O centen�rio de "Totem e Tabu"
"Eu sou todo 'Totem e Tabu'"
(Freud em carta a S�ndor
Ferenczi, em 11/8/1911)
RESUMO No final de 1913, Sigmund Freud publicou um de seus mais c�lebres textos, "Totem e Tabu". Nesse ensaio, o fundador da psican�lise visava recontar a hist�ria da forma��o do homem, tomando como mito fundador da cultura e s�mbolo do mecanismo sacrificial de nossa sociedade um parric�dio antropof�gico.
*
Pode-se dizer que a recep��o do ensaio "Totem e Tabu", de Sigmund Freud, condensa de modo exemplar a hist�ria da recep��o da psican�lise. Se esta foi recebida, desde o seu in�cio, de maneira amb�gua, com detratores radicalmente destrutivos e leituras entusi�sticas, esse ensaio, escrito a partir de 1912 e publicado em 1913, at� hoje divide seus leitores.
"Totem e Tabu", esse trabalho que procurava um p�blico mais amplo, para al�m dos psicanalistas, como escreveu Freud na apresenta��o ao livro, visava formular nada menos do que uma nova "cosmologia": Freud se coloca, assim, n�o s� ao lado de S�focles, como escreveu L�vi-Strauss, mas ao lado de Hes�odo, autor da "Teogonia".
Os homens, na era de Darwin, n�o descendem mais de deuses, mas, sim, de macacos. Freud assume a tarefa de narrar a origem da hominiza��o a partir de um passo fundante, que o jogou dentro da vida em sociedade, regida por regras (tabus) e n�o mais apenas pela for�a do patriarca desp�tico (figura cuja for�a se manifesta nos totens).
Essa narrativa do pacto social j� tinha sido feita por in�meros fil�sofos modernos: mas Freud foi o primeiro a realiz�-la na era de Darwin, ou seja, ap�s a "queda" de nossa origem nobre e divina e no contexto da modernidade avan�ada.
Foi justamente um pensador que, aos olhos da Europa antissemita, "veio de fora", ainda que tenha vindo de seu interior mais profundo (nasceu no antigo Imp�rio Austr�aco, em cidade que hoje integra a Rep�blica Tcheca), quem tomou sua pena para redigir novamente a hist�ria de nossa origem.
Fabio Braga/Folhapress |
Obra da artista pl�stica Estela Sokol |
Se Darwin tornara "indigna" e abjeta nossa origem, Freud deu um passo a mais, ao colocar no centro da cultura um assassinato e um repasto antropof�gico. Para ele, tornamo-nos humanos ap�s uma insurrei��o dos filhos, membros da horda primeva, que, revoltados contra o despotismo do pai, tomaram-lhe o poder, o mataram e o devoraram. Essa hist�ria estaria esquecida, enterrada na origem da humanidade.
Mas, do ponto de vista de Freud, n�o existe esquecimento. Essa verdade est� apenas recalcada. Sua sombra se lan�a sobre toda nossa hist�ria e o complexo de �dipo � a atualiza��o individual de um drama social. Essa narrativa sintetizava todo um saber antropol�gico, etnol�gico, filos�fico, hist�rico, social e psicanal�tico.
A partir da sua ci�ncia e de sua posi��o hist�rica, Freud teve a possibilidade aberta de redesenhar nossa origem e, assim, nossa identidade. De seu lugar deslocado, dentro e fora, ele se sentiu � vontade para realizar pontes entre diversas �reas, p�r em circula��o um saber que tendia a se cristalizar em disciplinas estanques, alienadas de seu objeto: o ser humano.
De representante de um grupo social que era v�tima de uma raz�o monol�gica e cega � diferen�a que tendia, por meio de uma identifica��o mec�nica com o pr�prio e de uma rejei��o feroz do "outro", a excluir e matar o "diferente", Freud conseguiu dar uma virada hist�rica e se tornar um designer da nova humanidade p�s-Darwin.
OUTROF�BICO
Seu design, no entanto, era tudo menos uma teoria monol�gica. Ao inv�s de uma antropologia calcada na exclus�o, Freud vai descrever e desconstruir esse mecanismo outrof�bico e a raz�o genocida tanto em "Totem e Tabu" quanto em ensaios como "Psicologia das Massas e An�lise do Eu" ou "O Mal-estar na Cultura".
Sua percep��o cr�tica do mecanismo sacrificial na base da costura do am�lgama social leva-o a sair do local do sacrificado (o judeu como bode expiat�rio) para galgar a posi��o de um analista desconstrutor desse mecanismo.
Sua busca incessante pela aceita��o da psican�lise deve ser posta em paralelo com a sede de aceita��o dos judeus em meio a uma sociedade de gentios. Freud e seu desejo de "ocupar o lugar do pai" -pai de uma nova ci�ncia, mas tamb�m pai e criador da imagem desse novo humano, caracterizado por seus traumas e faltas- respondeu assim tamb�m � demanda dos judeus de reconhecimento e integra��o na cultura iluminista europeia.
Sua obra testemunha sua �poca e a posi��o dos judeus na sociedade austro-h�ngara. Aquele que "vem de fora" (desse fora de dentro) tem a vantagem de possuir uma outra mirada, uma vis�o cr�tica que lhe faculta uma an�lise da sociedade e de seus mecanismos.
Desse local outro, dentro e fora, Freud se debru�a sobre a humanidade para novamente narrar sua hist�ria. Seu mito fundador -ao lado da descri��o darwinista da origem da humanidade- se tornou a pedra de toque de nossa autoimagem.
Se existe uma no��o recorrente na obra freudiana � a que remete � estrutura temporal complexa, multiestratificada tanto da constru��o de nossa psique como da cultura. Um termo-chave para a compreens�o do sujeito e da cultura como complexos que re�nem convergindo diversas temporalidades em um ponto �, sem d�vida, o conceito de trauma, que atravessa toda a hist�ria da psican�lise.
Se existem traumas que nos constituem individualmente, Freud, sobretudo a partir da Primeira Guerra Mundial, enfatiza tamb�m os desastres e cat�strofes que deixam nossa cultura e sua mem�ria como uma paisagem compar�vel a um ac�mulo de escombros.
Ao abordar, em "Totem e Tabu", a origem da nossa esp�cie, ele vai justamente destacar nosso trauma constitutivo, aquilo que nos humaniza: um assassinato, um parric�dio. Freud pretendia iluminar os "paralelos do desenvolvimento ontogen�tico e filogen�tico da vida an�mica". Pacientes que sofriam de dem�ncia precoce teriam cria��es fantasiosas que apresentam concord�ncias com cosmogonias mitol�gicas dos povos antigos.
A vida an�mica infantil, que � comum aos "primitivos" e aos pacientes com doen�as psicol�gicas, deveria explicar essa proximidade. A inf�ncia da humanidade se cruza com nossa inf�ncia ontogen�tica.
Como Freud formula no pref�cio de "Totem e Tabu": "Faz-se neste livro uma tentativa de deduzir o significado original do totemismo dos seus vest�gios ['Spuren'] remanescentes na inf�ncia -das insinua��es dele que emergem no decorrer do desenvolvimento de nossos pr�prios filhos"�.
Observamos aqui uma complexa estrutura temporal, com v�rias camadas, que faz com que se vislumbre irrompendo no ser humano adulto moderno tanto o "primitivo", que ainda viveria dentro dele, como sua inf�ncia, que o estruturaria psicologicamente.
Os que sofrem de doen�as ps�quicas servem como exemplos privilegiados, j� que neles nossa estrutura "traum�tica" estaria como que exposta � luz do dia. Apesar de, ao tratar dos povos ditos "primitivos", Freud n�o ter conseguido se livrar da vis�o linear, evolucionista e euroc�ntrica, suas conclus�es s�o totalmente sustent�veis ainda hoje.
Toda a leitura que Freud realiza de nosso passado tem a ver com uma dupla necessidade. Por um lado, ele buscava comprovar a psican�lise com base na hist�ria da humanidade -e consequentemente afirmar sua verdade e validade.
Por outro lado, sua leitura do passado da esp�cie humana deriva de uma nova possibilidade de interpreta��o desse passado comum que apenas a psican�lise poderia nos abrir. Essa interpreta��o se d� na chave do trauma.
CHOQUES
Freud fez na ci�ncia aquilo que, antes dele, Baudelaire havia feito na poesia e na literatura: a constru��o do indiv�duo moderno como aquele que tem de conviver com choques, traumas e cat�strofes. A modernidade � traum�tica, arranca o indiv�duo da tradi��o e o lan�a no desabrigo, no "Unbehagen", mal-estar que nos define.
A esse indiv�duo, Baudelaire e Freud fornecem uma nova mitologia. A experi�ncia prosaica do homem moderno est� repleta de choques, de embates com o perigo.
Freud, nesse ensaio brilhante, est� todo o tempo tra�ando e apagando as fronteiras entre o pensamento m�gico e o cient�fico. Para ele, "um sistema � mais bem caracterizado pelo fato de pelo menos duas raz�es poderem ser descobertas para cada um de seus produtos: uma raz�o baseada nas premissas do sistema (uma raz�o, que pode ser, ent�o, delirante) e uma raz�o oculta, que devemos julgar como sendo a verdadeiramente operante e real ['eigentliche wirksame und reale']."
Com rela��o a "Totem e Tabu" caberia-nos perguntar, para al�m do motivo sist�mico evidente, por que o mito do parric�dio teve que ser descrito? Qual a raz�o verdadeiramente operante e real para sua exist�ncia?
Creio que o determinante desse mito violento � o pr�prio s�culo de cat�strofes que deu luz a esse mito -e Freud o projetou no alvorecer da humanidade.
Tem como fundo real a realidade da viol�ncia: Freud publicou "Totem e Tabu" �s v�speras da Primeira Guerra Mundial e seu texto "irm�o", "Mois�s e o Monote�smo", �s v�speras da Segunda Guerra. Mera coincid�ncia?
Os dois maiores rituais violentos e sacrificiais do s�culo 20 foram de certo modo antecipados teoricamente por esses ensaios -que cont�m a ideia e sacrif�cio no seu centro. O "del�rio" tem de fato uma fun��o mais do que sist�mica, ele tamb�m deve expressar um "real" que estava ali se anunciando, irrompendo.
GRANDE ESTILO
Quando, no terceiro item do quarto cap�tulo, Freud anuncia a visada psicanal�tica como aquela que poderia esclarecer os debates em torno do totemismo, ele o faz em grande estilo, com um pequeno par�grafo de uma linha: como o an�ncio de um grande espet�culo.
Ap�s ter apresentado no item anterior a descri��o que Darwin deu da horda primeva, com a exogamia sendo imposta pela for�a do macho mais forte que tomava para si todas as f�meas do bando, e ap�s ter apontado para uma confus�o quanto � origem dessa exogamia com rela��o ao totemismo, Freud inicia assim sua narrativa: "Nessa obscuridade, um raio de luz isolado � lan�ado pela observa��o psicanal�tica".
Ele passa ent�o, em um movimento t�pico do m�todo de "Totem e Tabu" (e de seus ensaios sobre teoria da cultura), para os exemplos e descobertas advindos dos estudos de caso na psican�lise: Freud lan�a luz no arquivo da cultura a partir dos esclarecimentos que a psican�lise obteve no estudo do arquivo-indiv�duo. O microcosmo � a chave do macrocosmo, como na tradi��o cabal�stica.
Assim como, segundo Arist�teles, no centro da trag�dia devemos ter a a��o, o mesmo se passa com a cena de nossa origem narrada por Freud. "No in�cio foi o ato"� � a frase que ele utiliza para concluir esse ensaio, citando as palavras do "Fausto", de Goethe.
As trag�dias s�o para ele irrup��es do hist�rico, da viol�ncia e (re)encena��o de sua for�a destruidora em um presente. Devemos ver como tamb�m a pr�pria constru��o freudiana deve ao seu presente de guerras, de antissemitismo, de autoafirma��o dos judeus europeus, de ruptura com a tradi��o -e com os pais.
"Certo dia, os irm�os que tinham sido expulsos retornaram juntos, mataram e devoraram o pai, colocando assim um fim � horda patriarcal." Como em uma hist�ria dos irm�os Grimm, ou em um mito, a narrativa de nossa origem inicia-se com a express�o "Certo dia". Uma ci�ncia lastreada em um mito? Sim, mas qual n�o o �, perguntaria Freud.
A diferen�a � que a psican�lise como ci�ncia "sui generis" permite-nos assumir esse elemento m�tico-imag�tico-narratol�gico no interior do pensamento mais rigoroso.
Com essa imagem em m�os, Freud apresenta a chave de leitura de toda a hist�ria da cultura: "Todas as religi�es posteriores s�o vistas como tentativas de solucionar o mesmo problema. [...] todas t�m o mesmo fim em vista e constituem rea��es ao mesmo grande acontecimento com que a cultura come�ou e que, desde que ocorreu, n�o mais concedeu � humanidade um momento de descanso"�.
Tamb�m as tentativas de organiza��o social s�o fundamentalmente determinadas por aquele evento. Afinal, "um acontecimento como a elimina��o do pai primevo pelo grupo de filhos deve inevitavelmente ter deixado tra�os inerradic�veis ['unvertilgbare Spuren'] na hist�ria da humanidade".
Trata-se do inapag�vel por excel�ncia, da funda��o da cultura, por mais profunda na noite do tempo que ela se encontre. Freud reatualiza toda uma tradi��o hobbesiana que v� na pol�tica uma arte de controlar o outro pela viol�ncia, assim como introduz na ci�ncia pol�tica, com energia, uma potente teoria do sacrif�cio, que vem sendo reatualizada nos �ltimos anos por autores como Giorgio Agamben e sua figura do "homo sacer" (figura essa que pode ser muito bem lida/constru�da a partir de "Totem e Tabu").
Grosso modo, Freud nos apresenta dois modelos b�sicos de organiza��o social: o desp�tico, vertical, da horda, que depois � reatualizado na fam�lia, e, por outro lado, o do cl� fraterno, horizontal, criado pelos filhos. Mas a crise sacrificial habitaria o cora��o da sociedade.
A religi�o de Deus surge em resposta � saudade do pai -sendo que a ambiguidade com rela��o a essa figura atravessa toda a hist�ria da esp�cie. A sequ�ncia sanguinolenta das gera��es de deuses da Gr�cia Antiga recebe uma explica��o a partir dessa imagem freudiana, bem como a hist�ria das religi�es, tema desenvolvido mais tarde no artigo sobre Mois�s.
J� em 1913 Freud v� que, por exemplo, no cristianismo "uma religi�o filial substitu�a a religi�o paterna" 4.
Retomar hoje esse texto de Freud (que ele considerava, ao lado de "A Interpreta��o dos Sonhos", sua melhor obra) permite n�o s� frequentar um dos maiores e mais inteligentes ensaios do s�culo 20 mas tamb�m repensar o local da viol�ncia e do dispositivo sacrificial hoje.
O in�cio do s�culo passado, com as novas tecnologias industriais, pol�ticas e de guerra, j� indicava a Freud o futuro destruidor que esses tempos teriam. A dial�tica do progresso e da raz�o instrumental iluminista � posta a nu por ele em ensaios como "Totem e Tabu". Cabe a n�s, no centen�rio dessa obra, restituir-lhe tamb�m o local que merece em nosso pensamento cr�tico.
Notas
1. "Totem e Tabu" j� foi traduzido in�meras vezes no Brasil. Duas das vers�es mais recentes chegaram �s livrarias neste ano, pela Companhia das Letras (trad. Paulo C�sar de Souza, R$ 14,90, 176 p�gs.) e pela L&PM (trad. Renato Zwick, R$ 35,90, 256 p�gs.). No texto acima, M�rcio Seligmann-Silva tomou como base a edi��o lan�ada pela Imago em 1999 (trad. �rizon Carneiro Muniz, esgotada). Todas as cita��es presentes no texto, exceto quando indicado, s�o desse volume.
2, 3 e 4. A tradu��o foi modificada pelo autor a partir da edi��o citada.
M�RCIO SELIGMANN-SILVA, 49, doutor em teoria liter�ria pela Universidade Livre de Berlim, p�s-doutor por Yale, � professor do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp e autor, entre outros livros, de "O Local da Diferen�a" (ed. 34, 2005).
ESTELA SOKOL, 34, � artista pl�stica.
Livraria da Folha
- Cole��o "Cinema Policial" re�ne quatro filmes de grandes diretores
- Soci�logo discute transforma��es do s�culo 21 em "A Era do Imprevisto"
- Livro de escritora russa compila contos de fada assustadores; leia trecho
- Box de DVD re�ne dupla de cl�ssicos de Andrei Tark�vski
- Como atingir alta performance por meio da autorresponsabilidade