3.0.3 27/03/2024
O tempo passa: vida, fica parada aqui
�As noites est�o agora cheias de ventania e destrui��o; as �rvores cedem e se curvam, e suas defloradas folhas voam a torto e a direito at� cobrirem todo o gramado e acabarem aos montes nas bocas de lobo, e entupirem os bueiros, e inundarem as �midas trilhas. O mar tamb�m se agita e rebenta, e caso algum adormecido, imaginando que possa encontrar na praia uma resposta para suas d�vidas, um comparsa para sua solid�o, se desfa�a de suas roupas de cama e des�a sozinho para caminhar na areia, nenhuma imagem, com atitude de ajuda e divina presteza, acorre prontamente para trazer a noite � ordem e fazer o mar refletir a b�ssola da alma. A m�o encolhe-se em sua m�o; a voz grita em seu ouvido. Parece quase in�til fazer � noite, nessa confus�o, estas perguntas referentes ao qu�, e ao porqu�, e ao para qu�, que tiravam o adormecido de seu leito para buscar uma resposta.�
Escritora � frente de seu tempo, Virginia Woolf (1882-1941) deixou um legado liter�rio impressionante. Ela come�ou a sua carreira em 1904 como cr�tica liter�ria, mas foi por meio de seus romances que demonstrou sua sensibilidade e conhecimento. No princ�pio do s�culo XX, Virginia Woolf defendeu a causa das mulheres, lutando contra a opress�o e a ignor�ncia. O compromisso da autora com o esclarecimento e com a inclus�o � digno de nota. Ela n�o se encastelou nos estreitos limites do elitismo.
A leitura de Ao farol (1927) requer aten��o, pois n�o � uma obra simples. Virginia Woolf catalisa as exig�ncias art�sticas de sua �poca de forma criativa. Embora a sua escrita seja comparada a de James Joyce (1882-1941), cabe ressaltar que a abordagem de Woolf � diferente: ela se vale da consci�ncia narrativa (fluxo de consci�ncia) para lan�ar o leitor no �ntimo das personagens durante o desencadear da trama. Assim, o texto apresenta mon�logos num fluxo cont�nuo de consci�ncia e, nesse processo, � como se habit�ssenos a mente das personagens. Al�m disso, a obra usa frequentemente par�nteses para indicar movimentos silenciosos e vislumbres de perspectiva. O resultado � inef�vel. Virginia Woolf mergulha nas profundezas do nosso ser e desvenda as complexidades do reino interior.
A hist�ria se desenrola em uma estrutura narrativa n�o linear. Enquanto alguns momentos acontecem no presente, outros s�o lembran�as. A �nfase que Virginia Woolf d� � vida interior de seus personagens alinha-se com a explora��o da mente consciente e inconsciente, estudada pelo m�dico Sigmund Freud (1856-1939). Em seu romance, Woolf desvia sua aten��o dos eventos externos para adentrar no labir�ntico e multifacetado mundo da psique humana. Em outras palavras, � a consci�ncia das personagens quem dita a passagem do tempo. Por exemplo, uma simples tarde ocupa mais da metade do livro, enquanto os dez anos subsequentes s�o condensados em poucas p�ginas. O extenso desenvolvimento de pensamentos nos d� uma perspectiva da Sra. Ramsey e tamb�m sublinha o impacto que o tempo exerce sobre as coisas, as for�as da natureza e o incessante esfor�o da humanidade para suportar as prova��es da vida.
�Como, ent�o, perguntou-se, conhec�amos uma coisa ou outra sobre as pessoas, fechadas como elas eram? T�o-somente como uma abelha, atra�da por alguma do�ura ou acritude no ar, intang�vel ao tato ou ao paladar, visit�vamos a colmeia em forma de c�pula, percorr�amos, sozinhos, as vastid�es do ar por sobre os pa�ses do mundo, e ent�o visit�vamos as colmeias com seus murm�rios e fervilhamentos; essas colmeias que s�o as pessoas.�
A narrativa est� estruturada em tr�s se��es: �A Janela�, �O Tempo Passa� e �O Farol�. "A Janela" se desenrola antes do in�cio da grande guerra, apresentando aos leitores os Ramseys e seus oito filhos enquanto recebem alguns convidados em sua casa na Ilha de Skye, na Esc�cia. Situado no lado oposto da ilha, ergue-se um farol. O jovem James Ramsey, de apenas seis anos, deseja visitar o farol, mas a sua m�e diz que s� ir�o se o tempo melhorar. O Sr. Ramsey, seu pai, rejeita as aspira��es de seu filho, que fica bem chateado. Virginia Woolf transforma um acontecimento aparentemente trivial em algo extraordin�rio. Cada palavra ressoa em nossos sentidos. A ess�ncia indescrit�vel e melanc�lica que paira sobre as coisas � deixada � interpreta��o do leitor � � o inexplic�vel que tem mais significado.
Os convidados s�o: Charles Tansley, um indiv�duo que tem grande respeito e admira��o pelo trabalho filos�fico do Sr. Ramsey; Lily Briscoe, uma pintora que resolve pintar um retrato da Sra. Ramsey, mas que enfrenta obst�culos devido aos coment�rios de Charles Tansley, que mina a sua confian�a ao afirmar que as mulheres n�o t�m habilidade para pintar ou escrever; William Bankes, um bot�nico conhecido por sua gentileza; Paul Rayley e Minta Doyle, que atenderam aos desejos da Sra. Ramsey e se casaram; e o enigm�tico poeta Augustus Carmichael, que habita as sombras de seus pensamentos, at� que os seus poemas s�o amplamente reconhecidos durante o per�odo de guerra.
Anfitri� not�vel, a Sra. Ramsey quer garantir que seus convidados tenham momentos inesquec�veis. Embora seja uma esposa dedicada e carinhosa, frequentemente enfrenta desafios para administrar as mudan�as de humor e o egocentrismo do marido. A Sra. Ramsey lida com as dificuldades de seu papel como anfitri�, m�e e esposa, equilibrando as complexidades dom�sticas e sociais. No meio de tudo isso, ela triunfa ao transformar um simples jantar em algo extraordin�rio.
�Tricotando sua meia peluda de um marrom avermelhado, com sua cabe�a absurdamente recortada pela moldura dourada, pelo xale verde que ela tinha jogado sobre a quina do quadro e pela obra-prima autenticada de Michelangelo, a Sra. Ramsay amaciou o que tinha havido de r�spido em sua atitude um momento antes, levantou a cabe�a de seu garotinho e beijou-o na testa.�
Fil�sofo metaf�sico, o Sr. Ramsay nutre profundo afeto pela sua fam�lia. Ele reconhece os seus pr�prios limites intelectuais e entende que suas contribui��es n�o ter�o qualquer significado para as gera��es futuras. Naturalmente, essa constata��o tem consequ�ncias, e � a sua fam�lia quem acaba suportando o fardo de sua �ndole egoc�ntrica e dura, decorrente de suas incessantes preocupa��es pessoais e profissionais. Embora reconhe�a e aprecie a d�diva de ter uma fam�lia, ele espera empatia, aten��o e assist�ncia incondicionais tanto de seus familiares quanto daqueles que visitam a sua casa.
Na segunda parte, �O Tempo Passa�, o tempo acelera. A guerra irrompe por toda a Europa, trazendo consigo uma s�rie de acontecimentos tr�gicos. A morte da Sra. Ramsey, a morte de seu filho Andrew em batalha e a perda de Prue Ramsey devido a complica��es no parto acontecem no espa�o de dez anos. Esses momentos s�o apresentados entre colchetes. Um cap�tulo conciso cujo foco � a casa de ver�o abandonada e as transforma��es que acontecem dentro e fora de suas estruturas.
�Nada parecia conseguir quebrar esta imagem, corromper esta inoc�ncia, ou perturbar o oscilante manto de sil�ncio que, semana ap�s semana, na sala vazia, tecia em si mesmo os gorjeios cadentes dos p�ssaros, os navios apitando, o zumbido e o zunzum dos campos, o uivo de um c�o, o grito de um homem, e os drapeava em volta da casa em sil�ncio. Apenas uma vez, uma t�bua estalou no patamar; apenas uma vez, no meio da noite, com um estrondo, com um rasg�o, tal como, ap�s s�culos de repouso, uma rocha se desprendeu da montanha e caiu ruidosamente no vale, uma dobra do xale se afrouxou e ficou balan�ando. Ent�o a paz voltou a descer; e a sombra tremulou; a luz curvou-se em adora��o � sua pr�pria imagem sobre a parede do quarto.�
No cap�tulo intitulado "O Farol", o Sr. Ramsey, acompanhado por seus filhos James e Cam, retorna para sua casa de ver�o ap�s o fim da guerra. Apesar das tentativas do Sr. Ramsey de preencher as lacunas entre ele e os filhos, ainda h� vest�gios de ressentimento devido � sua natureza dominadora. Outros convidados tamb�m se juntam a eles, incluindo Lily Briscoe, que n�o simpatiza com o Sr. Ramsey, embora ele fa�a um esfor�o para se conectar com ela. Finalmente, come�a a t�o esperada viagem ao Farol. � durante a viagem que Lily decide terminar a pintura que come�ou h� uma d�cada. A import�ncia desse �ltimo cap�tulo reside no fato de a pintura n�o ser apenas uma pintura e o farol n�o ser apenas um farol. Ambos servem como interse��es simb�licas do passado, representando as perdas sofridas ao longo dos anos devido aos v�rios caminhos da vida, � guerra e ao tempo.
�Onde come�ar? Essa era a quest�o; em que ponto fazer o primeiro tra�o? Uma �nica linha colocada na tela atrelava-a a in�meros riscos, a frequentes e irrevog�veis decis�es. Tudo que, em ideia, parecia simples, tornava-se imediatamente complexo na pr�tica; tal como as ondas se formam simetricamente desde o alto do rochedo, mas aos olhos do nadador nelas mergulhado se dividem em profundos abismos e cristas espumantes. Mas deve-se correr o risco; dar o primeiro tra�o.�
Durante a leitura, pode-se pensar o significado do feixe de luz do farol. Ele atravessa as v�rias emo��es interpessoais, esclarecendo como s�o influenciadas pelas normas sociais e pelas press�es externas. O farol, isolado em sua solid�o, � o s�mbolo da neglig�ncia emocional que impomos aos outros e, em �ltima an�lise, do qual somos v�timas � como navios que naufragam em noite tempestuosa. N�o importa o que aconte�a, o tempo nos atravessar�, como o feixe de luz de um farol que nos ilumina e nos chama das sombras por um breve momento e depois passa novamente para nos lan�ar sem forma � escurid�o. O romance revela que a nossa jornada vai al�m do que temos pela frente, pois ela tamb�m envolve atravessar o passado m�ltiplas vezes, criando uma reviravolta temporal. Para avan�ar, � preciso navegar pelas �guas do passado. Al�m disso, a obra tamb�m diz respeito aos v�rios caminhos que os indiv�duos percorrem para enfrentar a sua dor.
Ler Virginia Woolf � ler um extenso poema em prosa. Enquanto cada palavra brilha na p�gina, cada frase incendeia as cavernas do cora��o. Ela ressalta os seus temas por meio de imagens cuidadosamente escolhidas ou aludindo � passagem do tempo por meio de cortinas desgastadas e m�veis envelhecidos. H� no romance a no��o de que cada personagem � uma ilha: enquanto as ondas d�o de encontro a rochedos, acompanhamos a colis�o de figuras que interagem e procuram se entender. Assim como a repeti��o de ideias e s�mbolos � usada como maneira de refor��-las, as personagens repetem suas pr�prias cren�as, como um mantra, para se certificarem de quem s�o. Elas se aproximam como se fossem botes salva-vidas, precisando de algo para se agarrar e prend�-las ao presente. Cada personagem tenta � sua maneira deixar sua marca no rosto da eternidade � seja a filosofia do Sr. Ramsey, a poesia do Sr. Carmichael, as pinturas de Lily ou a m�o orientadora da Sra. Ramsey. Elas est�o separadas pelo fato de que as suas almas nunca poder�o se fundir e se tornar uma. A verdadeira trag�dia � que essas personagens, embora desejem compreender e ser compreendidas, quase sempre se machucam, muitas vezes por medo e inseguran�a, ao tentar alcan�ar a alma do outro. Elas est�o obcecados em criar imagens a partir de um universo termodin�mico. Uma personagem se deleitar� com a beleza e a maravilha de um �nico momento, apenas para v�-lo escapar e ser levado pelo mar da experi�ncia consciente. Embora nossas mentes criem imagens est�ticas a partir da constante transforma��o da mat�ria, elas saltam para o passado antes que possam ser compreendidas, tornadas totalmente inteiras.
Ao farol declina nos pensamentos ca�ticos de suas personagens, explorando suas mem�rias, hesita��es, contradi��es e fraquezas. Nesse sentido, a trama � um complexo jogo cujo foco est� mais no exerc�cio mental das personagens do que na disposi��o das pe�as. Isso cria uma imers�o intensa com um ritmo narrativo que reflete o pensamento humano. Alternando entre emo��es subjetivas e acontecimentos concretos, Virginia Woolf descreve a experi�ncia sensorial das personagens e aborda temas como a passagem da vida e a longevidade do pensamento, proporcionando reflex�es sobre a natureza humana.
Ao Farol � uma obra que provoca profundos pensamentos e sensa��es. Enquanto aborda os medos da morte e do tempo, Virginia Woolf lida com quest�es emocionais e intelectuais. A narrativa, que confronta a fragilidade da exist�ncia e explora as verdades da mudan�a e da morte, tamb�m nos d� um vislumbre de esperan�a por meio da uni�o e do amor. O livro carrega imagens impactantes, como a �gua representando a experi�ncia consciente e o farol simbolizando as esperan�as e os desejos das personagens. Ao longo da narrativa, o leitor navega pela prosa mar�tima de Virginia Woolf para buscar a recompensa prometida no fim.
Virginia Woolf se destaca ao se afastar das tradi��es liter�rias de seu tempo, priorizando os sentimentos e as percep��es em vez de narrar fatos externos. Ler suas obras � uma experi�ncia incompar�vel, pois ela cadencia o movimento da consci�ncia humana com maestria, criando uma narrativa que se desdobra internamente. Enquanto a a��o exterior � breve, sendo interrompida para explorar os pensamentos das personagens, a perspectiva do tempo se volta para a consci�ncia. Por fim, a prosa de Woolf � um farol que ilumina as trevas e d� dire��o aos nossos passos. Sem d�vida, a sua escrita � marcante e definitiva.
�Qual � o significado da vida? Isso era tudo � uma quest�o simples; uma quest�o que tendia a nos envolver mais com o passar dos anos. A grande revela��o nunca chegara. A grande revela��o talvez nunca chegasse. Em vez disso, havia pequenos milagres cotidianos, ilumina��es, f�sforos inesperadamente riscados na escurid�o; aqui estava um deles. Isto, aquilo, e mais aquilo; ela pr�pria e Charles Tansley e a onda quebrando; a Sra. Ramsay reunindo os dois; a Sra. Ramsay dizendo: �Vida, fica parada aqui�; a Sra. Ramsay fazendo do momento algo permanente (tal como, numa esfera diferente, a pr�pria Lily tentava fazer do momento algo permanente) � esta era a natureza da revela��o. Em meio ao caos, havia forma; este eterno passar e fluir (olhou para as nuvens se movendo e para as folhas se mexendo) entrava em estado de estabilidade. Vida, fica parada aqui, disse a Sra. Ramsay.�