Indonésia deixa pobreza extrema para trás após 30 anos de crescimento turbinado - Estadão
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Indonésia deixa pobreza extrema para trás após 30 anos de crescimento turbinado

De 1990 a 2022, o país do sudeste asiático, que já foi um dos mais pobres do mundo, reduziu a miséria de 62% para 2,5% da população e quintuplicou o PIB per capita

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Por José Fucs
Atualização:

Na abertura do livro Realizando o potencial econômico da Indonésia, publicado pelo FMI (Fundo Monetário Internacional) em 2018, o economista Boediono (pronuncia-se Budjono), ex-presidente do Banco Central (2008-2009) e ex-vice-presidente (2009-2014) do país, faz uma afirmação que explica muito sobre a baixa visibilidade do vasto arquipélago do sudeste asiático na arena global. “A Indonésia nunca se destacou na arte da autopromoção”, diz Boediono, que adota, como muitos indonésios, apenas o primeiro nome.

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A ex-colônia holandesa, porém, que declarou sua independência em 1945, mas só conseguiu consolidá-la em 1949, depois de uma longa guerra contra os colonizadores, tem bons motivos para ganhar os holofotes, com os resultados notáveis que obteve na redução da miséria nas últimas décadas.

De acordo com o Banco Mundial, o número de pessoas em situação de extrema pobreza, vivendo com menos de US$ 2,15 (R$ 10,75) por dia, em valores de 2017 ajustados pelo poder de compra, caiu de 114,3 milhões em 1990 para 6,9 milhões em 2022, num período em que sua população – a quarta maior do planeta – aumentou 51,2%, para 275,5 milhões. Em termos relativos, a miséria também caiu de forma significativa, de 62,8% para 2,5% da população, no mesmo período.

Ainda há, é certo, quase sete milhões de indonésios vivendo abaixo da linha de pobreza, o que não é pouca coisa. É certo também que, apesar de a desigualdade ter caído alguns pontos desde o pico atingido em 2013, ela ainda está acima do que era no ano 2000. Além disso, quando se considera um ganho um pouco maior, de US$ 3,65 por dia, também conforme o Banco Mundial, o contingente incluído nesta faixa, que chegava a 91% do total em 1998, ainda engloba 20% da população. E, quando se sobe a barra mais um pouco, para US$ 6,85 por dia, a parcela da população enquadrada na categoria, que alcançava 99% há 25 anos, continua em torno de 60% do total.

Mesmo assim, o resultado obtido pela Indonésia na redução da pobreza extrema transformou o país, que tem a maior população muçulmana do mundo, num dos grandes exemplos globais de enfrentamento da miséria. Até durante a pandemia, quando a pobreza aumentou em nível internacional, ela continuou a cair no país. “A Indonésia praticamente acabou com a pobreza”, afirma a economista Satu Kahkonen, diretora do Banco Mundial para a Indonésia e o Timor-Leste, numa publicação da instituição sobre como o país pode continuar a melhorar as condições de vida dos mais vulneráveis.

Esta reportagem sobre a Indonésia faz parte da série Os caminhos da prosperidade, que aborda a diminuição da miséria na Ásia, cuja contribuição foi fundamental para a redução significativa da pobreza no mundo nas últimas décadas. Lançada pelo Estadão no fim de janeiro, com a publicação de uma reportagem mostrando que os avanços alcançados pela região vão muito além da China e da Índia, a série já apresentou o caso de Bangladesh e na semana que vem deverá abordar o do Vietnã, o último do projeto.

Shopping popular em Jacarta, capital do país: mercado interno robusto Foto: Eiko Siswono Toyudho

Como Bangladesh e outros países asiáticos, a Indonésia conseguiu compensar um certo desequilíbrio na repartição do bolo ao avançar em aspectos que vão além do combate à pobreza monetária propriamente dita. Hoje, os partos realizados pelo pessoal da área de saúde, que eram apenas 40% do total em 1990, chegam a quase 100%, conforme o Banco Mundial. A taxa de mortalidade de crianças com até cinco anos caiu de 84 por mil nascimentos para 22 por mil no mesmo período. A vacinação de crianças de 12 a 23 meses contra o sarampo passou de 58% para 84% do total.

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Ao mesmo tempo, a taxa de conclusão do ensino básico, que era de 94% do total de pessoas com idade oficialmente vinculada ao ciclo, agora está em 103%, indicando que um grupo mais velho, que havia deixado de estudar, voltou à escola. No caso do ensino fundamental, o Banco Mundial não divulga a taxa dos que conseguem chegar ao fim do ciclo. Mas as matriculas, que representavam 47% da população com idade correspondente a esta etapa, chegaram a 99% do total em 2022, de acordo com a instituição.

Até o grande número de motocicletas existentes no país representa um sinal da melhoria nas condições de vida no país. A Indonésia tem uma das maiores frotas de motocicletas do mundo, boa parte das quais de baixa cilindrada, que consomem pouco combustível e tem custo relativamente baixo. Segundo a Statista, uma plataforma online alemã especializada na coleta de dados internacionais, havia nada menos que 125 milhões de motocicletas em circulação na Indonésia em 2022, sete vezes mais do que o número de carros – no Brasil, para efeito de comparação, há 32,3 milhões de motos registradas, conforme dados da Secretaria Nacional de Trânsito (Senatran), enquanto o total de carros chega a 76,3 milhões. Em Jacarta, capital da Indonésia, oito em cada dez pessoas têm pelo menos uma moto.

Na Indonésia, como em qualquer lugar que reduziu drasticamente a pobreza, o grande motor da melhoria nas condições de vida foi o crescimento econômico acelerado. Graças a isso, o país, que era um dos mais pobres do mundo na época da independência, tornou-se a 16.ª economia mundial, com um PIB de US$ 1,32 trilhão em 2022, cinco posições atrás do Brasil – que saltou para o 9.º lugar em 2023 – na ocasião. Pelo critério do PIB ajustado ao poder de compra, a Indonésia ocupava a sétima posição da lista em 2022, à frente do Brasil, que estava em oitavo lugar.

O ritmo de crescimento da Indonésia, de 4,7% em média ao ano desde 1990, foi um pouco mais suave do que o de outros países da região nas últimas décadas, como China, Índia e Bangladesh, mas ainda ficou bem acima da média mundial, de 2,9%, e do Brasil, de 2,1%, no mesmo período. Com isso, a Indonésia passou a ser considerada um país de renda média alta, a mesma categoria do Brasil.

A Indonésia tem uma economia muito mais moderna, diversificada e dinâmica do que muitos investidores internacionais imaginam

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Os números falam por si mesmos. Entre 1990 e 2022, o PIB per capita do país em valores correntes, ajustado pelo poder de compra, cresceu 4,8 vezes, de US$ 3,1 mil para US$ 14,7 mil, enquanto o do Brasil aumentou 2,7 vezes e a média mundial, 3,7 vezes.

“Quando a maioria das pessoas pensa sobre a Indonésia, elas pensam em praias e templos ou em suas cidades fervilhantes, mas o país tem uma economia muito mais moderna, diversificada e dinâmica do que muitas empresas e muitos investidores internacionais imaginam”, dizem Robert Dobbs, Fraser Thompson e Arief Budiman, então executivos da McKinsey, uma das principais empresas internacionais de consultoria, em artigo sobre o “milagre” econômico indonésio, publicado na revista americana Foreign Affairs.

Ao lado do crescimento econômico, puxado principalmente pelo aumento do consumo interno, os programas sociais também deram uma contribuição considerável para a redução da miséria na Indonésia, em especial a partir do ano 2000. O Programa Esperança da Família (PKH, na sigla em indonésio), que funciona nos moldes do Bolsa Família, é um exemplo emblemático. Ele atende cerca de 15 milhões de famílias em situação de pobreza (40 milhões de pessoas), com foco nos núcleos com crianças em idade escolar e nas mulheres grávidas ou que estão amamentando.

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Já o programa de assistência à alimentação (BPNT) fornece um cartão para compra de alimentos básicos, como arroz e ovos, em estabelecimentos credenciados, enquanto o Sistema Nacional de Seguro Saúde (BPJS Kasehatan) garante o atendimento médico e hospitalar aos mais vulneráveis.

Nos primeiros 40 anos de vida, a Indonésia já vinha crescendo de forma vigorosa, de um jeito ou de outro, o que gerava algum efeito na redução da pobreza. Mas foi após a crise asiática, ocorrida em 1997, quando o PIB do país levou um tombo de 13% e o então presidente Hadji Suharto – que assumiu o poder em 1968 por meio de um golpe militar e ficou trinta anos no cargo – caiu, que a Indonésia ergueu as bases de um novo ciclo de desenvolvimento, que se estende até hoje.

Depois de a dívida pública chegar a 90% do PIB após a crise, o país aprovou uma lei estabelecendo um teto 3% do PIB para o déficit primário do governo e de 40% do PIB para a dívida pública, restrição só aliviada durante a pandemia, em 2020 e 2021. Hoje, de acordo com informações oficiais, a dívida está em 39% do PIB, menos da metade da brasileira, que está roçando os 80% do PIB – e contando.

Na Indonésia, como no Brasil na maior parte das vezes, o Banco Central é dirigido com autonomia por figuras respeitadas pelos investidores do país e do exterior. Algo parecido acontece com o Ministério das Finanças. O mercado de capitais é relativamente livre e a Bolsa de Valores fechou 2023 com 833 empresas listadas, privadas e estatais.

Na área externa, apesar de a Indonésia ter voltado a apresentar os déficits em conta corrente que marcaram a década passada, a situação por ora não chega a preocupar. As reservas cambais, embora mais baixas que as do Brasil, chegam a US$ 135 bilhões e oferecem certa tranquilidade para cobrir eventuais diferenças nas contas internacionais e enfrentar crises globais. Neste cenário, em que a situação fiscal é relativamente tranquila e o quadro externo está mais ou menos sob controle, não chega a surpreender que, ao contrário do Brasil, a Indonésia tenha recebido o “grau de investimento” das principais agências de classificação de risco.

Como o Brasil, a Indonésia é um país rico em recursos naturais, com um enorme potencial para se beneficiar com a transição energética. É o maior produtor mundial de níquel, componente crítico para baterias de carros elétricos, terceiro maior produtor de cobalto, maior exportador de óleo de palma, segundo maior exportador de carvão e quinto maior produtor de bauxita, usada na produção de alumínio.

Recentemente, a Indonésia, que foi um dos pilares do antigo movimento não-alinhado, rejeitou o convite para aderir ao Brics, o grupo formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, que incorporou novos integrantes no ano passado. Foi um movimento cujo objetivo, de acordo com alguns analistas, era não passar a mensagem de que o país, que sempre manteve certa neutralidade na disputa entre a China e os Estados Unidos, estaria se colocando na esfera de influência de Pequim.

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A questão é que, apesar de todas essas vantagens, a Indonésia tem problemas estruturais que acabam gerando dúvidas de que o país conseguirá manter ou até acelerar ainda mais o crescimento robusto registrado desde a crise asiática, para melhorar ainda mais a qualidade de vida da população.

A fatia da manufatura no PIB, por exemplo, que já chegou a mais de 30% no fim do século passado, vem caindo desde o ano 2000 e hoje caiu a menos de 20%, bem abaixo de muitos de seus vizinhos. Entre 1990 e 2010, de acordo com um estudo da McKinsey, o aumento da produtividade do trabalho, que é um dos fatores que garantem o crescimento sustentável de longo prazo, respondeu por mais de 60% do aumento do PIB. Só que, desde então, a produtividade estagnou ou até declinou.

A participação da Indonésia nas cadeias de valor também é inferior à média global, conforme as grandes empresas de consultoria. Os investimentos diretos líquidos (descontadas as remessas) recebidos pelo país, de 1,6% do PIB em 2022, também são relativamente modestos, de acordo com o Banco Mundial, em comparação com outros países asiáticos – mesmo o Brasil, que teve um resultado bem abaixo das expectativas no primeiro ano do governo Lula, recebeu um total líquido de investimentos externos equivalente a 2,9% do PIB, segundo o Banco Central.

Capital volátil

A dependência da Indonésia de capital volátil de curto prazo, que é aplicado no mercado financeiro, em ações ou em títulos do governo, acaba aumentando as incertezas em relação às contas externas. Em 2022, a redução das importações e o aumento dos preços das commodities, em razão da guerra na Ucrânia, acabaram suavizando o problema, mas ele está lá, à espreita, podendo emergir a qualquer momento.

Nos últimos anos, o presidente Joko Widodo – conhecido como Jokowi, que deve deixar o cargo, no qual está há dez anos, logo depois das eleições de 14 de fevereiro – até vem tentando implementar medidas para melhorar o quadro. Mas, ao mesmo tempo em que transmite sinais de que as coisas estão indo na direção certa, promove intervenções que podem agravar ainda mais a situação.

Em 2020, por exemplo, Widodo lançou um pacote com cerca de setenta medidas para melhorar o ambiente de negócios, como a flexibilização das leis trabalhistas e o alívio nas restrições para o investimento estrangeiro. Depois de o Congresso ter aprovado as medidas, a Suprema Corte considerou algumas delas inconstitucionais, dando um prazo ao governo para modificar os dispositivos. Mas, pelo menos, ainda que precise de ajustes, a ação governamental estava na direção certa.

No entanto, Widodo proibiu as exportações de níquel, com o objetivo de processar o metal no próprio país, gerando questionamentos da União Europeia na Organização Mundial do Comércio (OMC). Ele está tentando também criar uma indústria local de baterias e veículos elétricos, ampliando o valor agregado das exportações, e até conseguiu atrair grandes grupos da República da Coreia e da China, mas à custa de medidas de proteção à produção local. O governo ainda pressionou a Freeport McMoRan, uma empresa de mineração americana, a vender parte de suas ações na Grasberg, uma mina de ouro e prata que ela controlava, para manter sua influência na exploração mineral.

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Desde o início de seu primeiro mandato, em 2014, Widodo também realizou uma espécie de PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) indonésio, com pesados investimentos estatais em infraestrutura. Um dos projetos é uma linha de trem-bala ligando Jacarta a Bandung, localizada a de 350 km da capital, que foi construída em parceria com a China, a um custo estimado de R$ 5,5 bilhões (R$ 27,5 bilhões).

Nós queremos construir uma cidade do futuro que vai ser a vitrine da transformação da Indonésia

Joko Widodo, presidente da Indonésia

Em sua lista de realizações, que costuma repetir aos jornalistas do exterior que o entrevistam, Widodo inclui 2.042 km de rodovias, 16 aeroportos, alguns dos quais localizados em locais sem demanda suficiente, 18 portos e 61 barragens. Boa parte dos projetos, segundo reportagem da revista The Economist, foi tocada por estatais, levando a um aumento das dívidas das empresas, que são de responsabilidade do governo, mas não aparecem na contabilidade oficial. De acordo com a Economist, apenas quatro estatais da área de construção listadas em Bolsa aumentaram suas dívidas em 18 vezes nesse período, para US$ 8,2 bi, por causa das obras em que se envolveram.

Seu projeto mais polêmico e ambicioso, porém, é a mudança da capital de Jacarta para a ilha de Borneo, sob a justificativa de que a cidade está afundando 25 centímetros por ano e a Indonésia precisa levar o desenvolvimento para além da ilha de Java. É um plano que lembra muito o projeto de Juscelino Kubitscheck para a construção de Brasília.

Com custo estimado em US$ 34 bilhões, a nova capital, batizada de Nusantara, deve ser uma cidade inteligente, totalmente ecológica, e ficar pronta em 2045, no centenário da independência. Mas, se tudo der certo, a primeira fase deverá ser finalizada ainda este ano, permitindo a mudança dos palácios do presidente e do vice-presidente, das Forças Armadas e dos ministérios do governo para o novo endereço. “O que nós queremos é construir uma cidade do futuro baseada na floresta e na natureza”, afirmou o presidente ao jornal Financial Times. “Isso vai ser a vitrine da transformação da Indonésia.”

Retrocessos

Diante deste quadro, a trajetória do país nas últimas décadas, com crescimento acelerado e quase eliminação da pobreza extrema, parece desafiar a lógica, mesmo com as contas públicas e internacionais relativamente em ordem. Pode até ter funcionado, de um jeito ou de outro, até agora. Mas é difícil afirmar se esse caminho levará a Indonésia a um novo ciclo de prosperidade daqui para a frente, que possa evitar retrocessos e garantir novos avanços na melhoria das condições de vida dos mais pobres.

Para a Indonésia se tornar a quarta maior economia do planeta em 2050, atrás apenas da China, dos Estados Unidos e da Índia, como prevê o Goldman Sachs, um dos maiores bancos de investimento americanos, num relatório lançado no fim de 2022, é provável que mais do mesmo não seja suficiente.

Segundo analistas que acompanham o país há anos, o único caminho capaz de assegurar o crescimento sustentável de longo prazo é o aumento da produtividade – e não há atalhos para chegar lá. A Indonésia terá de seguir a velha cartilha que a gente conhece bem no Brasil: realizar as reformas estruturais, reduzir a interferência do Estado na economia, combater a corrupção, que impregna o governo e a sociedade, melhorar o ambiente de negócios e a governança das instituições, além de eliminar ainda mais as restrições para o investimento estrangeiro e para o comércio exterior.

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Com as eleições e a mudança de governo no radar, a Indonésia teria uma oportunidade de ouro de encarar seus problemas de frente. Pelo que se escuta dos candidatos, no entanto, até agora não apareceu ninguém encampando essa agenda. Agora, de repente, como já aconteceu, a Indonésia pode desafiar a lógica novamente e chegar nos primeiros lugares do ranking das maiores economias do mundo nos próximos 25 anos, transformando a previsão do Goldman Sachs em realidade e melhorando ainda mais a qualidade de vida da população.

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