Um mês na Lisboa de 1669 com Cosme de Médici,
um “peregrino instruído”
José Manuel Garcia
(Gabinete de Estudos Olisiponenses)
D. Manuel Caetano de Sousa (1658-1734) escreveu antes de 1716 uma obra
intitulada Peregrino Instruído. Modo com q se deve informar todo o sujeito, q
fizer giro, pela Europa, e mais partes do Mundo, no qual se acrescentava que se
trata de um trabalho Mandado fazer na Occazião. q S. Mages.de o Sr. Rey D.
João o quinto esteve para hir incógnito, ver as Cortes Estrangeiras1. Por estas
indicações verifica-se que D. João V (1689-1750), depois de ter ascendido ao
trono português a 9 de dezembro de 1706, ambicionou fazer uma viagem pela
Europa. Se ele acabou por ser dissuadido de a fazer o mesmo não aconteceu a
um verdadeiro “peregrino instruído”, viajante inveterado que em parte foi seu
contemporâneo: o florentino Cosme de Médici (Cosimo di Ferdinando II de’
Medici, 14 de agosto de 1642-31 de outubro de 1723), que a partir de 23 de maio
de 1670 se tornou grão-duque da Toscana como Cosme III (Cosimo III). Esta
personalidade realizou uma grande viagem pela Europa durante a qual passou
por Portugal entre 9 de janeiro de 1669, quando chegou Campo Maior, e 1 de
março desse ano, quando partiu de Caminha rumo a Santiago de Compostela.
Mais de metade desses cinquenta e um dias foram por ele passados a peregrinar
1
Sobre esta obra verificar nomeadamente Ana Isabel Buesco, «”O Peregrino Instruído”. Em torno de
um projecto de viagem setecentista». Revista da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, 2, Lisboa.
1988, p. 27-58.
195
por Lisboa entre 20 de janeiro e 18 de fevereiro de 16692. Graças a essa viagem
podemos conhecer aspetos do maior interesse de Portugal e em particular da sua
capital, os quais vamos focar de seguida, depois de algumas breves
considerações para apontar aspetos que consideramos interessantes e pouco
conhecidos para enquadrar esse momento de grande significado no âmbito das
intensas e seculares relações luso-italianas.
Cosme de Medici pintado em Londres em 1669 por Samuel Cooper
(Florença, Galleria degli Uffizi)
2
De entre trabalhos gerais sobre Cosme e a sua viagem a Portugal podemos realçar os de: António
Portugal de Faria, Portugal e Itália, Leorne, 1901, p. 25-99; Franck Lafage, Côme III de Médicis:
Grand-Duc de Toscane: un règne dans l'ombre de l'histoire (1670-1723), Paris, 2015; Cristina
Marchisio, «Il principe assaggiatore. Cosimo de’ Medici in Spagna e Portogallo», Giornale storico della
letteratura italiana, CLXXXIV (607), Turim, 2007, p. 368-388; Carmen M. Radulet, “Cósimo III
Medici and the Portuguese Restoration. A voyage to Portugal in 1668-1669», E-Journal Of Portuguese
History, 1 (2), Porto, Universidade do Porto; Providence: Brown University[http://tinyurl.com/nwyp3y];
Ángel Sánchez Rivero and Angela Mariutti de Sánchez Rivero, Viaje de Cosme de Médicis por España
y Portugal (1668-1669), Madrid, [1933]; Paolo Caucci von Saucken, El viaje del Príncipe Cosimo Dei
Medici por España y Portugal, Santiago de Compostela, 2004; Jorge Estrelo, Viagem de Cosme III de
Médicis em Portugal no ano de 1669, Lisboa, 2013; Vítor Serrão, «Portugal y las artes de la guerra», in
El viaje a Compostela de Cosme III de Médicis, edição de Marcelina Calvo Domínguez, Santiago de
Compostela, 2004, p. 540-551.
196
Aspetos das relações entre os Médici e Portugal
A presença de Cosme em Portugal em 1669 contribuiu para reavivar as
antigas ligações entre Portugal e Florença, de que um dos casos menos
conhecidos ocorreu em 1569 quando então se efetuou uma missão a Portugal
enviada por Cosme I de Médici (1519-1574), a qual foi dirigida por Bernardo
Neri e foi levada a cabo depois de aquele governante ter recebido o título de
primeiro grão-duque da Toscana a 27 de agosto de 1569. Essa missão revestia-se
de propósitos culturais, pois visava obter informações sobre o Oriente e outras
questões científicas. Uma das pessoas então contactadas por Bernardo Neri em
Portugal foi o famoso aventureiro e escritor Fernão Mendes Pinto, o qual a 15 de
março de 1571 lhe escreveu uma carta, na sequência de um encontro que haviam
tido3. Na referida carta resumiam-se informações sobre terras que Fernão
Mendes Pinto havia conhecido na Ásia e ele comunicava-lhe a esperança de o
grão-duque poder patrocinar a edição do livro que então estava a escrever: a
Peregrinação. Infelizmente tal não aconteceu, porque o livro ainda não estava
pronto em 1574 quando Cosme I morreu. Cem anos depois da missão que este
enviou a Portugal foi um seu descendente que em 1669 aí veio em pessoa.
Nesta rápida evocação de aspetos que ligam a história dos Médici e
Portugal consideramos relevante apontar a circunstância de ter sido quando
entre 1434 e 1464 essa família começou a ter proeminência no governo de
Florença, com Cosimo di Giovanni de’ Medici, dito “O Velho”, que em Portugal
se viveu o periodo decisivo do arranque dos Descobrimentos promovidos pelo
infante D. Henrique. Com efeito foi precisamente em 1434 que este conseguiu
que Gil Eanes passasse o cabo Bojador, feito que marcou o início dos
Descobrimentos, os quais foram dirigidos pelo infante até à data da sua morte
em 1460.
Ainda relacionado com a Expansão Portuguesa é também signficativo e
pouco conhecido que Alexandre de Médici (Alessandro di Lorenzo de’ Medici),
dito “O Mouro” (1510-1537), que entre 1532 e 1537 foi o primeiro duque de
Florença, adoptou como divisa a famosa gravura de Dürer com a representação
do rinoceronte indiano que foi oferecido por Afonso de Albuqueruque a D.
Manuel e chegou a Lisboa em 1515. Tal animal causou grande sensação na
Europa sedno um dos melhores exemplos do exotimo resultante dos
Descobrimentos. A Alexandre sucedeu o acima mencionado Cosme I de Médici
3
Esta carta foi publicada por Rebecca Catz, com a colaboração de Francis M. Rogers, em Cartas de
Fernão Mendes Pinto e outros documentos, Lisboa, Editorial Presença; Biblioteca Nacional de Lisboa,
1983.
197
Divisa de Alexandre de Médici onde se reproduz a gravura de Dürer que representa o rinoceronte
enviado a D. Manuel em 1515
A viagem do Cosme de Médici que aqui abordamos iniciou-se em
Florença a 18 de setembro de 1668 e passou por Espanha, Portugal, Inglaterra,
Holanda, Bélgica e França tendo acabando em Florença a 1 de novembro de
1669. Esta longa jornada foi feita com o propósito do então futuro grão-duque
adquirir experiência governativa através de contactos proveitosos com cortes
europeias, embora em parte tenha também sido levada a cabo para se distanciar
da sua mulher Margarida Luísa de Orleãs, prima de Luís XIV, com a qual estava
incompatibilizado. Esperava-se que o afastamento por algum tempo permitisse
uma reconciliação, a qual acabaria por não se verificar.
A visita de Cosme a Portugal foi particularmente importante porque em
Florença havia interesse em avaliar a situação deste país e perceber a forma
como entre 1640 e 1668 ele conseguira acabar com o domínio da dinastia
filipina, sendo então recente a paz estabelecida entre Portugal e Espanha, pois
datava de 13 de fevereiro de 1668. A coroa portuguesa também acabara de
passar por um grave conflito interno quando a 23 de novembro de 1667 o infante
D. Pedro afastou o seu irmão D. Afonso VI do trono, casando de seguida com D.
Maria Francisca Isabel de Saboia, que havia sido sua cunhada4. O príncipe
regente D. Pedro só se tornou rei oficialmente a 12 de setembro de 1683
4
Para lá das obras gerais deste reinado verifica-se ser de grande utilidade para o presente estudo o
trabalho de Joana Leandro Pinheiro de Almeida Troni, A casa real portuguesa ao tempo de D. Pedro II:
1668-1706, Lisboa, Tese de doutoramento, 2012.
(http://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/10712/1/ulsd067734_td_Joana_Troni.pdf) .
198
como D. Pedro II, na sequência da morte então ocorrida de D. Afonso VI,
mas por comodidade da sua mais fácil identificação referimo‐lo como D.
Pedro II nas alusões que de seguida lhe fazemos.
Fontes para a história da viagem de Cosme a Portugal
Na sua viagem Cosme, então com vinte e seis anos, começou por ser
acompanhado de uma comitiva constituída por vinte e sete pessoas, mas estas
vieram a aumentar tendo ascendido às trinta e nove. Entre aqueles que a
compunham destacavam-se o conde Lorenzo Magalotti (1637-1712), diplomata
e escritor de grande mérito que escreveu o diário com a relação oficial da
viagem, e figuras que também a descreveram, como foi o caso de Giovanni
Battista Gornia (1633-1684), o seu médico, e o marquês Filippo Corsini (16471706), cujo diário pessoal se intitula: Memorie del viaggio fatto in Spagna,
Portogallo, Inghilterra, Olanda e Francia dal Serenissimo Principe Cosimo di
Toscana raccolte dal Marchese Filippo Corsini. Há ainda outros trabalhos e
cartas sobre a viagem, mas é com base nas referidas fontes que iremos seguir as
peregrinações por Lisboa desse homem tão devoto que era Cosme de Médici, o
qual percorreu a maior parte das igrejas e conventos da cidade. Ainda assim não
podemos deixar de realçar que será do maior interesse proceder a uma adequada
edição crítica desses textos, acompanhada da sua boa tradução portuguesa
acompanhada de aprofundadas e esclarecedoras notas sobre as imensas e
preciosas informações aí fornecidas, as quais têm sido pouco aproveitadas pela
historiografia contemporânea5.
Uma outra pessoa que se destacou na comitiva de Cosme foi o jovem
artista Pier Maria Baldi (1648-1686) que foi encarregado de proceder a uma
exaustiva reportagem iconográfica com as vistas das povoações por onde
passou, a qual se materializou em muitas dezenas de desenhos aguarelados que
se encontram na Biblioteca Medicea Laurenziana de Florença numa Relazione
ufficiale del viaggio di Cosimo III dei Medici com a cota Fondo Mediceo
Palatino, Codice 123. Aí se reúnem desenhos a sépia feitos a partir dos esboços
das vistas tiradas em 1669 e que eram destinados a acompanhar o texto escrito
por Magalotti. Estamos perante um precioso complemento visual das narrativas
que foram escritas a registar o que de mais importante se passou na viagem.
De entre os seus trinta e quatro desenhos de povoações de Portugal por
onde Baldi passou, podemos destacar os da capital portuguesa, a qual foi
apresentada numa vista geral e duas particulares, sendo uma de Alcântara e outra
do mosteiro dos Jerónimos, com a foz do Tejo.
5
Enquanto tal trabalho não é feito seguimos os textos publicados em italiano por Ángel Sánchez Rivero
e Angela Mariutti de Sánchez Rivero em Viaje de Cosme de Médicis por España y Portugal (16681669), Madrid, [1933], p. 264-309, tendo em conta a tradução portuguesa publicada por A. G. da Rocha
Madahil, «Viagem de Cosme de Médicis a Lisboa, em 1669», Revista Municipal, Lisboa, n. 11/12,
1942, p. 55-66; n. 13/14, 1942, p. 45-58; n. 16, 1943, p. 43-53. De notar que apesar de se tratar de um
meritório trabalho de divulgação ele nem sempre é muito preciso.
199
De realçar o rigor das referidas vistas, ainda que pontualmente se possam
observar deformações, talvez por falta de espaço para o registo completo, como
se pode observar por exemplo na colocação do forte de Remolares (no Cais
Sodré) junto do Palácio Corte Real, quando deveria estar um pouco mais
afastado para ocidente.
Pormenor da zona entre a Ribeira das Naus e São Paulo na vista de Lisboa de Pier Maria Baldi
200
Perante os desenhos de Lisboa feitos por Pier Maria Baldi é de recordar
que poucos anos antes, por ocasião do casamento de D. Catarina de Bragança
com Carlos II de Inglaterra em 1662, Dirk Stoop editou um conjunto de onze
gravuras com excelentes representações da cidade, as quais a propagandeavam
bem, tal como ao evento em causa6.
Vista de Lisboa durante o embarque de D. Catarina para Inglaterra numa gravura de 1662 por Dirk
Stoop.
Ainda no contexto de referências a viagens que nos deixaram excelentes
levantamentos iconográficos assinalamos ainda um outro caso pouco conhecido
de uma missão diplomática inglesa dirigida em 1825-1826 por Charles Stuart
que foi destinada a intermediar as negociações que conduziram ao
reconhecimento por Portugal da independência do Brasil. Nessa embaixada
estava integrado Charles Landseer, um artista de grande talento que então traçou
desenhos e aguarelas com panoramas de terras e gentes de Portugal e do Brasil
por onde passou7.
6
José Manuel Garcia, Lisboa do século XVII “a mais deliciosa terra do Mundo”: imagens e textos nos
quatrocentos anos do nascimento do padre António Viera, Lisboa, Gabinete de Estudos Olisiponenses /
Câmara Municipal de Lisboa, 2008, onde também se fazem considerações sobre a viagem de Cosme e
os desenhos de Baldi.
7 Cf. a amostragem de tais trabalhos em Charles Landseer: desenhos e aguarelas de Portugal e do
Brasil, 1825‐1826, Cascais, 2012.
201
Cosme de Médici em Lisboa
Perante a riqueza das informações recolhidas sobre Lisboa durante a viagem de
Cosme vamos apenas abordar de forma muito sintética alguns dos seus tópicos,
de entre os que se podem considerar mais importantes sobre o que foi o seu diaa-dia no mês que passou na cidade. Iremos assim apontar no tempo e no espaço
os seus itinerários e vivências que foram descritos com um rigor que não foi
alcançado por mais nenhuma das antigas e numerosas embaixada italianas
enviadas a Lisboa.
As horas e os dias são referidos tal como foram registados nas fontes
acima citadas, tendo procurado identificar e situar o mais corretamente que
pudemos os principais locais visitados e pessoas contactadas, o que nem sempre
se revelou uma tarefa fácil, face às referências por vezes muito sumárias e pouco
claras ou até difíceis de interpretar que foram expressas, sendo de apontar a
existência de incorreções. Advertimos ainda que devido à brevidade deste estudo
não podemos procedemos a um levantamento exaustivo de todas as numerosas
situações e pessoas mencionadas nos contactos de Cosme, nomeadamente de
italianos que estavam em Lisboa e com quem esteve, como foi por exemplo o
caso de D. Marco Bani, secretário do Cardeal Orsini.
1.º dia - 20 de janeiro
Cosme deixou o Montijo (na altura denominada Aldeia Galega) em dois
bergantins a remos tendo chegado a Lisboa pelas 10 horas. De seguida foi
alojar-se numa habitação perto do rio Tejo que se situava no início da atual Rua
das Janelas Verdes, a qual seguia na direção de Alcântara. Tal moradia
corresponderá ao palácio do visconde de Asseca, como nos foi sugerido por
Helder Carita. O primeiro Visconde da Asseca foi Martim Correia de Sá e
Benevides Velasco (1639-1678), filho de Salvador Correia de Sá. Essa casa foi
alugada pelos negociantes florentinos estabelecidos na capital portuguesa
chamados Filippo di Sangallo e Giovan Francesco Poltri. Este último manteve
relações com Cosme, chegando mesmo a conceber o projeto de criar uma
companhia de comércio luso-florentina para as Índias ocidentais e orientais. Daí
o sentido de alguns dos contactos que então Cosme fez em Lisboa8.
A casa onde Cosme ficou em Lisboa já desapareceu, mas para ser
referenciada é de apontar que tinha a ocidente o convento de Santo Alberto,
conhecido por Albertas, o qual havia sido fundado em 1585 e pertencia à Ordem
das Carmelitas Descalças, o qual em parte foi integrado no atual Museu
Nacional de Arte Antiga. À sua frente o palácio tinha o convento de Nossa
Senhora dos Remédios, também da Ordem dos Carmelitas Descalços e que ficou
conhecido por convento dos Marianos, o qual ainda subsiste na Rua das Janelas
Verdes, 2, sendo ambos bem visíveis na gande vista de Lisboa em azulejos de
cerca de 1699.
8
Nunziatella Alessandrini e Antonella Viola, «Genovesi e fiorentini in Portogallo: reti commerciali e
strategie politico-diplomatiche (1650-1700)», Mediterranea - ricerche storiche, 28, 2013, p. 295-332.
202
Palácio do Visconde da Asseca onde terá ficado Cosme de Médici em 1669 no primeiro plano de
um detalhe da vista de Lisboa em azulejos de cerca de 1699 do Museu Nacional do Azulejo. Por
detrás tem a representação do convento de Nossa Senhora dos Remédios, da Ordem dos
Carmelitas Descalços.
Foi neste local que o príncipe recebeu algumas personalidades, tendo
começado logo nesse dia por falar com alguns italianos que estavam na cidade.
Entre tais homens encontrava-se um engenheiro cujo nome foi grafado quer
como Antoniani, quer como Antoniacci, o qual havia servido durante a guerra da
Restauração e mostrou planos de algumas fortificações na fronteira portuguesa.
2.º dia - 21 de janeiro
Cosme recebeu D. Pedro de Almeida, então vedor de D. Pedro II, para
combinar uma receção que o rei lhe queria fazer. Nesse dia o barão de Batteville
(Charles Watteville de Joux, 1605-1670), novo embaixador de Espanha em
Lisboa, mas que ainda não fora apresentado oficialmente, tentou ser recebido
por Cosme, mas este não o consentiu.
O florentino passou parte do dia, que estava chuvoso, com o acima
mencionado engenheiro italiano a ver plantas de batalhas e fortificações.
3.º dia - 22 de janeiro
Cosme foi ouvir missa à igreja que lhe ficava vizinha (“vicina Chiesa”) do
já mencionado convento das Albertas. Após a refeição ele falou longamente com
três frades capuchinhos italianos que haviam estado a evangelizar o Congo.
203
Depois de estes terem saído recebeu pela primeira vez o já então muito famoso
padre jesuíta António Vieira (1608-1697), com o qual se veio a reunir mais
vezes em Lisboa e no futuro iria manter estreitas relações, quer pessoais quer
epistolares9. O príncipe ainda recebeu o padre jesuíta Inácio Mascarenhas.
O apreço de Cosme pelos jesuítas levou a que tivesse frequentado
repetidamente as suas instalações em Lisboa e depois tivesse mandado fazer um
dos componentes mais aparatosos do túmulo de São Francisco Xavier em Goa.
Com efeito, segundo Teresa Vale: o Procurador-Geral da Província de Goa, o
Padre Francisco Sarmento, havia ofertado um objeto que agradou
particularmente ao grão-duque: um pequeno coxim no qual S. Francisco Xavier
descansara a sua cabeça durante alguns anos. Assim, no mês de setembro de
1698, chegou a Goa o monumento e também Placido Francesco Ramponi, artista
enviado para coordenar e supervisionar a montagem e assentamento do mesmo.
Em novembro já o monumento se encontrava instalado na capela do santo na
igreja do Bom Jesus, passando a funcionar como um monumental e aparatoso
embasamento - integrando o altar - para a arca feral de prata previamente
existente, a qual foi colocada rematando o conjunto.
A obra florentina consiste no que podemos considerar o embasamento (que
integra o altar) e ostenta nas suas quatro faces outros tantos relevos brônzeos
figurando cenas da vida do santo.10
4.º dia - 23 de janeiro
Cosme encontrou-se com Robert Southwell (1635-1702), então
embaixador da Inglaterra em Lisboa, no claustro do mosteiro de São Bento da
Saúde, da Ordem de São Bento, o qual ficava no espaço que corresponde
atualmente à Assembleia da República e então ainda estava em obras.
De seguida o príncipe foi até à Rua Nova dos Mercadores, a qual ficava
na zona correspondendo aproximadamente à atual Rua do Comércio, na Baixa
Pombalina, aí tendo comido em casa de um cidadão português de onde assistiu à
realização, debaixo de chuva, de uma aparatosa procissão solene feita em ação
de graças pelo bom parto da rainha D. Maria Francisca Isabel de Saboia. Este
viria a ocorrer na noite de 6 de janeiro de 1669, dele nascendo a infanta D.
Isabel Luísa Josefa. Cosme não conseguiu encontrar-se com a rainha, apesar de
o ter tentado. Depois de ter assistido à procissão Cosme foi à Sé, onde ainda se
alimentavam dois corvos em memória daqueles que no século XII haviam
acompanhado o corpo de São Vicente. O edifício não foi muito apreciado por
ser considerado “di struttura gotica” (quando na realidade era românico) e
escuro. Nessa altura ele também passou pela vizinha e pequena igreja de Santo
9
Sobre as relações com este jesuíta cf. Aníbal Pinto de Castro, «O Padre António Vieira e Cosme III de
Médicis», Revista de História Literária de Portugal, 1, Coimbra, 1962, p. 158-190; Aníbal Pinto de
Castro, «Correspondentes portugueses de Cosme III de Médicis - nótula sobre a actividade literária de
Seiscentos em Portugal», Revista de História Literária de Portugal, 2, Coimbra, 1964, p. 231-287.
10 «SÃO FRANCISCO XAVIER, Túmulo» consultável em:
http://www.fcsh.unl.pt/cham/eve/content.php?printconceito=758
204
António, que era muito concorrida e onde havia uma imagem muito antiga do
santo que nascera naquele local.
5.º dia - 24 de janeiro
Cosme foi à igreja de Nossa Senhora do Loreto dos italianos, no
Chiado, então em obras. Depois de ele ter comido foi até São Roque, que era
a casa professa da Companhia de Jesus, correspondendo à atual Misericórdia
desde o tempo do marquês de Pombal, a qual se situa no Largo Trindade
Coelho. De seguida o príncipe foi até ao noviciado da mesma Companhia da
evocação de Nossa Senhora da Assunção, mas que ficou conhecido por
Noviciado da Cotovia, o qual foi extinto pelo marquês de Pombal nele
estando atualmente o Museu Nacional de História Natural e da Ciência
da Universidade de Lisboa, na Rua da Escola Politécnica, 58-60. Aí o
príncipe foi recebido pelo influente padre Manuel Fernandes, que era o
confessor do rei. Cosme voltou ainda a receber o padre António Vieira.
6.º dia - 25 de janeiro
Cosme foi ouvir missa à igreja do colégio de Santo Antão-o-Novo, que
pertencia aos jesuítas e corresponde ao atual Hospital de São José desde o tempo
do marquês de Pombal. Aí foi saudado pelo padre António Vieira e pelo reitor,
tendo também falado longamente e com entusiasmo com o padre Jerónimo
Lobo, que tivera uma larga experiência na Etiópia e na Índia. Pelas 5 horas da
tarde o príncipe foi visitar D. Pedro II no palácio que habitava junto ao Tejo e
ficou conhecido por “Palácio Corte Real”, o qual tinha sido mandado construir
em 1585 por Cristóvão de Moura, marquês de Castelo Rodrigo, o qual se situava
até ao terramoto de 1755 a ocidente da Ribeira das Naus.
Cosme desceu da liteira onde ia para entrar no palácio por uma pequena
porta secreta sendo de seguida conduzido até à sala das receções, onde o
encontro com o rei foi muito cerimonioso, mas breve. Nessa altura estavam ali
perto de trinta dos mais importantes fidalgos do reino.
7.º dia - 26 de janeiro
Cosme foi ouvir missa à igreja do convento de Nossa Senhora da Penha
de França, da Ordem de Santo Agostinho, em que havia então vinte frades e uma
imagem muito venerada. No regresso ele foi ainda ao grande convento de Nossa
Senhora da Graça (erradamente registado como Mercês), da mesma ordem
religiosa, que então tinha cento e trinta frades, nele tendo visto algumas obras
dignas de atenção.
Depois de comer o príncipe foi à igreja paroquial de São Paulo, a qual se
situou até ao terramoto de 1755 onde está atualmente a Praça de São Paulo, e daí
seguiu até à igreja do mosteiro do Santíssimo Sacramento, da Ordem de São
Paulo Primeiro Eremita, conhecida por Ordem dos Eremitas de São Paulo da
205
Serra de Ossa ou apenas por Paulistas, num local que se situa na Calçada do
Combro, 82ª - 96. Depois ele foi ao grande convento da Santíssima Trindade, da
Ordem da Santíssima Trindade para a Redenção de Cativos, situado na zona
envolvente da atual Cervejaria da Trindade, no qual se encontravam alguns
fidalgos retirados. A sua grande igreja estava por concluir e na sua livraria ele
ouviu música.
8.º dia - 27 de janeiro
Cosme foi ao recente Hospício da Nossa Senhora da Divina
Providência, conhecido por convento dos Caetanos, o qual pertencia aos
Clérigos Regulares Teatinos, também chamados teatinos italianos, que se
situava na atual Rua João Pereira da Rosa, 1‐5, onde se encontra atualmente
a Escola de Música do Conservatório Nacional, no Bairro Alto. Depois de
comer ele foi assistir na casa de Octávio Ximenes a mais uma aparatosa
procissão, desta vez entre a igreja da Trindade e a dos Teatinos.
9.º dia - 28 de janeiro
Cosme foi até ao palácio real de Alcântara, que ficava no atual Largo do
Calvário, que então foi considerado pouco interessante, no qual apenas se
destacava a boa vista sobre o rio. De seguida o príncipe foi até ao mosteiro da
Nossa Senhora da Quietação, conhecido por das Flamengas, da Ordem dos
Frades Menores, franciscanas que também eram conhecidas por capuchas, o
qual ficava na atual Rua Primeiro de Maio, 20-22. Aí havia umas trintas monjas
entre as quais D. Maria da Cruz, que ele foi visitar por ser irmã do duque de
Medina Sidónia.
Vista de Alcântara em 1669 por Pier Maria Baldi, desenho aguarelado, Florença, Biblioteca
Laurenciana, Med. Pal.123
206
Cosme foi depois visitar a igreja e convento de Corpus Christi da Ordem
dos Carmelitas Descalços, na zona da atual Rua da Vitória, 1-15, na Baixa, o
qual fora criado por D. Luisa de Gusmão e onde esteve depositado o seu corpo.
De seguida ele passou pelo mosteiro de São Domingos de Lisboa, da Ordem dos
Pregadores (dominicanos), no Rossio e daí seguiu até ao Castelo de São Jorge,
onde estavam aquartelados dois regimentos, um dos quais era o “Terço da
armada”.
10.º dia - 29 de janeiro
Cosme passou a manhã em casa a falar com o padre António Vieira e
depois de comer foi ao convento de São Francisco da Cidade, da Ordem dos
Frades Menores (franciscanos), no atual Largo da Academia Nacional de BelasArtes, ao qual não foi dado grande relevo, apesar de ser um dos maiores de
Lisboa.
Nessa noite Cosme esteve em Belém a divertir-se com a pesca ao candeio.
11.º dia - 30 de Janeiro
Cosme foi à igreja do mosteiro de São Vicente de Fora, da Ordem dos
Cónegos Regrantes de Santo Agostinho, onde estava sepultado o corpo de D.
João IV, e depois da refeição limitou-se a ir ao teatro.
12.º dia - 31 de janeiro
Cosme voltou ao mosteiro de São Bento da Saúde, em cujo claustro se
encontrou com Antonio Barléu (filho do famoso Caspar Barlaeus) embaixador
das Províncias Unidas (Holanda) Ao regressar a casa o príncipe encontrou-se de
novo com o padre António Vieira e depois do comer foi até Xabregas ao
convento de Santa Maria de Jesus, ou convento de São Francisco de Xabregas,
da Ordem dos Frades Menores, na Rua de Xabregas, 48-58, o qual ficava perto
de um palácio que havia sido começado por D. João III e era então dos condes
de Unhão.
Quando ele regressou a casa encontrou o guarda-roupa de D. Pedro II que
lhe trouxera um valioso presente do rei constituído por quatro enormes tapetes
persas e um baú de madrepérola com preciosidades orientais exóticas.
13.º dia - 1 de fevereiro
Cosme foi à igreja de São Roque ouvir missa e de seguida foi visitar as
igrejas dos conventos de Nossa Senhora do Carmo, da Ordem do Carmo, no
Largo do Carmo, 28-30 e depois foi às grades dos “Capuccini” da Esperança, o
que indica que foi ao convento de Nossa Senhora dos Anjos da Porcíuncula, de
Capuchos Franceses ou Barbadinhos Franceses, na Rua da Esperança, 49-58,
que então estava junto ao rio.
De seguida o príncipe voltou ao colégio de Santo Antão-o-Novo, onde
teve um longo encontro com o poderoso primeiro duque de Cadaval, que era D.
207
Nuno Álvares Pereira de Melo (1638-1727), além de ter falado com outras
pessoas ilustres. É de realçar os extremos cuidados com as cortesias que então se
verificaram, bem como a atenção prestada às formas de tratamento, o que, aliás,
foi uma preocupação constante e de destaque durante toda a visita do príncipe.
Durante a noite Cosme esteve com o padre teatino Antonio Ardizzone
Spinola (1609-1697), que lhe levou a ver a relíquia da famosa barba de D. João
de Castro.
14.º dia - 2 de fevereiro
Cosme começou por ficar em casa, onde foi visitado pelo doutor João
Velho Barreto, que foi desembargador do paço e chanceler-mor do reino, que
viera do Brasil e era das relações dos Cavalcanti. Depois de ter comido ele foi de
novo ao vizinho convento das Albertas, como se verifica pela referência de
Magalotti a que “dopo desinare stette S. A. alle grate delle carmelitanne scalze
contugue alla Casa”, que traduzimos “depois de jantar esteve sua alteza nas
grades do mosteiro das carmelitas descalças, contígua à casa”.
O príncipe foi ainda ouvir música ao mosteiro de Santa Clara, de monjas
franciscanas, o qual despareceu com o terramoto de 1755 e ficava no local onde
estão as Oficinas Gerais de Fardamento e Calçado do Exército no Campo de
Santa Clara, 33.
15.º dia - 3 de fevereiro
Cosme começou por receber pessoas das relações do embaixador de
França e de seguida dirigiu-se aos jardins e palácio do conde de Castelo Melhor,
que se encontrava numa zona entre o lado oriental da Avenida da Liberdade, a
Rua das Portas de Santo Antão e a Rua dos Condes.
Depois de comer em São Roque o príncipe esteve aí a conversar durante
muito tempo com o marquês de Fontes, D. Francisco de Sá e Meneses, que foi
erradamente identificado como conde de Fontes, o qual se apresentava como
camareiro-mor do rei, o que era um assunto então em discussão.
O príncipe foi ainda ouvir cantar as freiras do mosteiro de Nossa Senhora
da Esperança da Ordem dos Frades Menores (franciscanas), que ficava no local
onde atualmente está o Quartel do Regimento de Sapadores de Bombeiros de
Lisboa, na Avenida D. Carlos I, 87-97.
16.º dia - 4 de fevereiro
Logo pela manhã Cosme foi visitar o mosteiro de Santa Maria de Belém,
da Ordem de São Jerónimo, conhecido apenas por mosteiro dos Jerónimos e que
fica na atual Praça do Império. Tal edifício foi considerado magnífico, tendo ali
admirado entre muitos pontos que motivaram admiração os claustros, a chamada
Custódia de Belém e uma sala com os retratos dos reis de Portugal até D. João
IV. De seguida ele foi ao vizinho palácio do conde de São Lourenço, também
conhecido por Quinta da Praia, onde atualmente está o Centro Cultural de
208
Belém. Depois de comer em casa de Octávio Ximenes o príncipe foi ao humilde
convento de São José de Ribamar em Algés, que pertencia à Ordem dos Frades
Menores da Província da Arrábida, ditos capuchos da Arrábida ou frades arrábidos.
No regresso a Lisboa Cosme ainda visitou em Pedrouços o convento de
Nossa Senhora do Bom Sucesso, de dominicanas irlandesas, na atual Rua
Bartolomeu Dias, 53-55, e de seguida foi a Alcântara à Igreja do convento do
Sacramento, também de dominicanas, o qual ficava na atual Rua do Sacramento, 51.
17.º dia - 5 de fevereiro
Cosme começou por ir à vizinha igreja do convento de São João de Deus
da Ordem Hospitaleira de São João de Deus, que ficava na atual Rua Presidente
Arriaga, 9-17. Depois de comer ele partiu para Odivelas, onde foi visitar o
famoso mosteiro de São Dinis, da Ordem de Cister, o qual teria então seiscentas
mulheres e jovens, das quais duzentas eram freiras que se notabilizavam quer
pelas suas liberdades quer pelas joias que ostentavam. O príncipe admirou
também o túmulo de D. Dinis que ali se encontrava e ouviu música.
18.º dia - 6 de fevereiro
Devido à chuva neste dia as atividades de Cosme limitaram-se a uma ida
ao teatro depois de comer.
19.º dia - 7 de fevereiro
Cosme voltou a São Roque para aí se encontrar com o influente terceiro
conde do Prado, D. Francisco de Sousa (1610-1674), tendo de seguida ficado a
falar com os jesuítas. Depois de comer o príncipe foi até à zona de Benfica
visitar o jardim e palácio de D. João de Mascarenhas (1633-1681), segundo
conde da Torre, que em 1670 foi feito primeiro marquês de Fronteira, nome pelo
qual ficou conhecido o palácio que então ali havia e ainda estava em construção.
É possível que já então tenha visto a representação em azulejo de batalhas da
Restauração aí existentes e nas quais aquele conde se distinguira, pois na visita
há referência à decoração de azulejos “figurate, rappresentanti diverse historie”.
Susana Varela Flor admitiu poder ser neste contexto que Cosme encomendou ao
pintor Feliciano Almeida os retratos de quinze dos principais generais
portugueses que haviam participado na Guerra da Restauração, os quais foram
enviados para Florença, onde se encontram11.
De seguida Cosme foi visitar o vizinho convento de São Domingos de
Benfica, da Ordem dos Pregadores (dominicanos), que se encontra no Largo de
S. Domingos de Benfica, 6-8, nele estando atualmente instalado o Instituto
Militar dos Pupilos do Exército. Aí ele admirou a grandiosa Capela dos Castros,
local onde está sepultado D. João de Castro.
11
Sobre este assunto cf. Susana Varela Flor, «Portraits by Feliciano de Almeida (1635-1694) in Cosimo
III de' Medici's Gallery», RIHA Journal 0144 | 1 December 2016.
(https://run.unl.pt/bitstream/10362/22228/1/Portraits_by_Feliciano_de_Almeida_.pdf)
209
No regresso a Lisboa o príncipe passou pelos palácios do segundo conde
de Sarzeda (D. Luís da Silveira), no sítio de Palhavã, onde atualmente está a
embaixada de Espanha, na Praça de Espanha, e do primeiro conde de Vila Flor,
D. Sancho Manuel de Vilhena, que lhe ficava perto.
20.º dia - 8 de fevereiro
Cosme foi ouvir missa no Colégio de Santo Antão-o-Novo, onde estavam
a estudar setecentos alunos, tendo assistido à saída das aulas. O príncipe foi
depois ao jardim do palácio de campo em Marvila do primeiro marquês de
Marialva, D. António Luís de Meneses, e de seguida foi até à igreja do convento
de São Bento de Xabregas, também denominado de Beato António, São João
Evangelista de Xabregas ou apenas do Beato, que pertencia aos Cónegos
Seculares de São João Evangelista e ficava na atual Alameda do Beato, nele
havendo então quarenta monges.
21.º dia - 9 de janeiro
Bem cedo pela manhã Cosme embarcou numa fragata com Octávio
Ximenes e foi visitar a Torre de Belém e a fortaleza de São Julião da Barra, onde
foi tratado com toda a dignidade. No regresso passou em frente da Torre Velha
(forte de São Sebastião), em Porto Brandão.
Da parte da tarde o príncipe limitou-se a falar com o já mencionado padre
teatino Antonio Ardizzone Spinola, que lhe levou umas então insólitas couvesflores. Entretanto Cosme mandou agradecer as atenções de que fora alvo por
parte dos embaixadores de Espanha e de França, tendo informado este último
das razões porque não o pudera receber.
22.º dia - 10 de fevereiro
Cosme recebeu António de Sousa Montenegro, que era o almirante da
armada da Companhia do Comércio Geral do Brasil, território de onde então
acabara de chegar, com ele tendo falado longamente, revelando assim quanto
estava interessado no Brasil. O príncipe recebeu de seguida Francisco Velho
Barreto e ainda antes de comer foi visitar a igreja da Misericórdia, a qual se
situava antes do Terramoto de 1755 onde é atualmente a Igreja da Conceição
Velha. De seguida ele foi ao teatro e ainda voltou à igreja de São Domingos no
Rossio.
Tendo regressado à sua habitação Cosme recebeu durante a noite o
matemático português Luís Serrão Pimentel (1613-1679), que lhe mostrou um
livro com plantas de fortalezas do Oriente, que fora mandado fazer por um vicerei12. Esta personalidade foi um militar que desde 1644 ocupou o cargo de
cosmógrafo-mor e desde 1671 o de engenheiro-mor, tendo ao morrer deixado
12
Talvez se tratasse de um volume feito por António Bocarro com pinturas de plantas feitas por Pedro
Barreto de Resende, mandado fazer pelo conde de Linhares em 1635, ou uma sua cópia.
210
uma obra que foi impressa em 1680 intitulada Methodo Lusitanico. Pera
desenhar as Fortefficacoens das Pracas (…) onde referiu na sua “Sumária
notícia da arquitetura militar e seus encómios” que Cosme “vindo a ver esta
corte se dignou de me honrar, mostrando-me várias plantas e fortificações
delineadas por sua própria mão, e desenhos de outras por regras próprias
fundadas no mais íntimo da ciência, tudo adornado com primorosas descrições
cenográficas”.
Luís Serrão Pimentel enviou em 1670 a Cosme III uma obra manuscrita
de que há um exemplar na Biblioteca Nacional de Portugal (COD 2044) com o
título Extracto ich[o]nographico do Methodo Lusitanico novo, facillimo, e
apuradissimo pera desenhar as fortificaçoens regulares, e irregulares por novas
e exactissimas proporções / achado por Luis Se[r]rão Pimentel Olysipponense
Tenente general da Artelharia com exercicio em qualquer das Provincias
fronteiras, Engenheiro mor do Exercito e Provincia de Alentejo, Cosmographo
mor dos Reynos, e Senhorios de Portugal, professor Regio das Mathematicas, a
qual foi dedicada “ao Serenissimo Princepe Cosmo III Grande duque da Toscana“13.
Cosme III enviou-lhe alguns livros de arquitetura que ele muito lhe agradeceu.
23.º dia - 11 de fevereiro
Cosme voltou à casa professa de São Roque onde esteve a falar muito
tempo com o padre António Vieira e depois de comer em casa foi visitar cinco
dos navios da armada holandesa que então estava no Tejo sob o comando do
almirante Marsan onde recebido com toda a solenidade.
O príncipe ainda pode apreciar várias curiosidades brasileiras e orientais
que lhe foram mostradas em casa.
24.º dia - 12 de fevereiro
Cosme foi ao Noviciado da Cotovia falar com jesuítas e com Salvador
Correia de Sá, que havia sido governador de Angola e do Brasil, e ali estava
então enclausurado por ter, entretanto caído em desgraça. Esta personalidade
ofereceu-lhe uma “carta topográfica do reino de Angola”, da qual não parece
haver rasto, pelo menos como sendo de Angola, pois não se conhece nenhum
mapa dessa região no período aqui considerado. O príncipe foi ouvir esta
personalidade devido às suas informações sobre o Brasil e talvez por estra
relacionado como o palácio onde estaria hospedado.
Após a refeição o príncipe foi a casa de um particular, certamente com
vista para o Terreiro do Paço, de onde assistiu à passagem do aparatoso cortejo
do embaixador de Espanha, o já referido barão de Batteville, que então se foi
apresentar solenemente não rei de Portugal no Paço da Ribeira.
13
Nuno Alexandre Martins Ferrreia, Luís Serrão Pimentel (1613-1679): Cosmógrafo Mor e Engenheiro
Mor de Portugal, Lisboa, tese de mestrado aprensentada na Universidade de Lisboa, 2009.
211
25.º dia - 13 de fevereiro
Cosme foi passear pela cidade e depois de comer foi a um palácio que
deverá corresponder ao chamado Palácio Almada‐Carvalhais que ainda
existe no sítio atualmente chamado do conde Barão. Esse local foi
referenciado como sendo de D. Fernando de Almada, mas este nome deve
estar mal escrito, pois não se identifica tal personalidade, sendo possível
que se refira ao influente Rui Fernandes de Almada, gentil‐homem da
câmara de D. Pedro II.
Curiosamente refere-se nesse antigo palácio a situação insólita de nele
estarem grandes tapeçarias a cobrir as paredes e os quadros que nelas estavam,
os quais apenas ficavam patentes quando se tiravam as tapeçarias depois de
passar o Inverno. Foi aí que o embaixador de Espanha se foi encontrar com Cosme.
26.º dia - 14 de fevereiro
De manhã cedo Cosme foi visitar de surpresa o embaixador de Espanha,
tendo ido depois ouvir missa à igreja da Providência dos teatinos, onde já havia
estado. Nesse dia ele foi visitar o palácio do primeiro marquês de Gouveia, que
ficava em Belém, sendo esse edifício depois dos duques de Aveiro e destruído
por ordem de D. José em 1759. O seu local ficou assinalado por uma coluna que
ainda ali se encontra no Beco do Chão Salgado. A personalidade aqui em causa
era D. João da Silva, 2º marquês de Gouveia, que foi Presidente da Mesa do
Desembargo do Paço e mordomo-mor de D. Pedro II, tendo sido um dos
plenipotenciários da paz de 1668.
27.º dia - 15 de fevereiro
Cosme encontrou-se de manhã com o embaixador da Suécia no adro da
igreja do convento de São João de Deus, onde já havia estado, e de seguida foi
ouvir missa à igreja do convento de Nossa Senhora dos Remédios da Ordem dos
Carmelitas Descalços que ficava em frente da casa onde estaria a residir, aí se
tendo encontrado com D. António Álvares da Cunha, trinchante da Casa Real,
que lhe mostrou o convento. Depois foi despedir-se de D. Maria da Cruz em
Alcântara.
Pelas 6 horas da tarde Cosme foi despedir-se de D. Pedro II ao chamado
“Palácio Corte Real”, no qual voltou a entrar como da outra vez pela porta
secreta. A audiência ocorreu no mesmo local onde já antes havia estado, tendo
esta sessão demorado uns 20 minutos. Ali encontrou a mais importante
aristocracia de reino, como era o caso de D. Rodrigo de Menezes, o duque de
Cadaval, o conde da Torre, o conde de Aveiras, o conde de São João, o conde do
Prado e o marquês de Fontes
28.º dia - 16 de fevereiro
De manhã Cosme recebeu os desejos de boa viagem que em breve iria
iniciar da parte de António de Sousa Montenegro, o qual era referido apenas
212
como “cavaleiro de Montenegro”, e de Henrique de Carvalho, que era
certamente Henrique de Carvalho e Sousa, provedor das obras do paço. De
seguida ele foi ainda antes de comer ao convento da Nossa Senhora da Madre de
Deus, da Ordem dos Frades Menores (franciscanas), no edifício onde fica
atualmente o Museu Nacional do Azulejo, na Rua da Madre de Deus.
O príncipe ainda foi a São Roque encontrar-se com D. Francisco
Sottomayor, deão da Capela Real e capelão-mor, que era bispo de Targa, e de
seguida voltou ao convento da Madre de Deus.
29.º dia - 17 de fevereiro
Cosme voltou à vizinha igreja do convento de Nossa Senhora dos Anjos
da Porcíuncula, de Capuchos Franceses ou Barbadinhos Franceses, e durante o
resto do dia várias pessoas foram despedir-se dele.
30.º dia - 18 de fevereiro
Cosme depois de ter estado com os teatinos Francesco Prandi e Antonio
Ardizoni Spinola rumou de manhã cedo para o Rossio, de onde saiu por uma
então chamada Porta de Santa Bárbara, seguindo por aquela que seria conhecida
por Estrada de Sacavém, a caminho de Via longa.
Aspetos gerais sobre Lisboa
Nos textos que nos chegaram sobre a viagem de Cosme a Lisboa
registaram-se exaustivos levantamentos informações sobre a cidade e o país,
bem como sobre o seu governo e instituições, o que revelava o interesse que tais
assuntos mereceram aos viajantes florentinos, pelo que tais fontes Têm de ser
devidamente revistas, analisados e aproveitas em estudos históricos futuros.
Depois de referirmos de forma muito breve aspetos das andanças de
Cosme por Lisboa limitamo-nos ainda a chamar a atenção para mais alguns
tópicos sugestivos apenas a título de exemplo.
Comecemos pela admiração que esta então grande cidade europeia
suscitou aos viajantes a ponto de aparentemente admitirem a informação que
lhes teria sido dada de que nela haveria quase uns 300 000 habitantes, o que
talvez se revele algo exagerado, mesmo considerando o seu termo. Tais pessoas
estavam distribuídas por trinta e seis paróquias. Quanto aos conventos foi
registado haver vinte e um de freiras, nove de meninos, e trinta e três de frades.
Na morfologia da cidade disseram haver sete colinas (à imitação de
Roma), as quais seriam as de: São Vicente; da porta de Santo André (Graça); do
castelo; de Santana; das Chagas e de Santa Catarina do Monte Sinai.
De entre mais alguns tópicos pitorescos que podemos considerar são de
apontar as impressões sobre as igrejas de Lisboa, que apesar de não serem muito
grandes tinham boa aparência devido a estarem bem ornamentadas com pinturas
e azulejos.
213
Quanto às casas consideravam-se as modernas de boa arquitetura e o
aspeto da cidade vista do rio muito bonita.
Sobre a água da cidade foi considerado não ser muito boa e só haver duas
ou três fontes dignas de nota, com destaque para o movimentado Chafariz delrei.
De entre as instituições foi destacado o Hospital de Todos-os-Santos, onde
se referiu haver seiscentos doentes bem tratados. Dá-se também destaque à
Inquisição.
Nas cenas do quotidiana e sem entrar por exemplo nas formas de
vestuário assinala-se apenas de entre as práticas alimentares a de que nobreza
bebia muito pouco vinho e à tarde só comia um doce e bebia um copo de
água. De manhã as pessoas mais importantes comiam por vezes meia galinha e à
ceia comiam peixe, de que havia muitas espécies e em abundância no Tejo. O
que se estranhou foi a circunstância que ele ser vendido nas ruas por mulheres,
que eram assim as antecessoras das famosas varinas. Foi também considerado
que havia pouca vida social.
Nos textos sobre a viagem de Cosme a Lisboa há ainda uma alusão muito
importante a “mori”, expressão que corresponde à forma adotada para indicar
escravos e libertos, dos quais se diz haver perto de uns 10 000. É de realçar o
facto de até agora este dado não ter sido assinalado e que se tal número estiver
correto corresponde ao único dado quantitativo global para esta parte da
população de Lisboa registado nas fontes seiscentistas. A ser assim verifica-se
que esse montante se manteria a um nível idêntico ao registado em 1551,
embora a população global de Lisboa tivesse aumentado muito mais do que os
100 000 habitantes que então contava.
Os companheiros de Cosme deixaram minuciosos registos da organização
política da capital e das instituições nela existentes, o que constitui um útil
auxiliar para o estudo de tal matéria no Portugal de 1669, um ano depois de ter
terminado um período tão difícil como foi o da Restauração.
Fica, pois, o desejo de que estas indicações sumárias possam contribuir
para valorizar fontes importantes tanto para a História de Lisboa e de Portugal
quanto a das relações luso-italianas.
214