A TESSITURA DO DEVIR - Artes Visuais
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JUDITH SCOTT: A TESSITURA DO DEVIR
JUDITH SCOTT: THE 
TEXTILE OF BECOMINGSOLANGE DE OLIVEIRA
JUDITH SCOTT: LA 
TESITURA DEL DEVENIR
Este artigo aborda o fiar como devir nas obras de Judith Scott (1943-2005), artista 
trissômica, iletrada e inábil para a linguagem verbal. O intento é examinar a índole 
intuitiva e a temporalidade – a formatividade prioriza o processo ao produto. A 
temporalidade será abordada a partir da filosofia bergsoniana. Frequentemente, 
expressões ínsitas são sufocadas pelo conhecimento teórico, por “ideias muito 
possuídas”, em termos pontyanos. Deduzir aleatoriedade é um equívoco, orientado 
pela generalidade. Considerando o ineditismo da pesquisa sobre a estadunidense 
no Brasil, esta reflexão contribui com a diversidade de perspectivas sobre proces-
sos de saber artístico e com a consolidação da fortuna crítica, além de proporcionar 
uma discussão sobre a possibilidade de pensar a arte a partir de uma perspectiva 
fenomenológica.
RESUMO
This paper approaches spinning as becoming in 
the works of Judith Scott (1943-2005), an illiterate 
trisomic artist incapable of verbal language. The 
intent is to examine the intuitive nature and the tem-
porality – the formativity prioritizes the process over 
the product. The temporality will be approached 
from the Bergsonian philosophy. Frequently, innate 
expressions are smothered by theoretical knowl-
edge, by “very possessed ideas”, in Merleau-Ponty 
terms. Thus, deducing randomness is a mistake, 
guided by generality. Considering the originality of 
research on this American artist in Brazil, this re-
flection contributes to the diversity of perspectives 
on artistic processes and to the consolidation of 
critical fortune, in addition to providing a discussion 
on the possibility of considering art from a phenom-
enological perspective.
Este artículo aborda el hilar como devenir en las 
obras de Judith Scott (1943-2005), artista trisómica, 
iletrada e inhábil para el lenguaje verbal. El intento 
es examinar la índole intuitiva y la temporalidad – 
la formatividad no prioriza el producto sino que el 
proceso. La temporalidad se abordará desde la filo-
sofía bergsoniana. Frecuentemente, expresiones in-
herentes son ahogadas por el conocimiento teórico, 
por "ideas muy poseídas", en términos pontyanos. 
Deducir aleatoriedad es un equívoco, orientado por 
la generalidad. Partiendo del ineditismo en Brasil 
de la pesquisa acerca de la artista estadounidense, 
esta reflexión contribuye con la diversidad de 
perspectivas acerca de procesos de saber artístico 
y la consolidación de la fortuna crítica, además de 
discutir la posibilidad de pensar el arte desde una 
perspectiva fenomenológica.
ABSTRACT RESUMEN
* Universidade de São 
Paulo (USP), Brasil
DOI: 10.11606/issn.2178-
0447.ars.2021.187431
Judith Scott; Arte ínsita; Intuição; Fenomenologia; Henri Bergson
Judith Scott; Inherent Art; Intuition; 
Phenomenology; Henri Bergson
Judith Scott; Arte inherente; Intuición; 
Fenomenología; Henri Bergson
PALAVRAS-CHAVE
KEYWORDS PALABRAS CLAVE
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Artigo Inédito
Solange de Oliveira*
https://orcid.org/0000-
0001-8615-928X
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http://10.11606/issn.2178-0447.ars
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https://orcid.org/0000
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JUDITH SCOTT: A TESSITURA DO DEVIR
Deu meia noite, a lua faz um claro
Eu assubo nos aro, vou brincar no vento leste.
A aranha tece puxando o fio da teia
A ciência da abeia, da aranha e a minha
Muita gente desconhece […].
“Na asa do vento”, João do Vale
O que retira o fazer arte do âmbito do fazer ordinário? Essa 
inquietação, quase tão antiga quanto as reflexões da filosofia acerca 
da liberdade, não está sendo aqui empregada como um subterfúgio 
na abordagem de um problema complexo — a saber, a delimitação 
do campo em certa produção, nomeadamente de arte. Em outros 
termos, não é evasiva para contornar a discussão sobre o que é arte. 
Essa temática exaustiva tem sido disputada e tem alcançado áreas do 
saber que lhe eram, até então, estrangeiras.
A flexibilidade de meios e de fins tem exposto a leniência da 
pós-modernidade em relação aos limites do sistema das artes. Houve 
quem se arriscasse sobre a possibilidade de desgaste extremo, que 
viria a decair no exaurimento completo da capacidade expressiva 
no campo artístico. Mas, como já mencionado, não é esse nosso 
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intuito. Estamos mais preocupados com a implicação entre expressão 
e liberdade, nos modos de constituição e de compartilhamento da 
produção e do conhecimento artístico, do que com legislar o campo 
estético a partir de um saber convencionado. Alojamo-nos, então, 
aquém e além dessas discussões, que nos ocupariam mais energia 
do que o pretendido. Contudo, estamos cientes: esse é um terreno 
contíguo e será tangenciado ocasionalmente e se necessário.
Há relação estreita entre a exiguidade expressiva e a percepção 
temporal, que segue impactando a produção e circulação de imagens, 
a fruição e uma corporeidade cibernética que advém dos caprichos 
da velocidade, conforme haviam nos advertido, entre tantos 
outros, Paul Virilio (PAOLI; VIRILIO; YUNUS, 2009) e expoentes 
da arte carnal. Os desdobramentos relativos à aceleração foram se 
assentando, estabelecendo-se como paradigmas na modernidade: 
sujeitos reificados, moldados pela fixidez, pelo automatismo e pela 
passividade imposta ao ritmo da máquina industrial, com severo 
prejuízo da autonomia e da autoconsciência. Na pós-modernidade essa 
condição foi radicalizada — seguimos abandonados aos desmandos de 
uma velocidade supersônica, confrontados com uma obsolescência 
corpórea e a decorrente urgência da pós-humanidade.
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Se, na dinâmica do capital, têm sido cada vez mais incentivadas 
as relações entre baixo dispêndio de tempo e alto volume produtivo, 
também os artistas têm sido, há muito, arrastados para a lógica 
mercantil; e não é castigado apenas o âmbito da feitura, mas também 
o da fruição. Por exemplo, em se tratando de espaços institucionais, 
aponta Hans Belting (2011), tudo é organizado sob o critério do 
fluxo e do agrupamento. O filósofo expõe as vísceras e a índole do 
processo expositivo: do recolhimento à reunião, a classificação 
categorial acompanha o percurso de uma ponta a outra. Objetos 
sobrevivem por insistência, per si, ou por subsistência ao antigo 
regime, anterior à sua vida museográfica. Trata-se, portanto, 
de um cálculo temporal entre o antes e o agora; a contemplação 
acaba subordinada a relações que se estabelecem por contraste, por 
camuflagem ou por acúmulo, denunciando a urgência flagrante, 
perceptível nas grandes filas que se instalam nos arredores, e no 
fluxo dos que perambulam pelos corredores dos museus, mas não 
só; essa não é prerrogativa exclusiva desses espaços. Do lado externo 
dos muros das instituições, continuamos submetidos a uma miríade 
de imagens em tempo absoluto. Estamos expostos a uma velocidade 
supersônica, que corresponde a uma condição multiespectral. E, 
assim, vai se consolidando todo um campo de relações — velozes, 
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fugazes — que sustentamos com os objetos expressivos, convertidos à 
inflação do campo imagético, responsável por violentar e neutralizar 
olhares e corpos.
O SUPERSÔNICO E O ULTRAESPACIALIZADO 
A filosofia bergsoniana estabelece e distingue a natureza 
de duas realidades: uma é simbólica e espacial, a outra, temporal, 
é uma realidade em si. Quando confrontadaa vida pragmática 
(essencialmente espacializante) à pura duração (temporalidade e 
movimento), tudo decai no homogêneo. Nossa dificuldade com o tempo 
é que, sabemos, é uma realidade, mas somos incapazes de estabelecer 
com ele qualquer relação de controle ou fixidez, pois apreendemos 
apenas seus efeitos. Por outro lado, o espaço é homogêneo, porque 
é assim definido, em contraste ao tempo, indefinido por natureza. 
No entanto, se considerado como exterioridade, em estados que se 
desenrolam e se sucedem, o tempo é tornado homogêneo, processo 
que o filósofo chama de espacialização. Constatamos nossa impotência 
– a temporalidade – e espacializamos, visando subtrair à duração o 
que nos escapa:
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Seria, portanto, oportuno interrogar-nos se o tempo, concebido 
sob a forma de um meio homogêneo, não seria um conceito 
bastardo, devido à intrusão de uma ideia de espaço no domínio 
da consciência pura. [...] a exterioridade é a característica 
própria das coisas que ocupam espaço, enquanto os fatos de 
consciência não são essencialmente exteriores uns aos outros, 
e só se tornam assim por um desenrolar no tempo, considerado 
como um meio homogêneo. (BERGSON, 1988, p. 71)
Há, portanto, diferentes concepções de duração na condução 
bergsoniana, uma é pura e a outra sofre uma corruptela, na qual 
intervém a ideia de espaço. A duração pura é uma sucessão de estados 
de consciência, surge sob a condição – rara – de um eu que se deixa 
viver, sem que sejam desconectados estados presentes e anteriores.
No campo artístico, essa solidariedade de estados é coesa na 
medida da expressividade. O intérprete que se demora em uma 
das notas da música abdica de sua integridade, fazendo com que o 
conjunto se dissolva, como uma mudança qualitativa sobre o todo: as 
notas se sucedem, mas percebemos o conjunto; as coisas surgem por 
brotamento umas nas outras; diz Bergson (2006, p. 172), é a “melodia 
contínua de nossa vida interior" e prossegue sempre indivisível, 
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ao longo de nossa existência consciente. Como em um ser vivo, as 
partes são distintas, mas interpenetram-se solidárias. Como se dá por 
abstração nos arranjos visuais, percebe-se um certo todo, quando se 
observa algo que está e que não está ali: “Pode, portanto, conceber-
se a sucessão sem a distinção, como uma penetração mútua, uma 
solidariedade, uma organização íntima de elementos, em que cada 
um, representativo do todo, dele não se distingue nem isola a não ser 
por um pensamento capaz de abstração” (BERGSON, 1988, p. 73).
Somos obsedados pela ideia de simultaneidade e mutabilidade. 
Mas nada há de espacial nela e, sem percebermos, introduzimos 
elementos estrangeiros ao representarmos a sucessão em justapostos 
estados de consciência que se dobram à percepção simultânea. É assim 
que tecemos cálculos de velocidade, por exemplo. Analisamos um 
movimento variado como se fosse uniforme. A mecânica trabalha com 
o tempo conservando uma simultaneidade, retendo dele apenas certa 
imobilidade e, assim, projetamos o tempo no espaço e exprimimos 
a duração como um extenso. Falar em temporalidade mecânica ou 
supersônica é, pois, forjar e flertar com a ultraespacialização, usando 
uma licença metafórica do termo bergsoniano. Talvez tenhamos nos 
confrontado com a dificuldade de expressar certas conduções através 
de uma linguagem que, parece, expõe seus limites e resiste a uma 
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distinção clara de termos – representar multiplicidade sem relação 
alguma com o espaço – e que não é traduzível para a linguagem 
trivial. Trata-se, portanto, de um hábito profundamente enraizado: 
desenvolver o tempo no espaço.
AS COISAS E OS CONCEITOS
Ao longo da história do pensamento, enfaticamente após os 
modernos, cultivamos uma inclinação pela intelecção em detrimento 
de outro tipo de conhecimento que deveria ter sido considerado. 
Coisas são substituídas pelos seus conceitos, mas isso não implica 
que devemos, em revanche, desprezar o conhecimento letrado; a 
recomendação do filósofo é que seja igualmente reinventado. É preciso, 
portanto, ajustar nossos passos ao seu andamento, adotando seus 
gestos e suas atitudes. A inteligência virá para matizá-lo naturalmente 
e mais tarde, como ocorre com o aprendizado conatural na infância. 
Bergson alerta: a substituição por conceitos é na medida de uma 
socialização da verdade, por sinal, perfeitamente natural ao espírito 
humano, que não está espontaneamente destinado à ciência pura e, 
menos ainda, à filosofia. Um esforço, um pensar mais dificultoso 
deve ser empenhado, no que refere ao conhecimento puro, enquanto 
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a vida cotidiana se orienta por verdades de ordem prática, para a qual 
a socialização deveria servir — é esse seu fim.
A intuição é reflexão, a mobilidade está no fundo das coisas e no 
arrepio de nossa simpatia natural pela segurança que a fixidez oferece. 
A permanência da substância é, paradoxalmente, a continuidade de 
mudança. A questão que se coloca é saber em que medida a mudança 
pura e simples deve ser adotada socialmente. O que é, permanece, e 
as instituições devem sustentar um quadro mais ou menos estável 
para a diversidade e para a mobilidade dos desígnios individuais. 
Visando eficácia, a ação precisa da solidez de um ponto de apoio – 
essa é a tendência do ser vivo. 
Bergson esclarece que a consciência se instala na mobilidade, e 
se contrai em instantâneos de uma história longeva que, aliás, existe 
antes e fora dela: “Quanto mais alta a consciência, mais forte é essa 
tensão de sua duração em comparação com a das coisas” (BERGSON, 
2006, pp. 100-101). É um constrangimento admitir que indivíduos 
inaptos para o trato intelectual, na forma como é convencionado 
socialmente, desfrutem de um nível de consciência profundo, como 
ocorre com o fazer – aliás, artístico, porque duração – da criadora 
estadunidense Judith Ann Scott (1943-2005). Essa é uma originalidade 
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rara, que confronta as reiteradas acusações de vazio de sentido em 
que se encontra a Arte Contemporânea.
A ARANHA TECE PUXANDO O FIO DA TEIA
Judith Ann Scott nasceu em Cincinnati, Ohio, no dia 1º de maio 
de 1943 1. O dado mais relevante na sua história é a relação com a irmã 
gêmea Joyce Scott, hoje com 78 anos, e muito dedicada à divulgação 
da memória de sua “Judy”. Além das gêmeas, seus pais, o biólogo 
William Wallace Scott e Lillian White, tiveram outros três filhos mais 
velhos, porém nenhuma das demais relações familiares se comparava 
com os laços que as gêmeas estabeleceram (MORRIS; HIGGS, 2014). 
Apesar do vínculo profundo, as irmãs foram condenadas a viver 
separadas depois do longo período de institucionalização que Judith 
Scott cumpriu por cerca de 35 anos até sua morte, em 2005, boa parte 
do tempo em cidades distantes da residência familiar.
Enquanto Joyce Scott estudou em Berkeley, se tornou 
enfermeira e chegou a se envolver em trabalhos voluntários com 
crianças especiais, o destino de Judith Scott foi determinado por 
um teste de inteligência feito por um programa para crianças com 
deficiências em Cincinati. O resultado foi QI 30, profundamente 
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retardada, o que obviamente não era correto, explica Joyce Scott; 
afinal ela era muito esperta, era especialmente treinada para se suprir 
e podia, por exemplo, se vestirsozinha. Tudo aconteceu porque era 
surda e ninguém havia percebido; o diagnóstico da trissomia mascarou 
o da surdez, que só pode ser identificada muitos anos depois, quando 
já era tarde demais para que recebesse acompanhamento adequado. 
Àquela altura, a Síndrome de Down ainda não tinha sido muito 
explorada cientificamente e o senso comum culpava a mãe, que, para 
agravar ainda mais as coisas, tinha um irmão considerado com certo 
retardo, fazendo com que a percepção pública recaísse sobre ela.
A separação radical da família desencadeou uma série de 
problemas cognitivos que acabaram por acompanhar Judith Scott para 
o resto de sua vida. Logo após o apartamento do convívio parental ela 
começou a se lamentar e seu estado se tornou patológico. Desenvolveu 
uma grande regressão, perda das habilidades anteriormente 
conquistadas, falência no desenvolvimento e completa perda de 
identidade. Depois de passar por uma série de instituições distantes 
de casa e das vistas da família, em meados de 1982, quando Judith 
Scott tinha cerca de 40 anos, o diagnóstico de surdez foi finalmente 
efetivado. Só então que ela começou a aprender os signos de linguagem. 
A irmã explica que talvez ela tenha nascido parcialmente surda e 
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que, segundo os médicos, pode ter se tornado profundamente surda 
por volta de 4 anos, em virtude de febre escarlatina. O resultado foi 
a inaptidão para estabelecer uma comunicação verbal, o que não a 
impediu de ser especialmente sensibilizada por imagens e gostar de 
saboreá-las impressas em revistas.
O único programa que teve alguma ascendência no trabalho 
que ela viria a desenvolver mais tarde foi o Clothes Tearing Extinction 
Program. Os registros apontam uma mudança em seu comportamento, 
mostrando que ela estava se esforçando para aprender. Foram seis 
itens em agosto de 1984 e outros três ou quatro em janeiro de 1985. 
Esses foram os primeiros sinais de seu envolvimento com os têxteis 
– até então, o hábito era rasgar peças de roupa. 
Tudo caminhava para seu anonimato em uma instituição de 
custódia, mas aconteceu uma reviravolta em sua vida após o resgate 
de sua irmã gêmea. Houve muito cuidado e critério para escolher uma 
instituição que pudesse abrigar Judith Scott na Califórnia. Em 26 de 
novembro de 1986, Joyce Scott entrou em um avião desacompanhada, 
a caminho de São Francisco, sem saber ao certo o que a aguardava ou 
mesmo se a irmã a reconheceria: “Ela chegou à procura, perdida e 
aterrorizada. Havia olheiras sob seus olhos. Ela caiu em meus braços 
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e chorou. Não tenho certeza de que ela sabia quem eu era. Ela estava 
contente simplesmente por ter alguém lá para olhar por ela”2 .
O envolvimento de Judith Scott com arte foi tardio, depois dos 
35 anos de idade, quando começou a integrar o programa oferecido 
pelo Creative Growth Art Center, em Oakland, no dia 1º de abril de 
1987. Significava, finalmente, liberdade em mão dupla: Judith se 
reencontrou consigo mesma, e teve vazão uma habilidade inata e 
adormecida. O centro foi criado por Florence e Elias Katz e se dedica 
a suprir pessoas com deficiências. Lá elas encontram oportunidades 
de engajamento consigo mesmas e de seguirem por um caminho cujo 
paradigma seria o das artes visuais. Judith Scott inicia indiferente, 
fazendo rabiscos e olhando distraidamente à sua volta. Durante as 
cinco primeiras semanas no Creative Growth Center, ela pouco se 
interessou por desenho e pintura. Foi somente quando descobriu 
as fibras e começou a desenvolver formas tridimensionais que o 
seu engajamento foi catapultado a um nível bastante obsessivo; 
antes disso todas as possibilidades de materiais e recursos foram 
se extenuando, uma a uma. Depois de alguns meses, ela começa 
a desenvolver formas abstratas e, mais tarde, aplica um colorido 
sofisticado em seus trabalhos, até que o uso da paleta de cores se 
torna irrestrito.
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Em 1987, pela primeira vez Judith Scott produz uma obra 
de Arte Ínsita3 — do latim, insitus significa inato, congênito, não 
formado, original —, enfim, um termo equânime, na expectativa 
de arbitrar a disputa discursiva no campo da arte. A expressão foi 
proposta pela primeira vez nas Trienais de Bratislava, em 1972, mas 
caiu em desuso até que decidi resgatá-lo. A artista começa a participar 
da classe conduzida por Sylvia Seventy no Creative Growth Center, 
que um dia se deparou com uma exuberante escultura têxtil feita 
com varetas de salgueiro atadas por camadas sobrepostas de fios, em 
tons de púrpura e vermelho, com lama sobre eles. A primeira peça 
tridimensional de Judith Scott é a precedente de uma série de outros 
tantos objetos relacionados que sugerem relevante significância 
para si e vão se tornando cada vez mais refinados e precisos à medida 
em que o trabalho amadurece. Ela trabalha uma peça de uma vez, 
nunca duas ou mais ao mesmo tempo. Outra peculiaridade é que 
ela modela cada face, refinando todas as superfícies das obras, até o 
objeto aparente ficar uniformemente finalizado.
Qualquer tendência para assumir que o resultado do trabalho 
de Judith Scott é acidental — e, talvez, em alguma medida seja mesmo 
— cai por terra diante da simples observação de seu processo de feitura, 
que aponta para outra direção. Durante o trabalho, há uma atitude de 
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incontestável agilidade na mudança de planos, e uma ênfase conferida 
nos planos de mudança através do uso da cor (MACGREGOR; SCOTT; 
BORENSZTEIN, 1999, p. 70, tradução nossa). Aos poucos, juntamente 
com a modelagem das formas, seu estilo peculiar vai se evidenciando, 
surgindo. O processo de trabalho de Judith Scott envolve recobrir 
um pequeno segredo sob várias camadas de fios e cabos. Ela acopla 
objetos de todos os tipos no interior das peças: ventilador, CDs, guarda-
chuvas velhos, carretéis de papelão, tudo reforçado e protegido por 
guarnições de metal, unidos consistentemente através do entrelaçado 
de fios e de cabos, encobertos por lã até atingir uma forma final suave 
e reconfortante. É absolutamente primordial que algum item seja 
escondido dentro das peças e, assim, surge um sentido orgânico: algo 
vive no interior das formas.
Desde a hora em que Judith Scott chega no Art Center, 
no período da manhã, até o final do dia, quando decididamente 
resolve encerrar suas atividades, ela o faz de modo autônomo, não 
há necessidade de interferências sobre sua dinâmica de trabalho. O 
trabalho costuma durar, em média, três semanas. Judith Scott é firme 
também quanto à finalização, e decide quando está terminado. Ela 
parece saber exatamente o que fazer, não esboça qualquer hesitação. 
Paradoxalmente, para os afazeres da vida cotidiana ela é dependente, 
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e sua postura nessa esfera contrasta radicalmente com aquela voltada 
ao trabalho.
O trabalho assumiu uma enorme preponderância na sua 
existência. A artista parece ter sido moldada por sua obra; sua aparência 
frágil é esquecida quando em obra e se transforma quando aplicada 
e profundamente concentrada, divergindo contundentemente do 
quadro de institucionalizada dos anos anteriores, muito embora 
alguns elementos e trejeitos persistam. Em geral, a concentração é 
intensa, os gestos são lentos e cuidados como de uma pessoa que sabe 
com o que está envolvida. Ela trabalha de modo bastante independente, 
a sós com o objeto ao qual se dedica no momento. 
Todos os dias, quando chega ao Creative Growth Art Center,Judith Scott busca um lugar da mesa compartilhada com outras 
pessoas, mas se senta de frente para a parede, absolutamente 
concentrada no essencial, desinteressada do mundo. Além disso, 
vislumbra o processo prioritariamente ao resultado propriamente 
dito. Ao que parece, ela persegue um sentido de devir. Segundo seu 
biógrafo, a habilidade para criar imagens significativas, que refletem 
o mundo ou a si mesmos, são signatárias de uns poucos indivíduos 
que podem ser considerados especialmente dotados (MACGREGOR; 
BORENSZTEIN; MARIA, 2004, p. 8, tradução nossa). 
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Judith Scott não recebeu uma preparação formal, muito 
menos participou de qualquer aprendizado no campo da arte. Sua 
peregrinação por variadas localidades, em instituições americanas 
para indivíduos com debilidades psicofísicas, começou muito cedo. 
Atravessou a vida sem que tivesse treinado a habilidade para a 
linguagem verbal, que acabou preterida por determinação do destino, 
e por predileção pela linguagem imagética. Desse modo, os ritos 
culturais que estabelecemos para objetos de arte não a sensibilizam; 
não houve inserção da criadora em um meio restrito como o circuito 
das artes, que colaborasse com o entendimento sobre o teor ou o 
significado de sua função, do modo como nos é socialmente concedido. 
Ela não se importa com o estatuto de artista, e tampouco com o modo 
como os objetos que cria são percebidos como obras de arte. 
Suas estruturas abstratas de fibra têxtil ganham proporções 
enormes, alcançando quase o dobro de sua modesta estatura. A 
empreitada consome semanas de dedicação e também extraordinárias 
concentração e intensidade, pontuadas por paciência e cuidado, 
esclarece John MacGregor (MACGREGOR; SCOTT; BORENSZTEIN, 
1999, p. 2, tradução nossa). Mas uma questão instigante persegue 
fruidores: se o que ela faz não diz respeito ao campo da arte, o que então 
ela está fazendo (Ibidem, p. 2, tradução nossa)? Talvez ela tenha sido 
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levada a fornecer uma resposta expressiva à solidão e ao isolamento 
que os infindáveis anos de institucionalizada lhe impuseram e que, 
paradoxalmente, parecem ter aberto uma porta para a liberdade, 
fazendo ventilar modos de abordagem inalienáveis. Há indivíduos 
que não se redimem em dar plena vazão à vida interior. 
Se essas conjecturas não respondem o problema do fazer 
artístico, pelo menos esboçam o modo originário que abriga todo 
fazer humano. No entanto, para esclarecer nossa inquietação inicial, 
é preciso antes investigar o ponto de viragem nas lacunas que se 
desenham entre a inteligência e a intuição. A resposta sobre a passagem 
do fazer ordinário ao excepcional talvez indicie o que lhe dá sentido 
e textura existencial.
Inicialmente, inteligência e linguagem se confundiam, depois 
se apoderaram da matéria e, plasmando a ciência, objetivaram maior 
precisão. A intuição fazia com que a linguagem sentisse sua influência 
e tornou-se coextensiva do espírito. Entre essas formas de pensamento, 
subsiste o pensamento trivial, e a linguagem continua a exprimi-lo:
[...] não há pensamento sem espírito de finura, e o espírito de 
finura é o re-flexo da intuição na inteligência. Concedo também 
que essa parte tão módica de intuição se tenha alargado, que ela 
tenha dado origem à poesia, depois à prosa, e tenha convertido 
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em instrumentos de arte as palavras que, de início, eram apenas 
sinais [...]. Nem por isso é menos verdade que pensamento e 
linguagem, originalmente destinados a organizar o trabalho 
dos homens no espaço, são de essência intelectual. Mas trata-
se necessariamente de uma intelectualidade vaga – adaptação 
muito geral do espírito à matéria que a sociedade precisa 
utilizar. (BERGSON, 2006, pp. 90-91)
Cada palavra de nossa linguagem é convencionada, mas a 
linguagem em si não é uma convenção, e falar é tão natural quanto 
andar. Assim, a função primitiva da linguagem é estabelecer 
comunicação, objetivando cooperação: transmite ordens, avisos, 
prescreve ou descreve. Enquanto ordens são uma convocação à ação 
imediata, avisos assinalam a coisa ou propriedades suas para a ação 
futura; a função é, portanto, sempre social. As palavras carregam 
um sentido convencional e relativamente fixo, mas há chance de 
que possam vir a exprimir o novo, a partir de um rearranjo nas 
convenções. Judith Scott nasceu surda e não foi alfabetizada para 
articular signos linguísticos. 
Supomos que o processo criativo no campo da visualidade é 
um rearranjo da linguagem convencional e, como já mencionado, 
criação em dupla instância: de uma linguagem que reinaugura o 
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instituído e da obra per si. A criação parece brotar de uma duração 
que é vivida de dentro pela criadora, e é a coisa mesma, íntegra. 
Judith Scott refundou sua vida e passou a se desenvolver engajada em 
um processo de crescimento interior, tecendo um novo significado 
para sua existência, orientada por paradigmas que estabeleceu para 
si: “a metamorfose de Judith foi inteiramente sua própria criação” 
(MACGREGOR; SCOTT; BORENSZTEIN, 1999, p. 180, tradução 
nossa).
Acredita-se que há uma faculdade geral de conhecer as coisas 
sem tê-las estudado, explica o filósofo. É como se uma inteligência 
ultrapassasse o manejo de conceitos úteis à vida social, é uma certa 
potência de obter conhecimento do real a partir de conceitos sociais, 
combinando-os bem. Essa destreza superior é uma maior força de 
atenção especializada, inclinada pela natureza ou pelo hábito para 
determinados objetos, é como uma visão direta que atravessa as 
palavras, mas é justamente nossa ignorância sobre as coisas que nos 
torna tão aptos a discorrer facilmente sobre elas. Vivemos a plena 
expressão da inteligência relativa a ferramentas do raciocínio em 
benefício da vida pragmática. O que dizer de um sujeito inábil para 
tal tarefa? Essa inabilidade constrangeria outros saberes?
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A incapacidade de articular conceitos, de um pensamento 
lógico, dedutivo, acabou por inviabilizar outros tipos de aptidões que 
viessem a corroborar ou decorressem em conhecimento. O mundo 
acabou dividido entre capazes e incapazes – os que são e os que não 
são inteligentes –, reflexo da desvalorização generalizada do saber 
inato, do empobrecimento cognitivo convergente para a uniformidade 
de perspectivas em virtude do desprezo pelos saberes que pudessem 
acenar para a alteridade. 
Não é uma função da linguagem do tipo primitiva a que orienta 
um fazer como o de Judith Scott e que, ao que parece, é de outra classe. 
A linguagem instituída é arriscada para que seja reconstituída a 
partir de um fazer unívoco. É um mergulho na temporalidade, uma 
abertura para o devir. Como mencionado há pouco, é um fazer que 
se constitui duplamente como criação: uma linguagem reinstituída 
que se articula com generosa cumplicidade a uma narrativa.
A configuração4 está e não está ali, pois é da ordem do impalpável; 
a forma é seu meio de passagem. Assim, a superação dos contornos 
discerníveis na materialidade da obra na direção de uma instância 
inefável5, para além do que é físico, é a própria temporalidade. Mas 
a questão que relaciona temporalidade e espacialização em Bergson 
precisa ser considerada perspectivamente com o problema da fixidez 
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nas Artes Visuais: como recusara espacialização no campo de uma 
linguagem cuja genealogia é eminentemente espacial? Em princípio, 
essa particularidade da linguagem plástica, se tomarmos estritamente 
o caráter espacial das Artes Visuais, poderia suscitar dificuldades 
quando a cotejamos com o problema da espacialização bergsoniana. 
No entanto, para o filósofo, as artes ditas plásticas nos oferecem uma 
fixidez entre definitiva e eterna:
As artes plásticas obtêm um efeito do mesmo gênero pela 
fixidez que de súbito impõem à vida, e que um contágio físico 
comunica à atenção do espectador. Se as obras da estatutária 
antiga exprimem emoções leves, que mal as aflorem como 
uma brisa, em contrapartida, a pálida imobilidade da pedra 
empresta ao sentimento expresso, ao movimento iniciado, 
não sei que de definitivo e eterno, em que o nosso pensamento 
se absolve e a vontade se perde. (BERGSON, 1988, p. 20).
A instituição dessa linguagem é uma transgressão do 
convencionado, superado no sentido do inconvencional, e faz 
transferir para a matéria algo da ordem do inextenso. Assim, fica 
difícil ratificar que um fazer como o de Judith Scott seja da classe do 
comum, do ordinário, pressupor aleatoriedade ou, ainda, submetê-lo 
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ponto a ponto às dinâmicas da arte do sistema, desconsiderando sua 
univocidade. A obra é expressiva e não é viável argumentar pelo viés 
da inabilidade para a vida pragmática ou da limitação intelectiva. Esses 
são argumentos insustentáveis diante de uma perspectiva discursiva 
desafiadora; não é lícito, nem plausível. Bergson refuta a fixidez 
das Artes Visuais: em termos de temporalidade, algo de espiritual 
é transferido para a matéria e a obra de arte, como resultado desse 
fluxo, projeta o eterno no devir. Nesses termos, está sacramentado 
o ponto de viragem, da inteligência à intuição, no fazer da obra 
artística de Judith Scott.
UMA ÍNDOLE INTUITIVA
O artístico não é mera decorrência do fabril, uma vez que 
ritos de passagem devem ser cumpridos. Há que se abstrair da vida 
cotidiana e se abandonar na duração; coincidir com a temporalidade 
é para poucos. O filósofo contrasta duas facetas do homem: homo 
sapiens x homo faber. O primeiro nasce de uma atividade reflexiva do 
artífice sobre os artefatos e nos é antipático, é mera reflexão sobre a 
palavra, um tipo de inteligência que se subordina ao fazer. Contudo, a 
inteligência se beneficia do adestramento da mão – homo faber –, como 
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em uma criança que, construindo, experimenta as possibilidades 
no campo da abertura, do inusitado. A criança é espontaneamente 
ansiosa pelo mundo que se oferece diante de si, é aberta à novidade 
sem exigências prévias. Impaciente pela regra, está mais próxima da 
natureza que na idade adulta e é, concomitantemente, pesquisadora 
e inventora.
De modo análogo à experiência infantil, o fazer de Judith Scott 
responde à espontaneidade da criança: ela é excepcionalmente hábil 
no campo artístico e inábil para o cuidar de si cotidiano. Não obstante 
o homo sapiens não seja naturalizado, ele atende a práxis mais trivial. 
Nós o resgatamos reiteradamente visando suprir demandas da vida 
pragmática. O traço mais inato, próprio da essência humana, é o 
criar – material e moralmente –, fabricar e fabricar-se a si, próprio 
do homo faber. Aliás, isso é de fácil constatação quando, por exemplo, 
se observam sujeitos que, conformados pela atividade profissional, 
não raro sofrem com o prejuízo da qualidade de vida e da saúde. O 
trabalho de Judith Scott assumiu centralidade na sua existência – ela 
parece ter sido talhada pela atividade e à medida da obra:
A aparência física de Judith Scott é, até certo ponto, 
surpreendente, moldada por seu trabalho [...]. A pessoa que 
vemos hoje, aplicando-se com profunda concentração, deve 
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diferir de forma significativa do paciente institucionalizado 
de anos atrás, embora elementos que habitam aquela 
personalidade persistam em certos maneirismos inextirpáveis. 
[...] O senso de propósito tão evidente em sua forma de trabalho 
e nos seus gestos se transfere para tudo o que ela faz. Uma 
mulher pequena, de quatro pés e nove polegadas e meia de 
altura [aproximadamente 1,46m], ela é magra e forte da cintura 
para cima, e mais volumosa abaixo. O contraste marcante 
pode ser explicado pela tendência quase invariável de Judith 
para trabalhar sentada, onde o erguer e abaixar constante 
de seus braços, [movimentos] necessários em seu trabalho, 
refinam e moldam apenas a parte superior de seu tronco. 
Quando sentada, seus pés não tocam o chão. Judith é bem 
cuidada, impecavelmente arrumada com seu cabelo arranjado 
em constante mudança de estilos. Ela gosta de joias e sempre 
usa alguns colares de grandes contas multicoloridas, bem 
como pulseiras e pequenos grampos. (MACGREGOR; SCOTT; 
BORENSZTEIN, 1999, pp. 30-32, tradução nossa)
Judith Scott é homo faber, não foi aparelhada para a linguagem 
textual, intelectual, e privilegia o fazer. Assim, “a inteligência subirá 
da mão para a cabeça” (BERGSON, 2006, p. 96). Mas o fazer de Judith 
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Scott é, além de um pensar, também um instituir, criar. A atividade 
impacta sua corporeidade, a fragilidade cede quando ela se põe em 
obra com foco intenso, gestos lentos, cuidadosos, quase como se 
fossem calculados, como os de alguém que está muito apropriado, 
engajado em seu fazer.
Chegamos ao ponto de retomada de nossa consumição inicial. 
Se, ao buscar apreender uma mudança, decaímos inelutavelmente 
na espacialização, qual a saída e quem estaria mais bem provido para 
a percepção da mudança, sem a suscetibilidade de decair na fixidez, 
a ponto de retirar o fazer de sua trivialidade, e catapultá-lo ao âmbito 
do vital? 
Mas o problema da mudança parece preceder tais questões. 
Resgatar a mudança pode transformar e transfigurar tanto nossa 
impressão sobre as coisas quanto a reação da inteligência, da 
sensibilidade e da vontade – arriscamos, inclusive, reputar a liberdade. 
Falamos da mudança, mas não a percebemos ou pensamos nela; 
agimos como se não existisse, mesmo sabendo que é a própria lei 
das coisas, presente nas palavras e nos raciocínios. Segundo Bergson 
(2006, p. 151), há um “véu de prejuízos” entre nós e a mudança: 
“Conceber é um paliativo quando não é dado perceber, e o raciocínio 
é feito para colmatar os vazios da percepção ou para estender seu 
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alcance. [...] uma concepção só vale pelas percepções possíveis que 
representa”.
Sem renunciar às faculdades de concepção, Bergson propõe 
que nos voltemos para a percepção a fim de fazê-la dilatar seu campo 
de domínio. A insuficiência da percepção natural fez com que ela 
fosse completada com concepções, nivelando e sistematizando o 
conhecimento das coisas, mas isso acaba por reduzir ou eliminar as 
diferenças qualitativas, empobrecendo nossa visão. Se o alargamento 
da percepção é, em princípio, impossível, por outro lado o esforço pode 
tornar o objeto mais preciso, iluminá-lo e intensificá-lo, sem fazer 
surgir algo que já não estivesse ali a priori. Nesse sentido, os artistas 
seriam os mais hábeis: “[...] há séculos que surgem homens cuja 
função é justamente a de ver e de nos fazer ver o que não percebemos 
naturalmente. São os artistas” (Ibidem, p. 155).
A arte nos impressiona os sentidos e a consciência, na natureza, 
no espírito, dentro e fora de nós. Não foram poucos os artistas das 
vanguardas modernas que,visando depurar o campo perceptivo, 
passaram a adotar sistematicamente as descidas a campo, em 
manicômios, recantos exóticos ou no submundo, interessados no 
desenho infantil, no vício ou na condição de restabelecimento vivaz, 
após um longo período em que os sentidos estiveram dormentes 
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pela enfermidade. Estariam buscando um porto para ancorar suas 
percepções? Para Bergson, dentre as artes, a pintura é a linguagem 
que mais oferece possibilidade e espaço para a imitação6 ; os pintores 
exprimem certa visão das coisas e a tornam de todos, uma visão que 
a princípio é pessoal:
Um Corot, um Turner, para citar apenas estes, perceberam na 
natureza muitos aspectos que não notávamos. – Acaso se dirá 
que não viram, mas criaram, que nos entregaram produtos 
de sua imaginação, que adotamos suas invenções porque 
nos agradam e que simplesmente nos divertimos olhando a 
natureza através da imagem que os grandes pintores dela nos 
traçaram? – Isso é verdade, em certa medida; mas, se fosse 
unicamente assim, por que diríamos acerca de certas obras 
– a dos mestres – que elas são verdadeiras? Onde estaria a 
diferença entre a grande arte e a pura fantasia? Aprofundemos 
o que experimentamos diante de um Turner ou de um Corot: 
descobriremos que, se os aceitamos e os admiramos, é porque 
já havíamos percebido sem aperceber. Era, para nós, uma 
visão brilhante e evanescente, perdida nessa multidão de 
visões igualmente brilhantes, igualmente evanescentes, que 
se recobrem em nossa experiência usual como “dissolving 
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views” e que constituem, por sua interferência recíproca, a 
visão pálida e descolorida que temos habitualmente das coisas. 
O pintor isolou-a; fixou-a tão bem sobre a tela que, doravante, 
não podemos nos impedir de aperceber na realidade aquilo 
que ele próprio viu nela. (BERGSON, 2006, p. 156)
A arte é um liame possível entre o olhar e o fazer do criador, a 
obra que se faz e a extensão das faculdades perceptivas do espectador 
ampliadas, considerando que, inclusive, os criadores são espectadores 
potenciais, no processo e em processo, respectivamente, feitura e 
leitura. Mas, em geral, a maioria de nós tem mais apego à realidade. 
Somos orientados pela necessidade de viver e de agir; temos, portanto, 
uma visão mais estreita, talvez esvaziada, dos objetos, se comparada 
com a percepção do artista. 
A extensão na arte só é possível porque o artista tem menor 
preocupação – às vezes nenhuma, como é o caso aqui – com o lado 
positivo e material da vida. Assim, quanto maior a preocupação 
com a vida material, menor inclinação para a contemplação, as 
necessidades da ação normalmente limitam o campo de visão. O 
processo de encurtamento da percepção pelo qual passamos, reduz 
o mundo perceptivo à conceitos e explicações:
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[...] a percepção distinta é simplesmente recortada pelas 
necessidades da vida prática, num conjunto mais vasto. 
Gostamos, na psicologia e alhures, de ir da parte para o todo, 
e nosso sistema habitual de explicação consiste em reconstruir 
idealmente nossa vida mental com elementos simples, e 
depois supor que a composição desses elementos entre si tenha 
realmente produzido nossa vida mental. Caso as coisas se 
passassem assim, nossa percepção seria de fato inextensível; 
seria feita pela junção de certos materiais determinados, em 
quantidade determinada, e nunca encontraríamos nela algo 
diferente daquilo que nela foi depositado de início. Mas os fatos, 
quando os tomamos tais e quais, sem segundas intenções de 
explicar o espírito mecanicamente, sugerem uma interpretação 
inteiramente diferente. Mostram-nos, na vida psicológica 
normal, um esforço constante do espírito no sentido de limitar 
seu horizonte, de desviar o olhar daquilo que ele tem um 
interesse material em não ver. (BERGSON, 2006, p. 157)
Na vida cotidiana, operamos por seleção, colhemos em um 
extenso conhecimento virtual, para que possamos, então, constituí-lo 
atualizado, realizar nossa ação sobre as coisas e desprezamos o resto. 
Mas o conhecimento nasce por associação de elementos simples, é 
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efeito de uma dissociação brusca. O passado é geralmente afastado 
para ceder espaço para a situação presente, porém é uma eficiente 
fonte de esclarecimento e complementação útil. O cérebro efetua 
escolhas, atualiza lembranças úteis e sufoca as demais. A percepção 
opera de modo semelhante e auxilia na ação: classifica, categoriza 
e isola somente o que interessa em meio ao conjunto da realidade e 
oferece as coisas mesmas para que delas tiremos partido:
Mas, de longe em longe, por um acidente feliz, homens surgem 
cujos sentidos ou cuja consciência são menos aderentes à vida. 
A natureza esqueceu de vincular sua faculdade de perceber à sua 
faculdade de agir. Quando olham para alguma coisa, vêem-na 
por ela mesma, e não mais para eles; percebem por perceber – 
por nada, pelo prazer. Por um certo lado deles próprios, quer 
por sua consciência, quer por um de seus sentidos, nascem 
desprendidos; e conforme esse desprendimento seja o de tal ou 
de tal sentido, ou da consciência, são pintores ou escultores, 
músicos ou poetas. É, portanto, realmente uma visão mais 
direta da realidade que encontramos nas diferentes artes; e é 
pelo fato de o artista não pensar tanto em utilizar sua percepção 
que ele percebe um maior número de coisas. (BERGSON, 
2006, pp. 158-159, grifo do autor)
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Há indivíduos excepcionais, que não se furtam à expressão, 
e nos convocam de dentro de seu transbordamento vital. Diria Jean 
Dubuffet: homme du commun et hommes hors du commun [homens 
comuns e homens fora do comum] (THÉVOZ, 1980, LOMBARDI; 
PEIRY, 2012), referindo a capacidade de capturar o trivial e elevá-
lo à substancialidade existencial. Se há um latente mnemônico na 
obra de Judith Scott, ele encontra ressonância em suas experiências, 
relevantemente cotejando uma vida familiar na primeira infância 
e a longa estadia em instituições totais, iniciada próximo ao período 
da idade escolar.
Como um fotógrafo, que nos rouba o olhar para aquilo que está 
sendo invocado com um intrigante índice de indeterminação, Judith 
Scott nos faz ver, e dá a ver, a tessitura que perpassa sua epopeia em 
fios, pontuada por texturas e por matizes. A narrativa nos assalta, seja 
por sua contundência, por sua veemência ou por uma cumplicidade 
solidariamente concedida. Diante das obras, deparamo-nos com 
a relação humana mais primeva e, talvez, a mais longeva: aquela 
que se estabelece pelos laços de sangue, entre irmãos, e segue vida 
afora. Uma vez entrelaçadas, o vínculo se torna perene, a exemplo 
de sua história, quando resgatada pela irmã gêmea após anos em que 
estiveram distantes. 
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De algum modo misterioso, a falta de letramento da criadora 
acabou por corroborar e impulsionar a inventividade linguística e foi 
decisiva. Esse elemento positivo no processo de Judith Scott tornou a 
privação em articulação e reinvenção. Ao instaurar uma linguagem 
própria, ela adotou um caminho alheio ao conceito, priorizando a 
percepção. Esse contexto possibilitou-lhe uma vazão intuitiva, fazendo 
com que se abandonasse à duração e ao movimento. A existência não 
pode ser um agregado, um composto de estados desarticulados, do 
contrário, a duração não existir.Desfrutamos nossa relação com o mundo empregando uma 
parte muito pequena, tímida, de nosso repertório pregresso, contudo: 
“[...] é com nosso passado inteiro, inclusive nossa curvatura de alma 
original, que desejamos, queremos, agimos. Nosso passado, portanto, 
manifesta-se integralmente por seu impulso e na forma de tendência, 
ainda que apenas uma sua diminuta parte se torne representação”, 
(BERGSON, 2005, p. 6) esclarece o filósofo, enraizando na memória 
a fonte de suprimento para a sobrevivência e para a vontade. 
Retomamos o liame que nos trouxe a este ponto, e com o qual 
abandonaremos o leitor. O que, de fato, retira o fazer arte do âmbito 
do fazer ordinário é o pleno exercício da liberdade, que se realiza na 
plena negligência às atitudes protocolares do cotidiano, normativas 
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e servis. A tomada de posição é um dever/devir político; o que lhe 
confere estatuto privilegiado é a ousadia da transgressão – ou traição, 
palavra que partilha o radical com tradução – ao curso banal da vida, 
que permeia as expressões artísticas, abandona-as na temporalidade 
e que é, também, vital e criadora da vazão à fruição de um certo todo.
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NOTAS
1 Dados biográficos compilados em OLIVEIRA (2017). 
 
2 Notas da entrevista que Joyce Scott concedeu a John M. MacGregor em 17 de fe-
vereiro de 1998 (MACGREGOR; SCOTT; BORENSZTEIN, 1999, p. 52, tradução nossa). 
3 Segundo a antropóloga Lélia Coelho Frota, Arte Ínsita, como definição do termo em 
latim insitus, que significa inato (FROTA, 1978, 2006). 
4 Estabelecemos distinção entre forma e configuração, nos termos da Gestalt. As formas 
não estão restritas aos dados físicos aos quais estamos submetidos, são determinadas para 
além de sua silhueta. Imagens visuais são frutos da totalidade das experiências dos sujeitos, 
noção compatível com a filosofia bergsoniana, aliás. Porém, a configuração abrange uma ain-
da maior gama de elementos, é um vão entre o objeto físico, as inflexões do meio, o aparato 
sensível do observador e sua relação com o entorno, além de lapidar contornos do mundo cul-
tural. Cf. ARNHEIM (1997). 
5 Fazemos uma parada para esclarecer noções e resguardar peculiaridades. O uso do 
termo inefável, no campo da arte, relaciona um inominado ou indescritível, porém intenso e ine-
briante prazer diante do belo. Mas o filósofo emprega inefável para esclarecer que nada há de 
misterioso na duração real, trata-se do tempo, que é percebido como indivisível. Cf. BERGSON 
(2006, p. 172). 
6 Devido à anacronia dos protagonistas deste estudo, assumiremos que a linguagem 
têxtil de Judith Scott está compatível com a noção que Bergson aqui atribui à pintura, de forma 
ampliada.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 
 
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criadora / trad. Yvonne Terezinha de Faria. São Paulo: Pioneira, Editora da 
Universidade de São Paulo, 1997.
BELTING, Hans. A Exposição das Culturas / trad. A. Morão. Project Ymago. 
Porto, Portugal: Ymago News Edições e Conferências, documento no ar 
desde 2011. Disponível em: <http://www.proymago.pt>. Acesso em: fev. 
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BERGSON, Henri. Ensaio sobre os dados imediatos da consciência. Lis-
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BERGSON, Henri. Evolução criadora. 2ª ed. Coleção Tópicos. Trad. Bento 
Prado Neto. São Paulo: Martins Fontes, 2005b.
BERGSON, Henri. O Pensamento e o movente. Ensaios e conferências. 
São Paulo: Martins Fontes, 2006.
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SOBRE A AUTORA
 
Solange de Oliveira é doutora em Psicologia Social pelo Instituto 
de Psicologia da USP, e pós-doutorada em Estética e Filosofia 
Contemporânea, pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências 
Humanas da USP. Há dez anos desenvolve pesquisa de fenome-
nologia estética sobre a produção de criadores iletrados artisti-
camente, que se expressam através da imagem prioritariamente 
à linguagem verbal. Foi docente na área de formas expressivas 
no Departamento de Artes Visuais e Design da Universidade 
Federal de Sergipe (DAVD/UFS) e atualmente mantém uma plata-
forma de conteúdo digital, o Ateliê Tessitura, que aborda a arte, 
entre a fruição e a reflexão existencial. 
Artigo recebido em 16 de 
junho de 2021 e aceito em 26 de 
setembro de 2021.

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