Espuma dos dias — Porque se mantém viva a mentira da implicação da Líbia no atentado de Lockerbie? Por Martin Jay

Seleção e tradução de Francisco Tavares

5 min de leitura

Porque se mantém viva a mentira da implicação da Líbia no atentado de Lockerbie?[1]

Por Martin Jay

Publicado por  em 24 de Novembro de 2022 (original aqui)

 

                                                     Foto: Wikimedia

 

O detalhe importante no atentado de Lockerbie está em até que ponto chegaram os conspiradores para desviar a culpa para cima da Líbia

Não pode haver melhor exemplo do velho ditado “uma mentira pode viajar por metade do mundo antes mesmo de a verdade estar a calçar os seus sapatos” do que o atentado de Lockerbie. Esta trágica história de um voo de passageiros norte-americano abatido por uma bomba sobre a pequena aldeia escocesa poucos dias antes do Natal de 1988 é dilacerante a vários níveis. Mas o principal é que mesmo até hoje, os americanos continuam a manter viva a enorme mentira: o envolvimento da Líbia.

Ainda na última semana de Novembro, continuamos a ver notícias da imprensa norte-americana a escrever sobre Lockerbie e a continuar a promover o envolvimento da Líbia quando, 34 anos após o terrível acontecimento, as provas são tão esmagadoras de que a Líbia nada teve a ver com o atentado.

Nos últimos dias, foi noticiado que um terceiro homem no atentado de Lockerbie – um oficial dos serviços secretos líbios com capacidade para fazer bombas – desapareceu, suscitando preocupações na Líbia de que os americanos pudessem reiniciar um caso contra o país, apesar de estar em vigor um acordo prévio com os EUA. O oficial em questão é Abu Agila Mohammad Masud Kheir al-Marimi, que em 2020 foi acusado pelo Procurador-Geral dos EUA William Barr uma semana antes de deixar o cargo durante a presidência de Trump. Barr é o idiota útil que anteriormente, durante o mandato de George W. H. Bush [pai], acusou em 1991 dois cidadãos líbios pelo atentado bombista: Abdel Baset Ali al-Megrahi e Lamen Khalifa Fhimah.

Ele é o idiota que Bush instruiu para continuar com o processo contra os líbios quando o presidente dos EUA na verdade sabia, por essa altura, através dos relatórios dos seus próprios serviços secretos, que o Irão era o culpado com a ajuda da Síria. Bush não queria atrair a ira de Hafez al-Assad, da Síria, de que precisava que estivesse do seu lado para a sua invasão do Kuwait em 1990, pelo que convinha ao Bush sénior continuar com a charada líbia que incriminou os dois oficiais líbios.

Megrahi foi considerado culpado na Escócia do atentado de Lockerbie em 2001 e libertado em 2009 por motivos humanitários antes de morrer de cancro em 2012. Após a sua morte, foi apresentado um conjunto de abundantes provas para demonstrar que o tribunal escocês na Holanda tinha agido de forma imprópria ao condená-lo e que a ligação com a Líbia tinha sido fabricada por aqueles que tinham sido os mentores do atentado.

Além disso, vários jornalistas de renome provaram, desde então, que os seus casos foram uma grotesca farsa de justiça e, em todos os aspectos, os dois foram o “bode expiatório” de uma trama maior que ainda continua por ser exposta pelos principais meios de comunicação social. O FBI, a polícia escocesa e o governo britânico estavam todos empenhados em juntar o caso em relação aos dois líbios, pois a América queria muito incriminar Kadhafi, pelo que a falha fundamental do caso – roupas na mala supostamente vindas de Malta – converteu-se na pista falsa que denunciava os dois agentes líbios. Ainda hoje, no website do FBI, a mesma espantosa mentira repousa no coração de um dos maiores encobrimentos de sempre da América. O FBI, sem uma só prova, ainda afirma que a mala com a bomba foi colocada a bordo do voo procedente de Malta, que tem um grande número de agentes do serviço secreto líbio. No entanto, numerosas investigações posteriores provaram que, de acordo com os registos do aeroporto de Frankfurt, isto não é verdade.

Na realidade, a bomba foi colocada no voo em Frankfurt por terroristas palestinianos ligados à Síria, ali baseados e pagos através de terceiros de Teerão, o que inúmeras investigações independentes provaram sem margem para dúvidas. Este grupo, que os serviços secretos alemães vinham seguindo há anos, pode nunca ter sequer sabido quem os estava a pagar em última análise, mas a sua atenção aos detalhes e conhecimentos sobre a bomba em si é tão impressionante como os objetos colocados em malas concebidas para conduzir os investigadores escoceses e agentes do FBI em direcção à ligação com a Líbia.

A iniciativa dos americanos, há apenas dois anos, de perseguir este terceiro homem faz parte de um encobrimento maior que começou no final dos anos 80 para incriminar os líbios, de preferência a acusar o Irão e a Síria que os presidentes dos EUA ainda hoje receiam. Mas é também uma questão de dinheiro. Quanto dinheiro é que as famílias americanas conseguiriam se hoje em dia apresentassem processos contra o governo americano?

Quase 34 anos depois de Lockerbie, há agora amplas provas tanto de jornalistas, investigadores e denunciantes para que essas famílias vejam a verdade sobre Lockerbie, de tal modo chocante essa verdade que faria com que os cineastas de Hollywood a recusassem como um guião de filme, por ser tão inacreditável.

Incrivelmente, o Pan Am 103 era um “voo controlado” por agentes da CIA que transportava drogas colocadas a bordo por grupos terroristas que Reagan precisava de manter felizes, enquanto negociava a liberdade dos reféns americanos em Beirute. O Irão descobriu este acordo – uma vez que esses grupos no Líbano estavam ideologicamente alinhados com Teerão e mais tarde se tornaram Hezbollah – e decidiu vingar-se do derrube do avião 655 do Irão no Golfo Pérsico em Julho de 1988, colocando a sua própria mala no voo 103, que eles sabiam que não seria examinado por agentes da CIA, uma vez que se assumiria que se tratava de drogas. Os conspiradores chegaram mesmo a sacrificar um dos jovens do grupo libanês que se encontrava a bordo.

Mas o detalhe importante do atentado de Lockerbie está em até que ponto chegaram os conspiradores para desviar a culpa para cima da Líbia.

A Líbia foi sempre um alvo fácil de enquadrar, uma vez que os meios de comunicação ocidentais tinham estado a preparar os seus leitores com notícias falsas sobre os ataques terroristas de Kadhafi no Ocidente, na maioria dos casos falsificando inteiramente provas e incriminando-o por muitas que foram de facto levadas a cabo por outros grupos, sendo o melhor exemplo o atentado à discoteca de Berlim de Abril de 1986, que foi de facto levado a cabo por grupos iranianos sediados no Líbano. Serviu muito bem a Ronald Reagan – e subsequentes presidentes dos EUA como Bush pai – para evitar enfrentar o Irão e a Síria e cultivar o mito de Kadhafi como o “cão louco” da região. Mas na realidade o público americano esteve a ser enganado em grande escala, até aos dias de hoje.

Mas não é só o público americano que está a ser enganado.

O caso Lockerbie custou aos líbios grandes prejuízos financeiros durante o domínio de Muammar Gadhafi, uma vez que a Líbia pagou uma indemnização às famílias das vítimas estimada em 2,7 mil milhões de dólares. Os líbios temem que o caso possa ser reaberto, levando a mais perdas financeiras. Se o público americano soubesse que o seu próprio governo, dirigido por Ronald Reagan, tinha encoberto o seu próprio trabalho sujo de modo a impedir que a verdade se soubesse – que era a CIA a permitir que os terroristas enviassem drogas para a América através de companhias aéreas americanas e protegidas por agentes da CIA e do FBI – então os pedidos de indemnização seriam sem precedentes.

E assim, até hoje, a culpa é atribuída aos líbios, apesar de o cão louco Kadhafi já ter desaparecido há muito. É a forma mais fácil e lógica de manter a mentira viva, tal como Kadhafi estava relutante em destruir o mito do seu envolvimento (uma vez que isso reforçou a sua credibilidade no mundo árabe), ainda hoje não existe uma verdadeira responsabilização. Convenientemente, a Líbia permanece opaca, inexplicável e desprovida de qualquer imprensa livre que possa escavar a verdade ali e há também hoje uma grande questão sobre se algumas facções políticas ali estão felizes por jogar o jogo que os americanos querem. Há mesmo rumores de que Marimi, que estava numa prisão líbia, foi entregue aos americanos num acordo secreto. Se for este o caso, então a necessidade feroz de manter viva a ligação à Líbia é tão importante hoje como era no final dos anos 80. Tal como nessa altura os líderes americanos tinham demasiado medo de apontar o dedo a Teerão, os de hoje em dia fazem o mesmo. O Irão não se vingou apenas pela queda do seu voo 655. Recebeu a vingança numa escala que não podia imaginar, pois o jogo líbio que os EUA ainda hoje jogam mostra que o Irão sempre foi o vencedor nesta guerra suja.

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Nota de tradutor

[1] Atentado de que foi vítima em 21 de Dezembro de 1988 o voo Pan Am 103, que voava de Frankfurt (Alemanha) a Detroit (EUA), quando estava a fazer o trajeto Londres-Nova Iorque. Uma bomba a bordo fez explodir o avião em pleno ar que caiu sobre a cidade de Lockerbie, na Escócia. Faleceram todos os 243 passageiros e os 16 membros da tripulação, permanecendo como o maior desastre aéreo ocorrido no Reino Unido. (ver wikipedia aqui)


O autor: Martin Jay é um premiado jornalista britânico baseado em Marrocos, onde é correspondente do The Daily Mail (Reino Unido), que anteriormente relatou a Primavera Árabe para a CNN, bem como para a Euronews. De 2012 a 2019 esteve baseado em Beirute onde trabalhou para uma série de títulos internacionais de media, incluindo BBC, Al Jazeera, RT, DW, bem como reportagens numa base freelance para o britânico Daily Mail, The Sunday Times mais TRT World. A sua carreira levou-o a trabalhar em quase 50 países em África, no Médio Oriente e na Europa para uma série de importantes títulos mediáticos. Viveu e trabalhou em Marrocos, Bélgica, Quénia e Líbano.

 

 

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