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Crítica | Tenda dos Milagres, de Jorge Amado

Discurso científico, cultura popular e chegada da modernidade nas reflexões da escrita amadiana.

por Leonardo Campos
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Encontros entre o discurso científico e a sabedoria popular. Assim é Tenda dos Milagres, de Jorge Amado, um dos romances prediletos do autor, segundo algumas de suas fontes biográficas. Transformado em narrativa seriada pela Rede Globo e em filme pelo cineasta Nelson Pereira dos Santos, o livro em questão, publicado em 1969, traz ao longo de suas 374 páginas, uma narrativa em dois tempos. Na história contada no presente, isto é, o mesmo ano de publicação do romance, acompanhamos a chegada de um pesquisador estrangeiro ao Brasil, homem letrado interessado em conhecer as belezas e mistérios da terra de Pedro Arcanjo, autor de um dos livros mais amados pelo personagem. A sua vinda exploratória pretende observar peculiaridades da vida e da obra deste autor que aqui, é um mero desconhecido.

E, neste ponto, Jorge Amado estabelece a sua rotineira ironia, numa crítica aos complexos comuns ao cenário cultural brasileiro, geralmente a validar o que é de fora e desprezar o que é produto de sua terra. Isso pode ser visto por meio dos discursos e ações de políticos oportunistas, figuras que começam a capitalizar em torno do escritor Pedro Arcanjo, interessados na presença e na visibilidade do que será anotado pelo visitante estrangeiro. A mídia, em polvorosa, começa a esmiuçar a trajetória de alguém até então enterrado na memória elitizada de Salvador, numa série de homenagens e outras honrarias, demonstração dos arroubos comuns ao histórico colonizador brasileiro, geralmente encantado com o que é de cunho internacional.

Assim, Jorge Amado entrecorta a sua narração com o mencionado tempo presente, passagem do pesquisador, voltando para o começo do século XX, numa radiografia da trajetória de Pedro Arcanjo e sua tenda dos milagres. Ele é um homem que representa o caldeirão da mestiçagem brasileira, intelectual autodidata, sem formação acadêmica tradicional, mas com muita sabedoria, um aprendiz da cultura que teve como base a convivência com os tipos diversos das ruas de Salvador. Além disso, a sua relação com todo o sincretismo religioso que determina a atmosfera da cidade, algo constantemente contemplado nos romances do escritor, se finca como elemento forte no decorrer da narração. Pedro Arcanjo, defensor dos valores culturais oriundos da mestiçagem, é um combatente do racismo e valorizador da cultura negra.

Em sua jornada de escrita repleta de pontos que enaltecem as peculiaridades baianas, Jorge Amado também apresenta outros personagens relevantes, figuras ficcionais que gravitam em torno do protagonista e acrescentam informações importantes para que possamos reconhecer o contexto de desenvolvimento da história. Rosa de Oxalá, por exemplo, uma paixão marcante na caminhada de Pedro Arcanjo, atravessa o romance de maneira notável, tal como o rábula João Romão, inspirado no célebre Cosme de Farias, um conhecido defensor dos pobres da capital baiana, e Professor Silva Virajá, personagem que teve como inspiração o médico Pirajá da Silva. Assim, Tenda dos Milagres é um romance das inspirações, pois até o próprio Pedro Arcanjo teve como base o intelectual negro Manuel Querino, figura conhecida por ter publicado livros que analisavam a genealogia da elite branca de Salvador, em linhas gerais, um “antropólogo”.

Como adversário de sua postura intelectual, o romance nos apresenta Nilo Argolo, provavelmente inspirado em Nina Rodrigues, notável “celebridade” dos primeiros anos do século XX, defensor de teorias consideradas racistas e repensadas ao longo dos avanços científicos após o período em questão. Ademais, Tenda dos Milagres retrata as perseguições sofridas por capoeiristas e adeptos do candomblé, além de abordar o que fora mencionado na abertura desta breve análise: os debates sobre elementos da cultura popular em paralelo aos processos de fixidez do discurso científico. As lutas de Pedro Arcanjo, sublimadas pelas tintas daqueles que escreviam a nossa história, ganham novos contornos com a revisão do estrangeiro que faz o protagonista renascer das cinzas, sendo até mesmo homenageado no carnaval da Bahia por uma escola de samba. Há, também, como o conjunto da obra de Jorge Amado, reflexões sobre o progresso na cidade, representada com a chegada de indústrias e desenvolvimento urbano, o fluxo da modernidade.

Tenda dos Milagres (Brasil) — 1969
Autor: Jorge Amado
Editora: Record
374 páginas

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