Na frase "...o nariz afilado do Sabino. (...) Fareja, fareja, hesita..."
(Miguel Torga - conto "Fronteira") em que Sabino é um homem e não um animal, deve considerar-se que figura de estilo? Não é personificação, será animismo? No mesmo conto encontrei a expressão "em seco e peco". O que quer dizer?
Relativamente à primeira dúvida, se retomarmos o contexto dos extractos que
refere do conto “Fronteira” (Miguel Torga, Novos Contos da Montanha, 7ª ed.,
Coimbra: ed. de autor, s. d., pp. 25-36), verificamos que é o próprio Sabino que
fareja. Estamos assim perante uma animalização, isto é, perante a atribuição de
um verbo usualmente associado a um sujeito animal (farejar) a uma pessoa
(Sabino). Este recurso é muito utilizado por Miguel Torga neste conto
para transmitir o instinto de sobrevivência, quase animal, comum às gentes de
Fronteira, maioritariamente contrabandistas, como se pode ver por outras
instâncias de animalização: “vão deslizando da toca” (op. cit., p. 25),
“E aquelas casas na extrema pureza de uma toca humana” (op. cit., p. 29),
“a sua ladradela de mastim zeloso” (op. cit., p. 30), “instinto de
castro-laboreiro” (op. cit., p. 31), “o seu ouvido de cão da noite” (op.
cit., p. 33).
Quanto à segunda dúvida, mais uma vez é preciso retomar o contexto: “Já com
Isabel fechada na pobreza da tarimba, esperou ainda o milagre de a sua
obstinação acabar em tecidos, em seco e peco contrabando posto a nu” (op.
cit. p.35). Trata-se de uma coocorrência privilegiada, resultante de um jogo
estilístico fonético (a par do que acontece com
velho e
relho), que corresponde a uma dupla adjectivação pré-nominal, em que o
adjectivo
seco
e o adjectivo
peco
qualificam o substantivo contrabando, como se verifica pela seguinte
inversão: em contrabando seco e peco posto a nu. O que se pretende
dizer é que o contrabando, composto de tecidos, seria murcho e enfezado.
Com relação à conjugação do verbo adequar e às explicações que vocês forneceram para uma consulta enviada, quero registrar que estranha-me o fato de vocês terminarem a explicação dizendo "..., como afirma Rebelo Gonçalves, que o termo (no caso, uma forma verbal) que hoje não passa de uma hipótese, futuramente poderá ser uma realidade."
Seguramente, se formos considerar tudo o que hoje é uma hipótese, já como realidade ouviremos inúmeros "a nível de Brasil", "houveram muitos problemas", "menas pessoas", "há dez anos atrás", "fazem muitos anos que não a vejo", etc.
Entendo que, a partir daí, as regras gramaticais não farão mais nenhum sentido na nossa língua portuguesa.
Sem contar que na conjugação desse mesmo verbo, no Pretérito Perfeito do Indicativo, vocês acentuaram a primeira pessoa do plural, regra de acentuação que desconheço e que, se vocês observarem, também não consta do Houaiss.
Permita-me uma segunda observação: a resposta para essa pesquisa vocês consultaram Rebelo Gonçalves, no Vocabulário da Língua Portuguesa, datado de 1966. A última reforma ortográfica data, se não me engano, de 1973, portanto muito tempo depois.
A defectividade de determinados verbos sempre foi objecto de discussão entre
linguistas e gramáticos, uma vez que, apesar de alguns serem considerados
defectivos em determinadas acepções, o uso das restantes formas que não fazem
parte do paradigma defectivo é sempre possível em determinados contextos. Os
outros casos que refere como sendo também possíveis de utilização normativa
futura são consensuais entre os gramáticos quanto à sua incorrecção, não gerando
qualquer discórdia a nível semântico, lexical ou sintáctico. A justificação
apresentada na resposta quer apenas indicar que, enquanto até há pouco tempo os
dicionários de língua e de conjugação registavam alguns verbos como defectivos,
existem obras que actualmente conjugam os mesmos verbos em todas as pessoas,
fazendo a indicação da sua defectividade nas gramáticas tradicionais.
O Vocabulário de Rebelo Gonçalves, apesar de editado em 1966, continua a
ser a referência para a elaboração de obras lexicográficas e para o
esclarecimento de muitas dúvidas. Enquanto não sair do prelo a nova edição
revista do Vocabulário de Rebelo Gonçalves ou um novo elaborado pela
Academia das Ciências de Lisboa que venha a ser reconhecidamente a referência
lexicográfica para o Português europeu, aquele continuará a ser a base por
excelência para a elaboração de dicionários e para a resolução de dúvidas
lexicais (para a norma europeia do Português).
Ao contrário do que refere, a última reforma ortográfica não data de 1973, uma
vez que a lei promulgada nesse ano em Portugal é apenas uma revisão e
simplificação de determinados pontos do acordo ortográfico de 1945, que o Brasil
não ratificou.
Quanto à flexão acentuada graficamente do verbo adequar no pretérito
perfeito do indicativo (adequámos), o paradigma dos verbos regulares da
1.ª conjugação prevê, em Portugal e não no Brasil, que se acentue as formas da
primeira pessoa do plural do pretérito perfeito do indicativo (que em Portugal
se pronunciam com a aberto) para se distinguir das formas do presente do
indicativo (que em Portugal se pronunciam com a fechado): comprámos/compramos,
lavámos/lavamos, registámos/registamos, etc.
Portanto, a conjugação apresentada no Dicionário Priberam da Língua Portuguesa
está de acordo com o estabelecido no acordo ortográfico em vigor em Portugal.