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A Room With a View: emancipação emocional feminina no início do século XX

A Room With a View, no Brasil, foi traduzido como Uma Janela Para o Amor, motivo que fez o livro homônimo de E. M. Forster (seu terceiro romance, publicado em 1908), no qual o filme foi baseado, receber o mesmo título em sua primeira edição em português pela editora Rocco, em 1986, um ano após a estreia do filme. A segunda edição da obra no Brasil foi lançada em 2006 pela editora Globo com um título mais fiel ao original, Um Quarto Com Vista. Esta segunda edição não traz o posfácio escrito pelo próprio Forster cinquenta anos após sua publicação original — contando um pouco sobre o futuro dos protagonistas e fazendo uma análise da obra —, porém traz um prefácio assinado por Luiz Ruffato. Depois de assistir ao filme, o impulso de ir atrás do livro é quase inevitável e é possível que você lamente por não morar ao lado de um sebo para poder ir caminhando até lá, remexer na poeira e encontrar essa preciosidade; o livro é de uma escrita muito poética, assim como a adaptação cinematográfica.

O filme, lançado em 1985, foi produzido por Ismail Merchant e dirigido por James Ivory (o mesmo responsável pelo roteiro do recente sucesso Me Chame Pelo Seu Nome). A produção fez muito sucesso em sua época e recebeu sete indicações ao Oscar, levando três delas: Melhor Roteiro Adaptado, Melhor Figurino e Melhor Design de Produção. De fato, a estética do filme é o que ganha toda a atenção, seja nos cenários recheados de arte e ambientes bucólicos na Itália, seja no figurino elegante do período eduardiano locado no interior inglês. O filme perde um pouco de seu ritmo e conexão entre as cenas devido à passagem rápida de tempo no qual os acontecimentos se desenrolam; nesse sentido a narrativa me parece ser construída muito mais por longos diálogos sobrepostos, o que acredito funcionar melhor literariamente. Por outro lado, a superfície alegre comum às comédias sociais, como as de Jane Austen e de Henry James, tão presente na obra, é brilhantemente transposta para a tela. O tom narrativo é ainda completado pela esplêndida fotografia de Tony Pierce-Roberts e pela trilha sonora de Richard Robbins, resultando em um filme superior, que traz um retrato sensível de uma época que aspirava por novos ideais de sociedade.

A história em si é muito simples ao cotidiano da vida eduardiana: Lucy Honeychurch é uma jovem britânica branca de classe média alta que, junto de sua prima mais velha e solteira, Charlotte Bartlett, passa uma temporada de férias em Florença. Lá elas admiram o clima, os espaços, a arte e tecem comentários um tanto quanto desdenhosos sobre as pessoas e os costumes locais. Lucy, porém, não passa imune a toda essa experiência, no contato com pessoas e ideias tão diferentes de seu circulo social, e ao retornar para a Inglaterra, ela já não é mais a mesma. Ao longo da história, Lucy vivencia uma série de transformações que, aos poucos, vão alterando sua percepção sobre si mesma e, acima de tudo, sobre a sociedade em que vive. E claro, há uma história de amor irremediável. Sempre há.

Atenção: este texto contém spoilers!

A Room With a View

No filme temos a atriz Helena Bonham Carter no início de sua carreira (este foi o seu segundo filme) interpretando a protagonista, em uma ótima performance que representa bem o ar angelical e de descoberta de mundo da personagem. Ao observarmos o desenvolvimento de Lucy, podemos notar como no início ela é apresentada como uma moça conformada ao que é ditado em seu entorno sobre como uma moça deve se comportar, sempre sob a tutela de Charlotte (Maggie Smith) ou correspondendo aos desejos de sua afetuosa mãe. Com o decorrer da trama, porém, Lucy vai ganhando voz e alcançando sua liberdade emocional. Desde o início, contudo, algo borbulha na resignação de fachada de Lucy, como transparece na cena em que ela toca Beethoven ao piano de modo muito apaixonado e fervoroso, diferente de sua atitude serena tão costumeira, como observa o reverendo Beebe (Simon Callow) ao dizer: “Se ela alguma vez viver como toca, será muito emocionante — para nós e para ela”. Esta é uma cena muito emblemática, que indica o recato ditado pela educação e os bons costumes que privava a liberdade de expressão das mulheres do período, resquícios deixados pelo período vitoriano na sociedade inglesa. Já germinava em Lucy o desejo de se rebelar contra esses rígidos códigos morais, algo que ganha força quando a moça encontra George (Julian Sands) e seu pai, o Sr. Emerson (Denholm Elliott), na pensão Bertolini em que se hospeda em Florença. Os dois homens chocam de imediato as bem-educadas senhoras inglesas logo quando o Sr. Emerson, um jornalista socialista aposentado, oferece a troca de quartos falando abertamente o que pensa: “Eu não me importo com o que vejo do lado de fora. Minha visão está dentro! Aqui é onde os pássaros cantam! Aqui é onde o céu é azul!”. Neste mesmo ímpeto de liberdade ele criou seu filho George, um personagem que desperta curiosidade por espalhar pontos de interrogação desde um prato até a moldura de um quadro, por subir em uma árvore gritando “BELEZA! ALEGRIA!” até cair dos galhos, e por trazer uma citação de Thoreau nas portas de seu guarda-roupa. George é um espírito livre, foi criado de maneira não convencional, sem religião e com uma intensa reverência pela natureza e pelo mundo das ideias. Um personagem que vem a ser o extremo oposto do futuro noivo de Lucy ao retornar à Inglaterra, Cecil Vyse (Daniel Day-Lewis), um presunçoso intelectual dado às convenções.

Ao conhecer George, Lucy desperta sua capacidade questionadora e é exposta aos limites de sua posição social e de seu gênero — em um fugaz beijo em meio a um campo de trigo rodeado de papoulas, ela é convidada a viver com a mesma paixão com a qual toca Beethoven ao piano. Mas é interrompida por Charlotte, que presencia atônita a cena e chama Lucy de volta a sua realidade: ela é uma jovem restrita à sua posição. Imediatamente após o acontecimento, Lucy e Charlotte retornam à Inglaterra prometendo nunca mais tocarem no assunto, e uma vez lá, a moça noiva com Cecil como um último recurso para estar próxima do que lhe é confortável e seguro, reprimindo seus desejos para responder às expectativas da sociedade. Há uma cena entre Lucy e Cecil às margens de um lago que torna evidente o desgosto da jovem em se adaptar às convenções da época sobre as mulheres; ela lamenta dizendo que não entra mais no lago desde que foi pega ali às escondidas, algo que não é proibido a seu irmão Freddy (Rupert Graves), que frequentemente se banha nu no mesmo local. Cecil, por sua vez, diz que não a imagina nessa paisagem livre na natureza, e sim como uma obra de arte intocada em um quarto. Lucy rebate dizendo que, de modo muito provocante, ela também sempre o imagina dentro de um quarto — deixando Cecil visivelmente desconcertado. Lucy é essa figura que, presa entre as paredes luxuosas e sufocantes de um quarto, contempla a vista da janela aspirando à liberdade desse mundo externo. É dada aí a assertividade do título, A Room With a View, já que neste início do século se abria para a mulher uma janela para a emancipação, ainda que repousada no horizonte.

A Room With a View

O mais interessante do filme — e do livro — são as oposições presentes em uma sociedade que viveu a virada do século e mudava aos poucos. É evidente o embate entre a etiqueta exagerada do britânico que se considera muito urbano e cheio de decoro, com os modos simples de vida dos italianos, vistos como vulgares camponeses; há ainda uma linguagem muito implícita que comunica um viés político, de novas ideias filosóficas e maior abertura sexual desse início do século XX, especialmente sobre o papel da mulher não mais condicionado ao silêncio das ideias. Nesse sentido Lucy é uma personagem incrível que, em certa altura da história, demonstra uma autonomia e independência pouco esperada das heroínas de seu período: ela decide não ficar à mercê de um triângulo amoroso e dispensa ambos os pretendentes. Outro elemento muito bem construído no filme e que seria impossível sem o recurso visual e a incrível atuação de Maggie Smith, é a profundidade da personagem de Charlotte Bartlett. Em um primeiro momento, ela funciona com uma velha prima que nunca se casou e está sempre se metendo na vida alheia, chegando a ser inconveniente com seus comentários e sua postura conservadora. Porém, quanto mais observamos Charlotte, mais percebemos suas pequenas contradições, seus olhares silenciosos e voltados para algo doloroso dentro de si mesma.

Há uma cena em que Charlotte alerta Lucy sobre o tipo de rapaz que é George, um tipo que ela diz conhecer bem — “eles raramente mantêm suas façanhas para si mesmos”, diz ela. É deixada implícita uma bagagem sobre essa personagem que não nos é contada: como ela conheceria esse tipo de rapaz? Em uma conversa ainda na Itália entre Charlotte e a personagem Eleanor Lavish (Judi Dench), uma escritora à frente de seu tempo por viver de seu ofício e compor cenas de teor sexual em seus livros, Charlotte faz alusão a um romance de sua juventude de modo distante enquanto descasca frutas e solta pequenos risos dos comentários bisbilhoteiros da amiga, ambas sentadas no meio do campo em uma bela paisagem. O roteiro adaptado de Ruth Prawer Jhabvala sugere um passado em potencial para a personagem — uma aventura amorosa que não findou em casamento, resultando em uma experiência dolorosa que moldou a mulher que ela é agora, a “pobre, pobre Charlotte“, como diz chorosa a mãe de Lucy. Charlotte acaba por ser o verdadeiro caráter romântico da história, uma vez que é ela quem no final, junto com o Sr. Emerson, compreende os sentimentos de Lucy e a impulsiona a estar com George, indo contra todas as indicações sociais — uma vez que ele também pertence a uma classe social inferior à sua. Talvez Charlotte seja a figura que Lucy viria a se tornar caso seu final não tivesse permitido a ela ser feliz romanticamente, ou, precisamente, caso o seu tempo fosse outro que não esse de mudanças logo ali, onde a vista alcança.