Alexander Scriabin: o compositor que escutava cores
RESUMO Personalidade exc�ntrica, que aliou o misticismo � composi��o de obras musicais elaboradas, o russo Alexander Scriabin � lembrado no centen�rio de sua morte. Sua obra, cercada de mito desde a composi��o, aos 16 anos, de um estudo para piano, ser� recordada no segundo semestre no Brasil, pela Osesp.
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O mundo musical homenageia em 2015 os cem anos da morte do compositor russo Alexander Scriabin, cuja fama se desenrolou a partir de duas singelas p�ginas, compostas pelo pianista de uma s� penada, aos 16 anos.
O famoso "Estudo em D� # menor Op.2 n.1", constante nos recitais de Vladimir Horowitz (1903-89), permeado de profunda melancolia, deflagrou o mito e a lenda em torno da figura de Scriabin.
A fim de compreendermos melhor o alcance e o significado de um "opus" t�o peculiar na hist�ria da m�sica, seria �til nos determos um pouco no ambiente no qual o compositor se desenvolveu.
Nascido em 1871, Scriabin foi certamente um produto da explos�o de criatividade art�stica que acometeu a R�ssia "fin-de-si�cle" e pr�-revolucion�ria.
Oriundo de uma fam�lia tradicional, cujos antepassados remetem ao s�culo 13, e tendo perdido a m�e logo ap�s o seu nascimento, o pequeno Shurinka –como era ent�o apelidado– foi criado num ambiente feminino e superprotetor constitu�do por uma av�, uma tia-av� e uma tia. Iniciou seus estudos com o legend�rio professor Nicolai Zverev e teve por companheiro de classe ningu�m menos do que Rachmaninoff (1873-1943).
De temperamento hipersens�vel e m�stico, Scriabin sentiu-se de imediato atra�do por qualquer filosofia que pudesse dar um respaldo a sua natureza inquieta.
De �vido leitor de Nietzsche e Schopenhauer, o jovem m�sico passou rapidamente para escritores teos�ficos t�o em voga na �poca –como registra seu bi�grafo Fabion Bowers, naqueles anos "os russos passavam o seu tempo livre obcecados com sess�es esp�ritas, tentando se comunicar com o al�m por meio de t�buas ouija ou se 'rasputinizando' em torno deste ou daquele homem santo".
Entre as figuras que absorveram a aten��o de Scriabin estava sua conterr�nea Helena Blavatsky.
Embora considerada postumamente por muitos estudiosos como uma das maiores charlat�s de sua �poca, madame Blavatsky pregava uma doutrina que se adaptava perfeitamente �s quest�es espirituais que o compositor desejava expressar por meio de sons. Seus contos fant�sticos abordando eventos sobrenaturais, entidades malignas, vampiros tibetanos e experi�ncias fora do corpo forneceram a centelha necess�ria para incendiar a criatividade vision�ria de Scriabin.
� necess�rio salientar que, apesar de todo o seu entusiasmo, Scriabin nunca foi considerado um estudioso s�rio: tendo lido febrilmente uma p�gina qualquer de alguma teoria teos�fica, era capaz de seguir imp�vido, professando aquelas ideias como suas e ainda as expandindo conforme suas necessidades no momento.
CORES
Scriabin necessitava apenas de uma ideia, de um princ�pio. Uma vez de posse de alguma fagulha, sua imagina��o imediatamente explodia em sonoridades inusitadas, harmonias e cores arrojadas. Cores, sim: o compositor nasceu com uma rara condi��o m�dica conhecida como sinestesia, condi��o esta em que o paciente tem um dos seus cinco sentidos diretamente associado a outro –no caso do compositor, sua audi��o estava conectada diretamente � vis�o.
Na medicina, tal condi��o � chamada de cromestesia. A cada som percebido, Scriabin visualizava imediatamente uma cor que a ele correspondesse. Nos seus �ltimos anos de vida chegou a encomendar um aparelho munido de l�mpadas coloridas, que pode ser visto e operado por visitantes em seu apartamento em Moscou, onde funciona o Museu Scriabin.
INDIGEST�O
Embora definitivamente impregnadas de um "p�thos" russo, suas obras iniciais deixam ver imediatamente a influ�ncia do polon�s Chopin (1810-49) –tanto que um contempor�neo seu, o compositor italiano Ferruccio Busoni (1866-1924) as rotulava sarcasticamente de "uma indigest�o de Chopin".
Este � sem d�vida o caso da atormentada "Sonata op.6 n.1", que reflete um grave momento de crise na vida do compositor. Por todo o primeiro movimento, uma intrusiva e raivosa m�o esquerda ecoa em conflito com a melodia ansiosa executada pela m�o direita. Em seu �ltimo movimento a sonata conclui em fort�ssimo com uma "Marcha F�nebre" –melodia cuja lugubridade ultrapassa em muito a c�lebre marcha hom�nima do compositor polon�s.
A presen�a de uma m�o esquerda mais incisiva do que a direita em quase todas as obras pian�sticas de Scriabin, se bem intrigante, tem uma simples raz�o de ser.
Tendo assistido o virtuose Josef Lhevinne (1874-1944) receber a Grande Medalha de Ouro do Conservat�rio de Moscou com uma execu��o arrebatadora da "Fantasia" de Liszt sobre a �pera "Don Juan", de Mozart –e tendo Scriabin na mesma ocasi�o recebido apenas a Pequena Medalha de Ouro–, o competitivo compositor decidiu encerrar-se numa "datcha" nos arredores de Moscou e praticar a mesma obra dia e noite, decidido a emular o feito do oponente.
O resultado de horas consecutivas deste trabalho irracional –contempor�neos reportaram que era poss�vel ouvir som do piano da outra margem do rio Klyazma– foi uma grave tendinite na m�o direita que por um triz n�o encerrou sua ambicionada carreira de pianista.
Foi nesse momento que surgiu na vida do compositor um mecenas, na figura do comerciante de madeiras e propriet�rio de terras Mitrofan Belaieff. N�o s� o multimilion�rio se comprometeu a pagar imediatamente por cada pe�a composta e a public�-las como concedeu a Scriabin um sal�rio, a fim de que ele pudesse se dedicar � composi��o em tempo integral.
Livre de preocupa��es materiais, prosseguiu com suas inclina��es filos�ficas, que haviam evolu�do para um bizarro pancristianismo m�stico-vision�rio que permearia toda sua obra futura. Ele tentava conclamar as "for�as divinas misteriosas do Universo", conjurando-as por meio de harmonias sofisticadas, orquestra��es ousadas e indica��es de din�mica in�ditas para a sua �poca.
Parafraseando Glenn Gould, o ouvinte "n�o devia entender grande coisa, mas se sentia elevado de alguma forma". Suas perora��es em p�blico inclu�am declara��es exc�ntricas (como "eu sou o criador de um novo mundo, portanto sou Deus"), que constituiriam uma fonte cont�nua de constrangimento para os seus amigos.
Na estreia da sinfonia "Prometeus", obra monumental e repleta de misteriosas combina��es t�mbricas, uma mulher na plateia sofreu um ataque card�aco. Os cr�ticos n�o o pouparam, associando a ele e � sua obra termos como "pervers�o" "negativismo", "sonoridades ca�ticas" e "inova��es antiart�sticas".
Mesmo um apoiador ardente do compositor como o regente russo Serge Koussevitsky n�o se furtou a comentar suas estranhezas: "Scriabin est� convencido de que quando terminarmos de executar sua sinfonia, o mundo ir� desmoronar, mas o fato � que iremos em seguida todos juntos para um �timo restaurante".
O fato de ter nascido na noite de Natal certamente motivava o misticismo de Scriabin; j� o fato de ter morrido na P�scoa contribuiu para impressionar seus seguidores al�m de qualquer medida. Mas, extravag�ncias pessoais � parte, � certo que ningu�m consegue ficar indiferente a sua m�sica.
Sua morte aos 44 anos foi a mais banal poss�vel para um homem t�o repleto de autoconfian�a e profundamente convencido de sua miss�o: uma pequena p�stula localizada sobre o l�bio superior evoluiu rapidamente para uma septicemia da qual nada p�de salv�-lo.
Durante a subsequente Revolu��o Sovi�tica, sua obra seria alvo de censura; o partido n�o via com bons olhos nem suas men��es teos�ficas nem sua m�sica em si, considerada por demais simbolista e fora dos padr�es do almejado realismo sovi�tico.
Se hoje suas composi��es se encontram plenamente reabilitadas, em grande parte isso se deve a pianistas como Horowitz, Richter, Sofronitsky, Zhukov e ao brasileiro Roberto Szidon (1941-2011), int�rprete de uma bel�ssima integral das dez sonatas para piano, "Complete Piano Sonatas" –um conjunto de tr�s CDs lan�ado em 2004 pela gravadora Deutsche Grammophon.
A obra orquestral de Scriabin foi gravada incont�veis vezes e, se a execu��o ao vivo nas temporadas n�o tem sido mais constante, o motivo se deve mais �s dificuldades de arregimenta��o de um efetivo orquestral t�o grande do que a uma falta de interesse por parte de regentes. No segundo semestre, pe�as de Scriabin integrar�o apresenta��es da Osesp e recitais de convidados em 14 ocasi�es.
Numa bela defini��o, o pianista e escritor russo Konstantin Gaymar disse que Scriabin "passou pelo mundo como um meteoro, iluminando com uma luz estranha o horizonte musical de sua �poca". Felizmente, edi��es cr�ticas, numerosas grava��es e a execu��o constante de suas obras para piano permitem que sua arte prossiga viva e luminosa.
GIULIO DRAGHI, 55, � pianista e leciona na Escola de M�sica da UFRJ.
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