Tostão: a fera de ouro | Coisas úteis e inúteis da vida

Jamais tive a pretensão de ser crítico de cinema. O artigo que se segue é apenas uma homenagem à Tostão [que tanto admiro] e, sobretudo, ao cinema. Achei pertinente resgatar essa produção MINEIRA uma vez que um dos assuntos predominantes nos últimos meses é COPA DO MUNDO.


Dirigido pelos mineiros Paulo Laender e Ricardo Gomes Leite, com roteiro de Roberto Drummond e trilha sonora composta por Milton Nascimento e Fernando Brant, o filme “Tostão: a fera de ouro” (1970), narra a vida e a carreira do jogador de futebol Tostão: Eduardo Gonçalves de Andrade: a infância no antigo conjunto IAPI, o início da carreira de jogador, os jogos eliminatórios da Copa do Mundo de 70, o problema inesperado na vista esquerda e a cirurgia em Houston, a recuperação e o retorno ao futebol ainda nas eliminatórias. Em apenas seis jogos do grupo II, Tostão foi o artilheiro Seleção Brasileira com 10 gols, de um total de 23.

Geraldo Veloso [um dos produtores do filme] diz: "Não intencionalmente, o filme que deveria ser um média-metragem virou praticamente um diário de bordo".

No documentário, o pai de Tostão, Osvaldo de Andrade, afirma que o maior defeito do craque era não saber chutar bem com o pé direito. Ele acabou aprendendo. Vemos a admiração de João Saldanha pelo atacante e conhecemos um jogador diferenciado da grande maioria, ou seja, um jovem atleta apaixonado pela poesia de Carlos Drummond de Andrade e Vinícius de Moraes; pela música de Chico Buarque e pela literatura de Jorge Amado. O goleiro Raúl, com quem Tostão dividia o quarto nas concentrações, dizia não entender o amigo. Talvez as outras paixões do jogador deram a ele sensibilidade para compreender a dimensão do futebol:

“O futebol nos ensina a viver em conjunto, aproxima os povos, exige decisões rápidas. Conta o trabalho de todos”.

Tostão: a fera de ouro foi realizado exatos seis anos após Joaquim Pedro de Andrade filmar “Garrincha, alegria do povo”, considerado um marco na tradução cinematográfica do futebol no Brasil. Com o filme sobre Garrincha, Joaquim Pedro reforça a tradição do documentário brasileiro. Tanto Joaquim Pedro quanto os realizadores do filme de Tostão foram influenciados pelo extinto canal 100, cinejornal fundado em 1959, por Carlos Niemeyer.

Como dizia Nelson Rodrigues: "Foi a equipe do CANAL 100 que inventou uma nova distância entre o torcedor e o craque, entre o torcedor e o jogo, grandes mitos do nosso futebol, em dimensão miguelangesca, em plena cólera do gol. Suas coxas plásticas, elásticas enchendo a tela. Tudo o que o futebol brasileiro possa ter de lírico, dramático, patético, delirante…" Criador de um estilo próprio, foi no futebol que a marca do jornal se tornou mais famosa. O perfeito casamento entre o maior esporte do mundo e a síntese de todas as artes, o cinema”.

Joaquim Pedro começou a falar do futebol de maneira mais analítica, a mostrar uma visão poética de como ele enxergou o futebol. Foi um norte para Paulo e Ricardo. A dinâmica das câmeras seguindo a dinâmica do futebol foi contribuição inestimável à filmografia do mesmo. A câmera mais no meio do campo, na platéia mais do que o plano geral, eram posições e ângulos explorados, até então, pelo Canal 100. Câmeras na mão eram o atestado da vanguarda do cinema. Naquela época, nouvelle vague e cinema novo, se fizeram com a agilidade do seu movimento e das suas tomadas. Tanto Joaquim Pedro quanto os realizadores do filme sobre Tostão sofreram essa influência. O neo realismo dos anos 40 consagra os cinemas da rua (que já se fazia na época do cinema mudo) e liberta a câmara dos seus medos. Explodem as produções pelo mundo.

Na década de 60 - marcada pela revolução e resistência - o cinema, sem sombras de dúvidas, foi um dos fomentadores e catalisadores do despertar da consciência política nos jovens. Os movimentos espalhados pelo mundo, de modo especial Europa e América Latina, ecoaram no Brasil. Os jovens mineiros estavam vivendo uma fase de intensa ligação com o cinema, influenciados pela Nouvelle Vague de Godard e Truffaut, Antonioni, Rossellini e outros grandes nomes do cinema. Havia muita discussão teórica sobre as coisas. Geraldo Veloso lembra que, em seus comentários sobre futebol, Armando Nogueira citava Shakespeare e Nélson Rodrigues citava Dostoievski . O futebol foi ganhando approach. Começou a evolução na forma de encarar o futebol.

Ricardo Gomes Leite, Paulo Laender, Geraldo Veloso e demais realizadores, além da paixão pelo cinema, eram aficionados por futebol. Então decidiram, com toda a coragem da juventude, realizar um documentário, média metragem, sobre Tostão. Eles não tinham maiores pretensões, mesmo porque, quando começaram as gravações, não tinham dinheiro. Estavam movidos praticamente pela paixão.

O Mineirão acabava de ser construído e o futebol em Minas Gerais se emancipava atingindo importância nacional. O Cruzeiro surgiu no meio desta conjuntura com um time mágico e vencedor. O único capaz de se impor frente ao Santos de Pelé. No elenco celeste, dentre craques como Piazza, Dirceu Lopes, José Carlos, Raul, Natal, se destacava Tostão: artilheiro carismático e decisivo. Encantava a todos com suas atuações e história de menino de classe média. Além dos gols que marcava, era capaz de declarações coerentes e pensadas, até então , coisa rara no futebol. Constituía-se um personagem fantástico para os jovens "intelectuais" e artistas da mesma classe média. O diretor Paulo Laender diz que eles viram ali um grito de liberdade e afirmação perante a realidade opressora em que viviam.

Convidaram Roberto Drummond para escrever o roteiro, o qual se revelou muito ficcional e literário, impossível de se realizar dentro das limitações dos jovens cineastas. Resolveram, eles mesmos, à quatro mãos, o roteiro inicial. E assim, do zero partiram para a empreitada. Entraram em contato com Tostão, pegaram a autorização para a gravação e foram em busca de patrocínios.

Começaram a filmar, com o pouco que tinham. Quando Tostão estourou como o grande artilheiro das classificatórias, receberam então propostas de produtores e ampliaram o projeto original para longa-metragem. Mas Paulo admite que o apoio levou à perda de parte da pureza da idéia e da coesão iniciais do roteiro porque, de repente, se viram num turbilhão de uma super produção com, às vezes, até 5 câmeras, documentando os jogos.

Características de produção, como o som direto e o acompanhamento da equipe no exterior, acabaram dando um tom jornalístico ao filme, mas os diretores conseguiram ir além da simples exposição de jogos. O filme foi gravado com três câmeras e sete cinegrafistas se alternando. Segundo o produtor Geraldo Veloso, vários deles tinham feito o filme sobre Garrincha.

Assim como o som direto, a música também é um elemento importante no filme. Compostas pelos amigos e parceiros Milton Nascimento e Fernando Brant a trilha musical é coerente com a trama e traduz perfeitamente a paixão do brasileiro pelo futebol. Pacífico Mascarenhas também assina a trilha com a música “O Jogo”.

O convite aos futuros integrantes do Clube da esquina para compor a trilha não foi por acaso. Milton é cruzeirense. Fernando americano. Ambos apaixonados por cinema, assim como os diretores e produtores. Todos eram cinéfilos e cine clubistas, membros do CEC - Centro de estudos cinematográficos. O cinema de Minas era muito calcado no que eles adoravam. Além disso, Milton e Fernando eram os dois maiores expoentes da música mineira naquele momento, capazes de sintetizar como ninguém a alma mineira.

Milton e Fernando trabalharam "sob encomenda". Os realizadores escolheram os trechos e temas a serem desenvolvidos, durante a montagem. A música de abertura, também conhecida por “Tema de Tostão” , foi criada em cima do projeto gráfico de Lucio Weick, grande diretor de arte da época , contemporâneo e companheiro dos diretores do filme no Grupo Oficina. Milton fez depois de ver as imagens do filme. Já a música “Aqui é o país do futebol”, foi criada a partir de um plano filmado de helicóptero sobre Belo Horizonte num domingo de futebol. Aliás, essa é uma das trilhas mais ricas que se conhece sobre o cinema de futebol e o cinema em geral.

Fernando Brant diz que ele e Milton sempre fizeram música de acordo com o período. As músicas da época do filme não eram diferente. Interessante ver a BH do final dos anos 60. A imagem da cidade durante os jogos é tão marcante que inspirou “Aqui é o país do futebol”: .....a vida fica lá fora, tudo fica lá fora... Mas ele lembra: “só por 90 minutos”.

A inspiração para “O homem do sucursal” veio com a mudança de Fernando Brant para o Rio de Janeiro. Ele foi estudar e conseguiu trabalho na revista O Cruzeiro. Como não se adaptou à cidade pediu transferência para a sucursal da revista em Minas, sob o pretexto de que não tinha conseguido matricular-se na Universidade. Para Fernando, sucursal representa volta para casa.

Brant comenta que Bituca sempre quis fazer música para o cinema. Tanto que as músicas do filme são inéditas. Eles chegaram a gravar um compacto duplo com as quatro músicas do documentário. Mas, mesmo gostando de compor trilhas para cinema, Milton não fez muitas .

Ao contrário do que se fala, nem Milton nem Fernando Brant consideram a parceria feita para compor a trilha do filme sobre Tostão como origem do Clube da Esquina. A parceria deles começa em 67, com a música Travessia.

Pacífico Mascarenhas, amigo pessoal de Tostão, procurou os realizadores com a música “O jogo” pronta. Claro, foi logo anexada à trilha. Mas é uma composição anterior ao filme. Por coincidência ela casava bem com o tema.

Para o diretor Paulo Laender, a trilha sonora é uma espécie de alma que corre paralelo à imagem. Mesmo antes do cinema sonoro, a presença do pianista frente à tela, executando e improvisando temas, já era obrigatório. O cinema, como arte múltipla, exige um conjunto de expressões que são tão importantes quanto à imagem. O que seria dele sem a interpretação, a direção, a qualidade dos diálogos e da narração e, muito principalmente da trilha sonora? Em Tostão: a fera de ouro, o casamento entre trilha, enredo e imagem se deu na medida exata. De modo especial, no início do filme e nos momentos que antecedem as partidas a trilha incide de maneira precisa e, como defende Chion (1994), imagens e músicas não são apreendidas pelo espectador de forma separada.

Considerações finais

Infelizmente, segundo os realizadores, o resultado do documentário não foi o planejado, em todos os sentidos: o filme cresceu e se diluiu, houve dissidências na produção, não aconteceu o sucesso esperado. A contusão de Tostão - o descolamento da retina, que quase o afastou definitivamente do futebol - coincidiu com o final das filmagens, logo após a classificação do Brasil, trazendo para o filme uma conotação meio trágica, uma repercussão negativa. O próprio Tostão se afastou do projeto.

Apesar de ser um dos filmes que mais se fez cópia na época – 25, quando o comum eram nove – ninguém tem uma resposta que explique de maneira convincente o fracasso do filme. Sempre que procurado, Tostão se recusa a falar sobre o assunto. No ano de 72, ele abandonou o futebol e, por quase 20 anos, se manteve em silencio. O craque do futebol voltou-se ao desenvolvimento intelectual: fez medicina e psicanálise. Mas a paixão pelo futebol é tão grande que ele acabou se tornando uma referência em jornalismo esportivo. Mantém uma coluna no jornal Folha de São Paulo, às quartas-feiras, embora continue se esquivando das entrevistas.

Independente dos acontecimentos é inegável a importância histórica do filme. Tostão: a fera de ouro merece lugar de destaque na filmografia brasileira. Os desafios enfrentados para se documentar os jogos das eliminatórias de 69 e de acompanhar Tostão naquele ano, seguramente não foram poucos e marcaram toda a equipe. O sonho dos jovens cinéfilos, apaixonados por futebol e, de modo especial, por Tostão, pode não ter tido o sucesso esperado, mas as lentes das câmeras, inspiradas nas lentes do canal 100, conseguiram captar com bastante precisão o fascínio que o futebol exerce sobre os brasileiros, a sensibilidade e grandiosidade desse grande artilheiro chamado Tostão.

As letras de Milton Nascimento, Fernando Brant e Pacífico Mascarenhas traduzem com poesia e sensibilidade a paixão nacional pelo futebol e captam com precisão a aura do filme de Paulo Laender e Ricardo Leite. A trilha do documentário sobre uma figura apaixonada pela música de Chico, a poesia de Vinícius e Drummond, e a literatura de Jorge Amado não poderia ser composta por ninguém menos que os fundadores do Clube da esquina.
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