Apontada como Shakespeare dos Estados Unidos por Harold Bloom, a poeta, ao recriar a língua inglesa, inventou uma Dickinsonland

Não é uma fábula. Mas deve-se começar assim: era uma vez… Emily Dickinson. Quem? Simplesmente: a maior poeta dos Estados Unidos, a deusa, ao lado de Walt Whitman, o deus, o pai-fundador. O crítico literário Harold Bloom a percebe como uma espécie de Shakespeare dos Estados Unidos. Era mais: era Emily Dickinson, um gênio que não publicou dez poemas em vida. Mas deixou, guardadinhos, quase 2 mil poemas — a maioria de alta qualidade.

Num poema, bardou, em tradução de Aíla de Oliveira Gomes: “Esta, minha carta para o mundo,/Que nunca escreveu para mim —/ Simples novas que a Natureza/ Contou com terna nobreza.// Sua mensagem, eu a confio/A mãos que nunca vou ver —/Por causa dela — gente minha —/ Julgai-me com bem-querer.”

Belo, não é? Ela tinha consciência de que a posteridade reconheceria seu imenso talento — que sua época não pôde compreender, até porque quase não publicou (“Publicar — é como leiloar/ A consciência humana” — escreveu). Quando publicaram, sua poesia, tão diversa da poesia de então, porque dizia mais respeito ao futuro, deixou a maioria dos leitores, inclusive os críticos literários, estupefata.

Emily Dickinson era tão grande para sua época que não cabia nela. Como todo poeta, dos melhores aos piores, sofreu influência de outros vates. Mas o que ela fez com a experiência dos outros, colocando tudo no liquidificador e produzindo algo inteiramente novo e inimitável — é mais fácil imitar Walt Whitman, daí tantos seguidores, como o gigante D. H. Lawrence —, é surpreendente.

Emily Dickinson

Reza a lenda de que o tradutor de Emily Dickinson tem, antes de começar a colocá-la na sua língua, de fazer um curso de “contorcionismo” linguístico — se não houver um circo nas proximidades, recomenda-se um estudo detido num departamento de Letras. Pois bem: Emily Dickinson, que não era apenas a Dama de Branco, a mulher solitária que não saía de casa e era dona do cachorro Carlo, não deve ser folclorizada. Porque, longe de ser uma poeta puramente intuitiva (e era também intuitiva), era cultíssima e, por isso, reinventou a língua inglesa. Nas suas mãos, dado seu cérebro prodigioso e astuto, o inglês se tornou uma espécie de outra língua. Ela arrancou a pomposidade da língua, ressecou suas propriedades — por si só, contida —, e nos deu uma poesia com nova gramática. Sua pontuação, que assusta tradutores, é parte da poesia, não é mero fecho e início de alguma coisa. Tanto que, a rigor, sua pontuação, com travessões, não fecha nem abre portas; ao contrário, as mantém abertas… sempre. Falar numa Dickinsonland, em termos de poesia única, não é uma impropriedade, por certo.

Emily Dickinson (1830-1886), poetisa americana, uma das maiores de todos os tempos

Por que Emily Dickinson publicou tão pouco, sabendo de seu imenso talento? Talvez porque percebeu que não seria muito bem compreendida — e, claro, era mulher, num tempo de hegemonia dos homens. Há um belo poema de sua autoria (tradução de Aíla de Oliveira Gomes) que assinala: “Eu sou Ninguém. E você?/ É Ninguém também?/ Formamos par, hein? Segredo —/ Ou mandam-nos p’ro degredo.// Que enfadonho ser alguém!/Tão público — como o sapo/Coaxando seu nome, dia vai, dia vem/Para um boquiaberto charco.”

Emily Dickinson nasceu em 1830 (há 189 anos) e morreu em 1886 (há 133 anos). Nasceu e, claro, não morreu: tornou-se eterna. É lida praticamente em todo o mundo. Sua fortuna crítica só cresce.

Seria Emily Dickinson? Há quem aposte que sim e há quem acredite que não

Escolher dez poemas é uma temeridade. Porque a poeta tem grandes poemas — alguns considerados muito mais importantes do que os listados. Mas listas são assim mesmo: lacunares e, sempre, idiossincráticas. Os leitores brasileiros têm sorte, muita sorte, pois contam com excelentes traduções de Adalberto Müller, Manuel Bandeira, Augusto de Campos, José Lira, Aíla de Oliveira Gomes, Idelma Ribeiro de Faria, Paulo Henriques Britto e vários outros.

Emily Dickinson deixou poemas sobre o Brasil, traduzidos por José Lira e Aíla de Oliveira Gomes. Uma tradução de Aíla de Oliveira Gomes: “Foi só aquilo que pedi./E nada mais me era negado;/Ofereci o Ser por isto./O Mercador sorriu com enfado://’Brazil?’ Fez girar um botão/(Sem nem sequer me olhar!)/”Mas, Madame, nada mais, hoje,/Do que temos, vai-lhe agradar?” Uma tradução de José Lira: “Borboletas assim se veem/ Nos Pampas do Brasil —/ Ao meio-dia — só — e acaba/ A Amável Permissão —// Sabores assim — vêm e voltam —/Depois de dar-se — a Ti —/ Como Estrelas — que viste à Noite —/ Estranhas — de Manhã —”.

A poeta Emily Dickinson  aos 16 anos. O registro integra o acervo de Harvard lançado em 2013. Reclusa e tímida, a escritora de Amherst (EUA) viveu até os 55 anos

1

Não viverei em vão, se puder

Salvar de partir-se um coração,

Se eu puder aliviar uma vida

Sofrida, ou abrandar uma dor,

Ou ajudar exangue passarinho

A subir de novo ao ninho —

Não viverei em vão.

(Tradução de Aíla de Oliveira Gomes)

2

Dizer toda a Verdade — em modo oblíquo —

No circunlóquio, o êxito:

Brilha demais p’ra nosso enfermo gozo

O seu sublime susto.

 

Como a meninos se explica o relâmpago

De modo a sossegá-los —

A Verdade há de deslumbrar aos poucos

Os homens — p’ra não cegá-los.

(Tradução de Aíla de Oliveira Gomes)

3

Publicar — é o Leilão

Da nossa Mente —

Pobreza — uma razão

De algo tão deprimente

 

Mas Nós — antes, em Greve,

Da Mansarda ir, sem cor,

Branca — Ao Branco Criador —

Que investir — Nossa Neve —

 

A Ele e o nosso Pensamento

Pertence — a Ele Que encomenda

Sua ilustração Corpórea — a Venda

Do Real Alento —

 

Mercar, sim — o que emana

Do Celeste Endereço —

Sem reduzir a Alma Humana

À Desgraça do Preço —

(Tradução de Augusto de Campos. Note que ele preserva o uso de maiúsculas e a pontuação, mais emilydickinsoniana do que idiossincrática)

4

Não sou Ninguém! Quem é você?

Ninguém — Também?

Então somos um par?

Não conte! Podem espalhar!

 

Que triste — ser — Alguém!

Que pública — a Fama —

Dizer seu nome — como a Rã —

Para as palmas da Lama!

(Tradução de Augusto de Campos)

5

O Cérebro — é mais amplo do que o Céu —

Pois — colocai-os lado a lado —

Um o outro irá conter

Facilmente — e a Vós — também —

 

O Cérebro é mais fundo do que o mar —

Pois — considerai-os — Azul e Azul —

Um o outro irá absorver —

Como as Esponjas — à Água — fazem —

 

O Cérebro é apenas o peso de Deus —

Pois — Pesai-os — Grama a Grama —

E eles só irão diferir — e tal acontecer —

Como a Sílaba do Som —

(Tradução de Cecília Rego Pinheiro)

6

Nunca me senti em Casa — Cá em baixo —

E nos Aprazíveis Céus

Não me sentirei em Casa — eu sei —

Eu não gosto do Paraíso —

 

Porque é Domingo — sempre —

E o Recreio — nunca chega —

E o Éden serão solitárias

Claras Tardes de Quarta-feira —

 

Se, ao menos, Deus fizesse visitas —

Ou Sestas —

E deixasse de nos ver — mas dizem

Que Ele — por seu um Telescópio

 

Perpétuo nos olha —

Eu própria fugiria

D’Ele — e do Espírito Santo — e de Todos —

Não fosse o “Juízo Final”!

(Tradução de Cecília Rego Pinheiro)

7

O sucesso é muito mais doce

Para quem não o pode alcançar.

O que faz compreender um néctar

É a sede e o anseio de o provar.

 

Ninguém desta hoste purpúrea

Que hoje empunhou o pavilhão

Dará acerca da vitória

Mais perfeita definição

 

Do que ele, o vencido, — em agonia —

Sentindo irromper nos ouvidos

Os sons do triunfo: distantes

Porém claros, martirizantes.

(Tradução de Idelma Ribeiro de Faria)

8

Dizem que “o Tempo tudo cura” —

Mas o certo é que não —

A dor que é dor fica mais rija

Como velho Tendão —

 

O Tempo é Teste de Tormentos —

Não Remédio afinal —

Se algo isso prova, também prova

Que não havia Mal —

(Tradução de José Lira)

  1. 2. Outra tradução para o mesmo poema

Dizem, “com o tempo se esquece”,

Mas isto não é verdade,

Que a dor real endurece,

Como os músculos com a idade.

 

O tempo é o teste da dor,

Mas não é o seu remédio —

Prove-o e, se provador for,

É que não houve moléstia.

(Tradução de Aíla de Oliveira Gomes)

9

Não tive tempo para o ódio

Porque

Vivia a cova a me esperar —

E a vida não me foi tão longa

Que eu

Pudesse as rixas acabar —

 

Nem para o amor eu tive tempo —

Já que

Muito de mim tinha que dar —

O vão labor que o amor pedia

Achei

Duro demais para aguentar —

(Tradução de José Lira)

10

Morri pela Beleza, mas na tumba

Mal me tinha acomodado

Quando outro, que morreu pela Verdade,

Puseram na tumba ao lado.

 

Baixinho perguntou por que eu morrera.

Repliquei, “Pela Beleza” —

“E eu, pela Verdade” — ambas a mesma —

E nós, irmãos com certeza.

 

Como parentes que pernoitam juntos,

De um quarto a outro conversamos —

Até que o musgo alcançou nossos lábios

E encobriu os nossos nomes.

(Tradução de Aíla de Oliveira Gomes)

Livros de onde foram colhidos os poemas

1 — “Uma Centena de Poemas”, Emily Dickinson. T. A. Queiroz, Editor. 1985. Tradução de Aíla de Oliveira Gomes.

2 — “Poemas”, de Emily Dickinson. Editora Hucitec. 1991. Tradução de Idelma Ribeiro de Faria.

3 — “Alguns Poemas”, de Emily Dickinson. Editora Iluminuras. 2006. Tradução de José Lira.

4 — “Não Sou Ninguém — Poemas”, de Emily Dickinson. Editora Unicamp. 2008. Tradução de Augusto de Campos.

5 — “Esta É a Minha Carta ao Mundo e Outros Poemas”. Editora Assírio & Alvim. 1997. Tradução de Cecília Rego Pinheiro. (Tradução publicada em Portugal.)

E-mail: [email protected]