Elis nas transversais do tempo. Show apresentado em 1978 demonstra um… | by Julli Rodrigues | Ouvindo Coisas | Medium

Elis nas transversais do tempo

Show apresentado em 1978 demonstra um desejo de “ausência de engarrafamento” para indivíduo e sociedade no Brasil

Julli Rodrigues
Ouvindo Coisas

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Foto: Reprodução

Há quarenta anos, no dia 20 de julho de 1978, o Teatro do ICEIA (Instituto Central de Educação Isaías Alves, atual CEEP Isaías Alves), em Salvador, recebia a primeira apresentação de um show que permaneceu em cartaz durante os nove dias subsequentes. Depois de temporadas bem-sucedidas em outros estados do país e até mesmo no continente europeu, o espetáculo “Transversal do Tempo”, de Elis Regina, veio dar o ar da graça na capital baiana. A Pimentinha trouxe seu conjunto, comandado pelo maestro Cesar Camargo Mariano, para mostrar aos soteropolitanos um show totalmente novo, cuja trajetória, como já se pode supor, começa muito antes — e vai muito além — do palco.

Logo de cara, “Transversal do Tempo” vinha com a responsabilidade de suceder o espetáculo “Falso Brilhante”, encenado por Elis entre dezembro de 1975 e fevereiro de 1977 no Teatro Bandeirantes, em São Paulo. Com esse show, que mesclava música, teatro e certa atmosfera circense, a Pimentinha cantava a trajetória de um artista rumo à fama; suas aventuras, desventuras, sofrimento e amadurecimento. Essa narrativa, que por vezes se confundia com a da própria Elis — e qualquer semelhança não seria apenas mera coincidência — não se furtava a fazer críticas veladas ao regime militar, que felizmente escaparam ao crivo da censura. O resultado foi um grande sucesso de público, chegando a ser visto por uma audiência estimada em 280 mil pessoas, de acordo com o biógrafo Julio Maria. A crítica também não poupou elogios: depois de uma fase difícil, na qual foi acusada de ser excessivamente técnica e pouco emotiva em suas interpretações, Elis encontrava, finalmente, o equilíbrio.

“Falso Brilhante” saiu de cartaz por um bom motivo: a cantora descobriu estar grávida pela terceira vez. Por recomendação médica, passou a gestação em repouso, dedicando-se apenas à gravação do disco “Elis” — que teve como maior sucesso a canção “Romaria” (Renato Teixeira) — e à produção de um show do grupo “Cesar Mariano & Cia”, que a acompanhava: “São Paulo — Brasil”. O espetáculo de música instrumental inspirado pela atmosfera da metrópole veio a originar um álbum. Mas antes mesmo do final do ano, a mente inquieta da Pimentinha já planejava algo novo. A inspiração para essa empreitada surgiu numa situação um tanto inusitada, para não dizer desagradável: um engarrafamento durante uma manifestação estudantil em São Paulo.

“O show pintou dentro de um engarrafamento durante o qual eu me lembrei da música “Transversal do Tempo”*. Um congestionamento que foi provocado, simulado, por pessoas que tinham razões específicas — e eu sei quais foram as pessoas e quais as razões. Mas isso não vem ao caso: o importante é que daquele engarrafamento simulado eu fiz um paralelo com a vida que todos estão vivendo”.

— Elis Regina em depoimento à revista Capricho, 1978

*Composição de João Bosco e Aldir Blanc lançada em 1976 no álbum “Galos de Briga”.

A situação acabou ganhando contornos um pouco mais filosóficos na interpretação da artista, como ela aponta numa entrevista à revista Veja.

“Você sabe que o sinal de trânsito só vai ser aberto quando o guarda resolver abrir. Enquanto isso, você está dentro de um táxi e tudo acontecendo. Você imagina saídas, mas o sinal não abriu, o que podemos fazer? Ficamos sentados, dentro de um táxi, numa transversal do tempo, esperando. Não te perguntam nada, não te pedem opinião”.

— Elis Regina em depoimento à Revista Veja, outubro de 1978

Em setembro de 1977, nasceu Maria Rita, a filha que Elis esperava. E pouco mais de dois meses depois, a Pimentinha estava de volta ao palco com o novo show, que pegou muita gente de surpresa tanto pela forma quanto pelo conteúdo.

O fim do sonho

Foto: Carlos Gerbase

“Transversal do Tempo” rompia com “Falso Brilhante” em muitos aspectos, a começar pela estética e pela atmosfera. O clima circense, teatral e colorido do espetáculo anterior dava lugar a um cenário mais sombrio, repleto de andaimes e placas de sinalização, que buscava reproduzir um pouco da angústia e da solidão da vida urbana. Outra importante ruptura foi em relação à temática: agora Elis queria falar do coletivo, e não do individual. A proposta era fazer um show jornalístico, que funcionasse como uma grande reportagem do Brasil de 1978.

Com direção de Aldir Blanc e Maurício Tapajós, “Transversal do Tempo” apresentava questionamentos sobre política, sociedade, meio ambiente e o contexto cultural brasileiro na época, através das 27 músicas selecionadas para o show. Havia a ideia de propor uma reflexão do que tinha acontecido dez anos depois de 1968, ano em que o mundo viveu uma grande primavera e que em terras tupiniquins culminou com a instauração do Ato Institucional nº5, decreto que endureceu ainda mais o regime militar. Outra questão que transparece no espetáculo é o clima de tensão e expectativa com a possibilidade de abertura política da ditadura no país. Afinal, o sinal iria mesmo abrir? Ou o povo brasileiro permaneceria no amarelo?

A ruptura com o show “Falso Brilhante” se apresentava logo na abertura da nova montagem. Elis começava cantando “Fascinação” (Fermo Marchetti/Maurice de Féraudy — versão de Armando Louzada), canção também presente no show anterior. Na dissertação de mestrado “Elis de todos os palcos: embriaguez equilibrista que se fez canção”, o pesquisador Mateus de Andrade Pacheco explica a ponte feita entre os dois espetáculos.

“Quem hoje se aventurar a colocar o disco ou CD Transversal do Tempo em seu aparelho de som, logo de início ouvirá Elis Regina cantar Fascinação, canção também presente no espetáculo e no disco Falso Brilhante, mas em versão diferente, tanto em relação à interpretação quanto ao arranjo. Em Transversal do Tempo a atmosfera é composta pela sonoridade eletrônica dos teclados — na primeira o piano é que é o destaque — e tem como ápice o fechamento da canção, com Elis Regina soltando a voz em um prolongamento do último verso — ‘És fascinação, amor’.
O espetáculo começava com a canção que abria e fechava o Falso Brilhante. A associação entre os dois espetáculos ainda poderia ser feita pelo figurino de Elis Regina, pois cantava vestida de branco, como no espetáculo anterior. Mas após o belo fechamento da canção, o vestido branco caía. Sinal de alerta: não é Falso Brilhante que vem aí”.

Outra grande diferença trazida por “Transversal do Tempo” era a sua natureza itinerante. Durante os quatorze meses em que foi apresentado, “Falso Brilhante” permaneceu em São Paulo, não sendo montado em outras cidades do país. Os cenários e figurinos elaborados tornavam logisticamente inviável que o espetáculo saísse do Teatro Bandeirantes. Em contrapartida, o novo show já veio ao mundo fora de São Paulo: a primeira apresentação, em novembro de 1977, aconteceu no Teatro Leopoldina, em Porto Alegre. De lá, partiu para a Europa, onde foi apresentado em Lisboa, Roma, Milão, Paris e Barcelona. Já entre março e junho de 1978, foi encenado no Rio, onde a Phonogram, gravadora da qual Elis era contratada, fez o registro do espetáculo ao vivo. A Pimentinha seguiu para o Nordeste do país com o show completo, passando por Fortaleza, Recife e Salvador. “Transversal do Tempo” ainda passou por Belo Horizonte e Curitiba até chegar a São Paulo, em outubro de 1978.

No entanto, apesar dos notáveis contrastes, a ruptura com “Falso Brilhante” não era completa. Havia certa continuidade, como aponta a própria Elis em entrevista à edição de abril de 1978 da revista Música.

Foto: Reprodução

Polaróide urbana

A expectativa pelos “sonhos mais lindos” e “quimeras mil”, trazida pela abertura do primeiro ato do show, é logo quebrada por um desfile de personagens, temáticas e situações da vida urbana. Em “Aquarela Brasileira”, samba-enredo de Silas de Oliveira que ganha uma interpretação enérgica de Elis, somos lembrados de onde estamos, do lugar de onde falamos: o Brasil, com todas as suas belezas naturais, “essa maravilha de cenário”. Através de músicas como “Sinal Fechado” (Paulinho da Viola) e “Transversal do Tempo” (João Bosco/Aldir Blanc), tem-se o primeiro choque de angústia e sufocamento. O instrumental “Fábrica” (Dudu Portes), também presente no disco “São Paulo-Brasil”, ajuda a compor o clima.

Faixa presente no álbum lançado por Elis no ano anterior, “Morro Velho” (Milton Nascimento) aborda relações de raça e classe através de dois personagens: o filho do dono de uma fazenda e o filho do seu empregado. Já as relações de trabalho aparecem em Caxangá (Milton Nascimento/Fernando Brant), outra faixa do álbum anual de Elis. Vale lembrar que 1978 foi o ano em que os movimentos sindicais de trabalhadores do ABC paulista começaram a se organizar ativamente, o que demonstra o quão atual estava a temática. Em “Deus Lhe Pague” (Chico Buarque) e “Qualquer Dia” (Ivan Lins), aflora o descontentamento com a situação vigente, expresso através da raiva ou da ironia. Já a preocupação com o meio ambiente, àquela altura bastante castigado pela poluição da cidade, transparecia na escolha de “Amor à Natureza” (Paulinho da Viola) e “Boto” (Tom Jobim) para figurar no repertório.

Aparecem os personagens urbanos: o boia-fria de “O Rancho da Goiabada” (João Bosco/Aldir Blanc), o operário sem perspectivas de “Construção” (Chico Buarque), o desabrigado de “Saudosa Maloca” (Adoniran Barbosa), a prostituta de “A Dama do Apocalipse” (Natan Marques/Crispin del Cistia). Elis também aproveitou para resgatar “Ensaio Geral” (Gilberto Gil), música lançada em 1967, cuja letra refletia o sentimento de esperança e fé no futuro dos loucos anos 60. Agora, ali estava ela novamente, aplicada ao contexto de abertura política iminente. “Nossa turma é da verdade e a verdade vai vencer”, como dizem os versos da canção.

Mas, em meio aos respiros de esperança, a sensação de angústia sempre voltava a aparecer. No segundo ato do show, um bloco inteiro de canções é dedicado a traduzir esse sentimento. O sofrimento de “Cão Sem Dono” (Sueli Costa/Paulo César Pinheiro) e as incertezas do amor em “Meio Termo” (Lourenço Baeta/Cacaso) desembocam na visceralidade de “Corpos” (Ivan Lins), que Elis interpretava correndo de um lado para o outro do palco. Essa movimentação foi reproduzida através de um efeito estereofônico na gravação lançada em disco. Depois da explosão, a melancolia: Elis canta “Esta Tarde Vi Llover” (Armando Manzanero) em formato voz e piano, chegando a chorar copiosamente ao final.

Um parêntese: o leitor mais atento deve ter notado que no vídeo acima estão presentes outras músicas além das dez que compõem o disco “Transversal do Tempo”. O fato é que, desde 2013, áudios da íntegra do espetáculo estão disponíveis no YouTube, depois de ficarem no fundo do baú por anos. A Universal Music (antiga Phonogram) chegou a anunciar o lançamento do disco completo em 2012, mas o projeto foi engavetado, até que uma boa alma resolveu trazer essas pérolas à luz.

Voltando a falar do show, a emoção de “Esta Tarde Vi Llover” é amplificada na passagem para a música seguinte, “Romaria”. A interpretação desta canção no contexto do show traz um aspecto interessante, que Mateus de Andrade Pacheco explica melhor em sua dissertação.

“Capacidade para encarnar diferentes personagens é o que até aqui percebemos como uma das características da Elis Regina de Transversal do Tempo — uma multiplicidade de identidades com a qual é confrontada na pressa urbana. Em certas apresentações de seu espetáculo, a cantora ainda se valeu de um figurino específico para interpretar a canção de Renato Teixeira. Enrolada em um manto e posta em uma espécie de andor, a intérprete contava a história do romeiro e ao mesmo tempo fazia, a partir desta imagem, referência a Nossa Senhora Aparecida”.

Foto: reprodução

Logo depois de “Romaria”, somos brindados por uma interpretação de “Maravilha” (Chico Buarque/Francis Hime). A canção, uma homenagem a Cuba, expressa no show o desejo por dias melhores e também por um país melhor. Já em “Querelas do Brasil” (Aldir Blanc/Maurício Tapajós), é levantada uma temática importante: a necessidade de reaproximação do povo brasileiro com suas raízes. Também é possível perceber uma crítica velada aos estrangeirismos e aos modismos vindos de fora, particularmente notável nos versos “O Brazil não merece o Brasil / O Brazil tá matando o Brasil”.

Para compreender melhor essa crítica, é interessante conhecer o contexto da época: ao final dos anos 1970, a disco music invadia o país e se tornava um fenômeno de massa, chegando a inspirar a criação de uma telenovela (Dancin’ Days, de Gilberto Braga) e influenciar artistas da MPB “tradicional”. É o caso de Belchior, que em seu álbum “Todos os Sentidos”, de 1978, traz o discurso de protesto habitual numa roupagem completamente dançante. No mesmo ano, Caetano Veloso lançou “Bicho Baile Show”, um espetáculo que seguia essa tendência de libertação do corpo nas pistas de dança. De certa forma, a nova onda também dialogava com a situação política do país: talvez a abertura iminente trouxesse a sensação de que já era possível respirar e sorrir de novo. Mas Elis não via as coisas dessa maneira.

“Está dentro do espetáculo. A angústia, a claustrofobia e também as várias fugas. A alienação que pode vir através dos embalos de qualquer dia da semana. Na realidade, não é um espetáculo feito para dançar. Alerto que os bailantes se sentirão muito agredidos, portanto não me cobrem. Se quiserem assistir, já estou avisando antes. Também não estou dizendo que todo espetáculo deva ser assim e também não quer dizer que todos os outros farei desta forma. Mas eu peço desculpas, usando as palavras do Vitor Martins: ‘Me perdoem, os dias são assim’. (…)”

— Elis Regina em entrevista à revista Veja, outubro de 1978

Essa abordagem viria a dar muito pano pra manga, além de causar algumas polêmicas, como veremos mais adiante.

Ao final do show, quando Elis resgata “Nada Será Como Antes” (Milton Nascimento/Fernando Brant), gravada por ela em 1972, o último lampejo de esperança surge. O arremate fica por conta de “Cartomante” (Ivan Lins/Vitor Martins), que deixa uma recomendação de cautela: as coisas estavam prestes a melhorar e não era tempo de correr perigos, nem falar “do medo que temos da vida”. Dialogando com outra canção, dessa vez da década anterior, no final das contas era preciso estar atento e forte, porém otimista.

Proibido sorrir

Considerando o contexto musical do país naquele final da década de 1970, era de se esperar que a crítica visse o “Transversal do Tempo” com certa antipatia. Muitas das interpretações e análises publicadas nos cadernos de cultura descreviam o espetáculo como “mal-humorado” e panfletário. O exemplo mais notável é o da crítica assinada por Maria Helena Dutra, na edição de 10 de março de 1978 do Jornal do Brasil.

Também havia quem considerasse que o espetáculo estava preso a 1968 e insistia em questões já superadas. É o caso de Isa Cambará, que assina uma crítica publicada na Folha de S. Paulo em 11 de março de 1978, com o título “Em 78, como em 68…”.

“O título do show é sugestivo. ‘Transversal do Tempo’ supõe, numa associação livre de ideias, que algo se atravessa, tencionando interromper o fluxo do tempo, das coisas que decorrem na ordem da naturalidade cotidiana, da rotina. Sugere ruptura.
Mas, não é o que acontece com o espetáculo de Elis Regina, forjado no prestigiado modelo das produções artísticas que, em nome do protesto contra a ordem estabelecida (como se houvesse apenas uma ordem estabelecida) dão continuidade à ansiosa expectativa da classe média letrada quanto à rebelião daqueles que constituem os chamados fracos e oprimidos. ‘Transversal do Tempo’ é saudosista: lembra 68, espetáculo de grêmio estudantil com ‘grand finale’ com a famosa ‘pressão de massa’ e tudo”.
— Isa Cambará (Folha de S. Paulo, 14 de março de 1978)

Elis respondeu às críticas em entrevista ao tabloide City News, quando foi convidada pelo jornalista Roberto Trigueirinho a definir algumas expressões.

“Proibido sorrir” — (risadas) Você fala daquela crítica carioca que disse que meu show era um atentado ao bom humor, não é? Ela deve morar na Vieira Souto, em Ipanema, numa cobertura. Vai ver, de frente para o mar. Por isso quer sorrir tanto.

Alienado — Quem? O “Transversal do Tempo”? Alienado? Fora da realidade de hoje? Estão dizendo isso, é? Agora pergunto: fora de realidade? Daquela do Rio Zona Sul, a de São Paulo dos Jardins e Morumbi? Mas essa mesmo não tem nada a ver.

1968 — Chamam meu show de velho, de atado a 1968? Que descoberta! Pergunto a eles: as coisas mudaram tanto, mesmo, de lá para cá que possa me desatar de 1968? O “Transversal do Tempo”, como transversal do tempo, inclusive se propõe a isso: ser jornalístico, destinado justamente a refrescar memórias entorpecidas.

Outra polêmica trazida pelo show está na inclusão da música “Gente” (Caetano Veloso) no roteiro. Ao final do primeiro ato, ela aparece como uma espécie de vinheta que liga “Construção” e “Ensaio Geral”, servindo para apresentar os músicos e a equipe do show. Mas a presença da canção vai muito além disso: na interpretação debochada de Elis, há uma forte carga de ironia voltada para a “onda discothèque da América do Sul” (como cantou Rita Lee), e até mesmo para o próprio Caetano.

Na gravação abaixo, que apresenta problemas de rotação, é possível perceber uma dose extra de deboche.

Foto: reprodução

Também é importante ressaltar a presença de um elemento cênico: uma placa com a inscrição “Beba Gente”, numa tipografia semelhante à da marca da Coca-Cola, surgia durante a interpretação.

A crítica, é claro, não deixou de notar a ironia.

“Ao excelente arranjo de ‘Construção’, de Chico, segue-se uma espécie de caricatura de ‘Gente’, de Caetano, logo substituída por ‘Ensaio Geral’, da primeira fase de Gilberto Gil, justamente a música que encerra a primeira parte do espetáculo. Com isso Elis consegue não apenas tomar uma clara posição na polêmica sobre as responsabilidades sociais da arte, como também contrapõe à ‘exuberância’ atual de Caetano uma criação de seu amigo do movimento baiano, mostrando que, afinal, havia no início deste a preocupação hoje negada principalmente por Caetano. É uma crítica, clara mas polida, educada, quase carinhosa, um deboche de amigo”.
— Ney Gastol (Folha de S. Paulo, novembro de 1977)

Se alguns críticos suavizaram a dimensão sarcástica desse momento do show, como Ney Gastol, que assistiu ao “Transversal” na estreia em Porto Alegre, outros não se furtaram a demonstrar desaprovação. É o caso de Isa Cambará.

“Em nome do protesto, não se poupam talentos. Nem da própria Elis e seu grupo — dramatizando músicas ‘engajadas’ ao extremo — nem os de compositores como Chico Buarque e Caetano Veloso, alvo de uma ‘gozação’ injusta e inoportuna, cujas músicas foram encadeadas de maneira tendenciosa, no final da primeira parte do espetáculo. Algo para lembrar ao público que, enquanto há homens morrendo em construções, há quem cante ‘gente é pra brilhar e não para morrer de fome…’. Um prato cheio para a plateia tipo claque, como a da estreia, que só vai ao teatro para ouvir a confirmação de suas ideias. (…)”

— Isa Cambará (Folha de S. Paulo, 14 de março de 1978)

O próprio compositor não se sentiu à vontade com o uso de sua canção nesse contexto, como comentou em entrevista a Regina Echeverria para o livro “Furacão Elis”.

“Não gostei da parte do show quando ela cantava ‘Gente’ e descia aquele cartaz de Coca-Cola escrito ‘Beba Gente’. Considerei aquilo agressivo. No dia em que fui assistir, não falei com ela. Saí, cumprimentei o Aldir Blanc e o Maurício Tapajós, que estavam no hall, e fui embora. Achei uma bobagem. E o show também era esquisito, muito pra baixo. (…) Quando vi o que ela tinha feito no ‘Transversal do Tempo’, não fiquei com raiva. Mas até que eu chegasse à plateia do ‘Trem Azul’, último show de sua vida, não falamos sobre isso”.

A relação de Caetano e Elis só seria totalmente restabelecida após um pedido de desculpas da artista. Segundo a Pimentinha, a ideia de incluir no “Transversal do Tempo” a abordagem debochada de “Gente” teria sido dos diretores, Aldir Blanc e Maurício Tapajós. Ela também disse estar arrependida de ter feito aquilo. No final, tudo acabou bem, aparentemente.

Tá tudo nas cartas

Mesmo em meio à polêmica e ao estranhamento, “Transversal do Tempo” não deixou de ser reconhecido como um dos maiores shows de Elis Regina. Era o segundo de uma sequência de espetáculos conceituais iniciada com “Falso Brilhante” e que só terminaria em 1981, com o show “Trem Azul”. Nem os críticos mais ferrenhos deixavam de destacar a maturidade vocal da intérprete, a qualidade do repertório e o virtuosismo da banda, que dava uma pegada mais roqueira e sintetizada às músicas do show, combinando com o clima proposto.

O caráter jornalístico — e em certo nível, de denúncia — de “Transversal do Tempo” fez com que ele se tornasse uma obra mais atemporal do que se imaginava à época: ainda hoje, passados 40 anos, em tempos de precarização do trabalho e piora nos índices de pobreza, os problemas diagnosticados no Brasil não são muito diferentes dos apontados pelo roteiro do show. Em tempos de situação política turbulenta e incerteza sobre o futuro, estamos mais uma vez esperando o sinal abrir. O que resta é esperar que, mais uma vez, em 18 como em 78, haja motivos para se manter otimista e os reis estejam prestes a cair.

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Julli Rodrigues
Ouvindo Coisas

Jornalista e pesquisadora musical de Salvador (BA)