(PDF) História da Psicologia - Rumos e percursos | Rafaela Luiz - Academia.edu
organizadores A n a M ari a Jac—- V i l el a A rt h u r A rru d a Leal Ferrei ra Fran ci sco P o rt u gal E D I T O R A 1 Co l e • ‹ o En s i n o d a Ps i co l o g i a Rumos e percursos 2 Organização Ana Maria Jacó-Vilela Arthur Arruda Leal Ferreira Francisco Teixeira Portugal História da Psicologia: rumos e percursos Rio de Janeiro 2005 3 © Copyrigth 2005 by autores Coleção ENSINO DA PSICOLOGIA Coordenação: Francisco Teixeira Portugal Tempo de envelhecer: percursos e dimensões psicossociais Psicologia Jurídica no Brasil História da psicologia: rumos e percursos Capa Sphaera Design Revisão Tereza da Rocha CIP-Brasil — Catalogação na fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. H58 História da psicologia : rumos e percursos / organização Ana Maria Jacó-Vilela, Arthur Arruda Leal Ferreira, Francisco Teixeira Portugal. - Rio de Janeiro : Nau Ed., 2006 (Ensino da psicologia ; 3) Inclui bibliografia ISBN 85-85936-63-0 1. Psicologia - História. 2. Psicologia. I. Jacó-Vilela, Ana Maria, 1955-. II. Ferreira, Arthur Arruda Leal, 1965-. III. Portugal, Francisco Teixeira, 1964-. IV. Série. 06-2569. 17.07.06 20.07.06 CDD 150.9 CDU 159.9(09) 015372 Editora Trarepa Ltda Av. Nossa Senhora de Fátima, 155 Engº Paulo de Frontin — RJ — CEP 26650-000 Telefax: (21) 2552 9609 • email: contato@naueditora.com.br • www.naueditora.com.br Não encontrando este livro na livraria, pedir via fax ou email. Obra impressa na Gráfica Vozes em agosto de 2006 Fotolitos fornecidos pela editora • Papel cartão supremo 250 g/m2 para4a capa • Papel off set 70 g/m2 para o miolo Sumário Prefácio .................................................................................................. 9 Luís Claudio Figueiredo Apresentação ......................................................................................... 11 Ana Maria Jacó-Vilela, Arthur Arruda Leal Ferreira e Francisco Teixeira Portugal PARTE I - O NASCIMENTO DA PSICOLOGIA 1. O múltiplo surgimento da Psicologia .................................................... 13 Arthur Arruda Leal Ferreira 2. “A mais útil de todas as ciências”. Conigurações da psicologia desde o Renascimento tardio até o im do Iluminismo..................................... 47 Fernando Vidal 3. Idéias psicológicas na cultura luso-brasileira, do século XVI ao século XVIII .... 75 Marina Massimi PARTE II – OS NOVOS CRITÉRIOS DE CIENTIFICIDADE NO SÉCULO XIX 4. A psicologia no recurso aos vetos kantianos............................................ 85 Arthur Arruda Leal Ferreira 5. Wilhelm Wundt e o estudo da experiência interna ................................. 93 Saulo de Freitas Araujo 6. Comparação e genealogia na psicologia inglesa no século XIX............... 105 Francisco Teixeira Portugal 7. O funcionalismo em seus primórdios: a psicologia a serviço da adaptação .... 121 Arthur Arruda Leal Ferreira e Guilherme Gutman 5 8. Fios, seduções e olhares: os primórdios “psi” nas terapias para corpos e mentes perturbados ....................................................................... 141 Denise Barcellos da Rocha Monteiro e Ana Maria Jacó-Vilela 9. O processo de institucionalização do saber psicológico no Brasil do século XIX. 159 Marina Massimi PARTE III A PSICOLOGIA NO SÉCULO XX: UMA DISPERSÃO DE SABERES E PRÁTICAS 10. A relexologia soviética: Séchenov, Pavlov e Bechterew......................... 169 Eustáquio José de Souza Júnior, Manuela Gomes Lopes e Sérgio Dias Cirino 11. O behaviorismo: uma proposta de estudo do comportamento ................ 179 Carlos Renato Xavier Cançado, Paulo Guerra Soares e Sérgio Dias Cirino 12. As bases teóricas e ilosóicas das abordagens cognitivo-comportamentais .... 195 Eliane M. O. Falcone 13. A psicologia no contexto das ciências cognitivas ................................. 215 Virgínia Kastrup 14. As ciências cognitivas no Brasil ....................................................... 239 Adriana Benevides Soares 15. O funcionalismo europeu: Claparède e Piaget em Genebra, e as repercussões de suas idéias no Brasil................................................................. 243 Regina Helena de Freitas Campos e Denise Maria Nepomuceno 16. Medir, classiicar e diferenciar ......................................................... 265 Alexandre Carvalho Castro, Alexandre Grillo de Castro, Silvia Carvalho Josephson e Ana Maria Jacó-Vilela 17. A psicologia comparada.................................................................. 291 Maria Emilia Yamamoto 18. O gestaltismo e o retorno à experiência psicológica ............................. 301 Marcia Moraes 6 19. As inluências da fenomenologia e do existencialismo na Psicologia ...... 319 Roberto Novaes de Sá 20. A psicologia humanista .................................................................. 339 Rogerio Christiano Buys 21. A psicologia soviética: Vigotsky, Rubinstein e as tendências que a caraterizaram até o im dos anos 1980........................................... 349 Fernando Luis González Rey 22. Luzes e sombras. Freud e o advento da psicanálise............................. 371 Inês Loureiro 23. Aspectos históricos da psicanálise pós-freudiana ................................ 387 Christian Ingo Lenz Dunker 24. O movimento psicanalítico brasileiro ................................................ 413 Jane Araujo Russo 25. Interioridade, intimidade: o discurso psicológico na literatura dos séculos XIX e XX .................................................................. 425 Idilva Germano PARTE IV – A PSICOLOGIA EM DIÁLOGO COM O SOCIAL 26. A invenção das massas: a psicologia entre o controle e a resistência . 441 Regina Duarte Benevides de Barros e Silvia Carvalho Josephson 27. Psicologia social em George Herbert Mead, na Escola de Chicago e em Erving Goffman........................................................................... 463 Francisco Teixeira Portugal 28. Escola de Frankfurt: unindo materialismo e psicanálise na construção de uma psicologia social marginal ...................................................... 473 Jorge Coelho Soares 29. A psicologia no Brasil e suas relações com o marxismo ....................... 503 Ana Mercês Bahia Bock e Odair Furtado 7 30. “Sejamos realistas, tentemos o impossível.” Desencaminhando a psicologia através da análise institucional ...................................................... 515 Heliana de Barros Conde Rodrigues 31. A psicologia social na atualidade..................................................... 565 Mary Jane Paris Spink e Peter Kevin Spink Sobre os autores ................................................................................... 587 Índice onomástico................................................................................. 591 8 Prefácio A história da psicologia, a rigor, não existe, ao menos no singular. Existem, sim, inúmeras maneiras de conceber o campo do “psicológico” e outras tantas maneiras de se inserir nesse campo, intervindo nele, praticando “psicologia”. Entre as maneiras de pensar o “psicológico” há mesmo quem pretenda descartar-se desta denominação e dar preferência a outros conceitos, como “conduta” ou “comportamento”. Entre os que se situam no campo do psicológico, há também os que pretendem fazer outra coisa que não “psicologia” como, por exemplo, “psicanálise”. Reunir essa ampla gama de perspectivas não é tarefa fácil e pode ser, inclusive, considerada impossível: inevitavelmente, em qualquer exposição desse conjunto algo caótico, qualquer aparência de unidade será conquistada com base em vieses e preferências pessoais, dando-se relevo a certos elementos, deixando outros na sombra ou mesmo de fora. Além dessa variedade, as histórias das psicologias podem focalizar os conceitos e as teorias ou podem se dedicar às práticas psicológicas. Mesmo sabendo o quanto esses dois pólos podem estar entrelaçados, não resiste a uma visão crítica da área a suposição de que teorias e práticas correspondam-se umas às outras de forma muito simples. Isto é verdadeiro em qualquer área de saber e mais ainda na nossa. Podem ocorrer imensas desproporções entre os avanços práticos, por exemplo, e as conquistas da relexão teorizantes, e vice-versa. Finalmente, seja no campo das idéias psicológicas ou ains, seja no campo das práticas, técnicas e instrumentos psicológicos, e principalmente neste segundo caso, a determinação histórico-social e a incidência na vida da cultura e da coletividade precisam ser consideradas, mesmo que se admitam determinações internas a cada um desses sistemas. Ou seja, podemos, certamente, contar histórias “internas” das psicologias – enfatizando as relações entre conceitos, entre conceitos e técnicas etc. –, mas também podemos e devemos investir em histórias “externas” das psicologias, em que idéias e práticas sejam estudadas à luz da história social e cultural. Conclusão: não há, como dissemos na abertura, uma história das psicologias, mas inúmeras histórias e modos de narrá-las. 9 Não obstante, é indispensável incluir no processo de formação do psicólogo essa dimensão histórica com toda a complexidade acima mencionada. Aliás, há um último elemento que também não pode ser esquecido: além da inserção social das psicologias em suas origens, o processo de formação deve levar em conta a dimensão social e histórica das difusões: não é o mesmo entrar em contato com a psicanálise, por exemplo, no Brasil urbano e na Argentina e fazer esse mesmo contato em certas regiões em que a psicanálise não penetrou nem, muito menos, passou a integrar uma certa camada da cultura urbana de massas. Nesta medida, é também preciso levar em conta os processos de difusão que condicionam, para o bem ou para o mal, as possibilidades de encontro do psicólogo em formação com as teorias e os sistemas que lhe são apresentados. Muitos estudantes, se não todos, entram nos cursos de psicologia com visões bastante estreitas e preconceituosas da psicologia, “amando” antecipadamente certas tendências e “odiando” outras, e um dos objetivos das disciplinas formadoras – como “História da Psicologia” – será o de enfrentar tais preconceitos. Novamente nos deparamos aqui com o paradoxo: não há uma história da psicologia, mas é indispensável que se apresente ao psicólogo em formação a dimensão histórica dessa área de saberes sem reduzir sua complexa e intrincada tessitura. A solução encontrada nesta coletânea foi o recurso a uma pluralidade de estudos de diversos autores com formações e visões distintas, todos, porém ao que parece, dispostos a enfrentar as agruras da convivência com seus pares diferenciados. Não se pode esperar deste volume uma falsa unidade, uma uniicação falsiicada pela imposição de trilhos interpretativos excludentes. É toda a psicologia contemporânea – e, em alguns capítulos, seus antecedentes modernos – que se fazem presentes a partir de muitos pontos de vista. O que falta em unidade sobra em riqueza, tornando este livro único em seu gênero na literatura nacional e internacional. Aqui o leitor encontrará capítulos versando sobre os mais diferentes temas e segundo os mais diferentes ângulos de abordagem com as mais diferentes metodologias de interpretação. A “unidade”, enim, é garantida pela… isenta apresentação da diversidade, o que parece ter sido o objetivo dos organizadores, de resto, muito bem-sucedidos na seleção de temas e autores. Este livro terá, certamente, um lugar de destaque nos cursos de psicologia e poderá funcionar, dada a vastidão da bibliograia citada, como uma fonte inesgotável de novos estudos e aprofundamentos. Luís Claudio Figueiredo 10 Apresentação É com imensa satisfação que trazemos a público este livro de história da psicologia. Voltado para o estudante de graduação – de psicologia e de áreas ains -, ele objetiva estimular o interesse por este tema, supondo que, com isto, favorecerá a disposição de contextualização histórica dos saberes e práticas psicológicos. Assim, procura apresentar de maneira concisa e didática, sem, contudo, utilizar de simpliicações empobrecedoras, uma visão da história da psicologia diferente daquela encontrada na literatura mais conhecida no Brasil. Acrescenta ainda um aspecto inexistente nessa outra literatura: a história da psicologia aqui narrada não se restringe àquela que ocorreu na Europa e nos Estados Unidos, a ela se acrescenta, sempre, as contingências do saber psicológico em terras brasileiras. Estes pontos levam a outro aspecto relevante quanto à composição do livro: embora conste de capítulos escritos por diferentes autores, procuramos evitar o caráter de “coletânea” por meio de uma escolha criteriosa em que pessoas de competência reconhecida em seu campo de conhecimento e que compartilham conosco o entendimento do conhecimento cientíico como historicamente construído foram convidadas a contribuir para o projeto. Foi possível assim obter um livro com alta coesão interna, pois os capítulos, ao narrarem os diversos caminhos percorridos pela psicologia ao longo dos últimos séculos, apresentam não só os autores, os conceitos, os temas e seus desenvolvimentos, mas também as condições – sociais, econômicas, culturais – que possibilitaram a emergência, a ramiicação, a institucionalização de determinada(s) alternativa(s) de construção da psicologia enquanto ciência e prática. O livro se divide em quatro partes. A parte I, intitulada “O nascimento da psicologia”, trata não só da invenção de alguns conceitos-chave para essa disciplina, como também das condições que tornaram possível a psicologia na Europa a partir do século XVIII e – algo inexistente em livros do gênero – as idéias psicológicas que loresceram no Brasil colônia. A parte II, “Os novos critérios de cientiicidade no século XIX”, por sua vez, apresenta o famoso “veto kantiano” àquela psicologia exposta na parte I, o projeto wundtiano da psicologia como ciência da experiência interna na 11 Alemanha, a psicologia comparada e diferencial na Inglaterra, o funcionalismo norte-americano e a psicopatologia francesa. Junto a esta análise dos primeiros caminhos oiciais da psicologia no inal do século XIX, há uma apresentação do que se produziu em terras brasileiras no mesmo período, mesmo que isso não tenha se dado de forma tão institucionalizada como no exterior. A parte III apresenta “A psicologia no século XX − uma dispersão de saberes e práticas”. É a maior parte do livro, praticamente a metade, envolvendo dezesseis de seus trinta e um capítulos, pois representa o momento de disseminação e multiplicação da psicologia nas suas mais diversas orientações, reverberando a multiplicidade que já se insinuava no século XIX. E, como mais uma novidade para o leitor, um capítulo que articula os discursos psicológico e literário nos séculos XIX e XX. Como marca do livro, em todos estes capítulos estão presentes os desdobramentos destas diversas orientações no Brasil. A última parte, “A psicologia em diálogo com o social” indica uma opção nossa, organizadores deste livro, de apontar para a construção social do homem. Esta parte trata, pois, de temas muito mais raramente apresentados em livros de história da psicologia e, também, nem sempre presente nas grades curriculares dos cursos de graduação, como a psicologia das massas, o pensamento das Escolas de Frankfurt e de Chicago, o movimento institucionalista, a presença do pensamento marxista na psicologia brasileira. Fechamos o livro com um capítulo que procura mapear a riqueza da psicologia social na atualidade, nas suas mais variadas orientações. Contudo, a marca mais decisiva deste trabalho não se encontra em nenhum capítulo ou parte especíica, mas em seu conjunto. A estrutura do livro e a narrativa construída por cada autor constitui a explicitação de suas convicções, mais um aspecto diferencial desse livro em relação à literatura especializada. Ao não assumirmos um modo supostamente neutro de “fazer ciência”, pretendemos ressaltar que a emergência, a constituição e a institucionalização da psicologia não decorre de um desenvolvimento linear, contínuo, necessário e neutro do conhecimento sobre o ser humano, mas implica opções, escolhas e oportunidades advindas de condições socioculturais, políticas, econômicas, bem como interesses partilhados por pequenos e grandes grupos. É assim que se faz a vida, é assim que se faz ciência. Os organizadores 12 Capítulo 1 O múltiplo surgimento da Psicologia Arthur Arruda Leal Ferreira Discussão histórica No começo de qualquer trabalho histórico, impõe-se uma questão inicial: seriam as transformações do objeto estudado produto da evolução gradual e contínua de uma experiência original, ou seriam o resultado de múltiplas combinações casuais e inesperadas? É desta forma que o ilósofo e historiador Michel Foucault (1971) nos coloca perante uma escolha de que nenhum historiador pode se omitir. Perguntamos então: como esta questão se conigura na história da psicologia? É quase um consenso entre os historiadores da psicologia o estabelecimento do século XIX como marco institucional do surgimento dessa disciplina. Mas o historiador não se satisfaz com inaugurações oiciais, sempre se pergunta sobre que experiências, práticas e saberes estariam condicionando essa fundação. Uma boa parte dos textos sobre história da psicologia aponta para uma origem remota, como se a psicologia pudesse encontrar nessa sua fundação no século XIX ecos de uma experiência e de uma curiosidade bem anteriores. É desta forma que podemos encontrar em trabalhos clássicos, como os de Otto Klemm (1933), Gardner Murphy (1960) e George Brett (1963) ou, principalmente, Edwin Boring (1950), as trilhas da história da psicologia se cruzando com os caminhos de uma busca ancestral de conhecimento de si, confundindo-se com a própria história do saber ocidental. Como se, por um sutil insight, tivesse havido no século XIX a decisão de apropriar tais intuições ancestrais por um saber regulado e cientiicamente disciplinado. Daí a clássica frase de Hermann Ebbinghaus: “A Psicologia tem um longo passado, mas uma curta história” (Vidal, 2000). Contudo, uma outra forma de pensamento histórico aponta para o surgimento da psicologia a partir da irrupção de condições bem peculiares que 13 teriam surgido de forma singular a partir do século XVI, e que conluiriam para a necessidade do conhecimento de si, da busca de uma natureza na individualidade e na interioridade humanas. Muito mais do que uma tomada de consciência, teria se produzido uma nova experiência da relação consigo e com os demais, em que um conhecimento disciplinado e naturalizado teria se imposto como uma necessidade. Dentro desta perspectiva, a hipótese adotada neste livro é que em nossa modernidade (a partir do século XVI) teriam irrompido diversas experiências que, em seu emaranhado, conduziram a uma multiplicidade de orientações no campo atual da psicologia. Uma segunda hipótese derivada deste ponto é que a multiplicidade da psicologia não é o produto de um descuido cientíico ou de uma imaturidade do saber psicológico, mas o eco dessa profusão de experiências, e do modo como elas se articulam na construção de um solo psicológico. Portanto, deve-se perguntar: que experiências são essas que surgem na modernidade e constituem o solo fragmentado da psicologia? De modo corrente, se faz a história da psicologia (e das ciências) de duas formas: 1) ou se busca demarcar as condições da psicologia através de uma série de transformações intelectuais, conceituais ou metodológicas (a chamada abordagem internalista); 2) ou se busca estabelecer as condições da psicologia a partir de uma série de transformações culturais, sociais, econômicas e políticas (a chamada abordagem externalista). Compreendemos que, para se fazer a história da psicologia, as duas formas são necessárias, pois, por um lado, a psicologia, ainda que calcada em conceitos e práticas cientíicas, faz parte de uma rede de interesses (dos próprios pesquisadores, do público e das agências de fomento) e de práticas sociais. E, por outro lado, a forma pela qual os interesses e práticas sociais se ordenam nas ciências (e na psicologia em particular) é bem especíica, sendo articulados a projetos cientíicos. Portanto, as transformações nos planos interno e externo de um saber não podem ser vistas de forma isolada. Consideremos então a rede conceitual e de práticas sociais que possibilita a constituição da psicologia como um saber e uma prática singulares. As práticas sociais modernas O conjunto do saber e das práticas psicológicas contemporâneas apresenta algumas experiências constitutivas fundamentais, uma vez que 14 presentes em todas as psicologias. Tais experiências referem-se respectivamente à constituição de um domínio de interioridade relexiva (a nossa subjetividade) e de um campo de singularização valorativa num espaço coletivo (a nossa individualidade). Contudo, a partir dessas experiências surgem outras práticas relevantes, notadamente as que conduzem à distinção entre mente e corpo, e as que produzem a identiicação da loucura a uma doença de ordem mental, além da distinção entre infância e idade adulta enquanto períodos da vida. A constituição de um plano de subjetividade Por subjetividade entende-se a constituição de um plano de interioridade relexiva, em que cada vivência se encontra centrada e ancorada em uma experiência de primeira pessoa, de um “eu”. A história de um plano de interioridade não visa à busca de uma experiência universal no homem, mas à compreensão da constituição dessa experiência, considerada por nós, na atualidade, uma das mais fundamentais. Essa história pode ser contada como um capítulo dentro do domínio do que Foucault (1984) chamou de história das técnicas de si, procurando, pois, desvendar as formas como os indivíduos estabeleciam relações de trato e cuidado consigo desde a Antiguidade pagã. Apresentaremos, então, uma história desse processo, apontando de início alguns momentos em que essa experiência de interioridade não fazia parte da existência dos indivíduos, seguindo na constituição dessa experiência e nas transformações em sua coniguração. A consideração da história das técnicas de si na Antiguidade pagã operaria aqui como uma contraprova da universalidade de nosso modo de subjetivação atual, baseado numa relexividade sobre si em que buscamos desbastar, na densa loresta da nossa vida interior, a cidadela do verdadeiro eu, “o eu de todos os eus”. Contudo, essa busca não fazia o menor sentido na Antiguidade greco-romana. Ainda que possamos nos deparar com a máxima do oráculo de Delfos – “Conhece-te a ti mesmo” –, esta não visa ao conhecimento de nossa intimidade, mas aponta para um respeito à sofrosine, a medida, o controle: o homem deveria saber de seus limites, que não é deus nem animal. Assim, o que impera nesse período é a busca de constituição de uma vida calcada no autogoverno e na justa medida. Nas palavras de Foucault (1984), não há na Antiguidade pagã uma busca de conhecimento de si mesmo (uma hermenêutica de si), mas da constituição de uma vida tão bela quanto uma obra de arte (uma estética da existência). As técnicas de relação consigo não estão calcadas na busca da revelação de um eu, mas na construção de si a partir 15 da verdade e do ensinamento dos grandes mestres. Para Jean-Pierre Vernant (1990), os gregos não possuíam uma experiência generalizada do eu enquanto interioridade individualizada ou personalidade, apesar de esta se manifestar no discurso em primeira pessoa da poesia lírica, e nos feitos de indivíduos como magos e guerreiros. Há, enim, entre os gregos uma interioridade, mas esta não é individualizada, relexiva, ancorada em um eu. Para Vernant, esse “eu” da Antiguidade clássica se assemelha mais a um ele. Por exemplo, quando se fala da alma humana, especialmente nos círculos pitagóricos e platônicos, esta não é a alma de alguém, como aprendemos na tradição cristã, mas uma alma universal. Mais uma alma em mim do que a minha alma. Mesmo quando se fala do conhecimento que essa alma tem das coisas, não há a nossa clássica oposição entre mundo externo e interno, pois conhecer é incorporar os próprios objetos ou a essência destes. A invenção da interioridade individualizada e da hermenêutica como instrumento de verdade só será processada a partir de uma ética cristã, gestada a partir do século II d.C. Aqui começam a ser formados os termos básicos para a constituição do cuidado de si atual, ao menos quanto ao seu objeto e ao seu processo. Segundo Foucault (1984), nesse momento surge a igura do homem santo que se destaca da comunidade a im de buscar Deus no interior de seu verdadeiro eu, tendo para tal que estar atento às armadilhas do demônio. Tratase, nesse mergulho na própria alma, de distinguir os pensamentos de origem divina dos infundidos pelo mal. Esse modo de vida, lentamente produzido no seio da vida religiosa, nos monastérios do Oriente próximo (atuais Síria e Egito), irá se propagar ao longo de todo o tecido social progressivamente até a nossa modernidade no interior das práticas culturais, instituições e hábitos individuais. E com algumas inversões de signos: o próprio eu, impedido de ser cultuado na ética dos primeiros cristãos, tendo em vista a puriicação do indivíduo, passará a se tornar uma inalidade em si na modernidade, conigurando-se como a nossa riqueza mais íntima e preciosa. Na passagem para o cuidado de si moderno há, pois, uma mudança de inalidade: não se busca mais uma puriicação da alma para atingir Deus, mas uma pura airmação de si. E também, o exame de si, outrora exercido através de instrumentos religiosos e jurídicos (como a conissão), cede aos aparatos cientíicos modernos (a anamnese, a entrevista clínica, os testes mentais). Portanto, mudam igualmente as técnicas desse novo cuidado de si. O que permite a passagem desse cuidado da Antiguidade cristã até as suas formas modernas? Podemos dizer que, a partir da modernidade, passaram a existir diversas formas de relação consigo, além da religiosa, que 16 nos convidam a um exame da nossa vida interior. Uma delas é a constituição do tema da sexualidade, tão caro a nós nos dias de hoje, como bem mostra Foucault em A vontade de saber, 1977. Outra prática relevante para o adensamento de uma região de subjetividade em nossa existência é a separação entre os plano público e privado, enquanto produto da constituição dos Estados modernos. Ela pode ser acompanhada no surgimento das sociedades de corte e dos seus rituais de etiqueta, como relata Norbert Elias (1990), e mesmo no pensamento dos principais pensadores do Estado moderno, como demonstra Figueiredo (1992). Para entendermos como essa experiência que cinde a nossa existência entre o plano do foro íntimo privado e o das representações públicas, tão natural à nossa vida atual, pode ter sido diferente, basta considerarmos que muitos dos nossos pensamentos e gestos mais íntimos reservados se desenrolavam na naturalidade da vida cotidiana. Para Elias (1990), um processo de expurgo e ritualização desses nossos atos e gestos começa a se conigurar na formação das sociedades de corte, que passam a ser coniguradas dentro do processo de centralização do poder estatal. É no bojo das sociedades de corte que todo um conjunto de etiquetas e de representações públicas vai se constituindo, relegando ao plano íntimo uma série de atos e pensamentos. Esse processo vai se disseminando paulatinamente para diversos setores sociais, inicialmente estranhos à sociedade de corte, como os próprios grupos burgueses e urbanos. Paralela à constituição desse conjunto de dispositivos comportamentais, surge a questão ilosóica da relação do poder central com as liberdades individuais. Isto conduziria à partilha entre uma intimidade livre a ser cultivada em contraposição a uma obediência pública ao poder monárquico. Em todas essas formas de pensamento político – as absolutistas, as liberais ou as iluministas –, a função primordial do Estado seria a preservação das leis e dos direitos naturais, garantidos pela ordem pública. A única distinção que se pode fazer, segundo Figueiredo (1992), é que no pensamento liberal, bem como no iluminista, há um investimento maior do plano privado e íntimo contra os excessos do poder central e de suas representações públicas. Contudo, a instalação do poder central nos Estados modernos se fez de forma diversa nas diferentes nações européias, consagrando diversos dispositivos de exercício da vida privada. Assim, na Inglaterra inventaram-se as cartas e o romance intimista como espaço de expressão de nossas experiências interiores, e o jardim inglês, o turismo, os pubs, cafés, os clubes masculinos como locais de exercício da nossa vida privada. Na França destaca-se o próprio 17 movimento iluminista, além da literatura libertina e das sociedades secretas como a maçonaria. Nas nações de língua alemã, operou-se a airmação de uma cultura alemã contra os requintes civilizatórios importados pela nobreza das cortes. Isto está presente não apenas no romantismo, mas na literatura psicológica produzida ao longo do século XVIII por autores como Johan Heinrich Jung (1740-1817), Johann Caspar Lavater (1741-1801), Karl Philipp Moritz (1734-1815) e Franz Anton Mesmer (1734-1815). O primeiro foi autor do romance autobiográico A juventude de Heinrich Stilling – História verdadeira, onde buscava dar publicidade às suas experiências privadas. Lavater, também autor de romance autobiográico, foi o criador da isiognomia enquanto saber que relaciona características anatômicas às espirituais. Moritz, por seu lado, foi fundador de uma revista de psicologia experencial, Conhece-te a ti mesmo, onde eram publicados diversos relatos de experiências individuais, como as suas, presentes em uma autobiograia romanceada. Por im, Mesmer, médico da corte austríaca, foi o inventor do magnetismo animal enquanto técnica de inluência física, apta a dar conta das mais diversas enfermidades. Tratado como charlatão, no século XIX suas técnicas serão retomadas como mero processo de sugestão psicológica e base da hipnose. Os dois primeiros autores serão relevantes para a constituição da psicologia no século XVIII (capítulo 2). O terceiro caso será fundamental para a elaboração da experiência psicopatológica no século XIX (capítulo 8). Alguns autores, no entanto, vislumbram um alcance maior dessa experiência moderna no campo psicológico. Peter Berger (1985) vê no aprofundamento dessa distinção entre os domínios público e privado a condição fundamental para o surgimento dos saberes psicológicos. É a mesma postura de Figueiredo (1992), ainda que este entenda que para isso tenha sido necessária uma crise dessa subjetividade interiorizada, criando uma região de completa ignorância e desconhecimento para o sujeito. De modo mais seguro, podemos dizer que essa história reforça a da constituição de um plano interno de subjetividade, crucial para a constituição do campo psicológico. Mesmo que, em nome da cientiicidade, orientações como a behaviorista (capítulo 11) tentem fazer uma psicologia centrada no domínio público. Mas poderíamos destacar na modernidade uma forma especial de cuidado de si, estabelecido pelo tema do conhecimento, que será crucial para as psicologias, desde o século XVIII. Se a experiência de constituição de uma interioridade na Antiguidade cristã visa distinguir a presença do bem e do mal em nós, a partir do século XVII o exame da interioridade tem como 18 meta o acesso à verdade e a fuga das ilusões, alternando-se os ilósofos na atribuição da razão (os RACIONALISTAS) Pode-se falar do RACIONALISMO em três sentidos: ou dos sentidos (os EMPIRISTAS) como psicológico (advogando a superioridade do pensamento via privilegiada do conhecimento. sobre os estados afetivos); metafísico (afirmando a inteligibilidade da realidade); e gnosiológico (referente A questão do conhecimento se impôs no à teoria do conhecimento, em que a fonte dos nossos cenário moderno a partir das incertezas saberes seria oriunda da razão, e não dos sentidos). É neste sentido último que se constitui o racionalismo presentes no século XVI em conseqüência moderno de René Descartes e Gottfried Leibniz. do declínio do modo de vida feudal. Para O EMPIRISMO em suas diversas manifestações comporta isso, certamente, contribuíram diversos um componente psicológico (a suposição de que todo o nosso conhecimento provém dos sentidos) e um fatores como a retomada da vida urbana, gnosiológico (a airmação de que só o conhecimento o incremento do comércio como forma empírico é válido). Estes elementos estão presentes no empirismo moderno de John Locke, Georges Berkeley de produção de riqueza, a constituição e David Hume, constituindo a principal corrente dos Estados modernos, as grandes antagônica ao racionalismo gnosiológico. navegações e a descoberta de novos povos, a invenção da imprensa, a Reforma (e a Contra-reforma) religiosa e, por im, o surgimento da física matemática. O personagem-chave nessa nova abordagem da interioridade é o ilósofo moderno René Descartes (1596-1650). É esse autor que encontra no recurso à própria subjetividade a base para o estabelecimento das novas certezas indubitáveis, e o palco para que se possa distinguir a verdade do erro. Como esse processo de expurgo e puriicação ocorre no cerne de uma interioridade? Em Descartes, a derrota da dúvida se faz nutrindo-se da própria dúvida cética (a certeza de que não há certezas), radicalizando-a, tornando-a hiperbólica, e pondo-a sob o domínio de um suposto gênio maligno apto a fazer com que nos equivoquemos com tudo; é desta forma que esse ilósofo moderno estabelecerá os primeiros pilares de um novo porto seguro do pensamento: Não há, pois, dúvida alguma que sou, se ele (o suposto Gênio Maligno) me engana; e, por mais que me engane, não poderá jamais fazer com que eu nada seja, enquanto eu pensar ser alguma coisa. De sorte que, após ter pensado bastante nisso e ter examinado cuidadosamente todas as coisas, cumpre enim concluir e ter por constante que essa proposição eu sou, eu existo é necessariamente verdadeira todas as vezes que a enuncio em meu espírito. (Descartes, 1972 [1641]: 100) Essa intuição imediata do próprio eu pensante impõe um novo ponto de partida para o pensamento ocidental: não mais a busca das essências dos seres (como no pensamento antigo), ou o fundamento divino da existência (como no pensamento medieval), mas o Espírito e o Sujeito, enquanto sedes da verdade. É neste ponto que o pensamento ocidental se torna predominantemente 19 voltado para o tema do conhecimento: para saber da verdade dos objetos conhecidos, passa a ser necessário saber, antes, da verdade do sujeito. Para Descartes, no interior do espírito é possível estabelecer uma distinção entre uma razão de origem divina enquanto cerne de toda inteligibilidade e consciência, onde o eu faz a sua morada, e uma região fronteiriça desse espírito, situada na interseção com o corpo: as paixões. Se na primeira região encontramos a fonte do conhecimento, na segunda encontra-se a raiz de todos os nossos equívocos, de todas as nossas ilusões produzidas por nossos sentidos. Nesse mesmo movimento constitui-se, portanto, uma cisão fundamental entre alma e corpo (este, a causa de nossos enganos), distinção que, ao contrário do que se pensa, não remonta a uma cristandade medieval. Nesse momento, espírito e corpo são compreendidos como portando duas substâncias de naturezas diversas: a extensa (o corpo) e a inextensa (a alma). A princípio, o corpo se constitui como objeto de exame, retiicação e controle por parte do espírito. Mais tarde, no século XVIII, o próprio espírito irá se constituir em objeto de exame, conhecimento e disciplina. A essa solução racionalista sobre a questão do conhecimento se opõe a alternativa empirista de John Locke (1624-1704), George Berkeley (1685-1753) e David Hume (1711-1776), para os quais o saber não viria de outra fonte senão de nossas paixões, dos nossos sentidos. Nada haveria no espírito que não fosse proveniente destes, sendo as nossas funções superiores meras complicações e conjunções de impressões sensoriais (e, neste ponto, responsáveis pelas nossas ilusões). Razão ou sensibilidade: nos séculos XVII e XVIII debate-se sobre que região do espírito é responsável pela verdade, qual é a culpável pelo erro. No século XIX as epistemologias serão herdeiras do trato com essa primeira região, responsável pelo conhecimento verdadeiro, ao mesmo tempo em que as psicologias ocuparão a região da incerteza devotando-se ao sujeito das paixões e das ilusões. Empiristas e racionalistas concordam, contudo, em um aspecto: a evidência imediata, a transparência no conhecimento do espírito, em oposição à opacidade do corpo. Seria mais fácil conhecer a nossa subjetividade do que esta estranha parte de nós que nos foi tornada alheia: o corpo. Esta formulação sofrerá, contudo, uma reversão a partir do inal do século XVIII, quando essa análise do espírito cindido entre razão e sensibilidade será superada por uma nova formulação da nossa subjetividade. A chave para essa mudança pode ser encontrada no pensamento de Imannuel Kant (1781) que, ao analisar a questão do conhecimento em novas bases, supõe-no como uma síntese a priori entre as formas e categorias do SUJEITO 20 TRANSCENDENTAL (nossa razão) e do diverso sensível (nossa experiência). Separados e colocados isoladamente, a razão pura e o puro sensível apenas nos equivocariam: a primeira nos conduziria às conclusões mais disparatadas (como faz a metafísica) e o segundo não produziria sem a razão nenhum conhecimento. Dentro deste quadro, nosso espírito passa a ser visto como composto por um sujeito transcendental (condição a priori do nosso conhecimento dos objetos, mas ao mesmo tempo incognoscível e opaco em si) e um sujeito empírico (cognoscível e composto pelas experiências que temos de nós mesmos). Não há mais uma simples divisão entre razão e paixões, nem a transparência no conhecimento de si que os primeiros modernos atribuíam ao espírito. Com essa nova divisão, impõe-se uma nova instância, o sujeito transcendental, que legitima o conhecimento dos objetos (uma vez que situados no tempo e no espaço), mas é completamente limitado quanto ao conhecimento de si. Dentro desse esquema, criticam-se todas as tentativas de fundar uma psicologia no século XVIII, como a de Christian Wolff (1679-1754) (capítulo 2), pois o sujeito transcendetal seria uma condição a priori para o conhecimento e jamais um objeto a ser esquadrinhado no tempo e no espaço. Para ser possível uma psicologia empírica para Kant, seria necessário o exame do conjunto das nossa experiências conscientes, o sujeito empírico (e não o transcendental, mera condição lógica para o conhecimento) a partir de um elemento discreto de análise, da matematização e de um mínimo de objetividade (capítulo 4). Esses novos parâmetros exigem que a psicologia, para ser reconhecida como cientíica, seja mais do que a descrição do sujeito empírico, ou das vivências imersas em um mundo de ilusões: ela deve ter, no trato com a experiência imediata, todo o rigor de uma experiência cientificamente mediada e matematizada. Surge, então, no inal do século XIX, na Alemanha, o projeto da psicologia enquanto ciência da experiência, tomando como base a isiologia, calcado no conceito de sensação como elemento objetivo e matematizável. Esse conceito de sensação ocupou na psicologia o lugar do sujeito transcendental de Kant, permitindo que Wilhelm Wundt propusesse a psicologia como ciência independente (cf. capítulo 5). É através de sua análise que se pode avaliar as ilusões presentes em nossa experiência comum (imediata), de resto distinta da experiência física (mediata). O SUJEITO TRANSCENDENTAL para Kant não se refere a um indivíduo, ou uma parte substancial deste. Ele é chamado de transcendental, não porque possua qualquer componente místico, mas porque é a condição necessária para qualquer para qualquer conhecimento. E quais são estas condições? As formas a priori que permitem a experiência dos objetos no espaço e no tempo, e as categorias a priori, que permitem a relexão destes objetos a partir de noções como substância, causalidade, qualidade, quantidade entre outras. 21 Contudo, a herança desse esquema kantiano sobre a nossa subjetividade não se resume apenas ao projeto da psicologia como ciência rigorosa da experiência (respondendo às críticas de Kant à psicologia empírica), mas a toda a psicologia, ao instituir sempre um modo de relação entre o sujeito empírico (as nossas experiências conscientes) e um sujeito transcendental (que é em geral assimilado a um conceito de uma ciência natural, como o de sensação isiológica, equilíbrio físico e adaptação biológica). Isto ocorre mesmo em psicologias que tomam a nossa consciência como objeto privilegiado, como faz o gestaltismo, que apela para princípios não conscientes, como o da boaforma (capítulo 18). É deste modo que a psicologia tenta unir aquilo que a modernidade tentou cindir: o sujeito transcendental ou epistêmico e o sujeito empírico, impuro. A questão então é: como estudar sob os rigores do método cientíico aquilo que foi excluído por deinição de suas possibilidades de ação (a nossa experiência comum)? Como fazer uma ciência precisa daquilo que, em nossa experiência, é impreciso? Toda a psicologia teria que realizar o trânsito do plano transfenomenal (opaco) ao da consciência (o vivido). Daí as alternativas propostas por Luís Cláudio Figueiredo (1986): ou se faz uma psicologia partindo do vivido em direção aos mecanismos transfenomenais, como realizariam a psicologia da Gestalt, a epistemologia genética e a psicanálise, caracterizando-se uma direção metapsicológica (conforme conceito do autor), ou se parte do cientiicamente estabelecido, para se abordar em seguida o âmbito fenomenal consciencial, como procede o behaviorismo, numa linha parapsicológica (conforme conceito do autor). Qual é o método com que trabalha o psicólogo: ele segue os contornos da experiência na busca de algo transfenomenal (posição metapsicológica)? Ou parte de um método ou de um modelo de ciência natural, limitando parte (ou mesmo a totalidade) de nossa experiência subjetiva (posição parapsicológica)? Como diria Pierre Gréco (1972: 19), esta é a desgraça do psicólogo com relação ao seu método: “nunca está seguro de fazer ciência. E quando a faz, nunca está seguro de que faça psicologia”. A distinção ente corpo e mente na definição da identidade do indivíduo Essa experiência é de certo modo derivada da constituição de um espaço privado e de um campo de subjetividade, aqui depurado da nossa carne. Segundo Fernando Vidal (2002), essa distinção não é tão longínqua 22 quanto nós pensamos; ela teria surgido a partir do século XVII. A par da episódica distinção platônica e pitagórica entre alma e corpo, até o início da modernidade, a deinição da pessoa era operada na C O N C E P Ç Ã O HILEMÓRFICA : aqui a relação indistinta entre estes termos. Uma comprovação alma é entendida como forma disto é a concepção HILEMÓRFICA, desenvolvida por do corpo como matéria. Por Aristóteles na antiguidade e que perdurou até o im forma entende-se a essência de um determinado ser, ao passo que na da Idade Média. Nessa concepção, alma e corpo se matéria encontram-se todas as suas unem indissociavelmente como forma e matéria, uma possibilidades de transformação, a im de atingir a sua essência. Como não existindo sem o outro. O cristianismo medieval, no esquema aristotélico matéria e além de maciçamente influenciado por Aristóteles, forma são indissociávies, não há possível entre desenvolveu uma gama de conceitos e práticas que atuam a separação alma e corpo. na contramão da divisão entre alma e corpo. Por exemplo, a noção de carne, longe de implicar apenas o nosso corpo, aponta para uma região indistinta entre este e a alma onde os nossos desejos são forjados. Contudo, para Vidal, a prova mais decisiva da ausência de distinção entre esses dois domínios pode ser encontrada no debate sobre o tema da ressurreição, que pontuou o cristianismo de Santo Agostinho (354-430) até Samuel Buttler (1612-1680), passando por pensadores como São Tomás de Aquino (1225-1274). Ao contrário do que supomos, para esses teólogos, o momento do Juízo Final não seria marcado apenas pela presença de nossas almas, mas também do nosso corpo. E neste ponto surgiriam discussões muito curiosas, a saber: se os nossos cabelos e unhas cortados, bem como membros mutilados, corpos canibalizados e fetos abortados compareceriam também perante Deus no Juízo Final. Aqui vê-se claramente que a pessoa é deinida por sua associação indistinta entre alma e corpo. Como visto, este quadro se altera no início do século XVII, quando Descartes propõe a separação entre esses domínios, entendidos agora como duas substâncias distintas. Mas será apenas com John Locke que a nossa identidade pessoal será claramente vinculada a uma atividade da alma, no caso, a memória. Na sua esteira, os demais pensadores só vinculavam a alma ao cérebro, permanecendo as demais partes do nosso corpo irrelevantes na deinição da nossa identidade. Essa idéia “desencorporiicadora” da nossa identidade (somos o que é determinado em nossa CRIOGENIA: prática de congelamento de corpos (ou apenas suas mente e nosso cérebro) persevera até hoje não apenas na cabeças, dependendo do preço psicologia e nas ciências cognitivas, mas em práticas como pago) de pessoas falecidas, na esperança de que em um a CRIOGENIA. Nossa mente e cérebro se identiicam pois ao futuro próximo (ou remoto) sujeito, restando ao corpo o papel de mero objeto, de mera suas doenças passam ser curadas máquina opaca ao nosso conhecimento imediato. e seus corpos ressuscitados. 23 Essa dualidade marcou o início da psicologia no século XVIII (capítulo 2), e ainda está presente nas discussões sobre a relação entre alma e corpo, que acompanham a psicologia até os dias de hoje. Mesmo que essa discussão não seja feita mais em torno da existência de substâncias, mas de experiências objetivas e subjetivas. Ainda que aparentemente sepultada para alguns, esta é a questão mais perseverante no campo psicológico (e ilosóico), onde encontramos posições dualistas e monistas. As primeiras tentam resolver o problema determinando uma forma de comunicação entre as duas realidades. As segundas tentam resolver o problema negando-o, airmando que só há uma natureza. É assim que dentre os dualismos, teríamos posturas como as interacionistas e paralelistas. A primeira posição, de mais difícil aceitação nos dias de hoje graças à tese física da conservação de energia, supõe uma verdadeira relação de causa e efeito entre as substâncias. O paralelismo, aceito por algumas escolas psicológicas como a gestaltista (capítulo 18) e a construtivista (capítulo 15), acolhe a existência das duas substâncias, mas defende uma não-interação entre elas, operando estas como duas séries independentes, porém sincronizadas, como dois relógios acordados para funcionar no mesmo horário. O campo das teses monistas, por sua vez, vai tentar esgotar o problema pela redução de toda a natureza a um determinado aspecto, como a matéria (materialismo), o espírito (idealismo), ou a experiência (monismo neutro). Na psicologia, teríamos o materialismo de alguns autores da escola behaviorista como John Watson (capítulo 11), e uma forma branda de monismo da experiência, como o do fundador da psicologia como área acadêmica, Wilhelm Wundt (capítulo 5). Haveria ainda uma posição muito especial de monismo, a tese da substância única, na qual matéria e espírito seriam apenas dois modos, dois atributos do mesmo ser. Esta posição mais rara marcou contudo o pensamento de um dos maiores responsáveis pelo reconhecimento da psicologia como um saber potencialmente cientíico: o psicofísico Gustav Fechner (capítulo 4). A constituição de individualidades Ao propormos fazer uma história do indivíduo, não nos encontramos mais na história da subjetividade ou da interioridade relexiva, seja na relação com os objetos a serem conhecidos, com um domínio público ou ainda com o nosso próprio corpo. Trata-se aqui do processo da constituição dos indivíduos 24 enquanto unidades políticas a serem destacadas e diferenciadas no conjunto da sociedade. Quando se fala de história da individualização, não se nega, é claro, a percepção das diferenças entre os indivíduos concretos, mas a experiência de que os indivíduos são ao mesmo tempo fonte e alvo dos poderes. Tal processo, que conduz à existência dos indivíduos ao mesmo tempo na sua singularidade e na sua igualdade, é crucial, não apenas para a compreensão do individualismo como valor social, mas para o lugar especial que a psicologia ocupa entre os saberes e práticas modernos. Destaque não apenas na medida em que a psicologia singularizaria os indivíduos de acordo com suas capacidades, mas operaria no duplo sentido de incrementar a sua autonomia e seu controle. A nossa história desse processo de individualização poderia se iar na observação de Norbert Elias (1994), para o qual até o século XIII não existia sequer a noção de INDIVÍDUO. Como vimos no primeiro item, nas cidadesestado (polis) gregas, a autonomia, o autocontrole e governo de si se colocam Existe, para exempliicar isso, uma bela citação de Friedrich Nietzsche que ilustra essa ausência de valor sobre o INDIVÍDUO durante um longo período da nossa história: “Nos tempos mais longos e remotos da humanidade, o remorso era inteiramente diverso do que é hoje. Hoje em dia alguém se sente responsável tão-só por aquilo que quer e faz, e tem orgulho de si mesmo: todos os nossos mestres do direito partem desse amor-próprio e prazer consigo de cada indivíduo, como se desde sempre se originasse daí a fonte do direito. Durante o mais longo período da humanidade, no entanto, não havia nada mais aterrador do que sentir-se particular. Estar só, sentir particularmente, não obedecer nem mandar, ter signiicado como indivíduo – naquele tempo isso não era prazer, mas um castigo; a pessoa era condenada a “ser indivíduo”. A liberdade de pensamento era o mal-estar em si. Enquanto nós sentimos a lei e a integração como perda, sentia-se o egoísmo como algo doloroso, como verdadeira desgraça. Ser si próprio, estimar-se conforme uma medida e um peso próprios – era algo que ofendia o gosto. Um pendor para isso era tido por loucura; pois à solidão estavam associados toda miséria e todo medo. Naquele tempo, o “livre-arbítrio” era vizinho imediato da má-consciência: e quanto mais se agia de forma não livre, quanto mais transparecia no ato o instinto de rebanho, em vez do senso pessoal, tanto mais moral a pessoa se avaliava. Tudo o que prejudicasse o rebanho, tivesse o indivíduo desejado ou não, dava remorsos ao indivíduo – e também a seu vizinho, e mesmo ao rebanho todo! Foi nisso, mais que tudo, que nós mudamos. (Nietzsche, 1882: 142-143) como valores norteadores. Haveria aqui uma certa valoração do indivíduo? Como esclarece Foucault (1984), essa busca de autonomia visa garantir que o governo da polis não seja dominado por um tirano (como bárbaros, ou as mulheres, crianças, escravos no âmbito da cidade). Ela não se refere, contudo, ao indivíduo: busca-se a autonomia da polis, não para si, mas através de si. A vida comum na Antiguidade clássica, longe de ser facilmente comparável à nossa, parece-nos bastante paradoxal, mantendo distanciadas algumas experiências que para nós estão necessariamente acopladas, como a de uma interioridade individualizada. Pois há na antiga Grécia uma interioridade, porém não relexiva e não individualizada. Ao mesmo tempo em que há uma experiência de singularidade, completamente destituída, porém, de interioridade e valor social. 25 Dada a inexistência do indivíduo como valor universal até o fim da Antiguidade, iniciaremos por essa época a história da constituição da individualidade como um dos nortes da nossa existência. Essa história pode ser contada em dois tempos, conforme a constituição de dois tipos de indivíduos. O primeiro, o indivíduo enquanto entidade universal, autônoma e livre, pode ser descrito de acordo com a relexão de alguns pensadores políticos modernos (como Thomas Hobbes e Jean-Jacques Rousseau), consagrando uma série de práticas políticas herdadas dos Estados modernos da Igreja católica sediada em Roma. O segundo, um indivíduo tomado como um objeto a ser descrito e classiicado de acordo com certos determinantes, é constituído como produto das relações políticas de poder a partir do século XVIII, notadamente as práticas disciplinares, descritas por Michel Foucault (1977). Com a cristandade, conforme visto, surge a experiência de um foro íntimo, mas a busca de autonomia e controle de si não se colocam mais como metas da vida política e social. Na vida monástica, o que se busca, tão-somente, são a puriicação e a salvação individual. Nessas comunidades religiosas dos primeiros séculos da era cristã esse esforço de salvação irmana e igual a todos os iéis enquanto membros de uma fraternidade divina. Contudo, essa forma de individualização gestada nos mosteiros, referida a um domínio de interioridade e marcada por uma igualdade (perante Deus) e livre-arbítrio (na busca de salvação), vai se mostrar limitada em relação a outras formas sociais desse período. Durante quase toda a Idade Média as relações sociais estão baseadas nas relações de linhagem, na relação contratual entre as famílias de diferentes graus hierárquicos. Nesse espaço social hierarquizado, a posição dos indivíduos é determinada estritamente por sua posição social. São raras as experiências de individualização no campo social. Figueiredo (1995) cita alguns desses raros exemplos, como as iguras dos cavaleiros andantes e a dos foliões. Norbert Elias (1994), como vimos, é mais radical neste aspecto: para esse autor, até o século XIII não existia sequer a noção de indivíduo, nem mesmo uma palavra que designasse essa experiência. Quando esta passa a ser utilizada pelos ESCOLÁSTICOS, remete à natureza de ESCOLÁSTICOS: diz respeito ao ensino qualquer ente singular não classiicável em um filosófico dado nas escolas eclesiáticas e universidades da Europa do século X ao XVII. grupo maior. Esse ensino tinha por características distintivas, Os acontecimentos que ancorariam de um lado, buscar um acordo entre a revelação uma experiência de individualização no campo divina e a luz natural da razão; de outro, ter por métodos principais a argumentação silogística, social e político, tal como começa a despontar e a leitura comentada dos autores clássicos no im da Idade Média, remontam à criação conhecidos nessa época, sobretudo Aristóteles. O principal representante dessa corrente é São dos Estados modernos. Segundo Louis Dumont Tomás de Aquino. 26 (1993), a criação correlata dos Estados modernos e de uma experiência de individualização decorre dessa matriz cristã mais arcaica. É nos Estados modernos que a fraternidade dos homens em torno de Deus se laiciza: todos são irmãos perante a lei não mais divina, mas do Estado. Foucault (1979) analisa a transformação política desse período através da noção de um Poder Pastoral (baseado no extremo cuidado com cada ovelha e com o rebanho inteiro) enquanto matriz dos Estados modernos. Por detrás dos Estados modernos teríamos o modelo de Roma (como sede da estrutura eclesial), e por detrás desta, as antigas fraternidades monásticas, individualizadas pela igualdade perante a lei divina. Teríamos assim no início da Idade Moderna uma primeira experiência mais universal de individualização: a constituição do indivíduo no século XVI enquanto um sujeito autônomo, singular, igual aos demais e dotado de uma interioridade (foro íntimo) que seria a base contratual dos Estados modernos e fonte do poder destes. Essa idéia foi fartamente explorada pelo pensamento político desde a defesa do absolutismo esclarecido por Thomas Hobbes (1588-1679) até o pensamento liberal (John Locke, David Hume e outros) e iluminista (Voltaire, Denis Diderot e Jean-Jacques Rousseau) do século XVIII. Em outras palavras, teríamos o surgimento do que Foucault (1976) chamaria de indivíduo soberano regulado pela lei. Aqui o indivíduo seria meramente fonte, mas jamais alvo de um poder: o Estado não tem ainda como meta o bem-sstar e a qualidade de vida dos seus cidadãos. Suas únicas funções nesse momento são as declarações de guerra e de paz e a gerência do comércio. Trata-se de um Estado que, em nome da lei contratada entre os seus cidadãos, pode tirar a vida destes e submetê-los a toda espécie de suplícios toda vez que houver uma infração. Nas palavras de Foucault (1977: 128) “trata-se de um Estado que faz morrer e deixa viver”. Esse indivíduo soberano, tal como surge no raiar da modernidade, também não é objeto de qualquer saber. Até então perseverava o veto do ilósofo grego Aristóteles contra uma ciência do particular: só existe ciência de entes universais. De mais a mais, o indivíduo soberano jamais poderia se tornar objeto de um saber, uma vez que era a fonte da legalidade e identiicado a um sujeito autônomo. Contudo, se o indivíduo como alvo do conhecimento não existia, ele já se fazia presente, como fonte jurídica, nas manifestações iluministas, liberais e românticas, próprias do poder soberano. Daí que Figueiredo (1985) sustente que esse sujeito soberano não é alvo e nem condição suiciente da psicologia, enquanto saber sobre o indivíduo; é 27 necessária a invenção de outra forma de individualização, que se manifestará a partir do século XVIII. Fatores como o aumento da população, a proliferação dos pobres nas cidades, a invenção de novas técnicas, como o fuzil e os artefatos industriais, e novas relações de produção baseadas no trabalho contratual impõem-se a constituição de novas tecnologias de poder, baseadas não mais na lei, mas no esquadrinhamento e na vigilância constantes dos indivíduos e da populações ao longo do tempo e do espaço. Este exame constante se produz em espaços privilegiados que surgem ou são reapropriados nesse período como fábricas, casernas e prisões (primeiro caso), e hospitais, asilos e escolas (segundo caso). Surge o que Foucault chama de biopoder, composto de biopolítica (sobre as populações) e de poder disciplinar (sobre os indivíduos). Na esteira deste, desponta todo um conjunto de saberes que buscam descrever a natureza de cada indivíduo, singularizando-o. A partir de então impõe-se uma duplicidade no que entendemos por indivíduo: para além do indivíduo soberano, que não gera um saber sobre si, emerge o indivíduo disciplinado, que é produzido através do exame, superando o veto aristotélico. Se no poder soberano o indivíduo é avaliado a partir da lei contratuada, o indivíduo disciplinado é ordenado a partir de uma norma, que determina a sua iliação ou não à normalidade. Aqui se destaca a importância de todos os saberes sobre a vida. Esse novo indivíduo desponta não mais como um sujeito, mas um objeto determinado, singular, diferenciado e dotado de uma interioridade (identiicada agora a uma natureza biológica), que será o alvo do cuidado dos Estados contemporâneos e de uma série de agências privadas. Muda-se a meta; se a forma soberana indicava o “fazer morrer e deixar viver”, a fórmula disciplinar agora é “fazer viver e deixar morrer”. E partindo dessa forma de zelo pelos indivíduos, cuja qualidade de vida e o bem-estar são metas últimas, é que vão se constituir os saberes psicológicos, médicos e psiquiátricos. Essa experiência de individualização marca de forma decisiva diversas escolas psicológicas fundadas no século XIX em países de língua inglesa, uma vez que ancoradas em saberes sobre a vida, como a biologia evolucionista. É o caso das psicologias funcional, evolutiva, comparativa e diferencial (capítulos 6, 7 e 16). Mas deve-se considerar que essas formas da nossa individualização também estão presentes em todas as práticas psicológicas, oscilando entre a busca de autonomia (soberania) e o controle dos seus sujeitos (disciplina). Podese, a partir daqui, de igual modo estabelecer uma das tensões que operam como bússola no campo psicológico: como colocar como objeto de controle o mesmo indivíduo que se conigura como essencialmente autônomo e livre em termos jurídicos? 28 Deste modo, ou uma determinada teoria, prática ou sistema psicológico valorizará mais o indivíduo em sua suposta autonomia soberana, ou tomará mais como referência a disciplina, seja em nome da sociedade, do Estado, ou do bem comum, sempre, contudo, se dirigindo à direção complementar à sua posição. Assim, ou se parte do indivíduo autônomo em direção a uma suposta determinação última, como procedem os funcionalistas, construtivistas e gestaltistas (capítulos 15 e 18), ou se parte das disciplinas para a constituição de um indivíduo autônomo exemplo disto são as primeiras versões e autocontrolado, como realiza o behaviorismo Um de A Bela Adormecida, em que esta não é (capítulo 11). Algumas psicologias, pois, mesmo acordada pelo beijo de um príncipe, mas filhos que este fez nela enquanto que privilegiem a autonomia do ser humano, pelos dormia. remetem-no a uma norma natural; outras, ainda que tentem disciplinar os sujeitos, fazem-no de modo a favorecer o seu autocontrole autônomo. A psicologia se situa, assim, em um espaço político entre o indivíduo autônomo e soberano (fonte do poder) e o indivíduo sob controle das disciplinas (alvo dos poderes), realizando o trânsito entre estes. Poderíamos dizer que, sem esta ambigüidade moderna, não haveria nem mesmo a psicologia, pois, se só houvesse a individualidade autônoma, não haveria a suposição do indivíduo como objeto de conhecimento. Por outro lado, se só houvesse a determinação, cairíamos em um fatalismo em que toda intervenção psicológica seria desnecessária. Daí a suposição de Nikolas Rose (1998) de que a psicologia só é possível em sociedades liberais, tendo como função favorecer o “bom uso” da liberdade pelos indivíduos. Como visto, o impacto das novas tecnologias disciplinares incide sobre algumas instituições como casernas, hospitais, asilos, presídios, escolas e fábricas. Nelas vemos surgir a constituição de tipos como doentes mentais, crianças-problema, delinqüentes e trabalhadores desajustados. Todos serão objeto de exame necessário para a constituição de psicologias especíicas (psicopatologias, psicologias da infância e do desenvolvimento, psicologias do trabalho). Examinemos na seqüência os dois primeiros exemplos enquanto tipos privilegiados de tecnologias individualizantes. A constituição da infância como uma etapa da vida Um capítulo especial nessa história dos processos de individualização diz respeito à demarcação da infância como um estágio da vida e preparatório 29 da vida adulta. Tal história é fundamental para a constituição do tema da evolução das nossas faculdades mentais, crucial para um bom número de psicologias (capítulos 7, 11, 15, 16, 17, 21 e 22). Para tal, teria sido necessária a distinção entre a infância e a idade adulta, que, segundo Philippe Ariès (1979), teria se desenvolvido a partir do século XVI através da constituição da escola e da família nuclear modernas. Não se propõe aqui uma história calcada na descoberta de um objeto atemporal, a infância, descoberta que a teria conduzido até o seu lugar natural, a escola. Pode-se, a partir do trabalho de Ariès, propor uma nova formulação histórica: da invenção da escola no século XVII produz-se uma experiência evolutiva do desenvolvimento que, por sua vez, cria um certo modo de infância. Essa história da infância tem o seu grau zero na quase ausência desta, tal como ocorre no inal da Idade Média. Pode-se observar a ausência da infância não apenas nas representações pictóricas, como também em qualquer esforço de segregar o seu modo de vida do dos adultos, seja na vida sexual (esta não consistia em algo a ser oculto dos infantes), no espaço da casa (não havia o “quarto das crianças” como espaço preservado), no dormitório (a maior parte das vezes elas dormiam com os adultos), na literatura (as fábulas não eram tão INFANTIS, bem como as crianças podiam ser alfabetizadas com clássicos como os diálogos platônicos), na pedagogia (as poucas escolas que existiam não segregavam alunos por turmas de idades, nem favoreciam o esquema de internato), no trabalho (era muito comum a alternativa pedagógica de se mandar um jovem realizar o seu aprendizado servindo em casas alheias; daí a origem do termo garçon nos restaurantes), nas guerras (os exércitos não possuíam limite de idade, característica presente até o século XIX, e ainda presente em certas milícias guerrilheiras). Ainda que muitas destas características iram a nossa sensibilidade atual, elas são marcas de muitos grupos sociais ainda existentes (mesmo os meninos de rua, como uma rede social no interior da nossa) e provas da possibilidade de um mundo sem infância, sem escola e sem psicologia. A infância começa a se segregar como personagem e sentimento (a “paparicação”) a partir do século XVII, e graças a um duplo acontecimento: 1) a diminuição da mortalidade infantil e a possibilidade de apego, restrita até então por causa das altas taxas de mortalidade na Idade Média; 2) o surgimento dos padres reformadores, portadores de uma nova moral baseada na necessidade de preservação da inocência e da racionalidade supostas nessa fase da vida. Daí o surgimento da escola em forma de internato, enquanto aparato disciplinar de quarentena destinada à prevenção da poluição suscitada pelo convívio com o mundo adulto. Supondo a inversa razão entre idade, por 30 um lado, e inocência e racionalidade moral, por outro, se instituem classes diferenciadas por idade, instalando-se o castigo como correção de qualquer desvio da suposta pureza infantil. Inicia-se nesse período o irme laço entre instituições religiosas e pedagogia (vínculo ainda muito presente aqui no Brasil), visando à assepsia moral. Paralelamente a esse movimento, a família começa a se nuclearizar, se diferenciar de uma massa social uniforme. Ela se transforma de instituição condutora de linhagens de parentesco em espaço de gestação de sentimentos ternos entre seus membros; nasce o que Ariés designa por “família sentimento”. A divisão do espaço interno da casa passa a acompanhar a divisão do espaço social. De um espaço uniforme, em que os cômodos não eram diferenciados e os móveis realmente móveis, deslocando-se conforme a atividade dos seus habitantes, a casa começa a ganhar compartimentos bem determinados. De igual modo, a mescla indistinta de vida privada – lazer – trabalho – ensino, presente na casa medieval, começa igualmente a se segregar, restando somente a primeira função em seu interior. No século XVIII esse movimento se reforça graças às transformações nas funções dos Estados; estes passam a se encaminhar mais para a gestão de populações do que territórios: impera o biopoder e a infância também se torna um capital estatal. Um exemplo disto é a campanha antimasturbatória, capitaneada pelos médicos, em que se via esta prática como a causa dos mais diversos males, podendo levar até à morte. Para prevenir este mal, exortava-se aos pais que mantivessem estrita vigilância e contato com os ilhos. Entre os séculos XVII e XVIII surgem em conjunto uma primeira forma de infância, a família burguesa, a escola, mas ainda não uma psicologia devotada às crianças. Novos acontecimentos pontuam o século XIX: por um lado, o advento da revolução industrial e o ajustamento a novas demandas impõem um ensino de cunho mais técnico que moral. De igual modo, o ensino laico se instaura como tarefa do Estado. Ainda que o modelo de ensino religioso perseverasse, outros modelos mais atinentes à ciência laica se impunham. Mudanças sutis com relação à imagem da infância e às metas do ensino são a partir daí engendradas: a pureza como essência original da criança e alvo da educação desaparece do horizonte. Desponta uma nova infância preconizada por Jean-Jacques Rousseau (1712-1778); sem o racionalismo moral suposto pelos religiosos reformadores, mas marcada pelo primitivismo e por uma evolução a se concluir na idade adulta. Evolução natural, mas que supõe a constante correção de seu trajeto na direção do adulto cidadão e trabalhador. A nova escola pública, no esforço de constituição da cidadania conforme as leis do 31 evolucionismo, irá sancionar um novo interesse na psicologia na virada para o século XX. De início, a psicologia mantém-se alheia a esse processo; em meados do século XIX ela se interessa apenas pelo exame da nossa experiência subjetiva, detendo-se em tempos de reação e classiicação de sensações; a infância não lhe diz respeito (capítulos 4 e 5). De mais a mais, como os sujeitos, para se submeterem a esses exames, precisam de treinamento, este tipo de investigação jamais se dirige a animais, doentes mentais e mesmo crianças. A grande transformação ocorre na virada para o século XX, quando o Ministério da Educação francês demanda ao psicólogo Alfred Binet um teste que ordene as turmas conforme as suas capacidades intelectuais, e não mais quanto a suas idades (capítulo 16). Habilidades e não mais a pureza moral como critério de classiicação. Quociente intelectual, idade lógica e não mais cronológica. E a psicologia se verá capturada nessa imagem laica da infância: o evolucionismo solapa o império do homem adulto normal e civilizado. Mark Baldwin nos Estados Unidos, Alfred Binet na França, Eduard Claparède na Suíça, Karl Gross na Alemanha, são alguns dos pioneiros da psicologia no atendimento dessa demanda. Não é de modo algum coincidência que alguns defensores da Escola Nova (movimento em prol da escola laica) fossem igualmente psicólogos funcionalistas (que tomam o modelo darwinista de adaptação como paradigma da psicologia), como John Dewey (capítulo 7) e o próprio Eduard Claparède (capítulo 15). Busca-se na psicologia prioritariamente estudar e promover na escola a adaptação da criança a seu meio, observando-se seus interesses e instigando a sua inteligência através da proposição de situações-problema. Como visto, o impacto das novas tecnologias disciplinares incide sobre algumas instituições como casernas, hospitais, asilos, presídios, escolas e fábricas. Nelas vemos surgir a constituição de tipos como doentes mentais, crianças-problema, delinqüentes e trabalhadores desajustados. Todos serão objeto de exame necessários para a constituição de psicologias especíicas (psicopatologias, psicologias da infância e do desenvolvimento, psicologias do trabalho). Examinemos na seqüência os dois primeiros exemplos enquanto tipos privilegiados de tecnologias individualizantes. A constituição da loucura como doença mental Essa prática é fundamental para a constituição de uma forma de experiência psicológica, pois como nos mostra Foucault em A história da loucura (1961), antes do século XIX não existe o conceito de doença mental, e se 32 recuarmos para antes do século XVII, não encontraremos uma divisão radical entre razão e loucura. Nesse texto clássico, Foucault mostra que o percurso do Renascimento até os nossos dias tem o sentido da progressiva separação e exclusão da loucura no seio das nossas experiências sociais, recolhendose esta ao interior dos asilos e de nossas experiências psicológicas. Para tal análise, são destacadas, do século XV até o século XIX, tanto as diferentes manifestações sobre o conhecimento teórico da loucura (médicas e ilosóicas) quanto a percepção social dos loucos, presente nos relatórios administrativos e burocráticos, e mesmo em manifestacões artísticas. Deste modo é que no Renascimento (séculos XV e XVI), especialmente nas representações pictóricas, a loucura é expressa como uma espécie de saber esotérico sobre o nosso destino trágico, como se o louco pudesse decifrar os sentidos confusos que o mundo apresentaria em sua aproximação do Juízo Final. Estes temas estão presentes não apenas nas pinturas de Brugel e Bosch, como no tema recorrente da Stultifera Navis (a Nau dos Loucos). Um outro exemplo dessa tradição pode ser encontrado no Arcano 0 (zero) do Tarô, representado pelo Louco. Mais do que a depreciação do louco, essa carta se refere à loucura como uma busca errante da verdade. Nesse período encontramos também em algumas cidades européias grandes feiras e festivais de loucos. Irmanada à razão, em cujo grau mais alto se encontraria a loucura (é a forma como o ilósofo Michel de Montaigne (1533-1592) avalia seu amigo Tarso), a esta caberia no máximo uma condenação de cunho moral (enquanto presunção, desregramento, irregularidade da conduta, defeito, falta e fraqueza), tal como encaminhada por alguns pensadores humanistas, como Erasmo de Roterdã (1435-1536), curiosamente o escritor do Elogio à loucura. Nos séculos XVII e XVIII, a loucura deinitivamente é excluída da ordem da razão e do seio da experiência social. No primeiro caso, encontramos a suposição de Descartes de que podemos encontrar a verdade até no sonho, mas jamais na loucura. No segundo caso, os loucos, especialmente nas grandes cidades, passam a ser enclausurados junto a uma população heterogênea, considerada excedente moral e econômico da sociedade: sodomitas, prostitutas, libertinos, siilíticos, mendigos, blasfemadores, suicidas, magos, feiticeiros, alquimistas etc. A todos estes cabe a acusação de uma desrazão moral, em que o trabalho forçado se impõe como imperativo ético para sua correção. Outra marca desse período clássico é a dissociação entre essa percepção social dos loucos, governada pela experiência do internamento, e o conhecimento médico da loucura, regido por um paradigma taxinômico, em que as diversas formas de loucura constituíam espécies, famílias e gêneros em continuidade com as demais doenças. Daí a ausência de qualquer especiicidade que conferisse à 33 loucura um domínio à parte entre as doenças; nos séculos XVII e XVIII não existe uma doença mental a par das demais. Elas são antes de tudo doenças dos nervos, que impedem que representemos o mundo como ele realmente é. É neste sentido que a demência é a forma por excelência da loucura nesse período, e o delírio o seu sintoma-chave. Tratava-se de uma desrazão cognitiva, que nada tinha a ver com a desrazão moral, que conduzia ao enclausuramento administrativo. A linha divisória entre razão e desrazão, que surge no período clássico, cava sulcos mais profundos do século XIX em diante, quando os loucos se vêm libertos das correntes por Philippe Pinel (1745-1826) e Samuel Tuke (1784-1857) e separados de seus antigos parceiros de internamento, ainda que circunscritos ao espaço asilar. A loucura não é mais entendida como um problema dos nervos, mas como uma alienação da natureza humana, um fenômeno de natureza espiritual ou mental. E o asilo não é mais visto como um local de punição, mas o espaço no qual o louco (agora doente mental), uma vez recluso, pode expressar livremente a sua loucura. Neste aspecto pode-se dizer que a atual psiquiatria seria mais herdeira do antigo processo de enclausuramento administrativo do que da antiga medicina classiicatória. Assim a loucura é liberta no coninamento ao saber médico na solidão dos asilos, sem mais as suas parcerias do período clássico. Nas palavras de Foucault, liberta-se o louco das correntes, mas ele é atrelado a um domínio de interioridade da natureza humana. Essa experiência, fundamental na gestação da psicologia na França e na Europa Central, será básica para a área psicopatológica (capítulo 8). Nesse campo as psicologias se distinguirão quanto ao modo como essa cisão entre razão e desrazão (ou normalidade e patologia) é vista: se há uma continuidade entre elas (como supõe a psicanálise – capítulo 22) ou se há uma descontinuidade clara (como parece insinuar a atual psiquiatria biológica). O surgimento das ciências humanas Resta ainda uma questão na constituição da psicologia: como se constrói uma ciência psicológica a partir dessas experiências históricas? Para isso foi necessária uma série de transformações na estrutura do conhecimento que levaram à possibilidade de uma peculiar ciência do homem no século XIX. Por que esta não teria sido possível antes? Por que não havia uma ciência humana na Antiguidade e na Idade Média? Poderíamos dizer que ela só foi 34 possível a partir de duas transformacões: 1) a tentativa moderna de separação entre um domínio de seres naturais e outro de seres humanos a partir do inal do século XVI, tal como especiicada por Bruno Latour (1994); 2) a distinção contemporânea entre os domínios cientíico e ilosóico no inal do século XVIII, tal como descrito por Michel Foucault (1966) e patriocinado por certos ilósofos como Imannuel Kant e Augusto Comte. Examinemos de modo destacado essas separações, contrastando-as com os estados anteriores do conhecimento. A cisão entre o domínio humano e natural Latour (1994) destaca que antes do século XVI não há nenhuma distinção essencial entre seres humanos e seres naturais; no máximo a distinção aristotélica entre um mundo sublunar e outro supralunar, sendo este marcado pela constância e regularidade. A natureza (physis) é marcada pelo mesmo conjunto de princípios, independente da natureza dos seres. Para esse autor, a modernidade se constitui no século XVII na tentativa de clivagem e puriicação de entes humanos e naturais. Os entes humanos tornaram-se a partir de então assunto da política, tendo a sua representação nos parlamentos, enquanto que os seres naturais passaram a ser tema das ciências, sendo representados nos laboratórios; distinguem-se claramente questões de valor e questões de fato. Um exemplo disto é a distinção feita por Galileu entre as qualidades primárias e secundárias da nossa experiência. As primeiras seriam correspondentes a aspectos do mundo real, como a extensão; as segundas diriam respeito a aspectos unicamente subjetivos da nossa experiência os quais projetaríamos no mundo. Firma-se a separação entre uma natureza governada por princípios universais e a diversidade das culturas humanas. Estes aspectos, ainda que não explicitamente tematizados, fariam parte do que Latour chamou de Constituição Moderna, ou seja, um conjunto de princípios implícitos que governariam o trato com os diferentes seres. Contudo, essa modernidade produziria como efeito colateral dessa tentativa de puriicação a proliferação dos híbridos, seres com marcas ao mesmo tempo humanas e naturais. O caso mais clássico abordado por Latour é o da representação nos fóruns humanos (parlamentos e tribunais) de seres ameaçados de extinção, da biosfera e de substâncias (como o cloro lúor carboneto) carentes de controle. Apesar de não ser abordada por esse autor, a psicologia, como ciência humana, pode ser vista como um outro tipo 35 de híbrido colateral, onde os seres humanos passariam a ser representados em laboratórios. Seria um saber híbrido, uma vez que ciência e humana ao mesmo tempo, multiplicado em sua diversidade graças a esse esforço de puriicação moderna: são muitas formas de se fazer ciência acopladas a muitas práticas sociais. É desta forma que a psicologia é recusada pelos cientistas e epistemólogos por ser por demais plural em suas vertentes e escolas, ao mesmo tempo em que é desdenhada pelos humanistas por seu pretenso naturalismo, desagradando a todos os puristas de nossa modernidade. A cisão entre os saberes filosóficos e científicos Para dar conta dessa história, de como os seres humanos são considerados como os demais seres naturais, um bom guia pode ser encontrado em As palavras e as coisas de Foucault (1966). Este autor entende que a abordagem do homem como ser empírico (objeto natural) só foi possível na modernidade (a partir do século XIX), graças à superação do modelo de conhecimento clássico, o da representação, vigente nos séculos XVII e XVIII. Esse modelo buscava ordenar os seres em ordens ideais, e operava do mesmo modo no que designaríamos hoje como saberes naturais e como ilosoia. Assim, por exemplo, na história natural, a taxinomia de Lineu classiicava os seres vivos em grupos, famílias, gêneros e espécies, e a ilosoia de Descartes buscava determinar de forma gradativa a ordem das razões. Neste quadro, a natureza física e a natureza humana, sujeito e objeto seriam claramente cindidos em dois domínios, cumprindo-se o que Latour chama de Constituição Moderna. Para Foucault, nesse período clássico, o homem é sempre sujeito, jamais objeto de conhecimento. Contudo, Vidal (2000), em seu texto The Eighteenth Century as “Century of Psychology” nos mostra uma situação um pouco diversa. Esse trabalho demonstra claramente que existe todo um conjunto de saberes psicológicos no século XVIIII (cf. capítulo 2) que são reconhecidos na época de forma tão legítima como a física de então. Tematizam basicamente a relação entre o plano do conhecimento (representações) com o mundo físico (a relação mente e corpo), e tentam classiicar as faculdades do espírito humano. Mesmo quando a mente humana é tomada como objeto de conhecimento, utiliza-se um modelo classiicatório, ou taxinômico. Para Foucault, no século XIX há uma mudança na epsitemè, ou no modelo ou estrutura que rege o conhecimento em uma época. Os seres naturais não são mais relacionados a uma ordem ideal, mas abordados em 36 sua profundidade empírica e histórica. Um exemplo disto é o surgimento da biologia evolucionista, que não considera mais os seres vivos enquanto entes estáticos pertencentes a uma ordem ideal: suas características e funções são determinadas por sua história de relações com o meio ambiente. É nesse contexto que o homem passaria a ser considerado como ser empírico (objeto natural) por algumas ciências do homem (biologia, economia e ilologia). Em outras palavras, ele é visto não mais como um ser que idealmente representa o mundo, mas um ente vivo, que trabalha, modiica o mundo e possui uma história peculiar. Contudo, esse conhecimento moderno, possuiria segundo Foucault, uma outra marca: a clara separação entre o domínio das ciências empíricas e o domínio ilosóico. Assim, este mesmo homem tematizado como Ser Empírico (objeto) pelas ciências naturais é duplicado em ser transcendental (sujeito fundamentante) por uma série de ilosoias antropológicas como as dialéticas, o positivismo e a fenomenologia. Aqui o homem, mesmo com suas características limitadas, seria o fundamento do conhecimento. Neste quadro, qual é o lugar da psicologia? Para Foucault, é do cruzamento dessas ciências empíricas do homem com as ilosoias antropológicas que nasceriam as ciências humanas como a psicologia. Essas ciências humanas terminariam por restituir o jogo de representações pré-modernas e clássicas, estudando como a vida, o trabalho e a linguagem são representados em uma consciência. Contudo, algumas questões sobre esse esquema de Foucault em As palavras e as coisas (1966) se impõem. Em primeiro lugar, será que apenas economia, biologia e filologia forneceriam modelos e conceitos para a psicologia e as ciências humanas? O que dizer da isiologia, presente em toda a psicologia clássica como modelo (capítulos 4 e 5), a física, exportadora de conceitos para o gestaltismo (capítulo 18) e a psicanálise (capítulo 22), além da inteligência artiicial, base do cognitivismo (capítulo 13)? Outro problema dessa análise de Foucault é que esse autor airma que só há uma ciência positiva do homem a partir do século XIX. Como vimos, para Vidal (2000) existe uma psicologia positiva no século XVIII. Neste aspecto, o que se dá na virada para o século XIX? Mudam os critérios de conhecimento, ou a própria epsitemè. O conhecimento classificatório (representacional) da psicologia do século XVIII cede a um modelo empírico em que nossas faculdades psicológicas passam a ser vistas como processos naturais. De igual modo, a necessidade de classiicar o saber como cientíico ou ilosóico se impõe; é neste aspecto que se processa uma transformação 37 capital, conduzida por autores como Kant (1781), em que a metafísica passa a ser entendida como um saber sem fundamento. É aí que são inicialmente alojados os saberes psicológicos do século XVIII, relegados à mera metafísica na impossibilidade de serem ciências legítimas. Durante todo o século XIX, a psicologia para se fundar e ser aceita no restrito clube das ciências irá tentar cumprir o novo decálogo do saber, buscando objetividade, embasamento matemático e a determinação de um elemento básico de investigação (conforme as sugestões produzidas por Kant em Fundamentos metafísicos das ciências da natureza, 1786). E esse apoio à psicologia buscará nos conceitos e métodos das ciências naturais (de início, na isiologia e, depois, na biologia, na química e mesmo na inteligência artiicial). Contudo, como lembra Foucault (1966), esses conceitos naturais passarão a ter funções transcendentais, operando como fundamento para a determinação da natureza humana e condição de todo o saber. Nas palavras de Isabelle Stengers (1989), procede-se a uma captura conceitual em que os conceitos das ciências naturais são apropriados e retirados do seu contexto cientíico, sendo em seguida inlados à categoria de entes transcendentais, que serviriam para embasar o nosso conhecimento de si e as nossas práticas. Essa história especíica nos mostra como a psicologia opera com os seus conceitos, como ela duplica conceitos empíricos (extraídos das ciências naturais) em uma função transcendental; metáforas cientíicas transmutadas agora em imagens fundamentais de homem. Assim, poderíamos ver os conceitos de energia e equilíbrio, fundamentais na termodinâmica serem transformados na noção de boa forma no gestaltismo (capítulo 18) e no princípio do prazer na psicanálise (capítulo 22). O primeiro conduz esses conceitos termodinâmicos a uma visão fundamentante do homem enquanto um ser ativo e passível de compreensão imediata dos fenômenos mundanos. O segundo, a uma concepção desejante do homem embasada nos circuitos energéticos do aparelho psíquico. Da mesma maneira operaria a psicologia behaviorista (capítulo 11), ao ampliar o conceito de adaptação (sobrevivência de uma espécie em meio natural) para o de ajustamento (uma melhor vivência de um indivíduo em seu meio social) coroado pelo de condicionamento, conduzindo a uma visão ambientalista do homem e do próprio pesquisador das condutas humanas. É desta forma ainda que o cognitivismo (capítulo 13), ao ampliar o conceito de informação e importar o conceito de computação, funda o homem em um quadrante racionalista, 38 como um ser racional. Aqui, deve-se registrar apenas uma curiosa inversão processada pelas psicologias existencialistas e humanistas (capítulos 19 e 20), que partem de um conceito de homem da ilosoia (como um ser marcado por uma liberdade fundamental) e transformam-no em um conceito natural, a ser perturbado por forças constringentes (a sociedade e suas normas enrigecedoras) dessa sua essência universal. O curto-circuito de saberes e práticas Poderíamos agora fechar o nosso sistema circulatório entre, por um lado, experiências e práticas sociais e, por outro lado, conceitos cientíicos, que permitem a proliferação das psicologias. Essa duplicação dos conceitos cientíicos apropriados pela psicologia em conceitos transcendentais (fundamentais) completa as partições das experiências e práticas sociais modernas, uma vez que nesses transcendentais se ancoram os aspectos transfenomenais em que gravita a nossa subjetividade e os determinantes últimos de nossa liberdade individual. Por conseqüência determina também a natureza humana a ser alienada pela loucura e as forças que nos conduzem da infância até a idade adulta. É assim que os conceitos capturados das ciências naturais favorecem um transcendental para nosso conhecimento de si e nossas práticas. Deste modo, a noção de equilíbrio termodinâmico da física se codiica no princípio do prazer para a psicanálise, e no conceito de boa forma gestaltista; a noção biológica de adaptação ampara a de condicionamento no behaviorismo, e a de computação está na base dos supostos módulos informacionais para o cognitivismo. Todas estas noções se alçam em transcendentais (fundamentos) para a nossa subjetividade e determinantes para a nossa individualidade, além de potencialmente esclarecer a nossa relação entre corpo e mente, patologia e normalidade, infância e idade adulta, e domínio público e privado. Opera-se, pois, aqui no campo psicológico um curto-circuito entre conceitos e práticas sociais (das mais gerais às mais especíicas), ou entre o que Latour denominou o domínio humano e o domínio natural, cindidos na modernidade. Assim, as práticas de conissão e o esforço de desvelar as fontes dos nossos desejos e nossas mais íntimas verdades se cruzam com os modelos da física termodinâmica e da química analítica do século XIX na gestação da psicanálise (capítulos 22, 23 e 24); a tentativa de disciplina das atividades humanas na educação e no trabalho se cruza com o conceito de 39 adaptação, ensejando o behaviorismo (capítulos 11 e 12); as novas práticas pós-industriais acopladas aos conceitos de informação e de cibernética geram o cognitivismo (capítulos 13 e 14); o exame da experiência ingênua (visando ao controle dos erros) associado ao conceito de sensação gera a chamada psicologia clássica (capítulos 4 e 5). É no conjunto dessas experiências e práticas sociais em conluio com as transformações no conhecimento que se conduz a constituição do campo psicológico em sua multiplicidade, ao cruzar as mais distintas experiências históricas com conceitos, modelos e métodos das ciências naturais, tornados agora entes transcendentais que explicam todos os aspectos da natureza humana. São essas múltiplas hibridações que constituem enim o nosso campo psicológico fragmentado, dando ensejo à múltiplas psicologias gestadas através dessas diversas irrupções. Mapa das psicologias do século XIX Que psicologias serão essas que irão surgir a partir de tais condições? Independentemente da discussão sobre a cientiicidade, as psicologias que surgirão em meados do século XIX serão muito distintas das que se coniguram no século XVIII (cf. capítulo 2). Não por serem mais cientíicas. Mas por possuírem condições históricas muito distintas. No século XVIII vamos ter uma psicologia que é uma pura descoberta de uma subjetividade, de um campo de experiências, em que nada se oculta ao observador, seja no exame da sua privacidade, seja no exame da natureza do espírito em sua relação com o corpo. Nessa época, fazer psicologia não gera problema, no duplo sentido em que todos podem exercê-la (a nossa interioridade é límpida e cristalina) e de que não há nenhuma crítica à cientiicidade (como a que irá surgir no inal do século XVIII). Com isso, podemos ver que nem todas as questões listadas neste capítulo para que surja a psicologia aloram ao mesmo tempo, e produzem o mesmo tipo de psicologia. Por que as mudanças em torno da individualidade e das conigurações da loucura não produzem efeitos na psicologia do século XVIII? Porque a sua derradeira mutação se dá apenas no século XIX. Até o século XVIII, todas essas experiências (sobre a individualidade, infância e loucura) estão calcadas ainda no parâmetro da razão. Razão que ainda está pressuposta no foro íntimo dos indivíduos, ou na pureza de uma infância a ser preservada contra os vícios do mundo adulto. Razão moral que falta aos loucos e indisciplinados, e que inspira toda uma série de tratamentos e punições com 40 base nos trabalhos forçados durante o enclausuramento promovido nos séculos XVII e XVIII. Razão de entendimento do mundo que falharia quando os nossos nervos, por serem muito moles ou muito duros, turvam a visão cristalina que o nosso espírito tem do mundo. Somente na virada para o século XIX a autonomia proporcionada pela razão cederá a uma natureza humana e sua possível descrição cientíica. Aqui terá enorme importância, por exemplo, o pensamento evolucionista (especialmente a teoria da evolução de Charles Darwin). A evolução das espécies, a seleção dos mais aptos e a adaptação ao meio ambiente servirão na psicologia e nas ciências sociais para escalonar os grupos humanos e as demais formas de vida, separar os normais dos anormais e promover o constante ajuste dos desajustados aos meio social. É neste sentido que a psicologia, nos rastros de Darwin, se funda na Inglaterra como psicologia comparada (cf. capítulo 6) e como psicologia (cf. capítulo 16). Nos Estados Unidos essa fundação será mais calcada ainda neste modelo ao estudar a nossa consciência em torno de sua função adaptativa e sua evolução da infância até a idade adulta (cf. capítulo 7). Especialmente aqui trata-se de disciplinar indivíduos, buscar o seu ajuste e o seu bom desenvolvimento. Contudo, na Europa Central, o que irá surgir é uma psicologia, no entorno entre a psiquiatria e neurologia, tentando especiicar a loucura como uma patologia da mente e não mais dos nervos. Aqui deve se registrar o trabalho de Jean-Martin Charcot (1825-1893), por circunscrever a histeria como doença (e não simulação) de cunho neurológico. Essa experiência está na base da experiência psicanalítica (cf. capítulo 22). A loucura não se deine mais como falta de razão, mas como desvio da natureza humana. Se no espectro evolucionista trata-se de uma natureza humana a ser desenvolvida, aqui tratase de uma natureza humana a ser retirada de seu estado de alienação. E o que ocorre com a velha psicologia do século XVIII? Especialmente na Alemanha, ela será torpedeada pelos avatares das novas concepções de conhecimento como Imannuel Kant (cf. capítulo 2). Que vai enxergar um limite na razão, em face da natureza humana, de algo transcendental, que não permite mais o livre acesso da introspecção a todas as regiões do espírito. É com Kant que a psicologia mais estruturada da época, a de Christian Wolff (cf. capítulo 2), sofrerá um golpe mortal. A psicologia racional será vista como impossível, e a empírica como ciência imprópria. Como veremos, com base na isiologia e na psicofísica, a psicologia empírica poderá responder às questões de Kant e se tornar psicologia experimental na Alemanha em 1879 (cf. capítulo 41 4), possuindo pela primeira vez um laboratório e uma formação universitária. Buscando, no caso, estudar na nossa subjetividade a fonte de nossos erros. As outras experiências ocorridas nos Estados Unidos, Inglaterra e Europa Central também serão decisivas para produzir psicologias diferentes. Mas, até quase o inal do século XIX, não havia a possibilidade de alguém se tornar psicólogo – proissionalmente falando – sem viajar a Leipzig, na Alemanha (sede do primeiro curso reconhecido). Somente na virada para o século XX novas formações irão se estabelecer, fazendo frente à psicologia da experiência alemã. E daí em diante ocorrerá uma enorme proliferação dos modos de se fazer psicologia. Contudo, resta uma pergunta: como essas experiências modernas se coniguram na psicologia brasileira? Até meados do século XIX, não há nenhum sinal de psicologia propriamente dita; apenas o que Marina Massimi (cf. capítulo 3) chama de idéias psicológicas, ou discursos que, mesmo não se intitulando como psicológicos, respondem a questões deste campo. Tais idéias seriam oriundas de algumas fontes especíicas, como a aristotélico-tomista, difundida pelos jesuítas. A penetração da psicologia sempre foi tardia em relação a outros países, mesmo considerando países americanos, como os EUA, ou mesmo latino-americanos, como a Argentina. Isso talvez ocorra porque as experiências modernas (especialmente as da constituição da individualidade, subjetividade e privacidade) e as condições para a transformação do conhecimento (lembremos que as nossas primeiras escolas universitárias só surgem em meados do século XIX) são bastante tardias entre nós. E, como sugere Figueiredo (1996), tais forças modernas entram de “forma inapropriada”, “mais para inglês ver”, compondo com formas prémodernas. É o caso da experiência de individualidade moderna, em que esta conviveria com diversas formas pré-modernas e hierárquicas ainda presentes em frases como “sabe com quem está falando?”, ou ainda a importância do sobrenome em nossa identidade (a célebre máxima em Pernambuco de que se é um Cavalcanti ou um cavalgado). Parafraseando Georges Politizer (cf. capítulo 21), “nós somos tão modernos quanto os selvagens evangelizados são cristãos”. A nossa modernidade é tributária de uma absorção bem peculiar (antropofágica, nas palavras de Oswald de Andrade), em que esta se instala na negociação com regimes de identidade arcaicos, mesmo pré-modernos. A penetração da psicologia em território brasileiro é, pois, expressão da modernidade tardia. Daí o “boom da psicanálise” nos anos 1970 (e diríamos também da psicologia), destacado por Sérvulo Figueira (1991). Para esse autor, é na passagem da família arcaica, patriarcal, para a família moderna, 42 igualitária, que a expansão da psicanálise se impõe; não apenas expressando o conlito entre essas duas formas familiares através da sua demanda, mas se instituindo como instrumento de negociação nesse conlito. É neste sentido que veremos a cada capítulo a penetração tardia e mimética da psicologia em solo brasileiro. Pois, se há a desvantagem de a psicologia brasileira ser ainda mais um centro consumidor do que criador de formas de psicologia, há a vantagem de se poder conigurar em toda a sua diversidade as psicologias produzidas pelos centros mais tradicionais. Da mesma forma que a população brasileira reproduz etnicamente uma diversidade quase mundial, a psicologia aqui produzida também assimila toda a sua pluralidade. Num possível trunfo para o nosso caráter antropofágico. 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No que tange à constituição da loucura como doença mental (e não mais desrazão ou doença dos nervos), é o livro O sobrinho de Rameau, de Denis Diderot. Outra boa dica é O alienista, de Machado de Assis. No entanto, priveligiarei uma citação que destaca a própria constituição de uma ciência humana. O livro Moby Dick, de Hermann Melville, pode, a princípio, parecer um conto de aventuras sobre caçadores de baleias e, mais especialmente, sobre o duelo entre o capitão Ahab e Moby Dick, o cachalote branco. Mas ele pode ser lido também como um conjunto de crônicas cousturadas pela caça à baleia. No decorrer do livro, encontramos várias linhas de fuga. Numa delas, Ismael, o narrador da história, se pergunta sobre o que há de mais assustador em Moby Dick. Ao concluir que o que há de mais assustador no cachalote é a sua brancura, ele se pergunta o que há de tão assustador nos seres brancos, como o tubarão branco, o urso polar, o cachalote e as pessoas albinas. A conclusão a que Ismael-Melville nos conduz é de que o branco nos 45 remete à mortalha da natureza nua, a qual adquiriria cores para se igurar na experência humana. Aqui temos uma clara separação entre o mundo humano e o natural, condição para o surgimento de uma ciência da natureza humana. Demos voz a Ismael-Melville: E quando consideramos essa outra teoria dos filósofos da Natureza, segundo a qual todas as outras cores terrestres, cada esmalte magníico e encantador, as tintas suaves dos céus crepusculares e dos bosques, os veludos brilhantes das borboletas e as faces de borboleta das donzelas não são mais do que ilusões sutis de modo algum inerentes a substância e sim meras exterioridades, chegamos à conclusão de que a divina Natureza pinta-se como uma cortesã, cujas atrações nada cobrem senão o sepulcro que leva dentro de si. E ainda mais, quando consideramos que o mistério cromático, ou seja, o grande princípio da luz, permanece para sempre branco ou incolor, em si mesmo, e que se atuasse sem ter ponto de apoio na matéria, tocaria todos os objetos, fossem tulipas ou rosas, com a sua própria tonalidade vazia, chegamos à conclusão de que ainal de contas o universo é como que um leproso e como os bisonhos habitantes da Lapônia que não querem usar óculos de cor, o viajante descrente sente-se cegar diante da mortalha monumental que envolve todas as perspectivas que o rodeiam. E todas essas coisas a baleia branca constitui o símbolo. Melville, H. (1982) Moby Dick. Rio de Janeiro: Francisco Alves, p. 225. 46 Capítulo 2 “A mais útil de todas as ciências”. Configurações da psicologia desde o Renascimento tardio até o fim do Iluminismo Fernando Vidal Introdução Em torno de 1770, o autor de um artigo sobre psicologia numa enciclopédia suíça termina seu texto com a seguinte pergunta: “Qual é a ciência que mereça nossa atenção e que não tenha a psicologia por base, princípio e guia?” Ele acrescenta ainda que sem o conhecimento da natureza, das faculdades, qualidades, estados, relações e destinação da alma humana, nós não podemos julgar nem decidir sobre nada, nem determinar nada, nem escolher, nem preferir nada, nem fazer nada com segurança e sem erro. Assim a psicologia é a primeira, a mais útil de todas as ciências, a fonte, a fundação de todas e o guia que conduz a cada uma delas. (Mingard, 1770-1775: 511-513) Esta passagem é interessante sob vários aspectos. Primeiro, pela relação que o autor estabelece entre a psicologia e o que ele considera serem as ciências e as questões que mais merecem nossa atenção, principalmente (tal como especiicadas no artigo) a teologia e a imaterialidade e a imortalidade da alma, a ética e a identiicação de ações morais, a política e o modo de governar os seres humanos, e inalmente a lógica e o modo de adquirir o conhecimento e de distinguir o falso do verdadeiro, o certo do provável. Em segundo lugar, porque o autor relaciona o conhecimento empírico da alma, adquirido através da observação e da experiência, com princípios religiosos ou metafísicos sobre a natureza e a destinação da alma. Em terceiro lugar, porque atribui à psicologia um estatuto didático e prático preeminente em relação às ciências. 47 Além disso, ica implícito que a psicologia era também epistemologicamente singular: tal como explica o artigo, “uma vez que a psicologia não pode extrair seus princípios nem os fatos que sustentam seus argumentos de uma ciência que se poderia supor anterior a ela, ela não busca nem deve buscá-los em nenhum outro lugar fora do próprio objeto de suas investigações” (Mingard, 1770-1775: 513). Assim sendo, a psicologia revela-se como a única ciência cuja metodologia deriva do estudo de seu próprio objeto. Tais juízos sobre a ciência empírica da alma indicam seu lugar no panorama intelectual do Iluminismo e legitimam a descrição do século XVIII como “o século da psicologia” (Gilson e Langan, 1964: 225; ver também os livros clássicos de Cassirer, 1932 e Gay, 1969). A psicologia conquistou essa posição através dos mecanismos intelectuais e sociais que izeram dela uma disciplina genuína. No século XVIII, a psicologia não pôde se tornar uma proissão acadêmica; na época, tais proissões eram apenas o direito, a medicina e a teologia. Os outros ramos do conhecimento ensinados nas universidades – as “artes” da gramática e da retórica e as “ciências” da lógica, da ética, da “física” (o estudo da natureza) e da metafísica – eram subordinados àquelas três faculdades “superiores” e serviam como preparação para elas. Enquanto tratava de fenômenos empíricos relacionados à alma em sua ligação com o corpo, a psicologia era ensinada no curso de física; enquanto tratava da natureza e da essência da alma, como separada do corpo, ela pertencia à metafísica. A psicologia no século XVIII não era, portanto, uma profissão institucionalizada. No entanto, ela era uma disciplina – se considerarmos o termo disciplina como uma estrutura social e intelectual caracterizada pela existência de indivíduos que reconhecem a si próprios como seus praticantes; por um conjunto de saberes, problemas, regras, métodos, divergências e debates considerados relevantes; por uma terminologia comum; por publicações, incluindo jornais, além de pessoas identiicadas como pertencentes ao domínio em questão ou dotadas de uma autoridade intelectual especial; por sua presença nos currículos acadêmicos e nos materiais de ensino (em manuais ou capítulos de livros didáticos, por exemplo). Tudo isso pode existir na ausência de instituições especíicas tais como departamentos de universidades, cátedras ou sociedades. É neste sentido de disciplina, que combina o sentido tradicional da palavra com os signiicados que ela tem na sociologia da ciência, que a psicologia no século XVIII alcançou a consistência e a magnitude que, como veremos abaixo, levaram Immanuel Kant a declarar que ela deveria ganhar o estatuto de disciplina universitária autônoma. O propósito deste capítulo não 48 é, portanto, discutir as idéias psicológicas do Iluminismo, mas esboçar alguns dos fatores que izeram com que a psicologia do século XVIII se tornasse uma disciplina, e a “mais útil de todas as ciências”. O limbo historiográfico contra a autoconsciência metodológica Em geral, os livros de história da psicologia não consideram a psicologia do século XVIII uma disciplina e situam-na no limbo de uma “pré-história” ou de uma história “pré-cientíica”, resumindo as idéias psicológicas dos ilósofos iluministas mais importantes. A psicologia, escreveu o eminente experimentalista Herman Ebbinghaus (1850-1909), “tem um passado longo, mas uma história breve” (Ebbinghaus, 1910: 9). Essa frase, tão freqüentemente citada, é normalmente interpretada da seguinte maneira: a psicologia empírica e naturalista só teve início nos laboratórios da Alemanha no inal do século XIX. Desse modo, acredita-se que a psicologia do século XVIII pertença ao seu passado cientíico, mas não à sua história. Mas, mesmo que ela não fosse experimental, seria inexato negar a existência de uma psicologia empírica no século XVIII. A psicologia podia não ter laboratórios, mas era concebida como uma disciplina de pesquisa empírica comprometida com a perspectiva naturalista que excluía a alma como um princípio explicativo; por exemplo, ela analisava o pensamento em sua relação com a sensação em lugar de remetê-lo à natureza da substância imaterial e imortal. A razão pela qual a psicologia do século XVIII foi julgada “précientíica”, “ilosóica”, ou “especulativa” parece derivar da suposição de que a psicologia natural-cientíica deveria ser necessariamente quantitativa, experimental e independente de propósitos metafísicos ou religiosos. Contudo, a partir de seus próprios termos, a psicologia do século XVIII pode ser considerada uma ciência natural (Hatield, 1994). Os psicólogos incluíam sua disciplina no estudo da natureza, davam relevo ao estudo dos fenômenos, recusavam-se a discutir a alma como conceito metafísico e apelavam à observação, à experiência, ao método de “análise”, e mesmo à experimentação. Além disso, seguindo o modelo das ciências físicas, eles formulavam hipóteses e esperavam chegar a algum cálculo psicológico. Tudo isso, devemos reconhecer, era fundamentalmente programático e muitas supostas observações não eram mais que icções conceituais e experimentos intelectuais. Porém, mesmo isso não escapava aos autores do século XVIII. 49 Já a partir da década de 1750, havia na Alemanha animadas discussões metodológicas. Em 1770, o ilósofo de Yena Christian Gottfried Shütz (1747-1832), um dos primeiros kantianos, discutiu a questão relativa às diiculdades que resultavam do fato de que a alma é ao mesmo tempo o observador e o observado, o sujeito e o objeto da investigação. Ele assinalou, por exemplo, que mesmo a mais atenta introspecção não consegue atingir muitos fenômenos, tais como os afetos, as percepções obscuras ou rapidamente concatenadas, os processos graduais de mudança psicológica, ou as primeiras fases do desenvolvimento. Ele examinou rigorosamente os métodos empírico e sintético e era particularmente crítico do método analítico. Este método, cujo teórico mais importante era o ilósofo francês Etienne Bonnot Condillac (1715-1780), visava à “composição” e à “decomposição” de idéias de modo a reduzi-las às mais simples, que podiam ser remetidas às sensações. Schütz caracterizava-o como “o método de conexão arbitrária” (in Bonnet, 1770: 205). O exemplo principal era a estátua imaginada por Condillac no Tratado das Sensações (1754) e pelo naturalista e ilósofo suíço Charles Bonnet (17201793) no Ensaio analítico sobre as faculdades da alma (1760), estátua que, a partir da exposição de estímulos sensoriais separados, gradualmente tornava-se um ser pensante. No entanto, Schütz acabou favorecendo uma integração dos três métodos: o método empírico, para estabelecer os fenômenos; o analítico, para desenvolver hipóteses com base nas observações feitas; e o sintético, para derivar dedutivamente os fenômenos das hipóteses formuladas. Uma década depois, Jean Trembley (1749-1811), um discípulo de Bonnet, autor de alguns dos mais conhecidos trabalhos de psicologia publicados no século XVIII, advogava em favor da tese de que a psicologia deveria seguir a física. Bonnet defendia o papel construtivo da hipótese. Trembley, que estava de acordo com ele quanto a isso, explicava que a física “progrediu apenas depois que se tornou experimental, e que passou a calcular efeitos sem se preocupar com as causas” (Trembley, 1781: 274). A psicologia deveria imitá-la não somente em seus princípios ontológicos, epistemológicos e metodológicos, mas também em sua estrutura como disciplina. O problema com a psicologia é que, como cada autor tenta construir “todo um sistema”, não se consegue examinar nada com profundidade. A física, por sua vez, avançou na medida em que os físicos enfocaram ramos especíicos dessa ciência. A psicologia deveria seguir seu exemplo: Por que razão alguns autores não se ixam na investigação psicológica dos sentidos, na maneira pela qual conhecemos e julgamos os objetos; e outros na história das crianças e mesmo dos animais que, uma vez que 50 são seres dotados de sensibilidade, são em muitos aspectos semelhantes a nós; outros na história das paixões ou nos diferentes tipos de ações dos homens na sociedade; outros na ilosoia da história, etc. A psicologia tornar-se-ia assim uma ciência igualmente vasta e luminosa; cada dia lhe traria novas riquezas e talvez um dia nós pudéssemos reunir todas essas riquezas e ousar empreender uma teoria do homem. Sem dúvida essa é a maneira mais importante de fazer progredir esta ciência […]. (Trembley, 1781: 292-293) O progresso da psicologia dependia do uso de métodos empíricos em combinação com a especialização. A tendência a elaborar sistemas psicológicos tais como os que Trembley criticava continuou por todo o século XVIII. Apesar disso, a crítica de Trembley era um relexo da atitude naturalista daquela época, reforçada pelas tentativas de aplicar o raciocínio matemático ou os modelos físicos aos fenômenos e mecanismos mentais, de combinar observações médicas e psicológicas, de discutir a base anatômica da alma ou de conceituar a isiologia das interações mente-corpo. Tal como ilustrado pela obra de Wilhelm Wundt (1832-1920), considerado o próprio “pai” da psicologia cientíica, mesmo a ciência que se institucionalizou nas décadas inais do século XIX estava longe de ser exclusivamente experimental. A ênfase na ciência de laboratório correspondia aos interesses de uma consolidação institucional. Nos Estados Unidos ela era aclamada como “a nova psicologia”. O livro publicado em 1897 por Edward Wheeler Scripture (1864-1945), um especialista em psicologia da fala e da fonética experimental, recebeu este nome. Esta denominação foi também adotada depois por outros autores. Na França, Théodule Ribot (1839-1916) deu ao seu livro de 1879 A psicologia alemã contemporânea (La psychologie allemande contemporaine), o subtítulo “escola experimental”; desse modo ele chamava atenção para o que deveria ser uma psicologia positiva e cientíica. Ao inal do século XIX, a psicologia acadêmica do Iluminismo já havia sido relegada para o “passado” da disciplina, de tal modo que poderíamos bem pensar que “o século da psicologia” não tinha mais nenhuma relação com ela. No entanto, agora é preciso reconigurá-la como objeto legítimo da história da disciplina. Psicologia: a palavra e o conceito A palavra psychologia popularizou-se inicialmente nos textos sobre a alma usados nas universidades protestantes da Alemanha. Ela apareceu na década 51 de 1570 e foi impressa como título pela primeira vez (em caracteres gregos) em 1590 em uma coletânea de discussões sobre a origem e a transmissão da alma racional (Goclenius, 1590). Psychologia era um neologismo conveniente para introduzir os estudantes no sistema geral das ciências, na medida em que ajudava a localizar a scientia de anima e indicar suas relações com as outras disciplinas. Enraizava-se intelectualmente no retorno do aristotelismo e na adoção, dentro das novas universidades protestantes, do método “escolástico” de raciocínio, caracterizado pela sistematização dedutiva, o formalismo lógico e o rigor conceitual no tratamento da controvérsia ilosóica, doutrinal e religiosa. De acordo com Aristóteles, a alma era deinida como a “forma” do corpo natural que potencialmente tem vida (De anima, 412-420). Um corpo “animado” – empsuchos é a palavra grega original – é, portanto, um tipo de matéria dotada de alma (psuchè, anima), e, portanto, capaz de realizar as funções que deinem os organismos vivos. A alma era dotada de diferentes poderes ou faculdades (às vezes também apresentados como diferentes tipos de alma): vegetativa (incluindo nutrição, crescimento e reprodução); sensível (incluindo os sentidos externo e interno, movimento físico, as paixões e outros apetites sensíveis); e racional ou intelectual (incluindo o entendimento, o juízo e a vontade) (Michel, 2000; ver também os capítulos de K. Park e E. Kessler in Schmitt et al., 1990). Os seres dotados de alma eram hierarquizados de acordo com as faculdades que eles possuíam: as plantas tinham apenas uma faculdade vegetativa;os animais não humanos tinham a vegetativa e a sensível; e os humanos tinham as três faculdades (vegetativa, sensível e racional). Psychologia era, portanto, o nome da ciência geral dos seres vivos e servia como introdução à investigação naturalista das plantas, dos animais e dos humanos. É por esta razão que o estudo do homem ou antropologia (tal como foi chamado nos séculos XVI e XVII) era um ramo da psicologia e não o contrário; é por isso também que ela era freqüentemente entendida como uma descrição anatômica do corpo humano. Ainda que a psicologia izesse parte do conjunto das ciências naturais, a compreensão de que os humanos eram dotados de um intelecto imaterial e a alma supostamente persistia depois da morte fazia com que os discursos sobre a alma fossem por vezes situados no campo da metafísica. A acepção metafísica do conceito icou ainda mais evidente quando, depois de desfeito o quadro do pensamento aristotélico, a alma deixou de ser entendida como princípio da vida, responsável pelas funções não intelectuais, passando a ser idêntica à mente, à razão, à consciência. O livro de John Broughton intitulado Psychologia: 52 or, An Account of the Nature of the Rational Soul (Uma descrição da natureza da alma racional), publicado em 1703, é um exemplo interessante (Broughton, 1703). O autor, um clérigo protestante, tentou demonstrar com o maior rigor que os seres humanos são compostos de duas substâncias heterogêneas. Sua argumentação metafísica se desdobrava, de modo puramente a priori, numa defesa da noção de substância (na época, bastante criticada) como constituindo o substrato, a essência e a condição da existência das coisas (como um princípio explicativo). Seu tratado é um exemplo do tipo de trabalho que fazia com que o termo psicologia fosse difícil de aceitar por aqueles que pretendiam fazer uma ciência empírica da mente. Mas também revela as mudanças no cenário intelectual que abriram espaço para a disciplina da psicologia tal como ela se desenvolveu no século XVIII, a saber, a “mecanização” das funções vegetativa e sensível e a identiicação da alma com a mente. Psicologia e psicologização Em suas aulas de 1770, Immanuel Kant (1724-1804) explicava que a psicologia empírica tinha permanecido no campo da metafísica não apenas porque os limites da metafísica haviam sido mal estabelecidos, mas também porque a psicologia não era suicientemente ampla e sistemática. Mas chegara o momento de a psicologia se tornar uma disciplina acadêmica: A razão pela qual a psicologia foi situada no interior da metafísica é evidentemente a seguinte: ninguém nunca soube realmente o que é a metafísica, apesar de ter sido por tanto tempo objeto de muita explanação. Não se sabia como determinar as fronteiras de seu território e por isso muito do que nele foi posto não era cabível […]. A segunda razão era evidentemente esta: a doutrina empírica dos fenômenos da alma não tinha chegado a qualquer sistema que pudesse constituir uma disciplina acadêmica separada. Se ela fosse tão extensa quanto a física empírica, então ela teria sido separada da metafísica. Mas sendo muito pouco extensa e como não se quis descartá-la inteiramente, empurraram-na para a metafísica […]. Mas ela já se tornou muito ampla e logo atingirá uma magnitude quase tão grande quanto a da física empírica. (Kant, 1968: 223-224) A previsão de Kant para a psicologia empírica como uma disciplina cientíico-natural começou a se conirmar na segunda metade do século XVIII, nas universidades da Alemanha. Nessa época, a psicologia empírica não tinha cátedras ou departamentos, mas entrou no ensino acadêmico, tornou-se um 53 capítulo nos manuais de ilosoia e começou a se disseminar em periódicos e manuais. Esse processo foi acompanhado do que poderíamos descrever como a psicologização da cultura ilustrada. Ainda no século XVIII, o ilósofo inglês John Locke (1632-1704) foi identiicado como o pioneiro indiscutível da tendência psicologizante; seu Essay on Human Understanding (Ensaio sobre o entendimento humano), de 1690, foi devidamente descrito como o “evangelho psicológico” do Iluminismo (Becker, 1955: 64). O historiador da ilosoia Gary Hatield observa justamente que “o empirismo de Locke é bem distinto da tese psicológica de que as habilidades perceptivas humanas são adquiridas através da experiência”. Ele nos alerta para o equívoco de interpretar de modo psicologizante os primeiros autores modernos e do Iluminismo, porque para muitos desses autores “estudar o intelecto humano não era um esforço em fazer com a que a psicologia explicasse a lógica ou a epistemologia, e muito menos praticar a psicologia tal como nós a entendemos hoje, mas investigar a própria faculdade lógica e epistêmica” (Hatield, 1990: 11-12). De fato, o Ensaio de Locke era considerado como uma lógica e não como uma protopsicologia. Contudo, a interpretação psicologizante de Locke se impôs já no século XVIII e foi crucial para o estabelecimento das tarefas e dos contornos da psicologia empírica. O empirismo, uma corrente ilosóica dominante nesse século, deine os elementos básicos da psicologização do século XVIII: rejeição das idéias inatas; crítica dos “sistemas” e da metafísica abstrata e substancialista; apelo à observação e à experiência; e, inalmente a convicção de que todo o conhecimento começa com as impressões sensíveis, de que as idéias correspondem a essas impressões e que as idéias complexas podem ser “decompostas” em elementos mais simples. O sensacionalismo, uma forma de empirismo estreitamente ligado, nesse contexto, a Condillac e seu Essai sur l’origine des connaissances humaines (Ensaio sobre a origem dos conhecimentos humanos) (1754), vai mais adiante e tende a compreender o conhecimento como coextensivo à sensação. Em razão da projeção que o empirismo e o sensacionalismo alcançaram no cenário intelectual do Iluminismo, os historiadores observaram que, no século XVIII, a psicologia (no sentido do discurso psicológico) tornou-se a disciplina básica e estratégica dentro do conjunto das ciências humanas e ilosóicas. Segundo Isaiah Berlin, transformar a ilosoia “em uma espécie de psicologia empírica” (Berlin, 1984: 19) era um projeto da maior importância nessa época. A reforma deveria começar com a primeira ciência, a metafísica. Condillac proclamava a primazia epistêmica e cognitiva da análise e essa 54 abordagem promoveu a psicologização da maneira de pensar. Os princípios empiristas foram sistematicamente aplicados em inúmeras áreas da atividade humana, da lógica à educação, da teoria do conhecimento à ética, da religião à estética. No inal do século XVIII, o pedagogo rousseauniano suíço Johann Heinrich Pestalozzi (1746-1827) já não tinha nenhuma originalidade ao declarar que seu objetivo era psicologizar a educação humana. A lógica e a ilosoia moral são exemplos importantes desse processo. Voltaire (1694-1778), em suas Lettres philosophiques (Cartas ilosóicas) de 1734, declarava que nunca existira “um lógico mais exato” do que Locke e o elogiava por ter escrito uma “história” da alma em oposição aos “romances” que haviam sido produzidos até então. Do mesmo modo, o Discours préliminaire à Encyclopédie explicava que Locke tinha reduzido a metafísica ao que ela deveria ser, “uma física experimental da alma”. O escocês David Hume (1711-1776), no Tratado da natureza humana, airmava que “a única inalidade da lógica é explicar os princípios e as operações de nossa faculdade de raciocinar, e a natureza das idéias” (Hume, 1739-40: xv). Ao unir a lógica ao estudo empírico da mente, os philosophes adotaram não apenas a terminologia contemporânea, mas também a noção de que a análise das faculdades cognitivas constituía a base de uma lógica nova e antiformalista. Tal como foi explicado por James Buickerood, no século XVIII entendese que a inalidade da lógica é expor a “história natural” do entendimento. A lógica da época, portanto, supõe que seu sucesso como uma disciplina normativa depende de descrições precisas e completas das operações cognitivas sobre as quais suas prescrições deveriam se apoiar (Buickerood, 1985: 187). Do mesmo modo que Hatield, Buickerood recomenda cautela ao interpretar as alusões às faculdades cognitivas, cujo contexto de referência original não era necessariamente psicológico. A lógica não era psicologia; mas a tarefa da psicologia era fornecer o conhecimento das operações mentais que a lógica deveria comandar. Na ilosoia moral, enquanto alguns autores insistiam na sensação e na associação como a única fonte das idéias morais, outros argumentavam em favor da existência de um “sentido moral”. Ambos os lados, entretanto, compartilhavam a mesma coniança e o mesmo otimismo na capacidade de aperfeiçoamento da espécie humana, e acreditavam na existência de mecanismos inatos que tornavam possível o avanço moral. Locke enfatizava o papel do hábito, e o encycopédiste materialista francês Claude-Adrien Helvétius (1715-1771), em seu De l’homme, de ses facultés intelectuelles et de son éducation (Do homem, suas faculdades intelectuais e sua educação) (1752), sustentava que 55 a educação tinha total poder de moldar o indivíduo. Já em seu Inquiry into the Origin of Our Ideas of Beauty and Virtue (Investigação sobre a origem de nossas idéias de beleza e virtude) (1752) e em outras obras, Francis Hutcheson (16941746), professor de ilosoia moral em Glasgow e um dos primeiros utilitaristas, expunha sua tese de que Deus havia dotado o homem com um sentido moral universal, uma capacidade de produzir idéias de ações “agradáveis ou desagradáveis”. Segundo Hutcheson, as ações benevolentes são virtuosas porque elas nos agradam e é por isso que as procuramos. Como todas as outras faculdades psicológicas, o sentido moral pode às vezes falhar, mas isso não o torna menos universal. Alguns anos depois da publicação do Inquiry de Hutcheson, seu discípulo Adam Smith (1723-1790), e também professor de ilosoia moral em Glasgow, publicou uma Theory of Moral Sentiments (Teoria dos sentimentos morais) (1759) onde são expostas as bases psicológicas de seu The Wealth of Nations (A riqueza das nações) (1776). Evidentemente, muito mais poderia ser dito sobre a lógica e a ilosoia moral, além de outros campos. Neste esboço, ilustro apenas resumidamente as áreas onde as fontes dos fundamentos do juízo e da prática não eram buscadas em regras formais ou tradições consolidadas, mas antes no conhecimento empírico da natureza e da mente humana. Embora geralmente se desconheça a maioria das publicações que portavam o nome psicologia, as pesquisas acerca dos diferentes domínios da psicologização levaram a descrições muito diferentes da psicologia do século XVIII, justiicando a visão do Iluminismo como o “século da psicologia” (ver, por exemplo, Rousseau, 1980; Porter, 1995). A psicologia no contexto nacional Do mesmo modo que a psicologização de diferentes domínios se deu sob condições de grande diversidade metodológica e doutrinária, o desenvolvimento da psicologia como disciplina e como corpus de um pensamento psicológico apresentou variações signiicativas através de fronteiras geográicas e lingüísticas. A “ciência do homem” – da psicologia e da “economia animal” à moral e à economia política – era par excellence a “investigação escocesa” do Iluminismo. A abordagem escocesa da mente era marcada pela “tentativa de introduzir o método experimental de raciocínio nos assuntos morais”, tal como proclamado no subtítulo do Tratado da natureza humana de David Hume (Bryson, 1945). O que se fazia em psicologia não portava inicialmente esse 56 nome. Por exemplo, a Encyclopædia Britannica (1768-1771), totalmente lockeana em sua interpretação, deinia a psicologia como o “conhecimento da alma em geral e da alma do homem em particular” (3: 175). Ao associar a psicologia às discussões anteriores sobre as origens e a essência da alma ou aos debates sobre a imaterialidade e imortalidade, a Encyclopedia declara implicitamente que, apesar das “mais profundas, das mais sutis e abstratas pesquisas […], é extremamente difícil airmar qualquer coisa [a respeito da alma] que seja racional, e ainda mais difícil, que seja positivo e bem fundado” (3: 175). Um tal juízo implicava uma rejeição da “psicologia” como uma legítima ciência empírica da mente: esta era a lógica, uma ciência que visava à explicação “da natureza da mente humana e da própria maneira de exercer seus vários poderes” (2: 984-1003). A “ilosoia da mente humana” dos escoceses – tal era o objeto dos Elements publicados em 1792-1827 pelo professor de ilosoia moral de Edimburgo Dugald Stewart (1753-1828) – não era normalmente chamada “psicologia”. A própria palavra, contudo, não era desconhecida. Em suas Observações sobre o homem, o médico e ilósofo David Hartley (1705-1757) situava a “psicologia, ou teoria da mente humana, junto com os princípios intelectuais dos animais brutos” dentro da ilosoia natural, ao lado da mecânica, da hidrostática, da pneumática, ótica, astronomia, química, medicina e outras teorias das artes e ocupações manuais (Hartley, 1749: 223). No início da década de 1760, na Universidade de Aberdeen, o professor de ilosoia moral James Beattie (1735-1803) lecionava “psicologia ou ciência da natureza dos vários poderes ou faculdades da mente humana” (Beattie, 1790: 1); embora ele considerasse a psicologia parte da pneumatologia (doutrina das substâncias espirituais), ele a separava completamente das discussões sobre a imortalidade e a imaterialidade da alma. Uma abordagem empírica e naturalista dos poderes da mente – lockeana e sensualista inicialmente e em seguida dominada pela ilosoia anticética do “senso comum” – disseminou-se por todo o Iluminismo escocês, sendo tomada como a base da lógica, da estética, da ilosoia moral e política, e constituindo os fundamentos do ensino acadêmico dessas disciplinas. A primeira coisa a se notar na França é que a palavra psicologia, embora conhecida, era ausente do vocabulário ilosóico corrente. É evidente que a agenda anticlerical e anti-religiosa dos philosophes – aqui não no sentido geral de “ilósofo”, mas referindo-se especiicamente aos franceses assim conhecidos na época (e desde o século XVIII) – contribuiu para estigmatizar uma disciplina cujo nome incluía o termo alma e que, portanto, parecia estar associada aos ensinos obscuros da “escolástica” e ao uso de conceitos 57 que eram considerados sem sentido. O próprio Condillac recusou-se explicitamente a usar esse nome. A ciência que aplica o método de análise para descobrir a “origem e a geração” das idéias seria a primeira ciência; mas uma tal ciência, escrevia ele, é tão nova que não tem ainda um nome: “eu a chamaria psicologia, se conhecesse qualquer trabalho de boa qualidade com esse título” (Condillac, 1947-51: 29). Os descendentes intelectuais de Condillac reproduziram a atitude de seu mestre. Destutt de Tracy (1754-1836) inventou a palavra “ideologia” (idéologie) para designar a “análise do pensamento” no lugar de “psicologia”, que, segundo ele, signiicava “a ciência da alma” e evocava “a vaga busca de causas primeiras” (Tracy, 1992: 71). No início do século XIX, em suas aulas nas Escolas Normais (Écoles Normales) criadas pela Revolução Francesa, o escritor e político Dominique-Joseph Garat (1749-1833) rejeitou a palavra em favor da expressão lockeana “análise do entendimento” (Garat, 1800: 149-150). Esses são os autores que nos vêm à mente quando pensamos na psicologia do século XVIII na França. Os philosophes, contudo, debatiam constantemente com católicos tais como o abade Joseph Adrien Lelarge de Lignac (1710-1762), cujas respostas ao sensacionalismo radical, embora quase inteiramente esquecidas, eram notáveis e mereceriam hoje ser novamente situadas no contexto do Iluminismo francês (Lignac, 1753, 1760). Geralmente, no quadro de uma defesa do cristianismo contra o que era percebido como materialismo e fatalismo, os críticos dos philosophes enfatizavam a atividade da mente e a unidade do eu (self) e da consciência em oposição ao trabalho mecânico de uma máquina orgânica que passivamente responderia à estimulação externa. A narrativa histórica usual acerca da evolução do pensamento psicológico no Iluminismo francês começa com os esforços de superar o dualismo cartesiano e com a tese de que os homens são seres inteiramente naturais cujas funções psicológicas podem ser empiricamente estudadas. A crítica à noção de uma alma substancial indivisível que formaria o eu e se manteria subjacente ao comportamento humano levou a diferentes estratégias. Uma delas era a descrição dos efeitos externos dos “movimentos” da alma, tais como a isionomia ou a expressão das paixões. Numa segunda estratégia, os conceitos metafísicos foram reformulados como noções empíricas. A alma foi assim substituída por mente (esprit) e depois por moral. A terceira estratégia era a anexação materialista desses conceitos. Do “Sistema da natureza” (Système de la nature, 1770) do philosophe determinista Paul-Thiry d’Holbach (1723-1789) ao “Relatório sobre o físico e o moral do homem” (Rapports du physique et du moral de 58 l’homme, 1802) do médecin-philosophe Pierre-Jean-Georges Cabanis (1757-1808), a alma tende a desaparecer do discurso da ciência do homem. Do mesmo modo que em outros países da Europa, o empirismo entrou nos tratados de educação e inspirou a reforma pedagógica e também as ilosoias que enfatizavam a sensibilidade e o “coração”. Na virada do século XVIII, a psicologia francesa viveu um breve período de existência institucional. Depois da revolução, os idéologues contribuíram para a criação de diversas instituições públicas de ensino e pesquisa e assim tiveram ocasião de realizar e disseminar suas idéias psicológicas, pedagógicas e políticas. A psicologia, portando seu próprio nome, entretanto, só entrou no ensino acadêmico depois de Napoleão proscrever os idéologues e principalmente depois da Restauração monárquica que sucedeu a queda do regime napoleônico. Mas ela era então espiritualista mais do que sensacionalista e fortemente inluenciada pela ilosoia escocesa do senso comum. A Alemanha, que não era ainda um país uniicado no século XVIII, era a principal produtora de psicologias, e onde a psicologia foi mais longe na institucionalização e conquista de um status de disciplina (Dessoir, 1902). A palavra psicologia, que (como vimos) apareceu no inal do século XVI nas universidades protestantes, era usada com freqüência no Aufklärung ou Iluminismo alemão. Seu destino no século XVIII estava vinculado inicialmente ao sistema ilosóico de Christian Wolff (1679-1754), que dominava o ensino da disciplina até o surgimento da ilosoia crítica de Kant. A obra monumental de Wolff tratava praticamente de todas as áreas do conhecimento; seu objetivo era uniicar a razão e a experiência e garantir à ilosoia a certeza que era reservada à matemática, mas que era característica da scientia como a disposição ou capacidade de demonstrar suas airmações a partir de princípios estabelecidos (habitus asserta demonstrandi) (Wolff, 1728: § 30). Wolff deiniu os objetos da ilosoia como Deus, a alma humana e os corpos materiais e dividiu seu reino em lógica, metafísica, ilosoia prática, física, ilosoia das artes (tecnologia e a ilosoia das artes liberais e da medicina) e a ilosoia da jurisprudência. Ele organizou as disciplinas de acordo com sua dependência de princípios fornecidos por outras disciplinas. A metafísica ou “ciência do ser, do mundo em geral e dos espíritos” (Wolff, 1728: § 79) incluía, em ordem de dependência, a ontologia, a cosmologia geral, a psicologia empírica, a psicologia racional e a teologia natural. Os manuais acadêmicos de Wolff seguiam essa estrutura, e foi através deles que a psicologia entrou no currículo de ilosoia com seu próprio nome. 59 Uma vez que a ilosoia era a “ciência dos possíveis à medida que eles podem ser”, a psicologia era a ciência das coisas que são possíveis através da alma humana (scientia eorum quae per animas humanas possibilia sunt) (Wolff, 1728: § 58). Como todas as outras ciências no sistema de Wolff, a psicologia podia ser abordada de duas maneiras: empiricamente e racionalmente, a primeira dava origem a um conhecimento a posteriori dos seres e das coisas materiais e imateriais, e a segunda a um conhecimento a priori de sua essência, de sua razão ou possibilidade. Do mesmo modo, cada psicologia tinha seu método próprio. A psicologia racional (daqui em diante, PR) procedia por dedução a partir de “deinições, experiências indubitáveis, axiomas e proposições já demonstradas” (PR, § 3). A psicologia empírica (daqui em diante, PE) usava a observação e podia usar a experimentação (PE, §§ 458, 459). A observação é a experiência que nós temos dos fatos da natureza sem nossa intervenção (PE, § 456) e a experiência é a “cognição do que é evidente apenas mediante nossas percepções” (Wolff, 1728: § 664). Na psicologia empírica, o conhecimento era possível “através das ocorrências em nossas almas das quais nós temos consciência” (PE, § 2), o que Leibniz chamava de “apercepção”. A Psychologia empirica de Wolff enfocava a vida interior da alma, excluindo as relações isiológicas e corporais. A primeira parte do tratado lida com a alma em geral (sua existência provada por um argumento semelhante ao cogito cartesiano) e suas faculdades cognitivas: percepção, sentidos, imaginação, facultas ingendi (imaginação criativa), memória, atenção e refexão, e intelecto. A segunda parte analisa a passagem do conhecimento para o “apetite” e a aversão. Ela examina o prazer e o desprazer como intuições da perfeição e da imperfeição (e propõe a “psicometria” como uma ferramenta para o estudo de seus vários graus); o bem e o mal em termos de inclinações da alma; as paixões e outros estados mentais, o apetite e a aversão racional, todos em relação ao prazer/desprazer e ao problema da liberdade. Uma seção inal descreve a interação da alma e do corpo. A psicologia empírica fornecia os princípios para a lei natural, a teologia natural e a lógica (PE, §§ 6-10). A Psychologia rationalis, por sua vez, visava à explicação a priori dos fatos apresentados na psicologia empírica através da dedução de axiomas e proposições provadas. A primeira delas é a deinição da alma como um poder ou faculdade de representação do universo (vis representativa universi), cuja primeira atividade é a sensação (PR, §§ 66, 67). Ela começa com o conceito ou a essência da alma: um ser consciente de si e das coisas externas, capaz portanto não apenas de percepção, mas também de representação e apercepção. Com base nessa deinição, a psicologia racional dedutivamente 60 explicava as faculdades e as operações da alma; ela avaliava as diferentes explicações para a correspondência entre elas e os movimentos do corpo; tratava da natureza dos espíritos (substâncias dotadas de intelecto e livrearbítrio) e da espiritualidade da alma, sua origem, sua união com o corpo e a imortalidade; e concluía com uma seção sobre a alma dos animais. A psicologia racional, explicava Wolff, não era capaz de produzir conhecimentos empíricos novos, mas ela “aumenta nosso discernimento na observação do que acontece em nossa alma” e “revela aspectos da alma que não são acessíveis apenas pela observação” (PR, §§ 8, 9). Enquanto os manuais de Wolff foram usados nas universidades alemãs, até a metade do século XVIII, a psicologia era abordada fundamentalmente como uma ciência empírica. A ênfase no empírico era também demonstrada pelo fato de que duas das três popularizações da psicologia de Wolff que apareceram na década de 1750 em língua francesa continham somente sua psicologia empírica. Isto reletia ou, pelo menos, estava em acordo com um crescente interesse na antropologia. Tal como já foi mencionado, os usos iniciais da antropologia enfatizavam a anatomia e a isiologia humanas. No século XVIII, a antropologia ganha autonomia e, concedendo mais ou menos peso à psicologia, à medicina, à isiologia ou à ilosoia, ela veio a encarnar o projeto de uma “ciência do homem” (Linden, 1976). Ao oferecer um objetivo e um ideal uniicado de um conhecimento total e coerente sobre a “história da humanidade”, tal projeto desempenhou um papel heurístico importante no desenvolvimento inicial das ciências humanas em sua pluralidade. E isso se aplicou inteiramente à psicologia, como veremos abaixo. Enfim, a invenção de uma tradição psicológica foi crucial para o desenvolvimento da psicologia como disciplina (Vidal, 2000). Foi o que aconteceu na seleção de autores e trabalhos “psicológicos” e na emergência da história da psicologia como um gênero historiográico. Com isso, foi reforçada a autonomia nascente da psicologia e o domínio da psicologização foi ampliado para a história da humanidade de um modo geral. O capítulo mais longo do que, provavelmente, é a primeira bibliograia a considerar a psicologia empírica como um assunto distinto é dedicado à literatura da “psicologia ou lógica” (Hißmann, 1778: §§ 71-107). Trata-se de uma bibliograia com notas explicativas sobre a psicologia em geral; sobre a lógica; a sensação e os sentidos; a história da teoria das idéias, vários fenômenos e faculdades psicológicas; e inúmeros tópicos “lógicos” e metodológicos. A própria classiicação relete a psicologização da lógica. Como explica o autor, 61 à medida que deine as regras para o melhor uso dos poderes da alma humana, a lógica pertence à psicologia (Hißmann, 1778: § 8). E mais ainda: Uma vez que a psicologia, como teoria do entendimento humano, constitui metade da ilosoia, e uma vez que as considerações da outra metade referem-se a ela, os conteúdos dos escritos que lidam com o entendimento humano intervêm de várias maneiras nas áreas da psicologia que têm a vontade humana como seu objeto próprio. Essa é a razão pela qual esses escritos podem ser empregados proveitosamente em assuntos práticos. Por outro lado, há escritos em psicologia que, de fato, desenvolvem um assunto [relevante para] a ilosoia prática geral, através dos quais fazem-se muitas considerações importantes para a ilosoia teórica. […] (Hißmann, 1778: § 71) A organização bibliográica dos tópicos ilosóicos concentra-se na defesa de uma reforma das disciplinas ilosóicas, especialmente através da assimilação da lógica à psicologia, bem como por uma diferenciação clara das investigações empíricas e metafísicas da alma. A bibliograia, portanto, ao mesmo tempo reletia e contribuía para estabelecer as fronteiras do crescente domínio da psicologia. A ampliação do cânone psicológico abrangia o passado. O aparecimento do tratamento historiográico da psicologia foi simultâneo ao desenvolvimento da psicologia empírica. Ele surgiu num momento de expansão da historiograia da física e das ciências naturais, mas estava enraizado na história da ilosoia. Durante o século XVIII, na Alemanha, a história da ilosoia deslocou-se da erudição para o criticismo kantiano através de uma perspectiva eclética e de uma ênfase na história como progresso. No inal desse século, a história da ilosoia enfatizava a relevância das obras ilosóicas como manifestações de uma cultura e tornou-se uma maneira de fazer ilosoia. De modo semelhante, a história da psicologia passou a ser vista como uma contribuição para a história psicológica e espiritual da humanidade. As primeiras formas desse gênero novo reconstruíam a “psicologia empírica” de ilósofos anteriores tais como Aristóteles, ou incluíam a psicologia como um domínio autônomo dentro da história das idéias ilosóicas. Em 1808 surgiu, postumamente, uma História da psicologia de 770 páginas, a primeira em seu gênero. Seu autor, o professor Friedrich August Carus (1770-1807), de Leipzig, descreveu um progresso que ia das idéias míticas sobre a alma e a ausência de um sentido do eu, até a psicologia empírica e a disciplina autônoma de sua própria época. Para Carus, portanto, a história da psicologia – tanto como processo histórico como um gênero historiográico – tinha uma participação no progresso da consciência e relexividade humanas (Carus, 1808). 62 Enfim, ilustrando um movimento característico do Aufklärung, os autores psicológicos às vezes adotavam formas “populares” (ensaios, romances, jornalismo) ou (como o próprio Carus) abandonavam quase inteiramente a linguagem intelectualizada e abstrata das faculdades mentais da psicologia de Wolff em favor de narrativas mais “psicológicas” (no nosso sentido) e existenciais, que freqüentemente recorriam ao termo “sentimento de si” (Selbstgefühl) como fonte principal de dados psicológicos. Um exemplo importante desse desenvolvimento é a Revista de Psicologia Empírica (Magazin zur Erfahrungs-Seelenkunde) (Moritz, 1783-93), sendo que aqui se poderia dizer também “experiencial”, editada pelo escritor Karl Philipp Moritz (1756-1793), que se tornou conhecido por seu “romance psicológico” de 1785-90, Anton Reiser. Convencido de que o autoconhecimento era o caminho tanto para a saúde espiritual individual quanto para o aperfeiçoamento da humanidade, Moritz publicou inúmeros estudos de casos normais e patológicos, auto-observações e relatos de sonhos de diversos colaboradores da revista (Kaufmann, 2000). Na Crítica da razão pura (1781), Immanuel Kant negou a validade de qualquer psicologia racional (Hatield, 1992; Mischel, 1967). Ele argumentava que as airmações a respeito da essência, da natureza e da relação da alma com o mundo material derivavam da proposição “Eu penso”, que é baseada numa experiência a posteriori. A psicologia, portanto, só pode ser empírica, e, conseqüentemente, não uma “ciência” no sentido de ser capaz de produzir evidência demonstrativa. Ela poderia proporcionar, no máximo, relatos “históricos” (descritivos, a posteriori) da alma. Além disso, ela não poderia ser submetida à análise matemática e, dada a não-coniabilidade da introspecção, ela deveria se apoiar na história, na biograia, na literatura e nos relatos de viagem. A crítica kantiana deiniu alguns problemas fundamentais da psicologia alemã do início do século XIX (Leary, 1978, 1982). Contudo, o que Kant escreveu e lecionou sobre a psicologia ajustava-se ao contexto do desenvolvimento da psicologia empírica e da antropologia na Alemanha do inal do século XVIII, correspondia às suas próprias idéias em relação à psicologia como uma disciplina universitária e estava intimamente ligado ao que ele chamou de “antropologia do ponto de vista pragmático”, isto é, o estudo (de um modo geral, psicológico) “do que o homem, como um ser que age livremente, faz ou poderia e deveria fazer de si próprio” (Kant, 1798: 119). 63 Psicologia, as ciências humanas e o destino do homem A psicologia no século XVIII precisa ser considerada, no quadro geral da “antropologia”, de duas maneiras: como uma “ciência do homem”, que incluía os temas principais das “ciências humanas”, e como uma visão geralmente cristã da constituição e do destino da humanidade. Em 1966, Michel Foucault declarava que nos séculos XVII e XVIII “o homem não existia” (Foucault, 1966: 355-356). Contra essa declaração tão airmativa, é inevitável que sustentemos que o entendimento do “homem” como um indivíduo e um ser social estava no centro de quase todos os domínios do pensamento. Todo trabalho clássico sobre o Iluminismo reconhece a importância da ciência do homem. A historiograia pós-foucaultiana considera mais cuidadosamente seus detalhes e seu contexto e retoma as questões sobre as continuidades e descontinuidades entre as ciências humanas e sociais institucionalizadas no inal do século XIX e no século XX e as várias formas da ciência do homem do século XVIII (Fox et al., 1994; Olson, 1993, 2003). No caso da psicologia, enfatizam-se seu enraizamento na ciência do homem e suas conexões com os múltiplos projetos que a compunham (Smith, 1997). Um bom exemplo de como a psicologia foi entendida como pertencendo à ciência do homem é dado na revisão protestante da Encyclopédie de Diderot e d’Alembert. Publicada na cidade suíça de Yverdon em 1770-1775, ela examinou as noções de psicologia e antropologia muito mais amplamente do que a famosa enciclopédia francesa modernizando seu vocabulário, harmonizando a ciência do homem com a visão de mundo cristã e incorporando idéias que estavam sendo desenvolvidas na Alemanha e na Suíça. O artigo sobre antropologia poderia ser considerado como um sumário programático. A antropologia, explicava ele, nos ensinaria a conhecer, 1o as origens do homem; 2o os diferentes estágios pelos quais ele passa; 3o suas qualidades ou afeições; 4o suas faculdades ou ações das quais podem ser deduzidas; 5o um conhecimento de sua natureza; 6o de suas relações; 7o de sua destinação; e 8o das regras que ele deve seguir para conformar-se adequadamente a isso. A Antropologia dependeria assim de todas as ciências e delas ela tiraria ou daria seus princípios e reportaria ao homem todas as conseqüências para sua utilidade, isto é, para sua conservação, sua perfeição e felicidade. (Mingard, 1770-1775: 22) O autor associa a antropologia principalmente à ilosoia, à história natural, à fisiologia, à metafísica e à psicologia. São elas as disciplinas 64 antropológicas fundamentais; juntas elas formam a ciência do homem e só têm valor à medida que possam contribuir para atualizar a “perfectibilidade” da humanidade. A perfectibilidade, uma palavra-chave do Iluminismo, tornou-se freqüente depois que Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) a usou em seu Discours sur l’origine et les fondements de l’inégalité (Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade) (1775). De acordo com o ilósofo genebrês, ao retirar o homem de sua “condição originária”, a perfectibilidade era a fonte da miséria humana. Voltaire questionava o pessimismo de Rousseau e defendia a tese de que a humanidade se aperfeiçoa dentro dos limites impostos pela natureza. Mais tarde, em seu Esquisse d’un tableau historique des progrès de l’esprit humain (Esboço de um quadro histórico dos progressos do espírito humano) (1795), o Marquês de Condorcet (1743-1794) veio a airmar que a perfectibilidade não tinha limites. De qualquer modo, a perfectibilidade era em geral considerada um dos aspectos mais importantes da espécie humana. Ela consistia na aquisição de novos poderes e principalmente no desenvolvimento em direção à felicidade e à perfeição das capacidades que os homens já têm em conformidade com as leis da natureza (como na Enciclopédia Yverdon) e a vontade de Deus. A ciência do homem que Hume e os philosophes franceses promoviam estava estreitamente ligada a uma crítica da religião. Mas esse não era o caso da maioria dos autores engajados na psicologia e na antropologia. Como vimos, a ciência do homem e as disciplinas que ela envolvia eram mutuamente dependentes. A psicologia era a disciplina antropológica crucial por duas razões. A primeira era didática e epistemológica e consistia no método e no objeto de estudo: a “análise” era proposta como paradigma do conhecimento legítimo e o esclarecimento dos mecanismos envolvidos no conhecer era a condição da aquisição e da crítica do próprio conhecimento. De acordo com Hume, por exemplo, os princípios de associação (semelhança, contigüidade no tempo ou no espaço e relação de causa e efeito) eram equivalentes ao princípio de atração universal de Newton. Mas nem todos os Newtons da mente aceitavam que a mente era redutível à matéria em movimento. Ao contrário, a maioria dos psicólogos do século XVIII concordava com a deinição cristã do homem como composto de corpo e alma. Nos séculos XVII e XVIII, três posições davam as coordenadas das discussões sobre a união da alma com o corpo. De acordo com o sistema da inluência física, as duas substâncias afetavam uma a outra materialmente. No “ocasionalismo” do cartesiano Nicolas Malebranche (1638-1715), Deus é o agente causal de sua união. Por exemplo, quando a alma desejava mover 65 o corpo, era Deus que o fazia mover-se. Finalmente, Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716) via a relação entre a alma e o corpo como regulada por uma harmonia preestabelecida, como dois relógios sincronizados. Os escritos psicológicos diferenciavam sistematicamente a união e a interação da alma e do corpo. Enquanto a união era aceita como um fato conirmado pela fé, pela razão e pelo sentido interno, ainda que em si mesmo misterioso, sua interação era considerada um tópico da pesquisa empírica que poderia ser estudado através do exame de fenômenos que pareciam manifestar a dependência mútua entre a alma e o corpo (Vidal, 2003). Já nas primeiras linhas de seu Essai de psychologie (Ensaio de psicologia), Charles Bonnet formulou a premissa da psicologia empírica do Iluminismo: “Nós só conhecemos a alma através de suas faculdades; nós só conhecemos tais faculdades através de seus efeitos. Estes efeitos tornam-se aparentes somente através da intervenção do corpo” (Bonnet, 1755: 1). E no prefácio do Essai sur les facultés de l’âme (Ensaio sobre as faculdades da alma): A alma age em seu corpo e através de seu corpo. Portanto, devemos sempre nos voltar ao corpóreo como primeira origem de tudo que a alma experimenta. Não sabemos melhor o que é uma idéia na alma do que é a própria alma. Sabemos, porém, que as idéias estão ligadas à atividade de certas ibras e nós podemos, portanto, raciocinar sobre essas ibras porque nós vemos essas ibras; podemos estudar um pouco seus movimentos, os resultados desses movimentos e as conexões entre as ibras. (Bonnnet, 1760: xxi-xxii) Admitidos tais princípios, fazia sentido investigar empiricamente as operações de uma substância imaterial tal como elas se davam no interior de si própria e tal como elas se manifestavam nos outros. O postulado da existência dessa substância não era de modo algum obstáculo à psicologia empírica. E mais ainda, esta crença dava alento às psicologias que se baseavam em especulações neurológicas e atribuía um importante papel ao cérebro, como sede da interação entre a alma e o corpo, e aos nervos, como os órgãos responsáveis por essa interação. Daí então a segunda razão para a preeminência da psicologia: entre as disciplinas que, da economia animal à economia política, compunham a ciência do homem, a psicologia era aquela cujo objeto próprio virtualmente coincidia com a deinição de ser humano. Isto poderia ter a conseqüência aparentemente paradoxal de manter o estudo psicológico inseparável do estudo do corpo e principalmente do sistema nervoso, ao mesmo tempo em que fornecia sustentação à antropologia cristã que ela pressupunha. Hartley, 66 que concluiu suas Observations on Man (Observações sobre o homem) vinculando a psicologia à doutrina da ressurreição do corpo, entendia que as “sensações surgem na alma a partir dos efeitos excitados na substância medular do cérebro”, mas ele se recusava a explicar como isso acontecia. “É suiciente para mim”, dizia ele, “que haja uma certa conexão, de algum tipo, entre as sensações da alma e os efeitos excitados na substância medular do cérebro; que é tudo o que concedem os médicos e ilósofos” (Hartley, 1749: 320-321). Bonnet também teve que se defender da suspeita de materialismo, enfatizando sua conformidade com a doutrina cristã: Se alguns de meus leitores achassem que eu faço a alma depender excessivamente do corpo, eu pediria que considerassem que o homem é, em razão de sua própria natureza, um ser composto, necessariamente constituído por duas substâncias: uma espiritual e outra corporal. Eu mostraria que tal princípio é por isso mesmo o próprio princípio da REVELAÇÃO, que a doutrina da ressurreição do corpo é sua conseqüência imediata. Longe de opor-se ao philosophe deísta, um dogma tão claramente revelado deveria, ao contrário, mostrar-se a ele como um pressuposto favorável à verdade da RELIGIÃO, já que é tão perfeitamente consistente com o que nós conhecemos com mais certeza sobre a natureza de nosso ser. (Bonnet, 1755: 3-4) A fazer depender tão intimamente a alma do corpo, a psicologia empírica ao mesmo tempo aceitava e validava o princípio de união da alma e do corpo. Na visão de Bonnet, a natureza “mista” dos seres humanos era a chave para os dogmas cristãos da encarnação e da ressurreição; por sua vez, a chave para nossa natureza mista estava nos nervos, como intermediários entre a alma e o corpo, e no cérebro, como sede da alma (Vidal, 2002). Em suma, Hartley e Bonnet, os dois psicólogos iluministas mais neuroisiológicos, integravam as promessas cristãs de ressurreição e vida eterna em seus trabalhos especulando sobre os mecanismos psicoisiológicos e não airmando uma crença religiosa. Observações finais O século XVIII foi, de várias maneiras, “o século da psicologia” – tanto para o historiador que se dedica ao Iluminismo de um modo geral, quanto para os historiadores da lógica, da estética, da ilosoia ou da educação, e isso em razão da psicologização que ocorreu nesses e em outros domínios. Esta 67 airmação também é válida para o historiador das ciências humanas, porque a psicologia empírica se transformou durante o século XVIII num campo de investigação protoproissional autônomo e, como tal, tornou-se um suporte teórico para a psicologização de outros saberes. Além disso, a psicologia se impôs como disciplina antropológica crucial e mesmo como a primeira ciência de todo o sistema do conhecimento por duas razões. Primeiramente, ela mostrava como os seres humanos naturalmente adquiriam conhecimento (das sensações aos conceitos), e assim indicava os melhores métodos de investigação empírica para todas as outras ciências. Embora os métodos de observação e a experiência já tivessem sido proclamados como os mais apropriados para as ciências empíricas, o método psicológico de “análise” conirmava seu valor e demonstrava que eles eram de fato os meios naturais pelos quais se dava a aprendizagem humana. Em segundo lugar, na medida em que o objeto da psicologia era a alma unida ao corpo e interagindo com ele, a psicologia era o “fundamento” e o “guia” de todas as ciências, fornecendo conhecimentos sem os quais, tal como escreveu o pastor Mingard, citado no início deste capítulo, “nós não podemos julgar nada, decidir sobre nada, determinar nada, escolher nada, preferir nada, fazer nada com segurança e sem erro”. Certamente, nem todo intelectual do Iluminismo compartilhava essa opinião; mas ela desempenhou um papel essencial e inspirou a própria constituição da psicologia. Enim, a psicologização e o desenvolvimento da psicologia empírica como disciplina estavam ligados organicamente. A tendência a psicologização funcionava como uma condição de possibilidade da constituição da disciplina; reciprocamente, a disciplina que emergia justiicava e estruturava a psicologização fornecendo coordenadas comuns para suas diversas manifestações. As conseqüências sociais desse processo foram muitas. No século XX, a psicologia proissional tornou-se o que ela ainda é hoje – um mecanismo maior de deinição das normas para o ser humano e sua conduta, e para o controle de seu funcionamento (Rose, 1996). O caminho em direção a esse posto de controle foi pavimentado no século XVIII. O Iluminismo deveria supostamente trazer ao homem sua liberdade. De acordo com Kant, tratava-se de abandonar “a imaturidade em que a própria pessoa se mantinha” e ganhar coragem para usar seu próprio entendimento (Kant, 1784). Kant não foi o único a propor uma deinição para o Iluminismo, e nem todos os autores a compartilhavam (Schmidt, 1996). Os psicólogos, porém, concordavam que a psicologia era parte de um projeto que ajudaria a humanidade a avançar no caminho de sua perfectibilidade. A psicologia empirica, entretanto, logo veio 68 a apoiar formas de autoridade que, à medida que resultavam supostamente de um conhecimento da natureza humana, mostravam-se mais inexoráveis do que aquelas que haviam sido forjadas por tradições seculares e religiosas, contra as quais os homens podiam inalmente se rebelar (ver um exemplo disso em Vidal, 2004). Neste sentido, também, a psicologia acabou sendo a “mais útil de todas as ciências”. Referências bibliográficas Anônimo. (1745) Psychologie ou Traité sur l’âme, contenant les connoissances, que nous en donne l’expérience. Par M. Wolff. In: Wolff, Gesammelte Werke, III. 46. Azouvi, François. (ed.) (1992) L’institution de la raison. La révolution culturelle des ideologues. Paris: Vrin. Beattie, James (1790) Elements of Moral Science. Edinburgh: printed for T. Cadell. Becker, Carl L. (1955 [1932]) The Heavenly City of the Eighteenth-Century Philosophers. New Haven: Yale University Press. Berlin, Isaiah. 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Assim, vamos nos deter neste capítulo em uma vertente historiográica que se denomina história das idéias psicológicas e que se refere ao estudo da elaboração dos conhecimentos psicológicos ao longo do tempo nas diferentes culturas. Indica-se com este nome a reconstrução de conhecimentos e práticas psicológicas presentes no contexto de culturas e sociedades especíicas, expressivos das diversas “visões de mundo” que as caracterizam. Entende-se por visão de mundo aquele conjunto de aspirações, de sentimentos e de idéias que reúne os membros de um mesmo grupo e os diferencia de outros grupos sociais. Evidenciaremos a seguir alguns tópicos da produção cultural brasileira do período entre o século XVI e o início do século XIX que podemos reconhecer como signiicativos para a história dos conhecimentos psicológicos na cultura ocidental. Os jesuítas como portadores e transmissores de idéias psicológicas Ordem religiosa recém-surgida quando da vinda de seus padres missionários ao Brasil junto à armada do governador geral português Tomé de Souza em 1549, a Companhia de Jesus originara-se num contexto cultural muito fecundo da Europa da época. Seus inícios aconteceram no âmbito de um pequeno grupo de docentes e alunos da Universidade de Paris, local de convergência da tradição medieval e dos novos fermentos do Humanismo e do Renascimento. Inclusive alguns dos membros da Companhia foram 75 ilustres representantes dessa corrente de pensamento. Além disso, a identidade hispânica de seu fundador, Inácio de Loyola (1491-1556), e de vários entre os primeiros adeptos,1 proporcionava a colocação da Companhia no âmago de um dos mais importantes movimentos culturais da Europa da época: a Segunda Escolástica ibérica, escola ilosóica que tencionava abarcar e discutir as novas teorias dos ilósofos renascentistas e ao mesmo tempo manter uma ligação estreita com a tradição ilosóica cristã. A proveniência portuguesa ou hispânica de grande parte dos jesuítas que após 1549 chegaram ao Brasil e o fato de sua formação espiritual e intelectual ter sido realizada no Colégio das Artes de Coimbra, que fora um dos focos do referido movimento ilosóico, reforçam ainda mais a signiicação do papel cultural que os jesuítas assumiram no Brasil: o de serem portadores e transmissores da tradição medieval e renascentista da Europa no contexto da colônia além-mar, sendo que propiciaram e em parte se encarregaram de realizar o enxerto das idéias, sonhos e desilusões, riquezas e contradições do Velho Mundo no terreno fecundo, virgem e desconhecido do Mundo Novo, onde irão estabelecer sua morada. A educação é tida pelos religiosos – imbuídos do espírito da pedagogia humanista – como instrumento privilegiado para criar um homem novo e uma nova sociedade na Terra de Santa Cruz, sendo que a criação de escolas constituíra-se um dos objetivos prioritários do plano missionário da Companhia. Tal empreendimento acarretava a necessidade de formular conhecimentos e práticas que, na nossa linguagem atual, designaríamos como pedagógicos e psicológicos. Outro motivo que justiica o interesse pelo estudo do saber dos jesuítas do ponto de vista da historiograia das idéias psicológicas no Brasil é que a ênfase no conhecimento de si mesmo (através do discernimento dos espíritos) e no diálogo interpessoal visando à compreensão da dinâmica interior (através da direção espiritual) é uma das dimensões principais da espiritualidade da Companhia e de sua formação. Revela uma atenção toda moderna para com o cuidado de si mesmo. Esses recursos, aplicados à vida do indivíduo, são, porém, funcionais ao bem-estar do grupo e visam favorecer a adaptação aos diversos contextos de atuação missionária. Neles canalizam-se conceitos teóricos e receitas práticas próprios de toda a tradição clássica e medieval. Apresentamos a seguir as principais idéias psicológicas que surgiram no âmbito da produção jesuítica, no meio sociocultural do Brasil colonial, remetendo à bibliografia adequada para o melhor conhecimento das mesmas. 76 O estudo da alma e a cura das enfermidades do ânimo Uma importante fonte para o conhecimento da teoria psicológica difundida no ambiente cultural da Companhia de Jesus em Portugal e no Brasil ao longo do período colonial são alguns comentários às obras de Aristóteles elaborados por jesuítas portugueses docentes junto ao Colégio de Coimbra, os tratados assim chamados CONIMBRICENCES, baseados nos textos gregos daquele ilósofo. Nesses compêndios didáticos, assumia-se CONIMBRICENCES: termo derivado de uma posição cultural explícita a favor de Aristóteles (384-322 a.C.) Conimbrica, nome e de Santo Tomás (1225-1274), mas ao mesmo tempo acolhedora latino da cidade de Coimbra. dos fermentos culturais novos do Humanismo e da Renascença. A teoria psicológica dos mestres de Coimbra pode ser apreendida pela leitura dos comentários às obras psicológicas de Aristóteles, a saber: De Anima, Anima Separata, Parva Naturalia, Ética a Nicomaco, De Generatione et Corruptione. A concepção psicológica proposta pelos Comentários é inspirada na tradição aristotélico-tomista. Nesta, a alma é deinida como o ato primeiro e substancial do corpo, forma do corpo e princípio de toda atividade (cf. capítulo 1). Inovadora, porém, é a ênfase quanto à utilidade concreta da ciência da alma – o que justiica a posição prioritária que ela ocupa entre as outras disciplinas ilosóicas. As cegas paixões do coração humano A descrição e a deinição conceptual de emoções tais como o medo, o amor, a tristeza, na época chamadas paixões, são temas recorrentes na literatura jesuítica produzida no Brasil ao longo dos séculos XVI e XVII. A elaboração de uma teoria completa acerca de tais fenômenos e de seu controle pelo saber da Companhia é documentada pela literatura moral e pela oratória sagrada. No século XVII, nos Sermões de Antônio Vieira (1608-1697), encontramse várias referência às “paixões”, sendo estas reconhecidas como motores do comportamento humano individual e social. O saber de Vieira acerca da psicologia das paixões fundamenta-se numa longa tradição teológica, médica e ilosóica, em muitos casos explicitamente documentada e citada e que, de qualquer forma, já encontramos nos tratados ilosóicos dos mestres de Coimbra (cf. Massimi e Silva, 2001). 77 O conhecimento de si mesmo: força poderosa sobre as próprias ações Para Vieira e para os outros pregadores do período colonial, o estudo dos fenômenos psicológicos situa-se no plano de um conhecimento de si mesmo instrumental à conversão religiosa e ao comportamento virtuoso. Para tanto, o sermão é considerado meio privilegiado e eicaz, conforme assinala num famoso conjunto de sermões (As cinco pedras da funda de Davi em cinco discursos morais, 1676): “O conhecimento de si mesmo, e o conceito que cada um faz de si, é uma força poderosa sobre as próprias ações” (1993, vol. V: 612). Na visão dos pregadores, o verdadeiro conhecimento psicológico brota não de uma autonomização do campo do psicológico, mas, pelo contrário, de uma consideração deste do ponto de vista de uma ordem superior da experiência humana, que é a ordem do espiritual. Para atingir tal perspectiva é preciso “sair”, distanciar-se do que de imediato aparece como o ser do homem. Quando a subjetividade se espelha numa alteridade, e o eu se depara com o Outro, então começa-se a adquirir o verdadeiro conhecimento de si mesmo. É por isso que “a boca do pregador”, semelhante à “boca de Deus”, é o instrumento com que a graça “forma” os homens. Por isso, inclusive em vários de seus Sermões Vieira deine os pregadores como “médicos das almas”. O conhecimento do índio como pessoa Numa ótica já voltada para a atuação no campo social da Colônia, a correspondência epistolar e a literatura de viagem elaboradas pelos jesuítas ao longo de sua presença missionária no Brasil do século XVI ao século XVIII constituem-se numa fonte importantíssima de transmissão de idéias psicológicas acerca de si mesmo e do outro. O conhecimento dos índios, adquirido pelos missionários jesuítas através da convivência quotidiana com eles, norteada pelo objetivo da evangelização, transmitido e difundido através da correspondência epistolar, é, sucessivamente, organizado em tratados e informes. Nesses documentos, é elaborado um saber que, adquirido pela experiência direta, é iltrado pelo crivo da visão antropológica da teologia católica da época, especialmente a doutrina elaborada pelos teólogos da Companhia de Coimbra e em Roma. Um exemplo da modalidade pela qual o conhecimento do índio vem sendo construído pelos missionários é o Diálogo do Padre Nóbrega sobre a conversão do gentio (in Nóbrega, 1988). Nesse texto, a “criação” de uma “psicologia” do 78 índio é esboçada para corroborar a tese da humanidade do mesmo, tese que, por sua vez, justiica a ação evangelizadora dos religiosos junto a ele. Para comprovar que os índios também têm alma, Nóbrega (1517-1570) baseia-se no dado de observação de que eles possuem todas as “potências” atribuídas pelos ilósofos à alma, a saber “entendimento, memória e vontade” (idem, p. 237). Desse modo, a demonstração da “humanidade” do índio é feita a partir do conhecimento de suas características psicológicas. Outros autores jesuítas – tais como José de Anchieta (1534-1597) e Fernão Cardim (1549-1625) – em seus escritos constroem idéias psicológicas acerca dos índios brasileiros (cf. Massimi, 1990; Massimi, Mahfoud et al., 1997). “A criança disposta para se formarem nela quaisquer imagens” A crença na possibilidade de o homem “fazer-se a si mesmo”, característica do Humanismo e do Renascimento, colocando ênfase na possibilidade de o ser humano ser plasmado através da educação, encontra nos Novos Mundos recém descobertos o grande laboratório de sua realização. O trabalho desenvolvido pelos missionários da Companhia de Jesus, visando à criação de escolas para a formação de crianças indígenas e mestiças no Brasil colonial, enquadra-se nesse contexto: a realização do projeto missionário da Companhia, através da educação, tornará viável a transformação do homem, da cultura e da sociedade. O homem em sua origem é considerado uma tabula rasa, e o seu desenvolvimento é um processo em que esta tabula poderá ser preenchida: “Conforme for a primeira doutrina, conforme a primeira educaçam, que deres a vossos ilhos, podereis conhecer, o que ham de vir a ser” (Gusmão, 1685: 2). Esta airmação encontra-se no tratado Arte de crear bem os ilhos na idade da puerícia (1685), de outro jesuíta brasileiro, Padre Alexandre de Gusmão (1629-1725), pedagogo e literato, fundador do Colégio de Belém, em Salvador da Bahia, e autor, entre outros, da novela História de Predestinado Peregrino e de seu irmão Precito (1685). Idéias psicológicas de pensadores brasileiros no Brasil nos séculos XVII e XVIII Entre o século XVII e o início do século XIX, a proibição da criação da Universidade no território nacional imposta pela política cultural da Metrópole levara os jovens brasileiros membros de famílias mais abastadas a realizar seus estudos no exterior, sobretudo nas Universidades de Coimbra, 79 Paris e Montpellier. Uma das conseqüências mais graves desse êxodo foi a impossibilidade de se conseguirem modalidades de formação do intelectual que fossem integradas às condições e peculiaridades da realidade nacional; incentivou-se também uma tendência ao individualismo no mundo intelectual autóctone. A formação cultural como autodidatas foi o caminho encontrado por vários brasileiros que não lograram sair do país para realizar seus estudos. Esses pensadores airmavam a dignidade cultural de sua posição e ao mesmo tempo tinham uma consciência crítica da condição de desterro do intelectual brasileiro, consciência esta evidente nos seus escritos. O tema barroco da existência humana como transformação, mudança, movimento caracteriza suas concepções. A vida é concebida como luxo constante de partes às vezes antagônicas: a beleza faz pressentir a decadência, a alegria contém em si o germe da tristeza, há “irmeza na inconstância”, parafraseando um poema de Gregório de Matos (1633-1696) (Moscheta, Massimi, 2000). A ênfase na variabilidade da experiência humana – comum nesse período –, por sua vez, remete-nos à imagem do homo viator formulada pela tradição medieval. A metáfora do peregrino, já proposta numa novela pelo jesuíta Gusmão, é retomada por um escritor atuante no Brasil no século XVIII: Nuno Marques Pereira (1652-1728), autor do Compêndio Narrativo do Peregrino de América, editado em 1728 em Coimbra e sucessivamente reeditado em 1731, 1760 e 1765 (Assis, Massimi, 1995): “Se bem reparamos que cousa é a vida de um homem neste mundo, acharemos que não é mais que uma mera peregrinação: já andando, já navegando, já apetecendo glórias até possuí-las, e na mesma posse temendo perdê-las” (Pereira, 1939, vol. 1: 22). Posição semelhante encontra-se no texto manuscrito do carioca Feliciano Joaquim de Souza Nunes, Política Brazilica (1781), encontrado na Biblioteca Pública do Porto, conjunto de instruções sobre vários tópicos de natureza moral ou religiosa. A perspectiva proposta por Nunes é marcada por uma ética pessimista, onde a visão aristotélica e contrare-formista é interpretada numa tônica estóica e fatalista. Trata-se de submeter-se à imutável ordem hierárquica das coisas, sendo que a prudência – virtude por excelência, no enfoque aristotélico-tomista – não garante a felicidade: “não está na tua mão evitar as desgraças” (l. 83), mas “a conformidade tem mais poder, para fazer ditoso o desgraçado, do que a prudência, para o constituir venturoso” (idem). Da mesma forma, a noção da estreita correspondência entre higiene moral e higiene física, própria da teoria aristotélica e da teoria dos temperamentos, é rejeitada: 80 Persuade o discurso, que a conservação da saúde pende da boa regulação dos costumes: porém vê como acaba aquele paralítico, ainda que bem morigerado: vê como vive este robusto, não obstante a sua intemperança. (l. 85-86) Análoga percepção da existência humana é formulado pelo autor paulista Matias Aires Ramos da Silva de Eça (1705-1763), em sua obra Relexão sobre a vaidade dos homens (1752). A vaidade nasce quando o homem ixa sua atenção numa das “cenas” do “teatro do mundo”, como se fosse a deinitiva e como se possuísse uma realidade última. A imagem do “teatro” é característica da cultura do Barroco que tende a transformar a existência em espetáculo e representação. Contrariamente ao que acontece no caso dos outros afetos (“paixões”), a vaidade não é uma paixão do corpo e portanto independe da composição humoral somática, mas deriva do “discurso” e do “entendimento” (idem: 15). Ela é uma espécie de “delírio”, pois “nos inge mil objetos imortais” (idem: 34-35), produzindo um conlito no eu do homem: ao mesmo tempo em que o juízo reconhece e denuncia os seus delírios, a vontade segue-os. Na perspectiva de Matias Aires, o discurso sobre a vaidade é motivado também por razões políticas: a constatação da decadência do Império português, apesar das ostentações de luxo e de riqueza. O tema da vaidade encontra-se também na produção poética de Gregório de Matos (cf. Moscheta e Massimi, 2000), de Tomás Antonio Gonzaga (1744-1810), de Cláudio Manuel da Costa (1729-1789), bem como nos sermões já citados de Antônio Vieira (cf. Massimi, 1990). Todavia, nos autores que aqui analisamos, a mutabilidade, a antinomia entre a essência e a aparência, o sentido de incerteza e de instabilidade tornam-se dimensões salientes e interiores de todo ser humano, sendo ao mesmo tempo sinais da consciência que os intelectuais brasileiros tinham acerca da dissolução do mundo cultural e político da tradição. 81 Indicação estética e bibliográfica Inconstância dos bens do mundo Gregório de Matos Nasce o Sol, e não dura mais que um dia, Depois da Luz se segue a noite escura, Em tristes sombras morre a formosura, Em contínuas tristezas a alegria. Porém, se acaba o Sol, por que nascia? Se é tão formosa a Luz, por que não dura? Como a beleza assim se transigura? Como o gosto da pena assim se ia? Mas no Sol, e na Luz falte a irmeza, Na formosura não se dê constância, E na alegria sinta-se tristeza. Começa o mundo enim pela ignorância, E tem qualquer dos bens por natureza A irmeza somente na inconstância. Referências bibliográficas Assis, R. M.; Massimi, M. (1995) Cultura popular e idéias psicológicas no Compêndio Narrativo do Peregrino de América (1728) de Nuno Marque Pereira. In: Goldfarb, A.M., Maia, C.A., História da ciência: o mapa do conhecimento. São Paulo: Expressão e Cultura, Coleção América 92: Raízes e Trajetórias, p. 369-377. Massimi, M. (1990) História da psicologia brasileira, São Paulo: Edição Pedagógica Universitária. Massimi, M.; Silva. P. J. C. (2001) Os olhos vêem pelo coração. Conhecimento psicológico das paixões na história da cultura brasileira nos séculos XVI e XVII. Ribeirão Preto: Editora Holos-FAPESP. Massimi, M. (1993) A contribuição de um iluminista brasileiro á História das Idéias Psicológicas, Psicologia: Teoria e Pesquisa, Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília, vol.9, n. 1, p. 39-50. Massimi, M.; Mahfoud, M.; Silva, P. J.; Avanci, S. R. (1997) Navegadores, colonos e missionários na Terra de Santa Cruz. São Paulo: Loyola. Moscheta, M.; Massimi, M. (2000) Mapeamento das paixões na obra de Gregorio de Matos. Relatório 82 Final, Fapesp. Silva, P. J. C.; Massimi, M. (1997) A construção do conhecimento psicológico na obra História do predestinado peregrino e seu irmão Precito (1682) de Alexandre de Gusmão S. J. Revista da Sociedade Brasileira de História da Ciência, n. 17, janeiro-junho, p. 71-80. Fontes primárias Anchieta, J. (1988) Cartas, informações, fragmentos históricos e sermões, Belo Horizonte: EDUSP/ Itatiaia. Cardim, F. (1980) Tratados da terra e gentes do Brasil, Belo Horizonte: EDUSP/Itatiaia. Eça, Matias Aires Ramos da Silva. (1770) Relexões acerca da vaidade dos Homens ou Discursos Moraes sobre os Effeitos da Vaidade. Lisboa: Galhardo. Góis, M. (1607) Commentarii Collegii Conimbricensis Societatis Iesu, In Libro de Generatione et Corruptione Aristotelis Stagiritae. Veneza: Vincenzo Amadino, 760p. (1602) Commentarii Collegii Conimbricensis Societati Iesu, in tres Libros de Anima. Venetiis. (1593) Commentarii Collegii Conimbricensis Societatis Iesu, in Libros Aristotelis qui Parva Naturalia appellantur. Lisboa: Simão Lopes. (1593) Disputas do Curso sobre os livros da Moral da Ética a Nicomaco, de Aristóteles. Lisboa: Simão Lopes. Gusmão, A. (1865) A Arte de crear bem os ilhos na idade da puerícia. Lisboa: Deslandes. (1685) História de Predestinado Peregrino e de seu irmão Precito. Lisboa: Deslandes. Nobrega, M. (1988) Cartas do Brasil. Belo Horizonte: EDUSP/Itatiaia. Nunes, F. J. S. (1781) Politica Brazilica dirigida aos Venturosos Indios da Villa de Lavradio. Biblioteca Municipal do Porto, manuscrito. Pereira, N. M. (1939) Compêndio Narrativo do Peregrino de America. Rio de Janeiro: Editora da Academia Brasileira das Ciências, 2 vols. Vieira, A. (1951 [1696]) Sermões, 15 vols. Porto: Lello e Irmão. (1993 [1676]) As cinco pedras da funda de Davi em cinco discursos morais. In: Vieira, A. Sermões. Porto: Lello Irmãos, vol. V. 83 Capítulo 4 A psicologia no recurso aos vetos kantianos Arthur Arruda Leal Ferreira Para entender os rumos da psicologia, especialmente na Alemanha do século XIX, é necessário em primeiro lugar entender as críticas a que foi submetida desde o inal do século XVIII. E o mais notável de todos os seus críticos foi IMANNUEL KANT, considerado o inaugurador da filosofia contemporânea. A ele caberá a colocação dos novos IMANNUEL KANT nasceu em Konigsberg, na parâmetros para o conhecimento ocidental. Neste Prússia Oriental (hoje Rússia), em aspecto, processa-se uma transformação capital 1724, cidade em que viveu até a sua morte com relação ao século XVIII, uma vez que se em 1804. A sua ilosoia criticista constitui-se como base do pensamento contemporâneo, a passa a distinguir ciência de metafísica, esta partir de seu projeto de estabelecer os novos entendida como um saber sem fundamento. parâmetros para o conhecimento, a ética e os juízos estéticos. Essa tentativa de delimitação dos É aí que ameaçavam ser alojados os saberes parâmetros nos quais a razão poderia operar respectivamente os três principais psicológicos do século XVIII, relegados constituiu livros de Kant, quais sejam: A crítica da razão à mera metafísica na impossibilidade de pura (1781), A crítica da razão prática (1785) e A crítica do juízo serem ciências legítimas, graças às críticas (1790). kantianas. No capítulo 2 pudemos ver tais críticas voltadas para um dos pilares da psicologia de língua alemã do século XVIII, Christian Wolff. Mas essas não se voltaram apenas para a psicologia racional de Wolff, mas também para a sua psicologia empírica. Segundo Kant, em seus Princípios metafísicos da ciência da natureza (1786/1989: 32-33), a psicologia empírica para se provar como ciência propriamente dita deveria: 1. descobrir o seu elemento de modo similar à química, para com isto efetuar análises e sínteses; 2. facultar a esse elemento um estudo objetivo, em que sujeito e objeto não se misturem como na introspecção; 3. produzir uma matematização mais avançada que a geometria da linha reta, apta a dar conta das sucessões temporais da nossa consciência (o sentido interno). 85 Durante todo o século XIX, a psicologia, para se fundar e ser aceita no restrito clube das ciências, tentou pleitear o recurso a tais vetos e aos de outros ilósofos, como o positivista AUGUSTO COMTE. Assim, nesse intento, esboçaramse alguns projetos de psicologia como os de Rudolph Lotze (1817-1881), na Alemanha, e Francis Galton (1822AUGUSTO COMTE (1798-1857) foi um dos fundadores do movimento positivista, surgido na França do século XIX, 1911), na Inglaterra (cf. capítulo 6). e que buscava uma reforma no âmbito do conhecimento, Contudo, como veremos a seguir, essas da política e mesmo da religião. A primeira proposta positivista de Comte situa-se no âmbito do conhecimento questões serão respondidas de modo dee airma que este só pode ser obtido através de juízos cisivo indiretamente graças ao trabalho empíricos, públicos e controláveis. Como a psicologia de sua época não preenchia estes critérios, Comte de alguns fisiólogos e de um físico, concluiu que a psicologia não poderia ser uma ciência. contribuindo para a constituição da Posteriormente, algumas correntes psicológicas, como o behaviorismo, propuseram-se a contornar o veto comteano psicologia como ciência independente e fazer uma psicologia cientíica, utilizando, para isto, o no inal do século XIX. paradigma comteano de ciência. A superação dos vetos kantianos: fisiologia sensorial e psicofísica O primeiro problema listado, a falta de um elemento objetivo, será resolvido pela teoria das energias nervosas especíicas de JOHANNES MÜLLER, formulada explicitamente em seu Manual de isiologia de 1826. Para esse isiólogo, cada via nervosa aferente possuía uma JOHANNES MÜLLER (1801-1858) energia nervosa específica que se traduziria em foi um dos mais importantes isiólogos da primeira metade do século XIX, uma sensação especíica de cada nervo. Assim, o forneceu a base da moderna isiologia nervo ótico excitado pela ação da retina, ou por nervosa ao conceber os nervos não forças mecânicas e químicas, produziria sempre mais como dutos de uma matéria sutil, os espíritos animais, mas de energias imagens luminosas. O mesmo ocorreria com os nervosas especíicas. demais sentidos. A posição de Müller conduziu a uma espécie de “kantismo isiológico”, em que o mundo percebido seria uma mera propriedade das nossas energias nervosas especíicas (no lugar do sujeito transcendental), estimuladas sempre por um fator físico qualquer, não importando a sua natureza. A sensação, enquanto variação das energias nervosas especíicas, representaria um elemento preciso, corporalmente situado como fenômeno, ao contrário das idéias e impressões descritas pelos ilósofos empiristas do século XVIII. Foi por tal razão que a sensação veio a ser utilizada como elemento para a construção de uma possível psicologia, pois ela liga a) o mundo físico que constantemente estimula os sentidos; b) o isiológico, uma vez que as 86 energias nervosas especíicas estão ligadas aos nervos e c) o psicológico, uma vez que a sensação seria a base de nossas representações. Quanto ao segundo problema kantiano, quem apresenta a solução é um discípulo de Müller, HERMANN VON HELMHOLTZ. Esse autor elaborou em 1860 uma teoria sobre o surgimento das HERMANN VON HELMHOLTZ (1795-1878) foi um dos persorepresentações psicológicas, ou apercepções, nagens mais relevantes da ciência do que, no seu reverso, irá fomentar um século XIX, trabalhou de modo especial com a fisiologia nervosa, hidrodinâmica, novo método para o estudo objetivo eletrodinâmica e ótica física. No âmbito da isiologia das sensações. A teoria proposta é destacam-se seus estudos sobre as sensações (especialmente a das inferências inconscientes, de claro as óticas e auditivas, objeto de seus mais extensos manuais), que conduziram ao levantamento de uma série de teorias, cunho empirista, e o método, o da métodos, instrumentos e resultados. Sobre as teorias introspecção experimental, bem diferente destaca-se a da ressonância auditiva. No campo dos instrumentos, inventou o oftalmoscópio e o olfatômetro, ao do produzido na psicologia do século passo que no campo das medições destaca-se o registro da XVIII. Vejamos primeiro a teoria das velocidade de condução dos impulsos nervosos. Na física foi um dos principais proponentes da moderna inferências inconscientes. Para esse isiólogo teoria da conservação de energia, muito utilizada por algumas orientações alemão, as nossas sensações seriam psicológicas, como a psicanálise organizadas por experiências passadas, que e o behaviorismo. seriam armazenadas como as premissas maiores de um SILOGISMO, aptas a ordenar de modo Um SILOGISMO, enquanto unidade fundainconsciente e rápido as premissas menores mental da lógica clássica (desenvolvida da antigüidade grega ate o início do século XIX) informadas pelos sentidos, produzindo como é composto de três partes: 1) Premissa maior, conclusão as nossas representações psicológicas. ligando um conceito geral a um termo médio (do tipo, “Todo homem é mortal”), 2) Premissa O modo de análise das sensações, a introspecção menor, ligando o termo médio a um conceito experimental, se processaria de modo inverso a especíico ou um indivíduo (do tipo “Sócrates é homem”), e 3) Conclusão, ligando o conceito essas sínteses inconscientes, visando neutralizar maior ao especiico ou ao indivíduo (do tipo os efeitos dessa inferência silogística operada “Logo, Sócrates é mortal). pela experiência passada. Para neutralizar essa síntese inconsciente, processa-se então uma análise consciente, em que os sujeitos dos experimentos são treinados para reconhecer o aspecto mais bruto e selvagem de nossa experiência. Fazendo uma analogia, isso ocorreria da mesma maneira que a reeducação de animais selvagens domesticados em seu retorno ao ambiente natural. Essa necessidade de treinamento dos sujeitos faz com que esse estudo não possa ser feito com crianças, primitivos, ou doentes mentais, visando evitar o erro do estímulo, qual seja, a confusão do objeto percebido com os juízos inconscientes acumulados pela experiência passada. Por isso, o estudo objetivo das sensações em um sujeito só poderia ser feito se esse mesmo sujeito fosse também um isiólogo, apto a distinguir o joio da experiência passada do trigo das sensações. Por todos 87 esses cuidados metodológicos, o treinamento e a presença de um estímulo objetivo a ser percebido pelo sujeito (mesmo que a experiência observada ocorra com o próprio sujeito), é que o método introspectivo se distingue da introspecção dos ilósofos-psicólogos do século XVIII. Restava ainda o problema da matematização, o terceiro colocado por Kant. É aqui que entra a psicofísica de GUSTAV FECHNER, delineada no livro Elementos de psicofísica, de 1860. Pode-se dizer que ela também oferece uma resposta experimental ao segundo veto kantiano, referente à impossibilidade de estudos objetivos. Mas a sua principal conquista está em oferecer a qualquer estudo psicológico a possibilidade de desenvolver uma matemática mais avançada que a “geometria de uma linha reta” (nos termos da críticas kantianas). Isso, através do estabelecimento da primeira lei matemática na psicologia, batizada por ele Lei Weber-Fechner, em função do aproveitamento da equação desenvolvida por ERNST WEBER sobre a relação de proporcionalidade entre as diferenças apenas percebidas (dap) entre dois estímulos (Ea e Eb) e os valores absolutos destes, gerando a fórmula: dap = Ea – Eb/ Eb. Para entendermos o que Weber quis mostrar com sua fórmula, basta pensarmos na diferença percebida na relação entre um peso de 1 kg e outro de 2 kg, e a compararmos com a diferença percebida entre um peso de 21 kg e outro de 20 kg. A diferença absoluta é a mesma (um quilo), mas a diferença relativa, que é a efetivamente percebida, depende da relação da diferença com os valores absolutos. Fechner, além de complexiicar a equação, irá transformar as diferenças apenas percebidas (daps) em sensações (S), sugerindo a primeira medição psicológica, e chegando à fórmula S = k log R, em que k é uma constante matemática e R signiica limiar de percepção do ESTÍMULO. Mas, antes de se GUSTAV FECHNER (1801-1887) foi também um personagem bastante versátil: formado em medicina em 1822, dedicou-se no início de sua carreira às matemáticas e especialmente à física. Até 1839 destacava-se nesse campo, quando renunciou à cátedra em função de um comprometimento ocular, adquirido no exame da luz solar através de lentes coloridas. Essa enfermidade lhe causou uma reclusão de cerca de cinco anos, quando Fechner passou a meditar sobre uma série de postulados metafísicos e religiosos, o panpsiquismo e a sua visão diurna. Sua recuperação, creditada por ele a esse pensamento, conduziu à publicação de uma série de livros, dos quais o mais conhecido é Elementos de psicofísica (1860), em que o autor busca comprovar empiricamente a relação indissociável entre matéria e espírito. Nesse período, ele se dedica ao estudo de fenômenos diversos como a estética experimental (determinação estatística das formas do gosto comum) e fenômenos paranormais, ao acompanhar o médium espírita Henry Slade. ERNST WEBER (1795-1878) foi fisiólogo e anatomista, tendo lecionado na Universidade de Leipzig. Fez parte também da fundação da moderna isiologia alemã, realizando uma série de estudos sobre sensibilidade tátil e propondo a lei das diferenças apenas percebidas (dap), posteriormente retrabalhada por Fechner em termos logarítmicos, gerando a rebatizada Lei Weber-Fechner, em que as daps são assumidas como medidas de sensação. ESTE TRABALHO, proposto em 1860, tem a sua importância não apenas por ser um suposto marco para a psicologia, mas por ter gerado uma linha de pesquisa presente até os dias de hoje. Ainda que a psicofísica atual seja mais inspirada nos trabalhos de Stanley Stevens (1906-1973), a Sociedade Internacional de Psicofísica (ISP – Intenational Society of Psychophysics) ainda hoje promove congressos internacionais. No Brasil destacam-se pesquisadores como José Aparecido da Silva (USP), Nílton Ribeiro Filho (UFRJ) e Élton Matsushima (UFF), organizadores do Congresso da ISP no Brasil em 2002. 88 identiicar o trabalho de Fechner como o início da psicologia experimental (ao menos na Alemanha), deve-se perguntar por que um físico como ele iria se dedicar a estabelecer uma lei rigorosamente matemática sobre a relação entre o domínio físico e o psicológico (daí o termo da área de conhecimento proposto, psicofísica). Temos então que relacionar esse texto com o conjunto de sua obra, que caracteriza um trabalho mais ou menos sistemático na direção do que o próprio Fechner designou como visão diurna ou panpsiquismo. Por panpsiquismo entendia-se um conjunto de pensamentos e relexões sobre o mundo enquanto composto por uma hierarquia de seres em que o espírito e o corpo seriam coextensivos, em todas as esferas. O domínio físico e o mental não seriam duas naturezas, mas uma única natureza composta de duas perspectivas, de resto um mistério tão complexo como saber se uma esfera é côncava ou convexa (Fechner, 1850, p. iv). Ficariam assim excluídas as concepções dualistas da natureza (que crêem na existência de substâncias), e principalmente as materialistas (que negam a existência de qualquer fator de natureza espiritual), denominadas por Fechner visão noturna. O trabalho psicofísico de Fechner não representa, pois, uma exceção dentro de sua concepção da natureza, mas uma tentativa de estabelecer a prova e o rigor matemático desta. Por se tratar da possível superação do último veto kantiano é que se pode dizer que o trabalho de Fechner representa o primeiro pilar de uma psicologia a nascer. As fundações desse pilar se encontrariam no sonho de Fechner de 22 de outubro de 1850, em que intuiu matematicamente a relação entre os elementos físicos (estímulos) e espirituais (sensações), data que é reconhecida por alguns historiadores da psicologia como o marco do surgimento da psicologia experimental (Boring, 1950). Mas deve-se lembrar que o valor desse trabalho está correlacionado ao poder de resposta que ele oferece às críticas kantianas. É nesse circuito que se concretiza a importância do trabalho de Fechner, pois ele abriu espaço para a primeira formulação de psicologia reconhecida como cientíica pelos novos padrões do século XIX, ou seja, superando os impasses da psicologia empírica do século XVIII. Assim, quando em 1879 Wilhelm Wundt inaugura a psicologia como formação e área de investigação acadêmica, todos os elementos possibilitadores desse ato já estarão garantidos, pelas respostas indiretas tanto da isiologia quanto da psicofísica aos vetos kantianos. Antes do sonho de Fechner havia o sonho da psicologia de acordar do sono dogmático de todo saber metafísico denunciado por Kant. O sonho de Fechner pode ter brevemente acordado a psicologia (ou ter feito sonhar que acordou) do sono dogmático, apesar de sua intenção ter sido mais nos acordar do sono materialista. Pois correlacionar o físico (estímulo) e o espiritual 89 (sensação), para Fechner, não visava provar uma psicologia matematizável, mas um duplo aspecto de uma mesma natureza extensível a todos os seres, o seu panpsiquismo. Contudo, a história da psicologia prosseguirá na proliferação de escolas e sistemas que se postulam como a quintessência da cientiicidade na psicologia. Em função da proliferação desses mundos cientíicos possíveis é que se pode perguntar se os vetos kantianos, formulados no inal do século XVIII, não continuam a assombrar a psicologia. Indicação estética e bibliográfica O livro indicado para este capítulo é Textos básicos em história da psicologia, de E. G. Boring e R. J. Herrnstein (1971), da Editora Herder, de São Paulo. Nesse livro, encontraremos alguns textos de autores citados neste capítulo e que não possuem livros traduzidos em português, como Johannes Müller, Ludwig von Helmholtz, Ernest Weber, Gustav Fechner e Wilhelm Wundt. Também encontraremos textos de Imannuel Kant. Sobre esse ilósofo, existe ainda a coleção de textos da Editora Abril, Os Pensadores. Ainda que um texto clássico, o livro de E. G. Boring (1979), História de la Psicología Experimental (México: Trillas), é um bom guia na exposição da isiologia e psicofísica do século XIX. O trecho de Moby Dick citado no capítulo 1 é expressivo do problema do conhecimento e da representação abordado neste capítulo. Mas, para entender a nova concepção da percepção e da experiência surgida no século XIX, agora devidamente encarnada no corpo e nos nervos, e tendo como base a noção de sensação, temos que seguir a indicação de Jonathan Crary (1990), e ver que esses trabalhos têm uma perfeita correspondência com a pintura moderna (especialmente a impressionista) de Monet, Matisse e Turner. Mais do que a realidade em si, busca-se pintar o que o olho vê. Referências Boring, E. G. (1979 [1929, 1950]) História de la Psicología Experimental (tradução R. Ardilla). México: Trillas. Boring, E. G. e Herrnstein, R. J. (1971) Textos básicos em história da psicologia. São Paulo: Herder e EDUSP. Crary, J. (1990) Technics of the Observer. Massachusetts: Cambridge University Press. 90 Fechner, G. (1966 [1860]) Elements of Psychophysics (tradução H. Adler). Nova York: Holt, Rinehart, Winston, Inc. Kant, I. (1989 [1786]) Pricípios metafísicos de la ciência de la naturaleza (tradução C. Másmela). Madri: Alianza. 91 Wilhelm Wundt Wilhelm Maximiliam Wundt, ilho de um pastor protestante, nasceu em 16 de agosto de 1832 no vilarejo de Neckarau, nas cercanias de Mannheim (Alemanha). Já aos quatro anos mudou-se com a família para Heidelsheim, onde passou a maior parte de sua infância solitária e deu início aos seus estudos. Aos oito anos, sua educação icou por conta de um tutor, assistente de seu pai. Em 1845, quando já contava com 13 anos, mudou-se para a casa de sua tia em Heidelberg para freqüentar o ginásio. Ao término desse período, Wundt teve que escolher uma carreira proissional. Como tinha interesse em se mudar, ainda que por pouco tempo, de Heidelberg, ele acabou escolhendo o curso de medicina na Universidade de Tübingen, onde seu tio era professor de anatomia e isiologia. No entanto, ele só permaneceu lá por um ano, após o qual retornou para a Heidelberg, acompanhando a transferência de seu tio para aquela universidade. Foi em Heidelberg que Wundt terminou seu curso de medicina e começou sua brilhante carreira proissional. Além de isiologia, estudou matemática, física e também química, área em que conseguiu sua primeira publicação, em 1853, relativa a um experimento sobre a concentração de sal na urina. Em 1855, ele inalmente conseguiu sua habilitação para a prática médica. No entanto, após um curto período em que trabalhou como assistente clínico em um hospital municipal sob a direção de um de seus ex-professores, Wundt começou a ter dúvidas sobre sua capacidade para a prática da medicina, o que o levou de volta à vida acadêmica. Em 1857, após estudar isiologia com Johannes Müller e Du Bois-Reymond em Berlim, habilitou-se como docente (Privatdozent) e proferiu seu primeiro curso de isiologia experimental. Em 1858, Wundt tornou-se assistente de Helmholtz em Heidelberg, posição que ocupou durante cinco anos. Foi durante esse período que realizou seus primeiros estudos em psicologia, que foram posteriormente reunidos no seu primeiro livro propriamente psicológico – Beiträge zur Theorie der Sinneswahrnehmung (Contribuições à Teoria da Percepção Sensorial) –, publicado em 1862. Esses estudos vieram precedidos de um ensaio introdutório – o primeiro texto puramente teórico de Wundt –, em que ele propõe uma reforma conceitual e metodológica na psicologia. No ano seguinte, com base nos cursos de psicologia que vinha oferecendo em Heidelberg, publicou as Vorlesungen über die Menschen- und Thierseele (Conferências sobre a mente humana e animal), obra que representa uma extensão dos princípios fundamentais expostos nas Beiträge. Um aspecto da vida de Wundt que também merece atenção é o seu envolvimento com a política. Tendo sido convidado para ministrar conferências populares na Associação Educativa dos Operários, ele se engajou não só no movimento para a educação dos operários, mas foi se envolvendo cada vez mais nas discussões políticas, o que o levou a se eleger pelo Partido Progressista, em 1866, como membro do Parlamento de Baden. Dois anos depois, ele abandonou a carreira política para se dedicar exclusivamente à vida acadêmica. Antes de deixar Heidelberg, Wundt publicou o livro que lhe deu fama e reconhecimento acadêmico – Grundzüge der physiologischen Psychologie (Princípios de psicologia isiológica). Este livro, que teve seis edições revistas e ampliadas durante sua vida, inluenciou por muito tempo a formação e a direção do trabalho de toda uma geração de novos psicólogos. Em 1874, Wundt recebeu um convite para assumir a cátedra de ilosoia indutiva na Universidade de Zurique, na Suíça. No entanto, ele só permaneceu lá por um ano, pois em 1875 ele foi chamado para lecionar na Universidade de Leipzig, onde permaneceu até 1917, quando se aposentou. Sua primeira grande realização foi a fundação, em 1879, do famoso Laboratório de Psicologia, que atraiu estudantes de várias partes do mundo e deu a ele a fama de fundador da psicologia cientíica. Juntamente com o laboratório, Wundt fundou também, em 1883, um periódico de psicologia, que inicialmente se chamava Philosophische Studien (Estudos ilosóicos) e, a partir de 1906, passou a se chamar Psychologische Studien (Estudos psicológicos). Foi em Leipzig que Wundt escreveu a maior parte de sua obra. Além de suas já tradicionais publicações na área da psicologia isiológica, ele escreveu longos tratados de ilosoia – Logik (1880-1883), Ethik (1886) e System der Philosophie (1889) – e uma síntese teórica do seu projeto de psicologia – o Grundriss der Psychologie (Compêndio de psicologia) (1896) –, entre outros. A partir de 1900, dedicou-se especialmente à Völkerpsychologie (Psicologia dos Povos) – para muitos, sua maior realização acadêmica – até publicar o décimo volume, em 1920. Nesse mesmo ano, terminou sua autobiograia – Erlebtes und Erkanntes (O que eu vivi e conheci) – e veio a falecer no dia 31 de agosto, pouco depois de completar 88 anos de idade. 92 Capítulo 5 Wilhelm Wundt e o estudo da experiência interna Saulo de Freitas Araujo Wilhelm Wundt (1832-1920) é normalmente considerado, na historiograia da psicologia, como o fundador da psicologia cientíica, título este que está diretamente relacionado ao fato de ter criado, em 1879, o Laboratório de Psicologia na Universidade de Leipzig, na Alemanha. Além disso, é um dos autores mais citados e mencionados nos manuais de história da psicologia. Entretanto, apesar de toda essa fama, Wundt ainda é um autor não só bastante desconhecido, como também aquele, dentre os chamados “fundadores” da psicologia, cujas idéias mais sofreram distorções na literatura psicológica. Não só a extensão e as diiculdades de acesso à sua obra original, mas principalmente a atitude de vários historiadores da psicologia, que têm se detido apenas em partes dela, sem se preocupar com o sentido geral do seu sistema de pensamento, têm contribuído para essa situação desconfortável. Sendo assim, a primeira coisa que o leitor interessado em se aproximar da psicologia de Wundt deve ter em mente é que estamos ainda longe de ter uma clara e adequada compreensão de toda a sua obra e, o que aqui nos interessa mais de perto, do lugar que seu projeto psicológico nela ocupa. É bem verdade que, sobretudo a partir da década de 1980, começaram a surgir novos e importantes estudos sobre a obra de Wundt que têm procurado reavaliar o seu pensamento e mostrar as origens de algumas interpretações equivocadas tradicionalmente presentes nos manuais de história da psicologia. Alguns desses estudos, contudo, apesar de terem contribuído signiicativamente para mostrar a complexidade do projeto wundtiano de psicologia, são ainda supericiais e podem acabar introduzindo novos problemas na interpretação do pensamento de Wundt, na medida em que deixam de considerar textos fundamentais de sua obra, como seus escritos psicológicos iniciais, que abrangem o período de 1858 a 1863, quando ele ainda não tinha ido para Leipzig. 93 Muitas questões permanecem mal resolvidas na obra de Wundt. Em primeiro lugar, coloca-se a questão da continuidade ou ruptura de seu projeto de psicologia. Teria ele apresentado vários sistemas teóricos distintos, introduzindo modiicações essenciais em cada um deles? Ou haveria um único sistema psicológico, cujas alterações posteriormente introduzidas não afetariam sua unidade fundamental? Isso nos remete a uma outra questão, que diz respeito aos interesses e pressupostos ilosóicos fundamentais de Wundt, que subjazem ao seu projeto de psicologia. Wundt é, antes de tudo, um ilósofo que formulou um sistema de ilosoia, incluindo uma lógica, uma teoria do conhecimento, uma ética e uma metafísica. Sem uma adequada compreensão de seus escritos ilosóicos, os problemas relativos à interpretação de sua psicologia não poderão ser satisfatoriamente resolvidos. Como as questões acima referidas aguardam uma solução deinitiva, cujas exigências demandam um aprofundamento que extrapola os objetivos do presente capítulo, vamos privilegiar aqui, em vez de uma apresentação sistemática de todo o percurso wundtiano, alguns dos principais tópicos de seu pensamento psicológico, tomando como base sua fase madura, que se expressa na última grande síntese teórica de seu projeto de psicologia – o livro Compêndio de psicologia (Grundriß der Psychologie), cuja primeira edição é de 1896. A natureza da psicologia Talvez a melhor maneira de iniciar uma apresentação introdutória da psicologia wundtiana seja explicitando a própria deinição de psicologia proposta por Wundt. Neste sentido, a pergunta “O que é psicologia?” receberia a seguinte resposta: “A psicologia é uma ciência empírica cujo objeto de estudo é a experiência imediata”. No entanto, torna-se ainda necessário esclarecer o conceito de “experiência imediata”. Wundt entende por experiência em geral um todo unitário e coerente, que pode ser concebido e elaborado cientiicamente a partir de dois pontos de vista distintos, porém complementares: toda experiência pode ser analisada pelo seu conteúdo objetivo (experiência mediata) ou subjetivo (experiência imediata). No primeiro caso, a ênfase recai sobre os objetos da experiência (mundo externo), pensados independentemente do sujeito da experiência, enquanto, no segundo caso, investiga-se o próprio sujeito da experiência (mundo interno) em sua relação com os conteúdos da experiência. Com base nesses dois pontos de vista, surge uma dupla possibilidade de se fazer 94 ciência empírica: a ciência natural (física, química, isiologia etc.), que cuida dos conteúdos especíicos da experiência mediata, uma vez que os objetos fornecidos na experiência são sempre mediados pelos fatores subjetivos; e a psicologia, que tem por objeto a experiência imediata, já que não abstrai o próprio sujeito, como a ciência natural. Com essa deinição de psicologia, Wundt pretende, em primeiro lugar, atacar um tipo de psicologia bastante difundida em sua época, que vinha sendo deinida como ciência da alma ou MENTE (cf. capítulo 2). Segundo Wundt, essa psicologia está assentada em hipóteses metafísicas (ESPIRITUALISMO ou MATERIALISMO) que extrapolam o domínio da experiência possível. Como sua intenção é inaugurar uma nova psicologia, autônoma e independente de teorias metafísicas, o único caminho possível era recusar essa psicologia e construir uma outra, que se atém somente à experiência psicológica propriamente dita. Para a psicologia wundtiana, só há a experiência, vista como um conjunto de processos interligados, e nada mais. Na língua alemã, não existe um substantivo para aquilo que hoje chamamos de “MENTE”. No contexto da ilosoia e da psicologia alemãs do século XIX, utilizam-se freqüentemente dois substantivos – Seele (alma) e Geist (espírito) –, que podem ter signiicados muito diversos conforme o autor em questão. Em Wundt, contudo, podemos aproximar a idéia de alma à de mente, evitando assim um possível anacronismo terminológico na psicologia contemporânea. Wundt entende por ESPIRITUALISMO qualquer hipótese ou teoria que defenda a existência de uma substância ou entidade imaterial (alma, espírito etc.), que seria o fundamento de todos os processos psíquicos. O MATERIALISMO é a doutrina segundo a qual a matéria é o fundamento de tudo o que existe. Estendida ao campo dos fenômenos psíquicos, airma que todos os eventos psicológicos não são nada mais que eventos cerebrais. É importante enfatizar que, de acordo com essa deinição, não há uma diferença essencial de natureza entre o mundo interno e o externo – uma vez que a experiência é um todo organizado que abrange ambos –, mas apenas uma diferença na maneira de se abordá-los. Por isso, a relação entre a psicologia e as ciências da natureza (NATURWISSENSCHAFTEN) é de complementaridade. Elas se complementam, na medida em que fornecem relatos diferentes da mesma experiência, sem que haja a possibilidade de haver uma subordinação ou redução de uma a outra. Por outro lado, na medida em que a psicologia é a ciência das formas universais da experiência humana imediata, ela pode ser considerada a mais geral de todas as ciências do espírito (GEISTESWISSENSCHAFTEN) e, portanto, A distinção entre ciências da natureza (NATURWISSENSCHAFTEN) e ciências do espírito (GEISTESWISSENSCHAFTEN) foi introduzida pela primeira vez por Wilhelm Dilthey (1833-1911), na segunda metade do século XIX, na Alemanha, e refere-se à tentativa de se estabelecer uma autonomia metodológica para os estudos sobre a experiência humana em relação aos estudos sobre a natureza. Neste sentido, a inclusão da psicologia entre as ciências do espírito (Geisteswissenschaften) poderia sugerir uma contradição no pensamento de Wundt, na medida em que Wundt foi um crítico radical do espiritualismo. No entanto, essa aparente contradição se dissolve quando consideramos a diferença existente entre uma tese metafísica que airma a existência de uma substância espiritual subjacente à nossa experiência (espiritualismo) e um postulado metodológico e epistemológico que reconhece e legitima a dualidade dessa mesma experiência (imediata e mediata), sem que isso implique 95 (paralelismo psicofísico de Wundt). uma distinção metafísica sobre a natureza última da realidade o fundamento de cada uma delas em particular (ilologia, história, direito etc.). Há que se considerar ainda a relação entre psicologia e ilosoia. De todas as disciplinas empíricas, Wundt considera que a psicologia é aquela cujos resultados mais contribuem para a investigação dos problemas gerais da teoria do conhecimento e da ética, os dois domínios ilosóicos fundamentais para ele. Se a psicologia, portanto, é complementar às ciências naturais e o fundamento das ciências do espírito, podemos dizer que é preparatória para a ilosoia. Em outras palavras, os resultados da investigação psicológica podem guiar a construção de um sistema ilosóico. A questão do método e a subdivisão da psicologia Como a psicologia não estuda um objeto diferente do objeto das ciências naturais, mas apenas a mesma experiência de um outro ponto de vista, seus métodos de investigação também não podem diferir. A psicologia vai se servir, portanto, dos dois principais métodos utilizados pelas ciências da natureza: o experimento e a observação. O experimento consiste na interferência proposital (manipulação) do pesquisador sobre o início, a duração e o modo de apresentação dos fenômenos investigados (como na física, na química e na isiologia). A observação propriamente dita refere-se à mera apreensão de fenômenos ou objetos, sem que haja qualquer interferência por parte do observador (como na botânica, na anatomia e na astronomia). No que diz respeito ao experimento, a psicologia utiliza-o diretamente em suas investigações, como demonstram os estudos sobre a sensação, a percepção e a representação, ou seja, aquilo que Wundt chama de psicologia individual, isiológica ou experimental. Nesse caso, pode-se investigar cuidadosamente tanto o início quanto o curso desses processos, visando sempre à sua relação com seus elementos constituintes. Há, porém, uma diferença metodológica signiicativa entre a psicologia e as ciências da natureza, decorrente da especiicidade da perspectiva psicológica. Em primeiro lugar, já que a psicologia é o estudo da experiência imediata, seu conteúdo revela apenas processos, jamais objetos estáveis, como acontece na observação cientíica da natureza. Em segundo lugar, a psicologia não pode desconsiderar ou colocar entre parênteses, como fazem as ciências naturais, o sujeito da experiência, uma vez que este é precisamente o assunto de seu interesse. Além disso, seria muito difícil que, mesmo em situações 96 freqüentemente repetidas, os mesmos elementos objetivos da experiência imediata viessem acompanhados da mesma condição do sujeito. Em outras palavras, a intenção do observador, que deve estar presente nas observações cientíicas, altera signiicativamente o início e o curso dos processos psíquicos. Levando em consideração essa particularidade dos eventos psicológicos, o psicólogo estaria, portanto, impossibilitado, por princípio, de utilizar a observação pura ou auto-observação (Selbstbeobachtung) no domínio da psicologia individual. É importante estar atento para este ponto, tendo em vista o fato de que Wundt é muitas vezes acusado de ser um dos principais defensores da autoobservação ou introspecção tradicional, que remonta à tradição ilosóica. No entanto, o que permanece em grande parte ignorado por seus intérpretes, e que está implícito nas considerações anteriores, é a diferença fundamental que ele estabeleceu entre a auto-observação (Selbsbeobachtung) e a percepção interna (innere Wahrnehmung). Essa última, segundo Wundt, por estar baseada no controle experimental das condições externas da experiência, substituiria a introspecção tradicional e livraria a psicologia das duras críticas feitas por diversos autores ao introspeccionismo. Isso não signiica, porém, que não haja lugar para a pura observação na psicologia. Ao contrário, existem fatos psíquicos que, embora não sejam objetos reais do mundo externo, possuem o caráter de objetos psíquicos, na medida em que sua natureza é relativamente estável e que independem do observador. Além disso, eles têm uma outra característica em comum, que os tornam adequados à observação: eles são inacessíveis pelo método experimental. Mas que objetos psíquicos são esses? São aquilo que Wundt chama de produtos mentais surgidos ao longo da história, como a linguagem, a religião, os mitos e os costumes, que dependem de certas condições psíquicas gerais, as quais podemos inferir com base em suas características objetivas. Uma característica fundamental desses produtos mentais é que eles pressupõem a existência de uma comunidade de muitos indivíduos que compartilham uma certa mentalidade, embora sua fonte última sejam sempre as características psíquicas do indivíduo em particular. É por estarem ligados a uma comunidade popular que Wundt chamou essa área de investigação psicológica de psicologia dos povos (Völkerpsychologie), que complementa a psicologia individual ou experimental na busca de uma compreensão geral dos princípios fundamentais da vida psíquica. No entanto, há uma curiosa diferença na atitude de Wundt em relação a essas duas áreas de investigação psicológica. Enquanto na psicologia individual ele procurou sempre investigar 97 direta e empiricamente os fenômenos, na psicologia dos povos Wundt o fez apenas indiretamente, baseando-se acima de tudo nos relatos e estudos etnológicos. Os últimos 20 anos de sua vida (1900-1920) foram dedicados principalmente a essa psicologia dos povos, esforço esse que resultou em dez extensos volumes. Em suma, a psicologia dispõe, assim como a ciência natural, de dois métodos de investigação, que darão origem a duas formas complementares de estudo psicológico: o experimento, que a psicologia individual/isiológica utiliza na análise dos processos psíquicos mais simples; e a observação dos produtos mentais, através da qual a psicologia dos povos investiga os processos psíquicos superiores. É importante termos sempre em mente que essa subdivisão da psicologia é uma necessidade apenas metodológica, que em princípio não compromete a unidade do seu objeto de estudo (os processos psíquicos revelados na experiência). Principais conceitos e idéias psicológicas Uma das principais idéias psicológicas de Wundt é a de que a vida psíquica desenvolve-se gradual e continuamente do simples para o complexo, através de uma série de processos regulares, que constituem nossa experiência psicológica na vida cotidiana. Neste sentido, nossa experiência imediata só nos fornece conteúdos de natureza complexa, que resultam da ligação de vários elementos simples. Esses elementos psíquicos, que são revelados através da análise psicológica e, portanto, de uma abstração – uma vez que em nossa experiência eles nunca aparecem isolados, mas somente ligados a outros conteúdos –, constituem a base de toda nossa vida mental. Como o conteúdo de nossa experiência imediata varia entre dois pólos, um objetivo e outro subjetivo, os elementos podem ser, seguindo essa divisão, de dois tipos: as sensações ligadas ao conteúdo objetivo (som, luz etc.) e os sentimentos simples relacionados ao conteúdo subjetivo (prazer, desprazer etc.). O próximo passo é a formação, a partir das sensações ou dos sentimentos simples, daquilo que Wundt chamou de complexos psíquicos (psychische Gebilde), que se diferenciam uns dos outros por certas características próprias, formando uma unidade relativamente autônoma. Eles podem assumir quatro formas diferentes: representações, sentimentos compostos, afetos e processos volitivos. Enquanto as representações têm sua origem nas sensações, todos os 98 outros complexos psíquicos originam-se a partir dos sentimentos simples (ver Esquema 1). ˆ conteúdo objetivo ˆ Ô sensações Ô representações E XPERIÊNCIA IMEDIATA conteúdo subjetivo Ô sentimentos simples ˆ Ô ˆ Ò sentimentos complexos afetos processos volitivos } conteúdos da consciência F USÃO Esquema 1. Conteúdos da consciência É importante ressaltar aqui que, para Wundt, os complexos psíquicos, embora sejam compostos de elementos psíquicos, possuem características que não pertencem a nenhum de seus elementos em particular. É a ligação dos elementos que produz essas novas características, que pertencem somente aos complexos enquanto tais. Aqui entra em cena uma das principais idéias da teoria psicológica de Wundt, que permanece ignorada por muitos comentadores, a saber, o conceito de fusão (Verschmelzung) e o princípio da síntese criadora. É a fusão – que tem como resultado a síntese criadora – que liga os elementos e constitui os complexos psíquicos, enquanto que a associação é um processo secundário, que se refere apenas à ligação de elementos já presentes em diversos compostos. O processo fundador da complexidade psíquica é, pois, a fusão, e não a associação. Sendo assim, Wundt está longe do ASSOCIACIONISMO BRITÂNICO, como faz questão de ressaltar inúmeras vezes. Os complexos psíquicos podem ainda se conectar, formando O ASSOCIACIONISMO é um dos princípios fundamentais do empirismo britânico, que tem como representantes um todo unitário. Essa conexão chamado principais John Locke (1632-1704) e David Hume (1711dos complexos psíquicos Wundt 1776). De acordo com esses empiristas, a associação de idéias denomina consciência. E o processo é o mecanismo fundador da dinâmica psíquica e responsável por toda a formação dos compostos psíquicos, que consistem através do qual um conteúdo unicamente na ligação de elementos simples. psíquico é trazido à clareza da 99 consciência é chamado de apercepção (Apperception), que vem acompanhado do estado de atenção. Mas é possível também apreender conteúdos sem a presença da atenção, e nisso consiste exatamente a percepção (Perception). Desta forma, fazendo uma analogia com o sistema visual, Wundt chama o conteúdo ao qual a atenção está dirigida de ponto focal (Blickpunkt) da consciência, e o conteúdo restante de campo visual (Blickfeld) da consciência CONSCIÊNCIA (conexão de complexos psíquicos) ˆ apercepção ✜ atenção ˆ percepção Ô ponto focal Ô campo visual Esquema 2. Apercepção e percepção (ver Esquema 2). Outra importante idéia psicológica de Wundt é o conceito de “causalidade psíquica”, que está diretamente relacionado ao seu PARALELISMO PSICOFÍSICO. Para Wundt, a experiência pode, como já foi dito, ser conhecida a partir de dois pontos de vista distintos, O PARALELISMO PSICOFÍSICO é uma doutrina acerca porém complementares: objetivo do problema mente-corpo, que tem suas raízes nas (experiência mediata) e subjetivo ilosoias de Baruch Spinoza (1632-1677) e Gottfried Leibniz (1646-1716), entre outros. Embora conte(experiência imediata). Certas partes nha variantes, caracteriza-se essencialmente pela da experiência mediata podem ter uma airmação de que o físico e o psíquico são procescorrespondência direta com partes da sos paralelos, que não podem ser reduzidos um ao outro. É uma doutrina bastante inluente na experiência imediata, sem que uma possa ilosoia e na psicologia do século XIX, que consiste ser reduzida à ou derivada da outra. De em uma tentativa de superar tanto o dualismo de substâncias quanto o monismo materialista. acordo com o princípio do paralelismo A particularidade do paralelismo de Wundt consiste psicofísico, quando isso acontece há uma no fato de ele não ser um princípio metafísico, mas sim um postulado empírico que garante a relação necessária entre cada processo autonomia da psicologia em relação à isiologia, ou psíquico elementar e seu processo físico seja, ele é uma expressão da irredutibilidade da nossa experiência subjetiva. correspondente. No entanto, existem vários conteúdos da nossa experiência que só podem ser conhecidos a partir de um único ponto de vista, seja ele físico ou psicológico. Nesse caso, somos obrigados a reconhecer a autonomia do conhecimento psicológico e estamos justiicados a supor uma causalidade própria para o domínio dos processos mentais, do mesmo modo que supomos a causalidade física na natureza. Os dois tipos de causalidade são complementares e nunca podem entrar em contradição entre si. Assim como a causalidade física está fundamentada nas leis da natureza, a causalidade psíquica vai encontrar sua fundamentação última nas leis fundamentais da vida psíquica. 100 A institucionalização da psicologia O título de fundador da psicologia, normalmente consagrado a Wundt em quase todos os manuais de história da psicologia, encontra freqüentemente justificativa na fundação, em 1879, do Laboratório de Psicologia da Universidade de Leipzig, onde ele permaneceu até se aposentar em 1917. Entretanto, esse fato seria por si só insuiciente para sustentar tal escolha. Tendo em vista a rápida disseminação de laboratórios de isiologia por praticamente toda a Alemanha do século XIX, é sempre possível apontar a existência de laboratórios anteriores ao de Leipzig, onde também eram realizadas investigações de cunho psicológico, o que colocaria em questão o pioneirismo de Wundt. Ao investigarmos mais detalhadamente a vida acadêmica de Wundt, sobretudo o período de Leipzig, podemos perceber mais claramente onde reside a verdadeira justiicativa para a eleição de Wundt como o fundador da psicologia cientíica. Não se trata da fundação do laboratório em si, mas sim daquilo que ele passou a representar a partir de então. Durante todo o último quarto do século XIX, o Laboratório de Leipzig atraiu estudantes de várias partes do mundo (Estados Unidos, Canadá, Inglaterra, entre outros) e tornou-se o primeiro e maior centro de formação de toda uma geração de O psicólogos, que posteriormente regressaram a seus locais de origem e LABORATÓRIO fundaram novos laboratórios nos moldes wundtianos. DE PSICOLOGIA fundado em 1879 Foi também o sucesso do L ABORATÓRIO DE L EIPZIG que era bastante precário gerou a institucionalização formal da psicologia, quando, em e consistia apenas em uma pequena sala, 1883, o Instituto de Psicologia teve sua autonomia oicialmente anteriormente utilizada reconhecida pela Universidade de Leipzig e passou a ser incluído como auditório, que no orçamento universitário. A nova psicologia (científica) foi doada a Wundt. Aos poucos, ele foi adicionando separava-se formalmente, pela primeira vez na história, da novas salas ao Laboratório, filosofia e ganhava finalmente sua esperada autonomia. o que levou o espaço a adquirir feições de um Contudo, os resultados posteriores dessa separação não foram Instituto propriamente dito. Posteriormente, o Instituto vistos com bons olhos por Wundt, que continuou até o im da mudou-se para um prédio vida insistindo na reaproximação entre ambas as disciplinas. próprio, construído segundo Além de tudo isso, é digno de nota o fato de Wundt ter as especiicações de Wundt, que se tornou fundado e publicado, em 1883, um dos primeiros periódicos modelo para os demais de psicologia, que inicialmente se chamava Philosophische Studien laboratórios de psicologia na época, (Estudos ilosóicos), e, a partir de 1906, passou a se chamar até ser totalmente Psychologische Studien (Estudos psicológicos). Esse periódico era o destruído durante a Segunda Guerra Mundial. 101 veículo oficial de publicação dos trabalhos realizados no Instituto de Psicologia. Não podemos nos esquecer também que o próprio Wundt, desde seus primeiros trabalhos psicológicos (1858-1863), que antecedem por mais de dez anos sua chegada a Leipzig (1875), sempre reivindicou para si o ato de fundação de uma nova psicologia, restrita ao campo da experiência possível. Foi Wundt, mais do que qualquer outra pessoa, que lutou para ixar o signiicado do termo “psicologia” em conformidade com a tradição cientíica do século XIX na Alemanha. No que diz respeito ao desenvolvimento e à institucionalização da psicologia no Brasil, é praticamente impossível estabelecer qualquer ligação direta entre esta e a obra de Wundt. Se levarmos em consideração que a penetração da psicologia no Brasil ocorreu principalmente pela via da psicologia aplicada – seja na psiquiatria ou na pedagogia, com ênfase na psicometria – e que Wundt jamais se preocupou seriamente com qualquer aplicação da psicologia, torna-se evidente a distância. O máximo que podemos airmar é que, caso tenha havido alguma inluência, esta ocorreu de maneira muito indireta, com a criação de laboratórios de psicologia e a utilização de alguns instrumentos de medição de fenômenos psicológicos. Wundt e Titchener Um dos equívocos cometidos com mais freqüência nos manuais de história da psicologia é a airmação de que Wundt seria, ao lado de Titchener, um dos principais representantes do estruturalismo. Esse equívoco, que por si só já representa uma total falta de compreensão da psicologia wundtiana, está diretamente relacionado a outros ainda mais graves – p. ex., quando ele é apontado como um defensor do elementarismo e do associacionismo britânicos –, na medida em que subvertem os principais fundamentos ilosóicos de seu pensamento. Em primeiro lugar, deve-se ressaltar que existem diferenças importantes entre Wundt e Titchener, pelo menos enquanto este último se deiniu como estruturalista e foi iel aos seus princípios. Foi Titchener quem fundou o estruturalismo, e não Wundt. Embora tenha sido aluno e colaborador de Wundt no Laboratório de Leipzig, ele construiu sua própria concepção de psicologia, que em muitos aspectos se distanciou do pensamento wundtiano. 102 A divergência fundamental está na própria concepção de objeto e método da psicologia. Para Titchener, a psicologia é fundamentalmente o estudo dos elementos da consciência através da introspecção. Aquilo que não for passível de estudo e registro introspectivo não deve ser considerado assunto da psicologia. Fica evidente, portanto, que o sistema de Titchener é muito mais restrito do que o de Wundt, uma vez que todo o conteúdo da psicologia dos povos não deve ser tema de investigação psicológica. Há ainda uma outra divergência importante. Titchener foi reconhecidamente um defensor do elementarismo e do associacionismo. A análise ou decomposição dos processos psíquicos conscientes em seus elementos mais básicos (estruturas fundamentais) e a descoberta dos seus mecanismos associativos subjacentes eram os objetivos últimos de sua psicologia estruturalista. Para Wundt, a análise era apenas um meio de se alcançar a meta principal da psicologia, que era a descoberta das leis universais da vida psíquica em todas as suas manifestações. Além disso, quando rotulou seu sistema psicológico de voluntarismo, uma de suas maiores preocupações era manifestar sua insatisfação com a psicologia associacionista, que segundo ele era incapaz de explicar a dimensão afetiva (sentimentos) e volitiva (vontade) da vida mental. Os equívocos acerca de Wundt presentes na historiograia tradicional da psicologia só poderão vir a ser deinitivamente corrigidos quando os estudos sobre sua obra alcançarem uma maior consistência, permitindo-nos, desta forma, resolver problemas cruciais de interpretação do seu pensamento, como, por exemplo, a questão da relação entre seus textos psicológicos iniciais e seu pensamento maduro. Ainda está por vir uma análise exaustiva do projeto wundtiano de psicologia. Bibliografia indicada Araujo, S. de F. (2003) A obra inicial de Wundt: um capítulo esquecido na historiograia da psicologia. Revista do Departamento de Psicologia da UFF, 15 (2): 63-76. Bringmann, W. e Tweney, R. (1980) Wundt Studies. Toronto: C. J. Hogrefe. Rieber, R. (1980) Wilhelm Wundt and the making of a Scientiic Psychology. Nova York: Plenum. Rieber, R. e Robinson, D. (2001) Wilhelm Wundt in History. Nova York: Kluwer Academic/ Plenum Publishers. Wundt, W. (1896) Grundriß der Psychologie. Leipzig: Alfred Kröner. 103 Referências bibliográficas Bringmann, W. e Scheerer, E. (1980) Wundt centennial issue. Psychological Research (42) 1-2. Petersen, P. (1925) Wilhelm Wundt und seine Zeit. Stuttgart: Fr. Frommanns. Ringer, F. (2000) O declínio dos mandarins alemães. São Paulo: EDUSP. Wundt, W. (1910) Das Institut für experimentelle Psychologie zu Leipzig. Psychologische Studien, Band V: 279-293. (1920) Erlebtes und Erkanntes. Stuttgart: Alfred Kröner. 104 Capítulo 6 Comparação e genealogia na psicologia inglesa no século XIX Francisco Teixeira Portugal A obra de Charles Darwin (1809-1882) marcou de maneira incontornável a concepção do vivo no século XIX e os cinqüenta anos que sucederam a publicação de Origem das espécies (1859) podem ser chamados de era darwiniana não só na psicologia, mas na biologia e nas ciências sociais (Jacquard, 1986). Ao inal de sua obra marco, Darwin “visualiza novos campos que se estendem para pesquisas ainda mais importantes” e continua sua previsão escrevendo que a “psicologia irá basear-se num fundamento novo, o da necessária aquisição gradual de cada faculdade mental”. Dessa forma, “nova luz será lançada sobre o problema da origem do homem e de sua história” (Darwin, 1859: 351). À psicologia caberia a importante tarefa de mostrar a aquisição gradativa de cada faculdade mental e assim chegar a estender as propostas transformacionistas ao homem, algo repleto de conseqüências não apenas para a universidade inglesa, ainda muito clerical, mas também para os grupos governantes ainda muito antiliberais. Um fundamento novo – seguindo as palavras de Darwin – suportou as novas pesquisas sobre o homem, os seres vivos e as organizações sociais, e a história de sua difusão revela o surgimento de uma importante vertente da psicologia inglesa no século XIX. Constitui um erro comum considerar a biologia como fornecedora de referenciais e modelos para a psicologia, especialmente no que diz respeito às contribuições de Darwin. A suposição é a de que nas relações entre elas, as inovações conceituais e metodológicas da biologia seriam exportadas para a psicologia. Nesta linha de pensamento, e destacando a psicologia pósdarwiniana inglesa, restaria à psicologia apenas o procedimento menor de recolocação dos problemas a partir de um referencial novo que se mostrou fértil alhures sobre seu objeto privilegiado, as faculdades mentais. Mas, deveríamos crer, ingenuamente, que a aplicação de um pressuposto ou de um método sobre 105 um objeto faria com que ele se apresentasse aos nossos olhos sem possibilidade de ocultação? Outros são os termos de Darwin e outra também a história desse saber. Essa psicologia, como qualquer outra, não se fez por depuração metodológica, mas pela constituição de dispositivos de legitimidade e pela emergência de novos temas. O papel desempenhado pela psicologia foi relevante para a constituição da própria teoria da seleção natural, modiicando a mão dessa trilha que liga a psicologia à biologia. O evolucionismo constitui um exemplo do equívoco apontado acima. Embora o conceito de evolução tenha se identiicado com a evolução orgânica, ele não se restringe à biologia e pode ser remetido a campos diversos das ciências naturais e das ciências humanas e sociais (por exemplo, cosmologia evolutiva, termodinâmica evolutiva, algumas teorias da linguagem, as ciências sociais, a geologia). Como airmou Lewontin (1985: 249), Darwin representa o ponto culminante da teoria da evolução orgânica, não a matriz do evolucionismo do século XIX. Podemos dizer que Darwin forneceu, com seu livro inaugural, uma credibilidade, segundo os cânones da ciência de então, à noção de evolução (Jacquard (1986) lembra, entretanto, que o termo só apareceu na sexta edição da obra Origem das espécies). Na verdade, um dos grandes organizadores e difusores da tese evolucionista na Inglaterra do século XIX foi Herbert Spencer (1820-1903). Spencer é atualmente um pensador muito ignorado; todavia, a ressurgência das forças liberalistas tem sido acompanhada da revalorização de parte de sua obra. Assim, há uma simpatia por seu pensamento quer pelos ilósofos de mercado, quer pela renovada tentativa de aplicar os princípios evolucionistas à sociedade humana. A ausência de formação universitária e inserção proissional acadêmica de Spencer não impediu que ele fosse indicado a receber, ao longo dos últimos trinta anos de sua vida, uma série de homenagens acadêmicas (tendo recusado quase todas). Juntamente com Edward Burnett Tylor (18321917) e Lewis Henry Morgan (1818-1881), Spencer está entre os três mais destacados evolucionistas do século XIX, e embora, segundo Burrow (1968), seu trabalho tenha sido exaltado da Rússia aos EUA, sua importância entre os pensadores do século XIX tem sido exagerada. Sua herança intelectual inclui também, além do evolucionismo, o liberalismo clássico calcado no individualismo, na noção puramente econômica das relações sociais, no Estado mínimo e na negação gradual das instituições com exceção da 106 propriedade. Estas características izeram dele o O DARWINISMO SOCIAL foi uma concepção da evolução social que ordenava grande DARWINISTA SOCIAL, pois foi sobretudo seu teoricamente e justificava os fatos evolucionismo, não o de Darwin, que, associado ao danosos da estratiicação social a im de conciliá-la com o igualitarismo. liberalismo individualista, deu suporte às práticas Sua configuração é a de um excludentes e perigosas do evolucionismo social. corpo de valores conservadores, individualistas e liberalistas. O positivismo determinista presente nas ciências Além de Spencer, incluem-se, sociais na segunda metade do século XIX encontrou em na Inglaterra, Walter Bagehot Spencer um de seus mais irmes adeptos. Sua crença na (1826-1877) e, nos EUA, onde essa teoria encontrou ampla causação natural o levou a adotar a teoria evolucionista. repercussão, William Graham Tendo escrito algumas de suas obras onde a concepção Sumner (1840-1910). de evolução é exposta antes mesmo da publicação do livro Origem das espécies de Darwin, Spencer buscou aplicar o princípio da evolução sistematicamente a todo o universo e especialmente à sociedade humana. Spencer considerava-se o Newton das ciências morais, a aplicar a lei universal da conservação de energia traduzida em princípio da evolução ao universo. Assim, para além Sua fórmula completa de evolução rezava o seguinte: do mundo ao qual os físicos se “Evolução consiste na integração da matéria e na dirigem, a evolução se aplicaria concomitante dissipação do movimento, [processo] no qual a matéria passa de uma homogeneidade indeinida e incoerente também ao mundo dos seres a uma heterogeneidade deinida e coerente, e durante o qual o vivos, aos homens e suas movimento retido produz uma transformação paralela.” organizações SOCIAIS. Sua concepção de evolução não vem, pois, de Darwin, nem ele foi um darwiniano. A concepção de evolução relaciona-se à sua crença na causação natural e a uma ciência determinista e, no caso de sua aplicação aos seres vivos, vem muito mais de um conhecimento de segunda mão das concepções de Jean-Baptiste Lamarck do que de uma relexão a partir da obra de Darwin. Seu credo liberal valorizava, assim como os utilitaristas da primeira metade do século XIX, o indivíduo, mas de uma forma renovada, ao propor o conceito de estrutura social. É dessa perspectiva individualista que se pode compreender a expressão de Spencer – “sobrevivência do mais apto” – para o conceito darwiniano de seleção natural. A seleção natural, tão importante por ter fornecido um sentido para as transformações e diferenças entre os seres vivos, inexplicáveis na perspectiva lamarquista, se ancora na comunidade, não no indivíduo. Spencer desloca para o indivíduo esse conceito crucial nos trabalhos de Darwin e o aloca na perspectiva do progresso. Além da deformação conceitual que representa a transformação da seleção natural em sobrevivência do mais apto, Spencer manteve até o inal de sua vida a crença na concepção lamarquista de 107 herança dos traços adquiridos. O evolucionismo liberalista de Spencer pode então hierarquizar as organizações sociais tomando como cume a organização liberal da Inglaterra colonialista. Spencer foi muito mais resenhado por autores das ciências sociais que da psicologia. Contudo, considerando o retorno das abordagens evolucionistas ou evolucionárias na psicologia, Spencer tem sido retomado e historicamente revalorizado. Assim é que se indica repetidamente o elogio de Darwin e de William James a Herbert Spencer. Nessa vertente do melhoramento biológico, Sir FRANCIS GALTON (1822-1911) social e psíquico que se elaborou teoricamente cunhou em 1883 o termo eugenia na Inglaterra também pode ser incluído o conpara designar o estudo e o uso da reprodução seletiva em homens e temporâneo de Spencer, Sir FRANCIS GALTON (1822animais a im de melhorar as espécies 1911). As contribuições de Galton para a psicologia ao longo das gerações especiicamente em relação a seus padrões hereditários. podem ser divididas em dois campos: a eugenia e a Galton diferenciou a eugenia positiva psicologia diferencial. Apresentaremos aqui somente da negativa, a primeira encorajando o mais apto a reproduzir-se com mais a eugenia, uma vez que a psicologia diferencial será freqüência, a segunda desencorajando abordada no capítulo 16. o menos apto a reproduzir. Termo cunhado por Galton a partir do grego, eugenia signiica “bem-nascido” e consistia no estudo e no uso da reprodução seletiva com o ito de melhorar as espécies, principalmente dos atributos hereditários, ao longo das gerações. A deinição de eugenia foi reinada por Galton ao distinguir a eugenia positiva, que incentivava a reprodução do “mais apto”, da eugenia negativa, que buscava evitar ou diicultar a proliferação do “menos apto”. Assim, e nos termos marcadamente conservadores da Inglaterra vitoriana, Galton airmou “da maneira mais desqualiicada” sua impaciência e objeção em relação à tese da igualdade natural entre os homens (Galton, 1869: 44). O esforço de Galton foi o de mostrar que as habilidades mentais – o que ele chamava gênio – eram traços hereditários tanto quanto os padrões físicos e estavam, conseqüentemente, submetidas aos mesmos dispositivos de transmissão. O lorde inglês utilizou para demonstrar tal propósito dois instrumentos de legitimação, um artifício matemático (a teoria das probabilidades) e as palavras de Darwin (a SELEÇÃO ARTIFICIAL). O problema principal para Galton foi como ter acesso às habilidades mentais e como mostrar que eram traços hereditários. Para tanto, Galton A SELEÇÃO ARTIFICIAL indica o fez uma passagem cheia de conseqüências ao correlacionar processo de modiicação das espécies por meio do inluxo as habilidades mentais superiores à reputação proissional humano, intencional ou não alcançada pelos indivíduos. O pressuposto era o de que a intencional. 108 reputação só pode ser alcançada através das altas HABILIDADES MENTAIS. Em seguida era preciso mostrar como os indivíduos de alta reputação mantinham um padrão hereditário. Em outras palavras, tratavaÉ muito interessante notar os se de naturalizar as diferenças sociais. Além disto, termos dessa escolha: “Eu estou observe-se que o termo correlacionar aqui é convencido que homem algum pode um reputação muito alta sem importante porque os instrumentos matemáticos atingir ser dotado de altas habilidades e poucos permitem “limpar” as escolhas morais de Galton dos que possuem essas altas habilidades falham em alcançar eminência” uma vez que a sofisticação introduzida pelas (Galton, 1869: 79). matemáticas obstruem freqüentemente a percepção dos interesses e conseqüências político-sociais envolvidos nessas análises. O primeiro passo foi dado sem maiores dificuldades – “Estou convencido…” –, o segundo foi dado ao indicar a similaridade entre a forma de distribuição das habilidades mentais e dos traços físicos herdados (ambos eram distribuídos segundo a curva normal). Embora tal similaridade não permitisse indicar a hereditariedade das habilidades mentais, o que importa notar é que o instrumental matemático ajudou a sustentar uma fraude cientíica muito mais por suas conseqüências sociais que por qualquer má-fé de seu criador e de seus divulgadores. O argumento era circular; sem ter como medir a hereditariedade das habilidades mentais, Galton mediu as freqüências com que a eminência ou reputação aparecia em famílias de grande notabilidade segundo o grau de parentesco. Comparando-as com as freqüências de eminência esperada da população mais ampla, descobriu que as relações de homens eminentes exibiam uma freqüência muito maior de eminência que a esperada na base e que ela declinava conforme o grau de parentesco dessas relações. Então, e aí está a circularidade do argumento, Galton concluiu que esse padrão só poderia resultar da herança das habilidades mentais. Independentemente das falhas do procedimento de Galton, estaríamos enganados ao diminuir as conseqüências das propostas eugênicas. Elas tiveram uma ampla aplicação ao longo do século XX e estão presentes em nossos dias. O infame programa eugênico levado a cabo na Alemanha nazista em nome da pureza da raça ariana foi realizado pela esterilização forçada de centenas de milhares de pessoas consideradas mentalmente desadaptadas e pelos programas de eutanásia compulsória que mais tarde desembocaram no assassinato de milhões de “indesejáveis”, incluindo judeus, ciganos e homossexuais, durante o Holocausto perpetrado na Segunda Grande Guerra. O segundo maior movimento eugênico ocorreu nos EUA que, desde o inal do século XIX, implantou leis sob a égide da eugenia proibindo o 109 casamento dos epilépticos, imbecis e débeis mentais. As teses eugenistas também estiveram presentes em 1924 nas decisões do Congresso americano de diicultar a imigração, ao serem aconselhados sobre os riscos de espalhar entre os americanos um “estoque inferior” proveniente da Europa Oriental e do sul. Assim, também sob inspiração eugênica, foram adotadas, ainda nos EUA, leis contra o incesto e de antimiscigenação, bem como levados a cabo programas de esterilização que atingiram milhares de americanos considerados desadaptados. Um relatório favorável desse programa de esterilização foi apontado pelo governo nazista como evidência de que a esterilização era praticável e humana e, durante o Tribunal de Nuremberg dos Crimes de Guerra, os administradores nazistas de programas de esterilização em massa apontaram os programas americanos como sua inspiração. Contudo, observese que, com exceção do Reino Unido, quase todos os países não católicos da Europa Ocidental implantaram ao longo do século XX uma legislação eugênica. Após a Segunda Grande Guerra, os programas perdem força, mas muitos eugenistas nos EUA criam o termo criptoeugenia com a intenção de manter as propostas eugênicas disfarçadas. Assim, diversas argumentações sobre raça, imigração, pobreza, criminalidade e saúde mental são categorizadas como criptoeugênicas, ou seja, publicações e práticas eugênicas ganham novos nomes. Atualmente, um dos programas de inspiração eugênica de maior alcance está ligado ao projeto genoma de mapeamento do código genético. Uma importante modificação nos procedimentos classificatórios praticados pelos pesquisadores do mundo natural no inal do século XVIII e início do século XIX consistiu no abandono da descrição do que era observado diretamente na superfície das coisas e na eleição de princípios ordenadores invisíveis que pudessem fornecer sentido à classiicação dos seres. A história natural própria ao século XVIII ordenava seu mundo pela comparação das características visíveis das plantas e dos animais em um sistema fechado, refratário às transformações. As novas noções de vida, de função e de órgãos que emergem no século XIX deslocam o procedimento descritivo da história natural e se impõem na formação de novas práticas que constituem a biologia (Foucault, 1987). Também o tempo passa a constituir uma dimensão invisível que ordena as relações entre os seres vivos. A genealogia se impõe à comparação. Darwin, representante dessas modiicações, também se perguntou sobre o sentido da classiicação. As aproximações e as diferenças que emergem da 110 pura comparação entre os seres vivos geravam uma ininidade de categorias, tornando a classiicação pouco operacional. Essas categorias poderiam ser drasticamente reduzidas se fosse eleito um princípio norteador que fornecesse uma inteligibilidade manuseável. Enquanto biólogos mais ligados à Igreja – os teólogos naturalistas – se esforçavam em agrupar os seres vivos em círculos simbólicos que revelariam a escrita de Deus própria ao CRIACIONISMO, Darwin, na esteira transformacionista, elege a genealogia como critério que fornece sentido às aproximações e diferenciações que permitem agrupar os tipos animais e vegetais. Entende, pois, que as O CRIACIONISMO refere-se às teses que atribuem a enormes diferenças existentes entre os seres criação dos seres vivos a uma entidade vivos remontariam a um longo passado divina. Esta concepção contrastou com as abordagens evolucionista e transformacionista repleto de pequenas bifurcações. Se todos que acentuaram a dimensão processual, isto os seres existentes e que existiram pudessem é, as transformações dos tipos vivos, e ser coletados, então seria possível estabelecer deixaram a questão da origem absoluta da vida em aberto. suas séries, relacionando-os em um grande e indivisível grupo. Ainda que esse princípio tenha sido altamente difundido a partir de então na biologia, não devemos esquecer sua artiicialidade. As “ordens, famílias e gêneros são termos meramente artiiciais extremamente úteis para mostrar o parentesco daqueles membros da série que não se tornaram extintos” (Darwin, 1859). Darwin ainda comenta que os naturalistas sabem que seus critérios são artiiciais, mas têm a estranha tendência a esquecer essa característica e conceber suas propostas como o simples relexo do mundo natural. A psicologia entra em cena nos trabalhos de Darwin a partir de sua tentativa de saber como o homem descende de alguma forma preexistente. Se no livro Origem das espécies (1859) não houve menção à genealogia humana, com o sucesso de suas propostas, a pergunta encontra seu encaminhamento vinte e poucos anos depois em A ascendência do homem (1871) e em A expressão das emoções em homens e animais (1872). As conexões do homem com alguma forma preexistente foram procuradas nas variações da estrutura corporal e nas faculdades mentais. A assimetria dos critérios que garantem a conexão genealógica entre os seres vivos quando referidos às estruturas corporais e às faculdades mentais marca uma diferenciação presente entre biologia e psicologia. Darwin tem muito mais diiculdade em estabelecer critérios de ordenação das faculdades mentais e seus elos com formas anteriores, em franco contraste com os critérios utilizados para as estruturas corporais. 111 Ainda que Darwin não tenha desenvolvido uma teoria soisticada da relação mente-corpo, ele concebe as faculdades mentais como produtos do funcionamento cerebral. Seu argumento era bastante simples: assim como não se sabe por que a gravitação é um efeito da matéria e ninguém ica perplexo por isso, também não sabemos por que a mente é um efeito do cérebro. Com essa deinição naturalista, as faculdades mentais, tanto quanto os atributos estruturais dos organismos, poderiam ser utilizadas para classificá-los, legitimando a comparação entre homens e animais no campo da psicologia. Entretanto, a tentativa de classiicar um tipo animal por seus hábitos ou instintos havia se mostrado muito insatisfatória. Devemos lembrar sempre que as tentativas de classiicação centradas em apenas um critério eram concebidas pelo naturalista como inadequadas e insuicientes, mas de uma forma geral o comportamento e as faculdades mentais não serviram ou não tiveram o mesmo respaldo que os critérios atinentes às estruturas corporais para o sistema classiicatório. Se ica claro que a base de sustentação da teoria biológica diferenciouse da psicológica, por outro lado estaríamos equivocados ao airmar que não houve interação entre elas, ou mesmo que a primeira tenha sido imposta à segunda. As faculdades mentais e o comportamento não são determinados passivamente pela evolução, tendo sido concebidos pelos TRANSFORMACIONISTAS como desempenhando um papel relevante na trajetória dos seres vivos. Jean-Baptiste LAMARCK concebia o comportamento como simultaneamente produto e instrumento das transformações das O TRANSFORMACIONISMO se diferencia espécies. Sua obra teve importante inluência no do fixismo e do criacionismo. No século as teses transformacionistas valorizam pensamento de Darwin que a conheceu durante XIX a transformação dos tipos vivos ao longo seus estudos em Edimburgo (onde tentou sem do tempo, fornecendo inteligibilidade aos cujo desaparecimento as concepções sucesso formar-se em medicina como seu pai e fósseis criacionistas atribuíam a algum tipo de seu avô) e que manteve por longo tempo no eixo catástrofe, como o dilúvio. de suas relexões. O pensamento do naturalista JEAN-BAPTISTE LAMARCK (1774-1829), um mais conhecidos transformacionistas francês atua sobre o jovem Darwin da seguinte dos da França, propôs os seguintes mecanismos forma: algumas modificações no ambiente retores da evolução. Os animais ajustam seus conforme as circunstâncias constrangem os animais a novos hábitos, em comportamentos e o uso contínuo de um orgão o fortalece. Os decorrência de novas exigências. Novos hábitos novos hábitos dos animais poderiam produzir alteram as estruturas cerebrais bem como outros mudanças hereditárias nos órgãos e funções. órgãos, se praticados ao longo de muitas gerações. Para Darwin, a memória ou o pensamento, quando tornados habituais e involuntários, afetam a estrutura física do cérebro, podendo tais transformações ser transmitidas à prole. Dessa forma, os instintos ganhavam uma explicação 112 materialista, mas grandes brechas icaram abertas, a mais conhecida e mais grave sendo a pergunta: como conectar a modiicação estrutural produzida pelo hábito com a transmissão para a prole das estruturas adquiridas? Os INSTINTOS MARAVILHOSOS eram, para Darwin, extremamente difíceis de explicar pelo hábito. Sua diiculdade principal estava na acentuação do caráter não intencional e não consciente de I NSTINTOS comportamentos complexos. Como poderia a MARAVILHOSOS eram, por exemplo, a mudança da solitária vespa aprender a cavar um buraco, lagarta em borboleta ou o comportaparalisar uma aranha e colocar seus ovos, se mento altamente organizado das formisuas crias nascerão depois de sua morte? Que gas divididas em castas dentro de um formigueiro. No primeiro caso, a benefício futuro ela poderá tirar? Que tipo de mesmo transformação da lagarta em borboleta era ajuste do comportamento pode ser evocado concebida, entre os teólogos naturalistas, para dar sentido a este tipo de instinto? Em um como uma evidência da intervenção divina no mundo natural. formigueiro pode haver formigas divididas em duas ou mais castas, sendo algumas estéreis. Como esses insetos sexualmente neutros poderiam deixar prole? Darwin encontrou respostas a estas perguntas na transposição do foco de análise do indivíduo para a população. A solução encontrada que permitiu a aplicação da teoria da seleção natural a estes casos foi o reconhecimento da diferença entre o animal que seleciona um comportamento por sua utilidade (o animal é o centro decisório) e o animal que é selecionado por seu comportamento útil (o animal é parte de um processo). A unidade de medida passa a ser a população ou a comunidade. Um problema considerado psicológico como o do instinto ocupou, portanto, um lugar destacado no estabelecimento da teoria da seleção natural, envolvendo-a numa longa relexão sobre a moral e as faculdades mentais. Como dito anteriormente, foi principalmente nas obras A ascendência do homem (1871) e A expressão das emoções em homens e animais (1872) que Darwin buscou explicitar o parentesco comum entre homens e animais através das expressões e das faculdades mentais. Ao longo desses livros foram desiados extensos comentários sobre as semelhanças psicológicas entre homens e animais calcados em “fatos” colhidos por mais de quarenta anos através de observações, de questionários e de experimentações. A liberdade com que foram aplicados atributos mentais aos animais a partir das observações de viajantes e missionários salienta uma opção pela continuidade mental entre eles, já que esses “fatos” eram tremendamente antropomóricos e ANTROPOCÊNTRICOS. 113 Muito mais do que uma fonte intelectual e documental para a construção de uma psicologia comparada ou uma etologia, a psicologia de Darwin se apresenta como uma crítica aos argumentos que isolam qualitativamente homens e animais. Assim é que a observação dos cachorros pode fornecer uma evidência anticartesiana, uma vez constatado que eles constroem “uma idéia geral dos gatos e das ovelhas, e conhece[m] as palavras correspondentes tão bem quanto as pode conhecer um ilósofo” (Fontenay, 1998: 566). Ou mesmo que os animais se espantem; aqui, lembramos ser o espanto uma característica-chave para a atividade ilosóica na concepção de Platão e Aristóteles. Ficamos também constrangidos ao sermos comparados pelo naturalista em relação aos nobres sentimentos de um cão que, no momento mesmo de sua vivisseção, lambe a mão de seu dono: sinal não só de aceitação de seu martírio em nome da nobre causa da ciência, como de seu perdão por uma ação tão cruel. O esforço de Darwin se justiicava pela barreira imposta à teoria da seleção natural diante da descontinuidade das capacidades mentais do homem e dos animais. A genealogia simiesca do homem, apesar de gerar INTENSAS DISCUSSÕES, foi aceita por um público amplo. Se o clero e algumas camadas dominantes a A QUERELA entre Thomas Henry Huxley (1825-1895), o “buldogue rejeitaram com fervor, de Darwin” por sua encarniçada defesa da teoria darwiniana (avô de o livro de Darwin Aldous Huxley, autor de Admirável mundo novo), e o bispo Samuel Wilberforce importante representante da Igreja na Universidade, tem sido alcançou várias tiragens, (1805-1973), a mais divulgada, ainda que tremendamente parcial e incompleta. O bispo as palestras de Huxley teria perguntado a Huxley se ele descendia de macaco por parte do avô ou avó e este teria respondido que não se envergonhava de sua ascendência atraíam multidões e houve dasimiesca, mas de pertencer à mesma espécie daqueles que utilizam seu também a produção de poderoso intelecto para falsear a verdade. uma literatura popular, divulgando valores evolucionistas, avidamente consumida por um grande público. Mas, no plano das argumentações acadêmicas, muito havia ainda a ser feito para garantir a continuidade homem-animal no plano mental. Os esforços de George John Romanes (1848-1894) e Conwy Lloyd Morgan (18521936) foram os mais relevantes em continuidade com os do mais conhecido naturalista inglês. Um exemplo de ANTROPOCÊNTRISMO : Sir E. Tennent, um dos agentes do colonialismo inglês na Índia e fonte de informações de Darwin, observou: “Alguns anos atrás um elefante que foi ferido por um nativo […] perseguiu o homem até a cidade, seguiuo pelas ruas e pisoteou-o até a morte no bazar em frente a uma multidão de espectadores apavorados, obtendo sucesso em sua retirada para a selva”. Este “fato” registrado pelo eminente inglês indica o aguçado senso de justiça do elefante que foi injustamente ferido. 114 Encarregado por Darwin de realizar a extensão das teses evolucionistas à mente e ao comportamento, Romanes realizou um estudo de psicologia comparada centrado na experiência humana consciente. Para ele, a força de uma teoria estava na possibilidade de fornecer inteligibilidade a campos novos que não tinham sido seu foco inicial e este era o caso da teoria da seleção na explicação de temas psicológicos como o instinto, a razão e o senso moral. Seu projeto consistiu principalmente na elaboração de princípios explicativos da gênese da mente, mas ele também realizou estudos sobre o intelecto, a emoção, a vontade, a moral e a religião. Há um claro esforço em atestar a continuidade homem-animal, o que o levou a uma seleção bastante tendenciosa do material a ser analisado. Explicando: como seu material continuava provindo, em grande parte, de viajantes e missionários nas colônias européias, Romanes o selecionava conforme a fama do autor do relato. Se o autor não fosse reconhecido, fazia a veriicação da qualidade da observação através da confrontação das informações. Como a maioria dos relatos utilizados era proveniente de eminentes ingleses trabalhando nas longínquas terras daquele então vasto império colonial, não questionava seus dados nem sua interpretação, já que, segundo seus critérios, estes eram válidos e coniáveis. Dessa forma, o antropomorismo das observações A prática de criar macacos e ganhava uma teorização academicamente primatas se tornou mais tarde legitimadora na obra de Romanes. Contudo, difundida principalmente nos EUA, nos estudos de psicologia comparada, e, nesta também contou com observação mais controlada linha, Romanes foi um inovador (ainda e chegou mesmo a “cuidar” de um MACACO CEBUS que o MACACO CEBUS tenha icado sob os cuidados de sua irmã em uma residência como parte de suas pesquisas. londrina no século XIX e não tenha sido diretamente observado por ele). A mente, em sua concepção, é imediatamente S OLIPSISMO indica a valorização extrema dada a nós, não podemos duvidar de que temos do sujeito pensante que, por sua própria conhecimento de um certo luxo de pensamentos consciência, constitui-se como realidade e sentimentos. Com esta perspectiva SOLIPSISTA, a única, todo o restante não passando de representações. observação de outras mentes torna-se possível por inferência, a partir das atividades dos organismos que parecem exibi-las. Solipsismo e antropomorismo regem a relexão. Primeiro passo: os humanos têm acesso introspectiva e diretamente às suas mentes (é por analogia que podemos airmar que todos partilhamos esta característica). Segundo passo: como só podemos inferir as mentes em animais a partir das atividades dos organismos, devemos compará-las às dos homens para, na medida de sua semelhança, vislumbrá-las. Romanes justiica seu procedimento lançando mão de um argumento teológico. Assim como os teólogos mostraram que a mente divina só pode ser 115 concebida por analogia com a nossa, ainda que imperfeita, também em relação à mente animal devemos impor tal entendimento e aplicar o “antropomorismo invertido” (invertido aqui em comparação ao alvo teológico que, na primeira comparação, se dirige a Deus). A consciência e a escolha são os traços distintivos que indicam a existência da mente entre os animais. Assim como os comportamentos humanos que não se restringem ao conjunto de hábitos herdados podem ser explicados pela consciência e pela escolha, também as atividades dos animais que escapam ao hábito podem indicar decisão e consciência. Mas a mente só pode ser inferida a partir de atividades que se sobrepõem às determinações inatas. Atividade consciente e aprendizagem se aproximam e a distinção inato-aprendido passa ao primeiro plano. Coube a Conwy Lloyd Morgan indicar um caminho para que a psicologia comparada pudesse se livrar das pesadas lentes do antropomorismo. Seu monismo metafísico o fez adotar a concepção de consciência de William James evitando o “forte PRECONCEITO de que temos Esse estados mentais e de que o cérebro os condiciona” PRECONCEITO causalista está muito presente nos estudos (1977a [1894]). Seu monismo fornece três vetores psicoisiológicos de nossos dias. Reduzao trabalho do pesquisador: uma teoria monista se o psiquismo a mero efeito da atividade cerebral e perde-se toda a dimensão da do conhecimento, uma interpretação monista da experiência em sua dimensão social, natureza e um monismo analítico. O primeiro simbólica, política etc. evita tanto o idealismo quanto os dualismos que segmentam sujeito e objeto como entidades separadas e independentes. Nesta direção, os aspectos subjetivos e objetivos são uma divisão que se faz sobre o luxo unitário da experiência pela atividade da razão. A concepção monista da natureza, por sua vez, o leva a conceber a análise psicológica e a biológica como aspectos de um mesmo processo, a mente consistindo em um dos aspectos da existência natural. Finalmente, o monismo analítico indica que a divisão mente-corpo resulta do trabalho do conhecimento. A atividade do conhecimento cria um objeto a ser conhecido para além dos sentidos, uma vez que o acesso a ele ocorre somente pela relexão. O homem é concebido como objeto natural, sendo seus aspectos corporais e mentais estabelecidos pelo mesmo movimento e sem que um determine o outro. Evocando a experiência subjetiva do leitor, Lloyd Morgan escreve “que ele sabe o que quero airmar quando digo que ele é consciente” (1977a [1894]: 11). O termo mente é utilizado como o conjunto das atividades psíquicas que, 116 não tendo uma realidade independente do corpo, correspondem a diferentes modos de olhar o mesmo conjunto de ocorrências naturais. Lloyd Morgan transformou a divisão entre a mente e o corpo em diferença de superfície, isto é, evitou sua duplicação ontológica. Entretanto, manteve a introspecção como via de acesso à mente: só podemos ter um conhecimento direto e imediato dos próprios processos psíquicos, o que faz da introspecção o ponto de partida de toda a psicologia comparada. Mas seu monismo falha justamente na tentativa de conhecer as mentes animais. Podemos colocar sua questão da seguinte forma: se só temos conhecimento direto de nossa própria mente e derivamos sua existência nos outros homens por analogia, dada a semelhança interna à nossa espécie, como conhecer as mentes animais? É o aspecto corporal que sustenta a comparação porque permite estabelecer uma ponte entre as mentes humanas e as animais. Se a observação direta das mentes animais nos é vedada, as semelhanças corporais sustentam a hipótese das semelhanças psíquicas. O trajeto da comparação tem como ponto de partida o aspecto mental dos homens, passando em seguida a seu aspecto corporal, de onde, dadas as semelhanças, passa-se ao aspecto corporal de alguns animais para, inalmente, alcançarmos seu aspecto mental. A teoria da evolução constitui o solo desse trajeto, já que tanto o aspecto mental quanto o corporal são o resultado de exigências ambientais. O dualismo de aspecto apresentado por Lloyd Morgan – que, em sua argumentação ilosóica, seria secundário em relação ao monismo metafísico –, levou-o a uma valorização anômala (como compatibilizar a hierarquia dos aspectos com o monismo?) do aspecto corporal sobre o mental. A comparação entre os psiquismos segundo Lloyd Morgan é legítima quando realizada, no máximo, em relação aos vertebrados superiores, porque seus estados psíquicos podem ser inferidos a partir da semelhança de seus hemisférios cerebrais com os dos homens. A diiculdade em atribuir esse privilégio ao aspecto físico, incoerente com o monismo, deixa em aberto o conhecimento dos estados psíquicos de animais cujas estruturas cerebrais são muito diferenciadas da dos homens. Lloyd Morgan também introduziu o “princípio da simplicidade” na atividade comparativa. Este princípio diz que não se deve interpretar uma ação de um animal através de uma faculdade psíquica superior se ela puder ser explicada por uma outra mais simples. Tal princípio atuará no estabelecimento das diferenças entre as funções psíquicas de homens e animais, introduzindo uma continuidade imprevista ao legitimar a busca e a generalização de 117 explicações “objetivas” das características mentais dos animais. É conhecido como cânon de Lloyd Morgan, organizando as pesquisas comparadas a partir da teoria da evolução. O parâmetro para inferir as habilidades mentais dos animais tem necessariamente que resultar de seu comportamento nos ambientes, já que a seleção natural não poderia explicar uma faculdade mental superior às exigidas por essa interação. A acentuação do experimentalismo nos estudos psicológicos no início do século XX introduziu deinitivamente uma desconiança quanto à validade da observação. Se essa validade já havia sido notada por Romanes, os novos pesquisadores se ampararam sobretudo na observação planejada, não casual, e a tornaram dispositivo de legitimação indispensável. A aproximação entre homens e animais levada a cabo por Darwin foi o solo de onde emergiu a psicologia comparada. Canguilhem (1970) mostra, entretanto, como a metodologia desta se desenvolveu, em parte, contra a perspectiva darwiniana. A psicologia que compara homens e animais se tornou possível transformando o difundido paralelismo homem-animal, com sua intransponível barreira, numa genealogia de muitas e pequenas diferenças. Assim, noções como retorno, luta pela vida, adaptação por seleção natural forneceram instrumentos para a comparação na psicologia, mas sua aplicação teve que esperar até os trabalhos de Lloyd-Morgan. A noção de meio específico da vida desenvolvida por Jacob von Uexküll (1864-1944) – considerado por alguns etólogos como igura central para emergência de seu campo – e, mais tarde, pela etologia (cf. capítulo 17) permitiu o abandono dessa homogeneização promovida por Darwin na medida em que dissociou estrutura e comportamento. As características psicológicas do animal, se não anularmos as diferenças, devem ser tomadas pelas relações entre o organismo do animal e o meio que ele determina por sua estrutura: “A atenção de um animal é inseparável de seu modo de capturar suas presas. A rã aguarda e o sapo procura” (Canguilhem, 1970: 125). A psicologia elaborou essa relação entre homens e animais de três modos: primeiramente, tomando a conduta dos animais como referenciada à experiência humana conscientemente vivida. Em seguida, a psicologia abordou as condutas animais como tema da isiologia, compreendida como parte da biologia que aborda as relações entre o organismo e o meio. Uma terceira via foi o estudo do comportamento animal isolado de seu meio, isto é, inserido no laboratório e abordado analiticamente. Foi necessário que a psicologia se liberasse dessas formas de pesquisa para considerar o animal como sujeito de 118 sua experiência, ou seja, foi necessário que esse caminho fosse percorrido para que a psicologia se despojasse de seu antropomorismo. Referências Burrow, John W. (1968) Evolution and Society. A Study in Victorian Social Theory. Cambridge: Cambridge University Press. Canguilhem, G. (1970) L’homme et l’animal du point de vue psychologique selon Charles Darwin. In: Études d’histoire et de philosophie des sciences. Paris: Vrin, 112-125. Darwin, C. (1909) The voyage of the beagle (1840-43). Nova York: P.F. Collier & Son Company. _________ (1994 [1859]) Origem das espécies. Belo Horizonte - Rio de Janeiro: Vila Rica. _________ (2000 [1872]) A expressão das emoções no homem e nos animais. São Paulo: Companhia das Letras. _________ (2000 [1887]) Autobiograia, 1809-1882. Rio de Janeiro: Contraponto. _________ (s/d [1871]) The Descent of Man and Selection in Relation to Sex. 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Bristol, UK: Thoemmes Press. 120 Capítulo 7 O funcionalismo em seus primórdios: a psicologia a serviço da adaptação Arthur Arruda Leal Ferreira Guilherme Gutman As condições históricas dos movimentos funcionalistas A psicologia no século XIX, especialmente como se produzia na Alemanha no inal daquele século (centro mundial da produção acadêmica e institucional deste saber nesse período), é completamente estranha ao nosso quadro atual. Trata-se de uma psicologia que: a) Devota-se à pesquisa pura, em contraste com o quadro recente que enfatiza o aspecto prático de intervenção nos mais diversos campos. b) Toma como objeto de estudo a nossa experiência comum consciente, objeto suicientemente problematizado por correntes relevantes como a psicanálise e o behaviorismo. c) Devota-se a este objeto através da suspeita de ilusão de nossa experiência comum, problema herdado da física e da filosofia do século XVII, sem buscar, naquele momento, qualquer forma de ajustamento dos indivíduos. d) Utiliza nesse exame da nossa experiência uma forma particular de introspecção controlada em que os sujeitos teriam que ser mentalmente sãos e treinados para fazer a descrição mais precisa dos elementos básicos dessa experiência comum, as sensações. e) Por conta das exigências do método, não estuda os sujeitos comuns (muito menos crianças, animais e loucos); estuda outros psicólogos devidamente treinados na proissão de fé da isiologia para chegarem aos meandros da nossa experiência mais pura. Mais ingênua. 121 O objetivo deste capítulo é expor a transformação desse quadro da psicologia, tal como operada especialmente nos Estados Unidos graças ao movimento funcionalista, composto por psicólogos como Granville Stanley Hall (1844-1924), James McKeen Cattell (1860-1944), James Mark Baldwin (1831-1934) e William James (1842-1910), além de escolas como a de Chicago, composta por John Dewey (1859-1952), James Angell (1869-1949) e Harvey Carr (1873-1954), e a de Colúmbia, integrada por Edward Lee Thorndike (1874-1949) e Robert Sears Woodworth (1869-1962). Para compreender tal transformação, é necessário de início estabelecer uma distinção básica entre essa orientação funcionalista norte-americana surgida na virada do século XIX para o século XX e um projeto da psicologia enquanto ciência e técnica da adaptação que, de um modo mais amplo, se faz presente de modo maciço na atualidade. De fato, esse projeto delimita-se a partir tanto desse movimento funcionalista como das psicologias diferencial e comparada, surgidas na Inglaterra (cf. capítulo 6). Nesses movimentos, graças ao empuxo darwinista, demarca-se uma psicologia interessada na adaptação, evolução e variação das atividades mentais. Contudo, ao longo da história da psicologia, esse modelo se dissemina, transcende os seus movimentos originais e se dissolve no campo psicológico, dando a uma expressiva parte desse campo sua feição atual enquanto saber voltado para as práticas de ajustamento. Que forças históricas conduziram de forma mais especíica a esse projeto? Como o movimento funcionalista norte-americano lhe conferiu uma feição mais organizada e sistemática, apesar de sua tão comentada falta de sistematicidade? Estas são as questões que serão tratadas na seqüência deste capítulo. Comecemos pela primeira questão, a saber, que condições presentes em solo norte-americano teriam constituído, de forma especíica, essa forma de fazer psicologia. Dentre várias situações que concorreram para a irrupção desse projeto, destacamos duas: a) as necessidades políticas e administrativas decorrentes de um processo de modernização avançado próprio àquele país; e b) as características do sistema universitário norte-americano no inal do século XIX. No que tange à modernização, pode-se dizer que, especialmente em meados do século XIX, assiste-se nos Estados Unidos, de modo semelhante a alguns países europeus, a um galopante processo de urbanização que se expande da costa leste em direção à oeste, por meio do avanço industrial e de uma série de transformações institucionais, como a expansão do sistema escolar. Esse processo demandou uma série de novos ajustes, exames e controles sobre os indivíduos, que Foucault (1977) denominaria poder disciplinar (cf. 122 capítulo 1). É nesse contexto que a psicologia passou a ter um papel ativo, classiicando, selecionando e ajustando os indivíduos a esses novos espaços – as escolas e as fábricas – e auxiliando no bom uso da sua liberdade nesse admirável mundo novo. Como vimos no primeiro capítulo, a psicologia da experiência alemã é herdeira da problemática do estudo da subjetividade, enquanto a psicologia dos países de língua anglo-saxã vincula-se à temática do indivíduo, ancorado nas forças vitais. É nesse avanço galopante da modernidade que o sistema universitário norte-americano se expande, sem o peso da tradição que possuíam as universidades européias. Em certas áreas, como a da ilosoia e das ciências humanas, isso implicava a adoção de novos modelos e paradigmas, como os evolucionismos darwinista e spenceriano (cf. capítulo 6), conduzindo à circulação de novos conceitos como adaptação, função e equilíbrio na constituição de novas áreas e na abordagem de velhos problemas, como o do conhecimento humano. Essa expansão universitária levou à constituição de novas e importantes universidades, como a de Chicago e a de Colúmbia, sedes de movimentos funcionalistas. É nesses centros e em outras universidades mais tradicionais, como Harvard, que esses novos conceitos serão vigorosamente utilizados, não apenas visando estudar processos naturais como a evolução e adaptação dos organismos, mas especialmente promovê-los nos inos ajustes e controles do mundo moderno em expansão. É neste sentido que se pode dizer que o movimento funcionalista conduziu a uma implementação reletida e regulada das práticas disciplinares surgidas na modernidade. Os primeiros psicólogos norte-americanos Nesse processo, alguns psicólogos começam a se destacar em centros isolados e com diferentes relações com a matriz alemã. Um primeiro grupo, claramente representado pelo inglês Edward Titchener (1867-1927) na Universidade de Cornell, aportava nos Estados Unidos (no seu caso, em 1892), visando trazer a boa nova da psicologia alemã. Esse psicólogo será responsável pelo batismo da psicologia funcionalista em 1898, ao tentar diferenciá-la de sua psicologia, a estrutural, supostamente mais objetiva e oicial (cf. capítulo 5). Titchener será uma voz praticamente isolada no contexto da psicologia americana, pregando no deserto do novo mundo. 123 Um segundo grupo, composto por psicólogos genuinamente norteamericanos, como Granville Stanley Hall, James McKeen Cattell e James Mark Baldwin, freqüentou a Roma da psicologia do século XIX (Leipzig, na Alemanha) visando à obtenção da bênção institucional de seu papa (Wilhelm Wundt). Mas essa rígida formação não aplacou interesses diversos do modo germânico de produzir psicologia. Baldwin (em Princeton), por exemplo, tendo passado apenas um breve período em Leipzig (1885), foi um dos autores que, de modo mais evidente, adotou o pensamento darwinista, voltando-o para temas como o desenvolvimento infantil. Cattell, mesmo tendo sido o primeiro assistente de Wundt em 1883, ao retornar para Columbia dedicouse ao trabalho de aperfeiçoamento de medidas mentais para a classiicação dos indivíduos, crucial para a constituição dos testes mentais (cf. capítulo 16). Stanley Hall, apesar de ser, sob orientação de William James, o primeiro doutor em psicologia nos Estados Unidos em 1878, e o primeiro aluno americano de Wundt (em 1879), ao retornar para a Universidade de Clark promove a implantação de uma série de novas áreas e de um conjunto de novas instituições. É desta forma que se dedica a áreas como a psicologia da infância, adolescência e velhice, a psicologia da educação, o sexo e a religião. Funda revistas (como a American Journal of Psychology) e associações (como a American Psychological Association – a mais importante dos Estados Unidos), além de ser responsável pelo convite, em 1909, para a vinda de Sandor Ferenczi, Gustav Jung e Sigmund Freud para expor em linhas gerais a psicanálise (cf. capítulo 23), ou, nas palavras do último, “trazer a peste para a América”. Um terceiro grupo de psicólogos, composto por William James (em Harvard) e por John Dewey (nas universidades de Michigan, Minesota e Chicago), dispensa claramente as bênçãos da matriz germânica e implanta essa disciplina em território norte-americano a seu próprio modo. As primeiras tentativas de sistematização da psicologia sob a nova orientação couberam a estes autores: Dewey, com seu livro Psychology (1886), e James, com seu The Principles of Psychology (1890), mesmo que esses textos tivessem um aspecto pouco sistemático para os padrões germânicos (Wundt considerava Os princípios de psicologia de James como pura literatura). O livro-texto de James, ainda que posterior ao trabalho de Dewey (os primeiros artigos de James datam de 1878), foi fundamental para a constituição de um primeiro esboço do movimento funcionalista. Examinemos no próximo item como se esboçam a psicologia e, em especial, a ilosoia de James. 124 A psicologia e a filosofia de William James Para ins didáticos, é possível dividir a obra de WILLIAM JAMES em dois momentos: um psicológico (que vai da década de 1870 à de 1890) e outro ilosóico (da década de 1890 até o inal de sua vida). O primeiro período tem como marco inicial a criação de um pequeno laboratório de psicologia, em 1875, na Universidade de Harvard (ao qual James, na verdade, nunca devotou grande interesse), ou, ainda no mesmo ano, o seu primeiro curso de psicologia, sobre As relações entre a isiologia e a psicologia. Nesse período, o ponto culminante de sua produção teórica é, sem dúvida, a publicação em 1890, após 12 anos de elaboração minuciosa, de OS PRINCÍPIOS DE PSICOLOGIA. Nesse tratado de mais de mil páginas encontram-se as principais idéias de James sobre tópicos tais como “hábito”, “atenção”, “luxo do pensamento” e “self ”. Vejamos um pouco de alguns destes temas, a começar pelo último. WILLIAM JAMES nasceu em Nova York, em 1842, e faleceu em 1910, em sua casa de campo na cidade americana de Chocorua. Em sua juventude, acompanhou o então eminente naturalista Louis Agassiz em uma expedição ao Brasil. Médico, introduziu os métodos experimentais em psicologia na Universidade de Harvard, decisivos para a elaboração de Os princípios de psicologia (1890). Teve, ao longo da vida, interesse profundo pelo estudo das religiões e temas místicos, deixando um livro importante sobre o tópico: As variedades da experiência religiosa (1902). Como ilósofo, foi responsável por aquela que é considerada a maior contribuição americana à ilosoia: o pragmatismo. THE PRINCIPLES OF PSYCHOLOGY, no original. No Brasil, foi traduzido apenas o capítulo IX – “O luxo do pensamento” –, presente na série Os Pensadores, da Abril Cultural, no volume dedicado a William James. Há uma tradução argentina desse tratado publicada pela Editora Glem (James, 1890). Em primeiro lugar, James interroga os limites daquilo que é chamado de “self”, “eu” ou “ego” (os três termos são usados de forma intercambiável, sem distinção conceitual nítida), em oposição ao mundo circundante. Em sua concepção, o self não é algo como uma esfera polida, com um espaço interior no qual cabem coisas, e mergulhada em um mundo que a delimita externamente. O eu, airmou James, é apenas “o nome de uma posição”; uma espécie de perspectiva individual privilegiada a partir da qual o mundo é medido em suas distâncias. Em segundo lugar, James concebe tais distâncias – por exemplo, a distância entre o que é “aqui” e “ali” – em função das ações individuais sobre o ambiente: onde o indivíduo age é o aqui ou, em outro exemplo possível, o momento em que ele age é o “agora”, contraposto ao momento de uma ação passada ou de uma ação que ainda acontecerá. Em razão disso, James constrói uma noção de self caracterizada por certa luidez: sem limites estabelecidos previamente e com as referências básicas de tempo e espaço deinidas em função das ações das quais esse mesmo self é autor. Em 125 outras palavras, o self não existe como uma estrutura com certa organização psíquica, antes de suas ações; ao contrário, ele passa a existir em função de suas ações sobre o ambiente! A posição de James desconcerta o seu leitor, num primeiro momento, em função de sua originalidade. É possível dizer, em favor do efeito, que o próprio autor também icou desconcertado ao chegar às conclusões a que chegou. Na verdade, essa versão mais luida de self é produto da fase inal de sua obra, estando presente principalmente nos Ensaios sobre o Empirismo Radical (1905). É, contudo, resultado de uma longa trajetória intelectual – o trabalho de uma vida, não seria exagero dizer – que começa exatamente em seus escritos mais psicológicos. Em um dos capítulos mais citados desse livro tão abrangente, no qual James estuda o conceito de “luxo do pensamento”, temos um excelente exemplo do modo como ele já avançava teoricamente em bases sobre as quais, mais tarde, ediicaria, em termos mais livres, as relações entre o self e o ambiente. Ao airmar que o pensamento é contínuo, isto é, que não é fragmentado em partes, ele constitui a metáfora que nomeará o capítulo e entrará para a história como uma de suas principais contribuições ao estudo da psicologia. Escreveu ele: A consciência não se apresenta, para ela mesma, cortada em pequenos pedaços. Palavras tais como “cadeia” ou “sucessão” não a descrevem adequadamente, tal qual ela se apresenta em primeira instância. Ela não é algo agregado; ela lui. Um “rio” ou um “luxo” são as metáforas pelas quais ela é mais naturalmente descrita. Ao falar dela, daqui por diante, vamos chamá-la de o luxo do pensamento, da consciência ou da vida subjetiva (James, 1890: 239). A vida subjetiva retratada como o luxo de um rio – correlata do conceito de luxo do pensamento – é uma idéia poderosa que, associada a outras peças conceituais do mesmo período e levada à radicalidade em escritos posteriores, é uma das vigas centrais para a caracterização inal dos principais conceitos de James. Nestes termos, a consciência teria como propriedades básicas: 1) a pessoalidade; 2) o seu aspecto mutante; 3) a continuidade; 4) a referência aos objetos; 5) o seu aspecto seletivo (James, 1890: 225). A análise do conceito de hábito também será útil à compreensão de como os “textos psicológicos” de James, especialmente quando interpretados ao lado dos “textos ilosóicos e religiosos” do último período, já traziam as idéias mais importantes para a caracterização de seu funcionalismo. Sobre hábito, há três tópicos principais: primeiro, o destaque dado à sua base física ou neuroisiológica e sua participação tanto nos limites do aprendizado de novos 126 hábitos como na modiicação de hábitos antigos; segundo, a apresentação do hábito como uma versão possível das ações adaptativas de um organismo em referência a um meio; ou seja, a ênfase sobre os aspectos funcionais do hábito; terceiro, a possibilidade de alteração dos hábitos pela ação voluntária e os efeitos ético-morais a ela correspondentes. Os dois primeiros tópicos são especialmente relevantes para o tema em questão. No primeiro tópico, está presente um elemento central que é o do contraponto regular da preocupação de James em conceber o hábito em solo isicalista, com seu interesse em determinadas implicações de cunho ético. Fundamentalmente, ele lança metáforas naturalistas de efeitos teóricos e morais poderosos. Ou seja, James enuncia, com base em um vocabulário biológico, deinições sintéticas de seus conceitos principais, mas de sintaxe suicientemente ampla para que ele próprio, mais adiante, estenda largamente suas possibilidades de signiicação. Sua metáfora central nesse conjunto de textos é a de que “um hábito adquirido, do ponto de vista isiológico, é nada mais que uma nova via de descarga formada no cérebro pela qual, desde então, certas correntes aferentes tendem a seguir” (James, 1892: 137). No segundo tópico, James revela a posição darwiniana ao destacar a utilidade adaptativa do hábito. Ao dissertar sobre os “efeitos práticos do hábito”, ele é claro: “Primeiro, o hábito simpliica nossos movimentos, os faz acurados e diminui a fadiga. […] Segundo, o hábito diminui a atenção consciente com a qual realizamos nossos atos” (James, 1892: 140-141). E, na continuidade, James enuncia sua segunda metáfora naturalista: “Hábitos dependem de sensações não atendidas” (James, 1892: 143). O fundamental aqui é notar o quanto é importante para um organismo a aquisição e manutenção da habilidade, ou capacidade, de fazer a atenção consciente repousar. Em outras palavras, não atender a uma sensação equivale a ascender a um tipo particular de repouso. Deixando a cargo do hábito toda uma série de atividades mais ou menos cotidianas ou banais, embora fundamentais à conservação da vida diária, o organismo reserva à vida mental plenamente consciente outras tarefas e esforços. Retomando o que se convencionou chamar aqui de primeira metáfora naturalista, é possível colocar em suspenso a nomeclatura neuroisiológica e sustentar a airmação mais simples de que um hábito é uma via. Ao se destituir a metáfora de termos como “correntes elétricas” e “descargas cerebrais”, abre-se campo para uma imagem de self menos comprometida com o vocabulário da neuroisiologia. Não é que James tenha deixado de lado a isiologia, mas, ao reduzir o seu interesse pela psicologia experimental, passa a falar do corpo, 127 utilizando-se mais dos termos da linguagem do dia-a-dia do que do vocabulário médico. Então, essa imagem de self, potencialmente delineada no segmento mais maduro da obra de James, tem como centro de referência conceitual um corpo humano e suas ações, mas não restringe seu alcance semântico à gramática do isicalismo. Em suma, os conceitos de self, luxo do pensamento e hábito fornecem indicações teóricas suicientes para a sustentação da importância de James para o funcionalismo: na obra desse autor, o foco está sempre colocado sobre a função e não sobre supostas “propriedades” de um organismo dotado de psiquismo. Dito de outra forma, na perspectiva jamesiana, o que um organismo é, ou deixa de ser, decorre das funções que exerce e das interações com um dado ambiente. No entanto, como Dewey (1940) ressalta, a psicologia dos Princípios de James ainda não é plenamente funcional. Suas intenções funcionalistas se expressam na adoção parcial da máxima oriunda de Herbert Spencer segundo a qual os fenômenos biológicos e psicológicos se irmanam nos processos adaptativos entre as relações internas e externas ao organismo. Ou ainda no balanceamento desta máxima com a proposta darwinista de seleção ao acaso das variações do organismo. Essa psicologia seria prenhe de boas intenções, mas seria travada por obstáculos, como um certo dualismo entre um sujeito conhecedor e os objetos a serem conhecidos, postulados como entidades naturais e dadas previamente à tarefa do conhecimento. Mesmo que este dualismo seja advogado como atitude do psicólogo, seria um entrave a um funcionalismo que toma essas entidades como construídas nas ações do organismo (Dewey, 1940: 343 e 354). Contudo, é na ilosoia de James (à qual se dedica a partir da década de 1880) e, mais especiicamente, no seu pragmatismo que a orientação funcionalista ganha força. Para termos de modo mais claro essa mudança em seu trabalho, devemos recorrer a algumas deinições prévias de sua ilosoia. Passemos a palavra ao próprio autor. Sobre o pragmatismo, este seria “primeiramente um método, e em segundo lugar, uma teoria genética do que se entende por verdade” (James, 1907: 25). Em seu primeiro sentido, signiica: “A atitude de olhar além das primeiras coisas, dos princípios, das “categorias”, das supostas necessidades; e de procurar pelas últimas coisas, frutos, conseqüências, fatos” (James, 1907: 21). Atuaria de forma a […] extrair de cada palavra o seu valor de compra prático, pô-la a trabalhar dentro da corrente de nossa experiência. Desdobra-se então menos como uma solução do que como um programa para mais trabalho, 128 e mais particularmente como uma indicação dos caminhos pelos quais as realidades existentes podem ser modiicadas. As teorias assim tornam-se instrumentos e não respostas aos enigmas, sobre as quais podemos descansar (James, 1907: 20). O método pragmatista aqui exposto é originário do ilósofo Charles Sanders Peirce (1839-1914). Contudo, na sua apropriação há um deslocamento, pois, se para Peirce este visava apenas extrair as “regras de conduta”, ou ações presentes nos diversos conceitos, para James este representava o estudo das modiicações na experiência trazidas pelas teorias, em especial as metafísicas e religiosas. Portanto, ao contrário de Peirce, para James a teoria da verdade, ou o segundo sentido para o termo pragmatismo, é tida como conseqüência natural do seu primeiro sentido, enquanto método. Se o método pragmático une o signiicado à conduta, a teoria pragmática da verdade implica a boa conduta em seu sentido adaptativo. Devolvendo novamente a palavra a James (1907: 78): Nosso relato de verdade é um relato de verdade no plural, o processo de conduzir, compreendido in rebus (nas coisas), e tendo somente essa qualidade em comum, que elas pagam. Cumpririam guiando-nos a alguma parte de um sistema que mergulha em numerosos pontos, em objetos de percepçãosenso, que podemos copiar mentalmente ou não, mas com os quais, de qualquer modo estamos na espécie de comércio designado veriicação. A verdade para nós é simplesmente um nome coletivo para processos de veriicação, do mesmo modo que a saúde, a riqueza, a força, etc., são nomes de outros processos ligados à vida, e também perseguidos, porque compensa persegui-los. A verdade é feita, do mesmo modo que a saúde, a riqueza e a força são feitas no curso dos acontecimentos. Verdadeira é o nome para qualquer idéia que inicie o processo de veriicação, útil é o nome para sua função completada na experiência (James, 1907: 73). Exposto em breves linhas o pragmatismo, deve-se em seguida perguntar: quais são as relações dessa forma de pensar o conhecimento com o movimento funcionalista? Mais do que a mera presença de alguns autores, como Dewey, nos dois movimentos, para alguns comentadores a relação entre pragmatismo e funcionalismo é de pura semelhança. Seriam, pois, duas faces de uma mesma moeda: o pragmatismo seria o funcionalismo ilosóico, assim como o funcionalismo seria o pragmatismo psicológico. É deste modo que Angell se pronuncia: Não desejo comprometer qualquer das tendências ao afirmar que a psicologia funcional e o pragmatismo são a mesma coisa. Na verdade, como 129 psicólogo eu hesitaria em atrair para mim a torrente de críticas metafísicas, provocadas pelos autores pragmatistas […] De qualquer forma, sustento apenas que os dois movimentos decorrem de motivação lógica semelhante e, para sua vitalidade e propagação, dependem de forças muito semelhantes (Angell, 1906: 622). Contudo, mais concretamente, que implicações o pragmatismo tem para a constituição dos funcionalismos? A tese aqui defendida é que, dentro desses novos referenciais, a consciência e a experiência não são mais abordáveis no afã analítico de decompô-las em seus elementos mínimos, a im de distinguir a verdade das ilusões (como almejava a psicologia alemã). Como não há verdade prévia, mas apenas efeitos de verdade, deve-se tomar a experiência consciente a partir de seus processos e efeitos. É desta maneira que ela passa a ser considerada a partir da sua função em um duplo sentido: enquanto um processo dinâmico (um ato) e como processo orgânico dotado de inalidade adaptativa. Aqui, a experiência consciente se coloca conforme uma nova questão: para que serve? Como opera? Qual é a sua função biológica? Ainda que o objeto da psicologia se assemelhe bastante ao da psicologia alemã, a experiência passa a ser vista a partir de uma nova questão (a adaptação), através de métodos diversiicados que fogem da monotonia da introspecção controlada (os métodos comparativos com os animais, as psicometrias, a observação natural) e regulada por um novo modelo de cunho estritamente darwinista. Essa guinada é crucial na história da psicologia porque encarna o sujeito da experiência, avalizado pela psicologia clássica como sujeito dos erros ou das ilusões do conhecimento em um corpo vivo. Se a psicologia clássica, mesmo apoiada na isiologia sensorial, estudou a nossa experiência imediata a partir do referencial de verdade da experiência mediata da física, tomando esse sujeito desencarnado do conhecimento como modelo, o funcionalismo denunciou essa ilusão, passando a conceber a verdade e a ilusão como processos da vida, adaptação e desadaptação. Em outras palavras, a isiologia cede à biologia a função de ciência-guia da psicologia. Com isso, a relação da consciência com o mundo passa a ser de adaptação e não mais de adequação (como estabelecido pela psicologia alemã). Vejamos de modo mais detalhado a encarnação desse projeto da psicologia no próximo item. 130 As escolas de Chicago e Columbia Neste momento, podemos nos deparar mais claramente com a questão proposta no início do artigo, a saber: como o movimento funcionalista norte-americano deu uma feição mais organizada e sistemática ao projeto da psicologia enquanto ciência e técnica de adaptação. Apesar de não possuir o caráter engessado de um sistema como o voluntarismo de Wundt ou o estruturalismo de Titchener (cf. capítulo 5), os princípios funcionais se convertem em escolas no inal do século XIX, e justamente em duas das mais novas universidades americanas: Chicago e Columbia. A primeira, como visto, com Dewey (que se manteve ligado à psicologia apenas até a passagem para o século XX), Angell e Carr; e a segunda com Thorndike e Woodworth. Nessas escolas marca-se o que poderíamos designar como orientação funcionalista propriamente dita. O que seria essa abordagem? Deve-se lembrar, antes de tudo, que nesse período inicial da psicologia institucionalizada nenhum psicólogo se distinguia nitidamente dos demais por sua escola, isolando-se do convívio com os demais, ou utilizando algo como uma etiqueta ou crachá, revelando a sua orientação. O que caracterizava uma escola era então o convívio institucional de um grupo de psicólogos que operavam mais ou menos dentro de uma mesma linha, como no caso dessas escolas funcionalistas. De mais a mais, deve-se lembrar que o batismo dessa escola deve-se ao grande opositor dessa abordagem e paladino da psicologia germânica nos Estados Unidos, Titchener, na tentativa de distinção entre as abordagens estrutural e funcional. Apesar de estas não serem vistas como antagônicas, demarcam uma tomada da consciência mais voltada para a decomposição em seus elementos (abordagem estrutural, mais semelhante à anatomia), ou mais direcionada para seus processos e efeitos adaptativos (abordagem funcional, mais próxima à isiologia), ou ainda voltada para a história da evolução dos seus componentes (abordagem genética, análoga à embriologia). Contudo, essa distinção se aprofunda, dividindo o campo da psicologia americana. Como foi se especiicando a nascente psicologia funcional? Na seqüência, demarcaremos algumas características dessa psicologia, tal como se apresenta nas suas duas principais escolas. A Escola de Chicago servirá de linha mestra, ainda que a de Columbia se imponha em certos temas. A primeira característica dessa psicologia é a sua assistematicidade. Certamente isso facilitou a sua difusão e a delimitação de modo mais amplo da psicologia como ciência e técnica de adaptação. Esse caráter assistemático é reconhecido por seus próprios membros, como Angell (1906: 617-618): 131 Atualmente, a psicologia funcional é um pouco mais do que um ponto de vista, um programa, uma ambição. Sua vitalidade talvez decorra fundamentalmente de um protesto contra a excelência exclusiva de outro ponto de partida para o estudo da mente [o estrutural], e atualmente tem, pelo menos, o vigor peculiar que geralmente adquire qualquer forma de protestantismo, em seus estágios iniciais, antes de tornar-se respeitável e ortodoxo. As razões para o caráter assistemático do funcionalismo vão além da reação a uma psicologia em moldes germânicos, extremamente sistematizada. Ela relete também os interesses diversiicados de seus membros na propagação dessa nova forma de psicologia. É desta forma que seus membros se dedicaram tanto a cargos administrativos quanto a atividades acadêmicas (James Angell, da Escola de Chicago, por exemplo, foi presidente da Associação de Psicólogos Americanos em suas primeiras administrações). O seu caráter eclético pode se dever também à sua vinculação com o pensamento pragmatista. Neste, como vimos, opera-se uma recusa a tudo que se possa caracterizar como sistema estático ou fechado. O objeto dessa recusa é, pois, a ilosoia idealista de Georg Wilhelm Hegel (1770-1831), de caráter sistemático e muito em voga nos círculos ilosóicos americanos. Daí que se possa dizer que o ecletismo da ilosoia pragmatista em oposição ao idealismo de Hegel é paralelo ao ecletismo dos funcionalismos na sua reação ao estruturalismo de Titchener. Caracterizado, pois, o funcionalismo como uma orientação geral, eclética e assistemática, resta entender a importância dos conceitos de função (de natureza biológica) e de adaptação para esse movimento. Os críticos do funcionalismo vêem uma ambigüidade em sua noção central, a de função. Christian Ruckmick (Heidbreder, 1933: 170) destacou a dupla signiicação dessa noção: “Na primeira, função é empregada como sinônimo de atividade; neste sentido, o perceber e o rememorar são funções. Na segunda classe, esta palavra é usada para indicar a utilidade de uma atividade para o organismo”. Carr (1930) rebate esta crítica ao sugerir que, em ambos os casos, o que está em jogo é a noção matemática de função, deinindo-a como “relação contingente”, independentemente de esta ter como termos um ato e uma estrutura, um meio e um im, ou uma causa e um efeito. Mesmo com a ressalva de Carr, deve-se destacar o exame da noção de função através de seu duplo aspecto: 1) como processo vital; 2) como sentido adaptativo. Quanto ao primeiro sentido, se a noção de função se refere ao estudo das relações contingentes entre um ato e a sua estrutura, ou uma causa e seu efeito, 132 o funcionalismo constitui uma psicologia explicativa, e não apenas descritiva dos elementos mentais. Ou seja, o funcionalismo não se ocupa com a listagem dos átomos mentais, como fazia a psicologia clássica alemã. Isto se deve a uma opção não só de estudo, como também doutrinária, presente por exemplo na teoria da corrente da consciência de James. É desta forma que um pensamento não se torna semelhante a outro por seu conteúdo, mas por envolver um mesmo processo. Além do mais, se a função última da consciência é a adaptação, são as funções e não os elementos mentais que devem ser alvo de investigação. A crítica a uma psicologia dos elementos, a par da realizada por James (1890), especialmente em seu capítulo A teoria dos materiais do Espírito, foi seguida por Angell (1903) e Dewey (1896). Enquanto o primeiro recusa a possibilidade de uma psicologia elementar calcada em átomos mentais, o segundo, no texto inaugural da Escola de Chicago, recusa a compartimentalização do relexo em unidades estanques. Uma vez que o relexo diz respeito a uma unidade funcional intrinsecamente coordenada e voltada para a adaptação, qualquer divisão seria um mero artifício, e jamais poderia ser tomada em termos substanciais. Para Dewey (1896: 398), […] a concepção comum da teoria do arco relexo, em vez de um caso de simples ciência, é uma sobrevivência do dualismo metafísico, inicialmente formulado por Platão, e de acordo com o qual a sensação é uma moradora ambígua na terra fronteiriça entre a alma e o corpo, a idéia (ou processo central) é puramente psíquica, e o ato (ou movimento) é puramente físico. Assim, a teoria do arco reflexo não é nem física (ou fisiológica) nem psicológica; é uma suposição mista de materialismo e espiritualismo […] O fato é que o estímulo e resposta não são distorções de existência, mas distinções teleológicas, isto é, distinções de função, ou papel desempenhado, com referência a buscar ou manter um im. A crítica de Angell (1903) é mais contundente. Coloca em xeque toda a possibilidade de uma psicologia estruturada em elementos mentais do mesmo modo que a anatomia e a morfologia se calcam em estruturas espaciais. Em primeiro lugar, a metáfora falha em seu aspecto essencial, uma vez que os átomos mentais ou sensações não possuem o caráter espacial. Na verdade, a analogia só se manteria a respeito de uma “complexidade” de ambos os conjuntos. Em segundo lugar, o aspecto temporal também diferencia os elementos psíquicos dos anatômicos, uma vez que os primeiros teriam duração instantânea. Para inviabilizar de vez a analogia, é posta em questão a possível identidade entre as sensações elementares. Contudo, Angell vai mais além e questiona a própria existência desses elementos psíquicos. Em primeiro lugar, remonta à “falácia do psicólogo”, 133 destacada por James (1890), para quem não se pode confundir a “experiência do psicólogo” em termos de introspecção com a experiência efetiva da nossa vida cotidiana. A primeira diria respeito a um artefato elaborado com ins de compreender a segunda. Não seria, pois, real. Mesmo enquanto recurso metodológico, a atomização não seria procedente, dada a sua artiicialidade. Neste aspecto, a tese da “corrente da consciência” de James seria mais fértil. É deste modo que o aspecto estrutural do psiquismo, para Angell, deve ser buscado não nos seus supostos elementos, mas nas funções, atos ou processos mentais. É assim que a psicologia deve reconhecer, em sua análise estrutural, não elementos como sensações ou sentimentos, mas atos como julgar, perceber, recordar. É neste sentido que, para Angell, a psicologia se torna mais funcional do que a biologia, pois não apenas o funcional precede e produz o estrutural, como também ambos representam duas fases de um mesmo fato. Voltando então aos signiicados do termo função, cabem algumas considerações sobre seu segundo sentido. Se há um conceito capital no funcionalismo, este é o de adaptação. Função aqui é vista como utilidade promovida em uma situação adaptativa. Se a noção de adaptação se associa às de ajustamento e de equilíbrio, a de função representa a utilidade, a inalidade biológica cumprida por este equilíbrio. Ela põe o funcionalismo em contato direto com o evolucionismo biológico, diferenciando-o da psicologia clássica alemã. Enquanto esta buscava avaliar o ajustamento da nossa experiência aos objetos experimentados, o funcionalismo intenta estudar a adaptação do organismo a seu meio ambiente através da sua experiência. Neste caso, são estudados outros indivíduos além dos adultos ocidentais sadios e treinados experimentalmente, como fazia a psicologia clássica. É isto que permite e justiica uma psicologia animal, uma psicologia do anormal e uma psicologia do desenvolvimento. O conceito de função como adaptação é, por conseguinte, um conceito claramente importado da biologia. Entretanto, ocorre uma inlação deste, levando-o a perder seu sentido original. De fato, a consciência como instância adaptadora é vista não somente como adaptada (produto da evolução ilogenética), mas inclusive como adaptante (fator de evolução individual e solucionadora dos impasses na vida dos indivíduos). Adapta o organismo ao meio, ao selecionar, em função de um im por ela ixado, uma dentre várias possibilidades de ação oferecidas pelo sistema nervoso. Como sugere James (1890), isto ocorre porque o cérebro humano é um órgão complexo e, portanto, sujeito ao acaso, carecendo da consciência em situações problemáticas. Para que o corpo se adapte ao meio, é preciso, pois, que a consciência tenha para si 134 as inalidades a atingir, e que, em função destas, selecione os meios adequados. É, pois, uma adaptação com inalidade, sem paralelo no mundo físico. Neste mundo, a sobrevivência só pode entrar em uma discussão puramente isiológica, como uma hipótese forjada por um vaticinador do futuro. Mas deste momento em que incluímos uma consciência, a sobrevivência deixa de ser uma mera hipótese […] Converta-se agora em um decreto imperativo: “A sobrevivência ocorrerá e, por conseguinte, os órgãos devem trabalhar assim. Os ins reais aparecem agora pela primeira vez na cena do mundo (James, 1890: 141). É deste modo que em James (1890) pode-se reconhecer a distinção entre uma adaptação vital e uma adaptação psicológica. A primeira, de fundo darwinista, seria casual e disteleológica (sem inalidade). A inalidade, se é que se pode falar dela, estaria no inal do processo, e careceria de uma consciência externa que a nomeasse enquanto tal. Por outro lado, a adaptação psicológica seria de índole estritamente teleológica, uma vez que a inalidade existe antes e seleciona, pois, ações possíveis. A consciência, à moda de um “impulso para a sobrevivência”, conheceria imediatamente as inalidades a cumprir, não agindo, portanto, ao acaso. O modelo de adaptação de James está presente na teoria da inteligência de Dewey (1910), segundo a qual a nossa consciência é ativada em situaçõesproblema, de que os nossos instintos e hábitos correntes não dão conta. Nesses casos, a nossa inteligência atua de forma consciente, escolhendo possíveis alternativas para a solução do problema. A fase seguinte seria a testagem das alternativas dentro do contexto do problema; uma vez que uma determinada resposta soluciona a situação-problema, ela é mantida como um novo hábito. A nossa consciência seria, pois, ativada perante novos problemas, atuando na seleção de respostas, visando adaptar os organismos e produzir novos hábitos. Esse modelo será fartamente utilizado pelo próprio Dewey na sua linha pedagógica da Escola Nova, em que propõe uma metodologia baseada nessa aprendizagem inteligente e na cooperação entre os indivíduos. Só através dessa aprendizagem inteligente poderíamos criar hábitos sólidos, ao mesmo tempo que indivíduos autônomos, ativos e capazes de atuar coletivamente – ideais para as sociedades democráticas, as únicas que permitiriam o desenvolvimento inteligente de seus cidadãos. Neste aspecto, poder-se-ia concluir que, no quadro do funcionalismo, as formas democráticas de vida permitem a realização de forma completa das nossas funções adaptativas naturais. A democracia não 135 seria apenas uma forma social justa, mas antes de tudo uma forma natural, ao mesmo tempo arcaica e moderna. A Escola de Columbia, por sua vez, toma a adaptação em sentido mais comportamental e ancorada em aspectos motivacionais. Thorndike, em seus experimentos sobre a inteligência animal, não supõe mais a solução dos problemas como governada por uma consciência selecionadora de respostas, mas um conjunto casual de respostas que são selecionadas por seus efeitos de satisfação. Esta é a sua clássica Lei do Efeito. Ao substituir a consciência pelo acaso, não apenas adequa o seu modelo ao darwinista, como abre caminho para o behaviorismo (cf. capítulo 11). Aqui o ajuste do organismo ao meio se realiza através de um conjunto de mecanismos casuais, mecânicos e passíveis de controle, concedendo portanto plenos poderes aos psicólogos, enquanto engenheiros da conduta. Contudo, essa retirada da consciência do seu palco central na psicologia não implica a adoção de um modelo estímulo-resposta (E-R) por parte da Escola de Columbia. Woodworth, pleiteando a importância do organismo (O) e dos seus estados motivacionais, propõe para a psicologia um modelo E-O-R. Na consideração dos estados internos, o funcionalismo de Columbia troca a consciência pelos impulsos do organismo. Mesmo com essas considerações da Escola de Columbia, a abordagem funcionalista de adaptação é marcada ainda por um ligeiro desvio em relação a sua matriz darwinista. Entretanto, outras características no seu uso corrente pela psicologia funcional alargam mais ainda esse desvio. A adaptação, conforme já insinuado, não se refere apenas a um processo ilogenético (na evolução das espécies), mas, antes de tudo, ontogenético (ligado à adaptação individual). Trata-se, pois, mais da adaptação do indivíduo do que da espécie. De mais a mais, o conceito de adaptação deixa de expressar uma relação de sobrevivência (referente à taxa de reprodução da espécie) em um meio, e passa a signiicar uma “melhor vivência neste”, tornando-se, pois, um conceito qualitativo. Essa melhor vivência, esse equilíbrio, não se refere apenas a um meio físico, mas antes de tudo a um meio social. Estar adaptado é antes de tudo estar ajustado às demandas do meio social, sejam elas quais forem. A necessidade de estar conforme ao meio social justifica-se pela extrapolação de um conceito biológico a um signiicado social. É coniando no valor deste conceito que os psicólogos em sua prática zelarão pelo “equilíbrio social”. Portanto, a idéia original de função, como utilidade promovida para sobrevivência do organismo, é transportada para um contexto psicossocial. Isto ocorre quando ela é acoplada à idéia de utilidade, e por im substituída, favorecendo um uso “asséptico” desta noção. Contudo, como lembra 136 Canguilhem (1956: 119), o homem aqui não é mais o julgador, mas o meio de promoção de uma utilidade, no caso, a social. Assim, a psicologia funcional conduz a uma concepção instrumental do ser humano. Conforme visto no capítulo 1, a vida se torna o grande vetor na determinação e disciplinarização dos indivíduos. Segundo Canguilhem (1956: 120), o homem não seria mais uma inteligência servida por órgãos, mas uma mera consciência a serviço destes. Desta maneira, o homem é apenas um dentre os seres vivos e a consciência somente um órgão, ainda que especial, no seu ajuste ao meio natural-social. Mas a psicologia funcional não se interessa apenas pelo estudo da adaptação. Ela deseja igualmente se transformar num instrumento de adaptação, promovendo-a. E isto ocorre mais uma vez graças à postura pragmatista, na qual o valor de um conhecimento está calcado em suas conseqüências práticas. É desta forma que não apenas o conhecimento comum deve se mostrar vital, mas principalmente o do psicólogo. Só que a utilidade buscada não diz respeito ao indivíduo, mas à sociedade como um todo. Portanto, o meio social não é apenas regulador, mas também inalidade da adaptação. A adaptação psicológica visa, então, ajustar a sociedade a si própria, através do manejo dos indivíduos, especialmente os O UTILITARISMO sustenta o primado desadaptados. A utilidade-função, assim, não se do valor de utilidade sobre todos os manifesta de forma individual e solta. Ela é antes de demais, ou mesmo como este sendo o único valor ao qual os demais se tudo regulada pelas normas sociais. O psicólogo entra reduzem. São representantes dessa nesse contexto como um engenheiro social da utilidade, filosofia Jeremy Bentham (17481832), James Mill (1773-836)) e buscando promover, à moda UTILITARISTA, o maior bem John Stuart Mill (1806-1873). possível. Transforma-se assim a utilidade individual em patrimônio social. Essa abordagem ao mesmo tempo utilitarista e biológica conduz também a uma abordagem dos indivíduos através de sua variação em um grupo, como expresso nos testes mentais (cf. capítulo 16). É deste modo que o funcionalismo não trabalha só com leis gerais, mas com a diferença, ainda que referida ao grupo. É essa diferença que favorece que, no meio social, de forma análoga ao natural, alguns indivíduos mais adaptativos sejam selecionados pelos testes mentais. Deste modo, o psicólogo e seus testes recriam nas instituições a lei do mais apto, supondo um prolongamento das funções da vida na sociedade. Mas o psicólogo, em sua prática, não só reproduz a natureza em sua função de seleção, mas principalmente na de adaptação e ajustamento. Não apenas ajustando os indivíduos aos novos meios sociotécnicos modernos, como as linhas de montagem fabris, mas também favorecendo uma adaptação ativa, como visto no exemplo da Escola Nova. Quando o behaviorismo (cf. capítulo 137 11) vier a banir a consciência de seu papel central na psicologia, a presunção dos poderes dos psicólogos chegará ao máximo, transformando os indivíduos em instrumentos de utilidade social, uma vez que predominaria nestes a capacidade de se moldar às contingências do meio. Psicologia funcional na atualidade e no Brasil Quais são os destinos do funcionalismo? Em primeiro lugar, deve-se dizer que se a fundação do movimento funcionalista é norte-americana (ou anglo-saxônica, se considerarmos a Inglaterra), suas condições históricas e seu desenvolvimento certamente não o são, e dizem respeito às forças da própria modernidade (cf. capítulo 1). É neste sentido que podemos encontrar ecos de sua disseminação em outros grandes centros, destacando-se os trabalhos de Karl Gross na Alemanha, Alfred Binet e Henri Piéron na França, Eduard Claparède e Jean Piaget na Suíça (veremos esses dois últimos autores no capítulo 15). No Brasil, tivemos representantes desse movimento mais ligados à área fronteiriça entre psicologia e pedagogia graças ao movimento da Escola Nova. No caso, poderiam ser destacados os nomes de Helena Antipoff, Lourenço Filho (cf. capítulos 15 e 16) e ANÍSIO TEIXEIRA (1900-1971). Este, além de grande divulgador da Escola Nova ANÍSIO SPÍNOLA TEIXEIRA nasceu em Caetité (BA), em 12 de julho de 1900, numa família de fazendeiros. Em 1928, e do pensamento de alguns autores estudou na Universidade de Columbia, em Nova York, onde como John Dewey, foi um vigoroso conheceu John Dewey. Em 1931, foi nomeado secretário de Educação do Rio de Janeiro. Em sua gestão, criou uma rede defensor do ensino público no Bramunicipal de ensino completa, que ia da escola primária à sil, o que em certos momentos mais Universidade do Distrito Federal (UDF), extinta em 1939. Em 1946, ele assumiu o cargo de conselheiro da Organização das totalitários da política nacional Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (Unesco). levou-o à condição de perseguido Em 1951, assumiu o cargo de secretário-geral da Campanha político. de Aperfeiçoamento do Pessoal do Ensino Superior (Capes) e, no ano seguinte, o de diretor do Instituto Nacional de Estudos Por fim, pode-se discutir Pedagógicos (Inep), onde icou até 1964. Anísio foi um dos qual teria sido o ponto terminal do idealizadores da Universidade de Brasília (UnB), fundada em 1961. tornando-se reitor em 1963. Com o golpe de funcionalismo. Pode-se conjecturar 1964, foi para os Estados Unidos, lecionar nas universidades que este teria encontrado seu termo de Columbia e da Califórnia. Voltou ao Brasil em 1965, nos trabalhos de Carr (Chicago) e morrendo em 11 de março de 1971, de modo misterioso. Woodworth (Columbia). Ou ainda no behaviorismo, através de um funcionalismo puramente darwinista ao dispensar a consciência (Watson, seu fundador, dizia-se um funcionalista conseqüente). Contudo, podemos dizer, considerando o quadro da psicologia atual, especialmente em suas práticas e sua multiplicidade, que a psicologia 138 funcional e o projeto da psicologia como ciência e técnica de adaptação triunfaram. Alçando a psicologia à função de zeladora do bom uso e do ajustamento de nossas capacidades. Nada mais moderno... Indicação estética e bibliográfica Comparativamente com alguns países, como a Argentina, temos poucas traduções dos textos funcionalistas. Na coleção Os Pensadores, há volumes especíicos sobre John Dewey e William James, onde constam alguns de seus textos psicológicos. John Dewey, em função dos interesses do movimento brasileiro da Escola Nova, teve vários textos pedagógicos traduzidos. Destes, destaca-se o seu último texto puramente psicológico, Como pensamos (1910). Alguns extratos de textos funcionalistas podem ainda ser encontrados em textos de história da psicologia como os de Boring e Herrnstein (1965) e os de Schultz e Schultz (1992). Dewey, J. (1959 [1910]) Como pensamos? São Paulo: Companhia Editora Nacional. Boring, E. G. e Herrnstein, R. J. (1971) Textos básicos da história da Psicologia. São Paulo: Herder/ EDUSP. Schultz, D. e Schultz, S. E. (1992) História da Psicologia moderna. São Paulo: Cultrix. Neste tópico, vale a correlação do funcionalismo com, de um lado, a obra literária de Henry James (1843-1916) – irmão de William James e romancista – e, de outro, a pintura do também norte-americano Edward Hopper (1882-1967). No primeiro caso, temos uma literatura que não cansa de se aproximar e de se distanciar; de reletir e de divergir da psicologia e do pragmatismo jamesianos. Especialmente nos contornos mais fantásticos do romancista, que tangem às relexões do ilósofo sobre a relação entre a alma e o corpo (essa relação com a literatura de Henry James não exclui aproximações com vertentes mais naturalistas, como a de Henry Miller). No segundo caso, temos o realismo incômodo de Hopper que, sem apelo à abstração, mostra, como poucos, toda a estranheza da condição humana no mundo. 139 Referências Angell, J. R. (1903) The relations of structural and functional psychology to philosophy. The Philosophical Review, 8 (3). ________ (1971 [1906]) O Funcionalismo. In: Boring, E. G. e Herrnstein, R. J. (orgs.) Textos básicos da história da Psicologia. São Paulo: Herder/EDUSP. Carr, H. (1965 [1930]) Funcionalismo. In: Psicologia del “acto”. Buenos Aires: Paidós. Dewey, J. (1971 [1896]) O conceito de arco relexo. In: Boring, E. G. e Herrnstein, R. J. (orgs.) Textos básicos da história da Psicologia. São Paulo: Herder/EDUSP. _______ (1961 [1940]) Como se esfuma el sujeto en la psicologia de James. In: El hombre y sus problemas. Buenos Aires: Paidós. Canguilhem, G. (1973) O que é psicologia? In: Tempo Brasileiro, n. 30-31. Foucault, M. (1977) História da sexualidade I. A vontade de Saber. Rio de Janeiro: Graal. Heidbreder, E. (1964 [1933]) Psicologias do século XX. Buenos Aires: Paidós. James, W. (1950 [1890]) The Principles of Psychology. 2 vols. Nova York: Dover. ________ (1992 [1892]) Psychology: briefer course. Nova York: The Library of America. ________ (1979 [1905]) Ensaios em Empirismo Radical. In: Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural. ________ (1979 [1907]) Pragmatismo. In: Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural. Marx, M. e Hillix, W. (1963) Teorias e sistemas psicológicos. São Paulo: Cultrix. Schultz, D. e Schultz, S. E. (2000 [1992]) História da Psicologia moderna. São Paulo: Cultrix. Titchener, E. (1898) Structural and functional psychology to philosophy. In: The Philosophical Review, 8 (7). 140 Deus grego Hipnos Capítulo 8 Fios, seduções e olhares: os primórdios “psi” nas terapias para corpos e mentes perturbados Denise Barcellos da Rocha Monteiro Ana Maria Jacó-Vilela Viena, último quarto do século XVIII. A mansão da Landstrasse número 261 recebe músicos famosos no teatro montado no jardim; nas reuniões são servidas as mais soisticadas iguarias, enquanto os convidados passeiam entre as estátuas, apreciam a piscina circular de mármore e sobem o pequeno morro para avistarem o Danúbio. Trata-se da casa de Franz Anton Mesmer (1734-1815), um alemão enriquecido pelo matrimônio, homem de notável cultura, ele mesmo um músico, com títulos no campo da teologia, doutor em ilosoia, em direito e, por im, em medicina, na qual se formou aos 32 anos, apresentando à Universidade de Viena a dissertação acerca da inluência dos ciclos planetários nos distúrbios humanos. Nesse trabalho, postula a existência de um luido primordial que seria a força motriz do cosmos, a “gravitas universalis”. Em 1774, ao ter notícia da utilização de ímãs na cura de certas doenças, Mesmer identiica tal luido como força magnética. Inspirada na teoria da gravitação dos corpos e nas experiências de Benjamin Franklin acerca da eletricidade, sua teoria airma a existência de luidos magnéticos que permeariam todos os elementos do universo, incluindo os corpos humanos. A doença se estabeleceria pelo desequilíbrio desses luidos no corpo. Assim, por essa época, a mansão da Landstrasse é tomada por ios e ímãs. Tudo se presta à energização: as árvores do parque, a água do tanque de mármore, os talheres, os móveis, os espelhos, as pessoas e os animais. As curas se sucedem e o médico busca dispositivos que possam atender a muitas pessoas. Surge o blaquet, ou cuba de saúde, montagem de garrafas enileiradas imersas em água, ligadas a cabos condutores que, por sua vez, eram aplicados 141 nos doentes. Mesmer chegou a construir um equipamento que dava conta de vinte pacientes ao mesmo tempo, cada um conectado ao “luido” através de uma roda de ferro. Acima: Mesmer atendendo a duas doentes Ao lado: Esquema da cuba de saúde A fama de Mesmer cresce nas principais cidades européias e ele é aceito pelos médicos de Viena, Hamburgo, Genebra e Munique. No entanto, em 1775, Mesmer faz uma retificação em seu método: a cura não era promovida pelo ímã, mas pelo contato com o magnetizador. As cubas, árvores e fios passam a ser simples cenários para a terapêutica, porque o médico entende que na verdade está em jogo o magnetismo animal, inerente ao humano. Daí sua conclusão de que nenhuma outra força da natureza SUGESTÃO: este conceito terá um grande papel posteriormente é maior que aquela que um homem pode exercer sobre o na psicologia de massas, através outro. Entre a medicina e a magia das cubas, varetas e passes do trabalho de George Tarde (cf. capítulo 26). magnéticos, Mesmer descobre o poder da SUGESTÃO. A fama do médico cresce na mesma proporção que as dúvidas quanto à sua honestidade. Mesmer se envolve num caso escandaloso com uma paciente, Maria Teresa Paradies, que culmina em sua acusação pela 142 Comissão de Costumes da Áustria. Enquanto o Colégio de Médicos de Viena o declara “impostor”, a Academia de Berlim o considera “equivocado”. Em 1777 Mesmer deixa Viena para se estabelecer em Paris, que por essa época vivia uma onda de magiolatria, encantando-se com quiromantes e curandeiros, como o Conde de Saint German – que dizia ter conhecido Jesus Cristo – e o Conde de Cagliostro, famoso por suas poções mágicas. É nesse contexto que Mesmer instala um hospital em Créteil, nos arredores de Paris. Mesmo com a desaprovação de Luís XVI, o médico agrada à maioria da corte, à burguesia e à própria Rainha Maria Antonieta. Quando o Rei nega inanciamento para a construção de um centro de cura, Mesmer declara sua intenção de abandonar Paris: um movimento, orquestrado principalmente por fraternidades ligadas à maçonaria, arrecada fundos num montante superior ao solicitado, para mantê-lo na cidade. Paris vai experimentar a mesmeromania e, se por um lado a “moda” do magnetismo populariza o método, por outro lado é o método mesmo que demanda, para sua eicácia, a espetacularização e o ritual. As consultas ocorrem nos ambientes luxuosos da residência na Praça Vendôme e do Hotel Bossilon em Montmartre. Os aposentos são mantidos à meia-luz e ocupados pelas cubas de saúde. Os clientes dão-se as mãos para formarem uma corrente humana em transe, enquanto Mesmer, vestido com uma túnica lilás, vai tocando alguns doentes com sua varinha de ferro, detendo-se para conversar em voz baixa com outro ou desenhando signos no ar em frente a um terceiro. A intervenção do médico pretendia funcionar como um condutor para que o magnetismo animal pudesse ser canalizado do universo para o corpo do paciente, sendo o ritual acompanhado por instruções que faziam os participantes mergulharem em suas “mentes” até atingirem a “crise” (suores, contrações, convulsões etc). Dessa vivência de choque decorria a cura. Em 1784, a oposição de Luís XVI quanto ao “magnetismo” se intensiica e resulta na convocação de uma comissão formada por Benjamin Franklin (1706-1790), pelo astrônomo Jean-Sylvain Bailly (1736-1793), pelo químico Antoine Laurent Lavoisier (1743-1794) e pelo Dr. Joseph Ignace Mais GUILLOTIN (1738-1814), entre outros. Esse grupo de estudiosos (o tarde o mesmo primeiro, na história da medicina, constituído pelo Estado para GUILLOTIN será o inventor do deliberação no campo cientíico) não só nega a existência de uma equipamento que força de natureza sugestiva exercida pelo magnetizador, como cortará as cabeças de alude aos perigos da promiscuidade e da histeria provocada nos Lavoisier e de Bailly nos embates da ambientes onde se pratica a cura pelo magnetismo. Revolução Francesa. 143 O destino de Mesmer foi selado nessa rejeição por parte da Academia francesa, mas também pelo desenrolar da Revolução de 1789. Ele sai de Paris em 1792, pobre e difamado, primeiro para a Áustria, depois para a Suíça e, inalmente, para sua cidade natal, Iznang, na Alemanha, onde morre em 1814. Mesmer, assim, inaugurou a prática do que mais JAMES BRAID (1795-1860) formula uma interpretação neuroisiológica tarde veio a ser designado como hipnose, embora o do sonambulismo-magnetismo, batismo desse estado especial da consciência só ocorresse utilizando o fenômeno para elucidação do psiquismo na histeria em 1843, quando JAMES B RAID conceituou o estado e como medida terapêutica. Puhipnótico como uma forma de sono intensa que afetava blica, em 1843, A neurohipnologia a racionalidade do sonho nervoso em a atividade encefálica do indivíduo e que seria induzido ou relação ao magnetismo animal. pelo hipnotizador. Poder-se-ia pensar que o episódio “Mesmer” foi o último representante de uma época ainda de poucas luzes, havendo a “ciência” vencido a “superstição”, como aliás representado em gravura da época que retratava os membros da comissão francesa nomeados pelo Rei aureolados, expulsando Mesmer e seus discípulos montados em vassouras de bruxas. Mas, veremos que os estudos sobre a hipnose prosseguirão cada vez mais no âmbito científico. Tais estudos não serão menos espetaculares que aqueles orquestrados por Mesmer, nem tampouco dispensarão a participação da histeria. Na verdade, Mesmer viveu no espaço de ruptura entre dois sistemas que organizavam o entendimento da ciência médica, exatamente o inal do século XVIII e o início do XIX, que podem ser analisados à luz das idéias de Foucault sobre O nascimento da clínica (1994). Nessa obra, Foucault estabelece não uma diferença entre os elementos com que os dois sistemas trabalharam, mas uma alteração decisiva entre os discursos que deiniram suas práticas – do Iluminismo a um Positivismo na clínica. Foucault (1994) aponta os anos inais do século XVIII como o berço da medicina moderna, marcando uma alteração decisiva entre os discursos (conceitos, métodos e objetos de estudo). Se na medicina clássica conviviam as teorias mágicas lado a lado com um sistema aristotélico de categorizações detalhadas, no início do século XIX insere-se a empiria, a observação atenta e o “olhar”. A medicina clássica se ocupava em descrever e classiicar seguindo uma lógica que Foucault denomina “botânica de sintomas” (Foucault, 1994: xvii). 144 Assim, comportava uma linguagem do imaginado (idealizado) fantástico, no sentido em que o suporte perceptivo (ver, contactar) era subordinado pelo exercício do espírito e depurado pela razão. Focalizava-se a doença por meio do fenômeno manifesto (ou seja, pelo conjunto de sintomas), que por sua vez evocava o signo (a doença representada), sendo tal associação apreendida pela elaboração racional que compara, categoriza, mede, estabelece relações, desvela causas e evolução e aponta prescrições necessárias. Nesse sistema tradicional da clínica do século XVIII, a ênfase é dada na saúde (vigor, lexibilidade, luidez que são reduzidos pela doença) e não na noção de normalidade (norma e desvio de funcionamento). A percepção médica é uma ponte entre o sintoma e a doença, um elemento elucidador, mas não um constituinte essencial, já que tais instâncias eram da ordem da natureza, a serem desveladas (ou iluminadas). Assim, o corpo doente concreto não é o objeto da consideração, pelo contrário, é abstraído como fonte de confusão, para que se possam observar os signos que diferenciam uma doença da outra. Assim, a ação médica deveria ocorrer no momento certo, nem muito cedo, nem muito tarde. Os sintomas iniciais, chaves para o reconhecimento da doença, não deveriam ser ocultados nem, por outro lado, deveria se permitir o fortalecimento irreversível da patologia. É importante notar que, nesse caso, a patologia é vista como fenômeno da natureza e, portanto, o lugar por excelência do embate com a doença é o lugar da vida, o âmbito familiar, o domicílio – não o hospital. Há uma mensagem embutida nesses termos Nos últimos anos do século XVIII, de Foucault que constroem uma imagem rica dos marca-se a emergência da medicina dois momentos da medicina. A “BOTÂNICA” é coletar moderna – com a soberania do olhar as espécies, separá-las, identificá-las parte a parte. Sobretudo, é atividade que se dá no ambiente natural – guiada pelo empirismo vigilante, que da espécie. Já a “GRAMÁTICA” remete à organização constrói um outro discurso. A “lógica de elementos, a sinais que fazem um sentido, a uma atividade que desvenda pelo olhar, pela leitura e BOTÂNICA ” será substituída por uma reconhecimento de signos. Não mais se exerce no “GRAMÁTICA dos signos” ao longo do ambiente natural, mas requer o local onde a observação possa ser controlada. século XIX. No seu “Discurso sobre a maneira de exercer a boa prática no hospital”, de 1797, Petit recomenda: “É preciso, tanto quanto ela autoriza, tornar a ciência ocular” (Foucault, 1994: 100). Trata-se, portanto, de um olho capaz de saber ver, analisar, estabelecer identidades e diferenças, classiicar o normal e apontar o desvio. Os valores da lógica botânica não foram abandonados, mas organizados sobre outras bases. Agora, o olhar é do médico (especialista) investido de poder de intervir; está em pauta, mais que a saúde, o desvio; sobrepondo-se à 145 observação, o cálculo e a previsão. Os sintomas expõem a verdade inteira ao olhar, não remetendo mais a nenhuma essência; é a intervenção da consciência (olhar sensível do médico) que expande o sintoma em signo. É o “ver” que “enuncia”, ou, nas palavras de Foucault, o puro olhar que seria também pura linguagem. Essa pureza do olhar que observa emudece a imaginação, os discursos e as teorias para ouvir “uma linguagem no momento em que percebe um espetáculo” (Foucault, 1994: 122). É neste sentido que o espaço do hospital é, por excelência, o cenário e o laboratório onde os fatos da doença aparecem (o espetáculo). Todas as formas, todas as modiicações no espetáculo da observação permitem que se identiiquem as repetições, as identidades, das quais emerge uma verdade. E se é no campo da clínica que esta verdade é desvelada e pode ser conhecida, é ali também que ela pode ser ensinada, conigurando um espaço de espetáculo, mas sobretudo de espetáculo pedagógico. É nesse contexto que se inserem as apresentações de Jean-Martin Charcot (1825-1893), como se verá a seguir. Charcot e a hipnose Paris, século XIX. O uso terapêutico da hipnose é marcado pelos trabalhos de Charcot, médico residente de Salpêtrière e criador do que mais tarde se tornaria um dos maiores centros de pesquisa na neurologia, reunindo grandes nomes da ciência. Charcot conceituou a histeria como uma neurose que se manifestaria em indivíduos predispostos hereditariamente por trauma físico. Em 1878, passou a aplicar a hipnose no acompanhamento de casos histéricos, demonstrando que a crise histérica Salpêtrière, 1853 (mutismo, amnésias, anestesias, paralisias etc.) podia ser induzida em pacientes hipnotizados. A partir disso, a hipnose e a histeria são agrupadas numa classiicação patológica distinta daquela que reunia as doenças mentais causadas por lesões do sistema nervoso. Charcot sugeria a existência de “idéias ixas” no núcleo destas neuroses e airmava que os fenômenos somáticos relativos à indução hipnótica se organizavam em fases sucessivas, com a regularidade de um mecanismo de relógio, independentemente de fatores externos, ou seja, o desenrolar das fases histéricas era universal. 146 Os estudos de Charcot levaram à conclusão que tais manifestações somáticas podiam ser transferidas de um ponto a outro do corpo por meio de ímãs. Setenta anos depois da queda de Mesmer no ostracismo, o famoso médico francês resgata “cientiicamente” suas idéias. Charcot, vestido sobriamente, orquestrava as sessões de indução hipnótica no estudo da histeria, sessões tão espetaculares quanto os rituais mesmerianos. Porém, o ambiente onde suas “demonstrações” ocorriam – o hospital – conferia ao método uma aura cientíica que a Lanstrasse ou a Montmartre não foram capazes de expressar por Mesmer. Salpêtriére se ALBERT LONDE tornava, então, um pólo gerador de conhecimento sobre (1835-1910), fotógrafo que aplicava a cronofotograia patologias “nervosas”, reunindo não só médicos de várias para ins cientíicos e, participante especialidades, mas também literatos, pintores e fotógrafos. da equipe de Charcot, produziu uma iconograia do Salpêtrière Esses registros fotográicos, a cargo de ALBERT LONDE e que testemunha a importância do “olhar” anteriormente referida. Foto de Albert Londe, ataque histérico masculino Foto de Charcot, fases histéricas O quadro de André Brouillet (1887) é considerado uma das representações mais eloqüentes da medicina dos últimos anos do século XIX, sendo objeto de vários estudos, especialmente pelas presenças (e algumas ausências) ilustres. Segundo Pérez-Rincón (1998), o próprio Charcot desenhou a cena e escolheu os participantes dentre os freqüentadores de suas exibições. São retratados: Charcot, Blanche Wittmann (a paciente-modelo em posição de “arco histérico”), Mdm. Bottard (a enfermeira-modelo de Salpêtrière), Joseph Babinski, Ecary, Paul Richer, Charles-Samson Feré, Pierre Marie, Gilles de la Tourrete, Alexis Joffroy, Edouard Brissaud, Paul Berbez, Albert Londe, Gilbert Ballet, Desiré Bourneville, Naquet, Arsène Claretie, Paul Arène, Albert Gombault, Leon Le-Bas, Georges Guinon, Théodule Ribot, Eduard Lelorrain, Jean Baptiste Charcot (ilho), Matias Duval, Maurice Debove, Phillipe Burty e Victor Cornil. A Escola de Salpêtrière aí retratada constituiu o campo positivista na medicina francesa. 147 do próprio Charcot, constituíram os vários volumes da Nouvelle Iconographie Photographique de la Salpêtrière. ºUm dos presentes, Theodule Ribot (1839-1916), ilósofo, lança as bases da “nova psicologia” francesa com sua obra de 1870, A psicologia inglesa contemporânea, na qual apresenta a escola associacionista e o ideário positivista de John Stuart Mill (1806-1873), Herbert Spencer (1820-1903), Hippolyte Taine (1828-1893) e Francis Galton (1822-1911). Ribot defende a constituição de uma psicologia como ciência autônoma, com uma metodologia própria, apartada das considerações metafísicas, em contraposição à “velha psicologia”, articulada à ilosoia espiritualista. Em 1879, surge um segundo manifesto, Introdução à psicologia alemã contemporânea, através do qual Ribot intensiica os ataques à corrente metafísica. Nessa obra, Ribot aponta características desejáveis para a psicologia cientíica: esforço em direção à precisão, emprego da experimentação, determinações quantitativas, delimitação de campo de estudo e a publicação de monograias em lugar de trabalhos extensos. Entretanto, seu elogio a Wundt é dúbio, pois acredita que a introspecção mantém o caráter metafísico que quer afastar da psicologia. Por outro lado, alguns autores consideram que Ribot criou as condições para que Wundt tivesse sua imagem na historiograia da psicologia restrita à vertente psicoisiológica da psicologia, por só apresentar (e criticar) o trabalho de Wundt restrito à medição de sensações, ignorando o trabalho relativo à psicologia dos povos (conferir capítulo 5). A partir de 1880, começa a esboçar sua visão de psicologia, uma PSICOLOGIA FISIOLÓGICA, definida pela possibilidade de medições no estudo do fato psíquico e, embora utilizando-se das psicologias inglesa e alemã, não A esse respeito diz Ribot: Todo método se prende nem ao associacionismo nem ao experimental repousa deinitivamente sobre o princípio atomismo, estimulando seus discípulos em da causalidade. A PSICOLOGIA FISIOLÓGICA tem dois meios à sua disposição: determinar os efeitos pelas causas (por direção a uma psicologia que pretende exemplo, a sensação pela excitação); determinar as causas estudar o homem em sua totalidade, pelos efeitos (os estados internos pelos atos que os traduzem). (Ribot [1879] apud Marchal e Nicolas, estudando os processos superiores e a 2000). Entretanto, sua visão de experimento diferia personalidade. Ribot dedica-se então ao bastante da utilizada na psicologia alemã. Para ele, o método patológio resulta da observação pura e que será a parcela mais signiicativa de sua da experiência, pois a enfermidade em si é uma obra – uma série de estudos que ediicam experimentação. Esta será a marca da psicologia francesa, onde a experimentação não se restringirá a a ênfase psicopatológica de seus trabalhos, laboratórios, mas sempre terá em vista as condições sobre os quais as exposições de Charcot onde se insere, procurando nelas intervir. exerceram grande influência, tanto que recomenda a seus discípulos Pierre Janet (1859-1947) e Alfred Binet (18571911) que trabalhem em Salpêtrière. Os temas de suas obras dessa segunda 148 fase versam sobre a memória (Les maladies de la mémoire, 1881), a vontade (Les maladies de la volonté, 1883) e os estados mórbidos da personalidade (Les maladies de la personnalité, 1885). Nesse conjunto, definiu também o seu método, que consistia em elucidar mecanismos normais de funcionamento apelando à observação da patologia, considerada como uma degradação da função normal. No estudo da memória, abandonou a concepção de “faculdade da alma” e adotou uma perspectiva biológica, de cunho evolucionista (fundamentado em Spencer e Huglins Jackson), que será seguida pela neuropsiquiatria francesa. Além disso, formulou a idéia de “memórias múltiplas”, retomada por vários psicólogos, dentre os quais Alfred Binet, autor do teste de nível mental que será apresentado no capítulo 16. A terceira fase de suas obras refere-se aos estudos sobre a vida afetiva e os sentimentos, ou seja, a relevância de fatores emocionais e afetivos, e de forças motivacionais no funcionamento psicológico e no desenvolvimento da personalidade, o que fundamenta o caráter de uma “psicologia dinâmica”, que se fará presente na psicologia francesa. À parte sua ênfase no método psicopatológico, Ribot será considerado um personagem fundante da psicologia francesa por seus papéis institucionais. Em 1885 começa a ministrar curso de psicologia experimental na Sorbonne, que deixa ao assumir, em 1889, a cátedra de Psicologia Experimental e Comparada no Collège de France (onde Pierre Janet será seu auxiliar a partir de 1896, e o substituirá quando de seu afastamento deinitivo em 1902). Funda e edita também, a partir de 1875, a Revue Philosophique, com grande número de artigos de psicologia. A psicologia na França se desenvolverá durante um largo período através do trabalho de seus principais discípulos, entre eles Alfred Binet, Pierre Janet e George Dumas (1866-1946). Alfred Binet é uma das ausências do quadro de Brouillet, mas foi um dos mais criativos alunos de Charcot. Seu interesse pela psicologia foi despertado pelos temas do hipnotismo, magnetismo e desdobramento da personalidade. O criador da primeira escala psicométrica do desenvolvimento da inteligência (cf. capítulo 16) foi também escritor do teatro de terror da belle-époque, um estilo estereotipado e de muito sucesso então: A obsessão, A horrível experiência, O homem misterioso, Os invisíveis são alguns dos títulos encenados. É curioso perceber como os homens de ciência da época, empenhados que estavam na luta para consolidar campos de estudo, ou seja, para especializar o conhecimento, são, eles mesmos, ecléticos em suas atuações e portadores de uma cultura universal considerável. 149 Binet, contudo, terá seu trabalho reconhecido não por essa vertente, mas por sua direção do Laboratório de Psicologia Fisiológica da École Pratique des Hautes Etudes (seção de Ciências Naturais) da Sorbonne, onde começa a produzir uma psicologia experimental no sentido wundtiano (já que o experimento de Ribot era, na verdade, resultante de observações clínicas), e onde cria seu teste de nível mental. Esse Laboratório é importantíssimo para a criação de uma outra linha na psicologia francesa, mais coadunada com os caminhos que a psicologia estava tomando em outros lugares. Dirigido inicialmente por H. Beaunis (1830-1921) (quando de sua criação em 1889), é assumido por Binet a partir de 1895 e, posteriormente, por Henri Pierón (1881-1964) e Paul Fraisse (1911-1996), nomes relevantes da psicologia experimental francesa. O grupo de Charcot, a chamada Escola de Salpêtrière, é considerado um dos fundadores da neurologia como especialidade da medicina. No entanto, a Escola de Salpêtrière não foi unanimemente seguida. Os ataques viriam principalmente por parte de um grupo de médicos da Faculdade de Nancy, liderados por Hippolyte Berheim (1840-1919). Este discordava do postulado de Charcot de que tanto a hipnose quanto a histeria seriam fenômenos patológicos associados, discordando também dos estágios da hipnose e da transferência magnética. Airmava ainda que os fenômenos descobertos por Charcot eram produto da sugestionabilidade de pacientes Essa abordagem será de espee médicos, aliados a uma metodologia de pobre controle cial interesse para nós, visto experimental. Esse grupo de Nancy abandona, com o que os médicos brasileiros da corte de D. Pedro II optaram tempo, as induções hipnóticas, para adotar a técnica por essa linha, introduzindo a da sugestão direta no estado de vigília, batizada de PSICOTERAPIA no Brasil, como será visto adiante. “PSICOTERAPIA”. Tanto as práticas de Charcot quanto a linha seguida na Escola de Nancy estiveram presentes no surgimento da psicanálise, cujos enunciados se opõem à etiologia orgânica da histeria, indo buscar suas causas nos acontecimentos de natureza traumática da vida infantil. Freud, que freqüentou os cursos do Salpêtrière entre 1885 e 1886, vai se inspirar em Charcot, ao assumir que a hipnose podia ser utilizada para induzir o sintoma histérico, e em Bernheim, ao constatar que a hipnose não seria a única forma de atingir esse estado, sendo possível trabalhar com a sugestão no estado de vigília. A história da psicanálise será apresentada nos capítulos 22, 23 e 24, mas é importante destacar aqui que se tratou, então, de uma ruptura, de uma clínica que se fundava na escuta e não mais no olhar. Esse caminho será trilhado através da livre-associação e da transferência para com o terapeuta, espelho que permitirá ao paciente reviver as emoções recalcadas. Sedução, 150 sexualidade, transferência e contratransferência se uniam para tornar a psicanálise um terreno de atuação polêmico, mesmo que estes temas fossem correntes no decurso dos séculos XVIII e XIX (conforme Foucault em A vontade de saber, 1976). A psicologia francesa Enquanto o debate entre Nancy e Salpêtrière corria, o francês Pierre Janet completava seus estudos de ilosoia, indo em seguida para Paris se especializar em medicina. Sua dissertação a respeito do “automatismo psicológico” apresenta uma série de estados mentais anormais que envolveriam a histeria e a psicose, apreendidos através da observação clínica, quando também aplicava a hipnose e a escrita automática na investigação desses estados especiais, que denominava automatismo. Em 1889 tornou-se discípulo de Charcot em Salpêtrière, por sugestão de Ribot, a quem passa a acompanhar a partir de 1896 no Collége de France. Charcot chega a criar um pequeno laboratório de psicologia no Salpêtrière e o entrega à direção de Janet. Enquanto o mestre ixava em imagens os casos espetaculares, Janet apresentava a predileção pelo registro escrito, havendo compilado inúmeros diários dos casos que acompanhava nas enfermarias. Um de seus casos mais longos foi Pauline Lair Lamotte ou Madeleine Lebouc (“O Bode”), como ela mesma gostava de se apresentar – a que veio para expiar os pecados do mundo. MADELEINE, que em seus sintomas nunca apresentou o MADELEINE nasceu em 1853 no norte da França, sendo internada em Salpêtrière em 1896 onde permaneceu sob os cuidados de Janet durante 23 anos. Era lagelada com lesões, feridas, tatuagens feitas a fogo, erupções, todas, ela airmava, mandadas por Deus. O médico usava, inutilmente, um arsenal de métodos experimentais para provar a fraude à sua louca. Por outro lado, os sintomas de Madeleine eram intrigantes. Antes dos êxtases, Madeleine icava impossibilitada de urinar, apresentando longas pausas respiratórias de até 80 segundos. Seu metabolismo basal chegava a 10 cal/kg a cada 24 horas, sendo que no indivíduo normal esse valor é 50 cal/kg. A paciente apresentava uma intensa atividade interior, de caráter sensual, onde contracenava, pelo menos a princípio, com Deus. Perto do Natal, os seios de Madeleine icam pesados – é a Virgem grávida; quando Jesus nasce, ela toma o seu lugar e nenhum alimento é mais suportável: “Durante todo o dia seguinte ao êxtase […] ela não pode beber num copo, tudo o que faz é mamar” (Clèment e Kakar, 1996: 50). mais famoso deles, o ARCO HISTÉRICO, andava na ponta dos pés, num trote curto e doloroso, esticada, porque, como a Virgem, era puxada aos céus por Deus. 151 O ARCO HISTÉRICO é a contratura apresentada pela paciente que Charcot sustenta no quadro de Brouillet, anteriormente mostrado. JANET argumentava, desafiando “o Bode” a se elevar alguns centímetros do chão, tentando provar que seu peso não se alterava e que, portanto, não poderia estar sendo levantada um pouco mais a cada dia. A lógica de Madeleine persistia implacável: “Que estranho colocar medida nas coisas divinas! O milagre não é tão grande a um milímetro? […] se agora o levantamento só é de um milímetro, ele logo vai aumentar e logo chegará aos dez centímetros exigidos”. E tripudiava: “Que insolência ixar datas desta maneira para Deus, a ascensão ocorrerá quando Deus desejar e não quando agradar ao senhor Janet” (Clèment e Kakar, 1996: 62). JANET foi médico também de Sophie, que cuidava da cortina onde o espírito de sua mãe havia se instalado, ou mergulhava de cabeça na bacia onde estava o espírito do tio. Ela alternava crises de catatonia com hiperatividade destrutiva, comia os próprios excrementos (porque eram sagrados) e repetia sem parar palavras como RIVED (cujo contrário resulta em DEVIR). Houve Clarisse, depressiva e paranóica; Omu, a curandeira de cabeça raspada; Nea, que se dizia maldita desde a infância. Loetitia dormiu cinco anos seguidos durante a guerra e, desmentindo Descartes, airmava: “Penso, mas não existo”. Houve ainda Flore, Now, Adèle, Agathe, Olga, Cécile, Marianne, Hérmine, Judith e Irène. Todas mulheres, visto que Salpêtrière era um hospício feminino, todas apresentando o diagnóstico de histeria e de quadro psicótico. Assim, o médico que aos 15 anos passou por uma violenta crise religiosa e que escreveu então um trabalho sobre Francis Bacon e os alquimistas parece compensar sua tendência mística com a predileção pelas pacientes extáticas, que trata à luz da mais positivista psicologia. Pierre Janet talvez tenha sido a síntese mais representativa da tradição do século XVIII com a face positivista da clínica do século XIX. Sua coleção de casos formava quase uma botânica, um “jardim” à disposição do médico; no entanto, não em estado “natural”, mas irmemente plantado e delimitado pelas normas que se materializavam nos muros do Salpêtrière. A articulação entre saber e poder (Foucault, 1996) é bem visível nessa instituição (o hospital psiquiátrico), que “paralisa” seu objeto de estudo, para mais minuciosamente “observá-lo”. George Dumas, o menos famoso dos discípulos de Ribot, é quem, de fato, ocupa seu lugar, no sentido de difusão e institucionalização da psicologia. Assume a cátedra de Psicologia Experimental na Sorbonne em 1905 e publica o Tratado de psicologia em 1923-1924 e o Novo tratado de psicologia, com sete volumes, a partir de 1931. Terá grande relevância na constituição da psicologia brasileira na medida em que viaja ao Brasil (e a outros países latino-americanos) para ministrar conferências, aceita médicos brasileiros em seu laboratório (como Manoel Bomim e Maurício de Medeiros – cf. capítulo 9), enim, enfatiza a institucionalização da psicologia. 152 A influência da psicologia francesa no Brasil Até aqui se vem discorrendo sobre alguns aspectos da constituição do campo psicológico francês. Cumpre observar que, tendo em vista a relação de grande proximidade de nossa elite política, econômica e intelectual com o universo francês, foi esse o campo que mais inluência exerceu no pensamento brasileiro. No entanto, no caso de nosso país, algumas especiicidades devem ser mencionadas. A medicina moderna (e com ela, um novo conceito de psicologia) não emergiu nem se propagou simultaneamente por toda a Europa. Na península ibérica, em ins do século XVIII, a medicina ainda era ensinada como um conjunto de aforismos e prognósticos teóricos e, por todo o século XIX, a pesquisa e a empiria serão incomuns nas academias portuguesa e espanhola. Conseqüentemente, as colônias dependentes dessas metrópoles, tanto econômica quanto culturalmente, estiveram submetidas a essas restrições. No Brasil, colônia portuguesa, a proissão de médico foi vetada aos brasileiros até 1800 e, mesmo a partir dessa data, poucos estudantes eram nomeados pela província do Rio de Janeiro para continuarem seus estudos em Coimbra, onde, de qualquer forma, o ensino médico era defasado e ineiciente. Com a chegada da família real em 1808, foram criadas escolas para a formação de “cirurgiões”, responsáveis por sangrias, aplicações de sanguessugas, extrações dentárias etc.; no entanto, a formação de médicos (ou “físicos”) permanecia restrita a Coimbra. Nessa época, a “abertura dos portos às nações amigas” veio atenuar um grande problema para a formação de pessoal qualiicado pois o acesso à bibliograia médica até então era diicultado pelas restrições da metrópole. A situação continuou precária mesmo com a conversão das escolas em academias médico-cirúrgicas, entre 1813 e 1815. É nesse cenário que deve ser compreendido o curioso título do livro do médico pernambucano João Lopes Cardoso Machado Dicionário médico-prático – para uso dos que tratam de saúde pública, onde não há professores de medicina. Esse compêndio de 1823 fala pela primeira vez de magnetismo animal, aplicando o termo “catalepsia espontânea” (Câmara, 2002). A institucionalização da medicina brasileira foi marcada pela criação da SOCIEDADE DE MEDICINA, no Rio de Janeiro, em 1829, que elaborou o Plano de Organização das Escolas Médicas do Império. Em 1832, por conta 153 Esses anos iniciais da medicina brasileira, que se consolidava institucionalmente, foram pautados por uma série de conlitos. Enquanto os professores das faculdades ainda se aproximavam bastante dos antigos práticos, o corpo discente começava a ser predominantemente representado pelas classes mais favorecidas. As instituições, à medida que se consolidavam, competiam umas com as outras em termos de prestígio para elaborar políticas públicas. Por exemplo, a Sociedade de Medicina que, em 1835, passa a ser Academia Imperial de Medicina foi suplantada pela Junta Central de Higiene Pública, criada para atuar no controle das epidemias e, posteriormente, pelas mesmas faculdades de medicina que regulamentou. A inluência da Academia já será insigniicante quando, entre 1879 e 1884, ocorrem novas reformas do ensino médico no Brasil, dessa vez privilegiando o modelo alemão experimentalista. Em Rio de Janeiro. A vida da cidade reletida nos jornais (1978: 49-53), Delso Renault analisa manchetes relevantes dos anos de 1851 e 1852: “O Brasil, ‘phenomeno-singular’, progride malgrado o atraso dos seus habitantes, comenta a imprensa da corte. ‘Precisamos educar a população nascente, preparal-a para dignamente substituir a actual’ [Correio da Tarde, 26/2/1852]. Os proissionais – médicos, dentistas, engenheiros, farmacêuticos, parteiros – enfrentam a concorrência do emigrado estrangeiro, que desembarca na cidade com nomes pomposos, impressionantes. A despeito do funcionamento da Escola de Medicina e dos concursos que nela se fazem, o exercício da proissão não evoluiu. Nem os médicos têm o conhecimento dos avanços da medicina nos países civilizados. Os jornais reletem esse quadro triste. De um lado a medicina empírica e rudimentar; de outro, a ignorância e a ingenuidade da população envolvida por charlatães e inescrupulosos. As boticas – já com o nome de farmácia – oferecem drogas para todos os males. […] As Faculdades de Medicina – do Rio e da Bahia – expedem diplomas de doutor (aos médicos, farmacêuticose parteiros), desde o ato que as reformou em 1832. Sem o título, é vedado o exercício da proissão. Mas, a despeito da exigência, é livre o ensino da medicina: qualquer cidadão, nacional ou estrangeiro, pode manter curso particular mediante uma taxa por matrícula: ‘moço habilitado em uma das academias do Imperio pretende aplicar algumas horas em explicar o primeiro e segundo annos medicos ou pharmaceuticos’ [Jornal do Comercio, 3/2/1851]. O curso de Farmácia é de três anos, enquanto as parteiras fazem um curso particular com o ‘lente de partos’. Chegados da Europa, os barcos abarrotam as farmácias de drogas estrangeiras. A medicina primária, improvisada por processos rudimentares, é anunciada: ‘pessoas que padecem de quebraduras e roturas (por mais antigas que ellas sejão) e que quizerem ter uma cura radical, não sendo necessario resguardo ou dieta’, encontrarão para seus males ‘a verdadeira e legitima Pelle de Peixe Boi’. […] Os laboratórios do mundo civilizado já transmitem à medicina as conquistas da anestesia e da assepsia, invenções revolucionárias no campo da cirurgia. A bacteriologia e a microbiologia, por sua vez, davam ao homem novos meios preventivos de combate ao vírus da raiva e às endemias. Entrementes, nesse ano [1852] aconselha-se o vinagre quente ou água tépida e ácido muriático para o tratamento de ‘mordedura de cão damnado’. […] O jornal [Correio Mercantil, 31/12/1852] divulga a descoberta de certo cidadão do Rio, ´cujos maravilhosos effeitos ainda não estão bem estudados´. O caso é que certo escravo joga-se do primeiro andar, onde se achava, e fratura o crânio. ‘Para voltar a si, mandou lhe aplicar uma boa porção de palmatoadas, e o pobre infeliz voltou a si, todo ensanguentado, depois de applicação desse novo therapeutico’.” desse projeto, os cursos então existentes, em Salvador e no Rio de Janeiro, foram transformados em faculdades, regulamentadas com nítida inluência da Academia de Medicina de Paris. Eliminaram-se funções típicas da sociedade colonial – curandeiros, herbalistas, sangradores, barbeiros (como eram chamados os cirurgiões dessa época) – exercidas por pessoas humildes, mestiços descendentes de negros e índios. As faculdades recém-criadas passaram a emitir os títulos de doutor em medicina, farmacêutico e parteiro (Schwarcz, 2002). Há a preocupação de regulamentar o espaço médico: nesse ano, por exemplo, a Sociedade rejeita oicialmente a tese do médico Leopoldo Gamard acerca do magnetismo animal, sob o rótulo de charlatanismo. Na segunda metade do século XIX, principalmente a partir de 1870, o campo da medicina já se mostra fortalecido. Foi o período da constituição de 154 uma imprensa médica, conigurando-se a necessidade de um peril especíico de atuação que desse conta das epidemias, do atendimento dos inúmeros doentes que retornavam da Guerra do Paraguai e do controle de uma população urbana em crescimento na corte. Além disso, deve-se acentuar a importância do último imperador brasileiro, D. Pedro II, preocupado em consolidar para o país uma imagem moderna. O imperador era visitante habitual da Academia de Ciências de Paris, além de membro de várias sociedades francesas – Sociedade de Agricultura, Sociedade de Higiene, Sociedade de Geograia, Sociedade dos Amigos da Ciência –, havendo mesmo doado dois milhões e meio de francos (dos cofres brasileiros) ao Instituto Pasteur. E é através do “monarca esclarecido” que Charcot volta à nossa cena, já que D. Pedro II não só foi um dos pacientes mais ilustres do médico da Salpêtrière, como também um amigo chegado, hóspede habitual nas famosas “reuniões de terça-feira” na residência do Boulevard Saint-German. Em 1887, o imperador recorreu a Charcot como paciente. O diagnóstico é a “surménage psyco-physique”, ou seja, astenia física e psíquica, que hoje seria denominada “depressão”. Nos anos seguintes, D. Pedro II será atendido várias vezes pelos médicos franceses Charcot e Bouchard, bem como por seu médico pessoal, o Conde de Mota-Maia, por conta de uma diabetes (e, pode-se especular, pelo temperamento lusitano tão afeito à melancolia, agravado pelo exílio em terras francesas). O atestado de óbito do último imperador brasileiro será assinado, em 1891, pelos três especialistas. É curioso notar que, apesar da admiração imperial pela Escola de Salpêtriére, a inluência desse grupo no Brasil se dará especialmente na fundação da neurologia, através do trabalho de AUSTREGÉSILO foi um dos ANTÔNIO AUSTREGÉSILO (1876-1961) pelos idos de primeiros divulgadores das idéias 1912. No entanto, a psicoterapia exercida ainda psicanalíticas no Brasil, estabelecendo uma singular articulação entre a neurologia e a durante o Segundo Reinado inclui também psicanálise nos anos quarenta do século XX. os rivais da Salpêtrière, ou seja, a Escola de Nancy. Em 1887, Érico Coelho apresenta três comunicações à Academia Imperial de Medicina, anunciando a aplicação da hipnoterapia na cura do beribéri. A Academia aprova o método – a psicoterapia ou método hipnótico sugestivo – e se constitui, na corte, a primeira geração de hipniatras, representada por Érico Coelho, Moraes Jardim, Francisco Fajardo (18641906), João Carlos Teixeira Brandão (1854-1921), Kossuth Vinelli, Francisco 155 de Castro (1857-1901), Alfredo Barcellos, Phillipe Jardim, Dias da Cruz Filho (1853-1937), entre outros. A hipnose, nos moldes de Berheim, foi aplicada por esses médicos no tratamento de distúrbios motores, fobias, crise aguda de beribéri, anorexia, enxaquecas e como anestesia em partos e intervenções cirúrgicas. Assim, não estava restrita às enfermidades nervosas, mas entendia uma íntima relação entre fenômenos somáticos e psíquicos. Em 1889, a psicoterapia é consolidada com a publicação da tese de Francisco Fajardo, intitulada Hypnotismo, com grande repercussão na meio médico. Nesse ano, o Brasil se faz representar no I Congresso de Hipnose Clínica e Terapêutica em Paris, presidido por Charcot. As práticas psicoterápicas francesas se revelam na emergente psiquiatria brasileira. Teixeira Brandão, considerado o primeiro psiquiatra brasileiro, formou-se no alienismo francês de Philippe Pinel (1745-1827). Critica a administração do Hospício de Pedro II, inaugurado em 1852 e dirigido pela Santa Casa de Misericórdia e as irmãs de caridade. Assume a direção do Hospício em 1883, procurando introduzir a “terapêutica moral”, cientíica. Ardente republicano, apóia a mudança do nome do hospício para Hospital Nacional dos Alienados (1890) e a primeira lei a respeito do atendimento em saúde mental, a Lei de Assistência aos Psicopatas, de 1903. Deixa a direção do já Hospital dos Alienados em 1899. Seu principal substituto só ocupará a direção em 1903: Juliano Moreira (1873-1933), o grande nome da psiquiatria no Brasil, dirige o Hospital até 1930, introduzindo as idéias organicistas alemãs na psiquiatria brasileira. A psicologia francesa permanecerá entre nós através da inluência de Binet e do uso de testes, substituindo a psicologia experimental centrada em instrumentos de laboratórios. A EMERGÊNCIA DA PSIQUIATRIA BRASILEIRA se inscreve através de dois embates signiicativos, profundamente entrelaçados. O primeiro refere-se à constituição de um saber, no esforço para se destacar da medicina geral, mantendo-se contudo aliada ao seu prestígio. Assim, em 1881, temos a criação da cadeira Moléstias Nervosas e Mentais no curso de Medicina, inaugurando o ensino de psiquiatria no curso regular, o que será oicializado em 1886. O segundo embate deu-se no campo do poder, um confronto direto pela administração do hospício. Tratava-se de irmar a necessidade de um tratamento cientíico em substituição à assistência religiosa. Nesse longo caminho, muitas alianças foram estabelecidas, com incursões no campo da saúde pública e do direito. Em 1912, a psiquiatria se tornará especialidade médica autônoma. A iliação da psiquiatria à medicina encontra forte expressão na idéia de que o distúrbio mental poderia ser explicado pelo (mau) funcionamento orgânico. O maior representante dessa corrente será o alemão Emil Kraepelin, cujos estudos orientaram, por sua vez, a atuação de Juliano Moreira em termos de assistência (tanto médica quanto jurídica) ao doente mental. No entanto, em nome do organicismo, muitos atentados foram cometidos contra o “corpo louco”. Por exemplo, experimentos denominados “terapias cirúrgicas”, tais como intervenções ginecológicas (castração uni e bilateral, ovariotomia, histerectomia, etc.) em doentes mentais levadas a cabo pelo Dr. Luiz Puech em 1907. Ainda no campo biológico, a idéia de uma “hereditariedade” da doença mental será o campo fértil para o nascimento das idéia eugênicas no nosso país, estandarte que a Liga Brasileira de Higiene Mental carregará a partir dos anos 1930. 156 Indicações bibliográficas e estéticas Para uma análise das diferenças culturais, é interessante o livro de Catherine Clément e Sudhir Kakar, A louca e o santo (referências abaixo) em que se discute o caso de Madeleine, a louca de Janet, e um grande místico indiano, Rama Krishna. Referências bibliográficas Câmara, F. P. Instituição da psicoterapia na medicina brasileira: 1887-1889. Psychiatry on Line Brazil (8), dez. 2002-jan. 2003. Disponível em http://www.polbr.med.br/arquivo/ wal0103.htm. Acessado em 7/9/2003. Campos, R. H. de F. (2001) Dicionário biográico da psicologia no Brasil. Pioneiros. Rio de Janeiro/ Brasília: Imago/CFP. Clément, C.; Kakar, S. (1997) A louca e o santo. Rio de Janeiro: Relume-Dumará. Fajardo, F. (1889) Hypnotismo. 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Um aspecto muito importante desse desaio consistia no fato de que a saúde, a educação, a religião, a moral e várias outras dimensões da experiência pessoal dos cidadãos começaram a ser gerenciadas ou controladas diretamente pelo aparelho estatal. Esse processo foi acompanhado por uma progressiva estruturação dos papéis sociais dos indivíduos, vindo estes a ser considerados como funções e produtos do processo social. Neste sentido, importava consolidar um saber que pudesse proporcionar uma concepção de homem e de sociedade funcional a esse objetivo. Ao mesmo tempo, precisava favorecer a superação das raízes lusitanas em prol de uma abertura a outras matrizes teóricas que norteassem esse processo de mudança. A ANTROPOLOGIA MECANICISTA funda-se no Assim é que a ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA conceito de homem-máquina, formulado pelo MECANICISTA de matriz francesa, por um ilósofo e médico francês J. O. de La Mettrie lado, e o positivismo, por outro, vieram (1709-1751) que, radicalizando as conclusões fornecer os alicerces teóricos necessários dos estudos da biologia e da isiologia da época e a teoria mecanicista cartesiana do animalpara esta transformação cultural e política, máquina, afirma que o homem é apenas proporcionando a ideologia e legitimando as matéria organizada de modo especial e atuando práticas apropriadas para garantir a coesão conforme a constituição de suas partes. Desse modo, seria dispensável o tradicional conceito do universo social e a adesão de seus membros de alma humana.... à lógica hegemônica. Ao mesmo tempo, a criação de órgãos oficiais de transmissão e elaboração do conhecimento – como escolas, faculdades, academias, sociedades cientíicas, revistas, bibliotecas – pretendia oferecer as estruturas institucionais necessárias para alcançar o objetivo visado. Acompanharemos sucintamente os passos desse processo. 159 O estado físico da nossa máquina influi poderosamente nas operações da alma No início do século XIX, o médico mineiro Francisco de Mello Franco (1757-1822), formado em Filosoia e Medicina pela Universidade de Coimbra e autor de vários tratados e artigos, propõe um tipo de psicologia médica inspirada nas teorias do Iluminismo e do sensualismo francês, especialmente na teoria do médico-ilósofo Pierre Jean Georges Cabanis. Num livro publicado em 1813 no Brasil, Elementos de hygiene ou ditames teoréticos e práticos para conservar a saúde e prolongar a vida, cujo objetivo declarado é “oferecer certos ditames para a felicidade dos povos” (ed. 1823: XI), Mello Franco deine o físico como “a recíproca encadeação de todos os sistemas de órgãos que formam a nossa máquina” (idem: 308), sendo a dimensão moral “tudo quanto diz respeito às funções e particulares afeições da nossa alma” (ibidem). Além do mais, airma ser uma evidência empírica o fato do estado físico do corpo ter grande inluência nas operações da alma. Portanto, a observação e o bom senso, podem com o tempo alumiar-nos, de modo que, dado o conhecimento das impressões feitas em tais ou tais órgãos, possamos cair na conta dos resultados morais, que devem ser a sua conseqüência. (idem: 325) As antigas doutrinas acerca das relações mente-corpo e a tradicional TEORIA DOS TEMPERAMENTOS de derivação hipocrática são reformuladas numa perspectiva tendencialmente monista. Sendo A TEORIA HUMORALISTA, cujas o funcionamento do organismo regulado por origens remontam a Hipócrates leis da natureza, compreensíveis e previsíveis e Galeno, considera a constituição do através da observação e da experimentação, homem determinada pela presença de quatro humores fundamentais que, por sua vez, será possível calcular e modiicar o dinacorrespondem aos quatro elementos básicos da mismo pela transformação das circunscomposição do Universo. Os humores são: biles preta, biles amarela, leuma e sangue. Conforme tâncias físicas determinantes, graças a o predomínio de um destes na constituição dos remédios e normas higiênicas. A saúde indivíduos, tem-se quatro tipos de temperamentos: do conjunto psicossomático que constitui melancólico, colérico, leumático e sangüíneo. Os temperamentos, por sua vez, determinam o ser humano é deinida como equilíbrio, as características psicossomáticas do sendo este entendido como harmonia da sujeito: sua condição orgânica bem como seus estados psíquicos. maquina corporal, cujo efeito é o bem-estar psicológico. Uma conseqüência dessa mentalidade será a proliferação do gênero literário dos tratados de higiene, visando difundir junto à população brasileira regras e conselhos que proporcionassem o bemestar do corpo e do espírito. Outro livro do autor – o Tratado da educação física dos meninos para uso da nação portuguesa, publicado em Lisboa em 1790 – responde 160 a inalidade semelhante, aplicada dessa vez ao campo especíico da educação da criança, airmando a tese de que “sem a educação física, pouco se pode fazer na moral e literária” (1790, ed. 1946: 98-99) – tese esta fundada na tese empirista de que “a fonte das nossas idéias são os sentidos” (idem: 319). Desse modo, no século XIX, a medicina propõe-se a si mesma como a ciência do homem, substituindo a ética, a ilosoia e a teologia na tarefa de orientar indivíduos e sociedades rumo à felicidade. A obra de Mello Franco constitui uma inversão radical da tradição cultural anterior, fato este que ica explicito no tratado Medicina Teológica, ou Suplica Humilde aos Senhores Confessores e Diretores sobre o modo de proceder com seus penitentes na emenda dos pecados, principalmente da Lascívia, Cólera e Bebedice (1794), texto polêmico coniscado pelas autoridades por causa de seu conteúdo taxado de materialista. Mello Franco propõe-se uma transformação de discursos: os conceitos e práticas elaborados pela teologia acerca do pecado são traduzidos nos conceitos e práticas da ciência médica acerca da doença. A analogia entre medicina do corpo e medicina do espírito, tradicionalmente utilizada pela ilosoia e pela teologia, adquire uma signiicação nova – a medicina do corpo pretendendo dar conta também da medicina da alma. A revolucionária airmação do autor, de que “a experiência mostra que muitos pecados humanos têm sua origem em doenças particulares do corpo” (idem: 23-24), suscitou vivazes reações ao livro no âmbito católico e especialmente eclesiástico, abrindo uma nova fase na história da cultura brasileira, no que diz respeito à concepção do homem e de seu psiquismo, fase esta que se explicitará mais clara e amplamente ao longo de todo o século XIX. O homem primitivo é um mero autômato O estudo de JOSÉ BONIFÁCIO DE ANDRADA E SILVA acerca dos índios brasileiros (Apontamentos para a civilização dos Índios bravos do Brasil, de 1823, destinado a ser apresentado, discutido e JOSÉ BONIFÁCIO DE ANDRADA E SILVA (1763cientista e político brasileiro de renome, aprovado no âmbito da Assembléia Geral 1838), teve um papel fundamental na constituição Constituinte) propõe um plano de colonização do Estado brasileiro pós-colonial, tendo sido dos índios, a ser realizado através de um vice-presidente da junta do governo em 1821 e ministro do Reino e dos Negócios Estrangeiros. processo de aculturação. Para alcançar este Exilado na França em razão do dissídio com o objetivo, é necessário, segundo o autor, Imperador D. Pedro I, voltou ao Brasil em 1829, “conhecer primeiro o que são e devem ser acabando por ser coninado na Ilha de Paquetá (RJ) onde veio a falecer. naturalmente os Índios bravos, para depois 161 acharmos os meios de os converter no que nos cumpre que sejam” (ed. 1965: 9-10). Os comportamentos dos índios são explicados na base de uma teoria acerca do “homem no estado selvagem”, inspirada na ilosoia iluminista da época (notadamente na antropologia mecanicista). Uma primeira característica do homem no estado selvagem é a ausência das necessidades próprias do homem “civilizado” que estimulam a atividade e o trabalho. Um segundo aspecto é a ausência daquele tipo de racionalidade característica do “espirito cientíico” europeu. A possibilidade de modiicar a realidade humana e social assim retratada baseia-se, para José Bonifácio, num postulado antropológico ambientalista claramente explicitado: Mudadas as circunstâncias, mudam-se os costumes. Com efeito, o homem primitivo nem é bom, nem é mau naturalmente; é um mero autômato cujas molas podem ser postas em ação pelo exemplo, educação e benefícios. Se Catão nascera entre os sátrapos da Pérsia, morreria ignorado entre a multidão de vis escravos. Newton, se nascera entre os guaranis, seria mais um bípede, que passara sobre a superfície da terra. Mas um Guarani criado por Newton, talvez ocupasse o seu lugar (idem: 12). A civilização sendo entendida como modelo a ser realizado, resta necessário deinir a estratégia para sua concretização. A proposta de atuação, para José Bonifácio, consiste na criação dos métodos e dos meios para possibilitar a “pronta e sucessiva civilização dos Índios” (idem: 15). Alguns dos “meios” de “civilização” propostos por José Bonifácio têm uma clara signiicação psicológica, como por exemplo, a tentativa de inculcar nos índios o sentido da inferioridade cultural através de gestos e rituais voltados a induzir nos nativos “altas idéias do nosso (ndr: do governo brasileiro) poder, sabedoria e riqueza” (p. 17). A adaptação dos índios ao novo modelo sociocultural, e, em particular, à nova organização do trabalho, deve ser realizada gradualmente, “acostumando-os a pouco a pouco” (p. 19) ao novo modo de vida e, estimulando neles “novas necessidades” (“se vestir melhor, ter suas casas mais cômodas e asseadas”, ibid.), próprias do homem “civilizado”. O projeto de José Bonifácio, assim como outros similares elaborados ao longo do século XIX, documenta que o processo de organização da sociedade nacional implica a necessidade de nivelar os sujeitos sociais e culturais presentes no Brasil num protótipo nacional, com função normalizadora. 162 Do materialismo ao espiritualismo eclético: o percurso de Eduardo Ferreira França A biograia intelectual do médico, político e ilósofo baiano Eduardo Ferreira França (1809-1857) é signiicativa de um percurso comum a vários pensadores brasileiros da época, tais como J. Gonçalves Magalhães (1811-1882). Formado em Medicina em Paris em 1834 e adepto entusiasta do materialismo reducionista, França “converteu-se” posteriormente ao espiritualismo, ao que parece em conseqüência de suas atividades políticas como deputado estadual e federal. Com efeito, diante da necessidade de fundamentar o princípio da liberdade e dos direitos humanos, França reconheceu a impossibilidade de fazêlo fundamentando-se em teorias naturalísticas e mecanicistas. Como ele mesmo airma em sua obra (Investigações de psicologia, 1854; ed. 1973), seria impossível explicar o fenômeno da liberdade bem como outros fatos da vida humana na base do pressuposto materialista. Adere, portanto, ao espiritualismo francês de Maine de Biran (1766-1824), o qual, questionando sua posição inicial de empirismo radical, chegara a fundar a liberdade numa “ciência do eu”. Ao substituir o conceito de “alma” – que, como vimos, era próprio da tradição aristotélico-tomista, cuja inluência fora relevante no Brasil do século XVI ao XVIII – pelo topos do “eu”, ou “espírito”, o espiritualismo determinara uma transformação considerável na psicologia ilosóica do século XIX, pois o “eu” assim entendido não é mais uma categoria ontológica (essência) e sim um dado fenomênico, passível de conhecimento cientíico da mesma forma que os fatos naturais. As manifestações mais relevantes da vida psíquica são as faculdades concebidas como causas das modiicações subjetivas, ou seja, a inteligência, a sensibilidade e a atividade (ou vontade). O método do conhecimento é baseado na “percepção interna”, sendo que os fatos internos são dependentes da consciência; aliás, são – conforme expressão de Ferreira França – “modos de objetivação” dessa (1854; edição de 1973: 321). Mérito do espiritualismo, no que diz respeito à introdução da psicologia como disciplina curricular em várias instituições de ensino do Brasil, é o de tê-la estabelecido, conforme expressão de Gonçalves Magalhães em seu livro Fatos do espírito humano, como “base e ponto de partida de todas as sciências philosophicas” (1858: 29). 163 A “fisiologia mental” de Luís Pereira Barreto e a introdução do positivismo no Brasil Os alicerces conceituais que permitiram a formulação dos conhecimentos psicológicos nos termos de uma ciência natural, experimental e autônoma em relação à ilosoia e à tradição por esta transmitida encontram-se, na segunda metade do século XIX, no pensamentos dos ilósofos positivistas brasileiros, em primeiro lugar o médico e ilósofo paulista Luís Pereira Barreto (18401923). Analogamente a Eduardo Ferreira França, sua formação ilosóica ocorreu no exterior, na Bélgica, sendo que no regresso ao Brasil, desenvolveu suas atividades proissionais principalmente em São Paulo, ocupando-se de divulgar o positivismo no meio cultural brasileiro, através de livros e artigos. Na introdução de sua obra principal, As três ilosoias, publicada entre 1874 e 1876, no Rio de Janeiro, ele airma que o programa positivista não veio perturbar a ordem e sim ocupar “um lugar tornado vago pela extinção gradual das antigas crenças” (1973: 128). Segundo Barreto, esse programa, criado pelo ilósofo francês Augusto Comte (1798-1857) e aplicado ao estudo dos fenômenos psicológicos e sociais pelo ilósofo francês Herbert Spencer (18201903), teria como objetivo a “reconstrução espiritual” da sociedade brasileira numa base cientíica, cujo instrumento principal seria a reforma radical do ensino, uma vez libertado das inluências nefastas das Academias e da Igreja. Assim, a realidade contemporânea é por ele interpretada como expressiva de uma fase histórica determinada a ser superada na marcha progressiva da humanidade. Esta será a ótica adotada pelo ministro Benjamin Constant ao realizar a reforma da instrução pública de 1891, que introduziu no ensino secundário as ciências, inclusive a psicologia, eliminando a ilosoia e reduzindo o espaço das disciplinas históricas. Pois, segundo Pereira Barreto, a “isiologia mental” proporcionaria o conhecimento verdadeiro do homem em sua totalidade, e da história. Analogamente aos fenômenos naturais, os fatos humanos são sujeitos a leis ixas e invariáveis e por isto podem ser inteiramente submetidos à investigação conduzida pelo método experimental. O médico ilósofo, iel à doutrina comtiana, descreve o ser humano como um composto de inteligência, sentimento e atividade, todas funções do cérebro. A unidade e o equilíbrio entres essas funções e sua adaptação ao meio ambiente são a condição essencial para a saúde individual. O estudo dos fenômenos psicológicos deve ser visto como parte da isiologia e não em termos de uma psicologia autônoma, pois somente a isiologia conhece as condições e os meios necessários para manter 164 ou restabelecer o equilíbrio do ser humano. Como tal, ela é também a base da pedagogia, proporcionando um “systema racional de educação” (ibidem). Pereira Barreto aplica a isiologia mental ao estudo dos fenômenos religiosos estabelecendo uma relação causal entre desarranjos cerebrais e crenças religiosas, sendo a religião reduzida a termos unicamente psicológicos. Neste sentido, decorre a airmação de que manifestações religiosas predispõem à loucura, surgindo a necessidade de eliminá-las em nome de uma “higiene do espírito” (idem: 316). O ensino da “psychologia” nas instituições de segundo e de terceiro grau No século XIX, a “psychologia” comparece como parte de disciplinas em diferentes áreas do saber (ilosoia, direito, medicina, pedagogia, teologia moral), matérias de diversos currículos em instituições escolares do País. Inclusive, os manuais para uso escolar, em muitos casos, contêm seções dedicadas a este campo. Neles, a diversidade de abordagens no estudo dos fenômenos psíquicos depende da multiplicidade de referências ilosóicas mais inluentes na época. No ensino ilosóico na Faculdade de Direito de São Paulo, fundada em 1827, por exemplo, o estudo dos problemas da subjetividade é considerado como propedêutico à teoria e à prática jurídicas. Várias são as tendências doutrinárias presentes nos textos dedicados a esses tópicos: desde o sensualismo francês, ao empirismo moderado de Antônio Genovesi (1712-1769), à doutrina kantiana, o espiritualismo, inclusive na versão alemã elaborada por Karl Christian Friedrich Krause (1751-1831). No ensino médico, instituído na Bahia e no Rio de Janeiro a partir de 1832, o estudo dos fenômenos psicológicos é concebido como parte daquela “higiene social” da população brasileira da qual os médicos deveriam ser os artíices. Vários tratados médicos (em particular de higiene, medicina forense e psiquiatria) abordam problemáticas de natureza psicológica. Da mesma forma, muitas entre as teses elaboradas pelos estudantes para a obtenção do grau de doutor em Medicina vertem sobre este domínio. Especialmente, destaca-se a ênfase na assim chamada “terapia moral”: com este rótulo atribui-se ao médico a tarefa de cuidar do estado físico e também moral do ser humano, pois airma-se a ciência médica como capaz de conhecimento pleno do homem, vindo assim a assumir uma tarefa que tradicionalmente cabia à ilosoia e à teologia. 165 Nos seminários episcopais e escolas internas para a formação do clero, a psicologia é estudada seja como disciplina integrante da metafísica (em particular da “pneumatologia”, literalmente, ciência do espírito), seja como conhecimento prático da conduta humana no âmbito da teologia moral. Nos manuais utilizados, prevalece a inspiração tomista, mas também há inluxos espiritualistas. Nos currículos e programas do Colégio Pedro II do Rio de Janeiro, a partir de 1850 leciona-se a “psychologia” no sexto e no sétimo anos do curso, enquanto matéria propedêutica à ilosoia, sendo que no conteúdo ensinado domina a ênfase espiritualista. Nas escolas normais fundadas no Brasil a partir da segunda metade do século XIX com o objetivo de formar um corpo docente competente e adequado às necessidades do sistema educacional brasileiro, a psicologia comparece no âmbito da disciplina “Metódica e Pedagogia”, moldada pela preocupação de introduzir a metodologia cientíica no ensino, sob a inspiração de modelos europeus e norte-americanos. No curso normal anexo à Escola Americana, fundada em São Paulo em 1870, por obra de membros da Igreja Presbiteriana, o currículo incluí a matéria “Psicologia aplicada ao desenvolvimento da criança”. A criação dos primeiros laboratórios de psicologia experimental Nas primeiras décadas do século XX, surgem alguns laboratórios de psicologia experimental: no Rio de Janeiro, junto à Clínica Psiquiátrica do Hospício Nacional, um fundado pelo médico Maurício Medeiros (1885-1966); e outro junto à cátedra de Psiquiatria da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, por Henrique Roxo. Na mesma cidade funciona o Laboratório de Fisiologia mantido por Miguel, Alvaro e Branca Osório, especialistas em isiologia nervosa e psicoisiologia. No Hospital de Engenho de Dentro, no mesmo Estado, é fundado em 1923, por Gustavo Riedel, o Laboratório de Psicologia que, a partir de 1924, é dirigido pelo polonês Waclaw Radecki (1887-1953). Com a colaboração de vários pesquisadores, nesse laboratório são realizadas investigações que foram publicadas nos Annaes da Colônia de Psychopatas entre 1928 e 1936 e em outras revistas. Entretanto, o mais antigo laboratório de psicologia experimental no Brasil é criado no Rio de Janeiro em 1890: o Pedagogium. Inicialmente Museu Pedagógico, passa a funcionar como laboratório sob a direção de Manoel Bomim (1868-1932). 166 Em São Paulo, assiste-se ao crescimento dos estudos psicológicos, na vertente psicanalítica, na Faculdade de Medicina: um dos expoentes mais signiicativos, Francisco Franco da Rocha (1864-1926), cria o Hospital de Juqueri em 1898 onde seu sucessor Antonio Carlos Pacheco e Silva instala laboratórios especializados no tratamento das doenças mentais. Nessa mesma cidade, outro médico, o cearense Domingos José Nogueira Jaguaribe (18431926), cria no início do século XX um Instituto Psycho-Physiologico voltado para a elaboração e experimentação de terapias do alcoolismo. Outro centro importante para os estudos psicológicos é o Instituto de Higiene, fundando em 1926. A instituição de um Laboratório de Psicologia Experimental propriamente dito ocorre em São Paulo no ano de 1912 junto à Escola normal da capital, por obra do médico e pedagogo italiano Ugo Pizzoli. No Estado de São Paulo, na cidade de Amparo, o professor Clemente Quaglio fundou em 1909 um Gabinete de Psicologia Experimental junto à Escola Rangel Pestana. Em conclusão, pode-se observar que no século XIX e no início do século XX, a psicologia começa a ocupar um espaço próprio enquanto campo de conhecimentos e de práticas, se bem que ainda não como disciplina cientíica autônoma. Em alguns casos, assiste-se a tentativas originais de elaboração conceptual acerca de tópicos psicológicos por alguns autores tais como Ferreira França; mas, na maioria das vezes, trata-se da transmissão e interpretação de teorias importadas (principalmente da França). De fato, na busca de transformar o Brasil em nação ocidental moderna, o passado colonial é encarado negativamente e o futuro é concebido como adequação a modelos que, num enfoque positivista do processo histórico, aparecem como mais evoluídos. Neste sentido, também a criação dos primeiros laboratórios no início do século XX parece acompanhar esse movimento voltado a criar no Brasil uma ciência do homem segundo métodos e objetivos sugeridos pelo cenário cultural e social internacional. Referências Massimi, M. (1990) História da psicologia brasileira. São Paulo: Edição Pedagógica Universitária. Massimi, M. (1991) As idéias psicológicas de Francisco de Mello Franco, médico e iluminista brasileiro, Psicologia: Teoria e Pesquisa. Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília, v. 7, n.1, p. 83-90. 167 Fontes primárias Andrada e Silva, J. B. (1965 [1823]) Apontamentos para a Civilização dos Indios Bravos do Império do Brasil. Santos: Textos e documentos inéditos do Instituto Santista de Estudos Políticos. Barreto, L. P. (1967) As três ilosoias. In: Barros, R.S.M. Obras ilosóicas de Luís Pereira Barreto. São Paulo: EDUSP / Grijallbo, v. 1. Franco, F. 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Roma: Fontaine (2ª ed., Rio de Janeiro, 1865). 168 Capítulo 10 A reflexologia soviética: Séchenov, Pavlov e Bechterew Eustáquio José de Souza Júnior Manuela Gomes Lopes Sérgio Dias Cirino A Rússia foi um país pioneiro no campo de estudos da relexologia, exercendo um importante papel no desenvolvimento cientíico de meados do século XIX até a década de 1940. Foi um período marcado pela extrema efervescência política do então Estado czarista russo, que culminou com a implantação do Estado socialista em 1917. Dentre os numerosos pesquisadores empenhados na isiologia dos relexos, pode-se destacar a inluência de pelo menos três na história da psicologia moderna: Ivan Michajlovic Séchenov (1829-1905), considerado o iniciador da isiologia russa; Ivan Petrovich Pavlov (1849-1936), isiologista que criou o conceito de relexo condicionado; e o psiquiatra e isiologista Vladimir Michailovitch Bechterew (1857-1927), responsável pela aplicação do conceito de relexo condicionado ao estudo de relexos motores. Ivan Michajlovic Séchenov e a fisiologia russa moderna Séchenov foi um importante agente do estudo dos relexos condicionados e na recusa das explicações mentalistas. Em sua tese intitulada Dados para a futura isiologia da intoxicação alcoólica, há o embrião da proposta de uma isiologia ocupada com o organismo em interação com as LAUDE BERNARD (1813-1905). Eminente forças ambientais que atuam sobre ele (Pessoti, C fisiologista francês. Lecionou Fisiologia 1976). Experimental e Fisiologia Comparada na Por volta de 1862, Séchenov estudava Sorbonne. Inspirado no positivismo de Augusto Comte, formou a base da isiologia no laboratório de CLAUDE BERNARD em Paris. experimental francesa no século XIX. 169 Ocupava-se naquele momento dos centros nervosos inibidores dos movimentos relexos em rãs. Nutriu-se das idéias de Charles Darwin e do associacionismo de John Locke. Nesse contexto, teve origem sua obra de maior importância chamada OS REFLEXOS DO CÉREBRO. Uma das principais idéias defendidas e estudadas por Séchenov era que a vida psíquica não era independente do corpo, mas somente uma função do sistema nervoso central, principalmente do cérebro. Séchenov via no relexo uma unidade mínima de comportamento, válida ao mesmo tempo como unidade de análise experimental e como instrumento metodológico para explicar unidades de comportamento mais soisticadas. Os processos psíquicos seriam, desta forma, componentes de um complexo ARCO-REFLEXO. Esta foi uma das primeiras tentativas cientiicamente articuladas de abordagem da vida psicológica como uma função estritamente isiológica em termos de relexo. OS REFLEXOS DO CÉREBRO: O primeiro título dado ao trabalho foi Uma tentativa de estabelecer as bases isiológicas dos processos psíquicos. A doutrina oicial do Estado-Igreja russo pressupunha que o psiquismo competia unicamente à alma. Devido a este fato, Séchenov foi obrigado a substituir o título, além de publicá-lo em uma revista médica especializada em vez de lançá-lo como livro popular. ARCO-REFLEXO é um termo cunhado por fisiologistas preocupados em preencher objetivamente o intervalo entre o estímulo e a resposta onde se subentende a existência de: a) um órgão receptor, b) um elemento nervoso aferente que conduza o estímulo a um centro nervoso, c) um elemento nervoso eferente que conduza o pulso nervoso ao órgão efetor e d) o efetor em si. Este conceito é diferente do conceito de relexo que consiste na simples relação observada publicamente entre o estímulo e a resposta (Keller e Schoenfeld, 1950-1966). O uso do arco-relexo como unidade de análise e a ênfase antimetafísica evidenciam a importância atribuída por Séchenov à estimulação sensorial para a explicação dos processos psicológicos. Para ele, o avanço da isiologia nervosa poderia viabilizar uma explicação consistente para o comportamento global, utilizando somente a terminologia da isiologia dos relexos. Séchenov lançou as idéias que mais tarde inluenciaram teórica e metodologicamente outros importantes pesquisadores da relexologia. Ivan Petrovich Pavlov e a proposição do reflexo condicionado Ivan Pavlov nasceu em Ryazan, na Rússia. Como ilho de um sacerdote, foi educado até os 11 anos de idade pelo pai, seguindo para um seminário onde estudou teologia. Aos 21 anos preferiu explorar novas possibilidades. Inluenciado pelas idéias de Charles Darwin, a fama crescente de DIMITRI 170 DIMITRI IVANOVITCH PISAREV (1840-1868). Eminente crítico literário russo que defendia a implementação de uma cultura de base científica na qual fossem eliminadas as diferenças sociais. Exerceu forte oposição sobre o então Estado czarista. IVANOVITCH PISAREV e a obra de Séchenov, mudou-se para São Petersburgo com o objetivo de freqüentar a universidade. Optou por estudar medicina, especializando-se em isiologia animal. Antes mesmo de graduar-se em 1875, foi premiado, juntamente com um colega, Afanasyev, pelo excelente trabalho desenvolvido sobre a inervação pancreática. Após sua graduação, continuou seus estudos para obter o direito de candidatar-se a uma cátedra em isiologia. Seguiu FÍSTULA: técnica desenvolvida por D. Glinsky em 1895, que consistia em com diiculdades inanceiras até 1890, momento D. fazer aberturas cirúrgicas em tecidos do em que conheceu e aprimorou a técnica de abrir organismo para facilitar a observação de FÍSTULAS para observar processos fisiológicos internos processos isiológicos. em animais vivos. Nesse mesmo ano, Pavlov foi nomeado professor de farmacologia na Academia Militar de Medicina, onde dedicou mais de 40 anos de estudo à isiologia e ao desenvolvimento do Instituto de Medicina Experimental. Num primeiro momento, Pavlov focalizou esforços no estudo da atividade do sistema nervoso sobre o músculo cardíaco. Em seguida passou ao estudo do sistema endócrino, campo que lhe rendeu a publicação, em 1897, de O trabalho das glândulas digestivas, que foi agraciado com o Prêmio Nobel de Fisiologia em 1904. Sempre preocupado ao extremo em padronizar as condições experimentais de suas pesquisas, Pavlov tentava usar controles rigorosos e eliminar, ao máximo, as possíveis fontes de erros. A trajetória percorrida por Pavlov até o pleno reconhecimento da comunidade cientíica passou pelo uso de uma técnica soisticada para a época: o chamado “método crônico”. Este consistia na utilização de fístulas na pele e em órgãos internos de cobaias para que o pesquisador pudesse observar diretamente os processos digestivos em atuação in vivo. Até então os estudos em isiologia digestiva eram realizados em animais sacriicados nas diferentes etapas do processo de digestão. Esta técnica possibilitou à isiologia o estudo de novos processos mais complexos, superando assim os limites da isiologia da digestão da época. A partir das investigações acerca das glândulas digestivas, por volta de 1900, Pavlov constatava as diferenças na composição salivar de cães. Estava convencido que isso decorria do tipo de estimulação efetuada na cavidade bucal (no caso, as estimulações mecânica, térmica e química dos receptores sensoriais) e tinha à mão uma explicação tipicamente biológica para o fenômeno. Contudo, observava que os sujeitos, às vezes, salivavam em circunstâncias que não poderiam ser descritas nos termos da teoria do arco-relexo. Os cães salivavam antes de entrarem em contato direto com 171 o alimento (ou seja, a presença do alimento na boca). Para tal bastava que os sujeitos vissem, ouvissem, cheirassem quaisquer elementos do ambiente experimental que se relacionassem de alguma forma com o alimento. Esse não era um processo de estimulação isiológica típico, ou seja, um processo no qual haveria um contato direto entre as propriedades físicas dos elementos e os órgãos receptores sensoriais. Assim, as secreções observadas por Pavlov derivavam de alguma forma de estimulação não isiológica. Eram conhecidas como secreções psíquicas. Nas palavras de Pavlov: Pavlov denominou EXPERIMENTOS PSICO - aqueles nos quais as respostas relexas estavam indiretamente relacionadas aos estímulos. LÓGICOS Nos EXPERIMENTOS PSICOLÓGICOS, são as propriedades dos objetos exteriores, sem importância para a função das glândulas salivares e, inclusive completamente ocasionais, as que excitam o animal. As propriedades luminosas, acústicas e, inclusive, as puramente olfativas dos objetos considerados não exercem, por si mesmas, quando pertencem a outros objetos, nenhuma inluência sobre as glândulas salivares; estas, por sua vez, não mantêm nenhuma relação funcional com essas propriedades (Pavlov, 1984 [1903]: 19). Complementando, Pavlov se mostra ainda mais intrigado com o seu achado: Nos experimentos psicológicos não são somente as propriedades dos objetos sem importância para a função das glândulas que fazem o papel de excitantes, mas também […] tudo que se relaciona com eles de uma ou de outra forma: a vasilha que os contém, os móveis onde estão colocados, os recintos, as pessoas que os conduzem, os ruídos produzidos por estas pessoas […]. Desta maneira […] a relação com os objetos que provocam a excitação das glândulas salivares se faz mais longínqua e tênue. Não resta dúvida de que estamos diante de uma adaptação mais adiantada (Pavlov, 1984 [1903]: 19-20). O termo relexo psíquico foi utilizado por Pavlov para descrever o fenômeno num primeiro momento, chegando ele inclusive a conjecturar acerca das vontades, julgamentos e desejos dos animais utilizados em seus experimentos. Este tipo de abordagem foi logo abandonado em favor de uma alternativa supostamente mais objetiva, que logo veio a constituir a mais famosa contribuição de Pavlov à psicologia, o chamado relexo condicionado. Pavlov delineou a seguinte metodologia em seus estudos sobre os relexos: colocava-se o sujeito experimental (em geral, cães) sobre uma mesa, preso por correias, dentro de uma sala com isolamento acústico e isenta de estimulação visual externa. Através de uma fístula feita na parte inferior do focinho do animal, introcuzia-se um encanamento emborrachado que era ligado às glândulas salivares. Esse encanamento continha uma escala graduada onde 172 era possível aferir com precisão a quantidade de saliva secretada. Através da cânula, toda a saliva era depositada num pequeno recipiente apoiado sobre uma mola sensível. A saliva que caía no recipiente movimentava uma agulha ligada à mola, que registrava o gotejamento num quimógrafo. Os experimentos iniciais consistiam na apresentação ao cão de um pedaço de pão que logo em seguida era dado ao animal para que o comesse. Com a repetição do procedimento, bastava a visão do alimento para que o cão salivasse. O relexo salivar eliciado pelo alimento colocado na boca do animal foi denominado relexo incondicionado, visto que não Os termos REFLEXO CONDICIONADO e reflexo incondicionado foram demandava nenhuma aprendizagem. Era, portanto, utilizados por Pavlov pela primeira inato. Já a secreção salivar obtida com a visão do vez no discurso “A psicologia e a alimento só foi obtida após algumas tentativas. psicopatologia experimentais dos numa reunião do Congresso Logo, o processo demandou uma aprendizagem animais”, Médico Internacional de Madri em 1903 ou condicionamento, fato que levou Pavlov a e publicado nas Nouvelles de l’Academie de Médecine Militaire (1903: 103). denominá-lo REFLEXO CONDICIONADO. Pavlov descobriu que qualquer estímulo não aversivo poderia provocar respostas relexas em seus sujeitos, desde que condicionadas corretamente. Por exemplo: um som (até então um estímulo neutro) é apresentado ao sujeito. Poucos instantes depois (digamos, 5 segundos), é apresentado o alimento (estímulo incondicionado). É óbvio que o sujeito salivará apenas diante do estímulo incondicionado num momento inicial. Repetindo-se os emparelhamentos entre o estímulo neutro e o estímulo incondicionado, o estímulo neutro será capaz de eliciar a salivação. Quando isto ocorre, o estímulo neutro se torna um estímulo condicionado, passando então a produzir respostas condicionadas. O desaio, a partir daí, passou a ser a determinação e a identiicação dos limites dentro dos quais operava o condicionamento, tais como a intensidade e outras propriedades dos estímulos, as relações temporais entre o estímulo original e o novo que adquiria condicionalmente o poder de eliciar a resposta etc. Dessa forma, o que anteriormente era conhecido como vida psíquica passou a ser então considerado um imenso complexo de relexos condicionados, ou seja, de respostas dadas a estímulos condicionados a outros, originais. Pavlov foi fortemente criticado por conceber uma visão de homem ofensiva para a época vigente; foi oicialmente hostilizado por propor um programa de pesquisas que visava à explicação natural e fisiológica de processos psíquicos. Fica claro que os estudos de Pavlov não recebiam apoio governamental. Ele próprio, em sua autobiograia, retrata a maneira hostil com a qual os diretores dos institutos o tratavam, assim como a contrariedade 173 aos seus projetos. Com a revolução de 1917, a situação melhorou bastante. A Revolução Russa levou Lênin ao poder, que via com bons olhos as atividades científicas do fisiólogo. O governo socialista financiou a construção da chamada “CIDADE DA CIÊNCIA”, onde Pavlov aprofundou suas observações e A CIDADE DA CIÊNCIA é o local onde experimentos. Mais de 200 colaboradores trabalharam se situou o novo laboratório de Pavlov, com ele. Segundo Schultz (1975), seu programa de construído na cidade de Koltuchi pesquisas estendeu-se por um período mais longo de a partir de 1921. Essa cidade veio mais tarde a se chamar Pavlovo em tempo e envolveu maior número de pessoas do que homenagem póstuma a Pavlov. qualquer outro esforço de pesquisa desde Wundt. Outro tema importante estudado por Pavlov foi a distinção, na atividade do sistema nervoso, de dois fenômenos centrais: o da excitação e o da inibição. Por excitação, entendia o processo ativo que fundamenta a produção das respostas apresentadas por um organismo. Já a inibição foi deinida como um processo ativo exercendo um efeito oposto ao da excitação e, conseqüentemente, impedindo uma resposta ou diminuindo sua força. Pavlov aplicou a conceituação desses fenômenos à compreensão de temas psicopatológicos, dentre outros. A predileção de Pavlov pela metodologia experimental objetiva icou particularmente evidente nas notórias “quartas-feiras”, que, apesar do nome, foram realizadas nas quartas e sextas-feiras no período de 1921 a 1936, ano do seu falecimento. Essas reuniões destinavam-se às comunicações cientíicas de Pavlov e seus colaboradores, sendo marcadas pela crítica aos idealistas não soviéticos (dentre eles os gestaltistas). Como referência histórica, é lamentável que constem registros dessas reuniões apenas de 1929 a 1936. O trabalho de Pavlov ocasionou mudanças na psicologia moderna ao estabelecer medidas mais exatas, com a utilização de uma unidade mínima de análise; uma terminologia mais precisa para se referir ao que denominava fenômenos psicológicos, como por exemplo estímulo, resposta e ambiente; uma maior clareza na delimitação do objeto de estudo; e, por im, uma metodologia indispensável para a expansão posterior das teorias behavioristas. Neste aspecto, respondia indiretamente às críticas feitas por Imannuel Kant e Augusto Comte às psicologias introspeccionistas. A dedicação de Pavlov à pesquisa sempre foi de suma importância em sua vida. Sua obstinação em alcançar suas metas não foi perturbada por questões práticas, tais como salário, falta de apoio governamental ou condições de vida. Aos 86 anos de idade, Pavlov foi proclamado “Príncipe dos isiologistas de todo o mundo” no XV Congresso Internacional de Fisiologia, mantendo, até o im de sua vida, sua luta contra as explicações metafísicas do comportamento. 174 Vladimir Michailovitch Bechterew e os reflexos motores Assim como Pavlov, Bechterew tentou complementar com dados empíricos e rigor experimental a proposta teórica de Séchenov. Sofreu intensa perseguição do governo czarista. Além da intolerância do Estado russo, teve em comum com Séchenov e Pavlov o doutoramento em São Petersburgo. Em 1881, Bechterew defendeu a tese Resultados da investigação clínica da temperatura corporal em certos tipos de distúrbios psíquicos. Partiu para Leipzig, na Alemanha, onde trabalhou com WILHELM WUNDT. De lá, seguiu para Berlim e depois para Paris, onde estudou com JEAN M. CHARCOT. Ao inalizar essa trajetória, concluiu sua formação em psiquiatria e isiologia retornando à A essa altura, WUNDT coordenava Rússia, onde assumiu a cátedra de distúrbios mentais o primeiro laboratório de psicologia experimental do mundo, onde estudava na Academia Militar de São Petersburgo. a organização ativa dos elementos Apesar de ser um grande escritor e estudioso, constituintes da consciência. com trabalhos publicados em neurologia, anatomia CHARCOT: médico francês (1825-1893) na descrição da histeria. nervosa, psiquiatria, pedagogia e psicologia, a obra pioneiro Freud fez parte da assistência de suas de Bechterew foi ofuscada pelos estudos de Pavlov. demonstrações. Como pontos comuns, ambos defendiam uma proposta objetiva, atacando conceitos mentalistas utilizados para a descrição e explicação de processos psicológicos. A sua formação em psiquiatria fez com que aplicasse o conceito de relexo a problemas clínicos humanos, além de favorecer a sua dedicação a uma grande gama de campos de trabalho. Bechterew publicou trabalhos em psiconeurologia, concentrando-se principalmente na anatomia e isiologia do sistema nervoso central e na relexologia. Considerou inclusive a relexologia como uma via pela qual a personalidade humana poderia ser abordada. Priorizava o estudo objetivo do homem, compreendido como um ser agente em seu ambiente social e no estabelecimento de suas relações com o mundo externo. Trabalhou também no tratamento de doenças nervosas e mentais. Descobriu um grande número de sintomas e relexos bastante signiicativos para o diagnóstico dessas doenças, além de ser pioneiro na descrição de várias patologias e categorias nosológicas, particularmente classiicando as fobias. Por im, é interessante ressaltar outros dois campos de trabalho de Bechterew: o primeiro, com crianças, no qual desenvolveu estudos sobre o desenvolvimento da linguagem e dos processos de atenção. O segundo, com alcoolistas, campo no qual publicou vários trabalhos e fundou uma instituição especial para o tratamento de distúrbios mentais relacionados ao álcool. 175 Os interesses de Bechterew reletiam-se na sua proposta metodológica. Enquanto Pavlov se ateve principalmente às secreções glandulares, Bechterew interessou-se pelos reflexos motores, utilizando para estudá-los uma metodologia livre de intervenções cirúrgicas. Embora os métodos de Pavlov e Bechterew contenham algumas diferenças técnicas, essencialmente suas práticas se equivaliam. Em ambas ocorria a substituição de um estímulo eliciador natural (incondicionado) por um novo estímulo (condicionado). Pessoti (1976) resume a técnica de Bechterew: usava-se uma descarga elétrica na planta do pé como excitante direto e, concomitantemente, aplicavase um estímulo luminoso à retina. De início, nestas condições, era esperada a excitação simultânea da planta do pé e da retina. Após algumas repetições nas quais a cor (da luz aplicada à retina) era sempre a mesma, a excitação elétrica era interrompida e era possível veriicar que a excitação luminosa era, por si só, suiciente para produzir o relexo plantar. Nos termos de Bechterew, ocorrerá um REFLEXO ASSOCIADO, ou seja, o estímulo não REFLEXO ASSOCIADO: a terminologia de Bechterew se mostrou bastante associado luz (estímulo inluenciada pelo empirismo de John Locke. O paradoxo instaurado é evidente utilizar o conceito de associação na sua explicação do condicionamento relexo, incondicionado, nos ao já que Bechterew opunha-se declaradamente às explicações metafísicas, típicas termos de Pavlov) do associacionismo de Locke. passou a eliciar as PRINCÍPIOS GERAIS DA REFLEXOLOGIA HUMANA: Foi um consenso entre Bechterew respostas relexas plan- e seus colaboradores que o termo relexologia estaria mais próximo de um ramo objetivo da ciência do que o termo psicologia. tares, passando a ser, desta forma, um estímulo associado (ou condicionado). A principal obra publicada por Bechterew foi o seu livro Psicologia objetiva de 1907. Em 1932, foi publicada uma terceira edição com o título General Principles of Human Relexology (PRINCÍPIOS GERAIS DA REFLEXOLOGIA HUMANA). Nessa obra ica clara a concordância com Pavlov no que se refere à gênese dos processos psíquicos superiores, classiicados por ambos como combinações de unidades relexas elementares: No momento atual da ciência, deve-se submeter todos os ramos da ciência natural a uma investigação estritamente objetiva, inclusive aquelas debruçadas sobre as mais elevadas e soisticadas atividades do organismo que, recentemente, foram abordadas por análises subjetivistas, obtidas por meio de auto-observações, também estas poderão se valer de uma terminologia estritamente objetiva. (Bechterew, 1973 [1913]: 17, tradução dos autores) É clara, portanto, a ênfase compartilhada com Pavlov na busca de objetividade cientíica e o desejo de Bechterew de salientar o signiicado 176 psicológico das suas experiências. Ambos os pesquisadores estavam convencidos de que haviam descoberto o caminho que levaria a uma explicação materialista de todo o comportamento. Conclusão É importante destacar o fato de que boa parte dos estudos cientíicos de Séchenov, Pavlov e Bechterew foi realizada sob os efeitos de manobras políticas e governamentais que visavam à censura e ao controle das suas produções. Essa situação só mudaria mais tarde, mediante a queda dos czares e a tomada do poder pelos revolucionários socialistas. Lênin apoiou abertamente essas pesquisas que apresentavam proximidade com o materialismo dialético de Karl Marx. A partir desse momento, tais estudos se tornaram modelo para a psicologia pós-revolucionária. O sujeito íntegro, concreto, com uma essência material proveniente da sua história, se consubstanciava nos sujeitos experimentais de Pavlov. O método crônico representava para os revolucionários a abertura de uma porta nas ciências naturais para os ideais marxistas. A partir da ascensão de Stalin e o conseqüente endurecimento do controle ideológico comunista, houve um fortalecimento ainda maior dos estudos relexológicos pavlovianos. O materialismo psicoisiológico da relexologia chegou a ser considerado a “única abordagem psicológica aceitável pelo marxismo-leninismo” (Bottomore e Guimarães, 1988: 308). As idéias de Pavlov traziam a concepção de uma grande plasticidade potencial para o ser humano e sua atividade; idéia que aderia facilmente às pretensões ideológicas do novo regime. Embora outros nomes de importância para a ciência psicológica, como Vigotski, por exemplo, tenham atingido proeminência no período leninista, a “stalinização” do Estado soviético teve dois efeitos imediatos sobre os estudos psicológicos e isiológicos realizados na União Soviética até então: o primeiro deles foi a proibição da circulação de obras da psicologia histórico-cultural de Vigotski; o segundo efeito recaiu sobre os estudos pavlovianos que acabaram sendo incorporados pela ideologia de Stalin. As correspondências e as inexistentes divergências para com o poder político vigente levaram a relexologia a um lugar de destaque dentre as pesquisas cientíicas soviéticas. A partir dela poder-se-ia abordar um sujeito único, determinado por uma história e compreendido sob o crivo de uma ciência objetiva. O extenso trabalho desenvolvido pelos autores referidos neste 177 capítulo foi de importância para o delineamento de algumas das bases para uma visão da subjetividade humana calcada numa constituição essencialmente materialista. Um materialismo que pouco mais tarde seria explicitado na psicologia russa em suas dimensões sociais e históricas, além de fornecer algumas das bases para o estabelecimento e desenvolvimento da psicologia behaviorista norte-americana. Indicações bibliográficas e estéticas Pessoti, Isaías (1976) A pré-história do condicionamento. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo. Essa obra aborda uma grande variedade de antecedentes históricos, cientíicos e ilosóicos do condicionamento relexo e operante de modo claro e objetivo. Pavlov, Ivan Petrovich (1984) Textos escolhidos. São Paulo: Abril Cultural. O livro traz uma boa coletânea da produção de Pavlov, incluindo, além dos textos clássicos de condicionamento, o discurso proferido no recebimento do Prêmio Nobel de Fisiologia de 1904 e exemplos das críticas pavlovianas aos “idealistas”. Referências Bechterew, V. M. (1973) General Principles of Human Relexology. Nova York: Arno Press. Bottomore, T. B. e Guimarães, A. M. (1988). Dicionário do pensamento marxista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar (verbete “Psicologia”, p. 307-309). Keller, F. S. e Schoenfeld, W. N. (1966) Princípios de psicologia. São Paulo: Editora Herder. Pavlov, I. P. (1984) Textos escolhidos. São Paulo: Abril Cultural. Penna, A. G. (1978) Introdução à história da psicologia contemporânea. Rio de Janeiro: Zahar. Pessoti, I. (1976) A pré-história do condicionamento. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo. Schultz, D. P. e Schultz, S.E. (1994) História da psicologia moderna. São Paulo: Cultrix. 6ª ed. revista e ampliada. Ivan Petrovich Pavlov. Nobel Lectures, Physiology or Medicine 1901-1921. Armsterdan: Elsevier Publishing Company. Disponível em http://www.nobel.se/ medicine/ laureates/ 1904/ pavlov-bio.html. Acessado em 24/3/2004. 178 Capítulo 11 O behaviorismo: uma proposta de estudo do comportamento Carlos Renato Xavier Cançado Paulo Guerra Soares Sérgio Dias Cirino Nos Estados Unidos do inal do século XIX, dois pontos de vista se mostravam fortes na psicologia: o funcionalismo de William James (cf. capítulo 7) e o estruturalismo de Edward Titchener (cf. capítulo 5). As principais universidades de psicologia dos Estados Unidos nessa época eram Cornell e Harvard, onde ensinavam, respectivamente, Titchener e James. Apesar de as propostas de ambos serem conceitualmente diferentes, elas se aproximavam em um aspecto: consideravam a consciência como o objeto de estudo da psicologia. Nesse período, os estudos de psicologia nos Estados Unidos se consolidavam cada vez mais. JAMES MARK BALDWIN e William James publicaram diversos artigos importantes. E os avanços não se restringiram apenas a publicações. Em 1888, James McKeen Cattell, da Universidade da Pensilvânia, tornou-se o primeiro professor a lecionar JAMES MARK BALDWIN (1861-1934). Seus principais formalmente a disciplina de psicologia estudos sobre psicologia foram realizados a partir da em território estadunidense. Em 1892, última década do século XIX. Baldwin foi uma igura importante no estudo do desenvolvimento mental de foi criada a American Psychological crianças, tendo realizado ele mesmo, pela primeira Association (APA) e dois anos mais vez na história da psicologia, experimentos utilizando como sujeitos. Também foi um dos primeiros tarde, foi fundado o Psychological Review, crianças psicólogos a aplicar a teoria da evolução de Darwin às um dos principais periódicos sobre suas teorias do desenvolvimento. psicologia do mundo, que continua EDWARD LEE T HORNDIKE (1874-1949) trabalhou, inicialmente, com galinhas, no porão da casa de sendo publicado até os dias atuais. William James. Após um período em Boston, Thorndike Um dos estudiosos mais desta- se dirige, com o auxílio de James Cattell (1860-1944), para a Universidade de Columbia (Nova York), onde cados da época era E DWARD L EE realiza seu doutoramento em 1899, com a famosa THORNDIKE, da Escola Funcionalista dissertação Inteligência animal: um estudo experimental dos de Columbia (cf. capítulo 7), um dos processos associativos nos animais. 179 primeiros psicólogos a ter sua formação inteira realizada nos Estados Unidos. Ele foi um dos pioneiros na realização de experimentos controlados com descrição detalhada das atividades dos animais sem se deter na introspecção como abordagem. Por meio desses experimentos, Thorndike formula a “Lei do Efeito”. Tal proposição airma que das várias respostas emitidas para a mesma situação, aquelas que forem concomitantes ou acompanhadas por satisfação para o animal irão, mantidas as mesmas condições, se tornar mais irmemente conectadas a esta situação, dessa forma, quando essa ocorrer novamente, [as respostas] terão mais chance de ocorrer novamente; aquelas que são concomitantes ou acompanhadas por desconforto para o animal irão, mantidas as mesmas condições, ter as suas conexões com esta situação enfraquecida, dessa forma, quando ela ocorrer novamente, [as respostas] terão menos chances de ocorrer novamente (Thorndike, 1911: 244). Os estudos de Thorndike foram de grande inluência para os pensadores da psicologia, principalmente os estadunidenses, na área de educação. Segundo o autor, “assim como a ciência e a agricultura dependem da química e da botânica, a educação depende da psicologia e da ilosoia” (Thorndike, 1910: 6). Dessa forma, a psicologia buscaria auxiliar os processos educacionais atuando em quatro tópicos principais: objetivos, materiais, meios e métodos. Para investigar tais tópicos, seriam propostas duas linhas de trabalho: descobrir e implementar maneiras de se mensurar as funções intelectuais; e estudar diversas etnias, ambos os sexos, idade, diferenças individuais e outros elementos que facilitassem a compreensão do indivíduo. Apesar de fazer uso de experimentos controlados e de trabalhar com dados empíricos, Thorndike foi criticado, posteriormente, por utilizar termos ainda mentalistas como “satisfação” e “desconforto” em suas explicações. Tais explicações, contudo, eram cada vez menos aceitas por um determinado grupo de autores que buscavam alternativas aos modelos mentalistas e introspeccionistas na psicologia. Essa busca crescente culminou no surgimento de uma nova maneira de se pensar e se trabalhar a psicologia: o BEHAVIORISMO. BEHAVIORISM, em inglês, gerou o termo BEHAVIORISMO, consagrado na língua portuguesa, aparecendo nos dicionários mais recentes publicados no Brasil. Optou-se, no presente capítulo, pela utilização do termo behaviorismo. Em português encontram-se também os termos comportamentalismo e comportamentismo. 180 O “manifesto behaviorista” e os primórdios de uma ciência do comportamento O que precisamos fazer é começar a trabalhar na psicologia fazendo do comportamento, e não da consciência, o ponto objetivo do nosso ataque. Watson, 1913 A frase acima, proferida pelo psicólogo estadunidense JOHN BROADUS WATSON em seu manifesto de 1913, “A psicologia como o behaviorista a vê” (Psychology as the behaviorist views it), exempliica a forma JO H N como esse autor pensa a psicologia. O interesse de B ROADUS WATSON (1878-1958) matriculou-se, em Watson era o estudo do comportamento. Ele 1894, na Universidade de Furman. Em propõe que a psicologia seja uma ciência 1903, Watson se torna a mais jovem pessoa a se doutorar na Universidade de Chicago. empírica e que leve a generalizações Em 1913, publica o artigo “A psicologia como amplas sobre o comportamento humao behaviorista a vê”, que icou conhecido como o “manifesto behaviorista” e no qual delimitava o campo no, mantendo-se a uniformidade do onde a psicologia deveria focar seus estudos. Dois procedimento experimental, para que anos mais tarde, é eleito presidente da Associação Americana de Psicologia (APA). Após alguns os experimentos dos psicólogos possam, desentendimentos com a Universidade Johns assim como os dos físicos e químicos, ser Hopkins, onde lecionava, Watson é afastado e passa a concentrar sua atenção nos replicados em qualquer laboratório. Os estudos de publicidade e propaganexperimentos desenvolvidos nos tradicionais da. laboratórios de psicologia tinham como função detectar processos e conteúdos mentais que estivessem envolvidos na percepção, na memória etc., e não veriicar o modo como o ser humano responde a situações em um ambiente complexo. Para Watson, conceitos como imaginação, julgamento e raciocínio não deveriam ser tomados como objetos de estudo pela ciência da psicologia. Da mesma forma, tais conceitos já vinham servindo de base explicativa por cientistas das tradicionais abordagens de psicologia até então. A primeira fase do trabalho de Watson é marcada por um grande interesse na psicologia animal. Defendendo o uso de sujeitos O conceito de GENERALIZAÇÃO animais no estudo do comportamento, ele enfatizava implica a realização do mesmo procedimento empírico com outros as vantagens de sua utilização em detrimento do uso sujeitos da espécie em questão ou com de sujeitos humanos. O trabalho com animais visa sujeitos de outras espécies. Só quando da replicação dos resultados – pela responder a perguntas (hipóteses) que poderiam realização do mesmo procedimento ser GENERALIZADAS ao comportamento humano. metodológico-experimental ou de análogo – com sujeitos Neste aspecto, a psicologia animal (cf. capítulo 6) se procedimento da mesma espécie (replicação direta) torna o modelo para os estudos do comportamento. ou com sujeitos de outras espécies sistemática) pode-se falar Porém, preocupado em dar ao behaviorismo um valor (replicação em generalização dos resultados. 181 prático, que ultrapassasse as barreiras dos laboratórios acadêmicos, Watson estende seus estudos aos sujeitos humanos, apresentando no livro A psicologia do ponto de vista de um behaviorista, talvez o mais importante de sua carreira, sua proposta de psicologia como uma ciência natural independente. Mais tarde, na década de 1920, o interesse do autor muda para o estudo de crianças. Watson propôs que, ao nascer, a criança conta com apenas três reações básicas: amor, raiva e medo. Por meio dessas reações, o ambiente seria responsável pela formação dos hábitos. Segundo o autor, as pessoas, ao entrarem em contato com o ambiente que as cerca – tanto o ambiente interno (músculos, glândulas etc.) quanto o externo (os objetos do mundo exterior) –, aprendem a responder aos estímulos particulares do mesmo. Quando exposta à mesma situação novamente, a pessoa realiza as mesmas ações de forma mais rápida e com a necessidade de menos movimentos diz-se que a pessoa formou um hábito para lidar com essa situação (Watson, 1924: 200). Em Os cuidados psicológicos com a criança, de 1928 – um livro de estrondoso sucesso –, Watson apresentava um sistema para a criação de ilhos baseado no comportamentalismo. Ele aconselha os pais a incentivarem os ilhos desde cedo a superarem as pequenas diiculdades do ambiente sem a ajuda de adultos. De acordo com o método de criação apresentado por Watson, os pais deveriam dispensar aos ilhos apenas poucas demonstrações de afeto, no sentido de controlar o comportamento da criança. Essa postura, segundo Skinner (1959), levou a que Watson se arrependesse publicamente do livro, pois “ele alertava os pais sobre a demonstração incondicional de afeto”. Durante a realização de suas pesquisas com bebês, envolveu-se com sua assistente, Rosalie Rayner, o que causou um grande escândalo, pois Watson, casado, teve que se divorciar de sua esposa. Pela grande repercussão do caso, foi afastado da Johns Hopkins University, onde então lecionava. Watson destacou-se também na área de publicidade. Após seu afastamento da universidade, foi contratado por uma grande empresa de propaganda, e seus estudos na área de predição e controle do comportamento foram bem recebidos no mundo dos negócios. Para ele, o trabalho da propaganda era simplesmente atingir o medo, a raiva ou o amor e inluenciar, dessa forma, uma necessidade psicológica. Valendo-se disso, o autor iniciou os processos de pesquisa na área da publicidade, airmando que a melhor maneira de alcançar um comprador é conhecê-lo, e a única maneira de fazer isso é pesquisando. Watson torna-se, mais tarde, vice-presidente da empresa que o contratou, trabalhando na área até sua aposentadoria. 182 Mesmo dedicando a maior parte de seu tempo ao estudo da propaganda, Watson não deixou de escrever sobre psicologia. Em seu livro de 1924, Behaviorismo, o autor contextualiza e deine o behaviorismo não como um sistema de psicologia, mas como uma aproximação metodológica aos problemas da mesma. Watson considerava o comportamento como um campo de estudo muito novo, e que concepções como “mente” e “consciência” ainda não haviam sido abolidas de outros campos do saber, como a ilosoia, por exemplo. Além disso, apresenta conceitos como “estímulo” e “resposta”, mostrando como uma resposta pode ser condicionada a um estímulo especíico, que tipos de resposta podemos apresentar, e dedica algumas páginas para tratar dos relexos condicionados, estudados por Ivan P. Pavlov (cf. capítulo 10), que foi um dos maiores inluenciadores de seu trabalho a partir de 1916. Em 1957, foi homenageado pela Associação Americana de Psicologia (APA) como um dos autores mais importantes da história da psicologia moderna. No ano seguinte Watson falece, aos 80 anos. Uma abordagem funcional do comportamento: o conceito de operante Os homens agem sobre o mundo, modiicam-no e, por sua vez, são modiicados pelas conseqüências de suas ações. Skinner, 1957: 15 A presente citação, retirada do livro O comportamento verbal, de BURRHUS FREDERIC SKINNER, faz referência a um ponto central no sistema de pensamento proposto por esse autor: o comportamento operante. B. F. SKINNER (1904-1990) graduou-se em inglês no Hamilton College e decidiu seguir a carreira de escritor. Após algumas tentativas frustradas, a escrita, como atividade proissional, foi deixada de lado. Skinner ingressou no curso de psicologia da Universidade de Harvard em 1928 e doutorou-se em 1931. Permaneceu nessa instituição como pesquisador até 1936, ano em que começou a lecionar psicologia na Universidade de Minnesota. Em 1947, retornou à Harvard como professor. Permaneceu nessa instituição como professor-pesquisador até sua aposentadoria, em 1974. Publicou vários livros, sendo os mais importantes: O comportamento dos organismos (1938), Walden II (1948), Ciência e comportamento humano (1953), O comportamento verbal (1957), Para além da liberdade e da dignidade (1971) e Sobre o behaviorismo (1974). Essas obras revelam a posição teórica do autor, bem como as mudanças pelas quais passou seu pensamento. Até o início da década de 1930, em parte da psicologia estadunidense, a ênfase explicativa dada ao comportamento dos organismos ora era feita com base na concepção mentalista da psicologia – ou seja, fazendo-se referência àquilo que estaria ocorrendo em sua mente –, ora utilizando-se a noção de relexos, esta última proposta por Pavlov e apropriada pela psicologia 183 behaviorista de Watson. Da mesma forma, a Lei do Efeito elaborada por Thorndike inluía na compreensão dos atos do indivíduo, embora tal proposta teórica tenha sido criticada por Watson por referir-se a sentimentos e estados mentais quando da explicação do comportamento. O contexto acadêmico da época foi marcado por uma fase conhecida como a “crise da física clássica”, que alterou a maneira de pensar a ciência em todas as suas formas. O sistema determinista, que atribuía relações estritas entre as causas e os efeitos nos fenômenos naturais, sofria várias críticas desde muito antes da crise. Ernst Mach (1838-1916), físico austríaco, defendia o abandono das explicações de causalidade mecânica utilizadas pela física newtoniana, em favor da adoção de RELAÇÕES FUNCIONAIS entre os fatos. Dessa forma, atribuições mecanicistas de causa RELAÇÕES FUNCIONAIS, no caso do comportamento, são descrições de relações (seja entre aspectos do ambiente e efeito foram gradativamente ou entre o ambiente e o organismo) nas quais um dos eventos (ou variáveis) altera-se em função de modiicações no outro. Não se perdendo espaço para as trata mais de explicações substanciais ou deterministas. A partir de descrições funcionais entre uma análise dos fatos relacionados, busca-se a descrição da relação através de uma função matemática. Chamam-se variável dependente fatos. Um exemplo disso é a aqueles aspectos da relação sobre os quais observa-se um efeito teoria da relatividade geral de de manipulação prévia ou alteração em outra variável – a variável Albert Einstein (1879-1955), independente – a ela relacionada. A Análise do Comportamento tem como variável dependente o próprio comportamento e que, em 1915, formula uma como variáveis independentes quaisquer condições que afetem teoria da gravitação mais o comportamento de um organismo (Skinner, 2000 [1953]; abrangente que a de Newton. Catania, 1999). Influenciado por essa concepção funcional de Mach, Skinner propõe um sistema no qual as explicações dadas para o comportamento do organismo em termos de causa e efeito são substituídas por descrições de relações funcionais entre as alterações ambientais e o comportamento. Esse sistema englobava dois tipos de condicionamento: o que chamou tipo S, ou condicionamento relexo já estudado por Pavlov e Watson, e o que chamou tipo R, no qual se torna uma conseqüência contingente a uma resposta, o que já havia sido trabalhado por Thorndike, como vimos acima. Os resultados de Skinner em suas pesquisas sobre o comportamento reordenavam as considerações feitas sobre esse objeto de estudo até então. O comportamento dos organismos não seria influenciado apenas por alterações ambientais antecedentes, como proposto pela psicologia estímuloresposta, baseada no paradigma relexo. Grande parte do comportamento seria inluenciada por suas conseqüências. Um organismo, ao comportar-se, produz modiicações no ambiente que, por sua vez, alteram a forma como o indivíduo se comporta. É neste sentido que, na perspectiva skinneriana, podese dizer que o organismo produz o meio que o determina. 184 Proposto formalmente no ano de 1937, quando Skinner publica o artigo “Dois tipos de relexo condicionado: uma resposta a Konorski e Miller”, o conceito de OPERANTE marca a distinção em face de uma psicologia proponente de teorias estímulo-resposta diretamente ligadas à “O termo OPERANTE designa uma classe noção de causalidade mecanicista. Considerando de respostas. A característica comum a estas respostas é que elas possuem a o significado dado às ações do organismo pelo propriedade à qual a conseqüência é operante, sobretudo ao fazer do organismo humacontingente. Um operante é, portanto, uma categoria cujas instâncias concretas no, esse conceito proporciona uma ampliação são respostas do organismo, ou seja, do comportamento como objeto de estudo até ocorrências discretas de comportamento. Essas respostas não são deinidas por então não atingida no âmbito da análise do sua forma, mas por sua relação com a comportamento relexo. conseqüência” (de Rose, 1982: 73). A noção de comportamento operante descreve a ação do organismo sobre o meio do qual emergem as conseqüências últimas de seu comportamento. No entanto, quando se trata de sujeitos humanos, deve-se considerar uma forma de comportamento operante distintiva, que age indiretamente sobre o meio, ou seja, que age inicialmente sobre outros seres humanos. Denomina-se esse tipo de operante COMPORTAMENTO VERBAL. O organismo humano, portanto, quando se COMPORTAMENTO VERBAL é o comportamento operante que comporta verbalmente, tem as conseqüências de possui reforço mediacional. Segundo suas ações providas por outros seres humanos, e Catania (1999: 392), comportamento verbal qualquer comportamento que envolva não imediatamente pelo ambiente físico que o “é palavras, independente da modalidade cerca. À medida que o comportamento verbal (falada, escrita, gestual); que é adquirido e começa a ser estudado, aproximadamente a mantido pelas práticas de reforçamento de uma comunidade verbal, isto é, uma comunidade partir de 1934, abre-se a possibilidade de uma de falantes e ouvintes”. Linguagem, segundo análise funcional dos diversos níveis da ação o mesmo autor, seriam as práticas de reforçamento partilhadas pelos membros humana: a linguagem, o pensamento, a moral, de uma comunidade verbal, levando-se em conta as “consistências de vocabulário e a alienação, os propósitos, dentre outros. A de gramática” (1999: 409). complexidade característica a esse tipo de comportamento não justiica uma nova forma de análise, ou seja, os operantes verbais são analisados em termos de sua relação com o ambiente, sobretudo sua relação com o ambiente humano, social. Desde a proposta watsoniana, que relacionava a linguagem a complexas cadeias de respondentes, os psicólogos behavioristas vêm tentando abordar o fenômeno lingüístico, cada qual baseando-se em concepções especíicas do que seria o comportamento e, portanto, a linguagem e outros fenômenos relacionados (como o pensamento). Ressalta-se que, para Skinner, a linguagem é um comportamento operante e, portanto, é selecionada e mantida pelo contato do organismo com contingências de reforçamento especíicas. 185 Durante a década de 1970 e início dos anos 1980, Skinner esboça mais claramente seu interesse nas inluências biológicas que atuam sobre o comportamento. A obra Origem das espécies, de Charles Darwin (cf. capítulo 6), é utilizada por ele para traçar um paralelo entre os princípios da seleção natural e o comportamento dos organismos. Skinner amplia, assim, a visão de Mach sobre as relações funcionais entre fatos tomando como modelo de causalidade a proposta darwiniana de seleção por conseqüências. O fenômeno da seleção natural, desenvolvido por Darwin para a explicação da evolução das espécies, aplica-se também à análise do comportamento do indivíduo, bem como ao estudo do processo de evolução das culturas. Assim como características genéticas levam a mutações isiológicas que podem ser selecionadas conforme suas conseqüências, isto é, segundo proporcionem maior adaptação do organismo a determinado ambiente, os comportamentos são selecionados pelo processo de REFORÇAMENTO, ou seja, são determinados pelas conseqüências que forem O termo “REFORÇAMENTO” designa contingentes às respostas dadas pelo organismo. a operação comportamental de conseqüenciação às respostas emitidas Segundo Skinner, o comportamento humano é por um organismo e que tem, como selecionado não apenas para atender a necessidades resultado, um aumento da freqüência de sobrevivência imediata – sendo esta apenas um de respostas da mesma classe. tipo de conseqüência seletiva – como também para se adaptar a situações futuras. Os diversos tipos de ambientes com os quais nos deparamos ao longo da vida exigiriam que nosso comportamento CONTINGÊNCIAS também esteja em constante mutação, fazendo com que DE REFORÇAMENTO são as cada pessoa, entrando em contato com CONTINGÊNCIAS condições nas quais uma resposta especíicas, se torne única, comportando-se de forma produz uma conseqüência (Catania, 1999: 394). distinta das outras pessoas. Duas pessoas, mesmo que possuam idêntico dote genético, não teriam a mesma história de relação com o ambiente, simplesmente pelo fato de ocuparem locais diferentes no ESPAÇO. “Uma pessoa […] é um LÓCUS, Skinner deine, dessa forma, três níveis um ponto no qual muitas condições genéticas e ambientais se agrupam em um de atuação das contingências: o ilogenético, efeito conjunto. Como tal, ela permanece o ontogenético e o cultural. O comportamento inquestionavelmente única. Ninguém (a menos que ela tenha um gêmeo idêntico) tem humano é fruto da ação integrada e inseparável seu dote genético e, sem exceção, ninguém destes três níveis. O primeiro refere-se à seleção tem sua história pessoal” (Skinner, 1974: de comportamentos característicos da espécie 168). ao longo do processo evolutivo da mesma. O segundo diz respeito à história de reforçamento, ou seja, é relativo aos comportamentos selecionados ao longo da vida de um indivíduo, considerando186 se a interação deste com seu ambiente. O terceiro, o nível cultural, é relativo aos comportamentos selecionados pela interação do organismo humano com seu ambiente social especíico, caracterizado por determinadas práticas sociais (Skinner, 1981). Algo de extrema importância a ser ressaltado é que a susceptibilidade do organismo às conseqüências do comportamento – ou seja, a capacidade de ser inluenciado pelas conseqüências de suas ações –, é uma característica que foi selecionada ilogeneticamente. Segundo Skinner, a humanidade deu um grande passo em termos sociais quando a musculatura vocal passou a icar sob controle operante, isto é, quando as emissões vocais passaram a ser inluenciadas por suas conseqüências. A emergência do comportamento verbal teria permitido que a cooperação entre os seres humanos fosse mais bem-sucedida. Da mesma forma, as pessoas passaram a aprender a partir daquilo que outros haviam aprendido, por exemplo, seguindo REGRAS REGRAS são descrições de contingências de socialmente estabelecidas e conselhos dados por reforçamento, i.e., são enunciados acerca de nas quais determinadas respostas outrem. O alfabeto e a escrita desempenham um condições produzem conseqüências. Neste sentido, num papel preponderante nesse aspecto, uma vez que esporte como, por exemplo, o futebol, há uma que especiica que se o jogador de um possibilitam a disseminação de determinados regra time deixar que a bola ultrapasse a linha de avanços obtidos por uma comunidade humana de marcação do campo, a posse de bola passa por diversos locais e, sobretudo, ao longo do a ser do time adversário. tempo. Para o behaviorismo de Skinner, comportar-se verbalmente, por sua vez, permite outro passo importante, que é o processo de evolução cultural. Uma maneira diferente de resolver determinado problema, como, por exemplo, cultivar grãos, desenvolver um novo método de navegação ou mesmo escrever um poema, é selecionada por suas conseqüências: o cultivo de determinado tipo de grãos, um melhor barco e um poema escrito. Tais processos surgiriam em níveis individuais e poderiam ser passados a outros seres humanos. Contribuirão para a evolução da cultura aqueles desenvolvimentos de determinado grupo que se mostrarem úteis na solução de QUESTÕES SOCIAIS. Q UESTÕES SOCIAIS. “É o A análise do comportamento, denominação dada no grupo e não à forma de ciência proposta por Skinner, considera o as efeito conseqüências reforçacomportamento dos organismos como sendo fruto doras em relação aos indivíduos, é responsável pela evolução desses três níveis de atuação das contingências que, quecultural” (Skinner, B. F. por sua vez, são indissociáveis. Os seres humanos são Selection by Consequences. 1981). parte de uma espécie e possuem uma relação única com seu ambiente, que é social e também histórica. Filogeneticamente 187 seria selecionado um organismo da espécie humana enquanto a ontogenia e a cultura selecionariam, respectivamente, uma pessoa e um eu. Os conceitos de “pessoa” e “eu” não descrevem o indivíduo como portador ou possuidor de uma personalidade, enquanto conceito explicativo ou estrutura determinante de seus comportamentos. Um organismo, uma pessoa ou um eu são denominações que descrevem os comportamentos do organismo procurando fazer referência, respectivamente, às contingências ilogenéticas, ontogenéticas ou culturais nas quais a explicação deve ser buscada. Aspectos filosóficos da análise do comportamento O behaviorismo, segundo Skinner, não é a ciência do comportamento humano, mas sua ilosoia. Diferentemente do behaviorismo watsoniano, o BEHAVIORISMO RADICAL rejeita o critério A designação BEHAVIORISMO RADICAL foi de consenso público – isto é, consenso cunhada por Skinner para se referir à ilosoia da análise experimental do comportamento. O termo entre dois ou mais observadores acerca “radical” vem de raiz, no sentido em que designaria de um fenômeno – como central na uma proposta que se atém ao estudo do comportamento do próprio comportamento, sem o recurso definição de um objeto de estudo. Da a partir explicativo a qualquer outra entidade. mesma forma, não ignora a capacidade de auto-observação, mas questiona a natureza daquilo que é observado, em suma, daquilo que é conhecido. Segundo Skinner, a introspecção proposta pelas tradicionais escolas de pensamento psicológico enfatiza apenas o interno, o mental. Ao contrário, o behaviorismo metodológico, rejeitando o estudo dos eventos mentais – pois não haveria sobre eles consenso entre observadores –, enfatiza a análise dos eventos externos determinantes do comportamento. O behaviorismo radical estabeleceria um “O behaviorismo radical não nega equilíbrio, na medida em que admite a CAPACIDADE a possibilidade da AUTO-OBSERVAÇÃO ou do autoconhecimento ou sua possível DE AUTO - OBSERVAÇÃO e que foca também os utilidade, mas questiona a natureza daquilo que é sentido e observado. Restaura a determinantes ambientais do comportamento. introspecção, mas não aquilo que os ilósofos Aqueles comportamentos emitidos de maneira e os psicólogos introspectivos acreditavam ‘esperar’ (spect), e suscita o problema de inobservável não são tomados como especiais quanto de nosso corpo podemos realmente apenas porque ocorrem no interior do observar” (Skinner, 2000 [1974]: 19). organismo. Assim como comportamentos diretamente observáveis, os eventos privados são também comportamentos, são frutos da interação de um organismo com seu ambiente. O fato de ocorrerem no interior 188 do organismo não lhes atribui uma natureza especial (seja uma natureza não física, seja uma natureza explicativa de comportamentos públicos). Como ressaltado por Skinner, o que observamos é nosso próprio organismo, nosso comportamento. A proposta behaviorista radical parte do estudo do comportamento tomando-se como objeto o próprio comportamento, isto é, sem buscar referências explicativas de outra natureza, sejam elas mentais ou isiológicas. As conseqüências da aplicação dos princípios da análise do comportamento aos assuntos humanos aproximaram Skinner de relexões morais e ilosóicas. O critério de cientiicidade adotado pelo behaviorismo radical passa a ser o de utilidade do conhecimento produzido. Dessa maneira, proposições acerca do comportamento humano seriam relevantes na medida em que se mostrassem úteis na solução de problemas enfrentados pela comunidade humana. Nas obras do inal de sua carreira, Skinner enfatiza a discussão de aspectos ilosóicos de sua posição. PARA ALÉM DA LIBERDADE E DA DIGNIDADE, de 1971, e Sobre o behaviorismo, de 1974, são exemplos Optou-se pelo presente título, dado à de livros que buscam esclarecer dúvidas sobre tradução portuguesa da obra de 1971, as questões filosóficas apresentadas pelo Beyond Freedom and Dignity, em detrimento do da tradução brasileira, O mito da liberdade. behaviorista. Em relação ao primeiro, o autor Acreditamos que PARA ALÉM DA LIBERDADE E elabora uma discussão sobre os avanços do DA DIGNIDADE expressa mais fidedignamente a idéia contida no título original. estudo do comportamento humano, desde a época da Grécia Antiga, e faz uma relexão comportamental sobre temas como dignidade, liberdade e responsabilidade, aproximando seu ponto de vista de temas cotidianos. De acordo com sua visão, a liberdade seria “uma questão de contingências de reforço, e não de sentimentos que as contingências geram” (Skinner, 1977: 34). Em Sobre o behaviorismo, trata de elucidar as principais dúvidas e erros teóricos oriundos da má interpretação de suas idéias, mostrando as interpretações behavioristas radicais sobre diversos temas, em oposição a explicações mentalistas acerca desses temas. Contingências especiais de reforçamento proporcionaram a evolução dessa forma especíica de conhecimento, assim como de vários tipos de conhecimentos existentes sobre o comportamento humano. Deve-se procurar entender o behaviorismo, bem como qualquer outra forma de saber, como um processo que evoluiu em um meio histórico-cultural especíico e que está sujeito a ser selecionado pela cultura, na medida em que se mostre útil para a compreensão dos seres humanos. 189 Desdobramentos da análise do comportamento no Brasil O surgimento dos primeiros cursos de psicologia no Brasil, nos anos 1950, aponta para a necessidade de atualização exigida por parte de proissionais de instituições de ensino, sobretudo de ensino superior, o que levou os docentes desses novos cursos a entrar em contato com tendências recentes do pensamento psicológico, bem como a buscar, com outros proissionais da área, seja em contexto brasileiro ou internacional, apoio para o ensino e para o desenvolvimento da psicologia em âmbito nacional. Assim, no início da década de 1960, mais precisamente no primeiro semestre de 1961, a convite do diretor da Faculdade de Filosoia, Ciências e Letras da USP, professor Paulo Sawaya, chega ao Brasil, como professor visitante, o psicólogo estadunidense FRED SIMMONS KELLER. Dar-se ia, nesse FRED SIMMONS KELLER (1899-1996). Graduou-se no Tufts College e estudou Psicologia em Harvard, universidade na qual permaneceu até 1931. Tornou-se professor de Psicologia da Universidade de Columbia, instituição na qual permaneceu até sua aposentadoria, em 1964. Foi também professor visitante em duas universidades brasileiras – Universidade de São Paulo e Universidade de Brasília – respectivamente nos anos de 1961 e 1964. Idealizou o Sistema Personalizado de Instrução (PSI), método de ensino criado a partir de estudos em análise experimental do comportamento. É autor do livro Princípios de Psicologia (1950, co-autoria de W. N. Shoenfeld) e de vários outros artigos cientíicos. Keller esteve no Brasil como professor visitante no período de 1961-1962. Retorna ao país em 1964, como professor da Universidade de Brasília, onde permanece por apenas dois meses. Nos anos de 1972 e 1978 e também nas décadas de 1980 e 1990, volta ao país para participar de congressos cientíicos. contexto, o primeiro contato efetivo de proissionais e estudantes em uma instituição de ensino brasileira com a análise do comportamento. Antes de realizar sua primeira viagem ao Brasil, Keller trabalhava como professor na Universidade de Columbia, nos EUA. Suas pesquisas, bem como sua atuação proissional, colaboraram para o estabelecimento e para a divulgação da análise do comportamento. Inicialmente, as contingências de ensino estabelecidas por Keller – duas disciplinas optativas – atraíram alguns poucos alunos e também professores. Dentre esses destacam-se Carolina Martuscelli Bori, Rodolpho Azzi, ambos docentes da USP, e Maria Amélia Matos, nessa época estudante de graduação do curso de psicologia. As aulas teóricas e os exercícios práticos, esses últimos realizados num laboratório recém-construído por Keller e Rodolpho Azzi, procuravam instruir os alunos acerca das bases conceituais da análise comportamental para que, em curso posterior, fossem tratados autores como Pavlov, Watson e Skinner. Em 1962, Keller retorna aos EUA. Seus alunos da Universidade de São Paulo estabeleceriam novas contingências a partir daquelas anteriormente 190 propostas, direcionadas ao ensino e à pesquisa em solo brasileiro. Novos projetos de pesquisa e propostas de ensino baseados nos preceitos e metodologia comportamentais começaram a ser elaborados nesse período. A falta de uma sólida preparação teórica, bem como de materiais necessários ao andamento dos projetos propostos foram barreiras difíceis de serem transpostas, mas não impossíveis. Em relação a esse aspecto, é muito cara a contribuição não só à analise do comportamento, mas à psicologia como um todo da professora CAROLINA M. BORI. Ao elaborar projetos para CAROLINA MARTUSCELLI BORI (1924-2004). Em 1947, o financiamento de pesquisa junto formou-se em Pedagogia pela Faculdade de Filosofia a órgãos governamentais ligados Ciências e Letras da Universidade de São Paulo. No seguinte é contratada como professora assistente de à educação, para a construção de ano Psicologia na USP, universidade na qual permaneceu como materiais para o ensino e também docente até sua aposentadoria, em 1994. Seu contato com a do comportamento deu-se, efetivamente, em 1961, para a pesquisa em laboratórios, e análise quando foi aluna de F. S. Keller. Carolina M. Bori, em mais para o estabelecimento de um acervo de 50 anos de trabalho, dedicou-se à ciência como um todo, bibliográfico consistente, ela dá na busca de sua divulgação e de seu progresso. Orientou aproximadamente 100 teses de mestrado e doutorado e subsídios para o estabelecimento desse destacou-se como presidente de importantes sociedades campo de saber especíico, assim como cientíicas brasileiras como a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (1986-1989) e a Sociedade Brasileira para a psicologia de uma forma geral. de Psicologia (1992-1993). Carolina Bori propôs uma Posteriormente, à frente de importantes ampliação do Sistema Personalizado de Instrução, elaborado por F. S. Keller: A Análise de Contingências instituições cientíicas como a CAPES em Programação de Ensino. (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) e a SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência), Carolina Bori colabora para a fundação de diversos cursos de graduação em psicologia e também cursos de pós-graduação relacionados à análise do comportamento. A partir da década de 1970, passam a ser estabelecidos diversos cursos de pós-graduação no país, com forte ênfase em análise do comportamento, por exemplo, na USP, na Universidade de Brasília, na Universidade Federal do Pará, na Universidade Federal de São Carlos e, mais recentemente, na PUC-SP. Analistas do comportamento passam a se organizar em sociedades cientíicas e a produzir publicações dirigidas tanto à área quanto ao público em geral. Temas de pesquisa inicialmente tratados, como esquemas de reforçamento e controle aversivo, abrem caminho para estudos acerca de toxicologia, bem como a respeito de educação, tema desenvolvido por Skinner em Tecnologia do ensino. O SISTEMA PERSONALIZADO DE ENSINO (PSI, da sigla original em inglês) idealizado por Keller toma no Brasil uma nova 191 direção, proposta por Carolina M. Bori: A Análise O SISTEMA PERSONALIZADO de Contingências em Programação de Ensino. DE ENSINO propõe uma aplicação de Segundo essa visão, deveriam ser analisados preceitos da análise do comportamento ao campo da educação. A proposta de Keller os conhecimentos e habilidades necessários foca a análise dos temas e dos textos a serem para o exercício de determinada atividade e ensinados, bem como a maneira pela qual esse processo seria avaliado. o conseqüente planejamento de contingências de ensino que proporcionassem a aquisição dos mesmos. Tal vertente de pesquisa inluenciou diversos analistas do comportamento, bem como proissionais voltados para o ensino de diversas áreas, como a matemática, a química, a engenharia e a arquitetura, em várias capitais do país. Ao longo do tempo, áreas como o comportamento verbal, a variabilidade comportamental, a equivalência de estímulos, dentre outras, passaram a ser estudadas no Brasil. As atividades de ensino e de atuação clínica também cresceram entre os analistas do comportamento. Atualmente, grande parte dos analistas do comportamento brasileiros reúne-se todo ano nos encontros da ABPMC (Associação Brasileira de Psicoterapia e Medicina Comportamental) e nas reuniões da SPB (Sociedade Brasileira de Psicologia). Artigos sobre a análise do comportamento são publicados nas mais diversas revistas cientíicas do país e proissionais brasileiros vêm colaborando para revistas internacionais especializadas em análise do comportamento. Indicações estéticas e bibliográficas Drawing hands, litogravura (28,5 x 34 cm) de M. C. Escher, 1948. Raciocinar sobre a relação organismo-ambiente, tomando um desses pontos em separado consiste, de maneira geral, em uma abstração. Essa interação ocorre como num luxo, e a abstração é feita no sentido de simpliicar uma situação, com o intuito de descrevê-la. Uma alteração feita por um organismo em seu ambiente leva a uma modiicação dessa ação, processo que é contínuo e apenas interrompido com a morte do organismo que se comporta. A litogravura de Escher apresenta duas mãos que se desenham simultaneamente em uma folha de papel, presa a uma prancheta por quatro tachas. O produto da ação de uma das mãos – isto é, o desenho da outra mão – pode vir a repercutir nessa ação, uma vez que a mão alterada desenhará aquela que a produziu. É interessante também notar que os desenhos estão, de 192 certa maneira, inacabados. Seguindo por este caminho, poder-se-ia pensar que essas duas mãos continuariam a se desenhar ininitamente ou que, subitamente parariam, como quando o resultado se mostrasse ideal. Em uma analogia, o comportar-se de um organismo dá-se ininitamente no curso de uma vida. O comportamento é matéria não acabada, estando sempre por ser trabalhada – no sentido de que se modiica, evolui, nessa interação organismo-ambiente. O desenho pronto, acabado, coincidiria com a situação na qual o organismo já não mais se comportaria, situação esta em que deixaria de viver. Baum, W. M. (1999) Compreender o behaviorismo – ciência, comportamento e cultura. Porto Alegre: Artes Médicas. Catania, A. C. (1999) Aprendizagem: comportamento, linguagem e cognição. Porto Alegre: Artmed. Skinner, B. F. (1977) O mito da liberdade. Rio de Janeiro: Bloch. (1978 [1957]) O comportamento verbal. São Paulo: Editora Cultrix / Editora da Universidade de São Paulo. (2000 [1953]) Ciência e comportamento humano. São Paulo: Martins Fontes. Referências bibliográficas Abreu-Rodrigues, J.; Ribeiro, M. R. (org.) (2005) Análise do comportamento: pesquisa, teoria e aplicação. São Paulo: Artmed. Catania, A. C. (1999) Aprendizagem: comportamento, linguagem e cognição. Porto Alegre: Artmed. Escher, M. C. (2002) M. C. Escher gravuras e desenhos. Taschen. Kerbauy, R. R. (1983) Keller: o cientista ensina. In: Kerbauy, R. R, Fernandes, F. Keller. São Paulo: Ática. Matos, M. A. (1998) Carolina Bori: a psicologia brasileira como missão. São Paulo: Psicologia USP, 9 (1): 67-70. (1998) Contingências para a análise comportamental no Brasil. São Paulo: Psicologia USP, 9 (1): 89-100. (2001) Com o que o behaviorismo radical trabalha. In: Banaco, R. A. (org.) Sobre comportamento e cognição (p. 45-53). Santo André: Esetec. Micheletto, N. (2001) Bases ilosóicas do behaviorismo radical. In: Banaco, R. A. (org.) Sobre comportamento e cognição (p. 29-44). Santo André: Esetec. Schultz, D. P. e Schultz, S. E. (2001) História da psicologia moderna. São Paulo: Cultrix. Skinner, B. F. (1977) O mito da liberdade. Rio de Janeiro: Edições Bloch. (1974) About Behaviorism. Nova York: Knopf. (1976) Particulars of My Life. Nova York: Knopf. (1978 [1957]) O comportamento verbal. 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Falcone “A dúvida não é um estado agradável, mas a certeza é absurda.” Voltaire O avanço das ciências físicas e biológicas ocorrido no século XIX, cujas características marcantes foram a experimentação e os métodos objetivos de investigação, contribuiu fortemente para o surgimento das bases empíricas das abordagens cognitivo-comportamentais. Nessa época, a física se desenvolvia com o avanço de teorias que permitiam maior compreensão da matéria. A biologia, por sua vez, estava progredindo na descoberta da etiologia de determinadas doenças orgânicas e do tratamento destas. Juntando-se a esses fatos, os estudos de Darwin, que defendiam uma continuidade entre a espécie humana e a dos outros animais, incentivaram a investigação do comportamento animal para o entendimento do comportamento humano (Kazdin, 1983). Os estudos com condicionamento se originaram primeiramente entre os investigadores russos, que começaram a aplicar os métodos objetivos da isiologia aos problemas da psicologia. Dentre estes, o mais conhecido foi Ivan P. Pavlov (1849-1936), que realizou várias experiências com cães, a partir das quais deu origem à teoria dos relexos condicionados. O mesmo modelo de condicionamento também foi realizado para eliciar respostas condicionadas de medo, onde uma luz vermelha, após alguns emparelhamentos com um estímulo incondicionado (choque elétrico), transformava-se em um estímulo condicionado, provocando respostas de medo nos animais. A partir desses achados, o paradigma de condicionamento clássico ou pavloviano passou a ter implicações para a compreensão de fenômenos psicopatológicos. 195 Os estudos dos investigadores russos passaram a influenciar os pesquisadores norte-americanos e, no inal do século XIX, surgiu a psicologia experimental animal, que forneceu as bases para um outro modelo de condicionamento, conhecido como condicionamento operante, desenvolvido a partir de observações feitas por Edward L. Thorndike. Ao realizar uma série de experimentos com gatos, Thorndike encontrou que, após emitirem várias respostas, esses animais passavam a manifestar apenas uma: aquela que era seguida da possibilidade de acesso ao alimento. Esse fenômeno icou conhecido como a “Lei do Efeito”, segundo a qual, dentre as várias respostas emitidas em uma mesma situação, aquela que é seguida de satisfação do desejo do animal será a mais fortemente conectada com a situação (Baldwin e Baldwin, 1998). Burrhus Frederic Skinner (1904-1990) ampliou os estudos de Thorndike deinindo o reforço como um estímulo que aumenta a probabilidade de ocorrência de uma resposta (Skinner, 1981). Diferentemente do modelo pavloviano, onde o reforço (estímulo incondicionado) está associado a um estímulo neutro, eliciando uma resposta condicionada, o reforço no condicionamento operante é contingente a uma resposta dada. Ele só ocorre após o comportamento se manifestar. A psicologia experimental animal, surgida no inal do século XIX, deu origem ao behaviorismo, que representou uma revolução metodológica, na medida em que se propunha a estabelecer as bases cientíicas da psicologia. Os behaviorismos metafísico, radical e metodológico John Broadus Watson (1878-1958), ao fundar o behaviorismo, exerceu grande importância na clariicação e formalização da ilosoia desta orientação. Embora seja reconhecido na literatura como representante do behaviorismo metodológico, sua rejeição ao conceito de “mente” fez com que o seu nome estivesse principalmente associado ao behaviorismo metafísico (Mahoney, 1974). O behaviorismo metafísico negava a existência da “mente” e dos “estados mentais”. Aceitar o conceito de “mente” implicaria aceitar uma teoria dualista, onde uma entidade espiritual (mente) inluenciaria uma física (corpo) e vice-versa. Além disso, o mundo privado, por não ser diretamente observável, não poderia ser um foco de estudo. Assim, para não aderir ao dualismo mente-corpo, Watson adotou uma posição estrita de monismo 196 materialista onde todo comportamento humano, incluindo o pensamento, é o resultado de secreções glandulares e movimentos musculares. O behaviorismo metafísico, por ser considerado ortodoxo até pelos behavioristas, não sobreviveu. Em vez deste, manteve-se o behaviorismo radical, representado por Skinner, que enfatizava a importância das relações empíricas entre os acontecimentos ambientais e o comportamento. Sua proposta era descrever essas relações e não gerar teorias e modelos de comportamento. Embora reconhecendo que os enunciados empíricos nunca estão totalmente livres de teoria, Skinner rejeitava aquelas teorias que expressavam os achados empíricos em termos não conirmados pelos mesmos métodos de observação utilizados para obtê-los. Assim, para se entender o comportamento não se deveria recorrer às ciências naturais tais como a isiologia, nem a noções teóricas abstratas dentro da psicologia. A teoria, neste sentido, seria algo construído para compensar a inadequação dos dados, ou o controle imperfeito ou insuiciente sobre o objeto de estudo. Em outras palavras, a teoria representava para Skinner uma conseqüência da falta de compreensão dos fenômenos estudados. A rejeição de Skinner era dirigida principalmente às teorias que utilizavam variáveis intervenientes e construtos hipotéticos localizados no organismo. Assim, Skinner criticava os teóricos que propunham uma interpretação da aprendizagem em termos de E-O-R, em que O se referia a aspectos do organismo, em vez de componentes do estímulo e da resposta (E-R) bem fundamentados (Kazdin, 1983), tema a que voltaremos mais à frente. O behaviorismo radical, representado por Skinner, manteve a posição de monismo materialista ao não aceitar o conceito de “mente”, porém admitiu o estudo cientíico dos fenômenos privados. Assim, “[…] pensamentos não são substancialmente diferentes em virtude de sua natureza privada. Eles podem ter propriedades especiais porque são verbais, mas ainda são comportamentos” (Hayes, 1987: 330). Com base nesta proposição, o behaviorismo radical encontrou uma saída para estudar as reações humanas fazendo uma distinção entre público e privado, em vez de físico e mental, considerando este último como falso e dualista. Por rejeitar os processos mentais como recursos coniáveis de estudo na mediação do comportamento, o behaviorismo radical foi chamado de não mediacional (Mahoney, 1974). O behaviorismo metodológico, ao contrário do behaviorismo radical, não estava preocupado com os impasses relacionados à aceitação da existência da mente. Michael Mahoney (1974) airma que ilósofos como Gilbert Ryle (1900-1976) já haviam convencido muitos cientistas comportamentais de que 197 o problema corpo-mente era apenas uma questão semântica. Desse modo, o behaviorismo metodológico estava mais preocupado com o método cientíico, que incluía a identiicação de variáveis independentes e dependentes, além da inferência do que existe dentro do organismo (variáveis intervenientes). Os modelos de condicionamento clássico de Pavlov, além do condicionamento por contigüidade de Edwin R. Guthrie (1886-1959), do comportamentalismo propositivo de Edward C. Tolman (1896-1961) e da teoria hipotético-dedutiva do comportamento de Clark L. Hull (1884-1952), constituem exemplos que caracterizam o behaviorismo metodológico, uma vez que estes pressupõem um estado de consciência ou processamento cognitivo, mediando a aprendizagem. Os investigadores russos já haviam reconhecido que o condicionamento clássico em seres humanos envolve muito mais do que o simples estabelecimento de vínculos estímulo-resposta. O modelo de condicionamento pavloviano, por exemplo, inclui a linguagem como um “segundo sistema de sinais”, que fornece ao ser humano, de modo único, uma fonte ininita de estímulos condicionados e a capacidade de aprendizagem complexa. Mahoney (1974) cita vários experimentos realizados por esses investigadores demonstrando que as palavras podem não só estimular a ativação diretamente como também podem se transformar em elementos em cadeias de condicionamento de ordem mais elevada. O autor airma: O papel crítico dos estímulos verbal e imaginário no comportamento humano é dramaticamente aumentado pelo fato dos seres humanos serem criaturas auto-estimuladoras. Logo após adquirir as habilidades de linguagem na infância, os seres humanos iniciam uma vida onde a fala coberta e encoberta dirigida a si mesmo é raramente interrompida. Os monólogos audíveis auto-instrucionais da criança são gradualmente substituídos por solilóquios inaudíveis que continuam a dirigir e inluenciar o comportamento. Esta “internalização” gradual do comportamento da linguagem pode ser um desenvolvimento recente nas espécies (Mahoney, 1974: 40). As especulações de Pavlov sobre a linguagem constituíram a base para o desenvolvimento do interesse dirigido ao estudo dos processos mentais complexos inerentes à aprendizagem humana. A insuiciência do modelo E-R obrigou os investigadores à necessidade de incluir variáveis intervenientes, fenômenos privados e processos conscientes em geral no estudo do comportamento. Tal necessidade, segundo Kazdin, “já havia sido evidente desde os primórdios do comportamentalismo e da teoria estímuloresposta” (p. 253). Guthrie, que iniciou o seu trabalho dentro da tradição E-R, 198 admitiu que a especiicação dos estímulos não era suiciente por si só para explicar o comportamento. Esse autor concluiu que o estudo dos processos de aprendizagem nos seres humanos necessitava explicar como o indivíduo percebia os estímulos e que signiicado tinha essa percepção. Tolman, por sua vez, propunha que os organismos desenvolvem cognições sobre diferentes estímulos e que a formação dessas cognições constituía a aprendizagem. O organismo aprendia estratégias de resposta e percebia relações gerais em seu ambiente. Assim, para que os animais aprendessem a solucionar um labirinto, desenvolviam mapas cognitivos dos estímulos ambientais e essas cognições eram responsáveis pelo comportamento (Kazdin, 1983). A despeito das diferenças entre os behaviorismos radical e metodológico, a integração dos paradigmas de condicionamento pavloviano e skinneriano foi proposta por Hobart Mowrer (1928-1982), que descreveu um modelo de dois fatores para explicar o medo e o comportamento de evitação. A aquisição do medo aconteceria por meio do condicionamento clássico e, por ser o medo um estímulo aversivo, o animal aprende a reduzi-lo evitando os estímulos condicionados (reforçamento negativo). Primeiras aplicações dos princípios de condicionamento Condicionamento pavloviano Dentre as primeiras tentativas de utilização dos princípios de condicionamento para os problemas de ansiedade, a mais famosa refere-se aos procedimentos de condicionamento realizados por Watson e Rayner, em 1920, com o “Pequeno Albert”, um bebê de 11 meses. O objetivo desse experimento era demonstrar que as reações fóbicas eram aprendidas por meio de condicionamento. Albert era uma criança saudável que, ao ser colocada diante de um rato branco, não manifestou nenhuma reação de medo. Entretanto, após algumas sessões de condicionamento em que o aparecimento de um rato icava associado a um barulho forte, Albert começou a manifestar medo do rato branco e de outros objetos semelhantes ao animal, tais como algodão, casaco de pele etc. Posteriormente, Mary Cover Jones (1896-1987), em 1924, começou a aplicar os princípios de extinção para ajudar crianças com fobia a perder o medo. Dois métodos demonstraram ser eicazes. O primeiro foi realizado a partir da associação do objeto temido com uma resposta agradável (ex., 199 comer uma barra de chocolate); o segundo consistiu na apresentação do estímulo fóbico na presença de outras crianças que não manifestavam nenhum temor. Em 1935, Hobart Mowrer e Willie Mowrer desenvolveram um tratamento para a enurese noturna utilizando os princípios de condicionamento clássico em 30 crianças enuréticas com idades entre três e 13 anos. Partindo do princípio de que o controle da micção corresponde a uma reação aprendida e que as crianças com enurese noturna apresentam uma falha na resposta aos sinais (distensão da bexiga) que precedem à micção, os Mowrer aplicaram um método de tratamento baseado no condicionamento pavloviano, onde a distensão da bexiga corresponde ao estímulo condicionado ao controle do esfíncter e à inibição da micção. Um ruído forte servia como estímulo incondicionado e o despertar (acompanhado da contração do esfíncter) era a resposta incondicionada. Para a realização do experimento foi construído um colchão contendo em seu interior ios elétricos que se conectavam ao som de uma campainha. Quando a criança, dormindo, começava a urinar, esta molhava o colchão, ativando o circuito elétrico, que por sua vez acionava a campainha, provocando o despertar da criança. Após algumas repetições dessa experiência, a criança começava a acordar antes da micção e, posteriormente, passava a controlar o esfíncter sem precisar despertar. O procedimento conseguiu eliminar a enurese nos 30 participantes do estudo. No início da década de 1950, na África do Sul, Joseph Wolpe (1915 - 1997) começou a realizar experimentos sobre “neurose experimental” em gatos, baseado nas pesquisas de Masserman (1943). Nesses experimentos, os gatos aprendiam a sentir medo do alimento, após alguns emparelhamentos com estímulos aversivos. Posteriormente, após aproximações sucessivas onde o gato era empurrado em direção à comida, na ausência da estimulação aversiva, a ansiedade se reduzia até a extinção. Wolpe concluiu que o medo condicionado e o ato de comer eram mutuamente antagônicos, ou seja, parecia haver uma inibição recíproca entre ambos. Wolpe testou essa hipótese alimentando os animais em locais cada vez mais próximos de onde eles haviam recebido o choque. Veriicou então que o medo poderia ser reduzido mediante a apresentação concomitante de estímulos provocadores de ansiedade e estímulos que produziriam uma resposta antagônica e mais forte do que a ansiedade. Assim, os estímulos provocadores de ansiedade eram produzidos de forma gradual, dentro de uma hierarquia, começando por aqueles que provocassem ansiedade mais leve. 200 Para utilizar o seu trabalho em seres humanos, Wolpe criou a técnica de dessensibilização sistemática para tratar pacientes com fobia. Utilizou como resposta antagônica ao medo o relaxamento. Inicialmente, o paciente aprendia o exercício de relaxamento e, posteriormente, começava a enfrentar, passo a passo, as etapas da hierarquia de situações temidas, mantendo-se em relaxamento para inibir reciprocamente a reação de medo. As exposições ao estímulo temido poderiam ocorrer ao vivo ou pela imaginação. Os procedimentos detalhados da técnica de Wolpe podem ser encontrados em uma publicação traduzida para o português em 1981, com o título Prática da terapia comportamental. A contribuição de Wolpe exerceu grande inluência na prática da terapia comportamental. Entretanto, a base teórica da inibição recíproca deixou de exercer inluência, uma vez que a exposição em situações na vida real foi vista como a forma mais eicaz de produzir reduções na ansiedade condicionada. Além disso, a exposição gradual e o uso de inibidores recíprocos, tais como o relaxamento, são desnecessários. Por outro lado, a técnica da dessensibilização sistemática incentivou as pesquisas que levaram ao desenvolvimento atual das terapias baseadas na exposição (Hawton, Salkovskis, Kirk e Clark, 1997). Outros investigadores que contribuíram para o desenvolvimento da terapia comportamental na África do Sul foram James G. Taylor e Leo J. Reyna, os quais exerceram inluência sobre os estudos de Wolpe. Stanley J. Rachman e Arnold A. Lazarus trabalharam diretamente com Wolpe após o desenvolvimento da técnica de dessensibilização sistemática (Kazdin, 1983). Na mesma época em que Wolpe realizava as suas pesquisas, Hans J. Eysenck (1916-1997) publicava na Inglaterra, em 1952, um trabalho com o título The Effects of Psychotherapy: An Evaluation. Nessa publicação, Eysenck avaliou a eicácia das terapias de orientação psicanalítica e a coniabilidade do diagnóstico psiquiátrico através da revisão da literatura psicoterápica. Eysenck não encontrou provas conclusivas de que a psicoterapia psicanalítica fosse mais efetiva do que a remissão espontânea (melhora produzida sem nenhum tratamento especíico). Essa revisão tornou-se famosa e bastante polêmica, já que colocava em questão a eicácia da terapia psicanalítica. Os estudos de Eysenck despertaram maior preocupação com a veriicação de eicácia psicoterápica em geral e com as possíveis limitações da terapia tradicional (Kazdin, 1983). Eysenck fundou, em 1963, a revista Behaviour Research and Therapy, a primeira dedicada à terapia do comportamento. Outros autores que deram contribuições relevantes para a terapia comportamental na Inglaterra foram Shapiro, que chamou atenção para o 201 trabalho com o paciente individual, mais do que com as técnicas de mudança em geral; Meyer, que tratou do medo de espaços abertos e de lugares fechados utilizando métodos de aproximação sucessiva; e Yates, que desenvolveu técnicas de tratamento de tics (Kazdin, 1983). Trabalhos com terapia de aversão foram também utilizados para tratar problemas de alcoolismo e desvios do comportamento sexual. Os estímulos, pensamentos ou comportamentos externos relacionados à resposta indesejada eram associados a um estímulo aversivo, tal como um choque elétrico. Esperava-se que esse tipo de condicionamento promovesse uma resposta de desagrado diante da bebida ou da estimulação sexual desviante. Entretanto, tais procedimentos foram desestimulados, tanto por razões éticas quanto pela sua ineicácia (Hawton et al., 1997). No início da década de 1960, os tratamentos comportamentais começaram a se expandir para uma variedade de problemas além da redução do medo, graças aos estudos de Shapiro que empregava uma metodologia de casos isolados, envolvendo repetição de medidas de variável clinicamente relevante, feita em intervalos regulares (série temporal). Condicionamento operante As aplicações dos procedimentos do condicionamento operante aos problemas clínicos tornaram-se conhecidas pelo nome de análise do comportamento aplicado e tiveram início no inal dos anos 1950. As primeiras técnicas concentraram-se na modiicação do comportamento de pessoas com deiciência mental e de crianças deicientes. Com relação à modiicação de comportamentos psicóticos tais como atos violentos, delírios e comportamento alimentar inadequado, assim como hábitos de higiene, Ayllon utilizou cigarros e elogios como reforçadores de comportamentos sadios e supressão da atenção ao paciente como extinção de comportamentos inadequados. Em 1961, Ayllon e Azrin criaram um esquema de reforçamento denominado sistema de ichas, as quais funcionavam como reforçadores que poderiam ser trocados por uma série de privilégios à escolha do paciente. Esse trabalho demonstrou a eicácia da intervenção psicológica em pacientes psicóticos (especialmente aqueles com esquizofrenia crônica), que antes não eram considerados passíveis de mudança. Posteriormente, foi ressaltada a importância do reforço social e do feedback como fatores mais importantes 202 nesses programas. O uso de reforçadores sociais estruturados (elogio e atenção do terapeuta) passou a ser mais amplamente adotado, assim como uma maior valorização das interações sociais na ajuda a pacientes com esquizofrenia (Hawton et al., 1997). Vários estudos citados por Kazdin (1983) realizados em crianças deicientes e autistas foram implementados com êxito na década de 1960, na Rainier School e na Universidade de Washington. Os princípios do condicionamento operante também foram aplicados na área da educação, através do ensino programado, onde o material acadêmico era apresentado de forma individual para cada estudante, proporcionando reforço imediato às suas respostas. No início dos anos 1960, vários editores começaram a publicar uma grande quantidade de material programado para uso em aula e uma elevada percentagem de escolas nos Estados Unidos começou a utilizar material educativo programado. Surgimento e evolução das abordagens cognitivo-comportamentais Ao inal dos anos 1960, iniciou-se um movimento de insatisfação com os modelos estritamente comportamentais (E-R) ou não mediacionais de abordagem ao comportamento humano. Embora – como foi mencionado no início deste capítulo – muitos modelos de condicionamento tenham apontado a existência de processos cognitivos como mediadores de estímulos, o auge desse fenômeno ocorreu no inal dos anos 1960 e início dos 1970 (Dobson e Scherrer, 2004). Albert Bandura (1925- ) foi um dos críticos mais poderosos do modelo operante de condicionamento e suas contribuições neste sentido serviram de base para o movimento mediacional. Para Bandura (1969), um dos problemas da aprendizagem pelas conseqüências refere-se ao fato de que o indivíduo deve se comportar antes de aprender. O modelo operante pressupõe que o indivíduo somente aprenderá após a ocorrência de reforçadores que se sucedem a sua resposta. Assim, se toda aprendizagem ocorresse através do condicionamento operante, poucas pessoas sobreviveriam. Como seria, por exemplo, aprender a nadar ou a pilotar um avião pelo modelo operante? Bandura propôs uma teoria da aprendizagem sem tentativa, conhecida como modelação, que é altamente freqüente entre os seres humanos e que se dá pela simples observação, sem a necessária reprodução do comportamento. Uma parte considerável da aprendizagem social é desenvolvida pela exposição a 203 modelos da vida real que desempenham, intencionalmente ou não, padrões de comportamento que podem ser imitados pelos outros. Depois que a pessoa desenvolve um repertório verbal adequado, os modelos podem ser verbais. Assim, personagens de ilmes, de propagandas, iguras históricas etc. podem funcionar como modelos poderosos. Os pais, professores e irmãos mais velhos costumam ser modelos para as crianças. Nos grupos sociais, estamos constantemente imitando atitudes de algumas pessoas e, ao mesmo tempo, somos modelo para outras. A modelação implica processos cognitivos importantes que envolvem atenção, julgamento sobre o modelo e as conseqüências do comportamento deste etc. indicando que a mediação cognitiva inluencia o comportamento. Para Bandura, a conseqüência da resposta não exerce uma inluência puramente instrumental sobre o comportamento. Ela também é conceituada como um processo cognitivo. A partir da observação de suas próprias ações, o indivíduo vai discernir respostas apropriadas e inapropriadas e vai se conduzir de acordo com esse julgamento. A concepção de resposta apropriada é construída pelo próprio indivíduo, a partir da observação de seu comportamento. Em outras palavras, o reforço aumenta a probabilidade de ocorrência de uma resposta pela sua função preditiva, e não porque ele esteja automaticamente conectado à resposta. Assim, a motivação também tem base cognitiva e é inluenciada pela previsão das conseqüências futuras. Dentre os conceitos mais importantes da teoria de aprendizagem social de Bandura, que contraria a explicação operante sobre o poder da contingência, encontra-se o de auto-eicácia, que se refere à crença que uma pessoa tem de que será capaz de realizar um determinado comportamento. A força da convicção da pessoa sobre a própria eicácia inluencia no quanto ela vai tentar enfrentar as situações dadas. Isso irá determinar tanto a iniciação quanto a persistência do comportamento. As contribuições de Bandura sobre auto-eicácia se estendem hoje a uma variedade de pesquisas, tanto na psicologia social, em estudos sobre idosos e sobre evasão acadêmica, como na clínica e na saúde, no entendimento das dependências químicas, na depressão e em outros transtornos psicológicos. Em 1974, Michael Mahoney publicou um livro intitulado Cognition and Behavior Modiication, em que defendeu a cognição como mediadora do comportamento. Um dos motivos da rejeição ao estudo dos fenômenos cognitivos por parte dos behavioristas radicais devia-se ao fato de que este era baseado em inferências, signiicando que o que é inferido não poderia se aplicar ao estudo do comportamento. Mahoney sustentou que o que caracteriza 204 um conhecimento cientíico não é a sua ausência de inferências, mas sim a sua capacidade preditiva: A questão básica nas explicações mediacionais versus não-mediacionais do comportamento não é se as inferências são justiicáveis, mas sim quais inferências são legítimas e úteis. Como foi referido antes, a aceitação de uma hipótese ou teoria é determinada por sua adequação e força preditiva, e não por sua parcimônia ou falta de inferências. Muitos behavioristas, é claro, presumem que há uma forte correlação positiva entre estas características – ou seja, que as explicações não inferenciais e parcimoniosas do comportamento são mais capazes de precisão preditiva e amplitude explicativa. Esta é, de fato, a base da interpretação errônea da postura de Skinner acerca da mediação e da inferência (Mahoney, 1974: 26). Outros autores também desaiaram os princípios estritamente comportamentais. Dobson e Scherrer (2004) citam o trabalho de Vygotsky realizado em 1962 com crianças que estavam aprendendo regras gramaticais com sucesso, independentemente da habilidade de pais e educadores para usarem reforço discriminativamente. Esses autores citam também o trabalho de Mischel, Ebbesen e Zeiss (1972) sobre retardo na gratiicação. Além da insatisfação com os modelos E-R, outros fatores históricos e contextuais contribuíram para o desenvolvimento das abordagens cognitivocomportamentais. O primeiro desses fatores refere-se à rejeição dos modelos psicodinâmicos e ao questionamento de sua eicácia. Rachman e Wilson (1980, citados por Dobson e Block, 1988) airmaram não haver indícios aceitáveis que sustentassem a visão da psicanálise como uma abordagem de tratamento eicaz. Dobson e Scherrer (2004) mencionam trabalhos de Albert Ellis (1973) e Aaron Beck (1967) em que ambos, embora vindos de uma tradição psicodinâmica, revelaram divergências ilosóicas para com diversos princípios básicos desse modelo. No prefácio de uma publicação traduzida para o português intitulada Terapia cognitiva da depressão, Beck (Beck, Rush, Shaw e Emery,1982) relata que seus questionamentos ao modelo psicanalítico tiveram início em 1956, quando este tentava validar a formulação psicanalítica da depressão. Ao veriicar que a hipótese da raiva retroletida não se conirmara em seus estudos, levando-o a outras descobertas (como, por exemplo, a tríade negativista da depressão), Beck procurou embasamento nas teorias cognitivas para explicar a depressão. Outro fator histórico-contextual que culminou no desenvolvimento das abordagens cognitivo-comportamentais refere-se a uma atenção crescente dada aos aspectos cognitivos do funcionamento humano na psicologia geral, aliados ao desenvolvimento, pesquisa e estabelecimento 205 de diversos conceitos mediacionais na psicologia experimental. Os modelos de processamento de informação (cf. capítulo 13) passaram a ser cada vez mais aplicados em construtos clínicos, tal como se pode ver nas publicações sobre mediação cognitiva da ansiedade referidas em uma revisão de estudos feita por Dobson e Scherrer (2004). Assim, tanto a psicologia cognitiva em geral quanto a psicologia cognitiva aplicada acumularam evidências que desaiavam os modelos estritamente comportamentais a explicar esses dados pela incorporação de fenômenos cognitivos. Todas essas evidências levaram os teóricos comportamentais a redeinirem os seus limites e a incorporarem fenômenos cognitivos dentro dos modelos de mecanismo comportamental (Dobson e Block, 1988). Finalmente, a crescente identiicação de diversos terapeutas e teóricos como de orientação cognitivo-comportamental, aliada às pesquisas de resultados, na maioria positivos, das intervenções clínicas cognitivo-comportamentais, constituiu mais um fator contextual de desenvolvimento dessa abordagem. Dobson e Scherrer (2004: 45) airmam que a autodenominação de muitos proissionais como cognitivo-comportamentais “resultou em um zeitgeist que chamava cada vez mais atenção para o campo crescente da TCC” (terapia cognitivo-comportamental). Todo esse movimento gerou a criação da revista cientíica Cognitive Therapy and Research, em 1977, que abriu mais espaço para a divulgação desse enfoque. Princípios das abordagens cognitivo-comportamentais: o foco na cognição, na emoção e implicações para o tratamento As abordagens cognitivo-comportamentais compartilham diversas características fundamentais, mas também manifestam considerável diversidade de princípios e de procedimentos. Dobson e Scherrer (2004) explicam essa diversidade pelas diferentes origens teóricas de seus representantes. Eles citam Beck e Ellis, por exemplo, como vindos de uma tradição psicanalítica, enquanto apontam Marvin R. Goldfried, Donald Meichenbaum e Mahoney como treinados na abordagem comportamental. A premissa básica das abordagens cognitivo-comportamentais refere-se à existência de um processo interno e oculto de cognição, sendo o comportamento mediado por eventos cognitivos. Um mesmo evento pode ser considerado como agradável para uma pessoa, gerando um comportamento 206 de se manter na situação, ou ameaçador para outra, provocando nesta intensa ansiedade e retraimento. Assim, não é o evento em si que gera emoções e comportamentos, mas sim a nossa interpretação do mesmo. Uma das diferenças existentes entre os diversos modelos teóricos cognitivo-comportamentais está no papel das cognições e das emoções. Para alguns autores, tais como Beck e Ellis, existe uma ênfase na explicação das cognições como mediadoras do comportamento e como inluenciadoras das emoções, embora estas últimas também possam inluenciar as cognições. Por outro lado, autores de enfoque cognitivo-construtivista defendem o papel das emoções como preponderantes na inluência do comportamento. Embora existam várias formas de abordagens cognitivo-comportamentais, a terapia racional emotivo-comportamental de Ellis e a terapia cognitiva de Beck são consideradas como as mais conhecidas e inluentes. O modelo ABC de Ellis, por exemplo, propõe que os sintomas ou conseqüências neuróticas (C – consequences) são determinados pelos sistemas de crença do indivíduo (B – believes) com relação às experiências ou fatos ativadores (A – activatics)). Os indivíduos tendem a preservar vigorosamente os seus padrões de pensamentos irracionais, formados a partir de tendências inatas e adquiridas. A intervenção baseada nesse modelo teórico visa identiicar e contestar as crenças irracionais através de um automonitoramento, em que a pessoa contesta o seu próprio sistema de crenças para manter um estado de saúde emocional. Técnicas cognitivas, de imagem, de relaxamento e desenvolvimento de habilidades são empregadas para atingir esse objetivo (Rangé, 2001). Estudos avaliando a eicácia da terapia racional emotivocomportamental estão surgindo mais recentemente (Dobson e Scherrer, 2004). O modelo cognitivo de Beck enfatiza que os pensamentos inluenciam as nossas emoções e comportamentos. Os pensamentos ocorrem em três diferentes níveis. Em um nível mais supericial, encontram-se os pensamentos automáticos, que correspondem às avaliações de eventos especíicos (por exemplo, “acho que vou me ferrar nessa prova”). Embora não estejamos conscientes desses pensamentos, eles podem ser facilmente acessíveis mediante treinamento. Em um segundo nível estão as suposições e regras, que são mais globais, menos diretamente associadas a um evento especíico e menos acessíveis à nossa consciência (exemplo, “para ser competente, eu não posso falhar”, ou “se cometer um erro, signiica que sou incapaz”). Finalmente, as crenças centrais constituem o nível mais global da cognição. São construídas no início do desenvolvimento e fortalecidas com as experiências da vida. 207 As crenças centrais, as suposições e regras, e os pensamentos automáticos estão interligados no processamento cognitivo dos transtornos psicológicos. Se um indivíduo possui uma crença central (por ex., “sou incompetente”), ele criará suposições para enfrentar essa crença (por ex., “se eu der o melhor de mim e me esforçar ao máximo, serei aceito pelos outros”; “se eu demonstrar ansiedade, signiica que sou incapaz”). Tais crenças predispõem esse indivíduo a desenvolver estratégias (por ex., estabelecer padrões irrealistas de desempenho, monitorar exageradamente as próprias reações pessoais) que provavelmente o tornarão predisposto a conirmar a crença central, através de uma forma tendenciosa de interpretar os acontecimentos. Ao estabelecer padrões irrealistas de desempenho, por exemplo, ele tenderá a supervalorizar as próprias falhas, a ignorar os seus sucessos e a prestar atenção excessiva em suas manifestações de ansiedade, levando à conirmação de que é incompetente (para leitura mais detalhada do assunto, ver Falcone, 2001; J. Beck, 1997). O modelo de Beck tem sido aperfeiçoado para dar conta de um melhor entendimento de transtornos psicológicos mais graves, tais como os transtornos de personalidade, para os quais tem sido sugerido o papel dos esquemas, deinidos como “estruturas internas relativamente duradouras de características genéricas ou prototípicas armazenadas de estímulos, idéias ou experiências que são utilizados para organizar novas informações de um modo signiicativo, deste modo determinando como os fenômenos são percebidos e conceitualizados” (Dobson e Scherrer, 2004: 47). Os esquemas são desenvolvidos no início da infância e atuam como “iltros” pelos quais as informações são processadas. Os esquemas adaptativos possibilitam avaliações lexíveis, realistas, enquanto os desadaptativos são rígidos e levam à distorção da realidade. O objetivo da terapia cognitiva é ajudar o cliente a desenvolver habilidades para identiicar as suas distorções cognitivas e explorar novas formas de entender as suas experiências. A estratégia da abordagem é colaborativa, de modo a ajudar o indivíduo a construir os próprios recursos para testar a validade de suas interpretações. Dattilio e Padesky (1995) realizaram uma revisão de estudos para avaliar os resultados da terapia cognitiva e constataram ser esta tão eicaz quanto os medicamentos para o alívio da depressão maior, além de apresentar uma taxa inferior de recaídas em comparação com medicamentos. Outra revisão feita por Beck (1997) revelou a eicácia da terapia cognitiva no tratamento de transtornos da ansiedade, transtornos alimentares, abuso de substâncias, problemas conjugais e depressão de pacientes internados. Atualmente, 208 resultados positivos da terapia cognitiva têm sido encontrados no tratamento do transtorno bipolar (Juruena, 2004) e da esquizofrenia (Barretto e Elkis, 2004). Além da terapia racional emotivo-comportamental de Ellis e da terapia cognitiva de Beck, outras abordagens cognitivo-comportamentais surgiram com o passar dos anos, embora não tenham atingido uma posição tão inluente. Entre estas se incluem: a reestruturação sistemática de Goldfried (1974); o treinamento de auto-instrução e de inoculação de estresse desenvolvido por Donald Meichenbaum nos anos 1970; a terapia de resolução de problemas de D’Zurilla e Goldfried, na década de 1970; e a terapia de autocontrole, construída por Fuchs e Rehm, em 1977 (citados por Dobson e Scherrer, 2004). Desenvolvimentos mais recentes da abordagem cognitivo-comportamental referem-se às terapias estruturais e construtivistas. Guidano e Liotti criaram na década de 1980 uma abordagem estrutural da psicoterapia, em razão do potencial explicativo limitado da teoria da aprendizagem. Para esses autores, a organização cognitiva de um indivíduo, incluindo teorias causais, pressupostos básicos e regras tácitas de inferência que determinam o conteúdo dos pensamentos, desempenha um papel causal nos comportamentos problemáticos. Para mudar essas estruturas cognitivas disfuncionais, a terapia começa com a identiicação e modiicação de estruturas cognitivas supericiais e depois, das mais profundas (teorias causais implícitas mantidas pelo paciente) (Dobson e Scherrer, 2004). Embora existam aspectos comuns entre a terapia estrutural de Guidano e Liotti e as outras formas de abordagem cognitivo-comportamental quanto à identiicação e modiicação de estruturas cognitivas, estas últimas são consideradas racionais, uma vez que o seu pressuposto ilosóico é o de que existe um mundo externo que pode ser percebido de forma correta ou incorreta. Por outro lado, Guidano mostrou-se mais preocupado com o “valor de validade” das estruturas cognitivas do que com o seu “valor de verdade” (Dobson e Scherrer, 2004). Para os terapeutas de enfoque construtivista, que têm atualmente Mahoney como um dos principais defensores, a terapia consiste em enfatizar o processo de dar signiicado à experiência, em oposição ao conteúdo do que está sendo pensado. Assim, as estratégias focalizam-se em exercícios facilitadores que enfatizam o processo do pensamento e a produção de signiicado, em oposição aos exercícios corretivos em torno do conteúdo do pensamento (Dobson e Scherrer, 2004). 209 Enquanto alguns autores (por ex., Neimeyer e Raskin, 2001) questionam a compatibilidade teórica entre as terapias construtivistas e cognitivo-comportamentais, outros defensores das terapias cognitivocomportamentais adotaram, em graus variados, tratamentos com base em princípios construtivistas (por ex., Mahoney, 1991; Meichenbaum, 1994; Young, 1994, citados por Dobson e Scherrer, 2004). Assim, as questões sobre a compatibilidade teórica entre os enfoques cognitivo, construtivista e pósracionalista ainda não são conclusivas. Popularidade e abrangência das abordagens cognitivo-comportamentais Em uma pesquisa realizada por Robins, Gosling e Craik (1999), a abordagem cognitivo-comportamental é apontada como a que mais obteve popularidade nos últimos 20 anos. Embora esse estudo não faça menção aos locais onde essa popularidade se manifesta, sua metodologia baseou-se em uma metaanálise de publicações existentes em um determinado período sobre as diversas abordagens teóricas, o que permite perceber o avanço crescente das abordagens cognitivo-comportamentais em todo o mundo. Outro estudo realizado por Buela-Casal, Alvarez-Castro e Sierra (1993), para avaliar as preferências dos psicólogos na Espanha, concluiu que os psicólogos espanhóis manifestam uma clara preferência pela abordagem cognitivo-comportamental. Parece existir um consenso na literatura sobre a popularidade da abordagem cognitivo-comportamental na psicologia clínica e na psicologia da saúde, nos Estados Unidos e na Europa. Paul M. Salkovskis (2005), em seu livro recentemente traduzido para o português com o título: Fronteiras da terapia cognitiva propõe que “[…] a terapia cognitiva se tornou a abordagem psicoterápica mais importante e a melhor validada entre as demais. É o tratamento psicológico de escolha para uma ampla variedade de problemas psicológicos” (p. 15). Em entrevista concedida a uma revista argentina (1999), esse autor airma: Um avanço na Inglaterra consistiu em que o Colégio de Psiquiatras exige que os psiquiatras tratem vários casos com terapia cognitiva em seu treinamento, de tal maneira que eles não podem converter-se em psiquiatras sem haver recebido supervisão em terapia cognitiva (p. 187). Para Dobson e Scherrer (2004), as abordagens cognitivo-comportamentais “têm aumentado de escopo e popularidade, adquirindo sua atual condição de ‘paradigmas dominantes’ na área da psicologia clínica” (p. 42). Em publicação 210 recente traduzida para o português com o título Ciência psicológica: mente, cérebro e comportamento (2005), os autores Michael S. Gazzaniga (neurocientista) e Todd F. Heatherton (psicólogo social e da personalidade) apontam a terapia cognitivo-comportamental como a mais eicaz no tratamento dos transtornos da ansiedade, do humor e da personalidade. No Brasil, a popularidade das abordagens cognitivo-comportamentais está apenas começando e pode ser identiicada principalmente pela crescente publicação de livros organizados por autores brasileiros nos últimos cinco anos. Alguns desses autores são de São Paulo (Abreu e Roso, 2003; Lipp, 2004; Silvares, 2000), Rio de Janeiro (Range, 2001) e Rio Grande do Sul (Caminha, 2005; Caminha, Wainer, Oliveira e Piccoloto, 2003; Knapp, 2004). Além dos livros nacionais, a quantidade de publicações traduzidas para o português tem aumentado consideravelmente. Uma variedade de publicações em periódicos nacionais pode ser também encontrada. A popularidade das abordagens cognitivo-comportamentais tem aumentado em parte graças à fundação de associações itinerantes que organizam congressos anuais (Associação Brasileira de Psicoterapia e Medicina Comportamental – ABPMC, fundada no Rio de Janeiro em 1991) e a cada dois anos (Sociedade Brasileira de Terapias Cognitivas – SBTC, fundada no Rio Grande do Sul em 1997). A primeira publica a Revista Brasileira de Terapia Comportamental e Cognitiva, desde 1999. A segunda publica a Revista Brasileira de Terapias Cognitivas, fundada em 2005. Associações regionais também têm surgido, como a Associação de Terapias Cognitivas do Estado do Rio de Janeiro (ATC-RIO), que organiza, juntamente com a Universidade do Estado do Rio de Janeiro, um evento anual (Mostra de Terapia CognitivoComportamental). Os proissionais brasileiros de orientação cognitivo-comportamental têm se dedicado a intervenções em consultórios, além de pesquisa, ensino, orientação e supervisão clínica. A prática clínica institucional tem sido realizada por um grupo do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, em um ambulatório de ansiedade (ANBAM), onde psicólogos e psiquiatras exercem atividades de ensino, pesquisa e intervenção cognitivo-comportamental. No campo da psicologia da saúde, tem se destacado o trabalho de um grupo de psicólogos de São José do Rio Preto, que desenvolveram o Serviço de Psicologia do Hospital de Base da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto (FAMERP), iniciado em 1981 com a contratação de uma psicóloga para atuar na enfermaria de pediatria e contando atualmente com 40 psicólogos (docentes, contratados e aprimorandos) que desenvolvem atividades de extensão de serviços à comunidade, ensino e pesquisa em psicologia da saúde. A história 211 e estrutura desse serviço está publicada em detalhes na revista Psicologia USP (Miyazaky, Domingos, Valério, Santos e da Rosa, 2002). Conclusões Embora compartilhando de pressupostos básicos, as abordagens cognitivo-comportamentais abrangem uma variedade de mais de 20 modelos (Mahoney e Lydoon, 1988, citados em Knapp, 2004). Além disso, mudanças ilosóicas, teóricas e práticas importantes têm ocorrido na sua trajetória. Assim, relatar a sua história e seus princípios teóricos e ilosóicos em um capítulo não constitui uma tarefa fácil. Contrariamente às airmações de que as abordagens cognitivo-comportamentais são de origem estadunidense, pode-se veriicar, na revisão deste capítulo, que os investigadores russos foram tão importantes (ou mais) para o behaviorismo (pelo menos para o behaviorismo metodológico) do que os próprios americanos, e que os estudos de Pavlov servem de base até hoje para os estudos da neuropsicologia, através da relação entre áreas do cérebro e o comportamento (Caminha, 2003). A preocupação com a eicácia dos procedimentos de intervenção e com a revisão de princípios teóricos faz com que as abordagens cognitivocomportamentais sejam alvo de reformulações através do tempo, o que provavelmente constitui a sua característica mais marcante. Indicação bibliográfica O livro organizado por Knapp – Terapia cognitivo-comportamental na prática psiquiátrica. Porto Alegre: Artmed. – é uma boa apresentação do tema. Referências Abreu, C. N. e Roso, M. (orgs.) (2003) Psicoterapias cognitiva e construtivista. Novas fronteiras na prática clínica. Porto Alegre: Artmed. Baldwin, J. D. e Baldwin, J. I. (1998) Behavior Principles in Everyday Life. 3rd ed. New Jersey: Prentice-Hall. Bandura, A. (1969) Modiicação do comportamento. Rio de Janeiro: Editora Interamericana. 212 Barretto, E. M. P. e Elkis, H. (2004) Esquizofrenia. In: P. Knapp (org.) Terapia cognitivocomportamental na prática psiquiátrica. Porto Alegre: Artmed. Beck, A. T.; Rush, A. J.; Shaw, B. F. e Emery, G. (1982) Terapia cognitiva da depressão. Rio de Janeiro: Zahar. Beck, J. S. (1997) Terapia cognitiva. Teoria e prática. Porto Alegre: Artes Médicas. Buela-Casal, G.; Álvares-Castro, S.; Sierra, J. C. (1993) Peril de los psicólogos de la ultima promocion de las universidades españolas. Psicología Conductual, 1, 181-206. Caminha, R. M. (org.) (2005) Transtornos do estresse pós-traumático. Da neurobiologia à terapia cognitiva. São Paulo: Casa do Psicólogo. Caminha, R. M.; Wainer, R.; Oliveira, M. e Piccoloto, N. M. (orgs.) (2003) Psicoterapias cognitivocomportamentais. Teoria e prática. São Paulo: Casa do Psicólogo. Dattilio, F. M. e Padeski, C. A. (1995) Terapia cognitiva com casais. Porto Alegre: Artes Médicas. Dobson, K. S. e Block, L. (1988) Historical and philosophical bases of the cognitive-behavioral therapies. In: K. S.Dobson (ed.) Handbook of Cognitive-behavioural Therapies. Nova York: Guilford. Dobson, K. S. e Scherrer, M. C. (2004) História e futuro das terapias cognitivo-comportamentais. In: P. Knapp (org.) Terapia cognitivo-comportamental na prática psiquiátrica. Porto Alegre: Artmed. Falcone, E. (2001) Psicoterapia cognitiva. In: B. Range. (org.) Psicoterapias cognitivo-comportamentais. Um diálogo com a psiquiatria. Porto Alegre: Artmed. Gazzaniga, M. S. e Heatherton, T. F. (2005) Ciência psicológica. Mente, cérebro e comportamento. Porto Alegre: Artmed. Hawton, K.; Salkovskis, P. M.; Kirk, J. e Clark, D. M. (1997) Desenvolvimento e princípios das abordagens cognitivo-comportamentais. In: K. Hawton, P. M. Salkovskis, J. Kirk, e D. M. Clark (orgs.) Terapia cognitivo-comportamental para problemas psiquiátricos. Um guia prático. São Paulo: Martins Fontes. Hayes, S. C. (1987) A Contextual Approach to Therapeutic Change. In: N. S. Jacobson (ed.) Psychotherapists in Clinical Practice. Nova York: Guilford. Juruena, M. F. (2005) Transtorno afetivo bipolar. In: P. Knapp (org.) Terapia cognitivo-comportamental na prática psiquiátrica. Porto Alegre: Artmed. Kazdin, A. E. (1983) Historia de la modiicación de conducta. Bilbao: Desclée de Brouwer. Knapp, P. (org.) (2004) Terapia cognitivo-comportamental na prática psiquiátrica. Porto Alegre: Artmed. Lipp, M. (org.) (2004) O stress no Brasil. Pesquisas avançadas. São Paulo: Papirus. Mahoney, M. J. (1974) Cognition and Behavior Modiication. Cambridge: Ballinger Publishing Company. Miyazaki, M. C. O. S.; Domingos, N. A. M.; Valério, N. I.; Santos, A. R. R.; Rosa, L. T. B. (2002) Psicologia da saúde: Extensão de serviços à comunidade, ensino e pesquisa. Psicologia USP 13, 29-53. Pavlov, I. (1972) Relexos condicionados e inibições. 5ª ed. Rio de Janeiro: Zahar. Range, B. (org.) (2001) Psicoterapias cognitivo-comportamentais. Um diálogo com a psiquiatria. Porto Alegre: Artmed. Robins, R. W.; Gosling, S. D.; Craik, K. H. (1999) An Empirical Analysis of Trends in Psychology. American Psychologist (APA), 54, 117-128. 213 Salkovskis, P. (1999) Entrevista de clinica psicologica con Paul Salkivskis. Revista Argentina de Clínica Psicológica, 8, 183-187. (2005) Prefácio. In: P. M. Salkovskis (org.) Fronteiras da terapia cognitiva. São Paulo: Casa do Psicólogo. Silvares, E. F. M. (org.) Estudos de caso em psicologia clínica comportamental infantil, vols. I e II. São Paulo: Papirus. Skinner, B. F. (1981) Ciência e comportamento humano. São Paulo: Martins Fontes. Wolpe, J. (1981) Prática da terapia comportamental. São Paulo: Brasiliense. 214 Capítulo 13 A psicologia no contexto das ciências cognitivas Virgínia Kastrup Como temos visto ao longo deste livro, a história da psicologia é marcada por cruzamentos e interfaces com disciplinas diversas, como a ilosoia, a física, a isiologia, a teoria da evolução e as ciências sociais. Na segunda metade do século XX, assistimos a uma ampliação signiicativa da rede de saberes que participa da transformação da psicologia ao longo do tempo. A apresentação e análise de um domínio recente como o das ciências cognitivas será ocasião de compreender que a história de uma disciplina não se limita à investigação de seu passado, mas inclui a história do presente, onde o processo de transformação ainda não se sedimentou em extratos históricos bem estabelecidos, mas encontra-se ainda vivo e em pleno processo de invenção. Fazer o mapeamento do campo das ciências cognitivas na atualidade é, portanto, aceitar o desaio de abordar um movimento que, fazendo parte de nosso contemporâneo, vem produzindo modiicações importantes no saber psicológico. O quadro que apresentamos é, portanto, marcado por uma seleção que incluiu escolhas e, certamente, algumas omissões que não poderiam deixar de acontecer, tendo em vista a extensão do campo. Nosso critério foi trazer a cena movimentos, abordagens, autores, problemas e discussões que, por seu caráter inovador e polêmico, forçaram a psicologia a repensar e reinventar o conceito de cognição. Cabe ressaltar que, por seus objetivos e pela natureza das questões que se situam no coração dos debates, o campo das ciências cognitivas distingue-se de forma bem nítida do domínio do desenvolvimento cognitivo. Como veremos adiante, temas como a transformação temporal da cognição e os estágios da inteligência da infância à idade adulta dão lugar a questões de natureza epistemológica, discutidas num contexto interdisciplinar e que incidem, em seus primórdios, sobre a possibilidade de simulação da mente através dos modelos computacionais. O diálogo entre as ciências cognitivas e a 215 psicologia do desenvolvimento cognitivo tem sido, pelo menos até o momento, praticamente inexistente. Uma máquina cognitiva? As ciências cognitivas surgem na década de 1950, nos Estados Unidos. Participam da formação deste campo diferentes disciplinas como a Psicologia, a inteligência artiicial, a ilosoia da mente, as neurociências, a lingüística, a lógica e a antropologia. Dentre as condições históricas do surgimento deste campo destaca-se um elemento decisivo, que não é um fundador, mas um dispositivo técnico – o computador. A idéia de uma máquina cognitiva, dotada de memória, linguagem, que calcula e soluciona problemas, coloca radicalmente em questão o que seja conhecer, tirando da psicologia a exclusividade, e mesmo a hegemonia no tratamento do problema. A identiicação do conhecimento com a inteligência humana, já abalada pelo reconhecimento da existência de uma inteligência animal pelo gestaltismo na década de 1920 (Kohler, 1927; 1978), cairá deinitivamente com o desenvolvimento da inteligência artiicial. As ciências cognitivas reúnem doravante dois domínios até então separados: a natureza e o artifício (Passos, 1994). O surgimento do computador trará para o centro do debate não apenas novas disciplinas, mas também novas questões e perspectivas metodológicas que se apresentam como promissoras para a retomada do estudo da mente. A idéia de uma “máquina universal”, capaz de desempenhar qualquer operação realizada pela mente humana, formulada na década de 1930 pelo matemático inglês ALAN TURING, foi o primeiro marco para a coniguração desse campo. Turing (1936) propõe uma formalização matemática da noção de máquina e lança as bases do que será mais tarde o computador digital. Cabe também destacar o advento da teoria da informação de CLAUDE SHANNON (1938), que apresenta uma abordagem matemática da comunicação cuja ênfase recai numa lógica binária 0-1 e não nos aspectos semânticos da linguagem humana. A cibernética de NORBERT WIENER (1948) constitui um terceiro vetor ALAN TURING (1912-1954). Matemático inglês. Elaborou o conceito de máquina abstrata, ou, como ficou conhecida posteriormente, máquina de Turing. CLAUDE SHANNON (1916-2001). Matemático americano. Criador da teoria da informação, graduou-se com prêmio extraordinário na Universidade de Michigan em Engenharia Elétrica e Matemática. Seu trabalho central é publicado em 1948, “A Mathematical Theory of Communication”. NORBERT WIENER (1894-1964). Graduou-se em Matemática e Filosofia em Harvard, tendo estudado com Bertrand Russel. 216 essencial. Deinida como ciência dos sistemas de comunicação e controle, naturais e artiiciais, a cibernética rompe com os limites do humanismo e do vitalismo, ou seja, tanto com a irredutibilidade dos fenômenos humanos aos fenômenos biológicos quanto com a irredutibilidade dos últimos aos fenômenos físicos. As máquinas cibernéticas são dotadas de meta e de um funcionamento regido por uma causalidade circular. Este tipo de causalidade faz parte do funcionamento de máquinas diversas, como aparelhos de ar-condicionado e mísseis antiaéreos. Todavia, é uma série de conferências consecutivas realizadas nos anos 1940 e 1950 nos Estados Unidos, reunindo um grupo de pesquisadores de diferentes áreas, que serão decisivas para a constituição do campo das ciências cognitivas. Os debates giravam em torno da natureza do conhecer e dos elementos envolvidos no controle do comportamento. No Simpósio de Hixon, realizado em 1948 no California Institute of Technology, JOHN VON NEUMANN apresentou uma comunicação onde propôs uma comparação entre o cérebro e o computador digital programado. A comunicação de WARREN MCCULLOCH “Why the Mind is in the Head” (“Por que a mente está na cabeça”) comparava o cérebro a uma máquina lógica, no sentido em que as conexões entre os neurônios poderiam ser tratadas como seqüências lógicas. KARL LASHLEY, psicólogo até então ligado ao movimento behaviorista, apresentou o trabalho “The problem of serial order in behavior” (“O problema da ordem serial no comportamento”), onde destacou a importância da consideração do sistema nervoso central, e não do meio ambiente, no controle do comportamento. Cabe ainda citar o Simpósio sobre Teoria da Informação, que teve lugar no Massachusetts Institute of Technology (MIT) em 1956, reuniu os cientistas ALLEN NEWELL e NORBERT SIMON, que viriam a inaugurar a área da inteligência artiicial, bem como o lingüista NOAM CHOMSKY e o psicólogo GEORGE MILLER. JOHN VON NEUMMAN (1903-1957). Estudou Matemática nas universidades de Budapeste e Berlim e Engenharia Química no Instituto Federal de Tecnologia da Suíça. WARREN MCCULLOCH (1899-1969). Estudou Filosofia e Psicologia na Universidade de Yale e Psicologia na Universidade de Columbia. KARL LASHLEY (1890-1958). Psicofisiologista americano, estudou com Watson na Universidade John Hopkins. Defendeu uma posição não localizacionista com relação ao funcionamento do cérebro na famosa “teoria de ação de massa”. ALLEN NEWELL (1927-1922). Graduou-se em Física na Universidade de Stanford. Pesquisador, destacou-se por sua participação na criação do “General Problem Solver”. HERBERT SIMON (1916-2001). Estudou Ciências Sociais e Economia na Universidade de Chicago. Ganhou o Prêmio Nobel de Economia em 1978, por sua teoria da análise dos processos de tomada de decisão. NOAM CHOMSKY (1928- ). Lingüista norte-americano, graduou-se na Universidade da Pensilvânia, tendo lecionado por muitos anos no Massachusetts Institute of Technology (MIT). Atualmente destaca-se por sua severa crítica à política norteamericana. GEORGE MILLER. 217 A série consecutiva das Conferências Macy (1946-1953), organizadas por Norbert Wiener e pelo matemático John von Neumann, também teve uma grande importância e por isso voltaremos a ela adiante. A partir desses encontros, podemos dizer que teve início o que chamamos hoje de abordagem transdisciplinar do problema do conhecimento, evidenciando-se o cruzamento das pesquisas em diferentes domínios e a exigência da formulação de uma linguagem comum. Com o surgimento das ciências cognitivas, a psicologia ganha novos intercessores, mas a idéia da aproximação entre a cognição humana e a cognição da máquina não será aceita de maneira consensual e sem resistências. Conforme veremos adiante, o campo das ciências cognitivas será marcado pela unidade temática, mas também por acirrados debates e profundas divergências conceituais. Para a psicologia, tão marcada pela heterogeneidade e pela dispersão ao longo de toda a sua história (Figueiredo, 1991; Ferreira, 1999), esse não será um cenário totalmente estranho. A primeira obra sistemática sobre o surgimento do campo das ciências cognitivas foi escrita pelo psicólogo HOWARD GARDNER, no inal dos anos 80. No livro A nova ciência da mente (1995), Gardner considera HOWARD GARDNER (1943que a ciência cognitiva é uma nova ciência da mente. ). Psicólogo americano, graduouEla deve ser entendida como um movimento de crítica se em Psicologia em Harvard, onde leciona atualmente no Departamento ao behaviorismo, no sentido em que traz a investigação de Psicologia. da mente de volta ao campo cientíico. O computador surge como estratégia metodológica, sendo tomado como sistema equivalente à mente humana. A noção de sistema equivalente diz respeito à possibilidade da máquina de desenvolver as mesmas operações e de chegar aos mesmos resultados da mente humana. O modelo computacional surge como alternativa ao método da introspecção, outrora utilizado. Nesse caso, a retomada da mente pelas ciências cognitivas não consiste num retorno à antiga psicologia da consciência, pois trata-se agora da investigação de uma mente destituída de sua dimensão de experiência. O computador não compreende o que faz, e conhecer é apenas processar informação. O modelo do processamento de informação faz com que conhecer seja calcular. O cálculo opera com símbolos, que são entidades discretas, que possuem uma base material e uma dimensão semântica. A base material pode ser tanto uma máquina quanto um cérebro e a dimensão semântica – postulada como uma relação de correspondência com elementos de um mundo externo e predeinido – dispensa a consciência. Gardner apresenta o surgimento da ciência cognitiva como um esforço contemporâneo e empiricamente fundamentado 218 para responder a antigas questões epistemológicas, particularmente aquelas relativas à natureza do conhecimento, seus componentes, suas fontes, seu desenvolvimento e distribuição. As cinco características-chave deste campo são: 1) a consideração de um nível autônomo e separado tanto do nível físicoisiológico quanto do nível sócio-histórico: o nível da representação; 2) a utilização do computador como modelo de referência; 3) a colocação entre parênteses de fatores afetivos, contextuais, culturais e históricos; 4) os estudos interdisciplinares; 5) a retomada de problemas ilosóicos clássicos. A denominação “ciência cognitiva” expressa a consideração de um domínio uniicado. Esta expressão, presente nos primeiros textos dos comentadores americanos, é aos poucos substituída por “ciências cognitivas”, que evidencia de forma mais adequada um domínio marcado pela pluralidade de abordagens e portador de um espectro muito amplo de posições, que vão desde posições extremas – adesão completa ao modelo computacional ou sua absoluta rejeição – até posições intermediárias, as mais diversas e nuançadas. A propósito disso, o próprio Gardner (1985) reconhece que há um paradoxo, que ele denomina paradoxo do computador. Quanto mais se investiga a possibilidade de aproximar a mente humana do computador, mais esta possibilidade é afastada. Em síntese, o livro de Gardner guarda o mérito de escrever a história desse importante movimento num texto simples a acessível, ainda no calor dos acontecimentos. Apresenta, entretanto, limites e mesmo alguns problemas. Em primeiro lugar, a tese de que as ciências cognitivas constituem um movimento de reação ao behaviorismo superestima a importância dessa corrente da psicologia para um movimento que extrapolava em muito qualquer fronteira disciplinar. Outro limite é não chegar a distinguir o surgimento das ciências cognitivas e aquele que surgirá como o primeiro paradigma ou modelo hegemônico nesse domínio: o cognitivismo computacional. A partir de uma pesquisa detalhada sobre as atas das Conferências Macy citadas anteriormente, Dupuy (1996) destaca o papel central da cibernética na fase inicial das ciências cognitivas. Segundo Dupuy, a cibernética introduziu o formalismo lógico-matemático nas ciências do cérebro, concebeu máquinas de processamento de informação, lançou os fundamentos da inteligência artiicial e da teoria dos sistemas, deixando fortes marcas em diversos campos, como a economia, a teoria dos jogos, a terapia 219 familiar, a antropologia e diversos outros. Os anos cibernéticos trouxeram a cena as complexas relações entre cérebro, mente e máquina. Para Dupuy, a fase cibernética revela também relações mais complexas entre as ciências cognitivas e o behaviorismo do que aquelas sublinhadas por Gardner. Num primeiro aspecto, a linguagem da primeira fase da cibernética e do behaviorismo revela proximidades, pois em ambos prevalece a preocupação com o controle do comportamento e com as performances cognitivas, evitando uma linguagem mentalista. O conceito de input (mensagem de entrada) é próximo ao de estímulo, e o de output (mensagem de saída) ao de resposta. O que afasta a primeira cibernética do behaviorismo O conceito de FEED - BACK dá conta de um mecanismo de é o conceito de FEED-BACK que, enquanto mecanismo retroalimentação, que responde pela circular, se distingue da causalidade linear defendida regulação entre a meta e a ação pelo behaviorismo clássico. A ênfase nos aspectos lógicos efetiva do sistema, dispensando a consideração da intervenção da em detrimento dos aspectos materiais da máquina é consciência humana. outro ponto de distinção e afastamento. Na concepção cibernética de máquina, a lógica toma o lugar da física. A segunda cibernética, representada por John von Foerster, acentuará tal afastamento, através da distinção proposta entre máquinas triviais, que respondem a um sinal, e máquinas não triviais, que processam informação. As primeiras são máquinas estímulo-resposta, enquanto as segundas envolvem cálculo e processamento central de informação. Destacam-se ainda nessa fase os conceitos de autoorganização e de autonomia dos sistemas, que serão retomados alguns anos mais tarde pela abordagem da autopoiese e da enação, a serem tratadas mais adiante. Cabe destacar ainda que Dupuy ressalta a presença de um hibridismo do campo das ciências cognitivas já no momento de seu surgimento, indicando que as críticas ao modelo da teoria da informação, bem como as controvérsias em torno da equivalência entre os sistemas cognitivos naturais e artiiciais, não surgiram apenas após um suposto primeiro momento de euforia e consenso acerca do modelo informacional. De resto, o referido hibridismo dos primeiros anos responderá pela bifurcação operada mais tarde entre duas abordagens rivais: o cognitivismo computacional e o conexionismo. O cognitivismo computacional Duas disciplinas constituem os principais eixos do cognitivismo computacional: a inteligência artiicial e a ilosoia da mente. A inteligência artificial (IA), fundada por JOHN M C C ARTHY, Allen Newell e Herbert 222 JO H N Simon, e a filosofia da mente, cujos M C C ARTHY (1927- ) graduou-se em Matemática no principais representantes são Z ENON California Institute of Technology em 1948. P YLYSHYN e JERRY FODOR, são É um dos fundadores da pesquisa em inteligência as principais referências para artiicial, tendo lecionado em várias universidades como Princeton University, Dartmouth College, Massachusetts a hegemonia do chamado “modelo Institute of Technology e Stanford University. Membro da da representação” por um longo Academia Americana de Artes e Ciências atualmente trabalha a questão da formalização do contexto na lógica matemática. período da história das ciências Z ENON P YLYSHYN (1937- ) estudou engenharia e física na cognitivas. A noção essencial Universidade McGill, e graduou-se Phd em psicologia é a de representação, definida experimental pela Universidade de Baskatchewan. Atualmente trabalha no Centro de Ciências Cognitivas e no Departamento como estado mental dotado de de Psicologia da Universidade de Rutgers. intencionalidade, o que significa JERRY FODOR (1935- ) graduou-se PhD em filosofia (1960). Foi professor do M.I.T. “ser a propósito de alguma coisa”. emdePrinceton 1959 a 1986, atualmente leciona na No âmbito do cognitivismo, o conceito Universidade de Rutgers. de representação, que remonta à filosofia de Franz Brentano (Dupuy, 1996), ganha nuances especíicas. A primeira é que ao adotar o pressuposto ilosóico de que conhecer é representar, considera-se que a representação consiste na representação de um mundo pré-existente (Varela, s.d.). A segunda é que o cognitivismo traduz o conceito de representação pelo conceito de símbolo. A novidade é então o trato com representações isicamente instanciadas na forma de símbolos processados por uma máquina como o computador. Os símbolos são entidades discretas, ao mesmo tempo físicas e semânticas, cuja articulação é baseada num código, ou seja, num conjunto de regras lógicas. A principal característica do cognitivismo computacional é a consideração de um nível da representação, denominado nível simbólico, tido como autônomo em relação aos níveis físico-isiológico e sócio-histórico. É a autonomia do nível simbólico, seu primado, que autoriza a colocação entre parênteses dos outros dois níveis complementares. A cognição é então deinida como processamento simbólico por regras lógicas (Varela, s.d.). A noção de processamento linear da informação é central. Os símbolos se sucedem numa ordem seqüencial, sendo articulados através de uma lógica invariante, refratária às transformações temporais tanto do corpo biológico quanto da história social do sistema cognitivo. Nos quadros do cognitivismo computacional, a investigação da cognição é reduzida a sua sintaxe, a suas regras formais de funcionamento. A dimensão semântica – ou seja, o sentido – não coloca problemas que a sintaxe não possa resolver. A operação cognitiva é como montar um quebra-cabeça (puzzle) cujas peças estão de cabeça para baixo. A montagem seria feita sem levar em conta o 223 desenho da gravura ou a cor das peças – a dimensão semântica –, mas apenas suas formas – a dimensão sintática. A articulação das peças seria realizada apenas através de sua dimensão sintática, sem necessidade da compreensão do conteúdo do desenho. Uma vez terminado o trabalho, se virarmos o puzzle para cima, o desenho surgirá por inteiro. O exemplo do quebra-cabeça (puzzle) serve como ilustração para o chamado “teste de Turing”, que diz respeito a uma situação em que não é possível distinguir quem realizou uma atividade cognitiva, se um homem ou uma máquina. Dupuy (1996) sugere que para entender a natureza desse teste, poderíamos pensar numa situação envolvendo três participantes: um ser humano, uma máquina e um interrogador. Sem ter contato direto com o homem ou com a máquina, o interrogador deve poder determinar quem é quem. A questão é que a máquina é programada para “imitar” o comportamento humano, induzindo o interrogador ao erro. A máquina terá simulado suicientemente bem o comportamento do ser humano se o interrogador for incapaz de decidir adequadamente, icando então indicada a autonomia do conhecimento, aí limitado ao nível das regras lógicas, em relação ao caráter humano ou artiicial do sistema. Enim, o cognitivismo computacional investiga uma cognição destituída de referências biológicas, históricas e experienciais, que não é privilégio nem do homem nem dos seres vivos. Em última análise, ela é uma linguagem formal, um cálculo mecânico passível de repetição e da previsão de seus resultados. A inteligência artiicial (IA) possui duas vertentes: uma teórica e uma tecnológica. Segundo a vertente teórica da IA, a mente humana e o computador são sistemas simbólicos, ou seja, entidades que processam, transferem e manipulam símbolos. O computador é um modelo para o estudo da mente, viabilizando a simulação cognitiva. A noção de modelo é aqui utilizada no sentido inverso daquele utilizado pelo senso comum. Para este o modelo é aquilo que serve de parâmetro para um processo de imitação. Nos quadros da IA, o modelo não é aquilo que é imitado, mas sim o que imita, simula uma atividade cognitiva. A idéia de simulação cognitiva foi transformada num programa de pesquisa levado a cabo na década de 1960, visando ao desenvolvimento de um dispositivo de resolução de problemas geral (general problem solver – GPS). A proposta de Newell e Simon era criar um único programa de computador capaz de solucionar qualquer problema, do mais simples ao mais complexo. Na base desse projeto estão duas idéias. A primeira é que o essencial da atividade cognitiva consiste na solução de problemas e a segunda é que haveria um mecanismo geral para a solução de todo e qualquer problema. O projeto obteve resultados bastante limitados, icando o programa bem 222 aquém da complexidade e da generalidade almejadas por seus idealizadores. A IA volta-se então para o desenvolvimento dos chamados sistemas peritos, bastante especializados e voltados para a solução de problemas especíicos. Tais sistemas, amplamente utilizados em diversos setores da indústria e do comércio, evidenciaram a força da vertente tecnológica da IA, mas ainda se mostraram limitados no que diz respeito à vertente teórica, voltada para o desenvolvimento de modelos para o entendimento da cognição. No que diz respeito à ilosoia da mente, cabe ressaltar o empenho de Zenon Pylyshin e Jerry Fodor para articular dois campos que poderiam parecer até certo ponto incongruentes: a ilosoia e as ciências da computação. Esse empreendimento é evidenciado por Pylyshyn no seu clássico Computation and Cognition (1986). A fórmula proposta pelo autor é: conhecer é computar. A computação não é tomada como uma mera metáfora para a cognição, mas a fórmula é tomada em seu sentido literal e mesmo radical. Esta é também a formulação de Jerry Fodor que, herdeiro de Noam Chomsky, deine a mente através de regras e representações. Sua proposta de formular uma linguagem da mente envolveu a deinição de representação como símbolo, estendendo-a ao âmbito das máquinas. No caso de Fodor, a adoção do modelo computacional não impediu a identiicação de seus limites no que diz respeito à adequação para o conhecimento humano. Nesta direção, há que se destacar sua teoria da modularidade da mente, formulada nos anos 1980. Fodor distingue então na cognição três instâncias: os transductores, os sistemas input e os processadores centrais. Os transductores respondem pela transformação da estimulação proximal em sinais neurais, correspondendo aos nossos órgãos dos sentidos. Os sistemas input são módulos ou compartimentos informacionalmente encapsulados, especíicos de um domínio (como percepção e linguagem), localizados no sistema nervoso, dotados de funcionamento rápido, autônomo, obrigatório e inato, portanto invariante e refratário à interferência da experiência passada. Os processadores centrais são responsáveis pela ixação de crenças (opiniões, valores etc.) e têm um funcionamento holístico, encontrando-se sujeitos à interferência do meio externo. Segundo Fodor, apenas o sistema de módulos apresenta um funcionamento computacional, o que indicaria, em princípio, um limite do modelo para o entendimento da mente humana. No entanto, diante desse impasse, Fodor conclui que só pode haver estudo cientíico daquilo que existe de computacional na mente. É lançando mão dessa manobra que o modelo computacional continua sendo por ele sustentado. 223 Fazendo um balanço do cognitivismo computacional, FRANCISCO VARELA (s.d.) afirma que seu aspecto negativo foi operar um resfriamento formal da cognição, pois investiga uma cognição abstrata, independente e dissociada tanto do corpo quanto dos afetos e da história do sistema. Para Dupuy (1996), o aspecto positivo do cognitivismo computacional é ter evidenciado que a cognição é um processo, concorrendo para a dissolução de uma suposta unidade do sujeito do conhecimento. A idéia de um processo sem sujeito é evidente não apenas na teoria da modularidade de Fodor, mas também em outros autores pertencentes ao campo da IA, como Marvin Minsky. Sua teoria da sociedade da mente constitui já a expressão de um movimento de fragmentação do sujeito cognoscente, já que destitui de unidade o sistema cognitivo e introduz uma multiplicidade em seu interior, o que será ainda mais acentuado pelas abordagens conexionista e da autopoiese nos anos 80, como veremos adiante. Antônio Gomes Penna (1984) destaca a existência de um movimento cognitivista no próprio campo da psicologia. O livro Plans and the Structure of Behavior (1960), publicado na década de 1960, de autoria do psicólogo George Miller, do lingüista Eugene Gallanter (1924- ) e do neuroisiologista Karl Pribram (1919- ), destaca a importância dos conceitos de estrutura e de plano, operando como variáveis cognitivas que organizam e orientam a conduta. No movimento da psicologia cognitiva cabe destacar os trabalhos de Ulrich Neisser (1929- ) no campo da percepção, de Donald Broadbent (1926-1993) no da memória e da atenção, – onde propôs a teoria do canal único –, de George Miller no da memória e de Jerome Bruner (1915- ) e Michael Posner (1936- ) no do pensamento, apenas para citar os mais célebres. O ponto comum entre esses autores é o entendimento do funcionamento dos processos cognitivos como sendo de captação, processamento e conservação de informações provenientes do mundo externo. Cabe ressaltar ainda que as ressonâncias do modelo da teoria da informação na psicologia extrapolam as contribuições de cunho teórico. Como desdobramento desse modelo, destaca-se no campo da clínica a terapia cognitivo-comportamental, proposta por Aaron Beck na década de 1960, cujas bases remetem à obra de Zenon Pylyshyn. Além disso, FRANCISCO VARELA (1946-2001), chileno, cursou Medicina na Universidade Católica (1964-1966) e graduou-se em Biologia na Universidade do Chile em 1967. Obteve o doutorado em 1970 na Universidade de Harvard e retornou ao Chile para desenvolver com Humberto Maturana a teoria da autopoiese. Sua vida acadêmica se dividiu entre várias universidades americanas e européias, tendo se radicado inalmente na França, onde trabalhou seu conceito de enação. Em 1988 foi nomeado diretor de pesquisa no CNRS – Centre Nationale de Recherche Scientiique –, onde permaneceu até sua morte. A extensa pesquisa de Francisco Varela no campo das ciências da cognição e das neurociências tem produzido ressonâncias em diferentes campos d0 saber como a ilosoia e a psicologia. 224 é importante observar que o vocabulário da teoria da informação faz parte ainda hoje da representação social da psicologia, ou seja, da forma como o senso comum pensa habitualmente o funcionamento cognitivo. Em última análise, o movimento cognitivista, tanto na versão psicológica quanto naquelas da ilosoia da mente e da inteligência artiicial, segue o projeto epistemológico da modernidade. Segundo Figueiredo (1995), o caráter central assumido pelo problema do conhecimento na modernidade vem marcado por preocupações epistemológicas e metodológicas. O recurso ao método apresentava-se então como garantia da puriicação do conhecimento de toda subjetividade que pudesse interferir como ruído indesejável na formulação de um conhecimento universal. O homem encarnado e contextualmente situado, considerado fonte de erros e ilusões, deveria então dar lugar ao sujeito epistêmico abstrato, separando assim o particular e contingente do universal e necessário no âmbito do conhecimento. No campo das ciências cognitivas, o projeto epistemológico da modernidade comparece dirigindo a investigação para as leis e princípios invariantes da cognição (Kastrup, 1999). A busca das condições de possibilidade da cognição, invariantes e abstratas, tais como deinidas pelo cognitivismo computacional, segue enim um movimento já iniciado no domínio dos estudos da cognição levados a cabo pela psicologia, como é o caso do gestaltismo e da epistemologia genética de Jean Piaget. Restam excluídas as dimensões temporal, coletiva e viva, que serão retomadas anos mais tarde. Ciências da cognição Cognitivismo computacional Cognitivismo Os modelos da emergência e a contribuição do conexionismo Os modelos da emergência constituem, segundo Francisco Varela (s.d.) a terceira etapa na história das ciências cognitivas, sendo a primeira, como visto, os chamados anos cibernéticos e a segunda, o cognitivismo computacional. Mas, conforme adverte Dupuy (1996), devemos estar atentos ao fato de que essas etapas não mantêm necessariamente uma relação de sucessão cronológica. O que permite manter a denominação “terceira etapa” é apenas uma questão de hegemonia dessas abordagens. O que ocorreu até a 225 década de 1980 não foi a presença exclusiva do cognitivismo computacional e sim o fato de que até esse período, ele dominou o cenário da discussão no campo das ciências cognitivas, bem como capitalizou a maior parte das verbas destinadas à pesquisa. Nesta medida, ele veio a se constituir como um modelo de referência, o que signiicou que todos os autores, concordando ou não com sua adequação, marcaram sua posição em relação a ele. Conforme tivemos ocasião de assinalar, já por ocasião das Conferências Macy, alguns limites do cognitivismo puderam ser evidenciados. Como observa Varela (s.d.), jamais foram encontradas regras lógicas nem um processador central de informação num cérebro real. Além disso, os próprios estudos do cérebro apontavam as diiculdades da perspectiva localizacionista, que pressupunha que a informação fosse conservada em zonas especíicas. Tornava-se evidente, através do próprio trabalho de McCulloch, que o cérebro funcionava por conexões maciças e distribuídas e que a coniguração das ligações se modiicava ao longo da experiência. O funcionamento cerebral tinha um caráter ao mesmo tempo plástico e holístico. Entretanto, esta questão bem como a da aptidão dos neurônios para a auto-organização foram eclipsadas durante quase 30 anos e só voltaram à cena no inal da década de 1970. Varela sugere que seu retorno é tributário do surgimento da noção de auto-organização na física e na matemática não linear. A referência é o trabalho de ILYA PRIGOGINE na área da termodinâmica dos sistemas longe do equilíbrio. Destaca-se ainda a invenção de computadores mais potentes e I LYA P RIGOGINE (1927-2003) graduou-se capazes de apresentar um processamento em Química na Universidade de Bruxelas. O tema principal de seus trabalhos cientíicos foi a de informação paralelo e distribuído. Tais compreensão do papel do tempo nas ciências físicas avanços tecnológicos abriram a possibilidade e na biologia, tendo contribuído signiicativamente para o entendimento de processos irreversíveis, de criação de modelos que replicassem particularmente em sistemas longe do equilíbrio. a cognição da criança em sua notável Recebeu inúmeros prêmios ao longo de sua carreira, entre eles o Prêmio Nobel de Química em 1977 por maleabilidade e potencial modiicação pela sua teoria das estruturas dissipativas. aprendizagem, que vêm substituir os dois JOHN SEARLE (1932- ) iniciou sua graduação em modelos anteriores: o solucionador geral Filosofia em Wiscosin, tendo terminado em Oxford. Trabalhou questões relacionadas aos atos de de problemas e o sistema perito. linguagem, mas seu trabalho mais signiicativo se situa Em síntese, os modelos da emergênno campo das ciências da coginção, onde trabalha o tema da consciência. Atualmente, é professor de cia não constituem exatamente um novo ilosoia na Universidade de Berkeley. paradigma. O que permite reunir um conjunto de autores bastante independentes, e mesmo adversários sob certos aspectos, é o conceito de emergência, que visa explicar como, a partir da reunião de elementos simples, surge uma propriedade nova, que não estava presente em qualquer dos seus elementos. Para elucidá226 lo, JOHN SEARLE (1987) refere-se ao exemplo da água. A molécula de água é composta de dois átomos de hidrogênio e um de oxigênio. No entanto, nem o hidrogênio nem o oxigênio possuem o caráter líquido, que só comparece a partir de uma certa reunião desses elementos, tal como ocorre na fórmula da molécula da água. Segundo Searle, a noção de emergência exige a adoção de uma concepção de causalidade distinta da linear. Na causalidade emergentista, causa e efeito não consistem em dois eventos sucessivos, mas em níveis distintos de descrição da realidade, um referido ao nível microscópico e o outro ao nível macroscópico e observável. No caso da cognição, Searle considera que mente e cérebro não são duas substâncias distintas, como defendem as posições dualistas. Sua tese é de que a mente é uma propriedade emergente do cérebro, causada pelo comportamento dos seus elementos. A máquina não pode ser tomada como causa da mente, pois, segundo Searle, a mais importante característica da mente é a consciência. A consciência é deinida pela presença de uma série de estados qualitativos (qualia), subjetivos e privados, como o cheiro de uma rosa, a percepção do céu azul ou a sensação de dor. Nesta direção, a posição de Searle é de que a sintaxe (nível das regras) não pode explicar a semântica (nível do sentido). Para defender esta tese, ele propôs o experimento de pensamento conhecido como o quarto chinês. Um sujeito que não conhece chinês é colocado num quarto onde existem caracteres do alfabeto chinês, bem como um manual de instruções contendo as regras de sua utilização, em linguagem materna. O argumento de Searle é de que ainda que o sujeito consiga formar frases utilizando o material de que dispõe, simulando para um observador externo que compreende o chinês, isto não signiica que realmente saiba chinês. O experimento do quarto chinês é uma réplica ao teste de Turing e ao exemplo da montagem do quebra-cabeça (puzzle) que apresentamos acima. Nos termos de Searle, o domínio de regras não implica compreensão, e por isso não autoriza airmar que houve um processo cognitivo pleno. Dentre as abordagens da emergência, o conexionismo é um movimento ocorrido no interior da própria IA e tem como representantes James McClelland, David Rumelhart, Geoffrey Hinton e Paul Smolensky. O que caracteriza essa abordagem é uma crítica ao entendimento da cognição a partir do nível simbólico das representações. O conexionismo considera que a cognição funciona num nível sub-simbólico, que é composto por unidades simples que se conectam através de processamento paralelo e distribuído (PPD). Segundo os autores, tarefas simples como o reconhecimento de iguras não podem ser explicadas através de um modelo de causalidade linear, lógica e abstrata, 227 como defendia o cognitivismo computacional. Neste sentido, ica evidente que a crítica não incide sobre a utilização do modelo computacional, mas sobre um certo tipo de modelo, encarnado pelas máquinas de processamento linear. Nesta medida, os engenheiros conexionistas desenvolvem um modelo baseado em máquinas mais rápidas e inspiradas no funcionamento do cérebro. Este modelo icou conhecido como modelo de redes neurais, cuja propriedade é a emergência de propriedades globais a partir de um conjunto de elementos simples e não inteligentes. Tais propriedades globais correspondem aos comportamentos cognitivos. Além da recusa dos símbolos, o conexionismo nega a existência de regras lógicas, abstratas e invariantes, considerando que as ligações entre os elementos modiicam-se ao longo da história do sistema. A regra proposta pelo isiologista Donald Hebb (1904-1985) na década de 1940 servirá de referência para o entendimento da mudança gradual das ligações entre os elementos sub-simbólicos. Segundo a regra de Hebb, quando dois neurônios são ativados simultaneamente, a conexão entre eles tende a ser fortalecida; do contrário, ela é enfraquecida. A tônica incide sobre a reciprocidade das conexões, e não sobre sua linearidade. A regra de Hebb regula a mutação gradual e a dinâmica das ligações a partir de um estado inicial mais ou menos indiferenciado e arbitrário. Neste caso, a coniguração das ligações é inseparável da aprendizagem, ou seja, das tarefas realizadas e das transformações das conexões que têm lugar no sistema ao longo de sua história. Henrique del Nero (1994) aponta o quanto o modelo das redes neurais constitui uma divergência em relação ao behaviorismo. Pelo fato de considerar uma rede de conexões que se interpõe entre o estímulo e a resposta, coloca em xeque a questão da previsibilidade do comportamento. As divergências entre o cognitivismo computacional e o conexionismo são algumas vezes minimizadas, sendo as duas consideradas apenas abordagens complementares e correspondendo a níveis de explicação ou estados distintos da cognição. Uma outra maneira de ligar computação simbólica e emergência subsimbólica é considerar que os símbolos são apenas a descrição de propriedades de um sistema distribuído subjacente. Esta é, de resto, a compreensão de Varela (s.d.), para quem o nível simbólico não deve ser entendido como restringindo os comportamentos possíveis do sistema cognitivo, mas sim como macrodescrições aproximativas de operações no nível sub-simbólico. A observação de Varela busca preservar a autonomia do nível sub-simbólico, que responde pelo aspecto de gênese da cognição, que foi evidenciado pelo conexionismo e desconsiderado pelo cognitivismo computacional. Na 228 perspectiva inclusiva defendida por Varela, preservam-se dois aspectos que caracterizam a abordagem da emergência. Em primeiro lugar, a idéia de que cada unidade funciona no seu ambiente local, destacando-se aí que o sistema não é acionado por um agente exterior. É a natureza coniguracional do sistema que faz com que a cooperação global tenha uma emergência espontânea. Em segundo lugar, a idéia de que as regras são temporárias e destituídas de fundamento, apenas apoiadas nas conexões formadas ao longo da história do sistema, e não lógicas, invariantes e abstratas. É importante sublinhar que o conexionismo critica o conceito de símbolo, mas mantém o de representação, redeinindo-o e propondo o conceito de representação distribuída. Segundo tal perspectiva, a representação não é formada a partir de objetos ou informações do mundo externo, mas sim pelas conexões que se estabelecem ao longo da história do sistema. Num balanço das contribuições do conexionismo, observamos que o ponto mais decisivo é o desenvolvimento da noção de rede de conexões que, em sintonia com os estudos desenvolvidos pelas neurociências, aponta o caráter acentrado e distribuído da cognição, retirando o sujeito do centro do processo de conhecimento. O conceito de representação distribuída é outro ponto a ser destacado. No entanto, segundo Varela, os engenheiros da IA trabalham com tarefas simples e predeinidas, limitando ainda a cognição a um processo de solução de problemas e mantendo o critério de otimização da cognição bem como o pressuposto de mundo dado e predeinido, típicos do realismo cognitivo que é característico desse modelo chamado de representacional. No artigo “A dimensão ilosóica do conexionismo” (1998) o ilósofo Hubert Dreyfus procura avançar nessa discussão. Dreyfus icou conhecido no âmbito das ciências cognitivas por ser um autor que desde sempre promoveu uma crítica radical à utilização do computador para o entendimento da mente humana. Desde o célebre O que os computadores não podem fazer? (1972), que já no título evidencia a preocupação com os limites do modelo computacional, sua posição tem sido de recusa intransigente do cognitivismo computacional. Inspirado nas idéias de Martin Heidegger e Maurice Merleau-Ponty, Hubert Dreyfus considera que o background em jogo nas atividades cognitivas cotidianas jamais poderia ser transformado em sintaxe, como pretende a IA. O background resiste à formalização não apenas pela enorme quantidade de experiências que possui, mas sobretudo porque ter uma regra não é o mesmo que saber aplicá-la. A aplicação de uma regra depende da avaliação de sua pertinência para a situação em questão, remetendo ainda ao valor que lhe é atribuído, em função das circunstâncias que marcaram sua aquisição, 229 e assim sucessivamente. Ao comentar o conexionismo, Dreyfus toma como exemplo a aprendizagem do jogador de xadrez e do motorista. No início do processo de aprendizagem, o sujeito recebe instruções gerais sobre como se conduzir, agindo através da mediação de regras e representações. Com o desenvolvimento do aprendizado, a conduta vai se tornando cada vez mais imediata e contextual, prescindindo de tal mediação. O caminho do aprendizado vai do abstrato e geral ao concreto e contextual. Dreyfus airma que a explicação cognitivista dá conta apenas da cognição do iniciante, cuja conduta é guiada por regras, enquanto o conexionismo estaria muito melhor habilitado para o entendimento da aprendizagem da perícia. Segundo Dreyfus, a dimensão ilosóica do conexionismo está pautada no reconhecimento de que a representação distribuída não mantém uma relação de correspondência com os elementos do mundo externo. O reconhecimento de um objeto envolve toda a rede de conexões sub-simbólicas, sem recorrer à medida da semelhança predeterminada de traços do mundo externo. A teoria da autopoiese e abordagem da enação A teoria da autopoiese foi criada por Humberto Maturana (1928) e Francisco Varela. No livro Autopoiesis and Cognition (1980), os dois biólogos chilenos apresentam sua primeira crítica sistemática à abordagem dominante da teoria da informação. No prefácio à reedição do livro, 20 anos depois de sua publicação original (Maturana e Varela, 1997), Maturana conta que foi levado a formular o conceito de autopoiese quando perguntado por um aluno sobre o que era um ser vivo. Relata que nessa ocasião não foi capaz de responder que o sistema vivo era um sistema de processamento de informação, pois não acreditava mais naquele que ainda era um modelo hegemônico na época. Pede um ano para pensar e, em parceria com seu aluno e doravante parceiro Francisco Varela, vem a formular aquela que icou conhecida como a teoria da autopoiese. De acordo com essa abordagem, os sistemas vivos são deinidos como sistemas autopoiéticos. Estes se deinem como sistemas autoprodutivos, ou seja, que têm como característica produzirem-se a si mesmos enquanto funcionam. Eles se distinguem dos sistemas alopoiéticos, que produzem coisas distintas deles mesmos. O conceito de autopoiese encontra suas bases no conceito de auto-organização, formulado pela segunda geração da cibernética. 230 Denominados por Daniel Andler (1988) “rebeldes”, Maturana e Varela são críticos severos do modelo da representação, que era até então hegemônico nas ciências cognitivas. Na versão concebida pela teoria da informação, o funcionamento cognitivo é explicado pelos inputs provenientes do mundo externo, que são processados linearmente por regras lógicas e saem sob a forma de outputs. O chamado “modelo do tubo” trabalha com o pressuposto de um mundo predeinido, de resto presente nas demais versões do realismo cognitivo. A esse modelo Maturana e Varela opõem o modelo da célula, que é um sistema fechado, dotado de uma membrana que o distingue do seu entorno. A noção de clausura operacional dá conta do mecanismo de funcionamento do sistema vivo. A ênfase dos autores incide sobre a emergência do sistema vivo a partir de uma rede de processos físico-químicos. Com o surgimento da membrana, organismo e meio são deinidos de modo simultâneo, recíproco e indissociável. Entre organismo e meio a causalidade não é linear, mas circular. O sistema vivo é um sistema cognitivo. Quando colocamos o problema – O que surge primeiro, o sistema cognitivo ou o mundo conhecido? – nos vemos diante de uma alternativa que Varela chama de posição da galinha ou posição do ovo. Na posição da galinha, consideramos que o mundo vem primeiro e a tarefa do sistema cognitivo é representá-lo de modo adequado. Na posição do ovo, entendemos que o sistema cognitivo cria o próprio mundo através de suas regras internas. No entanto, segundo Varela, trata-se de um problema mal colocado, pois galinha e ovo deinem-se mutuamente e são correlativos. A alternativa proposta é uma via intermediária, onde sistema cognitivo e domínio cognitivo são co-engendrados num movimento de vaivém, através de um mecanismo de causalidade circular. A fórmula proposta é: ser = conhecer = fazer. Em A árvore do conhecimento (1986), Maturana e Varela destacam o papel da ação, em lugar da representação, para o entendimento da atividade cognitiva. A ênfase na ação e em seu papel na construção do sujeito e do objeto do conhecimento aproxima a teoria da autopoiese do construtivismo de Jean Piaget. No entanto, o problema da lógica da ação, tão caro a Piaget, será substituído pelo problema do luir da conduta (Kastrup, 1999). Neste sentido, cabe ressaltar a importância do conceito de BREAKDOWN, que procura dar conta do fato de O BREAKDOWN é uma quebra que o ambiente perturba, mas não informa. O conceito de continuidade, uma rachadura de breakdown busca explicar a invenção de problemas, no fluxo habitual da ação, e não é considerado apenas uma que até então icara ausente da teorização cognitiva, que exceção, mas parte essencial do restava limitada à solução de problemas. Vale lembrar funcionamento cognitivo. também que a noção de acoplamento estrutural, proposta 231 por Maturana e Varela, promove em relação ao conceito de adaptação uma crítica homóloga àquela já referida ao conceito de representação. A adaptação não é entendida como adequação da conduta a um mundo preexistente, mas acoplamento direto entre o sistema cognitivo e o domínio cognitivo, envolvendo composição, ou seja, transformação mútua e permanente do organismo e do ambiente. Não se trata de adaptar-se ao meio e sim de compor com o meio. Desfeita a parceria com Maturana e após se radicar na França, Varela formula a abordagem da enação. No livro escrito em parceria com Evan Thompson e Eleanor Rosch que foi traduzido no Brasil com o título A mente incorporada (2003), dois aspectos serão enfatizados. O primeiro é a questão da corporiicação do conhecimento. Para questionar a separação mente e corpo, tão cara ao cognitivismo computacional, Varela busca referências na obra de Merleau-Ponty. Seu interesse recai sobre as obras A estrutura do comportamento e Fenomenologia da percepção e principalmente sobre o conceito de corpo próprio. A cognição não está na cabeça, mas envolve todo o corpo. A separação entre mente e corpo, tomados como duas substâncias distintas, é substituída pela noção de corpo cognitivo. Tal dicotomia deve ser superada, pois o conhecimento não é uma atividade puramente mental. Também não basta situar a base corporal do conhecimento no cérebro ou mesmo no sistema nervoso. Para Varela, há cognição mesmo onde não há neurônios, como atestam os estudos realizados sobre o sistema imunológico, que evidenciam um mecanismo de memória e reconhecimento. O corpo cognitivo é situado e conigurado ao longo de sua história, constituindo-se ao mesmo tempo que seu domínio cognitivo e sendo dele inseparável. O segundo aspecto ressaltado é a dimensão de invenção de mundo que a cognição possui. Mais uma vez, agora de maneira ainda mais contundente, o pressuposto de um mundo dado é recusado. É esta idéia que se encontra presente no conceito de enação, que provém do inglês enaction, que signiica interpretar, pôr um mundo, conigurá-lo. Enim, na abordagem da enação a ênfase recai sobre o mecanismo de co-engendramento, recíproco e indissociável, do si e do mundo. Cabe por im ressaltar que além das referências ilosóicas, abundam nesse livro as referências às tradições orientais, em especial ao BUDISMO TIBETANO, do qual o próprio Varela foi um praticante declarado. A introdução do Budismo no cenário das ciências cognitivas causou polêmica, mas permaneceu O BUDISMO TIBETANO, ou Budismo Vajrayana, é o resultado do sincretismo da corrente tântrica do Budismo Mahayana com a religião local tibetana Bon. Esse sincretismo originou a instituição do Lamaísmo, exclusiva desta forma de Budismo. Ele incorporou os escritos e a inluência tântrica de um período tardio (século VII d.C. e, por isso, sofreu grande inluência da cultura indiana. Além disso, o Budismo Tibetano é, nas palavras de S. S., o XIV Dalai Lama, “a mais completa forma do budismo. Ele inclui todos os ensinamentos essenciais das várias tradições do Budismo que existem hoje em diversas partes do mundo”. Ou seja, ele inclui ensinamentos dos três Giros da Roda do Darma: Hinayana, Mahayana e Vajrayana. 232 como uma constante até seus últimos trabalhos, acentuando ainda mais a transdisciplinaridade desse campo. Um outro aspecto da abordagem da enação é a relevância conferida ao senso comum. Segundo Varela, a cognição não pode ser adequadamente compreendida sem a referência a ele, que é formado ao longo da história física e social do sistema cognitivo. Segundo o modelo do co-engendramento, o senso comum e o contexto são especiicados através de uma causalidade circular. O senso comum não equivale a regras abstratas e o contexto não se confunde com um mundo absoluto e independente. A partir de tais colocações, Varela distingue dois tipos de representação: a representação em sentido forte e a representação em sentido fraco. A primeira caracteriza o chamado “modelo da representação” e é fundada em pressupostos ontológicos e epistemológicos. O pressuposto ontológico é que o mundo é predeinido e o pressuposto epistemológico é que a atividade cognitiva consiste em representações, nas quais se baseia a conduta. A segunda noção, a representação em sentido fraco, possui apenas um sentido pragmático, e diz respeito a uma interpretação ou a um certo modo de conhecer que resulta da experiência, sem que se recorra ao pressuposto de um mundo dado que lhe sirva de fundamento. Varela dirige sua crítica à representação em sentido forte, e não em sentido fraco. A manutenção da segunda justiica-se tendo em vista a consideração da invenção prévia das regularidades cognitivas, bem como sua abertura permanente a transformações subseqüentes. Em outras palavras, a representação em sentido fraco é uma certa solução de um problema que se encontra aberta a futuros breakdowns. Os anos 1990: a década da consciência Enquanto o surgimento das ciências cognitivas fez com que o estudo da mente retornasse ao cenário cientíico no início da segunda metade do século XX, nos últimos anos assiste-se à retomada da investigação da consciência. Pela quantidade de artigos e livros dedicados a esse tema, a década de 1990 é chamada de década da consciência. Entre o retomada da mente e a retomada da consciência, passa-se quase meio século. A retomada da consciência signiica uma reconciliação entre a ciência e a experiência. O tema da experiência foi eclipsado pelo veto positivista, proferido por Augusto Comte no seu Curso de Filosoia Positiva (1972 [1851]). Para Comte, ou bem fazemos ciência ou bem estudamos a experiência, pois o estudo da realidade subjetiva é necessariamente carregado de subjetivismo. As críticas de Comte ao método da introspecção 233 tornaram-se célebres e produziram forte efeito sobre o campo da psicologia, o que pode ser evidenciado pela força assumida pelo behaviorismo durante quase quatro décadas (1920-1960). Num congresso realizado em Tucson em 1994, o jovem ilósofo americano David Chalmers airmou que a ciência da consciência era na atualidade o nosso o hard problem – o mais difícil e, ao mesmo tempo, mais urgente desaio. Uma das tentativas de resenhar algumas das posições mais signiicativas nessa área foi empreendida por John Searle em seu livro O mistério da consciência (1998). Searle airma que a questão da atualidade é transformar esse mistério em um problema passível de investigação rigorosa por parte de ilósofos e cientistas. As abordagens da consciência apresentadas no livro de Searle formam um espectro variado de posições, muitas delas conlitantes. As teorias de Francis Crick, Gerald Edelman, Roger Penrose, Daniel Dennett, David Chalmers e Israel Rosenield são comentadas numa ampla discussão, onde ganham destaque o problema mente-corpo e as recentes polêmicas acerca da distinção entre o dualismo de substância e de propriedades. Deve ser acrescentada aqui a posição assumida por Francisco Varela que, embora ausente no livro de Searle, apresenta uma das contribuições mais inovadoras na contemporaneidade. A originalidade de sua abordagem reside em estudar a consciência tendo rompido com o modelo da representação, como vimos anteriormente. Nos anos 1990, Varela desenvolveu dois eixos de pesquisa distintos e complementares. O primeiro situa-se na área das neurociências e volta-se para o estudo do cérebro, através das recentes tecnologias de pesquisa. Cabe sublinhar que as técnicas de ressonância magnética produziram um grande avanço nessa área, por sua notável superioridade em relação ao antigo registro através do eletroencefalograma, pois permitiram a observação do funcionamento do cérebro diante de situações especíicas e momentâneas. A pesquisa de Varela e sua equipe buscou investigar a dinâmica da atividade cerebral de um momento da experiência. Resultou daí a teoria da sincronização em larga escala, apresentada no artigo “The brainweb: phase synchronization and large-scale integration” (“A rede cerebral: sincronização de fase e integração em larga escala”), publicado na revista Nature. Segundo essa teoria, os neurônios possuem uma oscilação constante. Num certo momento, diversos pontos do cérebro passam a oscilar juntos, entrando em sincronia. O mecanismo revela a formação transitória de grupos síncronos, envolvendo não apenas neurônios em contigüidade espacial, mas também distantes e distribuídos de maneira ampla pelo cérebro. Essa sincronia surge e desaparece em seguida, revelando 234 uma dinâmica cerebral semelhante a ondas que emergem e se desfazem, sem que tal funcionamento tenha um centro de controle. O segundo eixo de pesquisa é desenvolvido no campo filosóficoepistemológico e é dedicado ao estudo da experiência. Para o trabalho neste segundo eixo, Varela associou-se à ilósofa Natalie Depraz e ao psicólogo Pierre Vermersch, ambos ligados à fenomenologia de Husserl. O recurso à fenomenologia deveu-se à sua contribuição ao estudo da experiência na ilosoia ocidental. Vale lembrar que o domínio das ciências cognitivas na atualidade divide-se em duas vertentes: aquela cujos trabalhos Dentro do pensamento conapóiam-se na fenomenologia e aquela cuja referência temporâneo, o que se costuma ilosóica é buscada na FILOSOFIA ANALÍTICA, como chamar de FILOSOFIA ANALÍTICA não é é o caso do cognitivismo computacional. É, exatamente um movimento homogêneo, e sim um conjunto de tendências que portanto, com dois fenomenólogos que Varela colocam como tarefa básica da ilosoia a veio a escrever seu derradeiro livro, publicado análise da linguagem, de modo a encontrar elementos simples de relacionamento com após sua morte precoce, com o título On Becoming o mundo. Neste movimento predominam Aware (O devir consciente, 2003). O tema do livro as ilosoias de língua inglesa, talvez por causa da presença, em seu início, de é o devir consciente. Este tem lugar quando algo ilósofos como Bertrand Russell e George Moore. que nos habitava de modo implícito, difuso e virtual vem a aparecer no campo da experiência de modo claro. Adotando uma posição nomeada de pragmática fenomenológica, os autores buscam o desenvolvimento de uma metodologia em primeira pessoa para sua investigação, ao contrário de autores como Crick e Dennett, cujas investigações acerca da consciência restam limitadas à metodologia de terceira pessoa. Como airma Varela em seu artigo “O estudo cientíico da consciência” (2003), a necessidade do desenvolvimento das metodologias em primeira pessoa já havia sido sublinhada por Chalmers, sendo essencial para complementar o estudo da consciência realizado através de métodos em terceira pessoa pelas neurociências, o que evidencia que na obra de Varela qualquer tipo de reducionismo neuroisiológico encontra-se descartado. O reducionismo neuroisiológico consiste em reduzir o estudo cientíico da mente e mesmo da consciência a seus correlatos no sistema nervoso. A metodologia proposta por Depraz, Varela e Vermersch é inspirada no método da redução fenomenológica apresentado por Husserl (Depraz, Varela e Vermersch, 2003). Na obra de Husserl, o método da redução consiste na colocação entre parênteses de todo juízo acerca do mundo. Os autores observam que embora essa colocação seja fundamental, Husserl não chegou a explicitar como ela se daria, nem tampouco atentou para as diiculdades que poderiam advir de sua implementação por parte de um agente. A partir 235 daí, procuram lançar as condições para transformá-la numa verdadeira metodologia, deinindo três gestos procedurais: a suspensão, a redireção da atenção do exterior para o interior e a mudança da qualidade da atenção, da busca para o acolhimento da experiência (letting-go). Através desses três gestos, o objetivo é acessar um plano de vitualidade de si, onde a experiência não é de um sujeito, mas impessoal e pré-subjetiva. No método da introspecção, sobretudo naquele proposto por Wundt e Titchener, o treino dos sujeitos experimentais visava à transformação da autoobservação em primeira pessoa em observação em terceira pessoa, sobretudo através da análise da experiência. No método da redução proposto por Depraz, Varela e Vermersch, o ato de voltar-se para si faz-se através do ato reletinte, que consiste num gesto de conhecimento de si sem relexão. Sua prática também exige, como na introspecção clássica, um treino especíico e disciplinado. Mas trata-se aí não do desenvolvimento de uma habilidade sensório-motora, mas antes de uma aprendizagem da atenção. A distinção não se dá pelo caráter treinado ao qual se oporia um suposto espontaneísmo. Há um aprendizado inelutável da atenção que ocorre no seio de uma tradição – seja ela o Budismo, a psicanálise, o ensino de ilosoia ou o exercício da escrita – e que se faz através de exercícios reiterados em sessões sucessivas. A suspensão, a redireção e o letting-go são seguidos pela experiência da evidência intuitiva, que completa o ato do devir consciente. A preocupação dos autores é ainda promover o treino da descrição de tal experiência com vistas a transformá-la numa metodologia rigorosa de pesquisa. Na investigação do devir consciente, o desaio é trazer ao cenário contemporâneo uma região até então inexplorada pela psicologia e pelas ciências cognitivas de modo geral. Fazendo do devir consciente um problema, Depraz, Varela e Vermersch apostam na necessidade da investigação daquilo que na cognição é mais um processo que um estado mental, dando mais um passo para o esclarecimento de um processo sem sujeito, que as ciências cognitivas evidenciaram desde seu surgimento. Para a psicologia, é mais um problema que força a pensar e que exigirá a busca de novas soluções teóricas e práticas em seu domínio de atuação. Indicações estéticas e bibliográficas a) Literatura: Philip K. Dick. Do Androids Dream of Electric Sheep? Ray Bradbury. Crônicas marcianas. Isaac Asimov. Eu, robô. 236 b) Filmes: Ridley Scott. Blade runner. Stanley Kubrick. 2001, uma odisséa no espaço (baseado no livro homônimo de Arthur Clarke). Steven Spielberg. Inteligência artiicial. c) Artes plásticas: Marinetti e o movimento futurista na arte contemporânea. Muitas dessas obras são historicamente anteriores ao próprio surgimento das ciências cognitivas, estando ligadas a problemas e discussões intrínsecos ao campo do qual fazem parte: literatura, cinema, artes plásticas. No entanto, elas permanecem atuais e até hoje fazem pensar em questões pertinentes ao campo das ciências da cognição, como a questão das máquinas pensantes. De todo modo, podem constituir uma via de entendimento interessante e que complementa o estudo cientíico. Nota • Colaborou neste capítulo Gustavo Cruz Ferraz, mestrando do Programa de Pós-Graduação em Psicologia do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, na redação das notas biográicas. Agradecemos também aos professores André do Eirado, Arthur Arruda Leal Ferreira e Paulo Ghiraldelli pela ajuda na composição das demais notas. Referências Andler, D. (1988) As ciências da cognição. In: Jean Hamburger (org.) A ilosoia das ciências hoje. Lisboa: Fragmentos. Beck, A. (1976) Cognitive Therapy and Emotional Disorders. Nova York: International University Press. Broadbent, D. A mechanical model for human attention and memory. Psychological Rewiew, 64: 205-215. Comte, A. (1972) Curso de Filosoia Positiva. In: Pessanha, J. A. (org.) Os Pensadores. São Paulo: Abril. Del Nero, H. S. (1994) Do behaviorismo às redes neurais. In: Paulo Abrantes (org.) 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As ciências cognitivas: tendências e perspectivas. Lisboa: Instituto Piaget. Wiener, N. (1948) Cybernetics. Cambridge, Mass.: MIT Press. 238 Capítulo 14 As ciências cognitivas no Brasil Adriana Benevides Soares Os grupos de ciências cognitivas no Brasil se caracterizam por uma deinição ampla do termo, não tendo todos uma preocupação formal com os aspectos representacionais e experimentais exigidos em uma perspectiva mais estrita do campo. Descreveremos aqui alguns poucos grupos considerados signiicativos e expressivos no desenvolvimento da área, seja pelo impacto de sua produção cientíica, seja pela divulgação e desenvolvimento de trabalhos multidisciplinares deste campo de pesquisa. O primeiro grupo, intitulado Laboratório de Estudos Cognitivos do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, criado em 1973, tem desenvolvido e atuado basicamente em três temas. O primeiro, Ciência cognitiva aplicada, pesquisando aspectos da cognição tais como os lingüísticos, neurológicos, psicológicos e sociológicos; a inteligência natural e suas relações com a inteligência artiicial e ainda suas aplicações e implicações no campo educacional. Este tema tem envolvido o estudo e o desenvolvimento de metodologias de ensino-aprendizagem para a educação geral e para a especial. O segundo, Ecologias cognitivas: produção de conhecimento, aprendizagem e cognição, abrange o estudo da aquisição, do processamento e da consolidação do conhecimento na interface com diferentes ecologias sociais/ institucionais tais como a escola, a clínica, as tecnologias da comunicação e da informação. Enfatiza os efeitos das novas tecnologias nos processos de cognição, subjetivação e sociabilidade. O terceiro, Processos cognitivos básicos e aplicações, tange a problemática da cognição dentro dos novos territórios e paisagens psicotecnosociais. Interessa-se por pensar a cognição como constituída e constituidora das transformações nas formas de pensar e também nas realidades psíquicas, sociais e institucionais com o advento de tecnologias intelectuais e, mais ultimamente, com os processos de digitalização 239 da informação. É um grupo que apresenta expressiva colaboração com a área de informática na educação e tecnologias educacionais. O segundo grupo, caracterizado pela Pós-Graduação em Psicologia Cognitiva, foi criado em 1976 pelo Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Pernambuco. Realiza pesquisas sobre as relações entre cultura e cognição, desenvolvimento cognitivo, linguagem, educação matemática e cientíica, lógica mental e argumentação. Tem sido um grupo de pesquisa de grande repercussão para a psicologia cognitiva brasileira e tem em desenvolvimento projetos sobre os processos psicológicos, interpessoais e contextuais envolvidos na aquisição da linguagem, da leitura e da escrita; sobre práticas culturais e sua relação com a construção do signiicado; sobre o desenvolvimento da linguagem, do raciocínio lógico, matemático, cientíico e da argumentação informal em crianças, adolescentes e adultos; e ainda pesquisas que visam à compreensão da emergência e desenvolvimento de conceitos em domínios especíicos da matemática e das ciências. Esse grupo tem também em desenvolvimento instrumentos didáticos e tecnológicos para uso educacional. Tem uma produção nacional e internacional das mais importantes na área da psicologia cognitiva e, já há alguns anos, mestrado e doutorado com a maior avaliação da CAPES. O terceiro grupo, de “Auto-organização” (Grupo Interdisciplinar do Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência – CLE), fundado em 1986 na Unicamp, tem por objetivo realizar estudos sobre o conceito de autoorganização e as possibilidades de sua aplicação em algumas áreas especíicas do conhecimento, buscando a identiicação de fenômenos caracterizados como auto-organizados. Sendo assim, o grupo estuda o conceito de auto-organização e suas possibilidades de aplicação na ciência cognitiva, mais especiicamente aquelas relacionadas aos estados e processos mentais; suas relações com os conceitos envolvidos na ciência dos sistemas, buscando a identiicação de fenômenos caracterizados como auto-organizados nos diferentes tipos de sistemas dinâmicos; sua aplicação nas ciências da vida, principalmente aquelas relacionadas aos processos biológicos; e também sua aplicação no estudo da criatividade, identiicando fenômenos auto-organizados no processo criativo. É um grupo essencialmente interdisciplinar fundamentado nas questões centrais da ciência cognitiva. O quarto, o Grupo Acadêmico Estudos Cognitivos (GAEC), iniciou suas atividades em 1990, no Departamento de Filosoia da UNESP, tendo como objetivo central a pesquisa ilosóico-interdisciplinar sobre a natureza dos processos cognitivos na perspectiva da ciência cognitiva dinâmica e da 240 ilosoia da mente. Este são os principais temas de investigação do GAEC: o primeiro, que aborda a natureza da mente tratando da questão dos seus conteúdos e sua localidade à luz da ilosoia da mente contemporânea e dos atuais estudos da cognição é Externalismo versus internalismo. Este tema dá especial ênfase à pesquisa acerca da natureza e do papel cognitivo supostamente desempenhado pelas representações mentais. O segundo, Memória, auto-organização e identidade pessoal, trata da natureza da memória e sua relação com o processo de formação de identidade pessoal a partir da teoria da auto-organização e da teoria sociocultural da memória, sendo esta perspectiva contrastada com a visão mecanicista da mente. O terceiro, O processo de auto-organização na aquisição do conhecimento, estuda a dinâmica dos processos que se organizam independentemente de um centro organizador ou de qualquer programa pré-estabelecido. Algumas aplicações dessa dinâmica são propostas no estudo do processo de aquisição do conhecimento comum e aos modelos de redes neurais. O exame dos conceitos de auto-organização, emergência, informação, hábito e crença, a partir da perspectiva ilosóicointerdisciplinar, constituem o foco central das pesquisas desenvolvidas nesta área. O quarto, O problema mente-corpo no paradigma conexionista, estuda o problema mente-corpo na perspectiva cartesiana. Esta perspectiva é criticada a partir da concepção conexionista da ciência cognitiva dinâmica e da teoria sistêmica que caracterizam a mente como um produto emergente da interação entre o organismo e o meio ambiente. Esse grupo trabalha em estreita colaboração com o de Auto-organização da Unicamp. É também interdisciplinar e adota uma perspectiva teórica das ciências cognitivas. O quinto grupo, fundado em 1992, reúne pesquisadores do Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense e do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Realiza uma abordagem transdisciplinar da cognição, através de interfaces da psicologia com a ilosoia, a biologia e a comunicação. O grupo trabalha com a deinição da cognição como criação de si e do mundo, investigando processos cognitivos tais como os da aprendizagem, da linguagem e da atenção. Desenvolve também pesquisas de campo abordando a relação das tecnologias, da experiência com a arte, com a clínica, com as instituições, revelando assim a dimensão ética e política da cognição. Tem como linha de pesquisa a questão da cognição e da subjetividade. É um grupo de psicologia em interação com as ciências cognitivas. O sexto grupo, intitulado Laboratório de Ciências Cognitivas da Universidade Estadual do Norte Fluminense, foi criado em 1996 e extinto em 2002. Criado pela autora deste capítulo em 1996, tinha como núcleo o 241 desenvolvimento de pesquisas multidisciplinares em colaboração com o GEAC e o CLE baseando-se principalmente no desenvolvimento de pesquisas sobre os processos representacionais mentais aplicados à matemática e à computação e também sobre a aquisição da linguagem. Desse laboratório inicial surgiu um novo grupo interdisciplinar que estuda e investiga aspectos da cognição e da linguagem. O mestrado, decorrente desse grupo, em Cognição e Linguagem hoje preocupa-se em desenvolver pesquisas que se caracterizam pelo estudo dos processos cognitivos, da ilosoia da mente e das interações sociocognitivas. Ainda para o desenvolvimento deste campo conta-se com o esforço de inúmeros pesquisadores de psicologia, ilosoia, informática e outros que por razões diversas não constituem grupos de pesquisa em ciências cognitivas, mas que não são menos importantes para que este campo se torne ainda mais expressivo nos anos a vir. Referência Informações relevantes e atualizadas sobre estes grupos de pesquisa podem ser encontradas no site do CNPq http://dgp.cnpq.br/diretorioc 242 Capítulo 15 O funcionalismo europeu: Claparède e Piaget em Genebra, e as repercussões de suas idéias no Brasil Regina Helena de Freitas Campos Denise Maria Nepomuceno O movimento funcionalista em psicologia é, em geral, caracterizado como uma proposta de interpretação dos fenômenos psicológicos tipicamente norte-americana, derivada do pragmatismo (cf. capítulo 7). Descrita como um protesto contra a psicologia da consciência defendida por Wundt, voltada para o estudo da estrutura da mente (cf. capítulo 5), a perspectiva funcionalista focaliza o funcionamento da mente e seu papel na adaptação do organismo ao ambiente..Assim, as funções mentais são tratadas como totalidades em ação, e busca-se explicá-las em termos de suas inalidades no processo de adaptação (Schultz e Schultz, 2000). No entanto, o funcionalismo teve um desenvolvimento importante e original na Europa, através do trabalho iniciado em Genebra por Édouard Claparède (1873-1940), cuja continuidade resultou na obra imponente de Jean Piaget (1896-1980), considerado por muitos como o psicólogo mais importante do século XX. A interpretação genebrina caracteriza-se por uma abordagem dos fenômenos psicológicos do ponto de vista genético-funcional, ou seja, busca-se explicá-los a partir de sua gênese na história do sujeito psicológico, e de sua função no processo de adaptação. Diferentemente do funcionalismo norte-americano, que acabou por privilegiar os processos adaptativos em termos de comportamentos observáveis, a escola genebrina privilegiou o estudo da cognição humana, ou seja, da consciência e do próprio pensamento. Mais que isso, tanto Claparède como Piaget tratam a gênese dos processos cognitivos de um ponto de vista interacionista, isto é, como o resultado da construção progressiva de esquemas de adaptação ao ambiente na interação entre o sujeito e o meio. Assim, os dois rejeitam tanto a perspectiva inatista, que 243 atribui o desenvolvimento psicológico à maturação de estruturas geneticamente determinadas, quanto o ambientalismo próprio do behaviorismo, que atribui todo o desenvolvimento à aprendizagem por condicionamento. Na formulação da Escola de Genebra, a ênfase é colocada no processo de construção das estruturas psicológicas na interação entre o sujeito e o ambiente, tanto físico quanto social. Por isso, a interpretação interacionista é considerada uma alternativa sólida tanto à explicação inatista quanto à ambientalista, na medida em que introduz um terceiro elemento entre as estruturas herdadas e o impacto do ambiente: o indivíduo, com seu movimento espontâneo em direção ao conhecimento do mundo, construindo e reconstruindo progressivamente suas próprias estruturas de conhecimento. Este capítulo descreve o desenvolvimento da abordagem genéticofuncional proposta por Claparède e Piaget, e sua inluência na evolução da psicologia no Brasil, ao longo do século XX. A perspectiva genético-funcional na obra de Édouard Claparède É DOUARD C LAPARÈDE (1873-1940), médico e psicólogo suíço, é considerado pioneiro nos estudos de psicologia da criança. Estudioso dos processos psicológicos do ponto de vista funcional, publicou em 1909 uma de suas obras mais conhecidas, PSICOLOGIA DA CRIANÇA E PEDAGOGIA EXPERIMENTAL. Juntamente com Pierre Bovet, fundou o CLAPARÈDE: formado em Medicina pela Universidade Instituto Jean-Jacques Rousseau em de Genebra, em 1897, fez estágio como neuropatologista 1912, orientado para a formação no Hospital La Salpêtrière, em Paris, em 1897-1898. A partir de 1899, dirigiu o Laboratório de Psicologia da de educadores, para a realização de Universidade de Genebra, onde se tornou professor de pesquisas nas áreas de psicologia e psicologia a partir de 1915. Fundou em 1901, juntamente com Théodore Flournoy, a revista Archives de Psychologie, um pedagogia, e para o incentivo às reformas dos primeiros periódicos em língua francesa dedicados à educativas baseadas no movimento da nova ciência psicológica, do qual foi editor até 1940. Escola Nova (Éducation Nouvelle), que A obra PSICOLOGIA DA CRIANÇA E PEDAGOGIA EXPERIMENTAL foi traduzida em 11 idiomas – romeno, espanhol, russo, Claparède defendia desde 1899, quando turco, alemão, italiano, inglês, húngaro, polonês, tcheco foi co-fundador da Liga Internacional e português –, conforme consta da 11ª edição, feita em Genebra em 1926 (Claparède, E. (1926) Psychologie de l’enfant pela Educação Nova, em Genebra. Em et pédagogie expérimentale. Genebra: Kundig). 1924, o psicólogo colaborou na fundação da Escola Internacional de Genebra e, no ano seguinte, do Bureau Internacional de Educação, atualmente integrado à Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO). 244 A fundação do Instituto Jean-Jacques Rousseau em Genebra, em 1912, tinha por inalidade precisamente promover não só a formação de educadores na perspectiva da educação funcional, como o próprio desenvolvimento da psicologia cientíica. Segundo Antipoff, Claparède pensava que “a escola deve ter por im não tanto o ensino do que já se sabe, mas antes mostrar o que não se sabe ainda, por que não se sabe e o que se deve fazer para saber” (Claparède, citado por Antipoff, 1992 [1940]: 217). O Instituto Rousseau tornou-se logo um dos principais centros de referência sobre o movimento da Escola Nova na Europa, envolvido na crítica à educação tradicional e na defesa de mudanças na educação que tornassem a escola mais humana e mais interessante para as crianças. Para Claparède e seus colaboradores no Instituto, era preciso operar uma verdadeira “REVOLUÇÃO COPERNICANA” na educação, tornando o educando o centro das atividades A escolares. Na perspectiva do grupo genebrino, expressão REVOLUÇÃO seria a própria atividade espontânea da COPERNICANA designa, para Claparède, a mudança que, na sua opinião, deveria criança que deveria guiar o educador, e ser empreendida pelos educadores de sua época. por isso a abordagem que defendiam Assim como Copérnico havia revolucionado a visão dos passou a se denominar “Escola Ativa” astrônomos ao propor que a Terra é que gira em torno do Sol (e não o contrário, como se acreditava), também os (Hameline, Jornod e Balkaïd, 1995). educadores deveriam revolucionar a educação, modiicando a Além disso, associaram-se a Dewey na direção do processo educativo. Em vez de organizar a educação como centro o educador com seu saber, o centro deveria defesa de um papel mais importante tendo ser o educando, com sua curiosidade e desejo de aprender. Por da educação na formação do cidadão, isso, para Claparède, a psicologia seria a mais importante das e, após a Primeira Guerra Mundial, na ciências da educação, por fornecer ao educador as teorias e métodos de pesquisa que lhe permitiriam conhecer promoção de atividades de educação melhor seu aluno, condição necessária para a para a paz (Campos, 2003), inspirando- nova organização do processo de ensino e de aprendizagem. se na “espírito de Genebra”, cidade sede da Liga das Nações, onde se elaborava uma das mais belas utopias do século XX: a “esperança de que uma paz duradoura possa ser obtida graças à arbitragem internacional dos conlitos, ao desarmamento e à cooperação internacional nos campos político, econômico e intelectual” (Vidal, 1998: 101). O conhecimento da psicologia humana era central no projeto humanista e paciista do Instituto, e Claparède será um dos principais estudiosos a propor o aprofundamento dos estudos psicológicos, especialmente do ponto de vista funcionalista. A perspectiva funcional defendida por Claparède tinha origem nas lições de psicologia experimental aprendidas com Flournoy, no Laboratório de Psicologia da Universidade de Genebra, quando estudante de medicina. Foi nesse laboratório que Claparède conheceu William James, cuja teoria 245 da emoção Flournoy admirava e divulgava entre os alunos. Foi também a partir dessa experiência que o jovem estudante veio a se interessar por Alfred Binet (1857-1911)), e um pouco mais tarde por Karl Groos (18611946), que o izeram trocar minha visão fisiológica e cerebral muito estreita dos fenômenos psicológicos por uma concepção biológica mais profunda e dinâmica, que me serviu de io de Ariadne ao longo de meus trabalhos ulteriores. (Claparède, 1941 [1930]: 158) Na busca dessa explicação dinâmica e funcional para os fenômenos psicológicos, Claparède propôs a “lei do interesse momentâneo”, segundo a qual o organismo tende, a cada instante, a seguir a linha de seu maior interesse. Para o autor, a concepção funcional consiste em Figura 1: ícone utilizado como símbolo do Instituto Jean-Jacques Rousseau, mostrando uma criança de pé ao lado de um adulto, que tem um livro na mão. A criança aponta para fora da janela, como a buscar ativamente conhecer a natureza através da experiência concreta. A altura semelhante das iguras sugere uma relação mais igualitária entre professor e aluno. abordar os fenômenos psíquicos do ponto de vista de seu papel, de sua função na vida, de seu lugar na conduta em um momento dado. Isto implica colocar a questão de sua utilidade. Depois de me perguntar para que serve o sono, examinei da mesma forma para que serve a infância, para que serve a inteligência, para que serve a vontade... (Claparède, 1941 [1930]: 162). Esta pergunta “para que serve”, isto é, a questão da utilidade de uma função psicológica no processo de adaptação do organismo ao ambiente, é a questão fundamental proposta pelos funcionalistas. Embora reconhecendo o valor da psicologia experimental praticada nos primeiros laboratórios, como o de Wilhelm Wundt, na Alemanha, Claparède observa que o movimento da psicologia cientíica “parecia ter perdido de vista o indivíduo em seu conjunto, o indivíduo agente, a conduta humana”, procurando determinar as estruturas dos processos psicológicos, e não seu dinamismo (Claparède, 1940: 22-23). A psicologia funcional, por sua vez, cuja origem estaria no trabalho de William James, na América do Norte, é que estaria apta a captar o dinamismo das condutas, podendo ser deinida conforme segue: 246 a psicologia funcional não é mais que a aplicação à psicologia, por um lado, do ponto de vista biológico, e por outro do ponto de vista pragmatista, segundo o qual, antes de mais nada, é a ação que importa: não vivemos para pensar, pensamos para viver. (Claparède, 1940: 23) Dewey também teria contribuído para estabelecer o ponto de vista funcional em psicologia com seu famoso artigo sobre o arco relexo, em que aborda o objeto da psicologia como a “função”, deinida como a síntese entre sensação e reação constituída como um ato adaptativo. Na Europa, Claparède identiica elementos da psicologia funcional nas obras de Karl Groos, na Alemanha, e de Sigmund Freud (1856-1939), na Áustria. Em Groos, o ponto de vista funcional se manifesta na explicação do jogo como uma espécie de préexercício, destinado a desenvolver as funções necessárias ao desenvolvimento. Em Freud, Claparède considera as concepções dinâmicas da vida mental, especialmente os mecanismos de defesa, como expressões de uma perspectiva funcional. Mas é em Genebra, no trabalho de Théodore Flournoy (1854-1920), e no seu próprio, que Claparède identiica com mais precisão a perspectiva funcional em psicologia, centrada no estudo da utilidade das funções para a adaptação. A partir dessa questão, colocam-se outras que, para Claparède, completam o ponto de vista funcional: questões sobre as origens dos processos psicológicos, de sua gênese no desenvolvimento do indivíduo. Claparède buscou exprimir esse ponto de vista dinâmico, genéticofuncional, através de um conjunto de leis que regularia toda a conduta humana. Essas leis descrevem o processo de auto-regulação, próprio dos organismos vivos, pois todo organismo vivo é um sistema que tende a conservar-se intacto. Desde que se lhe rompa o equilíbrio interior (físico-químico), desde que comece a desagregar-se, ele efetua os atos necessários à sua reconstrução. É o que os biologistas chamam de auto-regulação. Pode-se pois deinir a vida como o perpétuo reajustamento de um equilíbrio perpetuamente rompido. Toda reação, todo comportamento, tem sempre por função a manutenção, a preservação ou a restauração da integridade do organismo. (Claparède, 1940: 55) A ruptura do equilíbrio de um organismo provocaria o surgimento de uma “necessidade”, ou seja, de uma falta. Mas o próprio surgimento da necessidade, que se confunde com a sensação da falta, teria a propriedade, segundo Claparède, de provocar no organismo as reações próprias a satisfazêla, buscando recuperar o equilíbrio temporariamente perdido. Esta seria a 247 dinâmica que manteria o organismo em seu movimento vital, sempre ativo em busca da satisfação de suas necessidades. A coordenação entre a necessidade e as reações próprias a satisfazê-la é enunciada por Claparède na forma de uma lei, a primeira das leis da conduta: “toda necessidade tende a provocar as reações próprias a satisfazê-la”. Esta lei tem por corolário a airmação de que “a atividade é sempre suscitada por uma necessidade”. A necessidade seria, portanto, uma motivação intrínseca, provocando ações aparentemente espontâneas, sem a necessidade de um excitante externo. Para Claparède, a presença da motivação intrínseca demonstra que não basta o estímulo externo para provocar a ação: ao contrário, sem essa motivação o indivíduo não é sequer estimulado pelo excitante externo. Essa tensão provocada pela presença de uma necessidade, que desencadeia o desequilíbrio, é sentida pelo indivíduo, interiormente, como tensão afetiva. Essa tensão afetiva, sentida como uma inquietação, é que desencadearia as ações tendendo à busca do restabelecimento do equilíbrio perdido. É nesse ponto que intervém a utilidade da atividade mental, do próprio pensamento como processo de adaptação: é justamente essa atividade mental, simbólica, que permite ao indivíduo prever a ruptura do equilíbrio, perceber os sinais que anunciam acontecimentos que podem vir a romper o equilíbrio, desencadeando as ações que visam prevenir essa ruptura antes mesmo que ela ocorra. Por outro lado, Claparède reconhece que nem toda necessidade provoca a atividade mental. Há necessidades puramente orgânicas, cuja satisfação não desencadeia processos de pensamento mais complexos. Ao contrário, esses processos só intervêm quando a satisfação da necessidade demanda um esforço maior do indivíduo, uma busca ativa de solução para o problema. Esta airmação está expressa na segunda lei proposta por Claparède para a explicação psicológica: a lei da extensão da vida mental. Esta lei exprime-se nos seguintes termos: O desenvolvimento da vida mental é proporcional à diferença existente entre as necessidades e os meios de satisfazê-las. Se a diferença é nula (respiração, relexos pupilares, tosse, espirro, secreções etc.), nenhuma atividade mental. Se é muito grande (fome, que suscita a invenção de todos os instrumentos de caça e pesca, dos necessários à agricultura etc.), atividade mental muito extensa. (Claparède, 1940: 67) A lei da extensão da vida mental tem como corolário a lei da tomada de consciência: quanto menos familiar o problema a resolver, mais cedo o 248 indivíduo toma consciência dele e busca resolvê-lo com o auxílio da consciência. O reverso desse corolário airma, evidentemente, que quanto mais familiar o problema, quanto mais sua solução apelar para automatismos já adquiridos, menor será o apelo à consciência. Esse modelo foi também desenvolvido pelos funcionalistas norte-americanos. Por im, Claparède formula a lei do interesse, e é neste ponto que sua deinição da conduta se torna verdadeiramente inalista. Para ele, embora as condutas sejam sempre suscitadas por necessidades, essas necessidades devem ser traduzidas, no nível psicológico, por um im a atingir, por um interesse. Assim, pode-se airmar que a conduta é movida não por uma necessidade, mas por um interesse, que é a expressão psicológica da necessidade. Claparède explica a natureza psicológica do interesse da seguinte forma: A palavra “interesse” exprime uma relação de conveniência entre o indivíduo e o objeto que lhe importa num dado momento. O interesse não é, pois, evidentemente, uma qualidade objetiva das coisas, que só se tornam interessantes na medida em que se relacionam a uma necessidade, na medida em que são capazes de determinar a conduta no sentido que importa ao indivíduo. (Claparède, 1940: 75) É a partir desse raciocínio que Claparède termina por airmar que “o interesse é o princípio fundamental da atividade mental” (Claparède, 1940: 76). O interesse seria, assim, o elemento próprio ao indivíduo, a dimensão psicológica que realmente suscita a atividade mental. Esta idéia, que coloca o indivíduo como o agente de sua própria atividade, como o elo de ligação entre a natureza que o constitui e o ambiente que o estimula a agir, é a principal contribuição de Claparède ao debate sobre a psicologia funcional. E é precisamente esta idéia que está no ponto de partida da proposta teórica de Jean Piaget, conforme se verá a seguir. A perspectiva genético-funcional na obra de Jean Piaget Jean Piaget (1896-1980) nasceu em Neuchâtel, na Suíça. Doutorouse em Ciências Naturais em 1918, na Universidade de Neuchâtel, e em seguida estudou psicanálise em Zurique, com Eugen Bleuler (1857-1939) e Carl Gustav Jung (1875-1961), e psicologia em Paris, com Pierre Janet (18591947), Georges Dumas (1866-1946) e Henri Piéron (1881-1964). Durante a estada em Paris, a convite de Théodore Simon (1873-1961), participou do trabalho de padronização do teste de raciocínio de Cyril Burt (1883-1971) no 249 Laboratório de Psicologia da Sorbonne. Nesse trabalho, iniciou a pesquisa sobre as diferenças de raciocínio entre crianças e adultos, examinando a maneira como as crianças resolviam as questões do teste através de entrevistas clínicas, nas quais era focalizado o processo de pensamento da criança, e não apenas o resultado de seu raciocínio. Foi assim que Piaget inventou o método clínico, baseado na associação livre utilizada pela psicanálise. O método clínico consiste em uma conversa livre sobre um tema proposto pelo entrevistador, na qual se solicita à criança que resolva um problema e em seguida justiique sua resposta. Voltando à Suíça em 1921, Piaget tornou-se o principal colaborador de Claparède no Instituto Jean-Jacques Rousseau, e estabeleceu um programa de pesquisa sobre o pensamento infantil que resultou na publicação de suas primeiras obras: A linguagem e o pensamento na criança (1923), O juízo e o raciocínio na criança (1924), A representação do mundo na criança (1926), A causalidade física na criança (1927) e O julgamento moral na criança (1932). Nessa primeira fase de sua obra, o autor dedicou-se a explorar as formas especíicas da mentalidade infantil dos 2 aos 8 anos de idade, principalmente as manifestações do egocentrismo e da lógica pré-operatória. Nesse período inicial, Piaget tinha por objetivo demonstrar empiricamente que o pensamento da criança diferia do pensamento do adulto, e descrever essas diferenças, através da análise das respostas das crianças a suas questões. Visava ainda demonstrar que as formas de compreensão do mundo desenvolvidas pelas crianças eram o resultado de uma construção progressiva, engendrada pela atividade do sujeito guiado por seu interesse, baseando-se na perspectiva evolutiva proposta por Claparède. Em 1936, com a publicação da obra O nascimento da inteligência na criança, Piaget propõe a teoria do desenvolvimento da inteligência que viria a ser conhecida como epistemologia genética. Reportando-se ainda a Claparède, Piaget critica tanto a concepção inatista, que considera a inteligência como uma faculdade inata, quanto o associacionismo, para o qual a inteligência é um jogo de associações adquiridas. Claparède havia deinido a inteligência como “um instrumento de adaptação, que entra em jogo quando falham os outros instrumentos de adaptação, que são o instinto e o hábito” (Claparède, 1958: 103). Utilizando as Figura 2: Jean Piaget, por volta de evidências empíricas obtidas na observação de seus 1930, com a esposa e os três ilhos, Jacqueline, Lucienne e Laurent, próprios ilhos quando bebês – Jacqueline, Lucienne cujo desenvolvimento intelectual ele e Laurent –, Piaget busca demonstrar, em primeiro estudou extensamente, através de lugar, que a inteligência é constituída de um conjunto observações e entrevistas clínicas. 250 de esquemas de conhecimento do real progressivamente construídos a partir da atividade do sujeito sobre o ambiente. Nesse processo de construção, intervêm os invariantes funcionais, isto é, os processos de assimilação, acomodação e equilibração, presentes em todos os processos vitais. Assim, cada novo objeto a ser conhecido pelo sujeito é primeiro assimilado, isto é, o sujeito aplica nele os esquemas já adquiridos anteriormente. Ao sentir a resistência do objeto, o sujeito acomoda os esquemas anteriores, isto é, adapta-os às características do novo objeto. Esse processo resulta em uma nova equilibração, ou seja, o novo esquema, construído na relação sujeito-objeto, é então incorporado à estrutura anterior do sujeito. Nessa obra, o autor descreve o funcionamento dos processos de assimilação, acomodação e equilibração na construção da inteligência sensório-motora, característica da relação do sujeito com o mundo a conhecer no primeiro período de seu desenvolvimento, anterior ao domínio da linguagem. A partir de então, nas obras posteriores, Piaget dedica-se a demonstrar a construção das estruturas lógicas que vão permitir ao sujeito conhecer o mundo de forma cada vez mais objetiva. A construção progressiva dessas estruturas depende, sem dúvida, de algumas poucas propriedades inatas do indivíduo (alguns relexos), e também da contribuição do ambiente. Mas entre esses dois conjuntos de fatores, Piaget introduz sempre o sujeito ativo, cuja tendência básica é avançar na busca do seu equilíbrio cognitivo através da ação sobre os objetos e da relexão sobre a ação. Esse avanço, por sua vez, passa por etapas que Piaget descreveu com precisão: a partir da construção dos esquemas sensório-motores, a criança passa por um período em que predomina o pensamento egocêntrico, pré-lógico, no qual se constrói progressivamente o equilíbrio entre o sujeito, o outro e os objetos. A seguir, com a aquisição das primeiras estruturas operatórias e da lógica dos agrupamentos, predomina o pensamento operatório concreto, no qual a presença ou a representação do objeto concreto são necessárias para a construção do conhecimento. Mais tarde, a partir da adolescência, o sujeito se liberta dos objetos concretos e passa a raciocinar também por dedução, a partir das estruturas operatórioformais. O quadro 1 resume a concepção de Piaget sobre o desenvolvimento da cognição. 251 Quadro 1 – O desenvolvimento cognitivo e socioafetivo segundo Piaget – a revolução copernicana em miniatura E STÁGIOS C ARACTERÍSTICAS Inteligência Inteligência prática, sensóriomanifesta em ações motora E SQUEMAS V IDA AFETIVA Esquemas de ação, “conceitos” Da indiferenciação eu-mundo exterior sensório-motores, início da construção ao reconhecimento de objetos e pessoas, das categorias de objeto, espaço, tempo sentimentos derivados da ação. e causalidade Pensamento intuitivo, Inteligência Indiferenciação entre o ponto de presença do animismo e do prévista próprio e o dos outros, rigidez e artificialismo no raciocínio, irreversibilidade do pensamento operatória egocentrismo Interesse como prolongamento da necessidade, sentimentos de respeito (afeição + temor) pelos mais velhos, obediência, moral heterônoma Inteligência Passagem da intuição à operatório- lógica do concreto, início da descentração concreta Aquisição da capacidade de perceber a reversibilidade das operações, explicações causais, noções de permanência de substância, peso e volume Sentimentos de respeito mútuo e de justiça (distributiva e retributiva), moral da cooperação (correlata à lógica da reversibilidade), aparecimento da vontade como regulação da ação Inteligência Acesso à lógica operatória operatório- abstrata, descentração se formal completa Pensamento proposicional e hipotéticodedutivo, esquemas formais de lógica combinatória e de proporções Construção da autonomia Essa teoria foi posteriormente reairmada e mais bem desenvolvida por Piaget nas obras Psicologia da inteligência (Piaget, 1947-1967) e Introdução à epistemologia genética (Piaget, 1950). Essa abordagem do desenvolvimento cognitivo é então batizada de epistemologia genética, por se tratar de uma teoria do conhecimento humano (epistemologia) que traça a sua gênese e evolução a partir dos processos de assimilação, acomodação e equilibração, na forma de uma espiral em que cada nova aquisição incorpora e modiica as anteriores, dando lugar às equilibrações majorantes, que ocorrem quando há transformações estruturais que modiicam radicalmente as concepções existentes. Durante todo o percurso de sua obra, Piaget revela-se um apaixonado pela lógica, que ele considera um prolongamento das estruturas biológicas, tendendo à construção cada vez mais aperfeiçoada do equilíbrio entre o sujeito e o ambiente. Em 1942, em uma série de conferências pronunciadas no Collège de France, em Paris, ele airma: Toda explicação psicológica acaba mais cedo ou mais tarde por apoiar-se na biologia ou na lógica (ou sobre a sociologia, mas esta também encontrase diante da mesma alternativa). Para alguns, os fenômenos mentais não se tornam inteligíveis se não estiverem ligados ao organismo. […] Mas a neurologia não pode jamais explicar por que 2 e 2 são 4, ou por que 252 as leis da dedução se impõem ao espírito. […] É portanto dessa dupla natureza, biológica e lógica, da inteligência que devemos partir. (Piaget, 1998: 11-12) Mais à frente, no mesmo texto, o autor completa: Que a lógica seja o espelho do pensamento, e não o inverso, este é o ponto de vista ao qual fomos conduzidos pelo estudo da formação das operações na criança. […] Isto signiica dizer que a lógica é uma axiomática da razão, sendo a psicologia da inteligência a ciência experimental correspondente. (Piaget, 1998: 43) O desenvolvimento da lógica, por sua vez, tendo origem nos processos sensório-motores, decorre do próprio processo de socialização do indivíduo. Desde o nascimento, reconhece Piaget, o indivíduo está imerso em um meio social, que lhe propõe problemas, tal qual o meio físico. Ao mesmo tempo, a sociedade fornece ao indivíduo um “sistema de signos já construído”, modiicando-lhe sem cessar o pensamento, propondo-lhe valores e uma seqüência ininita de obrigações. Assim, para o autor, É portanto evidente que a vida social transforma a inteligência através do triplo intermediário da linguagem (signos), do conteúdo das trocas (valores intelectuais) e de regras impostas ao pensamento (normas coletivas lógicas ou pré-lógicas). (Piaget, 1998: 209) Desta maneira Piaget submete a análise do desenvolvimento social do indivíduo à mesma perspectiva genético-funcional utilizada na análise do desenvolvimento da razão. Durante o período sensório-motor, a criança é objeto de múltiplas inluências sociais, proporcionadas pelos adultos que a nutrem, acariciam, protegem, desaiam. Mas, do ponto de vista do bebê, não se pode ainda falar em distinção entre meio físico e meio social. Já na fase posterior ao aparecimento da linguagem, com o acesso ao pensamento simbólico e intuitivo, as relações sociais se destacam, transformando o pensamento do indivíduo. Ao mesmo tempo que se lhe impõe todo o sistema conceitual que constitui a linguagem social, a criança deve reconstruí-lo em seu pensamento, O conceito de EGOCENTRISMO, para Piaget, designa a tendência do sujeito a centrar-se sobre a sua própria atividade, sobre seus próprios interesses, sobre a percepção subjetiva da coisas, por oposição à descentração da ação e do pensamento que ocorre quando há alternância de centrações sobre a atividade própria e sobre seus efeitos no ambiente, conduzindo progressivamente à conquista da objetividade e à coordenação dos pontos de vista do eu e do outro. O ponto de vista egocêntrico (= centrado no eu) traduz-se em uma indiferenciação entre o eu e o mundo exterior, expressa nas formas de pensamento intuitivo que encontramos nas crianças na fase pré-operatória: o animismo (acreditar que os objetos inanimados têm intenções, como os seres humanos), o artiicialismo (acreditar que todas as coisas são fabricadas pelos seres humanos) ou o realismo (tomar a própria perspectiva como absoluta, negando a relatividade dos pontos de vista) (cf. Montangero e Maurice-Naville, 1998). O conceito de IRREVERSIBILIDADE, para Piaget, designa a característica do pensamento pré-lógico (ou pré-operatório) que se traduz na impossibilidade de perceber o inverso de uma operação realizada, assim como o conceito de reversibilidade designa a característica do pensamento lógico que se traduz na capacidade de perceber que toda ação (ou operação) pode ser realizada no sentido inverso, em pensamento: “do ponto de vista da forma 253 lógica, todo sistema de operações implica a existência de operações inversas, suscetíveis de tornar toda construção reversível: à adição, por exemplo, corresponde a subtração, etc.” (Piaget, citado por Montangero, 1998: 225). que é, nesse período, dominado pelo EGOCENTRISMO e pela IRREVERSIBILIDADE (período pré-operatório). Assim, do ponto de vista da criança, as relações sociais são deformadas, pois que centradas em seu próprio ponto de vista. A criança aceita o ponto de vista do outro como se fosse seu, mas sem ainda ter acesso ao raciocínio que regula o pensamento e ação do outro. A normatividade No estudo do juízo moral, Piaget destaca os dois tipos de julgamento: é pois HETERÔNOMA: aceita-se o primeiro, HETERÔNOMO (sujeição à autoridade do outro ou a uma lei o ponto de vista do outro por exterior), expressa o respeito unilateral à opinião do outro, resultante respeito unilateral, e não ainda de uma relação de coação (a criança adota o ponto de vista do adulto, por exemplo, por temor ou respeito aos mais velhos); o segundo, por coordenação de pontos de autônomo (capacidade da razão de estabelecer por si mesma leis morais), vista. Somente após a aquisição expressa a capacidade de julgamento consciente do sujeito, baseada em uma percepção própria do bem objetivo, calcada em relações de das noções de CONSERVAÇÃO e respeito mútuo e de cooperação entre iguais. de reversibilidade, necessárias Na linguagem piagetiana, o conceito de CONSERVAÇÃO designa a capacidade do sujeito de destacar as características invariantes dos à lógica operatória, é que a objetos através das transformações pelas quais ele passa. O exemplo criança pode propriamente clássico é o famoso experimento da conservação de líquido: a água de um copo pequeno e largo é transferida para um copo longo e ino, cooperar com o outro, e portandiante do sujeito. O sujeito que possui o esquema da conservação to coordenar seu ponto de vista percebe que a quantidade de líquido permanece a mesma, apesar com o do outro, alcançando das transformações na forma dos recipientes. Assim, a conservação remete a um esquema de assimilação, isto é, a uma estrutura que assim a possibilidade da repermite ao sujeito operar com a constância e as transformações. lação social regulada pelo São esses esquemas que nos permitem considerar que os objetos são os mesmos, quando vistos por ângulos diferentes. A conservação é respeito mútuo. Do ponto de correlata da descentração progressiva do pensamento operada ao longo vista moral, é nesse ponto que do desenvolvimento. Piaget reconhece a dinâmica da autonomia. Ao descrever o processo de socialização da inteligência do indivíduo, pressionado pelo intercâmbio com o meio ambiente social, Piaget se coloca a questão de saber se é a vida social que engendra a evolução das estruturas operatórias ou se, pelo contrário, é o avanço da lógica que permite ao sujeito interagir com o outro. As observações empíricas evidenciam que a passagem do pensamento intuitivo à lógica operatória processa-se ao mesmo tempo que a descentração do sujeito de seu próprio ponto de vista, tendendo à capacidade de compreender cada vez mais ampla e objetivamente o ponto de vista do outro, e a coordenar os múltiplos pontos de vista com os quais se depara. Se, no período dominado pelo egocentrismo, a criança é inconsciente de sua própria subjetividade, progressivamente, sob a pressão do outro, a criança torna-se consciente da diferença entre o seu ponto de vista e o do outro, tornando-se apta a cooperar: À medida que as intuições se articulam e acabam por se agrupar operatoriamente, a criança se torna cada vez mais apta à cooperação, relação social 254 distinta da obrigação na medida em que supõe uma reciprocidade entre indivíduos sabendo diferenciar seus pontos de vista. Na ordem da inteligência, a cooperação é assim a discussão levada objetivamente (de onde parte essa discussão interiorizada que constitui a relexão), a colaboração no trabalho, a troca de idéias, o controle mútuo (fonte da necessidade de veriicação e de demonstração) etc. (Piaget, 1998: 217) Nessa ordem de idéias é que Piaget airma que a lógica seria uma “moral do pensamento, imposta e sancionada pelos outros”, conforme a explicação a seguir: A obrigação de não se contradizer não é simplesmente uma necessidade condicional (um “imperativo hipotético”), para aquele que deseja obedecer às exigências das regras do jogo operatório: ela é também um imperativo moral (“categórico”), exigido tanto pelo intercâmbio intelectual quanto pela cooperação. (Piaget, 1998: 218) Com efeito, para Piaget a cooperação constitui o sistema de operações efetuadas em comum, sendo portanto um conjunto de cooperações. Ela corresponde, no nível interindividual, ao mesmo processo que permite a realização das operações de agrupamento, no nível lógico, decorrendo também ela das operações de conservação e de reversibilidade que desencadeiam o pensamento racional. Para o autor, a atividade operatória interiorizada e a cooperação interindividual constituem as duas faces de uma mesma moeda, nos níveis subjetivo e objetivo, constituindo, em última análise, as aproximações possíveis de uma equilibração continuamente buscada pelo sujeito na sua relação com o meio tanto físico quanto social. É essa compreensão dos processos de construção do pensamento lógico que Piaget desenvolve, a partir dos anos 1940, na direção de uma equipe de pesquisadores no Instituto Jean-Jacques Rousseau dedicados à pesquisa sobre a evolução do pensamento operatório na criança e no adolescente, tendo como principal colaboradora a psicóloga Barbel Inhelder (1913-1997). Em 1955, com o apoio da Fundação Rockefeller, o pesquisador cria em Genebra o Centro Internacional de Epistemologia Genética, com o objetivo de estudar os problemas da teoria do conhecimento (epistemologia) a partir dos resultados experimentais obtidos na pesquisa psicológica, confrontando-os com as relexões teóricas de pesquisadores de diversas disciplinas, como a lógica, a biologia, a cibernética, a física, entre outras. É nessa época, a partir dos anos 1950, que a obra de Piaget é conhecida mais extensamente nos Estados Unidos, sendo logo traduzida em 24 idiomas. Ele se torna assim, ao longo da segunda metade do século XX, a principal 255 referência internacional na área da psicologia do desenvolvimento intelectual da criança e da psicologia da educação. Ao mesmo tempo, desde 1929 Piaget dirige, em Genebra, o Bureau Internacional de Educação, organismo criado pelo pessoal do Instituto Rousseau e vinculado à Sociedade das Nações, destinado a se tornar um centro de referência internacional sobre a educação. Durante os anos 1930, quando crescem as pressões na Europa que irão desencadear a Segunda Guerra Mundial, o BIE promove campanhas importantes de promoção da educação para a paz. Após um período de retraimento em função da guerra, o Bureau retoma as atividades em 1948, já vinculado à Unesco, e prossegue nas iniciativas visando à democratização e ao desenvolvimento da educação em diversos países. O trabalho de Piaget no Bureau será lembrado pela ênfase no respeito aos direitos da criança, sobretudo o direito à educação, e na pesquisa sobre a situação da educação básica no mundo. Repercussões das obras de Claparède e Piaget no Brasil A perspectiva genético-funcional proposta por Claparède e Piaget exerceu profunda inluência sobre a psicologia brasileira, sobretudo nas áreas da psicologia do desenvolvimento e da psicologia da educação, em cursos de formação de educadores e, a partir dos anos 1950, em cursos de formação de psicólogos. A divulgação das obras dos dois autores entre nós teve início no inal dos anos 1920, no contexto do movimento da Escola Nova, constituindo referência importante para os pioneiros escolanovistas que visavam contribuir para a renovação educacional com base em conhecimentos da psicologia da criança e da evolução dos processos cognitivos. Entre esses pioneiros, destaca-se a igura de Helena Antipoff (18921974), que veio para o Brasil em 1929 para dirigir o Laboratório de Psicologia da Escola de Aperfeiçoamento de Professores de Minas Gerais e lecionar psicologia para os educadores que iriam empreender a reforma do ensino no Estado, iniciada em 1928. Aluna e assistente de Claparède e colega de Piaget no Instituto Rousseau, Antipoff recorria à teoria funcional no ensino de psicologia para educadores e nas pesquisas realizadas no laboratório (Campos e Lourenço, 2001). As pesquisas realizadas pelo laboratório sobre o desenvolvimento mental das crianças em idade escolar tinham por objetivo subsidiar a introdução dos testes de medida da inteligência nas escolas primárias locais. Observando então 256 as grandes diferenças nos resultados de crianças de diferentes meios sociais, Antipoff propôs o conceito de inteligência civilizada para descrever a função registrada pelos testes, deinindo-a como “a natureza mental do individuo polida pela ação da sociedade em que vive e desenvolvendo-se em função da experiência que adquire com o tempo” (Antipoff, 1931). A partir dessa compreensão funcional da inteligência, Antipoff sugeriu às escolas a adoção de programas de “ortopedia mental”, visando equalizar as oportunidades para as crianças de baixa renda que não obtinham resultados satisfatórios. Introduziu também a denominação “excepcional” para designar os indivíduos cujos resultados nos testes se afastavam da zona de normalidade. A deinição de “excepcional” adotada por Antipoff é nitidamente funcionalista, enfatizando os problemas de ajustamento ao meio sociocultural como determinantes. Com o objetivo de promover a reeducação dos excepcionais e sua inclusão social, Antipoff propôs a criação da Sociedade Pestalozzi de Minas Gerais, em 1932, e, mais tarde, a Sociedade Pestalozzi do Brasil. Também com o objetivo de educar crianças excepcionais através de métodos ativos, isto é, que promovem a atividade do sujeito como meio de conhecimento (na perspectiva de Claparède e Piaget), a Sociedade Pestalozzi de Minas Gerais instalou a Fazenda do Rosário, localizada no município de Ibirité, Minas Gerais. A Fazenda do Rosário constituiu um complexo Figura 3: A psicóloga e educadora Helena de instituições educativas de grande relevância e tornou-se Antipoff na Fazenda exemplo da utilização de métodos educativos baseados no do Rosário, em Ibirité funcionalismo. (MG), 1970. Também Lourenço Filho (1897-1970), responsável pela ampla divulgação das bases teóricas do movimento escolanovista no Brasil através da obra Introdução ao estudo da Escola Nova, publicada pela primeira vez em 1930, com sucessivas reedições, conhecia e admirava o trabalho do grupo de Genebra. Embora mais identiicado com o funcionalismo norte-americano, Lourenço Filho incluía informações sobre a perspectiva genético-funcional em seus cursos na Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro (Penna, 1992; Campos, Assis e Lourenço, 2002). Lourenço Filho utilizou ainda a abordagem genético-funcional na elaboração do teste ABC, elaborado com o objetivo de avaliar a maturidade das crianças para a aprendizagem da leitura e da escrita. O teste ABC, constituído por um conjunto de provas de percepção, raciocínio e psicomotricidade, foi padronizado para a população brasileira pela primeira vez em 1933, e amplamente utilizado no sistema escolar a partir 257 dessa época. Nos anos 1950 e 1960, Lourenço Filho foi um dos líderes do movimento pela regulamentação da proissão de psicólogo no Brasil que resultou na aprovação da Lei 4.119, em 27 de agosto de 1962. Entre os proponentes da perspectiva funcional em psicologia, Claparède foi um dos autores com maior número de obras traduzidas e editadas em português, entre 1920 e 1940. Em 1924 foi publicada a primeira tradução, feita por Lourenço Filho, de A escola e a psicologia experimental, obra dedicada à divulgação, para educadores, das descobertas da psicologia experimental e suas aplicações à renovação dos métodos e processos Figura 4: Folha de rosto da primeira edição do livro Introdução ao educativos. Em 1928, a obra foi reeditada, sempre pela estudo da Escola Nova, de Manuel Editora Melhoramentos, de São Paulo. Em 1933, foi Bergström Lourenço Filho, 1930 publicada a primeira edição da Educação funcional, na (18ª edição, 2002, EdUERJ/CFP). série “Atualidades Pedagógicas” da Biblioteca Pedagógica Brasileira da Companhia Editora Nacional, dirigida por Fernando de Azevedo (1894-1974). Em 1934, foi a vez de Psicologia da criança e pedagogia experimental, editada pela Imprensa Oicial, de Belo Horizonte. Essas traduções foram promovidas e/ou realizadas pelos intelectuais engajados no movimento de difusão das idéias escolanovistas no país, com a inalidade de tornar conhecido o pensamento do autor nas escolas de formação e aperfeiçoamento de professores. Foram reeditadas diversas vezes, fazendo supor que tenham se tornado leitura obrigatória nos cursos de psicologia ministrados em cursos de formação de educadores nas escolas normais, sendo também utilizadas por outros proissionais interessados na área. As bibliotecas das principais universidades brasileiras possuem um rico acervo de obras de Claparède, em francês e em português. Assim, o trabalho de Claparède constituiu-se em uma das principais referências para a construção e consolidação da área da psicologia no Brasil, no período acima citado, seja através de suas propostas teóricas, sua visão das relações entre psicologia e educação, ou suas recomendações relativas à implantação de laboratórios de psicologia experimental. Claparède esteve no Brasil em 1930 e 1932, a convite de Helena Antipoff. Em 1930, no Rio de Janeiro, foi recebido por ex-alunos do Instituto Jean-Jacques Rousseau, médicos e psicólogos em atividade no Brasil, como Gustavo Lessa, um dos presidentes da Associação Brasileira de Educação; Waclaw Radecki, seu antigo assistente no Laboratório de Psicologia de 258 Genebra em 1901 e então chefe do Laboratório de Psicologia da Colônia de Psicopatas do Rio de Janeiro; e Ernani Lopes, então presidente da Liga Brasileira de Higiene Mental. Em Belo Horizonte, pronunciou palestras na Escola de Aperfeiçoamento de Professores e ministrou um curso sobre “Psicologia da criança e pedagogia experimental”, título de seu primeiro livro publicado no Brasil em 1924. Aí recebeu a visita de Lourenço Filho, então professor da Escola Normal de São Paulo. Permaneceu em Belo Horizonte por mais tempo do que previa, em razão do início da Revolução de 1930, e dedicouse então a terminar a obra L’Éducation fonctionnelle, logo depois traduzida por Jayme Grabois e publicada pela Companhia Editora Nacional. Voltou ao Brasil em 1932, também para cursos e palestras em Belo Horizonte e no Rio de Janeiro (Antonini, 2001). Entre os intérpretes da obra de Claparède cujos trabalhos foram publicados no Brasil destacam-se o próprio Lourenço Filho, a aluna e assistente Helena Antipoff, a psicóloga Noemi Silveira Rudolfer (1902-1988), assistente de Lourenço Filho que viria a substituí-lo na cátedra de Psicologia Educacional e no Laboratório de Psicologia Educacional, da Escola Normal Caetano de Campos, posteriormente integrada à Universidade de São Paulo (Baptista, 2001), e o médico Iago Pimentel (1890-1962), autor de um manual de estudo da psicologia (Noções de psicologia aplicadas à educação) extensamente utilizado em cursos normais (Lourenço e Tinoco, 2001). Esses quatro autores representam, no país, perspectivas decorrentes dos principais campos de conhecimento que contribuíram da formação da área da psicologia no país: a medicina e a educação. Na época, poucos autores apresentavam formação universitária especíica em psicologia. No caso, apenas Helena Antipoff tinha obtido o diploma de Psicologia da Educação fornecido pelo Instituto Jean-Jacques Rousseau, em Genebra. Lourenço Filho havia se formado na Escola Normal Superior em São Paulo e cursado a Faculdade de Direito, Iago Pimentel formou-se pela Faculdade de Medicina da Universidade de Minas Gerais, e Noemi Rudolfer, após cursar o Normal na Escola Caetano de Campos, freqüentou os seminários pedagógicos da Universidade de Columbia, nos EUA. Os quatro autores integraram em seu trabalho a análise genético-funcional dos fenômenos psicológicos proposta por Claparède. A obra de Piaget também começou a ser conhecida no Brasil a partir dos trabalhos de Lourenço Filho e de Helena Antipoff, durante os anos 1920-1930. A princípio lida no original em francês, nas Escolas Normais, logo iniciaram-se as traduções, conforme se pode veriicar na tabela 1. 259 Tabela 1 – Traduções de obras de Jean Piaget feitas no Brasil (1936-1995) Data das traduções Antes de 1960 1960-1969 1970-1979 1980-1989 1990-1995 Total Número de traduções 3 12 38 5 3 61 Percentagem (%) 4,8 20,0 62,3 8,3 4,8 100 Fonte: Macedo e Vasconcelos, 1996. A maior parte das traduções de livros de Piaget feitas no Brasil ocorre a partir de 1960, época em que sua obra será amplamente divulgada nos cursos de pedagogia e nos de psicologia, estes últimos recém-criados, especialmente em Minas Gerais, no Rio de Janeiro e em São Paulo. No Rio de Janeiro, os trabalhos realizados sobre a obra de Piaget foram feitos principalmente por Antonio Gomes Penna (1978), Franco Lo Presti Seminério (1996), Circe Navarro Vital Brazil e Maria Lúcia Seidl de Moura. Em São Paulo, destacam-se, como intérpretes de Piaget, Zélia Ramozzi Chiarottino e Lino de Macedo. A partir dessa época, a teoria de Piaget torna-se uma das principais referências para a psicologia no Brasil, especialmente nas áreas da psicologia do desenvolvimento e da psicologia da educação. Mário Sérgio Vasconcelos (1996), em estudo sobre a difusão das idéias de Piaget no Brasil, airma que é a partir da criação dos cursos universitários de psicologia e dos cursos de pósgraduação em psicologia e educação que se expande a pesquisa com base na teoria piagetiana, instituindo-se núcleos de estudo e pesquisa na perspectiva da epistemologia genética em vários Estados brasileiros (Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo, Rio Grande do Sul, Pernambuco, Paraíba e Distrito Federal). Muitos desses núcleos tiveram por objetivo promover o intercâmbio de conhecimentos entre psicólogos e educadores na aplicação dos conhecimentos gerados pela psicologia genético-funcional à educação e apresentaram grande número de publicações, conforme mostra a tabela 2. 260 Tabela 2 – Livros, capítulos de livros, artigos em periódicos, teses e dissertações publicados no Brasil na perspectiva de Jean Piaget entre 1936 e 1996 Período Antes de 1960 1960-1969 1970-1979 1980-1989 1990-1996 Total Livros e capítulos de livros 3 7 54 75 89 228 Artigos em periódicos 1 3 67 202 201 474 Teses e dissertações 13 103 108 224 Fonte: Macedo e Vasconcelos, 1996. Grande parte dessas publicações resulta das atividades de pesquisa desses núcleos, divulgadas em teses, dissertações e artigos de periódicos. De início voltada para a réplica dos experimentos piagetianos, essas pesquisas vão progressivamente se debruçar sobre questões socioculturais, próprias da realidade brasileira. Vasconcelos assim resume a situação da pesquisa piagetiana feita no Brasil no período recente: De um modo geral, até os anos oitenta, os piagetianos, independentemente de sua área de atuação, estudavam, em sua maioria, os aspectos estruturais da explicação genética, isto é, os estádios de desenvolvimento e sua caracterização em termos de estruturas operatórias. Depois do início dessa década, parece ocorrer um aumento do interesse pela pesquisa dos aspectos funcionais, quer dizer, pela concepção construtivista e interacionista do desenvolvimento. (Vasconcelos, 1996: 267) Nessa época, ampliam-se os debates sobre os aspectos socioculturais da cognição, e sobre as relações entre a epistemologia genética e a educação. O construtivismo se impõe como alternativa, na área educacional, com base nos estudos inspirados na teoria piagetiana, na área do ensino da leitura e da escrita, e no ensino de ciências. Embora possam ser detectados problemas na interpretação do construtivismo, muitas vezes utilizado de maneira esquemática, pode-se observar um retorno às propostas escolanovistas de conhecer o pensamento da criança e centrar o ensino na dinâmica dos interesses dos estudantes. Assim, cada vez mais o estudo das obras de Claparède e de Piaget se torna necessário, como inspiração para o melhor conhecimento do desenvolvimento humano no contexto brasileiro, e para efetivamente colocar a psicologia a serviço da melhor qualidade e da democratização da educação em nosso país. 261 Indicação estética A idade da inocência (L’argent de poche), de François Truffault (1976), é um ilme que toma como tema a infância de um modo muito diferente da visão caricatural de Hollywood, em que as crianças são tratadas ora como cópias miniaturizadas dos adultos, ora como bibelôs de consumo para nos enternecer. As crianças que habitam este ilme de Truffault têm uma vida própria, num trajeto que cruza o mundo dos adultos sem se confundir com este. Não há um adultocentrismo, como o título em português erroneamente sugere. Não há inocência, não há malícia, não há caricatura, nem cópia degenerada. Apenas um outro mundo com seus afetos, perigos e vícios. E sem dúvida é esta a grande lição do funcionalismo de Genebra (trazendo os ecos das relexões de Jean-Jacques Rousseau): o mundo vivido pela criança é governado por princípios que não se reduzem às mesmas leis que regem a vida dos adultos. Em vez de uma teoria psicológica geral, propõe uma teoria especial para cada extrato da vida. Referências bibliográficas Antipoff, Helena. (1992 [1940]) Édouard Claparède – homem e educador. In: Coletânea das obras escritas de Helena Antipoff, v. II (Fundamentos da Educação). Belo Horizonte: Imprensa Oicial/Centro de Documentação e Pesquisa Helena Antipoff, p. 215-222. Claparède, Édouard. (1940) A educação funcional. São Paulo: Cia. Ed. Nacional (Coleção Biblioteca Pedagógica Brasileira, 4). (1941 [1930]) Autobiographie. Archives de Psychologie 28 (111): 145-191, Juin. (1958). Psicologia da criança e pedagogia experimental. São Paulo: Ed. do Brasil (Coleção Didática do Brasil, 18). Macedo, Lino e Vasconcelos, Mário S. (1996) Publicações relacionadas às idéias de Jean Piaget no Brasil. São Paulo: Casa do Psicólogo (publicação eletrônica). Piaget, Jean. (1998) La psychologie de l’intelligence. Paris: Armand Colin. Vasconcelos, Mário S. (1996) A difusão das idéias de Piaget no Brasil. São Paulo: Casa do Psicólogo. Vidal, Fernando. (1998) A “escola nova” e o espírito de Genebra: uma utopia político-pedagógica dos anos 20. In: Guedes, Maria do Carmo (org.) História e historiograia da psicologia: revisões e novas pesquisas. São Paulo: EDUC. 262 Bibliografia complementar Antonini, Isabel G. (2001) Édouard Claparède. In: Campos, Regina H. F. et al. (orgs.) Dicionário biográico da psicologia no Brasil. Rio de Janeiro: Imago/Conselho Federal de Psicologia. Antunes, Mitsuko A. M. (1999) A psicologia no Brasil: leitura histórica sobre sua constituição. São Paulo: EDUC. Baptista, Marisa T. D. S. (2001) Noemy da Silveira Rudolfer. In: Campos, Regina H. F. et al. (orgs.) Dicionário biográico da psicologia no Brasil. Rio de Janeiro: Imago/Conselho Federal de Psicologia. Campos, Regina H. F. (1999) A Psicologia em Genebra e os movimentos de defesa dos direitos das crianças (1920-1940): conexões epistemológicas. In: Guedes, Maria do Carmo e Campos, Regina H. de F. (eds.) Estudos em história da Psicologia. São Paulo: EDUC. (2003) Psicologia e direitos humanos – as relações entre ciência e ética na perspectiva do Instituto Rousseau, em Genebra (1920-1940). In: Guerra, Andréa et al. (orgs.) Psicologia social e direitos humanos. Belo Horizonte: Edições do Campo Social. Campos, Regina H. F e Lourenço, Érika. (2001) Helena Antipoff. 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(1978) Introdução à história da psicologia contemporânea. Rio de Janeiro: Zahar, 3ª ed. (1992) História da psicologia no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Imago. Piaget, Jean. (1959) A psicologia de Claparède. In: Claparède, Édouard. A escola sob medida. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura. (1975). O nascimento da inteligência na criança. Rio de Janeiro: Zahar. Schultz, Duane e Schultz, Sydney. (2000) E. História da psicologia moderna. São Paulo: Cultrix, 16ª ed. Seminério, Franco Lo Presti. (1996) Piaget: o construtivismo na psicologia e na educação. 264 Capítulo 16 Medir, classificar e diferenciar Alexandre Carvalho Castro Alexandre Grillo de Castro Silvia Carvalho Josephson Ana Maria Jacó-Vilela Conforme visto neste livro, uma das vertentes que leva ao surgimento da psicologia no século XIX, especialmente em solo de países de língua inglesa, é o afã de medir, diferenciar e classiicar indivíduos. É importante dizer que esse movimento, por si, só não produziu os famosos testes mentais. Há um salto dado no início do século XX, que é signiicativo em nossa história. Este é o alvo deste capítulo: descrever como formas maciças e padronizadas de mensuração psicológica foram estabelecidas a im de alocar os indivíduos em sua posição no conjunto de uma determinada população. Mas, antes de se tratar dessa produção maciça de formas de mensuração e classiicação, são necessárias uma deinição e uma categorização dos testes psicológicos. Neste sentido, a “psicometria” assume, para alguns, grande destaque, por ser o campo que prima por medir e estudar quantitativamente fenômenos psíquicos, processo esse que conduz à elaboração das escalas estatísticas usadas em muitos testes. No entanto, o estudante que começa a se aproximar dessa temática freqüentemente não encontra uma única direção a seguir, em virtude dos muitos e distintos usos conceituais. Tal é o caso de algumas expressões (como, por exemplo, “teste psicotécnico”) que são privilegiadas pelos leigos, embora não sejam aceitas de forma unânime no contexto da psicologia acadêmica. Dessa forma, os primeiros contatos com a terminologia mais precisa pode, aos poucos, esclarecer certos detalhes e pontuar algumas ênfases recorrentes, pois dentro da mesma nomenclatura – “testes psicológicos” – estão incluídos tipos diferentes de instrumentos, com 265 histórias também distintas. Como veremos, se os primeiros testes, objetivos, são herdeiros da psicologia diferencial de Galton, os demais (expressivos e projetivos) são oriundos da psicologia dos estados mórbidos do século XIX (cf. capítulo 8). Nesta definição inicial, uma palavra ainda deve ser dita sobre a massiicação dos “testes psicológicos” em revistas, jornais e sites da internet, que visam oferecer aos leitores um (pseudo) diagnóstico instantâneo. Há nesta área, como em outras da psicologia, um enorme esforço para diferenciar práticas psicológicas “legítimas” das ditas “ilegítimas”. Esforço que redundou, por exemplo, na não-recomendação por parte do Conselho Federal de Psicologia (CFP) de alguns testes psicológicos – muitos deles de uso corrente – no ano de 2003 (este tema voltará a ser tratado mais adiante). Não é meta deste capítulo discutir a validade ou mesmo a possibilidade de tais critérios diferenciadores. O que caberia a um historiador é se perguntar se tais formas “legítimas” ou “ilegítimas” de mensuração e classiicação não seriam produtos de uma mesma cultura da medida, constituída na esperança de poder diferenciar e situar os indivíduos, a partir de um eixo governado por critérios operacionais. O horizonte das técnicas de avaliação psicológica é bem amplo. As diferentes abordagens em psicologia têm proporcionado, em função de pesquisas teóricas e investigações empíricas, uma grande variedade de instrumentos para esse im. Tal amplitude de recursos, porém, implica alguma diiculdade para aqueles que desejam se apropriar desse instrumental. Assim sendo, este tópico tem por objetivo, segundo uma perspectiva introdutória, apresentar uma história desses instrumentos – os testes objetivos e os testes projetivos – a im de procurar dimensionar sua conceituação, seus usos e aplicações. Os testes objetivos Um teste psicológico objetivo é um instrumento de avaliação psicológica que presumivelmente possibilita uma medição quantitativa de um determinado comportamento, traço de personalidade, função cognitiva e/ou intelectual. Recebe essa designação, “objetivo”, em decorrência de seu resultado ser obtido de modo independente do julgamento subjetivo do avaliador. Justamente por compreender, em tese, medida cientíica, deve ser calcado nos parâmetros padronizados da psicometria. Dentre esses testes objetivos se destacam testes de inteligência, testes de aptidão, testes de interesse e testes de personalidade. 266 Os testes de inteligência A inteligência foi a primeira habilidade psicológica a merecer a atenção da psicologia no inal do século XIX, notadamente nos Estados Unidos, onde apareceram os primeiros psicólogos responsáveis pela elaboração de instrumentos de medida dessa habilidade. De fato, os Estados Unidos foram um dos mais fortes representantes do chamado “MOVIMENTO DOS TESTES”, colaborando para a criação de tais instrumentos, bem como para O sua difusão no campo social e acadêmico, inclusive com efeitos MOVIMENTO DOS marcantes para a política administrativa daquele país e para TESTES visava ao aperfeia produção de uma certa cultura psicológica da medição. çoamento das técnicas de diagnose e predição cientíicas Começaram a ser elaborados no inal do século XIX mediante a utilização de provas com os trabalhos de James McKeen Cattell, a partir de breves e objetivas na forma de testes, escalas e questionários seu interesse pela mensuração das diferenças individuais, passíveis de aplicação em larga escala. reforçado após seu contato com as propostas de Francis Galton, o primeiro realmente interessado em construir um instrumento de medida da inteligência. Nos Estados Unidos, Cattell se dedicou à divulgação do movimento dos testes psicológicos e à expansão dos laboratórios de psicologia experimental. É dele, também, a utilização do termo “teste mental” na literatura psicológica, empregado pela primeira vez no artigo “Testes mentais e mensuração” (Cattell, 1890). Nesse artigo Cattell descreveu os testes que construiu, os métodos para sua aplicação e os resultados obtidos ao longo de um ano de trabalho com estudantes universitários. Eram 10 TESTES de aplicação individual, baseados em funções sensoriais e associativas, compostos por tarefas de força física, tempo de reação e concentração, entre outras. A publicação desse artigo veio mostrar a proximidade de seu trabalho com os métodos utilizados por Exemplos destes TESTES são: a) Julgamento de 10 Galton, no sentido de demonssegundos: o aplicador explicava ao sujeito que iria bater trar ser possível a obtenção o lápis na mesa duas vezes e que o sujeito deveria bater o seu no momento em que considerasse que havia transcorrido o de medidas da capacidade lápis mesmo espaço de tempo entre as duas batidas do aplicador. Este intelectual individual por meio dava o intervalo de 10 segundos entre cada batida; b) Divisão de linha de 50 cm: solicitava-se que uma régua de madeira de de testes de tempo de reação e uma 50 cm de comprimento por 3 cm de largura fosse dividida em de discriminação sensorial. duas partes iguais, utilizando-se uma linha que se movimentava extensão da régua; c) Número de letras repetidas com O avanço de seu trabalho pela uma só audição: 6 letras eram ditas, de preferência apenas foi significativo no sentido consoantes (para evitar a formação de sílabas), e pedia-se que o de promover a passagem da sujeito repetisse na ordem em que foram ditas. Com o acerto do exercício, o número de letras aumentava até a incidência de experimentação para o “teste” erro, o que interrompia o teste. 267 propriamente dito. A diferença entre esses dois procedimentos reside em que a experimentação pretende descobrir a natureza de uma função psíquica: qual o seu mecanismo, quais as leis que a regem; o teste, por sua vez, permite calcular em que medida um sujeito possui uma determinada função que é, em seguida, comparada com a média do grupo dos indivíduos submetidos ao mesmo instrumento. Cinco anos após a publicação desse trabalho de Cattell, o psicólogo francês Alfred Binet (cf. capítulo 8) publicou o artigo “A psicologia individual” (Binet e Henri, 1895), que produziu acirrada discussão no interior da comunidade psicológica por explicitar a divergência entre ele e Cattell, qual seja: se por um lado Binet airmava que a melhor maneira de fazer a testagem dos processos mentais superiores era medindo-os direta e globalmente, Cattell, por sua vez, propunha ser melhor fazê-lo através das faculdades sensoriais simples como tempo de reação e concentração. Esta discussão se estendeu até 1901, quando, ao publicar seu artigo “As correlações dos testes físicos e mentais”, CLARK WISSLER, CLARK utilizando os valores obtidos pelo próprio Cattell, concluiu WISSLER (1870-1947), que as correlações existentes entre os vários testes de antropólogo americano, nascido no Estado de Indiana, foi membro execução sensorial e mental aplicados nos estudantes da do laboratório de Cattell em Columbia. universidade eram desprezíveis. Esse artigo acabou por decretar a vitória de Binet sobre Cattell. Em 1904, as escolas francesas possuíam um número significativo de alunos repetentes e/ou com diiculdades para com o aprendizado. Em virtude disso, o Ministério da Educação da França opta por comissionar Binet para desenvolver um projeto com metas bem práticas: criar técnicas que identiicassem crianças cujo desempenho escolar sugerisse a necessidade de alguma forma de intervenção ou educação especial. Para isso Binet trabalhou com seu discípulo Theodore Simon (1873-1961) e, juntos, eles deiniram uma série de tarefas breves, em grau crescente de diiculdade, relacionadas a problemas da vida quotidiana que exigiam habilidades como memória, elaboração de imagens mentais, imaginação, atenção, compreensão, sugestibilidade, sentimento estético, sentimentos morais, força muscular, força de vontade, habilidade motora e habilidade perceptual em relações espaciais. Nascia assim, em 1905, a escala Binet-Simon, bateria de testes que permite a classiicação de indivíduos em níveis distintos de desenvolvimento mental. Uma segunda versão dessa escala foi elaborada por eles em 1908, na qual as crianças eram solicitadas a resolver tarefas organizadas em níveis crescentes de diiculdade até se depararem com uma que não conseguiam 268 responder. A esta última corresponderia um determinado nível ao qual foi dado o nome de idade mental. Subtraía-se esta idade mental da idade cronológica da criança e ao valor resultante dava-se o nome de nível intelectual geral (IC – IM = NIG). Uma criança de 7 anos que obtivesse no teste de idade mental de 6 anos possuiria um nível intelectual geral equivalente a 1 (7-6 = 1). Geralmente, crianças que obtivessem NIG=0 ou 1 eram mantidas em suas turmas iniciais. Mas os casos que atingissem um valor de NIG ≥ 2 poderiam ser alocadas em programas de educação especial. Por outro lado, os casos que obtivessem valores de NIG negativos (crianças que acertassem exercícios que correspondessem a idades mentais superiores às cronológicas, desta forma obtendo NIG = -1, -2 ou menos) eram mantidos nas salas de origem, pois o programa do governo francês dizia respeito à alocação de crianças com problemas de aprendizado e não com altas habilidades. É importante apontarmos, mesmo que de forma resumida, as concepções teóricas de Binet que davam sustentação à sua escala e que foram completamente ignoradas quando de sua introdução nos Estados Unidos: 1) Trata-se de recurso prático e aproximativo para identiicar crianças com problemas de aprendizagem e/ou ligeiramente retardadas, com o im de apenas indicar estudo especial, e não o de criar uma hierarquia para enquadrá-las. 2) A escala não mede a inteligência, a qual não é deinida como inata e tampouco se constitui como uma teoria do intelecto. 3) A despeito de quais sejam as causas das diiculdades das crianças, os resultados obtidos na escala servem para enfatizar possibilidades de aprimoramento das capacidades através de uma escola especial adequada. Em 1911 Binet encerrou seu trabalho com a publicação da forma inal de sua escala que icou composta por 54 exercícios divididos, em média, em grupos de 5. Cada um desses grupos representava as tarefas que uma criança de determinada idade estaria apta a executar Uma criança de 3 anos, por exemplo, deveria (Ver boxe). Ao entrar em contato com esse estar apta a: mostrar nariz, olhos e boca.; repetir algarismos.; Enumerar os objetos de uma igura; dar trabalho, WILLIAM STERN modiicou, em 2nome e sobrenome; repetir uma frase de 6 sílabas. 1912, a forma proposta por Binet para o Uma criança de 8 anos, por sua vez, deveria estar a: comparar 2 objetos de memória; contar cálculo do nível intelectual geral. Propôs capacitada de 20 a 0; indicar omissões de partes de iguras; Dizer que os valores de idade mental e idade o dia da semana e do mês; repetir 5 algarismos. cronológica não fossem subtraídos, mas WILLIAM STERN (1871-1938), psicólogo alemão, titular cadeira de ilosoia (reunia os cursos e pesquisas em divididos e multiplicados por 100. O da psicologia) da Universidade de Hamburgo. Exerceu resultado dessa operação foi denominado inluência signiicativa no início da psicologia do desenvolvimento. 269 quociente de inteligência (IM/IC x 100 = QI). Essa alteração não pode ser avaliada por Binet em virtude de seu falecimento naquele ano. A contribuição de Stern acabou por sepultar o termo nível intelectual geral, embora tenha proporcionado alguma relevância para o termo idade mental (acredita-se ter sido este segundo a “menina dos olhos” de Binet em detrimento do primeiro). Aliás, esta foi a única vantagem que a criação do conceito de QI proporcionou ao trabalho de Binet, pois Stern e Goddard (como será visto a seguir) podem ser considerados os precursores do desmantelamento e das injustiças feitas à obra de Binet. Quanto ao QI enquanto contribuição cientíica, até hoje é muito questionada sua aplicabilidade e fundamentação, tanto nos testes de inteligência como na psicologia como um todo. O teste Binet-Simon foi traduzido e aplicado em larga escala nos Estados Unidos em 1908 por Henry Herbert Goddard (1866-1957) e divulgado como o grande instrumento de medida da inteligência humana. Goddard foi o criador do termo “débil mental” (feeble-minded), que utilizou com a inalidade de ajustar as chamadas deiciências mentais à escala de Binet, tendo mesmo criado uma taxonomia para hierarquizá-las: débeis mentais seriam os indivíduos adultos com idade mental entre 8 e 12 anos; imbecis, aqueles com idade mental entre 3 e 7 anos; e, inalmente, os idiotas teriam idade mental inferior a 3 anos. É relevante sublinhar que grande parte das intenções de Goddard poderia se resumir a que, em nome da ciência, fossem eliminados os débeis mentais nos Estados Unidos, quer através de seu isolamento e da nãopermissão para sua reprodução, quer no sentido de tornar mais severas as leis de imigração, impedindo-se não só a entrada de débeis mentais no país, como também de etnias estrangeiras que poderiam colocar em risco o povo americano – aqui entendido como branco, anglo-saxão e protestante. Nesse momento se vislumbram os efeitos dessa nova signiicação dos testes de inteligência que, por sua vez, presentiicam uma de suas origens, o pensamento de Galton. Iniciava-se aí o deslocamento de função de uma ferramenta que foi constituída com uma inalidade bem precisa – indicar o nível médio de desenvolvimento mental de uma criança – para uma concepção biológica da inteligência: o quociente intelectual (QI) como função de uma aptidão hereditária. Sua utilização mobilizou um amplo contigente de psicólogos e o público em geral, tendo se constituído no século XX como padrão oicial para a medida da inteligência nos Estados Unidos. Lewis Terman (1877-1956), um grande entusiasta dos testes, em 1916, trabalhando na Stanford University, promoveu a primeira revisão da escala Binet-Simon, aumentando o número de tarefas de 54 para 90 e ampliando a 270 escala de idade mental, que abarcava o período dos 3 aos 16 anos, para o de 2 aos 18 anos. Promoveu ainda outra inovação: introduziu o intervalo de seis meses entre as faixas etárias na escala de determinação da idade. Também adaptou sua escala de modo que, em todas as faixas etárias, as pessoas que tivessem a inteligência geral normal e fossem submetidas ao teste obtivessem neste um escore de 100, com uma faixa de desvio variando em 15 a 16 pontos, dependendo da idade. Essa escala foi batizada de Stanford-Binet e se tornou um marco para a psicologia, sendo referência para todos os testes de QI que a ela se seguiram. Embora tenha sido Goddard o introdutor da escala de Binet nos Estados Unidos, foi Terman quem a popularizou. A escala Stanford-Binet foi aceita e aplicada em larga escala e serviu de modelo para outros testes de inteligência que foram construídos depois. Estes, na busca do reconhecimento de sua cientiicidade, utilizaram-na como padrão para a aferição estatística de sua VALIDADE, isto é, como prova de que media a inteligência, sem terem sequer questionado se a escala original media verdadeiramente a inteligência geral como se supunha. Goddard, Terman e outros psicólogos posteriores a eles ignoraram o fato de que a escala visava VALIDADE é um procedimento apenas identiicar crianças com problemas de psicométrico que permite aprendizado. Transformá-la numa medida de aferir o grau em que um teste mede aquilo que se propõe a medir. inteligência geral foi um grande salto em ROBERT MEARNS YERKES (1876-1956), nascido na relação às inalidades iniciais do teste. cidade de Breadysville, Pensilvânia. Psicólogo e biólogo, lecionou na Universidade Entretanto, o que proporcionaria a de Yale (1924-1944) as disciconsolidação dos testes nas culturas americana plinas psicologia e e psicológica seria a contribuição da união entre psicobiolgia. Terman e YERKES. O objetivo de Yerkes consistia em demonstrar que a psicologia, como ciência, deveria atender a critérios tão rigorosos quanto a física. Para tal, a quantiicação, a medida das habilidades psicológicas e os testes seriam instrumentos imprescindíveis. Yerkes, entretanto, se deparou com duas situações que poderiam comprometer sua meta: primeiro, a não-padronização da forma de aplicação dos testes e o preparo quase amadorístico dos aplicadores desses instrumentos comprometia seriamente seus resultados. Em segundo lugar, o não-reconhecimento da psicologia como ciência autônoma diicultava o apoio e o patrocínio necessários para a padronização e utilização dos testes em larga escala. A solução para esses problemas surgiu em 1917 com a entrada dos Estados Unidos na Primeira Guerra Mundial. Yerkes reuniu-se a Goddard e Terman que, como ele, airmavam o caráter hereditário da inteligência e 271 conseguiu convencer o Exército americano a apoiar esse projeto, permitindo a aplicação no início da guerra de um teste de inteligência em 1.750.000 soldados. Assim, os três criaram o teste Alfa do Exército, para soldados alfabetizados. Os analfabetos e soldados que falhassem no teste deveriam passar pelo teste Beta do Exército ou uma versão individual e não verbal do teste de Binet. Os resultados eram classiicados em uma escala que ia de A a E (com graduações que variavam de mais para menos) e tinham como objetivo sugerir as funções que os soldados estariam aptos a desempenhar. Os recrutas que obtivessem um desempenho de nível C eram designados para o posto de soldado raso, e não se esperava que um recruta com escore do nível E fosse capaz de ler e compreender ordens escritas. Esse teste apresentava vários problemas, que começavam na elaboração, passando pela aplicação e culminando com o “público-alvo” escolhido. Eis abaixo alguns dos que, conforme análise apresentada por Gould (1999: 204234), poderiam ser citados: • O tempo de aplicação era muito curto, em razão do número de recrutas que deveriam ser submetidos ao teste. • O teste era aplicado a muitos imigrantes, que possuíam pouco ou nenhum contato com o idioma inglês e a cultura americana, de modo que não conseguiam entender o sentido das perguntas; e mesmo o teste Beta não facilitava muito as condições por se tratar de uma visão igurativa do primeiro teste. • O local de aplicação do teste não proporcionava as condições mínimas para uma aplicação decente, pois as salas eram pequenas para o número de soldados que entravam por vez, havia péssimas condições de visualização e acústica, além de muitas cadeiras estarem quebradas. • Vários grupos raciais (principalmente negros), ao tentar esclarecer dúvidas durante a execução do teste, eram atendidos de forma negligente e grosseira. • Os resultados inais eram, em alguns casos, falsiicados para privilegiar determinada classe ou raça. • Os oiciais de altas patentes não aprovavam o trabalho e criavam várias diiculdades para os psicólogos. Para o Exército, esse trabalho teve pouca repercussão. Seus resultados, entretanto, deram origem a uma monograia com 800 páginas, contendo dados estatísticos e conclusões que acreditamos serem bastante tendenciosos. 272 Para demonstrar essa tendenciosidade, Gould (1989) enumera vários aspectos. Citamos aqui alguns dados: 1) Os resultados possibilitaram a distinção dos imigrantes por país de origem, sendo que os oriundos dos países eslavos e do sul da Europa obtiveram um desempenho enquadrado nos parâmetros da debilidade mental, com uma variação de idade mental entre 10,74 anos e 11,34 anos, conforme o país de origem. 2) Em virtude da forma relapsa de atendimento a dúvidas que tiveram e da falsiicação de seus resultados inais, os negros obtiveram o pior desempenho, com média de 10,41 anos de idade mental, dando ensejo a novos estudos com critérios ainda mais preconceituosos. 3) Com relação aos americanos adultos brancos, seus resultados foram fronteiriços com a debilidade mental, obtendo média de 13,04 anos de idade mental. Mas, se o Exército não deu muita importância aos resultados de Yerkes, o mesmo não se deu nos campos político, econômico e social. As análises do teste, tanto quanto as conclusões do estudo, foram feitas por eugenistas, seguidores da doutrina de que a inteligência era inata, o que alimentou ainda mais a idéia de que o baixo resultado do americano branco era devido à miscigenação descontrolada com os pobres, negros e débeis mentais da América. No campo político, a repercussão desse trabalho veio a abalar um dos grandes alicerces dos Estados Unidos: sua democracia. Pois seria possível manter a democracia americana, exemplar para o mundo, se os membros dessa sociedade possuem idade mental de 13 anos, sendo que este índice irrisório se deve apenas à permissividade social e legal que amparava todo tipo de mistura racial? Restringir o número de imigrantes foi uma ótima solução do ponto de vista eugenista e se conigurou como a grande vitória desse grupo. Em 1924, o Congresso americano aprovou o Restriction Act, pelo qual se restringia o acesso aos Estados Unidos a cotas de 2% das pessoas originárias de regiões consideradas geneticamente desfavorecidas. Nesse quadro, as populações mais atingidas foram as mediterrâneas e do Leste europeu. Validado por amostra representativa de 1,75 milhões de soldados, o teste Alfa foi o teste mais bem aceito na história da psicologia, especialmente nos meios empresarial e educacional. Exerceu inluência tão grande na vida acadêmica psicológica e empresarial dos Estados Unidos que todos os testes de inteligência desenvolvidos posteriormente copiaram vários de seus itens ou modelos de exercícios, o que acarretou outro inconveniente: as gerações 273 pós-1920 foram submetidas, desde então, a avaliações freqüentes com base em diversas formas de teste de inteligência muito semelhantes àqueles primeiros, embora desenvolvidos posteriormente, o que produziu uma familiaridade indesejada com os tipos de questões constantes desses instrumentos. Após 1960, era quase impossível encontrar um americano que, em algum momento de sua vida, não tivesse sido avaliado por algum teste de inteligência, o que redundou em uma possível resistência aos testes psicológicos, mas também, com certeza, na produção de indivíduos deinidos e possuidores de uma identidade a partir desse parâmetro. Testes de aptidão Muito embora os testes de inteligência tenham sido concebidos para desempenhar uma enorme gama de funções, com o passar do tempo foi icando claro que tinham sérias limitações e não podiam ser aplicados em qualquer situação a im de classiicar qualquer pessoa. Na verdade, o que paulatinamente foi se veriicando é que com os “testes de inteligência”, somente certos aspectos da inteligência eram medidos. Se, por um lado, esses testes mostravam-se muito úteis em ocasiões em que era preciso avaliar a habilidade verbal ou as relações abstratas e simbólicas, por outro, esses mesmos testes deixavam a desejar quando o objetivo incluía outras características e aptidões. De fato, a ampla divulgação dos testes de inteligência e a percepção de suas limitações se tornaram dois lados da mesma moeda, pois a aplicação continuada de testes de inteligência em amostras bastante signiicativas foi justamente o que mostrou a limitação desse instrumento e passou a indicar, concomitantemente, a necessidade da elaboração de outros tipos de testes que pudessem aferir atributos e capacidades distintos daqueles identiicados nas tabelas próprias dos testes de inteligência. Testes que pudessem, por exemplo, medir a atenção concentrada ou a rapidez motora na execução de dada tarefa no ambiente de trabalho. Do ponto de vista histórico, portanto, as limitações dos instrumentos de avaliação disponíveis no início do século XX forjaram a circunstância na qual se constatou a necessidade de criar “testes especíicos de aptidões” a im de suplementarem os genéricos “testes de inteligência”. Além disso, o desenvolvimento das técnicas estatísticas da análise fatorial, que permitiam 274 identiicar e classiicar diferentes traços de habilidades, criou uma base teórica sólida para a elaboração de baterias de aptidões múltiplas. Em 1901, Karl Pearson (1857-1937) já apontara o caminho para esse tipo de análise. O avanço do método e sua efetiva aplicabilidade à testagem psicológica, entretanto, devem ser creditados principalmente aos norte-americanos T. L. Kelley e Louis Thurstone (1887-1955) e ao inglês Cyril Burt (1883/1971). Tendo como substrato psicométrico a contribuição desses estudiosos, foi possível escolher a melhor medida disponível dos fatores identiicados pela análise fatorial. A questão era prática – os testes de inteligência não atendiam às novas demandas a contento –, mas também, ao mesmo tempo, metodológica e epistemológica. Binet, por exemplo, concebia a inteligência como uma aptidão unitária e a media objetivamente a im de obter um único escore. Todavia, Thurstone, que fazia uma oposição direta à visão de Binet, defendeu novos caminhos na abordagem quantitativa da investigação das aptidões mentais. Começando por estabelecer inter-relações entre os testes de aptidões, veriicou, mediante o uso da análise fatorial múltipla, que todos os testes se correlacionavam positivamente, o que indicava um provável fator comum entre eles. A partir dessa constatação, Thurstone criou o “teste de aptidões mentais primárias”, que consistia em uma bateria onde os testes com maiores validades fatoriais foram reunidos para medirem a compreensão verbal, a luência verbal, a memória, a rapidez perceptual, a indução, e a capacidade numérica e espacial. Outrossim, um forte incentivo para a testagem de aptidões foi obtido pela crescente atuação de psicólogos na seleção e classiicação de pessoal militar. Aliás, é necessário destacar o papel dos psicólogos no contexto militar, principalmente na Primeira Guerra Mundial, onde signiicativa parte das pesquisas psicológicas sobre testes realizadas nas Forças Armadas americanas foi dirigida para a construção de baterias de aptidões múltiplas, a im de avaliar pilotos, artilheiros, operadores de rádio etc. Paralelamente às pesquisas no âmbito militar, muitos testes de aptidão também vinham sendo desenvolvidos para uso na indústria, principalmente na seleção de pessoal. Os testes de aptidão mecânica de Stenquist, o exame para funcionários de escritório de Thurstone e o Minnesota Paper Form Board, criados respectivamente em 1921, 1922 e 1928, são exemplos dessa tendência. A idéia subjacente à aplicação de todos esses testes é que eles poderiam ser úteis na classiicação de certas pessoas como mais aptas para 275 dadas funções, proporcionando uma melhor adequação do trabalhador a seu posto de trabalho. O teste de aptidão, fundamentalmente, era destinado a diagnosticar ou prognosticar a capacidade da pessoa examinada no desempenho de uma dada tarefa. Assim, os testes passaram a visar ao enquadramento do trabalhador à lógica da produção industrial ou às atividades habituais de um escritório. Um teste de aptidão mecânica, por exemplo, tinha por inalidade mensurar a rapidez dos movimentos, a destreza manual, a coordenação motora ina, a metodização e sistematização ao realizar um trabalho. Tais circunstâncias históricas evidenciam, em meados do século XX, que a seleção de pessoal para a indústria e o Exército criava uma determinada demanda social. Assim, observa-se que a escolha de certas aptidões como sendo objeto de medida e aferição foi modulada socialmente. Algumas aptidões deviam ser mensuradas, outras não. As razões dessas distinções se explicam principalmente porque as injunções do militarismo e do capitalismo variam ao longo da história. Testes de interesse Os testes de interesse têm o propósito de avaliar os interesses do indivíduo em diferentes campos de trabalho ou de estudo, já que determinados currículos educacionais se vinculam a certas carreiras proissionais. Por isso, é possível airmar que os estudos psicológicos sobre os interesses receberam grande ímpeto no contexto da avaliação educacional e vocacional. Sendo assim, os testes de interesse funcionam tanto como testes vocacionais (sendo basicamente inventários de auto-relato, onde o examinando indica suas opções vocacionais) quanto como instrumentos de avaliação dos setores de recursos humanos das empresas, pois na relação trabalhadorempregador é de grande signiicado prático a consideração dos interesses individuais, principalmente nos estudos de reestruturação administrativa e acompanhamento de pessoal. O inventário de interesses Strong (SII), por exemplo, é bem representativo do desenvolvimento histórico desse tipo de teste, sendo, inclusive um dos mais utilizados. A abordagem geral do teste foi primeiramente formulada por E. K. Strong Jr. (1884-1963) com seus estudos sobre a mensuração de interesses. Publicado originalmente em 1927, o Strong Vocational Interest Blank introduziu dois procedimentos principais na medição de interesses 276 ocupacionais: a) os itens avaliavam quantitativamente o interesse (ou não) do examinando diante de uma ampla variedade de atividades; e b) as respostas eram avaliadas, para diferentes ocupações, com um gabarito de critério empírico, que fora elaborado a partir de uma pontuação pautada em critérios externos. Ou seja, abrangendo mais de 30 áreas de interesse, esse inventário possuía escores que forneciam um índice do grau de interesse do examinando pelos diversos campos de trabalho, em comparação com o escore de indivíduos (proissionais) reconhecidamente competentes nesses campos. Por conta de suas características originais – muito embora, a partir da década de 1970, tenham sido introduzidas muitas inovações, implementadas em sucessivas revisões –, pode se dizer que o SII acabou se tornando um “teste de interesses” padrão, pois foi um dos primeiros a empregar esse tipo de gabarito de critério dos itens, subseqüentemente utilizado no desenvolvimento de inventários de personalidade como o MMPI (Minnesota Multiphasic Personality Inventory), concebido na década de 1930 pelo psicólogo clínico S. Hathaway e pelo neuropsiquiatra J. C. McKinley e publicado na década de 1940, e o CPI (California Psychological Inventory), desenvolvido a partir do MMP. Há, porém, outros testes de interesses que também são muito usados. Dentre eles destacam-se o Kuder Preference Record – desenvolvido e publicado por G. Frederic Kuder em 1948 –, que especifica a posição relativa do examinando em 10 grandes áreas de interesse vocacional, e o Career Assessment Inventory – CAI, lançado em 1975 e muito semelhante ao Strong. Testes de personalidade Há uma outra área da testagem psicológica quantitativa que mantém certa distinção em relação aos testes de inteligência, aptidão e interesses. Essa abordagem procura enfocar os aspectos afetivos (não intelectuais) da pessoa, sendo que os testes planejados dentro desse propósito são freqüentemente referidos como testes de personalidade. Assim, um teste objetivo de personalidade é um instrumento, geralmente apresentado sob a forma de inventários ou provas expressivas, que procura examinar aspectos não cognitivos da personalidade do testando. 277 Esse termo – teste de personalidade –, entretanto, é alvo de grande controvérsia uma vez que, para muitos estudiosos, a idéia de “personalidade” é muito ampla e necessariamente inclui os traços cognitivos e intelectuais. Assim, em certo sentido, pode-se airmar que os testes de inteligência (que aferem o QI) também abordam aspectos da personalidade. Do ponto de vista que se estabeleceu como predominante, contudo, a designação “teste de personalidade” geralmente refere-se a medidas de características tais como estados emocionais, relações interpessoais, motivação, atitudes. Segundo a perspectiva histórica, esses testes de personalidade têm como precursores os já referidos estudos de Galton, Pearson e Cattell que desenvolveram técnicas de questionários padronizados e escalas de avaliação. Tais técnicas foram obviamente planejadas para outros objetivos. No entanto, como procedimentos práticos, foram empregadas largamente na construção de alguns dos tipos mais comuns de testes de personalidade. De igual modo, a exemplo do que foi constatado em relação aos testes de inteligência, aptidão e interesses, no caso dos testes de personalidade também se veriica a injunção de fatores sociais e conjunturais que, de certa forma, modularam sócio-historicamente a sua elaboração. É o que pode ser dito, por exemplo, a respeito do Personal Data Sheet, desenvolvido por Woodworth (1869-1962) durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1919). Esse teste de personalidade foi planejado como um instrumento de avaliação útil para identiicar recrutas não qualiicados para o serviço militar. O inventário consistia em indagações sobre sintomas presentes em quadros psicopatológicos típicos e cabia aos examinandos uma espécie de “auto-relato”, ou seja, respondiam aos itens avaliando-se a si mesmos. Logo depois do término da guerra, o Woodworth Personal Data Sheet foi adaptado para ser usado junto à população de uma forma geral, inclusive com crianças, servindo como modelo para a maioria dos testes de personalidade posteriores. Com o passar do tempo, no inal dos anos 1920 e início da década de 1930, apareceu uma outra abordagem relativa à mensuração de aspectos da personalidade: os testes de desempenho ou situacionais (muito usados após a Segunda Guerra Mundial). Quando submetido a esse tipo de avaliação, que procurava simular situações da vida cotidiana, o examinando tinha de realizar uma tarefa cujo propósito explícito se conigurava como um despiste. Um engodo? Sim, e a razão de os verdadeiros propósitos do teste serem disfarçados devia-se à necessidade de evitar que o examinando direcionasse deliberadamente as respostas. Assim, as chances de o examinando criar intencionalmente uma impressão desejada icavam muito reduzidas. H. 278 Hartshorne, May e colaboradores usaram essa técnica (Character Education Inquiry, CEI) com crianças em idade escolar a im de medir condutas vinculadas a trapaça, mentira, roubo, cooperação e persistência. Alguns estudiosos da testagem psicológica (Anastasi e Urbina, 2000) enfatizam que a testagem da personalidade não acompanhou o progresso dos testes de inteligência, aptidões e interesses em suas aplicações práticas. Qual seria o motivo do estabelecimento desse quadro? É difícil dizer, mas uma possibilidade bem plausível é que os psicólogos preocupados em investigar a personalidade tenham privilegiado os chamados “testes projetivos”, deixando os testes objetivos em segundo plano. Os testes projetivos A tentativa de traçar as linhas gerais da história dos testes projetivos pode esbarrar num obstáculo curioso, pois diante da pergunta – quais testes podem ser considerados “projetivos”? – haverá até quem arrisque respostas muito diferentes. Na verdade, há muitos livros e manuais que, no âmbito geral dos “testes psicológicos”, lançam mão de uma divisão que procura distingui-los como “objetivos” e “projetivos”. Alguns outros, conquanto tratem das mesmas questões, às vezes utilizam uma terminologia diferente. Contudo, não é possível considerar tais classiicações como consensuais, uma vez que há autores que até lexibilizam a relevância dos testes projetivos. Mas, pode-se perguntar, em que sentido um teste é projetivo? Ora, certos testes são considerados projetivos porque, de uma maneira ou de outra, relacionam-se àquilo que, em certas linhas teóricas da psicologia, se convencionou chamar de “mecanismo de projeção”. Ou seja, esses testes permitem avaliar um dado sujeito a partir da pressuposição de que ele atribuiria a elementos do teste – manchas ou borrões, por exemplo – aspectos subjetivos que, na verdade, estariam presentes em seus impulsos e sentimentos. Dessa forma, ao dizer que está vendo “isso e aquilo”, o indivíduo está descrevendo não a mancha “em-si”, mas aspectos de seu próprio mundo interior. No entanto, não havendo na psicologia um consenso acerca de como se dá essa “projeção” (cada teórico apresenta ênfases diferentes, quando não contraditórias), os psicólogos se apropriam dos testes projetivos de maneiras as mais variadas. Por conseguinte, são formadas “escolas” que passam a interpretar dado teste de modos bem diversos. Alguns, de linha psicanalítica (cf. capítulo 279 22), por exemplo, enfatizam os conteúdos inconscientes no levantamento do teste. Por outro lado, os de orientação comportamental (cf. capítulo 11) ou cognitivista (cf. capítulo 13) dão mais destaque à noção de percepção. Outros, ainda, numa perspectiva fenomenológica (cf. capítulo 15), usam testes projetivos como um meio de investigação da situação existencial. De qualquer forma, no dia-a-dia da prática psicológica, após a entrevista inicial, e/ou a anamnese, muitos psicólogos optam pelo uso de testes projetivos, pois essas técnicas, já que viabilizam projeções de vivências internas (como preocupações, ansiedades e alegrias), assumem um papel muito importante no psicodiagnóstico. Assim sendo, dentro do panorama multifacetado da psicologia, os psicólogos usam testes projetivos com propósitos que vão desde a análise de mecanismos inconscientes até a investigação de funções cognitivas, passando pela avaliação da estrutura da personalidade segundo critérios da linha teórica que serve como base de atuação. Um dos testes projetivos mais conhecidos em O TESTE todo o mundo é o chamado “psicodiagnóstico DE RORSCHACH , de tão conhecido, é eventualmente de R ORSCHACH ”, criado pelo psiquiatra suíço citado pela cultura de massa, em ilmes e histórias em quadrinhos. Tanto o Dr. Hermann Rorschach (1884-1922), que em 1918 Hannibal Lecter (personagem de Anthony confeccionou e elaborou as lâminas do teste. Hopkins no ilme O silêncio dos inocentes) foi Essas pranchas contavam com manchas de tinta submetido a esse teste, quanto Batman (numa história clássica dos quadrinhos simétricas suscetíveis a variadas interpretações “Asilo Arkham”, de Grant Morrison) quanto ao seu formato e conteúdo, o que viu numa determinada prancha a possibilitava avaliar o que cada pessoa via nas igura de um morcego. iguras. Inicialmente, e de modo experimental, o próprio Rorschach – que se posicionava como um psicanalista não ortodoxo – começou a usar sua técnica com os internos do Manicômio de Appenzell, em Herisau, na Suíça. Sua intenção era investigar a estrutura da personalidade dos pacientes, pois acreditava que seu método podia revelar as características da afetividade e da sensualidade, assim como traços gerais e especíicos da vida interior do indivíduo. Com o seu livro Psicodiagnóstico: metodologia e resultados de um experimento para o diagnóstico da percepção, publicado em 1920-1921, as pesquisas de Rorschach se tornaram conhecidas no meio acadêmico. A consagração definitiva, contudo, só ocorreu em 1922 quando apresentou um diagnóstico com base em seu método perante a Sociedade de Psicanálise da Suíça e seu estudo foi reconhecido como cientíico, pois, na ocasião, seu diagnóstico, mesmo sem 280 conhecimento prévio da condição do paciente, coincidiu inteiramente com o diagnóstico clínico de Oberholzer, o psicanalista que tratava do caso. Mesmo com o seu precoce falecimento, ainda em 1922, seu método logo correu todo o mundo, sendo desenvolvido e aplicado nas mais diversas áreas por seus discípulos e seguidores. Tanto que em 1936 aconteceu o lançamento da primeira publicação cientíica dedicada ao teste, Rorschach Research Exchange, em 1943 ocorreu o primeiro Congresso sobre o Rorschach e, em 1952, foi fundada a Sociedade Internacional de Rorschach. Na esteira desses acontecimentos, alguns instrumentos muito semelhantes foram desenvolvidos. O teste de Zulliger, por exemplo, que guarda muita proximidade com o de Rorschach, foi criado em 1942 por Hans Zulliger, de Berna, em função da necessidade de selecionar um alto contingente de soldados para o Exército suíço, em curto espaço de tempo – o Zulliger permite aplicação coletiva, em contraposição à aplicação individualizada do Rorschach. Além do psicodiagnóstico de Rorschach, entretanto, alguns outros testes projetivos também gozam de grande inluência no meio psicológico. Um deles é o teste de apercepção temática (TAT), criado por Christiana Morgan e Henry Murray (1893-1988), do Harvard Psychological Clinic, em 1935. Em contraste com as técnicas baseadas em manchas de tinta, o TAT apresenta estímulos mais altamente estruturados. O teste consiste em 19 lâminas contendo desenhos em preto-e-branco. Tais iguras têm a função de servir como base para que o examinando crie histórias para cada desenho, descrevendo o que os personagens retratados estão pensando, sentido, falando, fazendo etc. O sucesso dessa técnica ica evidente quando se percebe que tem servido de modelo para o desenvolvimento de muitos outros instrumentos, como o teste de apercepção temática infantil (CAT), que é uma adaptação do TAT para crianças. Um outro aspecto também perceptível é que procedimentos que utilizam o desenho como técnica projetiva têm se tornado um freqüente suplemento do Rorschach e do TAT, em decorrência de sua fácil administração. De fato, gradativamente foram se multiplicando as técnicas que se utilizavam do desenho como forma de projeção psicológica, irmadas na hipótese de que a representação gráica tende a vincular-se ao processo de maturação psíquica. Mas, dentre os vários testes organizados em torno da investigação de traços da personalidade, fases de desenvolvimento e motricidade, alguns precisam ser especialmente citados em função de seu uso entre nós. Elaborado a partir de estudos sobre o desenho infantil, o “teste gestáltico visomotor de Bender”, criado por Lauretta Bender em 1938, consiste em nove 281 iguras que devem ser copiadas pelo examinando (criança ou não) em uma folha branca, sem pauta. A origem do teste está na adaptação feita por Bender de desenhos que Max Wertheimer e seus discípulos usaram inicialmente com a intenção de demonstrar os princípios do gestaltismo (cf. capítulo 18) em relação à percepção. Entrementes, outros psicólogos também foram percebendo que o desenho poderia oferecer uma base segura para o diagnóstico de traços de personalidade, como, por exemplo, John N. Buck, que desenvolveu sua técnica projetiva usando desenhos de “casa”, “árvore” e “pessoa” (house, tree, person – HTP). Numa linha um pouco distinta, há também o teste de Wartegg, criado por Ehrig Wartegg, que foi apresentado no XV Congresso de Psicologia de Jena (Alemanha), em 1937, consistindo em uma técnica de investigação da personalidade através de desenhos obtidos por meio de uma variedade de pequenos elementos gráicos. Os primeiros testes brasileiros No Brasil, o interesse pelos testes psicológicos surgiu por volta da segunda década do século XX. Nesse período, a possibilidade de medir as habilidades psicológicas, de forma rápida e em condições simples, abriu caminho para a expansão do “movimento dos testes” e sua aplicação, principalmente nos campos da educação e do trabalho. A história desse movimento tem como igura pioneira Ulisses Pernambucano (1892-1943), que participou dos primórdios da inserção dos testes psicológicos no Brasil. Em 1925, com o apoio do Governo do Estado de Pernambuco, ele fundou o Instituto de Psicologia do Recife, considerado a primeira instituição autônoma de psicologia a funcionar regularmente no Brasil. Era um espaço aberto para a formação de colaboradores e para a padronização de testes de inteligência, notadamente da escala Binet-Simon, que sofreu rigorosa revisão, levada a cabo durante dez anos, com que Ulisses objetivava, inicialmente, medir o nível de inteligência da população pernambucana. Essas experiências comprovaram um quadro assustador: a existência, em Pernambuco, de um grande número de deicientes mentais, da mesma forma que Terman, Yerkes e outros constataram nos EUA. Atento, como grande parte dos intelectuais da época, ao que se produzia nos países estrangeiros, particularmente europeus, Ulisses Pernambucano 282 conheceu e compreendeu o alcance do psicodiagnóstico de Rorschach. Entretanto, como as pranchas originais não estavam industrializadas e, portanto, disponíveis, ele procurou criar uma série paralela dessas PRANCHAS, seguindo as orientações constantes em Duas coleções de PRANCHAS foram artigo assinado pelo próprio Rorschach cujos resultados, criadas; atualmente, de acordo com Rosas (2003), icaram muito próximos dos só existe uma remanescente, que se encontra nos arquivos do originais. Essa série paralela foi utilizada em seu trabalho professor PAULO ROSAS em Pernambuco. clínico/psicológico com crianças, adolescentes e adultos com “problemas” de conduta e de aprendizagem e na orientação proissional. Assim, como visto anteriormente, muito rapidamente os dois principais testes – a escala Binet-Simon e o Rorschach – são utilizados no Brasil. Observese que no caso deste último, além da utilização pioneira e “alternativa” de Ulisses Pernambucano, o Rorschach começou a ser usado por JOSÉ LEME LOPES e SYLVIO RABELLO, já em 1932, sendo os primeiros JOSÉ LEME LOPES trabalhos publicados, todavia, apenas em 1934. Desde então, ( 1 9 0 4 - 1 9 9 0 ) , psiquiatra carioca, esse método tem sido grandemente difundido, o que o teve papel de releleva a assumir um papel de destaque entre as técnicas vo a partir do Instituto de Psiquiatria da UFRJ. projetivas usadas em nosso país. Sucessivamente foram SYLVIO DE LYRA RABELLO (1899-1972), sendo lançados manuais – Cristiano de Souza em 1955, pernambucano, formado em Direito, com inúmeras Isabel Adrados em 1967 e Monique Augras em 1969 sobre o de– que permitiram o livre acesso de estudantes e proissionais obras senho infantil. ao teste. O interesse, já visível nesse período, em conhecer e medir habilidades psicológicas e características da personalidade da população brasileira sofreu grande impulso após a Revolução de 1930, época em que a preocupação com a infância e o trabalho era o tema principal da política do novo governo. Principalmente nos grandes centros urbanos desse momento, como São Paulo, Recife, Belo Horizonte e Rio de Janeiro, a “aplicação da teoria psicológica na solução de problemas práticos de todas as esferas da atividade” (Monarcha, 2001) reforçou a perspectiva de uma psicologia objetiva aplicada à criança que estuda e ao homem que trabalha. Com essa forma de intervenção, a psicologia se tornou uma poderosa aliada da tarefa que se colocava para os governantes da época, que era a de resolver os problemas econômicos e sociais produzidos pelo processo de industrialização que se anunciava. O objetivo dos testes, nesse processo, foi propor soluções para o recrutamento e a seleção de trabalhadores de modo a garantir uma adaptação mais harmoniosa e produtiva para os cargos e funções exigidos pelos postos 283 de trabalho. Da mesma forma, nas escolas, a medida das aptidões individuais por meio dos testes psicológicos visava tanto à orientação para alocação no mercado de trabalho quanto à constituição de turmas homogêneas. Com o movimento da Escola Nova (cf. capítulo 7 e 15), propondo que o sistema educacional deveria ser público, laico, gratuito e para ambos os sexos, as escolas se transformam em laboratórios para a formação de cidadãos. Tributários do modelo americano para a educação, que pressupõe o desenvolvimento pleno das potencialidades do indivíduo, os estabelecimentos escolares tornam-se elemento fundamental desse processo, por possuírem o equipamento necessário para a estimulação coordenada e cientíica das habilidades naturais infantis de modo a suscitar e incutir nas crianças brasileiras as noções de responsabilidade, disciplina, cooperação e patriotismo. Foi nesse contexto que, em 1934, Lourenço Filho (cf. capítulo 15) publicou a primeira edição do teste ABC, instrumento genuinamente brasileiro porque construído com base em padrões culturais nacionais, testado e padronizado nas escolas das grandes cidades do Brasil. A partir dessa data, o teste teve 12 edições, a última delas em 1974; foi utilizado nas escolas de todo o país, na América Latina e, em 1954, aplicado em escolas francesas, tendo sido traduzido para a língua inglesa em 1962. Lourenço Filho se inspirou nos trabalhos desenvolvidos por Binet, principalmente em suas teses relativas à utilidade de suas escalas de medida que, como já referido, pretendiam funcionar como auxiliares para o aprimoramento das intervenções educacionais. Apesar disto, descartou a noção de QI e a substituiu pela de nível de maturidade psicobiológica que seria o principal requisito para o sucesso da aprendizagem da escrita e da leitura. Segundo ele, o fracasso escolar decorreria das diferenças individuais no que tange ao grau de maturidade dos alunos. O teste ABC visa determinar as deiciências particulares de cada criança de modo a garantir a organização eiciente das classes escolares. Instrumento de formulação e aplicação simples (o exame completo se faz em oito minutos), é composto por oito provas: coordenação visual-motora, memória imediata, memória motora, memória auditiva, memória lógica, prolação, coordenação motora, mínimo de atenção e fatigabilidade. A partir da aferição dessas habilidades, os alunos são organizados em três grandes grupos – fortes, médios e fracos – em função dos quais se constituem turmas escolares homogêneas. Ou seja, permitiria a realização do “sonho dourado” da pedagogia da época: a formação de classes homogêneas, as classes especiais de retardados e as dos bem dotados de inteligência, sonho homólogo ao de Binet. 284 Seguindo o trajeto iniciado por Lourenço Filho, e igualmente inspirada pelas propostas da Escola Nova, Helena Antipoff (cf. capítulo 15), em 1943, apresentou os primeiros resultados do teste de sua autoria, “Minhas Mãos”, que pretendia ser um instrumento de diagnóstico psicopedagógico individual e igualmente importante para o controle da ação educativa da escola. Apoiada nos trabalhos de Binet e Claparède que utilizavam material expressivo (redações e descrições de objetos e gravuras) para o estudo da personalidade, Antipoff acreditava na utilidade das composições escolares para o conhecimento das aptidões, traços de personalidade e sinais de inteligência das crianças. Seu interesse principal centrava-se na utilização de um instrumento considerado cientíico na educação da criança excepcional e do trabalhador rural. Como o teste ABC, o Minhas Mãos é totalmente brasileiro, por ter sido testado, em sua fase de experimentação e pesquisa, em clínicas, escolas, universidades e centros de treinamento de professores rurais nacionais. Foi igualmente a partir desse trabalho de testagem prévia que o tema do teste foi deinido. O teste consta de uma redação com o título “As minhas mãos”, feita de preferência à tinta e em folha de papel sem pauta. Sua aplicação pode ser individual ou coletiva, e sua avaliação contempla a análise temática e formal do material expressivo, a partir do que são deinidos os elementos do texto a serem alocados nas seguintes funções psicológicas: participativa, imaginativa, mnêmica, interpretativa, lógica e afetiva, resultando em um laudo avaliativo da personalidade e da inteligência dos grupos estudados. Em 1973 foram apresentados os resultados de pesquisa realizada durante dois anos cuja inalidade foi padronizar as formas de análise dos dados gerados pelo teste, de modo a torná-lo um instrumento mais seguro, do ponto de vista técnico, e aumentar sua utilidade nos diversos campos da psicologia aplicada. É ainda utilizado atualmente, o que é atestado pela publicação contínua de seu Manual de aplicação e apuração e das máscaras de apuração dos resultados pelo CENTRO EDITOR DE PSICOLOGIA APLICADA EMÍLIO MIRA Y LÓPEZ, (1889-1964), psiquiatra catalão, nascido em 1898 em Santiago de Cuba, (CEPA). O CEPA, fundado em 1952 no Rio passou a infância e a juventude em Barcelona e de Janeiro, é um dos principais editores de faleceu em 1964 no Rio de Janeiro. Socialista, cheiou o serviço de psiquiatria dos Republicanos testes psicológicos no Brasil. durante a Guerra Civil Espanhola. Após a vitória MIRA Y LÓPEZ, entusiasta do teste do generalíssimo Franco na guerra civil espanhola, Minhas Mãos, foi outra igura importante exilou-se em vários países – França, Estados Unidos, Cuba, Chile, Argentina, Uruguai – antes de se ixar, para a disseminação dos testes em nosso país. em 1947, no Rio de Janeiro. 285 Criou o teste PMK (psicodiagnóstico miocinético) que, embora não tenha sido formulado no Brasil, sendo apresentado pela primeira vez no Setor de Psiquiatria da Real Academia de Londres em 1939, merece destaque nesta apresentação pelo fato de ter sido aqui que a coniguração inal do teste foi padronizada (utilizadando amostras da população brasileira para tal im) em função da radicação deinitiva de Emílio Mira em nosso país. O PMK é um teste expressivo de personalidade que objetiva fornecer dados acerca do que Mira y López denomina “‘esqueleto caracteriológico’ por meio da medida do equilíbrio tensional entre as três coordenadas fundamentais da conduta: intra e extraversão; auto e heteroagressão; e depressão e elação” (Mira y López apud Coronel, 1962: 99). Em 1945, Mira vem ao Brasil, especiicamente a São Paulo e ao Rio de Janeiro, a convite de várias instituições voltadas para o desenvolvimento cientíico, industrial e da administração pública Através do ISOP, Mira cria em 1949 (Universidade de São Paulo, Instituto a Associação Brasileira de Psicotécnica (hoje em dia Associação Brasileira de Psicologia de Organização Racional do Trabalho Aplicada – ABRAPA) e os Arquivos Brasileiros de – IDORT, Divisão de Ensino e Seleção da Psicotécnica (atualmente Arquivos Brasileiros de Psicologia). O ISOP foi um dos principais centros Estrada de Ferro Sorocabana, Departamento irradiadores da psicologia científica no país, Administrativo do Serviço Público – DASP formando psicotécnicos e construindo (por meio de artigos na revista Arquivos Brasileiros de Psicotécnica) a e outras) dar cursos que envolvem temas necessidade de regulamentação da proissão, o que como o papel da psicologia na ciência do ocorreu em 1962, através da Lei 4.119. Nos anos trabalho, seleção e orientação proissional, 1970, passa a dedicar-se à pós-graduação, até ser extinto em 1990. análise proissiográica, o exame psicotécnico etc. Curso bem-sucedido que culminou em um convite, em 1947, para dirigir o recém-criado Instituto de Seleção e Orientação Profissional (ISOP), órgão pertencente à Fundação Getúlio Vargas que objetivava estudar cientiicamente as aptidões e habilidades psicológicas de modo a utilizar esse conhecimento para aprimorar o ajustamento do trabalhador ao trabalho. A partir do estabelecimento de seu autor no ISOP e no Rio de Janeiro, o PMK passou a ser amplamente utilizado para seleção e orientação proissional e foi divulgado em todo o país. Em 1949 foi levada a cabo sua padronização deinitiva. Além disso, inúmeras pesquisas foram realizadas para a deinição psicométrica da consistência, coniabilidade e validade do teste que ampliaram sua utilização até os nossos dias, em contextos diversiicados: na clínica, seleção e orientação, no psicodiagnóstico e no exame psicotécnico para habilitação de motoristas no Detran. 286 É relevante notar que a implementação e expansão dos procedimentos de medida objetiva das características psicológicas no Brasil, e seu posterior encampamento pelos cursos de psicologia, é devedora da impulsão que esses autores tiveram, em maior ou menor grau, de órgãos oiciais do governo no período de 1930 a 1950 e de sua adesão ao projeto idealizado pelo Estado brasileiro, através de vários governantes desse período, para o que foi denominado processo de modernização do Brasil. Modernização que envolvia a classiicação e a mensuração dos indivíduos de acordo com suas habilidades no mercado de trabalho. Técnicos de órgãos como o DASP (Departamento de Administração do Serviço Público), o IDORT (Instituto de Organização e Racionalização do Trabalho), o ISOP, o INEP (Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais) foram defensores desse movimento brasileiro dos testes psicológicos e acreditaram na ampliação de seus horizontes, visando a uma psicologia objetiva e cientíica, apta, portanto, a contribuir para a solução dos problemas humanos e sociais. Esta proposta, contudo, foi severamente criticada por outras abordagens teórico-metodológicas na psicologia, que enfatizavam ora a supericialidade das medidas, ora a impossibilidade de medir a subjetividade individual, ora seu aspecto ideológico (e não cientíico) ou mesmo seu caráter rotulador e de controle. Conseqüentemente, nesse período, os psicólogos nem sempre gozavam da devida credibilidade diante da sociedade, pois freqüentemente ocorriam questionamentos relativos à legitimidade do uso desses instrumentos, bem como ao papel pouco claro do psicólogo e dos serviços por ele prestados. Essas questões, somadas à importação de testes europeus e americanos totalmente inadaptados à realidade brasileira, produziram ao longo dos anos um quadro em que a grande maioria dos testes apresentava desatualização e ausência de padronização referente à população brasileira, inaceitável nãovalidação e deiciente formação de proissionais que valorizassem a aplicação não mecânica das técnicas. Mesmo após o reconhecimento da proissão, em 1962, a prática profissional ainda carecia de regulamentação específica que norteasse o uso dos testes psicológicos. Além dessas diiculdades, testes circulavam sem nenhuma fundamentação teórica e empírica e, até mesmo por isso, ocorreram algumas impugnações judiciais de laudos psicológicos em razão de um suposto excesso de subjetividade nas avaliações psicológicas. Gradativamente também ocorreram problemas ligados às editoras dos testes (algumas delas até sem o registro nos Conselhos Regionais de Psicologia – CRPs), que produziam manuais e testes sem a devida validação psicométrica e acompanhamento por parte de psicólogos. A comercialização dos manuais 287 igualmente ocorria sem controle adequado, favorecendo a aquisição por parte de leigos e a aplicação indevida fora do âmbito da psicologia. Nos anos 1980, a situação dos testes começou a ser discutida na Comissão de Métodos e Técnicas do Conselho Federal de Psicologia (CFP), mas somente em 1997 surgiram os primeiros resultados, via documento que objetivava instruir a deinição da política nacional relativa aos usos dos testes psicológicos no Brasil. Em Brasília, no ano 2000, o I Fórum Nacional de Avaliação Psicológica, por iniciativa do CFP e dos CRPs, elaborou propostas que englobavam a reestruturação curricular do ensino da disciplina Técnicas de exame psicológico, a busca de aprimoramento proissional e o respaldo social do exercício da psicologia. Com isso, o CFP formou comissões de especialistas que avaliaram os testes em uso no país, redundando, em novembro de 2003, na aprovação de uns e na rejeição de outros tantos, fato que ensejou inclusive disputas judiciais. A questão da credibilidade desses instrumentos parece ter sido o ponto comum que alcançou tanto aqueles utilizados para recrutamento e seleção e para decisões judiciais sobre a guarda de crianças quanto os aplicados para a obtenção da Carteira Nacional de Habilitação. Essas ações do CFP estabeleceram, portanto, na história dos testes no Brasil, um divisor de águas entre o que pode ser aceito e o que deve ser rejeitado nos testes. Destacaram a desatualização e a ausência de padronização, as lacunas a respeito da idedignidade e da validade na realidade brasileira, principalmente no caso de testes estrangeiros importados, assim como certa imprecisão teórica, o que pode comprometer e praticamente inviabilizar certas técnicas. A essas questões, contudo, queremos acrescentar outras. Inicialmente, podemos pensar que os testes aqui citados, e os que vieram depois, atendiam a demandas de uma sociedade regida por uma determinada lógica nas relações sociais de trabalho e de educação, lógica que atualmente não se mantém. São outros os trabalhadores requisitados, são outros os alunos das escolas, são outras as necessidades individuais e subjetivas, que, acreditamos, podem estar a exigir outras formas de avaliação psicológica. Neste sentido, consideramos pertinentes as ponderações decorrentes dos trabalhos do CFP (e outros mais que venham a surgir), principalmente quanto à importância de privilegiar o rigor na construção de novos testes psicológicos, de modo que estes venham a atender aos procedimentos psicométricos conhecidos e utilizados para tal im, e que também deverão servir para refrear a banalização do uso desses instrumentos. Por outro lado, isso poderá redundar, 288 igualmente, em repensar e reavaliar a importância e as características de um instrumento de medida que, como vimos, tem tido também, ao longo de sua história, um papel político decisivo na normatização das sociedades modernas. Na contemporaneidade, outros processos de subjetivação podem vir a exigir novas formas de medir, diferenciar e classiicar. Indicações bibliográficas e estéticas Minority Report, ilme dirigido por Steven Spielberg Eu, robô, livro escrito por Isaac Asimov. Referências Anastasi, A. (1965) Testes psicológicos. 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In: The Psycological Review Monograph Supplements, 3, N. 06 (série N. 16), 4, 27, 29, 34-36. www.epub.org.br www.whonamedit.com 290 Capítulo 17 A psicologia comparada Maria Emilia Yamamoto A possibilidade de utilização do animal como modelo para a compreensão do comportamento humano é aberta por Charles Darwin, em função de dois de seus livros: A origem das espécies (1981 [1859]) A TEORIA DA EVOLUÇÃO propõe que as e A expressão das emoções no homem e nos espécies hoje existentes evoluíram a partir animais (2000 [1873]). No primeiro, ele da modificação genética de seus ancestrais, propõe a TEORIA DA EVOLUÇÃO através através de alterações graduais, e pelo mecanismo da seleção natural. Após a formulação de Darwin várias da SELEÇÃO NATURAL, que parte do adições foram propostas, como as mutações neutras, o pressuposto que há uma continuidade efeito do fundador, a deriva genética e a exaptação. A SELEÇÃO NATURAL é o processo através do qual indivíduos entre todos os seres vivos, o homem aí mostram sobrevivência e/ou reprodução diferencial. Para que incluído. Isto já havia sido proposto a seleção natural ocorra, três condições devem ser satisfeitas: a) população em que esse indivíduo se encontra deve mostrar por Aristóteles em sua Scala Naturae; avariação genética; b) essa característica, de base genética, porém, a evolução aí era como uma deve ser transmitida através da hereditariedade; c) algumas variações devem prover vantagens reprodutivas e/ou de escada, com o homem em seu topo. das sobrevivência ao seu portador. O grande mérito de Darwin foi Darwin desenvolveu a teoria da seleção natural sem qualquer descartar a linearidade e propor uma conhecimento das leis mendelianas da genética, o que torna seu feito ainda mais notável. Rose (1998) relata que após a estrutura ramiicada, a árvore da vida, omorte de Darwin foi encontrada, entre seus papéis, uma nascida de uma única raiz, evoluindo correspondência com a cópia do trabalho de Mendel ervilhas, ainda por abrir. Fica a cargo de e diversiicando-se em inúmeros ramos comnossa imaginação o que poderia advir evolutivos. As diferenças perdem neste caso desse encontro de idéias. a conotação de grau ou status, de melhor e pior, de perfeito e imperfeito, sem perder sua relação histórica com a raiz da vida. A continuidade entre homens e animais, a relação estreita entre todos os seres vivos, abre as portas para a utilização dos animais na compreensão do comportamento humano. O segundo livro, A expressão das emoções no homem e nos animais, abriu as portas para o estudo do homem e de sua psicologia do ponto de vista evolutivo. Esse foi o terceiro e último de uma série de livros com os quais Darwin pretendia 291 dar sustentação à teoria da evolução, proposta na Origem. Nas Emoções, Darwin demonstra que os animais têm emoções e descreve como eles as demonstram. O último terço do livro é dedicado às emoções humanas. Darwin defende que a manifestação de boa parte das emoções não é aprendida, mas que foi gradualmente adquirida através da evolução. Considera que essas expressões têm sua origem em ancestrais, em alguns casos comuns a outras espécies, o que se evidencia pela semelhança com que elas se expressam (por exemplo, a fúria em cães, macacos e homens, pela exibição dos caninos) e pela sua universalidade. Esse livro pode ser considerado o precursor do estudo das bases biológicas do comportamento, área extremamente atual na psicologia e nas neurociências, ao relacionar as expressões e as emoções subjacentes com reações isiológicas que as acompanham. Após a morte de Darwin, a inluência de sua teoria perdeu força. Darwin e a teoria da evolução permaneceram mais ou menos esquecidos, mesmo no início do século XX quando as leis de Mendel foram redescobertas. O renascimento da doutrina darwinista coincide com dois movimentos aparentemente irreconciliáveis que sacudiram a psicologia entre 1930 e 1940, um deles claramente ligado à proposta darwiniana: a etologia, nascida na Europa, e a psicologia comparada ou experimental, com raízes nos Estados Unidos. Como vimos no capítulo 6, na passagem para o século XX os estudos sobre psicologia comparada passaram a ganhar contornos mais comportamentais, recorrendo a modelos mais parcimoniosos na explicação do comportamento animal. Expressão dessa tendência são a teoria dos tropismos de Jacques Loeb, a relexologia de Ivan Pavlov (cf. capítulo 10) e a teoria do Ensaio e Erro de Edward Lee Thorndike (cf. capítulo 11). Especialmente os dois últimos vão desaguar nos modelos behavioristas do comportamento animal, com grande ênfase no conceito de aprendizagem e recusa de conceitos inobserváveis e mentalistas, como o de instinto. Tais estudos, operados especialmente em laboratório, visavam à previsão e ao controle da conduta (principalmente a humana). No período entre guerras, de 1930 a 1940, irá surgir na Europa uma abordagem proposta por biólologos, claramente inspirados pelo darwinismo – a etologia. Nesse primeiro período, a etologia claramente se posiciona em oposição à psicologia animal, em especial a behaviorista. A grande batalha travou-se fundamentalmente acerca da questão do desenvolvimento. Enquanto os etólogos enfatizavam o papel da natureza, do biológico, os psicólogos consideravam que os comportamentos eram fundamentalmente aprendidos. 292 Contudo, no período que se segue à Segunda Guerra, começa a se esboçar um profundo diálogo. Vejamos alguns dos princípios que regem o funcionamento da etologia, e os rumos que esta seguiu no diálogo com a psicologia animal. A etologia no período entre guerras De início, deve-se dizer que sendo os pontos de partida da etologia e da psicologia experimental tão diferentes, também o serão os procedimentos, as condições de coleta de dados, as questões estudadas e, inevitavelmente, os resultados obtidos. Então, enquanto os etólogos preferiam estudar uma ampla variedade de animais, mas principalmente peixes e pássaros, em ambiente natural, à procura de características especíicas das espécies, os psicólogos estudavam mamíferos, principalmente ratos, em ambiente controlado de laboratório, buscando leis gerais de aprendizagem. Não é de surpreender que os primeiros descreveram comportamentos estereotipados, característicos de cada espécie, dando origem a conceitos tais como padrão ixo de ação, que consiste em uma resposta motora padronizada, especíica da espécie, que pode ser iniciada por um estímulo ambiental, mas que continua até que a seqüência se complete independentemente da inluência de estímulos externos, estímulo sinal, um estímulo simples, tal como uma cor ou som, que desencadeia um padrão ixo de ação, e mecanismo liberador inato, um mecanismo neuro-sensorial especial que libera uma reação a um estímulo-sinal ou a uma combinação deles. Duas são as figuras mais representativas do primeiro movimento – KONRAD LORENZ e NIKOLAAS TINBERGEN. O legado de Tinbergen é visível KONRAD LORENZ (1903-1989), austríaco de família bem-sucedida. Seu pai era um ortopedista afamado, e Lorenz cresceu na ampla propriedade familiar, na qual conviveu com os animais de que tanto gostava. Extrovertido, exuberante, Lorenz dominava e encantava a todos em congressos e conferências e talvez tenha sido o cientista que mais contribuiu para a divulgação do comportamento animal enquanto área de investigação. Defensor intransigente da observação naturalista do comportamento, é por muitos considerado um contador de histórias mais do que um cientista. Seguindo a vontade do pai, formou-se em Medicina na Universidade de Viena em 1928 e cinco anos mais tarde obteve o doutoramento em Zoologia na mesma universidade. Trabalhou no Instituto Max-Planck até sua aposentadoria, quando fundou o Instituto de Etologia Comparada, em Altenberg, sob os auspícios da Academia Austríaca de Ciências. NIKOLAAS TINBERGEN (1907-1988) estudou biologia e obteve seu doutoramento na Universidade de Leiden, da qual se tornou mais tarde professor. Ele é descrito como um homem gentil e discreto, um cientista cuidadoso que planejava seus experimentos de forma elegante, respondendo a questões sobre a evolução. Conheceu Lorenz em 1936 e visitou-o no verão do ano seguinte em sua casa am Altenberg. Muitos consideram que nesse momento nasceu a etologia (Dewsbury, 2003). Em 1949 transferiu-se para a Universidade de Oxford, com o objetivo de divulgar a etologia. Sua carreira acadêmica só foi interrompida quando, junto com vários colegas, demitiu-se como uma forma de protesto contra os esforços alemães de “limpar” o corpo docente. Isto lhe custou dois anos em um campo de prisioneiros. A experiência da guerra o marcou de tal modo que ele, daí em diante, recusou-se a falar alemão (De Waal, 2001). Lorenz, por outro lado, foi acusado de defender idéias nazistas, 293 principalmente relacionadas à suposta hibridação das raças humanas. Em pronunciamentos e em textos, mais tarde, Lorenz admitiu que havia interpretado incorretamente as posições do regime nazista, porém continuou defendendo a idéia dos malefícios da “domesticação”. O reconhecimento da área veio com a concessão do Prêmio Nobel de Medicina em 1973 a esses dois pesquisadores juntamente com Karl von Frisch. A razão apresentada para a concessão do prêmio foi que esses pesquisadores, com seu entendimento das bases evolutivas do comportamento, haviam tirado essa área do beco sem saída das explicações divergentes, fornecendo uma visão abrangente. Curiosamente, Jay Tinbergen, irmão de Nikolaas, já havia recebido o Prêmio em 1969, por seu trabalho na área de economia. até hoje nos trabalhos cientíicos da área. As quatro questões propostas por ele para estudar o comportamento animal são consideradas como a pedra de toque do estudo do comportamento. Essas questões constituem uma resposta à divergência sobre que tipo de explicação acerca do comportamento é a mais adequada. Tinbergen sugere quatro questões complementares que deveriam ser respondidas para um completo entendimento da determinação do comportamento: a) quais são os mecanismos que regulam o comportamento; b) como o comportamento se desenvolve; c) qual o seu valor de sobrevivência; d) como ele evoluiu ou qual sua história ilogenética. As duas primeiras são também chamadas de questões próximas, pois dizem respeito aos determinantes localizados nos ambientes interno e externo do indivíduo. As duas últimas são chamadas de questões inais ou funcionais, no sentido de que procuram por determinantes evolutivos. Poderíamos dizer que as questões próximas são questões do tipo “como” e as inais do tipo “por que”. Tinbergen airma ainda que a psicologia só trabalharia com as duas primeiras causas. Em busca de um diálogo Lorenz e os behavioristas, tendo em Skinner seu representante mais emblemático, representam os extremos no contínuo inato/adquirido no estudo do desenvolvimento. A polêmica levantada por essas duas posições, no entanto, foi longa e feroz. Muito foi escrito e dito por defensores de ambos os lados, mais para criticar a posição oposta do que para defender a própria posição. Porém, uma parte dos cientistas da época situava-se em uma espécie de área cinzenta, entre eles Daniel Lehrman (1919-1972), que foi uma peçachave na integração das duas abordagens. Lehrman era um homem tão carismático quanto Lorenz, e alinhava-se com os psicólogos experimentais. Por formação e inclinação, porém, ele aliava aos estudos sobre hormônios e o comportamento em pombos, que realizava em seu laboratório, a paixão pela observação naturalista de pássaros. Em 1953 publicou um artigo no periódico Quarterly Review of Biology intitulado “A critique of Konrad Lorenz’s 294 theory of instinctive behavior” no qual ele criticava a dicotomia entre inato e aprendido defendida por Lorenz. Lehrman criticava duramente a idéia de que todos os comportamentos pudessem ser classiicados como inatos ou aprendidos e propunha como alternativa uma abordagem interacionista. Lehrman argumentava que todo comportamento origina-se de uma interação entre um organismo em desenvolvimento e seu meio, antecipando a posição predominante nos dias atuais. Durante pelo menos as duas décadas seguintes foi travado um acirrado debate sobre a questão inato/aprendido, biológico/social, natureza/criação (em inglês, nature/nurture) que constituiu o cerne da disputa entre os dois grupos. Defensores de uma ou outra posição não conseguiam enxergar o mérito da posição oposta e acumulavam evidências favoráveis à posição que defendiam. Do lado dos psicólogos experimentais, o conceito de inato era amplamente criticado, seja pela diiculdade de deinição (normalmente, ele era deinido pela sua negação – aquilo que não é aprendido), ou pela acumulação de evidências de que algumas das características associadas a ele podem facilmente ser atribuídas a outras causas. Por exemplo, o caráter estereotipado de um comportamento, que para os etólogos era evidência de que era característico da espécie e inato, podia ser também explicado por um ambiente extremamente uniforme para os animais de uma determinada espécie. Além disso, o caráter inato de um comportamento não podia ser demonstrado experimentalmente, embora tenham sido feitas tentativas através dos EXPERIMENTOS DE ISOLAMENTO e de CRUZAMENTO. Estes não permiXPERIMENTOS DE ISOLAMENTO: são experimentos nos quais tiam a exclusão do ambiente os Eanimais são separados de seus co-específicos no momento como fator de inluência sobre do nascimento, passando a viver isolados até que venham a ser a expressão do comporta- testados. A lógica por trás deste experimento é que o animal não teria oportunidades de aprender com outro animal da mesma mento. O segundo tipo, princi- espécie, e por isso o comportamento resultante deveria ser inato. palmente, traz embutida uma Obviamente, a aprendizagem também se dá por interação com o ambiente físico, e esses experimentos não eliminavam a possibilidade falácia, a de que a existência de aprendizagem. de uma base genética impe- EXPERIMENTOS DE CRUZAMENTO ou de hibridação: há três variações desse experimento. Na primeira, indivíduos com variações em de qualquer influência do determinado traço ou comportamento são cruzados e observa-se ambiente. O argumento ina- como o traço se manifesta na prole. No segundo caso, linhagens de tista perdeu ainda mais força comportamento semelhante são cruzadas entre si para enfatizar o traço. No terceiro caso, faz-se o cruzamento seletivo, também chamado quando foi demonstrado que de seleção artificial, no qual indivíduos com uma determinada comportamentos tradicional- característica são cruzados para acentuar essa característica. Este tipo de experimento não fornece evidências para o caráter inato do mente tidos como inatos e espe- comportamento, apenas para sua base genética. No entanto, o fato cíicos da espécie podiam ser de um comportamento apresentar base genética não signiica que ele não sofre inluência do ambiente, não fornecendo portanto uma base modiicados pela experiência, segura para o caráter inato do comportamento ou traço. 295 como é o caso do ato de sugar em bebês. Embora um bebê recém-nascido mostre-se capaz de sugar o bico do seio, de uma mamadeira ou de uma chupeta, esse comportamento não é imune à experiência. Vários estudos sugerem que o bebê aprimora essa habilidade à medida que se desenvolve, e que a lactação é um importante canal de comunicação entre mãe e criança, de forma que essa atividade torna-se, com o decorrer do tempo, algo muito mais complexo do que apenas um episódio de alimentação, atestando a plasticidade do comportamento humano. Se, por um lado, o argumento permanece entre alguns pesquisadores, sua força cientíica esmoreceu em função das novas evidências. Por outro lado, os etólogos insistiam em que a aprendizagem não podia ser encarada como uma regra sem limites. Neste sentido, o envolvimento da aprendizagem na modelagem de um comportamento não signiica que esse comportamento não tenha uma base genética. Da mesma forma, não se pode ensinar qualquer coisa a qualquer indivíduo; as características biológicas de cada espécie impõem limites que não podem ser transpostos. A famosa frase de Watson airmando que poderia transformar qualquer bebê saudável em um médico, advogado, comerciante ou mendigo, independentemente de seus talentos, peculiaridades, habilidades, vocação ou raça (citado por Goodenough et al., 1993), não podia ser aceita pelos etólogos. Rapidamente, até mesmo os psicólogos perceberam que ela era, de fato, uma airmação muito ampla e extrema para ser verdadeira. Keller e Marion Breland (1961), alunos de Skinner que treinavam animais para ins comerciais, contam a respeito de sua diiculdade em treinar um guaxinim a depositar uma ou duas moedas em um cofrinho, na vitrine de um banco, de forma a encorajar os transeuntes a iniciarem uma poupança. O guaxinim perdeu rapidamente seu “emprego”, assim como o casal de psicólogos, quando, antes de colocar as moedas no cofrinho e assim receber um alimento como recompensa, o animal passava alguns bons minutos esfregando as moedas ou colocando-as na fenda do cofre e retirando-as em seguida. Ou seja, ao fazer a associação entre seu desempenho e o alimento, essa associação remeteu a outra, muito mais forte porque especíica da espécie, entre limpeza e alimento. Um outro princípio da aprendizagem, o da equivalência de ESQUIVA: associação, também foi questionado. Garcia e Koelling (citados comportamento caracterizado como de por Goodenough et al., 1993), em um engenhoso experimento, evitação de um estímulo aversivo pela apresentação mostraram que alguns tipos de associações eram passíveis de de um comportamento ser estabelecidas, como um gosto doce à náusea e uma luz que adia ou elimina a um choque, resultando em comportamentos de ESQUIVA tal estímulo. 296 em ratos. Porém, o contrário, a associação da luz à náusea e do gosto doce ao choque não resultava em comportamento de esquiva. As predisposições naturais da espécie resultam em diferentes habilidades de aprendizagem que reletem adaptações a diferentes habitats ou estilos de vida. Essas adaptações são adquiridas ao longo de milhares, muitas vezes milhões de anos de evolução, e diicilmente podem ser erradicadas por um processo de aprendizagem em uma situação artiicial. Foi apenas a partir da década de 1970 que esse debate começou a perder força. A gradativa integração dos dois campos deve muito a Lehrman – não apenas pela força de seus argumentos, mas também pelo fato de que sua formação no estudo naturalista de pássaros derrubou barreiras do lado dos etólogos – e também a Tinbergen, que, com sua mentalidade experimental aliada ao método naturalista, estabeleceu os parâmetros para a pesquisa em psicologia comparada. A posição dominante atualmente reconhece as predisposições biológicas, presentes em todos os indivíduos, e sua modulação pelo ambiente, resultado de um sistema nervoso fundamentalmente plástico. Embora o debate natureza/criação ainda perdure em alguns redutos, na grande maioria das áreas há um entendimento de que não é possível falar em determinação genética ou ambiental desvinculadas uma da outra. A interação entre elas é que deine a individualidade e as diferenças individuais, mantendo, não obstante, um padrão especíico que deine a pertinência taxonômica do indivíduo a uma espécie. Desenvolvimentos atuais Na segunda metade do século XX, novos conceitos foram propostos para explicar a evolução do comportamento, entre eles a SELEÇÃO DE PARENTESCO, a APTIDÃO ABRANGENTE e a TEORIA DOS JOGOS, lançando os fundamentos do chamado neodarwinismo. Estes conceitos ampliaram o âmbito da explicação evolucionista e deram origem a duas novas áreas: a ecologia comportamental, mais ligada à biologia SELEÇÃO DE PARENTESCO: processo através do qual características são favorecidas e herdeira direta da em função de benefícios para a sobrevivência de parentes, descendentes ou não. etologia de Tinbergen; APTIDÃO ABRANGENTE: soma da aptidão obtida através da própria reprodução e a psicologia evolucio- e do esforço empregado na reprodução de parentes não descendentes, como nista, uma combinação irmãos. EORIA DOS JOGOS: teoria originalmente desenvolvida por John Nash para da biologia evolutiva e T aplicação na área da economia e adaptada por John Maynard Smith para da psicologia cognitiva. analisar custos e benefícios de estratégias comportamentais complexas. 297 Esta abordagem propõe o estudo da “mente humana adaptada” (Barkow, Cosmides e Tooby, 1992) e tem sido igualmente criticada e festejada. Esta disciplina é ainda muito jovem para que possa ser adequadamente avaliada, mas seu impacto não pode ser ignorado (Boyer e Heckhausen, 2002). A psicologia evolucionista e a ecologia comportamental são disciplinas muito próximas, e há um luxo de informações entre elas, fruto de sua raiz comum. No Brasil, a etologia e o estudo do comportamento animal têm sua origem na psicologia, mais especiicamente no Laboratório de Psicologia Animal do Instituto de Psicologia da USP, criado por Walter Hugo de Andrade Cunha (1928- ), em meados de 1960. Esse laboratório, na realidade um sauveiro instalado de forma meio precária que por vezes necessitava de uma operação de recuperação de operárias em fuga (Fuchs, 1995), foi a origem dos primeiros pesquisadores na área de comportamento animal e etologia, formados por Cunha. Alguns deles seguiram carreira acadêmica na própria USP, como Ana Maria Almeida de Carvalho, Fernando José Leite Ribeiro, Mário Guidi e César Ades. Cunha e o IPUSP foram, de certa forma, um centro irradiador na formação de novos grupos voltados ao estudo do comportamento animal. Dos grupos que hoje trabalham nessa área, a maior parte tem uma ligação com aquela instituição, embora vários tenham em sua origem ou incorporados posteriormente proissionais formados em outras instituições e no exterior. Alguns desses grupos – e me reiro aqui àqueles ligados mais especiicamente à psicologia – estão localizados na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, na Universidade Católica de Goiás, na Universidade Federal do Pará e na Universidade Federal de Santa Catarina. A nova área de psicologia evolucionista é incipiente no país, com alguns poucos pesquisadores espalhados em algumas instituições, mas há um grande interesse entre alunos e proissionais, prevendo seu crescimento. Para inalizar, há dois pontos importantes que devem ser destacados: o primeiro diz respeito ao fato de que esta é uma área, por definição, multidisciplinar. Isto implica o envolvimento de proissionais de diferentes formações, e a utilização de conceitos da biologia, das neurociências, da genética, da antropologia e outras áreas além da psicologia. Essa estreita relação com as ciências biológicas tem provocado sugestões de que a etologia e a psicologia evolucionista são tentativas de “biologizar” a psicologia, minimizando o papel da cultura e dos fatores sociais na explicação do comportamento humano. Esse temor está, em grande parte, fundado na suposição de que o biológico ou genético é ixo e imutável, e também na crença de que a inclusão de fatores biológicos exclui a possibilidade de recorrer 298 a fatores socioculturais para explicar o comportamento. Na realidade, a integração de conceitos de disciplinas diferentes amplia o escopo da explicação do comportamento humano, permitindo uma visão mais ampla e integrada, que só virá a enriquecer a análise psicológica. Indicações estéticas e bibliográficas Rose, M. R. (2000) O espectro de Darwin. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. Esse livro traz uma visão das origens da teoria evolucionista e também uma avaliação do impacto dessa teoria sobre vários setores da atividade humana, como agricultura, medicina, eugenia e religião. Leitura agradável, porém cuidadosa, do ponto de vista dos conceitos e referências. Ridley, M. (2000) As origens da virtude. Rio de Janeiro: Record. Esse é um livro de divulgação, com linguagem acessível, que discute a evolução do comportamento moral nos humanos. Desmond, A. e Moore, J. (2000) Darwin: a vida de um evolucionista atormentado. São Paulo: Geração Editorial. Uma biograia extensa de Darwin, que enfoca não apenas o cientista, mas também o homem com suas dúvidas, temores, tristezas e doenças. Interessante e ilustrativo. Gould, S. J. (1977) Darwin e os grandes enigmas da vida. São Paulo: Martins Fontes. Republicação dos ensaios publicados pelo autor na Natural History Magazine, entre 1994 e 1997. Apesar de antigos, os textos são atuais e escritos de maneira a cativar a atenção do leitor. Gould discute desde as razões pelas quais Darwin levou 20 anos para publicar sua teoria da evolução até questões mais especíicas, como a inluência do tamanho no formato dos objetos, a questão da perfeição e a evolução humana. Referências Barkow, J. H., Cosmides, L. e Tooby, J. (1992) The Adapted Mind: Evolutionary Psychology and the Generation of Culture. Oxford: Oxford University Press. Boyer, P. e Heckhausen, J. (2002) Introductory notes. American Behavioral Scientist 43, 917-925. Breland, K. e Breland, M. (1961) The misbehavior of organisms. American Psychologist 16, 681684. 299 Darwin, C. (1981 [1859]) A origem das espécies. São Paulo: Hemus. (2000 [1873]) A expressão das emoções no homem e nos animais. São Paulo: Companhia das Letras. De Waal, F. (2001) The Ape and the Sushi Master: Cultural Relections of a Primatologist. Nova York: Basic Books. Dewsbury, D. A. (2003) The1973 Nobel Prize for Physiology and Medicine: Recognition for behavioral science? American Psychologist 58: 747-752. Fuchs, H. (1995) Psicologia animal no Brasil: o fundador e a fundação. Psicologia USP 6, 1542. Goodenough, J., McGuire, B. e Wallace, R. (1993) Perspective on Animal Behaviour. Nova York: John Wiley & Sons. Lehrman, D. (1953) A critique of Konrad Lorenz’s theory of instinctive behavior. Quarterly Review of Biology 28: 337-363. Rose, M. R. (1998) Darwin’s Spectre: Evolutionary Biology in the ModernWorld. Princeton: Princeton University Press. 300 Capítulo 18 O gestaltismo e o retorno à experiência psicológica Marcia Moraes No século XIX, as pesquisas em psicologia eram marcadas pela tese de que a experiência psicológica – fosse ela mnêmica ou perceptiva – deveria ser analisada a partir de sua relação com o mundo físico, deinido de um ponto de vista mecanicista. O mundo físico sobre o qual se erguia o terreno da experiência era airmado como campo da extensão e do movimento, do qual estavam excluídas quaisquer características de sentido, valor ou ordem. Tratava-se de um mundo deinido por relações mecânicas que em nada se assemelhavam ao que nós, sujeitos ingênuos, experimentamos em nossa percepção ordinária. Através de nossa experiência perceptiva vemos um mundo pleno de sentido, de valor, de ordem. O desaio da psicologia no século XIX era encontrar parâmetros que permitissem uma investigação experimental da experiência psicológica. O que estava em jogo nessa investigação era a deinição da experiência como uma parte do mundo físico, entre outras questões. Nesse referencial, duas noções eram fundamentais: de um lado, a noção de sensação e, de outro lado, a hipótese da constância. Na psicologia do século XIX, a noção de sensação era entendida como o substrato de toda e qualquer experiência psicológica. A sensação era vista como um acontecimento isiológico provocado pelo estímulo físico. Desse modo, a sensação é ao mesmo tempo física – porque provocada por um excitante externo –, isiológica – porque dessa excitação resulta uma modiicação do corpo –, e psicológica – porque a experiência psicológica tem na sensação o seu fundamento. A sensação é, portanto, um conceito-chave para o estabelecimento da relação entre a experiência e o mundo físico. Na medida em que é um acontecimento isiológico, a sensação demarca que o vínculo entre o percebido e o dado objetivo se faz apenas por intermédio do organismo isiológico. De fato, 301 o organismo isiológico marca não só uma naturalização da questão da experiência, senão também uma possibilidade de dar conta cientiicamente da relação entre os dois domínios de conhecimento A FÍSICA mecanicista do século XVII inaugura importante separados desde a FÍSICA DE GALILEU, a experiência e a distinção, que será retomada pela realidade objetiva. psicologia dois séculos depois. A hipótese da constância resume o princípio Trata-se da distinção entre a verdadeira realidade e o conteúdo acima descrito, ao airmar que a excitabilidade de um da percepção. Dito de outro modo, a verdadeira realidade não se identiica elemento nervoso é invariante com relação a um certo com o conteúdo da percepção, excitante. A sensação situa-se, assim, no entroncamento mas decorre do exercício de um da psicologia com a física e a isiologia. Isso porque a cálculo. Assim, para se conhecer a verdadeira realidade é necessário sensação, como qualidade subjetiva, é concomitante a reduzir as ilusões da experiência uma excitação nervosa que, por sua vez, é resultante da sensível usual a fim de se chegar ao conhecimento matemático, exposição do organismo isiológico aos acontecimentos responsável pelo conhecimento da físicos excitantes. Além disso, a sensação está ligada verdadeira realidade. A física de Galileu é considerada um marco apenas a uma excitação local, o que signiica dizer que epistemológico fundamental para o a excitação isiológica em um elemento nervoso não é estabelecimento desta distinção. modiicada pelo que se passa nos elementos vizinhos. O declínio da noção de sensação No inal do século XIX, iniciou-se na psicologia um movimento centrado na tese de que o estudo da experiência deveria incidir sobre algo mais do que as sensações. É certo que esta tese já estava presente nos trabalhos de Wundt, em particular naqueles dedicados à psicologia dos povos. No entanto, no inal do século XIX e início do século XX, uma polêmica marca o campo da psicologia: aquela que consistia na distinção entre atos e conteúdos da experiência. Ainda que reconhecendo os limites da sensação para a FRANZ BRENTANO deinição da experiência psicológica, Wundt admitia ser a sensação (1838-1917), ilósofo um conteúdo da experiência. Diferentemente deste enfoque, Franz alemão dedicou parte da vida ao sacerdócio, BRENTANO afirmava uma distinção entre os atos e os conteúdos o qual deixou no ano da experiência. Para ele os conteúdos não seriam psíquicos, de 1873. No período de 1866 até 1873 foi mas físicos. A psicologia deveria investigar não o conteúdo da professor de ilosoia em experiência, não as representações, mas sim o ato de representar. Wurzburgo. Em 1874 tornou-se professor A distinção entre ato e conteúdo tornou-se fundamental para a de ilosoia em Viena. Nesse mesmo ano pucompreensão da experiência psicológica. blicou seu famoso livro A Escola de Wurzburgo, no início do século XX, sob a A psicologia do ponto de vista empírico. inluência de Brentano, airmava a existência do pensamento 302 sem imagem, passível de ser estudado através da introspecção experimental. Airmar a existência de um pensamento sem imagem era ir de encontro a toda tradição da psicologia do conteúdo que acreditava que o pensamento, assim como a experiência psicológica, era em maior ou menor medida herdeiro da sensação. Foi no contexto dessa distinção entre ato e conteúdo que a noção de estrutura começou a se desenhar como uma chave para o estudo da experiência, promovendo um deslocamento no campo das pesquisas: já não se tratava de deinir a experiência através das sensações, mas sim de sublinhar a importância das relações entre as sensações. Esse deslocamento do foco de atenção das pesquisas é fundamental para que possamos compreender o alcance das pesquisas propostas pelo gestaltismo. Na Áustria, VON E HRENFELS chamava atenção CRISTIAN VON EHRENFELS (1859-1932) foi discípulo para uma característica da experiência perceptiva, de Brentano em Viena. Trabalhou negligenciada nas pesquisas centradas na noção de como professor em Graz sensação. Tomemos, por exemplo, uma melodia (A). (1885-1888), em Viena (18891896) e em Praga (1896-1900). Nós podemos transpô-la para outro tom, formando uma Publicou em 1890 um artigo no melodia (B). Nessa transposição de (A) para (B), todas qual introduziu o conceito de qualidades estruturais. as notas se alteram. No entanto, somos perfeitamente capazes de perceber a semelhança entre (A) e (B). Ora, se todos os elementos variam quando fazemos a transposição da melodia, por que somos capazes de reconhecer a semelhança entre (A) e (B)? Podemos, por exemplo, reconhecer a música Garota de Ipanema, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, em qualquer tom que a executemos. Por que somos capazes de reconhecer a identidade da música mesmo quando alteramos o tom no qual a música é executada? A semelhança percebida não pode advir das sensações, dos elementos, já que todos os elementos se modiicam quando ocorre a transposição de um tom para outro. Esta argumentação desenvolvida por Ehrenfels aponta para o limite da noção de sensação, ou seja, aponta para a existência de algo não redutível ao campo das sensações consideradas isoladamente. Von Ehrenfels chama de qualidades estruturais essas características da experiência que dizem respeito não aos elementos, mas às relações entre os elementos. Na transposição de (A) para (B), somos capazes de reconhecer a semelhança entre as melodias porque percebemos as relações entre os elementos, e não os elementos isoladamente. É interessante salientar que as qualidades estruturais pertencem ao campo da sensibilidade. São dados sensíveis, ainda que de ordem superior. Ehrenfels não supõe nenhuma atividade mental superior responsável pela 303 produção das qualidades estruturais. Elas são dados sensíveis que para ocorrerem dependem das sensações. Para Ehrenfels, as sensações são elementos autônomos e independentes que não são modiicados quando entram em relação. Isso signiica dizer que as qualidades estruturais não afetam os elementos sensoriais que lhes servem de apoio. É certo que Ehrenfels amplia o campo da sensibilidade airmando ser ele formado tanto por sensações quanto por qualidades estruturais. Neste sentido, é possível airmar que a noção de qualidade estrutural demarca uma reação às teorias psicológicas que circunscreviam o estudo da experiência ao exame das sensações. A noção de qualidade estrutural é o io condutor que nos permite compreender, de um lado, o progressivo declínio da noção de sensação como fundamento da experiência psicológica e, de outro lado, a crescente importância que a noção de forma ou estrutura vai assumindo nas pesquisas psicológicas. Nesse contexto, podemos situar a Escola de Graz e a Escola de Berlim como duas referências importantes para a redeinição da EXPERIÊNCIA PSICOLÓGICA. Entre as escolas da forma podemos ainda mencionar a ESCOLA DE LEIPZIG. Representada A Escola de Graz principalmente por Felix Kruger (1874-1948), Friedrich Sander (1889-1971) e E. H. Volkelt (1886-1964), a Escola de Leipzig airma a importância da noção de forma. No entanto, diferentemente da Escola de Berlim, a Escola de Leipzig, inluenciada pelas idéias evolucionistas, procura remontar às formas primitivas da consciência. Estas são deinidas como totalidades primitivas e difusas, fortemente marcadas por aspectos afetivos. O ilósofo ALEXIUS VON MEINONG leu e publicou os seus comentários sobre o artigo de Ehrenfels que tratava das qualidades estruturais. Em seu comentário, Meinong concordava em muitos pontos com a perspectiva de Ehrenfels. Para Meinong, assim como para Ehrenfels, a experiência psicológica devia ser compreendida não apenas a partir dos seus elementos constituintes, mas principalmente através das relações entre esses elementos. Os trabalhos de Meinong orientaram as pesquisas experimentais desenvolvidas por BENUSSI e WITASEK, membros da Escola de Graz. Em suas reflexões sobre a experiência ALEXIUS VON MEINONG (1853-1920) estudou psicológica, Meinong propôs uma distinção em Viena e em 1894 fundou o primeiro austríaco de psicologia. Foi o líder entre os objetos fundantes e os objetos fundados. laboratório da Escola de Graz e seu mentor ilosóico. Os objetos fundantes ou inferiora são os termos ou VITTORIO BENUSSI (1878-1927) esteve em Graz os elementos entre os quais se dá uma relação. desde o ano de 1902 até o início da Primeira Mundial. Escreveu diversos artigos sobre Já os objetos fundados ou superiora são formados Guerra percepção e sobre ilusões ópticas. Foi aluno de pelas relações entre os elementos. É importante Meinong em Graz. levar em conta que os superiora dependem dos STEPHAN WITASEK (1870-1915), psicólogo austríaco, passou a sua vida acadêmica como inferiora, isto é, se experimentamos relações, é professor em Graz. Publicou diversos trabalhos sobre percepção. 304 porque estas se fundam a partir dos elementos ou inferiora. Tomemos como exemplo as duas iguras abaixo. Figura 1 Figura 2 Podemos considerar que a igura 2 mantém com a igura 1 uma relação de semelhança. No entanto, Meinong adverte que a relação de semelhança entre as iguras (superiora) não tem a mesma existência que as iguras. Dito de outro modo, não há um existente real, um estímulo físico, que consista em ser semelhança entre as iguras. Por isso, o autor airma que os superiora não existem do mesmo modo que os inferiora. Eles são objetos ideais que derivam não da sensibilidade, mas sim de atividades intelectuais superiores. Esta airmação é importante porque marca uma distinção entre o trabalho de Meinong e o de Ehrenfels. Meinong sublinha o papel do sujeito do conhecimento na produção das relações entre os elementos, enquanto Ehrenfels, como vimos, considera que as qualidades estruturais são sensíveis. Para indicar que esta airmação de Ehrenfels carece de sentido, Meinong levanta o seguinte problema: como podemos supor que os superiora são dados da sensibilidade se não encontramos nenhum estímulo físico que a eles corresponda? Do ponto de vista da Escola de Graz, quando percebemos as iguras acima somos, de um lado, afetados por dados sensíveis que correspondem aos estímulos físicos. Trata-se neste ponto de uma airmação do papel das sensações como elementos constitutivos da experiência psicológica. De outro lado, há um ato intelectual que produz uma relação de semelhança entre os elementos. Esse ato não encontra nenhuma correspondência com estímulos físicos, não sendo, portanto, oriundo da sensibilidade. A sensibilidade só pode originar sensações, quer dizer, elementos carentes de organização, de valor ou de ordem. Como conseqüência disso, a Escola de Graz airma ser necessária uma atividade intelectual de produção de relações entre elementos sensíveis. Sendo produtos da atividade intelectual e não da excitação sensorial provocada pelos estímulos físicos, os superiora não têm a mesma existência que os inferiora. Enquanto estes são considerados reais, materiais, aqueles são considerados como objetos ideais. 305 Podemos dizer que há um ponto de concordância entre os membros da Escola de Graz e Ehrenfels, aquele que diz respeito à airmação do papel autônomo e independente dos dados elementares. Para os membros de Graz, é nítida a autonomia dos inferiora, sobretudo pelo fato de que é possível a ocorrência destes sem que por isso ocorram os superiora. Mas é precisamente neste ponto que uma ressalva deve ser feita. Para os membros de Graz, uma vez que ocorra a atividade intelectual responsável pela produção dos superiora, ocorre também uma modiicação entre os inferiora. Qual é a importância desta airmação? Sua importância consiste em marcar mais um ponto no declínio da noção de sensação. Porque se de um lado tanto Ehrenfels quanto os membros de Graz aceitam a hipótese da constância, resguardando, portanto, a autonomia dos elementos sensoriais, de outro lado, a Escola de Graz airma a possibilidade de que as relações – os superiora – alterem as sensações – os inferiora. Neste caso, se considerarmos que a qualidade estrutural e os superiora apontam para os limites da noção de sensação, temos que considerar que os membros de Graz demarcam com mais irmeza esse limite, uma vez que airmam que as relações entre os elementos podem alterar os próprios elementos. Desse modo, podemos dizer que a Escola de Berlim, ou o gestaltismo propriamente dito leva mais longe um movimento de crítica à noção de sensação que se desenhava no século XIX. A novidade do gestaltismo, como veremos, tem como ponto de partida uma recusa radical: a recusa de aceitar a sensação – e a hipótese da constância – como os fundamentos da experiência. O que temos que entender é o sentido positivo e o alcance dessa recusa para o estudo da experiência. A Escola de Berlim Diferentemente da Escola de Graz e das airmações de Ehrenfels, a Escola de Berlim, ou o gestaltismo propriamente dito, investiga a experiência psicológica tomando como referência não a noção de sensação, mas sim aquilo que aparece tal e qual aparece na experiência perceptiva do sujeito ingênuo. O que signiica esta airmativa? Signiica que para os integrantes da Escola de Berlim a tarefa da psicologia é dar conta da percepção tal como é vivenciada por cada um de nós. Nossa experiência perceptiva é marcada por relações de sentido e de valor e não apenas por um acúmulo de sensações. Os principais integrantes da Escola de Berlim foram WOLFANG KOHLER, MAX WERTHEIMER e KURT KOFFKA. 306 WOLFANG KOHLER (1887-1967). Obteve seu doutorado em Berlim com uma tese sobre psicoacústica orientada por Stumpf. Em Frankfurt Kohler conheceu Wertheimer e Koffka. Em 1913 foi para a África realizar pesquisas sobre a cognição dos chimpanzés. A Primeira Guerra Mundial retardou o retorno de Kohler à Alemanha, o que só ocorreu nos anos 1920. Em 1934 Kohler foi para os Estados Unidos e em 1959 foi eleito presidente da American Psychological Association. Com a morte de Wertheimer e de Koffka, Kohler tornou-se o principal porta-voz da Escola de Berlim. MAX WERTHEIMER (1880-1943) nasceu em Praga. Em 1904 concluiu seu doutorado em Wurzburgo. Conduziu diversos experimentos sobre percepção. Em 1933, com a ascensão do nazismo, Wertheimer deixou a Alemanha e foi para os Estados Unidos. Seu livro O pensamento produtivo foi publicado postumamente em 1945. KURT KOFFKA (1886-1941) nasceu em Berlim. Psicólogo, foi co-fundador, junto com Kohler e Wertheimer, do gestaltismo. Entre os anos de 1911 e 1924 esteve associado à Universidade de Giessen e serviu como sujeito dos experimentos nos trabalhos sobre percepção levados a cabo por Wertheimer. Em 1921 publicou Die Grundlagen der psychischen Entwicklung, livro que tratava de aplicar os princípios da psicologia da Gestalt ao problema da organização cognitiva das crianças. Em 1924 iniciou uma série de visitas aos Estados Unidos e em 1927 foi nomeado professor de psicologia do Smith College em Northampton, onde trabalhou até a sua morte. Em 1935 publicou Principles of Gestalt Psychology. Vale destacar que o fato de que os principais autores gestaltistas tenham emigrado para os Estados Unidos e, neste país, ido para diferentes lugares é apontado por alguns pesquisadores como uma das causas de uma certa dispersão e mesmo do declínio do gestaltismo no século XX. O aspecto signiicativo da experiência foi apontado por Max Wertheimer em 1912 quando estudava a percepção do movimento. Considere dois focos de luz (A) e (B) próximos no espaço. Se acendermos (A) e, após um intervalo de tempo de 30 a 200 milésimos de segundo, acendermos (B), perceberemos um movimento que “vai de (A) para (B)”. É o que ocorre, por exemplo, quando vamos ao cinema. Sabemos que o ilme é composto por fotogramas separados que quando apresentados numa certa relação de proximidade temporal, resultam na percepção do movimento. Segundo Wertheimer, a percepção do movimento implica uma experiência interessante e instrutiva para as pesquisas psicológicas porque tal compreensão não se faz através da noção de sensação, já que, como vimos, as sensações são desprovidas de sentido, de ordem, e na percepção do movimento experimentamos naquilo que é percebido uma relação de sentido, de pertinência. Para Wertheimer, essa experiência perceptiva tampouco pode ser explicada através de uma atividade intelectual capaz de produzir relações entre as sensações. Isso porque, seguindo o ponto de vista do sujeito ingênuo, a ordem é experimentada como uma relação inerente ao percebido, sem que seja necessário recorrer a qualquer atividade intelectual para produzi-la. Desse modo, Wertheimer levanta o problema da organização da experiência psicológica sem fazer menção nem à noção de sensação, nem à hipótese da constância, nem à idéia de síntese, isto é, um tipo de vínculo entre as sensações que é produzido por uma atividade intelectual, tal como ocorre, por exemplo, na opinião dos integrantes da Escola de Graz. Ao recusar a hipótese da constância como eixo explicativo para o problema da experiência, o gestaltismo airma um novo léxico, no qual este problema deve ser traduzido. Já não se trata mais de referir o percebido a 307 um dado físico preconcebido como verdadeiro. Ao contrário, trata-se de ler no próprio percebido o sentido que ele intrinsecamente revela. O estudo da experiência nos parâmetros gestaltistas implica de saída não uma adequação a um dado físico, mas sim a explicitação do sentido intrínseco que o percebido assume na perspectiva do sujeito ingênuo. Mais do que puramente negativa, a recusa da hipótese da constância possui um caráter positivo: inaugura o mundo percebido como um espaço legítimo de conhecimento. O gestaltismo recusa a diluição desse espaço percebido num universo de relações formais, arbitrárias e mecânicas. Há aí a recusa de um preconceito: o preconceito de referir – talvez não fosse exagerado dizer reduzir – o espaço psicológico ao espaço físico. Negando esse pré-juízo, o que se airma é a autenticidade do fenômeno psicológico tal e como se revela na perspectiva do leigo, do homem comum. A este respeito vale a pena mencionar o ilme Boulevard do crime – Primeira Parte, de Marcel Carné. Em uma das cenas desse ilme, uma moça é acusada de furtar a carteira de um rapaz. O policial se aproxima da moça para prendêla, mas é surpreendido pelo “testemunho” de um mímico que presenciou o episódio do furto. O mímico encena o acontecido. Tal encenação, longe de ser uma cópia iel do fato, inaugura um campo de conhecimento inteiramente inédito. O “testemunho”, nesse caso, vai além do fato objetivo, produzindo um campo novo para a experiência do furto. É interessante que no ilme esse testemunho é o que serve de referência para a decisão do policial: a moça é considerada inocente e o verdadeiro culpado é preso. Do ponto de vista da psicologia da gestalt, podemos dizer que a encenação apresentada pelo mímico abarca o campo da experiência tal como é percebida pelos sujeitos ingênuos. Para a psicologia, não se trata de referir esse campo da experiência – que Koffka (1975) chama de campo fenomenal – ao universo físico e objetivo. Ao contrário, é no campo da experiência, daquilo que nós percebemos tal e como percebemos, que nós nos comportamos, agimos e nos emocionamos. Podemos dizer, portanto, que a moça, o ladrão, o policial e a carteira roubada são partes de uma mesma experiência – aquela que é encenada pelo mímico. Para o gestaltismo, nossa experiência perceptiva do mundo é como a encenação do mímico: o seu sentido é per se. A psicologia da Gestalt, por oposição à orientação clássica em psicologia, caracteriza-se por promover uma integração entre ciência e experiência. Na perspectiva clássica, presente tanto nos trabalhos de Ehrenfels quanto nos da Escola de Graz, havia um distanciamento entre o universo cientíico e o universo percebido. Tal distanciamento seria responsável por um esvaziamento 308 dos conceitos cientíicos, isto é, estes icariam restritos ao laboratório. Ao reverter a orientação metódica da psicologia propondo como seu primeiro passo a descrição das vivências, o gestaltismo propõe mais do que uma simples inversão metodológica. É a própria concepção de cientiicidade da psicologia que é modiicada. A ciência psicológica ergue-se a partir de questões propostas no âmbito mesmo das vivências psicológicas. Assim, a concepção de ciência proposta pelo gestaltismo, longe de ser importada de um modelo físico preconcebido, é abstraída de questões referidas intrinsecamente ao fenômeno psicológico. A novidade do gestaltismo reside nessa nova relação entre ciência e vida – e note-se que vida, neste caso, tem o mesmo sentido que vivência. Esse compromisso gestaltista é explicitado por Koffka (1975), ao airmar que cabe à psicologia apontar o caminho onde a ciência e a vida hão de se encontrar. O método fenomenológico-descritivo é a via pela qual o gestaltismo incorpora o percebido enquanto tal à ciência psicológica. No âmbito desse método, o primeiro passo da investigação cientíica é a descrição do fenômeno psicológico, isto é, daquilo que aparece tal e como aparece na perspectiva do leigo. À medida que, do ponto de vista do sujeito ingênuo, o percebido é imediatamente organizado e signiicativo, cabe à descrição fenomenológica explicitar a organização intrínseca ao percebido, indicando existir uma ordem, uma razão que é interna ao domínio da sensibilidade. Desse modo, o gestaltismo recusa a dicotomia clássica entre razão e sensibilidade. O sentido da palavra Gestalt adotada por Kohler (1980), e pelos outros representantes da Escola de Berlim, expressa o caráter imanente e autóctone da organização. Na língua alemã, a palavra Gestalt possui dois signiicados: “além do sentido de forma ou feitio como atributo de coisas, tem a signiicação de uma unidade concreta per se…” (Kohler, 1980: 104). Assim sendo, não há um primeiro momento a-signiicativo – arbitrariamente considerado como objetivo. As representações são de saída organizadas e signiicativas e se apresentam na perspectiva do leigo apenas deste modo. É neste ponto que podemos dizer que o gestaltismo rompe com as perspectivas anteriores que lidavam com a noção de forma ou estrutura numa dimensão adjetiva ou qualitativa, isto é, como relações que se sobrepõem ao plano das sensações. Para o gestaltismo, a experiência é imediatamente organizada. O que percebemos são relações e não sensações. Desse modo, podemos dizer que para o gestaltismo, a forma é substantiva e não adjetiva. O sentido intrínseco à experiência é expresso através de uma relação fundamental que é aquela que existe entre a igura e o fundo. Essa relação 309 expressa uma heterogeneidade mínima sem a qual não há cognição possível. Ao destacar-se de um fundo, a igura delimita-se como o objeto representado. Num espaço onde não exista a distinção entre igura e fundo não há conhecimento – já que qualquer conhecimento é conhecimento de alguma coisa. Para a Escola de Berlim, o objeto representado é o resultado de uma organização interna do domínio da experiência. A organização interna da igura é explicada pela relação parte/todo – que se pode considerar um caso particular da relação igura/fundo. Uma parte se deine pela função que desempenha na estrutura na qual está inserida. Uma parte articulada em um todo é diferente dessa “mesma” parte isolada ou em outra totalidade. À medida que possui um signiicado relativo, dependente da estrutura, pode-se dizer que a parte possui um signiicado funcional, isto é, seu signiicado decorre da sua posição em uma estrutura dada. Importa salientar que a noção de parte não se confunde com a noção clássica de elemento ou sensação. Esta é neutra quanto a qualquer sentido; a parte, ao contrário, é sempre signiicativa, já que ser signiicativa é uma característica essencial, inerente à sua própria deinição. Além disso, as diversas partes que compõem uma estrutura não se relacionam arbitrariamente. Há entre todas elas uma relação intrínseca e necessária, pois cada uma só tem seu sentido em relação à outra. Portanto, o percebido ou o representado possui um sentido intrínseco, coerente e não arbitrário. A relação funcional entre as partes caracteriza uma relação de “coesão interna” radicalmente diversa de uma pura associação de elementos díspares. Enquanto a associação liga elementos estranhos entre si, a coesão interna une partes que se exigem mutuamente numa dinâmica funcional. Para o gestaltismo, é a lei da boa forma que expressa a organização das estruturas, ao airmar que uma estrutura dada possui a tendência de revelar as características que a distinguem de uma forma tão completa quanto as condições do momento permitam. Essa lei realiza-se através de diversos princípios tais como proximidade, semelhança, fechamento, continuação apropriada entre outros. Em todos esses princípios pode-se notar um denominador comum: as possibilidades da experiência ultrapassam aquilo que é dado pelo excitante físico. A experiência, longe de marcar uma pura reapresentação do dado, marca a produção de um domínio peculiar e inédito que tem no excitante uma causa distante mais do que um modelo do qual partir. O princípio do fechamento é uma decorrência dinâmica da boa forma e se expressa pela tendência apresentada pelas formas imperfeitas a se completarem, alcançando um maior grau de estabilidade e regularidade. O 310 princípio da continuação apropriada indica a tendência de continuidade de uma igura na direção mais equilibrada possível. A Escola de Berlim e o retorno à experiência É possível traçar um paralelo entre a autenticidade do vivido e aquela do espaço iccional tal como produzido, por exemplo, na experiência do cinema. A história narrada num ilme não possui seu sentido tão-somente pela alusão a acontecimentos e fatos reais. O sentido do ilme é incorporado ao seu próprio ritmo, da mesma maneira que o sentido de um gesto é legível nele mesmo. O espaço iccional engendra uma dimensão de sentido que lhe é própria. O que está em jogo, neste caso, não é a referência à realidade da mesma, mas sim a produção de um espaço de sentido inédito. Assim, o ilme é mais percebido do que pensado. Do mesmo modo, o campo do vivido revela um sentido inédito e coerente. Esse campo é formado por relações inteligíveis, compreensíveis. A noção de insight ou discernimento, proposta pelo gestaltismo, expressa essa inteligibilidade imanente do mundo percebido. O campo vivido revela diretamente o seu sentido e é apenas enquanto tal que ele deve ser tomado como o ponto de partida inequívoco da ciência psicológica. Podemos então concluir ser o gestaltismo um retorno à experiência. Não à experiência fundada na sensação, acessível apenas ao olhar do cientista treinado, mas à experiência do sujeito ingênuo, ao mundo percebido, pleno de sentido, de valor e de ordem. O isomorfismo psicofisiológico proposto pela Escola de Berlim Neste ponto, é importante levantarmos algumas questões: qual o alcance da descrição da experiência proposta pela Escola de Berlim? Seriam as descrições suicientes para uma investigação cientíica da experiência? A descrição da experiência tal como é vivida pelo leigo não faz da psicologia uma ciência natural. Isso porque apenas o senso comum convive com descrições sem buscar explicá-las. O que confere especificidade às descrições propostas pela Escola de Berlim é o fato de serem acompanhadas de explicações. Para isso, o gestaltismo recorre a teses acerca do funcionamento do sistema nervoso. 311 O ponto de vista gestaltista sobre os vividos baseia-se em duas questões cruciais. A primeira diz respeito às conexões signiicativas entre parte/todo, conexões estabelecidas não pela mera coexistência de elementos contíguos, mas sim na essência dos todos envolvidos. A segunda questão refere-se à necessidade de se adotar um ponto de vista psicofísico capaz de explicar o porquê de tais laços de sentido entre todos e partes. Furtar-se a adotar a perspectiva psicofísica implica um desconhecimento da especiicidade do saber psicológico perante qualquer outro saber a respeito das vivências. A ciência psicológica, por mais que se ie nas experiências psicológicas, procura ir além destas, buscando explicações. A atitude especíica da psicologia diante das vivências corresponde a um ponto de vista explicativo. Koffka (1924) afirma que a proposta metodológica da teoria da forma consiste em derivar “fatos explicativos” dos “fatos descritivos”. Neste sentido, podemos dizer que o gestaltismo lança mão da hipótese do isomorismo psicofísico para dar conta de explicar aquilo que ocorre no plano das vivências. Lembremos que o termo isomorismo indica a idéia de uma “mesma” (iso-) “forma” (-morismo). Assim sendo, do ponto de vista do isomorismo, os processos psicofísicos são marcados por uma identidade de forma, isto é, há uma homogeneidade de estruturas entre o fenômeno psicológico e o acontecimento isiológico. O funcionamento do sistema nervoso opera segundo uma dinâmica isomórica àquela descrita no domínio das vivências. O isomorismo psicofísico é um princípio estrutural: há uma identidade de estruturas entre o percepto e o evento cerebral. Não está em jogo, neste caso, uma “imagem cerebral” que copie o dado fenomenal. A isiologia nervosa supõe correntes elétricas que, através de diferenças de potencial, delimitam domínios heterogêneos correlatos àqueles que se apresentam no plano do vivido. Assim, à relação entre igura e fundo corresponde uma diferença de potencial no domínio isiológico. Trata-se, portanto, de uma semelhança mais de estruturas ou de formas do que de conteúdos. A concepção de uma isiologia dinâmica – e não mecânica e associativa como supunham Ehrenfels e os membros da Escola de Graz – não é ocasional. A Escola de Berlim parte daquilo que é revelado no fato descritivo para então formular suas hipóteses explicativas. A concepção isiológica é assim exigida pelo fato descritivo. Visto que na perspectiva do leigo sua experiência é imediatamente organizada, seria um contra-senso supor uma fundamentação isiológica distinta do que se mostra no percebido. Entre a isiologia da sensação, parâmetro da cientiicidade nas pesquisas clássicas em 312 psicologia, e a experiência do sujeito ingênuo há uma relação de ruptura. Assim, a relação entre a experiência e o isiológico era meramente factual, arbitrária. Na concepção gestaltista, a relação entre isiologia e psicologia não pode ser puramente factual, arbitrária. Há entre ambas uma relação racional e coerente. Desse modo, podemos considerar as descrições da experiência como dados para a elaboração concreta de hipóteses isiológicas. Para os gestaltistas, que pretendem deinir a psicologia a como ciência da experiência, o conceito de campo é crucial. Segundo este conceito, proposto e desenvolvido na física por MAXWELL, o comportamento dos corpos é determinado pela distribuição de tensões gravitacionais e eletromagnéticas. AMES CLERK Campo e experiência são correlatos de tal modo que a MJAXWELL (1831segunda pode ser utilizada como indicador das 1879), físico britânico. Sua obra mais importante foi propriedades do primeiro. Assim sendo, no caso o Tratado sobre eletricidade e magnetismo, da psicologia, pode-se partir da experiência, do publicado em 1873. Nessa obra, o autor vivido, para se chegar às propriedades do campo descreve a natureza dos campos eletromagnéticos em terisiológico que a fundamentam. A Escola de Berlim mos de espaço e pretende integrar a psicologia no domínio das ciências tempo. naturais, sem que com isso seja necessário abrir mão das noções de signiicação, valor e ordem explicitadas no fato descritivo. Partindo de uma descrição da experiência, a Escola de Berlim airma o fato explicativo em torno do conceito de campo psicoisiológico. O funcionamento dinâmico do sistema nervoso central é isomórico em relação às estruturas vividas e, mais do que isso, constitui o aspecto explicativo do vivido. A relação isomórica entre o psíquico, o isiológico e o físico marca um monismo de princípios de tal modo que, no plano das explicações inais, há apenas um universo de discurso sobre o qual se situam as ciências naturais. O sentido vivido concretamente não pode ser descartado em favor de explicações isiológicas. Trata-se, neste caso, de diferentes níveis de concreção da forma. Em cada nível há uma especiicidade de relações que, embora ocorram segundo os mesmos princípios, não podem ser reduzidas umas às outras. A descrição das experiências não é reduzida à isiologia do sistema nervoso, ainda que tanto em um nível como no outro haja uma identidade de princípios dinâmicos. Koffka (1924) salienta que a referência à isiologia é um fato essencial no espaço psicológico. O equívoco da psicologia clássica não consistia em se referir à física ou à isiologia, mas sim em aceitar um modelo preconcebido de funcionamento nervoso, o que resultava numa dicotomia entre o universo psicológico e o universo das sensações. A proposta de uma relação isomórica entre esses universos marca uma nova concepção da cientificidade da 313 psicologia, ou, o que dá no mesmo, uma nova relação da psicologia com outras disciplinas, especialmente a física e a isiologia. Um estudo completo do problema da experiência nos marcos da Escola de Berlim comporta uma referência não só ao domínio do vivido, mas também ao plano psicoisiológico. A dicotomia entre consciência e mundo, presente na psicologia clássica, está diferentemente colocada no sistema gestaltista. A psicologia clássica partia de um preconceito estabelecido pela hipótese da constância. Esta demarcava um tipo de laço entre o psíquico e o físico – um vínculo associativo e arbitrário. Todo estudo da experiência em termos clássicos é marcado por esse preconceito especíico acerca do mundo objetivo ao qual se referia a experiência psicológica. A teoria da gestalt rejeita tal preconceito, sem que isso signiique uma recusa radical da relação do psicológico com o físico e o isiológico. Há a recusa de um tipo especíico de relação, e em seu lugar é airmada uma relação isomórica. É certo que há nessa alternativa uma renovação da deinição da psicologia como ciência. Mas, em ambos os casos, trata-se de uma ciência psicológica, e, neste sentido, a referência à física e à isiologia é pertinente como uma via de naturalização da experiência. Sem tal referência, o estudo psicológico não estaria integrado ao domínio das ciências naturais. Na discussão entre a orientação clássica em psicologia e o gestaltismo não está em jogo se o espaço psicológico é ou não referido ao isiológico, mas sim como essa referência é airmada. A novidade da Escola de Berlim é garantir a irredutibilidade da psicologia num marco cientíico-natural. Desse modo, se tivéssemos que deinir numa frase a novidade do gestaltismo no que diz respeito ao estudo da experiência, diríamos que o gestaltismo é um sistema em psicologia que propõe uma integração entre a experiência e a natureza. O fato descritivo e o fato funcional são, pois, duas faces da mesma moeda. Os destinos do gestaltismo As conseqüências do gestaltismo para a psicologia se izeram notar mais por suas contribuições descritivas do que explicativas. Muitas foram as frentes de pesquisa abertas sob a inluência da noção de forma e da airmação da importância da totalidade sobre as partes. Nesta seção apresento alguns destinos do gestaltismo, sem, no entanto, pretender esgotar todas as possíveis ressonâncias produzidas pela Escola de Berlim no campo da psicologia no século XX. Nesta medida, merecem destaque os trabalhos de KURT 314 LEWIN. Alemão, Lewin emigrou para KURT LEWIN (1890-1947) nasceu na Alemanha e permaneceu em Berlim durante boa parte de os Estados Unidos onde ficou sua vida acadêmica. No ano de 1932 Lewin foi para conhecido pela proposição da os Estados Unidos. O fato de ser judeu teve repercussão em teoria de campo. Segundo esta sua obra, principalmente no que diz respeito ao trabalho com grupos minoritários. Além disso, a dinâmica de grupo, fundada teoria, o comportamento humano nas perspectivas propostas por Lewin, teve ampla repercussão é função tanto das características nas práticas psicológicas, particularmente naquelas ligadas à atuação do psicólogo nas empresas. Merece destaque o fato de da pessoa quanto daquelas do Lewin ter sido um dos primeiros pesquisadores em psicologia meio onde a pessoa está inserida. a problematizar a relação entre pesquisador e pesquisado, apontando o papel ativo do pesquisador e sua inter-relação com Isto indica que nós não agimos o campo pesquisado. Por essa via, o autor abriu o terreno para a apenas em função de nossos metodologia da pesquisa-intervenção, amplamente utilizada na psicologia comunitária, que tem como um de seus parâmetros impulsos, mas em função também a airmação da relação recíproca entre sujeito e objeto na prática da pesquisa. do meio no qual estamos inseridos. O programa de pesquisas inaugurado por Lewin teve conseqüências para o desenvolvimento da dinâmica de grupo e para as pesquisas na área de motivação social. Um dos méritos do trabalho de Lewin foi o de ter deslocado as pesquisas em psicologia do espaço restrito dos laboratórios para o contexto social. Centrado na tese gestaltista que airmava a importância do todo sobre as partes, os trabalhos de Lewin produziram grande impacto na psicologia social americana. Neste aspecto destacam-se as teorias do equilíbrio, proposta por Fritz Heider (1896-1988), e da dissonância cognitiva, presente nos textos de Leon Festinger (1919-1989). No entanto, vale destacar que diferentemente da proposta de Lewin de airmar a importância de uma psicologia vinculada ao contexto social, a psicologia social americana desenvolveu-se em boa parte como psicologia social a-histórica e individualista. No Brasil, a psicologia social foi bastante marcada por essa inluência americana até os anos 1960 e 1970. A partir dessa época a psicologia social brasileira é marcada por debates e discussões que, em maior ou menor medida, retomam as idéias de Lewin, particularmente no que diz respeito à inserção da psicologia nos contextos social e político e à proposição de uma psicologia histórica. A noção de estrutura tal como KURT GOLDSTEIN (1878-1965). Psiquiatra alemão, lecionou nas Universidades de Frankfurt, Berlim, Harvard e Columbia. airmada pelos integrantes da Escola Atuou como médico psiquiatra em hospitais na Europa e nos de Berlim produziu efeitos também Estados Unidos. DHEMAR G ELB (1887-1936). Trabalhou no Instituto de no campo da psicopatologia. Nesse APsicologia da Universidade de Berlim no período 1909-1912. domínio, os estudos de GELB e GOLD- Em 1929 foi diretor do Instituto de Psicologia de Frankfurt. Em 1933 emigrou para a Holanda. STEIN sobre a afasia sublinham a Discípulo de Radecki, realizou inúmeros trabalhos experiimportância de considerar todo mentais nesta fase, tornando-se posteriormente adepto da comportamento dos doentes, e fenomenologia. 315 não apenas o comportamento verbal, para compreender as alterações comportamentais de um paciente afásico. A noção de estrutura se faz notar quando Gelb e Goldstein airmam que os afásicos não são homens nos quais há uma alteração da linguagem, são homens inteiramente modiicados, inclusive em sua linguagem. A Escola de Berlim serviu de referência para alguns autores que, como Rudolf Arnheim, se propuseram a fazer uma análise das relações entre a arte e a percepção visual. Arnheim utiliza-se das noções de forma e dos princípios de organização da forma para compreender a percepção visual no campo das artes plásticas. No Brasil, esta linha de pesquisa foi seguida por Fayga Ostrower (1920-2001), artista de renome internacional que por muitos anos se dedicou ao ensino da arte. Em seus trabalhos, Ostrower lançava mão do gestaltismo para analisar o modo como percebemos o mundo e, em particular, o modo como as obras de arte podem ser compreendidas através dos princípios de organização da forma. O caráter interdisciplinar das pesquisas de Ostrower indica a possibilidade de uma investigação da percepção na interface entre arte e ciência. O gestaltismo influenciou também as pesquisas de importantes professores brasileiros. No Rio de Janeiro, NILTON CAMPOS N ILTON C AMPOS e Antônio Gomes Penna (1917- ) difundiram as idéias (1898-1963): discípulo gestaltistas através do ensino da psicologia e da publicação de Radecki, realizou muitos trabalhos experimentais nessa fase, de inúmeros trabalhos sobre este tema. Já em São Paulo, tornando-se posteriormente o gestaltismo foi difundido através do trabalho de Arno adepto da fenomenologia. Engelmann. No que diz respeito aos destinos do gestaltismo, pareceme existir uma linha interessante de pesquisa: aquela que consiste em seguir uma via de relexão interdisciplinar, analisando a psicologia não apenas a partir de suas relações com as ciências naturais, mas também com outros domínios do saber, como, por exemplo, as artes plásticas. Nesse caso, abriríamos uma linha de pesquisa cujo eixo seria dado a partir das descrições propostas pela Escola de Berlim, em detrimento de suas explicações naturalistas. Mas talvez neste ponto devêssemos lançar uma pergunta que foi proposta por Aron Gurwitsch (1979): se considerarmos o gestaltismo apenas a partir das suas descrições, podemos airmar que ainda somos gestaltistas? 316 Indicações bibliográficas e estéticas No desenho Horseman disponível no site: http://www.cs.unc.edu/ ~davemc/Pic/Escher/Horsemen.jpg observamos a relação entre igura e fundo como condição da percepção. Trata-se de uma obra do artista gráico M. C. ESCHER na qual há uma alternância entre o fundo – ora negro, ora branco – e as iguras percebidas – ora negras, ora brancas. Nessa igura, podemos observar ser O artista gráico holandês MAURITS CORNELIS a relação entre as iguras e o fundo a condição ESCHER nasceu em 17 de junho de 1898 e morreu em 27 de março de 1972. Em seu de possibilidade da experiência perceptiva. trabalho, explorava um mundo estranho de Na igura Bond disponível no site: http: ilusão de ótica, trocadilhos visuais e perspectivas distorcidas. O trabalho de Escher combina //www.cs.unc.edu/~davemc/Pic/Escher/ humor, lógica e precisão meticulosa com Bond.gif percebemos dois rostos, ainda que artifício visual. estes sejam apresentados através de linhas interrompidas, ou seja, percebemos os rostos em função dos princípios de fechamento e de continuação apropriada. A partir das linhas apresentadas a igura indica uma direção na qual se fecha e se completa. O percebido é, portanto, o resultado de uma relação dinâmica entre o que se apresenta e o que se insinua. Arnheim, R. (1984) Arte e percepção visual – Uma psicologia da visão criadora. 2ª ed. São Paulo: Pioneira. Engelmann, A. (org.) (1978) Kohler. São Paulo: Ática. Koffka, K. (1975) Princípios de psicologia da Gestalt. São Paulo: Cultrix/USP. Kohler, W. (1980 [1947]) Psicologia da Gestalt. Belo Horizonte: Itatiaia. Wertheimer, M. (1980) Leis de Gestalt e fatores de organização. In: Sahakian, W. S. (org.) Aprendizagem. Sistemas, modelos e teorias. 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Psychological Bulletin 19 (10). (1924) Introspection and the method of psychology. The British Journal of Psychology 15 (2). Kohler, W. (1969 [1920]) Physical gestalten. In: Ellis, W. D. (org.) A Source Book of Gestalt Psychology. Londres: Routledge e Kegan Paul Ltd. (1938) The Place of Value in a World of Facts. Nova York: Liveright Publishing Corporation. Mueller, F. (1978) Fenomenologia e psicologia. In: Companhia Editora Nacional. História da psicologia. São Paulo: Ostrower, F. (1998) A sensibilidade do intelecto. Visões paralelas de espaço e tempo na arte e na ciência. A beleza essencial. Rio de Janeiro: Campus. Penna, A. G. (1982) Introdução à história da psicologia contemporânea. Rio de Janeiro: Zahar. 318 Capítulo 19 As influências da fenomenologia e do existencialismo na psicologia Roberto Novaes de Sá A fenomenologia O pensamento de EDMUND HUSSERL (1859-1938) deu origem a uma das mais férteis correntes da filosofia moderna, a EDMUND HUSSERL (1859-1938). fenomenologia. Essa corrente inluenciou decisivaNasceu em Prossnitz, na Morávia mente o movimento ilosóico e cultural que se (República Tcheca). Foi aluno de propagou na Europa após o fim da Segunda Brentano na Universidade de Viena e lecionou nas Universidades de Halle, Guerra Mundial, conhecido como existencialismo. Gotinga e Freiburg. É o fundador da corrente fenomenológica. Fenomenologia e existencialismo, em suas convergências, tensões e entrecruzamentos, constituem juntos uma das importantes matrizes ilosóicas das psicologias do século XX. A questão essencial que move o pensamento de Husserl é a de como fundamentar de modo absolutamente seguro o conhecimento. Para ele, os esforços ilosóicos de Descartes e Kant não haviam sido suicientes para assegurar essa fundamentação necessária. Husserl propõe para a ilosoia uma atitude radicalmente crítica, em que, para que algo seja admitido, exige-se que se mostre com toda a sua evidência. Segundo ele, a “atitude natural”, que inclui tanto a atitude cientíica quanto a do senso comum, considera as coisas como existentes em si mesmas, independentemente de sua relação com uma consciência. Ora, trata-se de uma atitude ingênua, já que supõe gratuitamente uma natureza em si, da qual não é possível ter experiência alguma. Contrariamente, a “atitude fenomenológica”, ou ilosóica no sentido próprio, deve ater-se apenas àquilo que se dá à experiência, tal como se dá: o que chamamos de fenômeno. 319 Quando paramos para pensar num ato de percepção, como, por exemplo, ver uma árvore no campo, em geral, dividimos tal percepção em duas partes. Pensamos que há um objeto árvore, que existe “lá fora” no campo, e, em relação com ele, uma imagem representada da árvore “aqui dentro” na consciência do sujeito. Temos, assim, duas árvores, uma em-si, “lá fora”, e outra representada “aqui dentro”, mas, por que ter na consciência uma imagem de um objeto signiica conhecer o objeto? O que uma imagem de árvore tem a ver com uma árvore em-si? Para a fenomenologia, esse modo tradicional de compreender a percepção é equivocado, não se pode saber nada sobre árvores em-si, ou muito menos sobre supostas árvores representadas, porque todo objeto é sempre objeto-para-uma-consciência e nunca objeto em-si, e toda consciência é sempre consciência-de-um-objeto e nunca consciência “vazia”. A fenomenologia refere-se a esse fato dizendo que a consciência é sempre intencional. Assim, “deixando de lado” (suspensão fenomenológica) a árvore em-si e a representada, a atitude A palavra FENÔMENO provém do fenomenológica retorna para as “coisas mesmas”, isto é, grego phainomenon, que significa o a árvore-no-campo-percebida-por-um-sujeito ou, ainda, simples aparecer dos entes. o “FENÔMENO” árvore. Assim, a fenomenologia de Husserl, na direção contrária à tradição que ele criticava, enfatiza a prioridade da intuição sobre o pensamento conceitual. A intuição é a via de acesso ao fenômeno. O procedimento intuitivo é considerado como o elemento essencial da atitude ilosóica. Mas o termo intuição, aqui, nada tem a ver com alguma espécie de cognição espiritual misteriosa. Para a tradição ilosóica, o termo intuição designa a visão direta e imediata de um ente, seja ele sensível ou não. Distingue-se, desde a ilosoia grega até a moderna, o pensamento intuitivo do pensamento discursivo, dedutivo ou conceitual. É através da intuição que se dá o âmbito de interesse mais próprio da fenomenologia: a correlação entre sujeito e objeto. O estudo dessa correlação se constitui enquanto análise descritiva das estruturas da consciência, não no sentido de uma psicologia introspectiva, como a de Wundt, ou dos atos mentais, como a de Brentano, pois, por ter como característica essencial a intencionalidade, a consciência não é mais compreendida como interioridade psíquica, remete sempre ao mundo cuja constituição apenas se dá nessa referência. O adjetivo ONTOLÓGICO se aplica àquilo que diz respeito ao ser em A fenomenologia pode ser compreendida como geral ou ao modo de ser dos entes. a descrição das estruturas gerais da consciência, não Já o termo “ôntico”, que aparecerá do sujeito empírico estudado pela psicologia, mas do mais adiante, se refere aos entes, isto é, a todas as coisas que são, sujeito transcendental, que é a condição ONTOLÓGICA em um determinado modo de ser 320 já estruturado. A dimensão ôntica da realidade funda-se, portanto, na ontológica. de possibilidade das experiências humanas concretas nos diversos níveis e regiões de realização da existência. A partir da fenomenologia “pura” de Husserl, muitos pesquisadores desenvolveram aplicações “regionais” do método fenomenológico, dirigidas a dimensões especíicas da correlação entre o sujeito e o mundo: as fenomenologias da percepção, da imaginação, da emoção, da linguagem, bem como as fenomenologias das religiões, das relações interpessoais, dos distúrbios psíquicos etc. Entre alguns dos mais famosos expoentes do pensamento fenomenológico, podemos citar MARTIN HEIDEGGER (1889-1976), JEAN-PAUL SARTRE (1905-1980), MAURICE MERLEAUPONTY (1908-1961) e PAUL RICOEUR (1913-2005). MARTIN HEIDEGGER (1889-1976). Nasceu em Messkirch (Baden), na Alemanha. Foi aluno de Rickert e Husserl na Universidade de Freiburg. Lecionou em Marburg e Freiburg. JEAN-PAUL SARTRE (1905-1980). Nasceu em Paris, onde estudou Filosofia. Em Berlim, estudou as obras de Husserl e Heidegger. Lecionou em diversos liceus da França. Após 1945, dedicou-se mais à atividade literária. MAURICE MERLEAU-PONTY (1908-1961). Nasceu e estudou na França. Lecionou Psicologia na Sorbonne e Filosofia no College de France. Foi co-editor, junto com Sartre, do jornal Les Temps Modernes. PAUL RICOEUR (1913-2005). Filósofo francês. Estudou na Universidade de Rennes. Lecionou nas universidades de Strasbourg, Sorbonne, Nanterre e Chicago. Na medida em que as ciências do espírito e, particularmente, a psicologia cientíica, nascida no século XIX a partir do modelo das ciências naturais, começam a questionar a adequação de tal modelo ao seu objeto próprio, a fenomenologia mostra-se uma fértil alternativa para a estruturação de uma abordagem mais apropriada ao estudo do homem. A inluência da fenomenologia no campo das ciências humanas é bastante vasta e heterogênea, incluindo disciplinas como a história, a sociologia, o direito, a antropologia e a psicologia. De um modo geral, a grande contribuição da fenomenologia a essas ciências é a de fornecer um modelo de descrição e compreensão de sentido próprio para a abordagem dos fenômenos que dizem respeito ao espírito, ao contrário do modelo de “explicação causal” empregado pelas ciências da natureza. No campo especíico da psicologia, as inluências mais diretas da fenomenologia se deram sobre a psicologia da Gestalt e sobre a psiquiatria, desde JASPERS (1883-1969), que escreveu em 1913 um K ARL JASPERS (1883-1969). Nasceu em Oldenburg, na tratado fenomenológico intitulado Psicopatologia geral, Alemanha. Formou-se em Medicina passando por psiquiatras de projeção como Eugéne pela Universidade de Heidelberg. Minkowski (1885-1972) e Ludwig Binswanger (1881- Lecionou Psiquiatria e Filosofia em Heidelberg e, a partir de 1948, Filosoia 1966), até Medard Boss (1903-1990), que desenvolveu na Basiléia, na Suíça. suas relexões clínicas em colaboração direta e estreita 321 com o ilósofo alemão Martin Heidegger, aluno e sucessor de Husserl na universidade alemã de Freiburg. O existencialismo O existencialismo enquanto movimento ilosóico e cultural surge no período entre as duas guerras mundiais, de 1918 a 1945, no eixo intelectual entre a Alemanha e a França. Seu principal articulador é o ilósofo francês JeanPaul Sartre. O movimento ganha difusão pela Europa e Estados Unidos no pós-guerra, principalmente na década de 1950. Por uma questão de coerência com as idéias que prega, o existencialismo nunca se constituiu como um sistema ilosóico estruturado, valorizando, antes, o próprio ilosofar enquanto atitude permanente de estranhamento e interrogação do sentido. Apesar de possuir uma temática bastante característica e um modo próprio de abordagem, o existencialismo abarca um leque heterogêneo de idéias e pensadores. Iniciemos nossa aproximação compreendendo a origem da oposição tradicional entre os termos “essência” e “existência”, a partir da qual se derivou a expressão existencialismo. O modo de conhecimento que se denomina ilosoia e que se caracteriza por uma investigação racional dos fundamentos da realidade teve origem na Grécia Antiga (entre os séculos IV e V a.C.). Logo nesse período inicial, uma resposta à investigação da ilosoia foi dada por Platão, que marcou toda a história do pensamento ocidental até a época moderna. Diante do questionamento acerca daquilo que nas coisas constitui o seu verdadeiro ser, isto é, sua essência, os gregos responderam que era aquilo que se mantinha sempre idêntico, constante, permanente. As características que se transformavam, que se alteravam, foram consideradas menos importantes, ou seja, meramente acidentais e não constitutivas da essência. Ora, tudo que é sensível tem existência no tempo, está sempre em transformação. Logo, a essência das coisas, sendo permanente, só poderia ser do âmbito do suprasensível, portanto, atemporal. Platão denominou “idéias” essas essências supra-sensíveis e eternas que serviam como o verdadeiro fundamento para a existência das coisas sensíveis e temporais. Ao longo da história da ilosoia, outras denominações foram atribuídas ao ser ou à essência dos entes, isto é, das coisas (substância, Deus, espírito, razão), mas aquela decisão inicial de que a verdadeira essência das coisas era atemporal e supra-sensível, opondose, assim, à sua existência sensível e temporal, vigorou por todo pensamento 322 ilosóico, com raras exceções, chegando até à nossa época. Em virtude dessa valorização da essência em detrimento da existência, se diz que a tradição ilosóica, ou metafísica, do Ocidente é essencialista. Essa tradição metafísica, que sempre buscou fundamentar a realidade a partir de idéias abstratas e universais, através da construção de sistemas ilosóicos, encontrou, no século XIX, dois críticos de grande importância, considerados precursores do existencialismo moderno; são eles FRIEDRICH NIETZSCHE (1844-1900) e SÖREN KIERKEGAARD (1813-1855). Particularmente este último é considerado, tanto FRIEDRICH N IETZSCHE (1844-1900). Nasceu em Roecken, na por sua obra quanto por sua Alemanha. Estudou Teologia e Filosoia em Bonn e Filologia em vida conflituosa e intensa, Leipzig. Em 1869 foi nomeado professor de ilologia na Basiléia, e nove anos depois abandonou o cargo por causa de sua saúde frágil. Foi nesse o protótipo do pensador período que iniciou a redação de seus textos ilosóicos importantes. existencialista. Kierkegaard SÖREN KIERKEGAARD (1813-1855). Nasceu em Kopenhagen, na elaborou seu pensamento Dinamarca, onde estudou Teologia na Universidade e onde veio a falecer. Sua vida foi marcada por intensos conlitos afetivos e religiosos filosófico numa referência que se expressam em sua obra. de oposição direta à ilosoia idealista de Hegel (1770-1831), que pode ser considerado o último grande representante e o ápice da tradição essencialista iniciada com Platão. O indivíduo não pode, segundo Kierkegaard, ser explicado a partir de nenhuma essência universal. O ser do homem consiste em sua própria existência singular, sua subjetividade, que é pura liberdade de escolha. Por isso a ilosoia não se reduz à construção de sistemas abstratos, à especulação conceitual e à descrição de essências ideais; ilosofar é airmar a existência enquanto liberdade e assumir a responsabilidade pelas próprias escolhas. Vemos, portanto, que o primado tradicional da essência sobre a existência é radicalmente invertido por Kierkegaard, justiicando, assim, a opinião amplamente aceita de que esse ilósofo e teólogo dinamarquês é o principal e mais direto precursor do existencialismo. Para Heidegger, foi Kierkegaard quem analisou com maior profundidade alguns dos fenômenos fundamentais da existência, tais como a angústia e a temporalidade enquanto instante de decisão. Aluno e sucessor de Husserl, como já mencionamos, Heidegger tem um papel fundamental na articulação entre fenomenologia e existencialismo. Para ele, não é suiciente voltar-se para a existência singular em suas circunstâncias sempre especíicas a cada situação histórica concreta. É preciso elaborar uma interpretação ontológica do existir humano em geral, isto é, uma interpretação que diga respeito às estruturas que constituem o ser do homem enquanto existente. Esta tarefa, Heidegger leva a cabo em sua obra Ser e tempo, publicada em 1927. A “analítica da 323 existência”, ali desenvolvida pelo ilósofo, será uma espécie de base ontológica, de cunho fenomenológico, para o existencialismo. Embora Heidegger negue expressamente a classiicação de existencialista, o efeito de Ser e tempo sobre o movimento é decisivo. No campo da clínica psicoterápica, sua inluência foi tão direta e importante que, mais adiante, nos deteremos um pouco mais em suas idéias. Tendo sofrido forte influência dos pensamentos de Husserl e de Heidegger, foi Sartre quem elaborou uma ontologia e uma antropologia existencialistas, no sentido mais próprio do termo. Esse ilósofo, militante da resistência francesa à ocupação alemã, publicou em meio à Segunda Guerra Mundial, em 1943, sua obra de maior projeção, O ser e o nada, cujo subtítulo é “Ensaio de ontologia fenomenológica”. Logo de início, Sartre divide os entes em duas regiões ontológicas radicalmente distintas, segundo os seus modos de ser: o “ser em si” e o “ser para si”. O “em-si” (en-soi) diz respeito às coisas em si mesmas, fora de qualquer relação com a consciência, fora, portanto, de qualquer relação de sentido. O “para-si” (pour-soi) é o mundo da consciência, diz respeito à existência, no sentido especíico que lhe dá o existencialismo. Nesse contexto, o termo existência não é um mero sinônimo de ser, como o empregamos no linguajar cotidiano. Existir é um modo especíico de ser relacionado ao ente cujo sentido nunca está dado a priori – o homem. Antes que existisse esta folha de papel diante de nós, foi preciso que alguém pensasse nela, concebesse idealmente seu ser, sua essência, para então produzi-la, dando-lhe existência. Podemos dizer então que sua essência vem antes de sua existência. No caso do homem, a relação se inverte, primeiro é preciso ser homem, existir, para depois pensar sobre isso e atribuir-lhe sentido. Assim sendo, somente em relação ao homem é válida a inversão da fórmula tradicional da metafísica que dava precedência para as essências. No caso do homem, o existencialismo postula que a existência precede a essência. Por isso, só ele, ao contrário dos outros entes, não está predeterminado quanto ao seu sentido, só ele é livre. A distinção entre o “em-si” e o “para-si” possui analogia com a diferença que o existencialismo estabelece entre “ser” e “existir”: só o homem existe, enquanto a folha de papel é. Alguns outros nomes de grande importância no campo do existencialismo foram o ilósofo espanhol Miguel de Unamuno (1864-1936); o psiquiatra e ilósofo alemão Karl Jaspers (1883-1969); a escritora francesa Simone de Beauvoir (1908-1986), companheira de Sartre; o romancista e ensaísta de origem argelina Albert Camus (1913-1960); o ilósofo francês Gabriel Marcel 324 (1889-1973), principal representante da corrente cristã do existencialismo e o ilósofo judeu de ascendência polonesa Martin Buber (1878-1965). A analítica do Dasein de Heidegger O grande interesse que motivou Heidegger a deixar o curso de teologia para ingressar na ilosoia foi a questão sobre o sentido do ser. Sua obra mais conhecida, Ser e tempo (Sein und Zeit), publicada em O termo HERMENÊUTICA designa a 1927, aborda “a questão do ser” por caminhos arte ou ciência da interpretação. A fenomenologia de Heidegger não é portanto radicalmente diferentes daqueles percorridos transcendental no sentido de Husserl, mas até então pela tradição, pois não interroga sim hermenêutica. O sentido que se desvela “o que é o ser”, mas “qual o seu sentido”. O através do homem, nunca se dá a partir de algum a priori transcendental, é objetivo da ontologia, de investigar a essência sempre interpretação. dos entes, transforma-se, então, em uma questão HERMENÊUTICA. O método empregado nesse questionamento ontológico em Ser e tempo é denominado por Heidegger “fenomenologia hermenêutica”. Segundo ele, a fenomenologia, herdada de seu mestre Husserl, visa dirigir-se “às coisas elas mesmas – por oposição às construções soltas no ar...” (1989: 57). Esse “às coisas mesmas” nada tem a ver com a coisa “em-si” da tradição, refere-se a um retorno às “coisas mesmas” tal como elas aparecem, se dão, para a consciência. Como o ser é sempre pensado a partir das coisas que são, isto é, dos entes, Heidegger se pergunta se na pesquisa sobre o sentido do ser algum ente teria lugar de destaque. Ele conclui que sim, justamente aquele ente que lança a interrogação sobre o ser, o homem, assume um papel privilegiado. Por isso, demanda o homem uma análise mais detida de seu modo de ser, antes que se aprofunde a pesquisa ontológica, ou seja, o questionamento direto sobre o sentido do ser. O projeto original de Heidegger para Ser e tempo nunca foi, no entanto, concluído, as duas únicas seções publicadas tratam da analítica da existência humana. Embora não fosse essa a intenção do ilósofo, a obra acaba sendo tomada como um tratado de antropologia ilosóica e, enquanto tal, torna-se uma referência fundamental para as ciências humanas e para a psicologia clínica em particular. Heidegger designa como Dasein (ser-aí) o modo de ser deste ente que mesmos somos. Sua diferença radical com relação aos entes que não têm o modo de ser do homem é que ele não possui uma essência anterior à existência, antes, o que ele é, seu ser, está sempre em jogo no seu existir. O 325 modo de ser dos entes não humanos é denominado “ser simplesmente dado” (Vorhandenheit) porque o que eles são, o seu sentido, nunca está em jogo em seu devir temporal; enquanto que o modo de ser do homem é a “existência”, o “ser-aí”, o “ser-no-mundo”. A expressão “ser-no-mundo” revela a unidade estrutural ontológica da existência do Dasein. A análise dessa estrutura nos remete aos três momentos constitutivos da totalidade desse fenômeno: a idéia de “mundo” como estrutura de sentido; o “quem é no mundo”, que se revela de início como impessoalidade cotidiana; e o modo de “ser-em” um mundo, cuja estrutura se desdobra em compreensão e disposição. a) A mundanidade O Dasein é “mundano”, co-originário ao “mundo”, diferenciando-se dos entes simplesmente dados, “intramundanos”, mas destituídos de mundo. Por exemplo, pedras e árvores estão no mundo, mas não têm mundo, isto é, não são aberturas de sentido, não se podendo dizer delas que “existem”. Mundo é estrutura de sentido, contexto de signiicação, linguagem sempre historicamente em movimento. O homem, enquanto “ser-no-mundo”, não é encerrado em si mesmo, numa interioridade psíquica, estando sempre num contexto relacional. Ainda que esteja no isolamento, é “ser-com”, co-presença. É nesse ser-nomundo-com-os-outros que aparece o sentido como desvelamento dos entes que lhe vêm ao encontro. A palavra “cuidado” (Sorge) é usada para expressar a característica ontológica do Dasein de estar sempre referido a outro ente. O modo das relações do Dasein com os “entes cujo modo de ser é simplesmente dado” foi denominado por Heidegger “ocupação” (Besorgen), e o modo das relações com os entes, também dotados do seu modo de ser, “preocupação” (Fürsorge). O modo mais imediato de o Dasein se relacionar com os outros entes se dá sempre por meio da ocupação, no manuseio e uso, subordinados ao “ser-para” dos instrumentos, ou seja, está sempre referido a um contexto de signiicância, mundo, em que predomina o uso ou a utilidade. Entretanto, justamente quando a referência instrumental é perturbada por algum obstáculo, ou seja, quando o instrumento falha, anuncia-se o “mundo”. É a partir dos imprevistos que o Dasein é lançado numa perspectiva em que aquilo cujo sentido era simplesmente 326 dado revela-se como dependente de uma tessitura mais ampla e complexa de sentido, o mundo. b) O cotidiano impessoal Sendo um fenomenólogo, Heidegger não inicia a análise do Dasein a partir de alguma situação ideal na qual ele supostamente revelaria suas maiores virtudes, antes, está interessado no seu modo de ser cotidiano mais comum. É na “indiferença mediana”, “impessoal”, que se encontra, de início e na maior parte das vezes, o existir. Há uma tendência para o “encobrimento”, isto é, o Dasein foge de si, esquecendo-se do seu “ser próprio”, relacionandose com ele como algo que já possui uma configuração preestabelecida. A ausência de surpresas e a evidência caracterizam a preocupação e a ocupação. O modo de falar e escrever descomprometido (falatório e escritório), a forma despersonalizada e insaciável de lidar com o novo (curiosidade) para preservar o conhecido, evitando as transformações, expressam o modo de ser cotidiano do Dasein, “decadente” e “inautêntico”. É essa compreensão “mediana” que, quase sempre, dita e regula suas possibilidades de ser, dispensando de realizar, de modo próprio e pessoal, o desvelamento do sentido dos entes a partir da experiência de sua alteridade irredutível. Sob o domínio da decadência, o Dasein se esquece de sua estrutura básica de interrogar e permanece em uma opacidade que encobre e distorce o desvelamento das possibilidades de sentido de si mesmo e dos entes que lhe vêm ao encontro no mundo. De início e na maior parte das vezes, toma-se por um ente cujo modo de ser já estivesse previamente dado, não realizando suas possibilidades mais próprias e singulares. Tanto o modo de ser da “propriedade” como o da “impropriedade” são possibilidades constitutivas do Dasein. Não se passa de um modo de ser impessoal e impróprio para um outro pessoal e próprio de modo deinitivo, como se fosse um desenvolvimento evolutivo da personalidade. O Dasein, em qualquer um desses modos, nunca deixa de comportar o outro enquanto possibilidade. c) Compreensão e disposição O “ser-em” não diz respeito a uma relação espacial de dois entes extensos, nem tampouco à relação entre sujeito e objeto. O “em” signiica que o Dasein 327 e o mundo são coexistentes. Um jamais antecede o outro, são co-originários. O Dasein é abertura de sentido, e as dimensões essenciais dessa abertura são denominadas por Heidegger “compreensão” (Verstehen) e “disposição” (Beindlichkeit). Tal abertura compreensiva não é algo afetivamente neutro, que se restringe ao âmbito intelectual. Toda compreensão já é sempre dotada de uma “coloração” afetiva, de um “humor” ou “disposição”. Disposição e compreensão constituem o modo de ser da abertura. Mesmo o Dasein sendo, fundamentalmente, abertura de sentido do ser dos entes, em seu modo cotidiano e mediano de ser, tende, de início e na maior parte das vezes, ao fechamento. Ao circunscrever-se num horizonte de instrumentalidade, toma o sentido de si mesmo e dos outros entes como simplesmente dado. Quando um instrumento não funciona, tornase coisa, revela a possibilidade de outros sentidos, mostrando-se, assim, a não-naturalidade e a ausência de um fundamento absoluto e seguro para a estrutura de sentido em que ele antes parecia ser algo dado para além de qualquer espanto. Anuncia-se o “mundo” (estrutura de signiicância) sob a ilusão de uma natureza simplesmente dada que se desfaz. Surge a angústia diante do nada, da falta de sentido, do “vazio” de signiicação. A angústia é a “disposição compreensiva” na qual o Dasein está aberto para si mesmo, para seu ser-no-mundo. A angústia revela, portanto, o poder-ser mais próprio, a pura abertura de signiicações, retirando o Dasein de sua decadência por romper com a familiaridade cotidiana. Surge, então, o “estranhamento”, que faz com que os entes não mais apareçam como simplesmente dados, e, conseqüentemente, a responsabilidade, até então “esquecida”, de assumir a liberdade de poder-ser de diferentes maneiras. d) O ser-para-a-morte e o poder-ser em sentido próprio Tendo analisado o Dasein em seu modo de ser cotidiano, tal como se encontra de início e na maior parte das vezes, Heidegger prossegue sua analítica, na segunda parte de Ser e tempo, buscando agora desvelar as possibilidades mais próprias e autênticas desse ente. Como na interpretação ontológica a totalidade do fenômeno precisa ser levada em conta, fazia-se ainda necessária essa investigação do “ser-no-mundo” em seu modo mais próprio. Por sua característica fundamental de poder-ser, o Dasein resiste a uma apreensão total, já que deve, em podendo ser, ainda não ser algo. Enquanto é um ente, o Dasein jamais alcança sua totalidade, permanecendo em constante 328 inconclusão. Mas, se não podemos falar aqui de totalidade enquanto reunião de todas as possibilidades, podemos falar de totalidade enquanto aquilo que se circunscreve a um limite, a um im. Ao morrer, o Dasein não é mais no mundo, indam-se as suas possibilidades. Portanto, apreendê-lo como um todo é um empreendimento que requer o esclarecimento do fenômeno da morte, entendido de forma ontológica como o seu poder-ser mais próprio. Enquanto existe, o Dasein é ser-para-a-morte. Desde que nascemos já está implícita em nossa existência, a qualquer momento, esta possibilidade. Porém, há uma diiculdade ôntica de fazer a experiência ontológica do “ser-para-a-morte”. Não temos acesso à perda ontológica sofrida por quem morre; no máximo, estamos apenas juntos. São duas experiências diferentes: uma delas é sofrermos no modo da preocupação reverencial pelo outro, o que é possível somente por sermos essencialmente “com-o-outro”; outra é experienciarmos o nosso próprio “ser-para-a-morte”. Referimo-nos, anteriormente, à angústia como a disposição que leva à possibilidade de singularização por colocar o Dasein em contato com o seu ser mais próprio, que é a existência enquanto abertura de sentido. Sendo o “ser-para-a-morte” a possibilidade mais própria, irremissível e insuperável do homem enquanto projeto, pode-se dizer que toda angústia é, em última instância, angústia da morte. A morte é a possibilidade extrema que antecede todo poder-ser de fato do Dasein, ou seja, o Dasein é para-a-morte, sempre já foi, pois já se antecipou para ela desde o seu primeiro suspiro de vida. Porém, o Dasein se esquece que existe projetando-se, compreendendo-se antecipadamente e a partir de suas possibilidades, e perde-se nos ruídos ambíguos do falatório. Nesse contexto, a morte é encarada como um fenômeno do qual é preciso desviar-se. Mas, é somente experienciando essa angústia diante do nada que o Dasein pode escolher a si mesmo, encontrar o que tem de mais próprio e singular para além das estruturas do “mundo público” e “impessoal”. A tendência cotidiana a fugir da angústia da morte encobre o “serpara-a-morte” mais próprio. O projeto existencial de um “ser-para-amorte” em sentido próprio deve, portanto, elaborar os momentos desse ser que o constituem como compreensão da morte, no sentido de um ser para a possibilidade caracterizada, que nem foge, nem encobre. É somente “antecipando” que o Dasein desentranha a possibilidade de “ser-para-a-morte” enquanto modo próprio de “ser-no-mundo”, em que sempre está em jogo o seu existir, e, desta forma, volta-se para suas possibilidades mais singulares, determinadas a partir de sua initude, desvencilhando-se do impessoal. 329 Há sempre, durante o existir do Dasein no mundo, um chamamento para o “poder-ser-mais-próprio”; é o que a compreensão comum chama de “voz da consciência”, e que Heidegger denomina “clamor”. Ter consciência de suas escolhas signiica, então, recuperar seu projeto. Essa “convocação” escapa de qualquer determinação, rompe com a linguagem do cotidiano, já que o seu discurso é silencioso e abre o “poder-ser” como singularidade de cada Dasein, não oferecendo, portanto, nenhuma interpretação universal. É somente no fenômeno da “decisão antecipadora” que o Dasein consegue responder ao apelo da consciência, pois se projeta para as possibilidades mais próprias, escolhendo a si mesmo, tendo a angústia como disposição compreensiva que convida a tal movimento. A decisão indica um “ser-si-mesmo” em sentido próprio, uma escolha que não é movida por uma vontade subjetiva arbitrária nem está subordinada a algum código moral, mas à escuta do clamor da consciência. Para tanto, é preciso silenciar os ruídos do falatório que dispersam o Dasein no domínio do mundo público impessoal. Somente na compreensão do seu “ser-para-amorte”, na experiência da sua initude, o Dasein pode dissipar o encobrimento de si mesmo e lançar-se nas suas possibilidades mais singulares, modiicando o seu cenário existencial. Conforme já mencionamos, Ser e tempo permanece inacabado. A partir de meados da década de 1930, Heidegger abandona o uso dos termos “fenomenologia” e “hermenêutica”, mas, como ele próprio declara, “isso não ocorreu, como muitos pensam, para negar a importância da fenomenologia, mas para deixar meu caminho de pensamento sem nome” (1976: 114). Ao contrário da interpretação usual que enfatiza essa inlexão de sua trajetória ocorrida nos anos 1930 e denominada reviravolta (Kehre) como uma ruptura, o próprio Heidegger sempre a interpretou em termos de continuidade. Dois temas fundamentais das relexões heideggerianas a partir dessa fase são a linguagem poética e a questão da técnica moderna, que não vamos tratar aqui porque ultrapassam o escopo deste livro. A Daseinsanalyse Em virtude da abrangência quase indeinida que a expressão “análise existencial” adquiriu, os terapeutas que desenvolveram seu trabalho sob a inluência direta do pensamento de Heidegger acabaram por adotar o termo alemão Daseinsanalyse, mesmo em línguas estrangeiras. A palavra, que 330 é proveniente da obra Ser e tempo, signiica “análise do Dasein” e refere-se à tematização ontológica das estruturas existenciais constitutivas do homem enquanto “ser-aí” (Dasein). A Daseinsanalyse clínica constitui, no entanto, uma aplicação ôntica da analítica heideggeriana, pois cada fenômeno que vem à luz no diálogo clínico deve ser discutido a partir do contexto factual concreto em que surge e nunca reduzido genericamente a uma estrutura existencial. a) Binswanger O psiquiatra suíço Ludwig Binswanger foi um dos primeiros que, já na década de 1920, propôs a aplicação da fenomenologia ao campo psiquiátrico. Dez anos depois, sob a inluência de Heidegger, tornou-se um analista existencial e, em 1941, adotou a expressão Daseinsanalyse para denominar sua abordagem. O encontro com o pensamento de Heidegger permitiu que Binswanger elaborasse, de modo mais preciso, sua insatisfação com a metodologia cientíica, herdada das ciências naturais, que se airmava na psiquiatria. Os principais aspectos da abordagem cientíica, contra os quais a análise existencial se opunha, eram o determinismo causal aplicado à existência humana e a tendência de supor forças e complexos psíquicos ocultos sob os modos de ser diretamente perceptíveis. Na base dessa concepção metodológica, Binswanger percebeu que se encontrava a divisão cartesiana do mundo em “resextensa” e “res-cogitans”. Essa cisão, ao mesmo tempo em que separa o homem do mundo, encerrando-o numa esfera subjetiva de representações, iguala-o aos entes naturais no modo de ser subsistente, isto é, substâncias simplesmente dadas. Em alternativa a esse tipo de compreensão, considerada por ele artiicial, Binswanger adotou a noção de Dasein, na qual o “ser-no-mundo” já é uma condição existencial originária, ou seja, ontológica, e não algo acrescentado posteriormente. Além disso, o Dasein, em seu modo de ser, já é sempre abertura temporal e compreensiva, o que implica ter sempre uma orientação, um projeto, que prescinde de explicações causais de nível ôntico. A partir de uma descrição daseinsanalítica, Binswanger elaborou diversos estudos de casos clínicos de pacientes esquizofrênicos que se tornaram clássicos da psiquiatria, como os de Suzanne Urban, Ellen West e Lola Voss. Suas descrições fenomenológicas dos “modos-de-ser” dos pacientes desdobram o mundo em três regiões: o mundo enquanto ambiente físico circundante 331 (Umwelt), o mundo das relações com o outro (Mitwelt) e o mundo próprio do pensamento e do corpo (Eigenwelt). No desenvolvimento de seu trabalho clínico, uma segunda e importante mudança de orientação ocorreu em sua abordagem. À noção heideggeriana de “cuidado” (Sorge), que indica que o Dasein enquanto “ser-no-mundo” se dá sempre e essencialmente num exercício de relações com os entes que lhe vêm ao encontro, Binswanger julgou necessário acrescentar a noção de “amor”. Ora, sendo um existencial, isto é, uma estrutura ontológica constitutiva do Dasein, o “cuidado” não diz respeito a um tipo especíico de relação, e sim à condição de possibilidade dos diversos modos de relações, incluídas aí as afetivas, como o amor. O que o acréscimo de Binswanger indica é que ele entendeu o “cuidado” num nível ôntico, como cuidado factual por um ente já dado no mundo, achando, assim, necessário postular outros modos de relação. Na base desse desenvolvimento ficava claro que a idéia de uma subjetividade subsistente, suporte transcendental das idéias e emoções, não fora radicalmente ultrapassada por Binswanger. Reconhecendo esse fato e estando coerente com os seus fundamentos ilosóicos, ele retoma uma posição mais husserliana e passa a empregar a expressão “fenomenologia antropológica” para nomear sua abordagem. b) Medard Boss Inluenciado por Binswanger e motivado por interesses mais clínicos do que epistemológicos, o psiquiatra e psicoterapeuta suíço Medard Boss vislumbrou no pensamento de Heidegger novas possibilidades para o exercício da compreensão terapêutica. Estabelecendo seu primeiro contato com o ilósofo por carta, em 1947, iniciou um longo e regular intercâmbio que perdurou por quase 30 anos, até próximo da morte deste. De 1959 até 1969, Heidegger transmitiu pessoalmente suas idéias a um grupo de médicos e psicoterapeutas em seminários organizados, algumas vezes ao ano, por Boss. Tais encontros foram compilados e editados por Boss sob o título Seminários de Zollikon, e constituem material de grande interesse para a relexão sobre a psicoterapia. Em 1971, foi fundada em Zurique, na Suíça, a Associação Internacional de Daseinsanalyse. Enquanto exercício clínico e, portanto, ôntico da analítica existencial ontológica proposta por Heidegger, a Daseinsanalyse propõe apenas um caminho ou uma atitude de olhar fenomenológico, em que os fenômenos chamados 332 normais e patológicos do existir humano possam aparecer, a partir de si mesmos, em suas múltiplas possibilidades de manifestação. Tal atitude evita que esses fenômenos sejam contidos e reduzidos pela violência da objetivação cientíica aos seus aspectos apenas orgânicos, psicológicos, sociológicos etc. A compreensão fenomenológica na clínica não se propõe a construir um sistema de representações conceituais adequadas à subjetividade humana e seus estados patológicos, mas sim a tematizar o âmbito originário do “ser-no-mundo-como-outro”, que constitui a condição de possibilidade de todo comportar-se e relacionar-se humanos. Para a Daseinsanalyse, o “ser-doente” não é “algo” que possa ser deinido a partir de uma essência positiva. Todo modo de “ser-doente” caracteriza-se como uma privação de um modo de “ser-sadio”. Se o Dasein é, essencialmente, a abertura livre da existência, a limitação dessa liberdade é uma possibilidade já sempre dada ao homem. Toda doença é uma restrição mais ou menos grave do poder dispor livremente do conjunto de possibilidades de relação em que o homem sempre se encontra. O que diferencia, por exemplo, o chamado neurótico obsessivo do homem normal não é o fato de que aquele tem algo que lhe dá a possibilidade do comportamento obsessivo e que os outros não possuiriam; todos têm, enquanto homens, tal possibilidade. O que caracteriza o neurótico enquanto tal é o fato de que ele está restrito a essa possibilidade, fechado ao exercício de inúmeras outras que fazem parte do existir saudável. Boss propõe três questões que, para a compreensão daseinsanalítica, abrem a tematização clínica de um modo especíico de “ser-doente” (Boss, 1976: 14): 1. Qual é a possibilidade de relação perturbada? 2. Qual é a esfera que vem ao nosso encontro, que está visada nessa relação? 3. Como essa perturbação relacional se manifesta? A doença não pode, portanto, ser tomada como uma entidade em si mesma, simplesmente dada. Qualquer síndrome vista isoladamente é uma abstração cientíica. Uma pessoa não pode ser considerada neurótica ou psicótica de modo geral, como se isso constituísse um atributo positivo, ainda que acidental, do seu ser. Em cada caso, é necessário perguntar diante de que situação relacional especíica alguém se comporta de modo neurótico ou psicótico. É importante lembrar, no entanto, que o Dasein em seu modo cotidiano e mediano de ser tende, de início, ao fechamento, isto é, ao encerramento de 333 todo sentido dos entes num horizonte de instrumentalidade. Tal fechamento não caracteriza, por si só, nenhuma patologia. Para que se possa falar em “distúrbio”, é preciso que o limite de abertura ao sentido do Dasein esteja fortemente restrito, comprometendo sua liberdade de corresponder aos apelos da situação existencial em que se encontra. De início e na maior parte das vezes, o homem encontra-se num mundo cujo sentido dos entes é simplesmente dado, não sendo, portanto, tema de uma apropriação relexiva. Apenas quando uma coisa ou acontecimento escapa do seu lugar esperado na rede de signiicância instituída como mundo, surge o estranhamento, a angústia e a demanda, nem sempre correspondida, de tematização do sentido. Essa demanda pode assumir dois níveis de abrangência distintos. No primeiro, questiona-se o sentido de um ente intramundano a partir do horizonte de sentido já estabelecido. No segundo, impõe-se um questionamento mais radical que põe em jogo o próprio horizonte de sentido enquanto tal e, portanto, os limites do mundo (do Dasein como abertura). É neste caso que pensamos ser mais pertinente falar em distúrbio ou crise na cotidianidade do Dasein. O distúrbio é a ameaça à estabilidade da estrutura de sentido, chamada mundo, a partir de um acontecimento que se impõe ao Dasein como sem sentido ou como aceno de possibilidades de sentido radicalmente estranhas com relação ao horizonte dado. A psicoterapia existencial, como espaço de acolhimento e compreensão do distúrbio, não é um processo voluntariamente conduzido pelo terapeuta no plano das representações teóricas mais adequadas à estrutura psicológica do cliente. A questão que institui a terapia, e nela se instala, é a mesma já imposta pela vida. Portanto, não se pode atribuir à relação terapêutica nenhum privilégio no sentido de maior objetividade, neutralidade ou afastamento. Podemos apenas dizer que o espaço terapêutico se mantém no esforço de sustentar a questão, enquanto questão concernente ao “poder-ser” próprio do Dasein, até o limite em que seu apelo suscite novas possibilidades de correspondência. Para a perspectiva daseinsanalítica, a relação terapêutica não deve ser pensada no plano de uma intersubjetividade, isto é, como um encontro de sujeitos isolados, interioridades deinidas a partir de si mesmas. O “ser-com” é uma dimensão ontológica constitutiva do Dasein enquanto tal. Cada Dasein já é sempre “no-mundo-com-o-outro”, e o modo mais próprio de ser “si-mesmo” não exclui, mas implica obrigatoriamente algum modo especíico de “ser-com”. O problema da compreensão do outro não se reduz, portanto, jamais a uma questão de metodologias e técnicas, ao contrário, essas somente são possíveis 334 enquanto desdobramento temático da pré-compreensão do outro em que já sempre se encontra o Dasein segundo seu modo de “ser-no-mundo”. Tal colocação é essencial para a psicoterapia, pois desloca a questão da verdade do âmbito das teorias, metodologias e técnicas para aquele da experiência e da existência, no qual está sempre em jogo o próprio ser do homem. Outras irradiações e influências da psicologia existencial Para os propósitos historiográicos e introdutórios do presente texto, optamos por privilegiar as bases ilosóicas do existencialismo, principalmente, a analítica da existência de Heidegger e seus desdobramentos mais diretos na psicologia clínica com Binswanger e Medard Boss. Consideramos que o eixo Heidegger-Binswanger-Boss foi a principal via de ligação entre a ilosoia da existência e a psicologia, bem como seu mais importante núcleo de irradiação intelectual. Nos Estados Unidos, um dos maiores nomes da psicologia existencial, também responsável por sua difusão, foi o psicólogo clínico Rollo May (1909-1994), que teve a inluência de seu professor e amigo Paul Tillich (1886-1965), teólogo existencialista alemão imigrado para a América em 1933, logo após a ascensão de Hitler. May passou três anos internado num sanatório para o tratamento de uma tuberculose. Esse retiro forçado lhe deu o tempo e a perspectiva existencial propícios para uma aproximação das idéias de Kierkegaard. Embora fortemente inluenciado pelas principais idéias do existencialismo europeu, May imprimiu à sua psicologia existencial algumas características próprias, como uma maior aproximação das idéias humanistas americanas, uma tendência de conciliação com certas noções psicanalíticas e o uso de conceitos de estágios de desenvolvimento. O mais importante centro acadêmico de pesquisas em psicologia fenomenológico-existencial nos Estados Unidos é o da Universidade de Duquesne, na Pensilvânia, cuja tradição se iniciou na década de 1960, com Adrian van Kaan. Atualmente, um dos mais conhecidos psicoterapeutas existenciais americanos é Irvin D. Yalom, nascido em 1931, professor da Universidade de Stanford e autor de alguns livros sobre psicoterapia cujo sucesso ultrapassou o círculo do público especializado com os títulos O executor do amor (1989) e Quando Nietzsche chorou (1991). De um modo geral, podemos airmar que a psicologia existencial norte-americana aproximou-se mais de uma perspectiva humanista e das 335 construções teóricas pautadas nas noções de personalidade e desenvolvimento, diicilmente conciliáveis com as abordagens daseinsanalíticas de Binswanger e Boss. Alguns importantes teóricos americanos da psicologia, embora não possam ser enquadrados na psicologia existencial, sofreram inluências de diferentes graus das idéias existencialistas. Entre os mais destacados, podemos citar Gordon Allport (1897-1967), Abraham Maslow (1908-1970) e Carl Rogers (1902-1987) (cf. capítulo 20). Embora seja compreensível a aproximação entre fenomenologia existencial e humanismo, como muitas vezes se pode veriicar pela fusão dos termos na expressão “psicologia existencial humanista”, é preciso analisar com maior cuidado tal associação. Trata-se de uma aproximação muito mais negativa, isto é, determinada mais por uma aliança contra um opositor comum do que por uma identidade profunda de perspectivas. O humanismo tem como principal matriz a ilosoia romântica que exalta a contemplação estética, o intuicionismo afetivo e a superação, por fusão empática, da dicotomia entre sujeito e objeto. Se, por um lado, a fenomenologia existencial também valoriza a intuição e critica a separação entre sujeito e objeto da tradição cientiicista, ela não entende a experiência direta dos fenômenos como algo que diga mais respeito ao âmbito afetivo do que ao racional, e muito menos abre mão do rigor e da dimensão crítica. Outra diferença, talvez ainda mais importante, é a concepção de sujeito. Se, para o humanismo, é central a idéia de uma subjetividade interior, individual, autoconsciente e sempre voltada em última instância para a auto-realização, a Daseinsanalyse postula como fundamento essencial a impossibilidade de qualquer forma de objetivação da existência humana como subjetividade encapsulada, seja como psique, eu, pessoa, personalidade, consciência etc. O tema é polêmico mesmo entre os principais pensadores da fenomenologia existencial. Em 1945, Sartre pronuncia sua famosa palestra intitulada O existencialismo é um humanismo, na qual defende a idéia de que, por tratar-se de uma ilosoia que confronta o homem com sua liberdade e responsabilidade, levando-o a uma ética da ação e do engajamento, o existencialismo seria, portanto, um humanismo no sentido mais próprio. Já Heidegger, em uma carta enviada ao seu discípulo francês Jean Beaufret, e publicada em 1947 com o título Sobre o humanismo, declara a incompatibilidade entre a compreensão do ser do homem como existência, pura abertura de sentido, e as perspectivas humanistas que airmam algum tipo de essência positiva do homem, tal como a razão, a emoção, a personalidade, a alma etc. 336 Outra inluência da fenomenologia existencial que merece ser citada é a do movimento denominado “antipsiquiatria”, dos ingleses David Cooper (1931-1986) e R. D. Laing (1927-1989). Sua principal interlocução se deu com as idéias de Sartre, que chegou a prefaciar a obra Razão e violência, por eles publicada em 1964. No Brasil, a fenomenologia existencial começa a ter presença mais sistemática a partir da década de 1970, mas já em 1963 foi apresentada por Eustáquio Portella Nunes a tese de livre-docência à Faculdade de Medicina da Universidade do Brasil, atualmente Universidade Federal do Rio de Janeiro, intitulada Fundamentos da psicoterapia, abordando a ilosoia de Heidegger e o pensamento psiquiátrico de Binswanger. Em 1973, foi fundada em São Paulo a Associação Brasileira de Daseinsanalyse, com a colaboração direta de Medard Boss. Atualmente, existem várias sociedades de formação e grupos acadêmicos de pesquisa, especialmente no eixo Sul-Sudeste. O existencialismo e, principalmente, a fenomenologia continuam sendo importantes linhas de força no campo das produções e pesquisas atuais em psicologia. Se é na área da psicoterapia que essa presença se mantém mais forte, assistimos recentemente a uma retomada das perspectivas fenomenológicas no campo dos estudos da cognição. Esse diálogo com a ilosoia tem cada vez mais a contribuir para que a psicologia alcance uma compreensão mais profunda de seus próprios fundamentos. O horizonte de subjetividadeobjetividade e o pensamento técnico-calculante, que circunscrevem os limites de sentido do mundo moderno e, portanto, do campo de dispersão teórica das psicologias, foram tematizados pela fenomenologia e pelo existencialismo com uma densidade crítica raramente alcançada. Somente a partir de um tal aprofundamento crítico sobre os paradigmas e as condições históricas de onde provém pode um pensamento abrir-se para novas possibilidades históricas. Indicações bibliográficas e estéticas Boss, Medard. (1976) Análise existencial – Daseinsanalyse. In: Revista da Associação Brasileira de Análise e Terapia Existencial – Daseinsanalyse, 2. 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Rio de Janeiro: Ediouro. 338 Capítulo 20 A psicologia humanista Rogerio Christiano Buys Não é possível”, vão gritar-vos: isto signiica que dois e dois são quatro! A natureza não vos pede licença, ela não tem nada a ver com os vossos desejos nem com o fato de que as suas leis vos agradem ou não. Deveis aceitá-la tal como ela é, conseqüentemente, também, todos os seus resultados. Um muro é realmente um muro… etc. Meu Deus, que tenho eu com as leis da natureza e com a aritmética, se, por algum motivo, não me agradem essas leis e o dois e dois são quatro? Está claro que não romperei este muro com a testa, se realmente não tiver forças para fazê-lo, mas não me conformarei com ele unicamente pelo fato de ter pela frente um muro de pedra e de terem sido insuicientes as minhas forças. Fiódor Dostoievski, Memórias do subsolo O termo “humanismo” surgiu no Renascimento entre o inal do século XIV e o início do século XV, e denominava tanto um aspecto literário, os escritores clássicos, quanto um viés ilosóico, preocupando-se com o valor do homem e a tentativa de compreendê-lo em seu mundo. Nesse segundo aspecto se destacaram Erasmo (1467-1536) e Pico Della Mirandolla (14631495), de acordo com Ferrater Mora (1982). Apesar do caráter recente do termo, podemos encontrar uma história mais longa para o humanismo, associando-o a todo movimento que procure pensar o homem a partir do que mais o caracteriza. Sartre, por exemplo, deine o “humanismo” como O s qualquer doutrina que pense o homem tomando como critério SOFISTAS aquilo que o diferencia de qualquer outro ser, ou ainda, que surgiram com a entenda o homem na sua existência própria. Neste aspecto, o pólis, a cidade grega, século V a.C., com movimento humanista teria começado na Grécia do século V no a necessidade de educar a.C., com os SOFISTAS, principalmente, com o primeiro deles, o jovem grego para a Protágoras de Abdera, que apresentava um pensamento que democracia então nascente. ainda hoje ressoa entre nós e que se faz necessário ressaltar: 339 “O homem é a medida de todas as coisas; das coisas que são enquanto são, e das coisas que não são enquanto não são”. O humanismo protagoriano situa e valoriza o ser humano em seu (humano) mundo. “As coisas” das quais o homem é a medida são apenas as coisas humanas e não o universo, como airmou Platão (Dherbey, 1986). A importância dos soistas e do movimento por eles iniciado pode ser avaliada pelo lugar que a crítica a eles teve no pensamento e nos trabalhos de Sócrates, Platão e Aristóteles. Platão, em vários dos seus Diálogos, critica os soistas por ensinarem um falso conhecimento: o conhecimento apenas do que muda (a sociedade, a cidade). O conhecimento verdadeiro seria eterno e imutável. Para Aristóteles, os soistas não falavam da realidade, de maneira que o que diziam não poderia ser demonstrado, portanto estavam distantes de qualquer conhecimento verdadeiro. Entretanto, a revisão do trabalho dos soistas levou um autor da importância de Werner Jaeger (1986: 237) a airmar: “Do ponto de vista histórico a sofística é um fenômeno tão importante quanto Sócrates ou Platão. Além disso, não é possível concebê-los sem ela”. Mais adiante, no mesmo texto, Jaeger (1986: 243) sustenta que a “posição central que Protágoras atribui à educação do homem caracteriza o propósito espiritual da sua educação como “humanismo” no sentido mais explícito. Esta consiste na ordenação da educação humana por sobre todo o reino da técnica, no sentido moderno da palavra, isto é, da civilização”. Durante toda a Idade Média, manifesta-se um humanismo de natureza cristã, para o qual o valor do homem é dado na semelhança com Deus. No Renascimento, “o REALISMO ARISTOTÉLICO” até então prevalecente foi profunda e deinitivamente abalado. O conhecimento não REALISMO ARISTOTÉLICO : era imposto ao homem pelo cosmo, o conhecimento Aristóteles acreditava que o cosmo (palavra grega que signiica era humano, criação do homem. O humanismo do “organização”) em sua “perfeição” Renascimento e outras circunstâncias possibilitaram as e “regularidade” poderia ser conhecido diretamente e seria o grandes transformações do pensamento que o homem modelo para o comportamento (a tinha a respeito do universo e de sua posição nele; como ética) do homem e para a sociedade exemplo, podem ser citados os trabalhos de Nicolau humana. Copérnico (1473-1543) e Galileu Galilei (1564-1642). Mais modernamente e de um ponto de vista individualista, René Descartes (1596-1650), JEAN-JACQUES ROUSSEAU (1712-1778) e Imannuel Kant (1724-1804), nos séculos XVII e XVIII, cada um a seu modo, deram contribuição fundamental à compreensão da especiicidade do homem, sem deixar de incluir uma discussão sobre o seu valor. Descartes havia pensado o conhecimento como ativo; o conhecimento não era dado ao homem por um 340 JEAN-JACQUES ROSSEAU nasceu em Genebra, na Suíça, e aos 16 anos foi para a França. Em 1761 publica Julia ou A nova Heloisa; em 1762 publica O contrato social e Emilio ou Da educação. Foi perseguido por suas idéias liberais. Kant airma que, em Rousseau, o leitor “acha-se diante de um espírito de rara penetração, de um nobre ímpeto e genialidade, e de uma alma plena de sensibilidade num grau tal que talvez nunca algum escritor em qualquer tempo e qualquer país tenha possuído dons semelhantes” (Kant, apud Huisman, 2001: 839). Em O contrato social, um de seus livros mais importantes, Rousseau faz a distinção entre “vontade geral” e “vontade particular”. Aquela é o verdadeiro amor a si e aos outros, o que a vontade é para o amor-próprio. Ela, “a vontade geral”, é para o corpo social o que a consciência é para o indivíduo (Huisman, 2001). A essência do “Contrato Social” na visão de Ferrater Mora (1982) é que “cada um de nós põe em comum sua pessoa e todo seu poder sob a direção suprema da vontade geral […] [assim] consideramos cada membro parte indivisível do todo” (Ferrater Mora, 1982). universo predeterminado, inalista; o homem conhecia, vale dizer, submetia o universo ao seu conhecimento. O homem teria o poder de conhecer tudo, inclusive sua própria consciência. No século XVIII, vemos a colocação desse aspecto ativo e autônomo no campo ético, tendo em Rousseau um de seus principais personagens. Para Kant, ele estaria para a moral como Newton estaria para a física. Na esteira do pensamento de Rousseau, Kant demonstra que o homem é um ser autônomo, apesar da limitação fundamental do seu conhecimento, que chamou de “initude radical”, pois não conhecemos a realidade em si, mas apenas a representação que dela fazemos, o fenômeno. AUTONOMIA, por sua vez, significa que o homem é capaz de criar suas próprias leis. O homem não seria determinado nem pela natureza nem pela história. É neste sentido que Ferry e Renaut (1992) AUTONOMIA (auto – próprio; nomos – lei) refere-se à deinem o humanismo contemporâneo condição do homem como constituidor de suas próprias em oposição à heteronomia, na qual este é determinado como a “concepção (e a valorização) leis por instâncias outras (como natureza ou história). da humanidade em sua capacidade de autonomia – eu quero dizer que o que constitui a modernidade é a maneira como o homem vai se pensar como fonte de suas representações e de seus atos, como seu fundamento (sujeito) ou ainda como seu autor”. Esta concepção determinou uma série de movimentos nos séculos XIX e XX, dentre os quais o mais importante foi o Declaração dos Direitos Humanos, que veremos a seguir. A Declaração Universal dos Direitos do Homem A psicologia humanista surgiu no bojo de um movimento mundial mais amplo que consistiu, poder-se-ia dizer, na valorização do ser humano – de cada ser humano, não somente de alguns. O ápice desse movimento foi a Declaração Universal dos Direitos do Homem, promulgada pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1948 e que representou a aceitação universal 341 do HUMANISMO JURÍDICO e a conseqüente recusa do DIREITO NATURAL como fundamento das leis que regeriam as relações entre os homens em todo o mundo. Duas conseqüências muito HUMANISMO JURÍDICO: trata-se do direito que importantes daí decorrem: primeira, toma o homem como é pensado no humanismo: como ser autônomo e consciente de si – o que, do ponto de direitos iguais para todos pressupõe vista jurídico, o responsabiliza plenamente por seus atos. igualdade entre todos (a desigualdade, DIREITO NATURAL: trata-se do direito que toma o homem inversamente, permite e autoriza a como ser natural; anterior e supostamente não integrado diferenciação de direitos). Segunda, e à vida em sociedade. pressuposta na primeira: não há, entre as características especiicamente humanas, nenhuma diferença essencial, o que signiica que o ser humano não está determinado por nenhuma condição – seja cultural, geográica, histórica ou biológica. A Declaração Universal dos Direitos do Homem se fundamenta num princípio segundo o qual o ser humano é capaz de ultrapassar qualquer determinação de qualquer natureza e que, também por isso, é totalmente responsável por seus atos. Este pensamento, todavia, deve ser posto também de forma positiva, não só negando qualquer inluência determinativa no comportamento humano, mas airmando sua autonomia, sua condição de criar suas próprias leis. Daí a universalidade dos direitos humanos; eles não seriam condicionados a nenhuma natureza biológica ou histórica. O movimento da psicologia humanista A psicologia humanista foi gestada durante a década de 1930 nos EUA e teve seus primeiros trabalhos publicados a partir dos anos 1940. Entetanto, foi na década seguinte que esse movimento obteve seu reconhecimento. Os autores que podem ser apontados como iniciadores do movimento humanista em psicologia são ABRAHAM MASLOW, GARDNER MURPHY, GORDON W. ALLPORT e CARL ROGERS. Estes foram os autores que começaram um movimento que veio a ser conhecido como “terceira força em psicologia”, pois se postulava como uma alternativa a dois outros movimentos muito fortes nos Estados Unidos da época, o behaviorismo de John Watson e a psicanálise de Sigmund Freud. ABRAHAM MASLOW (1908-1970) pretendia a re-humanização de toda a ciência. Foi professor do Brooklin College e depois na Universidade Brandeis de Waltham, Massachusetts. Suas principais obras publicadas são A psicologia da ciência (1966), A psicologia do ser (1962) e Motivação e personalidade (1954). 342 GARDER MURPHY (1895-1978) destacou-se como psicólogo social e da personalidade. Estudou em Yale e Harvard. Graduou-se pela Universidade de Columbia, onde trabalhou como professor. Foi professor no City College de Nova Iorque. Dirigiu a Fundação Menninger, em Topeca, no Kansas. Foi professor também na Universidade George Washington, em Washington. Suas principais obras publicadas são A personalidade. Enfoque bio-social (1947), Introdução histórica à psicologia moderna (1949) e Potencialidades humanas (1958). GORDON W. ALLPORT (1887-1967) formou-se em Harvard, obteve o grau de doutor em 1922 e foi professor na mesma universidade a partir de 1936. Propôs um modelo E-O-R em lugar do E-R tradicional. Chamou atenção para a importância do organismo ativo e não só reativo. O conceito de “autonomia funcional dos motivos” foi central na obra deste autor: considerando o organismo ativo, os motivos são fundamentais, orientam para o futuro e independem de objetivos predeterminados. Allport acentua a unicidade de cada pessoa, a unidade de atos e pensamentos. CARL ROGERS (1902-1987) estudou Agricultura e depois História na Universidade do Winsconsin. Posteriormente estudou no Union Theological Cenary, onde se interessou por psicologia. Passou a estudar no Teachers’ Collegem na Universidade de Columbia, onde se formou em Psicologia, em 1931. Trabalhou no Departamento de Estudos Infantis, da Associação para Proteção à Infância em Rochester, em Nova Iorque. Foi professor na Universidade estatal de Ohio, na Universidade de Chicago e posteriormente na Universidade de Wisconsin. Trabalhou no Centro de Estudos da Pessoa, em La Jolla, San Diego, Califórnia. Suas principais obras publicadas no Brasil são A psicoterapia centrada no cliente (1951), Tornar-se pessoa (1961) e Grupos de encontro (1978). O que é comum aos autores da psicologia humanista é a busca de novos modelos em relação ao ser humano pelo desacordo com aqueles então vigentes e com o determinismo a eles intrínseco. Neste sentido, Maslow critica o determinismo em psicologia e airma que a pessoa sadia é capaz de transcender a cultura e as condições da sociedade e renovar valores. Murphy fala de um “determinismo frouxo” em oposição a um “determinismo estrito”, que para ele seria fatalismo. Entende que “quanto mais plenamente desenvolvemos a compreensão de nossa situação como pessoa, mais provável é atingirmos um tipo de liberdade que signiica alguma coisa, que seja uma consideração inteligente e ponderada de opções e uma seleção de opções que seja realista” (Murphy, citado por Frick, 1975: 77). Allport, por seu lado, propôs o conceito de “autonomia funcional dos motivos”, segundo o qual o homem não é um ser reativo, mas ativo. Assim, são os motivos atuais, e entendidos estes do ponto de vista psicológico, que determinam o comportamento humano, e não qualquer fator passado. Rogers, por sua vez, concordou com os autores citados acima e airmou a liberdade essencial do indivíduo em face de qualquer forma de determinação, seja social, biológica ou histórica. Para esse autor, a liberdade e a possibilidade de transcendência de condições desfavoráveis de qualquer natureza são dadas por relações pessoais favoráveis. Porém, tais relações são somente facilitadoras e não determinantes. Um conceito comum e fundamental aos autores citados e que sustenta a condição de independência com relação às determinações é o de autorealização, que pressupõe um potencial a ser realizado e uma tendência à sua realização. Rogers denominou “tendência atualizante” esse postulado em sua teoria. Pode-se questionar, todavia, se tal conceito não encerra em si o que ele 343 procura criticar: não será, ele mesmo, um determinante biológico? A resposta é parcialmente airmativa: ele é biológico no que diz respeito ao desenvolvimento físico do organismo, o que possibilita o desenvolvimento psicológico, mas não o determina. O desenvolvimento nesse nível é possibilitado pelas relações interpessoais vividas. Consoante seus princípios, Rogers propõe uma forma de psicoterapia que, atualmente, pela sua amplitude, é chamada abordagem centrada na pessoa, na qual dá relevo à autonomia da pessoa, e não ao papel do psicoterapeuta. É neste ponto que essa abordagem se distancia da concepção de transferência psicanalítica (cf. capítulos 22 a 24). Além da psicoterapia, ela abrange também o ensino, o “ensino centrado no aluno”; o trabalho com organizações, usando o “grupo de encontro”; e o trabalho com comunidades, usando o que icou convencionado chamar de “grupão” – grupos de encontro com mais de cem ou duzentas pessoas, como já foram realizados aqui no Brasil. A psicologia humanista no Brasil No Brasil, a psicologia humanista foi introduzida predominantemente pelas obras de Carl Rogers, que começaram a ser traduzidas nos anos 1970. Um pouco antes dessa data, a psicoterapia proposta por esse autor começou a ser divulgada na Universidade de São Paulo, por Rachel L. Rosenberg, trabalho que ainda hoje continua. A Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), na mesma época, já tinha a disciplina Técnica de Aconselhamento Psicológico, baseada na psicoterapia centrada no cliente, ministrada pelo Padre Antonius Benko. No Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 1974 foi criada a disciplina Psicoterapia Centrada na Pessoa e, pouco tempo depois, a disciplina Psicologia Humanista Existencial, com conteúdo referente ao pensamento humanista. Também na Universidade Federal de Minas Gerais, em Belo Horizonte, a partir de 1968, surgiu um interesse pela área, principalmente com a vinda de Max Pagés, ex-aluno e colaborador de Rogers, que orientou um longo e produtivo seminário. No Rio de Janeiro, em 1975, foi fundada a primeira instituição do estado, o Centro de Psicologia da Pessoa (CPP), com a inalidade de divulgar essa abordagem, além de objetivar a formação de psicoterapeutas. Essa instituição está ativa até hoje. Não pode deixar de ser mencionada a vinda ao Brasil de Carl Rogers e sua equipe em 1977, que facilitou um workshop de três semanas em Arcozelo, no Estado do Rio de Janeiro. Os trabalhos de Rachel Rosenberg na USP, do IP-UFRJ, do Departamento de Psicologia da UFMG e do Centro de Psicologia da Pessoa têm sido irradiadores da psicologia humanista no Brasil, principalmente através da obra de Carl Rogers. Indicações estéticas e bibliográficas O humanismo é um movimento muito amplo, que procura apreender o homem naquilo que mais o distingue de todos os outros seres vivos. O humanismo manifesta-se da mesma forma na literatura. E, em certas obras, de maneira direta, dura e magistral, como ocorre em Memórias do subsolo, de Fiodor Dostoievski (2000 [1863]). No que se segue, pretendo distinguir o espírito profundamente humano do estereótipo cândido do humanismo, segundo uma crítica vulgar. Para tal, recorrerei à genialidade de Dostoiévski, na obra citada. Tratarei da primeira parte do livro, “O subsolo”, na qual “o próprio personagem se apresenta, expõe seu ponto de vista, e como que deseja esclarecer as razões pelas quais apareceu e devia aparecer no nosso meio” (p. 13). A apresentação do personagem é, em todo o texto, pode-se dizer, a recusa ostensiva de qualquer forma de conhecimento prévio com o qual se pudesse explicar e caracterizar o ser humano – fosse de que maneira fosse. Ao longo do texto, o personagem alinha muitas formas pelas quais se poderia pensar e deinir o homem, tomando-se a si próprio como exemplo. Aqui já se constata a posição do autor com relação à universalidade do ser humano perante cada indivíduo. No início, o personagem descarta a sua própria maldade, ainda que tenha começado a sua apresentação como sendo um homem mau: “[…] mesmo no instante do meu mais intenso rancor, eu tinha a consciência, e de modo vergonhoso, de que não era uma pessoa má, nem mesmo enraivecida […] na realidade, nunca pude tornar-me mau” (p. 10). Mais adiante, o personagem relata: “[…] de que o homem inteligente não pode, a sério, tornar-se algo, e de que somente os imbecis o conseguem” (p. 17). “Tornar-se algo”, para o personagem, é, de acordo com os princípios que vimos tratando, tornar-se determinado por este “algo” que se passa a ser. “Tornar-se algo” é abrir mão da autonomia e ser de acordo com um modelo – o que o nosso personagem não consegue. Isso seria abrir mão da própria indeterminação universal do homem. Em outro trecho, o personagem airma que não conseguiu sequer tornar-se um inseto e isso porque “uma consciência muito perspicaz é uma doença, uma doença autêntica, completa” (p. 18). A “doença” da qual se queixa o personagem é uma condição de autopercepção que o impede de ser “algo”, mesmo um inseto. Com uma identidade qualquer, mesmo que negativa, nosso personagem se alegraria: Oh! Se eu não izesse nada unicamente por preguiça: Meu Deus, como eu me respeitaria, então […]. Haveria, pelo menos, uma propriedade como que positiva e da qual eu estaria certo. Pergunta: Quem é? Resposta: Um preguiçoso (p. 31). A angústia do personagem de Dostoievski é não ser caracterizado, de uma vez por todas, de maneira que pudesse ser, mesmo por si próprio, algo deinido. A angústia vivida por ele já foi descrita de maneira sucinta por Sartre em O ser e o nada (2005) – O homem não é nada. É justamente esse “não ser nada” que é expresso por Dostoievski, na pessoa do seu angustiado personagem. A ironia não está ausente na forma pela qual os valores mais preciosos (enquanto características do homem) são ridicularizados. As idéias segundo as quais uma pessoa sempre escolheria o melhor, que a civilização “adoça” as pessoas, que o homem sempre procura a verdade – são refutadas por meio de sarcasmos cruéis. O parágrafo VII termina com a pergunta: E de onde concluíram todos estes sabichões que o homem precisa de não sei que vontade normal, virtuosa? Como foi que imaginaram que ele, obrigatoriamente, precisa de uma vontade sensata, vantajosa? E o personagem mesmo responde: O homem precisa unicamente de uma vontade independente, custe o que custar essa independência, e leve onde levar. Bem, o diabo sabe o que é esta vontade… (p. 39). Também a ciência não escapa à ferina crítica do nosso personagem na medida em que esta se propõe a explicar o ser humano: Se, por exemplo, efetuados os cálculos, me demonstrarem que, eu iz uma iga a determinada pessoa, foi porque deveria fazer irremissivelmente de tal ou qual modo então o que sobrará livre em mim? Sobretudo se sou um sábio e terminei um curso de ciências em alguma parte? (p. 40-41, grifo do autor). Mais adiante o pensamento é complementado: E, em geral, devemos repetir a nós mesmos, sem descanso, que, impreterivelmente, em tal momento, e em tais circunstâncias, a natureza não nos consulta; que é preciso aceitá-la tal como ela é; e não como nós a imaginamos, e se realmente ansiamos por uma tabela e um calendário, bem… e mesmo por uma retorta: senão ela vai impôr-se, prescindindo de nós (p. 42). Para não tornar fastidiosos estes comentários, deixo a conclusão com o personagem: Desejará (o homem) conservar justamente os seus sonhos fantásticos, a sua mais vulgar estupidez, só para conirmar a si mesmo (como se isso fosse absolutamente indispensável) que os homens são sempre homens, e não teclas de piano, que as próprias leis da natureza ameaçam tocar, de tal modo que atinjam um ponto em que não se possa desejar nada fora do calendário. Mas ainda, mesmo que ele realmente mostrasse ser uma tecla de piano, mesmo que isso fosse demonstrado por meio das ciências naturais e da matemática, ainda assim ele não se tornaria razoável e cometeria intencionalmente alguma inconveniência, apenas por ingratidão e justamente para insistir na sua posição (p. 44). Frick, W. B. (1975) Psicologia humanística. Rio de Janeiro: Zahar Editores. Renaut, A. (s.d.) A era do indivíduo. Contributo para uma história da subjetividade. Lisboa: Instituto Piaget. Renaut, A. (1998) O indivíduo. Relexão acerca da ilosoia do sujeito. Rio de Janeiro: Difel. Referências bibliográficas: Allport, G. (1954) The Nature of prejudice. Cambridge, Mass.: Addison-Wesley. (1962) Desenvolvimento da personalidade. São Paulo: Herder/Edusp. (1955) Becoming; Basic Considerations for a Psychology of Personality. New Haven: Yale University Press. (1966 [1961]) Personlidade. São Paulo: Herder/Edusp. Derbhey, G. R. (1986) Os soistas. Lisboa: Edições 70. DostoiEvski, F. 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A esse respeito, em Cuba, a geração de psicólogos a que pertenço, mesmo que formada nas tendências tradicionais da psicologia, se adentrou no conhecimento da psicologia soviética. Da mesma forma, um grupo importante de psicólogos cubanos terminou os estudos de doutorado naquele país. Apesar das tensões existentes, muitos psicólogos advindos de outros países da América Latina também izeram seus doutorados em Moscou, mas à diferença dos cubanos, icaram inseridos em contextos institucionalizados quando retornaram a seus países, que não favoreceram o desenvolvimento dessas posições teóricas em suas instituições. Uma exceção neste sentido foi a Argentina, onde a cultura marxista, a força do Partido Comunista e a própria inluência do marxismo no campo da psicanálise não só propiciaram que muitos psicólogos argentinos izessem seus doutorados em Moscou, mas também foram fatores determinantes na publicação dos autores soviéticos em espanhol. O fato de que muitos dos psicólogos cubanos tenham se formado dentro de tendências teóricas diferentes da própria psicologia soviética nos permitiu romper com uma visão monolítica dessa psicologia, assim como superar alguns mitos gerados por sua apropriação acrítica e idealizada. 349 O objetivo principal deste texto é o de fornecer ao leitor minha visão da psicologia SOVIÉTICA que tem servido de base para o desenvolvimento de idéias e posições no campo da psicologia. A minha geração A URSS (União das Repúblicas de psicólogos cubanos teve o privilégio de conhecer as Socialistas Soviéticas) surgiu e teorias mais importantes da psicologia ocidental antes de desapareceu ao longo de século XX. Apesar de a união ter sido desfeita no se aprofundar nos estudos da psicologia soviética, o que inal do século XX, a denominação foi importante para que não abandonássemos o estudo soviético faz sentido aqui porque envolve o período analisado. de outras posições no ensino da psicologia. A psicologia soviética usa o MARXISMO e suas variantes como fundamento ilosóico. Este fato esteve relacionado intrinsecamente com as formas que tomava o MARXISMO corresponde marxismo na direção política soviética. O principalmente a uma prática MARXISMO MECANICISTA – uma mera política e a uma teoria social calcadas nos trabalhos de Karl Marx (1818-1883) levadas aplicação de categorias marxistas a a cabo em grande parte com Friedrich Engels (1820-1895). Dentro de suas variadas contribuições outros campos do saber – orientado teóricas, serão de especial interesse neste trabalho sua à “materialização” da psique foi uma concepção materialista da história – denominada por tendência recorrente na psicologia Engels materialismo histórico – e a dialética. O MARXISMO MECANICISTA é aquele que atribui causas soviética. Na década de 1920 a cultura objetivas lineares aos fenômenos humanos, como por dominante das ciências naturais e a exemplo o determinismo economicista ou sociologista. forte tradição da relexologia, apoiada Termina mantendo uma visão de causa e efeito que nega a complexidade do caráter contraditório e nos trabalhos de Bechterev e Pavlov (cf. processual dos sistemas, como foi colocado capítulo 10), tiveram inluência marcante por Marx, embora a deinição de história em Marx tenha tido um caráter na psicologia, mas não como ideologia, o que teleológico. veio a acontecer na década de 1940 quando a relexologia se impõe como posição “oicial” a partir da política. Isto se põe em evidência no fato de que no Primeiro Congresso Nacional de PEDOLOGIA, celebrado em Moscou no inal de 1927 e princípio de 1928, se reconhece que os métodos PEDOLOGIA, termo atualmente em desuso, significa isiológicos não podem abarcar todo o estudo do comportamento e do desenvolvimento da comportamento e, em particular, o criança. O termo diz respeito a uma área da psicologia, não da pedagogia, e foi amplamente utilizado nos EUA, na Europa conteúdo da consciência, nem os e União Soviética na primeira metade do século XX. aspetos socioideológicos do homem, ao que se reconhece um caráter social (Schuare, 1990). 350 As peripécias da dialética em seu percurso pela compreensão materialista da psicologia soviética Logo após do triunfo da REVOLUÇÃO DE O UTUBRO, a psicologia soviética foi fortemente inluenciada pelo marxismo e houve a tentativa de desenvolver uma psicologia que expressasse aqueles princípios gerais sobre os quais se começava a construir uma nova sociedade. Esse não foi um processo simples, mas o resultado do amadurecimento de várias gerações que de forma progressiva foi se aproximando à compreensão da signiicação do marxismo para a psicologia. O caminho do desenvolvimento de uma psicologia apoiada nos princípios do marxismo enfatizou com mais freqüência o MATERIALISMO que a DIALÉTICA, o que implicou, em vários momentos da história da psicologia soviética, a reiicação de categorias concretas como a máxima expressão do caráter marxista da psicologia. Isto aconteceu primeiramente com a relexologia, em que o caráter marxista era defendido pela primazia dos processos isiológicos do condicionamento, considerados como a causa dos processos psíquicos mais complexos. No entanto, como mencionamos antes, esse momento de domínio de uma representação relexológica, foi o resultado de uma cultura dominante e não de uma imposição ideológica, pois, inclusive, não se apoiava na ilosoia marxista. Konstantin N. Kornilov (1879-1957) foi o primeiro psicólogo soviético a enfatizar a importância do REFLEXO DO REAL, e que reconheceu que este não era um relexo passivo, senão ativo. No entanto, Kornilov manteve uma posição eclética de que a psicologia dialética deveria ser a síntese da PSICOLOGIA IDEALISTA e da PSICOLOGIA OBJETIVA e também defendeu uma visão dogmática ao tentar “coisiicar” as leis da dialética em fenômenos psicológicos concretos. A REVOLUÇÃO DE OUTUBRO ou Revolução Bolchevique indica a primeira revolução comunista ocorrida no século XX e inspirada nos trabalhos de Karl Marx que acabou por constituir a URSS. Seu articulador mais conhecido foi V. I. Lênin. “MATERIALISMO é a doutrina ilosóica que airma a existência do mundo, do real, como primário em relação a qualquer tipo de produção humana. A DIALÉTICA é a doutrina ilosóica orientada à compreensão sistêmica e contraditória de sistemas, que podem ser ideais (Hegel) ou sistemas do real (Marx). A dialética converteu-se num método para a construção do conhecimento enfatizando o caráter procesual e em desenvolvimento dos sistemas estudados. A dialética, desde sua formulação a partir de Hegel, opera com uma apreensão do tempo, em que este sempre se dá no jogo da apresentação de uma tese, seguida da proposição de seu oposto, a antítese, e concluída numa síntese, que servirá como tese para um novo processo. O PRINCÍPIO DO REFLEXO na compreensão da psique consiste em concebê-la como um relexo da realidade. A noção de relexo foi calcada no uso que Lênin fez do termo em Materialismo e empiriocriticismo e, a partir daí, foi utilizado como sinônimo do caráter materialista da psique. Rubinstein, com o objetivo de ir além dessa visão mecanicista da psique, preferiu usar em seus trabalhos o termo “refração” que, ao menos, enfatizava uma mediação da inluência externa. A PSICOLOGIA IDEALISTA reconhece uma essência inerente ao homem responsável pelas caraterísticas de sua vida psíquica, enquanto a psicologia objetiva nega o estatuto ontológico da psique. 351 Do mesmo modo, tentou aplicar de forma mecânica as categorias de Marx à psicologia, o que, por exemplo, se expressou no seu intento de reduzir o complexo problema da essência social do homem à questão da psicologia de classes. Mesmo com estas limitações, Kornilov foi o primeiro a tentar uma aplicação do marxismo à psicologia, procurando a independência do psíquico relexológico. Ao redor de Kornilov se LEV S. VIGOTSKY (1896-1934) foi o psicólogo soviético agrupou um conjunto muito valioso fundador do enfoque histórico-cultural. Estudou artes, medicina e lingüística antes de se dedicar à psicologia. Seu de jovens cientistas entre os quais se primeiro livro foi Psicologia da arte, onde já aparece uma parte encontravam V IGOTSKY , Alexander signiicativa das idéias que iria desenvolver posteriormente e que o tornaram um psicólogo destacado. Luria (1902-1977) e Alexis Leontiev. As pretensões de desenvolver uma aproximação marxista à psicologia oscilavam, na época, entre o reducionismo relexológico e o sociologizante. Como expressa Ksenii Aleksandrdvna Abuljanova (1973: 49), discípula de Serge Rubinstein e uma das mais importantes psicólogas soviéticas contemporâneas, Apesar das encarniçadas polêmicas dos que aderem à explicação sociológica do psíquico e dos partidários da explicação isiológica ou cibernética, a posição de ambos os grupos é idêntica na ordem metodológica. O afã de “coisiicar”, de materializar o psíquico ou assignar-lhe o atributo de materialidade, através de sua identiicação com algo “diferente”, revela o caráter antidialético do modo do conhecimento, a incapacidade de aplicar a dialética ao descobrimento da especiicidade dos próprios fenômenos psíquicos. A impossibilidade de esclarecer a relação do psíquico com o “diferente” conduz a um recurso elementar do pensamento: o de substituir o psíquico por algo diferente. Foi precisamente a diiculdade para a compreensão dialética de uma realidade diferente, própria ao psíquico, um dos aspectos que caracterizou o pensamento mecanicista que dominou, em diferentes momentos, a evolução da psicologia soviética, que tentou por todas as vias explicar a psique pela ação causal de processos “objetivos”, impedindo assim que fosse vista como um sistema complexo, irredutível aos processos que participaram de sua determinação. Um aspecto central da dialética é compreender o desenvolvimento de um sistema por meio de sua organização interna e das contradições dessa organização, e não pelas forças externas que atuam de forma imediata sobre o sistema. Mas o pensamento materialista mecanicista, como coloca a autora citada, não teve capacidade para representar a natureza 352 diferenciada da psique em relação com os outros sistemas envolvidos em seu desenvolvimento. Essa tendência, que implicou de forma direta ou A TEORIA DA ATIVIDADE foi desenvolvida por Alexis N. Leontiev (1903-1979) que deiniu a psique como a internalização da atividade indireta o tema da subjetividade com objetos. Sob essa teoria, diferentes termos psicológicos como na psicologia soviética, foi de motivo, sentido pessoal e outros, foram deinidos em termos de atos e atividades. Essa teoria hegemonizou a psicologia soviética desde os novo afastada com o predomínio anos 1960 até inais dos anos 1970. Um momento muito importante que, posteriormente, teve na superação dos reducionismos gerados por essa teoria foi o simpósio sobre a categoria atividade na psicologia soviética, celebrado em a TEORIA DA ATIVIDADE na Moscou em 1977. psicologia soviética, a qual, na minha interpretação, representou um novo momento no intuito de objetivar o psíquico. Só que, dessa vez, essa objetivação foi tentada através do objeto, no intuito de explicar a psique por meio das operações externas das pessoas com objetos, o que inaugurou um reducionismo “objetal” na compreensão da psique. O objetivismo sempre se opôs à visão dialética da psique, pois impediu a compreensão do caráter tenso e contraditório que se produz na relação entre as dimensões objetivas e subjetivas da realidade cultural e que toma diferentes formas no espaço da sociedade. O objetivo e o subjetivo não se apresentam nesta perspectiva como dimensões excludentes entre si, pelo contrário, se pressupõem de forma recíproca. Não existe uma dimensão objetiva dos processos humanos que possa se separar do subjetivo em seu impacto sobre o homem, pois a subjetividade é um atributo deinidor da objetividade humana. O objetivo e o subjetivo, na forma em que empregamos estes termos, não representam o signiicado que freqüentemente eles têm no senso comum, em que o objetivo é reservado para aquilo que é real, enquanto o subjetivo é considerado como uma distorção. O objetivo e o subjetivo diferenciam-se no nível ontológico como qualidades diferentes dos fenômenos da realidade: o objetivo caracteriza os processos da realidade que não implicam uma dimensão simbólica nem de sentido em seu funcionamento e suas SERGE L. RUBINSTEIN relações. Foram Vigotsky e RUBINSTEIN os primeiros (1889-1960) foi, junto com que compreenderam isso e que tentaram especiicar Vigotsky, uma das iguras centrais no desenvolvimento da psicologia o caráter qualitativo do psíquico. soviética. Entre 1930 e 1942, esteve no Um grande mérito da dialética é precisamente centro do desenvolvimento da psicologia a capacidade de integração do que é diferente na na cidade de Leningrado (antiga São Petersburgo, que hoje recuperou seu compreensão de níveis qualitativos diferenciados da nome original). O grupo de Leninrealidade, o que permitiu, tanto a Vigotsky quanto a grado sob sua direção foi um dos grupos que mais marcaram a Rubinstein, a superação de muitas das dicotomias que psicologia soviética. 353 tinham caracterizado o desenvolvimento do pensamento psicológico. Ambos foram pioneiros na superação da dicotomia do social e do individual, ao partirem do famoso princípio explicitado por Marx em LUDWIG FEUERBACH é o pensador criticado por Marx em suas Teses suas teses sobre FEUERBACH: de que a essência humana sobre Feuerbach, por causa de seu é o conjunto de todas as relações sociais do homem. materialismo primitivo e carente de Este princípio foi assumido por ambos os autores. caráter histórico-dialético. No entanto, eles não icaram apenas ancorados no princípio, mas o usaram para deinir um novo conceito de mente, que foi evoluindo, nem sempre pelos mesmos caminhos, mas com muitos aspectos em comum, na obra de ambos. Tanto Rubinstein quanto Vigotsky se relacionaram com o marxismo de uma forma criativa, procurando nele princípios gerais suscetíveis de desenvolvimento na construção da psicologia e não dogmas a serem aplicados de forma rígida. O tipo de relação desses autores com a ilosoia ica muito claro na seguinte airmação de Vigotsky (1979: 491): A aplicação direta da teoria do materialismo dialético aos problemas das ciências naturais e em particular ao grupo das ciências biológicas ou a psicologia é impossível, como é impossível essa aplicação direta à historia e à sociologia. Entre nós há aqueles que pensam que o problema da psicologia e do marxismo se reduz a criar uma psicologia que responda ao marxismo; mas na realidade esse problema é muito mais complexo. No mesmo trabalho, Vigotsky (1979: 421) expressa que não se pode buscar nos mestres do marxismo a solução do problema, nem sequer uma hipótese de trabalho (porque elas se criam no campo de cada ciência), senão o método de sua construção. Eu não quero conhecer de graça, lembrando um par de citações, o que é a psique; quero aprender em todo o método de Marx como construir a ciência, como enfocar a investigação da psique. A dialética não constitui um conjunto de regras universais a ser aplicado de forma indiferenciada ao que estudamos, pelo contrário, a dialética explicita um conjunto de princípios epistemológicos gerais que vai orientar as construções metodológicas particulares de cada ciência. É no nível LUCIEN SÉVE (1926- ) formouda pesquisa particular de cada disciplina, que se irá construindo se em ilosoia em 1949. teoricamente um campo de conhecimento, o qual irá gerando Lecionou em diversos liceus, um conjunto de necessidades epistemológicas e metodológicas. como o Saint-Charles de Marselha. Além de diversos Neste mesmo sentido, o ilósofo marxista LUCIEN SÉVE (1972: artigos, publicou A diferenca, A ilosoia francesa contemporânea 49) escreve: e Marxismo e teoria da personalidade. 354 Em outras palavras: se o nascimento da ilosoia marxista põe im à quimera de um conhecimento “ilosóico” dos objetos cientíicos, sinaliza, ao mesmo tempo, a aparição de um conhecimento cientíico dos objetos ilosóicos: esta é a outra cara da ilosoia materialista dialética. E isto coloca num plano superior a especiicidade da ilosoia e sua responsabilidade em relação às ciências particulares – por exemplo, a psicologia – desta vez, segundo vemos, já não no sentido inaceitável de um intento encaminhado a deduzir ou construir a priori seu conteúdo concreto, a partir dos princípios de uma concepção geral do mundo, mas num sentido muito diferente, de uma ajuda aportada à ciência para a solução dos problemas epistemológicos que lhe apareçam. Séve, neste sentido, defende que o marxismo, assim como o racionalismo crítico de Gaston Bachelard, representa a relação da ilosoia com as ciências particulares. O interessante é que Vigotsky reconhecia, já na sua época, este tipo de relacionamento entre o marxismo e a psicologia. Quando lemos Vigotsky, vemos a construção de um campo de conhecimento que tem, sem dúvida, na sua base uma aplicação criativa da dialética marxista. Mas a dialética aparece em sua obra não como um conjunto de princípios que devem ser seguidos a priori, mas como princípios que tomam forma no processo complexo de construção dos problemas que o pesquisador vai elaborando ao longo da pesquisa. A dialética em Vigotsky e Rubinstein A dialética na obra de Vigotsky e Rubinstein aparece em três sentidos fundamentais. Primeiro, como deinição ontológica da realidade, contribuindo para compreender a psique como um sistema processual, contraditório e complexo que, através de uma forma própria de organização (problema central tanto para um como para o outro autor), está permanentemente em confronto com outros sistemas que participaram de sua gênese e em relação aos quais a psique mantém uma relativa independência em seu desenvolvimento. Segundo, a dialética permite superar a deinição descritiva da psique e indica, num sentido epistemológico, que aquilo que precisa conhecer está para além da evidência, não sendo acessível à descrição. O conceito de essência aparece na dialética não como noção transcendental, mas como forma de organização que transcende o fenomênico e está em constante desenvolvimento, mesmo que em sua compreensão da história Marx expressasse uma visão 355 muito mais teleológica e universalista da dialética. A dialética nos remete sempre à organização dos fenômenos, tendo essa organização uma expressão processual permanente, deinida pela constante contradição entre os contrários que deinem a unidade qualitativa atual desse fenômeno. Terceiro, a dialética rompe com a representação de processos lineares de determinação. Num sentido geral, a dialética nos remete à plurideterminação da realidade, orientando mais a uma relação recursiva entre os processos que a um determinismo causal, o que se evidencia de forma nítida nos autores mencionados, que marcam o topo do desenvolvimento da psicologia soviética. Em relação a este último aspecto, Rubinstein (1967: 172) assim se expressou: Ao estudar os processos psíquicos costuma-se apresentar num primeiro plano a lei determinante de como tem lugar a percepção, o pensamento, etc. Mas a percepção, o pensamento do homem, considerados como certa vivência concreta, como conteúdo da vida da pessoa, incluem em si, pelo comum, não só o relexo de determinados fenômenos ou de determinadas relações entre objetos, mas, além disso, evidenciam o sentido e o signiicado que tais fenômenos e reações possuem para o homem. Na citação ica evidenciado como esse autor não compreendia a psique como resultado de inluências externas e sim como um processo complexo e recursivo, no qual as inluências do mundo se deiniam no processo de produção de sentido e signiicado que emergiam no sujeito a partir dessas experiências. Isto quer dizer que não existe uma relação causal de determinismo entre as inluências externas e a psique, senão uma relação em que se organiza uma nova qualidade com a participação ativa do sujeito desse processo. A psique aparece, assim, como um sistema ativo, gerador. De forma semelhante, em Vigotsky, essa relação apresenta-se no conceito de situação social do desenvolvimento, embora esta questão só apareça com clareza ao inal de sua obra, quando o autor elabora o conceito de sentido. Penso que o ápice da psicologia soviética foi representado por esses dois autores, que levaram ao ponto máximo uma representação dialética da psique. A citação de Rubinstein questiona a noção não dialética de relexo, que durante muito tempo foi dominante em uma certa interpretação do marxismo para explicar o caráter objetivo da psique concebendo-a como produto passivo e não como um processo complexo, no qual ela própria e o sujeito representavam um momento ativo. Este princípio, muito presente em 356 Rubinstein, assim como no Vigotsky mais maduro, aparece muito bem em Abuljanova (1980: 81) anos depois, quando expressa: Ainda que pareça que o psíquico se correlaciona diretamente tanto com o mundo como com o cérebro, ditas correlações não são mais que abstrações, cuja base objetiva é o homem, na existência do qual elas se fazem realmente efetivas. A existência do homem como sujeito: essa é a premissa e o fundamento da investigação de todas as conexões do psíquico. A dialética permitiu a desnaturalização da compreensão da psique e facilitou sua representação como sistema complexo capaz de integrar, em seus próprios termos e mediados pelas suas próprias formas de organização, experiências vividas pelo homem em diferentes espaços socioculturais e em diferentes momentos históricos, como momentos de sentido de sua organização subjetiva atual. É precisamente essa integração do histórico e do social, na sua especiicidade psicológica, o que explica o uso da categoria subjetividade para dar conta desse complexo sistema de produção de sentido com características ontológicas diferentes de muitos dos sistemas que participaram de sua gênese. E aqui, nesse nível de complexidade que toma a construção do conhecimento sobre esta realidade, a dialética encontra-se com a epistemologia da complexidade e se expressa, por exemplo, na compreensão da subjetividade como sistema complexo, que tem sido o centro de nosso trabalho (González Rey, 1997, 2002). Alguns aspetos essenciais do legado de Vigotsky e Rubinstein nas posições da psicologia soviética A psicologia soviética, logo após sua fundação na década de 1920, quando se desenvolveram muitos dos trabalhos mais importantes de Vigotsky e Rubinstein, assim como de muitos outros psicólogos fundadores desse movimento, viveu fortes momentos de repressão política, que tiveram um impacto no rumo posterior de suas diferentes tendências. Nos anos 1930, em seu início, desenvolveu-se um processo de repressão política (movimento crítico de orientação ideológica) envolvendo todas as humanidades e as ciências sociais em geral e que, na psicologia, teve como primeiro alvo a reactologia de Kornilov. Mesmo sendo essa uma corrente com limitações mecanicistas, representou o primeiro esforço na aplicação dos princípios do marxismo à psicologia. O pior era o caráter ideológico 357 de uma crítica que substituía a outra mais importante: a crítica cientíica. Esse caráter ideológico estava muito mais orientado para a exclusão e para o controle do que para o desenvolvimento da ciência. Essa década marcou o início da etapa de controle político da ciência imposta pelo stalinismo. Assim, Vigotsky e Luria são alvos da crítica autoritária desse período. Ambos os autores foram acusados por Razmilov (1934, apud Schuare, 1990), em um livro a serviço da ideologização da crítica, de serem pseudocientíicos, reacionários e antimarxistas, epítetos que se usam sem muita argumentação e que viram rótulos eternos para os prejudicados Posteriormente, em 1936, aparece a disposição N A ÉPOCA , as resoluções apareciam do Comitê Central do Partido Comunista da União feitas em nome do COMISSARIADO DO Soviética “sobre as deformações pedológicas nos Povo que, como os ministérios dentro da institucionalização do Estado, aparecera sistemas dos COMISSARIADOS DO POVO de instrução com a Revolução de Outubro. pública”, onde se qualiicam os pedólogos como pseudocientíicos e se elimina de forma oicial esse campo do saber. Campo esse que integrava todos os cientistas que trabalhavam com o desenvolvimento infantil, entre eles Vigotsky, que foi alvo especial das críticas levantadas. Como reconheceram posteriormente muitos psicólogos soviéticos (Vasiili Vasilievich Davydov, Arthur Petrovsky, M. G. Yarochevsky e muitos outros), a eliminação da pedologia implicou um retrocesso muito grande no trabalho e na aplicação da psicologia no campo da educação. Mesmo a pedologia apresentando muitos problemas, já que alguns autores davam à herança um papel decisivo em questões que não tinham caráter herdado, e também se aplicavando testes de forma indiscriminada, sem nenhum fundamento, o que já havia sido criticado por Vigotsky, na verdade, o tipo de intervenção política que se aplicou propiciou unicamente a paralisação da ciência e o retrocesso de tudo o que se tinha alcançado até esse momento. Na década posterior, após da morte de Vigotsky, Rubinstein é seriamente criticado pelos “desvios” de seu livro Princípios de psicologia geral e também é destituído de todas as suas responsabilidades, o que é restabelecido somente depois da morte de Stalin, em 1953. Essa situação de repressão debilitou seriamente a psicologia soviética e também limitou a continuidade do pensamento de ambos autores. No início da década de trinta, Leontiev mudou-se de Moscou para Jarkov, onde se encontrou com Luria e Alexander Vladmirovich Zaporozhets e fundou sua própria escola. Segundo Zinchenko (1997), os motivos que levaram à separação deste grupo em relação a Vigotsky ainda são desconhecidos e, mesmo que Vigotsky tenha visitado com certa freqüência Jarkov, seus vínculos 358 com este grupo foram se debilitando. A teoria da atividade de Leontiev passou a ser, nos inal dos anos 1950 e início dos anos 1960, a tendência oicialmente reconhecida na psicologia soviética, não deixando de ser uma nova forma de “coisiicação” da psique, ao identiicá-la como o resultado da atividade com objetos e ao orientar-se de forma preferencial à pesquisa experimental sobre as funções psíquicas. Um objetivismo teórico no qual a psique se identiicava com a interiorização de operações com objetos e um positivismo metodológico que colocava a demonstração experimental como critério de legitimidade do conhecimento, o que voltava a alocar a psicologia soviética muito mais na órbita do materialismo do que da dialética. O tema da subjetividade – que se expressava com força, mesmo que de forma implícita, no princípio da unidade da consciência e da atividade em Rubinstein, e no valor da consciência em Vigotsky, e que ao inal da vida deste toma forma particular através da deinição do sentido – é completamente ignorado e se produz uma reiicação do conceito de atividade no qual não só se reduz ao mínimo um conjunto de temas inspiradores da psicologia soviética – por exemplo, os temas da personalidade e da motivação – como também se estuda o tema da comunicação dentro do modelo clássico da atividade com objetos. O domínio da teoria da atividade negou o caráter ativo e gerador tanto da psique quanto do sujeito. Neste sentido Leontiev (1978: 81-82) expressou: Estas transições são possíveis [refere-se às transições da atividade externa à interna e vice-versa] porque a atividade exterior e a interior têm uma mesma estrutura comum […]. Portanto, a atividade que é interna pela sua forma, que deriva da atividade prática externa, não difere desta, nem se superpõe a ela, senão que pressupõe um nexo de princípio e bilateral com ela. Na citação acima ica clara a deinição da psique como um tipo de atividade que mantém um vínculo imediato e linear com a atividade externa, tendo ambas a mesma estrutura. Isso quer dizer que a atividade interna é o resultado da externa e nela não existe nada que primeiro não tivesse existido na atividade com objetos. Nesta deinição é muito difícil explicar as complexas formas de organização dos motivos e da personalidade, temas que durante muito tempo estiveram subvalorizados na psicologia soviética, apesar da importância dada a eles por Rubinstein, Vigotsky, Boris Gerasimovich Ananiev, Vladmir Nikolaevich Miasichev, Lidia Iliníchna Bozhovich e muitos outros fundadores da psicologia soviética. Na teoria da atividade, a pesquisa sobre os processos psíquicos se separou da personalidade e do sujeito desses processos, 359 na medida em que o social se reduziu à atividade com os objetos, ocultando as complexas tramas da produção da subjetividade social. O fato de a psicologia da atividade oicialmente se declarar herdeira da teoria histórico-cultural fez com que, tanto na psicologia soviética quanto no exterior, se estabelecesse freqüentemente uma identidade entre ambas, quando na realidade representam duas aproximações bem diferentes no estudo da psique. Essa diferença começou a aparecer nos trabalhos dos autores soviéticos após o im da hegemonia da teoria da atividade na psicologia soviética, mesmo que, no tempo em que foi dominante, ela tenha sofrido sérias críticas por parte de alguns autores como Bozhovich, Natalia Menchinskaya, Miasichev, Ananiev e muitos outros. Porém, a deinitiva separação entre a teoria da atividade e a teoria histórico-cultural de Vigotsky foi algo que só veio depois. Os próprios autores soviéticos começam a questionar a relação histórica entre a teoria histórico-cultural de Vigotsky e a teoria da atividade. Assim, Zinchenko (1997: 38), que fora um seguidor de Leontiev, escreve: No que segue tentarei caracterizar brevemente as diferenças entre a psicologia histórico-cultural e a teoria psicológica da atividade. A principal diferença vem dada em que, para a primeira, o problema central foi e continua sendo a mediação da psique e da consciência, enquanto para a teoria da atividade o importante é a orientação ao objeto, tanto na atividade psicológica interna quanto na externa. Na teoria da atividade, também aparece o tema da mediação, mas enquanto para Vigotsky a consciência estava mediada pela cultura, para Leontiev a psique e a consciência estavam mediadas por instrumentos e objetos. Embora eu não concorde com o que Zinchenko coloca como o tema central da psicologia histórico-cultural, pois esta teve vários temas centrais em diferentes momentos de sua história, o evidente é que o autor marca com total clareza a diferença entre ambas, enfatizando o caráter instrumental e mediado pelo objeto que teve a deinição da psique para Leontiev. Penso que o principal legado de Vigotsky e Rubinstein encontra-se no estabelecimento das seguintes linhas de relexão, que expressam os principais problemas desenvolvidos pela psicologia soviética: 1. A signiicação da teoria da personalidade é o aspecto central em Rubinstein, que via na personalidade a alternativa para superar a atomização da vida psíquica em processos. Tanto Vigotsky como Rubinstein viam na personalidade a possibilidade de superar a fragmentação funcionalista na representação da psique individual, assim como também a possibilidade de superar a dicotomia entre o cognitivo e o afetivo e entre o social e o indivi360 dual, preocupações que compartilhavam ambos e que tinha, por detrás, a preocupação de ambos em compreender a psique como um sistema complexo. Apesar de Vigotsky ter colocado de forma explícita, em vários trabalhos sobre a personalidade, a sua categoria de sentido, ela foi utilizada por seguidores jovens da teoria da atividade para o desenvolvimento de uma nova teoria da personalidade. É muito interessante que, mesmo que Leontiev – principal nome da teoria da atividade – não tenha utilizado a categoria de sentido na direção que Vigotsky deu a este conceito, esses jovens autores tenham começado a desenvolver uma forma nova de representar a personalidade a partir das colocações originais de Vigotsky e tenham feito isso em nome da teoria da atividade. Se, por um lado, houve essa apropriação de conceitos vigotskyanos pelos teóricos da atividade, por outro lado, também houve entre os seguidores mais próximos de Vigotsky a aplicação de sua teoria no desenvolvimento de uma teoria da personalidade e da motivação. Bozhovich constitui um exemplo de um pensador que trabalhou de forma própria, desde o começo de sua carreira, com esse propósito. Entre os seguidores de Rubinstein, a personalidade e o sujeito foram temas permanentes, entre outras coisas, porque a personalidade era considerada como um princípio importante da construção da ciência psicológica e não apenas uma categoria. A personalidade representava o sistema essencial através do qual Rubisntein demonstrava a integração da psique e do sujeito com o meio social. Assim, em relação a este tema, o autor (1934: 126) escreveu: Cada uma destas concepções psicológicas [está se referindo às teorias dominantes na época] fragmentava a personalidade, separando, primeiro, sua consciência de sua atividade, para, depois, por um lado, dispersar a consciência em funções e processos impessoais, e por outro, desarticular o comportamento em hábitos e reações soltas. Fica claro que, na perspectiva de Rubinstein, a personalidade representava uma categoria de integração essencial do sujeito como sistema psicológico, categoria esta que mais tarde vai ser explicitamente assumida pelos seus discípulos, essencialmente por Abuljanova e Andrei Bruchlinsky. É muito interessante que tanto Vigotsky quanto Rubinstein sejam pioneiros de uma psicologia de caráter histórico-cultural, mas cuidando para não perder nem o sujeito nem a organização psíquica desse sujeito no nível individual, conseguindo uma compreensão dialética do caráter social da personalidade e do sujeito e, ao mesmo tempo, o que só apareceu de forma tímida e indireta 361 em ambos os autores, considerando o sujeito como protagonista ativo e diferenciado do social. 2. Outro legado muito importante de ambos os autores foi a consideração da psique como um sistema em desenvolvimento. A partir deste princípio, a psicologia geral e a psicologia do desenvolvimento passaram a se relacionar de forma estreita. A psicologia do desenvolvimento assume as mesmas categorias que vão sendo desenvolvidas na construção de uma representação geral da psique. Neste sentido, autores como V. Davydov, um dos psicólogos do desenvolvimento mais importantes da União Soviética, que no início de sua carreira se deine dentro da teoria da atividade, nos últimos anos de seu trabalho se aproxima de uma forma cada vez mais explícita de Vigotsky, colocando como uma categoria central em suas pesquisas sobre a aprendizagem o sujeito que aprende. 3. O legado de ambos autores vai também na direção de superar as dicotomias dominantes na deinição da psique, de forma particular duas que ainda estão muito presentes entre os psicólogos, reiro-me a dicotomia entre o social e o individual e entre o cognitivo e o afetivo. O social em ambos não é mais compreendido como o externo, embora ambos tenham momentos em que icam sujeitos às velhas fórmulas que dominavam a representação deste problema na psicologia. Mas Rubinstein, por meio de sua compreensão da personalidade, e Vigotsky, com a categoria de sentido, conseguem representar o social constituindo a própria organização da psique individual, sem que por isso se dilua a especiicidade de cada um destes níveis. 4. Finalmente, gostaria de indicar uma tendência – a meu ver, muito importante e que foi inluenciada essencialmente por Ananiev e Miasichev, fundadores da Escola de Leningrado, mas que também teve a inluência de Rubinstein – à reconsideração da importância da comunicação como categoria central da psicologia soviética, o que se dissolveu anteriormente dentro do marco mais geral da psicologia da atividade. O desenvolvimento dessa categoria, tanto no nível da psicologia geral como nos diferentes campos da psicologia, deve-se a Boris Lomov, igura que emergiu com forte poder político na década de 1970 como diretor do Instituto de Psicologia da União Soviética, no qual trabalhavam também os discípulos mais próximos de Rubinstein. Nessa década, como tenho expressado em outros trabalhos (González Rey, 1995, 1997, 2003), o tema da atividade na psicologia soviética é publicamente discutido e começa um período de análise 362 crítica em relação aos excessos derivados da hipertroia da categoria atividade dentro dessa psicologia. A incorporação do tema da comunicação abriu para a psicologia possibilidades de construção teórica e de novos problemas de pesquisa que não podiam ser visualizados sem o resgate dessa categoria. Nessa discussão, os estudos que tenho desenvolvido contribuem para a aproximação de um tema muito presente em diferentes momentos da obra de Vigotsky e Rubinstein, mas que a psicologia soviética não explicitou com maior força pelo seu caráter subversivo na época: o estudo da subjetividade. Como dissera Chudnovsky (1982: 15), É impossível negar que no curso de vários decênios, o problema da subjetividade na nossa ciência e na prática social foi subvalorizado. […] A necessidade de uma luta pela compreensão materialista do desenvolvimento social exigiu (e isto foi completamente correto) o acento na inluência decisiva das forças produtivas e das relações de produção sobre a ideologia da sociedade e, através dela, no desenvolvimento da consciência e da personalidade do homem concreto. Desafortunadamente, estas posições que, em si mesmas, constituem um indiscutível pilar do marxismo se absolutizaram e se converteram num dogma. Um dos aspectos que aquele legado nos deixou e que nos desaia para o seu desenvolvimento é, sem dúvida, a integração do sujeito, da subjetividade e do social, o que tem implicações não apenas para a psicologia, mas para as ciências sociais em geral. Escolhemos começar nossa análise com Vigotsky e Rubinstein porque representam, do meu ponto de vista, o momento mais maduro e criador da psicologia soviética, assim como a leitura mais criativa do marxismo dentro da psicologia. Ambos exerceram uma grande inluência nas tendências que se desenvolveram na psicologia soviética na década de 1960, conhecida como a época do “degelo” dessa psicologia. Mesmo que, antes deles, a psicologia soviética tenha vivido momentos como a relexologia e a reactologia de Kornilov, em seu esforço de se aproximar de uma visão marxista da psique, o certo é que o amadurecimento da psicologia soviética nos remete, de uma forma ou de outra, às tendências que se derivaram de Vigotsky e Rubinstein, sendo as mais conhecidas no Ocidente as que derivaram prioritariamente de Vigotsky por várias razões, entre as quais gostaríamos de mencionar as seguintes: 1. O fato de Vigotsky ter entrado na institucionalização da psicologia ocidental a partir da tradução que Bruner fez de sua obra na década de 1960, 363 permitiu que ele fosse assumido dentro de uma das tendências mais fortes da psicologia mundial na época: a psicologia cognitiva. Depois, Vigotsky constituiu um dos referentes essenciais da própria ruptura de Jerome Bruner (1915- ) – e muitos outros psicólogos – com a psicologia cognitiva, o que levou ao desenvolvimento da psicologia sociocultural, que tem sido a expressão mais conhecida do pensamento de Vigotsky dentro da psicologia ocidental. Uma análise detalhada desta tendência é feita por mim no livro Sujeito e subjetividade: uma aproximação histórico-cultural (1992). 2. Outro motivo que considero importante no fato de Vigotsky ter sido mais conhecido no Ocidente foi que um de seus colaboradores, Leontiev, mesmo não contribuindo no desenvolvimento de muitos dos princípios originais e essenciais de Vigotsky, teve um grande poder político na psicologia soviética até o im da década de 1970 do século passado. Isso fez com que muitos dos psicólogos próximos a esta orientação fossem privilegiados em viagens ao estrangeiro e na participação em congressos cientíicos, assim como foi importante o seu peso nas principais publicações soviéticas. Esses argumentos não pretendem negar o grande mérito de Vigotsky, pois seus aportes foram muito importantes para a psicologia soviética e mundial, mas Vigotsky é inseparável da psicologia soviética, do marxismo e do período de crescimento cultural e de independência que a Revolução Russa signiicou em seu início. Rubinstein, junto a ele, foi um pensador importante que também marcou o pensamento da psicologia soviética e que colocou questões teóricas que foram essenciais no desenvolvimento dessa psicologia. Eles enfatizaram questões diferentes, mas, mesmo assim, as suas representações mais gerais da psicologia tiveram muitos pontos em comum. Neste capítulo centramo-nos em alguns dos momentos e autores mais signiicativos da psicologia soviética, porém este foi um movimento muito rico e amplo, que teve importantes contribuições e linhas de pesquisa até o momento em que a União Soviética deixou de existir como país. Os pormenores dessa psicologia na segunda parte do século XX têm sido tratados por autores como Shuare (1990), mas merecem ser mais aprofundados e debatidos. Referências bibliográficas Abuljanova, K. (1973) O sujeito e a atividade psíquica. Moscou: Nauka. (1980) A atividade e a psicologia da personalidade. Moscou: Nauka. 364 Chudnovsky, V. E. (1982) Sobre um enfoque por idades do problema da formação da personalidade do escolar. Questões de Pedagogia 4, Moscou. González Rey, F. (1985) Psicología de la personalidad. Havana: Pueblo y Educación. (1997) Epistemología cualitativa y subjetividad. São Paulo: EDUC. ( 2002) Sujeito e subjetividade. São Paulo: Thomson. Leontiev, A. N. (1978) Actividad, conciencia y personalidad. Buenos Aires: Ediciones Ciencias del Hombre. Rubinstein, S. (1949) Princípios e vias do conhecimento psicológico. Moscou: Nauka. (1967) Principios de psicología general. Havana: Edición Revolucionaria. Schuare, M. (1990) La psicología soviética tal como yo la veo. Moscou: Progreso. Séve, L. (1972) Marxismo y teoría de la personalidad. Buenos Aires: Amorrortu. Vigotsky, L. S. (1967) Pensamiento y lenguaje. Havana: Edición Revolucionaria. (1979) O sentido histórico da crise psicológica. In: Obras completas, tomo 1. Moscou: Pedagoguika, p. 491. Zinchenko, V. (1997) La psicología socio-cultural y la teoría de la actividad: revisión y proyección hacia el futuro. In: J. Wertsch, P. del Rio e A. Alvarez (orgs.) La mente sociocultural. Madri: Infancia y Aprendizaje. Adendo: Da psicologia ideológica à psicologia revolucionária: o marxismo na psicologia ocidental Arthur Arruda Leal Ferreira O marxismo não fez a sua morada apenas na psicologia dos países socialistas, como na extinta União Soviética, mas também em países ocidentais como França, Argentina e até mesmo Brasil. Só que essa coabitação, em alguns casos, como o francês (alvo desta seção), tem um sentido mais crítico que propositivo. Esse movimento crítico, apesar de ter tido a DEOLOGIA, sua origem nos anos 1920, com As críticas aos fundamentos da no Ivocabulário de psicologia (1998) de Georges Politzer em 1928, tem seu ápice alguns marxistas tratanos anos 1960. Elizabeth Roudinesco (1993) airma que se da superestrutura, ou as concepções de mundo, produzida nesse momento se fez uma aliança na França entre as a partir da infra-estrutura, ou os correntes marxistas e a psicanálise na tomada crítica da meios de produção. Como estes em geral se encontram apropriados por psicologia. Contudo, desde o trabalho de Politzer em um grupo dominante, a ideologia 1928, essa aliança é claramente proposta. Tal processo mais reflete uma tentativa de justificativa dessa apropriação crítico está calcado no rastreamento dos menores sinais do que a revelação de suas de IDEOLOGIA na psicologia, contrapondo-se às concepções contradições. É neste sentido 365 que se diz que a ideologia é um falso saber. ditas mais objetivistas, que viam este saber como um conhecimento neutro acerca do homem. Atuando assim, tais concepções objetivistas apagariam os sinais de contradição presentes em nossas práticas sociais, ao mitiicá-las como fato natural. Nas palavras de Politzer (1998: 40), “os psicólogos são tão cientistas como os selvagens evangelizados são cristãos”. O antídoto à psicologia dita objetiva opera desde a simples denúncia da ideologia que impregna este saber até sua derradeira superação num saber iel à letra marxista. Aqui se reproduzem os dilemas das diversas interpretações marxistas, desde as mais materialistas até as mais histórico-dialéticas. De modo semelhante à psicanálise, o que passa à discussão nas diversas correntes não é propriamente a diferença dos seus conceitos, mas uma interpretação dos textos de Marx e Engels. A diferença é que aqui, nos países não socialistas não há a pressão de um partido central, mas o livre jogo de interpretação do sentido da obra marxista. Não há, pois, um partido, mas um conjunto de partidos que se constituem em tribunais para a psicologia dita objetiva. Nesses tribunais, o crime seria sempre ideológico e sua premeditação, o ocultamento do homem concreto (seja ele entendido como ser biológico, trabalhador, ou ente sóciohistórico) ou sua consciência libertária possível (e não tanto a consciência cotidiana ou real), conforme a interpretação marxista. A partir do julgamento por ocultamento ideológico, insinua-se ou a possibilidade de libertação da psicologia objetiva por uma psicologia renovada e crítica, ou por vezes a sua simples condenação. Sem vistas à recuperação do réu, pensadores como Herbert Marcuse e Didier Deleule (cf. Bernard, 1983: 73-78) estabelecem a condenação sumária à psicologia. Para Marcuse, a psicologia é o instrumento por excelência, na passagem de um projeto cientíico-tecnológico de controle da natureza – na promessa iluminista de libertação do homem pelo domínio do mundo natural – para um monitoramento dos indivíduos, buscando duplicar, na engenharia das relações humanas, o mesmo sucesso obtido no âmbito da engenharia física. Neste aspecto, a psicologia seria ao mesmo tempo instrumento e disfarce (ao postular sua neutralidade) das relações de dominação da sociedade tecnototalitária. Numa análise mais simples, Deleule, inspirado em Politzer, toma a psicologia como um instrumento de reforma da sociedade, que seria o antídoto contrário a toda revolução, único instrumento de real transformação social. A psicologia como instrumento reformista atuaria numa “reabsorção metódica e discreta do negativo [dimensão crítica do homem] até a sua eliminação sistemática” (Bernard, 1983: 76). A psicologia é, pois, a guardiã do sistema ao atualizar pequenas mudanças nos indivíduos, impedindo assim a derradeira 366 mutação: a revolução. A alternativa para a psicologia, segundo Deleule, estaria numa guinada radical em direção à psicanálise, na retomada de seu “ato violento” de fundação, baseada no conceito de inconsciente. Tal virada visaria ao próprio SUJEITO da psicologia, mergulhando no imaginário ideológico da própria consciência. Aqui estaria, para este autor, o Sujet, em francês, refere-se tanto a aspecto revolucionário da psicanálise e do conceito de sujeito como a assunto ou tema. inconsciente: a problematização de nossa consciência como um dado natural, ela seria um mero efeito. Se o devir da psicologia se encontra no ocultar ideológico, não há saída que não por uma psicanálise de si própria. Tanto em Deleule como em Marcuse, como de resto na própria Escola de Frankfurt (cf. capítulo 28) a que este pertence, é proposta uma aliança entre psicanálise e marxismo, visando superar o estado de alienação que vinga no indivíduo e na sociedade, de resto perpetuado pela psicologia. As alternativas que são propostas à psicologia, dentro de um projeto de libertação do homem do seu estado de ALIENAÇÃO, Quando se fala em ALIENAÇÃO são tantas quantas são as “letras marxistas”. Nas no marxismo, isto envolve mínimas variações desta, o oculto a ser liberto pode especialmente o ocultamento do foi operado pelo trabalhador se encontrar: na concretude do corpo ou da conduta que dentro das relações de produção. (materialismos dialéticos de HENRI WALLON e François Le Ny), na concretude do drama ou ato do indivíduo trabalhador (conforme os materialismos históricos de GEORGES POLITZER e Lucien Séve), ou ainda HENRI WALLON (1879-1962) foi um autor marcante no cenário da psicologia do desenvolvimento de língua francesa. Seus primeiros artigos datam de 1913, mas só em 1925 ele publica seu primeiro livro, A criança turbulenta. Em 1934 publica um de seus livros mais conhecidos, As origens do caráter na criança, continuado em 1945 por As origens do pensamento na criança. Lecionou na Sorbonne, na Escola de Altos Estudos, no Collège de France e na Universidade de Cracòvia. Em 1941, durante a ocupação alemã, teve seus cursos censurados. GEORGES POLITZER (1903-1942) nasceu na Hungria. Chegou em 1922 a Paris, após ter morado em Viena, onde estabeleceu seus laços derradeiros com a psicanálise. Em 1924, em associação com diversos autores, funda a revista Philosophies. Filia-se ao Partido Comunista em 1929, tendo lecionado na Universidade Operária. Na ocupacão nazista, milita na Resistência francesa, trabalhando especialmente na revista clandestina Lettres Françaises. Em 1942 é capturado, torturado e executado. GEORGY LUCKÀCS (1885-1971) nasceu em Budapeste. Em 1909, doutorou-se em Filosofia, passando a estudar até 1912 em Berlim, tornando-se discìpulo de Georg Simmel (1864-1920). Entre 1913 e 1916, freqüentou o círculo intelectual de Max Weber (1858-1918), quando redigiu A teoria do romance. De volta a Budapeste, colabora na Escola Livre das Ciências do Espírito, e em 1928 entra no Partido Comunista. Em 1919, com a proclamacão da República, é nomeado vice-comissário do Povo para Cultura e Educação Popular. Com o im da República em agosto, se exila em Viena, Berlim e Moscou, retornando a Budapeste em 1944. Com a abertura política de 1956, é nomeado ministro da Cultura, sendo deportado para a Romênia após a invasão soviética. Volta à Hungria em 1957, quando perde a cátedra universitária, e è expulso do Partido Comunista, retornando a este apenas em 1967. LOUIS ALTHUSSER (1916-1990) nasceu em Birmandreis, na Argélia. Forma-se na Escola Normal em 1939, sendo prisioneiro alemão de 1940 a 1945. Em 1948, obtém licenciatura e nesse mesmo ano entra no Partido Comunista Francês. Isto, apesar de sua forte formação católica. Nos anos 1960 destaca-se na vaga do movimento estruturalista, ao sugerir uma nova interpretação do marxismo, em que propunha um entendimento dos fenômenos sociais no qual estes não derivariam apenas dos fenômenos econômicos, como tradicionalmente se formulou. Em 1980 assassina sua esposa, o que conduz à sua internação psiquiátrica até a data de sua morte por suicídio. 367 na possibilidade de uma consciência proletária crítica – barrada pelo real (conforme os neo-hegelianismos de GEORGY LUKÀCS e da Escola de Frankfurt, ou ainda do estruturalismo de LOUIS ALTHUSSER). Acusações entre esses grupos também pendem no oscilar interior de uma dialética, de materialismo grosseiro por um lado, de idealismo por outro, conforme a linha adotada. É neste pé, por exemplo, que Althusser (cf. Bernard, 1983: 40) reconhece em Politzer o “Feuerbach dos tempos modernos”, em que, na concretude buscada, confunde o conhecimento com a coisa conhecida, o que não aconteceria caso seguisse a norma cientíica de produção de objetos na abstração de conceitos. Abstração que Sève (Bernard, 1983: 41), por outro lado, anunciará como idealismo, retomando o projeto de Politzer, recusandose a ver nesse autor qualquer “feuerbarchismo”. Isto se daria uma vez que ele retornaria ao materialismo, base ideológica de uma psicologia positiva, abordando enim o psiquismo como suportado pela isiologia de um lado e pelos processos sociais de outro. Contra esse materialismo da consciência real (conceito de Luckàcs), Penna (1987), por outro lado, sugere a consciência possível – como aquela que o proletariado possuiria numa compreensão clara e não modiicada de sua posição e seus interesses –, possível fundamento de uma psicologia social deinitivamente histórica. A crítica dos possíveis extremos dessas teses marxistas mantém o ino equilíbrio de uma dialética, ou melhor, é ela própria dialética na produção de novas sínteses no espaço da psicologia. É o que buscam honrar certas psicologias como a de Wallon, proposta no campo da psicologia do desenvolvimento. Aqui se busca uma “alternativa de um materialismo elementar ou de um idealismo vazio, de um substancialismo grosseiro, ou de um irracionalismo sem horizontes” (Wallon, citado em Bernard, 1983: 78). Trata-se, pois, de uma alternativa em consonância com a corrente soviética exposta neste capítulo, em que a constituição do indivíduo será dada na negociação do aparato biológico (lexível) e das potencialidades de interação com o “mundo adulto”, derradeiro depósito dos instrumentos cognitivos historicamente constituídos. É desta forma que a consciência não se trata de um produto do corpo biológico (materialismo), nem um “superfenômeno” que referencia todos os demais (idealismo); é o produto de interações sociais, (trabalho) sendo capaz, pois, de modiicar estas. À guisa de conclusão, deve-se chamar atenção para o fato de que nessa senda marxista, as tendências propositivas como os estudos de Wallon e da Escola Russa se multiplicaram. Tanto no campo da psicologia como da semiótica e da pedagogia, o nome de Vygotski ainda inspira diversos trabalhos. 368 Isto, mesmo considerando que nas ex-repúblicas socialistas (e mesmo nas que ainda são socialistas, como Cuba) a abordagem marxista na psicologia tenha perdido o seu caráter exclusivo (sendo, no entanto, ainda muito presente). Contudo, hoje em dia, assiste-se ao declínio das vertentes marxistas na crítica da psicologia, ao menos na França. Indicação estética e bibliográfica Bernard, M. (1983) A psicologia. In: Chatelêt, F. (org.) História da ilosoia. Idéias, doutrinas. Vol. 7. Lisboa: Dom Quixote. Filmes do diretor Ken Loach, como Terra e liberdade, Uma canção para Carla e Pão e rosas. Referências bibliográficas Bernard, M. (1983) A psicologia. In: Chatelêt, F. (org.) História da ilosoia. Idéias, doutrinas. Vol. 7. Lisboa: Dom Quixote. Penna, A. G. (1987) Consciência real e consciência possível. In: História e psicologia. São Paulo: Vértice. Politzer, G. (1998) As críticas aos fundamentos da psicologia. Piracicaba: UNIMEP. Roudinesco, E. (1993) Situation d’un texte: “Qu’est-ce que la psychologie?” In: Collège International de philosophie (org.) Georges Canguilhem. Philosophe, historien des sciences. Paris: Albin Michel. 369 Capítulo 22 Luzes e sombras. Freud e o advento da psicanálise Inês Loureiro O solo cultural de onde emerge a psicanálise é rico e variado. Na igura de seu fundador, Sigmund Freud (1856-1939), convergem várias tendências da cultura européia dos séculos XVIII, XIX e também do XX, já que parte signiicativa de sua obra foi publicada no século passado. Freud nasceu em Freiberg (atual Pribor, na República Tcheca), mas sua família mudou-se para Viena quando ele tinha três anos de idade. A capital austríaca foi, pois, seu lar durante praticamente a vida toda. Ele só deixa a cidade após a ocupação nazista, em 1938; já doente e idoso, instala-se em Londres, onde vem a falecer em setembro do ano seguinte. É difícil abordar o solo cultural do qual provém a psicanálise sem mencionar a biograia de seu criador. Evidentemente, não se está sugerindo que Freud é uma criatura excepcional, um gênio capaz de criar uma teoria inteira a partir do nada (ex-nihilo) ou, o que dá no mesmo, unicamente a partir de si mesmo. Daí nosso esforço em retomar alguns elementos de seu contexto cultural para entender as condições de emergência do saber e da prática psicanalítica. No entanto, o recurso a algumas informações biográicas parece, nesse caso, indispensável, pois a teoria freudiana encontra-se indissociavelmente mesclada à trajetória pessoal de seu fundador. Em outras palavras, o arcabouço conceitual da psicanálise, assim como a prática clínica que lhe é correlata, tem parte importante de suas raízes nas experiências vividas por Freud e por ele tomadas como material de elaboração psíquica e relexão teórica. Claro que a obra de Freud comporta, desde o início, conceitos formulados em um nível mais elevado de abstração, isto é, distanciados da experiência empírica; é o 371 que ele designa como “METAPSICOLOGIA” – a dimensão mais teórica da teoria. Porém, as noções e hipóteses metapsicológicas são forjadas e articuladas de maneira a constituir modelos para a compreensão Freud diz que a compreensão de fenômenos psíquicos que povoam a clínica e METAPSICOLÓGICA de um fenômeno requer que ele seja abordado simultaneamente sob a vida quotidiana. três dimensões ou pontos de vista. A dimensão Ora, Freud observa tais fenômenos em seus tópica refere-se aos lugares ou instâncias que compõem o aparelho psíquico (topos = lugar); pacientes, amigos e familiares, mas também, e a dinâmica diz respeito ao jogo de forças em conlito; e a econômica refere-se à distribuição talvez primeiramente, em si mesmo. Basta ler e mobilidade das quantidades de energia sua correspondência com WILHELM F LIESS (1858psíquica em circulação no aparelho. 1928) para atestar o cuidado com WILHELM F LIESS : que Freud se dedicava à observação e investigação dos médico otorrinolaringolopróprios processos psíquicos; com abundância de detalhes, gista com quem Freud manteve ele descreve seus sonhos, atos falhos e lembranças infantis, intensa amizade e interlocução teórica, documentadas na célebre além das indisposições físicas, variações de humor e correspondência trocada no período 1887-1904. inibições intelectuais. Longe de um simples deleite em registrar as oscilações de sua “meteorologia interna”, pode-se ver na auto-análise de Freud a tentativa de investigação sistemática (freqüentemente dolorosa) de sua própria vida psíquica, com o intuito de extrair indícios que, somados a outros, pudessem contribuir para fazer avançar ou consolidar alguma formulação teórica em vias de elaboração. Tomemos, por exemplo, o caso dos sonhos. É sobretudo com base na investigação de seus próprios sonhos – analisados sistematicamente a partir de 1895 – que Freud escreve A interpretação dos sonhos (1900), um dos principais livros de sua extensa obra, no qual traz a público pela primeira vez um amplo modelo sobre a estrutura e o funcionamento da psique humana em geral. O mesmo vale para o célebre conceito de complexo de Édipo: Freud escuta certos conteúdos referentes à sexualidade infantil no discurso de seus pacientes; conhece também algumas produções culturais que veiculam o mesmo tipo de conteúdo, como a tragédia Édipo-Rei, de Sófocles, sobre o destino do rei de Tebas, que assassinou o pai e casou-se com a mãe. Mas a análise empreendida por Freud de suas próprias lembranças infantis foi decisiva para que chegasse a reconhecer que estava diante de um complexo de fantasias e sentimentos de caráter universal. Por ora, esses exemplos bastam para demonstrar por que a biograia de Freud encontra-se intrinsecamente ligada à formação da psicanálise. Este é o motivo pelo qual os estudiosos tanto vasculham sua vida – os intensos afetos que permeiam suas relações familiares e proissionais, as leituras, viagens, os sonhos e esquecimentos, a enorme correspondência pessoal (estimada em cerca de 10 mil cartas): não se trata de mera “bisbilhotice”, 372 mas da necessidade de levar a sério esta que é uma verdadeira peculiaridade epistemológica da psicanálise. Em suma, o modo de construção dos conceitos freudianos requer que levemos em conta a referência biográica, ingrediente em geral secundário para a compreensão da montagem de outras teorias cientíicas ou ilosóicas. Dito isso, passemos a alguns pontos que sobressaem da complexa trama que entrelaça história, biograia e teoria. Formação intelectual e profissional de Freud Em primeiro lugar, Freud nasceu em uma família judia. Embora fosse AGNÓSTICO e não observasse nenhuma prátiAGNÓSTICO: diferentemente do ateu ca religiosa ou festa tradicional, é certo que essa (que simplesmente não acredita na origem marcou fortemente a psicanálise. Na visão existência de Deus), a posição agnóstica caracteriza-se por considerar que certas do próprio Freud, o fato de ser judeu lhe conferia realidades são incognoscíveis, o que algumas disposições psíquicas (como a tendência à tornaria supérlua qualquer especulação ou discussão sobre, neste caso, a existência crítica e à independência intelectual) imprescindíveis de Deus. para sustentar a fundação de uma nova e polêmica ciência. Em termos mais sociológicos, a condição judaica é um dado relevante na medida em que explica certos movimentos da trajetória proissional de Freud (por exemplo, sua ascensão na carreira universitária foi bastante lenta por conta do anti-semitismo sempre presente, de forma mais ou menos velada, na sociedade vienense) ou dos rumos tomados pelo movimento psicanalítico (um dos aspectos que pesou na escolha de Carl Gustav Jung (1875-1961) como primeiro presidente da IPA foi o fato de ele ter origem IPA: Associação Internacional de protestante, pois Freud temia que a psicanálise fosse Psicanálise (sigla de International of Psychoanalysis), fundada encarada como uma “ciência judaica” por causa do Association em 1910. grande número de adeptos judeus por volta de 1910, cf. capítulo 23). Mas é, sobretudo, pelo lugar de destaque no repertório cultural e afetivo de Freud que o judaísmo é considerado um ingrediente fundamental da psicanálise. A educação judaica lhe proporcionou um sólido conhecimento da Bíblia como um todo (referências a ela não cessam de aparecer ao longo da obra) bem como a familiaridade com procedimentos e técnicas de interpretação dos textos sagrados. Isto sem contar o humor judaico que Freud tanto apreciava e que lhe forneceu abundante material para livros como O chiste e suas relações com o inconsciente (1904). LICEU: estudos equivalentes ao que Os anos de juventude, incluindo-se aí a sólida atualmente designamos por ensino formação humanística recebida no período de LICEU fundamental e médio. 373 (1865-1873), foram decisivos para as feições que a psicanálise viria a tomar. Nessa fase, Freud aprende diversos idiomas (rudimentos de latim e grego, inglês, francês, espanhol, além do hebraico e alemão) e inicia os estudos de humanidades (história, mitologia) que o iriam acompanhar para sempre. Desenvolve um apaixonado interesse por literatura que também será cultivado durante toda a vida. Em meio a grandes nomes da literatura universal (Sófocles, Willian Shakespeare, Miguel de Cervantes, Henrik Ibsen, Fiodor Dostoievski) e contemporâneos de todos os matizes (Thomas Mann, Emile Zola, Mark Twain), sobressaem os autores de língua alemã de extração clássico-romântica, como Heinrich Heine, Friedrich Schiller e, acima de todos, Johann Wolfgang von Goethe – igura central no universo intelectual de Freud sendo citado mais de uma centena de vezes em seus escritos. Nas preferências em matéria de arte, a literatura é seguida pela escultura (Michelângelo) e pela pintura (Leonardo da Vinci, Hermann van Rijn Rembrandt). Como observam alguns comentadores, as preferências de Freud no campo das artes são bastante conservadoras (no sentido de que recaem exclusivamente sobre artistas consagrados), o que contrasta com o caráter revolucionário de suas concepções sobre os processos envolvidos na ARTE e na CRIAÇÃO, bem como das leituras Freud considera que a OBRA DE ARTE é criada a partir dos psicanalíticas a que submeteu diversas obras de arte, mesmos conteúdos e mecanismos analisadas em textos como Delírios e sonhos em A Gradiva, presentes nos sonhos e nas demais de Jensen (1908), Uma lembrança infantil de Leonardo da Vinci formações do inconsciente. (1910) e O ‘Moisés’, de Michelângelo (1914). A forte ligação com as artes se manifesta ainda em outro campo: a célebre coleção de antiguidades que Freud iniciou em 1896, logo após a morte de seu pai. Composta por mais de 2.000 objetos das mais variadas procedências, testemunha o grande interesse de Freud por civilizações antigas e pela arqueologia, assunto pelo qual tinha especial predileção. Se enfatizamos a formação humanística de Freud e a diversidade de seus interesses artístico-literários, é porque isto se iniltra profundamente na psicanálise. Não apenas os textos de Freud são pontilhados desse tipo de referência, como seu próprio estilo de escrita e argumentação é bastante “literário”. Sua prosa elegante foi admirada por muitos críticos e o único prêmio que Freud recebeu em vida, o Prêmio Goethe (1930), foi-lhe atribuído pelas qualidades literárias de sua obra. Isto remete a uma discussão antiga, iniciada ainda nos anos 1890, sobre a natureza última do saber psicanalítico: estaria mais próximo das artes ou da ciência? Do ponto de vista de Freud, não havia dúvida: ele sempre reivindicou irmemente o estatuto de ciência natural para a disciplina que criara. De todo modo, e é isso que interessa 374 frisar, nosso autor é um homem cultivado, de horizontes culturais amplos e cosmopolitas. A vertente humanística e literária da formação de Freud acaba se mesclando e servindo de contraponto a uma outra tendência que entra em cena quando do ingresso na Faculdade de Medicina, em 1873. Os estudos universitários introduzem o jovem Freud na fortíssima tradição da CIÊNCIA EXPERIMENTAL E POSITIVISTA hegemônica entre seus mestres. Se no início ainda teve interesse pelos estudos Lembre-se que a ciência EXPERIMENTAL consolidou-se, ilosóicos (freqüentou os seminários no decorrer dos séculos XVII e XVIII, como o grande do ilósofo FRANZ BRENTANO durante modelo de cientiicidade. Caracteriza-se pela utilização do método experimental, que envolve observação e descrição cerca de três anos), aos poucos foi rigorosas (de preferência com o auxílio de instrumentos que se convertendo ao materialismo garantam maior precisão e objetividade), formulação de uma hipótese a ser testada, concepção e execução do experimento que embasava as ciências naturais, propriamente dito (que visa estudar um fenômeno em inclusive as áreas de pesquisa por ele condições controladas), cujos resultados devem contribuir para o objetivo último de generalização, isto é, descoberta de percorridas, como isiologia, anatomia relações constantes e necessárias (leis), se possível expressas cerebral, neurologia e psiquiatria. O em linguagem matemática. marco decisivo nesse trajeto é o POSITIVISMO: corrente filosófica derivada das teorias de Auguste Comte (1798-1857 ). Airma que só a ciência e estágio realizado entre 1876 e 1882 o método cientíico produzem conhecimentos válidos; por no Instituto de Fisiologia dirigido isso, todos os campos do saber deveriam ser submetidos à investigação cientíica nos moldes mais estritos. por Ernest Brücke (1819-1892). Esse FISICALISMO: doutrina que afirma só existirem forças físicomédico e isiologista é um dos grandes químicas em ação no organismo, de modo que, em última instância, tudo é redutível às leis da matéria. nomes do positivismo germânico, ardente defensor do FISICALISMO. Em seguida, Freud foi aluno de Theodor Meynert (1833-1892), líder de uma psiquiatria que hoje chamaríamos de “organicista”, pois tendia a reduzir os fenômenos psicológicos e psicopatológicos a seu substrato orgânico (no caso, cerebral). Já encaminhado para a clínica de moléstias nervosas e interessado pelo fenômeno da histeria, Freud vai a Paris (1885-1886) estudar com Jean Martin Charcot (1825-1893) (cf. capítulo 8), expoente maior da psiquiatra dinâmica francesa, que, diferentemente da alemã, airma a prioridade das manifestações clínicas sobre os modelos teóricos e a pesquisa experimental, bem como privilegia a centralidade dos fatores psíquicos na causação das patologias mentais. Ou seja, a temporada com Charcot consolida, para Freud, o caminho para uma prática clínica com as psiconeuroses – uma medicina da alma –, inicialmente lançando mão da hipnose, mas gradativamente criando seus próprios métodos para a condução dos tratamentos. Além de Charcot, Freud teve contato com Hyppolyte Bernheim (1840-1919) e Ambroise-August 375 Liébeault (1823-1904), expoentes da chamada Escola de Nancy e a quem visitou em 1889. Bernheim considerava a hipnose como mera sugestão verbal, de modo que achava possível obter, em estado de vigília, os mesmos efeitos conseguidos pelos praticantes da hipnose. Em síntese, os anos universitários foram responsáveis por uma também rigorosa formação em ciências naturais de extração positivista (incluindo-se aí o treino com pesquisa experimental em laboratório), logo complementada pelo contato com a grande tradição da psiquiatria clínica francesa. Os primórdios da teoria e da técnica psicanalíticas Assim, na última década do século XIX, Freud é um homem já maduro quando propõe as noções que constituirão os alicerces fundamentais da psicanálise; inconsciente, repressão, sexualidade infantil, relação entre sintomas neuróticos e fenômenos da vida psíquica “normal”, diretrizes básicas do tratamento psicanalítico – tudo isso se encontra razoavelmente esboçado por volta de 1900. Os Estudos sobre a histeria (1895), publicação em co-autoria com o JOSEPH BREUER, trazem relatos sobre vários tratamentos conduzidos pelos JOSEPH BREUER (1842-1925): autores, em geral com pacientes histéricas atormentadas por médico vienense, amigo e colaborador de quem Freud múltiplos sintomas, inclusive corporais (como paralisias). se afasta a partir de 1896 Deduz-se que tais sintomas são formados a partir da repressão em razão de divergências de certas lembranças que, não podendo ser integradas na teóricas. história dessas mulheres, “retornam” no corpo, simbolizadas nos e pelos sintomas. Nessa época, Freud e Breuer empregavam a hipnose para obter acesso a materiais que pudessem estar na origem dos sintomas. Durante o transe hipnótico surgiam lembranças que, uma vez relatadas e revividas afetivamente, auxiliavam na elucidação e mesmo na eliminação de certos sintomas. É o que se chama de “método catártico”: sob hipnose, o paciente recorda e revive um evento que lhe foi traumático, externalizando e descarregando afetos não manifestados por ocasião do trauma; tal descarga Freud muitas vezes retoma a história de ANNA O. quando deseja emocional é denominada ab-reação. apresentar a psicanálise para público leigo, Ilustremos com um pequeno exemplo como nas Cinco lições de psicanálise, de 1910. extraído de um dos casos mais famosos relatados Na verdade, Anna O. foi paciente de Breuer no início dos anos 1880 e foi quem primeiro nesse livro, o da jovem ANNA O. Essa paciente se referiu à psicanálise como uma talking padecia de inúmeros sintomas, como tosse nervosa, cure, isto é, uma cura pela fala. 376 alucinações, distúrbios visuais e motores. Em certa ocasião, manifestou também a impossibilidade de beber água – apesar da sede, afastava o copo da boca com intensa aversão. Sob hipnose, relatou uma cena na qual presenciara o cão pertencente à sua dama de companhia bebendo água em seu próprio copo, o que lhe suscitou intensos sentimentos de nojo e de raiva; por polidez, nada disse e conteve esses afetos. Porém, se o registro da cena permanecesse em sua consciência, continuaria a provocar desprazer. Por isso, tal registro foi alvo de REPRESSÃO, mecanismo pelo qual um conteúdo REPRESSÃO, recalque ou psíquico é excluído da consciência, enviado para o sistema recalcamento são as trainconsciente e lá mantido. Como efeito da repressão, houve duções possíveis para o termo alemão Verdrängung. o esquecimento da representação patógena (isto é, ligada ao aparecimento do sintoma patológico). Sob hipnose, Anna O. pôde reviver a cena e descarregar os afetos suprimidos, o que lhe possibilitou recuperar a capacidade de ingerir líquidos. Freud, porém, tinha algumas ressalvas em relação ao uso da hipnose: nem todos os pacientes eram hipnotizáveis e a eliminação dos sintomas revelara-se apenas provisória ou parcial. Mas o principal motivo que o leva a abandonar deinitivamente esse método é o fato de considerá-lo um meio artiicial de neutralizar a resistência. Ou seja, a hipnose encobre a existência de uma força/barreira que ativamente impede o acesso aos conteúdos reprimidos. Para Freud, é preciso encontrar um meio que permita a dissolução gradual das resistências, de maneira a que o conteúdo reprimido possa ir se tornando consciente sem suscitar o mesmo desprazer ou angústia que motivou sua repressão. Por isso, a partir de 1896, Freud passa a empregar o método da associação livre (ou livre associação), que será considerada a regra fundamental do tratamento psicanalítico: ele solicita a seus pacientes que, deitados em um divã e de costas para o psicanalista, digam livremente tudo o que lhes ocorrer à mente, sem qualquer tipo de censura ou inibição, mesmo que as idéias assim surgidas pareçam absurdas ou triviais. Freud veriica que tais idéias, na verdade, vão se encadeando e se remetendo umas às outras, de modo a ir formando cadeias associativas que tendem a se entrecruzar. Assim, iriam emergindo elementos que possibilitariam a constituição e reconstituição de múltiplas redes de sentido sob as ocorrências ou fenômenos mais (aparentemente) banais. No fundo, ele supõe que as associações livres não se dão ao acaso (não sendo, portanto, exatamente livres...); ao contrário, acredita em um “determinismo psíquico”, isto é, que no psiquismo tudo possui ou remete a um sentido latente. 377 Mas, a essa altura, Freud já se encontra na pista de uma outra proposição crucial: os sintomas histéricos são formados a partir dos mesmos conteúdos e segundo os mesmos mecanismos que explicam nosso funcionamento psíquico “normal” e cotidiano. O sonho noturno ilustra particularmente bem tal funcionamento; daí a importância de A interpretação dos sonhos (1900), livro no qual se efetua a passagem das investigações estritamente psicopatológicas para um modelo mais amplo, que Freud considera capaz de dar conta do psiquismo em geral. Esse primeiro grande modelo de aparelho psíquico (ou “primeira tópica”) vinha sendo delineado ao longo dos anos 1890, mas só no capítulo VII de A interpretação dos sonhos foi oicialmente formalizado. É composto por dois grandes sistemas – inconsciente e pré-consciente/consciente –, separados por uma barreira (censura) que exerce ativamente uma força (repressão) no sentido de expulsar certas representações (idéias, lembranças, fantasias) do sistema pré-consciente/consciente e mantê-las no sistema inconsciente. Como vimos a propósito de Anna O., essa operação se faz necessária porque tais representações causam angústia e dor quando disponíveis na consciência do sujeito. Porém, a repressão não destrói a representação dolorosa: mesmo mantida em estado inconsciente, ela permanece ativa, tentando retornar ao sistema consciente. O resultado desse conlito, que envolve um verdadeiro jogo de forças, é a produção das chamadas “formações do inconsciente: os sintomas, sonhos, lapsos (ou atos falhos) e chistes (piadas e ditos de espírito)” que seriam frutos de uma espécie de “negociação” entre os sistemas. As representações reprimidas podem vir a ser readmitidas na consciência (retorno do reprimido), contanto que passem por um processo de deformação que as torne irreconhecíveis, deixando assim de despertar angústia no sujeito. É por esse motivo que as formações do inconsciente solicitam procedimentos interpretativos: enigmáticas para o próprio sujeito (que as considera insigniicantes, bizarras ou simplesmente incompreensíveis), são produções que encobrem outros sentidos, a serem construídos ou reconstruídos por meio da interpretação psicanalítica. Em última instância, o trabalho da interpretação é desfazer a deformação a que foram submetidos os conteúdos reprimidos. A interpretação só pode ser formulada a partir das associações livres produzidas pelo sujeito implicado no sonho, lapso ou sintoma. É importante frisar esse aspecto para que se evite um uso “selvagem” dos conceitos psicanalíticos, isto é, sua aplicação mecânica e indiscriminada sobre fenômenos cujo signiicado oculto se pretenderia decifrar à maneira de 378 uma chave simbólica. Ora, nada mais distante dos propósitos freudianos: a produção de sentidos – sempre múltiplos e singulares – é uma tarefa laboriosa e necessariamente conduzida pelo próprio sujeito (e não “despejada” sobre ele...), no mais das vezes no quadro de um tratamento psicanalítico. Ao longo de sua obra, Freud fornece inúmeros exemplos de interpretações de sonhos, lapsos e chistes, além de vários relatos clínicos – de breves vinhetas a grandes casos, como as “CINCO GRANDES PSICANÁLISES”: Dora, O pequeno Hans, O homem dos ratos, Schreber e O homem dos Títulos pelos quais se tornaram conhecidos os escritos denominalobos. É importante ressaltar que, deste conjunto, dos, respectivamente: Fragmentos da análise apenas três foram efetivamente seus pacientes: o de um caso de histeria (1905), Análise de uma “tratamento” de Hans foi conduzido pelo pai do fobia de um menino de cinco anos (1909), Notas um caso de neurose obsessiva (1909), Notas menino (sob orientação de Freud) e o escrito sobre sobre psicanalíticas sobre um relato autobiográico de um Schreber deriva de uma análise da autobiograia caso de paranóia (1911), História de uma neurose infantil (1918). – Memórias de um doente dos nervos – deste que era um alto magistrado alemão. De todo modo, e aqui chegamos a outro aspecto crucial da teoria psicanalítica, a análise das neuroses e das demais formações do inconsciente vai apontando a Freud que o material reprimido tende a ser, sobretudo, de natureza sexual. Ao longo da década de 1890, Freud vinha investigando a etiologia sexual da histeria e demais psiconeuroses; também A interpretação dos sonhos mostrara que os desejos reprimidos que se realizavam de forma disfarçada nos sonhos eram primordialmente de caráter sexual e infantil. Mas é em 1905 que traz a público seus Três ensaios para uma teoria da sexualidade, texto em que deinitivamente situa a sexualidade como base da vida psíquica humana. Freud airma inúmeras vezes que entende a sexualidade em um sentido “amplo”, e não simplesmente como o conjunto de atividades ligadas à genitalidade e à inalidade procriativa – daí, inclusive, a possibilidade de reconhecer a existência de uma sexualidade infantil. A psicanálise efetua uma verdadeira ruptura naquilo mesmo que até então se considerava sexualidade, alvo de vários discursos normativos, como o da sexologia e o da criminologia. Ao contrário destes, que priorizavam a explicação dos desvios sexuais com base em teorias da hereditariedade e da degenerescência, a concepção psicanalítica da sexualidade embaralha as fronteiras entre normal/patológico, bem como prescinde da categoria de instinto sexual (impulso pré-formado, comum à espécie como um todo, dotado de objeto e inalidade ixos). Freud prefere lançar mão do conceito de Triebe (impulso ou pulsão) exatamente para dar conta do caráter plástico, das 379 múltiplas, contingentes e mutantes feições que pode assumir a sexualidade humana. No texto de 1905 já se encontram postulados os elementos fundamentais da pulsão: fonte (região do corpo), pressão (força, elemento quantitativo), meta ou alvo (atividade que visa suprimir a excitação) e objeto (aquilo por intermédio do qual a pulsão atinge seu alvo). Tais elementos diferem e se articulam também de diferentes maneiras nas inúmeras conigurações que podem assumir a sexualidade dita “normal” e também a (até então) situada no terreno das perversões (como o fetichismo, por exemplo). A concepção freudiana da sexualidade opera deslocamentos importantes em vários níveis: da genitalidade para o corpo em geral, no qual se destacam algumas zonas erógenas (como a boca e o ânus); do adulto para a criança, em quem se identiicam formas variadas de exercício do auto-erotismo; e, importantíssimo, do registro da necessidade para o registro do “prazer”. De início, o prazer surge como um acréscimo marginal à satisfação de uma função vital – ao mamar, por exemplo, o bebê tem saciada sua fome, mas o contato com o mamilo materno e o contato com o luxo de leite morno acabam por lhe proporcionar um prazer a mais, que passa a ser buscado como im em si mesmo. Nesse momento de sua obra, Freud postula a existência de dois tipos de pulsões – as de autoconservação e as sexuais. Como mostra o exemplo acima, inicialmente as pulsões sexuais se apóiam nas de autoconservação, mas delas gradualmente se diferenciam. Mais do que isso, os DUALISMOS PULSIONAIS assinalam que as diferentes pulsões se encontram Na década de 1920, Freud irá reformular em oposição e em conlito constantes. É um dos sua teoria das pulsões propondo um novo DUALISMO: pulsões de vida e pulsões terrenos onde melhor se constatam a centralidade de morte. É em Além do princípio do prazer (1920) que ele uniica as pulsões sexuais e de e a irredutibilidade do conlito tal como Freud o autoconservação na categoria mais ampla concebe – deinitivamente instalado no âmago, no de pulsão de vida (ou de Eros), já que ambas têm como propósito incrementar cerne do psiquismo humano. a vida e os vínculos, promovendo ligações A energia da pulsão sexual, em sua manifesem unidades cada vez maiores. A pulsão de morte (Thânatos), ao contrário, tação psíquica, é chamada de libido (do latim: dissolve e desfaz as ligações, visando fazer desejo). Por ser um elemento quantitativo, a libido o organismo atingir o grau zero de tensão, circula, investe e desinveste os objetos, por exemplo. isto é, retornar ao inanimado. Uma das contribuições mais importantes de Freud está na descrição dos estágios de evolução da libido que ocorrem ao longo da infância de acordo com a predominância de uma zona erógena e de um modo característico de relação com o objeto. No estágio oral, por exemplo, o prazer 380 sexual está ligado à boca e aos lábios, à atividade de sucção (dos seios ou do polegar), e o bebê está às voltas com a incorporação dos objetos. A teoria das fases do desenvolvimento psicossexual sofreu várias transformações, mas pode-se dizer que a partir de 1923 ela adquire sua formulação mais clássica: fases oral, anal, fálica, latência e genital. Não caberia aqui enveredar pela explicitação de todas elas, mas é indispensável uma referência, ainda que breve, ao complexo de Édipo. Por volta dos 3 aos 5 anos, a criança viveria um período de intensos desejos amorosos e hostis em relação aos pais. Ao longo de sua obra, Freud vai se dando conta de que a trajetória edípica de meninos e meninas tem características bastante diversas. Não obstante essas diferenças, o complexo de Édipo tende a declinar ou dissolver-se com a renúncia da criança ao seu objeto de amor e a conseqüente identiicação com os valores da cultura representados pelos pais. É o momento em que a criança passa a integrar a ordem social, pois se submete às normas culturais das quais a interdição do incesto pode ser tomada como paradigma, já que vigora em todas as sociedades. A estrutura triangular do Édipo, à qual Freud atribui caráter universal, é vivida de modo absolutamente singular por cada sujeito, de acordo com as vicissitudes de sua história libidinal infantil. Tal singularidade estará em jogo na própria estruturação da personalidade do sujeito (exemplo: o caráter mais ou menos severo de sua consciência crítica), na futura escolha de objetos amorosos (exemplo: traços físicos ou psíquicos que despertam atração) e também na deinição dos contornos de sua psicopatologia. Vê-se, pois, que antes de 1910 estão assentados alguns dos principais pilares do pensamento freudiano (inconsciente, repressão e sexualidade), mas nem por isso a teoria deixa de passar por radicais e profundas transformações. Alguns desdobramentos posteriores Entre 1914 e 1917, Freud produz um conjunto de escritos na tentativa de sistematizar em torno de conceitos-chave – como os de inconsciente, pulsão e narcisismo – o conhecimento teórico até então construído; são os chamados “artigos metapsicológicos”, nos quais se efetuam elaborações decisivas para as mudanças introduzidas na década seguinte. A título de exemplo, pode-se dizer que o estudo do narcisismo é um dos ingredientes que levam à reformulação da teoria das pulsões: ainal, se o próprio eu pode se tornar objeto de investimento 381 libidinal, esvazia-se a distinção entre pulsões de autoconservação e pulsões sexuais. A década de 1920 traz ainda outra novidade: a chamada “segunda tópica”, que descreve o aparelho psíquico como sendo constituído por três instâncias, denominadas ID, EGO e SUPEREGO. A nova divisão não corresponde ponto por ponto à tópica anterior (como vimos: Na verdade, Freud nunca empregou inconsciente, pré-consciente e consciente), pois esses termos em latim – em alemão, o ego e o superego têm partes inconscientes constam os pronomes “isso” e “eu” (assim como o composto “supereu”). A tradução inglesa (a cargo (como mostra, por exemplo, o uso dos me- de James Strachey, que trabalhou conforme as canismos de defesa por parte do ego). Ou diretrizes traçadas por Ernest Jones) foi responsável pela escolha de uma língua morta para designar ainda, o id é totalmente inconsciente, mas tais instâncias. Sabe-se que essa tradução, que concebido em termos mais amplos do que o tanto contribuiu para a difusão da psicanálise, pautou-se pela tentativa de tornar a linguagem sistema inconsciente da primeira tópica (que de Freud menos coloquial, de modo a adequá-la coincidia, em grande parte, com os conteúdos às expectativas de cientiicidade que impregnam a tradição intelectual anglo-saxã. reprimidos); o id é o substrato pulsional do psiquismo e contém outras coisas além do material recalcado, como algumas fantasias herdadas que nunca sofreram repressão e jamais se tornarão conscientes. Os problemas e desaios enfrentados na clínica psicanalítica nunca deixaram de requerer um considerável esforço de teorização por parte de Freud, embora – felizmente – ele tenha resistido à tentação de sistematizar as indicações relativas a esse campo e evitado reduzi-las a seus aspectos técnicos. Nessa vertente, merece destaque a noção de transferência, que aponta para a importância crucial do vínculo afetivo entre paciente-psicanalista como cenário e ingrediente decisivo para o desenrolar do tratamento analítico. Dos vários textos sobre clínica que pontilham toda a obra freudiana, sobressaem os assim chamados “escritos técnicos” da década de 1910, além de ensaios como Análise terminável e interminável (1937), no qual são discutidos, sem grandes ilusões, os alcances e limites de um processo psicanalítico. Não poderíamos deixar de mencionar alguns escritos de um conjunto que seria possível circunscrever como os “textos sociais” de Freud. Desde o início de sua obra, é evidente sua preocupação em articular a vida psíquica individual com a vida social e os limites que esta impõe ao indivíduo, a começar pela interdição do incesto. Em nome das exigências culturais, a satisfação pulsional é grandemente cerceada, inclusive em seus aspectos agressivos e destrutivos. Embora os indivíduos ganhem com isso a possibilidade de conviver em grupo, ressentem-se profundamente de tais renúncias. A cultura é, pois, 382 construída sobre a base da repressão, o que faz com que o homem cultive uma hostilidade permanente contra ela. Dentre as obras em que Freud se debruça sobre as complexas e conflituosas relações entre indivíduo/cultura destacam-se: Moral sexual civilizada e doença nervosa moderna (1908), sobre o preço excessivamente alto que a sociedade cobra em termos de restrições à vida sexual; Totem e tabu (1913), um conjunto de ensaios de caráter antropológico nos quais se esboça um mito psicanalítico sobre a origem da civilização, ediicada a partir do pacto efetuado entre os irmãos da horda primitiva que teriam conjuntamente assassinado o pai tirânico; Psicologia das massas e análise do ego (1921), onde Freud analisa o psiquismo/comportamento do indivíduo como elemento de um grupo organizado (como a Igreja e o Exército) ou dentro da massa desorganizada, a dinâmica que estabelece com o líder e o importante papel da identiicação na formação dos vínculos entre os membros de um grupo. Em 1927, Freud dedica um texto bastante crítico à religião (O futuro de uma ilusão), vista como uma ilusão criada pelos próprios homens na tentativa de se defender de seu profundo desamparo diante dos perigos da natureza e da sociedade, desamparo que remete, em última instância, à nossa initude. Dois anos depois vem à luz um dos mais belos escritos de Freud, O mal-estar na cultura, no qual se traça um amplo e lúcido painel sobre os irredutíveis conlitos entre indivíduo/cultura, as diversas formas pelas quais tentamos minimizar a infelicidade daí advinda, bem como sobre o papel do superego e do sentimento de culpa na manutenção da vida civilizada. Mais do que meras “ampliações” ou “aplicações” da teoria psicanalítica em direção ao social, tais ensaios demonstram como a relexão sobre o indivíduo requer, necessária e intrinsecamente, uma relexão sobre a cultura. Como airma Freud em uma célebre mas não pouco polêmica declaração, a oposição entre psicologia individual e coletiva carece de sentido, pois a psicologia individual é, desde o início e ao mesmo tempo, psicologia social. O caráter híbrido do pensamento freudiano Embora rápida, esta síntese da psicanálise freudiana parece suiciente para mostrar que Freud reformula continuamente seus conceitos, chegando a efetuar profundos remanejamentos teóricos. Ademais, as questões teóricas e técnicas passam a ser discutidas e elaboradas coletivamente à medida que o movimento psicanalítico vai ganhando força, organização e reconhecimento 383 (cf. próximo item). De todo modo, vimos que alguns alicerces fundamentais do edifício da psicanálise estão solidamente assentados por volta de 1900. Dentre eles, o que melhor resume o cerne da proposição freudiana: o conceito de “inconsciente”. Conforme apontamos nesta breve apresentação, Freud concebe o inconsciente como um sistema radicalmente heterogêneo ao sistema préconsciente/consciente (por exemplo, é regido por uma outra lógica, que admite a coexistência de contraditórios). Tal heterogeneidade se mantém e talvez até se acentue na segunda tópica: o id, reservatório pulsional, tem um caráter bastante enigmático, inclusive no que se refere à sua abertura para a dimensão somática do indivíduo. Tanto no modelo da primeira quanto no da segunda tópica, nada sabemos sobre as representações e os afetos inconscientes, embora soframos seus efeitos e tenhamos nossa vida psíquica em grande parte determinada por eles. O homem, tal como concebido por Freud, é assim um sujeito cindido, clivado, em permanente conlito interno, incapaz de se autoconhecer e se autodominar por completo. Por isso, diz ele, as ferozes críticas continuamente endereçadas à psicanálise: ela fere a auto-estima humana ao mostrar que o “eu” não é senhor nem mesmo em sua própria casa. Em suma, estamos às voltas com uma concepção de sujeito descentrado, atravessado por forças e sentidos que lhe são estranhos e alheios, e que a muito custo mantém uma imagem – falsa – de unidade coesa. E não bastasse o conlito irredutível com os impulsos e desejos inconscientes, o “eu” ainda tem que se haver com as exigências da realidade externa e também com os imperativos de nossa consciência moral. Entende-se, assim, a situação de precariedade do “eu” consciente tal como descrito pela teoria freudiana – uma verdadeira máquina de guerra contra as ilusões de autonomia e engrandecimento tão características do homem moderno. Se nos detivermos ainda por mais um instante sobre a noção de inconsciente, veremos que nela se mostra com clareza o caráter paradoxal do empreendimento freudiano. Freud herda a problemática do inconsciente do ROMANTISMO ALEMÃO, no qual era tema extensamente debatido por ilósofos, médicos e escritores. A tradição romântica também se faz fortemente ROMANTISMO ALEMÃO: conjunto de idéias e valores que impregnaram todos os setores da vida social germânica (artes, ilosoia, ciência, política etc.) entre, aproximadamente, 1770 e 1830. Algumas de suas características centrais: anseio de restaurar a unidade e a harmonia (entre o homem e seus semelhantes, a natureza e o cosmo) perdidas com o advento do mundo moderno; crítica aos excessos do racionalismo e algumas de suas características (materialismo, mecanicismo, quantiicação, abstração); conseqüente valorização dos fenômenos não racionais (sentimentos, imaginação, intuição, instintos, loucura, sonho, corpo, morte) e da arte/poesia como linguagem privilegiada para expressar o não-representável. 384 presente no interesse pelos sonhos, a sexualidade, a loucura e a morte – ou seja, fenômenos situados nas bordas da racionalidade –, bem como em outras noções que vieram a fazer parte do vocabulário psicanalítico (como a de pulsão, por exemplo). A abordagem romântica do inconsciente, porém, tendia a vê-lo como um princípio absoluto e transpsíquico, isto é, como ponto de inserção do homem na natureza e como abertura para o Todo cósmico, dimensão de onde tudo deriva e para a qual tudo converge. Porém, afastando-se dessa abordagem mística e metafísica do inconsciente, Freud pretende esclarecer os mecanismos e leis que regem seu funcionamento. O propósito freudiano é de explicá-lo cientiicamente, sem qualquer tipo de valoração (positiva ou negativa) de seus conteúdos, características ou efeitos. Lembremos que Freud sempre insistiu em considerar a psicanálise como uma ciência da natureza, na melhor tradição positivista em que foi formado. Mostra-se aqui toda sua impregnação pelos ideais iluministas do século XVIII: o homem dispõe livremente de sua razão para fazer avançar o conhecimento racional sobre as trevas da superstição e da ignorância; com o otimismo epistemológico que lhe é característico, o Iluminismo aposta no progresso da ciência rumo à descoberta dos princípios verdadeiros, universais e objetivos que regem o mundo natural e humano. Em poucas palavras, a concepção freudiana de inconsciente demonstra como o interesse de Freud por fenômenos não racionais subordina-se ao intuito de esclarecimento e conquista de tais terrenos para o conhecimento cientíico. Fascínio pelo irracional, propósito de conhecê-lo racionalmente – eis motivos românticos e iluministas indissoluvelmente entrelaçados. Note-se que essa “mistura” tão singular das principais tendências do pensamento europeu relete-se, de algum modo, nas várias facetas que compõem a formação intelectual de Freud (cujas principais balizas foram assinaladas no início deste capítulo). Daí a diiculdade em classiicar ou reduzir seu pensamento a tal ou qual tradição; ele é uma espécie de “híbrido” e, como tal, tem recebido as designações mais paradoxais – “positivismo temperado”, “racionalismo negro” ou, segundo a ótima sugestão de Y. Yovel (1991), um legítimo representante do “Iluminismo sombrio”. Luzes e sombras nas raízes e, também, na própria natureza do saber psicanalítico. 385 Indicação estéticas e bibliográficas Filmes: Freud, além da alma (1962, direção de John Huston). Inconscientes (2004, direção Joaquín Oristrell). Mezan, Renato. (2000) Freud, a conquista do proibido. São Paulo: Ateliê Editorial. Roudinesco, E. e Plon, M. (1998) Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. Garcia-Roza, L. A. (1984) Freud e o inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. Gay, P. (1989) Freud, uma vida para nosso tempo. São Paulo: Companhia das Letras. Laplanche, J. e Pontalis, J-B. (1985) Vocabulário da psicanálise. 8a ed. São Paulo: Martins Fontes. Yovel, Y. (1991) Spinoza et Freud. In: Spinoza et autres hérétiques. Paris: Seuil. Referências Freud, S. (1980) Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 24 vols. ______ (1901) Sobre os sonhos, vol. V. ______ (1910) Cinco lições de psicanálise, vol. XI. ______ (1916-17) Conferências introdutórias sobre psicanálise, vols. XV e XVI. ______ (1925) Um estudo autobiográico, vol. XX. ______ (1929) O mal estar na civilização, vol. XXI. Loureiro, I. (2002) O carvalho e o pinheiro. Freud e o estilo romântico. São Paulo: Escuta/Fapesp. 386 Capítulo 23 Aspectos históricos da psicanálise pós-freudiana Christian Ingo Lenz Dunker O freudismo Os últimos dez anos da vida de Freud foram um período conturbado. Não só para a psicanálise, mas para a deinição do que viria a ser a época em que vivemos. Para o historiador Erich Hobsbawm, é nesse