Crítica | Xógum (1980) - Plano Crítico
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Crítica | Xógum (1980)

Uma suntuosa produção da TV aberta americana.

por Ritter Fan
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A minissérie Xógum (que passou aqui como Shogun mesmo), produzida pela Paramount Television com base no romance épico homônimo de 1975 de James Clavell e transmitida nos EUA pela NBC, veio à reboque dos sucessos de Raízes, da ABC e de Jesus de Nazaré, produção ítalo-britânica comandada por Franco Zeffirelli, ambas de 1977, que desbravaram com enorme sucesso esse formato de “série limitada”, ainda engatinhando naquela época. Xógum, assim como o livro que lhe serviu de inspiração, foi uma das obras que apresentou o Japão ao Ocidente de maneira mais ampla (uma espécie de “japanofilia”), considerando seu enorme sucesso quando foi lançada na TV aberta americana ao longo de cinco dias consecutivos, com o primeiro e último episódios com três horas de duração e os demais com uma hora cada mais ou menos, ajudada pela greve geral de atores daquele ano que fez minguar a oferta de material novo na TV e cinema.

Os efeitos de Xógum se fizeram sentir também em diversos outros países do Ocidente, incluindo o Brasil, com a minissérie chegando por aqui com a mesma pompa e circunstância dos EUA e fixando-se no imaginário popular local. A grande verdade é que o romance baseado em fatos históricos tem um apelo universal ao lidar com um pano de fundo de choque cultural, com o navegador britânico John Blackthorne (Richard Chamberlain) naufragando na costa japonesa em 1600 e tornando-se peão das estratégias e intrigas de guerra do poderoso daimyō Yoshi Toranaga (Toshiro Mifune) e iniciando um relacionamento amoroso proibido com Lady Toda Mariko (Yoko Shimada), que, por ter se convertido ao catolicismo, fala português fluente e, assim, serve inicialmente de intérprete e professora de japonês de Blackthorne, que, por sua vez, não demora a ser rebatizado de Anjin (nada mais do que a palavra que designa sua profissão, “Piloto”) e a ser honrado como hatamoto, ou seja, um samurai de nível hierárquico elevado, com acesso direto a seu senhor.

Chega a ser impressionante o quão próxima é a adaptação do livro feita por Eric Bercovici, que mantém-se fiel à estrutura narrativa por boa parte da minutagem, só realmente mostrando diferenças mais sensíveis quando a história caminha para o final, como é o caso, especialmente, de uma deficiência imposta à Blacktorne depois do ataque ao castelo de Osaka por ninjas. Com uma produção cara e suntuosa, filmada quase que integralmente em locação no Japão – incluindo no mítico estúdio Toho, lar de Godzilla) – e com atores realmente japoneses vivendo japoneses (e não nipo-americanos ou, pior ainda, americanos com maquiagem como não era incomum na época), e, mais ainda, falando japonês, a minissérie mereceu toda a atenção que teve e tudo o que ela representou para a televisão, ajudando a abrir caminho para algo como mais uma década de investimentos em obras assim pela TV aberta americana, até o advento da programação original das TV à cabo.

Mesmo sendo uma minissérie fora da curva se comparada às demais ofertas televisivas americanas da época – e que denominamos carinhosamente por aqui de “enlatados” -, Xógum é inegavelmente um produto típico de quando foi produzida e precisa ser encarada e avaliada como tal. Há um tom melodramático novelesco que enfatiza a relação de Anjin com Mariko que leva à submersão dos detalhes da trama política capitaneada capitaneada em nível macro por Toranaga e no micro pelo comicamente incorrigível e traiçoeiro Kashigi Yabu (o comediante Frankie Sakai), daimyō da região de Izu que é onde Blackthorne e o que restou de sua tripulação holandesa chegam. A direção de fotografia de Andrew Laszlo, talvez mais lembrado por seu trabalho em Warriors – Os Selvagens da Noite, segue um padrão “limpo” de telenovela, algo que é amplificado por um design de produção belíssimo e verossimilhante, mas completamente asséptico, em que todos estão sempre bem vestidos e bem penteados, mesmo quando estão em situação de vida ou morte, caso em que os figurinos e trabalhos de maquiagem e cabelo faz o mínimo possível para passar essa informação visual e nada mais (como, por exemplo, as profundas e completamente artificiais olheiras de Blackthorne, nas primeiras horas da minissérie). É bem verdade que o próprio Clavell, em seu romance, contrasta firmemente a limpeza japonesa com a sujeira europeia, mas a minissérie eleva isso a outro nível, mesmo que os figurinos sejam efetivamente belíssimos, com especial destaque para os vários e vistosos quimonos da trinca central. Ou seja, é tudo muito bonito e muito imponente, mas um pouco imaculado demais.

Mas, verdade seja dita, a produção de Xógum foi bem além de seu tempo, com as limitações técnicas só sendo mesmo sentidas nas sequências claramente em estúdio, especialmente as marítimas, com a réplica do célebre navio de Sir Francis Drake sendo usado como o Erasmus, nau de Blackthorne. Até mesmo a forma como o japonês é usado é fora de série para os padrões da época e até de hoje em dia. Todos os personagens japoneses falam japonês, com os personagens ocidentais que precisam falar japonês também seguindo essa linha, até mesmo Chamberlain quando começa a mostrar que seu personagem é hábil na absorção de novas línguas (Blackthorne, além de falar inglês, fala holandês, português, espanhol e latim fluentemente, o que deixa evidente seu jeito para línguas) e, mais ainda, esse uso do japonês não é tornado compreensível aos espectadores de maneira direta, com o uso conveniente de legendas (como na minissérie de 2024). O japonês é mantido como um mistério completo e diálogos inteiros são travados na incompreensível língua nipônica sem maiores explicações que o espectador precisa usar o contexto para compreender.

No entanto, a produção se perde um pouco quando efetivamente precisa tornar o japonês compreensível. Sem o benefício que o romance tem de “entrar na mente” de seus personagens, as sequências em que as conversas passam por intermediários (intérpretes) são cansativas e isso mesmo quando o artifício de não nos deixar ouvir a tradução é utilizado. Além disso, chega a um ponto na história em que a necessidade de compreensão do japonês torna-se premente, especialmente com as várias sequências em que Anjin não participa e que são carregadas de peso político. Nelas, a produção usa variadas técnicas, como narração em off de um narrador que não vemos, legendas curtas e até mesmo personagens falando em japonês e, em seguida, em inglês para o público. A falta de homogeneidade nesse quesito é estranha e completamente desnecessária, pois o uso pontual de narrador supriria esse problema sem maiores invencionices.

Abordando um pouco o elenco, vale começar por Richard Chamberlain, já que a minissérie foi responsável por uma “segunda vida” do ator em seu ofício, já que ele há algum tempo havia perdido seu star power e estava precisando de um papel de destaque para reativar sua carreira. A produtora queria escalar Sean Connery como John Blackthorne, mas o ator escocês recusou-se a se mudar para o Japão pelo tempo necessário, com o nome de Chamberlain começando, então a circular, nome esse inicialmente pouco atraente para o próprio Clavell que era produtor executivo. Quando ele finalmente foi escalado e as filmagens começaram, o próprio autor do romance voltou atrás e passou a aplaudir o ator. Chamberlain, porém, nunca foi exatamente um grande ator. Ele, sem dúvida alguma, tem a imponência que o personagem pede, além de ficar muito bem de barba espessa e quimonos variados, mas sua latitude dramática é limitada, o que faz de seu John Blackthorne um personagem razoavelmente unidimensional, mesmo considerando o destaque que o texto dá para ele (maior do que no livro, vale dizer). Por outro lado, Chamberlain é exatamente o que uma produção que escolheu o caminho melodramático que citei precisava: ele é o grande galã que solta frases bregas de amor para Mariko, o que combina perfeitamente com toda a atmosfera criada ao seu redor.

Por seu turno, Yoko Shimada entrega um trabalho de atuação muito mais sutil e nuançado, que esconde por trás do rosto de sua Mariko uma personagem repleta de dúvidas, dúvidas essas que são exploradas no romance, mas não exatamente na minissérie. Frankie Sakai é, ao mesmo tempo, um alívio cômico e o vilão que amamos odiar, com sua abordagem mais esterotípica funcionando bem para seu Yabu. O grande Toshiro Mifune que, depois de O Barba Ruiva, obra que marcou o fim de seu relacionamento profissional com Akira Kurosawa, continuou gozando de grande sucesso tanto no Japão quanto no ocidente, com sua participações em produções britânicas e americanas, pelo que sua escalação como Toranaga era quase que completamente inevitável, mesmo que sua aparência física fosse muito diferente do personagem e, também, da figura realmente de Yeasu Tokugawa, em que ele foi baseado, ou seja, o exato oposto de um homem atarracado com uma rígida “barriga de chope”, ainda que ágil. Mas Mifune, mesmo sendo razoavelmente subaproveitado pela supressão de grande parte da trama política, entrega um trabalho valioso, um líder samurai de profunda paciência e capacidade estratégica que joga um longo jogo de xadrez na vida real. A sequência em que Toranaga dança ao lado de Blackthorne é absolutamente memorável, assim como sua imponência majestosa toda vez que entra em cena.

Xógum foi, sem dúvida alguma, um grande marco televisivo em 1980 e continua sendo uma obra que comanda respeito tantas décadas depois, por trilhar um caminho pouco usual de obras semelhantes na época ao mergulhar de verdade na cultura nipônica e entrega aos espectadores ocidentais um olhar genuíno – tanto quanto possível, claro – sobre um povo fascinante e uma época histórica ainda mais impressionante. A minissérie pode não ter alcançado todo o potencial do material base, tarefa que reputo extremamente difícil dada sua complexidade, mas as mais de nove horas dessa obra da TV aberta americana realmente abriram muitas portas não só para o modo de se fazer TV, como, também, para aproximar o Oriente do Ocidente.

Xógum (Shogun – EUA, 15 a 19 de setembro de 1980)
Direção: Jerry London
Roteiro: Eric Bercovici (baseado em obra de James Clavell)
Elenco: Richard Chamberlain, Toshiro Mifune, Yoko Shimada, Frankie Sakai, Alan Badel, Michael Hordern, Damien Thomas, John Rhys-Davies, Vladek Sheybal, George Innes, Leon Lissek, Yūki Meguro, Hideo Takamatsu, Hiromi Senno, Nobuo Kaneko, Edward Peel, Eric Richard, Steve Ubels, Stewart MacKenzie, John Carney, Ian Jentle, Neil McCarthy, Morgan Sheppard, Seiji Miyaguchi, Toru Abe, Mika Kitagawa, Shin Takuma, Hiroshi Hasegawa, Akira Sera, Hyoei Enoki, Miiko Taka, Midori Takei , Ai Matsubara
Duração: 549 min. (cinco episódios)

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