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FISIOTERAPIA EM PEDIATRIA (3)

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FISIOTERAPIA EM PEDIATRIA – Da Evidência à Prática Clínica
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CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
F565
Fisioterapia em pediatria: da evidência à prática clínica/organização Ana
Cristina Resende Camargos ... [et al.]. - 1. ed. - Rio de Janeiro : Medbook,
2019.
640 p. ; 28 cm.
Apêndice
Inclui bibliogra�a e índice
ISBN 978-85-8369-045-0
1. Fisioterapia. I. Camargos, Ana Cristina Resende. II. Hércules Ribeiro
Leite. III. Rosane Luzia de Souza Morais. IV. Vanessa Pereira de Lima.
19-55115
CDD: 616.8913
CDU: 615.8
Meri Gleice Rodrigues de Souza - Bibliotecária CRB-7/6439
08/02/2019                  15/02/2019
MEDBOOK – Editora Cientí�ca Ltda.
Avenida Treze de Maio 41/salas 803 e 804 – Cep 20.031-007 – Rio de Janeiro
– RJ
Telefones: (21) 2502-4438 e 2569-2524 – www.medbookeditora.com.br
contato@medbookeditora.com.br – vendasrj@medbookeditora.com.br
Dedicamos este livro aos nossos �lhos, maridos,
esposas, pais e demais familiares.
C omo organizadores, estamos extremamente honrados com a concepção
�nal deste livro. Sabemos que a obra não seria possível sem o esforço e
a dedicação dos colaboradores convidados para esta primeira edição. Todos
eles foram além de nossas expectativas e mergulharam de cabeça nessa
aventura que contribui para o avanço da �sioterapia pediátrica no Brasil.
Os organizadores deste livro, além de colegas de trabalho, transformaram-
se em amigos mais que especiais, pois da concepção da sinopse inicial
(março de 2017) à entrega da versão �nal dos capítulos à editora (abril de
2018) estivemos unidos e �rmes, com muitas horas de dedicação e leitura
minuciosa de todos os capítulos.
Especial agradecimento às professoras Susan E�gen (USA) e Mijna
Hadders-Algra (Holanda), que aceitaram com presteza o convite para
prefaciar esta obra. Para nós é uma honra tê-las aqui. Seremos eternamente
gratos por compartilharem seus conhecimentos com tamanha generosidade.
Obrigado aos pais que gentilmente autorizaram o uso das imagens de suas
crianças nesta obra. À Clínica Escola de Fisioterapia da UFVJM e aos
demais colegas, técnicos e alunos do Departamento de Fisioterapia da
UFVJM e do Departamento de Fisioterapia da UFMG, obrigado pela
parceria e oportunidade diária de aprendizado e amizade.
Finalmente, obrigado à MedBook Editora pela assistência e o cuidado na
preparação dos originais para a publicação da obra.
Ana Cristina Resende Camargos
Hércules Ribeiro Leite
Rosane Morais
Vanessa Pereira de Lima
Organizadores
Aline Duprat Ramos
Fisioterapeuta. Especialista em Fisioterapia Cardiorrespiratória e
Neurofuncional pelo COFFITO. Mestre em Neurociências pela UFMG.
Fisioterapeuta do setor de Neurologia/Neurocirurgia do HPS João XXIII –
Rede FHEMIG – Belo Horizonte-MG. Fisioterapeuta da Unidade de Terapia
Intensiva do Hospital Metropolitano Odilon Behrens – Belo Horizonte-MG.
Ana Cristina Resende Camargos
Fisioterapeuta. Especialista em Fisioterapia em Neurologia (Universidade
Federal de Minas Gerais – UFMG). Mestre em Ciências da Reabilitação
(UFMG). Doutora em Ciências Fisiológicas (UFVJM). Professora Adjunta
do Departamento de Fisioterapia da UFMG na área de Fisioterapia em
Pediatria. Docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Ciências
da Reabilitação da UFMG e docente colaboradora do Programa de Pós-
Graduação em Reabilitação e Desempenho Funcional da UFVJM.
Ana Karla da Silva Moura Pedrosa
Fisioterapeuta pela UFPE. Especialização em Fisioterapia Aquática pela
Faculdade Maurício de Nassau/UNINASSAU e Mestre em Ciências pela
Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP). Docente do
curso de Fisioterapia nas Disciplinas Fisiopatologia em Neonatologia e
Pediatria e Fisioterapia em Pediatria no Centro Universitário Brasileiro
(UNIBRA) – Recife-PE.
Ana Paula de Sousa
Fisioterapeuta pela UFMG. Especialista em Aprendizagem Motora pela USP.
Formação em Método Neuroevolutivo (Bobath), Baby Bobath, Método
Pilates, �eraSuit Method, �eratogs, Terapia por Contensão Induzida.
Sócia da ProAtiva BH.
Ana Paula Mendonça
Fisioterapeuta da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e
Mucuri. Fisioterapeuta do Centro Especializado em Reabilitação de
Diamantina, MG – CER IV.
Andrea Pires Muller
Fisioterapeuta. Mestre em Ciências da Saúde – PUC-PR. Docente do Curso
de Fisioterapia da PUC-PR. Tutora da Residência Multipro�ssional em
Saúde do Idoso – HUC-PUC-PR. Responsável pelo serviço de Fisioterapia
do Hospital Cardiológico Constantini – Curitiba-PR.
Andreza Letícia Gomes
Fisioterapeuta. Especialista em Pediatria e Neonatologia. Mestre em
Reabilitação e Desempenho Funcional (PPGReab-UFVJM).
Anne Jansen Hupfeld
Fisioterapeuta. Formação no Método de Tratamento Neuroevolutivo Bobath
e Baby Course. Fisioterapeuta referência da Clínica de Má-Formação
Congênita do setor de Fisioterapia Infantil da Associação de Assistência a
Criança De�ciente – AACD Ibirapuera.
Anne Karolyne Cruz Santiago
Fisioterapeuta da Universidade Federal de Sergipe (UFS) – Campus Lagarto.
Curso de aperfeiçoamento no método Pilates.
Ayrles Silva Gonçalves Barbosa Mendonça
Fisioterapeuta. Mestre em Engenharia Mecânica com tese na área biomédica
e Doutora em Biotecnologia na área da Saúde. Formação em PediaSuit.
Docente do curso de Fisioterapia da UFAM.
Carla Trevisan Martins Ribeiro
Fisioterapeuta. Mestre em Ciências (UFRJ). Doutora em Ciências (UFRJ).
Fisioterapeuta Neurofuncional do Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da
Criança e do Adolescente Fernandes Figueira, IFF/Fiocruz.
Carolina Gomes Matarazzo
Fisioterapeuta. Especialista em Assimetrias Cranianas e Fisiologia. Mestre
em Ciências da Saúde pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP).
Primeira �sioterapeuta a atuar numa clínica de órteses cranianas no Brasil e
a criar um centro de tratamento de intervenção precoce das assimetrias.
Pesquisadora na área de Assimetrias e Torcicolo.
Caroline Bolling
Fisioterapeuta. Especialista em Saúde e Segurança do Trabalhador pela
FUMEC. Mestre em Saúde Pública pela UFMG. Doutora pela VUmc – Vrije
Universiteit Amsterdam.
Cristiane Cenachi Coelho
Fisioterapeuta Doutoranda em Ciências da Reabilitação pela Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG). Mestre em Engenharia Biomédica-
Bioengenharia pela Universidade do Vale do Paraíba (UNIVAP).
Especialista em Fisioterapia Cardiopulmonar pela Faculdade de Ciências
Médicas de Minas Gerais (FCMMG). Fisioterapeuta do Hospital Infantil
João Paulo II. Coordenadora do Programa de Residência Multipro�ssional
do Hospital Infantil João Paulo II da Fundação Hospitalar de Minas Gerais
(FHEMIG).
Danielle Vieira Rocha Soares
Fisioterapeuta. Doutora em Ciências da Reabilitação pela Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG). Professora Adjunta do Departamento de
Ciências da Saúde da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Dayane Montemezzo
Fisioterapeuta. Doutora em Ciências da Reabilitação pela Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG). Professora Adjunta do Departamento de
Fisioterapia da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC).
Elizabeth Rocha e Rocha
Fisioterapeuta. Especialista em Fisioterapia Intensiva Pediátrica e Neonatal
pelo COFFITO. Fisioterapeutaobjeto19 (Figura 1.28).
Figura 1.27A e B Posturas ajoelhada e semiajoelhada.
Figura 1.28 Postura de cócoras ou agachada.
O desenvolvimento da postura de pé tem início com o apoio das mãos. Os
bebês se puxam para a posição de pé e gradativamente necessitam de menos
suporte para permanecerem nessa postura. Durante a passagem para a
postura de pé, os membros inferiores estão mais ativos e o bebê, muitas
vezes, pode sair da postura sentada e passar para as de quatro apoios,
ajoelhada, semiajoelhada e de pé, sucessivamente. Se não tiver o apoio das
mãos, ele pode passar pela postura semiagachada e se transferir para a de pé
utilizando a extensão simétrica dos quadris e joelhos13,58.
Em torno dos 10 meses, o bebê já pode ser capaz de permanecer de pé
com a assistência mínima de uma das mãos, o que deixa os membros
superiores mais livres para exploração. À medida que o controle postural se
aprimora, o bebê pode �car de pé sem o apoio de ambas as mãos e para isso
mantém a abdução de quadris para aumentar a base de suporte49 (Figura
1.29).
Figura 1.29A a B Passagem para a postura de pé e postura de pé sem apoio.
Antes de conseguir realizar a marcha anterior, o bebê adquire a habilidade
de andar de lado, ou seja, executa a marcha lateral (Figura 1.30). Essa
habilidade é interessante por proporcionar a locomoção de pé sem a ajuda
de um adulto. Ao praticar a marcha lateral em torno de sofás, cadeiras ou
com o apoio das mãos na parede, o bebê ganha mais força muscular dos
membros inferiores e aprimora a percepção visual para se equilibrar e
também a coordenação entre os membros inferiores62,63.
Figura 1.30 Marcha em torno de mobília com apoio dos membros superiores.
A transição de engatinhar para andar modi�ca o campo visual do bebê51.
Durante o engatinhar, as mãos estão apoiadas e o bebê vê o chão; durante o
andar, toda a con�guração do ambiente está em seu campo de visão (p. ex.,
pessoas, brinquedos, paredes e aberturas). Em acréscimo, enquanto anda, o
bebê carrega muito mais objetos do que enquanto engatinha, favorecendo a
interação social, o compartilhamento de objetos e o modo como o adulto
responde ao bebê51,53,64.
A marcha anterior com apoio torna possíveis a prática e o
desenvolvimento do controle postural de pé, sendo realizada com a extensão
do tronco, quadril, joelho e tornozelo no �nal da fase de apoio, e o peso é
distribuído para a cabeça dos metatarsos19.
Ao �nal do primeiro ano de vida, a maioria dos bebês consegue andar de
maneira independente, embora haja uma grande variação na idade de
aquisição desse marco motor (8 a 18 meses)49. Para iniciar a marcha
independente o bebê precisa ter desenvolvido força muscular e equilíbrio
su�cientes para sustentar o peso do corpo sobre um membro inferior
enquanto o outro está na fase de balanço13. A marcha é caracterizada por
passos curtos e rápidos, base de suporte alargada e ausência de balanceio
recíproco de membros superiores (isto é, cotovelos semi�exionados e mãos
acima da altura do quadril). O bebê executa a �exão do quadril, a semi�exão
do joelho e a �exão dorsal durante a fase de balanço. O contato inicial é feito
com todo o pé no chão ou em �exão plantar. No �nal da fase de apoio
ocorre ligeira extensão do quadril e do joelho. Os quadris se mantêm em
rotação externa e abdução durante todo o ciclo da marcha, o que faz com
que os pés apontem para fora46,65 (Figura 1.31).
Figura 1.31 Marcha anterior sem apoio.
Diversos fatores contribuem para a aquisição da marcha independente.
Dentre eles podem ser citadas as mudanças nas proporções corporais (p. ex.,
os membros inferiores se tornam mais longos em relação ao tronco e ocorre
o abaixamento do centro de massa), a maturação neural (p. ex., crescimento
cerebral, rápida multiplicação de células da glia, mielinização das �bras
neurais e formação de novas sinapses) e a experiência, que contribui para o
aumento da força muscular e do equilíbrio, pois proporciona a prática de se
mover na posição ereta66.
O desenvolvimento da marcha independente pode parecer apenas um
estágio natural da sequência de aquisição de habilidades do bebê; entretanto,
não é uma aquisição simples. Adolph et al.67 observaram a atividade
espontânea de 116 bebês (de 11,8 a 19,3 meses de idade) que andavam
independentemente em uma sala com mobílias, superfícies variadas e
brinquedos durante 15 a 60 minutos. As �lmagens mostraram que, em
média, os bebês dão 2.368 passos, percorrem uma distância de 701 metros e
caem 17 vezes por hora67. Esse estudo demonstrou que o aprimoramento da
marcha exige muita prática e oportunidade de exploração. A prática da
marcha é variável e distribuída, ou seja, o bebê intercala a marcha com
longos períodos parado, de pé ou sentado, brincando ou interagindo com
pessoas. Ele explora as superfícies, mobílias e se engaja em diferentes
atividades46.
As possibilidades de ação se modi�cam semana após semana, à medida
que as habilidades locomotoras do bebê se aprimoram. Além de o bebê
precisar se manter na trajetória para alcançar um destino, passar em torno
de obstáculos e através de aberturas, a locomoção demanda o
monitoramento da superfície60. Por exemplo, a superfície oferece suporte ou
não? É �rme o su�ciente para passar sobre ela andando? Estudos mostraram
que o bebê percebe as propriedades da superfície e escolhe atravessá-la
andando, quando ela é rígida o su�ciente para isso, ou engatinhando, como
nas situações em que há um colchão de água escondido por baixo de uma
superfície aparentemente �rme68.
Os estudos sobre a locomoção de bebês em rampas sugerem que a criança
que tem marcha independente escolhe maneiras mais seguras e apropriadas
de locomoção sobre terrenos, atendendo às propriedades da superfície de
suporte em relação a suas próprias capacidades de ação. Já a criança que
engatinha não consegue fazer isso. O re�namento da atividade exploratória
e a descoberta de que formas alternativas podem ser usadas na descida
podem ser o primeiro passo no aprendizado da percepção de a�ordances
para locomoção sobre rampas21.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A literatura aponta que as diferenças culturais e práticas na rotina diária do
bebê podem acelerar ou atrasar a aquisição de algumas habilidades
motoras49,69,70. Por exemplo, em algumas regiões da África é costume das
mães realizar massagens e exercícios em seus bebês, colocando-os desde
muito novos nas posturas sentada e de pé com apoio71. Essas práticas
aceleram a aquisição do sentar e andar independente13. Por outro, a prática
de restringir as oportunidades do bebê de �car em decúbito ventral pode
atrasar o desenvolvimento do engatinhar e de outras habilidades
relacionadas com essa postura72,73. Portanto, as diferenças na maneira como
o cuidador estrutura o ambiente e interage com seu bebê podem afetar a
aquisição de novas habilidades, a idade em que elas aparecerão e a trajetória
do desenvolvimento. Entretanto, a idade para a aquisição das habilidades
motoras é muito variável entre bebês, e essa variabilidade é uma
característica do desenvolvimento normal74. A progressão dos marcos
motores sugere uma ordem sequencial relacionada com a idade, mas as
trajetórias do desenvolvimento podem diferir muito de um bebê para o
outro75. Em outras palavras, os bebês podem adquirir habilidades em várias
ordens diferentes, pular estágios ou regredir para estágios anteriores sem
que isso signi�que uma alteração no desenvolvimento motor13,76.
Por outro lado, a variabilidade no desenvolvimento motor normal se
apresenta como um desa�o para terapeutas que trabalham com o
rastreamento de crianças com suspeita de atraso ou de alguma alteração no
desenvolvimento. Essa variabilidade aparece nos escores obtidos pelas
crianças quando são aplicados testes (p. ex., Alberta Infant Motor Scale) para
a identi�cação do atraso no desenvolvimento motor76. Isso sugere que os
bebês devem ser avaliados em mais de um momento para que o terapeuta
tenha um melhor entendimento do desenvolvimento apresentado pelo
bebê77.
Em síntese, durante seu primeiro ano de vida, o bebê explorao ambiente e
aprende diversas relações existentes no mundo. Os bebês são motivados pela
tarefa e exploram as diversas possibilidades de ação, de maneira prospectiva,
até selecionarem uma opção que os faça conseguir cumprir seu objetivo. À
medida que o sistema perceptual do bebê se desenvolve, as atividades
exploratórias são usadas para descobrir as a�ordances que são pertinentes a
cada fase do desenvolvimento. O desenvolvimento perceptual impulsiona o
aprimoramento das capacidades de ação do bebê, o que, por sua vez,
favorece a descoberta de novas possibilidades. Em outras palavras, o
desenvolvimento ocorre em ciclos de percepção-ação indissociáveis, que
incluem períodos de rápidas mudanças intercalados com períodos de
relativa estabilidade. Novas habilidades motoras proporcionam diversas
experiências que modi�cam as oportunidades para o aprendizado e, assim,
in�uenciam o desenvolvimento cognitivo e afetivo e a interação social do
bebê.
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INTRODUÇÃO
O desenvolvimento infantil é um processo dinâmico e multidimensional que consiste na
construção, aquisição e interação de novas habilidades que envolvem diferentes
domínios (sensório-motor, cognição-linguagem e social-emocional)1–4. Atingir um
desenvolvimento considerado adequado signi�ca dizer que o indivíduo conseguiu
adquirir competências de desenvolvimento que são essenciais para o comportamento
adaptativo e socioemocional, além de propósitos acadêmicos e econômicos1.
O desenvolvimento é dependente da interação de in�uências genéticas e das
experiências pessoais vivenciadas pela criança. Apesar de a genética proporcionar um
conjunto de possibilidades ao indivíduo, essa herança não predetermina os
acontecimentos da vida da criança. Teorias contemporâneas enfatizam a associação entre
genética e ambiente, ou seja, existe uma relação de interação e correlação entre os
fenômenos. O ambiente modera a expressão da genética e vice-versa. Além disso, o
ambiente pode desencadear importantes eventos neuro�siológicos que levam à
organização do sistema nervoso e de suas funções5,6.
O período entre a concepção e a idade de 24 meses, denominado os primeiros 1.000
dias de vida, é considerado crítico/sensível para o crescimento e o desenvolvimento
infantil. Entretanto, fatores ambientais, como viver em um ambiente de pobreza crônica,
têm efeito não apenas nesse período, mas também, pelo menos, até os 5 anos de idade1,4.
Alguns fatores presentes na vida intrauterina e/ou nos primeiros anos da vida
extrauterina podem interferir negativamente no processo do desenvolvimento e
acarretar di�culdades para a criança atingir a plenitude de suas capacidades. Por isso,
algumas crianças necessitam de intervenção precoce (IP).
A IP consiste em um conjunto de serviços multidisciplinares para crianças vulneráveis
ao comprometimento de seu desenvolvimento cognitivo, motor, psicossocial ou
adaptativo desde o nascimento até os 3 ou 5 anos de idade7. Essa intervenção deve
acontecer o mais cedo possível para prevenir o surgimento de doenças ou transtornos ou
mesmo reduzir sua gravidade, além de promover melhores resultados funcionais8.
Dessa maneira, a IP tem sido direcionada para crianças de 0 a 5 anos de idade que
apresentam8:
• Fatores de risco que in�uenciam negativamente seu desenvolvimento em razão de
fatores psicossociais/ambientais, como aquelas que vivem em desvantagem
socioeconômica ou que contam com cuidadores que fazem uso excessivo de
substâncias psicoativas.
• Fatores de risco que in�uenciam negativamente seu desenvolvimento em razão de
fatores biológicos, como baixo peso ao nascer ou prematuridade.
• Diagnósticos estabelecidos que interferem negativamente no desenvolvimento, como
os de paralisia cerebral, síndromes genéticas e transtornos do neurodesenvolvimento.
Assim, este capítulo irá discorrer sobre a IP, um processo multifacetado e
multipro�ssional. Inicialmente, serão abordadas algumas concepções fundamentais para
a com preensão da IP. Em seguida, serão apresentados os principais instrumentos
padronizados de avaliação utilizados na IP. A partir daí, serão discutidas algumas
suposições contemporâneas da IP e apresentadas as principais estratégias que têm sido
adotadas tanto para as crianças sob risco biológico como para aquelas sob risco
psicossocial/ambiental.
A IMPORTÂNCIA DO INVESTIMENTO NOS PRIMEIROS ANOS DE VIDA
A comunidade cientí�ca reconhece atualmente que o alicerce para uma sociedade
produtiva e bem-sucedida tem início na primeira infância (0 a 36 meses de vida). Nos
primeiros anos de vida se estabelecem as bases sólidas para um melhor desempenho
acadêmico, econômico e produtivo, as quais são imprescindíveis à formação de cidadãos
satisfeitos consigo e bem-ajustados à sociedade5,9. Estudos longitudinais indicam que o
custo para a sociedade do investimento em IP em crianças de risco
psicossocial/ambiental é cerca de 100 vezes menor quando comparado ao do tratamentotardio e das consequências sociais da não intervenção. Dentre essas repercussões sociais
podem ser citados a depressão, os transtornos de conduta e o abuso de substâncias
ilícitas2,10,11.
Como pode ser observado na Figura 2.1, investimentos voltados à primeira infância
proporcionam melhor retorno social e econômico para um país, quando comparados ao
emprego de recursos em quaisquer outras etapas da vida1,5,12.
Figura 2.1 Retorno do investimento em capital humano × Períodos do ciclo de vida. (Reproduzida de: Comitê
Científico do Núcleo Ciência Pela Infância, 2014. Disponível em: http://www.ncpi.org.br)
A explicação para o maior retorno �nanceiro tem origem em achados da neurociência
que demonstram que a formação e o desenvolvimento da citoarquitetura das estruturas
que compõem o sistema nervoso são sensíveis às condições ambientais e que as
experiências vivenciadas na primeira infância serão importantes no desenvolvimento do
cérebro e em seu funcionamento futuro5,13.
O período sensível do desenvolvimento cerebral
A habilidade e extensão em que o cérebro pode ser remodelado é denominada
plasticidade cerebral. Existem vários mecanismos por meio dos quais a plasticidade
ocorre: alguns são primariamente direcionados por genes, outros dependem da
experiência ambiental14. O Quadro 2.1 apresenta alguns desses eventos. A plasticidade
pode ocorrer durante toda a vida, porém é mais intensa nos primeiros anos de vida4,13.
Quadro 2.1 Eventos neurofisiológicos que ocorrem durante o período de desenvolvimento cerebral14 (Couperus
e Nelson, 2006)
Neurulação Proliferação Migração Crescimento
axonal e
dendrítico
Sinaptogênese Poda sináptica Mielinização
Formação do tubo
neural
Criação de
neurônios e
células da
glia a partir
de células-
tronco
As células
migram de
onde
nasceram
para onde
irão
permanecer
Crescimento
axonal
Brotamento
dendrítico
Conexão entre
neurônios por
meio de
axônios e
dendritos
Eliminação de
superprodução
de sinapses
As células
(mielinas)
envolvem e
isolam os
axônios dos
neurônios
Período pré-natal
Aproximadamente
22 dias após a
concepção
Período pré-
natal
Cerca de 26
dias após a
concepção
Proliferação
neural e
divisão do
sistema
nervoso
central
Período pré
e pós-natal
A partir da
oitava
semana
pré-natal
até 4,5
meses pós-
natais
Período pré e
pós-natal
Varia
conforme a
área
Crescimento
axonal 15 a
32 semanas
pré-natais
Brotamento
dendrítico
de 15
semanas
pré-natais a
24 pós-
natais
Pré e pós-natal
Sinapse
madura a
partir de 23
semanas pré-
natais e ao
longo da vida.
Pico no
primeiro ano
de vida,
variando
conforme a
área cerebral
Pós-natal
Primeiro ano de
vida até a
adolescência
Pré e pós-
natal
Varia
conforme a
área
A Figura 2.2 mostra que durante a primeira infância é maior a habilidade das
mudanças cerebrais em resposta às experiências. Os primeiros anos são decisivos para o
desenvolvimento da criança, uma vez que é nesse período da vida que acontecem
importantes eventos neuro�siológicos que sofrem in�uências ambientais, como a
sinaptogênese e o podamento sináptico14.
Figura 2.2 Habilidade de mudança cerebral em resposta às experiências × Quantidade de esforço necessário.
(Adaptada de: https://developingchild.harvard.edu/science/key-concepts/brain-architecture/.)
Durante o primeiro ano de vida a criança desenvolve as principais habilidades
sensoriomotoras, socioemocionais e cognitivas, as quais serão primordiais para a vida
adulta5,15. Cada um desses domínios do desenvolvimento se aprimora em um momento
diferente (Figura 2.3). As capacidades sensoriais, por exemplo, apresentam maior
sinaptogênese próximo aos 3 meses de vida, enquanto que as áreas responsáveis pelas
funções cognitivas se destacam entre o primeiro e o segundo ano de vida.
Figura 2.3 Formação de novas sinapses no ciclo de vida. (Reproduzida de: Comitê Científico do Núcleo Ciência
Pela Infância, 2014. Disponível em: http://www.ncpi.org.br.)
Os momentos em que são maiores as possibilidades de modi�cação dos circuitos
cerebrais em resposta ao ambiente são denominados períodos sensíveis1,4. Nos períodos
sensíveis há maior plasticidade para a aquisição de habilidades, a qual funciona como
uma janela de oportunidades em que a criança estaria particularmente mais receptiva a
experiências ambientais ou a intervenções. Em contrapartida, na presença de estímulos
negativos ou perturbações externas, o desenvolvimento da criança pode ser afetado4.
Desse modo, a expressão período crítico se refere ao intervalo de tempo durante o qual
determinado evento/estímulo ou a ausência desse evento/estímulo tem impacto no
desenvolvimento da criança.
VULNERABILIDADE E FATORES DE RISCO
Alguns conceitos relacionados com a adaptação ambiental positiva ou negativa da
criança ao longo de seu desenvolvimento são utilizados dentro da terminologia da IP.
Assim, embora uma discussão aprofundada sobre esses termos ultrapasse o escopo deste
capítulo, o Quadro 2.2 apresenta um glossário conciso.
As crianças que necessitam de IP são aquelas que podem apresentar atraso ou
desenvolvimento fora do esperado em um ou mais domínios do desenvolvimento
infantil em virtude da exposição a fatores de risco biológico ou
psicossocial/ambiental3,16-18.
Quadro 2.2 Glossário conciso relacionado com a vulnerabilidade e fatores de risco18
Vulnerabilidade Suscetibilidade a um desfecho negativo específico em contexto de risco ou adversidade
Risco Elevada probabilidade de um desfecho negativo ou indesejado no futuro
Fatores de risco Atributos mensuráveis das pessoas, suas relações ou contextos associados a risco
Fatores de Atributos mensuráveis das pessoas, seus relacionamentos ou contextos associados a
proteção desfechos positivos (apesar do nível de risco ou adversidade)
Adversidade Experiência duradoura ou repetida esperada ou observada para se ter efeito
significativamente negativo ou perturbador da adaptação; geralmente estão envolvidos
múltiplos fatores de risco
Resiliência Padrão de adaptação positivo em um contexto de risco ou adversidade
Fatores de risco biológicos
Os fatores de risco biológicos estão relacionados com eventos pré, peri e pós-natais. São
alguns exemplos: prematuridade, baixo peso, as�xia perinatal, hemorragia
intraventricular e distúrbios bioquímicos e hematológicos3,19. Essas crianças de risco
biológico são denominadas de alto risco em virtude da probabilidade de sofrerem lesão
cerebral e posteriormente receberem o diagnóstico de paralisia cerebral ou outro tipo de
transtorno no neurodesenvolvimento20. Na IP, as crianças com diagnósticos
estabelecidos nos primeiros meses de vida, como paralisia cerebral, microcefalia,
malformações congênitas e doenças genéticas, também são inseridas na categoria de
risco biológico3,19.
O efeito da IP nas crianças de risco biológico tem sido particularmente estudado em
bebês de nascimento pré-termo20. A prematuridade (isto é, abaixo de 37 semanas) é uma
causa signi�cativa de mortalidade e morbidade durante a infância. Quanto maior a
prematuridade e menor o peso, maiores são os riscos. Por exemplo, bebês com
prematuridade extrema (menos de 28 semanas de gestação) e peso extremamente baixo
ao nascer (do peso esperado, enquanto o cerebelo só atingiu 35% a 40% do volume
esperado em comparação com 40 semanas gestacionais (a termo)21.
Os vasos sanguíneos no cérebro se desenvolvem paralelamente ao parênquima.
Durante as últimas 16 semanas de gestação, a rede periventricular se expande com o
crescimento de vasos penetrantes longos e curtos e com a formação de anastomoses
extensas. Na metade da gestação, o �uxo sanguíneo para a substância branca é de apenas
25% em relação ao �uxo que segue para o córtex cerebral. Desse modo, a lesão da
substância branca difusa é identi�cada em mais de 50% dos bebês de peso extremamente
baixo ao nascer, considerando o baixo �uxo sanguíneo para essa região21.
Lesões perinatais podem então interferir no crescimento das conexões cerebrais,
fornecendo assim uma possível explicação para os dé�cits difusos em funções cognitivas
superiores em indivíduos nascidos com peso extremamente baixo. Essas alterações
persistem até o �nal da infância, a adolescência e a idade adulta e estão correlacionadas a
distúrbios neuropsicológicos, como falta de atenção, hiperatividade, ansiedade e outros
problemas sociais e emocionais21,22.
Fatores de risco psicossociais/ambientais
Os fatores de risco ambientais são considerados eventos ou condições que ocorrem fora
do indivíduo, como, por exemplo, as experiências relacionadas com a vida em família
e/ou em sociedade23. Em outras palavras, são aqueles relacionados com qualquer tipo de
violência doméstica, física, sexual, psicológica, exposição à violência conjugal,
negligência, uso excessivo de álcool e substâncias psicoativas pelos cuidadores e
pobreza3,12,24. Quando são consideradas a in�uência do ambiente e a relevância dos
diferentes contextos que envolvem o indivíduo, torna-se necessário analisar não apenas
os ambientes ou as situações que apresentam relação direta com o sujeito, como o
ambiente familiar, mas também é importante averiguar a vizinhança, o ambiente
educacional e outras pessoas da comunidade que possam ter in�uência indireta, mas
signi�cativa, para a vida do indivíduo9,25.
A pobreza extrema é considerada um dos fatores de risco psicossociais/ambientais
mais impactantes no desenvolvimento infantil. Isso porque sua presença aumenta a
probabilidade de exposição das crianças a múltiplas adversidades, incluindo estresse
familiar, abuso ou negligência infantil, insegurança alimentar e exposição à violência,
que, muitas vezes, são agravadas por morarem em comunidades com recursos
limitados26. Há na literatura duas perspectivas teóricas que procuram explicar a relação
entre o impacto da pobreza no ambiente doméstico e o desenvolvimento infantil:
modelo do investimento familiar e modelo do estresse familiar.
O primeiro modelo preconiza que famílias economicamente desfavorecidas têm
di�culdade em investir em recursos que dão suporte ou estimulam o desenvolvimento
infantil. Em outras palavras, o capital �nanceiro é mais escasso, havendo prejuízo em
investir no capital humano da criança, ou seja, há menor oferta de brinquedos, livros,
investimento em viagens, passeios e educação complementar27. O segundo modelo
enfatiza que os recursos �nanceiros escassos são fatores estressores que esgotam os
recursos psicossociais e têm consequências na saúde mental dos membros da família.
Assim, os pais de crianças economicamente desfavorecidas seriam mais suscetíveis ao
estresse ou a alterações de humor e, consequentemente, mais punitivos ou menos
disponíveis e receptivos às necessidades de atenção, afeto e estímulos da linguagem,
cognição e psicomotricidade da criança28. É possível que a teoria do estresse familiar e a
teoria do investimento familiar apresentem efeitos cumulativos ou interativos27.
Fatores de risco psicossociais/ambientais, que incluem a combinação de vários
elementos estressores, como depressão materna, abuso de substâncias ilícitas ou
violência infantil, podem ser considerados um contexto de adversidade9,29. Avanços
cientí�cos nas áreas de neurociências, biologia molecular e genética têm demonstrado
que adversidades signi�cativas enfrentadas precocemente na infância podem ocasionar
perturbações �siológicas e/ou biológicas que causariam prejuízos no desenvolvimento de
sistemas do corpo humano. Esses danos estariam relacionados com uma resposta de
estresse intensa e prolongada, denominada estresse tóxico4,13,30.
A Figura 2.4 apresenta a taxonomia do estresse proposta pela National Scienti�c
Council on the Developing Child (Conselho Nacional Cientí�co sobre o Desenvolvimento
da Criança). Um estresse positivo é aquele que é infrequente, leve ou breve,
caracterizado por forte suporte socioafetivo. Esse suporte socioemocional permite que a
criança retorne rapidamente ao patamar anterior ao estresse e seja minimamente exposta
a seus mediadores hormonais. Esse tipo de situação, ou seja, um suporte emocional
diante da adversidade, possibilita que a criança construa resiliência. Um estresse
tolerável, por sua vez, não possibilita necessariamente a construção de resiliência, mas a
existência de um suporte socioafetivo su�ciente (p. ex., apoio familiar) permite que a
criança retorne ao patamar anterior ao estresse. Por outro lado, o estresse tóxico resulta
de uma exposição frequente, forte e prolongada à resposta corporal ao estresse. Nesse
caso, o suporte socioemocional é insu�ciente para que a criança retorne ao patamar
anterior ao estresse31.
Figura 2.4 O estresse tóxico na infância. (Adaptada de Gardner, 2013.)
O estresse tóxico desregula o eixo hipotálamo-hipó�se-adrenal e, em consequência,
pode promover alterações nas funções cerebrais e diminuição do volume da substância
cinzenta no hipocampo e dos lobos frontal e temporal (regiões importantes para a
memória e o aprendizado)24,32. Essas perturbações podem resultar em alterações
anatômicas ou desregulações �siológicas e serem precursoras de problemas de
comportamento, aprendizagem, baixo desempenho cognitivo e acadêmico, dentre
outros9.
Convém ressaltar que os fatores de risco biológicos e psicossociais/ambientais estão
muitas vezes interligados8. Por exemplo, quando a mãe faz um acompanhamento pré-
natal de�ciente, tem uma nutrição inadequada, usa substâncias lícitas e ilícitas e ocorrem
infecções durante a gestação, o bebê se torna mais vulnerável à prematuridade, ao baixo
peso ao nascimento e a doenças que afetam o desenvolvimento neuropsicomotor33. Em
outras palavras, riscos psicossociais/ambientais também deixam a criança mais suscetível
a apresentar problemas de saúde, �cando, portanto, também exposta a riscos biológicos
potencialmente prejudiciais ao seu desenvolvimento3,27.
USO DE INSTRUMENTOS PADRONIZADOS NA IP
Antes da IP é necessário avaliar a criança e, nesse momento, a escolha de um teste
padronizado (adequado) adquire importância fundamental. Um teste é considerado
padronizado quando apresenta a uniformização dos procedimentos que serão realizados
com o estabelecimento de regras �xas para administração e pontuação. Desse modo,
todos os testes padronizados contam com um manual que descreve a proposta do teste e
contém as normas para administração, materiais utilizados e instruções aos
examinadores. Além disso, os testes padronizados apresentam um número �xo de itens
que não podem ser removidos ou adicionados pelo examinador, uma vez que isso pode
afetar a interpretação dos testes12,34.
Os testes padronizados possibilitam que os resultados obtidos com a criança avaliada
sejam comparados ao desempenho de outras crianças que realizaram previamente o
teste, sendo denominados, neste caso, testes referenciados por norma. Quando
possibilitam a comparação da criança testada com critérios preestabelecidos por
pesquisadores, com a �nalidade de determinar as habilidades que a criança é capaz ou
não de realizar, são denominados testes referenciados por critério34.
Seleção de instrumentos padronizados para crianças brasileiras
A escolha do instrumento padronizado representa um grande desa�o para os
pro�ssionais de saúde que trabalham com o desenvolvimento infantilno Brasil. Esses
pro�ssionais relatam di�culdades na seleção do teste ideal e na aplicação dessas escalas
em virtude da escassez de instrumentos padronizados e validados para crianças
brasileiras. Por isso, na maioria das vezes, acabam por utilizar de maneira inadequada
testes e escalas internacionais padronizados para outras populações. Essa inadequação
de uso ocorre por não haver como estabelecer comparações de dados com crianças de
outros países, na medida em que existem diferenças culturais e ambientais relevantes que
podem in�uenciar a avaliação do desenvolvimento infantil. Por exemplo, a interpretação
de testes utilizando normas e propriedades psicométricas internacionais pode não se
adequar às crianças brasileiras. Portanto, a carência de instrumentos padronizados para
o Brasil di�culta a aplicação, a compreensão e a interpretação dos testes35,36.
Para a seleção apropriada do instrumento a ser utilizado, o pro�ssional de saúde deve
primeiro ter em mente os motivos para aplicação, decidindo-se por um instrumento de
triagem ou de diagnóstico, cujas diferenças serão explicitadas mais adiante. Além disso,
essa decisão deve ser fundamentada, também, nos diferentes modos de utilização e
administração de um teste (administração direta com a própria criança, observação da
criança nas atividades da vida diária, relato dos pais e/ou dos professores). Outros
aspectos relevantes são as propriedades psicométricas do instrumento (validade e
con�abilidade) e sua acessibilidade ao pro�ssional, o que inclui o custo para aquisição do
teste e do manual, a necessidade de treinamento e o tempo de administração do
teste12,36.
Instrumentos de triagem × instrumentos de diagnóstico
Instrumentos padronizados podem ser utilizados por inúmeros motivos, como, por
exemplo, para assegurar o diagnóstico de alterações no desenvolvimento ou para avaliar
um grande número de crianças em curto período de tempo e identi�car uma suspeita de
atraso no desenvolvimento.
Instrumentos padronizados de triagem são avaliações curtas com menor quantidade
de itens que mensuram um ou mais domínios do desenvolvimento infantil. São de
rápida aplicação (30 minutos em média), o que viabiliza seu uso em larga escala, como
na atenção primária12,37. Os testes de triagem podem ser aplicados diretamente na
criança ou podem ser baseados no relato dos pais, ou ambos12. São bastante utilizados
tanto na prática clínica como em pesquisas cientí�cas em razão das evidências cientí�cas
de sua capacidade de detecção de desvios de desenvolvimento e por serem viáveis e de
baixo custo. Quando bem utilizado, um instrumento de triagem pode detectar mais de
70% dos problemas de desenvolvimento e comportamento. Todavia, checklists informais
ou instrumentos com pobres propriedades psicométricas identi�cam menos de 30%
desses distúrbios38.
Apesar de auxiliarem a identi�cação de crianças com alterações de
desenvolvimento/comportamento, os instrumentos de triagem não têm poder
diagnóstico, havendo a necessidade de uma avaliação mais completa a ser realizada pelo
pro�ssional competente39. Com essa �nalidade são utilizados instrumentos
padronizados de diagnóstico ou testes de habilidade, que apresentam maior quantidade
de itens, com a avaliação de múltiplos domínios do desenvolvimento de maneira mais
detalhada. A aplicação adequada desse tipo de instrumento padronizado oferece ao
pro�ssional a certeza diagnóstica, embora exija mais tempo para avaliação, em média 1
hora, sendo, por isso, mais utilizado em pesquisas12.
Instrumentos padronizados utilizados no Brasil
Na tentativa de auxiliar e atualizar os pro�ssionais de saúde a identi�car precocemente as
alterações de desenvolvimento/comportamento será apresentada uma revisão de
importantes instrumentos de avaliação padronizados utilizados na criança brasileira na
primeira infância. Um resumo desses instrumentos pode ser consultado no Quadro 2.3.
Quadro 2.3 Principais instrumentos padronizados utilizados na IP
GMA: General Movement Assessment; Bayley-III: Bayley Scales of Infant and Toddler Development – 3a edição; EDCC: Escala de Desenvolvimento do
Comportamento da Criança no Primeiro Ano de Vida; Denver-II: Denver Developmental Screening Test – Second Edition; AIMS: Alberta Infant Motor
Scale; ASQ-3 BR: Ages and Stages Questionnaire – 3a edição; SWYC: Survey of Wellbeing of Young Children; SDQ: Strengths and Di�culties
Questionnaire.
General Movement Assessment (GMA)
O GMA é uma avaliação diagnóstica que analisa a qualidade dos movimentos
generalizados (do inglês general movements – GM). Trata-se de movimentos
espontâneos normalmente presentes no repertório motor de bebês nos primeiros meses
de vida. O curso para capacitação para a aplicação do GMA tem sido ministrado no
Brasil, e o GMA tem sido aplicado em alguns estudos40,41. Fundamenta-se na observação
visual dos movimentos, não é invasivo, não necessita manusear a criança, é econômico e
exige treinamento de poucos dias do pro�ssional41–43.
Os GM se modi�cam ao longo dos meses de vida (em torno de 36 a 38 semanas
gestacionais) e são descritos como movimentos writhing, elípticos, e em torno de 6 a 9
semanas pós-natais se modi�cam para movimentos do tipo �dgety, movimentos de
velocidade moderada e aceleração variada. Em torno de 20 semanas, os movimentos se
tornam voluntários e direcionados a uma meta (ação motora). A Figura 2.5 mostra o
surgimento desses movimentos44.
Figura 2.5 Surgimento dos movimentos gerais ao longo das semanas.
A qualidade desses movimentos fornece informações sobre a integridade do cérebro;
assim, quando típicos, os movimentos gerais são caracterizados por variação e
complexidade e, quando atípicos, estão reduzidos ou ausentes. A predição de paralisia
cerebral utilizando o GMA é considerada excelente quando embasada em séries
longitudinais de avaliação41. A análise é feita a partir da �lmagem do bebê deitado em
supino, acordado, movimentando-se livremente por, pelo menos, 10 minutos. A
pontuação é feita por examinadores treinados que avaliam a complexidade, a variedade e
a �uência dos movimentos44.
Bayley Scales of Infant and Toddler Development – 3a edição (Bayley-III)
Instrumento norte-americano criado em 1953 por Nancy Bayley e revisado em 1993 e
2005 com o objetivo de detectar atrasos de desenvolvimento em crianças do primeiro
mês de vida até os 3 anos e 6 meses45, a escala Bayley-III é um teste padronizado de
diagnóstico considerado em muitos países um instrumento padrão-ouro para veri�car
desvios no desenvolvimento infantil12,46.
O teste avalia os domínios do desenvolvimento por meio de cinco escalas: cognitiva
(91 itens), motora grossa (72 itens), motora �na (66 itens), linguagem (97 itens),
socioemocional e comportamento adaptativo. Três dessas escalas são administradas
diretamente na criança (cognitiva, motora e linguagem) e as outras duas
(socioemocional e de comportamento adaptativo) consistem em questionários
administrados aos pais ou cuidadores45. Cada item observado pelo examinador recebe
pontuação 1, e os itens não observados na avaliação recebem pontuação 0. A soma dos
pontos fornece a pontuação �nal por domínio, que será interpretada por meio de
tabelas.
A escala apresenta um grande número de itens e administração na maioria das vezes
demorada; contudo, o tempo gasto para aplicação é variável, pois dependerá da idade da
criança e da habilidade do examinador. A Bayley-III necessita de um ambiente
silencioso, com iluminação e espaço para a criança executar atividades do domínio
motor grosso, como correr e pular45.
Em 2016, a escala Bayley-III recebeu uma adaptação transcultural e validação em 207
crianças brasileiras na faixa etária de 12 a 42 meses46. A versão brasileira da escala
apresentou propriedades psicométricas adequadas com alta validade convergente para a
maioria dos domínios, elevada consistência interna e boa homogeneidade dos itens46.
Apesar de demonstrar utilidade para o diagnóstico de atraso do desenvolvimento em
crianças brasileiras, esse instrumento ainda é pouco usado na práticaclínica por exigir
treinamento do pro�ssional e demandar elevado investimento �nanceiro.
Escala de Desenvolvimento do Comportamento da Criança (EDCC) no primeiro ano de
vida
Criada e padronizada por Pinto et al. em 1997, a EDCC é um instrumento diagnóstico
para avaliação do desenvolvimento do comportamento de crianças brasileiras até 1 ano
de idade47. A amostra de validação consistiu em 242 crianças brasileiras saudáveis, de
ambos os sexos, divididas em grupos homogêneos48. Posteriormente foi realizado estudo
utilizando a EDCC em crianças pré-termo49.
Trata-se de um instrumento de fácil aplicação que contém uma lista com 64
comportamentos motores e de atividades (não comunicativas e comunicativas)
observados durante o primeiro ano de vida. A escala torna possível a avaliação do
desenvolvimento motor grosso e �no, linguagem e pessoal-social em caso de suspeita de
atraso de desenvolvimento, o que propicia o planejamento da IP47,48,50. O examinador
procede a uma observação interativa da criança e analisa o tipo de comportamento, os
comportamentos mais signi�cativos para a faixa etária e o ritmo de desenvolvimento,
estabelecendo uma estimativa de atraso ou não do desenvolvimento do
comportamento49.
Apesar de ser a única escala criada para crianças brasileiras até os 12 meses de idade, a
EDCC é um instrumento ainda pouco utilizado no país provavelmente em razão da faixa
etária restrita do teste. Além disso, a aplicação do instrumento exige treinamento, um kit
com materiais e um manual a ser adquirido pelo pesquisador.
Denver Developmental Screening Test – Second Edition (teste de triagem Denver-II)
O teste de triagem de Denver foi desenvolvido e publicado em 1967 por Frankenburg e
Dodds e revisado em 1990, passando a ser denominado teste de triagem Denver-II51,52.
Esse instrumento de fácil e rápida aplicação (25 minutos, em média) é considerado
adequado para avaliar o desenvolvimento global de crianças de 0 a 6 anos de idade,
incluindo crianças pré-termo53,54. Seus 125 itens são subdivididos em quatro áreas:
motricidade ampla (32 itens), motricidade �na (29 itens), comportamento pessoal-social
(25 itens) e linguagem (29 itens)51,53, os quais são registrados tanto por meio de
observação direta e interação com a criança como a partir do relato do cuidador sobre a
realização das atividades51,53.
A aplicação do Denver-II exige treinamento simples, e o teste contém um kit com
materiais acessíveis, como pom- pom vermelho, uvas-passas, chocalho, caneca de
plástico, dentre outros. Para determinar os itens que deverão ser avaliados o examinador
traça no formulário de registro uma linha vertical sobre a idade da criança que irá
atravessar as quatro áreas/domínios do teste51,53. O desempenho da criança recebe a
seguinte classi�cação:
• “Passa”: a criança consegue executar a tarefa.
• “Falha”: a criança não consegue realizar a tarefa.
• “Recusa”: a criança não quer executar a tarefa.
• “Não houve oportunidade”: a criança não teve a oportunidade de executar a tarefa em
virtude das restrições dos cuidadores ou por outros motivos.
Caso a criança apresente dois ou mais itens de falha (com atrasos) no teste, há a
suspeita de atraso de desenvolvimento. De acordo com a interpretação �nal do Denver-
II, a criança pode ser classi�cada como “Normal”, “De risco” ou “Não testável”52.
O Denver-II é um teste amplamente utilizado no Brasil e no mundo53,55 tanto na
pesquisa como na prática clínica. Apesar de existirem vários estudos nacionais que
examinam as propriedades psicométricas desse instrumento, o Denver-II ainda não foi
validado para o Brasil54,56. Rcentemente foi traduzido e adaptado transculturalmente
para a população brasileira.
Alberta Infant Motor Scale (AIMS)
Teste de avaliação do desenvolvimento motor infantil publicado em 1994 pelas
�sioterapeutas Piper & Darrah, a AIMS consiste em um instrumento de triagem
observacional do desenvolvimento motor grosso de fácil aplicação e rápida
administração (20 a 30 minutos), direcionado a crianças de zero a 18 meses58-60.
Objetiva a identi�cação de desvios no desenvolvimento de crianças a termo e pré-termo
e o acompanhamento dos resultados das intervenções. A AIMS é constituída por 58 itens
que avaliam a criança em quatro posições: prono (21 itens), supino (9 itens), sentado (12
itens) e em pé (16 itens). Nessas posturas é observada a movimentação ativa da criança
com base em três critérios: alinhamento postural, movimentos antigravitacionais e
equilíbrio58-60.
Para a aplicação da escala é necessária a aquisição do manual com as folhas de
pontuação e ter à disposição materiais simples, como colchonete ou tatame, banco e
brinquedos apropriados para a faixa etária. O ambiente para aplicação do teste deve ser
tranquilo e agradável58. Após observar a criança, o avaliador de�ne uma janela de
habilidades motoras, considerando a posição mais primitiva e a mais evoluída para essa
criança. Cada item encontrado dentro dessa janela de habilidades e observado pelo
aplicador recebe 1 ponto e cada item não observado recebe pontuação 0. São pontuados
também os itens posicionados anteriormente à janela de habilidades motoras por ser
esperado que a criança já tenha adquirido as posturas e movimentações mais primitivas.
As pontuações obtidas em cada uma das posturas são somadas e é encontrado um escore
total bruto. Esse escore é transferido para um grá�co no qual se obtém o percentil do
desempenho motor da criança. Esse percentil pode variar de 5% a 90%58,59,61.
O processo de validação da escala AIMS no Brasil começou em 2008, em 88 crianças
prematuras por Almeida et al., nas quais foram encontrados valores de validade e
con�abilidade adequados62. Em 2009, Saccani et al. ampliaram essa amostra com a
adição de crianças a termo. Essa nova amostra consistiu em 766 crianças pré-termo e a
termo e também demonstrou propriedades de medida adequadas com índices elevados
de con�abilidade (> 0,90), con�abilidade entre examinadores (0,86 a 0,99) e teste-reteste
(0,98)59-61,63. Além disso, foram construídas curvas de referência da AIMS do domínio
motor grosso de crianças brasileiras com de�nição dos percentis por sexo35,60.
A AIMS não exige treinamento especí�co para sua aplicação; entretanto, o pro�ssional
de saúde deve ter conhecimento e experiência com o desenvolvimento infantil. Apesar
da tradução e validação da escala para o Brasil, o manual da AIMS em português ainda
não está disponível para venda. No entanto, há a opção de compra da versão em língua
inglesa.
Ages and Stages Questionnaire – 3a edição (ASQ-3)
Criado por Briecker et al. em 1997 nos EUA com o objetivo de avaliar o
desenvolvimento global na primeira infância64, o ASQ-3 consiste em uma entrevista
realizada com pais ou cuidadores sobre o desenvolvimento de seus �lhos e é de fácil e
rápida administração. Trata-se de um dos instrumentos de triagem do desenvolvimento
mais utilizados em todo o mundo, tendo sido traduzido e validado para pelo menos
nove línguas, dentre as quais espanhol, norueguês, chinês e, recentemente, para o
português brasileiro65.
A versão norte-americana da terceira edição do ASQ-3 apresenta 21 questionários que
abrangem a faixa etária de 4 a 66 meses. Já a versão brasileira (ASQ-3BR), que passou
por adaptação transcultural e validação para o português, tem somente 18 questionários
que avaliam o desenvolvimento de crianças de 6 a 60 meses de idade65,66. O ASQ-3BR
apresenta propriedades psicométricas adequadas para uso na prática clínica e em
pesquisa, obtendo elevados valores de con�abilidade teste-reteste, validade concorrente,
especi�cidade e sensibilidade65,67.
Cada questionário do ASQ-3 contém 30 itens divididos em cinco domínios do
desenvolvimento: comunicação, coordenação motora ampla, coordenação motora �na,
resolução de problemas e pessoal-social. Cada item dispõe de três alternativas de
resposta: “sim” (10 pontos), “às vezes” (5 pontos) ou “não” (0 pontos), e a soma das
respostas dos pais fornece a pontuação �nal para cada área do desenvolvimento64,65.
Esse escore é transferido parauma tabela que leva em consideração a idade da criança.
Apesar da tradução e validação do instrumento, ainda não foram estabelecidos os
pontos de corte para a classi�cação do desenvolvimento da criança brasileira, sendo
ainda utilizados os critérios norte-americanos. Assim, em cada domínio do
desenvolvimento a criança é classi�cada em abaixo da média, na média e acima da
média, seguindo a normatização do ASQ-3 para crianças norte-americanas.
Essa escala exige treinamento para aplicação, o qual pode ser presencial ou online, e
necessita de um kit com materiais especí�cos, além do manual do examinador. A
tradução da versão brasileira do ASQ-3 ainda não está disponível para compra, sendo
necessário importar os materiais para administração do teste. O ASQ-3 vem sendo
utilizado em programas públicos norte-americanos de IP e na vigilância do
desenvolvimento de crianças em creches brasileiras64,65.
Survey of Wellbeing of Young Children (SWYC)
Criado em 2011 e validado em 2013 por Perrin et al., o SWYC é um questionário norte-
americano para avaliação do desenvolvimento infantil. Trata-se de um instrumento de
triagem de rápida e fácil aplicação (10 minutos, em média), o que torna viável sua
utilização na atenção primária à saúde68. Foi desenvolvido para a faixa etária de 1 a 65
meses e não necessita de um kit especí�co nem de treinamento, estando inteiramente
disponível online (https://www.�oatinghospital.org/�e-Survey-of-Wellbeing-of-Young-
Children/Translations/Portuguese-SWYC) sem qualquer custo, para as famílias e outros
pro�ssionais envolvidos com o cuidado na primeira infância. O teste pretende fornecer
uma visão global da criança por meio de vigilância continuada e contém 12
questionários especí�cos para as principais idades-chave do desenvolvimento infantil (2,
4, 6, 9, 12, 15, 18, 24, 30, 36, 48 e 60 meses)68.
O SWYC é dividido em três grandes domínios que tornam possível a obtenção de
informações sobre o desenvolvimento global, socioemocional e fatores de risco
familiares que podem interferir no desenvolvimento infantil68. Consiste em uma
entrevista realizada com os pais/cuidadores, que devem responder cerca de 40 perguntas
com itens distribuídos entre os três domínios anteriores. Recentemente foram realizados
uma adaptação transcultural e o estudo normativo do SWYC para crianças brasileiras56.
Os resultados preliminares mostraram índices aceitáveis de validade convergente e
con�abilidade, evidenciando parâmetros adequados que apoiam o uso do instrumento
em crianças do Brasil56; contudo, ainda são necessários mais estudos sobre a validade do
SWYC.
Para a avaliação do domínio desenvolvimento são utilizados dois questionários:
“Marcos do Desenvolvimento” e “Observações dos Pais sobre a Interação Social
(POSI)”68. O questionário “Marcos do Desenvolvimento” contém 10 questões que
avaliam as áreas cognitivas, motora, social e linguagem em todas as faixas etárias
abrangidas pelo teste. O escore total é obtido pela soma das respostas dos pais referentes
a cada item, com 0 indicando que a criança “ainda não” realiza a tarefa, 1 que a realiza
“um pouco” e 2 quando a criança já a realiza “muito”68,69. Uma tabela de referência
especí�ca para crianças brasileiras é utilizada para veri�car se a pontuação total obtida
está acima ou abaixo do ponto de corte estabelecido para a faixa etária56.
O questionário POSI foi criado com intuito de rastrear transtornos do espectro autista
(TEA) e é usado no SWYC somente para a análise em idades especí�cas (18 a 34 meses).
Trata-se de um questionário breve, composto de sete itens relacionados com as
interações sociais, comunicação e comportamentos repetitivos. Se os pais selecionam
uma ou mais respostas localizadas nas últimas três colunas, a questão recebe pontuação
1; caso contrário, é dado 068. A pontuação �nal do POSI é baseada no projeto grá�co do
questionário; assim, três ou mais pontos nas últimas três colunas indicam que há
suspeita de TEA e a criança deve ser encaminhada para avaliação diagnóstica68,70.
Para avaliação do domínio socioemocional são usados dois questionários no SWYC: a
“Lista de Sintomas do Bebê (BPSC)”, para menores de 18 meses, e a “Lista de Sintomas
Pediátricos (PPSC)”, para crianças na faixa etária de 18 a 65 meses. O BPSC apresenta 12
itens divididos em três subescalas (irritabilidade, in�exibilidade e di�culdades com
mudanças na rotina). Cada subescala recebe pontuação independente68,71. Já o PPSC
não apresenta subescalas, contendo 18 itens divididos em quatro dimensões (problemas
de externalização, internalização, problemas de atenção e desa�os para parentagem)68,72.
O escore �nal de ambos os questionários é dado pelo somatório das respostas dos
responsáveis (0 para a resposta “ainda não”, 1 para “um pouco” e 2 para “muito”). Na
versão brasileira do SWYC, veri�ca-se em um grá�co se a criança apresenta suspeita de
alterações de comportamento com base em sua faixa etária e em sua pontuação nos
testes56.
Os responsáveis respondem ainda duas questões que integram a subseção
“Preocupações dos Pais”, referentes às preocupações relativas ao comportamento e ao
desenvolvimento da criança. Para �nalizar a triagem, os pais respondem o questionário
“Perguntas sobre a Família”, que contém nove itens, incluindo fatores de risco familiares,
como depressão, abuso de álcool e drogas, insegurança alimentar e con�itos parentais.
Cada fator de risco apresenta uma forma de pontuação diferente disponível no manual
do instrumento68.
Strengths and Di�culties Questionnaire (SDQ)
O SDQ é um instrumento de identi�cação de problemas de saúde mental de crianças de
2 a 4 anos de idade de fácil e rápida aplicação (em torno de 10 minutos). Essa escala de
triagem, publicada em 1997 por Goodman et al. e amplamente utilizada em diversos
países, foi traduzida para mais de 60 idiomas73-75 e validada para a população brasileira
em 2001. Fleitlich et al. (2001) veri�caram que o SDQ é adequado para a identi�cação de
problemas psicossociais por apresentar apropriadas medidas psicométricas mediante a
aplicação do questionário em 898 pais de crianças e adolescentes brasileiros76. O teste
não exige treinamento e não tem custos para o pro�ssional, pois a folha de pontuação e
as instruções estão disponíveis online (http://www.sdqinfo.com).
O SDQ contém 25 itens, que devem ser respondidos pelos pais/responsáveis ou
professores, subdivididos em cinco subescalas (sintomas emocionais, problemas de
conduta, hiperatividade/desatenção e problemas no relacionamento com colegas)
relacionadas com possíveis di�culdades enfrentadas pela criança e comportamento pró-
social referente às capacidades. Para cada alternativa os pais podem responder: ‘‘Falso’’ (0
ponto), ‘‘Mais ou menos verdadeiro’’ (1 ponto) e ‘‘Verdadeiro’’ (2 pontos). Serão obtidos
uma pontuação por subescala e um escore geral que irá classi�car o comportamento da
criança como ‘‘Normal’’, ‘‘Limítrofe’’ ou ‘‘Anormal74,77.
A IP NA CONTEMPORANEIDADE
As estratégias para IP têm sofrido modi�cações ao longo do tempo, considerando as
mudanças de paradigma na área da saúde de um modelo biomédico para um modelo
biopsicossocial78, os pressupostos de abordagens ecológicas na área do desenvolvimento
humano7,25 e também em razão dos estudos recentes que veri�cam a e�cácia da
IP20,79,80. De modo geral, observam-se mudanças importantes nos programas de IP, as
quais serão descritas a seguir.
Mudança de um programa de IP com base no modelo de de�ciência para um
modelo biopsicossocial
Durante muitas décadas a IP esteve voltada para a de�ciência da criança, originada no
modelo biomédico da atenção à saúde. Nesse modelo, há uma relação de causalidade e
dependência entre os impedimentos corporais e as incapacidades
funcionais/desvantagens sociais. Portanto, cabia aos pro�ssionais tratar essas
de�ciências, e o alvo a ser alcançado era o padrão da normalidade. Nessa perspectiva, o
pro�ssional detinha o conhecimento necessário e, portanto, seria o responsável por
realizar o tratamento8,81.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) estabeleceuem 2001 a Classi�cação
Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF)78, segundo a qual uma
pessoa com de�ciência não é simplesmente um corpo com impedimentos, mas uma
pessoa com impedimentos vivendo em um ambiente com barreiras e facilitadores. A
passagem do modelo biomédico para o modelo biopsicossocial da de�ciência foi
resultado de um extenso debate político. Nesse modelo, a incapacidade é um conceito
guarda-chuva que engloba o corpo, as de�ciências, as limitações de atividades ou as
restrições de participação. Em outras palavras, a incapacidade não se resume às
de�ciências, mas é o resultado negativo da inserção de um corpo com impedimentos
(de�ciências) em ambientes sociais pouco sensíveis à diversidade corporal das pessoas81.
Nesse aspecto, o foco não está apenas na de�ciência, mas também na atividade e
participação social, procurando diminuir as barreiras ambientais que di�cultam que a
criança atinja esses objetivos. Assim, as aspirações, os objetivos e a participação da
criança e da família dentro desse modelo passam a ser valorizados e compartilhados com
o terapeuta8. Desse modo, há um “empoderamento” das famílias, ou seja, o
fortalecimento da iniciativa da família na tomada de decisões acerca da condição de
saúde da criança. É enfatizado o papel fundamental de responsabilidade contínua que os
pais têm na vida da criança, tornando necessário o estabelecimento de parcerias entre os
pais e os pro�ssionais. O terapeuta é um especialista em desenvolvimento infantil que
fornece suporte e medeia todo o processo, enquanto os pais são os que mais conhecem
as particularidades de seus �lhos7.
Mudança de um programa de IP centrado na criança para um modelo centrado
na família
Embora as famílias tenham sempre participado da IP, no passado seu papel era mais
passivo, seguindo apenas as instruções dos terapeutas. Os pro�ssionais da IP decidiam
do que a criança e a família precisavam e lhes diziam o que deveriam fazer, sem haver
uma verdadeira parceria entre as partes. Atualmente, as famílias – independentemente
de sua formação educacional e socioeconômica – têm sido cada vez mais reconhecidas
como parceiras-chave, ativas e iguais no processo de IP8. A fundamentação do modelo
centrado na família se dá mediante a valorização e a in�uência das teorias ecológicas7,25.
Ecologia é a ciência que estuda as interações entre os organismos e seu ambiente.
Nessa perspectiva, o desenvolvimento da criança é visto como o resultado da interação
entre aquilo que ela traz ao mundo ao nascimento e de que maneira o mundo a
modela82. Em consonância com essa perspectiva, o professor e psicólogo
Bronfenbrenner criticava a ciência do desenvolvimento humano, que até a metade do
século XX se direcionava apenas ao campo descritivo. Segundo o autor, ela se
caracterizava como uma “ciência do comportamento estranho da criança em situações
estranhas com adultos estranhos pelos períodos de tempo mais breves possíveis”83. Para
Bronfenbrenner, o início da investigação deveria ser focado na maneira como as crianças
se desenvolvem em ambientes representativos de seu mundo real e natural, ou seja,
contextos ecologicamente válidos, como suas casas, creches, área de lazer, e não em
laboratórios. Ele propôs o modelo Processo-Pessoa-Contexto-Tempo (PPCT)83.
O “contexto” ou ambiente compreende a interação de quatro níveis ambientais –
microssistema, mesossistema, exossistema e macrossistema. O nível mais interno, o
microssistema, representa o complexo de relações entre o indivíduo em desenvolvimento
e o ambiente imediato no qual ele está inserido, ou seja, onde as relações interpessoais
são vivenciadas diretamente. Por exemplo, os microssistemas de uma criança nos
primeiros anos de vida seriam o ambiente familiar e, em muitos casos, a creche84.
O segundo nível do ambiente ecológico, os denominados mesossistemas, representa as
interconexões entre os microssistemas, ambientes nos quais o indivíduo em
desenvolvimento participa ativamente. Por exemplo, o mesossistema para uma criança
pequena incluiria conexões entre a casa e a creche. Em seguida, há os chamados
exossistemas, ambientes que não envolvem o indivíduo em desenvolvimento como um
participante ativo, mas nos quais ocorrem eventos que podem afetá-lo, como, por
exemplo, a vizinhança e a rede de amizade ou de trabalho dos pais da criança84.
A estrutura mais externa, e que exerce in�uência indireta, é o macrossistema. Este é
um sistema de valores culturais, crenças e estilo de vida característico de determinado
grupo social no qual estão inseridas a criança e sua família84.
Bronfenbrenner também leva em consideração outros elementos, como o “tempo”
(microtempo, mesotempo e macrotempo), o “processo” (as interações recíprocas,
progressivamente mais complexas, entre a criança e seu ambiente) e o elemento
“pessoa”, que se refere às características do indivíduo, tanto as genéticas e biológicas
como as construídas em sua interação com o contexto ambiental. Cabe ressaltar que a
relação é de reciprocidade, ou seja, a criança (pessoa) é um ser ativo, suas atitudes e
reações podem modi�car o meio onde vive e, como consequência, re�etir-se sobre o
modo como as pessoas e o meio interagem com ela83.
De maneira semelhante, a Teoria Transacional7 ressalta a interdependência existente
entre a criança e os contextos de desenvolvimento, de onde decorrem interações
bidirecionais em que a criança in�uencia e é in�uenciada. O comportamento da criança,
em qualquer momento, é um produto das transações entre o fenótipo (a criança), o
ambientótipo (a fonte de experiência externa) e o genótipo (fonte de organização
biológica)7.
A partir dessas perspectivas, torna-se evidente a impossibilidade de analisar as
necessidades, de�nir os objetivos e intervir junto à criança separadamente da família.
Assim, o enfoque da IP não é apenas a criança, mas os vários contextos de sua vida e as
interações que ocorrem nesses contextos e que são essenciais para a compreensão de seu
desenvolvimento. A constatação de que todas as famílias têm capacidades e pontos fortes
que ultrapassam suas necessidades, atuando na tomada de decisões e sendo os
responsáveis �nais pelos cuidados da criança, otimizou o processo de tratamento, e a
abordagem centrada na família passou a se constituir na prática mais importante em um
programa de IP.
A abordagem centrada na família (também conhecida como Cuidado Centrado na
Família) se refere a uma �loso�a de prestação de serviços que surgiu a partir dos
programas de IP e é atualmente considerada o tipo de prática que melhor contribui para
que as crianças recebam uma intervenção máxima, já que os cuidados com a criança são
inseridos na rotina diária da família; além disso, a colaboração entre pais e terapeutas
torna mais e�caz o plano de condutas85-88.
Na abordagem centrada na família, tanto o terapeuta como a família atuam no
processo de intervenção, trabalhando juntos, em parceria, para de�nir e direcionar,
respectivamente, as necessidades da criança85,89. O processo de intervenção visa a uma
abordagem que respeite os valores e preferências da família, suas prioridades e
necessidades na rotina diária de cuidados à criança. O terapeuta pode contribuir de
maneira a direcionar a família para ajustar sua rotina ao programa de intervenção diário
e no planejamento dessas intervenções88,90.
Os objetivos terapêuticos são discutidos com a família para que as metas estabelecidas
sejam reais e adequadas aos problemas, necessidades e prioridades da criança e de sua
família em seu contexto. O terapeuta deve atuar de modo a habilitar a família para fazer
escolhas com base nas necessidades da criança. Os cuidadores são incentivados a
examinar os pontos fortes e as necessidades de seus �lhos e, com o apoio do terapeuta,
desenvolver um programa de IP que atenda às suas próprias metas e aspirações8.
Os pressupostos teóricos da intervenção centrada na família a descrevem como
fundamentada por um conjunto de valores, atitudes e abordagens que se relacionam com
os serviços prestados às criançase a suas famílias. Reconhecem que cada família é única,
constante na vida da criança, e os familiares são os que mais conhecem as habilidades e
necessidades da criança91. Essa de�nição é capaz de re�etir as premissas básicas dessa
abordagem e, a partir delas, determinar princípios e elementos-chave da função do
terapeuta, os quais se encontram descritos no Quadro 2.4.
Quadro 2.4 Premissas, princípios e elementos-chave da abordagem centrada na família
Premissas Princípios Elementos-chave
Os pais conhecem mais seus filhos e desejam o
melhor para suas crianças
Cada família deve ter a
oportunidade de decidir o grau de
envolvimento que deseja ter na
tomada de decisão para o
tratamento de sua criança
A família deve ter a
responsabilidade final pelos
cuidados com a criança
Encorajar a família na
tomada de decisões
Assistir e identificar
potencialidades e
necessidades
Promover e
compartilhar
informações sobre a
criança e sua condição
Dialogar e colaborar
com a família
Promover a
acessibilidade a
serviços relacionados
com as necessidades
da família
Famílias são diferentes e únicas Cada família e cada membro
familiar devem ser tratados com
respeito
Respeitar as famílias e
dar suporte a elas
Escutar as expectativas
da família
Acreditar e confiar na
família
Promover serviço
individualizado
Aceitar as diferenças
Comunicar claramente
O ótimo funcionamento da criança ocorre
dentro de um contexto familiar e comunitário: a
criança é afetada pelo estresse e pela maneira
como outros membros da família enfrentam as
situações
As necessidades de todos os
membros da família precisam ser
consideradas
O envolvimento de todos os
membros da família deve ser
apoiado e encorajado
Considerar as
necessidades
psicossociais e
encorajar a
participação de todos
os membros da família
Respeitar o modo como
a família enfrenta as
situações diversas
Encorajar o uso dos
suportes oferecidos
pela comunidade
Auxiliar na construção
de pontos fortes
Fonte: adaptado de Rosembaum et al.91.
Mudança de um programa fragmentado para um modelo integral
Atualmente, os modelos de prestação de serviços formam um contínuo que vai desde
contextos segregados e equipes multidisciplinares até contextos inclusivos com equipes
transdisciplinares92. Tradicionalmente, na IP os programas são focados em um único
domínio do desenvolvimento infantil – cognitivo, social, linguagem, motor – em que o
intervencionista trabalha individualmente com a criança. Nesse tipo de programa, as
necessidades da família raramente são vistas, mas eventualmente o pro�ssional pede
ajuda aos pais, ensinando-lhes algumas atividades educacionais especí�cas que podem
ser realizadas com a criança. Os atendimentos são geralmente especializados e oferecidos
em ambientes separados, como clínicas ou consultórios, e eventualmente são fornecidos
na casa da criança92.
Além disso, nesse modelo todos os programas desenvolvidos por outros pro�ssionais
são considerados suplementares. Embora o terapeuta reconheça que a criança possa ter
necessidades médicas e também necessidades dentro do contexto familiar, essas questões
são encaradas fora do foco do programa de intervenção. Eventualmente, o terapeuta
sente necessidade de conversar com os demais pro�ssionais, mas em geral
informalmente, pois dispõe de pouco tempo para um trabalho coordenado com outros
pro�ssionais, considerando que passa a maior parte do tempo em atendimento com a
criança92.
Esse tipo de programa tem sido considerado atualmente como aquele que, apesar de
obter bons resultados, não é capaz de isoladamente, por ser fragmentado, resolver a
situação e contribui para aumentar o estresse familiar93. Além disso, esse trabalho
isolado e sem comunicação pode acarretar a falta de continuidade, congruência e
convergência entre os serviços8. Um modelo integrado apresentado como alternativa
tem como pilares a abordagem centrada na família (descrito previamente), a integração
das diferentes terapias e o uso de ambientes e rotinas naturais da criança92.
O trabalho integrado da equipe implica uma visão transdisciplinar na qual cada
participante (família e pro�ssionais de diferentes áreas) discute suas observações e
partilha suas perspectivas relativas à avaliação, ao planejamento e à tomada de decisão.
Isso ocorre por meio de reuniões periódicas, onde todos assumem responsabilidades e
tomam decisões conjuntas94. Para aqueles pro�ssionais que trabalham isoladamente, ou
seja, fora de uma equipe multidisciplinar, uma opção é contar com a consultoria de
outros pro�ssionais conforme as necessidades da própria criança92.
Uma verdadeira articulação entre os pro�ssionais e entre os serviços prestados implica
a existência de um modelo descentralizado e �exível que articule os diferentes recursos
existentes na comunidade. Dentro de um modelo integrado, um contexto mais natural é
oferecido à criança e à sua família, no qual é estimulado o envolvimento dos pais e
observado o comportamento da criança em atividades signi�cativas para ela. Assim, os
serviços devem, tanto quanto possível, ser prestados dentro das rotinas e ambientes
naturais da criança. Devem ser evitados ambientes de segregação e privilegiando, além
do ambiente de casa, os ambientes em que crianças típicas e atípicas possam conviver (p.
ex., escolas, parquinhos, praças)92.
IP PARA CRIANÇAS COM RISCO BIOLÓGICO1
Estudos têm evidenciado o efeito positivo da IP no desenvolvimento cognitivo e motor
de crianças pré-termo (nível de evidência 1a)79, em crianças consideradas de alto risco
ou com diagnóstico de paralisia cerebral20,95,96. No entanto, os autores a�rmam que os
ensaios clínicos existentes e incluídos em revisões sistemáticas apresentam uma
metodologia muito variada, o que di�culta a comparação entre eles. Há também
carência de estudos com alta qualidade metodológica, e o tamanho do efeito da
intervenção é considerado pequeno20,79,96. Apesar disso, existem evidências promissoras
para abordagens na IP que incorporam princípios como o movimento iniciado pela
própria criança, tarefa especí�ca, modi�cação do ambiente e educação dos pais20,96,97.
Uma tarefa especí�ca signi�ca que a criança irá executar uma atividade com uma meta
dirigida, ou seja, com uma �nalidade de interação ambiental. Por esse motivo, as
atividades propostas precisam despertar o interesse da criança, pois ela necessita
cumprir a meta de maneira ativa20,96. Estudos em �lhotes de gatos demonstram que
lesões no trato corticoespinhal produzem um padrão alterado na função desse trato que
se assemelha ao de uma criança com paralisia cerebral. No entanto, terapias
fundamentadas em atividades restauram essas conexões, melhorando o controle sobre os
movimentos realizados98.
O ambiente deverá ser estruturado e enriquecido com estímulos para que a criança
tenha o interesse de interagir, ou seja, de executar os movimentos propostos. Estudos em
animais demonstram a importância de um ambiente enriquecido para melhorar a
recuperação cerebral em níveis estruturais e bioquímicos. Nesses estudos, os animais são
colocados em ambientes com altos níveis de complexidade e variabilidade com a
disponibilidade de brinquedos, plataformas e túneis trocados periodicamente. Nesse
caso, os animais não são forçados a realizar atividades e seu envolvimento com o meio
ambiente é ativo e lúdico99.
A educação e a participação dos pais fazem parte do modelo da abordagem centrada
na família discutida previamente. Os pais que convivem diariamente com as crianças
geralmente são fonte de afeto e cuidado. Por esse motivo, em um contexto natural os pais
podem, por meio de brincadeiras direcionadas e estabelecidas em conjunto com o
pro�ssional, favorecer a prática contínua das atividades propostas para a criança100.
A IP para crianças com alto risco ou com diagnóstico clínico de paralisia cerebral
realizada de acordo com esses pressupostos, ou seja, a criança ativa, interagindo em seu
ambiente enriquecido por estímulos, além de maximizar a neuroplasticidade cerebral,
minimiza as eventuaisdo Centro de Terapia Intensiva Pediátrico do
Hospital das Clínicas da UFMG – Belo Horizonte-MG.
Ester Miriã Gomes da Silva
Graduação em Fisioterapia pela UFVJM. Residência Multipro�ssional em
Urgência e Trauma pelo Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da
Universidade de São Paulo.
Evanirso da Silva Aquino
Fisioterapeuta. Doutor em Saúde Internacional pelo Instituto de Medicina
Tropical da USP. Mestre em Fisioterapia pela Universidade Cidade de São
Paulo (UNICID). Especialista em Fisioterapia Respiratória pela
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professor da Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Betim). Fisioterapeuta do
Hospital Infantil João Paulo II – Unidade de Doenças Complexas e
Ambulatório de Fibrose Cística.
Fabiana Rita Câmara Machado
Fisioterapeuta. Especialista em Fisioterapia Neurofuncional da Criança e do
Adolescente. Especialista em Fisiologia do Exercício. Mestre em Ciências da
Reabilitação. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências da
Reabilitação da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre.
Fisioterapeuta do Serviço de Fisiatria e Reabilitação do Hospital de Clínicas
de Porto Alegre.
Fernanda de Cordoba Lanza
Doutora em Ciências Aplicadas à Pediatria da Disciplina de Alergia,
Imunologia Clínica e Reumatologia do Departamento de Pediatria da
Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Professora do Programa de
Pós-Graduação em Ciências da Reabilitação da Universidade Nove de Julho.
Especialista em Terapia Intensiva Pediátrica e Neonatal pela Associação
Brasileira de Fisioterapia Cardiorrespiratória e Fisioterapia em Terapia
Intensiva (ASSOBRAFIR).
Francielly Dorvina Medeiros Ribeiro do Carmo
Fisioterapeuta. Especialista em Urgência e Emergência pelo Hospital Infantil
João Paulo II da Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais
(FHEMIG). Graduada em Fisioterapia pela Pontifícia Universidade Católica
de Minas Gerais – Campus Betim (PUC-MG).
Hércules Ribeiro Leite
Fisioterapeuta. Especialista em Fisioterapia Neurofuncional da Criança e do
Adolescente (COFFITO) e Fisiologia do Exercício (PUC-Minas). Mestre e
Doutor em Fisiologia com ênfase em Neurociências (UFMG). Pós-
Doutorado em Fisioterapia na �e University of Sydney, Sydney, Austrália
(UNISYD). Docente do curso de Fisioterapia da Universidade Federal dos
Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM) e orientador dos Programas de
Pós-Graduação em Reabilitação e Desempenho Funcional (PPGReab) e
Multicêntrico em Ciências Fisiológicas (PMPGCF).
Josy Davidson
Fisioterapeuta. Pós-Doutorado em Ciências Aplicadas à Pediatria
(UNIFESP). Professora A�liada do Departamento de Pediatria/Disciplina de
Pediatria Neonatal (UNIFESP). Coordenadora do Curso de Pós-Graduação
em Fisioterapia Hospitalar do Centro Universitário São Camilo.
Jousielle Márcia dos Santos
Fisioterapeuta. Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Reabilitação e
Desempenho Funcional da UFVJM e Doutoranda em Ciências Fisiológicas
pela Sociedade Brasileira de Fisiologia (SBFis) na Universidade Federal dos
Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM).
Karine Beatriz Costa
Mestre e Doutoranda em Ciências Fisiológicas pela Sociedade Brasileira de
Fisiologia (SBFis) na Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e
Mucuri (UFVJM).
Karoliny Lisandra Teixeira Cruz
Fisioterapeuta. Mestranda do Programa de Reabilitação e Desempenho
Funcional (PPGReab-UFVJM). Professora Substituta do Curso de
Fisioterapia da Universidade Federal do Amazonas (UFAM).
Kênnea Martins Almeida Ayupe
Fisioterapeuta. Mestre em Ciências da Saúde – Instituto Fernandes Figueira
(IFF/Fiocruz). Doutora em Ciência da Reabilitação – UFMG. Professora
Adjunta do Departamento de Educação Integrada em Saúde da
Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).
Liliane Baía Silva
Fisioterapeuta. Especialista em Neurologia pela UFMG. Fisioterapeuta da
Rede Sarah de Hospitais de Reabilitação – Belo Horizonte-MG.
Lisa Carla Narumia
Fisioterapeuta. Especialização em Fisioterapia Motora Ambulatorial e
Hospitalar (UNIFESP). MBA em Gestão Executiva em Saúde (FGV).
Formação no Método de Tratamento Neuroevolutivo Bobath e Baby Course.
Fisioterapeuta referência da Clínica de Paralisia Cerebral do setor de
Fisioterapia Infantil da Associação de Assistência à Criança De�ciente –
AACD Ibirapuera.
Luciana De Michelis Mendonça
Fisioterapeuta. Especialista em Fisioterapia Esportiva. Mestre e Doutora em
Ciências da Reabilitação pela UFMG. Pós-Doutorado em Fisioterapia pela
UFSCar. Docente do Curso de Fisioterapia da UFVJM.
Ludmila Ferreira Brito
Fisioterapeuta. Especialista em Fisioterapia Neurofuncional da Criança e do
Adulto. Sócia proprietária da clínica de reabilitação neurofuncional
ReabilitaAÇÃO em Belo Horizonte-MG.
Luisa Fonseca Sarsur
Fisioterapeuta. Especialista em Aprendizagem Motora pela USP. Formação
nos métodos Conceito Bobath e Baby Bobath, �eraSuit, Reeducação do
Movimento Ivaldo Bertazzo e Pilates.
Maria Gabriela Abreu
Fisioterapeuta. Graduada em Fisioterapia na Universidade Federal dos Vales
do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM).
Maria Leonor Gomes de Sá Vianna
Fisioterapeuta. Mestre em Bioética (PUC-PR). Docente do Curso de
Fisioterapia da PUC-PR. Membro do Grupo de Pesquisa Bioética,
Humanização e Cuidados em Saúde CNPq-PUC-PR.
Mariana Aguiar de Matos
Fisioterapeuta. Mestre e Doutora em Ciências Fisiológicas pelo Programa
Multicêntrico de Pós-Graduação em Ciências Fisiológicas da UFVJM.
Míriam Ribeiro Calheiros Sá
Fisioterapeuta do Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do
Adolescente Fernandes Figueira ‒ Fiocruz. Especialista em Fisioterapia
Neurofuncional da Criança e do Adolescente. Doutora em Ciências pelo
Programa de Pós-Graduação do IFF-Fiocruz em Saúde Coletiva, área de
concentração: Saúde da Criança.
Nicolette Celani Cavalcanti
Fisioterapeuta. Mestre em Ciências – IFF/Fiocruz. Fisioterapeuta do
Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente
Fernandes Figueira – IFF/Fiocruz.
Paula Christina Muller Maingué
Fisioterapeuta. Especialista em Geriatria e Gerontologia (PUC-PR). Mestre
em Bioética (PUC-PR). Docente do Curso de Fisioterapia da PUC-PR.
Paula de Almeida Thomazinho
Fisioterapeuta do Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do
Adolescente Fernandes Figueira (IFF/ Fiocruz). Especialista em Fisioterapia
Neurofuncional. Mestre em Saúde Materno-Infantil pelo IFF/Fiocruz.
Doutora em Ciências pelo IFF/Fiocruz.
Paula Silva de Carvalho Chagas
Fisioterapeuta. Mestre e Doutora em Ciências da Reabilitação pela UFMG.
Professora Associada do Departamento de Fisioterapia do Idoso, do Adulto
e Materno-Infantil da Faculdade de Fisioterapia da UFJF. Orientadora do
Programa de Pós-Graduação strictu-sensu em Ciências da Reabilitação e
Desempenho Físico-Funcional da UFJF.
Peterson Marco O. Andrade
Fisioterapeuta. Doutor em Neurociências – Universidade Federal de Minas
Gerais. Professor Efetivo do Departamento de Fisioterapia do Campus de
Governador Valadares da Universidade Federal de Juiz de Fora.
Priscilla Rezende Pereira Figueiredo
Fisioterapeuta – Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Especialista em Fisioterapia em Ortopedia. Mestre em Ciências da
Reabilitação – UFMG. Doutoranda em Ciências da Reabilitação – UFMG.
Coordenadora do Núcleo de Ensino e Pesquisa da Associação Mineira de
Reabilitação (AMR).
Rafaela Silva Moreira
Fisioterapeuta – Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri
(UFVJM). Especialista em Fisioterapia em Neurologia – Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG). Mestre e Doutora em Ciências da
Saúde/Saúde da Criança e do Adolescente (UFMG). Professora Adjunta do
Departamento de Ciências da Saúde da Universidade Federal de Santa
Catarina (UFSC-Araranguá), área de concentração: Fisioterapia em
Pediatria.
Rejane Vale Gonçalves
Fisioterapeuta. Especialista em Fisioterapia Neurofuncional – Universidade
Gama Filho (UGF). Mestre e Doutora em Ciências da Reabilitação –
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professora Adjunta domodi�cações deletérias do crescimento e desenvolvimento
muscular e ósseo101.
No caso de paralisia cerebral, o período de idade anterior a 12 a 24 meses era
considerado um período silencioso ou latente, pois o diagnóstico não era estabelecido.
No entanto, a ressonância magnética e o uso de alguns instrumentos de avaliação (como
o GMA) possibilitam, atualmente, um diagnóstico precoce, antes mesmo dos 6 meses de
idade101. Alguns autores reforçam a importância desse diagnóstico clínico de paralisia
cerebral precoce, pois as abordagens de tratamento diferem conforme a distribuição
topográ�ca e, quanto mais cedo aplicadas, melhor o prognóstico da criança101,102 (veja
mais detalhes no Capítulo 4).
IP PARA CRIANÇAS COM RISCO AMBIENTAL
As estratégias de IP para crianças com risco psicossocial são multidimensionais,
abrangendo intervenções que vão desde o período pré-natal até os 5 anos de idade103.
Esses procedimentos englobam atitudes e conhecimento relativos ao cuidado (saúde,
nutrição e higiene), educação e estímulos para o desenvolvimento global, proteção
social/segurança e responsividade no cuidado (vínculo e con�ança)103,104. Os
pro�ssionais de saúde têm um papel relevante na promoção do desenvolvimento na
primeira infância na medida em que podem auxiliar os pais na efetivação das boas
práticas do cuidado e na criação de vínculos afetivos. Participam de maneira ativa, desde
o período gestacional, com atuação no acompanhamento do crescimento e
desenvolvimento infantil, auxiliando a identi�cação de possíveis vulnerabilidades105.
A complexidade e a multidimensionalidade da avaliação do desenvolvimento infantil
tornam necessário um processo contínuo de vigilância dos pro�ssionais de saúde2,106.
Esses pro�ssionais irão atuar na identi�cação de potenciais fatores de risco e
anormalidades, estabelecendo algum diagnóstico e, se necessário, encaminhando para
intervenções2. Apesar das recomendações da OMS e da Academia Americana de
Pediatria, o monitoramento do desenvolvimento infantil ainda ocorre de modo precário
e insu�ciente em todo o mundo, com base apenas no julgamento clínico do pro�ssional.
Muitas das estratégias apresentadas nesta seção podem ser idealmente desenvolvidas no
contexto da Atenção Primária e mais especi�camente na Vigilância do Desenvolvimento
Infantil, que será apresentada no Capítulo 3. A seguir serão descritas algumas estratégias
para estímulo precoce do desenvolvimento infantil para crianças sob risco
ambiental/psicossocial.
Estratégias da concepção ao nascimento: cuidados com bem-estar, saúde e
nutrição materna
Os comportamentos e preocupações maternas relativos ao desenvolvimento e à saúde
dos seus �lhos correspondem à maneira como a mãe lida com sua própria saúde e bem-
estar. Intervenções direcionadas às mães nos períodos pré-natal, perinatal e pós-natal se
mostram bené�cas por assegurar cuidado e assistência de qualidade às crianças (nível de
evidência 1a)103.
Estudos demonstram que depressão materna, ansiedade, estresse, uso de substâncias
ilícitas e/ou violência doméstica são problemas maternos que têm desfechos negativos
para o desenvolvimento infantil24,103,105. Dentre esses desfechos pode ser incluído o
pobre desempenho cognitivo e de linguagem, além de di�culdades emocionais e de
comportamento nas crianças103. Além disso, medidas preventivas adotadas com as mães
no período pré-natal conseguiram reduzir a probabilidade de baixo peso e desnutrição
em crianças. Dentre essas intervenções estão a administração de corticoide antenatal às
mães com risco de parto prematuro, a suplementação de iodo antes ou durante o parto
e/ou o uso de agentes antiplaquetários em mães com risco de pré-eclâmpsia103. O
acompanhamento da gestante por meio de um pré-natal de qualidade é capaz de
identi�car adversidades enfrentadas pelas futuras mães, possibilitando um tratamento
precoce e e�caz80.
Estratégias do nascimento até os 5 anos de idade
Programas de apoio parental
A participação dos pais em serviços que estimulam as interações entre pais e �lhos,
atuando sobre crenças, atitudes e comportamentos paternos a �m de incentivar a
aprendizagem e o desenvolvimento global, tem mostrado bons resultados. Várias
organizações, como a OMS e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF),
têm atuado em nível mundial no sentido de realizar intervenções centradas na família
que incluem técnicas de mudanças de comportamento, práticas e estratégias para
resolução de problemas (níveis de evidência 1a e 1b)103,104.
Vínculos familiares
A segurança emocional, proveniente de vínculos bem estabelecidos entre a criança e seus
pais e/ou cuidadores, é essencial para a promoção adequada do desenvolvimento
infantil. No ambiente domiciliar é que se iniciam as relações de apoio e experiências de
aprendizagem positivas105. Assim, a participação da família/cuidadores, atuando de
maneira responsiva, confortadora e acolhedora nos momentos de estresse, dor ou
necessidade de atenção, é fundamental para a construção de vínculos seguros. Portanto,
em programas de IP, um dos pontos-chave é a realização de atividades que envolvam os
cuidadores de modo que eles consigam suprir as necessidades de seus �lhos1,104,105.
Atividades em casa
Atividades simples e de baixo custo que na maioria das vezes façam uso de objetos
familiares podem proporcionar às crianças estímulos que promovam um
desenvolvimento melhor. Cantar, brincar com utensílios domésticos, ler, contar histórias
e assistir a programas de televisão ou outras mídias são alguns exemplos desses tipos de
atividade. Essas atividades podem contribuir, também, para o fortalecimento de vínculos
com os cuidadores1.
Educação infantil e pré-escolar
O acesso à educação de qualidade pode promover o desenvolvimento infantil,
melhorando a aprendizagem escolar e as habilidades sociais das crianças. A qualidade da
creche terá efeito maior em crianças que vivem em ambiente familiar de risco
psicossocial107. Vários estudos indicam que programas educacionais de alta qualidade
têm impacto positivo no desenvolvimento social e cognitivo das crianças de nível
socioeconômico baixo com repercussões na fase adulta11,107. Isso decorre da realização
no ambiente escolar de atividades pedagógicas e brincadeiras, além da interação e da
convivência da criança com seus pares. Desse modo, esse ambiente é capaz de unir
aspectos cognitivos e linguísticos aos aspectos sociais e emocionais essenciais à formação
da criança (nível de evidência 1b)1,103,105.
Os indicadores de qualidade de creche mais expressivamente estudados têm sido a
estrutura física, a formação ou capacitação dos educadores, a permanência duradoura da
equipe, a estrutura do programa, a quantidade de crianças por educador e o
envolvimento da família108. Assim, os estudos indicam que, quanto maior a estabilidade
da equipe que trabalha com a criança, menor a relação número de crianças-educador e,
quanto mais treinado e capacitado for o educador, melhor efeito terá sobre o
desenvolvimento da criança. Esses aspectos estão relacionados com o aumento da
atenção, da responsividade e da disponibilidade do educador para a estimulação
cognitiva, da linguagem e para a estimulação motora da criança109.
Saúde e nutrição
Estudos demonstram a associação entre desnutrição grave e piores desfechos no
desenvolvimento infantil. A formação dos circuitos neuronais e das estruturas nervosas
que irão constituir os órgãos e sistemas corporais depende de fontes nutritivas, e a
ausência dessas fontes pode ter graves repercussões no crescimento e no
desenvolvimento, como demência1,15. Efeitos positivos da amamentação no crescimento
e no desenvolvimento a curto e longo prazo são bem reconhecidos na literatura com
redução da mortalidade e da morbidade infantil e com aumento dos níveis de
inteligência (nível de evidência 1b)1.
Prevenção contra maus-tratos
Maus-tratos durante a infância podem causar prejuízos na memória e na aprendizagem
infantil. Crianças que vivenciaram um cuidado inadequado são mais suscetíveis a
apresentar problemas de comportamento,manifestando mais di�culdade em lidar com
as situações de estresse4,110. Os programas de intervenção que realizam o
acompanhamento das mães durante o pré-natal e que rotineiramente fazem visitas
domiciliares têm apresentado resultados promissores na prevenção de abusos contra as
crianças (nível de evidência 1a)103.
Intervenções de proteção social
Programas que objetivam proporcionar segurança/proteção social às crianças e suas
famílias por meio da transferência de renda têm efeitos positivos, mas indiretos, sobre
desfechos importantes, como diminuição da ocorrência de doenças, morbidade e
aumento do peso ao nascimento93. Esses efeitos são indiretos porque o aumento dos
recursos �nanceiros das famílias pode atuar na melhoria das condições de vida com
in�uência nos múltiplos níveis do desenvolvimento infantil (nível de evidência 1b)93,103.
Um exemplo no Brasil é o Programa Bolsa Família (PBF), um programa de
transferência de renda proposto pelo Ministério de Desenvolvimento Social (MDS) para
as famílias que vivem em situação de extrema pobreza111. Em contrapartida, as famílias
bene�ciadas assumem o compromisso com o poder público de cumprir algumas metas,
como a manutenção de crianças e adolescentes na escola, o acompanhamento da saúde
das gestantes e nutrizes e o monitoramento do crescimento e desenvolvimento das
crianças112. O relatório da Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) atribui ao PBF
quase um quarto da queda na desigualdade na distribuição de renda no Brasil. O
programa também tem sido indicado como importante estratégia para queda da
desnutrição no país não apenas pelo impacto na renda familiar, mas também pelas
exigências na participação em programas de monitoramento do crescimento das
crianças113.
Portanto, a maioria das intervenções que mostram bons resultados se baseia na
combinação das estratégias descritas previamente, as quais asseguram uma adequada
qualidade do cuidado por meio do fortalecimento das famílias e de proteção social.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os constantes avanços do conhecimento e da tecnologia referentes aos cuidados
neonatais promovem aumento da sobrevida das crianças de risco e, consequentemente, a
clara necessidade da IP. Além disso, os riscos ambientais aos quais as crianças podem
estar submetidas também ocasionam o risco de atraso no desenvolvimento, e a IP se
mostra, mais uma vez, uma prática assertiva e recomendada para potencializar o
desenvolvimento global dessas crianças.
Compreender a real função da IP, a maneira de atuação dos pro�ssionais da equipe
multidisciplinar, a melhor maneira de abordagem e a importância da participação ativa
da família em todo o processo de reabilitação, bem como os vários contextos em que a
criança está inserida, é determinante para se obter sucesso nesse tipo de serviço.
CASOS CLÍNICOS
Estudo de caso 1 – Risco biológico
Abordagem centrada na família no contexto domiciliar
ONBR, sexo feminino, a termo (40 semanas), com peso adequado para idade gestacional
(AIG), mãe com 32 anos, primípara, ensino superior completo, realizou
acompanhamento pré-natal durante toda a gestação, parto normal, apresentação pélvica,
Apgar 1’:2, 5’:5 e 10’:6. Ao nascimento, a criança apresentou-se hipotônica, sendo
entubada na sala de parto e transferida para a UTI neonatal, mantida por breve período
em ventilação mecânica, evoluindo para CPAP nasal por algumas horas. Nos primeiros
dias de vida apresentou quadro de hiper-re�exia, clônus e irritabilidade intercalada com
prostração. O quadro evoluiu bem, com ausência de alterações ao exame clínico e
neurológico, e a criança recebeu alta hospitalar 6 dias após o nascimento. A criança foi
encaminhada à �sioterapia aos 4 meses de idade com suspeita de disra�smos espinhais,
apresentando fosseta sacral, mantendo acompanhamento médico. A Figura 2.6 mostra a
interação dos componentes da CIF de funcionalidade, incapacidade e fatores contextuais
relevantes para a criança realizado a partir da primeira avaliação �sioterapêutica.
Figura 2.6 Relação entre os componentes da Classificação de Funcionalidade e Incapacidade e Saúde
considerados relevantes na avaliação e intervenção da criança (Organização Mundial da Saúde, 2001). (ADM:
amplitude de movimento; MMII: membros inferiores; MMSS: membros superiores.)
Foi iniciado um programa de IP no contexto domiciliar com abordagem centrada na
família, no qual foi realizada uma visita por semana com duração média de 60 minutos
cada, durante 7 semanas, com um intervalo de 4 semanas após a terceira visita. O
Quadro 2.5 mostra as estratégias utilizadas para o estabelecimento de metas de
tratamento, engajamento dos pais e a tomada de decisões compartilhadas. Essas metas
foram traçadas semanalmente a cada visita e de modo a serem incorporadas diariamente
na rotina da família.
Quadro 2.5 Determinação de metas semanais para intervenção precoce domiciliar com abordagem centrada na
família
Dia 1
(Criança
com 4
meses e
12 dias
de
idade)
Avaliação (AIMS – percentil 25)
Discussão das necessidades da família relacionadas com o desenvolvimento da criança, prioridade da
família e rotina diária – a primeira preocupação da mãe foi em relação à movimentação ativa de
membros inferiores, que ela considera que a criança movimenta pouco em relação a outras crianças
Coleta e registro da rotina diária da criança
Determinação de uma meta mutuamente acordada para intervenção – alcançar os pés na posição de
supino e em alguns momentos retirar a fralda (de pano ecológica) para facilitar o desempenho na
atividade (Figura 2.7)
Demonstração da tarefa à mãe
Estabelecimento de momentos dentro da rotina para estimular a criança
Figura 2.7 Mãe brincando e incentivando a criança a pegar os pés e promover o contato entre eles. A
ausência da fralda de pano ecológica melhora o desempenho da criança.
Dia 2
(4 meses
e 19
dias de
idade)
Avaliação pelos pais e terapeutas da última tarefa traçada – foram observados progresso na
movimentação ativa dos membros inferiores (Figura 2.8) e maior interesse da criança em pegar os
pés. A mãe relatou que obteve bom desempenho na tarefa e que aproveitava os momentos em que
a criança estava sem a fralda para estimulá-la, além de outros momentos dentro da rotina. Como
para a família o uso da fralda de pano ecológica é um valor, seu uso foi respeitado e sugerido revezar
as brincadeiras de “pegar os pés” com o uso dela também
Planejamento pela mãe e terapeuta da próxima intervenção – conseguir que a criança role de supino
para prono e de prono para supino
A mãe foi incentivada a brincar com a criança visando ao alcance dessa meta e o terapeuta auxiliou
dentro do necessário (Figura 2.8)
Figura 2.8 Movimentação alternada dos membros inferiores evidenciando a fralda ecológica.
Figura 2.9 Mãe e filha brincando juntas com o objetivo de rolar.
Dia 3
(4 meses
e 26
dias de
idade)
Discussão acerca do sucesso e dos desafios encontrados para desempenhar a última meta acordada
entre pais e terapeuta. Nessa etapa, algumas perguntas-chave foram utilizadas88:
“Como se deu o desempenho da criança desde a última visita?”
“O que foi mais difícil?”
“O que você (mãe) mais gostou?”
“Houve alguma dúvida ou preocupação quanto à realização das atividades planejadas?”
“Você (mãe) acha que devemos mudar a meta?”
Mãe:
“A minha filha ficou irritada na posição de prono, não permanecendo por muito tempo, o que me
dificultou estimulá-la a rolar.”
“Houve ligeira mudança em desempenhar a atividade de rolar e melhor desempenho para pegar os
pés.”
“Atualmente, minha filha está mais interessada em objetos, como colheres, do que em seus próprios
brinquedos.”
“Acho que ela pode melhorar o rolar. Parece que ela não tem um bom controle do movimento e se
joga.”
Em conjunto com a mãe, novas estratégias foram elaboradas para que a criança melhore seu
desempenho ao rolar e para permanecer por mais tempo na posição de prono.
Mãe e terapeuta realizando juntas as atividades. Terapeuta incentivando a mãe a encontrar as
melhores estratégias paraa realização das tarefas
4 semanas de intervalo
Dia 4
(6 meses
e 7 dias
de
idade)
As mesmas perguntas da última visita foram refeitas à mãe
A mãe relatou progresso na movimentação ativa dos membros inferiores da criança e no rolar de
prono para supino e de supino para prono, mas não se adaptando bem à posição de prono (a criança
se irritava, resmungava e chorava)
Foram explicados à mãe os benefícios da postura de prono para a criança
A mãe concordou que seria importante insistir um pouco mais em brincar com a criança em prono e
que pensaria em algum recurso para que ela não ficasse irritada
Em concordância com a mãe, foi traçada uma nova meta – brincar com a criança na posição sentada
com apoio
A mãe foi incentivada a brincar com a criança visando ao alcance dessa meta e o terapeuta auxiliou
dentro do necessário
Dia 5
(6 meses
e 14
dias de
idade)
As perguntas-chave foram refeitas
A mãe relatou que houve progresso da criança na posição sentada (Figura 2.10), mantendo-se
independente, sem suporte, com bom controle dos movimentos de cabeça e tronco no plano sagital
e capaz de alcançar objetos na posição. Não houve progresso na posição de prono; ainda houve
dificuldade em estimular a criança nessa posição
Em concordância com a mãe, foram mantidas as condutas de brincar na posição sentada para
melhorar a performance e estimular a manutenção na posição de prono
Figura 2.10 Alcance à frente na posição sentada sem suporte.
Dia 6
(6 meses
e 28
As perguntas-chave foram refeitas
A mãe relatou que houve um progresso na postura de prono. Os pais utilizaram recursos musicais
para acalmar a criança e, assim, ela se manteve por mais tempo na posição de prono (Figura 2.11). Já
dias de
idade)
na posição sentada, houve melhora na performance, mantendo-se por mais tempo e alternando a
postura dos MMII
A mãe e os profissionais decidiram manter as condutas e a mãe solicitou uma cartilha na qual ela
pudesse acompanhar os marcos motores do desenvolvimento para saber qual o próximo estímulo
ou oportunidade a ser ofertado à criança, demonstrando um empoderamento da mãe
Figura 2.11 Mãe toca um chocalho e canta para a criança permanecer na posição de prono.
Dia 7
(7 meses
e 4 dias
de
idade)
Reavaliação (AIMS – entre os percentis 25 e 50)
Em uma avaliação compartilhada com a mãe foram observados maior movimentação ativa dos
membros inferiores em todas as posturas, bom desempenho no rolar, sentar sem apoio (Figura 2.12)
e usar as mãos para alcançar e manipular brinquedos na posição
As perguntas-chave foram refeitas
A mãe se mostrou mais engajada em relação às formas de estimular a criança e relatou ser nítido o
avanço do desempenho motor da criança
Foi acordado que as próximas metas seriam estimular a criança nas posições de gato e se puxar para a
postura de pé
A mãe foi incentivada a brincar com a criança visando ao alcance dessas metas e o terapeuta auxiliou
dentro do necessário (Figura 2.13)
Foi entregue à mãe uma cartilha com orientações quanto às fases do desenvolvimento típico até 1
ano de idade e sugestões de estimulação da criança
Figura 2.12 Criança sentada independente, com bom controle de tronco e quadris, modifica a
postura dos membros inferiores em razão da �exão de joelho.
Figura 2.13 Mãe e terapeuta incentivando a criança a passar para a posição de quatro apoios.
AIMS: Alberta Infant Motor Scale.
Estudo de caso 2 – Risco psicossocial/ambiental – Contexto da creche
Vinte crianças frequentadoras de uma creche de associação bene�cente localizada na
periferia de um município brasileiro de pequeno porte.
Características das crianças
• Idade entre 8 e 30 meses; metade de meninos e metade de meninas.
• Apenas uma criança com baixo peso ao nascimento; nenhuma pré-termo ao
nascimento; todas, ao nascimento, com Apgar de 5’ > 8.
• Bayley-III – escore composto:
– escala cognitiva: 89 – abaixo da média.
– escala da linguagem: 77 – limítrofe.
– escala motora: 93 – na média.
Características do ambiente de casa
• Dados socioeconômicos das famílias: 80% pertencentes às classes econômicas D e E e
20% à classe C114; 25% das famílias monoparentais femininas; 50% das crianças não
convivem diariamente com o pai; 80% das mães apresentam 8 anos ou menos de
estudo.
• Qualidade do ambiente de casa por meio do inventário HOME115. A Figura 2.14
mostra as medianas obtidas para cada subescala e o total. Valor3. Walker SP, Wachs TD, Meeks Gardner J, Lozo� B, Wasserman GA, Pollitt E, et al. Child development: risk factors
for adverse outcomes in developing countries. Lancet. 2007. p. 145–57.
4. Comitê Científico do Núcleo Ciência Pela Infância. O Impacto do Desenvolvimento na Primeira Infância sobre a
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6. Deater-Deckard K, Cahill C. Nature and nurture in early childhood. In: McCartney K, Phillips D, editors. Handbook
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7. Shonko� JP, Meisels SJ. Handbook of early childhood intervention. 1st ed. Cambridge University Press, editor.
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8. World Health Organisation (WHO). Developmental di�culties in early childhooh - Prevention, early
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1 Veja no Anexo, no �nal deste livro, a de�nição dos níveis de evidência, sendo 1 o nível mais alto e 5 o mais baixo.
INTRODUÇÃO
No Brasil, a criança tem seus direitos garantidos pela Constituição de 1988,
que estabeleceu, em seu artigo 227, a infância e a adolescência como
prioridades1. O Estatuto da Criança e do Adolescente veio reforçar a
consolidação desses direitos. Desse modo, ao longo das últimas décadas se
observam a ampliação e o fortalecimento de políticas públicas voltadas à
sobrevivência e ao bem-estar na infância (período de 0 a 12 anos
incompletos)2.
As ações básicas na atenção integral à saúde da criança, propostas na
década de 1980 pelo Ministério da Saúde (MS), constituem o centro da
atenção a ser prestada em toda a rede básica de serviços de saúde: (1)
promoção do aleitamento materno; (2) imunizações; (3) prevenção e
controle das doenças diarreicas; (4) prevenção e controle das infecções
respiratórias agudas; e (5) acompanhamento do crescimento e
desenvolvimento3.
Na década de 1990 foram implantados o Programa de Saúde da Família
(PSF), hoje denominado Estratégia da Saúde da Família (ESF), e o Programa
de Agentes Comunitários de Saúde (PACS), que fortaleceram a execução das
ações básicas na atenção integral à saúde da criança. Nas últimas décadas
avançaram alguns indicadores relativos ao bem-estar e à sobrevivência na
infância, como a queda na taxa de mortalidade infantil e na desnutrição4.
Houve a concretização de ações básicas de saúde pela ESF e o PACS, como
melhora na atenção pré-natal, incentivo ao aleitamento materno, divulgação
da reidratação oral e intensi�cação dos programas de vacinação5.
Assim, uma vez que o país tem avançado nos indicadores de saúde e bem-
estar, são necessários esforços no sentido de manter essas conquistas, mas
também garantir à criança um desenvolvimento global adequado,
possibilitando que atinja suas capacidades plenas enquanto adulta6. Desse
modo, em 2015 o MS instituiu a Política Nacional de Atenção Integral à
Saúde da Criança (PNAISC), em que manteve e ampliou as ações básicas de
saúde integral à criança. A PNAISC propõe sete eixos estratégicos:
1. Atenção humanizada e quali�cada à gestação, ao parto, ao nascimento e
ao recém-nascido.
2. Aleitamento materno e alimentação complementar saudável.
3. Promoção e acompanhamento do crescimento e desenvolvimento
integral.
4. Atenção a crianças com agravos prevalentes na infância e com doenças
crônicas.
5. Atenção integral à criança em situação de violências, prevenção de
acidentese promoção da cultura de paz.
6. Atenção à saúde de crianças com de�ciência ou em situações especí�cas e
de vulnerabilidade.
7. Vigilância e prevenção do óbito infantil, fetal e materno7.
Na perspectiva da atenção integral à saúde da criança, este capítulo tem
por objetivo apresentar a contribuição da �sioterapia na atenção primária à
saúde. Inicialmente serão descritos alguns conceitos da saúde coletiva e, em
seguida, os objetivos e as possibilidades de atuação do �sioterapeuta nesse
nível de atenção.
Ã
A CONTRIBUIÇÃO DA FISIOTERAPIA PARA A INTEGRALIDADE
DA ASSISTÊNCIA
O conhecimento dos princípios e diretrizes do sistema de saúde é relevante
para a organização dos serviços e a de�nição dos objetivos dos pro�ssionais.
De acordo com a legislação brasileira (Lei Federal 8.080/90), a integralidade
da assistência representa uma das diretrizes do sistema de saúde, sendo
entendida como:
um conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos, individuais e
coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema8.
Um cuidado integral e articulado entre os serviços da atenção básica e
especializada da Rede de Atenção à Saúde (RAS) do Sistema Único de Saúde
(SUS) possibilita a prevenção, a detecção precoce e o tratamento de
diferentes condições de saúde da criança, garantindo melhor resolutividade
para cada caso9.
A Constituição Federal de 1988 (art. 197) estabeleceu a integralidade com
“prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços
assistenciais”. Portanto, a assistência integral no sistema de saúde pode ser
operacionalizada com o desenvolvimento de ações articuladas entre os
pro�ssionais da RAS.
O �sioterapeuta é um dos pro�ssionais que contribuem para a promoção
dessas ações por meio de medidas preventivas e curativas relacionadas com
distúrbios cinéticos funcionais. Segundo o COFFITO, 2017:
Fisioterapia é uma ciência da saúde que estuda, previne e trata os distúrbios cinéticos
funcionais intercorrentes em órgãos e sistemas do corpo humano, gerados por alterações
genéticas, por traumas e por doenças adquiridas, na atenção básica, média complexidade e alta
complexidade. Fundamenta suas ações em mecanismos terapêuticos próprios, sistematizados
pelos estudos da biologia, das ciências morfológicas, das ciências fisiológicas, das patologias, da
bioquímica, da biofísica, da biomecânica, da cinesia, da sinergia funcional e da cinesia
patológica de órgãos e sistemas do corpo humano e as disciplinas comportamentais e sociais10.
Desse modo, o �sioterapeuta pode atuar na articulação das ações
preventivas e curativas com intervenções individuais ou coletivas na RAS.
A REDE DE ATENÇÃO À SAÚDE E OS NÍVEIS DE PREVENÇÃO
Organização do sistema de saúde e a Rede de Atenção à Saúde
O sistema de saúde é composto por serviços da atenção primária ou básica,
secundária (média complexidade) e terciária (alta complexidade). Esses
serviços compõem a RAS. A atenção primária à saúde, também conhecida
como atenção básica, se caracteriza por
um conjunto de ações de saúde, no âmbito individual e coletivo, que abrange a promoção e a
proteção da saúde, a prevenção de agravos, o diagnóstico, o tratamento, a reabilitação, a
redução de danos e a manutenção da saúde com o objetivo de desenvolver uma atenção
integral que impacte na situação de saúde e autonomia das pessoas e nos determinantes e
condicionantes de saúde das coletividades11.
A atenção secundária (média complexidade) é composta
por um conjunto de ações e serviços que visam atender os principais problemas de saúde e
agravos da população, cujo nível de complexidade da prática clínica demande a disponibilidade
de profissionais especializados e a utilização de recursos tecnológicos de apoio diagnóstico e
terapêutico que implicam o uso mais intenso para alcançar algum grau de economia de escala,
o que acarreta não serem realizados em todos os municípios do país, em grande parte muito
pequenos12.
A atenção terciária (alta complexidade) tem por objetivo “propiciar o
acesso da população a serviços quali�cados de alta tecnologia e alto custo”12.
A alta complexidade é organizada por redes estaduais, com adscrição da
clientela para a oferta dos serviços em alguns municípios de referência. Os
municípios de referência para os serviços de média e alta complexidade
(atenção secundária e terciária) são encontrados no Plano Diretor de
Regionalização dos Estados13.
Neste capítulo, o foco será a atuação do �sioterapeuta na atenção
primária, porém o Quadro 3.1 ilustra alguns serviços, procedimentos ou
especialidades que fazem parte desses níveis de atenção disponíveis no
Sistema de Gerenciamento da Tabela de Procedimentos, Medicamentos e
Órteses, Próteses e Meios Auxiliares de Locomoção (OPM) do SUS.
Quadro 3.1 Exemplos de procedimentos, especialidades ou serviços de cada nível de atenção à
saúde
Nível de atenção Procedimentos
Primária (procedimentos realizados nas unidades
básicas de saúde, por exemplo)
Atividade educativa/orientação em grupo
na atenção básica
Prática corporal/atividade física em grupo
Visita domiciliar/institucional por
profissional de nível superior
Estimulação precoce para
desenvolvimento neuropsicomotor
Média complexidade (atenção secundária)
(procedimentos realizados em clínicas de
�sioterapia e/ou hospitais)
Parto cesariano em gestação de alto risco
Atendimento fisioterapêutico em
paciente neonato
Atendimento fisioterapêutico em
paciente com comprometimento
cognitivo
Atendimento/acompanhamento em
reabilitação física, mental, visual e
múltiplas deficiências
Acompanhamento neuropsicológico de
paciente em reabilitação
Acompanhamento psicopedagógico de
paciente em reabilitação
Tratamento cirúrgico de pé cavo
Tratamento cirúrgico de pé torto
congênito
Alta complexidade (atenção terciária)
(procedimentos realizados em clínicas
especializadas e/ou hospitais)
Ressonância magnética de
crânio/tomografia computadorizada
Acompanhamento de paciente com
implante coclear
Transplante de coração
Procedimentos de neurocirurgia
Assistência aos usuários com distrofia
muscular progressiva
Assistência aos pacientes com
queimaduras
Fonte: SIGTAP – Sistema de Gerenciamento da Tabela de Procedimentos, Medicamentos e OPM do SUS, 2017. Link:
http://sigtap.datasus.gov.br/tabela-unificada/app/sec/inicio.jsp.
Classi�cação das medidas preventivas
O conhecimento dos conceitos de prevenção propostos pelos
epidemiologistas contribui para a classi�cação das intervenções dos
pro�ssionais da saúde. O tipo de medida preventiva depende do estágio de
saúde ou de doença em que se encontra o indivíduo14. O Quadro 3.2
exempli�ca os níveis de aplicação de medidas preventivas propostos por
Leavell e Clark15.
A prevenção primária tem por objetivo evitar a ocorrência de
doenças/lesões ou aumentar a resistência contra a moléstia14. Por exemplo,
as imunizações previnem doenças e as consultas pré-natais reduzem o risco
de nascimento pré-termo16. Dentro da prevenção primária diferenciam-se
os conceitos de promoção da saúde e proteção especí�ca.
Promoção da saúde é:
processo de capacitação da comunidade para atuar na melhoria da qualidade de vida e saúde,
incluindo uma maior participação no controle deste processo17.
Portanto, a promoção da saúde da criança está relacionada com práticas
saudáveis estabelecidas em uma relação dialógica com os pais das crianças,
como, por exemplo, enfatizando a importância do aleitamento materno18 e
práticas parentais que favorecem o desenvolvimento do lactente19, entre
outras. As ações de promoção da saúde “são medidas que não se dirigem a
determinada doença ou desordem, mas servem para desenvolver a saúde e o
bem-estar gerais”20.
Proteção especí�ca “inclui medidas para impedir o aparecimento de uma
determinada afecção em particular ou de um grupo de doenças a�ns”21. São
exemplos de proteção especí�ca: vacinação, exame pré-natal, �uoretação na
água, suplementos nutricionais, cinto de segurança dos veículos, air bags e
equipamentos de proteção individual e coletiva(capacete, protetores de
ouvido etc.)21.
A prevenção secundária tem por objetivo administrar riscos especí�cos,
uma vez que eles já ocorreram, para prevenir a ocorrência de doenças ou
reduzir sua gravidade (p. ex., detecção de risco para o desenvolvimento
infantil e programa de intervenção precoce [veja o Capítulo 2] para crianças
com nascimento pré-termo)16. Testes de rastreamento tornam possível a
detecção de doenças latentes (ocultas) em indivíduos considerados de
risco14 ou que não procuraram um serviço de saúde. As medidas de
prevenção secundária não previnem a causa da doença ou lesão, mas podem
prevenir a progressão da doença14.
A prevenção terciária tem por objetivo a dedicação ao cuidado especí�co,
à reabilitação ou ao tratamento para uma condição ou doença já
estabelecida. Nesse caso, o intuito é prevenir complicações, promover a
funcionalidade e reduzir as possíveis de�ciências e/ou limitações provocadas
pela doença. Um exemplo de prevenção terciária é a reabilitação para
crianças com paralisia cerebral16.
Portanto, tanto as medidas de prevenção primária (promoção da saúde e
proteção especí�ca) como secundária (diagnóstico e tratamento precoce) e
terciária (prevenção da incapacidade e reabilitação) devem ser desenvolvidas
pelos pro�ssionais que atuam na RAS.
Relações entre os níveis de atenção e de prevenção para uma
abordagem integral sob a perspectiva biopsicossocial
Convém ressaltar que em cada serviço da RAS (Quadro 3.1) é possível a
integração de medidas de prevenção primária, secundária e/ou terciária
(Quadro 3.2), ou seja, nos procedimentos de média e alta complexidade
(atenção secundária e terciária) o pro�ssional também deve preocupar-se
em prevenir doenças e agravos (prevenção primária). São exemplos as
medidas de prevenção de uma infecção hospitalar durante o parto cesariano
de uma gravidez de risco ou em um transplante cardíaco, procedimentos de
média e alta complexidade, respectivamente. Da mesma maneira, medidas
de prevenção terciária (reabilitação) podem ser desenvolvidas nos serviços
de atenção primária, ou seja, as medidas de prevenção devem ser realizadas
em todos os níveis de atenção para uma abordagem integral22.
Quadro 3.2 Níveis de aplicação de medidas preventivas na história natural da doença
Prevenção primária Prevenção secundária Prevenção
terciária
Promoção da
saúde
Proteção
específica
Diagnóstico e tratamento
precoce
Reabilitação
Fonte: adaptado de Leavell e Clark, 1965.
Na RAS, a atenção primária é um espaço privilegiado para a promoção de
ações resolutivas e para o atendimento das reais necessidades dos usuários,
pois as abordagens ocorrem no contexto de vida das pessoas11. Assim, o
atendimento na atenção primária contribui para a implantação da
perspectiva biopsicossocial preconizada pela Organização Mundial da Saúde
no sistema de saúde, pois o pro�ssional promove intervenções no ambiente
da família do usuário.
O ambiente, como fator contextual, integra o processo de funcionalidade,
incapacidade e saúde de acordo com o modelo da Classi�cação
Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF). Outros
componentes são: estruturas e funções do corpo, atividades e participação
social e fatores pessoais23. Esses componentes interagem por meio de alças
de retroalimentação que tornam o modelo de funcionalidade
multidimensional.
ATUAÇÃO DO FISIOTERAPEUTA NO NÚCLEO DE APOIO À
SAÚDE DA FAMÍLIA
O Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF) atua de maneira integrada e
complementar às ações das UBS, contribuindo para a resolubilidade do
cuidado9. O NASF é composto por uma equipe interdisciplinar, e o
�sioterapeuta costuma ser um de seus integrantes. Os objetivos da criação
do NASF foram24:
1. Ampliar a abrangência e o escopo das ações da atenção básica, bem como
sua resolubilidade.
2. Contribuir para a integralidade do cuidado aos usuários do SUS
principalmente por intermédio da ampliação da clínica.
3. Auxiliar o aumento da capacidade de análise e de intervenção sobre
problemas e necessidades de saúde tanto em termos clínicos como
sanitários.
São exemplos de ações de apoio desenvolvidas pelos pro�ssionais dos
NASF: discussão de casos, atendimento conjunto ou individual,
interconsulta, construção conjunta de projetos terapêuticos, educação
permanente, intervenções no território e na saúde de grupos populacionais e
da coletividade, ações intersetoriais, ações de prevenção e promoção da
saúde e discussão do processo de trabalho das equipes, entre outros24.
No contexto da atenção primária à saúde, o �sioterapeuta pode compor a
equipe do NASF ou a equipe de saúde dentro de uma UBS e/ou ESF. Para
garantir o cuidado integral à criança e sua família é importante considerar
os outros pro�ssionais que compõem a equipe de saúde e as interfaces com
outras equipes do território (p. ex., serviço social, escolas, creches e
organizações de bairro), além de trabalhar sob a lógica de rede,
considerando as parcerias com as redes especializadas (média e alta
complexidade)9.
ATUAÇÃO DO FISIOTERAPEUTA NA ATENÇÃO PRIMÁRIA COM
FOCO NA SAÚDE DA CRIANÇA
A abordagem da �sioterapia na atenção primária à saúde pode ocorrer em
condições de saúde variadas, como:
• Ações de promoção de saúde e prevenção de doenças para crianças típicas
(prevenção primária).
• Monitoramento de bebês de alto risco para o desenvolvimento
neuropsicomotor (prevenção secundária).
• Abordagens integrais em casos de obesidade, asma, paralisia cerebral, entre
outras condições de saúde (prevenção primária, secundária e terciária).
A atuação do �sioterapeuta pode garantir a resolubilidade da atenção
primária e, com isso, a satisfação dos usuários e a redução de custos com
atendimentos na média e alta complexidade do sistema25.
Os principais objetivos do �sioterapeuta no contexto da atenção primária,
considerando a saúde da criança, são:
1. Promover a saúde da criança e de sua família.
2. Desenvolver avaliação e diagnóstico funcionais (identi�car e registrar as
necessidades do indivíduo).
3. Intervir considerando os três níveis de prevenção (dentro das atribuições
e da disponibilidade estrutural, tecnológica e de pro�ssionais na atenção
primária e das demandas existentes na população).
4. Atender às demandas individuais e coletivas por meio de visitas
domiciliares, atendimentos individuais, grupos operativos, palestras,
campanhas e levantamentos epidemiológicos, entre outros.
5. Encaminhar as crianças para serviços especializados para ações
complementares não disponíveis na atenção primária.
No Quadro 3.3 são apresentadas propostas de ações do �sioterapeuta na
atenção primária em seus três níveis de prevenção, visando ao cuidado
integral à saúde da criança estabelecido pela PNAISC. Para tanto, o cuidado
precisa ocorrer desde o período pré-natal (da concepção ao nascimento),
seguindo pelo período neonatal (0 a 28 dias incompletos), primeira infância
(0 a 3 anos), segunda infância (acima de 3 anos até 6 anos) e terceira
infância (acima de 6 anos a 12 anos incompletos)26,27.
Quadro 3.3 Ações do fisioterapeuta na atenção integral à saúde da criança na atenção primária à
saúde
Prevenção Períodos do ciclo vital
Pré-natal Período neonatal Primeira infância Segunda e
terceira infâncias
Prevenção
primária
Incentivo ao
acompanhamento
pré-natal
Programas
maternos de
preparação para
receber o bebê
Participação do
“Quinto Dia da
Estratégia
Integral”
Orientações
quanto às
técnicas de
aleitamento
materno
Orientações
quanto aos
cuidados com o
bebê
Programas que
incentivem o
vínculo materno
e um ambiente
adequado para o
crescimento e
desenvolvimento
infantil
Incentivo à
amamentação e à
alimentação
saudável
Incentivo à vacinação
Programas de práticas
parentais: prevenção
de maus-tratos,
orientações quanto
ao desenvolvimento
infantil, prevenção
de acidentes
domésticos
Participação nas
consultas de
puericultura
Incentivo à
vacinação
Prevenção de
acidentes
Incentivo a
práticas de
atividades
físicas,
brincadeiras
motoras grossas
Participação do
Programa Saúde
na Escola; por
exemplo,orientações
sobre bons
hábitos
posturais
Prevenção
secundária
  Desenvolver
levantamentos
epidemiológicos
para auxiliar a
equipe da
atenção primária
à saúde
Participação junto
à equipe de
Desenvolver
levantamentos
epidemiológicos
para auxiliar a equipe
da atenção primária
à saúde
Vigilância para o
desenvolvimento
infantil:
Desenvolver
levantamentos
epidemiológicos
para auxiliar a
equipe da
atenção
primária à saúde
Monitoramento
de alterações
saúde da terceira
etapa do Método
Canguru (visita
domiciliar)
reconhecimento de
fatores de risco;
realização de triagem
do desenvolvimento;
encaminhamento
para profissionais ou
serviços
especializados
Participação junto à
equipe de saúde da
terceira etapa do
Método Canguru
(visita domiciliar)
Monitoramento de
alterações
ortopédicas na
infância
Prevenção de agravos
das doenças
respiratórias da
infância
ortopédicas na
infância
Monitoramento
de crianças com
sobrepeso e
obesidade
Prevenção de
agravos das
doenças
respiratórias da
infância
Prevenção
terciária
  Orientar a família quanto aos procedimentos indicados pelos
profissionais da média/alta complexidade
Manter suporte e ligação com redes especializadas no caso
de crianças com desenvolvimento atípico
Acompanhamento domiciliar em caso de doenças
progressivas e/ou terminais
Ações de prevenção primária
Período pré-natal
Como membro de uma equipe, cabe ao �sioterapeuta incentivar a
participação das mães nas consultas pré-natais para garantir não apenas a
saúde e reduzir a mortalidade materna, mas também promover a queda na
mortalidade infantil e prevenir fatores de risco para a saúde e o
desenvolvimento infantil27.
Estudos indicam que a depressão e a ansiedade são condições comuns
durante a gestação e ocasionam uma série de consequências no bebê,
incluindo retardo no crescimento infantil, apego inseguro com a mãe e
distúrbios emocionais e comportamentais28. Desse modo, o �sioterapeuta,
dentro de uma equipe interdisciplinar, pode propor a formação de grupos
de apoio e preparação para a maternidade com tópicos relativos aos
cuidados com o bebê após seu nascimento e técnicas de amamentação, entre
outros.
Período neonatal (0 a 28 dias)
Após o nascimento do bebê e antes da alta hospitalar, os pais recebem a
Caderneta de Saúde da Criança (CSC)29 com os dados de nascimento
devidamente preenchidos. Essas informações consistem em registros
importantes para que a equipe da atenção primária receba a criança e passe
a realizar seu acompanhamento. É importante a valorização da CSC como
instrumento de saúde integral por parte dos pro�ssionais, preenchendo-a
corretamente e incentivando a família a proceder à sua leitura e a seguir as
orientações nela contidas. Esse procedimento torna possível o registro
detalhado do histórico de saúde da criança, facilitando a comunicação entre
os pro�ssionais dentro da própria atenção primária e também ao ser feita a
referência da criança para os demais níveis de atenção da RAS. Além disso,
fortalece as competências familiares, considerando as informações nela
existentes30.
O Quinto Dia de Saúde Integral é uma estratégia adotada para que a
criança inicie seu vínculo com os pro�ssionais da atenção primária. Nesse
dia, a mãe recebe orientações sobre amamentação e cuidados infantis e a
criança realiza o “teste do pezinho”27. O aleitamento materno tem inúmeras
vantagens para a saúde, o crescimento e o desenvolvimento infantil31, e o
�sioterapeuta é um dos membros da equipe que podem oferecer às mães
orientações, manejo de técnicas e esclarecimentos de dúvidas.
Primeira infância (0 a 3 anos)
Durante os primeiros anos de vida, para que o bebê cresça saudável ele
precisa de um ambiente estável, sensível às suas necessidades de saúde e
nutrição, seguro contra ameaças, responsivo, emocionalmente favorável e
com estímulos adequados para seu desenvolvimento global28. Os programas
para os pais são de�nidos como intervenções ou serviços destinados a
melhorar comportamentos, conhecimentos e interações parentais com suas
crianças28. Esses programas podem ser realizados por meio de práticas
coletivas na unidade de saúde, por meio de visitas domiciliares ou com a
participação do �sioterapeuta nas consultas de puericultura32,33. Estudos
têm demonstrado a efetividade desses programas em promover maior
vinculo afetivo entre os pais e a criança, diminuir abusos e maus-tratos e
favorecer o desenvolvimento global infantil28,32 (veja o Capítulo 2).
A prevenção de acidentes também é uma temática importante para a
atuação do �sioterapeuta. Nos primeiros anos de vida, os acidentes ocorrem
principalmente no ambiente domiciliar e estão diretamente relacionados
com as etapas de desenvolvimento infantil34 (veja o Capítulo 1). No entanto,
é importante que os pais saibam disso, uma vez que a reestruturação do
ambiente familiar, visando a aumentar a segurança da criança, está
relacionada com a percepção de risco dos pais. O conhecimento do
cuidador acerca dos marcos do desenvolvimento infantil pode reduzir a
probabilidade de que ele superestime as capacidades da criança e adote uma
estratégia de supervisão inadequada35. No Apêndice deste capítulo são
apresentadas sugestões de orientações que podem ser fornecidas aos pais.
Segunda e terceira infâncias (acima de 3 anos até 12 anos incompletos)
Quando a criança se encontra na segunda e terceira infâncias, o risco maior
de acidentes está no ambiente externo, como nos playgrounds e nas ruas35.
Assim, é importante que o �sioterapeuta trabalhe não apenas com os pais,
mas também com a própria conscientização da criança. Essa abordagem
poderá ser adotada em ambiente coletivo, como, por exemplo, nas escolas.
Outro aspecto a ser considerado diz respeito à promoção da prática de
atividades físicas, ou seja, brincadeiras motoras grossas na infância. As
crianças brasileiras apresentam um comportamento cada vez mais
sedentário e estão ocupadas em atividades passivas, como assistir à televisão
ou usar o computador ou mídias interativas36. A prática de atividades físicas
pode prevenir a obesidade infantil e aprimorar as habilidades motoras
grossas. No entanto, o estímulo à prática de brincadeiras motoras grossas
exige mudanças ambientais e políticas. A criação de espaços seguros de
recreação ao ar livre, como praças e parques, é uma intervenção que exige a
mobilização de outros setores além da saúde, devendo incluir toda a
comunidade37.
O Programa Saúde na Escola é um trabalho integrado entre o MS e o
Ministério da Educação com a perspectiva de ampliar as ações especí�cas de
saúde aos alunos da rede pública de Educação Básica por meio de ações de
prevenção, promoção e atenção à saúde38. O �sioterapeuta pode atuar de
diversas maneiras nesse programa, sendo a prevenção de alterações
posturais comuns na fase escolar uma das ações mais frequentemente
executadas39.
As inadequações de postura, principalmente em casa e na escola,
promovem um desequilíbrio da musculatura global do corpo, ocasionando
alterações posturais40,41. A orientação postural realizada pelo �sioterapeuta
é importante para prevenir possíveis problemas futuros. Nesse ponto, o
pro�ssional poderá atuar na orientação às crianças no próprio ambiente
coletivo escolar e sobre aspectos como a maneira adequada de carregar
mochilas, sentar, caminhar e carregar peso42,43.
Ações de prevenção secundária pelo �sioterapeuta
Com o objetivo de ilustrar algumas ações de prevenção secundária do
�sioterapeuta na atenção primária, apresentaremos alguns procedimentos
relacionados com:
• Vigilância do desenvolvimento infantil.
• Participação da terceira etapa do Método Canguru.
• Identi�cação e monitoramento de alterações ortopédicas na infância.
• Diagnóstico funcional e prevenção de agravos de doenças respiratórias na
infância.
Vigilância do desenvolvimento infantil
A vigilância do desenvolvimento infantil compreende todas as atividades
relacionadas com a promoção do desenvolvimento infantil sem
intercorrências, ou seja, um desenvolvimento típico. Refere-se ainda à
detecção de problemas no desenvolvimento,sendo um processo contínuo e
�exível que envolve a circulação de informações entre os pro�ssionais de
saúde, pais e professores44. Portanto, a vigilância do desenvolvimento
infantil envolve medidas de prevenção primária (promoção do
desenvolvimento), secundária (avaliações e intervenções) e até mesmo
terciária, nos casos de atrasos ou desenvolvimento atípico. O �sioterapeuta
pode atuar diretamente na vigilância do desenvolvimento infantil,
considerando suas competências e habilidades especí�cas.
Embora a ação básica estabelecida pelo MS seja “acompanhar o
crescimento e o desenvolvimento infantil”, esses dois conceitos são
interdependentes, mas não sinônimos. O crescimento se expressa por
hipertro�a e hiperplasia das células corporais, ao passo que o
desenvolvimento se dá pela aquisição de habilidades progressivamente mais
complexas. Crescimento e desenvolvimento exigem, portanto, abordagens
diferentes e especí�cas tanto para medir como para intervir45.
O desenvolvimento ocorre a partir da interação daquilo que a criança traz
consigo, ou seja, fatores genéticos e/ou hereditários, com fatores biológicos e
fatores psicossociais ou ambientais46. Os fatores biológicos são aqueles
eventos relacionados com a história da vida intrauterina, do nascimento e da
saúde da criança, como, por exemplo, idade gestacional e peso ao
nascimento47. Os fatores psicossociais estão associados ao ambiente, ou seja,
são condições externas à criança, como, por exemplo, as experiências
relacionadas com a vida em família, no ambiente educacional (creche ou
escola) ou na vizinhança46.
Portanto, para que possa ser realizada a vigilância do desenvolvimento
infantil, várias ações devem ser consideradas pelo �sioterapeuta, como:
1. Reconhecimento de fatores de risco biológicos e ambientais.
2. Realização de triagem do desenvolvimento infantil.
3. Encaminhamento para serviços especializados e/ou acompanhamento de
bebês de alto risco.
Reconhecimento dos fatores de risco para o desenvolvimento infantil
Fatores de risco são aqueles motivos pelos quais o pro�ssional deve estar
vigilante, uma vez que eles podem colocar a criança em desvantagem para
atingir seu potencial de desenvolvimento. Os riscos podem ser biológicos ou
psicossociais, cujos exemplos são apresentados no Quadro 3.416,44.
Quadro 3.4 Exemplos de fatores de risco biológicos e psicossociais para o desenvolvimento
infantil
Fatores de risco
Biológicos Psicossociais
Prematuridade ao nascimento
Baixo peso ao nascimento
Desnutrição (ingestão calórica deficiente)
Carências nutricionais (ferro, vitaminas, cálcio, iodo etc.)
Doenças genéticas
Hipoxia perinatal
Falta de acompanhamento pré-natal
Condições inadequadas de higiene
Falta de saneamento e de água tratada
Ambiente pouco seguro ou acolhedor
Cuidados familiares insuficientes
Pais adolescentes
Família monoparental feminina
Depressão materna
Baixa escolaridade dos pais
Falta de estímulos/objetos para brincar
Realização de triagem do desenvolvimento infantil
Uma das di�culdades para a efetivação da vigilância do desenvolvimento
infantil na atenção primária é que o desenvolvimento não pode ser avaliado
de maneira tão direta e objetiva como o crescimento. Para medir o
crescimento bastam um estadiômetro, uma balança e curvas padronizadas
de crescimento, independentemente da idade da criança48. O
desenvolvimento infantil, por sua vez, não pode ser mensurado diretamente,
mas por meio da observação do comportamento motor, cognitivo e afetivo-
social da criança. Esse comportamento se modi�ca constantemente ao longo
da vida, o que signi�ca que as tarefas que deverão ser testadas quase sempre
diferem ao longo dos meses/anos da criança.
Vários instrumentos podem ser utilizados para avaliar os diferentes
domínios do desenvolvimento16 (veja o Capítulo 2). No entanto,
considerando o contexto da atenção primária, duas propostas têm sido as
mais utilizadas: a Vigilância do Desenvolvimento Infantil da CSC29 e o
Manual de Vigilância do Desenvolvimento Infantil da Atenção Integrada das
Doenças Prevalentes da Infância (AIDPI)49. Embora o Brasil seja um país de
dimensões continentais, com diferentes hábitos e costumes, deve ser
ressaltada a importância da padronização de instrumentos na atenção
primária para melhor referência, além de facilitar as investigações
diagnósticas e o levantamento de indicadores para as posteriores execuções
de políticas públicas.
O Cartão da Criança sempre foi a principal instrumento utilizado
nacionalmente para o acompanhamento da saúde da criança de 0 a 5 anos
de idade. Em 2005, o Cartão da Criança foi revisado e transformado na CSC
com o objetivo de promover a vigilância à saúde integral da criança até os 10
anos de idade. A CSC contém dados ampliados sobre a gravidez, o parto, as
condições de saúde do recém-nascido, orientações importantes sobre
alimentação saudável e grá�cos de perímetro cefálico, peso e estatura.
Apresenta ainda orientações sobre a saúde auditiva, visual e bucal,
prevenção de acidentes, acompanhamento do desenvolvimento global,
suplementação pro�lática de ferro e de vitamina A e calendário básico de
vacinação45.
O Manual de Vigilância do Desenvolvimento Infantil da AIDPI foi
desenvolvido inicialmente para suprir a necessidade de capacitação dos
pro�ssionais que atuavam na atenção primária da Secretaria Municipal de
Saúde de Belém-PA. Trata-se de um manual que contempla a saúde integral
da criança, incluindo a vigilância do desenvolvimento infantil47. Em virtude
de seu sucesso, ou seja, do encaminhamento de diversas crianças com
alterações no desenvolvimento, esse manual passou a ser utilizado em várias
unidades de serviço de saúde do Brasil e em países da América do Sul.
Recentemente foi revisado e atualizado49.
A vigilância do desenvolvimento infantil está presente tanto na CSC como
no manual da AIDPI e consiste em um conjunto de itens retirados de outros
testes padronizados já existentes na literatura50. Ambos são de fácil
aplicação e não exigem treinamento prévio, apenas a leitura atenta de seu
conteúdo explicativo; além disso, são acessíveis, podendo ser adquiridos
gratuitamente pela internet29,49.
As cadernetas da menina e do menino são acessadas em links diferentes:
1. Caderneta da menina:
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/caderneta_saude_crianca_meni
na_11ed.pdf.
2. Caderneta do menino:
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/caderneta_saude_crianca_meni
no_11ed.pdf
O manual da AIDPI pode ser acessado no link:
http://portalarquivos2.saude.gov.br/images/pdf/2017/julho/12/17-0095-
Online.pdf.
No entanto, cabe ressaltar que tanto a CSC como o manual da AIDPI
apresentam fragilidades por não contarem com estudos cientí�cos prévios
de validade e con�abilidade que embasem sua aplicação. Atualmente, uma
comissão do Ministério da Saúde estuda a avaliação do desenvolvimento
infantil na atenção primária com propostas de reformulações futuras50.
Vale destacar ainda que eles consistem em testes de triagem, ou seja, não
têm �nalidade diagnóstica, mas a de detectar possíveis casos de crianças
com desenvolvimento fora do esperado. Uma vez detectado um possível
atraso no desenvolvimento, a criança deverá ser submetida a um teste
diagnóstico para avaliação mais profunda50.
A interpretação e a orientação das condutas referentes à vigilância do
desenvolvimento da CSC e do manual da AIDPI são semelhantes e levam
em consideração três aspectos principais:
1. Marcos do desenvolvimento presentes ou ausentes.
2. Fatores de risco presentes ou ausentes.
3 Medidas do perímetro cefálico dentro ou fora do esperado.
Apesar das semelhanças entre as duas triagens, estudos realizados em ESF
têm demonstrado baixa correlação dos resultados encontrados50. O Quadro
3.5 compara as triagens do desenvolvimento propostas pela AIDPI e a CSC.
Quadro 3.5 Comparação entre a vigilância do desenvolvimento infantil da Caderneta de Saúde
da Criança e do manual da AIDPI
  Caderneta de Saúde da Criança AIDPI
O que avalia Desenvolvimento global Desenvolvimento global
Faixa etária 0 a 36 meses,Curso de Fisioterapia da Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais
(FCMMG).
Renato Guilherme Trede Filho
Fisioterapeuta. Especialista em Geriatria e Gerontologia ‒ UFMG. Mestre
em Ciências da Reabilitação e Doutor em Bioengenharia – UFMG. Pós-
Doutorado em Biomecânica pela University of Central Lancashire ‒ UCLan,
Inglaterra. Docente do Curso de Fisioterapia da UFVJM.
Rosalina Tossige Gomes
Fisioterapeuta da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Mestre em
Ciências Fisiológicas (UFVJM) e Doutoranda em Ciências Fisiológicas
(UFVJM).
Rosane Luzia de Souza Morais
Fisioterapeuta. Doutora em Ciências da Saúde da Criança e do Adolescente
da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professora Adjunta do
Departamento de Fisioterapia da Universidade Federal dos Vales do
Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM) na área de concentração: Saúde da
Criança e do Adolescente.
Sabrina Pinheiro Tsopanoglou
Fisioterapeuta. Doutora em Ciências Aplicadas à Pediatria (UNIFESP).
Docente Auxiliar I na Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e
Mucuri (UFVJM).
Sheila Schneiberg
Fisioterapeuta. Mestre em Ciências Biomédicas opção Reabilitação,
Universidade de Montréal, Québec, Canadá. Doutora em Ciências da
Reabilitação, Universidade McGill, Québec, Canadá. Pós-Doutora em
Neurociências (UFRJ). Docente do Departamento de Fisioterapia da
Universidade Federal de Sergipe (UFS) ‒ Campus Lagarto.
Simone Nascimento dos Santos Ribeiro
Doutora em Ciências da Saúde ‒ Saúde da Criança e do Adolescente – pela
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Especialista em Terapia
Intensiva Pediátrica e Neonatal pela Associação Brasileira de Fisioterapia
Cardiorrespiratória e Fisioterapia em Terapia Intensiva (ASSOBRAFIR).
Tatiana Vasconcelos dos Santos
Fisioterapeuta. Mestre em Ciências (IFF/Fiocruz). Fisioterapeuta do
Instituto de Puericultura e Pediatria Martagão Gesteira (UFRJ).
Thais Peixoto Gaiad
Fisioterapeuta pela UNESP. Especialização em Fisioterapia Aplicada à
Neuropediatria pela Unicamp. Formação no Conceito Neuroevolutivo
Bobath (IBITA) e Doutora em Ciências pela USP. Docente da Disciplina
Fisioterapia Aplicada às Disfunções Neuromusculares II e do Programa de
Pós-Graduação em Reabilitação e Desempenho Funcional (PPGReab) da
Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM).
Valeria Cury
Fisioterapeuta. Mestrado em Ciências da Reabilitação pela UFMG.
Formação no Conceito Neuroevolutivo Bobath, Reeducação Postural e
Método Pilates. Instrutora certi�cada do �eraSuit Method pelo �eraSuit
LLC (EUA) e membro da American Academy for Cerebral Palsy and
Developmental Medicine (AACPDM). Sócia proprietária da ProAtiva –
Habilitação Integrada em Fisioterapia, Fonoaudiologia e Terapia
Ocupacional em Belo Horizonte.
Vinícius Cunha Oliveira
Educador Físico pela UFMG e Fisioterapeuta pela PUC-MG. Mestre em
Ciências da Reabilitação pela UFMG. Doutor em Fisioterapia pela
University of Sydney. Professor Adjunto do Departamento de Fisioterapia da
UFVJM.
D urante os últimos 50 anos, mudanças importantes ocorreram no
campo da �sioterapia pediátrica. A pro�ssão desenvolveu-se
inicialmente a partir de abordagens focadas nas de�ciências da criança e
evoluiu para abordagens que reconhecem que a atividade e a participação da
criança, bem como de sua família, são mais importantes que as de�ciências
atuais da criança. Essa mudança foi certamente promovida pela
implementação do modelo da Classi�cação Internacional de
Funcionalidade, Incapacidade e Saúde, Versão Crianças e Jovens (CIF-CJ).
Essa transformação foi também facilitada pela mudança nos conceitos de
função e desenvolvimento cerebral, haja vista que o comportamento motor
não é mais considerado como organizado por meio de uma cadeia de
re�exos. Ademais, reconhece-se que a atividade espontânea e variada é uma
característica do sistema nervoso. O desenvolvimento motor não é mais
considerado o resultado de um aumento no controle cortical induzido pela
maturação dos re�exos, e sim o resultado da rede de interações contínuas
entre genética e ambiente. A partir da idade fetal precoce, a atividade
espontânea do sistema nervoso induz comportamentos variados, isto é, uma
exploração de seu repertório motor. Por sua vez, a atividade motora auxilia a
moldar o cérebro. Com o aumento da idade e a crescente complexidade do
sistema nervoso, a criança está cada vez mais habilitada a selecionar
estratégias motoras e�cientes fora de seu repertório. Desse modo a criança
desenvolve seu comportamento motor adaptativo. Entretanto, perturbações
iniciais no desenvolvimento desses processos têm as seguintes
consequências: grandes prejuízos da função cerebral resultam em redução
do repertório e capacidades limitadas para adaptar o comportamento motor,
e pequenas de�ciências resultam principalmente em adaptação prejudicada.
A combinação das três mudanças conceituais – de uma terapia centrada
na criança para uma terapia centrada na família; com foco nas de�ciências
para uma abordagem baseada em atividade e participação; e mudança na
visão do sistema nervoso como um órgão reativo até a apreciação da
poderosa atividade espontânea do cérebro – transformou totalmente a
�sioterapia pediátrica. Hoje, os valores e objetivos da criança e da família
são muito apreciados; eles desempenham um papel importante no
planejamento da terapia. Além disso, percebe-se cada vez mais a quantidade
de tecnologia assistiva, incluindo dispositivos de mobilidade eletrônica em
idade precoce, que podem promover maior participação nas atividades de
vida diária da criança com distúrbio do desenvolvimento.
Há muito se reconhece a importância de iniciar precocemente a
�sioterapia em crianças com distúrbios do desenvolvimento no início da
vida, pois esse é o período de maior plasticidade do cérebro. No entanto,
sempre foi difícil detectar crianças com transtornos do desenvolvimento em
idade precoce. Felizmente, as ferramentas para detectar esses bebês
melhoraram ao longo das décadas. Atualmente, sabemos que não apenas a
neuroimagem pode auxiliar a detecção precoce, mas também instrumentos
especí�cos do domínio da �sioterapia pediátrica, ou seja, a avaliação da
qualidade do comportamento motor do bebê por meio da General
Movements Assessment (GMA) e do Infant Motor Pro�le (IMP).
Por �m, parabenizo os organizadores e colaboradores pela publicação
deste livro. Espero que ele facilite a disseminação de conceitos e práticas
atualizadas em Fisioterapia Pediátrica no Brasil e em outras comunidades de
língua portuguesa.
Mijna Hadders-Algra MD, PhD
University Medical Center Groningen
Beatrix Children’s Hospital
Institute of Developmental Neurology
Groningen, �e Netherlands
A Fisioterapia Pediátrica certamente tem visto grandes mudanças nas
últimas décadas, como observado pela Dra. Hadders-Algra. Mudamos
do cenário inicial, que incluía ouvir gurus e personalidades carismáticas,
para um novo cenário com a utilização da ciência e das evidências para
apoiar nossas intervenções. Nosso foco agora deve ser a participação da
criança e da família no contexto da comunidade em que vivem. Expectativas
realistas de possíveis melhorias em de�ciências devem ser abordadas nos
termos da CIF e de como essas melhorias afetam a atividade e a
participação. Por exemplo, melhorar a amplitude de movimento ou força
tem pouco signi�cado se essas mudanças não melhorarem a capacidade da
criança de fazer algo signi�cativo.
A pro�ssão de Fisioterapia mudou à medida que obtivemos a pesquisa
para apoiar muitas de nossas intervenções. Não devemos perder tempo,
esforço e dinheiro em intervenções que não produzem os resultados
desejados. Traduzir o conhecimento da pesquisa em aplicação clínica é, no
entanto, uma tarefa muito difícil. Os organizadores desta obra também
ressaltaram suas tentativas de trazer a prática baseada em evidências para a
arena da prática clínica. Uma vez que a pesquisa é traduzida em aplicação
clínica, os clínicos devem ser incentivados a implementar novas
intervenções e parar de usar intervenções sem embasamentodiferentes tarefas
para cada mês
0 a 24 meses, divididos em faixas etárias: 0 a
2 meses; 2 a 4 meses; 4 a 6 meses; 6 a 9
meses; 9 a 12 meses; 12 a 15 meses; 15 a 18
meses; 18 a 21 meses; 21 a 24 meses
Material Um objeto (chocalho); seis cubos;
uma xícara de plástico com alça;
uma fralda ou qualquer tecido
Um chocalho; um pompom vermelho; três
cubos; uma xícara de plástico com alça;
uma fralda ou qualquer tecido semelhante;
semelhante; um punhado de
jujubas ou bolinhas de papel; um
lápis; uma bola
um punhado de grãos de milho ou feijão
secos; um lápis; uma bola de mais ou
menos 15cm
Como
funciona
Testa tarefas correspondentes a
cada mês, destacadas em amarelo
no gráfico de desenvolvimento
infantil
Testa as tarefas apresentadas para cada faixa
de idade em meses e descritas no manual
Resultado
encontrado
e conduta
Desenvolvimento adequado
(elogiar os pais/cuidadores)
Desenvolvimento adequado com
fatores de risco (informar a mãe
sobre sinais de alerta)
Alerta para o desenvolvimento
(informar os pais/cuidadores
sobre os sinais de alerta; orientar e
marcar retorno para 30 dias)
Provável atraso no
desenvolvimento (encaminhar
para avaliação neuropsicomotora
em serviço especializado)
Desenvolvimento normal (elogiar os
pais/cuidadores)
Desenvolvimento normal com fatores de
risco ou possível atraso no
desenvolvimento (informar os
pais/cuidadores sobre os sinais de alerta;
orientar e marcar retorno para 30 dias)
Provável atraso no desenvolvimento
(encaminhar para avaliação
neuropsicomotora em serviço
especializado)
Tanto a CSC como o manual da AIDPI destacam a importância do
acompanhamento do perímetro cefálico da criança. Trata-se de uma medida
antropométrica relativamente simples, não invasiva, mas que, se
acompanhada longitudinalmente, poderá apresentar resultados importantes
na detecção de microcefalias e/ou macrocefalias51.
Encaminhamento para serviços especializados ou acompanhamento de
crianças de alto risco
O �uxograma apresentado na Figura 3.1 aponta o direcionamento de
condutas que o pro�ssional de saúde deverá seguir sob a perspectiva da
vigilância do desenvolvimento infantil.
Figura 3.1 Fluxograma da vigilância do desenvolvimento infantil.
Uma vez detectados fatores de risco, a criança deverá ser avaliada por
meio de um teste de triagem (CSC ou manual da AIDPI). Em caso de atraso,
é importante encaminhá-la para acompanhamento em centro
especializado44,45. Convém ressaltar que a maioria das crianças que
apresentam fatores de risco biológicos necessita ser encaminhada o mais
precocemente possível para acompanhamento especializado, pois,
considerando o “período sensível” do desenvolvimento, quanto mais cedo
iniciar o tratamento, melhores serão suas respostas45. Esse aspecto,
denominado intervenção precoce, é abordado no Capitulo 2 deste livro.
As orientações domiciliares deverão ser fornecidas sempre que fatores de
risco estiverem presentes. Cabe enfatizar que as famílias apresentam suas
competências para cuidados e estímulos necessários para o desenvolvimento
infantil52. No entanto, muitas vezes, alguns pais acreditam que o
desenvolvimento é algo inato, ou seja, que irá acontecer de qualquer modo,
independentemente dos estímulos ou oportunidades ambientais. Estudos
cientí�cos atuais têm demonstrado que a criança apresenta potencial
genético, mas o ambiente in�uenciará o desencadeamento do
desenvolvimento infantil53.
Participação na terceira etapa do Método Canguru
O Método Canguru é um modelo assistencial instituído pelo MS para bebês
de baixo peso (risco biológico). A primeira etapa consiste na identi�cação,
durante o pré-natal, de gestações de risco. Nesses casos, as gestantes são
encaminhadas para os centros de referência. Ao nascimento, caso o bebê
necessite permanecer na unidade de terapia intensiva neonatal, deve ser
dada especial atenção à formação do vínculo entre os pais e o bebê e
também ao estímulo à lactação. A segunda etapa diz respeito ao Método
Canguru propriamente dito, ou seja, uma vez alcançada a estabilidade
clínica, ainda no hospital, o bebê é colocado em contato pele a pele com a
mãe durante o maior tempo possível, respeitando-se a vontade da mãe44.
A terceira etapa poderá ocorrer na atenção primária à saúde, após a alta
hospitalar44, ou seja, caso não haja no município um serviço especializado
de atenção secundária de acompanhamento de bebês de alto risco, a equipe
de saúde deverá prestar assistência a essa criança e sua família, de
preferência por meio de visita domiciliar27. Esse bebê, considerado de risco
biológico, deverá ser acompanhado por meio de avaliação �sioterapêutica e
seus pais orientados a partir de seus resultados. Para esse acompanhamento
poderá ser utilizada a vigilância do desenvolvimento proposta na CSC ou no
manual da AIDPI ou poderão ser usados os testes padronizados (descritos
no Capítulo 2). O �sioterapeuta pode contribuir, dentro da equipe
interdisciplinar, orientando e dando suporte aos pais quanto às posições e às
brincadeiras que favoreçam o desenvolvimento motor infantil. Brincadeiras
sensoriomotoras são inerentemente motivadoras para os bebês e favorecem
o desenvolvimento motor, social, cognitivo e da linguagem54 (veja o
Capítulo 2 para mais detalhes sobre intervenção precoce).
O acompanhamento pode ocorrer nos meses subsequentes, tanto na
unidade de saúde, de maneira coletiva, ou seja, em grupos de pais e suas
crianças, como por meio de visitas domiciliares individualizadas. O
�sioterapeuta organiza o espaço com tapetes de EVA ou similares no chão,
além de disponibilizar brinquedos. As atividades terapêuticas deverão ser
incentivadas de acordo com o estágio de desenvolvimento e os interesses dos
bebês. À medida que as sessões prosseguirem, o �sioterapeuta deverá
adaptar gradualmente o espaço terapêutico para introduzir variações e
novos desa�os54.
Identi�cação e monitoramento de alterações ortopédicas na infância
Durante o crescimento e o desenvolvimento infantil, algumas condições
ortopédicas �siológicas surgem e geram preocupação nos pais, como pé
plano55 (veja o Capítulo 18) e alterações angulares56 e rotacionais (veja o
Capítulo 19) dos membros inferiores57. Essas e outras condições ortopédicas
serão tratadas neste livro.
Muitas vezes, a criança é encaminhada para avaliação do �sioterapeuta
por membros da equipe da UBS após consulta. Nesses casos, o �sioterapeuta
pode avaliar a criança, sanar as dúvidas dos pais e fornecer orientações
quando necessário. Em alguns casos, a resolubilidade dessas condições
reside na atenção primária; no entanto, em outros casos será necessário
encaminhá-la para centros especializados de média ou alta complexidade57.
Diagnóstico funcional e prevenção de agravos das doenças respiratórias na
infância
As doenças respiratórias são consideradas prevalentes na infância e são
causa de morbidade e mortalidade infantil27. Várias medidas podem ser
tomadas na atenção primária para evitar o agravamento dessas doenças e a
consequente sobrecarga da atenção terciária. A vacinação, o aleitamento
materno e a alimentação saudável são algumas medidas de prevenção
primária adotadas para essas doenças58.
Além disso, o �sioterapeuta pode realizar o acompanhamento de crianças
com história de sibilância recorrente ou mesmo asma diagnosticada
(prevenção secundária) (veja o Capítulo 25). A asma deixa a criança mais
vulnerável aos patógenos que causam pneumonia, que, por sua vez,
exacerbam os sintomas da asma, contribuindo para o agravamento do
quadro e a necessidade de hospitalização59.
O pro�ssional pode orientar os cuidadores das crianças quanto aos
cuidados ambientais necessários para o controle da doença, como alérgenos
da poeira domiciliar, fumaça de cigarro, pelos de animais e mofo60, além de
fornecer orientações quanto às atividades físicas e à importância do uso
constante de soro �siológico para limpeza e �uidi�cação das secreções
nasais61.
Ações de prevenção terciária pelo �sioterapeuta
Nos casos em que a criança necessita de prevenção terciária é importante
que ela seja acompanhadapor �sioterapeuta de serviço de média ou alta
complexidade com o objetivo de garantir uma abordagem integral, uma vez
que a atenção primária não dispõe de estrutura física e recursos tecnológicos
para a reabilitação de algumas condições62. As ações de prevenção terciária
ou de reabilitação na atenção primária devem ser realizadas com o objetivo
complementar, ou seja, aumentar a frequência de intervenções dentro do
contexto natural da criança, sua casa e/ou comunidade. Diante disso, é
relevante a comunicação entre os pro�ssionais da rede de atenção à saúde
para garantir a integralidade da atenção às crianças que se encontram em
reabilitação.
A ação conjunta dos pro�ssionais da rede de cuidados terá forte in�uência
nos casos em que é abordado o tratamento das crianças com condições
sistêmicas mais graves, quando se torna mais difícil o deslocamento
domiciliar semanal, como em estágio terminal de doenças ou nos casos de
doenças progressivas e/ou degenerativas. A �sioterapia domiciliar poderá
ser bené�ca nos cuidados paliativos, oferecendo técnicas que promovam o
alívio dos sintomas no tratamento das complicações osteomioarticulares,
das úlceras de pressão, da fadiga e melhora na função pulmonar. A
�sioterapia, nesses casos, visa ao aprimoramento da qualidade de vida e ao
incentivo à prática de atividades funcionais64,65.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A �sioterapia na atenção primária contribui para a promoção da
integralidade para a saúde da criança com ações de prevenção primária,
secundária e terciária. Esse serviço facilita a identi�cação de necessidades de
saúde por meio de medidas de prevenção secundária (vigilância do
desenvolvimento, identi�cação e monitoramento de alterações ortopédicas
na infância, diagnóstico funcional e prevenção de agravos das doenças
respiratórias na infância e participação na terceira etapa do Método
Canguru). Em outras palavras, a �sioterapia na atenção primária à saúde é
essencial para a identi�cação de problemas latentes com o potencial de gerar
complicações. Diante disso, o pro�ssional atua nas questões clínicas
prevalentes na infância, reduzindo os custos com a assistência à saúde nas
complicações causadas por essas enfermidades.
As ações de prevenção primária do �sioterapeuta na atenção primária à
saúde complementam as medidas adotadas pela ESF. Além disso, as ações de
prevenção terciária potencializam as intervenções propostas pelos serviços
de média/alta complexidade da �sioterapia e/ou dos serviços de reabilitação.
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Apêndice
ORIENTAÇÕES PARA PAIS SOBRE DESENVOLVIMENTO INFANTIL NA
PERSPECTIVA DA PREVENÇÃO PRIMÁRIA
0 A 3 MESES
Conheça seu bebê!
Logo quando nasce, o bebê precisa receber de seus pais proteção e todos os
cuidados básicos para sua sobrevivência, mas não basta ser trocado,
alimentado e aquecido. Ele precisa de pais sensíveis para compreender e
responder prontamente aos seus sinais, capazes de oferecer afeto, aceitação e
segurança.
No início, seu bebê dorme bastante, mas, quando acordado, demonstra
interesse por olhar para objetos em movimento e com contraste de cores,
além da face das pessoas. Faz sons diferentes para demonstrar felicidade,
irritabilidade e fome.
Apresenta braços, mãos e pernas bem dobradinhos, próximos ao corpo.
Ao longo dos primeiros 3 meses o bebê vai �cando cada vez mais tempo
acordado e o corpinho vai esticando, as mãos se abrem mais e as pernas e os
braços vão ganhando mais liberdade de movimento.
No terceiro mês, deitado com a “barriga para cima”, o bebê observa ou
leva suas mãos para cima do tórax e agarra objetos quando colocados em
suas mãos, podendo leva-los à boca. Movimenta a cabeça, deixando-a
alinhada com o corpo.
Deitado de “barriga para baixo”, o bebê consegue cada vez mais levantar a
cabeça.
OFERECENDO OPORTUNIDADE PARA O DESENVOLVIMENTO
DE SEU BEBÊ
• Coloque um móbile colorido suspenso sobre o berço de modo que o bebê
possa observá-lo (30cm de distância do rosto).
• Dê colo, atenção e converse com ele.
• Chame a atenção dele com caretas, sorrisos e diferentes expressões faciais.
• Brinque com chocalhos ou outros objetos que façam barulho.
• Use brinquedos ou objetos coloridos, de preferência com contraste de
formas e cores (por exemplo, vermelho, preto e branco).
ATENÇÃO
A posição de “barriga para baixo” NÃO é aconselhada para dormir! No
entanto, quando acordado, é importante acostumar o bebê a brincar de
“barriga para baixo” desde pequenino, mas, claro, sob a vigilância de um
adulto! Isso ajudará a fortalecer os músculos da cabeça e das costas do
bebê.
EVITANDO ACIDENTES
• Não deixe outra criança pequena carregar de um lado para outro seu bebê,
pois ela poderá tropeçar e cair, machucando a cabeça do bebê, que ainda
tem os ossos bem molinhos.
• Ao dar banho, teste antes a temperatura da água na região do seu pulso.
• Quando for sair de carro, nunca leveo bebê no colo, jamais no banco da
frente, e sim na cadeirinha de carro.
4 A 6 MESES
Conheça seu bebê!
Nessa fase, seu bebê está mais interessado em explorar o ambiente, ou seja,
olhar e brincar com pessoas e objetos em sua volta. Vira a cabeça quando
escuta um barulho. Grita, ri e pronuncia vogais, como, “oo”, “ahh”.
Quando deitado de “barriga para cima”, mantém a cabeça alinhada com o
corpo, traz as duas mãos juntas ao peito ou aos joelhos dobrados e alcança
brinquedos que lhe são entregues cada vez mais distantes. Brinca com
objetos, mãos e pés, levando-os à boca.
Nessa fase, o bebê começa a rolar de “barriga para cima” para os lados e
depois de “barriga para baixo” para “barriga para cima”. Próximo de 6 meses,
aprende a rolar de “barriga para cima” para “barriga para baixo”.
Fica cada vez melhor de “barriga para baixo”. Se acostumado desde
pequeno, vai brincar, pivotear (girar), alcançar brinquedos e se divertir bem
nessa posição.
O bebê com 5 e 6 meses já começa a �car sentado sozinho por alguns
segundos, mas é necessário um adulto por perto.
OFERECENDO OPORTUNIDADE PARA O DESENVOLVIMENTO
DE SEU BEBÊ
• Continue colocando o bebê de “barriga para baixo” para brincar.
• O bebê aprende a rolar; portanto, é hora de dar a ele mais espaço. Quando
acordado, coloque o bebê em um colchonete ou edredom sobre o chão
limpo.
• É hora de oferecer chocalhos, pois são mais fáceis de agarrar, e
mordedores, pois o bebê os leva à boca e pode coçar os dentes, caso
estejam nascendo.
• Os brinquedos devem ser coloridos e fazer barulho.
ATENÇÃO!
• Retire o móbile do berço após 4 meses para que a criança não puxe.
Geralmente o móbile é pesado. Os móbiles devem ser colocados apenas
para o bebê nos primeiros 3 meses observar, antes de ser capaz de
alcançar objetos.
• Nunca coloque crianças nessa fase em cima da cama, mesmo que seja de
casal, pois o bebê se movimenta bastante, podendo cair.
• O bebê nessa fase leva tudo à boca; é a forma que ele tem de conhecer o
formato e a textura dos objetos. Assim, separe brinquedos para essa
�nalidade. Deixe-os sempre limpos.
EVITANDO ACIDENTES
A distância entre as grades do berço não pode passar de 6,5cm para evitar
que o bebê prenda o pescoço, o braço ou as pernas.
• Nunca deixe o bebê sentado na banheira sozinho; ele ainda não é capaz de
�car sentado por muito tempo.
• Nunca coloque cordão em volta do pescoço do bebê, pois ele pode se
sufocar.
7 A 9 MESES
Conheça seu bebê!
Nessa fase, o bebê já distingue rostos familiares e estranhos. Vira a cabeça e
olha quando alguém chama o nome dele. Faz sons de sílabas como “ga”, “gu”,
“da”.
Se o bebê for acostumado desde pequeno, prefere �car na posição de
“barriga para baixo”; aliás, é difícil manter a criança de “barriga para cima”
até para trocar fraldas!
De “barriga para baixo” pode passar para gato, engatinhar e passar para a
posição sentada.
De 7 até 9 meses, vai aprimorando a posição sentada, podendo ser
deixado sozinho no �nal desse período.
Outra novidade é que agora o bebê pode passar para a posição de pé no
berço, no colo de uma pessoa ou no sofá.
Quer pegar, jogar, puxar, empurrar, bater e passar objetos de uma mão
para a outra. Ainda coloca os brinquedos na boca, embora um pouco
menos.
OFERECENDO OPORTUNIDADE PARA O DESENVOLVIMENTO
DE SEU BEBÊ
• Gosta de jogar objetos para que os outros os apanhem.
• Gosta de brinquedos que fazem barulho e de diferentes formatos.
• Aprecia brinquedos que se movem quando tocados, pois pode ir atrás
engatinhando.
• Gosta de brincar de esconder o rosto com a fralda para puxar em seguida.
Primeiro, a fralda é usada para esconder o rosto do pai/mãe e só depois
nele mesmo.
ATENÇÃO
• Evite deixar o bebê muito tempo em cercadinho ou berço, pois ele
precisa de espaço para se desenvolver.
• NÃO coloque a criança no voador (andador), pois, além do risco de
quedas e traumas, não ajuda a criança a andar mais rápido.
EVITANDO ACIDENTES
• Cuidado com objetos pequenos, pois o bebê consegue levá-los à boca e
pode se engasgar.
• Como o bebê está engatinhando, tampe com esparadrapo as tomadas e
coloque fora do alcance produtos de limpeza e embalagens plásticas.
• Cuidado com móveis de quinas e pontiagudos.
• Quando for sair de automóvel, nunca leve o bebê no colo, nunca no banco
da frente, e sim na cadeirinha de carro.
10 A 12 MESES
Conheça seu bebê
O bebê, nessa fase, dá “tchauzinho” e bate palminhas. Gosta de “conversar
sozinho”, ou seja, fala enrolado, usando combinação de sílabas, como “gaga”,
“papa”, “mama”.
Engatinha rápido e se senta no chão de diferentes formas. Ao se puxar
para de pé, anda ao redor dos móveis, se segurando apenas com uma das
mãos.
Começa a andar apoiado nos adultos e logo irá dar passinhos sem apoio.
Uma vez andando sozinho, consegue agachar e se levantar novamente sem
se segurar.
Abre e fecha caixas e potes, balança objetos que fazem barulho, retira
brinquedos de dentro de uma caixa e os joga no chão. Aponta e toca em
brinquedos com o dedo indicador. Também usa o indicador e o polegar para
pegar objetos pequenos (como uma pinça).
A criança se mostra habilidosa no uso das mãos e dedos; assim, quase não
coloca mais brinquedos na boca.
OFERECENDO OPORTUNIDADE PARA O DESENVOLVIMENTO
DE SEU BEBÊ
• Gosta de brincar com bolas coloridas de tamanho e consistência diferentes,
jogos de encaixar, caixas que possam ser enchidas de coisas e
principalmente esvaziadas e, ainda, brinquedos de empurrar e puxar.
• Tem interesse por livrinhos com gravuras grandes sem ou com poucas
palavras.
• Agora está compreendendo o signi�cado real das coisas; assim, gosta de
brinquedos como bonecas, carrinhos, panelinhas, celular de brinquedo.
ATENÇÃO!
• Se seu bebê se senta em W ocasionalmente, tudo bem; mas não permita
que o bebê crie o hábito de se sentar dessa maneira. Essa posição pode
prejudicar a formação óssea do quadril da criança e, mais tarde, ela
poderá andar com os joelhos e /ou pés para dentro.
EVITANDO ACIDENTES
• Cuidado com objetos pequenos, pois o bebê consegue levá-los à boca e
pode se engasgar.
• Tampe com esparadrapo as tomadas e coloque fora do alcance produtos de
limpeza e embalagens plásticas.
• Cuidado com móveis de quinas e pontiagudos e também com cabos de
panelas virados para fora do fogão.
• Quando o bebê começa a andar, não tem muito equilíbrio e cai muito;
assim, retire brinquedos e tapetes do caminho.
13 A 24 MESES
Conheça sua criança
A criança inicia essa fase falando “mama” para a mãe ou “papa” para o pai.
Ao longo desse período ela irá aprender mais algumas palavrinhas. Pode
inclusive estar combinando duas palavras. Compreende bem quando falam
com ela. Aponta para partes simples do corpo.
A cada dia anda melhor, com mais equilíbrio. Enquanto caminha, pode
segurar um objeto em cada mão, possui bom equilíbrio para frear e já pode
dar alguns passos nas pontas dos pés ou para trás. Corre, ou melhor, anda
rápido.
Sobe e desce em móveis. É bem ativa; abre e fecha armários, gavetas e
portas; mexe em tudo!
Prefere brincar agachada por ser mais rápido se levantar do chão.
É habilidosa com as mãos; roda, aperta, transfere, encaixa e desencaixa.
Uma mão auxilia a outra.
OFERECENDO OPORTUNIDADE PARA O DESENVOLVIMENTO
DE SUA CRIANÇA
• Mostra interesse em dar nome a objetos e �guras e em repetir palavras.
• Rasga papéis e rabisca.
• Gosta de objetos domésticos comuns ou brinquedos de imitação, como
escovas e vassouras, baldes, canecas, potes, telefones e ferramentas de
jardinagem.
• Gosta ainda de brinquedos para empurrar ou puxar, como cadeirinha de
passeio, carrinho de bebê, caminhão com caçamba (para encher).
• Brincar com areia e água é importante nessa fase.
ATENÇÃO
• O pé da criança é fo�nho e redondo; por isso, deixe ela andar e brincar
sem sapatos sempre que puder, pois pode ajudar a formar a curva de
dentro do pé.
EVITANDO ACIDENTES
• Coloque fora do alcance produtos de limpeza, tóxicos e in�amáveis.
• Cuidado com cabos de panela virados para fora do fogão.
• Nunca a deixe a criança na calçada ouna rua sem segurar em sua mão,
pois ela pode correr para o meio da rua sem que você perceba.
DEFINIÇÃO, EPIDEMIOLOGIA E ETIOLOGIA
A expressão paralisia cerebral (PC) abrange uma diversidade de
manifestações clínicas referentes ao tipo, à gravidade e à distribuição do
comprometimento motor. Conforme consenso internacional publicado em
2007, a PC é de�nida como “um grupo de desordens permanentes do
desenvolvimento do movimento e da postura, causando limitações de
atividades, que são atribuídas a distúrbios não progressivos que ocorreram
no cérebro em desenvolvimento”1. As desordens motoras podem ser
acompanhadas de distúrbios de sensação, percepção, cognição,
comunicação e comportamento, além de epilepsia e problemas musculo-
esqueléticos secundários1. A PC é uma das causas mais comuns de
incapacidade física na infância2. A incidência dessa condição de saúde varia,
entre diferentes países, de 1,4 a 3,6 casos a cada 1.000 nascidos vivos3-5.
O dano encefálico que leva à PC pode ser decorrente de inúmeros fatores
etiológicos. A lesão pode ocorrer durante a gestação (pré-natal), próximo ou
no momento do parto (perinatal), ou após o nascimento da criança (pós-
natal)5. Não há uma idade máxima de�nida na literatura para que
manifestações clínicas decorrentes de lesão no cérebro, cerebelo ou tronco
encefálico sejam classi�cadas como PC; entretanto, a maior parte da
literatura estabelece como limite superior, aproximadamente, entre 2 e 3
anos de idade1,6.
A etiologia exata da PC, em muitos casos, não pode ser identi�cada6. Na
realidade, em mais de 30% dos casos a etiologia é desconhecida e não existe
nenhum fator de risco conhecido1,5. Entretanto, a literatura aponta alguns
fatores que aumentam o risco de a criança sofrer uma lesão neurológica.
Dentre os fatores de risco pré-natais podem ser citados a exposição materna
a infecções, como toxoplasmose, rubéola, citomegalovírus e herpes (isto é,
infecções TORCH)6 ou zika vírus7; crescimento anormal do feto;
malformações cerebrais; hipóxia; gestação múltipla; desordens metabólicas e
patologias placentárias8. Os fatores perinatais incluem as�xia,
prematuridade, ruptura uterina, prolapso de cordão umbilical, apresentação
pélvica, pré-eclâmpsia e febre materna durante o trabalho de parto9. Já os
fatores pós-natais mais comuns são acidente vascular isquêmico, hemorragia
intraventricular, leucomalacia periventricular, sepse, meningite,
traumatismo craniano, síndrome do bebê sacudido, crises convulsivas nas
primeiras 48 horas após o nascimento, problemas respiratórios e excesso de
bilirrubina sérica resultante de doença hemolítica5.
Durante muitas décadas, acreditou-se que a as�xia perinatal seria a causa
mais comum de PC10. Mais recentemente, com os avanços nos exames de
imagem, os fatores pré-natais passaram a ser reconhecidos como a causa de
70% a 80% dos casos tanto em lactentes nascidos a termo como em
prematuros11. Embora um único fator seja su�ciente para causar a lesão
neurológica, a presença de vários fatores de risco aumenta a chance de
ocorrência de PC. A contribuição de fatores genéticos que deixam o feto ou
o lactente mais vulnerável à lesão tem sido recentemente considerada na
�siopatologia da PC8. Algumas condições maternas e gestacionais,
consideradas fatores de risco, têm um componente genético, incluindo o
nascimento prematuro, a pré-eclâmpsia e as infecções maternas.
O risco de uma criança ter PC é distinto em diferentes idades gestacionais,
mas a prematuridade aumenta em até 100 vezes esse risco8,11. O risco
também aumenta em casos de gestação múltipla, sendo quatro vezes maior
em uma gestação gemelar e 18 vezes maior no caso de trigêmeos3,12.
Õ Í
CLASSIFICAÇÕES E TIPOS CLÍNICOS
Nas últimas décadas houve uma crescente necessidade de documentação e
classi�cação da funcionalidade de crianças com PC, com enfoque em
desfechos relevantes para essa população, como mobilidade, habilidade
manual e comunicação. Os sistemas de classi�cação utilizados na prática
clínica e na pesquisa para esses �ns são denominados: Sistema de
Classi�cação da Função Motora Grossa (Gross Motor Function Classi�cation
System – GMFCS)13,14, Escala de Mobilidade Funcional (Functional Mobility
Scale – FMS)15, Sistema de Classi�cação da Habilidade Manual (Manual
Ability Classi�cation System – MACS)16 e Sistema de Classi�cação da
Função de Comunicação (Communication Function Classi�cation System –
CFCS)17.
Atualmente, o GMFCS representa a classi�cação mais importante das
crianças com PC e tem sido amplamente utilizado pelos pro�ssionais de
saúde para o prognóstico de mobilidade e locomoção, planejamento
terapêutico, prescrição de tecnologia assistiva e dispositivos de auxílio para
mobilidade, bem como para facilitar a linguagem entre pro�ssionais e
familiares. O GMFCS foi traduzido para praticamente todos os idiomas, e
sua versão em português está disponível para download no site da CanChild
(https://canchild.ca/en/resources/42-gross-motor-function-classi�cation-
system-expanded-revised-gmfcs-e-r).
O GMFCS classi�ca o desempenho de autolocomoção da criança e do
adolescente e considera as limitações de mobilidade e a necessidade de
dispositivos manuais para locomoção (como andadores, muletas ou
bengalas) ou mobilidade sobre rodas. O GMFCS contém cinco níveis, em
escala ordinal, e apresenta distinções por faixa etária (antes dos 2 anos, entre
2 e 4 anos, entre 4 e 6 anos, entre 6 e 12 anos e entre 12 e 18 anos de
idade)13,14. A de�nição dos níveis, correspondente a uma criança de 6 anos
de idade, é a seguinte:
• Nível I: a criança anda em diferentes ambientes sem apoio e sobe e desce
escadas sem segurar no corrimão. A criança desenvolve a habilidade de
correr e pular, mas com limitações na velocidade, equilíbrio e
coordenação. A participação nos esportes e em atividades físicas é
fundamentada na escolha pessoal e em fatores ambientais.
• Nível II: a criança consegue andar sem apoio, mas com algumas
limitações, como precisar do corrimão para subir e descer escadas e ter
di�culdade ou não ser capaz de correr e pular. Pode precisar de adaptações
para realizar atividades esportivas.
• Nível III: a criança anda com dispositivo de auxílio para marcha em
espaços internos (p. ex., andador) e pode precisar de cadeira de rodas fora
de casa e na comunidade. A criança precisa de assistência para se transferir
do solo e da posição sentada para a de pé e de adaptações para realizar
atividades físicas e esportivas.
• Nível IV: a criança apresenta di�culdade para se locomover, mas pode
rolar, se arrastar e permanecer sentada (geralmente com apoio), e
consegue se mover independentemente com uma cadeira de rodas manual
ou motorizada. A criança pode percorrer pequenas distâncias com auxílio
físico ou andador com suporte de peso, mas depende de terceiros para
chegar a diferentes locais. Necessita de adaptações para realizar atividades
físicas e esportivas.
• Nível V: a criança é dependente para todas as atividades relativas à
mobilidade. Apresenta limitações no controle antigravitacional de cabeça e
tronco e na movimentação ativa de membros superiores (MMSS) e
inferiores (MMII), necessitando da assistência para as transferências. A
participação da criança é muito limitada. Ela pode ter locomoção
motorizada com extensivas adaptações para a postura sentada e para o
controle da cadeira.
A literatura reporta uma relativa estabilidade dos níveis do GMFCS, o que
signi�ca que a criança classi�cada em um nível tende a permanecer nele ao
longo do tempo, embora seja possível que a criança mude de nível em
resposta a programas de intervenção. Essa informação torna possível inferir
sobre o prognóstico da criança com PC18. Em acréscimo, os autores da
classi�cação desenvolveram uma curva de percentil para cada nível do
GMFCS (disponível em: https://canchild.ca/en/resources/237-motor-
growth-curves). Essas curvas descrevem padrões de desenvolvimento motor
de crianças com PC, agrupadas por nível do GMFCS, à medida elas se
desenvolvem. Crianças com PC alcançam, em média, 90% da capacidademotora em torno dos 5 anos de idade para o nível I do GMFCS e em torno
dos 2,7 anos de idade para o nível V18. As curvas de percentil auxiliam os
pro�ssionais de saúde e as famílias a entenderem como as habilidades
motoras grossas das crianças classi�cadas em cada nível se modi�cam com a
idade. Além disso, essas curvas oferecem uma estimativa das capacidades
motoras da criança no futuro, incluindo o nível de independência que é
provável que a criança atinja, já que as curvas parecem atingir um platô em
torno dos 7 anos de idade.
Para a classi�cação da mobilidade funcional de crianças com PC, a FMS
leva em consideração o fato de poderem necessitar de meios de mobilidade
ou dispositivos de auxílio distintos, dependendo da distância que precisam
percorrer. Mais especi�camente, a FMS classi�ca a habilidade de locomoção
da criança em seis níveis para cada uma de três distâncias de�nidas, quais
sejam: 5, 50 e 500 metros15, representativas do desempenho de mobilidade
nos contextos de casa, escola e comunidade, respectivamente:
• Nível 6: anda independentemente em todas as superfícies.
• Nível 5: anda independentemente apenas em superfícies planas.
• Nível 4: necessita de uma ou duas bengalas.
• Nível 3: precisa de bengalas canadenses ou muletas.
• Nível 2: anda com auxílio de andador.
• Nível 1: usa cadeira de rodas.
Há também como opção a classi�cação da criança por meio da letra C – a
criança engatinha para se locomover em casa (5m) – e da letra N – caso não
seja possível classi�car a mobilidade da criança em determinada distância
(p. ex., a criança não completa a distância de 500m)15. A FMS é aplicada
pelo pro�ssional que avalia a criança com base em perguntas direcionadas
aos pais de crianças/adolescentes de 4 a 18 anos de idade. A versão em
português da FMS está disponível para download em
http://www.healthtranslations.vic.gov.au/bhcv2/bhcht.nsf/PresentDetail?
open&s=FMS_-_�e_Functional_Mobility_Scale.
O MACS descreve como as crianças ou os adolescentes com PC (de 4 a 18
anos) usam suas mãos para manipular objetos em atividades diárias16. Os
cinco níveis do MACS são fundamentados na habilidade da criança em
iniciar sozinha a manipulação de objetos e na necessidade de assistência ou
adaptação para realizar atividades manuais na rotina diária:
• Nível I: a criança manuseia objetos facilmente e com sucesso.
• Nível II: a criança manuseia a maior parte dos objetos, mas com qualidade
e/ou velocidade reduzidas.
• Nível III: a criança manuseia objetos com di�culdade, necessitando de
ajuda para preparar e/ou modi�car as atividades.
• Nível IV: a criança manuseia uma seleção limitada de objetos de fácil
manejo em situações adaptadas.
• Nível V: a criança não manuseia objetos e requer total assistência para
desempenhar até as ações consideradas mais simples16.
O MACS não distingue o uso de uma das mãos; portanto, não importa se
a criança realiza as atividades com uma ou com as duas mãos. Para
classi�car a criança usando o MACS, o terapeuta deve perguntar aos pais ou
responsáveis como ela desempenha atividades típicas de sua idade, como se
vestir, se alimentar e brincar. Ao contrário do GMFCS, o MACS não
apresenta distinções por idade, embora já exista o Mini-MACS, versão
adaptada para crianças entre 1 e 4 anos de idade. A versão em português do
MACS pode ser encontrada em http://www.macs.nu/download-content.php.
O sistema CFCS tem por objetivo classi�car o desempenho da
comunicação diária dos indivíduos com PC em cinco níveis17. A
comunicação ocorre sempre que um emissor transmite uma mensagem e o
receptor entende a mensagem. O comunicador e�ciente alterna, de modo
independente, seu papel de emissor e receptor, não importando as
demandas de uma conversação, os parceiros da comunicação e os assuntos.
Também apresenta cinco níveis:
• Nível I: a criança atua como emissora e receptora e�caz com parceiros
desconhecidos e conhecidos.
• Nível II: a criança atua como emissora e receptora e�caz com parceiros
desconhecidos ou conhecidos, porém é mais lenta nesse processo.
• Nível III: a criança geralmente se comunica de maneira e�caz com os
parceiros conhecidos, mas a comunicação não é consistente e e�caz com a
maioria dos parceiros desconhecidos.
• Nível IV: a criança não alterna consistentemente seu papel de emissora e
receptora, mesmo com parceiros conhecidos.
• Nível V: a comunicação da criança é raramente e�caz, mesmo com
parceiros conhecidos17.
Todas as formas de comunicação são consideradas quando se determina o
nível do CFCS, o que inclui o uso da fala, gestos, comportamentos, olhar
�xo, expressões faciais e a comunicação alternativa e aumentativa. A CFCS é
uma classi�cação complementar ao GMFCS e ao MACS, e a versão
traduzida para o português também está disponível para download
(http://cfcs.us/?page_id=8).
Além da classi�cação de funcionalidade, a PC também pode ser
classi�cada de acordo com o subtipo neurológico e topográ�co, incluindo a
forma espástica (unilateral ou bilateral), discinética (distônica ou
coreoatetoide), atáxica ou mista19,20. Existem fatores causais mais
prevalentes para os diferentes tipos de PC. Cada categoria se refere a uma
área encefálica especí�ca que sofreu a lesão e apresenta sintomas
característicos que a diferem das outras formas de PC (Tabela 4.1).
Tabela 4.1 Tipos de paralisia cerebral
Subtipo
neurológico
Comprometimento Topogra�a Área lesionada
Espástica Bilateral Quadriplegia Área cortical ou subcortical
Diplegia Trato corticoespinhal (cápsula interna)
Unilateral Hemiplegia Trato corticoespinhal unilateralmente
Discinética Distonia Quadriplegia Núcleos da base, tálamo, tronco
encefálico e cerebelo
Coreoatetose Quadriplegia Núcleos da base e tálamo
Atáxica Quadriplegia Cerebelo
Paralisia cerebral espástica
A PC espástica é o subtipo neurológico mais comum de PC (70% a 90% dos
casos) e resulta de lesão no sistema nervoso central (SNC), especi�camente
no neurônio motor superior localizado no cérebro5,21. As manifestações
clínicas típicas da PC espástica incluem fraqueza muscular, aumento do
tônus muscular (hipertonia), espasticidade e diminuição do limiar de
ativação dos re�exos de estiramento22. A forma espástica pode ser
classi�cada topogra�camente em bilateral (inclui os termos quadriplegia e
diplegia, utilizados anteriormente na literatura) e unilateral (termo
hemiplegia utilizado anteriormente)19,23. O termo bilateral denota
comprometimento dos MMSS e MMII, enquanto unilateral indica o
envolvimento dos membros superior e inferior de um dimídio corporal9.
No caso da PC espástica bilateral do tipo quadriplegia, o
comprometimento dos quatro membros pode ser causado por qualquer
patologia que provoque lesão difusa, simétrica ou assimétrica, nos dois
hemisférios cerebrais8. Resulta, muitas vezes, de eventos hipóxico-
isquêmicos globais, malformações cerebrais, corticais ou subcorticais.
Crianças com PC espástica bilateral do tipo quadriplegia são classi�cadas,
na maioria dos casos, nos níveis IV ou V do GMFCS24,25.
A PC espástica bilateral do tipo diplegia é caracterizada por maior
comprometimento dos MMII em relação aos MMSS. Essa é a forma de PC
predominante em crianças prematuras, resultado de leucomalacia
periventricular ou hemorragia peri ou intraventricular, haja vista que as
�bras motoras que inervam os MMII estão localizadas mais próximo da
região ventricular26. A lesão cerebral em crianças prematuras é decorrente
da vulnerabilidade dos tratos motores no cérebro em desenvolvimento. Os
fatores causais incluem infecção intrauterina, ruptura prematura da placenta
e gestação múltipla. As crianças com PC espástica bilateral do tipo diplegia
podem ser classi�cadas em todos os níveis do GMFCS, embora seja maior a
prevalência de crianças classi�cadas entre os níveis I e III24,27.
As causas mais comuns da PC espástica unilateral, de acordo com estudos
de neuroimagem, são o acidente vascular perinatal e as malformações
congênitas8. Lesões focais ou, algumas vezes, multifocais resultam em PC
unilateral. As crianças com PC espástica unilateralsão, na maioria dos
casos, classi�cadas nos níveis I ou II do GMFCS24,25.
Paralisia cerebral discinética
A PC discinética representa em torno de 10% a 15% dos casos de PC28.
Nesse subtipo, a lesão ocorre nos núcleos da base do cérebro e a criança
apresenta manifestações clínicas, como de�ciência na regulação do tônus
muscular e movimentos involuntários29. O comprometimento inclui os
quatro membros, o tronco, a coluna cervical e a face. A discinesia (isto é,
distúrbio do movimento) ocorre ou é exacerbada na tentativa da criança de
se movimentar e pode variar de acordo com a posição corporal, a tarefa, o
estado emocional e o nível de consciência da criança30.
A forma discinética é subdividida em distônica e coreoatetoide, mas
características de ambos os tipos podem estar presentes
concomitantemente19,31. A criança com distonia apresenta contrações
musculares sustentadas, hipocinesia (isto é, diminuição do movimento) e
desregulação do tônus muscular, que aumenta facilmente32. No caso da
coreoatetose há a presença de coreia (ou seja, movimentos descoordenados,
rápidos e, muitas vezes, fragmentados das extremidades proximais) e atetose
(ou seja, movimentos lentos, constantemente modi�cados e contorcionais
das extremidades distais), além de hipercinesia e desregulação do tônus
muscular, que está geralmente diminuído29,32. A distonia é mais severa e
prejudica de maneira mais evidente a funcionalidade da criança em
comparação à coreoatetose, podendo ser confundida com a PC espástica
quadriplégica31. Crianças discinéticas geralmente são classi�cadas no nível
IV ou V do GMFCS24,25.
Paralisia cerebral atáxica
A PC atáxica resulta de lesão no cerebelo e apresenta como de�ciências
principais desequilíbrio nas diferentes posturas, incoordenação motora e
dismetria (isto é, interpretação errônea da distância, desorientação espacial,
incapacidade para alcançar com precisão um ponto determinado), além de
fraqueza e hipotonia muscular33. Os movimentos da criança com ataxia são
caracterizados por diminuição de força muscular, ritmo e precisão19,32. No
que se refere à mobilidade, as crianças atáxicas, na maioria dos casos,
adquirem marcha independente, sendo classi�cadas no nível I ou II do
GMFCS24,25.
Paralisia cerebral mista
Quando ocorrem lesões em diferentes áreas do encéfalo, a criança pode
apresentar manifestações clínicas de diferentes subtipos de PC32. Em geral,
há predomínio da sintomatologia de um subtipo com componentes
associados de outro. Nesses casos, a criança é classi�cada de acordo com a
característica clínica dominante junto com o componente associado (p. ex.,
PC espástica bilateral com componente atáxico).
Apesar de no consenso de 20071 não haver descrições sobre esse subtipo
de PC, tradicionalmente a expressão paralisia cerebral hipotônica vem
sendo utilizada clinicamente para classi�car as crianças que não apresentam
manifestações clínicas que se encaixem nas outras formas de PC. A criança
hipotônica apresenta como características principais tônus muscular baixo e
importante atraso no desenvolvimento motor. À medida que ela se
desenvolve, sinais de discinesia ou ataxia podem aparecer e o diagnóstico
mais preciso é estabelecido. Caso contrário, é importante investigar outras
possíveis condições de saúde para o diagnóstico da criança, como erros
inatos do metabolismo.
ASPECTOS RELACIONADOS COM A FUNCIONALIDADE E A
INCAPACIDADE DAS CRIANÇAS COM PARALISIA CEREBRAL
A Classi�cação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde
(CIF), modelo proposto pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em
2001, fornece uma representação conceitual do processo de funcionalidade
dos indivíduos, considerando aspectos biomédicos, psicológicos e sociais.
Esse modelo preconiza uma linguagem padronizada e terminologia comum
para a descrição da saúde e dos estados relacionados com a saúde dos
indivíduos.
Funcionalidade é um termo que engloba todas as estruturas e funções do
corpo, atividades e participação; de maneira similar, incapacidade é um
termo que inclui de�ciência, limitação de atividade ou restrição na
participação, sendo a funcionalidade e a incapacidade consideradas
resultado da interação dinâmica entre a condição de saúde e os fatores
contextuais, como ilustrado na Figura 4.134.
Figura 4.1 Relação entre os componentes da Classificação Internacional de Funcionalidade,
Incapacidade e Saúde (CIF)34.
Em 2006, a OMS criou uma versão da CIF para crianças e jovens, levando
em consideração as diversas mudanças que ocorrem ao longo do
crescimento e desenvolvimento físico, psicológico e social, desde o
nascimento até os 18 anos de idade. Nessa versão foi destacada a
importância do contexto familiar, sendo a funcionalidade da criança
in�uenciada por sua interação com a família e os cuidadores35.
Posteriormente, um grupo de pesquisadores parceiros da OMS desenvolveu
os Core Sets da CIF para crianças e adolescentes com PC no intuito de
proporcionar uma descrição de funcionalidade de fácil utilização por parte
dos pro�ssionais da saúde. A expressão Core Sets se refere a um conjunto de
categorias da CIF que são consideradas as mais relevantes para a descrição
da funcionalidade de um indivíduo com determinada condição de saúde36.
No caso da PC, cinco Core Sets destacam as áreas de funcionalidade mais
importantes a serem avaliadas pela equipe interdisciplinar36,37. Os Core Sets
se encontram disponíveis em: https://www.icf-research-
branch.org/download/category/8-neurologicalconditions.
A utilização da CIF possibilita que o terapeuta amplie sua visão da criança
com PC para além das de�ciências, valorizando a capacidade e o
desempenho das atividades e a participação social, em conjunto com as
interações com os fatores contextuais38. Vários estudos têm utilizado esse
modelo multidimensional e interativo para descrever a saúde, a
funcionalidade e a incapacidade de crianças com PC39-42. Neste capítulo
serão revisados os principais aspectos de funcionalidade e incapacidade para
a organização do raciocínio clínico no processo de avaliação e planejamento
do tratamento de crianças com PC.
Fatores contextuais
Os fatores contextuais no modelo da CIF incluem fatores ambientais e
pessoais. Os fatores ambientais englobam aspectos físicos, sociais, culturais,
institucionais ou de atitudes no ambiente em que as pessoas vivem34,38.
Condições de acesso aos espaços físicos da casa, escola ou comunidade,
suporte familiar e escolar, uso de tecnologia assistiva, meios de transporte
comunitários e nível socioeconômico podem impactar de forma negativa ou
positiva a funcionalidade da criança, sendo considerados barreiras ou
facilitadores, respectivamente34,39,43. São exemplos de barreiras físicas:
ausência de banheiro adaptado, portas estreitas ou pavimentação irregular
de ruas e passeios. A di�culdade de acesso a recursos de tecnologia assistiva
pode ser considerada uma barreira social. Por outro lado, a presença de
rampas e elevadores no espaço físico da casa e da escola, o acesso a serviços
de saúde e as atitudes da família de encorajamento da criança para o
desempenho em atividades podem ser identi�cados como facilitadores44. A
família representa um fator ambiental determinante no desenvolvimento
infantil38, podendo se quali�car como facilitadora ou como barreira à
funcionalidade da criança44.
Os fatores pessoais incluem sexo, idade, educação, estilo de vida, atitudes,
motivação e características da personalidade34,38,39. A capacidade de
enfrentamento da criança é um fator pessoal que merece destaque, uma vez
que in�uencia sobremaneira o sucesso das intervenções. Além disso, é
importante reconhecer as escolhas e preferências pessoais das crianças, uma
vez que terão mais interesse em realizar tarefas que sejam signi�cativas para
elas38,43.
Restrições de participação e limitações de atividades
A CIF apresenta as atividades e a participação em um capítulo único,
embora descreva de�nições distintas acerca de cada um dos termos, quais
sejam: atividade consiste na execução de uma tarefa ou ação por um
indivíduo; participaçãodiz respeito ao envolvimento de um indivíduo em
uma situação da vida real. Desse modo, restrições à participação são
problemas que a criança pode experimentar em situações reais da vida que
envolvem um contexto social e limitações da atividade são di�culdades que
a criança pode encontrar para executar tarefas ou ações34. As restrições e
limitações apresentadas pelas crianças dependem de inúmeros fatores, mas
podem ser parcialmente previstas pela classi�cação e tipo clínico da PC,
sendo menos signi�cativas em crianças com PC unilateral classi�cadas no
nível I do GMFCS e do MACS45,46.
Em relação à restrição de participação, destaca-se a di�culdade em
participar nos contextos da casa, da escola, de lazer, de recreação e da
prática de esportes43,47. Crianças com PC podem enfrentar problemas como
bullying dos pares escolares e apresentar di�culdade em interagir com outras
pessoas, podendo se isolar socialmente43,47.
Dentre as limitações de atividade podem ser citadas: incapacidade para
mudar e manter as posturas ou posições do corpo e realizar transferências;
limitação na mobilidade para andar e se deslocar em diferentes locais;
incapacidade para transportar, mover e manusear objetos com os MMSS e
com as mãos; di�culdade para realizar atividades de autocuidado, como
alimentação, higiene pessoal e vestuário; e limitações na habilidade de se
comunicar5,48-51. Cabe ressaltar que a presença dessas limitações aumenta a
necessidade de assistência por parte dos pais e/ou cuidadores51.
De�ciências das estruturas e funções do corpo
Crianças com PC podem apresentar de�ciências (ou seja, alterações) em
diversas estruturas (ou seja, partes estruturais ou anatômicas) e funções
�siológicas, incluindo as funções psicológicas34. Serão enfatizadas neste
tópico as alterações das funções neuromusculoesqueléticas e relacionadas
com o movimento, comumente avaliadas pelos �sioterapeutas. Além disso,
serão abordadas as funções vestibulares, que incluem o equilíbrio.
Funções da força e resistência muscular
A fraqueza muscular é uma de�ciência primária presente em todas as
crianças com PC52. Quando comparadas a seus pares, crianças com PC
apresentam em torno de 50% a menos de força muscular53,54. Veri�cam-se
alterações musculares estruturais, como redução do volume muscular e do
número de sarcômeros em série, e diferenças na composição e distribuição
das �bras musculares que impactam diretamente a capacidade de geração de
força55-57. Em outras palavras, crianças com PC apresentam alterações da
curva de comprimento-tensão muscular, pois o ponto de amplitude articular
associado a um comprimento ótimo para geração de força é modi�cado.
Assim, há menor geração de potência muscular em amplitudes que seriam
mais adequadas à função realizada, o que pode impactar no desempenho da
criança em atividades54,58.
Identi�cam-se ainda outros comprometimentos da função muscular,
como menor velocidade de geração de força e menor resistência muscular, o
que contribui para a ocorrência de fadiga59. Alguns autores identi�cam a
presença de alterações estruturais e funcionais também no membro não
afetado de crianças com acometimento unilateral55.
Funções do tônus muscular
As funções do tônus muscular estão relacionadas com a tensão presente nos
músculos em repouso e a resistência oferecida quando se tenta mover os
músculos passivamente34. As alterações do tônus muscular compreendem a
hipertonia e a hipotonia, bem como a espasticidade32,34,60. Na criança com
PC, a de�ciência do tônus muscular está associada à área do SNC que sofreu
a lesão5.
A espasticidade é uma das de�ciências mais discutidas na literatura sobre
PC, sendo de�nida como o aumento da resistência muscular à
movimentação passiva, dependente da velocidade com que o músculo é
movido ou alongado61. A espasticidade decorre de lesão do neurônio motor
superior e está associada ao aumento do tônus muscular (hipertonia) em
decorrência da diminuição do limiar de ativação dos re�exos de
estiramento5,57,62.
Com frequência, os termos espasticidade e hipertonia são apontados pela
literatura como sinônimos63. Entretanto, é importante destacar que a
espasticidade é somente um dos fatores que contribuem para a resistência à
movimentação passiva. A hipertonia pode estar relacionada tanto com
mecanismos neurais (espasticidade) como com mecanismos não neurais
(alterações nas propriedades mecânicas musculares). Dessa maneira, nem
toda resistência à movimentação passiva apresentada pela criança com PC é
espasticidade, podendo a rigidez estar associada às propriedades mecânicas
musculares57,62. As crianças com hipertonia apresentam aumento da rigidez
muscular passiva, mudanças na composição muscular e alterações do tecido
conectivo, bem como redução do comprimento das �bras musculares54, o
que limita o movimento e o alongamento muscular, di�cultando o
crescimento muscular longitudinal e as funções musculares61.
Funções do controle do movimento voluntário
O controle motor seletivo é essencial para o movimento humano, uma vez
que torna possível a realização de movimentos articulares de modo
independente. A perda do controle muscular seletivo, associada à fraqueza
muscular, resulta em movimentos associados ou compensatórios que
promovem padrões atípicos de postura e movimento, impactando
negativamente no alinhamento articular e na execução dos movimentos64.
A perda do controle muscular seletivo em crianças com PC está
relacionada com o desequilíbrio entre coativação muscular (isto é, ativação
simultânea dos músculos agonistas e antagonistas de uma articulação) e
sinergias musculares (isto é, atuação conjunta de mais de um músculo para
execução de um movimento)65. Convém apontar que as sinergias
musculares contribuem para o controle dos graus de liberdade de
movimento e a coativação pode auxiliar a estabilidade das articulações65,66.
Ao longo do desenvolvimento, as crianças com PC necessitam
desenvolver diferentes estratégias para se movimentar contra a gravidade,
utilizando os recursos que têm disponíveis para lidar com o impacto de suas
de�ciências neuromusculoesqueléticas (ou seja, fraqueza muscular,
alteração de tônus, incapacidade no controle do movimento voluntário) na
interação com o ambiente. Essas estratégias são individuais; entretanto, é
possível identi�car padrões comuns de movimento nessas crianças, como a
ocorrência de sinergias musculares �exoras em MMSS e extensoras de
MMII, que acabam di�cultando a realização de tarefas motoras65-68. Em
relação aos MMSS, observa-se ainda que crianças com PC apresentam
alteração do tempo de ativação muscular e da coordenação motora, padrão
de movimento em �exão do punho e cotovelo, pronação do antebraço,
elevação dos ombros e presença de movimentos compensatórios proximais e
distais, limitando o desempenho de tarefas unimanuais e bimanuais50,69. Em
crianças com comprometimento unilateral é possível identi�car a presença
de movimentos associados ou espelhados no MS contralateral (isto é, não
afetado)70.
Funções relacionadas com o padrão de marcha
As funções do padrão de marcha estão relacionadas com alguns tipos
característicos de marcha que podem ser identi�cados em crianças com
PC64,65,71-73. Estudos clássicos, como o de Rodda e Graham71, descrevem
padrões especí�cos de marcha principalmente no plano sagital para crianças
com comprometimento unilateral ou bilateral. Entretanto, cada criança
apresenta características cinemáticas e cinéticas próprias, conforme as
estratégias desenvolvidas para vencer a gravidade e deambular.
Em crianças com comprometimento unilateral são descritos comumente
os seguintes padrões de marcha:
• Marcha com o “pé caído”, na qual se observa ausência ou diminuição da
�exão dorsal na fase de balanço.
• Marcha em equino, na qual se observa �exão plantar no apoio inicial e
médio com ou sem hiperextensão do joelho no apoio terminal.
• Marcha com o “joelho rígido”, apresentando limitação da �exão de joelho
na fase de balanço.
• Marcha com alterações proximais, na qual as alterações citadas
anteriormente ocorremassociadas à adução e rotação interna do quadril e
à inclinação anterior da pelve71.
Em crianças com comprometimento bilateral são identi�cados os
seguintes tipos de marcha:
• Equino verdadeiro, caracterizado por �exão plantar durante toda a fase de
apoio.
• Marcha jump, caracterizada por �exão plantar associada à �exão do joelho
e do quadril no apoio.
• Equino aparente, caracterizado por �exão plantar no contato inicial com
abaixamento do calcanhar entre o apoio médio e o �nal, associados à
manutenção do joelho e do quadril em �exão.
• Marcha crouch ou agachada, caracterizada por �exão excessiva de joelho
em toda a fase de apoio, associada à �exão de quadril71.
De modo geral, quando comparadas a crianças normais, as crianças com
PC apresentam as seguintes alterações cinemáticas: in-toeing (isto é, marcha
com os pés para dentro) ou out-toeing (marcha com os pés para fora);
menor amplitude de movimento total de �exão dorsal e maior de �exão
plantar; joelhos com maior �exão na fase de apoio e menor �exão na fase de
balanço (joelho rígido); recurvatum de joelho na fase de apoio terminal (em
crianças com comprometimento unilateral); quadril com maior pico de
�exão, adução e rotação interna e menor pico de extensão na fase de apoio;
maior inclinação anterior e rotação da pelve72-74. É importante ainda
considerar que os padrões de movimento do tronco também podem estar
alterados durante o padrão de marcha75. As características relativas ao
desempenho da marcha, como velocidade, serão analisadas no componente
de atividade.
Funções de mobilidade e da estabilidade das articulações
Outra de�ciência apresentada por crianças com PC é a diminuição da
amplitude de movimento (ADM) articular76. O desequilíbrio entre as forças
compressivas (isto é, gravidade) e as forças tensionais (isto é, contração
muscular) que agem nas articulações e no tecido ósseo em crescimento é um
dos principais fatores que predispõem à diminuição de ADM e à disfunção
da integridade estrutural das articulações da criança com PC76,77.
A rigidez passiva se refere às propriedades passivas do tecido muscular
não contrátil, como tendões, ligamentos e tecido conectivo56. No tecido
muscular de crianças com PC observa-se proliferação de matriz extracelular
com aumento do colágeno, aumento da rigidez das células e alteração das
propriedades mecânicas do material extracelular57,78. A presença dessas
adaptações estruturais leva ao aumento da rigidez passiva76, o que predispõe
o encurtamento muscular79, levando à diminuição da ADM. Com o
crescimento, e dependendo das estratégias de movimentação que a criança
apresenta, esse encurtamento muscular pode aumentar, ocasionando
desalinhamento articular, contraturas e deformidades e podendo resultar em
articulações rígidas e instáveis77,80,81. As disfunções de mobilidade e
estabilidade articular na criança com PC são progressivas, proporcionais à
incapacidade (ou seja, maior em crianças GMFCS IV e V) e podem ocorrer
em qualquer articulação82,83.
Na coluna, a escoliose é a alteração mais prevalente e está associada à
obliquidade pélvica e ao desalinhamento do quadril como “quadril em
ventania” (isto é, um quadril posicionado em abdução e o outro em
adução)84-86. A instabilidade do quadril é uma disfunção bastante comum
em crianças com PC e pode progredir para subluxação e luxação83,87.
Dentre os fatores de risco podem ser citados: desequilíbrio muscular80,
manutenção da postura em adução e rotação interna do quadril82, aumento
da anteversão femoral e do ângulo colo-diá�se (coxa valga)80,82,88 e displasia
acetabular88. A obliquidade pélvica e a escoliose também estão associadas à
ocorrência de luxação de quadril83,86. Em estágios avançados, a luxação de
quadril pode di�cultar a higiene íntima87. Podem ser observadas ainda
discrepância de comprimento de membros89, deformidades em �exão ou
hiperextensão no joelho71, deformidades em equino, equinovaro,
equinovalgo79 e deformidades em �exão de punho e dedos90, dentre outras.
Outras alterações das funções do corpo
Apesar de neste tópico terem sido destacadas as funções
neuromusculoesqueléticas relacionadas com o movimento, é importante
considerar que crianças com PC podem apresentar de�ciências em outras
estruturas e funções corporais, que incluem alteração das funções
mentais43,91, alterações das funções sensoriais e dor43,92,93, alteração das
funções de voz e fala94 e alterações das funções do aparelho cardiovascular e
do aparelho respiratório95,96.
Em acréscimo, devem ser consideradas ainda as funções vestibulares de
posição, equilíbrio e movimento, conforme especi�cado pela CIF34.
Crianças com PC podem apresentar dé�cits tanto na manutenção de
posturas (p. ex., sentada, ajoelhada e de pé) como dé�cits de equilíbrio do
corpo e do movimento (p. ex., durante as atividades de andar, correr e
pular)66,97-99. A estabilidade postural consiste na habilidade de manter o
centro de massa corporal dentro da base de suporte, mesmo perante uma
perturbação, e envolve mecanismos neuromusculares com alto grau de
complexidade, além da integridade dos sistemas visual, somatossensorial e
vestibular98,100. A habilidade em manter a estabilidade postural é um fator
importante para a realização das atividades e para a participação, pois
possibilita a realização de movimentos desejados e previne quedas98. Cabe
ressaltar que o equilíbrio (função vestibular) é apenas um dos componentes
dessa capacidade de se manter estável.
Relação entre os componentes da CIF
Conforme descrito em parágrafos anteriores, todos os componentes da CIF
são inter-relacionados e se in�uenciam mutuamente. No estudo de Bjornson
et al.101 foi descrito um exemplo que mostra a interação de todos os
componentes. Quando se pensa no desempenho na marcha (atividade), é
possível observar que ele pode ser in�uenciado pela oportunidade de
participar de atividades físicas (participação), pela resistência/força
muscular (estrutura e função do corpo), pela presença de tecnologia
assistiva (fatores ambientais) e pela motivação (fatores pessoais)101.
Na Figura 4.2 foi confeccionado um quadro com os principais aspectos
relacionados com a incapacidade de crianças com PC, demonstrando as
possíveis relações entre eles.
Figura 4.2 Principais aspectos relacionados com a incapacidade em crianças com paralisia
cerebral.
 à Ã
IMPORTÂNCIA E ATUAÇÃO DA EQUIPE DE REABILITAÇÃO
A PC é uma condição de saúde que requer uma abordagem interdisciplinar.
Diversos pro�ssionais estão envolvidos no processo de reabilitação dessas
crianças, dentre eles o �sioterapeuta, o terapeuta ocupacional, o
fonoaudiólogo e o psicólogo. A equipe médica é composta, normalmente,
pelo ortopedista e neurologista. A comunicação e a ação integrada entre os
pro�ssionais de saúde são cruciais para que as necessidades das crianças
com PC e suas famílias sejam atendidas.
O diagnóstico clínico da PC nem sempre é realizado nos primeiros meses
de vida. Crianças que apresentam um ou mais fatores de risco para PC
devem ser monitoradas e acompanhadas para que se identi�que
precocemente o aparecimento ou o desenvolvimento de possíveis sinais de
PC. Alguns desses sinais podem ser visíveis no período neonatal (p. ex.,
alterações nos movimentos espontâneos, choro excessivo, irritabilidade,
di�culdade para sugar), enquanto outros aparecem à medida que a criança
se desenvolve (p. ex., assimetria corporal, disfunções do tônus muscular,
marcha na ponta dos pés).
O intervalo entre a suspeita inicial e o estabelecimento do diagnóstico de
PC pode ser muito frustrante para a família. Portanto, a intervenção deve ser
iniciada o mais cedo possível, com foco nas necessidades da criança e da
família, independentemente do estabelecimento do diagnóstico clínico20.
Uma ferramenta com alta validade preditiva para detecção precoce da PC
(ou seja, antes dos 5 meses de idade) é o Prechtl Qualitative Assessment of
General Movements (GM)102. Esse instrumento se baseia na observação da
qualidade dos movimentos realizados pelo bebê e tem sido recentemente
utilizado em estudosinternacionais para identi�car precocemente crianças
com risco de PC, podendo ser aplicado por �sioterapeutas treinados (veja o
Capítulo 2)20,103.
Durante o processo de reabilitação de crianças com PC, é preciso abordar
todos os aspectos de funcionalidade e incapacidade, bem como os fatores
contextuais. Dependendo da necessidade da criança, uma ou mais
intervenções especí�cas devem ser iniciadas. A �sioterapia atua com o
objetivo de favorecer o ganho de habilidades motoras de acordo com o
potencial da criança e prevenir as alterações secundárias. A terapia
ocupacional é importante para favorecer o desenvolvimento cognitivo e
promover a participação da criança nos diversos contextos (ou seja, casa,
escola e comunidade). Em caso de di�culdade para comunicar, comer, beber
ou engolir, a criança deve ser encaminhada à fonoaudiologia. Em muitos
casos, o acompanhamento da família e da criança por um psicólogo é
necessário para dar suporte e auxiliá-las no enfrentamento de angústias e
di�culdades. Em acréscimo, as famílias também devem ser orientadas
quanto à necessidade de acompanhamento odontológico e nutricional.
Na fase escolar é importante que a equipe de reabilitação dê suporte à
família com relação à inclusão da criança com PC na escola regular. No
Brasil, diversos fatores impedem que as crianças se bene�ciem efetivamente
da inclusão escolar. Quanto maior a de�ciência cognitiva, maior a
di�culdade de participação da criança na rotina da escola. Existem também
barreiras ambientais que prejudicam a participação da criança com PC
classi�cada nos níveis III a V do GMFCS, como, por exemplo, o acesso à sala
de aula apenas por escadas104,105.
A equipe de reabilitação, em conjunto com a família, deve encorajar a
criança a ser o mais ativa possível, de maneira segura. Para isso, é essencial
identi�car quais atividades são �sicamente desa�adoras, prazerosas e que
possam ser praticadas durante a terapia e também na rotina diária da
criança. Crianças mais velhas e adolescentes podem participar de atividades
especializadas, como escolinha de futebol, natação ou balé, de acordo com
sua capacidade, para que possam manter um nível adequado de atividade
física106.
A criança com PC precisa de acompanhamento médico especializado
durante toda a vida, de modo que seja possível avaliar a necessidade de
intervenções especí�cas de acordo com o quadro clínico apresentado.
Intervenções médicas com o objetivo de reduzir a espasticidade incluem:
injeções musculares de álcool107 e toxina botulínica108-110 para induzir
desnervação química, prescrição de dantrolene, diazepam e baclofeno
oral107, uso de baclofeno intratecal (ou seja, medicação introduzida
diretamente na medula espinhal através de uma bomba implantada
cirurgicamente dentro do abdome da criança) e rizotomia dorsal seletiva
(ou seja, procedimento neurocirúrgico para secção de raízes nervosas na
medula espinhal)111.
As intervenções cirúrgicas mais comuns são as ortopédicas e incluem
cirurgia da mão, para melhorar o posicionamento do polegar e a atividade
manual112, do quadril, para reduzir a subluxação ou corrigir a luxação do
quadril (ou seja, alongamento de partes moles, como a liberação de
adutores113, reconstrução óssea), e do pé, para correção da deformidade em
equino do tornozelo. Muitas vezes, crianças com PC espástica apresentam
mais de uma deformidade nos MMII e, nesses casos, é realizada a cirurgia
multinível em evento único114. Essa técnica se baseia na correção ortopédica
de múltiplas deformidades (ou seja, em quadris, joelhos e tornozelos) em
uma única sessão cirúrgica, exigindo apenas uma hospitalização e um
período de recuperação. Em acréscimo, a gastrostomia115 (isto é, colocação
cirúrgica de uma sonda de alimentação não oral) é frequentemente
realizada, principalmente em crianças classi�cadas no nível V do GMFCS,
com o objetivo de prevenir ou reverter problemas no ganho ponderal ou
prevenir pneumonia por aspiração.
Finalmente, a prescrição de anticonvulsivantes para prevenir e controlar
crises convulsivas e de bifosfonatos109,116 para diminuir a reabsorção óssea e
tratar a osteopenia são intervenções médicas comumente utilizadas em
crianças com PC.
INTERVENÇÃO FISIOTERAPÊUTICA
Avaliação
A avaliação �sioterapêutica da criança com PC deve ser criteriosa e
abrangente, de modo a abordar todos os componentes da CIF e, sempre que
possível, o �sioterapeuta deve utilizar métodos válidos, con�áveis e
padronizados para a avaliação dos desfechos de interesse117.
Tradicionalmente, a avaliação da criança com PC contemplava,
principalmente, a identi�cação de de�ciências nas funções
neuromusculoesqueléticas, sendo enfatizadas as disfunções do tônus
muscular e de re�exos ou reações, além de possíveis alterações nos padrões
de movimento5. Esse modelo tradicional de avaliação �sioterapêutica,
direcionado apenas às de�ciências, era condizente com as abordagens
terapêuticas da década de 1970, que priorizavam a busca pela
“normalização” de padrões de movimento de crianças com PC, conferindo
pouca ou nenhuma importância a aspectos relacionados com a atividade e a
participação social118.
Nas últimas duas décadas, impulsionado pelo desenvolvimento da CIF, o
processo de avaliação de crianças com PC teve seu foco modi�cado, de
modo a destacar aspectos positivos e negativos relacionados com a
funcionalidade que sejam mensuráveis, passíveis de mudança e contemplem
metas signi�cativas para as crianças e suas famílias9,38,118. O emprego da
CIF amplia a visão do terapeuta para além das de�ciências em estruturas e
funções do corpo, enfatizando também as atividades e a participação da
criança nos diferentes contextos, bem como o impacto de fatores pessoais e
ambientais na funcionalidade. Em acréscimo, pode ser utilizado como guia
para auxiliar a elaboração do raciocínio clínico e o processo de tomada de
decisão terapêutica, levando em consideração múltiplos fatores que
contribuem para desfechos positivos na participação, atividades, estruturas e
funções corporais, bem como nos fatores contextuais39.
O modelo de avaliação proposto neste capítulo foi desenvolvido com base
nas alterações comumente encontradas nas crianças com PC e será descrito
de acordo com a proposta contemporânea da CIF. Serão destacados
instrumentos validados e con�áveis que auxiliam a avaliação de cada
componente de funcionalidade e incapacidade, bem como a organização do
raciocínio clínico e a elaboração de metas terapêuticas38. Diante de uma
gama de instrumentos disponíveis, serão abordados, principalmente,
aqueles que foram traduzidos e adaptados culturalmente para a população
brasileira.
Cabe destacar que um mesmo instrumento pode avaliar diferentes
componentes da CIF, como é o caso do School Function Assessment (SFA)119
e do Inventário de Avaliação Pediátrica de Incapacidade – Testagem
Computadorizada Adaptativa (Pediatric Evaluation of Disability Inventory –
Computer Adaptive Test – PEDI-CAT)120. Convém ressaltar, ainda, que a
maior parte desses instrumentos foi desenvolvida antes da proposta da CIF
e, muitas vezes, a nomenclatura neles utilizada não corresponde exatamente
ao componente da CIF que será avaliado.
Coleta da história clínica com pais e cuidadores
O processo de avaliação inicia com uma entrevista com os pais, cuidadores
e, sempre que possível, com a criança. Devem ser registradas questões
relacionadas com gestação, parto, período neonatal, etapas do
desenvolvimento infantil, intercorrências médicas, condições de saúde
associadas, cirurgias e outras intervenções já realizadas, assim como os
dados da equipe de reabilitação. As queixas e preocupações da criança e da
família devem ser detalhadamente investigadas, pois são determinantes para
a de�nição das metas terapêuticas.
Fatores contextuais
Ainda durante a entrevista e ao longo da avaliação, devem ser identi�cados
os fatores contextuais (ou seja, pessoais e ambientais) que representam o
histórico completo e o estilo de vida da criança. Os fatores pessoais que
devem ser principalmente investigados são: idade, comportamento,cientí�co. Por
exemplo, agora é clara a evidência de que a terapia de movimento induzido
por restrição (Constraint Induced Movement �erapy – CIMT) e o treino
intensivo bimanual (Hand-arm Bimanual Intensive Training ‒ HABIT) para
aqueles com paralisia cerebral unilateral são e�cazes, mas a implementação
continua sendo um problema. É por causa da rejeição à pesquisa? Ou, mais
provavelmente, os clínicos não adotaram as diretrizes de implementação e
não determinaram a melhor forma de agendar a intervenção intensiva
exigida para a CIMT? Devemos buscar caminhos para incentivar o avanço e
a mudança na prática clínica. Os terapeutas devem ser aprendizes por toda a
vida e aceitar a mudança como uma constante. Fornecer a prática baseada
em evidências é uma luta em constante evolução para o que é melhor para as
crianças que servimos e suas famílias.
Susan K. E�gen, PT, PhD, FAPTA
Professor of the Department of Rehabilitation
Sciences University of Kentucky Lexington,
Kentucky, United States
A s pesquisas na área de Fisioterapia Pediátrica cresceram
exponencialmente nas últimas décadas, ocasionando uma revolução
na abordagem do pro�ssional �sioterapeuta, como descrito no prefácio pela
Profa. Dra. Mijna Hadders-Algra (Holanda) e pela Profa. Dra. Susan E�gen
(EUA). Apesar das mudanças ocorridas em vários países, ainda enfrentamos
inúmeras di�culdades para integrar os resultados obtidos em pesquisas
cientí�cas à prática clínica do �sioterapeuta pediátrico. Observamos, muitas
vezes, um distanciamento entre o que é evidenciado no meio cientí�co e o
que é realizado nas clínicas no país, o que ressalta cada vez mais a
necessidade da Knowledge Translation (i.e., tradução do conhecimento
acadêmico para a prática clínica). Nessa óptica, esta obra nasce a partir de
um sonho dos docentes e pesquisadores da Universidade Federal dos Vales
do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM) – Hércules Leite, Rosane Morais e
Vanessa Pereira de Lima – e da Universidade de Minas Gerais (UFMG) –
Ana Cristina Camargos. O objetivo é oferecer acesso à literatura cientí�ca
atualizada a respeito da intervenção �sioterapêutica das diversas condições
de saúde, de modo a aprimorar constantemente a prática clínica.
Este livro foi elaborado considerando dois pilares importantes para a
prática clínica do �sioterapeuta pediátrico: o modelo conceitual da CIF e a
Prática Baseada em Evidência (PBE). O estudante de �sioterapia e o
pro�ssional �sioterapeuta irão compreender a importância de organizar o
raciocínio clínico para elaboração da intervenção �sioterapêutica (i.e.,
avaliação e tratamento) sob a óptica da CIF. Salientamos que nesta primeira
edição não há um capítulo dedicado exclusivamente ao referencial teórico
da CIF, porém o leitor encontrará uma descrição mais detalhada ao acessar
o manual da CIF ou veri�cando a literatura referenciada ao �nal de cada
capítulo.
A partir da compreensão da CIF, orientamos que, ao se debruçar sobre a
avaliação �sioterapêutica em cada capítulo (especialmente a partir da Seção
II), o leitor inicie sempre pelo domínio atividade e participação. Observe
que esse domínio permitirá que o �sioterapeuta elabore hipóteses que
poderão ser testadas no domínio estrutura e função do corpo. Por exemplo,
durante a avaliação da capacidade de marcha (i.e., atividade e participação)
uma criança apresenta menores distância e velocidade de caminhada e
di�culdade em transpor objetos no chão. A partir desse achado, quais
aspectos de estrutura e função do corpo podem estar relacionados à redução
da capacidade: fraqueza dos músculos dos membros inferiores? Reduzida
tolerância ao exercício físico? Limitação de amplitude de movimento?
Assim, a organização desse raciocínio clínico deve ser realizada em todos os
capítulos descritos nesta obra.
Não é objetivo dos autores que todos os elementos evidenciados na
avaliação sejam reproduzidos à risca no contexto da prática clínica, mas que
o pro�ssional ou estudante de �sioterapia saiba compreender as melhores
ferramentas como aquelas que sejam validadas e con�áveis. Esse mesmo
raciocínio se aplica ao tratamento �sioterapêutico, sendo destacadas as
propostas de intervenção mais discutidas na literatura contemporânea,
sempre considerando a melhor evidência disponível.
A PBE é um dos pilares para a prática clínica do �sioterapeuta pediátrico.
A PBE como vista na �gura abaixo depende de três componentes
fundamentais: (1) melhor evidência cientí�ca disponível, (2) experiência do
�sioterapeuta e (3) opinião dos pais e da criança ou adolescente.
Com base nessa estrutura, o �sioterapeuta deverá escolher as técnicas e
condutas que condizem melhor com a realidade daquela família. Técnicas
com alto custo para a família e o �sioterapeuta nem sempre apresentam a
melhor evidência cientí�ca. Portanto, sugerimos fortemente que a leitura
deste livro seja também um convite para a desconstrução de vários
paradigmas que já foram quebrados mundialmente e ainda permanecem no
cenário da �sioterapia no Brasil.
A �m de utilizar da maneira mais adequada a PBE, no �nal do livro você
encontrará um anexo que descreve os cinco níveis de evidência. Entretanto,
para �ns didáticos atente-se que o nível 1 se refere à melhor evidência
cientí�ca disponível (oriunda de revisões sistemáticas a partir de ensaios
clínicos bem delineados), os níveis intermediários (níveis 2 a 4) variam de
ensaios clínicos (nível 2) a estudos de caso (nível 4) e o nível 5 compreende
evidências a partir da opinião e do consenso de especialistas.
Sabemos que a prática clínica do �sioterapeuta pediátrico ainda é carente
em relação às evidências disponíveis, porém o intuito desta obra é reunir
grande parte das informações disponíveis na literatura. Além disso, ao �nal
de cada capítulo são descritos casos clínicos que permitem aliar a
informação disponível à prática clínica.
Esta obra é dividida em quatro seções: a Seção I trata dos aspectos
relacionados ao desenvolvimento infantil. A Profa. Dra. Rosane Morais e os
colaboradores descrevem o desenvolvimento da criança no primeiro ano de
vida a partir de conceitos teóricos contemporâneos. Além disso, são
destacados a importância da intervenção precoce, considerando crianças de
risco biológico e psicossocial (ambiental), e os principais instrumentos
padronizados utilizados para avaliação preliminar. A seção �naliza com um
capítulo sobre atenção primária, em que é abordada a atuação do
�sioterapeuta pediátrico com intuito de aprimorar a abordagem integral à
saúde da criança.
Na Seção II ‒ Fisioterapia Neurofuncional, a Profa. Dra. Ana Cristina
Camargos e os demais colaboradores descrevem a funcionalidade e as
incapacidades das principais condições de saúde no cenário da �sioterapia
neuropediátrica, bem como as evidências que respaldam o tratamento
�sioterapêutico. Os capítulos foram elaborados considerando as abordagens
contemporâneas, destacando aspectos relacionados com a atividade e a
participação, que contemplem as necessidades reais das crianças, de suas
famílias e do contexto em que estão inseridas. Recomendamos inicialmente
a leitura do capítulo sobre Paralisia Cerebral (Capítulo 4) para compreensão
do raciocínio clínico utilizado na elaboração dos objetivos e plano de
tratamento �sioterapêutico.
Na Seção III ‒ Fisioterapia Musculoesquelética, o Prof. Dr. Hércules
Ribeiro Leite apresenta, juntamente com os colaboradores, o impacto das
disfunções musculoesqueléticas no cenário da �sioterapia pediátrica. Os
capítulos apresentam um robusto referencial teórico, embasado nas
melhores evidências disponíveis, destacando o desenvolvimento do sistema
musculoesquelético típico e seus desvios. Sabemos que a �sioterapia
musculoesquelética tem sido incorporada por pro�ssionais que não
compreendem as peculiaridades dessa faixa etária; portanto, os conteúdos
apresentados nessa seção têm papel essencial para a reformulação de
conteúdos moldados inicialmente para os adultos e adaptados para a
população pediátrica.
Na última seção (Seção IV – Fisioterapia Pneumofuncional), a Profa.
Dra. Vanessa Pereiramotivação, interesses pessoais, hábitos, maneiras de enfrentar problemas e
escolaridade. Os fatores pessoais não são codi�cados pela CIF em razão da
grande variabilidade social e cultural a eles associada34.
Os fatores ambientais são externos à criança e constituem aspectos do
contexto físico, social e atitudinal em que elas vivem, podendo exercer
in�uência positiva (facilitadores) ou negativa (barreiras) em seus aspectos
de funcionalidade34,38. Os pais e as crianças são encorajados a relatar as
barreiras e os facilitadores físicos, econômicos, sociais e atitudinais
existentes em casa, na escola e na comunidade. Devem ser coletadas
informações detalhadas acerca do uso de medicamentos e de tecnologias
assistivas. Por exemplo, se a criança utiliza uma órtese, é necessário saber e
veri�car o tipo de órtese, o estado de conservação, as situações em que é
utilizada e como a utiliza.
Para avaliação padronizada dos fatores ambientais a literatura
disponibiliza o questionário Craig Hospital Inventory of Environmental
Factors (CHIEF)121, cujo objetivo é avaliar a percepção do indivíduo sobre a
frequência e a magnitude das barreiras ambientais que comprometem sua
participação na sociedade. O CHIEF pode ser aplicado aos responsáveis
pelas crianças com de�ciências (ou com os próprios adolescentes) para
avaliar sua percepção sobre as barreiras ambientais enfrentadas por seus
�lhos. O questionário apresenta uma versão longa, composta por 25 itens, e
uma versão curta, com 12 itens, ambas divididas em cinco subescalas que
informam sobre barreiras: (1) políticas; (2) físicas e estruturais; (3) no
trabalho e na escola; (4) de atitude e suporte; e (5) de serviços e
assistência121. Esse questionário foi traduzido para a língua portuguesa e
adaptado culturalmente (CHIEF-BR) por Furtado et al.122 para ser
administrado aos responsáveis por crianças brasileiras com PC.
Atividade e participação
Podemos dar continuidade à avaliação abordando os componentes de
participação e atividade, sendo importante avaliar tanto a capacidade como
o desempenho. Na avaliação da capacidade, veri�ca-se o que a criança é
capaz de fazer em condições ideais, como, por exemplo, em um ambiente
clínico padronizado. Já o desempenho re�ete aquilo que a criança realmente
realiza em seu ambiente natural de casa, escola ou comunidade34,38.
A avaliação da participação pode ser iniciada na entrevista com os pais e
com a criança. Deve ser identi�cado de que maneira se dá a participação da
criança em casa, na comunidade, na escola, em atividades esportivas, nas
brincadeiras com os amigos, no lazer etc. Dentre os instrumentos
padronizados que podem ser utilizados para documentar a participação de
crianças com PC em casa e na escola estão o Children Helping Out:
Responsibilities, Expectations and Supports (CHORES)123 e o SFA119,
respectivamente.
O CHORES é utilizado para mensurar a participação de crianças e
adolescentes com idade entre 6 e 14 anos nas tarefas domésticas, bem como
o nível de assistência dispensada pelos cuidadores. Trata-se de um
questionário que informa sobre o desempenho nas tarefas domésticas por
meio de subescalas de cuidados pessoais e de cuidados familiares123. O
instrumento foi traduzido para o português e adaptado culturalmente para
crianças brasileiras124.
O SFA é um instrumento padronizado que pode ser aplicado em forma de
questionário para os professores ou ser pontuado por meio de observação
direta da criança no contexto escolar. Esse teste mensura o desempenho
escolar da criança em tarefas não acadêmicas que fornecem suporte à
participação da criança na educação infantil e no ensino fundamental:
• Parte I (participação): avalia a participação da criança em seis ambientes
escolares distintos: sala de aula, pátio/recreio, transporte casa/escola/casa,
banheiro, transições na sala de aula e/ou entre ambientes escolares e hora
da refeição/lanche.
• Parte II (necessidade de assistência na realização de tarefas): avalia a
necessidade da assistência do adulto e/ou adaptações durante as tarefas
escolares físicas e cognitivas/comportamentais.
• Parte III (desempenho da atividade): avalia o desempenho da criança em
atividades físicas e cognitivo-comportamentais especí�cas do contexto
escolar119.
O SFA ainda não foi traduzido para o português, mas se trata de um teste
válido e con�ável e tem sido utilizado para avaliar a atividade e a
participação de crianças brasileiras125.
O componente atividade tem grande relevância na avaliação, no
estabelecimento de metas e na escolha das intervenções �sioterapêuticas
para a criança com PC. De acordo com as evidências mais atuais acerca dos
processos de avaliação e intervenção, a avaliação da atividade deve anteceder
a avaliação das estruturas e funções do corpo126,127. A identi�cação de
limitações em atividades pode direcionar a busca por possíveis de�ciências.
Por exemplo, caso seja identi�cado que a criança apresenta alguma
limitação na velocidade da marcha, devem ser investigadas, dentre outras
variáveis, a força e a extensibilidade dos músculos �exores plantares.
A atividade deve ser investigada utilizando-se parâmetros quanti�cáveis,
preferencialmente por meio de instrumentos padronizados. Serão descritos
a seguir instrumentos que avaliam o desempenho em atividades –
PEDI128,129, PEDI-CAT120,130 e Questionário de Experiência de Crianças no
Uso da Mão (Children’s Hand-Use Experience Questionnaire – CHEQ)131,132;
instrumentos que avaliam a capacidade em realizar atividades de mobilidade
– Medida da Função Motora Grossa (Gross Motor Function Measure –
GMFM)133,134, Teste de Caminhada de 10 Metros135, Teste de Caminhada
de 6 Minutos136 e Timed up and Go Test modi�cado (mTUG)137; e
instrumentos que avaliam a capacidade de realizar atividades com os MMSS
– Teste de Função Manual Jebsen-Taylor (Jebsen-Taylor Test of Hand
Function – JTTHF)138 e Teste de Destreza Manual Box & Block (Box & Block
Test of Manual Dexterity – BBT)139.
O PEDI tem por objetivo fornecer informações sobre a funcionalidade de
crianças entre 6 meses e 7 anos e meio de idade, mas pode ser utilizado em
crianças maiores, desde que o desempenho seja compatível com o de
crianças dessa faixa etária128. Esse instrumento foi traduzido para o
português e adaptado culturalmente para o Brasil, sendo um dos mais
conhecidos e utilizados na prática clínica no país129. Pode ser aplicado por
meio de observação direta, julgamento clínico ou entrevista estruturada,
sendo a última a mais comumente utilizada. Divide-se em três partes:
habilidades funcionais, assistência do cuidador e modi�cações do ambiente.
Cada parte abrange três áreas: autocuidado, mobilidade e função social. O
escore bruto obtido em cada parte/área pode ser convertido em escore
normativo e escore contínuo. A partir do escore normativo é possível
determinar se a criança se encontra atrasada, dentro da normalidade ou
adiantada em relação ao desempenho de crianças com desenvolvimento
normal da mesma faixa etária. Já o escore contínuo torna possível localizar o
repertório apresentado pela criança em um mapa de itens, organizado de
acordo com o nível de di�culdade de cada item do teste, em uma escala
contínua de 0 a 100129.
Em 2012, o PEDI foi revisado e foi desenvolvida a segunda versão,
denominada PEDI-CAT120. Essa versão já foi traduzida para o português e
sua licença para utilização está disponível no site:
https://www.pedicat.com/130. O PEDI-CAT informa sobre a funcionalidade
de crianças, adolescentes e jovens adultos, de 0 a 20 anos de idade, em
quatro domínios: atividades diárias, mobilidade, social/cognitivo e
responsabilidade, sendo os três primeiros domínios relacionados com as
atividades e o último com a participação130.
O CHEQ é um questionário indicado para avaliação da experiência de
uso da mão afetada por crianças com PC unilateral no desempenho de
atividades bimanuais na rotina diária. Pode ser respondido via internet (ou
seja, online) pelos pais/cuidadores ou por adolescentes a partir de 13 anos de
idade131. Traduzido e adaptado culturalmentepara crianças e adolescentes
brasileiros132, encontra-se disponível no endereço eletrônico:
http://www.cheq.se/.
A capacidade da criança de realizar atividades motoras grossas pode ser
avaliada pelo GMFM, um instrumento válido, con�ável e amplamente
utilizado na prática clínica e em pesquisas da área140-142. O GMFM avalia a
atividade motora grossa em cinco dimensões: (A) deitar e rolar; (B) sentar;
(C) engatinhar e ajoelhar; (D) de pé; (E) andar, correr e pular143. Cada item
é avaliado de maneira observacional pelo terapeuta, que pontua a criança de
acordo com a capacidade demonstrada no momento da avaliação: 0 – não
inicia a atividade; 1 – inicia; 2 – realiza parcialmente; 3 – completa a
atividade. A primeira versão do instrumento, com 88 itens (GMFM-88), está
indicada para a avaliação de crianças com PC, principalmente aquelas com
maior comprometimento motor (p. ex., GMFCS V), e crianças com
diferentes condições de saúde (p. ex., síndrome de Down). A versão
reduzida, com 66 dos 88 itens iniciais (GMFM-66), é utilizada apenas para a
avaliação das crianças com PC, principalmente aquelas com níveis I a IV do
GMFCS142,143.
No GMFM-66, a pontuação da criança em cada item é inserida no
so�ware Gross Motor Ability Estimator (GMAE), que converte os escores e os
transforma em uma escala intervalar da atividade motora grossa. O GMAE
fornece um mapa de itens por ordem de di�culdade, identi�cando as
habilidades motoras que a criança apresenta e aquelas que ela é capaz de
realizar dentro do repertório de atividades compatíveis com a pontuação
obtida134,142,143. Esse mapa de itens tem grande utilidade no planejamento
dos objetivos e intervenções terapêuticas (Figura 4.3).
Figura 4.3 Mapa de itens obtido pela avaliação com GMFM-66 de criança com PC diplégica, 3
anos, GMFCS II. Os números circulados representam a pontuação obtida em cada item, a linha
vertical contínua indica o escore total e as linhas pontilhadas delimitam o intervalo de confiança.
Os itens à esquerda das linhas representam as habilidades consolidadas no repertório motor da
criança, e os itens à direita, aquelas que ainda não foram adquiridas por completo. O intervalo
entre as linhas pontilhadas representa as habilidades que a criança é capaz de realizar, sendo
possível estipular como objetivo terapêutico o aumento das pontuações dos itens que se
encontram nesse intervalo. Por exemplo, no item 59, a pontuação máxima (3 pontos) ainda não
foi atingida, porém se encontra dentro do intervalo, podendo ser traçada como objetivo
terapêutico a ser alcançado a curto prazo, qual seja: conseguir passar da postura sentada no
banco para a de pé sem apoio dos membros superiores (item 59).
O GMFM apresenta altos níveis de validade, con�abilidade e
responsividade, o que indica que ele é capaz de detectar diferença mínima
clinicamente importante para crianças com PC141,143. A partir dos
resultados do GMFM é possível mensurar a capacidade da criança de
realizar atividades motoras, determinar objetivos terapêuticos, detectar
mudanças ao longo do tempo e veri�car o resultado de intervenções, bem
como facilitar a comunicação com a família acerca das conquistas da
criança143,144. Em 2013 foi publicada a segunda edição do manual, que conta
com duas versões abreviadas do GMFM-66: a versão Conjunto de Itens
(GMFM-66 Item Set) e a versão Basal & Teto (GMFM-66 Basal & Ceiling),
que possibilitam a aplicação mais rápida do GMFM133,145. Na versão
GMFM-66 Item Set, a criança é avaliada em três itens decisivos e sua
capacidade nesses itens indica o conjunto de itens que deve ser
administrado dentre quatro possíveis. Esses conjuntos de itens foram
de�nidos a partir de algoritmo que identi�ca itens signi�cativos para serem
testados em cada criança, dependendo da capacidade que demonstram nos
três itens decisivos. Na versão GMFM-66 Basal & Teto, a idade e o nível do
GMFCS da criança indicam a partir de qual item deve ser iniciada a
administração do teste. Ambas as versões abreviadas apresentam alta
concordância com o GMFM-66 completo.
Além das versões abreviadas, foi criada a segunda versão do GMAE
(GMAE-2), que torna possível localizar a criança, de acordo com seu
resultado no GMFM-66, nas curvas percentilares de referência para cada
GMFCS, bem como calcular os escores de todas as versões do GMFM133. O
manual do GMFM foi traduzido para o português, e a segunda versão já
disponibiliza as informações das novas versões do GMFM e o GMAE-2134.
Para avaliar a capacidade relacionada com a atividade de deambular ou a
capacidade de marcha, principalmente de crianças classi�cadas nos níveis I
a III do GMFCS, podem ser utilizados testes válidos, rápidos e simples,
como o Teste de Caminhada de 10 Metros e o Teste de Caminhada de 6
Minutos39,101,135,146.
O Teste de Caminhada de 10 Metros é realizado para documentar a
velocidade de marcha, utilizando-se um cronômetro para registrar o tempo
gasto pela criança para percorrer uma distância de 10 metros, a qual é
incentivada a andar o mais rápido possível135. Um espaço de no mínimo 14
metros é necessário para a aplicação do teste, uma vez que os dois metros
iniciais e os dois �nais não são computados para o cálculo da velocidade por
serem considerados períodos de aceleração e desaceleração,
respectivamente.
Já o Teste de Caminhada de 6 Minutos é considerado um teste
submáximo, realizado em um espaço de 30 metros, no qual é mensurada a
distância percorrida pela criança em um período de 6 minutos. A criança
deve ser incentivada verbalmente a cada minuto, e a frequência cardíaca,
bem como sinais de dispneia e fadiga, deve ser monitorada no início e
durante o percurso, utilizando-se a escala de Borg136 (veja o Capítulo 23).
O mTUG, outro teste válido e de fácil aplicação, avalia a capacidade de
mobilidade, especi�camente as capacidades de mudar e manter a posição do
corpo e se mover34,147. Baseia-se no tempo que a criança necessita para
levantar de uma cadeira, caminhar 3 metros, girar, retornar à posição inicial
e sentar novamente na cadeira147. As modi�cações do TUG para o mTUG
envolvem a utilização de uma cadeira com encosto sem apoio de braços e
altura do assento apropriada a cada criança, além de fornecer uma tarefa
motivadora para a criança, como pedir para tocar uma estrela na parede
antes de realizar o giro e voltar para se sentar137,148.
A atividade manual pode ser avaliada pelo JTTHF e pelo BBT. O primeiro
teste consiste na mensuração do tempo gasto para completar tarefas
unimanuais, como virar cartas, pegar e colocar objetos pequenos dentro de
recipiente, simular alimentação com utensílios, empilhar blocos e
transportar latas138,149. O examinador cronometra o tempo gasto pela
criança para realizar cada tarefa, primeiro com o membro superior
dominante e em seguida com o não dominante. O limite de tempo para
completar cada uma das tarefas com cada membro superior é de 180
segundos. Caso a criança exceda esse tempo, o examinador deve parar o
cronômetro e passar para a tarefa seguinte. O escore é dado a partir do
somatório de tempo, em segundos, gasto para completar todas as tarefas.
No BBT, a criança é solicitada a pegar cubos de madeira de 2cm e
transportá-los de um compartimento para o outro de uma caixa de madeira
durante 60 segundos139. A criança deve transportar somente um bloco de
cada vez, iniciando o teste com o membro superior dominante e repetindo-
o, em seguida, com o membro não dominante. O escore é dado a partir do
número de blocos transportados em 60 segundos com cada um dos MMSS.
Em ambos os testes, a criança deve estar sentada em banco ou cadeira de
altura adequada com apoio do tronco e dos pés.
Estruturas e funções do corpo
A partir dos resultados nos aspectos relacionados com a atividade e a
participação, o �sioterapeuta será direcionado para a escolha de
instrumentos e testes para avaliar as estruturas e funções corporais que
possivelmente apresentarão disfunções.
A força muscular em crianças com PC pode ser veri�cada por meio do
teste de força muscular manual, considerado o mais utilizado naprática
clínica, apesar de seu caráter relativamente subjetivo. O teste gradua a força
entre 0 e 5, que varia de ausência de contração até contração contra
resistência máxima. Entretanto, é difícil graduar a força aplicada pelo
examinador nos graus 4 e 5 de maneira objetiva em crianças, sendo mais
con�ável o uso do teste naquelas com grau de força inferior a 4150,151.
A avaliação da força muscular de todos os grupos musculares demanda
tempo e a cooperação do avaliado, sendo mais difícil em crianças com
menos de 6 anos de idade. Dessa maneira, Je�ries et al.152 propuseram a
criação de uma escala denominada Functional Strength Assessment (FSA),
que inclui a avaliação da força do tronco e das extremidades em crianças
com PC classi�cadas em todos os níveis do GMFCS, entre 1 ano e meio e 5
anos de idade. Essa escala se utiliza de procedimentos similares ao teste de
força muscular manual e gradua oito grandes grupos musculares, que
compreendem os �exores e extensores de pescoço e tronco, os �exores de
ombro direito e esquerdo, os extensores de quadril direito e esquerdo e os
extensores de joelho esquerdo e direito. A soma da pontuação em cada item
oferece um escore total e pode ser utilizada para monitorar as alterações ao
longo do tempo152. Essa escala se encontra disponível no endereço
eletrônico:
https://www.canchild.ca/system/tenon/assets/attachments/000/000/468/orig
inal/Muscle_Strength.pdf.
O teste de repetição máxima é outro método quantitativo de mensuração
da função muscular de fácil aplicação e que tem sido bastante usado para
direcionar a intensidade de treinamentos de força muscular de crianças com
PC153. O teste avalia a carga máxima suportada pela criança durante a
realização de uma ou mais repetições. A carga máxima suportada em uma
repetição (1RM) representa a força máxima que a criança é capaz de gerar,
enquanto que a carga máxima suportada em mais repetições (isto é, 10RM)
é representativa da resistência muscular153.
A mensuração da ADM articular passiva é comumente realizada por meio
do goniômetro, mas fatores como a experiência do examinador e o
posicionamento adequado da criança podem comprometer a con�abilidade
dessa medida154. Bartlett155 propôs a utilização do Spinal Alignment and
Range of Motion Measure (SAROMM) para crianças com PC. Esse
instrumento se divide em duas seções: (1) alinhamento da coluna espinhal;
(2) ADM e extensibilidade muscular. Apresenta um total de 26 itens, e o
escore de cada item varia entre 0 (isto é, alinhamento normal sem nenhuma
limitação passiva) e 4 (isto é, apresenta limitação �xa, estrutural, estática,
não redutível e severa). É considerado um método válido, con�ável, simples
e responsivo para detectar alterações do alinhamento da coluna espinhal e
das de�ciências em ADM articular em crianças com PC155,156, porém ainda
não foi traduzido para a língua portuguesa. O SAROMM se encontra
disponível no endereço eletrônico:
https://canchild.ca/system/tenon/assets/attachments/000/000/088/original/S
AROMM.pdf.
A avaliação do tônus muscular consistia em um dos parâmetros mais
importantes no modelo tradicional de avaliação �sioterapêutica de crianças
com PC, porém, atualmente, não tem sido considerada uma medida de
desfecho relevante para elaboração de metas de tratamento �sioterapêutico.
O aumento no tônus muscular (hipertonia) na PC pode estar associado à
espasticidade e/ou a alterações nas propriedades mecânicas do músculo,
como aumento em sua rigidez em razão da maior concentração de tecido
conectivo intramuscular54.
Os meios de avaliação da espasticidade em crianças com PC têm sido
muito questionados na literatura62. Na prática clínica, a escala modi�cada
de Ashworth é o método comumente utilizado para medir espasticidade157,
porém essa escala gradua a presença de hipertonia e depende da
interpretação subjetiva do avaliador e da velocidade de alongamento
muscular158. A escala modi�cada de Ashworth avalia o grau de resistência à
movimentação passiva em 0 (ou seja, tônus muscular normal) a 4 (ou seja,
hipertonia com partes rígidas em �exão ou extensão)157. A escala não
apresenta resultados satisfatórios no que diz respeito a suas propriedades
psicométricas, principalmente con�abilidade159.
Outro teste, com maiores índices de con�abilidade, que pode ser utilizado
para avaliação da espasticidade é a escala de Tardieu, que leva em
consideração a resistência ao movimento passivo tanto em baixa como em
alta velocidade160. O teste é aplicado da seguinte maneira: primeiro passo:
mede-se com o goniômetro a ADM passiva total da articulação de interesse
(R2), realizando o movimento do modo mais lento possível; segundo passo:
posteriormente, realiza-se o mesmo movimento com alta velocidade e é
medida a ADM máxima (R1) obtida, considerando a reação da musculatura;
terceiro passo: o valor de R1 é subtraído do valor de R2, e o resultado
representa um componente quantitativo da resposta muscular a um
estímulo de estiramento rápido160.
A estabilidade postural de crianças com PC pode ser mensurada por meio
da Avaliação Clínica Precoce do Equilíbrio (Early Clinical Assessment of
Balance – ECAB). O ECAB é um instrumento com 13 itens que pode ser
utilizado em crianças com PC entre 1 ano e meio e 5 anos de idade,
classi�cadas em qualquer nível do GMFCS161. Foi elaborado utilizando itens
do Movement Assessment of Infants162 e da Escala de Equilíbrio
Pediátrica163. Apresenta duas partes: a parte I avalia a estabilidade postural
da cabeça e do tronco, e a parte II, a estabilidade nas posturas sentada e de
pé. Caso a criança seja classi�cada nos níveis III a V do GMFCS, a
administração do teste deve ser iniciada na parte I. Nos casos de crianças
classi�cadas nos níveis I e II é possível iniciar o teste a partir da parte II.
Esse instrumento foi desenvolvido pelo Move & PLAY Study da CanChild, e
a versão traduzida para o português se encontra disponível no endereço:
https://canchild.ca/system/tenon/assets/attachments/000/001/506/original/T
radu%C3%A7%C3%A3o_Avalia%C3%A7%C3%A3o_Cl%C3%ADnica_Pre
coce_do_Equil%C3%ADbrio_ECAB_28mar2016.pdf.
Utilizada para fazer inferências sobre a disfunção do equilíbrio de
crianças entre 5 e 15 anos de idade163, a Escala de Equilíbrio Pediátrica
(EEP) é composta por 14 itens, cada um dos quais é pontuado de 0 a 4. A
pontuação máxima da escala é 56 e, quanto maior o escore, melhor o
equilíbrio164. A versão em português dessa escala está disponível em:
http://www.scielo.br/pdf/rb�s/v16n3/pt_aop022_12.pdf. Cabe ressaltar que
o equilíbrio é considerado uma função vestibular, mas o conteúdo da EEP
contempla itens de atividade34.
O padrão de marcha pode ser avaliado por meio de escalas
observacionais. A Physician Rating Scale (PRS) possibilita a avaliação
qualitativa da marcha mediante análise de �lmagem da marcha nas vistas
anteroposterior e lateral em uma distância mínima de 6 metros. A PRS
contém seis itens que avaliam a posição do joelho no médio apoio, contato
inicial do pé, contato do pé no médio apoio, tempo de levantamento do
calcanhar, base de suporte e dispositivos que auxiliam a marcha165,166. A
literatura disponibiliza outras escalas que avaliam o padrão de marcha de
crianças com PC. Araújo et al.167 propuseram uma Escala Observacional de
Marcha para crianças com PC com 24 itens por meio dos quais são avaliados
os movimentos articulares do tornozelo/pé, joelho, quadril e pelve nas
diferentes fases da marcha.
As inúmeras de�ciências que a criança com PC pode apresentar, como
desalinhamento e sobrecarga articular precoce, aumento da rigidez, dentre
outras, podem resultar em dor aguda ou crônica. Entretanto, a dor é
subestimada nessas crianças, levando-as a apresentar ainda mais limitações
em atividades e restrições na participação168. Para avaliação da dor em
crianças com PC a literatura disponibiliza inúmeros instrumentos que
podem ser escolhidos a partir do grau de funcionalidade da criança, mas a
maioria das escalas que detalham os variados aspectos da dor não foi
traduzida para o português168. Na prática clínica, uma escalade fácil
aplicação que pode ser utilizada em crianças com PC é a Escala Visual
Analógica de Faces169 (Figura 4.4).
Figura 4.4 Escala Visual Analógica de Faces de Wong Baker.
Diagnóstico �sioterapêutico
Ao �nal da avaliação, o �sioterapeuta organiza os dados coletados para
elaboração do diagnóstico �sioterapêutico. Segundo a American Physical
�erapy Association e a World Confederation for Physical �erapy, o
objetivo do diagnóstico é orientar os �sioterapeutas na determinação do
prognóstico e das estratégias de intervenção mais apropriadas para os
pacientes/clientes, assim como o compartilhamento de informações170,171. O
diagnóstico �sioterapêutico é resultado de um processo de raciocínio clínico
que implica a identi�cação de de�ciências, limitações em atividades e
restrições na participação, além de fatores que in�uenciam a funcionalidade
de maneira positiva ou negativa170,171. Logo, o diagnóstico �sioterapêutico
da criança com PC deve incluir um resumo das restrições, limitações e
de�ciências mais relevantes encontradas na avaliação e que contribuam para
a tomada de decisão com relação às estratégias de intervenção.
PLANEJAMENTO E TRATAMENTO FISIOTERAPÊUTICO2
As intervenções �sioterapêuticas devem ser selecionadas com base nos três
pilares da Prática Baseada em Evidência, quais sejam: as preferências da
criança e de sua família, a experiência clínica dos terapeutas e a melhor
evidência cientí�ca disponível111,172,173. Existem muitas modalidades
terapêuticas disponíveis para o tratamento da criança com PC, sendo a
última década marcada por uma expansão rápida e signi�cativa do corpo de
evidências, possibilitando o emprego de intervenções mais novas, seguras e
e�cazes111,174.
A literatura contemporânea sobre as novas abordagens para crianças com
PC descreve uma mudança no foco das intervenções, anteriormente
direcionadas à remediação de alterações (ou seja, “inibir re�exos primitivos”,
“normalizar tônus muscular”, “diminuir mecanismos compensatórios”) e,
mais recentemente, concentrando-se na promoção de aspectos relacionados
com a atividade e a participação da criança (ou seja, “correr”, “andar de
bicicleta”, “entrar no ônibus de maneira independente”, “vestir-se sozinha”,
dentre outros)111,126,127,172. Essa mudança de concepção no estabelecimento
de objetivos terapêuticos re�ete melhor os interesses e as necessidades das
crianças e de suas famílias, além de estar em consonância com a estrutura
proposta pela CIF38,111,126,127.
A PC é uma condição de saúde complexa que demanda da equipe de
reabilitação um trabalho em conjunto no planejamento das intervenções. Os
objetivos terapêuticos devem ser direcionados à criança em seus diferentes
contextos, estabelecidos em conjunto com a família, de modo a abordar
todos os componentes da CIF (isto é, participação, atividade, estrutura e
função, fatores pessoais e fatores ambientais), devendo cada membro da
equipe direcionar os esforços para as áreas de sua competência38. O
estabelecimento de objetivos representa parte fundamental do planejamento
terapêutico172, os quais devem ser especí�cos (S – speci�c), mensuráveis (M
– measurable), alcançáveis (A – attainable), relevantes para a criança (R –
relevant) e com tempo estipulado para serem alcançados (T – time-
based)175. Os objetivos �sioterapêuticos para as crianças com PC podem ser
divididos em de curto prazo e de longo (ou médio) prazo.
Os objetivos �sioterapêuticos de curto prazo devem ser direcionados à
aquisição das habilidades emergentes e re�etir as necessidades prioritárias
da criança em cada fase do desenvolvimento172. A avaliação deve ser
pautada em critérios objetivos e mensuráveis para facilitar o planejamento
terapêutico, a orientação aos pais e o acompanhamento da evolução da
criança e dos resultados das intervenções.
Os testes padronizados auxiliam sobremaneira a de�nição de objetivos, o
acompanhamento da evolução da criança e o fornecimento de feedback às
famílias. Um excelente teste padronizado, que ajuda a de�nir objetivos a
curto prazo e a acompanhar a evolução da criança com PC em relação ao
desempenho em atividades motoras grossas, é o GMFM. Como descrito
anteriormente, o GMFM-66, por meio do GMAE, fornece um mapa de itens
que revela as habilidades motoras que a criança apresentou na avaliação e
aquelas que a criança tem capacidade de adquirir em curto espaço de tempo,
as quais podem ser delineadas como objetivos a curto prazo133,134.
São exemplos de objetivos �sioterapêuticos de curto prazo estabelecidos a
partir da avaliação do componente atividade: conseguir passar da posição
sentada no chão para a sentada no banco; conseguir passar da posição
sentada para a de pé sem apoio; conseguir �car de pé sem apoio; conseguir
colocar a bermuda sem auxílio, dentre outros. As atividades escolhidas
como objetivos terapêuticos precisam oferecer uma demanda desa�adora,
mas que possam ser alcançadas pela criança. A aquisição da locomoção
independente, principalmente a aquisição da marcha, é um dos objetivos
mais almejados pelas famílias e, frequentemente um dos objetivos
terapêuticos traçados para crianças classi�cadas nos níveis I a IV do
GMFCS39,135. A avaliação da marcha deve ser objetiva e padronizada para
que os objetivos possam ser adequadamente construídos. São exemplos de
objetivos relacionados com a marcha: conseguir dar 10 passos com auxílio
de muletas; conseguir dar 10 passos sem apoio; aumentar a velocidade de
marcha; conseguir andar, parar e retornar; aumentar o comprimento de
passo; conseguir andar da sala de casa até o quarto.
Além das demandas relacionadas com as atividades, aspectos relativos à
participação social aparecem frequentemente entre as queixas principais da
criança e da família, como, por exemplo, “conseguir brincar com os amigos”.
Os objetivos relacionados com a participação da criança em seus diferentes
contextos, quais sejam, casa, escola e comunidade, assim como aqueles
relacionados com outros componentes da CIF, são mediados pelos fatores
pessoais (p. ex., idade, cognição, motivação, outras condições de saúde) e
pelas barreiras e facilitadores ambientais (p. ex., condição socioeconômica,
acesso a órteses e dispositivos de suporte para a mobilidade, acessibilidade
física, atitudes dos pares, dentre outros). São exemplos de objetivos
direcionados à participação: conseguir participar da educação física na
escola; ir ao shopping com os amigos utilizando muletas; participar das
tarefas domésticas, como arrumar o próprio armário, e conseguir se
alimentar de maneira independente.
De�ciências nas estruturas e funções do corpo, como fraqueza muscular,
hipertonia, encurtamentos musculares e desalinhamento articular, são
frequentemente observadas em crianças com PC1. A avaliação direcionada e
padronizada das estruturas e funções do corpo contribui para o raciocínio
clínico e para o planejamento terapêutico. São exemplos de objetivos
�sioterapêuticos a curto prazo direcionados às de�ciências: diminuir a dor;
aumentar a força concêntrica do músculo tríceps sural; aumentar a
amplitude de movimento de extensão do punho, dentre outros.
Para que esses objetivos sejam estabelecidos é necessário que valores
quantitativos de dor, força, ADM e de outras variáveis sejam documentados
por meio de avaliação padronizada. Devem ser evitados objetivos
imprecisos e aqueles relacionados com mudanças em variáveis que não têm
métodos válidos e con�áveis de mensuração, como, por exemplo, “trabalhar
a força”, “melhorar a propriocepção” e “melhorar a dissociação de
cinturas”126,172. Objetivos e estratégias terapêuticas direcionados às
estruturas e funções do corpo não implicam necessariamente melhora no
nível de atividades e participação. Em outras palavras, um treinamento de
força muscular do músculo quadríceps pode resultar em aumento da força
desse músculo, mas não necessariamente na melhora da atividade de passar
da posição sentada para a de pé111,126,172.
Os objetivos �sioterapêuticos a longo (ou médio) prazo representam as
metas futuras, levando em consideração os diferentesaspectos relacionados
com a funcionalidade da criança, observados durante a avaliação, e o
prognóstico da criança com PC previsto por seu GMFCS para cada uma das
idades correspondentes14. A partir da de�nição do nível de GMFCS, é
possível estabelecer objetivos a longo prazo condizentes com as prováveis
habilidades futuras da criança, como, por exemplo, adquirir marcha
independente com dispositivo de auxílio na escola – para uma criança de 2
anos de idade que ainda se mantém sentada com apoio, classi�cada no nível
III do GMFCS.
Os objetivos a longo prazo também podem estar relacionados com a
prevenção de de�ciências nas estruturas e funções do corpo, que deve ser
continuamente abordada no planejamento das intervenções, como, por
exemplo: prevenir a subluxação de quadril; prevenir o desalinhamento em
valgo do calcâneo; prevenir o encurtamento dos músculos �exores do
joelho. Após de�nição dos objetivos a longo prazo, a família e a equipe de
reabilitação devem unir esforços para que esses objetivos sejam alcançados,
eliminando barreiras, oferecendo recursos e desenvolvendo estratégias para
favorecer a participação social e a qualidade de vida dessas crianças e
adolescentes. Muitas vezes, é necessário realizar visitas domiciliares e
escolares e prescrever tecnologias assistivas e adaptações ambientais, dentre
outras intervenções, sempre de acordo com as necessidades da família e com
a equipe de reabilitação.
Após a de�nição dos objetivos a serem alcançados até a avaliação
subsequente, considerando as relações entre as de�ciências, limitações,
restrições e fatores contextuais encontrados, é necessário selecionar as
intervenções mais e�cazes e adequadas para alcançar esses objetivos.
Convém enfatizar que o componente da CIF estabelecido no objetivo deve
ser o mesmo do teste de avaliação e da intervenção escolhida para que seja
alcançado o resultado esperado38,126. As reavaliações apuram o resultado da
intervenção por meio da conferência dos objetivos propostos, aplicando-se
os mesmos testes utilizados na primeira avaliação, e auxiliam a identi�cação
de novas habilidades emergentes para o replanejamento terapêutico. Para
gerenciamento das metas alcançadas pode-se utilizar a Goal Attainment
Scaling (GAS). Na GAS, as metas são ponderadas pelo grau de di�culdade e
relevância, sendo possível pontuar cada uma das metas estabelecidas e
alcançadas no curso da intervenção175.
Diante das inúmeras intervenções descritas na literatura, foram
selecionadas as que apresentam maior corpo de evidência cientí�ca que
ateste sua e�cácia111 e algumas que, apesar de não contarem com
comprovação cientí�ca tão consistente, vêm sendo muito utilizadas na
prática clínica, as quais serão descritas a seguir.
PRÁTICA ORIENTADA À TAREFA (GOAL-DIRECTED TRAINING
OR FUNCTIONAL TRAINING)
Trata-se da prática especí�ca de tarefas com base nas metas estabelecidas
para cada criança em conjunto com a família, utilizando-se a abordagem de
aprendizado motor111,176. A capacidade de melhorar e adquirir novas
habilidades motoras depende, dentre outros fatores, do aprendizado
motor176. A efetivação da aprendizagem motora implica que as mudanças
no comportamento motor são mantidas após o período de aquisição das
habilidades em razão das mudanças e adaptações dos diferentes sistemas
envolvidos na tarefa. Outra característica do aprendizado é a transferência
de habilidades recém-adquiridas para outras tarefas similares. As
intervenções fundamentadas nos princípios de aprendizagem motora
incluem elementos como a prática intensiva e especí�ca de tarefas motoras
de membros superiores ou inferiores com participação ativa da criança176. 
Essa abordagem tem o potencial de melhorar o desempenho nas tarefas
de autocuidado e na atividade motora grossa (nível de evidência 3b)177,178.
A prática orientada à tarefa tem sido incorporada como componente de
diferentes intervenções, como os treinamentos intensivos do membro
superior179,180, intervenções que utilizam realidade virtual181 e programas
domiciliares182, dentre outras. Essas intervenções e as evidências de seus
efeitos serão descritas ao longo deste capítulo.
PROGRAMAS DOMICILIARES (HOME PROGRAMS)
Programas domiciliares são atividades terapêuticas que a criança
desempenha com a assistência dos pais, no ambiente doméstico, para
alcançar os objetivos propostos183. Os programas domiciliares são uma boa
estratégia para diminuir os custos com as terapias realizadas em serviços
especializados e para se atingir alta intensidade das terapias184. A partir da
prática regular de atividades em casa, os pais maximizam o potencial de seus
�lhos e, utilizando o apoio que recebem para a realização do programa, se
tornam mais con�antes nos cuidados com eles183.
Os programas domiciliares não são um modelo especí�co de intervenção,
mas um meio de oferecer a terapia proposta, que deve apresentar alto nível
de evidência para garantir os resultados de aplicação em casa183. Nos
programas domiciliares, os pais são treinados e recebem suporte dos
terapeutas. Existem alguns pré-requisitos básicos para a realização desses
programas, quais sejam:
• Estabelecer parceria colaborativa, na qual os pais são os especialistas no
conhecimento da criança e do ambiente familiar.
• Permitir que a criança e a família de�nam quais objetivos desejam
trabalhar no ambiente domiciliar.
• Escolher intervenções fundamentadas em evidências, que estejam em
consonância com os objetivos da criança e da família, e capacitar os pais
para planejar ou trocar de atividades conforme a rotina familiar e as
preferências da criança.
• Fornecer apoio e orientação regulares para que a família seja capaz de
identi�car a melhora da criança e ajustar o programa conforme necessário.
• Avaliar os resultados em conjunto com a família183.
O sucesso do programa domiciliar depende da escolha adequada de
intervenções comprovadamente e�cazes, do respeito às preferências dos pais
e da criança e do treinamento e suporte contínuo aos cuidadores para
implementação do programa183. Diversas intervenções que serão descritas
neste capítulo podem e são frequentemente realizadas no ambiente
domiciliar, como um programa de fortalecimento muscular185, suporte
parcial de peso186 e treino intensivo dos membros superiores182, dentre
outras. Existe evidência de que programas domiciliares que adotam a
abordagem de prática orientada à tarefa resultam em aumento signi�cativo
do desempenho em atividades em crianças com PC (nível de evidência
1b)182,187. A intensidade e a frequência dos programas domiciliares, bem
como as tarefas a serem realizadas, dependem da modalidade de
intervenção que será aplicada.
TERAPIA DE MOVIMENTO INDUZIDO POR RESTRIÇÃO E
TREINO INTENSIVO BIMANUAL DE BRAÇO E MÃO
(CONSTRAINT INDUCED MOVEMENT THERAPY – CIMT E HAND-
ARM BIMANUAL INTENSIVE TRAINING – HABIT)
De�nição
As técnicas de alta intensidade de treinamento dos MMSS, como a Terapia
de Movimento Induzido por Restrição (CIMT) e o Treino Intensivo
Bimanual de Braço e Mão (HABIT), visam à promoção de atividades
manuais de crianças com PC unilateral (ou seja, hemiplégica)188. O membro
superior afetado da criança com PC unilateral apresenta de�ciências
estruturais e funcionais, além de redução na destreza para o desempenho de
atividades, especialmente as bimanuais, que necessitam do uso coordenado
de ambas as mãos23,189.
A CIMT é caracterizada pela restrição do membro superior não afetado,
associada ao treino intensivo do membro afetado, com o objetivo de “forçar”
o uso desse membro, além de utilizar métodos comportamentais que visam
aumentar a adesão da criança à intervenção189,190. O HABIT objetiva
melhorar a quantidade e a qualidade do uso do membro superior afetado
em atividades bimanuais, mantendo os mesmos princípios da CIMT, porém
sem a restrição do membro não afetado191. O HABIT surgiu a partir da
identi�cação de algumas limitações da CIMT, especialmente do fato de a
CIMT ser centrada em atividades unimanuais, embora as maiores limitações
de crianças com PC unilateral estejam relacionadascom atividades
bimanuais191. Além disso, a restrição do membro não afetado pode causar
desconforto e frustração na criança192,193. Ambas as técnicas apresentam os
seguintes elementos: prática estruturada de tarefas com foco nas limitações
da atividade e não na correção de padrões considerados incorretos; shaping
(isto é, aumento gradual da di�culdade e complexidade da tarefa); repetição
da atividade e resolução de problemas por parte da criança191.
Aplicação da técnica
A restrição utilizada na CIMT pode ser realizada por meio de luva, tipoia,
tala ou gesso, dependendo do conforto e da segurança da criança194,195.
Enquanto o membro não afetado está contido, a criança executa tarefas
motoras com di�culdade progressiva (shaping) e de maneira repetida,
conforme a avaliação da criança e os objetivos estabelecidos para a
intervenção. Durante a prática das tarefas, a criança deve receber reforço
positivo acerca de suas conquistas e evolução para que se sinta motivada a
desempenhar as atividades com o membro afetado (Figura 4.5). No HABIT,
as atividades são realizadas sempre com os dois membros superiores em
atividades bimanuais, seguindo os mesmos princípios da CIMT (Figura 4.6).
Figura 4.5A e B Exemplos de atividades utilizadas durante a CIMT.
Figura 4.6A a C Exemplos de atividades utilizadas durante o HABIT.
Inicialmente, o protocolo da CIMT para crianças sugeria a intensidade de
6 horas diárias de terapia; entretanto, diversos estudos buscam demonstrar
efeitos positivos das técnicas com intensidades mais baixas para aumentar a
tolerância da criança196. As intensidades de ambas as técnicas variam,
principalmente, entre 3 e 6 horas diárias, por 1 a 10 semanas, com o total de
24 a 210 horas de tratamento194,195,197. Na CIMT, a restrição varia desde 2
horas diárias até o dia inteiro194. As técnicas são aplicáveis a crianças
(geralmente com idade superior a 4 anos de idade) e adolescentes com PC
unilateral ou com atividade assimétrica do membro superior, classi�cadas
nos níveis I a III do MACS194,195,197. A CIMT tem sido utilizada também em
crianças com menos de 2 anos de idade com protocolos de 30 minutos por
dia, 6 dias por semana, durante 12 semanas, demonstrando resultados
signi�cativos na melhora e no desenvolvimento precoce da atividade
manual (nível de evidência 2b)198,199. As terapias podem ser realizadas em
consultórios, centros de reabilitação, escolas ou no ambiente domiciliar por
�sioterapeutas, terapeutas ocupacionais ou por cuidadores treinados e sob
supervisão dos terapeutas197,200-202.
Evidências
Tanto a CIMT como o HABIT apresentam efeitos positivos na melhora da
qualidade e quantidade de uso espontâneo do membro superior afetado, no
aumento da velocidade de execução de atividades bimanuais e na melhora
do desempenho e independência em atividades de autocuidado (níveis de
evidência 1a, 1b e 3a)188,195,197,201-204. Uma revisão sistemática da literatura
publicada recentemente comparou os efeitos das duas técnicas e demonstrou
ausência de superioridade de uma em relação à outra na promoção da
funcionalidade de crianças com PC unilateral (nível de evidência 3a)194.
Considerações adicionais
As técnicas de treinamento intensivo do membro superior estão entre as
intervenções com maior comprovação cientí�ca no tratamento da criança
com PC111. Ambas as técnicas apresentam efeitos positivos na melhora da
atividade manual da criança com PC unilateral, de modo que os terapeutas e
familiares podem optar por aquela que atenda melhor às demandas e
preferências da criança. A CIMT promove melhora importante na
funcionalidade do membro superior afetado; entretanto, a maioria das
atividades usuais é realizada com ambas as mãos. Modelos híbridos, que se
utilizam das duas técnicas no mesmo protocolo de intervenção205,206,
podem ser uma boa estratégia para melhorar o uso do membro superior
afetado, bem como o desempenho nas tarefas bimanuais da criança com PC
com comprometimento unilateral. Outra estratégia utilizada com bons
resultados consiste na repetição dos protocolos de modo intermitente para
maior retenção e a aquisição de novos ganhos199,207.
FORTALECIMENTO E ATIVIDADE FÍSICA (STRENGTHENING
TRAINING AND PHYSICAL ACTIVITY OR FITNESS TRAINING)
Descrição
A fraqueza muscular e a baixa tolerância ao exercício físico são de�ciências
típicas da criança com PC e podem in�uenciar seu desempenho em
atividades cotidianas e esportivas208-210. Por outro lado, as crianças com PC
precisam se esforçar mais e apresentam maior gasto energético para realizar
suas atividades em virtude das alterações dos padrões de movimento, como
as alterações da marcha74,210. Os programas de fortalecimento muscular
incluem a prática de exercícios progressivos que gerem esforços superiores
aos realizados no desempenho de atividades usuais com o objetivo de
aumentar a força, a potência e a resistência muscular211. Já as atividades
físicas, estruturadas e planejadas, envolvem movimentos repetitivos do
corpo que resultam em aumento dos gastos de energia para melhorar ou
manter a função dos aparelhos cardiovascular e respiratório, resultando em
aumento da resistência física geral, da tolerância aos esforços e da
capacidade aeróbica212,213.
Aplicação da técnica
Antes da prescrição de exercícios de fortalecimento, o terapeuta deve avaliar
o grau de força dos diferentes grupos musculares. Os exercícios podem ser
realizados de maneira livre contra a gravidade ou se utilizando de recursos
que ofereçam resistência aos movimentos, como caneleiras, halteres, coletes,
elásticos, pesos �xados em roldanas, molas (isto é, pilates) e aparelhos de
musculação, dentre outros153,208,209,214 (Figura 4.7).
Figura 4.7A a C Exemplos de dispositivos e equipamentos que oferecem carga para exercícios de
fortalecimento.
Ainda não existem diretrizes especí�cas para o treino de força em
crianças e adolescentes com PC; entretanto, o �sioterapeuta pode adotar as
diretrizes para crianças típicas da National Strength and Conditioning
Association211. Essas diretrizes estabelecem os seguintes parâmetros de
frequência e intensidade: aquecimento inicial de 5 a 10 minutos, uma a três
séries do exercício de fortalecimento, seis a 15 repetições, com carga de 50%
a 85% de 1RM (teste de repetição máxima), intervalos de 1 a 3 minutos para
descanso entre as séries, 2 a 4 dias por semana, entre 8 e 20 semanas, com
aumentos progressivos da resistência em 5% a 10% da carga estabelecida
inicialmente153,211.
Nos estudos direcionados ao fortalecimento muscular de crianças e
adolescentes com PC, as intensidades variam de 40% a 70% de 1RM, uma a
três séries de exercícios, entre oito e 15 repetições, duas a cinco vezes por
semana, entre 8 e 16 semanas, com 5 a 10 minutos de aquecimento e 1 a 3
minutos de descanso entre as séries153,209. A maioria dos estudos recomenda
o treinamento de força para crianças com mais de 6 anos de idade e
classi�cadas nos níveis I a III do GMFCS153,208,209. Quando o objetivo é o
aumento da força muscular (hipertro�a muscular), recomenda-se o uso de
cargas maiores (60% a 70% de 1RM) com número menor de repetições. Em
contraste, quando o objetivo é o aumento da resistência muscular, devem ser
utilizadas cargas menores (40% a 60% de 1RM) com maior número de
repetições. Por �m, quando o objetivo consiste em aumentar a potência
muscular, preconiza-se a realização de exercícios com maior
velocidade208,209.
Para melhorar as funções dos aparelhos cardiovascular e respiratório das
crianças e adolescentes com PC, os exercícios aeróbicos regulares (p. ex.,
caminhada, corrida, andar de bicicleta, circuitos) devem ser realizados duas
a três vezes por semana com intensidade de 60% a 95% da frequência
cardíaca máxima ou entre 50% e 65% do consumo máximo de oxigênio
(pico de VO2), durante pelo menos 20 minutos, duas a três vezes por
semana213,215. Muitos programas de exercícios para crianças com PC visam
aumentar tanto a força muscular como a resistência física geral, a tolerância
aos esforços e a capacidade aeróbica dessas crianças213.
EvidênciasEnsaios clínicos aleatorizados comprovam a e�cácia dos exercícios de
fortalecimento nos seguintes aspectos de funcionalidade: aumento da força
da musculatura dos membros inferiores, principalmente dos extensores de
quadril e joelho e dos �exores plantares (nível de evidência 1b)216-220;
melhora na atividade motora grossa (nível de evidência 1b)217,218 e melhora
de parâmetros cinemáticos da marcha (nível de evidência 2b)218. Com
relação à morfologia e à arquitetura muscular, existem evidências de que os
exercícios de fortalecimento promovem aumento do volume muscular, o
que comprova que os músculos das crianças com PC respondem
positivamente aos treinamentos de força (nível de evidência 3a)209. Estudo
de revisão sistemática com metanálise identi�cou efeito maiores decorrentes
de treinos de força realizados em crianças e adolescentes mais novos (até 13
anos de idade), três vezes por semanas e com sessões de 40 a 50 minutos
(nível de evidência 1a)208.
Recente revisão de literatura sobre os efeitos das atividades físicas na
funcionalidade de crianças com PC demonstrou que os treinamentos
aeróbicos melhoram a atividade motora grossa, embora não existam
evidências que demonstrem o impacto desse tipo de intervenção na
participação e na qualidade de vida de crianças com PC (nível de evidência
3a)213. Estudos que associam em seus protocolos exercícios de
fortalecimento e treinamento aeróbico, como atividades de circuito,
demonstram efeitos positivos no aumento da capacidade aeróbica,
diminuição do consumo de oxigênio e melhora da atividade motora grossa
(níveis de evidência 1a e 3b)221,222.
Considerações adicionais
Historicamente, o fortalecimento muscular não era recomendado para
crianças com PC, pois se acreditava que esse tipo de treinamento poderia
levar ao aumento da espasticidade nessas crianças. Entretanto, estudos
atuais comprovam que o treinamento resistido melhora a função muscular e
não causa efeitos adversos em crianças com PC, sendo uma técnica
amplamente utilizada na prática clínica208,220,223. Os programas de
treinamento de força muscular devem durar, no mínimo, de 6 a 8 semanas,
uma vez que esse é o tempo mínimo para que ocorra resposta tecidual
(neural e muscular) ao exercício resistido153,208,211. Em crianças com PC, no
entanto, é necessário um tempo ainda maior em decorrência das de�ciências
nas estruturas e funções neuromusculares dessas crianças153,208,211. Os
treinos de fortalecimento muscular associados a treinos aeróbicos e a
atividades, como subir e descer um degrau ou passar da posição sentada
para a de pé usando um colete com pesos, têm maior potencial para que os
ganhos ocorram tanto no domínio de função neuromuscular como no
domínio da atividade da CIF216,217,221; entretanto, o fortalecimento isolado
de um músculo é mais e�caz para o aumento de força de músculos muito
fracos153. Crianças e adolescentes com maior comprometimento motor
(GMFCS IV) também podem se bene�ciar do treinamento de força. Nesses
casos, recursos auxiliares, como a estimulação elétrica, podem potencializar
os efeitos do treinamento, incentivando as crianças a contraírem seus
músculos voluntariamente153.
ESTIMULAÇÃO ELÉTRICA FUNCIONAL (FUNCTIONAL
ELECTRICAL STIMULATION – FES)
De�nição
A estimulação elétrica neuromuscular (NMES) consiste na aplicação de
corrente elétrica transcutânea a músculos super�ciais inervados para
estimular a contração das �bras musculares224. A estimulação elétrica
funcional (FES) é um tipo de NMES, na qual a corrente elétrica é aplicada
em um músculo durante a realização de atividades, o que implica a
participação ativa do indivíduo. A corrente elétrica proporcionada pela FES
ativa um número seletivamente maior de unidades motoras das �bras
musculares do tipo II (ou seja, �bras de contração rápida), que são aquelas
em menor proporção nos músculos de crianças com PC comparadas às
crianças normais225. O maior recrutamento de unidades motoras pode
aumentar a potência articular gerada pelo músculo estimulado e promover
adaptações teciduais em longo prazo, como aumento da área de secção
transversa do músculo.
Aplicação da técnica
Os eletrodos devem ser a�xados sobre a região correspondente ao ponto
motor do músculo a ser estimulado. Em alguns aparelhos de estimulação
elétrica é possível optar por uma onda simétrica ou assimétrica. No caso da
simétrica, tanto o catodo (preto) como o anodo (vermelho) estão ativos;
portanto, essa forma pode ser escolhida para estimular músculos maiores
que apresentam mais de um ponto motor. Já na onda assimétrica, apenas o
eletrodo correspondente ao catodo estará ativo e deve ser colocado sobre o
ponto motor, enquanto o anodo pode ser colocado em outra região do
ventre muscular, próximo ao catodo224. Os parâmetros de estimulação
elétrica devem ser ajustados de acordo com a tolerância da criança, o
tamanho do músculo a ser estimulado e a tarefa que será realizada. De
modo geral, a duração do pulso deve ser ajustada entre 200 e 400
microssegundos, a frequência de estímulo deve ser de 26 a 35 pulsos por
segundo para provocar a contração muscular, e a intensidade (amplitude da
corrente em 1.000 amperes) deve ser ajustada, de maneira individualizada,
conforme a tolerância de cada criança, com limite máximo de 40.000
amperes224,225.
Outro parâmetro que deve ser ajustado é o tempo em que a corrente
estará ligada (ON) e desligada (OFF). Ambos os tempos, ON e OFF, podem
ser ajustados para 15 segundos (p. ex., para estimulação da musculatura
paravertebral enquanto a criança realiza uma atividade na posição
sentada)226. O tempo máximo de uso da FES de maneira contínua deve ser
de 20 minutos para evitar fadiga muscular. Caso esteja disponível, o uso de
um disparador remoto pode favorecer a estimulação do músculo desejado
durante atividades mais dinâmicas, como a marcha. Desse modo, o
terapeuta pode disparar a corrente apenas no momento em que o músculo
deveria contrair (p. ex., disparo da corrente para ativação do tríceps sural no
momento da impulsão na marcha) (Figura 4.8). Dentre os equipamentos
portáteis de FES utilizados no Brasil, podem ser citados o Neurodyn Portable
TENS/FES®, o EMPI Continuum® e o Foot Drop Stimulator®224,227.
Figura 4.8A a C Exemplos do uso do disparador remoto para ativar o tríceps sural durante
atividades dinâmicas.
Evidências
Há na literatura evidência sobre os efeitos positivos do uso da FES, embora
esses efeitos variem de acordo com o músculo estimulado e também com a
combinação da FES à realização de atividades. Na maioria dos estudos, o
músculo estimulado é o tibial anterior durante a marcha. Essa forma de
intervenção aumenta a amplitude ativa de dorsi�exão e a força muscular do
tibial anterior, mas diminui a velocidade da marcha da criança (nível de
evidência 3a)228. Uma revisão sistemática aponta a FES no músculo tibial
anterior como uma alternativa à órtese em crianças com PC espástica;
entretanto, não há dados su�cientes que embasem os ganhos nos domínios
de atividade e participação (nível de evidência 3a)228.
Em outra revisão sistemática sobre o efeito da FES no domínio de
atividade em crianças com PC (nível de evidência 1a)229, foram incluídos
cinco ensaios clínicos, sendo em cada estudo estimulado um músculo
diferente: (1) glúteo médio230; (2) adutores e abdutores de quadril231; (3)
tríceps sural232; (4) dorsi�exores do tornozelo e extensores do joelho
durante a marcha233, e (5) abdominais e paravertebrais durante a posição
sentada234. Dois estudos documentaram efeito positivo do uso da FES na
velocidade da marcha (nível de evidência 1b)231,230 e um estudo encontrou
melhora na atividade motora grossa (nível de evidência 1b)234 em
comparação com o grupo que não utilizou FES. Os outros dois estudos não
reportaram diferença signi�cativa no grupo que usou FES durante a
atividade em comparação com o grupo que treinou a mesma atividade sem
FES (nível de evidência 1b)232,233.
Uma terceira revisão sistemática ainda sugere que a estimulação do
músculo gastrocnêmio, em combinação ou não com a estimulação do tibialanterior, tem maior efeito positivo sobre os parâmetros da marcha,
especialmente a velocidade, do que a estimulação isolada do tibial anterior
(nível de evidência 3a)235.
Considerações adicionais
Os estudos mostram que a FES, quando utilizada no músculo adequado,
promove aumento de força muscular e melhora a atividade motora grossa e
os parâmetros cinemáticos e cinéticos da marcha de crianças com PC236. A
maioria dos estudos foi realizada em crianças classi�cadas nos níveis I e II
do GMFCS; portanto, existe menor evidência sobre o uso da FES em
crianças com nível maior de comprometimento motor. Em acréscimo, a
literatura não reporta um limite inferior de idade para utilização da FES.
SUPORTE PARCIAL DE PESO CORPORAL (PARTIAL BODY
WEIGHT SUPPORT)
De�nição
Trata-se de uma intervenção caracterizada por suportar parcialmente o peso
da criança de pé, enquanto ela deambula. Por aliviar a carga corporal, esse
recurso reduz as demandas impostas à criança para o treino especí�co da
tarefa de deambular, possibilitando um treinamento com parâmetros de
repetição e intensidade mais altos do que ela suportaria caso tivesse de lidar
com seu peso corporal total237-239. Tem como objetivo principal melhorar a
capacidade e o desempenho da marcha, além de aumentar a força e a
resistência muscular e as funções dos aparelhos cardiovascular e
respiratório. O suporte parcial do peso pode ser realizado de diversas
maneiras, desde os pais ou terapeutas sustentando manualmente a criança
até o uso de equipamentos mais so�sticados, que proporcionam maior
estabilidade postural e minimizam a força necessária para deambular238,239.
Os equipamentos de suspensão contam com um sistema de �xação e
sustentação do peso corporal ajustável para cada criança. Esses
equipamentos podem ser móveis ou �xados ao teto. Essa técnica tem sido
muito utilizada em associação ao uso de esteiras ergométricas para o treino
de marcha238,239 (Figura 4.9).
Figura 4.9A Exemplo de equipamento de suspensão corporal. B Utilização do equipamento de
suspensão corporal associado ao uso de esteiras ergométricas.
Aplicação da técnica
A quantidade de suporte ofertada pelos equipamentos disponíveis para
realização da terapia deve ser individualmente ajustada com a manipulação
das tiras que sustentam a criança239. A maioria dos estudos que
investigaram os efeitos da técnica utilizou um suporte inicial de 30% do
peso corporal (ou a menor quantidade de suporte necessária para manter a
postura de pé), sendo esse valor sistematicamente reduzido até que a criança
fosse capaz de deambular suportando o próprio peso239,240. Os protocolos
variam, em média, de 6 a 16 semanas, 2 a 5 dias por semana, de 10 a 30
minutos por dia238-240. Enquanto a criança tem seu peso suportado, ela pode
deambular sobre uma esteira (cuja velocidade depende da avaliação da
criança e dos objetivos terapêuticos) ou sobre o chão241,242. A marcha sobre
a esteira possibilita maior controle da velocidade, mas a marcha sobre o
chão se aproxima mais da atividade de deambular realizada pela criança em
seus contextos de vida241,242. Caso seja necessário, os terapeutas ou os pais
podem auxiliar, posicionando os membros inferiores da criança enquanto
ela deambula sobre a esteira239. A assistência pode ser realizada também por
órteses robóticas, denominadas exoesqueletos243.
Essa técnica pode ser utilizada com diversas �nalidades e é aplicável a
crianças com PC em diferentes etapas do desenvolvimento e níveis de
GMFCS. Por exemplo, o suporte parcial de peso pode auxiliar o início do
treino de marcha em crianças com PC que ainda não deambulam, bem
como pode ser utilizado para melhorar o desempenho da marcha e
aumentar a força muscular dos membros inferiores e a capacidade aeróbica
das crianças classi�cadas nos níveis I a IV do GMFCS.
Evidências
O treino com suporte parcial de peso pode melhorar a velocidade de marcha
(nível de evidência 3a)238 e a atividade motora grossa (níveis de evidência
1b, 3a e 3b)239,240,244 de crianças com PC.
Considerações adicionais
A marcha independente com ou sem dispositivo de auxílio está entre os
objetivos mais almejados pela criança e sua família e consiste em um dos
desfechos mais investigados nos estudos cientí�cos da área. O suporte
parcial de peso, associado ou não à esteira ergométrica, tem sido muito
utilizado na prática clínica com bons resultados. Entretanto, faltam estudos
cientí�cos de qualidade que comprovem seus potenciais efeitos.
VESTES TERAPÊUTICAS (THERAPEUTIC SUITS)
De�nição
As vestes terapêuticas (ou “elásticas”) são órteses dinâmicas que podem
contribuir para o realinhamento das estruturas articulares e facilitar a
movimentação da criança com PC245. Algumas vestes terapêuticas atuam
mediante a compressão das estruturas articulares e segmentos corporais,
como tronco e membros, com o objetivo de aumentar a estabilidade
postural. Essas vestes são conhecidas como Full body suit, Body Suit e
Stabilizing Pressure Input Orthosis (SPIO) e podem cobrir todo o tronco e os
membros ou o tronco e parte dos membros. Essas vestes normalmente são
fabricadas com tecidos de borracha sintética que se ajustam ao corpo (isto é,
neoprene)245-247.
Outras vestes contêm sistemas de tiras elásticas que podem ser ajustadas
para tracionar os segmentos do corpo com o objetivo de realinhar os
segmentos articulares e facilitar a execução dos movimentos. Os �eraTogs,
�eraSuit e PediaSuit são exemplos de vestes terapêuticas com sistemas de
tiras elásticas (Figura 4.10). Essas vestes são fabricadas com diferentes
tecidos, e o sistema de tiras elásticas varia de acordo com o modelo245,248,249.
As vestes contêm colete e shorts, além de âncoras nos membros e adaptações
nos calçados, que servem como suporte para a �xação das tiras elásticas.
Algumas vestes terapêuticas podem ainda conter tanto componentes de
compressão (ou seja, colete e shorts justos no corpo) como de tração (isto é,
tiras elásticas).
Figura 4.10A Veste TheraSuit. B Veste TheraTog.
Aplicação da técnica
Cada um dos modelos de vestes terapêuticas citados, além de outros
modelos comercializados, tem orientações especí�cas quanto à maneira de
utilização, conforme o objetivo a ser atingido com a veste e a tolerância da
criança. As vestes se encontram disponíveis em diferentes tamanhos e
devem ser ajustadas individualmente ao corpo de cada criança, abordando
as necessidades especí�cas. Nas vestes com sistema de tração, as tiras ou
cabos elásticos podem ser direcionados entre os segmentos do tronco, do
tronco para os membros ou entre os segmentos dos membros, nos três
planos de movimento245. As vestes são colocadas e ajustadas pelos
�sioterapeutas; no entanto, os pais também podem colocar e ajustar as
vestes em seus �lhos sob a supervisão periódica dos terapeutas.
A intensidade de uso depende do modelo da veste. Os modelos que atuam
por meio de compressão (p. ex., Body Suit) são recomendados para
utilização durante todo o dia, mas podem causar desconforto, como calor
excessivo e di�culdade para usar o banheiro247,250. Os �eraTogs são
utilizados em torno de 10 a 12 horas por dia, diária e continuamente, até que
os objetivos estabelecidos sejam alcançados249,251,252. As vestes �eraSuit e
PediaSuit costumam ser utilizadas em associação a protocolos de
tratamentos intensivos com a duração de 3 a 4 horas por dia, por 3 a 4
semanas248,253. As vestes terapêuticas podem ser utilizadas em crianças com
PC classi�cadas em qualquer nível do GMFCS.
Evidências
Existem evidências de efeitos positivos do uso da veste �eraTogs no
alinhamento postural dos membros inferiores, parâmetros cinemáticos da
marcha e atividade motora grossa (níveis de evidência 1b, 3a e
3b)245,249,251,252. Em acréscimo, a literatura documentou efeitos positivos de
um modelo denominado Dynamic Elastomeric Fabric Orthose (isto é, shorts
de neoprene com efeito compressivo na pelve, rotação externa e abdução
dos quadris e extensão dos joelhos) no alinhamento articular do joelho e na
velocidade de marcha (nível de evidência 3b)78,246. A literaturaainda não
disponibiliza evidências sobre os efeitos das demais vestes terapêuticas. Os
modelos �eraSuit e PediaSuit ainda não tiveram seus efeitos isolados
comprovados cienti�camente (níveis de evidência 1a e 3a)245,248. Efeitos
positivos encontrados com os métodos intensivos associados ao uso de
vestes terapêuticas estão relacionados com a intensidade de treinamento e
não com o uso da veste em si (níveis de evidência 1a e 1b)248,253.
Considerações adicionais
Apesar de amplamente utilizadas na prática clínica, existem poucas
evidências sobre os efeitos das vestes terapêuticas na funcionalidade de
crianças com PC245. Os estudos existentes apontam para melhora do
alinhamento articular e de parâmetros cinemáticos da marcha em
decorrência do uso das vestes que exercem tração sobre os segmentos
corporais, que consistem em efeitos mecânicos correspondentes aos
objetivos de uma órtese dinâmica. Outros benefícios atribuídos
comercialmente às vestes, como melhora da propriocepção, do tônus e do
equilíbrio, não foram testados cienti�camente. As vestes terapêuticas podem
ser boas aliadas no tratamento de crianças com PC, quando utilizadas de
maneira correta e com objetivos compatíveis com as evidências
disponibilizadas na literatura.
MÉTODOS THERASUIT E PEDIASUIT (THERASUIT METHOD E
PEDIASUIT METHOD)
De�nição
Esses métodos consistem em tratamentos de alta intensidade que incluem o
uso das vestes �eraSuit e PediaSuit, já descritas na seção de vestes
terapêuticas, associadas à realização de várias técnicas e exercícios com a
participação ativa da criança245,248,254. Apesar dos nomes distintos, ambos
apresentam uma abordagem muito semelhante e ganharam grande
popularidade no Brasil a partir de 2010. A literatura lista ainda outros
nomes para esses modelos terapêuticos, como AdeliSuit �erapy e
NeuroSuit245,255. Além da veste, outro recurso que caracteriza os métodos
�eraSuit e PediaSuit consiste na realização dos exercícios na Universal
Exercise Unit, conhecida como “gaiola” (Figura 4.11). Com o uso da gaiola e
de seus acessórios é possível realizar exercícios de fortalecimento e
condicionamento físico, treino de equilíbrio e treino de atividades com
suporte parcial de peso, por meio de roldanas, pesos e elásticos (Figura
4.12).
Figura 4.11A e B Universal Exercise Unit do método TheraSuit e acessórios.
Figura 4.12A e B Exercícios realizados com suspensão parcial de peso na Universal Exercise Unit do
método TheraSuit.
Aplicação da técnica
Os parâmetros de frequência e intensidade dos protocolos variam de 3 a 4
horas por dia, 5 dias na semana, durante 3 a 4 semanas245,248. O
planejamento do protocolo completo e de cada atendimento depende da
avaliação �sioterapêutica e aborda o tratamento tanto das de�ciências como
das limitações e restrições apresentadas pelas crianças253. De modo geral,
cada sessão engloba técnicas de aquecimento, como massagem e
alongamento, exercícios de fortalecimento muscular vigoroso, exercícios de
equilíbrio, exercícios de condicionamento físico (p. ex., jump) e treino de
atividades motoras grossas e �nas, que mudam progressivamente ao longo
das semanas de tratamento253,256.
As sessões são realizadas em consultórios ou centros de reabilitação,
podendo incluir treino de tarefas em ambientes externos, como treino de
marcha com muletas em terrenos irregulares. A veste é um dos
componentes do método, sendo utilizada entre 1 e 2 horas e meia durante
cada sessão, conforme a necessidade de cada criança256. A intervenção é
recomendada para crianças a partir de 2 anos de idade e que consigam
participar ativamente da sessão, principalmente aquelas classi�cadas nos
níveis I a IV do GMFCS.
Evidências
Ensaios clínicos aleatorizados demonstram efeitos positivos dos métodos
�eraSuit (e AdeliSuit) na atividade motora grossa de crianças com PC (nível
de evidência 1b)255,257,258, porém não há diferença na comparação entre esse
método e uma terapia convencional aplicada na mesma intensidade (nível
de evidência 1b) 255,257. Revisão sistemática com metanálise revelou ainda
efeito pequeno na mudança da atividade motora grossa de crianças com PC
GMFCS I a IV tanto após o tratamento como no seguimento (follow-up)
(nível de evidência 1b)248. Um ensaio clínico aleatorizado de alta qualidade
metodológica (nível de evidência 1b)253 comparou grupos que realizaram o
método �eraSuit com e sem o uso da veste e não encontrou diferença
signi�cativa na atividade motora grossa e nas habilidades funcionais entre
esses grupos, revelando que os efeitos encontrados não dependem da
utilização da veste. Especi�camente em relação ao método PediaSuit, ainda
não há na literatura estudo de alta qualidade metodológica que tenha
documentado seus efeitos (nível de evidência 4)254,259,260.
Considerações adicionais
Os efeitos positivos do método �eraSuit parecem ser decorrentes da alta
intensidade do tratamento e da utilização de técnicas cuja e�cácia já está
comprovada na literatura, como fortalecimento muscular e prática de tarefas
especí�cas253. A alta intensidade em curto período de tempo (ou seja, 3 a 4
semanas) produz melhora perceptível na atividade motora grossa da criança
com PC, porém a retenção desses ganhos a longo prazo ainda não está
comprovada245,248. A gaiola é um recurso que possibilita a realização de
diferentes exercícios e treino de atividades e não é exclusiva do método,
podendo ser adquirida e utilizada pelos terapeutas em suas clínicas. Apesar
dos relatos de melhora da criança, na percepção das famílias e dos
terapeutas, ainda não há na literatura evidências que sustentem o emprego
dessas técnicas248, especialmente no que diz respeito ao uso isolado das
vestes �eraSuit e PediaSuit245, que oneram bastante o custo desse
tratamento para as famílias.
REALIDADE VIRTUAL (VIRTUAL REALITY)
De�nição
A realidade virtual (RV) pode ser de�nida como o uso de simulações
interativas, desenvolvidas por meio de hardware e so�ware de
computadores, que possibilitam aos usuários a oportunidade de se engajar
em ambientes similares aos vivenciados no mundo real261,262. Os aplicativos
de RV utilizam simulações interativas que respondem ao movimento da
criança para que ela possa interagir com o ambiente virtual enquanto
executa atividades motoras263,264. São considerados atributos principais da
RV: possibilidade de ajuste do grau de di�culdade da tarefa de modo a
fornecer um desa�o adequado à capacidade da criança; feedback visual e
auditivo imediato relacionado com o desempenho da tarefa; possibilidade
de resolução de problemas e treinamento de tarefas especí�cas; e
oportunidade de brincar, o que pode aumentar a motivação e o
envolvimento das crianças em atividades motoras265.
Aplicação da técnica
A RV é realizada com o uso de diversos tipos de equipamentos de
videogame. Os mais utilizados são: Nintendo Wii, PlayStation EyeToy, Xbox
Kinect, GestureXtreme e jogos de computador261,263. Cada modelo oferece
um ou mais tipos de interação com o videogame, como joysticks e
plataformas, que podem ser manipulados pelas mãos ou apresenta sistemas
que captam os movimentos de todo o corpo da criança enquanto ela joga. A
intensidade de utilização da RV encontrada nos estudos cientí�cos varia de
20 a 90 minutos por dia, 1 a 7 dias na semana, e entre 4 e 20 semanas de
intervenção261,263.
A escolha dos jogos deve ser embasada nos objetivos terapêuticos (p. ex.,
um jogo de basquete no qual a criança realiza o movimento de jogar a bola
na cesta pode ser utilizado para aumentar a ADM ativa dos MMSS). Para
participar desse tipo de terapia as crianças precisam conseguir interagir com
o equipamento de RV, o que ocorre geralmente a partir dos 4 anos de idade.
Costuma ser indicado para crianças cujos níveis de atividade motora grossa
e atividade manual variam entre I e IV no GMFCS e MACS,
respectivamente. A terapia com RV pode ser realizada em ambientes
terapêuticos ou em casa sob orientação e supervisão
�sioterapêutica261,263,266 (Figura 4.13).
Figura 4.13 Equipamento e acessórios para intervenção de Realidade Virtual – NintendoWii®.
Evidências
A terapia com RV apresenta efeitos positivos na melhora da funcionalidade
do membro superior, como aumento do uso das mãos em atividades
bimanuais e melhora da destreza e da coordenação manual (níveis de
evidência 1b e 3b)267,268. A RV também apresenta efeitos positivos na
capacidade de deambular, equilíbrio na posição de pé e no desempenho de
atividades cotidianas (nível de evidência 1b)269-271. A RV pode ainda ser
utilizada em associação a outras terapias para potencializar os ganhos,
como, por exemplo, a RV em associação ao treino de marcha em esteira
melhora signi�cativamente a atividade motora grossa, a velocidade de
marcha, o equilíbrio na posição de pé e a força muscular dos membros
inferiores (nível de evidência 1b)272 e a RV associada à CIMT melhora
signi�cativamente a velocidade, a destreza, a quantidade e a qualidade do
uso do membro afetado de crianças com PC unilateral (nível de evidência
1b)273. Recente revisão sistemática e metanálise identi�cou que efeitos
maiores são encontrados em estudos que realizaram a RV de maneira
intensiva e em crianças mais novas (nível de evidência 1a)261.
Considerações adicionais
O uso de videogames e jogos de computadores pode aumentar a motivação
de algumas crianças para realizar exercícios com objetivos terapêuticos. A
literatura mais atual tem comprovado os efeitos desse modelo de
intervenção, principalmente quando associado a outra técnica e�caz.
Entretanto, a transferência de habilidades adquiridas com o uso de
videogames para o desempenho em atividades nos diferentes contextos
ainda não está comprovada274. Desse modo, a RV não deve ser escolhida
como única intervenção que garanta a melhora da funcionalidade da criança
com PC, mas realizada em associação a outras intervenções.
EQUOTERAPIA (EQUINE-ASSISTED THERAPY, HIPPOTHERAPY OU
THERAPEUTIC HORSEBACK RIDING) 
De�nição
A equoterapia consiste no uso do cavalo (animal) como recurso terapêutico
na reabilitação de indivíduos com as mais diversas condições de saúde275,276
e, no Brasil, abrange a hipoterapia, a educação e reeducação equestre, o pré-
esportivo e a prática esportiva paraequestre. A equoterapia in�uencia,
principalmente, a estabilidade do tronco da criança por meio dos
movimentos triplanares da marcha do cavalo, que demandam ajustes
contínuos do corpo do cavaleiro. Quando o cavalo se move, seu centro de
gravidade é deslocado nos planos sagital, transversal e frontal, causando
oscilações contínuas do centro de gravidade da criança que está montada e
promovendo uma demanda de ajustes posturais no tronco da criança275. A
técnica apresenta critérios especí�cos para sua realização, como escolha do
animal adequado, espaço apropriado e equipe composta por veterinários,
tratadores e terapeutas275,276.
Aplicação da técnica
Durante o atendimento de equoterapia, a criança está montada sobre o
cavalo, que é conduzido por um guia. Um assistente caminha de um lado e
um terapeuta, do outro lado, conduz as atividades da criança de montar,
conduzir o cavalo, manter-se sentada, mudar de posição sobre o animal,
bem como outras tarefas conforme os objetivos terapêuticos, a
independência e a familiarização da criança com o animal. A intensidade da
terapia varia de 30 a 40 minutos diários, 1 a 2 dias por semana, durante 12 a
20 semanas, mas algumas crianças continuam recebendo atendimento de
equoterapia durante um tempo prolongado276-278. São exemplos de
exercícios realizados sobre o cavalo:
• Montar sem o apoio das mãos com os ombros �etidos e abduzidos.
• Pegar uma bola que está com o terapeuta e passar para o assistente do
outro lado.
• Com os pés nos estribos, estender os joelhos, passando para a postura de
pé para pegar uma fruta na árvore.
• Abaixar e levantar um bastão com os dois braços.
• Variar as posturas sobre o cavalo.
Crianças classi�cadas em qualquer nível do GMFCS podem realizar a
equoterapia, desde que a intensidade e a assistência do terapeuta sejam
ajustadas às suas individualidades. Essa modalidade terapêutica não é
recomendada para crianças com subluxação ou luxação do quadril,
encurtamento importante dos músculos adutores de quadril, crises
convulsivas não controladas, hidrocefalia, desnutrição e transtornos de
comportamento e para crianças menores de 2 anos de idade275,276 (Figura
4.14).
Figura 4.14A a C Equoterapia.
Evidências
Os benefícios da equoterapia nas estruturas e funções do corpo são: melhora
da estabilidade de tronco (níveis de evidência 3a e 3b)276,277,279,280 e melhora
na mobilidade articular dos membros inferiores (nível de evidência 3b)280.
Em relação à atividade, estudos mostram que a técnica melhora a
mobilidade das crianças e sua capacidade nas habilidades motoras grossas
relacionadas com as posturas sentada e de pé, além de reduzir a necessidade
de assistência do cuidador nas atividades de mobilidade (nível de evidência
3b)276,279-281.
Considerações adicionais
A rica interação entre a criança e o cavalo, somada ao fato de a atividade ser
realizada em contato direto com a natureza, pode ter outros benefícios para
criança, como aumento da autoestima e da con�ança e o desenvolvimento
cognitivo e perceptual275. Apesar de existirem na literatura estudos que
investigaram os efeitos da equoterapia, uma recente revisão aponta para a
necessidade de estudos com alta qualidade metodológica que comprovem de
maneira mais consistente os efeitos da intervenção e os parâmetros de
intensidade para que os benefícios sejam alcançados282.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
De acordo com as evidências atuais acerca dos efeitos das intervenções
disponíveis para crianças com PC, os ingredientes terapêuticos com maior
potencial para promover benefícios para essa população consistem na
prática especí�ca da tarefa que se deseja alcançar/melhorar e no emprego de
maior intensidade nas terapias (níveis de evidência 1a, 3a e
3b)111,174,184,248,283. As intervenções que abordam os componentes de
atividade e participação aperfeiçoam os pontos fortes das crianças e re�etem
seus interesses e motivações, enquanto as intervenções com foco nas
estruturas e funções do corpo ajudam a mitigar a história natural e as
de�ciências secundárias da PC (p. ex., luxação do quadril)111.
Além das intervenções descritas neste capítulo, muitas outras
modalidades são utilizadas na prática clínica. Algumas são antigas e seus
princípios não são mais compatíveis com o corpo de conhecimento atual, ao
passo que outras terapias são muito novas e ainda não apresentam
evidências cientí�cas que as embasem. Muitos estudos que buscam a
comprovação das novas técnicas as comparam com o tratamento
neuroevolutivo (Conceito Bobath), considerado uma “terapia convencional”
por ser amplamente difundida e empregada na prática clínica desde a
década de 1970284,285. Apesar de consistir em uma abordagem muito
difundida e empregada, os benefícios do tratamento neuroevolutivo,
principalmente em sua forma original (ou tradicional), não apresentam
comprovação cientí�ca com evidência de alta qualidade. Por esse motivo,
alguns autores recomendam outras terapias comprovadamente e�cazes para
o tratamento de crianças com PC111,174,285-288.
O �sioterapeuta e a equipe de reabilitação contam ainda com uma gama
de recursos que podem ser empregados no tratamento da criança com PC,
como tecnologias assistivas, órteses, kinesio taping, plataforma vibratória,
gesso seriado, dentre outras289-291. Diante de um universo de possibilidades
terapêuticas e, na maioria das vezes, dos recursos limitados das famílias, é
importante que os �sioterapeutas se atualizem constantemente e escolham
métodos comprovadamente e�cazes para o tratamento das crianças. Além
disso, a aplicação de técnicas com uma aparência de alta tecnologia ou que
prometem efeitos extraordinários, porém sem evidência cientí�ca, pode
aumentar as expectativas de bons resultados, alimentar falsas esperanças e
despender esforços desnecessários das crianças e de suas famílias111,248. Os
resultados positivos de qualquer modalidade terapêutica dependem de uma
excelente avaliaçãode Lima apresenta em conjunto com os demais
coautores a importância da área pneumofuncional pediátrica, incorporando
os conceitos da CIF e da PBE. Essa seção apresenta o capítulo sobre
Avaliação da Capacidade Funcional (Capítulo 23) dentro do contexto da
CIF, o qual é extremamente importante para que o leitor compreenda como
avaliar a capacidade funcional, bem como a tolerância ao exercício físico de
crianças e adolescentes portadores de disfunções respiratórias. Contamos
nessa seção com os princípios recentes da utilização da CIF nas doenças
respiratórias, ainda um campo vasto a ser percorrido. Além disso, a seção é
complementada com as afecções mais recorrentes na área da �sioterapia
pneumofuncional tanto em nível ambulatorial como no meio hospitalar.
Finalmente, este livro tem sido alvo de muito trabalho, horas de escrita,
leituras, pesquisas e discussões, mas também de amor à �sioterapia e ao
conhecimento. Esperamos que essa seja uma pequena semente para instigar
os �sioterapeutas a buscarem cada dia mais a utilização da PBE. Sabemos e
compreendemos que o conhecimento é dinâmico e as evidências
apresentadas nesta obra estão sujeitas a mudanças ao longo do tempo.
Assim, convidamos todos para que sigam a página o�cial do livro no
Facebook (Livro Fisioterapia em Pediatria: Da evidência à prática clínica) e
�quem por dentro de novidades e estudos recentes na área da �sioterapia
pediátrica.
Ana Cristina Resende Camargos
Hércules Ribeiro Leite
Rosane Morais
Vanessa Pereira de Lima
Organizadores
SEÇÃO I – ASPECTOS RELACIONADOS COM O
DESENVOLVIMENTO INFANTIL
1 Desenvolvimento Motor durante o Primeiro Ano de
Vida
Rejane Vale Gonçalves
2 Intervenção Precoce: Lidando com Crianças de Risco
Biológico e Psicossocial e suas Famílias
Rosane Luzia de Souza Morais
Rafaela Silva Moreira
Karine Beatriz Costa
3 Fisioterapia na Atenção Primária: Abordagem Integral à
Saúde da Criança
Peterson Marco O. Andrade
Rosane Luzia de Souza Morais
Ana Paula Mendonça
Ã
SEÇÃO II – FISIOTERAPIA NEUROFUNCIONAL
4 Paralisia Cerebral
Ana Cristina Resende Camargos
Kênnea Martins Almeida Ayupe
Priscilla Rezende Pereira Figueiredo
Rejane Vale Gonçalves
5 Síndrome de Down
Ana Cristina Resende Camargos
Paula Silva de Carvalho Chagas
6 Espinha Bí�da
Hércules Ribeiro Leite
Luisa Fonseca Sarsur
Míriam Ribeiro Calheiros Sá
7 Lesão Medular Traumática
Aline Duprat Ramos
Elizabeth Rocha e Rocha
Liliane Baía Silva
8 Distro�as Musculares
Thais Peixoto Gaiad
Ana Karla da Silva Moura Pedrosa
Ana Paula de Sousa
9 Paralisia Braquial Perinatal
Hércules Ribeiro Leite
Fabiana Rita Camara Machado
Ludmila Ferreira Brito
10 Abordagem das Condições Raras: Síndrome de Dandy-
Walker, Síndrome de Prader-Willi e Doença de Pompe
Infantil
Paula de Almeida Thomazinho
à É
SEÇÃO III – FISIOTERAPIA MUSCULOESQUELÉTICA
11 Torcicolo Muscular Congênito
Hércules Ribeiro Leite
Sheila Schneiberg
Anne Karolyne Cruz Santiago
Carolina Gomes Matarazzo
12 Assimetrias Cranianas Posicionais
Carolina Gomes Matarazzo
13 Pé Torto Congênito
Ayrles Silva Gonçalves Barbosa Mendonça
Hércules Ribeiro Leite
Maria Gabriela Abreu
14 Osteogênese Imperfeita
Carla Trevisan Martins Ribeiro
Nicolette Celani Cavalcanti
Tatiana Vasconcelos dos Santos
15 Artrogripose Múltipla Congênita
Anne Jansen Hupfeld
Lisa Carla Narumia
16 Pé Equino Idiopático
Valeria Cury
Ana Paula de Sousa
17 Escoliose Idiopática
Vinícius Cunha Oliveira
Mariana Aguiar de Matos
Jousielle Márcia dos Santos
18 Pé Plano Flexível Idiopático
Rosalina Tossige Gomes
Renato Guilherme Trede Filho
19 Alterações Torcionais e Angulares
Mariana Aguiar de Matos
Rosalina Tossige Gomes
20 Artrite Idiopática Juvenil
Ester Miriã Gomes da Silva
Andreza Letícia Gomes
Hércules Ribeiro leite
21 Legg-Calvé-Perthes
Hércules Ribeiro Leite
Sheila Schneiberg
Karoliny Lisandra Teixeira Cruz
22 Lesões no Esporte
Luciana De Michelis Mendonça
Caroline Bolling
Hércules Ribeiro Leite
SEÇÃO IV – FISIOTERAPIA PNEUMOFUNCIONAL
23 Avaliação da Capacidade Funcional
Danielle Vieira Rocha Soares
Dayane Montemezzo
24 Fibrose Cística
Evanirso da Silva Aquino
Cristiane Cenachi Coelho
Francielly Dorvina Medeiros Ribeiro do Carmo
25 Asma
Fernanda de Cordoba Lanza
Simone Nascimento dos Santos Ribeiro
26 Oncologia
Maria Leonor Gomes de Sá Vianna
Andrea Pires Muller
Paula Christina Muller Maingué
27 Recém-Nascido de Alto Risco
Sabrina Pinheiro Tsopanoglou
Josy Davidson
Anexo – Níveis de Evidência
Índice Remissivo
INTRODUÇÃO
O desenvolvimento motor se refere ao conjunto de mudanças que
acontecem no comportamento motor e que estão relacionadas com a idade
do indivíduo, ocorrendo ao longo de toda a vida1. Diferentes abordagens
teóricas podem ser utilizadas para o entendimento do desenvolvimento
motor durante a infância. O referencial teórico adotado pelo pro�ssional da
área de reabilitação in�uencia a avaliação e o planejamento de ações
terapêuticas diante de uma situação clínica, seja a de uma criança com
atraso no desenvolvimento, seja a de uma criança diagnosticada com
alguma condição de saúde, como paralisia cerebral (veja o Capítulo 4).
Embora seja essencial a aplicação do conhecimento cientí�co disponível,
o conjunto de práticas pro�ssionais, muitas vezes, não tem sido modi�cado
de acordo com a crescente informação proveniente da literatura acerca do
desenvolvimento motor2. O conhecimento de como a criança modi�ca seu
comportamento ao longo do tempo e como isso pode ser utilizado para se
entender o processo de mudança em crianças com alterações no
desenvolvimento é essencial para o raciocínio clínico3.
O estudo tradicional do desenvolvimento motor foi caracterizado por
observações cuidadosas e detalhadas a respeito das modi�cações
progressivas e sequenciais que os bebês apresentam ao longo do tempo4.
Uma extensa catalogação das aquisições das habilidades motoras de crianças
tornou-se a base de um grupo de in�uentes suposições sobre o
desenvolvimento motor (isto é, a Teoria Neuromaturacional)5,6. A partir da
década de 1960, os estudos de Nicolai Bernstein7, James Gibson8 e Esther
�elen9 provocaram uma revolução no entendimento do controle da ação,
ou seja, posturas e movimentos guiados pela informação perceptual.
Pesquisadores do desenvolvimento começaram a aplicar os novos conceitos
teóricos (p. ex., Abordagem dos Sistemas Dinâmicos e Abordagem
Ecológica à Percepção-Ação) para explicar as mudanças que ocorrem no
comportamento motor durante a infância10,11.
Este capítulo tem por objetivo discutir o desenvolvimento motor durante
o primeiro ano de vida da criança. Esse período foi escolhido por ser
caracterizado por grandes mudanças no comportamento motor do
indivíduo em um espaço relativamente curto de tempo. É importante
ressaltar que o desenvolvimento exploratório do bebê não pode ser
entendido de maneira isolada dos contextos ambiental, social e cultural em
que ele ocorre. Isso signi�ca dizer que movimentos ocorrem em um sistema
indivíduo-ambiente indissociável, ou seja, fatores intrínsecos ao bebê (p. ex.,
mudanças em suas proporções corporais, ganho de massa adiposa e
muscular, motivação, atenção) e fatores ambientais (p. ex., força da
gravidade, propriedades da superfície de apoio, forma de manejo dos
membros da família) in�uenciam o desenvolvimento12. Novas habilidades
motoras ou o aprimoramento de uma habilidade descortinam partes novas
do ambiente e proporcionam novas oportunidades para o aprendizado e
para a ação13.
O desenvolvimento exploratório do bebê durante o primeiro ano de vida
pode ser descrito de diferentes maneiras. Neste capítulo optou-se por
apresentar o desenvolvimento sob as perspectivas teóricas mais recentes,
com enfoque na proposta de Eleanor Gibson14, ou seja, como uma
sequência de fases durante as quais o bebê aprende sobre as características
permanentes do mundo, sobre as relações previsíveis entre eventos e sobre
sua própria capacidade para agir e intervir no ambiente. As três fases não
devem ser vistas como estágios rígidos e fechados,�sioterapêutica, do planejamento terapêutico coerente
com as reais necessidades da criança e da escolha da intervenção mais
adequada para potencializar o alcance dos objetivos estabelecidos, além da
parceria com a família, elemento essencial e sem o qual a probabilidade de
sucesso é drasticamente reduzida.
Os primeiros anos de vida da criança representam o período de aquisição
dos marcos motores mais importantes do ser humano e são considerados o
período em que é maior a possibilidade de as crianças com PC alcançarem
novas habilidades motoras18. Também são um período de crescimento
acelerado, no qual a equipe de reabilitação deve trabalhar na prevenção de
de�ciências musculoesqueléticas na criança com PC, como encurtamentos
musculares e deformidades articulares6. Nessa fase, os familiares estão
bastante empenhados em levar seus �lhos para as terapias e experimentam
diferentes modalidades terapêuticas, como a equoterapia e a �sioterapia
aquática.
Com o passar dos anos, é comum as crianças e suas famílias abandonarem
os tratamentos, principalmente em virtude das demandas escolares, da
escassez de recursos e da mudança de interesses do adolescente292. A equipe
multidisciplinar e os �sioterapeutas devem preparar as crianças/adolescentes
para o momento de diminuição da intensidade ou para a alta dos
tratamentos por meio de orientações à família, prescrição adequada de
tecnologias assistivas, adaptações ambientais e transferência para uma
atividade esportiva292. Convém ressaltar que os adultos com PC apresentam
altos índices de fadiga, dor, desgaste articular, diminuição do desempenho
da marcha, perda da capacidade de andar, menor qualidade de vida, além de
inúmeras restrições na participação social293,294. Essas incapacidades e
disfunções, na medida do possível, devem ser prevenidas durante a infância
e a adolescência e acompanhadas na idade adulta.
Com base na estrutura da CIF, a CanChild, mais importante centro
educacional e de pesquisa das condições de saúde que afetam o
desenvolvimento infantil, sugere a incorporação no modelo estrutural da
CIF de seis palavras (isto é, “F-words”) que mais representam os interesses
das crianças com incapacidades e que devem ser utilizadas como
norteadoras no processo de reabilitação da criança com PC118. Essas
palavras e os componentes correspondentes à CIF são: (1) “Functionality”
(atividade) – a criança é ativa e quer fazer as coisas por si própria; (2)
“Family” (fatores ambientais) – a família representa o ambiente essencial da
criança; (3) “Fitness” (estrutura e função) – importante realizar atividade
física para a saúde e o bem-estar; (4) “Fun” (fatores pessoais) – representa o
que deve ser a infância (ou seja, diversão); (5) “Friendship” (participação) – a
criança deseja construir novas amizades em seu meio social118. Por �m, a
sexta palavra, “Future”, nos leva a questionar os pais e as crianças sobre suas
expectativas e sonhos para o futuro e a ajudá-los a tornar esse futuro
possível em vez de decidir para eles o que é impossível118.
CASOS CLÍNICOS
Caso clínico 1
História da condição de saúde, fatores do contexto e participação
V.A.T. é um menino de 5 anos de idade com diagnóstico de PC espástica
bilateral do tipo quadriplegia, GMFCS nível IV e MACS nível II. A criança é
frequentemente transportada no colo dos cuidadores e necessita de cadeira
de rodas (propulsionada pelo cuidador) para se locomover por longas
distâncias. Segundo relato da mãe, V.A.T. nasceu prematuro, pesando
1.054g, por meio de parto vaginal na 28a semana de gestação, em virtude de
descolamento prematuro da placenta. Ao nascer, apresentou síndrome do
desconforto respiratório, havendo necessidade de entubação ainda na sala
de parto e encaminhamento para a Unidade de Terapia Intensiva Neonatal
(UTIN), onde permaneceu por 1 mês e apresentou como intercorrência
hemorragia peri-intraventricular (HPIV) grau IV bilateralmente.
Posteriormente, foi encaminhado para o berçário, onde permaneceu
internado por mais 3 meses, até a alta hospitalar. Aos 6 meses de idade
corrigida, V.A.T. apresentava importante atraso no desenvolvimento motor e
iniciou acompanhamento no serviço de intervenção precoce de uma
instituição de referência em Minas Gerais, onde continua sendo assistido
atualmente. V.T.A. se expressa verbalmente, é interessado e capaz de
acompanhar o desempenho de sua turma em escola regular da rede pública.
Atualmente, sua principal demanda consiste em conseguir jogar bola com os
colegas na escola. A família, especialmente a mãe, que acompanha o �lho
nas intervenções, mostra-se empenhada e participa ativamente da tomada
de decisões junto à equipe de reabilitação. Atualmente, a queixa principal da
mãe é que a criança seja capaz de se locomover de maneira mais
independente nos ambientes domiciliar e escolar. Recentemente, o
ortopedista da criança sugeriu uma intervenção cirúrgica para realinhar as
articulações do quadril (ou seja, tenotomia parcial dos músculos adutores) e
do tornozelo (isto é, tenotomia parcial dos músculos �exores plantares) com
intuito de facilitar o início do treino de marcha com andador. No momento
da avaliação que se segue, V.T.A. estava iniciando o acompanhamento pós-
operatório com a equipe de �sioterapia da instituição.
Atividade motora grossa
Aos 5 anos de idade, V.A.T. apresenta capacidade de engatinhar (não
reciprocamente) (Figura 4.15A) e se arrastar no solo para se locomover por
curtas distâncias. É capaz de se manter sentado com apoio das mãos no
banco e dos pés no solo (Figura 4.15B). Consegue passar da posição sentada
para a de pé com apoio, embora demore na realização dessa atividade.
Mantém-se na posição ortostática com apoio por aproximadamente 30
segundos, porém tem di�culdade em manter a extensão dos joelhos e
quadris nessa posição. É capaz de dar dois passos com apoio, mas não
apresenta marcha independente com dispositivo de auxílio. Faz uso
contínuo de órteses suropodálicas (isto é, Ankle-Foot Orthosis – AFO)
rígidas bilateralmente.
Figura 4.15A Engatinha para se locomover por curtas distâncias. B É capaz de se manter sentado
com apoio das mãos no banco.
Para avaliação padronizada da atividade motora grossa foi utilizado o
GMFM, versão 88, uma vez que a criança necessitava do uso de órtese para
desempenhar itens das dimensões D e E, sendo o uso desses equipamentos
permitido somente na avaliação com a versão 88. A pontuação total da
criança no GMFM-88 foi de 48,06%, sendo 100% na dimensão A, 80% na
dimensão B, 50% na dimensão C, 10,3% na dimensão D e 0% na dimensão
E.
Estruturas e funções do corpo
Amplitude de movimento passiva (ADM) e �exibilidade
V.A.T. apresenta redução da ADM de abdução de quadris (30 graus com
joelhos estendidos ou �etidos) e de �exão dorsal dos tornozelos (10 graus).
As demais ADM passivas de quadris, joelhos e tornozelos estão preservadas.
Há redução da �exibilidade dos isquiossurais bilateralmente (ângulo
poplíteo = –30º).
Força muscular
A aplicação do teste de força muscular manual revelou fraqueza em
diferentes graus da musculatura de membros inferiores (MMII) e de tronco,
como mostra o Quadro 4.1.
Quadro 4.1 Resultado do teste de força muscular manual (caso 1)
Grupos musculares MID MIE
Flexores de quadril 4 4
Extensores de quadril 3 3
Adutores de quadril 2 2
Abdutores de quadril 2 2
Rotadores internos de quadril 2 2
Rotadores externos de quadril 2 2
Flexores de joelhos 3 3
Extensores de joelhos 4 4
Flexores dorsais 2 2
Flexores plantares 2 2
Reto abdominal 3
Abdominais oblíquos 3
Extensores de tronco 3
MID: membro inferior direito; MIE: membro inferior esquerdo.
A Figura 4.16 apresenta um resumo da avaliação conforme os
componentes da CIF.
Figura 4.16 Resumo da avaliação no modelo estrutural da CIF (caso 1).
Diagnóstico �sioterapêutico
V.A.T., 5 anos de idade, GMFCS IV, apresenta restrição para brincar com os
colegas da mesma idade, limitações nas atividades motoras que demandam a
postura ortostática, inclusive a marcha, e de�ciências nas funções
neuromusculoesqueléticas e funçõesmas, ao contrário, como
fases que se sobrepõem e cujo tempo relativo de cada uma varia muito de
um bebê para outro14.
FASE 1 – BEBÊS EXPLORAM EVENTOS: DO NASCIMENTO ATÉ
EM TORNO DOS 4 MESES
Os sistemas de ações do bebê estão ancorados tanto no domínio perceptual
quanto no domínio motor; por isso, a descrição do desenvolvimento deve
considerar igualmente os dois aspectos. Em acréscimo, de acordo com
abordagens teóricas mais recentes, a intencionalidade é vista como aspecto
básico de todas as ações15,16. Portanto, todos os movimentos dos recém-
nascidos não começam sendo re�exos, com a intencionalidade adicionada
em algum estágio posterior, como tradicionalmente se acreditava17. Embora
os re�exos sirvam a importantes funções para o bebê, eles são, por de�nição,
estereotipados, provocados e automáticos. A literatura atual mostra que a
maioria das ações do recém-nascido é prospectiva, ou seja, é direcionada
externamente de maneira antecipatória. Portanto, as ações são intencionais
desde o momento em que elas emergem e são iniciadas por um indivíduo
motivado, de�nidas por um objetivo e guiadas pela informação (p. ex.,
visual, auditiva, tátil) disponível no ambiente18. As ações são compostas de
posturas, ou seja, aquisições persistentes do indivíduo no ambiente e de
movimentos, que são mudanças especí�cas na postura para produzir
mudanças na relação indivíduo-ambiente12.
O termo recém-nascido compreende a fase do bebê desde o nascimento
até o 28o dia de vida19. Durante esse período ocorrem o ajustamento e o
aperfeiçoamento das funções �siológicas do bebê20. A movimentação
espontânea do recém-nascido nas diferentes posturas, ou seja, decúbito
ventral, decúbito dorsal, sentado e de pé com apoio, é in�uenciada pelo
posicionamento de as articulações e pelo padrão �exor (isto é, a tendência
das articulações se manterem em �exão e retornarem à �exão quando
estendidas passivamente). Ao longo do desenvolvimento o bebê irá
desenvolver o controle nessas posturas de modo a explorar e interagir com
pessoas, objetos e o ambiente em que está inserido13.
O bebê nasce com sistemas perceptuais que captam a informação do
ambiente; ele nasce, portanto, com a habilidade de perceber as a�ordances
de superfícies, coisas, lugares e eventos. A�ordances são as possibilidades de
ação suportadas pelo ambiente, tomando como referência as capacidades de
ação do indivíduo. Aprender sobre a�ordances implica atividades
exploratórias, ou seja, ciclos de percepção-ação que têm consequências15.
Elas trazem novas informações sobre as mudanças no ambiente provocadas
pela ação e também sobre o bebê, onde ele está, para onde está indo e o que
está fazendo. Portanto, a atividade exploratória garante a exposição variada
do bebê ao que está acontecendo externamente a ele e, ao mesmo tempo, ao
que está acontecendo em seu próprio corpo. No entanto, as possibilidades de
execução da ação são mínimas no bebê muito novo, e é necessário um
tempo para o ajuste de seus sistemas perceptuais14. O aprendizado
perceptual é um processo gradativo de diferenciação ao longo do
desenvolvimento que resulta na especi�cação da informação para uma
determinada a�ordance. Em outras palavras, signi�ca a descoberta de
características distintas e propriedades invariantes de objetos e eventos (p.
ex., distinguir o rosto de uma pessoa ou as letras do alfabeto)15,21.
O recém-nascido é espontaneamente ativo e explora visualmente o
ambiente por meio dos movimentos dos olhos e da cabeça, os quais podem
ser provocados por sons (p. ex., a voz humana)14. O comportamento de
olhar é a primeira forma de interação social do bebê. Entretanto, os olhos
ainda não acompanham objetos ou pessoas sem a movimentação da cabeça.
Embora a exploração seja preferencialmente visual, os recém-nascidos se
utilizam de outras maneiras de explorar o ambiente, ou seja, por meio do
sistema perceptual auditivo e também háptico (informação proveniente de
receptores mecânicos localizados na pele, nos músculos, tendões,
ligamentos e na fáscia). Esse é o motivo pelo qual os bebês colocam tudo o
que pegam na boca, a qual funciona como um importante sistema
exploratório22.
O bebê apresenta movimentos generalizados, do inglês general movements
(GM), que são movimentos grossos espontâneos que envolvem todo o corpo
e podem durar de segundos a alguns minutos23. Esses movimentos
aparecem no início da gestação (isto é, entre 9 e 10 semanas de vida
intrauterina) e podem ser observados até em torno de 4 meses de idade pós-
natal. Os GM apresentam sequência variável de movimentação nos
membros, no pescoço e no tronco e geralmente envolvem movimentos de
extensão e �exão de membros superiores e inferiores, acompanhados de
rotações com ligeira mudança na direção do movimento. Variam em
intensidade e velocidade e têm início e �m graduais. Apesar da variabilidade
dos GM, eles são considerados um padrão de movimento típico do bebê
facilmente reconhecido nos primeiros meses de vida24.
Decúbito ventral
Ao nascimento, quando o bebê é colocado em decúbito ventral (ou seja,
prono), a cabeça repousa rodada para o lado, mas ele é capaz de levantá-la e
rodá-la para o outro lado. Os ombros estão aduzidos e �exionados, os
cotovelos �exionados e as mãos fechadas. A coluna está �exionada,
apresentando cifose desde a cervical até a região sacral, o que pode ser
atribuído aos discos intervertebrais com baixa concentração de água, à
posição no útero e à inatividade dos músculos paravertebrais. A pelve está
posicionada em retroversão e os quadris estão �exionados, abduzidos e
rodados externamente; os joelhos estão �exionados e os tornozelos em
�exão dorsal. Essa posição dos membros inferiores provoca a elevação da
pelve e o deslocamento do peso corporal para face, ombros e mãos. Por isso,
o bebê movimenta muito pouco os membros superiores na postura de
decúbito ventral13,19 (Figura 1.1).
Figura 1.1 Recém-nascido na postura de decúbito ventral.
Durante o período compreendido entre o nascimento e os 4 meses de
idade, a força da gravidade e a ativação dos músculos extensores auxiliarão o
alongamento dos músculos �exores, principalmente dos quadris e dos
joelhos. Assim, os ombros �cam mais abduzidos e com maior �exão
anterior, a coluna mais estendida, a pelve menos retrovertida e os quadris e
os joelhos mais estendidos. As mudanças gradativas no posicionamento das
articulações e o desenvolvimento da estabilidade do úmero e da escápula
favorecem a elevação da cabeça25. Desse modo, ao �nal dessa fase o bebê
adquire a habilidade de manter a cabeça ereta (isto é, 90 graus de extensão)
com apoio dos antebraços na postura de decúbito ventral19 (Figura 1.2).
Figura 1.2A e B Bebê na postura de decúbito ventral aos 2 e aos 4 meses de idade.
À medida que o bebê experimenta a postura de decúbito ventral, ocorre a
ativação sinérgica dos �exores de tronco durante a extensão. Logo, ele será
capaz de se apoiar sobre as mãos, mantendo os cotovelos semi�exionados
(Figura 1.3). Em acréscimo, a maior atividade dos músculos paravertebrais e
dos abdominais oblíquos desempenha um papel importante na angulação
das costelas para baixo a partir da posição horizontal original19.
Figura 1.3 Bebê de 4 meses na postura de decúbito ventral com maior extensão de cotovelos e
suporte de peso sobre as mãos.
Decúbito dorsal
Decúbito dorsal (ou seja, supino) é a postura que o recém-nascido assume
durante a maior parte do tempo. A cabeça geralmente está rodada para o
lado, os membros superiores próximos ao corpo, a pelve em retroversão, os
quadris abduzidos, �exionados e rodados externamente, os joelhos
�exionados e os tornozelos em �exão dorsal (Figura 1.4). Nessa postura, o
bebê dá pontapés frequentemente quando está acordado. Para isso ele
�exiona ou estende as articulações do quadril, joelho e tornozelo em fase, ou
seja, todas as articulações de um membro inferior se �exionam ao mesmo
tempo, enquanto as articulações do outro membro inferior se estendem26
(Figura 1.5). Com o passar do tempo ocorrem mudanças no padrão de
movimento dos membros inferiores.Entre 4 e 6 meses de idade, o
movimento em sincronia de todas as articulações diminui e o bebê é capaz
de realizar ao mesmo tempo, por exemplo, a �exão do quadril com a
extensão do joelho (ou seja, o padrão de movimento dos pontapés se torna
fora de fase)27,28.
Figura 1.4 Recém-nascido na postura de decúbito dorsal.
Figura 1.5 Recém-nascido realizando pontapé alternado.
A emergência de um padrão de movimento ocorre em função da
con�uência de restrições do indivíduo, da tarefa e do ambiente29. Os bebês
são capazes de selecionar um padrão de movimento e são motivados pelo
resultado proporcionado pela ação. Um exemplo disso foi demonstrado em
um estudo no qual a perna de bebês de 3 meses foi acoplada a um móbile.
Em poucos minutos, o bebê começava a dar os pontapés de maneira mais
vigorosa com o membro inferior que estava acoplado ao móbile para ver o
reforço do movimento e o barulho proporcionados pelo móbile30.
Em torno do terceiro ou quarto mês de vida, o bebê já apresenta a
habilidade de permanecer com a cabeça e os membros superiores e
inferiores orientados de maneira simétrica. Em acréscimo, ele consegue unir
as duas mãos na linha média e alcançar os joelhos na postura de decúbito
dorsal19 (Figura 1.6).
Figura 1.6A e B Bebê de 4 meses com orientação corporal simétrica.
Sentado com apoio
Nessa primeira fase do desenvolvimento, o bebê ainda não consegue
permanecer na postura sentada sem apoio. O recém-nascido, quando
suportado, apresenta �exão de cabeça e tronco, com a pelve perpendicular à
superfície de apoio, e os membros inferiores adotam a mesma posição do
decúbito dorsal. Se o bebê for solto, ele cairá para a frente (Figura 1.7). Ao
longo do primeiro ano de vida, o bebê precisará vencer gradativamente a
força da gravidade, o que vai acontecer primeiro com a cabeça, progredindo
para os pés13,31.
Figura 1.7 Bebê recém-nascido na postura sentada sem apoio.
Durante esse período, o bebê desenvolve a capacidade de elevar a cabeça,
o que se torna cada vez mais fácil para ele ao longo do tempo. Antes de
apresentar o controle do tronco, o bebê pode adotar estratégias para
aumentar a estabilidade, como elevar os ombros e realizar a adução das
escápulas32.
Ao �nal dessa fase, embora a coluna ainda não alcance extensão
su�ciente, o bebê consegue sustentar a cabeça contra a força da gravidade
quando suportado na postura sentada. As faces laterais da coxa e da perna
apoiam-se na superfície, favorecendo a maior estabilidade. A cabeça está
livre para rotação, mas o bebê ainda não consegue alcançar objetos nessa
postura19 (Figura 1.8).
Figura 1.8 Bebê de 3 meses na postura sentada com apoio.
Estudos sobre a atividade mão à boca em recém-nascidos mostraram que
a boca se abre antes de a mão começar a se mover, demonstrando o controle
prospectivo do bebê33. Von Hofsten34 observou que recém-nascidos,
quando posicionados com adequado suporte postural em frente a um
objeto, levam a mão em direção ao objeto com a tendência de diminuir a
velocidade da mão próxima ao alvo, apesar de ainda não conseguirem
alcançá-lo34. A mão se tornará um sistema exploratório em torno dos 4
meses, quando se inicia a habilidade de alcançar e manipular objetos. Já a
boca é usada desde o nascimento para paladar, sugar, vocalizar e examinar
texturas e propriedades de objetos21,35.
De pé com apoio
Quando sustentado na postura de pé, o recém-nascido consegue suportar
parte de seu peso corporal e estender os quadris e os joelhos. Entretanto, o
grau de extensão dos membros inferiores é limitado pelo encurtamento dos
músculos �exores e de outros tecidos moles. Os tornozelos permanecem em
�exão dorsal e inversão. O ângulo formado entre o fêmur e a tíbia no plano
coronal é em torno de 15 graus, o que signi�ca um alinhamento �siológico
em varo do joelho ao nascimento36. Se o recém-nascido for inclinado para a
frente enquanto de pé, ele pode executar movimentos alternados de �exão e
extensão dos membros inferiores em um padrão de movimento semelhante
à marcha19 (Figura 1.9).
Figura 1.9 Bebê recém-nascido sustentado de pé realiza movimentos alternados de �exão e
extensão de membros inferiores.
Tradicionalmente, isso é conhecido como re�exo de marcha automática,
que desapareceria em torno de 8 semanas de vida em decorrência da
maturação do sistema nervoso central5. No entanto, alguns pesquisadores
propuseram uma explicação alternativa para a marcha automática a partir
dos resultados de três experimentos com bebês37. No primeiro experimento,
bebês foram observados quando tinham 2, 4 e 6 semanas de idade enquanto
sustentados de modo a provocar o re�exo de marcha. A partir da contagem
do número de passos e da avaliação da quantidade de gordura corporal, foi
documentado que com 4 semanas os bebês que ganharam mais peso deram
menos passos.
No segundo experimento, caneleiras leves foram colocadas nas pernas dos
bebês para simular o ganho médio de peso entre 4 e 6 semanas. Como
esperado pelos pesquisadores, os bebês diminuíram signi�cativamente o
número de passos com a adição de peso. Já no terceiro experimento, os
pesquisadores colocaram os bebês na água, e o número de passos foi o
dobro do que fora dela.
Em conjunto, esses experimentos reforçam a ideia de que o
comportamento do bebê é adaptativo desde o início e não pode ser
entendido fora do contexto no qual está inserido. Durante esse período
especí�co do desenvolvimento, os bebês adquirem maior quantidade de
tecido adiposo do que massa muscular, o que leva a uma capacidade de
gerar força muscular relativamente menor do que ao nascimento38.
Em outro estudo, �elen e Fisher39 compararam parâmetros cinemáticos
e padrões de ativação muscular dos passos do período neonatal com aqueles
apresentados pelas crianças no início da marcha independente. Os
resultados sugerem que o padrão de ativação muscular se desenvolve
gradualmente durante o primeiro ano de vida e que os passos da criança que
inicia a marcha independente são derivados de um padrão mais simples,
disponível desde o nascimento. Assim, o bebê só não continua a dar passos
ao longo do primeiro ano de vida porque a maturação e a experiência em
todos os subsistemas contribuintes, incluindo equilíbrio, controle postural,
força muscular e demandas dinâmicas da marcha, ainda não estão
prontas38,39.
FASE 2 – ATENÇÃO PARA AFFORDANCES E CARACTERÍSTICAS
DISTINTAS DOS OBJETOS (DE 5 A 8 MESES)
Em torno dos 5 aos 8 meses de idade, os bebês têm maior atenção para
a�ordances e características distintas dos objetos, constituindo a fase 2 do
desenvolvimento exploratório14. Durante essa fase, novas atividades
exploratórias tornam possível a descoberta de um novo conjunto de
a�ordances e ocorrem o aumento da acuidade visual e o aprimoramento dos
componentes musculares para exploração visual, alcance, preensão e
manipulação de objetos (p. ex., bater, balançar, apertar, jogar)40. O bebê
aprende sobre o que o objeto oferece, o que pode ser feito com ele, as
possibilidades funcionais e o uso.
Em outras palavras, o bebê aprende sobre as características distintas dos
objetos, ou seja, quais aspectos fazem dele único e como ele se assemelha ou
não a outros objetos. A percepção das a�ordances depende tanto da
informação disponível quanto do estágio do desenvolvimento do sistema de
ação do indivíduo. Esse conhecimento forma a base potencial para a
classi�cação das coisas e para dar signi�cado a elas. As especi�cidades de
cada objeto, como a discriminação de cor, parecem começar a ser
diferenciadas em torno dos 6 meses de idade14.
Assim como em outras aquisições motoras, diversos fatores contextuais
in�uenciam o desenvolvimento das habilidades manuais, como o corpo do
bebê e os ambientes físico, social e cultural. Por exemplo, quando é
proporcionado suporte postural a recém-nascidos e bebês muito novos, eles
são capazes de estender os membros superiores enquanto olham para um
objeto41,42. Entretanto, o alcance bem-sucedido com o contato da mão com
o objeto se inicia, em média, aos 4 meses de idade43.
Inicialmente, o alcance é caracterizadopor movimentos sinuosos do
membro superior com variações na velocidade e mudanças de direção antes
do contato com o objeto35,40. Ao longo da segunda fase, o bebê aprimora a
capacidade de alcançar os objetos e realizar a preensão, com aumento
gradativo do número de alcances e do tempo investido na manipulação de
objetos44. A capacidade de realizar a preensão de um objeto abre novas
oportunidades para exploração visual, manual e oral e proporciona ao bebê
informações sobre as propriedades distintas dos objetos10.
Em torno de 5 meses de idade, o bebê é capaz de ajustar a con�guração da
pegada da mão de acordo com o tamanho e a forma do objeto. Entre 9 e 10
meses, a mão começa a se fechar em antecipação ao contato com o objeto e a
preensão se aperfeiçoa de tal maneira que o bebê é capaz de pegar objetos
muito pequenos com o polegar e os dedos (isto é, utilizando a pinça �na)45.
Decúbito ventral
Durante essa fase, a maior atividade extensora de paravertebrais possibilita
maior elevação do corpo na postura de decúbito ventral, deslocando o peso
sobre o abdome. O bebê inicia a transferência de peso de modo a se
sustentar com apenas um membro superior apoiado para alcançar objetos.
A sustentação do peso sobre o punho e os dedos favorece o ganho de
mobilidade da mão19,46 (Figura 1.10).
Figura 1.10 Bebê sustentando peso sobre um dos membros superiores e liberando o outro para
alcançar objetos.
As reações de equilíbrio se desenvolvem na postura de decúbito ventral
entre os 5 e os 8 meses de idade. Nessa fase, o bebê desenvolve a habilidade
de rolar de decúbito ventral para decúbito lateral e também para decúbito
dorsal (Figura 1.11). Em acréscimo, nesse período o bebê adquire novas
formas de locomoção (isto é, pivotear, arrastar e engatinhar).
Figura 1.11 Bebê rolando de decúbito ventral para decúbito dorsal.
Para pivotear, o bebê precisa usar seus membros superiores e inferiores e
rodar em torno de seu próprio eixo corporal47 (Figura 1.12). Para arrastar, o
bebê distribui peso ora sobre um, ora sobre o outro lado do corpo, o que
favorece a mobilidade da pelve e alongamento do tronco e a extensão do
quadril no lado que sustenta o peso (Figura 1.13). O quadril que se
impulsiona trabalha contra uma resistência, favorecendo a diminuição da
coxa valga e da anteversão femoral, que são características �siológicas da
articulação do quadril ao nascimento.
Figura 1.12 Bebê se deslocando em prono por meio de abdução e adução horizontal de ombro
de maneira alternada.
Figura 1.13 Para se arrastar, o bebê se impulsiona utilizando os membros inferiores de maneira
alternada.
Para engatinhar, o bebê precisa manter os cotovelos estendidos e realizar a
extensão dos ombros de modo alternado. Os membros superior e inferior de
lados opostos movem o corpo para a frente48.
O engatinhar é uma habilidade que o bebê adquire entre o sétimo e o
nono mês de idade; entretanto, alguns bebês não passam por essa fase do
desenvolvimento e adquirem a marcha independente ao �nal do primeiro
ano de vida sem ter engatinhado49. Isso acontece, muitas vezes, em
decorrência do modo como os pais proporcionam ao bebê oportunidades
para �car no chão e explorar essa habilidade. Bebês que são estimulados
desde cedo a permanecer no colo ou sobre alguma superfície (p. ex., colchão
da cama, chão), sustentados na postura de pé, apresentam tendência maior a
andar sem engatinhar13.
Bebês que pivoteiam ou se arrastam têm mais chance de engatinhar e
serem pro�cientes nessa habilidade do que bebês que não experimentaram
essas formas anteriores de locomoção. O engatinhar com o apoio das mãos e
dos joelhos aumenta a exigência de estabilidade porque o abdome está fora
do chão50. A experiência de engatinhar permite que o bebê se locomova
independentemente, sem precisar que alguém o carregue, ampliando o
acesso rápido a lugares diferentes. Essa nova capacidade de ação favorece a
percepção visual e tem implicações no desenvolvimento cognitivo e social
do bebê51.
Decúbito dorsal
Em decúbito dorsal, o bebê aprimora o controle antigravitacional dos
músculos �exores e desenvolve as reações de equilíbrio nessa postura. O
bebê é capaz de rolar de decúbito dorsal para ventral em torno de 5 ou 6
meses de idade. Para rolar, o bebê precisa realizar a adução do ombro e do
quadril, transferindo o peso para um lado do corpo. A cabeça se reti�ca
lateralmente e a ação dos abdominais promove a rotação do tronco durante
a transferência19 (Figura 1.14).
Figura 1.14A a D Bebê rolando de decúbito dorsal para decúbito ventral.
O bebê apresenta maiores adução ativa do quadril e extensão do joelho,
consegue executar movimentos de �exão do quadril mantendo o joelho em
extensão, e ainda pode realizar a ponte de quadril (ou seja, a partir da
posição de quadris e joelhos �exionados, o bebê se empurra com os pés e
levanta a pelve e o tronco da superfície de apoio)19.
Em torno dos 6 meses, o bebê consegue alcançar objetos colocados
distantes do corpo, realizando abdução escapular, maiores �exão e adução
dos ombros e extensão dos cotovelos (Figura 1.15). Nessa fase, as mãos
alcançam os pés e o bebê pode levá-los à boca (Figura 1.16). Em acréscimo,
o bebê consegue alcançar objetos além da linha média, usando a pronação
do antebraço e a extensão do punho e dos dedos. Para isso, devem estar
ativos os músculos serrátil anterior, peitoral maior e manguito rotador.
Quando o bebê não quer mais manipular o objeto, ele já consegue abrir a
mão para soltá-lo19,52.
Figura 1.15 Bebê realizando �exão anterior de ombro com extensão de cotovelo, o que torna
possível alcançar objetos posicionados longe do corpo.
Figura 1.16 Bebê alcançando os pés e os explorando com a boca.
Ao �nal dessa fase, o bebê não costuma gostar muito de �car em decúbito
dorsal, uma vez que já é capaz de se transferir e explorar o ambiente
utilizando os movimentos de rolar, se arrastar e engatinhar. A postura de
decúbito dorsal é utilizada em brincadeiras de exploração de objetos e do
próprio corpo (Figura 1.17).
Figura 1.17 Postura de decúbito dorsal utilizada para exploração de objetos.
Sentado
Em torno dos 6 meses de idade, o bebê pode adquirir a habilidade de
permanecer sentado sem apoio, pois o controle postural está mais
desenvolvido46,49. Inicialmente, os movimentos da cabeça e do tronco se
restringem ao plano sagital. À medida que a estabilidade da cintura pélvica e
dos membros inferiores aumenta, o bebê consegue realizar a rotação do
tronco e alcançar objetos que estão mais distantes de seu corpo13,31. O
posicionamento dos membros inferiores em “círculo” ou em anel favorece a
estabilidade na postura sentada (Figura 1.18). Os membros superiores �cam
livres para alcançar e explorar objetos, possibilitando que o bebê rode,
trans�ra objetos de uma mão para a outra e aponte as extremidades deles32.
As novas atividades exploratórias tornam possível a descoberta de um novo
conjunto de a�ordances, favorecendo o desenvolvimento perceptual e
cognitivo do bebê53,54.
Figura 1.18 Postura sentada com membros inferiores em anel.
O desenvolvimento do controle postural sentado progride da habilidade
de se sentar com o apoio das mãos para se sentar brevemente sem o apoio
das mãos e, �nalmente, sentar independente55,56. Se o centro de gravidade
do bebê for deslocado para além dos limites de estabilidade, ele poderá não
ter força muscular su�ciente para se puxar de volta à posição57. Ao longo do
desenvolvimento, ele consegue se proteger com as mãos (isto é, reação
protetora) para a frente e para os lados e posteriormente voltar à posição
inicial sem cair ou precisar se proteger. A rotação da cabeça favorece a
mobilidade pélvico-femoral. Em acréscimo, em torno dos 7 meses de idade
tem início a lordose lombar, indicando que o bebê apresenta maior grau de
extensão da coluna56.
Karasik et al.54 observaram bebês de 5 meses de idade em casa enquanto
estavam envolvidos na rotina diária com suas mães, durante 1 hora. A
pro�ciência da postura sentada, as oportunidades diárias para praticar o
sentar, as superfíciessobre as quais o bebê era colocado sentado e a
proximidade da mãe foram documentadas em seis grupos culturais
diferentes (Argentina, Camarões, Coreia do Sul, EUA, Itália e Quênia). Os
autores observaram que os bebês tinham a oportunidade de praticar o sentar
em contextos variados (p. ex., chão, cadeira para bebê, sofá e no colo da
mãe). A pro�ciência variou consideravelmente dentro e entre os grupos
culturais, de modo que a maioria dos bebês se sentou apenas com o suporte
da mãe ou de uma mobília, ao passo que 36% conseguiam se sentar
independentemente aos 5 meses de idade54.
Esse estudo ilustra a variabilidade tanto da idade em que o bebê adquire a
capacidade de se sentar independentemente como da pro�ciência, medida
em porcentagem de tempo que o bebê permaneceu na postura sentada
durante o intervalo de 1 hora. Na realidade, o bebê pode ter inúmeras
oportunidades de aprimorar o controle postural sentado enquanto é
carregado no colo ou quando é colocado sobre um sofá. Nesse estudo, em
média, os bebês permaneceram um terço do tempo de observação sentados
no colo das mães enquanto elas estavam envolvidas em atividades diversas,
como interagindo face a face, vestindo-os, alimentando-os ou carregando-
os. Desse modo, o bebê experimenta diferentes formas de manejo da mãe, o
que pode in�uenciar o desenvolvimento do controle postural sentado54.
Ao �nal dessa fase, o bebê consegue modi�car a posição dos membros
inferiores e se sentar de diferentes maneiras, como, por exemplo, anel,
joelhos estendidos, de lado (um quadril em rotação externa e o outro em
rotação interna) ou em W (rotação interna dos quadris e �exão dos joelhos).
As diferentes maneiras de sentar modi�cam a base de suporte e são usadas
para transferência para outras posturas ou para exploração de objetos e do
ambiente19 (Figura 1.19).
Figura 1.19A a C Diferentes maneiras de sentar: com joelhos estendidos, de lado e em W.
De pé com apoio
No início dessa fase, o tronco permanece inclinado para a frente e os quadris
ainda estão atrás dos ombros quando o bebê é sustentado na postura de pé.
O bebê já consegue suportar maior peso corporal nos membros inferiores e
geralmente brinca nessa postura de “saltar” (isto é, realizando �exão e
extensão de quadris e joelhos simetricamente). Durante esse movimento
ocorre a coativação dos músculos ao redor da pelve, fornecendo informação
háptica e vestibular ao bebê. Os quadris permanecem semi�exionados e
ligeiramente posteriores à linha dos ombros. Os pés estão pronados e os
artelhos �exionados19 (Figura 1.20).
Figura 1.20 Bebê de 5 meses na postura de pé com apoio.
À medida que o controle na postura de pé se desenvolve, em torno dos 7
meses de idade o bebê pode conseguir permanecer de pé com o apoio
apenas de uma das mãos e se abaixar para pegar objetos no chão49 (Figura
1.21).
Figura 1.21A a C Postura de pé sustentada por um adulto, com apoio dos membros superiores e
pegando objeto no chão.
Entre os 7 e os 10 meses (8 meses em média) tem início a habilidade de se
puxar para a posição de pé. Isso ocorre, muitas vezes, no berço com o bebê
se segurando na grade e passando para a posição de pé a partir da postura
sentada no colchão. Inicialmente, o bebê se puxa para a posição de pé
sustentando a maior parte de seu peso corporal com os membros superiores
e realiza a extensão simétrica dos membros inferiores. Com o
aprimoramento da força muscular dos membros inferiores, estes se tornam
mais ativos durante a transferência58 (Figura 1.22).
Figura 1.22 Transferência da postura sentada no chão para a de pé com apoio.
Os movimentos de rotação do tronco e da pelve sobre o fêmur na postura
de pé auxiliam o aumento da mobilidade da articulação dos quadris e
também a formação dos arcos longitudinais dos pés19.
Alguns bebês conseguem dar passos curtos quando sustentados pelas
mãos de um adulto. Eles mantêm a rotação externa de quadril e a base de
suporte alargada19 (Figura 1.23).
Figura 1.23 Início da marcha com apoio.
FASE 3 – EXPLORAÇÃO AMBULATÓRIA: DESCOBRINDO A
CONFIGURAÇÃO DO AMBIENTE (DE 9 A 12 MESES)
A fase 3 é denominada por Gibson14 Exploração ambulatória: descobrindo a
con�guração do ambiente e se estende dos 9 aos 12 meses de idade,
aproximadamente. Com o aprimoramento da locomoção há uma expansão
do horizonte e um novo campo de conhecimento é aberto para a criança. A
função da percepção é mais uma vez a de guiar a locomoção59. Manter o
equilíbrio é particularmente difícil para os bebês devido às suas proporções
corporais, ou seja, cabeça maior em relação ao corpo, e também porque a
velocidade com que eles caem é maior do que a dos adultos em razão de sua
estatura menor. Os bebês se utilizam de várias fontes de informação para
manter o equilíbrio: informação háptica de seus músculos, articulações e
pele; informação vestibular das acelerações da cabeça, e informação visual
do �uxo óptico criado pelos movimentos do corpo10.
O desenvolvimento da locomoção é um processo de resolução de
problemas, ou seja, o bebê precisa explorar as soluções possíveis para se
locomover de acordo com sua capacidade. A descoberta de soluções �exíveis
e adaptativas exige aprendizado, repetição e variabilidade em seu repertório
motor60. Assim como nas fases anteriores, os pais ou cuidadores têm um
papel essencial em proporcionar ao bebê oportunidades para exploração.
Eles promovem a ação do bebê mediante a organização do ambiente e da
tomada de decisões, como deixá-lo brincar no chão e dar acesso monitorado
a escadas e a mobílias que deem suporte às ações do bebê durante a
descoberta da con�guração do ambiente46.
Decúbito ventral
Na fase 3, as atividades preferidas pelo bebê se tornam o engatinhar e o
escalar. Enquanto o bebê explora o ambiente, suas habilidades perceptivas
são desenvolvidas e ele aprende a encontrar soluções para se desfazer de
cada tipo de obstáculo e sobre as relações entre seu corpo e o ambiente19.
Variações do engatinhar podem integrar o repertório de habilidades do
bebê, como, por exemplo, engatinhar com apoio de um pé na lateral ou com
as mãos e os pés apoiados no chão, além do engatinhar com o apoio das
mãos e dos joelhos (Figura 1.24). Quando o bebê engatinha com o apoio das
mãos e dos pés no chão, os joelhos permanecem em ligeira �exão ou
estendidos, o que exige maior estabilidade dos ombros e o controle da pelve.
O engatinhar com o apoio das mãos e dos joelhos no chão se aprimora ao
longo do tempo, com posicionamentos dos quadris em menor abdução e
rotação externa e maior distribuição do peso e sustentação na diagonal50,61.
Figura 1.24A a C Variações na postura de quatro apoios: com joelhos apoiados, com um pé e um
joelho apoiados e com os pés apoiados no chão.
Quando o bebê está explorando o ambiente e encontra um obstáculo no
caminho (p. ex., uma almofada) ou deseja pegar um brinquedo que está em
cima ou embaixo do sofá, ele usa a escalada para transpor o obstáculo, subir
no sofá ou se arrasta ou engatinha debaixo de mobílias. Essas experiências
proporcionam informação sobre seu próprio corpo e sobre o ambiente,
aprimorando a percepção espacial e de profundidade19 (Figura 1.25).
Figura 1.25A a D Exploração da configuração do ambiente.
Sentado
Em torno dos 9 aos 12 meses de idade, a postura sentada é usada para
explorar objetos e para o bebê se transferir para a posição semiajoelhada, de
quatro apoios ou de pé, à medida que se interessa por algo no ambiente51. O
bebê consegue alcançar objetos ao lado e atrás do corpo e usa a rotação do
tronco para passar para quatro apoios a partir da postura sentada19 (Figura
1.26).
Figura 1.26 Transferência da posição sentada para a de quatro apoios com rotação de tronco.
De pé
As capacidades de ação se aprimoram de modo a favorecer a exploração do
ambiente. O bebê consegue assumir as posturas ajoelhada e semiajoelhada e
nelas permanecer sem suporte externo para brincar (Figura 1.27). Outra
habilidade adquirida nessa fase é a postura de cócoras, na qual o bebê
permanece agachado, com �exão de quadris e joelhos, para explorar algum

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