Identidade e Memória – Chaves Space

Identidade e Memória

1. O que nos lembramos de nossa vida

Há algum tempo eu compartilhei a citação abaixo no Facebook e algumas pessoas, entre elas a minha filha mais nova, Priscilla Epprecht Machado França, a acharam interessante. Vou transcrevê-la na íntegra, embora seja longa e esteja em Inglês. Em seguida, traduzirei, à minha maneira, o que me parecem ser as teses centrais da passagem:

“THE SADDEST THING about life is you don’t remember half of it. You don’t even remember half of half of it. Not even a tiny percentage, if you want to know the truth. I have this friend Bob who writes down everything he remembers. If he remembers dropping an ice cream cone on his lap when he was seven, he’ll write it down. The last time I talked to Bob, he had written more than five hundred pages of memories. He’s the only guy I know who remembers his life. He said he captures memories, because if he forgets them, it’s as though they didn’t happen; it’s as though he hadn’t lived the parts he doesn’t remember. I thought about that when he said it, and I tried to remember something. I remembered getting a merit badge in Cub Scouts when I was seven, but that’s all I could remember. I got it for helping a neighbor cut down a tree. I’ll tell that to God when he asks what I did with my life. I’ll tell him I cut down a tree and got a badge for it. He’ll most likely want to see the merit badge, but I lost it years ago, so when I’m done with my story, God will probably sit there looking at me, wondering what to talk about next. God and Bob will probably talk for days. I know I’ve had more experiences than this, but there’s no way I can remember everything. Life isn’t memorable enough to remember everything. It’s not like there are explosions happening all the time or dogs smoking cigarettes. Life is slower. It’s like we’re all watching a movie, waiting for something to happen, and every couple months the audience points at the screen and says, “Look, that guy’s getting a parking ticket.” It’s strange the things we remember. I tried to remember more and made a list, and it pretty much amounted to the times I won at something, the times I lost at something, childhood dental appointments, the first time I saw a girl with her shirt off, and large storms.” [Donald Miller. A Million Miles in a Thousand Years. Thomas Nelson. Kindle Edition. pp.3-4.]

Traduzindo uns pedaços — ou melhor, resumindo o que ficou em mim dessa citação, temos o seguinte:

  1. A coisa mais triste da vida é que você não se lembra nem de metade dela. Nem de metade da metade. Para dizer a verdade, caso você esteja interessado em conhecê-la, você não se lembra nem de um ínfimo percentual das coisas que você vivenciou ao longo do tempo que lhe foi dado viver;
  2. O pior é que, das coisas que você se lembra, muitas são coisas bobas, como a medalha que você ganhou por ter feito alguma coisa besta em um acampamento qualquer, quando você era adolescente, ou a multa idiota que você recebeu quando se distraiu no trânsito e não notou, mesmo andando a 30 km por hora, que o sinal havia ficado vermelho;
  3. Você sabe que vivenciou coisas mais importantes e significativas do que essas, mas é difícil, sob demanda, lembrar os “melhores e mais significativos momentos” de sua vida, os gols de placa que você marcou, as coisas que , quando vividas, fizeram com que sua autoestima fosse lá para cima;
  4. Quem escreve um diário há muito tempo provavelmente vai ter como contar a Deus na hora final uma lista razoável de feitos dignos de nota, mas o restante de nós vai ficar sem graça diante de Deus, ao contar, com um orgulho mal disfarçado, a história da medalha, e ao se desculpar, com alguma real vergonha, pela infração de trânsito..

É isso… Acho.

2. Identidade e memória

Já escrevi bastante sobre essa questão. Vou retomar aqui algumas coisas que já disse mais de uma vez em mais de um contexto.

Nossa identidade pessoal é aquilo que nos define como “eu” – aquilo que faz com que eu seja eu, e não você (ou qualquer outra pessoa), e que você seja você, e não eu (ou qualquer outra pessoa)… Dizem os entendidos que cada uma de nós tem uma identidade pessoal própria que é única, diferente de todas as outras, mesmo os gêmeos idênticos, que, ainda que os outros os confundam, eles próprios não se confundem nunca um com o outro…

Um antigo programa humorístico de rádio chamado PRK-30, de Lauro Borges e Castro Barbosa, a que eu  gostava de assistir quando criança, criou um quadro em que uma velhinha meio caduca (imitada por um deles) era entrevistada. Cada entrevista era mais idiota do que a outra, mas era isso que fazia o programa divertido. Um dia, na entrevista, a velhinha disse que estava muito agoniada, e, ao ser indagada por quê, disse: “É que eu nasci gêmea idêntica de uma irmã, que, infelizmente, morreu dias depois do nascimento. Todo mundo dizia que a gente era muito parecida uma com a outra, a cara de uma, o focinho da outra. É o que dizem. Por causa disso, há momentos em que eu fico atormentada, como agora, e me pergunto: “Ah, meu Deus, quem será que morreu? Será que foi ela mesma, ou será que fui eu?” A história é gozada exatamente porque não faz nenhum sentido…

À primeira vista a questão do que define a nossa identidade pessoal pode parecer simples – mas não é, não. Pelo contrário: é bastante complicada, e já ocupou horas preciosas da reflexão de grandes pensadores…

A questão pode, naturalmente, ser encarada de diversos pontos de vista.

Encarada do ponto de vista físico – na realidade, biológico – a questão pode parecer mais simples do que de outros pontos de vista (o psicológico, o filosófico, etc.), mas mesmo aí vem se tornando cada vez mais complicada.

Dizem os entendidos (os mesmos que afirmam que nossa identidade pessoal é única) que a impressão digital de uma pessoa é absolutamente única e permanece a mesma durante toda a vida dela. Com a ajuda de algumas informações complementares, a impressão digital poderia, portanto, ser usada para definir quem a pessoa é: ela é a versão mais idosa (e, esperamos, mais vivida e experiente) do nenê que nasceu no dia tal, a tantas horas, em tal lugar, de fulana de tal.

Mas dizem novamente os entendidos que as células de uma pessoa morrem e são substituídas por outras dentro de determinados períodos (relativamente curtos) de tempo. Assim sendo, ainda que eu tenha a mesma impressão digital do nenê Eduardo Oscar que nasceu em Lucélia, no dia 7 de Setembro de 1943, às 21h45, na Rua Amazonas s/n, de Edith de Campos, então já renomeada Edith de Campos Chaves (sendo Oscar Chaves o pai presumido), as células que aquele rechonchudo bebê tinha, há quase 77 anos, já morreram todas e foram substituídas por outras – e isso muito mais de uma vez. Por algum milagre biológico, a impressão digital continuou a mesma, acredito, mas, do ponto de vista físico e biológico, nada que aquele nenê tinha permanece hoje em mim…

Atualmente a coisa fica ainda mais complicada. Algumas pessoas trocam o seu coração pelo de outra pessoa; ou outros órgãos seus… Nada impede que uma pessoa, hoje, receba múltiplos transplantes de órgãos de uma mesma outra pessoa. No futuro, pode ser possível até mesmo transplantar o cérebro de uma pessoa para outra (como Robert Heinlein já previu em I Will Fear No Evil, Não Temerei Mal Algum, em Português, livro que recomendo sem reservas no contexto desta discussão). Quando isso acontecer, se x recebe o transplante do cérebro, do coração, dos rins, e saiba Deus lá de mais o que, de y, a pessoa resultante será x ou y – ou será uma mescla das duas? São os tribunais que vão resolver se ela continua x, ou y, ou passa a ser z? (Que as leis e os tribunais vão ter de enfrentar essa questão mais cedo do que se pensa, não tenho dúvida.)

A possibilidade real de transplantes de cérebro levanta questões importantes, porque se acredita que o cérebro é a base física e biológica da memória… e a memória parece ser um componente essencial de nossa identidade pessoal. Aqui passamos do plano tipicamente biológico para o plano psicológico, ou, para os mais renitentes, biopsicológico…

Na verdade, John Locke, o grande filósofo britânico do século 17 (que, na minha opinião, é o segundo maior filósofo britânico de todos os tempos, e, portanto, da história, perdendo apenas para David Hume, meu santo padroeiro, mas ganhando de Bertrand Russell), uma vez defendeu a tese (em seu livro Essays Concerning Human Understanding) que a memória é o ÚNICO critério definidor de nossa identidade pessoal. Em um de seus famosos “experimentos mentais”, ou thought experiments, que ele gostava muito de fazer, ele postulou que se, num dado dia, um príncipe e um sapateiro acordassem com suas memórias totalmente permutadas, um teria se tornado o outro (e vice-versa): eles haveriam, entre si, trocado de identidade pessoal. Entre outras mudanças, a pessoa que estivesse ocupando o corpo do (até ali) sapateiro passaria a estar apaixonado pela princesa (ou por quem quer que fosse que o príncipe estivesse apaixonado), e a pessoa que estivesse ocupando o corpo do (até ali) príncipe passaria a estar apaixonado pela mulher do sapateiro (ou por quem quer que fosse que o sapateiro estivesse apaixonado) — assumindo que ambos estivessem apaixonados por alguém.

Ou seja, para Locke, nossa identidade pessoal nada tem que ver com física ou biologia: ela é definida por fatores puramente mentais (que é como ele via a memória). Ou seja: cai na província da psicologia ou (como Locke preferia) da filosofia, pois a psicologia não estava ainda emancipada no século 17: era parte da filosofia.

Lembro-me, neste contexto, de um filme, de 1991, com Harrison Ford, que tem o título original de Regarding Henry, em que Ford era um advogado mau caráter e muito chato. Entre outras coisas, ele estava tendo um caso com a secretária. Sem que ele soubesse, a mulher dele também havia optado por encontrar uma companhia além da dele, e menos cansativa. Um dia ele recebeu um tiro na cabeça durante um assalto e miraculosamente sobreviveu. Mas perdeu a memória por completo: não se lembrava nem de quem era – e, num toque de realismo do filme, teve de reaprender até mesmo a andar, a falar e a funcionar normalmente como um ser humano. A tese do filme é a de que ele, na verdade, virou outra pessoa: com todas as suas memórias apagadas, ele pouco a pouco se desenvolveu novamente como pessoa, e se tornou alguém de excelente caráter, legal, interessante, caseiro, por quem a mulher voltou a se apaixonar… [Vide, a esse respeito, os dados do filme no site da International Movie DataBase,  empresa que hoje pertence ao grupo Amazon, e que está disponível no URL http://www.imdb.com/title/tt0102768/%5D.

No contexto, vide também o filme brasileiro Se eu fosse você, de 2006, em que os personagens – Tony Ramos e Glória Pires – trocam de identidade quando a mente de um passa a ocupar o corpo do outro, e vice-versa – ou seria o oposto: quando o corpo de um se apropria da mente do outro, e vice-versa. Curiosa e significativamente, a sinopse do filme no International Movie Data Base, afirma que os dois “trocaram de corpos” – “switched bodies”. No filme um dos personagens pergunta: se eu me jogar da janela, quem vai morrer, eu ou você? [Vide http://www.imdb.com/title/tt0448927/%5D. Depois do primeiro, saiu, Se eu fosse você 2. [Vide, para a seqüência, http://www.imdb.com/title/tt1099227/%5D.

É verdade que, como sugere Heinlein (com base no que diz a maioria dos cientistas), nossa memória tem no cérebro a sua base física e biológica – e, quiçá, como ele próprio sugere em seu famoso romance, até mesmo o restante de nosso sistema nervoso tenha algum papel nisso… Ele não consegue acreditar na existência de uma memória sem alguma base física e biológica. Mas deixando de lado essa controvérsia científica ou filosófica, a sugestão de Locke parece fazer muito sentido: eu sou quem eu me lembro de ter sido… Ou, como prefere o Rubem Alves, eu sou o que fui… ou eu sou quem eu fui… ou eu sou quem eu me lembro ter sido…

Exceto no caso de alguns dinossauros mentais, que preferem morrer e se fossilizar a mudar, nossas ideias mudam mais rapidamente que as células do nosso corpo… O grande desafio, como os filósofos gregos já sabiam, é descobrir a continuidade que subjaz à mudança… E a continuidade, Locke descobriu, é dada, no caso da identidade pessoal, pela memória! Quando a memória falta de todo, perdemos a continuidade, e passamos a ser outro, como no caso do filme de Harrison Ford.

Voltei a pensar sobre essas coisas (sobre as quais penso há muito tempo e até mesmo já escrevi bastante, como já disse) porque, de um tempo para cá, acho que desde que eu passei viver com a Paloma, em 2008, muita gente tem me dito que eu mudei bastante – talvez até demais! – e quer saber quem eu sou hoje: serei eu quem agora pareço ser ou seria aquele que antes era o meu eu real? Em suma: há continuidade por baixo da mudança, ou eu sou um caso de mudança total de personalidade, que deveria tirar um outro RG, apesar de ter a mesma impressão digital (suponho)?

Pablo Neruda confessou que viveu. Aliás, o título da autobiografia dele é Confesso que Vivi. Eu confesso, sem nenhuma vergonha, que mudei – na realidade, que ainda estou mudando. Porém, a questão de 64 mil dólares é: aquele que eu sou agora é o que realmente sou, e é o mesmo eu que eu era, ou será que meu eu real é aquele que eu antes era, e que agora estou traindo? Estaria eu cometendo auto traição comigo mesmo? Uma auto traição a mim mesmo, como dizem alguns? Uma auto traição a si mesmo, como dizem outros, piormente formados no domínio da língua?

Falando do que dizem os outros, durma-se com um barulho desses… A questão é difícil. Confesso que se eu não fosse um cara bastante opinionado, com convicções razoavelmente firmes, eu estaria passando no momento por uma enorme crise de identidade — semelhante à da velhinha da PRK-30. Mas, como sou teimoso, persisto em acreditar, mesmo quando confrontado com evidência em contrário, que eu continuo eu mesmo. Como disse YHWH no passado, eu sou o que sou, mesmo que o que eu verdadeiramente sou seja uma “metamorfose ambulante”… Sou o que sou, a despeito de evidências ao contrário. E acabou. Ponto final. Punto y basta. Quem quiser discordar, que discorde – mas eu não posso discordar de mim mesmo, sem ficar meio louco…

E estou certo de que continuo o mesmo Eduardo Chaves que eu era porque, afinal de contas, apesar das mudanças que eu não nego nem contesto, mas francamente admito, eu me lembro de que sou o mesmo que no passado fui. Eu me lembro de que vivia, desde minha mais tenra idade, com Oscar e Edith Chaves, e os chamava de pais… Eu me lembro de que meus pais tiveram outros filhos e que, portanto, eu tive – e tenho – irmãos: Flávio, primeiro, depois Priscila, depois Eliane. Eu me lembro de que vivi em Marialva e Maringá no Paraná, nos anos 40 e no começo dos anos 50, e de que me mudei para Santo André no começo de 1952. Eu me lembro de que estudei no Grupo Escolar “Prof José Augusto de Azevedo Antunes”, na Rua Senador Flaquer, em Santo André, e de que tive como professoras, no Primário, de 1952 a 1955, Donas Maria José Ferraz de Alvarenga, Judith Ramos Milanezzi, Elídia Borges Duarte e Mercedes da Silveira Lopes (depois Mercedes Lopes Ferraz, quando ela se casou). Lembro-me de que, junto com o quarto ano Primário, fiz dois meses de Curso de Admissão com Carla Strambio (hoje minha colega tradutora juramentada). Lembro-me de que entrei no Colégio Estadual e Escola Normal “Dr Américo Brasiliense” em 1956 e lá fiquei até 1959, quando recebi o diploma (ou certificado, sei lá) do Ginásio, no Cine Tangará, em Santo André (e o Pedro Cia foi o paraninfo). Lembro-me de que, no primeiro ano do Ginásio, tive como colegas de classe  Zuleica de Castro Coimbra (número 41 na chamada), Teresa Drago Romano (número 39), Margarida Waldraud Schmidt, Roberto Yamaoka, Antonio Carlos de Carvalho Aquino (este o número 1 — eu era o 5) — e que este último, meu amigo também de igreja, costumava dizer, nos domingos, que, depois da Escola Dominical, iria almoçar com a família em um restaurant — e ele o dizia assim, com a pronúncia francesa: restorrã…

Não vou entediar o leitor com todos os fatos de que me lembro – e vou me calar sobre as pessoas que amei, ou sobre aquelas que quis ver mortas… Mas eu sou o que sou e o que sou é o que fui, ou a pequena parcela daquilo que eu me lembro de ter sido… Eu sou aquilo que (ainda) me lembro de ter sido… Admito que a memória é falha e é seletiva (deixa coisas de fora), e que às vezes é também construtiva e inventiva (traz pra dentro  do seu acervo coisas que nunca aconteceram). Foi Mark Twain (se bem me lembro…) que disse, quando já velho, que é mentira que a nossa memória fica mais fraca quando a gente envelhece, porque a memória dele, já velho, era tão boa, mas tão boa, que ele conseguia se lembrar até de coisas que nunca aconteceram…

De qualquer forma, mesmo admitindo que, excepcionalmente, deletamos uns fatos e inventamos outros, nossa memória é que nos faz ser, hoje, o que somos. Dando por pressuposto que a maior parte de nossas memórias é verídica, nós somos, hoje, o que somos, porque fomos o que fomos no passado – e nos lembramos disso!

Assim, eu sou quem eu sou hoje, apesar de todas as mudanças, porque me lembro de que, em determinados momentos, quis mudar… e, como acontece agora, mudei e continuo mudando – e me lembro também de que, em outros momentos, quis mudar e, por alguma razão, não mudei… E me lembro ainda de que, em relação a determinados aspectos (os físicos e biológicos, por exemplo), mudei sem necessariamente querer mudar…

Se eu não me lembrasse desses fatos, poderia fazer sentido afirmar que eu mudei recentemente de identidade (ou de personalidade). Mas eu me lembro do que eu era e sei o que eu sou, e sei que pelo menos as mudanças recentes foram desejadas. E estou contente com o que hoje sou, ou estou me tornando – ainda que possa haver quem prefira que eu não tivesse mudado…

Desculpem-me os leitores se o meu post pode, em alguns aspectos, parecer enigmático ou mesmo ininteligível. Garanto-lhes que não é enigmático e que faz bastante sentido. Podem crer. Eu o entendo inteiramente…

3. A identidade que eu perdi no esquecimento…

Voltemos agora à primeira seção deste artigo e ao que ali disse Donald Miller (já ia chamando o homem de David Miller…). Se é verdade que a gente se lembra apenas de uma ínfima fração daquilo que a gente viveu, e que o resto das nossas vivências fica perdido num esquecimento que nem um bom psicanalista consegue recuperar, então a nossa identidade é construída em cima de fundamentos muito frágeis.

Se nossa identidade pessoal depende de nossa memória, e aquilo que a gente retém na memória é uma ínfima parcela das experiências que a gente viveu, então a nossa identidade pessoal se sustenta em bases quase ridículas (se não totalmente risíveis…). Isso quer dizer que fui arrogante demais ao dizer que sou o que sou, porque sou o que fui, posto que a maior parte do que eu fui eu não faz parte da minha memória…

Cabe perguntar, nesse contexto, se o eu que eu poderia ter sido, se me lembrasse de mais do que eu vivi do que eu de fato me lembro, seria muito diferente do eu que eu de fato sou hoje, eu esse construído em cima daquilo que eu hoje sou capaz de lembrar das vivências que tive… Será que o meu eu perdido no esquecimento teria sido mais interessante, atraente, cativante, desejável, do que o modesto eu que eu me tornei?

Ah, meu Deus, que dúvida cruel… E se eu hoje fosse um eu que se perdeu no esquecimento, em vez do eu que se preservou em minhas memórias (as verídicas e as falsídicas), será que eu seria mais rico, mais poderoso, mais famoso, mais feliz do que eu hoje sou?

Dizer quem há de?

[Parte do que está acima, na segunda seção, foi escrito em São Paulo, em 22 de Dezembro de 2008. O resto foi escrito em Salto, hoje, 25 de Junho de 2020, dia do aniversário de 47 anos de minha filha mais velha, Andrea. E eu me lembro muito bem do dia 25.06.1973, em Hayward/Castro Valley, dia em que, além de ela nascer, John Dean, assessor especial de Richard Nixon, testemunhou diante da CPI do Senado Americano que investigava o escândalo do Watergate e selou o destino de seu chefe ao revelar que as conversas no Salão Oval da Casa Branca eram todas gravadas automaticamente…).]



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