Os desdobramentos da histórica reação do jogador Vinicius Júnior, do Real Madri, à mais recente agressão por ele sofrida na Espanha – desta vez em um estádio de Valência –, confirma a importância de que as associações e empresas esportivas, e seus investidores, atuem de maneira institucional e intransigente no combate ao racismo.
O papel das instituições privadas nesse campo é tão relevante quanto o do poder público. Basta ver que a reiterada omissão da liga espanhola diante de diversos ataques a Vini Jr. só foi interrompida quando Carlo Ancelotti, treinador do Real Madri – sintomaticamente um bem-sucedido homem branco europeu –, representando o clube, recusou-se a tratar de outro tema que não o racismo, na entrevista após a partida.
Por aqui, os clubes – sejam empresas ou associações –, também precisam agir com firmeza. O racismo é questão persistente no Brasil, desde o primeiro episódio célebre – a não convocação de nosso maior jogador de então, Arthur Friedenreich para a seleção brasileira que disputaria o Campeonato Sul-Americano de 1921.
Vinte e um anos depois, em 1947, o jornalista Mário Filho – que dá nome ao estádio do Maracanã – publicava O Negro no Futebol Brasileiro, relatando o racismo no futebol no país, mas imaginando que tinha sido superado pelo sucesso de jogadores como Leônidas da Silva – o Diamante Negro –, artilheiro da Copa do Mundo de 1938.
Como se sabe, Mario Filho reviu sua posição na segunda edição de sua obra clássica, publicada em 1964. Vira como a derrota em pleno Maracanã na final da Copa de 1950 fora posta na conta do lateral Bigode e do goleiro Barbosa, ambos negros. Éramos uma seleção fraca e incapaz de vencer porque mestiça. Para ele, contudo, o preconceito teria sido finalmente superado, com a redenção dos títulos mundiais de 1958 e 1962.
Eu não sabia de nada disso quando comprei, em 1980, na Livraria José Olympio que ficava na esquina da rua da minha escola, a segunda edição de Os Subterrâneos do Futebol, de João Saldanha. Jornalista respeitado, ex-técnico da seleção, Saldanha era um ídolo para quem, como eu, torcia para o Botafogo de Futebol de Regatas.
O livro de Saldanha, publicado originalmente em 1963, narrava, com seu texto coloquial e divertido, os bastidores da temporada do Botafogo em 1958 – um grande time, repleto de campeões mundiais, e de que Saldanha se tornara técnico após o título carioca de 1957. Uma leitura deliciosa e leve, repleta de episódios que fazem rir.
Só que lá pelas tantas, entre a descrição das aventuras (e desventuras) daquele ano, Saldanha incluiu um capítulo com o título “Discriminação Racial nos Times Profissionais”. Entre tantas revelações divertidas de como as coisas se passavam no mundo do futebol, ele tratava com seriedade do grave problema do racismo no esporte.
Saldanha contava ter ouvido muitas vezes, como técnico do Botafogo, o pedido explícito: “João, vê se dá um jeito nisto e manda esses crioulos saírem da sede. Não pode, não é?”. Isso ocorria na maioria dos clubes de futebol do Rio de Janeiro e do Brasil, com poucas e honrosas exceções – como a do Vasco da Gama.
Também para a cisão do futebol brasileiro na década de 1930, opondo defensores do amadorismo e do profissionalismo, Saldanha (como, aliás, também fizera Mário Filho) apontava o racismo como causa: “Os clubes que não queriam o profissionalismo, mas no fundo não queriam eram abrir suas portas ao negro, ficaram num dilema: ou fechariam suas portas como clubes de futebol ou aceitariam o profissionalismo.”
Era igualmente à “ideia do time mais branco possível” que Saldanha atribuía o tropeço inicial do Brasil na Copa do Mundo de 1958. “A barba cresceu e Garrincha e Pelé ... entraram num time regular e o transformaram numa máquina de vitórias”. Nesse time, e no Botafogo, estava Didi, pouco depois o primeiro negro a jogar pelo Real Madri.
Desde 2014, o Observatório da Discriminação Racial no Futebol documenta anualmente os episódios que chegam à mídia – a partir de 2018 em parceria com o Museu da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e, desde 2021, com apoio da CBF. Basta ler para ver que, como era de se esperar, passados tantas décadas dos livros de Mário Filho e João Saldanha, o futebol não se tornou um oásis sem racismo em nosso país.
O último relatório disponível é o de 2021, e cobre eventos ocorridos no Brasil e com jogadores brasileiros no exterior. O documento deixa evidente a intensidade dos episódios. Foram 74 casos de discriminação racial (64 no Brasil e 10 Exterior). Na grande maioria das vezes, as vítimas são os atletas e os autores da agressão são os torcedores.
Apanhados em atos racistas, torcedores (e muitas vezes seus clubes) jogam a culpa nas vítimas. Vini Jr., por exemplo, é acusado de desrespeitar as torcidas quando comemora seus gols. Nós mesmos, botafoguenses, nunca engolimos sua comemoração depois de um golaço contra nós, esfregando os dedos nos olhos – em referência ao choro de nossos jogadores após a vitória do Flamengo em uma final de campeonato carioca.
Fiquei, por isso, especialmente satisfeito com a nota em apoio a Vini Jr. publicada pelo Botafogo. Não somente pela reação imediata, mas principalmente pela ausência de qualquer ressalva. O Botafogo hoje é uma empresa que visa o lucro, e cumpriu, nesse episódio, o importante papel que lhe cabia como tal. Mas é preciso ir além.
Caso queiram mesmo cumprir as melhores práticas ESG, os clubes brasileiros devem aprovar políticas detalhadas de punições a seus torcedores por atos racistas, inclusive os praticados nas redes sociais. Devem, também, submeter-se às consequências dos atos praticados em seus estádios, ao invés de recorrer na Justiça Desportiva.
Torcidas querem vencer. É aos clubes que cabe educar seus torcedores, e os jovens nas divisões de base, para o fato de que o combate ao racismo, à xenofobia e a qualquer ataque a minorias não é apenas um dever civilizatório: é também essencial para atrair os recursos que levam às vitórias. Se o fizerem, ao final todos teremos muito mais a celebrar.