluentes das insondáveis potencialidades do «embrião de
espiritualidade» [«lo spirituale embrione»] que, desde a gestação,
existe inseminado na interioridade de cada criança e que, à semelhança
da encarnação do verbo divino, se revela na capacidade absortiva e
elaboradora da inderrogavelmente misteriosa e secreta fundura
pulsional de sensibilidade, afectividade, trans-racionalidade e liberdade
que ontologicamente nos marca, caracteriza e distingue enquanto seres
humanos.
Esse modelo tomava como princípio orientador e condutor a
célebre tríade de objectivos, assim tão incisiva quanto simplesmente
enunciados:
a) um comboniano deve ser saudável (educação corporal)
385
Fernando Paulo do Carmo Baptista
b) um comboniano deve ser sábio (educação intelectual)
c) um comboniano deve ser santo (educação ético-religiosa)
Dito em articulada, hierarquizada e unitiva interacção: um
comboniano deve ser santo, sábio e são.
Visava-se, deste modo e antes de mais, uma educação corporal
integral, no respeito pelo repouso nocturno assente num mínimo de oito
horas, com uma alimentação diversificada e equilibrada e a tempo
certo, a prática do desporto e dos exercícios gímnicos, o culto do
autodomínio das impulsividades, a assunção de hábitos regrados e a
homóloga rejeição do vício, o controlo médico periódico, o sentido
primordial da vida, a prática da virtude e a sublimação valorizadora da
dor e do sofrimento.
Por outro lado, e numa perspectiva de complementaridade
crescente e integrante, do próprio modo como se processava a gestão
organizacional da semana pedagógica e religiosa com os seus já
referidos andamentos e ritmos determinados pela interacção
«actividade/pausa» creio poder inferir-se que todo o processo educativo
se orientava num mesmo e determinante sentido de elevação e de
excelência a todos os níveis: no pensar, no sentir e no agir, no ajuizar e
no dizer, no sonhar, no criar e no empreender, a partir da inculcada
instauração na nossa consciência do imperativo categórico de um auto-
exigente e permanente desafio de crescimento e aperfeiçoamento na
construção da nossa própria identidade e autonomia.
Foi assim que nos foi legado um tão precioso tesouro, projecto
ímpar de uma dinâmica auto-valorização pessoal sempre in fieri e
sempre in progress e de uma crescente e alargada cidadania, de
dimensão local, nacional e planetária, projecto esse em que, como
vimos, o sagrado sempre dialogou com o profano numa síntese fecunda
e harmoniosa da religião com a ciência e com a arte.
Lição memorável, intemporal e imorredoura com que
modelámos ao longo da vida as nossas posturas e as nossas condutas,
com que potenciámos os nossos saberes matriciais e estratégicos e as
nossas capacidades teóricas, práticas, críticas e poéticas, com que
reassumimos a universal axiologia do Belo, do Bem, da Justiça, da
Verdade e do Amor, enquanto referencial permanente na nossa relação
e interacção com os outros.
386
A SINFONIA UNIVERSAL DO AMOR FRATERNO
Lição suscitadora de respeito profundo e de gratidão imensa
pelo exemplo de sonho e de vida que tão saudosos quanto sábios e
virtuosos Mestres nos legaram em sua amorável e generosa paixão de
Pastores.
Importa, pois, que a recriemos com redobrada esperança e amor
contra o egoísmo edonista e sem altura, contra o consumismo sem
critério e sem freios, contra a droga e toda a espécie de poluição e
agressão moral e ecológica, contra a fruição sem ética, sem estética,
sem autodomínio e sem bússola, contra a contestação radicalista e sem
regras, contra a desfiguração da alma e do rosto do homem pelo
esvaziamento da sua própria e divina humanidade.625
Mas a evocativa “viagem” que na condição de antigo aluno
venho fazendo mais voltada, naturalmente, para o “paradigma
educacional” e para a formação fundamental que alicerçou e plasmou a
construção da minha personalidade (e também, pelo que me é dado
saber, a dos meus antigos colegas...) em todas as suas nucleares
dimensões constitutivas e que marcou, de modo indelével, todo o meu
destino académico, profissional, cultural e cívico está longe de
significar, só por si, a “lição plena” deste memorandum da presença de
50 anos de Comboni em Portugal.
Na verdade, não posso nem devo esquecer a razão primeira
dessa esperançosa e inaugural vinda, singularmente concretizada
através da figura profética do inesquecível Padre Cotta, na sequência
da decisão histórica que, no já distante ano de 1947, pela Direcção da
Congregação foi tomada de escolher Portugal para o lançamento de um
novo projecto missionário, orientado para o incremento da acção
evangelizadora do Mundo, com especial incidência no território da
então colónia de Moçambique (de onde, a génese da revista “Além-
Mar” com o seu bem sugestivo título).
Como apóstolos de primeiríssimo plano que eram, conheciam
bem, aqueles sábios dirigentes, o papel pioneiro de Portugal na História
da Evangelização.
De facto, ainda que num registo sintético e breve, feito a partir
da figura maior da Gesta dos Descobrimentos Portugueses — o Infante
D. Henrique, “o Navegador”, Iº. Duque de Viseu —, importa recordar
625
Cf. supra o tópico sobre «A profunda crise que vem atravessando o nosso tempo
actual».
387
Fernando Paulo do Carmo Baptista
esse papel pioneiro, através da seguinte síntese-paráfrase do importante
artigo «Evangelização Ultramarina» (in Joel Serrão [dir.]: Dicionário
de História de Portugal, Lisboa, Iniciativas Editoriais, 1971, vol. II, pp.
141-145), da autoria de António Brázio, reconhecido especialista no
estudo do tema:
Em nenhum outro aspecto, a acção portuguesa foi mais
eficiente e mais brilhante do que no apostolado missionário nas terras
virgens do ultramar. O apostolado missionário moderno, a
metodologia e a estratégia da evangelização nasceram em Portugal
sob a égide do Infante de Sagres. Não há documento emanado da Cúria
Romana que não tenha sido suscitado pelos mentores da política
ultramarina portuguesa, fossem eles D. João I, D. Duarte, o Infante D.
Pedro, D. Afonso V, o Infante D. Henrique ou D. João II.
O objectivo ético das Descobertas, tido por aquele estudioso
como sua razão primeira (naturalmente de par com outras que a
secundavam nos planos económico, social e político...), era “o serviço
de Deus”, argumento que atesta a indesmentível espiritualidade e
finalidade missionária daquele histórico empreenedimento, não
deixando de ser sintomático, a esse propósito, o próprio facto de o
primeiro posto missionário português em África ter sido criado em
Ceuta e confiado em 1420 aos Franciscanos do Poverello, poucos anos
depois, portanto, da conquista desta cidade, em 21 de Agosto d