“Tud dret?” “Nau, noiti levou” ou o novo ritmo dos tambores da guerra - Expresso

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“Tud dret?” “Nau, noiti levou” ou o novo ritmo dos tambores da guerra

Janela em Cabo Verde, de Hélder "Doca"

No sábado, devagarinho, comecei a preparar esta conversa em forma de newsletter, mas, enquanto tricotava as primeiras palavras, com a cabeça posta em outras paragens, um cargueiro com pavilhão português era atacado no Estreito de Ormuz. Muito mais importante do que a bandeira ou a tripulação, composta sobretudo por indianos, é a propriedade do navio, de um empresário israelita. Soaram ali as sirenes de que se iniciava a tão aguardada reação iraniana ao ataque das forças israelitas à representação diplomática iraniana em Damasco a 1 de abril, matando sete elementos da Guarda Revolucionária. E enquanto eu ainda insistia, o contexto internacional deitava por terra as minhas intenções.

Não queria abrir mão de vos lembrar que daqui a dez dias cumprir-se-ão 50 anos sobre o 25 de Abril. Em dez dias muito acontece. O jornalista John Reed escreveu sobre os “Dez Dias que Abalaram o Mundo” e sobre a revolução que ainda hoje nos impacta. Daqui a dez dias muitos portugueses vão procurar o sol na Avenida de nome Liberdade. Outros vão recordar-se com nostalgia do tempo que antecedeu a Revolução dita dos Cravos. Mas em muito menos tempo, numa noite, Irão e Israel marcaram um novo ritmo dos tambores da guerra.

Há menos de dez dias eu estava a trabalhar em África, sob o vento que empurra as nuvens que escondem o céu azul da Ilha de São Vicente e que, egoístas, preferem chover no mar a molhar a terra ávida de Cabo Verde. Pensava recordar-vos que daqui a dez dias, Portugal comemora a opção pela Democracia e as ex-colónias portuguesas começam a celebrar a aproximação da Independência, um processo traumático e ainda com muitas feridas por sarar. Na África que alguns dizem não ser africana, na África cabo-verdiana, há todo um mundo mágico e muito real por descobrir. Um mundo em que o crioulo é uma síntese identitária e não uma agressão, como muitos sentem ao serem chamados assim no meu país, o Brasil.

Mas, na noite de sábado, o aguardado ataque do Irão sobre Israel foi anunciado, ainda antes de acontecer, deitando por terra as minhas pretensões. Guardei para mim as contradições que trouxe de Cabo Verde, deixei de lado a memória da conversa mansa com o fotógrafo “Doca”, autor da fotografia que acompanha esta newsletter, na peculiar cidade do Mindelo, aonde a língua portuguesa vai perdendo espaço social e o crioulo assume-se como língua afetiva, e onde apesar dos afastamentos, Portugal está muito mais próximo do que as quatro horas da viagem de avião. De tudo o que vos queria contar, ficou apenas o título, em homenagem à esperança de um país em construção. Quando se encontram, os cabo-verdianos cumprimentam-se: “Tudo dret?” [Tudo bem?] E quando se despedem, dizem: “Fca dret.” [Fica bem] Que assim seja. Apesar da noite de sábado.

Os ecrãs dos canais noticiosos mancharam-se de vermelho, alertando para a aproximação de um enxame de centenas de drones e mísseis iranianos a Israel. Os espaços aéreos da Jordânia, do Iraque e de Israel foram encerrados e os céus serviram de palco para se perceber quem apoiava quem. Os aviões norte-americanos, franceses e ingleses ajudaram a interceptar os drones, autorizados a voar sobre a Jordânia, mas também vieram mísseis do Iraque e do Iêmen.

Depois de 40 anos de investimento no sistema de defesa conhecido como a Cúpula de Ferro, Israel vangloriou-se de que praticamente a totalidade dos armamentos foram interceptados, sem causar danos maiores, até porque, o principal destino foi o deserto de Negev, sinalizando que se tratava de um aviso e não de uma real ofensiva sobre os israelitas. Mas a tensão, já de si enorme, intensificou-se. E ficou claro que se a defesa foi eficaz, assim foi com a ajuda de todos os países referidos.

Joe Biden não perdeu tempo e classificou o ataque - mais do que avisado pelos serviços de informação dos Estados Unidos - como “descarado”, numa mensagem direcionada aos eleitores norte-americanos, muitos dos quais críticos do apoio a Israel. Ainda está por ver o efeito nas pesquisas de opinião.

A condenação internacional foi geral, incluindo a NATO e União Europeia, demonstrando que tinha sido ultrapassado o crescente isolamento de Israel. Na ONU, a reunião do Conselho de Segurança acabou sem consenso e António Guterres condenou o ataque, mas também recordou a inviolabilidade dos espaços consulares e apelou à "máxima contenção", frisando que é “hora de recuar do abismo”. O G7 também se reuniu e prometeu apostar na diplomacia. Amanhã reúnem-se os chefes da diplomacia da UE para discutir um novo pacote de sanções contra o Irão.

O Irão sabe que esta jogada no xadrez do conflito lhe é mais desfavorável externamente do que positiva, mas era-lhe incontornável dar este passo. Como incontornável será a resposta israelita, numa coreografia de ofensivas para que as faces dos governantes não caiam por completo perante as respetivas opiniões públicas. Em Israel, Benjamin Netanyahu enfrenta um enorme nível de rejeição e no Irão, a contestação interna se arrasta há muito.

Todos reivindicam o direito à legítima defesa para justificar um novo ataque e de ataque em ataque, ficámos nós com a respiração em suspenso. O Gabinete de Guerra de Israel aprovou uma resposta, sem anunciar nem quando nem como. Biden já avisou que não acompanhará Netanyahu na reação. O que ainda não parou foram os bombardeamentos em Gaza.

Em Teerão, Ali Khamenei reiterou que Jerusalém ainda será dos muçulmanos. Entretanto, a Reuters avançou que o Irão avisou os países vizinhos e os Estados Unidos com 72 horas de antecedência que lançaria os ataques, permitindo-lhes travar a ofensiva. Hoje, a mesma agência veio dizer que os EUA desmentem terem sido avisados.

No mundo de todos nós, os olhos tentam definir as consequências económicas deste ataque. Os níveis inflacionistas em vários países continuam por controlar, as taxas de juros permanecem à espera da ordem dos bancos centrais para baixar e a nós resta-nos esperar para ver como se vai comportar o preço do petróleo. Entretanto, as bolsas asiáticas abriram a sessão a perder.

O editorial do “Observer” de ontem alertava que “os líderes ocidentais devem fazer tudo o que puderem para evitar que uma reação exagerada de Netanyahu conduza a uma guerra regional total”. "Um confronto aberto entre os EUA e o Irão dividiria as democracias ocidentais, esfriaria a economia global, desestabilizaria os estados árabes pró-ocidentais, impulsionaria as ambições geopolíticas da China e marginalizaria a luta contra a intensificação da agressão russa na Ucrânia. Mais do que isso, seria um presente para Netanyahu e os seus aliados de extrema direita, cuja única política é a guerra perpétua.”

Muito interessante é a análise feita pelo jornal alemão “Die Welt”, que explica porque o ataque sem precedentes do Irão foi, sobretudo, “uma vitória política para Israel”. Depois de explicar as razões ideológicas da longa “guerra paralela” entre o Irão e os israelitas, desde 1979, quando os ayatollahs chegaram ao poder em Teerão. Mais do que a capacidade de autodefesa israelita, o jornal sublinha a participação dos Estados Unidos, Reino Unido e França na reação ao ataque e, principalmente, a colaboração da Jordânia e até de sauditas, que também terão derrubado alguns drones.

Quanto às possíveis reações israelitas, aposta num ataque aos centros de produção de drones, o que também seria benéfico para a Ucrânia, ou na destruição do programa nuclear iraniano “O Irão deu agora a Israel uma boa razão para eliminar esta ameaça através de meios militares”, afirma o editor de política externa do periódico alemão.

Para já, pouco mais de uma dezena de cidadãos portugueses disseram querer sair de Israel e 47 tentam abandonar o Irão e o governo diz que tem tudo pronto para os ajudar. A Lusa cita fonte do Ministério dos Negócios Estrangeiros para acrescentar que Portugal vai continuar a “desenvolver todas as diligências previstas e adequadas" relativamente ao navio com pavilhão português capturado pelas autoridades iranianas. Entretanto, o embaixador de Portugal em Teerão reuniu-se ontem com o chefe da diplomacia do Irão, para obter mais esclarecimentos e percebeu que a tripulação foi libertada. O Presidente convocou para amanhã uma reunião do Conselho de Defesa Nacional.

E mais…

Internamente, mantêm-se as críticas da oposição e as justificações do Governo sobre a dimensão real dos cortes no IRS, um tema que está para continuar porque a oposição pede mais explicações e o PS quer um debate de urgência. Hoje será entregue no Parlamento o Programa de Estabilidade.

Também foram divulgadas as vagas deste ano para o Ensino Superior, em que salta à vista o reforço na oferta em Lisboa e a diminuição no interior, e o aumento de lugares em Medicina e sobretudo na área digital.

O Chega foi punido pela Meta, empresa que detém o Facebook, e durante dez anos terá a sua atuação na rede social restringida. Em causa, o desrespeito pelas normas da comunidade.

Para não dizer que não falei de desporto, há que recordar que o Bayer Leverkusen sagrou-se campeão alemão pela primeira vez em mais de um século.

No mais, o mundo pareceu quase ter parado, à espera da dança macabra no Médio Oriente.

A agenda desta semana fica marcada pelo fim da visita da delegação chinesa à Coreia do Norte, com Pequim a receber o chanceler alemão, Olaf Scholz. Já o primeiro-ministro português deverá deslocar-se a Madrid para encontrar-se com o homólogo espanhol.

Donald Trump se tornará no primeiro ex-presidente dos Estados Unidos a ser submetido a um julgamento criminal quando comparecer a um tribunal de Nova York nesta segunda-feira. Inédito também será ver o candidato republicano a fazer campanha para um novo mandato enquanto se defende das acusações de que dirigiu um esquema ilegal para pagar uma estrela da pornografia.

Em Paris assinala-se hoje a passagem de cinco anos sobre o incêndio que destruiu boa parte da Catedral de Notre-Dame, fazendo desabar a torre central e grande parte do teto. A reinauguração está prevista para dezembro. E na quarta-feira arranca a pré-abertura da Bienal de Arte de Veneza, sob o título "Estrangeiros por toda parte”, com o brasileiro Adriano Pedrosa como curador e com a representação portuguesa a ser protagonizada por um jardim crioulo.

Internamente, depois de semana passada ter acontecido uma reunião inicial entre a nova ministra da Administração Interna e os representantes das forças de segurança, nos próximos dias espera-se a primeira reunião entre o ministro da Educação e os sindicatos dos docentes.

O que ficou da semana passada:

Transições O tema é muito sério e complexo e merece mais espaço e aprofundamento, mas fica a nota. Como noticiou o “New York Times”, “o Serviço Nacional de Saúde de Inglaterra começou a restringir os tratamentos de género para crianças este mês, tornando-se o quinto país europeu a limitar os medicamentos devido à falta de provas dos seus benefícios e à preocupação com os danos a longo prazo”. O NHS não oferecerá mais medicamentos que bloqueiem a puberdade, exceto a pacientes inscritos em pesquisas clínicas.

A única certeza neste assunto é que a pressa é má conselheira, em qualquer uma das direções e por isso, em Portugal, mediante a mudança de governo e a discussão do que cabe sob o chapéu da família conservadora, a equipa que trabalha a saúde da comunidade LGTBQIA+ foi integrada na Direção-Geral da Saúde, como um Grupo Consultivo para a Diversidade Sexual e de Género, de forma a garantir que o trabalho já desenvolvido irá continuar.

Acusações O bilionário Elon Musk acusou o juiz brasileiro do Supremo Tribunal, Alexandre de Moraes, de “ditador” por o ter incluído num processo sobre milícias digitais e prometeu que caso a sua empresa “X” fosse punida não iria cumprir a determinação judicial e retiraria os funcionários do Brasil. A guerra continua aberta e especialistas ouvidos pela revista “Wired” alertam que Musk está a “usar o Brasil como laboratório para interferir na política local”.

Frases:

. “A acção militar do Irão foi em resposta à agressão do regime sionista contra as nossas instalações diplomáticas em Damasco. O assunto pode ser considerado concluído. No entanto, se o regime israelita cometer outro erro, a resposta do Irão será consideravelmente mais severa. É um conflito entre o Irão e o regime israelita desonesto, do qual os EUA devem ficar longe!”, Missão do Irão nas Nações Unidas

. “O Presidente Biden foi claro: o nosso apoio à segurança de Israel é inflexível. Os Estados Unidos estarão ao lado do povo de Israel e apoiarão a sua defesa contra estas ameaças do Irão”, Adrienne Watson, porta-voz da Segurança Nacional dos EUA

Podcasts:

. “Posso pedir à IA que faça uma obra ao estilo de Picasso e ela faz. Ainda não sabe é fazer um novo estilo de arte que venha a ter sucesso”, no último episódio do podcast “A Próxima Vaga”, Francisco Pinto Balsemão conversa com Arlindo Oliveira, professor do Instituto Superior Técnico;

. Neste episódio do podcast Retratos de Abril, conta-se como a 29 de março de 1974, o Coliseu dos Recreios encheu-se para assistir ao primeiro encontro da canção portuguesa e como no final, cantou-se “Grândola Vila Morena”, música de Zeca Afonso editada em 1971 e que escapou milagrosamente à censura. Dias depois, esta seria uma das senhas do 25 de Abril.

O que estou a ler. E ver:

Ainda de olhos postos em Cabo Verde aviso que há que ter atenção ao novo livro do fotógrafo João Pina, “Tarrafal”, uma viagem à memória dos presos políticos de Portugal na ilha da Morte Lenta. Há dois anos, tive o prazer de levar João Pina e a sua mãe Herculana, à prisão de Peniche de onde Guilherme, avô de João e pai de Herculana, fugiu, a verem pela primeira vez o misterioso álbum de fotografias com imagens dos bisavós de João e da viagem que empreenderam à prisão em Cabo Verde para visitarem o filho. Uma história sobre um tempo em que a Liberdade era um conceito distante, agora recontada e aprofundada e que nas páginas da revista do Expresso foi pela primeira vez mostrada publicamente.

Na semana passada, Lisboa acolheu o encontro “Aos Museus, Cidadãos!”, conferência internacional que visava convocar as comunidades a participarem em instituições que se espera sejam espaços abertos à diversidade e à liberdade e promotoras do desenvolvimento da cidadania. O tema da Cultura, vê-se bem num país jovem como Cabo Verde, é fundamental para a construção da identidade e por isso deve ser tratado com cautela, porque o conceito de identidade merece múltiplas e variadas interpretações. E manipulações.

A este propósito, um recente artigo do “Financial Times", o diretor-geral do Rijksmuseum, em Amsterdão, debruçou-se sobre o polémico tema das restituições de bens culturais aos países originários. “Eu costumava pensar na restituição como uma solução – politicamente, certamente. Se você apenas retribuir, então está acabado. Mas agora acho que é apenas o começo. Parte de um processo. Temos uma relação com alguns países há centenas de anos, uma relação que não era nada igualitária – os erros que foram cometidos não podem ser desembaraçados apenas dizendo: 'OK, você recebe isso de volta’.” Joris Bijdendijk acredita que a propriedade conjunta e o acesso compartilhado podem funcionar.

Na entrevista, diz que, “acima de tudo”, acredita que “os museus nacionais refletem o que é um país. Os museus dos EUA são o triunfo do indivíduo, na França é o Estado, na Holanda é um esforço de grupo. E estou cada vez mais interessado em saber como as instituições nacionais estão ligadas à história do país” – tanto para compreender o passado como para ver o caminho a seguir.” Fiquei a pensar: E os museus portugueses, que identidade têm? Que reflexão nos provocam? Que país refletem? Em Cabo Verde vi o Centro Nacional de Arte, Artesanato e Design (CNAD), que nem é um museu, trabalhar para ajudar a construir a identidade de uma nação.

E por falar em preservar memórias e identidades, não posso partir sem recordar que há cerca de dez dias Aílton Krenak, poeta, pensador e, sobretudo, representante das comunidades indígenas, entrou de pleno direito na Academia Brasileira de Letras, vetusto templo da língua portuguesa e da literatura no Brasil. Apresentou-se com a proposta revolucionária, não “ampliar a lusofonia, mas promover uma sinfonia, ou seja, de abraçar as mais de 200 línguas indígenas do Brasil. Aproveito para recordar quando Aílton cantou na Gulbenkian para o Expresso.

Antes de nos despedirmos, desejando um bom dia, bons dez dias seguintes, e prometendo continuar por aqui a cumprir a missão de informar com rigor, para nos fazer agir em consciência, peço que não se esqueçam dos jornalistas. Que não se esqueçam das dezenas de profissionais mortos e ainda mais feridos. Que não se esqueçam dos jornalistas em Gaza, que enfrentam os seis meses mais mortíferos alguma vez registados. E pensem neles quando, de repente, alguém usar uma expressão perigosa: jornalixo. Essa palavra não nos representa, nem a estes resistentes.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: CAMartins@expresso.impresa.pt

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