Charlotte, descendente de africanos e rainha de Inglaterra – a.muse.arte

Charlotte, descendente de africanos e rainha de Inglaterra

Na série Bridgerton, da Netflix, a rainha Charlotte (1744 – 1818), mulher do rei inglês George III (1738-1820), é interpretada por uma intérprete negra. Apesar de não haver consenso sobre a sua etnia, a ascendência africana é defendida por alguns investigadores e foi amplamente especulada na altura do casamento do príncipe Harry com a afro-americana Meghan Markle, rebatendo a ideia de que esta seria a primeira mestiça a entrar no núcleo da família real britânica.

Queen Charlotte Sophia
Allan Ramsay, c. 1784
Oxford, University of Oxford, St John’s College

De acordo com antigos registos genealógicos apresentados pela primeira vez pelo historiador Mario de Valdes y Cocom, especialista em diáspora africana, Charlotte de Mecklenburg-Strelitz seria descendente de uma africana, Madragana Ben Aloandro (1230-?), com o nome cristão de Mor Afonso, amante do rei português Afonso III (1210-1279), após a conquista de Faro.

Duarte Nunes de Leão refere-a brevemente como “mulher mourisca” na Primeira parte das chronicas dos reis de Portugal: “Houve mais de hu[m] molher Mourisca outro filho, que se chamou Martim Afõso Chichorro, de que desdende[m] os fidalgos daquele apelido.” (Leão, 1600, fl. 97r).

António Brandão apresenta-a mais circunstanciadamente como filha de Aloandro Ben Bakr alcaide da cidade de Faro:

No que toca a Moura que foi sua [de Martim Afomso Chichorro] mãy, em hu[m]a memoria manu escrita achei ser filha de Aloandro, hum dos Alcaides de Faro, quando elRey ganhou esta cidade no anno de mil & duzentos & cincoenta. Tinha esta filha dotada de grande fermosura, cõ que elRey tomou amores, não há nisto difficuldade, posto que lhe não podemos assegurar a certeza. (Brandão, 1632, fl. 222v)

Valdes y Cocom defende que a rainha Charlotte, apesar de alemã, era descendente direta de um ramo da família real portuguesa, aparentado com Margarita de Castro e Souza, uma nobre portuguesa do século XV de nove gerações, cuja ancestralidade remonta a Afonso III e Madragana. “Six different lines can be traced from English Queen Charlotte back to Margarita de Castro y Sousa, in a gene pool which because of royal inbreeding was already minuscule, thus explaining the Queen’s unmistakable African appearance” (Valdes y Cocom, s.d.). Esta ligação explica o facto de ser representada pelos seus contemporâneos com uma inconfundível aparência africana (id., ibid.).

Queen Charlotte Sophia
Allan Ramsay, c. 1761-1762 
Londres, National Portrait Gallery

A. Rogers já havia sugerido esta ligação no primeiro volume da obra Sex and race, que abre precisamente com um retrato da rainha Charlotte, por Allan Ramsay, e que se encontra atualmente National Portrait Gallery, em Londres. Allan Ramsay (1713-1784), destacado pintor e retratista da época, conhecido pela fidelidade ao original, é o autor da maioria dos retratos conhecidos da rainha onde estas caraterísticas negroides são sobressalientes, com o nariz largo e achatado e os lábios grossos, apesar do tom pálido da pele.

Queen Charlotte with her two eldest sons (detalhe)
Johan Zoffany, 1765
Royal Collection Trust, RCIN 400146

O embranquecimento da pele é ainda mais notório no retrato feito por Johan Zoffany, Queen Charlotte with her two eldest sons que faz parte da Royal Collection, onde as feições são também suavizadas.

Queen Charlotte
Thomas Gainsborough, 1782
Royal Collection Trust, RCIN 401007
Queen Charlotte
Thomas Gainsborough, 1781
Royal Collection Trust, RCIN 401407

O mesmo acontece nos retratos de autoria de Thomas Gainsborough, também na Royal Collection: um retrato de busto, encomendado provavelmente pela própria rainha, inserido numa série de 15 retratos da família real, executados em Windsor entre setembro e outubro de 1783; o outro, anterior, a corpo inteiro, o qual, quando foi exposto pela primeira vez na Royal Academy, em 1781, foi descrito por Sir Henry Bate-Dudley como “the only happy likeness we ever saw pourtrayed of her Majesty” (Royal Collection Trust, s.d.), mas cujo aspeto se torna mais híbrido nas gravuras feitas a partir da pintura e conservadas no British Museum.

Her Majesty Queen Charlotte
Gravura a partir da pintura de Thomas Gainsborough; impressor: W. Read (?), 1842
Londres, Bristish Museum

Nestas representações, estará mais presente a tendência para idealizar o representado, levando os artistas a minimizar ou mesmo obliterar algumas caraterísticas que fugissem aos parâmetros de beleza e perfeição da época.

Valdes y Cocom considera que o facto de Allan Ramsay ter evidenciado as feições africanas da rainha tem um cunho político e uma afirmação das suas ideias anti esclavagistas, ele próprio casado com uma sobrinha de Lord Mansfield, o juiz inglês cuja decisão de 1772 foi a primeira de uma série de sentenças que acabaram com a escravatura no Império Britânico.

Enquanto que a distância geracional torna pouco plausível a hipótese de a origem das feições africanas da rainha se explicarem pela ascendência portuguesa e moura, certo é que a aristocracia europeia, assente no preconceito da superioridade branca, procurava uma representação idealizada de indivíduos miscigenados, eliminando os traços de outras etnias.

Shonda Rhimes, no papel da rainha Charlotte, na série Bridgerton
Foto: Liam Daniel/Netflix

Ao mesmo tempo que contraria o apagamento histórico da cultura e ancestralidade negras nos filmes e séries de época, a série Bridgerton procura legitimar a ascendência negra da rainha, a que não será alheia a intenção de sublimar o colonialismo da época, colocando atores negros em papéis de destaque da aristocracia e introduzindo nos elementos das culturas africanas nas roupas e nos penteados. Eventualmente, com um fundo de verdade, ainda por confirmar.

Referências:
Brandão, A. O. C. (1632). Quarta parte da Monarchia lusitana: Que contem a historia de Portugal desdo tempo delRey Dom Sancho Primeiro, até todo o reinado delRey D. Afonso III… Impressa em Lisboa em o Mosteiro de S. Bernardo: por Pedro Craesbeeck. Acedido em https://purl.pt/12677
Leão, D. N. (1600). Primeira parte das Chronicas dos reis de Portvgal / reformadas pelo licenciado Dvarte Nvnez do Lião…. – Em Lisboa : por Pedro Crasbeeck. Acedido em https://purl.pt/15305
Rogers, J. A. (2011). Sex and race: Negro-caucasian mixing in all ages and all lands (9.ª ed., vol. 1): The old world. St. Petersburg, FL: Helga M. Rogers.
Royal Collection Trust. (s.d.). Thomas Gainsborough (1727-88): Queen Charlotte (1744-1818), c. 1781. Acedido em https://www.rct.uk/collection/401407/queen-charlotte-1744-1818
Valdes y Cocom, M. (s.d.) The blurred racial lines of famous families: Queen Charlotte. PBS Frontline. Acedido em https://www.pbs.org/wgbh/pages/frontline/shows/secret/famous/royalfamily.html

 



Citar este post
Maria Isabel Roque (2021, 25 Janeiro). Charlotte, descendente de africanos e rainha de Inglaterra. a.muse.arte. Recuperado em 10 de Maio de 2024, de https://doi.org/10.58079/b53o

4 comentários em “Charlotte, descendente de africanos e rainha de Inglaterra”

  1. a historia da rainha charlote ter sangur negro nao procede e a familia portugursa nao teve ramo negro teve descendentes de msdrigana e afonso iii que tiveram influencia em todas familias reais da europa

  2. Em primeiro lugar, não se pode falar em fotos naquela época, como as de hoje, pois eram retratos, pinturas feitas por um pintor retratista. Não existiam máquinas fotográficas, portanto os retratos eram pintados corrigindo o que não correspondia o padrão de beleza da sociedade inglesa da época.

Deixe uma resposta

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.

Pesquisar OpenEdition Search

Você sera redirecionado para OpenEdition Search