(PDF) 22) Prata da Casa: os livros dos diplomatas (Edição de Autor, 2014) | Paulo Roberto de Almeida - Academia.edu
Paulo Roberto de Almeida PRATA DA CASA OS LIVROS DOS DIPLOMATAS Hartford Edição do Autor 2014 Prata da Casa Os Livros dos Diplomatas ................................... Prata da Casa Os Livros dos Diplomatas Paulo Roberto de Almeida Doutor em ciências sociais. Mestre em economia internacional. Diplomata. Edição do Autor - 2014 Direitos de publicação reservados: Paulo Roberto de Almeida 2014 _______________________________________________________ Sxxx ALMEIDA, Paulo Roberto. Prata da Casa: os livros dos diplomatas Hartford: Edição do Autor, 2014. 663 p. ISBN: 978-85-xxx-xxx-x 1. Relações internacionais. 2. Política Externa. 3. História. 4. Diplomacia brasileira. 5. Brasil. 6. Resenhas de livros. 7. Título. CDD _______________________________________________________ A ser feito: Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional conforme Lei n° 10.994, de 14/12/2004 Informação sobre a capa: composição do autor sobre ilustração de Google images 6 George Orwell introduced newspeak, a language “whose vocabulary gets smaller every year”... O ofício da escrita é a arte de cortar palavras. Graciliano Ramos, Ernest Hemingway, John Steinbeck, e muitos outros mais... Dedicado a todos os colegas que – não contando telegramas, ofícios e demais expedientes da carreira diplomática – fazem das leituras, dos livros e da escrita atividades relevantes em suas vidas. Paulo Roberto de Almeida 7 ........................................... Sumário Prefácio pág. 11 Índice Geral pág. 13 Introdução pág. 21 Primeira Parte Prata da Casa – Boletim da ADB Mini-resenhas dos livros de diplomatas pág. 29 Segunda Parte Artigos-resenhas de livros de diplomatas pág. 75 Terceira Parte Livros de relações internacionais e de política externa do Brasil Resenhas de livros interessando diplomatas e acadêmicos pág. 299 Índice alfabético de autores e livros pág. 647 Livros de Paulo Roberto de Almeida pág. 659 9 .............................................................. Prefácio A julgar pelas resenhas aqui reunidas, seu autor parece ser alguém que vive com livros e para os livros. De fato, eu não hesito em confessar a minha “loucura gentil” pelos livros, uma espécie de “enfermidade espiritual” que beneficiaria muito a humanidade se ela por acaso se tornasse irremediavelmente contagiosa. Tal atração por esses simpáticos objetos de prazer intelectual, além de demonstrar sua forte propensão à aquisição de novos conhecimentos, tem a vantagem de resultar em inúmeras resenhas, que agora tenho o prazer de compartilhar com todos os meus leitores por meio desta coletânea. Os colegas diplomatas descobrirão que boa parte dos livros aqui resenhados, em formato maior ou menor, foi escrita pelos próprios diplomatas. Para ser mais exato, metade das mini-resenhas da seção Prata da Casa é de livros publicados pela Fundação Alexandre de Gusmão, entidade que divulga, institucionalmente, boa parte da produção feita na própria Casa de Rio Branco. Os professores e estudantes de relações internacionais, bem como os pesquisadores de temas da diplomacia brasileira e os próprios diplomatas também encontrarão aqui resenhas mais longas de livros de não diplomatas, interessando a todos os públicos, vários deles escritos por colaboradores habituais de atividades acadêmicas do Ministério das Relações Exteriores. Como entidade autônoma, mas vinculada ao Itamaraty, a Associação dos Diplomatas Brasileiros começou a publicar, pouco depois de sua fundação, mais de duas décadas atrás, um pequeno boletim trimestral veiculando matérias de interesse geral e corporativo. Nele constam aspectos diversos da atividade diplomática e internacional do Brasil, bem como pequenos registros dos livros que os diplomatas escrevem e publicam. Prata da Casa é o nome dessa seção do Boletim da ADB que se dedica, por meio de mini-resenhas, à apresentação (inclusive visual, mediante reprodução reduzida da capa) de livros publicados por diplomatas. Nos dez últimos anos, eu assumi a responsabilidade por essa seção do Boletim – aliás, não assinada – e nela tenho me dedicado, sistematicamente, a apresentar aos colegas e, de maneira geral, ao público leitor do Boletim, os livros escritos pelos diplomatas, em todos os gêneros, e não apenas aqueles dotados de “afinidades eletivas” com a carreira. Nesse período, a Funag publicou centenas de livros, entre teses do Curso de Altos Estudos, trabalhos do Instituto Rio Branco, transcrições de seminários por ela organizados, obras diversas realizadas pelos diplomatas num ambiente acadêmico ou profissional, bem 11 como muitos outros trabalhos de acadêmicos voltados para o estudo de temas que pertencem ao universo intelectual das relações internacionais e da política externa do Brasil. Ou seja, a amostra aqui reunida é representativa do que melhor se publicou dentro e fora do Itamaraty, nas últimas décadas, podendo, assim, servir como uma espécie de diretório da produção especializada nessa área. A Funag também publicou obras no gênero literário (poesias, contos, romances), que resultaram de concursos patrocinados por ela e pelo Itamaraty, dentro e fora do Brasil. Mas esse acervo está bem menos representado aqui, em virtude das afinidades eletivas do resenhistas com a produção na área de humanidades. Este livro é uma pequena amostra dessa produção, intra e fora muros, e tem a vantagem de relembrar aos pesquisadores e aos jovens estudantes da área quanto coisa ainda precisa ser lida para se obter, ao menos pela súmula do que se publicou de mais relevante, uma espécie de curso ex-cátedra de diplomacia prática, como também de memória histórica, além de oferecer alguns poucos exemplos da boa literatura produzida pelos diplomatas. Nesse sentido, ele é uma obra de referência sobre a produção acumulada nas últimas décadas que deve interessar a todos nós, profissionais, pesquisadores e aspirantes à carreira. Tenham todos bom proveito e, podendo, recorram às fontes originais, agora novamente registradas graças ao amor pelos livros deste resenhista incurável. Paulo Roberto de Almeida Um simples bibliomaníaco... Hartford, 16 de julho de 2014 12 .............................................................. Índice Geral Introdução p. 21 Primeira Parte Prata da Casa – Boletim da ADB Mini-resenhas dos livros de diplomatas, 29 Paulo Roberto de Almeida: Formação da Diplomacia Econômica no Brasil Flávio Saraiva e Amado Cervo (orgs.): O crescimento das relações internacionais no Brasil Felipe Fortuna: Em Seu Lugar: poemas reunidos José Vicente Lessa: O autoengano coletivo: uma crítica do ideário nacional brasileiro Alberto da Costa e Silva: Das mãos do oleiro: aproximações CHDD: A Missão Varnhagen nas Repúblicas do Pacífico: 1863 a 1867 André Heráclio do Rêgo: Famille et Pouvoir Regional au Brésil Murilo Vieira Komniski: Buritizal Raul de Taunay: Rosas da infância ou da estrela José Augusto Lindgren Alves: Os direitos humanos na pós-modernidade Paulo Antonio Pereira Pinto: Taiwan – um futuro formoso para a ilha? Agenor Soares dos Santos: Dicionário de anglicismos e de palavras inglesas em português Alexandre Vidal Porto: Matias na cidade Paulo Antonio Pereira Pinto: Iruan nas reinações asiáticas Milton Torres: O Maranhão e o Piauí no Espaço Colonial Samuel Pinheiro Guimarães: Desafios Brasileiros na Era dos Gigantes João Clemente Baena Soares: Sem medo da diplomacia: depoimento ao Cpdoc Fernando de Mello Barreto: Os Sucessores do Barão, 2: relações exteriores, 1964-1985 Paulo Roberto de Almeida: O estudo das relações internacionais do Brasil Vasco Mariz (org.): Brasil-França: relações históricas no período colonial Armindo Branco Mendes Cadaxa: No Jardim de Inverno Marcelo Raffaelli: A Monarquia e a República: relações Brasil-Estados Unidos no Império Rubem Mendes de Oliveira: A Questão da Técnica em Spengler e Heidegger Luís Fernando Corrêa da Silva Machado: Brasil e investimentos internacionais Otávio Augusto Drummond Cançado Trindade: O Mercosul no Direito Brasileiro Luís C. Villafañe G. Santos: El Imperio del Brasil y las Repúblicas del Pacífico, 1822-1889 Teresa Dias Carneiro: Otávio Augusto Dias Carneiro, um pioneiro da diplomacia econômica 13 Alfredo José Cavalcanti Jordão de Camargo: Bolívia: a criação de um novo país Jorge Sá Earp: O olmo e a palmeira Carlos Alberto Leite Barbosa: Desafio Inacabado: a política externa de Jânio Quadros Secretaria dos Estrangeiros: O Conselho de Estado e a política externa do Império, 1863-67 Luiz Felipe de Seixas Corrêa (org.): O Brasil nas Nações Unidas, 1946-2006 Milton Torres: No Fim das Terras e Andaimes Fernando Reis: Falta um cão na vida de Kant Flávio de Oliveira Castro: Caleidoscópio: cenas da vida de um diplomata Carlos Henrique Cardim: A Raiz das Coisas: Rui Barbosa, o Brasil no Mundo Geraldo Holanda Cavalcanti: Encontro em Ouro Preto: contos fantásticos Luís Valente de Oliveira e Rubens Ricupero (orgs.): A Abertura dos Portos Antonio Cachapuz de Medeiros (org.): Desafios do Direito Internacional Contemporâneo Evaldo Cabral de Mello: Nassau: governador do Brasil holandês Everton Vargas: O Legado do Discurso: Brasilidade e Hispanidade no Pensamento Social Marcelo Böhlke: Integração Regional e Autonomia do seu Ordenamento Jurídico Maria Nazareth Farani de Azevedo: A OMC e a Reforma Agrícola Fernando Cacciatore de Garcia: O Príncipe Irreal e o Poeta Errante Carlos Kessel: Tesouros do Morro do Castelo: Mistério nos subterrâneos do Rio de Janeiro Roberto Campos: A Lanterna na Popa: Memórias Alexandre Guido Lopes Parola: A Ordem Injusta Sérgio Eduardo Moreira Lima: A Time for Change Oswaldo Munteal Filho et alii (orgs.): Estado e Sociedade no Brasil do AI-5 Omar L. de Barros e Sylvia Bojunga (eds.), Potência Brasil: Gás natural, energia limpa André Heráclio do Rêgo: Família e Coronelismo no Brasil: uma história de poder José Roberto de Almeida Pinto: O Conceito de Poder nas Relações Sociais Eugênio Garcia (org.): Diplomacia Brasileira: Documentos Históricos, 1493-2008 João Alfredo dos Anjos: José Bonifácio, o primeiro Chanceler do Brasil Adriano Silva Pucci: O Avesso dos Sonhos João Almino: Escrita em contraponto: ensaios literários Vasco Mariz: Temas da política internacional: ensaios, palestras e recordações diplomáticas Vera Cíntia Alvarez: Diversidade cultural e livre-comércio: antagonismo ou oportunidade? Jorge Sá Earp: O Legado Alberto da Costa e Silva: Castro Alves: um poeta sempre jovem Sérgio Corrêa da Costa: Le nazisme en Amérique du Sud: Chronique d’une guerre secrete Paulo Roberto Palm: A Abertura do Amazonas à Navegação e o Parlamento Brasileiro 14 Tarcísio Costa: As duas Espanhas e o Brasil Luiz Felipe de Seixas Corrêa: O Barão do Rio Branco: Missão em Berlim – 1901/1902 Flavio Mendes de Oliveira Castro: Dois séculos de história da organização do Itamaraty Gonçalo de Barros Carvalho e Mello Mourão: A Revolução de 1817 e a História do Brasil Ovídio de Andrade Melo: Recordações de um Removedor de mofo no Itamaraty Jorge Sá Earp: O novelo Geraldo Holanda Cavalcanti: As desventuras da graça Paulo Nogueira Batista Jr. (org.): Paulo Nogueira Batista: Pensando o Brasil Antonio de Aguiar Patriota: O Conselho de Segurança após a Guerra do Golfo Luís Gurgel do Amaral: O Meu Velho Itamarati Ciro Leal M. da Cunha: Terrorismo e Política Externa Brasileira Após o 11 de Setembro Rômulo Figueira Neves: Cultura Política e Elementos de Análise da Política Venezuelana Marcelo Cid: Os Unicórnios Fernando Cacciatore de Garcia: Fronteira Iluminada Paulo Roberto de Almeida: O Moderno Príncipe: Maquiavel Revisitado Oscar S. Lorenzo Fernandez: Três Séculos e uma Geração Carlos Augusto de Proença Rosa: História da Ciência Nelson A. Jobim, Sergio W. Etchegoyen, João Paulo Alsina (orgs.): Segurança Internacional José Augusto Lindgren Alves: Viagens no Multiculturalismo Paulo R. de Almeida, Rubens Barbosa (orgs.): Guia dos Arquivos Americanos sobre o Brasil Denis Rolland; Antonio Carlos Lessa (coords.): Relations Internationales du Brésil Michel Arslanian Neto: A Liberalização do Comércio de Serviços no Mercosul Fernando Cacciatore de Garcia: Memórias de um homossexual na infância Marcelo Cid (org.): Priapeia: Poesia erótica latina Celso Amorim: Conversas com Jovens Diplomatas L. F. Lampreia, M. Azambuja, R. Abdenur, R. Ricupero: A Política Externa Brasileira Edgard Telles Ribeiro: Diplomacia Cultural: seu papel na diplomacia brasileira Fernando Guimarães Reis: Caçadores de Nuvens: Em busca da Diplomacia Rubens Barbosa: O Dissenso de Washington Daniel Costa Fernandes: A Política Externa da Inglaterra Sidnei J. Munhoz e F. C. T. Silva (orgs.), Relações Brasil-Estados Unidos: séculos XX e XXI Paulo Roberto de Almeida: Relações internacionais e política externa do Brasil Renato L. R. Marques: Duas Décadas de Mercosul Fernando Pimentel: Fim da era do petróleo e a mudança do paradigma energético mundial Alberto da Costa e Silva (coord.): História do Brasil Nação: 1808-1830 15 Eugenio Vargas Garcia: O Sexto Membro Permanente: o Brasil e a criação da ONU Gelson Fonseca: Diplomacia e Academia Maria Theresa Diniz Forster: Oliveira Lima e as Relações Exteriores do Brasil Sarquis José Buainain Sarquis: Comércio Internacional e Crescimento Econômico no Brasil Ademar Seabra da Cruz: Diplomacia, sistemas nacionais de inovação: estudo comparado Miguel Gustavo de Paiva Torres: O Visconde do Uruguai e sua atuação diplomática José Estanislau do Amaral: A diplomacia contemporânea dos Estados Bálticos Luiz Fernando Ligiéro: A Política Externa Independente e o Pragmatismo Responsável San Tiago Dantas: Política Externa Independente Letícia Frazão Alexandre: O Tratamento Especial e Diferenciado: do GATT à OMC Fernando de Mello Barreto: A Politica Externa Após a Redemocratização Luís C. Villafañe G. Santos: O evangelho do Barão: Rio Branco e a identidade brasileira Antonio A. Cançado Trindade: Repertório da Prática Brasileira do Direito Internacional Felipe Hees e Marília Castañon Penha Valle (orgs.): Dumping, Subsídios e Salvaguardas André Heráclio do Rêgo: Os Sertões e os Desertos: o combate à desertificação Maria Feliciana N. Ortigão: O Tratado de Proibição Completa dos Testes Nucleares (CTBT) Renato Mendonça: A Influência Africana no Português do Brasil Renato L. R. Marques: Duas Décadas de Mercosul Adolpho Justo Bezerra de Menezes: O Brasil e o mundo ásio-africano Vasco Mariz: Depois da Glória: ensaios históricos sobre história do Brasil e de Portugal Gustavo Henrique M. Bezerra: A Política Externa Brasileira e a Questão Cubana, 1959-1986 Rubens Antonio Barbosa: Interesse Nacional & Visão de Futuro Luiz Felipe de Seixas Corrêa (org.): O Brasil nas Nações Unidas, 1946-2011 Francisco Doratioto: Relações Brasil - Paraguai: afastamento, reaproximação, 1889-1954 Luís Cláudio Villafañe G. Santos: Duarte da Ponte Ribeiro: pionero de amistad Brasil-Perú Emerson Coraiola Kloss: Transformação do Etanol em Commodity Clóvis Brigagão e Fernanda Fernandes (orgs.): Diplomacia brasileira para a paz Joaquim Nabuco: My Formative Years Paulo Roberto de Almeida: Integração Regional: uma introdução André Amado: Por Dentro do Itamaraty: impressões de um diplomata Manoel Gomes Pereira (org.): Barão do Rio Branco: 100 anos de memória Augusto César B. de Castro: Os bancos de desenvolvimento e a integração da América do Sul Ricardo Luís Pires: A Nova Rota da Seda: caminhos para a presença brasileira na Ásia Geraldo Holanda Cavalcanti: A herança de Apolo: Poesia, Poeta, Poema Luiza Lopes da Silva: A questão das drogas nas relações internacionais 16 Elias Luna A. Santos: Investidores soberanos, política internacional e interesses brasileiros Celso Amorim: Breves Narrativas Diplomáticas Douglas Wanderley de Vasconcellos: Esporte, poder e relações internacionais José Vicente Sá Pimentel (org.): O Brasil, os BRICS e a agenda internacional José Guilherme Merquior: Liberalism, Old and New Silvio José Albuquerque e Silva: As Nações Unidas e a luta internacional contra o racismo Elisa de Sousa Ribeiro (coord.), Direito do Mercosul Antônio Augusto Cançado Trindade: Os tribunais internacionais contemporâneos Ronaldo Mota Sardenberg: O Brasil e as Nações Unidas Synesio Sampaio Goes Filho: As Fronteiras do Brasil André Aranha Corrêa do Lago: Conferências de desenvolvimento sustentável José Vicente Pimentel (org.), Pensamento Diplomático Brasileiro, 1750-1964 Segunda Parte Artigos-resenhas de livros de diplomatas, 75 Valdemar Carneiro Leão: A Crise da Imigração Japonesa no Brasil (1930 - 1934) Rubens Antonio Barbosa: América Latina em Perspectiva: a integração regional Sérgio Bath: Maquiavelismo: A prática política segundo Nicolau Maquiavel Paulo Roberto de Almeida: O Mercosul no contexto regional e internacional Luiz Felipe de Seixas Corrêa: A Palavra do Brasil nas Nações Unidas: 1946-1995 R. Ricupero; João H. P. de Araújo (org.): Rio Branco: Biografia Fotográfica,1845-1995 Sérgio Abreu e Lima Florêncio e Ernesto Henrique Fraga Araújo: Mercosul Hoje José Manoel Cardoso de Oliveira: Actos Diplomaticos do Brasil, 1492-1912 Paulo R. de Almeida: Relações internacionais e política externa do Brasil; Mercosul Paulo Roberto de Almeida: Velhos e novos manifestos: o socialismo na era da globalização Paulo R. de Almeida: O Brasil e o multilateralismo; O estudo das relações internacionais Paulo Roberto de Almeida: Le Mercosud: un marché commun pour l’Amérique du Sud Fernando P. de Mello Barreto Filho: Sucessores do Barão: relações exteriores, 1912-1964 Paulo Roberto de Almeida: Formação da diplomacia econômica no Brasil Rubens A. Barbosa, Marshall C. Eakin, Paulo R. Almeida (orgs.): O Brasil dos brasilianistas Paulo R. de Almeida: Os primeiros anos do século XXI: o Brasil e as relações internacionais Luís Cláudio Villafañe Gomes Santos, O Império e as repúblicas do Pacífico Paulo Roberto de Almeida, Katia de Queiroz Mattoso: Une Histoire du Brésil Paulo R. de Almeida: A Grande Mudança: consequências econômicas da transição política Evaldo Cabral de Mello: A outra Independência 17 Paulo Roberto de Almeida: Relações internacionais e política externa do Brasil (2a. edição) Paulo Roberto de Almeida: Formação da diplomacia econômica no Brasil (2a. edição) Marshall C. Eakin, Paulo R. Almeida (eds.): Guide to Brazilian Studies in the United States Paulo Roberto de Almeida; Rubens Antonio Barbosa (eds.): Relações Brasil-Estados Unidos Leonardo de Almeida Carneiro Enge: A Convergência Macroeconômica Brasil-Argentina Eugênio Vargas Garcia: Entre América e Europa: a política externa na década de 1920 Paulo Roberto de Almeida: O estudo das relações internacionais do Brasil Fernando de Mello Barreto: Sucessores do Barão, 2: relações exteriores, 1964-1985 Álvaro da Costa Franco (org.): Visconde do Rio Branco: A política exterior no Parlamento Secretaria dos Estrangeiros: O Conselho de Estado e a política externa do Império, 1858-62 J. A. Pimenta Bueno: Consultores do Ministério dos Negócios Estrangeiros, 1859-1864 Suely Braga da Silva: Paulo Nogueira Batista: o diplomata através de seu arquivo Marcelo Raffaelli: As relações entre Brasil e Estados Unidos durante o Império Otávio Augusto Drummond Cançado Trindade: O Mercosul no Direito Brasileiro Demétrio Magnoli e Carlos Serapião Jr.: Comércio Exterior e negociações internacionais Rubens Antônio Barbosa (org.). Mercosul quinze anos Brazílio Itiberê da Cunha, Expansão Econômica Mundial Carlos Alberto Leite Barbosa: Desafio Inacabado: a política externa de Jânio Quadros Carlos Henrique Cardim: A Raiz das Coisas: Rui Barbosa, o Brasil no Mundo Luís Valente de Oliveira e Rubens Ricupero (orgs.): A Abertura dos Portos Geraldo Holanda Cavalcanti: Encontro em Ouro Preto: contos fantásticos Rubens Antonio Barbosa: revista Interesse Nacional Manoel de Oliveira Lima: Nos Estados Unidos, Impressões políticas e sociais Renato L. R. Marques: Mercosul 1989-1999: depoimentos de um negociador (1974) Paulo Almeida, Rubens Barbosa e Francisco Rogido (orgs.): Guia dos Arquivos Americanos Paulo Roberto de Almeida: O Moderno Príncipe (Maquiavel revisitado) Edgard Telles Ribeiro: O Punho e a Renda Paulo Roberto de Almeida: Globalizando, ensaios sobre a globalização e a antiglobalização Paulo Roberto de Almeida: Relações Internacionais e Política Externa do Brasil José Maria Paranhos da Silva Jr.; Manoel G. Pereira (ed.): Obras do Barão do Rio Branco Manoel Gomes Pereira (org.). Barão do Rio Branco: 100 Anos de Memória Luís Cláudio Villafañe Gomes Santos (curador): Rio Branco: 100 anos de memória Ângela Porto (organizadora): Barão do Rio Branco e a caricatura Paulo Roberto de Almeida: Integração Regional: uma introdução José Vicente Pimentel (org.): Pensamento Diplomático Brasileiro, 1750-1964 18 Terceira Parte Livros de relações internacionais e de política externa do Brasil, 299 Pierre Renouvin (ed.): Histoire des Relations Internationales Francis Fukuyama: The End of History? François Furet: Le Passé d’une Illusion: essai sur l’idée communiste Daniel Yergin: The Prize: The Quest for Oil, Money and Power Jean-Christophe Rufin: L’Empire et les Nouveaux Barbares Francis Fukuyama: Construção de Estados Ricardo Seitenfus: Manual das organizações internacionais Henrique Altemani e A. C. Lessa (orgs.): Política Internacional Contemporânea Eduardo Felipe P. Matias: A Humanidade e suas Fronteiras Fernando Barros: A tendência concentradora da produção de conhecimento Hervé Couteau-Bégarie: Géostratégie de l’Atlantique Sud Vários autores: A economia mundial em perspectiva histórica Jagdish Bhagwati: Em Defesa da Globalização John Williamson (org.): Latin American Adjustment: How Much Has Happened? P.-P. Kuczynski e John Williamson (orgs.): After the Washington Consensus Ha-Joon Chang: Kicking Away the Ladder; Bad Samarithans Paul Krugman: Rethinking International Trade Celso Lafer: Comércio, Desarmamento, Direitos Humanos Mônica Cherem e R. Sena Jr. (eds.): Comércio Internacional e Desenvolvimento Rabih Ali Nasser: A OMC e os países em desenvolvimento Henrique Altemani e A. C. Lessa (orgs.): Relações internacionais do Brasil Amado Luiz Cervo e Clodoaldo Bueno: História da Política Exterior do Brasil A. A. C. Trindade: Repertório da Prática Brasileira do Direito Internacional José Honório Rodrigues e R. Seitenfus: Uma História Diplomática do Brasil João Pandiá Calógeras: A Política Exterior do Império Carlos Delgado de Carvalho: História Diplomática do Brasil Hélio Vianna: História Diplomática do Brasil Sandra Brancato (coord.): Arquivo Diplomático do Reconhecimento da República Henrique Altemani de Oliveira: Politica Externa Brasileira Clóvis Brigagão: Diretório de Relações Internacionais no Brasil, 1950-2004 19 Moniz Bandeira: Estado Nacional e Política Internacional na América Latina Moniz Bandeira: O Expansionismo Brasileiro e a formação dos Estados no Prata José Luis Fiori (org.): O Poder Americano Boris Fausto e Fernando J. Devoto: Brasil e Argentina: história comparada Eduardo Viola e Héctor Ricardo Leis: Desafios de Brasil e Argentina Lincoln Gordon: Brazil’s Second Chance; A Segunda Chance do Brasil Vários autores: A marcha da integração no Mercosul Helder Gordim da Silveira: Integração latino-americana: projetos e realidades José A. E. Faria: Princípios, Finalidade do Tratado de Assunção Pedro da Motta Veiga: A Evolução do Mercosul: cenários José Maria Aragão: Harmonização de Políticas no Mercosul Gary Clyde Hufbauer e Jeffrey J. Schott: North American Free Trade Tullo Vigevani e Marcelo Passini Mariano: Alca: o gigante e os anões Tullo Vigevani; Marcelo Dias Varella: Propriedade intelectual e política externa Maria Helena Tacchinardi, A Guerra das Patentes: o conflito Brasil x EUA Santiago Fernandes: A Ilegitimidade da Dívida Externa João P. Reis Velloso e Roberto Cavalcanti (coords.): Brasil, um país do futuro? Índice alfabético de autores e livros, 647 Livros de Paulo Roberto de Almeida, 659 20 .............................................................. Introdução Es, pues, de saber, que este sobredicho hidalgo, los ratos que estaba ocioso... se daba a leer...; y llegó a tanto su curiosidad y desatino en esto, que vendió muchas hanegas de tierra... para comprar libros... y así llevó a su casa cuantos pudo haber de ellos. (...) En resolución, él se enfrascó tanto en su lectura, que se le pasaban las noches leyendo de claro en claro, y los días de turbio en turbio; y así, del poco dormir y del mucho leer se le secó el celebro, de manera que vino a perder el juicio. Miguel de Cervantes Saavedra Não, a despeito do excesso de leituras, ainda não me ocorreu a fatalidade que se abateu sobre o cavaleiro da Mancha. Em todo caso, meu cérebro não parece ter secado pelo fato de também passar muitas noites na companhia dos livros ou escrevendo sobre eles. Este livro, que fala exclusivamente de outros livros, pode ser considerado como o resultado de algumas, na verdade de muitas noites de leitura. Não creio ter perdido o juízo com isso, embora possa ter perdido várias noites de sono. Mas poucos lazeres alternativos poderiam ter sido mais absorventes e mais ricos, intelectualmente falando, do que esse ato de penetrar em outros mundos, em outras vidas, de poder estar em dois lugares ao mesmo tempo, simplesmente ficando na companhia dos bons livros. A eles devo tudo o que sou, e por isso tento retribuir o que ganhei de bom, à minha maneira, fazendo resenhas de modo totalmente voluntário, sem que, jamais, alguém me pedisse tal esforço extra. Algumas resenhas de livros, como se sabe, têm geralmente o estranho hábito de revelar, não exatamente o conteúdo do livro examinado ou o que diz o autor em causa, mas mais frequentemente o que pensa deles o próprio resenhista. Este volume não pretende ser uma exceção a essa regra não-escrita da prática do book-review, mesmo se ele a implementa de uma maneira muita peculiar. Com efeito, resenhistas profissionais costumam ostentar um certo air blasé ou de détachement vis-à-vis da obra resenhada, típicos de quem se julga no direito de falar bem (ou mal) do autor, sem outros objetivos do que os de parecer erudito ou de simplesmente impressionar o leitor. Não tenho certeza de ter escapado a esta maldição, mas a grande vantagem desta coletânea, em relação às antologias de resenhistas que são supostamente do ramo, seja talvez o fato de que ela não foi concebida e elaborada por um resenhista 21 profissional, por dever de ofício ou contra remuneração, mas sim por um mero apreciador de livros. Estou sendo, obviamente, comedido ao usar o termo “apreciador”. Meu caso, provavelmente, é bem mais grave, pois creio exibir aquela mesma “loucura gentil” pelos livros, que já atingiu muitos outros leitores compulsivos. Não se trata da mesma loucura que atingiu D. Quixote, pois o personagem de Cervantes estava direcionado unicamente a um gênero literário, e meus interesses são um pouco mais vastos, talvez omnívoros, se a palavra de aplica em matéria de livros. As resenhas incluídas nesta coletânea, acolhidas pela Fundação Alexandre de Gusmão – pelo que agradeço na pessoa de seu presidente – não foram feitas por encomenda de algum editor ou diretor de folha literária, mas como resultado de minha livre escolha, motivado única e exclusivamente pelo desejo de realizar eu mesmo uma espécie de “homenagem voluntária” aos livros ou aos autores selecionados. Essa postura é tanto mais defensável e legítima que muitas das resenhas aqui incluídas não foram escritas para serem publicadas e nem mesmo se referiam a obras do momento ou a autores vivos. Motivou-me o simples gosto da palavra escrita, que responde, neste caso, a meu incontrolável, constante e não tão secreto vício da leitura. Se a maior parte é de obras de diplomatas – às quais se agregaram várias outras obras de não diplomatas, mas interessando a estes, assim como aos acadêmicos e ao público em geral – é porque tenho vivido com diplomatas pelas últimas três décadas. Mas, assim como essa convivência é menor do que aquela que mantenho com os livros, estas resenhas também constituem apenas uma pequena parte de todos os livros que já resenhei numa vida inteira (ou quase) dedicada a esses pouco obscuros objetos de desejo. De fato, tenho vivido com livros, pelos livros e para os livros uma boa parte de minha vida, provavelmente mais de dois terços de uma existência inteira passada na atenta fixação do papel impresso (e, agora, nas telas de computadores e em vários dispositivos de leituras digitais). Entretanto, até onde alcançam minhas lembranças da primeira infância, não se pode dizer que o gosto da leitura constituísse uma espécie de kismet pessoal ou que ele estivesse entranhado num certo ambiente familiar. Não me lembro, por exemplo, que meu lar de infância contivesse muitos livros, pelo contrário, provavelmente muito poucos. Meus pais, típicos filhos de imigrantes pobres, de extração camponesa portuguesa e italiana, tinham sido criados entre o trabalho e a escola, processo que conduziu, nos dois casos, a uma educação primária incompleta. Mas, como 22 todos os imigrantes, ambos davam uma importância muito grande à educação formal dos filhos, o que, dadas as condições de penúria material em que vivíamos, não necessariamente se traduziu em aquisição voluntária de outros livros que não, chegada a hora, os didáticos. Lembro-me também de minha avó Nicolina, chegada ao Brasil no começo da República, para trabalhar nas fazendas de café de Minas Gerais, e que continuava a contar em mil-réis, a despeito de todas as reformas monetárias ao longo do século XX, permanecendo, aliás, completamente analfabeta até o final de sua vida. Mas ela tinha um imenso orgulho de meus estudos e de minhas leituras juvenis, assim como meus pais, que de certa forma me “obrigavam” a tirar boas notas na escola, sob promessa de castigo se não o fizesse. Foram circunstâncias fortuitas que me fizeram chegar aos livros e com eles passar boa parte de minha vida. Minha casa, na então Chácara Itaim, bairro paulistano do Jardim Paulista, ficava muito próxima de uma biblioteca infantil, que eu passei a frequentar antes mesmo de estar formalmente alfabetizado. Na “Biblioteca Anne Frank” passei todos os anos de minha infância e os primeiros da adolescência. Uma vez treinado nas primeiras letras, na “atrasada” idade dos sete anos, passei a ler furiosamente: lia com avidez, não só na própria biblioteca, como todos os dias retirava sistematicamente um ou dois livros para ler em casa, à noite. Se não li todos os livros da biblioteca, devo ter chegado muito perto disso. Muitos anos mais tarde, já adulto, visitei novamente a biblioteca Anne Frank, e anotei detalhadamente todos os livros que frequentaram meus anos inocentes: infelizmente, tendo feito essas notas num dos primeiros laptops surgidos na primeira fase das novas tecnologias, a lista se perdeu numa dessas famosas quebras de sistemas operacionais que frequentemente ocorriam nos primeiros anos dos novos softwares de processamento de textos. Não é difícil lembrar alguns dos grandes autores: todo Monteiro Lobato para crianças (e alguns de adultos também), muitas aventuras de Jules Verne e Emilio Salgari, todo Karl May e dezenas de outros escritores juvenis, além de alguns livros sérios de história, arqueologia (consegui decorar várias dinastias de faraós), Malba Tahan, Francisco de Barros Júnior (da série Três Escoteiros em Férias) e muitos outros. Alguns anos depois, trabalhando durante o dia e estudando à noite, passei a frequentar as bibliotecas do centro de São Paulo: a pública “Mário de Andrade”, a liberal e circunspecta da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, a especializada em economia do Centro das Indústrias, a da USIS, junto ao Consulado dos Estados Unidos, a da União Cultural Brasil-Estados Unidos e várias outras mais. Também comecei a percorrer incessantemente as livrarias do centro da cidade, em especial a velha Brasiliense, na Barão de Itapetininga, e a Zahar, na Praça da República. Também tentei escrever meu próprio livro de aventuras 23 juvenis, um empreendimento que não deve ter passado das primeiras duas páginas, mas cujo roteiro já estava completo em minha mente. Enfim, foram anos e anos de contato com os livros, lendo em toda e qualquer circunstância, em casa ou no trabalho, na escola e nos transportes públicos, sob chuva ou sol quase se poderia dizer. Raramente, ou quase nunca, saía de casa sem um livro na mão ou na pasta: qualquer oportunidade era boa para se avançar na leitura, mesmo na fila do recrutamento militar (quando estava acompanhado de Gustavo Corção, uma leitura insuspeita para os anos do regime militar). Ao deixar o Brasil pela Europa, no começo dos anos 70, arrastei comigo uma biblioteca que certamente deve ter intrigado diversos agentes alfandegários. No velho continente, como não podia deixar de ser, passei boa parte de uma longa estada de sete anos voluntariamente encerrado em bibliotecas universitárias, sobretudo a do Instituto de Sociologia da Universidade de Bruxelas. Continuei depois esse hábito nas demais cidades a que fui levado por força de uma vida profissional sempre nômade. Livrarias e bibliotecas foram minhas segundas casas, e se ouso dizer, talvez as primeiras, já que certamente teria gostado de viver em algumas delas, cercado de livros, com apenas uma boa ducha como acessório. Desde muito cedo, habituei-me também a fazer fichas de livros, sob a forma de notas sintéticas, algumas compilações mais ou menos longas ou mesmo resenhas críticas, em cadernos ou folhas esparsas. Infelizmente, algumas dessas resenhas pioneiras foram perdidas com os papéis da juventude, entre a partida e a volta da Europa. Minha primeira resenha “publicada” parece ter sido a de uma obra de Erich Fromm, A Sobrevivência da Humanidade (tradução brasileira de Waltensir Dutra, para a Zahar, em 1964, de May Man Prevail?, de 1961), que saiu no jornal do centro acadêmico do Colégio Costa Manso, onde eu cursava o Clássico (em torno dos 16 anos, portanto). Muitos outros trabalhos dessa época, que precedeu minha saída do Brasil, se perderam: lembro-me de extensos resumos de obras políticas, de leituras anotadas de Sartre, Celso Furtado, Caio Prado, Florestan Fernandes e muitos outros autores brasileiros ou estrangeiros. Também se perdeu um resumo meu de uma versão abreviada do Capital, de Marx, numa edição francesa, traduzida e publicada no Brasil: mais de 70 páginas que, nos intervalos do trabalho, eu pacientemente datilografei, com duas cópias carbono. Mais tarde, durante minha estada universitária na Europa – feita bem mais de longas jornadas em bibliotecas do que de comparecimento às aulas –, preenchi diversos cadernos quadriculados, organizando-os por temas, ali compilando apreciações críticas e resumos de dezenas de livros, sem considerar as simples notas bibliográficas, que tinham seus cadernos 24 especiais. Tais cadernos, divididos em áreas de estudo – sociologia, antropologia, história, política, marxismo (aliás, dois inteiros), problemas brasileiros (três cadernos), etc. – muito me ajudaram quando tive de escrever meus trabalhos de conclusão de curso: a monografia sobre a ideologia do desenvolvimento brasileiro, para a licença em Ciências Sociais; a dissertação sobre o comércio exterior brasileiro para o mestrado em planejamento econômico; e a tese de doutorado sobre as revoluções burguesas, anos mais tarde. Mas, essas anotações não cobrem senão uma parte de minhas leituras, aquelas ligadas diretamente ao estudo acadêmico ou às preocupações políticas. Dezenas de outros livros, cujos títulos se perderam em agendas extraviadas, permaneceram sem registro, sem falar dos muitos romances, policiais ou de literatura geral, que nunca foram objeto de qualquer tentativa de “crítica literária”. Se fosse possível fazer uma lista mais ou menos abrangente de minhas leituras, ela certamente ocuparia dezenas de páginas e nunca estaria completa; em todo caso, disponho de pelo menos uma enorme lista organizada que, na verdade, se referia a um ambicioso programa de leituras, jamais cumprido integralmente. A presente seleção de livros resenhados, portanto, não cobre senão uma ínfima parte de minhas leituras, compreendendo as obras efetivamente objeto de avaliação crítica. Alguns dos trabalhos aqui reunidos foram parcial ou integralmente publicados em revistas acadêmicas ou periódicos brasileiros, muito embora diversas outras resenhas permaneçam inéditas até aqui. E elas o são por uma razão muito simples: escrevo demais, e resenhas longas são impublicáveis nas revistas normais, ou na imprensa diária. Durante muitos anos, quase duas décadas, fui leitor regular, assinante, da The New York Review of Books – não confundir com o semanário dominical de livros do New York Times – o que justamente me fez adquirir esse “péssimo” hábito de fazer Review-articles, e não simples resenhas de livros, o que na verdade significa aproveitar a oportunidade da publicação de algum novo livro (no meu caso, alguns antigos também) para falar sobre os mais diversos problemas de atualidade ou de história. O livro-objeto é, assim, uma simples escusa para uma digressão sobre temas diversos, em outros casos quase que um exercício de estilo ou um divertissement intelectual. Mas, ao me tornar, dez anos atrás, um colaborador do Boletim da Associação dos Diplomatas Brasileiros, adquiri este hábito mais prosaico de fazer mini-resenhas dos livros publicados pelos colegas, simples notas de leituras que por vezes demandam mais trabalho de síntese do as resenhas-artigos a que estou habituado. Esta é também a razão de porque este livro assumiu o nome da seção Prata da Casa, que encontrei mais ou menos parada quando comecei a colaborar anonimamente com o Boletim. Não deixei de fazer, nesse período, 25 resenhas mais longas de livros de diplomatas, e sobretudo de não diplomatas, mas muito poucas das primeiras foram publicadas no Boletim, sendo normalmente reservadas a revistas acadêmicas ou até periódicos de interesse geral. Aqui figuram, portanto, “pílulas” em torno das obras de diplomatas, sendo que a maior parte foi publicada institucionalmente, pela Fundação Alexandre de Gusmão: trata-se geralmente de teses do Curso de Altos Estudos e de monografias do Instituto Rio Branco, sem que essas publicações tenham tido continuidade em alguma carreira acadêmica ou literária. Mas várias obras resenhadas pertencem a essa última categoria, pois são muitos os colegas que, por prazer ou algum vício secreto, se dedicam às infernais artes da escrita, geralmente na prosa, na poesia, embora alguns pratiquem também o ensaio erudito, na história ou na sociologia. Infelizmente não figuram aqui todas as obras publicadas pelos diplomatas – ou em seu nome, pela instituição a que pertencem – inclusive alguns livros até relevantes, na sua área de especialização, mas por uma razão muito simples: a própria importância de certas obras me sugeria a alternativa de uma resenha mais longa, em lugar de uma mini-resenha, como tal colocada no pipeline de trabalhos a fazer. Se isso nunca ocorreu, deveu-se a essa outra maldição dos leitores compulsivos e dos escritores desesperados: a falta de tempo e de oportunidade para interromper tarefas urgentes da agenda corrente, e dedicar uma semana ou duas a um livro realmente importante. Aos colegas preteridos, aos quais eu posso eventualmente ter prometido uma resenha en bonne et due forme, minhas humildes desculpas, portanto, com todo o remorso declarado em virtude da não opção pela mini-resenha imediata. Fico devendo e anoto no pipeline... A esse propósito, verifiquei desde sempre, e constato mais uma vez agora, que a longa lista dos livros “separados para ler e resenhar”, ou seja, que ainda pretendo ler de maneira anotada, supera amplamente, em quantidade pelo menos, a lista dos que eu já li, e exponencialmente a dos resenhados efetivamente. Isso é evidente, e creio que todos os leitores vorazes enfrentamos os mesmos dilemas. Estimo, por alto, que o tempo requerido para “liquidar” apenas os livros “em estoque” – nas minhas estantes, ou localizado em bibliotecas – deve aproximar os 150 anos suplementares (isso sem contar todos aqueles que serão publicados nesses próximos 150 anos). Se eu não contar com alguma graça misteriosa e a ajuda de alguma providência indefinida, vou ter de adotar soluções mais drásticas. Penso, por exemplo, em acelerar a produção de novas mini-resenhas, numa série que talvez possa ser chamada de “Leituras até o Fim dos Dias” (sem qualquer intenção macabra). Enquanto não 26 começo, permito-me, então, oferecer ao público leitor, estas mini-resenhas já preparadas, e diversas outras de livros de diplomatas e de não diplomatas que interessem aos primeiros e a todos os demais dessa área. Existiam várias opções para organizar o material compilado, inclusive em função dos grandes temas da diplomacia brasileira – multilateral, bilateral, econômico, político, meio ambiente, etc. –ou ainda cronologicamente, seguindo as periodizações costumeiras em nossa historiografia. Depois de bem refletir, decidi observar, para as mini-resenhas da primeira parte, a ordem original na qual elas foram escritas, sem qualquer alteração, uma vez que elas correspondem, digamos assim, ao espírito de cada época, sobretudo as teses de CAE. Nas outras duas partes, tentei agrupar os livros resenhados em função de grandes blocos de interesse, tanto cronologicamente, quanto tematicamente, embora todo o conjunto possa aparecer mais como um “gabinete de curiosidades” do que como um ordenamento bibliográfico profissional. Para facilitar a busca por algum autor, acrescentei um índice em ordem alfabética de autores e seus respectivos livros, o que permite constatar algumas constâncias, justamente, entre elas a deste próprio autor. Neste caso, abri uma única exceção ao critério de autoria: a inclusão do resumo – geralmente trechos do prefácio ou da apresentação – de minhas próprias obras, deixando de lado resenhas que terceiros fizeram de meus próprios livros (que obedecem, em todo caso, ao critério aqui retido da inclusividade, o fato de serem livros de diplomatas ou interessando aos diplomatas e estudantes e pesquisadores da área). O material aqui compilado não representa, volto a dizer, todas as resenhas ou avaliações críticas que fiz a respeito da literatura pertinente, uma vez que, em alguns dos meus livros, efetuei um exame cuidadoso da produção de diplomatas e não diplomatas no campo das relações internacionais e da diplomacia brasileira. Refiro-me, por exemplo, aos livros Relações Internacionais e Política Externa do Brasil (1998, 2004 e 2012) e O Estudo das Relações Internacionais do Brasil (1999 e 2006), aos quais se acrescentam alguns artigos esparsos em revistas especializadas. Finalmente, algumas das resenhas “longas” aqui reproduzidas já foram por mim incluídas numa edição de autor – Vivendo com Livros, 406 p. – que elaborei em Paris, em dezembro de 1994, da qual pelo menos uma cópia deve ainda existir na Biblioteca Azeredo da Silveira, do Itamaraty. Ainda tenho muitos livros pela frente, para resenhar, de diplomatas e de não diplomatas, e por isso volto imediatamente ao trabalho, sob o olhar complacente de Carmen 27 Lícia, que lê ainda mais do que eu, em todo caso de forma mais rápida. Eu tenho essa mania de anotar, o que pode representar alguma lentidão no estoque acumulado de leituras até o fim dos tempos. Em todo caso, o prazer da leitura e o da escrita estarão sempre presentes, como já estiveram na confecção de todas as resenhas aqui incluídas. Esperando que a desgraça do cavaleiro da Mancha não se abata sobre mim, despeçome aqui, como se fazia nos tempos do valeroso hidalgo: Vale! Paulo Roberto de Almeida Hartford, 7 de janeiro de 2014. 28 Primeira Parte Prata da Casa – Boletim ADB Mini-resenhas dos livros de diplomatas (Boletim da ADB; ISSN: 0104-8503) Paulo Roberto de Almeida: Formação da Diplomacia Econômica no Brasil: as relações econômicas internacionais no Império (2ª edição; São Paulo: Editora Senac; Brasília: Funag, 2005, 680 p.; ISBN: 85-7359-210-9) Parcialmente apresentada como tese de CAE em 1997, publicada originalmente em 2001, sai agora em edição revista e ligeiramente ampliada uma obra “fundadora” sobre os fundamentos e a evolução da primeira diplomacia econômica brasileira, cobrindo as etapas iniciais e o desenvolvimento das relações econômicas internacionais do Brasil no decorrer do século XIX. Prefaciada pelo Embaixador Alberto da Costa e Silva, esta obra aborda, em oito densas partes, as diversas vertentes da diplomacia econômica durante o Império – comercial, financeira, investimentos, mão-de-obra, regional, multilateral, a amplitude geográfica, a organização política, a estrutura funcional e o quadro institucional –, ademais de acompanhar a mudança de hegemonias, da libra ao dólar, já em pleno século XX. O volume compila ainda, do ponto de vista quantitativo, a mais extensa série de estatísticas históricas disponíveis, além de quadros analíticos que completam a informação qualitativa sobre essa diplomacia em perspectiva histórica. Uma cronologia do processo econômico colonial (de 1415 a 1822) completa o volume. José Flávio Sombra Saraiva e Amado Luís Cervo (orgs.): O crescimento das relações internacionais no Brasil (Brasília: Instituto Brasileiro de Relações Internacionais, 2005, 308 p.; ISBN: 85-88270-15-3) Trata-se de obra comemorativa dos cinquenta anos do Instituto Brasileiro de Relações Internacionais, fundado no velho Palácio do Itamaraty, no Rio de Janeiro, em 1954, e que a partir de 1958 passou a editar a, hoje decana na área, Revista Brasileira de Política Internacional (transferidos, instituto e revista, para Brasília em 1993). O volume compõe-se de dez capítulos, divididos em quatro partes, cobrindo respectivamente os problemas do conhecimento e ensino de relações internacionais no Brasil, poder nacional e segurança, os fluxos humanos e de conhecimento entre o Brasil e o mundo e, finalmente, as estruturas econômicas internacionais. Seus autores são quase exclusivamente acadêmicos, mas a “prata da Casa” é representada pelo diplomata Paulo Roberto de Almeida, que comparece com um extenso capítulo sobre as finanças internacionais do Brasil, uma perspectiva de meio século (1954-2004). Felipe Fortuna: Em Seu Lugar: Poemas Reunidos (Rio de Janeiro: Barléu Edições, 2005, 248 p.) “Alguns poderiam dizer que é muito cedo para que um poeta de 40 anos publique uma obra reunida. Não me lembro que idade tinha Drummond quando publicou uma coletânea chamada Fazendeiro do ar & Poesia até agora, mas a ideia de juntar num livro coisas pensadas e escritas ao longo da vida só costuma ocorrer quando se chega à idade, senão da síntese, pelo menos do balanço, naquela fase já quase póstuma em que avaliamos, à maneira de Brás Cubas, se “somadas umas coisas e outras”, saímos ou não “quites com a vida”. Esse olhar retrospectivo supõe que a obra para a qual se olha já é algo de definitivo. No caso de Felipe Fortuna, sentimos que o objetivo da obra reunida é outro. O autor não está olhando para trás, mas para frente, acumulando forças, pela visão do caminho percorrido, para novos voos líricos, cujo caráter sempre incompleto dificulta qualquer balanço.” (do Prefácio de Sergio Paulo Rouanet). José Vicente Lessa: O autoengano coletivo: uma crítica do ideário nacional brasileiro (São Paulo: Edições Inteligentes, 2005, 238 p.) José Vicente Lessa se apresenta como sociólogo e diplomata, nessa ordem, o que denota seu comprometimento intelectual com, antes de mais nada, uma análise isenta da realidade e dos problemas brasileiros. A dificuldade em diagnosticar corretamente grande parte desses problemas pode derivar daquilo que o autor diz ser um “autoengano coletivo”, ou seja, visões do mundo, eventualmente identificadas com o chamado “senso comum”, que traduzem ilusões de fundo psicológico, paradigmas convencionais no terreno econômico ou ainda teses maniqueístas sobre a inserção internacional do Brasil. Algumas das verdades aceitas nessas áreas podem ser confrontadas à realidade e são por ele submetidas ao bisturi frio da Lógica. O Brasil é um país fértil para esse tipo de “experimentação” sociológica, como revelado nos diversos capítulos desta obra que explora alguns dos “saberes coletivos” deste país, tão propenso a triunfalismos ingênuos quanto assaltado de forma recorrente pelo sentimento de que tudo aqui vai mal, da pior forma possível. Trata-se de uma sadia reflexão sobre alguns dos nossos problemas básicos, por um espírito cético, mas antes de mais nada racionalista. Alberto da Costa e Silva: Das mãos do oleiro: aproximações (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005, 240) Nosso maior (talvez único, verdadeiramente grande) africanista em plena atividade, o historiador e acadêmico Alberto da Costa e Silva navega neste livro não apenas em águas atlânticas, mas por todos os rios, ribeirões, mares, lagoas, charcos e enseadas aos quais sua insaciável curiosidade intelectual o levou, ao longo de uma vida prolífica de scholar-nômade em continentes vários, nos quais sua visão de diplomata se enriqueceu na poeira das estradas, ao mesmo tempo em que sua mão se cobria do pó dos arquivos. Os textos são dos últimos quinze anos, mas o período coberto vai do século XV aos dias atuais (de Colombo a Castro), tomando formas diversas, prefaciando livros, discutindo idéias, explorando paisagens. Ele segue os passos de Rio Branco, outro historiador-diplomata, mas também emula o itinerário de outros colegas que o precederam no Itamaraty e na Academia Brasileira de Letras, cultivando poesia, ensaística, crônica e tantas artes da escrita que só uma mente inquieta como a dele saberia definir. Esse oleiro é um artista, ou um verdadeiro ourives da pluma, e de seu ateliê saíram estas aproximações que constituem de fato finas especiarias que só um espírito enciclopédico como o dele conseguiria produzir. Centro de História e Documentação Diplomática: A Missão Varnhagen nas Repúblicas do Pacífico: 1863 a 1867 (Rio de Janeiro: CHDD; Brasília: FUNAG, 2005; vol. 1: 1863 a 1865, 592 p.; vol. 2: 1866 a 1867, 508 p.) O CHDD, dirigido de forma competente pelo Embaixador Álvaro da Costa Franco, vem empreendendo, desde 2002, um importante trabalho de recuperação de nossa história diplomática. Data desse ano o lançamento dos Cadernos do CHDD, cujo primeiro número trouxe artigos anônimos do Barão do Rio Branco e os testamentos do diplomata historiador Francisco Adolpho de Varnhagen, possivelmente feitos em Caracas em 1861 ou 1862. O mesmo número inaugural traz ainda artigo de Luís Cláudio Villafañe Gomes Santos sobre uma memória de Duarte da Ponte Ribeiro, de 1832, sobre algumas repúblicas do Pacífico com as quais o Brasil monárquico buscava manter relações diplomáticas. Agora, o CHDD publica, justamente, a correspondência ativa e passiva do mesmo Varnhagen sobre sua missão em várias dessas repúblicas, designado que foi ministro residente no Chile, Peru e Equador. Essa época foi marcada pela guerra do Pacífico, entre a Espanha e o Chile e o Peru, e pela guerra 31 da Tríplice Aliança, que aliás motivou divergências entre o Brasil e o Peru, resultando na interrupção das relações diplomáticas. Figuram com destaque nas correspondências (ofícios da missão e despachos da Secretaria de Estado) os problemas de fronteiras do Brasil com o Peru. André Heráclio do Rêgo: Famille et Pouvoir Regional au Brésil: Le coronelismo dans le Nordeste 1850-2000 (Paris: L’Harmattan, 2005, 320 p.) Desde Gilberto Freyre, a família entrou no campo das ciências sociais no Brasil, como explica a historiadora greco-baiana Katia de Queirós Mattoso, no prefácio a esta tese defendida na Sorbonne. O autor estava bem colocado para refazer a trajetória de vida e lutas políticas dos principais chefes políticos do clã dos Heráclio do Rego, et pour cause: dinastie oblige. Eles dominaram a política local e regional em boa parte do Nordeste, em especial em Pernambuco e na Paraíba. Trata-se de uma saga familiar que cobre um vasto período histórico, ao longo de transformações sociais, políticas e econômicas importantes na região e no país. Um estudo baseado em vasta literatura secundária, sem descurar até mesmo obras de cordel, mas sobretudo no conhecimento direto, inclusive fotográfico, dos meandros da política dos coronéis do seu clã de origem. Aparentemente o coronelismo não morreu, mas assumiu novas formas. Murilo Vieira Komniski: Buritizal (Rio de Janeiro: 7 Letras, 2005, 108 p.) Livro de estreia, no terreno da poesia, é sempre uma incógnita. Mas, mesmo se o livro é o primeiro de uma carreira que se anuncia prometedora, vários poemas já foram publicados em revistas do Brasil e do exterior. Murilo tem poemas em inglês e em espanhol, além de um e outro verso em francês, alguns deles dedicados a amigas de outros continentes, mas a maior parte tocando mesmo em realidades universais, a partir de um olhar brasileiro. Daí o nome, inspirado nos coqueiros das “gerais” de Guimarães Rosa. O que em primeiro lugar distingue sua poesia é a combinação sonora e visual, antes mesmo dos conceitos, todos eles alusivos a uma realidade fugidia, quase surreal. “Jabuticaba”, por exemplo, se refere aos olhos de uma amada/amante, não ao fruto bem brasileiro. Ou “O Samba da minha Terra”, que é propriamente universal. Murilo tem abundante poesia na veia: ainda bem que ele distila bem, para nosso deleite literal... Raul de Taunay: Rosas da infância ou da estrela [poemas escolhidos] (Rio de Janeiro: 7 Letras, 2005, 136 p.) Poeta errante, segundo seu prefaciador e amigo acadêmico, Carlos Nejar, Raul de Taunay é também romancista, mas estas oito dezenas de poemas esparsos nos levam a um garimpeiro das palavras e das imagens. Outro amigo, de outras eras, Vinícius de Moraes, escreveu em tempos remotos que Raul era mesmo um “poetinha promissor”. Dinah Silveira de Queiroz, também longe no tempo, relembra que ele vem de “cepa ilustre”, dela trazendo o “dom das letras”, mostrando no verso a “marca profunda de sua personalidade”. Pena que os poemas não estejam datados, ou localizados na sua imensa geografia de remoções, de postos e de turismo pouco acidental. Por vezes uma homenagem involuntária (“Soneto ao inverno de Praga”, “Domingo em Roma” ou “África mamãe pátria”) nos remete ao trajeto errante do poeta, que de outra forma expressa seus sonhos e angústias (“Pobre poetinha, solitário e tolo, que na madrugada transforma-se em lobo...”). Mas, “qual será o [s]eu poema derradeiro, o último, o sem erro, o perfeito refrão?”. Vale conferir... 32 José Augusto Lindgren Alves: Os direitos humanos na pós-modernidade (São Paulo: Perspectiva, 2005, 254 p.) Depois de Os Direitos Humanos como Tema Global, publicado em 1994 e reeditado em 2003, Lindgren Alves comparece com sua continuidade natural, neste livro que resgata uma dezenas de ensaios escritos e publicados ao longo de sete anos. Trata-se, não apenas de direitos humanos, estrito senso, mas também de problemas como o da discriminação racial e o do “multiculturalismo”, no qual são evidenciadas as diferenças entre as situações nos EUA e no Brasil. O capítulo conclusivo, razoavelmente pessimista, indica que os valores universais associados aos direitos humanos vêm sendo atacados sub-repticiamente por vários tipos de violadores de diversas tradições, sob argumentos de tipo “culturalista” ou supostamente para evitar sua “politização” nos órgãos da ONU. Mais patética é a recusa pelos EUA do Tribunal Penal Internacional, o que pode comprometer gravemente o seu funcionamento. Será que a história está andando para trás? Paulo Antonio Pereira Pinto: Taiwan – um futuro formoso para a ilha? (Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2005, 144 p.) O autor é seguramente um dos maiores sinólogos brasileiros e certamente o melhor do Itamaraty, com um conhecimento detalhado do contexto asiático, em seu conjunto, e da situação da ilha de Formosa, em particular. O livro é sintético, mas completo, cobrindo a delicada situação geopolítica – e até de sobrevivência enquanto Estado – da ilha que serviu de refúgio para a “República da China” de Chiang Kai-shek depois que Mao Tsé-tung tomou o poder no continente. Papepinto, como é conhecido, analisa não apenas as várias dimensões envolvidas na situação da ilha – segurança, política, econômica e cultural – mas também o interesse de Taiwan para o Brasil. A obra é plenamente didática, apresentando ainda uma cronologia e interessantes anexos informativos sobre a história e a situação atual da “província rebelde”, que um dia vai voltar para o “berço” continental ou ser reunificada à força pelo gigante chinês. O autor serviu por mais de sete anos na ilha batizada pelos portugueses do século XVI. Agenor Soares dos Santos: Dicionário de anglicismos e de palavras inglesas correntes em português (Rio de Janeiro: Elsevier, 2006, 390 p.) Já autor, um quarto de século atrás, de um Guia Prático de Tradução Inglesa, Agenor Soares está plenamente qualificado para fazer uma apresentação completa da mais abundante fonte – hoje em dia – dos estrangeirismos importados em língua portuguesa (ou já seria brasileira?). Suplantando o francês, que durante muitas décadas reinou imperial, o inglês fornece hoje o essencial do vocabulário em economia, informática, comunicações, ciência, tecnologia, modismos em geral, para desespero dos chauvinistas (outra palavra importada) e dos introvertidos. Nenhuma língua dispensa empréstimos, mas é um fato que o inglês hoje é uma espécie de “doador universal”. Adaptamos os vocábulos em poucos anos, como demonstra, exemplarmente, Agenor. Ou seja, ninguém precisa ser um “Sherloque” para descobrir que em matéria de anglicismos, tudo termina em happy end... Alexandre Vidal Porto: Matias na cidade - romance (Rio de Janeiro: Record, 2005, 160 p.) Que diplomatas sejam homens (ou mulheres) de letras, prosadores, poetas e romancistas, isto já se sabia há muito. Que eles também sejam capazes de assinar novelas picantes, um pouco menos. Esta história não é especialmente pornográfica, longe disso. Trata33 se de um relato de vida, muito comum, como deve haver milhares iguais, numa cidade como São Paulo, mas é uma história bem contada, com uma prosa fluída, leve, que literalmente sequestra nossa atenção. Matias é um homem casado, mas não satisfeito com as simples “cenas de um casamento”. Prefere outras emoções, com mulheres vulgares, geralmente. É, literalmente, um obcecado por sexo. A novela é apenas um recorte dessa vida, com retrospectos e introspecções, apenas dele. Os demais personagens se expressam apenas por palavras e gestos, descritos com economia de termos, em linguagem direta. Dá para ler o romance de uma vez só, sem parar. Mais do que atenção, ele convida à reflexão... Paulo Antonio Pereira Pinto: Iruan nas reinações asiáticas (Porto Alegre: AGE, 2004, 132 p.) A história é integralmente verdadeira, mas se lê como uma estória, um bom romance, com final feliz. Foram mil e um episódios, marchas e contramarchas, até que nosso homem em Taipé, Papepinto, conseguisse trazer de volta às terras gaúchas o garoto Iruan, que quase vira um taiwanês, malgré lui. O livro, ademais das peripécias diplomáticas, é um bom casestudy de Direito Internacional Privado, recomendável para alunos de direito e candidatos ao Rio Branco. É também uma história de amor, da avó, e do próprio autor, pelo garoto, por seu trabalho, pelas suas origens gaúchas, a despeito da naturalidade nordestina. Fotos, desenhos de Iruan, reproduções de documentos notariais, decisões de justiça, démarches diplomáticas, o livro tem de tudo, sobretudo um estilo saboroso que nos prende a cada página. A Copa de 2002, Iruan assistiu em chinês de Taiwan. A camiseta assinada por Ronaldinho deve estar pequena, agora que ele tem onze anos, mas ele deve estar com ela, assistindo à Copa de 2006 em Canoas. Grande, Papepinto! Milton Torres: O Maranhão e o Piauí no Espaço Colonial: a memória de Joaquim José Sabino de Rezende Faria e Silva (São Luis: Instituto Geia, 2006, 246 p.) O diplomata gaúcho resgatou, da poeira dos arquivos históricos portugueses, as memórias de um magistrado lusitano que, no final do século XVIII veio ao Maranhão para ajudar a administrar aquela província do Império – que também incluía o Piauí – segundo os (então) bons princípios colbertistas, em sua versão pombalina. Tese doutoral apresentada na USP em 1997, o trabalho apresenta elementos conceituais e históricos para se avaliar a passagem do mercantilismo à fisiocracia e ao nascente liberalismo. Essas memórias podem ser lidas, graças à sua transcrição no livro, em confronto com as ideias de outro luminar da época, Silva Lisboa, introdutor de Adam Smith no circuito lusitano. Ambos foram contemporâneos, escreveram ao mesmo tempo, defendendo receitas antípodas sobre como administrar o Brasil: Joaquim Sabino estava preso, pelas ideias, ao mundo de Pombal, mas contemplava o nascimento da nova economia, sem contudo a ela aderir. Parece que a dicotomia continua ainda hoje... Samuel Pinheiro Guimarães: Desafios Brasileiros na Era dos Gigantes (Rio de Janeiro: Contraponto, 2006, 455 p.) Depois do sucesso (quatro edições, ao que consta) do seu Quinhentos Anos de Periferia (lançado em 1999), o SG-MRE volta a expor suas ideias neste livro composto já no cargo atual. Doze grandes ensaios tratando de política internacional, de problemas do desenvolvimento econômico, social e tecnológico do Brasil, de questões regionais e da integração, de ameaças vindas da grande potência hegemônica e de aspectos culturais, com títulos bizarros como “O Alquimista”, “Macunaíma”, “A Onça e o Gato” e outros inspirados na literatura. O Brasil tem, ao que parece, grandes “vulnerabilidades externas” mas precisa 34 construir seu potencial num “cenário mundial violento, imprevisível e instável”. O autor não esconde sua oposição à política econômica do governo ao qual serve e pretende fortalecer o Estado ainda mais. Um programa completo para fazer o Brasil recuperar sua agenda própria de desenvolvimento, na linha de pensadores como Celso Furtado e outros representantes da corrente nacionalista. João Clemente Baena Soares: Sem medo da diplomacia: depoimento ao Cpdoc (organizadores Maria Celina D’Araujo et alii; Rio de Janeiro: FGV, 2006, 126 p.) Depois de vários outros diplomatas, o ex-SG-MRE e ex-SG-OEA dá seu depoimento ao Cpdoc, retraçando os episódios de meio século de vida dedicados ao Itamaraty, com destaque para os seus dez anos de OEA, num período de retorno geral à democracia no hemisfério. Em tom leve, próprio às boas conversas, Baena relata causos interessantes da diplomacia brasileira, como o asilo concedido em 1959 ao opositor de Salazar, general Delgado, os anos da política externa independente, as dificuldades políticas do período militar (quando o Itamaraty, paradoxalmente, desfrutou de muita autonomia), quando ele foi SGMRE (gestão Figueiredo), e a longa direção da OEA. Baena foi muito sincero e direto: ele acha, por exemplo, que política externa dispensa slogans, como aqueles que recorrentemente se usam para classificar uma determinada gestão diplomática ou estilo de relações exteriores. Todo o seu depoimento representa uma homenagem à profissionalização do Itamaraty e à continuidade da política externa brasileira. Fernando de Mello Barreto: Os Sucessores do Barão, 2: relações exteriores do Brasil, 19641985 São Paulo: Paz e Terra, 2006, 519 p. A exemplo do primeiro volume desta obra, que cobria de fato o período pós-Barão, ainda que de modo lato (1912-1964), Fernando Barreto oferece, no presente livro, uma história das relações internacionais e da política externa do Brasil em seu sentido amplo, cobrindo tanto os episódios diplomáticos, estrito sensu, como o quadro mais amplo da economia e da política mundiais. A perspectiva é linear, como já tinha sido o caso no volume precedente: são seis chanceleres, de 1964 a 1985, ou seja, durante todo o período militar, quando cinco generais do Exército e uma junta militar ocuparam o poder no Brasil. Da intervenção na República Dominicana à Guerra das Malvinas, do TNP ao Acordo Nuclear com a Alemanha, passando pelos tratado de cooperação com os vizinhos (bacia do Prata, Amazônia, Itaipu), os principais episódios da diplomacia brasileira são tratados de forma por vezes minuciosa. Indispensável como referência para esses anos. Paulo Roberto de Almeida: O estudo das relações internacionais do Brasil: um diálogo entre a diplomacia e a academia (Brasília: LGE Editora, 2006, 388 p.; ISBN: 85-7238-271-2) Dotado de uma perspectiva essencialmente didática, voltado para a pesquisa e o ensino das relações internacionais do Brasil e especialmente focado na história das relações econômicas internacionais, o livro oferece um panorama abrangente do itinerário seguido pelo Brasil no contexto mundial. Instrumento de pesquisa, tanto quanto de referência cronológica e de informação sobre a literatura disponível na área, a obra acompanha, de modo eclético, diversas disciplinas dos cursos de relações internacionais. O livro possui capítulos sobre a produção em relações internacionais do Brasil, com uma avaliação das obras relevantes de 1945 a 2006, bem como das tendências e perspectivas nesse campo, um estudo sobre o desempenho econômico do Brasil no contexto mundial, de 1820 até os dias atuais, uma análise da estrutura constitucional das relações internacionais no Brasil e textos sobre as 35 periodização e a cronologia das relações internacionais, aliás desde antes da constituição do território e da nação, a partir de 1415. Completam o livro um guia da produção em relações internacionais e dos periódicos mais importantes da área, no Brasil e no mundo. Vasco Mariz (org.): Brasil-França: relações históricas no período colonial (Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, 2006, 196 p.) Cinco autores, incluindo o organizador, traçam um panorama abrangente das relações franco-brasileiras, desde os primórdios, com os primeiros exploradores da então América portuguesa, até a independência, com as missões culturais e científicas francesas que começam em 1816 e se estendem à plena autonomia. Os invasores foram menos bem sucedidos do que os artistas e cientistas: se os primeiros não conseguiram se apossar de territórios, os segundos deixaram riquezas até hoje visíveis, na arquitetura, nas artes e na memória coletiva. Vasco Mariz relata que, na revolução pernambucana de 1817, exilados franceses tentaram resgatar Napoleão de Santa Helena. O livro é de leitura agradável, de estilo literário, contendo uma seleta bibliografia ao final de cada um dos doze capítulos históricos. Um ensaio historiográfico final compila as mais importantes fontes históricas primárias para a pesquisa em torno da presença francesa no Brasil. Armindo Branco Mendes Cadaxa: No Jardim de Inverno (Nova Friburgo: Ars Fluminensis, 2006, 74 p.) Um pequeno volume de puro deleite literário, com pelo menos quatro jardins de inverno em forma poética e os girassóis de Matisse na capa. As marcas da diplomacia estão em vários poemas, quando o autor confessa que cansou de cruzar mares e continentes, quando ele contempla as colunas do Peloponeso, percorre trilhas, visita catedrais e as muralhas do Alcácer. O jardim de inverno tem orquídeas e muitas formiguinhas. Uma guilhotina contempla a sua obra, os olhos semicerrados de espanto. Um grito atravessa portões blindados e os deuses tentam dar vida aos mármores. As imagens são cristalinas, como a água que escorre de uma fonte em direção de pequenas grutas. Cadaxa é um poeta, dramaturgo e romancista premiado. Esta coletânea demonstra porque… Marcelo Raffaelli: A Monarquia e a República: Aspectos das relações entre Brasil e Estados Unidos durante o Império (Rio de Janeiro: Centro de História e Documentação Diplomática; Brasília: Funag, 2006, 290 p.) Exemplo de síntese histórica, em sua objetividade e concisão, a compilação feita dos despachos e ofícios trocados pelos diplomatas dos dois países com suas respectivas secretarias de Estado compõe um relato saboroso das relações bilaterais entre os dois grandes países do hemisfério. Organizado tematicamente, antes que cronologicamente, o livro cobre desde o reconhecimento da independência brasileira até o fim do regime monárquico e a inauguração da República no Brasil. A obra faz a descrição sintética dos chefes de missão e suas respectivas instruções diplomáticas, analisa os problemas do tráfico escravo, da guerra de Secessão e da abertura do rio Amazonas à navegação internacional, bem como as questões políticas e jurídicas do relacionamento bilateral (arbitragens), ademais da própria visão que os enviados mantinham sobre o povo e o país no qual residiam. Excelente resumo das fontes primárias, com intenso apoio nos arquivos oficiais e em bibliografia equilibrada sobre essas relações. 36 Rubem Mendes de Oliveira: A Questão da Técnica em Spengler e Heidegger (Belo Horizonte: Argumentum-Tessitura, 2006, 132 p.) O Itamaraty abriga alguns filósofos, mais empíricos do que profissionais, ainda que vários diplomatas tenham feito estudos e até obtido titulação pós-graduada nessa área. Mas, certamente ele ainda não contava, entre seus quadros, com um filósofo da “técnica” (e não apenas da ciência), com a competência e a amplidão de conhecimentos demonstrados por Rubem Oliveira neste seu livro de estreia, que reproduz sua dissertação na UFRJ (1991). O estatuto de Spengler e de Heidegger é diferenciado na história e na filosofia do século XX, mas o autor soube dialogar com ambos naquilo que eles apresentaram de mais relevante para o estudo e a discussão da modernidade e da ciência no contexto do pensamento ocidental, remontando inclusive a clássicos (Kant). Trata-se de uma leitura comparativa que vai à essência do problema da técnica na obra dos dois autores, amparada em sólida bibliografia de apoio. Um livro que coloca seu autor na lista seleta dos pensadores profissionais da filosofia da técnica no Brasil. Ele representa um subsídio relevante para os métodos de trabalho e para um novo foco de atenção do Itamaraty. Luís Fernando Corrêa da Silva Machado: Brasil e investimentos internacionais: os acordos sobre IED firmados pelo País (Pelotas: Editora da UFPel, 2005, 222 p.) A obra resulta do mestrado em relações internacionais na UnB e cobre de maneira quase completa – faltando referência ao MAI-OCDE – os instrumentos multilaterais, regionais e bilaterais existentes no campo do investimento direto estrangeiro e sua aplicação ao Brasil. Depois de breve histórico e do exame das teorias e medidas práticas relativas ao IED, no plano internacional, a obra cobre os fluxos de IED vindos para o Brasil na década de 1990 e a normativa a eles aplicada. Um capítulo trata dos protocolos aprovados no âmbito do Mercosul, bem como dos acordos bilaterais contraídos pelo Brasil, nenhum deles aprovados ou em vigor na atualidade. O Brasil continua relutante a esse respeito, confirmando que gosta de capitais estrangeiros, mas detesta capitalistas estrangeiros, como ocorre em diversas outras áreas também. A despeito do grande mercado interno, o Brasil continua recuando na atratividade do IED. Esta dissertação mostra algumas das razões da baixa captação. Otávio Augusto Drummond Cançado Trindade: O Mercosul no Direito Brasileiro: incorporação de normas e segurança jurídica (Belo Horizonte: Del Rey, 2007, 180 p.) Uma monografia agraciada com o prêmio Hildebrando Accioly do Mestrado em Diplomacia do Instituto Rio Branco, o trabalho deste jovem diplomata tem tudo para consagrar-se como uma das melhores análises acadêmicas sobre a “insegurança jurídica” do Mercosul, a despeito de todos os instrumentos aprovados no plano formal da solução de controvérsias. A razão disso é que os Estados membros pouco fizeram para internalizar grande parte das normas (decisões e resoluções dos órgãos decisores) aprovadas consensualmente (outra dificuldade). O autor não se contenta em examinar o conceito de segurança e a natureza jurídica das normas do Mercosul, mas examina sua incorporação (limitada) ao direito interno dos países membro e formula sugestões para o aperfeiçoamento desse processo. A maior parte das sugestões são de procedimento, mas o autor reconhece a necessidade de uma reforma constitucional, tarefa que se choca com a velha defesa da soberania nacional. Assim, a integração continua a patinar... Luís Cláudio Villafañe Gomes Santos: El Imperio del Brasil y las Repúblicas del Pacífico, 1822-1889 (Quito: Corporación Editora Nacional-UASB-Funag, 2007, 168 p.) 37 Trata-se da versão em espanhol do livro que resultou de sua dissertação de mestrado, já publicada no Brasil em 2002 pela Editora da UFPR (O Império e as repúblicas do Pacífico: as relações do Brasil com o Chile, Bolívia, Peru, Equador e Colômbia, 1822-1889), nesta edição com prefácio do reitor da Universidad Andina Simón Bolívar, de Quito, Enrique Ayala Mora. O autor já tinha publicado, também, sua tese de doutoramento, um estudo sobre o Império e o interamericanismo, cobrindo o período que se estende do congresso do Panamá, em 1826, até a primeira conferência americana de Washington, em 1889-1890: O Brasil entre a América e a Europa (Unesp, 2004). Num momento em que o Brasil começa a criar um novo sistema de relações regionais que se articula em torno do conceito de América do Sul, Villafañe se consagra, não apenas no Brasil, como o grande historiador de uma vasta região que constituiu nossa circunstância geográfica incontornável. Ele participa, atualmente, da “História Geral da América Latina”, imenso projeto sob coordenação da Unesco, com um estudo sobre “As Relações Interamericanas (1870-1930)”. Ele está na linhagem direta de Varnhagen, Rio Branco, Oliveira Lima e Evaldo Cabral de Mello. Teresa Dias Carneiro: Otávio Augusto Dias Carneiro, um pioneiro da diplomacia econômica (Brasília: Funag, 2005, 134 p.) Este livro inaugura a coleção “Personalidades da Política Externa da República”, que trará desde Rio Branco (a rigor um monarquista) e Rui Barbosa até San Tiago Dantas e Renato Archer (ou seja, personagens da política externa, não necessariamente diplomatas). Dias Carneiro foi, com Roberto Campos, um dos grandes economistas do Itamaraty, homem de múltiplos talentos, à vontade em temas de comércio internacional, energia nuclear, cooperação para o desenvolvimento, produtos de base e questões financeiras. Primeiro brasileiro a obter o título de doutor em economia pelo MIT, em 1951, soba a dupla orientação de Charles Kindleberger e de Paul Samuelson, deixou obra acadêmica de peso, na qual ressaltam um estudo de 1965 sobre a reforma monetária internacional do ponto de vista dos países em desenvolvimento um uma revisão da história econômica do Brasil, de 1920 a 1965, ambos em inglês. Vários de seus trabalhos acadêmicos permanecem inéditos. Mais conhecida é a sua atividade diplomática, em dezenas de foros multilaterais e também na frente interna, do governo brasileiro. Sua filha caçula retraça seu itinerário de vida e diplomático, ambos constrangidos pelo golpe militar de 1964. Poucos sabem que foi ele o desenhista da bandeira da Coréia do Sul, solicitado por um diplomata desse país. Sua obra ainda precisa ser divulgada mais amplamente. Alfredo José Cavalcanti Jordão de Camargo: Bolívia: a criação de um novo país (Brasília: Funag, 2006, 404 p.) Este livro difere das histórias tradicionais da Bolívia em duas maneiras: foi escrito por um diplomata brasileiro e está centrado na história dos povos indígenas, os mesmos que sofreram sob o jugo colonial e depois sob as elites brancas e que deram a vitória a Evo Morales. Um longo subtítulo indica que ele pretende descrever a “ascensão do poder político autóctone das civilizações pré-colombianas”. Uma bibliografia extensa e variada revela que o autor, a despeito de ter estudado matemática e ciência da computação, tem gosto pela história e habilidade no trato das fontes. Depois de um longo périplo pelo passado do altiplano e de todos os povos indígenas que por ali passaram, ele retoma os desafios do presente. Constata que a revolução de 1952 permaneceu inconclusa: pôs fim à ordem oligárquica, mas não industrializou o país e conservou a mesma estrutura social. A ascensão social do índio, o fim dos partidos tradicionais e o refluxo do neoliberalismo poderão criar uma nova Bolívia. Ou, então, fazê-la retornar ao seu estado habitual de crise e estagnação. A conferir. 38 Jorge Sá Earp: O olmo e a palmeira (Rio de Janeiro: 7Letras, 2006, 256 p.) Autor de vasta obra literária, desde antes de ingressar na carreira diplomática, em 1981, incluindo um romance de 1995, Ponto de Fuga, que foi Prêmio Nestlé de Literatura, Jorge Sá Earp apresenta em sua mais recente obra uma história passada no período colonial português no Brasil, envolvendo estrangeiros e brasileiros. No caso é um inglês, que se encanta com a Bahia e uma bela herdeira da família tradicional Delasalle-Castro, em meio aos conflitos com escravos, com os índios e entre os próprios coloniais, divididos entre as tradições e as vontades individuais. O olmo é o próprio inglês, que encontra a sua palmeira, na figura de Ana Delasalle. Goethe, nas Afinidades Eletivas, teria dito que “ninguém passeia impunemente sob as palmeiras”. À maneira das promenades de Goethe, o livro é um passeio erudito pelo Brasil do final do período colonial e início da independência, com os sabores, as cores e os modos daqueles tempos: veleiros, cavalos, escravos descendo da boleia, igrejas com ouro, enfim, um retrato quase atual... Carlos Alberto Leite Barbosa: Desafio Inacabado: a política externa de Jânio Quadros (São Paulo: Atheneu, 2007, 352 p.) O governo do imprevisível (e inescrutável) Jânio Quadros durou exatos 205 dias, de janeiro a agosto de 1961, mas foi provavelmente um dos mais “empolgantes” – qualquer que seja o sentido que se dê a essa palavra – que a história política do Brasil conheceu. O jovem diplomata Leite Barbosa, formado em 1959, acompanhou-o enquanto espectador privilegiado, lotado que esteve no gabinete do presidente do começo ao fim, ou melhor, antes mesmo, pois que participou de sua campanha eleitoral. O livro, muito bem pesquisado e recuperando no “baú” da memória fatos e pessoas que a história documentada não registrou, oferece uma contribuição excepcional ao estudo da política externa do sisudo chefe de Estado, contraditório nas ações e surpreendente nas palavras. São reproduzidos alguns dos seus famosos “bilhetinhos”, tão difíceis de cumprir quanto, na verdade, entender. Um livro de um verdadeiro insider, indispensável, doravante, aos pesquisadores do período. Brasil. Secretaria de Estado dos Negócios do Império e Estrangeiros: O Conselho de Estado e a política externa do Império: Consultas da Seção dos Negócios Estrangeiros, 1863-1867 (Rio de Janeiro: Centro de História e Documentação Diplomática; Brasília: Funag, 2007, xxviii + 444 p.) Este volume se coloca no imediato seguimento de seu irmão mais velho, que cobria o período 1858-1862 (publicado pelo CHDD em 2005) e retoma, como aquele, casos relevantes que interessavam à política externa do Império levados ao aviso do douto Conselho. Incluídos os temas consulares, todos eles informam sobre o exame cuidadoso e o tratamento sério que os órgãos do Estado concediam às questões diplomáticas. Muitos se referem às relações com os vizinhos, inclusive em nossa posição de credor da Argentina e do Uruguai. As restrições de então à “internacionalização” da Amazônia parecem inteiramente atuais. Curioso registrar que, em 1864, Brasil e Argentina ainda discutiam os termos de um tratado definitivo de paz, depois da convenção preliminar de 1828. Naquele mesmo ano, a Grã-Bretanha continuava a reclamar reparações por danos sofridos na revolta da Bahia de 1837. Bastante meticuloso, sem dúvida, mas talvez um pouco lento, o nosso serviço exterior do século XIX... 39 Luiz Felipe de Seixas Corrêa (organizador): O Brasil nas Nações Unidas, 1946-2006 (Brasília: Funag, 2007, 768 p.) Trata-se de reedição, revista e sensivelmente ampliada, da coleção de pronunciamentos feitos na abertura de cada Assembleia Geral, já coletados previamente até o ano de 1995, no livro A Palavra do Brasil nas Nações Unidas, comemorando então o primeiro meio século da ONU. Seixas Corrêa teve o cuidado de recolocar no contexto histórico essas exposições gerais sobre a postura do Brasil no cenário internacional, examinando também as circunstâncias que presidiram à tomada de certas posições. De uma forma geral, esses discursos expressam também os valores da diplomacia brasileira e permitem ao pesquisador acompanhar a evolução do pensamento oficial em temas de grande relevância na agenda mundial. Muitos temas são previsíveis: reforma da Carta, ingresso do Brasil no CSNU, prioridade latino-americana seguida da opção preferencial pela América do Sul, integração regional e apego ao multilateralismo e à solução pacífica de controvérsias. Algumas diferenças transparecem no período recente, como as menções às crises financeiras e à globalização, nos governos FHC, e a ênfase na justiça social e na correção das desigualdades, no primeiro mandato de Lula. Um excelente instrumento de consulta e uma boa ferramenta de trabalho para seguir a longa duração da visão do mundo do Brasil oficial. Milton Torres: No Fim das Terras e Andaimes (Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2004 e 2006; 223 e 200 p.) Dois volumes, belíssimos em sua composição gráfica e ainda mais esplendorosos em seus respectivos conteúdos, da mais pura “poesia douta”, como classificou o prefaciador do primeiro. Este é um passeio pela história do Brasil e pelas relações com nossos vizinhos ibéricos e o grande irmão do norte. Poemas em espanhol, em inglês ou em português d’antanho, evidenciando um domínio completo não só da língua como dos itinerários respectivos desses povos. O segundo é uma verdadeira construção poética da história do mundo, desde a mais remota antiguidade até um presente indefinido e indefinível. O autor possui uma capacidade de viajar pelos sons, imagens e palavras raramente vista nos anais da poesia. Recomenda-se sorver com lentidão cada um dos conceitos, meditando sobre seu significado não aparente, tentando descobrir o que está por detrás daquelas ideias sofisticadas, aparentemente barrocas, mas na verdade revolucionárias. Êxtase! Fernando Reis: Falta um cão na vida de Kant (Rio de Janeiro: Objetiva, 2007, 251 p.) “Há quedas que valem por uma ascensão”. “Kant, para ser Kant, teve que esperar muito”. O livro é pleno de frases de efeito, aparentemente anódinas, mas que revelam uma profunda reflexão sobre o sentido da existência e das ações humanas. Pode-se até dizer que, antes de ser “kantiano”, este roman philosophique (stricto et lato sensi) é propriamente kirkegaardiano, filósofo que também aparece nessa busca angustiante de um cão para o professor de Koenigsberg. O cachorro é uma espécie de metáfora, para um dos romances mais saborosos já produzidos na linhagem de Machado de Assis, outra referência filosófica e literária constante, além de um monge chinês. São 56 capítulos curtos (mais um “em branco”), divididos em quatro “volumes”, um “meio-tempo”, uma “prorrogação (para leitores insatisfeitos)” e um “além-texto”, que se chama assim mesmo. Enfim, Kant achou o cão que lhe faltava na sua vida pacata? No meio do livro aparece um basset hound, mas o seu papel na formulação da crítica da razão pura fica para o leitor descobrir... 40 Flávio de Oliveira Castro: Caleidoscópio: cenas da vida de um diplomata (Rio de Janeiro: Contraponto, 2007, 516 p.) Raras vezes, nos anais do Itamaraty, memórias diplomáticas terão sido escritas com tanta sinceridade, tamanha franqueza e total liberdade de pensamento como estes souvenirs de Flávio Castro. Ele relata, com perfeita clareza e sem as conhecidas sutilezas da linguagem profissional – para não dizer as “travas” do politicamente correto –, os bons e os maus momentos de uma longa carreira, de mais de 35 anos de vida ativa no serviço diplomático e consular, com passagens pela Presidência da República (Jango) e por uma infinidade de postos, em todos os continentes. Não são apenas lembranças de festas e recepções, mas também passagens perigosas, implicando risco de vida, vários desastres e furacões, vencidos com bom humor e uma excelente disposição para enfrentar mais de duas dezenas de postos, sempre acompanhado da família. Os episódios mais marcantes talvez tenham sido seus “entreveros” nas duas capitais: Rio de Janeiro e Brasília. Um diplomata 4x4, para todos os terrenos... Carlos Henrique Cardim: A Raiz das Coisas: Rui Barbosa, o Brasil no Mundo (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, 350 p.) Rui não foi um diplomata profissional, mas ele poderia, tranquilamente, ser considerado o “pai intelectual” da moderna diplomacia brasileira: ele nos legou um conjunto de posições que fazem parte do nosso corpo jurídico e que integram nossa tradição de política internacional. Esta monografia comprova que Rui foi muito maior do que o registrado na literatura da nossa política externa, mesmo sem ter deixado uma obra centrada nas relações internacionais. Sua obra de ativo “internacionalista” está dispersa em centenas de artigos, pareceres, discursos, orações e preleções jurídicas, mas sobretudo nas declarações que fez, muitas vezes de improviso, na II Conferência da Paz da Haia (1907). Cardim selecionou os expedientes e organizou um dossiê abrangente sobre a atividade e o pensamento de Rui em temas internacionais; ele nos traz o defensor da igualdade soberana das nações, que ocupa lugar de destaque na atual diplomacia brasileira. O livro tem uma saborosa iconografia com charges dos mais famosos humoristas brasileiros de um século atrás. Geraldo Holanda Cavalcanti: Encontro em Ouro Preto: contos fantásticos (Rio de Janeiro: Record, 2007, 188 p.) A maior surpresa destes contos do escritor, poeta, tradutor laureado e diplomata Geraldo Holanda Cavalcanti é a de que eles são, efetivamente, fantásticos, mas... assustadoramente normais. As situações inverossímeis, inexplicáveis, surpreendentes, que povoam estes contos são absolutamente corriqueiras, até banais, na vida de cada um de nós, mas o resultado é sempre uma surpresa, sem que se consiga, no começo de cada conto, prever o seu final. O mais atraente, na escrita de Geraldo Holanda Cavalcanti, é a fluidez do texto, a palavra atraente e certeira, mesmo quando ela reflete a ambiguidade de uma situação, e suas palavras geralmente o fazem, transmitindo essa situação de “desconforto” e de “incerteza” com o que pode vir a ocorrer com o personagem principal, nisso atiçando nossa curiosidade para que logo cheguemos ao final do conto. Eles se leem, assim, rapidamente, mas a impressão que nos fica é permanente. Com tudo isso fica a sensação de “quero mais”. A vontade que dá, ao encerrar o livro, é a de pedir ao autor que continue a nos enfeitiçar com os seus, novos, contos fantásticos, assustadoramente normais... 41 Luís Valente de Oliveira e Rubens Ricupero (organizadores): A Abertura dos Portos (São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2007, 352 p.) Este livro coletivo – seis autores portugueses e seis brasileiros, entre os quais dois diplomatas – vai muito além do título reducionista, abordando todo o contexto político e econômico do sistema colonial, a disputa entre as potências europeias, a transferência da corte, em 1808, e suas consequências, tanto para o Brasil, como para Portugal. Ricupero evidencia inclusive o que ele considera serem os pontos de contato entre, de um lado, o decreto de abertura dos portos e os tratados de 1810, e, de outro, o projeto da Alca, proposto pelos Estados Unidos em 1994. Paulo Roberto de Almeida faz uma análise do contexto econômico colonial e da gradual emergência de uma economia voltada para a acumulação interna, no contexto das relações econômicas internacionais e dos processos de transformação do sistema econômico no início do século XIX. Uma rica iconografia ilustra este livro, que fica como um marco comemorativo destes dois séculos desde o alvará “libertador do comércio”. Antônio Paulo Cachapuz de Medeiros (organizador): Desafios do Direito Internacional Contemporâneo (Brasília: Funag, 2007, 460 p.) Os textos coletados neste volume editado pelo Consultor Jurídico do Itamaraty emanam das jornadas de direito internacional público, organizadas em novembro de 2005, das quais participaram grandes especialistas do ramo, inclusive dois ex-consultores jurídicos do MRE e diplomatas com experiência na área. Os temas vão da reforma da Carta da ONU, a evolução da justiça internacional (judicial ou arbitral), as controvérsias comerciais, direito dos tratados, direitos humanos e até a questão da taxa de câmbio e seu papel nas relações econômicas entre Estados. As jornadas foram concluídas por uma interessante mesa-redonda em torno do currículo de direito internacional público nas instituições brasileiras de ensino superior. Na medida em que o Brasil é um dos países com maior número de controvérsias internacionais de comércio, no plano regional ou multilateral, trata-se de excelente contribuição ao estado dos problemas da área. Evaldo Cabral de Mello: Nassau: governador do Brasil holandês (São Paulo: Companhia das Letras, 2006, 289 p.) A biografia do príncipe alemão, convertido em administrador do mais importante empreendimento capitalista do Brasil colônia, pelo maior historiador regional do Brasil – talvez maior historiador brasileiro tout court – integra a coleção perfis brasileiros, que já nos deu biografias de D. Pedro I, a de seu filho, e de alguns outros. A bem da verdade, o Brasil não pertenceu à Holanda, mas à Companhia das Índias Ocidentais. Evaldo Cabral desmente vários mitos em torno dessa personagem ao mesmo tempo republicana e aristocrática, cujos anos brasileiros foram o ponto alto de sua vida. Boxer, o grande historiador do mundo português, disse que Nassau não foi só um administrador competente, mas um homem à frente do seu tempo, com o que concorda Evaldo. Daí a achar que um Brasil assoviando terse-ia convertido numa espécie de Holanda tropical vai uma grande distância: a despeito dos percalços, ele modernizou consideravelmente o Nordeste português. Infelizmente, as boas sementes que ele deixou se apagaram no rastro da expulsão e da recuperação luso-brasileira. Everton Vieira Vargas: O Legado do Discurso: Brasilidade e Hispanidade no Pensamento Social Brasileiro e Latino-Americano (Brasília: Funag, 2007, 412 p.) 42 Fruto de uma tese aprovada com louvor na UnB, este livro retoma a tradição das grandes releituras históricas e sociológicas, que já tinham marcado interpretações grandiosas do passado brasileiro e latino-americano, na tradição dos grandes mestres, que o autor examina com cuidado: Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre, sobretudo, mas também os mexicanos Manuel Gamio, Leopoldo Zea, Samuel Ramos, José Vasconcelos, Moisés Saenz, Eduardo Nicol e Octávio Paz. Se por acaso existe uma identidade latino-americana, ou brasileira, esses autores a encarnaram em seus ensaios eruditos, permeáveis à dialética das influências europeias, isto é, ibéricas, hispânicas e, mais adiante, americana, no sentido hemisférico da palavra. Brasilidade e hispanidade alcançam um novo patamar de compreensão e de apreensão histórica nesta obra que dignifica a tradição sociológica brasileira. Marcelo Böhlke: Integração Regional e Autonomia do seu Ordenamento Jurídico (Curitiba: Juruá Editora, 2007, 264 p.) O autor realiza uma bem sucedida síntese dos processos de integração na Europa e na América Latina, depois de percorrer a teoria da integração e as diferentes etapas que esse itinerário percorreu nas duas regiões, das preferências tarifárias à união econômica total. Ele distingue claramente os mecanismos institucionais e seu suporte jurídico, direito comunitário de um lado, direito da integração de outro, mostrando como ambos se diferenciam do direito internacional clássico. A estrutura intergovernamental do Mercosul recebe um tratamento exaustivo, numa perspectiva evolutiva. Ele acredita que a etapa atual, de construção da zona de livre-comércio e da união aduaneira pode se apoiar no direito da integração, mas seu itinerário em direção ao mercado comum requer avanços normativos ainda mais complexos. Ele também acredita que o Mercosul representa um “acréscimo de poder” aos Estadosmembros, mas isto também requer um aprimoramento de sua estrutura institucional e jurídica. Maria Nazareth Farani de Azevedo: A OMC e a Reforma Agrícola (Brasília: Funag, 2007, 232 p.) O título não reflete exatamente o conteúdo da obra, que trata, toda ela, do princípio da precaução e de sua aplicação no âmbito da OMC. Originário do conceito alemão de Vorsorge, e usado por vezes de forma abusiva pela União Europeia, o princípio se desenvolveu basicamente em resposta às preocupações com o meio ambiente e com a biossegurança, mas veio a ter utilização plena nas regras aplicadas ao comércio de bens alimentícios, impactando fortemente, e muitas vezes de forma unilateral, os arranjos sanitários multilaterais. O estudo cobre exaustivamente os vários instrumentos vinculados a esse princípio, em especial o acordo de medidas sanitárias e fitossanitárias (SPS), enfatizando a necessidade da prova científica para a aplicação daquele princípio, que a UE pretende ampliar “politicamente”. O risco que se pretende evitar acaba sendo um risco protecionista contra o Brasil. Fernando Cacciatore de Garcia: O Príncipe Irreal e o Poeta Errante (Porto Alegre: Editora Nova Roma, 2008, 96 p., il.) Trata-se de uma poesia incomum, como adverte o prefaciador, Armindo Trevisan: ele sublinha o caráter sutil da poesia de Garcia, refletida em imagens e metáforas, todas elas evocativas de uma vida bem vivida, nos cenários sempre inéditos de uma trajetória diplomática que o levou a cidades poeticamente significativas. No “príncipe irreal” os poemas são dedicados a colegas de carreira e aos amigos íntimos. No “poeta errante”, são aqueles lapidados em suas caminhadas em Buenos Aires, Rio de Janeiro, Londres, Salvador, Lisboa, 43 Brasília, Bonn e tantas outras cidades. Um quê de Mario Quintana cosmopolita aqui, uma pitada de Jorge Luís Borges ali, nas metáforas mais elaboradas, Garcia é um artesão das palavras bem esculpidas, revelando uma erudição adquirida em leituras refletidas, na experiência das errâncias diplomáticas. Nem por isso descomprometida, como revela Sotto Voce, que reflete o terror dos assassinatos sob a ditadura argentina. Uma poesia inspirada, uma trajetória de instantâneos, de Brasília (1973), a Porto Alegre (2008), como só uma mente rica poderia construir. Carlos Kessel: Tesouros do Morro do Castelo: Mistério e história nos subterrâneos do Rio de Janeiro (Rio de Janeiro: Zahar, 2008, 103 p.) Uma antiga lenda urbana, de quase dois séculos, queria que o Morro do Castelo, arrasado pela prefeitura carioca em 1922, abrigasse fabulosos tesouros subterrâneos, deixados pela Companhia de Jesus, ao ser expulsa do Brasil em 1759. Posto que só tivessem sido recolhidos meros 500 mil réis com os jesuítas, o mito dos tesouros escondidos cresceu ao longo dos anos. O historiador Kessel retraça esta incrível aventura arqueológico-fantasista, com base numa rigorosa pesquisa de arquivo e em uma rica compilação iconográfica. Suas “antiqualhas” e memórias do Rio de Janeiro vão muito além do Morro do Castelo, pois que ele percorre a trajetória histórica da cidade com tanta atenção quanto aquela dedicada à leitura de velhos papéis. O diplomata farejador foi atrás do “rastro fascinante do ouro e da cobiça, por vezes se mostrando abertamente, por vezes oculto e envergonhado”. Nossa recompensa, longe das míticas toneladas de ouro dos jesuítas, é a de dispor agora de um fascinante relato sobre a formação da cidade do Rio de Janeiro. Vale um título de cidadão emérito! Roberto Campos: A Lanterna na Popa: Memórias (4a. ed. rev. e aum.; Rio de Janeiro: Topbooks, 2001-2004, 2 vols.) O mais conhecido dos diplomatas-economistas, também foi um prolífico escritor e um polêmico debatedor público, ademais de ministro do Planejamento e, nessa condição, um dos grandes arquitetos do conjunto de reformas empreendidas pelo regime militar em sua primeira fase. Depois disso foi embaixador em Londres e, não tendo conseguido ser chanceler, como provavelmente gostaria de ter sido, começou uma carreira de político, sempre nadando a contracorrente das tendências da época. Como Raymond Aron, teve a satisfação de ganhar de seus adversários, mas já no final da vida. Vale reler, por exemplo, pois válida ainda hoje, seu debate na TVE com Luiz Carlos Prestes, em 1985: Campos era especialista em desarmar adversários com base na lógica mais cristalina. Esta quarta edição apenas corrige erros menores no texto principal e agrega, tão simplesmente, discursos de posse: na Academia Brasileira de Filosofia, na “curva” dos 80 anos (1997), o discurso de despedida na Câmara dos Deputados e o de posse na Academia Brasileira de Letras (1999). Alexandre Guido Lopes Parola: A Ordem Injusta (Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2007, 508 p.) “A política externa de cada país será sempre a resultante de uma diversidade de fatores que abrange, entre outros, circunstâncias geográficas, laços históricos de amizade, arranjos políticos internos, formas de inserção na economia internacional e, claro, a presença dos ‘excedentes de poder’...”, diz o autor nesta tese de CAE que faz uma crítica filosófica do realismo. Ele analisa as contribuições de Rawls e de Habermas, para se perguntar, depois, se pode um Estado nacional não ser realista. No caso do Brasil, são utilizados, na perspectiva dos valores, discursos presidenciais e dos chanceleres para compor uma proposta de 44 pragmatismo democrático que representaria uma alternativa à doutrina realista. Essa proposta não-realista opera uma crítica da desigualdade no sistema internacional, faz a defesa da democracia e afirma que o Estado desempenha um papel importante na construção de uma ordem justa. O autor acredita que a igualdade e a justiça são mais promissores do que a força e o poder. Seria ele partidário de uma Idealpolitik para o Brasil? Sérgio Eduardo Moreira Lima: A Time for Change (s.l.: Gvanim, s.d. [2006], 128 p.) Este livro, publicado em inglês, contém os escritos e conferências feitos pelo exEmbaixador do Brasil em Telavive durante sua permanência em Israel (2003-2006). Eles tratam, de um lado, de aspectos da economia e da sociedade brasileira, tal como apresentados ao público israelense, e, de outro, da política externa brasileira em relação a Israel e a questão palestina. Os anexos contém documentos recentes sobre as relações bilaterais; a bibliografia traz algumas referências para os que desejarem aprofundar seus conhecimentos sobre ambos os aspectos aqui tratados. Seria, sem dúvida, uma excelente contribuição à memória viva de nossa diplomacia se todos os embaixadores se dedicassem, como Moreira Lima, a compilar conferências e ensaios de caráter substantivo para oferecer a um público mais amplo do que aquele onde se está representando o Brasil, estabelecendo laços de amizade mais duradouros, como os que ele construiu ao longo de sua profícua missão no coração dos conflitos do Oriente Médio. A apresentação é de Shimon Peres e o prefácio de Nahum Sirotsky. Oswaldo Munteal Filho, Adriano de Freixo e Jacqueline Ventapane Freitas (organizadores): ‘Tempo Negro, temperatura sufocante’: Estado e Sociedade no Brasil do AI-5 (Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio, Contraponto, 2008; 396 p.) O Itamaraty não passou incólume pelo mais emblemático instrumento da ditadura militar, como revela Paulo Roberto de Almeida, num capítulo sobre o Itamaraty em tempos de AI-5: “Do alinhamento recalcitrante à colaboração relutante”. Na verdade, o “enquadramento” tinha começado bem antes, em plena era McCarthy, quando vários diplomatas foram afastados arbitrariamente por integrar uma suposta “célula Bolívar” de orientação comunista. O golpe de 1964 produziu uma segunda onda de cassações, completada pela ação implacável do AI-5, que representou, certamente, uma espada de Dâmocles sobre a cabeça dos diplomatas progressistas. A despeito de alguns exercícios de “diplomacia blindada” na região, o Itamaraty talvez nunca tenha sido tão “livre”, paradoxalmente, quanto nesses tempos, de pequeno escrutínio parlamentar e de quase total controle da Casa pelos próprios diplomatas, o que nunca tinha sido o caso antes. Soldados e diplomatas aprenderam a se respeitar mutuamente, não sem algumas sequelas inevitáveis num ambiente de constrangimentos políticos. Omar L. de Barros Filho e Sylvia Bojunga (eds.): Potência Brasil: Gás natural, energia limpa para um futuro sustentável (Porto Alegre: Laser Press, 2008). Uma compilação de ensaios sobre energia e utilização do gás natural no Brasil, que começa por um retrospecto histórico de Paulo Roberto de Almeida sobre “Monteiro Lobato e a emergência da política do petróleo no Brasil” (dos anos 1920 aos primeiros dez anos da Petrobrás), no contexto da economia mundial do petróleo. Na ausência de evidências geológicas sobre a existência efetiva de petróleo na área continental, a politização da questão leva a doutrinas conspiratórias sobre o interesse dos “trustes estrangeiros” em impedir o Brasil de explorar o “ouro negro”, que devia estar ao “alcance da mão”, segundo Lobato. A despeito de invocar repetidamente o complô imperialista e a conivência do Estado brasileiro 45 com os trustes – o que o levou à prisão no Estado Novo –, Lobato foi o mais consistente defensor da autonomia nacional nesse setor estratégico; ele sequer viveu o bastante para ver provada a tese do “imperialista” Mister Link, sobre as possibilidades de exploração off shore. Mas ele teria certamente investido sua “fortuna” em direitos autorais na Petrobras. André Heráclio do Rêgo: Família e Coronelismo no Brasil: uma história de poder (São Paulo: A Girafa, 2008, 380 p.; ISBN: 978-85-7719-034-8) Esta obra pode ser colocada na linha do clássico Coronelismo, Enxada e Voto, de Victor Nunes Leal, e trata, como seu ilustre predecessor, do poder dos coronéis do sertão, neste caso baseada em documentação primária, com a originalidade de ter sido garimpada em fontes familiares. Trata-se de um rigoroso estudo sociológico sobre as estratégias familiares do poderoso clã (categoria duvidosa, aliás, como alerta o autor), com abundante literatura secundária e ampla contextualização histórica, cobrindo a história do Brasil desde o último quinto do século XIX até os dias que correm. Cartas, fotografias e depoimentos familiares, utilizados com isenção exemplar, constituem o rico suporte de uma narrativa densa, que passa da micro-história ao itinerário político-partidário do Brasil contemporâneo. Será certamente mais um clássico nessa área. José Roberto de Almeida Pinto: O Conceito de Poder nas Relações Sociais (Rio de Janeiro: Francisco Alves, 2008, 120 p.; ISBN: 978-85-265-0482-0) Esta obra só não é sociologia em estado quimicamente puro porque o autor conhece, na prática, o que é o poder, sobretudo nas relações internacionais, vertente, aliás, muito pouco realçada neste livro introdutório sobre a mais importante questão das ciências sociais, desde os gregos até os cientistas políticos contemporâneos. Dois apêndices sobre o poder no marxismo e em Max Weber mostram que ele se apoiou nas fontes principais da moderna teoria social e conduz a sua reflexão com todos os instrumentos analíticos relevantes. O autor, aliás, se desculpa por não ter lido este último em alemão, o que revela, antes de mais nada, sua honestidade intelectual. Um pequeno grande livro para ser lido por todos aqueles que estudam e, sobretudo, pelos que exercem o poder, legitimamente ou não... Eugênio Vargas Garcia (org.): Diplomacia Brasileira e Política Externa: Documentos Históricos 1493-2008 (Rio de Janeiro: Contraponto, 2008, 752 p.; ISBN: 978-85-7866-009-3) Praticamente não há precedentes, no Brasil, para este enorme volume de diplomacia prática, salvo dois ou três compêndios parciais e defasados no tempo. Ela compila 500 anos de história com documentos por vezes inéditos para o público leigo e mesmo para os especialistas da área. Não apenas uma obra de referência, ela oferece um guia seguro, por vezes bizarro, das relações internacionais do Brasil. Assim, além de tratados “fundadores”, figura, por exemplo, um pacto, de 1827, entre o governador de Buenos Aires e mercenários alemães a serviço de D. Pedro I, pelo qual o primeiro “comprava” os segundos e instava-os a conquistarem pela força a província de Santa Catarina, para ali instalar um governo republicano. Sempre existem surpresas, num pesado volume de 750 páginas. Recomenda-se saborear aos poucos... João Alfredo dos Anjos: José Bonifácio, o primeiro Chanceler do Brasil (Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2008, 424 p.; ISBN: 978-85-7631-098-3) 46 José Bonifácio não foi apenas o primeiro chanceler, mas, simultaneamente, o titular da pasta do Império, equivalente à do Justiça e do Interior, e, anteriormente à independência, dos Negócios do Reino. Inteiramente condizente com suas qualidades polivalentes e de homem de grande densidade intelectual. Esta tese de CAE constitui o mais completo estudo da atividade diplomática de Bonifácio, com base em fontes primárias e ampla literatura de apoio (quase 500 notas). Nosso primeiro ministro dos negócios estrangeiros preocupou-se também com as forças armadas e via o Brasil como uma “potência transatlântica”. Com a possível exceção de Rio Branco, o Brasil nunca teve um chanceler como ele. O livro, pelo seu valor historiográfico e seu estilo elegante, merece uma nova edição, para o grande público. Adriano Silva Pucci: O Avesso dos Sonhos (Rio de Janeiro: 7Letras, 2008, 176 p.; ISBN: 97885-757-7547-9) A realidade é o avesso dos sonhos, não o oposto, mas a mesma coisa, só que revirada. É assim que este descendente literário de Michelangelo vai esculpindo seus contos, mais exatamente vinte e três pré-histórias, como ele as define, repletas de personagens que poderiam frequentar nosso cotidiano, especialmente nos povaréus do interior, mas também em São Paulo, em festas de S. João ou em fábricas de chocolates. Puro deleite, com Adoniran Barbosa, José de Alencar, Luiz Gonzaga e Machado de Assis: sim, não falta nem uma Capitu, mas esta aqui multiplica os casos, na frente do seu Bentinho, com um final surpreendente. Fina escrita, diálogos tão próximos da realidade que parecem gravação (ou seria o avesso?). O livro é dedicado à Maria Chambisca e a todas as outras Marias. Mas Charles Chaplin abre a seleção... João Almino: Escrita em contraponto: ensaios literários (Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2008, 158 p.; ISBN: 978-85-282-0148-2) O autor do Quarteto de Brasília e de outras obras de filosofia política escolheu alguns de seus muitos ensaios literários para compor este pequeno-grande livro que fala do mito, da utopia, da poética do vazio, mas que também constrói diálogos literários entre o Brasil, Portugal e os Estados Unidos. Não se trata de crítica literária, como Almino adverte em seu Prefácio, mas de suas afinidades eletivas com autores e temas que compõem o seu universo de leituras e de reflexões sobre a poesia e a ficção que frequentam sua vida nômade-acadêmica (que já passou pela UNAM, pela UnB, pelo Instituto Rio Branco, por Berkeley e Stanford). Machado, Clarice, João Cabral, eis alguns autores que comparecem nos ensaios, junto com Goethe, quem primeiro prenunciou o advento de uma literatura universal, como a que burila João Almino. Vasco Mariz: Temas da política internacional: ensaios, palestras e recordações diplomáticas (Rio de Janeiro: Topbooks, 2008, 431 p.; ISBN: 978-85-7475-162-7) Prolífico escritor, longevo diplomata, musicólogo de renome, com muitas contribuições à cultura popular brasileira, Vasco Mariz reuniu desta vez seus escritos mais “sérios”, ou pelo menos todos aqueles que guardam a memória de suas aventuras diplomáticas. Por eles ficamos sabendo de sua cotovelada em Nikita Kruschev, do dia em que o Brasil salvou o Marechal Tito, da canhestra tentativa de Jânio Quadros de anexar Angola ao Brasil ou de como o regime dos generais afastou a possibilidade de que Dom Helder Câmara fosse premiado com o Nobel da Paz. Seu maior mérito é justamente o de não guardar para si suas muitas histórias diplomáticas. Os anexos trazem retratos de personalidades políticas 47 brasileiras e de artistas e escritores. Este é o seu 57o. livro: que não seja o último deste diplomata nascido em janeiro de 1921. Vera Cíntia Álvarez: Diversidade cultural e livre-comércio: antagonismo ou oportunidade? (Brasília: UNESCO-Instituto Rio Branco, 2008, 292 p.; ISBN: 978-85-7652-084-9) Originalmente uma tese no Curso de Altos Estudos do IRBr, o trabalho discute a questão das políticas públicas em matéria cultural em face da disseminação de produtos culturais na era da globalização. O foco central é o conflito potencial entre os mecanismos nacionais de promoção cultural e as regras do comércio multilateral, que poderiam impulsionar a liberalização nessa área. A autora lembra que a Unesco aprovou, em 2005, a Convenção da Diversidade Cultural, com a solitária oposição dos Estados Unidos, interessados, segundo ela, em ‘perpetuar a sua hegemonia’. De fato, as indústrias audiovisuais são as de maior dinamismo nos mercados mundiais, nos quais a suposta dominação americana poderia ameaçar as identidades culturais nacionais. Daí a tese da “diversidade cultural”, novo nome da “exceção cultural” patrocinada pela França. O Brasil apoia a tese, mas também promove seus interesses de mercado com base em sua grande riqueza cultural. Jorge Sá Earp: O Legado (Rio de Janeiro: 7Letras, 2007, 224 p.; ISBN: 978-85-7577-428-1) Prolífico autor de uma dúzia de livros, entre contos, poesias e romances, Jorge Sá Earp dá continuidade, com este novo romance, à trilogia Os Descendentes, que começou pela obra O olmo e a palmeira (2006). Se aquele romance inaugural partia dos anos finais do período português e dos primeiros da independência, este retoma a narrativa já no Segundo Reinado, sempre com integrantes da família Delasalle-Castro, entre os quais Pedro, filho do inglês do primeiro da série, jovem médico casado, que sucumbe aos encantos de outra mulher. O cenário se divide entre Petrópolis e o velho Rio da Livraria Garnier, frequentada por Bilac, João do Rio e outros escritores, já em pleno século 20. Em linguagem cuidadosamente esculpida ao estilo da época, o romance traz o que se pode esperar no gênero: amores proibidos, traições, vingança, assassinatos por arsênico. Esperemos pelo terceiro e último, de uma saga machadiana. Alberto da Costa e Silva: Castro Alves: Um poeta sempre jovem (São Paulo: Companhia das Letras, 2007, 198 p.; ISBN: 978-85-359-0789-6) Os livros da coleção Perfis Brasileiros são pequenos em tamanho, mas densos em conteúdo. Evaldo Cabral de Melo já tinha feito um Nassau; agora é o poeta Costa e Silva que retraça, em 24 capítulos, a vida e a obra do maior poeta condoreiro, que morreu com exatos 24 anos. Abolicionista aos 16 anos, radical da liberdade, Castro Alves esteve no centro dos debates mais importantes de sua época e, mesmo vindo de uma família de negreiros, ficou conhecido como ‘poeta dos escravos’. A mãe pode lhe ter passado a tuberculose que a matou com 34 anos, ele com dez anos menos. Costa e Silva o chama de “republicano, socialista, libertário, mas acima de tudo um inimigo da escravidão”. Duelou poeticamente com Tobias Barreto por causa de duas atrizes, e venceu a parada; mas perderia para a ceifadeira, depois de ganhar a imortalidade, com “Vozes d’África” e “Navio Negreiro”. Poetas românticos morriam cedo no Brasil... Sérgio Corrêa da Costa: Le nazisme en Amérique du Sud: Chronique d’une guerre secrète 1930-1950 (2ème édition; Paris: Ramsay, 2008, 464 p.; ISBN: 978-2-84114-904-9). 48 Trata-se da versão francesa do livro Crônica de uma Guerra Secreta, Nazismo na América: A conexão argentina (Record, 2004), com pequenas diferenças formais. Diplomata em Buenos Aires, nos anos finais da Segunda Guerra, Corrêa da Costa penetrou nos arquivos argentinos e copiou papéis relevantes para a história passada e a segurança contemporânea do Brasil, numa fase em que nazistas circulavam livres, protegidos por Perón e seus companheiros fascistas. A edição brasileira tem um índice onomástico ausente da edição francesa, que por sua vez tem notas agrupadas ao final. Observações pessoais do autor são integradas a uma pesquisa em obras e documentos da época e à leitura da literatura secundária. Síntese breve: Perón foi bem pior do que se admite geralmente nos registros históricos, para o Brasil e para a própria Argentina. Paulo Roberto Palm: A Abertura do Rio Amazonas à Navegação Internacional e o Parlamento Brasileiro (Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2009, 100 p.; ISBN: 97885-7631-017-4) O livro é o resultado de uma dissertação de mestrado defendida na UnB em 1984 e, apesar da bibliografia não ter sido atualizada, ele conserva toda a validade como pesquisa histórica. As premissas e conclusões se alinham inteiramente com a interpretação oficial do processo de abertura, no qual estiveram envolvidos não só a chancelaria, mas também o Conselho de Estado e o Parlamento. Naquela época, antes e depois da Guerra do Paraguai, se temia tanto pela soberania brasileira na Amazônia como ainda recentemente, fruto de uma paranoia nunca totalmente curada quanto à cobiça estrangeira sobre nossas fabulosas riquezas naturais. Palm analisa de forma competente as pressões estrangeiras – potências e ribeirinhos –, a reação brasileira e o conflito doutrinal no Parlamento, antes do decreto imperial de abertura, de 1866. Tarcísio Costa: As duas Espanhas e o Brasil (Rio de Janeiro: Topbooks, 2009, 396 p.; ISBN: 978-85-7475-174-0) Poucas teses de CAE adotam o tipo de abordagem escolhido pelo autor em sua obra para tratar de uma densa e original relação bilateral. Não que o exame de um relacionamento diplomático seja novidade nas teses do CAE, ao contrário, elas são muitas a preferirem esse tipo de enfoque. Mas raras, talvez nenhuma, o fazem pela via da história das ideias, mais até que pelo lado dos eventos políticos e dos processos econômicos. As duas Espanhas se referem à duas tradições mais fortes da historia moderna do reino ibérico: a direita católica, unitária e imperial de um lado, a esquerda socialista, republicana e federativa, de outro. O Brasil aprofundou sua relação com as duas Espanhas e nelas encontrou mercados, capitais e parcerias diplomáticas. A leitura intelectualizada de Costa sobre essa relação constitui um irresistível convite a servir naquele país. Luiz Felipe de Seixas Corrêa: O Barão do Rio Branco: Missão em Berlim – 1901/1902 (Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2009, 140 p.; ISBN: 978-85-7631-161-4) Este livro de história é muito mais do que anuncia o seu título e bem maior do o número declarado de páginas: ele trata da Alemanha e do Brasil na virada do século 20, da presença alemã no Brasil e das relações entre os dois países durante a longa gestão do Barão à frente da chancelaria brasileira, além, é claro, de seu objeto próprio. Seixas corrige os dois biógrafos mais importantes, Álvaro Lins e Luiz Viana Filho: Berlim foi mais que um “intervalo” ou um breve “interlúdio” (18 meses). Apoiado nos documentos diplomáticos das duas chancelarias, Seixas mostra como Rio Branco operou uma chefia de missão sobretudo 49 pragmática e orientada a resultados efetivos. Então como agora, potências europeias disputavam o Brasil como mercado de armas e o problema das dívidas brasileiras já figurava no cardápio das cobranças alemãs. Em Berlim, o Barão arma a estratégia que levaria à incorporação do Acre ao Brasil. Flavio Mendes de Oliveira Castro e Francisco Mendes de Oliveira Castro: Dois séculos de história da organização do Itamaraty; 1: 1808-1979; 2: 1979-2008 (Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2009, 640 e 332 p.; ISBN: 978-85-7631-136-2 e 978-85-7631-158-4) O que já era, na edição original – há muito esgotada – da UnB, uma história minuciosa da estrutura evolutiva do Ministério dos Negócios Estrangeiros, depois Relações Exteriores, tornou-se agora um relato completo sobre a Casa que passou a chamar-se Itamaraty já na República. A despeito do tom burocrático, trata-se de obra absolutamente indispensável a todo pesquisador que queira desvendar os segredos da alegada excelência da Casa na defesa dos interesses nacionais. Os Castros, reunidos para o segundo volume e o enriquecimento do primeiro merecem cumprimentos pelo trabalho excepcional de compilação – e apresentação, em tom ameno – dos mais importantes documentos que balizam a construção de uma das melhores instituições diplomáticas do hemisfério sul (e talvez, também, de várias partes do norte). Gonçalo de Barros Carvalho e Mello Mourão: A Revolução de 1817 e a História do Brasil: um estudo de história diplomática (Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2009, 352 p.; ISBN: 978-85-7631-171-3) Segunda edição de uma obra relevante na historiografia da revolução em Pernambuco, cujos vínculos internacionais foram pesquisados com uma competência raramente vista nos anais da diplomacia brasileira. Em duas partes, a obra analisa a correspondência diplomática portuguesa e estrangeira a partir de capitais europeias, de Washington e do Prata, para reconstituir as ligações internacionais dos revoltosos do Recife; na segunda parte, a obra discute a opção pela monarquia no Brasil, a partir do impacto dessa revolução talvez mais federalista do que republicana, bem como a repercussão do precedente haitiano no Brasil do começo do século 19: a imagem de escravos eliminando seus senhores brancos deve ter assustado as elites do Império. Poderia o Brasil ter sido um grande Haiti? Questão para uma história virtual... Ovídio de Andrade Melo: Recordações de um Removedor de mofo no Itamaraty: relatos de política externa de 1948 à atualidade (Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2009, 192 p.; ISBN: 978-85-7631-175-5) Em três partes, o depoimento trata da política nuclear e da recusa ao TNP, do reconhecimento de Angola (com telegramas secretos revelados) e dos périplos afro-asiáticos do embaixador aposentado; na quarta parte, Ovídio diz que fez a sua parte ao tentar remover do Itamaraty ideias antiquadas e desajustadas, entre elas a decisão de se assinar o TNP. Um dos fantasmas do passado é o imperialismo dos EUA na América Latina, um mofo muito pegajoso, a crer no embaixador. Cabem elogios ao “simpático casal Kirchner”, referências a “explosões nucleares pacíficas” e certa nostalgia pelas posições que o Brasil exibia no passado. O livro é importante pelo depoimento em si, menos talvez pela mensagem que pretende transmitir aos atuais removedores de mofo, pois caberia distinguir qual camada, exatamente, remover... 50 Jorge Sá Earp: O novelo (Rio de Janeiro: 7 Letras, 2008, 204 p.; ISBN: 978-85-7577-536-3) Autor de uma já impressionante obra de poeta, contista e romancista, Earp termina com esta novela, cujo formato é realmente o de um novelo (com perdão pelo jeux de mots), a trilogia começada com O Olmo e a Palmeira (2006) e O Legado (2007): todo o romance se faz sob a forma de relatos dos personagens, cada um encadeando e misturando suas impressões e trajetórias pessoais com as dos demais. O itinerário total, de duas famílias entrelaçadas, vai, assim, do começo do século 19 ao AI-5, em 1969. Aqui, personagens históricos e imaginários se misturam numa trama que só pode ser seguida pelos relatos subjetivos destes últimos, et encore: ao final, o autor confessa que servia de “ponto” para os atores de uma longa peça de teatro, cujo enredo é a própria história do Brasil: um e outra terminam no escuro da noite. Bravo! Geraldo Holanda Cavalcanti: As desventuras da graça (Rio de Janeiro: Record, 2010, 384 p.; ISBN: 978-85-01-08527-6); 2) Uma espécie de Bildungs Roman, um livro de formação, sobre os primeiros vinte anos do autor, que também correspondem a uma infância de catolicismo exacerbado e à gradual perda da religiosidade na adolescência, até chegar à falta de fé do jovem formado e pronto para ingressar na carreira diplomática. Entre anjos e mistérios da fé, o autor passeia sua erudição pelo que se poderia chamar de cultura clássica e renascentista: somos contemplados com passeios ricamente comentados às principais cidades e museus da Europa. Seus diários e recordações, com algumas projeções de atualidade, são a fonte primária deste saboroso racconto memorialístico de estilo absolutamente original nos exemplos do gênero. Depois desta saborosa viagem iniciática, o autor fica nos devendo a continuidade da história, desta vez na primeira fase de sua rica vida diplomática. Paulo Nogueira Batista Jr. (org.): Paulo Nogueira Batista: Pensando o Brasil, Ensaios e Palestras (Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2009, 336 p.; ISBN: 978-85-7631-1744) Poucos diplomatas preservam, organizam e disponibilizam sua produção ao longo da carreira, talvez porque ela seja, na maior parte, aborrecidamente burocrática. Este não é certamente o caso do nacionalista PNB, que não apenas entregou arquivos ao Cpdoc, como guardou suas contribuições mais relevantes ao longo de uma carreira que se confunde com a defesa das causas nacionais, desde a era JK até o início dos anos FHC. Infelizmente desaparecido prematuramente, ele comparece agora através desta seleção de textos, elaborados entre 1983 (dois inéditos) até 1994, quando PNB se preocupava com o perfil do Mercosul e seus efeitos sobre a economia brasileira. São textos diplomáticos, mas que guardam a nítida marca de um pensador original. Antonio de Aguiar Patriota: O Conselho de Segurança após a Guerra do Golfo: a articulação de um novo paradigma de segurança coletiva (2a. ed.; Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2010, 232 p.; ISBN: 978-85-7631-197-3) Reedição não atualizada de obra elaborada em 1997 e publicada em 1998, o trabalho preserva utilidade como análise detalhada da atuação do Conselho em casos importantes de ameaças à paz e à segurança internacionais no contexto do novo ambiente criado em meados dos anos 1990, com o fim da Guerra Fria e o vislumbre de novos princípios para a aplicação dos dispositivos relativos à segurança coletiva. Mesmo sem a adição de novos capítulos para 51 contemplar a situação criada com a segunda guerra do Golfo (invasão não autorizada do Iraque), o livro teria, ainda assim, se beneficiado com uma introdução ou epílogo para discutir, justamente, o que existe de novo no contexto do CSNU, a partir da preeminência quase exclusiva dos EUA, da re-emergência da Rússia e da assertividade da China. Caberia uma edição revista e atualizada, para discutir se existe, realmente, um novo paradigma. Luís Gurgel do Amaral: O Meu Velho Itamarati (De Amanuense a Secretário de Legação) 1905-1913 (2a. ed. Revista; Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2008, 504 p.; ISBN: 978-85-7631-105-8). Com uma primeira edição em 1947, para relatar memórias de cem anos atrás, a obra tem sabor e conteúdo de amenidades fagueiras e um compreensível vieux style, inclusive na linguagem machadiana. Tempos em que o velho Palácio do Itamaraty acolhia bailes suntuosos – “Felizes eram aqueles que tinham os seus nomes nas listas do Protocolo, os trezentos de Gideão...” – nos quais o autor “rodopiava sem competidores”. Os telegramas expedidos pela Western Union eram caros, e os ofícios ainda redigidos à mão, o que justificava o uso do tempo para afazeres mais amenos, como incursões em lancha e subidas frequentes a Petrópolis (inclusive para escapar da febre amarela, a dengue da Primeira República). Leitura agradável, talvez com pince-nez e algum licor caseiro, mas poucos elementos substantivos para a história real. Ciro Leal M. da Cunha: Terrorismo Internacional e Política Externa Brasileira Após o 11 de Setembro (Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2009, 216 p.; ISBN: 978-85-7631-1904) Originário de um trabalho de conclusão do Mestrado em Diplomacia pelo IRBr, este livro expõe e analisa as diretrizes e ações do governo brasileiro com respeito à temática do terrorismo, depois que este se converteu (legitimamente) na preocupação número um dos Estados Unidos (e de vários outros países, também). O Brasil, por falta de ameaças visíveis nessa área, atribui importância menor ao tema, e opõe-se, em princípio a medidas coercitivas, preferindo atuar nas causas subjacentes – supostamente um problema de injustiça em determinadas áreas e regiões – e basicamente por meio da cooperação. Em outros termos, o Brasil é contrário ao uso da força em qualquer circunstância, mesmo no caso do terrorismo, insistindo na tese genérica da manutenção do multilateralismo, o que pode ser problemático, como evidenciado nos casos da Colômbia e do Oriente Médio, onde a via do diálogo tem se mostrado basicamente insuficiente, por vezes ineficiente. Rômulo Figueira Neves: Cultura Política e Elementos de Análise da Política Venezuelana (Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2010, 152 p.; ISBN: 978-85-7631-192-8) Outro trabalho de conclusão do Mestrado em Diplomacia pelo IRBr, o livro repassa a longa trajetória de peripécias políticas de nosso vizinho andino, para retomar, num importante capítulo, os episódios da história recente de construção de um regime sui generis liderado pelo caudilho bolivariano. O sistema atual – que como os anteriores se baseia no rentismo petrolífero, uma verdadeira maldição tanto para a Venezuela como para outros países, acomodados numa riqueza mineral – se caracteriza pela baixa produtividade, pela presença dos militares (que aliás é tradicional na vida do país, retirando-se o período 1958-1999, ainda assim incluindo uma tentativa de golpe, pelo mesmo Chávez, em 1992), pelo bolivarismo mítico (talvez até doentio) e pela radicalização dos discursos políticos (o que é evidente, com a divisão completa da sociedade venezuelana). O futuro, provavelmente, reserva novas doses 52 de violência política num país que promete revolucionar não apenas o cenário doméstico mas o próprio Mercosul. Quosque tandem? Marcelo Cid: Os Unicórnios (Rio de Janeiro : Sete Letras, 2010, 168 p.; ISBN: 978-85-7577637-7) A solução encontrada pelo “herói” deste livro para remediar ao desaparecimento de sua biblioteca num incêndio exemplar não deve ser recomendada aos verdadeiros amantes desses pouco obscuros objetos de cobiça: constituir uma nova biblioteca inteiramente a partir de livros roubados, mas seletivamente (o que talvez introduza um pouco de razão na loucura do larápio bibliófilo e bibliomaníaco). Por acaso esse professor universitário se torna o principal assessor intelectual de uma pequena editora, e sai em busca do manuscrito “clássico inédito” (sic), vislumbrado em possíveis poemas desconhecidos do poeta simbolista francês Arthur Rimbaud. Os unicórnios são como Pilatos no credo, simples sobreviventes do incêndio, testemunhas mudas da trajetória singular do ladrão de livros (sempre por amor, claro). Fernando Cacciatore de Garcia: Fronteira Iluminada: História do Povoamento, Conquista e Limites do Rio Grande do Sul, a partir do Tratado de Tordesilhas (1420-1920) (Porto Alegre: Sulina, 2010, 330+16 p.; ISBN: 978-85-205-0555-7) Uma obra destinada a superar os clássicos de história das fronteiras, pelo menos no que se refere à fixação dos limites meridionais do Brasil, ainda antes que a nação tivesse sua atual conformação geográfica. Uma pesquisa minuciosa, uma escrita saborosa, ilustrações e mapas originais, uma edição cuidadosa, que honra as melhores tradições de historiadores e escritores diplomáticos. Na verdade, trata-se bem mais que uma simples história dos conflitos lindeiros entre espanhóis e portugueses, ou entre brasileiros e uruguaios; é uma história política do extremo sul, onde o povo optou por ser brasileiro, quando poderia ter sido autônomo (e certamente teria motivos para afirmar sua independência, pelo menos intelectual). Uma bibliografia exaustiva confirma o imenso volume de documentos e relatos historiográficos consultados pelo autor, nesta construção primorosa, ela mesma iluminada. Paulo Roberto de Almeida: O Moderno Príncipe (Maquiavel Revisitado) (Brasília: Senado Federal, 2010, 195 p.; ISBN: 978-85-7018-343-9) Se Maquiavel reencarnasse atualmente, talvez não defendesse mais um Estado forte, um príncipe poderoso, no limite da tirania. Ele o fez pensando libertar uma Itália desmembrada, invadida por tropas estrangeiras e mal defendida por mercenários a soldo. Esta releitura do livro mais famoso da teoria política, aliás o fundador da disciplina, se coloca do ponto de vista dos cidadãos, não do poder central. O novo Príncipe segue os temas de cada um dos 26 capítulos originais, com os argumentos adaptados à política moderna, eventualmente brasileira. Ambos os livros foram escritos no ostracismo, que parece ser um bom cenário para reflexões sobre o poder, sobretudo aquele discricionário, que pretende mandar na vida dos cidadãos. Os que pensam com sua própria cabeça, costumam ver mais longe que os imediatistas... Oscar S. Lorenzo Fernandez: Três Séculos e uma Geração (Brasília: Funag, 2010, 368 p.; ISBN: 978-85-7631-261-1) 53 O livro é exatamente o que o título indica: um diplomata, nascido no início do século XX, que carregava ainda as marcas do século XIX, chega ao século XXI para relatar seu brilhante itinerário, que é o de uma geração que pretendeu modernizar o Brasil e conseguiu, pelo menos parcialmente. Poucos brasileiros dessa geração que atravessou o dramático século XX possuem o estofo intelectual, a formação acadêmica, a experiência de vida, a vivência internacional e os conhecimentos econômicos e em ciência e tecnologia do embaixador Lorenzo Fernandez, e poucos diplomatas seriam capazes de retraçar esse itinerário, numa obra tão rica de informações, de opiniões e de argumentos embasados na mais pura lógica e na herança acumulada pelas civilizações ao longo do tempo. Estupendo. Carlos Augusto de Proença Rosa: História da Ciência (3 volumes, 4 tomos) (Brasília: Funag, 2010; ISBNs: 1o.: 978-85-7631-264-2, 496 p.; 2o.: 978-85-7631-265-9, 420 p. e 400 p.; 3o.: 978-85-7631-267-3, 524 p.) Monumental: sete capítulos, com quase duas mil páginas, resumindo todo o conhecimento científico da humanidade desde a Antiguidade até a sociologia moderna, com sínteses preciosas sobre o desenvolvimento de todas as ciências. O primeiro dos três volumes vai da Antiguidade (na verdade da pré-história) ao Renascimento Científico, no século XVI; o segundo, em dois tomos, cobre primeiro a ciência moderna, desde Bacon e Galileu até o século das Luzes; no segundo, examina o pensamento científico e a ciência no século XIX, quando, ao lado das ciências naturais surge a sociologia; o terceiro volume, finalmente, o mais volumoso, trata do triunfo do pensamento científico no mundo contemporâneo, contendo inclusive uma seção sobre a sociologia no Brasil. Não existem precedentes no Brasil de obra tão monumental composta por um estudioso isolado: um genial diplomata científico! Nelson A. Jobim, Sergio W. Etchegoyen, João Paulo Alsina (orgs.): Segurança Internacional: Perspectivas Brasileiras (Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010, 648 p.; ISBN: 978-85-2250835-8) O ministro da Defesa e o general que o assessora figuram por dever, mas o organizador de fato é o terceiro, um diplomata, já autor de dois outros livros sobre defesa; ele foi o “gerente” efetivo de um projeto ambicioso nas dimensões e na cobertura temática. Três outros colegas participaram dos seminários preparatórios. Acadêmicos, altos funcionários e alguns empresários marcaram presença em cada um dos cinco blocos: cenário global, desafios contemporâneos, circunstância regional, perspectiva brasileira e realidades regionais. Precedendo cada seção, uma síntese das apresentações esclarece como cada uma delas atende às metas do projeto: aumentar a inteligência nacional nas questões de segurança e colocar a defesa em uma situação de protagonismo cooperativo com as relações exteriores. Trata-se de excelente começo. José Augusto Lindgren Alves: Viagens no Multiculturalismo – O comitê para a eliminação da discriminação racial, das Nações Unidas, e seu funcionamento (Brasília: Funag, 2010, 256 p.; ISBN: 978-85-7631-258-1) Uma larga experiência com o tratamento multilateral dos direitos humanos autoriza o autor a tratar com notável maestria do CERD. O discurso multiculturalista é uma criação do Ocidente, pelo menos enquanto ideologia, diz Lindgren, que não deixa de refletir sobre os problemas suscitados pela passagem dos direitos humanos tradicionais, isto é, individuais, aos direitos coletivos, de minorias. O exagero das propostas pode levar a novas formas de segregacionismo e de etnocentrismo, ou seja, ao “racismo” de todos. Uma boa visão histórica 54 e argumentos de bom-senso podem revelar como organismos bem intencionados, como o CERD, podem resvalar para situações absurdas. O autor admite a validade de ações afirmativas, sem um viés racial mais explícito, o que o coloca do lado dos multiculturalistas moderados. Paulo Roberto de Almeida, Rubens Antônio Barbosa, Francisco Rogido Fins (organizadores): Guia dos Arquivos Americanos sobre o Brasil: coleções documentais sobre o Brasil nos Estados Unidos (Brasília: Funag, 2010, 244 p.; ISBN: 978-85-7631-274-1) Elaborado sob forma de um manual de ajuda ao pesquisador, este diretório de arquivos históricos e de fundos documentais disponíveis para o estudo do Brasil em instituições públicas e universitárias dos EUA é extremamente útil ao analista das relações bilaterais. Em termos práticos, ele pode poupar três ou quatro meses na missão de prospecção inicial de todo e qualquer pesquisador, brasileiro ou americano, interessado em explorar o rico manancial de documentos que estão depositados nos EUA e ligados de alguma forma ao Brasil. Além de relacionar fundos e coleções, o Guia instrui sobre como liberar documentos ainda classificados como sigilosos. Um serviço de utilidade pública para todos aqueles que investigam o Brasil a partir da visão americana sobre nossa política, nossa economia e nossa cultura naquelas fontes. Denis Rolland; Antonio Carlos Lessa (coords.): Relations Internationales du Brésil: Les Chemins de la Puissance; vol. I: Représentations Globales (Paris: Harmattan, 2010, 322 p.; ISBN: 978-2-296-13543-7; 2 volumes) Um único diplomata brasileiro comparece nesta coletânea acadêmica de estudos (em francês e em inglês) sobre o Brasil no cenário global. Paulo Roberto de Almeida nela figura com um balanço da diplomacia de Lula, um período marcado por algumas controvérsias na frente externa. O que mais se empreendeu, na verdade, foram iniciativas para popularizar a figura do próprio presidente, com algumas brechas em princípios diplomáticos que o Brasil sempre defendeu no campo dos direitos humanos (votações em favor de ditaduras), na cláusula da não-intervenção (em Honduras, por exemplo) ou no terreno da não-proliferação (Irã). Sua contribuição desvenda o estilo, os procedimentos e os resultados de uma retórica diplomática nunca antes vista na história do Brasil. Já passou, mas atenção: pode voltar! Michel Arslanian Neto: A Liberalização do Comércio de Serviços no Mercosul (Brasília: Funag, 2010, 408 p.; ISBN: 978-85-7631-255-0) Resultado de uma tese de CAE, esta obra de diplomacia negocial focaliza um setor que constitui o futuro do comércio mundial e também regional, mas que também apresenta inúmeros obstáculos regulatórios. Mais até do que as chamadas assimetrias estruturais ou as diferenças de legislações nacionais, a integração nos serviços registra dificuldades especiais, dadas a diversidade intrínseca ao setor e o fato de que muitos deles não são exatamente comercializáveis. O autor propõe combinar a metodologia “negativa” – abolição de barreiras – com a implementação da liberalização “positiva”, ou seja, adoção de políticas comuns. O caminho, no entanto, é longo, como demonstrado pela distância entre a assinatura do Protocolo de Montevidéu (1997), apenas um acordo-quadro, e sua complementação por compromissos específicos, lentos, difíceis, quase inócuos. 55 Fernando Cacciatore de Garcia: O Ritual dos Pastores: Memórias de um homossexual na infância (romance) (Porto Alegre: Editora Sulina, 2011, 263 p.; ISBN: 978-85-205-0605-9) O capítulo que fornece o título deste livro do diplomata historiador constitui o relato central de uma história intimista, sob a forma de biografia romanceada, de um garoto que refaz a arqueologia de sua sexualidade em duas capitais brasileiras de meados do século passado. A narrativa prende, em primeiro lugar, pela sinceridade, pela abertura e pela coragem com que são refeitos tantos episódios marcantes de uma trajetória pessoal que é, ao mesmo tempo, um relato da vida no Brasil quando este deixava de ser uma sociedade tradicional, patriarcal e machista para assumir-se como uma nação urbana, industrializada e de costumes mais livres. O romance também captura o leitor pela alta qualidade da escrita, revelando um domínio magistral da língua, com expressões refinadas, carregadas de significados que os entendidos decifrarão ao seu gosto. Um belo ritual de iniciação na literatura das sensibilidades. Marcelo Cid (introdução, tradução e notas): Priapeia: Poesia erótica latina em honra ao deus Príapo – edição bilíngue (Jundiaí, SP: Editora Literarte, 2010, 80 p.; ISBN: 978-85-7487044-3). Os latinistas ficarão com as páginas pares, onde estão os poemas originais; os voyeurs e obcecados vão direto as páginas picantes da direita, que tratam de nádegas e outras partes pudendas envolvidas na lascívia de poetas despudorados. O deus Príapo sempre foi representado com um membro enorme, o desejo secreto dos homens da Grécia antiga e da Roma clássica (não só lá). Os que conseguirem se destacar das insinuações maliciosas – quem sabe, até, pornográficas? –, poderão comprovar o excelente latinista que é Marcelo Cid, qualidade já revelada em uma obra anterior, Philobiblion, do erudito inglês do século XIV, Richard de Bury, cuja versão dessa homenagem aos livros ele assegurou com notável competência. As poesias eróticas são, talvez, um divertissement, mas podem conquistar, ou excitar, latinistas práticos... Celso Amorim: Conversas com Jovens Diplomatas (São Paulo: Benvirá, 2011, 600 p.; ISBN: 978-85-02-13537-6) Estas “conversas” – na verdade palestras e aulas no Instituto Rio Branco –refletem com perfeição o que foi a diplomacia da era Lula, oito anos de profunda transformação na maneira de trabalhar, e mesmo de pensar, do Itamaraty, e até na política externa. Deve-se dizer que o chanceler de Lula (e, antes, de Itamar Franco) se esforçou bastante, junto com seu secretário-geral por sete anos, para mudar a maneira de trabalhar e de pensar no Itamaraty, em quase todos os temas tocados por essa diplomacia (e eles foram inúmeros, incontáveis), com especial ênfase na integração sul-americana, na tentativa de se conquistar uma cadeira permanente no CSNU e para finalizar a rodada de negociações comerciais multilaterais. Como são discursos de “história imediata”, provavelmente seu autor vai se dedicar a uma análise retrospectiva qualitativa, examinando quanto se conseguiu, ou não, nesse período “revolucionário”. Antonio Carlos Pereira, Luiz Felipe Lampreia, Marcos Azambuja, Roberto Abdenur, Rubens Ricupero, Sebastião do Rego Barros e Sérgio Amaral: A Política Externa Brasileira: presente e futuro (Brasília: A+B Comunicação, 2009, 112 p.) Palestras de seis diplomatas aposentados e de um jornalista, reunidos num encontro de análise crítica sobre a política externa da era Lula. A principal conclusão é a de que se assistiu 56 a um “desmanche da política externa brasileira, cujo foco foi reduzido a, praticamente, um único objetivo, no momento inatingível: conseguir uma cadeira no Conselho de Segurança da ONU”. Crítica talvez exagerada, pois houve muitas outras tentativas – e talvez igual número de fracassos – mas um outro recado perpassa: em oito anos, “o PT escolheu o caminho de apoiar governos com os quais se identifica ideologicamente, deixando de lado o profissionalismo e a isenção que sempre marcaram a diplomacia brasileira”. A diplomacia petista subverteu a máxima de Rio Branco: “em todo lugar me lembro do partido”. Exagerados? Edgard Telles Ribeiro: Diplomacia Cultural: seu papel na diplomacia brasileira (2a. edição: Brasília: Funag, 2011, 128 p.; ISBN: 978-85-7631-297-0) Ufa! Demorou exatamente 22 anos para que fosse reeditado um livro que já nasceu clássico, e que depois virou um clássico desaparecido, a ponto de não existir sequer na Biblioteca do Itamaraty (algum gatuno fascinado, certamente). Felizmente, ele agora também está disponível online no site da editora (que merece um downgrade a B minus pelo atraso na reedição). Intensamente requisitado como paradigma dos estudos nessa área sempre desprovida de fundos apropriados, o livro ainda promete alimentar uma longa fileira de novos trabalhos numa área que deveria ser renomeada de diplomacia da inteligência. O autor não ficou inativo durante esse longo desaparecimento: ele nos premiou com diversos livros de contos e alguns romances eletrizantes no intervalo. Quem sabe ele assassina o responsável pelo atraso num próximo romance? Fernando Guimarães Reis: Caçadores de Nuvens: Em busca da Diplomacia (Brasília: Funag, 2011, 512 p.; ISBN: 978-85-7631-302-1) Compêndio das aulas dadas pelo ex-diretor do Instituto Rio Branco, o livro revela toda a cultura clássica do autor, profundamente humanista, talvez um pouco acima do que se requer, hoje, dos candidatos à diplomacia e mesmo dos estudantes da academia diplomática. Excelentes leituras para estudantes de relações internacionais, mas não possui a sistemática de um compêndio de textos especializados, nem se apresenta exatamente como uma “teoria de RI”. Mas são leituras extremamente agradáveis para o leitor culto e interessado na história do pensamento político. O autor leu, provavelmente ao longo de toda uma vida, uma massa impressionante de pensadores, de formuladores e de obras sobre os atores da política externa. O livro ganharia com uma bibliografia final das obras citadas e um completo índice remissivo e outro onomástico. Fica a demanda de revisão para uma nova edição dotada desse tipo de aparato científico. Rubens Barbosa: O Dissenso de Washington: Notas de um observador privilegiado sobre as relações Brasil-Estados Unidos (São Paulo: Agir, 2011, 384 p.; ISBN: 978-85-220-1296-1) Poucos embaixadores deixam memórias completas, e sinceras. Geralmente se trata da justificação de seus próprios atos, quando no comando das chancelarias. Não é o caso deste depoimento, cobrindo apenas uma pequena parte da longa carreira de Barbosa, mas uma etapa das mais importantes na política externa brasileira, quando ela deixou de ser estritamente diplomática para ser também, ou talvez essencialmente, partidária. Ao relato detalhado de sua gestão em Washington (1999-2004), numa conjuntura crucial para a política americana e as relações internacionais, há um longo capítulo final sobre a condução das relações bilaterais com os EUA na era Lula, no qual ele não deixa de registar a mudança fundamental de visão 57 em relação aos padrões anteriores, uma “motivação ideológica que mal disfarçava a intenção de se opor aos Estados Unidos e às políticas apoiadas por Washington...” (p. 336). Daniel Costa Fernandes: A Política Externa da Inglaterra: Análise Histórica e Orientações Perenes (Brasília: Funag, 2011, 136 p.; ISBN: 978-85-7631-290-1) O império já não é o mesmo, mas algumas de suas políticas são perenes, como demonstra este estudo sobre três períodos da diplomacia inglesa: a era Tudor (1485-1603), o período napoleônico (que viu a Escócia já unida à Inglaterra) e o Congresso de Viena (17891815) e, uma fase bem recente, a política externa do governo trabalhista, de 1997 a 2010. Em cada um dos períodos, separados por dois séculos, o autor analisa o sistema internacional, a situação da Inglaterra nesse contexto, o papel que ela podia exercer (a política de poder), o processo decisório na formulação dessa política (entrado no parlamento) e o instrumento principal para a defesa do interesse nacional (a projeção do poder naval). Nos dois primeiros momentos, a Inglaterra estava claramente em ascensão, imperial em sua boa forma; no terceiro e último, teve de contentar-se em ser a força auxiliar do novo império (já não tão ascendente...). Sidnei J. Munhoz e Francisco Carlos Teixeira da Silva (orgs.): Relações Brasil-Estados Unidos: séculos XX e XXI (Maringá: Editora da UEM, 2011, 576 p.; ISBN: 978-85-7628-3720) Um único diplomata comparece nesta coletânea de estudos sobre as relações bilaterais por historiadores e cientistas políticos: Paulo Roberto de Almeida, com um trabalho sobre essas relações durante os dois governos FHC (1995-2002). Ele aproveita para rever o padrão histórico do relacionamento, examina a emergência dos contenciosos na era militar e na redemocratização e constata a melhoria do ambiente, no contexto das boas relações pessoais que mantinham FHC e Bill Clinton. A existência de diferenças de opinião quanto às políticas regionais ou, por exemplo, a divergência de interesses no campo comercial não impediram uma grande convergência entre os dois países. A era Lula-Bush, a despeito da vontade proclamada de intensificar os laços, viu as divergências crescerem novamente. Era a diplomacia soberana, ativa e altiva, em ação. Há que tentar outra vez... Paulo Roberto de Almeida: Relações internacionais e política externa do Brasil: a diplomacia brasileira no contexto da globalização (Rio de Janeiro: LTC, 2012, 309 p.; ISBN 978-85-216-2001-3) Uma síntese acadêmica sobre a metodologia das relações internacionais do Brasil, uma compilação de largo espectro sobre a produção historiográfica acumulada a esse respeito, uma análise das diplomacias comercial e financeira do Brasil desde o final da Segunda Guerra Mundial, sem esquecer as crises financeiras e a tendência à regionalização comercial. A terceira parte integra estudos sobre a posição do Brasil no contexto da ordem global, com destaque para questões de segurança, assimetrias em relação às grandes potências e a governança econômica mundial, no contexto do multilateralismo dos séculos XIX e XX. Uma bibliografia abrangente das obras mais importantes sobre a interface internacional do Brasil completa essa consolidação da pesquisa acadêmica realizada por um conhecedor prático do terreno balizado. 58 Renato L. R. Marques: Duas Décadas de Mercosul (São Paulo: Aduaneiras, 2011, 368 p.; ISBN: 978-85-7129-581-0). Negociador que presidiu, por assim dizer, ao nascimento do Mercosul, o autor está capacitado para contribuir com seu depoimento de testemunha de primeira mão ao esclarecimento das principais dificuldades que rondavam – ainda rondam – a consolidação desse bloco sui generis de integração econômica com pretensões a ser mais do que um simples agrupamento de liberalização comercial. A maior parte dos textos, fotografias de ocasião ou reflexões a quente enquanto o bloco era construído, é dos anos 1990, anteriores, portanto, às crises políticas e econômicas do final da década, que não parecem terem sido inteiramente superadas. A “nota introdutória” do ex-chanceler Luiz Felipe Lampreia acha que o livro poderia ser chamado “Presente na Criação”, numa evocação das famosas memórias de Dean Acheson. Exagerado? Fernando Pimentel: O Fim da era do petróleo e a mudança do paradigma energético mundial: Perspectivas e desafios para a atuação diplomática brasileira (Brasília: Funag, 2011, x p.; ISBN:978-85-7631-308-3) O trabalho, explícito em seu imenso título, tinha sido concluído em fevereiro de 2009, em meio à primeira fase da atual crise mundial, com os preços do petróleo e outras matérias primas despencando, junto com o comércio mundial e algumas dezenas de bancos nos EUA e na Europa. O autor preparou uma introdução em julho de 2011, atualizando os dados para a nova fase da crise, desta vez de crises de dívidas soberanas dos países europeus, mas afetando igualmente os mercados do petróleo e de outra commodities. Entre uma e outra fase, o status petrolífero do Brasil mudou, e agora o país tem condições de adentrar na economia mundial do petróleo não mais como mero consumidor, mas como grande produtor. Paradoxalmente, o mundo caminha para a era pós-petróleo, e o Brasil precisa se adaptar a essa realidade: sua situação parece bastante confortável, mas não conviria acomodar-se nessa condição. Alberto da Costa e Silva (coordenador); Rubens Ricupero (colaborador): História do Brasil Nação: 1808-2010; vol. 1: Crise Colonial e Independência: 1808-1830 (Rio de Janeiro: Objetiva, 2011, 280 p.; ISBN: 978-85-390-0275-7) Dois diplomatas neste primeiro volume de uma coleção que está sendo preparada em coordenação com uma equipe espanhola, focando os 200 anos das autonomias latinoamericanas: o próprio coordenador do volume, acadêmico Costa e Silva, que, ademais de assinar uma introdução sobre as “marcas do período”, responde também por um primeiro capítulo sobre população e sociedade; Rubens Ricupero traça o panorama do “Brasil no mundo” nesse período, desde os fatores externos da independência até o fracasso da guerra na Cisplatina e o envolvimento de D. Pedro I com os problemas da ex-metrópole. Ambas as bibliografias são literatura secundária, mas dentre autores consagrados. Existem ainda capítulos sobre a vida política, o processo econômico e a cultura. Uma obra doravante indispensável. Eugenio Vargas Garcia: O Sexto Membro Permanente: o Brasil e a criação da ONU (Rio de Janeiro: Contraponto, 2011, 458 p.; ISBN: 978-85-7866-044-4) O autor vem construindo uma obra consistente de história diplomática brasileira: primeiro, pelo exame da participação – e espetacular saída – do Brasil na Liga das Nações; depois, pelo exame da política externa na década de vinte, passando também por compêndios cronológicos e de documentos históricos; agora, por esse muito bem construído relato 59 histórico sobre nossa quase aceitação como membro do CSNU, em 1945. Como para as obras anteriores, a leitura cuidadosa dos arquivos brasileiros, a consulta a fontes externas indispensáveis, o encadeamento dos documentos e dos depoimentos, tudo isso numa linguagem fluída, como convém aos historiadores que escrevem para o grande público. O poder de veto foi usado de forma preventiva, contra o Brasil; sobrou um gosto amargo que alguns buscam hoje superar. Gelson Fonseca: Diplomacia e Academia: um estudo sobre as análises acadêmicas sobre a política externa brasileira na década de 70 e sobre as relações entre o Itamaraty e a comunidade acadêmica (Brasília: Funag, 2011, 248 p.; ISBN: 978-85-7631-349-6) Trata-se de tese de CAE, defendida em 1981, e publicada pela primeira vez com pequenas alterações cosméticas: a temática está explícita no longo subtítulo e pode-se dizer que a tese inaugurou a abertura do Itamaraty à academia, com a criação do IPRI, em 1985 (como sublinham os apresentadores institucionais). O próprio autor faz um posfácio de esclarecimentos sobre como o trabalho foi construído, ainda no regime militar, mas já num momento de abertura gradual. Num prólogo, um dos membros da banca, o embaixador Rubens Ricupero destaca justamente o princípio democrático como o eixo central do trabalho, mas traça também o percurso de predecessores a esse tipo de trabalho. Os capítulos 2 e 3 da tese fazem um exame de toda a bibliografia relevante sobre a diplomacia brasileira publicada até final dos 70. Maria Theresa Diniz Forster: Oliveira Lima e as Relações Exteriores do Brasil: o legado de um pioneiro e sua relevância atual para a diplomacia brasileira (Brasília: Funag, 2011, 220 p.; ISBN: 978-85-7631-331-1) Um dos mais importantes historiadores diplomatas, senão o maior, Oliveira Lima andava um tanto esquecido, a despeito mesmo da republicação de alguns dos seus livros nos últimos anos. Este “embaixador intelectual do Brasil” mereceu uma bem pesquisada tese de CAE, que, depois de traçado seu perfil biográfico, coloca em perspectiva suas contribuições à diplomacia brasileira, tanto a de cem anos atrás, quanto a atual. A autora compulsou todas as obras do “Dom Quixote Gordo”, leu tudo o que se escreveu sobre ele e oferece suas próprias reflexões e ponderações sobre esse bibliófilo que morreu num exílio auto-imposto e que legou sua preciosa biblioteca à Catholic University of America. Desavenças com figuras importantes da República estão na raiz desse limbo: uma grande perda, para a diplomacia e para o Brasil. Sarquis José Buainain Sarquis: Comércio Internacional e Crescimento Econômico no Brasil (Brasília: Funag, 2011, 248 p.; ISBN: 978-85-7631-335-9) Poucos diplomatas são doutores em economia; pouquíssimos, se algum, dispõem de sólido conhecimento em econometria como o autor; e provavelmente só existirá um, o próprio Sarquis, contemplado com um prêmio pela London School of Economics pela excelência de sua tese em macroeconomia e finanças internacionais. Estes méritos já revelam um pouco da qualidade desta tese de CAE que, não apenas estuda as relações que existem entre os dois conceitos do título, nos planos teórico e empírico, como também reconstitui a experiência brasileira – comparativamente a exemplos latino-americanos e asiáticos – nessas áreas e, mais importante, formula recomendações de política econômica externa, extremamente bem fundamentadas em setores como comércio, finanças e câmbio. Vale a recomendação de Adam Smith: o segredo está em educar sua população. 60 Ademar Seabra da Cruz Junior: Diplomacia, desenvolvimento e sistemas nacionais de inovação: estudo comparado entre Brasil, China e Reino Unido (Brasília: Funag, 2011, 292 p.; ISBN: 978-85-7631-327-4) Poucos países poderiam ser tão diferentes entre si quanto os três escolhidos por este doutor em Sociologia pela USP, mestre em Filosofia das Ciências Sociais pela London School of Economics, para propor uma espécie de “diplomacia da inovação” no esforço brasileiro pelo desenvolvimento. Os exemplos selecionados são, de fato pertinentes, numa perspectiva “schumpeteriana-marxista”, ainda que isso seja surpreendente, já que eles são “atores desiguais e assimétricos da globalização”. No entanto, as políticas de China e Reino Unidos são ilustrativas de estratégias coerentes de inovação; o Brasil faria bem em estudar e adaptar certas características. Ambos, em suas dimensões próprias, têm muito a ensinar ao Brasil. O Itamaraty tem funções a cumprir nesse processo; o autor mostra quais são: montar redes de informação, conectar os diversos agentes nacionais e capturar parte de nossa diáspora científica. Miguel Gustavo de Paiva Torres: O Visconde do Uruguai e sua atuação diplomática para a consolidação da política externa do Império (Brasília: Funag, 2011, 212 p.; ISBN: 978-857631-329-8) Paulino José Soares de Sousa teve atuação destacada nos dois momentos em que chefiou o ministério dos negócios estrangeiros, no final dos anos 1840 e no início da década seguinte, confrontando a diplomacia arrogante das grandes potências e o arbítrio do caudilho Rosas, da vizinha Argentina, a quem venceu pelas tratativas diplomáticas (mentor que foi da missão do Visconde de Rio Branco) e também com o auxílio das armas. O autor realizou extensa pesquisa nas fontes primárias para reconstituir os principais episódios em que Uruguai se destacou: “foi uma pedra no caminho”, escreve ele, de vários representantes estrangeiros, tal o seu empenho na defesa dos interesses brasileiros. Uma futura edição precisa corrigir os erros de atribuição de trabalhos a Leslie Bethell, quando este foi de fato o coordenador da série de história da América Latina. José Estanislau do Amaral: Usos da história: a diplomacia contemporânea dos Estados Bálticos. Subsídios para a política externa do Brasil (Brasília: Funag, 2011, 216 p.; ISBN: 978-85-7631-309-0) Os três países bálticos tiveram, como vários outros infelizes vizinhos da Rússia czarista, da União Soviética comunista e da Alemanha expansionista e militarista, uma história movimentada, feita de guerras, ocupação e de “inundação” étnica; obtida a independência ao final da Primeira Guerra Mundial, ela foi varrida na Segunda; novamente autônomos ao final da Guerra Fria, desta vez com a dupla garantia da OTAN e da UE, eles confirmam a resiliência dos povos resistentes às tentativas de submissão. Esta tese de CAE examina sua política externa e as implicações diplomáticas para o Brasil: reconhecemos a independência de 1921 e novamente a de 1991, sem jamais legitimar a anexação soviética de 1940. São Paulo tem, depois de Chicago, a segunda colônia de lituanos no mundo. Bom começo para intensificar as relações. 61 Luiz Fernando Ligiéro: A Autonomia na Politica Externa Brasileira - a Política Externa Independente e o Pragmatismo Responsável: momentos diferentes, políticas semelhantes? (Brasília: Funag, 2011, 412 p.; ISBN: 978-85-7631-348-9). Tese de doutoramento defendida na UnB, constitui uma demonstração cabal da famosa mudança na continuidade, que caracterizaria, segundo a quase totalidade dos diplomatas, a diplomacia brasileira (ou, pelo menos, a do Itamaraty). Mas ocorrem mudanças surpreendentes, como justamente os dois exemplos aqui enfocados: a PEI, do início dos anos 1960, e a política de Geisel e de Azeredo da Silveira, mais de uma década depois. A comparação se dá tanto pelo lado dos discursos, quanto pelo da implementação das políticas, nas diversas áreas. O exame é exaustivo e o leque de autores consultados é impressionante, sem esquecer os depoimentos dos principais atores, direta (testemunho gravado) ou indiretamente (arquivos do Cpdoc, por exemplo). Falta uma bibliografia consolidada nesta edição. San Tiago Dantas: Política Externa Independente – Edição Atualizada (Brasília: Funag, 2011, 372 p.; ISBN: 978-85-7631-304-5) San Tiago Dantas é, por assim dizer, um diplomata honorário, tendo sido chanceler no parlamentarismo e, antes disso, delegado brasileiro em diversas reuniões internacionais. A utilidade desta reedição é a de não apenas compilar novamente os textos (discursos e palestras) já editados pela Civilização Brasileira em 1962, acrescida de cinco novos originais, dois deles de diplomatas: um do embaixador Afonso Arinos, publicado originalmente em seu livro Atualidade de San Tiago Dantas (Lettera, 2005), e outro, precioso, do embaixador Gelson Fonseca que introduz os “colóquios da Casa das Pedras”, reuniões de planejamento político que San Tiago conduzia com diplomatas, em 1961, sobre temas relevantes da agenda diplomática brasileira. Celso Amorim e Marcílio Marques Moreira também comparecem com relatos pessoais e reflexões esclarecedoras. Letícia Frazão Alexandre de Moraes Leme: O Tratamento Especial e Diferenciado dos Países em Desenvolvimento: do GATT à OMC (Brasília: Funag, 2011, 236 p.; ISBN: 978-85-7631342-7) O Brasil se orgulha de ser um país em desenvolvimento: tem direito a SGP e menores obrigações sob o sistema multilateral de comércio. Esta dissertação de mestrado do Rio Branco refaz toda a história da construção conceitual do tratamento especial, desde o primeiro GATT até sua transformação na atual OMC, examinando todos os instrumentos e normas e discutindo a questão do ponto de vista das teorias que fundamentam essa caracterização, como por exemplo o “embedded liberalism”; também examina, do ponto de vista ética, os argumentos filosóficos que sustentam essa posição, como por exemplo em Aristóteles, John Rawls e Amartya Sen. Os anexos são preciosos, pois além da cronologia detalhada, traz o sumário dos dispositivos relativos a esse mecanismo em todos os instrumentos do sistema multilateral de comércio e finaliza com entrevistas com três especialistas na questão. Fernando de Mello Barreto: A Politica Externa Após a Redemocratização; tomo 1: 19852002; ; tomo 2: 2003-2010 (Brasília: Funag, 2012, 746 e 670 p.; ISBN: 978-85-7631-363-2 e 978-85-7631-382-3) Continuidade formal e substantiva das duas obras anteriores, Os Sucessores do Barão (para os períodos 1912-1964, e 1964-1985, respectivamente), os dois volumes, agora enfeixados sob o signo da redemocratização, cobrem minuciosamente, gestão por gestão, 62 todos os atos e fatos da diplomacia brasileira, segundo uma divisão temática predominantemente geográfica (por regiões e países relevantes), mas também quanto às áreas de política multilateral e de economia externa, terminando pelo próprio serviço exterior brasileiro. São manuais indispensáveis para seguir o itinerário da diplomacia conduzida pelo Itamaraty (no primeiro período: 1985-2002) e, adicionalmente (no segundo período: 20032010), sob influência partidária; mais racionais do que os repertórios do MRE (uma simples compilação de pronunciamentos oficiais), os relatos de cada gestão seguem, no entanto, o discurso oficial, em todos os seus matizes. Luís Cláudio Villafañe G. Santos: O evangelho do Barão: Rio Branco e a identidade brasileira (São Paulo: Unesp, 2012, 176 p.; ISBN: 978-85-393-0244-4) Na sequência do anterior, O Dia em que Adiaram o Carnaval (2010), que também se interrogava sobre as peculiaridades da identidade brasileira, esta obra analisa as ideias e as obras do Barão no que elas têm de relevante para a criação de uma nacionalidade brasileira, naquilo que ela tem de mais significativo, que são os símbolos identitários da nação. Ele recua até a própria formação da diplomacia imperial (saquarema) e analisa de modo competente como, e com quais símbolos, o Barão veio a ser identificado com uma nova política externa, completando, no plano conceitual e na prática, a transição da velha ordem monarquista para o novo regime republicano. Pelo fato de ter completado o mapa do país, e de ser, também, um historiador, o Barão moldou, até hoje, a interpretação que se há de ter sobre a política externa do Brasil. Somos todos prisioneiros do Barão, ainda. Antonio Augusto Cançado Trindade: Repertório da Prática Brasileira do Direito Internacional Público; vol. I: período 1889-1898; vol. II: período 1899-1918; vol. III: período 1919-1940; vol. IV: período 1941-1960; vol. V: período 1961-1981; vol. VI: Índice Geral Analítico (2a. ed.: Brasília: Funag, 2012, 304, 588, 392, 448, 428 e 288 p.; ISBN: 97885-7631-367-0; 978-85-7631-368-7; 978-85-7631-369-4; 978-85-7631-370-0; 978-85-7631371-7; 978-85-7631-372-4) Obra única no gênero, e até agora não imitada (para os períodos anterior e posterior aos cinco cobertos no plano da cronologia, e mais um volume de índice analítico), o excepcional trabalho do ex-consultor jurídico do MRE, e atual juiz da corte da Haia, constitui um instrumento extremamente útil a todos os pesquisadores que pretendam identificar e reproduzir os fundamentos da prática brasileira do direito internacional público, ou seja, das próprias bases da política externa, tendo em vista a forte adesão da diplomacia brasileira aos princípios e normas do direito. Retirados da “poeira” dos arquivos do Itamaraty e dos outros poderes, foram compilados os documentos mais representativos dos atos internacionais, da condição dos Estados, da regulamentação dos espaços, da condição das organizações internacionais e dos indivíduos, solução de controvérsias, conflitos armados e direito humanitário. Magnífico empreendimento! Felipe Hees e Marília Castañon Penha Valle (orgs.): Dumping, Subsídios e Salvaguardas: Revisitando aspectos técnicos dos instrumentos de defesa comercial (São Paulo: Singular, 2012, 486 p.; ISBN: 978-85-86626-62-3) Dois diplomatas comparecem neste importante livro sobre a defesa comercial no Brasil: o organizador, que assina três densos capítulos – sobre o itinerário histórico do dumping e seus efeitos no comércio, sobre as negociações antidumping na rodada Doha, e sobre os aspectos técnicos na definição dos níveis de antidumping –, e que é também chefe da Defesa 63 Comercial no MDCI; seu colega Eduardo Chikusa, responsável pela mesma área no Itamaraty, que fecha o volume com um estudo sobre a legislação sobre circunvenção no Brasil. Os outros quinze capítulos, sobre os demais temas do título, são em geral assinados por funcionários do Decom-MDIC ou no setor privado. O livro é relevante para os interessados nessa problemática, mesmo se, na apresentação, o ministro setorial se orgulha de que o Brasil tenha sido o país que mais iniciou investigações antidumping desde 2010. Seria essa uma marca de distinção? André Heráclio do Rêgo: Os Sertões e os Desertos: o combate à desertificação e a política externa brasileira (Brasília: Funag, 2012, 204 p.; ISBN: 978-85-7631-380-9) Autor de várias obras sobre a dimensão da política tradicional no Nordeste, com pleno conhecimento de causa – já que herdeiro de uma das oligarquias regionais –, André Heráclio examina agora, nesta tese de CAE, a dimensão ecológica e política do processo de desertificação, examinando não só toda a bibliografia relevante (30 páginas de obras) que trata do fenômeno no Brasil e no mundo, mas também o tratamento diplomático dado ao problema nos foros regionais e multilaterais. A atuação diplomática do Brasil e o papel das grandes convenções multilaterais da área climática e ambiental são examinados com extrema precisão; a temática oferece, justamente, grandes possibilidades de cooperação bilateral, regional e multilateral, não apenas quanto aos meios de se combater o fenômeno, mas igualmente nas tarefas de gestão dos recursos naturais, especialmente os hídricos. A obra permanecerá como de referência nessa área, hoje um pouco “deserta”. Maria Feliciana Nunes Ortigão de Sampaio: O Tratado de Proibição Completa dos Testes Nucleares (CTBT): Perspectivas para sua Entrada em Vigor e para a Atuação Diplomática Brasileira (Brasília: Funag, 2012, 462 p.; ISBN: 978-85-7631-379-3) Metade desta maciça tese de CAE constitui uma história exemplar da questão do armamento e desarmamento nucleares, desde as origens, em 1945, até a fase atual, de preparação para a entrada em vigor do CTBT (o que não irá ocorrer, por falta de apoio dos EUA), com uma análise paralela dos mecanismos e instrumentos que compõem esse instrumento (talvez) relevante da não proliferação. A outra metade são documentos técnicos, cuja coleta foi facilitada pelo trabalho da autora na comissão de implementação do tratado. A análise das políticas dos países mais sensíveis (ou mais complicados) é exaustiva, concluindo a tese pelo exame da atitude brasileira: obviamente, o Brasil apoia o esforço do CTBT, mas também acredita na eliminação completa das armas nucleares. Pena que nem um, nem outro, vão se realizar, mas isso a autora não diz... Renato Mendonça: A Influência Africana no Português do Brasil (Brasília: Funag, 2012, 195 p.; ISBN: 978-85-7631-399-1) Quinta edição de obra publicada em 1933, quando seu autor, um jovem de apenas 21 anos, passava no concurso para cônsul de terceira classe. Comemorando os cem anos de seu nascimento, tem apresentação do Embaixador Alberto da Costa e Silva e prefácio da professora Yeda Pessoa de Castro, especialista na área. O livro ganhou o prêmio Erudição da Academia Brasileira de Letras, tendo sido prefaciado por Rodolfo Garcia, da Biblioteca Nacional. Metade do texto é uma incursão, hoje datada, pela etnografia e linguística africana, seguida de uma breve história do tráfico, da identificação dos povos importados e da fonética e morfologia do Quimbundo, ademais de estudos sobre a influência africana na língua, no 64 folclore e na literatura; a outra metade é o vocabulário, propriamente dito. Uma bibliografia rica completa este trabalho que marcou época. Renato L. R. Marques: Duas Décadas de Mercosul (São Paulo: Aduaneiras, 2011, 371 p.; ISBN: 978-85-7129-581-0) Segunda edição de obra publicada pessoalmente pelo autor, em 2010, cobrindo os anos 1989-1999, e que agora vem ampliada com capítulo inicial, elaborado em 2011, fazendo uma síntese da trajetória do Mercosul, nos seus primeiros vinte anos. Mais do que uma reconstituição histórica, se trata do depoimento de um negociador que teve papel destacado na conformação do que foi o Mercosul comercial, até o bloco ser desviado para objetivos mais políticos a partir de 2003. O texto de síntese introdutória oferece, em suas 90 páginas, um relato das diversas etapas vencidas, das dificuldades enfrentadas e das razões pelas quais o Mercosul adotou o seu formato de união aduaneira incompleta, de natureza intergovernamental. Obra essencial para todo historiador que pretenda escrever a história real, não alguma fábula ideal, sobre o Mercosul em sua verdadeira essência. Adolpho Justo Bezerra de Menezes: O Brasil e o mundo ásio-africano (Brasília: Funag, 2012, 372 p.; ISBN: 978-85-7631-387-8) Publicado originalmente em 1956 e legítimo predecessor da atual política Sul-Sul, o livro em questão foi a primeira, e durante muitos anos a única, análise das duas regiões do ponto de vista da diplomacia brasileira, não apenas circunscrita às realidades coloniais então predominantes nos continentes africano e asiático, uma vez que também trata das primeiras conferências (Colombo, Bogor, Bandung) que marcariam a era pós-colonial. Reconhece a liderança americana, mas fala de uma futura liderança a brasileira, propondo medidas para a atuação diplomática brasileira nas duas regiões, inclusive no que se refere a uma comunidade luso-brasileira, antecipando também, portanto, os esforços atuais em torno da CPLP. São transcritos trechos de documentos oficiais, mas também testemunhos recolhidos pessoalmente pelo autor, o que converte o livro, na prática, em fonte primária. Vasco Mariz: Depois da Glória: ensaios históricos sobre personalidades e episódios controvertidos da história do Brasil e de Portugal (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012, 376 p.; ISBN: 978-85-200-1058-7); Conhecido historiador, fino analista e alto vulgarizador da música, da cultura e da diplomacia do Brasil, o autor teve uma carreira diplomática exemplar, desde 1945, em postos importantes, nos quais sempre divulgou as coisas do país, para dentro e para fora. A oito anos de seu centenário, Vasco Mariz nos brinda com ensaios já publicados em revistas e com conferências em torno do que fizeram 18 personagens escolhidas (de Cabral a Nabuco) depois que alcançaram fama e prestígio públicos. Muitos deles são nossos velhos conhecidos, portugueses, brasileiros ou estrangeiros (como Estácio de Sá, Vieira ou Nassau), mas alguns são relativamente ignotos, como o general italiano Giovanni di Sanfelice, Conde de Bagnuoli, que salvou a Bahia dos holandeses de Nassau, justamente, mas a serviço da coroa espanhola. Sabem os baianos que ele chegou a ser designado governador provisório de Salvador? Vasco Mariz nos revela, essa e outras. 65 Gustavo Henrique Marques Bezerra: Da Revolução ao Reatamento: A Política Externa Brasileira e a Questão Cubana (1959-1986 (Brasília: Funag, 2012, 376 p.; ISBN: 978-857631-381-6) Poucos temas diplomáticos, ou políticos, foram, e são, tão passionais, no espectro ideológico, interno e externo, quanto a revolução cubana e as reações do Brasil em relação aos rumos do único regime marxista do hemisfério. Cuba é, ao mesmo tempo, um assunto diplomático e de política interna, com todas as paixões associadas a esse dossiê, que começa em 1959 e vem aos nossos dias. Esta tese de CAE, revista e ampliada, segue o relacionamento bilateral, e as implicações da revolução cubana durante a Guerra Fria, desde o ano inaugural da revolução até o reatamento em 1986, passando pelas crises de 1962 (suspensão de Cuba da OEA e crise dos mísseis soviéticos) e pelo rompimento, em 1964. Modelo de pesquisa histórica, e de apresentação de documentos diplomáticos, a nova obra é metodologicamente impecável, perfeita no plano redacional e excepcional no desenvolvimento do argumento. Rubens Antonio Barbosa: Interesse Nacional & Visão de Futuro (São Paulo: Sesi-SP Editora, 2012, 328 p.; ISBN: 978-85-8205-059-0) Nada do que é nacional, e do que é internacional, lhe é indiferente, ou seja, quase tudo. Consistente com o suposto de que, em face de tendências nefastas ao pensamento único, vindas de certas áreas, quem tem algo a dizer deve justamente se manifestar, o ex-embaixador na Aladi, em Londres e em Washington vem se expressando continuamente nas páginas do Estadão e do Globo desde que deixou a diplomacia ativa. São 76 artigos de jornal, mais quatro entrevistas e dois depoimentos no Senado, sobre a (des)ordem econômica global, o comércio exterior brasileiro, a política externa, a integração e o Mercosul, bem como sobre assuntos de defesa nacional. Um panorama importante do que vem ocorrendo nos governos Lula e Dilma, sempre sob a perspectiva do “Interesse Nacional”, que é, aliás, o nome da revista que ele edita desde 2008. Que fôlego! Luiz Felipe de Seixas Corrêa (org.): O Brasil nas Nações Unidas, 1946-2011 (3a. ed.; revista e ampliada; Brasília: Funag, 2012, 986 p.; ISBN: 978-85-7631-390-8) A obra retoma o trabalho já conduzido nas duas precedentes edições, compilando, neste novo e alentado volume, os discursos da fase final do governo Lula e o primeiro da atual administração. Ademais de permitir ao pesquisador o contato com esse conjunto de posicionamentos gerais da diplomacia brasileira no plano multilateral, a obra situa e analisa cada um dos pronunciamentos no contexto do sistema internacional e dos desafios colocados ao Brasil, em cada uma das 66 assembleias gerais. Os chanceleres apresentam a obra em suas respectivas edições (Lampreia, Amorim e Patriota); mais interessantes, porém, são as introduções gerais do organizador, em cada uma delas, e, sobretudo, seus comentários iniciais, para cada ano, aos temas principais da atualidade internacional, regional e nacional. Trabalho precioso de documentação e de avaliação da nossa presença diplomática e do nosso mais acalentado desejo: a cadeira permanente no CSNU. Francisco Doratioto: Relações Brasil-Paraguai: afastamento, tensões e reaproximação (1889-1954) (Brasília: Funag, 2012, 552 p.; ISBN: 978-85-7631-384-7) O autor é “quase-diplomata”, por virtudes de matrimônio e pela longa colaboração intelectual com o MRE, de cuja academia diplomática é professor, e por sua presença em bancas do CAE. Já renomado por outros trabalhos acadêmicos sobre o país vizinho, além da monumental revisão historiográfica sobre a “maldita guerra” da Tríplice Aliança, o 66 historiador retraça, nesta obra que é sua tese de doutorado na UnB, o turbulento itinerário político do Paraguai, em especial no que concerne as relações, sempre ambivalentes, com Argentina e Brasil. Publicada primeiramente em espanhol, sob o título de Una Relación Compleja, o trabalho segue a influência política brasileira na política interna guarani, desde o início da República até a ascensão de Stroessner, passando pelo relativo afastamento, na era do Barão, até o adensamento das relações a partir da Segunda Guerra. Luís Cláudio Villafañe G. Santos: Duarte da Ponte Ribeiro: pionero de la diplomacia y amistad entre Brasil y Perú (Lima: Embajada de Brasil en el Perú, 2012, 132 p.; ISBN: 978-612-46323-0-3) Belo exemplo de promoção cultural, a ser seguido em casos semelhantes: o relato original, tanto diplomático quanto antropológico, num estilo de Baedecker político, que o ministro brasileiro nas repúblicas do Pacífico, uma espécie de Indiana Jones a cavalo, fez de suas andanças e peripécias na então Confederação Peruana-Boliviana e do que observou da situação econômica, política, social, diplomática e militar na região andina, durante mais de duas décadas, na primeira metade do século XIX. Ele foi um grande promotor da doutrina do uti possidetis, que tanto assistiria o Brasil na consolidação das fronteiras nas décadas seguintes, até Rio Branco. Ele fez mais: deixou descendentes no Peru, pois seu filho se casou com uma peruana: alguns deles estiveram no lançamento da obra na Embaixada em Lima. Emerson Coraiola Kloss: Transformação do Etanol em Commodity: perspectivas para uma ação diplomática brasileira (Brasília: Funag, 2012, 232 p.; ISBN: 978-85-7631-388-5) Não é fácil realizar o objetivo inscrito no título, e não apenas por razões técnicas ou econômicas, e sim basicamente por motivo de políticas econômicas (comercial e industrial) dos principais países produtores e/ou consumidores, a começar pelos EUA e pela UE. A ação diplomática passa pelo ISO, pela OMC e por foros setoriais, ademais do diálogo e cooperação com esses grandes parceiros. Mas não só isso: o Brasil apareceu na cena internacional, dez anos atrás como potencial produtor e exportador do produto e terminou por se tornar um grande importador de produtores que praticam subsídio e proteção; erros da política nacional, sem dúvida. A diplomacia pode fazer muito pela meta declarada, mas o governo precisaria começar não atrapalhando. Isto o autor não diz, claro, mas está implícito em sua magnífica tese de CAE. Depois da diplomacia do café, temos agora a do etanol e dos biocombustíveis: todos eles movem o mundo... Clóvis Brigagão e Fernanda Fernandes (orgs.): Diplomacia brasileira para a paz (Brasília: Funag, 2012, 292 p.; ISBN: 978-85-7631-389-2) O livro carece de melhor ordenamento dos trabalhos, mas a contribuição dos diplomatas, vivos ou não, é preciosa, não apenas por resgatar textos “desaparecidos”, mas também por reunir diversas perspectivas sobre a temática do título, algumas idealistas, outras mais realistas. Synesio Sampaio Goes começa por Alexandre de Gusmão e o tratado de Madri (1750); Joaquim Nabuco comparece com um discurso na Universidade de Chicago em 1908; Araújo Castro com um artigo de 1978 sobre o sistema mundial da paz (ou não-guerra); seguese Oswaldo Aranha, com uma conferência de 1937 na Universidade Bucknell, na Pensilvânia, e sua abertura dos debates na II AGNU, em 1947; finalmente, uma introdução da representante brasileira na ONU, Embaixadora Maria Luiza Viotti, em 2011, a uma nota conceitual do Brasil sobre a paz, mas que deveria ser uma apresentação ao livro. Pode melhorar... 67 Joaquim Nabuco: My Formative Years (Oxford: Signal Books, 2012, 204 p.; ISBN: 978-1908493-66-8) Tradução de Minha Formação, por Christopher Peterson, com introdução do historiador Leslie Bethell (Cambridge History of Latin America), um dos grandes nomes do brasilianismo anglo-saxão. É um empreendimento que a Editora Bem-Te-Vi, associada aos descendentes de Nabuco, vem seguindo para comemorar o centenário da morte do grande ascendente, no seguimento da publicação dos volumes resultantes dos colóquios nas universidades de Yale e Wisconsin em 2009, duas das muitas universidades que acolheram as reflexões intelectuais do primeiro embaixador do Brasil nos EUA. As edições brasileiras da obra são bem conhecidas, a última com introdução de Alfredo Bosi, pela Editora 34 (2012); Bethell enriqueceu muito esta edição, com a contextualização da vida e do pensamento do grande abolicionista. Paulo Roberto de Almeida: Integração Regional: uma introdução (São Paulo: Saraiva, 2013, 174 p.; ISBN: 978-85-02-19963-7) Um pequeno livro, que integra um coleção para “principiantes”, justamente, mas que sintetiza não apenas o conhecimento teórico, e histórico, sobre a formação dos blocos comerciais, antes, e sobretudo depois, da formação e consolidação do sistema multilateral de comércio, mas que expõe, essencialmente, a experiência prática do autor em processos negociadores dos esquemas preferenciais de comércio, seja no âmbito do Gatt-OMC, seja na criação do Mercosul, seja ainda no frustrado processo da Alca. A obra faz um balanço dos aspectos positivos e dos menos benéficos da atual fragmentação do comércio multilateral, em função da crescente multiplicação de blocos – o chamado minilateralismo – e da discriminação implícita a alguns deles, inclusive para dentro, como demonstrado na infeliz involução recente do Mercosul. André Amado: Por Dentro do Itamaraty: impressões de um diplomata (Brasília: Funag, 2013, 184 p.; ISBN: 978-85-7631-425-7) Uma boa exposição, e discussão, sobre diferentes aspectos da formação e do treinamento dos jovens diplomatas, e sobre como é, ou como deveria ser, o processo de socialização (alguns diriam domesticação) dos candidatos à carreira e seus novos membros. Pode servir como uma espécie de manual para o Instituto Rio Branco, do qual seu autor já foi diretor, embora mudar burocracias consolidadas é sempre mais difícil do que continuar do jeito que está. O livro também poderia se chamar “Por que me ufano do Itamaraty”, pois parece que sempre fomos excelentes em todas as frentes, desbancando até mesmo diplomatas de algumas grandes potências. O IRBr, na ideia de seus criadores, em 1946, deveria ser um centro de “investigação e ensino”, o que falta concretizar; mas o autor quer contribuir para tão nobre missão. Manoel Gomes Pereira (org.): Barão do Rio Branco: 100 anos de memória (Brasília: Funag, 2012, 748 p.; ISBN: 978-85-7631-413-4) Um volume dessa magnitude pede mais de dez linhas; elas permitem apenas alinhar os nomes dos colaboradores diplomatas, junto a muitos outros da academia. Pela ordem do índice: Georges Lamazière, Vasco Mariz, Luiz Felipe de Seixas Corrêa, Gonçalo Mello Mourão, Rubens Ricupero, Celso Amorim, Luís Cláudio Villafañe G. Santos, Carlos Henrique Cardim, Paulo Roberto de Almeida, Gelson Fonseca Jr., Synesio Sampaio Goes 68 Filho, Guilherme Frazão Conduru e Fernando Guimarães Reis. Impossível resumir suas contribuições nesta nota; elas são, de um lado, eruditamente embasadas em materiais historiográficos; de outro, apoiadas numa reflexão sobre a permanência do Barão na atual diplomacia brasileira: sim, ele continua sendo um dos ídolos espirituais, certamente o maior, nessa Santa Casa. Augusto César Batista de Castro: Os bancos de desenvolvimento e a integração da América do Sul: bases para uma política de cooperação (Brasília: Funag, 2011, 176 p.; ISBN: 978-857631-311-3) Resultando de uma tese de CAE, a obra é uma assemblagem um tanto desigual de reflexões sintéticas de leituras feitas em três campos metodologicamente distintos: a evolução da integração latino-americana, as teorias do desenvolvimento econômico e o papel das entidades multilaterais de financiamento regional, inclusive o BNDES, no primeiro processo; a mobilização de capitais mediante políticas adequadas forneceria as bases da cooperação, que, por sua vez, reforçaria a integração. O autor realizou, de fato, um volume bastante significativo de leituras, mas as premissas para sua síntese são sempre a adequação e a relevância da política externa brasileira para o objetivo maior da integração, o que tende a legitimar o caráter prioritário desta última nas concepções da diplomacia nacional, ou seja, chega-se a um argumento circular. Ricardo Luís Pires Ribeiro da Silva: A Nova Rota da Seda: caminhos para a presença brasileira na Ásia central (Brasília: Funag, 2011, 320 p.; ISBN: 978-85-7631-346-5); A velha rota da sede era muito mais longa, e talvez fosse mais interessante, do que a nova, que percorre as antigas satrapias soviéticas da Ásia central: os trechos mais misteriosos se situavam nos mesmos territórios que hoje correspondem a essas repúblicas supostamente pós-soviéticas: Cazaquistão, República Quirguiz, Tadjiquistão, Turcomenistão e Uzbequistão. Esta tese de CAE percorre terras que eram incógnitas para a diplomacia brasileira, até uma data ainda recente. O autor leu uma bibliografia ocidental para abordar a trajetória recente dessas satrapias convertidas desigualmente à economia de mercado, mais esta do que à democracia. São onze capítulos substantivos e doze anexos para colocar o Brasil na moderna rota da seda, feita de combustíveis fósseis e de mercados ainda pouco explorados. Geraldo Holanda Cavalcanti: A herança de Apolo: Poesia, Poeta, Poema (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012, 462 p.; ISBN: 978-85-200-1161-4) Poesia rima com diplomacia? Talvez. A obra discorre sobre poesias e poetas em todos os seus estados, inclusive os maus poetas e os suicidas. Impressionante o volume de citações: as obras citadas chegam a quase 600, duas ou três por página. Sem prefácio, o livro tem um posfácio dedicado justamente às citações: na esteira de Montaigne e de Walter Benjamin, o autor certifica que as suas foram todas garimpadas bona fide nos inumeráveis livros que percorreu em 50 anos de leituras, para nos oferecer o que é, possivelmente, a maior enciclopédia do poema já publicada no Brasil. Poesia tem tradução? Talvez, mas ficou faltando a tradução de serendipity. Em todo caso, os tradutores, para Stephen Spender, são os “embaixadores oficiais da linguagem” (The Making of a Poem, 1962: p. 113). Bem, pelo menos isso. 69 Luiza Lopes da Silva: A questão das drogas nas relações internacionais: uma perspectiva brasileira (Brasília: Funag, 2013, 407 p.; ISBN: 978-85-7631-428-8) A “diplomacia das drogas”, se ela existe, começa em Xangai, em 1909, mas o problema é mais antigo, secular mesmo. Surgida em virtude das guerras do ópio, promovidas pelo imperialismo inglês, até hoje ela não logrou resultados satisfatórios, mas os Estados continuam tentando limitar os danos. Esta tese de CAE representa o esforço mais abrangente para circunscrever a questão do ponto de vista brasileiro: do proibicionismo às soluções alternativas, o caminho ainda é longo para se vislumbrar uma solução aos problemas do comércio ilegal e crimes associados. O Brasil parece dotado de instrumentos adequados, mas, como outros países da região, pouco atuou na construção dos mecanismos de controle e pode ser vítima deles, como também da “diplomacia cocalera”. Muitos sugerem a liberalização; seria essa a resposta? Elias Luna Almeida Santos: Investidores soberanos, política internacional e interesses brasileiros (Brasília: Funag, 2013, 345 p.; ISBN: 978-85-7631-426-4) O trabalho tem qualidades inegáveis, ao apontar as inúmeras dificuldades no tratamento dos fundos soberanos. Mas, à diferença do que diz o prefaciador, o FSB não está voltado para o gerenciamento das reservas brasileiras (tarefa a cargo do Banco Central), e sim tem sido usado mais para fins de economia doméstica (como a sustentação da Petrobras). O Brasil, aliás, tem todas as condições para NÃO ter um fundo desse tipo, já que não tem excedentes fiscais ou de transações correntes. Seja como for, esta tese de CAE ilumina o funcionamento desses fundos e os problemas a eles associados. Se e quando o Brasil dispuser de um fundo verdadeiro, a obra oferece desde já um panorama muito claro de como se movimentar no intrincado cenário de ganhos econômicos e ambições políticas que caracteriza sua existência corrente. Celso Amorim: Breves Narrativas Diplomáticas (São Paulo: Benvirá, 2013, 168 p.; ISBN: 978-85-8240-025-8) Dos cadernos do ex-ministro, notas sobre momentos cruciais, de 2002 a 2004 (e alguns desdobramentos ulteriores), da diplomacia “ativa e altiva”, como ele designa a sua gestão; mais adiante se acrescentou “soberana” à dita política externa. Trata-se de uma explicação e uma justificativa, pro domo sua, de alguns episódios desses anos: a invasão do Iraque pelos EUA, as tribulações do coronel Chávez, a implosão da Alca, o golpe de truco em Cancun, a aliança com a Índia e a África do Sul, as origens da Unasul e as andanças pela África. A história completa ainda vai ser contada, mas os escritos do ministro, entre eles Conversas com Jovens Diplomatas (2011), podem ser fontes primárias, desde que se confronte interpretações pessoais com análises independentes: a historiografia serve, justamente, para filtrar tais tipos de relatos. Douglas Wanderley de Vasconcellos: Esporte, poder e relações internacionais (3ra. edição; Brasília: Funag, 2011, 268 p.; ISBN: 978-85-7631-319-9) Com a Copa das Confederações já realizadas, chegando a Copa do Mundo (2014) e as Olimpíadas (2016), nada melhor do que refletir sobre os vínculos entre esporte e diplomacia, o que faz este trabalho antigo, mas ainda plenamente válido. O trabalho vai muito além de uma simples “diplomacia do futebol”, o que o Brasil já fez no Haiti, por exemplo, e trata da utilização política, no bom e no mau sentido, das competições esportivas para o atingimento 70 de objetivos estratégicos ou táticos pelos países que possuem algum peso nessa arena. Mas mesmo pequenas ou grandes coalizões de países (os árabes, por exemplo) podem fazer pressão “esportiva” sobre outros atores (Israel, no caso) para a obtenção de algum ganho diplomático. O Itamaraty e o Ministério do Esporte formam um time alinhado a tal objetivo. José Vicente Sá Pimentel (org.): O Brasil, os BRICS e a agenda internacional (2a. ed., rev., ampl.; Brasília: Funag, 2013, 604 p.; ISBN: 978-85-7631-427-1) O que era Bric virou Brics, embora a expansão numérica, para incluir a África do Sul coincidiu, na verdade, com a redução do impacto desse grupo de emergentes na economia e na agenda mundiais, em vista do arrefecimento do crescimento em vários deles. Diplomatas e acadêmicos trataram, em seminários realizados em 2011 e em 2012, das possibilidades e limitações dos países membros, sob diferentes aspectos e em abordagens complementares. Gelson Fonseca, no texto inicial, formula a questão de saber se os Brics conseguirão influenciar a ordem mundial, e em qual sentido? Rubens Ricupero pergunta, por sua vez, se eles não seriam os “monster countries” mencionados pelo diplomata americano George Kennan, o que não deixa de colocar o tema da democracia. Boa questão, aliás ainda não respondida. José Guilherme Merquior: Liberalism, Old and New (Boston: Twayne Publishers, 1991, 182 p.; ISBN: 0-8057-8627-9) Mais de vinte anos depois da morte do mais prolífico intelectual diplomata, vale a pena revisitar alguns dos seus livros. Este conjunto de ensaios escritos em inglês, no México, seu último posto como embaixador, foi publicado pouco depois de sua morte, ocorrida em janeiro de 1991. No mesmo ano era publicada a edição brasileira, e em 1996 uma em espanhol, quando também foi publicado um volume de ensaios em sua homenagem, Liberalism in Modern Times: Essays in Honour of José G. Merquior, organizado por seu antigo diretor de tese na London School of Economics, Ernest Gellner, quando ele tratou da teoria da legitimidade em Rousseau e Max Weber (mas obviamente não restrita a esses dois autores). O liberalismo, para Merquior, resiste a qualquer tentativa de aviltamento, tão fortes são os seus fundamentos. Dixit! Silvio José Albuquerque e Silva: As Nações Unidas e a luta internacional contra o racismo (2a ed.; Brasília: Funag, 2011, 292 p.; ISBN: 978-85-7631-338-0). O multilateralismo contemporâneo foi transitando gradualmente dos grandes temas interestatais para assuntos humanitários, entre eles o do racismo. Esta tese de CAE analisa os resultados da conferência de Durban (2001) sobre o racismo e a xenofobia, com ênfase na atuação diplomática brasileira, antes, durante e depois, até a conferência de revisão, quase uma década após. Esse período correspondeu à aceleração das próprias políticas nacionais de caráter afirmativo, com intensa mobilização dos militantes negros, num ativismo emulado pelo grupo africano no plano multilateral, ambos pretendendo algum resgate de “dívidas históricas”. José Augusto Lindgren Alves, especialista na questão e favorável às medidas especiais, acredita que essas demandas, se postuladas de forma exagerada, podem causar uma sucessão de cobranças de uns povos contra outros, para a maior infelicidade de todos. O racismo tem muitas faces, sem dúvida. 71 Elisa de Sousa Ribeiro (coord.): Direito do Mercosul (Curitiba: Editora Appris, 2013, 683 p.; ISBN: 974-85-8192-208-9) Organizado no âmbito do grupo de estudos sobre o Mercosul do Uniceub, esta monumental obra, praticamente uma enciclopédia, cobre todos os aspectos do Mercosul, e não apenas os jurídicos, como seu título poderia deixar entender. Um único diplomata, professor de Economia do Uniceub, participa com não menos de quatro capítulos neste volume de referência, Paulo Roberto de Almeida, autor, respectivamente, de: “O Mercosul no contexto da integração regional latino-americana”, p. 51-69; “O desenvolvimento do Mercosul: progressos e limitações”, p. 71-92; “Acordos extra-zona”, p. 343-356; e “Perspectivas do Mercosul ao início de sua terceira década”, p. 661-676. Outros 48 autores informam tudo o que você sempre quis saber sobre o Mercosul e não tinha a quem perguntar; agora já tem... Antônio Augusto Cançado Trindade: Os tribunais internacionais contemporâneos (Brasília: FUNAG, 2013, 136 p.; ISBN 978-85-7631-424-0; Coleção Em Poucas Palavras) O autor, eminente jurista mineiro, já foi consultor jurídico do Itamaraty (na redemocratização), presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos, em San José, e é, atualmente, um dos juízes da Corte Internacional de Justiça, na Haia. Autor de uma obra impressionante no campo do Direito Internacional, em várias línguas, em pouco mais de cem páginas ele realiza a proeza de sintetizar os fundamentos e o funcionamento dos diversos tribunais existentes no plano multilateral, nem todos de jurisdição obrigatória, mas possuindo, cada vez mais competência para realizar uma defesa efetiva dos direitos humanos, lutar contra a impunidade e aproximar a comunidade humana do ideal de justiça internacional. Esses órgãos reafirmam a unidade fundamental do direito internacional e o primado do direito sobre a força bruta. Uma síntese admirável, pelo melhor autor possível. Ronaldo Mota Sardenberg: O Brasil e as Nações Unidas (Brasília: FUNAG, 2013, 136 p.; ISBN 978-85-7631-448-6; Coleção Em Poucas Palavras) O autor é, possivelmente, o mais experiente multilateralista político da diplomacia profissional, e foi representante do Brasil na ONU em duas ocasiões, ademais de ter exercido os mais diversos cargos na burocracia federal, inclusive como ministro. O pequeno livro apresenta a atuação e a pauta do Brasil na ONU, depois de descrever a história pregressa, na Liga das Nações, e o funcionamento desse órgão, que De Gaulle chamava de “geringonça” (machin). Como ele diz, a ONU não é nem irrelevante, nem constitui um governo mundial, mas tem competência para atuar nas mais diversas áreas de interesse coletivo e até doméstico (com algumas restrições). A cooperação entre os Estados membros, em todas as áreas, é o principal objetivo da ONU, mas o Brasil pretende ingressar no Conselho de Segurança, não só por isso, mas por prestígio, também. Synesio Sampaio Goes Filho: As Fronteiras do Brasil (Brasília: FUNAG, 2013, 140 p.; ISBN 978-85-7631-430-1; Coleção Em Poucas Palavras) O autor é o maior especialista no tema, depois de ter escrito sobre Alexandre de Gusmão e todos os demais navegantes, exploradores e diplomatas que aumentaram o pequeno território conquistado em Tordesilhas. Professor de história diplomática, ele está plenamente habilitado para apresentar uma temática que já foi tratada por antecessores tão brilhantes quanto pragmáticos, entre eles o próprio Barão. Este, justamente, resolveu todas as questões de limites que vinham do período colonial e tinham sido tratados, vários sem conclusão, pela 72 diplomacia imperial. Tanto a obra dos exploradores, quanto a dos diplomatas foi impressionante, pelo fato de aumentar enormemente o território nacional pela via pacífica. O Brasil foi “uma história que deu certo” conclui o autor, com base nos dois grandes princípios de Alexandre de Gusmão: as fronteiras naturais e o uti possidetis. André Aranha Corrêa do Lago: Conferências de desenvolvimento sustentável (Brasília: FUNAG, 2013, 202 p.; ISBN 978-85-7631-444-8; Coleção Em Poucas Palavras) Com um pouco mais de palavras que os demais livros da coleção, Corrêa do Lago se equipara ao brilhantismo dos colegas ao propor, com notável capacidade de síntese, um panorama completo das posições brasileiras, desde a conferência de Estocolmo (1972) até a recente Rio+20, passando justamente pela conferência do Rio, de 1992, que consagra o conceito expresso no título da obra, e pela Cúpula de Joanesburgo (2002), quando o Brasil tenta concretizar o princípio das responsabilidades comuns, porém diferenciadas (ou seja, os “mais iguais” precisam pagar a conta). Que futuro queremos? O melhor possível, mas isso passa pelo fornecimento de recursos financeiros e pela transferência de tecnologias para garantir o tal de desenvolvimento sustentável. Ninguém é contra, mas alguém precisa pagar a conta, e aí começam as dificuldades, inclusive os bens comuns, mas nacionais. José Vicente Pimentel (org.): Pensamento Diplomático Brasileiro: Formuladores e Agentes da Política Externa (1750-1964) (Brasília: FUNAG, 2013, 1138 p. em 3 volumes; ISBN 978-85-7631-462-2) Um projeto monumental do órgão intelectual do Itamaraty, consistindo em estudos analíticos sobre 26 personagens relevantes das relações internacionais do Brasil, entre diplomatas de carreira, políticos e intelectuais que moldaram o pensamento e a ação da diplomacia brasileira ao longo de mais de dois séculos; começa com Alexandre de Gusmão, diplomata português nascido no Brasil, e vai até o último chanceler da República de 1946, Araújo Castro, um diplomata de carreira, passando pelo Barão do Rio Branco e Oswaldo Aranha. Assinam as colaborações, sob a coordenação do presidente da Funag, quinze diplomatas e treze acadêmicos, todos especialistas nos personagens ou nos períodos enfocados nas três partes da obra. Referência doravante indispensável para o estudo do pensamento diplomático brasileiro, o projeto merece continuar. 73 Segunda Parte Artigos-resenhas de livros de diplomatas O Brasil e o ‘Perigo Amarelo’ Valdemar Carneiro Leão: A Crise da Imigração Japonesa no Brasil (1930 - 1934): Contornos Diplomáticos (Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais – IPRI, 1990, 360 p.; Coleção Relações Internacionais nº 10) Não há nada que incomode mais a boa consciência dos povos do que o desafio da alteridade e, nesta, o contato forçado com etnias e culturas diversas. O racismo, junto com a estupidez, é provavelmente um dos fenômenos mais bem disseminados na história da humanidade, mais entranhado, talvez, no inconsciente coletivo do que a própria religião e muitos hábitos ancestrais. A primeira metade do século XX ficou conhecida pela particular perversidade com que a questão racial foi “encaminhada” em diversos países e sociedades. Os ideólogos da pureza racial e do Apartheid nada mais faziam, no entanto, do que colocar em prática diversas premissas “culturais” que foram sendo elaboradas a partir dos descobrimentos, tomando impulso no racionalismo “antropológico” do século XVIII para finalmente desembocar nas teorias “científicas” sobre a supremacia ariana no século XX. Enquanto o debate permaneceu no terreno propriamente acadêmico, ele não chegou a causar grandes tragédias humanas, embora suas consequências, a nível social, possam ter representado pequenas tragédias individuais, como nos demonstrou brilhante estudo do naturalista Stephen Jay Gould a este respeito (The Mismeasure of Man). Mais complexa se tornou a questão quando os preconceitos legitimados “cientificamente” foram transpostos para o terreno da ação pública e derivaram em discriminação pura e simples, quando não em massacres e genocídios organizados. A esse respeito, nenhuma outra sociedade (felizmente) conseguiu até aqui igualar a barbárie nazista, em que pese o terrível custo humano e social de outras “experiências” de eliminação de “adversários”, como o caso dos armênios sob o jugo turco ou de diversas populações asiáticas sob ocupação japonesa. Mas, nenhum outro empreendimento humano conseguiu ser tão cruelmente eficaz quanto a máquina burocrática da “solução final” posta em prática contra judeus, ciganos, homossexuais e outras minorias, para não falar da escravização forçada de populações eslavas inteiras. A ideologia racista hitlerista, porém, à diferença do holocausto, hélas conhecido tardiamente, não era particularmente chocante no contexto dos anos 1920 e 30, quando a tese da “inferioridade inata” de algumas “raças” parecia estar empiricamente justificada, pelo menos considerando o contexto colonialista e eurocêntrico em que o debate era conduzido. Ser racista não era, por assim dizer, a suprema imoralidade, sobretudo numa época de darwinismo social triunfante. A percepção de uma “ameaça iminente”, representada por povos diferentes, era tanto mais realista quanto o “outro” discrepava da aparente uniformidade e homogeneidade da dominação cultural e religiosa europeia: o antissemitismo, especialmente, tinha ampla aceitação nos mais diversos meios sociais. Abstraindo-se o itinerário da afirmação da ideia sionista desde finais do século XIX, o antissemitismo constitui um capítulo à parte na história das tragédias humanas, ademais de ser uma ferida ainda aberta no imenso altar da imbecilidade social. Ao lado dele, e quase que num movimento paralelo à expansão japonesa no Extremo Oriente, teve grande voga naquela época a noção de “perigo amarelo”, refletindo a consciência da fragilidade europeia em face das “hordas ululantes” de milhões de asiáticos querendo se projetar sobre um cenário internacional até então dominado por um punhado de nações industrializadas. A ascensão do Japão imperial, com seu expansionismo guerreiro, também muito contribuiu para a difusão da noção de perigo amarelo. A angústia existencial sobre o perigo amarelo também se refletiu entre nós, no decorrer da década de 30, quando a sociedade brasileira, mobilizada social e ideologicamente pelo grande debate político levado a cabo pela Assembleia Nacional Constituinte de 1933-34, tratou da questão da imigração estrangeira para o Brasil. Com efeito, o processo de reelaboração constitucional conduzido no quadro da jovem República “liberal” deu um inusitado destaque ao “problema japonês” no Brasil, ao colocar em debate a questão dos limites ou impedimentos à imigração de determinadas etnias ou “raças”. Desde o início dos trabalhos, foram apresentadas emendas tendentes a restringir ou proibir a imigração africana e asiática, e um deputado chegou mesmo a propor que apenas fosse permitida a imigração de “elementos da raça branca”. O objetivo aqui, mais do que proibir a entrada de africanos – que de toda forma já não viriam mais em bases voluntárias e muito menos como escravos –, era claramente o de impedir a entrada de povos asiáticos, ou seja o elemento japonês, considerado “de mentalidade estranha, de língua diversa, religião diferente e positivamente inassimilável”. O debate na Constituinte não deixa de ser “instrutivo”, quando julgado pelos argumentos avançados. O principal proponente da proibição, recusando a pecha de racista, afirmava candidamente: “... se já prestamos um tão grande serviço à humanidade na mestiçagem do preto, é o bastante. Não nos peçam outras coisas... (...) A do amarelo, a outrem 78 deve competir”. O problema era também colocado em termos de “defesa nacional”, de “segurança da pátria”, ou mesmo de vida ou morte do Brasil: “Se não se acautelar... o Brasil dentro em pouco será uma possessão japonesa. (…) Aqui será o Império do Sol Poente... (…) O expansionismo japonês, aquilo que Mussolini chamou o ‘imperialismo dinâmico do Japão’, segue uma ordem invariável: infiltração, esfera de influência, absorção, ou se quiserem, imigração, corealização [sic], japonização (…). Nós estamos no segundo período - esfera de influência”. Não faltavam também os que viam no “número enorme de psicopatas estrangeiros” nos manicômios nacionais – alguns deles asiáticos, descritos como “esquizoides” – mais uma prova “irrefutável” da indesejabilidade da imigração indiscriminada para o Brasil. Mas, antes mesmo da Constituinte, a questão racial já se tinha manifestado nas tribunas da Câmara e na própria sociedade, desde princípios dos anos 20. Ao apresentar, em 1923, projeto de lei restritivo sobre a questão, e que tinha recolhido expressivo apoio na imprensa e na opinião pública – inclusive do respeitado sociólogo e cientista político Oliveira Vianna –, um deputado expunha desta forma o lado “estético” do problema: “Além das razões de ordem étnica, moral, política e social, e talvez mesmo econômica que nos levam a repelir in limine a entrada do amarelo e do preto, (…) outra porventura existe, a ser considerada, que é o ponto de vista estético: a nossa concepção helênica de beleza jamais se harmonizaria com os tipos provindos de uma semelhante fusão racial”. Esses e muitos outros argumentos edificantes, se é o caso de se dizer, estão obviamente compilados na magnífica monografia histórica de Valdemar Carneiro Leão, cujo objetivo principal, contudo, não é o estudo do “perigo amarelo”, estrito senso, no Brasil do primeiro Governo Vargas. O “perigo amarelo” está, bem entendido, subjacente a esse trabalho de pesquisa, que reconstitui com mão de mestre uma importante questão hoje relativamente descurada em nossa historiografia política: a do contexto internacional da política imigratória nacional. Trata-se, mais propriamente, de uma brilhante análise do comportamento do Itamaraty em face desse debate interno, na Constituinte, sobre a questão imigratória japonesa, que logo ganhou inevitáveis contornos políticos ao precipitar uma crise diplomática nas relações do Brasil com o Império do Japão. O volume agora publicado pelo Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, da Fundação Alexandre de Gusmão, foi originalmente apresentado como tese de conclusão ao Curso de Altos Estudos, do Itamaraty, em que se distinguiu o autor, diplomata de carreira e graduado em Relações Internacionais pelo Institut d’Études Politiques da Universidade de Paris. Formalmente, o trabalho se compõe de 180 páginas de denso texto analítico e 79 interpretativo, seguidas de igual volume de anexos informativos, contendo alguns documentos diplomáticos e diversos discursos e intervenções realizadas na Assembleia Nacional Constituinte entre janeiro e maio de 1934. O texto, em si, é dividido em cinco capítulos, tratando, respectivamente, das origens e desenvolvimento da imigração japonesa no Brasil, do cenário político no início dos anos 30, do quadro geral das relações Brasil-Japão, inclusive no que concerne os trabalhos da Constituinte, os contornos diplomáticos da crise e, finalmente, a análise da ação do Itamaraty, seguidos das conclusões. A extensa bibliografia utilizada confirma que o autor apoiou seu relato nas melhores fontes primárias disponíveis, com destaque para os expedientes diplomáticos do Arquivo Histórico do Itamaraty e para os Anais da Assembleia Nacional Constituinte, ademais de fazer apelo a escritos contemporâneos e jornais da época e a número considerável de estudos secundários (inclusive dos principais protagonistas envolvidos no debate imigratório do processo constituinte). Estruturalmente, os temas mais importantes do estudo estão tratados no item sobre os trabalhos da Constituinte do terceiro capítulo, no capítulo sobre os contornos diplomáticos da crise (com destaque para a atuação do Itamaraty) e na parte final, que analisa a ação da Chancelaria brasileira nas diversas etapas do processo de elaboração constitucional, inclusive no que respeita as motivações e forma de atuação do Ministério das Relações Exteriores. O autor fez extenso uso das comunicações diplomáticas trocadas entre Rio de Janeiro e Tóquio durante a fase aguda da crise, tanto a nível interno, da Chancelaria brasileira, como entre os dois serviços diplomáticos. O estardalhaço provocado pelas primeiras emendas apresentadas (“É proibida a imigração africana e só consentida a asiática na proporção de 5% anualmente sobre a totalidade dos imigrantes dessa procedência...”; “Só será permitida a imigração de elementos da raça branca...”) foi contornado no plano diplomático, apesar da repercussão e da polêmica na imprensa e de uma atuação nem sempre comedida por parte do Gaimusho, o Ministério dos Negócios Estrangeiros do Japão. O veto (discreto, mas eficaz) do Itamaraty a qualquer distinção entre “raças” ou nacionalidades nas emendas restritivas da imigração apresentadas na Assembleia produziu, é bem verdade, efeitos não vislumbrados de início: descobriu-se que, ainda assim, a cota de 2% do contingente já entrado no País atingia mais os candidatos japoneses do que os europeus, com o que ficaram satisfeitos os inimigos do “perigo amarelo”. Para o Itamaraty, a questão de princípio tinha sido resolvida: preservava-se o ingresso de imigrantes, sem qualquer discriminação, mas restringia-se o número anual em função de uma norma geral de caráter nacionalista. Restava, é verdade, aplacar os maus humores das 80 autoridades nipônicas, interessadas em preservar um acesso irrestrito em favor de seus nacionais, o que foi feito nas duas capitais, não sem dificuldades. Para o autor, “a forma de atuação do Itamaraty ostentava perfeita coerência entre a vertente interna [iniciativas discretas junto a políticos próximos do Governo] (…) e sua complementação externa [contato permanente com a Chancelaria japonesa], sem a qual poderiam ficar a descoberto suas delicadas manobras de bastidores” (p. 162). Releve-se apenas, como a confirmar uma velha mania do Itamaraty, a opção preferencial pelas gestões silenciosas, com a imprensa mantida à distância, e uma aversão declarada pela “diplomacia de praça pública”. Como diz o autor: a ação do Itamaraty “foi de tal modo cautelosa e de tal maneira privilegiou os canais informais que aparentemente passou indocumentada. O corolário dessa discrição observada no plano oficial traduziu-se num comportamento igualmente silencioso perante a imprensa brasileira, à qual o Itamaraty se absteve, ao longo da crise, de fornecer informações sobre o trabalho que realizava” (p. 175). Tal parece ser o espírito eterno da Casa de Rio Branco: uma intensa movimentação diplomática, dispensando as luzes dos meios de comunicação e passando por canais os mais discretos possíveis. Constate-se, em todo caso, que nem sempre a opinião pública mostra-se disposta a acompanhar tal linha de atuação: no caso do debate sobre a imigração japonesa, os agitadores do “perigo amarelo” aparentemente conseguiram colocar a Nação contra o Itamaraty. Este é provavelmente o preço a pagar por um método de trabalho (contatos internos e démarches externas) absolutamente escrupuloso e respeitador das normas geralmente aceitas entre cavalheiros. O certo é que, durante o que ficou caracterizado como a “crise da imigração japonesa”, provavelmente mais do que em qualquer outra época de sua já longa história institucional, o Itamaraty se viu compelido a atuar de forma tão intensa no plano político interno. Se a ação do Itamaraty não logrou sucesso total foi devido a duas razões principais: por um lado, o momento nacional era de clara afirmação nacionalista e de discriminação racial (um conceito atual para explicar os ‘ares da época’); por outro, o comportamento internacional do Japão, com sua agressiva política expansionista na região asiática, dificultou sobremaneira o rechaço da norma constitucional restritiva que finalmente se adotou. Até onde pode, pelo menos, o Itamaraty conseguiu trazer a retórica parlamentar de volta ao terreno das realidades internacionais, setor onde a suscetibilidade das nações conta tanto quanto o poder econômico e político medido em termos objetivos. 81 O mérito principal do trabalho de Valdemar Carneiro Leão não é, contudo, o de ter mostrado que, quando preciso, o Itamaraty também é capaz de “atirar para dentro”, se ele me permite tal expressão. Devemos lhe ser gratos, antes de mais nada, pela apreciável corveia de ter retirado do pó dos arquivos itamaratianos uma história exemplar de “dupla ação” diplomática, no bom sentido: sincronização perfeita entre negociação externa e atuação interna. Seu texto é ainda precioso do ponto de vista metodológico: a monografia condensa um trabalho original de pesquisa, constituindo-se propriamente num paradigma do gênero “história diplomática”, vertente historiográfica pouco cultivada entre nós. Como tal, ela mereceria uma divulgação mais ampla do que a habitualmente permitida pelos canais (sempre discretos, lembre-se) do Ministério das Relações Exteriores. Louve-se, em todo caso, a iniciativa do IPRI de divulgar regularmente as melhores teses apresentadas no quadro do Curso de Altos Estudos do Itamaraty. A Coleção Relações Internacionais já tem dez títulos publicados, mas apenas a metade desse número compõe-se de trabalhos defendidos no CAE, sendo os demais antologias de textos resultantes de seminários de estudos e outros temas de atualidade. Curiosamente, o trabalho de Valdemar Carneiro Leão é, de todos os textos publicados (e provavelmente das teses apresentadas no CAE), o que mais longe recua no tempo, buscando no passado os fundamentos de nossa atuação diplomática contemporânea. Terminada sua viagem histórica e de “volta para o futuro”, Carneiro Leão nos demonstra, de forma oportuna, a permanência das instituições e a constância dos homens: a do Itamaraty, que pouco mudou em seu estilo de atuação, e a dos constituintes, que continuam a ver no estrangeiro uma fonte potencial de ameaça à soberania nacional. Na verdade, descontada a tão temida, mas inexistente, ameaça de dominação econômica nipônica, o único “perigo amarelo” em que incorremos nos dias de hoje é o de ver os papéis dos arquivos oficiais amarelecerem nas estantes sem que o grande público possa ter acesso a partes substanciais da memória política da Nação. O resto é conversa de “botequim” (leia-se gabinete) diplomático. Montevidéu, 5 de setembro de 1990. Publicado na Revista Brasileira de Política Internacional (Rio de Janeiro: ano XXXIII, n. 129-130, 1990/1, p. 137-141) e na Revista Brasileira de História (São Paulo: vol. 11, n. 22, março-agosto 1991, p. 197-213). 82 O Mercosul pela seleção natural Rubens Antonio Barbosa: América Latina em Perspectiva: A Integração Regional da Retórica à Realidade (São Paulo: Edições Aduaneiras, 1991) O crescente envolvimento das autoridades governamentais e da própria sociedade brasileira com o Mercosul tende a nos fazer esquecer os antecedentes e etapas anteriores do processo de integração regional. O desenvolvimento do atual processo integracionista no Cone Sul latino-americano apresenta características inéditas em relação às experiências mais ou menos frustradas que o precederam. Mas, não se deve esquecer que a constituição progressiva do Mercado Comum do Sul retoma uma longa tradição de tentativas integracionistas no contexto latino-americano, seja de âmbito sub-regional, seja de caráter propriamente multilateral. Pode-se inclusive dizer que o Mercosul é o resultado de um lento processo de “seleção natural”, ao cabo do qual os “velhos dinossauros” do passado foram dando lugar aos “mamíferos” mais ágeis do presente. Nessa simbologia darwinista, as espécies menos aptas à sobrevivência em novos ambientes econômicos estariam representadas pela Alalc e, num certo sentido, pela Aladi. Seus sucessores na “árvore da vida regional” parecem ser o ciclotímico Grupo Andino e o próprio Mercosul. Paralelamente, a especiação e a busca de novos habitats produz, continuamente, outros gêneros e espécies de “animais integracionistas”: o G3 (formado pelo México, Venezuela e Colômbia), a deriva geológica do mesmo México em direção a esse continente setentrional que responde pelo nome de Nafta (North American Free Trade Area), a lenta mutação do fenótipo chileno em direção a um “perfil OCDE”, enfim, novas famílias e classes de agrupamentos bi-, tri- e plurilaterais. A analogia com a história natural pode não ser a mais apropriada, metodologicamente falando, para uma exata compreensão do rápido processo de evolução geopolítica por que passa hoje a América Latina. Mas, ela é oportuna para evidenciar as profundas transformações econômicas e políticas que, tão inexoravelmente como o movimento de placas tectônicas subterrâneas, estão alterando progressivamente a cenografia ambiental a que estávamos habituados na região. O livro de Rubens Antonio Barbosa oferece uma visão estratégica do processo integracionista latino-americano nessa passagem do “mesozoico” da integração uniformemente multilateral para o “cenozoico” da integração sub-regional. Articulado em 83 duas grandes partes – a América Latina no cenário internacional e o Brasil e a integração regional – essa obra beneficia-se da experiência multiforme de um diplomata sênior do Itamaraty e representante brasileiro na ALADI entre 1988 e 1991. O Autor acompanhou, precisamente, a transição operada no itinerário integracionista, da tentativa de se estabelecer uma ampla zona de preferências comerciais para modalidades mais realistas – mas também mais ambiciosas – de agrupamento econômico. O deslanchar dessa nova fase foi provavelmente suscitado pela aproximação Brasil-Argentina a partir de 1985, passa pelo Tratado bilateral de Integração de 1988 e chega ao Tratado de Assunção de 1991, que mudou radicalmente a geografia política e econômica da América do Sul. A decisão pela implementação e desenvolvimento do novo esquema integracionista, que culminará com o pleno funcionamento do Mercosul na segunda metade da presente década, foi essencialmente de natureza política, uma vez que o comércio do Brasil com seus vizinhos imediatos, mesmo durante o período de transição, não deverá atingir os níveis já alcançados das trocas com os parceiros desenvolvidos do hemisfério norte, onde estão nossos principais mercados compradores, bem como os mais importantes fornecedores de tecnologia avançada. O livro não aborda tanto os fundamentos econômicos ou os aspectos teóricos da integração, quanto a experiência prática da Aladi, do processo Brasil-Argentina e, ainda que de forma preliminar, o do Mercosul. Como diz o autor, a integração regional passou da retórica à realidade e o Brasil é em grande parte responsável por esse novo curso, mais pragmático, do processo de aproximação entre países em grande medida unidos pela cultura mas, durante muito tempo, separados pelas políticas econômicas. Ademais de apresentar uma análise bastante detalhada dos principais instrumentos e mecanismos de liberalização do comercio, tanto no âmbito da Aladi como na esfera bilateral Brasil-Argentina, Rubens Barbosa aponta os principais desafios com que se defronta a América Latina no novo cenário econômico internacional: atenção especial é dedicada à experiência da integração europeia e ao impacto da Rodada Uruguai no processo de integração regional. A nova fase da integração regional adquire uma dimensão verdadeiramente estratégica num continente que estava sendo progressivamente alijado das grandes correntes de comércio internacional e dos rápidos processos de modernização tecnológica que estão alterando as vantagens competitivas das nações. Frente a esse cenário de desafios, a América Latina não poderia ficar indiferente às exigências do momento: internacionalizar-se, certamente, mas 84 também regionalizar-se de maneira aberta, mantendo uma crescente osmose com o mundo industrializado. Uma coletânea dos principais tratados e acordos do itinerário integracionista latinoamericano – desde a “velha” Alalc até o Mercosul – completa essa obra utilíssima, que passa a servir como referência indispensável em nossa fraca bibliografia sobre esse tema. Brasília, 15 de maio de 1992. Publicado no Boletim de Integração Latino-americana (Brasília: MRE, n. 5, abril-junho de 1992, p. 125-126) e no jornal Cone Sul/Cono Sur: Jornal da Integração (Porto Alegre: ano IV, n. 29, julho de 1993, p. 7). 85 Maquiavelismo: Fortuna e Virtù de um conceito Sérgio Bath: Maquiavelismo: A prática política segundo Nicolau Maquiavel (São Paulo: Editora Ática, 1992, Série Princípios nº 216) Se os direitos autorais tivessem extensão indefinida, os herdeiros de Niccolò Machiavelli estariam certamente entre os seres mais ricos do planeta. Eis que não há grande cientista político, filósofo moral, aprendiz de conselheiro do príncipe, colunista social, político provincial, executivo-necessitado-de-um-pouco-de-verniz cultural-nos-encontros– mundanos ou, ainda, jovem ‘jornalista’ de uma simples folha interiorana que não seja capaz de repetir, certa ou erradamente, alguns dos preceitos retirados da obra do grande escritor florentino. Bastaria, por exemplo, o registro de algumas frases, geralmente as mais conhecidas – “os fins justificam os meios”, “deve-se cometer o mal de uma vez só, o bem aos poucos”, ou ainda “é muito mais seguro ser temido que amado” – para que rios de dinheiro, na forma original dos fiorini ou, preferencialmente, na versão mais contemporânea dos dólares, dos marcos alemães ou dos ienes, fossem continuamente transferidos para os cofres de seus familiares. O próprio Nicolau, na verdade, não acumulou muita fortuna – nem sob a forma de riqueza, no sentido literal da palavra, nem como manifestação da sorte, no original italiano – ao longo de uma vida muito atribulada, em que foi de tudo um pouco: burocrata meticuloso, diplomata profissional, conselheiro oferecido, psicólogo involuntário, historiador dirigido, patriota exaltado, comediógrafo razoável e estrategista aprendiz. O fato é que, a despeito dessas múltiplas profissões, seu filho registra numa carta testamentária: “Nosso pai nos deixa numa pobreza muito grande”. De todas as suas ocupações, na que mais justificaria sua fama, a do “astuto oportunista e ardiloso” que emprega a “desonestidade calculada e fria” para alcançar riqueza e poder, Maquiavel foi um completo fracasso. Nem de copyrights de sua própria obra ele conseguiria viver, já que suas duas obras mais importantes — Il Principe e os Discorsi sopra la prima deca di Tito Livio — foram publicadas postumamente. Essas e muitas outras informações sobre a vida e a obra do grande pensador e escritor florentino comparecem no denso e sintético ensaio de Sérgio Bath, especialista e tradutor de Maquiavel. O essencial de seu livro, como indica o título, se concentra porém num exame do significado e da importância teórica do “maquiavelismo” para a teoria social contemporânea e numa avaliação de seus famosos preceitos para a própria política “prática”. Como esclarece 86 Sérgio Bath, há muito de injustiça na reputação do precursor da sociologia política: mais do que propor receitas imorais para garantir a conquista e a manutenção do poder pelo Príncipe, Maquiavel, ao escrever sobre a arte de governar, estava interessado em “abordar a verdade efetiva das coisas e não a imaginação”. Sua grande virtude, segundo um comentarista, foi a de nunca se utilizar das palavras para esconder os pensamentos. Maquiavel nada mais fez senão traduzir em suas obras os comportamentos e atitudes dos homens políticos – condottieri, patrícios republicanos, cardeais da Igreja – aos quais estava ligado ou a cuja ação assistia: traição, crueldade, má-fé, ingratidão. Em suma, combinar fortuna e virtù para alcançar uma situação de poder absoluto. Como reconhece lucidamente o grande psicólogo avant la lettre que ele foi: “Raramente os homens se elevam de uma posição modesta às de maior importância sem empregar a força e o engano”. Mais ainda, como cientista político, Maquiavel antecipa o Marx do 18 Brumário e o Weber do Sábio e o Político, ao descrever o dilema dos homens públicos: “os homens são escravos da sua situação e não podem escolher o modo como vivem”. Não basta dizer: “Não tenho ambições; não desejo a riqueza ou honrarias, mas apenas uma vida serena, longe das intrigas. (...) Mesmo que tal escolha fosse sincera, sem o menor toque de ambição, não seria crida. Pode-se preferir viver na tranquilidade, mas todos se esforçarão por perturbá-la”. Outro grande cientista político, Raymond Aron, ao proferir, em 1969, uma célebre conferência sobre Maquiavel e Marx, no Instituto Italiano de Paris, começava dizendo que “quem quer que escreva numa página em branco o nome de Maquiavel não pode deixar de sentir certa angústia”. A reputação de “esfinge” da teoria política, segundo a imagem aroniana, é de certa forma justificada: apesar de escrever com clareza e limpidez, num estilo preciso ao ponto de parecer brutal, o pensamento de Maquiavel jamais deixou de provocar discórdia entre seus intérpretes. O livro de Sérgio Bath constitui uma excelente introdução ao universo político de Maquiavel, às nuances e à complexidade de seu pensamento, ademais de apresentar suas principais obras bem como os comentários sobre elas de ilustres “maquiavelólogos” (o termo não é dele). Os capítulos são bem distribuídos, com um saboroso esboço biográfico, seguido de um breve racconto sobre a obra maquiavélica (no sentido propriamente bibliográfico), excertos de seus conselhos ao Príncipe, um esclarecedor capítulo sobre o “patriota” Maquiavel – republicano e precursor da unificação italiana –, uma exposição sobre a praxis do “maquiavelismo” e um surpreendente paralelo com um antecessor indiano de mais de 2 mil anos atrás: Kautilya, o “Maquiavel da Índia”. 87 No capítulo sobre os exemplos históricos de “maquiavelismo” se traz à tona os meandros e personagens do famoso Plano Cohen de 1937, um dos instrumentos utilizados pelos acólitos de Vargas para precipitar o golpe do Estado Novo. Encerram o livro um vocabulário crítico e uma bibliografia comentada: nesta última teria sido útil indicar que sua obra completa foi publicada na prestigiosa Bibliothèque de la Pléiade, com uma introdução de Jean Giono e extensas notas por Edmond Barincou. Também se poderia mencionar, ao lado de Claude Lefort, o grande intérprete italiano de seu pensamento, Delio Cantimori, autor do ensaio sobre Maquiavel na Storia della Letteratura Italiana da Garzanti. Apenas um reparo nessa obra culta e precisa: dos dois Cromwell citados à página 8, apenas o segundo se refere, de fato, ao famoso Oliver Cromwell (1599-1658), herói da revolução de 1640 que terminou por decapitar um Stuart; o primeiro Cromwell referido se chamava Thomas (1485-1540) e serviu como conselheiro de outro “príncipe cruel”, Henrique VIII, aconselhando-o – “maquiavelicamente” – a afirmar contra Roma a autonomia religiosa da Igreja inglesa (divórcio oblige), a sustentar a supremacia do Rei em toda e qualquer matéria religiosa e, last but not the least, a confiscar em favor da Coroa todas as propriedades monásticas na velha Albion. Apesar de, em sua época, não ter ganho muitos royalties com seus conselhos, Maquiavel sempre fez enorme sucesso entre os poderosos. Como diz Sérgio Bath, em 2069, quando se comemorar o 600º aniversário de seu nascimento, “é muito provável que a notoriedade do nosso autor continue inabalada”. Com efeito, enquanto a riqueza e o poder continuarem a ser mercadorias extremamente escassas – e, portanto, valorizadas – tanto no mercado econômico como na ágora política, o grande Maquiavel continuará sendo lido com interesse pelos candidatos a condottieri nas modernas cidades-Estado. Para os sociólogos e cientistas políticos, esses litterati da modernidade, eles sempre encontrarão em Maquiavel matéria-prima para doutas reflexões acadêmicas e ricas ilustrações sobre a “política prática”. Quanto aos oportunistas de diversos quilates, não convém tampouco desprezar os ensinamentos do florentino: afinal de contas, qual é o obscuro burocrata que não gostaria de ser elevado à condição de “conselheiro do Príncipe” ? Há um Maquiavel para todos e cada um ! Brasília, 5 de maio de 1992. Publicado, sob o título de “A inabalável notoriedade do conselheiro do príncipe”, no Caderno 2, Armazém Literário, do Correio Braziliense (Brasília: 16 de maio de 1992, p. 7) . 88 O Mercosul no contexto regional e internacional Paulo Roberto de Almeida: O Mercosul no contexto regional e internacional (São Paulo: Edições Aduaneiras, 1993, 204 p.; ISBN: 85-7129-098-9) O estudo visa, como seu nome indica, colocar o Mercosul em perspectiva regional e internacional. A melhor forma de cumprir esse objetivo passa pela adoção de um duplo enfoque metodológico, tanto de caráter histórico como de tipo sistêmico. Daí a razão desse trabalho começar, não pelos aspectos teóricos do processo de integração econômica, mas por uma aproximação empírica do sistema internacional de comércio, desde sua fase constitutiva, no imediato pós-guerra, até a mais recente rodada de negociações multilaterais sob a égide do GATT. Daí também um tratamento prático do problema da integração regional, por meio de uma apresentação sumária das diversas experiências integracionistas em outros continentes, em especial no cenário europeu, e da discussão subsequente das dificuldades que o processo integracionista enfrentou na América Latina nas últimas três ou quatro décadas. Essa abordagem histórica preliminar permite situar verdadeiramente o Mercosul no contexto regional e internacional, abrindo, assim, caminho à exposição de natureza mais estrutural ou sistêmica da segunda parte do trabalho. Depois de um capítulo introdutório, ainda de caráter histórico, sobre os antecedentes do Mercosul, são abordadas as características básicas da nova área de integração e discutidos os principais problemas da integração subregional em sua atual fase de transição. Este trabalho em muito beneficiou-se da experiência adquirida pelo autor no terreno acadêmico e profissional. Ele é, antes de mais nada, fruto de vários anos de estudo de questões relativas à economia e ao comércio internacional, desde a defesa, em 1976, de uma tese de mestrado em economia internacional, na Universidade de Antuérpia, sobre o comércio exterior brasileiro, até o exercício docente em universidades públicas e particulares nos anos 1970 e 80. Uma tese de doutoramento em Ciências Sociais pela Universidade de Bruxelas, em 1984, permitiu-me revisar muitos dos conceitos históricos e sociológicos sobre o desenvolvimento do capitalismo moderno, no centro e na periferia, o que se reflete no presente trabalho pela forte ênfase que é dada ao exame dos processos históricos de conformação de espaços econômicos integrados, na Europa e na América Latina. Ele resulta ainda da experiência profissional do autor como negociador brasileiro em alguns dos foros internacionais de Genebra, no GATT (Rodada Uruguai), na UNCTAD, na 89 OMPI e em outras organizações internacionais ali sediadas, ademais de uma profícua estada na Representação do Brasil junto à ALADI, em Montevidéu. Mas, ele deriva, essencialmente, de uma intensa participação, no período recente, em diversas instâncias negociadoras e de policy formulation na seção brasileira do Mercosul, em especial nos aspectos relativos à solução de controvérsias e à estrutura institucional. Ele pode ser escrito, finalmente, graças ao trabalho desenvolvido pelo autor como coordenador de alguns dos sistemas de informação criados pelo Governo brasileiro sobre o Mercosul e a integração regional, notadamente como responsável pelo “Banco de Dados Mercosul” e como editor da publicação trimestral Boletim de Integração Latino-Americana, divulgado pela Subsecretaria-Geral de Assuntos de Integração, Econômicos e de Comércio Exterior do Ministério das Relações Exteriores. Não obstante, é óbvio que as opiniões e conceitos aqui emitidos são da exclusiva responsabilidade do próprio autor, não representando, no todo ou em parte, posições ou políticas do Ministério das Relações Exteriores ou do Governo brasileiro. Brasília, junho de 1993. Apresentação ao livro O Mercosul no contexto regional e internacional. 90 O Brasil no sistema político multilateral: uma perspectiva de 50 anos Ministério das Relações Exteriores: A Palavra do Brasil nas Nações Unidas: 1946-1995 (Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 1995, 596 p.; introdução e comentários do Emb. Luiz Felipe de Seixas Corrêa) Present at the creation é como o ex-Secretário de Estado norte-americano Dean Acheson chamou seu livro de memórias, que trata, em larga medida, da emergência do sistema internacional no pós-guerra. A inspiração do título é retirada de famosa frase de um imperador espanhol, segundo o qual, “se [ele] tivesse estado na criação do mundo, teria dado alguns bons conselhos ao Criador...” O Brasil, precisamente, fez parte do seleto grupo de países que desempenhou um papel ativo no nascimento das organizações multilaterais do último meio século, podendo assim, a justo título, argumentar que também deu bons conselhos a seus idealizadores. Com efeito, embora com modestos resultados – em razão de sua reduzida capacidade de ação internacional –, em São Francisco o Brasil participou intensamente do processo de delicadas negociações políticas que conduziram à instituição da ONU, sucessora da malfadada Liga das Nações. Meia centena de países estiveram presentes à criação da ONU, apesar de que seu desenho básico tenha sido acertado reservadamente pelas lideranças políticas de apenas três dentre eles, os Estados Unidos de Roosevelt, o Reino Unido de Churchill e a União Soviética de Stalin, aos quais mais tarde vieram juntar-se, como membros permanentes do Conselho de Segurança, a França de De Gaulle e a China de Chiang Kai-shek. Uma das preocupações do Brasil – manifestada de forma recorrente durante o meio século decorrido desde então – foi a de, efetivamente, buscar diminuir, no próprio ato de criação, o grau de arbítrio acordado às grandes potências sobre a condução dos negócios internacionais: em São Francisco o delegado brasileiro se posicionou contra o direito de veto acordado aos cinco membros permanentes, muito embora o País procurasse, ambiguamente, inserir-se – assim como em 1926 e atualmente – no inner sanctum do poder mundial. Em todo caso, o Brasil, que a partir de 1949 passou a inaugurar o período anual de sessões da Assembleia Geral, sempre reafirmou o primado do direito sobre a força, o da ética universalista sobre o egoísmo do interesse estreitamente nacional. Outra preocupação básica, inspiradora da diplomacia econômica multilateral do Brasil, é com o desenvolvimento econômico e social dos países menos avançados, mediante o reforço do papel do Conselho Econômico e Social e a intensificação da cooperação internacional nessa área. 91 Se houve alguma “utopia brasileira”, nestes 50 anos de participação nas assembleias gerais da ONU, ela foi, como argumenta o embaixador Seixas Corrêa, a “utopia da justiça universal”, uma utopia que “tem os olhos postos no porvir”, de “um país singular que busca encontrar-se consigo mesmo, ao mesmo tempo que procura construir o seu lugar na História”. Sua introdução ao volume, assim como as bem redigidas notas anuais de apresentação, são essenciais para situar os discursos dos delegados brasileiros no contexto internacional e nacional que cercou cada uma das assembleias gerais da ONU neste último meio século. Como ressaltado pelo funcionário do Itamaraty, alguns dos discursos “são mais explícitos, outros algumas vezes reticentes; alguns revelam-se inovadores, outros conservadores; alguns mais acadêmicos, outros mais orientados para o plano da operação diplomática. Tomados em seu conjunto, [os] textos constituem (...) um breviário da política externa brasileira”. Eles também revelam, segundo o diplomata, algumas das dicotomias da diplomacia brasileira: nacionalismo e internacionalismo, realismo e idealismo, ocidentalismo e terceiro-mundismo, continuidade e mudança. Na primeira sessão, por exemplo, o delegado brasileiro advertia que se o homem não for treinado para manejar corretamente a “energia cósmica” que acabava de ser criada, “poderá ser tragado por ela”. Em 1951, numa profissão de fé latina, se prometia “juramento de eterna lealdade ao Cristianismo, ao império da lei e à cultura do Mar Mediterrâneo”. Oswaldo Aranha, em 1957, deixa de situar o Brasil no universo europeu-norte-americano para identificá-lo como latino-americano e como país em desenvolvimento. Em 1961 Affonso Arinos expõe os princípios da política externa independente, mas recusa a caracterização de “neutralista” para o Brasil. O movimento militar de 1964, com sua opção declarada pela “interdependência” dos países pertencentes ao sistema ocidental, reverte o discurso brasileiro na ONU à velha bipolaridade dos anos clássicos da guerra fria e justifica, em 1965, a intervenção na República Dominicana. Mais adiante, todavia, o Brasil recusa o “congelamento do poder mundial”, opõe-se ao tratado de não-proliferação nuclear negociado exclusivamente segundo o interesse das grandes potências e passa a falar na “diplomacia da prosperidade”. Com efeito, enfatizando um dos temas mais recorrentes da argumentação discursiva da política externa brasileira nos diversos foros multilaterais, o que essencialmente se ouve nas assembleias gerais da ONU são as constantes afirmações do delegado brasileiro sobre a necessidade de desenvolvimento como garantidor da própria paz mundial. O Brasil tinha sido um dos principais articuladores da constituição da UNCTAD e da UNIDO e não deixa de lamentar o fracasso de algumas de suas conferências, assim como das duas “décadas do 92 desenvolvimento”. Azeredo da Silveira saúda, em 1977, a convocação de conferências especializadas sobre cooperação técnica entre países em desenvolvimento e sobre ciência e tecnologia para o desenvolvimento. Saraiva Guerreiro, no contexto das demandas por uma nova ordem econômica internacional e por uma Estratégia Internacional para o Desenvolvimento, recheia seus discursos de conceitos que alguns identificariam com o terceiro-mundismo. De uma forma geral, o discurso brasileiro mantem, ao longo de todos esses anos, suas constantes onusianas: reforma da Carta, recusa de um mundo gerido pelas grandes potências, desarmamento universal, cooperação para o desenvolvimento, preeminência do direito internacional e, cada vez mais, promoção dos direitos humanos e da democracia. A retórica da descolonização e da autodeterminação chocava-se, em eras passadas, com o apoio velado dado a Portugal, mas a condenação do racismo e do apartheid sempre foi explícita. A ênfase pan-americana dos primeiros anos converte-se na prioridade atribuída à América Latina no período recente, assim como a busca de uma “relação especial” com os Estados Unidos — não tratada, obviamente, nos discursos da AGNU — é substituída pelo reforço dos laços com a Argentina, prenúncio do Mercosul. A proposta, feita em 1986, de uma “Zona de Paz e Cooperação no Atlântico Sul” leva o Brasil a retomar sua capacidade de iniciativa nos foros multilaterais, algo descurado desde o lançamento, no final dos anos 50, da frustrada “Operação Pan-Americana” no âmbito hemisférico. Nos últimos anos, ao mesmo tempo em que o Brasil se libertava de alguns constrangimentos do passado — democracia limitada, suspeitas de proliferação nuclear, situações de descontrole econômico e de indiferença com os problemas sociais —, o País passa a sofrer novas pressões internacionais em virtude das questões ambiental e social: a Amazônia e os direitos humanos inserem-se nos discursos onusianos. Preparando-se para a acolher a conferência do meio ambiente no Rio de Janeiro, o Brasil deixa a postura defensiva, voltando também a propugnar a reforma da Carta. Em seu discurso de 1989, o presidente Sarney sugere a introdução de uma nova categoria de membros permanentes no Conselho de Segurança, sem o direito de veto. Os instrumentos bi- ou quadrilaterais assinados com a Argentina, a ABACC e a AIEA no campo das salvaguardas nucleares cumprem, para todos os efeitos, no plano internacional, a determinação constitucional de utilização da energia atômica exclusivamente para fins pacíficos. Celso Lafer, em 1992, dá ênfase aos direitos humanos como valores absolutos e Celso Amorim, em 1993, propõe a atualização dos “três D’s” expostos por Araújo Castro trinta anos antes, substituindo a descolonização pela democracia, ao lado dos problemas 93 permanentes do desarmamento e da democracia. Amorim também apoia decisivamente, como não poderia deixar de ser, a proposta Agenda para o Desenvolvimento e, em 1994, reivindica abertamente, pela primeira vez, uma cadeira para o Brasil no Conselho de Segurança. Finalmente, na 50a. sessão, o ministro Luiz Felipe Lampreia confirma o interesse brasileiro na ampliação do CSNU e faz um balanço do papel da ONU em suas primeiras cinco décadas de existência. A compilação editada pela Fundação Alexandre de Gusmão constitui, assim, um retrato fiel, mesmo se parcial, da atuação diplomática multilateral brasileira entre 1946 e 1995, oferecendo uma síntese condensada do discurso e da prática da política externa brasileira nesse período. Como afirma o chanceler em sua apresentação, a obra passa “a constituir uma fonte autorizada de referência histórica e doutrinária. (...) Ênfases, avaliações, intuições e sensibilidades da política externa brasileira revelam-se com particular acuidade nos discursos da Assembleia Geral”. A ONU sempre foi o grande cenário para o exercício das melhores virtudes e qualidades da diplomacia política multilateral do Brasil, assim como o GATT e a UNCTAD o foram no campo da diplomacia econômica. Tanto em 1946, presente na criação, como em 1995, participante de seu cinquentenário, o Brasil fala da reforma da Carta: é o tema que ocupará seus melhores diplomatas no futuro imediato. Brasília, 24 de fevereiro de 1996. Inédito na versão completa. Publicado em versão resumida na Revista Brasileira de Política Internacional (Brasília: vol. 39, n. 1, janeiro-julho de 1996, p. 182-183). 94 O legado do Barão: Rio Branco e a moderna diplomacia brasileira Rubens Ricupero; João Hermes Pereira de Araújo (organização): José Maria da Silva Paranhos, Barão do Rio Branco: Uma Biografia Fotográfica, 1845-1995 (Brasília: FUNAG, 1995, 132 p.) O “pai fundador” da moderna diplomacia brasileira O Barão do Rio Branco é, incontestavelmente, um dos founding Fathers da moderna diplomacia nacional, ou talvez mesmo a única personagem histórica brasileira capaz de verdadeiramente representar, no terreno da política externa, o que poderíamos chamar de – parafraseando a imagem que Euclides da Cunha empregou para caracterizar D. Pedro II em Contrastes e Confrontos – um “epítome vivo do Brasil”. Em sua donairosa figura talhada num estilo belle époque, ele condensa, presumivelmente, o que as tradições nacionais em política internacional produziram de melhor na longa história institucional do Itamaraty. Coincidentemente, sua permanência física no primeiro Palácio que leva esse nome, no Rio de Janeiro – excetuando-se a curta gestão inicial do Chanceler Olinto de Magalhães (1899-1901), que no entanto nele não residiu –, confunde-se com o próprio surgimento do Itamaraty enquanto cenário da diplomacia brasileira, que foi ali forjada ao longo de sete décadas de regime republicano. O homem e o mito Figura solitária no panteão quase deserto dos 174 anos de diplomacia nacional – onde sobressaem-se, é verdade, algumas outras fortes personalidades, vindas entretanto do mundo político, como Oswaldo Aranha, Raul Fernandes, João Neves da Fontoura, Afonso Arinos de Mello Franco ou San Tiago Dantas –, o Barão é, simultaneamente, uma figura emblemática e o marco fundador de uma política externa posta manifesta e exclusivamente a serviço dos interesses nacionais. Tendo primeiro construído, segundo suas próprias palavras, “o mapa do Brasil”, ele pode dedicar-se depois à difícil tarefa de consolidar a união e a amizade dos povos sul-americanos. Pragmático, antes de mais nada, no sentido de não ater-se a princípios rígidos de atuação diplomática – privilegiando a arbitragem ou a negociação direta, segundo o que melhor conviesse no momento em causa –, mas profundo conhecedor do direito internacional e da história e geografia brasileiras, o Barão permanece praticamente solitário nessa condição de demiurgo de nossa política externa, descontando-se, eventualmente, as 95 míticas figuras ancestrais, mas eminentemente simbólicas, de Alexandre de Gusmão e do “Patriarca da Independência”, Bonifácio de Andrada. A reverência para com ele, na Casa, é de praxe, como bem sabem os poucos iconoclastas localizados (e provavelmente isolados pelos demais colegas): não se fala do Barão como de um “simples” chanceler. Ele sempre foi bem mais do que isso: rara combinação de forjador da unidade territorial brasileira e de mentor de uma diplomacia imaginativa, afirmativa e supostamente clarividente – no estabelecimento da chamada “aliança não-escrita” com os Estados Unidos, por exemplo –, o “mito” do Barão há muito extrapolou o âmbito restrito do serviço exterior brasileiro e mesmo os limites geográficos do território nacional. Na verdade, o mito já existia antes que sua elegante figura – quase que diretamente saída, poder-se-ia dizer, de um dos romances de Eça de Queiróz –, ocupasse durante praticamente uma década inteira (e quatro presidências) o velho Palácio do Itamaraty do Rio de Janeiro: sua recepção triunfal no porto do Rio de Janeiro, chegando de um “exílio” de quase um quarto de século na Europa para ocupar o posto ministerial oferecido por Rodrigues Alves, atestou o quanto a pátria era reconhecida ao defensor vitorioso de nossas pendências lindeiras em casos de difícil comprovação de um direito “original” ao território contestado. Exemplos de sua incrível capacidade em reverter em benefício do País casos de difícil solução pelas vias “normais” de solução de controvérsias são encontrados no encaminhamento das delimitações de fronteiras com a Argentina – com a qual um primeiro acordo desastradamente costurado por Quintino Bocaiúva não tinha conseguido passar pelo crivo do Congresso – e com a Bolívia, aqui envolvendo reconhecidamente cessão e compra de território estrangeiro: combinando habilmente o recurso ao uti possidetis – em áreas cuja comprovação de posse efetiva teria sido difícil a outrem que não o eminente conhecedor dos mais diminutos recônditos da ocupação colonial lusa e bandeirante – com doses variadas de argumentação diplomática e de firme persuasão, o Barão (mero Cônsul em Liverpool no primeiro caso) assegurou para o Brasil vitórias consagradoras em dois difíceis litígios. Carisma e diplomacia A figura patriarcal do “velho” Barão constitui, para a diplomacia brasileira, um excelente exemplo do que, na terminologia sociológica weberiana, chamaríamos de “liderança carismática”, ou seja, uma autoridade inconteste dotada de suas próprias fontes de legitimidade intrínseca, baseada na experiência e no saber. O Itamaraty como um todo, aliás, sempre foi afirmativamente weberiano, ainda que malgré-lui: tendo começado a funcionar sob 96 uma sociedade manifestamente “patrimonialista”, a Casa adquiriu sua aura de prestígio sob a administração decididamente “carismática” do Barão. No século XX, ela soube acompanhar o processo de modernização do Estado, passando por diversos experimentos de racionalização burocrática — de inspiração “daspiana” ou autônoma — para afirmar sua crescente profissionalização, segundo o modelo da administração “racional-legal”, por intermédio do Instituto que leva o nome do patrono da Casa, criado em 1945. O Itamaraty passa e repassa, constantemente, toda a tipologia do mestre de Heidelberg, combinando carisma e poder, tradição e burocracia, segundo um modelo no qual a própria burocracia diplomática apresenta-se como carismática, em face das demais corporações do Estado: cultiva-se muito, dentro e fora da Casa, o mito da excelência. Por outro lado, ele tampouco deixa de ter uma espécie de iron cage: uma personalização extremamente rebuscada das relações de poder dificulta, em última instância, a rotinização do diplomata brasileiro, isto é, a institucionalização definitiva da carreira, esse obscuro objeto do desejo da maior parte dos diplomatas. Em todo caso, se alguma vez praticamos no Brasil o culto a uma personalidade política qualquer, essa palma reverte integralmente ao Senhor Barão, já que o candidato alternativo – ou melhor dito, oficial –, Getúlio Vargas, não pode razoavelmente ter sua preeminência histórica derivada “geneticamente” de algum entusiasmo espontâneo das “grandes massas”, sendo antes o resultado de um processo largamente conduzido a partir do alto, isto é, da própria máquina do Estado, com fins claramente orientados à popularização do estadista gaúcho. Em contraste com a personalidade exuberante do caudilho gaúcho, o Barão foi um “retraído” político e um homem de estudo, mais afeto aos gabinetes de leitura do que aos ministeriais: ele nunca buscou a promoção autodirigida ou outra causa que não a da defesa silenciosa e constante dos interesses do Brasil no exterior e no trato com nossos vizinhos imediatos. Longe dele a propaganda pessoal ou a busca de cargos políticos: seu próprio estilo de vida e necessidades familiares o teriam isolado em missões burocráticas do trabalho consular ou de representação diplomática, não fosse a lembrança benevolente dos amigos e a reputação adquirida nas negociações de fronteira a tirá-lo de postos relativamente periféricos no exterior para guindá-lo às honras de um ministério ele mesmo colocado no centro das atenções nacionais e regionais. A despeito de sua proverbial oposição ao ingresso de mulheres e de um certo arbítrio na seleção (pessoal) dos candidatos à carrière – explicáveis porém em termos de Zeitgeist –, o Barão é parte indissociável do “inconsciente coletivo” dos diplomatas brasileiros, referência 97 incontornável da história diplomática nacional, presença obrigatória nos estudos conduzidos em sua academia profissional – que aliás leva o seu nome e acaba de comemorar os 50 anos da formação de sua primeira turma de alunos –, uma espécie de “espírito-que-anda” nos salões e corredores do Itamaraty e paradigma incontestado da “boa” política externa, ainda que segundo os padrões clássicos, e talvez algo antiquados, da prática diplomática. Na historiografia diplomática brasileira existe claramente um AB. e um DB, antes e depois do Barão, mesmo se o culto à personalidade não chega às raias do sagrado. Em todo caso, nenhum “rito iniciático”, nenhuma “prova de passagem” ou teste de “idade adulta”, se pode fazer, na Casa de Rio Branco, sem algum tipo de referência, remissão, citação ou alusão ao velho Barão. Tanta unanimidade poderia fazer sorrir o incauto, um outsider pouco afeto a nossas idiossincrasias diplomáticas ou algum “estranho no ninho”, mas não causa maior espécie ou surpresa aos habitués do Itamaraty: afinal de contas, o Barão é o próprio Itamaraty e a imagem do Itamaraty só se construiu, no século XX, a partir da figura e da gestão dessa personagem ímpar da transição monárquico-republicana do Brasil. No dizer de um diplomata argentino da primeira metade do século: Rio Branco “era el Brasil mismo”. Em suma, Barão só tem um em toda a história brasileira: é Rio Branco, ponto final. Memória fotográfica do Barão Para comemorar os cento e cinquenta anos de seu nascimento, a Fundação Alexandre de Gusmão, do Itamaraty, sob a presidência do Embaixador Baena Soares, ex-SecretárioGeral do Ministério das Relações Exteriores e ex-Secretário-Geral da Organização dos Estados Americanos, organizou em 1995 uma primorosa exposição de fotografias, cujo sucesso se deveu muito ao entusiasmo da Chefe da Mapoteca do Itamaraty no Rio de Janeiro, Sra. Maria Marlene de Souza. Essa rica coleção fotográfica, exibida no Palácio Itamaraty de Brasília por ocasião das festividades do dia do diplomata (coincidentemente comemorado todo dia 20 de abril, natalício do Barão), serviu por sua vez de suporte iconográfico ao magnífico volume organizado pelo embaixador João Hermes Pereira de Araujo (igualmente autor das legendas das fotos) em torno da vida de José Maria da Silva Paranhos: Barão do Rio Branco, Uma Biografia Fotográfica,1845-1995, com texto do embaixador Rubens Ricupero. O livro, carinhosamente preparado e editado pelos herdeiros espirituais e institucionais do Barão, corresponde inteiramente ao que dele se anuncia no título: combina com rara felicidade texto e imagem, para oferecer uma biografia ilustrada do assim chamado patrono da diplomacia brasileira. Os marcos cronológicos indicados são inteiramente preenchidos, pois que, à preciosa reconstituição do itinerário pessoal, intelectual e profissional do Barão, nos 98 limites cronológicos de sua existência (1845-1912), segue-se uma reflexão sobre a influência de seu pensamento e ação nas décadas posteriores (o “destino do paradigma”), um capítulo comportando uma indagação pertinente, e contemporânea (“o que faria o Barão hoje?”), finalizando com uma avaliação global da grande personagem histórica (“contrastes e confrontos”). O autor da excelente biografia comentada que acompanha (ou melhor, que sustenta soberbamente) a sucessão de fotos e caricaturas coletadas especialmente para esta edição, o embaixador Rubens Ricupero, tinha todas as qualificações intelectuais e profissionais para retraçar com maestria a vida e a obra da “esfinge Rio Branco”, segundo ele o “último grande representante da escola de estadistas do século XIX brasileiro”. As “afinidades eletivas” de Ricupero com a personalidade moral e intelectual do Barão o levam, aliás, um pouco mais além da mera reconstituição biográfica, já que foi ele próprio professor de história diplomática do Brasil e de relações internacionais contemporâneas, no Instituto Rio Branco e na Universidade de Brasília. Reconhecidamente um dos melhores idealizadores e formuladores da política externa governamental – com forte ênfase na área americana – e um de seus pensadores mais abalizados, Ricupero completou, de uma certa maneira, a obra do Barão, ao contribuir, por meio de um arcabouço jurídico de notória complexidade (Tratados da Bacia do Prata e de Cooperação Amazônica, início do processo de integração Brasil-Argentina), com os processos de aprofundamento da cooperação e interdependência entre Estados que tinham seu relacionamento baseado, até então, no mero reconhecimento mútuo das fronteiras traçadas por Rio Branco. Não fosse o arriscado e talvez o inadequado da comparação, poderíamos chamá-lo de “George Kennan brasileiro”, no sentido de ser Ricupero um diplomata sobretudo conceitual, preocupado em não apenas enquadrar sua atuação profissional num determinado contexto filosófico e moral, mas também em dar-lhe uma perspectiva histórica de mais largo alcance, ao estilo da “longa duração” cara a Fernand Braudel (não por acaso, Ricupero é igualmente o presidente do Instituto de Economia Mundial, de São Paulo, que leva o nome do grande historiador francês). Ninguém melhor do que Ricupero poderia, portanto, apresentar de maneira inovadora os principais lances de uma vida a serviço do Brasil, assim como os elementos mais relevantes de um pensamento diplomático feito de rupturas e continuidades, de tradição e modernidade. Ele não se contenta, entretanto, em recolher episódios pessoais ou exemplos de desempenho profissional contidos nas conhecidas biografias dedicadas ao Barão – das quais as mais conhecidas são, sem dúvida, a de Álvaro Lins e a de Luiz Viana Filho –, ou os julgamentos por vezes peremptórios encontrados em obras como as de Oliveira Lima, 99 considerado uma espécie de “anti-Rio Branco”: segundo esse autor contemporâneo do Barão, “se a sua alma tinha refolhos, a sua inteligência era toda banhada em luz”. Ricupero oferece, antes de mais nada, uma reflexão pessoal sobre o papel do Barão no contexto histórico da diplomacia brasileira em sua época, marcada pela transição entre uma monarquia segura de si, num mundo ainda largamente dominado por realezas e sistemas dinásticos, e um regime republicano hesitante e incerto de sua legitimidade original, desejoso de inserir-se na supostamente “solidária” família americana e buscando exemplo e emulação na grande República da América do Norte. Nesse particular, Rio Branco, um “monarquista de formação e gostos europeus”, teria feito, segundo Ricupero, uma “opção preferencial pelos Estados Unidos”, visto como o grande aliado no relacionamento com as potências predominantes do sistema mundial no começo do século XX (não obstante o fato de um grande amigo de Rio Branco, Eduardo Prado, ter escrito um forte libelo “anti-imperialista”, A Ilusão Americana). Razões econômicas, ademais de geopolíticas, certamente não faltaram para justificar a escolha do “novo paradigma” de nosso relacionamento externo: desde 1870 os Estados Unidos compravam mais da metade das exportações brasileiras de café e, na virada do século, 60% da nossa borracha. Atualidade de Rio Branco O que cativa particularmente no texto de Ricupero, e o que nos interessa especialmente reter aqui, não é tanto o itinerário pessoal de uma vida nômade a serviço do Estado brasileiro, os lances gloriosos na confirmação (ou na própria construção) de nossas fronteiras ou, ainda, o pensamento político de um monarquista conservador típico do século XIX, mas, sobretudo, o significado de sua diplomacia original (mas ainda eivada de características oitocentistas) para os problemas de nossa época e para os desafios do momento. Deixando de lado, por dificuldades práticas e óbvios óbices políticos, a “antecipação [talvez utópica] do futuro” consubstanciada no projeto de Pacto ABC., esquema de não-agressão, entendimento e cooperação entre os três maiores países sul-americanos que deveria complementar, na visão do Barão, a “aliança não-escrita” com os Estados Unidos, Paranhos já vislumbrava para o País um importante papel mundial. Em artigo ao Jornal do Comércio ele dizia: Desinteressando-se das rivalidades estéreis dos países sul-americanos, entretendo com esses Estados uma cordial simpatia, o Brasil entrou resolutamente na esfera das grandes amizades internacionais, a que tem direito pela aspiração de sua cultura, pelo prestígio de sua grandeza territorial e pela força de sua população. 100 Muito embora território e população não sejam, hoje em dia, critérios exclusivos de afirmação internacional, a visão do mundo do Barão tem muito a ver com o encaminhamento dos principais desafios enfrentados hoje pelo Brasil. Ele tinha consciência do limitado poder de projeção externa do País e por isso mesmo, ainda que recusando o militarismo, era um “partidário ativo”, como coloca Ricupero, “da modernização das forças armadas, tendo seu nome ficado ligado ao programa de renovação da frota”. Não proclamava, contudo, a necessidade de “armamentos formidáveis” ou a “aquisição de máquinas de guerra colossais”: tratava-se, tão simplesmente, de cuidarmos “seriamente de organizar a defesa nacional, seguindo o exemplo de alguns países vizinhos”. Ele descartava as pretensões à preeminência de alguns países latino-americanos – usando palavras como “loucura das hegemonias” ou “delírio das grandezas” – e voltava a afirmar sua convicção íntima: Estou persuadido de que o Brasil do futuro há de continuar invariavelmente a confiar acima de tudo na força do Direito e, como hoje, pela sua cordura, desinteresse e amor da justiça, a conquistar a consideração e o afeto de todos os povos vizinhos em cuja vida interna se absterá de intervir. Sua intenção de conquistar para o Brasil, com a retórica e a força da argumentação de Rui Barbosa, uma cadeira permanente na Corte Internacional de Justiça – então em discussão na segunda conferência da Paz da Haia, em 1907 – logo chocou-se com a proposta “oligárquica” que defendiam as grandes potências imperiais, inclusive os Estados Unidos. O episódio, humilhante para o País na visão de Rio Branco, não é destituído de ensinamentos, como lembra Ricupero, para o debate atual em torno da reforma da Carta da ONU e da eventual assunção do Brasil a uma cadeira permanente no Conselho de Segurança. Sem qualquer consulta prévia ou consideração diplomática, Estados Unidos, Grã-Bretanha e Alemanha relegaram o Brasil a uma terceira categoria (membros não-permanentes), ainda inferior a países europeus menos populosos. O Barão, tentando de diversas maneiras salvar o prestígio e a honra do Brasil, sugeriu várias fórmulas alternativas (indicação de um juiz por cada país membro, para seleção ulterior em função dos casos, como num painel do GATT; designação de representantes permanentes para cada um dos três maiores países sul-americanos, Argentina, Brasil e Chile, e um quarto, rotativo entre os demais; constituição de um tribunal com 21 membros, sendo 15 permanentes para os países com mais de dez milhões de habitantes), sem lograr contudo nenhum avanço; pior: essas mudanças de posição “nos estavam fazendo perder terreno junto aos latino-americanos e aos países europeus menores”. Atendendo então à tese igualitária, desde o princípio defendida por Rui, Paranhos assume uma posição de rejeição a compromissos que implicassem a existência de nações de terceira, quarta ou quinta ordem: 101 Agora que não mais podemos ocultar a nossa divergência [com as potências europeias e com os Estados Unidos], cumpre-nos tomar francamente a defesa do nosso direito e do das demais nações americanas. Estamos certos de que Vossência [Rui] o há de fazer..., atraindo para o nosso país a simpatia dos povos fracos e o respeito dos fortes. Assim, a despeito de uma tentativa inicial de colaboração e de entendimento com os Estados Unidos, lembra Ricupero que o “choque com a posição americana tornou-se frontal e o Brasil assumiu a liderança dos países latino-americanos e de países menores europeus na luta pela igualdade”. O Barão teve de constatar os limites da política de cooperação, a primazia da diplomacia do poder e a própria “opção preferencial” dos norte-americanos pelas grandes potências europeias. Integração hemisférica e questão social no Brasil Na vertente econômica, de outra parte, o Brasil do final do século XIX era mais favorável do que os demais países latino-americanos ao projeto americano de estabelecimento de uma união aduaneira do Alasca à Terra do Fogo, a que se opunha veementemente, por sua vez, a Argentina, muito mais vinculada aos interesses comerciais e financeiros britânicos. Atualmente (e não apenas no terreno econômico), parece ter ocorrido, no dizer de Ricupero, uma “inversão de papéis”, segundo a imagem coreográfica do changez de place: a Argentina de Menem apressou-se, por exemplo, em saudar a “Iniciativa para as Américas” de George Bush e em manifestar-se candidata a ingressar no Nafta, de Bill Clinton, enquanto o Brasil mantinha a natural reserva diplomática de um global trader. É bem verdade que a dependência da exportação primária e a questão crucial do acesso ao mercado norte-americano para nosso principal produto da pauta comercial ditavam em grande medida, um século atrás, o interesse brasileiro nesse tipo de aproximação, situação bem diferente da relativa diversificação geográfica e de oferta exportadora de hoje em dia. Armado de um pragmatismo exemplar, o Barão não hesitaria em subscrever, nesse como em outros casos, uma diplomacia adaptável às circunstâncias de cada momento, unicamente comprometida com o interesse nacional, que ele soube encarnar como poucos no decorrer da história nacional. Seu biógrafo e “inimigo cordial”, Oliveira Lima, sublinha que, em Rio Branco, “o interesse pessoal se confundia com o público, assim como sua personalidade mergulhava toda na nacionalidade”. Longe da pátria, na Europa, o Barão – consoante seu lema Ubique Patriae Memor, “em todo lugar lembrar-se da Pátria” – continuava ocupando-se continuamente da terra natal, lendo e anotando livros e mais livros de e sobre nossa história. Jovem pesquisador de história do Brasil, ele tinha sido eleito para o Instituto Histórico e Geográfico em 1867, aos 22 anos, nele permanecendo como sócio ativo até seu falecimento. 102 Seu Esquisse de l’Histoire du Brésil, destinado a integrar o volume Le Brésil en 1889, preparado para a Exposição Universal de Paris, revela muito dessas leituras cuidadosas das obras de viajantes e observadores estrangeiros, assim como das dos cronistas portugueses da era colonial. Consciente de uma das principais deficiências sociais brasileiras de então, ele dedica largas passagens desse livro ao problema da escravidão e sua abolição, consumada praticamente no momento em que o terminava de escrever. Da mesma forma como o dramático problema social brasileiro do final do século XX, o parágrafo final dessa obra de cem anos atrás soa curiosamente atual: Nos últimos quarenta anos, ... o Brasil fez grandes esforços... para difundir a instrução, melhorar o nível do ensino, para desenvolver a agricultura, a indústria e o comércio, tirando partido das riquezas naturais... Os resultados obtidos ... são já consideráveis. Em nenhuma parte do continente americano, salvo nos Estados Unidos e no Canadá, a marcha do progresso tem sido mais firme e mais rápida. A perspectiva promissora traçada pelo Barão do Rio Branco para o Brasil monárquico de então demorou (e ainda demora) certo tempo para ser cumprida, em grande medida devido precisamente à abolição tardia do regime da escravidão e sua preservação de fato, ainda que em forma disfarçada, nas relações sociais de produção de regiões inteiras de seu vasto hinterland, quando não no coração mesmo de zonas urbanas. A permanência de um ancien Régime nas estruturas sociais de dominação e de apropriação do Brasil tem algo a ver, aliás, com a visão conservadora da cidadania ostentada mesmo por personalidades de refinada educação europeia como o Barão. Ainda que ele não tenha sido um positivista e muito menos um jacobino republicano, ele certamente concordaria com o princípio inspirador do regime então inaugurado: o progresso, sem dúvida, mas a ordem antes de mais nada. Em que pese esse conservadorismo social, em matéria de política externa o Barão foi propriamente um revolucionário: sua visão funcional e pragmática do relacionamento internacional do País e seu legado inovador na prática da política externa constituem, evidentemente, meios seguros para converter a diplomacia profissional e especializada de nossos dias num instrumento eficaz de desenvolvimento econômico e social do Brasil. Para isso, e finalizando com um conceito utilizado por Ricupero, precisamos ter, como o Barão, um “grande desígnio de política exterior”, suscetível de converter-se em novo paradigma de nossa diplomacia. Agora, como nos tempos do Barão, o critério básico matem-se o mesmo: a inserção soberana do País na ordem econômica e política internacional. Quase cem anos depois de concebido por seu mentor intelectual, o modelo fornecido por Rio Branco permanece vigorosamente atual. Brasília, 26 de abril a 2 de maio de 1996. Publicado na Revista Brasileira de Política Internacional (Brasília: vol. 39, n. 2, julho-dezembro de 1996, p. 125-135) . 103 O Mercosul por quem o fez Sérgio Abreu e Lima Florêncio e Ernesto Henrique Fraga Araújo: Mercosul Hoje (São Paulo: Editora Alfa-Ômega, 1996) Raymond Aron, arguto observador e comentarista visual dos mais importantes eventos políticos e militares do mundo contemporâneo, se definia modestamente, para fins biográficos, como um simples “espectador engajado”. Os dois autores deste didático e instigante livro sobre o Mercosul, diplomatas profissionais, são bem mais do que simples espectadores engajados do processo de integração sub-regional: eles se incluem entre os construtores do mais importante espaço econômico do hemisfério sul, tendo não apenas assistido a seu itinerário de sucessos, mas também participado ativamente do equacionamento de seus principais problemas enquanto negociadores e formuladores das posições brasileiras no âmbito do Grupo Mercado Comum e de seus órgãos assessores. Portanto, mais do que qualquer outro observador, eles estão plenamente credenciados para descrever as etapas de desenvolvimento do Mercosul, desde o Tratado de Assunção, que o criou em março de 1991, até sua confirmação enquanto zona de livre-comércio e união aduaneira em consolidação, processo consubstanciado no Protocolo de Ouro Preto de dezembro de 1994. Mais ainda, como negociadores presentes nas mais importantes reuniões de consolidação desse processo, eles estão habilitados a descrever, discutir e explicar os dilemas e problemas envolvidos em cada fase, justificando as escolhas efetuadas e expondo claramente sua racionalidade econômica e política. Como diz Winston Fritsch ao prefaciar a obra, “sem sombra de dúvida, este é o ensaio mais abrangente e atualizado sobre o Mercosul já publicado no País”. Este precioso manual sobre a integração regional cobre os diferentes aspectos desse processo, segundo uma organização clara e didática. Uma primeira parte trata dos fundamentos da integração econômica e do desenvolvimento do Mercosul, repassando seus objetivos, seus antecedentes e as fases cumpridas durante o período de transição. A segunda parte, trata da estrutura propriamente dita da união aduaneira, ou seja os instrumentos comerciais e as instituições do Mercosul, inclusive numa perspectiva comparada com a União Europeia: encontra-se assim plenamente justificada a opção, modesta mas realista, por um perfil intergovernamental para o esquema integracionista do Cone Sul, de preferência à adoção de mecanismos supranacionais como é o caso na experiência europeia. 104 As partes terceira e quarta, de menor dimensão, mas não menos importantes, cobrem o quadro econômico internacional e os resultados práticos e perspectivas do Mercosul. São assim enfocados os fenômenos da regionalização e da globalização e as relações com a União Europeia, por um lado, e com os processos continental e hemisférico de integração, por outro. Redigido antes de dezembro de 1995, quando foi assinado o acordo-quadro inter-regional de cooperação com a UE (que sucedeu a um primeiro acordo interinstitucional, de 1992), os autores não puderam pronunciar-se sobre a modéstia de objetivos desse instrumento, algo em recuo ante a promessa de uma zona de livre-comércio prevista na declaração solene de Bruxelas, selada um ano antes. Em qualquer hipótese, o acordo-quadro UE- Mercosul abre um processo negociado de aprofundamento das relações recíprocas e de liberalização progressiva do intercâmbio de bens e dos fluxos de capitais e tecnologia entre as duas regiões, e que contrabalança em alguma medida o outro processo liberalizante engajado no próprio hemisfério americano, o que confronta o Mercosul (e outros países do continente) ao Nafta. No que se refere aos resultados práticos do Mercosul, cabe registrar a plena eficácia e o pragmatismo exemplar do atual esquema intergovernamental. Como afirmam os autores, em lugar de “primeiro criar uma burocracia ampla e bem paga para depois procurar definir suas funções”, adotou-se o percurso inverso: “primeiramente definir as tarefas, e a seguir criar os órgãos encarregados de sua execução”. Como se pode verificar pelas habituais tensões vinculadas ao caráter supranacional da integração europeia, a natureza intergovernamental do Mercosul representa a “principal garantia de que as decisões serão implementadas internamente, já que uma decisão de um órgão intergovernamental é, para efeitos internos em cada país, uma decisão do governo de cada país”. Os autores também sublinham o papel didático do Mercosul, ao combinar política industrial e liberalização comercial. Eles desmontam as teses dos “liberais ortodoxos” e dos “nacionalistas fanáticos”, que recusam uma e outra política, para afirmar o primado da racionalidade econômica e o triunfo da vontade política no Mercosul. O processo de integração não “cria” problemas, ele apenas evidencia as deficiências existentes e apressa uma decisão interna para sua solução. Persistem, na fase atual, duas linhas de tensão básicas, segundo os autores. A primeira se dá “entre a consolidação dos instrumentos já aprovados e a busca de novos avanços”, diferente portanto do dilema europeu entre “aprofundamento” e “alargamento”. A segunda se passa “entre as políticas nacionais e o projeto comum”. Ambas as tensões poderão ser resolvidas através do pragmatismo demonstrado tradicionalmente pelos líderes e negociadores do Mercosul, no sentido de buscar as situações de “equilíbrio dinâmico”, suscetíveis de 105 consolidar o patrimônio já alcançado no processo de integração e de continuar desenvolvendo o mais importante projeto político (e geoestratégico) conhecido historicamente no Cone Sul latino-americano. A crença não é gratuita, vinda de quem participou e conhece por dentro, como nossos autores, o processo de integração regional. Longa vida ao Mercosul. Brasília, 17 de março de 1996. Inédito na versão completa. Publicado em versão resumida na Revista Brasileira de Política Internacional (Brasília: vol. 39, n. 1, janeiro-julho de 1996, p. 175-177). 106 Um roteiro de quatro séculos das relações internacionais do Brasil José Manoel Cardoso de Oliveira: Actos Diplomaticos do Brasil: tratados do periodo colonial e varios documentos desde 1492 Coordenados e anotados por J. M. C. de O., Enviado Extraordinario e Ministro Plenipotenciario, socio correspondente do Instituto Historico e Geographico Brasileiro e do Instituto Geographico e Historico da Bahia (Rio de Janeiro: Typ. do Jornal do Commercio, de Rodrigues & C., 1912; 2 volumes; Tomo I: 1493 a 1870; Tomo II: 1871 a 1912). Edição fac-similar: (Brasília: Senado Federal, 1997; coleção “Memória Brasileira”) Introdução (Tomo I, pp. iii-xxxix) e Addendum (“Relação dos principais instrumentos multilaterais vinculando o Brasil a partir de 1912”, Tomo II, p. i-lv), por Paulo Roberto de Almeida. Esta obra, como indica o autor no preâmbulo, tem sua origem numa compilação préexistente bem mais vasta e grandiosa: a monumental coleção dos “tratados, convenções, accordos, ajustes e protocollos” que, sob a denominação de Pactos Internacionais do Brasil, o diplomata José Manoel Cardoso de Oliveira tinha organizado, por expressa orientação do Chanceler Rio Branco, entre 1908 e 1911. Ao permanecer inédita essa coletânea extraordinária de mais de 6 mil páginas — cobrindo, aliás, apenas os atos internacionais contraídos depois de 1808 —, o sucessor do Barão, Ministro Lauro Müller, decidiu, em 1912, ordenar a publicação de uma edição mais modesta. Cardoso de Oliveira procedeu então a uma revisão-abreviada de seu enorme trabalho de prospecção e garimpagem de todos os atos internacionais do Brasil desde a abertura dos portos – dos quais passou a transcrever apenas a ficha resumida e não mais o texto de cada um – retrocedendo, porém, sua minuciosa e cuidadosa pesquisa até as próprias origens do País, uma vez que ele dá a partida de sua coletânea pela Bulla Intercœtera de 1493. Vem assim a público, ainda no próprio ano da morte do Barão, este Actos Diplomaticos do Brasil, que permaneceu sem reedição desde então. Por que esta nova edição de uma obra, na verdade uma coletânea de instrumentos diplomáticos, editada há 85 anos? Como se justificaria sua relevância, nos dias que correm, em face dos avanços acumulados no período recente pela historiografia e pela politologia das relações internacionais do Brasil? Parece evidente, antes de mais nada, que a obra constitui, ainda hoje, instrumento bastante útil, enquanto referência documental, a várias categorias de pesquisadores ou aos simples leitores interessados no conhecimento dos instrumentos que balizaram, entre o final do século XV e princípios do XX, as relações internacionais do 107 Brasil: ao diplomata contemporâneo como ao historiador das fronteiras, ao jurista motivado pela “etymología” de algumas das obrigações internacionais do Brasil como ao geógrafo curioso da formação progressiva do território, ao “guardião”, responsável na chancelaria nacional, do registro, ratificação e manutenção dos atos diplomáticos do passado colonial ou monárquico como aos legisladores encarregados constitucionalmente de sua aprovação no Congresso, em suma, a consulta é esclarecedora tanto aos “garimpeiros” do passado como aos “planejadores” do futuro. A obra de Cardoso de Oliveira oferece, a todos esses leitores, uma visão verdadeiramente panorâmica, no sentido instrumental da palavra, do conjunto dos instrumentos constitutivos das relações internacionais do País, antes mesmo que o Estado brasileiro pudesse adquirir autonomia nacional e passasse a firmar, pelas mãos de seus próprios dirigentes e representantes diplomáticos, os atos e compromissos que deveriam moldar e pautar sua conduta no campo das relações exteriores e da política internacional. A obra sintetiza, por assim dizer, um “cartório” diplomático – num contexto relacional extremamente dinâmico de superposições e de anulações sucessivas – das políticas exteriores portuguesa e brasileira, nos seus mínimos atos e manifestações respectivas: figuram aqui, além, é óbvio, das convenções de paz e dos tratados de amizade, comércio e navegação, cartas de escribas, notas de chancelaria, assim como, por exemplo, declarações unilaterais de dirigentes políticos. A leitura sequencial ou ao acaso desses atos permite ao pesquisador orientado confirmar – e ao observador minimamente desatento constatar – a extrema densidade política e a grande variedade geográfica das relações externas de duas nações, Portugal e Brasil, que foram, ao longo dos séculos, basicamente periféricas do ponto de vista da política internacional – a Machtpolitik, como gostava dizer Raymond Aron – e, afinal de contas, essencialmente marginais do ponto de vista da Weltwirtschaft. Ao colocar em perspectiva histórica, e segundo uma linearidade diacrônica, essas perspectiva “instrumental” das relações diplomáticas do Brasil – cuja própria política internacional ocupa, finalmente, apenas um terço do período, mas, de fato, oito décimos do volume de atos coberto por esta compilação – Cardoso de Oliveira realizou uma obra de grande valia em benefício de todos aqueles que necessitam “enquadrar” as relações exteriores do Brasil num sistema mais vasto, juridicamente reconhecido, de atos bilaterais, plurilaterais ou “multilaterais” (para empregar um conceito alheio à sua própria época) que conformaram o universo geográfico, econômico e político do relacionamento externo da Nação, inclusive na sua fase pré-independente. Seu trabalho de compilação também é indicativo de um certo “estado de espírito” de uma etapa específica da diplomacia brasileira – a “era do Barão” – que marcou a historiografia brasileira assim como a própria história e a geografia do País. Tratou108 se de uma fase de brilhantes conquistas, por negociação direta ou arbitramento, todas apontadas para a consolidação do território e das fronteiras da Pátria, empreendimento realizado pelo próprio Barão – ajudado eventualmente por jovens diplomatas como Cardoso de Oliveira – com base numa recapitulação histórica meticulosa, fruto de anos de pesquisa ingente, de todos os tratados, acordos e atos bilaterais – alguns plurilaterais – que gradualmente presidiram à formação da nacionalidade brasileira. A obra do “discípulo” e colega Cardoso de Oliveira, ao levantar a miríade de atos demarcatórios de limites (e retificadores de Tordesilhas), de tratados de “alliança”, de convenções de “paz perpetua” e de acordos bilaterais de “amizade, commercio e navegação” contraídos pela diplomacia portuguesa ao longo dos séculos, ilustra amplamente a complexidade da obra do Barão, ao tecer argumento sobre argumento em torno da justeza das reivindicações lindeiras do território nacional. (...) Em fevereiro de 1907, Cardoso de Oliveira, então com 42 anos, é promovido a Conselheiro da Legação em Londres, mas, chamado a serviço ao Rio de Janeiro em maio desse ano, ele viaja em julho para o Brasil, para não mais retornar à capital britânica. Os registros não revelam em que consistiu, inicialmente, esse trabalho em comissão, mas o fato é que nesse mesmo ano ele redigiu, “por ordem do Ministro Rio-Branco”, uma Noticia pormenorisada sobre a reunião e trabalhos do 3° Congresso Scientifico Latino-Americano, realizado no Rio de Janeiro em agosto de 1905. É de se presumir que o chanceler Rio Branco, conhecedor de seu trabalho anterior, publicado no Relatório de 1895, em torno das consultas do Conselho de Estado e dos pareceres dos Consultores jurídicos – em temas relevantes da nacionalidade, nos quais tinha atuado intensamente seu pai, o Visconde – buscasse aproveitarse de sua reconhecida capacidade como compilador e sistematizador dos diversos instrumentos jurídicos e dos atos internacionais das relações exteriores do Brasil. De fato, ele permaneceria em comissão na capital da República de julho de 1907 a julho de 1912, quando é removido para o México. No longo intervalo que se seguiu entre seus postos no exterior, ele seria promovido e designado, primeiramente, Ministro residente na Colômbia (dezembro de 1907) e, depois, Enviado Extraordinário e Ministro Plenipotenciário na Bolívia (janeiro de 1909), mas não chegou a assumir nenhum desses postos, permanecendo à disposição da Secretaria de Estado no Rio de Janeiro e ocasionalmente em Petrópolis (onde o Barão tinha casa e onde se refugiavam muitos diplomatas estrangeiros, amedrontados com os flagelos da febre amarela na capital da República. Suas merecidas promoções e honrosas designações parecem ter a ver, justamente, não tanto com sua “extensa” folha de serviços diplomáticos (finalmente reduzida a três postos relativamente pacatos), mas com o trabalho de 109 natureza intelectual que ele passou a desempenhar para o Barão, amante dos velhos papéis, dos antigos tratados e dos atos internacionais que, desde a era colonial e mesmo de forma indireta, conformaram as relações internacionais do Brasil. Tem aí origem a magnífica coleção dos tratados e convenções a partir de 1808 que ele pacientemente organizou, a pedido do Barão, entre 1908 e 1911, assim como esta obra mais ampla cronologicamente, mas ao mesmo tempo mais sintética substantivamente. Atendendo igualmente a um pedido do chanceler Rio Branco, sempre cioso do bom funcionamento de uma Casa na qual seu pai tinha servido quatro vezes, Cardoso de Oliveira prepara, em 1911, uma monografia tratando da Remodelação dos Quadros do Corpo Consular Brasileiro (Petrópolis, 1911), serviço pelo qual ele tinha iniciado seu périplo internacional vinte anos antes. (...) Depois da morte do Barão, sua carreira, bastante nômade, é feita essencialmente no exterior, a começar pelo México, onde pode seguir alguns dos lances mais importantes da Revolução que agitou o País durante longos anos. Removido para lá em julho de 1912, a partir de abril do ano seguinte e até 1915 teve a seu cargo os interesses dos Estados Unidos no México. Encerrando sua missão em agosto desse ano, partiu a convite do governo norteamericano em visita oficial aos Estados Unidos, onde permaneceu até setembro. 1 Novamente em comissão no Rio de Janeiro, é designado, em 31 de maio de 1916, Enviado Extraordinário e Ministro Plenipotenciário junto ao Império da Áustria-Hungria, mas não chegou a partir para Viena, presumivelmente em virtude do estado de guerra e do próximo torpedeamento de embarcações brasileiras por navios alemães nas próprias costas atlânticas. (...) A rationale do compêndio parece ser a das relações internacionais do Brasil no sentido lato, muito embora sua interpretação seja restrita. Não são incluídos, por exemplo, os inúmeros contratos de empréstimos externos, pela simples e compreensível razão de que se tratava de atos contraídos com particulares – os famosos banqueiros ingleses da Casa Rothschild –, quando o critério de inclusividade retido por Cardoso de Oliveira é o das relações entre Estados soberanos. Os contratos passados com companhias de colonização, para facilitar a entrada e instalação no Brasil de imigrantes estrangeiros, ou aqueles estabelecendo concessões públicas para a exploração de determinados serviços gerais (iluminação), de transportes ou de comunicações também ficam de fora do compêndio, o que reduz mais uma vez alguns outros aspectos essenciais das relações internacionais do País, aqui em sua vertente econômica, no século XIX. O Brasil da época de Cardoso de Oliveira 1 Cf. Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro, op. cit., p. 2440. 110 ainda era um grande importador de braços, capitais e serviços especializados estrangeiros, mas isso quase não transparece, ou emerge de forma muito tênue, de seu compêndio. (...) Paradoxalmente, entretanto, uma simples consulta aos atos listados no segundo volume da obra de Cardoso de Oliveira e sua comparação com a relação dos atos multilaterais contraídos na mesma época por todos os demais países relevantes do sistema de relações internacionais, inclusive suas principais potências econômicas, também ofereceria um testemunho sobre a universalidade e a precocidade das relações econômicas externas do Brasil, um dos poucos países ditos periféricos a ter estado presente na criação das mais importantes instituições internacionais de cooperação econômica desde a emergência efetiva desse tipo de instrumento multilateral. (...) A listagem realizada por Cardoso de Oliveira em princípios deste século, tal como reproduzida em sua forma original nesta reedição fac-similar do compêndio de 1912, constitui, assim, o início indispensável de uma análise de larga perspectiva, que deveria nos fazer ver o itinerário histórico do Brasil como o desenrolar de um longo processo de esforços constantes em busca de sua autonomia política e de seu desenvolvimento econômico. O compêndio de Cardoso de Oliveira deveria, idealmente, no que respeita os últimos 85 anos de relações internacionais, ser complementado por uma listagem contemporânea de atos diplomáticos, suscetível de contribuir para o conhecimento atualizado da vida internacional de um país, o Brasil, hoje plenamente inserido no sistema mundial. Tal obra, num cenário de facilidades informáticas e de conexões em rede como o atual, aguarda apenas a iniciativa de seus dignos sucessores na Casa de Rio Branco: que publicada, em nova versão, ela possa prestar uma singela homenagem ao trabalho pioneiro de José Manoel Cardoso de Oliveira. Brasília, 19 de novembro de 1996. Excertos da Introdução ao livro publicado pelo Senado Federal. 111 Política externa e integração como objeto de estudo acadêmico e de reflexões diplomáticas Paulo Roberto de Almeida: Relações internacionais e política externa do Brasil: dos descobrimentos à globalização (Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1998, 360 p.; ISBN: 85-7025-455-5; Coleção Relações internacionais e Integração, 1) Paulo Fagundes Vizentini: A política externa do regime militar brasileiro: multilateralização, desenvolvimento e construção de uma potência média (1964-1985) (Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1998; Coleção Relações internacionais e Integração, 2) Paulo Roberto de Almeida: Mercosul: fundamentos e perspectivas (São Paulo: Editora LTr, 1998, 160 p.; ISBN: 85-7322-548-3) As relações internacionais enquanto objeto de estudo vêm se desenvolvendo de maneira amplamente satisfatória nos últimos anos no Brasil, com o acúmulo quantitativo e o progresso qualitativo dos trabalhos divulgados nesse campo. Muito desse avanço é devido ao surgimento de cursos de pós-graduação – nem todos stricto sensu – que colocam as relações internacionais de modo geral e a inserção externa do Brasil de modo particular no centro das preocupações de pesquisa e de elaboração de monografias. Outro tanto pode ser visto como o resultado de iniciativas propriamente editoriais, com a tradução de bons livros publicados no exterior e a publicação, isoladamente ou em coleções especializadas, dos trabalhos produzidos por cientistas sociais e historiadores brasileiros. Os dois primeiros livros aqui resenhados inauguram, precisamente, uma nova coleção editorial, a “relações internacionais e integração” da UFGRS, ao passo que o terceiro é veiculado por uma editora mais tradicional no campo da literatura jurídica. Os dois autores militam, um de modo pleno, o outro em tempo parcial, nas pesquisas e na docência acadêmica, combinando a interpretação sociológica com uma visão histórica das relações internacionais do Brasil. Essa visão histórica é mais centrada no caso da pesquisa de Paulo Vizentini, enfocando a política externa do regime militar no Brasil entre 1964 e 1985, e mais dispersa no caso de Paulo Almeida, indo dos séculos XV e XVI (“diplomacia dos descobrimentos”), passando pela emergência do multilateralismo contemporâneo, a partir do século XIX, até o surgimento (em 1995) da Organização Mundial de Comércio (“diplomacia do desenvolvimento”). 112 O primeiro livro, de Paulo Roberto Almeida, como revelado na Nota aos Trabalhos ao final do volume, é na verdade uma compilação de trabalhos produzidos nos 8 anos precedentes, quase todos publicados em revistas acadêmicas, mas se alguns são total ou parcialmente inéditos. Eles revelam uma preocupação com a pesquisa e sistematização do conhecimento sobre as relações exteriores do País, seja na vertente do multilateralismo econômico – relação de atos e organizações econômicas internacionais apresentada ao final –, seja no campo da sociologia política – o longo ensaio sobre o papel dos partidos nas relações exteriores de 1930 a nossos dias –, seja ainda no terreno propriamente metodológico: textos sobre o estudo e a historiografia das relações internacionais do Brasil. O autor, diplomata de carreira com experiência na área econômica, explicita em sua introdução que ele não pretendeu escrever trabalhos de diplomacia brasileira, mas ensaios sobre as relações internacionais e a política externa do Brasil, demonstrando talvez certa contenção de propósitos, que costuma caracterizar o perfil discreto dos membros da Casa de Rio Branco. De fato, são poucos os textos que se pronunciam sobre a política externa operacional e efetiva do Governo brasileiro, muito embora alguns revelem distanciamento crítico em relação ao que se poderia chamar de “pensamento único” do Itamaraty. Tal é o caso, por exemplo, do pequeno ensaio sobre a “ideologia” da política externa, na verdade uma crítica levemente irônica sobre alguns dos “mitos fundadores” da diplomacia oficial. Outro ensaio de dimensões relativamente reduzidas – comparativamente à longa extensão dos demais – toca na “economia” da política externa, de fato um esquema interpretativo suscetível de sustentar um vasto programa de pesquisa sobre as relações econômicas internacionais do Brasil (o autor já terminou uma primeira etapa: “Formação da Diplomacia Econômica no Brasil: as relações econômicas internacionais no Império”, apresentada sob a forma de dissertação no Curso de Altos Estudos do Instituto Rio Branco). Nessa mesma área, Paulo Almeida já investigou a participação do Brasil nas conferências de Bretton Woods (1944) e de Havana (1947-48), mas ainda não divulgou todos os resultados de sua pesquisa, como esclarece na nota ao ensaio sobre “diplomacia do desenvolvimento”. O trabalho mais elaborado, em termos de pesquisa, parece ser o relativo à “política” da política externa, contendo uma extensa compilação de todos os elementos de relações internacionais inscritos nos programas partidários a partir de 1930, uma discussão sobre o posicionamento dos partidos políticos em relação à política externa oficial e, não menos importante, uma apresentação comentada sobre temas e problemas “internacionais” levantados pelos partidos e candidatos nas campanhas eleitorais presidenciais de 1989, 1994 e 1998. Os estudantes encontrarão no último capítulo uma sistematização há muito tempo 113 sentida das obrigações internacionais contraídas no plano multilateral pelo Brasil desde o século XIX até a adesão ao Tratado de Não-Proliferação Nuclear, durante muito tempo a bête noire da diplomacia nacionalista, defensora da “autonomia nuclear” do País. Em suma, para os que buscam uma boa introdução ao estudo e ao conhecimento prática da diplomacia brasileira, o livro “semi-acadêmico” de Paulo Almeida pode constituir um exemplo de equilíbrio entre pesquisa teórica e conhecimento prático das relações exteriores do Brasil. Paulo Vizentini, apesar de jovem, é um “velho” conhecido dos estudiosos da diplomacia brasileira, graças, entre outros trabalhos a sua extensa pesquisa sobre o nacionalismo e o desenvolvimentismo nas relações exteriores, entre 1951 e o final da Política Externa Independente (PEI), em 1964 (Editora Vozes, 1995). Fechando uma das lacunas mais evidentes de nossa historiografia especializada, ele dá agora continuidade a esse trabalho ao levantar sistematicamente todas as etapas da política externa durante o longo interregno militar, de 1964 a 1985. Os capítulos são lineares, cada um voltado para uma presidência, mas a interpretação permeia o processo que o autor identificou como de “mundialização” e de “multilateralização” da diplomacia brasileira. De fato, cada uma das etapas está identificada aos “rótulos” pelos quais ficaram conhecidas as diplomacias respectivas dos cinco generaispresidentes que ocuparam a chefia do Estado no período. Assim, numa primeira parte (o “modelo ascendente”), são analisadas a política externa “interdependente” e de segurança nacional defendida por Castelo Branco, a “diplomacia da prosperidade” de Costa e Silva – de fato, um retorno aos padrões “desenvolvimentistas” e “nacionalistas” da era civil imediatamente anterior – e a “diplomacia do interesse nacional” de Médici, quando se buscou o que o autor chama de “autonomia no alinhamento”. Na segunda parte, se assiste ao “apogeu” e ao “declínio” do modelo, o primeiro representado pelo “pragmatismo responsável” de Geisel e o segundo pela “diplomacia do universalismo” de Figueiredo. Em cada um desses cinco densos capítulos a política externa é colocada na perspectiva das orientações políticas e econômicas internas, próprias a cada uma das presidências militares – que foram bastante diversas em termos de orientações econômicas e de escolhas política, a despeito da uniformidade mais aparente do que real do regime militar – , e enfocados então as diversas dimensões do relacionamento externo: no plano bilateral (sobretudo em relação aos Estados Unidos), no contexto hemisférico, no cenário internacional e no âmbito multilateral (este tanto na vertente econômica quanto na da segurança). O resultado é um panorama bastante abrangente do referido processo de “multilateralização” da política externa brasileira, iniciado na era da PEI e continuado de forma consistente na era militar, não tanto por iniciativa própria como em consequência da 114 extrema profissionalização da diplomacia brasileira. Com efeito, a diplomacia nunca foi tão “autônoma” – dos partidos, dos grupos de interesse, da opinião pública em geral – quanto sob o regime militar, durante o qual todos os chanceleres, com a breves exceções de Juracy Magalhães e de Magalhães Pinto, foram diplomatas de carreira. Para isso deve ter contribuído o mesmo sentido de responsabilidade “profissional” dos militares, que – à exceção de Geisel, extremamente interessado em política externa – permitiu larga latitude de ação ao Itamaraty. Paulo Vizentini descreve a multilateralização como a “busca de novos espaços, regionais e institucionais, para além dos relacionamentos tradicionais (que não são interrompidos), de atuação política e econômica”, processo que caracteriza, de fato, a diplomacia brasileiro desde então. Paradoxalmente, o regime mais ideologicamente alinhado aos Estados Unidos é o que conduz na prática a um afastamento político, econômico e até tendencialmente tecnológico – como tentado no programa de cooperação nuclear com a Alemanha – em relação ao aliado da Guerra Fria. São elucidados no livro todos esses passos: a busca de novos parceiros dentre os países desenvolvidos e sobretudo o relacionamento com as potências médias do mundo em desenvolvimento. O reatamento de relações com a China, por exemplo, representou uma das “crises” políticas mais evidentes na ideologia do edifício militar, mas o restabelecimento de relações diplomáticas com Cuba – patrocinadora de movimentos guerrilheiros nessa fase – teria de esperar o fim do regime militar e a volta à democracia. Vizentini retraça em detalhes as dificuldades do relacionamento com os países árabes exportadores de petróleo, assim como as diferentes fases da rivalidade com a Argentina, aliás superada em grande medida ainda na fase militar. Ele constata o sucesso e as desventuras do modelo de desenvolvimento econômico, a expansão das exportações e a crise externa na fase final do regime, no quadro das grandes mudanças do cenário mundial a partir dos anos 1980, o que levou à redefinição do próprio conceito de “interesse nacional”. Suas fontes não foram exclusivamente as diplomáticas – cuja parte confidencial não se encontrava de resto disponível quando da pesquisa – mas também os órgãos da imprensa escrita, o que permitiu explorar aspectos normalmente não revelados no discurso oficial. Trata-se, sem dúvida alguma, de uma obra de referência para uma visão fatual e dotada de interpretação própria sobre um período relevante da história republicana, merecendo figurar em toda e qualquer bibliografia que doravante se arrolar não apenas sobre a política externa brasileiro mas também sobre o regime militar-modernizador de 1964 a 1985. O último livro, também do diplomata Paulo Almeida, possui objetivos mais focados do ponto de vista temático e um escopo mais declaradamente “vulgarizador”, qual seja, o de 115 apresentar a um público geralmente universitário, e supostamente leigo na matéria, as origens, o funcionamento e os desafios atuais do processo de integração sub-regional do Mercosul. De fato, os primeiros capítulos são basicamente descritivos, baseando-se em grande medida em sua obra anterior sobre o mesmo assunto (O Mercosul no contexto regional e internacional, 1993), mas a parte sobre o “futuro” do Mercosul está longe de ser uma simples sistematização dos conhecimentos disponíveis sobre o assunto. Trata-se de uma discussão em profundidade sobre os dilemas e opções com que se defrontam atualmente os países-membros, confrontados à necessidade de aprofundar a coesão econômica interna – de fato cumprir o que estipula o Artigo 1º do Tratado de Assunção, isto é, constituir de fato um mercado comum – e de afastar o perigo de sua diluição numa vasta zona de livre-comércio hemisférica, como promete o projeto da ALCA, liderado pelos Estados Unidos. Paulo Almeida conhece o funcionamento efetivo do Mercosul e por isso evita alguns dos problemas e “ilusões” que permeiam muitas teses universitárias e artigos acadêmicos sobre o assunto, entre eles o do aprofundamento da institucionalidade – ou, o que vem a resultar no mesmo, o “salto para a supranacionalidade” – e o da visão “anti-imperialista” ou “antiglobalização” incorporado numa certa concepção ingênua, em geral de “esquerda”, sobre esse processo. Completam o livro, de concepção bastante didática, uma excelente cronologia sobre o desenvolvimento da integração regional, desde a primeira conferência americana de 1889 até o final das negociações da ALCA (em 2005), assim como a documentação básica de referência para o enquadramento jurídico-diplomático desse processo (Tratado de Assunção e Protocolos de Ouro Preto e de Brasília). Seu livro também merece figurar na bibliografia de referência sobre o processo de integração sub-regional, ainda que se possa fazer a mesma restrição anterior em relação à postura talvez excessivamente discreta – derivada sem dúvida de sua condição profissional – em relação a certas questões sensíveis desse processo. Os três livros se completam e correspondem aliás aos objetivos temáticos da nova coleção da UFRGS: o estudo sério e academicamente embasado sobre as relações internacionais e os processos de integração. A coleção deverá abrigar, proximamente, um livro do acadêmico inglês Fred Halliday, Repensando as relações internacionais. Dessa forma, as abordagens propriamente brasileiras nas contribuições de acadêmicos e diplomatas do País podem ser complementadas por trabalhos dotados de perspectiva verdadeiramente mundial. Trata-se, provavelmente, de um exemplo de globalização editorial. Brasília, 14 de novembro de 1998. Publicado na Revista Brasileira de Política Internacional (Brasília: ano 41, n. 2, julho dezembro de 1998, p. 165-169) 116 O Manifesto de 1848, revisto e corrigido Paulo Roberto de Almeida: Velhos e novos manifestos: o socialismo na era da globalização (São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 1999, 96 p.; ISBN: 85-7441-022-5) O “velho” Manifesto de Marx e Engels não precisa mais ser apresentado a ninguém: ele acaba de completar 150 anos de existência e foi devidamente festejado, no mundo todo, tanto pela esquerda como pela direita, como um documento de indiscutível atualidade política. É óbvio que a esquerda procurou nele resgatar a sua mensagem ainda revolucionária, destacar seu forte conteúdo anticapitalista e anti-burguês, sua proposta em favor de uma organização social de produção que não divida mais os homens em exploradores e oprimidos, recuperar, enfim, o seu ainda “grande” potencial transformador da moderna sociedade de classes. A direita, por sua vez, também efetuou uma leitura “positiva” dessa obra de Marx e Engels, resgatando seu caráter de inegável arauto da globalização, de profeta da universalização do modo “burguês” de produção, sua opção por uma constante transformação das estruturas produtivas, uma defesa, enfim, de cada vez mais capitalismo, antes de se pensar em “superá-lo” em favor de um novo regime produtivo, aliás reservado apenas para as “civilizações” mais avançadas, não para reinos despóticos do Oriente e sociedades atrasados do ponto de vista capitalista. Em suma, o Manifesto seria “moderno” e ainda válido, embora de maneira especial a cada uma das correntes em causa. Ambas as imagens do “velho” Manifesto são basicamente corretas e depende evidentemente dos gostos pessoais e opções políticas de cada um de seus atuais leitores a seleção pertinente de trechos que mais convenham aos fins pretendidos. O autor do presente volume de ensaios, que se declara resolutamente “marxista”, também procedeu a nova leitura do velho Manifesto e o encontrou supreendentemente atual, inclusive e principalmente de uma perspectiva de esquerda, de transformação radical das atuais condições sociais deploráveis que ainda caracterizam o Brasil, mais de 170 anos depois de sua independência política. Apenas que, em lugar de se dedicar a cantar loas ao velho Manifesto, como muitos ideólogos da esquerda fizeram – não sem um certo desencantamento com o fim do socialismo real –, este autor preferiu reescrevê-lo, à luz das realidades atuais da globalização e do fim das últimas ilusões econômicas do socialismo enquanto modo mais “racional” de produção. Essa leitura propriamente iconoclasta de um texto considerado quase que sagrado por uma certa esquerda ainda “religiosa” oferece uma alternativa filosófica e conceitual aos atuais dilemas 117 dos “novos” socialistas: como conciliar alguns dos ideais do passado com a moderna sociedade tecnológica?; o que significa ser de esquerda num mundo interdependente e mais propenso a medir resultados efetivos –sobretudo em termos de capital intelectual – do que premiar boas intenções sociais?; como dar ao Estado o que é do Estado e deixar ao mercado o que ele pode fazer de forma eficiente?; enfim, como separar uma atitude efetivamente reformista e progressista do ponto de vista da esquerda, que se preocupa com a sorte dos desvalidos do progresso social, de um comportamento repetitivo de velhos slogans do passado, característico de uma reação basicamente reacionária apenas voltada para a defesa de velhos monopólios de castas profissionais e de superadas reservas de mercado? Existem hoje no Brasil muitas “viúvas” da globalização e inúmeros “órfãos” do nacionalismo econômico, pessoas que, finalmente, não conseguiram compreender a obra teórica de Marx e seu potencial explicativo das contradições da moderna sociedade de classes. O Manifesto “alternativo” que se oferece ao leitor brasileiro atual é confrontado ao “velho” Manifesto marxista, para que se possa pelo menos verificar o grau de empréstimos intelectuais efetuados em sã consciência e restabelecer assim os “direitos morais” dos autores originais. Aqueles que não conseguem compreender Marx, poderíamos parafrasear, estão condenados a repetir Lênin, com seu cortejo de decisões desastrosas do ponto de vista econômico, para não falar das tragédias políticas acumuladas em décadas de “centralismo democrático”. O autor destes pequenos “ensaios filosóficos” acredita que há enormes virtudes heurísticas na teoria marxista, mas ela não pode ser tomada como um a priori metodológico, e muito menos como um corpo doutrinal cristalizado ou um receituário desprovido de condicionalidades temporais. É possível, dessa forma, uma leitura “marxista” do velho Manifesto, assim como é possível uma leitura resolutamente marxista de uma outra bête noire da esquerda e dos socialistas: a exploração, a pura e dura exploração do homem pelo homem. O ensaio provocador sobre essa espinhosa questão dormiu durante mais de uma década em meus arquivos de trabalhos, entregue à “crítica roedora dos ratos”, como afirmou Marx em relação à Ideologia Alemã. Ele na verdade tinha sido escrito com intuitos deliberadamente provocadores, numa época em que eu frequentava ocasionalmente um grupo de reflexão sobre os problemas brasileiros animado por Cristovam Buarque, então reitor da UnB. O atual governador de Brasília é o que se pode chamar de “marxista não-religioso”, ou seja, o protótipo do livre-pensador filosófico, unicamente comprometido com a correta resolução dos problemas sociais, e não com a defesa “irracional” de velhas teorias supostamente de esquerda. Ele certamente aprendeu, no curso de sua gestão à frente do Distrito Federal, que um orçamento não é de esquerda ou de direita, mas que se trata tão simplesmente de uma peça 118 fria e objetiva, que se destina basicamente a organizar recursos escassos para dar-lhes prioridades sociais relevantes, algo que a velha esquerda demora a aprender. Se existe, portanto, um sentido político explícito nos ensaios aqui coletados, ele poderia ser resumido na seguinte lição: deve-se aceitar algo da mensagem propriamente “messiânica” do velho Marx, no sentido de continuar a acreditar que uma sociedade mais justa é possível e que ela pode ser construída pela vontade dos homens organizados em partidos e em associações políticas; mas deve-se recusar de igual forma o messianismo “irracional” da vertente “poética” do mesmo Marx, no sentido de acreditar que as grandes transformações sociais podem ser efetuadas num simples passe de mágica social. Abolir a propriedade privada e, simultaneamente, as leis do mercado foram empreendimentos prometéicos, que estavam acima da capacidade organizacional efetiva de um cérebro filosófico como o de Marx: ele pode ter estudado a economia política dos velhos clássicos, mas certamente nunca soube fechar um balanço contábil — aliás, sequer o doméstico, quanto mais o de uma fábrica — e tinha uma visão ingênua sobre a efetiva “administração das coisas” ou sobre como efetuar uma adequada “gestão dos homens”. Pode-se, assim, ler Marx e utilizá-lo no debate político contemporâneo, mas deve-se fazê-lo armado daquela virtude que o grande historiador Sérgio Buarque de Holanda transmitiu ao ginasiano que eu era em princípios dos anos 60: preservar um “ceticismo sadio” na recepção de certas “verdades reveladas”, o que significa basicamente manter um certo distanciamento crítico em relação aos escritos dos “grandes homens” do passado e do presente. Aqueles que percorrerem estas páginas devem estar armados do mesmo ceticismo sadio e da mesma atitude crítica em relação a muitas das afirmações ousadas aqui contidas, como recomendado pelo grande historiador brasileiro ao jovem aprendiz em sociologia e história que eu era quase quarenta anos atrás. O percurso foi certamente sinuoso, entre as ilusões esquerdistas da juventude e a atitude mais serena do atual estudioso dos problemas sempre recorrentes da formação social brasileira. Em todo caso, o livro se oferece como um convite ao diálogo e à reflexão, numa perspectiva marxista não dogmática e livre de qualquer grilhão conceitual do passado. Brasília, julho de 1998. Prefácio ao livro publicado. 119 Política externa e diplomacia econômica do Brasil Paulo Roberto de Almeida: O Brasil e o multilateralismo econômico (Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 1999) Paulo Roberto de Almeida: O estudo das relações internacionais do Brasil (São Paulo: Editora da Universidade São Marcos, 1999) Yves Chaloult e Paulo Roberto de Almeida (coords.): Mercosul, Nafta e Alca: a dimensão social (São Paulo: LTr, 1999) Os três livros aqui apresentados sumariamente constituem contribuições adicionais do diplomata e acadêmico Paulo Roberto de Almeida para a análise e o debate sobre aspectos essenciais da política externa brasileira, o último deles feito em coordenação com seu colega da UnB, Yves Chaloult, e reunindo artigos de colaboradores diversos sobre o tema mais controverso da atualidade, a formação da Alca. O primeiro apresenta-se basicamente como uma história do multilateralismo na área econômica, tema pouco frequentado por nossos estudiosos de relações internacionais, que têm preferido oferecer análises de diplomacia tradicional, sobre política externa brasileira e sobre as relações bilaterais com as principais potências, em particular. O Brasil e o multilateralismo econômico acompanha um século e meio de construção das instituições internacionais no terreno econômico, sobretudo na vertente comercial (GATT e OMC) e financeira (FMI, Banco Mundial), mas também em órgãos de cooperação econômica como a OCDE. Os diferentes capítulos do livro tratam sucessivamente do Brasil no processo de globalização, da inserção do País na economia mundial nos últimos dois séculos, da emergência do multilateralismo contemporâneo, entre o final do século XIX e a primeira metade do XX, da reconstrução da ordem econômica mundial no pós-guerra, da estrutura e funcionamento das principais instituições nessa área (FMI-BIRD, OCDE, GATT-OMC, UNCTAD), do novo panorama econômico internacional e do problema sempre presente do desenvolvimento, assim como das grandes forças da interdependência mundial (globalização e regionalização). Uma série de apêndices contendo quadros analíticos sobre as relações econômicas internacionais e a evolução da diplomacia econômica no Brasil completam a informação deste livro. 120 O segundo livro resulta de aulas e materiais de pesquisas elaborados pelo autor no período recente, denotando uma preocupação didática com a formação dos estudantes nos muitos cursos de relações internacionais que tem sido criados nos últimos anos em faculdades privadas do Brasil. O capítulo mais substantivo do livro é provavelmente o de número 4, “A produção brasileira em relações internacionais: tendências e perspectivas”, que sintetiza praticamente meio século de evolução conceitual, metodológica e substantiva dos estudos de relações internacionais no Brasil, com um balanço bastante completo dessa produção. Elaborado a pedido da ANPOCS, o trabalho apresenta-se aqui em sua versão ampliada, mostrando inclusive o crescimento contínuo dos cursos (em todos os níveis) nessa área no período recente. Igualmente importantes são os capítulos 1, “O Brasil no contexto econômico mundial: 1820-1992”, que acompanha quase dois séculos de inserção econômica internacional do País, e o 3, “A estrutura constitucional das relações internacionais no Brasil”, uma discussão exaustiva sobre os dispositivos constitucionais que afetam as relações exteriores do País e as lacunas ainda pendentes nesse ordenamento. O livro comporta ainda dois capítulos metodológicos, um sobre a periodização das relações internacionais do Brasil e outro sobre a própria cronologia dessas relações internacionais do Brasil, desde 1415 até 2000. Como no caso do volume anterior, o livro traz ainda, como informação em apêndices, quase duas dezenas de tabelas estatísticas e de quadros analíticos que utilmente complementam a discussão dos capítulos substantivos. O terceiro volume, finalmente, partiu de projeto elaborado inicialmente por Yves Chaloult, redesenhado em colaboração com Paulo Almeida, e que resultou na compilação de estudos encomendados a diversos especialistas nos temas da integração hemisférica. Ele oferece uma discussão não exaustiva, mas em alguns capítulos bastante completa, dos problemas com que se defrontam tanto o Brasil como o Mercosul no processo de construção da Alca, na qual o tema das implicações sociais (que é diferente dos chamados “padrões laborais”, que vem sendo impulsionado de forma unilateral pelos Estados Unidos) tem sido normalmente descurado pelos seus proponentes. Também aqui, uma cronologia relacional dos progressos da integração no hemisfério permite colocar em perspectiva os esforços atuais em torno da Alca, uma repetição geral de iniciativa tomada há mais de um século, na primeira conferência internacional americana de Washington, realizada entre 1889 e 1890. Então como agora, os Estados Unidos procuram abrir os mercados dos países vizinhos a seus produtos, dotados de grau razoável de competitividades (economia de escala, avanço tecnológico, facilidades creditícias), ao mesmo tempo em que buscam preservar alguns setores da 121 concorrência externa (mediante cotas tarifárias para suco de laranja, por exemplo, ou o recurso abusivo a medidas antidumping). Washington, 12 de fevereiro de 2001. GEDIM (Globalização Econômica e Direitos no Mercosul), Anuário GEDIM 2001 (Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2003; p. 603-605). 122 Mercosul, com savoir faire Paulo Roberto de Almeida: Le Mercosud: un marché commun pour l’Amérique du Sud (Paris: L’Harmattan, 2000, 160 p.; collection: Recherches et documents Amériques Latines, série Brésil; préface de Georges Couffignal; trad. du Portugais sous la coordination de Idelette Muzart-Fonseca dos Santos; ISBN: 2-7384-9350-5) O sociólogo e doublé de diplomata Paulo Roberto de Almeida vem há longos anos administrando uma carreira que, precisamente, à diferença das tradicionais funções gerenciais no setor privado ou governamental (que são mais diretamente executivas), tem apoio nas duas vertentes do esforço analítico e do trabalho operacional que caracterizam, de um lado, o acadêmico e, de outro, o negociador externo. Essas duas faces são, em primeiro lugar, o estudo sistemático de uma determinada problemática, inclusive em suas dimensões históricas, seguido, numa fase de implementação prática, pela formulação de princípios para a atuação diplomática que guardem conexão com o contexto geopolítico mais amplo e as implicações gerais para a interface externa do país. Esta digressão sobre as virtudes respectivas do universitário e do diplomata, as duas atividades em que se tem empenhado o autor deste livro, tem sua razão de ser e estão diretamente vinculadas às qualidades (e talvez algumas limitações) de seu livro, ora em resenha. O observador livre ou o estudioso acadêmico, desprovidos de missões negociadoras concretas, podem permitir-se o lazer de discorrer detalhadamente – e até de escrever livros inteiros – sobre a natureza dos organismos internacionais e de formular recomendações prescritivas sobre como deveriam eles ser aperfeiçoados em nome do bem comum e dos princípios mais altos da racionalidade instrumental. Já o diplomata, pode até mesmo concordar, pessoalmente, com muitas dessas sugestões e recomendações que fazem usualmente os primeiros, mas ele é obrigado a atuar, por um lado, em função de instruções precisas emanadas de sua chancelaria, por outro levando em conta a relação de forças num determinado foro internacional e aplicando uma certa dose de realismo político sobre como melhor defender os interesses nacionais de seu país, em vista das limitações impostas por qualquer quadro negociador concreto, bilateral, pluri ou multilateral. A construção do “direito internacional” num órgão como o velho GATT, a nova OMC, ou a decisão pela renúncia parcial de soberania e assunção consequente de novas obrigações em processos de integração, como o Mercosul ou a UE, medidas dotadas de real impacto na economia e na sociedade nacionais, têm pouco a ver, na maior parte dos casos, com a racionalidade intrínseca desses 123 esquemas internacionais ou regionais, e mais com a composição possível de interesses temporários de uma coalizão de forças, atuando mediante representantes de governo como são os diplomatas. Estas considerações, clássicas para quem se ocupa de processos decisórios, explicam algo da essência deste livro, dedicado a explicar ao leitor francês a história e o desenvolvimento do Mercosul, suas especificidades em relação a um suposto “modelo” europeu de integração, devidamente circunscrito pelo autor, assim como os problemas atuais desse bem sucedido esforço integrativo que está completando dez anos de vida. Como disse o prefaciador, o latino-americanista francês George Couffignal, o grande mérito de Paulo Roberto de Almeida é o de tratar das dificuldades do Mercosul com grande conhecimento de causa, uma vez que ele esteve envolvido em diversas etapas do processo integracionista não como mero observador externo, mas como um de seus negociadores, sobretudo nos aspectos institucionais. Ele também não esconde, como ressalta Couffignal, suas próprias interrogações, num capítulo final apropriadamente intitulado “o futuro do Mercosul”. As grandes questões, como ressaltou ainda o especialista francês, são a baixa institucionalidade do esquema e sua opção pela manutenção do modelo intergovernamental (que o autor chama de “modelo Benelux”). Estes não são, entretanto, os principais problemas do Mercosul, pois Paulo Almeida tem plena consciência de que não se poderia avançar de outro modo no cone sul: ou seja, qualquer tentativa de “empurrar” com maior força qualquer esquema mais elaborado de organização institucional para o Mercosul – sem mesmo considerar a opção pela supranacionalidade, que seria virtualmente impossível, segundo ele – teria provavelmente redundado num desastre político de grandes consequências para os países membros, ao colocar em confronto as burocracias nacionais (engajadas no esforço de estabilização macroeconômica) e uma hipotética “mercocracia” montevideana. Não resta dúvida sobre quem seria a parte mais fraca nos impasses que inevitavelmente surgiriam entre a tecnocracia mercosuliana e os tecnocratas nas capitais (estes sim, dotados de poder), com o descrédito consequente para o próprio processo de integração. Este, portanto, não é o centro da discussão de Paulo Almeida, em seu livro, que reproduz grandes trechos de seu equivalente em português publicado no Brasil dois anos antes (Mercosul: fundamentos e perspectivas; São Paulo: LTr, 1998). O que está em jogo no Mercosul é a necessidade inadiável de seu aprofundamento estrutural (ou seja, cobrindo cada vez mais áreas de liberalização no terreno econômico e comercial, estrito senso) e um grau adequado de coordenação política entre os 124 quatro sócios para a condução da agenda externa de negociações, esta sim desafiadora e, em última instância, potencialmente desagregadora do Mercosul. Paulo Almeida não parece acreditar muito – e nisso reside a limitação apontada acima, relativa ao fato de que se trata, obviamente, de um funcionário disciplinado da burocracia governamental brasileira – que o Mercosul necessite, no momento, de maior grau de institucionalidade ou de maior aprofundamento político. O que ele precisa, segundo ele, é de fortalecimento interno para poder negociar externamente. O perigo maior, segundo o autor, é que permanecendo o Mercosul como uma mera união aduaneira – e de fato como uma zona de livre comércio dotada de níveis tarifários comuns – ele venha a se diluir na futura área de livre comércio hemisférica, tal como prometida pelo processo de Miami, de 1994, e em curso de croisière desde pelo menos a cúpula de Santiago (1998). Ainda que a vocação final do Mercosul – um mercado comum, sem os exageros institucionais e os desvarios setoriais, sobretudo na área agrícola, do esquema europeu – seja institucional e politicamente superior à Alca, ele não poderá sobreviver, na prática, ao desafio do futuro “elefante” hemisférico , caso este venha a concretizar-se. Estes são os principais elementos em discussão no texto de Paulo Almeida, que merecem leitura e reflexão por parte de todos aqueles interessados no progresso econômico e social dos países do Cone Sul. O Mercosul é, como mostra Paulo Almeida, o mais bem sucedido dos esquemas integracionistas latino-americanos, e o único esforço de mercado comum credível envolvendo países em desenvolvimento (as demais tentativas atuais ou passadas, centro-americanas, caribenhas ou em outros continentes, não se justificam como empreendimento e são irrelevantes no porte efetivo das economias engajadas). Por isso mesmo, seus dirigentes devem atuar com cuidado para evitar que se quebre a louça antes do casamento, que poderia resultar de um “salto maior do que a perna” antes do tempo. Esses são os argumento subjacentes ao livro de Paulo Almeida que devem ser sublinhados, e que já faziam parte da edição brasileira do livro. Para a edição francesa contudo, ele eliminou quase toda a argumentação que constava do capítulo “europeu” da versão original, brasileira, do livro, e introduziu atualizações e modificações que devem facilitar ao leitor francês e europeu o conhecimento acurado desses esquema sud-américain. O autor, aliás, efetuou uma curiosa opção por um neologismo – Mercosud – que de fato não é muito comum na designação internacional do Mercosul, que prefere reter o acrônimo espanhol. Mas, seria uma grande incongruência pedir a um autor brasileiro que adotasse uma das versões oficiais da designação do esquema integracionista, em detrimento da sua própria língua. A bibliografia que complementa o livro – inclusive no que se refere aos recursos de Internet – procurou 125 congregar o que existia sobre o Mercosul à disposição do público francês, o que não é muito, daí vários outros títulos em espanhol e em inglês. O mesmo livro mereceria, a propósito, ser traduzido para o inglês, ou talvez pudesse seu autor, atual Ministro Conselheiro na Embaixada do Brasil em Washington, prepara uma versão totalmente nova, voltada para o público anglosaxão. Será uma outra maneira de defender a causa do Mercosul frente ao desafio do Nafta e da Alca. Washington, 8 fev. 2001. In: José Gabriel Assis de Almeida (org.): Anuário do GEDIM 2001 (Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2001). 126 Contribuições à história diplomática do Brasil: Fernando de Mello Barreto, ou a volta ao factual de qualidade Fernando P. de Mello Barreto Filho: Os Sucessores do Barão: relações exteriores do Brasil, 1912-1964 (São Paulo: Editora Paz e Terra, 2001, 364 p; ISBN: 85-219-0389-8) Em 1954, com 70 anos, idade na qual a maioria dos profissionais prefere encerrar suas atividades, Carlos Delgado de Carvalho, um representante do Brasil belle époque (ele morreu em 1980, com 96 anos), aceitou dar início a uma nova fase de sua já longuíssima, e intensa, vida acadêmica, desempenhando-se – na sucessão do ex-titular da cadeira, José Honório Rodrigues – como professor de História Diplomática no Instituto Rio Branco. Dessa experiência resultaria, em 1959, o livro História Diplomática do Brasil, que durante várias décadas (praticamente até o aparecimento, em 1992, de História da Política Exterior do Brasil, por Amado Luiz Cervo e Clodoaldo Bueno) constituiu-se em um manual didático útil ao estudioso que desejasse adquirir uma visão ampla das relações exteriores do Brasil, em quatro séculos de história (o Senado Federal fez uma reimpressão fac-similar em 1998, por minha sugestão, reeditada em 2000). Felizmente, Fernando Barreto começou bem mais cedo, razão pela qual, ao saudar o lançamento deste livro, que pode ser considerado como um legítimo herdeiro da obra de Delgado de Carvalho, temos o direito, e talvez o dever, de pedir-lhe a continuidade deste empreendimento exemplar, que, como textbook acadêmico, cumpre de maneira amplamente satisfatória o papel de informação geral e fatual sobre os eventos e processos que marcam as relações exteriores e a inserção internacional do Brasil desde a morte do Barão do Rio Branco até o advento da república dos generais, em 1964. Ele está desde já convocado a oferecer-nos a suite – que estou certo existe nos working files do seu computador – deste doravante indispensável manual de navegação sobre a política externa brasileira da era pós-Delgado de Carvalho. Com efeito, o que mais chamava a atenção no livro de Delgado era sua atualidade, já que todo o passado colonial português, normalmente valorizado em obras de autores tradicionais (como Hélio Vianna, por exemplo, que em 1959 também publicou seu História Diplomática do Brasil), recebia apenas um tratamento introdutório com a modesta extensão de 19 páginas. Todo o resto era Brasil independente e mais da metade dedicado ao Brasil República. Delgado tinha feito uma opção preferencial pela contemporaneidade, às vezes até 127 pela atualidade mais imediata, como era o caso da Operação Pan-americana, iniciativa conduzida pela diplomacia de Juscelino Kubitschek e que estava ainda se desenvolvendo no momento mesmo do fechamento do livro. Mais atualidade, impossível: tratava-se do mais puro exercício do que os franceses chamariam de histoire immédiate. Havia contudo uma insuficiência manifesta no tratamento dado por Delgado à política externa brasileira no período pós-Barão do Rio Branco: as políticas externas dos governos republicanos eram examinadas num único capítulo, “Rio Branco, Chanceler da Paz e seus Sucessores”, o que se revelava totalmente inadequado em razão da complexidade dos problemas em cada época, sobretudo no período varguista, extremamente intenso em lances internacionais (a começar pela própria depressão dos anos 30, que nos obrigou a inadimplências eventuais, a defaults involuntários e à negociação de novos acordos para o pagamento da dívida externa herdada da velha República e, sobretudo, em razão da Segunda Guerra Mundial). Mais ainda, as relações internacionais do Brasil entre 1913 e 1959 estavam comprimidas nas últimas 20 páginas desse capítulo, mas segundo uma abordagem essencialmente biográfica dos fatos mais relevantes desse longo período, como se a política externa dos “sucessores” de Rio Branco tivesse sido realmente determinada pelas orientações pessoais de cada um dos chanceleres. Na verdade, o livro de Delgado continha também uma abordagem suplementar de algumas questões relevantes para a inserção internacional do Brasil: a doutrina Monroe e as intervenções americanas do início do século XX, o pan-americanismo acadêmico (na verdade um importante capítulo, cobrindo o desenvolvimento jurídico do pan-americanismo e depois uma série de grandes temas de nossa política exterior regional), os Estados Unidos e as “repúblicas latinas” (de fato as relações Brasil-Estados Unidos) e o isolacionismo e as guerras mundiais (tratando inclusive do problema da Liga das Nações). O enfoque, entretanto, era exclusivamente político, segundo a visão da história tradicional, com uma descrição da política das chancelarias e algumas (raras) pinceladas sobre os problemas econômicos envolvidos. Não havia, assim, um tratamento adequado da política externa no contexto de um país agroexportador, em processo de industrialização e ocupando uma posição relativamente marginal na macroestrutura mundial. A obra de Delgado de Carvalho era realmente preciosa pelo que tinha de acúmulo de fatos históricos, mesmo se muitos processos relevantes eram completamente descurados, como por exemplo as grandes conferências econômicas do pós-guerra, de Bretton Woods às rodadas do GATT, ou a conferência de Havana de 1947-48 e as reuniões econômicas e comerciais pan-americanas dos anos 50, mencionadas apenas en passant. Os fatos e processos 128 de tipo econômico, como as grandes correntes de comércio, a interface externa do esforço industrializador brasileiro e outros exemplos de inserção econômica mundial, perdiam-se no emaranhado de acontecimentos políticos que recheavam — ou ocupavam plenamente — o livro de Delgado. Fernando Barreto também adota o esquema cronológico neste livro, organizando seu racconto storico de meio século de vida diplomática republicana de acordo com as gestões dos chanceleres que, desde Lauro Muller até Araújo Castro, sucederam-se na cadeira do Barão. Os principais lances – senão quase todos os grandes episódios – da política externa brasileira de 1912 a 1964 são seguidos ano a ano, em compilação exaustiva dos eventos. Fatos, basicamente fatos, são apresentados sequencialmente, em cinco partes sucessivas: a República velha, a era Vargas, a Guerra Fria, JK e a Operação Pan-Americana e a Política Externa Independente. Este livro oferece, segundo uma metodologia convencional, mas diferente do estilo belle époque de Delgado, uma visão abrangente, quando não suficientemente completa, das relações exteriores do país até o advento da era militar. Ele confirma as qualidades da história fatual, e mesmo seu caráter indispensável a todo e qualquer pesquisador que pretenda realizar a inserção desses fatos na trama mais ampla das relações internacionais do Brasil, sobretudo em sua vertente econômica externa. Cabe com efeito destacar que, ao início de cada seção, Fernando Barreto comparece com informações objetivas, tabelas estatísticas, gráficos seriais ou quadros analíticos apresentando a situação econômica do país naquela conjuntura (comércio exterior, dívida, reservas, investimentos estrangeiros etc.). Como se situa Os Sucessores do Barão no conjunto dos trabalhos que trataram da política externa brasileira contemporânea? Certamente como obra de referência de primeiro plano, mas com características próprias de conteúdo e método. O livro pertence à categoria das obras gerais, constituindo um grande esforço de síntese em relação a uma soma apreciável de fatos, eventos e episódios que marcaram nossa história política e nossa inserção internacional no meio século por ele coberto. Para cumprir tais objetivos, o autor exibe o mesmo estilo inconfundível que Delgado tinha imprimido à sua obra já citada: precisão, concisão, objetividade, num espírito propriamente cartesiano. O escopo de Fernando Barreto é igualmente delimitado, ao pretender tão somente fazer uma síntese expositiva das grandes marcas da política externa e das relações exteriores do Brasil, não necessariamente avançar no terreno da pesquisa de arquivos, da discussão conceitual ou da elucidação analítica de problemas complexos de nossa inserção internacional no período. Não é o que se pede, aliás, de uma obra do gênero, que deve procurar ostentar, acima de tudo, clareza e sobriedade, 129 evitando julgamentos apressados e destacando, em especial, a continuidade que sempre caracterizou a política externa brasileira. Mesmo com um enfoque essencialmente factual, o autor oferece algumas linhas evolutivas desse relacionamento externo em seu epílogo. Ele constata, por exemplo, o reduzido número de países que mobilizou a atenção do Itamaraty nesse meio século: “em primeiro plano, os Estados Unidos (aproximação), Argentina (rivalidade) e Alemanha (confronto). Em categoria menos proeminente, ocuparam a reflexão do Itamaraty outros países europeus, tais como a Inglaterra (atritos diplomáticos em decorrência dos bloqueios marítimos das duas guerras mundiais), França (solidariedade na Primeira Guerra e envio de médicos), Itália (único país em que tropas brasileiras tiveram atuação militar) e Portugal (política de apoio ao colonialismo até a década de 1960), além de vizinhos sul-americanos, em especial o Paraguai (Guerra do Chaco) e a Bolívia (petróleo, estrada de ferro)” (p. 275). Outra observação refere-se ao gradual afastamento do cenário europeu e ao “contínuo acercamento dos Estados Unidos”, triângulo em função do qual a política externa brasileira buscava as melhores condições para o “atendimento de seus interesses” (p. 276). Como explica Fernando Barreto, “Havia fortes razões econômicas para esse acercamento político de Washington”, o que se traduzia praticamente num único grande produto de exportação: café. Mais recentemente esse movimento pendular teve outros vetores, como no caso dos acordos nucleares com a Alemanha ou, através do Mercosul, a tentativa atual de contrabalançar as negociações em torno de uma área hemisférica de livre comércio (Alca) com processo equivalente em direção da União Europeia. O mesmo epílogo traz lúcidas análises sobre a orientação e o caráter geral de cada um dos subperíodos enfocados, com apreciações das políticas desenvolvidas pelos presidentes ou chanceleres envolvidos nos principais episódios enfocados. Cada um dos 21 ministros das relações exteriores que sucederam ao Barão, geralmente políticos ativos em suas respectivas agremiações partidárias, merece uma epigrafe resumindo o essencial das ações desenvolvidas sob sua gestão, o que por outro lado serve para confirmar que “o Itamaraty tem gozado de relativa autonomia na condução da política externa. Com exceção de alguns governos em que o presidente exerceu sua influência direta mas mesmo assim esporádica (Epitácio Pessoa, Arthur Bernardes, Getúlio Vargas), verifica-se que frequentemente a Casa do Barão tomava decisões sem interferência de outros ministérios, mesmo os militares (salvo talvez no episódio da não participação do conflito coreano) ou do Congresso” (p. 285). O abandono do neutralismo nas duas guerras mundiais é visto por Fernando Barreto como positivo para a inserção internacional do país: “Tivesse a política externa brasileira sucumbido a pressões 130 para manter a neutralidade, como fez Buenos Aires, talvez não tivesse atingido os objetivos que pretendia na época, fossem estes de industrialização ou de reequipamento militar. Não teria feito parte, desde sua criação, dos órgãos internacionais criados, como Nações Unidas, Banco Mundial, FMI e GATT. Difícil ter precisão sobre essas consequências, mas certamente pode-se imaginar que outra teria sido a aceitação brasileira no seio do mundo pós-guerra” (pp. 285-86). Os episódios de frustrações diplomáticas nesse período – como o da Liga das Nações, em 1926 – foram poucos, o que habilita Fernando Barreto a terminar sua avaliação global afirmando que “essas instâncias [de desacerto] foram menos numerosas do que as de acerto e o balanço geral foi positivo” (p. 286). O livro aparentemente não foi submetido pela editora a processo acurado de revisão, o que explica a manutenção de diversos erros de digitação e de alguns deslizes de redação, o que certamente será corrigido numa futura reedição. A informação é enriquecida por remissões bibliográficas precisas e por notas abrangentes (dando nomes de integrantes de delegações e resumos biográficos de personagens secundárias, por exemplo), mas lamente-se a opção por uma longa seção final de notas numeradas de 1 a 1500, não no formato mais cômodo do rodapé. A bibliografia é exaustiva, podendo ser complementada, numa futura reedição, com a indicação das já numerosas e diversificadas fontes de documentos disponíveis em páginas da Internet. Numa obra como esta, o índice remissivo deveria oferecer um complemento útil ao leitor interessado em seguir determinadas referências temáticas ao longo do meio século republicano, mas ele ganharia muito se fosse subdivido em conceitos analíticos mais detalhados: assim, os Estados Unidos, que – junto com a Argentina, a Alemanha, o café ou Getúlio Vargas – concentram uma boa fração das referências (com mais de duzentas remissões às páginas do livro), poderiam ser objeto, em futura reedição, de entradas específicas, do tipo: acordo comercial de 1935, negociações financeiras de 1939, acordo militar de 1952, renovação em 1964 etc. O prefácio do chanceler Celso Lafer destaca as principais virtudes da obra e chama a atenção para o que vem sendo apontado como a principal característica da diplomacia brasileira: a mudança na continuidade. A preservação das linhas básicas da política externa brasileira ao longo das décadas deve-se a seu caráter intelectualmente reflexivo, politicamente cauteloso, operacionalmente coordenado e essencialmente discreto em termos de mídia. Como dizem acertadamente nossos vizinhos: “El Itamaraty no improvisa!” (talvez devesse fazê-lo em determinadas ocasiões, para não dar a errônea impressão de lentidão ou passividade). 131 Diversas fotos e algumas ilustrações, ao lado dos já citados gráficos e tabelas compõem o aparato não textual deste livro, cuja bela capa traz uma foto do velho palácio Itamaraty do Rio de Janeiro, à qual se sobrepõe um busto do próprio Barão, uma das raras unanimidades nacionais no panteão algo rarefeito dos heróis da pátria. Nenhum dos seus sucessores, com exceção talvez de Nilo Peçanha (que já tinha sido presidente), de Oswaldo Aranha e de San Tiago Dantas, alcançou especial notoriedade ou relevo político especial no “breve século XX” aqui enfocado. Em todo caso, o levantamento cuidadoso da ação dos 21 chanceleres pertencentes ao período selecionado permite uma visão abrangente dos problemas internacionais enfrentados pelos titulares da Casa de Rio Branco ao tentar inserir o Brasil no mundo. A tradição continua a ser seguida pelos 13 outros “sucessores” (contando o próprio Celso Lafer) do período pós-1964, objeto de um segundo volume que Fernando Barreto está convocado a terminar e publicar o quanto antes. A dedicação à história diplomática pode ser, aliás, um trunfo nos meandros político-burocráticos da carreira e o próprio Barão deveu grande parte de sua notoriedade original ao fato de que ele tinha se dedicado por longos anos à pesquisa em velhos documentos, a uma compulsiva curiosidade livresca e ao exercício da pena. Washington, 18 de agosto de 2001. Inédito na versão completa. Publicado em formato reduzido na revista Política Externa (São Paulo: vol. X, nº 3, dezembro de 2001-fevereiro de 2002, p. 174-177). 132 A diplomacia econômica do Brasil em perspectiva histórica Paulo Roberto de Almeida: Formação da diplomacia econômica no Brasil: as relações econômicas internacionais no Império (São Paulo: Editora Senac, 2001, 680 p., ISBN: 85-7359-210-9) A diplomacia brasileira é geralmente conhecida pela excelência de seus quadros e pela notável constância de suas posições políticas. A ela são creditados ganhos políticos importantes, tanto num passado distante, em termos de conformação do território pátrio, por exemplo, como no presente, sob a forma da boa convivência regional, do continuado respeito que o País ostenta aos princípios do direito internacional, da própria credibilidade política de sua diplomacia, como, por vezes, do apoio (moderado) que o Brasil tem emprestado a missões de manutenção da paz conduzidas multilateralmente. Mas, como avaliar o desempenho de longo prazo dessa diplomacia num setor que toca diretamente aos interesses maiores da Nação: os resultados na frente econômica, em primeiro lugar no sentido de impulsionar o desenvolvimento nacional? Terá sido essa diplomacia funcional e instrumental do ponto de vista desse objetivo, isto é, adequada aos requisitos de progresso econômico e de bem estar social? Soube ela captar recursos externos e angariar apoio material para a aceleração das taxas de crescimento econômico e do processo de modernização tecnológica do País? Em uma palavra, qual foi a contribuição da diplomacia ao desenvolvimento da Nação? Uma avaliação ponderada desse tipo de questão passa, antes de mais nada, pelo exame das relações econômicas externas do Brasil, considerando tratar-se de um país periférico, dispondo de poucos excedentes de poder político e econômico e de reduzida capacidade de projeção externa. A natureza dessas relações foi também tributária da estrutura econômica e social do País, cuja história econômica se confunde, até há poucas décadas com a sucessão de ciclos dominantes de algum produto de exportação. Na terminologia da economia política, as relações econômicas internacionais do Brasil passam, entre o início do século XIX e meados deste, de uma diplomacia do primário, comprometida com a promoção de alguns poucos produtos de base integrando sua pauta de exportação, para a crescente afirmação de uma diplomacia do secundário, voltada essencialmente para a grande tarefa da industrialização substitutiva e da capacitação tecnológica nacionais, antes de adentrar, no período recente, na diversidade de temas e de interesses econômicos que poderão conformar, no presente e no 133 futuro, uma diplomacia do terciário, isto é, da era dos serviços, a qual parece caracterizar o mundo atual e o sistema contemporâneo de relações econômicas internacionais. Uma avaliação desse desempenho no longo prazo da diplomacia brasileira, cuja metodologia poderia ser identificada a um ensaio de “interpretação econômica” de sua história diplomática, deve partir das etapas formadoras da diplomacia econômica no Brasil, retraçando o itinerário das relações econômicas internacionais da Nação durante o século XIX, desde a transferência da Corte em 1808 e constituição do Estado nacional, até a era contemporânea, ou seja cobrindo tanto o período monárquico como a era republicana. Uma visão de largo prazo como a que aqui se propõe tem necessariamente de ser apresentada de forma sintética, mas a produção acadêmica já acumulada no campo da historiografia econômica, bem como a excelente documentação de base disponível – em primeiro lugar os primorosos e completos relatórios da Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros, sob o Império, e do Ministério das Relações Exteriores sob a velha República – permitem um tal empreendimento analítico. Qual seria, em primeiro lugar, a “matéria-prima” dessa avaliação? Dentre as questões mais relevantes para o exame da “formação” da diplomacia econômica no Brasil no século XIX estão as seguintes: os tratados de comércio e a política tarifária, o constante recurso aos empréstimos externos, o ingresso de investimentos estrangeiros diretos, o contencioso com a Grã-Bretanha sobre o tráfico escravo e os problemas encontrados pelo Estado monárquico para garantir um fluxo regular de imigrantes livres (em face da política dos fazendeiros de manutenção do trabalho escravo ou da simples “importação de braços para a lavoura”, ainda que colonos europeus), bem como a precoce presença do Brasil em incipientes foros “multilaterais” (União Geral dos Correios, União Telegráfica Universal e União de Paris sobre propriedade industrial, no último terço do século XIX). Para a primeira metade do século XX, por sua vez, a análise certamente cobriria os problemas seguintes: tímidos esforços de “promoção comercial” do produto de maior competitividade na economia brasileira, o café (uma vez que a borracha, temporariamente importante no começo do século, mais era objeto de compra do que propriamente vendida), seletividade criteriosa dos compromissos comerciais externos (uso limitado da cláusula de nação-mais-favorecida nos acordos bilaterais de comércio), contratação de empréstimos para fins de valorização do café e de sustentação da moeda, política migratória orientada por critérios raciais e crescentemente restritiva, preocupação constante com o aggiornamento tecnológico para fins de desenvolvimento industrial, participação moderada nas principais conferências econômicas do 134 período e restrições crescentes à interdependência econômica (prática instintiva de um protecionismo comercial que, de fiscal, se converte em instrumento de política industrial). Não se deve ver nesse tipo de trabalho analítico uma versão economicista da já abundante historiografia sobre a política externa brasileira, nem uma tentativa de se reinterpretar a história diplomática do Brasil segundo uma “concepção materialista”. Com efeito, o itinerário da política internacional do País não poderia ser descrito unicamente com base nas relações econômicas internacionais do País, nem as relações exteriores do Estado monárquico e as dos governos republicanos que lhe sucederam poderiam ser construídas como se constituíssem uma espécie de sobredeterminação da ordem econômica mundial na qual elas estariam inseridas. Mas, pode-se concordar com um eminente historiador não marxista no sentido em que “tudo parte da história econômica”. Com efeito, como diz Pierre Chaunu, “é à História econômica que cabe o privilégio de mudar a História, de dar progressivamente origem a uma forma de História, a que chamamos serial, que sobrepõe suas próprias exigências, próximas das Ciências Sociais, às exigências sempre válidas da História tradicional”.1 Assim, mesmo ostentando uma “opção preferencial” pela história econômica da diplomacia brasileira, uma avaliação como a do tipo proposto neste ensaio deve precaver-se contra qualquer determinismo econômico ou desvio historiográfico: se a economia é inegavelmente o mais importante fator na vida de uma nação, os eventos, a escolha das políticas adotadas em casos concretos, as motivações e orientações gerais das relações internacionais do Brasil, bem como os traços peculiares de sua política externa “efetiva” não foram, majoritariamente ou predominantemente, determinados ou moldados pela base material ou pelas relações econômicas internacionais do País. As grandes questões da política externa brasileira, inclusive as de política econômica externa, sempre foram políticas e, como tal, receberam um tratamento essencialmente político. Um ensaio histórico sobre a formação da diplomacia econômica no Brasil deve tratar, assim, de aspectos pouco abordados nos velhos manuais de história diplomática (Delgado de Carvalho, Hélio Vianna 2) ou mesmo nos clássicos trabalhos de história econômica (Caio 1 Cf. Pierre Chaunu, A História como Ciência Social: a duração, o espaço e o homem na época moderna. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1976, p. 69. 2 Cf. Delgado de Carvalho, [Carlos]. História Diplomática do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1959; Hélio Vianna, “História Diplomática do Brasil” in História da República-História Diplomática do Brasil. 2ª ed.; São Paulo: Melhoramentos, s.d. [1962?], pp. 89-285 (1ª ed.; São Paulo: Melhoramentos, 1958). 135 Prado, Celso Furtado 3): a diplomacia comercial, a diplomacia financeira (inclusive a do Brasil enquanto credor dos países platinos), a diplomacia dos investimentos (aqui incluído o problema da tecnologia proprietária, isto é, das patentes industriais), aquilo que eufemisticamente se poderia chamar de “diplomacia da mão-de-obra” (continuidade, enquanto tanto se pôde fazer, do tráfico escravo, e atração de imigrantes europeus), bem como a emergente diplomacia “multilateral” (a exemplo daquelas primeiras “uniões” técnicas dedicadas aos correios, à telegrafia e à patentes). Não se poderia esquecer da própria conformação institucional do “instrumento diplomático” brasileiro no século XIX, isto é, dos aspectos organizacionais envolvidos na formulação e execução da diplomacia econômica. Todos esse campos oferecem interesse ao observador contemporâneo que deseje colocar em perspectiva histórica questões ainda relevantes do relacionamento econômico externo do País. Não é preciso, por exemplo, sublinhar a importância continuada, e mesmo crucial, da diplomacia comercial e financeira na história do desenvolvimento brasileiro, bem como para uma exitosa inserção econômica internacional do Brasil contemporâneo. Da mesma forma, ninguém disputaria o papel estratégico desempenhado pelos investimentos estrangeiros e por aportes de tecnologia avançada no aggiornamento da economia nacional. A diplomacia da força-de-trabalho constitui o que se chamaria atualmente de “política de recursos humanos”: se hoje o Brasil deixou de ser o grande “importador” de imigrantes que foi até meados do século XX – tornando-se, ao contrário, um “exportador” moderado de mãode-obra – ele ainda necessita do concurso do trabalho especializado vindo de centros mais avançados, assim como ele envia, regularmente, estudantes e técnicos para formação no exterior. No que se refere, por sua vez, à diplomacia multilateral, parece óbvio que, em sua vertente econômica, ela vem constituindo-se no campo de trabalho por excelência de uma política externa que deve operar cada vez mais nos limites, condicionalidades e desafios dos processos de globalização e de regionalização: se a política externa bilateral ainda não esgotou suas possibilidades de atuação, ela já não mais configura — salvo as exceções de praxe — o eixo preferencial ou exclusivo da atuação diplomática do Brasil no plano global e mesmo regional. Um trabalho analítico desse tipo, centrado nas diferentes formas de atuação da diplomacia econômica e enfocando o conjunto das relações econômicas internacionais do 3 Caio Prado Jr., Formação do Brasil Contemporâneo, Colônia. 14ª ed.; São Paulo: Brasiliense, 1976; História Econômica do Brasil. 2ª ed., São Paulo: Brasiliense, 1949; Celso Furtado, Formação Econômica do Brasil. 14ª ed., São Paulo: Nacional, 1976. 136 Brasil no século XIX, pode, portanto, contribuir para um conhecimento mais acurado das linhas básicas do desenvolvimento brasileiro nos dois últimos séculos. A seção seguinte oferece, com a ajuda visual de um quadro analítico, um panorama geral dessas relações econômicas e da atuação da diplomacia nos campos selecionados para análise: comércio exterior e política comercial, finanças (empréstimos e créditos), investimentos diretos estrangeiros (e a questão das patentes), mão-de-obra (isto é, tráfico e imigração) e, por fim, organizações emergentes no campo técnico-econômico (multilateralismo incipiente). As principais características da estrutura do relacionamento econômico externo durante o Império, ou seja, as especificidades do modo de inserção econômica internacional do Brasil no século XIX, os processos negociadores e o relacionamento econômico externo do País poderiam ser assim sumariados: a) uma política comercial “instintiva”, mais empírica do que doutrinal, marcada por uma “diplomacia evolutiva”, desde o livre-comércio obrigatório, encontrado em sua “pia batismal”, a uma espécie de protecionismo oportunista ou ocasional, menos motivado por preocupações industrializantes do que de fato impulsionado pela precariedade da base fiscal do governo; b) na área financeira externa, uma “diplomacia dos empréstimos” que se desenvolveu ao longo de todo o período, derivada em grande medida da irresponsabilidade do Estado na frente orçamentária, com a dependência consequente de capitais estrangeiros; a “diplomacia dos créditos externos” é, por sua vez, excessivamente restrita, em termos geográficos (apenas países platinos) e em volume de recursos mobilizados, para justificar sua inscrição como categoria específica da diplomacia econômica do Brasil; c) uma dupla “diplomacia da mão-de-obra”, resultante da atestada incapacidade das elites em reestruturar radicalmente a organização social da produção, e que combinou tergiversações na questão do tráfico escravo e uma tímida política de atração de colonos europeus; d) a prática empírica de uma “diplomacia dos investimentos”, refletida no atento acompanhamento dos progressos tecnológicos em curso na Europa e nos Estados Unidos e numa prática ativa de atração de capitais produtivos e de novos inventos para o País; ela é, no entanto, mais reativa do que proativa; e) uma estrutura funcional-burocrática bastante eficiente na defesa de seus interesses econômicos externos, com uma profissionalização precoce do pessoal diplomático e um processo decisório amplamente interativo com os interesses da elite dirigente, por força do regime parlamentarista em vigor e da presença constante, aliás exclusiva, de representantes da classe política na chefia da Secretaria de Estado; f) a busca, finalmente, de uma forte presença diplomática em todos os países importantes e em foros internacionais relevantes, de molde a colocar o Brasil no mesmo plano das demais “potências” do concerto internacional, conformando um exemplo de precoce diplomacia do multilateralismo econômico, certamente singular na periferia. O itinerário passado das relações econômicas internacionais e das instituições intergovernamentais de cooperação que delas derivam, bem como suas tendências evolutivas neste século e meio de construção de uma “ordem econômica internacional”, tal como vistos 137 pelo ângulo da experiência histórica da diplomacia econômica do Brasil, ensinam talvez que o processo de desenvolvimento deve ser, cada vez mais, pensado em escala global e que nenhum país pode continuar a conceber suas políticas setoriais e macroeconômicas numa perspectiva puramente nacional. O mundo do futuro pertence tanto aos Estados nacionais quanto às organizações internacionais: como evoluirão as relações entre esses dois tipos de entidades é uma questão ainda em aberto, inclusive para o Brasil, que participa de um processo de integração, o Mercosul, que poderá, em última instância, influenciar de maneira decisiva sua maneira de se relacionar com a comunidade internacional. Brasília, 21 de março de 1999 Publicado na revista Lua Nova, revista de cultura e política (São Paulo: CEDEC, nº 46, 1999, p. 169-195). 138 Os estudos sobre o Brasil nos Estados Unidos: a produção brasilianista no pós Segunda Guerra Rubens Antonio Barbosa; Marshall C. Eakin; Paulo Roberto de Almeida (orgs.): O Brasil dos brasilianistas: um guia dos estudos sobre o Brasil nos Estados Unidos, 19452001 (São Paulo: Editora Paz e Terra, 2002, 514 p.; ISBN: 85-219-0441-X) O estudioso estrangeiro de temas brasileiros, usualmente identificado como “brasilianista”, é parte integrante do processo de emergência e afirmação das ciências sociais no Brasil na segunda metade do século XX. A designação surge em plena era da Guerra Fria e de preocupações imperiais com a possível desestabilização do principal país do continente sul-americano. Segundo levantamento bibliográfico nessa área, o termo “brasilianista” teria sido utilizado pela primeira vez no Brasil em 1969, na pluma do acadêmico Francisco de Assis Barbosa “para qualificar o estrangeiro especialista em assuntos brasileiros”. Barbosa assim referiu-se ao historiador dos Estados Unidos Thomas Elliot Skidmore no prefácio à edição brasileira de Politics in Brazil (1967). Mas não se tratava certamente de sua primeira utilização, uma vez que, desde o início dos anos 1960, ao tomar impulso uma nova voga de estudos brasileiros nos Estados Unidos, sob o impacto da Revolução Cubana, o termo já vinha sendo utilizado por um grupo de pesquisadores americanos – entre eles Frank McCann, Richard Morse, Robert Levine, entre outros – que passou a beneficiar-se da concessão de bolsas de estudos e de outras medidas de auxílio pelo Governo de Washington. Para distinguir-se de outros especialistas em temas da América Latina, os integrantes dessa onda de estudiosos do Brasil passaram a chamar-se a si mesmos de “brasilianistas”. Nunca tinha ocorrido, antes do desafio socialista do final dos anos 1950, um tão rápido desenvolvimento e mesmo tal benéfica proliferação de especialistas estrangeiros em temas do Brasil como o processo de “multiplicação” de brasilianistas permitido a partir do National Defense Education Act de 1958 que, estabelecido por decisão do Congresso americano, irrigou, através de seu famoso “Title VI”, as universidades dos EUA com generosos recursos federais dirigidos à pesquisa, ao treinamento e ao ensino de questões latino-americanas nos centros universitários e de estudo dos EUA. Durante um certo tempo, nos anos 1970, em vista da grande proporção de acadêmicos dos Estados Unidos dentre esses estudiosos estrangeiros, o termo cunhado em português foi muitas vezes escrito em inglês, indicando uma natural predominância dos EUA nesse gênero de estudos. Pouco a pouco 139 porém, o termo foi libertando-se de sua conotação original, abrasileirou-se e passou a designar os diversos representantes da categoria. Com efeito, um levantamento bibliográfico de final da década de 1980 sobre a produção acadêmica brasilianista traduzida e publicada no Brasil entre 1930 e aquela época revelou uma predominância, à razão de 60%, de especialistas nascidos, formados (isto é, possuindo a nacionalidade) ou trabalhando nos EUA, seguidos de longe por representantes do Reino Unido, da França e da Alemanha, entre os quais se incluíam, aliás, alguns que realizaram estadas mais ou menos longas em universidades norteamericanas (Massi-Pontes, 1992: 113-115). Dos hispanistas aos latino-americanistas Mas os brasilianistas não surgiram como um raio no céu azul, em plena era da Guerra Fria e do regime militar, numa época de preocupações com os efeitos da Revolução Cubana numa sociedade em processo de modernização econômica e social. Não é necessário remontar aos trabalhos de um quase “amateur” como William H. Prescott (que publicou Conquest of Mexico e Conquest of Peru em 1843 e 1846 respectivamente) ou um aventureiro militar comissionado como o oficial da marinha William Lewis Herndon (Exploration of the valley of the Amazon, 1854) para detectar o ato de batismo da variante americana de uma categoria de estudiosos já existente na Europa. De fato, o surgimento da categoria pode ser datado de 1916, quando historiadores dedicados ao estudo da América Latina se congregaram num encontro da American Historical Association e fundaram a Hispanic American Historical Review, que foi efetivamente publicada pela primeira vez em 1918, quase 23 anos depois do aparecimento, em 1895, da The American Historic Review. A revista desse grupo de “hispanistas” da AHA teve existência precária em seus primeiros 25 anos de vida, sobrevivendo graças a doações de mecenas, como as famílias Rockefeller e Duke, com investimentos no México e em outras regiões das Américas. A HAHR contou, entre seus primeiros colaboradores, com alguns intelectuais da diplomacia brasileira, como Manuel de Oliveira Lima. O empenho de Oliveira Lima e outros brasileiros depois dele não impediu que os estudos “hispânicos” ou Latin-Americanists nos EUA fossem dominados pela pesquisa e pela publicação prioritária em torno do México e adjacências, como ainda é caso, muito embora o Brasil figure num honroso segundo lugar. Considerandose a peculiar situação do México ou a condição do Caribe como uma espécie de mare nostrum na projeção geopolítica dos EUA, torna-se compreensível tal repartição de interesses no plano acadêmico, o que apenas reforça a posição do Brasil no conjunto dos estudos de área. O economista brasileiro João Frederico Normano, radicado desde muitos anos nos EUA, 140 publicou, em 1931, um trabalho sobre a economia e a ideologia na América Latina (The Struggle for South America), seguido, em 1935, de um estudo sobre o desenvolvimento econômico de longo prazo do Brasil, centrado nos ciclos de produtos: Brazil, a study of economic types. Depois de exemplos pioneiros na costa leste nos primeiros anos do século XX, os estudos latino-americanos – aqui com menor ênfase em questões brasileiras – se expandiram razoavelmente bem na costa ocidental nos anos 30 e 40, para literalmente explodir na segunda metade do século um pouco em todas as partes dos EUA. Passos importantes na trajetória dos estudos latino-americanistas nos Estados Unidos (nos quais os estudos brasileiros estavam inevitavelmente fundidos) foram dados com a constituição, em 1928, no âmbito da AHA, de um Comitê de História Latino-Americana, que impulsionou decisivamente a criação, pouco anos depois, do Handbook of Latin-American Studies, que pode ainda hoje ser considerado um empreendimento bibliográfico excepcional, sem equivalentes em qualquer outra área geográfica de estudos nos campos das humanidades e das ciências sociais. O HLAS apareceu pela primeira vez em 1936, sob o patrocínio do Committee of Latin American Studies do American Council of Learned Societies, com o auxílio financeiro do Social Science Research Council de Nova York; vários números tiveram nessa época o apoio da Rockefeller Foundation. A Biblioteca do Congresso, que passou a se ocupar de sua publicação a partir do número 9, até hoje está encarregada de sua direção editorial, como parte das tarefas de sua Hispanic Division. Três anos depois, em 1939, a Universidade do Texas criava o seu Institute of Latin American Studies, que veio a converter-se no maior e mais bem equipado dos centros de estudo especializados na região em seu conjunto, junto com os da Califórnia, mais voltados para o próprio continente norte-americano (ou seja, dedicando-se ao México, América Central e Caribe). O HLAS foi publicado pela Universidade de Harvard até o seu número 13 (1948), quando ele passa aos cuidados da University of Florida Press, em Gainesville. A partir de 1966, ele passa a ser publicado anualmente pela Texas University Press, em Austin, alternando anos ímpares com materiais relativos às chamadas humanities (artes, música, literatura e história, entre outras) e anos pares com a bibliografia relativa às social sciences (antropologia, economia, sociologia, ciência política, relações internacionais etc.). A presença do Brasil em suas páginas é a princípio modesta, mas o historiador, economista e empresário Roberto Simonsen foi um contributing editor do HLAS na área de economia brasileira dos números 6 a 11 (1941 a 1946). A Segunda Guerra Mundial pode ter afetado o fluxo normal dos intercâmbios culturais e acadêmicos entre as partes setentrional e meridional das Américas, mas ela não parece ter 141 prejudicado absolutamente o desenvolvimento dos estudos ibero-americanos nos EUA. Ao contrário, a necessidade de atrair a boa-vontade dos governos na causa comum contra o inimigo nazifascista e a de manter um aprovisionamento regular de produtos primários estratégicos motivaram tanto o envio de algumas missões de boa-vontade – várias chefiadas por especialistas universitários, como foi o caso no Brasil da Missão Cooke, voltada para o levantamento do potencial econômico brasileiro – como convites formulados a muitos intelectuais latino-americanos para visitarem universidades americanas e nelas proferirem palestras sobre seus respectivos países – como também foi caso, em se tratando do Brasil, das visitas efetuadas pelo escritor Érico Veríssimo. Essa aproximação permitiu, por exemplo, a tradução para o inglês e sua publicação nos Estados Unidos de algumas obras clássicas do pensamento social brasileiro da primeira metade do século XX, como ocorreu com o épico de Euclides da Cunha (Rebellion in the Backlands) em 1945. Nesse mesmo ano Gilberto Freyre preparava um conjunto de leituras sobre o Brasil, publicadas sob o título de Brazil: An Interpretation, ao passo que seu inovador Casa Grande e Senzala (The Masters and the Slaves) aparecia logo no ano seguinte. Desenvolvimento inicial dos estudos sobre o Brasil nos EUA No pós-Segunda Guerra os estudos latino-americanos começam a experimentar um desenvolvimento em bases mais sólidas nas universidades americanas, com o estabelecimento de seções especializadas, de cunho interdisciplinar, nos departamentos humanísticos ou, onde pertinente, em centros voltados exclusivamente para os estudos latino-americanos. Este foi o caso, por exemplo, das universidades do Texas, de Tulane, de North Carolina e, especialmente, de Vanderbilt, onde o foco já era o Brasil. Num primeiro momento esses estudos carecem de qualquer apoio governamental em bases institucionais, o que aliás é consistente com as preocupações oficiais na fase inicial da Guerra Fria. A América Latina aparece, nas diretivas do Conselho de Segurança Nacional, como a região de menor importância estratégica nos planos de segurança externa dos EUA. Isso não impediu o aparecimento de alguns trabalhos de reconhecida qualidade sobre países do hemisfério, com o Brasil continuando a ocupar uma posição secundária em relação ao México, mas ainda assim relevante no conjunto dos estudos de área. As elites brasileiras do imediato pós-guerra, confrontadas ao desafio argentino e alimentando a expectativa de dividendos políticos de sua participação na guerra, se fixavam no mito da relação especial com os Estados Unidos, propondo esquemas de ajuda bilateral e de financiamento multilateral, como uma espécie de Plano Marshall para a América Latina. O máximo que se 142 logrou, em 1949, foi a criação de uma comissão econômica mista (Joint Brazil-US Economic Development Commission), cujo relatório é publicado em 1954. A década que se segue ao final da Segunda Guerra já foi descrita como sendo a da “americanização” do Brasil (Haines, 1989) e, de fato, o alinhamento em termos de política externa jamais foi tão completo como nesses anos. A produção acadêmica – que poderia ser descrita como “pré-brasilianista” – começa a crescer paralelamente aos encontros e desencontros em matéria política, militar ou econômica. O sociólogo Donald Pierson realiza um primeiro levantamento da produção relativa ao Brasil (Survey of the Literature on Brazil of Sociological Significance Published up to 1940) publicada ainda em 1945, ao passo que o ano seguinte vê o aparecimento de dois primeiros trabalhos de apresentação geral nessa mesma disciplina e em geografia, a cargo respectivamente de T. Lynn Smith (Brazil, People and Institutions) e de Preston E. James (Brazil). Os anos 1950 são dominados pelas presenças desses três cientistas sociais, responsáveis por vários títulos publicados por editoras universitárias, aos quais podem ser agregados os nomes dos antropólogos Charles Wagley e Marvin Harris, bem como os dos historiadores Alexander Marchant, Stanley Stein e Richard Morse, estes dois bastante ativos nas décadas seguintes, juntos com os economistas Werner Baer e Nathaniel Leff e o cientista político Ronald Schneider. O empenho na coleta de dados e na busca de fontes originais impressionam os colegas brasileiros, nesta fase pioneira de instalação de cursos de ciências sociais nas principais universidades do país (São Paulo e Rio de Janeiro). Em consequência, vários dos títulos publicados nos Estados Unidos logo tornam-se referências obrigatórias para os cursos brasileiros nas respectivas áreas de conhecimento, o que também ocorreu com os brasilianistas franceses que participaram da formação da USP. Nessa conjuntura de acirramento da competição hegemônica entre os Estados Unidos e a União Soviética – esta tinha acabado de lançar seu Sputnik, e com ele um grande desafio à supremacia norte-americana na corrida espacial – intervém o elemento contingente da Revolução Cubana, que foi, sem dúvida, um grande fator de impulsão dos estudos latinoamericanos nos EUA. Muitos Latin-Americanists já propuseram, não sem ironia, erigir uma estátua a Fidel Castro, já que suas iniciativas, logo identificadas com a causa do socialismo mundial, motivaram a Administração americana a financiar diversos programas voltados para a “prevenção e cura” dos males latino-americanos. No campo propriamente políticodiplomático, são exemplos dessas iniciativas o Corpo da Paz (não restrito ao continente), um órgão de fomento regional proposto havia décadas, o Banco Interamericano de Desenvolvimento – nessa fase também resultante de iniciativas de países latino-americanos 143 como o Chile e o Brasil, que tinha lançado a sua Operação Pan-Americana em 1958 – e, mais adiante, a Aliança para o Progresso, voltada para o financiamento de projetos sociais e resultado direto do desafio cubano-soviético no campo dos modelos de desenvolvimento. No campo da educação, a Administração americana dá início ao financiamento ampliado de programas de estudos latino-americanos em diversas universidades, cujas consequências mais imediatas seriam o estímulo ao aprendizado das línguas ibéricas e a concessão de número significativo de bolsas de estudos para pesquisa nos próprios países latino-americanos. No setor privado, esforços como os da Fundação Ford, dirigidos ao financiamento de estudos de ciências sociais em nível de pós-graduação, vêm complementar os programas anteriormente existentes, na área oficial (Programa Fulbright, por exemplo) ou por meio de instituições privadas (Fundação Rockefeller). A produção de trabalhos originais sobre o Brasil a partir dessa época, sob a forma de dissertações e teses acadêmicas, sempre foi bem mais volumosa do que os títulos efetivamente divulgados ao público geral – seja sob forma de publicações nas University Presses, seja em versão em português publicadas por editoras do Brasil. Tal fato dificulta uma avaliação da produção global, mas pode-se também considerar que os estudiosos que continuaram tratando de temas brasileiros terminaram por ver publicados seus trabalhos. Convém igualmente relembrar que um certo número de Latin-Americanists tiveram importância na pesquisa sobre temas brasileiros, como é o caso de Robert Alexander, que sempre incluiu capítulos ou análises cobrindo substancialmente o Brasil em seus muitos livros sobre os partidos e líderes políticos e os movimentos comunista e sindical na América Latina ( ver 1957, 1962 e 1965, entre vários outros títulos). A ascensão do brasilianista no período autoritário brasileiro O interesse pelo Brasil cresce na transição entre as administrações Eisenhower e Kennedy, manifestando-se tanto sob a forma de novos candidatos a uma especialização universitária, como mediante a busca de novas fontes de informação extraídas da própria realidade brasileira. Esse período assistiu à fragmentação do “monopólio” dos antigos LatinAmericanists dos Estados Unidos (como John J. Johnson, especialista em questões militares, ou o já citado Alexander, entre outros), cujas generalizações analíticas já não permitiam acomodar as situações sub-regionais e as particularidades nacionais. Isto não quer dizer que estudos “latino-americanos” deixassem de ser enfocados nas universidades americanas – ao contrário, os centros se multiplicaram e, onde existentes, conheceram nova expansão – ou que especialistas “regionais” não mais editassem compêndios cobrindo todos os países ao sul do 144 Rio Grande, mas emerge um reconhecimento de que a uniformidade continental (até então sob o estereótipo enganador do sombrero e dos caudilhos despóticos) escondia situações específicas que precisavam ser estudadas. Na primeira vertente, a da especialização sub-regional em países singulares, tem-se a ocorrência de uma nova e mais vigorosa vaga de “exploradores” do terreno, o que iria motivar a publicação, de guias ou manuais de investigação destinados a orientar os novos estudos especializados. Situam-se nesse caso os livros de Harry Hutchinson (Field Guide to Brazil, 1960) e de William Jackson (Library Guide for Brazilian Studies, 1964), assim como a compilação, sob a responsabilidade de Robert Levine, de um primeiro guia de pesquisas identificando as características do “laboratório” brasileiro: Brazil: Field Research Guide in the Social Sciences (1966). Na segunda vertente, intensifica-se a tradução e a publicação de títulos representativos das ciências sociais do Brasil nos Estados Unidos. O sociólogo Gilberto Freyre, que frequentava os estabelecimentos universitários dos Estados Unidos desde a segunda década do século XX, foi um dos que se beneficiou desse aumento da demanda acadêmica e da curiosidade universitária pelo Brasil. Ademais da publicação de seu Masters and Slaves no imediato pós-guerra, foram traduzidos e publicados nessa época New World in the Tropics: The Culture of Modern Brazil (1959) e o seguimento “urbano” do primeiro, The Mansion and the Shanties (1963). Nos anos que antecederam e sucederam imediatamente o movimento militar que encerrou o ciclo da República de 1946 no Brasil, vários outros pesquisadores brasileiros foram traduzidos e publicados por diferentes editoras universitárias ou casas comerciais dos EUA. Com efeito, entre 1963 e 1967, assistiu-se à publicação de importantes títulos do universo acadêmico brasileiro: Celso Furtado, The economic growth of Brazil, Pandiá Calógeras, A History of Brazil (ambos em 1963); Vianna Moog, Bandeirantes and Pioneers e Cruz Costa, A History of Ideas in Brazil (em 1964); novamente Celso Furtado em 1965, com Diagnosis of the Brazilian Crisis; José Honório Rodrigues duplamente, com Brazil and Africa (1965) e The Brazilians: Their Character and Aspirations (1967); Josué de Castro, então influente internacionalmente, com Death in Northeast (1966); o ecletismo editorial revelou-se na publicação de dois representantes de tendências antípodas da historiografia brasileira, o tradicional José Maria Bello, A History of Modern Brazil, 1889-1964 (em 1966) e o marxista Caio Prado Jr., The Colonial Background of Modern Brazil (em 1967). É no contexto do regime modernizador autoritário inaugurado pelos militares em 1964 que se situa o nascimento do brasilianista, uma “personagem” que, nas palavras de Robert Levine, um dos mais respeitados e influentes membros dessa pequena comunidade, nada mais 145 seria senão uma invenção dos próprios brasileiros. O representante mais conhecido — nos dois países – da categoria é provavelmente o historiador Thomas Skidmore que, em 1967, publicou Politics in Brazil, 1930-1964: An Experiment in Democracy, cujo subtítulo, condizente com a época, já traduzia um certo ceticismo em relação às possibilidades de estabilidade política e de um sistema representativo no Brasil. Traduzido pouco depois e publicado inicialmente pela Editora Saga (1969), Brasil: de Getúlio Vargas a Castelo Branco, 1930-1964 foi certamente o título mais reeditado no Brasil (pela Paz e Terra) de toda a produção brasilianista acumulada desde então. O sucesso de público alcançado por Skidmore não deve obscurecer o trabalho da geração anterior de estudiosos, como por exemplo, o já citado antropólogo Charles Wagley, o “biógrafo” de São Paulo Richard Morse, e Stanley Stein, cujo estudo sobre a economia do café em Vassouras, publicado em 1957, tinha recebido uma edição brasileira desde 1961. Sem prejuízo dessas tentativas de alguns brasilianistas de procurar abordar a história brasileira em seu conjunto, como foi o caso do próprio Skidmore em seus dois livros de história política (o segundo volume retoma o itinerário a partir do regime militar: The Politics of Military Rule in Brazil, 1964-85, 1988), ou ainda de Bradford Burns (A History of Brazil, 1970) e de Richard Graham (A Century of Brazilian History Since 1865, 1969) e de muitos outros mais, vários dos estudiosos no decorrer dos anos 60 e 70 preferiram operar uma espécie de “divisão do trabalho”, e efetuar um corte temporal ou regional em seus respectivos enfoques. Em algumas experiências, esse esforço foi efetivamente coordenado, como se viu nas pesquisas sobre a federação e o regionalismo na Primeira República, conduzidos por Joseph Love (Rio Grande do Sul and Brazilian regionalism, 1882-1930, 1971; São Paulo and the Brazilian Federation, 1889-1937, 1980), por John Wirth (Minas Gerais in the Brazilian Federation, 1889-1937, 1977) e por Robert Levine (Pernambuco in the Brazilian Federation, 1889-1937, 1978). Em outros casos, os trabalhos foram efetuados de maneira independente, como evidenciado nas pesquisas de Warren Dean (The Industrialization of São Paulo, 18801945, 1969) e de Eul-Soo Pang (Bahia in the First Brazilian Republic: Coronelismo and Oligarchies, 1889-1934, 1978). O enfoque das políticas setoriais ou dos processos decisórios em matéria econômica, em alguns casos também combinado a problemáticas regionais, recebeu igualmente a atenção de alguns pesquisadores nos trabalhos conduzidos durante esse período: podem ser citados como representativos dessa preocupação os estudos dos já citados John Wirth (The Politics of Brazilian Development, 1930-1954, 1970) e Warren Dean (Brazil and the Struggle for Rubber: A Study in Environmental History, 1987), assim como o de Peter 146 Eisenberg (The Sugar Industry in Pernambuco: modernization without change, 1840-1910, 1974). Entre o final dos anos 60 e meados dos 70, quando o Brasil vivia uma das fases mais dramáticas de sua história política, com muitos pesquisadores brasileiros condenados ao exílio ou intimidados pela máquina da repressão, o brasilianismo viveu provavelmente seus momentos de maior prestígio e de inquestionável consagração acadêmica, seja pelo tratamento dado aos problemas políticos do momento, seja pela pesquisa detalhista em direção das origens do estado de coisas contemporâneas. Vários autores se dedicaram à análise do regime autoritário e seu modo de funcionamento, como Ronald Schneider (The Political System in Brazil: Emergence of a "Modernizing" Authoritarian Regime, 1964-1970, 1971) e Alfred Stepan (The Military in Politics: changing patterns in Brazil, 1971), este o coordenador de outro volume sobre a questão, bastante citado nos “anos de chumbo”: Authoritarian Brazil: Origins, Policies and Future (1973). Em outros casos, o bisturi analítico incidiu sobre a própria sociedade civil, como no amplo estudo de Philip Schmitter sobre os grupos de interesse em perspectiva histórica (Interest Conflict and Political Change in Brazil, 1971), ou sobre um aspecto particular da política governamental, como em novo trabalho do mesmo Ronald Schneider, desta vez sobre a política externa (Brazil: Foreign Policy of a Future World Power, 1976). Esses estudos de amplo escopo analítico não impediram outras iniciativas temáticas focadas em grupos sociais ou religiosos, como nos trabalhos de Della Cava sobre a religiosidade popular no Nordeste (Miracle at Joaseiro, 1977) ou a discussão de Skidmore em torno do projeto de “branqueamento” conduzido pelas elites brasileiras na fase pós-Abolição (Black Into White: Race and Nationality in Brazilian Thought, 1974). Numa vertente historiográfica mais factual, referência indispensável deve ser feita à obra acumulada desde meados dos anos 60 pelo historiador John W. F. Dulles, que combinou tanto pesquisa em arquivos como depoimentos de atores da história recente para produzir vários títulos sobre o itinerário político e sobre o movimento sindical e comunista. O período repressivo-modernizador do regime militar nos anos 70 também assistiu a um equivalente acadêmico do processo de substituição de importações em curso no setor industrial, sob a forma de recursos ampliados concedidos às instituições universitárias e laboratórios de pesquisa para formar pessoal e viabilizar novos projetos de pesquisa. Independentemente das orientações políticas do governo, ampliaram-se as fontes de financiamento para a capacitação de recursos humanos, com um crescimento exponencial das bolsas atribuídas a candidatos em programas de pós-graduação no exterior. O retorno gradual 147 dos pesquisadores correspondeu a um aumento proporcional no volume de trabalhos científicos publicados em periódicos especializados, elevando a qualidade e o profissionalismo das ciências sociais brasileiras. Junto com a Europa, os Estados Unidos acolheram em suas instituições de ensino superior número significativo desses candidatos à pós-graduação – mestrado e doutoramento –, observando-se algumas concentrações disciplinares, já que essas instituições ofereciam notórias vantagens comparativas em áreas científicas e na economia. Assim, parte expressiva dos quadros superiores de empresas privadas e estatais brasileiras, assim como da alta burocracia federal – entre eles muitos ministros da área econômica e presidentes do Banco Central – ostenta diplomas e teses defendidas em universidades americanas de primeira linha. Na outra direção, a da “exportação” de ideias e teorias do Brasil para os Estados Unidos, o exemplo mais conspícuo a ser lembrado refere-se à influência da “teoria da dependência” – representada sobretudo na produção de Fernando Henrique Cardoso – na elaboração de uma vertente crítica do pensamento sociológico norte-americano em estudos voltados para os problemas dos países em desenvolvimento, em particular da América Latina. Muito embora o seu principal proponente tenha qualificado diversas vezes seu entendimento do conceito de “dependência”, esta noção foi a tal ponto absorvida pela comunidade norteamericana de sociólogos, que seu autor se sentiu obrigado a escrever um texto sobre o “consumo da teoria da dependência nos Estados Unidos”. Consolidada a formação das ciências sociais brasileiras em princípios dos anos 1980 – isto é, lograda a “substituição de importações” no campo da teoria social –, o papel dos brasilianistas tende a diminuir. Isto não quer dizer que a ciência social brasileira tivesse terminado seu itinerário em direção da internacionalização de procedimentos e padrões de pesquisa, mas que a “dependência” dos antigos padrões e normas “ideais” estabelecidos pelos brasilianistas no período formativo já não se apresentava como crucial aos pesquisadores brasileiros. À medida em que se avançava nos anos 80, pari passu aos processos de democratização política e de mobilização social – que aliás mereceram estudos relevantes por parte dos brazilianists, como por exemplo em Stepan (1989) – uma nova geração de brasilianistas foi se constituindo, com diferentes preocupações e com novos objetos de pesquisa, menos “societais” e mais “grupais”, menos abrangentes e mais setoriais, com enfoques temáticos diversificados. Diversificação e fragmentação dos estudos brasileiros nos EUA 148 A história do brasilianismo acadêmico nos Estados Unidos revela a existência de fases sucessivas de interesse e de concentração temática nas áreas das humanidades e das ciência sociais. Depois dos pioneiros dos anos 50 e 60, vários ocupando espaço relevante na bibliografia e na literatura especializada na história e na ciência política, o campo foi sendo ocupado por novas gerações de brasilianistas, mais preocupadas talvez com determinadas questões setoriais do que com as grandes interpretações históricas ou ensaios abrangentes sobre a sociedade brasileira, como havia ocorrido nos primeiros anos de exploração do terreno. No plano institucional, o cenário do apoio à pesquisa continuou a ser dominado pela saudável “anarquia” e pela dinâmica de captação de recursos através dos Centers for Latin American Studies das grandes universidades americanas, que mantinham (e mantêm) contatos diretos com universidades, centros de pesquisa ou com professores brasileiros, estimulando um fluxo contínuo de acadêmicos nos dois sentidos. As deficiências persistentes do ensino de português nas universidades americanas, assim como os vínculos mais intensos existentes com os países hispânicos do imediato entorno geográfico continuam, porém, a dificultar a expansão dos estudos brasileiros nos EUA. Do ponto de vista disciplinar, a história sempre foi o terreno privilegiado dos muitos estudiosos americanos que se dedicaram ao Brasil, concentrando talvez um terço do fluxo de pesquisadores das ciências humanas e sociais. Os economistas ocupam igualmente lugar de destaque na produção brasilianista, mas eles sempre desempenharam um papel sui-generis no itinerário do brasilianismo acadêmico, sendo mais relutantes em participar de reuniões de associações especializadas como as da Latin American Studies Association (LASA) ou da Brazilian Studies Association (BRASA). Com o passar dos anos, o brasilianismo norteamericano atravessou um processo de diversificação disciplinar e de enriquecimento temático, com o surgimento de áreas pouco exploradas de pesquisa, correspondendo aliás ao próprio desenvolvimento interno da academia estadunidense (gênero, estudos raciais, grupos minoritários, direitos humanos etc.). Uma consulta à produção publicada a partir dos anos 80 e no período recente revelaria algumas notáveis persistências, assim como o surgimento de uma nova geração de brasilianistas, com estudos mais focados em uma temática setorial ou claramente voltados para uma gama diversificada de novos temas, como agora se procurará constatar. Na vertente tradicional da história e no seguimento da produção da prolífica geração dos anos 60, temos a presença de scholars confirmados, como: Stanley Hilton (Hitler’s Secret War in South America, 1981; Brazil and the Soviet Challenge, 1991); Anthony Russel-Wood (The Black Man in Slavery and Freedom in Colonial Brazil, 1982); Robert Conrad (Black 149 Slavery in Brazil, 1983); Stuart Schwartz (Sugar Plantations in the Formation of Brazilian Society, 1985); Neill Macaulay (Dom Pedro, 1986); Warren Dean (Brazil and the Struggle for Rubber, 1987; With Broadax and Firebrand, 1995); Tom Skidmore (The Politics of Military Rule in Brazil, 1988; Brazil, 1999); Bob Levine (Vale of Tears: Revisiting Canudos, 1992; Brazil: A History, 1999) e o já citado John Dulles, com a continuidade de sua história do movimento comunista no Brasil (Brazilian Communism, 1935-1945, 1983) e mais dois volumes biográficos, desta vez passando de Castelo Branco a Carlos Lacerda. Alguns novos valores (embora nem todos jovens autores) aparecem nessa mesma área da história a partir dos anos 80, como por exemplo: Laurence Hallewell (Books in Brazil, 1982); Jeffrey Needell (A Tropical Belle Epoque, 1987); Steven Topik (The Political Economy of the Brazilian State, 1987; Trade and Gunboats, 1996); Roderick Barman (Brazil: The Forging of a Nation, 1988; Citizen Emperor: Pedro II, 1999); Gerald Haines (The Americanization of Brazil, 1989); Marshall Eakin (British Enterprise in Brazil, 1990; Brazil: the once and future country, 1997); Ruth Leacock (Requiem for Revolution, 1990); Joseph Smith (Unequal Giants, 1991); Sandra Graham (The Domestic World of Servants and Masters in Nineteenth-Century Rio de Janeiro, 1992); Thomas Holloway (Policing Rio de Janeiro, 1993); Eugene Ridings (Business Interest Groups in Nineteenth-Century Brazil, 1994); Jeffrey Lesser (Welcoming the Undesirables, 1995; Negotiating National Identity, 1999); Barbara Weinstein (For Social Peace in Brazil, 1997); Kim Butler (Freedoms Given, Freedoms Won, 1998); Robin Anderson (Colonization As Exploitation in the Amazon, 1999) e William Summerhill (Order Against Progress, 2000). Em outras áreas, como em sociologia e ciência política, repete-se o mesmo padrão já observado na história, isto é, o da reincidência editorial de alguns “velhos” conhecedores e analistas da sociedade e da política brasileira, por um lado, combinado ao surgimento, por outro, de novos scholars orientados por princípios, preocupações e temáticas necessariamente diferentes daqueles que haviam caracterizado a geração dos anos 60. Estão no primeiro grupo June Hahner, Scott Mainwaring, Laura Randall, Peter McDonough, Ronald Chilcote, Richard Graham, Joseph Page e Ronald Schneider, entre vários outros conhecidos intérpretes da sociedade brasileira. Situam-se no segundo grupo George Andrews (que, em Blacks and Whites in São Paulo, 1888-1988, revisa Florestan Fernandes), David Plank, Michael Hanchard, James Green e David Foster, entre muitos outros novos valores das ciências sociais e humanidades com interesse no Brasil. Nessa fase mais recente, algumas das ênfases temáticas, dos cortes temporais e das metodologias analíticas tornam-se comuns a acadêmicos brasileiros e norte-americanos, 150 evidenciando uma mais que bem-vinda osmose intelectual depois de alguns anos de desencontros em relação aos tipos de abordagem praticados no Brasil e nos EUA. O diálogo entre as comunidades de pesquisadores do Brasil e dos Estados Unidos tornou-se mais intenso no decorrer dos anos 1980 e no início dos 90. Graças aos bons resultados dos programas apoiados financeiramente desde uma década antes por entidades privadas como a Fundação Ford, assim como em virtude da expansão do sistema oficial brasileiro de bolsas para estudos pós-graduados, a tradicional dominação francesa (e europeia) nas ciências sociais começou nessa época a ser superada, quantitativamente pelo menos, pela produção dos Estados Unidos. Não obstante, os vínculos institucionais entre universidades dos dois países sempre foram obstaculizados pela inexistência, nos EUA, de entidades centralizadas de apoio e de fomento à pesquisa, como a CAPES e o CNPq. Os muitos candidatos brasileiros à formação pós-graduada nos Estados Unidos sempre desempenharam o papel de “clientes individuais” do establishment universitário americano, dificultando a concepção e o estabelecimento de programas conjuntos de pesquisa entre entidades correspondentes dos dois países, nos mesmos moldes do que se fazia entre o Brasil e a Europa, ao abrigo das comissões mistas de educação ou dos consórcios criados entre entidades interessadas (como ocorre com a Alemanha e com a França, por exemplo). Muito embora os Estados Unidos tenham abrigado, individualmente, o maior número de bolsistas brasileiros no exterior, é possível que um número superior de projetos cooperativos bilaterais tenha sido desenvolvido entre universidades brasileiras e europeias. O amadurecimento dos estudos brasileiros nos Estados Unidos Uma avaliação crítica dos estudos sobre o Brasil nos Estados Unidos não pode, obviamente, ser feita meramente com base na produção publicada em forma de livros. Para ser equilibrada e abrangente, ela deveria enfocar igualmente o ensino e a pesquisa no cenário universitário e nos centros de pesquisa (think tanks), cujos reflexos se dão mediante artigos publicados em revistas especializadas e no âmbito das dissertações e teses de pós-graduação, o que não pôde ser feito nos estreitos limites deste ensaio de síntese. O panorama aqui visualizado permitiu entretanto acompanhar a evolução das linhas de pesquisa e identificar os principais trabalhos ao longo de meio século, enfatizando algumas constantes analíticas e momentos de ruptura ou de transformação. De fato, à diferença de outras tradições estrangeiras (sobretudo a francesa), os estudos brasileiros nos EUA tomam impulso no período ulterior à Segunda Guerra. Numa primeira fase, eles parecem reproduzir o padrão estabelecido por outras gerações de estudiosos, isto é, 151 a simples apresentação e sistematização, para um público estrangeiro, daqueles aspectos peculiares do país enfocado, difundindo sua história, sua natureza e as características do povo (Lynn Smith, Wagley). O que o novo “brasilianista” americano aporta de singular nos estudos estrangeiros sobre o Brasil, sobretudo após a expansão dos estudos de língua e de culturas estrangeiras nos Estados Unidos, permitida pelo National Defense Education Act de 1958, foi uma preocupação sistêmica em explicar o Brasil enquanto tal, eventualmente numa perspectiva implicitamente comparativa. Depois de 1960, a compreensão “política” do Brasil esteve no centro das preocupações desses estudiosos, tornando-os uma referência interna no debate sobre as instituições políticas e sociais, seus problemas econômicos, os fenômenos autoritários, o papel dos militares e das elites, dos grupos religiosos, enfim, convertendo-os em coparticipantes do processo de emergência e de afirmação das ciências sociais brasileiras em sua acepção contemporânea. O Brasil não era, obviamente, o único país estudado dessa forma, uma vez que os imperativos da Guerra Fria e a pressão da Revolução Cubana projetaram os “interesses imperiais” sobre o conjunto da América Latina e outros continentes. Entretanto, o agenciamento e as relações desses brasilianistas com as instituições universitárias brasileiras e com o mercado editorial do Brasil, num momento de restrições às liberdades políticas e de reestruturação do sistema de pesquisa nacional deu-lhes um estatuto peculiar, chegando mesmo a convertê-los em figuras simbólicas do universo acadêmico. A “substituição de importações” operada ao longo dos anos 70 e 80 nas ciências sociais brasileiras – inclusive com ajuda de fundações dos Estados Unidos – banalizou um pouco a figura do brasilianista, não lhe retirando, porém, o prestígio de que ele ainda desfruta nos meios acadêmicos, assim como entre o público instruído, de modo geral. No período recente, finalmente, observou-se uma diversificação crescente dos estudos sobre o Brasil nos Estados Unidos, com a introdução de temáticas especializadas e de enfoques setoriais que mais parecem refletir ambiguidades do próprio establishment universitário americano do que a preocupação sistêmica da geração “fidelista” que se propunha analisar o Brasil enquanto país global. Para finalizar, cabe observar que o enorme complexo “econômico-científico” dos Estados Unidos, confirmando sua vocação de “brain-drainer universal”, também atuou como uma “bomba de sucção” sobre gerações inteiras de cientistas brasileiros (e estrangeiros de modo geral), atraindo número significativo de cérebros para seu establishment científico e também para as atividades privadas de empresas de vanguarda na pesquisa tecnológica. Em setores não cobertos por este ensaio, como a medicina e algumas outras áreas tecnológicas, parece provável que o Brasil continue a fornecer mão-de-obra de alta qualificação para muitas 152 empresas privadas, instituições de pesquisa e hospitais universitários dos Estados Unidos, em escala ainda não mapeada devidamente. As modalidades tradicionais de concessão de bolsas pelas entidades de fomento à pesquisa do Brasil tiveram, em todo caso, de sofrer revisão em sua forma de aplicação, em vista, precisamente, desse problema preocupante do “financiamento” brasileiro à pesquisa de ponta nos Estados Unidos. Tal não parece ocorrer no caso das ciências sociais e das humanidades, em virtude do modo específico de inserção dos profissionais formados nos mercados de trabalho universitários de seus respectivos países. Em qualquer hipótese, o brasilianista contemporâneo não parece mais dispor, como seu “antepassado” dos anos 1960 e 70, de um espaço especial no panorama brasileiro das ciências sociais, que parecem ter-se emancipado de tutelas estrangeiras e de importações metodológicas. A relação intelectual – a interação, na verdade – tornou-se mais equitativa e o típico brasilianista de extração norte-americana pode estar desaparecendo enquanto personagem de uma época de “acumulação primitiva” e de construção das ciências sociais no Brasil. O brasilianismo, que de fato subsiste ao brasilianista enquanto capítulo fragmentado das ciências sociais nos Estados Unidos, parece dispor ainda de brilhantes perspectivas pela frente. Washington, 18 de abril de 2001. Publicado na revista Estudos Históricos (Rio de Janeiro: FGV-RJ-Cpdoc, n. 27, 2001, p. 31-61) 153 Uma visão aroniana do novo século Paulo Roberto de Almeida: Os primeiros anos do século XXI: o Brasil e as relações internacionais contemporâneas (São Paulo: Editora Paz e Terra, 2001; ISBN: 85-219-0435-5) All written history is a compound of past and present. Cicely Veronica Wedgwood Este livro condensa o resultado de leituras e pesquisas acumuladas ao longo das duas últimas décadas, período no qual exercícios explicativos conduzidos no quadro de atividades docentes desempenhadas pelo autor foram combinados a esforços de síntese induzidos pela prática diplomática para produzir diversos trabalhos de relações internacionais, alguns deles publicados, a maior parte inéditos. Ele combina, assim, parafraseando a historiadora inglesa Wedgwood, escritos do passado e reflexões do presente, na tentativa de oferecer elementos de avaliação sobre que alternativas e possibilidades de inserção exitosa a conformação futura do sistema internacional oferece a um país de médio porte como o Brasil. No plano acadêmico, mais especificamente, o livro nasceu de uma preocupação do autor em avaliar se os ensinamentos de um dos maiores intérpretes das relações internacionais na era da Guerra Fria e da bipolaridade nuclear, o escritor francês Raymond Aron, tinham ainda validade intelectual e aplicação prática numa era pós-Guerra Fria e de preeminência incontestável de uma única superpotência. Tratava-se, em suma, de desenvolver reflexões a partir de uma releitura das obras de Aron, à luz das transformações observadas no sistema internacional desde o desaparecimento do intelectual francês, cuja morte, em 1983, precedeu em mais de um lustro o final da Guerra Fria. Daí a aproximação do título desta obra, Os primeiros anos do século XXI, ao da obra póstuma de Aron, Os últimos anos do século, que consolidou suas reflexões sobre o funcionamento do sistema internacional no início da penúltima década do século XX. No plano profissional, o desafio era o de saber se argumentos desenvolvidos mais de duas décadas atrás por um intelectual representativo de uma potência nuclear, ainda que “média”, ofereciam um quadro analítico adequado para subsidiar esforços de conceptualização conduzidos contemporaneamente no âmbito da política internacional por um servidor diplomático de um país da “periferia”. Os trabalhos de Raymond Aron constituiriam, ainda, uma espécie de “guia para a ação” num cenário significativamente transformado em relação aquele analisado pelo filósofo francês das relações internacionais? 154 Seria possível extrair novos ensinamentos das velhas lições dadas na Sorbonne pela genial autor de Paz e Guerra entre as Nações? As páginas que se seguem dirão se o esforço atual de análise do cenário internacional, inspirado na obra do polemólogo francês, atende aos cânones da disciplina acadêmica e responde a preocupações do momento. O autor tem, contudo, plena consciência de que a maior tentação — alguns prefeririam dizer o pior pecado — em que pode cair o “revisionista histórico” consistiria em reler os acontecimentos do passado com os olhos postos no presente. Nesse caso, o historiador estaria então, consciente ou inconscientemente, renegando a modesta autocrítica de Wedgwood — segundo a qual, todo exercício de história é sempre uma mistura de passado e de presente — para projetar num passado forçosamente idealizado opções ideológicas e políticas do presente. O passado recomposto deve ser, contudo, não uma retroprojeção das preocupações da geração contemporânea, mas uma tentativa de dialogar com as gerações que nos antecederam. Daí a razão essencial pela qual esta tentativa de diálogo póstumo com Raymond Aron está profundamente impregnada de história, muito mais do que do aparato conceitual da ciência política. A verdadeira história, na definição de Peter Gay, é produto do pensamento histórico, e o pensamento histórico nada mais seria do que uma reflexão crítica sobre o passado.1 Toda reconstrução do passado é, entretanto, prisioneira de um dos modos possíveis da filosofia da história.2 Assim, é quase tautológico afirmar que a reflexão histórica reproduz, lato sensu, o pensamento social de sua época. Nesse sentido, nada é mais fácil ao pretendido revisionista do que atribuir a seus antecessores uma suposta falta de visão em relação a determinados acontecimentos ou processos que, considerados ex post, se tornaram realmente inevitáveis. A reflexão sobre as causas das guerras, por exemplo, sempre ofereceu um largo e complacente terreno de experimentação do passado a muitos historiadores, que reordenam os fatos e processos de tal maneira que ficam “comprovados” os desenvolvimentos que levariam “inevitavelmente” ao conflito em questão. Mas, como bem disse o historiador norte-americano C. V. Woodward, “a inevitabilidade é o atributo que assumem certos eventos históricos depois que um tempo suficiente tenha decorrido. Depois que um determinado evento ocorreu, e bastante tempo se passou para que a ansiedade e as incertezas sobre como ele iria se desenrolar tenham se apagado das memórias, ele começa a ser visto como se fosse realmente inevitável. Resultados diferentes tornam-se menos e menos plausíveis e, rapidamente, o que efetivamente aconteceu 1 Cf. “A Definition of History”, Peter Gay e Gerald J. Cavanaugh (eds.), Historians at Work (New York: Harper-Row Publishers, 1972); vol. I: “General Introduction”, p. xi. 2 Cf. Hayden White, Metahistory: the historical imagination in nineteenth century Europe (Baltimore: The Johns Hopkins UniversityPress, 1973). 155 aparece exatamente como o que tinha de acontecer. Argumentar sobre o que poderia ter acontecido, ou sobre como e porquê o supostamente inevitável termina por auto-realizar-se, é considerado por muitas pessoas como uma perda de tempo .”3 Não há, no entanto, perda de tempo, ao tentar reconstruir os fundamentos de nossa época, o sistema de relações internacionais de princípios do século XXI, mediante um exame acurado do que se passou nos últimos anos do século XX. O autor não pretende, portanto, apresentar como historicamente inevitável o desaparecimento, para todos os efeitos práticos, do modo de produção socialista, mas simplesmente examinar seu impacto para o sistema de relações internacionais contemporâneas, considerando-o como o elemento fundamental das transformações radicais do cenário mundial desde então. Independentemente porém do desaparecimento de um dos dois protagonistas das reflexões “bipolares” de Aron, a maior parte de suas reflexões intelectuais permanece válida para nossa época igualmente, uma vez que a política de poder nunca se reduziu à dimensão estrita de suas formulações ideológicas. Não se trata, contudo, de efetuar neste livro uma releitura de Raymond Aron a partir dos problemas do hemisfério norte, mas sim das preocupações de alguém situado no hemisfério sul. Daí também a razão pela qual este exercício de explicação das relações internacionais contemporâneas está profundamente impregnado de história brasileira, base essencial das reflexões do autor em seus muitos anos de produção acadêmica e de desempenho profissional enquanto diplomata. A outra grande vertente analítica privilegiada neste trabalho é a das relações econômicas internacionais, bem menos enfatizada nas obras de Aron, por razões evidentes: de certa forma, a sobrevivência da Europa e da própria humanidade estavam em jogo durante a fase de confrontação bipolar e de exercício recíproco do terror nuclear pelas duas superpotências. O Brasil – e a América Latina de modo geral – nunca esteve no centro dos equilíbrios estratégicos e nunca foi cenário de disputas hegemônicas, pelo menos não ao estilo europeu. Nosso problema primordial nunca pertenceu ao terreno da segurança e sim ao campo mais prosaico, e ao mesmo tempo mais complexo, do desenvolvimento econômico e social. Essas preocupações analíticas se traduzem na estrutura concebida para este volume. Após uma breve introdução sobre a disciplina e a prática das relações internacionais no século XX, a primeira parte do livro trata dos fundamentos da ordem mundial contemporânea. Ambos os capítulos dessa parte, um mais centrado numa análise “aroniana” das relações políticas internacionais, o outro discorrendo sobre a evolução da economia mundial no século 3 Cf. o artigo de C. Vann Woodward, “Gone with the Wind”, The New York Review of Books, vol. 33, 17 jul. 1986, p. 3, que resenhava um livro sobre as causas, “inevitáveis”, da guerra civil americana. 156 XX, apresentam uma abordagem de caráter histórico-conceitual. Eles resumem, por assim dizer, os grandes problemas de que deve tratar todo estudante de relações internacionais. A segunda parte está voltada para uma exposição de natureza essencialmente linear sobre os desenvolvimentos mais importantes do cenário mundial das últimas duas décadas do século XX, período no qual a derrocada do socialismo constitui o elemento central da verdadeira “mudança de paradigma” que então intervém no sistema político internacional. Essa parte poderia ser descrita como mais propriamente “onusiana”, ao passo que a seguinte está mais voltada para as instituições econômicas de Bretton Woods – FMI e Banco Mundial – e a Organização Mundial do Comércio. A terceira parte tenta colocar o Brasil no centro de uma análise sobre o novo cenário surgido após o desaparecimento do socialismo e o final da era bipolar, o da ordem econômica globalizada e seus principais problemas: unificação de mercados, desafios da abertura econômica e da liberalização comercial e, sobretudo, o das crises financeiras. O enfoque adotado não se prende tanto a problemas doutrinais ou ideológicos – como a falsa opção entre neoliberalismo e políticas ditas afirmativas da soberania nacional – mas sim a questões concretas que entram na agenda negociadora externa de um país como o nosso: necessidade de inserção econômica internacional, adaptação aos desafios da globalização financeira, coexistência das opções integracionistas no âmbito regional com as obrigações multilaterais no plano mundial. Leituras complementares em cada final de capítulo, tabelas estatísticas, um glossário de organizações internacionais e alguns quadros analíticos concebidos segundo a visão histórica já privilegiada nos capítulos substantivos complementam a discussão oferecida nas três partes do livro. O autor espera que a contribuição oferecida nestas páginas possa representar subsídios úteis aos estudantes de relações internacionais, sobretudo porque que a informação e a discussão consignadas no livro não partem de uma perspectiva puramente teórica, como a adotada em muitos manuais do gênero, mas derivam, essencialmente, de um contato prático com questões de relações internacionais tais como presentes na agenda externa do Brasil. Washington, 19 de março de 2001. Prefácio ao livro publicado. 157 A Política exterior do Império para as repúblicas do Pacífico Luís Cláudio Villafañe Gomes Santos: O Império e as repúblicas do Pacífico: as relações do Brasil com o Chile, Bolívia, Peru, Equador e Colômbia, 1822-1889 (Curitiba: Editora da UFPR, 2002, 178 pp; ISBN: 85-7355-100-4) De forma similar ao conceito empregado, até o final do século XIX, nos mapas dos colonizadores ocidentais para descrever territórios desconhecidos no interior da África ou da América do Sul, este livro penetra em terras incógnitas para a historiografia brasileira. Com efeito, o jovem historiador Luís Cláudio Villafañe Gomes Santos decidiu explorar terras e povos que não costumam frequentar o cenário da produção histórica brasileira, ou pelo menos não, com tal grau de detalhe, o cahier de route de nossa história diplomática do Oitocentos. Ao que eu saiba, trata-se do primeiro estudo abrangente, sistemático e de longa duração, sobre como, porquê e sob quais condições a diplomacia imperial formulou e executou uma política externa especificamente desenhada para as repúblicas americanas do Pacífico, em estreita simbiose com aquela que era posta em marcha no Prata e levando em consideração as ações e motivações das grandes potências na região (em primeiro lugar, os imperialismos europeus, mas crescentemente também a grande república do Norte). Um tal desconhecimento histórico surpreenderia, entretanto, nossos diplomatas do Império que, depois obviamente das principais potências europeias e das “repúblicas” do Prata (concedamos a eles este epíteto por vezes pouco adequado para a primeira metade do século), atribuíam grande importância ao relacionamento da monarquia bragantina com esse conjunto heteróclito de países unidos pelo mesmo movimento independentista (de inspiração bolivariana), mas separados pela geografia e por uma história de pequenas querelas intestinas e muitas tendências ao caudilhismo. Essas repúblicas tinham relevância não tanto pelo que pudessem representar como oportunidades de comércio ou de intercâmbios humanos – de fato muito poucas, pois vastas florestas, pântanos pestilentos e escarpas íngremes as separavam do Brasil – mas pela potencial ameaça política e ideológica que poderia representar para a única monarquia do hemisfério (aliás unida por laços familiares e de identidade cultural a casas reinantes, e reivindicantes, da velha Europa) um grupo de Estados de certa forma animados pelo fervor revolucionário e pelos ideais republicanos que os tinham visto nascer. Não por acaso, o grande historiador José Honório Rodrigues insistia em enfatizar, nas aulas de história diplomática dadas em meados dos anos 1950 no Instituto Rio Branco, o que lhe parecia ser os 158 três grandes princípios de nossa política exterior desde 1822: a) a preservação de nossas fronteiras contra as pretensões de nossos vizinhos e a política do status quo territorial; b) a defesa da estabilidade política contra o espírito revolucionário, interna (revoltas e secessões) e externamente (caudilhos do Prata) e, c) a defesa contra a formação de um possível grupo hostil hispano-americano e uma política de aproximação com os Estados Unidos. 1 Como relata Villafañe, o Brasil, “por suas instituições monárquicas e por sua origem lusa, em contraposição às repúblicas hispânicas, era visto com desconfiança”, mas o próprio Bolívar reconhecia, contudo, que o regime monárquico tinha livrado o Brasil da guerra civil e da anarquia, o que não era o caso dos demais países da região. A diplomacia imperial, liberada nas regências das aventuras cisplatinas e das lutas pelo trono português que tinham paralisado por quase dez anos as iniciativas diplomáticas do Primeiro Reinado, passa a deitar os olhos sobre os vizinhos americanos. O Império, preocupado com as fronteiras e a navegação fluvial, sente a necessidade de um trabalho persistente e tenaz de desarme dos espíritos e de busca de uma política de “boa vizinhança”, ainda que em face de uma escassez notória de quadros e de recursos financeiros. É na região que seriam testados princípios de política externa – como a doutrina do uti possidetis – que seriam incorporados ao patrimônio diplomático republicano. Essa orientação americana da política externa imperial se faz desde a minoridade. No primeiro relatório apresentado pelo titular da Repartição dos Negócios Estrangeiros à Assembleia Legislativa em 1831, o Secretário de Estado Francisco Carneiro de Campos declarava o seguinte: “O Governo, de ora em diante mais franco e livre em suas deliberações e arbítrios, conta poder fazer ainda algumas outras economias nas Missões europeias, para melhor estabelecer e dotar as da América. Estou convencido que conquanto nós tenhamos tido até agora, e talvez por muito tempo ainda devamos continuar a ter, as maiores relações com o antigo mundo, convém todavia principiar desde já a estabelecer e apertar com preferência os vínculos, que no porvir devem ligar muito estreitamente o sistema político das associações do hemisfério americano, partes componentes deste grande todo, aonde a natureza tudo fez grande, tudo estupendo; só poderemos ser pequenos, débeis e pouco respeitados, enquanto divididos. Talvez uma nova era se aproxima, em que as potências da América, pejando-se de suas divisões intestinas à vista do exemplo de concórdia, que nós lhes oferecemos, formem uma extensa família, e saibam com o vigor próprio da liga robusta de tantos povos livres 1 Cf. José Honório Rodrigues e Ricardo A. S. Seitenfus: Uma História Diplomática do Brasil (15311945), organização e explicação de Lêda Boechat Rodrigues; Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995, p. 60. 159 repelir com toda dignidade o orgulho, e pretensões injustas das mais infatuadas nações estranhas. O continente imenso, que banhado pelos dois grandes mares, quase toca ambos os polos, oferece na grande variedade das suas latitudes e climas, distintíssimos produtos, que dando sempre o necessário à vida, podem ainda fornecer matéria e alimento ao mais extenso comércio: a colocação de cônsules inteligentes nos lugares apropriados animará a concepção e desenvolvimento das mais acertadas especulações mercantis”.2 As “especulações mercantis” continuaram modestíssimas por muitos anos ainda, mas o intercâmbio de diplomatas, pelo menos, começou a se fazer de maneira mais frequente. Em algumas épocas, porém, o despacho de missões diplomáticas mais se assemelhava ao das “embaixadas renascentistas” – isto é, o envio com uma certa pompa de uma delegação que passava meses viajando de um lado a outro, sem dispor de uma chancelaria fixa, como ocorreu com Duarte da Ponte Ribeiro – do que propriamente à designação formal de um residente permanente em cada uma das capitais dessas repúblicas bolivarianas. A comparação era inclusive destacada pela própria diplomacia imperial, como lembra ainda Villafañe a partir do historiador Amado Cervo: “Considera-se a diplomacia americana simples, porém eficiente, características que a distanciam do fausto e da inutilidade da escola europeia. As relações com os jovens Estados americanos seriam menos onerosas e trariam mais dividendos ao Brasil”. 3 No contexto da ordem internacional da primeira metade do século XIX, ademais dos tratados de “amizade, comércio, navegação e limites”, que mais prometiam do que cumpriam, o Império necessitava de capitais e de braços para a lavoura (escravos ou de colonos europeus), dois elementos fundamentais ao progresso da nação brasileira que eram ainda mais escassos nos vizinhos sul-americanos. De fato, as jovens repúblicas americanas, da mesma forma como os Estados Unidos dessa época, não tinham condições de fornecer os produtos ou os capitais de que necessitava o Brasil. Daí a persistência da hegemonia europeia (em primeiro lugar da supremacia inglesa) em matéria de manufaturas importadas, de capitais de risco ou de empréstimo, assim como nossa dependência absoluta dos mercados europeus, até que a ascensão do café deslocasse o eixo do intercâmbio comercial para os Estados Unidos. A baixa incidência das repúblicas do Pacífico nas trocas externas do Brasil não impedia, porém, um atento seguimento por parte da diplomacia imperial de sua política interna e, sobretudo, de 2 3 Cf. Relatório da Repartição dos Negócios Estrangeiros, de 1831, p. 5-6. Cf. Amado Luiz Cervo, O Parlamento Brasileiro e as Relações Exteriores (1826-1889). Brasília: Editora da UnB, 1981, pág. 39. 160 suas relações regionais (o poderio chileno logo desponta com toda força) e internacionais, como evidenciado pela análise atenta e pela reconstituição histórica cuidadosa de Villafañe. Quando Luís Cláudio defendeu esta obra como dissertação de mestrado na UnB, lá se vão praticamente mais de dez anos, reconhecendo imediatamente o valor do trabalho (que em muito transcendia as modestas dimensões da monografia que normalmente se exige de um candidato a mestre), eu lhe disse de chofre: “Mas isto é praticamente uma tese de doutorado!”, o que lhe arrancou um sorriso de satisfação. Talvez por isso ele me tenha dado agora o prazer de prefaciar um estudo original que merece, tanto quanto outras teses de doutoramento porventura laborando em terreno virgem, figurar entre as obras de referência fundamentais de nossa parca historiografia diplomática sobre as relações regionais. A tese de doutoramento viria mais tarde, estando hoje consolidada num importante trabalho sobre o Império e o interamericanismo, cobrindo o período que se estende do congresso do Panamá, em 1826, até a primeira conferência americana de Washington, em 1889-1890 (na qual o Brasil entrou como monarquia e saiu como república). Dotada de igual profundidade analítica e recorrendo a uma documentação primária que já lhe era familiar desde meados dos anos 80, essa nova obra, sob o título de A Invenção do Brasil, promete consagrar Luís Cláudio Villafañe Gomes Santos como o grande historiador de nossa diplomacia para a América do Sul. Num momento em que o Brasil pretende criar um novo sistema de relações regionais que supere o difuso conceito de América Latina em favor da noção bem mais concreta de América do Sul, os estudos históricos de Luis Cláudio dão a base indispensável a partir da qual analisar nossos interesses permanentes numa vasta região que constituiu, nas palavras de Celso Lafer, nossa circunstância geográfica incontornável. Espero que dentro em breve, com a possível publicação dessa nova obra em edição comercial, os estudiosos dessa problemática possam ter a satisfação de ler a continuidade deste excelente trabalho de pesquisa histórica que agora tive o privilégio de prefaciar. Washington, 30 de outubro de 2001. Prefácio ao livro de Luís Cláudio Villafañe Gomes Santos, p. 7-11. 161 Aux origines du Brésil contemporain Paulo Roberto de Almeida, Katia de Queiroz Mattoso: Une Histoire du Brésil: pour comprendre le Brésil contemporain (Paris: Editions L’Harmattan, 2002, 142 p.; collection: Recherches et Documents Amériques latines, série Brésil; ISBN: 2-7475-1453-6) Ce livre a été conçu et élaboré pour la première fois en 1994, par le service culturel de l’Ambassade du Brésil en tant qu’information destinée aux étudiants. Révisé et élargi pour cette nouvelle édition, il vise maintenant le public en général. Les opinions qui sont ici exposées n’engagent que les auteurs et ne représentent pas les positions du Gouvernement brésilien ni de son ministère des Relations Extérieures. Cet ouvrage a été à l’origine un texte (première partie de ce volume) déjà publié auparavant, écrit en 1989 par Katia de Queirós Mattoso, avec l’assistance de Antônio Fernando Guerreiro de Freitas, suivi d’un texte inédit, préparé spécialement pour la publication par celui qui signe ces lignes, alors exerçant des fonctions de Conseiller à l’Ambassade du Brésil à Paris. Le travail des professeurs Mattoso et Freitas, historiens professionnels, avait été publié originalement dans la revue Géopolitique (Hiver 1989-1990) et l’autorisation de le reproduire dans une brochure de l’Ambassade du Brésil avait été aimablement accordée par Mme MarieFrance Garaud, Présidente de l’Institut International de Géopolitique, remerciée ici pour sa bienveillance. Ce qui était une simple brochure d’histoire du Brésil avait été conçue, en premier lieu, en vue de répondre aux besoins des étudiants des collèges et lycées français désirant une information concise sur le développement historique du Brésil. Elle n’avait donc d’autre objectif que celui d’être essentiellement didactique. Pour la présente édition, le texte écrit à quatre mains par les professeurs Mattoso et Freitas a été maintenu tel quel, mais celui que je signe a été grandement remanié, non seulement pour le mettre à jour en ce qui concerne l’“histoire événementielle” récente, mais aussi pour tenir compte des profondes transformations que le Brésil a connu au cours des sept ans qui se sont écoulés depuis la première édition. 162 Sommaire Avant-propos Première partie Brésil: cinq siècles d’histoire 1. 1500-1822: le Brésil, colonie portugaise 2. 1822, l’indépendance brésilienne: un nouvel empire 3. 1889: l’installation de la République 4. 1889-1930: la Vieille République 5. 1930-1945: le “gétulisme” 6. 1946-1964: les tentatives de démocratisation 7. 1964-1984, le pouvoir militaire: du miracle économique à la récession Deuxième partie Le Brésil de 1985 à 2001: Consolidation démocratique et stabilisation économique 8. Bilan d’une époque: les dernières années du siècle 9. La transition au régime civil: alliances et compromis 10. Tentatives de stabilisation économique et nouvelle Constitution 11. Une politique extérieure faite de continuité et de changements 12. Les premières élections directes en 30 ans: ascension et chute d’un président 13. La démocratie en marche et le défi de la stabilisation économique 14. Les deux administrations Fernando Henrique Cardoso: changement de paradigme 15. L’insertion internationale du Brésil: Mercosul et projets régionaux 16. La question sociale au Brésil au début du XXIe siècle Chronologie de l’histoire du Brésil, 1494-2005 Relations économiques internationales du Brésil, 1500-2001 Orientations de lecture Paulo Roberto de Almeida Washington, Janvier 2002 163 Como e por que sou e não sou diplomata (à maneira de Gilberto Freyre) Paulo Roberto de Almeida: A Grande Mudança: consequências econômicas da transição política no Brasil (São Paulo: Editora Códex, 2003, 200 p.; ISBN: 85-7594-005-8) Não sou nem pretendo ser diplomata puro. Mais do que diplomata, creio ser cientista social. Também me considero um tanto historiador e, até, um pouco, pensador. Mas o que principalmente sou creio que é escrevinhador. Escrevinhador – que me perdoem os demais cientistas sociais a pretensão e os políticos profissionais a audácia – político. E, ao lado do diplomata, reconheço haver em mim um anti-diplomata. Se aqui destaco minha condição de diplomata – diplomata, é certo, impuro e nada ortodoxo –, é que essa condição é, em mim, irredutível. Só sendo um tanto diplomata eu me poderia dar o luxo de ser também antidiplomata em várias das minhas tendências. São essas contradições que sempre procurei expor e, por vezes, comentar em meus trabalhos de diplomacia e de sociologia política. Quase despretensioso e nada apologético – o que seria uma apologia pro “diplomacia sua” –, quase sempre chego à autocrítica, contra minha profissão de sociólogo e por vezes contra minha própria condição profissional. Reúnem-se aqui trabalhos que, aliás, podem ser considerados como pouco conectados à minha incerta condição de diplomata: tão incerta, para uns tantos diplomatas, como, para outros, críticos da vida cotidiana, a de escrevinhador político – condição que também procuro considerar. Mais do que diplomata ou sociólogo, sou antes de tudo cidadão brasileiro, que foi o que de fato me motivou a escrever os ensaios coletados neste volume. Ao tentar explicar-me como possível diplomata, não poderei deixar de referir-me ao que, ao lado dessa minha discutida condição, há em mim, bem ou mal, de cientista social, de historiador e, talvez, de pensador, tornando ainda mais difícil a classificação que se pretenda fazer de homem tão desajeitadamente multidisciplinar, tão diverso sem que tal multiplicidade de interesses signifique mérito ou virtude superior. O possível diplomata – como o cientista social, o historiador, o pensador também possíveis – só existe, no meu caso, ligado ao escrevinhador político. Quase nunca como didata, quase sempre como autodidata. Nem como pesquisador profissional, pois que não tenho meu ganha-pão nessas demais orientações e sim na condição primeira de diplomata. Nem efetivamente burocratizado nisto ou naquilo: consultor, assessor, perito, acadêmico, 164 funcionário, sem pertencer a qualquer instituto ou agremiação política ou social. Sou um ser livre, tanto quanto me permite o pertencimento a uma instituição bissecular, altamente burocratizada, hierarquizada e disciplinada a ponto de enquadrar seus membros numa teia de comprometimentos diretos e indiretos com o chamado esprit de corps, que possuo no grau mais tênue possível. Os parágrafos acima foram livremente inspirados em peça similar elaborada pela pluma do escritor Gilberto Freyre – extraída do prefácio de seu livro Como e por que sou e não sou sociólogo (Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1968) –, que detém, portanto, todos os direitos autorais, intelectuais e morais sobre a forma, o conteúdo e a disposição desse texto precedente, que pretende justamente homenageá-lo enquanto pensador brasileiro, original e iconoclasta. Da mesma forma, os ensaios que seguem são devidos inteiramente à minha própria pluma (no caso, computador), também iconoclasta, e respondo integralmente pela forma, conteúdo e disposição, bem como pela paternidade moral das poucas ideias originais que eles possam conter. Esses ensaios são autoexplicativos e autossuficientes – uma nota final restabelece a cronologia original em que foram escritos –, mas talvez devesse chamar a atenção para o fato de que, à exceção de um único, todos eles, mesmo aqueles que antecipam a grande transformação política em curso no Brasil, foram pensados e elaborados antes que quaisquer resultados eleitorais viessem confirmar a magnitude das mudanças em implementação. Outros trabalhos elaborados nesse mesmo contexto, como por exemplo os que analisam os programas de campanha de cada um dos candidatos nas eleições presidenciais de 2002, com especial ênfase na questão da política externa e das relações internacionais do Brasil, deixaram de ser incluídos no presente volume, uma vez que se prendem mais a um enfoque descritivo e de debate crítico dessas plataformas partidárias e de sua adequação ao contexto diplomático brasileiro do que a uma reflexão sobre um processo original de mudança política e social, que ainda está longe de revelar todas as suas implicações e desenvolvimentos futuros. Esses textos representam, por assim dizer, minha contribuição cidadã a um debate amplo sobre questões relevantes do processo de transformação em curso no Brasil, nos planos interno ou externo, e são uma amostra muito pequena de uma contínua produção de textos que, mais do que algum eventual propósito didático, têm por finalidade servir ao autoesclarecimento e a uma reflexão ponderada sobre escolhas por vezes difíceis que se apresentam tanto ao observador acadêmico quanto ao administrador público. Como burocrata 165 especializado numa determinada área, a diplomática, mas também como sociólogo livre atirador, achei que poderia contribuir com algo para esse debate. Não tenho certeza de ter respondido satisfatoriamente a muitas das questões de natureza sociológica, ou outras infindáveis dúvidas no plano das relações econômicas internacionais do Brasil, que se colocam em relação a esse processo de mudanças, ainda carente de mapeamento preciso e análise adequada. Provavelmente não, uma vez que realidades como essa são complexas em demasia para receberem tratamento analítico adequado num simples volume de dimensões modestas. Em todo caso, foi minha intenção colocar todas as perguntas pertinentes – algumas até de forma bastante provocadora – que poderiam ser relevantes para um debate esclarecido, do tipo socrático, sobre o importante fenômeno de mudança em curso no país. O título escolhido para esta compilação de ensaios se inspira diretamente em uma conhecida obra (publicada em 1944) do famoso cientista social e “liberal-utopista” Karl Polanyi, autor de vários outros trabalhos provocadores – como Our Obsolete Market Mentality – e que poderia ser descrito como socialista e conservador ao mesmo tempo. Simultaneamente crítico dos pensadores liberais e dos marxistas teóricos (em relação aos quais descartava a visão estreitamente classista do processo histórico), Polanyi apreciava o papel dos mercados, mas não fazia disso uma profissão de fé. Como escreveu em The Great Transformation: “There was nothing natural about laissez-faire; free markets could never have come into being merely by allowing things to take their course. [...] Laissez-faire itself was enforced by the state”. Partilho inteiramente dessa concepção multidisciplinar sobre o processo histórico e venho tentando, em muitos dos meus trabalhos de história econômica e de sociologia política, introduzir essa visão abrangente e não convencional sobre fenômenos relativamente complexos como o papel dos partidos políticos na política externa ou a interação entre a diplomacia e a sociedade nacional no itinerário evolutivo das relações econômicas internacionais do Brasil. Estes ensaios se situam nessa continuidade, ainda que tenham sido concebidos num espírito bem mais provocador do que o tom convencional utilizado nos meus trabalhos acadêmicos. Em todo caso, eles respondem a uma necessidade, tanto interna quanto propriamente “social”, de contribuir para o debate aberto em torno do importante processo de mudança inaugurado no Brasil a partir do segundo semestre de 2002 (ou provavelmente antes disso). Eu me sentirei satisfeito se eles despertarem, primeiro uma indignação de surpresa, depois alguma manifestação de ceticismo sadio e, finalmente, a sensação de que eles 166 permitiram a abertura de novas avenidas de reflexão sobre o Brasil e sua inserção internacional. Cabe agora ao leitor julgar se fui bem-sucedido nesse empreendimento. Washington, 2 de novembro de 2002 Prefácio ao livro publicado. A economia política da mudança no Brasil: um livro de reflexões A publicação de meu livro A Grande Mudança: consequências econômicas da transição política no Brasil (São Paulo: Editora Códex, 2003), ao início de 2003, oferece-me a oportunidade de tecer algumas considerações sobre seu objeto próprio, assim como sobre a conjuntura vivida pelo Brasil, neste momento histórico de transição. Meu novo livro de ensaios, pela primeira vez em muitos anos, não trata das relações internacionais, do processo de integração regional, da política externa do Brasil ou de sua diplomacia econômica em perspectiva histórica, que foram os temas nos quais me concentrei preferencialmente na última década. Na verdade, ele representa uma espécie de retorno às origens, ao início de meu aprendizado intelectual enquanto cidadão preocupado com o país e a sociedade injusta à qual pertencia (e ainda pertence). De fato, o livro me remete ao início dos anos 1960, quando eu me ensaiava nas primeiras leituras de economia, de sociologia e de política do Brasil, tentando descobrir por que vivíamos uma condição tão desigual do ponto de vista social. De certa maneira, ele também pode ser visto como uma continuidade de algumas das discussões travadas em meu primeiro livro de ensaios, Velhos e novos manifestos: o socialismo na era da globalização (São Paulo: Juarez de Oliveira, 1999), que retomava aquelas leituras da juventude e fornecia novas respostas tentativas, já numa perspectiva “revisionista” à que eu tinha simplisticamente formulado mais de três décadas antes. A Grande Mudança é uma obra de economia política, no sentido clássico da palavra, uma coleção de ensaios não abstratos, mas altamente reflexivos sobre o processo de transformações em curso na presente conjuntura brasileira, ainda que ele não comporte qualquer menção direta a figuras ou entidades concretas que se situam no centro da atual maioria política e social. O livro não pretende descrever esse processo de mudanças, nem aspira ensinar ninguém sobre o que acaba de se passar na política brasileira, com o que ele conformaria uma “crônica dos eventos correntes” da atualidade política. Ele discute, contudo, algumas implicações das transformações em curso do ponto de vista da ação governativa e 167 tenta tirar alguns ensinamentos válidos num contexto e numa perspectiva mais ampla, que podem ser caracterizados como de pós-Guerra Fria e de pós socialismo. Ele não é didático, mas é auto-didático e condensa, por assim dizer, opiniões pessoais, considerações políticas e econômicas e reflexões “filosóficas” sobre um dos movimentos “transformistas” mais importantes que o Brasil já conheceu em toda a sua história, pelo menos potencialmente. Quando digo, talvez ambiciosamente, que ele se situa na tradição da economia política dos clássicos não pretendo, obviamente, que ele constitua um novo manual para uso dos poderosos, mas tão simplesmente um guia de reflexões para aqueles que estão engajados no movimento transformador, tendo de abandonar algumas antigas certezas sobre o processo de mudança e adotar novas perspectivas sobre os limites dessas transformações. Adam Smith, na introdução ao quarto “livro”, sobre os “sistemas de economia política”, de sua obra de 1776 sobre a riqueza das nações, assim definia seu objeto de estudo: “A economia política, considerada como um ramo da ciência de um homem de Estado ou de um legislador, se propõe dois objetos distintos: primeiro, prover uma renda abundante ou a subsistência do povo, ou mais apropriadamente, habilitá-lo a prover essa renda ou essa subsistência por ele mesmo; em segundo lugar, prover o Estado ou a sociedade de uma renda suficiente para os serviços públicos. Ela se propõe enriquecer tanto o povo quanto o soberano” (cf. Adam Smith, An Inquiry into the Nature and Causes of the Wealth of Nations; 6ª ed.: London: Strahan and Cadel, 1791, vol. II, p. 138). Trata-se, obviamente, de duas tarefas bastante concretas para os homens públicos, mas isso não caracteriza o objeto da disciplina enquanto tal, o que nos remete à ambiguidade da obra e da própria condição de Adam Smith, ao mesmo tempo um empregado de alfândega e um “filósofo moral”. O presente livro talvez esteja submergido na mesma “ambiguidade construtiva” daquele manual clássico de economia política, sem pretender, obviamente, chegar-lhe aos pés. Ele aspira, tão somente, chamar a atenção do leitor, em especial daquele interessado nos fundamentos econômicos das transformações políticas em curso, para um conjunto de temas centrais da ação governativa, podendo assim conformar uma espécie de introdução a um “novo manual de economia política” nas condições concretas em que passa a trabalhar o Brasil e sua nova maioria política. Não se pretende, está claro, dar a receita de como aumentar a renda do cidadão ou de como agregar mais um tanto à do Estado, mas de levar o homem de Estado e o legislador, ou os aspirantes a tais, a considerar certos limites impostos pelas “forças econômicas” à vontade transformista no campo político. Não é um livro de um ator ou sequer de um formulador das condições dessa mudança, mas é uma obra de reflexão que se coloca naquela perspectiva aroniana bem conhecida do “espectador engajado”. 168 Se o livro não comporta, portanto, nenhum fervor militante, nem adere a nenhum credo econômico ou agrupamento político particulares, ele ostenta a mesma paixão do engajamento nas causas públicas pela transformação do Brasil que parece ter marcado a geração a que pertenço, a dos que estudaram, trabalharam e atuaram na segunda metade do século XX, quando o País deixou de ser a sociedade agrária que era até então mas não logrou transformar-se (ainda) na democracia industrial avançada e socialmente justa a que todos aspiramos como cidadãos. Como espectador privilegiado dessa conjuntura histórica de mudanças incompletas, tanto no Brasil como, de forma intermitente, no exterior (no último quarto de século), espero ter podido agregar meus elementos de reflexão sobre um processo ainda inacabado de transformação da Nação. Se ouso retomar antigas lições marxistas, posso dizer que ele foi concebido no espírito da décima-primeira tese sobre Feuerbach, ainda que ele não aspire, absolutamente, transformar o mundo (no caso, o Brasil), mas tão somente interpretá-lo de maneira correta. Ao leitor de julgar. Washington, 1º de janeiro de 2003 Posfácio ao livro. 169 História quase virtual do Brasil Evaldo Cabral de Mello: A outra Independência: o federalismo pernambucano de 1817 a 1824 (São Paulo: Editora 34, 2004, 260 p.; ISBN: 85-7326-314-8) Estamos tão habituados à versão tradicional da independência do Brasil, de cunho unitário e quase que “naturalmente monarquista”, que negligenciamos outros modos possíveis de desenvolvimento da nação ou de formação do Estado. Já não falo de uma história declaradamente virtual, que poria em confronto “o que efetivamente se passou”, segundo a visão Rankeana, com possibilidades inesperadas ou puramente hipotéticas, como uma separação holandesa do Nordeste, em caráter permanente, ou um movimento inconfidente bem sucedido nas Gerais, de caráter republicano, ou ainda uma divisão de fato entre as várias províncias do norte e do sul no processo de independência, o que teria conformado um arquipélago de nações lusófonas na América do Sul (a exemplo da fragmentação hispanoamericana na vertente andina). Este novo livro do diplomata-historiador (ou vice-versa) Evaldo Cabral de Mello explora justamente essa última possibilidade, a de uma outra independência possível, não como hipótese virtual, mas como realização efetiva, tal como tentada nas cidades e nos campos da Bahia e de Pernambuco, entre a insurreição precoce de 1817 e a Confederação do Equador em 1824. Esses movimentos, junto com outros do Sul, ficaram agrupados sob o amálgama enganador de “separatismo”, ao passo que os construtores do Império, a partir do Rio de Janeiro, passaram para a história com o beau rôle de unitários e de nacionalistas. Essa é, porém, uma perspectiva equivocada, uma vez que, no momento da independência, o Brasil era tudo menos Brasil, e sim um ajuntamento de províncias que se relacionavam mais com a metrópole (ou com a África, por exemplo) do que entre si. Luiz Felipe Alencastro já tinha alertado para esse arquipélago de sistemas desvinculados entre si, sem unidade econômica real. Este livro conta a história desse “destino não manifesto”, traduzido no desejo de algumas elites regionais, no caso as do Nordeste, de recuperar o poder local perdido quando da vinda da família real e a centralização operada em favor do Rio de Janeiro. O federalismo, segundo Evaldo, era uma possibilidade real, se alguns destes processos não tivessem ocorrido: a manutenção da dinastia bragantina no Rio, um tratamento mais conforme às aspirações das elites regionais pelas Cortes de Lisboa e a determinação da “administração” da Corte no Rio 170 em preservar sua posição hegemônica. Mas foi uma luta bárbara, na qual a força foi mais importante do que a persuasão. A historiografia ulterior alimentou o “Rio-centrismo”, descurando ou desvalorizando os “separatismos” regionais, uniformemente agrupados na rubrica contrária à unidade nacional, quando o que eles pretendiam, na verdade, era uma forma diferente de organização do Estado (e do equilíbrio entre as províncias), provavelmente mais conforme ao modelo proposto nos Estados Unidos poucas décadas antes. A Bahia, como se sabe, ficou sob ocupação portuguesa no episódio da separação, razão pela qual coube eminentemente a Pernambuco a liderança federalista, quando na verdade ambas as províncias tinham condições econômicas para sustentar um modelo diferente, singularmente autonomista, e de construir um Estado não centralizado, ainda que passavelmente unitário, sob a égide da monarquia (mesmo se muitos liberais fossem declaradamente republicanos). Longe de obedecerem a impulsos regionais anárquicos e antipatrióticos, como a propaganda fluminense quis fazer acreditar (dando os exemplos caóticos dos estados hispano-americanos), os patriotas do Nordeste queriam a verdadeira liberdade e a igualdade, num regime de poderes compartilhados. José Bonifácio foi, neste caso, menos sábio do que o habitualmente afirmado, pois que, partindo da ideia de uma “peça majestosa e inteiriça desde o Prata até o Amazonas”, denegriu o projeto federalista, assimilando-o ao republicanismo e acusando seus líderes de pretenderem um “governo monstruoso”, para serem nas províncias “chefes absolutos, corcundas despóticos”. Os “bispos sem papa”, no dizer de Bonifácio, foram esmagados e assim o Brasil continua a ser até hoje, a despeito da ironia de carregar no nome o adjetivo federalista, a mais unitária das repúblicas americanas. Brasília, 20 de março de 2005. Revista Desafios do Desenvolvimento (Brasília: IPEA-PNUD, ano I, n. 9, abril 2005); republicada na revista Plenarium (Brasília: Câmara dos Deputados, Ano II, n. 2, novembro de 2005, p. 343-344). 171 Na diplomacia, entre a história e as ciências humanas Paulo Roberto de Almeida: Relações internacionais e política externa do Brasil: história e sociologia da diplomacia brasileira (2ª ed.: revista, ampliada e atualizada; Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004, 440 p.; coleção Relações internacionais e integração nº 1; ISBN: 85-7025-738-4) Este livro foi concebido como uma síntese teórico-prática situada na confluência intelectual da academia com a diplomacia. Ele também pode ser visto como uma espécie de condensado literário da obra de um “agente duplo” ou, ainda, como um retrato em branco e preto de um escriba informatizado que é também, embora muito modestamente, um ator coadjuvante da política exterior brasileira. Com efeito, os trabalhos aqui reunidos constituem o resultado parcial de mais de dez anos de pesquisas e de reflexões acadêmico-funcionais sobre a natureza essencial e o sentido profundo da atividade diplomática, considerada não só do ponto de vista “externo” da pesquisa bibliográfica e da consulta às fontes primárias, mas também da perspectiva “interna” de quem vive, literal e diuturnamente, do exercício dessa mesma atividade diplomática. Estes ensaios se situam, portanto, no próprio âmago da política externa prática, interpretada teoricamente por um profissional da diplomacia que também reivindica, talvez deliberadamente, um estatuto de outsider no confronto com a aparente rigidez hierárquica de uma Casa mais do que centenária, o Itamaraty. A experiência não é sem riscos: seria como se este “espectador engajado” – o copyright da expressão pertence a Raymond Aron – do serviço exterior brasileiro procurasse analisar o objeto de seu trabalho corrente de um ângulo externo, com o distanciamento ideológico de um cientista imparcial que devesse dissecar as entranhas de sua própria instituição. Mas, sob o risco de decepcionar os críticos da Casa de Rio Branco e contrariamente ao que poderia indicar esse animus dissecandi do autor, deve-se desde logo advertir que seu bisturi analítico não está dirigido à alma mater da instituição diplomática brasileira. Como se poderá facilmente constatar por uma simples consulta ao sumário, não se tentou fazer aqui qualquer anatomia do próprio Itamaraty, o volume não comporta nenhum perfil sociográfico dos diplomatas, nem se pretendeu elaborar uma antropologia do serviço exterior brasileiro, com a mesma eventual meticulosidade de um etnólogo isolado entre tuaregues (muito embora estudos desse tipo devessem talvez figurar nas estantes da politicamente correta biblioteca do 172 Ministério das Relações Exteriores). O próprio autor, que já passou por ritos de iniciação antropológicos em terras belgicanas e que, em priscas eras, prestou solidariedade clânica à tribo dos sociólogos paulistas, à qual legitimamente pode reivindicar sua appartenance, se compromete em proceder, no futuro, a esses exercícios de sociologia da vida quotidiana que encantariam um espírito anárquico e multidisciplinar ao estilo de um Gilberto Freyre. Tal exercício, que poderia igualmente tocar nos “mitos fundadores” do Itamaraty, representaria algo como um ensaio de biografia coletiva para explicar, talvez, “como e porque sou e não sou diplomata”, temperado obviamente pelo espírito de autocontenção que costuma caracterizar todo frequentador habitual da Casa do Barão. O que vai se ler aqui, portanto, não são estudos de diplomacia brasileira, mas ensaios sobre as relações internacionais em geral e sobre a política externa brasileira em particular, pelo ângulo de um servidor da circunspecta burocracia diplomática que também frequenta os anfiteatros algo mais barulhentos das instituições universitárias. Eles não foram, de nenhuma maneira, redigidos sob a oportunista forma de memorandos de serviço, mas concebidos e elaborados com a dedicação metódica de alguém que sempre esteve voltado às pesquisas de arquivo e às atividades docentes, levadas regularmente a cabo no Brasil e nos intervalos de uma vida seminômade no exterior. Eles representam, num certo sentido, o resultado de uma união intelectual entre o professor ocasional e o burocrata do serviço exterior, entre o acadêmico amador e o diplomata profissional, entre uma atividade que busca explicações sobre os meios legítimos da racionalidade estatal e outra que persegue os fins últimos da razão do Estado, entre o trabalho intelectual do especialista universitário em dedicação parcial e a atividade analítica em tempo integral em uma das corporações reconhecidamente mais intelectualizadas de nossa burocracia governamental, entre a ética de convicção e a ética de responsabilidade, entre a aparente “imparcialidade” do livre-arbítrio acadêmico e a afirmada “objetividade”, forçosamente generalista e recorrente, de uma das mais weberianas instituições públicas. Em contraposição, contudo, ao trabalho exclusivamente acadêmico, os textos aqui compilados apresentam uma differentia specifica, a de que foram elaborados não apenas da perspectiva puramente universitária da sociologia das relações internacionais ou, ainda, da política, da economia ou da história da política exterior do Brasil, mas, essencialmente, no contexto funcional do serviço exterior brasileiro e tendo presente, sobretudo, a necessidade de se fazer a “anatomia intelectual” da diplomacia brasileira, como forma de seguir seu itinerário histórico e de determinar seus fundamentos de atuação. 173 Ambas as vertentes acima mencionadas, o trabalho profissional na diplomacia brasileira e a dedicação, quase que monástica, ao estudo das origens e desenvolvimento dessa mesma diplomacia, geralmente vista na perspectiva diacrônica da longue durée, devem ser consideradas como absolutamente complementares, no sentido em que elas constituem o suporte necessário (mas nem sempre suficiente) uma da outra. Elas conformam, uma e outra, os pilares de uma “visão do mundo” que se pretende abrangente – poder-se-ia dizer compreensiva, no sentido weberiano do conceito – e original, na medida em que os textos reunidos neste volume não traduzem o mero produto intelectual de pesquisas empreendidas num contexto exclusivamente acadêmico e tampouco se situam numa perspectiva unicamente institucional ou oficial. Esses textos são o resultado de preocupações historiográficas e sociológicas próprias de seu autor, não com a diplomacia brasileira, propriamente dita, mas com o Brasil em primeiríssimo lugar: eles pretendem investigar o passado de nossa inserção internacional para melhor compreender o presente das relações externas do País e preparar o futuro da Nação no mundo. Assim, os trabalhos de metodologia das relações internacionais, de história diplomática e de “economia política” da política externa aqui compilados representam, antes de mais nada, uma espécie de bridge-building entre a academia e a diplomacia, às quais o autor se vincula por manifesto interesse pessoal e em virtude do exercício de atividade profissional. Eles também se pretendem portadores e veiculadores dessa multidisplinariedade que se tornou virtualmente emblemática e mesmo necessária nos modernos estudos de relações internacionais e de política externa dos Estados contemporâneos. Cabe, contudo, antes de deixá-lo penetrar sem armas e bagagens nas florestas ainda pouco frequentadas das relações internacionais e da política externa do Brasil, oferecer ao leitor eventualmente desprevenido uma honesta advertência heurística. Estes trabalhos sobre a diplomacia brasileira estão fortemente impregnados de História, mais do que de qualquer outra disciplina acadêmica aqui presente e figurando a título de “interpretação setorial” dessa diplomacia (economia, política, sociologia ou mesmo “ideologia” da política externa). Como justificar o deliberado viés metodológico em favor de uma abordagem específica dessa complexa realidade, como explicar essa “opção preferencial” por uma interpretação histórica das relações internacionais do Brasil? Não há, obviamente, uma explicação simples a essa espécie de a priori weberiano, mas posso tentar legitimar meu approach, servindo-me das palavras de um outro diplomata que, ele sim, é um treinado cultor das pesquisas de arquivo e um refinado e elegante historiador de nosso passado colonial e oitocentista. Ao apresentar a segunda edição de seu 174 consagrado e provavelmente já clássico estudo sobre o imaginário da restauração pernambucana, Rubro veio, Evaldo Cabral de Mello assim se pronuncia sobre a especificidade e a irredutibilidade do método histórico em face das demais ciências humanas: Este esforço se inspirou [...] nos gêneros historiográficos mais diversos, a história política, econômica ou das mentalidades, sem preferências exclusivistas. A ele também subjaz uma certa ideia da história que a vê não como a grande sintetizadora com que sonhou imperialmente Braudel, nem como mero repositório de dados empíricos à disposição de sociólogos, antropólogos e economistas, mas, ao contrário, como uma maneira específica de abordar a realidade social [...]. Nesse sentido, pode-se dizer que a história situa-se não na vanguarda mas na retaguarda das ciências humanas, não para seguir-lhe docilmente os passos mas para dinamitar suas excessivas pretensões teóricas. O papel do historiador consistiria, em boa parte, em explodir os mitos que, a despeito dos seus objetivos científicos, as ciências humanas continuam a engendrar e que são passíveis de produzir curto circuitos duradouros no conhecimento histórico. O historiador seria assim o sabotador nato do sociólogo, do antropólogo, do economista.1 Sem pejo do empréstimo intelectual involuntário, subscrevo inteiramente a opinião de meu colega de carreira, tal como acima exposta, quanto ao papel da História enquanto destruidora de mitos fáceis e de verdades inquestionadas. Estes ensaios se colocam, ou pretendem se ver, na perspectiva saudavelmente iconoclasta de uma obra original, fruto de honesto trabalho intelectual conduzido nos intervalos irregulares de uma intensa atividade profissional durante todo o período de sua elaboração. Eles também têm a pretensão, talvez exagerada, de oferecer um esforço de interpretação histórico-sociológica eventualmente desbravadora de novos caminhos analíticos que visam enriquecer o estudo global das relações internacionais e da política externa do Brasil. Sua contribuição a tal projeto multidisciplinar de amplo escopo deve, assim, ser julgada em seus próprios méritos, e jamais como pretenso elemento informador de um “pensamento oficial” em história diplomática que não faz parte de seus objetivos constitutivos. Quanto à eventual alegação de algum leitor apressado, no sentido de que este autor se estenderia em demasia sobre determinados eventos ou processos do passado da diplomacia brasileira, antes de penetrar no atual labirinto das relações internacionais contemporâneas, permito-me recuperar, da mesma forma, os saborosos argumentos de um predecessor que também era um diplomata-historiador. Oliveira Lima, esse Dom Quixote Gordo, no dizer do mesmo Gilberto Freyre, ao discorrer sobre a densidade analítica dos antigos despachos de legações (ele se reportava ao período da Independência do Brasil), assim comparou a 1 Cf. Evaldo Cabral de Mello, Rubro veio: o imaginário da restauração pernambucana. 2. ed. rev. e aumentada, Rio de Janeiro: Topbooks, 1997, p. 14-15. 175 verbosidade dos antigos “escribas” diplomáticos à suposta parcimônia redacional de seus modernos sucessores: O telégrafo ainda não existia. Os jornais não eram tão admiravelmente informados quanto hoje, quando eles se acham em condições de se informar nas próprias chancelarias. Os diplomatas eram pois forçados a escrever volumosos relatos, que nada perderam de seu interesse, pois que neles se encontravam coisas que não se encontravam alhures. É esse último traço de escrevinhadores, digamos antes de escritores, a fim de não amarrotar-lhes a memória, que distingue principalmente os agentes políticos de outrora de seus confrades atuais, aos quais a vida intensa e perfeitamente aparelhada tem feito perder esse honesto costume.2 Operando uma “resenha do passado” e retomando a seu favor o discurso de Oliveira Lima, o autor destas linhas também gostaria de se ver como um “diplomata d’antanho” – mas, de maneira alguma, como um representante da diplomacia ornamental e aristocrática do ancien régime –, pelo menos no que se refere ao “honesto costume” de ler, observar, pesquisar e informar sobre o universo mais vasto das relações exteriores do País e, em especial, sobre as relações econômicas internacionais do Brasil.3 Ele também aspira seguir o saudável exemplo de todos aqueles colegas diplomatas, do passado e do presente, que também foram ou são “escrevinhadores” das “cousas diplomáticas” do Brasil, como queria Oliveira Lima. Descartando por enquanto a redação de “volumosos relatos” profissionais, estão aqui enfeixados alguns modestos escritos acadêmicos abordando a notável continuidade histórica das relações internacionais e da política externa do Brasil. Brasília, setembro de 1998 Prefácio à primeira edição. Avanços metodológicos, diversidade analítica, produção em alta Tenho um especial apreço por esta obra, de certo modo meu primeiro livro “diplomático”. Com efeito, até 1998, eu já tinha publicado uma boa quantidade de ensaios sociológicos, de artigos históricos e de textos econômicos, em revistas do Brasil e do exterior, 2 Cf. Oliveira Lima, Formação histórica da nacionalidade brasileira, 2. ed., Rio de Janeiro: Topbooks, 1997, p. 192. 3 Oliveira Lima, por exemplo, era um crítico severo do diplomata apenas “político”: não se vende café, cacau ou açúcar, dizia ele, “enfiando meias de seda para ir a concertos de Buckingham Palace ou envergando uma casaca irrepreensível nos cotillons de New-port”, completando sua opinião ao afirmar que, assim como o cônsul carecia de “mover-se na alta sociedade”, também o diplomata deveria “aprender o caminho das bolsas de comércio”; ironicamente, ele se perguntava em que poderia “um secretário de legação revelar sua capacidade, a não ser a caligráfica?” (Cf. Cousas diplomáticas, [s. l.]: [s.n.], 1907, p. 15 e 17. 176 bem como dois ou três livros sobre o Mercosul e o comércio internacional. Contudo, não tinha tido ainda a oportunidade de compilar num único volume destinado a publicação comercial meus diversos trabalhos tratando de questões de relações internacionais e de política externa do Brasil, temas a que vinha me dedicando desde finais da década anterior. Esta oportunidade surgiu em 1998, quando a Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, por iniciativa do professor Paulo Vizentini, decidiu criar, na área de ciências humanas, uma coleção voltada precipuamente para temas de relações internacionais e de integração. Este meu livro teve, portanto, o privilégio de inaugurar essa nova série e de passar a integrar, desde então, a bibliografia indicativa em muitos cursos de relações internacionais que foram surgindo em diversos Estados do Brasil a partir dessa época. Esgotada a tiragem e avolumando-se as cobranças dos muitos alunos (e professores) que me diziam não conseguir mais encontrá-lo, a Editora alertou-me para a necessidade de preparar uma segunda edição com a possível brevidade, o que me obrigou a deixar temporariamente de lado vários outros trabalhos urgentes para revisar este livro em sua totalidade. Optei primeiramente por preservar a estrutura básica da primeira edição, considerando-a ainda plenamente válida, dedicando-me essencialmente a atualizar os capítulos que necessitavam de aggiornamento bibliográfico ou documental. Após reflexão, todavia, decidi proceder a uma substituição e a um desdobramento. Por um lado, preferi suprimir o ensaio histórico sobre a “diplomacia dos descobrimentos” (que deve agora integrar volume independente) por um outro, de mais urgente atualidade: as relações do Brasil com o Fundo Monetário Internacional, desde a emergência da instituição, no seguimento da conferência monetária e financeira de Bretton Woods, em 1944, até os mais recentes acordos de sustentação financeira negociados pelo Brasil entre 1998 e 2003. Por outro lado, o já longo capítulo sobre a interação entre os partidos políticos e a política externa a partir de 1930 teve destacada de seu corpo a parte final, relativa aos temas de relações internacionais nas campanhas presidenciais da pós-redemocratização, em esforço de reformulação que resultou na composição de novo capítulo independente, todo ele voltado para essa problemática nas eleições de 1989 a 2002; a ele agreguei, mais recentemente, um retrospecto da “política externa” do partido vencedor das eleições de outubro desse ano e uma análise dos problemas imediatos da agenda diplomática do Brasil. No mais, o livro preserva seu caráter basicamente didático e informativo, inclusive porque completei, justamente, a leitura e seleção de novos livros brasileiros publicados no intervalo, bem como procedi à atualização da listagem de atos internacionais que enquadram o sistema econômico multilateral de que participa nosso País. 177 O que posso constatar, de forma satisfatória, é o crescimento razoável da produção brasileira nessa área, a extensão dos avanços metodológicos alcançados no quadro da disciplina acadêmica (em história e em ciência política) e o aprofundamento analítico da maior parte desses estudos nacionais em relações internacionais e em política externa do Brasil. A começar pela minha própria produção nessa área, a produtividade acadêmica bem como a participação dos diplomatas nessa oferta conheceram certamente uma boa expansão na última década do século XX e no início do século XXI, com uma crescente osmose entre ambos os setores. O foco dos estudos ampliou-se, igualmente, deixando a antiga ênfase na história diplomática para uma saudável diversidade de abordagens e de temas, o que evidencia, obviamente, uma correspondente complexidade da agenda diplomática brasileira. Creio poder compartilhar – sem qualquer falsa modéstia ou exercício déplacé de autoelogio – de um certo sentimento congratulatório ao observar como todos nós, os “trabalhadores” das relações internacionais contribuímos para esse progresso notável do estudo e da prática dessa área no Brasil. Se ouso retomar agora o tom mais confessional do prefácio à primeira edição seria para tentar explicar, à maneira de Gilberto Freyre, e usando literalmente suas palavras, como e por que sou e não sou diplomata. Com efeito, assim como o mestre de Apipucos não pretendia ser mero sociólogo, não sou nem pretendo ser diplomata puro. Os ensaios aqui compilados revelam um pouco dessa dupla condição de diplomata nada ortodoxo e de acadêmico contestador, com exigências metodológicas de trabalho sério e aplicado em cada uma dessas “profissões” e um certo sentido de “autocrítica” em cada uma das instituições. Dessa condição tão desajeitadamente multidisciplinar, como diria Gilberto Freyre, de cientista social, de historiador e, talvez, de “escrevinhador”, é que eu retiro o necessário estímulo para continuar lendo, pesquisando e escrevendo durante longas horas noite adentro, depois de uma jornada de trabalho profissional geralmente estafante. Se faço isso, enfrentando uma dupla e até tripla jornada de tarefas, é porque me coloco na perspectiva de que os modestos resultados desse ativismo múltiplo possam contribuir para a elevação educacional de muitos jovens (e de outros, não tão jovens) voltados para os estudos acadêmicos de relações internacionais ou para as lides da diplomacia prática. O possível “escrevinhador” político aqui comparece, representado por uma série de ensaios unidos por um mesmo enfoque analítico e uma mesma vocação didática: os trabalhos têm a pretensão de apresentar as pesquisas e reflexões de um diplomata prático, de um cientista social certamente heterodoxo, de um historiador algo improvisado e de um possível “pensador” autoproclamado da inserção internacional do Brasil. Se eu tivesse de resumir o 178 conjunto, eu diria que, na verdade, o que caracteriza o autor destes trabalhos é uma condição de autodidata nunca recusada e de certa forma sempre buscada. Não sou, de fato, um pesquisador profissional, pois que não tenho meu ganha-pão principal nessas demais ocupações acadêmicas e sim na condição primeira de diplomata. Nem estou, efetivamente, “burocratizado” nesta ou naquela atividade diplomática, pois que tenho podido combinar diferentes orientações temáticas na carrière com essas outras atividades paralelas de pesquisador irregular, de professor bissexto e, sobretudo, de escrevinhador constante. Sou um ser livre, tanto quanto me permite o pertencimento a uma instituição bissecular, altamente burocratizada, hierarquizada e disciplinada a ponto de enquadrar seus membros numa teia de comprometimentos diretos e indiretos com o chamado esprit de corps, que confesso possuir no grau mais tênue possível. Os ensaios que se seguem, sobre o universo cada vez mais rico e complexo constituído pelas relações internacionais e pela política externa do Brasil, não poderiam ter sido escritos e revistos, originalmente, ou ampliados e atualizados, no período recente, sem a ajuda inestimável e a compreensão de Carmen Lícia, de Pedro Paulo e de Maíra, que foram excessivamente tolerantes com este diplomata doublé de acadêmico que tem plena consciência de que alguns cadernos de notas deveriam estar, talvez, menos voltados para resumos de leituras e bem mais para jogos, distrações e programas conjuntos. A eles, portanto, dedico esta nova produção, com todo amor e carinho. Washington, setembro de 2003 Prefácio à segunda edição. 179 “Velho” livro, novo sentimento, mesmo pensamento. Paulo Roberto de Almeida: Formação da diplomacia econômica no Brasil: as relações econômicas internacionais no Império (2ª edição; São Paulo: Editora Senac, 2005, 680 p., ISBN: 85-7359-210-9) Quando, em outubro de 2004, recebi uma mensagem eletrônica da Senac-SP solicitando-me preparar a segunda edição deste livro, quase não acreditei no que li, e cheguei mesmo a me perguntar: como é possível que um “grosso tijolo” de quase setecentas páginas, voltado essencialmente para a pesquisa histórica sobre a diplomacia econômica do século XIX, chegue à sua segunda edição dois anos depois de lançada a primeira? De fato, ao cabo de tão curto período, não deixa de surpreender-me o itinerário editorial do livro mais “pesado” que fiz em uma década de produção livresca, tanto pela sua receptividade junto à comunidade mais restrita de pesquisadores, como pelo interesse igualmente despertado junto aos muitos estudantes dos cursos de relações internacionais existentes no Brasil, segundo ecos recolhidos dos próprios interessados. Esse succès d’estime não deixa de ser gratificante, na medida em que este livro tinha tudo para conhecer um itinerário discreto. Desejo registrar, neste momento, que ele condensa o esforço de vários anos de pesquisa solitária, de leituras acumuladas ao longo de uma dupla carreira de diplomata e acadêmico, de muitos e muitos meses de paciente organização dos materiais primários, de noites inteiras de cansativa dedicação aos labores de redação e revisão, seguidas de tratativas difíceis para lograr-se sua publicação no momento em que sua primeira versão ficou pronta (1997). Ele precisou esperar ainda mais de três anos – tempo no qual foi “engordado” um pouco mais – até chegar-se à fórmula da coedição, que agora se repete, entre a Senac-São Paulo, na pessoa de Alberto Parahyba Quartim de Moraes, e a Funag, do Ministério das Relações Exteriores, na pessoa de seu então presidente, Embaixador Álvaro da Costa Franco. Aos dois sou grato pelo apoio e confiança demonstrados em relação a um livro que se apresentava como singularmente difícil num mercado editorial aparentemente dominado por obras mais “leves” e geralmente voltadas para o grande público. Este livro, manifestamente, passa ao largo desses critérios de mercado e tampouco se aproxima daquilo que os franceses chamariam de haute vulgarisation, estando obviamente mais próximo do que se poderia classificar de obra erudita ou de pesquisa universitária. A renovada confiança da Senac-SP, assim como a pronta disposição da Funag, agora na pessoa de sua presidente, Embaixadora Thereza Maria Machado Quintella, em associar-se 180 a este empreendimento editorial, permitem agora que o livro seja entregue aos leitores numa segunda edição basicamente similar à primeira. Com efeito, eu acredito que livros sejam como garrafas atiradas ao mar: eles levam a mensagem de um determinado momento a praias e enseadas distantes e devem poder se sustentar no formato original, sem novas interferências do autor no texto inicialmente concebido. Foram corrigidos pequenos erros de digitação, revistas e atualizadas as notas de rodapé, com adição da nova bibliografia disponível e, sempre que possível, estendidas até 2004 as informações constantes das tabelas e dos quadros analíticos relativos ao período contemporâneo (nos capítulos finais). No mais, este grosso volume permanece igual ao original preparado para edição no final de 2001, e sua nova publicação me incita, mais do que nunca, a tentar concluir um segundo volume – que espero menos volumoso – sobre a diplomacia econômica brasileira na primeira metade do século XX – grosso modo, de 1889 até a conferência de Bretton Woods, em 1944 – e quem sabe até avançar num terceiro volume, trazendo a análise das relações econômicas internacionais do Brasil até os nossos dias. A concepção, preparação, elaboração e acabamento deste livro apenas foram possíveis devido à ajuda, leniência e compreensão de Carmen Lícia, Pedro Paulo e Maíra, que suportaram pacientemente este membro não convidado da família durante longos meses e mesmo anos. Que eles possam me perdoar as muitas horas, dias, noites e meses roubados, em uma espécie de furor legendi dotado de pouco planejamento. A eles é dedicado este livro, com todo o amor e carinho. Devo, finalmente, deixar registro de que tenho conseguido ser feliz (pelo menos, creio que tenho sido “bafejado” pela fortuna) na combinação de atividades profissionais normalmente exigentes, como podem ser as da carreira diplomática – mormente em postos bastante ativos, como a delegação em Genebra ou as embaixadas em Paris e Washington, ademais da Secretaria de Estado, em Brasília –, e ocupações docentes igualmente intensas, ainda que assumidas voluntariamente, seguindo uma dedicação puramente acadêmica. Essa dupla condição exigiu, obviamente, a compreensão de alguns de meus superiores, de meus entes queridos, ademais da disposição pessoal em sacrificar horas de lazer, de simples descanso noturno ou de convivência familiar – o que confesso com um certo remorso – em prol do exercício constante da pesquisa, da escrita e da divulgação, características que compõem esse outro lado da virtù, que nem sempre é reconhecida em sua dimensão própria. Este é um livro de um autodidata assumido que espera continuar assim: pesquisador independente, livre de pensamento, sem qualquer tipo de restrição intelectual na sua 181 capacidade de análise e de avaliação e, acredito, responsável na ação. Trata-se de uma odisseia de uma nova espécie, que não deve necessariamente ser concluída algum dia… Brasília, novembro de 2004. Prefácio à segunda edição do livro. 182 Envisioning Brazil and brazilianists Marshall C. Eakin, Paulo Roberto de Almeida (eds.): Envisioning Brazil: a Guide to Brazilian Studies in the United States (Madison: Wisconsin University Press, 2005, 536 p.; ISBN: 0-299-20770-6) This edited volume emerged out of an initiative of Ambassador Rubens Barbosa shortly after his arrival in Washington, DC in 1999. The Ambassador convened a meeting of Brazilianists from academic institutions across the country to discuss ways to promote Brazilian Studies in the United States. At this meeting in the Brazilian Embassy in October 1999 the Ambassador proposed the idea for this volume. Shortly afterward, MinistroConselheiro Paulo Roberto de Almeida took charge of the project and Marshall C. Eakin was brought on board as co-editor. All of the essays were then commissioned, and the majority of these were presented at a two-day seminar at the Brazilian Embassy on December 6-7, 2000. More than 100 people attended the seminar and participated in the critique and discussion of the papers. The presenters were then given an opportunity to revise the essays during the first half of 2001. The Portuguese-language version of this volume was published in Brazil in 2002 as O Brasil dos brasilianistas: um guia dos estudos sobre o Brasil nos Estados Unidos, 19452000 (São Paulo: Paz e Terra). The essays were updated by the various authors in late 2003 for this English-language edition. Objectives Our principal objective has been to assemble the most comprehensive and sweeping assessment ever attempted of the patterns and characteristics of Brazilian studies in the United States. This volume is an overview of the writings on Brazil by U.S. scholars since 1945. It is not a comprehensive bibliography, but rather an effort to assess trends and perspectives. We have focused on synthesis and interpretation. The effort to provide an overview of the intellectual production by U.S. scholars has led us to make some important editorial decisions. The first has been the delimitation of what we mean by a “U.S.” scholar. The essays focus on scholars who have made their careers primarily in the United States, but the reader will see that our definition at times includes foreign scholars who have spent most of their career in U.S. institutions. Second, although the aim is to survey U.S. scholarship, all the essays make (sometimes frequent) reference to Brazilian scholarship and scholars. In particular, it is often impossible to understand the directions in U.S. scholarship without an understanding of the 183 academic and political trends in Brazil over the past half-century. Although not entirely comprehensive, we believe that this is the single most thorough analysis ever produced of U.S. scholarship on Brazil. The attentive reader will, however, notice some important gaps in coverage. The most prominent of these are urban anthropology and the performing arts. The former is covered to some extent in the discussions of ethnology (Chapter 8) and sociology (Chapter 10). The latter, unfortunately, receives very little mention here. Overview of the Book We have divided this volume into four parts. Part One, “The Development of Brazilian Studies in the United States,” contains three chapters on large themes and patterns. In Chapter 1, Almeida surveys the “big picture” of Brazilian Studies in the United States since 1945. Chapter 2 follows with the late Robert Levine’s overview of the development of Brazilian Studies in the United States, with special attention to institutions and research trends. As a complement to Levine’s emphasis on research, Young’s essay in Chapter 3 provides a look at the development of the teaching of Brazil in U.S. universities. Part Two, “Perspectives from the Disciplines,” moves from the sweeping overview of Part One to surveys of various academic disciplines. In Chapter 4, Tesser provides a wonderful analysis of the long, but uneven development of the teaching of Portuguese in the U.S. She shows that despite a long history, the teaching of Portuguese in the U.S. occupies a small place within the teaching of foreign languages. Like most foreign languages, Portuguese language instruction has been dwarfed by the explosion of interest in Spanish. The dominance of Spanish and Spanish America in Latin American Studies is a theme that runs throughout many essays in this volume. In Chapter 5, Jackson then turns to what has perhaps been the most developed of all the disciplines in Brazilian Studies--literature. For decades, a strong group of scholars have written about Brazilian literature. The excellence of Brazilian literature over the last half-century has helped bring attention to the work of these scholars, just as their literary studies and translations have helped bring it to the attention of readers and literary scholars in the U.S. Neistein’s essay in Chapter 6 is a double survey--of both art and music. Although not as well known in the U.S. as Brazilian literature, Brazil’s art and music have received attention by a small, but dedicated group of scholars. The next series of essays turns to the social sciences. Along with literary studies, historians of Brazil in the U.S. have perhaps the longest tradition and the most highly developed literature. Bieber’s excellent survey in Chapter 7 demonstrates the breadth and 184 depth of historical studies of Brazil in the U.S. From a small cohort of scholars in the fifties, the field grew dramatically in the sixties and seventies, experienced declining numbers in the eighties, and is once again growing in size and in the quantity and quality of published work. With a firm grounding in fieldwork in archives in Brazil, historians are perhaps in the strongest position (along with literary scholars) to maintain their identity as a sub-discipline within history and Latin American Studies in the United States. Anthropology is another discipline that has venerable been deeply rooted in extensive fieldwork in Brazil. Like the literary scholars and historians, anthropologists have strong linguistic skills and deep local experience. Chernela’s essay in Chapter 8 concentrates on the long and highly developed field of Amazonian ethnology. She shows how studies by U.S. anthropologists have, at times, shaped the very directions of the discipline in the U.S. and in Brazil. At the same time, these anthropological studies have been shaped by the changing nature of the discipline, from traditional community studies to structuralism and discourse analysis. In Chapter 9, Baer and Guimarães provide a detailed survey of the main patterns in economics. Many of the key works they discuss arose out of the collaboration of U.S. and Brazilian scholars, and much of the literature has developed around the key problems that have faced the nation’s economy since 1945. Eakin’s essay in Chapter 10 is also a “double feature” surveying both political science and sociology. Both disciplines have roots dating back to the 1930s and 1940s, but do not really develop until the 1960s. While sociology had a strong early start, especially in the area of race relations, it fails to develop a strong sub-disciplinary identity around Brazilian Studies, and the number of sociologists studying Brazil today is small. Political science developed an impressive group of scholars, and they were especially interested in the study of authoritarianism from the sixties to the eighties. Although a strong and impressive group of scholars continue to write about Brazil, the larger developments in the discipline (in particular the move away from “area studies” and towards theory) may threaten the survival of a field in Brazilian Studies. Tollefson’s essay in Chapter 11 follows with a synthesis of studies on international relations with a Brazilian focus. In Chapter 12, Dawsey presents an interesting look at geographers who chose to focus on Brazil. As with some of the other disciplines, the changing nature of geography has profoundly shifted studies from those of the fifties and sixties that focused on countries and their regions, to larger questions of theory and problems. Part Three, “Counterpoints: Brazilian Studies in Britain and France,” offers two essays that help place the U.S. contributions in perspective. In Chapter 13, the eminent British historian of Brazil, Leslie Bethell, looks at the contributions of British historians to the 185 development of Brazilian Studies. Edward Riedinger then compares the development of Brazilian Studies in the United States and France in Chapter 14. Part Four consists of three chapters on bibliographic and reference sources. Almeida’s chapter is a chronology of key publications by U.S. Brazilianists placed alongside key developments in U.S.-Brazilian relations. In Chapter 16 Hartness provides a very thorough guide to reference sources on Brazil. As is the case in some of the other chapters, we can see the impact of the digital age reshaping the traditional emphasis on print sources and moving reference sources increasingly toward comprehensive and accessible electronic data. This volume closes with a selective bibliography compiled by Almeida. One of the key contributors to the volume, and one of the foremost Brazilianists, Robert M. Levine, passed away in April 2003. Bob Levine was probably the most prolific U.S. scholar of things Brazilian and he was among the pioneering generation of U.S. Brazilianists. This volume is dedicated to this renowned scholar who did so much to promote the study of Brazil in the United States. Marshall C. Eakin and Paulo Roberto de Almeida Nashville and Washington, July 2003 Introductory chapter to the book. 186 Novas relações para um novo século: a parceria Brasil-Estados Unidos Paulo Roberto de Almeida e Rubens Antonio Barbosa (orgs.): Relações Brasil-Estados Unidos: assimetrias e convergências (São Paulo: Editora Saraiva, 2005, 326 p.; ISBN 10: 85-02-05385-X; ISBN-13: 978-85-0205305-4) Muitos especialistas acadêmicos dessa área de pesquisa, estudiosos das relações internacionais do Brasil, em geral, ou mesmo observadores ocasionais dos meios de comunicação – não importa agora que eles sejam de centro, de esquerda ou de direita – não hesitam em descrever as relações Brasil-Estados Unidos como sendo “centrais”, ou “cruciais”… do ponto de vista do Brasil, obviamente. Do ponto de vista dos Estados Unidos, eles não teriam muita objeção em colocar essas relações num segundo ou até mesmo num terceiro plano da escala de prioridades político-estratégicas do grande hegemon da atualidade, da mesma forma, aliás, como ocorre com outros países dotados de estatuto similar – digamos, por conveniência, “potências médias” – quando inseridos no sistema de relações internacionais da hiperpotência do século XXI. Como interpretar essa equação político-estratégica abertamente desigual, ou essa relação econômica na qual os pratos da suposta balança têm peso, composição e formato diferentes entre si? De fato, se essas relações podem ser caracterizadas para o Brasil como centrais ou cruciais, o outro conceito que poderia realisticamente defini-las seria o de “assimetria”. Nisso, tampouco o Brasil está sozinho, já que cerca de 190 outras nações da comunidade internacional o acompanham nessa condição de “subalternidade” tecnológica ou até de “irrelevância” estratégica em relação ao poder da “nova Roma”. Com efeito, não há hoje um só Estado na face da terra que não ostente essa dupla condição em suas relações com os Estados Unidos: por um lado, centralidade – direta ou indireta – da interação econômica e política e, por outro, desigualdade quase que absoluta na equação do poder estratégico, em maior ou menor grau segundo a dotação militar respectiva. A esse respeito, todos os países são iguais, e menos importantes, na interação com a “superRoma” da atualidade, embora alguns deles sejam obviamente “mais iguais” do que outros. O fator nuclear poderia aparecer aqui como um “equalizador” de última instância, mas na verdade tal vetor não entra normalmente em linha de conta quando se trata de confrontar recursos efetivamente disponíveis no grande jogo do poder mundial. Os critérios normalmente computados na mobilização dos chamados “excedentes de poder” podem ser resumidos a dois 187 prosaicos fatores – soldados e “talão de cheques” –, e são poucos os países, como os Estados Unidos, que conseguem exibir tal abundância de um e de outro, ao mesmo tempo, e com tal pletora de meios para “entregá-los” em qualquer canto do planeta. Essa é uma realidade “estrutural”, com certa tendência à permanência até onde a vista alcança em nossa “conjuntura histórica de transformação”, mesmo se a lógica última do processo de globalização aponte claramente no sentido da convergência progressiva das capacidades de base dos países participantes da grande interdependência mundial dos sistemas de mercado, aqui compreendidos tanto a China quanto a Rússia. Os Estados Unidos continuarão provavelmente ocupando o centro nervoso das relações internacionais contemporâneas mesmo no caso de uma aproximação gradual dos demais grandes atores mundiais aos seus indicadores atuais em termos de produto global, de estoque de inovações tecnológicas, de flexibilidade e de disponibilidade dos fatores de produção (a começar pelos fluxos contínuos de inteligência incorporada, dentro e fora de suas fronteiras), pela simples razão de que os vetores de produtividade que poderão estar sendo mobilizados pelos seus competidores atuam igualmente, e com maior eficiência relativa, em seu favor. Numa certa terminologia materialista – que preconiza a sucessão dos modos de produção a partir do desenvolvimento das “forças produtivas” –, pode-se dizer que os Estados Unidos conseguiram conformar um “modo inventivo de produção”, suscetível de revolucionar constantemente as relações de produção, evitando assim a propalada ameaça da eventual esclerose das forças produtivas, anunciado na prometida superação do “velho” modo capitalista de produção. Em outros termos, nada como uma revolução depois da outra, ou melhor, a sucessão constante de processos revolucionários no contexto de uma mesma revolução geral capitalista, tal como vem ocorrendo na formação social americana desde o início da primeira revolução industrial, pelo menos. A intensidade e a profundidade das mudanças estruturais incorporadas pelo “modo de produção americano” não podem ser medidas apenas pelos índices gerais de produtividade, já que essa formação social traz embutida em seus vetores internos de “acumulação” – para usar outro conceito vinculado – alavancas sistêmicas de inovação, cujas fontes “primitivas” parecem situar-se na auto-organização democrática da sociedade, na valorização social e na promoção igualitária da educação de base e num certo senso prático da organização social da produção – a praticality e o sentido de pequenos improvements na vida diária – que são tão americanos quanto o sentimento do progresso individual. De fato, desde a época da primeira grande exposição universal do Crystal Palace, de Londres, em 1851, um desses espíritos 188 práticos proclamava que a “indústria, no futuro, precisa ser apoiada não mais na competição de vantagens locais, mas na competição dos intelectos”1. O Brasil, em épocas de alto crescimento, já chegou a aproximar-se bem mais do potencial econômico americano, mas a combinação de anos e anos, senão décadas, de baixo crescimento do PIB com a vigorosa expansão econômica nos Estados Unidos da última década do século XX fez aumentar a distância entre a renda global e per capita dos dois gigantes do hemisfério ocidental2. Os diferenciais de produtividade – que se explicam basicamente pelo abismo de qualificação educacional e de competência técnica entre as duas populações – se situam no coração da divergência entre as duas economias ao curso do longo período mais do que secular que vem dos primórdios da primeira revolução industrial – processos praticamente contemporâneos na Inglaterra e na nova Inglaterra – até o âmago da terceira, atualmente em curso. No terço final desse período, Brasil e Estados Unidos intensificaram uma frutuosa relação de cooperação e de interdependência econômica e tecnológica que muito fez para colocar o país do norte no centro de nossas relações econômicas internacionais, sem que no entanto essa centralidade e intensidade dos intercâmbios contemporâneos tenham logrado diminuir, longe disso, os elementos de assimetria que ainda marcam a relação. A partir daí, os sentimentos podem diferir no que se refere ao “que fazer” com essa relação “centraldesigual”. Vários tipos de resposta são possíveis, ainda que as escolhas não sejam sempre fáceis ou as opções todas possíveis com base nos recursos existentes – os já referidos “excedentes de poder”. Os mesmos observadores especializados poderiam arguir que líderes de esquerda seriam mais tentados a, justificando o desconforto da situação, tentar superar a “dominação imperial” via capacitação tecnológica ou militar ou por meio de aliança com outros “subalternos rebeldes”, com maior ou menor sucesso segundo o diferencial de poder. Os de direita, presumivelmente, se acomodariam mais facilmente com tal tipo de situação, acolhendo favoravelmente a relação privilegiada e aproveitando para economizar na defesa, 1 Citado em T. K. Derry e Trevor I. Williams, A short history of technology: from the earliest times to A.D. 1900 (New York: Dover Publications, 1993), p. 704 (edição original de 1960). 2 Para uma visão macro-histórica do desempenho econômico relativo das diferentes nações inseridas na economia mundial na longa duração, ver o estudo de Angus Maddison, The world economy: a millenial perspective (Paris: Development Center of the Organisation for Economic Co-operation and Development, 2001). Para uma avaliação do desempenho da economia brasileira, utilizando-se desse tipo de abordagem (com base em versão anterior dessa obra de Maddison), ver o capítulo O Brasil no contexto econômico mundial: 1820-1992, no livro de Paulo Roberto de Almeida, O estudo das relações internacionais do Brasil (São Paulo: Unimarco, 1999), p. 17-38. 189 colocando-se ao abrigo do “guarda-chuva” estratégico (como o fizeram alguns “derrotados de guerra” ou “dependentes assumidos”). Políticos de centro tentariam, provavelmente, manter um diálogo “equilibrado”, respeitoso das diferenças e dos interesses recíprocos, mas certos de compartilhar, em última instância, uma mesma visão do mundo, que seria liberal de mercado e progressista-social. Esse cenário valeria igualmente para o Brasil? Em termos, como tenta demonstrar este livro sobre as relações políticas, diplomáticas e econômicas entre os dois maiores países do hemisfério americano num quadro internacional manifestamente em mutação. O gigante setentrional nunca conheceu uma situação de poder mais “hegemônica” e propriamente avassaladora como a vivida atualmente – e que talvez não esteja nem no seu zênite, como gostariam alguns adeptos do “declínio imperial” –, quando no Brasil, o “maior dos menores” da região meridional, tomou posse um governo definido pelos meios de comunicação como “progressista”. Os rótulos jornalísticos são, porém, enganosos, na medida em que os governos, em geral, não defendem grandes princípios ideológicos, mas são, ou pelo menos procuram ser, essencialmente pragmáticos e guiados pelo bom senso dos resultados concretos. Os especialistas convidados para integrar, e comentar, esta compilação de ensaios analíticos sobre as relações bilaterais não se definem a si mesmos como de direita, de centro ou de esquerda — embora alguns possam ser uma ou outra coisa legitimamente. Todos eles, no entanto, autores colaboradores ou comentaristas dos textos no seminário em que foram originalmente apresentados, parecem convictos das duas características apontadas acima: a de que essas relações são centrais para o Brasil e a de que a relação hemisférica é mesmo assimétrica, como aliás aquela mantida pela grande potência ocidental com o resto do mundo. Cabe registrar, porém, que no momento do convite formulado aos vários autores para a elaboração de seus textos, nenhum termo de referência ou qualquer qualificação prévia quanto ao conteúdo e ao significado das relações bilaterais foram-lhes impostos como diretrizes analíticas de redação, cabendo-lhes tão somente elaborar, com base em sua própria perspectiva nacional – americana e brasileira, em cada caso –, e métodos próprios, definidos por cada um deles, uma descrição e uma discussão crítica dos problemas selecionados para sua área: as relações bilaterais ao longo da história, o desenvolvimento econômico em perspectiva comparada, as relações comerciais e as negociações em curso e as questões estratégicas e de segurança. A partir daí, contudo, não se produziu nenhuma paralisia analítica, pois que cada um deles enfrentou, com métodos e perspectivas próprias, a tarefa de descrever, explicar, interpretar e oferecer alternativas de políticas sobre os diferentes aspectos – econômicos, 190 políticos, diplomáticos – dessa complexa interação entre dois países que mantêm relações ininterruptas há quase dois séculos e que só fizeram reforçar, sempre mais, os laços da interdependência recíproca. Essa interação nem sempre foi dominada pela “American Economic Eagle” e pelo “Brazilian Developing Parrot” (vagamente identificado, por alguns, com o Zé Carioca), pois que os Estados Unidos também já foram um “país em desenvolvimento”, ainda que a comparação possa parecer cronologicamente defasada ou mesmo historicamente anacrônica. Aqueles que concebem a desigualdade e a assimetria como um pecado original dessa relação, que deveria determinar a interação dos dois países até o dia do juízo final, deveriam contudo reler um livrinho tão modesto quanto desconhecido do “pai” da nossa imprensa: esse Tocqueville avant la lettre que foi Hipólito José da Costa visitou os Estados Unidos há mais de dois séculos, deixando em testemunho um diário que permaneceu inédito por um século e meio e que o habilita, tranquilamente, a ser considerado como o founding father do americanismo brasileiro3. Nesse Baedecker de prospecção agrícola-manufatureira, Hipólito nos descreve um país “essencialmente agrícola” (como se dizia do Brasil ainda nos anos 1950), basicamente voltado para si mesmo (ou seja, introspectivo economicamente), fértil em novos cultos religiosos e em “especulações mercantis”, inconstante partidária e politicamente (com Estados disputando espaços com o poder central) e temeroso das grandes potências (europeias). Os textos respectivos de John DeWitt e de Eliana Cardoso, animados pela mais moderna metodologia histórica e econômica, nos confirmam, na segunda parte deste volume, essa realidade tão velha quanto a Constituição da Filadélfia e o decreto de abertura dos portos: nada havia de predestinado no itinerário econômico ou tecnológico de cada um dos países, mas em ambos os casos suas elites fizeram escolhas de políticas econômicas e de investimentos sociais que determinaram trajetórias basicamente distintas a partir da primeira e, sobretudo, da segunda revolução industrial. Antes deles, na primeira parte, Lincoln Gordon – já autor de um livro sobre o processo brasileiro de desenvolvimento4 – chama a atenção para o fato de que, antes da era Vargas e do nascimento do moderno nacionalismo econômico no 3 Cf. Hipólito José da Costa, Diário de Minha Viagem para Filadélfia, 1798-1799 (Rio de Janeiro: Publicações da Academia Brasileira, 1955). Ver igualmente Paulo Roberto de Almeida, “O nascimento do pensamento econômico brasileiro”. In Hipólito José da Costa, Correio Braziliense, ou, Armazém Literário (São Paulo: Imprensa Oficial do Estado; Brasília, DF: Correio Braziliense, 2002. reedição fac-similar, v. XXX), p. 323-369. 4 Cf. Lincoln Gordon. Brazil’s second chance: en route toward the First World (Washington, D.C.: Brookings Institution Press, 2001); edição brasileira: A segunda chance do Brasil: a caminho do Primeiro Mundo (São Paulo: Editora Senac, 2002). 191 Brasil, a postura das elites brasileiras era bastante simpática e positiva em relação ao gigante do Norte, buscando uma “relação especial” – o início do projeto vem da época do Barão do Rio Branco, ou quiçá mesmo antes – mutuamente benéfica e garantidora de certa preeminência – alguns diriam “liderança” – em cada uma das regiões respectivas. Bons tempos aqueles, parece refletir Lincoln Gordon, quando os brasileiros se congratulavam com a abertura do Canal do Panamá, que diminuiu enormemente a distância e o tempo em direção da costa oeste dos Estados Unidos. Pouco depois, o Brasil abandonava a carta britânica pela “opção americana”, situação decerto tornada inevitável em virtude da crise econômica de 1929 e da inconversibilidade da libra (em 1931) e depois obrigatória por situação de guerra europeia. Os anos de guerra e seu imediato seguimento correspondem ao que, no texto inaugural, Paulo Roberto de Almeida chama, tomando emprestado o titulo do excelente livro de Gerald K. Haines, de “americanização do Brasil”, provavelmente mais cultural do que econômica, política ou tecnológica. Em todo caso, o nacionalismo se afirma também nessa época, com algumas tinturas antiamericanas que nem todas eram derivadas da situação da Guerra Fria e da chamada “propaganda subversiva” do movimento comunista internacional. Lincoln Gordon aventa a hipótese – embora reconhecendo que os counter-factuals são duros de serem confirmados – que se os Estados Unidos tivessem iniciado, naquele momento, um modesto programa de assistência econômica ao Brasil, essa injeção de capitais (públicos, entenda-se, pois desde então gostávamos do capital estrangeiro, mas preferíamos dispensar os capitalistas, como lembrou mais de uma vez Roberto Campos), talvez as mais duras manifestações de antiamericanismo não se tivessem desenvolvido, pari-passu ao nacionalismo brasileiro. O fato é que desde essa época as relações políticas se tornam mais problemáticas, com surtos e impulsos de aproximação e de rejeição, como examina o restante do texto de Paulo Roberto de Almeida. Coincidência ou não, foi também a partir dessa época que a Coréia, até então dotada da metade da renda per capita brasileira, começa sua arrancada para frente, superando o Brasil em pouco mais de vinte anos. É pelo menos curioso que, nessa época, o economista sueco Gunnar Myrdal – mais tarde ganhador de um Prêmio Nobel, não se sabe se por isso – escrevia um livro sobre a Ásia “demonstrando” que ela estava, infelizmente, condenada a uma miséria “asiática”, ao passo que a América Latina parecia exibir, em virtude de sua identificação com o padrão ocidental – e talvez por desfrutar de economistas tão inovadores como o próprio Myrdal, a exemplo de Raúl Prebisch –, as melhores condições possíveis para uma “arrancada para o crescimento”, teoria popularizada no “manifesto 192 anticomunista” de Walt Rostow5. Eliana Cardoso mostra, em todo caso, que depois de se aproximar um pouco do patamar de riqueza dos americanos, os brasileiros recuaram novamente nos últimos vinte anos, consequência do desregramento fiscal do Estado e de uma política cambial errática. Com maiores ou menores ênfases na aproximação política e independentemente da qualidade das nossas políticas econômicas, Rubens Antônio Barbosa constata essa realidade singular desde o início do século XX, a de que os Estados Unidos são o nosso principal parceiro econômico. Certo, a Grã-Bretanha ainda fornecia o grosso dos capitais e dos serviços até a Primeira Guerra Mundial e sustentou duramente sua condição de primeira fornecedora manufatureira do Brasil, primeiro contra a Alemanha, depois contra os Estados Unidos, até 1927 pelo menos. Mas a mudança de “hegemonia econômica” era inevitável: os Estados Unidos eram o primeiro comprador do nosso produto básico de exportação desde o último terço do século XIX, e no seguinte se tornaram rapidamente o principal investidor industrial e o credor de “primeira instância”. A Segunda Guerra faria o resto, consagrando os Estados Unidos na primeira posição enquanto parceiro comercial, tecnológico e financeiro, mesmo quando a Europa comunitária ocupava um espaço maior considerada enquanto bloco. Depois de um longo passeio pela história das relações econômico-comerciais bilaterais, inclusive do ponto de vista das posições respectivas no sistema multilateral de comércio desde o surgimento do Gatt (1947), Barbosa se concentra nas atuais negociações comerciais, multilaterais e hemisféricas, sublinhando as grandes diferenças de interesses até agora prevalecentes. Ele constata alguns impasses negociadores, mas também indica possíveis caminhos de compromisso. A questão da Alca, e suas implicações para os demais processos comerciais, ocupa posição central no texto de Jeffrey Schott, conhecido especialista de políticas (e práticas) comerciais desde longo tempo, há pelo menos três rodadas de negociações do Gatt-OMC e economista totalmente familiarizado com os esquemas (e armadilhas) de liberalização comercial no hemisfério (a começar pelo Nafta). Ele examina os dados brutos de comércio, os fluxos de investimento e os componentes tarifários e não tarifários do “enfrentamento” brasileiro-americano na Alca, para concluir que uma solução mutuamente vantajosa é possível, desde que alguns trade-offs – o jargão é inevitável nesse tipo de situação – sejam feitos e que expectativas mais modestas e realistas sejam contempladas de lado a lado. 5 Ver Walt W. Rostow The stages of economic growth, a non-communist manifesto (Cambridge: Cambridge University Press, 1960). 193 A situação global do relacionamento bilateral, sua condição “geopolítica” digamos assim, é abordada nos dois últimos textos deste livro, respectivamente por Peter Hakim, o líder do Diálogo Interamericano, e Thomaz Guedes da Costa, um dos mais conhecidos pensadores estratégicos do Brasil, atualmente professor na National Defense University. Essa última parte do volume tem por objetivo fazer um balanço das relações americano-brasileiras a partir de uma visão mais ampla, regional, hemisférica e mesmo global, e oferecer algumas chaves para seu desenvolvimento futuro, se possível num sentido harmonioso. Não se trata certamente de tarefa fácil, uma vez que a já mencionada assimetria estrutural torna difícil um diálogo de “igual para igual”, como gostariam os brasileiros e do qual estão privados mesmo os aliados da Otan. O eventual estabelecimento de uma estratégia de alianças com parceiros porventura em situação similar não resolve, de fato, o problema do diálogo, incontornável, com o gigante do norte. Peter Hakim analisa, no último texto, as diferentes perspectivas, não necessariamente opostas, que adotam os lideres brasileiros e americanos em relação a essa interação central para os primeiros, igualmente importante, diz ele, para os segundos, ainda que com objetivos e preocupações algo diversos. Os brasileiros tendem a propor uma cooperação mais pragmática, talvez mais oportunista, ainda segundo ele, em torno de questões concretas e específicas, particularmente (mas não exclusivamente) em comércio, investimento, tecnologia e em outras áreas econômicas. Os americanos gostariam de ter a colaboração dos brasileiros em uma série de outras áreas nas quais estes não estão dispostos ou não são capazes de fornecê-la, como em segurança regional, controle do narcotráfico etc. Esse desencontro não está condenado a perdurar, mas um sério esforço de diálogo constante entre as duas partes parece ser condição essencial para a superação dos desencontros e lograr o reforço de uma relação ainda “indefinida”. Guedes da Costa, antes dele, também focaliza as relações globais e começa por se perguntar, retomando Sidney Weintraub, se essas relações não estão contaminadas pelo componente do desconhecimento. Em todo caso, o período recente produziu algumas boas surpresas nas percepções recíprocas, com um acolhimento excepcionalmente favorável da parte americana por um governo que em outras épocas seria visto com alguma suspeita. A mudança é igualmente recíproca e ele se pergunta se, do lado brasileiro, a “nova” política externa não estaria retomando os padrões do antigo “pragmatismo responsável”. A pergunta é pertinente, pois de ambos os lados, sobretudo do brasileiro, o desejo parece evidente de inaugurar uma relação com os Estados Unidos altamente frutífera, pragmática e orientada para resultados que contemplem os velhos objetivos brasileiros de crescimento econômico, de 194 capacitação tecnológica e, agora, como candidato a “modelador” dessas relações, de promoção social e de desenvolvimento humano. Essa visão do relacionamento bilateral foi colocada de modo claro pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, quando de sua primeira viagem a Washington, ainda como presidente eleito, em 10 de dezembro de 2002: “Venho a Washington”, disse ele no National Press Club, “para trazer, do Brasil, uma mensagem de amizade. Pretendo […] dar início a quatro anos de convivência franca, construtiva e benéfica entre os nossos dois países”. Depois de traçar um paralelo entre os dois países, ele explicitava: “A história nos ensina que não soubemos aproveitar, no passado, alguns momentos propícios para construirmos uma parceria mais abrangente. Poderíamos ter tirado maiores benefícios do impulso resultante da luta que travamos juntos contra o nazismo, na Europa, para criarmos, em tempos de paz, uma cooperação à altura dos nossos países. Estou convencido, no entanto, de que o nosso vínculo pode melhorar. Se as nossas sociedades se conhecerem mais. Se nos livrarmos de estereótipos e preconceitos. Se aprendermos a valorizar as afinidades e respeitar as diferenças que existem entre nós”. Este livro foi concebido e organizado com esse mesmo espírito: conhecimento mútuo, respeito das diferenças, benefícios recíprocos, a partir de uma interação mais intensa, maiores vantagens respectivas, tanto no entorno geográfico quanto no cenário mundial. Os ensaios aqui reunidos fazem um balanço do passado, um diagnóstico do presente e oferecem alguns caminhos para o futuro. Nossa aspiração de bem servir ao objetivo do fortalecimento de uma longa amizade e de relacionamento entre os povos – que começou ainda na era portuguesa, em plena Inconfidência mineira – terá sido atingida se este livro puder bem informar os estudantes, os simples curiosos e o público em geral, se ele puder formar os agentes futuros dessa interação multiforme e se puder também, nunca é demais esperar, forjar as bases de uma relação mais madura, totalmente desprovida de restrições mentais, de parte e outra, e inteiramente aberta à cooperação e ao enriquecimento mútuo. Para tentar alcançar esses objetivos, este livro se dedicou ao exame dos desafios e das tensões nas relações bilaterais, bem como das divergências econômicas acumuladas no decorrer dos últimos dois séculos de “desenvolvimento desigual e combinado”, e também das convergências construídas no contexto do multilateralismo contemporâneo, buscando responder à questão básica que prende a atenção e mobiliza a vontade política dos estadistas brasileiros no decurso desse longo período: como superar as assimetrias estruturais existentes entre os dois países — herdadas, construídas ou aprofundadas — e alcançar um certo patamar de interdependência que melhor reflita as potencialidades e as possibilidades de uma nova 195 parceria entre os dois grandes do hemisfério ocidental. A obra não tem a pretensão de ter respondido a todas as questões de um relacionamento tão complexo quanto os problemas internos do Brasil, mas espera ter, pelo menos, colocado todas as perguntas pertinentes para uma análise adequada dessa problemática. Brasília, março de 2005 Capítulo introdutório ao livro publicado. 196 Caminhos da convergência na globalização Leonardo de Almeida Carneiro Enge: A Convergência Macroeconômica Brasil-Argentina: regimes alternativos e fragilidade externa (Brasília: IRBr, 2006; ISBN: 85-7631-048-1). Este livro, a rigor, dispensa apresentações. Seu título e subtítulo, assim como seu índice, falam por si mesmos, e eles não poderiam ser mais eloquentes. O tema, evidenciado no título, a convergência macroeconômica entre os dois grandes sócios do Mercosul, toca num dos mais importantes problemas da interface econômica externa do Brasil, ressaltado pela sua densa relação – que não é só econômica, obviamente – com a Argentina, nosso principal parceiro no empreendimento integracionista do cone sul e interlocutora incontornável e indispensável no processo de construção de um espaço econômico unificado na América do Sul. Quanto ao subtítulo, ele revela o ambiente econômico frágil no qual viveram até recentemente ambos países, tendo de operar seus respectivos processos de estabilização num contexto de turbulências internas e externas, em um quadro marcado pela diversidade de regimes cambiais, para não dizer divergência recíproca absoluta, e pela deterioração dos desequilíbrios externos. Em sua primeira “encarnação”, a de uma dissertação de mestrado no Instituto Rio Branco do Ministério das Relações Exteriores, a monografia cumpriu exatamente o papel que se esperava dela, a de uma conclusão com êxito de uma curta trajetória de formação e aperfeiçoamento para a carreira diplomática. Melhor dito, ela foi além dessa missão e, por isso mesmo, conquistou o primeiro lugar dentre os prêmios previstos, ganhando, assim, um lugar de honra no ainda pequeno panteão das monografias publicadas. Com isso, ela assegurou ao seu autor um merecido estágio na Embaixada do Brasil em Buenos Aires e, por sua própria iniciativa, a oportunidade de continuar seus estudos especializados, desta vez em nível de doutoramento. Em sua presente “encarnação”, sob a forma deste livro, ela deve continuar alimentando um debate tão importante quanto necessário, uma vez que, se o que se pretende com o Mercosul é, efetivamente, conduzi-lo à sua etapa de união aduaneira acabada e daí passar a construir o mercado comum pretendido, o tema coberto pelo autor apresenta-se como central na consolidação daquilo que se poderia chamar, emprestando-se uma famosa expressão da Europa comunitária, de “acquis” mercosuliano, base da futura coordenação de políticas macroeconômicas e setoriais. 197 Tive a satisfação intelectual – e o prazer pessoal – de “orientar” esta dissertação, mas de fato ela dispensava quaisquer orientações ou “correções”, tal o domínio que o autor demonstrou ter do tema por ele escolhido. Isto se deve, provavelmente, à excelente formação como economista que ele recebeu nas salas de aula da FEA-USP, sem esquecer de mencionar aqui uma experiência profissional prévia num mercado de trabalho altamente competitivo, como é o da cidade de São Paulo. Leonardo Enge estava, portanto, plenamente habilitado a destrinchar a problemática por ele escolhida, a situá-la adequadamente no contexto mais vasto da globalização, a identificar os problemas correntes do relacionamento bilateral e os percalços que ainda devem ser superados com vistas a alcançar-se, se tal for possível, a esperada e tantas vezes delongada convergência macroeconômica entre as duas maiores economias da América do Sul, condição necessária, mas não suficiente, para avanços ulteriores no Mercosul e base indispensável da consolidação do processo integracionista na região. E o que traz este livro de importante para o debate e a reflexão ponderada em torno dessa questão? A obra se compõe de quatro capítulos, que vão do geral ao particular, ou do mais vasto ao mais específico, mas que, na verdade, constituem uma espécie de crescendo, uma vez que se parte do contexto maior da globalização, para examinar em seguida seu impacto sobre a formulação e execução das políticas econômicas em âmbito nacional, o que introduz a discussão das experiências de estabilização no Brasil e na Argentina e abre espaço para o exame conclusivo das bases da integração Brasil-Argentina, isto é, da própria convergência macroeconômica. O subtítulo traduz exatamente o que estava em causa nessas experiências: regimes alternativos (de câmbio) – ou seja, de um lado o Plano de Conversibilidade, de outro o Plano Real – e fragilidade externa, isto é, o ambiente de turbulências financeiras em que ambos os países viveram, tanto de origem externa, como aquelas criadas pelos seus próprios desequilíbrios internos e externos. O fato é que, longe de “convergirem” para um leque de respostas de políticas econômicas coordenadas entre si, cada país concebeu e adotou a solução que melhor parecia adequada às autoridades econômicas nacionais, nos momentos cruciais dos respectivos processos de estabilização econômica, daí derivando diferenças fundamentais na implementação prática desses processos que complicaram ainda mais a busca da convergência, num quadro que era igualmente marcado pelas fragilidades externas, em termos de balanço de pagamentos, e pelos impasses internos em torno das políticas monetárias e cambiais. Ainda que o próprio autor exclua esta intenção, esta é a história linear, tal como efetivamente se passou na “vida” dos dois países – wie es eigentlich gewesen, diria o 198 historiador alemão Leopold Von Ranke –, da “divergência” econômica entre o Brasil e a Argentina, ao longo de mais de quinze anos desde a redemocratização de meados da década de oitenta. Se não fosse pela excelência, também, da análise econômica, esta monografia teórica – como sublinhado pelo autor – já constituiria, nos seus próprios termos, um belo racconto storico da evolução econômica no cone sul a partir do início dos anos noventa do século passado. Mas ela vai além disso, ao acoplar à história desses episódios memoráveis da “crônica econômica contemporânea” dos dois países uma discussão pertinente, e percuciente, dos mais importantes problemas envolvidos, segundo uma dimensão própria a cada um deles, na concepção, formatação legal e na aplicação das políticas econômicas nacionais em condições de forte tensão política e social interna e de grandes pressões externas. E por que a convergência macroeconômica seria relevante na vida econômica dos dois países e no itinerário futuro do Mercosul? Alguns, talvez por impulsos idealistas ou mesmo por um desejo inconsciente de mimetizar o processo europeu, pretendem que essa convergência é importante para acelerar a chegada da “moeda comum” no Mercosul, como se todas as experiências integracionistas devessem, inevitável ou necessariamente, seja reproduzir o modelo comunitário da UE, seja desembocar fatalmente na adoção de uma moeda única, vista como o nec plus ultra das integrações possíveis. A despeito do apelo “popular” que possa ter essa visão, devemos descartá-la de imediato. Não se opera “convergência” apenas para fins da adoção de um mesmo padrão monetário, ainda que a consequência lógica de todo mercado comum acabado possa ser, de fato, a abolição desse incômodo que representa o câmbio entre moedas nas fronteiras e a imposição continuada desses pesados custos de transação que já não mais possuem razão de continuar a existir, quando completou-se a liberalização de bens, serviços e fatores produtivos entre dois ou mais países. Brasil e Argentina, e talvez mesmo o Mercosul, chegarão, em algum momento de um futuro ainda imprevisível, a uma moeda comum, mas isso se dará pelo aprofundamento natural e pelo adensamento progressivo dos vínculos recíprocos construídos no processo de integração bilateral e plurilateral – envolvendo ainda a América do Sul –, não tanto pela definição de um projeto político que tenha de ser implementado de cima para baixo pela simples vontade de dirigentes ou tecnocratas. A convergência macroeconômica entre o Brasil e a Argentina é, ou pelo menos deveria ser, importante em seus próprios termos, não apenas como um dos precedentes indispensáveis ao estabelecimento de uma moeda comum bilateral (a ser oportunamente “quatrilateralizada” no Mercosul, se tal for possível, tendo em vista as peculiaridades do Uruguai como praça financeira aberta). Mesmo que não se conceba essa iniciativa apenas 199 como uma espécie de “camisa de força” a limitar ações intempestivas, por parte de líderes políticos ou mesmo de burocracias governamentais eventualmente volúveis, no sentido de alimentar o caráter já naturalmente errático das políticas econômicas nas condições conhecidas na América Latina nas últimas décadas, mesmo que não fosse para evitar esse tipo de “volatilidade macroeconômica” embutida na instabilidade geral dos ciclos eleitorais nesses países, a convergência macroeconômica apresentaria, por si só, um elemento novo na densa relação econômica já construída entre o Brasil e a Argentina. Esse elemento é, obviamente, o da estabilidade e da previsibilidade de regras, a condição primeira e essencial de todo processo sustentado de crescimento econômico (a segunda sendo, em minha opinião, uma microeconomia competitiva, e a terceira uma abertura ao comércio e aos investimentos internacionais, sem olvidar, obviamente, a qualidade dos recursos humanos e uma infraestrutura adequada). De fato, a convergência não é uma “situação” a que se chegue, como seria um eventual ingresso em um “estado de graça” de tipo econômico. Trata-se mais bem de um processo, de um work in progress, que requer das autoridades econômicas envolvidas mais do que atividades rotineiras de troca de informações, consulta e coordenação de medidas tópicas no campo macroeconômico. O processo gradual de que se fala requer, em primeiro lugar, uma concepção clara do tipo de ordenamento econômico que se pretende em países que estão inevitavelmente inseridos na interdependência econômica global, como demonstrado amplamente neste trabalho. Ele demanda, em segundo lugar, uma definição das condições sob as quais os países devem operar internamente e administrar no plano externo essa inserção econômica internacional, o que também é discutido neste livro. Ele está, em terceiro lugar, condicionado à existência de instituições técnicas específicas, ou pelo menos de mecanismos e “ferramentas” adequadas e adaptadas a esse tipo de gestão econômica, que se aproximam daquilo que os anglo-saxões chamam de fine-tuning. As tarefas não são simples, tendo em vista a instabilidade macroeconômica que marcou ambos países nas duas últimas décadas do século as e a delicada gestão da estabilidade alcançada – mas ainda não totalmente garantida – nos primeiros anos da década. Com base num estudo empiricamente sustentado nessas experiências dos últimos lustros, mas também teoricamente embasado na melhor ciência econômica, o autor conclui que o conjunto ideal de políticas para a promoção da convergência macroeconômica entre Brasil e Argentina deveria estar fundamentado no tripé câmbio flexível, metas de inflação e austeridade fiscal. Como diz Leonardo Enge, essa combinação de políticas é a mais adequada 200 para a promoção do crescimento econômico, a atração de investimentos diretos estrangeiros e redução da fragilidade externa no Brasil e na Argentina. Por acaso, esse tipo de receituário se aproxima do “coquetel” macroeconômico em utilização atualmente no Brasil, mas ele ainda não está suficientemente consolidado e costuma sofrer ataques, tanto à direita, quanto à esquerda do espectro político-acadêmicotecnocrático que costuma opinar sobre políticas econômicas no Brasil. Existe ainda, como já salientado por diversos observadores que acompanham esse tipo de debate, uma enorme demanda por “magia econômica”, bem como por intervencionismo estatal em determinados mercados e setores. São vários os efeitos desse tipo de demanda, mas eles costumam se manifestar em ataques simultâneos (nem sempre coincidentes ou todos concordantes): (a) contra a rigidez das metas de inflação, insuscetíveis de acomodar, conforme se lê, determinados choques externos de preços, como no caso do petróleo, pressionado por uma demanda muito próxima da oferta; (b) contra a política de flutuação do câmbio, que limitaria, como apregoado frequentemente, intervenções mais focadas do Banco Central na determinação de uma “taxa de equilíbrio”, que ninguém ainda conseguiu dizer qual seria; (c) ou, ainda, contra o próprio conceito de responsabilidade fiscal, que os mais afoitos querem ver substituído por um etéreo compromisso com o crescimento e o emprego e por um ainda mais vago conceito de “responsabilidade social”, sem falar nos que pretendem a redução do superávit primário em nome de investimentos “sociais”, como se o déficit já não fosse suficientemente alto. Mas quando se fala em convergência se está pensando, obviamente, numa relação envolvendo pelo menos dois atores, quando não num processo bem mais amplo, com número maior de países, apontando para a confluência de políticas comuns, se não totalmente harmônicas, ao menos concordantes, como tem ocorrido, por exemplo, desde longos anos, no seio da União Europeia e, de forma mais diluída, no âmbito da OCDE. O fato de Brasil e Argentina cogitarem, e de certa forma estabelecerem como objetivo, essa convergência, como estabelecido, por exemplo, no artigo 1º do Tratado de Assunção – ainda que sem mecanismos definidos de implementação – já constitui um fator, ou pelo menos uma promessa, de futura estabilidade de regras, a primeira das nossas condições primárias para um processo sustentado de crescimento econômico. Se uma convergência relativa era sustentada, no regime de Bretton Woods, pela adesão formal ao princípio da estabilidade cambial, essa tarefa tem de ser cumprida, no nãoregime monetário que passou a existir no mundo “pós-Bretton Woods”, pela adesão informal a um conjunto de regras e princípios aos quais os países prometem se ater voluntariamente 201 como forma de reduzir a volatilidade intrínseca aos regimes de flutuação cambial. Uma das modalidades encontradas, no caso da experiência monetária europeia – que existiu independentemente de acordos formais de integração, já que também o franco suíço, por exemplo, fazia parte de um sistema de flutuação ancorado no antigo deutsche mark –, foi a definição de uma banda ajustável, mas bastante estreita, ligando as moedas integrando esse regime, com acertos de intervenções recíprocas entre bancos centrais para garantir a fiabilidade do sistema. Mas mesmo esse tipo de arranjo informal, que poderia ser concebido para outras experiências similares em outros continentes, tornou-se na prática inviável em virtude da magnitude dos fluxos de capitais e da diversidade de ativos à disposição dos agentes nas atuais condições da globalização financeira. O sistema monetário europeu saltou pelos ares quando confrontado com os enormes deslocamentos provocados por uma alta dos juros no principal operador do regime, algo que pode – e tende – frequentemente a ocorrer. Qual a solução para o Brasil e a Argentina? Acredito que este trabalho fornece o essencial das respostas e elas já foram resumidas nos parágrafos precedentes. Vale a pena ler atentamente o que Leonardo Enge tem a dizer sobre a experiência dos dois países, no contexto das crises financeiras da segunda metade dos anos noventa, em especial a da Argentina, no início desta década. A convergência macroeconômica entre os dois países é, por certo, bem vinda, mas ela requer condições mínimas para ser bem sucedida e abrir o caminho para o tão desejado processo sustentado de crescimento, com baixas taxas de inflação, reduzida volatilidade intrínseca na interface interna e externa do meio ambiente de negócios e uma boa inserção internacional das duas economias. Entre essas condições, necessárias mas certamente não suficientes, estão o conjunto de políticas preconizadas por economistas experientes e que foram pelo autor aqui explicitadas: câmbio flexível, metas de inflação e austeridade fiscal. Nessa perspectiva, cada um dos dois países deve avançar muito ainda no caminho da consolidação de seus respectivos processos de estabilização macroeconômica antes de se pensar no estabelecimento de mecanismos formais – no âmbito bilateral ou mesmo “mercosuliano” – de coordenação das políticas macroeconômicas, que constituem a base instrumental da desejada convergência. O Mercosul pode até ser importante, ou até mesmo essencial, nesse processo, mas ele não é necessariamente indispensável, uma vez que o mais relevante é a tomada de consciência, interna, pelos dirigentes econômicos e pelos líderes políticos, de que a escolha das políticas ideais envolve elevado sentido de responsabilidade e um compromisso muito forte com a estabilidade e a previsibilidade das regras. O Brasil e a Argentina já perderam muito tempo, no decorrer do século XX, no caminho do crescimento econômico e da busca de bem-estar para seus povos respectivos. Nos 202 percalços econômicos registrados e nas muitas frustrações sociais acumuladas, ao longo das últimas décadas, ambos países, de comum acordo, decidiram privilegiar o Mercosul como um instrumento válido de progresso econômico e social, bem como para sua capacitação com vistas a lograr uma melhor inserção econômica internacional. Pois bem, o Mercosul constituiu, desde 2000, um conjunto de diretrizes de procedimento para realizar o objetivo almejado da convergência macroeconômica. As diretrizes são válidas e plenamente adaptadas aos requerimentos estabelecidos para realizar esse processo de convergência, como reconhece o autor deste trabalho, ao cabo de um circunstanciado exame teórico e empiricamente embasado do percurso do Mercosul, no decorrer de mais de uma década. Se os resultados alcançados até aqui não estão em conformidade com os objetivos esperados do itinerário integracionista, não é por alguma falha intrínseca de qualquer uma das diretrizes estabelecidas e sim por deficiências próprias aos dois países, ou seja, pela não implementação do “mix ideal” de políticas econômicas. As regras estão dadas. Cabe persistir no intento, de maneira responsável, que os resultados virão. A visão clara desse processo, por parte de Leonardo Enge, como revelada neste trabalho, nos permite ostentar uma tal tranquilidade quanto ao atingimento oportuno dos objetivos de maximização do bem-estar e de progresso econômico e social, fixados na inauguração do Mercosul. Brasil e Argentina ainda têm um longo itinerário a percorrer para que eles sejam alcançados, mas o conhecimento adequado do caminho já cumprido permite constatar os erros cometidos e a serem agora evitados, bem como as tarefas que ainda devem ser empreendidas para a consecução daquelas metas. Uma obra como esta constitui uma espécie de “manual de bordo” da história realizada até aqui, ao mesmo tempo que um “manual de instruções” – uma espécie de how to do – da agenda que tem de ser cumprida por dirigentes responsáveis e engajados nesse processo. Auguro pleno sucesso acadêmico e no espaço público para este primeiro livro de meu colega diplomata Leonardo Enge: tenho certeza de que ele contribuirá para o debate bem informado e, mais do que isto, para a orientação de políticas públicas condizentes com as necessidades dos países membros do Mercosul. Brasília, 19 de março de 2006. Apresentação ao livro publicado; reproduzida no boletim Meridiano 47 - Boletim de Análise da Conjuntura em Relações Internacionais (Brasília: Instituto Brasileiro de Relações Internacionais, ISSN: 1518-1219, n. 75, outubro 2006, p. 22-26) 203 Entre a América e a Europa: a política externa do Brasil nos anos 1920 Eugênio Vargas Garcia: Entre América e Europa: a política externa brasileira na década de 1920 (Brasília: Editora da Universidade de Brasília; Funag, 2006, 672 p.; ISBN: 85-230-0854-3). O livro resulta de tese de doutorado apresentada na UnB em 2001 e beneficiou-se de pesquisas do autor em arquivos nacionais e estrangeiros (EUA e Reino Unido), com o que ele construiu uma obra tão competente quanto necessária, uma vez que o período coberto permanecia uma espécie de “patinho feio” da nossa historiografia diplomática, prensado entre a “era do Barão”, na primeira década do século XX, e os episódios mais “excitantes” da fase da Guerra Fria. No próprio entre-guerras, os anos de depressão e conflitos econômicos e militares que se seguiram à crise de 1929 sempre receberam mais atenção dos historiadores que o período aparentemente “morno” que se situa entre o final da Primeira Guerra e o golpe de outubro de 1930, que inaugura a chamada era Vargas, de modernização e industrialização. Eugênio Garcia formula, em primeiro lugar, uma série de perguntas, que ele tenta depois responder em sete capítulos temáticos que cobrem as principais áreas de atuação e os principais problemas diplomáticos – e desafios internacionais – do Brasil nos doze anos cobertos pela pesquisa. Como a política externa movia-se num triângulo atlântico formado pelos Estados Unidos, Europa e América do Sul, suas perguntas se dirigem aos problemas que serão depois analisados em cada um dos capítulos: “rumo à Europa”, ou seja, nossa participação na conferência da paz de 1919; “diplomacia econômica”, vale dizer, defesa do café e penetração de capitais estrangeiros; “equilíbrio estratégico na América do Sul”, com o rearmamento militar e as tentativas de equilíbrio de poderes na região; “comércio e finanças”, quando se assiste à competição entre os interesses britânicos e americanos nas duas vertentes; “a experiência da Liga das Nações”, nossa primeira tentativa, frustrada, de integrar o círculo dos “mais iguais”; “de volta à América”, quando se administra o afastamento diplomático da Europa; e “a diplomacia antirrevolução das oligarquias”, capítulo final no qual aparecem os problemas político-ideológicos que desembocariam na revolução de 1930. Ele lembra que os chanceleres não eram necessariamente diplomatas profissionais, mas a elite política oligárquica ocupava quase todos os postos do Itamaraty. O processo decisório já era, então como agora, centrado na figura do presidente, mas alguns estados faziam sua própria “política externa” ao dominarem, por exemplo, a “diplomacia do café” ou 204 emitindo títulos da dívida estadual diretamente nos mercados financeiros internacionais. Uma constatação se impõe, em diversos episódios narrados no livro, e não apenas na saída patética da Liga das Nações em 1926 – objeto de livro anterior do autor –, a de que o Brasil estava só na América, mais ou menos hostilizado pelos vizinhos hispânicos e tratado com a famosa negligência benigna pela grande potência hemisférica. O elemento estrutural decisivo, que permeia a maior parte dos fatos e processos políticos registrados no período, é a transição da velha influência inglesa para a nova hegemonia americana, que torna-se evidente no comércio, mas crescentemente também nas finanças e nos investimentos. Eugênio Garcia faz um uso competente dos ofícios de embaixada e dos despachos da Secretaria de Estado, que se inserem no texto de forma quase natural, o que torna a leitura de seu maçudo opus histórico um empreendimento agradável, quase um racconto storico linear e imediatamente compreensível a despeito dos meandros sofisticados de uma época que supostamente se caracterizaria por ostentar uma “diplomacia ornamental e aristocrática”. O cuidado na manipulação dos documentos se revela, por vezes de forma anódina, na transcrição de uma expressão imediatamente explicada numa nota de rodapé: “anotação à margem do telegrama x”. Cada capítulo temático cobre não só todo o período analisado, mas por vezes recua à fase anterior à Primeira Guerra, denotando um sólido conhecimento da literatura secundária e uma perfeita apreensão do contexto mais amplo no qual se inseria o problema tratado no capítulo. O legado dos anos 1920, para nossa diplomacia, é provavelmente o nascimento do conceito de “hemisfério ocidental”, que tanta importância teria, para o bem e para o mal, no período da Guerra Fria. Nossa aproximação com os Estados Unidos se consolidou e, na verdade, nunca chegou a ser desmentida, mesmo a despeito de fases mais ou menos “independentes”. A hegemonia ideológica do pan-americanismo só parece ter se esgotado com o próprio fim da Guerra Fria, ainda que os militares tenham, paradoxalmente, maior grau de responsabilidade no afastamento relativo em relação à potência hegemônica do que os esquerdistas e opositores políticos do “imperialismo americano”. Nem o estilo, nem a substância das questões diplomáticas dos anos 1920 sobreviveram até a nossa época, com exceção, talvez, da tradicional desconfiança dos vizinhos em relação a um irmão maior que não ostenta, obviamente, a mesma arrogância da “nova Roma”, mas que tampouco tem o mesmo poder de atração do gigante hemisférico. Nossa política externa “dialética” para o hemisfério – ora mais próxima dos EUA, em outras ocasiões propensa ao congraçamento no Sul – é examinada com competência por Eugênio Garcia, que demonstra, cabalmente, que os mitos do “alinhamento automático” e da “relação especial” sempre foram, 205 então como agora, nada mais do que mitos. A saída da Liga das Nações nos afastou durante muito tempo da Europa, mas, como demonstra o autor, essa transição estava longe de ser uma certeza nos anos 1920. Brasília, 21 abril 2006 Publicado na Revista Brasileira de Política Internacional (Brasília: ano 49, n. 1, 2006, p. 222-224) Sob a sombra da águia?: a diplomacia brasileira no início do declínio britânico A historiografia tradicional tende, predominantemente, a ver nos anos pós-Primeira Guerra Mundial a passagem do Brasil da esfera de influência britânica para o domínio econômico da nova potência emergente, os Estados Unidos. De fato, não faltam dados que corroboram essa visão, a começar pelo início do declínio das importações e dos investimentos diretos britânicos no Brasil e o vigoroso impulso então tomado pelos equivalentes americanos nas mesmas rubricas, bem como a quadruplicação dos empréstimos feitos na praça de Nova York, comparativamente ao aumento tímido dos financiamentos obtidos na City londrina. Muitas das companhias então instaladas no Brasil ainda estão conosco, como a Ford, a Kodak, a GM, a Colgate, a Metro Goldwin-Mayer, as Refinações de Milho Brasil e muitas outras mais, cuja titularidade pode ter mudado na matriz mas cujas atividades e vigor se mantêm intactos nos mercados locais. Algumas interpretações maniqueístas tendem, efetivamente, a ver o período como representando uma simples transferência de hegemonias ou como se o Brasil tivesse começado a marchar ao “compasso de Washington”. Este livro de Eugênio Vargas Garcia, preparado inicialmente como tese de doutorado, demonstra que essa visão simplista não encontra fundamentação na realidade, sendo bem mais complexas as relações mantidas pelo Brasil com seus dois principais parceiros econômicos e financeiros. Ele começa, justamente, por descartar paradigmas previamente traçados, e toma o cuidado de “não enunciar de antemão... hipóteses que constituíssem uma camisa-de-força para a consecução do projeto de pesquisa proposto” (p. 27), no que ele fez muito bem. Trabalhar as fontes sem ideias recebidas e ler os documentos com o espírito aberto sempre foi um bom receituário para as boas revisões historiográficas e talvez seja esta a principal virtude desta pesquisa. Partindo, não daquelas imagens pré-concebidas, mas das fontes documentais – o anexo relativo aos arquivos arrola um número imenso de materiais brasileiros, britânicos, 206 americanos, de organismos internacionais e de coleções particulares – e de uma impressionante literatura secundária, o autor revisou a dúzia de anos que vai do final da Primeira Guerra Mundial à Revolução de 1930, contribuindo assim para tirar de uma espécie de um limbo historiográfico um período que na verdade presidiu à formação da diplomacia brasileira contemporânea, enquanto fase formadora de uma burocracia “weberiana” relativamente avançada para os padrões relativamente atrasados de uma sociedade ainda essencialmente agrária e na qual a indústria engatinhava de forma quase modorrenta (como muitas vezes se referiu Monteiro Lobato). Datam dos anos vinte algumas reformas “instrumentais” no funcionamento do Itamaraty e a introdução de normas e procedimentos que continuariam em vigor já praticamente entrados os anos 70, quando a Casa do Rio Branco empreende outras reformas modernizadoras. Esse esforço de recuperação era bem vindo, já que esses anos relativamente esquecidos não perdem quase nada em relação à movimentação de outras épocas, que também foram de crises, de “reconstruções”, de grandes definições políticas, internas e externas. Afinal de contas, a conferência de Versalhes que presidiu – nem sempre de maneira feliz – ao primeiro ordenamento jurídico-diplomático da era moderna foi uma espécie de repetição – sem os muitos bailes e conspirações da diplomacia secreta – do Congresso de Viena de um século antes, tendo deixado como legado uma “organização”, a Liga das Nações, que tentou diminuir, sem conseguir, os ímpetos guerreiros dos velhos e novos imperialismos. O Brasil esteve “presente na criação” da nova ordem, ainda que viesse a abandonar essa “ONU frustrada” alguns anos depois. Ele também projetou-se de modo mais livre no próprio continente sul-americano, livre dos constrangimentos da era monárquica e já delimitadas todas as suas fronteiras pela obra inigualável do Barão. Eugênio Garcia segue todos os passos da diplomacia brasileira nesse triângulo formado pela Europa, pelos Estados Unidos e pela América do Sul, organizando seu roteiro em torno de sete grandes eixos que constituem, igualmente, cada um dos capítulos do livro: 1) “rumo à Europa”, isto é, nossa participação na conferência de Versalhes de 1919; 2) a “diplomacia econômica”, com a promoção do café e a captação necessária de capitais estrangeiros, tanto para fins de financiamento das obras de infraestrutura (a maior parte conduzida pelos Estados, que tinham autonomia para contrair empréstimos no exterior), como sob a forma de investimentos diretos; 3) “equilíbrio estratégico na América do Sul”, com os difíceis problemas do equilíbrio de poderes na região, entre ensaios de “corrida armamentista”; 4) “comércio e finanças”, onde é mais patente a já referida substituição de hegemonias, ainda que outros países também se lancem à competição nessas áreas; 5) a triste 207 “experiência da Liga das Nações”, uma tentativa precoce de entrar um outro “Conselho” de nações poderosas; 6) “de volta à América”, que se traduz num distanciamento da velha e arrogante Europa e na reafirmação dos princípios americanistas; e, finalmente, 7) “a diplomacia antirrevolução das oligarquias”, quando aparecem com mais vigor os novos problemas do século: comunismo, anticomunismo, imigração, rebeliões antiliberais (e anticapitalistas, ou seja, corporativas) e a complicada administração diplomática da revolução de 1930. Na República, como durante todo o império, os chanceleres não eram diplomatas de carreira – Rio Branco foi quase uma exceção, cabendo aliás lembrar que ele começou seu “serviço exterior” por funções consulares, que até os anos 1930 eram completamente separadas dos cargos diplomáticos – muito embora as mesas figuras da elite urbana e das oligarquias tradicionais preenchiam praticamente todos os postos importantes do Itamaraty. Apesar de termos tomado como modelo a constituição dos “Estados Unidos”, nosso federalismo era fortemente dominado pela figura do presidente, que também definia o essencial do processo decisório nas questões diplomáticas, não muito diferente do que acontece hoje, aliás. Seis longos meses se passavam entre a “eleição” (em março) do novo chefe de Estado e sua posse (em novembro), período aproveitado para uma longa viagem de navio à Europa, com eventual negociação de novos empréstimos (como tinha ocorrido, aliás, com o “funding loan” de Campos Salles). Essa “intromissão” talvez excessiva do também chefe de governo nos assuntos da diplomacia provavelmente explica alguns arroubos – por vezes sob a responsabilidade de algum enviado ad hoc, tirado das fileiras da elite cosmopolita – que talvez não tivessem ocorrido se a condução de negociações delicadas tivessem permanecido nas mãos dos diplomatas apenas. Um exemplo dos mais patéticos foi oferecido pela nossa saída, ao estilo “batendo a porta”, da Liga das Nações, tema que já tinha sido objeto da dissertação de mestrado de Garcia, também publicada em forma de livro. As grandes potências, então como hoje, nos tratavam com uma negligência benigna que refletia, aliás, a pouca importância do Brasil nos assuntos do mundo, um simples fornecedor de produtos de sobremesa. Não tínhamos canhoneiras, nem dinheiro, nem grandes atrativos econômicos ou de mercado, enfim, uma nação de malária, febre amarela e de Jeca-Tatus. Os que acreditam que a noção de “hemisfério ocidental” nasceu com a guerra fria, devem revisar suas concepções, pois ela emerge mesmo nos anos vinte. A aproximação e a pretensão a uma “aliança especial” com os Estados Unidos também são típicos dessa fase, que assiste, na verdade, à hegemonia ideológica do pan-americanismo, mais do que do pró208 americanismo que teve vigência muito limitada em nossa história diplomática. Não havia, até então, um verdadeiro “imperialismo americano” pela simples razão de que os europeus preenchiam inteiramente esse papel e a União Soviética ainda não era um dos polos definidores da ordem mundial (como os próprios Estados Unidos, aliás). Os americanos eram amigos e os novos donos do dinheiro, ainda que suas empresas já estivessem dominando boa parte da indústria – sobretudo as do processamento agroalimentar –, de muitos serviços e das chamadas “public utilities”, algumas delas nacionalizadas apenas na era militar, como a ATT. O que restou, finalmente, dessa época nas questões diplomáticas contemporâneas? Talvez o mesmo princípio que já existia na era monárquica, ou durante os anos de industrialização acelerada e provavelmente ainda hoje: o desejo de equilibrar as relações com os diferentes parceiros externos, buscando vantagens econômicas, financeiras, comerciais, tecnológicas com um ou outro polo dominante na nossa interface diplomática: a América de um lado, a Europa de outro, como se fez no decorrer dos anos 1920. São destituídas de fundamentos, portanto, essas interpretações maniqueístas de “alinhamento automático” ou de submissão aos novos “centros de poder”. Eugênio Garcia por certo comprova que nossa saída da Liga das Nações acarretou, também, um longo afastamento em relação à Europa, mas isso se deu em função de circunstâncias próprias ao cenário internacional pós-1930, sem que jamais as “novas amizades” tenham sido escolhidas pelo Brasil de forma peremptória ou prédeterminada. O autor pratica o mais saudável revisionismo que possa haver nas lides históricas, aquele que emerge da leitura atenta dos documentos e dos fatos reais, não o das concepções conspiratórias dos que veem no manifesto destino na nova Roma imperial o quadro referencial incontornável e obrigatório da diplomacia brasileira no século XX. Brasília, 20 julho 2006 Publicado na revista Política Externa (São Paulo: vol. 15, n. 2, setembro-novembro 2006, p. 145-148) Do leão britânico para a águia americana? A versão corrente vê, no entre-guerras, a passagem do Brasil da esfera britânica para o domínio americano, com base nos novos fluxos de comércio, investimentos e empréstimos, que trocam a City por Nova York. Este livro, de um diplomata-historiador, demonstra que eram mais complexas as relações do Brasil com seus dois principais parceiros. Partindo, não 209 de imagens pré-concebidas, mas de fontes documentais, o autor revisa os anos que vão da Primeira Guerra à Revolução de 1930, tirando do limbo historiográfico um período crucial na formação da diplomacia brasileira. A revisão é bem-vinda, já que o período é movimentado. Versalhes, que efetuou o primeiro ordenamento da era moderna, foi uma repetição – sem bailes ou diplomacia secreta – do Congresso de Viena: a Liga das Nações tentou diminuir, sem conseguir, os ímpetos guerreiros dos velhos imperialismos. O Brasil esteve presente na criação da nova ordem, mas abandonou essa “ONU frustrada” poucos anos depois. Ele se projetou na América do Sul, livre dos constrangimentos da século XIX, com as fronteiras já delimitadas por Rio Branco. Garcia segue os passos da diplomacia brasileira no triângulo Europa-EUA-América do Sul, organizando seu roteiro em torno de sete grandes eixos: 1) “rumo à Europa”, isto é, a presença na Conferência de Versalhes; 2) “diplomacia econômica”, com a defesa do café e a atração de capitais; 3) “equilíbrio estratégico na América do Sul”, e os ensaios de corrida armamentista; 4) “comércio e finanças”, onde é mais visível a substituição de hegemonias; 5) “experiência da Liga das Nações”, tentativa precoce de entrar em outro “Conselho”; 6) “de volta à América”: o distanciamento da velha Europa e a reafirmação do americanismo; 7) “a diplomacia antirrevolução das oligarquias”, tratando dos problemas do século (comunismo, anticomunismo, imigração) e da gestão diplomática da Revolução de 1930. O presidente se “intrometia” demais nos assuntos diplomáticos, como visto na saída, “batendo a porta”, da Liga das Nações. As grandes potências, então como agora, nos tratavam com negligência benigna, o que refletia, aliás, a pouca importância do Brasil no equilíbrio mundial: éramos simples fornecedores de produtos de sobremesa. O desejo de uma “aliança” com os Estados Unidos também é típica dessa fase, que assiste à hegemonia ideológica do pan-americanismo, mais do que do pró-americanismo (que teve vigência limitada em nossa história). Não existia ainda o “imperialismo americano”, pela razão de que os europeus preenchiam esse papel. Os americanos eram amigos e os novos donos do dinheiro fácil. O autor pratica um saudável revisionismo, que emerge da leitura dos documentos e dos fatos reais, não das concepções conspiratórias dos que veem no manifesto destino da nova Roma a referência obrigatória da nossa diplomacia no século XX. Brasília, 25 julho 2006 Publicado na revista Desafios do Desenvolvimento (Brasília: ano 3, n. 25, agosto 2006, p. 62) 210 O estudo das relações internacionais do Brasil: entre a história e a diplomacia Paulo Roberto de Almeida: O estudo das relações internacionais do Brasil: um diálogo entre a diplomacia e a academia (Brasília: LGE Editora, 2006, 385 p.; ISBN: 85-7238-271-2) Os historiadores, em geral, mas sobretudo os de tradição francesa, conhecem bem a distinção entre história factual, ou événementielle, e história analítica, ou interpretativa. A primeira derivava seus métodos da boa cepa Rankeana – aquela do wie es eigentlich gewesen, ou seja, contar a história como ela tinha se passado, realmente –, ao passo que a segunda, que recusou certa legitimidade à primeira com o desenvolvimento da chamada école des Annales, tomou impulso sobretudo a partir das influências antropológicas, sociológicas e propriamente marxistas, ou seja, relativamente economicistas, sobre os novos modos de racconter l’histoire. Essas influências se tornaram determinantes, e talvez mesmo “ditatorialmente” dominantes nas últimas décadas, nas técnicas de pesquisa, nos métodos de coleta dos dados elementares do devir histórico e, à mais forte razão, nas formas de interpretação da “matéria bruta” dessa nova história, que é constituída pelos documentos, por certo, mas também pela própria tradição oral dos homens, pelas suas “pegadas” no lodo do tempo, pelos vestígios das civilizações materiais hoje desaparecidas. As novas formas de contar a história se afirmaram, com maior ênfase, na interpretação e nas construções analíticas em torno dos processos de longa duração – tão caros a Fernand Braudel –, distinguindo-os das conjunturas históricas de transformação – de que falava Ernest Labrousse – e, sobretudo, dos eventos circunstanciais e fortuitos da vida dos homens, ou mesmo determinados pelos grandes heróis da história, como ainda se compraziam, depois de Carlyle, tantos historiadores factualistas do século XIX e do início do século XX. Hoje em dia, com a integração dessas várias abordagens, essas distinções perderam muito do seu ar de novidade ou de rebeldia em relação a “velhos métodos” do passado, ao passo que a história factual ganhou, em contrapartida, novos ares de nobreza, com o essor das formas mais ou menos biográficas ou de micro-abordagem adotadas por muitos “novos” historiadores. Ressente-se, sobretudo, uma perda indefensável nos “saberes” acumulados pelos mais jovens, representada pela repetição quase mecânica desses “modos de produção” e desses “processos de transformação estrutural” que correspondem a uma vulgata deformada do conhecimento clássico possuído pelos antigos defensores da história social, já que poucos 211 jovens, atualmente, conhecem os fatos básicos da história, o encadeamento dos eventos, a sucessão de batalhas, reuniões diplomáticas e tratados que compõem, afinal de contas, o cerne mesmo de determinados processos históricos de transformação. Este livro foi construído mentalmente ao longo de muitos anos de contato do autor com os dados básicos da vida econômica e material, com os documentos históricos típicos das chancelarias – os tratados internacionais – e na leitura atenta dos episódios políticos por eles descritos, pensando, justamente, na matéria prima da história, nos fatos básicos, nos eventos elementares, nos processos materiais que dão sentido à evolução do mundo contemporâneo. É por esse motivo que a temporalidade e a cronologia assumem nele uma parte considerável da informação apresentada, a ponto de se poder dizer que as cronologias, e a própria bibliografia, que reúne o material de referência aqui utilizado, constituem suas partes mais importantes, ou pelo menos aquelas que sustentam os desenvolvimentos analíticos dos primeiros capítulos. Procedi, nesta segunda edição, a uma inversão relevante na ordem da primeira edição, composta em 1998, publicada no ano seguinte e, ao que parece, rapidamente esgotada nos dois ou três anos que se seguiram. O antigo capítulo quarto, relativo à produção brasileira em relações internacionais, tornou-se agora o capítulo inaugural, et pour cause: é ele que dá sentido ao título original, aliás preservado – com a adição de um subtítulo que informa sobre as motivações do autor – e é ele que consolida o essencial de uma “acumulação” muito pouco “primitiva” de leituras e de consultas aos próprios autores aqui apresentados, uma vez que ele pretende, e talvez consiga, reunir o essencial da “manufatura” brasileira nesse campo relativamente novo de estudos multidisciplinares. Ele vem em primeiro lugar porque pode facilmente sustentar a pergunta básica: “o que se deve ler para conhecer essa área?” Creio ter realizado, nesse primeiro capítulo, assim como nas cronologias e na própria bibliografia, um racconto storico eminentemente factual e linear sobre aquilo que de mais importante se deveria conhecer, tanto em termos de fatos como de autores e obras, ademais de uma avaliação qualitativa a propósito das relações internacionais do Brasil. Tanto essas seções, como os demais capítulos analíticos e interpretativos, condensam muitos anos – talvez algumas décadas – de pesquisa, de estudo e de redação paciente e cuidadosa de trabalhos diversos sobre a história diplomática, sobre as relações exteriores, atuais, do Brasil, e sobre as relações econômicas internacionais de modo geral. O contato, não só com os arquivos, mas também com a documentação de uso corrente e, mais importante, a presença em muitos foros de discussão e negociação de alguns desses eventos e processos interessando às relações internacionais do Brasil – quer seja pelo lado da integração, do sistema multilateral de comércio ou ainda das finanças internacionais – me permitiram um conhecimento de primeira 212 mão, se ouso dizer, de alguns dos episódios ou processos aqui descritos com alguma brevidade. Por isso mesmo hão de perdoar-me os colegas de profissão que também se dedicam às lides acadêmicas e os muitos pesquisadores profissionais – aqui nominalmente arrolados nas dezenas de páginas da bibliografia –, se a compilação de meus trabalhos, in fine, contempla um volume exponencialmente maior do que o número forçosamente seletivo que eu tive de fazer dos seus trabalhos: tratava-se, por um lado e numa atitude pro domo, de compilar, justamente, o que de mais importante fui acumulando nessas últimas duas décadas de produção exclusivamente “internacionalista” – e este livro era uma oportunidade única de fazê-lo – e, por outro lado, de oferecer uma espécie de balanço intelectual de minha própria produção que, de resto, é muito pouco analisada no capítulo pertinente: encore, et pour cause: on n’est jamais un bon critique de soi même! O que se vai ler, portanto, é uma versão inteiramente revista, em alguns casos remanejada, em outros simplesmente atualizada, do livro preparado algo rapidamente oito anos atrás, quando sequer tive oportunidade de lançá-lo adequadamente no Brasil, uma vez que estava me preparando para partir para minha mais recente missão no exterior. Ao longo desses anos enveredei por alguns outros caminhos – como a análise do sistema financeiro e monetário internacional, por exemplo, ou ainda um balanço da contribuição dos brasilianistas para as ciências sociais do Brasil –, mas jamais deixei de acumular leituras, dados, análises e interpretações sobre os aspectos mais relevantes das relações internacionais do Brasil. Essa é a matéria prima de minhas pesquisas e reflexões nas últimas duas décadas e creio que este livro oferece, justamente, uma síntese do conhecimento acumulado desde então. Não que ele contenha toda a produção elaborada nesse terreno ao longo do período coberto, longe disso. Mas ele tem a pretensão de oferecer, pelo menos, uma informação sobre o que se afigura essencial para se apreender os elementos cruciais de nossa interface externa ao longo da história, fornecendo pistas, indicações e roteiros para pesquisas ulteriores nesse campo e para o aprofundamento do conhecimento em todas as áreas porventura aqui tocadas. Creio, sinceramente, que se trata de uma contribuição honesta, e o mais das vezes objetiva, para a apreensão deste panorama complexo que são as relações internacionais de um país tão contraditório como é o Brasil: um gigante industrial e, ao mesmo tempo, um anão tecnológico; uma grande potência econômica pela sua produção bruta, mas com os pés de barro em virtude de uma população singularmente deseducada e socialmente marcada por terríveis iniquidades distributivas; um grande fornecedor mundial de muitas matérias primas 213 essenciais para o funcionamento, a todo vapor, das “fornalhas do capitalismo” e um pretenso global trader conspicuamente ausente dos setores mais dinâmicos do comércio mundial. O Brasil é tudo isso e ainda é um país que desarma as interpretações fáceis. Quão errado estava Mário de Andrade ao saudar alegremente, nos anos vinte do século passado, o desenvolvimento da sociologia entre nós, dizendo que ela era a “arte de salvar rapidamente o Brasil” (salvá-lo de si mesmo, talvez, mais do que de qualquer “ameaça internacional”, como acreditam alguns, equivocadamente). Nossos principais problemas, longe de serem o resultado de uma hipotética “exploração externa” – aos quase duzentos anos de autonomia, isto seria, de toda forma, uma demonstração cabal de incompetência –, são mais exatamente “tupiniquins”, como queriam os modernistas de cem anos atrás, ou seja, eles são propriamente made in Brazil, como a jabuticaba e o jeitinho. Este livro, portanto, não se destina a “salvar” o Brasil de nenhuma ameaça externa, por mais sociológicas e “internacionalistas” que sejam as análises aqui contidas (até por deformação acadêmica e profissional). Em todo caso, ele busca, honestamente, informar os brasileiros – e talvez até alguns estudiosos estrangeiros – sobre algumas das características e alguns dos componentes de nossa evolução histórica no terreno da política externa e das relações internacionais, com ênfase em seus aspectos econômicos e institucionais. Espero ter colaborado, ao melhor de minhas capacidades, para o avanço desse campo ainda relativamente recente de estudo e de pesquisa no Brasil, cujos progressos foram suficientemente notáveis, desde a primeira edição desta obra, para justificar um incremento significativo na bibliografia registrada e na informação que tinha sido processada e analisada até o final da década anterior. Não poderia concluir sem deixar meu registro de agradecimento a todos aqueles que comigo colaboraram, nas diversas etapas deste trabalho de levantamento e avaliação da produção brasileira em relações internacionais. Muitos colegas de trabalho, tanto na diplomacia quanto na academia, os quais me eximo de citar para não cometer injustiças, foram especialmente solícitos em fornecer-me bibliografias atualizadas. Alguns também me passaram cópias de seus próprios trabalhos, o que facilitou a revisão da produção acumulada desde a primeira edição desta obra e justificou, inclusive, o acréscimo de um subtítulo a esta nova edição, correspondendo inteiramente ao seu espírito e motivação. Meus familiares, finalmente – ou antes, e certamente acima, de tudo –, Carmen Lícia, Pedro Paulo e Maíra, foram extremamente compreensivos com uma dedicação exagerada aos trabalhos de redação e de revisão deste livro, por dias e dias seguidos, mas a quem devo, sobretudo, a felicidade de poder desfrutar de um ambiente saudável e condizente com as 214 melhores práticas do trabalho intelectual: a eles, junto com um humilde pedido de desculpas pelas muitas ausências, todo o meu amor, carinho e o sincero reconhecimento. Concluo, à la Cervantes, como o quixotesco personagem de um escritor tão nômade e aventureiro quanto sempre foram os diplomatas: Vale! Brasília, 3 de setembro de 2006. Prefácio ao livro publicado. 215 Sucessores bem sucedidos?: um balanço realista (e completo) da diplomacia na era militar Fernando de Mello Barreto: Os Sucessores do Barão, 2: relações exteriores do Brasil, 1964-1985 (São Paulo: Paz e Terra, 2006, 519 p.; ISBN: 85-7753-004-3). A exemplo do primeiro volume desta obra – que cobria, de fato, o período pós-Barão, ainda que de modo lato: Os Sucessores do Barão: relações exteriores do Brasil, 1912-1964 (Paz e Terra, 2001) –, Fernando Mello Barreto oferece, no presente livro, uma história das relações internacionais e da política externa do Brasil, em seu sentido mais amplo, cobrindo tanto os episódios diplomáticos, estrito senso, como o quadro mais abrangente da economia e da política mundiais. A perspectiva é linear, método já adotado no volume precedente: seis chanceleres (dois políticos e quatro de carreira) sucederam-se de 1964 a 1985 à frente do Itamaraty, ou seja, durante o regime autoritário, quando cinco generais do Exército e uma junta militar (au complet) ocuparam o poder no Brasil. Da intervenção na República Dominicana à Guerra das Malvinas, da recusa do TNP e do Acordo Nuclear com a Alemanha à “pacificação nuclear” com a Argentina, do apoio ao colonialismo português ao reconhecimento dos novos regimes surgidos depois da “revolução dos cravos”, passando pelos tratados de cooperação com os países vizinhos (Bacia do Prata, Amazônia, Itaipu, entre outros), os principais episódios da diplomacia brasileira são tratados de forma minuciosa, fazendo desta obra uma referência indispensável para o conhecimento e o enquadramento cronológico desses anos cruciais de transformações geopolíticas no plano mundial e de grandes mudanças econômicas no próprio Brasil. Um sintético epílogo retraça as mudanças mais relevantes, na fase recente, em relação ao período militar, como por exemplo a aceitação do TNP e a inserção nos mecanismos de controle de tecnologias sensíveis. O prefácio de Rubens Ricupero já levanta uma primeira questão, pertinente, quanto ao título desta obra em três volumes, que vai da morte do Barão até a atualidade (estando seu autor ocupado agora na feitura do terceiro). Compreende-se a designação de “sucessores” para aqueles que ocuparam, na primeira metade do século XX, a chefia da chancelaria brasileira, quando a presença de Rio Branco era uma sombra gigantesca a apequenar a obra dos que lhe seguiram imediatamente. Mas, como atribuir a mesma classificação aos condutores das relações exteriores em meados da segunda metade desse século, quando os problemas regionais e internacionais enfrentados pelo Brasil eram bastante diferentes 216 daqueles que tinham mobilizado a atenção do grande chanceler? Recorda Ricupero, a esse propósito, a frase de um humorista argentino sobre “los venidos a más”, como a sugerir que todos os chanceleres, depois do Barão, terão sido meramente “suplementares”. A rigor, os “herdeiros involuntários” enfrentaram problemas similares: as relações sempre delicadas com os vizinhos da América do Sul, a começar pela Argentina; a indiferença das grandes potências em face das pretensões do Brasil no sentido de querer ocupar um espaço mais afirmado na cena internacional (ou seja, a busca de um status preeminente na Liga das Nações e, depois e ainda hoje, no CSNU); o acesso a tecnologias sensíveis, geralmente cerceado pelas mesmas potências; o aproveitamento dos recursos energéticos no entorno geográfico; a defesa contra choques adversos vindos do cenário internacional (no plano financeiro, no comercial e no do, então indispensável, petróleo); o alinhamento, enfim, com os pequenos (países em desenvolvimento) ou o “desalinhamento” com os grandes, como opções basicamente políticas, quando não de origem econômica e tecnológica. Esses mesmos problemas ocuparam todos e cada um dos “seguidores” do Barão, em intensidade variável segundo as épocas, com destaque para os formidáveis desequilíbrios e as carências temporárias – nossa tradicional “vulnerabilidade externa” – introduzidos a partir de 1929 e, sobretudo, no decurso da Segunda Guerra Mundial. Mas, as condições externas, o ambiente regional, as circunstâncias históricas e, sobretudo, a situação econômica e a política doméstica foram fundamentalmente diferentes, para esses “sucessores” do período militar, do que elas tinham sido para os titulares da chancelaria brasileira na primeira metade do século XX. Estes não cabiam nos “sapatos” do Barão, tão impressionante tinha sido a sua presença à frente do Itamaraty entre 1902 e 1912 – e certamente desde antes, na resolução de várias pendências lindeiras –, mas os segundos, constrangidos pela geopolítica algo maniqueísta do período militar, foram, mais do que sucessores, um conjunto heteróclito de herdeiros distantes do Barão do Rio Branco. A sucessão, se o termo se aplica, se justificaria, provavelmente, pelo que Ricupero chama de “paradigma Rio Branco” – uma agenda institucional fixada pelo próprio Itamaraty, raramente deixada, portanto, ao humor mutável de políticos ignorantes em política internacional – e a notável continuidade que isso implicou para a nossa política externa. De fato, o termo sucessores só se compreende nessa perspectiva, a de uma mesma linha de atuação ao longo do tempo, o que nem sempre foi o caso de nossos vizinhos mais voláteis politicamente e, em consequência, mais erráticos em suas respectivas diplomacias. Lido o prefácio de Ricupero e a introdução do autor – que ressalta os elementos principais da cronologia econômica e política desses anos –, recomenda-se ao leitor saltar ao 217 epílogo, pois ali se faz uma síntese das diferenças e particularidades daquela época em relação às ulteriores, o que permitirá começar a ler os capítulos vinculados a cada chanceler com uma noção do que é permanente e do que foi diferente no tocante aos problemas enfocados, seja no plano sincrônico, seja em perspectiva diacrônica. Permito-me transcrever dois trechos importantes desse epílogo: “Apresentar balanço da política externa executada pelos Sucessores do Barão durante o regime militar brasileiro constitui tarefa complexa, pois a leitura dos fatos ocorridos no período entre 1964 e 1985 não permite julgamentos categóricos, uma vez que não houve uniformidade nas ações diplomáticas, embora tenham se apresentado algumas características constantes. A falta de uniformidade se evidencia quando se compara, por exemplo, de um lado a prioridade dada ao relacionamento com os Estados Unidos durante o governo Castello Branco (especialmente com Juracy Magalhães) e, de outro, a distância entre Washington e Brasília durante os governos de Geisel e Carter. As diferenças aparecem também no relacionamento com Portugal e territórios de expressão portuguesa, bem como na política com relação ao Oriente Médio que passou de equidistância para claro apoio a várias das teses árabes e palestinas” (p. 439). Fernando Mello Barreto chama a atenção, logo em seguida, para a constância do binômio “segurança com desenvolvimento”, que seria o mote do governo militar, manifestada na vertente externa pela defesa acirrada da soberania nacional, embora comprometida esta pelas nossas limitadas possibilidades de mudar, de modo sensível, o sistema internacional. A transcrição do penúltimo parágrafo oferece um balanço honesto da diplomacia do período militar: “Apesar dos enormes obstáculos econômicos externos que enfrentou a diplomacia, sobretudo no final do período, a política externa do período militar alcançou os objetivos a que se propôs: o Brasil se manteve distante de conflitos internacionais (não enviou tropas ao Vietnã e sua ação militar se limitou à liderança de forças interamericanas na República Dominicana); aproximou-se de seus vizinhos (inclusive a Argentina no último governo do período); assegurou a cooperação amazônica; ampliou as exportações para além de fronteiras ideológicas; neutralizou as ações argentinas contrárias à construção de Itaipu; manteve o fornecimento de petróleo pelos países árabes e resistiu às pressões americanas contrárias ao acordo nuclear com a Alemanha” (p. 495-6). O autor relembra que algumas dessas posturas seriam revistas posteriormente – como a recusa do TNP, a aceitação do sionismo como uma forma de racismo e a resistência soberanista no tratamento das questões ambiental e dos direitos humanos –, objeto de um terceiro volume da obra, que ele fica nos devendo. 218 Feito o balanço sumário e incorporada essa perspectiva abrangente da política externa no período militar, cabe agora ao leitor penetrar na leitura detalhada de cada um dos capítulos, que não são numerados nem datados, levando simplesmente os nomes dos titulares da chancelaria. Vasco Leitão da Cunha, da carreira diplomática, inaugura o período, com uma “nova política externa”, na verdade uma volta ao velho alinhamento diplomático com os EUA, política que se acreditava superada a partir da “política externa independente” de Jânio e Jango. Estávamos em plena Guerra Fria e o problema de Cuba dominou as relações interamericanas durante a maior parte da década. Juracy Magalhães, militar e político, foi o segundo chanceler da presidência Castello Branco, tendo ficado tristemente famoso pela frase segundo a qual “o que [era] bom para os EUA, é bom para o Brasil”, o equivalente, como lembra Ricupero, das “relações carnais” que o governo Menem quis ter com os EUA, de uma fidelidade canina ao chamado Ocidente. O governo Costa e Silva introduz a “diplomacia da prosperidade”, conduzida pelo político e banqueiro Magalhães Pinto. Ocorre, então, uma volta a padrões autônomos de política externa, que, se não chega a ser tão “independente” quanto à do início da década, pratica o “desalinhamento” da recusa ao TNP e o desenvolvimentismo do início da NOEI, a “nova ordem econômica internacional”, que seria mais tarde enterrada por Reagan e Tatcher. A “nuclearização pacífica” do Brasil, prometida por Magalhães Pinto em abril de 1967, logo se chocaria com a Realpolitik dos EUA: o Brasil mantinha a posição oficial de que explosões “pacíficas” poderiam ser empregadas em “grandes obras de engenharia, [para] interligar bacias fluviais, abrir canais e portos, consertar enfim a geografia” (p. 128). Gibson Barboza, diplomata de carreira, foi o chanceler do presidente Médici, na fase mais dura do regime militar, também a de maior crescimento econômico. A despeito do fechamento do governo no binômio “segurança e desenvolvimento” e da disseminação de regimes militares na América Latina, o Itamaraty, paradoxalmente, nunca foi tão livre para conduzir uma diplomacia essencialmente profissionalizada e extremamente ativa, em quase todos os cenários abertos à sua atuação, entre eles o da África. Os EUA continuavam a se opor à política nuclear do Brasil, mas Nixon, de maneira infeliz, proclamou a liderança brasileira na região, o que certamente prejudicou muito os esforços então empreendidos pelo Itamaraty para a integração física do continente. Azeredo da Silveira, outro diplomata de carreira, ocupou a chancelaria sob Geisel, o mais desenvolvimentista dos presidentes e o mais interessado em política externa. Todo o governo foi marcado pelo primeiro choque do petróleo, pelo reconhecimento da China e pela guerra civil angolana, temas que mobilizaram intensamente a diplomacia, colocada sob a 219 égide do “pragmatismo responsável”. Silveira presidiu à expansão do serviço exterior e aproximou-o ainda mais dos países em desenvolvimento, mesmo sob críticas internas de setores da direita. Fernando Mello Barreto caracteriza a política externa regional, nessa época, como de “dificuldades platinas e êxito amazônico” (p. 245), em alusão às disputas com a Argentina sobre o aproveitamento dos recursos hidroelétricos do Paraná e à conclusão do Tratado de Cooperação Amazônica. Persistiram os conflitos com os EUA, sobretudo depois da assinatura do acordo nuclear com a Alemanha (1975) e da cessação, por rompimento brasileiro, do acordo militar com os EUA (1977). Saraiva Guerreiro, também de carreira, foi o último chanceler da era militar, atuando sob o impacto da segunda crise do petróleo e da crise da dívida externa, mas com certa independência, uma vez que o general Figueiredo não se envolvia muito em temas diplomáticos. A política externa foi então considerada como sendo “universalista”, mas o seu principal feito foi mesmo começar o período concluindo um acordo com a Argentina e o Paraguai em torno da questão de Itaipu (1979). Ainda mais surpreendente, foram assinados acordos de cooperação militar e nuclear com o vizinho platino, bases de todo o processo ulterior de cooperação e de integração. Como demonstra Mello Barreto, durante todo o regime militar o PIB brasileiro faria um progresso espetacular, ao passo que o argentino praticamente estagnou. A seção econômica nesse capítulo é a mais longa do livro et pour cause: nunca o Brasil enfrentou tantos problemas como nos anos 1980, com declínio do PIB e aumento da dívida externa. O fim do regime militar e a transição para a democracia no Brasil coincidiu, no plano mundial, com o início do fim do socialismo enquanto regime alternativo ao capitalismo: novos tempos e novas políticas, de que o autor tratará em seu terceiro volume. Ricupero sublinha com razão, em seu prefácio, a “solidez do levantamento cuidadoso do encadeamento dos acontecimentos”, a “linguagem clara, direta e sem obscuridades com que a narrativa articula os fatos e decisões mais importantes”, a “rica documentação que ampara e fundamenta cada etapa da construção da trama expositiva, com farta utilização dos mais expressivos e reveladores trechos de discursos e documentos da época, bem como a exaustiva fundamentação do texto em notas de origem ou elucidativas, as quais chegam, em certos capítulos, a mais de 600”. Não se pode deixar de concordar com ele em que se trata de “trabalho pioneiro sobre período histórico ainda próximo, e por isso mesmo, percebido confusamente como magma de lembranças sem forma definida”. Impossível, tampouco, não concluir com Ricupero: “Será, por muito tempo, creio, a obra insubstituível para encetar o estudo de um dos períodos da história da política exterior do Brasil com implicações mais determinantes para a fase que vivemos hoje”. Um importante instrumento de trabalho para os 220 pesquisadores, o índice remissivo, ausente da maior parte dos livros publicadas no Brasil, completa este volume, que passa a figurar em plano elevado na bibliografia especializada. Que venha logo o terceiro volume! Brasília, 4 de novembro de 2006. Publicado na revista Política Externa (São Paulo: vol. 15, n. 3, dez. 2006-fev 2007, p. 191-196; ISSN: 1518-6660). Versão resumida publicada, sob o título de “Diplomacia durante a ditadura”, na revista Desafios do Desenvolvimento (Brasília: ano 3, nº 29, dezembro 2006, p. 63). Reproduzida integralmente na revista Plenarium (Brasília: Câmara dos Deputados; ano V, n. 5, maio 2008, p. 310-315; ISSN: 1981-0865) 221 Dos arquivos da história: o Itamaraty nas fontes primárias Álvaro da Costa Franco (org.): Com a palavra, o Visconde do Rio Branco: A política exterior no Parlamento imperial [18551875] (Rio de Janeiro: Centro de História e Documentação Diplomática; Brasília: Funag, 2005, 574 p.) Brasil. Secretaria de Estado dos Negócios do Império e Estrangeiros: O Conselho de Estado e a política externa do Império: Consultas da Seção dos Negócios Estrangeiros, 1858-1862 (Rio de Janeiro: Centro de História e Documentação Diplomática; Brasília: Funag, 2005, xv + 450 p.) José Antonio Pimenta Bueno; José Maria da Silva Paranhos; Sérgio Teixeira de Macedo: Pareceres dos Consultores do Ministério dos Negócios Estrangeiros: 1859-1864 (Rio de Janeiro: Centro de História e Documentação Diplomática; Brasília: Funag, 2006, 244 p.) Suely Braga da Silva: Paulo Nogueira Batista: o diplomata através de seu arquivo (Rio de Janeiro: Cpdoc; Brasília: Funag, 2006, 136 p.) Estes quatro volumes constituem novas e valiosas contribuições aos “garimpeiros” da história diplomática do Brasil, ao disponibilizarem documentos originais e guias documentais sobre fontes que esclarecem alguns elementos históricos negligenciados ou desconhecidos dos pesquisadores contemporâneos. Dois deles trazem os carimbos dos arquivos do Itamaraty, na verdade papéis de uma outra época, quando o velho ministério dos Negócios Estrangeiros ainda não levava o nome pelo qual é hoje conhecido e sequer existia no palácio do Rio de Janeiro. O primeiro e o último dos volumes foram garimpados em outras fontes, respectivamente os anais da Assembleia Geral e do Senado, em determinados períodos do Império, para o volume relativo ao Visconde do Rio Branco, e os arquivos pessoais do Embaixador Paulo Nogueira Batista, tal como recolhidos mais recentemente ao Centro de Pesquisa e Documentação Contemporânea (Cpdoc). O Embaixador Álvaro da Costa Franco, diretor do Centro de História e Documentação Diplomática do Ministério das Relações Exteriores no Rio de Janeiro, vem, ao longo dos anos, coligindo, organizando e publicando os mais diversos materiais históricos relevantes para o estudo da nossa diplomacia, grande parte nos Cadernos do CHDD, com a colaboração de sua editora executiva, Maria do Carmo Strozzi Coutinho. Ambos, com a ajuda ocasional de pesquisadores acadêmicos, têm sido incansáveis na recuperação e divulgação de velhos papéis 222 quase esquecidos na poeira dos arquivos diplomáticos brasileiros, reconhecidamente os mais completos do mundo latino-americano (pois que recuperando muito do que tinha sido produzido pela secular diplomacia portuguesa e que aqui aportou, nas bagagens da família real, em 1808). Este trabalho de garimpo e lapidação deve ser ressaltado, pois é dele que resultarão, nos anos à frente, novas interpretações do processo diplomático brasileiro durante o Império e ao início da República, pois que ele fornece a documentação de base indispensável à revisão fundamentada de análises já clássicas sobre esses períodos, assim como para corrigir visões acadêmicas por vezes simplistas ou até enviesadas das realidades da nossa diplomacia d’antanho. A coleção dos discursos do Visconde do Rio Branco nas duas casas do Parlamento, num longo espaço de vinte anos, entre 1855 e 1875, é precedida de uma brilhante, embora curta, introdução do diplomata e mestre em história Fernando Figueira de Mello, que contextualiza sua vida e seu papel nas relações exteriores do Brasil: cinco vezes ministro dos negócios estrangeiros, antes jornalista voltado para os temas internacionais, em especial os do Prata, e consultor do MNE, mesmo não tendo formação em direito (ele vinha de escolas militares e era matemático de primeira linha). O interessante a destacar, nessa introdução é a observação de que conceitos como “interesses vitais” do Brasil, “interesses essenciais” ou “concretos” são constantes nos discursos do Visconde no Parlamento, “preocupação, aliás, presente desde as Cartas ao Amigo Ausente, em que o jovem Paranhos, em diferentes ocasiões, defendera uma política externa isenta de discussões partidárias” (p. 16). Figura neste volume, entre as páginas 299 e 405, o célebre discurso sobre os eventos platinos que conduziram à celebração do tratado de Tríplice Aliança, em 1865, enaltecido em crônica de Machado de Assis sobre “O velho Senado”, no qual Paranhos defendeu durante sete horas seguidas as motivações da política imperial para a região. O segundo volume, relativo às consultas da seção dos Negócios Estrangeiros do Conselho de Estado, entre 1858 e 1862, recolhe algumas peças importantes para o estudo de questões da nossa diplomacia imperial, geralmente no que toca aos tratados de limites, às relações consulares e contenciosos bilaterais sobre pedidos de indenizações de particulares. Dois documentos tratam da organização do próprio MNE, numa época em que ele não chegava a ter mais de duas dúzias de funcionários permanentes (incluindo alguns correios a cavalo) e quando o Secretário Geral – figura importante em gabinetes que se sucediam em notável rotatividade – era chamado de Oficial Maior. As maiores pendências com os vizinhos eram relativas aos direitos de navegação, terreno no qual a diplomacia imperial mantinha, 223 como se sabe, posturas diversas no Prata e no Amazonas, em virtude da situação completamente oposta do acesso por essas vias fluviais de importância internacional. Curioso ler, por exemplo, numa consulta relativa aos tratados de comércio, navegação e limites com a Venezuela, de 1852, que o país andino queria rever, este parecer do relator, visconde do Uruguai, com ensinamentos talvez válidos para tempos ulteriores: “Nos governos semelhantes ao de Venezuela, o governo não é, de fato, um ente moral, que se perpetua sem atenção às pessoas. As pessoas são tudo. A administração seguinte rejeita o que fez a anterior, sua antagonista, pela razão de que foi esta que o fez. Não é, por certo, justificável semelhante razão, mas é por ela que se faz obra e, se é por ela que se faz obra e a não podemos aniilar, cumpre ou ir com ela, ou não negociar um revés” (p. 16). Ou ainda: “Um governo dificilmente concede hoje o que negou ontem” (p. 17). Lições para os dias de hoje? A compilação de pareceres dos Consultores do MNE, de 1859 a 1864, onde ainda aparece Paranhos, detentor, entre 1861 e 1865, do cargo por ele mesmo criado em 1859, aprofunda o conhecimento disponível sobre a construção jurídica da nossa diplomacia imperial, legatária de uma tradição de respeito ao direito internacional que foi seguida até hoje na política externa brasileira. Abundam as reclamações e pendências de súditos e sobre espólios particulares, hoje de importância menor no trabalho diplomático e consular, mas são bem mais interessantes os textos relativos a tratados de limites, nos quais estão expostas posições da diplomacia imperial – a do uti possidetis, por exemplo – que serão mantidas durante longos anos, até a sua completa resolução, já na República. O primeiro parecer, da lavra de Pimenta Bueno, depois marquês de São Vicente, toca no que se chamaria hoje, em linguagem gattiana, de “tratamento nacional”, bem como na questão sempre difícil do monopólio nacional em matéria de relações internacionais, contra a tendência sempre presente de poderes subnacionais legislarem sobre o assunto: ele condena a legalidade dos impostos sobre estrangeiros previstos em lei provincial da Bahia, de 1858, pedindo que as medidas sejam revogadas, por “impolíticas e antieconômicas” (p. 22). O quarto volume, finalmente, deixa para trás o século XIX e o campo dos documentos oficiais para entrar no domínio dos arquivos pessoais, neste caso os do embaixador Paulo Nogueira Batista. Trata-se de um guia da documentação depositada e disponível no Cpdoc, com introdução e perfil biográfico que ressaltam a importância desse diplomata para a história da nossa política externa, em geral, para a da política nuclear em particular. Outros assuntos também comparecem nesse arquivo, como temas multilaterais (em Genebra e Nova York), dívida externa e sua assessoria política, junto ao PMDB. Não são apenas documentos textuais ou impressos, mas também audiovisuais, o que aumenta o interesse da coleção, na medida em 224 que estes são mais suscetíveis de reproduzir a “verdade do momento”, sem a autocensura crítica que costuma permear produções do próprio punho, depois organizadas (e eventualmente “selecionadas”) pelo seu autor. No portal do Cpdoc na internet (http://www.cpdoc.fgv.br) é possível dispor-se de um breve resumo dos arquivos de PNB, como era conhecido o primeiro presidente da Nuclebrás. No conjunto, estes quatro volumes compilam importantes documentos e guias de fontes que constituem subsídios primários relevantes ao pesquisador acadêmico ou ao simples curioso de nossa história diplomática. A Fundação Alexandre de Gusmão do Ministério das Relações Exteriores, em especial seu Centro de História e Documentação Diplomática, seus responsáveis e pesquisadores associados merecem encômios pelas iniciativas já tomadas de divulgação desses materiais relevantes, bem como pelas novas publicações que estão certamente em preparação. Brasília, 1724: 20 fevereiro 2007. Inédito na versão integral. Publicado em formato resumido no Boletim da ADB (ano 14, n. 56, janeiro-março 2007, p. 13-14; ISSN: 0104-8503). 225 Aventuras nucleares de uma outra época Suely Braga da Silva (org.): Paulo Nogueira Batista: o diplomata através de seu arquivo (Rio de Janeiro: Cpdoc; Brasília: Funag, 2006, 136 p.) Este livro constitui uma valiosa contribuição aos “garimpeiros” da história diplomática e da história nuclear do Brasil, ao disponibilizar documentos originais e guias documentais sobre uma fonte importante para o esclarecimento de fatos históricos negligenciados ou desconhecidos de muitos pesquisadores. Vários dos documentos trazem “carimbos virtuais” do Itamaraty, mas integravam os arquivos pessoais do Embaixador Paulo Nogueira Batista, o primeiro presidente da Nuclebrás, numa época em que o Brasil pretendia ter uma verdadeira política nuclear, não apenas energética. Trata-se de um guia da documentação depositada no Centro de Pesquisa e Documentação Contemporânea (Cpdoc), da FGV-RJ, com introdução e perfil biográfico que ressaltam a importância desse diplomata para a história da nossa política externa, em geral, para a da política nuclear em particular. Outros assuntos figuram nos arquivos, como temas multilaterais e a dívida externa. Os arquivos contêm não apenas documentos impressos, mas também audiovisuais, o que aumenta o interesse da coleção, na medida em que estes últimos são suscetíveis de reproduzir a “verdade do momento”, sem a autocensura crítica que costuma permear produções do próprio punho, depois organizadas (talvez “selecionadas”) pelo seu autor. No portal do Cpdoc na internet (http://www.cpdoc.fgv.br) é possível dispor de um breve resumo dos arquivos de PNB, como era conhecido o embaixador nacionalista falecido em meados dos anos 1990, mas que deixou forte marca tanto na Nuclebrás, como no Itamaraty. Brasília, 21 de fevereiro de 2007. Publicada na revista Desafios do Desenvolvimento (Brasília: IPEA-PNUD, n. 34, maio 2007, p. 63) 226 Relações Brasil-Estados Unidos, na infância Marcelo Raffaelli: A Monarquia e a República: Aspectos das relações entre Brasil e Estados Unidos durante o Império (Rio de Janeiro: Centro de História e Documentação Diplomática; Brasília: Funag, 2006, 290 p.) Exemplo de síntese histórica, em sua objetividade e concisão, a compilação feita dos despachos e ofícios trocados ao longo do século XIX pelos diplomatas dos dois países, com suas respectivas secretarias de Estado, compõe um relato saboroso das relações bilaterais entre os dois grandes do hemisfério. O autor é um diplomata experiente, com passagens por diversas embaixadas e um longo estágio como funcionário do GATT. Aposentado, presidente da Associação dos Diplomatas Brasileiros, ele não passou seu tempo livre a jogar bridge, e sim a pesquisar em velhos arquivos empoeirados (os papéis americanos certamente em formato de microfilme). Organizado tematicamente, antes que cronologicamente, o livro cobre desde o reconhecimento da independência brasileira até o fim do regime monárquico e a inauguração da República no Brasil, bem recebida pelos Estados Unidos. O delicado equilíbrio entre os poderes traçado na constituição de 1786 – mas cuja inspiração os founding fathers foram buscar em Montesquieu – serviu de modelo para que Rui Barbosa e outros republicanos tentassem mimetizar o sucesso americano, a começar pela designação da nova federação como “Estados Unidos do Brazil” (assim mesmo, com “z”). Aparentemente, o molde americano não frutificou por aqui. A obra realiza uma descrição sintética de cada um dos chefes de missão e suas respectivas instruções diplomáticas, o que permite contrastar a objetividade comercial dos anglo-saxões com a generalidade dos objetivos brasileiros no gigante em formação. Ela analisa ainda os problemas do tráfico escravo (abolido bem antes nos EUA, que se dedicaram à “criação” de escravos) e alguns contenciosos diplomáticos trazidos pela guerra de Secessão. Outro problema abordado é o da impossível abertura do rio Amazonas à navegação internacional, reclamada por americanos e europeus, mas temida pelos dirigentes da monarquia brasileira, numa posição diametralmente oposta às demandas brasileiras no Rio da Prata, que era a única via de acesso às terras do Mato Grosso. Interessante à leitura são os despachos nos quais os enviados em cada capital comentam características do povo e do país no qual servem, com toda a franqueza dos papéis confidenciais. 227 No plano historiográfico, trata-se de um excelente resumo das fontes primárias, com intenso apoio nos arquivos oficiais e em bibliografia equilibrada sobre essas relações. O autor deixa falar os velhos papéis, o que contrasta saudavelmente com certas obras que, ao pretender analisar a emergência da “nova Roma” da atualidade, descambam rapidamente para teorias conspiratórias da história. Raffaelli produziu uma excelente síntese sobre as relações entre os dois gigantes hemisféricos, antes que este gigante meridional pretendesse estabelecer “relações especiais” com o Big Brother do norte, já na era do Barão do Rio Branco. Publicado na revista Desafios do Desenvolvimento (Brasília: IPEA-PNUD, n. 34, 14 de maio de 2007, p. 62) 228 Insegurança jurídica no Mercosul Otávio Augusto Drummond Cançado Trindade: O Mercosul no Direito Brasileiro: incorporação de normas e segurança jurídica (Belo Horizonte: Del Rey, 2007, 180 p.) O Mercosul chegou aos 15 anos com tantas pendências que algumas delas não são sequer resolvidas mediante os instrumentos próprios, internos, de resolução de contenciosos (protocolos de Brasília e de Olivos). Algumas controvérsias passam diretamente ao mecanismo da OMC, que já teve de dirimir várias diferenças entre os países membros do que seria, supostamente, uma união aduaneira, a etapa imediatamente anterior ao mercado comum. Monografia agraciada com o prêmio Hildebrando Accioly do Mestrado em Diplomacia do Instituto Rio Branco, o trabalho do jovem diplomata tem tudo para consagrarse como uma das melhores análises acadêmicas sobre a “insegurança jurídica” do Mercosul, a despeito de todos os instrumentos aprovados no plano formal da solução de controvérsias. A razão disso é que os Estados membros pouco fizeram para internalizar grande parte das normas, que são decisões e resoluções dos órgãos decisores (Grupo Mercado Comum e Conselho de Ministros do Mercosul). Não apenas elas têm de ser aprovadas consensualmente (o que constitui outra dificuldade maior do processo decisório), mas sua entrada em vigor depende de que cada país proceda à sua ratificação formal. O autor não se limita a examinar o conceito de segurança e a natureza jurídica das normas do Mercosul, mas examina sua incorporação (limitada) ao direito interno dos países membros e formula sugestões para o aperfeiçoamento desse processo. A maior parte de suas recomendações são de procedimento, mas Otávio Trindade reconhece a necessidade de uma reforma constitucional, tarefa que se choca com a velha defesa da soberania nacional. Curioso que muitos daqueles que se declaram acirrados defensores da soberania nacional não veem nenhuma contradição com a proposta de uma moeda única no Mercosul. Brasília, 21 de fevereiro de 2007 revista Desafios do Desenvolvimento (Brasília: IPEA-PNUD, n. 34, maio 2007, p. 63). 229 Comércio e diplomacia: história e atualidade Demétrio Magnoli e Carlos Serapião Jr.: Comércio Exterior e negociações internacionais: teoria e prática (São Paulo: Saraiva, 2006, 378 p.) Trata-se de uma obra correta: indispensável em muitos cursos de graduação em relações internacionais (talvez alguns de pós, também), que costumam servir aos alunos uma mistura de antiglobalização e de preconceitos contra o livre comércio. Supõe-se que nos cursos de economia ou de administração a realidade seja um pouco diferente – que os professores não tentem, por exemplo, desmentir David Ricardo –, mas, mesmo para estes, o livro seria útil, pois que contém bem mais do que a simples teoria e prática do comércio exterior. Ele está “colado” às realidades comerciais, brasileira e internacional. Escrito por um diplomata e um pesquisador acadêmico, o livro combina méritos em dois campos: a reconstituição sintética, na Unidade I, da evolução histórica do comércio internacional, do mercantilismo à globalização, seguida, na Unidade II, de uma exposição igualmente breve, mas adequada, das teorias sobre o comércio internacional. Pena que essa parte se encerre por um capítulo solitário de “introdução às negociações internacionais”, quando este tema deveria compor, de conformidade com o título da obra, uma unidade inteira. A Unidade IV tenta substituir esse vasto campo, tratando do processo decisório em política comercial, mas os seus dois capítulos são desiguais e algo insatisfatórios. O filet mignon do livro está na Unidade III, sobre “política comercial brasileira”, mas, na verdade, ela não se conforma ao conceito, pois tratando, não dos princípios e práticas da política comercial ao longo dos últimos 60 anos, desde o protecionismo varguista até a abertura “neoliberal”, e sim das experiências do Mercosul, Alca, OMC e de outras negociações. Essa parte é relevante, mas um pouco dependente de matérias de jornais, de comunicados de chancelarias e de artigos de revistas. Os autores citam casos concretos, que ilustram a política comercial praticada pelo Brasil, mas o conjunto dá a impressão de uma assemblagem heteróclita de episódios conjunturais ilustrativos da teoria, antes que uma análise sistemática da essência e da prática da política comercial. Esta parte demonstra, também, que mesmo autores experientes no tratamento de questões internacionais podem incorrer em postura enviesada na avaliação do mérito relativo de políticas comerciais concretas. Em perspectiva implicitamente comparativa em relação às posturas adotadas, respectivamente, pelo Mercosul e pelo Chile – um membro associado do 230 bloco desde 1996 e cortejado, desde sempre, para um “ingresso pleno” – os autores revelam visão involuntariamente introvertida, ou “mercosuliana”, dessas relações. Eles acham, por exemplo, que a aceitação pelo Chile de um acordo de livre comércio com os EUA “distanciou, ainda mais, do ponto de vista político, o Chile do Mercosul” (p. 324), como se a política comercial do Mercosul fosse o paradigma pelo qual devessem ser julgadas as políticas comerciais de outros países. Do ponto de vista estritamente econômico, parece bem mais racional a “entrada” do Mercosul no Chile do que o inverso, observados o coeficiente de abertura externa e as duas dúzias de acordos de livre comércio – com plena garantia de acesso, portanto – já concretizados pelo país andino com os mais diferentes parceiros. Diversas passagens revelam ambiguidades no pensamento dos autores, como é o caso da teoria das vantagens comparativas. Eles acham que “o livre comércio foi uma ideologia nascida na Grã-Bretanha que foi decisiva para a abertura de mercados externos para os produtos industrializados britânicos” (p. 180), esquecendo-se de que a abolição das “leis dos cereais” se deu com vistas ao abastecimento do mercado interno daquele reino em produtos importados. Eles também parecem concordar com List em que o Tratado de Methuen (1713), de Portugal com a Inglaterra, “ajudou a financiar a revolução industrial inglesa”, num dos mais clamorosos equívocos de interpretação da “grande transformação” – basicamente interna – da economia britânica no decorrer do século XVIII. Más leituras de história econômica são incrivelmente persistentes, como o prova ainda hoje o sucesso de Ha-Joon Chang e do seu livro de inspiração “listiana”, Chutando a Escada, que incorre em diversos desses equívocos históricos. No cômputo global, porém, e levando em conta a pobreza da bibliografia nessa área, o livro de Serapião e Magnoli preenche de modo satisfatório a necessidade de atualização da literatura e de discussão bem embasada dos principais problemas ligados ao comércio internacional para os cursos pertinentes (relações internacionais, economia e administração, quando não os de ciência política ou ciências sociais aplicadas, de modo geral). Numa próxima edição, sugere-se que os autores eliminem o caráter de “assemblagem” de matérias de jornais, sistematizem e uniformizem sua reflexão sobre todos os pontos tratados e produzam um verdadeiro textbook acadêmico sobre políticas e negociações comerciais. Brasília, 22 de fevereiro de 2007. Publicado na revista Desafios do Desenvolvimento (Brasília: IPEA-PNUD, ano 4, n. 32, março de 2007, p. 62) 231 Mercosul ‘aborrecente’ Rubens A. Barbosa (organizador): Mercosul quinze anos (São Paulo: Fundação Memorial da América Latina-Imprensa Oficial do Estado, 2007, 304 p.) O Mercosul, ao que parece, chegou à adolescência. Como todos os jovens nessa faixa de idade, ele não sabe bem o que pretende ser quando se tornar adulto e não se conforma muito ao padrão ideal que tinha sido traçado para ele pelos “pais fundadores”. Quando ainda usava fraldas, a União Europeia ofereceu-se para ajudar tecnicamente naquilo que diz respeito à organização e funcionamento, esperando, talvez, que, com um bom provimento de “mamadeira comunitária”, ele pudesse crescer e tornar-se forte, rico, bonito e bem sucedido como ela parece ser atualmente (deixando aqui de lado algumas angústias existenciais que enfrenta a UE a 27 membros). Quando pequeno, tudo parecia sorrir para o Mercosul, candidatos batiam à sua porta, prestígio, riqueza e intercâmbios cresciam a olhos vistos e ele era bem recebido nos salões do primeiro mundo. Depois, algumas desavenças internas minaram a paz do lar e o Mercosul nunca mais voltou a ser o mesmo: entrou na adolescência já com sérios problemas de comportamento e seus membros não parecem ter projetos coincidentes para o futuro. Alguns ainda pretendem fazê-lo percorrer a trilha da integração europeia, outros se contentariam em vê-lo reproduzir o modelo do Nafta, ou seja, uma simples zona de livre comércio. O certo é que persistem muitas dúvidas quanto ao seu itinerário futuro, sem mencionar o fato de que o membro mais recente tem uma visão própria, aliás completamente distinta da original, sobre o papel do Mercosul na região e no mundo. Este livro, que resulta de um seminário realizado no Memorial da América Latina quando o “aborrecente” completava três lustros de vida, oferece um panorama amplo e realista das muitas conquistas alcançadas e de algumas frustrações acumuladas ao longo do percurso. O argentino Félix Peña começa relembrando os grandes objetivos constitutivos e desmistifica alguns mitos ou incompreensões quanto ao alcance real dos conceitos de “união aduaneira” e “mercado comum”. Ele reconhece as dificuldades presentes e não tem a pretensão de resolvê-las com fórmulas mágicas e por isso propõe um “mapa do caminho” baseado numa arquitetura flexível, dotada de três velocidades: o núcleo original (Brasil e Argentina) caminharia mais rápido, os dois menores teriam facilidades adicionais e os 232 associados fariam sua integração gradativa aos requerimentos da união aduaneira. Faltou dizer o que fazer com a Venezuela. Outro argentino, o ex-secretário da indústria e comércio Dante Sica, faz o balanço das mudanças econômicas ocorridas nos diferentes setores e ramos produtivos dos países membros, bem como nas suas variáveis macroeconômicas. Ele reconhece a existência de assimetrias, mas sua proposta seria uma volta ao espírito do PICE dos anos 1980, o programa de cooperação que estava baseado na integração de cadeias produtivas e no estabelecimento de protocolos setoriais, indo do micro ao macro. Duvidoso que esta fórmula funcione, uma vez que o Mecanismo de Adaptação Competitiva foi imposto pela Argentina justamente porque suas indústrias não conseguem competir em nível micro: se as “adaptações” são feitas, eles se dão justamente em detrimento do comércio recíproco. O representante oficial do MRE tratou da questão institucional, ostentando uma postura equilibrada quanto à não opção pela supranacionalidade, um falso problema criado por espíritos acadêmicos. Ele prefere contrapor a essa alternativa teórica o reforço da efetividade das decisões adotadas de comum acordo, cuja transposição para o terreno prático carece, precisamente, da eficácia requerida de normas que garantam a segurança jurídica num espaço verdadeiramente integrado. O ex-diretor do Banco Central Carlos Eduardo de Freitas abordou macroeconomia e finanças, começando por explicar os pagamentos por um sistema de clearing, o Convênio de Créditos Recíprocos, que funciona no âmbito regional desde 1965. Discorre sobre o eventual uso das moedas nacionais nos intercâmbios recíprocos e a integração dos mercados financeiros. Vê com preocupação a interferência direta do governo da Venezuela nesses mercados, mas existem outros obstáculos institucionais, na própria legislação brasileira, aliás. Ele alerta também contra o uso indevido de instituições financeiras de fomento “como formas de compensação de políticas econômicas equivocadas que destroem a poupança de longo prazo”. O economista do BID, Uziel Nogueira examina os aspectos políticos e sociais, apontando a maior cooperação patronal na área agropecuária e o acirramento das relações no setor industrial (daí o conflito FIESP-UIA e as salvaguardas unilaterais). A China se encarregará de mudar o foco da questão. No plano institucional, as dúvidas são se o Mercosul logrará reintroduzir a democracia na Venezuela e se o Parlamento regional amortecerá as diferenças de visão entre as elites dos diversos países membros. No plano da defesa e da segurança, o Mercosul pouco pode fazer para reforçar a dissuasão ou combater o crime organizado na região. 233 Marcel Vaillant, consultor da Secretaria Técnica do Mercosul, aborda as negociações comerciais externas: os resultados são escassos em vista das expectativas geradas e existe a ameaça adicional da perda de mercados em razão dos acordos bilaterais concluídos pelos EUA com países da região. Dos vinte acordos examinados, a maior parte foi feita com países em desenvolvimento, com benefícios limitados: o Mercosul sempre dá mais do que recebe e os efeitos sobre sua inserção internacional são também modestos. O representante uruguaio na Aladi, Augustin Espinosa, trata em detalhe da integração física (energia, telecomunicações), da cooperação judicial e do Fundo de Correção de Assimetrias, o Focem. O Brasil, considerado de maneira equivocada como um país “não-assimétrico”, contribui com 70% dos US$ 100 milhões de obrigações não-reembolsáveis do Focem, mas só se beneficia com 10% dos projetos a serem financiados, majoritariamente voltados para o Paraguai e Uruguai (que aportam 3% do capital). O ex-negociador pelo Brasil no Mercosul, embaixador Rubens Barbosa, faz a síntese dos trabalhos, nas diversas áreas tratadas pelo seminário. Após apresentar as principais conclusões, ele introduz as visões “otimista” e “mercocética” quanto ao futuro do bloco e estabelece algumas condições para resgatá-lo. Ele acredita, por exemplo, que a debilitação de alguns dos pilares que hoje sustentam o Mercosul – vontade política, preferências econômicas recíprocas, equilíbrio da integração produtiva e estratégias conjuntas de negociações externas – poderia levar o bloco ao colapso. O Mercosul não vai desaparecer, mas se encontra num “plano inclinado”. Uma reforma implicaria uma discussão sobre o mecanismo de tomada de decisão (o atual sistema prevê o consenso, mas Barbosa propõe alguma forma de ponderação) e talvez até mesmo se possa pensar na adoção de um novo instrumento no lugar do Tratado de Assunção. Em todo caso, ele sugere abandonar a retórica da integração e enfrentar os desafios de modo pragmático e realista, caso contrário o Mercosul continuará caminhando para a irrelevância. As mudanças são, obviamente, sempre difíceis e não é seguro que elas sejam adotadas no futuro previsível. Estaria o Mercosul condenado a ser um eterno adolescente, ostentando uma espécie de “complexo de Peter Pan”? Impossível prever atualmente, tendo o bloco recém completado 16 anos, mas adolescentes tardios costumam dar mais trabalho do que o esperado… Brasília, 25 de março de 2007. Publicada na revista Desafios do Desenvolvimento (Brasília: IPEA-PNUD, ano 4, n. 33, 10 de abril de 2007, p. 63). 234 Addendum: Convidado para o lançamento do livro acima, ocorrido no Memorial da América Latina, em 21 de março de 2007, apresentei um conjunto de “teses” em torno das dificuldades do Mercosul, acompanhadas de propostas para seu reenquadramento no mainstream da integração, sob a forma de um PowerPoint, sob o título de “O Mercosul e suas sete encruzilhadas”; o texto foi depois reelaborado e publicado no site gaúcho Via Política (22.04.2007), atualmente indisponível na internet; por essa razão, mas também pela sua persistente atualidade, reproduzo a seguir o texto em questão. Sete teses impertinentes sobre o Mercosul O estado atual do Mercosul pode ser interpretado de maneira muito diversa pelos observadores interessados nesse processo de integração. Eles terão, segundo os casos, uma interpretação mais ou menos otimista quanto ao seu desenvolvimento político no período recente e serão mais ou menos realistas quanto às suas perspectivas evolutivas, no contexto da integração, dependendo da interação pessoal com esse processo. Os responsáveis por sua condução tenderão a enfatizar o muito que se fez nos últimos anos para reforçar suas estruturas diretivas, para diversificar o escopo e ampliar a cobertura da integração e para expandir sua influência na região, ou, na pior das hipóteses, para evitar o prolongamento de uma crise que parece ter começado em 1999. Os observadores mais críticos desse processo poderão retrucar quanto ao não cumprimento dos principais objetivos fixados originalmente e reafirmados de maneira recorrente nos anos que se seguiram, sem que os obstáculos ao pleno funcionamento da zona de livre-comércio ou à plena vigência da união aduaneira tenham de fato sido superados. Eles também saberão reconhecer a preservação do esquema integracionista, ainda que possam discordar quanto à utilidade das medidas adotadas. Independentemente de qualquer julgamento sobre se as características atuais do Mercosul resultaram de “acidentes de percurso” ou se elas derivaram, ao contrário, de escolhas conscientes feitas pelos atuais dirigentes políticos, vou tentar formular algumas “teses” sobre esse processo, oferecendo, ao final, algumas propostas tendentes a superar algumas de suas atuais dificuldades. Cabe registrar que, a despeito de um julgamento otimista ou pessimista que se faça da situação atual do Mercosul, não há como recusar o fato de que esse processo atravessa dificuldades notórias, superáveis ou não em função da avaliação que se possa fazer quanto à natureza ou a origem desses males e sobre os “remédios” aplicados ao caso. 1. Desvio de rota e mudança de substância O Mercosul desviou-se, ou foi desviado, de seus objetivos fundamentais, que eram os da liberalização comercial e da integração econômica, e converteu-se – ou foi levado a 235 converter-se – num esquema fragmentado de iniciativas setoriais, nos campos político, social, cultural, ou outros, não coordenados e desconectados entre si. 2. Introversão O Mercosul deixou de ser uma ferramenta facilitadora, ou um meio, para atingir determinadas finalidades, que na origem eram as da modernização produtiva dos países membros e sua inserção econômica internacional, e tornou-se um fim em si mesmo, como se a forma devesse necessariamente determinar o conteúdo. Com essa nova orientação “hacia adentro”, a integração vem sendo perseguida pela própria integração, não como um veículo condutor ou uma alavanca para a consecução de objetivos economicamente racionais. Seria como se a preocupação “estética” tomasse a dianteira sobre o funcionamento efetivo do esquema. 3. Fuga para frente Em face de dificuldades reais, nos capítulos mais relevantes do processo integracionista, o Mercosul foi levado a efetuar uma verdadeira fuite en avant, atitude que se desdobra num número cada vez maior de iniciativas para compensar as tarefas não cumpridas de sua agenda corrente. A criação de novos órgãos, todos meramente acessórios ou simplesmente “redistribuidores”, confirma essa tendência, que não levará necessariamente a maior coesão e coerência em relação aos objetivos fundamentais. 4. Expansão arriscada O Mercosul foi levado a expandir de maneira talvez impensada, em todo caso de modo pouco condizente com os seus requerimentos intrínsecos, previstos no tratado de Assunção e nas decisões já adotadas, em termos de Tarifa Externa Comum, regras de origem, defesa da concorrência etc. Decisões políticas de incorporação, sem atenção aos elementos constitutivos da união aduaneira, fragilizam o edifício original e tornam mais difícil o consenso interno para negociações externas. 5. Mimetismo indevido e foco em supostas assimetrias O Mercosul foi levado a mimetizar formas de cooperação baseados em outras experiências integracionistas, no caso a europeia, como se ele devesse, sem dispor dos mesmos instrumentos institucionais de compensação de desequilíbrios, dar início a um programa completo de correção de supostas “assimetrias estruturais”, à custa de transferência de recursos de alguns países a outros. Concretamente, o único país que pode ser considerado 236 “não assimétrico” seria o Brasil – que, na verdade, possui muito mais assimetrias internas, regionais e sociais, do que todos os demais –, ou então ele é o assimétrico absoluto, portanto encarregado de redimir os males existentes. 6. Exceções protecionistas desfiguram o Mercosul, sem reforçá-lo O Mercosul foi levado a aceitar a introdução, ainda que parcial, de restrições comerciais que de fato fragilizam o edifício integracionista, em lugar de fortalecê-lo, como parece ser a intenção, restrições que são, no mínimo, abusivas, quando não ilegais, seja do ponto de vista do próprio Mercosul, seja do ponto de vista do GATT. 7. Ênfase na superestrutura e carência de implementação na infraestrutura O Mercosul padece de excessos superestruturais, isto é, uma ênfase exagerada no “cupulismo” e nas decisões políticas em torno de iniciativas em geral mais retóricas do que substantivas, em detrimento da implementação de medidas de caráter “infraestrutural”, que tendam a valorizar o trabalho das burocracias nacionais ou da própria secretaria técnica. Em face dessas características, quais poderiam ser as soluções aos problemas apontados? Simetricamente, podem ser apontadas as seguintes orientações em relação a cada uma das teses. 1. Retomada da rota original e confirmação da substância Caberia voltar aos propósitos originais do Mercosul, ou seja, retornar ao mainstream da integração, resgatando os objetivos da liberalização comercial e da conformação plena da união aduaneira. Proclamar objetivos sociais, políticos ou culturais, em substituição ao fortalecimento das bases efetivas do Mercosul, redunda necessariamente na erosão dos seus fundamentos. 2. Extroversão econômica e competição internacional O Mercosul foi pensado como um instrumento facilitador e promotor da inserção internacional dos países membros. Os mercados a serem perseguidos são antes externos do que os recíprocos. 3. Concentrar-se no básico No longo processo europeu sempre existiu a preocupação de que, a despeito de dificuldades eventuais, deveria ser garantido o chamado acquis communautaire, ou seja, o núcleo central de normas que regem o processo. Isto implica fazer o dever de casa, isto é, 237 empreender as reformas necessárias para que as regras constitutivas do processo sejam preservadas e reforçadas. Desvios ou tratamentos excepcionais podem ser aceitos apenas no que se refere à aplicação delongada das próprias normas, não na alteração de seu sentido original. 4. Expansão medida O princípio de base deveria ser “aberto ma non troppo”, ou seja, novos sócios devem submeter-se aos estatutos vigentes, não pretender alterar o funcionamento do clube. A simpatia não pode ser um substituto para a seriedade no engajamento formal do respeito às normas. Um entendimento claro quanto aos propósitos definidos e quanto aos objetivos fundamentais é a primeira das condições para que novas incorporações sejam decididas. 5. Assimetrias constituem a própria base do comércio internacional Não há, na história do comércio exterior, doutrinas que enfatizem a necessidade de eliminação forçada das especializações competitivas baseadas em dotações naturais ou adquiridas. Ao contrário, vantagens ricardianas sempre funcionaram, em quaisquer latitudes e longitudes e constituem fonte de ganhos líquidos para todas as partes. Verdades simples como esta podem servir para avaliar os programas de “correção” de assimetrias, cujos efeitos podem ser mais danosos do que benéficos. Reconversão deve significar adaptação aos novos requerimentos, não equalização de condições. 6. Excesso de exceções levam à criação de novas e “urgentes” exceções Não ceder ao protecionismo setorial deveria ser uma regra básica dos decisores. Caso se ceda à tentação protecionista, todos os demais setores vão se julgar habilitados e demandar resguardo em algum momento da trajetória competitiva. Não custa lembrar, tampouco, que salvaguardas sempre devem ser não discriminatórias, por princípio. 7. Ênfase na infraestrutura, retórica moderada na superestrutura Consoante uma velha fábula, sistemas econômicos organizados e funcionais requerem um pouco mais de formigas (isto é, empresários, trabalhadores e até mesmo burocratas), para a preservação dos equilíbrios fundamentais. As cigarras podem ajudar a enriquecer a harmonia do conjunto, mas nem sempre contribuem com os estímulos adequados. Verdades simples como estas podem ajudar a clarificar o debate. Brasília, 14 de março de 2007 238 Expansão Econômica Mundial: 100 anos de uma obra pioneira Brazílio Itiberê da Cunha: Expansão Econômica Mundial (Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 2 volumes, 1907 e 1908). Cem anos atrás, o Brasil era o café e o café era o Brasil, ou pouco mais do que isso: nossa diplomacia e a própria política econômica estavam centradas na “defesa do café”, como atestam o Convênio de Taubaté e as garantias oficiais aos empréstimos contraídos no exterior para financiar a estocagem do produto, para forçar a alta dos preços nos mercados mundiais. A elite política tinha consciência do atraso da Nação, resquício da ordem escravocrata do século XIX, e muitos dos seus representantes exibiam ideias políticas e econômicas avançadas, em contradição com os parcos esforços efetivamente feitos para colocá-las em prática, de molde a diminuir a distância que nos separava das potências da época. A diplomacia brasileira, em particular, se destaca por sua grande capacidade analítica, sua organização avançada, sua forte presença política e geográfica nos mais diferentes foros abertos ao engenho e arte de seus representantes profissionais ou delegados ad hoc, num país que estava longe de conformar um paradigma do capitalismo pioneiro ou um palco ideal para o exercício das vantagens comparativas de um êmulo do bourgeois conquérant, em uma versão tropical. Um dos mais lúcidos diplomatas do ancien régime, servindo com entusiasmo a nova República, junto com o Barão do Rio Branco, foi Brazílio Itiberê da Cunha, que, em 1907, publicaria uma obra notável sobre as causas do crescimento econômico das nações, na qual ele discorre igualmente sobre as condições e requisitos do progresso brasileiro, ressaltando o papel da educação como elemento estratégico na equação desenvolvimentista. Nos dois volumes de Expansão Econômica Mundial, Itiberê da Cunha tenta condensar, depois de ter participado como delegado oficial do Brasil nos congressos de “expansão econômica” do Rio de Janeiro (1905), de Mons (1906) e de Liège (1907), seus “estudos e observações que, de longa data, temos feito sobre os palpitantes problemas econômicos que atualmente preocupam as classes pensantes e dirigentes, empenhadas em darlhes uma solução mais prática para o maior desenvolvimento da fortuna pública e expandi-la para além das fronteiras nacionais” (vol. 1, Prefácio, p. vii). A trajetória diplomática de Brazílio Itiberê da Cunha e a importância de sua contribuição intelectual em várias outras vertentes da vida cultural brasileira – como sua rica produção musical, por exemplo – já 239 foram devidamente redescobertas e enfatizadas por um colega, Celso de Tarso Pereira,1 o que me permite concentrar a atenção em sua reflexões comparadas sobre as causas do atraso econômico e social brasileiro, como registradas na obra em questão. Nos dois volumes de Expansão Econômica Mundial, Itiberê discorre sobre o processo de crescimento econômico nos mais diversos países, com destaque para os mais avançados, mas ele têm o cuidado de iniciar sua obra pela necessidade da educação do povo, em especial da instrução comercial, como forma de se promover o progresso econômico e social de economias atrasadas como a do Brasil. O manual de um país novo como o Brasil, diz Itiberê, “deve ser antes O Império dos Negócios, do filantropo milionário Andrew Carnegie, do que as Pandectas ou o Corpus Iuris, acompanhando assim o crescente movimento de expansão econômica das principais potências, que nos precederam em civilização, graças, sobretudo, à superioridade do seu ensino técnico-profissional, hoje reconhecido com razão, o verdadeiro complemento obrigatório do ciclo de estudos elementares...”.2 Apoiado nas ideias do filósofo argentino Juan Bautista Alberdi, também diplomata, Itiberê da Cunha ressalta que “a primeira dificuldade da América do Sul para escapar da pobreza é que ignora sua condição econômica, com a persuasão de que é rica e por causa desta persuasão vive pobre, porque toma como riqueza o que não é senão instrumento para produzi-la” (ou seja, os recursos naturais abundantes nesses países).3 O diplomata brasileiro formula uma questão que poderia resumir, basicamente, a atitude contemplativa das elites brasileiras em face do problema essencial do desenvolvimento econômico, por ele assim respondida e plenamente válida ainda hoje: “por que somos uma nação sumamente pobre? A razão é simples: quando afirmamos que o Brasil é um país riquíssimo, confundimos riqueza com instrumento ou fator de riqueza. [Esquecemos] que a riqueza capaz de produzir não está produzida, e que o solo e o clima, que consideramos riquezas, não são mais que instrumentos para produzir riqueza nas mãos dos homens, que é o produtor imediato, pela força destes dois processos humanos — o trabalho e a economia, ou a conservação e guarda do que o trabalho produziu”.4 1 Cf. Celso de Tarso Pereira, Ritmos de uma vida: Brazílio Itiberê, músico e diplomata (Brasília: Instituto Rio Branco, 1996, monografia apresentada na disciplina Leituras Brasileiras), trabalho resumido no artigo “Brazílio Itiberê da Cunha, músico e diplomata”, Boletim ADB (Brasília: ano IV, nº 29, 09.10.1996, p. 18-22). Ver igualmente o capítulo de Pereira, sobre Itiberê, na obra coletiva coordenada por Alberto da Costa e Silva, O Itamaraty na Cultura Brasileira (Brasília: Funag, 2001; São Paulo: Francisco Alves, 2002). 2 Cf. Brazílio Itiberê da Cunha, Expansão Econômica Mundial, op. cit., 1o. vol., p. 154-5. 3 Idem, Cunha, Expansão, 2o. vol., p. 267. 4 Idem, p. 267-68. 240 Essa concepção do “valor-trabalho” e, mais ainda, do poder da inteligência e da tecnologia eram dificilmente aceitas pela oligarquia cafeeira do começo da República, como tinham sido persistentemente ignoradas pela aristocracia “fisiocrática” do regime imperial. Itiberê classifica como “fenômeno vulgaríssimo” o fato de no Brasil se considerar como revestidos de prestígio especial aqueles que detinham diplomas de doutor ou de bacharel, ecoando nesse particular críticas que, naquele mesmo momento, se faziam na Câmara de deputados aos “bacharéis presunçosos” da diplomacia brasileira: “O ser bacharel em direito, como quase toda gente o é hoje em dia, constitui presunção legal de saber: daí vem que, livres da obrigação dos exames, muita gente penetra na diplomacia, vazia de conhecimentos e abarrotada de presunção. Em regra, a diplomacia é procurada pelos indivíduos de alguma fortuna e infelizmente no Brasil os ricos não são os mais estudiosos”.5 Ao completar-se um século de sua primeira e única edição, a obra constitui, ainda hoje, um manancial de conselhos utilíssimos aos homens de Estado do Brasil e da América Latina, sempre tão propensos a encontrar em fatores externos as razões do subdesenvolvimento de seus países. Pela riqueza de seus argumentos, pela clarividência de suas posições, pioneiras e, de fato, antecipatórias, o livro de Itiberê mereceria ser reeditado, provavelmente em formato resumido, extirpando-o de comentários puramente circunstanciais, mas retendo seus ensinamentos ainda válidos, nos dias que correm. Talvez as “classes pensantes e dirigentes” disponham, hoje, de indicadores econômicos e de “ferramentas” de políticas macroeconômicas e setoriais que não estavam ao alcance de suas congêneres de um século atrás, mas muitos dos problemas brasileiros permanecem teimosamente os mesmos – como a má educação da população, por exemplo –, enquanto outros se acumulam na indiferença dos seus sucessores, como os “monopólios de Estado” e o “mercantilismo político”, ambos condenados por Itiberê. Censurando, ainda, os acordos comerciais baseados na estrita reciprocidade, ele confiava em que “a política liberal há de triunfar um dia” (vol. 2, p. 81). Talvez, mas a luta continua... Brasília, 7 de agosto de 2007. Publicado na Revista Acadêmica Espaço da Sophia (Tomazina, PR: ano I, n. 8, novembro de 2007, p. 1-4; ISSN: 1981-318X). e, em versão resumida, no Boletim da Associação dos Diplomatas Brasileiros (ano XIV, n. 59, outubro-dezembro de 2007, p. 28-30). 5 Anais da Câmara dos Deputados, sessão de 2.09.1891, apud Clodoaldo Bueno, A República e sua Política Exterior, 1889-1902 (São Paulo: Editora da UNESP; Brasília: FUNAG, 1995), p. 56. 241 Jânio Quadros, diplomata Carlos Alberto Leite Barbosa: Desafio Inacabado: a política externa de Jânio Quadros (São Paulo: Atheneu, 2007, 352 p.) O governo do imprevisível Jânio Quadros durou exatos 205 dias, de janeiro a agosto de 1961, mas foi provavelmente um dos mais “empolgantes” – qualquer que seja o sentido que se dê à palavra – que a história política do Brasil conheceu. A sua diplomacia também ficou inacabada, muito embora a “política externa independente” tenha tido continuidade no governo João Goulart e depois, em pleno regime militar, com a renovação operada nas prioridades diplomáticas a partir de Geisel. O jovem diplomata Leite Barbosa, formado em 1959, acompanhou o errático presidente enquanto espectador privilegiado, lotado no seu gabinete do começo ao fim, ou mesmo antes, pois que participou da campanha eleitoral. O livro, bem pesquisado e recuperando no “baú” da memória fatos e pessoas que a história documentada não registrou, oferece uma contribuição excepcional ao estudo da política externa do sisudo chefe de Estado, contraditório nas ações e surpreendente nas palavras. São reproduzidos alguns dos seus famosos “bilhetinhos”, tão difíceis, ao Itamaraty, de cumprir quanto, na verdade, entender. Um livro de um verdadeiro insider, indispensável, doravante, aos pesquisadores do período. Brasília, 27 de agosto de 2007 Publicada na revista Desafios do Desenvolvimento (Brasília: IPEA, n. 35, setembro de 2007, p. 63) 242 Rui Barbosa, diplomata Carlos Henrique Cardim: A Raiz das Coisas: Rui Barbosa, o Brasil no Mundo (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, 350 p.) O patrono incontestável da diplomacia brasileira é o “sacrossanto” Barão do Rio Branco, que deve figurar num pedestal do Itamaraty, à direita de Deus Pai, sem qualquer concorrente à sua esquerda (e nenhum iconoclasta se apresentou até hoje). No entanto, o famoso Juca Paranhos atingiu a categoria de mito, mais por ter protagonizado algumas bem sucedidas negociações de fronteiras, numa fase de consolidação dos limites geográficos da pátria, do que por ter formulado, propriamente, as bases conceituais da moderna diplomacia brasileira. Por certo, ele sempre é referido quando se trata da escolha sábia de procurar manter boas relações com o gigante hemisférico, ao mesmo tempo em que se buscava cultivar, numa boa barganha de equilibrista, nossa interação com a Europa, de maneira a preservar o rico patrimônio histórico trazido pelos novos imigrantes da fase pós-escravidão. Isso tudo, alertava o Barão, sem alienar nosso capital de altos e baixos com a Argentina, que ele pretendia o mais alto possível, desde que garantida a “relação especial” com os EUA da era Teddy Roosevelt, o tal que recomendava falar macio, mas carregar um grande porrete para convencer os mais recalcitrantes. Rio Branco nunca o desaprovou, pelo menos explicitamente. Poucos se dão conta de que Rui Barbosa, o primeiro ministro da Fazenda da República, deveria ser considerado o “pai intelectual” da moderna diplomacia brasileira: ele deixou um legado de posições, hoje devidamente constitucionalizadas nos primeiros artigos da Carta de 1988. Rui nunca foi um diplomata profissional, mas se o fosse, poderia ser facilmente acomodado, com sua figura esguia e franzina, à esquerda de Deus itamaratiano, como um legítimo complemento ao redondo Barão. Esta monografia do Embaixador Cardim comprova que Rui foi muito maior do que o registrado na literatura da nossa política externa, mesmo sem ter deixado alguma grande obra centrada nessa problemática das relações internacionais. Aliás, parece incrível, mas Rui não deixou nenhum livro publicado, sobre qualquer tema, a despeito de suas “obras completas” – na verdade, coletâneas de artigos e textos diversos – perfazerem 160 volumes, cuidadosamente compilados pela Fundação que leva no seu nome no Rio de Janeiro. Foi lá que Cardim mergulhou para escrever a mais completa obra sobre o “diplomata” Rui Barbosa, um orador exímio. 243 Sua obra de ativo “internacionalista” está dispersa em centenas de artigos, pareceres, discursos, orações e preleções jurídicas, tendo sido jurisconsulto, consultor e advogado das boas causas: defendeu, por exemplo, o direito da primeira mulher que passou no concurso do velho MRE a ingressar na carreira diplomática, numa fase de misoginia explícita contra as poucas e corajosas candidatas. Sua mais importante ação diplomática está contida em telegramas, na condição de chefe da delegação à segunda conferência internacional sobre a paz mundial, realizada na Haia em 1907. Ele fez uma “dobradinha” de alta qualidade com o Barão, que trocava frequentes impressões com ele, em telegramas cifrados, sobre os rumos dessa conferência e as posições que o Brasil deveria mais convenientemente adotar, em face do verdadeiro monopólio que as grandes potências exerciam sobre a agenda internacional. Cardim selecionou os expedientes e organizou um dossiê abrangente sobre a atividade e o pensamento de Rui em temas internacionais, numa obra que já nasce clássica, se a distinção pode ser aplicada por um simples resenhista. Sua importância não parece ter sido reconhecida na diplomacia brasileira até recentemente, quando uma sala, com o seu nome, foi inaugurada no novo palácio dos Arcos em Brasília, bem mais conhecido como Itamaraty. Curioso que, a despeito da preeminência do Barão nos anais da Casa, nenhuma de duas pesquisas recentes sobre as grandes personalidades da história brasileira colocou Juca Paranhos entre os cinco primeiros. Em ambas, figura Rui; numa delas em primeiro lugar, um justo reconhecimento pelo seu mérito de verdadeiro modernizador do Brasil, desde cedo um opositor da tutela militar que insistiu em preservar o poder moderador durante a maior parte da República. Cardim nos traz aqui não exatamente o tribuno civilista e defensor da legalidade democrática, mas o defensor da igualdade soberana das nações, que ocupa lugar de destaque na moderna diplomacia brasileira. Poucos são os textos conhecidos dessa vertente diplomática do famoso jurista baiano, que aqui aparecem pela primeira vez resumidos e interpretados por um diplomata bibliófilo, que também é um acadêmico exemplar e um dos grandes editores de livros acadêmicos já conhecidos na história editorial brasileira. O livro ainda traz belas imagens de época – fotos e uma saborosa iconografia com charges dos mais famosos humoristas brasileiros de um século atrás – e anuncia, além de tudo, novos volumes sobre Rui Barbosa, internacionalista brasileiro, que a Fundação que leva o seu nome publicará. Mas este, já é um livro de coleção... Buenos Aires, 6 de janeiro de 2008. Inédito em versão integral. Publicado em versão resumida na revista Desafios do Desenvolvimento (Brasília: IPEA, ano 5, n. 39, janeiro 2008, p. 62) 244 Abrir os portos, foi só o começo... Luís Valente de Oliveira e Rubens Ricupero (organizadores): A Abertura dos Portos (São Paulo: Editora Senac-São Paulo, 2007, 352 p.; ISBN: 978-85-7359-651-9) Duzentos anos de administração do Brasil a partir do Brasil, depois de trezentos anos de colonização pela metrópole portuguesa, são sempre motivo de comemorações, o que as editoras não deixarão obviamente de aproveitar. A Planeta saiu na frente, ainda em 2007, com o ensaio de leve leitura (mas muito bem pesquisado) de Laurentino Gomes, 1808. A Senac-SP veio logo em seguida, com a organização, também em 2007, de um seminário do qual resultou este livro binacional, organizado a quatro mãos por um engenheiro civil português e um embaixador brasileiro, contendo doze estudos de alta densidade histórica por parte de um coletivo de especialistas na história portuguesa e brasileira. Mas A Abertura dos Portos vai muito além de seu título reducionista. Trata-se de uma balança equilibrada: seis autores portugueses e seis brasileiros. O organizador português lembra, já de partida, que dizer que a abertura dos portos visou ao comércio com as nações amigas é uma formulação muito ampla: “O que ela, de fato, autorizou foram as relações comerciais com a Inglaterra.” É o que confirma o organizador brasileiro, num denso texto que aborda o contexto diplomático da decisão da abertura dos portos no que se refere às complicadas relações com a Inglaterra, com a França, os Estados Unidos e outras potências, não só em relação aos antecedentes imediatos da medida, mas igualmente no que tange à negociação dos tratados de 1810. Ricupero finaliza evidenciando o que ele considera serem os pontos de contato entre esses tratados e o projeto da Alca, proposta pelos Estados Unidos: um deles seria o “liberalismo enganoso”, discriminando contra outros parceiros; outro é a falta de reciprocidade, com a exclusão de produtos competitivos brasileiros do mercado da parte mais forte; o terceiro seria o tratamento especial reservado aos investidores estrangeiros em caso de disputas comerciais. Carlos Guilherme Mota comparece logo em seguida, com uma revisão do ciclo que vai da era pombalina até o final do Primeiro Império (1750-1831): dos diversos “Brasis” do antigo Império colonial português, ao Império brasileiro unificado, é um percurso que vê o Brasil figurar pela primeira vez no concerto das nações. O português Valentim Alexandre retoma a análise do alvará de abertura dos portos e dos tratados de 1810, confirmando sua total assimetria e os problemas fiscais deles derivados, em ambos aspectos totalmente 245 desfavoráveis a Portugal e ao Brasil. As imigrações para o Brasil são o tema da portuguesa Ângela Domingues, que retraça as iniciativas joaninas para o estabelecimento de um fluxo migratório sueco (em Sorocaba, mas temporário) e de um suíço (em Nova Friburgo), que se estabeleceu de forma mais consolidada. O brasileiro Francisco Alambert examina o período do ponto de vista das artes e da cultura, com foco na chegada da Missão Artística Francesa, em 1816. Se o poder econômico estava indiscutivelmente com a Inglaterra, o Brasil sempre respirou cultura pelo lado francês, numa importação direta, cuja figura principal é Debret. O português José Luiz Cardoso refaz a evolução das ideias econômicas na época, com a absorção entusiasta das de Adam Smith, em particular através de José Maria Lisboa, cuja obra em defesa da liberalização do comércio, Observações sobre o comércio franco no Brasil (a primeira a ser impressa no Brasil, pela Imprensa Régia, ainda em 1808), é examinada com lucidez. O uspiano Lincoln Secco segue o percurso das ideias liberais, no Brasil e na península ibérica, no meio século até 1851: ele considera que houve uma revolução burguesa “incompleta” em Portugal, ao velho estilo que ainda vigora: “fazer reformas para evitar revoluções”. O português Eugénio dos Santos segue a carreira acadêmica, científica e militar do nosso “Patriarca da Independência”, José Bonifácio, aspectos que em geral ficaram em segundo plano na historiografia tradicional. Ele tinha de se dividir entre seus cursos na Universidade de Coimbra, uma assessoria na Casa da Moeda em Lisboa e prospecções minerais em todo o país: considerava os seus colegas de Coimbra “enfatuados, vaidosos e possuidores de um saber apenas livresco e oco de significado”. Na invasão francesa, ele tomou armas, primeiro como sargento nos “Voluntários Acadêmicos”, depois como major no Corpo Acadêmico. Quando parte ao Brasil, em 1819, já com 56 anos, era um estadista experiente. Este que aqui escreve assina um artigo autoexplicativo, chamado “A formação econômica brasileira a caminho da autonomia política: uma análise estrutural e conjuntural do período pré-independência”, uma análise do contexto econômico colonial e da gradual emergência de uma economia voltada para a acumulação interna, no contexto das relações econômicas internacionais e dos processos de transformação do sistema econômico no início do século XIX. A pernambucana Maria Leda Oliveira da Silva, em “Aquele imenso Portugal: a transferência da corte para o Brasil (séculos XVII-XVIII)”, lembra que frei Vicente do Salvador já tinha defendido, em 1630, a ideia da transferência da corte para o Brasil. A transferência da corte, em 1808, responde, ademais, a projetos políticos antigos, anteriores à restauração (1640): D. João VI, quando estabelece o Reino Unido (1816), retoma a esfera 246 armilar, símbolo da expansão ultramarina dos tempos de D. Manuel, no sonho de transformar a América num imenso Portugal. O português Jorge Couto, já conhecido entre nós por sua tese da descoberta do Brasil em 1498, por Duarte Pacheco Pereira, trata da delimitação das fronteiras do Brasil, de D. Manuel I a D. João VI, ou seja, da descoberta até a união dos reinos, com destaque para o Tratado de Madri, que alargou nossas fronteiras. Finalmente, os “santistas” José Rodrigues e José Pascoal Vaz acompanham 200 anos de transformação socioeconômica dos portos brasileiros, seu crescimento e problemas atuais, sobretudo no que se refere à mão-de-obra. Em suma, trata-se de vasta obra coletiva que vai muito além da simples abertura dos portos, em 1808. Uma rica iconografia ilustra este livro, que fica como um marco comemorativo destes dois séculos desde o alvará “libertador do comércio”. Tempo de retomar o processo, seguramente... Brasília, 15 de fevereiro de 2008. Publicado em formato reduzido na revista Desafios do Desenvolvimento (Brasília: IPEA; ano 5; n. 40, fevereiro de 2008, p. 63) 247 Contos fantásticos, mas assustadoramente normais Geraldo Holanda Cavalcanti: Encontro em Ouro Preto: contos fantásticos (Rio de Janeiro: Record, 2007, 188 p.) A maior surpresa destes contos fantásticos do escritor, poeta, tradutor laureado e diplomata Geraldo Holanda Cavalcanti é a de que eles são, efetivamente, fantásticos, em qualquer sentido da palavra. Mas, ao mesmo tempo, eles são... assustadoramente normais. Com isso quero dizer que os contos se situam naquela zona do irreal, ou do surreal, que povoa nossas mentes, sem deixar, um único segundo, o chão de terra batida que nos liga à existência cotidiana mais banal do mundo. Ou seja, o fantástico aqui não se prende à fenômenos paranormais, a seres de outro mundo, a dimensões inexplicáveis da realidade, ou à intervenção de algum poder externo que atuaria independentemente da vontade dos personagens, como se vê habitualmente na chamada “literatura fantástica”. Aqui não: estamos em face de personagens e de situações absolutamente normais, no sentido mais corriqueiro da palavra, pessoas e casos que poderiam frequentar nosso escritório de trabalho, eventos que poderiam estar se desenvolvendo nas esquinas do nosso bairro, “coisas”, por vezes prosaicas, que poderiam ocorrer em nossas próprias vidas. Pessoas, enfim, que poderiam ser nós mesmos. É a isso que me refiro quando classifico estes “contos fantásticos” de “assustadoramente normais”. A rigor, o único “intruso externo” que poderia aproximar um dos contos do termo fantástico na acepção mais frequente dessa expressão seria a misteriosa força, inexplicável, que impede o personagem de “O violinista”, detentor de um excelente violino húngaro, de tocar a Tzigane de Ravel. Neste caso, o violino, não o violinista, mereceria seu enquadramento na categoria de “fantástico”. De resto, todas as demais situações inverossímeis, inexplicáveis, surpreendentes, enfim, fantásticas, que povoam estes contos são absolutamente corriqueiras, até banais, na vida de cada um de nós, mas o resultado é sempre uma surpresa, sem que se consiga, no começo de cada conto, prever o seu final. Tentei várias vezes “adivinhar” o que viria a ocorrer com o personagem de cada conto, que geralmente é o próprio narrador, sem sucesso porém: o final é sempre uma total surpresa, e nisso também reside o caráter fantástico destes excelentes contos de Geraldo Holanda Cavalcanti. Esse caráter surpreendente dos contos “semi-fantásticos” do poeta e ensaísta consagrado faz com que seja difícil largar um conto uma vez iniciada a sua leitura. A chave 248 talvez esteja, precisamente, no fato de que o personagem, salvo uma ou outra exceção, nunca é alguém externo, mas é sempre o próprio narrador, isto é, nós mesmos, à condição de nos identificarmos com ele: um cidadão normal, de idade média, trabalhador, viajante, jornalista, homem de família ou de situação indefinida, mas em todo caso perfeitamente encontrável na nossa vida diária. Nisso Geraldo Holanda Cavalcanti preenche integralmente os requisitos da literatura fantástica tal como explicitados por Tzvetan Todorov, que ele coloca em destaque na abertura de sua coleção de contos: o leitor é obrigado a considerar o mundo dos personagens como um mundo de criaturas vivas, ele se identifica com um dos personagens, geralmente o narrador, e ele recusa uma interpretação poética ou alegórica do texto. Assim, cada uma das situações vividas pelos diversos personagens dos 18 contos aqui selecionados é, aparentemente, banal, corriqueira e surpreendentemente fantástica. Em vários casos, tudo pode ter ocorrido apenas na mente do personagem principal, povoada de “fantasmas” que podem ter efetivamente existido e interagido consigo e com todas as demais pessoas; em outros casos, os “fatos” ocorreram com outros personagens e o narrador é um mero espectador do inexplicável, situação essa que se situa, entretanto, inteiramente dentro do domínio do plausível e do possível. Contos verdadeiramente fantásticos, acredite caro leitor, não são aqueles que nos enviam a uma dimensão surreal, geralmente assustadora ou “aterrorizante”, de uma existência qualquer, eventualmente a nossa própria. Eles são tão mais cativantes quanto despertam em nós a sensação de que aquilo poderia estar ocorrendo com nós mesmos, numa dessas situações corriqueiras da vida. E o mais atraente, na escrita de Geraldo Holanda Cavalcanti, é a fluidez do texto, a palavra atraente e certeira, mesmo quando ela transmite toda a ambiguidade de uma situação, e suas palavras geralmente o fazem, transmitindo essa situação de “desconforto” e de “incerteza” com o que pode vir a ocorrer com o personagem principal, nisso atiçando nossa curiosidade para que logo cheguemos ao final do conto. Eles se leem, assim, rapidamente, mas a impressão que nos fica é permanente: “caramba!, é verdade, como é que isso pôde ocorrer?” Com tudo isso fica a sensação de “quero mais”. A vontade que dá, ao encerrar o livro, é a de pedir ao autor que continue a nos enfeitiçar com os seus, novos, contos fantásticos, assustadoramente normais... Brasília, 16 de fevereiro de 2008. Publicada em versão resumida na revista Desafios do Desenvolvimento (Brasília: IPEA, ano 5, n. 41, março 2008, p. 63) 249 Interesse Nacional: uma nova revista Rubens Antonio Barbosa, editor: Revista Interesse Nacional (São Paulo: n. 1, abril de 2008; http://interessenacional.uol.com.br/) Em países marcados pela luta entre partidos, com agendas cheias de reformas inacabadas, definições do que seja, exatamente, o interesse nacional são tão diversas quanto os grupos que disputam o poder e buscam mobilizar o apoio da sociedade para suas plataformas nem sempre consensuais para todas as classes e setores nacionais. O surgimento de uma revista que pretende discutir questões relevantes, sem partir de uma definição pré-concebida do que seja o interesse nacional, deve ser saudada como um bem-vindo aporte intelectual ao debate público em torno das grandes questões da agenda nacional. Os editores da nova revista, Rubens Antonio Barbosa e Sérgio Fausto, dizem, na introdução que a revista não defenderá uma única visão, “não promoverá convergências de opiniões”. “Seu único compromisso é com o debate qualificado de ideias e com a relevância das questões, na interseção entre assuntos domésticos e assuntos internacionais”. Contando com um conselho editorial de 24 membros, de esquerda e de centro (já que ninguém, neste país, se reconhece como de direita), a revista explicita, em seu primeiro número, um problema atual: Rubens Barbosa dá a partida criticando a política externa para a América do Sul, focando a questão do ingresso da Venezuela no Mercosul. O tema é em seguida defendido pelo assessor de assuntos internacionais da Presidência da República, Marco Aurélio Garcia, que justifica a “opção sul-americana” da atual diplomacia presidencial. Comparecem a seguir dois defensores de visões opostas sobre o que constitui o interesse nacional na atualidade brasileira: Gustavo Franco trata da inserção externa e do desenvolvimento brasileiro, registrando o que ele chama de “consenso envergonhado”, isto é, a adesão dos atuais mandatários – não às ideias, mas – às práticas econômicas dos seus antecessores, responsáveis pela estabilização do Plano Real e pela abertura da economia. Luiz Gonzaga Belluzzo ataca, por sua vez, o que ele chama de “mitos do consenso liberal”, destacando a “mão visível” do Estado na competição capitalista. Na verdade, ele mesmo reconhece que as antigas oposições excludentes – Estado vs. mercado, integração internacional vs. políticas nacionais – “não são perspectivas incompatíveis” e conclama à superação de “falsas dicotomias”, em prol de uma “nova relação entre o Estado e o setor privado em termos mais favoráveis ao desenvolvimento do país”. 250 O embaixador Everton Vargas, encarregado de temas ambientais no Itamaraty, apresenta a visão oficial sobre as negociações em torno das mudanças climáticas, mas este primeiro número não traz nenhuma posição alternativa sobre os desafios a serem ainda vencidos para que o chamado “desenvolvimento sustentável” deixe o campo da retórica diplomática. O professor de direito Joaquim Falcão aborda a difícil questão da reforma do judiciário, destacando o que ele designa de “uso patológico” do Judiciário pelo Executivo, com uma quase completa estatização da pauta do primeiro pelo segundo poder. Ele demonstra como grande parte dos recursos e agravos que chegam ao Supremo se referem a casos envolvendo servidores públicos e militares. Isto se dá, segundo ele, porque o Brasil “é um dos únicos países do Ocidente – se não o único – onde a Constituição trata do servidor público em tantos dispositivos – são 62 (!), entre títulos, artigos, parágrafos, incisos e alíneas...” Em outros países, se trata de matéria infraconstitucional. O ex-diretor da Radiobras Eugênio Bucci discute a razão de ser das emissoras públicas, perguntando se o Brasil precisa disso. Ele considera que a TV pública só se justifica se for capaz de melhorar os processos democráticos, a geração de cultura, a diversidade, a inclusão social, e se elevar o nível de fundamentação das decisões políticas tomadas direta ou indiretamente pelos cidadãos. O último artigo trata do fantasma da “internacionalização do ensino superior”, recentemente atacada por ninguém menos que o secretário de ensino superior do MEC. Cláudio de Moura Castro demonstra que se está fazendo barulho por nada, que esse “perigo” é inexistente ou irrisório, mas que se ele existisse, de verdade, seria um bem-vindo impulso à maior inserção externa das nossas instituições do terceiro ciclo. O perigo maior, na verdade, é o isolacionismo no qual vivem a maior parte das universidades: “o Brasil se encolhe e teme as influências alienígenas no seu ensino”. O que de melhor ocorreu com o nosso ensino superior, lembra ele, foi a “horda de mestres e doutores que retornaram das melhores universidades dos Estados Unidos e da Europa”, trazendo novos ares, metodologias inovadoras, reforçando a pesquisa em pós-graduação. O problema é que essa abertura não alcançou a graduação: “Precisamos ventilar as ideias mofadas que esmagam nossos cursos de graduação. Nesse sentido, a internacionalização é mais do que bem-vinda. O influxo de experimentos e ideias de outros países poderia ter um papel relevante para arejar nosso ensino”. Talvez a UNE não concorde... Brasília, 13 de abril de 2008. Publicado na revista Desafios do Desenvolvimento (Brasília: IPEA, ano 5, n. 43, maio 2008, p. 62). 251 O império em ascensão (por um de seus espectadores) Manoel de Oliveira Lima: Nos Estados Unidos, Impressões políticas e sociais (Brasília: Senado Federal, 2009; 424 p.; edição original: 1899) Atenção: este livro contém cenas explícitas de racismo, registra manifestações de apoio ao colonialismo europeu e demonstra simpatia, quando não conivência, com o imperialismo americano. Mas não se assuste, caro leitor: não estou condenando o livro ab initio. Estou apenas registrando o que poderia escrever a respeito desta obra algum acadêmico progressista, adepto do estilo “politicamente correto” que passou a infestar as universidades do mundo inteiro a partir de sua matriz americana. A esse título, algumas das “impressões” de Oliveira Lima sobre o país que conheceu quando serviu como secretário da legação em Washington, na última década do século XIX, são altamente incorretas, pelo menos nas passagens que têm a ver com a questão racial, com o colonialismo europeu e com a expansão da “nova Roma” imperial. O livro apresenta conceitos “chocantes” a propósito dos negros americanos, ao mesmo tempo em que o autor se mostra complacente em relação à crescente projeção imperial dos EUA. No entanto, seria propriamente anacrônico selecionar frases de Oliveira Lima para um “julgamento” contemporâneo, uma vez que toda obra desse gênero deve ser avaliada no contexto histórico e ideológico que a viu nascer. Desse ponto de vista, este livro de ensaios sobre a emergência econômica e geopolítica dos EUA representa um retrato fiel da potência em construção. Em outros termos: o livro é inteiramente compatível com o Zeitgeist de quando foram escritos os ensaios que o compõem, mais de um século atrás. Ele recolhe as “impressões político-sociais”, mas também o perfil histórico e o itinerário econômico do então nascente “império”, observações recolhidas ao longo dos anos nos quais serviu em Washington o historiador pernambucano – de formação portuguesa – e iniciante na diplomacia. As afirmações de Oliveira Lima de apoio implícito à projeção imperial dos EUA, sua complacência com o colonialismo ocidental na Ásia, na África e em partes do próprio hemisfério americano e mesmo as frases de indisfarçável tolerância para com o racismo são o “imposto” a pagar pelo fato de terem sido feitas numa época em que tais manifestações do pensamento não apareciam como especialmente chocantes, e sim como expressões quase “normais” da mentalidade de seu tempo. A ideologia dominante na época se caracterizava 252 pelo evolucionismo à la Herbert Spencer, pelo darwinismo social – que, obviamente, distorcia completamente o sentido original da teoria da seleção natural, convertida em “sobrevivência dos mais fortes” –, pela ideia de que as civilizações mais avançadas tinham de imprimir a marca do “progresso” naquelas que ainda não tinham conseguido chegar à era industrial. Doutrinas, enfim, que afirmavam a superioridade natural da raça branca sobre os povos primitivos e as sociedades atrasadas. Os povos anglo-saxões tinham o dever moral de contribuir para a elevação espiritual dos países periféricos, trazendo-os para o coração da civilização industrial. Este livro, que aproveita escritos de 1896 a 1899, publicados originalmente na Revista Brasileira e no Jornal do Comércio (e que vem datado de Washington, em 11 de maio de 1899, embora impresso originalmente nesse mesmo ano, em Leipzig), constitui um apanhado de comentários sociológicos (alguns deles impressionistas) sobre as razões do progresso americano, no confronto com o atraso brasileiro. De fato, ao escrever sobre os Estados Unidos, Oliveira Lima estava, na verdade, pensando no Brasil, como ele mesmo revela já na introdução: “No Brasil fala-se ou muito bem ou muito mal dos Estados Unidos. Apontam-nos os seus admiradores como o único modelo a seguir..., o melhor figurino a copiar nos mais ligeiros pormenores, sem cogitarem da diferença dos meios, das respectivas tradições nacionais e dos costumes de cada povo. Os seus detratores culpam-nos de todos os crimes, desde a ambição devoradora de terras e de nacionalidades, até a corrupção política e social mais desbragada.” O próprio Oliveira Lima não escondia sua opinião: “À parte os exageros do fanatismo, a verdade está incomparavelmente mais com os primeiros.” Ele confessava, talvez com pouco senso crítico, que pretendia ver o Brasil seguir o exemplo do “grande país americano... no ingente progresso material, (...) no seu discernimento dos males da demagogia, na tolerância, na paixão pelo estudo, na energia individual, na vontade perseverante de atingir a perfeição.” Foi Oliveira Lima quem deu início aos exercícios comparativos da longa série de reflexões críticas que os intelectuais brasileiros do século XX efetuariam sobre as causas do baixo desenvolvimento nacional, no confronto com a pujança dos EUA. Corrente, esta, que seria continuada por figuras como Monteiro Lobato e que encontraria em Bandeirantes e Pioneiros, de Vianna Moog, sua mais perfeita expressão weberiana. Ele o fez a partir de sua atenta observação das realidades americanas, colocando-as inclusive em comparação com o que já conhecia do velho continente: “Na América do Norte apoderou-se de mim, e a breve trecho converteu-se numa quase obsessão, uma forte impressão do nosso atraso, que na Europa eu nunca havia experimentado, acostumados como justamente andamos a considerá-la 253 um antiquíssimo campo de experiências e de progressos. Do outro lado do Atlântico, porém, num país de civilização tão moderna quanto o Brasil, a comparação impõe-se irresistivelmente, em nosso grave desabono...”. Oliveira Lima oferece, portanto, sua interpretação dos Estados Unidos. Mas a sua visão é a do intelectual preocupado primariamente com o Brasil: “eu apenas olhei para os Estados Unidos com olhos de brasileiro, a saber, constantemente buscando o que de aproveitável para nós poderia a meu ver resultar do exame e da confrontação”. Ele registra sua “impressão de melancolia pelo muito que os Estados Unidos têm alcançado, e pelo pouco que nós temos relativamente feito.” O rotundo diplomata – que mais tarde seria chamado de Dom Quixote Gordo por Gilberto Freyre – poderia, legitimamente, ser considerado como o primeiro, ou mesmo como “o” founding father dos americanistas brasileiros, não fosse pela precedência histórica do chamado “pai da imprensa brasileira”. Com efeito, um século à frente de Oliveira Lima, Hipólito José da Costa (antes de se estabelecer na Inglaterra, fugindo da Inquisição portuguesa, e de ali editar seu Correio Braziliense) viajou pela costa leste dos Estados Unidos a serviço do futuro Conde de Linhares, tendo produzido um relatório sobre suas observações agrícolas, industriais e botânicas naquele país. O jovem (24 anos) português nascido na Colônia do Sacramento e criado em Rio Grande, escreveu também um Diário de Minha Viagem para Filadélfia, 17981799, que não pode ser propriamente considerado um estudo de especialista, mas que é certamente a primeira obra sobre os Estados Unidos escrita do ponto de vista de um observador do Brasil, preocupado em trazer para a colônia lusitana as espécies vegetais e animais e os melhoramentos técnicos que julgava poder contribuírem para o engrandecimento de sua pátria de fato. Exatamente um século depois de Hipólito da Costa, como resultado de mais de três anos de suas próprias observações e andanças, Oliveira Lima fixava nos ensaios recolhidos neste livro suas impressões políticas e sociais a respeito da extraordinária expansão então experimentada pela já poderosa nação do Norte. Ao elaborar uma visão própria sobre a pujança da potência norte-americana, ainda nos tempos de Cleveland e McKinley, o historiador consolidou mais tarde sua análise das razões do “sucesso” americano, comparativamente ao “fracasso” das ex-colônias ibéricas, em outros escritos sociológicos, a partir de visitas aos EUA, numa era de triunfalismo rooseveltiano e wilsoniano. Assim foi que, uma década e meia após seu primeiro exercício americanista, Oliveira Lima coletou a série de lectures que ele proferiu em universidades dos Estados Unidos no volume The Evolution of Brazil Compared with that of Spain and Anglo-Saxon America (1914), publicado 254 no Brasil como América Latina e América Inglesa: a evolução Brasileira comparada com a Anglo-Americana. Tratou-se, neste caso, de uma abordagem essencialmente histórica, na qual ele não deixou de consignar comentários de caráter sociológico sobre as diferentes vias de desenvolvimento político, social e econômico seguidas nas diversas partes do hemisfério, com a inevitável deferência às teorias racialistas então em voga. Em suas memórias, Oliveira Lima lembraria que aprendeu bem mais sobre os EUA durante os meses como lecturer em doze universidades americanas, em 1912, e nos seis meses nos quais ele foi professor em Harvard, em 1915 e 1916, do que nos três anos anteriores em Washington como Secretário de Legação. Na então rarefeita bibliografia americana sobre o Brasil e também brasileira sobre os Estados Unidos, Oliveira Lima aparece como uma ponte intelectual entre os dois países, exemplo, aliás, pouco replicado no decorrer do século XX. Ele continuaria, mais tarde, suas reflexões histórico-sociológicas, ao colaborar, desde a sua fundação, em 1918, com a Hispanic American Historical Review, criada por historiadores da American Historical Association dedicados ao estudo da América Latina. Nas suas primeiras “impressões” dos EUA, Oliveira Lima oferece análises pessoais sobre diferentes aspectos da vida americana e da política externa daquele país; mas os ensaios vêm sempre sustentados na bibliografia disponível em sua época e em materiais oficiais do país. Os problemas selecionados são os que ele acredita possam apresentar relevância para o Brasil, como ele próprio explica na introdução: “busco nos diferentes capítulos em que se divide o volume – o problema negro, a imigração, a política externa, as virtudes nacionais, a influencia feminina, o catolicismo americano, o figurino político – senão tratar, pelo menos apresentar as questões que mais diretamente nos interessam ou nos dizem respeito, e cuja solução ou aspecto nos Estados Unidos é capaz de oferecer-nos ensinamento.” (...) No plano mais específico das comparações que poderiam ser feitas com o caso do Brasil, a recomendação a ser feita é que este livro seja lido em paralelo com as lectures feitas por Oliveira Lima em universidades americanas mais de uma década depois: The Evolution of Brazil Compared with that of Spain and Anglo-Saxon America (Stanford, California University Press, 1914, edited with introduction and notes by Percy Alvin Martin; com uma edição brasileira inclusive antecipando sobre a americana: América Latina e América inglesa: a evolução Brazileira comparada com a Hispano-Americana e com a Anglo-Americana; Rio de Janeiro: Garnier, s.d.[1913]; o livro foi objeto de nova edição americana: New York: Russell and Russell, 1966). As razões do avanço americano e as do nosso atraso relativo já 255 estavam inseridas, por assim dizer, nas estruturas da colonização desde vários séculos antes. (...) Oliveira Lima nos ajuda a ver, embora com argumentos que hoje tendem a ser desconsiderados como “politicamente incorretos”, os fatores responsáveis por nosso lento desenvolvimento material e sobretudo educacional. Vale a pena percorrer estas páginas e constatar o que mudou e, em especial, o que não mudou, tanto nos EUA, como no Brasil desde um século aproximadamente. As lições podem não ser todas agradáveis, mas elas são certamente instrutivas... Brasília, 18 de abril de 2008. Excertos do capítulo introdutório. 256 O Mercosul na sua fase ascendente (talvez única) Renato L. R. Marques Mercosul 1989-1999: depoimentos de um negociador (Kiev: s.e., 2008, 280 p.; ISBN: 978-966-171-170-1) Trata-se de uma edição de autor: uma coleção de artigos, de entrevistas ou de depoimentos feitos pelo diplomata gaúcho durante o período em que ele ocupou, sucessivamente, os cargos de chefe da Divisão Econômica Latino-Americana do MRE, de Secretário de Comércio Exterior do MDIC e de chefe do Departamento de Integração do MRE, entre 1989 e 1999. São duas dúzias de textos, cada um trazendo a data e o local de sua publicação ou “emissão” (no caso de depoimentos gravados), mas não, infelizmente, as circunstâncias e o contexto no qual foram produzidos. A produção amadora explica, assim, alguns dos problemas formais da obra, mas que em nada diminui o interesse para os aspectos substantivos dos temas tratados. O autor ficou devendo uma introdução geral e talvez uma divisão temática, ou por seções, de molde a situar cada um dos textos no quadro mais geral da evolução do Mercosul em seus primeiros dez anos de existência. Outra questão organizacional é a da relativa imprecisão cronológica: a despeito de Marques situar sua compilação entre os anos de 1989 a 1999, os limites inicial e final dos textos correspondem, de fato, ao período que vai de 1991 a 2001, sendo que a última fase trata bem mais da Alca e das opções de política comercial do Brasil do que propriamente do Mercosul. Mas mesmo sem ater-se a uma estrutura temática mais racional, que poderia permitir um melhor aproveitamento dos muitos materiais aqui recolhidos, o autor prestou um bom serviço à comunidade de historiadores e de estudiosos dos fundamentos e do desenvolvimento do Mercosul, até aqui carente de estudos rigorosos nas áreas da ciência política e da história. Recomenda-se, talvez, para o futuro, uma segunda edição de características profissionais, de maneira a sanar as muitas falhas formais que apresenta este volume, feito por iniciativa do próprio autor e distribuído, provavelmente, a seus custos. Mesmo à falta de uma inserção de cada um desses textos na história mais geral do Mercosul, os trabalhos selecionados pelo autor são importantes, na medida em que permitem uma aproximação ao que seria uma primeira “história oral” desse esquema de integração, ainda hoje carente – pelo menos no Brasil – de uma história oficial ou oficiosa que reconstitua, minuciosamente, suas diferentes etapas desde os anos de integração bilateral com 257 a Argentina até o período atual, marcado por uma espécie de Entzauberung integracionista. O tom de vários textos é marcadamente otimista e “defensivo”, como corresponde, talvez, a questionamentos da imprensa ou da comunidade de negócios a respeito dos benefícios reais do Mercosul para a sociedade e para a economia brasileiras. Em vários outros, possivelmente voltados para plateias não especializadas, os objetivos didáticos aparecem mais explícitos, com extensas explicações sobre o funcionamento de determinados mecanismos do bloco, em face das regras multilaterais de comércio e da pequena selva burocrática na normatividade mercosuliana que o autor ajudou a construir. Alguns dos textos tratam das relações do Mercosul com parceiros próximos – como o Chile, a Venezuela e outros países do Grupo Andino – ao passo que outros abordam problemas específicos: fundos regionais, aplicação das normas do Mercosul pelos juízes nacionais ou, ainda, o sempre presente problema institucional. Se o Brasil sempre se mostrou “ofensivo” na expansão comercial do Mercosul em direção de novos mercados, ele também se mostrou arredio em matéria institucional, opondo-se a sucessivas demandas – dos demais sócios, ou atendendo a sugestões de juristas – por maior grau de institucionalidade (que, para alguns, queria dizer supranacionalidade). Parece ser uma regra das instituições burocráticas o fato de que problemas complexos não são jamais resolvidos: eles apenas entram no rol de itens da “agenda permanente” que passam a figurar em cada reunião do bloco: tais podem ser os casos do regime automotivo do Mercosul (mais exatamente bilateral, Brasil-Argentina), ou da eterna salvaguarda argentina imposta ao açúcar do Brasil. Aliás, falar em “regime automotivo do Mercosul” seria conceder-lhe um status superior ao merecido, como sistema de comércio bilateral administrado que de fato é, como nos velhos tempos do mercantilismo. Quanto ao açúcar, não há nada de especificamente mercosuliano em sua inadequação aos padrões do livre-comércio: trata-se, certamente, do primeiro produto na história mundial das commodities a gozar de regras especiais de proteção e subsídio em vários países da primeira revolução industrial – mais exatamente a partir do açúcar de beterraba surgido com a revolução francesa e o bloqueio continental operado pela Inglaterra – e que será, provavelmente, o último dos produtos a entrar num regime normal de comércio, talvez daqui a mais 150 anos. Bem, espera-se que, até lá, o Mercosul tenha chegado ao prometido mercado comum. À falta de uma divisão temática ou “institucional” para este livro, o leitor é obrigado a percorrer linearmente os textos, para deles extrair alguns ensinamentos e esclarecimentos sobre aspectos pouco visíveis da história – até aqui quase secreta – do Mercosul. Essa trajetória linear corresponde, aliás, à organização mais simples do livro, sem que se possa, 258 entretanto, discutir exaustivamente determinados problemas estruturais ou constitutivos do modelo sui generis que adotou o Mercosul ao longo de seus primeiros dez anos de existência (e ele acaba de completar a sua maioridade). No conjunto, porém, os textos representam uma contribuição útil para a construção de uma futura história do Mercosul, com os cuidados devidos à manipulação de ideias ou opiniões que correspondem a um dos protagonistas oficiais do processo. Sim, cabe esclarecer que mesmo se o autor explicita, numa nota preliminar, que os seus argumentos representam unicamente a sua opinião pessoal, pode-se presumir que ele estivesse, cada vez, defendendo a posição oficial do governo brasileiro sobre cada um dos problemas abordados. Não é de se presumir que um representante do Itamaraty tenha ideias próprias sobre todas essas questões, ou que ele tenha “escolhido” certas “soluções” aos problemas da tarifa externa comum ou dos regimes setoriais em fase de adequação à abertura recíproca na ausência de consulta a todas as autoridades do governo. Depreende-se, aqui e ali, indiretamente, certa perplexidade ou insatisfação dos atores privados, o que revelaria carência de consulta ou coordenação com aqueles mesmos que deveriam operar a integração na prática diária: industriais, agricultores, empresários em geral, para nada falar dos estudiosos acadêmicos, provavelmente pouco consultados em todas as fases do processo. Claramente, os textos precisam ser lidos e inseridos em seu contexto original, que é o da construção de um bloco de integração numa fase ainda ascendente, com pretensões a transformar-se em mercado comum (objetivo até agora frustrado; mas muitos duvidam que ele venha a ser concretizado um dia). Mesmo lidos com todo o cuidado de um historiador ou especialista acadêmico, não deixa de ser curioso, ao observador contemporâneo – em 2009, ou seja, uma década depois da data terminal que o autor colocou em se livro –, fazer uma leitura retrospectiva do que poderia ter sido o Mercosul e o que, efetivamente, ele veio a converter-se ao atingir a maioridade, praticamente congelado nas etapas examinadas neste livro de um dos protagonistas originais. Um dos textos, por exemplo, datado de março de 1996, explica que “Não é o momento” de criar órgãos supranacionais, em especial um tribunal com poderes próprios (já que esse passo não seria constitucionalmente aceitável para o Brasil). Em outro, que faz um balanço da presidência brasileira e que comemora a passagem da “prova de fogo” que foi a instituição (sic) da união aduaneira, se lê que o Mercosul “consolidou-se como um agrupamento de crescente coesão interna e indiscutível capacidade de negociação externa” (p. 141). Sem comentários, nesta resenha... 259 Mais para o final do período, o argumento dominante na chancelaria era o de que o Brasil, sim, negociava a Alca, mas priorizava o Mercosul, por se tratar de um bloco com pretensões mais abrangentes e profundas, como o projeto de mercado comum. O temor, então (estávamos ainda 1997), era o de que a Alca provocasse “atraso, desvio ou interrupção no processo ora em curso de aperfeiçoamento da união aduaneira” (p. 169). Nunca houve, ao que parece, real interesse do Brasil pela Alca, que seria alegremente enterrada no cemitério de projetos irrealizáveis por ocasião da reunião de cúpula hemisférica de Mar del Plata, em novembro de 2005. Naquela mesma conjuntura, o Brasil recusava a constituição de “fundos” ou a adoção de “medidas compensatórias”, sob a justificativa de que os recursos alocados competiriam com aplicações nacionais ou que esse tipo de mecanismo implicaria em instituições burocráticas onerosas (p. 217-218). A partir de 2003, como se sabe, o Brasil passou não apenas a aceitar, como a promover ativamente esse tipo de “fundo compensatório”, do qual é o maior contribuinte líquido – 70% por cento do volume global, recentemente aumentado em 100%, por decisão própria –, sem ser, obviamente, o maior beneficiário (a despeito das mesmas diferenças e desigualdades internas que justificavam a recusa no momento em que Renato Marques desenvolvia seus argumentos). Incidentalmente – ou sem que isto tenha a ver com o objeto do livro –, a comparação entre o período coberto pelo autor, todo ele voltado para a negociação e implementação dos objetivos primários do Mercosul – isto é, o acabamento da união aduaneira e o caminho na direção do mercado comum – e a fase subsequente, e atual, de abandono quase completo dessas metas “comercialistas” e a ênfase colocada em aspectos políticos ou sociais do bloco, muito nos diz sobre a inflexão que ele sofreu ao longo dos dez anos seguintes ao período aqui coberto. Teses que antes o governo do Brasil rejeitava por não pertinentes ao “espírito” ou à “essência” do Mercosul passaram a ser aceitas e até implementadas voluntariamente, como a já referida opção pela constituição de fundos compensatórios e mecanismos corretores, ou a “fuga para a frente” – tendente a construir novas instituições políticas e sociais –, em lugar de resolver questões ainda pendentes dos fundamentos econômicos incompletos e do baixo grau de abertura recíproca (paradoxalmente) do bloco. Não se deve esperar, obviamente, um diagnóstico da situação do Mercosul, mesmo ao cabo do período coberto pelo livro, inclusive porque a natureza puramente “compilatória” da obra e a já referida lacuna de introdução ou de capítulo conclusivo não permitem tirar ensinamentos mais aprofundados. O que se tem aqui são materiais primários, minérios não processados, que devem aguardar outros insumos históricos ou lapidação por especialistas 260 para que, a partir desses discursos a favor do Mercosul, se possa organizar uma discussão sobre os fins e os meios mobilizados para construir o bloco e se tentar uma explicação para o evidente insucesso na consecução das metas explicitadas no artigo primeiro do Tratado de Assunção. O autor não é claramente responsável pelo que veio depois, mas muitos dos impasses atuais se devem, provavelmente, às escolhas feitas naquela época, como, por exemplo, a opção pela continuidade da “internalização” ad hoc – ou seja, sujeitas ao arbítrio nacional – das resoluções e decisões adotadas conjuntamente. Diz-se que a estrutura constitucional brasileira não permitiria a existência de um tribunal dotado de poderes supranacionais, mas não se examinou, em detalhe, as condições de existência de uma corte arbitral permanente par aplicar o patrimônio jurídico já em vigor no bloco. Pode ser que uma instituição desse tipo viesse a perder legitimidade, como foi o caso no Grupo Andino, mas é também possível que as barreiras ainda numerosas tivessem começado a ser desmanteladas na fase ainda ascendente do Mercosul. No conjunto, os textos são relevantes para permitir um retrato do Mercosul numa fase determinada de seu desenvolvimento, embora este conceito seja um tanto irônico ao se considerar o que veio depois. De fato, pode-se ler com alguma dose de ceticismo, um argumento do autor, segundo o qual, o Brasil é o país mais aberto do Mercosul” (p. 250). Não tenho certeza de que os demais sócios e outros países associados concordariam com a afirmação. Em todo caso, à falta de uma história do Mercosul, este livro constitui uma das fontes primárias – processadas politicamente, é verdade – para que um dia se possa escrever uma. Brasília, 4-12 de janeiro de 2009. Inédito em sua versão original. Addendum: O livro do embaixador Renato Marques foi posteriormente publicado por editora comercial, como aliás recomendei ao próprio autor, sugerindo que ele fizesse uma introdução explicativa e contextualizada sobre os materiais constantes da sua edição de autor. De fato, o texto de síntese introdutória acrescentado à edição comercial – Renato L. R. Marques: Duas Décadas de Mercosul (São Paulo: Aduaneiras, 2011, 368 p.; ISBN: 978-85-7129-581-0) – oferece, em suas 90 páginas, um relato das diversas etapas vencidas, das dificuldades enfrentadas e das razões pelas quais o Mercosul adotou o seu formato de união aduaneira incompleta, de natureza intergovernamental. Por distração, ou interesse real pela segunda versão desse livro, mais completa e amplamente revista, ele foi registrado por mim em duas oportunidades na seção Prata da Casa do Boletim da ADB, a primeira no quarto trimestre de 2011 (n. 75, outubro-novembro-dezembro 2011), a segunda exatamente um ano depois, no quarto trimestre de 2012 (n. 79, outubro-novembro-dezembro 2012), ambas reproduzidas nesta compilação, caso único de um livro mini-resenhado duas vezes. 261 O Brasil nos arquivos americanos: um guia de pesquisas Paulo Roberto de Almeida, Rubens Antônio Barbosa e Francisco Rogido Fins (organizadores): Guia dos Arquivos Americanos sobre o Brasil: Coleções documentais sobre o Brasil nos Estados Unidos (Brasília: Funag, 2010, 244 p.; ISBN: 978-85-7631-274-1) Os Estados Unidos sempre foram, historicamente, o principal parceiro do Brasil nos mais variados tipos de intercâmbios e transações da área econômica, sobretudo nos terrenos comercial, financeiro e tecnológico, posição ocupada de modo absolutamente dominante durante todo o decorrer do século XX. Mas eles também foram, de variados modos e de maneira sempre intensa, um grande interlocutor em campos de difícil quantificação ou mensuração pelos economistas e pelos estatísticos, como são o da cultura e o das humanidades, num sentido amplo, tendo seus estudiosos e pesquisadores participado de maneira intensa do próprio processo de construção das ciências humanas na academia brasileira, sobretudo na segunda metade do século passado. Nos velhos tempos, nossas elites iam estudar na Europa e de lá traziam não só os conhecimentos próprios dos cursos e os produtos e processos vinculados às principais atividades econômicas do Brasil, mas também os artigos da moda e os itens sofisticados que qualificavam seus possuidores pela distinção e luxo que então passavam a exibir. Em épocas passadas, a elite brasileira ostentava maneiras e expressões francesas, consumia bens comprados nas boutiques de Paris, mas os serviços e a cobertura financeira eram feitos na praça de Londres, junto aos banqueiros britânicos. Algumas outras contribuições, inclusive de natureza humana, provinham das regiões mediterrânea, ibérica e central da Europa, mas o essencial dos insumos e bens tangíveis e intangíveis vinha mesmo dos dois grandes países europeus que marcaram nossa história nas vertentes já indicadas: produtos e finanças inglesas, maneiras e ideias francesas. Um último resquício dessa antiga hegemonia europeia tinha sido conservado no pósSegunda Guerra: o domínio da alta cultura e o das chamadas “ciências do espírito”, terreno no qual os franceses continuaram a pontificar durante bastante tempo, como evidenciado nos muitos vínculos universitários dos dois lados do Atlântico – criados no entre-guerras – e na grande receptividade dada às ideias francesas em filosofia e história, quando não em outros campos das ciências sociais. Até uma personagem carnavalesca como Chiquita Bacana era existencialista, à la Jean-Paul Sartre, como convinha nesses tempos de hegemonia absoluta da 262 rive gauche sobre a haute culture e a da rive droite sobre a haute coûture, quando ambos os modismos franceses dominavam os corações e mentes das elites, assim como nossas referências culturais de modo geral. Pois bem, desde o final dos anos cinquenta e início dos sessenta, pelo menos, os acadêmicos dos Estados Unidos vêm comprovando sua crescente excelência também nos campos das humanidades, completando assim uma “ocupação de terreno” que já tinha começado no início do século XX pelos primeiros empréstimos da praça de Nova York, pelos investimentos industriais pioneiros, pelos filmes de Hollywood e pelas muitas inovações da cultura de massas americana. Não se trata aqui, apenas, do fenômeno dos brasilianistas, ainda que tais pesquisadores sejam o lado mais visível do intenso intercâmbio acadêmico – e por certo também cultural – que cresceu significativamente a partir da Guerra Fria, período que coincide com certa “americanização” do Brasil, como já ressaltado em estudos de brasileiros e de americanos. O Brasil passou, desde então, a consumir produtos, serviços, finanças e ideias americanas, em substituição (e até na ausência, durante um certo tempo) dos similares europeus, e seus universitários passaram a ir em maior número para os centros de formação pós-graduada dos Estados Unidos. Esse processo foi bem mais evidente nas disciplinas técnico-científicas, das ciências econômicas e de administração, mas ele não deixou tampouco de manifestar-se em outras áreas, aliás não exclusivamente acadêmicas. A moda, ainda que não o chic (que continuou em Paris), parece ter-se mudado para os Estados Unidos, pelo menos em sua vertente popular, vinda tanto da costa leste, como da costa oeste, para não falar, tempos depois, da moda country, que converteu-se em verdadeira febre no Brasil. Trata-se de uma “impregnação cultural” bem mais ampla do que pode ser revelado por esses fluxos formais ou oficiais de bens e de ideias circulando com as pessoas que costumam viajar de um país a outro, e que são, afinal de contas, em número extremamente reduzido quando comparado às populações totais, ou mesmo ao volume desses “turistas acidentais” da vida cultural que são os bolsistas do mundo acadêmico. O que está em causa é uma verdadeira osmose cultural, um fenômeno de massas que se manifesta sobretudo na música, no cinema e na televisão, movimento bem mais intenso, é verdade, do norte para o sul do hemisfério do que no sentido inverso, ainda que o fluxo contrário não seja desprezível tampouco. A bossa nova, por exemplo, incorporou-se de tal forma ao mainstream musical americano, que hoje é difícil separar o original brasileiro da cópia americana. Quem visita os malls e as lojas de departamento dos Estados Unidos não terá deixado de ouvir faixas musicais brasileiras repetidas ao longo do dia, a ponto de nos perguntarmos se os direitos de propriedade 263 intelectual sobre nossas composições estão sendo respeitadas na terra que mais defende mundialmente os copyrights de seus próprios autores e artistas. Aspecto menos conhecido dessas múltiplas interações entre o Brasil e os Estados Unidos, a não ser dos historiadores e especialistas em arquivos, são os documentos de natureza histórica – expedientes oficiais e relatos oficiosos, que comprovam a intensidade das relações bilaterais, praticamente desde antes da nossa independência e de modo bastante intenso a partir do século XX. Com efeito, como a esta coletânea pretende demonstrar, o “país” Brasil, mas também as “coisas” brasileiras de modo geral estão muito presentes, mesmo desde antes da independência, nos registros diplomáticos, consulares e nos papéis de negócios de agentes privados e de agentes oficiais americanos. Assim como não se pode compreender a história do Brasil moderno e contemporâneo sem levar em conta essas múltiplas interações com os Estados Unidos ao longo de mais de dois séculos, tampouco se pode pretender escrever sua história – oficial, nacional ou mesmo “popular” – sem uma referência às fontes documentais guardadas nos arquivos americanos. Como revelado neste volume, elas são muitas, elas são diversas e, sobretudo, elas estão bem organizadas e são facilmente disponíveis. O presente Guia dos Arquivos Americanos sobre o Brasil revela uma parte, uma pequena parte apenas, das várias interfaces existentes entre o Brasil e os Estados Unidos a partir das fontes primárias americanas depositadas em instituições de acesso aberto. O esforço conduzido pela Embaixada do Brasil em Washington, durante a gestão do Embaixador Rubens Antônio Barbosa (1999-2004), sob a coordenação intelectual do Ministro-Conselheiro Paulo Roberto de Almeida representa uma contribuição para o conhecimento ampliado da nossa própria história e da sociedade brasileira com base nesses registros documentais depositados em instituições americanas. Este livro não foi o único exemplo dos esforços empreendidos pelo Embaixador Rubens Barbosa, à frente da Embaixada em Washington, para ampliar o conhecimento recíproco – sendo pelo menos o terceiro livro que resultou de estudos e projetos acadêmicos por ele meritoriamente conduzidos – mas ele é, provavelmente, o resultado mais eloquente de uma iniciativa que tem muito a ver com uma atividade estimulada e coordenada à época pelo Ministério da Cultura, a saber o Projeto Resgate “Barão do Rio Branco”, de identificação e recuperação de documentos relativos à história do Brasil depositados em arquivos estrangeiros, que se desenvolveu com mais intensidade desde a fase preparatória das comemorações dos 500 anos da chegada de Cabral à terra brasilis. Ele vem juntar-se aos 264 guias de fontes já publicados para diversos arquivos europeus e aos muitos catálogos de documentos portugueses relativos às capitanias brasileiras da era colonial. Pode-se destacar aqui por que e em quê este Guia é importante para o Brasil, em especial para sua comunidade acadêmica. Não é necessário voltar ao tema da relevância dos Estados Unidos para o Brasil, já acima referida, mas deve-se, antes de mais nada, destacar uma peculiaridade deste volume de referência. À diferença de projetos similares ou equivalentes de identificação e apresentação das fontes documentais sobre a história do Brasil que vêm sendo feitos em arquivos de Portugal e de outros países europeus, este “Projeto Resgate” americano não poderia ter partido da catalogação extensiva, da microfilmagem subsequente e da divulgação ulterior dos principais fundos existentes nos Estados Unidos, por uma razão muito simples: a tarefa seria interminável e propriamente não administrável. Com efeito, se nos casos da Europa – já objeto de vários levantamentos e da publicação dos catálogos pertinentes – os estoques de documentos sobre os quais trabalharam os pesquisadores eram (relativamente) finitos, ou pelo menos mensuráveis, e se encontravam, por assim dizer, “congelados” (já que incidindo, em sua maior parte, sobre o período colonial de nossa história), no caso dos Estados Unidos esse estoque é dinâmico e praticamente infinito, pois que as coleções mais importantes se estendem pelos dois últimos séculos e cobrem uma atualidade tão recente quanto eventos e processos transcorridos em nossa própria geração, com protagonistas ainda vivos e atuantes nos cenários político, econômico, militar ou cultural. No caso dos Estados Unidos, hipoteticamente, uma opção de tipo “europeu” demandaria recursos financeiros incomensuráveis e incompatíveis com as possibilidades atuais do Brasil e um período de tempo proporcional à extensão e profundidade dos fundos disponíveis para cópia. A definição de um modelo de levantamento aplicável ao caso americano, portanto, se deu na direção de uma descrição relativamente completa dos principais centros depositários de papéis e outras fontes primárias para a pesquisa histórica sobre o Brasil nos Estados Unidos. Dentre essas instituições, as mais importantes se situam justamente na capital americana: os Arquivos Nacionais, a Biblioteca do Congresso e a Biblioteca Oliveira Lima, junto à Universidade Católica da América. Em relação a esta última, por exemplo, o Embaixador Rubens Barbosa procurou contribuir com a preservação e a disseminação, em benefício dos pesquisadores brasileiros, dos materiais ali depositados, legados pelo famoso diplomata e historiador brasileiro da passagem do século XIX ao XX, mas muito ainda resta a ser feito para democratizar o acesso aos seus ricos materiais. 265 O Projeto Resgate da Embaixada do Brasil em Washington permitiu, assim, identificar e apresentar, na maior extensão possível, os documentos sobre o Brasil depositados nas instituições americanas, a começar pelos National Archives and Records Administration (NARA). Não é necessário falar da importância desses documentos para a pesquisa sobre as relações bilaterais, sobre a política externa regional e as relações internacionais do Brasil, bem como para o estudo de sua história doméstica, política, social, econômica, militar e cultural. O ideal seria que a documentação assim identificada pudesse ser reproduzida (mecanicamente ou digitalmente) para ser colocada à disposição dos principais arquivos brasileiros dotados de tais tipos de papéis (Arquivo Nacional e Arquivo Histórico Diplomático, do Ministério das Relações Exteriores, ambos no Rio de Janeiro), bem como disseminada para outros centros de pesquisa universitária, uma vez lograda sua reprodução em meio eletrônico. Este material se juntaria assim às dezenas de microfilmes dos arquivos do Foreign Office britânico e do próprio NARA que já foram adquiridos nos anos oitenta mediante projeto coordenado pelo sociólogo Luciano Martins e depositados naqueles dois arquivos oficiais. As séries que já se encontram no Brasil vão, grosso modo, até o ano de 1959, mas no caso americano se trata de papéis exclusivamente diplomáticos, à exclusão, portanto, de outras agências oficiais americanas que podem apresentar relevância para as relações bilaterais e para o estudo de outros problemas, no âmbito regional, mundial ou relativos a instituições e conferências internacionais (estariam neste caso documentos dos departamentos do Tesouro e do Comércio, do Eximbank, da Comissão de Energia Atômica, da International Trade Commission, dos antecessores do United States Trade Representative, sem esquecer os arquivos presidenciais). Dispensável dizer, também, que vários desses papéis, e não apenas do Department of State no período posterior a 1959, mas também de agências especializadas, ainda não foram totalmente microfilmados pelo NARA. Fontes ainda não exploradas pelos historiadores, em especial aqueles da vertente econômica, são os arquivos da duas organizações “irmãs” de Bretton Woods, o FMI e o Banco Mundial, que possuem acervos que merecem escrutínio detalhado na área financeira. Na impossibilidade prática, que se espera temporária, de se lograr a catalogação completa desses fundos, para fins de informação dirigida aos pesquisadores interessados no Brasil, sob formato de publicação descritiva, ou da reprodução desses documentos nos formatos adequados para sua transferência a arquivos brasileiros e disponibilização em meio digital, a Embaixada em Washington realizou, no período de 2001 e 2002, este levantamento preliminar sobre os fundos documentais dos Estados Unidos sobre o Brasil e preparou, a 266 partir daí, este Guia, que contém uma identificação precisa dos fundos existentes, nos formatos disponíveis (microfilmes, textuais, audiovisuais). Este levantamento constitui um valioso instrumento de auxilio à pesquisa para todos os estudiosos do Brasil trabalhando com documentação dos Estados Unidos (e não apenas para o estudo de questões bilaterais). Muito ainda resta a ser feito, por todos aqueles interessados, justamente no sentido de se lograr copiar algumas das mais importantes séries documentais nessas instituições, objetivando colocá-las à disposição dos historiadores e cientistas sociais do Brasil. É uma tarefa que não incumbe apenas às autoridades de governo, mas a toda a comunidade potencialmente usuária e beneficiária desse tipo de material. Algumas das próximas etapas podem compreender, por exemplo, a documentação relativa ao período colonial brasileiro existentes em fundos americanos, de maneira a completar o trabalho já iniciado em relação às fontes europeias sobre a história do Brasil. As principais instituições, nesse caso, seriam o próprio NARA – onde existem muitos documentos relativos ao Brasil do período anterior à independência –, a Biblioteca do Congresso, bem como bibliotecas universitárias como a John Carter Brown – da Brown University, em Providence, Rhode Island – e a Biblioteca Oliveira Lima, onde se encontram manuscritos interessando à história portuguesa e brasileira dos seiscentos aos oitocentos e os papéis do arquivo particular do grande diplomata brasileiro (cadernos de notas, recortes, fotos, correspondência passiva, originais manuscritos de vários de seus livros etc.). No mundo ideal dos arquivistas, dos documentalistas e dos pesquisadores se deveria, logo em seguida, efetuar a conversão em formato eletrônico de todo o material assim recuperado e microfilmado, de maneira a permitir a confecção de DVDs, ou de quaisquer outros meios digitais, e lograr, finalmente, o acesso mais amplo possível desses arquivos e papéis online (como aliás, algumas fontes o fazem). Esperando que possa chegar logo essa “utopia” arquivista, os pesquisadores interessados podem agora consultar este primeiro volume de resultados desse projeto de “resgate” de papéis históricos americanos efetuado pela Embaixada do Brasil em Washington, sob a forma desta obra de referência, Guia dos Arquivos Americanos sobre o Brasil. Cumprimentos especiais devem ser dirigidos a todos os que participaram – o que compreende também a consultora especial do Ministério da Cultura, e coordenadora técnica do Projeto Resgate “Barão do Rio Branco”, Esther Caldas Bertoletti – ou que financiaram este projeto – como a fundação de apoio à cultura Vitae –, assim como cabem agradecimentos ao Embaixador Rubens Antonio Barbosa e ao Ministro Paulo Roberto de Almeida, que ao lado e acima de suas muitas ocupações diárias, por certo intensas na primeira missão do serviço 267 diplomático brasileiro, conseguiram conduzir um projeto tão relevante como este para o estudo do Brasil e suas relações exteriores. Este guia foi composto com o objetivo de resgatar e de preservar um dos “pedaços” de memória brasileira espalhados pelo mundo, neste caso nos EUA. O esforço empenhado em sua produção visou , em última instância, oferecer ao público em geral, em primeiro lugar aos historiadores e aos pesquisadores brasileiros, um guia útil das fontes primárias lá disponíveis sobre nossa história. Estes últimos serão, justamente, poupados em certa medida do “esforço” de localizar locais, de identificar catálogos pertinentes e de selecionar documentos nas bases de dados das instituições pesquisadas, ganhando com isso um precioso tempo quando eles dispõem apenas de curto período de pesquisa. Este volume representa uma missão cultural que pode ser classificada como serviço público, no sentido e, que ele colabora com o trabalho de recuperação de nossa história no exterior. Brasília, dezembro de 2007 Addendum: Esta apresentação, feita praticamente quatro anos depois da preparação dos originais, ainda teve de esperar mais três anos para sua materialização gráfica, por motivos alheios à vontade dos organizadores deste volume. A despeito da defasagem temporal, o Guia preserva sua utilidade metodológica, já que consolidando algumas informações práticas relevantes para os pesquisadores desejosos de trabalhar nos arquivos americanos, mesmo se, no intervalo, muitos dos arquivos aqui referidos conheceram notável ampliação do acervo disponível, assim como algumas mudanças práticas nas condições logísticas para o acesso aos fundos que interessam aos pesquisadores. Shanghai, 12 outubro 2010 Addendum 2: A versão desta nota final publicada pela Funag é esta: Addendum em outubro de 2010: Esta apresentação foi feita antes da presente publicação dos originais, que só agora se materializa, preservando contudo o GUIA sua utilidade metodológica, mesmo sabendo-se que na área dos arquivos, a cada dia podem ser desvelados novos documentos e condições logísticas para o acesso aos fundos que interessam aos pesquisadores estão a sofrer permanentes e contínuas modificações, pela própria natureza dos acervos. 268 Maquiavel para os modernos Paulo Roberto de Almeida: O Moderno Príncipe (Maquiavel revisitado) (Brasília: Senado Federal, 2010, 195 p.; ISBN: 978-85-7018-343-9) Este livro foi escrito por um proscrito. Explico: O Príncipe, original de 1513, foi escrito por Nicolau Maquiavel quando ele se encontrava em completo ostracismo, depois que a conquista da Toscana pelos espanhóis recolocou no comando de Florença, em 1512, a família dos Médici. Como escreveu Delio Cantimori, no verbete sobre o florentino que ele preparou para a Storia della Letteratura Italiana (quinto volume, da Garzanti), “nonostante l’ingegno, l’acutezza e la dottrina che gli venivan riconosciuti, il Machiavelli non fu mai chiamato agli uffici maggiori della repubblica fiorentina che egli servi dal 1498 al 1512”.1 De fato, depois de ter servido durante quase três lustros à República da sua cidade natal (1469), e de ter desempenhado missões diplomáticas da mais alta responsabilidade – em 1500, em Pisa, para resolver uma rebelião de soldados mercenários; logo em seguida junto ao reino de Luís XII da França, retornando ali mais três vezes, entre 1504 e 1511; em 1502 junto ao duque Valentino, César Bórgia, em Urbino e Sinigaglia; em 1503 e 1505, em Roma; em 1507, junto ao Imperador Maximiliano, do Sacro Império Romano Germânico –, Maquiavel nunca mais retornou ao seu cargo de segretario, a despeito de ter desempenhado outras missões diplomáticas nos últimos anos de sua vida. Como o próprio Maquiavel escreveu, em torno de 1518-1519, na apresentação a outro texto seu dessa fase de desterro, os Discorsi sopra la prima deca di Tito Livio, ele havia colocado em seus escritos toda a substância do que sabia e do que tinha aprendido ao longo de uma vida dedicada à prática política e às leituras constantes em torno “delle cose del mondo”, ou, como transcreve Cantimori, “per ‘lunga pratica’ della vita politica, ‘continua lettura’ della storia política”.2 Condenado ao confinamento por um ano, em 1512, mas não reabilitado depois disso, Maquiavel se retirou na sua vila Albergascio, perto de San Casciano, no Val di Pesa, e ali, amargurado por um injusto isolamento, soube reagir ao afastamento forçado da 1 Cf. Delio Cantimori, “Introduzione”, in Niccolò Machiavelli, Il Príncipe e le opere politiche, Milão: Garzanti, 1976, p. xi. 2 Idem, a partir de C. Pinsin, Sul testo del Machiavelli. La prefazione alla prima parte dei “Discorsi”, in Atti dell’Academia delle Scienze di Torino, vol. 94 (1959), disp. 2, Torino, 1960, pp. 506-518; cf. “Introduzione”, op. cit. supra, p. xi. 269 política ativa que lhe impuseram, colocando no papel suas reflexões sobre a prática da política, sobre a arte da guerra e a propósito dos ensinamentos que se podiam retirar do itinerário dos grandes homens e da evolução, entre auge e declínio, das sociedades da antiguidade clássica. Por uma dessas ironias da História, ele veio a morrer no mesmo ano em que a república foi restabelecida em Florença, em 1527. Este Moderno Príncipe também condensa tudo o que me foi possível aprender ao longo de uma vida dedicada à atenta observação delle cose del mondo, ao estudo das coisas da política e das artes diplomáticas, assim como no aproveitamento de continue letture, em todas as áreas das ciências humanas e disciplinas afins, ou seja, em tudo aquilo que interessa ao homem enquanto ser político. O livro também foi escrito em condições de relativo isolamento, pelo menos da diplomacia prática, que exerci de modo contínuo de 1977 a 2003, depois de já ter enfrentado meu próprio desterro, ainda que semi-voluntário, entre 1970 e 1977, na fase mais dura do regime militar que tutelou o Brasil de 1964 a 1985. Meu novo ostracismo involuntário permitiu, ao lado do exercício de lides acadêmicas que sempre permearam a atividade profissional, longas noites de leitura, intensas reflexões sobre as transformações do mundo contemporâneo e do Brasil atual, como também propiciou a produção de escritos a respeito da conjuntura política e sobre a história diplomática, divulgados em revistas especializadas ou em livros por mim publicados. De todos os livros que escrevi – no mais das vezes voltados para as relações internacionais e a política externa do Brasil –, o que mais reflete o meu pensamento político e aquele de que mais gosto, A Grande Mudança (Códex, 2003), é o que menos obteve sucesso de público, permanecendo relativamente desconhecido (talvez pelo fato de, quando do lançamento, me encontrar no exterior). Em todo caso, este livro retoma algumas das reflexões ali conduzidas pela primeira vez e amplia meu aprendizado nas artes da política por meio de uma retomada linear do texto que se encontra, a justo título, no panteão das grandes obras do pensamento universal. Quinhentos anos depois, como para muitos clássicos, a constatação se impõe por si só: Maquiavel continua atual! Este “Maquiavel revisitado” segue fielmente o roteiro traçado nos últimos meses de 1513 pelo pensador e diplomata florentino. A estrutura e o foco dos capítulos permanecem idênticos: apenas troquei “Itália” por “nação”, em dois capítulos finais, seja para tornar a reflexão mais universal, seja para fazê-la aplicável a uma outra grande nação de tradição latina. A temática e a substância de cada um dos capítulos também permanecem relativamente similares: os problemas que angustiavam o segretario de há meio milênio parecem 270 rigorosamente os mesmos, com pequenas adaptações de detalhe ou de linguagem. Alguma novidade nisso? Provavelmente não! As referências e o tratamento dos problemas são, contudo, inteiramente atuais, ainda que se tenha optado por um estilo e um linguajar deliberadamente “caducos”, como forma de manter um “parentesco espiritual” com a obra de meu predecessor diplomático do Renascimento. O que eu fiz, sim – e nisso me cabe o copyright, ainda que eu deva conceder os moral rights ao florentino –, foi reescrever totalmente o seu “manual de política prática” no sentido daquilo que eu penso deva determinar, hoje, a política moderna: o compromisso democrático; o cumprimento das “regras do jogo”, como diria um outro filósofo da política, Norberto Bobbio; a transparência na administração da coisa pública; a correção no manejo do pubblico denaro e, sobretudo, a honestidade intelectual, que para mim é o critério básico de qualquer ação social, independentemente da área na qual ela se insira. Maquiavel escreveu o seu pequeno “manual” como uma espécie de guia de conduta para os governantes, mas ele se coloca bem mais do ponto de vista do Estado do que do ponto de vista dos cidadãos. Talvez se pudesse dizer, sem ostentação ou pretensões exageradas, que meu pequeno manual pretende ser uma espécie de guia de conduta para os governados e ele se coloca, mais bem, do ponto de vista dos indivíduos, que constituem, afinal de contas, o destino final de toda a ação política. Revisitar Maquiavel é sempre angustiante, como já escreveu certa vez Raymond Aron, uma vez que as relações entre a moral e a ação política, entre a ética e a eficácia, entre os fins e os meios, estão sempre sendo colocadas na balança de nossas escolhas fundamentais. As minhas escolhas ficam transparentes em cada parágrafo do meu texto, mesmo quando a “racionalidade econômica” parece predominar sobre a “justiça social”, ou quando os valores morais são confrontados aos procedimentos políticos, que sempre evidenciam, como todos sabem, o eterno dilema entre as convicções pessoais e os resultados práticos, no plano da ação social. As minhas opções estão postas claramente nas páginas que seguem e a primeira delas, ouso repetir, é justamente a honestidade intelectual. Este princípio fundamental compensa qualquer ostracismo. Gostaria, por fim, de agradecer a todos aqueles que me ajudaram, voluntariamente ou não, na finalização deste livro, em primeiro lugar no processo de sua revisão. Ele tinha sido iniciado em meados de 2003, como o segundo de uma série de “clássicos revisitados” – tendo sido o primeiro uma atualização do Manifesto Comunista de 1848, aos 150 anos de sua edição original – mas, desde então, tinha ficado parado em virtude de uma carregada agenda de obrigações profissionais e acadêmicas. Inesperadamente, encontrei o tempo que me faltava 271 em meados de 2007: sou reconhecido, portanto, também aos que me permitiram dispor de condições para finalizá-lo. Brasília, 23 de fevereiro de 2010. Prefácio ao livro publicado. Addendum: Texto de divulgação: O que nos separa de Maquiavel? Se, por alguma fortuna histórica, Maquiavel retornasse, hoje, ao nosso convívio, com as suas virtudes de pensador prático, quase meio milênio depois de redigida sua obra mais famosa, como reescreveria ele o seu manual “hiper-realista” de governança política? Seriam os Estados modernos muito diversos dos principados do final da Idade Média? Este Maquiavel revisitado, voltado para a política contemporânea, dialoga com o genial pensador florentino, segue seus passos naquelas “recomendações” que continuam aparentemente válidas para a política atual, mas não hesita em oferecer novas respostas para velhos problemas de administração dos homens. Aqui, como em outros aspectos, a constância dos “príncipes” nos desacertos é notável. Essa capacidade de errar e de provocar danos aos cidadãos não parece ter evoluido muito, desde então. De fato, Maquiavel permanece surpreendentemente atual – com o que concordariam os filósofos e cientistas políticos da atualidade –, mesmo (talvez sobretudo) nos traços malévolos exibidos pelos condottieri contemporâneos e pelos cappi dei uomine. Ainda que envenenamentos encomendados e assassinatos por adagas, tão comuns no Renascimento italiano, não estejam mais na moda – pelo menos fora do âmbito dos serviços secretos –, e que eles tenham sido substituídos por outros métodos para se desembaraçar de concorrentes e de adversários políticos, as técnicas para se apossar do poder e para mantê-lo exibem uma notável continuidade com aquelas descritas pelo experiente diplomata da repubblica fiorentina do Quatrocento. O que pode estar ultrapassado, no seu “manual” de 1513, é meramente acessório, pois a essência da arte de comandar os homens revela-se plenamente adequada aos dias que correm, confirmando assim as finas virtudes de psicólogo político – avant la lettre – do perspicaz pensador do Cinquecento. 272 Este Príncipe Moderno representa, antes de tudo, uma singela homenagem ao diplomata italiano que “inventou” a ciência política, ainda que ele o tenha feito nas difíceis circunstâncias do ostracismo, na sua condição de funcionário de Estado “cassado” pelos novos donos do poder em Florença. Obra de um momento político – talvez não muito diverso daqueles tempos vividos pelo segretario de cancelleria –, este novo Príncipe, que se pretende tão universal em seu escopo e motivações quanto seu modelo de cinco séculos atrás, oferece novos argumentos em torno dos velhos problemas da administração estatal. A bem refletir sobre a política contemporânea, pouco nos separa de Maquiavel, se não é algum desenvolvimento institucional e uma maior rapidez nas comunicações. Quanto aos homens, tanto os condottieri quanto o popolo, eles não parecem ter mudado muito... Brasília, 21 de maio de 2011. Texto divulgado pelo site gaúcho Via Política, não mais disponível. 273 Rendas faustianas, punhos wagnerianos... Edgard Telles Ribeiro: O Punho e a Renda (Rio de Janeiro: Editora Record, 2010, 560 p.; ISBN: 978-85-01-09162-8) O autor adverte, em sua nota inaugural, que este livro “é obra de ficção”. Acredito. Mas, como ocorre com certas declarações de diplomatas, talvez se deva dar um desconto em afirmação tão peremptória, algo como 50% em relação ao seu valor de face. É uma obra de ficção em grande parte de seu enredo essencial, mas que tem muito de verdade, no que se refere à fundamentação dos personagens e situações. Trata-se de um “romance” verossímil, de uma história plausível, com a vantagem de ter sido concebida e modelada por um insider, um diplomata distinguido, que calha ser também um excelente escritor, autor de vários outros romances e livros de contos. Eu começaria dizendo que se trata do “romance” (ou da história real) de uma geração: a dos diplomatas – os de “punhos de renda” – que atravessaram os anos de chumbo do regime militar – feito quase só de punhos – e que conseguiram sobreviver, cada qual a seu modo. Quase todos “sobreviveram”, sem maiores percalços, e os “sacrificados” foram poucos. Muitos outros brasileiros não sobreviveram, e é isto que interessa, talvez, não tanto ao Itamaraty, enquanto tal; mas aos brasileiros que saíram da anarquia “democrática” em vigor no início dos anos sessenta, enfrentaram mais de vinte anos de regime militar, e ainda hoje tentam entender o que, afinal, aconteceu no Brasil, e na região, durante a longa noite de regimes autoritários na América Latina. Mas obra não é exatamente o “romance” de uma geração, ou sequer de toda uma casta de servidores públicos, o que são, indiscutivelmente, os diplomatas. Trata-se, mais apropriadamente, de uma “biografia não-autorizada”, talvez goethiana, de uma parte dessa casta de servidores do Estado, em um dos ministérios mais respeitados da burocracia federal. Tudo gira em torno de Max, o codinome, se poderia dizer, que se deixa aprisionar pelos novos tempos e é envolvido em suas tramoias mais sórdidas – quando o Brasil, não contente em consolidar o domínio autoritário no interior de suas fronteiras, ajudava a “corrigir” os desmazelos das democracias populistas nos países vizinhos, ali patrocinando golpes militares violentos. Ele consegue, inclusive, sobreviver à derrocada do regime, sempre apostando nas “pessoas certas”, nas personalidades influentes (a começar por um beijo no anel do cardeal brasileiro, pouco antes do golpe de 1964). Max tem um nome ficcional: Marcílio Andrade 274 Xavier. Mas, na verdade, ele é um amálgama de diversos diplomatas que existiram, realmente, ao longo do regime militar (e mais além...). O estilo é brilhante, e o leitor atravessa esse “romance-história” sem parar, do começo ao fim de suas 550 páginas, sempre com o personagem principal no centro ou em surdina ao enredo. Este é talvez goethiano, mais exatamente faustiano, pelo menos em partes da obra. Em outras partes, a obra vira um itinerário de descoberta, um pouco como nos romances de John Le Carré, em que os personagens do submundo da inteligência civil, têm de lidar com sentimentos e frustrações, com as emoções humanas, aquilo que Graham Greene chamou, em um dos seus livros, “the human factor”. Parafraseando aquela velha canção sobre os desafinados, pode-se dizer que os homens de inteligência também têm um coração. Pode até ser, mas não propriamente Max, que apenas tem como objetivos poder e prestígio, o tempo todo mirando no futuro, e não apenas no presente de luta surda (e aberta) contra as ameaças comunistas na América Latina em plena era da Guerra Fria. O personagem principal aparece como um intelectual brilhante. Ele poderia, assim, ter tido sucesso apenas fazendo um pouco mais do que recomendaria o estrito dever funcional; ou então, como muitos outros na carreira, por meio de um desempenho “correto” numa profissão certamente exigente em qualidades pessoais, mas também marcada por tarefas aborrecidamente burocráticas na maior parte do tempo; em qualquer hipótese, ele teria tido a chance de se distinguir no cumprimento de suas “missões” e, dessa forma, ser promovido antes dos seus colegas de turma. Max, no entanto, dotado de uma ambição desmedida, acaba fazendo um pacto faustiano: cercado, ou encurralado, por um manipulador de carreiras, aceita servir ao SNI, cooperar com a CIA e colaborar com a inteligência britânica, o MI6 (excusez du peu, como diriam os franceses). Sim, tudo isso por motivações puramente pessoais, sem qualquer desejo de vingança; menos ainda por amor ao dinheiro ou qualquer outro motivo mais mesquinho. Apenas um gosto inexplicável por uma vida de dupla, ou tripla, personalidade. Traço de caráter que, aliás, permanece não explicado ao longo do “romance”, o que acrescenta ao mistério (e que poderia ter sido explorado psicanaliticamente, como conviria, talvez, nessa espécie de Bildungsroman). Todos os personagens têm nomes próprios no “romance”, ainda que ligeiramente trocados, por simples precaução do autor, como o agente da CIA morto pelos Tupamaros no Uruguai, por exemplo. Menos o personagem que introduziu Max no submundo da inteligência brasileira, alegadamente seu chefe em Montevidéu, um antigo embaixador por demais conhecido (dos mais velhos) na carreira, como um anticomunista profissional, e que deixou 275 dois volumes de memórias até interessantes pela sinceridade com que revelou seus “golpes” contra os comunistas da carreira e os de fora dela. O “homem da capa preta” fica sem nome, mas não é difícil descobrir quem seja, e seria até interessante reler, hoje, certas passagens de suas memórias. Os diplomatas também se precipitarão sobre alguns currículos de colegas, vivos ou “desaparecidos”, para saber o quanto existe de coincidências ou de similitudes, em termos de postos, datas e situações, com colegas que eles possam ter conhecido e que imaginam “retratados” no romance. Muitos se sentirão frustrados, mais, talvez, pelas não-coincidências do que por estas, que são todas absolutamente plausíveis, até mesmo possíveis, tomadas globalmente, ao longo de um itinerário de descobertas muito bem encadeado na competente e absorvente escrita do autor. Como especialista em cinema – tendo, aliás, servido duas vezes em Los Angeles e dado aulas de cinema na UnB – ele traça um roteiro, um script, melhor dizendo, impecável, com flashbacks e cenas paralelas que prendem a atenção de qualquer leitor, ainda mais se este for da carreira e estiver interessado em conhecer um pouco mais do submundo em que o Itamaraty se envolveu durante os chamados anos de chumbo. O personagem Max, obviamente, confunde os colegas de carreira do autor, pois não corresponde a um diplomata em particular, mas sim a um “compósito literário”, elaborado a partir daqueles poucos que atuaram nas sombras e nos cenários cinzentos que marcaram os anos mais duros do regime militar: poucos desses, aliás, estariam em condições de assumir completamente a figura faustiana que emerge nesta obra, aspecto que se encontra na trama de alguns grandes “romances” clássicos. Curiosamente, é um livro de Thomas Mann que oferece ao MI6 britânico a chave, involuntária e inconscientemente fornecida por Max, para penetrar nos segredos do programa nuclear brasileiro, ainda em gestação no início dos anos 1970 – quando o Brasil colaborava com a CIA na montagem dos golpes militares no Uruguai e no Chile – mas cuja interface tecnológica alemã já deixava de cabelos em pé os “não-proliferadores” de Washington. Não, não se trata do Doktor Faustus (que só veio à luz nos anos 1950), mas de uma primeira edição autografada pelo autor de Der Zauberberg (A Montanha Mágica, publicado pela primeira vez em 1924), da qual o embaixador em Montevidéu jamais se separava (mas eu deixo esse spycatch para os leitores do livro). Este aspecto talvez seja o “detalhe” mais realista – ainda que ficcional – do “romance”, pois se as perseguições a comunistas há muito ficaram para trás, determinadas “opções” nucleares continuam rigorosamente atuais (um pouco como uma 276 baleia que emerge de vez em quando para respirar, segundo uma imagem, hors-roman, do autor). Hoje, aliás, os perseguidos dos anos 1970 se encontram em grande medida no poder – alguns até pretendendo se vingar de seus antigos torturadores – e revelações de arquivos diplomáticos (muito antes do Wikileaks) já demonstraram algumas facetas da colaboração de diplomatas com os antigos serviços de repressão. Max, quaisquer que sejam suas encarnações reais, continuou, no romance, atuando nas entrelinhas desses tempos sombrios, sempre com as cautelas necessárias, para emergir depois, aparentemente impoluto, e se adaptar aos novos tempos de república dos companheiros. Ele sobreviveu de um jeito ou de outro, até ver os antigos perseguidos do regime no comando do novo Estado, em uma situação de poder à qual ele mesmo aspirava chegar, como uma espécie de Santo Graal meritório, por suas grandes qualidades intelectuais (também reconhecidas pelos agentes da CIA e do MI6). Diplomatas e leitores externos ficarão perturbados, por diferentes razões, pelo desenvolvimento geral da trama deste “romance verdadeiro”, que refaz, por assim dizer, o itinerário dessa geração de diplomatas que teve de conviver, suportar ou então se aproveitar – no caso de muitos – das novas condições criadas pelo regime militar no Brasil. Ainda não existe uma história – por algum insider ou por um historiador profissional – de como o Itamaraty “conviveu” com – e se adaptou a – esses tempos sombrios, embora eu mesmo tenha tentado reconstituir uma parte da história neste capítulo de um livro coletivo: “Do alinhamento recalcitrante à colaboração relutante: o Itamaraty em tempos de AI-5”, “Tempo Negro, temperatura sufocante": Estado e Sociedade no Brasil do AI-5. Sem se lograr, contudo, a colaboração dos envolvidos, é virtualmente impossível reconstituir as tramas mais importantes desse período que muitos querem esquecer. Os próprios diplomatas que viveram esses tempos – o que não foi o meu caso, para aquela fase precisa da “diplomacia blindada”, digamos assim – ainda não escreveram sobre isso e duvido que venham a empreender a dolorosa tarefa de falar sobre as pequenas e grandes misérias do período. Que Edgard Telles Ribeiro o tenha feito – ainda que sob a forma de um “romance verdadeiro” – oferece uma prova de sua coragem, depois de tantos romances e livros de contos, em lançar-se no que poderia ser chamado de “revisão intelectual” de alguns dos personagens mais emblemáticos do ancien régime militar. Um livro perturbador para uns e outros da carreira, certamente curioso, ou mais do que isso, para os de fora, em todo caso inédito para os padrões reservados ou circunspectos da Casa de Rio Branco. Os interessados na História, a real, tentarão estabelecer onde termina a realidade e onde começa a ficção; uma separação muito difícil de se fazer, dado o próprio 277 envolvimento do autor com alguns dos que “colaboraram” – involuntariamente, por certo – para a montagem do personagem principal. Algum psicanalista talvez diga que a obra representou a forma de seu autor “matar” uma parte de seu passado, o que também é legítimo, sobretudo para os que viveram intensa e preocupadamente aqueles anos de escolhas difíceis e de futuros incertos. Nem todos os “sobreviventes” o fizeram com tanta dignidade e honestidade intelectual quanto o autor deste “romance”. Para todos nós, leitores, o importante é saber que o “romance” – quaisquer que sejam suas partes de verdade e ficção – nos prende do começo ao fim, tão absorvedora é a “história” e tão cativantes são a escrita e o estilo do autor: dá para ler, em menos de 24 horas, uma trama de meio século... Brasília, 8 fevereiro 2011. Publicada na Revista de Economia e Relações Internacionais (FAAP-SP; vol. 10, n. 19, julho de 2011, p. 183-186; ISSN: 1677-4973). Divulgado em versão reduzida, sob o título “Diplomacia de capa e espada?” no Boletim ADB (ano 17, n. 72, janeiro-fevereiro-março de 2011, p. 29-30). 278 O altermundialismo, uma enfermidade infantil da globalização Paulo Roberto de Almeida: Globalizando: ensaios sobre a globalização e a antiglobalização (Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, xx+272 p.; ISBN: 978-85-375-0875-6) Ridendo castigat mores. Jean-Baptiste Poquelin, aliás Molière (1622-1673) “O Brasil converter-se-á num dos mais formosos estabelecimentos do globo (nada para isso lhe falta) quando o tiverem libertado dessa multidão de impostos, desse cardume de recebedores que o humilham e oprimem; quando inúmeros monopólios não mais encadearem sua atividade; quando o preço das mercadorias que lhe trazem não mais for duplicado pelas taxas que andam sobrecarregadas; quando os seus produtos não pagarem mais direitos ou não os pagarem mais avultados que os dos seus concorrentes; quando as suas comunicações com as outras possessões nacionais se virem desembaraçadas dos entraves que as restringem...”. Guillaume-Thomas Raynal, conhecido como Abade Raynal, Histoire philosophique et politique des établissements et du commerce des européens dans les deux Indes (Amsterdam, 1770); Apud Manuel de Oliveira Lima, D. João VI no Brasil (3a. ed.; Rio de Janeiro: Topbooks, 1996), p. 58-59. Incrível atualidade a da frase transcrita no frontispício deste livro, de uma das cabeças mais lúcidas do século 18 francês. Antiescravagista em plena era do tráfico africano, pensador iluminista, conhecedor das coisas do mundo, mesmo sem ter viajado fora da Europa ocidental, o abade Raynal (Guillaume-Thomas) poderia ser descrito, em linguagem moderna, como um “globalizador esclarecido”, categoria à qual eu mesmo me orgulharia de pertencer, se existisse entre nós tal clube filosófico. Com efeito, a sua provocadora Histoire philosophique et politique des établissemens & du commerce des européens dans les deux Indes pode ser chamada de primeiro tratado da globalização dos tempos modernos, ou le premier traité de la mondialisation, como prefeririam os franceses, sempre suscetíveis nessas coisas de anglofonia. Raynal começa o primeiro livro de sua enorme obra (6 volumes) proclamando a revolução que tinha sido a passagem do cabo da Boa-Esperança: “uma revolução então começou no comércio, na potência das nações, nos costumes, na indústria e no governo dos povos. Foi nesse momento que os homens dos lugares mais distantes se fizeram necessários: os produtos dos climas equatoriais são consumidos nos climas vizinhos do polo; a indústria 279 do norte é transportada ao sul; os tecidos do Oriente vestem o Ocidente, e em todas as partes os homens trocam suas opiniões, suas leis, seus hábitos, seus remédios, suas enfermidades, suas virtudes e seus vícios”. Além de lúcido, nosso abade era um visionário: “Tudo mudou e tudo deve mudar ainda. Mas, as revoluções passadas e aquelas que ainda vão vir, podem ser úteis à natureza humana? O homem, por causa delas, gozará um dia de mais tranquilidade, de mais virtudes ou de mais prazeres? Poderão elas torná-lo melhor, ou elas apenas o mudarão um pouco?” 1 Estas perguntas, filosóficas, de fato, são examinadas à luz da obra colonizadora dos europeus: “Depois que se conheceu a América e a rota do Cabo, nações que não eram nada se tornaram poderosas; outras, que faziam estremecer a Europa, se enfraqueceram. Como essas descobertas influenciaram o estados dos povos? Por que, enfim, as nações mais florescentes não são exatamente aquelas com as quais a natureza foi mais pródiga?” Ele começa a explorar essas questões, partindo do pressuposto da unificação comercial do mundo sob a hegemonia do se poderia chamar, hoje em dia, de capitalismo ocidental. A análise de Raynal é absolutamente atual, podendo-se dizer que seus argumentos parecem referir-se à globalização contemporânea. Esta coleção de ensaios pessoais também é colocada sob o signo controverso da globalização, aliás, bem mais do lado do abade Raynal do que dos modernos êmulos daqueles representantes das correntes anti-iluministas que colocaram sua obra no index dos livros proibidos e tentaram calar sua voz incômoda e libertária. Após a publicação da terceira edição da sua História filosófica das duas Índias, seus inimigos a fazem condenar pelo Parlamento de Paris, queimando-a em praça pública, enquanto ele se refugiava na Suíça (onde ele faz construir um monumento em honra à liberdade). Ele frequenta em seguida as cortes de Frederico II, da Prússia, e a de Catarina II, da Rússia. Às vésperas da Revolução, ele encarna os ideais do Iluminismo e dos direitos humanos e protesta contra a autocracia e a escravidão nos territórios coloniais, cujos horrores ele conhecia por ser descendente de uma família de grandes comerciantes (e de traficantes). Perseguido pelo ancien Régime, ele logo se coloca também contra os exageros do novo regime, como declarado em sua carta à Assembleia Nacional em 31 de maio de 1791: “eu alertei os reis quanto aos seus deveres; inquietai-vos que hoje eu fale ao povo dos seus erros”. 1 As obras de Raynal estão disponíveis em formato digital no site da Bibliothèque Nationale de France, também através do portal da coleção Europeana: http://www.europeana.eu/portal/briefdoc.html?start=1&view=table&query=Abb%C3%A9+Raynal. 280 Com efeito, mesmo os bem intencionados cometem erros, como por exemplo, hoje, os chamados altermondialistes franceses – e seus seguidores miméticos no Terceiro-Mundo, conhecidos como antiglobalizadores –, ao pretender substituir as iniquidades da globalização capitalista por sistemas econômicos que fariam os povos das antigas colônias ainda mais pobres do que eles já são. De fato, ao examinar os escritos, declarações, manifestos, slogans e consignas dos antiglobalizadores, e ao confrontá-los com os dados da realidade, tanto no plano da história, como da atualidade, ou ainda no âmbito da simples lógica formal, impossível não chegar à conclusão de que eles se equivocam redondamente sobre o mundo, seus problemas e respectivas soluções. Pode-se, inclusive, parafrasear a velha frase: nunca, tantos se enganaram tanto, sobre tantos assuntos. Há muitos anos venho observado o curioso fenômeno da antiglobalização: não posso me impedir de admirar e também de sorrir face à ingenuidade de tantos jovens, sinceramente armados de idealismo, desejosos de corrigir os defeitos deste mundo. Mas tampouco posso evitar uma sensação de cansaço ante tantos slogans repetidos, retomando aborrecidamente chavões de décadas atrás, quando eu também marchava contra o imperialismo e a dominação do capital financeiro internacional. Creio, sim, que o movimento altermundialista é uma enfermidade infantil da globalização. Como não existe uma vacina contra ele, é preciso esperar que os sinais da enfermidade se tornem cada vez mais tênues, até desaparecer por completo, quando todos os jovens estiverem devidamente globalizados, como aliás já estão os da antiglobalização (mas no seu caso, eles pegam continuamente o vírus com professores alienados da academia). Tenho menos complacência, justamente, em face desses velhos representantes da academia, que parecem não ter aprendido absolutamente a partir do itinerário de desastres do socialismo real, no século 20. Velhos sindicalistas podem ser perdoados por marcharem contra a “deslocalização”, posto que, afinal de contas, eles não estão fazendo mais do que o seu dever, ao defender a manutenção dos empregos de seus associados em seus respectivos países. Mas, intelectuais de gabinete, que repetem slogans monotemáticos, simplificando uma realidade complexa e induzindo jovens a se engajarem em causas perdidas, não são apenas equivocados; eles também podem ser considerados intelectualmente desonestos, posto que dispondo de todos os instrumentos para se informar (e se formar). A acusação é grave, e ela se refere não apenas a equívocos materiais, digamos de avaliação econômica da realidade. Ela tem a ver com um slogan absolutamente vazio, o tal de 281 “outro mundo possível”: jamais fomos contemplados com a arquitetura desse outro mundo prometido, nunca apresentado em seus contornos materiais ou sequer “filosóficos”. Esses acadêmicos vivem do movimento pelo movimento, numa espécie de moto perpétuo mental, aliás, girando em circuito fechado, posto que imune e isolado de todo e qualquer debate que não seja no interior do próprio movimento. Ao condenar o tal de “pensamento único” – que seria, supostamente, o do neoliberalismo – esses acadêmicos alienados conseguem ostentar o mais rígido pensamento único conhecido na atualidade. De resto, o conjunto do movimento antiglobalizador pode ser acusado de sectarismo e tribalismo: só podem participar dos seus encontros, aqueles que aderem ao credo filosófico que constitui a “bíblia” do movimento antiglobalizador. Os que não estão habituados aos rituais da tribo encontrarão nesta coleção de ensaios farto material probatório. Os trabalhos aqui compilados falam por si mesmos. Eles tanto dão a palavra ao movimento antiglobalizador – pois que reproduzindo fielmente suas teses e argumentos mais repetidos – quanto se dedicam à anatomia desse pensamento redutor e simplista. Cada um dos ensaios está datado cronologicamente, o que explica pequenas repetições nos argumentos aqui e ali. De resto, eles devem se sustentar por si mesmos, e submeter-se à crítica dos leitores, entre os quais espero encontrar muitos jovens idealistas e alguns irredutíveis antiglobalizadores. Não tenho o hábito de ser politicamente correto, nem o de dobrar-me a conveniências do momento. Alguns dos trabalhos aqui compilados, já publicados anteriormente, podem explicar minha posição singular tanto na academia, quanto em outros ambientes. Não sou de esconder minhas posições. A todos de julgar. Shanghai, 10 de abril de 2010. Prefácio ao livro publicado. 282 Na diplomacia, entre a história e as ciências humanas Paulo Roberto de Almeida: Relações internacionais e política externa do Brasil: a diplomacia brasileira no contexto da globalização (Rio de Janeiro: LTC, 2012, 330 p.; ISBN 978-85-216-2001-3) Um livro é como uma garrafa atirada ao mar... Esta aqui foi lançada pela primeira vez em 1998, novamente lançada ao largo em 2004. Ao que parece, encontrou pela frente muitas ilhas acolhedoras, algumas enseadas intelectuais, vários portos, talvez um ou dois continentes acadêmicos, tanto que terminou por desaparecer… A “garrafa” que é agora lançada, com novo rótulo e um conteúdo algo modificado (espero que para melhor, ou pelo menos mais amadurecido), está destinada a navegar por mais alguns anos, a caminho da Ítaca dos livros, minha meta intelectual inatingível… Esta garrafa está sendo lançada ao mar pela terceira vez, desta vez com novos bilhetes e algumas velhas mensagens em formato renovado. O que pode esperar um náufrago concentrado nas leituras, nos estudos e na escritura, como eu? Talvez que seus recados encontrem boas praias, aqui e acolá, e possam servir de sinalização ou de boa orientação para todos aqueles que estejam em busca de alguns mapas acerca da globalização contemporânea. A cartografia marítima sofreu algumas mudanças, mas o espírito e a motivação com que foram escritos os estudos aqui “engarrafados” são os mesmos que presidiram à sua feitura, quando do meu primeiro livro. A obra que inspirou este novo texto encontrava-se há certo tempo fora de estoque e talvez até fora do catálogo da editora universitária que responsabilizou-se pelas duas edições. Muitos alunos me escreviam, assim como professores e pesquisadores, para relatar que estavam tendo dificuldades de achá-la, mesmo nos sebos. Tentava consolá-los, recomendando busca nas bibliotecas universitárias, mas é evidente que isso não é suficiente, inclusive porque as bibliotecas universitárias no Brasil não representam exatamente um modelo de abundância bibliográfica. Cabia, então, enfrentar o desafio de um novo livro, inspirado no anterior, porém agora profundamente revisto, ampliado e atualizado: esta nova garrafa, que o leitor tem agora em suas mãos. Não vou estender-me sobre os temas já tratados no prefácio, pela simples razão de que vários daqueles textos foram incorporados a esta edição, com as exceções que menciono abaixo. Vou aproveitar a oportunidade para abordar novos temas, que me parecem relevantes, 283 mais de uma década e meia depois da “explosão” dos cursos de relações internacionais no Brasil, assunto que abordei em inúmeros textos breves, geralmente divulgados em blogs, sites especializados ou em resposta a questionários submetidos por pesquisadores, alunos e jornalistas. Tal como concebida, inicialmente, esta obra não se destinava, exatamente, à preparação de candidatos à carreira diplomática, embora ela possa servir também a esse objetivo. Ela tinha sido elaborada, um pouco improvisadamente, como uma coleção de estudos tipicamente acadêmicos em torno de meus temas preferidos de estudo e trabalho, como por exemplo os que ainda figuram na primeira parte do livro atual. Havia também os que sintetizavam uma pesquisa empírica sobre o papel dos partidos políticos e do parlamento na política externa, que ainda figuravam na segunda edição, mas que agora partem para uma nova aventura ao largo, provavelmente destinada a consolidar minhas reflexões nessa área em alguma nova obra com maior amplitude temática e alguma ambição comparativa. Outros, concebidos como livre expressão de minhas reflexões sobre a “ideologia” e a “economia” da política externa, ou ainda um ensaio histórico sobre a formação da diplomacia moderna na era dos descobrimentos, também foram “lançados ao mar”, para abrir espaços a trabalhos mais elaborados. Aqui figuram, pois, engarrafados em nova “embalagem”, a de uma grande editora, estudos sobre as diplomacias comercial e financeira do Brasil nos últimos sessenta anos, sobre o impacto das crises financeiras na economia brasileira e, sobretudo, sobre a inserção desta nas grandes correntes da interdependência contemporânea, revoltas como podem ser essas ondas turbulentas da globalização, capazes de se transformar repentinamente em tsunamis gigantescos. Revisei, ampliei e atualizei escrupulosamente cada um dos trabalhos, inclusive o que figura ao final, sobre a arquitetura institucional do multilateralismo contemporâneo, um levantamento que começou a ser feito manualmente quando do momento de sua primeira concepção e que atualmente se beneficia de bases de dados online e outros recursos de internet. Este “navegador”, aliás, continua a surfar nas horas vagas (e nas outras também), anima uma lista de informação e debates sobre os temas que correspondem a suas afinidades eletivas e também mantém um blog, feito mais para divertimento inteligente do que propriamente para efeitos didáticos. Para essa função, existe um site pessoal, que parece ter algum sucesso na “googlemetria” das pesquisas sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Pelo menos assim constato pela correspondência que chega em diversos formatos e variados graus de urgência a propósito de trabalhos universitários e de consultas sobre a carreira diplomática. Acredito que a satisfação derivada dessas horas 284 dedicadas a esse esforço voluntário de educação à distância de tantos jovens em busca de sua vocação ou de seu aperfeiçoamento universitário ou profissional seja equivalente ao crescimento progressivo da produção intelectual voltada para esse campo das relações internacionais, tanto a própria, deste navegante solitário, quanto a da crescente comunidade de internacionalistas acadêmicos. O que tem, precisamente, caracterizado esse universo de estudos é o avanço da produção científica de boa qualidade, o surgimento e a expansão de redes de pesquisa, muitas delas interconectadas e em ativa cooperação recíproca e a consolidação de uma comunidade que está quase próxima de uma espécie de “profissionalização”. Quando este livro foi publicado pela primeira vez estávamos ainda a dez anos do surgimento de uma associação acadêmica voltada exclusivamente para esse universo em formação – a ABRI, Associação Brasileira de Relações Internacionais – mas já assistíamos à explosão dos cursos de graduação nessa área, depois de anos de algumas experiências solitárias e raríssimos programas de especialização em nível de pós-graduação. O livro não foi composto com o objetivo específico de atender alguma demanda didática desse universo em expansão, mas pode-se dizer que ele preencheu um nicho de mercado, no que, aliás, alcançou certo sucesso, já que estamos em seu terceiro lançamento, aparentemente com boa aceitação da comunidade de “produtores” e “usuários” de textos especializados. A intenção, agora, é que esta “garrafa” possa navegar mais alguns anos, em direção de antigos portos ou, preferencialmente, em busca de novas praias, e consiga manter o prumo em sua missão de guia dos estudos de qualidade para uma comunidade que possuiu sua própria identidade intelectual e já criou uma cultura de pesquisa e produção centrada sobre questões tipicamente brasileiras e regionais, em lugar de se basear apenas nos textbooks importados. Este livro é parte desse processo e sua navegação continuada parece refletir o sucesso crescente desse universo em expansão. Brasília, junho de 2011. Prefácio ao livro publicado. 285 O Barão, em todos o seus estados... José Maria Paranhos da Silva Jr.; Manoel Gomes Pereira (editor): Obras do Barão do Rio Branco, 12 volumes (Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2012; ISBN: para cada volume) Manuel Antonio da Fonseca Couto Gomes Pereira (organizador): Barão do Rio Branco: 100 Anos de Memória (Brasília: Funag, 2012, 748 p.; ISBN: 978-85-7631-413-4) Luís Cláudio Villafañe Gomes Santos (curador): Rio Branco: 100 anos de memória (Brasília: Funag, 2012, 80 p.) Ângela Porto (organizadora): Barão do Rio Branco e a caricatura: coleção e memória (Brasília: Funag, 2012, 176 p.; ISBN: 978-85-7631-414-1) No ano em que se comemorou o centenário da morte do Barão, as editoras comerciais brasileiras estiveram estranhamente contidas na publicação de obras dele ou sobre ele. De interessante, registramos apenas o livro de Luís Cláudio Villafañe Gomes Santos, O evangelho do Barão: Rio Branco e a identidade brasileira, publicado por uma editora universitária (a Unesp) e objeto de pequena nota no Prata da Casa do n. 78 (julho-agostosetembro de 2012) do Boletim da ADB. Em compensação, a Funag, por razões mais do que óbvias, primou pela presença editorial e pela qualidade do material produzido, sendo acompanhada no belíssimo empreendimento pelo Centro de História e de Documentação Diplomática, em sua série de Cadernos do CHDD. Comecemos pela republicação de suas obras (mais que) completas, um projeto que recebeu um cuidado especial do seu editor, embaixador Manoel Antonio da Fonseca Couto Gomes Pereira. Todo o mérito lhe cabe por ter, não apenas mandado redigitar, corrigir e melhorar todos os nove volumes originais (em dez tomos numerados), bem como o volume introdutório (não numerado), mas também por ter encomendado a diversos especialistas novas apresentações e introduções a esses volumes, além de um décimo volume dedicado inteiramente aos artigos de imprensa, numerosos, só perdendo em volume para os dois tomos das efemérides brasileiras. Poucas bibliotecas universitárias, nem mesmo grandes bibliotecas públicas, tinham o privilégio de possuir a coleção preparada em 1944-45, divulgada no centenário do seu nascimento (e até 1948), quando também se criou o Instituto Rio Branco e foi publicada a biografia assinada por Álvaro Lins, encomendada pelo MRE (mas preparada 286 em toda autonomia intelectual). Todas essas instituições, mais o público interessado, podem ter acesso agora aos muitos quilos deste pacote monumental, belo em sua apresentação, riquíssimo em seus novos conteúdos, inteiramente editado em português, e com todos os mapas. Com efeito, as novas apresentações são primorosas e valeriam uma reedição exclusiva, integrando-as num volume suplementar, a começar pela “introdução da introdução”, isto é, a “releitura” da Introdução original, antes assinada por um discípulo, Araujo Jorge, agora por um herdeiro intelectual, o embaixador Rubens Ricupero. Todos os demais volumes (à exceção do segundo tomo das efemérides) trazem, portanto, apresentações ou textos introdutórios totalmente inéditos (à exceção, novamente, das Efemérides, já objeto de uma apresentação do embaixador Luiz Felipe de Seixas Corrêa, para uma edição anterior do Senado Federal). O primeiro volume, por exemplo, recebe um estudo do historiador e professor do IRBr, Francisco Doratioto, sobre a questão de Palmas. Os três volumes seguintes, sobre as questões de limites com a Guiana Inglesa e as duas memórias sobre a Guiana francesa, foram traduzidas do francês, e mereceram brilhantes apresentações do historiador José Theodoro Mascarenhas Menck e do diplomata-historiador Gonçalo de Barros Carvalho e Mello Mourão. O Barão escreveu sua Mémoire sur... la Guyane Britannique praticamente como uma extensão de sua redação do caso da Guiana francesa, e ela seria a base das três memórias, em 18 volumes, que Joaquim Nabuco escreveria para a pendência arbitral com a Grã-Bretanha. A despeito da riqueza do material e da justeza da causa brasileira, a solução dada pelo rei italiano foi recebida com indignação no Brasil, daí a disposição do Barão em passar, doravante, a negociar diretamente os novos litígios fronteiriços. A disputa com a França era bastante complicada, e o Barão dedicou imensos esforços na coleta de material primário e no ordenamento de seus argumentos; ainda assim ele se queixou de não poder preparar “nem a quarta parte do que poderia ter dito se com vagar pudesse preparar a nossa defesa” (III, p. 31). As seis exposições de motivos do vol. V, dedicadas aos tratados e convenções que o Barão negociou com a Bolívia, Equador, Colômbia, Peru, Uruguai e Argentina, são apresentadas pelo embaixador Synesio Sampaio Goes Filho, que observa que o Barão negociou, ademais, um tratado com a Holanda sobre o Suriname, não constante desse volume, sem mencionar o curioso fato do tratado de 1904 com o Equador (condicionado, porém, ao seu ajuste com o Peru), depois nulificado pelos eventos de 1942. Os dois grossos volumes das Efemérides integram as notas sobre os eventos históricos do dia que o Barão preparava regularmente e que foram publicadas, em sua maior parte, no Jornal do Brasil, criado em 287 1891; as inéditas foram depois publicadas por Lauro Muller, mas o Barão foi atualíssimo, chegando a mencionar os funerais de D. Pedro II em Lisboa, em 12 de dezembro de 1891. As quatro biografias do vol. VII – os combatentes na Cisplatina, capitão de fragata Luís Barroso Pereira, barão do Cerro Largo e o almirante James Norton, e a do visconde, seu pai – são apresentadas pelo embaixador Carlos Henrique Cardim, que relembra que estes trabalhos poderiam ser vistos na perspectiva da história militar e diplomática que o Barão prometia fazer e que nunca pode cumprir; todos eles foram publicados em revistas, por ele ou posteriormente (o do pai), este na Revista Americana, que ele mesmo havia criado para acolher os grandes intelectuais do Brasil e da região. Cardim lembra, ainda, que Rio Branco tinha perfeita consciência dos erros cometidos por Portugal e da necessidade de estabilizar as fronteiras do Sul, o que ele de fato fez. Os quatro estudos históricos do vol. VIII foram introduzidos pelo embaixador Sérgio Bath, que aliás traduziu o Esquisse da história do Brasil que o Barão tinha feito para a Exposição Universal de Paris de 1889, e que já tinha sido publicado em 1992. O ultimo volume (IX) da coleção original contem todos os discursos que foi possível arrebanhar, em 1944, pelo diplomata Roberto Assumpção, e novamente introduzidos pelo curador da coleção de 2012, embaixador Manoel Gomes Pereira: são 52 discursos, desde 1869, como deputado na Assembleia Geral do Império, até o último, de 1911, no Clube Militar, quando se inaugurava o quadro a óleo com o seu retrato; eles sintetizam a imensa atividade de Paranhos Jr, como político, como historiador, como diplomata e, sobretudo, como homem de ação, mais talvez do que um teórico de academia. O décimo volume da coleção atual, contendo os artigos de imprensa, foi organizado pelo próprio curador, novamente, mas conta com prefácio do embaixador Álvaro da Costa Franco, infatigável organizador de várias outras obras do e sobre o Barão, já publicadas nos Cadernos do CHDD, com destaque para um número especial (segundo semestre de 2012) com artigos antigos e atuais, discursos e palestras, coletados pelo curador da coleção geral. O Barão, agora, está praticamente completo, a não ser que apareçam inéditos extraviados (no exterior, por exemplo), ou memórias desconhecidas... A outra publicação relevante de 2012 é a obra coletiva Barão do Rio Branco: 100 Anos de Memória (Brasília: Funag), que recolhe, sob a coordenação do mesmo curador das obras completas, todas as contribuições ao seminário internacional organizado pela Funag e pelo IHGB, realizado no Rio de Janeiro, em maio, com a participação de estudiosos acadêmicos e de diplomatas voltados a essa área de estudos. Como o volume similar publicado por ocasião do centenário de sua posse como chanceler, em seminário realizado em Brasília, em 2002 (Carlos Henrique Cardim e João Almino (orgs.), Rio Branco, a América do 288 Sul e a Modernização do Brasil), esta obra apresenta o perfil típico dos empreendimentos muito vastos, com leituras amplas e diversificadas sobre o desempenho prático e o legado, realmente grandioso, do patrono da diplomacia brasileira, mas sem que ela exiba, necessariamente, um fio condutor ou uma mesma identidade conceitual em torno das ideias ou ações do grande chanceler. Vários dos trabalhos apresentam, contudo, abordagens inéditas sobre a atuação do Barão e podem servir de guia para novas pesquisas de estudantes e de profissionais da diplomacia, na recuperação de algumas das características e permanências da diplomacia brasileira, antes e depois da era do Barão, ou seja, sua atuação nas questões de limites e, depois, sua longa gestão à frente do Itamaraty. Ao tomar posse, em 1o. de dezembro de 1902, Rio Branco explicitou sua concepção da política externa, que não deveria ser uma política de governo, e sim de Estado: “Não venho servir a um partido político, venho servir ao Brasil...”, ou seja, a mesma atitude que ele teve nas questões de Palmas e do Amapá, nas quais ele dizia ter defendido “causas que não eram de uma parcialidade política, mas da nação inteira.” (Obras, 2012: IX, 108).] O Barão foi considerado um “herói da pátria” não apenas em função de suas vitórias em processos arbitrais e negociais, mas também por não ter sido sectário, e por ter conduzido uma diplomacia voltada unicamente para o interesse nacional, no sentido mais profundo do termo. Rio Branco, como demonstram vários dos trabalhos coletados, foi um estadista realista, mas não cínico, e sim um pragmático que buscou reformar a política relativamente isolacionista do Império na América do Sul; ele conseguiu, sem nenhum apelo a uma vã liderança regional ou arroubos de grandeza mundial. Dois outros livros, ou álbuns ilustrados, completam a série de obras comemorativas da Funag: o guia da exposição organizado pelo historiador e diplomata Luís Cláudio Villafañe Gomes Santos, que conseguiu coletar um vasto acervo iconográfico em muitas instituições públicas e privadas do Brasil, e o agradabilíssimo álbum em torno das caricaturas do Barão, organizado por Ângela Porto. Ambos contaram com a colaboração de muitos pesquisadores e técnicos, entre os quais se destaca Maria do Carmo Strozzi Coutinho, responsável editorial no Centro de História e Documentação Diplomática; as duas obras exibem belos projetos gráficos. A exposição segue linhas clássicas, mas as centenas de caricaturas são reveladoras do espírito da época e dos verdadeiros sentimentos da população, bem diferentes do discurso político e do preciosismo diplomático, encobridores de uma realidade bem mais complexa, e mais divertida, do que o politicamente correto (já naquela época) das versões oficiais. Ambos são obras de arte, como já tinha sido a magnífica biografia fotográfica, com texto de Rubens 289 Ricupero, e organização, iconografia e legendas de João Hermes Pereira de Araujo, também publicada pela Funag em 1995 e reeditada em 2002. Essas muitas obras revelam o Barão em todos os seus estados e situações, em seu contexto político, em sua grandeza e limitações pessoais, em sua dimensão humana e de grande estadista, que ele foi. Um homem de todas as estações, que nunca se desdisse e que nunca permitiu que seu trabalho servisse a outros fins que não o engrandecimento da nação, bem acima das querelas políticas e das quizílias partidárias. Hartford, 20 de março de 2013. Publicado no Boletim ADB (ano 20, n. 80, janeiro-fevereiro-março 2013, p. 4-7). 290 Integração regional e minilateralismo: um dilema de nossa época Paulo Roberto de Almeida: Integração Regional: uma introdução (São Paulo: Saraiva, 2013, 174 p.; Coleção Temas Essenciais em Relações Internacionais n. 3; ISBN: 978-85-02-19963-7) Este livro, ainda que modesto em suas dimensões, e deliberadamente sintético em seus argumentos substantivos – como, aliás, requerido pela coleção –, consolida um itinerário bastante longo de estudos, pesquisas dirigidas, atividades práticas e de escritos publicados sobre os processos de integração regional, em suas diferentes variantes institucionais e em suas múltiplas manifestações geográficas e políticas. Trata-se, como o subtítulo indica, de uma introdução, daí ter o autor resumido muitos outros trabalhos – seus ou de pesquisadores mais reputados, inclusive estrangeiros – em um texto que se atém ao essencial do que constitui um dos mais importantes processos dinâmicos da globalização contemporânea e do sistema multilateral de comércio, administrado, desde 1995, pela Organização Multilateral de Comércio. O fenômeno da regionalização, em si, é obviamente bem mais antigo do que isso, sendo propriamente secular, ainda que sob outros formatos e roupagens; assim como são mais antigas – mesmo se de apenas duas ou três décadas – as preocupações deste autor com suas manifestações concretas, aliás despertadas desde o nascimento do Mercosul, que constituiu, justamente, o tema de seu primeiro livro: O Mercosul no contexto regional e internacional (São Paulo: Aduaneiras, 1993), obra hoje esgotada. Seguiu-se outro livro, mais sistemático, sobre esse importante bloco de comércio do hemisfério meridional – Mercosul: fundamentos e perspectivas (São Paulo: LTr, 1998) – e, dois anos depois, uma sua versão atualizada, em perspectiva comparada com a União Europeia, publicada na França: Le Mercosud: un marché commun pour l’Amérique du Sud (Paris: L’Harmattan, 2000). Entre os dois, uma obra didática, fazia uma análise, de amplo escopo histórico, das experiências existentes nessa modalidade de liberalização comercial no âmbito do sistema multilateral de comércio: O Brasil e o multilateralismo econômico (Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999). Seguiram-se artigos, conferências e palestras sobre a integração regional, em especial sobre o Mercosul e a Alca, inclusive vários capítulos preparados para integrar livros coletivos. Todos esses escritos tinham a preocupação primordial de situar historicamente esse fenômeno e de contextualizá-lo no quadro dos experimentos em curso na América Latina; exibiam, 291 também, o cuidado com o lado didático, traço sempre presente neste autor, constantemente dividido entre a atividade profissional na diplomacia brasileira e o empenho voluntário na docência universitária. Muitas dessas reflexões, inclusive sobre o chamado “minilateralismo”, foram mais recentemente objeto de uma grande síntese multidisciplinar, em livro que reuniu diferentes estudos meus sobre a integração, no contexto mais vasto da ordem mundial contemporânea: Relações Internacionais e Política Externa do Brasil: a diplomacia brasileira no contexto da globalização (Rio de Janeiro: LTC, 2012). Essas análises abrangentes, elaboradas no momento mesmo da implementação desses processos – ou no próprio ato de sua criação, como, por exemplo, no caso do Mercosul – estavam marcadas, em todos os escritos referidos, por uma tripla combinação metodológica: a de uma abordagem propriamente histórica, inserida numa explanação basicamente econômica desses fenômenos, mas com a visão política indispensável que costuma guiar um analista acadêmico doublé de negociador prático, como este que escreve. Com efeito, os trabalhos publicados sobre a integração e o Mercosul – cuja lista completa pode ser conferida no site pessoal deste autor: www.pralmeida.org – se beneficiaram, certamente, da pesquisa bibliográfica e da reflexão de tipo acadêmico, mas foram, sobretudo, o fruto do envolvimento do autor com processos concretos de negociações comerciais regionais e multilaterais ao longo de uma carreira diplomática basicamente articulada em torno das relações econômicas internacionais do Brasil: primeiro, no contexto da Rodada Uruguai do Gatt, em Genebra; depois, no foro negociador da Aladi, em Montevidéu; em seguida, na própria unidade encarregada dessas áreas na Secretaria de Estado das Relações Exteriores, no Itamaraty, em Brasília; na sequência, em muitas reuniões de trabalho do processo negociador da Alca, em Miami; ocorreu, também, uma abordagem paralela, não necessariamente única ou exclusiva, desses fenômenos durante minhas estadas em Paris – inclusive acompanhando os trabalhos da OCDE nessa área – e em Washington, sede dos mais importantes organismos multilaterais econômicos – entre eles o Banco Interamericano de Desenvolvimento e a OEA, que promovem e estimulam importantes estudos sobre a integração regional nas Américas – e de alguns think tanks e fundações que também estudam intensamente essas modalidades de liberalização comercial, com destaque, nessa capital, para o Nafta e, então, para o frustrado processo negociador da Alca. Estas referências pessoais – aparentemente exageradas – visam unicamente demonstrar que este pequeno livro não é apenas o reflexo, ou o resultado, de mera pesquisa 292 conduzida em livros ou mediante uma rápida síntese de leituras variadas; ele é, essencialmente, o resultado de um longo envolvimento prático com negociações concretas de experimentos de integração regional, bem como de um conhecimento direto do funcionamento interno do Mercosul, da Aladi e, ainda que de modo indireto, da União Europeia e do Nafta (para não mencionar a natimorta Alca). Foi a constante convivência com todos esses mecanismos, instituições e negociações, bem como com seus eventuais percalços ou retrocessos, que permitiu ao autor discorrer, linearmente, em sucessivos capítulos desta obra, sobre os mais diferentes exemplos de integração regional, praticamente sem recorrer a extensas pesquisas preliminares, dispensando até os livros de história, uma vez que ele assistiu, foi protagonista, ou contemporâneo, de muitos dos processos que vão aqui descritos em seus traços essenciais. Sem qualquer falsa modéstia, o livro consolida, por assim dizer, a trajetória pessoal, tanto intelectual quanto diplomática deste autor, motivo pelo qual possui, legitimamente, uma credibilidade que poucas obras puramente acadêmicas podem exibir. Ele certamente não está isento de limitações e de insuficiências – várias motivadas pelo formato voluntariamente sintético e didático que assumiu por opção – em função das quais deve, como ocorre em todos os casos, submeter-se às críticas dos especialistas, sejam eles economistas acadêmicos ou negociadores profissionais. Em qualquer hipótese, uma característica provavelmente distingue o autor dos escritores de gabinete e, certamente, de muitos dos diplomatas da área: ele elaborou esta obra com pleno conhecimento de causa e com toda a honestidade intelectual de que é capaz um autor que, ainda que pertencendo a uma carreira de Estado, estabelece como sendo as principais tarefas do analista, sua missão primordial, a fidelidade aos fatos e o indispensável rigor analítico. Aos leitores, agora, a missão de avaliar se este esforço atende às suas expectativas. Brasília, outubro de 2012. Prefácio ao livro publicado. 293 Personagens da diplomacia brasileira, de 1750 a 1964 José Vicente Pimentel (organizador): Pensamento Diplomático Brasileiro: Formuladores e Agentes da Política Externa (17501964) (Brasília: FUNAG, 2013, 1138 p. em 3 volumes; ISBN 978-85-7631-462-2) Não parece haver dúvidas que a diplomacia brasileira dispõe, historicamente, de ideias, ou de um pensamento, a sustentar-lhe as ações. Uma adesão inquestionável ao direito internacional, o não recurso à força para a resolução de disputas entre Estados, o respeito a não-ingerência e à não intervenção nos assuntos internos de outros países, a observância dos direitos humanos e de um conjunto de valores próprios ao nosso patrimônio civilizatório, são todos elementos constitutivos da ação diplomática brasileira, ainda que não se possa dizer que eles sejam exclusivamente ou essencialmente brasileiros, na forma e mesmo no conteúdo. Não obstante, ao longo de sua história, o Brasil teve de apelar para todos os recursos do direito internacional, para as suas capacidades próprias e, algumas vezes, até para a força das suas armas, para fazer valer a sua integridade territorial, sua soberania nacional, a honra e a defesa da pátria, quando ameaçadas por algum contendor regional ou extra-atlântico. Para tanto apoiou-se naquelas ideias, naquele conjunto de valores e princípios, eventualmente adaptados às suas necessidades específicas e às circunstâncias que presidiram a cada tomada de decisão em relação ao desafio em causa. Os desafios estiveram geralmente ligados à definição dos limites do “corpo da pátria” – sempre pelas negociações, desde a independência –, ao equilíbrio de poderes e à liberdade de acesso nas fronteiras platinas, às relações com as grandes potências europeias e, depois, com o grande poder hemisférico, à abertura de mercados para os seus produtos e o acesso às fontes de financiamento para o seu desenvolvimento, à participação, em bases equitativas, nas grandes definições relativas à ordem mundial, sua manutenção e funcionamento em bases adequadas à cooperação multilateral. As ideias e as ações foram as de seus líderes políticos, seus dirigentes estatais, seu corpo de profissionais da diplomacia, seus intelectuais e os membros da elite, de forma geral. Essas ideias e essas ações não existem, portanto, em abstrato, mas sim conectadas a pessoas que a elas aderem e que as fazem movimentar-se, em função de seu próprio substrato intelectual, de seu envolvimento com os assuntos públicos, de sua iniciativa e mobilização numa causa que ultrapassa a dimensão específica das vidas privadas e das atividades profissionais: as pessoas passam a encarnar os interesses do Estado. (...) 294 O ponto de partida desta obra antecede o ano da constituição formal do Estado brasileiro, em 1822, já que não se poderia excluir de uma obra de referência como a que se pretendia elaborar a contribuição do chamado “avô da diplomacia brasileira”, o personagem que aliás dá o nome à Fundação que se responsabilizou pelo projeto: Alexandre de Gusmão. Ele foi, justamente, o foco do primeiro capítulo substantivo do livro, na parte que tratou das concepções fundadoras da diplomacia brasileira. Essa parte ainda abriga alguns dos “pais fundadores” da nação e do Estado brasileiro, assim como da própria diplomacia: José Bonifácio, seguido de Paulino Soares de Souza, Duarte da Ponte Ribeiro, Francisco Varnhagen, Honório Hermeto Carneiro Leão, o Visconde do Rio Branco e o “mais longo” secretário geral da história do ministério, Cabo Frio. A segunda parte, voltada para a política internacional da Primeira República, tratou de alguns grandes nomes que vieram do Império, mas que engrandeceram a diplomacia republicana, começando por Joaquim Nabuco. O Barão do Rio Branco ocupa papel de destaque nessa fase, mas também seus amigos, e eventuais auxiliares, Ruy Barbosa e Euclides da Cunha, que também cumpriram missões diplomáticas sem serem profissionais do serviço exterior. Dois outros diplomatas, Manoel de Oliveira Lima, também historiador e articulista, e Domício da Gama, completam esse primeiro ciclo republicano. Aqui entrou também o jurista Afrânio de Melo Franco, que iniciou uma carreira diplomática, foi para a política, exerceu diversas missões diplomáticas durante a República Velha – entre elas a frustrada missão de colocar o Brasil no conselho da Liga das Nações – mas que também foi o primeiro chanceler do novo regime, em 1930, na verdade da junta militar que negociou com os revolucionários, e que continuou sob o governo provisório de Getúlio Vargas. A terceira e última parte cobre toda a era Vargas e a República de 1946, começando pela própria reforma do Estado e a modernização da diplomacia, iniciada sob Afrânio de Melo Franco e continuada por Oswaldo Aranha, o homem que terminou de unificar as carreiras do ministério, e que não só liderou a revolução de 1930, como também manteve firmemente o Brasil no campo democrático durante os tempos sombrios da ascensão do nazifascismo e do Estado Novo no Brasil. O nome que primeiro representou a diplomacia multilateral do Brasil foi o de Cyro de Freitas Valle, que teve em sua vertente econômica a importante contribuição de Edmundo Penna Barbosa da Silva, ambos relativamente desconhecidos, hoje, dos mais jovens. Outros nomes que ilustraram tanto a era Vargas quanto o período democrático ulterior foram os do empresário e político José Carlos de Macedo 295 Soares (chanceler nos dois regimes) e o de um militar, o Almirante Álvaro Alberto, bastante identificado tanto com o CNPq quanto com o primeiro programa nuclear brasileiro. O final do período, cobrindo a fase otimista da presidência JK e os anos turbulentos dos governos Jânio Quadros e João Goulart, foram representados pelas figuras do sociólogo Hélio Jaguaribe, do historiador José Honório Rodrigues, pelo poeta Augusto Frederico Schmidt, e pelos juristas e políticos Afonso Arinos e San Tiago Dantas. Finalmente, encerra o exame das grandes personalidades, o nome do embaixador Araújo Castro, o último ministro de Goulart e uma das cabeças que continuou a moldar a política externa brasileira nos anos à frente, influente até nossos dias. Vários nomes ficaram de fora, não por exclusão deliberada, mas por dificuldades práticas do próprio projeto, já de si bastante amplo e talvez ambicioso demais; entre estes poderíamos citar Raul Fernandes, um jurista que vem do tratado de Versalhes e da criação da primeira Corte Internacional de Justiça – dita de Arbitragem, à qual seu nome está associado pela chamada “cláusula facultativa de arbitragem obrigatória” – e João Neves da Fontoura, colega de Vargas e de Oswaldo Aranha na revolução de 1930 e duas vezes chanceler sob a república de 1946. A opção pelo corte ao início do regime militar deveu-se a considerações de ordem prática: alguns dos personagens que atuaram na fase recente continuam presentes, de certa forma, no desenho ou na execução da diplomacia. Um projeto para a fase contemporânea, quase de “história imediata”, teria de balizar-se por outras exigências metodológicas. (...) Esta obra afirma-se como um dos mais sérios projetos de natureza intelectual implementados pelo Itamaraty. Não apenas uma coleção de biografias sintéticas, com muitas considerações analíticas sobre as ideias e ações dos personagens selecionados, este empreendimento pode ser visto como um exemplo de história intelectual, mesmo se alguns personagens tenham atuado mais pela prática dos telegramas, dos memoranda, e dos discursos, do que sob a forma de escritos sistemáticos (mas mesmo eles tinham uma concepção precisa do como deveria ser a diplomacia brasileira à qual serviam). Todos eles produziram narrativas sobre como viam e sobre como deveria ser a política externa, nos expedientes de serviço ou nas obras e memórias produzidas. Foram estadistas, na concepção lata da palavra, no sentido em que uma certa ideia do Brasil, geralmente grandiosa, estava sempre presente nesses escritos, a guiar-lhes os passos nas decisões mais relevantes. Foi essa tradição que o projeto pretendeu resgatar e expor. Com as eventuais limitações que ela possa conter, este livro constitui um esforço pioneiro de identificação e de apresentação das ideias e dos conceitos que balizaram, orientaram ou guiaram a formulação e 296 a execução prática das relações exteriores do Brasil, desde seu alvorecer, enquanto Estado autônomo, até quase o final do segundo terço do século 20; espera-se que ela possa servir de inspiração para outros empreendimentos do gênero ou para a continuidade do mesmo projeto. Hartford, 14 de outubro de 2013. Excertos da nota metodológica introdutória ao livro. 297 Terceira Parte Livros de relações internacionais e de política externa do Brasil Resenhas de livros interessando diplomatas e acadêmicos 299 Pierre Renouvin, ou a aspiração do total Contribuições à História Diplomática Pierre Renouvin (ed.): Histoire des Relations Internationales (nouvelle édition; Paris: Hachette, 1994, 3 volumes; présentation du Prof. René Girault, président de l’Institut Pierre Renouvin) Volume I: Du Moyen Âge à 1789 (876 p.) Volume II: De 1789 à 1871 (706 p.) Volume III: De 1871 à 1945 (998 p.). A reedição, agora em três volumes de capa dura, da monumental coleção organizada na década de 50 por Pierre Renouvin é uma grande notícia para todos os estudiosos que, por simples curiosidade intelectual ou por obrigação professional, interessam-se ou são levados a ocupar-se da temática das relações internacionais. Com efeito, todos aqueles que se dedicam à pesquisa, ao ensino ou à mera leitura diletante nessa área, sempre souberam apreciar a riqueza analítica e fatual, a qualidade estilística, bem como a abundante aparelhagem bibliográfica e cartográfica dos oito volumes (encadernados nas edições precedentes) coordenados pelo grande mestre francês da história diplomática global. Desde essa época, os oito tomos sequenciais – por quatro autores – da Histoire des Relations Internationales (publicados pela mesma editora entre 1953 e 1958) foram motivo de leitura obrigatória e objeto de referência indispensável de todo e qualquer estudioso das relações internacionais, de modo geral, e das políticas exteriores dos Estados modernos em particular, sobretudo a partir de uma perspectiva europeia. Reeditados pela última vez em 1972, eles tinham se tornado praticamente inacessíveis, sobretudo do outro lado do Atlântico, constituindo-se em verdadeiras preciosidades de bibliófilos e colecionadores. Junto com outros trabalhos de história diplomática do mesmo mestre, falecido em 1974, assim como de Jean-Baptiste Duroselle, seu discípulo e sucessor na Sorbonne, essa obra coletiva (mas concebida por Renouvin em torno de 1950) marcou época na então nascente disciplina das relações internacionais e constitui, ainda hoje, um marco da pesquisa histórica, mesmo se aparentemente influenciada por uma “visão francesa” da política externa dos Estados. Quarenta anos depois de seu lançamento original e tendo em conta não só a multiplicação de estudos nesse campo, mas também a diversidade de abordagens e o acesso ampliado a determinadas fontes documentais, como se sustenta o trabalho coordenado por Pierre Renouvin? 301 Uma Totalgeschichte O que distingue, antes de mais nada, os textos de François-L. Ganshof, Gaston Zeller, André Fugier e do próprio Pierre Renouvin é uma vontade de ultrapassar os limites da história política tradicional, na qual se comprazia ainda grande parte da história diplomática elaborada nas universidades e academias do velho mundo. Estamos bem longe da chamada histoire historisante, aquela feita de homens brilhantes e de momentos solenes, que aliás estava sendo cruelmente “massacrada” pelos partidários da histoire structurelle agrupados em torno da revista Annales, fundada nos final dos anos 20 por Lucien Febvre e Marc Bloch e retomada depois da guerra por Fernand Braudel. Trabalhando de forma independente ou paralelamente aos esforços desses renovadores, Pierre Renouvin, recusando-se a deixar levar unicamente pelos documentos revelados pelos arquivos diplomáticos, decide desde muito cedo colocar sua produção sob o signo da “história global”. Na verdade, antes mesmo de vários representantes da école des Annales (com a qual ele nunca foi formalmente identificado, provavelmente por trabalhar num setor mais restrito), Renouvin já mantinha uma preocupação primordial com a história totalisante, ou seja, com uma pesquisa extremamente diversificada, capaz de integrar de forma harmônica os resultados e métodos das diversas áreas da disciplina. Desde princípios dos anos 30, como explica o Prof. René Girault em sua apresentação à esta nova edição do Histoire des Relations Internationales, Renouvin sublinha o caráter relativo dos arquivos diplomáticos e faz apelo às “forças” morais e materiais que agitam o mundo, convertidas vinte anos depois em “forças profundas” (Volume I, p. vi). Consciente de que a análise dessas “forças profundas” levariam o seu trabalho um pouco além dos limites estritos da disciplina à qual iria dedicar toda sua vida, o próprio Renouvin diz nas conclusões gerais de sua obra: “A história das relações internacionais é (...) inseparável da história das civilizações” (vol. III, p. 913). Na mesma época, aliás, Maurice Crouzet dirigia os muitos volumes da Histoire Générale des Civilisations, vasto empreendimento editorial que serviria de inspiração para Sérgio Buarque de Holanda propor entre nós uma História Geral da Civilização Brasileira. Abrindo o empreendimento, em princípios dos anos 50, Renouvin afirmava que a obra então iniciada não era um “grande manual” de história da política internacional, mas pretendia ser un essai de synthèse (Volume I, p. 7). Deve-se reconhecer que ela realizou plenamente seu objetivo, tendo sido completada, dez anos depois, por outra obra de síntese metodológica, 302 escrita em colaboração com Jean-Baptiste Duroselle, Introduction à l’histoire des relations internationales (Paris: Armand Colin, 1964). As bases da história global O conceito que mais popularizou a obra de Pierre Renouvin é, sem dúvida alguma, o de “forças profundas”. No vasto e ambicioso panorama traçado pelo historiador francês, não são apenas os Estados que estão em causa, mas também os povos e os interesses dos agentes econômicos, enfim o conjunto das circunstâncias históricas em um momento dado. Ao introduzir o primeiro volume de sua monumental série de história das relações internacionais, assim se exprimiu o historiador francês: Nós tentamos, portanto, ‘situar’ as relações internacionais no quadro da história geral – história econômica e social, história das ideias e das instituições. Papel das condições geográficas, dos interesses econômicos ou financeiros e da técnica dos armamentos, das estruturas sociais, dos movimentos demográficos; impulsão dada pelas grandes correntes de pensamento e pelas forças religiosas; influências exercidas pelo comportamento de um povo, seu temperamento, sua coesão moral: estes são os pontos de vista que nós sempre tivemos em mente. Nós não negligenciamos, contudo, o papel dos homens de governo que foram, de forma mais ou menos consciente, influenciados por essas forças, ou que tentaram controlá-las e que por vezes o conseguiram; mas sua ação pessoal nos interessa sobretudo na medida em que ela modifica o curso das relações internacionais. Nós também achamos necessário estudar as condições do trabalho diplomático onde esse estudo (é o caso da Idade Média) jamais tinha sido empreendido. (...) Mas, nós não quisemos que esta busca de explicações estivesse destacada do estudo dos fatos... Era indispensável colocar na base de nosso relato o ‘quadro factual’ [cadre événementiel], retraçando en consequência o desenvolvimento das rivalidades e dos conflitos e mostrando sua trama. Estudar as influências que se exercem sobre as relações internacionais deixando de lado o conjunto de circunstâncias de um momento ou de uma época, seria falsear a perspectiva histórica.” (vol. I, p. 12) Esse método, que tinha sido traçado por Pierre Renouvin antes mesmo de conceber sua coleção mais famosa, seria seguido à risca no desenvolvimento dos diversos textos que se ocuparam das relações entre os Estados e da evolução do sistema internacional desde a Idade Média até 1945. Com efeito, como se encarrega de lembrar Girault, desde 1931 Renouvin buscava escapar ao ponto de vista trop étroit da documentação diplomática. Apresentando na Revue historique um balanço dos trabalhos de uma comissão sobre a história da guerra de 1418 que ele integrava, dizia o professor de história diplomática da Sorbonne: Despachos, notas, telegramas nos permitem perceber os atos; é mais raro que eles permitam entrever as intenções dos homens de Estado, mais raro ainda que eles tragam o reflexo das forças que agitam o mundo: movimentos nacionais, interesses econômicos. Não porque os agentes diplomáticos negligenciem inteiramente essas forças morais e materiais; mas, eles têm tendência a atribuir 303 maior importância à atitude das chancelarias e dos ministros, a analisar a influência do fator pessoal. É em corrigir esse erro de ótica que os historiadores poderão e deverão se aplicar. (“La publication des documents diplomatiques français, 1871-1914”, Revue historique, tome CLXVI, 1931, p. 10; citado na Apresentação do Prof. René Girault, vol. I, p. v) Vinte anos mais tarde, na introdução geral do Histoire des Relations Internationales, Renouvin confirmaria essa recusa do curto prazo e sua visão mais ampla do processo histórico: Não é portanto o objeto da história diplomática que está aberto a contestações; é o seu método, tal como o praticam muito frequentemente seus adeptos. (...) Ora, as instruções [das chancelarias] se aplicam muitas vezes a nada dizer de essencial, e os relatórios, que dão informações dia a dia, omitem também frequentemente a busca das causas: mesmo no século XIX, a correspondência de muitos embaixadores atribui apenas uma função restrita, muitas vezes derrisória, às questões econômicas e ao problema das nacionalidades – a todas as ‘forças profundas’ – porque, para o diplomata de então, a ‘grande política’ plana muito acima dessas contingências. (vol. I, p. 10). Ele não pretende, no entanto, descartar o estudo do papel dos homens de Estado – retendo apenas os “movimentos profundos” da história econômica e social, ao estilo da “história estrutural” – mas, tão somente, recolocá-lo numa perspectiva mais ampla: “na origem desses conflitos, as condições econômicas desempenharam o seu papel; mas, a crise só apareceu quando as paixões entraram em jogo” (Idem, p. 11). Em todos os seus cursos dados na Sorbonne (na qual ele se aposenta em 1964) ou alhures, Renouvin dava a seus alunos uma orientação ilustrada por notas deste tipo: “Nunca fazer unicamente história diplomática, mas procurar ver o pano de fundo ec. financ. pol. int., em seus diversos aspectos, preocupações pessoais H. de Estado, estado dos armamentos e estado op. pública” (segundo papéis de curso depositados no Institut Pierre Renouvin, citados na Apresentação do Prof. René Girault, op. cit., p. vii). Os historiadores engajados e a divisão intelectual do trabalho Para realizar a vasta síntese que ele pretendia (que deveria comportar apenas cinco volumes), Renouvin convida profissionais que, como ele, tinham uma visão global da história das relações internacionais: o professor belga François Ganshof, especialista em história medieval; seu colega na Sorbonne, Gaston Zeller, autor de diversos trabalhos sobre a diplomacia de Luís XIV; André Fugier, professor da Universidade de Lyon, autor de uma tese sobre Napoleão e a Espanha publicada nos anos 30. Ele próprio, finalmente, se encarregaria dos séculos XIX e XX. 304 Ganshof trabalha portanto no primeiro tomo da coleção, não sem algumas reticências metodológicas, pois que ele era inovadoramente dedicado ao estudo das técnicas de relações internacionais na Idade Média (Tome premier: Le Moyen Âge, publicado em janeiro de 1953). O trabalho de Gaston Zeller, cobrindo a idade moderna, estendeu-se perigosamente, num sentido “narrativo” e “cronológico” (o que Renouvin reprovava em parte), tendo então de ser dividido em dois volumes (Tome second: Les Temps modernes, I. De Christophe Colomb à Cromwell, junho de 1953; Tome troisième: Les Temps modernes, II. De Louis XVI à 1789, outubro de 1954). André Fugier terminou por sua vez a redação de seu texto sobre o período napoleônico desde fevereiro de 1952, cuja publicação antecipou-se portanto ao volume precedente a cargo de Zeller (Tome quatrième: La Révolution française et l’Empire napoléonien, fevereiro de 1954). Quanto a Renouvin, seus dois volumes dedicados respectivamente aos séculos XIX e XX estenderam-se desmesuradamente: o primeiro volume tinha não menos de 692 páginas, o que obrigou à sua divisão em dois tomos, o mesmo acontecendo em relação ao século XX. Entre novembro de 1954 e novembro de 1958 são portanto publicados os quatro outros volumes da coleção: Tome cinquième: Le XIXe siècle, I. De 1815 à 1871. L’Europe des nationalités et l’éveil de nouveaux mondes; Tome sixième: Le XIXe siècle, II. De 1871 à 1914. L’apogée de l’Europe; Tome septième: Les Crises du XXe siècle, I. De 1914 à 1929; Tome huitième: Les Crises du XXe siècle, II. De 1929 à 1945. A nova edição, em três volumes, introduzida pelo Professor René Girault, atual presidente do Institut Pierre Renouvin e eminente herdeiro da noção “renouviana” de “história dos tempos presentes”, reproduz fielmente o texto da última edição dos oito tomos da série, com apenas duas modificações: a bibliografia de cada um dos capítulos foi suprimida, conservando-se a bibliografia geral de cada tomo, e os fac-símiles das cartas geográficas foram reagrupadas no final de cada volume. Dessa forma, a introdução geral a cargo de Renouvin e os três primeiros tomos de Ganshof e de Zeller estão contidos no primeiro volume, que vai portanto da Idade Média a 1789. O trabalho sobre as relações internacionais na época da Revolução francesa, a cargo de Fugier, e o primeiro tomo sobre o século XIX da responsabilidade de Renouvin ocupam o segundo volume, indo portanto de 1789 a 1871. Finalmente, o terceiro volume cobre os três últimos tomos, tratando da época 1871 a 1945, escritos inteiramente por Renouvin. O sucesso da obra, desde a primeira edição foi rápido, justificando reimpressões em princípios dos anos 60 e traduções imediatas em italiano e em espanhol (não sem problemas de censura franquista, que recusava o termo “guerra civil” ou o conceito de “fascista” em 305 relação à guerra espanhola de 1936-1939). A obra tornou-se um “clássico”, portanto, da história das relações internacionais, o que se explicava plenamente pelo caráter inovador do método ou a vastidão de propósitos, mas também pela fama já consagrada do seu autor principal. O impacto fora das fronteiras francesas, e propriamente internacional, deveu-se também ao fato de que, no imediato pós-guerra, a escola histórica francesa estava na vanguarda da renovação metodológica então empreendida em vasta escala. Se assistia então a uma rejeição clara do “positivismo esclarecido”, praticado pelos mestres de princípios do século, como também à incorporação de conceitos e metodologias marxistas na pesquisa histórica, como revelado nos trabalhos de Ernest Labrousse, de Pierre Villar e, mais tarde, de Jean Bouvier. Múltiplas causalidades, relações complexas entre atores Mas, não se pode dizer que os autores da Histoire des relations internationales tenham rejeitado a história diplomática tradicional (ou seja, política) em favor de uma nova determinação “materialista” do processo, com causas econômicas “dominantes” das crises ou dos conflitos entre Estados. A concepção é mais complexa, colocando em relevo o jogo de causalidades diversas e as diversas teias de relações entre fatos econômicos e financeiros, ação das personalidades e influência das mentalidades. O historiador italiano Federico Chabod, cuja Storia della politica estera italiana del 1870 ao 1896 havia impressionado Renouvin, era aliás um dos promotores do estudo do papel da psicologia coletiva nas relações internacionais. Não só as perspectivas analíticas são múltiplas, mas o campo geográfico é vasto, cobrindo praticamente o mundo inteiro, com uma ênfase lógica na Europa, afinal de contas, o centro das relações internacionais até praticamente o final da segunda guerra mundial. Os desafios eram, portanto, imensos. Como advertiu o Prof. Girault, havia o duplo perigo de se reduzir a multiplicidade dos fatos a algumas ideias simplificadoras ou de deixar esses fatos heterogêneos sem nenhum ordenamento em função de algumas explicações globais. “Para evitar esses dois obstáculos, apenas os aspectos gerais e os fatos significativos deveriam ser considerados. Em consequência, apesar da imensidade do campo coberto por essa história englobando o mundo inteiro, desde a alta Idade Média até 1945, o leitor tem a impressão de estar sendo conduzido com simplicidade e naturalidade até o essencial, saltando, no caminho, da Europa ao resto do mundo, das querelas dinásticas às rivalidades mercantis, dos grandes 306 diplomatas aos homens de negócios, das nacionalidades às Internacionais, etc.” (Apresentação, vol. I, p. xiv). O mesmo historiador sublinha o fato de que, apesar de terem renovado os dados e a própria maneira de escrever a história diplomática, convertendo-a verdadeiramente numa reflexão sobre as relações internacionais contemporâneas, terreno antes exclusivamente ocupado pelo direito ou pelos cientistas políticos, os aportes da “escola” de Renouvin e seguidores (a expressão não é de Girault) deixaram de suscitar a atenção que mereceriam por parte dos partidários da escola dos Annales, sempre tímidos em face da história política. Também aqui parece ter se operado uma espécie de divisão intelectual do trabalho, que deixou a estes últimos uma espécie de monopólio, para não dizer o exercício de uma certa “ditadura conceitual”, sobre a história econômica e social. Fazendo o balanço dos ensinamentos de Renouvin, Girault renova a visão de uma história das relações internacionais concebida de maneira não-linear e sem fatores dominantes invariáveis, como o peso das guerras ou das relações interestatais. Para ele, “as relações internacionais conheceram estágios diferentes porque elas são descendentes das civilizações que as cercam” (Apresentação, op. cit., p. xxvi, ênfase no original). No século XIX, predominaram as relações entre Estados, sobretudo na Europa. Um segundo tipo de civilização se desenvolve entre 1914 e meados dos anos 50, estendido ao mundo inteiro pela crise da dominação colonial e imperialista a partir de 1945. Nessa fase, as relações entre Estados permanecem dominantes, mas dois processos mudam a civilização: por um lado, a mundialização real da economia e das técnicas (transportes e comunicações) reforça o papel das relações econômicas; de outro, as relações internacionais são transformadas pela intervenção das ideologias (fascismos, racismo hitlerista, comunismo e anticomunismo). Uma terceira geração de civilizações aparece a partir do final dos anos 50, com o término da guerra fria “quente”. De um lado, sob o sistema capitalista, desenvolveu-se uma sociedade transnacional, na qual o Estado-nação perdeu peso em face das novas organizações internacionais e inter-regionais: esse sistema privilegia as relações econômicas obedecendo às leis do mercado e à potência nuclear, verdadeiro critério de poder. De outro, o sistema dito comunista faz da ideologia sua alavanca mais importante e do centralismo ditatorial um meio de conduzir as relações internacionais. Em posição à parte, os Terceiros Mundos hesitam na busca de uma via autônoma, na verdade submetida às pressões contraditórias dos dois outros contendores (p. xxvi-xxvii). Teria a queda do mundo comunista gerado um novo período das relações internacionais, através do estabelecimento de uma nova civilização mundial?, pergunta 307 Girault. O transnacional tornou-se dominante e, mesmo se atores em alguns Estados continuam a acreditar em sua capacidade de atuar isoladamente, as ideologias parecem ter morrido, pelos menos as que se pretendiam globais. Mas, segundo Girault, ainda é muito cedo para pretender descrever as formas e a extensão geográfica dessa civilização, podendo ela mesmo ser composta de civilizações regionais (mundo islâmico, chinês, africano), cuja natureza particular deve levar em conta as situações geográficas e humanas. O extraordinário crescimento das instituições regionais de cooperação política e econômica é talvez indicativo de uma nova era histórica. Em todo caso, os diversos níveis interdependentes de análise – política, econômica, social, cultural – no estudo das relações internacionais desses vastos conjuntos regionais de civilizações ou de “sistemas” (para empregar o conceito dos cientistas políticos), nos traz de volta, como sublinha Girault, à fórmula de Pierre Renouvin: “A história das relações internacionais é inseparável da história das civilizações”. O Brasil chez Renouvin Uma tão larga perspectiva e um tratamento inevitavelmente centrado sobre as relações interestatais e internacionais europeias ofereceria, como parece óbvio, pouco espaço a grandes digressões históricas ou políticas voltadas para um país como o Brasil, economicamente periférico, dependente politicamente, pois que, durante a maior parte de sua história, colônia de um país que era por sua vez essencialmente periférico e dependente. De resto, sem nunca ter constituído um centro de poder político, econômico ou militar próprio, o Brasil sempre foi relativa ou absolutamente marginal do ponto de vista das relações internacionais globais. Não obstante, o Brasil comparece nas páginas dos vários volumes da Histoire des relations internationales, a partir da idade moderna evidentemente, sendo que metade das 35 citações se referem à sua condição de colônia ou ao movimento de independência, cabendo o resto ao próprio Renouvin dentro do período independente. Seria excesso de otimismo esperar encontrar, nos diversos textos, desenvolvimentos minuciosos sobre as relações exteriores ou a posição internacional do Brasil, pois que a coleção tem um compromisso básico com o seu objeto próprio, as relações internacionais, no mais amplo sentido geopolítico da palavra. Mas, uma verificação rápida permitirá algumas constatações interessantes. As primeiras referências se encontram no texto escrito por Gaston Zeller para cobrir as relações internacionais na alvorada da idade moderna, tomo segundo da obra (Les Temps Modernes, I. De Christophe Colomb à Cromwell), tratando basicamente das consequências dos descobrimentos para as relações recíprocas entre Portugal e Espanha e destes com as 308 demais potências europeias (em especial, como seria de se esperar, com a França, de certo modo o centro do primeiro concerto europeu, antes e depois de Westfália). Uma atenção particular é dada aos interesses mercantis do comerciantes bretões na exploração dos parcos recursos florestais da maior e mais recente colônia portuguesa (vide Volume I, p. 280 e 283). Outras menções são feitas a propósito da substituição de hegemonias que se opera na Europa do século XVII, quando comerciantes e soldados mais agressivos, vindos da Holanda, Inglaterra e França, começam a dominar os principais circuitos de bens e metais, em detrimento dos antigos monopólios espanhóis e portugueses (vide o capítulo VIII do tomo segundo: L’Océan: les politiques d’expansion coloniale, vol. I, p. 411-419, esp. 413 e 415, bem como o capítulo X, La guerre de trente ans et la fin de la prépondérance espagnole, p. 438-464, cf. p. 448). A ascensão da potência inglesa terá, a partir de então, consequências decisivas não só para Portugal como para o próprio Brasil. O mesmo Zeller oferece, no tomo terceiro (Les Temps Modernes, II. De Louis XIV à 1789), um panorama dessas mudanças hegemônicas, que consolidam ao mesmo tempo a dominação terrestre da França sobre o continente e a marítima da Inglaterra sobre quase todos os mares. Portugal, pressionado a escolher, mas procurando conservar sua autonomia, tornase um mero pião nessas disputas, mesmo se ele consegue preservar o essencial de suas colônias, com destaque para o Brasil e Angola (vol. I, p. 513). Novamente, um grande atenção é dada à França e à política de Luís XIV (em um grande capítulo I: La puissance française au temps de Louis XIV, p. 499-578), com uma breve referência à expedição de Duguay-Trouin de 1710-1711 ao Rio de Janeiro (vide p. 567-8 desse volume). Essa história de conflitos entre imperialismos rivais será retomada por André Fugier no quarto tomo do Histoire des relations internationales, sobretudo nos capítulos tratando das lutas entre a Espanha, de um lado, e os interesses respectivos de ingleses e franceses, de outro. A “vassalagem” política e militar de Portugal em relação à Inglaterra se faz cada vez mais presente, enquanto sua vida econômica passa a depender, cada vez mais estreitamente da “produção de ouro brasileiro, [da] frutuosa redistribuição de açúcar, café e algodão, compra de mercadorias inglesas...” (p. 66 do vol. II). No momento do grande enfrentamento entre a “pérfida Albion” e o cônsul Bonaparte, Portugal se vê, no dizer de seus próprios diplomatas “entre l’enclume et le marteau”, mas continua seus proveitosos negócios com o “immense Brésil” (capítulo IV, Pacifications (1801-1802), p. 105-133; cf. 119-120). As contradições da política portuguesa eram também de alcova, pois que o Príncipe Regente João tinha casado com Carlota, filha dos soberanos espanhóis, que no momento eram aliados de Napoleão. Essa situação iria prolongar-se até 309 novos desenvolvimentos em 1807, quando uma vez mais, em razão da política de bloqueio continental e do jogo de pressões militares, Portugal tem de submeter-se ou enfrentar a ira de Bonaparte. A “economia política” dos bloqueios inglês e francês são objeto de duas seções bastante instrutivas no capítulo VII do tomo a cargo de Fugier (II. Économie de blocus britanique, p. 187-190, III. La stratégie napoléonienne du blocus, p. 190-196), nas quais se insere precisamente a circulação de mercadorias brasileiras (sobretudo algodão e produtos tropicais) em direção de um ou outro beligerante (pp. 190 e 194). André Fugier trata igualmente das razões estruturais da dominação europeia sobre o resto do mundo, com um excelente capítulo sobre seus fundamentos espirituais, intelectuais, demográficos, militares, científicos e econômicos (capítulo X, Courants d’Europe, p. 269294), onde se insere a questão das “transferências demográficas”, ou seja a emigração europeia para o novo mundo, e a própria partida de toda a elite e administração portuguesa para o Brasil, em 1807 (p. 284). O capítulo seguinte, sobre a independência das colônias americanas (XI, Émancipation du Nouveau Monde, pp. 295-312), não trata exatamente do processo brasileiro de autonomia, mas das iniciativas de Carlota Joaquina no Prata, a partir de 1808 (p. 306-7), e da sustentação econômica e financeira da Inglaterra pela Coroa portuguesa, com as relações privilegiadas (e desiguais) que são então estabelecidas pelos tratados comerciais de 1809 e 1810. Data dessa época, igualmente, o estabelecimento de novas correntes de comércio entre o Brasil e seus parceiros do continente, a começar pelos Estados Unidos (p. 311). O próprio Pierre Renouvin tratará da independência brasileira, no quinto tomo de sua coleção, todo ele dedicado ao século XIX. Depois de quatro capítulos iniciais sobre as “forças profundas”, sobre os “homens de Estado e as políticas nacionais”, as “ameaças à ordem europeia” e os “movimentos revolucionários” no velho continente, Renouvin dedica todo o capítulo V à independência da América Latina. O tratamento é bastante sumário e os autonomistas brasileiros são chamados de “créoles portugais”, que seguem o exemplo dado pelos “créoles espagnols” nos demais países (p. 401). Mas, os eventos são enquadrados por Renouvin num panorama mais vasto: “Nas relações internacionais, o lugar desses dois eventos é bastante desigual. A independência do Brasil só chama a atenção da Grã-Bretanha: o governo inglês que, em 1810, tinha defendido Portugal contra a França, aproveitou para se ver atribuída, no Brasil, uma tarifa alfandegária bastante favorável à importação dos seus produtos manufaturados; em 1822, frente ao ‘fait accompli’, ele se preocupa em manter essa vantagem; à medida em que Pedro consente, a política inglesa faz pressão sobre o governo português para levá-lo a 310 reconhecer a independência do Brasil. Mas, a independência das colônias espanholas é uma questão de grande impacto para os Estados Unidos e as potências europeias” (vol. II, p. 401). Ele ainda faz uma pequena referência ao Brasil, no contexto dos primeiros esforços de “solidariedade pan-americana”, com o convite bolivariano ao congresso do Panamá, de 1825, que deveria reunir os novos Estados do continente. Nem os Estados Unidos, que já tinha proclamado sua “doutrina Monroe” (1823), nem o Brasil ou a Argentina participarão da conferência (p. 412). A derrota do esforço de cooperação política dá lugar ao começo da preponderância britânica sobre o continente, hegemonia que vai durar cerca de um século. Uma última menção ao Brasil nesse texto intervém nas conclusões gerais do tomo sob sua responsabilidade, quando Renouvin se contenta em apontar o papel dos fluxos migratórios europeus no crescimento de países como os Estados Unidos, a Argentina ou o “Brasil meridional” (vol. II, p. 653), questão repetidamente levantada em diversas passagens ulteriores e mesmo na conclusão geral da obra (vol. III, p. 910). Não há, em contrapartida, para o período em que as jovens nações sul-americanas já se tinham completamente desvencilhado da tutela metropolitana, qualquer referência às lutas entre caudilhos na própria região, como os conflitos do Prata ou a guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai: o equilíbrio de poderes, numa região tão excêntrica para a política mundial como a América do Sul, não entra certamente nos esquemas conceituais das relações internacionais vistas da Europa. O terceiro e último volume da nova edição dessa obra clássica, traz os três tomos finais do Histoire des relations internationales, todos redigidos pessoalmente por Pierre Renouvin e cobrindo o período de 1871 a 1945. Em cada um deles, as referências ao Brasil são, para dizer o mínimo, reduzidas e, em geral, insatisfatórias do nosso ponto de vista: as relações internacionais do continente sul-americano são sempre consideradas a partir de uma perspectiva europeia ou norte-americana. É o caso, por exemplo, do capítulo XVI do sexto tomo, Les Influences Européennes en Amérique Latine (p. 237-244), onde Renouvin começa por afirmar: O campo de predileção para a expansão europeia, não apenas do ponto de vista demográfico ou do ponto de vista econômico e financeiro, mas no terreno da vida intelectual, é a América do Sul. A influência demográfica é importante sobretudo na Argentina e no Brasil. (p. 237) Seguem, nas páginas seguintes, comentários e informações sobre esses imigrantes, sobre os investimentos estrangeiros ou sobre infraestrutura ferroviária no Brasil que, lidos na ótica da historiografia contemporânea, seriam considerados ingênuos ou, enquanto dados 311 parciais, mesmo irrelevantes, mas que podem ser provavelmente explicados pelo estado da bibliografia disponível sobre o Brasil à época da elaboração do trabalho: velhas monografias de Pierre Denis sobre o café, alguns outros estudos de Roger Bastide (sobre raças ou a dualidade da geografia humana), de Pierre Monbeig (sobre os pioneiros e fazendeiros de São Paulo) ou de Charles Morazé (sobre a evolução política do Brasil), por exemplo. Da mesma forma, seus argumentos sobre a influência cultural francesa nas repúblicas sul-americanas – marcadas por um “latinisme de sentiments, de pensée et d’action, avec tous ses avantages primesautiers et ses défauts de méthode”, segundo Georges Clemenceau, que voltava de viagem (p. 243-244) – e sobre as lacunas de sua prática efetiva, beiram o ridículo, tanto o amalgama e o julgamento superficial caracterizam o discurso: “Vassales de l’Europe au point de vue économique et financier, ces Républiques en restent profondement séparées para l’esprit de la vie politique” (p. 244). No tomo seguinte, sobre as crises do século XX entre 1914 e 1929, Renouvin retoma o argumento sobre a influência cultural e econômica da Europa, agora contestada pela influência dominante dos Estados Unidos em ascensão. O capítulo XIV, especificamente dedicado à posição internacional da América Latina, não agrega nenhum dado significativo sobre o Brasil e o amalgama com outras repúblicas sul-americanas continua a ser praticado com o agravante da visão política eurocêntrica: o conflito entre o Chile e o Peru a propósito de Tacna e Arica, por exemplo, é pensado em termos de “Alsace-Lorraine”. Segundo a interpretação de Renouvin, a existência da Sociedade das Nações poderia dar a esses Estados “plus de courage” para enfrentar a hegemonia dos Estados Unidos: “não podem eles esperar que o organismo genebrino lhes dará apoio e lhes fornecerá talvez um meio de escapar ao sistema pan-americano?” (p. 575). Na mesma linha, Pierre Renouvin parece lamentar que, tendo assinado o “tratado Gondra”, de 1923, os Estados latinoamericanos se comprometem em resolver seus litígios no quadro pan-americano (“dominé par les États-Unis”), em lugar de entregá-los à Sociedades das Nações. Em todo caso, Renouvin nota o apoio apenas discreto (“nuancé”), em contraste com a vigorosa tomada de posição argentina, que o Brasil concede, na conferência de Havana em 1928, ao projeto de declaração da Comissão de juristas interamericanos – Comissão do Rio – sobre os princípios da “nãointervenção” (dos Estados Unidos, entenda-se) e da igualdade de direito entre os Estados americanos, como normas consagradas do direito internacional americano (p. 578). No último tomo, finalmente, Les Crises du XXe siècle de 1929 à 1945, o Brasil e a América Latina comparecem muito pouco, apenas a título de figurantes secundários num ou noutro episódio ligado à guerra mundial (p. 820) ou como fornecedores de matérias-primas 312 (p. 883), ou seja, numa posição reiteradamente marginal do ponto de vista das relações internacionais. Durante o conflito mundial, ele reconhece, por exemplo, que a América Latina contraiu em relação aos Estados Unidos “des liens de dépendance” que se desdobram numa hegemonia financeira a partir de 1947. (p. 884). A Permanência de Renouvin Profundamente marcado, como todos os homens de sua geração, pelas tragédias guerreiras que, de 1871 a 1945, retiram todo peso político ou econômico e toda influência internacional à Europa e à França, Pierre Renouvin consegue ainda assim produzir uma obra de referência que traz como fundamento metodológico e como premissa filosófica básica a essencialidade das relações interestatais europeias para as relações internacionais. Esse tipo de perspectiva pode ser considerado como fundamentalmente correto para a maior parte do período coberto, mas um historiador do novo mundo, eventualmente chamado a preparar um trabalho equivalente de síntese, provavelmente produziria uma obra com maior ênfase no peso relativo dos Estados Unidos ou nos fundamentos materiais e políticos da bipolaridade que passaria a dividir o mundo do pós-segunda guerra. Caberia entretanto observar que as relações internacionais, numa determinada era do desenvolvimento das civilizações, devem ser apreciadas em seu próprio contexto histórico, e não em função do futuro. Aplica-se aqui a famosa frase de Marx em seu 18 Brumário de Luís Bonaparte, segundo a qual a tradição das gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos. Em sua Conclusion Générale (vol. III, p. 907-918), Renouvin retém os dois elementos que lhe parecem essenciais ao cabo de uma vista de conjunto sobre o desenvolvimento das relações internacionais no curso de dez séculos: “um, o mais destacado sem dúvida, é a permanência das rivalidades e dos conflitos entre os grandes Estados, é o espetáculo das mudanças incorridas na hierarquia desses Estados; o outro é, por iniciativa dos europeus, o progresso das relações entre os continentes, ao ritmo dos progressos técnicos que facilitaram os deslocamentos dos homens, o transporte das mercadorias e o intercâmbio das ideias. A história das relações internacionais deve procurar identificar como esses dois aspectos de completam e se penetram; ela estende seu olhar sobre o mundo inteiro” (p. 907). Depois de passar mais uma vez em revista o papel das condições econômicas, demográficas e psicológicas – as “forças profundas” – que influenciam essas relações internacionais, Renouvin volta a confirmar o papel essencial dos Estados nas relações internacionais. Ao mencionar “l’action déterminante des États”, sobretudo daqueles Estados 313 que conseguiram salvaguardar, de século em século, seu poder, ele deveria certamente estar pensando na França, então ocupada em reconstruir seu poderio material e em recuperar seu antigo prestigio imperial. A mensagem de Renouvin é talvez um pouco voluntarista, mas o parti pris é digno de ser sublinhado: “O Estado impõe sua marca nas forças profundas, que ele acomoda ou utiliza em proveito do seu poder” (p. 915). Essa mesma opção preferencial, de ordem metodológica e empírica, em favor do Estado comparece no conhecido manual, em coautoria, de história das relações internacionais. Sua importância, para os estudantes da área, justificaria talvez uma longa citação: O estudo das relações internacionais está voltado sobretudo para a análise e a explicação das relações entre as comunidades políticas organizadas no quadro de um território, isto é, entre os Estados. Sem dúvida, ele deve levar em conta as relações estabelecidas entre os povos e entre os indivíduos que compõem esses povos – intercâmbio de produtos e de serviços, comunicações de ideias, jogo das influências recíprocas entre as formas de civilização, manifestações de simpatias ou de antipatias. Mas, ele constata que essas relações podem raramente ser dissociadas daquelas que são estabelecidas entre os Estados: os governos, frequentemente, não deixam a via livre a esses contatos entre os povos; eles lhes impõem regulamentos ou limitações, quer se trate do movimento de mercadorias ou de capitais, de movimentos migratórios, ou mesmo de circulação de ideias; eles podem também, por outros procedimentos, orientar as correntes sentimentais. Essas intervenções não têm somente como resultado mais frequente a restrição ou a atenuação das relações estabelecidas pelas iniciativas individuais; elas também lhes modificam o caráter. Deixadas a elas mesmas, essas relações entre os indivíduos poderiam constituir, algumas vezes, um fator de solidariedade; pelo menos, os antagonismos entre esses interesses individuais não acarretariam, na maior parte dos casos, consequências políticas diretas. Regulamentadas pelos Estados, elas se tornam elemento de negociações ou de contestações entre os governos. É portanto a ação dos Estados que se encontra no centro das relações internacionais. (Pierre Renouvin e Jean-Baptiste Duroselle: Introduction à l’histoire des relations internationales; Paris: Librairie Armand Colin, 1964, Introd., p. 1) Essa mensagem de história global e ao mesmo tempo de confirmação do papel primordial do Estado nas relações internacionais constitui, por assim dizer, a lição de Pierre Renouvin às gerações de nossa própria época histórica, um ensinamento que se pretende também um convite à modéstia de pretensões explicativas em sua disciplina. Com efeito, ele termina sua monumental Histoire des relations internationales por uma lição que é sobretudo uma advertência contra as pretendidas “lições da história”: A política exterior está ligada a toda a vida dos povos, a todas as condições materiais e espirituais dessa vida, ao mesmo tempo que à ação pessoal dos homens de Estado. Na busca de explicações, que permanece o objetivo essencial do trabalho histórico, o maior erro consistiria em isolar um desses fatores e atribuir-lhe uma primazia, ou mesmo em querer estabelecer uma 314 hierarquia entre eles. As forças econômicas e demográficas, as correntes da psicologia coletiva e do sentimento nacional, as iniciativas governamentais se completam e se penetram; sua parte de influência respectiva varia segundo as épocas e segundo os Estados. A pesquisa histórica deve tentar determinar qual foi essa parte. Ela oferece assim oportunidade para necessárias reflexões; mas, ela não pretende dar receitas e muito menos ditar lições. (vol. III, p. 918) Esta é a grande lição que mestre Pierre Renouvin deu em sua Histoire des relations internationales e na maior parte de suas obras: seu sentido e seus propósitos continuam plenamente válidos. Voilà ! Paris, 8 de agosto de 1994. Publicado na seção Livros da revista Política Externa (São Paulo: vol. 3, n. 3, dezembro-janeiro-fevereiro 1994/1995, pp. 183-194). 315 Do fim da História ao fim da Geografia: o acabamento de Hegel por Fukuyama Francis Fukuyama: “The End of History?” The National Interest (n. 16, Summer 1989, p. 3-18) The End of History and the Last Man (New York: Free Press, 1992) No verão de 1989, a revista americana National Interest publicava um ensaio teórico – mais exatamente de filosofia da História – do intelectual nipo-americano Francis Fukuyama sobre os sinais – até então simplesmente anunciadores – do fim da Guerra Fria, cujo título estava destinado a deslanchar um debate ainda hoje controverso: “The End of History?”. A proposta de Fukuyama sobre o “fim da História” – a interrogação do título é importante –, apresentada com um suporte hegeliano aparentemente consistente, é de tão fácil aceitação, do ponto de vista intelectual, quanto desprovida de maior importância explicativa, do ponto de vista prático. Em sua roupagem puramente acadêmica, ela oferece um excelente terreno de manobras para divagações inocentes sobre o “triunfo definitivo” do liberalismo ocidental. Quando se trata, no entanto – parafraseando a décima-primeira tese de Marx sobre Feuerbach –, de não mais “interpretar” o mundo, simplesmente, mas de “transformá-lo”, essa nova tese “jovem hegeliana” perde-se em seu próprio pântano ideológico. Em outros termos, se a História aproxima-se de seu final filosófico – isto é, se a Razão exauriu as possibilidades conceituais de explicar o Real – e se a organização formal do mundo material confunde-se com sua atual configuração histórica, isto não quer dizer que a história esteja perto de seu final concreto – isto é, que o Real tenha esgotado de vez as possibilidades práticas de ordenar o mundo em conformidade com o reino da Razão – ou que a organização material do mundo potencial esteja limitada a um determinado sistema sociopolítico. A tese principal era a de que, após um século de emergência e declínio dos regimes fascistas e comunistas, de enormes turbulências políticas e de crises econômicas, de contestação intelectual e prática ao liberalismo econômico e político de corte ocidental, o mundo estava retornando ao seu ponto inicial, qual seja o do triunfo inquestionável – an unabashed victory, nas palavras de Fukuyama – do sistema liberal ocidental. Segundo ele, tratava-se de um triunfo da “ideia ocidental”, tornada evidente pela exaustão das alternativas viáveis ao liberalismo ocidental. Esse triunfo era mostrado, em primeiro lugar, pela 316 disseminação da cultura consumista ocidental nos dois países mais importantes do ‘mundo alternativo’, a China e a União Soviética (cabe registrar, imediatamente, que em nenhum momento de sua análise, Fukuyama esperava a dissolução imediata do regime monocrático e o rápido desaparecimento do próprio império soviético). Como ele mesmo observou logo ao início do artigo, “a vitória do liberalismo ocorreu primariamente no domínio das ideias, ou da consciência, e é ainda incompleta no mundo real ou material”. Mas como afirmou, logo em seguida, o próprio Fukuyama, “há razões poderosas para acreditar que é essa ideia que irá governar o mundo real no longo prazo” (ênfase original). Se aceitarmos o conhecido aforismo keynesiano, segundo o qual, a longo prazo, todos estaremos mortos, essa afirmação do cientista político americano o deixa inteiramente à vontade para acomodar quaisquer desenvolvimentos políticos e econômicos imediatos e de médio prazo, retirando sua responsabilidade sobre a validade de sua tese na perspectiva do cenário de curto prazo. Esse fato pode transformar sua tese principal no equivalente acadêmico dessas previsões de cartomantes ou adivinhos, que deixam a um futuro indefinido a realização de seus exercícios de futurologia amadora, mas caberia aceitar, em princípio, as premissas de Fukuyama como uma proposta passível de discussão apoiada em metodologia rigorosa. Em todo caso, seu texto engajava, a partir daí, uma discussão em torno das questões teóricas relativas à natureza da mudança histórica, processo que ele remonta a Hegel e Marx, sobretudo o primeiro, formulador da teoria do progresso na história universal.1 O fim da história, na concepção hegeliana (tal como interpretada por Kojève), estava identificado com a afirmação dos princípios do direito universal à liberdade e da legitimação de um sistema de governo apenas com o consentimento e a aprovação explícita dos governados, o que foi chamado de “Estado homogêneo universal”. Uma vez que todas as contradições anteriores já teriam sido resolvidas com a aceitação e por meio do estabelecimento desse Estado – e como, para Hegel, o mundo real deveria corresponder ao mundo ideal, pelo menos aquele que figurava na cabeça do filósofo –, então não existiriam mais espaços para conflitos de maior escopo em torno da organização política desse Estado, restando apenas encaminhar e resolver os pequenos problemas da atividade econômica e da política corrente. O mundo se converteria, então, numa simples “administração das coisas”, segundo a frase de Engels para 1 Hegel não foi o primeiro, em termos absolutos; antes dele, filósofos escoceses (como Ferguson) e franceses (como Condorcet) já tinham debatido a idéia do progresso da civilização, muitas vezes numa perspectiva linear, seguindo a flecha do tempo; mas foi Hegel quem deu à idéia de progresso um sentido de necessidade histórica, que o fez situar-se no centro da evolução possível das sociedades humanas. 317 representar a situação das sociedades humanas na fase pós-socialista, quando supostamente já não mais existiriam a exploração dos trabalhadores e a dominação política sobre os homens. Obviamente, Hegel não era tão simplista como a exposição acima poderia sugerir, sobretudo com esse ‘idealismo filosófico’ de equalizar o mundo ideal ao mundo real. Para o filósofo alemão – mais especificamente prussiano, talvez –, as contradições existentes no mundo real se formam a partir de um conflito de ideias, ou seja, de diferentes concepções sobre como deveria ser organizado o mundo real da política e da economia. As distinções entre um mundo e outro seriam apenas aparentes, posto que as ideias que encontravam abrigo na consciência dos homens acabariam por se tornar necessidades do mundo real, fechando assim o ciclo de realização da ideia universal.2 A consequência prática dessa concepção seria a de que, posto que as democracias de mercado provaram sua capacidade de não apenas resistir aos desafios colocados por crises econômicas e por guerras devastadoras, mas também de atender aos requerimentos suscetíveis de trazer prosperidade e riqueza a todos os países que aderiram a seus princípios organizadores, elas estavam habilitadas a cumprir seu mandato hegeliano de realizar o ‘Estado universal homogêneo’, fechando, assim, um ciclo completo da história. À pergunta – sempre o ponto de interrogação – de saber se chegamos ao fim da história, deve-se agregar esta outra, sobre se existem contradições tão fundamentais na vida humana que não possam ser encaminhadas através de qualquer outra forma alternativa de estrutura político-econômica que não o liberalismo moderno de mercado. Não se trata de saber o que pode ocorrer, em termos práticos, na Albânia ou em Burkina Faso, mas o que importa, realmente, em termos de ‘herança ideológica comum da humanidade’. Sem dúvida alguma, muito ainda resta a ser feito para que o homem comum possa trabalhar pela manhã, pescar na hora do almoço e dedicar-se à filosofia pela tarde, como queria o Marx hegeliano da juventude. Em todo caso, a maior parte da humanidade não foi ainda advertida sobre essas novas possibilidades de épanouissement individuel. Para ser honesto com Fukuyama, sua tese é basicamente correta em sua aparente simplicidade propositiva: não há mais contestação ideológica possível – de origem “socialista”, entenda-se bem – à hegemonia filosófica, política e econômica do liberalismo ocidental. Este último emergiu claramente vencedor das contendas ideológicas do período de Guerra Fria. Parodiando o autor da Critique de la Raison Dialectique, até se poderia adivinhar 2 Marx inverteu esse processo, como se sabe, mas apenas para converter o socialismo na realização necessária, em última instância, da idéia universal, uma espécie de fatalismo pelo lado da sucessão inevitável dos ‘modos de produção’, um conceito que ele cunhou e que ainda hoje é usado por discípulos, de modo geral, mas também por opositores dos próprios sistemas hegeliano e marxista. 318 a brincadeira outre tombe que, a propósito do liberalismo ocidental, Raymond Aron dirigiria a Jean-Paul Sartre: à diferença do marxismo, ele, sim, teria se tornado o “horizonte insuperável de nossa época”. É altamente improvável, porém, que Aron concordasse com a previsão de Fukuyama sobre os états d’âme associados a um liberalismo fin-de-siècle: uma clara época de tédio (a very sad time, prospects of centuries of boredom, diz Fukuyama em seu artigo), marcada pela preocupação quase que exclusiva com exigências materiais, sem as experiências “heróicas” ou “excitantes” que todo período maniqueísta sói suscitar. Relativamente pessimista – dotado de um scepticisme serein, preferiria dizer o ex-colega de liceu de Sartre – no que se refere às realidades dos Estados e dos sistemas de poder existentes, Aron não alimentaria nenhuma ilusão quanto a que o alegre “enterro do socialismo”, operado na última década do século XX, pudesse conduzir a uma “primavera das democracias” razoavelmente estável ou a uma versão atualizada da “paz universal” prometida em meados do século XVIII por um prelado francês e um pouco mais tarde pelo próprio Kant.3. Em todo caso, a anarquia política característica da ordem interestatal contemporânea, bem como os enormes diferenciais de recursos e de poder entre os Estados, no quadro de um sistema internacional ainda fortemente hierarquizado, parecem garantir um “fim da História” bem movimentado para os atores que continuarem a participar deste cenário pós-socialista. Entendamo-nos bem. Aron certamente não se importaria em que os aléas de l'Histoire conduzissem a Humanidade a um fin-de-siècle bem pouco aroniano, isto é, livre de uma vez por todas da terrível ameaça do holocausto nuclear. Mas, para ele, a superação da Machtpolitik da era bipolar não significava em absoluto que as relações internacionais contemporâneas – e presumivelmente as do futuro também – passassem a ser desprovidas, mesmo num cenário multipolar, de todo e qualquer elemento de “política de poder”. A despeito da crescente afirmação do primado do direito internacional – ou seja, da “força da razão” sobre as soluções baseadas na violência primária –, a Machtpolitik continuará a existir por largo tempo ainda, inclusive em seus aspectos mais elementares de exercício puro e simples da “razão da força”. A diferença está, provavelmente, em que, no cenário otimista traçado por Fukuyama, o desafio ideológico representado pelo socialismo – the socialist alternative, em suas palavras – simplesmente deixou de existir. Mesmo imaginando-se (no l’au-delà) o “sorriso cético” de 3 Ver, a esse propósito, meu ensaio “Uma paz não-kantiana?: Sobre a paz e a guerra na era contemporânea”, In: Eduardo Svartman, Maria Celina d’Araujo e Samuel Alves Soares (orgs.), Defesa, Segurança Nacional e Forças Armadas: II Encontro da Abed (Campinas: Mercado de Letras, 2009, p. 19-38; link: http://www.pralmeida.org/05DocsPRA/1987PazNaoKantianaABEDbook.pdf). 319 Raymond Aron – que, todavia, nunca reduziu o confronto interimperial a um mero enfrentamento ideológico –, não podemos descartar, de plano, a versão revista e melhorada por Fukuyama da tese de Bell sobre o “fim das ideologias”. A differentia specifica representada pelo afastamento do concorrente ideológico – isto é, o socialismo – pode ser funcionalmente explicativa para justificar um futuro “estado universal homogêneo”. Numa época em os modernos ideólogos identificaram, repetidas vezes, sinais de “fim das ideologias” (ou, agora, do próprio “fim da História”), perde-se facilmente a visão de como o elemento ideológico influenciou a construção do mundo contemporâneo. O Ocidente em geral, nos últimos setenta anos, e a Europa em particular, nos últimos quarenta anos, viveram sob o signo das relações Leste-Oeste. Sua face mais ameaçadora produziu o que, acertadamente, ficou identificado sob o conceito de Guerra Fria. Depois de pelo menos quatro décadas de livre circulação, essa verdadeira hantise estratégico-ideológica parece agora estar finalmente encaminhando-se para o museu das antiguidades, ao lado do machado de bronze e da roca de fiar (como queria Engels em relação ao Estado). Surpresas nesse terreno não podem contudo ser descartadas, já que o conceito mesmo de Guerra Fria se refere à confrontação de interesses políticos (e o consequente não-enfrentamento direto) entre duas potências rivais e não, simplesmente, à competição econômica entre grandes países. A Guerra Fria entre as duas superpotências, que marcou indelevelmente toda a história da segunda metade do século XX, não foi, provavelmente, apenas um produto de ideologias conflitantes. Mas, foram certamente as racionalizações políticas e militares construídas a partir das “intenções malévolas” do concorrente estratégico que lhe deram uma dimensão jamais vista nas antigas disputas hegemônicas (seja entre os impérios da antiguidade clássica, seja entre os Estados-nacionais da era moderna). Mais que tudo, foi a crença ideológica – quase religiosa, podemos dizer – em uma “missão histórica” especificamente “socialista”, qual seja, a de enterrar não apenas o “inimigo burguês”, mas o próprio “modo de produção capitalista”, que exacerbou tremendamente o “conflito ideológico global” (como diriam os generais da “geopolítica”), levando-o, em algumas ocasiões, ao limiar da “escalada nuclear”. O afastamento da “espoleta ideológica” – a iskra leninista – do socialismo, antecipada pela tese sobre o “fim da História”, significaria agora que o mundo estaria encaminhando-se, finalmente, para uma era de paz (ou pelo menos de não-guerra)? Descartando-se a permanência dos chamados conflitos regionais e das guerras locais conduzidas por motivos étnicos ou territoriais, é provável que sim, mas, isto tem pouco a ver com o fim do “desafio socialista”. Como veremos mais adiante, o abafamento das paixões bélicas nas sociedades 320 contemporâneas é mais o resultado de mudanças substantivas na ordem econômica global do que devido a motivos de natureza política ou ideológica (a derrocada do socialismo). Com efeito, querer responsabilizar a ideologia socialista pelas “guerras de religião” contemporâneas (do que não se pode acusar Fukuyama) nada mais significa senão uma racionalização filosófico-sociológica a posteriori, pouco condizente com uma realidade histórica muito mais complexa que todas as vãs “filosofias da história”, mesmo em versão supostamente hegeliana. Num século marcado pelo “triunfo” avassalador das ideologias, o socialismo não foi, de longe, a mais belicista ou a mais agressiva delas: na triste competição entre hitlerismo, stalinismo e maoísmo (acrescente o pol-potismo ou o senderismo quem quiser), o primeiro ainda resulta largamente vencedor. Não se trata aqui, meramente, de uma contabilidade quanto aos números respectivos de mortos induzidos, como poderiam nos lembrar um Robert Conquest ou alguns demógrafos da era pós-Deng Xiao-Ping: o hitlerismo ainda representa o projeto mais acabado de aplicar o burocratismo weberiano à planificação industrial do genocídio. Um exame imparcial da história do período anterior a 1945, mostraria que não foi a oposição entre, de um lado, as ideologias “capitalistas” – ou, digamos, liberais – e, de outro as “socialistas” – pode-se dar-lhes, cum grano salis, o epíteto de marxistas – que provocou o quadro de instabilidade política e militar durante a primeira metade do século XX e que precipitou os conflitos que retirariam definitivamente da Europa as alavancas do poder mundial. Ao contrário, foram os conflitos de natureza quase “feudal” – como diria o historiador Arno Mayer – latentes no continente europeu desde finais do século XIX que permitiram o surgimento do poder socialista e, com ele, do conflito ideológico global. Basta mencionar a ação agressiva das novas potências da mittel-Europa para escapar ao cerco das “velhas potências imperiais”, ou o papel das ideologias fascistas do “espaço vital” e da “regeneração nacional” no entre-guerras, para dar a exata dimensão da responsabilidade do “socialismo” no caótico quadro político-militar da modernidade. A “ameaça socialista” sempre foi menor do que se imaginou e poderia mesmo ter sido irrelevante, para todos os efeitos práticos, não fosse por um desses imponderáveis do acaso – os famosos “ifs” dos livros de historia virtual – que costumam esconder-se nas já mencionadas dobras da História. Não se deve, com efeito, esquecer que o surgimento da dimensão Leste-Oeste no contexto político europeu é virtualmente o resultado prático de um pequeno, mas fecundo, “acidente” histórico, desencadeado involuntariamente por um dos beligerantes durante a Primeira Guerra Mundial: o retorno à Rússia de um punhado de bolcheviques exilados, praticamente desanimados pela ausência de perspectivas revolucionárias em sua terra natal. O 321 voluntarismo oportunista da diplomacia do Kaiser, que buscava apenas provocar um pequeno “tremor” político na frente de guerra oriental, podendo servir a interesses militares imediatos, transformou-se porém em um cataclismo histórico de proporções inimagináveis, dando nascimento aliás ao próprio conceito de relações Leste-Oeste. Uma vez instalado o novo poder bolchevique, as diversas intervenções das potências ocidentais em território russo (ou “soviético”) contribuíram mais para alimentar a oposição ideológica irredutível com os países capitalistas do que uma suposta “luta de classes” em escala internacional. No segundo pós-guerra, igualmente, a busca constante do rompimento do “cerco imperialista” era mais ditada por considerações de natureza estratégica (segurança militar) do que por reflexos de princípios “ideológicos”. Para Stalin, por exemplo, a razão de Estado sempre teve preeminência sobre o “internacionalismo proletário”, este último invariavelmente servindo de disfarce ideológico aos interesses do poder soviético. Seja qual for o destino futuro da “ideologia socialista”, seu itinerário terá pouco a ver com o ocaso da História. Na verdade, estamos assistindo, não tanto ao “fim da história”, quanto, mais propriamente, aos “limites da geografia”, a partir da crescente globalização dos circuitos produtivos e da interdependência acentuada das economias desenvolvidas. O próprio Fukuyama observou que o desafio da alternativa socialista nunca esteve, realmente, no terreno das possibilidades concretas no Atlântico norte, região de capitalismos bem estabelecidos e de democracias de mercado relativamente estáveis – com a exceção, talvez, da periferia mediterrânea – e que o sucesso dessa alternativa foi, na verdade, sustentado por experiências em sua periferia: na Ásia, na África e numa simples ilha da América Latina. De fato, foi na Ásia onde o socialismo conseguiu alguma penetração duradoura – hoje largamente simbólica – mas é nas universidades públicas da América Latina – em grande medida medíocres em termos de produção humanística significativa – onde o marxismo esclerosado ainda consegue uma ridícula sobrevivência, embora desprovido de qualquer inovação filosófica ou de melhorias significativas nas suas propostas econômicas relevantes. Não se imagine, contudo, que o disfarce ‘socialista’ da liderança plutocrática chinesa constitua um sobrevivência qualquer da ideologia marxista, ou que ela represente um desafio fundamental ao capitalismo real: os líderes chineses, desde Deng Xiao-Ping, perceberam que a sobrevivência do ‘comunismo’ na China só se daria por obra e graça do capitalismo, e à sua construção eles vem se dedicando com extraordinário esforço e o zelo engajado dos verdadeiros crentes, os ‘novos cristãos’ da verdadeira fé nas virtudes do regime de mercados. O que está em causa, obviamente, não é o futuro, sequer o destino do socialismo, mas pura e simplesmente o poder político nas mãos dos novos mandarins chineses, uma nova 322 classe basicamente similar à antiga nomenklatura soviética, mas que foi esperta o bastante para construir um sistema de dominação que transforma os novos capitalistas em seus aliados permanentes, já que, como ensina Fernand Braudel, o capitalismo só triunfa, de verdade, quando ele transforma em Estado, quando ele é o Estado.4 Alguns observadores já chamaram esse novo sistema de “corporativismo leninista”,5 mas o nome, na verdade, importa menos do que a realidade tangível do novo sistema chinês: esse sistema é essencialmente capitalista, mesmo se ele não é democrático e muito menos liberal, no sentido político da palavra; mas as políticas econômicas mobilizadas são, no seu sentido básico, de corte liberal. Aliás, a partir da crise econômica mundial de 2008-2009, vários observadores se perguntaram se, depois do ‘comunismo’ chinês ter sido salvo pelo capitalismo, não seria ele agora, pela pujança da demanda e da produção manufatureira de alcance global, a salvar o capitalismo. Ao que se sabe, o ensaio de Fukuyama não recebeu uma edição revista e atualizada para poder capturar esta última ‘astúcia da Razão’, ou essa “artimanha da História”, uma ironia suprema que seria bem recebida por Marx, mas certamente não por Lênin e seguidores. Não é seguro que uma alternativa credível em termos de sistema econômico e político se apresente nos palcos da História, ainda que as viúvas do comunismo e os deserdados da causa mantenham uma esperança quase religiosa – que se renova febrilmente a cada crise do capitalismo – de que isso seja possível em suas vidas terrenas. O mais provável é que as últimas ‘terras incógnitas’ do capitalismo realmente existente – que são alguns tresloucados ‘socialistas do século 21’, perdidos em seus próprios desastres econômicos, e um punhado mais numeroso de satrapias africanas, mas que não constituem Estados, no sentido hegeliano do termo – se juntem à locomotiva da interdependência mundial em algum momento deste século: embora atrasados, eles também serão bem-vindos, mesmo que tenham de desempenhar funções subalternas no capitalismo, até sua própria qualificação produtiva. Alternativas políticas à democracia liberal sempre podem existir, posto que as molas do poder respondem em grande medida mais às paixões humanas – o que os dramaturgos gregos, Shakespeare e Maquiavel já sabiam desde sempre – do que aos mecanismos de produção e de distribuição de ativos reais, e isto vem sendo provado a cada instante da história mundial. Não se imagina, porém, que o ‘som e a fúria’ da luta pelo poder, nas comunidades contemporâneas conduza a novos tipos de conflitos globais como os conhecidos 4 Ver a trilogia braudeliana, Civilisation Matérielle, Economie et Capitalisme, XV-XVIIIème siècles (Paris: Armand Colin, 1979, 3 vols.). 5 Cf. Jean-Luc Domenach, La Chine m’inquiète (Paris: Perrin, 2008), p. 58 e 65-66. 323 desde a era napoleônica até a ‘segunda guerra de trinta anos’ do século 20. Nenhuma Realpolitik se exerce da mesma maneira depois que o gênio do poder nuclear saiu da garrafa. A Realpolitik da atualidade tem um novo nome, superioridade tecnológica, e o cenário de seu desenvolvimento é a própria Weltwirtschaft, num mundo cada vez mais borderless. Com efeito, assiste-se hoje em dia a um deslocamento de hegemonias, menos devido à força das canhoneiras do que ao peso dos navios cargueiros. Mais exatamente, a tendência não é mais à constituição de rivais imperiais, mas ao estabelecimento de competidores mais eficazes, guerreiros de uma nova espécie, que buscam não tomar de assalto velhas fortalezas, mas inundá-las com pacíficos obuses eletrônicos, manufaturados segundo os mais modernos requisitos da tecnologia. Os cavaleiros mais dinâmicos dessa nova ordem mundial consideram os arsenais nucleares como catapultas pouco práticas do ponto de vista das modernas técnicas de conquista, da mesma forma que eles tendem a desdenhar os conflitos ideológicos como querelas teológicas de reduzido poder agregador: os hábitos de consumo unificam mais os povos, hoje em dia, do que as velhas crenças. Teutônicos ou samurais, os novos cavaleiros da economia mundial não buscam exatamente dominar ou converter outros povos, mas tão simplesmente extrair recursos pela via comercial. A estratégia econômica desses novos cruzados é verdadeiramente internacional, no sentido mais planetário do termo: busca de vantagens comparativas dinâmicas, rápido deslocamento geográfico de fatores, divisão racional de mercados, em suma, uma globalização acabada dos circuitos produtivos e de distribuição. A característica mais saliente dessa nova ordem mundial é a crescente interdependência dos países mais inseridos na economia de mercado. Mas, assim como na fábula orwelliana sobre a “igualdade” na fazenda “socialista” dos animais, nessa nova “fazenda capitalista” das nações, alguns membros são mais “interdependentes” do que outros. Não se trata apenas de saber quem é mais “transnacional” nessa confraria, mas sim de determinar quem melhor sabe maximizar os mecanismos de controle da racionalidade instrumental própria à economia de mercado: o lucro e o investimento produtivo.6 Assim, se o “fim da História” – compreendido, não no sentido de que o mundo estaria a ponto de se tornar um havre tranquille para o exercício da democracia política, mas no do término da busca dos princípios fundamentais que devam reger a organização da sociedade – 6 Para os menos afeitos à esotérica terminologia weberiana, estabeleçamos simplesmente que a “racionalidade instrumental própria à economia de mercado” pode ser definida como o “retorno ampliado do capital”. 324 está ou não próximo de converter-se em realidade, esta é uma questão ainda em aberto. Uma alternativa política ao liberalismo ocidental não parece, em todo caso, perto de nascer. Isto não quer dizer que não existam alternativas práticas, reais, à democracia burguesa, como o próprio caso da China o demonstra. O que se pretende constatar é que o sistema chinês de dominação política não oferece atrativos para qualquer país que se pretenda ‘normal’ no quadro da interdependência contemporânea: esse sistema simplesmente não constitui um modelo que possa ser replicado em caráter voluntário por outras comunidades políticas. Não fosse assim, a plutocracia chinesa não precisaria manter um formidável aparato de repressão, disseminar a censura pelos terrenos sempre fugidios da internet, continuar a condenar “dissidentes” e “violadores da legalidade” com o mesmo ardor – embora com menor brutalidade – que seus antecessores declaradamente marxistas-leninistas. A tese de Fukuyama, em seus contornos filosóficos, ainda não foi desmentida pelos defensores do ancien régime leninista. Em outros termos, a “boa e velha” democracia burguesa, em que pese algumas rugas vitorianas, ainda não foi vencida por alguma “contradição insanável”, do tipo das que costumavam frequentar o universo conceitual do marxismo clássico. Em contrapartida, no terreno da economia, o “final da Geografia” parece mais à vista, sobretudo quando se considera o escopo espacial das atividades empresariais: o mundo material está sendo progressivamente unificado por uma “cultura comum”, senão da abundância, pelo menos no que respeita os padrões de consumo. Os jovens iranianos de uma das teocracias mais reacionárias que possa existir, os jovens chineses do “socialismo de mercado” e os jovens bolivarianos de um novo socialismo surrealista, todos eles desejam encontrar satisfação em padrões de consumo relativamente similares: filmes série B de Hollywood, fast-food, iPhone, iPad e internet. Os que ficam de fora – cubanos, coreanos do norte – estão loucos para entrar... O processo de constituição de um borderless-world não deve ser confundido com o “declínio do Estado-nação”, tendência desmentida pelo ressurgimento do nacionalismo nos mais diversos quadrantes do globo. O que ocorre, exatamente, é uma combinação do policentrismo interestatal com a unificação dos espaços geoeconômicos, nos quais as competências estritas dos Estados nacionais no terreno econômico passam a ser exercidas por blocos de integração (zonas de livre comércio, uniões aduaneiras ou mercados comuns). O socialismo nouvelle manière só poderá sobreviver nesse “admirável mundo novo” do “fim da Geografia” se ele, além de aprender a coexistir com o liberalismo político, passar a conviver em bons termos com a interdependência econômica, ou seja, além de “democrático”, o socialismo terá de ser cada vez mais “de mercado”. Os países “pós-socialistas” da mittel325 Europa, por exemplo, deram passos enormes no estabelecimento de regimes formalmente democráticos, mas eles ainda não tiveram tempo de organizar, sobre bases mais racionais, um sistema de “exploração do homem pelo homem”. Em todo caso, eles são bem-vindos à realidade. Quanto aos “socialistas radicais” ainda existentes nos países em desenvolvimento, entre eles o Brasil, eles terão, mais dia menos dia, de fazer o caminho da Canossa capitalista, o que significa fazer a sua própria versão de Bad Godesberg, com os sorrisos irônicos, à distância, de Edward Bernstein.7 Se o socialismo, tout court, não desaparecer nesse movimento de recomposição radical de suas bases de funcionamento, ele inevitavelmente se converterá em uma espécie de socialismo formal, onde o mercado e a democracia política convivem tranquilamente com esquemas diversos de seguridade social e de intervencionismo estatal, um pouco, aliás, como na maior parte dos países do “capitalismo realmente existente”. Seu caráter formal – isto é, respeitador das desigualdades individuais que tendem inevitavelmente a se desenvolver sob as mais diversas formas – não deve contudo assustar os mais puros ideologicamente. Se a chamada “democracia burguesa” conseguiu sobreviver durante tanto tempo, foi exatamente devido a seu caráter essencialmente formal, ou seja, uma democracia simplesmente política, destituída de qualquer conteúdo real, em termos de direitos econômicos ou sociais. A simples garantia da igualdade jurídica e da liberdade individual representa, contudo, um enorme passo à frente no itinerário da sociedade civil, pelo menos para grande parte da Humanidade. É possível, assim, que a administração da “coisa pública” nesse socialismo formal do futuro seja uma tarefa tão “aborrecida” e fastidiosa quanto, digamos, atualmente, em certas democracias avançadas do Ocidente, algo que já tinha sido percebido por um filósofo tão inteligentemente socialista (e “hegeliano”) como Norberto Bobbio. O fato, porém, de que nenhum sistema social humanamente concebido poderá resolver a contento a questão da distribuição dos bens raros e socialmente valorizados – e a mercadoria “poder” é a primeira a inscrever-se nessa categoria – garante que os palcos da História continuarão, durante muito tempo, a ser excitantes. Em outros termos, o emprego de “filósofo público” de Fukuyama parece assegurado pelo futuro previsível. Vinte anos depois, em vista das muitas críticas feitas naquela conjuntura – e ainda hoje – às principais teses do autor, vale a pena retomar seus principais argumentos e verificar se eles ainda conservam alguma validade para nossos tempos, que poderiam ser considerados 7 Bad Godesberg epitomiza o memorável congresso do SPD alemão, em finais dos anos 50, no qual o velho partido marxista de Liebknecht aceitou, finalmente, a lógica do mercado capitalista e a do reformismo político como seus pressupostos filosóficos e práticos, como aliás recomendava, desde o começo do século, contra Rosa Luxemburgo, o renegado Bernstein. 326 como de pós-Guerra Fria, mas que alguns interpretam, ou consideram efetivamente, como de volta à Guerra Fria, ainda que sob novas modalidades (com uma Rússia singularmente diminuída e uma China hesitante em se posicionar como contendor estratégico dos Estados Unidos).8 Antes, contudo, de ingressar numa descrição linear desses argumentos, qualquer que seja sua validade relativa ou absoluta para o tema que nos interessa – qual seja, o da natureza das opções abertas aos países em termos de reforma e desenvolvimento paralelos do sistema econômico e do regime político, que Fukuyama identificava com a redução dessas opções à democracia de mercado – cabe chamar a atenção para uma peculiaridade geralmente descurada no debate anterior (e talvez atual) sobre a validade das teses de Fukuyama, sobretudo por aqueles que recusam, in limine, a essência mesma do argumento do autor. Esta peculiaridade tem a ver, basicamente, com um simples sinal diacrítico: o ponto de interrogação ao final do título, geralmente ignorado pelos críticos das teses de Fukuyama, e provavelmente também por aqueles que apoiam, em grande medida, o sentido dos seus argumentos. Ou seja, Fukuyama não fazia uma afirmação peremptória, mas levantava uma hipótese, a do final presumido da história, numa análise de corte essencialmente conceitual, ainda que fortemente embasada nos fatos históricos, e nunca pretendeu formular uma sentença de caráter terminativo, indicando um “congelamento” das formas possíveis de organização social, econômica e política. O interrogante básico de seu argumento tem a ver com a possibilidade de alternativas credíveis às democracias liberais de mercado, ponto. O ponto de interrogação, por si só, tem o poder de desmantelar boa parte das críticas superficiais, embora ele não elimine uma discussão responsável sobre a essência de sua tese, que caberia discutir, após o resumo inicial de seus argumentos. A tese – vale a pena resumir desde o início – tem a ver com o caráter incontornável da democracia de mercado como sendo uma espécie de ‘horizonte insuperável de nossa época’, como poderia argumentar – mas a propósito do marxismo – Jean Paul Sartre, um dos estudantes, junto com Raymond Aron, da tese original de Hegel, através de Alexandre Kojève. Como indica corretamente Fukuyama, no decorrer do século 20, foram dois os desafios mais importantes ao liberalismo político e econômico: o fascismo e o comunismo. Ambos poderiam, na verdade, ser abrigados sob o conceito comum de regimes anti- ou aliberais, no terreno político, e sob o conceito de sistemas coletivistas no domínio econômico 8 Ver, a esse propósito, meu artigo “A economia política da velha Guerra Fria e a nova “guerra fria” econômica da atualidade: o que mudou, o que ficou?”, Revista da Escola de Guerra Naval (Rio de Janeiro: vol. 17 n. 2, dezembro de 2011, p. 7-28; ISBN: 1809-3191; link: https://www.egn.mar.mil.br/arquivos/revistaEgn/novaRevista/pagina_revista/n17_2/_edicao17_2.pdf). 327 (embora o comunismo, ou o socialismo soviético, tenha sido muito mais ‘coletivista’ do que o fascismo). Tendo este último sido enterrado sob os escombros da Segunda Guerra Mundial, restava o comunismo, que, no momento em que Fukuyama redigia seu panfleto hegeliano, ainda não tinha sido enterrado de vez. Essa recordação é importante: afinal de contas, na segunda metade de 1988 e o início de 1989, quando ele redigiu seu ensaio especulativo, Gorbachev ainda se debatia para implementar sua glasnost e sua perestroika, destinadas, como se sabe, não a enterrar o comunismo, mas a introduzir elementos de mercado em seu funcionamento efetivo, de maneira que a nova NEP sob o comando de um reformista do Partido Comunista pudesse assegurar a continuidade do sistema e do império; por outro lado, a China de Deng Xiao-Ping exibia, naquela conjuntura, apenas 20% de sistema de mercado como locus da produção global do país e, ao que se sabe, a plutocracia do PCC pretende, até hoje, construir um fantasmagórico “socialismo de mercado com características chinesas”.9 Fukuyama não deixa de ironizar o fato de que entre os maiores opositores do marxismo e das economias coletivistas nos países ocidentais estão os ‘perfeitos materialistas’ de Wall Street, que cultivam o mais acirrado anticomunismo e não deixam de ser defensores de princípios similares aos dos marxistas. Como ele escreve: “A inclinação materialista do pensamento moderno é uma característica não apenas do pessoal da Esquerda, que podem ser simpáticos ao Marxismo, mas de muitos antimarxistas passionais também. De fato, existe na direita o que se poderia rotular de escola do Wall Street Journal do materialismo determinista, que relativiza a importância da ideologia e da cultura e vê o homem como sendo essencialmente um indivíduo racional, maximizador dos lucros. É precisamente esse tipo de indivíduo e a sua busca de incentivos materiais que aparece como a base da vida econômica nos manuais de economia.” Não se trata de mera ironia gratuita, pois como lembra em seguida Fukuyama, é essa mesma escola do materialismo determinista de Wall Street Journal que aponta para os notáveis sucessos de países dinâmicos da Ásia nas últimas décadas como uma evidência da viabilidade da economia de mercados livres, com a implicação decorrente de que todas as sociedades poderiam conhecer desenvolvimentos similares se elas simplesmente deixassem as pessoas perseguirem livremente seus interesses materiais. O próprio Fukuyama aponta para os elementos “ideais” presentes nessa transformação e na ulterior transição do socialismo ao 9 Sobre essa verdadeira “contradição nos termos” – como disse Marx a propósito do sistema de Proudhon, exposto em Filosofia da Miséria, e criticado por ele em Miséria da Filosofia (1847) –, ver meu artigo: “Falácias acadêmicas, 13: o mito do socialismo de mercado na China”, Espaço Acadêmico (ano 9, n. 101, outubro de 2009, p. 41-50; disponível: http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/8295/4691). 328 capitalismo, ao dizer que os dirigentes dessas fracassadas experiências do socialismo real já tinham constatado há muito tempo que o sistema simplesmente não funcionava. Registre-se que Fukuyama escrevia antes que o socialismo implodisse de fato e que os chineses formalizassem sua receita original de transição do socialismo ao capitalismo, com as justificativas teóricas disponíveis, o que foi feito apenas a partir de 1991-92. Resumindo: Fukuyama não afirmou, mas se perguntou se tínhamos atingido, de fato, o fim da história. “Existem, em outras palavras, quaisquer ‘contradições’ fundamentais na vida humana que não possam ser resolvidas no contexto do liberalismo moderno, e que poderiam ser solucionadas por uma estrutura político-econômica alternativa? Se aceitarmos as premissas idealistas expostas acima, precisaremos buscar uma resposta a esta questão no terreno da ideologia e da consciência.” Não há, aqui, nenhum pessimismo de princípio quanto a que, no terreno do mundo material pelo menos, se possa um dia realizar a conhecida utopia socialista: “de cada um segundo suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades”. Mas, é altamente improvável, conhecendo-se a natureza humana, que se possa cumprir, com ou sem “final da História”, a profecia de Engels segundo a qual, no futuro, “o comando dos homens será substituído pela administração das coisas”. Brasília, 2 de junho de 1992; revisão ulterior: 13 de janeiro de 2010. Inédito em sua maior parte; acréscimos mais recentes publicados em Meridiano 47 (n. 114, janeiro de 2010, p. 8-17; ISSN: 1518-1219; link: http://seer.bce.unb.br/index.php/MED/article/view/476/291) 329 A Parábola do Comunismo no Século XX François Furet: Le Passé d’une Illusion: essai sur l’idée communiste au XXe siècle (Paris: Robert Laffont/Calmann-Lévy, 1995, 580 p.) A parábola, em sua versão eclesiástica, é uma narração alegórica dos livros santos, possuindo um claro fundo moral ou pretendendo registrar um ensinamento. Mas, em sua acepção matemática, o conceito pode também significar uma linha curva, com um lado arredondado e uma base truncada, na qual todos os pontos se situam a igual distância do centro. Tomando como base tais parâmetros, a marcha do comunismo no século XX, tanto em seu sentido religioso como no geométrico, pode ser efetivamente comparada ao itinerário de uma parábola. Esta é pelo menos é a conclusão a que chegaria o observador imparcial que, num fin-de-siècle decididamente pós-comunista, se decidisse por um balanço do estado atual desse movimento político (mas também social e econômico) que marcou indelevelmente, junto com o fascismo, esta “época dos extremos”, como Hobsbawm caracterizou de forma pertinente nosso “breve século XX”.1 Com efeito, como no caso da alegoria religiosa, o comunismo também pretendia realizar, com base nas “santas escrituras” de Marx e Lênin, um objetivo moralmente elevado – o ideal do socialismo perfeito – que representaria o acabamento da verdadeira democracia prometida pelas revoluções de 1905 e de 1917. E, como em seu equivalente geométrico, o itinerário do comunismo reproduziu o dessa curva oblonga que segue para o alto e para baixo a partir de uma base plana e na qual os pontos estão sempre à mesma distância de um ponto fixo ou de uma diretriz – o marxismo –, este servindo de álibi e de justificativa ideológica durante os setenta anos que durou a experiência. Tendo alcançando o ápice de seu processo de desenvolvimento durante o período áureo do estalinismo triunfante (no imediato pós-segunda guerra), o comunismo veio a declinar progressivamente enquanto guia moral, para conhecer, no final dos anos 80 e princípios dos 90, uma brusca interrupção de seu movimento real, desfazendo-se então em suas contradições insuperáveis na outra ponta da parábola, quando ele já não tinha nada mais a ensinar.2 1 Ver Eric Hobsbawm, Age of Extremes: the short twentieth century, 1914-1991 (Londres: Michael Joseph, 1994); em especial capítulos 13, “Real Socialism”, e 16, “End of Socialism”, p. 372-400 e 461-499. 2 Este artigo já estava largamente redigido quanto o Autor tomou conhecimento do pequeno estudo histórico de Massimo L. Salvadori, La parabola del comunismo (Bari: Laterza, 1995), que traça 330 Como interpretar esse final surpreendente para um movimento que, nos últimos dois séculos dispôs, aparentemente, de sólidas raízes sociais nos movimentos sindicais e políticopartidários de inúmeros países e que apelava fortemente para os ideais de igualdade e de justiça social presentes no imaginário popular? Para o historiador francês François Furet, a cuja obra mais recente é dedicada a análise conduzida neste artigo, essa ruptura histórica foi causada por iniciativas do próprio partido que ocupava o poder na “pátria do socialismo”, tendo o universo comunista se “desfeito por suas próprias mãos”.3 A Obra e seu Mestre Quando do festejado lançamento do livro, essa obra de Furet4 foi apresentada como “a primeira grande síntese histórica sobre o comunismo no século XX” (a contracapa é da responsabilidade dos Editores), o que evidentemente constitui um certo exagero. O próprio Furet reconhece que ele não pretendeu fazer uma história política do comunismo neste século: o autor afirma ter desejado tão somente escrever um ensaio sobre a permanência da ideia comunista – a grande ilusão – nos países em que ela vicejou material ou intelectualmente. Por outro lado, seu magnífico ensaio de história intelectual trata, antes de mais nada, das “ideias” francesas sobre o desenvolvimento do marxismo e do comunismo e das diversas polêmicas por eles suscitados na França e na Europa nos últimos setenta anos, reconstituindo assim, em grande medida, a dialética das paixões revolucionárias francesas neste século. Na verdade, independentemente do inegável valor que possui sua reconstrução conceitual do movimento comunista (e sua confrontação com a experiência fascista) neste “breve século XX”, a discussão intelectual conduzida no ensaio de Furet é – Révolution de 1789 oblige – fortemente franco-cêntrica, como costuma acontecer com uma certa frequência nos debates entre intelectuais gauleses.5 Nesse sentido, a questão central numa análise dessa obra não está tanto na avaliação de seu trabalho como historiador do processo histórico concreto de desenvolvimento do comunismo realmente existente – empresa largamente um rápido panorama da história do comunismo, de suas origens à queda do império soviético. Seu título, assim, não deve nenhum “copyright” a esse especialista da história do socialismo, podendo no máximo reconhecer seus “moral rights” quanto à precedência no uso do conceito. 3 François Furet, Le passé d’une illusion, op. cit., p. 11-14. 4 Dentre os demais trabalhos do conhecido especialista da Revolução francesa podem ser citados La Révolution française (com Denis Richet, 1965); Penser la Révolution française (1978); L’Atelier de l’Histoire (1982); Marx et la Révolution française (1986) e, com Mona Ozouff, Dictionnaire critique de la révolution française (1988). 5 Isso a despeito de um bom conhecimento da bibliografia anglo-saxã sobre ambos os problemas, fruto certamente de seus últimos anos passados na Universidade de Chicago. 331 realizada anteriormente sob a condução do próprio Hobsbawm6 – como na apreciação crítica de seu desempenho em explicar verdadeiramente as razões de décadas de sucesso da ideia comunista em largas frações da opinião pública e da intelectualidade ocidental.7 O argumento central do ensaio de Furet é o de que a experiência soviética representou uma “illusion fondamentale”, ilusão que foi constitutiva de sua própria história. Estando basicamente de acordo com essa concepção global, inclusive no que se refere ao paralelismo histórico – o que não quer dizer funcional – traçado com o fascismo, discutiremos entretanto a insuficiência da interpretação essencialmente política que ele desenvolve sobre a ilusão comunista, assim como no que se refere à natureza da crise final e da derrocada do comunismo soviético. Um dos problemas mais importantes tocados por Furet nesse ensaio é o da comparabilidade entre os sistemas comunista e fascista, comparação geralmente rejeitada por gerações de intelectuais instintivamente movidos por um “antifascismo” visceral (em vista do horror genocida que sua versão nazista representou), quando não posicionados no “anticomunismo” de direita.8 De fato, grande parte da obra de Furet trata dessa oposiçãoatração entre duas ideologias que tinham na democracia pluralista seu inimigo comum e no anti-capitalismo um apelo igualmente estimulado pelos movimentos políticos que as sustentavam. Para sermos mais precisos, apenas o comunismo rejeitava de forma absoluta o capitalismo enquanto forma de organização econômica e social, mas também o fascismo tinha alimentado sua penetração nas camadas proletárias da sociedade com esse ódio ao “ burguês capitalista” que é sua marca distintiva nos primeiros anos de ascensão ao poder. A estrutura da obra é relativamente linear e apresentaremos aqui apenas um sumário dos capítulos. Depois de uma introdução geral ao problema da “paixão revolucionária” (capítulo 1), na qual são discutidos os principais elementos da mitologia política que 6 Remeto à monumental coleção dirigida por Eric J. Hobsbawm Georges Haupt, Franz Marek, Ernesto Ragionieri, Vittorio Strada e Corrado Vivanti, Storia del Marxismo (Torino: Giulio Einaudi, 1979-1983; 4 vols.; publicados no Brasil: Paz e Terra), que, a despeito do nome, trata igualmente da história do comunismo soviético e das sociedades do socialismo real; ver em especial os tomos 2 e 3 do terceiro volume: “Il marxismo nell’età della Terza Internazionale”, respectivamente “Dalla crisi del ‘29 al XX Congresso” e “Il marxismo oggi” (1981 e 1983), nos quais se retraça efetivamente a história do comunismo e das ideias marxistas no século 20. 7 Essa reconstituição do “sucesso” da ideia comunista no século XX representa para Furet uma espécie de balanço intelectual e de “acerto de contas” pessoal com sua “tribo” de origem, na medida em que ele não esconde sua militância partidária no PCF, entre 1949 e 1956. O mesmo poderia ser dito, em pura honestidade intelectual, do autor destas linhas que, apesar de jamais ter pertencido a qualquer partido socialista ou comunista no Brasil ou no exterior, não recusa, ainda hoje, uma antiga filiação teórica marxista: a crítica aqui desenvolvida é, assim, uma espécie de autocrítica intelectual da “grande ilusão” que também frequentou seus anos de juventude. 8 Essa comparação entre os dois sistemas totalitários não foi contudo desprezada por uma intelectual como Hannah Arendt, como se encarrega de lembrar o próprio Furet numa das passagens de seu livro. 332 asseguraram o sucesso (curto, no primeiro caso) do fascismo e do comunismo neste século, Furet mergulha nas entranhas do imenso cataclismo militar, político, econômico e social que explicam a emergência respectiva desses sistemas antinômicos, mas bastante próximos um do outro (capítulo 2: A Primeira Guerra mundial). Não se deve, com efeito, esquecer o papel crucial da Primeira Guerra para o surgimento, no contexto político europeu, dos dois grandes movimentos antiliberais que mais marcaram o século XX. Assim, o comunismo de tipo soviético pode ser virtualmente visto como o resultado prático de um pequeno, mas fecundo, “acidente” histórico, 9 desencadeado involuntariamente por um dos beligerantes durante a Primeira Guerra Mundial: o retorno à Rússia de um punhado de bolcheviques exilados, quase desanimados pela ausência de perspectivas revolucionárias. O voluntarismo oportunista da diplomacia do Kaiser, que buscava apenas provocar um pequeno “tremor” político na frente oriental, podendo servir a interesses militares imediatos, transformou-se porém em “cataclismo” histórico de proporções inimagináveis, dando origem aliás a parte dos desenvolvimentos subsequentes que viriam a minar o próprio império alemão e justificar, mais adiante, a tomada do poder por Hitler. No capítulo seguinte (O charme universal de Outubro), Furet demonstra como Lênin conseguiu “inventar”, num país atrasado como a Rússia czarista, um regime social e político que passou a servir de exemplo à Europa e a todo o mundo, na continuidade da história ocidental. O capítulo 4 (Os crentes e os desencantados) apresenta retratos de alguns dos grandes pioneiros do combate bolchevique e de seus primeiros “renegados” (Pierre Pascal, Boris Souvarine, Gyorg Lukacs). A revolução se congela em seguida, no “socialismo em um único país” (capítulo 5), quando Stalin consegue consolidar-se no poder e apimentar seu leninismo com algumas pitadas de nacionalismo e grandes doses de brutalidade. Os três capítulos seguintes (Comunismo e fascismo, Comunismo e antifascismo e A cultura antifascista) tratam basicamente da política europeia nos anos 20 e 30, com as diferentes manobras de uma e outra corrente para manter-se no poder, ou barrar o caminho à outra, da política de “frente popular” e da formidável recusa dos intelectuais de esquerda em aceitar a realidade dos crimes stalinistas. Eles constituem, por assim dizer, o cerne da obra, onde são analisadas verdadeiramente as ideias políticas que marcaram nosso século, ou pelo menos os principais elementos da mitologia política do comunismo de tipo soviético. A Segunda Guerra mundial, objeto do capítulo 9, encontrava-se em germe praticamente desde o final da Primeira, mas seu deslanchar foi paradoxalmente permitido por 9 Esta digressão sobre a origem “acidental” do poder bolchevique não se encontra no livro de Furet, sendo de minha própria responsabilidade. 333 um acordo sórdido entre Hitler e Stalin sobre a partilha da Polônia e a incorporação de novos territórios ao renascido império russo. A reintegração da URSS ao antifascismo e a aliança com as potências ocidentais, depois do traiçoeiro ataque de Hitler em junho de 1941, e a vitória na guerra consolidarão a imagem e o prestígio de uma ditadura comunista chegada ao suprassumo do totalitarismo: é o “stalinismo, etapa suprema do comunismo” (capítulo 10). O “comunismo da guerra fria” ocupa o capítulo seguinte, no qual Furet analisa as primeira fissuras no edifício (Tito) e continua a discutir a obra de alguns dissidentes da ideia comunista (Koestler, Silone, por exemplo), de intelectuais independentes, como a já citada Arendt, ou “liberais”, como Nolte. Comparados às seções que examinaram o surgimento do socialismo soviético ou traçaram sua aproximação com o fascismo, os capítulos finais deixam algo a desejar, em termos de profundidade de análise ou de inovação conceitual. O “começo do fim” do comunismo (capítulo 12) se abre com a morte de Stalin, período marcado aliás pelas surpreendentes revelações de Kruschev durante o 20° congresso do PCUS: seu relatório representa para a história do comunismo, segundo Furet, “o texto mais importante que foi escrito no século XX”. A crise do sistema monolítico se amplia (dissidências chinesa e albanesa, o fenômeno cubano, distanciamento dos partidos europeus, surgimento dos primeiros dissidentes, como Vassili Grossman) e a análise de Furet se faz aqui mais rápida, menos abrangente (trinta ou quarenta páginas, no máximo, para esse longo enterro do comunismo). O “Epílogo”, finalmente, tanto continua a apresentação do novo clima de contestação interna dos princípios sacrossantos do comunismo (Pasternak, Solzhenitsyn), como tenta um pequeno balanço sobre as razões da queda. Gorbatchev, para Furet, epitomiza a morte de todos os comunismos alternativos (maoísmo, castrismo) que possam ter surgido e se desenvolvido no pós-guerra. O comunismo poderia ter perdido a guerra fria e sobrevivido como regime ou dado lugar a Estados rivais, sem desaparecer como princípio; mas, não: ele desaparece “corps et biens” no tribunal da História (p. 571). Esta é, basicamente, a estrutura da obra, escrita em linguagem agradável e leve, sem deixar de ser densa (mesmo se as referências documentais e bibliográficas foram reduzidas ao mínimo). O essencial dos argumentos de Furet, como dissemos, está centrado numa apresentação e discussão das “ideias” que explicaram ou sustentaram o comunismo neste século, com uma ênfase especial nos intelectuais que se distinguiram nesse debate. Mas, dois grandes problemas podem ser identificados em maior detalhe para esta apreciação crítica, não desprovida de uma certa “deformação” sociológica. O primeiro deles é a já referida questão da comparabilidade (e identidade) entre comunismo e fascismo. O segundo seria o das 334 condições da crise final e desaparecimento do comunismo, algo não abordado diretamente ou extensamente por Furet em seu livro, mas que ele considera como um processo ainda em grande medida misterioso (“A maneira pela qual se decompôs a União Soviética, e em seguida seu Império, permanece misterioso”, p. 567). A Grande Ilusão do Comunismo Deve-se, em primeiro lugar, fazer uma referência, ainda que breve, ao tema-título da obra, apontando para o “passado” da ilusão entretida pela ideia comunista. Por que o “passado” e não o “final” de uma ilusão, já que uma das conclusões do livro é de que o comunismo se termina no “néant” (p. 13), “como se se acabasse de fechar a maior via jamais oferecida à imaginação em matéria de felicidade social” (p. 571)? Furet argumenta em defesa do conceito de “passado”, explicando que a ilusão propriamente dita preserva ainda, sob uma outra forma, um certo futuro, simbolizado na esperança em uma sociedade vindoura que poderá continuar a alimentar os debates. O que morreu, na ideia comunista, foi não só o papel messiânico da classe operária como também sua projeção “territorial”, tal como expressa no ex-império soviético. 10 No que se refere, de um modo geral, à “grande ilusão” do comunismo, dificilmente se poderia discordar dos argumentos de Furet quanto à “cegueira” literal que abateu-se sobre levas sucessivas de intelectuais e militantes na Europa e no resto do mundo durante décadas inteiras. A fascinação do projeto comunista só pode explicar-se, à esquerda, pela força da filosofia marxista, que prometia um mundo novo, liberado das misérias do real e mais conforme à “razão da História”. Mesmo à direita, ainda que recusando os princípios da organização soviética, não se podia deixar de reconhecer que a Revolução de Outubro possuía uma certa filiação com as grandes revoluções do passado europeu, a Revolução francesa em primeira lugar. A aparente imobilidade e rigidez da sociedade socialista então criada tampouco deixou de surpreender os sociólogos: mesmo para alguns analistas esclarecidos, parecia inconcebível que o mais perfeito modelo de ditadura burocrática – uma verdadeira “gaiola de ferro” weberiana – pudesse desmembrar-se como um castelo de cartas. Daí a impressão de uma certa permanência e mesmo resiliência do poder socialista, a despeito mesmo de sua evidente degenerescência política e de sua manifesta incapacidade em assegurar o correto funcionamento do aparelho econômico da sociedade. Ainda que alguns espíritos mais argutos tenham antecipado o final do comunismo, a queda brutal da URSS foi 10 Entrevista concedida por François Furet a Bernard Lecomte, “S’il n’y avait pas eu Lénine...”, L‘Express (Paris, 19 janeiro 1995), p. 76-78. 335 uma surpresa para muitos, para Furet como para o autor destas linhas.11 A razão da preservação da ilusão comunista (como, de certo modo, do fascismo, durante e após sua vigência efetiva) pode estar, sob o risco de parecer óbvio, na própria força das ideologias políticas, geralmente consideradas, no seguimento da crítica arrasadora de Marx, como um simples disfarce do real, a serviço de interesses das classes dominantes ou de grupos organizados. Numa época em que alguns representantes modernos dos ideólogos – que são os sociólogos – identificam sinais de “fim das ideologias” (Daniel Bell) e mesmo de “fim da História” (Francis Fukuyama), perde-se por vezes a visão de como o elemento ideológico influenciou a construção do mundo contemporâneo. Caberia com efeito recordar que a Europa e o mundo em geral nos últimos setenta anos estiveram sob o signo e conviveram com a “promessa” ou a “ameaça” (segundo a posição do interessado) de uma ou de ambas as ideologias colocadas em paralelo por Furet. O historiador alemão Karl Bracher, que sintomaticamente caracterizou nossa época como a “idade das ideologias”, indicou com razão: “O século XIX foi dominado pelo desenvolvimento das nações e pelas reivindicações dos Estados nacionais; o século XX, pelo confronto entre os nacionalismos e as ideologias, entre a independência dos Estados individuais e os novos universalismos”. 12 A Primeira guerra, objeto de um brilhante capítulo na obra de Furet, não foi certamente provocada pelo choque entre ideologias conflitantes, mas foi ela que permitiu as racionalizações (ou mistificações) a partir das quais iriam emergir as duas grandes ideologias de nosso século. O fascismo, como se sabe, pereceu nos escombros das catástrofes que ele mesmo provocou. Quanto ao comunismo, essa hantise ideológica de burgueses e proletários, ele também terminou por encaminhar-se ao museu das antiguidades, ao lado do machado de bronze e da roca de fiar (onde Engels havia também previsto um lugar para o Estado). Antes, contudo, ele seria legitimado e revivificado pela vitória contra o primeiro, ganharia um certo atestado de racionalidade econômica no seguimento das políticas intervencionistas 11 Tentei fazer, numa série de artigos interligados, uma análise evolutiva sobre o fenômeno da “transição do socialismo ao capitalismo” nos países do socialismo real: “Retorno ao Futuro: A Ordem Internacional no Horizonte 2000”, “Retorno ao Futuro, Parte II” e “Retorno ao Futuro, Parte III: Agonia e Queda do Socialismo Real”, todos publicados na Revista Brasileira de Política Internacional (Rio de Janeiro: Ano XXXI, 1988/2, n. 123-124, p. 63-75; Ano XXXIII, n. 131-132, 1990/2, p. 57-60 e ano XXXV, n. 137-138, 1992/1, p. 51-71). 12 Cf Karl Dietrich Bracher, Zeit der Ideologien (Stuttgart: Deutsche Verlags, 1982), livro consultado em sua edição italiana: Il Novecento: secolo delle ideologie (Bari: Laterza, 1984), p. 206. Furet cita em sua obra vários trabalhos deste historiador alemão, tendo entretanto consultado este livro específico em sua edição americana: The Age of Ideologies: a history of political thought in the XXth century (New York: St Martin’s Press, 1984). 336 conduzidas pelos Estados ocidentais no pós-guerra e circularia ainda enquanto movimento de “liberação nacional” durante várias décadas pelos mais variantes quadrantes do globo. A análise de Furet quanto ao poder de sedução da ideia comunista em nosso século é propriamente impecável e podemos dizer que aí se situa o ponto forte de sua obra. Terminada a ilusão, nós somos condenados “à vivre dans le monde où nous vivons” (p. 572), um mundo povoado de contradições e de questões sociais não resolvidas. A velha democracia é chamada uma vez mais à frente dos problemas. Comunismo = Fascismo? Um dos problemas mais importantes abordados por Furet em seu livro, é, como dissemos, é o da possibilidade conceitual (e empírica) de se comparar e de traçar uma identidade funcional entre os sistemas comunista e fascista, que entram, como ele diz, “presque ensemble sur le théâtre de l’Histoire” (p. 38). Mesmo se ele não elabora essa comparação do ponto de vista da ciência política, isto é, segundo uma abordagem teóricoformalista, mas enquanto historiador, Furet isola e disseca os elementos materiais e ideológicos de cada um dos sistemas (o partido-Estado, a ideocracia, o controle total da informação, o sistema dos campos de concentração, por exemplo). O comunismo e o fascismo são, para Furet, “ennemis complices”, o que não quer dizer que eles possam ser considerados idênticos. A analise de Furet sobre os dois sistemas é, também neste caso, pertinente: ele releva os pontos discordantes, mas não deixa de sublinhar o que os aproxima. O comunismo, ou melhor, o marxismo é um universalismo a pretensões democráticas, que sempre cultivou a ambição de emancipar o conjunto da humanidade, enquanto que o fascismo é uma ideologia particularista (raça, povo) abertamente antidemocrática. Mas, eles partilharam o mesmo desprezo pelo direito, o mesmo culto da violência, a perseguição religiosa e a adoração do partido e do chefe; eles também mobilizaram as paixões revolucionárias, o ódio do individualismo burguês, a angústia pela salvação através da história, a religião da unidade do povo e a intolerância fanática. Sobretudo, relembra Furet, eles têm no liberalismo ou na democracia burguesa seu inimigo comum.13 Ele também demonstra a interação dos dois sistemas nos palcos da história: “bolchevismo e fascismo se seguem, se engendram, se imitam e se combatem, mas antes eles nascem do mesmo solo, a guerra; eles são os filhos da mesma história” (p. 197), inaugurados pelo mesmo movimento de massas ao fim da Primeira Guerra. 13 Cf. “Nazisme et communisme: la comparaison interdite” (entrevista com François Furet), L’Histoire (Paris, n. 186, março de 1995, p. 18-20). 337 Pode-se efetivamente considerar como importante, historicamente, o impacto da Revolução bolchevique na emergência dos fascismos europeus: grande parte das reações da direita, que levaram ou sustentaram os regimes fascistas na Europa dos anos 20 e 30, se deve ao medo do contágio soviético, assim como a “ameaça” comunista e o exemplo da Revolução cubana alimentariam os golpes militares de direita na América Latina dos anos 60.14 A mesma filosofia antiliberal ou conservadora, segundo os casos (misturada à ideologia da “segurança nacional” em nosso continente), estão presentes num e noutro lado do Atlântico, numa versão atualizada da “grande peur” que havia sido estudada por Lucien Febvre na segunda fase da Revolução francesa (a propósito dos camponeses, nesse caso). Entretanto, importância histórica não quer necessariamente dizer relevância causal. Cabe assim legitimamente perguntar se os fascismos italiano e alemão, entre outros menos conhecidos, não teriam de toda forma ascendido ao poder mesmo na ausência de vitória da Revolução bolchevique ou de uma menor “agressividade” do movimento comunista no continente, inclusive na própria Alemanha e na Hungria (“república dos sovietes” na Baviera e em Budapeste). A História teria sido certamente outra, sobretudo a da Segunda Guerra Mundial, que tanto como o hitlerismo se alimenta e emerge das frustrações alemãs com o armistício da Primeira Guerra e as “consequências econômicas” do Tratado de Versalhes (para retomar o título da conhecida obra de Keynes15). Mas, os movimentos mussolinista e hitlerista possuem suas lógicas próprias e suas respectivas dinâmicas históricas, buscando raízes em crises econômicas, políticas e até mesmo morais propriamente nacionais. A revolução bolchevique não explica, por exemplo, a inflação alemã de 1923 ou a crise de 1929, que muito fizeram para ajudar a ascensão de Hitler. Assim, é provável que os fascismos teriam de toda forma modificado a tipologia dos regimes políticos no século XX, numa forma não idealizada por Weber. O mussolinismo e o hitlerismo teriam, em todo caso, desfrutado de maiores oportunidades de expansão e de afirmação, numa escala inimaginável retrospectivamente, com muito maiores perigos reais para as poucas democracias existentes. Mas, mesmo divertida, a História dos “ifs” é de certa forma impossível: se os alemães não tivessem embarcado Lênin no “trem blindado” em 1917; se, em 1938, as democracias tivessem resistido a Hitler em Munique; se Ribbentrop e 14 Ver, para cada um dos casos, Charles S. Maier, Recasting Bourgeois Europe: stabilization in France, Germany and in Italy in the decade after World War I (Princeton: Princeton University Press, 1975) e Albert Hirschman, “The turn to authoritarianism in Latin America and the search for its economic determinants” in David Collier (ed.), The New Authoritarianism in Latin America (Princeton: Princeton University Press, 1975, p. 61-98). 15 Cf. John Maynard Keynes, The Economic Consequences of the Peace (London: MacMillan, 1919). 338 Molotov não tivessem confirmado o Pacto de agosto de 1939 que permitiu a invasão e a liquidação da Polônia e, de fato, o início da Segunda guerra; se, dois anos depois, Hitler não tivesse decidido atacar a URSS, se... : a lista dos imponderáveis históricos parece interminável. Em todo caso, voltando ao problema da eventual vinculação da Revolução bolchevique com suas congêneres fascistas, caberia lembrar que as situações históricas são sempre únicas e originais e o mesmo evento ou processo não deveria necessariamente poder repetir-se, na presença de outras circunstâncias. Que a presença de Lênin tenha precipitado o “putsch” bolchevique parece uma verdade indiscutível; mas que, em sua ausência, toda conjuntura revolucionária, com chances para uma ascensão dos comunistas ao poder, teria sido impossível, é uma conclusão que não podemos tirar da situação então prevalecente. Algumas das vinculações causais que poderiam ser extraídas de um exercício de aproximação entre comunismo e fascismo, tal como o conduzido por Furet, devem assim ser consideradas com extrema cautela. Ele, em geral, prefere não se dedicar a essas especulações do espírito que, em larga medida, estão fora de sua agenda de trabalho. Alguns poderiam discordar da análise conduzida por Furet nesta parte (capítulo 6: Comunismo e fascismo), como eventualmente eivada por uma tendência a “personalizar” em demasia o movimento histórico que conduziu à emergência e consolidação do sistema soviético por Lênin e Stalin, num caso, e à “invenção” do Estado fascista por Mussolini e construção do nazista por Hitler, no outro.16 Mas, uma simples constatação de ordem prática reverteria a confirmar o papel excepcional desses homens no destino histórico de seus sistemas respectivos: “un trait apparente encore les trois grandes dictatures de l’époque: leur destin est suspendu à la volonté d’un seul homme” (p. 199).17 Deve-se contudo observar que, chez Furet, o aspecto contingencial do processo histórico é quase que levado ao extremo: “Suprimamos a personagem de Lênin da história e não há mais Outubro de 1917. Retiremos Mussolini e a Itália do pós-guerra seguiria um outro curso. Quanto a Hitler, se é verdade que, como Mussolini aliás, ele toma o poder em parte graças ao consentimento resignado da direita alemã, ele não perde por outro lado sua desastrosa autonomia: ele vai fazer funcionar o programa de Mein Kampf, que pertence a ele 16 É o caso, por exemplo, da crítica de Rudolf Augstein, diretor do Der Spiegel, de Hamburgo, em artigo republicado, sob o título “François Furet, c’est de la vieille histoire”, em Courrier International (Paris, n. 230, 30 março-5 abril 1995, p. 6). 17 Furet critica as inclinações “massistas” de certa historiografia: “Obcecada por uma história abstrata de classes, nossa época fez tudo para obscurecer essa verdade elementar” (p. 199-200). 339 tão somente” (p. 200). Pode-se concordar com esse tipo de colocação,18 sem descurar porém a probabilidade de que, na ausência de personalidades magnéticas como as dessas três figuras históricas, os movimentos comunistas e fascistas já presentes em diversos países europeus teriam oportunamente produzido líderes e circunstâncias favoráveis à ascensão dessas correntes ao poder, com consequências eventualmente menos catastróficas em termos de custos humanos, mas igualmente densas de significado político e social. A Economia Política da Ilusão Comunista O livro de Furet pretende, e consegue amplamente, explicar as razões do sucesso da ideia comunista – e do prestígio da Revolução bolchevique, estendido à URSS – em largas frações da opinião pública e da intelectualidade ocidental, especialmente francesa, durante os setenta anos que durou a aventura soviética. Sua análise sobre as condições de ascensão ao poder do bolchevismo (e do fascismo) no seguimento da Primeira Guerra mundial permanecerá certamente como uma das realizações mais convincentes da historiografia recente do comunismo; não sem um certo exagero – ligado ao prestígio do autor como historiador “revisionista” da Revolução francesa – seu livro já é aliás considerado um “clássico” nessa área de estudos. Brilhante ensaio sobre a ilusão comunista, enquanto a URSS lhe emprestou consistência e vida, ele é no entanto muito menos convincente sobre as condições materiais – em especial as econômicas – que cercaram o colapso desse sistema no seguimento da queda do muro de Berlim. Furet confessa que, como muitos outros observadores, não esperava que as tentativas de reforma gorbacheviana fossem conduzir ao impasse e, finalmente, à derrocada de todo o edifício comunista. Lembre-se a propósito que nem mesmo o “profeta” do “fim da História”, Francis Fukuyama, previu a falência da estrutura soviética: ao contrário, ele estava convencido de que a URSS seria preservada, mesmo com o abandono completo dos dogmas econômicos do socialismo.19 18 Como diria o próprio Marx, “os homens fazem sua própria história...”, o que supostamente compreende também as grandes personalidades individuais. 19 Cf. Francis Fukuyama, “The End of History?”, The National Interest (n. 16, Summer 1989, pp. 3-18), onde ele afirma, por exemplo: “A questão real do futuro é o grau pelo qual as elites soviéticas lograram adequar-se à consciência do Estado homogêneo universal [conceito que Fukuyama retira da leitura feita por Alexandre Kojève da obra de Hegel] que é a Europa depois de Hitler. (...) Ainda que possam restar alguns verdadeiros crentes isolados em lugares como Manágua, Pyongyang ou Cambridge (Massachusetts), o fato de que não exista um único grande Estado no qual [o marxismo-leninismo] represente a ideia-chave elimina completamente sua pretensão de ser a vanguarda da história humana”, pp. 17-18. Esse artigo foi ulteriormente incorporado ao livro The End of History and the Last Man (New York: Free Press, 1992). 340 A explicação de Furet para a formidável ruptura histórica que o mundo viveu entre 1989 e 1991 é, como vimos, que, embora ainda largamente misteriosa em seus detalhes, ela foi causada sobretudo por iniciativas do próprio partido no poder: “Mesmo os inimigos do socialismo não imaginavam que o regime soviético pudesse desaparecer, e que a Revolução de Outubro pudesse ser ‘apagada’; menos ainda que essa ruptura pudesse ter por origem iniciativas do partido único no poder” (p. 11). Em grande medida, a interpretação de Furet guarda uma certa relação com a análise tocquevilliana sobre os perigos da reforma política num sistema caracterizado pela rigidez das relações sociais. A concepção “liberal” de Tocqueville sobre as origens da Revolução francesa tende a descartar, como se sabe, os elementos de crise econômica privilegiados na análise marxista tradicional – a famosa contradição entre forças produtivas “capitalistas” emergentes e relações de produção ainda “feudais” –, preferindo em seu lugar o choque político provocado ou precipitado por um confronto entre elites sociais já próximas do poder, num contexto de tentativa monárquica de reforma moderada. Mesmo acreditando que o universo comunista se desfez nas “próprias mãos do Partido hegemônico” e sobretudo por razões políticas (incapacidade de gerir o processo de reformas), Furet não deixa contudo de mencionar alguns elementos materiais que contribuíram, ainda durante a fase do “brejnevismo triunfante” (a expressão não é dele), para apressar a decadência e queda do poder soviético. Ele cita, por exemplo, o trabalho de um demógrafo francês que, já em 1976, indicava a deterioração do sistema como refletida na alta da taxa de mortalidade infantil.20 Ele também não deixa de referir-se, em sua introdução e conclusão, à incapacidade do poder socialista em atender os mínimos requisitos da população em termos de conforto material, bem como à impossibilidade para o sistema de seguir a potência americana na corrida aos armamentos mais sofisticados (programa “guerra nas estrelas” de Reagan). Sua reconstituição histórica sobre os setenta anos de ilusão comunista permanece, entretanto, basicamente política, consistindo essencialmente numa “história das ideias” (ou das mitologias políticas) do século XX. Não se poderia, portanto, acusar Furet de não levar em conta o peso dos “fatores econômicos”, tanto no sucesso como na derrocada do sistema soviético, já que não era esse o objetivo primordial de seu trabalho de pesquisa e de interpretação. O problema, ainda assim, é que ideias políticas também têm fundamentos econômicos e que, no caso específico do comunismo, sua mitologia política – sua “ilusão 20 Furet cita o trabalho de Emmanuel Todd, La Chute Finale: essai sur la décomposition de la sphère soviétique (Paris: Robert Laffont, 1976); cf. p. 567. 341 fundamental”, diria Furet – foi alimentada não só por sua promessa de igualdade e de justiça, no plano social, mas sobretudo e principalmente pela concepção marxista de que um sistema regulado democraticamente pelo conjunto dos trabalhadores seria mais suscetível do que a “anarquia da produção capitalista” de afastar crises periódicas e escassez, de aportar abundância material, bem-estar individual e progresso tecnológico. A premissa básica da mensagem marxiana quanto ao “fim da história”, dos primeiros escritos da juventude até o Capital, refere-se, antes de mais nada, à apropriação coletiva dos meios de produção, por iniciativa e sob o comando da classe operária, transformada em redentora universal: de fato, a abolição da propriedade privada, “mãe de todas as injustiças”, sempre apresentou um formidável poder de atração para as massas de deserdados de todo o mundo e mesmo para milhões de proletários de países desenvolvidos. Não se poderia igualmente esquecer que grande parte das mensagens simpáticas ao socialismo enquanto sistema de organização social – não apenas soviético, mas também chinês e “terceiro-mundista”, onde foi o caso – tinha como fundamento a ideia (falsa, mas isso não importa aqui) de que ele trazia o final das crises capitalistas de produção e emprego, introduzia um nível de subsistência mínimo para o conjunto da população e permitiria, progressivamente, liberar excedentes que o fariam alcançar e em última instância ultrapassar os sistemas capitalistas “realmente existentes”. As ideias econômicas marxistas sobre uma futura “idade da abundância”, sobre a racionalidade superior do sistema socialista e em especial as profecias engelsianas sobre o futuro da sociedade dos trabalhadores (“de cada um segundo suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades”) alimentaram, em muito, a ilusão comunista neste século.21 Essas ideias econômicas, é dispensável dizê-lo, estão escassamente refletidas no ensaio de Furet e elas não comparecem em nada na explicação funcional do “sucesso” da ideia comunista neste século. Ora, desde o final do século XIX, pelo menos, que o debate em torno das ideias marxistas e socialistas prolongava-se no terreno econômico, chegando até mesmo a influenciar o curso da economia política “burguesa”. Sem referir-se às primeiras críticas pertinentes (e não respondidas) formuladas por John Stuart Mill ao próprio Marx, caberia lembrar que Vilfredo Pareto dedicou dois alentados volumes ao estudo dos sistemas socialistas, que Hobson antecipa a análise leninista sobre a natureza econômica do 21 Não é o caso de lembrar aqui que a própria sobrevivência do comunismo, enquanto sistema viável de organização social da produção, pode apenas ser assegurada, na difícil conjuntura dos anos 1920-21, por um retorno estratégico às práticas capitalistas de mercado e de apropriação – consagrado na NEP –, retorno que Bukarin (e alguns outros) gostaria de ver consolidado como a única forma possível de socialismo real. 342 imperialismo contemporâneo, que Hilferding e Rosa Luxemburgo terçaram armas em torno do capital financeiro e da acumulação capitalista, que toda uma “teoria das crises cíclicas” frequentou a produção acadêmica na economia (de Schumpeter a Keynes, de Robinson e Sraffa a Kindleberg) e que, ainda no começo dos anos 60, economistas respeitados como John Kenneth Galbraith ou sociólogos atentos como Raymond Aron podiam prever uma certa convergência entre o capitalismo e o socialismo com base no fato de terem ambos os sistemas chegados a uma etapa industrial avançada. De maneira ainda mais relevante, as primeiras experiências de planificação sob a República de Weimar, a própria organização econômica “fascista”, os projetos de “welfare state” nos países escandinavos e anglo-saxões, bem como as nacionalizações e o acentuado intervencionismo (com agências estatais dedicadas ao planejamento indicativo) conduzidos no segundo-pós guerra nos principais países capitalistas europeus, podem ser considerados como o resultado direto do impacto exercido pelas ideias econômicas “comunistas” nas sociedades do Ocidente desenvolvido. Da mesma forma, a industrialização da URSS, a “solução” do problema da fome na China (contra sua suposta manutenção na Índia “capitalista”), o desenvolvimento “acelerado” dos países atrasados do Terceiro Mundo, todos esses elementos, reais ou imaginários, da “grande transformação” da segunda metade do século XX foram, com ou sem razão, creditados à alavancagem ideológica das ideias econômicas socialistas, ou pelo menos vinculados à aceitação da inevitabilidade (ou mesmo desejabilidade) de uma maior intervenção do Estado na economia, em contraposição ao menor poder transformador ou modernizador das estruturas “capitalistas” de mercado. Em outras palavras, a legitimação ideológica do comunismo se deu tanto pela via da economia como da política, em que pese o balanço francamente desfavorável na confrontação com o capitalismo (mas, explicável em termos de guerra civil, de destruições “imperialistas”, de espoliação “colonial” etc.), que tanto a URSS como a China ou outros países menores (Cuba, Vietnã) nunca deixaram de apresentar, mesmo em comparação com países capitalistas “subdesenvolvidos”. Os partidos comunistas dos países capitalistas europeus – em especial na Itália e na França – conseguiram reter uma certa audiência popular mesmo durante os anos de descrédito político do socialismo real com base na antiga crença de que uma “economia planificada” ou pelo menos controlada pelo Estado conseguiria refrear a “exploração capitalista” e introduzir um pouco mais de igualdade na repartição funcional capital-trabalho. Finalmente, em nosso próprio continente, a única justificativa – aceita de certo modo pela própria “direita” – para a ausência completa de liberdades democráticas e até mesmo de certos direitos humanos na Cuba “socialista” era o suposto avanço no plano dos indicadores sociais 343 (saúde, educação, nutrição), continuamente agitados em face das desigualdades e mazelas sociais existentes nos demais países da região. Esse tipo de ilusão foi tão, ou mais, importante do que aquela derivada da “paixão revolucionária” que analisou Furet em seu livro: a afirmação da vontade na História, a invenção do homem por ele mesmo, o ódio ao burguês (alimentado não tanto por proletários verdadeiros, como por artistas e intelectuais “burgueses”), a promessa de um novo mundo de justiça social construído pela própria coletividade redimida pela classe operária, a recusa do individualismo em favor da liberação de toda humanidade e não apenas de uma raça ou um povo particulares como no fascismo, tudo aquilo, enfim, que fazia o “charme universal de Outubro” e que o grande historiador francês analisa sobretudo – era talvez inevitável, no seu caso – como uma herança e como uma realização da Revolução francesa de 1789. De certo modo, talvez a grande ilusão econômica do socialismo seja a única a sobreviver à derrocada do regime político baseado no partido único e na “democracia real” (isto é, não burguesa, formal), este definitivamente enterrado pela superioridade filosófica, moral e empírica da ideia democrática. Se as ideias movem o mundo, as ideias econômicas com muito maior razão podem ter a pretensão de continuar a determinar o curso de nossos destinos individuais e de nossas realizações coletivas. A essa título, a ilusão econômica socialista (pelo menos aquela que se baseia no papel regulador e distribuidor do Estado) não está perto de extinguir-se, mesmo depois de ter sido bastante maltratada por várias décadas de planejamento centralizado e de “socialismo real”. Julgado com base nesses parâmetros – ressalve-se que tal não era a intenção do historiador francês –, o ensaio de Furet deixa muito a desejar, mesmo numa perspectiva puramente historiográfica ou do ponto de vista de uma história política ou das ideias. Finalmente, o grande objetivo do projeto comunista não era tanto eliminar o burguês enquanto agente social – objetivo julgado relativamente fácil pelos protagonistas de Outubro e seus êmulos em outras partes – como construir um sistema socialista de organização social da produção em tudo oposto ao execrado regime capitalista, que se devia eliminar da face da terra.22 O jacobinismo bolchevique se dirigia, obviamente, contra o “Estado burguês”, mas a coletivização total dos meios de produção era o elemento essencial da construção da nova ordem socialista. Era essa a promessa contida no Manifesto Comunista, reafirmada no 22 Caberia também observar que tampouco o fato do comunismo ter vencido apenas em países atrasados do ponto de vista capitalista retém a atenção de Furet em sua análise do “sucesso” desse regime. 344 programa leninista e ainda confirmada em pleno revisionismo krusheviano.23 Até o final de sua administração, quando ele já tinha consentido em introduzir elementos de mercado no funcionamento econômico do socialismo, Gorbatchev também preservou sua confiança num futuro comunista, isto é, não capitalista, para a URSS. Um historiador “marxista” como Hobsbawm não deixa de considerar, praticamente em igualdade de condições, os elementos econômicos e políticos do mundo do “socialismo realmente existente”. A primeira coisa a ser observada a respeito da região socialista do globo, diz ele em seu citado capítulo, “é que durante a maior parte de sua existência ela formou um sub-universo separado e largamente autossuficiente tanto economicamente como politicamente. Suas relações com o resto da economia mundial, capitalista ou dominada pelo capitalismo dos países desenvolvidos, eram surpreendentemente reduzidas. Mesmo durante a fase alta do grande boom do comércio internacional nos Anos Dourados, apenas algo em torno de 4% das exportações das economias desenvolvidas de mercado iam para as ‘economias centralmente planificadas’ e, em torno dos anos 80, a parte das exportações do Terceiro Mundo dirigidas a elas não era muito maior”.24 Hobsbawm reconhece que a razão fundamental da separação entre os dois campos era, sem dúvida alguma política, mas ele desenvolve em seguida uma brilhante análise da “economia política” do socialismo real, ainda que ele tenda a acreditar, mesmo retrospectivamente, nas estatísticas do socialismo estalinista, que “evidenciariam” um crescimento superior ao das economias capitalistas nos anos 30 (“acumulação primitiva socialista”) e durante uma certa fase do pós-guerra. Igualmente, ele dedica toda a primeira parte de seu capítulo sobre o “fim do socialismo” a uma análise do “subdesenvolvimento econômico” (a expressão não é dele, tampouco) desse regime, mesmo se, mais adiante, ele reconhece, acertadamente, que é a “política, tanto a grande como a pequena, [que] deveria acarretar o colapso Euro-soviético de 1989-1991”.25 O que importa sublinhar aqui não é tanto o desempenho econômico efetivo dos socialismos realmente existentes – que poderia ser objeto de uma história econômica do socialismo – mas, na perspectiva da história intelectual, o “peso” das ideias econômicas na formação e manutenção da “ilusão comunista”, algo completamente descurado por Furet. Sua análise – embora sumária – da crise prolongada do socialismo deixa ao largo os elementos relativamente “objetivos” da estagnação econômica, para concentrar-se nas ideias dos 23 Em 1961, por exemplo, no 22º Congresso do PCUS, Krushev prometia ultrapassar a produção “per capita” dos Estados Unidos por volta de 1970 e construir uma “sociedade comunista acabada” perto de 1980. 24 Cf Hobsbawm, Age of Extremes, op. cit, p. 374. 25 Idem, p. 475. 345 dissidentes e no crescente descrédito político do regime. Apesar de que seu ensaio, como sublinhado, pretendesse abordar apenas e tão somente a história das “ideias”, deve-se ressaltar que, ainda assim e especificamente neste caso, as ideias econômicas deveriam ser consideradas como parte integrante da “ilusão comunista”, como elemento indissociável da mitologia política do socialismo de tipo soviético. A transição marxista do socialismo ao capitalismo Sem pretender fazer ironias com a História, caberia observar que a crise e a débâcle do comunismo soviético podem ser interpretadas inteiramente em termos das idéias marxistas, a fortiori para um antigo adepto da religião como Furet. Com efeito, ninguém melhor do que Marx – de cujos escritos sobre a Revolução francesa Furet já tinha tratado em profundidade – sabia colocar com clareza, ainda que de forma profética, o inexorável desenrolar do processo histórico e social. Como ele escreveu no Prefácio à Contribuição à Crítica da Economia Política (1859), “numa certa etapa de seu desenvolvimento, as forças produtivas de uma sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes, ou, o que é apenas sua expressão jurídica, com as relações de propriedade no seio das quais elas se tinham desenvolvidos até então. De formas de desenvolvimento das forças produtivas, essas relações [de produção] se tornam seus próprios entraves. Abre-se então uma época de revolução social. A transformação na base econômica altera mais ou menos rapidamente toda a enorme superestrutura”.26 Essa época de revolução social abriu-se para o socialismo de tipo soviético a partir do final dos anos 70, muito embora suas sementes existissem desde muito tempo antes. As razões dessa transformação, que pode ser inteiramente explicada em termos “marxistas”, foram as mesmas que, no passado, levaram ao declínio do feudalismo como “modo de produção”: as relações “socialistas” de produção se tinham inegavelmente convertido num formidável entrave ao desenvolvimento das forças produtivas e ao avanço das condições econômicas de produção. Qualquer marxista não comprometido com os esquemas de poder existentes na área soviética poderia reconhecer que a forma “socialista” da propriedade representava, em nível estrutural, um enorme obstáculo ao avanço contínuo do processo de produção social.27 26 Tradução livre a partir da edição francesa; vide Karl Marx, Contribution à la Critique de l’Économie Politique (Paris: Editions Sociales, 1957). 27 Este artigo já estava praticamente redigido, como dissemos, quando tomamos conhecimento da obra de Massimo Salvadori sobre a história do comunismo. É curioso, assim, observar que ele faz o mesmo tipo de análise “marxista” sobre a contradição fundamental do comunismo 346 De fato, as relações socialistas de produção sempre foram uma forma contraditória de organização social da produção, uma vez que, segundo a própria teleologia marxista, a sociedade burguesa não poderia desaparecer – e assim dar lugar ao socialismo – sem que ela pudesse antes desenvolver todas as suas potencialidades intrínsecas em termos de forças produtivas. Mas, uma vez implementadas essas relações socialistas de produção – de maneira mais ou menos improvisada no seguimento da revolução bolchevista –, elas sempre representaram (no vocabulário do próprio Marx) “uma forma antagônica do processo de produção social, não no sentido de um antagonismo individual, mas de um antagonismo que nasce das condições sociais de existência dos indivíduos”. Segundo os próprios termos da análise histórica marxista seria portanto inevitável esperar o deslanchar de uma etapa revolucionária no desenvolvimento do socialismo, uma vez que a deterioração da base econômica do sistema, já visível desde o final da estagnação “brejnevista”, estava conduzindo a um impasse, ele mesmo anunciador de uma mudança radical em toda a superestrutura jurídica e política da sociedade socialista. É assim muito provável que, ao iniciar seu período de “reformismo esclarecido”, Gorbachev tenha chegado à conclusão que a base técnica do sistema socialista, enquanto forma de organização social da produção, fosse essencialmente conservadora, uma vez que, ao contrário do sistema capitalista, não possuía em si mesma os impulsos para uma contínua transformação das condições de produção. Gorbachev, aparentemente em bom marxista, admitiu-o abertamente: antes mesmo de assumir a liderança do PCUS, em dezembro de 1984, ele advertia que a injustificada preservação de “elementos obsoletos nas relações de produção pode ocasionar uma deterioração da situação econômica e social”. Em junho de 1985, já como Secretário-Geral do PCUS, ele declarava que “a aceleração do progresso científico e técnico requeria insistentemente uma profunda reorganização do sistema de planejamento e de administração soviético: “Aplicando ao caso soviético as categorias marxianas, se pode dizer que na União Soviética, a superestrutura sufocava dali em diante [anos 80] as condições de desenvolvimento da sociedade, criando uma situação de crise orgânica do sistema. Tornava-se mais e mais evidente, de fato, que a rigidez planificadora burocrático-centralista, que tinha podido obter substanciais sucessos no âmbito da modernização tardia baseada na indústria pesada, na cadeia de montagem, no controle autoritário da mão-de-obra, na compressão do consumo em proveito dos investimentos nos setores considerados estratégicos, em primeiro lugar militares, não estava estruturalmente em condições de realizar o salto qualitativo indispensável para conduzir o sistema à era da telemática disseminada e de produções sujeitas à rápida obsolescência e, portanto, adaptá-lo à necessidade de rápidas reconversões, implementadas por uma pluralidade de centros de decisão sensíveis às exigências da inovação permanente”: cf. La Parabola del Comunismo, op. cit., p. 56. 347 do mecanismo econômico em sua totalidade”.28 O que Gorbachev pretendia implementar era uma espécie de NEP da era eletrônica, algo bem mais complicado, deve-se reconhecer, que as banalidades conceituais em torno do modelo leninista de comunismo, descrito como sendo o “socialismo mais a eletricidade”. Não havia, contudo, fórmula milagrosa capaz de fazer aquele socialismo tomar o “carro da História” a partir das relações de produção existentes: não só a “base técnica” do socialismo estatal, nos termos de Marx, era essencialmente conservadora, como também sua base social e política era profundamente reacionária. A União Soviética parecia representar para Gorbachev o que a Alemanha guilhermina representava para Marx no século passado: um país atrasado e dividido que tinha necessariamente de passar por uma revolução política radical para quebrar os grilhões que impediam sua modernização econômica e social. Fazendo uma grosseira analogia histórica, poder-se-ia dizer que as relações socialistas de produção e a classe burocrática associada ao Partido Comunista representavam, na maior parte dos países da área soviética, o mesmo papel que o sistema corporativo e a classe aristocrática desempenhavam no ancien régime de tipo feudal: um obstáculo intransponível ao desenvolvimento das forças produtivas materiais e um entrave formidável ao progresso político da sociedade. Como afirmaram Marx e Engels no Manifesto Comunista: “numa certa etapa do desenvolvimento dos meios de produção e de troca... as relações feudais de propriedade deixaram de corresponder às forças produtivas em pleno crescimento. Elas entravavam a produção em lugar de fazê-la avançar. Elas se transformaram em grilhões. Esses grilhões tinham de ser quebrados: eles foram quebrados”.29 No que concerne as relações socialistas de propriedade, esses grilhões foram efetivamente rompidos nos países da antiga área soviética, muito embora o processo de construção da nova ordem esteja ainda a meio caminho. Em suas manifestações e desenvolvimento, o processo de ruptura com o ancien régime foi, evidentemente, político, e não poderia deixar de ser exclusivamente político, como observaram Furet e Hobsbawm.30 O 28 Citado por Francis Fukuyama, “Gorbachev and the Third World”, Foreign Affairs (vol. 64, n. 4, Spring 1986, p. 715-731). 29 Tradução livre a partir da edição da Pléiade; vide Karl Marx, Oeuvres I: Économie (Paris: Gallimard, 1968). 30 Hobsbawm, por sua parte, combina elementos políticos e econômicos em sua análise sobre a queda final do comunismo: “O que levou a União Soviética em marcha acelerada em direção ao precipício foi a combinação da glasnost, que significava a desintegração da autoridade, com a perestroika, que resultou na destruição dos velhos mecanismos que faziam a economia funcionar, sem prever nenhuma alternativa; e consequentemente o colapso crescentemente dramático do padrão de vida dos cidadãos”; “A desintegração econômica ajudou o progresso da desintegração política e foi alimentada por ela”; Age of Extremes, op. cit., p. 483 e 485. 348 ponto de não retorno, diz ironicamente Hobsbawm, foi atingido na segunda metade de 1989, bicentenário do deslanchar da Revolução francesa, “cuja não existência ou irrelevância para a política do século XX, os historiadores franceses ‘revisionistas’ estavam ocupados em tentar demonstrar naquele momento. A ruptura política seguiu-se (como na França do século XVIII) à convocação de novas assembleias democráticas, ou passavelmente democráticas, no verão daquele ano. A ruptura econômica tornou-se irreversível no decorrer de alguns poucos meses cruciais entre outubro de 1989 e maio de 1990”.31 Assim, se a crise política é evidente, em meu julgamento foram razões estruturais de natureza essencialmente, senão inteiramente, econômica que levaram à crise fundamental, à sua fratura irremediável e à queda final do sistema. Um pouco de materialismo histórico, por uma vez, não pode fazer mal à causa do socialismo, ou pelo menos à da análise histórica de sua derrocada final. A base econômica explica, ainda desta vez, a transição de um modo de produção a um outro. Para chegar a um verdadeiro sistema econômico de mercado, na antiga zona soviética, só falta agora atravessar o que Marx chamava de purgatório capitalista. O comunismo chegou efetivamente ao final de sua parábola no século XX: ele terá constituído, finalmente, uma longa etapa de transição que levou do capitalismo ao... capitalismo. Paris, 8 de maio de 1995. Publicado na Revista Brasileira de Política Internacional (Brasília: vol. 38, n. 1, janeiro-junho de 1995, p. 125-145). 31 Hobsbawm, op. cit., p. 486. Salvadori também faz uma análise similar: “O sistema [já sob a direção de Gorbachev] demonstrou não ser renovável por causa de sua rigidez; e o movimento de reforma, que investiu a economia e as instituições políticas, teve efeitos destabilizadores, de tal forma a romper a máquina existente e provocar um verdadeiro processo de ‘descolamento’. O primeiro resultado foi o precipitar da crise econô mica, que em 1990 assume o caráter de catástrofe”. “O sistema... desagregou-se sob o peso de dois elementos fundamentais, um ligado ao outro. O primeiro foi a incapacidade estrutural de um sistema centralista-burocráticototalitário (...) em responder aos desafios colocados pela economia complexa do mundo capitalista entrado na era pós-industrial. O segundo foi a incapacidade final do sistema de poder comunista em controlar, seja pelo consenso, seja pela coerção, a sociedade, colocada sob um domínio brutal...”; cf. La Parabola del Comunismo, op. cit., p. 57 e 91. 349 Odor de Petróleo Daniel Yergin: The Prize: The epic quest for Oil, Money and Power (Nova York: Simon and Schuster, 1991, 877 + xxxiii p.) Edição brasileira: O Petróleo: Uma História de Ganância, Dinheiro e Poder (São Paulo: Scritta Editorial, 1992, 932 p.) Nos últimos três séculos, a sociedade ocidental conheceu sucessivas revoluções industriais, cada uma animada por um produto ou sistema produtivo específico: a máquina a vapor, o carvão e o aço, a química e a eletricidade, os novos materiais e a informática. Nada define melhor a moderna sociedade industrial do que o veículo automotor, em todas as suas variantes, do automóvel individual ao tanque militar; com todas as suas indústrias associadas, ele é a base inquestionável de uma civilização ainda em fase de expansão planetária O que tornou possível o desenvolvimento inaudito da civilização do automóvel foi um velho. (e nauseabundo) conhecido do homem, a petra oleum dos romanos, o petróleo. Diferentemente da máquina a vapor ou do circuito integrado, o petróleo não costuma estar associado a um paradigma industrial ou tecnológico determinado. Sendo utilizado de forma recorrente por diferentes povos, tampouco sua história está ligada a um ciclo de produto específico, já que sua transformação química a partir do século XIX permitiu o desenvolvimento de uma imensa gama de subprodutos. Na verdade, sua utilização – em forma final ou como insumo produtivo – recobre épocas sucessivas da moderna sociedade industrial, desde o querosene de iluminação do século passado até a atual “civilização do plástico”. Pela sua natureza, ele pareceria ainda pertencer ao mundo da máquina a vapor, ou seja o da primeira revolução industrial. Esse antigo modelo de desenvolvimento industrial está associado a uma fase ainda elementar da relação entre o homem e o mundo natural: trata-se da transformação de elementos materiais existentes através da utilização da energia em suas diversas formas: a energia térmica, os combustíveis fósseis, a eletricidade. A atual etapa de desenvolvimento industrial, ao contrário, dá uma maior importância à produção e à manipulação da informação, atribuindo menor peso relativo à energia e à matéria. O novo paradigma industrial se baseia no desenvolvimento de forças produtivas cada vez mais exigentes em elementos imateriais e crescentemente poupadores de matérias brutas e de energia. 350 Se podemos dizer, metaforicamente, que o circuito integrado é a “máquina a vapor” da terceira revolução industrial, assim como a eletricidade – aliada à química – o foi da segunda, o petróleo permeia várias revoluções industriais ao mesmo tempo e permanecerá provavelmente, durante muito tempo ainda, como uma das bases materiais mais essenciais a qualquer tipo concebível de organização social da produção e de circulação de bens e pessoas que a sociedade humana possa implementar. O impacto propriamente tecnológico do petróleo sobre a moderna sociedade industrial, apesar de imenso e multifacético, é usualmente descurado, talvez em razão da própria “normalidade” com que costumamos encarar a enorme quantidade de subprodutos do petróleo que frequentam nossa vida cotidiana. Isso é provavelmente devido à natureza evolutiva da indústria petrolífera, desde a etapa propriamente energética de utilização desse produto até as transformações tecnológicas mais sofisticadas do período atual. Mais do que “tomar de assalto” a sociedade contemporânea, o petróleo “impregnou” progressivamente todos os poros da moderna civilização industrial. O surgimento da energia nuclear, em contraste – antes mesmo da atual revolução da informação – significou uma transformação muito mais “espetacular” (e assustadora) da relação entre a sociedade e o conhecimento tecnológico. A capacidade científica e técnica associada à possibilidade de utilização da energia nuclear representou o estabelecimento de uma nova relação de forças entre as nações, muito mais do que a pólvora o havia feito nos albores da era moderna. Os países pioneiros na tecnologia nuclear pretenderam mesmo congelar em seu exclusivo benefício a relação de poder então criada, situação evidentemente inaceitável para muitos países que não pretendem fechar-se a nenhuma das conquistas da civilização moderna. Na área do petróleo, contudo, à parte a desigual dotação de recursos naturais entre os países e um igualmente desigual domínio sobre circuitos comerciais e estruturas produtivas – que deriva contudo de estágios diferentes de desenvolvimento industrial – não há propriamente um monopólio tecnológico de uma determinada categoria de nações sobre outras, ao estilo, por exemplo, do atual monopólio nuclear. Mas, o petróleo é inquestionavelmente a força de maior impacto social e econômico, senão político, na conformação da era contemporânea. Depois de 150 anos de intensa e diversificada utilização produtiva, ele continua no âmago de formas diversas de organização material da produção, de circulação de bens e pessoas e de repartição de riquezas. Ele ainda é, pelo menos até o advento de formas mais baratas e eficientes de energia, o sustentáculo material mais importante do trabalho humano, o primus inter pares da moderna estrutura 351 energética da civilização industrial. Apesar de que sua história contemporânea tenha começado desde meados do século passado, é apenas no século XX que o petróleo passa a exercer todo o seu impacto econômico, social e político sobre as sociedades envolvidas na produção, comércio e transformação produtiva do chamado “ouro negro”. A esse título, a exemplar história do petróleo contida na monumental obra de Yergin – quase 800 páginas de texto, 60 páginas de notas, 25 para a bibliografia e 32 para o índice – é insubstituível, constituindo-se provavelmente na “história definitiva” do petróleo até quase o final do século XX. Embora linear no que se refere ao desenvolvimento do tema, seu livro é, contudo, muito mais do que uma “mera” história do petróleo: ele é a própria história de nossos tempos, vista sob a ótica do único “bem” que conseguiu reunir diferentes qualidades ao mesmo tempo: o single product mais importante na moderna estrutura produtiva, aquele economicamente de maior impacto na repartição das riquezas mundiais, o estrategicamente decisivo nos grandes enfrentamentos militares deste século e, também, politicamente, a matéria-prima de maior força na ascensão e queda de governos e mesmo regimes políticos. Daniel Yergin já era bastante conhecido do público acadêmico por seu clássico estudo sobre as origens da Guerra Fria,1 onde ele discorria sobre os momentosos meses que, de 1945 a 1947, conformaram o mundo em que vivemos até bem recentemente. Ele volta agora consagrado como um dos maiores especialistas em questões energéticas da atualidade ao contar, num estilo tão cativante quanto denso, a história política e econômica do petróleo no século XX. O “prêmio” do título é retirado diretamente de uma frase de Winston Churchill no limiar da I Guerra Mundial, quando o então Lord (ministro) do Almirantado teve de confrontar-se ao problema da modernização da Royal Navy, face à crescente ameaça representada pelo build-up naval alemão. Firmemente convencido de que deveria basear a supremacia naval britânica sobre o petróleo (estrangeiro), e não mais sobre o carvão (inglês), Churchill dedicou-se com toda energia e entusiasmo a um custosíssimo programa de reconversão da frota. Nas palavras de Churchill, não havia escolha, já que próprio domínio britânico estava comprometido no empreendimento: “Mastery itself was the prize of the venture” (p. 12 e 156). Daniel Yergin sublinha, na introdução a esta história global do petróleo, os três grandes temas presentes em sua “biografia social” do petróleo, por ele descrita como uma “crônica de eventos épicos que tocaram nossas vidas”. 1 Cf. Daniel Yergin, The Shattered Peace (Boston: Houghton Mifflin, 1978; edição revista: New York: Penguin Books, 1990). 352 Em primeiro lugar, está a emergência e o desenvolvimento do capitalismo e da economia contemporânea. O petróleo é, nas palavras do autor, “the world’s biggest and most pervasive business”, a maior das grandes indústrias que surgiram nas últimas décadas do século XIX. A Standard Oil, que dominava a indústria americana do petróleo no final daquele século, esteve entre as primeiras grandes empresas multinacionais. “A expansão do negócio [petrolífero] no século XX... corporifica a evolução da economia neste século, da estratégia empresarial, da mudança tecnológica e do desenvolvimento dos mercados e, efetivamente, das economias nacionais e internacional” (p. 13). Yergin reconhece no entanto que, “à medida em que olhamos para o século XXI, está claro que a dominação [mastery] certamente derivará tanto do chip de computador quanto do barril de petróleo”. Mas, a indústria petrolífera continuará ainda assim a ter um enorme impacto no futuro previsível. Das primeiras vinte companhias relacionadas na revista Fortune, sete são companhias de petróleo. Nas palavras de um magnata entrevistado por Yergin: “Oil is almost like money” (p. 13). O segundo tema é que o petróleo, enquanto produto primário [commodity], está intimamente vinculado às estratégias nacionais de política global e de poder. Apenas emergente na Primeira Guerra Mundial, o petróleo foi decisivo para os destinos da Segunda, tanto na Europa quanto no Extremo Oriente. Durante a Guerra Fria, a batalha pelo controle do petróleo entre as grandes companhias e os países em desenvolvimento representou um dos elementos mais dramáticos da descolonização e do nacionalismo nascente. Na atualidade, mesmo com o fim da guerra fria e a conformação progressiva de uma nova ordem mundial, o petróleo manterá sua qualidade de produto estratégico, decisivo tanto para a política internacional como para as estratégias nacionais. O petróleo, para Yergin, está no epicentro do conflito no Golfo Pérsico. O terceiro tema na história do petróleo serve para ilustrar, segundo o autor, como a nossa sociedade tornou-se uma “Hydrocarbon Society” e o próprio homem moderno, na linguagem dos antropólogos, um “Hydrocarbon Man”. Até o final do século passado, a indústria petrolífera sobrevivia apenas do “querosene” de iluminação e a gasolina era praticamente um “useless by-product”. Mas, assim como a invenção da lâmpada incandescente parecia assinalar a obsolescência da indústria petrolífera, o desenvolvimento do motor a combustão interna movido a gasolina abriu uma nova era. Como diz o autor: “The oil industry had a new market, and a new civilization was born” (p. 14). No século XX, complementado pelo gás natural, o petróleo substituiu o Rei Carvão em seu trono como a fonte energética do mundo industrial, modificando de maneira fundamental as paisagens urbanas e o estilo de vida moderno. “Hoje em dia, somos tão 353 dependentes do petróleo, e ele está tão embebido em nossas atividades cotidianas, que raramente paramos para pensar em sua dimensão penetrante e universal. É o petróleo que torna possível o lugar onde vivemos, como vivemos, como nos deslocamos para o trabalho, como viajamos – e mesmo onde vamos namorar. Ele é o sangue vital das comunidades suburbanas [uma realidade típica da classe média americana]. O petróleo (e o gás natural) são os componentes essenciais dos fertilizantes de que depende a agricultura mundial; o petróleo torna possível o transporte de alimentos para as megacidades totalmente dependentes do planeta. O petróleo também fornece os plásticos e os produtos químicos que são os tijolos e o cimento da civilização contemporânea, uma civilização que entraria em colapso se os poços de petróleo do mundo se tornassem repentinamente secos” (p. 14). Mais recentemente, como resultado das novas preocupações ecológicas, o petróleo tornou-se o grande vilão da poluição atmosférica e do efeito estufa, junto com o carvão e alguns outros agentes químicos. Ainda assim, o “Hydrocarbon Man” mostra-se extremamente reticente em abandonar não só os confortos, mas a própria essência do moderno estilo de vida permitido pelo petróleo. Estes são os grandes temas que animam a “história épica” do petróleo por Daniel Yergin, uma história recheada de homens empreendedores (mas também corruptos), permeada de forças econômicas poderosas, de mudanças tecnológicas decisivas, de lutas políticas e de conflitos internacionais. Em suas páginas comparecem tycoons e magnatas como Rockefeller, Gulbenkian, Hammer ou Getty, estadistas, militares ou líderes nacionalistas como o já citado Churchill, De Gaulle, Eisenhower, Mossadegh e Cárdenas, políticos e acadêmicos como Anthony Eden, Henry Kissinger e George Bush, soberanos independentes ou manipulados como Ibn Saud, Faiçal ou Rheza Pahlevi, ademais de ditadores como Stalin, Hitler e, last but not least, Saddam Hussein. A própria invasão do Kuwait pelo Iraque, bem como a mobilização militar ocidental sem precedentes que a sucedeu, são vistos pelo autor na ótica da luta pelo controle das fontes de petróleo, leitura provavelmente exagerada tanto do ponto de vista dos motivos iraquianos como das razões para a intervenção militar norte-americana. Outros elementos não propriamente econômicos – ou seja, não necessariamente vinculados à “geopolítica do petróleo” stricto sensu – estiveram provavelmente em jogo nessa região que continua sendo, apesar de tudo e segundo a imagem consagrada, um imenso barril de petróleo. Mas, sem dúvida alguma, assim como o petróleo é essencial para a afirmação da “vontade de poder” por parte de líderes nacionalistas no Oriente Médio, ele continua a ser estratégico para os interesses algo egoístas do chamado Ocidente. Esses interesses são 354 definidos pelo autor, legitimamente ou não, pelos seguintes conceitos: “security, prosperity and the very nature of civilization”. Um árabe, ou qualquer outro cidadão de um país em desenvolvimento, veria talvez a questão de outro modo, assim como um scholar não norte-americano – ou pelo menos não comprometido com uma visão “global”, ou imperial, do mundo – escreveria uma “história do petróleo” provavelmente diferente, em conteúdo e estilo, daquela elaborada por Daniel Yergin. Entretanto, não há como negar que, não só para os países ricos, mas também para os países em desenvolvimento, a “segurança, a prosperidade e a própria natureza da civilização” continuarão a ser determinados, no horizonte histórico previsível, pelo que poderíamos chamar de “economia política” ou de “geopolítica” do petróleo. A obra de Daniel Yergin é, antes de mais nada, um típico scholarly work at its best, na melhor tradição acadêmica norte-americana, aliando descrição minuciosa dos fatos (inclusive com diálogos dos personagens principais) e interpretação objetiva de suas consequências. As fontes primárias – arquivos públicos e das grandes companhias, entrevistas com atores de primeiro plano responsáveis governamentais e especialistas, coleções manuscritas, documentos de história oral, diversos bancos de dados – são extensivamente utilizadas e avaliadas. Ainda que esse tipo de prática editorial facilite a vida do leitor apressado, as notas e referências bibliográficas estão, para desespero do estudioso ou do simples curioso, reunidas no final do livro, sendo ainda excessivamente compactas e concentradas em vários parágrafos. A bibliografia é predominantemente norte-americana e quase que exclusivamente em língua inglesa, com algumas poucas exceções (um livro em russo, outro em italiano, uma publicação oficial mexicana sobre o planejamento econômico naquele país e quatro ou cinco livros em francês), o que não é necessariamente uma falha, tendo em vista o virtual “monopólio” anglosaxão, e mais especificamente norte-americano, no universo científico-tecnológico, empresarial, acadêmico e jornalístico do petróleo. Nem por isso, se poderia acusar sua descrição histórica de “americano-centrista”, já que igual peso é dado aos desenvolvimentos políticos, econômicos e militares nos mais distintos cenários geográficos. A visão de Yergen é propriamente global e, se a presença de atores e interesses americanos é propriamente “overwhelming”, ela deve ser avaliada à luz dos fatos, mais do que do ponto de vista de uma pretensa questão de princípio metodológica que pretendesse assegurar uma relativa (e falaciosa) “imparcialidade” descritiva. Os Estados Unidos – seus homens de negócios, suas companhias petrolíferas, suas forças militares e seus agentes de informação – sempre foram a principal alavanca econômica, política, tecnológica e 355 militar durante toda a “história social” do petróleo e não poderiam, assim, ser simplesmente considerados como um ator entre outros nesse drama geoestratégico de primeira grandeza que é a dominação sobre as fontes mundiais do combustível que move o mundo. Apesar das enormes transformações tecnológicas em curso, sobretudo no que se refere à emergência dos chamados “novos paradigmas” industriais, o autor consegue sustentar bastante bem seus argumentos sobre a centralidade do petróleo para a civilização contemporânea (e para aquela imaginável no cenário histórico previsível). “O petróleo ajudou a tornar possível a dominação sobre o mundo físico. Ele nos deu nossa vida diária e, literalmente, por meio dos insumos químicos agrícolas e do transporte, nosso pão de cada dia. Ele também impulsionou as lutas globais pela primazia econômica e política. Muito sangue foi vertido em seu nome. A procura audaz e muitas vezes violenta de petróleo – e das riquezas e poder que ele traz consigo – vai certamente continuar tão longe quanto o petróleo continuar ocupando esse papel central. Isto porque vivemos num século no qual cada aspecto de nossa civilização foi transformado pela alquimia moderna do petróleo. A nossa época permanece verdadeiramente a era do petróleo” (p. 781). Reconhecida a importância do petróleo para a economia mundial no futuro previsível, cabe ainda assim verificar algumas lentas mudanças na “geopolítica” de curto prazo da economia petrolífera. Segundo o editor da Petroleum Intelligence Weekly, Edward L. Morse, em artigo prospectivo,2 “nós estamos entrando numa nova era política em matéria de petróleo que requer a cooperação internacional não apenas para manter a estabilidade política, mas também vínculos mais estreitos entre países produtores e importadores de petróleo” (p. 37). Com efeito, a grande onda nacionalista dos anos 70 parece estar cedendo terreno a novos tipos de associação pragmática entre os monopólios nacionais e as grandes companhias de petróleo, enquanto que as próprias companhias estatais de muitos países produtores realizam grandes investimentos em países abertos, reforçando assim as tendências à internacionalização e à transnacionalização à outrance da indústria petrolífera. A própria OPEP, “vista durante muito tempo como o foco principal dos mercados internacionais de petróleo, parece agora ter entrado em decadência institucional, sendo seu papel crescentemente superado pela lógica econômica e política da evolução do setor petrolífero” (Morse, idem, p. 46). A abertura de novas regiões à exploração petrolífera multinacional, na América Latina (Venezuela, por exemplo), no Oriente Médio e sobretudo na ex-URSS, promete alterar de 2 Cf. Edward L. Morse, “The Coming Oil Revolution”, Foreign Affairs (Winter 1990-91). 356 maneira dramática a geopolítica e a geoeconomia do petróleo na próxima década. Deve-se esperar, antes de mais nada, uma diminuição no fenômeno da cartelização – que, de toda forma, nunca foi homogêneo e persistente – e um aumento consequente no poder do “mercado”. Mesmo se os preços podem voltar a favorecer os países produtores, dificilmente a fixação política de preços referenciais voltará a determinar o mercado, já que o desenvolvimento das bolsas de futuros promete alterar sua estrutura e comportamento. E o nosso país nisso tudo? Cabe assinalar, antes de mais nada, que o Brasil sequer comparece no livro de Daniel Yergin, et pour cause: tendo ingressado tardiamente na era do petróleo, produtor marginal e consumidor moderado, o Brasil simplesmente não contava na geoestratégia petrolífera mundial. Os dois únicos países latino-americanos presentes na história política do petróleo são, evidentemente, o México e a Venezuela, ambos sob a ótica de suas relações com os Estados Unidos, tormentosas ou cooperativas segundo a ocasião. O Brasil participava do mercado internacional sobretudo como comprador, apesar dos investimentos externos realizados pela Petrobrás desde os anos 70. As perspectivas nesse terreno parecem ser moderadamente otimistas, já que o País tem chances de se firmar como fornecedor potencial de tecnologia de exploração off-shore. Nos setores produtivo e comercial, não é difícil prever-se um aumento progressivo do auto-abastecimento e uma diversificação ainda maior das fontes de aprovisionamento externo. A integração regional – com as interligações em matéria de gás e novos acordos comerciais para o fornecimento de crus – é outro elemento que deverá influenciar positivamente a “geopolítica” de nossa matriz energética, devendo também contribuir para a internacionalização ainda maior da estatal Petrobrás. Em qualquer hipótese, o Brasil não aspira a conquistar nenhum prize no sentido descrito por Daniel Yergin: ainda que o petróleo seja verdadeiramente estratégico para a realização de todo e qualquer projeto nacional minimamente significativo, a ausência de qualquer pretensão imperial ou hegemônica como objetivo político auto-assumido faz com que, de toda forma, nossas necessidades em petróleo continuem a ser asseguradas pelas vias tradicionais do comércio exterior e do investimento em fontes domésticas. Mais modestamente, nosso “prêmio” já será grande se, em lugar de uma ilusória dominação de caráter geopolítico, conseguirmos garantir um aumento razoável nos níveis de bem-estar da população. E, se o petróleo é fundamental em qualquer processo de desenvolvimento, o elemento estratégico da equação, mais do que a projeção externa de uma política de poder, continua sendo a capacitação tecnológica interna e a definição de uma correta política energética. 357 Em todo caso, as lições que se podem tirar do livro de Daniel Yergin são relativas: o cenário ali descrito já pertence, em grande parte, ao passado. Novas forças começam a se movimentar neste mesmo momento no vasto mundo do petróleo. Talvez o próprio “oil power” venha a ser progressivamente substituído pelo “microchip power” e pelas novas técnicas de processamento da informação. Como sempre, os caminhos do desenvolvimento são múltiplos: mas, também é claro que com um pouco mais de petróleo sempre será mais fácil chegar aonde se pretende ir. Montevidéu, 24 de novembro de 1991; Brasília, 25 de abril de 1993. Publicado, sob o título “O ‘Prêmio’ do poder mundial é o petróleo” no Caderno Internacional do Correio Braziliense (Brasília: 3 agosto 1992, p. 6); publicado na Revista Brasileira de Política Internacional (nova série: Brasília: ano 36, n. 1, 1993, pp. 158-163). 358 Velhos Bárbaros, Novo Império Jean-Christophe Rufin: L’Empire et les Nouveaux Barbares (Paris: Editions Jean-Claude Lattès, 1991, 249 p.) O tema está, sem dúvida alguma, na ordem do dia: a emergência de uma nova ordem mundial após a derrocada do sistema soviético. As teses e argumentos do autor não deixam tampouco de ser provocantes: a solidão das democracias ocidentais em face, não mais do inimigo ideológico tradicional, mas, da preocupante nebulosa dos povos divididos do Terceiro Mundo. Ambos se contemplam de um lado e outro do limes, a fronteira imprecisa entre dois mundos: o Norte, recentemente reunificado e supostamente depositário dos valores do direito – o Império – e o Sul, caótico e incontrolável na diversidade dos povos: os novos bárbaros. Vinho Novo, Velhos Odres Como todas as teses dicotômicas, o ensaio de Jean-Christophe Rufin incita não só ao debate, mas também à contestação. E, como todos os argumentos razoavelmente “catastrofistas”, o sucesso de mídia parece igualmente assegurado. Esses parecem, aliás, ter sido os objetivos do autor: provocar a indignação, quando não a rejeição das teses “defendidas” e, por isso mesmo, suscitar um movimento de reação ao curso aparentemente irreprimível tomado na atualidade pela chamada “nova ordem mundial”: a conformação de um novo tipo de “apartheid”, mais insidioso e generalizado que o velho sistema em vias de desaparecimento no país que o criou. Como demonstrado pela experiência de denso best-seller do historiador Paul Kennedy sobre a ascensão e queda das grandes potências,1 discursos sobre a decadência ou o sucesso relativos das nações sempre despertam sentimentos ambíguos em cada um de nós. Desta vez não se trata de uma pergunta dirigida apenas aos dinossauros da política mundial, mas ao conjunto dos países em desenvolvimento, isto é, à maioria dos membros da já imensa comunidade mundial. Todos devemos, assim, perguntar-nos: a sociedade onde vivo caminha para a frente, para níveis mais elevados de progresso econômico e de bem-estar social, ou seja, no sentido da História, ou, ao contrário, estaria ela condenada ao declínio, à estagnação, 1 Cf. Paul M. KENNEDY, The Rise and Fall of Great Powers: Economic Change and Military Conflict from 1500 to 2000 (Nova York, Random House, 1987). Edição brasileira: Ascensão e Queda das Grandes Potências (Rio de Janeiro, Editora Campus, 1989, tradução de Waltensir Dutra). 359 ao caos social? Numa palavra: como meu país se situa em relação à modernidade encarnada pelos países já avançados? Nesse particular, o diagnóstico de Rufin é aparentemente inapelável: o Norte, agora liberado da confrontação Leste-Oeste, prossegue pacientemente seu rumo em direção do futuro, acumulando riquezas e dispensando bem-estar a seus habitantes. O Sul, ao contrário, pareceria condenado ao marasmo econômico, aos conflitos militares e raciais, enfim, à anarquia social e política. O que é mais preocupante é que não se trata de um simples “atraso histórico” em relação às realizações materiais, econômicas, científicas e culturais do Norte desenvolvido: o que os países do Sul apresentam, na verdade, é uma realidade substancialmente diferente daquela observada no hemisfério setentrional. Os valores greco-latinos são, segundo Rufin, rejeitados ao sul do Equador, a anarquia incontrolável de determinadas porções do planeta estaria transformando territórios mais ou menos vastos em novas terrae incognitae, onde nenhum ocidental ousa mais se aventurar, catástrofes e guerras se disseminam no mais completo descaso em diversas regiões. Para garantir sua própria segurança, o Norte se fecha aos influxos humanos do Sul e passa a reforçar barreiras materiais à penetração dos novos bárbaros. Essas paliçadas modernas são constituídas por Estados tampões, cuja função é a de frear as correntes migratórias, diminuir os pontos de conflito e, em última instância, garantir as fronteiras do Império. Este é o quadro geopolítico global – amargo, talvez, e mesmo cínico, mas realista – que, segundo Rufin, caracterizaria a nova ordem mundial em construção. O cenário traçado não poderia ser mais claro em sua crueza dicotômica, sob risco de parecer simplista. Mas, antes de rejeitarmos a tese principal de Rufin como irremediavelmente contaminada por um novo tipo de maniqueísmo – ao substituir a hoje defunta oposição Leste-Oeste pelo conflito Norte-Sul, em versão revista, corrigida e ampliada – cabe reconhecer a seriedade e pertinência dos argumentos desenvolvidos em seu ensaio, quando não a fundamentação empírica da maior parte de suas afirmações. Seu ensaio é, porém, deficiente em razão de duas ordens de problemas: por um lado, um reagrupamento arbitrário, algumas vezes incoerente, de uma série de dados objetivos – demografia, mores social, comportamento político, conflitos militares – sobre diferentes países do Terceiro Mundo; por outro lado, um pecado metodológico comum a todos os comparatistas trans-temporais: o desejo de encaixar novas realidades em velhos moldes 360 históricos. Vamos tratar sucessivamente dessas duas questões, ao mesmo tempo em que repassamos os argumentos de Rufin. Existe um Terceiro Mundo? Todo o livro de Rufin é construído sobre a oposição entre o Norte, que adere aos valores democráticos e humanos mais ou menos identificados com a ideologia americana, e o resto do mundo, isto é, os novos bárbaros. Nem o Sul, nem o Norte são entidades homogêneas, como o reconhece o autor, mas um conjunto de elementos os diferenciam entre si, ou melhor, diversos traços negativos afastam de maneira inquestionável o destino sombrio dos países do Sul do itinerário relativamente satisfatório seguido pelos países do Norte. Já sabíamos, desde Max Weber, que toda ciência social é permeada de subjetividade e que todo comparatismo está irremediavelmente comprometido pela nossa própria visão do que seria o “padrão normal” de desenvolvimento histórico e social. O mesmo Weber, que fazia seus exercícios de comparação sociológica com base nos famosos “tipos ideais”, seria extremamente cauto em fazer a análise dessa imensa variedade de problemas ao abrigo da noção de “terceiro mundo”, um conceito tão carregado de contradições quanto a própria realidade que ele pretende descrever. Na verdade, os elementos selecionados por Rufin para descrever o quadro político, econômico, social, demográfico e cultural dos países do Sul são todos relevantes quando tomados individualmente ou de maneira tópica para cada um dos países mencionados. A dificuldade está, precisamente, em subsumir elementos de origem diversa num mesmo cenário “unificador”: o assim chamado “terceiro mundo”. Dito isto, não há como recusar a realidade atual dos países do Sul, tal como evidenciada de maneira dramática no livro de Rufin. Senão vejamos: aparecimento e ampliação de zonas de insegurança relativa em diversas regiões, seja na América Latina (onde o caso mais evidente é o do Peru), na África (Etiópia, Somália, Libéria, etc.), no Oriente Médio (Líbano) ou na Ásia (Índia, Sri Lanka, Indochina), conformando as já mencionadas terrae incognitae do novo mapa planetário; colusão do crime organizado com as zonas de pobreza urbana, em diversas megalópoles do Terceiro Mundo; diferenciação gritante das taxas de natalidade ao sul e ao norte do Equador, desmentindo as teses antimalthusianas sobre a “transição demográfica”; acumulação de “arquipélagos de miséria”, nas zonas de refugiados políticos ou econômicos em vários pontos do mundo ou nas próprias cidades do Sul, como resultado do êxodo rural; desenvolvimento de novas ideologias insurrecionais, em ruptura com o marxismo tradicional, sustentando movimentos guerrilheiros virulentamente 361 antiocidentais e anti-humanistas (Sendero Luminoso, Khmer Vermelho, fundamentalistas islâmicos, etc.); disponibilidade de armas e equipamentos sofisticados nas mãos de grupos radicais ou simplesmente criminosos; ineficiência relativa ou absoluta dos programas de desenvolvimento, seja pela ausência de mínimas condições favoráveis à implementação dos projetos, seja pela dilapidação dos recursos da cooperação internacional nas mãos de agentes corruptos. Enfim, um pouco em todas as partes do Sul o que se observa é uma situação geral que não é de simples “atraso histórico” em relação aos países do Norte – atraso que poderia, teoricamente, ser coberto em prazos mais ou menos curtos, segundo os níveis de desenvolvimento já alcançados – mas, uma condição fundamentalmente diversa da dos países avançados, uma diferença estrutural quanto ao modo mesmo em que se processa o “desenvolvimento”. Rufin tem, sem dúvida alguma, razão no que se refere à maior parte de suas constatações “objetivas” sobre a situação dos países do Sul. De uma forma geral, o quadro é desalentador: avanço da miséria, da instabilidade política e militar, deterioração das condições de vida na maioria das megalópoles do Sul, progressão do crime organizado e da corrupção, falência geral das instituições públicas, numa palavra, recuo geral da sociabilidade e avanço da anomia. Tudo isso é bem real no Terceiro Mundo, mas não necessariamente verdadeiro para os países individualmente. O cenário assustador do território de “bárbaros” é construído com base nos exemplos mais deploráveis que se oferecem aos olhos dos observadores do Império, elementos de natureza diversa pinçados aqui e ali na atualidade sempre trágica dos chamados “pontos quentes” do terceiro mundo. Esse terceiro mundo do livro de Rufin é o mesmo que comparece regularmente nos telejornais do Norte: guerrilhas, catástrofes naturais e sociais, ditadores sanguinários e líderes corruptos, criminalidade generalizada nas grandes cidades, violência gratuita contra mulheres, abusos dos direitos humanos, camponeses famintos, crianças abandonadas, menores assassinados, em suma, um novo pátio dos milagres com nome e endereço. O Terceiro Mundo não deixou de existir apenas pelo desaparecimento do Segundo: ele prospera, e sua face é horrenda, merecendo mesmo o epíteto de território de bárbaros. Não se pode, evidentemente, negar a manutenção de altas taxas de fecundidade em muitos países do Sul, bem como a preservação e ampliação de focos de miséria, de desigualdade e de injustiça social na maior parte deles. O que é, entretanto, contestável, do ponto de vista da “boa” ciência social, é o agrupamento de todos esses exemplos “objetivos” numa mesma construção ideal – o chamado “terceiro mundo” – que corresponderia, cela va de soi, às expectativas mentais dos habitantes do Império. 362 Em outros termos, os “novos bárbaros” do terceiro mundo constituem um aglomerado de “primitivos” irremediavelmente divorciados dos valores e práticas conhecidas no Norte. Como trabalho jornalístico, o livro de Rufin é o que se poderia chamar de bom exemplo de “reportagem catástrofe”; como análise objetiva da situação real dos países do Sul, contudo, é um mero emaranhado de horrores, tentando apresentar-se sob forma de edifício coerente. Essa construção, porém, em que pese toda sua força de atração dramática, simplesmente não consegue manter-se de pé, pelo menos vista pelo ângulo da ciência social. Em primeiro lugar, porque não há esse terceiro mundo descrito por Rufin, mas tão simplesmente lugares e países diversos, apresentando problemas de distinta natureza, derivados de múltiplas causas estruturais ou conjunturais que existem episódica ou permanentemente nos diferentes continentes que compõem esse amálgama maior conhecido por Terceiro Mundo. Em segundo lugar, porque a coleção de tragédias que ele vislumbra nos territórios dos novos bárbaros é por demais incoerente, do ponto de vista analítico, para justificar esse agrupamento parcial e simplificador de elementos heterogêneos numa única construção ideal – o Sul – que se oporia ao Norte em todas as frentes possíveis do desenvolvimento histórico e social. Pode-se tentar compreender as razões do pessimismo extremo de Rufin: coopérant francês em diversas regiões miseráveis do terceiro mundo (redundância?), coordenador de ajuda humanitária (Médecins Sans Frontières) em regiões de conflito, responsável por diversos programas de socorro urgente em zonas de guerra civil e de refugiados, ele já passou por diversos “infernos” terrestres, feitos pela própria mão do homem (com armas do primeiro mundo, é verdade). Rufin conhece, por assim dizer, as “entranhas” do mundo bárbaro: Líbano, Sudão, Somália, etc. O que não se pode admitir, no entanto, é uma generalização duvidosa e um amálgama indevido dessas diversas situações de crise extrema e sua extensão abusiva ao conjunto dos países em desenvolvimento, como se, d’un coup, os “bárbaros” dominassem de maneira uniforme os territórios ao sul do novo Império. A Miséria dos Modelos O problema fundamental do discurso de Rufin, entretanto, não se resume à incoerência dessa agregação de dados dispersos para dar uma imagem caótica de um terceiro mundo unido em seu barbarismo. Ele é, mais bem, resultante do desejo secreto de todo aprendiz de comparatista de encontrar um precedente histórico e um paradigma analítico para uma oposição pré-fabricada e aprioristicamente definida entre o Norte e o Sul. A comparação ou, 363 melhor, o modelo adotado no ensaio de Rufin recua longe na História, quando o Império romano, após derrotar Cartago – uma espécie de União Soviética da antiguidade – encontrouse só em face da maré de bárbaros que batia às portas do mundo civilizado. Uma vez vencido o “império do mal” cartaginês, tratava-se de consolidar as fronteiras do “império do bem”, instalando, nos postos avançados da conquista romana, uma fronteira bem demarcada que tomará o nome de limes. Hoje em dia o limes, na versão apresentada por Rufin, iria do Rio Grande, na fronteira México-EUA, passaria pelo Mediterrâneo, penetraria nas montanhas do Cáucaso e nas estepes mongóis para terminar nos rios Amur e Ossuri, entre a Sibéria oriental e a China. Esses limites correspondem, grosso modo, ao que, no vocabulário onusiano, foi identificado como o conjunto dos países em desenvolvimento, em oposição aos demais grupos da comunidade internacional. Em outros termos, não há, à primeira vista, novidades geopolíticas no novo mapa traçado por Rufin. Tampouco é surpreendente vê-lo caracterizar o México ou o Marrocos como Estados tampões, isto é, zonas de segurança e de estabilidade na fronteira imediata entre o Norte e o Sul. Mais interessante, por sua vez, é sua caracterização do Irã e da China como sendo igualmente Estados tampões. Independentemente, portanto, da ideologia política ou do regime econômico e social adotados por cada um desses países, eles desempenhariam o mesmo papel no limes: imobilismo, estabilidade, garantia de paz para o Norte. Vale a pena retomar a descrição de Rufin para o papel da China, que também valeria, mutatis mutandis, para o caso do Irã: “Perfeitamente à vontade no seu papel de Estado tampão, ela não é uma escória, um vestígio do mundo soviético em vias de extinção. Ela é, ao contrário, enquanto tecnologia da estabilidade, um modelo: o dos futuros Estados tampões que se instalam ao longo do limes. A característica desse modelo é uma mistura bastante surpreendente de eficiência política – no controle e na opressão – e de marasmo econômico” (p. 197). “Estabilidade, dependência, eis o que o Norte pede aos Estados tampões. No demais, suas vociferações contam muito pouco. No caso dos totalitarismos marxistas de tipo chinês, a retórica anticapitalista pode se desenvolver sem inconvenientes. Ela serve, ao contrário, para reunir o que resta dos movimentos revolucionários internacionalistas no mundo e a evitar sua dispersão anárquica. Mas, a ineficiência econômica é a garantia de que o tigre tem os dentes e as garras limadas. Pode-se deixá-lo morder, pode-se deixá-lo rugir. Ele se mantem solidamente em suas patas, eis tudo que lhe é pedido” (p. 198). Assim, a despeito de uma discordância fundamental com Rufin a propósito mesmo do modelo Império/novos bárbaros adotado em seu ensaio, cabe reconhecer a agudeza de sua 364 análise política a propósito do papel da China (e do Irã) na nova ordem mundial em construção. Ao Norte interessa muito mais um Estado opressor, mas estável em sua função de fronteira, do que uma democracia insegura e problemática. Sobre as condições de funcionamento e de manutenção do novo “apartheid”, as posições de Rufin são igualmente pertinentes. “O Império deve, em primeiro lugar, estabelecer um equilíbrio militar ao longo do limes. Depois, ele deve poder se precaver contra perigos longínquos, aqueles que intervêm nas profundezas do mundo bárbaro. Enfim, ele deve aprender a conduzir, ao longo do limes, uma diplomacia da desigualdade” (p. 212). A utilização do conceito de “apartheid” pode parecer chocante, ademais de extremamente forte para caracterizar as possíveis relações futuras entre os países do Norte e as nações em desenvolvimento. Ela não é, contudo, em nada exagerada. Aliás, a aplicação desse princípio já foi explicitamente recomendada, embora ao abrigo de um pseudônimo, por um alto funcionário do Governo francês especialista em questões de defesa, devendo o novo regime ser observado antes de mais nada nas transferências ditas “dualistas” de tecnologia (hoje em dia quase todas o são).2 Apesar de vinculado ao problema das tecnologias de emprego militar, o argumento, exposto brutalmente, é o de que se deve reforçar e adaptar os regimes atualmente em vigor (TNP, Cocom, regime de controle de tecnologia de mísseis), abandonando-se a distinção entre tecnologias civis e militares e estabelecendo-se um “secretariado internacional permanente” para coordenar as exportações de tecnologias “sensíveis”. Considerando-se que mesmo a concepção e manufatura de circuitos integrados já foi declarada pelo Pentágono como do interesse da segurança nacional norte-americana, podese deduzir facilmente até onde poderia chegar um tal regime de controle. Jean-Christophe Rufin deseja, evidentemente, o fim do “apartheid”, de preferência através de uma decidida ação de caráter universalista e humanista que, ao mesmo tempo em que busca perseverar nos projetos de cooperação para o desenvolvimento, faça a denúncia constante de todos os tipos de despotismos: o do dinheiro, o do fanatismo religioso, o da injustiça social. O único problema é que a iniciativa, mais uma vez, deve vir do Norte: assim, os que no Sul se batem pela transformação – são expressamente citados Vargas Llosa e Fernando Collor – deveriam receber mais “ajuda” do Norte. Sua denúncia das hipocrisias mantidas tanto ao Norte quanto ao Sul é, entretanto, muito bem vinda, em que pese o anacronismo da comparação da situação atual com a Roma antiga. 2 Vide Jean Villars, “Pour l’Apartheid Technologique”, L’Express (14 de Setembro de 1990, p. 30-31). 365 Resta uma última observação, não só em relação ao título da obra, como no que se refere à adequação do adjetivo “novo” aplicado aos “bárbaros”. Estes, como a miséria e a opressão, sempre existiram e continuam a carregar uma existência dramática através dos séculos. O Norte, por sua vez, encontra-se numa situação historicamente inédita: já não se vive a “bipolaridade” dos últimos quarenta anos, nem tampouco retornou-se ao “equilíbrio de potências” do século passado. Dessa forma, o império, sim, é que é novo, pois os “bárbaros” são nossos velhos conhecidos. Brasília: 28 Fevereiro 1992. Publicado na Revista Brasileira de Política Internacional (Rio de Janeiro: ano XXXV, n. 137-138, 1992/1, p. 97-103). 366 Desconstruindo Estados (ma non troppo...) Francis Fukuyama: Construção de Estados: governo e organização no século XXI (Rio de Janeiro: Rocco, 2005, 168 p.) Não houve, no decorrer dos anos 90, uma ideia mais equivocadamente rejeitada (sobretudo pela esquerda) do que o pretenso “fim da história”, que teria sido decretado pelo autor nipo-americano. Até a orelha deste livro incorre no equívoco, ao afirmar que “Fukuyama previu o ‘fim da história’ com a ascensão da democracia liberal e do capitalismo global”. Nada mais errado, inclusive porque ele não defendia uma tese, mas discutia uma hipótese, e ela vinha seguida de um ponto de interrogação ignorado pelos críticos “de orelha”. Em todo caso, Fukuyama parte agora para o fim dos Estados, ou, pelo menos, dos Estados falidos. Ele parece dar substância intelectual às teses do “novo império”: seria perigoso deixar estados falidos nas mãos de terroristas e traficantes, daí a proposta de colocá-los sob assistência de estados “responsáveis” até que eles possam “melhorar”. Dito com tal franqueza, parece que ele redigiu o manual do intervencionismo para os propugnadores da “ação preventiva”. Não é bem isso, mas Fukuyama oferece, sim, uma justificativa para revisar Westfália, isto é, os arranjos políticos que se baseiam na soberania absoluta dos estados constituídos. Ele lembra que as bases para a erosão da soberania foram lançadas antes da doutrina Bush, nas intervenções humanitárias dos anos 90. Em face de violações dos direitos humanos, as grandes potências, agindo em nome da legitimidade democrática, têm não apenas o direito, mas o dever de intervir. Ele coloca claramente sua nova tese: promover a governança dos Estados fracos, melhorar sua legitimidade democrática e fortalecer instituições autossustentáveis, passa a ser o projeto central da política internacional contemporânea. É o chamado Nation building, mais fácil de dizer do que fazer, como demonstrado pela experiência macabra do Iraque. Na verdade, construir uma nação é algo virtualmente impossível, ainda que a remodelagem dos Estados seja possível, mesmo se o caso do Haiti também demonstra que, na ausência de forças nacionais comprometidas com o projeto, nenhuma imposição externa é bem sucedida. Esta é, porém, a parte mais política (e polêmica) do livro, seu terceiro capítulo, no qual ele critica inclusive os falcões republicanos que estão conduzindo a desastrosa experiência de “reconstrução” do Estado iraquiano. Os dois primeiros capítulos tratam da 367 chamada “estatidade” e do “buraco negro” criado pelos Estados fracos. Este é o problema crucial da nossa época, que nunca viu tanta prosperidade e tantos fracassos acumulados. Ele não vê nada de errado no consenso de Washington, reconhecendo que o Estado precisa ser reduzido em certas áreas, mas fortalecido em outras. Fukuyama estabelece as funções do Estado ao longo de um eixo que parte de funções mínimas (bens públicos, segurança e um pouco de equidade), passa por funções intermediárias (fatores externos, educação, serviços públicos e regulação, com alguma redistribuição social) e chegando a funções ativistas (políticas setoriais e redistribuição de ativos). Em função dessa tipologia, ele divide os estados em diferentes quadrantes, segundo a força das instituições e a amplitude das ações do Estado: infelizmente, muitos estados de países em desenvolvimento assumem muitas funções que não conseguem desempenhar bem. O Brasil é citado como um exemplo de problema com o seu federalismo fiscal, o que pode acarretar déficits orçamentários. Sua conclusão é a de que o Estado precisa ser menor, porém mais forte, isto é, dotado de instituições capazes de responder aos desafios que são colocados pelo crescimento da economia global. Brasília, 12 de fevereiro de 2006. Inédito. 368 Anatomia da sociedade internacional contemporânea Ricardo Seitenfus: Manual das organizações internacionais (Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, 352 p.). Dentre os oito Estados “cristãos” que se reuniram no Congresso de Viena, em 1815, cinco indiscutivelmente dominavam o chamado “concerto europeu”, que presidiu ao nascimento da Europa pós-napoleônica, estabeleceu novas regras de convívio entre as “nações civilizadas” e determinou, em grande medida, como seria moldado o mundo burguês que emergia da primeira Revolução Industrial. O equilíbrio persistiu durante todo o longo século XIX e apenas seria rompido em virtude da “segunda Guerra de Trinta Anos” em que parece ter vivido a Europa na primeira metade deste século. Cinco grandes países continuavam a dominar, no final do século XX, o inner circle do poder mundial e a determinar, via monopólio da arma nuclear, o curso da vida no planeta. Entretanto, do ponto de vista quantitativo, ao menos, o cenário é mais populoso: partindo de apenas 50 Estados independentes em seu ato constitutivo, o sistema onusiano evoluiu para cerca de 190 países membros. Do ponto de vista qualitativo, por outro lado, a mudança é substancial: no lugar da antiga diplomacia secreta dos príncipes e dos agentes dos reis, temos uma real diplomacia parlamentar exercida em mais de 350 organizações, interestatais e nãogovernamentais, constituídas em dezenas de foros econômicos, políticos, técnicos e culturais, nas quais as armas da crítica substituíram a crítica das armas. O poder talvez não se tenha tornado menos concentrado hoje do que 180 anos atrás, mas ele já não pode mais legitimamente ser exercido de forma crua e direta, devendo obrigatoriamente passar, mesmo no caso da superpotência remanescente, por diferentes instâncias de discussão e de encaminhamento de soluções aos variados problemas enfrentados pela humanidade. A resposta encontrada a esses problemas pelos Estados nacionais, o elemento mais consistente do legado de Westfália, é a construção de uma sociedade mundial que encontra nas organizações internacionais seu tijolo mais sólido. Se o mandato de Versalhes, com seus vícios revanchistas, não frutificou, a Carta de São Francisco ainda permanece uma referência válida para a construção de uma sociedade internacional livre da diplomacia da canhoneira. O livro de Ricardo Seitenfus trata precisamente desse fenômeno organizacional que constitui o multilateralismo contemporâneo, formado pelas dezenas de coletividades autônomas que se revezam na agenda internacional para tratar dos diferentes temas aos quais, nos planos 369 regional ou mundial, elas estão dedicadas: comércio, trabalho, clima e meio ambiente, finanças, padrões de comunicação, normas de saúde, patentes e direitos do autor, transportes, energia, direito e justiça, produtos de base, correios, segurança, integração econômica, enfim, todas elas voltadas para a promoção dos direitos humanos, a causa da paz e, sobretudo, do desenvolvimento. O título talvez peque por excessiva modéstia: o livro de Seitenfus é muito mais do que um simples manual, no sentido didático que se empresta correntemente ao vocábulo. Tampouco ele é um mero diretório das organizações ali elencadas, interessando apenas aos estudiosos do Direito Internacional. Trata-se de uma obra densa, voltada em primeiro lugar para os aspectos teóricos, históricos, doutrinários, classificatórios e ideológicos do multilateralismo contemporâneo, enfocando em seguida a personalidade jurídica, a competência e os instrumentos dessas organizações, para então discorrer, na maior parte do volume, sobre as mais importantes entidades multilaterais e regionais a partir da Liga das Nações. A ONU e suas agências especializadas recebem muita atenção, mas também os organismos políticos e econômicos do continente americano, sem descurar os demais órgãos regionais e mesmo as organizações não-governamentais. Um conjunto de anexos traz um utilíssimo quadro cronológico sobre a participação do Brasil nessas organizações internacionais e os textos dos convênios constitutivos das mais importantes entidades do ponto de vista da diplomacia brasileira. A formação multidisciplinar e “transnacional” do seu autor – que transita facilmente da história ao direito e da economia à sociologia – por certo contribuiu para a elegante abrangência dessa verdadeira summa das organizações internacionais, relativamente inédita para os padrões acadêmicos brasileiros. Também é notável a clareza das definições; vejamos apenas a que interessa ao objeto da obra: as organizações internacionais são associações voluntárias de Estados, constituídas através de um tratado, com a finalidade de buscar interesses comuns através de uma permanente cooperação entre seus membros. Elas representam, segundo outra definição, um subconjunto das relações internacionais e sua ideologia está vinculada às concepções defendidas por seus Estados membros (como foi o caso das Nações Aliadas nos estertores da Segunda Guerra). Elas passaram por fases, desde o funcionalismo dos primeiros anos da ONU até o atual globalismo, passando pelo desenvolvimentismo e pelo transnacionalismo. Os processos decisórios e seus mecanismos (ou relações de força) são obviamente muito importantes, mas as organizações internacionais parecem querer levar o mundo contemporâneo a uma espécie de “hegemonia consensual”. 370 Elas constituem, inquestionavelmente, um dos elementos mais dinâmicos e importantes das relações internacionais deste final de século e do futuro previsível. Conhecer sua anatomia institucional, a trajetória de cada uma delas, seus respectivos mandatos constitucionais, compreender, por fim, suas competências específicas e suas limitações intrínsecas impõe-se a qualquer estudioso do mundo globalizado em que vivemos. O manual de Ricardo Seitenfus torna mais fácil a apreensão dessa realidade múltipla a qualquer leigo no assunto e consegue agregar conhecimentos novos mesmo ao mais escolado dos diplomatas. Brasília, 3 de dezembro de 1997. Publicado na Revista Brasileira de Política Internacional (vol. 40, n. 2, julho-dezembro 1997, p. 183-185). Republicado, in GEDIM (Globalização Econômica e Direitos no Mercosul), Anuário GEDIM 2001 (Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003; p. 599-601). 371 A ordem mundial, para principiantes Henrique Altemani de Oliveira e Antonio Carlos Lessa (orgs.): Política Internacional Contemporânea: mundo em transformação (São Paulo: Saraiva, 2006, 115 p.). O livro é modesto em dimensões e em pretensões, mas ele cumpre razoavelmente a missão que se propunha: uma introdução didática à ordem mundial atual. Não há teoria aqui, mas os organizadores acreditam que mundo se defronta com o desafio político de redefinição das relações de poder (o Sistema Internacional) e de reorganização das instituições e regras que regulamentam as relações internacionais (Ordem Internacional). Consoante sua perspectiva didática, cada um dos capítulos é fechado por um número limitado de “questões para discussão”, é apresentado um glossário das expressões mais usadas em cada um deles, assim como são apontados alguns títulos de livros para aprofundamento do problema. O capítulo 1, sobre a “nova ordem mundial”, é assinado por Carlos Eduardo Vidigal, que busca os elementos constitutivos dessa ordem e, segundo o modelo braudeliano conhecido, tenta identificar os eventos de curta duração, os processos de média intensidade e as estruturas de lento desenvolvimento. Rupturas e permanências pontuam o texto, onde se lê que a globalização molda uma sociedade marcada pelo “fetichismo da mercadoria” e cuja face perversa é o desemprego estrutural e a exclusão social e territorial. No capítulo 2, Cristiano Garcia Mendes oferece uma boa síntese sobre o papel da ONU no mundo contemporâneo, comparando-a inclusive com sua predecessora, a Liga das Nações. São enfocados mais os problemas dos direitos humanos, das missões de paz, os objetivos do milênio e a difícil reforma da organização. José Flávio Sombra Saraiva trata, no capítulo 3, da hegemonia dos Estados Unidos, com um tratamento especial do caso da América Latina e do Brasil. O autor acredita que a “construção de alianças ao Sul” representa um desafio à hegemonia americana, como prega a diplomacia do governo Lula em sua política de aproximação com a Índia e a China. Antonio Carlos Lessa, especialista em questões europeias, trata, no capítulo 4, do processo de integração e dos organismos da atual União Europeia. Ele acredita que ela seja uma “verdadeira superpotência”, com condições de “influenciar de modo decisivo os rumos políticos e econômicos das relações internacionais contemporâneas”, algo que tem sido desmentido pelo seu baixo dinamismo econômico e pela relutância em investir em armas e projeção estratégica internacional. A grande inovação institucional foi, em 1991, o tratado de 372 Maastricht, que deu forma jurídica à UE e permitiu o surgimento da moeda comum, implementada entre 1991 e 2001. Dos seis membros em 1957, a Europa chega em 2004 a 25 países, mas o autor conclui que, ainda assim, se trata de um “ágil gigante”. A América Latina é tratada por Pio Penna Filho no capítulo 5, reconhecendo ele os fatores de adversidade em sua inserção internacional, bem como o descaso dos EUA. A redemocratização, nos anos 1980, coincide com novos esforços integracionistas, mas o autor acredita que a adesão às regras neoliberais teve efeitos sociais “catastróficos”. Ele também acha que esse modelo não serve para a inserção econômica internacional da região. A seção sobre o Mercosul, porém, contém diversos erros conceituais e factuais. A Ásia é tratada por Henrique Altemani, conhecido especialista, que dá ênfase à região do Pacífico, em vista de sua importância econômica e estratégica. A Ásia central ainda está sob a influência da Rússia e a Ásia do Sul ostenta muitas tensões interestatais. A região do Pacífico apresenta enorme dinamismo econômico e graves problemas de segurança, com ressentimentos latentes, o que abre o espaço para a influência continuada dos EUA. Pio Penna Filho comparece novamente para tratar da África e do Oriente Médio, mas essas duas regiões são um poço de problemas e uma fonte inesgotável de crises e ameaças à segurança, dentro e fora de seu contexto próprio. Ele aponta corretamente a questão palestina, o controle das fontes de petróleo e o fundamentalismo islâmico como os desafios principais à estabilidade regional e mundial, mas o texto é insuficiente para traduzir a complexidade desses problemas. O livro pode ser