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Tradução Alessandra Bonrruquer 1ª edição Rio de Janeiro | 2023 23-84530 TÍTULO ORIGINAL e Queen: Her Life TRADUÇÃO Alessandra Bonrruquer DESIGN DE CAPA Juliana Misumi CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ M864r Morton, Andrew A rainha [recurso eletrônico]: a vida de Elizabeth II / Andrew Morton; tradução Alessandra Bonrruquer. – 1. ed. – Rio de Janeiro: BestSeller, 2023. recurso digital Tradução de: e queen: her life Formato: epub Requisitos do sistema: adobe digital editions Modo de acesso: world wide web ISBN 978-65-5712-290-7 (recurso eletrônico) 1. Elisabeth, rainha da Inglaterra, 1926-2022. 2. Rainhas – Inglaterra – Biogra�a. 3. Livros eletrônicos. I. Bonrruquer, Alessandra. II. Título. CDD: 942.086092 CDU: 929 Meri Gleice Rodrigues de Souza – Bibliotecária – CRB-7/6439 Texto revisado segundo o Novo Acordo Ortográ�co da Língua Portuguesa Copyright © 2022 by Andrew Morton is edition published by arrangement with Grand Central Publishing, New York, New York, USA. All rights reserved. Copyright da tradução © 2023 by Editora Best Seller Ltda. Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, no todo ou em parte, sem autorização prévia por escrito da editora, sejam quais forem os meios empregados. Direitos exclusivos de publicação em língua portuguesa para o Brasil adquiridos pela Editora Best Seller Ltda. https://snel.bnweb.org/scripts/bnweb/bnmcip.exe/ficha?OTo9ajw7 Rua Argentina, 171, parte, São Cristóvão Rio de Janeiro, RJ — 20921-380 que se reserva a propriedade literária desta tradução. Produzido no Brasil ISBN 978-65-5712-290-7 Seja um leitor preferencial Record. Cadastre-se e receba informações sobre nossos lançamentos e nossas promoções. Atendimento e venda direta ao leitor: sac@record.com.br mailto:sac@record.com.br Para minha mãe, Kathleen, e todos aqueles que nasceram e cresceram em tempos de guerra. Introdução: Vencendo as ondas com Sua Majestade 1. Shirley Temple 2.0 2. Bombas na hora de dormir 3. Uma caminhada entre as urzes 4. A princesa descalça 5. Coroação gloriosa 6. Corações e diademas 7. Segredos, escândalos e espiões 8. Uma questão familiar 9. E então veio Diana 10. Casamentos sob o microscópio 11. Annus horribilis 12. Flores, bandeiras e coragem 13. Dois casamentos e dois funerais 14. Boa noite, Sr. Bond Epílogo Agradecimentos Notas Bibliogra�a selecionada Créditos das fotogra�as I Vencendo as ondas com Sua Majestade Todos nós nos lembramos da primeira vez em que vimos a rainha. Eu estava em minha primeira grande viagem como setorista da realeza de um jornal britânico e me lembro de acompanhar com fascinação o iate real Britannia, imaculado e brilhando sob o sol encoberto, entrar lentamente na baía de San Diego. Era fevereiro de 1983, e aqueles poucos dias na companhia da rainha e do duque de Edimburgo transformaram minha vida. O iate real foi cercado por uma ruidosa armada de boas-vindas composta de lanchas, iates, catamarãs, esquifes e canoas. Era uma manhã de sábado quando o iate atracou e a comitiva real desembarcou. A viagem de nove dias da rainha pela Califórnia, terra do surfe, do sol e dos devaneios deslumbrados, deveria ser cuidadosamente planejada para incluir o melhor que o Estado Dourado tinha a oferecer, dos artifícios de Hollywood ao esplendor natural do Parque Nacional de Yosemite. Contudo, se a visita fosse uma peça da Broadway, seria intitulada A viagem que deu errado. Naqueles dias longínquos, ao chegar a um novo país, a família real oferecia, com certa relutância, um coquetel para a comitiva de imprensa que seguia todos os movimentos dela. Assim, de terno completo, entreguei meu convite com letras douradas em alto-relevo a um o�cial da Marinha e fui convidado a tomar um gim-tônica — de teor alcoólico naval e substancial — no deque de popa do iate real. Isso me levou de volta a um dia enevoado em outubro de 1965. Eu tinha 11 anos e, vestido orgulhosamente com meu recém-passado uniforme dos escoteiros, me juntei à multidão que aguardava, na periferia de Leeds, no norte da Inglaterra, para ver a rainha e o príncipe Philip passarem rumo à inauguração do mais novo — e de arquitetura brutalista — Centro Cívico de Seacroft. Quando eles passaram, a umidade e a claustrofobia provenientes da densa neblina, associadas à brilhante luz interna do Rolls-Royce excepcionalmente envidraçado do casal, acentuaram o efeito de dois seres exóticos vindos do espaço, criaturas alienígenas enviadas para observar a mundana vida municipal. Tive somente um breve relance da rainha e seu consorte, mas a visão permaneceu comigo. A rainha sempre fez parte de minha vida. Enquanto eu crescia, ela e a família eram como os penhascos brancos de Dover: imutáveis, inexpugnáveis — algo inerente à vida, como respirar. Obviamente, a imagem dela estava estampada em selos e gravada em moedas, olhando para nós do alto, com ar de desaprovação, por trás da mesa do diretor do colégio pouco antes de punição ser aplicada. No Regal, uma rede de cinemas, de Cross Gates, sempre resmungávamos o hino nacional “Deus salve a rainha” depois da sessão infantil da semana — o �lme de 1963 do cantor Cliff Richard, Tudo começou em Paris, que mostrava um grupo de amigos que cantavam e dançavam por toda a Europa, viajando em um ônibus londrino de dois andares, foi um de meus favoritos. À época, minha jovem concepção não me permitia enxergar a rainha como um ser humano real. Ela representava um símbolo muito distante e, ocasionalmente, uma personagem sorridente que falava um inglês quase incompreensível quando nos reuníamos em torno da televisão, às 3 horas da tarde, para assistir ao pronunciamento dela no Natal. Para mim, a única dimensão humana era o fato de que ela era alguns meses mais jovem que minha mãe e que ambas serviram na Segunda Guerra Mundial, minha mãe, Kathleen, no Women's Land Army, uma antiga organização civil criada com o intuito de as mulheres substituírem a mão de obra masculina no campo, e a então princesa Elizabeth no Serviço Territorial Auxiliar das Mulheres [ATS, na sigla em inglês], o ramo feminino do Exército britânico. Naquele sábado em San Diego, devo confessar que meu primeiro encontro com Sua Majestade foi menos que memorável. Em um notável traje azul e branco, a diminuta dama ouvia com crescente desatenção meu discurso sobre o tamanho impressionante da frota norte-americana ancorada no porto. Ela assentiu e prontamente seguiu em frente. Os dias seguintes, no entanto, contribuíram para desgastar o verniz de polidez da monarquia, abrindo espaço para um caráter ligeiramente diferente daquele expresso na face severa estampada em meus selos. A visita se tornou a própria antítese de um programa real, no qual cada momento, cada encontro é minuciosamente cronometrado. Com vendavais, tempestades marítimas, rios transbordando, manifestantes do Exército Republicano Irlandês (IRA, na sigla em inglês), estradas inundadas e um excesso de celebridades, o que poderia não dar errado? A rainha pareceu adorar quando o cuidadosamente planejado cronograma foi para o espaço. Anos depois, seu neto, o príncipe William, con�rmou essa observação: “Eles adoram quando as coisas dão errado porque, obviamente, tudo tem de ser sempre impecável, mas quando as coisas saem do trilho, eles são os primeiros a rir.”1 A primeira coisa que deu errado foi o iate real. As tempestades se tornaram tão violentas que a comitiva real deixou o Britannia para se aventurar pela costa, tentando se unir ao presidente Ronald Reagan e à primeira-dama no local de férias do casal, o Rancho Del Cielo, perto de Santa Bárbara, Califórnia, para desfrutar tacos de almoço seguidos de um passeio a cavalo. O casal real seguiu para o rancho a bordo de um Chevrolet Suburban com tração nas quatro rodas, ziguezagueando por 11 quilômetros de estradas lamacentas, em uma corrida de obstáculos composta de riachos transbordantes, trechos submersos, pedras rolando de encostas e árvores derrubadas. Segundo a rainha, foi tudo “incrivelmente animador”. A parte ruim foi que o muito esperado passeio a cavalo pelas cinematográ�cas montanhas Santa Ynez foi cancelado e os tacos acabaram sendo consumidos dentro de casa. Então um tornado em Los Angeles impediu que o iate real deixasse Long Beach e inundou as ruas em torno do estaleiro naval onde ele estava ancorado. A única maneira de atravessar a água cada vez mais alta era em um ônibus de eixo elevado da Marinha. A rainha, não querendo desapontar as pessoas, calçou um par de galochas e se sentou logo na primeira �leira do veículo. Os agentes do Serviço Secreto �caram felizes por ela não se sentar mais para trás depois de descobrirem que o encosto dos últimos bancos estava gra�tado com obscenidades. Mais tarde, Reagan escreveu para a rainha, contritamente: “Sei que sua visita à Costa Oeste se tornou uma angustiante e turbulenta experiência, mas, em meio a tudo isso, sua benevolência e seu bom humor infalível conquistaram o coração do nosso povo.”2 Dado o �asco organizacional, Nancy Reagan estava compreensível e visivelmente nervosa durante a noite de astros de Hollywood organizada no Palco 9 do estúdio 20th Century Fox, em Beverly Hills. Embora Frank Sinatra e Perry Como talvez tenham exagerado nos duetos, parece que a rainha gostou das atrações, que incluíram a cantora Dionne Warwick, o comediante George Burns e astros como os atores Fred Astaire e Jimmy Stewart. Essa foi outra pista da mulher sob o verniz de polidez da monarquia. Seus gostos em música e arte não eram elitistas. A rainha conhecia a maioria das canções do compositor Richard Rodgers e do letrista Oscar Hammerstein II (a dupla criadora de musicais norte-americanos inovadores e populares, como O rei e eu e a noviça rebelde). Ao contrário da irmã, a princesa Margaret, a rainha não era fã de ópera ou balé. Embora tivesse um bom ouvido musical, não era uma espectadora assídua dos concertos. Naquela noite, o contingente britânico marcou presença, com os atores Michael Caine, Roger Moore e Jane Seymour, e também o cantor e compositor Elton John, entre outras celebridades. Em um jantar mais íntimo para cerca de trinta pessoas a bordo do iate real ancorado na baía de São Francisco, a rainha e o príncipe Philip foram os an�triões e receberam os Reagan na celebração do 31º aniversário de casamento do casal norte-americano. A banda dos fuzileiros reais executou a “Valsa de Aniversário” no píer e, mais tarde, o então vice-chefe de gabinete da Casa Branca, Michael Deaver, tocou piano e cantou “True Love”. Reagan a�rmou que, ao se casar com Nancy, prometera “muitas coisas, mas não isso”.3 Entre os participantes dessa reunião íntima estavam o pastor Billy Graham e a esposa, especialmente convidados pela rainha. Esse foi outro insight sobre a personalidade dela, tendo a fé cristã que possuía inspirado uma longa amizade com o carismático pastor norte-americano. No dia seguinte, o casal real foi ao Parque Nacional de Yosemite, hospedando-se no exclusivo hotel e Ahwahnee, que conta com uma vista espetacular de uma formação rochosa de quase 430 metros de altura chamada de Arcos Reais. Ao sair para caminhar, o casal real �cou desconcertado ao descobrir que estava sendo seguido de perto pelo Serviço Secreto norte-americano. Por mais que a rainha e o príncipe acelerassem o passo, os agentes estavam logo atrás. Esse não era o costume britânico, em que os guarda-costas sabiam manter distância. Inicialmente, o casal real �cou irritado. Então ambos começaram, de brincadeira, a andar para trás e os agentes do Serviço Secreto tiveram que fazer o mesmo. Continuaram a avançar e retroceder até que, por �m, todo mundo começou a rir. Esse di�cilmente era o comportamento esperado de uma chefe de Estado, mas foi outra pista sobre o caráter da rainha, uma mulher com grande apreço pelo absurdo. Eis uma mulher cuja vida foi feita de superlativos: a que reinou por mais tempo, a que mais viajou e, para uma pessoa tímida, a mais gregária, encontrando pessoalmente mais súditos que qualquer outro soberano da história. Quando o presidente francês certa vez lhe perguntou se ela �cava entediada, a rainha respondeu, com honestidade: “Sim, mas não digo isso.”4 Em uma era de celebridades e artifícios, ela se contentava em ser prática e direta. Ela aparecia regularmente na Lista dos Mais Ricos do Sunday Times, mas costumava usar luvas de borracha para lavar a louça depois de um churrasco em Balmoral, a propriedade privada da rainha na Escócia. Na cabana de madeira favorita dela, sugeriu-se a instalação de uma placa: “A E .”5 Embora vivesse em palácios e castelos, a mulher parecia gostar de uma vida mais normal. Ela foi uma jovem designada a cumprir um papel extraordinário. Ainda criança, já era uma das pessoas mais comentadas do planeta. E pistas precoces sobre quem ela era e quem estava destinada a se tornar podiam ser encontradas no último andar de uma casa geminada no centro de Londres, há quase um século. Shirley Temple 2.0 A menina de cenho franzido e ar concentrado se curvava determinadamente sobre o livro. Ela analisava cada página com muita atenção em busca das palavras que considerava ofensivas e as riscava toda vez que encontrava uma ocorrência. Ela riscava “Doctor Simpson”. No que dizia respeito à zangada menina de 10 anos, o fato de ele ser somente o personagem de um de seus livros infantis favoritos de infância era irrelevante. Enquanto a princesa Elizabeth cumpria a solene e destrutiva tarefa de riscar o nome, a irmã mais nova, Margaret, brincava com o bridão, os freios e a sela dos cavalos de madeira que lotavam o quarto de brinquedos. Concentrada em seu mundo pessoal de faz de conta, ela não se preocupava com a raiva silenciosa da irmã por uma tal de Sra. Simpson que, sem ser convidada, estava mudando a vida de ambas. Tampouco se interessava pela crescente multidão que se empurrava sob a escuridão de inverno para observar a movimentação no número 145 da rua Piccadilly, a casa londrina do duque e da duquesa de York — pai e mãe das meninas. A�nal, elas estavam acostumadas a espiar, pela janela de seu quarto no último andar, as pessoas que as observavam, ambos os lados se perguntando o que o outro estava fazendo. Esse jogo duraria a vida inteira. Dessa vez, no entanto, a multidão era maior, e a atmosfera no interior da mansão de fachada de pedra era tensa e apressada. As campainhas na porta da frente — havia duas, e para quem eram destinadas estava sinalizado por um par de pequenas placas: “V” e “M” — estavam tocando com mais frequência e, quando a multidão de curiosos e interessados começou a crescer, a polícia foi acionada. O nome Simpson foi primeiro sussurrado e, depois, se tornou parte de conversas desaprovadoras que eram abruptamente interrompidas quando as garotas se aproximavam. Por mais que os pais tentassem proteger Lilibet — o apelido da princesa na família — e a irmã, a menina era sensível aos humores e ritmos e conseguia captar o teor do que se falava porque, desde seu décimo aniversário, gozava do privilégio de tomar café da manhã com o pai e a mãe e, ocasionalmente, com a avó, a rainha Mary. A menina recolhia migalhas de informações aqui e ali negadas à irmã mais nova — mas isso não signi�cava que Elizabeth tivesse idade su�ciente para compreender as coisas que realmente estavam acontecendo. Ela só sabia que no centro do quebra-cabeça estava aquela mulher chamada Simpson. As evidências estavam por toda parte. O pai parecia visivelmente doente; a avó Mary, a soberana de aspecto altivo e imperioso, parecia ter envelhecido e, de algum modo, encolhido; a atitude normalmente jovial da mãe havia desaparecido. O fato de, no início de dezembro de 1936, a duquesa ter contraído uma gripe muito forte e estar con�nada à cama também não ajudava. Quando Elizabeth perguntou às três mulheres em sua vida — a governanta Marion Crawford, a criada Bobo MacDonald e a babá Clara Knight, conhecida como Alah — o que estava acontecendo, recebeu respostas evasivas e desdenhosas. Craw�e, aliás, levava as meninas ao Bath Club com frequência para terem aulas de natação — uma distração necessária. O triunvirato composto por essas três mulheres que tinham os pés no chão servia para as duas princesas como uma janela para o mundo; as observações polidas e os preconceitos pudicos modelavam as respostas de Lilibet e Margaret. No que dizia respeito às princesas, o nome Wallis Simpson era tabu na Casa de York. Então Elizabeth recorreu aos livros, riscando o nome em uma fútil tentativa de apagar de seu mundo a mulher que mudaria a vida da princesa e a dos pais, para sempre. Elizabeth encontrara Wallis Simpson brevemente em abril de 1936, após a celebração de seu décimo aniversário. Não que ela tenha causado uma grande impressão. Simpson chegara com o tio de Elizabeth, David, o novo rei Edward VIII, ao palácio de �m de semana do pai e da mãe da princesa, o Royal Lodge, no impecável Grande Parque de Windsor. O tio fora exibir os dois interesses norte-americanos em sua vida: o Buick esportivo novinho em folha e a outra fascinação dele, a duas vezes casada dama de Baltimore, Wallis Simpson. Mais tarde naquele dia, Elizabeth perguntara à governanta, Craw�e, quem era aquela mulher. Era ela o motivo de tio David raramente aparecer nos últimos tempos? De todos os irmãos e irmãs do pai da princesa, David sempre fora o visitante mais frequente do número 145 da rua Piccadilly, se juntando às meninas para jogar cartas após o chá. Ele era sempre divertido, e Elizabeth ainda se lembrava da vez em que o tio levara a duquesa, ela e Margaret para o jardim de Balmoral e as ensinara a fazer a saudação nazista — aquele havia sido um dia de diversão geral. Embora as respostas de Craw�e às perguntas de Elizabeth sobre a elegante mulher norte-americana tenham sido evasivas, a governanta escocesa na verdade gostou da Sra. Simpson, mais tarde descrevendo-a como “atraente e vivaz, com aquela cordialidade imediata que é comum às americanas”.1 Os patrões de Craw�e, porém, não sentiram o mesmo. Depois de passar uma hora discutindo jardinagem e tomando chá com o novo rei e sua amante, Wallis teve a distinta impressão de que “embora o duque de York tenha aceitado o carro esportivo norte-americano, a duquesa não aceitou o outro interesse norte- americano do rei”.2 Na época, o tema das conversas era a presença das meninas York, e não o contingente norte-americano. “Elas eram ambas tão loiras, tão educadas e tão impecavelmente arrumadas que poderiam ter saído diretamente das páginas de um livro”, escreveu Wallis em sua autobiogra�a, e Heart Has Its Reasons [O coração tem suas razões].3 Elizabeth e Margaret eram, como as crianças frequentemente são, usadas como o equivalente humano dos livros decorativos: a presença delas era uma distração inócua, uma maneira de evitar as complicadas questões adultas. Quando conheceram Wallis Simpson, as meninas já estavam acostumadas a ser usadas dessa maneira: crianças de modos impecáveis apresentadas aos visitantes adultos para ajudar a quebrar o gelo. O mesmo aconteceu quando eles viajaram para a Escócia naquele fatídico verão, hospedando-se na modesta residência Stuart chamada Birkhall Lodge, perto de Balmoral, a primeira propriedade comprada pela rainha Vitória e que até hoje transmite a sensação de se estar fazendo uma viagem no tempo. O principal convidado dos York era o então arcebispo de Canterbury, Cosmo Lang. Ele aceitara o convite quando o novo rei, que tradicionalmente hospedava o principal prelado protestante da Inglaterra em Balmoral, não tivera a sensibilidade de convidá-lo. Em vez disso, ele e Wallis ofereceram, na propriedade privada da família na Escócia, uma animada festa com aristocratas, norte-americanos e familiares reais — incluindo seu primo em segundo grau, Lord Louis Mountbatten, e seu irmão mais novo, o príncipe George, acompanhado da esposa, a princesa Marina. Após o chá do segundo dia da visita do prelado, Elizabeth, Margaret e a prima Margaret Rhodes cantaram de modo “muito encantador”. O arcebispo comentou: “É estranho pensar no destino que pode aguardar a pequena Elizabeth, que atualmente ocupa o segundo lugar na linha de sucessão. Ela e sua animada irmãzinha certamente são crianças arrebatadoras.”4 O rei não estava tão encantado. Quando soube que o chefe ecumênico da Igreja da Inglaterra estava hospedado com os York, suspeitou que o irmão estava tentando criar uma corte rival. O emergente con�ito entre os dois estava centrado no desejo do rei de se casar com Wallis depois que ela se divorciasse do marido, o corretor de navios Ernest Simpson. Naqueles dias, o divórcio não era apenas malvisto, como também era considerado motivo de excomunhão. Como chefe secular da Igreja da Inglaterra, o rei não podia se casar com uma divorciada, quem dirá com uma norte-americana sem posição ou status, divorciada duas vezes. No entanto, o rei ameaçava renunciar ao trono se não pudesse se casar com a mulher que havia roubado seu coração. Embora a mídia britânica se mantivesse silenciosa sobre o �orescente romance — fotos do rei e Wallis durante um cruzeiro de verão a bordo do barco a vapor Nahlin foram publicadas no mundo todo, exceto na Inglaterra —, a potencial crise institucional �nalmente veio a público no início de dezembro. Ela gerou uma série de acontecimentos calamitosos que, inadvertidamente, colocaram a princesa Elizabeth no centro do drama. Àquela altura, Wallis já havia conseguido a separação, mas ainda tinha que esperar seis meses pelo divórcio que lhe permitiria se casar com o rei e se tornar rainha. Edward estava decidido, a despeito da grave advertência de seu secretário particular, Alec Hardinge — apoiado pelo primeiro-ministro, Stanley Baldwin —, de que sua decisão causaria danos irreversíveis à monarquia e provavelmente levaria à convocação de eleições gerais se continuasse naquele caminho. Em uma tensa reunião em 16 de novembro, o rei informou ao primeiro-ministro que pretendia se casar com a Sra. Simpson assim que ela estivesse legalmente livre. Se o governo se opusesse, ele abdicaria. Posteriormente, comunicou a decisão à mãe e às irmãs, que �caram muito chocadas; a rainha-mãe, Mary, procurou a ajuda de um terapeuta para con�rmar a conclusão a que havia chegado de que o �lho mais velho fora enredado por uma feiticeira habilidosa. O primeiro-ministro se mostrou mais calmo, dizendo aos colegas de Gabinete que a ascensão dos York provavelmente seria a melhor solução, já que o duque era bastante parecido com o muito amado pai, o rei George V. Não que o príncipe Albert, conhecido como Bertie, concordasse com essa decisão. Ele se viu envolvido, lenta e inexoravelmente, por uma teia institucional da qual não lhe havia sido dada oportunidade de fuga. Era como um pesadelo. Embora tenha havido sugestões de que o caçula da família real, o duque de Kent, assumisse o trono (uma vez que já era pai de um menino), o volúvel dedo do destino apontou para o �lho do meio, o desafortunado Bertie. Ele sempre presumira que o irmão mais velho se casaria e teria um herdeiro que, mais tarde, seria o soberano. O duque era tímido, reservado e acometido por uma gagueira congênita; quando relutantemente analisou as cartas que o destino lhe dera, logo pensou na �lha mais velha, cuja posição mudaria de segunda na linha sucessória para herdeira presuntiva (aquela que seria soberana se a mãe não desse à luz um menino); uma futura rainha sentenciada a uma vida de dever e solidão pública. Embora tivesse graves dúvidas sobre si mesmo e a capacidade que tinha de assumir tal grandioso cargo, ele admirava silenciosamente sua primogênita. Ela era dona de qualidades e caráter sólidos que, como disse ao poeta Osbert Sitwell, o faziam se lembrar da rainha Vitória. Esse era um grande elogio, mesmo para um pai amoroso que, como observou o jornalista, historiador real e amigo do novo rei Dermot Morrah, “relutava em sentenciar as �lhas à vida de infatigáveis serviços, sem esperança de aposentadoria mesmo em idade avançada, um destino inseparável da mais elevada das posições”.5 Elizabeth era bem mais casual e prática. Quando se tornou inegável que o duque de York ascenderia ao trono e seu amado tio Edward VIII, agora duque de Windsor, partiria para o exílio no exterior, a princesa Margaret perguntou: “Isso signi�ca que você vai se tornar rainha?” E a irmã mais velha respondeu: “Suponho que sim.”6 Elizabeth não mencionou o fato novamente, com exceção da vez em que o pai comentou casualmente que ela precisaria aprender a usar a sela lateral para quando chegasse o dia, com sorte em um futuro distante, no qual teria de comparecer a cavalo para a cerimônia anual Trooping the Colour [des�le com as bandeiras coloridas dos regimentos] na Parada da Guarda da Cavalaria, ocasião na qual o aniversário do soberano reinante é celebrado, independentemente da data de seu nascimento. Embora tivesse relutantemente se resignado a ser rainha, Elizabeth achava, de acordo com a prima Margaret Rhodes, que isso aconteceria “em um futuro distante”.7 Como apólice de seguro, acrescentou às preces noturnas a esperança fervorosa de ter um irmão que, em função do sexo biológico, passaria à frente e se tornaria herdeiro. Embora a princesa tenha aceitado com a despreocupação �eumática da juventude a nova posição que lhe foi designada, seu pai reagiu de modo diferente. Ele “perdeu o controle e chorou como uma criança” quando, juntamente com a rainha Mary e o advogado do rei, Walter Monckton, recebeu o esboço do Instrumento de Abdicação.8 Em 11 de dezembro de 1936 — ano que �caria conhecido como o ano dos três reis —, a abdicação real foi anunciada e o então ex-rei dirigiu até o Castelo de Windsor, onde fez o histórico pronunciamento em que proferiu esta memorável passagem: “Considerei impossível carregar o pesado fardo da responsabilidade e cumprir os deveres reais como gostaria enquanto rei sem a ajuda e o apoio da mulher que amo.” Depois de elogiar as excelentes qualidades de liderança cívica do irmão mais novo, acrescentou que “ele goza de uma bênção incomparável, desfrutada por muitos de vocês e não concedida a mim: um lar feliz com esposa e �lhos”.9 A família em questão não estava tão feliz. O ducado de York fora extinto, incorporado à Coroa, e o mais novo rei descreveu o acontecimento momentoso como “aquele dia pavoroso”; a esposa, a nova rainha, estava de cama com uma gripe fortíssima. No dia seguinte, os até então despercebidos York se tornavam personas centrais daquele drama em desdobramento, saudando a nova posição com uma mistura de animação e irritada aceitação. Quando a princesa Elizabeth viu um envelope endereçado à rainha, até mesmo sua habitual atitude calma foi abalada. “Essa agora é a mamãe, não é?”, perguntou ela, enquanto a irmã mais nova lamentava o fato de ter de se mudar para o Palácio de Buckingham: “Para sempre? Mas eu acabei de aprender a escrever ‘York’.”10 No dia da proclamação — 12 de dezembro de 1936 —, ambas abraçaram o pai antes que o novo rei, de uniforme de almirante da frota, partisse para a cerimônia. Depois que ele saiu, Craw�e explicou que, quando retornasse, ele seria o rei George VI e, daquele momento em diante, elas teriam de fazer reverência aos pais, o rei e a rainha. Elas sempre haviam feito reverência aos avós, o rei George V e a rainha Mary, então não foi uma grande mudança. Quando ele retornou à 1 hora da tarde, ambas �zeram belas reverências, e o comportamento das �lhas fez com que ele se desse conta da nova posição que ocupava. Craw�e lembrou: “Ele �cou parado por um momento, comovido e surpreso. Então se abaixou e as beijou amorosamente. Depois disso, tivemos um almoço hilariante.”11 Assim como o pai, Elizabeth se transformou em um símbolo vivo da monarquia, tendo o próprio nome mencionado em preces e as ações e os cães se tornando o assunto dos jornais matutinos; a vida da princesa passou a pertencer à nação. Ela se tornou, juntamente com a estrela-mirim de Hollywood Shirley Temple, o rosto mais famoso do mundo, alvo de admiração e adoração. A vida que levava como princesa de contos de fadas era, na realidade, menos Disney e mais Irmãos Grimm. O cotidiano das irmãs no Palácio de Buckingham — um local enorme e cheio de ecos e ratos, sombras sinistras, cômodos escuros e retratos cujos olhos as seguiam quando passavam diante deles na ponta dos pés — era uma mistura de animação, tédio e isolamento. Ali os pesadelos infantis ganhavam vida; a ronda diária do real apanhador de ratos e sua parafernália letal simbolizava a medonha realidade por trás do aparente glamour monárquico. Embora Elizabeth estivesse protegida, juntamente com a irmã, no interior do círculo formado pela governanta, a criada e a babá (tendo os pais se tornado uma presença distante e não disponível), ela se tornou objeto de fascinação para milhões de pessoas. De certa forma, nada realmente mudou para a herdeira presuntiva. Elizabeth, com seus cachinhos dourados, foi um símbolo nacional durante toda a vida. Nascida em uma quarta-feira, em 21 de abril de 1926, às 2h40 da manhã, dias antes da greve geral que paralisaria a economia britânica, ela representava, em meio à crise nacional, valores de família, continuidade e patriotismo. A chegada da princesa não foi apenas uma distração bem-vinda da luta diária pela subsistência em uma Grã-Bretanha pós-guerra destroçada por disputas e necessidades, como foi também medieval, misteriosa e bastante cômica. Costumes reais datados do século XVII decretavam que o ministro do Interior estivesse presente no momento do nascimento, a �m de que um impostor não fosse levado às escondidas para o quarto. Mantendo essa tradição, o ocupante do cargo, William Joynson-Hicks, cuja mente agitada tentava descobrir como derrotar os sindicatos no con�ito que se aproximava, esperou sentado num cômodo perto do quarto da parturiente no número 17 da rua Bruton, a casa londrina da família da duquesa, durante o nascimento real. Quando a bebê nasceu, o ginecologista real, Sir Henry Simson, entregou a Joynson-Hicks um documento o�cial com os detalhes do parto de “uma menina forte e saudável”. O certi�cado foi entregue a um mensageiro especial, que correu até o presidente do Conselho Privado para que fosse feito o anúncio o�cial. Ao mesmo tempo, o ministro do Interior informou ao lorde-prefeito de Londres que colocou um comunicado nos portões de sua residência o�cial, a Mansion House. O boletim o�cial, assinado por Simson e pelo médico pessoal da duquesa, o Dr. Walter Jagger, declarava que, antes do parto, “certa linha de tratamento foi adotada com sucesso”, sugerindo decorosamente que a princesa nascera de parto cesárea.12 A bebê adormecida era, em virtude do Decreto de Estabelecimento de 1701, a terceira na �la para o trono, apenas atrás do pai e do príncipe de Gales. Não se esperava que Elizabeth fosse reinar; sua linhagem era uma rica mistura de real, exótico e comum. Embora sua tataravó fosse a rainha Vitória, ela também estava ligada, por meio da avó — a rainha Mary —, ao dentista Paul Julius von Hügel, que atendia em Buenos Aires, Argentina. Do lado paterno da família, o sangue real europeu predominava, especialmente as casas alemãs de Saxe-Coburgo-Gota e Hanôver, embora o intrigante fosse a ascendência britânica da mãe. Anthony Wagner, que serviu como Rei de Armas da Jarreteira [a autoridade que concede brasões e, às vezes, certi�ca genealogias e títulos nobres], comentou que, entre os muitos ancestrais aristocráticos de Elizabeth, havia dois duques, a �lha de um duque, a �lha de um marquês, três condes, a �lha de um conde, um visconde, um barão e meia dúzia de membros da aristocracia rural. Não era somente a aristocracia que estava representada em sua linhagem, mas também os mundos do comércio e da religião. De acordo com Wagner, a ascendência da princesa incluía um diretor da Companhia das Índias Orientais, um banqueiro provinciano, duas �lhas de bispos, três clérigos — um deles parente do primeiro presidente norte- americano, George Washington —, um o�cial irlandês e sua amante francesa, um fabricante de brinquedos londrino e um encanador metropolitano, assim como certo Bryan Hodgson, proprietário de uma hospedaria com estábulo chamada e George, em Stamford, Lincolnshire. Embora a linhagem da princesa incluísse uma ampla gama social, os nomes escolhidos por seus pais — Elizabeth Alexandra Mary — sugeriam o futuro destino que ela teria como rainha. Outros concordaram, e o jornal Daily Graphic comentou, com presciência: “A possibilidade de uma pequenina desconhecida da rua Bruton ser a futura rainha da Grã-Bretanha (talvez até mesmo uma segunda e resplandecente rainha Elizabeth) é bastante intrigante.”13 Essa possibilidade parecia remota: tio David tinha somente 32 anos e era esperado que se casasse e gerasse um herdeiro. Não havia dúvidas, no entanto, de que a bebê real fora adotada pela nação. A se julgar pela alvoroçada multidão reunida em frente à casa da rua Bruton, havia algo singularmente especial em Elizabeth Alexandra Mary, talvez um re�exo do carinho sentido pela mãe, que, nos três anos desde o casamento com Bertie, conquistara a estima e o afeto de todos. Em um relato autorizado sobre a vida da duquesa, a biógrafa Lady Cynthia Asquith admitiu que teve di�culdades de encontrar qualquer coisa além de doce perfeição no caráter da nova mãe. Fotogra�as daquela época revelam a princesa Elizabeth como a quintessencial bebê de comerciais daquele tempo: olhos azuis, pele rosada e cabelo loiro, ou, como disse a rainha Mary, uma das primeiras visitantes, ela era “um amorzinho, com feições adoráveis e um lindo cabelo claro”.14 Sem dizer uma palavra, ela empurrou os pais dos remansos tranquilos da discreta vida real para a primeira página de jornais e capas de revistas. Elizabeth era a princesa Diana da época, sendo cada pedacinho de informação transformado em um banquete de fofocas e especulações. Os jornais meramente atendiam à demanda popular — semanas após o nascimento da princesa, a calçada em frente à casa londrina estava tomada por tantas pessoas que ela frequentemente precisava ser conduzida pela porta dos fundos para o passeio diário no carrinho. No dia do batizado no Palácio de Buckingham, em 29 de maio, a vontade dos cidadãos que cercavam o lugar de ver a bebê era tão grande que romperam o cordão policial em frente ao palácio. Até que a ordem fosse restaurada, alguns poucos sortudos que circundaram o carro dos York foram capazes de ter um vislumbre da pequenina que, segundo relatos posteriores, chorou durante toda a cerimônia, conduzida pelo arcebispo de York. Alguns meses depois, os York se mudaram para o número 145 da rua Piccadilly, perto do Hyde Park. A casa de cinco andares contava com salão de baile, elevador elétrico, biblioteca e sala de jantar para trinta convidados e era mantida por uma equipe de 17 pessoas, incluindo um administrador, dois criados de libré, um valete e três enfermeiras para cuidar da pequena princesa. Todavia, em um caso de miopia coletiva, a imprensa descreveu amorosamente como os York haviam rejeitado luxos e ornamentos, optando por uma vida simples, especialmente no quarto da bebê. Nesse reino em miniatura, imperavam a limpeza, a ordem e uma rotina sensata. Houve muitos murmúrios de aprovação quando se revelou que a princesa só podia brincar com um brinquedo de cada vez. Ironicamente, quando os pais de Elizabeth retornaram de uma viagem de seis meses à Austrália, em 1927, trouxeram consigo três toneladas de brinquedos para a garotinha que a mídia passara a chamar de Betty. Foi assim que se renovou o eterno paradoxo da realeza, ou de nossa percepção do que ela é: sempre foram diferentes, mas, mesmo assim, iguais a nós. Sem nem mesmo saber, a princesa estava envolta em uma mantilha imaginária e diáfana de mágica e mito, na qual novos �os constantemente se cruzavam na trama de lenda e realidade. Esse manto a envolveria por toda a vida. Quando chegou à idade de andar e falar, a criança chamada de “bebê mais conhecida do mundo” foi capa da revista Time com a manchete “P L” — em referência a como ela dizia o próprio nome. Elizabeth também estava estampada em selos, caixas de chocolate, carrinhos e toalhas de chá, canecas comemorativas, entre outras mercadorias. Composições foram cantadas em homenagem a ela; Madame Tussauds inaugurou uma estátua de cera da princesa montada em um pônei e os australianos batizaram uma parte da Antártica em sua honra. O único rival de Elizabeth nesse mar de adulação era o tio David, o príncipe de Gales, um genuíno astro internacional que só foi superado, durante a vida, pelo galã de Hollywood Rudolph Valentino. A mãe da princesa estava preocupada com a quantidade exagerada de atenção que ela recebia. Durante a visita a Edimburgo em maio de 1929, ela escreveu à rainha Mary: “Quase me assusta o fato de as pessoas a amarem tanto. Suponho que isso seja uma coisa boa, e espero que a pobrezinha se mostre à altura.”15 Conforme os meses e os anos se passavam, os contornos da personalidade — tanto real quanto imaginária — de Elizabeth começaram a emergir. Frequentemente descrita como “um querubim” ou “angelical”, ela era retratada como uma menina alegre e bem-comportada, com uma sagacidade inocente e um temperamento envolvente e cativante. Quando a família real se reuniu em Sandringham — o refúgio campestre da família real desde 1862 — para o Natal de 1927, o jornal Westminster Gazette reportou que Elizabeth estava “conversando, rindo e atacando os convidados com bombinhas entregues pela mãe”.16 Até mesmo Winston Churchill �cou impressionado. Durante uma visita a Balmoral em setembro de 1928, ele escreveu à esposa, Clemmie: “Ela tem um ar autoritário e re�exivo que é surpreendente em uma criança.”17 Logo começaram a circular histórias sobre a menina destemida que domara o irascível avô, o rei George V, conhecido por despertar terror no coração das crianças da família e dos funcionários mais antigos. A princesa Elizabeth, no entanto, usava e abusava do avô, e ele se transformava em massa de modelar nas mãozinhas da neta. O arcebispo de Canterbury falou de uma ocasião na qual o monarca �ngiu ser um cavalo conduzido por sua “cavalariça” e neta, que por sua vez segurava a barba grisalha do avô conforme o homem andava pelo cômodo apoiado nas mãos e nos joelhos. Segundo lembrou a condessa de Airlie, “ele gostava dos dois netos, �lhos da princesa Mary, mas Lilibet sempre veio primeiro. Ele costumava brincar com ela, algo que nunca o vi fazer com os próprios �lhos, e adorava a companhia da neta”.18 O fato de Elizabeth ser uma menininha angelical com uma imaginação desinibida e vívida, sobretudo em relação aos cavalos, provavelmente foi o fator decisivo — demonstrado pelo fato de que, quando ela tinha apenas 4 anos, o monarca lhe deu uma égua pônei chamada Peggy. De fato, a habilidade da princesa de desanuviar o semblante preocupado do soberano — e aqui há ecos da noção medieval de cura pelo toque real — se tornou o assunto de toda a nação em fevereiro de 1929, quando o rei viajou até o resort de Bognor, na costa sul da Inglaterra, para se recuperar de uma enfermidade quase fatal. Aos 2 anos, a princesa desempenhou um papel muito apreciado na recuperação do avô, distraindo-o da doença. Ele adorava o fato de, posteriormente, ela o chamar de Vovô Inglaterra e sempre prestar atenção ao que ele dizia, ouvindo com gravidade enquanto ele exaltava as virtudes do dever, da decência e do trabalho duro. A companhia constante de adultos indulgentes encorajou certa precocidade inocente. Enquanto caminhava com o então arcebispo de Canterbury, Cosmo Lang, pelos jardins de Sandringham, ela pediu que a conversa não fosse sobre Deus. “Já sei tudo sobre ele”, disse solenemente a menina de 9 anos.19 Elizabeth fez a primeira amizade fora da família real quando estava em Hamilton Gardens e viu uma menina de mesma idade brincando. Era Sonia Graham-Hodgson, �lha do radiologista real. “Você quer jogar comigo?”, perguntou a esbelta criatura de voz ressoante. Elas jogaram críquete durante uma hora, sob o olhar atento das respectivas babás. Depois disso, encontraram- se praticamente todos os dias, até que Elizabeth teve de se mudar para o Palácio de Buckingham. Mesmo assim, durante muito tempo a princesa considerou Sonia sua melhor amiga. Ela até mesmo lhe dedicou um romance não �nalizado, A fazenda feliz, escrito quando tinha 8 anos. A dedicatória dizia: “Para Sonia, minha querida amiguinha e amante de cavalos.”20 Sonia tinha memórias felizes dessa longa amizade: “Ela foi uma criança doce e muito divertida. Tinha grande senso de humor e uma imaginação vívida.”21 A maioria das brincadeiras envolvia cavalos, mas, às vezes, elas imaginavam que haviam sido convidadas para um grande baile e discutiam seriamente o que vestiriam. Antes da Segunda Guerra Mundial, �zeram aulas de dança juntas; em seguida, Elizabeth foi convidada de honra do 21o aniversário de Sonia. A despeito da ascensão de Elizabeth, elas permaneceram em contato e se encontravam de tempos em tempos em jantares ou chás. Em 21 de agosto de 1930, uma coleguinha muito diferente entrou na vida de Elizabeth: sua irmã, Margaret Rose, nasceu no Castelo Glamis, o assombrado lar ancestral dos Strathmore — parte da família oriunda do avô materno —, no norte de Dundee, na Escócia. Depois que as formalidades foram atendidas — o novo secretário do Interior, John Robert Clynes, viajou para o reduto nortista a �m de certi�car o nascimento —, Elizabeth foi apresentada à bebê. Ela �cou adequadamente “encantada”, ainda mais quando percebeu que não se tratava de uma boneca perfeitamente construída, mas de uma irmã viva, embora adormecida. Milhares de visitantes, alguns vindos de carro de Glasgow e do sul da fronteira, uniram-se às celebrações no Castelo Glamis, onde grandes fogueiras foram acesas.22 Assim como o nascimento da irmã mais velha dias antes da greve geral, a chegada de Margaret serviu como radiante contraponto às escuras nuvens que cobriam a economia do país desde que o mercado de ações quebrara, em outubro de 1929. A temporária decepção com o fato de a duquesa ter dado à luz outra menina enfatizou novamente a posição institucional de Elizabeth. E isso conduziu a uma ansiosa discussão sobre se, tecnicamente, a coroa poderia ser dividida entre as duas irmãs ou se a mais nova poderia ter precedência. O debate se tornou tão intenso que o rei ordenou uma investigação formal da vexatória questão. Como sugeria o bom senso, reconheceu-se o�cialmente que Elizabeth tinha senioridade. As consequências institucionais de ser membro da família real �caram ainda mais evidentes para a duquesa quando chegou a hora de escolher o nome da segunda �lha. Ela teve de aceitar que a decisão �nal cabia aos avós, o rei George e a rainha Mary, e não aos pais. Inicialmente, os York queriam chamá-la de Ann Margaret, pois a duquesa achava que Ann de York soava bem. Os sogros, porém, discordaram, preferindo Margaret Rose (Margaret foi uma rainha escocesa, ancestral da família). A escolha do rei e da rainha prevaleceu. Não seria a última interferência que fariam na criação das princesas reais. A mãe cerrou os lábios e se ocupou da recém-chegada. Ela estava ansiosa para descrever sua personalidade a amigos e familiares. Em uma carta ao arcebispo de Canterbury, escreveu: “A �lha número 2 é realmente muito querida. Fico feliz em dizer que ela tem grandes olhos azuis e uma vontade de ferro — tudo o que uma dama necessita! Desde que ela consiga disfarçar a própria vontade e usar seus olhos, tudo �cará bem.”23 A chegada de Margaret Rose acrescentou uma nova atriz ao melodrama real. O belo quarteto — “Nós quatro”, como repetia incessantemente o duque — representava lar, coração e família. Em uma era de incertezas, desemprego em massa e pobreza, eles eram a personi�cação do ideal de uma família comum, decente e temente a Deus que vivia de modo modesto e razoável. Mesmo que morassem em uma grandiosa e exclusiva casa geminada ao lado do Hyde Park, que contava com salão de baile e elevador elétrico, o fato de preferirem a aconchegante vida doméstica à sociedade dos cafés assegurava a popularidade deles. O ápice desse acordo entre a nação e a família se deu quando o povo de Gales, o mais empobrecido do reino, presenteou a princesa Elizabeth com uma casa em miniatura chamada Y Bwthyn Bach [A Casinha] em seu sexto aniversário. Projetada por Edmund Willmott, a cabana com teto de palha e projeção de dois terços do tamanho de uma casa real era uma criação magní�ca e completa, com eletricidade, água encanada e descarga no vaso sanitário. Havia panelas e frigideiras, livros de Beatrix Potter, latas de comida e até mesmo um fogão a gás — tudo em escala reduzida. Ele foi instalado no Royal Lodge, a nova, porém dilapidada, casa dos York no Grande Parque de Windsor. As princesas �caram fascinadas com o presente e passavam horas limpando, varrendo, polindo e “cozinhando”. Elizabeth enrolava os talheres em folhas de jornal para que não manchassem e a grande alegria de Margaret era subir e descer as escadas e também dar a descarga no banheiro para ouvir a água gorgolejando pelos canos. Fotogra�as o�ciais sancionadas pelo palácio, mostrando as duas em pé na frente da cabana ou brincando com seus amados cães corgi no jardim, forneceram ao público um retrato da vida inocente das irmãs, consolidando o elo geracional entre a família real e os súditos. Analisando a ávida fascinação pública pelas duas princesas, Alan “Tommy” Lascelles, o secretário particular do rei, descreveu-as como “animais de estimação do mundo”.24 A sensação de que, de certo modo, as jovens princesas eram �lhas de toda a Grã-Bretanha foi reforçada em 1936 — meses antes da abdicação —, com a publicação autorizada de um livro de fotogra�as intitulado Our Princesses and eir Dogs [Nossas princesas e seus cães], que retratava amorosamente os oitos cães reais, incluindo dois corgis, e o papel central que ocupavam na vida cotidiana da família. O livro também era uma tocante alegoria do relacionamento íntimo entre a realeza e o povo, simbolizando o imutável acordo que seria levado ao limite — mas não rompido — antes do �m do ano. Embora os corgis das meninas, Dookie e Lady Jane, fossem companheiros constantes, os animais que governavam o reino infantil de Lilibet eram os cavalos — reais, inanimados e imaginários. Apesar de os corgis terem se tornado sinônimo da vida e do reinado de Elizabeth, a primeira paixão dela foi o mundo equestre, e o muito manuseado clássico de Anna Sewell, Beleza negra, sempre em sua mesa de cabeceira, era um testemunho desse amor. “Se algum dia for rainha, criarei uma lei proibindo a montaria aos domingos. Os cavalos também merecem descansar”, declarou ela, gravemente.25 O mundo equestre e suas criaturas foram o grande destaque da infância de Elizabeth, desde conduzir o rei pela barba e transformar um colar de pérolas falsas em rédeas para fazer a mesma manobra com a biógrafa da duquesa, Lady Cynthia Asquith, até brincar de cavalos de circo em Birkhall, na Escócia, com a prima Margaret Rhodes, que era “obrigada a relinchar”.26 Os ferimentos que ela sofreu mais tarde, sobretudo quando foi jogada contra uma árvore e, em outra ocasião, quando levou um coice no queixo, não foram capazes de diminuir o entusiasmo da menina. Quando tinha 5 anos, ela cavalgou com os membros da organização de caça Pytchley Hounds. O pai de Elizabeth tinha a esperança de que ela fosse “iniciada” se eles pegassem algum animal durante a caçada. Não pegaram. Quando a nova governanta, a escocesa Marion Crawford, entrou no quarto de Elizabeth no Royal Lodge em outubro de 1933, a primeira conversa que elas tiveram foi sobre os dois principais interesses de Elizabeth: os cavalos e a irmã mais nova, Margaret Rose. Ela fora autorizada a �car acordada até tarde para conhecer a mulher que, mais tarde, chamaria de Craw�e, e estava sentada em sua cama de madeira, conduzindo cavalos imaginários por um parque imaginário. Como rédeas, usava os cordões da camisola atados à cabeceira. “Você já conheceu Margaret?”, perguntou a princesa. “Acho que ela está dormindo. Ela é adorável, mas às vezes é muito travessa. Você dará aulas a ela também? E vai brincar conosco? Vai deixar que eu a conduza pelo jardim?”27 Durante vários anos, Craw�e, no cargo de companheira e professora das meninas, interpretou o papel de cavalo de carga dócil, entregando mantimentos e outras mercadorias pela vizinhança. Durante essas brincadeiras, entrevia a vívida imaginação de Elizabeth, especialmente quando a própria princesa entregava os mantimentos. Como lembrou: “Então ocorriam as mais maravilhosas conversas, sobre o tempo, os cavalos da dona da casa, os cães reais, galinhas, �lhos e marido.”28 Craw�e percebeu rapidamente que o interesse de Elizabeth por todos os assuntos equinos era mais que uma paixão; aproximava-se da obsessão, de um primeiro e duradouro amor. A princesa frequentemente a�rmava que, se não fosse quem era, gostaria de ser uma dama vivendo no interior, com muitos cavalos e cães.29 Ou então uma fazendeira com vacas, cavalos e �lhos.30 Quando a princesa se mudou para o Palácio de Buckingham, o ponto alto da semana eram as aulas de equitação com o instrutor Horace Smith. Ela falava com conhecimento de causa sobre pisaduras, correias e escovas, indicando que se interessava não somente pelo contato com os cavalos, como também pelos cuidados e pelo manejo que exigiam. A princesa era muito cuidadosa com os trinta e poucos cavalos de madeira que lotavam o quarto de brinquedos no quinto andar. Quando a família estava prestes a se mudar para o Palácio de Buckingham, inclusive, a menina deixou Ben, seu cavalo favorito, aos cuidados da amiga Sonia. Ben foi entregue duas semanas depois, quando os outros cavalos já haviam sido desempacotados e alinhados no corredor em frente ao quarto dela.31 Para Elizabeth, a montaria lhe garantia uma chance de ser ela mesma, de exercer controle em um cenário socialmente aceitável. Grande parte da rotina da princesa estava fora de seu alcance: Bobo escolhia as roupas que ela vestia, Alah determinava o cardápio, Craw�e organizava as aulas e os pais, avós e os homens de terno do Palácio de Buckingham de�niam seu futuro. Ela passou por uma fase na qual acordava várias vezes durante a noite para se assegurar de que sapatos e roupas estavam dobrados e arrumados. Era outra forma de controle. A educação de Elizabeth foi um exemplo clássico da contínua batalha pelo coração e pela mente da herdeira presuntiva. Enquanto o avô, o rei George V, vociferava para Craw�e “Pelo amor de Deus, ensine Margaret e Lilibet a terem uma boa caligra�a, é tudo que peço!”,32 a rainha Mary foi muito além. A matriarca real vetou o cronograma acadêmico de Craw�e e sugeriu mais tempo de leitura da Bíblia e da história dinástica. Em quase todas as segundas-feiras ela levava as meninas em secretas excursões educativas à Royal Mint (a fabricante o�cial das moedas britânicas e a mais antiga empresa do Reino Unido), à Torre de Londres e ao Banco da Inglaterra, assim como a galerias de arte. As visitas nem sempre saíam como o planejado. Certa vez, elas estavam na loja de departamentos Harrods quando uma multidão se reuniu, esticando o pescoço para dar uma olhada nas princesas. Elizabeth �cou tão animada com a perspectiva de tantas pessoas quererem vê-la que a avó, não querendo que o momento de fama lhe subisse à cabeça, gentilmente a levou embora pela porta dos fundos. Foi a rainha Mary — líder de uma facção palaciana que incluía o bibliotecário real Owen Morshead e a formidável Lady Cynthia Colville, principal dama de companhia da soberana — quem sentiu que a educação de Elizabeth era muito feminina e leve. No programa de estudos da neta, havia pouco reconhecimento do possível papel e responsabilidades futuras que ela poderia vir a ter. De acordo com Lady Cynthia, “nenhum Bowes-Lyon jamais se importou com as coisas da mente”. Foi um julgamento que o cronista real Dermot Morrah considerou muito duro, dado o fato de a família ter produzido três poetas.33 A mãe das princesas tinha um ponto de vista diferente das coisas. Ela e o duque não estavam muito preocupados com a educação formal das �lhas. A última coisa que queriam eram duas garotas excessivamente intelectuais e tão inteligentes a ponto de serem arrogantes. Como observou Craw�e: “O que eles mais queriam para elas era uma infância feliz, repleta de memórias agradáveis que poderiam ser usadas nos dias sombrios que estivessem por vir, e, mais tarde, casamentos felizes.”34 A duquesa de York fora criada ao ar livre e aprendera um pouco de francês e alemão. Seus pais, o conde de Strathmore e Kinghorne e a esposa, Cecilia Cavendish-Bentinck, haviam educado a �lha mais nova em casa, com a ajuda de uma governanta, apenas matriculando-a em um colégio em Londres aos 8 anos. As prioridades eram as tarefas práticas, como criar arranjos de �ores, costurar, dançar e recitar poesia, em vez de aprender grego ou latim. A jovem Elizabeth Bowes-Lyon aprendera a ser polida, entreter visitantes, pescar salmão, recolher pássaros mortos durante as caçadas e atirar com espingarda. Entretanto, não era intelectualmente preguiçosa. Depois de frequentar o colégio, formou-se com distinção no Oxford Local Examination quando tinha somente 13 anos. Literatura e as Escrituras haviam sido os pontos fortes escolásticos da condessa e, portanto, não surpreende que ela insistisse em chamar as �lhas para seu quarto, todas as manhãs, a �m de lhes ensinar histórias bíblicas. Gentileza, cortesia e valores cristãos eram valorizados, e a duquesa acreditava que um caráter decente, uma bússola moral e uma consciência sensível às necessidades alheias eram tão ou mais importantes que as realizações intelectuais. Em uma carta ao marido, ela estabeleceu as próprias restrições, lembrando a Bertie que o pai dele perdera a afeição dos �lhos porque costumava gritar com eles. Presa no meio de tudo isso estava a governanta Marion Crawford, de apenas 22 anos. Embora tivesse se graduado em pedagogia na Escola de Educação e Esporte Moray House, em Edimburgo — a futura alma mater da autora de Harry Potter, J. K. Rowling, e do campeão olímpico de ciclismo Chris Hoy —, ela não tinha condições de participar da sutil política do palácio. De fato, os York a haviam escolhido precisamente porque ela era jovem o bastante para participar com entusiasmo das brincadeiras das meninas. As aulas, que incluíam matemática, geogra�a, poesia — qualquer coisa envolvendo cavalos capturava o interesse de Elizabeth — e gramática inglesa, ocorriam somente pela manhã, entre 9h30 e 12h30, com um intervalo de trinta minutos para o lanche. Também havia interrupções frequentes para visitas ao dentista, ao cabeleireiro e à costureira, e Craw�e sentia que a educação não estava no topo das prioridades da duquesa. Qualquer tentativa de Craw�e de estender as aulas era sufocada pela duquesa, pois a mulher queria que as meninas brincassem ao ar livre. Frequentemente o duque participava das brincadeiras de amarelinha e esconde- esconde em Hamilton Gardens, nos fundos da casa. Quando se tornou mais con�ante, Craw�e começou a sair com as duas princesas, organizando visitas ao metrô, passeios de barco pelo Tâmisa e até mesmo, por insistência de Elizabeth, uma excursão a bordo do segundo andar de um ônibus. Rapidamente �cou nítido que elas estavam ansiosas por experimentar coisas que as outras crianças consideravam banais. As meninas, assim como Sonia Graham-Hodgson, a amiga de Elizabeth, tinham aulas de dança semanais com Marguerite Vacani, e a princesa se provou habilidosa nas danças escocesas. No entanto, os astros de Hollywood Fred Astaire e Ginger Rogers eram a sensação da época. Por algum tempo, a música favorita de Elizabeth foi o sucesso de 1935 “Cheek to Cheek”. Elas também tinham aulas de música com Mabel Lander, uma estudante da Segunda Escola de Viena. Elizabeth, às vezes acompanhada pela mãe, cantava baladas inglesas, hinos afro-americanos e toadas escocesas — “e Skye Boat Song” foi sua favorita por muito tempo. Quando Margaret teve idade su�ciente para participar, a irmã mais velha �cou imediatamente impressionada com a habilidade da caçula de aprender melodias e acordes de ouvido. As aulas de francês, que frequentemente ocorriam quando Craw�e estava de folga, não eram tão populares. Em certa ocasião, presumivelmente em protesto contra o enfadonho método de ensino, uma entediada Elizabeth virou o pote de tinta sobre os cachos loiros. A professora de francês, Mademoiselle Lander, teve uma crise nervosa e deixou que outros cuidassem da bagunça. Aulas de música, dança e desenho intercaladas com aulas de francês compunham um bom programa, mas Craw�e sentia que as meninas precisavam do estímulo e da companhia de crianças da mesma idade. “Naqueles dias, vivíamos em uma torre de mar�m, separadas do mundo real”, lembrou ela em sua biogra�a, e Little Princesses [As princesinhas].35 Uma de suas conquistas mais satisfatórias ocorreu em 1937, quando ela criou uma tropa de bandeirantes que se reunia no Palácio de Buckingham todas as semanas. Pela primeira vez, as irmãs puderam se misturar a suas contemporâneas — o grupo de 34 bandeirantes incluía �lhas de funcionários do palácio, amigos e cortesãos. Elizabeth e a prima mais velha, Lady Pamela Mountbatten, integravam a patrulha Martim-Pescador, ao passo que Margaret, jovem demais para ser guia, estava em um grupo de ciranda criado especialmente para ela. Foi bom que as duas tivessem crianças da idade delas com as quais brincar, pois houve uma grande mudança na vida das princesas quando foram morar no Palácio de Buckingham, em meados daquele ano. Depois da mudança, sempre que Elizabeth saía, era acompanhada por um detetive que, para grande diversão da menina, parecia ter a habilidade de se fazer invisível. Elizabeth falava do rei e da rainha, e não da mamãe e do papai, e passava mais tempo fazendo e recebendo mesuras que no número 145 da rua Piccadilly. Até mesmo o cardápio infantil era em francês — exatamente como o do casal real. As lutas de travesseiro e outras brincadeiras noturnas que haviam pontuado a vida da família na rua Piccadilly rapidamente �caram no passado. O pai e a mãe passaram a estar ocupados demais. Além de jogar boliche nos longos corredores, havia uma vantagem em ser princesa em um palácio: a jovem descobriu que, se passasse em frente às sentinelas que guardavam sua nova casa, elas tinham de apresentar armas. Caminhar de um lado para o outro na frente delas se tornou um jogo do qual Elizabeth jamais se cansou. Ainda mais empolgante que isso foi a coroação agendada para maio de 1937. A rainha-mãe, Mary, enxergou no evento uma oportunidade didática, levando para o quarto de brinquedos uma imagem panorâmica da coroação do rei George IV em 1821, a �m de ensinar às princesas o simbolismo e o signi�cado da cerimônia. No �m, de acordo com Craw�e, Elizabeth se tornou uma especialista. Talvez tão atraente quanto esses ritos e rituais fosse a perspectiva de usar os primeiros vestidos longos e os diademas desenhados pelo pai. “Elas vieram conversar comigo, muito timidamente, meio intimidadas pelo próprio esplendor e pelos primeiros vestidos longos”,36 lembrou Craw�e. Aos 11 anos, já apresentando uma personalidade madura e maternal, o que mais preocupava Elizabeth em relação à coroação era o comportamento da irmãzinha de 6 anos. Ela se lembrava de quando fora dama de honra no casamento do tio, o duque de Kent, com a princesa Marina da Grécia e da Dinamarca na Abadia de Westminster, em novembro de 1934. Margaret recebera permissão para se sentar ao lado da mãe. No entanto, quando a irmã mais velha surgiu caminhando pela ala central segurando o véu da noiva, a pequena acenou, possivelmente em uma tentativa de distrair a irmã mais velha de seu solene dever. Elizabeth não vacilou. Lançou um olhar severo à irmã e balançou a cabeça em desaprovação, a �m de desencorajar outras possíveis travessuras. No �m, ela alegremente relatou a Craw�e que a irmã se comportara muito bem. Foi tudo muito louvável, pois as meninas haviam �cado acordadas a maior parte da noite em razão das músicas e conversas da multidão que aguardava do lado de fora do palácio. A princesa Elizabeth registrou as próprias memórias do dia histórico em um caderno pautado e amarrado com uma �ta cor-de-rosa e escreveu uma tocante dedicatória escrita a giz de cera vermelho na capa: “A coroação, 12 de maio de 1937. Para mamãe e papai, em memória de sua coroação, de Lilibet, escrita por ela mesma.”37 Ela relatou como fora acordada pela banda dos fuzileiros reais do lado de fora. Então, enrolando-se no edredom, ela e Bobo MacDonald “agacharam-se sob a janela, olhando para a manhã fria e enevoada”.38 Após o café da manhã, as irmãs se vestiram e des�laram para si mesmas em seus trajes, antes de irem ver os pais, que também se preparavam para o grande dia. Depois de lhes desejar boa sorte, as princesas e a rainha Mary entraram em uma carruagem de vidro e enfrentaram o “acidentado” trajeto rumo à Abadia de Westminster. A princesa �cou fascinada com a elaborada coreogra�a da coroação e bastante desapontada com o fato de a avó não se lembrar muito bem do grande dia. Em certo momento da cerimônia, quando as preces pareciam intermináveis, Elizabeth folheou o programa e apontou para a palavra Finis, partilhando um momento conspiratório com a avó. A coroação foi história viva, próxima e pessoal, assim como uma intensa e cativante prévia do próximo estágio da educação real da princesa. Essa educação começou com a primeira festa nos jardins do Palácio de Buckingham a que compareceu, seguida pela Trooping the Colour e, �nalmente, pela antiga cerimônia da Ordem da Jarreteira na Capela de St. George, no Castelo de Windsor. Sem perspectivas de um irmão mais novo no horizonte, o treinamento de Elizabeth se intensi�cou. Quando Joseph Kennedy (patriarca da dinastia Kennedy) chegou a Londres em março de 1938 para assumir o posto de embaixador norte-americano na Real Corte de St. James, o rei posicionou a �lha mais velha sentada a seu lado durante um almoço em Windsor. Para não se sentir inteiramente deixada de lado, Margaret acompanhou os Kennedy e a própria família durante uma caminhada por Frogmore Gardens. Em outra ocasião, quando o presidente Lebrun da França fez uma visita de Estado em março de 1939, a princesa se uniu ao pai e ao presidente francês no trajeto de carro entre o Palácio de Buckingham e a estação Vitória, de onde a delegação francesa partiu. Com certo atraso, a nova rainha percebeu que a educação acadêmica da �lha mais velha precisava ser ampliada. Após discutir o assunto com algumas pessoas, entre elas Sir Jasper Ridley, um banqueiro ex-aluno do prestigioso Colégio Eton, decidiu-se que a princesa estudaria história constitucional com Henry Marten, o vice-reitor da centenária escola. Embora estivesse inicialmente apreensiva com as duas visitas semanais ao colégio restrito a meninos, ela em breve iniciou uma amizade com o elegante erudito, apreciando a introdução adulta à política, à história e às atualidades. De fato, o teatro político foi encenado diante de seus olhos quando seus pais surgiram no balcão do Palácio de Buckingham, em setembro de 1938, com o primeiro- ministro, Neville Chamberlain, e a esposa, Anne, para celebrar o famoso Acordo de Munique, que trazia “a paz de nosso tempo” com o líder nazista Adolf Hitler. Elizabeth estava crescendo. Então com 13 anos, ela era, de acordo com Craw�e, “uma criança encantadora, de cabelo e pele adoráveis e uma �gura longa e esbelta”.39 Não que os garotos de Eton parecessem notar. Se algum deles precisasse ir até a sala do vice-reitor ou a visse nos corredores, polidamente tirava a cartola e seguia em frente. Para uma garota que fora encarada a vida inteira, essa foi uma mudança revigorante, embora seja possível que a adolescente, pela primeira vez diante de hordas de garotos, tenha considerado a polida indiferença deles, bem, um tanto indiferente demais. Com exceção dos primos George e Gerald Lascelles, �lhos da princesa Mary, sua tia, Elizabeth tivera pouco contato com meninos durante a infância. Talvez não seja surpresa, dada a fascinação que tinha por cavalos, que sua primeira paixonite infantil tenha sido Owen, o jovem cavalariço. Aos olhos dela, Owen era a fonte de toda a sabedoria e nunca errava — para exasperado divertimento do rei e da rainha, particularmente do pai. O relacionamento entre o pai e a �lha era, de longe, o mais signi�cativo. “O rei sentia grande orgulho da �lha, que, por sua vez, tinha o desejo inato de fazer o que se esperava dela”, comentou Craw�e.40 O relacionamento deles era amoroso e complexo, e o rei, um homem reservado e tímido, admirava a maturidade precoce de Elizabeth e galantemente tentava protegê-la do solitário futuro que a aguardava. Em certos momentos, ele parecia querer parar o relógio e manter as �lhas crianças, em vez de adolescentes em crescimento. O pai despertava em Elizabeth a natureza maternal, especialmente quando sofria de “rangeres” — explosões de temperamento causadas pela frustrante inabilidade de superar a gagueira persistente. Ambas as garotas aprenderam a resgatar o pai desses humores sombrios. Elas também aprenderam que o melhor era �car fora do caminho dele e deixar a mãe lidar com o problema. No verão de 1939, com a perspectiva de guerra despontando no horizonte, o grupo real viajou para o colégio naval Dartmouth, no sudoeste da Inglaterra, a bordo do iate real, o Victoria and Albert. Seria lá, em 22 de julho, que Elizabeth conheceria o jovem que mudaria sua vida. Os augúrios não foram bons. Embora as garotas devessem comparecer a uma missa na capela após a inspeção dos cadetes, decidiu-se que, como dois deles estavam com caxumba — doença que pode causar infertilidade —, elas deveriam passar o tempo na casa do capitão do colégio, Sir Frederick Dalrymple-Hamilton. Os dois �lhos mais velhos do homem, North, de 17 anos, e Christian, de 19, foram encarregados de distraí-las. No meio da brincadeira com um trem de corda, uniu-se ao quarteto um garoto de boa aparência, olhos azuis penetrantes, traços marcantes, maneiras informais e aparência de viking. Entrara em cena o príncipe Philip da Grécia, sobrinho do cavalariço do rei, Lord Louis Mountbatten, parecido com Adônis. O príncipe, então com 18 anos, logo �cou entediado com os trens e sugeriu saltarem sobre a rede da quadra de tênis. Embora Craw�e o tenha achado “exibido”, suas alunas o viam por uma perspectiva diferente, admirando quão alto ele conseguia saltar. Embora Elizabeth não tirasse os olhos dele, o contrário não aconteceu. Philip estava simplesmente cumprindo as ordens do tio Louis, que lhe dissera para fazer companhia às garotas. Ele preferia ter comparecido ao evento principal, no qual o rei inspecionava as �leiras de aspirantes a o�ciais navais. Se Philip havia recebido ordens do incorrigível casamenteiro real, o tio Louis, para fazer amizade com Elizabeth, não se esforçou muito. Durante o almoço do dia seguinte, o príncipe exibiu juvenil entusiasmo pelo extenso cardápio, em vez de conversar com a companheira real que lhe foi designada. Rapidamente o faminto cadete, acostumado às rações da Marinha, devorou vários pratos de camarão, uma banana split e mais tudo o que conseguiu pôr as mãos. “Para as garotas, um rapaz de qualquer tipo era sempre uma criatura estranha, vinda de outro mundo”, comentou Craw�e, que não gostou muito do excesso de con�ança de Philip. “Lilibet �cou lá sentada, de rosto vermelho, gostando muito da companhia. Para Margaret, qualquer um que conseguisse comer tantos camarões era um herói.”41 O príncipe era, de fato, uma criatura estranha e exótica. A�nal, com exceção do sangue real, a criação e o background de Elizabeth e Philip não poderiam ter sido mais diferentes. Até aquele momento, ele tivera uma vida extraordinária, quase inacreditável. O avô havia sido assassinado; o pai, preso; a mãe, a princesa Alice, internada à força em um hospício. Era de conhecimento público que ele nascera sobre uma mesa de jantar em uma vila chamada Mon Repos, na ilha grega de Corfu. Quando Philip tinha menos de 2 anos, a família fugiu da ilha, enquanto o menino estava acomodado em um caixote de laranjas à guisa de berço, a bordo de um destróier inglês. O pai, príncipe Andrea, foi enviado para o exílio; a sentença de morte imposta por um tribunal militar foi comutada por intervenção de George V. Desde os 8 anos, Philip levou uma vida errante, estando poucas vezes com o pai — que se mudara com a amante para um pequeno apartamento em Monte Carlo — e menos ainda com a mãe. Em um período de 18 meses, suas quatro irmãs se casaram e se mudaram para a Alemanha com os maridos aristocratas. Philip fora matriculado no colégio interno Cheam e estudara em Salem, na Alemanha, antes de completar sua educação formal em Gordonstoun, no norte da Escócia, a recém-fundada escola dirigida por Kurt Hahn, um judeu alemão que fugira do país de origem. Apesar de tudo por que passara, Philip era lembrado como um garoto alegre e vivaz, dono de uma mente inquisitiva e possuidor de uma habilidade natural para os esportes. Ele não sentia pena de si mesmo por causa daqueles dias: segundo relatou a seu biógrafo, Gyles Brandreth: “A família se dividiu. Minha mãe estava doente, minhas irmãs, casadas e meu pai vivia no sul da França. Tive que seguir em frente. É isso que as pessoas fazem.”42 Em Gordonstoun, ele foi nomeado guardião ou monitor de alunos; em Dartmouth, recebeu a Adaga Real por ser o melhor cadete de seu ano de ingresso. Ele certamente atraiu os olhares da princesa e do restante do grupo real conforme o Victoria and Albert navegava lentamente pelo estuário. O navio real era seguido por uma �otilha de barcos a remo, a bordo dos quais cadetes empolgados se despediam ruidosamente dos soberanos. Quando o estuário se alargou, alguns deles continuaram seguindo o iate. A certa altura, o rei, temendo um acidente, indicou ao comandante, Sir Dudley North, que sinalizasse a eles que voltassem. Finalmente, os garotos rumaram em direção à costa — com exceção de um jovem que ignorou todos os sinais. Era Philip, observado atentamente por Lilibet por trás do binóculo. Depois de algum tempo, percebendo que ninguém estava impressionado com a bravata marítima que ele exibia, o jovem príncipe deu meia-volta e remou em direção ao colégio. Seis semanas depois, a Grã-Bretanha declarava guerra à Alemanha. Philip foi nomeado aspirante e designado para o couraçado HMS Ramillies. As princesas souberam do con�ito iminente por meio da emocionada pregação do ministro Dr. John Lamb na pequenina igreja paroquial de Crathie Kirk, perto de Balmoral, onde elas estavam hospedadas. Ele disse à congregação que a paz terminara e a Grã-Bretanha estava novamente em guerra. Quando saíram da missa, nervosas e empolgadas, Margaret perguntou a Craw�e: “Quem é esse Hitler, que está estragando tudo?”43 Elas descobririam em breve. Bombas na hora de dormir Logo depois de Winston Churchill se tornar primeiro-ministro, em maio de 1940, um espião nazista chegou de paraquedas à Grã-Bretanha. O agente, nascido na Holanda e que atendia pelo nome de Jan Willem Ter Braak, carregava consigo um revólver, um radiotransmissor, documentos falsos e dinheiro em espécie. As ordens as quais estava cumprindo eram simples: encontrar e assassinar Winston Churchill. O espião morou com um casal em Cambridge por algum tempo e então, conforme seu dinheiro chegava ao �m e ele começava a temer ser capturado, entrou em um abrigo antiaéreo público e se matou com um tiro na cabeça.1 Esse foi provavelmente o primeiro de ao menos três planos para matar o primeiro-ministro durante a guerra, com os conspiradores às vezes abatendo o alvo errado. Como o próprio Churchill comentou em seu livro de memórias sobre a guerra: “A brutalidade dos alemães só se comparava à estupidez de seus agentes.”2 Ele foi, no entanto, excessivamente desdenhoso. A política alemã de matar ou capturar líderes políticos e chefes de Estado reais quase teve sucesso. George VI, a rainha consorte — que Hitler mais tarde descreveu como “a mulher mais perigosa da Europa” — e suas �lhas estavam no topo da lista de sequestros e prisão. Um dos planos previa que paraquedistas descessem no jardim do Palácio de Buckingham e em outros parques reais e mantivessem o rei e sua família sob “proteção alemã”. O homem por trás desse esquema, Dr. Otto Begus, quase capturou a rainha Wilhelmina da Holanda durante a invasão nazista dos Países Baixos. Enquanto as tropas desciam de paraquedas na residência real em Haia, Begus e os homens sob seu comando estavam envolvidos em operações de invasão aérea que levaram à queda de certo número de planadores perto do aeroporto de Valkenburg. Wilhelmina conseguiu evitar a captura: deixou para trás todos os seus bens pessoais, fugindo somente com as roupas do corpo para a cidade de Hoek van Holland, no litoral do mar do Norte. Lá, o destróier britânico HMS Hereward esperava a rainha e sua família, assim como membros do governo holandês e as reservas de ouro e diamantes do Estado. A operação, chamada de Força Arpão, foi um sucesso, embora o destróier tenha sido atacado por bombardeiros Stuka durante a travessia para a Inglaterra. Finalmente, Wilhelmina chegou sã e salva ao Palácio de Buckingham, onde contou suas aventuras ao rei e à rainha. O rei belga Leopold III não teve tanta sorte. Em 28 de maio, dias antes da queda da França, ele rendeu-se aos nazistas depois que suas tropas foram cercadas, gerando polêmica. Os alemães o mantiveram inicialmente em prisão domiciliar no Castelo Real de Laeken (residência o�cial da família real belga), nas cercanias de Bruxelas, até 1944, quando foi enviado à Áustria. Em toda a Europa, outros nobres fugiam dos invasores nazistas. O rei Haakon VII da Noruega passou semanas evitando a captura enquanto ele, o príncipe herdeiro, Olav, e membros do governo norueguês eram perseguidos por um esquadrão de cem paraquedistas nazistas. Como a rainha Wilhelmina, o exausto monarca e seu �lho subiram a bordo de um cruzador britânico, dessa vez o HMS Devonshire, e foram levados para a Inglaterra. Ao chegarem ao Palácio de Buckingham, estavam tão cansados após a traumática fuga de 7 de junho que adormeceram deitados no chão, enquanto a rainha andava na ponta dos pés para não perturbá-los. Mais para o sul, o duque e a duquesa de Windsor, que estavam em Portugal, um país neutro à época, foram os alvos da Operação Willi: Hitler enviou o principal espião alemão, Walter Schellenberg, a Lisboa a �m de liderar uma equipe para capturar o casal e atravessar com ele a fronteira para a Espanha de Franco, amigo dos nazistas. De última hora, Churchill soube do plano e fez com que o casal embarcasse em um navio para as Bahamas, onde o antigo rei se tornou o relutante novo governador. O grande esquema de Hitler se baseava na ideia de instalar o duque como rei da Inglaterra, que estava prestes a ser conquistada, ou transformar outros membros da realeza europeia em reféns; assim, eles poderiam ser usados como governantes-fantoches ou como garantia do bom comportamento dos súditos. Era uma estratégia tão antiga quanto a guerra. Com a Grã-Bretanha encurralada e sua força expedicionária resgatada a grande custo das praias manchadas de sangue de Dunquerque entre o �m de maio e o início de junho de 1940, Hitler se preparava para o golpe �nal. Em algum momento de agosto daquele ano, enquanto o plano de invasão Operação Leão Marinho era �nalizado, Otto Begus, de acordo com seu testemunho posterior,3 recebeu instruções escritas de se apresentar para uma missão especial. O alvo dessa vez era a família real britânica. Um comando especialmente treinado de paraquedistas, incluindo alguns que haviam participado da missão holandesa, aprontou-se para capturar o rei, a rainha e as duas princesas. O objetivo era manter os reféns reais vivos: os paraquedistas foram instruídos sobre como saudar e se dirigir aos cativos membros da família real. No grande esquema alemão, Hitler acreditava que, se a tentativa de sequestro fosse bem-sucedida, a Grã-Bretanha seria forçada a se render. Somente o fracasso da Luftwaffe em vencer a batalha contra a Grã-Bretanha fez com que o plano fosse abandonado. Mesmo assim, a perspectiva de paraquedistas alemães descendo nas cercanias da Torre de Londres e nos jardins do Palácio de Buckingham ou de outras residências reais foi levada muito a sério pela família real e pelos estrategistas militares.4 A rainha, temendo ser capturada, praticou tiro com pistola nos jardins do Palácio de Buckingham, usando como alvo os ratos que haviam fugido dos edifícios bombardeados. Sua sobrinha, Margaret Rhodes, tempos depois, lembrou: “Suponho que ela pensava que, se paraquedistas surgissem com o propósito de levá-los para algum lugar, ela poderia ao menos abater um ou dois.”5 O rei George VI, que passara a carregar um ri�e e uma pistola, supervisionou pessoalmente a remoção das inestimáveis Joias da Coroa da Torre de Londres. Enroladas em panos de algodão e postas em caixas de couro, elas foram levadas para o Castelo de Windsor e escondidas no calabouço. Por trás dos sorrisos corajosos e da calorosa con�ança que transmitiam aos súditos, tanto o rei quanto a rainha carregavam uma sensação de tragédia iminente durante os mais fatídicos meses desde a ameaça de invasão da Armada espanhola, em 1588. Antecipando os dias sombrios e incertos que estavam por vir, a rainha escreveu para a irmã mais velha, Rose, perguntando se ela cuidaria das princesas caso algo acontecesse ao rei ou a ela mesma. Rose concordou prontamente, dizendo: “Prometo que farei o melhor que eu puder e irei diretamente até elas se, Deus nos livre, algo acontecer a vocês.”6 Embora tanto o rei quanto a rainha falassem em morrer lutando no caso de os nazistas invadirem Londres, havia a perturbadora questão do que seria feito com as preciosas �lhas. Muitos de seus amigos aristocratas tinham mandado os �lhos para o Canadá; outros haviam optado por mandá-los para o interior do país. Depois da declaração de guerra em 3 de setembro de 1939 — a resposta à invasão da Polônia pelos alemães —, as princesas foram mandadas para o Birkhall Lodge, nas Terras Altas escocesas, já que Balmoral era considerado alvo para os bombardeiros nazistas. Enquanto isso, o casal real e uma equipe reduzida mantinham o Palácio de Buckingham funcionando. Nos primeiros meses da chamada Guerra de Mentira, período que se estendeu até maio de 1940, quando a Alemanha engoliu de uma vez só a França, a Bélgica, a Holanda e Luxemburgo, as garotas cavalgaram, envolveram-se em brincadeiras inocentes, como fazer pedidos a cada folha que caía das árvores, e aprenderam francês sob o olhar atento de Georgina Guerin, que mais tarde retornou a seu país natal, onde exerceu um papel de liderança na Resistência francesa. Além disso, Elizabeth continuou a ter aulas por correspondência com Henry Marten, o vice-reitor de Eton que havia se tornado tutor particular da princesa. A guerra parecia muito distante, embora sem dúvida as garotas, sensíveis aos humores paternos, percebessem a tensão por trás das brincadeiras descontraídas durante o telefonema diário das 6 horas da tarde. Até mesmo tirar medidas para as máscaras de gás parecia um jogo — a princesa Margaret, então com 9 anos, lidava com aquele estranho objeto de borracha como se fosse um brinquedo esquisito. Naturalmente, a rainha queria poupar as �lhas o máximo possível, dizendo a Craw�e para monitorar os programas de rádio e a cobertura dos jornais. “Mantenha-se na programação de sempre enquanto puder, Craw�e”, ordenou o rei. Era mais fácil falar que fazer, já que as garotas frequentemente ligavam o rádio para ouvir o loquaz apresentador Lord Haw-Haw (pseudônimo do irlandês nascido norte-americano William Joyce) e seu programa Germany Calling [A Alemanha Chama] cheio de propaganda nazista em inglês. Muitas vezes elas �cavam tão chocadas com as tiradas dele que jogavam almofadas e livros no rádio. Em 14 de outubro, um submarino alemão pôs a pique o navio de guerra Royal Oak causando a morte de 834 homens e meninos. A cruel realidade da guerra se apresentava às garotas. “Craw�e, não pode ser verdade, todos aqueles ótimos marinheiros”,
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