Zubizarreta: “O André é uma grande pessoa. Certamente me levará a um bom restaurante no Porto, com bom vinho, e teremos uma bela conversa” | Tribuna Expresso

Perfil

Entrevistas Tribuna

Zubizarreta: “O André é uma grande pessoa. Certamente me levará a um bom restaurante no Porto, com bom vinho, e teremos uma bela conversa”

Andoni Zubizarreta é um clássico do futebol espanhol. Com 622 partidas, o antigo guardião é o jogador que mais encontros disputou na primeira divisão do balompié, marca que simboliza uma carreira recheada, na qual somou 126 internacionalizações com Espanha. E, claro, 'Zubi' foi o dono da baliza do Barcelona entre 1986 e 1994, tendo vivido por dentro a revolução que Johan Cruyff fez no clube. Foi, também, diretor-desportivo do Barça e, numa entrevista à Tribuna Expresso, também falou do seu amigo André Villas-Boas, com quem coincidiu no Marselha. Republicamos esta entrevista, originalmente de 2021, devido à confirmação de que Zubizarreta será o diretor-desportivo do FC Porto caso André Villas-Boas seja eleito presidente

Pedro Barata

André Villas-Boas, em maio de 2019, ao ser apresentado como novo treinador do Marselha, ao lado de Andoni Zubizarreta, então diretor-desportivo do clube francês.

Guillaume Ruoppolo - OM

Partilhar

Depois de ter deixado de ser diretor desportivo do Marselha há pouco mais de um ano, o que tem andado a fazer?
Bem, colaboro com o “El País”, onde tenho uma coluna de opinião na qual escrevo sobre futebol. Além disso, tento passar tempo com a minha família e aproveitar para estudar e aprender. Tem sido um pouco um ano de transição, vivo em Bilbau, mas viajo muito, sobretudo a Barcelona e também a Madrid.

E costuma ver muito futebol, agora que tem mais tempo livre?
Sim, muito. Agora que se está a começar a poder ir aos estádios, posso também aproveitar para isso, até porque aqui em Bilbau tenho muitas opções perto, com o Athletic, a Real, o Alavés, o Osasuna, o Eibar, Amorebieta… Há muito futebol por aqui perto. Eu, ao vivo, ainda só fui a um jogo de futebol feminino, mas tenho de aproveitar agora.

Quando não está a trabalhar, vê os jogos com um olhar mais profissional, aproveitando para analisar jogadores ou treinadores para futuras oportunidades, ou fá-lo mais pelo prazer de ver o jogo?
Neste momento, é muito mais pelo prazer do jogo, pelo gosto de ver futebol. Tento recuperar o ato de ver futebol simplesmente por ver futebol, sem estar associado a algo profissional, como por exemplo, ver os jogos do Athletic, que é a equipa da qual sou adepto.

E essa experiência de ver o jogo pelo jogo é muito diferente de quando se assiste a uma partida como dirigente?
É totalmente diferente. Quando vais a uma tribuna estás a trabalhar. Os jogadores são quem joga e são o mais importante, mas quem está ali em representação de um clube tem muitos deveres. Tentas reparar como é que a equipa compete, sabes que um jogador tem tido queixas físicas e reparas mais nisso, por exemplo. Vive-se tudo de outra maneira.

No seu último período como diretor-desportivo, no Marselha, trabalhou com André Villas-Boas. Como foi essa convivência?
A verdade é que foi muito boa. Eu já tinha alguma relação com o agente do André, o Carlos [Gonçalves], mas nunca tínhamos tido a possibilidade de trabalharmos juntos num clube. Quando se deu a saída de Rudi Garcia, eu falei com o presidente do clube e disse-lhe que achava que o André era a nossa melhor opção. Temia que ele tivesse outras possibilidades, mas falámos, entendemo-nos muito rapidamente e a partilha do quotidiano foi muito boa. Tanto falávamos do nosso trabalho no Marselha, como sobre futebol em geral, dos caminhos em direção aos quais o jogo vai… É um homem com uma inteligência futebolística extraordinária e isso permitiu-me aprender e conhecer muito. Foi óptimo ver a equipa a crescer, conseguimos a classificação para a Liga dos Campeões, que era algo que procurávamos há muito tempo. Foi o ano da Covid, a Liga parou a 15 de março e a partir daí tudo foi mais complexo. Trabalhámos juntos durante 10 meses e eu aprendi e desfrutei muito desse período, porque o André é um grande profissional, mas também uma grande pessoa. Ele tem grandes qualidades como ser humano, as quais te permitem discutir, falar e debater, não só sobre o futebol, mas também sobre muitos outros temas.

Zubizarreta com Villas-Boas no Marselha

Zubizarreta com Villas-Boas no Marselha

Agence Nice Presse/Getty

Fala de “outros temas”. André Villas-Boas tem muitos outros interesses além do futebol...
Eu creio que, no futebol, cada qual tem a sua personalidade, mas é verdade que o André, por ter começado muito cedo e ter tido uma carreira muito particular — sem ter jogado futebol e tendo um início muito jovem em grandes clubes —, tem acumulado experiências no futebol que, geralmente, chegam-te muito mais tarde. Ele ainda é jovem, mas tem um percurso, vivências e uma experiência próprias de gente muito mais velha. E claro que o André é uma pessoa com interesses diferentes. Podes falar com ele de carros ou sobre tudo na vida. E isso é importante porque, no final de contas, o futebol não deixa de ser um elemento que está nas nossas vidas. E num clube com tanta paixão como o Marselha — e sei que o André tinha estado no FC Porto, outro clube de grande paixão — isso também o levou a conectar muito bem com a massa social. Creio que ele gostou da energia que dá essa paixão da gente de Marselha, a energia que dá aquela maneira de viver o futebol, a vida, o Velodróme com público. Tudo isso não é estritamente o jogo, mas faz parte do futebol como atividade que junta gente, que reúne e gera paixão.

Já que falamos do Marselha. Considera que França é o país onde mais talento se forma, neste momento, na Europa?
Portugal também não está nada mal nesse campo [risos]. Eu creio que em França sucede o mesmo que em Portugal, e que é algo diferente de outros países: o talento viaja, isto é, quando há um talento interessante, esse jogador acaba por sair do país, e fá-lo, provavelmente, demasiado cedo. Antes, um jogador podia estar até aos 23 ou 24 anos em clubes franceses ou portugueses, como o Sporting, o Benfica ou o FC Porto. Isso permitia aos clubes crescer e depois vender os jogadores. Agora o talento cresce rapidamente e sai muito rapidamente, não dando muito tempo para que os clubes de origem possam desfrutar desses talentos. É verdade que em França surge imenso talento, também porque há uma população numerosa — aí não se pode comparar a Portugal — e como resultado das misturas culturais e de diferentes estilos e culturas de futebol. Isso leva à criação de um tipo de jogador francês que se consegue adaptar muito bem à globalidade do futebol europeu, sobretudo ao inglês, que é aquele que mais compra no mercado, mas também ao espanhol, italiano e alemão. Trata-se de um tipo de futebolistas que, pelas suas características físicas e técnicas, costuma adaptar-se muito rapidamente ao futebol europeu. Julgo que essa é a causa pela qual há muitos jogadores que saem de França e que levam a que haja tantas atenções de grandes clubes sempre centradas na Ligue 1, clubes esses que já sabem que a adaptação do jogador que sai dali será, provavelmente, rápida.

Pelo que diz, parece considerar que, neste aspeto, há algumas semelhanças entre o contexto do futebol francês e o do português.
Julgo que no futebol francês há uma grande importância de certas virtudes físicas, enquanto, em relação ao talento do futebol português, eu diria que está mais relacionado com talento do jogo, adaptação ao jogo, velocidade. Gente como João Félix ou Bernardo Silva, para dar exemplos de dois jogadores com talento para a associação, com técnica. É algo mais parecido ao futebol espanhol, como uma característica do futebol peninsular, digamos assim. Em França, há, também, jogadores com este estilo técnico, mas também futebolistas de muita capacidade física, muito fortes na recuperação. Claro que esta é uma análise muito simplista. Se o Ricardo Carvalho me estivesse a ouvir agora, ele ficaria muito chateado comigo, mas dá a sensação de que, em Portugal, se formam muitos jogadores ofensivos e de ataque, com o Cristiano como número um, ao passo que França dá outro tipo de jogadores, desde logo muitos defesas-centrais. Ainda que, tendo eu trabalhado com o Ricardo Carvalho [que foi adjunto de Villas-Boas no Marselha], me veja forçado a relativizar isto.

Considera que a hegemonia do PSG na Ligue 1 é algo positivo, pelo mediatismo que causa, ou trava o crescimento de outros clubes?
Leva a que haja uma atenção muito maior sobre o futebol francês do que a que havia há alguns anos, isso é óbvio. Depois, no dia a dia, o que se vê é que o PSG não tem ganhado os encontros com tanta facilidade como há alguns anos. Neste arranque de liga, todos achavam que seria fácil ganhar em Metz, em Reims ou em Montpellier, mas isso não tem acontecido e diz-nos muito da competitividade do futebol francês. Mas claro que, nas competições europeias e no grande cenário da Liga dos Campeões, é o PSG que tem estado nas rondas finais. É um clube que ocupa muito espaço mediático e que atrai muitos observadores do grande público, porque o público mais atento ao futebol seguirá sempre França pelos grandes talentos que tem, como o Camavinga, que chegou agora ao Real Madrid. É um futebol muito atrativo.

Mas muitas vezes soa algo estranho que os clubes franceses só tenham sido campeões da Europa por uma vez.
Isso é porque, nos últimos 40 anos, o futebol de seleções é muito mais potente em França do que o futebol de clubes. O Marselha ganhou um título e jogou outra final, o PSG também jogou uma final, houve meias-finais com o Bordéus ou o Lyon e seria possível que tivesse havido mais um ou outro título. Mas o que sucede é que, quando um jogador se torna importante no Lyon, no Marselha ou no Mónaco, é vendido para clubes de fora de França.

Na apresentação de Suárez como jogador do Barça, em 2014, quando Zubizarreta era director desportivo do clube

Na apresentação de Suárez como jogador do Barça, em 2014, quando Zubizarreta era director desportivo do clube

David Ramos/Getty

Já foi diretor-desportivo no Athletic, Barcelona e Marselha. Há muitas maneiras diferentes de interpretar essa função. No seu entender, o que deve fazer um diretor-desportivo?
A primeira coisa é, de facto, definir o que se quer em cada trabalho e como é cada clube. Por exemplo, ser diretor-desportivo no Athletic ou no Barça é totalmente diferente, desde logo porque o Athletic está muito condicionado na sua abordagem ao mercado. O mais importante é começar por entender para que clubes vais e de que é que esse clube precisa. No Marselha, o que era preciso era desenvolver toda a estrutura do futebol, todo o futebol de formação, criar uma cultura de clube desde os mais jovens até à equipa principal, explicar o projeto ao público. Neste caso, era preciso criar infraestruturas e trabalhar para melhorar as condições de trabalho de todas as equipas, tanto que no Marselha criámos uma nova academia. Às vezes, avaliam-se os diretores-desportivos só pelo mercado, pelos jogadores que são contratados, mas há muito mais trabalho na organização da estrutura de futebol: que jogadores vão subindo de categoria para categoria, que tipo de contrato devem ter esses jogadores, que treinadores são os mais indicados para cada grupo etário, qual a melhor metodologia de treino para que haja algum tipo de linha de continuidade desde que um jogador tem 15 ou 16 anos até à equipa principal. Tudo isto integra-se nesta ideia de criação de cultura de clube, na qual também passa o papel da escola para os jovens ou a atenção às famílias dos jogadores. Estas tarefas podem estar todas na esfera do diretor-desportivo, só que há clubes onde algumas destas componentes já estão mais desenvolvidas e outros nos quais certas áreas não estão tão trabalhadas e é preciso trabalhar mais nelas. Outra componente muito importante é a capacidade de explicar o projeto, quer no plano interno (ao proprietário e direção), quer no externo (aos adeptos e público em geral).

Há sempre um grande debate sobre que peso devem ter os treinadores nas contratações. Acha que os técnicos devem ter que papel na definição das aquisições?
Depende de que projeto de clube for. Por exemplo, se contratas André Villas-Boas, tens de explicar-lhe qual é o projeto e, dentro do projeto que tínhamos, era importante a opinião do André. Nós podíamos oferecer-lhe alguns jogadores e ele também podia contribuir com certas opções, gerando-se depois um debate para escolhermos qual a melhor opção. E às vezes a melhor opção não é exatamente o jogador que querias contratar, porque é mais caro ou acabou de renovar no seu clube, logo tens de estar sempre a avaliar tudo isso. Mas isso era neste caso concreto. Há outros clubes nos quais, quando o treinador é contratado, já lhe é dito que, no mercado, o peso da sua opinião será mínimo porque as decisões são tomadas pela direção ou pelos donos. Cada clube é um mundo com as suas particularidades. No Athletic, um treinador pode ter a sua opinião, mas depois o mercado de jogadores bascos é muito reduzido e limitado. Para mim, o mais importante é que fique claro, desde o momento em que um treinador se incorpora ao clube, quais são as condições de trabalho, e se dentro dessas condições a opinião do técnico vai ser fundamental ou não. Eu costumo dizer que é quase impossível incorporar a um plantel um jogador que o treinador não quer. Se há um jogador que, seja pelas razões que forem, não é do agrado do treinador, é muito difícil que o coloques no plantel e que, de repente, ele funcione muito bem. É importante saber ir encontrando consensos.

Falando deste Benfica-Barcelona. Depois de tanto tempo no Barcelona, como definiria o seu vínculo com o clube?
Eu era adepto do Athletic e pensava que ficaria no clube para sempre. No entanto, fui para o Barça e descobri que também podia ser adepto do Barça e interessar-me muito pelo que sucede no clube. Trabalhei e joguei lá, o meu filho trabalha lá [Markel Zubizarreta é diretor-geral do futebol feminino do Barcelona] e, portanto, tudo o que sucede no clube interessa-me. E além deste vínculo com a instituição em si, há outra parte do futebol que são as relações pessoais. No caso do Barça, o treinador é o Koeman, que é meu amigo, jogámos juntos e também quero que as coisas lhe corram bem. Tenho muitas ligações não só ao clube em si, mas também a pessoas que trabalham lá dentro.

Já que fala do seu filho, que é responsável por uma equipa que recentemente ganhou a Champions feminina. Como vê o crescimento do futebol feminino nos últimos anos?
Essa pergunta é mais para o meu filho, mas eu diria que era uma questão de tempo. O desporto é desporto, não é nem masculino, nem feminino, e acho que no futebol era uma questão de tempo. Tudo tem os seus processos de crescimento e julgo que, tal como o futebol masculino foi evoluindo com o passar das décadas, o feminino também vai fazer o caminho. Sempre gostei de seguir o futebol feminino do Barça, e no Athletic, quando eu era o diretor-desportivo, criámos a equipa feminina do clube.

Icon Sport/Getty

Chegou ao Barça em 1986, dois anos antes de Cruyff mudar radicalmente a história do clube. Como era o Barcelona antes de Cruyff e, vendo desde dentro, como é que foi essa transformação do clube?
Historicamente, o Barça sempre foi um clube que teve uma tendência para gostar de jogadores técnicos. Quando no futebol europeu eram contratados jogadores alemães, por serem fortes fisicamente, o Barça contratava jogadores holandeses, mais técnicos. Algo que também se viu quando chegaram Kubala ou Kocsis, jogadores húngaros de um futebol também mais técnico. O Barça sempre esteve ligado ao futebol baseado na bola, mais refinado. Só que, até um certo momento, dizia-se que no Barça jogava-se bem futebol, mas que não se ganhava, e que para ganhar era preciso físico ou capacidade de chocar. O Barça antes de Cruyff, o Barça a que eu cheguei, era orientado por Terry Venables, um conjunto mais inglês, de intensidade, de contra-ataque. Esteve quase a ser campeão Europeu em 1986 [perdeu a final contra o Steaua Bucareste, nos penáltis], e se o tivesse sido não se sabe o que teria acontecido depois. E quando chegou Cruyff, o grande porta-estandarte da escola holandesa, trouxe uma ideia de jogo em redor da bola, um jogo associativo, querendo ganhar sempre e ter sempre muita gente à frente da bola, dando prioridade a futebolistas de boa técnica. Esta ideia, em 1988, parecia que se podia fazer no Ajax, mas achava-se que era impossível aplicar em Espanha. Mas nós ganhámos jogando assim, e quando ganhas tudo é mais fácil e mais facilmente aceite.

Para si, como guarda-redes, acredito que tenha sido uma revolução na sua forma de jogar.
Totalmente. Quando Johan chegou em 1988, a primeira coisa que fez foi colocar os guarda-redes a jogar nos ‘meinhos’ e nos exercícios como jogadores de campo. Também nos encontros no final do treino, um dos guarda-redes jogava sempre como jogador de campo. Ele considerava isso importante para que entendêssemos melhor o jogo e também para termos mais capacidade para jogarmos mais adiantados, quase como se fossemos o líbero. Isso levou, também, a que quando as regras do futebol mudaram e os guarda-redes deixaram de poder agarrar os atrasos com as mãos, nós estávamos um pouco adiantados, porque o Cruyff já nos tinha instalado nessa forma de trabalhar. Ele não via só o guarda-redes como guarda-redes, mas como mais um jogador. Entendia a equipa como tendo 11 jogadores, não como tendo 10 jogadores mais o guarda-redes. Isso obrigou-nos a pensar de maneira diferente. Hoje tudo isto é feito por toda a gente, mas na altura foi difícil, porque era o oposto ao que tínhamos feito sempre.

Neste aspeto, pode-se dizer que Cruyff foi um visionário, porque a posição de guarda-redes evoluiu justamente nesse sentido.
Sim, o futebol foi evoluindo rumo à interpretação que o Johan tinha da posição. E não foi só uma evolução, mas sim um crescimento. Se Johan visse agora jogar os guarda-redes, não sei se ele ficaria surpreendido, porque era muito difícil surpreender Cruyff, mas acho que diria que era o que ele estava a visualizar na altura. O que nós em 2021 vemos como normal, há 30 e tal anos não era tão fácil. Nós vínhamos de uma tradição de anos e anos durante os quais os guardiões serviam para defender a baliza, para proteger a área, para usar as mãos. Não havia essa outra parte de te relacionares com o jogo, de usares os pés, de saber passar a bola, entender qual era o homem livre… Tudo isso era contra-cultural, mas foi algo que se manifestou noutros aspetos da carreira dele: Cruyff teve a capacidade de ver o futebol do futuro, de ter uma visão adiantada ao seu tempo.

Antes de Cruyff, o Barça tinha quase fama de clube perdedor. Psicologicamente, como é que ele muda a auto-estima do clube para que, nos últimos 30 anos, este se tenha tornado num dos mais vencedores do mundo?
Seguramente, isso deu-se porque ele tinha ideias e convicções muito claras. Sabia muito bem para onde queria que fosse a sua equipa, como queria que esta jogasse e de maneira é que era possível chegar aos êxitos. Ele tinha ideias claras e sempre trabalhou com elas. Também é verdade que lhe deram tempo, o que foi fundamental. No primeiro ano com Johan, nós ganhámos a Taça das Taças, mas não estivemos bem na Liga, e no segundo ano vencemos a Taça do Rei, mas voltámos a não estar bem no campeonato. Não sei se, em 2021, quando tudo anda tão rápido, lhe teriam dado o mesmo tempo para trabalhar no seu projeto. Ele manteve a sua ideia clara, foram-lhe dando jogadores de grande nível para reforçar o plantel e, a partir daí, o que ele fez foi deixar de utilizar desculpas, as quais ele conhecia bem porque tinha sido jogador do Barcelona. Utilizavam-se os árbitros ou o estado dos relvados como desculpas para as derrotas, mas ele tirou essas desculpas e convenceu-nos de que o nosso jogo nos iria aproximar da vitória e que, quando não ganhássemos, seria porque não estivemos bem. E tudo isso passou para a cultura do clube, também porque a mensagem da cultura de jogo ficou plenamente instalada. O Barça passou a saber como quer jogar e como quer ganhar os jogos. Claro que foi havendo mudanças e evoluções, foram havendo momentos diferentes, mas sempre com isto como base.

Gary M. Prior/Getty

Nesses anos, partilhou o balneário com muitos craques, como Koeman, Stoichkov, Romário ou Laudrup. Vendo desde a baliza, qual é que o impressionava mais?
Talvez por estarmos numa época diferente a esta, a verdade é que nós éramos uma equipa que era muito baseada no coletivo, uma equipa muito solidária, com grandes jogadores mas muito centrada na ideia de grupo. Eu acho que o jogador que, desde o princípio, me pareceu mais diferente, era Michael Laudrup, com a sua capacidade de jogar pela direita e pela esquerda, com aquele sentir o jogo tão especial que ele tinha. Ele era diferente, mas tínhamos jogadores muito bons em muitas posições. Sempre me impressionaram os nossos defesas, porque nós tínhamos de jogar com três defesas, mas muitas vezes um desses defesas não era sequer defesa, como era o caso do Koeman. Nós só defendíamos com esses três, portanto a mentalidade e qualidade desses três tinha de ser incrível, ainda que muitas vezes fossem menos reconhecidos, porque as estrelas estão mais no ataque. Os homens da linha defensiva tinham um mérito enorme.

Na temporada em que são campeões europeus, em 1991/92, também passam por Lisboa, na fase de grupos que antecedeu a final contra a Sampdoria. Contra o Benfica de Erikson, empataram a zero na Luz e venceram por 2-1 no Camp Nou. Que memórias tem desse embate?
Eu tive a sorte de jogar várias vezes contra o Benfica e o Sporting e sempre me pareceu que estava a defrontar grandes clubes. Recordo muito a paixão pelo futebol que havia no antigo Estádio da Luz, um clima de muita exigência e pressão. Tivemos muitas dificuldades nesses jogos. O 0-0 em Lisboa, não foi, de todo, uma partida dominada por nós, na qual criámos muitas ocasiões, mas sim um duelo tenso e complicado. Em casa acho que o nosso futebol de ataque e velocidade permitiu-nos ganhar, mas, naquela altura, tenho a memória de embates muito difíceis. E isso também se integra na Taça dos Clubes Campeões Europeus da altura, que era muito mais equilibrada, sem as diferenças que hoje podemos pensar que havia. Nós íamos a Lisboa para tentar obter um bom resultado, conscientes de que a diferença seria muito curta e que teríamos de defender. Lembro-me muito bem da pressão do estádio e de saber que, do outro lado, havia jogadores de muita qualidade, fortes no drible, que em qualquer momento podiam marcar um golo.

Com o título de campeão da Europa, conquistado em 1992, contra a Sampdoria

Com o título de campeão da Europa, conquistado em 1992, contra a Sampdoria

Neal Simpson - EMPICS/Getty

Acha que o 'Cruyfismo', nos últimos 30 anos, foi como um guia para o Barça nos maus momentos ou que, às vezes, o clube é um pouco refém do 'Cruyfismo'?
Eu creio que tem sido uma referência, não só para o Barcelona, mas para todo o futebol espanhol. Os treinadores ou jogadores espanhóis que vão para fora estão muito relacionados com isso, sendo Guardiola o exemplo mais evidente, mas não o único. Os treinadores ou até diretores-desportivos que trabalham fora, fazem-no, também, porque é esperado que deem um futebol de associação, que transportem a convicção de que não é preciso ter só jogadores muito altos e fortes para jogar bem futebol. Não julgo que o Barça seja refém do 'Cruyfismo', sempre que se tiver em linha de conta que no futebol, tal como na vida, as coisas vão evoluindo. Tu podes ter uma referência, mas à medida que há mudanças, deves fazer adaptações. Guardiola é um ‘filho’ de Cruyff, mas nunca deixa de fazer evoluir as ideias. Eu acho que Cruyff é uma referência, nunca um problema.

Falou de Pep. Acha que Guardiola continua a ser o número um dos treinadores?
[risos] Bem, conheci o Pep quando éramos jogadores, depois trabalhámos juntos quando ele era treinador e eu diretor-desportivo, logo julgo que há aí uma parte que não é neutra devido à relação que temos. Eu não acredito muito nisso dos melhores ou dos piores. Acredito, sim, que quando vês as equipas de Guardiola, vês sempre coisas novas. Claro que, às vezes, ele comete erros, mas procura sempre ir mudando coisas para ir surpreendendo. Nesse ponto, acredito que não há muitos trabalhadores como ele no mundo. Vejo treinadores fantásticos como Tuchel ou Klopp, mas que repetem um pouco o seu mesmo modelo, mas no caso de Guardiola, ele vai mudando sempre o seu modelo, fazendo-lhes ajustes. E claro que quando as coisas saem bem a Pep, são só elogios, mas quando perde dizem ‘ah, ele inventou demasiado’. Ele está sempre a pensar em testar coisas novas.

Já que estamos a falar de referências do Barcelona. Doeu-lhe muito a saída do Messi?
Sim. Surpreendeu-o a ele, portanto, se o surpreendeu a ele, claro que nos surpreendeu a todos. É estranho vê-lo com outra camisola. Quando vemos um PSG-Manchester City, com Messi de um lado e Pep do outro, é estranho por não estarem no Barça, mas também é um sinal de que o modelo do Barça, e a sua ideia e modelo de jogo, se pode exportar e estende-se a todo o lado. É preciso entender isto quase como se fossem sementes, extensões do modelo do Barça. Para um adepto do Barça, um PSG-Manchester City ganha quase contornos pessoais.

Aqui em Portugal está muito presente o mito do “Sebastianismo”: a crença de que, numa manhã de nevoeiro, voltará o rei desejado, o homem que trará a velha glória de volta. Acha que o Barça, neste momento, olha dessa maneira para Guardiola, esperando o seu regresso para restaurar o império?
Essa é uma pergunta muito para Guardiola. O que me parece é que Pep continua a representar o futebol do Barça, o jogo do Barça e, como foi jogador do clube, há sempre essa ideia de que pode voltar a casa. Mas eu acho que, na vida, há momentos para cada coisa. Eu recordo-me que, há muitos anos, Pep disse que gostaria de treinar o Athletic, pela filosofia do clube e porque San Mamés era muito do seu agrado. E houve uma altura em que em Bilbau pensaram que seria uma hipótese que Guardiola treinasse o Athletic. Depois, com o tempo, descobriram que isso não era possível. O que Pep conquistou, graças ao que fez na sua carreira, foi o direito a escolher a sua melhor opção. E se, algum dia, essa melhor opção for o Barça, muito bem.

Com Guardiola, o dia em que é anunciado que o técnico não continuaria no Barça, em 2012

Com Guardiola, o dia em que é anunciado que o técnico não continuaria no Barça, em 2012

David Ramos/Getty

Num futuro, o Andoni veria com bons olhos a hipótese de trabalhar em Portugal?
Claro. Portugal é um grande país e um grande país de futebol. É um sítio excelente para trabalhar.

É uma pessoa muito atenta às mudanças do futebol. O que lhe parece a proposta do Mundial a cada dois anos, até tendo em conta que o Andoni jogou em quatro campeonatos do mundo?
Não entendo bem a proposta. Acho que a organização do futebol de hoje em dia, com um Europeu ou Mundial a cada dois anos, está muito bem. Com essa proposta, haveria um Mundial ou Euro todos os anos e é preciso pensarmos na condição física dos jogadores. Parece-me uma ideia difícil.

E quanto à Superliga?
Creio que o anúncio da ideia foi precipitado. Era algo de que se falava há muito, mas depois lançaram a ideia de maneira pouco organizada e estruturada. Julgo que haverá movimentos para aproximar a estrutura do futebol europeu ao desporto americano, para tentar concentrar os grandes clubes numa grande competição. Mas a grande pergunta é: como é que conectas isso com o resto da competição? Neste momento, temos a Champions, a Liga Europa, os campeonatos nacionais, tudo isso sendo parte de uma estrutura. E a questão é como é que essa competição que se crie acima disso se irá conectar com o que está debaixo, porque, caso não esteja conectado, será algo artificial. A grande pergunta é como é que se manteria a conexão desde o topo da pirâmide até à base, que é algo que o futebol sempre teve na sua história. Uma Superliga pode ter 10, 20 ou até 40 clubes de toda a Europa, mas o futebol é muito mais que isso. Em cada país há muito mais que isso, e tudo sempre esteve ligado através de um jogador que está numa equipa pequena e vai subindo, ou através de uma taça na qual uma equipa de uma divisão secundária pode eliminar uma equipa que é a campeã da Europa. Todas estas conexões são chaves, a não ser que se queira criar um futebol novo que não tenha nada a ver com o anterior.

É o jogador com mais encontros realizados na primeira divisão espanhola. Qual o segredo para tanta longevidade?
A única razão prende-se com o facto de eu ser guarda-redes, uma posição na qual, normalmente, ou és titular ou suplente. Eu fui jogando sempre, tive a sorte de ter a confiança dos vários treinadores. E suponho que o trabalho diário me levou a ter uma carreira quase sem lesões. O segredo não foi mais do que esse trabalho e a confiança que os treinadores foram tendo para colocarem-me semanalmente.

Além dessas 17 temporadas como jogador de primeira divisão, não parou de estar ligado ao futebol nos últimos anos, fosse como dirigente de três clubes diferentes, como cronista ou comentador televisivo. São 40 anos de ligação profissional ao futebol. Qual a razão para esta paixão?
No País Basco, o futebol tem uma conexão muito social, seguramente porque nós somos uma sociedade muito de equipas, de grupos, de coletivo, de coisas feitas em equipa. E o futebol representa muito isso, eu gosto do futebol porque tem essa componente. Num campo de futebol, mesmo que percas, vives uma experiência em comunidade quando vais a um estádio. Nesta sociedade tão individualista, tão agarrada aos telefones, acho que o futebol é algo que aglutina, sendo um jogo simples, mas ao mesmo tempo muito complexo. Eu acho isso maravilhoso, é uma escola de vida e dá-me muita vontade de estar no futebol.

Num jogo com Espanha no Europeu 1996

Num jogo com Espanha no Europeu 1996

Icon Sport/Getty

Acha que o futebol, sendo essa experiência tão coletiva — seja para quem joga ou para quem vê —, vai num sentido oposto ao da sociedade, que cada vez mais nos leva a fazer coisas sozinhos e à distância?
Eu tenho muito respeito pelos videojogos, mas, no final de contas, o personagem do videojogo estará sempre baseado num jogador que está no campo real. Para que existam os jogadores do computador, é preciso que existam os da vida real. E, além disto, pode haver magia no mais pequeno dos campos. Num torneio de crianças, pode acontecer qualquer coisa, um drible, uma defesa de um guarda-redes ou um gesto desportivo, em que uma criança não marca golo porque um companheiro está lesionado. Há tantas coisas magníficas que podem acontecer em qualquer lado, seja no maior dos campos, mas também no mais pequeno. E, sob o ponto de vista de sociedade, isso tem um valor enorme.

Veremos se alguns destes jovens que o Barça vem utilizando apresenta algum desses momentos de magia contra o Benfica.
Sim, veremos. O Barça tem utilizado muitos jovens, o que é um risco, mas também uma oportunidade. O Estádio da Luz não é mau sítio para vê-los. Na última vez em que estive aí, tive de sair do encontro muito cedo, porque Puyol lesionou-se e tivemos de acompanhá-lo. Acredito que seja um excelente duelo.

A grande expectativa agora reside no regresso de Ansu Fati, certo?
Há muitos jovens na equipa agora, por um lado porque Koeman está obrigado a fazê-lo, mas também porque lhes está a dar confiança. Ansu vem de 10 ou 11 meses de lesão, ainda para mais sendo um avançado e com o número 10, é normal que haja muita expectativa. Mas ele precisa de tempo para ganhar a sua melhor forma.

Muito obrigado pela longa conversa, Andoni.
De nada. Para já, vou ver se consigo arranjar algum tempo para ir ao Porto cumprimentar o André, que certamente me levará a um bom restaurante, com um bom vinho, e teremos uma bela conversa.

Mas cuidado, porque pode ser que ele esteja no Dakar ou em alguma corrida do género.
Sim, é verdade, tenho de consultar a agenda dele primeiro.