Crítica | Blue (1993) - Plano Crítico
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Crítica | Blue (1993)

por César Barzine
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“Quão estranho é eu sentir tudo isso dentro de mim e para você serem apenas palavras”

O Rei Pálido, David Foster Wallace

Blue é um filme sobre fenômenos, porém, o único fenômeno visual presente em seu campo fílmico é um plano completamente azul que dura do início ao fim. Ao pensarmos em cinema experimental há diante de nós muitas obras que possuem a sua radicalidade carregada por um frenético dinamismo em sua narrativa, colocando as imagens e os conceitos desses filmes em um extremo devir. Um caso recente desse tipo de abordagem é Imagem e Palavra, que é um verdadeiro turbilhão de ideias e imagens sendo jogadas. Neste filme de Godard não há uma história e nem personagens (pelo menos não dentro de um contexto geral do filme), o que há são imagens já existentes sendo exibidas, existe uma recusa por uma encenação imagética que construa completamente aquilo que é visto. Derek Jarman, diretor de Blue, parte de uma premissa semelhante, pois dispensa os mesmos recursos de Godard e cria um filme não a partir de uma encenação mais complexa e desenvolvida da imagem, mas de um limite na construção daquilo que é visto. 

A produção desses dois filmes é movida por uma certa simplicidade que anula o que conhecemos como o padrão de encenação em um filme. E através disso, Jarman cria a sua obra, na qual aquela única imagem azul é um plano, ao mesmo tempo que também é uma cena, e uma sequência e também todo o filme. Portanto, a relação entre Blue e Imagem e Palavra se constitui através de uma ambiguidade entre eles, pois há tanto uma oposição quanto uma aproximação em torno das duas obras. A aproximação é o uso de algo cuja construção é a economia no exercício fílmico. E a oposição é o desenvolvimento dessa premissa, onde Jarman prende a imagem, deixando o conteúdo visual do filme imóvel; enquanto Godard está num fluxo inquietante de movimento, sendo uma verdadeira metralhadora na mobilidade de seu trabalho recolhido.

Em decorrência de remédios contra AIDS que Derek Jarman consumia, o cineasta passou a ter transtornos daltônicos, distorcendo as cores da sua visão para tons de azul. Partindo disso o diretor realiza um filme focado nessa sua particularidade, produzindo uma obra íntima que, com uma enorme delicadeza, não apenas expressa os problemas de sua visão irregular, mas que também focaliza o efeito dessa doença numa elevada concentração da cor azul, onde o plano azulado é o símbolo da impotência diante da conexão com o real. A imagem completamente homogênea e inerte que perpetua toda a metragem de Blue consegue, em seu minimalismo e na sua banalidade, criar toda uma dimensão sobre a realidade em seu estado máximo; essa realidade, aqui, não é uma conjuntura social, mas o mundo por completo. A proposta do filme é um paradoxo, pois ele abrange a totalidade do real a partir de um objeto tão pequeno e discreto, em que o plano fixo e simples é o único olhar possível para todo o horizonte da realidade.

O filme de Jarman (e o próprio Jarman) trata-se de um bloqueio fenomenológico. Isso se entendermos os fenômenos não apenas como unidades e efeitos isolados, mas também como uma conexão entre sujeito e objeto. Assim, a questão não é o fenômeno sob um olhar universal, mas como ele se manifesta ao ser. Porém, há um claro problema na forma de como o fenômeno se lança dentro do conceito do filme, pois ele se demonstra limitado dentro de um ideal fenomenológico estabelecido. Esse ideal é a possibilidade de ver o mundo em cores, tendo o ambiente sendo exposto através daquilo que seria a sua forma verdadeira. Portanto, há uma distinção entre o fenômeno do eu (uma manifestação para si) e o fenômeno real (uma manifestação em si). Immanuel Kant, em seu pensamento epistemológico, distingue a realidade em duas categorias: o fenômeno (mundo fenomênico) e a coisa-em-si (mundo numênico). A coisa-em-si seria a condição do objeto em seu estado puro, havendo um juízo supremo sobre ele. Enquanto o fenômeno é a manifestação desse objeto diante da sensibilidade humana. A coisa-em-si é inatingível à razão humana, restando, a nós, apenas os fenômenos. 

Blue trabalha com uma noção parecida, mas altera certas questões. O mundo fenomênico do não-eu é elevado à categoria de mundo numênico, já que agora o fenômeno alheio se torna o ideal daquilo que é o objeto presente na realidade, e sendo ele também aquilo que poderia ser chamado de “estado puro” desses objetos. Enquanto isso, os fenômenos que fazem parte da individualidade de Jarman (a visão dele) assumem a posição de mundo fenomênico. Também há até mesmo um contraste com o realismo platônico presente na obra, pois Jarman tem acesso a apenas um mundo inferior (o mundo dos sentidos), enquanto habita um ideal de perfeição de um mundo mais elevado (o mundo das ideias), sendo este primeiro mundo um produto do segundo.

Jarman insere uma alta carga de subjetivismo no conteúdo de seu filme, as aflições de sua condição são jogadas na obra criando um retrato bastante pessoal de seu autor. Porém, em meio a expressão íntima desse conteúdo, habita um discurso universal que se conecta com qualquer pessoa que sofra de um distúrbio que possa impedir uma ligação plena e completa com a realidade ao seu redor. Os limites de Jarman podem ser os limites de qualquer outro indivíduo. Blue é o filme dos desolados, daqueles que se desviam de um padrão para se afundarem na degradação de um mundo limitado. Depressão, ansiedade, déficit de atenção, esquizofrenia ou qualquer outro transtorno que dificulte, de uma forma ou de outra, o acesso completo ao mundo é manifestado neste longa, acolhendo uma soma de diversos problemas patológicos que acinzentam a vida.

O ideal apresentado por Jarman não é expressado apenas como algo que se encaixe nos padrões de saúde, ele é a plenitude da vida em seu estado mais sublime. E é com imensa sensibilidade que o diretor sintetiza esse ideal a partir da noção que ele tem do céu, sendo ele o tal mundo das ideias de Platão apontado anteriormente. O céu é o espaço onde se encontra o gozo da vida, porém, se este ideal existe na mente daquele homem é justamente porque ele inexiste na vida dele. Logo este ideal é apenas uma utopia, sendo ele expressado com a melancolia que ronda em qualquer sonho distante. A fragilidade de Jarman abre esse caminho em busca de um paraíso, mas a única coisa do céu que ele possui é a sua cor.

Em paralelo à concentração visual do plano azul, é apresentada a voz de Jarman e de outras pessoas que declamam diversos insights em volta daquela condição. Há uma enorme variedade dessas falas, sendo elas jogados com uma certa estranheza, uma falta de clareza que eleva o caráter subjetivo de Blue. Jarman está entre o concreto e o abstrato, fala de ações e sentimentos. Ele faz do filme um diário ao comentar as características de sua doença, os efeitos colaterais dos remédios, a AIDS e suas idas frequentes ao hospital. Existe também a emoção sendo exteriorizada a partir de tudo isso, sendo a melancolia o centro de todas as questões apresentadas. E por decorrência dessa tristeza, nasce uma necessidade de afeto que ele deixa claro. Ele quer atenção, quer que as pessoas conheçam a sua situação e a sua dor. Qualquer indivíduo que possua um distúrbio desse tipo se identificaria com Jarman. Eu me identifiquei. E vi no azul daquela tela o sonho por um mundo a se viver.

Blue (idem, Reino Unido, 1993)
Direção: Derek Jarman
Roteiro: Derek Jarman
Elenco: Derek Jarman, John Quentin, Nigel Terry, Tilda Swinton
Duração: 79 minutos

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