c.G.Jung
TIPOS
PSICOLÓGICOS
c.
TIPOS
G.
J U N G
PSICOLÓGICOS
Tradução direta do aletnâo
e apresentação de
ALVARO CABRAL
Licenciado pm Ciências Históricas e Filosóficas
pela Faculdade dc Letras da Universidade Clássica de Lisboa
Terceira edição
ZAHAR
EDITORES
RIO DE JANEIRO
Título original:
Psychologische Typen
Traduzido da nona impressão, revista, publicada cm 1960 por Rascher
Verlag, de Zurique, Suíça, sob n orientação editorial de Marianne
Niehus-Jung, Lena Hurwitz-Eisner e do Dr. Franz Kiklin.
Rua México, 31 — Rio de Janeiro
que se reservam a propriedade desta tradução
Impresso no Brasil
ÍNDICE
O S IG N IF IC A D O D A PSICO LO CIA CRITICA D E JUNC, por
Á lvaro
C abral
.........................................................................................
9
.........................................
23
.........................................................
25
..................................................................................
27
PREFA CIO DA 9.a E D IÇ A O A LEM Ã
AO LEITOR, por C. C. J unc
IN TRODUÇÃO
I.
O PROBLEM A DOS TIPOS
M E D IE V A L DO ESPIRITO
1.
2.
3.
4.
5.
II.
NA HISTÓRIA ANTIGA E
...................................................
33
Sobre a Psicologia na Antiguidade. T rtuliano e Orígenes
As Controvérsias Teológicas na Igreja Antiga
.............
O Problema da Transubstanciação ...................................
Nominalismo e Realismo
................. ...............................
33
45
48
51
a)
b)
c)
52
O Problema dos Conceitos Univeriais na Antiguidade
O Problema dos Conceitos Universais na Escolástica
O Intuito Unificador de Abelardo ...............................
65
74
A Disputa Sobre a Comunhão Entre Lutero e Zuínglio . .
93
AS ID ÉIAS D E SC H ILLE R SOBRE O PROBLEMA DOS
TIPOS
..........................................................................................
96
1.
96
2.
As Cortas Sobre a Educação Estética do Homem ...........
íj) Sobre a Função de Plena Validade e de Menor Va
lidade ..............................................................................
b) Sobre os Instintos Básicos
.......................................
129
A Dissertação Sobre Poesia Ingénua e Poesia Sentimental
164
a)
b)
c)
165
A Posição Ingénua
.....................................................
A Posição Sentimental
...............................................
O Idealista e o Realista
...........................................
96
167
169
II I .
O A P O L IN EO E O D IO N ISÍA C O
.......................................
171
IV .
O PROBLEM A DOS TIPOS NO CONH ECIM ENTO DO
HOM EM
....................................................................................
183
1.
2.
Considerações Gerais Sobre os Tipos de Jordan ..............
Exposição Especial e Critica dos Tipai de Jordan ---
183
189
6
TIPOS PSICOLÓGICOS
V.
<j)
b)
A M ulher Introvertida
A M ulher Extrovertida
..............................................
..............................................
189
193
c)
J)
O Homem Extrovertido
0 Homem Introvertido
..............................................
..............................................
197
201
O PROBLEM A D O S TIPOS NA C R IA Ç Ã O POP.T1CA
O “Fromcteu e Epim eteu", de. Cari Spitteler
.........................
204
Introdução aos Tipos de Spitteler
....................................
204
2.
Análise Comparativa do "Prometeu" de Spitteler e do
"Prometeu" de Goethe
.......................................................
Significado do Símbolo de União ........................................
211
229
c)
4.
b)
c)
A Concepção Bramanista do Problema dos Antago
nismos
..............................................................................
A Concepção Bramanista do Símbolo de União
O Símbolo de União como Norma Dinâm ica
. ...
235
240
250
i)
O Símbolo de União na Filosofia Chinesa
...........
257
A Relatividade do Símbolo
..............................................
a) C ulto da M ulher e Culto da Alm a
.........................
264
20-1
b)
5.
V I.
A Relatividade do Conceito de Deus em Mestre
Eckhart
............................................................... ..........
A Natureza do Símbolo de União em Spitteler
...........
O P RO B LE M A DOS TIPOS NA P S IC O P A T O I.O C I a
^ r V lI.
..
285
305
321
O P RO B LE M A DAS D ISPO SIÇ Õ E S T ÍPICAS NA EST Ê riC A ......................................................................................
339
O PROBLEM A D OS TIPOS NA F IL O SO F IA M O D E R N A
351
1.
2.
Os Tipos de James
.............................................................
O i Característicos Pares de Opostos da Tipologia de James
351
360
3.
C 'ítica da Concepção de James
372
V III.
X.
2(»4
1.
3.
IX .
...
........................................
O PFOBLEM A D OS TIPOS NA B IO G R A FIA
.................
376
....................................
386
..............................................................................
380
D E SC R IÇ Ã O G E R A L D O S TIPOS
1.
Introdução
'
? Tipo Extrovertido
...........................................................
A Disposição Geral da Consciência
b)
c)
A Disposição do Inconsciente
....................................
As Particularidades das Funções Psicológicas Funda
mentais na Disposição Extrovertida
.......................
O Pensamento
.............................................................
399
399
O Tipo Pensativo Extrovertido
..................................
O Sentimento
...............................................................
404
414
O
410
Tipo Sentimental Extrovertido
.......................
389
a)
...........................
389
394
ÍN D IO -:
7
......................................
419
A Percepção
..................................................................
O Tipo Perceptivo Extrovertido ................................
422
Resumo dos Tipos Racionais
A Intuição
......................................................................
O Tipo Intuitivo Extrovertido
................................
Resumo dos Tipos Irracionais ....................................
3.
O Tijfo Introvertido
a)
b)
c)
.............................................................
434
43-1
441
O Pensamento
...............................................................
...............................
O Tipo Pensativo Introvertido
441
414
O Sentimento
...............................................................
O Tipo Sentimental Introvertido
...........................
Resumo dos Tipos Racionais
....................................
450
.................................................................
O Tipo Perceptivo Introvertido
X I.
428
431
A Disposição Geral da Consciência
.......................
A DUposição do Incotvscicnte .......................................
As Particularidades das Funções Psicológicas Funda
mentais na Disposição Introvertida ...........................
A Percepção
,
423
426
....................................
A Intuição
.....................................................................
O Tipo Intuitivo Introvertido
....................................
Resume dos Tipos Irracionais
..............................
As Funções Trincipais e Secundárias .......................
D E F IN IÇ Õ E S
............................................................................
439
448
453
455
457
460
463
465
467
471
Abstração. Afeição. Afetividade. Alma. "Anim a”. Ap?rcepção. Arcaísmo. Arquétipo. Assimilação. Coletivo. Com
penetração.
Compensação.
Complexo de Poder.
Concretismo.
C onsciência.
Construtivo.
Diferenciação.
Disposi
ção. Dissimilação. Emoção. Enantiodromia. Eu. Extrover
são.
Fantasia.
Fase Objetiva.
Fase Subjetiva.
Função.
Função Secundária. Função Transcendente. Idéia. Idênticade. Identificação. Imagem. Imagem da Alma. Itr*"—’ •'* 0.
Impulso. Inconsciente. Individuação. Individualidade,
dividuo. Intelecto. Introjeção. Introversão. Intuição. Irracional.
Libido.
Orientação.
"Participation Mystique”.
Pensamento. Pensar, O.
Percepção.
"Persona”. Projeçlo.
Psique. Racional. Redutívo. Sentimento. Sentir, O. Sím
bolo. Sintético. Tipo. Vontade.
C O N C L U SÃ O
B IB LIO G R A FIA
........................................................................................
553
................................................................................
563
O SIG N IFICA D O
DA PSICOI.OG IA C RÍT IC A DE JUNG
e m p r e considerei J u n g uma das mais apaixonantes figuras
dc sábio do século atual. Recordo ainda o impacto que me
causou a primeira leitura, então em inglês, dos Tipos Psico
lógicos, há uns vinte anos bem contados, quando, recém-licenciado, iniciava meus primeiros passos na cnsaística.
Tudo quanto escrevi nesse período, sobretudo “O Conceito
de Mito na íipica Moderna", trazia indelével o sinal da in
fluência junguiana, sjas concepções de símbolo, de mitologema, de arquétipo. E cheguei a alimentar a ambição de
escrever um dia uma História Psicológica do povo a que per
tenço, isto é, uma história cujo método sc basearia nos dados
simbólicos, poéticos, míticos, que refletiriam, infalivelmente,
a psique coletiva da nação. J u n g era onipresente e obsessionante. Eu admirava sua cultura espantosa, uma erudição
de que Tipos Psicológicos é exemplo capital, desenrolando-se sem falsos ou prescindíveis gestos de superioridade, a lim
pidez de seus raciocínios, a beleza de sua prosa linear, aque
le dom dc escrever em poucas palavras as mais densas e
complexas concepções que só possuem as mentes mais dis
ciplinadas e seguras de seu saber.
Surpreendia-me, simultaneamente, a ignorância ouase
geral da obra de J ung, restrita a grupos que quase podería
mos classificar de “iniciados”. Nos cursos de Psicologia, nos
manuais de ensino, J l n c era quase sempre omitido, em gran
de parte das universidades européias c nos Estados Unidos,
ou recebia a leve citação de que, tendo sido associado dc
F re u d , durante um certo período, criticara alguns dos prin
cípios freudianos e acabara, após uma controvérsia mais
veemente, por desenvolver suas próprias diretrizes de inves
tigação, como A d le r , o outro companheiro de F r e u d , a c a
baria também por fazer.
3
10
TIPOS PSICOLÓGICOS
Iloje, que as repercussões dessas divergências iniciais já
passaram a um plano secundário e se reconheceu, finalmen
te, que o fato de ser junguiano não implica, forçosamente,
uma atitude antifreudiana ou que ser freudiano não exige
uma atitude depreciativa em relação a Ju n o , antes, em am
bas as escolas se encontram inúmeros pontos de adesão co
mum. a obra do "sábio de Zurique”, a cidade suíça onde
J u n o nasceu e onde hoje, sob a direção de sua viúva, tem
sede o Instituto C. G. Jung ( J u n c morreu em 1955, com 80
anos dc idade), alcançou sua projeção definitiva na lm lóiiu
da Psicologia.
Como escreveu o Dr. Goodwin WvrsoN (em Jung’$
Psychology and Its Social Meanmg. Prefácio, Grove Press,
1955), nenhum psicólogo "teve mais importantes perguntas
a formular a todos nós e, ao mesmo tempo, nenhum psicó
logo se encontra escondido de nós por tantas barreiras”
A penetração, a profundidade da intuição de J u n g abriu
vastos horizontes à crítica não só dos problemas psicológi
cos e psiquiátricos, mas ainda (quase diríamos, sobretudo)
a novos critérios de interpretação filosófica, estética, biográ
fica, de que os primeiros nove capítulos da presente obra
são um modelo irretocável. Devedores de Ju n g se confes
saram (e o leitor, quando fechar este livro, irá reconhecê-lo
facilmente), além de colaboradores de envergadura, como
Karl K e re n y i, espíritos tão diversos e bri.hantes como Paul
R a d in , Lewis M u m Ford, Paul T ii .l ic h , Heinrich Z im m e r , Arnold T o y n b e e c tantos outros. O conceito original do “eu
dividido”, que I.a in g desenvolveria, inspira-se diretamente
Ju n c .
Erieh F r o m m , e sua ênfase na unidade dos padrões
individuais c sociais de vida, recebe de J u n g grande parte
de suas bases psicofilosóficas, bastando lembrar a importân
cia que ambos dão à “linguagem esquecida".
Conviria acentuar, agora, que as referências usualmen
te feitas ao assoziationsexpcrirncnt e à tipologia introversão-extroversão, como disposições do consciente, às funções orien
tadoras (pensar, sentir, intuir, perceber) e às compensações
têm sido tão desvirtuadas quanto popularizadas em textos
de duvidosa autoridade. A culpa talvez :aiba em parte à
própria complexidade crítica da tipologia junguiana, que le
va muitos autores a limitarem sua exploração as camadas su
perficiais das concepções pioneiras de Ju n g , dos seus con
trastes entre os padrões pessoais e universais de vida incons
O SIGNIFICADO DA PSICOLOClA CRÍTICA DE JU N G
11
ciente, revelando as fontes mais profundas da energia criadora, a polaridade dinâmica dos pares de opostos na vida
emocional, o significado de individuação, e as poderosas cor
rentes psicológicas qje fluem e subentendem os padrões da
História, em permanente transfonnação.
E que sucede, então? A exploração superficial conduz
i\ incompreensão e desta chega-se, em dois passos, à rejei
ção. fi uma atitude curiosa, que Frieda F o r d iia m (A n In troduetion to ]ung’s Psychology, Penguin Books, 1957) descreve nestes termos: "E como se eliminássemos Aristóteles
dos cursos de Filosofia, após uma referência ocasional em
que o acusássemos de deviacionista platônico e racionalizador
da escravatura”.
As barreiras que tem impedido muitos psicólogos, psi
quiatras e sociólogos contemporâneos (para não citarmos os
leigos na matéria) cc “sentirem” a mensagem de J u n g são
numerosas. Os cientistas sociais, por exemplo, estão profun
damente treinados na linguagem do laboratório; a experiên
cia, a estatística, o dado empírico são elementos com que
estão familiarizados, mas o simbolismo constitui, para a maio
ria deles, como o próprio F r o m m assinalou, a "linguagem
esquecida”. O fato de constituir a linguagem universal dos
mitos, lendas e sonhos de toda a humanidade, em qualquer
período da História, não bastou para atrair a atenção dos
estudiosos da natureza humana e das relações entre os ho
mens. Quando Ju n c , de acordo com a sintaxe natural da
linguagem simbólica da fantasia, exprime suas generaliza
ções pela personificação (os coiilcíIos de u n im u , d e m ô n io ,
fantasma, persona, per exemplo) em vez de empregar os con
ceitos técnicos abstratos, leva os racionalistas a rejeitarem
suas teorias como absurdas.
J u n g responder-lhes-ia c o m u m a frase de S c h ille r q u e
ele c ita co m destaque n o presente livro: Wer sich iiber die
Wirklichkeit nicht hmaus wagt, der tvird nie die W ahrheit
erobern ( Q u e m n ã o sc arrisca p a ra além d a re a lid a d e , jam ais
c o n q u is ta rá a v e rd a d e ).
Mas, como dissemos, muitas das limitações foram cau
que por vezes parecia desprezar
uma elucidação, um esclarecimento mais detalhado da estru
tura sistemática que apoiava suas especulações geniais.
sadas pelo próprio Ju n g ,
12
TIPOS PSICOLÓGICOS
Por exemplo, no funcionamento do “inconsciente coleti
vo”, a interpretação aceitável é a que o explica não como o
aparecimento de símbolos ou '“ideias primordiais” idênticas
cm vastos grupos humanos, com significações fixas e univer
sais, mas como tendências subjacentes cm todas as culturas
humanas, no sentido de uma evolução que se verifica se
gundo o conteúdo específico dos símbolos de um determi
nado período histórico desses grupos; tais símbolos terão sig
nificados semelhantes aos que se registram noutras culturas,
embora sc revistam de formas bastante distintas. Mas é pos
sível, entretanto, encontrar por vezes contradições ou diver
gências, em Junc, quanto a esta interpretação. Outra con
tradição é evidente, em nosso entender entre a exaltação
das elites ( “grandes feitos da história universal tiveram sua
origem nas personalidades dominantes c nunca nas massas
inertes que são secundárias, em todas as épocas, e necessi
tam dos demagogos para atuarem”, escreveu J u n c ) e o vee
mente elogio do proletariado, em tennos dignos do mais
aeendrado marxismo ( “As grandes inovações nunca vèm de
cima; promanam invariavelmente dc baixo...
São justa
mente as pessoas dos mais baixos níveis sociais que obede
cem às forças inconscientes da psique; é o tão escarnecido,
silencioso, sofrido homem da terra, aqude que está menos
contagiado pelos preconceitos acadêmicos <|uc afetam as gran
des celebridades").
Alguns dos críticos de Juxc assinalam o fato dele ter
colaborado com os nazistas (Frkud, urr. judeu, seguia ao
mesmo tempo o caminho do exílio), pelo menos, ter aceito,
a direção de uma revista de Psicologia que fora expurgada’
de todos os colaboradores não-arianos. 2 citam-se as suas
palavras:
"Ameaçadoramente, a transfiguração dos deuses
prossegue e o Estado converte-se no senhor do m u n d o ...
Protestar c ridículo — é como se protestássemos contra o
rolar inexorável de uma avalancha*. Cremos haver certa
animosidade, ainda inexplicável, nessa atitude crítica. Jung,
na verdade, jamais deixou de salientar o aspecto sombrio, clevwmaco, das forças poderosas que agiam dentro do povo
alemão, assim como de seus chefes. O seu símbolo de uma
avalancha jamais pode sugerir uma esperada e bem-vinda
“onda do futuro”. Nela existe sempre uma conotação dc de
sastre, de destruição. O culto do deus Wotan era, na con
cepção de Ju n g , uma espécie de vendaval psíquico, redun-
O SIGNIFICADO DA PSICOLOCIA C RIT ICA DE JU N G
13
dmido fatalmente num vazio provocado pelo crepúsculo dos
uiitlgos deuses. Por isso escreveu: ‘ Sempre foi minha opiniAo que os movimentos políticos das massas, no nosso tem|m», .suo epidemias psí:juicas, isto é, psicoses das massas”.
Do ponto de vista terapêutico, a “Psicologia crítica” tamI m u i apresenta algumas dificuldades para os que estão treii uidos nos preconceitcs analíticos das demais escolas. Para
começar, sua Psicologia é "adulta”, menosprezando totalmen
te .is implicações psíquicas da adaptação e educação infanm . as tarefas de desenvolvimento da criança que as demais
racolas defendem como fator básico do ajustamento indivi
dual e social. Dizia J u n g que, se havia alguma coisa que
desejássemos mudar na criança, seria conveniente examinar
primeiro se não haveria alguma coisa que mudar em nós
próprios. Todo o seu interesse concentrava-se no adulto, que
(Ir um modo ou de outro dominara suas solicitações internas
r externas de alimentação, eliminação, locomoção, fala, ocu
pação, casamento e relações sociais. No fim de contas, diz
Ju n g , se tudo o que se faz neste mundo ainda parece “de
crépito, deteriorado, monótono e inútil", não há vantagem em
procurar a cura na revivcncia de um passado ou dos humo
res adolescentes que criaram esse mundo. O caminho não é
o de uma “reconstituição”, mas de uma "transfiguração”, uma
irnascença espiritual. Neste ponto, Ju n g iria granjear tam
bém a animosidade, quando não a franca hostilidade de
quantos se julgam fiéis "da verdadeira religião”. As auda
ciosas interpretações dos símbolos cristãos, por exemplo, res
soaram como o eclodir de um escândalo. Uma vez mais, Ju n g
fui mal lido e pior interpretado. £ evidente que ele nao
advoga o regresso a uma superada “igreja madre” nem, por
outro lado, tenta promover qualquer culto religioso mais
avançado. Apenas nos adverte que estamos reprimindo, perlgosamente, ou subestimando, as necessidades espirituais que
os homens procuraram, desde tempos imemoriais, exprimir e
satisfazer através da enorme variedade de símbolos e rituais
irligiosos que, 1 1 0 mundo, têm sido transmitidos e alterados,
de uma religião para outra, mas sempre em resposta a uma
necessidade básica. (Goodwin W a t s o n , op. cit.)
Nos domínios da Psicologia e da Antropologia Cultural,
us duas obras capitais de Ju n g , Symbole der W analung e esta
rsychologísche Tijpen, abriram os mais insuspeitados horizon
tes para a investigação dos fascinantes problemas equaciona
14
TIPOS PSICOLÓGICOS
dos por Ju n c , em sua teoria dos padrões dinâmicos que atuam
inconscientemente nas culturas humanas. Nenhum outro mes
tre do pensamento psicológico edificou sua teoria numa tão
ampla hase de conhecimentos fatuais, escreveu o Dr. J. Ja c o b i
( The Psychology of C. G. Jung. Introdução, Londres, 1950),
a partir do estudo do “primitivo”, tomado na acepção do in
divíduo ainda na fase de naiveté defirida por L é v y - B r u h l.
J u n c aborda, com uma impressionante autoridade, a consciên
cia primitiva refletida nas tribos negras da África e da Ocea
nia, na mitologia grega, na religião hindu, na antiga arte chi
nesa, no budismo e 1 1 0 tauismo, na a.quimia medieval, na
teologia e na mística cristãs, bem como as personalidades de
indivíduos excepcionalmente dotados do mundo moderno, pro
fetas, poetas, líderes religiosos.
Quanto ao leitor não-espeeializado ou apenas iniciado
nos grandes temas psicológicos, a obra de Ju n g provocará inú
meras sugestões e interrogações. Os vislumbres de medo que
põem uma sombra no mundo ocidental são prenúncio da
aurora ou do crepúsculo da nossa civilização? Não deixará
de ponderar sobre o cepticismo de J u n c a respeito do sonho
liberal de uma ordem racionalista para o mundo, portadora de
paz e harmonia. Muito antes dc haver arsenais nuclcares garantindo um “equilíbrio de medo’ para a sobrevivência da nossa civilização, Ju n g já escrevia o seguinte: “O homem moderno começou vendo que cada novo passo no caminho do progresso material acrescenta nova parcela de força
na ameaça de uma catástrofe mais estupenda”.
I
;
I
I
Tais palavras proféticas fazem-nos acreditar que a obra
de J u n g está ganhando, cada dia que passa, um significado
mais profundo para a teoria social. A naior necessidade in
telectual do nosso tempo, escreve o Dr. Ira Procofk ( Jungs
Psychologij and lts Social Meaning, Gap. I, pág. 9), é "supe- 1
rarmos as limitações da concepção oitocentista da natureza
humana. Deixou-nos uma visão demasiado restrita da vida,
com seu homem econômico racionalista e seus determinismos
históricos e biológicos. Se existem desenvolvimentos do pen
samento que se possa afirmar serem característicos do sécu
lo XX, um deles é o esforço obstinado para nos libertarmos
das algemas do século passado e encontrarmos uma visão
mais ampla da realidade”. Ilouve diversos sintomas, sem
dúvida. As concepções de F r e u d sobre 0 inconsciente deram
a entender que estava próxima a emancipação. Foi o pri-
O SIGNIFICADO DA PSICOLOGIA CU í TI CA DE JU N O
15
iiirlro instrumento intelectual com força bastante para derrubnr a velha Psicolcgia racionalista. Mas, como nós pról*ilos já acentuamos (em "O Significado de Frcud na So• iodado Contemporânea”, introdução à edição de Psicopatolo^ia da Vida Cotidiana, Zahar Editores, col. Psyche, 2.a ed.,
I'MMÍ), K re u d conheceu inúmeras limitações, entre as quais
liavia. duas que o impediam de chegar a respostas finais:
iiAo compreendia a história nem a religião. Sua Psicologia
i’M lusivamente “personalista" de impulsos ou instintos era a
li- ^ação das "representações colelivaà” da sociedade humana
uu, como lhes chamava Thorstein V e b le n , os ' hábitos sociais
•li» pensamento”. A concepção freudiana do inconsciente podrria ter dado a resposta, mas sua formulação biológica e
• .em ialmente anti-social impediu-o, com efeito, de compre
ender a História.
Caberia a J u n g projetar nova luz sobre
a Psicologia da Profundidade e assim iluminar o significado
das forças sociais e históricas. Toda a sua obra reflete uma
compreensão das limitações racionalistas e procura superálas. Sua interpretação da psique é eminentemente histórica
e baseia-se mais numa concepção social que biológica do ho
mem. Mais importarte, ainda, Ju n g evita francamente asiimir qualquer posição metafísica e unilateral, em oposição
As teorias materialistas, e instala-se no domínio psicológico
para lograr um aprofnndamento da realidade, enquanto in
terpreta o significado da experiência religiosa. Como ele
próprio escreveria no Prefácio para Cod and the UnconseUtus, de Victor W h : t e (Londres, 1952), a Psicopatologia
e a Psicoterapia só quando observadas superficialmente parecem a uma distância incomensurável do campo de interes
se do teólogo, e o esforço de integração entre o mitologema
mediato, representado pelas figuras mitológicas primordiais,
e o mitologema vivo, representado pela experiência religiosa
imediata ( “numinosa” i, é evidente em mais de uma passa
gem.
Essa preocupação integradora, que tem passado desper<obida a muitos críticos, constitui uma tônica da obra de
|i ng. Dos “pais” da teoria psicanalítica, J u n g foi o único que
se ocupou, sistematicamente, tanto do lado obscuro do noinern como das faculdades integradoras, espirituais, do ser
humano. Por isso, situa-se como um ponto de encontro, ou
um “farol na encruzilhada”, como diz P k o g o f f, guiando aque
les que acreditam que a resposta aos nossos atuais problc-
10
TIPOS PSICOLOCICOS
mas deve incluir uma compreensão da? profundas camadas
do inconsciente segundo um ponto de vista histórico, a par
da concepção dinâmica da natureza espiritual do homem.
No esforço para obter uma visão mais ampla da realidade,
sobretudo de seus aspectos psíquicos, Ju n g esforçou-se por
ficar fora da gestalt espiritual do Ocidente, a fim de conse
guir acesso às concepções e visões de outros povos. Por
isso se desenvolveu nele a necessidade ;le ultrapassar as Fi
losofias ocidentais do cristianismo e, ciente das limitações da
sua personalidade europeia c das carências de seus pacientes
ocidentais, penetrou fundo no estudo dí:s antigas religiões e
Filosofias do Oriente, para o que teria cuncorrido seu conhe
cimento'favorável da obra de S c h o p e n iia u e h , um budista eso
térico, e de N detzsc h e , e seu "homem novo” zaratustriano. E
aqui temos outra prova do seu anseio de integração, na me
dida em que a tradução dos processos psíquicos orientais pa
ra uma orientação ocidental representava, em última análise,
o desejo de construir um weltanschauung mediante a unifi
cação das Psicologias do Oriente e do Ocidente. Noutro sen
tido, essa avidez de contato do Ocidente com as doutrinas
exóticas do Oriente é uma recorrência daquela mesma situa
ção que BuncKHARDT já observara na Roma antiga e que
Í o y n b e e rcdescobre na característica de todas as civilizações
em declínio: procurarem terras distantes para suas novas fi
losofias de vida. Essa integração junguiana tem para Toynbee um sentido de continuidade.
Para o grande historiador
inglês, a história da civilização requer uma dimensão psico
lógica "profunda” e os conceitos de J u n c são, sem dúvida, os
que mais se aproximam, ir» spirilu, dos seus. Num dos as
pectos fundamentais da interpretação da sociedade, ambos se
encontram, justamente, no que entendem por integração e
continuidade históricas.
Contudo, não se pense que exista qualquer paralelo glo
bal entre a obra de J u n c e a de, por exemplo, T d llic h , M u m KOiiD ou T o y n b e e .
Cada um destes foi buscar em J u n g os
aspectos de suas idéias que mais interessavam ou estimula
vam seus próprios pensamentos. Cada um deles estudaria
a sociedade segundo diversos prismas e nenhum, evidente
mente, pelo que J u n g adotara.
C. G. J u n g formara-se em Medicina no ano de 1900.
Para o exercício de sua profissão, escolhera a Psiquiatria, um
O SIGNIFICADO DA PSICOLOGIA CRITICA DE JU N G
17
ilninlnio em que o jovem clínico ambicionava reunir suas duas
maiores paixões: a Filosofia c o estudo da mente humana.
N< .si- mesmo ano leu. p e la primeira vez, uina obra de F r e u d ,
\Intcrjnetação dos Sonhos. Sua primeira reação foi dc in
compreensão: achou que não percebera o que F r e u d tinha
• in vista. Pôs o livro dc lado e continuou seus próprios
«Mudos e investigações, na Clínica Psiquiátrica da Univerftkladc de Zurique. Em 1903, leu de novo A Interpretação dos
Stmhos c, desta vez, com resultados totalmente diversos. Ten
do por base suas experiências com os Testes de Associação,
um novo método que J u n c criara, após um estágio com J a n e t
rm Paris, achou que poderia concordar agora com a teoria
lnMidiana de repressão e, mais do qiie isso, estava cm condições de comprovar experimentalmente a concepção básica
do inconsciente. Não acreditava, porém, no trauma sexual
n surpreendia-o a importância que F r e u d atribuía ao sexo
como gênese da neurose. Quando J u n c publicou Experimenh llc Vntersuchungen-Studien zur XVortassoziation (1904-1906),
a sua primeira obra sobre os métodos de associação, o gru
po que então cercava F r e u d promoveu a aproximação deste
cxnn J u n c , em quem antevia já uma aquisição de enonne
peso. E a verdade é que, mesmo antes do encontro pes«oul entre os dois grandes investigadores, J u n c já defendia
os pontos de vista de F r e u d em diversos congressos e reu
niões profissionais numa época em que tal atitude era suma
mente impopular. Só em 1907, porem, se registrou o encontro
pessoal, c J u n c confessou a grande impressão que F r e u d lhe
uuisara, considerando-o um "indivíduo excepcional, de notável
capacidade, inteiramente possuído pela idéia de descobrir’.
Contudo, J u n g não conseguiu levar a sexualidade tão a se
no q u a n to F r e u d levava e exigia que os demais levassem.
Ju ng chegou mesmo a suspeitar da existência de alguma ra
zão inconsciente para o fato de F r e u d estar “de tal modo
fascin ado pelo fator sexual que parecia dominar e desequili
brar toda a sua obra científica”. ( P r o g o f f , op. cit., pág.
26 .)
Em 1909, F r e u d e J u n g foram convidados para uma
série de conferencias nos Estados Unidos, onde receberam o
grau honoris cama da Universidade Clark.
No regresso,
J u n g tomar-sc-á editor do Jahrbuch für psychoanalytische und
psychopathologische Forschungen (Anuário de Pesquisas Psi<analíticas e Psicopatológicas), que F r e u d e B l e u l e r haviam
fu n d a d o . Em 1911, J u n g seria o primeiro presidente da So
18
T ir o s PSICOLÓGICOS
ciedade Psicanalítica Internacional.
Datam desse período
as primeiras e mais sérias divergências entre os dois psicó
logos. Durante a viagem aos Estados Unidos, F hf.it» e J u n c
tiveram, evidentemente, uma oportunidr.de excelente de se
conhecerem mais a fundo. Analisaram cs sonhos um do ou
tro e debateram exaustivamente seus interesses comuns. Es
sas trocas de idéias exerceram um enorme efeito nas de J u n c ,
que sentiu haver fraquezas na posição de F r e u d que ele, ho
nestamente, jamais seria capaz de aceitar. Contudo, não se
pronunciou sem efetuar primeiro um e.sludo de F k k u u dentiü
de um espírito mais severamente crítico.
Considerava-se
identificado com o movimento psicanalítico, mas as dúvidas
sobre as concepções freudianas acumulavam-se c quando, por
fim, publicou W andlungen und Sumbole der Libido, obra
posteriormente ampliada e reintitulada Symbole der Wandlung (a primeira edição c de 1912 e a segunda de 1952),
a novidade e a originalidade de seus critérios psicológicos
tornaram-se evidentes. J u n g já estava então convencido de
que compreendera as principais fraquezas do critério freu* 1
diano e, desde esse momento, considerava-se desligado do
mestre de Viena e preparado para formular seus próprios
postulados. Estava aberto o caminho para um estudo mais
dctaLhado e concentrado dos símbolos.
J u n g voltou-se então para S c h o p e n iia u e r c H a r t m a n n ,
aproveitando a noção de vontade como força básica da vida.
Meteu mãos à obra, a partir da concepção de um princípio
inconsciente subjacente, existente no mundo, mas que tam
bém é teleológico no sentido de que corrporta em si mesmo
suas iinalidades e as manifesta em sua própria natureza. Con
tudo, a experiência do trabalho com F r e i o (e em parte com
J a n e t , em Paris) forneceu-lhe uma interpretação mais espe
cificamente psicológica do que a de H a r t m a n n e identifi
cou a força vital da vontade como libido, uma energia ins
tintiva que emerge na personalidade humana, transitando do
inconsciente para o consciente. Quando esse trânsito ocor
re, é na forma de símbolos. A formação c metamorfose da
libido em símbolos no inconsciente, foi a sua primeira gran
de investigação no caminho agora adotadD.
J u n c abandonara todas as suas atividades professorais pa
ra dedicar-se unicamente às investigações c pesquisas cientí
ficas, à análise de pacientes particulares e a escrever suas
conclusões em todos os setores por ele abnrdados. Em 1921
O SIGNIFICADO DA PSICOLOGIA CRÍTICA
DF.
JU N C
19
I «mumi um largo período no Norte da África e, pouco tempo
■li |H)li, visitava os índios Pueblos do Arizona e Novo México;
.... 1028 voltava à África para viver entre os nativos das verlt ntt ! do monte ElgDn, no Quênia. Visitou a índia, vários
imIm europeus, a Inglaterra, novamente os Estados Unidos
visitas que se refletem em muitas publicações (em Biogniphtcal Sketch of C. C. Jung, por C. A. M a c e , em F.
I mMIMIAM, op. cit.).
Fm 1936, a Universidade de Harvard, por ocasião do seu
iHccntcnário, concedcu a J u n g u iu grau honorário, a título
«In um doj mais eminentes cientistas vivos do século atual e,
ilola anos depois, igual distinção lhe era conferida pela Univm idade de Oxford. Em 1944, a Universidade de BasiI* M criava a cadeira dc Psicologia Médica especialmente paiii ele e em 1943 era doutorado honoris causa da Universi
dade de Genebra, entre muitas outras honrarias que lhe eram
• oiifrridas nos principais centros científicos da Europa. Por
risa época, a bibliografia junguiana adquirira já proporções
lm|H)iientes, traduzida em diversos idiomas, e sua persona
lidade impusera-se no domínio da Psicologia num grau só
comparável ao do .próprio F r e u d . O s analistas junguianos
praticavam já no mundo inteiro, e sociedades junguianas fo
urni criadas cin diveisos países, além dos três principais ins
titutos, em Zurique, Londres e S. Francisco.
Ilesta-nos dizer mais algumas palavras sobre a obra que
tivemos a honra de traduzir e apresentar, pela primeira vez,
un público de língua portuguesa: Tipos Psicológicos.
Expressões com» introvertido, extrovertido, compensal õo, fazem hoje parte integrante da linguagem comum, embo
ta poucos saibam que a definição de tais conceitos se deve
ti J u n g , ao estabelecer na presente obra a estrutura geral de
Mia tipologia.
A contribuição mais notável deste livro consiste, com
rfrito, na definição e descrição das duas “disposições típicas”
d a consciência — introvertida e extrovertida — bem como de
suas funções dc orientação (pensar, sentir, intuir e perceber)
r respectivas funções compensatórias no inconsciente. Nos
primeiros nove capítulos, J u n g fomece-nos exemplos dessas
disposições na história espiritual da Antiguidade e da Idade
20
TIPOS PSICOLÓGICOS
Média, na Estética e na Poesia, na Filosofia, na Biografia e
na Psicopatologia. Ê a parte do livro em que J u n g revela
a sua portentosa cultura e onde lança os fundamentos teóri
cos para a caracterização final dos Tipos, que ocupa todo o
capítulo X, sem dúvida o mais famoso e conhecido texto
junguiano.
Finalmente, no capítulo XI, Ju n g define todos os prin
cipais conceitos psicológicos por ele criados ou que, elabo
rados por outros, receberam dele uma nova definição. Do
ponto de visla meramente didático, por assim dizer, as de
finições de J u n g constituem um valioso auxiliar de estudo
e, como glossário psicológico, ainda não foi superado por
qualquer outra obra dessa índole. Mesmo os não-junguianos terão de reconhecer a validade absoluta dessas defini
ções, ratificadas como foram pela prática analítica, melhor
dizendo, para usarmos uma expressão característica de Ju n g ,
pela “realidade psíquica”.
A propósito dessa realidade, convém assinalar que não
seria difícil à crítica atribuir à Psicologia junguiana uma
certa infra-estrutura de epistemologia kantiana. As afinida
des são grandes, sem dúvida, especialmente no que diz res
peito "ao que o investigador psicológico estará em posição
de supor sobre a natureza da realidade psíquica” (P ro co ff,
op. cit., pág. 73). Quanto à realidade, de modo geral, J u n g
concorda com K a n t c m que não temos capacidade para COnhecer a coisa-em-si. Contudo, na experiência do indivíduo,
as coisas podem ser “psicologicamente reais”, no sentido de
que envolvem grandes intensidades de energia psíquica e,
por conseguinte, grandes efeitos emocionais ou “afeições”. Os
símbolos que são ativados na psique atuam dentro da personalidade do indivíduo como “coisas reais”. Os fenômenos
psíquicos dispõem, portanto, dc uma específica existência em
pírica e constituem uma área de realidade. Assim como os
objetos externos são investigáveis no quadro do mundo físi
co, também, num sentido equivalente, os fenômenos psíquicos são averiguáveis como realidades da psique. J u n g conclui, então, que a análise das manifestações psíquicas deve
merecer-nos o mesmo respeito que a dos fenômenos da natureza, sendo todos igualmente legítimos.
Além das obras de C. G . J u n g á citadas, são dig
nas de leitura mais as seguintes: Freud und die Psycho-
j
,
'
|
i
1
.
I
i
C) SIGNIFICADO DA PSICOLOGIA CRÍTICA DE JU N G
21
...../•/««. Zwei Schriften über analytische Psychologie; D ie
ht lt/pcn und (las kollektive Unbewusste; Zivilisation im
«’/.-f/'/iri/; (desta obra existe uma tradução do ensaio Das
’ >i h ujirohlnn des modernen Menschen, com o título "O Ho....... Moderno em Busca de uma Alma”); Psychologie und
a léfhm. aléin de muitos outros estudos de caráter exclusiva...... . psiquiátrico.
Um d«* janeiro, outubro de 1966
Á
lvaro
C
abral
N«riA:
O livro Psycholocie und fícligion foi traduzido para o
(•••ftujtufa e publicado, sob o título Psicologia e Relipião, por Zahai
i illlorrs, Rio, 1965.
PREFACIO DA 9.a EDIÇÃO ALEMÃ
V / i ivno Tipos Psicológicos foi publicado em 1920. Tor«>.»r »• iii a obra mais conhecida de Junc. O fato de ter atini riu 1950 a sua 8 .a edição é prova dc sua ampla aceitaH " lirm como do vivo interesse despertado pelo problema
I . 1 *1 «ologia da Consciência. Alguns dos conceitos pionei«Ir ( u n o já se converteram hoje cm conceitos dc uso gc•
«» corrente.
Nu parte fundamental de sua obra, o Autor oferece-nos,
Miim, ii descrição de certas estruturas e funções da psique,
wi Urccendo os fatores básicos para a compreensão do hohm mi como indivíduo c como membro da sociedade. O ani '• t*••111 sino dos tipos reflcte-se nas controvérsias e conflitos
••liposos, científicos, culturais, na concepção geral do munI • ilrscmpenhando em tíxlas elas um papel decisivo o gê• i.» de relações existentes entre os homens.
K.*tu obra represcritou um momento culminante no labor
•Ir | i'N < ; e reveste-se ce grande interesse histórico. Por isso
• ilrixamos tal como íoi originalmente concebida e publica•lii
Pi assim dada ao leitor a possibilidade dc acompanhar
.• liu mação e desenvolvimento das idéias de Ju n c .
O
último capítulo, o das "Definições”, consta de uma exl«IU'uçáo dos conceitos psicológicos gerais, tal como J u n c os
• iilmdia. Inclui uma definição de “F.u-Mesmo" (Selbst) que
!•>! formulada pelo Autor especialmente para este volume e
•|ur rm edições anteriores ainda figurava parcialmente no
...d . rito de "Eu” (Ich).
Esse conceito ocupa na obra de
|i'ni; um lugar tão predominante e central que sc impunha
.i mm inclusão separada no capítulo das “Definições”.
•Iiin
() texto foi revisto, em parte com a ajuda do Autor, tocitações e referências a outras obras foram devidamen-
as
24
TIPOS PSICOLÓCICOS
te conferidas e, n a lg u n s casos, as transcrições fo ram amplia
das e co m p le tad as. A té agora, n ã o ss p roced era à traduçãi
p a ra o a le m ã o dos textos em la tim , o q u e nesta e d iç ã o s
te z em m u ito s casos.
Apresentamos os nossos mais sinceros agradecimentos pe
la valiosíssima ajuda que nos foi prestada na revisão dos te*
tos' indianos pelo Prof. Dr. E. Abegg, na tradução dos texto
latinos pela Dr.* M.-L. Von Franz, e pela escrupulosa rev
são do texto geral da Sr.a A. Jaffé e Dr. P. Walder.
AO
L E I T O R
I,
Maio de 1960.
M arianne N jehus-Jung
L ena H urwitz -Eisner
D b. F ranz R iklin
-i* i ivno é o fm to de u m la b o r de q u ase v inte anos, no
•i ••••In»« * d a Psicologia p rátic a.
F o i a d q u ir in d o fo rm a, lenta
»* i • .•IimIuimiU-, c o m o o re sultado d e in úm e ra s observações e
............ 'm ia s colh id a s, quer no exercício d a M e d ic in a , em suas
• «|mm i illd.idcs de P siq i.iatria e N e u ro p a to lo g ia , q u e r n o con• •• ■ • <m pessoas d e todas as classes sociais, q u e r a in d a em
l " i discussões e investigações com am ig os e adversários
• flm ilm c n te , n a crítica à m in h a p ró p ria idiossincrasia ou
•.l..im uçA o psicológica.
T e n h o a in te n ç ão de n ão emba• • u i* leitor com casuística, p ro c u ra n d o , p e lo c ontrário, ar• I m i Iu i , tanto histórica c o m o tcrm in o lo g ic a m e n te , a i idéias
i • n u m a d u z id a s d a experiên cia c o m os conh ecim entos de
T a l in te n ç ã o obe dece m enos a u m itnpei |«m< |.i d is p u n h a .
d e justiça histórica d o q u e ao desejo d e levar as ex-
..........»ias do médico especialista, do seu âmbito profissioi.I |».u a o d o m ín io da> conexões m ais genéricas q u e permi(•«m uu leigo o acesso p roveitoso às conq uistas de u m a es.
In la» Ir.
\ unca mo atreveria a estabelecer essa a rtic u la -
••
que poderia ser facilmente interpretada, com certeza,
....... u m a in va são d e d o m ín io s alheios, se não estivesse eu
i m '|m 1o c o n v e n c id o d e q u e os jx>ntos d e \nsta psicológicos
h |h i «nutudos n o presente I ívto são, com efeito, d e imporM m la •• u tilid a d e gerais.
A c h o p o r isso preferível tratá-los
HMii a a m p litu d e das conexões gerais, cm vez d e restringiI •. A forma de uma hipótese de especialidade científica,
h»'M<lu esse o meu intuito, limitei-me ao cotejo com as idéias
. 1 . nlgiiin antecessor no exame de cada problema que estiver
• ••• i ausa, e v ita n d o referir-me a tu d o q u a n to já te n h a sido
•
sobre essa questão.
A b s tra in d o d o fato d e q u e sei. ■llian tc s u m á rio d e m ateriais e o p in iõ e s, m esm o q u e só fos.ip iu x iin a d a m e n te co>npleto, u ltrap assaria d e m u ito as mi-
26
TIPOS PSICOLÓGICOS
nhas forças, sucede que, alem disso, não contribuiria funda
mentalmente, de maneira alguma, para a valorização e de
senvolvimento do próprio problema. Eis o motivo por que,
sem pesar, eliminei muito do que reunira no decorrer dos
anos, limitando-me às coisas principais, sempre que possí
vel. Essa eliminação provocou também o corte de um va
lioso documento que significou, para mim, um auxílio ines
timável Refiro me .\volumosa correspondência trocada com
o meu falecido Amigo, o Dr. H. S c h m id , do Basiléia, a res
peito co problema dos tipos. Fiquei devendo muitos escla
recimentos a essa troca de opiniões, os quais transmiti, em
grande parte, ao presente livro — se bem que, evidentemen
te, numa forma refundida e bastante desenvolvida. Na ver
dade, essa correspondência faz parte daquele gênero de tra
balho preliminar cuja revelação ao público gera mais con
fusão do que esclarecimento. Contudo, sou devedor ao meu
amigo pelo seu esforço, aqui deixando exarada a expressão
dos neus sinceros agradecimentos.
Küsnacht/Zurique, primavera de 1920.
C. G. J unc
I N
T
R O
D
U
Ç Ã
O
Platão e Aristóteles! Eis não só dois sistemas como
dois tipos distintos de natureza humana que, desde tem
pos imemoriais c sob toda espécie de costumes, defrontam-sc mais ou menos hostilmente. Sobretudo durante a
Idade M ídia e, desde então, até os nossos dias, a luta
manteve-s«s sem esmoreeimento c constitui o conteúdo mais
essencial da Igreja Cristã. Ê de Platão e Aristóteles que,
na verdade, se trata sempre. .. ainda que sob outros no
mes. Naturezas febris, místicas, platônicas, desentranham
das profundezas da alma as idéias cristãs e seus respec
tivos simjolos.
Naturezas práticas, ordenadas, arístotélicas, constroem com essas idéias e esses símbolos um sis
tema sólido, uma dogmática e um culto. A Igreja acaba
por absorver e abranger, finalmente, ambas as naturezas,
entrincheirando-se uns na ordem clerical e outros na mo
nástica, e hostilizando-se incessantemente.
H. Hkink, Deutschland, I.
I iJ m m i n h a atividade clínica com pacientes nervosos, desde
hú muito tempo que a minha atençao foi atraída para, além
d*' inúmeras diferenças individuais, as diferenças típicas; e
i/im.v tipos logo se destacaram, a que dei o nome tijm dc in^>
ti<‘iwrsão-jz_tli2o de extroversão.
Ao meditarmos sobre o processo da vida humana, vemos
I sorte de u ns está mã!s~ condicionada pelas coisas de
•
• ii interesse objetivo, ao passo q u e a d e outros está m ais
ente d o p ró p rio ín tim o , d o sujeito. O ra , c o m o todos
iidcm os, até im certo p o n to , m a is p ara u m la d o q u e
I»nrii outro, é natural que, em cada caso, a nossa tendência
-• |.i para interpreta: tudo de acordo com o nosso próprio tipo.
Kaço aqui referência a essa circunstância para evitar fal• interpretações possíveis. C o m o é fá c il de supor, tal cir-m-.iAncia d ific u lta b a sta n te u m a descrição geral dos tipos.
• |>n ( iso contar ccm uma considerável dose de boa-vontade,
28
TIPOS PSICOLÓGICOS
por parte do leitor, quando afirmo minha esperança de ser
corretamente compreendido. Seria uma tarefa relativamen
te simples se cada leitor soubesse a que categoria ele pró
prio pertence. Contudo, é por vezes sumamente difícil ave
riguar o tipo a que o indivíduo pertence, sobretudo quando
o próprio está em causa. O juízo sobre a própria persona
lidade turva-se sempre de modo extraordinário. Esse obscu
recimento subjetivo do juízo é tão freqüente por dois motivos:
pelo fato de que em todo o tipo nitidamente pronunciado
existe uma grande tendência para a compensação da unilateiahdadc do próprio tipo; e por ser essa tendência conve
niente, sob o ponto de vista biológico, dado que a manuten
ção do equilíbrio psíquico e a sua finalidade. A compensa
ção dá origem a caracteres ou tipos secundários cuja ima
gem é de tal maneira enigmática e difícil de decifrar que é
possível, inclusive, chegar-se ao ponto de negar peremptorif.mente a existência da diferença de tipos e de acreditar nas
diferenças individuais, apenas.
Convém ressaltar essas dificuldades, para justificar certa
particularidade da minha posterior exposição: aparentemen
te. o mais fácil método seria descrever e analisar em paralelo
dois casos concretos. Mas todo J iomcm possui ambos os me
canismos — o da extroversão e o da introversão — c somente
o predomínio relativo dc um deles constitui o tipo. Tería
mos de recorrer, portanto, a um vigoroso retoque para obter
o necessário relevo, o que nos levaria a uma fraude mais ou
menos bem intencionada da imagem típica. Acrescente-se
a tudo isso o fato de que a reação psicológica do homem é
uma coisa tão complexa que a minha capacidade expositiva
não conseguiria transmitir, em absoluto, mais do que um re
flexo, exato mas tão-só aproximado, da imagem correta. De
vo limitar-me, portanto, a expor os princípios por mim adu
zidos do acervo de diferentes fatos observados. Não se tra
te de uma deduetio a priori, como porventura poderia pare
cer, mas de uma exposição dedutiva de conceitos empirica
mente elaborados. Esses conceitos, ou pontos de vista, as
sim espero, são uma contribuição pessoal para esclarecer o
dilema que tem sido e continua sendo causa de incompreen
são e discórdia, não só no campo da Psicologia Analítica co
mo noutras esferas da ciência, em especial nas relações pes
soais entre os homens. Assim se explica o fato da existência
dos dois tipos distintos ser, na verdade, já conhecida há mui-
INTRODUÇÃO
29
Id tempo e, de uma 0 1 1 outra fornia, ter chamado a atenção
dos homens perspicazes, estimulado as cogitações do homem
reflexivo e que, por exemplo, se apresenta à intuição de
( «OETHE como 0 princípio compreensivo da sístole e da diás
tole. Os nomes e conceitos, sob os quais o mecanismo da
Introversão e da extroversão foi apreendido, são bastante dis
tintos e adaptam-se sempre ao ponto de vista do observador
individual. Contudo, apesar das formulações distintas, re
petidamente se dcstaca o que todas têm de basicamente co
mum, a saber, uum caso, o -movimento do interesse no sen
tido do objeto e, no outro caso, o movimento do objeto para
o sujeito e o interesse deste em seus próprios processos psi
cológicos. No primeiro caso, o objeto atua como um ímã
sobre as tendências do sujeito, atrai-as para si e, em grande
parte, condiciona o comportamento do sujeito, alterando de
tal maneira as suts qualidades, no sentido de uma assimila
ção do objeto, que seria possível afirmar, em última análi
se, ser o objeto de importância máxima e decisiva para o
sujeito, determinando de maneira absoluta c incutindo uma
diretriz especial à vida e destino do sujeito, para que se en
tregue inteiramente ao objeto. No segundo caso, pelo con
trário, o sujeito é o centro de todos os interesses. Dir-se-ia
que toda a energia vital é atraída para o sujeito e dessa ma
neira impede que se dè ao objeto uma influencia exces
siva. É como se a energia fluísse do objeto ou q sujeito
sobre ele exercesse urna atração magnética.
Não é fácil caracterizar de maneira compreensível e cla111 esse comportamento antagônico om relação ao objeto, c
r grande 0 perigo de chegar a formulações paradoxais que
produzam mais confusão do que clareza. De modo geral,
poder-se-ia dizer que o ponto de vista introvertido é o que
procura, sobretudo, supra-ordinar o eu e o progresso psico
lógico subjetivo ao objeto, ou afirmá-los, pelo menos, quando
■ defrontam com o objeto. Essa disposição confere ao su|elto, por conseguinte, um valor superior ao do objeto. As•lm. o objeto está sempre situado num nível de valor infeilor, atribui-se-lhe uma importância secundária, na verdade
<lirgn a ser considerado como um sinal objetivo exterior de
um conteúdo subjetivo, algo como a materialização de uma
ld« la, mas em que a idéia continua sendo o essencial; ou
•III Ao é considerado objeto de um sentimento, mas em que
• vivência sentimental é o essencial e não o objeto, em sua
30
TIPOS PSICOLÓGICOS
indivicualidade concreta. O ponto de vista extrovertido, pe
lo contrário, subordina o sujeito ao objeto, atribuindo-se ao
segundo um valor superior. O sujeito tem sempre um va
lor secundário; é como se o processo subjetivo não passasse
de ura acessório, por vezes molesto e supérfluo, do aconte
cimento objetivo. É evidente que a Psicologia originada por
esses pontos de vista antagônicos teria de ficar dividida em
duas orientações totalmente distintas. Uma vê tudo segundo
o prisma (1 * sua concepção própria, a outra segurdo o pris
ma, do evento^objetivo.
Essas posições antagônicas não são outra coisa, para co
meçar, senão mecanismos opostos: iim ^ d js ^ iis ã o ^
COiiâ apjUitíliSao do c b j c t « •• uma
.ststóTi< a,
fjue
a energia abandona o ( ^ erõai)Tc?nciic|y. IOcio ú ser nninano possui ambos os mecanismos, como expressão do seu rit
mo natural de vida, e não foi por rncra casualidade que
C o b t h e os designou pelos mesmos nomes que correspondem
aos conceitos fisiológicos da atividade cardíaca. Uma alter
nação rítmica de ambas as formas de atividade psíquica de
veria corresponder a um processo de vida normal. Mas a
complexidade das circunstâncias exteriores em que vivemos,
assin como as condições ainda mais complexas da nossa es
trutura psíquica individual, raramente consentem que a ati
vidade psíquica vital se desenrole sem perturbações de espé
cie alguma. As circunstâncias exteriores e a estrutura ínti
ma são freqüentemente favoráveis a um dos mecanismos, im
pedindo ou restringindo a ação do outro. Daí surge, natu
ralmente, a preponderância de um dos mecanismos. . Se tal
situação se tornar crônica, de algum modo, surge então o
tipe, ou seja^uma disposição habitual em que um dos ineca-’
nismos predomina de um modo permanente, sein ser capaz,
-é certo, de suprimir o outro radicalmente, pois também ele
é imprescindível para a atividade psíquica da vida. Portan
to, nunca será possível produzir um tipo puro, que disponha
apenas de um dos mecanismos, com atrofia completa do ou
tro
Uma disposição típica significa apenas o predomínio
relativo de um dos mecanismos.
Com a constatação dos mecanismos de introversão e extreversão, tornou-se imediatamente possível distinguir dois
vastos grupos de indivíduos psicológicos. Não obstante, es
ses dois grupos são de uma natureza tão superficial e gené
rica que justamente por isso não é tolerável uma subdivisão
31
INTRODUÇÃO
dessa índole genérica. Um exame mais rigoroso das psico
logias individuais abrangidas por um grupo ou por outro re
vela imediatamente a existência de grandes diferenças entre
os vários indivíduos, ainda que pertençam ao mesmo grupo.
Por conseguinte, temos de dar um passo à frente para po
dermos estabelecer cm que consistem as diferenças entre os
indivíduos pertencentes a um mesmo e determinado grupo.
A experiência me ensinou que, de um modo bastante gené
rico e possível distinguir õs“indivíduos não só por suas dife
renças universais de extroversão c introversão, mas também
de acordo com as suas distintas funções psicológicas funda
mentais.
■
Na mfísma-medida em que as circunstâncias externas c a
disposição íntima .dão lugar ao predomínio da extroversão
"u da introversão favorecem também o predomínio de uma
determianrln tunyfto-hftgirq
indivíduo. Por funções bá
sicas, ou seja, funções que tanto genuína como essencialmente
se distinguem de outras funções, entendo eu — segundo o
que a experiência me revelou - o pensar, o sentir, o perce
ber c o inttiir. Quando uma dessas funções predomina de
"maneira habitual, define-se o tipo correspondente. Assim,
distingo tipos que são determinados pelo pensamento, pelo
sentimento, pela pcicepção e pela intuição. Cada um des
ses tipos pode, além disso, ser introvertido ou extrovertido,
segundo se comporte em relação ao objeto, do modo acima
descrito.
As diferenças que acima citei não foram incluídas ern
dois ensaios preliminares que escrevi sobre os tipos psico
lógicos, nos quais o tipo pensativo foi identificado com o
introvertido e o tipo sentimental com o extrovertido. 1 Com
uma análise mais profunda do problema, essa fusão provou
ser insustentável. Para evitar falsas interpretações possíveis,
solicito ao leitor que não esqueça a diferenciação aqui feita.
Com o intuito de garantir a clareza absolutamente indispen
sável, em assuntos <le natureza tão complexa, consagrei o
enpítulo XI deste livro à definição dos meus conceitos psi
cológicos.
C. G. J ung
1 Jung, Zur Frage der psychologlschen Typen. (Ver o Apêndice,
1 ntribuição para o Estudo dos Tipos Psicológicos”.) Die Psychologie
■
Irr unbewussten Prozesse. Zurique, 2.“ edição, 1918, pág. 65 (ediçáo
• '•.i>ta: Über die Psychdogic des Unbewussten, 1943).
I
O PROBLEMA DOS TIPOS
NA H ISTÓRIA ANTIGA E M EDIEVA L
DO ESPÍRITO
I.
Sobre a Psicologia tia Antiguidade.
Tertuliano e Origenes
C onçuanto a Psicologia exista desde os alvores da histó
ria do mundo, a Psicologia objetiva só recentemente, porém,
Iniciou seus passos. No que se refere à ciência de outros
tempos, é válida a seguinte proposição: a substância aumen
ta na Psicologia subjetiva com a falta de Psicologia objeti
va
Por isso, as obras antigas estão repletas de Psicologia
que dificilmente poderia ser classificada como Psicologia ob|otiva. Isso deve estar condicionado, em grau não diminuto,
I" l.i peculiaridade das relações humanas na Antiguidade e
nu Idade Média. A Antiguidade valorizava o próximo, por
• mui dizer, de um porto de vista quase exclusivamente bio
lógico, como se revela através dos hábitos vitais e das cir•uistAncias jurídicas. A Idade Média, na medida em que
mn juízo de valor aí encontrou uma expressão apropriada,
!• u valorização metafísica do próximo, a qual teve início
• '»ui a idéia do valor’eterno da alma humana. Tal valorizacompensadora do ponto de vista da Antiguidade, e tão
•li -.favorável à valorização pessoal que é a única capaz de
• • nstitu ir o fundamento da Psicologia objetiva quanto a anIr n o r valorização biológica.
Não faltará, por certo, quem
••*1*1 «la opinião de que se pode escrever ex cathedra uma
I Iio lo g ia . Mas também é verdade que, hoje em dia, quase
1dos estão convencidos de que uma Psicologia, para ser obi terá de basear-se na observação e na experiência. Essa
seria ideal se fosse viável. Mas o ideal e o propósito
•In c iê n c ia não consistem numa descrição dos fatos, o mais
• » iiamente possível — a ciência não pode concorrer com os
•
34
TIPOS PSICOLÓGICOS
registros cinematográficos e fonográficos — e só cumprirá
seu fim c seu intento estabelecendo a lei, que não é outra
coisa senão a expressão abreviada de múltiplos processos
apreendidos, não obstante, num certo sentido cie unidade.
Esse intuito é alcançado através de uma concepção sobre o
pura e simplesmente cxperimentável e, não obstante, sua va
lidade universal e comprovada será sempre um produto do
signo psicológico subjetivo do investigador. No estabeleci
mento de teorias e conceitos científicos há muito de contin
gência pessoal. Há também uma equação psicológica pessoal,
não só uma equação psicofísica. Vemos as cores, mas não o
comprimento das ondas. Este fato bem conhecido terá de
ser levado em consideração, mais na Psicologia do que em
qualquer outro domínio. A ação da equação pessoal come
ça, justamente, na própria observação. As pessoas vêem o
que por elas próprias vêem melhor. Assim, o que primeiro
vemos sempre é *‘o argueiro no olho do vizinho ’. Sem dú
vida, o argueiro está ai, mas a trave está no nesso... e por
certo deve atuar como um obstáculo de monta à nossa visão.
Desconfio do princípio da “observação pura” na chamada Psi
cologia objetiva, mesmo que esteja reduzida aos óculos do
cronoscópio, do taquiscópio e outros aparelhos "psicológicos".
Convém estarmos igualmente prevenidos contra uma exces
siva exploração dos fatos psicológicos experimentais. Mas
air.da maior influência tem a equação psicológica pessoal na
exposição e comunicação do observado, sem falarmos já na
concepção e abstração do material fornecido pela experiòncial Ê na Psicologia, mais do que em qualquer outro do
mínio, que constitui uma exigência básica e imprescindível
ser o observador e investigador adequado ao seu objeto, no
sentido de ser capaz de ver não só um, mas também o ou
tro. Não se pode sequer citar a exigência de que veja so-~
mente o objetivo, pois se trata já de algo impossível. Pode
mos dar-nos já por satisfeitos se não virmos subjetivament
demais. O fato de que a observação c concepção subjetiva
coincidam com os dados concretos do objeto psicológico só
tem valor probatório, no respeitante à concepção, na medid
em que esta não pretenda revestir-se de um caráter geral e
só pretenda ser válida na esfera do objeto em causa. Nesf
sentido, pode-se dizer que a trave no próprio olho facilit
realmente, encontrar o argueiro 1 1 0 olho do vizinho. Nest
caso, como dissemos, a trave no próprio olho não demons
que o argueiro não esteja no olho do próximo. Mas o i
O P R O BLE M A DOS TIPOS NA H IST Ó R IA ANTIGA
35
pedi mento da visão poderia facilmente dar azo à teoria ge
ral de que todos os argueiros, em vez de simples esquírolas,
são traves inteiras. O reconhecimento c o tomar em consi
deração o condicionalismo subjetivo dos conhecimentos, em
especial dos conhecimentos psicológicos, são condições fun
damentais para a apreciação cientifica e correta de uma
psique distinta do sujeito observador. Esta condição só se
cumpre quando o observador está suficientemente informa
do sobre o âmbito e a índole da própria personalidade. Ora,
ele só poderá estar razoavelmente informado se conseguir
emancipar-se, em grande parte, das influências compensado
ras dos juízos e sentimentos coletivos, atingindo assim uma
concepção clara da sua própria individualidade.
Quanto mais retrocedemos na História, tanto mais vemos
a personalidade desaparecer sob o manto da coletividade. E
se descermos até a Psicologia primitiva, constataremos que
nem sequer é possível mencionar um conceito de indivíduo.
Em substituição da individualidade, encontramos uma vineulação coletiva, ou “participation mystique” . 1 A disposição
coletiva constitui um obstáculo ao conhecimento e impede
também a apreciaçãc de uma Psicologia distinta do sujeito,
precisamente pelo fato dessa disposição coletiva espiritual
ser incapaz de pensai e sentir de outra maneira que não seja
mediante a projeção. Assim, o que entendemos sob o con
ceito de "indivíduo” é uma conquista relativamente nova do
espírito humano e da história da cultura. Não pode surpre
ender, portanto, que a disposição coletiva, antigamente todo-poderosa, impedisse por completo a avaliação psicológica ob
jetiva das diferenças individuais, assim como toda objetivação científica dos processos psicológicos individuais. Justa
mente por essa carêr.cia de pensamento psicológico é que o
conhecimento estava “psicologizado”, isto é, prenhe de Psi
cologia projetada. As primeiras tentativas de interpretação
filosófica do mundo são disso excelente exemplo. Paralela
mente com a evolução da individualidade e com a diferencia
ção psicológica dos homens por ela condicionados, desenvol
ve-se a “despsicologização" da ciência objetiva. Estas consi
derações propõem-se esclarecer, precisamente, por que são
tão escassas as fontes da Psicologia objetiva nos documentos
i
rieures.
LévY-BnuHL, Les fonctions mentales dans les sociétés infé
30
TIPOS PSICOLÓGICOS
que da Antiguidade chegaram até nós. A distinção dos qua
tro temperamentos, que herdamos da Antiguidade, pode-se
chamar apenas uma tipificação psicológica, desde c momen
to em que se pode quase afirmar que os temperamentos não
são outra coisa senão compleições psicofisiológicas. Contu
do, a falta de notícias não quer dizer que não possamos en
contrar na história antiga do espírito algum vestígio da ação
dos contrastes psicológicos em questão.
Assim, a Filosofia gnóstica estabelece I t c s tipo; que tal
vez ccnrespondam às três funções psicológicas fundamentais
de pensar, sentir e perceber. À função de pensar correspon
deria 3 pneumático, à de sentir o psíquico e à de perceber
o hílico. ü menosprezo do psíquico equivale ao espírito da
gnose, o qual insistia, ante o cristianismo, no valor do conhe
cimento. üs princípios cristãos do amor e da fé opunham-se ao conhecimento. Por isso, dentro da esfera cris-.ã, o pneu
mático era menosprezado, na medida em que se destacava
apenas pela posse da gnose, ou do conhecimento.
Somos também levados a pensar em diferenças típicas
ao examinarmos a prolongada luta, não isenta de perigos, le
vada a efeito pela Igreja contra o gnosticismo, nes seus pri
mórdios. Nas diretrizes do cristianismo primitivo, eminente
mente práticas, sem dúvida, o intelectual só influía desde
que não se perdesse, obedecendo ao ímpeto da luta, pelos
atalhos da polêmica apologética. A regula fidei era dema
siado estreita e não permitia qualquer liberdade de movi
mentos. Ern, além disso, muito pobre de conteúdo, no to
cante ao conhecimento positivo. Continha, outrossim, pou
cas idéias totalmente valiosas, sob o ponto de vista prático,
mas que eram um ferrolho para o pensamento. O sacrijicium
intellectus pesava muito mais sobre o intelectual que sobre
o sentimental. É muito compreensível, por isso, que o con
teúdo cognoscitivo da gnose, o qual não só n5o perdeu a
luz da evolução espiritual de nossos dias, como a ampliou
bastante, tivesse uma suprema virtude de atração para os
intelectuais da Igreja. Veio a ser para eles, na verdade, a
tentação do mundo. O doquetismo, sobretudo, causou gra
ves preocupações à Igreja, cm virtude da sua pretensão de
que Cristo só tivera um corpo aparente e de qus a sua vida
e sofrimentos terrenos só tinham sido aparência. Nessa as
serção evidencia-se, com estimulante vigor, o que é estrita
mente próprio do pensamento em face do que é humanamen
O P R O BLEM A DOS TIPOS K A H IST Ó R IA ANTIGA
37
te próprio do sentimento. Essa luta com a gnose obscrva-se, com a maior nitidez, em duas figuras que não só foram
excepcionalmente notáveis como padres da Igreja, mas tam
bém como personalidades. Referimo-nos a T e r t u l i a n o e
O ríg e n e s , quase contemporâneos dos finais do século II. S o
bre eles escreveu S c h l x t z : 2 “Um organismo era capaz de
absorver quase por inteiro a matéria nutritiva e assimilá-la
à sua própria natureza, ao passo que o outro a eliminava com
tempestuosos fenômenos defensivos, quase por inteiro tam
bém. Desse modo tão antagônico se comportavam O r íg e n e s ,
por um lado, e T e r t u li a n o , por outro. A reação deles ante
a gnose não só caracteriza ambos os caracteres e seus respec
tivos conceitos ce mundo como é de importância funda
mental no que se refere à situação da gnose na vida espiri
tual e nas correntes religiosas da época’ .
T ertuliaíüx nasceu em Cartago, por volta do ano 160.
Era pagão, entregue à vida prazenteira da sua cidade até
cerca dos 35 anos de idade, quando se converteu ao cristia
nismo. Foi autor de numerosas obras em que o seu caráter,
que nos interessa especialmente, evidencia-se de um modo
inconfundível. Sobretudo, apresentam-se-nos com grande cla
reza todo o seu nobre fervor, verdadeiramente ímpar, seu fo
go, seu temperamento apaixonado e o profundo intimismo de
sua concepção religiosa. Esta é fanática e genialmente par
cial por uma verdade reconhecida, é impaciente e servida
por uma natureza incomparavelmente combativa, paladino
sem compaixão que ele foi e que só admitia uma vitória com
um aniquilamento total do adversário. Sua linguagem cra
uma espada refulgente, brandida com magistral crueldade.
Foi o criador do latim eclesiástico, vigente por mais de mil
anos. Imprimiu o seu cunho na terminologia da jovem Igre
ja. "Vinculara-se solidamente a um ponto de vista, tinha de
o defender até as últimas conseqüências, como sc estivesse
instigado por um exército de demônios, e mesmo que a ra
zão já não estivesse de seu lado ou tivesse de reduzir a far
rapos toda a ordem racional. ” 3 A paixão do seu pensamen
to era tão inexorável que se afastava sempre, cada vez mais,
daquilo por que dera, precisamente, o sangue do seu cora
ção. Assim, a sua ética era rudemente severa. Procurava
2 Dokumente der CnoHs, pág. XXIX.
s ' Loc. cit., pág. XXV.
38
TIPOS PSICOLÓGICOS
o martírio em vez de furtar-se a ele, não permitia segundas
núpcias e pedia que as mulheres levassem véu. Combateu,
com fanático desprezo, a gnose, que era precisamente uma
paixão de pensar e de conhecer, e com cia a Ciência e a F i
losofia que, na vcidade, não se distinguiam muito da gnose.
A T e r t u l i a n o se atribui a grandiosa confissão: “c re d o q u ia
a b s u rd ttm est” [creio porque é absurdo].
Ao que parece,
essa atribuição não ê de todo exata, historicamente, e ele
apenas teria dito: " E t m o rtu u s est d e i filiu s , p rorsu s credib ile est, q u ia in e p lu m est.
E t s e p u ltu s resurrexit; certum est,
q u ia im p o s s ib ile est" . 4
Graças à agudeza do seu espírito, penetrou no que ha
via de lamentável no saber filosófico e gnóstico, rechaçando-o com menosprezo. Recorre, entretanto, ao testemunho do
seu próprio mundo íntimo, aos fatos da sua intimidade que
se identificavam com a sua fé. Informou-nos desses fatos,
convertendo-se no criador das ligações conceptuais que ain
da hoje constituem a base do sistema católico. O fato ínti
mo irracional, que em T e r t u l i a n o era, essencialmente, cc na
tureza dinâmica, era também o princípio e o fundamento pe
rante o mundo, a Ciência e a Filosofia racionais e coletiva
mente válidas. Eis algumas palavras suas:
“Clamo por um novo testemunho, melhor ainda, por um
testemunho mais conhecido do que todos os monumentos es
critos, que seja superior a todo o sistema de vida, mais ex
tenso que todas as publicações, maior que todo c qualquer
homem, pois é o que o faz homem. Assim, pois. acode, ó
Alma!, quer sejas algo divino e eterno, como alguns filósofos
crêem — menos deverás mentir, nesse caso — quer sejas algo
absolutamente não-divino, por seres mortal, como só E p i c i .r o
certamente pretende — ainda menos mentirás, então - quer
venhas do céu ou da terra, sejas composta de números ou
de átomos, tenhas iniciado tua existência com o corpo ou
nele tenhas sido inserta ulteriormente, sem que me interes
se apurar donde vens nem de que modo fazes o homem
como ele é: um ser racional, capaz de percepção c de co
nhecimento. Mas não ó por ti que eu clamo, ó alma do
mesticada nas escolas, que peregrinaste pelas bibliotecas, que
*
"E o fiLho de deus está morto, o que é inteiramente crível,
pois é um contra-senso. E da sepultura ressuscitou; isto esii certo,
porque é impossíve..” T eutuliano, D o Carne Christi, 5.
O PROB LEM A DOS TIPOS NA IIIS T Ó R IA A K TICA
39
lc nutriste e fartaste nas academias, nos pórticos áticos o
apregoas a tua sabedoria, não, não ó por ti. Mas pela alma
simples c inculta, sem recursos nem experiências, tal como
te encontras naqueles que só a ti têm, tal como brotas daí
mesmo, do ribeirinho manso, da esquina dessa ruela, da oficina. Contigo quero falar. Necessito, justamente, da tua
Ignorância.” 5
A automutilação que, para T e r t u l i a n o , redunda no sarrificium intcV.cclus, leva-o ao reconhecimento incondicional
•lo falo íntimo irracional, verdadeiro fundamento da sua fé.
( Concretizou a necessidade do processo religioso, que em si
próprio percebia, na insuperável fórmula anima raturaliter
rhristiana. Com o sacrificium intéllectus sacrifica, dc fato,
a Ciência e a Filosofia; por conseguinte, a gnosc também.
Com o decorrer da vida, mais nele se acentuaram essas
características. Quando a Igreja foi coagida a transigir ca
da vez mais ccm as massas, T e r t u l i a n o insubordinou-se con
tra ela c declarou-se partidário do profeta frígio M o n t a n o ,
um extático que defendia o princípio da negação absoluta
d<> mundo e da total espiritualização. Atacou, em violentos
panfletos, a política do Papa C a l i s t o I, acabando por ficar,
com o montanismo, mais ou menos extra ecclcsiam. Segundo
nos conta A g o s tin h o , parece que rompeu mais tarde com o
montanismo e chegou, inclusive, a fundar uma seita própria.
T e r tu lia n o
é. p o r assirn^ d ize r, uni r^rcsentaiite clás-
lo pensamento. Seu notável intelecto, desenvolvido com cxtic iua penetração, estã flanqueado de inegável sensualidade.
<) processo evolutivo psicológico que designamos como cristâo o levou ao sacrifício, à amputação do órgão ce maior
valor, cujo pensamento mítico está, por sua vez, contido no
grande e exemplar símbolo do sacrifício do filho ce Deus.
Seu órgão mais valioso era, precisamente, o intelecto e o
«•orihecimenlo esclarecido que dele promanava. O sacrificium
intcllectus cortou-lhe o caminho de uma evolução de caráter puramente intelectual e, ao tomá-la impossível, obrigouo a reconhecer o dinamismo irracional do seu fundo psí
quico como seu fundamento essencial. O pensamento própiio da gnosc, sua valorização intelectual e específica dos
a
S c h u ltz , Dokumcntc der Cixosis, págs. XXV e seg.
TIPOS PSICOLÓGICOS
40
fenômenos dinâmicos de base psíquica, tinha fatalmente de
ser odioso a T e r t v li a n o , visto ser esse justamente o rumo
que. acabara de abandonar para enveredar pelo princípio
do sentir.
^
Em O ríg e n e s , temos o contraste absoluto com Teutulia n o .
Nasceu O ríg e n e s circa 1S5, em Alexandria. Seu pai
foi um mártir cristão. Ele próprio formou-se naquela pe
culiaríssima atmosfera cm que se amalgamavam as idéias
do Oriente e Ocidente. Com verdadeira Ansia de saber, apren
deu tudo o que merecia ser aprendido, assimilando assim
quanto o fértil mundo do pensamento alexandrino dessa épo
ca pôde oferecer-lhe da sabedoria cristã, judaica, helênira e
egípcia. Distinguiu-se como professor de uma escola de
catecúmenos. O filósofo pagão P o r f ír io , discípulo de ? lo t i n o , dizia dele que a sua vida exterior era a de um cristão
e de um rebelde, mas no que respeitava ao conceito das coi
sas e da divindade helenizada O r íg e n e s revestia as iciéias
dos gregos com estranhos mitos. * Já antes do ano 211 ocor
re a sua autocastração, cujos motivos imediatos por certo se
podem imaginar, mas são historicamente desconhecidos. Exer
cia um grande influxo pessoal e tinha grande facilidade dis
cursiva, que usava com eloqüência. Estava sempre rodeado
de discípulos e de uma multidão de estenógrafos que ano
tavam as palavras preciosas saídas dos lábios do venerado
mestre. No piano literário, era extraordinariamente fecundo
e em seu magistério desenvolvia uma intensa atividade. Em
Antioquia, ensinou Teologia à própria imperatriz-mãe, Maméia. Na Ccsaréia foi chefe de uma escola. Seu magisté
rio era freqüentemente interrompido por prolongadas via
gens: Possuía uma extraordinária erudição e era surpreen
dente a sua capacidade para a averiguação exata das ccisas.
Descobriu antigos manuscritos bíblicos e realizou tarefa me
ritória na crítica dos textos. “Foi um notável sábio, talvez
o único sábio autêntico que a Igreja antiga teve”, disse IIa rn a c k . O ríg e n e s , ao contrário de T e r tu i.ia .n o , não só foi aces
sível à influência do gnosticismo como, inclusive, o introdu
ziu na Igreja, sob uma forma atenuada. Pelo menos, suas
aspirações foram orientadas nesse sentido. É possível afir
mar até que, segundo seu próprio pensamento e conceições
fundamentais, O ríg e n e s foi um cristão gnóstico. O seu con-
e
Loc. cit., pág. X X II.
O P F 0B L E M A DOS TIPOS N A HISTÓRIA ANTIGA
41
«rito de crer c saber é descrito por I I a r n a c x com estas pa
lavras psicologicamente significativas: “A Bíblia é de igual
modo, necessária a ambos: aos crentes oferecem-se os fatos
v preceitos que lhes são necessários; aos sábios dá-íe a opor
tunidade de decifrarem as idéias c extraírem as forças que
ns levarão à intuição e ao amor de Deus — quer dizer, todo
0 material surge transfigurado pela interpretação espiritual
(interpretação alegórica, hermenêutica) num cosmos de idéias
r, inclusive, tudo acaba por ser superado na ascensão e dei
xado para trás como degraus de uma escada percorrida, fi
cando apenas a relação de bem-aventurado repouso entre o
espirito das criaturas, de Deus emanado, e o próprio Deus
(avim et visio)**.
A sua Teologia, em contraste com a de T e r t u li a n o , era
essencialmente filosófica e integrava-se perfeitamente, por
assim dizer, na diretriz da Filosofia neoplatônica. Em O rícknes, interpenetram-se as esferas da Filosofia grega e da
gnose, por uma parte, do mundo das idéias cristãs, por ou
tra, da maneira mais harmoniosa e agradável. Essa tole
rância e retidão, amplas c compreensivas, acabaram por se
lar também o destino de O ríc e n e s , com a sua condenação
l>ela Igreja. A condenação definitiva foi póstuma, decerto,
uma vez que, já velho e alquebrado pelo martírio que so
freu durante a perseguição de D é c io , morreu pouco depois,
em conseqüência das torturas. Foi condenado no ano de
399 pelo Papa A n a s t á c io I e, cm 543, um sínodo convoca
do por J u s t in ia n o ratificou com maldição a sua heresia, sen
tença que foi respeitada por todos os concílios posteriores.
OmoF^j-&_i^jjiii--ref>r« 6 ciitaDte clássico do tipo. extrovertiiln. Sua orientação fundamental dirige-se ao objeto; isto
evidencia-se na conscienciosa análise dos fatos objetivos e
das respectivas condições, bem como na formulação daquele
princípio supremo do amor c da visio Dei. O processo evo
lutivo cristão teve em O r íc e n e s um tipo cujo fundamento
original é a vinculação ao objeto que, desde sempre, se ex
primiu simbolicamente na sexualidade, razão por que deter
minadas teoria« reduzem, precisamente, todas as funções psí
quicas à sexualidade. A castração foi, portanto, a expres
são adequada do sacrifício da função mais valiosa. São ex
tremos característicos, que T e r t u l i a n o tenha levade a efeito o sacrificium iiitclÍ£CtiLsr ad passo q u e 0 tw;ene& realizou o
sacrificium^píwUi, o que significa, na verdade, exigi: o p ro
42
TIPOS PSICOLÓGICOS
cesso cristão a anulação total cio vinculo sensual com o ob
jeto ou, mais concretamente, o sacrifício da função mais al
tamente apreciada, o bem mais encarecido, o instinto mais
vigoroso. O sacrifício, biologicamente considerado, realiza-se a serviço da domesticação, mas, se o encararmos psicolo
gicamente, tem por finalidade, através da dissolução de anti
gos vínculos, alcançar novas oportunidades de evolução pa
ra o espírito. T e e t u lia n o sacrificou o intelecto, porque o
intelecto era o vínculo mais sólido que o unia ao mundo.
Combateu a gnose porque era o símbolo do extravio do in
telecto c, simultaneamente, condicionava a sensualidade. Es
se fato significa que o gnosticismo está vfirrlíidfiirnmentfi di
vidido cm duas orientações: uma corrente gnóstica aspira a
uma espiritualização transcendental, ao passo que a outia se
perde no animismo ético, num libertinismo absoluto que não
se detém diante de nenhuma impudicícia, nem das mais abo
mináveis perversidades e desvergonhas. Assim era, na rea
lidade, pois que se diferenciava dos encratitas (abstinentes)
e dos antitactas ou antinomistas (adversários da ordem 2 da
lei), que pecavam por princípio c se entregavam à disso
lução mais desenfreada. Entre estes se encontravam os nicolaítas, os arcônticos, ctc. Até que ponto os extremes se
tocavam evidencia-se pelo exemplo dos arcônticos: a mes
ma seita estava dividida numa tendência encratita e ruma
antinomista, as quais eram ambas conseqüentes e lógicas.
Quem quiser saber o que significa, eticamente, um intelectua
lismo audacioso e generosamente praticado, deve estudar a
história dos costumes gnósticos. Então compreenderá perfei
tamente 0 sacTificium intellectus. Eram indivíduos coeren
tes na prática e viviam suas idéias até o absurdo. O ríc e n e s ,
pelo contrário, sacrificou o vínculo sensual que o unii ao
mundo, mutilando-se. Para ele, evidentemente, o intelecto
não representava um risco específico, mas um modo de sen
tir e perceber que o vinculavam ao objeto. Com a. castra
ção, libertou-se da sensualidade inerente ao gnosticismo, po
dendo assim entregar-se sem medo à opulência do pensa
mento gnóstico, ao passo que T e r t u l i a n o , com o seu sacri
fício intelectual, ergueu um muro entre si e o gnosticismo c
dessa maneira atingiu uma profundidade de sentimento reli
gioso que escasseia em O ríc e n e s . Escreveu S c h v l t z :
Distingue-o dc O ríc e n e s o fato de que vivia no mais profundo
do seu espírito cf.da uma das palavras que proferia e dc
que não era, como acontecia a O ríc e n e s , o entendimento
O PROBLEM A DOS TIPOS N'A HISTÓRIA ANTIGA
43
«jue o em po lg av a, mas o coração. P or o u tro la d o , é in ferior
a OíiícENES p o rq u e , sendo o m a is a p a ix o n a d o dos pensadores,
esteve prestes a rech açar o saber c o m o tal e a converter a
sua lu ta contra a gnose n u m a lu ta contra o pensam e nto h u
m ano, p u ro c sim p le s”. 7
Aqui vemos como no processo cristão o tipo original so
fre uma rotação completa. T e r t ú l i a n o , o pensador agudo,
converte-se mim homem de sentimentos, ao passo que O rí <;enes torna-se sábio e perde-se no labirinto do pensamento.
Naturalmente que é facílimo inverter a questão, sem que
perca a lógica, dizendo que T e r t u l l a n o fora sempre um ho
mem de sentimento e O ríc e n e s o intelectual. Pondo de la
do o fato de <jue não é por assim proceder que se elimina a
diferença típica, a qual se conserva incólume, o ponto de
vista não fica explicado nem sc percebe por que T e r tu lia n o via o seu mais perigoso inimigo no pensar, enquanto O rír.ENES percebi?, na sexualidade o maior risco. Poder-se-ia di
zer, talvez, que ambos estavam equivocados, aduzindo como
argumento o desfecho fatal da vida cle ambos. Nesse caso,
teríamos de supor que ambos sacrificaram aquilo a que da
vam menos importância, isto ó, que tinham feito, por assim
dizer, uma barganha com o destino. Eis uma opinião cuja
validade merece, sem dúvida, ser reconhecida. Entie os pri
mitivos, contam-se indivíduos tão astutos e prevenidos que
sc apresentam ante os seus fetiches com um galo preto de
baixo do braço e dizem: “Vede que formoso porco preto
vos sacrifico”. Contudo, a minha opinião é que a explicação
desvalorizadora, apesar do inegável alívio que o homem co
mum sento quando podo derrubar algo verdadeiramente gran
de, não c ccrta em todos os casos, nem necessariamente, por
muito “biológica” que a sua aparência possa ser. Assim sen
do, até onde c conhecimento pessoal dc que dispomos sobre
esses dois grandes vultos do reino do espírito nos permite,
podemos afirmar que a índole das respectivas idiossincra
sias é tão grave e seria que a reviravolta cristã de ambos não
foi uma atração capciosa nem uma fraude, mas realidade e
verdade pura e simples.
Não poderá dizer-se que nos perdemos por um atalho
se aproveitarmos a ocasião para atentarmos no significado
psicológico da ruptura da tendência instintiva natural, tal
i
Dokumeníc der Cnosis, pág. XXVII.
44
TIPOS PSICOLÓGICOS
como sc nos apresenta no processo cristão (de sacrifício).
Do que ficou dito <e deduz que a mutação radical pressu
põe, simultaneamente, a passagem para uma nova disposi
ção típica. Isto nos explica onde se situa a origem do im
pulso instintivo de mutação radical e até que ponto T e r t u l i a n o estava certo em sua concepção da alma como iuituraliter christianai a tendência natural obedece, como tudo
na natureza, ao principio do mínimo esforço. Assim temos
que um homem está mais dotado para uma coisa, outro pa
ra outra. Ou então o ajustamento ao primeiro ambiente da
infância exige mais discrição e reflexão, ou uma participa
ção maior do sentimento, segundo a idiossincrasia dos pais
e as próprias circunstâncias ao meio. Assim se forma, auto
maticamente, uma disposição consciente que dá lugar aos di
versos tipos. Na medida em que cada indivíduo, como ser
relativamente estável, possui todas as funções psicológicas
fundamentais, seria um imperativo psicológico, no que se
refere a uma perfeita adaptação, servir-se daquelas de um
modo equilibrado e uniforme. Pois sua razão há de ter uma
base para a existência de diversos modos de adaptação psi
cológica: evidentemente, não basta um só que pareça apre
ender o objeto, por exemplo, como simplesmente pensado ou
meramente sentido. A disposição parcial ("típica”) dá lugar
a uma certa margem no rendimento da adaptação psicoló
gica, que acumula c seu passivo no transcurso da vida e que,
mais cedo ou mais tarde, acarreta uma perturbação na pró
pria adaptação, forçando o sujeito a procurar uma compen
sação. Esta só sc consegue, porém, através de um corte (sa
crifício) na disposição parcial até então preponderante. Des
sa maneira se consegue uma armazenagem temporária de
energia e seu fluir por canais até esse momento não-utilizados conscientemente, mas inconscientemente predispostos. O
dcjicit de adaptação, que fora a causa efficiens no processo
de radical mutação, destaca-se agora, de modo subjetivo, co
mo um sentimento de vaga insatisfação. Esta era a atmos
fera dominante nos alvores da nossa era. A humanidade sen
tiu-se presa de uma surpreendente necessidade de redenção,
propiciando o inacreditável surto de todos os cultos possí
veis e impossíveis da antiga Roma. Também não faltaram
os defensores da teoria fatalista, que em lugar da ‘'biologia”
usavam os argumentos científicos da época. E eram inu
meráveis as especulações sobre os motivos por que as coi
sas corriam tão mal à humanidade. Ê claro que o causa-
O PROBLEM A DOS TIPOS N A H ISTÓRIA ANTIGA
45
lismo de então era menos limitado que o da nossa atual ciên
cia; não se recorria apenas â infância, mas, tranqüilamente,
á cosmogonia, inventando-se grande número de sistemas que
demonstravam como o acontecido noutras eras mais recua
das tinha acarretado conseqüências insuportáveis para a
humanidade.
O sacrifício e fe tu a d o p o r T e r t u l ia n o e Q r íc e n e s é
d iá s tíc ò ; de m asia d o d rástic o p a ru o nosso gosto, mas coeren-
i>- mm o espirito da época, que era inteiramente concretista.
I'oi dentro desse espírito que a gnose tomou suas visões por
realidades ou por coisas que de algum modo se referiam a
algo real, e o próprio T e r t u l i a n o considera o fato de seus
sentimentos objetivamente válido. O gnostieismo projetou
u íntima percepção subjetiva do processo de mudança de dis
posição típica como um sistema cosmogònico e acreditou na
realidade de suas figuras psicológicas.
No meu livro XVandlungcn und Sijmbole der L ib id o 8
deixei em aber:o a questão sobre a origem da tendência pe
culiar da libido 1 1 0 processo cristão. Aludi então à divisão
da tendência da libido cm duas metades opostas. Isso explica
a natureza parcial da disposição psicológica, que chegara a
ser tão unilateral que a compensação acabou por impor-se,
promanando do mais fundo do inconsciente. É precisamen
te no movimento gnóstico dos primeiros séculos do cristia
nismo que se revela, dc uni modo bastante claro, o apareci
mento de contsúdos inconscientes 1 1 0 momento da compen
sação. O próprio cristianismo significa a demolição e sacri
fício dos antigos valores culturais, ou seja, da antiga disposi
ção. Nos tempos correntes, é quase supérfluo sublinhar que
tanto faz falamos de hoje como de há dois mil anes.
2.
As Controvérsias Teológicas na Igreja Antiga
Não é improvável que deparemos também com 0 con
traste de tipos na história dos cismas e heresias da Igreja
primitiva, que tão fértil foi em controvérsias desse gênero.
Os ebionitas, ou judeus-cristãos, que se identificaram com os
próprios cristãos da primeira hora, acreditavam na humani
dade exclusiva de Cristo, filho de Maria e José, ulteriormen»
Nova edição: Symbole der W andlung, 1952.
46
TIPOS PSICOLÓCICOS
te consagrado pelo Espirito Santo. Os ebionitas situan-sc,
pois, nesse ponto, no extremo oposto dos doquetistas. Esse
antagonismo persis:iu durante muito tempo. Numa forma
diferente, mais aguda sob o ponto dc vista político-eclesiástico, embora mais atenuada em seu conteúdo, destacou-sc no
vamente no ano 320 com a heresia de Àrio, que negava a
fórmula T<j> licttçi 4 1 0 0 Ú0 1 0 ; (idêntico ao pai) proposta pela
Igreja ortodoxa. Se observarmos atentamente a história da
grande controvérsia arianista sobre a homotisia e a homoiusia
(identidade essencial e semelhança essencial de Cristo com
Deus), notaremos que a homoiusia parece acentuar clara
mente o sensual e humanamente sentido, em contraste com o
ponto de vista abstrato, do puro pensamento da hom&JSia.
Do mesmo modo, poder-se-ia dizer que a rebelião dos rnanofisitas (que defendiam a unidade absoluta da natureza de
Cristo) contra a fórmula diofisita do Concilio de Calcedônia
(que defendia a indissolúvel natureza dupla dc Cristo, ou
seja, a sua natureza humana e divina conjunta) fazia preva
lecer de novo o ponto dc vista do abstrato e do inimaginável,
face ao sensual c natural da fórmula diofisita. Simultanea
mente, revela-se-nos com eloqüência convincente o fato de
que tanto no movimento arianista como na controvérsia monofisita, a sutil questão dogmática cra o mais importante, por
certo, para as mentes que a motivaram, mas não para a gran
de massa que, com ímpeto partidarista, interveio na contro
vérsia dogmática. Nessa época, também não podia ter bas
tante força motivadora, para a massa, uma questão dc tal
modo sutil, sendo os problemas e exigências do poder polí
tico o que, pelo coiiUáiio, a agitavam, problemas esses que
nada tinham a ver com as divergências teológicas. Se a di
ferença típica pode ter aqui algum significado, terá sido, por
certo, o que lhe emprestaram os conceitos elementares que,
de um modo lisonjeiro, etiquetaram os grosseiros instintos
da massa. Mas, com isso, de maneira alguma fica anulado
o reconhecimento ce que, para aqueles que a suscitaram, a
controvérsia entre a homousia e a •homoiusia sobre o proble
ma era verdadeiramente séria. Na verdade, subentendidos
nessa questão estavam, histórica e psicologicamente, o credo
ebionita da pura humanidade de Cristo com divindade rela
tiva ( “aparente’ ) e o credo doquetista da sua divindade pura
com aparente corporalidade. E nesta questão, por sua vez,
está subjacente o grande cisma psicológico. Por uin lado,
o
prcblem a
dos
t ip o s
na
h is t ó r ia
a n t ig a
47
Irm o s a a firm a çã o de q u e o v alor e o s ig n ific a d a fu n d a
m entais residem n o se n sua lm en te apreensível, cujo sujeito,
m esm o q u e n ã o seja h u m a n o — sem pre pessoal — c sem pre,
entretanto , u m a p e rc e p ção h u m a n a p ro je ta d a . P o r o u tro la
do, temos a a firm a ção d e q u e o valor c a p ita l reside n o abs
trato c extra-hum ano, c u jo sujeito é a fu n ç ã o , q u e r dize r, o
processo natu ral e o b je tiv o q u e transcorre, com n o rm a lid a d e
im pessoal, a lé m d a p e rc e p ção h u m a n a e, in clu siv e, com o seu
fu n d a m e n to . O p rim e iro p o n to d e vista despreza a fu n ç ã o em
favor d o com plexo fu n c io n a l q u e é o h o m e m ; o segundo p o n
to d e vista p a is a p o r a lto o h o m e m , c o m o v e íc u lo in d is p e n
sável, a fa v o r d a fu n çã o .
C a d a u m desses p ontos de vista
nega o v a lo i íc le v a n le d o ou tro. (Quanto m a is d e c id id a m e n
te os defensores d e c a d a u m se id e n tific a re m co m o respec
tivo p o n to de vista, ta n to m ais se esforçarão, talvez c o m as
m elhores intenções, p o r im porem - no m u U m m e nte , m enospre
z a n d o assim o v alo r e re le v ân c ia d o contrário.
Outro aspecto d o contraste d e tipos parece evidenciar-se n a controvérsia p e la g ia n a d o com e ço d o século V .
A
experiência, p ro fu n d a m e n te se n tid a p o r T e r t ú l i a n o , d e q u e
o h o m e m n ão p o d e e v itar o p ec a d o , n e m m e sm o depois d o
b a tism o , assumiu e m A g o s tin h o , q u e e m vários aspectos não
está longe de T k h t u lt a n o , a fo rm a d a d o u trin a pessimista
d o p e c a d o o r id n a l, c u ja essência reside n a concupisccntia, &
h e rd a d a d e A d ão . A o p e c a d o o rig in a l c o n tra p õ e A c o s tix iio
a g raça redentora d e Deus, co m a in s titu iç ã o d a Igreja nela
o r ig in a d a e cuja m issão é m in is tra r os m eios de salvação. N,'h.ssa c oncep ção, o v a lo r d o h o m e m situa-se n u m nív el de g r a n ut? in te r lo n d a U j.
E le n a o nassa, n a re a lid a d e , d e uma a b jet.i e desditas: cria tu ra à ir.n x v d;i D ia b o e q u e só através
u a [ g r c ja . ú n ic o p o d e r capaz d e p ro p o rc io n a r a bein-aventu. . p o d e rá p a rtic ip a r d a g ra ça d iv in a .
A ssim , não só o
v a lo r d o h o m e m 6 re b a ix a d o c o m o se rebaixa tam b ém , m ais
o u m enos, a sua lib e r d a d e m o ra l e a sua au to d e te rm in a ção ,
co m o q u e se a m p lia , sem d ú v id a , o valor e a significação
d a Idéia d a .Ig r e ja , tal c o m o foi expressa no program a p ro
posto p e la civiias Dei ag ostinian a.
& Apetite; diríamos até: libido indomável que, como rijiaçuívTi,
(signo 011 imposição do destino), traz consigo a culpa c a perdiçüo
do homem.
48
TIPOS PSICOLÓGICOS
Tão deprimentes concepções são sempre defrontadas,
urna e outra vez, pelo sentimento de liberdade e valor mo
ral do homem, o qual, em última análise, não se deixa opri
mir pela inteligencif. a mais profunda, nem pela mais pene
trante lógica. Ü legítimo sentimento de valor do homem
foi defendido por P ll á g i o , um monge bretão, e seu discípulo
C e lé s t io .
Sua doutrina fundava-se na liberdade moral do
homem como fato consumado. É significativo, no que se re
fere às afinidades psicológicas entre o ponto de vista pelagiano e a concepção diofisita, que os adeptos perseguidos
de P e i.á g io tenham encontrado guarida junto de N e s to f, o
patriarca de Constantinopla.
N e s t o r defendia acentuadamente a separação das duas naturezas de Cristo, cm con
fronto com a doutrina cirílica da <pvoixí) evwoiç, a unidade
física de Cristo comD deus-homem. N e s t o r também não con
siderava Maria a m ie de Deus, mas apenas a mãe de Cristo
(■OeoTÓxoç e não Xçioroxóxo;). Com perfeita razão considerou ímpia a noção de que Maria pudesse ser mãe de Deus.
N e s to h foi a causa da disputa que daria origem à separação
da Igreja nestorianfc.
3.
O Problema dc Transubstanciação
Com as grandes transformações políticas, a derrocada do
império romano e o ocaso da civilização antiga, essas con
trovérsias também chegaram ao fim. Mas, quando se conse
guira uma certa estabilidade, após alguns séculos, de novo
surgiram as divergências psicológica« cm sua forma carcctorística, timidamente, no início, mas com maior intensidade
à medida que a cultura evoluía. Não estavam já em c?.usa,
evidentemente, os mesmos problemas que tinham comovido
a Igreja primitiva, pois novas formas então se encontraram.
Mas a Psicologia nelas subentendida era a mesma.
Em meados do século IX, o Abade P a s c h a s iu s R a d b e r tu s
divulgou um trabalho sobre a eucaristia em que defendia a
doutrina da transubstanciação, quer dizer, enunciava a tese
de que na comunhão o vinho e o pão se transformam no ver
dadeiro sangue e na verdadeira carne de Cristo. Tal con
ceito, como se sabe, acabaria por converter-se em dogma, se
gundo o qual a transformação se verifica vere, rculiter, substantialiter, embora os “acidentes”, quer dizer, o pão o o vi
O P 3 0 B L E M A DOS TIPOS NA HISTÓRIA ANTIGA
49
nho, conservem sua aparência, são, todavia, de acordo com a
substância, a carne e o sangue de Cristo. Contra essa extre
ma concretizf.ção de um símbolo, R a t r a m n u s , monge do mes
mo convento onde IIa d b e r tu s era abade, arriscou algumas
objeções. Mis em quem R a d b e r t u s encontrou um decidido
adversário foi em E s c o to E r íc e n a , o grande filósofo e deste
mido .pcu&ador do começo da Idade Média, tão solitário e
planando em tais alturas, sobre a sua época, que a maldição
da Igreja só :> alcançou muitos séculos depois, corno salienta
I I ase na sua Kirchcngcschichte. 1 0 Sendo Abade de Malmesbury, foi assassinado no ano de 889 pelos monges daquele
'mosteiro. K s c o to E r íc e n a , para quem a verdadeira Filoso
fia era também a verdadeira religião, não era um acólito
cego da autoridade e da hierarquia; cm contraste com a
maioria das pessoas dõ seu tempo, era capaz de pensar por
si próprio. Colocava a razão acima da autoridade, em fran
co desacordo com o pensamento da sua época, talvez des
locado no tempo e lugar, mas certo quanto ao reconhecimen
to dos séculos vindouros. Mesmo aos Padres da Igreja, que
de maneira excelsa estavam acima de discussão, K r íc e n a só
os considerava autoridades porque seus escritos encerravam
tesouros da sabedoria e razão humanas.
Assim, pensava
que a comunhão não era outra coisa senão um ato come
morativo da última ceia de Jesus com os seus discípulos,
que é o que pensará sempre qualquer pessoa razoável. Mas
E s c o to E r íc e n a , por mais claros c simples que seus pensa
mentos fossem c embora não pretendesse negar, de maneira
alguma, o valor e o significado simbólico da cerimônia sa
grada, não participava com os seus sentimentos no espírito
da época c nos desejos de quantos o rodeavam, o que se
evidencia, de maneira eloqüente, pelo fato de ter sido assas
sinado pelos seus próprios companheiros de convento. Por
essa sua maneira meditada c coerente de pensar, não teve o
êxito que R a d b f.rtu s alcançou. Este não sabia pensar, mas
"transubstanciar” intencionalmente o simbólico c sensualizá-lo, em termos demasiado simplistas, participando assim, com
o seu sentimento, no espírito de uma época que exigia a con
cretização do evento religioso.
Podemos, neste ponto, reconhecer sem dificuldade aque
les elementos fundamentais com que também deparamos nas
10
H a s e , K. A ., K irc h c n g e s c h ic h tc .
50
TIPOS PSICOLÓGICOS
controvérsias anteriormente examinadas, ou seja, o ponto de
vista abstrato, contrário à fusâo com o objeto concreto, e o
de tendência para o concreto, atraído pelo próprio objeto.
Nada está mais longe de nosso intento que formular um juíza
parcial e depreciativo, do ponto de vista intelectual, da obra
de Hadbebtus. E embora esse dogma, precisamente, pareça
absurdo ao espírito moderno, não iremos cair na leviandade
de negar o seu valor histórico. Trata-se, indubitavelmente,
de um espécime notdvel para uma coletânea dos extravios
humanos, mas não se lhe deve tirar o valor hoc ipso, pois
antes de condenar devemos averiguar, com alguma atenção,
o que tal d o g m a pressupôs na vida religiosa desses séculos
e o que a nossa época tenha ou não dc agradecer ao seu in
fluxo, ainda que indireto. Com efeito, é impossível ignorar
o tato de que a crença na realidade desse milagre exige que
do processo psíquico se desligue o puramente sensível, e isso
não pode deixar dc influenciar a natureza do próprio proces
so psíquico. O processo do pensamento judicioso chega a
ser completamente impossível quando o sensível tem um ex
cessivo valor liminar. Graças a esse valor exorbitante, intioduz-se constantemente na psique, destruindo e devastando a
função do pensamento judicioso, que precisamente se baseia
na exclusão do que não é adequado a um raciocínio bem
ajustado. Por esta simples reflexão se deduz o sentido prá
tico dessa categoria de ritos e dogmas que, de acordo com
esse ponto de vista, conservam um modo de consideração pu
ramente oportunista e biológico, já sem mencionarmos a in
fluência direta, especificamente religiosa, que a fé nesse dog
ma viria a exercer sobre o indivíduo. Por muito elevado cue
seja o nosso apreço pela personalidade de Kscoro E u íc e n a ,
não nos permitiríamos rebaixar o valor da obra de Radbehtus. Serviu-nos este caso de lição, porém, para nos darmos
conta da medida em que o pensamento do introvertido c
incompatível com o pensamento do extrovertido, visto que
ambas as formas de pensar, no tocante à respectiva motivação,
podem-se considerar total e fundamentalmente distintas. D i
ríamos talvez o seguinte: o pensamento do introvertido é
racional c o do extrovertido é programático.
Quero deixar bem claro que, com essas considerações, não
pretendo, absolutamente, dizer algo de definitivo sobre a psi
cologia individual de ambos os autores. As notícias pessoais
que temos sobre E scoto E r íc e n a são muito escassas e não
O PROBLEM A DOS TIPOS NA H IST Ó R IA ANTIGA
51
chegam para n/n diagnóstico seguro do seu tipo. O que sa
bemos ciá-nos a perceber o tipo de introversão. Quanto a
R a d b e r tu s , poder-se-ia afirmar que nada sabemos. Quer di
zer, sabemos que disse algo contraditório com a linha geral
de pensamento humano do seu tempo, mas <1 1 1 0 , com uma
lógica firme, declarou aquilo que, a época estava c.isposta a
aceitar como conveniente, Este fato parece tornar provável
a identificação com o tipo extrovertido. Mas a informação
insuficiente que possuímos sobre ambas as figuras obriga-nos a deixar por aqui a nossa dissertação, visto que, sobre
tudo a respeito de K a d h e k tu s , a questão poderia apresentar
um aspecto completamente distinto. Talvez se tratasse de
um introvertido que, poj seus conhecimentos limitados, não
refundia, de maneira alguma, as concepções dos cue o ro
deavam c cují. lógica, por mais isenta de originalidade que
fosse, cra bastante para assegurar uma inferência imediata
das premissas que se lhe ofereciam nos escritos dos Padres
da Igreja. E , ao contrário, Escoro E r íc e n a poderia muito
bem ser um extrovertido se se demonstrasse que agira sob
o impulso de tirn meio que, de toda maneira, distinguia-se
pelo cominou sense 0 e aceitava toda e qualquer manifesta
ção que estivesse de acordo com esse senso comum como ade
quada c desejável. No que diz respeito a Escoro E r íc e n a ,
isso foi o que, de algum modo, pôde ser provado. Por outra
parte, sabemos até que ponto, nessa época, era grande a ân
sia pela realidade do milagre religioso. A esse aspecto do
espirito da época terá parecido frio e mortificante o ponto
de vista de E s g o to E r íc e n a , ao passo que a afirmação de
R a d b e r t u s seria reconfortante e animadora, porquanto nela
se concretizava o que todos desejavam.
4.
Nominalismo e Realismo
A disputa do século IX sobre a eucaristia foi apenas o
prelúdio para uma controvérsia muito mais ampla e que,
durante séculos, dividiu os espíritos e teve repercussões de
indizível alcance. Referimo-nos ao duelo entre nominalismo
e realismo. Entende-se por nominalismo o movimento que
afirmava não serem os chamados uniuersalia, quer dizer, os
0
Em inglês no original; senso coir.um. (*V. do T.)
52
TIPOS
i *s i c o l ó <;i c o s
conceitos gerais e genéricos, como, por exemplo, a beleza, o
bem, o animal, o homem, etc., outra coisa senão nomim,
nomes ou palavras, ou ainda flatus voeis, cumo se lhes chama
também por pilhéria.
Escreveu A n a t o l e F r a n c e :
“Et
q u est-ce que penser? Et comment panse-t-on? Nous pensons
avec des m o ts ..., songez-y, un métaphysicien n'a, pour
constituer le système du monde, que le cri perfectionné des
singes et des chiens". ° Isso é o nominalismo levado à sua
expressão extrema, tal como quando N ie tz s c h e concebeu a
razão como a “metafísica da linguagem".
Em contraste com o nominalismo, o realismo afirmava
a existência dos universalia ante rem, quer dizer, os concei
tos universais existiam por e em si proprios, à maneira das
idéias platônicas. Apesar do seu religiosismo eclesiástico,
o nominalismo é uma tendência céptica que pretende negar
a existência particukr e especial do abstrato. £ uma espé
cie de cepticismo científico dentro do mais rígido dogmadsmo. O seu conceito de realidade coincide, necessariamente,
com a realidade sensível das coisas, cuja individualidade re
presenta o real ante a idéia abstrata. O estrito realismo, por
seu turno, traslada o acento da realidade para o abstrato, a
idéia, o universal, colocando-o ante rem (antepondo-o à
própria coisa).
a)
O Problema dos Conceitos Universais na Antiguidade
Como se vê pela alusão à teoria platônica das idéias, trata-sc de um conflito de origem bastante remotas. Alguns
comentários cáusticos de P l a t ã o , a respeito de "anciãos tar
dos no aprender" e “pobres de espírito”, referem-se aos adep
tos de duas escolas filosóficas afins e que andavam desavin
das com o espírito platônico: a escola cínica c a megárica.
O chefe da primeira, A n tís te n e s , embora se sentisse de al
gum modo alheio à atmosfera espiritual socrática e fosse,
inclusive, um dos amigos de X e n o f o n t e ,' era um adversário
decidido do maravilhoso mundo das idyias platônicas. Re
digiu até um escrito contra P l a t ã o em' que lhe altercu o
° “E o que é pensar? E como se pensa? Pensamos cem pala
v ra s ... imaginem só! Um mrtafísico, para constituir o sistema Ho
mundo, não dispõe serio do Rrito aperfeiçoado dos símios e dos c5es.”
(W. do T.)
O PRQ3LF.MA DOS TIPOS NA H ISTORIA ANTIGA
53
nome, chamando-lhe inconvenientemente Sádtov, Esta pa
lavra grega significa mancebo ou homem, mas sob o aspecto
sexual, pois Súflwv deriva dc ocHhi, pcnis, com o que A n
tís te n e s , através da projeção que já conhecemos, alude cla
ramente ao que queria defender contra P l a t ã o . Para o cris
tão O ríg e n e s , esse motivo, aliás original também, como ve
mos, era precisamente o Diabo, a que procurou furtar-se
mediante a autocastração e assim ingressar, já sem qualquer
impedimento, no domínio belamente engalanado da> idéias.
Mas A n t ís t e n e s era um pagão, anterior ao cristianismo, que
conhecia muito bem a causa, a que se sentia ainda vinculado,
de que o falo fora desde sempre o símbolo: a percepção do
sensível; mas não era só ele que se encontrava nesse caso,
pois todos sabemos qual era o l e m a da escola cínic/i: o re
torno à natureza! Os motivos básicos que impulsionaram o
sentir e perccl>er concretos de A n t ís t e n e s para um primeiro
plano de excelência não eram escassos: antes de tudo, era um
proletário que fazia de sua inveja uma virtude. Xão era
!ôay£vr|Ç, um grego de puro sangue. Era oriundo da peri
feria; ensinava ao ar livre, nos arredores de Atenas, c esme
rava-se 1 1 0 comportamento proletário, tal como a Filosofia
cínica prefigurava. Essa escola era toda composta de gro-^
letários ou. pelo menos. de pessoa? “periféricas” para quem
a critica demolidora dos valores tradicionais era unia atitu
de característica. Depois de A n t ís t e n e s , uma das figuras
mais preeminentes da escola foi D ió g e n e s , que a si próprio
se intitulava kyon (cão) e sobre "eu[a sepultura foi esculpido
um cão em mármore de Paros. Apesar de seu fervoroso \
amor ao próximo, de seu caráter íntegro e humanamente com-l
preensivo, atacava arrasadoramente tudo o que era sagrado!
para os homens de seu tempo. Ria-se do estremecimento de
horror que produzia nos espectadores dc teatro a represen
tação do banquete tiestéico 1 1 e a tragédia do incesto de Êdipo,
pois a antropofagia nada tem de mal, já que a carne huma
na não pode reivindicar privilégios dc exceção sobre qualquer
11
Tjcstes, fi.ho dc PóIojjc, para evitar uma guerra com seu irmfio Abreu sobre os direitos ao trono de Micenas, aceitou comparecer
num banquete, mas, sem que ele soubesse, Atreu deu-lhe a comer
seus próprios filhes, apresentando-lhe no final as cabeças sangrentas.
Tifstes, depois de vomitar, lançou uma terrível maldição sobre toda
a geraç-So átrida.
TIPOS PSICOLÓGICOS
outra carne» nem o precalço de uma relação incestuosa é as
sim uma tão grande desgraça, segundo nos demonstra o elo
qüente exemplo des nossos animais domésticos. A escola
megárica aproximava-se bastante, cm vários aspectos, da esco
la cínica. Mégara foi a infeliz rival de_ Atenas! Após um
início promissor, cm
Megarà sobressaiu com a fundação
de Bizàncio c da Mégara hiblcia, na Sicilia, surgiram confli
tos internos que foram a ruína de Mégara, ultrapassada por
Atenas em todos os aspectos. As rústicas ocorrências entre
gente do campo chamavam, cm Atenas, "pilhérias megáricas”.
Essa inveja da inferioridade, que se diria scr herdada com o
próprio leite materno, poderia explicar-nos algumas caracte
rísticas da Filosofia megárica. Tal como a cínica, aquela filo
sofia também era inteiramente nominalista c estava eni an
tagonismo estrito com o realismo das ideias de P l a t ã o .
Um representante eminente dessa escola foi K s t í l f o n
de Mégara, dc quem se conta a seguinte anedota: tendo che
gado a Atenas, em certa ocasião, viu na Acrópole a prodigio
sa estátua de Palas, obra de F í w a s . E, com espírito genui
namente megárico, comentou não ser aquela a filha dc Zeus,
mas a de Fidias. Nessa anedota está expresso todo o espí
rito informativo do pensar megárico, pois E s t í l p o n ensinava
que aos conceitos genéricos faltavam realidade e validade
objetiva, e que, por conseguinte, falar do homem c não falar
de coisa alguma, já que não indica oííte tóvòe ou rs :óv6e
(nem a este, nem àquele). P lu t a k c o atribuiu-lhe as seguin
tes palavras: êtfocv éxtoov jir) xairiyooeíodcu, quer dizer, o
que dftfirif* n m nada pode explicar sobre outro. Antistenf.s
tinha lima doutrina semelhante. O mais antigo representante
dessa espécie de juízo parece ter sido A n t í f o n e d e R a m x u s ,
sofista e contemporâneo de S ó c r a te s . São-lhe atribuídas as
seguintes palavras: “Não pode ver a longitude com os olhos
nem avaliá-la com o espírito quem conhecer um objeto apresen
tado de longe". Daqui se deduz, sem mais delongas, r. ne
gação da substancialidadc do conceito genérico. E era com
essa forma característica de julgamento que se assentavam
as bases das idéias platónicas, visto que P l a t ã o atribui pre
cisamente às idéias uma eterna e imutável validade e dura
ção, ao passo que o ‘'real” e a “pluralidade” são apenas re
flexos transitórios. O criticismo cínico-megárico, pelo con
trário, situado no ponto de vista do real, dissolve os concei
tos genéricos em puros nomina casuísticos e descritivos, sem
O PROBLEM A DOS TIPOS N A H ISTORIA A N T ICA
substancialidade alguma.
individual.
55
O acento coloca-se sobre a coisa
Esse evidente c fundamental contraste foi percebido com
clareza por G o m p e r z 1 2 como um problema de inerência e
predicação. Quando, por exemplo, dizemos “quente” e “frio”,
referimo-nos a coisas “quentes” e “frias”, com as quais "quen
te” e “frio” sc correspondem como atributos, predicados ou
expressões inerentes, respectivamente. A expressão refere-se
a algo percebido e que na realidade existe, ou seja. um cor
po quente ou fiio. De uma pluralidade de coisas semelhan
tes abstraímos o conceito de “calor” c o de “frio”, aos quais
imediatamente vinculamos algo objetivo o u o pensamos con
comitantemente. Assim, “calor", “frio”, etc., são para nós algo
inerente à coisa como conseqüência do eco da percepção na
abstração. É difícil, com efeito, apagar o objetivo da abs
tração, desde o momento em que, pela própria origem da
abstração, é algo inerente a esta. Nesse sentido, a objetivi
dade do predicado é verdadeiramente a priori. Se passar
mos ao conceito genérico imediato superior, “temperatura”,
percebemos ainda sem dificuldade o objetivo, que perdeu,
sem dúvida, algo dc sua precisão e rigor sensíveis, ims nada
de sua qualidade ou teor imaginável. Mas essa qualidade
dc imaginável também é intimamente inerente
percepção
sensível. Se passarmos, agora, a um conceito genérico mui
to mais elevado, o de “energia”, por exemplo, desaparece o
caráter do objetivo e, igualmente, até certo ponto,
quali
dade de imaginável. Mas, por sua vez. estabelece-se o con
flito sobre a natureza do conceito, isto é, sobre se a “nature
za" da energia c algo puramente inerente ao pensar, algo abs
trato, ou sc existe concretamentc, no âmbito da realidade. É
certo que o investigador nominalista da atualidade está con
vencido dc que a “energia” é um simples nome, um “tento”
em nosso cálculo mental; mas não pode impedir que, na lin
guagem cotidiana, se fale de “energia” como de algo com
pletamente objetivo, sob qualquer aspecto, dando origem,
constantemente, à maior confusão do conhecimento teórico.
A objetividade do puro pensar, que tão naturalmente se
infiltra em nosse processo de. abstração, dando lugar à "rea
lidade" do predicado ou da idéia abstrata, não é um produ
to artificial nem a hipótese arbitrária de um conceito, mas
12
T u k o d o r G o m p e rz , G ríe chlsch c D enker, Vol. I I , pág . 143.
56
TIPOS PSICOLÔC.ICOS
algo que, por sua própria natureza, é particularmente neces
sário. Não é que se formule a hipótese arbitrária do conceito
abstrato, situando-o num mundo transcendente e de origem
igualmente artificial, quando, na verdade, o verdadeiro pro
cesso histórico é o inverso. No indivíduo primitivo, a ‘ïmago”, a ressonância psíquica da percepção sensível, é tão forte
e nela se encontra o sensível tão acentuada e nitidamente de
finido, que quando se gera reprodutivamente, isto é, como
imagem espontânea da memória, chega, em certas ocasiões,
a ter a qualidade de uma alucinação. Assim, quando à re
cordação do primitivo acode a imagem de sua defunta rnãe,
dir-se-ia que ele a vê e a ouve cm seu espírito. Nós 'pen
samos” nos morto», ao passo que o primitivo os vê, justa
mente por causa da extraordinária sensualidade das suas ima
gens mentais. D d resulta a crença dos primitivos nos espí
ritos, os quais não passam de ser, simplesmente, aquilo a que
chamamos pensamentos. Quando o primitivo “pensa”, o que
realmente lhe acontece é ter visões de uma tão grande rea
lidade que confunde, freqüentemente, o psíquico com o real.
Escreveu P o w e ll : 13 "But the confusion of confusion is
that universal habit of savagery — the confusion of the ob
jective with the subjective”. Por sua vez, S p e n c e r e Ch.len*
escreveram: 14 " What a savage experiences during a dream
is just as real to him as what he sees when he is awake'. O
que pessoalmente observei a respeito da psicologia do negro
confirma completamente essas opiniões acima transcritas. Des
se fato fundamental, ou seja, o realismo psíquico da inde
pendência da imagem em relação à independência da per
cepção sensível, provém a crença nos espíritos e não porquo
o selvagem sinta a necessidade de explicar e esclarecer algu
ma coisa para si próprio, necessidade essa que foi inventada
pelos europeus. O pensamento, para o primitivo, tem um
caráter visionário e auditivo e, só por isso, um caráter de
revelação. Eis por que o feiticeiro, isto é, o visionário, é
sempre o “pensador” da tribo, aquele que transmite a reve-
18 In Skctch of thc M ythólopf of the North American Jndions,
páj». 20. [Em inglês no original: "Mas a confusão máxima 's aquele
hábito universal -dos selvagens: a confusão do objetivo com o sub
jetivo”. N . do r.]
n
In Thc Sorthcm Tribes of Central Australia. JEm inglês no
original: "O que um selvagem experimenta durante um sonho e tão
real, para ele, quanto o que vê quando está desperto’'. ,V. do T.]
O PROBLEM A DOS TIPOS NA HISTORIA ANTIGA
57
lação dos espíritos ou deuses. É essa, precisamente, a ori
gem da ação mágica do pensamento, pois sendo real vale
tanto quanto o fato, do mesmo modo que a palavra, como
revestimento do próprio pensar, suscita imagens "reais” da
recordação e, portanto, gera também efeitos "reais”. Somos
surpreendidos pelas crendices e superstições dos primitivos
porque, simplesmente, já conseguimos uma ampla dessensua*
lização da imagem psíquica, quer dizer, aprendemos a pen
sar de modo "abstrato”, embora, naturalmente, com as limi
tações já citadas.
De qualquer modo. todos os que se ocupam no exer
cício prático da Psicologia analítica sabem com que freqüên
cia são coagidos a lembrar aos seus "cultos'' pacientes euro
peus que Jjacnsftr” nãa / J a z e r " . a uns porque acreditam ser
bastante pensar uma coisa e a outros porque crêem não de
ver pensar coisa alguma, pois teriam nesse caso de fazê-la.
A facilidade con que a realidade original da imagem psíqui
ca se reproduz está evidenciada nos sonhos, entre as pes
soas normais, e nas alucinações, no caso de perda do equi
líbrio mental. Nas práticas místicas, inclusive, procura-se es
tabelecer por introversão artificial a realidade primitiva da
"imago”, com o intuito de aumentar o contrapeso em face
da extroversão. Temos um bom exemplo na iniciação do mís
tico muçulmano Tewekkul-Beg por Molla-Shah. 1 5
Conta
Tewekkul-Beg: "Depois dessas palavras, (Molla-Shah) man
dou-me sentar diante dele, enquanto dos meus sentidos se
apoderava uma espécie de embriaguez, e ordenou que eu
recriasse no meu próprio íntimo a sua imagem; depois de
vendar-me os olhos, ordenou que eu concentrasse no coração
todas as forças da minha alma. Obedeci e, no mesmo ins
tante, por graça divina e obra do xeque, abriu-se-me o cora
ção. Percebi que, no meu íntimo, havia algo que se asse
melhava a uma taça entornada; quando esse objeto foi re
colocado de pé, novamente por todo o nicu ser derramou
um sentimento de ilimitada bem-aventurança. Disse o mes
tre: desta cela cm que me encontro, diante de ti, vejo no
meu íntimo a transposição fiel de imagens e é como se outro
Tewekkul-Beg estivesse perante outro Molla-Shah”. O mes
tre interpretou o sucedido como o primeiro fenômeno de ini
ciação do neófito. Pouco depois, novas visões se sucederam,
Buber, Ekstatísche Konfettioncn, págs. 31 c segs.
58
TIPOS PSICOLÓGICOS
do fato, uma vez franqueado o caminho da primitiva ima
gem real.
A realidade do predicado está dada “a priori”, visto que
nunca deixou de estar na mente humana. Só por meio de
uma crítica ulterior é que se subtrai à abstração o caráter de
realidade. Ainda no tempo de P l a t ã o era tão grande s fé
na realidade mágica do conceito verbal que os filósofos se
empenhavam cm inventar deduções enganadoras ou sofismas
que, por força do significado verbal absoluto, comportavam
já uma resposta obrigatoriamente absurda. Temos um exem
plo simples no sofisma chamado Enkekalymmenos (o Enco
berto), da autoria do mcgárico E u b ú l i d e s . A s s im reza;
— Conheces teu pai?
— Sim.
— Conheces este homem encoberto?
— Não.
— Assim te contradizes, pois é teu pai. Logo, conheces
teu pai e não o conheces.
A artimanha consiste, simplesmente, no fato do pergun
tado pressupor, com ingenuidade, que a palavra "conhecer”
significa sempre e cm todos os casos a mesma situação obje
tiva. quando a sua validade se encontra reduzida, realmente,
a determinados casos. Nesse mesmo princípio se baseia o
Keratines (o cornudo), que discorre da seguinte maneira:
"O que não perdeste o terás ainda. Não perdeste cornos,
logo ainda os tens”. O sofisma, neste caso, baseia-se na ingeuuidadc do perguntado, que dá por implícita a premissa
de um determinado estado de coisas. Por semelhante méiodo, poderia demonstrar-se de maneira convincente que a sig
nificação verbal absoluta não passava de uma ilusão. Assim
foi também atacada a realidade do conceito genérico que,
na forma da ideia platônica, tinha até existência metafísica e
validade exclusiva. Escreveu G o .m p k h z : “Não se examinava
ainda a linguagem com a suspeita com que a contemplamos
e que, com tanta freqüência, nos faz ver nas palavras uma
expressão pouco apropriada aos acontecimentos. Pelo con
trário, acreditava-se candidamente que a amplitude concep
tual e o âmbito de emprego da palavra que, grosso modo, lhe
correspondia, tinham de coincidir em todos os casos”. u Apli-
In Griechische Denker, Vol. I I, pág. 158.
O PROBLEM A DOS TIPOS N A HISTORIA ANTIGA
59
cada ao significado verbal mágico c absoluto, o qual pressu
põe estar ela, por vezes, em condições dc representar o com«
portamento objetivo das coisas, a crítica sofística é algo per
feitamente adequado. Ela demonstra, com esmagadora elo
qüência, a importância da linguagem. Na medida em que as
idéias são simples nomina — uma suposição que seria preci
so comprovar — o ataque a P l a t ã o está justificado. Ora, os
conceitos genéricos deixam de ser simples no/nina no momen
to em que designam semelhanças ou conformidades entre as
coisas. Nesse caso. trata-se de saber se essas conformidades
são objetivas ou não. Com efeito, essas conformidades exis
tem e, por conseguinte, os conceitos genéricos traduzem uma
realidade. O real está neles tão bem contido quanto na
descrição exata Je uma coisa. O único aspecto cm que o
conceito genérico se distingue é por ser a descrição ou a de
signação da conformidade entre as várias coisas. A fragili
dade não está, pois, no conceito, mas na sua expressão verbal,
que em circunstancia alguma reproduz de um modo adequa
do a coisa ou a conformidade entre as coisas. O ataeue no
minalista à teoria das idéias pressupõe, assim, em princípio,
um abuso sem |ustificação. A réplica irritada dc P l a t ã o
foi. portanto, inteiramente justificada. O princípio da ine
rência. de A n tÍs te n e s , consiste não só cm não ser possível ex
pressarem-se muros predicados de um sujeito como não po
der tampouco expressarem-se cabalmente quaisquer que
sejam diferentes deles. A n t Í s t f n e s só aceitava como válidas
as expressões que se identificavam com o sujeito. Abstrain
do do fato do quo essas proposições de identidade (como “o
doce é doce” ) nada nos dizem e carecem, portanto, de sen
tido. a fragilidade do princípio de inerência está no fato
do juízo idêntico também ser inteiramente estranho
coisa.
A palavra “erva” nada tem a ver com a coisa “erva” cm si.
O principio da incrcncia ressente-se. de certo modo, do velho
íetit hismo verbal que pressupõe estar a coisa abrangida na
palavra. Assim, quando o nominalista dirigindo-se ao realista,
e\< lama: — Estás sonhando, julgas manejar coisas e fcpenas
esgrimes com quimeras verbais!
o realista poderia rcpli• .o do mesmo modo ao nominalista, pois também este não
iiiiiiifja as próprias coisas, mas as palavras que no lugar del.i . eoloca. Ao atribuir também a cada coisa uma palavra
<\|»eeial, é de palavras e não das próprias coisas que continu.i falando.
___
60
TIPOS PSICOLÓGICOS
Assim sendo, a idéia de “energia" é, comprovadamentc,
um simples conceito verbal e5 entretanto, tão extraordinaria
mente real que a sociedade anônima proprietária de ama
usina elétrica extrai dela dividendos. O conselho de admi
nistração não se deixaria convencer, dc maneira alguma, so
bre a irrealidade ca energia e outras divagações metafísicas.
Designa-se por “energia” a conformidade entre os fenòir.enos
da força que não poae ser negada c que demonstra, coiidianamente, a sua ex;stência da maneira mais peremptória. Na
medida em que a coisa é real e uma palavra designa conven
cionalmente cisa coisa, atrihui-se à palavra uma "significa
ção real”. E na medida em que a contormidade enlrc as
coisas é real, também se atribui “significação real” ao con
ceito genérico que designa a conformidade entre as coisas,
significação essa que não é maior nem menor que a ca pa
lavra que designa individualmente a coisa. A transferência
do acento valorativo é uma questão relacionada com a dis
posição individual e com a Psicologia contemporânea. Essa
base também foi pressentida por C o m p e u z em A x t ü t e n r s ,
salientando os seguintes pontos: “Um robusto senso comum,
repugnância por toda a exaltação, quiçá a força do senti
mento individual, também, para quem, como cie, a persona
lidade individual c o próprio indivíduo só têm plena vali
dade como tipo de realidade integral” . 1 7 Acrescentaremos,
por nossa conta, a inveja do indivíduo privado dos plenos
direitos de cidadania, do proletário, do homem com quem
os fados foram avaros em beleza e que aspira a subir, nem
que seja para dedicar-se apenas u uma atividade demolidora
dos valores alheios. Isto caracteriza especialmente o cíni
co, dedicado sempre a censurar o próximo, para quem nada
é respeitável, sobretudo se pertencer a outrem, e cue nem
sequer ante o sagrado do lar se detém, contanto que possa
ferir com sua crítica implacável e mordaz.
Essa tendência do espírito, essencialmente crítica, é con
traposta pela essencialidade eterna do mundo da.s idéias de
P la t ã o .
É claro que a psicologia do criador desse mundo
tinha de orientar-se num rumo oposto ao do estilo de juízo
crítico c demolidor que acabamos dc descrever. O pensa
mento de P l a t ã o inspira-se na pluralidade das coisas e ela
bora conceitos sintético-construtivos que designam e definem
>7
L oc
cit., pág. 348.
O PROUl.EM A n o s TIPOS NA HISTÓRIA ANTIG a
61
as conformidades gerais entre as coisas, tal como na verdade
existem. Sua indivisibilidade e super-humanidade são, pre
cisamente, o inverso do coneretismo peculiar ao princípio de
inerência, que pretendera reduzir a matéria do pensar ao sin
gular, individual e positivo. Tal empreendimento é tão im
possível quanto a validade exclusiva do princípio da predi
cação, que quisera elevar o que é expresso a respeito de m ui
tas coisas singulares ao nível de uma substância eterna, exis
tente além do transitório. Ambas as formas de juízo têm
direito à existência, visto que foram naturalmente concedi
das a todos os seres humanos. Isto evidencia-se da melhor
maneira, em minha opinião, no fato tio próprio fundador da
escola megárica, E u c lid r s de M é g a r a , ter preconizado uma
unidade univeisal que estava situada a uma distância imen
sa e inatingível do individual e do casuístico. Combinou o
princípio eleát.co 1 8 do “existente” com o “bem”, de modo
que, para E u c lid e s , o “existente” e o "bem” eram idênticos.
Com isto só se defrontava o “mal-não-existcnte”. Esta uni
dade universal otimista não é outra coisa, naturalmente, se
não um conceito genérico de ordem superior, um conceito
(pie abrange o existente, em contradição, além disso, com to
das as evidências, cm maior grau do que as idéias platónicas.
Assim procurou E u c lid e s uma compensação para a dissolu
ção do juízo construtivo em mera coisa verbal. Essa uni
dade universal é tão remota e tão vaga que só deficientemen
te podia já exprimir uma conformidade entre as coisas, não
constituindo pois um tipo, mas apenas o complexo de um
desejo de unidade que abranja todo o acúmulo desordenado
de coisas avulsas. O desejo de uma tal unidade apodera-se
de todos os que se entregam a um nominalismo extremo, logo
que procuram abandonar uma atitude crítico-negativ£. Don
de resulta não ser raro encontrarmos, entre as pessoas dessa
categoria, um conceito fundamental de unidade que, de modo
geral, se reveste de uma arbitrariedade e improbabilidade
notórias. Na verdade, é uma coisa impossível basearmo-nos
exclusivamente no princípio de inerência. A tal respeito, es-
A escola eleática de Filosofia foi fundada cerca do ano 500
C. por X e n Ó k / n e s d e E l ê i a . O núcleo da sua doutrina foi, por
tanto, que n unidfdc e imutabilidade do ser é a única e evidente rea
lidade; o mundo fenomenológico apenas pode interessar, cm sua va
riedade, como aj»í.rC-ncia. Por conseguinte, são fúteis todas as tenta
tivas para interprclar esse mundo.
A.
62
T ir o s PSICOLÓGICOS
crevcu G o m p e r z acertadamente: “É dc prever que seme
lhantes tentativas fracassem sempre e cm qualquer época.
Era totalmente impossível o seu êxito numa época que se
ressentia da falta de compreensão histórica e completamente
alheia a uma profunda doutrina psíquica. Era não só amea
çador, mas indiscutível o perigo de que as utilidades mais
evidentes e transparentes, mas em tudo c por tudo menos
importantes, superassem as utilidades mais ocultas, mas. na
verdade, de maior importância, fazendo-as passar a um pla
no secundário. Ao tomar como padrão o mundo animal e o
homem inferior pa-n, segundo esses modelos, proceder a um
corte nas crenças tia cultura, pòs-se a mão em muito do que
fora o fruto de u:na evolução de milhares de anos e que,
considerada cm sen conjunto, é de caráter ascendente'’. :w
O critério construtivo que, ao invés da inerência, orien
ta-se no sentido da conformidade entre as coisas, produziu
ideias gerais que fazem parte dos maiores bens do nosso pa
trimônio cultural. Embora essas idéias sejam, como escreveu
G omfekz , patrimônio dos mortos, estamos unidos a cias por
vínculos que jamais poderão romper-se, tal a solidez que ad
quiriram. E acrescenta o autor: "O mesmo que sucede com
o cadáver privado de alma pode, de igual modo, reivindicar-se para o que em si mesmo é inanimado, a tolerância, a ve
neração e até o auto-sacrifício; pensemos nas estátuas, nas
campas e bandeiras do soldado. Mas se cometermos violên
cia e nos esforçarmos por despedaçar, com êxito, essa cortina,
seremos acusados de brutalidade, sofreremos prejuízos em
todas as sensações que revestem, como um rico mauto do
vida próspera, o solo duro da realidade. Na conservação
dessa prosperidade, no apreço por tudo aquilo a que pode
ríamos chamar, talvez, os valores adquiridos, assenta toda a
sofisticação, toda a alegria e toda a graça da vida, todo o apu
ro nobilitante dos instintos brutais, assim como todo o des
frute e exercício das artes — justamente aquilo em cujo ex
termínio os cinicos sem escrúpulos e sem piedade se empe
nhavam. Há, certamente — de boa vontade o admitimDS, tan
to a respeito deles como de seus não-raros continuadores nos
tempos modernos — um limite para além do qual já não
é possível seguir o princípio dc associação sem cometer a in
C ricc/iisclc Dcnker, II, pág. 137.
O PROBLEM A DOS TIPOS N A HISTÓHJA ANTIGA
63
genuidade de incorrer na superstição gerada pelo uso exa
gerado dèsse princípio”. 20
Detivemo-nos tanto no problema da inerência e da pre
dicação, não só porque surgiu simultaneamente com o nomi
nalismo e o realismo escolásticos, mas também porque não
atingiu ainda o ponto de tranqüilidade c de compensação,
nem — a verdade se diga — o atingirá nunca. Com efeito,
debate-sc aqui, de novo, a questão do antagonismo típico
entre o ponto dc vista abstrato, em que o valor decisivo se
situa no próprio processo de pensar, c o ponto de vista con
creto, em que o pensamento e o sentimento se orientam (cons
ciente ou inconscientemente) para o objeto sensível. No úl
timo caso, o processo mental é meio e finalidade para a pro
moção da prosperidade. Não constitui milagre algum, portan
to, que a Filosofia proletária tivesse adotado, precisamente, o
princípio da inerência. Onde houver bases suficientes para
que o centro de gravidade se desloque no rumo do sentimento
individual, o pensar c sentir, carentes de energia positivo-criadora (inteiramente desviada para benefício das metas
pessoais), tornam-se forçosamente crítico-negativos, analisan
do e reduzindo tudo ao concreto singular. Ao acúmulo de
coisas desordenadas e avulsas que assim se produz, sobrepõe-se, na melhor tias hipóteses, uma vaga unidade universal
cujo caráter de desejo se denuncia com maior ou menor trans
parência. Ondo o centro de gravidade se desloca no sentido
tio processo mental, o resultado da criação mental sobrepõe-se à pluralidade como idéia. A idéia c altamente desperso
nalizada; mas a percepção pessoal integra-se, até onde for pos
sível, no pioceòso mental, produzindo-se a conjugação hipostática.
A propósito, convém mencionar neste ponto a questão
dc saber se a Psicologia da teoria platônica das idéias nos
autoriza a classificar P l a t ã o , pessoalmente, como pertencen
te ao tipo introvertido. E será que a Psicologia dos cínicos
c megáricos nos permitirá incluir A n t íst e n e s , D ió c e n k s e
E s t íl p o n no tipo extrovertido?
Assim posta a questão, é
totalmente impossível formular uma decisão. Uma investi
gação mcticulosíssima dos escritos autênticos de P l a t ã o , co
mo seus documcnts humains, ° talvez permita vislumbrar a
20
0
Loc. cit.,
II, p á * 138.
Em francês no original.
(N . do T .)
64
TIPOS PSICOI.ÚCICOS
que tipo pessoal ele pertenceu. Por minha parte, não me atre
vo a formular uma opinião positiva. Se alguém chegasse al
guma vez a aduzir a prova de que P l a t ã o pertenceu ao tipo
extrovertido, não me surpreenderia. Quanto aos outros, as
informações que sobre eles nos chegaram são de tal modo
dispersas e fragmentadas que, em meu entender, qualquer
decisão é completamente impossível. Obedecendo os dois
modos de pensar a que vimos fazendo referência a um deslo
camento da ênfase valorativa, também é possível, natural
mente, que no introvertido a percepção pessoal se desloque
para primeiro plano, por determinadas razões, sobrepondo-se de tal modo ao pensamento quo esto se converte em crítico-negativo. Quanto ao extrovertido, a ênfase valorativa estA na relação que se estabelece, simplesmente, no sentido do
objeto, mas não, necessariamente, na correspondência pes
soal com aquele. Quando essa relação passa ao primeiro
plano, pode-se afirmar então que o processo mental jã está
efetivamente subordinado, mas falta-lhe o caráter destruti
vo quando se ocupa unicamente da natureza do objeto e se
conserva afastada a intervenção da percepção pessoal. Por
conseguinte, teremos de classificar o conflito entre os prin
cípios de inerência e predicação como um caso especial que,
no decurso da investigação, merecerá uma profunda e meti
culosa análise. 0 peculiar do presente caso reside na parti
cipação positiva e negativa da percepção pessoal. Onde o
tipo (conceito genérico) oprime a coisa singular, até con
vertê-la numa sombra, é sinal de que aí conseguiu o tipo ob
ter realidade como idéia. E onde a coisa singular anula o
tipo (conceito genérico), aí começou a tareia anarquista
de desagregação.
Ambas as posições são extremas e injustas, mas propi
ciam uma imagem contrastante que nada deixa a desejar
quanto à nitidez e que pelo exagero procura, precisamente,
dar realce a características que, de uma forma certamente
mais atenuada e, portanto, mais culta, também aderem à ín
dole dos tipos introvertido e extrovertido, sobretudo :io caso
de personalidades cm que a percepção individual não se des
locou para o primeiro plano. A diferença de índole é de
grande importância, segundo a mente seja, por exemplo, de
um amo ou de um servo. O primeiro pensa e sente de um
modo distinto do segundo. Nem uma vasta abstração do pes
soal, em prol do valor geral, é capaz de eliminar completa
O PROBLEM A DOS TIPOS N A HISTORIA ANTIGA
65
mente as interferências pessoais. E enquanto estas existi
rem. hão de encontrar-se no pensamento e no sentimento
aquelas tendências destrutivas cuja origem está na afirma
ção peremptória da pessoa, face às condições sociais adver
sas. Cometer-sc-ia, porém, um grave e flagrante erro se, por
causa da existência dessas tendências pessoais, pretendêsse
mos reclu2 ir os valores gerais e subeorrentes de ordem pes
soal. Isto seria pseudopsicologia. E há quem a pratique.
b)
O Problema dos Conceitos Universais tui Escolástica
O problema de ambas as formas de critério judicativo fi
cou 5CMII resolução, p o is ... tertium non datur. Assim trans
mitiu P o r f íiu o o problema à Idade Média: "M m de generibus et speciebus illud quidem sive subsistant sive in nudis
intellectibus posiia sint, site subsistentia corj>oralia slnt an
incorptnaliu, et uMtm separata a sensibilibus an in sensibilibus
posita et circa haec consistentia, dicere recusabo’. ("No que
respeita aos conceitos gerais e genéricos, a questão é saber
se são substanciais 0 1 1 apenas intelectuais, se são corporais
ou incorporais, st estão separados dos objetos de percepção
ou se estão neles e em seu redor.”) Dessa forma, aproxi
madamente, recebeu a Idade Média 0 problema. Pocíe-jc dis
tinguir a concepção platónica, os universalia ante revi, o geral
ou a idéia como exemplo ou modelo ante todas as coisas sin
gulares e completamente desligado delas, existentes apenas
cv ovyavícj) xó.-uo (algures no universo planetário), segundo
a sábia Diotima, ao discorrer sobre "o Belo”, disse a SóCTHATKS:
'Conhecerá a beleza que não se apresenta como rosto,
ou como mãos, ou qualquer outra coisa corporal, nem como
palavra, nem como ciência, nem como coisa alguma que exis
ta em outra, como por exemplo num ser vivo, ou na terra,
ou no céu. Beleza, ao contrário, que existe em si mesma e
por si mesma, sempre idêntica, e da qual participam todas as
demais coisas belas. Estas coisas belas individuais, que parti
cipam da beleza suprema, ora nascem ora morrem; mas essa
beleza jamais aumenta ou diminui, nem sofre alteração de qual
quer espécie.” 21
21
í>jftnposion ( O Banquete” ), 211 B. [Usamos a tiaduçãc bra
sileira diretamente do Jírcgo jx-lo Dr. Jorge Pai.eixat, em "Diálogos”,
Vol. I, Ed. Globo. O grifo é cie Juno. jY. do T J
66
TIPOS PSICOLÓGICOS
à forma platônica opunha-se, como vimos, o pressupos
to crítico de que os conceitos genéricos são meras palavras.
Neste caso, o real é prius, o ideal é posterius. Este ponto de
vista resumia-se na expressão universalia post rem.
Entre ambos os critérios situa-se a concepção realista mo
derada de A r is t ó t e l e s , que poderíamos classificar como uni
versalia in re e segundo a qual a forma Úlòoç) c a substan
cia coexistem. O ponto de vista aristotélico c um intuito
concretista de nvdiayão, plenamente justificado pelo caráter
ou índole do próprio A r is t ó t e l e s . Face ao transcendentalisnio do seu mrstre P l a t ã o , cuja escola redundaria nu n mis
ticismo de raiz pitagórica, mostrou A r is t ó t e l e s ser um ho
mem amante da realidade, da sua antiga realidade, deve ser
dito, que continha muito do concreto que foi absorvido pelos
tempos posteriores e adicionado ao património do ?spirito
humano. A solução aristotélica equivale ao concretismo do
antigo conivxon scnsc.
Essas très formas oferecem-nos a articulação dos pon
tos de vista medievais na grande disputa sobre concei:os uni
versais que constitui a verdadeira essência da escolástica.
Não é minha missão — até por falta de competência pira tan
to — penetrar :ios detalhes da grande controvérsia. Lim i
tar-me-ei a algumas indicações orientadoras. A disputa co
meçou com as opiniões de J o h a n n e s K o s c e llin o , em fins do
século XI. Para ele, os conceitos universais eram simples
n o m in a re ru tn , nomes das coisas, ou, como a tradição lhes
chamava, jla t u s voeis. Somente coisas singulares, indivíduos,
contavam para ele. Estava, como T a y l o r escreveu accrtadamente, "strongly h e ld b y the rc a lity o f in d iv id u a is " .23 A
conseqüência imediata foi pensar cm Deus unicamente co
mo indivíduo e dissolver, assim, a Trindade em três pessoas,
pelo (jue R o s c e l li n o acabou, verdadeiramente, num triteísmo. Isto de maneira alguma podia ser consentido pelo rea
lismo dominante; em 1092. num sínodo convocado para Soissons, as opiniões de H o s c e llin o foram condenadas. Do outro
lado da trincheira estava G u i l h e r m e de C h a m p e a u x , o mes
tre de A r e la r i* ) , um realista extremado, mas de propensões
22
I I . O . T a y l o r , The hlcdiaccal Mind, Vol. II, pág- 340.
[Em
inglês no texto: "E stava... fortemente influenciado pela realidade dos
indivíduos". N. do 7'.]
O PROBLEM A DOS TIPOS NA HISTORIA ANTIGA
67
aristotélicas. Segundo A b e l a r d o , ensinava que unia e a mes
ma coisa exisle em sua totalidade e ao mesmo tempo, nas
distintas coisas singulares. Entre as coisas singulares não há,
essencialmente, qualquer diferença, mas apenas uma multi
plicidade de “acidentes”.
Do lado do realismo colocara-se também A n s e l m o de
De um modo autentica
mente platônico, situou ele os conceitos universais no Logos
divino. É dentro desse espirito que se deve entender a psi
cologicamente importante prova da existência de Deus, enun
ciada por A n s e l m o e por ele denominada prova ontológica.
Esta prova demonstra a existência de Deus pela idéia de
Deus. I. li. F ic h t e resumiu-a da seguinte maneira: " A ‘exis
tência de uma idéia de absoluto, em nossa consciência, de
monstra a existência real desse absoluto”. 23 O pensamento
de A n s e l m o é que o conceito existente no intelecto de um
ser supremo encerra a qualidade de sua existência (non po
test esse in intellectu solo). E concluiu então: "Sic ergo
vere est aliquid quo majus cogitari non potest, ut ncc cogitari
possit non esse. et hoc es tu, Domine Deus noster’.
A
fraqueza lógica do argumento ontológico é tão óbvia que re
quer esclarecimentos psicológicos para justificar o fato de
uma mentalidade como a de A n s e l m o poder elaborar seme
lhante argumentação. O motivo imediato está, inteiramente,
na disposição geral psicológica do realismo, quer dizer, no
fato de que tanto uma certa categoria de homens como, de
acordo com as cendèncias da época, certos grupos humanos
colocam o acento valorativo na idéia, dc» maneira que esta
representava um valor real. para todos eles c, portanto, vital
acima da realidade das coisas singulares. Daí resultava
parecer-lhes simplesmente impossível que tudo o que era de
sumo valor e importância, para cies, não existisse também
realmente. Dispunham, assim, da prova mais decisiva de sua
eletividade nas próprias mãos, desde o momento em que a
sua vida, pensanento e sentimento estavam total e nitida
mente orientados de acordo com tal ponto de vista. Não
importa a invisibilidade da idéia em comparação com a sua
C a n t e r b u r y , o pai da Escolástica.
*3 Faychologie, Vol. II, pág. 120.
2* "Assim, pois, a realidade é o que pode ser cogitado por um
•■<•! supremo e «> que ele não puder cogitar não 6: e esse ser ás tu, Se■ilior e Deus nosso." Proslogion seu Alloqulum de Dei exUtentio, pág. 110.
68
TIPOS PS1COLÓC1COS
extraordinária efetividade, que é precisamente uma reali
dade. Tinham um conceito ideal e não-sensualista da rea
lidade.
Um adversário contemporâneo de A n s e l m o , G a u n il o ,
já objetava que a idéia, tão freqüente na literatura, de uma
ilha de perfeição e felicidade (à maneira do país feácio),
não prova necessariamente a sua existcncia real. Trila-se
de uma objeção bastante razoável. Outras foram aduzidas
no decorrer dos séculos, o que de maneira alguma impediu
que o argumento ontológico sobrevivesse até uma época bem
recente, defendido que foi ainda no século X IX por Í I e c e l ,
F ic h t e c I*o t z £ . Tais contradições não podem ser atribuídas a
uma peculiar falta de lógica ou a uma cegueira ainda maior, de
uma ou dc outra parte. Seria despropositado. Trata-so, outrossim, de diferenças psicológicas de grande alcance, que é
preciso reconhecer e levar na devida conta. A pretensão de
que só existe uma Psicologia ou um só princípio psicológico
fundamental constitui uma insuportável prepotência des pre
conceitos pscudocientíficos do homem normal. Fala-se sem
pre de o homem e de sua "psicologia” que, cm todo caso,
“nunca deixou de ser" convertida noutra coisa. Do mesmo
modo, fala-se sempre de a realidade, como sc não houvesse
mais do que uma. Realidade é o que atua numa alma hu
mana e não o q je certas pessoas consideram efetivo e gene
ralizam de um modo premeditado. Por muito cientificamente
que se proceda ao fazê-lo, convém não esqviccer que a ciên
cia não é a suv.ma da vida, que, na verdade, não passa de
uma das diversas disposições psicológicas p. que ate pode
ria afirmar-se ser, apenas, uma forma do pensamento humano.
O argumento ontológico não é argumento nem è prova,
mas unicamente a comprovação psicológica do fato dc haver
uma determinada categoria dc homens para quem uma cer
ta idéia é o efetivo e o real, uma realidade tão vigorosa, por
assim dizer, quanto a do mundo da percepção. O scnsualista proclama, veementemente, a certeza da sua “realidade”,
ao passo que o homem apegado à idéia se mantém fiel à sua
realidade psicológica. A Psicologia tem de contentar-se com
a existência desses dois tipos (ou mais) a evitar, cm todo
caso e em qur.isquer circunstâncias, considerar um deles co
mo falsa interpretação do outro, jamais devendo einpenhar-se, seriamente, na redução de um tipo a outro, como se todo
o “ser outro” não passasse de uma função de "ser um”. Não
O PBOBLEM A 1X)S TIPOS N A H ISTÓRIA ANTIGA
69
quer isto dizer que se anule o consagrado princípio cientí
fico, segundo o qual principia explicandi practer necessiíatem
non sunt muHiplicanda. Na verdade, permanece a necessi
dade de múltiplos e esclarecedores princípios psicológicos.
Prescindindo de quanto aqui ficou dito cm abono dessa hi
pótese, deveria ser bastante para abrir-nos os olhos o fato,
tão digno de consideração, de que, apesar da aparentemente
decisiva eliminação do argumento ontológico por Kant, não
poucos filósofos pós-kantianos recorreram, na realidade, a es
se argumento, incutindo-lhe vida nova. E atualmente en
contramo-nos tão longe, melhor dizendo, mais longe ainda
de um acordo entre os antagonismos idealismo realismo c espiritualismo-materialismo, incluindo todas as questões acessó
rias, como nos primeiros tempos da Idade Média, em que
pelo menos havia uma concepção do mundo por todos com
partilhada.
A favor da prova ontológica pode-se dizer que não há
um só argumento lógico que seja convincente para o intelec
to moderno. O argumento ontológico nada tem cm si mes
mo que ver com a Lógica, sendo, pelo contrário, na forma
em que A n s f x m o o legou
História, um fato psicológico,
posteriormente intelectualizado ou racionalizado que, natu
ralmente, não podia ocorrer sem petitio principii e outros so
fismas. Mas a validade indiscutível do argumento demons
tra-se. efetivamente, pelo fato de existir e do conscnsus gentium o aprovar como uma realidade concreta e geral da exis
tência. fr com o fato, com a realidade, que é preciso contar,
não com o sofisma com que se pretende justificá-lo, pois o
erro do argumento ontológico consiste, única e exclusivamen
te, em querer estabelecer ilações lógicas quando se trata de
muito mais que uma simples prova lógica. O que está em
causa, afinal, c um fato psicológico cuja efetividade c pre
sença são de uma nitidez, tão convincente que dispensam qual
quer espécie de argumentação. O conscnst/s gentium demons
tra que A n s e l m o tinha razão ao comprovar que Deus é
porque é pensado. F.is uma verdade evidente que, aliás, não
•' outra coisa senão uma proposição de termos equivalentes,
í) fundamento “lógico” é, portanto, completamente supérfluo
além disso, é falso na medida em que A n s e l m o pretendeu
«lemonstrar uma realidade objetiva para a sua idéia de Deus.
Usim escreveu: “Existit ergo proeul dubio aliquid, quo majus
70
TIPOS PSICOLÓGICOS
cogitari non valet, ct in intellectu, et hi re ".25 ( “Existe, pois,
acima de toda espécie de dúvida, algo que nada dc maior
pode ser pensado; e que existe tanto no intelecto como na
coisa”) [objetividade, “realidade”]. O conceito ics ora, para
a escolástica, algo que sc situava no mesmo nível do ccgito.
Por isso é que Dicxísio A h e o p a c it a , cujos escritos exerceram
grande influencia na Filosofia do principio da Idade Média,
distinguiu paralelamente “cntia rationalia, inteUcctualia, scnsibilia, simpliciter existentia” (coisas racionais, intelecruais,
sensíveis, puramente existentes). T o m á s de A q u in o ch.unou
rcs ao (juocl est in anima (ao que está na alma) e também ao
(juod est extra animam (ao que está fora da alma). Esta
assinalável equiparação permite-nos observar ainda a primi
tiva objetividade ( “realidade”) do pensamento, segundo a
concepção vigente nessa época. Dentro desse espírito pode
rá cntender-sc também, facilmente, por conseguinte, a psi
cologia da prova ontológica. A hipóstase da idéia não pres
supôs um passo essencial, visto que foi realizada como um
eco da primitiva sensualidade do pensamento, sem mais coi
sa alguma. O argumento contrário de G a u n il o é insuficiente,
do ponto de vista psicológico, pois ainda que a ideia de
ilha feliz apareça freqüentemente, como o consensus gentium
demonstra, é indubitavelmente menos efetiva que a idéia de
Deus. a quem se atribui, por conseqüência, um mais eleva
do “valor de realidade”.
Todos os que, posteriormente, recorreram ao argumento
ontológico recaíram no erro de A n s e l m o , pelo men.os em
princípio. A argumentação dc K a x t pareceu ser a definiti
va. Voltaremos a ela no momento oportuno. 20 A«sim eserevcu: “Que o conceito de um ser absolutamente necessário
seja um conceito dc razão pura, isto é, uma pura idéia, de
maneira alguma prova a sua realidade objetiva pelo fato
da razão dela necessitar”.
“A necessidade absoluta dos juízos não é uma necessida
de absoluta das coisas. Pois a necessidade absoluta do juízo
só é uma necessidade condicional da coisa ou do predicado
no juízo.”
Imediatamente antes, deu K a n t como exemplo de u m
juízo necessário que um triângulo tenha tres ângulos. A
25 l.oc. cit., pág. 109.
K a n t , Die Kritik der
20
re in e n
Vernunft,
p á g s . 4 6 8 c scg.
O PROBLEM A DOS TIPOS NA H ISTORIA A ST IC A.
71
isso se refeie quando acrescenta: "A anterior proposição
não nos dizii que fossem necessários três ângulos, simples
mente, mas que só na condição de termos um triângulo é que
teríamos também très ângulos, necessariamente. Não obs
tante, essa necessidade lógica demonstrou um grande poder
de ilusão, porquanto, ao elaborar-se um conceito c priori de
uma coisa em forma tal que se acreditava estar a sua exis
tência compreendida em seu âmbito total, acreditava-se ser
também possível inferir dele [do conceito] corn segurança
que, porque ao objeto desse conceito corresponde necessaria
mente a existência, isto c, na condição de que eu considere
essa coisa como dada (existindo), tciú de considerar-se tam
bém como necessária a sua existência (de acordo com a re
gra de identidade) e esse ser há de ele próprio considerar-se, portanto, simplesmente necessário, visto que, num con
ceito pressuposto â vontade, a sua existência, na condição de
que eu inclua o objeto do mesmo, também é pensada”. Esse
poder de ilusão a que K a n t se refere neste trecho acima trans
crito não é outra coisa senão o primitivo poder mágico do
verbo, que se insinua sub-repticiamente no conceito. Foi
necessária uma ampla evolução para que os homens perce
bessem, com a maior profundidade, que a palavra, a flatus
voeis, não pressupõe invariavelmente uma realidade nem a
produz. Mas o fato de alguns homens assim o terem en
tendido não significa, de maneira alguma, que o poder su
persticioso inculcado ao conceito formulado tenha desapa
recido de todas as cabeças. Evidentemente, existe algo nes
sa superstição “instintiva" que teimn cm não desaparecer, al
go revelador de um direito à existência que, até afcora, não
foi ainda apreciado de maneira satisfatória. O paralogismo
(sofisma) introduz-se de maneira semelhante no argumento
ontológico, isto é, mediante uma ilusão que K a n t assim ex
plicaria: em primeiro lugar, refere-se à afirmação de “sujei
tos absolutamente necessários”, a cujo conceito é inerente o
conceito da existência pura e simples e que, portanto, não
pode ser suprimido sem uma contradição implícita. Esse
conceito seria o de “o mais real dos seres”. "Tem, dizeis,
toda a realidade e tendes o direito de considerar possível um
s«*r semelhante... Ora, entre toda a realidade inclui-se a
existência; logo. inclui-se a existência no conceito do pos
sível. Se essa coisa se suprime, ficará suprimida a intima
possibilidade da coisa, o que é contraditório. Repito: tereis
72
TIPOS PSICOLÓGICOS
cometido já uma contradição ao incluir no conceito de uma
coisa, a qual queríeis somente pensar segundo a sua possi
bilidade, seja qual for o nome sob que se oculte, o conceito
de sua existência. Se aceitarmos isto. tereis ganho a partida,
aparentemente, mas na verdade nada tereis dito; pois come
testes uma simples tautologia.” 27
“Ser não e um predicado real, evidentemente, isto é,
um conceito de algo que pudesse adicionar-se ao conceito
de uma coisa. Constitui apenas a posição de uma coisa ou
certas determinações a respeito de si mesma. No uso lógi
co é unicamente a cópula do juízo. A proposição “Deus
ó onipotente” contém dois conceitos que têm por objeto Dous
e onipotência. A palavra “c” não é um predicado que pessa
adicionar-se, mas, simplesmente, o que relaciona o predicado
com o sujeito, üra: se eu reunir o sujeito (Deus) com to
dos os seus predicados (entre os quais se conta a onipotência)
e disser: Deus é, ou ele é um Deus, não poderá dizer-se que
acrescento um novo predicado ao conceito de Deus.’ mas que
enuncio, simplesmente, o próprio sujeito com todos os seus
predicados e o objeto em relação com o meu conceito. Am
bos devem conter exatamente o mesmo e, portanto, nada
pode adicionar-se ao conceito que só expressa a possibili
dade por causa de eu pensar o seu objeto como simplesmen
te dado (por meio da expressão “ele é” ). E assim, o real
não contém mais que o meramente possível. Cem táleres
sonantes não contem nem uma migalha a mais de dem tálcres possíveis.”
“Mas em virtude da minha boa situação financeiro, su
põem mais cem táleres sonantes do que o seu mero ccnceito (isto é, que a sua possibilidade).”
"O nosso conceito de um objeto pode conter o que se
queira, mas temos de sair dele para conferir-lhe exist?ncia.
Isto ocorre para além dos objetos significativos, graças a uma
conexão com uma das minhas percepções, segundo as leis
empíricas. Mas para os objetos do pensamento puro não
existe absolutamente qualquer meio para conhecermos a sua
existência, porque terá de ser completamente conhecida a
priori e o nosso conhecimento consciente de toda a existên
cia pertence, sob todos os aspectos, à unidade da existência;
2 T Loc. cit., págs. 470 e scgs.
O PROBLEM A DOS TIFOS NA H IST O RIA ANTIGA’
73
se é certo que uma existência fora desse domínio não pode
ser declarada corno absolutamente impossível, também não e
menos certo que se trata de uma hipótese sem bases que a
justifiquem." ™
Esta longa transcrição da explicação fundamental
de
K a n t pareceu-me necessária porque nela encontramos a dis
tinção mais depurada entre esse in intellectu c esse in re.
H e c e l censurou K a n t , dizendo que o conceito do Deus não
pode comparar-se com cem táleres fantasiosos. Mas como
K a n t afirmou, com razão, abstrai a lógica de todo o conteú
do, pois deixaria de scr lógica se o conteúdo prevalecesse.
Como sempre, entre o lógico ou “o-um-ou o-outro” não há
uma terceira coisa . .. quer dizer, desde o ponto de vista
lógico. Mas entre intellectus e res há ainda o anima e este
esse in anime torna desnecessária e supérflua toda e qualquer
argumentação ontológica. O próprio K a n t faz na Kritik der
praktischen Vernunft um gigantesco ensaio do interpretação
filosófica do esse in anima. Apresenta Deus como um pos
tulado da razão prática, resultante da atenção, reconhecida
a priori, "dedicada à tendência para o bem supremo, do res
peito devido e necessário à lei moral c do pressuposto de
realidade objetiva do mesmo, que desta realidade se deduz”. 23
O esse i.i anima é um estado de fato a respeito do qual
única e exclusivamente podemos dizer que se- observa na
psicologia humana de um modo singular, plural ou universal.
O lato recon.iecido a que se chama Deus e formulado como
"bem supremo” significa, como a própria expressão indica, o
supremo valer psíquico ou, por outras palavras, a representação a que se concede — ou a que efetivamente se atribui —
o significado de maior amplitude, no que se refere à deter
minação da nossa maneira de atuar e de pensar. Na lin
guagem da Psicologia analítica, o conceito de Deus coinci
de com o complexo representativo que, de acordo com a
definição anterior, concentra em si a maior quantidade de
libido (energia psíquica). Dessa maneira, o conceito efe
tivo de Deus, na alma, seria completamente difererte de um
para outro ser humano, o que a experiência inteiramente
corrobora. Deus nem é sequer uma esscncia fixa na idéia,
-'3
J.oc. cíi., págs. 472 c segs.
2»
Kritik der praktischen Vernunft, I, II, II, pág. 159.
riPOS
74
p s ic o l ó g ic o s
muito menos o poderia sor na realidade. Pois o máximo va
lor efetivo de uma alma humana está, como se sabe, localiza
do de modos bastante díspares. Há pessoas <&v ó foòç >|xoiÀío,
isto é, para as quais o deus delas é o ventre (“Epístola de
Paulo aos Filipenses”, III, 19); e há aquelas para quem
deus é o dinheiro, a ciência, o poder, a sexualidade, eíc.
Segundo a localização do bem supremo, assim se desloca
toda a psicologia dc indivíduo, pelo menos em suas carac
terísticas básicas, de modo que uma “teoria” psicológica que
se baseie num instinto fundamental qualquer, por exemplo,
a sede de poder ou a sexualidade, aplicada a uma pessoa de
orientação distinta, somente poderá aplicar, de maneira apro
priada, características dc importância secundária.
c)
O Ir.tuito Unificador de Abelardo
Não poderá deixar de interessar-nos averiguar como a
escolástica procurou encontrar uma concatenação na disputa
entre os conceitos universais, no intuito de chegar a um equi
líbrio entre os contrastes típicos, separados pelo tertium rum
datur. Esse intuito unificador foi a obra a que se dedicou
A b e l a r d o , aquele homem infeliz em seu amor por Hebísa
e que teria de pagar sua paixão com a perda da virilidade.
Quem conhece a vida de A b e l a r d o sabe em que medida es
ses pares opostos estavam contidos em sua alma e até que
ponto uni-los em termos filosóficos era um anseio de seu
coração. R e m u s a t 30 caracterizou A b e i .a b d o como um eclé
tico que criticava e refutava, sem dúvida, todas as teorias ex
postas sobre os unwcrsalia, mas que, nau obstante, aproveita
va de todas o que tinham de verdadeiro e sustentável. Os
escritos de A b e l a r d o , no tocante à controvérsia dos universalia, são difíceis tle compreender e prestam-sc à confusão,
pois o autor entrega-se a uma ponderação constante de todos
os argumentos c aspectos; e precisamente o fato de que não
dava razão a nenhum ponto de vista de contornos definidos
fez que não fosse cabalmente entendido por seus próprios
discípulos. Uns consideravam-no nominalista, outros realis
ta. Essa incompreensão ó característica, porquanto e sem
pre muito mais fácil pensar em concordância com um deter
minado tipo, ao podermo-nos manter nele com lógica e coe
30 Qiaiu.es líE Remvsat, Abélard.
O PROBLEM A DOS TIJ’OS NA HISTÓRIA ANTIGA
75
rência, que de acordo com os dois tipos — aos quais falta
um ponto de vista intermédio. Tanto o realismo como o no
minalismo, quando os seguimos em suas respectivas traje
tórias, conduzem à unidade, à clareza e i\uniformidade. Pe
lo contrário, a tarefa de ponderar e aplanar os contrastes
acarreta a confusão e uma conclusão insuficiente, no sentido
dos tipos, enquanto a solução não pode satisfazer a um nem
a outro. R ev íu sa t extraiu dos escritos de A b e l a r d o uma
série de afirmações quase contraditórias, no que concerne à
nossa questão, c que o fizeram indagar: “Faut-il admettre,
en effet, ce veste et incohérent ensemble de doctrines dans la
tête d’un setd homme, et la philosophie d'Abélard est-elle le
chaosF" 31
Do nominalismo aceitou A b e l a r d o a verdade de que os
conceitos universais são “palavras”, no sentido de conven
ções mentais expressas através de uma linguagem; accita, além
disso, a verdade de que uma coisa na realidade não é algo na
generalidade, mas algo sempre diferenciado e que a substância m realidade nunca é um fato universal, mas um fato
individual. Do realismo aceita A b e l a r d o a verdade do que
os genera e species são conjunções de fatos e coisas indi
viduais estabelecidas na base de suas semelhanças incontes
táveis. C) ponto de vista unificador é, para A b e l a r d o , o
conceptualismo. que deve ser entendido como uma funçã
que concebe cs objetos individuais percebidos e os classi
fica de accrdo coin as suas semelhanças em gêneros e espé
cies, transferindo-os, assim, da sua pluralidade absoluta para
unia unidade relativa. Tão inegável quanto a pluralidade e
diversidade das coisas individuais c a existência de semelhan
ças que possibilitam a sua conjunção no conceito. Às pes
soas dotadas de uma disposição psicológica que lhes permi
te perceber, principalmente, as semelhanças entre as coisas,
pode-se dizer que lhes foi propiciado o conceito conjuntivo,
isto c, que se ihes impõe a efetividade inegável da percep
ção sensível. Mas às que são dotadas de uma disposição
psicológica que lhes faz perceber, principalmente, a diversi
dade das coisas, não lhes é dado exclusivamente a semelhan-
31
l.nc. cit., eap. II, 119. (Em -‘rancês no original: "Teremos
dc admitir, com efeito, esse vasto c incoerf.ite conjunto de doutrinas na
i-abeça do um único homem, e reconhecei iue a Filosofia de Abelardo
c
o caos?” j Y . do T.)
76
rii*os
p s ic o l ó g ic o s
ça entre as coisas, mas também a diversidade que llies é
imposta corn efetividade tão grande quanto a semelhança
às outras. Dir-se-ia que o consentimento coin o objeto cons
titui o processo psicológico que situa, precisamente, a diver
sidade do próprio objeto num foco de luz irradiante, ao pas
so que a abstração do objeto constitui o processo especial
mente dotado da faculdade de fazer vista grossa à diversida
de dos objetos individuais, em favor de sua semelhança geral,
que é justamente a base da idéia. O consentimento c a
abstração unidos dão lugar à função ern que se baseia o
conceito de conceptualismo. Efetivamente, esse conceito ba
seia-se na íunção psicológica, que oferece de fato a úr.ica
possibilidade de fazer confluir num mesmo rumo a divergên
cia entre o nominalismo e o realismo.
Embora a Idade Média soubesse dizer grandes pala
vras sobre a alma, não dispunha ainda da Psicologia, que é,
de modo geral, uma das mais jovens ciências. Sc nesse tem
po tivesse havido Psicologia, A b e l a r d o teria elevado o esse
in anima à categoria de fórmula mediadora. Claramente o
entendeu K e m u s a t quando escreve: “Dans la logique pure,
les universaux ne sont que les termes d'un langage de con
vention. Dans la physique, qui est pour lui plus transcen
dante quexpérimentale, qui est sa véritable ontologie, les
genres et les espèces se fondent sur la manière dont les êtres
sont réellement produits et constitués. Enfin, entre la lo
gique pure et la physique, il y a un milieu et comme une
science mitoyenne, qu’on petit appeler une psychologie, où
Abélard recherche comment sengendrent nos concepts, et
retrace toute cette généalogie intellectuelle des êtres, tableau
ou symbole de leur hiérarchie et de leur existence réelle”. 32
Os universalia ante rem e post rem continuaram sendo,
nos séculos subseqüentes, um pomo de discórdia, embora se
32
Loc. d'/., ca.). II, pág. 112. ["Em Lógica pura, os conceitos
universais não passotn de expressões de uma linguagem convencional.
Na Física, que para cie é mais transcendente que experimental, que é
a sua verdadeira ontologia, os gêneros e as espécies unem-se sobre o
modo como os seres são realmente produzidos e constituídos. Enfim,
entre a Lógica pura e a Física há um meio-termo e como que uma
ciência intermédia, r. que se pode chamar Psicologia, onde Abelardo
investiga como se engendram os nossos conceitos, e reconstitui toda
essa genealogia intelectual dos seres, quadro ou símbolo de sia hie
rarquia e existência real." iV. do T ]
O PROBLEM A DOS TIPOS NA HISTORIA ANTIGA
77
tivessem desembaraçado de suas roupagens escolásticas e ado
tassem nova indumentária. Mas, no lundo, continuava sen
do a velha questão. A tentativa de solução inclina-se umas
vezes para o lado realista, outras para o nominalista. O cientificismo do século X IX imprimiu ao problema um forte im
pulso na direção nominalista, depois da Filosofia dos princí
pios desse século ter-se entregue generosamente ao realis
mo. Mas não se estabelece já uma separação tão grande en
tre os extremes opostos como nos tempos de A b e l a r d o . Dis
pomos de uma Psicologia, a ciência mediadora, única capaz
de conciliar a idéia e a coisa sem violentar nenhuma delas.
Essa possibilidade é algo ejue reside na própria essência da
Psicologia, mas ninguém pode afirmar tjuo, até o presente,
a Psicologia tivesse cumprido semelhante missão. Nesse sen
tido, ternos do concordar com as seguintes palavras de R e m u s a t : "Abélard a donc triomphé; car, malgré les graves
restrictions qu’une critique clairvoyante découvre dans le
nominalisme ou le conceptualisme qu'on lui impute, son es
prit est bien l'esprit moderne à son origine. Il l'annonce, il
le devance, il le promet. La lumière tjui blanchit uu malin
l'horizon est déjà celle de l'astre encore invisible qui doit
éclairer le monde”. 33
Para quem observa superficialmente os tipos psicológi
cos e o lato de que a verdade de um supõe o erro de outro,
a obra de A b e l a r d o não passará, talvez, de uma soíistaria
escolástica. Mas na medida em que reconhecermos a exis
tência de ambos os tipos, o intuito de A b e l a r d o será reco
nhecido como de considerável importância. Procura ele o
ponto de vista intermédio 1 1 0 sermo. pelo qual entende me
nus o "discurso" que um período informado, estruturado num
certo sentido, isto é, uma definição que, para a afirmação do
seu sentido, sirva-se de várias palavras. Não fala do verbum, dado que este, na acepção do nominalismo, rão passa
de uma vox, de um flatus voeis. Pois a grande façanha psi
cológica do nominalismo clássico e medieval consiste, preci
33
Loc. cit.. cap. II, pág. 140. [“Abei-aupo triunfou, pcis; na ver
dade. apesar das graves restrições que uma crítica esclarecida desco
bre no nominalismo ou conceptualismo que lhe atribuem, 0 seu espíriio 6 bem o espirito moderno em seus alvores. Ele anuncia-o, antecil>u-o e promete-o. A luz que na madrugada branqueia o horizonte é
já a do astro afcda invisivcl que deverá em breve iluminar o mundo
todo.” .V. ilo T. 3
78
TIPOS PSICOLÓCICOS
samente, em diluir a identidade primitiva, mágica Ou místi
ca, entre a palavra c o estado objetivo das coisas, levando a
efeito essa tarefa de um modo radica), excessivamente radi
cal para o tipo homem, que não tem seu fundamento na con
tinuidade das coisas, mas na abstração da ideia das coisas.
A b e l a r d o era um espírito demasiado amplo para deixar des
percebido esse valor do nominalismo. A palavra era para
ele, sem dúvida, uma uox e o período, pelo contrário, o setmo
na sua terminologia, era algo mais, pois acarretava um signi
ficado firme, descrevendo o comum, o ideal, o pensado, que
era percebido nas coisas pelo pensamento. No sermo c só
nele residia o universal. Por esta razão se compreende que
A b e l a r d o fosse situado entre os nominalistas, m e sm o sem
um fundamento legítimo, pois que o universal era para ele
muito mais efetivo que uma simples vox.
Para A b e l a r d o , terá sido uma tarefa cheia de dificulda
des dar expressão ao seu conccptualismo, visto que teria fa
talmente de ser um conjunto de contradições. Num manus
crito de Oxford conserva-se um epitáfio a A b e l a r d o que, cm
meu entender, oferece-nos uma idéia de relance sobre o pa
radoxal de sua doutrina. Eis o texto:
IHc docuit voces cuni rebus significare,
Et docuit vcces res significando notare;
Errores generum correxit, ita spccierum.
líic gentis ct specics in sola vocc locavit,
Et genus ct spccics sermones esse notavit.
Sic animal tudlumque animal gentis esse. probatur.
Sic et homo ct nttttus homo specics vocitatur. 34
O
seja o
a uma
tos de
contraditório só admite outra concatenação que não
paradoxo na medida em que se aspire concretamentc
expressão que, por princípio, se apóie num dos pon
vista no caso precedente, no ponto de vista intelectual.
"Aqui sc ensina que as palavras só têm significação quando
conjugadas com as coisas/E que as palavras, às coisas dão um signi
ficado distinto;/CorriRiu os erros tanto de gênero coino de espécie,/
Sendo o primeiro a apontá-los c esclarecê-los em Suas d e fin iç õ e s ./..../
E assim ficou provado que todo animal e nenhum animal c da mesma
espécie/E assim que todo homem c homem nenhum é semelhante."
(.V. J o T.)
O rn C B L E M A DOS TIPOS NA HISTORIA ANTIGA
79
Não convém esquecer que a diferença fundamental entre no
minalismo e realismo não c apenas, dc fato, uma diferença
lógico-intelectual, mas uma diferença psicológica que redun
da, em última análise, numa diversidade típica da disposi
ção psicológica respeitante ao objeto. O indivíduo idealmente
disposto compreende e raciocina segundo o ângulo da idéia.
O objetivamente disposto compreende c raciocina segundo o
ângulo da sua percepção. O abstrato está, para ele, cm segundo
lugar e, por isso, o que tenha de pensar-se das coisas é o
menos essencial, ao contrário do primeiro indivíduo. O ob
jetivamente disposto é naturalmente nominalista — "o nome
c ruído e fumaça” — enquanto não tiver aprendido a com
pensar a sua disposição orientada paia o objeto. Quando
isto acontece, ele converte-se então, se para tal dispuser dos
dotes apropriados, num lógico muitíssimo penetrante, não
havendo quem lhe ganhe em exatidão, método e sec.ira. Por
outro lado, o indivíduo idealmente disposto é naturalmente
lógico, motivo por que, no fundo, é incapaz de compreen
der ou apreciar o manual da Lógica. A evolução no sentido
da compensação do seu tipo converte-o, como já vimos tam
bém em T e r t u .i a n o , num apaixonado homem de sentimen
to, mas cujos sentidos ficam circunscritos ao domínio do ba
nimento de suas ideias.
Com essa íeflexão chegamos ao aspecto sombrio do pen
samento de A b e l a r d o . O seu intuito de solução é parcial.
Se no contraste entre o nominalismo c o realismo se tratasse
apenas de uma questão lógico-intelectual, seria difícil de en
tender por que não se encontraria outra formulação final
além da paradoxal. Ora, como o que está cm causa é um
contraste psicológico, uma formulação lógico-intelectual par
cial terá de acabar em paradoxo. — Sic et homo ct nullus
homo species vocitaiur. — A expressão lógico-intelectual é
simplesmente incapaz, nem mesmo na forma de sermo, de
proporcionar a criação da forma intermédia que conceda em
pé de igualdade, a cada uma das disposições psicológicas
opostas, a substância que respectivamente lhes pertence, vis
to que se situa completamente no lado abstrato e é impos
sível que reconheça a realidade concreta.
Toda a formulação lógico-intelectual — por muito per
feita que seja - apaga a vivacidade e o imediatismo da impVessão objetiva. E assim deve proceder inteiramente, para
poder chegar a uma formulação. Mas dessa maneira se per
80
TIFOS PSICOLÓGICOS
de também, precisamente, o que a disposição extrovertida
considera mais essencial, a saber, a relação com o objeto real.
Não existe, por conseguinte, a menor possibilidade de chegar,
por meio de uma ou outra disposição, a uma fórmula unifi
cadora que se possa, de algum modo, considerar satisfató
ria. Entretanto, o homem também não pode — ainda <jue
seu espirito pudesse — manter-se nesse dilema, visto que se
trata de uma dissensão que náo constitui, meramente, o tema
de uma l ilosofia remota, mas, pelo contrário, é o próprio pro
blema, cotidianaincnte confirmado, da relação do homem con
sigo mesmo e com o mundo. Iü precisamente porque se trata
desse problema, no fundo, é que não pode ser solucionado o
dilema mediante a discussão de argumentos nominalista:* e
realistas. A soluçá:> exige um terceiro ponto de vista con
ciliador. Ao esse i» intellectu falta a realidade palpável ao
esse in re falta o espírito. Ora, a ideia o a coisa encontram-se na psique do homem, a qual estabelece o equilíbrio en
tre idéia e coisa. No fim de contas, o que é a idéia, sc a
psique não lhe facultar um valor vital? Que é a coisa ob
jetiva, se a psique a privar da força condicional da impres
são sensível:' £ o que c a realidade senão uma realidade em
nós próprios, um esse in anima? A realidade vital não é dada
exclusivamente pelo comportamento efetivo, objetivo, das
coisas, nem pela fórmula ideal, mas em conseqüência de uma
conjugação desse comportamento e dessa fórmula, dentro do
processo psicológico vital, graças ao esse in anima. Só por
meio da atividade vital específica da psique a percepção
sensível atinge a prolundidade impressiva e a idéia de Jorça
eficiente que são parte integrante c indispensável de uma
realidade vital. A atividade própria da psique, que não po
de explicar-se por uma reação reflexa à excitação dos íentidos (estimulo scnsorial) nem considerando-a o órgão exe
cutivo de idéias eternas, é, como todos os processos vitais,
um contínuo ato criador. A psique cria diariamente a rea
lidade. Só encontro uma expressão para designar essa ativi
dade: a fantasia. A fantasia tanto é sentir como pensar, tan
to é intuitiva como perceptiva. Não há função psíquica que
não se encontre nela, em associação indifcrenciável com as
demais funções psíquicas. Tão depressa se apresenta com
caráter primordial como sob o aspecto de produto final e
temerário da concentração de todas as capacidades. For
isso a fantasia mc parece ser a mais elara expressão da ati-
O FROBLEM A DOS TIPOS N A H ISTÓRIA ANTIGA
81
vidade psíquica específica. C, sobretudo, a atividade cria
dora que prccura uma resposta para todas as indagações con
testáveis, a mãe de todas as possibilidades, na qual se en
contram vitalmente vinculados, como todos os extremos psi
cológicos, tanto o mundo interior como o exterior. A fanta
sia sempre foi e continua sendo o elemento que serviu de
ponte entre os requisitos irreconciliáveis de objete e sujeito,
de extroversão e introversão.
Só na fantasia se encontram unidos ambos 0 5 mecanis
mos.
Se Abelardo se tivesse aprofundado até chegar ao reco
nhecimento da diversidade psicológica dc ambus os pontos
de vista, sem dúvida teria necessitado, conseqüentemente,
da fantasia para formular a sua expressão unificadora. Mas
a fantasia é tabu no domínio da ciência, bem como no do
sentimento. Se reconhecermos, porém, o caráter psicológi
co do contraste fundamental, a Psicologia será obrigada a re
conhecer não só 0 ponto dc vista do sentimento como o
ponto de vista intermediário da fantasia. Mas aqui surge
a grande dificuldade: a fantasia é, na sua maior parte, um
produto do inconsciente. Contém, indubitavelmente, uma
parcela de consciência, mas é típico da fantasia que seja
essencialmente involuntária e se revele como algo alheio ao
conteúdo consciente. Tem essas qualidades cm comum com
o sonho, se bc*m que este seja ern muito maior grau, inega
velmente, involuntário e estranho. A relação entre o ho
mem e a sua fantasia está em grande parte condicionada pela
natureza das suas relações com o inconsciente em geral. E
essa relação, por sua vez, está especialmente condicionada pe
io espírito da época. Segundo o grau de predomínio do racionalismo, assim o indivíduo se inclina mais ou menos a
admitir o inconsciente e seus produtos. A esfera cristã, como
toda a forma religiosa completa, revela a tendência indubi
tável para reprimir, tanto quanto possível, o inconsciente no
indivíduo, assim paralisando nele a fantasia. A religião subs
titui-a por intuições simbólicas de plasticidade acentuada,
que pretendem equivaler completamente ao inconsciente in
dividual. As representações simbólicas de qualquer religião
são sempre condensações dos processos inconscientes, numa
forma típica e de fácil acesso. Por assim dizer, a doutrina
religiosa oferece notícias definitivas sobre as “coisa> finais”,
sobre o além da consciência humana. Onde se possa ob
82
TIPOS PSICOLÓGICOS
servar uma religião prestes a nascer, veremos também como
ao próprio fundador as figuras de sua doutrina afluem como
revelações, isto é. como concretizações da sua fantasia in
consciente. As formas surgidas do seu inconsciente é atri
buída uma validade geral e acabam por substituir as fanta
sias individuais das ovitras pessoas. O Evangelho de São Muteus conservou uin fragmento desse processo na vida de Cris
to: o trecho sobre as tentações faz-nos ver como a idéia da
monarquia, surgindo do inconsciente, persegue o fundador, na
forma de uma visão do Diabo, que lhe oferece o poder so
bre os reinos da Terra. Se Cristo tivesse interpretado erro
neamente a fantasia, no sentido concretista, haveria mais um
louco no mundo. Mas ele rechaçou o coneretismo da sja
fantasia e apresentou-se ao mundo como um rei a quem esla
va submetido 0 reino dos céus. Por isso não era um para
nóico, como ficou demonstrado pelo èxito que obteve. As
opiniões expostas por alguns psiquiatras sobre a psicologia
mórbida de Cristo não passam de ridículo palavreado rarionalista, distante de toda compreensão para semelhantes pro
cessos na história ca humanidade. A forma como Cristo
apresentou ao mundo o conteúdo do seu inconsciente foi
aceita, e declarada a sua vigência universal. Assim, fica
vam todas as fantasias individuais condenadas à ilegitimi
dade c à invalidade, inclusive à perseguição por heresia, co
mo se demonstra pelo destino que teve o movimento gnóstico
e todas as heresias posteriores. Nesse sentido falara já o pro
feta Jeremias, X X III, 16. 35
“Assim falou o Senhor Zebaoth: Não obedeceis às pa
lavras dos profetas que vos fazem vaticínios. Knganam-vos,
pois predicam pela aparência de seus corações e não pela
boca do Senhor.”
25. “Ouço bem o que predicam os profetas e vaticinam
falsamente em meu nome, c dizem: eu sonhei, eu sonhei”
26. 'Que acabem já os profetas que vaticinam o falso,
que vaticinam as falsidades ardilosas de seus corações.”
27. “E querem que o meu povo esqueça o meu nome
pelos seus sonhos, que uns contam aos outros, do mesmo
modo que seus pais, por Baal, esqueceram meu nome?”
-5
As citações são extraídas da Biblia de Lutero.
O PB0I3LEMA DOS TIPOS N A H ISTÓRIA ANTIGA
83
28.
“Ura profeta que tem sonhos, que coute sonhos;
mas quem tem a minha palavra, pregue minha palavra cor
retamente . Como sc pode conciliar o trigo e o joio?, disse
o Senhor.
De maneira semelhante, vemos como no cristianismo pri
mitivo os bispos esforçavam-se por neutralizar a ação do in
consciente individual entre os monges. Uma contribuição
bastante valiosa para esse ponto de vista nos foi oferecida
pelo Arcebispo A t a n á s io de Alexandria, em sua biografia
de Santo Antônio. 30 Para edificação de seus monges, des
creve A t a n á s io as aparições, visões e tentações de alma que
assaltavam o solitário, nas horas de oração c jejum; faz-lhes
ver com quanta habilidade se disfarça o Diabo para esten
der a sua rede em torno do santo. O demônio é, natural
mente, u voz do próprio inconsciente do anacoreta, que se
revolta contra a violenta repressão da sua natureza indivi
dual. Ofereço seguidamente aos leitores uma série de cita
ções literais desse livro, que é de difícil acesso. Demons
tram, com grande clareza, até que ponto o inconsciente era
sistematicamente reprimido e desvalorizado:
"H á momentos em que não vemos ninguém e escutamos,
todavia, a ruidosa faina diabólica e é como se alguém entoas
se em voz alta um cântico; e, noutras vezes, c como se ouvís
semos as palavras da Sagrada Escritura, como se um ser
vivo as repetisse c são, justamente, as palavras que ouviría
mos se alguém estivesse lendo o Livro (Bíblia). E também
acontecia que :ios impeliam (os demónios) à oração notur
na e faziam levantarmo-nos. E enganavam-nos, apresentando-sH com o aspecto dc monges, parecidos com outros, e com
a aparição dos que pranteiam (isto é, os anacoretas). E
aproximavam-se cie nós como sc viessem dc longe e começa
vam a pronunciar palavras destinadas a enfraquecer o en
tendimento do pusilânime: ‘Sobre a criação impera hoje
uma lei que diz para amarmos a devastação, mas pela von
tade de Deus fomos incapazes de entrar em nossas casas,
quando chegamos, para fazer o certo’. E quando náo con
seguem impor sua vontade dessa maneira, substituem esse
artifício por outro e dizem: ‘Como é possível que vivas? Pois
tu cometeste pecado e obraste injustamente nalgumas coi
30 Life of St. Anthony, no The Book of Paradise, por Palladios,
I linVoNVMUs, etc. Edição de E. A. W a llis Budce.
84
TIPOS PSICOLÓGICOS
sas. Julgas que o espírito não me revelou o que fizeste e
que não sei que fizeste isto e aquilo?' Por isso, quando um
irmão ingênuo escuta essas palavras e sente, no íntimo, que
agiu efetivamente assim, tal como o Maligno líie disse, c
quando não conhece a astúcia do Maligno, então seu espí
rito fica depressa confuso, desespera-se e sofre uma recaída.
Não é necessário, ó amados meus, que nos assustemos com
tais coisas, mas devemos temer que o Diabo comece a falar
ainda das coisas que são verdadeiras c então devemos invec
tivá-lo severamente... Devemos, por isso, estar vigilantes
e não dar ouvidos às suas palavras, ainda que essas palavras
por ele ditas sejam as palavras da verdade. Pois seria uma
vergonha que chegasse a ser nosso mentor piecisamentc aque
le que se rebelou contra Deus. E enverguemos, ó irmãos
meus, a armadura da justiça, e coloquemos o elmo da Reden
ção, e no instante da luta desfechemos, com a convicção da
nossa crença, as flechas do espírito, como de um arco tenso.
Pois o diabo nada é, em absoluto, c mesmo que fosse algo,
nada haveria em sua força capaz de resistir ao poder da Cruz.”
Contou Antônio: “Uma vez apareceu-me um demônio
de modos bastante soberbos e atrevidos, e aproximou-se com
o estrondo tumultuoso de uma multidão, atrevendo-se a di
zer-me: — Eu e só eu sou, precisamente, a força de Deus;
cu e só eu sou o senhor dos mundos. — K continuou a ff.lar:
— Que desejas, que queres que eu te dê? Pede e receberás.
— Então soprei nele e o rechacei em nome de Cristo...
Noutra ocasião em que cu jejuava, o Maligno apareceu-me
na figura de um innão que me trazia pão e começou a dar
conselhos e a dizer-me: — Levanta-te v acalma teu coração
com pão e água, descansa um pouco de teu esforço ingente,
pois és um ser humano e por muito alto que ergas teu espí
rito, habitas num corpo mortal sujeito a doenças e aflições
carnais. — Meditei então suas palavras, conservei minha tran
qüilidade e reservei a minha resposta. Tranqüilamente, in
clinei-me, fiz penitência e, orando, supliquei: — O Senhor,
acaba com ele, assim como costumavas sempre faz*»r! — Mal
terminara de proferir tais palavras, a aparição desvaneceu-se
como pó e abandonou minha porta como fumaça”.
“E certa noite acercou-sc Satã de minha casa, batendo
à minha porta, e cu saí para ver quem chamava. Enxerguei
o vulto de um homem extraordinariamente alto c robusto e
quando lhe perguntei quem era. respondeu da seguinte manei
O PRO BLEM A DOS TIPOS N A H ISTORIA ANTIGA
85
ra: — Sou Satã. — Então eu disse: — Que buscas tu? — E ele,
em resposta, perguntou: — Por que me afrontam os monges
e anacoretas, e os demais cristãos, e por que acumulam in
cessantemente suas maldições sobre mim? — Levei as mãos
à cabeça espantado de sua tolice sem nexo, e repliquei: —
K tu, por que os atormentas? — Então me respondeu assim:
— Não sou eu quem os atormenta, mas eles que se atormen
tam a si próprios, pois em certa ocasião ocorreu-me, o que
realmente assim ocorreu, que se não lhes tivesse dito que eu
sou o inimigo, ter-me-iam roubado a vida para sempre. Por
esse motivo não há sítio onde eu possa estar, nem espada
refulgente, nem mesmo homens que sejam meus vassalos,
pois os que me servem desprezam-se profundamente e tenho,
além disso, de conservá-los acorrentados, pois nãc sentem
por mirn a menor simpatia e acham justo assim proceder,
estando sempre dispostos a fugir de mim na primeira opor
tunidade. Os cristãos encheram o mundo e vede como até
os desertos estão cheios de conventos e cenóbios. Pois que
tenham cuidado se acumulam difamações e insultos sobre
mim. — Então, admirado da misericórdia de nosso Senhor, eu
disse: — Como pode ser que' tu digas agora a verdade, se
sempre mentiste? K como ê que dizes agora a verdade, es
tando acostumado h mentira? fí certo que tu. quando Cris
to veio ao mundo, foste despenhado nos profundos abismos
e da terra foram extirpadas as raízes daninhas do teu erro.
— E quando Satã ouviu o nome de Cristo, desapareceu sua
figura e cessaram suas palavras.”
As transcrições acima demonstram como o inconsciente
do indivíduo cia recliayado, com o auxílio da fé universal
e apesar dele exprimir de um modo transparente a verdade.
A rccusa cm aceitar o inconsciente tem suas razões espe
ciais na história do espírito. Não nos interessa, por agora,
esclarecer pormenorizadamente essas razões. Será bastante
o fato do inconsciente ter sido reprimido. Esta repressão
consistiu, no plano psicológico, numa subtração da libido, da
energia psíquica. A libido assim obtida serviu para a cons
trução e desenvolvimento da disposição consciente, p**lo que
foi gradualmente se definindo uma nova concepção do mun
do. As indiscutíveis vantagens assim obtidas viriam a con
firmar, naturalmente, essa disposição. Não constitui, por
tanto, nenhum n iíagre o fato da nossa psicologia caracterizar
ão por uma atitude em que se destaca, de modo acentuado,
a resistência ao inconsciente.
86
t ji^ s
r s ic o i.ó c ic o s
É não só compreensível, mas necessário, que as ciên
cias excluam tanto o ponto de vista do sentimento coinc o
da fantasia. K como deve agir a Psicologia? Na medida em
que. se considere uma ciência, agirá de maneira idêntica.
Mas dará satisfação dessa maneira, aos seus objetivos pró
prios? Toda e qualquer ciência procura, de maneira exclu
siva, formular c expressar o seu tema através de abstrações,
polo que a Psicologia também poderia e. dc fato, pode, apreen
der os processos da sensação, da percepção o da fantasia em
abstrações intelectuais. Dessa maneira ficaria asseguraJa a
legitimidade do porto de vista abstrato-inteleetual, mas não
a dos demais pontos de vista psicológicos possíveis. Estos, nu
ma Psicologia cientifica, só podem ser enunciados, mas não
ratificados, como princípios independentes de uma ciência.
Em qualquer circunstância, a ciência é sempre um assun
to do intelecto, e as demais funções psicológicas estão-lhe
submetidas como objetos.
No campo da ciência, o in
telecto c soberano. A questão é diferente quando se trata
da aplicação prática da ciência. O intelecto, que antes era
soberano, fica convertido agora num simples instrumento au
xiliar. um instrumento científico bastante aperfeiçoado, sem
dúvida, mas apenas um utensílio que já não é um fim em si
mesmo, mas uma pura condição. () intelecto e, com ele. a
ciência, estão aqui a serviço da força e do propósito criado
res. Ainda se poderá dizer que estamos na presença de uma
"Psicologia”, mas já não mais de uma ciência; é uma Psico
logia na mais ampla acepção da palavra, uma atividade psi
cológica de nattuc/.* criadora em que à fantasia produtiva so
atribui a primazia. Em vez de falarmos do fantasia produ
tiva, poderíamos dizer que, nessa Psicologia prática, incum
be à vida o principal papel; na verdade, por uma parte, e
a fantasia produtiva que se serve da ciência como de um
instrumento, mas, por outra parte, são os múltiplos requisi
tos e exigências da realidade exterior que estimulam a ativi
dade criadora da fantasia. A ciência, como fim em si mesma,
é sem dúvida um elevado ideal, mas a sua realização conse
qüente dá lugar a tantas finalidades próprias quantas as dências e artes que existem. Este fato acarreta, evidentemente,
uma alta diferenciação e especialização dc* funções, segundo
cada caso, mas redunda, ao mesmo tempo, num distancia
mento do mundo e da vida. além dc unia acumulação de
zonas especializadas que acabam por perder toda a cone
O PRO BLEM A DOS TIPOS N A HISTORIA ANTIGA
87
xão íntima. Dessa maneira, começa não só um empobreci
mento e deserção das diversas zonas especializadas, como da
própria psique do homem, ao elevar-se na sua diferenciação
de especialistas ou ao desacreditá-la.
Ora, a ciência tem de provar o seu valor vital demons
trando que pode ser não só senhora, mas serva também. De
maneira alguma ficará desonrada por isso. A ciência levou -nos, sem d ú vicia, ao conhecimento das desigualdades e per
turbações da psique, motivo por que o intelecto, que nela
tem a sua sede, nos merece a maior consideração; contudo,
é um grave erro inventar para ela uma finalidade própria
que a incapacita para ser usada como simples instrumento.
Mas ao penetrarmos com o intelecto e sua ciência na vida
real, percebemos imediatamente que nos encontramos dentro
de um limite que serve de fronteira intransponível para se
atingirem outras zonas vitais de idêntica realidade. Somos
assim coagidos a conceber a universalidade do nosso ideal
como uma limitação e a lançarmo-nos na busca de um spiritus rcctor que cm face dos requisitos da vida plena nos ofe
reça uma garartia maior de universalidade psicológica da
que c suscetível de alcançar-se unicamente pelo intelecto.
Quando Fausto exclama, “O sentimento é tudo", exprime as
sim o inverso do intelecto e apodera-se de um aspecto distin
to. mas não da totalidade da vida e. com ela, da própria psi
que, que reúne sentir c pensar numa terceira coisa superior.
Esta terceira coisa superior pode ser concebida, como já sub
linhei, tanto no sentido de uma finalidade prática como no
sentido dn finalidade da fantasia criadora. Esse propósito da
totalidade não pode ser reconhecido pela ciência, que é um
fim em si mesma, nem pelo sentimento, a que falta o poder
de visão do pensamento. Um terá de servir-se do olitro como
instrumento, mas o contraste entre ambos é de tal monta que
se torna necessária uma ponte que supere ambos os domínios.
Tal ponte é propiciada pela fantasia criadora. Não é nem
uma nem outra coisa, por ser a matriz de am bas... mais
ainda, está grávida com o fruto cuja fecundação é a finali
dade que une os contrários.
Se a Psicologia continuar sendo uma ciência exclusiva
mente para nós próprios, não chegaremos a apreender a vida,
pois estaremos servindo apenas ao próprio fim científico.
Conduz-nos, sem dúvida, ao conhecimento do estado de coi
88
TIPOS PSICOLÓGICOS
sas, mas resiste a qualquer outra finalidade que não seja a
que lhe é própria. O intelecto conserva-se preso em si inesmo enquanto não sacrificar sua primazia, de moto próprio,
para reconhecer a dignidade de outros propósitos. Terre a
iniciativa de sair dc si mesmo e de negar a sua validade uni
versal, visto que, para o intelecto, tudo o que lhe for alheio
não possa de fantasia. Mas terá existido jamais algo de gran
dioso que não fosse antes fantasia^-. *De tal modo o intelec
to anquilosado estanca a fonte'da vida, para si mesmo, na
finalidade própria ;la ciência. Para ele, a fantasia apenas ó
um sonho de desejo, justificando assim todo o menosprezo
tao bem acolhido como indispensável à ciência. Como fim
próprio, a ciência e indispensável, na medida em que sc
trate de promover o desenvolvimento da ciência. Mas isto
passa a ser um mal quando o que é preciso fomentar é
o desenvolvimento da vida. Por isso foi uma necessidade his
tórica, no processo cultural cristão, reprimir a fantasia livre
mente criadora, e do mesmo modo foi também fundamental
para a nossa época científica a repressão, noutro aspecto, da
fantasia. Não devemos esquecer que a fantasia criadora po
de facilmente redundar numa prolixidade bastante perni
ciosa sc não criarmos para ela os adequados limites. Tais
limites, porém, não são as fronteiras artificiais levantadas pe
lo intelecto ou p*?lo sentimento racional, mas os que estão
implícitos na necessidade c na realidade incontestáveis Ca
da época tem sua missão distinta e só depois é possível afir
mar com segurança o que teve de acontecer e o que não devia
ter acontecido. No presente de cada época predominará sem
pre o duelo entre as convicções, pois a “guerra 6 a mão de
todas as coisas”. 37 Só a história decide. A verdade não é
eterna, mas um programa. Quanto "mais eterna'’ uma ver
dade for, tanto mus carente de vida e de valor será paia nós,
pois já nada nos diz ao ser inteligível por si mesma.
O valor que a Psicologia, enquanto ciência, apenas, con
fere à fantasia, está demonstrado nas conhecidas opinióes de
F b e u d c A p l e r . A interpretação freudiana reduz a fantasia
aos processos insrintivos causais e elementares. A concepção
de A d l k r , pelo contrário, aos desígnios elementares e finais
do eu. A primeira é uma Psicologia do instinto e a segunda
37 J ltR Á C L iT o . Cf. H krm aíw
kraliker, Vol. 1, pág. 88, $ 53.
D ie ls ,
Die Fragmente dc- Vorso-
O PROBLEM A DOS TIPOS N A HISTORIA ANTIGA
89
uma Psicologia do eu. O instinto é um fenômeno biológico,
impessoal. Uma Psicologia nele baseada terá de deixar na
turalmente o eu num plano secundário, visto que o eu deve
sua existência a um principium individualionis, à diferencia
ção individual, que não constitui um fenômeno biológico ge
ral. dado o set caráter de individuação. Embora as forças
biológico-instintivas gerais possibilitem a constituição da per
sonalidade, ó isso, justamente, o que toma o instinto indivi
dual essencialmente distinto do geral e encontra-se r:té nuin
contraste mais positivo com ele. tal como o indivíduo, como
personalidade, diferencia-se sempre e notoriamente da cole
tividade. Sua essência consiste, precisamente, nessa diferen
ciação. f'. por isso que a Psicologia do eu tem de excluir e
omitir sempre o coletivo da Psicologia do instinto, dado que
descreve o processo do eu e este é diferente do instinto cole
tivo. A característica hostilidade entre os adeptos de ambos
os pontos de visla c devida ao fato de que um pressupõe, con
seqüentemente, a desvalorização c rebaixamento do outro,
pois. enquanto não for reconhecida a diferenciação da Psico
logia do instinto e Psicologia do eu, tanto um lado como o
outro atribuirão, fatalmente, validade geral à respectiva teo
ria. Não se pretende afirmar, de modo algum, que a Psico
logia do instinto, por exemplo, não possa estabelecer uma
teoria do processo do eu. Pode perfeitamente faze-lo, mas
de um modo c feição que ao psicólogo do eu parecerá uma
negativa da sua própria teoria. Por tal motivo acontece em
F r e u d que os "instintos do eu” manifestem ocasionalmente
sua presença, sen dúvida, mas no mais importante tenham de
conformar-se con uma existência modesta. Em A d l e r , pelo
contrário, a sexualidade apareceu quase como um simples
veículo, a serviço dos desígnios elementares do poder, de
um ou outro modo. O princípio adleriano consiste em ga
rantir o poder pessoal, que se sobrepõe aos instintos gerais.
Quanto a F r e u d , é o instinto que subordina o eu, quer dizer,
6 o eu quem aparece em função do instinto.
Em ambos cs autores, a tendência científica consiste em
reduzir tudo ao próprio princípio e, por conseguinte, em de
duzir tudo do n.esmo. Essa operação pode realizar-se com
bastante facilidade nas fantasias, pois estas não se adaptam
realidade com o mesmo caráter objetivamente orientado
das funções conscientes, mas agem de acordo com o instin
to e com o eu. Para quem se colocar no ponto de vista do
90
TIPOS PSICOLÓGICOS
instinto, achará fácil encontrar a "satisfação do desejo”, o
‘'desejo infantil” e a "sexualidade reprimida”. Quem se si
tuar no ponto dc vista do eu, encontrará com idêntica facili
dade os desígnios elementares que buscam alcançar a segu
rança e a diferenciação da personalidade do cu, pois as fan
tasias são produtos intermediários que se localizam entre o
eu e o instinto geral. Neste sentido, contém elementos dc
ambas as partes. A interpretação que se faça a partir de
uma ou outra das partes terá de ser sempre, por conseguinte,
algo violenta e arbitrária, pois acarretará sempre a repressão
de um dos caracteres. Mas, de modo geral, obter-se-á, entre
tanto, uma verdade demonstrável, se bem que seja apenas
parcial e não possa pretender uma ratificação universal para
a sua validade, qr.e não excede os limites do seu próprio
princípio. Na esfera do outro princípio, essa mesma verda
de é inválida. A Psicologia de F r e u d caracteriza-se pelo con
ceito central de repressão das tendências dc desejos incom
patíveis. O homem surge como um aglomerado dc desejos
que só cm parte são ajustáveis, no que se refere ao seu ob
jeto. As dificuldades neuróticas do homem resultam do fato
de o influxo do meio, a educação e as condições objetivas im
pedirem. em parte, que os instintos operem à sua própria ma
neira. Do pai e da mãe provêm influxos, em parte morais,
que são a origem de dificuldades e vínculos, em parte in
fantis. que comprometem a evolução da vida ulterior. A dis
posição instintiva original é um algo dado e imutável que,
sobretudo por causa de influxos objetivos, sofre modificações
perturbadoras; por isso sp impõe como remédio necessário o
desafogo dos instintos, da maneira menos perturbada possí
vel, em relação a objetos convenientemente selecionados. Pe
lo contrário, a Psic-ologia de A d l e r caracteriza-se pelo concei
to central da superioridade do eu. O homem revela-se, em
primeiro lugar, como um ponto egocêntrico que de maneira
alguma deve submeter-se ao objeto. Ao passo que em F r e u d
a apetência do objeto, o vínculo com o objeto c a natureza
impossível de certos desejos, no que se refere ao objeto, re
presentam um papel importante, em A d l e r tudo se orienta
no sentido da superioridade do sujeito. O que em F r eu d
é a repressão do instinto cm face do objeto, em A d ler é a
segurança do sujeito. Em A d l e r , o remédio é a supiessão
da segurança isolante; cm F r e u d , a supressão da repressão
que torna o objeto inacessível.
O PROBLEM A DOS TIPOS NA HISTORIA ANTIGA
91
O esquema fundamental é para F r e u d , portanto, a se
xualidade, que exprime a relação mais forte entre sujeito e
objeto; para A d l e r , porém, é o poder do sujeito que. da ma
neira mais eficaz, garantirá a sua segurança ante os obje
tos, proporciorando-lhe um isolamento inexpugnável e su
pressor de todas as relações. F r e u d queria garantir a afluên
cia tranquila dos instintos, no sentido dos seus objetos res
pectivos. ADLi:n, ao contrário, queria vencer a proscrição
hostil dos objeros a fim de emancipar o eu do jugo de sua
própria armadura. Parece, portanto, que o primeiro ponto
de vista seja o extrovertido e o segundo o introverido. A
teoria extrovertida é válida para o tipo extroveilido, ao pas
so que a introvertida é válida para o tipo introvertido. Na
medida em que o tipo puro é um produto de evolução com
pletamente unilateral, falta-lhe equilíbrio, naturalmente. A
excessiva ênfase de uma função subentende o mesmo grau
de repressão de outra. A repressão também não é anulada
pela Psicanálise, na medida em que o método aplicado em
cada caso estiver orientado segundo a teoria apropriada ao
respectivo tipo. O que, na verdade, o extrovertido fará, por
tanto, será reduzir ao seu conteúdo instintivo as fantasias
que emergem do seu inconsciente, de acordo com a sua teo
ria. O introverido. pelo contrário, reduzirá as fantasias aos
.seus intuitos de poder. Num e noutro caso, o que se conse
gue com tal análise é, unicamente, a consolidação do tipo
já existente, dificultando ainda mais a compreensão ou a me
diação entre os tipos. Bem polo contrário, a brecha ainda
mais se dilata, tanto exterior como interiormente. No íntimo
gera-se também uma dissociação, desde o momento em que
as partículas da outra função que, segundo os casos, surjam
nas fantasias inconscientes (sonhos, etc.), forem desvdorizadas e reprimidas. Por esse motivo um certo crítico teve ra
zão, até certo ponto, ao afirmar que a teoria de F rf.itd era
uma teoria neurótica, abstraindo, evidentemente, do fato des
sa expressão ser mal-intencionada, e unicamente tende a fu
gir á obrigação de ocupar-se honestamente dos problemas
debatidos. Tanto o ponto de vista de F r e u d como o de A d l e r
são parciais e caracterizam unicamente um tipo.
Ambas as teorias adotam uma atitude de repulsa com
respeito ao princípio da imaginação, desde o momento em
que reduzem as fantasias ao ponto de as considerarem ape
92
TIPOS PSICOLÓGICOS
nas uma expressão semiótica.38 Mas, na realidade, as fan
tasias pressupõem mais do que isso; são, com efeito, repre
sentantes do outro mecanismo, quer dizer, no introvertido,
da extroversão reprimida, e no extrovertido, da introversão
reprimida. Mas a função reprimida é inconsciente, logo ru
dimentar. embrionária e arcaica. Em tal estado, é incom
patível com o nível superior da função consciente. O que
há dc inaceitável na fantasia promana, sobretudo, dessa ca
racterística peculiar da função básica não-reconhecida.
Nessas condições, a imaginação constitui algo recusável
e imprestável para quem considerar princípio fundamental a
adaptação à rcalidacíe exterior. Entretanto, sabe-se que toda
boa idéia e todo a:o criador da imaginação são oriundos e ti
veram seu início naquilo a que costumamos chamar a fan
tasia infantil. Não só o artista 6 devedor à fantasia das mais
altas horas de inspiração e criação de sua vida, como todo
o espírito criador do homem. O princípio dinâmico do fan
tasia é a sua natureza lúdica, que também se assinala nas
crianças e que, por isso mesmo, parece incompatível com os
princípios do trabalho sério. Mas iamais se fez obra cria
dora sem esse jogo de fantasias. É incomensurável o que
devemos ao jogo da imaginação. Considero, portanto, uma
verdadeira falta de visão menosprezar a fantasia por sua na
tureza aventurosa ou reprovável. Não se deve esquecer que
o mais valioso de um homem pode residir, precisamente, na
sua imaginação. Digo intencionalmente pode, visto que, por
outro lado, as fantasias carecem de valor sempre que não se
jam aproveitáveis em sua forma de matéria-prima. Para se
obter o que de mais valioso nelas existe, é necessário uma
evolução das mesmas.
Fica por resolver a questão de apurar se o contraste en
tre ambos os pontos de vista poderá ou não ser equilibrado
intelectualmente, de um modo satisfatório. Embora, tendo
em devida conta o seu sentido, a tentativa de A b e l a r d o
deva ser profundamente apreciada, ela não atingiu, porém,
resultados práticcs dignos de menção, já que não foi possí
*9 Digo "senvótico” por contraste com “simbólico”. Arjuilo a
que Fhkltd chama símbolos não são outra coisa senão signos dos proces
sos instintivos elementares. Ora, um símbolo é a melhor cxpresíSo pos
sível de um estado de coisas rp*c não pode ser expresso de outra ma
neira senão numa analogia mais ou menos aproximada.
O PROBI.EM A DOS TIPOS NA H IST Ó R IA ANTIGA
93
vel estabelecer uma função psicológica intermediária e teve
de conformar-se com o conceptualismo ou sermonismo, que
parece constituir apenas uma nova e parcial edição da velha
idéia do logos. Como intermediário, o logos desfruta a van
tagem, em relação ao sermo, de alimentar também esperanças
não-intelectuais, na sua maneira humana dc apresentar-se.
Não posso deixar de sublinhar a minha impressão de que
A b e i . au do , espírito brilhantíssimo que possuía a nviis pene
trante compreensão do Sic et Non, 0 não se teria contentado
com o seu conceptualismo paradoxal se um impulso apaixo
nado, que o levou a seu trágico destino, não o tivesse desvia
do dc seu rumo. Para melhor se fundar essa impressão, con
vém estabelecer o contraste com os grandes pensadores chi
neses L a o T sb e T c h u a n c T s e ou com S c h il l e r , que con
jugaram seus próprios problemas com o conceptualismo.
5.
A Disputa Sobre a Comunhão Entre Lutero c Zuínglio
Entre os contrastes mais recentes que impressionaram os
espíritos, devemos citar, sem dúvida, o protestantismo e o
movimento da Reforma. Trata-se, porém, dc um fenômeno
de tal modo complexo que teríamos de decompô-lo em diver
sos processos separados a fim dc poder scr alvo de um mais
profundo exame analítico. Minha capacidade não vai até
esse ponto, 'lerei dc conformar-me, portanto, em destacar
um único caso isolado, nessa grande controvérsia de espíri
tos: a disputa sobre a comunhão, travada entre L u t e r o e
Zuí.nglio. A ebutrína da transubstanciação, a que já me re
feri anteriormente, foi sancionada em 1215 pelo Cor.cílio de
Latrão e, desde esse momento, passou a constituir uma firme
tradição de fé, sob cuja influência L u t e r o se formou. Em
bora a própria idéia de que uma cerimônia e sua prática con
creta possam ter um significado sagrado c objetivo já seja, por
si só, um tanto antievangélica, desde o momento em que a
orientação evangélica entrava em revolta contra as institui
ções católicas, L u t e r o não podia, contudo, libertar-se da efe
0
Sic ct Non ê também o titulo dc uma das
do Pedro Auei,areo, dela dizendo Evei.yn U nd krhell (em
que significou "a introdução da dialética c da especulação
na Teologia, dando-lhe o caráter de uma nova ciência”. (N.
principais obras
Áfysticism)
racionalista
do T.)
TIPOS PSICOLÓGICOS
tiva e sensual impressão imediata da comunhão do pão e do
vinho. Reclama, portanto, a presença real do corpo e do
sangue de Cristo na eucaristia, que é a recepção do corpo e
do sangue de Cris:o “em e durante” a consumição do pão
e do vinho. O significado religioso da vivência imediata c
sem intermediação 110 objeto era tão grande para L u t e r o
que mesmo sua idéia se sentia donvnada pelo atrativo concretista de uma presença material do corpo sagrado. Assim,
seus intuitos esclarecedores partem todos do seguinte rato:
a presença concreta do corpo de Cristo, ainda que "sem di
mensão no espaço*. Apoiando-se na chamada doutrina da
consubitanciação, icconhecia que, com a enhstància do pão
e do vinho estava também presente, na realidade, a substân
cia do corpo sagrado. A ubiqüidade do corpo de Cristo
que essa suposição exigia e que faz que o ser humano con
ceba importantes perturbações foi substituída, é certo, pelo
conceito de onipotência, que equivale a dizer que Deus está
presente onde quiser. Para além de todas essas dificulda
des, L u t e r o pôde obter, firme e intrépido, a vivência ime
diata da impressão sensivel. preferindo buscar a transação,
com todos os temores próprios do entendimento humano e
recorrendo a explicações em parte absurdas e em parte insu
ficientes. Apenas é aceitável o fato de que somente o poder
da tradição fez que L u t e r o se mantivesse fiel a esse dogma,
pois ele demonstrou amplamente que sabia desembaraçar-se
das formas tradicionais da fé. Não nos equivocaremos, com
certeza, se supusermos que foi, precisamente, o contato com
o “roal” p material da comunhão aquilo que, do ponto de
vista do sentimento, estava incluso, para L u t k r o , no princí
pio evangélico — quer djzer, no princípio de que o Verbo e
o portador exclusivo da graça. Por conseguinte, para ele era
certamente a pakvra que tinha significação redentora, mas
com ela e além dela a comunhão era a transmissora da gra
ça. Como já dissemos, isto só aparentemente seria uma con
cessão às instituições da Igreja Católica, visto que, na rea
lidade, constituía apenas um reconhecimento, exigido pela
Psicologia de I .u ik r o , do sentimento baseado na vivência
sensível e imediata.
ZuixcLio opõs-sc ao ponto dc vista luterano ao defen
der a pura concspçâo simbólica. Para ele, trata-se mera
mente de uma consumição '‘espiritual” do corpo e do sangue
de Cristo. Esse critério está caracterizado pela razão e por
O PRDBl.ENíA DOS TIPOS N A HISTORIA ANTIGA
95
uma concepção ideal da cerimônia. Tem a vantagem de não
afetar o princípio evangélico e de evitar, simultaneamente,
todas as hipóteses contrárias à razão. Mas essa concepção
não leva em conta aquilo que L u t e r o queria manter, que
era a realidacie da impressão sensível e seu valor especial,
do ponto de vista do sentimento. Por certo Z u ín c l io mi
nistrava também a comunhão c fazia consumir o pão e o
vinho, tal cono L u t e r o . Não obstante, sua concepção não
continha a fórmula que refletisse, de maneira apropriada, o
valor da perctpção e os sentimentos característicos do pon
to de vista objetivo. L u t e r o oferecia uma fórmula, mas esta
chocava-se com a razão e com o princípio evangélico. Isso
r indiferente do ponto de vista da percepção e cio sentimen
to, e com certf. razão, pois à idéia, ao "princípio”, pouco im
poria a percepção concreta do objeto. Em última análise,
ambos os pontos de vista se excluem reciprocamente.
Para a concepção extrovertida, a formulação luterana ofe
rece uma vantagem, para o ponto de vista ideal, a zuingliana.
Embora a fórmula de Z u ín c l io não violente o sentimento e
a percepção, reduzindo-se a oferecer uma concepção ideal,
é evidente que dá margem a uma ação objetiva. Dir-se-ia,
contudo, que o ponto de vista extrovertido não se conforma
com essa margem de liberdade, pedindo por sua vez uma
formulação em que o ideal seja acompanhado dos valores da
percepção, da mesma maneira que a formulação ideal exige
que o sentimento e a percepção a sigam.
Vou concluir o presente capítulo sobre o princípio dos
tipos na História clássica e medieval «In espírito, com a cons
ciência cie não ter feito outra coisa senão equacionar a ques
tão. A minha competência não é tanta que possa ambicio
nar. de maneira alguma, tratar cabalmente um problema tão
difícil e tão vasto, esgotando o tema. Se tiver conseguido
transmitir ao lei.or uma impressão sobre a existência de uma
variedade de pontos de vista típicos, terei cumprido a minha
missão. Necessito apenas acrescentar que estou convenci
do de que nenhuma das matérias aqui debatidas o foram
de maneira definitiva c completa. Deixo esse trabalho para
os que, sobre esses temas, possuem mais conhecimentos do
i|iic aqueles de que disponho.
II
AS IDÉIAS DE SCHILLER
SOBRE O PROBLEMA DOS TIPOS
1.
As Cartas Sobre a Educação Estética do Homem
a)
Sobre a Função de Plena Validade e de Menor Validade
a m e d id a cm que os meus limitados rccursos, aplicados
cxpeiicncia, puderam apurar, F r ie d r ic h S c h il l e r parece ser
o primeiro que tentou uma verificação consciente, mas em
grandioso estilo e com mais completa exposição de porme
nores, da diversidade de disposições típicas. Encontramos
esse notável propósito de exposição sobre as funções aqui
tratadas e de busca de uma possibilidade conciliadora no
ensaio publicado em 1795 sob o título de Über die ästhetische
Erziehung des Menschen.1 O ensaio consta, na realidade,
de u m a série de cartas endereçadas por S c h il l e r ao Duque
de Holstein-Augustcnburg.
Pela profundidade dos pensamentos, pela penetração psi
cológica da matéria c pela ampla visão da possibilidade de
uma solução psicológica do conflito, o ensaio de S c h il l e r in
duziu-me a uma análise e descrição de suas idéias como até
agora não recebeu, pelo menos, com idêntica amplitude e em
relação ao preser.te tema. Como adiante se explicará, não
é realmente pequeno o mérito de S c h i u .f r , segundo o nosso
ponto de vista psicológico. Pelo contrário, ofereceu-nos con
ceitos elaborados que só agora começam, precisamente, a me-
i
O autor utilizou a F<liçáo Cotta, 1826, Vol. 18. [Títu.o por
tuguês da obra: Sobre a Educação Estética do Homem.J
AS IDÉIAS I>E SCIULLER SOIiRE O P RO BLEM A DOS TIPOS
97
recer a atenção da nossa cicncia psicológica. A minha tarefa
não será fácil, evidentemente, pois poderia incorrer no peri
go de dar às ideias de S c iu l l e r uma interpretação de que
pudesse afirmar-se não estar nela o que ele disse e escreveu.
Na verdade, ainda que procure citar as próprias palavras do
autor em todos os trechos fundamentais, uão será possível, por
certo, inserir suas idéias no contexto ejue me proponho esta
belecer aqui, s.'m que haja uma parcela de interpretação ou
exegese. A isso me obrigará, por uma parte, a circunstância
atrás citada, mas, por outra parte, também o fato, impossível
de ignorar, de que o próprio S c iu l l e r pertence a um deter
minado tipo e que, por conseguinte, mesmo coiilia a sua von
tade, vê-se obrigado a oferecer-nos uma descrição unilateral.
A limitação das nossas concepções e conhecimentos em
parte alguma se patenteia com maior clareza como nas ex
posições psicológicas, nas quais é quase impossível projetar
outra imagem que não seja aquela cujos traços característicos
e fundamentais se encontram previamente delineados em nos
sa própria alma. l)e muitos desses traços deduzi que a ín
dole de SctULLEii pertence ao tipo introvertido, enquanto
C o e t h k (se pusermos de parte o seu intuicionismo, que a
tudo supera) se inclina mais para o lado extrovertido. Não
será difícil descobrir a própria imagem de S c h u . l e r na sua
descrição do tipo idealista. Esse fato de pertencer a um
determinado tipo impõe à sua formulação um condiciona
mento inevitável, cuja existência, em virtude de uma com
preensão mais perfeita, não podemos esquecer em momento
algum. A essp condicionamento pode, talvez, atribuir-se o
fato de uma das funções ser descrita por S c i u l l e r de um
modo mais completo que a outra e que, dessa maneira, o in
trovertido esteja incompletamente desenvolvido e mostre ain
da certas características de menor validade, justamente im
putáveis a esse desenvolvimento insuficiente.
Nesses ca
sos, a descrição por ele feita necessita da nossa crítica e cor
reção. É auto-evidente que essa limitação de S c i u l l e r deu
lugar a uma espécie de terminologia que não é aplicável num
sentido genérico. Como introvertido, S c i u l l e r entende-se
melhor com o ir.undo das idéias do que com as coisas do
mundo. A relação com as idéias é de natureza mais senti
mental ou mais especulativa segundo o indivíduo pertence
mais ou menos ao tipo determinado pelo sentir ou pelo pen
sar.
Eu gostaria de solicitar ao leitor, neste ponto, se por?
98
TIPOS PSICOLÓGICOS
ventura já estiver iniciado, por anteriores leituras, na equi
paração de sentir c extroversão, de pensar e introversão, que
tenha na devida conta as definições dadas 1 1 0 anterior capi
tulo. Nos tipos de introversão e extroversão distinguem-se
duas classes gerais de seres humanos, relativamente às quais
a classificação em tipos funcionais, como tipos determinados
pela fqpeão d<- prn^ar, gpntir perceber ou intuir, tem um
caráter de subdivisão. Um introvertido pode, por conseguinte, pertencer ao tipo determinado pelo pensar ou pelo sentir,
visto que tanto o reflexivo quanto o sentimental podem si
tuar-se sob 0 predomínio da idéia, assim como, em certos
casos, podem estar sob a influência predominante do o L je to .
Se, segundo a sua natureza e tendo especialmente em
conta o seu contraste característico com G o e t h e , eu consi
derar ScHiLLEH uir. introvertido, fica desde já por solucionar
a questão de saber a que subdivisão ele pertence. É utnu
questão difícil de resolver. Sem dúvida, o momento da in
tuição representa nele um importante papel, motivo por que
se o considerarmos exclusivamente como poeta, poderemos in
cluí-lo no tipo de homem intuitivo. Mas nas cartas sobre a
educação estctica, S c ü il l e ii apresenta-se-nos como pensador.
E não só deduzindo daqui a conseqüência, mas tendo tam
bém em conta as repetidas confissões do próprio S c w l l k k ,
sabemos até que ponto eram fortes os seus momentos de re
flexão. Nessa conformidade, teremos de encarar o seu intuicionismo em função do seu pendor pensativo, de modo
que a nossa compreensão o aborde, de preferência, do lado
da psicologia do tipo reflexivo lntroveilido. Esporo que,
daqui em diante, possa deixar suficientemente demonstrado
que essa concepção coincide com a realidade, visto não se
rem poucos os trechos das várias obras de S c m il l f .h que abo
nam em favor dessa concepção. Pedirei ao leitor, portanto,
que tenha em mente o fato de minhas considerações se basea
rem no pressuposto que acabo dc esboçar. Isto me parece
imprescindível, pois S c ii i l l e r trata o problema que se lhe
deparou tal como o extraiu de sua própria experiência ínti
ma. A formulação bastante genérica que lhe deu, tendo em
conta que outra psicologia, isto é, outro tipo de homem,
conceberia o mesmo problema em forma completamente dis
tinta, poder-se-ia considerar como um abuso ou como uma
generalização precipitada. Mas isto seria injusto, visto exis
tirem os indivíduos de uma classe para a qual o problema
AS IDÉIAS DE SCIULLER SOBRE O P R O D I.E M A DOS TIPOS
99
das funções diferenciadas apresenta o mesmo aspecto que
para S c iiil l e ii . Se cu porventura fizer sobressair, nalguns
pontos das minhas considerações seguintes, a unilateralidade e o subjetivLsmo dc S c h il l e r , nada pretendo diminuir à va
lidade e à importância do problema por cie equacionado; pelo
contrário, o que pretendo c dar margem a outras formulações.
Por conseguinte, a minha crítica comporta mais o significado
de uma transcrição para um modo dc expressão que despe
a formulação de S c h il l e r de seu condicionalismo subjetivo.
De qualquer modo. as minhas considerações adaptain-se tan
to a S c h il l e r que se propõem debater muito menos a ques
tão geral da irtroveraão c extroversão, de que nos ocupamos
exclusivamente no capítulo I, do que a questão do conflito
típico do tipo introvertido pensativo.
O que sobretudo preocupa S c h il l e r é o problema da
causa e origem da dissociação de ambas as funções. Com
penetrante visão, aponta o motivo fundamental na diferen
ciação dos indivíduos: “Foi a própria cultura que abriu essa
ferida na noví. humanidade". - Estas palavras já eviden
ciam a ampla compreensão do nosso problema, por parte de
S c h il l e r . A dissolução da ação conjunta e harmoniosa dos
poderes da alma, na vida instintiva, assemelha-se a uma fe
rida incurável e sempre aberta, uma verdadeira ferida de
Anfortas, porque o diferenciar uma função de diversas fun
ções acarreta irremediavelmente o seu excessivo desenvolvi
mento e o descaso e enfraquecimento das demais.
Escreveu S c h il l e r : "Não nego as vantagens que a ge
ração atual pode alegar, na balança do entendimento, em con
traste com o melhor do mundo pretérito; mas em filas cerra
das terá dc começar o duelo e terá dc medir-se o todo com
o todo. Quem, dentre os novos, se adianta para, homem con
tra homem, disputar ao ateniense em duelo singular o prê
mio da humanidade? Donde provém essa desvantajosa si
tuação do indivíduo, malgrado todas as vantagens da espécie?”
S c h il l e r põe a culpa na cultura, quer dizer, r.a dife
renciação de funções, por essa inferioridade dos novos. Co
meça por explicar como na arte e na erudição o entendimen
to intuitivo e o especulativo se hostilizam, mantendo mútua
e zelosamente fechadas suas respectivas zonas de influência e
-
Em Sobre :/ Educação Extática do Homem.
100
T ir o s PSICOLÓGICOS
poder. " £ com a esfera a que se restringe a própria ativi
dade, dota-se cada um, também, com um amo que, não ra
ramente, acabará impondo a repressão aos demais dotes.
Enquanto aqui devasta a opulenta fantasia das laboriosas
sementeiras do entendimento, ali o espírito de abstração é
consumido pelo fogo que poderia ter aquecido o coração e
incendiado a fantasia.’ 3
E acrescenta: "Quando o caráter comum converte em
norma a função do homem, quando num de seus cidadãos
respeita somente a memória, noutro apenas o entendimento
sinóptico, num terceiro a capacidade, mecânica; quando aqui,
indiferente ao carr.ter, só pede conhecimentos, quando ali
um espírito ordeiro e um comportamento legal dão por bom o
maior eclipse do pensamento... Se ao mesmo tempo pede
que esses dons individuais sejam tão intensos quanto a ex
tensão ern que o sujeito tenha de ceder. .. por que espan
tarmo-nos se os demais dotes do espirito não forem atendi
dos. para que se dediquem todos os cuidados e atenções àque
le que acarretar honra e proveito?” *
Encontra-se muita coisa importante nessas idéias de
£ compreensível que, em virtude do conheci
mento imperfeito que se tinha sobre o helcnismo, na época
de S c h il l e r , se avaliasse humanamente o grego tomando por
norma de aferição a amplitude das obras que a tradição
nos legou e que, por esse motivo, se sobrestimasse a sua en
vergadura de maneira exorbitante, pois a imensa beleza grega
não deve a sua cxistència, em última análise, ao contraste
com o meio onde surgiu. A vantagem do homem grego con
siste em estar menos diferenciado que o homem novo, se por
ventura quisermos ver nisso uma vantagem; pois as desvan
tagens de semelhante situação devem ser de uma eloqüência
parelha. A diferenciação de funções não obedeceu, certa
mente, a maldade alguma, mas. como sempre e em todas as
partes da natureza, à necessidade. Se um desses atrasados
admiradores do firmamento grego e das delícias arcàdicas
tivesse vindo ao mundo como hilota, por certo contempla
ria as belezas da Grécia com olhos muito diferentes. Sc bem
que nas condições primitivas do século V A. C. já se propicias
S c h il i .Kii.
s Loc. at.
•* Loc. cit.
AS IDÉIAS DE SCHILLER SODRE O P R O B LE M A DOS TIPOS
101
sem singularmente ao indivíduo grandes possibilidades para
o desenvolvimento de suas qualidades e capacidades, em todos
os aspectos, isso era devido, porém, ao fato de milhares de
seres humanos definharem, reduzidos às condições Ce maior
miséria imaginável. Em alguns casos individuais, foi atin
gida, sem dúvida, uma elevada cultura pessoal, mas a cultu
ra Coletiva c um conceito completamente estranho na anti
guidade. Era uma conquista que estava reservada ao cris
tianismo. Por conseguinte, os homens novos, como massa,
não só podem medir-se com os gregos, mas superam-nos com
grande margem, em todos os aspectos dc uma cultura cole
tiva. Por outro lado. S c i i i i .t.kh tem muita razão quando sa
lienta que a nossa cultura individual não se realizou no mes
mo ritmo da nossa cultura coletiva. E esse fato não melho
rou nos 120 anes transcorridos desde que S c h il l e r elaborou
seu trabalho, nuito pelo contrário; se com prejuízo para a
cultura individual não tivéssemos avançado ainda mais na
esfera coletiva, teriam bastado as reações violentas que fica
ram personificadas no espírito de um S t lrxkr o u do um
N ie t z s c h e . Nãc há dúvida de que as palavras de S c h il l e r
tem atualmente a mesma validade que quando foram es
critas.
Assim como a antiguidade fomentou, no tocante à evolu
ção individual, o desenvolvimento de uma elite à custa da
opressão de uma grande maioria do povo comum (hilotas, es
cravos), também na esfera cristã subseqüente se atingiu
um estado dc cultura coletiva ao fazer-se todo o possível pa
ra transpor o mesmo processo para o próprio indivíduo (clcvando-o ao grau subjetivo, como costumamos dizer). Ao
proclamar-se o valor do indivíduo mediante o dogma cristão
de uma alma imarcescível, já não podia a maioria do povo
dc validade inferior, ante a realidade da liberdade, estar sub
metida a uma minoria dc plena validade, antepondo-se então
no indivíduo a função de maior valor às funções de menor
valor. Assim se transpôs a importância cardinal a uma fun
ção valiosa única, com prejuízo para todas as demais fun
ções. Com isso sc incutiu psicologicamente no sujeito a for
ma social exterior da cultura antiga, dando lugar no indi
víduo a um estado interior que, na antiguidade, fora uma
situação exterior, quer dizer, uma função soberanamente fa
vorecida que evoluiu e diferenciou-se à custa de uma maio
ria de menor validade. Graças a tal processo psicológico,
TIPOS PSICOLÓGICOS
102
produziu-se gradualmente uma cultura que garante ao indi
víduo, sem dúvida, os droits de Yhomme numa dimensão in
comparavelmente superior à da cultura antiga, mas que, por
outro lado, tem a desvantagem de estar alicerçada numa cul
tura subjetiva de escravos, quer dizer, numa transferência
para o campo psicológico da antiga escravatura da maioria,
com o que se elevou, por certo, a cultura coletiva, maí sc
desvalorizou o nível de cultura individual. Assim como a
escravização da massa era a chaga aberta da antiguidade, a
escravidão das funções de menor validade é a ferida que
sangra incessantemente na alma do homem contemporâneo.
“A unilateralidade no exercício dos poderes condu/ ine
vitavelmente o indivíduo ao erro, mas a espécie à verdade”,
escreveu S c h il l e r . 0 A preferência dada à função de vali
dade superior pressupõe, para a sociedade, uma vantagem
essencial, mas, par?, o indivíduo, implica um prejuízo, o qual
chega ao ponto extremo das grandes organizações da cul
tura da nossa época tenderem para apagar totalmente a ação
do indivíduo, visto basearem-se na sua aplicação marginal,
dentro das diferentes funções escolhidas do homem. Não
são os homens que importam, mas as funções diferenciadas.
Na cnjtura coletiva, o homem não sc apresenta como tal,
Tendo meramente rciVfcsentãdn por mnn função, identificancío-sc inclusive com essa função e negando a vigência das
demais funções de menor validade. Dessa maneira, o indL
víduo moderno fni rrR-nyado à categoria de mera Junção,
justamente porque só essa função representa um valor cóTctivo e è a única, portanto, capaz de garantir uma possibili
dade vital. S c h il l e r viu claramente que era impossível con
seguir-se de outra maneira uma diferenciação funcional: ‘T a
ra desenvolver as múltiplas capacidades do homem, não ha
via outro recurso senão enfrentá-las. Esse antagonismo das
forças c o grande instrumento da cultura, mas apenas o ins
trumento, pois enquanto durar o antagonismo só estaremos a
caminho de alcançar essa cultura”. c
De acordo cem essa concepção, o atual estado de anta
gonismo das forças não seria ainda um estado de cultura,
pois nos encontraríamos apenas no caminho da cultura So-
*
Loc. cit.
*
Loc. cit.
AS IDÉIAS DE SCHILLER SOBRE O P R O B LE M A DOS TIPOS
103
bre isto dividir-se-ão por certo as opiniões, pois uns enten
dem por cultura o estado vigente de cultura coletiva que
outros, por seu lado, interpretam apenas como civilização,
reivindicando para a cultura a mais severa exigência, quan
to ao nível de evolução individual. S c h il l e r cometeu um
erro ao colocar-se exclusivamente nesse ponto de vista, con
frontando a nossa cultura coletiva com a cultura grega, pois
ao fazè-lo esquereu a diversidade da civilização dos tempos
clássicos, o que põe em dúvida a validade ilimitada ca refe
rida cultura. Assim, nenhuma cultura é, na verdade, com
pleta, uma vez que se desloca sempre niais ou menos neste
ou naquele rumo, isto
vp^i. o ideal dc cultura é
extrovertido, o que ciuer dizer que o valor dominante reside
no objeto c na relação com ele, e outras vezes o ideal 6 in
trovertido, atribuindo-se nõstecaso o principal significada an_
Irulividiip ou ao mjeito c à relação com a ideia. Na primeira
dessas duas formas, a cultura adota um caráter coletivo e,
na segunda, um caráter individualista. Portanto, é compreen
sível que, sob a influência da esfera cristã, cujo princípio
básico é o amor cristão (e por associação de contrastes o
seu oposto, precisamente, ou seja, a repressão da individuali
dade), surgisse uma cultura coletiva cm que o indivíduo cor
re o perigo de submergir, desde o momento em que, por prin
cípio. já se atribui uma validade menor aos valores indivi
duais. Isso explica também a típica nostalgia que o; clás
sicos alemães sentiam pelos tempos antigos,’ que para cies
eram um símbolo de cultura individual e que, pelo mesmo
motivo, também eram, na maioria dos casos, sobrestimados e
freqüentemente idealizados em proporções exageradas. Não
poucas vezes se realizaram tentativas de imitação c, por as
sim dizer, de adaptação ao modo pcrceptual do espírito he
lénico, tentativas que hoje nos parecem despropositadas, mas
que merecem ser levadas em conta como precursoras de uma
cultura individual.
Nos 120 anos decorridos desde que
S c h il l e r escreveu sua obra, as condições não melhoraram,
no que diz respeito a uma cultura individual, pelo contrário,
pode-se afirmar que pioraram, na medida em que o indiví
duo se deixou absorver, em muito maior escala que então,
pela atuação coletiva, sobrando-lhe muito menos tempo para
o desenvolvimento de uma cultura individual. Por tal moti
vo, possuímos atualmente uma cultura coletiva bastante de
senvolvida que supera, de longe, tudo o que anteriormente
104
TIPOS PSICOLÓGICOS
sc conhecia, mas que, por outro lado, prejudicou, em grau
cada vez maior, a cultura individual.
Existe hoje um profundo abismo entre o que um é e o
que um representa, quer dizer, entre o que so é como indi
víduo e o que se representa corno função na coletiv.dade.
A func&o está desenvolvida, mas não a individualidade. Se
o indivíduo quiser atingir um nível excelente, terá de identi
ficar-se com a sua função coletiva, mas se fizer o contrário
será avaliado, sem dúvida, como função na sociedade, mas,
como individualidade, ficará completamente do lado de suas
funções de validade inferior, não-evoluídas, e é simplesmente,
pois, iun bárbaro, enquanto, no primeiro caso, o indivíduo
engana-se, felizmente, sobre o seu barbarismo efetivo,
cer
to que semelhante unilateralidade, no que se refere à socie
dade, acarretou vantagens bastante apreciáveis e que deram
lugar a progressos que, de outro modo, jamais se consegui
riam, como S c h u l e r acentuou acertadamente: ‘‘Já pelo sim
ples fato de concentrarmos num único alvo toda a energia
do nosso espírito c de comprimirmos num feixe único de for
ças todo o nosso ser, poderíamos afirmar que emprestamos
asas a essa força, levando-a artificialmente para além dos li
mites que a natureza parecia ter-lhe imposto".7
Mas essa evolução unilateral há de conduzir e conduzi
rá certamente a uma reação, pois as funções repriinida^jde
menor validade não podem ficar indefinidamente excluídas
da~convivência e_dã! cvòluçao. Chegará o momento enT^quc
“a dissociação d.-> homem interior será de novo suprimida”,
garantindo dessa maneira a possibilidade vital de evolução
do não-desenvolvido. Já sublinhei que a diferenciação na
evolução cultural dá lugar a uma diferenciação das funções
básicas da vida psíquica, de certo modo para além da dife
renciação das capacidades e já dentro dos domínios próprios
da disposição psicológica geral que dirige a espécie c modo
de aplicação das capacidades. Dessa maneira, a cultura bus
ca diferenciar aquela função que já revele, de um modo
inato, uma aptidão melhor para ser cultivada. Assim, nuns
é a faculdade c.e pensar, noutros c o sentir-se, de maneira
especial, suscetível de desenvolvimento posterior, dc modo
que a cada um, sob a pressão das exigências da cultura, sc
"
L o c. cii.
AS IDÉIAS DE SCHILLER SOBRE O P R O B LE M A DOS TIPO}
105
aplique, tambcm dc maneira especial, o desenvolvimento des
sa faculdade já favorecida pelos dons naturais, o que a tor
nam particularmente apta a ser cultivada. A- possibilidade
de aculturação nâo supõe, certamente, que tenha de atri
buir-se a priorl à função a perspectiva dc uma excelência es
pecial, mas (e vontade teríamos de dizer, pelo contrário)
pressupõe uma certa fragilidade, instabilidade e plasticida
de funcional, pelo que de- maneira alguma haverá de buscar-sc sempre o supremo valor individual nessa função, outrossim, o supremo valor coletivo, na medida em que, concretamente, a referida função tiver desenvolvido um valor cole
tivo. Ora, como já dissemos, pode muito bem succdcr que
entre as funçõts menosprezadas se ocultem valores indivi
duais de categoria bastante superior, valores esses que, em
bora possam ser de reduzida importância para a vida cole
tiva, tèm um significado máximo para a vida individ.ial, /epresentando, por conseguinte, valores vitais aptos a propor
cionarem ao indivíduo uma intensidade e uma beleza vivenciais que em vão poderíamos esperar da função coletiva. É
certo oue a função diferenciada proporciona ao indivíduo a
possibilidade de uma existência coletiva, mas não a satisfa
ção e alegria vital que só nos podem ser oferecidas pelo
desenvolvimento dos valores individuais. Por isso, a sua au
sência é uma falta que profundamente se sente, com freqüên
cia, mas a sua renúncia constitui uma amputação íntima que,
parafraseando S c h il l e r , poderia comparar-se a uma ferida
dolorosa.
"Por conseguinte, por muito que a totalidade do m u nd o
possa lucrar com o cultivo diferenciado das forças humanas,
não se pode negar que os indivíduos a que ele se aplica
sofrem sob a maldição desse intento do inundo. Por meio de
exercícios ginásticos fazem-se, sem dúvida, corpos atléticos,
mas só meaiante o jogo livre e uniforme dos membros se atin
ge a beleza. Do mesmo modo, a tensão dc determinadas
forças do espírito pode gerar homens por certo extraordiná
rios, mas só a temperatura uniforme dá aos mesmos homens
um clima de felicidade e perfeição. E qual seria a nossa si
tuação, relativamente às épocas pretéritas e futuras do mundo,
se o cultivo da natureza humana exigisse um sacrifício seme
lhante? Teríamos sido os servos da humanidade, teríamos
feito para ela um trabalho de escravos, e em nossa natureza
amputada teriam ficado impressas as marcas vergonhosas des
TIPOS PSICOLÓGICOS
106
sa servidão. . . e tudo para que as gerações vindouras pudes
sem cuidar, com beatífica lentidão, de sua saúde moral 3 do
iivre desenvolvimento de sua humanidade! Será então 0 ca
so do homem estar votado a imolar-se no altar de uma qual
quer finalidade? Privar-nos-ia a natureza, em seus desígnios,
ae uma perfeição que a própria razão nos dita de acordo com
a sua? Tem de ser falso, portanto, que o cultivo das diver
sas forças torne necessário o sacrifício da sua totalidade; e
ainda que a lei da natureza evidenciasse em alto grau uma
tendência semelhante, tem que depender de nós próprios
que essa totalidade da nossa natureza, que a arte destruíra,
sefa reaUtbelccida dentro de n/í? por uma arte s tip e r io i8
É indubitável que vSc h il l e r sentiu em sua vida pessoal
esse conflito, da maneira mais profunda, e que dessa luta in
terior surgiu, precisamente, a sua ânsia de encontrar a uni
dade ou uniformidade aue redimisse as funções oprimidas c
em serviço escravo, realizando assim a recuperação de uma
vida harmoniosa. Esse pensamento foi também o que moti
vou W a g n e r , que no Parsifal lhe deu expressão simbólica
através da restituição da lança perdida e no sarar da ferida.
O que W a g n e r quis exprimir simbólica e artisticamente,
S c h ii .l e r esforçou-se por equacionar claramente na reflexão
filosófica. Não 0 proclama cm voz alta, mas de modo im plí
cito se revela con clareza bastante que o seu problema defen
de um restabelecimento do modo e da concepção vivenciais
da antiguidade, donde se deduz imediatamente que evita ou
deixa à margem, deliberadamente, a solução cristã do seu
problema. Em todo caso, sua visão espiritual prende-sc mais
à beleza antiga que à doutrina cristã da redenção, a qual,
na realidade, nâo pretendia outra coisa senão 0 que o pró(Ofio SciiiLLER também se esforçava por conseguir: a lihertàção do mal. Como J l x ia n o , o Apóstata, disse em sua ora
ção sobre o Rei Hélios,9 o coração humano “transborda de
encarniçada luta”, com o que não só se caracteriza a si mes
mo, acertadamente, mas a toda a sua época, isto é, o dese
quilíbrio interno da baixa antiguidade que encontrou sua
expressão no caos c desvario sem par das mentes e corações,
de que a doutrina de Cristo prometia redimir o homem. O
8
Loc. cii.
O grifo no texto transcrito é meu.
» Oração A', ln Rcgcm Solem, do Julian o.
slae, 1696.
Opera Omnia, Lip-
AS IDÉIAS DE SCHILLER SOBRE O PROBLEM A DOS TIPOS
107
cristianism o náo p ro p o rc io n o u , d e fato, u m a solução, mas
u m a redenção, u m d e s p re n d im e n to de u m a fu n ç ã o valiosa
em re la ção a todas as outras fu nçõ e s q u e p re te n d iam então
vigorar co m id ê n tic o p o d e rio . O cristianism o d e u uma d ire
triz. precisa, ex cluin do todas as outras orientações possíveis.
Tal circunstância dev e ter c o n trib u íd o b a stan te para q u e
S c h il l e r evitasse, tacitam e n te , a p o s s ib ilid a d e d c salvação
oferecida p e lo cristianism o.
—
A estreita relação entre a antiguidade e a natureza pa
receu oferecer a possibilidade que o cristianismo não garan
tia. “A natureza, em sua criação física, aponta-nos o cami
nho que devemos seguir no domínio moral. Mns não antes
que tenha abrandado a luta das forças elementares nos or
ganismos inferiores, sublimada na nobre constituição do ho
mem físico. E do mesmo modo terá dc apaziguar-se pri
meiro a luta elementar no ethos do homem, o conflito entre
os instintos cegos, para que nele cessem os rudes contrastes
antes de arriscar-se a favorecer a diversidade. Por outra
parte, terá de garantir também a independência do seu cará
ter; a submissão a forças despóticas c estranhas terá dado
lugar a uma liberdade decente; e só então poderá submeter-se a sua diversidade à unidade do ideal.” 10
Assim como não pode para desprender ou redimir a fun
ção de menor validade, mas que a tenhamos em devica con
ta, examinando-a e explicando-a para que, de um modo na
tural, se chegue ao acordo e fusão dos contrastes. Mas
S c h il l e r adverte que a aceitação de funções dc mencr vali
dade poderá conduzir a um “conflito entre os instintos ce
gos", do mesmo modo que, por outra parte, a unidade do
ideal restabeleceria a preeminência da função valiosa cm face
das funções de menor valia, com o que poderia ocasionar-,se o antigo estado de coisas. Acentuemos que as funções
de menor validade não se contrapõem à função de plena
validade, segundo a sua mais profunda essência, porquanto,
na realidade, o que dá origem ao contraste é a sua situação
momentânea. Foram inicialmente descuidadas e reprimidas,
porque constituíam para o homem culto um obstáculo i rea
lização de seus fins. Estes eram, na verdade, interesses par
ciais que não equivaliam a uma perfeição da individualida
10
Scnn.LEn, lcc . c it., C arta V II.
10 S
T ir o s PSICOLÓGICOS
de humana. Mas, além disso, essas funções não-reconhecidas
não conflitam absolutamente com a finalidade que, em essên
cia, se almeja. Enquanto o fim da cultura não coincidir com
o ideal da perfeição do ser humano, tais funções estarão
sempre submetidas a uma apreciação inferiorizante c, por
conseqüência, a uma relativa repressão. A aceitação das fun
ções reprimidas equivale a uma guerra civil ou intestina, ao
desencadeamento de contrastes antes refreados, com o que
a "autonomia do caráter” fica assim anulada. Só é possível
chegar a essa autonomia mediante o apaziguamento dessa
lutar o que parece impossível de se obter sem o exercício de
uma açüo despótica sobre as forças em conflito. Mas com
esse desi>otismo é a liberdade que se compromete, tornando-se desse modo impossível a formação de uma personalidade
moralmente livre. Ao garantir-se a liberdade, porém, cai-se
no conflito dos instintos.
“Receosos da liberdade, que nas primeiras tentativas se
apresenta sempre como inimiga, acabar-se-á, por um lado, lan
çando-se nos braços de uma cômoda servidão; e, por outro
lado, levados ao desespero, por uma tutela pretensiosa, buscar-sc-á a salvação no desencadear selvático do estado da
natureza. A usurpação alegará a debilidade da natureza hu
mana c a insurreição a dignidade da mesma, até que, por
fim, intervém a grande dominadora de todas as coisas huma
nas, a força cega. e decide a suposta controvérsia dos prin
cípios como um vulgar pugilato.” 11
A Revolução Francesa dotou essas palavras de um pano
de fundo tão vivo quanto sangrento, ao iniciar-se sob o sig
no da Filosofia e da razão, com elevado ímpeto idealista,
e terminando no caos sanguinolento donde surgiu o gênio
despótico de Napoleão. Revelou-se a impotência da deusa
Razão ante a investida da fera à solta. S c h il l e r sente e per
cebe a situação de inferioridade da verdade e da rázão, e
postula por isso que a verdade se converta em força. "Se
até agora não conseguiu provar satisfatoriamente a sua for
ça triunfadora, tal não sc deve a que o entendimento não
tenha sabido revelá-la, mas a que se lhe fechou o coração
e a que o instinto não tenha agido em seu favor. Pois, se
assim não fosse, donde proviria esse predomínio ainda tão
Loc. tit.
AS IDÉIAS ÜE SCHILLER SOBRE O P RO BLEM A DOS TJPGS
109
grande dos preconceitos e esse obscurantismo das mentes,
apesar de toda a luz que a Filosofia e a experiência irradiam?
A nossa época é iluminada, quer dizer, encontraram-se e
propagaram-se conhecimentos que bastariam para regular os
nossos princípios dc ordem prática pelo menos. 0 espírito
de livre investigação dissipou os conceitos quiméricos que,
durante tanto tempo, impediram o acesso à vcrdace e servi
ram de alicerces para o fanatismo c a impostura sobre eles
edificarem u n trono. A razão purificou-se, ao emancipar-se
da ilusão dos sentidos e da sofisticaria equívoca; e até a pró
pria Filosofia, que antes nos tornava hostis perante a natu
reza, nos convoca, com vigorosa ênfase, para que retomemos
ao sou seio... c^ual a m/.iíu, pois, para que ainda sejamos
bárbaros?” V£
Sentimos, nestas palavras de S c h jllle u , a proximidade do
Uuminismo e o intelectualismo fanático da Revolução Fran
cesa. “A nossa época é ilu m in a d a ...” ...q u e exagerada
avaliação do intelecto! “O espírito de livre investigação dis
sipou os conceitos quim éricos...” ...q u e racionalismo! Tais
palavras fazem-nos recordar, com nitidez, a exclamação do
protofantasinista: "Dispersai-vos pois! As Luzes são nossas!”
Se, por um lado, era próprio dessa época sobrestimar a
importância e a eficiência da razão, embora esquecendo que
se a razão possuísse, de fato, semelhante força teria encontrado há muito tempo uma superabundância de oportunida
des para prová-lo, por outro lado não se pode esquecer o
fato de que todas as cabeças competentes assim pensavam
então, e que esse ímpeto do intelectualismo racionalista ba
seava-se, além disso, num vigoroso desenvolvimento subjeti
vo desse mesmo elemento em S c h i l l e r . Temos ce contar
com um predomínio do intelecto nele, não em face da sua
intuição poética, mas da sua faculdade de sentir. Ao pró
prio S c h i l l e r parecia que imaginação e abstração, isto é,
intuição e intelecto, estavam em conflito nele. Assim escre
veu a G o e t i i k : 13 “Era isso que, especialmente nos primeiros
anos, tanto no campo da especulação como no da arte poé
tica, me dava um aspecto bastante acanhado; pois, regra
geral, antecipava-se-mc o poeta quando eu queria filosofar
12
Loc. cif., Carta V III.
is
Com dala de 31 dc agosto dc 1794.
110
TIPOS PSICOLÓCICOS
e quando queria entregar-me à poesia, era o espírito filosó
fico que tomava a dianteira. Ainda hoje me ocorre, com gran
de freqüência, a imaginação perturbar a minha abstração e
o frio entendimento racional a minha poesia”
A sua extraordinária admiração pelo espírito goethiauo,
o modo quase feminino como vislumbrava e compreendia as
intuições de seu amigo e que, com tanta freqüência, enconíra
expressão nas suas cartas, baseia-se precisamente na pene
trante percepção desse conflito, que teria de evidenciar-se, com
dupla intensidade, frente à natureza quase perfeitamente sin
tética de G o e t h e . Esse conflito deve sua existência à cir
cunstância psicológica da energia do sentimento prestar-se
ao intelectual na mesma medida que à imaginação criadora.
Na mesma carta a
S c h il l e h parece ter percebido isso.
G o e t h e , observa que quando começara a “conhecer e utili
zar" suas forças morais, que assinalariam os limites justos pa
ra a imaginação e o intelecto, uma doença física ameaçara
subvertê-las, abalando os seus alicerces. Trata-se do sir.toma, já mencionado com freqüência, de uma função pouco de
senvolvida, que por seu próprio impulso se afasta da dispo
sição consciente, quer dizer, que com certa autonomia se
intromete inconscientemente com outras funções, agindo sem
seleção diferenciada e comportando-sc dinamicamente, algo
no gênero de um ímpeto ou mero reforço que dá à função
consciente, diferenciada, o caráter do arrebatado ou do dili
gente, com o que, em muitos casos, essa função consciente
ultrapassa os limites que deliberadamente se impôs por de
cisão própria e noutros casos, ao contrário, a mesma função
detém-se antes de aUngii seu objetivo, desviando-se por um
curso acessório e ainda, em certas ocasiões, finalmente, sen
do arrastada para im conflito com a outra função conscien
te, conflito que continuará sem resolver enquanto a força
instintiva perturbadora, inconscientemente intrometida, não
ficar em si e por si própria diferenciada e de algum modo
submetida a uma determinada disposição consciente. Não
erraremos, portanto, se supusermos que a pergunta de S c iij l l e r , “Qual a razão para que ainda sejamos bárbaros?” não
só se baseia no espírito da época, mas também na própria
psicologia subjetiva do escritor. Com a época, procura num
lugar aescabido a raiz do mal, pois o bárbaro jamais con
sistiu nerri consistirá no fato da ra/.ão ou a verdade se im
porem de modo insuficiente ou precário, mas no fato de se es
AS IDÉIAS DE SCHILLER SOBRE O P RO BLEM A DOS TIPOS
perar delas efeitos semelhantes ou, inclusive, 1 1 0
dotar simplesmente a razão de tal virtude, graças
cessiva e supersticiosa avaliação da “verdade”.
reside na unilateralidade e no descomedimento,
nhecimento exato das proporções.
111
fato de se
a uma ex
O bárbaro
1 1 0 desco
Precisamente no impressionante exemplo da Revolução
Francesa, que atingira por essa altura 0 ponto culminante do
terror, podia ver S c h il l e r até onde chegava 0 poder da deu
sa Razão e ate onde o triunfo do animal irracional no ho
mem. Foram esses acontecimentos seus contemporâneos que,
por certo, tornaram 0 problema especialmente agudo em
S c h il l e r , dando lugar ao fato freqüente dc um problema,
de ordem pciMJal, no fundo, e portanto de aparência subje
tiva, crescer de súbito e converter-se, ao deparar com acon
tecimentos exteriores cuja psicologia contém os mesmos ele
mentos que o conflito pessoal, numa questão generalizada e
que abrange t jda a sociedade. Dessa maneira se atribui tam
bém ao problema pessoal uma dignidade que antes não tinha,
pois a verdade é que, no desacordo do indivíduo consigo
próprio, existe sempre algo de vexatório e deprimente, pois
sente-se colocí.do, por dentro e para fora, na mesma situação
de um país desonrado com uma guerra civil. Por isso se
evita exibir ante um grande público um problema puramente
pessoal... a menos que se padeça de uma supervalorização
própria, com um excesso arriscado. Mas, desde que se con
siga encontrar c reconhecer a ligação que existe entre o pro
blema pessoal e os grandes acontecimentos contemporâneos,
tal ligação será equivalente a uma emancipação <lo isola
mento puramente pessoal, adquirindo o problema subjetivo a
amplitude de uma questão geral da nossa sociedade, em ter
mos globais. Não é vantagem de somenos. em vista da pos
sibilidade de uma solução. Pois enquanto o problema pes
soal dispõe apenas das escassas energias do interesse cons
ciente, por parte da própria pessoa, agora as forças instinti
vas da coletividade somam-se aos interesses do eu, dando as
sim lugar a uma nova situação que é uma garantia de novas
possibilidades de solução. O que a força pessoal da vonta
de ou do valor jamais poderia conseguir, a força instintiva da
coletividade fá-!o-á, permitindo ao homem superar obstáculos
que não venceria com a energia pessoal apenas.
Assim, temos de partir do princípio de que as impres
sões dos acontecimentos seus contemporâneos incutiram em
112
TIPOS PSICOLÓGICOS
S c h il l e r a audácia necessária para intentar uma solução do
conflito existente entre o indivíduo e a função social. Essa
tensão foi também percebida, com profundidade, por R ous
s e a u , servindo mesmo de ponto de partida para a sua obra
Emile ou de f Education. Nela encontramos alguns trechos
significativos, no que se refere ao nosso problema: "L'homme
civil n’est qu’une unité fractionnaire qui tient ati dénomina
teur, et dont la valeur est dans son rapport avec l’entier, cui
est le corps social. Les bonnes institutions sociales sont celles
qui savent le mieux dénaturer l’homme, lui ôter son existence
absolue pour lui en donner une relative, et transporter le moi
dans Funité commune
"Celui qui dans l'ordre civil veut conserver la primauté
des sentiments de le nature ne sait ce qu’il veut. Toujours
en contradiction avec lui-même, toujours flottant entre ses
penchants et ses devoirs, il ne sera jamais ni homme ni citoyen;
il ne sera bon ni pour lui ni pour les autres.” 14
R o u s s e a u começa a sua obra com as famosas palavras :
uTout est bien, sortant des mains de lAuteur des choses; tout
dégénère entre les mains de l’h o m m e ° Estas palavras são
características de R o u sse a u e de toda a sua época. Também
S c h il l e r volta o seu olhar não para o homem natural de
K o u s s f .a u , claro (a diferença é essencial), mas para o ho
mem que vivia “sob o firmamento grego”. Mas é comum a
ambos a orientação retrospectiva e, a ela indissoluvelmente
associada, a idealização e supervalorização do passado. Se
duzido pela beleza da antiguidade, S c h il l e r esquece o ver
dadeiro grego cotidiano, e R o u s s e a u perde-se em frases como
F.mÜV; Livro I, pág. 9. [Era francôs no original: "O honem
civil 6 apenas urna unidade fracionária que se mantém subordinada ao
denominador e cujo valor « t á em sua relação cem o uómero iiv.eiro,
que à o corpo social. As boas instituições sociais são aquelas quo
melhor sabem desnaturalizar o homem, eliminar dolo a sua existência
absoluta para lhe- eonfmr uma relativa e trausportar o eu para a uni
dade comum".
“O indivíduo que quer conservar na ordem civil o primado dos
sentimentos, não sabe o que quer.
Sempre em contradição coosigo
mesmo, sempre vogando entre suas inclinações e seus deveres, junais
será homem ou cidadáo; não será bom para ele próprio nem para os
outros." iY. do T.l
° “Tudo está b:in quando sai das mãos do Autor das coisas;
tudo degenera nas mãos do homem.” (iV. do T.)
AS IDEIAS DE SCH1LL.FR SOBRE O P RO BLEM A DOS TIPOS
113
estas: “L'homme naturel est tout pour lui; il est l’unité numé
rique, l'entier absolu”. ° Ao formular tal afirmação, esque
ce que o homem natural é radicalmente coletivo, quer dizer,
é tanto em si como nos outros e c tudo o que se quiser
além de uma unidade. Diz R o u s s e a u em certa altura: "Nous
tenons à tout, nous nous accrochons à totit; les temps, les
lieux, les hommes, les choses, tout ce qui est, tout ce qui sera,
importe à chacun de nous: notre individu n’est plus que lu
moindre partie de nous-mêmes. Chacun s’étend, pour ainsi
dire, sur la tare entière* et devient sensible sur toute cette
grande surface. .. Est-ce la nature qui porte ainsi les hommes si
loin d'cux-mêmesP” 1&
R o u s s e a u deixa-se iludir: acredita que esse estado de
coisas seja algo de novo. Não! O novo é termos chegado
a ser conscientes desse estado, mas este sempre foi assim
e tanto mais q lanto mais nos aproximarmos dos primórdios.
Na verdade, o :juc R o u s s e a u descreve não passa da mentali
dade coletiva do homem primitivo que L é v y -Br u h l (íoc. cit.)
tão corretamente caracterizou como “participation mystique”.
Esse estado de opressão da individualidade não constitui uma
nova conquista, mas um remanescente daquela época arcaica
em que não havia individualidade. Não se trata, portanto,
de uma nova opressão da individualidade, mas, tão-sornente,
da consciência e da percepção do formidável poder do cole
tivo. Esse poder projeta-se, naturalmente, nas instituições
estatais e eclesiásticas, como se cada indivíduo não encon
trasse, ao que parece, meios e caminhos adequados para es
quivar-se também aos mandamentos moraisI Essas insti
tuições estão completamente destituídas da onipotência que
se lhes atribui e por motivo da qual, de tempos em tempos,
são combatidas por inovadores de toda espécie; o poder opres
sor está situado, inconscientemente, dentro de nós próprios,
0 "O homem natural é tudo para ele; é a unidade numérica,
o integral absoluto.' (>•'. cio T.)
is Loc. cit., Livro II, pág. 65. ["Dependemos do tudo, aganamo-nos a tudo; o tempo, o lugar, os homens, as coisas, tudo o qua à,
tudo o <|ue será, tem importância para cada uin de nós: o nosso in
divíduo não é senáo uma parcela mínima dc nós próprios. Cada
um dc nós se alastr», por assim dizer, pela terra inteira e toma-sc sen
sível em toda essa enorme superfície... Será a natureza que assim
leva os homens para tão longe de si mesmos?” N. do T.]
TIPOS PSICOLÓGICOS
114
tal como se expressa na prevalecente mentalidade coletiva dos
bárbaros, à psique coletiva é odiosa, até certo ponto, toda
evolução individual que não sirva diretamente aos fins
coletivos. Portanto, a diferenciação de uma das funções de
que falamos nas páginas anteriores pressupõe, sem dúvida, o
desenvolvimento de um valor individual, mas ainda de acor
do com o ponto de vista da coletividade, até o ponto do pró
prio indivíduo, como vimos, sair prejudicado.
Ao desco
nhecimento que tinham da antiga psicologia humana se de
ve que ambos os autores cometessem erros de julgamento ao
examinarem os valores do passado. Esses erros apóiam-ss na
ilusão de um primitivo e hipotético tipo de homem perfeito
que, não se sabe como, caiu de toda a altuiu de sua perfei
ção. A orientação retrospectiva já constitui, em si mesma,
um remanescente do pensar antigo, pois todos sabem que
uma das características de toda a mentalidade antiga e
bárbara era a crença numa paradisíaca idade de ouro an
terior ao início dos maus tempos em que vivemos. Foi o
grande evento social e histórieo-espiritual do cristianismo
que propiciou ao homem uma esperança no futuro e lhe ofe
receu a possibilidade de realização dos seus ideais no mes
mo futuro.10 A maior ênfase dessa orientação retrospecti
va na nova evolução espiritual tem de relacionar-se com o
fenómeno do retomo geral ao paganismo, que se observa em
escala crescente a partir do Renascimento.
Parece-me certo que essa orientação retrospectiva exer
ceu também alguma influência na seleção dos meios para a
educação do homem. Esse espírito busca um apoio na ima
gem ilusória do passado. Poderíamos deixar tudo isto dc
lado se o conhecimento do conflito entre os tipos e entre os
mecanismos típiccs não nos obrigasse a investigar o que po
deria ser obtido pelo acordo e a conciliação. S c h i l l e r :eve a
mesma ambição, como em seguida veremos. A tal respeito,
a sua idéia básica ficou expressa nas seguintes palavras, que
resumem o anteriormente dito: "Que uma divindade bené
fica arranque do seio de sua mãe a criança, por um certo
tempo, e a nutra com o leite de uma Idade melhor, e a faça
crescer sob o distante firmamento grego, até que atinja a
virilidade e, já hDmem, a faça regressar ao seu século como
i«
Este poQto já se encontra sugerido nos mistérios gregos.
AS IDÉIAS DE SCH ILLER SOBRE O PR O B LE M A DOS Tll*OS
115
uma figura estranha, não para regozijar-se com a sua pre
sença, mas para, de um modo terrível, como o filho de Agamcnon, purificá-la”. 17 O recurso ao modelo grego dificilmen
te poderia exprimir-se com maior clareza. Nesta limitada for
mulação, ressalta um óbvio condicionamento que logo obrigou
S c h i l l e r a efetuar uma ampliação essencial. Nesse sentido,
acrescenta: "Tomará a matéria, por certo, do próprio pre
sente, mas irá adquirir a forma numa Idade mais nobre, bus
cando-a, inclusive, para além do tempo, na unidade imutá
vel e absoluta (k: sua essência’. S c h i l l e r sentiu, notoriamen
te, que tinha de retroceder ainda mais, até uma época remo
ta do heroísmo divino na qual os homens ainda eram semi
deuses. Toi isso escreve: "Aqui, do puro éter, de sua na
tureza demoníaca, flui o manancial de beleza, imune à cor
rupção das gerações e dos tempos, que nas profundezas
se revolvem num turbilhão sombrio'. Aqui temos a bela
miragem de uma Idade de Ouro em que os homens eram
deuses e se deleitavam na contemplação da beleza eterna.
Neste passo, o poeta S c h i l l e r ganhou a dianteira ao pensa
dor. Mas este recupera-se, algumas páginas adiante. E diz:
"Na realidade, é para fazer-nos refletir o fato de quase cm
todas as épocas da História cm que florescem as artes c
predomina o gosto, observar-se uma queda da humanidade,
não sendo possível indicar um único exemplo em q.ie um
elevado grau e uma grande universalidade de cultura esté
tica de um povo tenham coincidido com a liberdade política
e as virtudes de cidadania, nem que tenham coincidido os
belos costumes com os bons costumes, nem que o refinamen
to de maneiras tenha acompanhado a verdade".
De acordo com esse reconhecido fato, que não pode ser
refutado cm detalhe nem cm conjunto, os heróis desses tem
pos remotos não deviam observar em suas vidas um compor
tamento a que se pudesse chamar rigorosamente moral, o que,
aliás, nenhum mito grego ou de outra origem jamais preten
deu. Com efeito, toda aquela beleza podia desfrutar as
alegrias da vida apenas pelo simples motivo de que, então,
eram inexistentes o código penal c a polícia de costumes.
Com o reconhecimento desse fato psicológico, isto é, do fato
it
Sobre a Educação Estética do Homem, Carta IX.
Loc. cti., Carta X.
116
TIPOS PSICOI.OCICOS
de que a beleza virai só projeta seu dourado esplendor onde
se erga sobre uma realidade repleta de trevas, fealdade e
sofrimento, S c iiil l e r retirou a base para a sua própria tese.
Propusera-se demonstrar que os indivíduos apartados podem
unir-se pela visão, o gozo e a criação do belo. A beleza
seria a medianeira na tarefa de restabelecimento da unidade
original do ser humano. Em contraste com esse intuito, toda
experiência assinala que a beleza, para existir, necessita
por força da sua antítese.
Como antes o poeta, é agora o pensador quem acompa
nha S c h u .le r : desconfia da beleza e chega mesmo a consi
derar possível que, segundo a experiência, ela exerça uma
influência perniciosa. E diz: "Para onde quer que dirija
mos o olhar, no mundo antigo, observamos como se repelem
mutuamente o gosto e a liberdade; e notamos que a bele
za funda o seu domínio sobre as ruínas das virtudes heróicas’\10
Partindo desse ponto de vista, fruto da experiência, a
tese de S c i i i l l e r já só poderá fundamentar-se por meio do
que se refere à virtude da beleza. Na seqüência da sua dis
sertação, chega mesmo a construir o inverso da beleza, com
toda a clareza desejável: “Se nos ativermos, portanto, exclu
sivamente, ao que as experiências de tjue até hoje dispo
mos nos ensinam sobre a influência da beleza, em boa ver
dade direi que não é para nos sentirmos muito animados a
fomentar sentimentos tão perigosos para a verdadeira cultu
ra do homem. Talvez tenha mais valor, correndo até o ris
co de cair no tosco e no duro, prescindir-se do poder deleté
rio da beleza e n&o nos entregarmos a cia, com todas as suas
vantagens de refinamento, para ficarmos à mercê do seu
poder de relaxamento e dissolução".20
O duelo entre o poeta e o pensador poderia resolver-se
da melhor maneira se o pensador aceitasse as palavras do
poeta, não literal, mas simbolicamente, tal como deve scr com
preendida a linguagem de um poeta. Será que S c i i i l l e r in
terpretou mal a si próprio? Quase afirmaríamos isso, pois
de outro modo não poderia argumentar a tal ponto contra
si próprio, ü poeta fala-nos de um manancial de puia belc-
i»
L o c. ri*-
-"■J
L o c. cit.
AS IDÉIAS DE SC IIILLER SOBRE O P R O B L E M A DOS TIPOS
117
za, que flui para lá de todos os tempos e gerações, pelo que
também está presente em todos os seres luimanos. Mas não
é ao homem da antiguidade grega que o poeta Ía7 alusão; é
ao velho pagão que há dentro de nós próprios, à parcela de
natureza eterna e imune, de beleza natural que se anicha, in
consciente, mas vitalmente, dentro de nós e cujo vislumbre
nos leva a exaltar as lendárias figuras de remotas eras, pelo
que somos induzidos a cometer o erro de acreditar que esses
seres possuíam aquilo que buscamos hoje. É o homem arcai
co dentro de nós, rechaçado pela nossa consciência orienta
da coletivamente e que tão feio e arcaico nos parcce, sendo
como é o veiculo daquela beleza que em vão procuramos
algures. E desse que nos fala Schili.er, o poeta, mas Scim.le r, o filósofo, interpreta-o, erradamente, como um padrão
grego. É neste ponto que tudo quanto o pensador não pode
deduzir logicamente de seus elementos de prova e na pes
quisa dos quais empenha inutilmente seus esforços lhe é
oferecido pelo poeta em sua linguagem simbólica.
De tudo o que ficou dito ressalta, com suficiente clare
za, que todo intuito harmonizador do homem do nosso tem
po, parcialmente diferenciado, terá de contar com a aceita
ção séria das funções de menor validade como não-diferenciadas. Não terá êxito algum qualquer intuito harmonizador
que não consiga recuperar as energias das funções de vali
dade inferior, encaminhando-as no sentido da diferenciação.
Esse processo só pode ocorrer de acordo com as leis da ener
gética, isto é, será necessário um curso que facilite às ener
gias latentes uma possibilidade de escoamento. Seria uma
tarefa totalmente destituída de finalidade, muitas vezes ten
tada e outras tantas fracassada, a de pretender converter di
retamente uma função de menor validade numa de plena va
lidade. Isso equivaleria a conseguirmos um perpetuum tnobile. Nenhuma forma de energia de menor validade pode
ser simplesmente convertida numa forma de energia ,de va
lidade superior, nem sequer no caso de uma fonte de vali
dade superior proporcionar seu apoio. Por outras palavras,
a conversão só poderia ser levada a efeito à custa da função
de validade superior, mas, de maneira nenhuma, feita a con
versão, as formas de menor validade poderiam atingir o va
lor inicial da forma de energia de validade superior, nem
esta poderia recuperar esse valor inicial, pois o resultado será
e deverá ser uma compensação numa temperatura média.
118
TIPOS PSICOLÓGICOS
Isto significa, para quem estiver identificado com a sua úni
ca função diferenciada, a queda num nível mais harmônico e
equilibrado, é certo, mas de validade inferior em relação ao
valor aparente inicial Essa conseqüência é inevitável. Tcda
educação do homem que aspire à unidade e à harmonia do
seu ser terá de levar na devida conta esse fato. S c h i l l e r de
duz essa conseqüência à sua maneira, mas resiste a aceitar as
conclusões, incluindo o risco de ter de abdicar da beleza.
Mas, assim que o pensador deu expressão às suas inexoráveis
ilações, o poeta tomou novamente a palavra: “Mas talvez a
experiência não seja o tribunal ante o qual tenha de se deci
dir esta questão e, antes de acatarmos seu veredicto, devería
mos ter a certeza completa, isenta de ioda c qualquer dúvida,
de que se trata da mesma beleza de que falamos, a cujo
respeito os exemplos mencionados são testemunhas desfavo
ráveis”. 21 Como se vê. S c h i l l e r procura, neste ponto, colocar-se acima da experiência ou, por outras palavras, quer atri
buir à beleza uma qualidade que, de acordo com a experiên
cia, ela não possui. Acredita que "seria preciso demonstrar
que a beleza é una condição necessária da humanidade”,
quer dizer, uma categoria necessária e urgente. Por isso
fala de um conceitc puro e racional de beleza, e de um "ca
minho transcendente" que nos afasta do “círculo dos fenó
menos e da presença vital das coisas”. "Quem não se arris
ca para além da realidade, jamais conquistará a verdade.” 22
A resistência subjetiva contra a queda, inevitável segundo a
experiência, leva S c h i l l k u a exercer forte pressão sobre o
intelecto lógico, posto a serviço do sentimento, para obrigá-!o a s o lt a r uma fórmula que possibilito, finalmente, alcançar
o objetivo inicial, embora sua inviabilidade já esteja demons
trada. Um ato de violência semelhante cometeu Rous. a u ,
ao pretender que a dependência da natureza não dá margem
para a existência de vícios de qualquer espécie, mas a de
pendência dos homens, conforme a seguinte conclusão sua: “Si
les lois des nations pouvaient avoir, comme celles de le, na
ture, une. inflexibilité que jamais aucune force humaine ne
put vaincre, la dépendance des hommes reviendrait alms
celle des choses; on réunirait dans la république tous les avan
tages de l’état naturel fi ceux de l’état civil; on joindrait à la
21
22
L o c . c it.
ÍA K . Cit.
AS IDÉIAS DE SC IIILLE R SOBRE O P R O B L E M A DOS TIFOS
119
lib erte q u i m a in tien t F h om m e e xe m p t de vice, tu m oralité
q u i l’élève à la v e r tu \
N'a base dessa reflexão, dá o seguinte conselho: "M a in te
n e z l'en fa n t dans la seu le d é p e n d a n c e d es choses, vous a u rez
su ivi l’ordre de la n a tu re d a ns le p rogrès d e so n éd u ca tio n ”.
(. ..') “Il n e fa u t p o in t co n tra in dre u n en fa n t d e rester q u a n d
il veu t aller, ni d ’a ller q u a n d il veu t rester en place. Q uand\
la vo lon té des ' en fa n ts n’est p o in t g â tée par notre fa u te , ils
n e veu len t rien in u tile m e n t ”. 33
A infelicidade está, justamente, no fato das “lois des na
tions” jamais coincidirem» em circunstância alguma, com as
lois (la nature™, de modo ejue o estado da civilização seja,
simultaneamente, o estado da natureza. Se fosse possível
imaginar tal coincidência, teria de ser em termos de um com
promisso, cm que nem uma nem outra das situações pode
ria realizar o seu próprio ideal, ficando ambas muito aquém
dos mesmos. Ora. quem pretenda alcançar o ideal de um ou
outro estado, terá de cingir-se à proposição formulada pelo
próprio R o u s se a u : "Il fa u t o p te r entre faire un h o m m e ou
u n citoyen; car on n e p e u t faire à la fois l'un et l'autre ”. °
Dentro de nós existem ambas as necessidades: natureza e
cultura. Não só não podemos ser nós próprios como temos
ainda que estar relacionados com outra coisa. Terá de exis
tir, portanto, um meio que não seja um simples compromisso,
mas uni estado ou um processo de completa concordância com
o ser vivo, algo parecido àquilo a que o profeta alude quan
do fala de uma sem ita et via sancta, uma via directa ita u t
23
Emlle, I.i/ro II, págs. 68 e seg. [Em francês no original:
"Se as leis das nações pudessem ter, como as da natureza, uma infle
xibilidade que ner.luima força humana pudesse jamais vence*, a de
pendência dos honens converter-se-ia então na das coisas: tetmir-se■iam na república todas as vantagens do estado natural com as do
estado civil; juntar-se-ia à liberdade que mantém o homem isento de
vicio, a moralidade que o eleva ao plano da virtude”. “Conservai a
criança na depcndcncia única das coisas e tereis seguido a ojdeni da
natureza no progresso de sua educação”. ( . . . ) "N5o se deve cons
tranger uma criança a ficar quieta num lugar se ela quiser andar, nem
forçá-la a andar se quiser ficar quieta num lugar. Quando a vontade
das crianças não ( adulterada por nossa culpa, elas jamais querem
uma coisa inutilmente c sem motivo”. N . do T.l
0 "É preciso optar entre fazer um homem ou um cidadão, pois
não sc pode fazer simultaneamente um e outro.’’ (S . do T.)
120
T ir o s PSICOLÓGICOS
stulti non errent per eam. 24 Estou inclinado, portanto, a dar
ao poeta em S c h i l l e r — dc quem o pensador se serviu, neste
caso, com certa violência — sua parcela de razão, pois, no
fim de contas, não existem apenas verdades racionais, inas
também verdades irracionais. E o que por via do intelecto
parece scr impossível a respeito das coisas humanas, acabou
por ser verdade reconhecida, com freqüência, por meio do
irracional. Verdadeiras foram as maiores transformações so
fridas pela humanidade, cjue não atingiram o plano da reali
dade por meio de cálculo intelectual, mas por sendas quo os
contemporâneos não tinham percebido ou tinham excluído por
absurdas, e que só muito mais tarde outras gerações se de
ram conta dc sua innma necessidade. Mas o mais freqüente
é não serem realmente compreendidos tais caminhos, pois
as mais importantes leis da evolução do espírito humano sinda são para nós um mistério completo.
Sinto-me pouco inclinado, sem dúvida, a atribuir um va
lor especial aos trejeitos filosóficos do poeta, pois o intclccto
a serviço do poeta é uma faca de dois gumes. Neste caso, o
intelecto já deu de si tudo o que dele podíamos esperar, ao
desvendar a contradição entre desejo e experiência,
ocioso,
portanto, exigir ainda ao pensamento filosófico que nos dê
a solução para essa contradição. E ainda que fosse possível
imaginar uma solução, continuaríamos, apesar disso, diante do
obstáculo, visto que não se trata, efetivamente, de imaginar
ou apurar uma verdade racional, mas de descobrir um cami
nho que acompanhe a vida real. Nunca faltaram tcscs c
sábias teorias. Se a solução dependesse delas, teria a hu
manidade tido no tempo do P it á g o r a s a mais bela oportu
nidade de ganhar altura, em todos os sentidos. Por isso não
vamos tomar ao pé da letra, por assim dizer, o que S c h il l e r
nos propôs, mas considerá-lo como um símbolo que, de f.cordo com o pendor filosófico de S c h il l e r , aparece envolto nas
roupagens do conceptualismo filosófico. Nesta acepção, o
“caminho transcendente” que S c h il l e r se dispunha a encon
trar não se entenderá como um raisonnctnent crítico-cognitivo,
mas, de preferência, simbolicamente, como o caminho que o
homem segue, sempre que depara com um obstáculo que não
pode ser logo superado pelo uso do raciocínio ao encor.trar-
24
Isaias, XXXV, 8. ["Uma vja dürta e de maneira quo mesmo
os insensatos que a p-ircoiram n5o se extraviem.” (N. do T.)]
AS IDÉIAS DE SCHILLER SOBRE O P RO BLEM A DOS TIPOS
121
-se perante uma tarefa insolúvel. A fim dc encontrar e se
guir esse caminho, é preciso deter-se demoradamente nos con
trastes cm que se ramificou o anterior caminho. Com o di
que se detem o curso do rio da vida. Aí, onde se verifica
a acumulação da libido, ramificam-se os contrastes que antes
estavam fundidos no único caudal vital e passam a defron
tar-se como adversários sequiosos de luta. Numa prolon
gada luta de duração e desfecho imprevisíveis, esgota-se a
tensão dos contrários, e a energia que perderam cede o lugar
â terceira coisa que logo constitui, precisamente, o início do
novo caminho.
Em conformidade com essa rpgra, Scinixirn empenha-se
também num profundo estudo dos contrastes em açâo. Seja
qual for o obstáculo com que deparemos — sempre que
seja de grande dificuldade — a discordância entre o próprio
intento e o objeto resistente converte-se também num con
flito dentro de nós próprios. Pois quando me esforço por
subordinar à minha vontade o objeto rebelde, todo o meu
ser entra gradualmente em contato com ele, dc acordo, pre
cisamente, com a forte contribuição de libido que uma parte
de mim faz fluir, por assim dizer, para o objeto. Dessa ma
neira tem lugar uma identificação parcial de certas zonas se
melhantes de minha personalidade com a essência do objeto.
Uma vez registrada a identificação, o conflito está automa
ticamente trasladado para a minha própria alma. Esta “introjeção” do cor.flito com o objeto faz que eu me ponha em
desacordo comigo, dando assim lugar a uma impotência ante
o objeto e a dissolução de afetos que são sempre sintomas de
uma discrepância íntima. Os afetos demonstram, porém, que
percebo a mim próprio, encontrando-me portanto (se não sou
cego) em situaçlo de me concentrar c dc observar em mim
próprio o jogo des contrastes.
Foi esse o caminho seguido por S c h il l e r : não apurou
a discrepância entre estado c indivíduo, mas localizou-a, co
mo se vê no começo da Carta XI, numa duplicidade de
“pessoa e situação”, quer dizer, como o eu e Sua alternativa
de ser afetado. Enquanto o eu é de relativa constância,
o seu relacionar-se (o ser afetado) é variável. S ciooller
pretende, assim, apreender a divergência na sua origem. Com
efeito, um dos lados é a função consciente do eu e o outro
é o coletivo rclac:onável. Ambos os determinantes pertencem
ao domínio da Psicologia humana. Mas os diferentes tipos
12 0
TíPOS PSICOLÓGICOS
stulti non errent per eam. 24 Estou inclinado, portanto, a dar
ao poeta em S c h il l e r — de quem o pensador se serviu, neste
caso, com certa violência — sua parcela de razão, pois, 110
fim de contas, não existem apenas verdades racionais, ir.as
também verdades irracionais. E o que por via do intelecto
•parece ser impossível a respeito das coisas humanas, acabou
por ser verdade reconhecida, com freqüência, por meio do
irracional. Verdadeiras foram as maiores transformações so
fridas pela humanidade, que não atingiram o plano da reali
dade por meio de cálculo intelectual, mas por sendas ciue os
contemporâneos não tinham percebido ou tinham excluído por
absurdas, e que só muito mais tarde outras gerações se de
ram conta de sua íntima necessidade. Mas o mais freqüente
é não serem realmente compreendidos tais caminhos, pois
as mais importantes leis da evolução do espírito humano ain
da são para nós um mistério completo.
Sinto-me pouco inclinado, sem dúvida, a atribuir um va
lor especial aos trejeitos filosóficos do poeta, pois o intelecto
a serviço do poeta ò uma faca de dois gumes. Neste caso, o
intelecto já deu de si tudo o que dele podíamos esperar, ao
desvendar a contradição entre desejo e experiência. É ocioso,
portanto, exigir ainda ao pensamento filosófico que nos dê
a solução para essa contradição. E ainda que fosse possível
imaginar uma solução, continuaríamos, apesar disso, diante do
obstáculo, visto que não se trata, efetivamente, de imaginar
ou apurar uma verdade racional, mas de descobrir um cami
nho que acompanhe a vida real. Nunca faltaram teses e
sábias teorias. Se a solução dependesse delas, teria a hu
manidade tido no tempo de P it á c o r a s n mais bela oportu
nidade de ganhar altura, em todos os sentidos. Por isso não
vamos tomar ao pé da letra, por assim dizer, o que S c h il l e r
nos propôs, mas ccnsiderá-lo como um sím b o lo que, de acor
do com o pendor filosófico de S c h il l e r , aparece envolto nas
roupagens do conceptualismo filosófico. Nesta acepção, o
"caminho transcendente” que S c h il l e r se dispunha a encon
trar não se entenderá como um ra iso n nem en t crítico-cognitivo,
mas, de preferência, simbolicamente, como o caminho eue o
homem segue, sempre que depara com um obstáculo que não
pode ser logo superado pelo uso do raciocínio ao encontrar2« I saias, XXXV, 8. [“Uma via direta c de maneira que mesmo
m insensatos que a percorram não se extraviem." (N. do 7..)]
AS IDÉIAS DE SCHILLER SOBRE O PROBLEM A DOS TIFOS
121
•se perante uma tarefa insolúvel. A fim de encontrar c se
guir esse caminho, é preciso deter-se demoradamente nos con
trastes cm que se ramificou o anterior caminho. Com o di
que se detém o curso do rio da vida. Ai, onde se verifica
a acumulação da libido, ramificam-se os contrastes que antes
estavam fundidos no único caudal vital e passam a defron
tar-se como adversários sequiosos de luta. Numa prolon
gada luta de duração e desfecho imprevisíveis, esgota-se a
tensão dos contrários, e a energia que perderam cede o lugar
à terceira coisa que logo constitui, precisamente, o início do
novo caminho.
Em conformidade com essa regra, S c h i l l e r cmpciiha-se
também num profundo estudo dos contrastes em ação. Seja
qual for o obstáculo com que deparemos — sempre que
seja de grande dificuldade — a discordância entre o próprio
intento e o objeto resistente converte-se também num con
flito dentro de nós próprios. Pois quando me esforço por
subordinar à minha vontade o objeto rebelde, todo o meu
ser entra gradualmente em contato com ele, de acordo, pre
cisamente, com a forte contribuição de libido que uma parte
de mim faz fluir, por assim dizer, para o objeto. Dessa ma
neira tem lugai uma identificação parcial de certas zonas se
melhantes dc minha personalidade com a essência dc objeto.
Uma vez registrada a identificação, o conflito está automa
ticamente trasladado para a minha própria alma. Esta “introjeção” do conflito com o objeto faz que eu me ponha em
desacordo comigo, dando assim lugar a uma impotência ante
o objeto e a dissolução dc afetos que são sempre sintomas de
uma discrepância íntima. Os afetos demonstram, porém, que
percebo a mim próprio, encontrando-me portanto (se não sou
cego) em situação de me concentrar e de observar em mim
próprio o jogo dos contrastes.
Foi esse o caminho seguido por S c h il l e r : não apurou
a discrepância entre estado e indivíduo, mas localizou-a, co
mo se vê no começo da Carta XI, numa duplicidade de
“pessoa e situação”, quer dizer, como o eu e Sua alternativa
de ser afetado. Enquanto o eu é de relativa constância,
o seu relacionar-se (o ser afetado) é variável. S c h il l e r
pretende, assim, apreender a divergência na sua origem. Com
efeito, um dos lados é a função consciente do eu e o outro
é o coletivo reladonável. Ambos os determinantes pertencem
ao domínio da Psicologia humana. Mas os diferentes tipos
122
TTPOS PSICOLÓGICOS
observarão esses acontecimentos fundamentais segundo vá
rias luzes, em cada caso. Para os introvertidos, a idéia do
eu é, sem dúvida, o elemento contínuo e predominante da
consciência, e o que está em discrepância com essa idéia 6
o relacionar-se ou o ser afetado. Para o extrovertido, pelo
contrário, a ênfase rstá mais na continuidade da relação com
o objeto ou menos na idéia do eu. Para ele, portanto, o pro
blema apresentaria aspectos distintos. Não convém esquecer
este ponto, pois teremos de usá-lo ao examinarmos as refle
xões subseqüentes de S c h il l e h . Quando ele diz, por exem
plo, que a pessoa se revela “no eu eternamente persistente e
só nele”, há que t~r na devida conta que isso foi pensado
segundo o ponto de vista de um introvertido. Pelo contrá
rio. do ponto de vista de um extrovertido, teria que dizer
algo como a pessoa se revela única e exclusivamente através
do seu relacionar-se, na função de relacionação com c obje
to. Fersona, no introvertido, só é, com efeito, o eu exclu
sivamente, ao passo que no extrovertido a pessoa consiste
no ser afetada e não no eu afetado. O eu, neste caso, reside
— de certo modo - em sua afeição por outrem, quer dizer,
em sua relação. O extrovertido encontra-se colocado no do
mínio do variável, do intercâmbio; o introvertido, no da cons
tância e da permanência. O eu não é "eternamente cons
tante", nem coisa que se pareça, para o extrovertido, que
para isso tem uma apurada visão. O introvertido, pelo con
trário, aprofunda-o excessivamente e por isso vibra à menor
transformação, sempre que isso afeta o eu. O ser afetado
pode supor para ele algo verdadeiramente penoso, ao passo
que o extrovertido nao quer prescindir dele, do maneira ne
nhuma. A seguinte formulação revela-nos, sem mais rodeios,
o introvertido: “Em todo intercâmbio, persistir como eu mes
mo, converter Iodas as percepções cm experiência íntima, quer
dizer, em unidades de conhecimento e em lei, para todas as
épocas, as diversas classes de fenômenos, é o preceito que
rne é dado pela nossa natureza racional”. 25
evidente a
disposição típica que se aplica à abstração que sustenta a
própria persistência e que, inclusive, se converte cm norma
suprema. Toda a vivência terá de ascender à categoria de
experiência, imediatamente, c da soma de experiências resul
tará, também de maneira direta, uma lei que seja válida para
25
S c h ilu s b , l o c . cif., Carta X I.
AS IDEIAS DE SCH ILLER SOBRE O PROBLEM A DOS TIPOS
12-3
todo o sempie e sem que o outro estado, aquele cm que
da vivência não haverá que deduzir espécie alguma de ex
periência, p a n assim se evitar que surjam leis passíveis do
constituir um obstáculo para o futuro, deixe de ser igual
mente humano. Tudo isto recebeu cabal resposta no fato
de S c h il l e r não ser capaz de imaginar um Deus adveniente sem scr eternamente, o que é uma maneira de reconhecer,
com penetrante intuição, "a divina semelhança” do estado in
trovertido ideal: “O homem, imaginado em sua perfeição,
seria portanto a unidade persistente que, nas marés da trans
formação e das mudanças, persiste eternamente como ele
próprio". E mais: “A propensão para a divindade está in
discutivelmente intrínseca na personalidade do próprio ho
mem”.
Esse conceito da essência dc Deus é pouco compatível
com a sua humanização cristã e com os pontos de vista —
de natureza análoga — do neoplatonismo, a respeito da mãe
dos deuses e de seu filho que, como demiurgo, desce no ad
vento. 28 Mas a concepção de S c h il l e r revela qual é a fun
ção a que reconhece o valor supremo, a divindade, c que
não é outra serão a persistência da idéia dc eu. O eu que
se abstrai de ser afetado é para S c h il l e r o mais importante
e, por isso, é a idéia mais diferenciada nele, como acontece
com todos os introvertidos. O seu deus, o seu valor supremo,
é a abstração e conservação do eu. Para o extrovertido, pe
lo contrário, Deus é a vivência no objeto, a consumição inte
gral no objeto, razão por que um deus feito homem terá do
ser mais simpát.co que um legislador eternamente imutável.
Eu gostaria de sublinhar, neste ponto, que tais critérios só
são válidos para a psicologia consciente dos tipos. No in
consciente, a situação inverte-se. S c h il l e r parece ter vis
lumbrado algo disso, pois se por uma parte é certo que sua
consciência crê num deus imutável, por outra parte são os
sentidos que abrem o caminho de acesso à divindade, quer
dizer, por meio do ser afetado, do mutável, no processo vital.
M as tal função 6 para ele dc importância secundária c, na
medida cm que se identifica com o seu eu e se abstrai do
mutável, a sua disposição consciente torna-se também com
pletamente abstrata, enquanto o ser afetado, a relação com
26
Cf. a Oração de JinuiANO sobre a mãe dos douse*.
124
TIPOS PSICOLÓGICOS
o objeto, há de necessariamente mergulhar ainda mais no
inconsciente. Deste conjunto de circunstâncias, podemos de
duzir as seguintes conseqüências:
Na disposição consciente abstrata, que, obedecendo a seus
ideais, faz de toda vivência uma experiência e converte as
experiências em leis, obscrva-sc uma certa escassez e liiritação característica do introvertido. S c h i l l e r teve oportuni
dade de senti-la em suas relações com G o e t h e , pois percebia
a natureza mais extrovertida de G o e t h e , ao confrontá-la com
a sua. 27 É o próprio G o e t h e quem, de modo característico,
diz a seu próprio respeito: “Eu. na verdade, como homem
observador sou um realista dos pés à cabcça, de modo que,
diante de todas as coisas que se oferecem ao meu exame,
nada delas, nem o implícito nelas, sou capaz de desejar, e
entre os obietos não sei fazer, cm absoluto, nenhuma outra
distinção que a de decidir se me interessam ou não”. 21 A
respeito da influência que S c h i l l e r exercera sobre ele, escre
veu: “Se eu lhe servi como representante de alguns obje
tos, você, em troca, afastou-me da observarão excessivamente
atmrada das coisas exteriores e de suas relações, fazendo-me
debruçar sobre mim próprio e ensinando-me a considerar com
mais justiça a variedade do homem interior”, etc. 20 S c h i l l e r ,
por seu turno, encontrou em G o e t h e o complemento h per
feição, freqüentemente salientada, do seu ser, mas sem dei
xar. simultaneamente, de perceber a disparidade, que descre
ve da seguinte maneira: “Não espere você descobrir em mim
uma grande abundância material de idéias; isso é o que en
contrarei em você. A necessidade que sinto n aquilo f. que
aspiro 6 fazer do pouco muito e se você chegar algum dia a
conhecer de perto a minha pobreza, em tudo o que se cha
ma conhecimentos adquiridos, verificará, talvez, que nalguns
aspectos consegui realizar meus intentos. Por ser mais lim i
tado o âmbito de minhas idéias, posso percorrê-lo com mui
to maior rapidez e assiduidade e, precisamente por isso, pos
so dispor com mais latitude de meu reduzido caudal, -procu
rando pela forma a variedade que falta ao conteúdo. Você
ambiciona simplificar o grande mundo de suas idéias, eu bus
27
28
2{l
Carta a G c e t h e , de 5 de janeiro de 1798.
Carta a ScnnxKR, de 27 de abril dc 1798.
Carta a S c h i l l e r , de 6 de janeiro de 1798.
AS IDÉIAS DE SCHILLER SOBRE O P RO BLEM A DOS TIPOS
125
co a variedade para o meu pequeno patrimônio. Você há
dc governar um reino, eu apenas uma família, talvez nume
rosa, de conceitos, que eu sinceramente gostaria de ver am
pliada num pequeno mundo”. 30
Se pusermos de lado a manifestação de certos sentimen
tos de inferioridade, que é típica cio introvertido, e acrescen
tarmos, no que se refere ao “grande inundo das idfoas”, que
o extrovertido é mais vassalo do que senhor no seu íeino, a
descrição de S c h il l e r oferece-nos uma imagem fiel da escas
sez que costuma evidenciar-se em resultado de uma disposi
ção essencialmente abstrata.
Outra conseqüência da disposição consciente abstrata,
que revelará sua importância no curso de nossa investigação,
é o fato do consciente desenvolver, neste caso, uma disposi
ção compensadoia. Quanto mais a abstração consciente evi
ta relações com o objeto (porque se formulam demasiadas
“experiências” e resultantes "leis"), tanto mais no inconscien
te se destaca uma apetência do objeto, a qual acaba por ma
nifestar-se no consciente como uma vinctuaçõo obrigatória e
sen sível ao objeto. Quando tal acontece, a relação sensível
com o objeto ocupa o lugar de uma relação sentimental au
sente ou reprimida pela abstração. Daí resulta que S o ü l l e r
conceba os sentidos e não os sen tim en to s como o caminho de
acesso para a divindade. O seu eu reside no pensar, mas o
seu ser afetado, seus sentimentos, situam-se 1 1 0 domínio da
sensibilidade. A divergência está, por conseguinte, defini
da entre uma espiritualidade como pensamento e uma sensi
bilidade como afeto ou sentimento. No extrovertido, porém,
a situação é inversa: a sua relação com o objeto está desen
volvida, mas o mundo de suas idéias é de ordem sensível e
concreta.
O sentir sensivel, 0 1 1 melhor dito, o sentir em estado de
sensibilidade, é coletivo, quer dizer, um gênero de relação
<>u afetação que, ao mesmo tempo, coloca sempre o homem
cm estado de paH icipation m y stiq u e , em estado, portanto,
de identificação parcial com o objeto percebido. Essa iden
tificação manifesta-se através de uma dependência automáti
ca do objeto percebido, sendo isto 0 que obriga 0 introver
tido, por meio do circidus vitiosiis, a efetuar um esforço de
50
Carta a Coetke, dc 31 dc acosto dc 1794.
126
TIPOS PSICOLÓGICOS
abstração, com o fim de evitar que a relação se intensifi
que, bem como as imposições que decorrem dela. S c h il l e r
reconheceu essa característica especial do sentir sensível: "En
quanto só percebe, só apetece e por mero apetite atua, não
é nada mais que m undo’. 31 Mas como o introvertido não
pode abstrair indefinidamente, esquivando-se à afeição, vê-se
coagido, em último recurso, a dar forma ao exterior. Escre
veu S c u jl l e r a propósito: “De maneira que, para não ser
só mundo, há que dar forma à matéria, que alienar tudo o
que é interior, sem enformar tudo o que é exterior. Ambas
as tarefas, imaginadas em sua plenitude, levam-nos de regres
so ao conceito de divindade, do qual eu partira”. 32
Esta conjugação é significativa. Suponhamos que o ob
jeto sensivelmente sentido é um ser humano. l)eixar-se-ia
aplicar essa receita? For outras palavras: deixar-se-ia en
formá-lo como se quem está com ele relacionado fosse o seu
próprio criador? Não há dúvida de que o homem está des
tinado a representar um papel de deus em escala reduzida,
mas, em última ar.álise, as coisas inanimadas também têm um
direito divino de serem o que são, pois tinham já decorrido
séculos infinitos desde que o mundo deixara de ser um
caos, quando os primeiros homínidas começaram a polir pe
dras. Seria, sem dúvida, um empreendimento duvidoso que
todo introvertido pretendesse alienar o limitado mundo de
seus conceitos e dar depois forma ao exterior, £ certo que
isso acontece todos os dias, mas também é verdade que o
homem tem de sofrer, c com sólidos motivos, em virtude dessa
semelhança divina. Para o extrovertido a fórmula seria:
“Transpor para a intimidade todo o exterior e enformar todo
o íntimo”. Como vimos, foi essa a reação que S c h il l f r sus
citou cm C o e t h e . o qual nos oferece ainda um bom parale
lo ao escrever o seguinte àquele: “Km troca, sou, em todos
os gêneros de atividades, quase diria que de um modo per
feito, um idealista: não pergunto, absolutamente, pelos obje
tos, exigindo apenas que tudo esteja em eonfimnidade com as
minhas idéias” (27 de abril de 1798). Quer isto dizer que
quando o extrovertido pensa, tudo ocorre tão autoritariamente como quando o introvertido se empenha exteriormen-
Sobre a Educação Estético do Homem, Carta X i
32
Loc. cit.
AS IDÉIAS DE SCI ILLLER SOBRE O PKOBLKMA DOS TIPOS
127
(c. 33 Assim, essa fórmula só jxxlcrá reivindicar validade on
de iun estado quase perfeito tiver sido alcançado; assim, no
introvertido, um mundo conceptual tão rico, flexível e ex
pressivo que- de* xo de precisar ja condicionar o objeto numa
cama de Procusto,
.»o extrovertido um conhecimento e
consideração tão completos do objeto que não possa resultar
mais numa caricatura, quando se pense conjuntamente com
cie. Vemos, portanto, que S c h i i .l k r baseia sua fórmula no
máximo possível, colocando assim o desenvolvimento psico
lógico do indivíduo ante uma exigência exorbitante — isso
supondo que ele tenha percebido inteiramente as implica
ções contidas na sua fórmula. Seja como for, uma coúa está
bem clara: essa fórmula que manda “alienar tudo o que é
íntimo e dar forma a tudo o que ó exterior” constitui o ideal
da disposição consciente do introvertido. Tein por funda
mento, de um lado, o pressuposto de um âmbito ideal do
mundo íntimo dos conceitos, do princípio formal; e, tle ou
tro lado, a suposição de uma possibilidade ideal de aplica
ção do princípio sensível, que no presente caso aparece não
como afeto ou afeição, mas como potência ativa. Enquanto
for “sensível” o homem “só será mundo” e para "não ser só
mundo, tem que dar forma à matéria". Observe-se aqui uma
inversão do princípio sensível, passivo e paciente. E como
pode acontecer essa inversão? É precisamente disso que se
trata. Não passa de uma hipótese que o homem dè, ao mes
mo tempo, ao seu mundo conceptual a extraordinária ampli
tude que seria necessária para gerar uma forma positiva do
inundo material e, de outra parte, inverta a sua afeição e
sensibilidade, transferindo-a de um estado passivo paia um
ativo, para elevá-la assim á altura do mundo de suas idéias.
O homem tem de estar referido a alguma coisa, submetido,
por assim dizer, caso contrário seria verdadeiramente seme
lhante a deus. P:)r isso tinha dc acontecer que S c h il l e r
chegasse a cometer violência 1 1 0 objeto. Mas com isso con
cederia à função arcaica de validade inferiox um ilimitado
direito à existência, o que depois N i e t z s c u e , como se sabe,
Eu desejaria deixar expresso, nesta altura, que todas as m i
nhas observações sobre extrovertido e introvertido, no decurso do pre
sente capitulo, sáo válidas apenas para os tipos específicos aqui ana
lisados, ou seja, 0 tipo extrovertido e intuitivo de sentimento, que está
representado por Cornuc, e o tipo introvertido c intuitivo dc pensa
mento, que S c h tlle r representa.
128
TIPOS PSICOLÓGICOS
também faria, pelo menos teoricamente. Essa suposição não
é, absolutamente, atribuível a S c h i l l e r , pois cm parte algu
ma, que eu saiba, ele se manifestou conscientemente a tal
respeito. Sua fórmula possui mais, talvez, um recorte ingênuo-idealista inteiramente compatível com o espírito da
sua época, ainda não contaminada por aquela profunda des
confiança sobre a essência e a verdade humanas que carac
terizou a época do criticismo psicológico, inaugurada por
NTxetzsche. A fónnula de S c h ili.f .r poderia concretizar-se me
diante a aplicação de um brutal ponto de vista de violên
cia, desprezando toda a justiça e eqüidade em relação ao
obj»*tn, toda a consideração escrupulosa de sua própria com
petência. Só nesse caso, que por certo não entrou ius de
sígnios de ScniLLKH, a função de validade inferior poderia
chegar também f. um plano de convivência. Dessa maneira,
o arcaico se acerca sempre, ingênuo e inconsciente, ainda fur
tivamente oculto, no princípio, pelo fulgor das frases grandi
loqüentes e dos belos gestos; e assim obtivemos a ‘'c-iltura”
que hoje desfrutamos e sobre cuja essência a humanidade já
começa, até certo ponto, a alimentar suas dúvidas e divergên
cias. O impulso arcaico de violência, que até agora sc ocul
tara atrás do gesto de cultura, acabou surgindo à superfície,
para demonstrar inequivocamente que “ainda somos bárbaros”.
Na verdade, não convém esquecer que, a par de uma
disposição consciente que pode vangloriar-se, graças a uma
certa semelhança divina, do seu elevado ponto de vista abso
luto, desenvolve-se também uma disposição inconsciente cuja
semelhança divir.a está orientada para baixo, no sentido de um
deus arcaico de natureza sensual o violenta. A enantiodromia de H k h á c l it o trata de que chegue o dia em que esse
deus absconditus se faça presente à face do mundo e ajuste
contas com o Deus de nossos ideais. É como se a gente do
final do século X V III não tivesse querido ver, cm toda a
sua clamorosa evidência, o que então ocorria em Paris, pre
ferindo teimar numa certa disposição espirituosa, acalorada
ou divertida, para iludir-se fechando os olhos aos abismos do
ser humano.
J á em baixo, porém , é algo tem ero so e horrível,
E não procure o h o m em ten ta r os deuses,
E nunca, nunca, alm eje devassar
O q u e eles, clem en tes, vela m na N o ite e no E spanto.
( ScKn.i.ra, Der Taucher)
AS IDÉIAS DE SCHILLER SOBRE O PR O B LE M A DOS TIPOS
129
Nos tempos cm que S c h il l e r viveu, não se fizera ainda
sentir que chegara a hora de enfrentar o ínfero. N ie t z s c h e
estava muito mais próximo (intimamente, também) dessa ho
ra, motivo por que, pura ele, era coisa assente que a huma
nidade se aproximava de uma época de grandes lutas. Por
is$o também foi ele quem, como único e verdadeiro discí
pulo de S c h o p e n iia u e r , rasgou o véu da ingenuidade c achou,
no seu ZaratusP-a, algo do que viria a constituir o mais vivo
conteúdo dos tempos vindouros.
b)
Sobre os Instintos Básicos
Na Carta XII, S c h il l e r examina os dois instintos bási
cos, consagrando-lhes uma descrição pormenorizada. O ins
tinto "sensível" ocupa-se de manter “o homem dentro dos
limites temporais e convertê-lo em matéria’’. Esse instinto
exige “que haja variação e que o tempo possua um certo con
teúdo. Esse estado do tempo apenas cumprido denomina-se sensibilidade*.34 "Nesse estado, o homem apenas é uma
unidade quantitativa, um momento preenchido, ou melhor,
não o é, pois a sua personalidade anula-se enquanto estiver
dominada pelo sensível e o tempo arrasta-o consigo.” 35 “Com
ataduras ilaceráveis esse instinto algema o espírito, que aspira
a pairar nas alturas do mundo dos sentidos, e protesta pela
libérrima peregrinação da abstração pelo infinito, arraslando-a de novo, para dentro da fronteira do presente.”
fr sumamente característico da psicologia de S c h ii .t.f.h
o fato dele conceber como "sensibilidade” a manifestação
desse instinto e uão, por exemplo, como um apetite sensível
e ativo. Isso demonstra que, para ele, o sensível reveste-se
de um caráter reativo, de afeto, o que é típico do introvertido.
Um extrovertido salientaria, com certeza, o caráter de ape
tite, antes de mais nada. Além disso, 6 característico que
seja esse instinto a exigir a variação. A idéia requer imu
tabilidade e eternidade. Os situados sob o primado da idéia
aspiram à persistência e, por conseguinte, todos os que aspi
rem à variação têm de situar-se no campo oposto. No caso
fl
a*
Loc. cit., Carta X II.
35
l,oc. cit.
130
TIPOS PSICOLÓGICOS
de S c h il l e r , isso ocorre com o sentimento e a percepção que,
em conformidade com a regra, estão ligados em virtuce de
seu fraco desenvolvimento. S c h il l e r promoveu uma cistinção insuficiente entre sentimento e percepção, como se ve
pelo seguinte trecho: ‘‘O sentimento apenas pode dizer: isso
c verdade para este sujeito e neste momento, c outro mo
mento e outro sujeito podem vir que recolham a manifesta
ção da percepção de agora”. (Loc. cit.)
Este trecho mostra-nos, claramente, que em S c j u l l k r
a percepção c o sentimento se conjugam também na expres
são verbal. O conteúdo da transcrição acima demonstra uma
insuficiente valorização e diferenciação de percepção c sen
timento. O sentimento diferenciado também é suscetível de
estabelecer vigências genéricas, não só as casuísticas. \ ver
dade, porém, è que a percepção sentimental do tipo reflexi
vo introvertido, ror causa do seu caráter passivo e reativo, é
apenas casuística, visto que não logra alcandorar-se. para
alem do caso estrito que a estimulou, a uma comparação abs
trata de todos os casos, pois de tal tarefa não se incumbe, no
tipo reflexivo introvertido, a função sentimental, mas a refle
xiva. No tipo sentimental introvertido ocorre o inverso, al
cançando o sentimento um caráter geral e abstrato e poden
do, portanto, cs:abelecer valores igualmente gerais e dura
douros.
Da descrição de S c h il l e r , deduz-se ainda que a percep
ção sentimental (com o qi jc designo, especificamente, a m is
tura característica de sentimento e percepção no tipo refle
xivo introvertido) é aquela função com que o eu não se
identifica. Tem o caráter do que se contraria, do que é es
tranho e do que “suprime” a personalidade, a arrasta consi
go, arrancando o homem para fora de si próprio e alienan
do-o. Por isso S c h il l e r estabelece também o paralelo com
o afeto, que põe o homem "fora de si”. 30 Recuperar a se
renidade chama-se, “de maneira igualmente exata, voltar a si”, 37
quer dizer, voltar ao eu, refazer a pessoa. De modo que,
sem dar margem a erros, deduz-se de tudo isso que, para
S c h il l e b , a percepção sentimental é algo que não pertence
à pessoa c significa, apenas, uma circunstância aleatória, mais
39
Isto é, "fx lr o v erte-o ” -
37
Isto é, "vitro v erte-se” .
AS IDÉIAS DE SCHILLER SOBRE O P RO BLEM A DOS TIPOS
131
ou monos dispensável, à qual, ocasionalmente, “uma vontade
firme se opõe com êxito”. Mas dir-se-ia que, para o extro
vertido, esse «ispecto é o que constitui dc fato sua legíti
ma essência e que, na realidade, é o mesmo quando está
afetado pelo objeto, o que é bastante fácil de entender se
atentarmos para o fato de que, para o extrovertido, a rela
ção com o objeto é a função dc validade superior, à qual
o pensar c sentir abstratos são tão opostos quanto indispen
sáveis para o introvertido. O preconceito da sensibilidade
tanto gravita em torno do pensar do tipo sentimental extro
vertido como tio sentir do tipo reflexivo introvertido. Para
ambos os casos, extá pressuposto um "controle" máximo do
material e do ccsuístico. A vivência no objeto também conhe
ce, tal como a abstração, aquela “libérrima peregrinação pelo
infinito” de que fala S c h i l l e r .
Em virtude dessa exclusão da sensibilidade conceptual
c do âmbito da pessoa, pôde S c h i l l e r chegar à afirmação de
que a pessoa é “uma unidade absoluta e indivisível”, “que
nunca pode estar em contradição consigo mesma". Essa uni
dade é um desiderato do intelecto, que pretenderia conser
var o sujeito numa integridade ideal c donde se exclui, por
tanto, como função de plena validade, a função da sensi
bilidade, que para ele é dc menor validade. O resultado é a
mutilação do sei humano, tema que constitui, justamente, o
motivo e o ponto de partida da investigação de S c h i l l e r .
Visto que, para S c h i l l e r , o sentimento possui a quali
dade de percepção sentimental c, portanto, r ensuístico, ao
pensamento formativo, o “instinto formal" como S c h i l l e r o
denomina, é atribuído, naturalmente, um valor máximo, um
verdadeiro valor de eternidade: 36 “Mas quando o pensa
mento diz: assim é, decidiu para sempre e eternamente, e a
validade de sua sentença está garantida pela própri?. per
sonalidade, que desafiará toda a mudança”. 30 Neste ponto,
somos levados a pòr a questão: será que, de fato, somente o
que persiste constitui um sentido e um valor para a perso
nalidade? A variação, o advento e a evolução não represen
38
Kirepõem-se.
30
Para Sc u ii .lxh, “instinto formal" e "força do pensamento” soCf. Carta X III.
Loc. cit., Cí.rta XII.
132
TIPOS PSICOLÓGICOS
tam, porventura, valores mais elevados que o simples “de
safio” à mudança? 10
"Desse modo, portanto, onde o instinto formal se impõe
e o objeto puro atua em nós, temos a amplitude máxima do
ser, desaparecendo todas as limitações, e o homem ascende
da unidade quantitativa a que o restringia a pobreza dos
sentidos, parn a unidade de ideias que abrange todo o do
mínio fenomenológ.co.” ( . . . )
“Já não somos indivíduos,
mas gênero; o juízo de todas as mentes expressa-se pelo nos
so, a eleição de todos os corações está representada pelo
nosso ato.”
E indubitável que o pensamento do introvertido aspira
a esse empíreo, mas é de lamentar que a unidade de idéia
seja o ideal dc uma classe humana numericamente resrrita.
0 pensar é apenas uma função que, completamente desenvol
vida e obedecendo unicamente a suas próprias leis, aspira
naturalmente à validade geral. Por conseguinte, o pensar só
pode abranger uma parte do mundo, enquanto outra parte só
pode ser compreendida pelo sentimento, outra pela percep
ção, etc. £ por isso que existem diferentes funções psíqui
cas, dado que o sistema psíquico só pode ser biologicamente
entendido como um sistema de adaptação e temos de partir
do princípio de que fomos dotados de olhos porque há luz.
O pensamento, portanto, sob toda e qualquer circunstância,
possui tão-só um terço ou um quarto cie significação, se bem
que dentro de sua própria esfera seja exclusivamente válido,
assim como a vista è a função exclusivamente válida para a
percepção das vibrações luminosas e o ouvido paia .i per
cepção das vibrações acústicas. Portanto, quem coloca por
cima dc tudo a “unidade da idéia”, considerando a percepção
sentimental um conceito oposto à sua personalidade, poderá
comparar-se a quem, tendo bons oDios, for completamente
surdo e anestésico.
“já não somos indivíduos, mas gênero”; certamente, quan
do nos identificamos com o pensamento, com uma função
única e exclusiva, somos seres coletivos de validade geral,
mas completamente divorciados de nós próprios. Fon desse
um quarto de psique, ficam os outros très quartos na penum
40
esso ponto.
No decorrer da sua investigação, o próprio Schiller critica
AS IDÉIAS DE SCHELLER SOBRE O P R O B LE M A DOS TIPOS
133
bra, reprimidos e inferiorizados em seu valor. “E st-ce la riature, q u i p o rte a.tisi les h o m m e s si loin d ’eux-m ém e$?” - pode
ríamos perguntar como R o u s s e a u , 0 mas apenas sc pode di
zer que é a nossa própria psicologia, e não a natureza, 0
que, em primeiro lugar, sobrestima de modo bárbaro uma
função e por ela sc deixa arrastar. Esse ímpeto constitui,
sem dúvida, urra parcela da natureza, quer dizer, trata-se
dessa impetuosa energia instintiva que assusta o tipo dife
renciado quando se manifesta “acidentalmente”, não na fun
ção ideal, onde é exaltada e apreciada com divino entusias
mo, mas uma função de menor validade, como S chtller pe
remptoriamente afirmou: “Mas o teu indivíduo e tua ne
cessidade momentânea serão arrastados p ela variação e a q u i
lo q u e h o je desejas a rd e n tem en te chegará n u m dia em q u e
será o b jeto d e tua aversão ”. 41
Que o indómito, o desproporcionado, se revelem na sen
sibilidade — in abjectissim o loco — ou na função altamente
desenvolvida como superavaliação e deificação, é funda
mentalmente a mesma coisa: barbárie. Esta não se pode ver
enquanto o indivíduo estiver hipnotizado pelo o b jeto do fazer
e ignorar o com o da ação.
Ser idêntico a uma função diferenciada equivale a ser
coletivo, não mas id e n tica m e n te co letivo , é certo, como o
indivíduo primitivo, mas co letiva m en te ajustado; na medida
em que isso se concretiza, o “juízo de todas as mentes é
expresso pelo nosso" ao pensarmos e falarmos como c de
esperar, prccisanxnte, naqueles cujo pensamento está difcrçnciado « ajustado pelo mesmo padrão. Também “a elei
ção de todos os corações está representada pelo nosso ato”,
enquanto pensarmos c atuarmos como todos desejam que se
pense e atue. Todos acreditam c até desejam que o melhor
e aquilo a que deve aspirar-se é à máxima identidade pos
sível com uma função diferenciada, pois isso é o que provo
ca as vantagens sociais mais evidentes; mas, por outro lado,
para a minoria da natureza humana, a qual constitui, até
certo ponto, uma grande parte da individualidade, tal iden
tidade acarreta as maiores desvantagens. Escreveu S c h jl l e r ;
0
“Será a natureza que assim leva os homens para táo longe de
.si mesmos?” (N. Jo T.)
Loc. cit., C u ta XII.
TIPOS PSICOLÓGICOS
134
“Enquanto se defender um antagonismo original e, por isso,
necessário entre ambos os instintos, não haverá por cerlo qual
quer outro meio de conservação da unidade 1 1 0 homem se
não subordinando incondicionalmente o instinto sensível ao
racional. Assim será possível chegar-se à uniformidade, mas
não à harmonia, c o homem continuará eternamente dividi
do”.
“Como permanecer fiel aos seus princípios funda
mentais apresenta dificuldades, recorre-se ao meio mais cô
modo de proteger 0 caráter embotando os sentimentos, por
quanto é infinitamente mais fácil permanecer tranqüilo ante
um adversário inerme do que dominar um inimigo bravo e ro
busto. ft nesta operação que também consiste, predominan
temente, aquilo a que se chama formar um homem; c, no
melhor sentido da expressão, quando significa também a edu
cação do homem interior e não só a do homem exterior. A
um homem assim formado, tratar-se-á de assegurar, por cer
to, que sua natureza seja rude e como tal pareça. Mas, si
multaneamente, encontra r-se-á solidamente protegido por
princípios básicos e a humanidade de fora atingi-lo-á tão
pouco quanto a humanidade dc dentro.” 13
S c h il l e r também sabia que ambas as funções, o pensa
mento e o afeto (percepção sentimental), podem suplantars e mutuamente (sendo isso o que justamente acontece, como
vimos, quando uma função é preferida a outra). “Pode co
locar a intensidade que a força ativa exige no passivo (afei
ção), antecipar-se pelo instinto material ao instinto formal
e converter a faculdade receptiva em força determinante. Po
de adjudicar a extensão que convém
força passiva à ativa
(ao pensamento positivo), antecipar-se pelo instinto formal
ao material c suplantar a faculdade receptiva pela força de
terminante. \'o primeiro caso. nunca chegará a ser ele pró
prio, no segundo nunca chegará a ser outra coisa.” **
Neste notável trecho está contido muito do que ante
riormente foi debatido. Quando a força do pensamento po
sitivo acorre à percepção sentimental, o que equivale a uma
inversão do tipe introvertido, impõem-se as qualidades das
percepções sentimentais não-diferenciadas e arcaicas, isto é,
<3
**
Loc. cit., Carta X III, nota.
LOC. Cit.
Loc. cit.. Carta X III.
AS IDÉIAS DE S C in L L E R SOBRE O P R O B L E M A DOS TIPOS
135
o indivíduo fica num estado de relação máxima, de identidade
com o objeto percebido. A esse estado corresponde uma ex
troversão de validade inferior, ou seja, uma extroversão que,
por assim dizer, divorcia completamente o homem do seu eu
e desfaz os seus vínculos c identidades arcaicas de natureza
coletiva. Deixa de ser “ele próprio” para converter-se numa
pura relação e identificação com o seu objeto e, por con
seguinte, desprovido de ponto de vista. O introvertido ofere
ce instintivamente a maior resistência contra esse estado, o
que não o impede, porem, de cair nele com freqüência, de
um modo inconsciente. Esse estado não pode confundir-se
com a extroversão de um tipo extrovertido, embora o intro
vertido seja sempre propenso a cometer esse erro e a de
monstrar por essa extroversão um desprezo idêntico ao que,
no fundo, alimenta sempre por sua própria relação extrover
tida. ,c Por outro lado, o segundo caso pressupõe a pura
descrição do tipo reflexivo introvertido, o qual, com as am
putações realizadas nas percepções sentimentais de validade
menor, condena-se à esterilidade, ou seja, passa a encon
trar-se num estf.do em que “a humanidade de fora atingi-lo-á <âo pouco quanto a humanidade de dentro”.
Também aqui é evidente que S c h i l l e r escreve sempre
de acordo com o ponto de vista do introvertido. Na verda
de, o extrovertida, que nunca interfere no seu eu no pensa
mento e apenas na relação sentimental com o objeto, situa -sc a si próprio no objeto e é precisamente nele que se en
contra e define, ao passo que o introvertido é nele que se
perde. Por outro lado, o extrovertido, quando introverte,
acaba numa relação de validade inferior com as idéias cole
tivas. numa identidade com o pensar coletivo, de natureza
arcaica e concretista, que poderíamos designar como repre
sentação perceptioa. Nessa função de validade inferior per
de-se tal qual o introvertido em sua extroversão. O extrover
tido tem, portanto, a mesma repulsa, ou medo, ou desprezo
tácito pela introversão que o introvertido tem pela extro
versão.
S c h il i .f r percebeu o contraste entre ambos os mecanis
mos, no seu caso, portanto, entre perceber e pensar ou, corno
45 Eu gostaria de fazer aqui a advertência, para evitar falsas
interpretações, de q u j esse desprezo não afeta o objeto (pelo menos,
isso não sucede como regra), mas apenas à própria relação.
TIPOS PSICOLÓCICOS
136
tambcm costumava dizer, entre "matéria c forma" ou "passi
vidade e atividade7' (afeição e pensar ativ o ),4'5 como um con
traste invencível. "A distância entre perceber e pensar” é "in
finita” e não pode ser “absolutamente superada por coisa algu
ma”. Ambos os "estados são antagônicos e jamais poderão ser
conjugados”. 47 Mas ambos os instintos querem ser e, como
“energias” que são, assim pensa S c h i l l e r , de uma feição bas
tante moderna, requerem e precisam de um “alívio de ten
são”. 43 “Tanto o instinto material como o instinto formal
levam muito a sério suas exigências, pois que um se refere ao
conhecimento como realidade, e o outro como necessidade das
coisas.”
O alívio “do instinto sensível não tem poi que
ser, de maneira alguma, conseqüência de uma incapacidade
física ou de um embotamento da sensibilidade, os quais só
merecem desprezo, onde quer que seja; deverá ser um ato de
libertação, uma atividade da pessoa que, por sua intensidade
moral, modere o sensível... S ó pelo espírito deve o senti
mento perder”. 50 De acordo com isto, deveríamos deduzir
que o espírito sô deve perder pelo sentido. S c h u j l e r não
o afirma de maneira direta, mas è o que quer dizer quando
escreve: “Esse alívio do instinto formal também não deve
scr o resultado de uma impotência espiritual ou do adorme
cimento das forças do pensamento e da vontade, o que signi
ficaria uma degradação para a humanidade. É na plenitu
de de percepções que devemos encontrar sua tão falada ori
gem; a própria sensibilidade deverá defender os seus domí
nios com triunfante energia e opor-se à violência que o es
pírito, com sua atividade preestabelecida, quisesse cometer
sobre ela".31
Nestas palavras ficou explícito o reconhecimento da equi
valência entre “sensibilidade” e espiritualidade.
S c h il l e r
concede, pois, à percepção um direito legítimo a existência
própria. Mas, simultaneamente, vemos ainda nesse trecho
acima transcrito a insinuação de um profundo pensamento,
*6
Em contraste com o pensamento reativo a que já nos referimos.
47
S c h ille r
<8
Loc. cit., Carta X III.
50
Loc. cit., Carta XV.
Loc. cit., Carta X III.
51
Loc. cit.
loc. cit., Carta XV III.
AS IDÉIAS EE SCHILLER SOBIIE O P RO BLEM A DOS TIPOS
137
qual seja a ideia de uma “ação recíproca” de ambos os ins
tintos, uma comunidade de interesses ou simbiose, como diría
mos em termos mais modernos, cm que o produto remanes
cente de uma das atividades constitui a matéria nutritiva das
demais. S c h il l e r disse que '“a ação mútua de ambos os
instintos consiste na ação de um fundamentar e condicionar
ao mesmo tempo a do outro” e em "cada um alcançar por si
só a sua maior evidencia quando, precisamente, o outro sc
encontra ein ação”. Segundo esta concepção, o contiastc en
tre eles não deve, absolutamente, ser considerado como algo
deletério, mas. pelo contrário, algo proveitoso c revigorante
que é preciso nanter e estimular É verdade que tal requi
sito contradiz o predomínio de uma função única, diferencia
da e socialmente valiosa, visto ser ela que, sobretudo, repri
me e reflete as funções de validade inferior. Isto significa
ria uma revolta de escravos contra o ideal heróico que nos
obriga a sacrificar pelo Um todos os Outros. Quando se
quebra tal princípio, que, como se sabe, tendo sidr> insti
tuído pelo cristianismo, em grande parte, para lograr uma rá
pida espiritualização do homem, também ajudou bastante à
sua materialização, emancipam-se, naturalmente, as funções
de menor validade e pede-se que sejam reconhecidas, com
razão ou sem ela, no mesmo plano da função diferenciada.
Dessa maneira ficará patente o profundo antagonismo entre
o sensível e o espiritual, ou entre a percepção sentimental
e o pensamento, no tipo reflexivo introvertido. Esse pro
fundo antagonismo, como S c h il l e r também sublinhou, dá
lugar a um condicionamento mútuo que, no plano psicoló
gico, equivale à eliminaçao do chamaao princípio de poder,
ou seja, o abandono da validade geral em conseqüência de
uma função coletiva diferenciada, adaptada na generalidade
dos casos.
E daqui se depreende, sem mais delongas, o individua
lismo, quer dizer, a necessidade de um reconhecimento da
individualidade, de um reconhecimento do homem tal como é.
Vejamos, porém, como S c h il l e r procura abordar o proble
ma. “Essa relação mútua de ambos os princípios impulsio
nadores só constitui, por certo, uma tarefa da razão que o
homem, graças unicamente á perfeição de sua existência, é
capaz de promover cabalmente. No verdadeiro sentido da
palavra, constitui a idéia de sua humanidade c com ela uma
noção de infinito suscetível de, com o decorrer do tempo, ficar
138
TIPOS PSICOLÓGICOS
cada vez mais próximo, sem que possa, contudo, ser cm mo
mento algum alcançado.” 52 E pena que S c h i i .l e r já tenha
o seu tipo determinado, pois se assim não fosse jamais lhe
teria ocorrido considerar a ação conjunta de ambos os ins
tintos como uma "tarefa da razão”, visto que, racionalmente,
não se podem unir os contrários — lertiu m non d a tu r — que
por isso mesmo se chamam contrários. Talvez S c h il i .eh ti
vesse entendido como razão uma coisa diferente da ratio,
uma faculdade mais elevada, quase mística. S ó é possível
chegar à união dos contrários praticamente, mediante um
compromisso, ou irracionalm ente , ao surgir entre eles um
n o o u m distinto de ambos e, entretanto, capaz de absorver
igualmente as suas energias, como expressão dt* ambos e de
nenhum dos dois. Isso é algo que não se pode arquitetar
c que só a vida tem possibilidades de criar. S c h u .i .e r refe
re-se, efetivamente, a essa possibilidade, como se vê pelas se
guintes palavras: “Mas se houvesse casos em que (o ho
mem) fizesse, ao mesmo tempo, essa dupla experiência, cm
que simultaneamente fosse cônscio de sua liberdade e per
cebesse sua existência, por um lado, sc sentisse como maté
ria c reconhecesse como espírito, por outro lado, possuiria
em tal caso, e só nele, uma noção completa de sua humani
dade; e o objeto que essa noção lhe granjeasse iria jcrvir-Ihe de símbolo do cumprimento de sua inabalável decisão”. r>3
Portanto, quando o homem for capaz de viver, simul
taneamente, ambas as forças impulsionadoras ou instintos, quer
dizer, quando puder percebê-las pensando ou pensá-las per
cebendo, surgirá fatalmente dessa vivência (a que S c iiil l e r
chama o objeto) um sím b o lo que exprimirá sua decisãc cum
prida, quer dizer, o caminho cm que o seu SIM e o seu
NÂO sc unem. Antes de entrarmos em pormenores sobre a
psicologia desse pensamento, vejamos como S c h il l e r explica
a essência e a origem dos símbolos: "O objeto do instinto
sensível... chama-se vida, em sua mais alta expressão; um
conceito que abrange todo o ser material e toda a presença
imediata nos sentidos. O objeto do instinto form al... deno
mina-se configuração fg c sta lt ] . . . um conceito que com
preende todas as disposições ou todos os arranjos r.aturais
e as respectivas relações com as forças do pensamento ati
52
53
Loc. cif., Carta XIV.
Loc. cit.
AS IDÉIAS DE SCHILLER SOBRE O P RO BLEM A DOS TIPOS
139
vo”. Assim, segundo S c h il l e r , o objeto da função media
dora denomina-se configuração ou forma viva e, como tal,
seria efetivamente o símbolo da união dos contrários, “um
conceito que serve para designar toda a fatura cstctica dos
fenômenos, numa palavra, o que ern sua mais ampla acep
ção se chama beleza”. 54 Mas o símbolo subentende não só
uma função criadora, mas também uma função que de novo
compreenda um símbolo criado. Não se trata, porém, de
algo incluído m força criadora do símbolo, fratando-se, pelo
contrário, de uma função própria suscetível de assinalar o
pensamento ou a compreensão simbólica. A natureza do
símbolo consisti nele não representar, em si, um ?ato ou
evento inteiramente compreensível, mas apenas uma indi
cação significativa da sua probabilidade. Também não pode
ser uma antecipação racional; pois um efeito e nunca uma
imagem que, no fim de contas, pode representar um íntimo
inexplicável, estaria apta a produzir. O símbolo traduz uma
intuição consciente, isto é, cujo significado aproximado foi
apreendido pela consciência c a esta se incorporou.
S c h i l l e r atribui essoutra função a um terceiro instinto
que denomina instinto de jogo, o qual não tem qualquer se
melhança com aí funções contrastantes e que, entretanto, está
situado entre elas e reage à essência de ambas, tudo isto na
suposição (que S c h i l l e r não menciona) de que as funções
sérias fossem, então, o perceber e o pensar. Contudo, mui
ta gente há em que nem o perceber nem o pensar são intei
ramente sérios, pelo que, nessas pessoas, deveria interpor-se
a seriedade cm vez do jogo. Embora S c h i l l e r negu«. n o u
tro trecho, a existência de um terceiro instinto básico e me
diador, 65 aceitemos, porém, que apesar de sua conclusão
ser, na verdade, um tanto insuficiente, a sua intuição tenha
sido mais acertada. Isto porque, efetivamente, alguma coisa
existe entre os ccntrastcs, mas que, no tipo puramente dife
renciado, chegou a tomar-sc invisível.
Pode-sc observar,
quanto ao introvertido, naquilo que denomino percepção sen
timental. Por causa da repressão relativa, a função de vali
dade inferior só em parte se associa à consciência, mas, na
M ia outra parte, depende do inconsciente.
A função diferen-
54
Loc. cit., Carta XV.
™
Loc. cit., Carta X III.
140
TIPOS PSICOLÓGICOS
ciada adapta-se o mais possível à realidade exterior, sendo,
na verdade, uma função realista e, por tal motivo, todo o
elemento de teor fantástico é dela excluído. É por tal mo
tivo que se associa às funções de menor validado, que são
reprimidas de maneira semelhante. E isto explica por que a
percepção do introvertido, que de um modo geral é senti
mental, revela uma tão acentuada influência da fantasia in
consciente. O terceiro elemento em que os contrastes se
encontram é a atividade da fantasia, criadora por uma parte,
receptiva por outra. É essa a função a que S c h i l l k r chama
instinto de jogo, com o que pretende explicar mais do que
realmente explicou.
Observa S c h il le r : * "Pois digamo-lo,
por fim, de uma vez: o homem só joga onde for home.n n o
pleno significado da palavra e só é integralmente homem
onde quer que jogue'. O objeto do instinto de iogo é para
ele a beleza. “O homem só deve jogar com a beleza e nada
mais que com a beleza.” Rfl
S c h il l e r tinha completa consciência do que queria dizer
ao colocar o “instinto de jogo”, até certo ponto, numa posi
ção de destaque. Como já vimos, um choque dos contras
tes provoca a supressão das influências repressoras e uma con
ciliação que acaba, forçosamente, num relaxamento dos que
até então eram valores supremos. Para a cultura, tal como
ainda hoje a entendemos, a intervenção do aspecto bárbaro
do europeu significou uma verdadeira catástrofe, pois nin
guém nos garante que esse tipo de homem, quando começar
a jogar, vá precisamente escolher como finalidade de seu
jogo a contemplação estética ou o gozo da autêntica beleza.
Isto seria uma antecipação de um gênero injustamente levia
no. Será de esperar, pelo contrário, que do necessário abai
xamento da ação da cultura resulte, para já, alguma coisa
completamente distinta. Por isso S c h il l k r escreveu, .'om ra
zão: ‘‘O instinto de jogo estético só poderá ser reconhe
cido cm seus primeiros ensaios, pois o instinto sensível, com
suas caprichosas obstinações e suas selváticas apetências, es
tá constantemente interferindo. Por isso observamos o gos
to grosseiro, o novo e surpreendente, o violento e impetuoso,
o aventureiro, o selvático, o variegado c colorido, agarrar o
primeiro e de coisa alguma fugir mais depressa que da sim
s«
I a>c . c i i , C arta X V .
AS IDÉIAS DF. SCKLLLEn SOBHE O P RO BLEM A DOS TIPOS
141
plicidade e da serenidade”. 07 Deduzimos disso que S c h il l e r
se dava muito bein conta do perigo dc semelhante transfor
mação. E explica-se também por que ele não se contentou
com a solução encontrada e sentiu a necessidade premente
de oferecer ac homem uma base mais sólida para a sua huma
nidade do que esse frágil arranjo de estética e jogo. Assim
tinha que ser. Pois o contraste entre ambas as lunções ou
entre os dois grupos de funções é de tal âmbito e gravidade
que, falando sinceramente, muito clifíciT seria para o jogo
apreender o que há de grave e sério nesse conflito. “Similia
similibus curantur” . . . requer-se uma terceira coisa que equi
valha, em seriedade, às outras duas. Na disposição de jogo
toda a seriedade está excluída o, assim, abre-se a possibili
dade de uma determinação absoluta. Umas vezes apetece
ao instinto ser atraído pela percepção, outras pelo pensamen
to, agora agrada-lhe jogar com objetos c logo prefere jogar
com idéias. Km todo caso, não jogará exclusivamente com
a beleza, pois para tal seria necessário que o homem já tivesse
deixado de ser bárbaro, que estivesse educado esteticamente,
quando o que se está tratando é, precisamente, de descobrir
um modo dele sair do estado dc barbárie. Assim, convém
esclarecer, antes de mais, em que situação se encontra real
mente o homem, cm sua mais intima essência. A priori, tan
to pode ser percepção como pensamento, está em contraste
consigo mesmo e, por conseguinte, há de estar dc algum
modo entre ambas as c> isas e ser, no mais íntimo de si, um
ente participante dos dois instintos que, ao mesmo tempo,
se diferencia de ambos, e isto de modo tal que terá de supor
tá-los, é certo, e em determinados casos, submeter-se a eles
ou deles se servir, mas ditercnciando-se desses instintos co
mo de forças raturais a que está submetido, sem dúvida, não
reconhecendo porém a sua identificação com as mesmas.
S c h il l e r exprime-se da seguinte maneira: "Essa íntima resi
dência de dois instintos fundamentais de modo algum con
tradiz, quanto ao mais, a unidade absoluta do espírito, na
medida cm que deles se distingue. Ambos os instintos exis
tem e atuam, certamente, no homem, mas este não é matéria,
nem forma, nem é sensibilidade, nem razão”. 69
57
Loc. cit.. Carta XXVII.
3S
Loc. cit., Carta XIX.
142
TIPOS PSICOLÓGICOS
Em minha opinião, S c h i i .i .k r sugere, neste ponto, a’go
muito importante: a possibilidade dc eliminação de um nú
cleo individual que umas vezes pode ser sujeito e outras ob
jeto das funções antagônicas, mas que se conserva sempre
diferenciável delas. A própria diferenciação è um critério
tanto intelectual quanto moral. Nuns verifica-se por meio do
pensamento, noutros pelo sentimento. Se não se consegue
a diferenciação 0 1 1 se, simplesmente, não é feita, a conse
qüência inevitável é ;i dissolução do indivíduo nos duplos
contrastes, ao identificar-se com eles. A conseqüência se
guinte é uma divergência interna ou uma decisão arbitrária
num ou noutro sentido, com repressão violenta do sentido
contrário, hste processamento do idéias constitui uma refle
xão muito antiga que, salvo erro, foi formulada do modo
psicologicamente mais interessante por S i n é s i o , bispo cristão
de Ptolomais c discípulo de H i p á c i a . N o seu livro Dc Somniis,
atribui ao spiritus phantasticus praticamente o mesmo
lugar, na Psicologia, que S c h i i .l e r assinalou para o jogo e eu
para ;i fantasia criadora, só com a diferença que, em vez de
psicológica, sua formulação é metafísica, o que, para os nos
sos propósitos, não há por que tomar em consideração. Es
creve SixÉsio: “Spiritus phantasticus inter aeterna et temporalia rnedius est, quo et plurimum vivimus”. 00 O spiritus
phantasticus une em si os contrários e por isso desce até o
animal na natureza instintiva, onde se converte em instinto
e incitador de apetites demoníacos: "Vindicat enim sibi sj>iritus hic aliquid velut proprium, tanquam ex vteinis quibusdam
ab exiremis utrisque, et quae tam longe disjuncta sunt, occurrunt m una nniura. Atqui essentiae phantasticae latitudinem
natura per multas rerum sortes extendit, descenda uiique
usque ad animalia, quibus non odest ulterius intellectus.
Atque est anima/is ipsius ratio, nnâtaque per phantasiicanfy
hanc esseniiam sapit a n im a l... Tota genera dacmonu.n ex
ejusmodi vita suam sartiuntur essentiam. llla enim cx toto
suo esse imaginaria sunt, et iis quae fiunt intus, imaginauT. 01
Basdo as ninhas citações na tradução latina de M ahsilius
F icinus de 1497.
#0 "O espírito fantástico, no meio do qual atuamos e freqüente
mente vivemos, é urr. domínio intermédio entre o eterno e o temporal.”
(N. (to T.)
"Reivindica, pois, o espírito paia si, como se próprio fosse,
aquilo que se encontra nos domínios vizinhos de ambos os lacbs, tão
AS IDÉIAS DE SCH1LLEH SOBRE O FROB l.EM A DOS TIPOS
143
Os demônios não ião, psicologicamente, senão intromis
sões do inconsciente, de natureza espontânea, na continuida
de do fluir consciente. Dessas intromissões são responsá
veis os complexos inconscientes, comparáveis a demônios que
perturbam, caprichosamente, o nosso pensamento e a nossa
ação. Por isso, na antiguidade e na Idade Média, considera
vam-se possessos os indivíduos que padeciam dc graves dis
túrbios neuróticos. Assim, quando o indivíduo sc coloca de
um lado, o inconsciente coloca-se do outro lado e revolta-se,
o que, evidentemente, surpreenderia os filósofos neoplatônicos e cristãos mais do que a quaisquer outros pensadores,
visto serern eles os defensores do ponto de vista de uma ex
clusiva espiritual i/ação.
De especial valor é a alusão à
natureza imaginária dos demônios. Como já sc explicou, o
elemento fantástico é o que está justamente associado, no
inconsciente, às funções reprimidas. Não se diferenciando o
indivíduo (como poderíamos dizer, mais sucintamente, em
lugar dc núcleo individual) dos contrastes, identifica-se com
estes e gera, assim, um desprendimento íntimo ou. por outras
palavras, uma dolorosa divergência interna. Isso é descrito
por SiNÉsio da seguinte maneira: “P roinde sp iritu s his u n i -
m alis, q u em beuti sp iritu a lem qu(X]ue a n im a m vocavertm t,
d eu s cl d a em on o m n ifo n n is ct ido lu m . In hoc elim n a n i
m a s poenas exh ib cl " . 02
jit
Pela participação no instintivo, o espírito eonverte se num
“deus c demônb oniforme”. Ksta estranha idéia será pron
tamente entendida se recordarmos que o perceber e o pen
sar são, em si, ! inções coletivas em que o indivíduo (o espí
rito, em Sciiiixcn) se dissolveu uin virtude da indiferenciação.
Assim sc converte, portanto, num ser coletivo, quer dizer, se
melhante a Deus, pois Deus é uma representação coletiva
si:parados e distamos, a fim de que numa só natureza se reúnam.
Além disso, a natureza ampliou a influência da natureza fantástica a
muitas outras condições, levando-a até as inferiores condições animais,
onde o intelecto nâo existe. ( . . . ) Na verdade, é 3 razão do próprio
animal, que do fantástico recebe sua essência...
Também t:xlas as
espécies de demônios obtêm a essência do suas vidas dessa maneira.
Com efeito, eles são do todo imaginários, em sua natureza, tendo sido
imaginados no íntimo daqueles que os engendraram." (S’. do T.)
1)2 "E foi esse espirito instintivo, que os homens beatos procla
maram como espirito da vida, que tomou deus c 0 demónio oniforme
e ídolo. Nesse estado, a alma sofre as penas.” (S . do T.)
TIPOS PSICOLÓGICOS
144
de essência oniextema. "Xesse estado — diz S i x é s io — a
alma sofre as penas”. A redenção ocorre por diferenciação,
quando o espírito desce às profundezas e está liumidus et
crassíís, quer dizer, ao intrometer-se com o objelo, e quando
ascende novamente, purificado pela pena, já “enxuto e quen
te”, estando precisamente a diferenciação nessa calorosa vir
tude da natureza úmida de seu paradeiro subterrâneo.
E natural que, neste ponto, ocorra perguntar com que
força pode contar o indivisível, o indivíduo, para a sua aefesa contra os instintos dissolventes. Que se possa conse
guir essa defesa por meio do instinto de jogo, é um pensa
mento que já não ocorie a S c i i i i .l e ii nest« passo, visto que se
trata agora de algo sério — uma força de tal importância que
seja capaz de dissociar eficazmente o indivíduo dos contras
tes. Pois, por um lido, seduz o valor mais alto, o ideal su
premo, e por outro é o mais intenso gozo que atrai. Diz
S c í m x E i í : "Cada um desses instintos básicos anseia, assim
que se desenvolveu e, claro, segundo a sua natureza, por uma
satisfação imediata; mas, precisamente porque a tendência
de ambos é necessária e por seguirem ambos objetivos opos
tos, é que essa dupla necessidade sc anula e a vontade dis
põe de uma completa liberdade entre ambos. A vontade é,
por conseguinte, a força que se comporta como uma verda
deira potência entre ambos os instintos e nenhum desses dois
pode, frente a frente, comportar-se também como uma po
tência”. ( . . . ) "No homem não existe qualquer outra potên
cia a não ser a sua vontade. E só aquilo que anula o pró
prio homem, que é a morte e a privação ae consciência, é
que pode também eliminar a liberdade interior.” *3
É certo que, no plano lógico, os contrastes anulam-se, mas
na prática tal não acontece, pois na prática os instintos defrontam-sc ativamente e geram conflitos que são extraor
dinariamente difíceis de solucionar. A vontade poderia de
cidir, por certo, mas só se previrmos o estado exato a que
se vai chegar. Também ainda não sc resolveu o problema
de como o homem há de livrar-se da barbárie, nem chega
mos ainda a uma situação em que sc pudesse dur apenas à
vontade a orientação conveniente para ambos os instintos e
que os una. É na verdade um sintoma do estado de bar-
03
Sciiij.LER, lo c . c i t ., C arta X IX .
AS IDÉIAS DS SCIU LLER SOBRE O P R O B LE M A DOS TIPOS
145
bárie, o fato ca vontade estar unilateralmente determinada
apenas por uma função, pois à vontade compete ter um
conteúdo, uma finalidade substancial. E como é dada essa
finalidade? Poderá ser de outra maneira senão mediante um
prévio processo psíquico, que por um critério intelectual, ou
determinado pelo sentimento, ou por um apetite sensível,
dota a vontade de conteúdo e objetivo? Se obedecermos ao
apetite sensível como motivação volitiva, agiremos de acordo
com um dos instintos e contra o nosso critério racional. Se,
pelo contrário, confiarmos no critério intelectual o encargo
de procurar um acordo, a consideração distributiva mais
justa apoiar-sc-á sempre na razão, consentindo assim n pre
domínio do outro instinto sobre o sensível. De qualquer
modo, a vontade estará determinada umas vezes mais de
um lado, outras vezes mais do outro, enquanto se vê obrigada
a extrair seu conteúdo de ambos os lados. Mas para que
realmente pudesse decidir a disputa, teria de basear-se numa
situação ou processo intermédio que lhe desse um conteúdo
não demasiado remoto nem demasiado perto de um ou de
outro lado. E s s e conteúdo, segundo S c h i i j l e r , teria de ser
de natureza simbólica, visto que só a um símbolo é dado
ocupar uma posição intermédia entre os contrastes. A reali
dade que pressupõe um dos instintos é contrária e distinta
da realidade do outro. Aquela seria para esta irreal ou mera
aparência e vice-versa. Ao símbolo, contudo, esse duplo ca
ráter de real e irreal é conveniente. Não seria símbolo se
só fosse real, pois nesse caso seria um fenômeno real c como
tal não poderia íer simbólico. Só pode ser simbólico aquilo
que nnm abranja também o outro. Se fosse irreal não seria
mais do que uma fútil imaginação sem referência a coisa
alguma e dessa maneira também não seria um símbolo.
As funções racionais são, de acordo com sua natureza,
incapazes de produzirem símbolos, pois somente geram o que
é racional, o que está inequivocamente determinado e não
abrange ao mesmo tempo o outro, o que se lhe contrapõe.
As funções sensoiiais também são incapazes de gerar íímbolos, pois são determinadas pela presença do objeto, com ex
clusão de toda e qualquer outra coisa. Assim, era preciso
encontrar para a vontade a base imparcial em que pudesse
fundamentar-se para recorrer a outra instância, na qual os
contrastes não estivessem nitidamente diferenciados, mas ain
da unidos primordialmente. Isto não acontece na consciên1A
146
TIPOS PSICOLÓGICOS
cia, evidentemente. Pois o consciente é, em sua própria es
sência. discriminação, diferenciação entre o eu e o não-eu, su
jeito e objeto, sim e não, etc. à diferenciação da consciên
cia deve-se, efetivamente, a dissociação dos pares opostos,
pois só a consciência é capa/, de reconhecer o conveniente
e distingui-lo. portanto, do inconveniente ou desprovido de
valor. Só ela pode declarar válida esta função e rejeitar a
outra como inútil, assim incutindo a esta a força da vonta
de e mantendo à distância as pretensões da outra. Mas on
de não houver consciência, onde dominar ainda o consciente
instintivo, não haveiá reflexão, nem pró nem contra, nenhu
ma divcrgcncia ou dissensão, e apenas um simples acorte
cer, uma ordeira normalidade instintiva, uma proporção da
vida. (Na medida em que, concretamente, o instinto não
tropece cm situações a que não se adapte. Nesse caso, so
brevêm a repressão, o afeto, a confusão e o pânico.)
Seria inútil, portanto, que para resolver o conflito entre
os instintos se recorresse à consciência. Uma solução cons
tante seria pura arbitrariedade e não poderia incutir jamais
na vontade aquele conteúdo simbólico que é capaz de con
ciliar irracionalmente os termos de um contraste lógico. Pa
ra conseguirmos isso, seria preciso descer ainda mais, atingir
os alicerces da consciência, onde se conserva ainda o ins
tinto primordial, cu seja, teríamos de recorrer ao incons
ciente, onde se opera a confluência de todas as funções psí
quicas, indiferenciadas na atividade originária e fundamental
da psique. A diferenciação insuficiente que se observa no
inconsciente resulta, em primeiro lugar, das ligações quase
diretas entre todos os centros cerebrais e, cm segundo lugar,
do relativamente fraco valor energético dos elemento* in
conscientes. C4 O fato desses elementos terem relativamente
pouca energia deduz-sc da seguinte constatação: cada vez
que um elemento inconsciente recebe uma carga mais forte,
o ato deixa de ser subliminar, ascendendo para além da fron
teira consciente, o que só pode fazer se estiver dotado de
uma energia especial, albergada em seu âmago. Assim se
verifica a "ocorrência”, a "livre ascensão representativa”
( I I f.r b a r t ). () forte valor energético do conteúdo comcien-
Cf. Nvnbefc, Vher körperliche Bcgleiterschcinungei* assozia
tiver Vorgänge. Em Jung, Diagnostische Assoziatlonsstudlen, Vol- II,
págs. 196 e segs.
AS IDÉIAS 1)1 SCH1LLEII SOBRE O PR O B LE M A DOS TIPOS
147
te produz o efeito de uma intensa iluminação, pelo que as
suas diferenças se distinguem com grande nitidez e se ex
cluem as confusões. Xo inconsciente, pelo contrário, sobre
põem-se os mais variados elementos» desde que tenhi.ni uma
analogia, por muito vaga que ela seja; isso é conseqüência da
sua pouca luminosidade, do seu fraco poder energético. In
clusive, chegam a fundir-se as impressões sensíveis hetero
géneas, como sucede no caso dos “fotisinas” ( B l e u i .e k ) , da
“auclition coloriéç". Também a linguagem contém muitas
dessas fusões inconscientes, como demonstrei, por exemplo, a
respeito do som, da luz e dos estados de humor. c5
O inconsciente seria, portanto, a instância psíquica onde
tudo o que aparece dissociado e contraposto na consciência
concorre em agiupamentos e configurações que, quando as
cendem à lu/, da consciência, revelam uma natureza inte
grada de elementos de uma e de outra parte, sem peitcneer,
contudo, a ncnhi.ma das duas, mas adotando uma posição in
termédia e independente. Essa posição intermédia consti
tui o seu valor e desvalor para a consciência; desvalor na me
dida em que nos seus agrupamentos nada claramente diferenciável possa ser percebido de imediato, fazendo que a
consciência, tomada de perplexidade, não saiba como agir, e
valor, por outro lado, na medida em que essa mesmí. indiferenciação denuncia um caráter simbólico adequado ao con
teúdo da própria vontade mediadora. Além da vontade, que
depende inteiramente do seu conteúdo, o homem dispõe da
ajuda dessa matriz da fantasia criadora que é o inconsciente,
capaz de produzir, em qualquer momento, através do pro
cesso natural, os Miiibolos elementares da atividade psíqui
ca, os quais podem servir para a determinação da vontade
mediadora. Digo podem porque o símbolo não se ajusta
co ipso à lacuna, permanecendo 11 0 inconsciente até que o
valor energético dos conteúdos da consciência exceda 0 va
lor do símbolo inconsciente. Km circunstâncias normais isso
acontece sempre, ao passo que nas condições anormais se
verifica uma inversão distributiva dos valores, atribuindo-se
um valor maior ac- inconsciente do que ao consciente. Neste
caso, o símbolo r.prescnta-se, efetivamente, à superfície da
consciência, mas a vontade consciente não 0 admite, nem as
63
Em Wandluttgen und Syrnbole der Libido, páfis. 155 e segs.
148
TIPOS PSICOLÓGICOS
funções executivas conscientes, uma vez que estas se conver
teram, por causa dessa inversão de valores, em funções subli
minares. Q inconsciente tornou-se supraliminar e, assim, es
tá gerada uma situação anormal, um estado de perturbação
mental.
Em circunstâncias normais, portanto, é preciso insuflar
artificialmente energia ao símbolo, para aumentar o seu va.or
e transmiti-lo â consciência. Isto acontece... e assim vol
tamos à ordem de idéias de S c iu ijl e h sobre a diferenciação
dos contrastes, ao proceder à diferenciação do eu. Essa di
ferenciação corresponde a um refluxo de libido de ambas as
partes, desde que haja libido disponível. A libido acumu
lada nos instintos só pode considerar-se disponível numa
certa proporção, precisamente até onde chegue a força de
vontade, na medida em que representa a quantidade de ener
gia de que o eu pode livremente dispor. Esse objetivo é
tanto mais viável quanto mais condicionada estiver pelo con
flito a evolução do processo. Neste caso, a vontade não de
cide entre os contrastes, mas apenas naquilo que diga res
peito ao eu, quer dizer, faz-se recolher ao eu a energia dis
ponível ou, por outras palavras, introverte-se. A introversão
apenas quer dizer que se retem a libido no eu e se impede
que ela participe nos contrastes conflitantes. Como er.contra bloqueado o caminho para fora, dirige-se naturalmente pa
ra o pensamento, dessa maneira correndo outra vez o risco
de interferir no conflito. Em \irtude do ato de diferenciação
e introversão, a libido disponível não só se desligará do ob
jeto exterior como do objeto interior, ou seja, do pensa*
mento. Fica assim reduzida a uma completa falta de objeto,
deixa de ter relação com algo que pudesse ser um conteúdo
da consciência e afunda-se, portanto, no inconsciente, onde
se prende automaticamente ao material da fantasia que en
contra ao seu alcance, impelindo-o para a ascensão.
A expressão com que S c iiil l e r definiu o símbolo — ‘ for
ma viva" — foi escolhida com felicidade, pois o material que
emerge da fantasia contém imagens da evolução psicológica
do indivíduo em seus estados subseqüentes, algo como uma
indicação ou descrição prévia do caminho que se abre entre
os contrastes. Se a atividade seletiva da consciência não en
contra ainda nas imagens, com freqüência, muito que com
preender de imediato, essas intuições contêm, entietanto,
uma força vital que pode agir de modo decisivo sobre a
AS r o ilA S DE SCHÜLLER SOBRE O P RO BLEM A DOS TIPOS
149
vontade. A determinação sobre a vontade exerce-se em am
bos os sentidos, pelo que, passado algum tempo, os contras
tes estão novamente reforçados. Ora, o conflito renovado
obriga à repetição do processo que acabamos de descrever
e, assim, vê-se igualmente renovada a possibilidade cie avan
çar mais um passo, e assim sucessivamente. Dei o nome de
função transcendente a essa função mediadora dos contras
tes, o que nada significa de misterioso, mas apenas uma fun
ção composta de elementos conscientes e inconscientes ou,
como se diria lia Matemática, por exemplo, uma função co
mum de grandezas reais e imaginárias.00
Além da vontade, cuja importância não se pode npgar
por esse fato, contamos ainda com a fantasia criadora como
única função irracional e instintiva capaz de dotar a vonta
de- de um conteúdo que, por sua natureza, reúna os contras
tes. Foi essa a função que S c h i l l e r , de um modo intuitivo,
sem dúvida, concebeu como origem dos símbolos, mas de
nominou instinto de jogo, assim a eliminando logo para a
motivação da vontade. Para encontrar um conteúdo volitivo, Sonn.LER recorreu
razão, e, dessa maneira, caiu numa
unilateralidade. Contudo, aproximou-se surpreendentemente
do nosso probkma, quando disse: “Esse poder da sensi
bilidade deve, portanto, ser eliminado, antes que lhe seja da
da força de lei, isto é, uma vontade racional. Não se reali
zou, pois. com o iniciar algo que antes não era; deve previa
mente terminar algo, para que então seja o que for. O ho
mem não pode transitar diretamente do que percebe para o
que pensa; tem dc retroceder um passo, pois só eliminando
uma determinação a outra poderá produzir-se. Por conse
guinte, deve estar... isento de toda e qualquer determina
ção e passar por uma situação de total determinabilidade.
Assim retrocederA, de um certo modo, a esse estado de pura
indeterminação em que se encontrava antes dos seus senti-
Devo sublinhar que esta função só em princípio 6 aqui exa
minada.
Posteriores contribuições para este complexo problema, nas
quais se estuda a importância vital do processo como os materiais in
conscientes são adm;lidos na consciência, encontram-se nas minhas obras
seguintes: Die Beziehungen zwischen dem Ich und dem Unbewussten
("A Relação entre o Eu e o Inconsciente” ), Über die Psychologie des
Unbewussten ("A Psicologia dos Processos Insconscientes” ), Psychologie
und Alchemie ( “Psicologia e Alquimia” ) e Die transzendente Funktion
("A Função Transcendente” )
1.50
TIPOS PSICOLÓGICOS
dos serem impressionados por algo. Mas tal situação estava
completamente desprovida de conteúdo, e o que está agora em
pauta é conciliar uma indeterminação idêntica e uma indeterminabilidade igualmente ilimitada, com a máxima subs
tância possível, porqae a esse estado terá de suceder ime
diatamente algo positivo. A determinação recebida por in
termédio da sensação tem, portanto, de ser mantida, visto
que não podo perder a realidade. Mas na medida cm que
pressupõe uma limitação, tem de ser simultaneamente arulada, visto que uma determinabilidade ilimitada terá de ocor
rer*’. 1,7
Este trecho, de compreensão bastante difícil, será facil
mente entendido se nos apoiarmos no que ficou anteriormente
dito e desde que tenhamos sempre em conta que S c h il l e r
está sempre inclinado a procurar uma solução na vontf.de
racional. Este motivo tem de ser eliminado para que pos
samos então ver. com bastante clareza, o que ele prediz. ()
trecho acima transcrito subentende a diferenciação dos ins
tintos opostos, o fluxo c refluxo da libido dos objetos, tanto
interior como exterior. É certo que S c h il l e r está pensando,
em primeiro lugar, no objeto sensível, uma vez que pro
cura sempre, como se disse, encontrar uma resposta pelo
lado do pensamento racional qne, pelo visto, ele considera
indispensável para 3 determinação da vontade. Entretanto,
sente a pressão da necessidade de eliminar toda c qualouer
determinação. Nisto está implícita a alienação do objeto
interior, da idéia, pois de outra maneira seria impossível chegar-sc a uma tolal ausência de conteúdo e determinação, isto
é, àquele estado original de inconsciência em que a cons
ciência seletiva ainda não impõe um sujeito e um objeto. É
dessa maneira que S c h il l e r se refere, obviamente, ao mes
mo que formulei como introversão no inconsciente.
Por “determinabilidade ilimitada” entende-se, evidente
mente, algo semelhante ao estado de inconsciência em que
tudo pode agir indistintamente sobre tudo. Esse estado de
vacuidade da consciência tem de “conjugar-se com a maior
quantidade possível de substância”. Esta, em face do vicuo
da consciência, só pode ser o conteúdo inconsciente, visto não
existir qualquer outro. Dessa maneira se equaciona, eviden-
Scmr.LER, f a : .
c it.,
C arta
XX.
AS IDÉIAS Dfc SCI LI L L ER SOBRE O P RO BLEM A DOS TIPOS
151
temente, a união do inconsciente e do consciente, e dela há
do resultar "um estado cm que sucederá algo positivo”. Este
positivo é o qu3, para nós, corresponde à determinação sim
bólica da vontade. Quanto a S c h l l l k r , a conjugação da per
cepção e do pensamento verifica-se através de um estado
intermédio a que ele chama “disposição intermédia”, na
qual a sensibilidade c a razão atuam ao mesmo tempo, mas,
precisamente por esse fato, também anulam mutuamente a
sua potência determinante respectiva e. assim, mediante uma
oposição geram uma negação.
A eliminação dos contrastes produz um vácuo a que
justamente *c chama o Inconsciente. Este estado, ao não
estar determinado pelos contrastes, é acessível a toda e qualciuer determinaçlo. S c h i i .l e r designa-o por estado "estético”
doe. cit.). Ê curioso que deixe de lado o fato da sensibi
lidade e da razão não poderem estar “ativas” ao mesmo
tempo nesse estado, visto que, como o próprio S c h il l f .r acen
tuou. foram anuladas pela mútua negação. Mas como algu
ma coisa tem de estar ativa e S c iiil l e h não dispõe dc outra
função, faz então entrar novamente cm atividade o* pares
de contrastes-. Tal atividade existe, sem dúvida, mas como a
consciência está “vazia” tem de localizá-la forçosamente no
in c o n s c ie n te .F a lta em S c h i i .l e r esse conceito, pelo que
cai cm contradição. A função estética intermédia identifi
car-se-ia, portantD, com a nossa atividade ceradora de sím
bolos. com a fantasia criadora. S c h il l e r define a "natureza
estética” como a relação de uma coisa “com o conjunto de
nossas várias forças (faculdades anímicas ou psíquicas), sem
ser, singularmente, o objeto determinado para uma dessas
forças”. Fm vez dessa definição imprecisa, talvez tivesse fei
to melhor em recorrer ao seu antigo conceito de símbolo, pois
o símbolo tem a qualidade de estar referido a todas as fun
ções psíquicas sem constituir um objeto específico dç qual
quer delas, isoladamente. S c i i i i .l e r viu o êxito dessa "dis
posição intermédia” no fato de “ter sido restituída ao homem,
integralmente, por via natural, a possibilidade de fazer de si
mesmo o que q u e r... a liberdade de ser o que há de ser”.
Quando S c h il l k r procede intelectual e racionalmente, de pre-
08 Como SoiiLLiin disse corretamente, m> estado estético o ho
mem é nada. Loc. cit., Carta XXI.
152
TIPOS PSICOLÓGICOS
ferência, é vítima do seu próprio critério. A própria esco
lha da expressão “estético” o comprova. Se ele conhecesse
a literatura hindu, ter-se-ia dado conta de que a imagem
primordial que intimamente o preocupa tem um significado
muitíssimo distinto da "estética”. A sua intuição encon
trou o modelo inconsciente que sempre jaz, a postos, em
nosso espírito. Mas interpreta-o como “estético”, apesar de
ter destacado antes e em primeiro lugar o simbólico. A ima
gem primordial a que me refiro é esse singular conjunto de
idéias do Oriente que, na Índia, foi condensado na doutrina
brahman-afman c, na China, encontrou seu epígono filosó
fico em L a o T .s e . A concepção hindu ensina a libertação cios
contrastes, que se entende por todo e qualquer estado efe
tivo e por toda e q.ialquer vinculação emocional ao objeto.
Esse processo psicológico chama-se, de maneira bastante sig
nificativa, tapas, cuja tradução mais adequada é “auto-incubação”. Esta expressão descreve rigorosamente o estado da
meditação sem conteúdo, em que, de certo modo, faz-se aFuir
ao próprio eu a libido, a título de calor para a incubação.
Em virtude do desprendimento total do objeto de todas as
funções, produz-se necessariamente no íntimo um equivalen
te da realidade objetiva ou. por outras palavras, uma total
identidade do íntimo e do externo que, tecnicamente, pode-se
designar como Mtat twam a$C (tu és isso). Pela confusão do
eu com as referências ao objeto, ocorre a identidade do eu
(atman) com a essência do mundo (quer dizer, com as refe
rências do sujeito em relação ao objeto), de modo que se
conhece a idcntidace entre o atman íntimo e o exterior. O
conceito de brahman é ligeiramente distinto do de atman, pois
no primeiro não está explícito o conceito do eu e apenas um
estado, por assim dizer, mais genérico de identidade, inde
finível em termos mais específicos, entre o íntimo e o ex
terno. Um conceito paralelo ao de tapas, num certo sentido,
é o de ioga, pelo qual se entende menos um estado de me
ditação que uma técnica consciente para se chegar ao estado
de tapas. Ioga é um método pelo qual. obedecendo a um
plano, vai-se “retirando” libido e, assim, libertando-a da su
jeição aos contrastes. A finalidade dc tapas e ioga. é a rea
lização de um estado intermédio, do qual surgirá o criador
c o libertador. O êxito psicológico supõe, para o indivíduo,
a concretização do brahman, a "suprema luz", ou âm nda
(graça). É esse o fim último do exercício libertador O
AS IDÉIAS D2 S C H IL LE n SOBRE O PROBLEM A 1X)S TIPOS
153
mesmo processo também foi concebido cosmogonicamente, ao
fazer nascer de Brahman-Attnan, como base ao mundo, toda
a criação. O mito cosmogônico, como todo mito, é uma pro
jeção de processos inconscientes. A existência desse mito
demonstra que no inconsciente dos que exercitam a tapas
ocorrem processos criadores que terão de interpretar-se como
reajustamentos em relação ao objeto. Diz S c h i l l e r : "Quan
do no homem se faz. luz, também já não existe noite fora
dele. Quando no homem se faz a calma, aplaca-se também
a tempestade no espaço, e as forças da natureza em luta re
pousam dentro de limites constantes. Não surpreende, pois,
que os poetas antiquíssimos falem desses eventos da inti
midade humana como se de uma revolução no mundo exte
rior se tratasse”, etc.fl& Por meio da ioga introvertem-se as
relações com o objeto e, pela privação de valor, são afunda
das no inconsciente, podendo-se estabelecer, como já explica
mos, novas associações com outros conteúdos inconscientes
e assim, consumado o exercício de tapas, essas relações rea
parecerão tranformadas cm face do objeto. Pela transforma
ção da relação com o objeto, este adquire uma nova feição,
corno se tivesse sido recriado. Por isso. o mito cosmogônico
constitui um sín.bolo exato, no que diz. respeito ao resultado
do exercício de tapas. Na tendência, por assim dizer, exclu
sivamente introvertida da prática religiosa hindu, a readap
tação ao objeto não tem importância alguma, pois persiste
inconscientemente projetado no mito doutrinal cosmogônico,
sem dar azo a uma transformação de natureza prática. Neste
ponto, a disposição religiosa hindu situa-se no extremo diame
tralmente oposto ao do ciLsliauismo ocidental, visto que O
princípio cristão do amor é extrovertido e necessita, imprescindivclmente, do objeto exterior. Se o primeiro princípio
conquista a riqueza do conhecimento, o segundo alcança a
plenitude da obra.
No conceito de brahman está contido também o conceito
de ritam (a cadência certa), a ordem universal. No brahman,
como essência criadora e fundamento do mundo, as coisas
encontram-se no caminho certo, pois nele tudo é eternamente
desfeito e recriado. A partir do brahman, a evolução desenrola-se ordenadamente. O conceito de ritam leva-nos ao con
09
Loc. cit., Carta XXV.
134
TIPOS PSICOLÓGICOS
ceito do tou, formulado por L.vo T s f. Tau c o “caminho cor
to”, o domínio da rormalidade, o rumo intermédio através
dos contrastes, alheio a estes e, não obstante, unindo-os em
si. O sentido da vida consiste cm seguir esse rumo intermé
dio e não extraviar-se, jamais, nos caminhos extremos e opos
tos. Em L a o Tsr-: falta completamente o momento dc êx
tase. que é substituído por limpidez filosófica maior, por
uma sabedoria intelectual e intuitiva, isenta de toda es
pécie de nevoeiro místico. Representa, simplesmente, o má
ximo possível de superioridade mental e que, por isso m e s
mo. imune a todo o caos. situa-se a uma distância infinita
da desordem desie nosso m u n d o . Domina tudo o que é sel
vagem sem o atrair com gesto purificador, para converta-lo
em algo superior.
Poder-se-ia fa c ilm e n te o b je ta r q u e fom os b u s c a r d e m a
siado lo n g e a a nalo g ia entre as idéias d e S c h i l l k u c estas
idéias ap arentem en te rem otas. M as n ã o se d e v e esquecer aue.
p o u c o depois d e S ani.i.K P , vim os c o m o essas m esm as idéias
im p re g n a m o g ê n io d e S c iio p e n iia v f r , cm ín tim a liçaçã:> já
c o m o espírito g e m â n ic o o c id e n ta l, d o q u a l n ã o desapare
c eram até lioje.
Km m in h a o p in iã o , p o u c o im p o rta q u e a
tra d u ç ã o la tin a dos upanichades, d e v id a a A n q u e t ii. d u Pr.nR ox ( IS02 . 70 tenha estado ao alcance d e S c jio p e n tia u k k . ao
passo q u e S c h i l l e r n ã o estabelece a m e n o r lig a ç ã o com as
n o tícias sobre o tem a. a in d a m u ito escassas em seu tem po.
T iv e m u ita s ocasiões p a ra co m p ro va r, através d a m inh f. ex
p e riê n c ia p rá tic a , que n ã o é necessária a transm issão direta
p ara ciuc sem elhantes a fin id a d e s su rjam .
A lg o m u it o pare
c id o observam os nas id é ia s básicas d e M e stre E c k iia k t e
ta m b é m , em p arte , cm K \vr, nos q u a is se e v id e n c ia m seme
lh an ças bastan te surpreendentes c o m as idéias dos
des, sem q u e , direta o u in d ire ta m e n te , te n h a m re ce b id o q u a l
q u e r in flu ê n c ia , m esm o m ín im a .
C) m e sm o acontece com
os m ito s e sím bo lo s q u e p o d e m surgir, d e u m m o d o a u tó c
tone, em todos os cantos d a T erra, s e n d a -apesar disso id ê n
ticos entre si. precisam ente p o rq u e fo ra m c ria çã o d o mesm o
in co nsciente h u m a n o , e sp a lh ad o e m to d a p arte , c c u jo c o n
te ú d o é in fin ita m e n te m enos d ife re n c ia d o q u e as raças e os
in d iv íd u o s .
unnnicha-
Oupnck'hat (ld est, Sccnitnn tegendum), ed. 1801*1602.
AS IDÉIAS DL SCILILLE j . SOBHE O PROBLEM A DOS TIPOS
155
Também julgo conveniente fixar um paralelo entre as
idéias do S c iiil l e h e as do Oriente, para que o pensamento
scbillcriano se desenvencilhe das roupagens estetistas71 que
o embaraçam. C) estetisino não tem condições para solucio
nar o dificílimo problema da educação do homem, visto par
tir sempre do princípio de que existe já aquilo que deveria
ser o sou produto: a capacidade de amar a beleza. Pode-sc
dizer cjiic impede o aprofundamento do problema, ao des
viar sempre os olhos do desastroso, do feio e do difícil e ao
inclinar-se para o gozo como finalidade, ainda que íe trate
de um gozo moralmente nobre. Por isso ao estetisir.o faíla
também toda a força motivadora do natureza moral, pois não
passa, essencialmente, de um hedonismo refinado,
ver
dade que ScHiLLKR se esforça por encontrar um motivo mo
ral. embora não o consiga de um modo convincente, visto que,
dada a sua disposição estética, é-lhe impossível perceber as
conseqüências a que leva o reconhecimento do outro aspec
to da natureza humana. O conflito assim produzido redunda
em tamanha confusão o sofrimento para o homem que. para
a contemplação <lo belo, será capaz de suprimir todo o resto
que lhe seja contrário, mas sem se redimir a si próprio. E
dessa maneira, r.a melhor das hipóteses, voltará ao seu esta
do anterior. Para resgatar o homem de tal conflito, é ne
cessária uma disposição distinta da estética. Isso fica de
monstrado mediante o paralelo com as idéias do Oriente.
A filosofia religiosa hindu apreendeu esse problema cn toda
a sua profundidade e mostrou que espécie de meio é neces
sário para que a solução do conflito seja viável. Para con
segui-lo, exige-se o máximo esforço moral, a máxima negação
de nós próprios, a maior vontade de sacrifício e a suprema
autenticidade religiosa, que é a verdadeira santidade. Como
se sabe, ScTiopF.sHAVF.n, ao reconhecer o estético, destacou
com a maior ênfase, justamente, esse aspecto do problema.
Não devemos equivocar-nos, de maneira alguma, ao supor
mos que as palavras “estético”, "beleza”, etc., pudessem ter
para S c h il l e r a mesma ressonância que para nós. Creio não
exagerar se disser que a "beleza” era, para S c h d lle f , um
Emprego a palavra “estrtismo*' como expressão abreviada de
“concepção estética co mundo”. Não me refiro, portanto, a esse estetismo com sabor a atividades estetizantes e de afetado refinamento
que poderiam talvez denominar-se "esteticismo”.
156
TIPOS PSICOLÓGICOS
“ideal religioso”. A beleza era a sua religião. A sua "dis
posição estética” poderia muito bem ter sido gerada por “de
voção religiosa”. Sem exprimi-lo nem definir explicitamente
o seu problema básico de religioso, a intuição de S c h il l e r
alcança o problema religioso, propriamente dito, ainda que
relacionado apenas eom o indivíduo primitivo, tratando-o,
inclusive, com bastante detalhe, embora sem atingir, nesse
sentido, as últimas conseqüências. £ curioso que, no decur
so de suas reflexões posteriores, transfira completamente pa
ra um segundo plano a questão do “instinto de jogo”, cem
benefício para o conceito de disposição estética, a que pa
rece atribuir um valor quase místico. Creio que isso não é
fortuito e que possui um determinado fundamento.
ft freqüente acontecer que, precisamente, os melhores e
mais profundos pensamentos de uma obra sejam os que mais
obstinadamente resistem a uma concepção e formulação n ti
das, embora apareçam insinuados aqui e ali. e prontos a pos
sibilitarem. assim, una expressão tênue e frágil da respectiva
síntese. Poderíamos dizer que nos defrontamos agora com
uma dificuldade análoga. S c h i l l e r atribui mesmo
“dispo
sição estética”, como estado criador intermédio, idéias que
deixam claramente perceber a profundidade e seriedade que
caracterizam tal conceito. Por outra parte, S c i i i i .l e r conce
beu, com a mesma clarividência, o "instinto de jogo” como a
atividade intermédia que era procurada. Ora. não sc pode
duvidar de que essas duas concepções são. até certo ponto,
contraditórias, visto que jogo c seriedade dificilmente se coa
dunam. A seriedade tem sua origem numa necessidade pre
mente, íntima e profunda, ao passo que o jogo é expressão
externa, com o rosto voltado para a consciência. Não sc Tra
ta, evidentemente, de um querer jogar, mas de um dever
jogar, de uma atividade da fantasia que obedece a uma ne
cessidade íntima, sem imposição das circunstâncias nem da
vontade. Na verdade, é um jogo sério.72 Mas, apesar de
72 Cf. Schu.ler, Ober die notwendigen Grenzen beim Gebrauch
schöner Formen (Söhre os Limites Necessários no Uso das Formas Belas),
Ed. Cottn, 1826, Vol. 18, pi'ig. 105. *Trecisamente para que no ho
mem csteHcamtntc rerinado o fantasia, em seu livre jogo, ohe.ieça
também a lei.s, e para que os sentidos aceitem o gozo, não sem de
terminação da vontade, chega a exigir-se da razão, inclusive com ex
cessiva facilidade, a reciprocidade do serviço, quer dizer, que em sua
AS JDÉIAS DE SCHILLER SOBRE O P RO BLEM A DOS TIPOS
157
tudo, é jogo, 6 coisa exterior, da consciência, quer dizer, con
cebida cio ponto de vista do juízo coletivo. Mas é um jogo,
por imperativo interno. Eis aqui a qualidade ambígua que
é própria de toco criador. Sc o jogo transcorre, até esgo
tar-se a si próprio, sem criar algo de perene e vital, é por
que não passa, pura e simplesmente, de jogo. No caso in
verso, trata-se dc uma tarefa criadora. Dos fatores postos
em ação pelo jogo e cujas relações não se encontram deter
minadas, por enquanto, surgem os agrupamentos que um in
telecto crítico c observador valorizará oportunamente. Não 6
o intelecto que procura a criação do novo, mas o instinto
de jogo, por imperativo íntimo. O espírito criador joga com
os objetos que ama. Por conseguinte, pode-se facilmente con
siderar como puro jogo toda atividade criadora cujas pos
sibilidades os homens inteiramente ignorem. Poucos são os
espíritos criadores a quem não se possa apontar essa incli
nação. Somos tentados a aceitar esse ponto de vista, no
que diz respeito a um homem de gênio como S c h u .i .e r . Mas
ele próprio quereria, para além do espírito de exceção e da
natureza que lhe é própria, chegar ao homem comum c fazê-lo
participar dos estímulos e impulsos redentores que o espírito
criador, de qualquer modo e por um poderoso imperativo ín
timo, de maneira alguma pode remediar. Mas a possibili
dade de ampliação de semelhante ponto de vista à educação
de todos os homens não está cabalmente assegurada num
princípio, e se o está não parece.
Para decidir essa questão, temos de recorrer, como sem
pre, em casos semelhantes, ao testemunho du história do es
pírito humano. Para isso, é necessário recordarmos a base
de que partimos, em nosso exame desse problema. Vimos
que S c h il l e r exigs um esvaziamento dos contrastes, até al
cançar um completo vácuo na consciência, na qual as per
cepções, sentimentos e pensamentos, ou mesmo os desígnios,
não representem qualquer espécie de função. Esse estado
a que se aspira é, portanto, um estado de consciência indi
ferenciada, quer dizer, um estado em que. ao serem despo
jados de sua potêreia, os valores energéticos perderam todo
o conteúdo de sua diferenciabilidade. Com efeito, uma ver-
gravidade normativa leve cm linha de conta os interesses da fantasia
e não governe a vontade sem consentimento dos impulsos sensíveis.”
158
TIPOS rSJCOLCKJICOS
dadeira consciência só é possível onde os valores dêem lugar
a uma possibilidade do diferenciação dos conteúdos. Onde
essa possibilidade falta, não pode existir verdadeira cons
ciência. Assim, teremos de considerar esse estado como “in
consciente”, se bem que exista sempre a possibilidade de
consciência. Trata-se, por conseguinte, de um “abaissement
du niveau mental" ( J a n e t ) de natureza artificial, daí resul
tando sua semelhança com a ioga e com os estados cie ei\gourdissernent hipnótico. Até onde meus conhecimentos chegam,
ScniLLER nunca nes explicou como se planeja, na realidade,
a técnica — permita-se-me que empregue esta palavra - de
produção da disposição estética. O «vemplo de Juno Ludovisi, a quem de passagem cita em suas cartas,::{ revela-no? um
evidente estado de “devoção estética”, cujo caráter reside nu
ma total entrega ao objeto contemplado, num consentir-se
nele. Mas nesse estado de devoção nota-se a falta da carac
terística de ausência dc conteúdo e determinação. O exem
plo e a ligação com outros trechos evidenciam, porém, que
a idéia de devoção impressiona S c i i i l l e r : 74 Dessa inaicira,
entramos de novo na esfera dos fenômenos religiosos; mas,
simultaneamente, abrem-se-nos perspectivas de uma concre
ta possibilidade de ampliação desses pontos de vista, para
que alcancem o homem comum. O estado dc devoção reli
giosa é um fenômeno coletivo i/tte não está vinculado a dotes
individuais.
Mas são-nos oferecidas mais possibilidades. Vimos que
o vazio da consciência ou o estado dc inconsciência, respcctivnmcnto, são provocados por uma submersão da libido no
inconsciente, onde jazem dispostos os conteúdos relativamente
notórios, complexos reminiscentes do passado individual, so
bretudo o complexo paterno-materno, que se identifica intei
ramente com o complexo infantil.
Pela devoção, isto é,
pela submersão cia libido no inconsciente, o complexo infan
til reativa-se c acarreta, portanto, o reavivar das reminis
cências da infância, como as relações com os pais, por exem
plo. As fantasias produzidas por essa-reativação constituem
um motivo propulsor na gênese das divindades paternas e
maternas, bem ccmo o despertar da sujeição religiosa a Deus,
'•i
Sobre a Educação Estética do Homem, Carta XV.
7< Loc. cit. "Ao exigirmos, para nossa adoração, um deus femi
nino”, etc.
AS IDÉIAS DE SCH ILLER SOBRE O PROBLEM A DOS TIPOS
159
na infância, acompanhado dos correspondentes sentimentos
infantis. De um modo bastante característico, são os sím
bolos dos pais os que primeiro se consciencializam e nem sem
pre correspondem aos verdadeiros pais, um fato que Freud
explica, atribuindo-o à repressão da imagem patemo-materiia por repugnância ao incesto. Estou de acordo com essa
explicação, mas creio que não esgota o tema, pois não se
dou conta do extraordinário sentido dessa substituição simbó
lica. A simbolização na imagem de Deus traduz um enorme
progresso para além do concretismo, do sensualismo da re
miniscência, visto que, ao admitir-se o “símbolo’* como ver
dadeiro símbolo, a regressão imediatamente se transforma em
progressão, ao j m s s o que continuaria sendo regressão se ti
vesse considerado o suposto símbolo, única e definitivamente,
como um novo sinal ou signo dos verdadeiros pais, retiran
do-lhe assim o caráter autônomo.73
Pela admissão efetiva do símbolo chegou o homem h
criação dos seus deuses, quer dizer, à efetividade da ideia
que fez o homem senhor da Terra. A devoção, tal como
S c h ille r também a concebe acertadamente, é um movimen
to regressivo da libido ao nível primário, uma imersão na
própria fonte primordial. Dela emerge, como imagem do
incipiente movimento progressivo, o símbolo, que equivale
a uma resultante compreensiva dc todos os fatores inconscien
tes, a “forma viva", como S c h ille r denomina o símbolo, a
imagem de um de.i.s, segundo o testemunho da História. Não
foi uma casualidade, portanto, o fato do nosso autor ter es
colhido justamente como paradigma a imagem de uma di
vindade, a de Juno Lndovisi. Ooetiie faz desaparecer da
trípode das mães as imagens divinizadas de Páris c Helena,
a dupla paterna rejuvenescida, por uma parte, mas por ou
tra parte o símbolo do processo interior de União que Fausto
ambicionou apaixonadamente, como suprema conciliação ín
tima, tul como claramente se revela na cena a seguir, bem
como no decorrer da Segunda Parte, com a mesma clareza,
( ’orno no exemplo de Fausto podemos apreciar, a visão do
símbolo pressupõe a indicação do rumo vital a percorrer,
como o engodo de um fim ainda mais distante para a libi-
"6 Debati amplamente este ponto no meu livro Wandlungen utul
Symbole dor Libido.
160
TIPOS rSICOLÓCICOS
do e que desde esse momento agirá incessantemente sobre
e!e, instigando-lhe a vida, que se lançará então, inflamada
e sem pausa, na busca de outras metas mais distantes ainda.
É este o significado específico e vivificador do símbolo. E
é também o valor e o sentido do símbolo religioso. Não me
refiro, naturalmente, a símbolos dogmaticamente anquilosados, a símbolos mortos, mas aos que surgem do inconsciente
criador do homem vivo. A enorme importância de tais sím
bolos só pode verdadeiramente ser negada por aqueles para
quem a história universal começa hoje. Deveria scr im a
coisa supérflua falar sobre a importância dos símbolos, mas
assim não acontece, infelizmente, pois o espírito da nossa
época crè até scr superior à sua própria psicologia. O p o n
to de vista higiénico-moral atualmente em vigência quer sem
pre averiguar, naturalmente, se tal ou tal coisa é perniciosa
ou útil, se está bem ou mal. Uma verdadeira psicologia não
pode preocupar-se com isso; basta-lhe conhecer como as coi
sas são, em si e per si.
A configuração simbólica que resulta do estado de “de
voção” é, por sua vez, um desses fenômenos religiosos cole
tivos que não estão ligados à capacidade individual. Assim,
deveríamos admitir, neste caso, a possibilidade do uma am
pliação ao homem comum dos pontos de vista tratados. Des
sa maneira, creio ficar provada, em termos satisfatórios, pelo
menos a possibilidade teórica de aproveitamento das con
cepções de S c iu l l e r para uma psicologia geral humana. Para
maior compreensão c clareza, desejaria ainda sublinhar que o
problema da relação da consciência e do comportamento
vital consciente com o símbolo me ocupa há imenso tempo.
E cheguei à conclusão de que não se deve atribuir um valor
secundário ao símbolo, dada a sua enorme importância como
representante do inconsciente. Sabemos muito bem, pela prá
tica diária no tratamento de doentes nervosos, ouão emi
nente significado prático possuem as intromissões ao incons
ciente. Quanto maior for a dissociação, quer dizer, a dis
tância que separa a disposição consciente dos conteúdos in
dividuais e coletivos do inconsciente, tanto maiores serão
também as opressões ou reforços, prejudiciais e até perigosos,
dos conteúdos da consciência, por parte do inconsciente. Por
conseguinte, até por considerações de ordem prática haverá
de atribuir-se ao símbolo um valor destacado. Ora, desde
que se conceda valor (grande ou pequeno) ao símbolo, este
AS IDÉIAS DE SCHILLER SOBRE O PR O B LE M A DOS TIPOS
161
recebe, por tal fato, um valor consciente de motivo, quer
dizer, é percebido e ocasiona o seu aprovisionamento in
consciente de libelo, a fim de sc desenvolver na açãc vital
consciente. Com isso se consegue, em minha opinião, uina
vantagem prática dc certa importância: a colaboração do
inconsciente, sua conjugação com a ação psíquica conscien
te e a eliminação, portanto, das influências perturbadoras do
inconsciente. Essa função comum, a relação com o símbolo,
foi por mim denominada função transcendcnlc. Não me pro
ponho esclarecer aqui até o último detalhe esse problema.
Isso exigiria a apresentação inevitável de todos os materiais
que se revelam como resultados da atividade inconsciente.
As fantasias até agora descritas na literatura especializada não
nos propiciam uma imagem das criações simbólicas de que
estamos aqui tratando. Mas existem, sem dúvida, na litera
tura belctrística, não poucas fantasias dessa classe, embora
não se apresentem submetidas a uma observação c expressão
“puras" e tenham passado, apenas, por uma anódina elabo
ração estética. Entre esses exemplos, eu gostaria de salien
tar as duas obras de M e y r ix k , intituladas Der Golem e Das
griine Cesicht. Tenho de reservar o exame desse aspecto
do problema para uma investigação posterior.
Apesar de tennos seguido o estímulo do S c h il l e r nas
nossas considerações sobre a disposição intermédia, refun
dimos bastante as suas concepções. Embora ele capte pro
fundamente e com enorme perspicácia os contrastes da na
tureza humana, quando procura uma solução não ultrapassa
um limitado trajeto inicial. Eu diria que boa parte da cul
pa caberá à expressão "disposição estética”. S c h i u .ci \ iden
tifica-a, por assim dizer, com o belo, que é o que produz no
ânimo essa disposição.7rt Ao faze-lo, S c h il l e r não só con
fundiu causa e efeito, mas também dá ao estado de “indeterminação“, em absoluta contradição com a sua própria de
finição, uma determinação inequívoca, ao equipará-lo rom
o belo. Com isso íicou a função mediadora privada de toda
a sua eficácia, uma vez que, como beleza, está vedada a tudo
quanto se refira à fealdade, da qual também deveria ocupar-se, naturalmente. S c h il l e r define como natureza estética
de uma coisa o fato de referir-se à totalidade de nossas di
ferentes capacidades. Logo, não se podem confundir “belo”
76
n
Sobre a Educação Estética d o Homem, Carta X X I.
162
TIPOS PSICOLÓGICOS
e “estctico", p o is as nossas d istin tas c a p a c id a d e s ta m b é m
são esteticam ente diferentes, belas e feias, c só u m idealista
in c u rá v e l p o d e ria q u a lific a r a totalidade d a n a tu re za h u m a n a
c om o “b e la ”, p u ra e sim p lesm ente .
Se quiserm os ser rigo
rosos, será d e p referência p u ra e sim p lesm ente efetiva, com
suas zonas de c la rid a d e e d e som bra.
A som a d e tedas
as cores c einzento-claro sobre fu n d o escuro, escuro sobre
fu n d o claro.
Essa imaturidade e insuficiência conceptual explica tam
bém o fato de que esteja completamente por explicar o
modo como chegará a produzir-se o referido estado inter
médio. Ilá muitos trechos dos quais é sem dúvida possível
inferirmos que tal estado é suscitado pelo “gozo da beleza
pura”. Assim escreveu S c h l l l e R: " O que gratifica os nos
sos sentidos cm sua sensibilidade imediata, abre a todas as
impressões o nosso animo suave e maleável, mas no mesmo
grau nos torna menos aptos para o esforço. O que põe cm
tensão as forças do nosso pensamento e as instiga a formu
larem conceitos abstratos, robustece o nosso ânimo para to
das as espécies de resistência, mas, na mesma medida, priva
mos de receptividade, quando nos impele a uma atividade
maior dentro de nós próprios. Por isso, tanto uma como ou
tra orientação acabam levando-nos ao esgotamento.... Mas
se nos entregarmos ao gozo da beleza autêntica, somos nes
se momento os donos tanto de nossas forças passivas como
das ativas, e corr. a mesma facilidade nos aplicaremos à
seriedade c ao jogo, ao repouso e ao movimento, ã condes
cendência c à resistência, ao pensamento abstrato e A in
tuição”. 77
Esta descrição está em flagrante contradição com as
determinantes da “disposição estética” antes enunciadas, se
gundo as quais o homem era “zero” e carecia de determi
nação, ao passo que nos aparece agora determinado ao má
ximo pela beleza (“a ela entregue” ). Vale a pena continuar
analisando essa questão cm S c h il l e r . Neste ponto, chegou
a uma fronteira de si próprio e de seu tempo que lhe era
impossível transpor, visto que por todos os lados tropeçava
com o invisível “homem feiíssimo” cujo descobrimento estava
reservado para a nossa época e para N ie t z s c iie .
*7
Loc. clt., Carta X X II.
AS IDÉIAS DE SCH ILLER SOBRE O P RO BLEM A DOS TIPOS
163
S c h il l e r queria converter o ser sensível cm scr racional,
fazendo-o antes estético, como ele próprio disse. £ preciso
transformar a natureza do homem sensível, disse ainda, "sub
meter à forma” a vida física, o homem deve “verificar a sua
determinação física, segundo as leis da beleza”, “sobre o ter
reno indiferente da vida física, o homem há de iniciar seu
destino moral”, “terá de iniciar já sua liberdade racional, ain
da que dentro de seus limites sensíveis", deverá “impor às
suas propensões a lei de sua vontade” e "deverá aprender a
apetecer com nobreza”. Tfi
O “é preciso que” ou o "deverá” ou “terá que” empre
gado pelo autor é, no fim de contas, o bem conhecido “de
via ser" que sempre se invoca quando não se encontra outra
saída. Seria injusto pedir que um só espírito, por muito gran
de que seja, domine um problema de tão gigantesca enver
gadura, que só povos e épocas são capazes de resolver c mes
mo assim não de um modo consciente, mas por fatalidade.
A grandeza das idéias de S c h il l e r reside na observação
psicológica e na apreensão intuitiva do observado. Eu gos
taria de mencionar ainda um de seus pensamentos que, em
grande parte, merece ser salientado. Vimos que o estado
intermédio se caracteriza pela produção de algo "positivo",
a saber: o símbolo. 0 símbolo subentende a conjunção dos
dois contrastes na sua natureza, bem como o contraste real-irreal na medida em que, por uma parte, responde a uma
realidade ou evidência (a causa de sua efetividade) e por
outra parte, não corresponde a uma realidade física. É um
fato c, simultaneamente, uma aparência. S c h il l e r salienta
claramente esse f a t o , 70 para formular seguidamente uma apo
logia da aparência, importante sob todos os aspectos.
"Entre a máxima estupidez e o supremo entendimento
há uma certa afinidade mútua, pois ambos procuram apenas
o real e são completamente insensíveis à mera aparência das
coisas. Somente pela presença imediata de um objeto nos
sentidos se quebra o repouso daquela, e unicamente pela
redução de seus conceitos a fatos aquele obtém repouso. Nu
ma palavra: a necessidade não pode ir além da realidade e o
entendimento não pode deter-se aquém da verdade. Assim,
?s
hoc. cit.. Carta X X III.
Loc. cit., Cartû X X II.
164
Tiros
PSICOLÓGICOS
enquanto a necessidade de realidade e a fidelidade ao real
são simples conseqüências de escassez, a indiferença pres
supõe, ante a realidade c o interesse pela aparência, uma
verdadeira ampliação da humanidade e um passo decisivo
no sentido da cultura.” 80
Ao fazer, antes, uma referencia à atribuição de vabr
ao símbolo, mencionei a vantagem prática da valorização do
inconsciente. Excluímos a perturbação inconsciente das fun
ções conscientes, visto que, ao tomarmos em consideração
o símbolo, temos desde o princípio o inconsciente em devida
bre todas as coisas uma aparência falsa: aputecc-nos scinpro
nos objetos, pois todo o inconsciente se projeta. Por isso,
podendo apreender o inconsciente como tal, despojamos os
objetos de uma falsa aparência e, dessa maneira, só a ver
dade c favorecida. Disse S c h il l k r : “Essa prerrogativa se
nhorial é exercida (pelo homem) através da arte da apa
rência e quanto mais fortemente distinga o meu c teu,
quanto mais rigorosamente separe a essência da substância
e maior independência saiba dar-lhes, não só ampliará tanto
mais o reino da beleza como garantirá também as fronte:ras
da verdade; pois nã:> é possível purificar a aparcncia da rea
lidade sem, ao mesmo tempo, libertar a realidade da apa
rcncia”. 81 "A busca da aparência independente exige maior
capacidade de abstração, mais liberdade no coração, mais
energia na vontade, do que as necessárias ao homem para cin
gir-se à realidade e deve ter já passado por esta se quiser
alcançar aquela.”
2.
A Dissertação Sobre Poesia Ingênua e Poesia Sentimental
Durante algum tempo, julguei que a divisão que S c iiil l e r
fez entre poetas ingênuos e sentimentais83 correspondia aos
so Loc. dt., Carta XXVI.
81 Jj x . cif., Carta XXVI.
82 Loc. dt., Carta X XV II.
63 S äu m e n , Über naive und sentimentalische Dichtung.
Cotta, 1826, Vol. 18, pág. 205.
Edisäo
AS IDÉIAS DE iC H IL LE H SOBRE O PROD LEM A DOS TIPOS
105
pontos de vista aqui expostos. Após madura reflexão, aca
bei por chegar à conclusão de que, dc fato, assim não é. A
definição de S c h il l e r é simples: o poeta ingénuo é natu
reza, o sentimental procura-a. Esta simples fórmula é se
dutora até o ponlo em que estabelece as diversas categorias
de relações com o objeto. Quase sentimos desejo de dizer:
aquele que busca ou apetece a natureza como objeto, é
porque não a terr.; seria, portanto, o caso do introvertido; e,
pelo contrário, aquele que em si mesmo já é natureza e está,
portanto, na mais íntima relação com o objeto, seria o extro
vertido. Esta interpretação, na verdade um tanto forçada,
pouco se relaciona com o ponto de vista de S c h il l e r . Sua
divisão tíe ingênuos e sentimentais, ao contrário da nossa
divisão em tipos, não se ocupa precisamente da mentalidade
individual do poe:a. mas do caráter dc sua atividade cria
dora ou de suas obras. O mesmo poeta pode ser sentimen
tal num poema e noutro, pelo contrário, ingênuo. H o m e r o
é, sem dúvida alguma e em todos os aspectos, um ingênuo,
mas quantos dos novos não são, nn sua maior parte, senti
mentais? S c h il i .it percebeu essa dificuldade, evidentemente,
c por isso afirmou que o poeta está condicionado pela sua
época, não como indivíduo, mas como poeta: “Todos os
poetas, que verdadeiramente o são, pertencerão, segundo a
natureza da época em que florescem ou segundo as circuns
tâncias fortuitas que influam sobre seu momentâneo estado
de espírito ou formação geral, à categoria dos ingênuos ou
à dos sentimentais". 84 Para S c h il l e r também se trata não
de tipos fundamentais, mas. quiçá com maiores razoes, dc
certas características ou qualidades de produtos determina
dos. E disso resulta, de um modo eloqüente, que um poe
ta introvertido tanto possa ser, ocasionalmente, ingênuo ou
sentimental. E fies. totalmente fora de cogitação uma iden
tidade de ingênuo e sentimental, por uma parte, extrovertido
e introvertido, por outra, no que aos tipos diz respeito. Mas
não sucede o mesmo quando se trata de mecanismos típicos.
a)
A Posição Ingênua
Começo por expor as definições que S c h il l e r formulou
para essa atitude. Já se disse que o ingênuo é "natureza’'.
84
Loc. cit., p ág . 236.
160
T ir o s PSICOLÓGICOS
"Obedece à simples natureza e à sensibilidade, limitando-se
à mera imitação cia realidade”. 5:1 "Na exposição ingênua
agrada-nos a presença vital do objeto em nossa imaginação” **
“A poesia ingênua c um dom da natureza. É um parto feliz
que não necessita melhorias quando tudo sai certo, mas
que quando fracassa não é suscetível de recebê-las.” *Por
sua natureza, o gênio ingênuo é capaz de tudo; por sua li
berdade, capaz de muito pouco, lí preencherá plenamente
sua finalidade enquanto a natureza nele atuar, por íntima
necessidade.” A poesia ingênua é “filha da vida e à vida se
reduz”. O gèriio ingênuo depende completamente da expe
riência do mundo cujo "contato imediato” procura. “Neces
sita do apoio de fora”. s: Para o poeta ingênuo, a "natu
reza vulgar” que :> circunda poderá “ser perigosa" se tiver
em conta o fato de que “a receptividade depende sempre, em
maior ou menor grau. da impressão exterior e só uma dili
gência incessante da faculdade criadora, que não é de es
perar da natureza humana, poderia impedir que a matéria
não provocasse, cm certos casos, uma cega receptividade.
Mas desde que isso ocorra com grande freqüência, o senti
mento poético corvcrtor-se-á hum sentimento vulgar". ** “O
poeta ingênuo consente que a natureza o domine sem lestrições.” 80 Dessa determinação conceptual deduz-se, clara
mente, a dependência em que o ingênuo se encontra, relati
vamente ao objeto. A relação dele com o objeto reveste-se
de um caráter imperativo a partir do momento em que introjcta o próprio objeto, quer dizer, quando se identifica incons
cientemente com o objeto ou, por assim dizer, é-lhe idêntico
a priori. LÉvY-Bm.UL chama a essa relação com o objeto
“participation vujstufue'. Esta identidade fundamenta-se sem
pre numa analogia entre o objeto e um certo conteúdo in
consciente. Poder-se-ia também dizer: a identidade tem lugar
mediante a projeção de uma associação de analogia, incons
ciente, sobre o oSjcto. Tal identidade, reveste-se sempre de
um caráter imperativo, visto que se traía de uma certa soma
85
Loc. cit., pág. 248.
Loc. cit., pág. 250, nota.
87
Loc. cit., jxigs. 303 e segs.
89
Loc. cit., págs. 307 e scg.
Loc. cit., pág. 314.
AS IDÉIAS DE SCHTI.LER SOBRE O PROBLEM A DOS TIPOS
167
dc libido que, como toda a quantidade de libido atuando
desde o inconsciente, tem um caráter forçado em relação ao
consciente ou, por outras palavras, não está disponível para
a consciência. A posição ingênua está, portanto, condicio
nada em grande medida pelo objeto, que atua independente
mente do indivíduo, realiza-se neste, quando se identifica
cie próprio com o objeto. Procedendo assim, empresta, de
certo modo. sua função expressiva ao objeto e dessa maneira
o expõe, não por uma exposição ativa e deliberada, mas cx-’
pondo-se a si próprio nele. É cie próprio natureza, e natu
reza é o que nele cria o produto. Deixa que a natureza o
domine sem restrições. O objeto tem primazia. São estas
as principais características e diretrizes da posição ingênua.
b)
A Posição Sentimental
Já dissemos que o sentimental busco a natureza: ‘ Ele
reflete sobre a impressão rme os objetos nele produzem e só
nessa reflexão se baseia a emoção que dele se apossa e logo
nos transmite. O objeto está aqui relacionado com um.i idéia
e somente nessa relação se fundamenta a sua força poética”. 60
“Terá de contar sempre com a presença de duas idéias c per
cepções em luta: a realidade como limite e sua idéia como
infinito. E o sentimento ambíguo que suscita será sempre
testemunho dessa dupla origem.” 01 "A posição sentimen
tal é o resultado da tentativa de restabelecer a sensação in
gênua, segundo o conteúdo, mas sob as condições inerentes
ti re fle x ã o ." 1,3 "A poesia sentimental é o produto da abs
tração.” 03 "O génio sentimental está sujeito ao risco de,
para além do propósito de derrubar todas as barreiras (da
natureza humana), abolir a própria natureza humana, com
pletamente. e não só (o que deve e pode fazer) elevá-la —
ou idealizá-la — por sobre toda a realidade determinada e
restrita, ao nível ce uma possibilidade absoluta, mas ir ainda
mais além da própria possibilidade — sentimentalizando-a”
M
02
<•3
Loc.
Loc.
Loc.
Loc.
cit., pág. 249.
cit., páç. 250.
cit., pág. 301, nota.
cit., pág. 303.
TITOS PSICOLÓGICOS
168
"O gônio sentimental abandona a realidade para clevar-se ao
nível das idéias e dominar seu assunto com plena indepen
dência.” 04
É fácil de perceber que o sentimental, ao invés do ingé
nuo, distingue-se por uma posição reflexiva c abstrata.
neflete” a respeito dc objeto, “abstraindo-se” dele. Por assim
dizer, está aprioristicamente desligado do objeto quando sua
produção tem início. Não é o objeto que atua nele - é
ele próprio quem atua. Não somente age dentro de si pró
prio como para além do objeto. Está diferenciado do obje
to, não está com ele identificado e procura estabelecer a sua
rclnçüo com ele, “dominar o assunto”. Dessa dissociaçãc do
objeto resulta a impressão de ambigüidade que S c iiil l e u
salientou, ao extrair o sentimental de duas fontes distintas: da
do objeto ou sua percepção e na própria fonte. A impressão
exterior do objclo não constitui para ele um condicionalismo,
mas o material a tratar segundo a norma de seus próprios
conteúdos. Portanto, encontra-se por cima do objeto, mas,
apesar disso, em relação com ele. Mas não na relação da
receptividade, pois ele confere arbitrariamente valor e quali
dade ao objeto. Sua posição é, conseqüentemente, introver
tida.
Mas com a caracterização dessas posições, como intro
vertida c extrovertida, respectivamente, não esgotamos as
idéias de S c i i i l i .e r , Esses dois mecanismos pressupõem, ape
nas. fenômenos elementares de natureza genérica nos quais
o específico só muito vagamente é insinuado. Para com
preendermos o ingênuo e o sentimental temos de recorrer a
outros dois princípios, aos elementos da percepção e da in
tuição. No decorrer dessa investigação, trataremos mais cir
cunstanciadamente dessas funções. Por agora, quero apenas
referir-me ao fato de que o ingênuo se caracteriza pele pre
domínio do elemento perceptivo, e o sentimental polo do
elemento intuitivo. A percepção liga o indivíduo ao obje
to, incluso atrai-o para o objeto, daí resultando para o ingê
nuo o 'risco” de soçobrar no objeto. A intuição, como per
cepção dos próprios processos inconscientes, abstrai-se do ob
jeto, supera-o e procura, portanto, dominar sempre a maté
ria, a ponto mesmo dc violentá-la, para a configuração de
Loc.
cit., pág. 314.
AS IDEIAS DE SCH ILLER SOBRE O l’R O D LEM A DOS TIPOS
169
pontos (le vista subjetivos, sem ter consciência disso. O “ris
co” do sentimental é, portanto, o total divórcio da realidade
e o naufrágio no afluxo inconsciente da fantasia ( “exalta
ção!’').
c)
O Idealista e o Realista
No mesmo estudo, as reflexões de S c h il l e r levam-no
a estabelecer dois tipos psicológicos humanos. Escreveu ele:
“Isto leva-me a um antagonismo psicológico muito curioso
entre os homens, num século que se realiza culturalmente.
Um antagonismo que, por ser radical e basear-se na íntima
estrutura psíquica, dá lugar entre os homens a um divórcio
muito mais grave do que a fortuita luta de interesses jamais
poderia ocasionar e que rouba ao poeta e ao artista a espe
rança de agradar e impressionar, de modo geral, que é o
que constitui a sua missão; que torna impossível ao filóso
fo, depois de ter feito tudo o que tinha a fazer, convencer
de modo geral, o que, entretanto, o próprio conceito de Filo
sofia exige; que, finalmente, nunca permitirá ao homem, na
vida prática,- ver suas ações aprovadas dc modo geral. Numa
palavra, um antagonismo que é culpado de que nenhuma
obra do espirito 5 nenhum ato do coração consigam ser de
cisivamente aprovados numa classe, sem atraírem, precisa
mente por isso, ;i condenação da outra. Sem dúvida, esse
antagonismo é tão velho quanto os princípios da cultura c
só dificilmente será conciliado antes do fim da mesma, a
não ser nalguns raro«: indivíduos isolados que sempre terá
havido, por certo, c é de esperar que continue havendo;
mas, ainda que entre as suas conseqüências tenha de incluir-se aquela que faca malograr todo intuito conciliador, ao não
ser conseguido que ambas as partes reconheçam uma falta
pelo próprio lado de cada c uma realidade pelo lado con
trário, constituirá uma compensação bastante, porém, perse
guir até a sua origem esse tão importante divórcio, para as
sim, pelo menos, chegar-se a redução do ponto de contro
vérsia a uma fórmula simples”. 05
Desse trecho deduz-se, indubitavelmente, que a análise
dos mecanismos antagónicos levo u S c h i l l e r a estabelecer
**
Loc. cit., pá£s. 329 e seg.
170
TIPOS PSICOLÓGICOS
dois tipos que, na sua concepção, envolvem a mesma impor
tância por mim atribuída ao introvertido c ao extrovertido.
No tocante à relação mútua dos dois tipos por mim estabe
lecidos, posso confirmar, palavra por palavra — por assim
dizer — o que S c h jl l e r disse dos seus tipos. Coincidir.do
com o que por mim foi exposto, S c h il l k r passa do mecanis
mo ao tipo "separando tanto do caráter ingênuo como do
sentimental o que ambos têm dc poético”. 00 Quando se
realiza tal operação, temos de descontar o genial, o criador,
mantendo-se no ingênuo a vinculação ao objeto e a inde
pendência deste em relação ao sujeito, e no sentimental a su
perioridade sobre o objeto, que encontrará expressão na
apreciação crítica ou no tratamento, mais ou menos arbitrá
rio, do próprio objeto. “Apenas resta, então, do primeiro
(o ingênuo), no que diz respeito ao teórico, um sóbrio espí
rito observador e uma sólida fidelidade ao testemunho uni
forme dos sentidos, e, no que respeita ao prático, um senti
mento resignado às necessidades da natureza.” ( . . . ) “Do
caráter sentimental nada mais resta senão um inquieto espí
rito especulativo, que busca o absoluto em todos os conhe
cimentos c se deixa conduzir no plano prático por um rigor
moral que se cinge ao absoluto em todo e qualquer ato da
vontade. Ao que está incluído na primeira categoria podemos
chamar realista, c idealista ao que se inclui na segunda.” !>7
As restantes explicações d e S c h il l e r sobre os seus do is
tipos referem-se exclusivam ente, p o rta n to , aos conhecidos fe
nôm en os d a posição realista e id e alista , não sc revestindo pois
d c interesse especial para a nossa análise.
™ Loc. cit.. pig. 331.
9T Loc. cit.
III
O APOLÍNEO E O D ION ISÍAC O
O
P r o b le m a pei cebido c elaborado por S c h i l l e r foi recoIfiiclo. de nova 2 singular maneira, por N ie tz s c h e , em sua
obra Die Geburt der Tragödie, de 1871.1 É certo que nessa
obra da juventude não se observa a influencia de S c h il le r ,
mas, sobretudo, a de S c h o p e n h a u e r e G o e th e . Mas, pelo
menos em aparência, tem de comum com S c h i l l e r o estetismo c o motivo redentor, e com G o e t h e inúmeras coisas do
Fausto. De todas essas referencias a de S c h i l l e r é, natu
ralmente, a mais importante para os nossos propósitos. Mas,
no rjue se refere a S c h o p k n iia u e r . não podemos passar adian
te sem salientar ité que ponto ele positivou os meros relan
ces de S c h i l l e r , no que respeita aos conhecimentos orien
tais. que neste sc limitavam a pálidos esquemas. Se pres
cindirmos do pessimismo que tem sua origem no contraste com
o prazer da crença cristã e a segurança cristã dc salvação, a
doutrina redentora de S c h o p e n h a u e r é essencialmente budista.
Ele voltara-se frontalmente para o Oriente. Tnl atitude pres
supõe, indubitavelmente, uma reação de contraste com a
nossa atmosfera ocidental. Como se sabe, tal reação ainda
se mantém nos nossos dias, num grau bastante apreciável,
através de vários movimentos mais ou menos orientados na
direção da índia. Esse impulso para o Oriente detém-se,
quanto a N ie tz s c h e , na Grécia, como escala intermédia entre
o Oriente e o Ocidente.
Até aí está dc acordo com
S c h i l l e r . . . , mas que diferente é 0 seu conceito d a essência
grega! Vislumbrou o sombrio cenário de fundo, sobre o
qual se destacou c luminoso c áureo mundo do Olimpo. “Pa
ra poderem viver, e obedecendo à mais profunda necessida-
1
O
N a scim en to da T ra g cd ia , O b r a s C o mpl eta s, Vol. I, 1899.
170
TIPOS PSICOLÓGICOS
dois tipos que, na sua concepção, envolvem a mesma impor
tância por mim atribuída ao introvertido c ao extrovertido.
No tocante à relação mútua dos dois tipos por mim estabe
lecidos, posso confirmar, palavra por palavra — por assim
dizer — o que S c h jl l e r disse dos seus tipos. Coincidir.do
com o que por mim foi exposto, S c h il l k r passa do mecanis
mo ao tipo "separando tanto do caráter ingênuo como do
sentimental o que ambos têm dc poético”. 00 Quando se
realiza tal operação, temos de descontar o genial, o criador,
mantendo-se no ingênuo a vinculação ao objeto e a inde
pendência deste em relação ao sujeito, e no sentimental a su
perioridade sobre •> objeto, que encontrará expressão na
apreciação crítica 0 11 no tratamento, mais ou menos arbitrá
rio, do próprio objeto. “Apenas resta, então, do primeiro
(o ingênuo), no que diz respeito ao teórico, um sóbrio espí
rito observador e uma sólida fidelidade ao testemunho uni
forme dos sentidos, e, no que respeita ao prático, um senti
mento resignado às necessidades da natureza.” ( . . . ) “Do
caráter sentimental nada mais resta senão um inquieto espí
rito especulativo, que busca o absoluto em todos os conhe
cimentos c se deixa conduzir no plano prático por um rigor
moral que se cinge ao absoluto em todo e qualquer ato da
vontade. Ao que está incluído na primeira categoria podemos
chamar realista, c idealista ao que se inclui na segunda.” !>7
As restantes explicações d e S c h il l e r sobre os seus dois
tipos referem-se exclusivam ente, p o rta n to , aos conhecidos fe
nôm en os d a posição realista e id e alista , não se re ve stind o pois
d c interesse especial para a nossa análise.
™ Loc. cit., pig. 331.
9T Loc. cit.
III
O APOLÍNEO E O D ION ISÍAC O
O
f r o b l k m a p ti c e b id o c e la b o ra d o p o r S c h i l l e r foi reco
lh id o , de no va 2 s in g u la r m a n e ira , p o r N ie tz s c h e , em sua
o bra Die Geburt der Tragödie, de 1 8 7 1 .1 É certo que nessa
o b ra d a ju v e n tu d e n ã o se observa a in flu e n c ia d e S c h il le r ,
m as, sobretudo, a d e S c h o p e n h a u e r e G o e th e .
M as, p e lo
m enos em aparência, tem d e c o m u m com S c h i l l e r o estetism o c o m o tiv o redentor, e com G o e t h e in úm eras coisas d o
Fausto. D e todas essas referências a de S c h i l l e r é, n a tu
ralm en te, a m ais im p o rta n te p a ra os nossos propósitos. M as,
n o q u e se refere a S c h o p e n h a u e r , n ã o p o de m o s passar a d ia n
te sem salientar it é q u e p o n to ele p o sitiv o u os m eros re lan
ces d e S c h i l l e r , n o q u e respeita aos conhecim entos o rie n
tais. q u e neste sc lim ita v a m a p á lid o s esquem as.
Se pres
c in d irm o s d o pessim ism o q u e tem sua origem no contraste com
o p ra ze r d a crença cristã e a segurança cristã d c salvação, a
d o u trin a redentora de S c h o p e n h a u e r é essencialm ente budista.
Ele voltara-se frontalm ente p ara o O rie n te . Tnl a titu d e pres
su p õe , in d u b ita v e lm e n te , u m a re ação d e contraste com a
nossa atm osfera ocide ntal. Como se sabe, tal re ação a in d a
se m a n té m nos nossos d ias, n u m g rau bastante apreciável,
através de vários m o vim e nto s m ais ou m enos orientados na
d ire ç ã o d a ín d ia .
Esse im p u ls o p a ra o O rie n te detém-se,
q u a n to a N ie tz s c h e , n a G ré c ia , com o escala in te rm é d ia entre
o O rie n te e o O c id e n te .
Até a í está d c acordo co m
S c h i l l e r . . . , m as q u e dife re n te é 0 seu conceito da essência
grega!
Vislumbrou o so m b rio c enário de fu n d o , sobre o
q u a l se destacou c lu m in o s o e áu re o mundo do Olimpo. “Pa
ra p o d e re m viver, e o b e d e c e n d o à m ais p ro fu n d a necessida-
1
O
N a scim en to da T ra g cd la , O b r a s C o mpl eta s, Vol. I, 1899.
T11'ÜS PSICOLÓGICOS
172
de, tiveram os gregos de eriar esses deuses.” ( . . . )
"O
grego conhecia e sentia os terrores e espantos do destino e,
para poder simplesmente viver, teve que enfrentá-los com
o sonhado c deslumbrante esplendor olímpico. Aquele me
do enorme, ante as forças titânicas da natureza, aquela fada
cujo império se exerce implacavelmente sobre os conheci
mentos, aquele abutre do grande amigo do homem, Prome
teu, o signo dc horrores do prudente Êdipo, a maldição da
estirpe dos átridas, que impeliu Orestes ao rnatricídio... in
dignidades que foram artisticamente compartilhadas pelos
gregos, assim as ocultando repetidamente, cm todo caso,
para bem longe da vista.” 2 A “serenidade grega”, o radioso
céu helénico como ilusão brilhante sobre um fundo sombrio...
eis um conhecimento (pie estava reservado aos novos, um
argumento de peso contra o estetismo moral! Assim adotou
N i e t z s c h e . em relação a S c h i l l e r , uma concepção notoria
mente modificada. O que em S c h i l l t h constituía, de nossa
parte, uma suspeita, quer dizer, que suas Cortas Sobre a
Educação Estética do Homem eram também um ensaio em
causa própria, em N i e t z s c h e converte-se numa certeza abso
luta, no auc respeita à sua obra: trata-se realmente de um
livro “profundamente pessoal”. E assim como Schtuler co
meça, timidamente e cm tons suaves, por assim dizer, por
ampliar seu jogo de luz e sombra, concebendo o antagonis
mo percebido em sua própria alma como um duelo de “inge
nuidade” contra “sentimentalidade”, excluindo assim todo
fundo e todo abismo da natureza humana, N i e t z s c h e vai
muito mais fundo e estabelece um contraste marcante qu<numa de suas partes nada fica devendo h esplendorosa «'
bela visão de S c h i l l e r , mas que na outra patenteia toni
muitíssimo mais sombrios, os quais, se fazem por certo real
çar a força da luz, também nos fazem pressentir uma noite
muito mais profunda.
N ie tz s c h e criou uma designação para o seu duplo an
tagonismo fundamental: apolínco-dionisíaco. Comecemos por
tentar averiguar a natureza desse contraste. Com tal propó
sito, vou transcrever primeiro, textualmente, algumas passa
gens de N ie tz s c h e , após o que o leitor estará em condiçfWv
mesmo que não tenha lido toda a obra, dc formar um juiz«»
próprio e ponderar da validade de minha teoria, de acordo
2
N ie tz s c h e , loc. cit., pág. 31.
O APOLÍNEO E O DIONISÍACO
com a concepção que obtiver.
escolhidos:
173
Eis os dois textos por mim
“Teremos ganho muito para a ciência estética quando
tivermos chegado não só à visão lógica, mas também à se
gurança intuída imediata de que a evolução da arte está
intimamente associada à duplicidade do apolíneo e dioni
síaco, do mesmo modo que a geração depende da duplici
dade dos sexos, em contínua luta e conciliação periódica."
“Às duas divindades da Arte, Apoio e Dionísio, cinge-se
o nosso conhecimento dc que no mundo grego existia um
enorme antagonismo, por sua origem e seus fins, entre a
arte do escultor, a apolínea, c a arte não-convcrtível em
forma da música, como a arte dionisíaca. Caminham a par
impulsos tão distintos, quase sempre cm franca discórdia,
incitando-se mutuamente para novas c vigorosas criações, a
fim de que nelas se perpetue o duelo desse contraste que a
palavra corrente — “arte” — só cobre na aparência; até que,
finalmente, por um extraordinário ato metafísico da poderosa
vontade helénica, aparecem mutuamente emparelhadas, aca
bando por gerar, graças a essa conjugação, a obra de arte
tão dionisíaca quanto apolínea: a tragédia ática.” 3
A fim de caracterizar mais accntuadamente ambos os
“instintos”, N i e t z s c h e compara os estados psicológicos pecu
liares a que dão origem com os estados dc sonho e embriaguez.
O impulso apolíneo gera o estado comparado com o sonho;
o dionisíaco, o que equivale à embriaguez. Por “sonho” en
tende N i e t z s c h e , essencialmente, segundo cie próprio justi
fica, a “visão íntima”, a "bela aparência do mundo onírico”.
Apoio “impera na bela aparência do mundo íntimo da fan
tasia”, é o “deus de todas as potências enformadoras”. É
medida, número, limite c domínio de tudo o que seja sel
vático e insubmisso. “Tem-se desejo d e ... classificar Apoio
como a esplêndida imagem divina do principium individuationis ” 1 “O dionisíaco, pelo contrário, é a liberdade do instin
to sem barreiras nem entraves, o eclodir da dynamis sem
freio, razão por que o homem aparece, no coro dc Dionísio,
como sátiro, metade deus e metade bode.” 0 Ê o temor de
3
L o c . c it., págs. 19 e scg.
*
L o c. cit., págs. 2 2 e scg.
15
L o c. c it., págs. 5 7 e scgs.
174
T ir o s r s ic o L Ó c ic o s
violação do princípio da individuação e, ao mesmo tempo,
o “delicioso arrebatamento" por tè-lo violado. O dionisíaco
é comparável, portanto, à embriaguez, que dissolve o indivi
dual nos instintos e conteúdos coletivos, dispersão do eu no
mundo. For isso, encontramos no dionisíaco homem com ho
mem e “até a natureza mais estranha, mais hostil ou oprimi
da, celebra sua festa de reconciliação com o filho pródigo:
o homem”. 6 'Iodos são “um” com o seu próximo (“não só
unidos, reconciliados, fundidos”). Sua individualidade tem,
portanto, de ficar completamente anulada. “O homem já
não é artista: converteu-se em obra de arte. O poder artís
tico da natureza... aqui se revela por inteiro, entre as con
vulsões da embriaguez.” 7 N i e t z s c h e quer dizer que a dy
namic criadora, a libido em forma de instinto, apodera-se do
indivíduo como objeto e serve-se dele como instrumento ou
expressão. Se quisermos, de fato, conceber o ser natural
como "obra de arte”, então o homem terá certamente de fi
car em estado dionisíaco, naturalmente convertido em obra
de arte. Mas o ser natural não é, exatamente, uma obra de
arte no sentido que costumamos atribuir a uma “obra de
arte"; é apenas pura natureza, torrente caudalosa e indo
mável, sob todos os pontos de vista, e nem sequer um ani
mal limitado a si próprio e ã sua essência. Tenho que des
tacar este ponto a bem da clareza e levando na devida con
ta a análise que posteriormente farei, porquanto e por cer
tas razões N i e t z s c h e deixou de a ía/.er, estendendo assim
um enganador manto estético sobre o problema que, sem
dúvida, ele próprio teria de suscitar nalguns trechos. Assim,
por exemplo, quando fala das orgias dionisíacas, observa: "Em
quase toda parte, o motivo central dessas festas era consti
tuído pelo desbordamento sexual que, em seu arrasador cau
dal, remodelava a estrutura familiar c seus veneráveis precei
tos. Aí se deixava à solta, precisamente, as mais selváticas
feras da natureza, até se atingir essa horrível mistura de
volúpia e crueldade”. *
N ie t z s c h e considerou a conciliação do Apoio délfico com
Dionísio como símbolo da conjugação desses contrastes no
&
L o c . cit., pág. 24.
i
L o c . c it., págs. 2 4 e seg.
8
L o c . cit., pág. 27.
O APOLÍN EO E O DIONISÍACO
175
íntimo do grego civilizado. Mas. ao faze-lo, esquece sua pró
pria fórmula de compensação, segundo a qual os deuses
olímpicos devem sua claridade à obscuridade da alma grega.
Segundo esse conceito, a reconciliação de Apoio c Dionísio
seria uma bela aparência, um desiderato provocado pela ne
cessidade que era sentida pela metade civilizada do grego,
em luta com o seu lado bárbaro, que no estado dionisíaco
abria desenfreadamente caminho. Existe sempre uma rela
ção compensadora entre a religião de um povo e sua vivên
cia, seu verdadeiro comportamento vital, pois não sendo as
sim a religião estaria destituída de qualquer finalidade prá
tica. Começando pela religião sumamente moral dos per
sas e os costumes, já célebres na antiguidade por duvidosos,
a que os persas se dedicavam na vida prática, até a nossa
época “cristã” em que a religião do amor assiste às maiores
carnificinas da história universal, a regra mantém-se cm ple
no vigor. E e precisamente por isso que devemos deduzir
do símbolo da reconciliação délíica a existência de uma dis
córdia bastante violenta na essência grega. Isso explicaria
a ànsia de redenção que dava aos mistérios helénicos toda
aquela formidável importância para a vida popular grega e
que escapou totalmente à observação dos primeiros entu
siastas exaltados da Grécia. Ingenuamente, via-se nos gregos
tudo o que faltava a um. No estado dionisíaco o grego não
ficou, por conseguinte, convertido numa obra de arte; sen
tia-se era mais á vontade nesse estado, em virtude de sua
própria essência bárbara, privado de individualidade, inte
grado em seu elemento coletivo e unificado no próprio incons
ciente coletivo (com a concomitante renúncia de seus fins
individuais), enfim, unido com "o gênio da espécie, inclu
sive da natureza”.
Para a sujeição apolínea já conseguida, esse estado de
embriaguez que fazia o homem esquecer-se completamente
de si próprio e da humanidade, convertendo-o num mero ser
instintivo, devia ser algo de desprezível, pelo que não é de
duvidar que se desencadeasse uma luta feroz entre ambos os
impulsos. Experimente-se pòr à solta os instintos do homem
civilizado! O fanático da cultura alimenta a ilusão de que
destilariam pura beleza. Esse erro tem seu fundamento nu
ma completa falta de conhecimentos psicológicos. As for
ças instintivas exteriorizadas pelo homem civilizado são tre
mendamente destrutivas e muito mais perigosas que os ins
176
TIPOS PSICOLÓGICOS
tintos do indivíduo primitivo, que vive continuamente seus
instintos negativos numa escala modesta. Por isso nenhuma
guerra do passado lüstórico pode rivalizar cm monstruosidado com a guerra das nações civilizadas. Entre os gregos, não
pode ter acontecido de maneira diversa. Precisamente cm
virtude da percepção vital do horror, foram conseguindo, de
maneira gradual, uma conjugação do dionisíaco e do apolíneo, mediante “um extraordinário ato metafísico*’, como
N i e t z s c h e sublinhou. Devemos ter presentes essas palavras,
bem como que o contraste em questão “só na aparên
cia está coberto pela palavra corrente — “arte". Devemos re
cordar essas observações porque tanto em N i e t z s g h e como
em S c i i i l l e r se observa a tendência acentuada para atribuir
à arte a função mediadora e redentora. E dessa maneira
o problema fica paralisado no estético — o feio também ó
“belo”; o repugnante, inclusive o próprio mal, reluz apete
cível, sob o ilusório esplendor do belo-estético. A natureza
do artista reivindica para si e para a sua capacidade especí
fica de criação e expressão um significado redentor, tanto em
N ie tz s c h e como cm S c iiil l e r . Mas o primeiro esqueceu por
completo que na luta entre Apoio e Dionísio, e em sua re
conciliação final, nunca esteve em causa, para os gregos,
um problema estético, mas uma </ucstüo religiosa. As festi
vidades sátiro-dionisíacas eram, segundo toda a analogia,
uma espécie de festas totêmicas com retro-identificação de
antepassados míticos 0 1 1 com identificação direta e imedia
ta 1 1 0 animal totêmico. C) culto dc Dionísio tinha, em mui
tos lugares, um teor rnítico-especulativo c exerceu, em todo
caso, um poderoso influxo religiosamente estimulante. O
fato da tragédia ter surgido das primitivas cerimônias reli
giosas pressupõe, exatamente, o mesmo que a ligação esta
belecida entre o nosso teatro contemporâneo e os autos sacra
mentais da Idade Média e seu fundamento exclusivamente
religioso, não consentindo, portanto, que se julgue o proble
ma de um prisma unicamente estético. O estetismo veio a
ser, afinal, um óculo moderno através do qual vemos os se
gredos psicológicos do culto de Dionísio, a uma luz que os
antigos certamente não conheceram nem viveram nunca. A
semelhança dc S c i i i l l k h , N d c t z s c iie também deixou de lado
o ponto de vista religioso, substituindo-o pelas considerações
de ordem estética. Não há dúvida de que as coisas pos
suem seu aspecto notoriamente estético, que não sc deve es-
O APOLÍXEO E O DIONISÍACO
177
queccr.9 Mas sc considerarmos o cristianismo medieval ape
nas sob o ponto de vista estético, falsificaremos e superfieializaremos tanto o seu verdadeiro caráter quanto ao consi
derá-lo exclusivamente pelo ângulo histórico. Uma verdadeira
compreensão só pode ter lugar sobre a mesma base, pois
ninguém pretenderá afirmar que uma ponte ferroviária fica
suficientemente explicada por sua percepção estética. As
sim, com a idéia de que a luta entre Apoio c Dionísio é
uma questão de instintos artísticos antagônicos, transfere-se
o problema, de um modo histórica e materialmente injusti
ficado, para a esfera estética, submetendo-o portanto a um
exame parcial que nunca poderá corresponder satisfatoria
mente a seu verdadeiro conteúdo.
É indubitável que essa transposição deve ter suas bases
e finalidades psicológicas. Não é difícil descobrir as van
tagens desse procedimento: a consideração estética conver
te logo o problema numa imagem que o observador contem
pla displicentemente, admirando tanto a sua beleza como a
sua fealdade, percebendo a paixão da imagem a unia caute
losa distância que o deixe a salvo de todo sentimento direto
e de toda convivência. A atitude estética protege contra
a participação que a compreensão religiosa do problema im
plica, com suas próprias complicações. A mesma vantagem
oferece o gênero de consideração histórica, a cuja crítica
N i e t z s c i i e dedicou uma série de valiosas contribuições.10
A possibilidade dc poder apreender um problema de tama
nha envergadura — “um problema com chifres”, como ele
disse — apenas pelo lado estético é sedutora, sem dúvida, pois
a sua compreensão religiosa, que é neste caso a única apro
priada, pressupõe um experimentar — ou um ter experimen
tado — de que o homem moderno raramente pode vanglo-
5
O
estetismo p<xlo, naturalmente, substituir as funções religio
sas.
M a s quantas coisas h á q u e n ã o p o d e m fazer o m e s m o ?
Quan
tas coisas niio c o n h e c e m o s c o m o s u c e d â n e o d e u m a religião q u e fal
tava?
E m b o r a o esteticismo seja u m su c e d â n e o d e ascendência m u i t o
nobre, n ã o deixa d e ser, contudo, algo q u e substitui o autêntico q u e
falta.
A posteiior “conversão” d e N i e t z s c h e a Dionísio demonstra,
a l é m disso, d a me l h o r m a n e i r a possível, q u e o s u c e d â n e o estético não
c onseguiu manter-se por m u i t o tempo.
X ik t z s c u k .
Lehen, II
poräneas).
M
Título d e
Vorn Nutzeil und Nachteil der Historie für das
Unzeitgemäßen Betrachtungen (Reflexões Extern-
17S
TIPOS PSICOLÓGICOS
riar-se. Mas Dionísio parcce ter-se vingado de N ie tz s c iie . . .
Veja-se o seu Versuch eincr Selbskritik (Ensaio de Autocrí
tica), de 18-56, que fez preceder, a título de introdução, Die
Geburt der Tragódie (Nascimento da Tragédia), e no qual
se indaga: "Ora bem, o que é o dionisíaco?... Neste livro
se dá uma resposta... um conhecedor' aqui fala, o iniciado
e discípulo de seu deusn. Mas este não era o K ie tz s c h e que
escreveu o “Nascimento da Tragédia”; ainda estava então este
ticamente influenciado.11 E dionisiacamente influenciado,
sem dúvida, quando escreveu também o Txiratustra e aquele
memorável trecho com que conclui o seu Ensaio de Auto
crítica: "Corações ao alto, meus irmãos, vamos, mais alto
ainda! E não esqueçais as pernas! Pernas ao alto. admirá
veis dançarinos, e melhor ainda — de cabeça para baixo!” 12
A profundidade assinalável com que N ie tz s c h e abordou
o problema, apesar do pretexto estético, encontrava-se já tão
próxima da própria realidade que a sua posterior vivência
dionisíaca ocorreu de um modo que se diria inevitável. O
seu ataque a S ó c ra te s , no Nascimento da Tragédia, terá de
atribuir-se ao racionalista que se revela inacessível ao orgiasmo dionisíaco. Esse afeto corresponde à falta análoga na
consideração estética: mantém o problema afastado. Mas,
apesar da concepção estética. N ie tz s c iie já possuía então
uma idéia sobre a verdadeira solução do problema, como se
depreende do fato de ter escrito que o contraste não se
resolveu pela arte, mas por “um extraordinário ato metafísi
co da vontade helénica”. Escreveu ele "vontade” entre aspas,
o que, se levarmos em conta a acentuada influencia que
S c h o p e n h a u e r exercia então sobre ele, terá de interpretar-se como alusão ao conceito metafísico da vontade. "Metafí
sico”, para nós, tem aqui o significado psicológico de incons
ciente. Dessa maneira, se na fórmula de N ie tz s c h e fizermos
a substituição de “metafísico” por “inconsciente”, a catego
ria procurada para o problema seria um “extraordinário ato”
inconsciente. Um evento extraordinário ou “maravilhoso” é
algo de irracional, pelo que o ato é um evento irracional c
inconsciente, nascido de si próprio, sem que a razão ou o
propósito intencional deliberadamente intervenham. É algo
que sai assim mesmo, que aparece como um fenômeno de
n
N ie tz s c h e ,
12
L o c . cit.,
V ersu ch einer Selbskritik,
pág.
14.
pág.
0.
O APOI.ÍXEO E O DIONISÍACO
179
crescimento na natureza criadora e não como um produto
da invenção humana; enfim, algo que nasceu da expectativa
ansiosa, da fé e da esperança.
Deixemos esse problema, por enquanto, visto que no de
correr da nossa investigação teremos ocasião de retornar a
ele mais detalhadamente. Procuremos, antes, examinar mais
de perto as qualidades psicológicas do conceito apolíneo-dionisíaco.
Comecemos pelo dionisíaco.
A descrição de
N eetzsciie permite-nos observar que se trata de um desdo
bramento, de uma cheia c inundação, de uma diástole, como
dizia C o e th e , um fluir que abrange o mundo, segundo se
exprime S c h i l l e r em sua “Ode à Alegria” (An die Fraude):
Que vos alcance, milhões de seres,
Este beiio do mundo inteiro.
E mais adiante:
Todos os seres se nutrem de Alegria
Ao peito generoso da Natura.
Todos os Bons, todos os Maus,
Seguem seu trilho de rosas.
Deu-nos beijos e sarmentos,
Provado amigo na Morte . ..
Concedeu volúpia ao verme
E o anjo está ante Deus.
Isso é pura expansão dionisíaca. É um caudal de po
derosa compreensão universal, surgindo irresistivelmente para
embriagar os sentidos com o vinho mais capitoso. £ uma
embriaguez no mais alto sentido.
Em tal estado, o elemento psicológico da percepção par
ticipa na máxima quantidade, quer seja sensível ou afetiva.
Trata-se, por conseguinte, de uma extroversão de sentimen
tos que está indistintamente ligada ao elemento perceptual,
daí resultando que se lhes chamem percepções sentimentais.
Daí serem mais os afetos que em tal estado se destacam, coi
sa instintiva, portanto, cega c imperativa, que se concretiza
através de uma afeição na esfera corporal.
Pelo contrário, o apolíneo é uma percepção de íntimas
imagens da beleza, da medida e dos sentimentos sujeitos ao
equilíbrio de proporções. A comparação com o sonho assi-
180
TIPOS rSIOOLÓCICOS
nala claramente a natureza e o caráter do estado apolineo:
é um estado de introspecção, de contemplação interior, de
visão do mundo sonhado das idéias eternas, portanto, um
estado de introversão.
Ate este ponto, a analogia com os nossos mecanismos c
indiscutível. Mas, se nos resignássemos com a analogia, tal
limitação violentaria os conceitos de N ie t z s c h e de um modo
inteiramente ilegítimo.
Podemos observar, no decorrer da nossa investigação, que
o estado de introversão, quando se converte em habito, acar
reta uma diferenciação da relação com o mundo das idéias,
e a extroversão habitual traz com ela uma diferenciação na
relação com o objeto. Xos conceitos de N ie t z s c h e não se
encontra semelhante diferenciação. O sentimento dionisíaco
tem o caráter, de um modo geral arcaico, da percepção afe
tiva. Não sofreu, portanto, uma pura abstração do instin
tivo para converter-se nesse elemento fluido e diferenciado
que, no tipo extrovertido, obedece às instruções da ratio c 6
seu fiel instrumento. Também não se aponta no conceito
de introversão de N ie t z s c h e uma pura e diferenciada rela
ção com idéias, relação que se tivesse emancipado da intui
ção (da sensivelmente condicionada ou da criadoramente ge
rada) para constituir formas abstratas e puras. O apolineo
é uma íntima percepção, uma intuição do mundo das idéias.
A comparação com o sonho demonstra, à saciedade, que
N ie t z s c h e concebia esse estado, por uma parte, como me
ramente intuitivo, por outra, meramente imaginativo.
Essas características constituem algo de singular que não
devemos imputar ao nosso conceito de disposição introver
tida ou extrovertida. Num indivíduo predominantemente re
flexivo, o estado apolineo de intuição de imagens íntimas pro
voca uma elaboração do intuído, de acordo com a essência
do pensamento intelectual. Daí nascem as idéias. Num in
divíduo de disposição preponderantemente sentimental, ocor
re um processo semelhante, quer dizer, o sentimento penetra
nas imagens, produzindo-se a idéia sentimental, que pode
coincidir com a gerada pela reflexão. Por esse motivo as
idéias são tanto pensamento como sentimento, por exemplo,
as idéias de pátria, liberdade. Deus, imortalidade, etc. O
princípio de ambas as elaborações é racional e lógico. Mas
há outro ponto de vista completamente diverso para o qual a
elaboração lógico-raciorial não tem qualquer valor. IZssimtTO
O APOLINEO F. O DIONISÍACO
181
ponto da vista é o estético. Na introversão, detém-se na in
tuição das idéias, desenvolve a visão íntima; na extroversão,
detém-se na percepção e desenvolve os sentidos, o instinto,
a afetividade. Para este ponto de vista, o pensar não é,
de modo algum, o princípio da íntima percepção das idéias,
assim como o sentir também não é, constituindo ambos, outrossim, meros derivativos da intuição íntima ou da percep
ção sensível.
Os conceitos de N ie t z s c u e levam-nos, pois. aos princípios
de um terceiro e de um quarto tipos psicológicos. Em face
dos tipos racionais (reflexivo e sentimental), poderíamos de
signá-los como tipos estéticos. Trata-se do tipo ii\tuitivo c
do tipo sensível ou perceptivo. Ambos têm, por certo, o mo
mento de introversão e de extroversão de comum com os ti
pos racionais; mas, por uma parte, sem diferenciar, como o
tipo reflexivo, a percepção e intuição das imagens íntimas
no pensamento, nem diferenciar, por outra parte, a vivência
instintiva e perceptiva no sentimento, como o tipo sentimen
tal. O intuitivo, no contrário, eleva a percepção inconscien
te á categoria de função diferenciada, pelo que se verifica
também a sua adaptação ao mundo. Esta reali/a-sc pela
obediência a diretrizes inconscientes que lhe chegam me
diante uma percepção e interpretação notavelmente sutis e
penetrantes dos estímulos, e só vagamente conscientes. Qual
o aspecto que semelhante função apresenta é um tanto difí
cil de descrever, dado o seu caráter irracional e, por assim
dizer, inconsciente. Poder-se-ia comparar, talvez, com o daimonion de S ó c r a t e s , por exemplo. Certamente com a dife
rença de que a disposição racionalista incomum de Só c r a t e s
reprimia ao máximo a função intuitiva, de modo que tinha
de abrir caminho e impor-se através do concreto-alucinador,
por faltar-lhe uma via dc acesso psicológico direto à cons
ciência. Mas isso ê o que acontece, precisamente, no intui
tivo.
O tipo perceptivo é, sob todos os aspectos, o reverso do
intuitivo. Baseia-se exclusivamente, por assim dizer, no ele
mento da percepção sensível. A sua psicologia orienta-se
para o instinto e a percepção. Limitasse, por conseguinte,
ao estímulo real, dc um modo absoluto.
O fato de N i e t z s c h k fazer ressaltar, por uma parte, a
função psicológica da intuição e, por outra parte, a da per
cepção e do instinto, deveria ser sintomático no que diz
18 2
TIPOS PSICOLÓGICOS
respeito h sua própria psicologia pessoal. Temos de incluí-lo, sem dúvida alguma, no tipo intuitivo com tendência para
o aspecto introvertido. Vem cm apoio do primeiro o seu
modo de produção, preponderantemente intuitivo-artístico, a
respeito do qual é muito característico o livro que, precisa
mente, aqui temos vindo a citar sobre o nascimento da tra
gédia. Mas ainda cm maior escala vemos o tipo psicológico
de N ie t z s c h e , acima diagnosticado, corroborado em sua prin
cipal obra: Aiso sjnach Zarathustra. No que se refere ao
seu aspecto introvertido-intelectual, são característicos os seus
escritos aforísticos. que, apesar do forte acento sentimental,
revelam um intelectualismo acentuadamentc crítico, no estilo
dos intelectuais franceses do século XVIII. O seu tipo in
tuitivo caracteriza-se pela falta de capacidade restritiva e de
consistência racional. Assim sendo, não se pode estranhar
que cm suas primeiras obras exponha inconscientemente, cm
primeiro plano, os fatos de sua psicologia pessoal. Isto está
em completa concordância com a disposição intuitiva, que
percebe primeiro o interior pelo exterior, As vezes com o
sacrifício da própria realidade. Em virtude dessa disposi
ção, N ie t zsc h e conseguiu também uma profunda vidência
das qualidades dionisíacas do seu inconsciente, cuja forma
rudimentar, tanto quanto sabemos, só ao declarar-se a sua
enfermidade alcançou a superfície da consciência, depois de
iá estar denunciado, muito antes, por seus escritos, atTavés
de múltiplas insinuações eróticas. Do ponto de vista psico
lógico é extremamente lamentável que os manuscritos encon
trados em Turim, depois de se ter declarado a doença, tes
temunhos muito característicos desse aspecto, precisamente,
tenham sido condenados à destruição, em nome da compai
xão estctico-moralista.
IV
O PROBLEMA DOS TIPOS
NO CONHECIMENTO DO HOMEM
1.
Considerações Gerais Sobre os Tipos de Jordan
A sBQÜk .vc ía cronológica dos trabalhos preliminares so
bre a questão dos tipos psicológicos, cm cujo exame estamos
empenhados, veio parar nas minhas mãos uma pequena obra
algo estranha, cujo conhecimento tenho de agradecer à mi
nha estimada colaboradora, residente em Londres, a Doutora
Constance E. Long. Trata-se do livro do Dr. F u r n e a u x
J o r d a n , membro do Real Colégio de Cirurgiões, intitulado
Character as secn in Bodtj and Parentage. 1
J ordan descreveu, principalmente, em seu livro de 126
páginas, dois tipos caracterológicos, cuja definição nos inte
ressa em muitos aspectos, ainda que — para antecipar a de
claração — o autor só tenha em conta os nossos tipos numa
metade, destinando à outra metade o ponto dc vista do tipo
intuitivo e perceptivo. que misturou com o outro. Em pri
meiro lugar, vou ceder a palavra a Jo r d a n , reproduzindo
aqui sua definição introdutória. Disse ele: “Existem dois
caracteres fundamentalmente distintos, dois nítidos tipos ca
racterológicos (com um terceiro intermédio): um em que é
forte a tendência para a atividade e débil a tendência para
a reflexão; c outro em que predomina a tendência para a
reflexão, enquanto o impulso ativo é mais débil. Entre es
sas duas propensões extremas, existem inúmeros matizes.
Mas limitemo-nos a definir um terceiro tipo, em que as for-
i
Londres, 3.a Edição, 1896.
184
TIPOS PSICOLÓGICOS
ças de ação e reflexão se equilibram mais ou menos. Numa
categoria intermédia podem-se incluir tambcm aqueles carac
teres em que se manifesta uma tendência para a excentrici
dade, ou aqueles em que, possivelmente, predominam ten
dências anormais, em face dos processos emocionais e não-emocionais”. 2
Depreende-sc claramente desta definição que J o iid a n con
trasta a reflexão, o pensamento, com a ação ou atividade. É
inteiramente compreensível que ao observador que não pro
ceda a uma profunda investigação se imponha, à primeira
vista, o caráter reflexivo em contraste com o ativo e que se
incline, portanto, para definir o contraste observado segun
do esse ângulo de visão. Contudo, a simples reflexão de que
o caráter ativo não tem por que derivar, necessariamente, de
impulsos, podendo ser também um fruto do pensamento, já
faz que pareça inevitável aprofundar um pouco mais essa
primeira definição. Foi a essa mesma conclusão que che
gou o próprio J o r d a n , ao trazer para a discussão da matéria
um novo elemento de valor todo especial para nós: o ele
mento sentimental.a Elo constatou, nomeadamente, que o
tipo ativo é menos apaixonado, ao passo que o temperamen
to reflexivo se distingue mais por sua intensidade de paixão.
Por isso Jo iu > A N chama aos seus tipos “thc less impassioned"
e “the more impassioned”. 0 Por conseguinte, o elemento
que faltava na definição preliminar ficou posteriormente con
vertido cm termo constante. Ora, o que a distingue da nossa
concepção é o fazer que o tipo “menos apaixonado” seja ao
mesmo tempo “ativo” e que o outro seja “inativo”. Conside
ro esta mistura pouco feliz, pois existem naturezas profun
das e apaixonadíssimas que são, ao mesmo tempo, muito enér
gicas c ativas; e, pelo contrário, naturezas pouco apaixonadas
e superficiais que de modo algum se destacam por sua ati
vidade. Em meu entender, a concepção de JonnAN', valiosa
por outra parte, teria ganho imenso em clareza se, como pon
to de vista completamente distinto, prescindisse da, em si,
caracterologicamente significativa determinação da atividade.
Dos considerandos subseqüentes deduz-se que J o h d a n dcscre-
2
L o c . cit., pág. 5.
3
L o c . cit., pág. 6.
*
F m inglês nci texto:
x o n a d o ”. ( N . d o T .)
“O
menos
apaixonado” e
"o
mais
apai
O PROBLEM A DOS TIPOS NO CONHECIMENTO DO H O M E M
185
ve o extrovertido com o seu tipo “less impassioned and more
active” C o introvertido com o tipo “more impassioned and
lcss active”. Ambos podem scr ativos ou inativos sem que
por isso alterem seu tipo respectivo; assim, 11 0 meu modo de
ver, o motivo da atividade deveria eliminar-se como carac
terística principal. Como determinação de importância se
cundária representa, porém, uma função até certo ponto im
prescindível, na medida em que o extrovertido, de acordo
com a sua natureza, parece normalmente muito mais ágil,
vivaz c ativo que o introvertido. Mas esta qualidade depen
de completamente da fase em que o indivíduo se encontre,
no momento, em relação ao mundo exterior. O introvertido
parece ativo numa fase extrovertida, e o extrovertido parece
passivo numa fase introvertida. A própria atividade, como
traço fundamental do caráter, pode, por vezes, ser introver
tida. isto é, ser completamente orientada para o interior, on
de desenvolve uma intensa mobilidade de pensamento ou de
sentimento, enquanto reina no exterior o mais profundo re
pouso; e outras vezes pode ser extrovertida, rcvelando-sc pelo
movimento e vivacidade da ação, enquanto por trás de tudo
isso há um pensamento firme e imóvel, ou um sentimento
em idêntica situação.
Antes de analisarmos mais de perto as considerações de
quero apontar, para esclarecimento dos conceitos,
uma circunstância que se não for levada na devida conta
poderá motivar confusões. Já acentuei que em publicações
anteriores eu identificara o introvertido com o tipo reflexivo,
e o extrovertido com o tipo sentimental. Só mais tarde —
como também já disse — percebi com toda a clareza que a
introversão e extroversão, como disposições gerais básicas,
têm de se diferenciar dos tipos de função. Também ç fací
limo reconhecer essas duas disposições, ao passo que se ne
cessita grande experiência para distinguir, além disso, os ti
pos funcionais. Às vezes, é mesmo bastante difícil descobrir
a que função pertence a primazia. £ atraente o fato do
introvertido produzir, de um modo natural, uma impressão
reflexiva e sobranceira, ern resultado de sua propensão abs
trata. Por isso nos inclinamos facilmente a atribuir-lhe um
primado do pensamento. Pelo contrário, o extrovertido reve
la, naturalmente, reações muito mais diretas, que nos fazem
supor coin facilidade o predomínio do elemento sentimental.
Mas tais suposições são ilusórias, pois o introvertido pode
Jo rd a n ,
186
TI 1*0$ PSICOLÓGICOS
facilmente ser um tipo sentimental c o extrovertido um tipo
reflexivo. Jordan descreve apenas o introvertido e o extro
vertido, de um modo genérico. Mas quando entra nos por
menores, sua descrição é incompreensível, dado que mistura
traços de tipos distintos de função, os quais, por elaboração
insuficiente da matéria, não se mantiveram devidamente di
ferenciados. Dos traços gerais infere-se, inconfundivelmente,
o quadro da disposição introvertida e extrovertida, de modo
que a essência de ambas as disposições básicas fica em
evidência.
A caracterização dos tipos, a partir da afetividade, pare
ce-me ser, com efeito, o mais importante da obra de J o r d a n .
Já vimos que o caráter “reflexivo” e distante do introvertido
está compensado por uma inconsciente vida arcaica, instin
tiva e perceptiva. Também se poderia afirmar que a sua
disposição (do introvertido) é precisamente uma conseqüên
cia do caráteí arcaico - impulsivo e apaixonado - ter de al
cançar as alturas firmes da abstração para poder, desde aí,
dominar os afetos insubordinados, numa comoção selvagem.
Em muitos casos, esse ponto de vista é bastante válido. Poder-se-ia afirmar, por outro lado, que a vida afetiva, de raí
zes menos profundas, do extrovertido, é mais apta à diferen
ciação e à domesticação que o pensar e o sentir inconscien
tes e arcaicos, que a fantasia, que pode exercer uma influên
cia religiosa sobre a sua personalidade. É por isso que ele
procura viver muito atarefado, intensamente relacionado com
outras pessoas, para em virtude dessa vivência acelerada não
ter que debruçar-se sobre si próprio e sobre seus maus pen
samentos e sentimentos. Por esta observação, fácil de fazer,
se explica o trecho de J o r d a n , de outro modo paradoxal, em
que diz que 11 0 temperamento "less impassioned" (extrover
tido) é o intelecto que predomina e participa em grande es
cala na formação vital (pág. 6), ao passo que no tempera
mento reflexivo são os afetos, precisamente, que têm a máxi
ma importância.
Essa concepção parece contradizer, à primeira vista e
de um modo flagrante, a minha afirmação de. que o tipo
‘less impassioned” corresponde ao meu tipo extrovertido. Mas
se observarmos com atenção veremos que assim não é, abso
lutamente, desde o momento em que o caráter reflexivo in
tenta, sem dúvida, meter na ordem os seus afetos indisci
plinados, mas, na realidade, acaba por ser influenciado pela
O PROBLEM A DOS TIPOS NO CONHECIM ENTO 1X> H O M E M
167
paixão ainda num grau mais elevado do que o que foi ado
tado como diretriz consciente de sua vida e dos seus dese
jos orientados no sentido do objeto. Este último, quer dizer,
o extrovertido, procura abrir caminho por todos os lados,
mas acabará por constatar que são os seus pensamentos e
sentimentos subjetivos os que lhe saem sempre ao caminho,
para o perturbarem. Está mais influenciado pelo seu mun
do psíquico interior do que imagina. O próprio não se aper
cebe disso, mas quem viver na sua intimidade e o observar
com atenção, verificará que ele atua em obediência a um
propósito. Por isso, sua norma básica será sempre formular
para si próprio a pergunta: “O que é que verdadeiramente
quero? Qual é minha intenção secreta?” O outro, o intro
vertido, com seus propósitos conscientes e premeditados, dei
xa sempre de ver aquilo que c visto por todos os que o cer
cam com excessiva clareza; quer dizer, os seus propósitos
estão realmente a serviço dc instintos fortes, mas sem inten
ção nem objetivo, c são em grande parte influenciados por
esses instintos. Quem observar e julgar o extrovertido incli
na-se a considerar o sentimento e o pensamento que ele
manifesta através de um tênue véu que mal esconde o frio
e calculado propósito. Quem procurar entender o introver
tido, convencer-se-á facilmente de que só com muito esforço
cie pode dominar e vigiar sua paixão tumultuosa, mediante
uma aparência calma e razoável.
Ambos os critérios são verdadeiros c falsos. O critério
é falso quando o ponto de vista consciente, ou melhor, quan
do a consciência possui, simplesmente, perante o inconsciente,
a força e a capacidade dc resistência necessárias; c é verda
deiro quando o ponto de vista consciente que defronta um
inconsciente forte e débil e. nesse caso, tem de ceder suas
posições. Neste Último caso, o que se conservava em plano
secundário ascende a primeiro plano, num o propósito egoís
ta, no outro a paixão desenfreada, o afeto elementar e surdo
a todas as considerações. Essas reflexões possibilitam-nos
entender a maneira dc observar dc J o r d a n , que se limita,
evidentemente, h afetividade do examinado, o que justifica
sua nomenclatura de '’less emotional” e "more impassioned”.
Por conseguinte, se considera o introvertido, no tocante ao
aspecto afetivo, como o apaixonado, e o extrovertido, segundo
o mesmo critério, como o menos apaixonado ou até como o
intelectual, revela, ao fazê-lo, um tipo de conhecimento que
188
TIPOS PSICOLÓGICOS
deveremos classificar de intuitivo. Por isso mencionei há
pouco o fato de J o r d a n misturar o ponto de vista racional
com o estético. Ao caracterizar o introvertido como apaixo
nado e o extrovertido como intelectual, e óbvio que considera
ambos os tipos pelo aspecto inconsciente, ou seja, percebe-os
através do seu inconsciente. Observa e conhece intuitivamen
te, o que sempre acontece, em maior ou menor grau, com
todo o espírito prático e conhecedor dos homens. Por mais
certo e profundo que semelhante critério possa porventura
ser, estará sujeito, entretanto, a uma limitação muito espe
cial: não toma em consideração a realidade efetiva do obser
vado, ao avaliar apenas com base na sua imagem inconscien
te, em vez de sua aparência concreta. Essa insuficiência de
critério é inerente, de modo geral, à intuição e, assim, aque
le que lhe dê sempre a razão manter-se-á num estado de
tensão a respeito dela e só de má vontade lhe concederá o
direito à existência, embora cm certos casos tenha de reco
nhecer a exatidão objetiva da intuição. Dessa maneira, as
formulações de J o r d a n , apreciadas no seu conjunto, corres
pondem à realidade, mas não à realidade tal como os tipos
racionais a entendem c sim à sua realidade inconsciente.
Essas circunstâncias, naturalmente, são bastante propícias a
causar confusão no juízo sobre o observado e a dificultar a
compreensão do observado, ft inútil, nesta questão, discu
tir sobre a nomenclatura e o acertado é limitarmo-nos exclu
sivamente aos fatos concretos da diversidade antagônica ob
servável. Se eu, de acordo corn o meu próprio método, me
exprimo de maneira completamente diversa de J o r d a n , coin
cidimos, porém, na classificação do observado (com certas
discrepàncias).
Antes de passarmos ao exame da tipologia de J o r d a n ,
segundo o material de observação apresentado, gostaria de
reverter, sucintamente, ao terceiro tipo por ele apresentado,
o "intermediate”. Como vimos, J o r d a n incluiu nele, por uma
parte, os completamente equilibrados e, por outra, os dese
quilibrados. Não será ocioso recordar, neste ponto, a clas
sificação da escola valentiniana: o homem htlico, ao qual es
tão subordinados o psíquico e o pneumático. O homem hílico, segundo a sua definição, equivale ao tipo perceptivo,
quer dizer, ao tipo dc homem cujas determinações dominan
tes são dadas e encontram-se nos sentidos, na percepção sen
sível. O tipo perceptivo não tem pensamento c sentimento
O PROBLEM A DOS TIPOS NO CONHECIMENTO DO H O M E M
189
diferenciados, mas a sua sensibilidade está bastante desen
volvida. Como se sabe, isso acontece também no primitivo.
Ora, a sensibilidade instintiva do primitivo está emparelhada
com a espontaneidade psíquica. O espiritual, os pensamen
tos, acontecem-lhe, por assim dizer. Não é ele quem os faz
ou os elabora e cogita, pois para isso lhe faltam as necessárias
faculdades, mas tombam sobre ele e, inclusive, aparecem-lhe
por alucinação. Deve-se classificar essa mentalidade de
intuitiva, pois a intuição corresponde à percepção instintiva
da aparição de um conteúdo psíquico. Enquanto no pri
mitivo a sensibilidade é função psicológica de importância
capital, a intuição c a menos destacada função compensadora.
Num mais elevado grau de civilização, em que numas pes
soas é o pensamento que está mais ou menos diferenciado
e noutras é o sentimento, não são poucas aquelas cni que
a intuição está bastante desenvolvida, servindo-lhes de fun
ção básica determinante. Daí resulta o tipo intuitivo. Creio,
portanto, que o grupo intermédio de J o r d a n tem de reduzir-se ao tipo perceptivo e intuitivo.
2.
Exposição Especial e Crítica dos Tipos de Jordan
No que diz respeito ao aspecto geral de ambos os tipos,
J o r d a n salientou (pág. 17) que o tipo menos emocional re
vela personalidades muito mais destacadas ou marcantes do
que o tipo emocional. Esta afirmação é devida ao fato de
J o r d a n identificar o tipo ativo de homem com o menos emo
cional, o que em minha opinião é inadmissível. Pondo de
parte esse erro, é certo, naturalmente, que o menos emo
cional 0 1 1 extrovertido, como diríamos, comporta-se de maneira muito mais ostensiva que o emocional ou introvertido.
a)
A Mulher Introvertida ÇThe More Impassioned Woman”)
J o r d a n analisou em primeiro lugar o caráter da mulher
introvertida. Passo a reproduzir, seguidamente, os princi
pais pontos da sua descrição: modos suaves e tranqüilos,
caráter não fácil de decifrar, ocasionalmente crítico e até sar
cástico; conquanto o mau-humor se perceba nela, às vezes,
de maneira bastante evidente, não é, porém, caprichosa, nem
mostra desassossego, nem é intratável ou "censorious’’ (“dada
190
TIPOS PSICOLÓGICOS
à censura", traduziríamos), nem amiga de provocar balbúr
dia. Irradia tranqüilidade à sua volta c, inconscientemente,
consola e apazigua. Mas sob essa camada superficial o afeto
c a paixão dormitam. Sua natureza sentimental amadurece
lentamente. Com a idade, o seu caráter ganha em sedução.
É "simpática”* quer dizer, compartilha os sentimentos e vi
vências dos outros. As piores características femininas estão
incluídas neste tipo. São as madrastas mais severas. Mas
também são, sem dúvida, as mães e esposas mais amantes.
Contudo, suas paixões e afetos são tão poderosos que domi
nam a razão. Amam demais c são também capazes dc odiar
excessivamente. Os ciúmes podem convertê-las em feras.
Quando odeiam os enteados, são capazes de martirizá-los fi
sicamente até a morte. Onde a maldade não impera, a pró
pria moralidade c um sentimento profundo que segue seu
rumo próprio e independente, nem sempre se coadunando
com os pontos de vista convencionais da moral» E não se
gue esse rumo por imitação ou submissão, nem muito me
nos com mira numa recompensa, nesta vida ou na outra. Só
nas relações íntimas desenvolve todas as suas virtudes e de
feitos. É nesse âmbito restrito que manifesta as excelên
cias do seu coração, suas preocupações e alegrias, mas tam
bém suas paixões e fraquezas, como a natureza irreconciliá
vel, sua obstinação, cólera, ciúmes, até sua libertinagem.
Obedece à influencia do momento e é pequena a sua capa
cidade para pensar no bem-estar dos ausentes. Pode esque
cer facilmente os outros e o tempo que deveria dedicar-lhes.
Quando está dominada por um afeto, a sua conduta não se
pauta por qualquer imitação, dando ao seu comportamento
e linguagem uma evidente modificação, em concordância com
a própria alteração verificada em seus pensamentos e sen
timentos. Nas relações sociais, costuma permanecer, nos mais
diversos ambientes, sempre igual a si própria. Não costu
ma ter grandes exigências na vida doméstica, nem na social,
conformando-se facilmente com o que tiver. Manifesta es
pontaneamente a sua opinião de aprovação, conformidade ou
louvor. Sabe tranqüilizar e animar. Participa, com os seus
sentimentos, na vida de todos os seres débeis, sejam bípedes
ou quadrúpedes. “Ascende ao mais alto e desce ao mais
baixo, é irmã e companheira dc jogo de toda a natureza.”
Suas opiniões são benevolentes e tolerantes. Quando lê. faz
o possível por penetrar nos mais recônditos pensamentos e
O PROBLEM A DOS TIPOS NO CONHECIMENTO DO H O M E M
191
mergulhar nos mais profundos sentimentos do livro. Por
isso costuma danificar os livros com frases sublinhadas, no
tas à margem e muitas vezes relè-os. *
Na descrição acima não c difícil reconhecer o caráter
introvertido. Mas a descrição é, num certo sentido, unila
teral, ao considerar principalmente o aspecto do sentimento,
sem pôr em relevo a característica a que eu, justamente, con
cedo um especial valor, ou seja, a vida íntima consciente.
J o r d a n afirma, acentadamcnte, que a mulher introvertida é
“contemplativa”, mas sem entrar em maiores detalhes. A
sua descrição confirma, em meu entender, as considerações
que teci em torno do seu método de observação. Vê prin
cipalmente o comportamento exterior, que obedece à cons
telação do sentimento e às manifestações da paixão, mas
não penetra na essência da consciência própria desse tipo.
Não assinala, portanto, o fato da vida intima representar um
papel decisivo na psicologia consciente desse tipo. Por que,
por exemplo, a mulher introvertida se dedica h leitura com
toda a atenção? Porque ama, sobretudo, a compreensão e
a apreensão dos pensamentos. Por que é tranqüila e tran
quilizadora? Porque retém seus sentimentos regularmente e
fá-los agir sobre seus pensamentos, em ve/, de com eles mo
lestar outras pessoas. A sua moralidade inconvcncional tem
raízes na profunda reflexão e nos íntimos pensamentos con
vincentes. O encanto de seu caráter tranqüilo e compreen
sivo baseia-se não só numa propensão serena, mas também no
fato de com ela poder-se falar em termos razoáveis e coe
rentes, e de ser capaz de apreciar o argumento de seu inter
locutor. Não faz interrupções intempestivas sem que as suas
opiniões não estejam acompanhadas de pensamentos e senti
mentos expressos, que se mantêm, contudo, c não são derru
bados pela argumentação contrária.
Esta ordem tão sólida e bem disposta dos conteúdos psí
quicos conscientes tem de enfrentar uma vida afetiva caótica
e apaixonada, da qual a mulher introvertida, pelo menos em
seu .aspecto pessoal, costuma estar consciente e que receia
porque a conhece. Reflete e cogita sobre si própria, sendo
por isso comedida em relação ao exterior, podendo conhecer
e reconhecer o alheio sem eclodir em aplausos ou em censuras.
4
Loc. cif., págs. 17 c segs.
192
TIPOS PSICOLÓGICOS
Mas como a sua vida afetiva prejudica as suas boas qualida
des, faz o possível por repelir os seus afetos e instintos, mas
não pode impor-se-lhes corno gostaria. Tão lógica e perfei
tamente estruturada como está sua consciência, seus afetos
são elementares, confusos e irreprimíveis. Falta-lhes a ver
dadeira nota ‘humana, são desproporcionados, irracionais, um
fenômeno da natureza que transgride a ordem humana. São
destituídas de um fundo palpável, um propósito. É por isso
que, em certos casos, podem ser simplesmente demolidoras,
uma torrente caudalosa que não busca nem evita a destrui
ção, inconsiderada, necessária, fiel à sua própria lei, um pro
cesso que se realiza em si mesmo. Suas boas qualidades de
rivam do fato do pensamento de uma concepção tolerante
ou benevolente ter conseguido influir e atrair uma parte da
vida instintiva, mas sem conseguir abrangê-la e transformá-la toda. A mulher introvertida conhece muito menos da sua
afetividade, de um modo global, em termos nitidamente
conscientes, do que dos seus pensamentos e sentimentos ra
cionais. É incapaz de abranger toda a sua afetividade en
quanto puder dispor de concepções aplicáveis. A afetivida
de, portanto, é nela menos ágil que os conteúdos mentais e,
de certa maneira, é de uma fluência tenaz, de uma inércia
especial, do que resulta ser este tipo de mulher dificilmente
suscetível de transformação, ser perseverante, uniforme, e
ainda de uma resistência teimosa e irracional a ser influen
ciada naquelas coisas que respeitem à sua afetividade.
Estas reflexões levam-nos a compreender por que o juí
zo sobre a mulher introvertida, exclusivamente baseado no
ponto de vista da afetividade, é incompleto e injusto, tanto
no bom como 1 1 0 mau sentido. O fato de J o r d a n ' encontrar
as piores características femininas entre as introvertidas re
sulta, em minha opinião, dele dar uma excessiva importância
à afetividade, como se a fonte exclusiva do mal fosse a pai
xão. Pode-se martirizar uma criança de outros modos além
do físico. E, pelo contrário, o grande caudal amoroso das
mulheres introvertidas não é, de maneira alguma, uma coisa
propriamente sua, mas, com muito maior freqüência, o esta
rem possuídas e envoltas nele sem que o possam remediar,
até que se apresente uma ocasião favorável e, ante o pasmo
do respectivo parceiro, caírem então, subitamente, numa frie
za manifesta e inesperada. A vida afetiva da pessoa intro
vertida é, sem dúvida alguma, o seu ponto fraco e não é
O PROBLEMA DOS TIPOS NO CONHECIMENTO DO H O M EM
193
algo em que possamos confiar inteiramente. Engana-se a si
própria a seu respeito e engana ou desengana os demais,
quando se entregam à sua afetividade de um modo exclusi
vista deinais. No espírito introvertido podemos depositar
maior confiança, por scr mais adaptável. Mas o seu afeto
é de uma natureza excessivamente indomável.
b)
A Mulher Extrovertida (‘'The Less Impassioned W om an')
Vejamos a descrição que J o r d a n nos faz da “less impas
sioned woman” (a mulher menos apaixonada). Eliminarei
tudo quanto o autor aditou no tocante á atividade, pois essa
mistura só serviria para um conhecimento menos adequado
do caráter típico. Assim, quando se trate de uma certa de
senvoltura da extrovertida, não está em causa um elemento
de atividade, de eficiência ativa, mas, tão-somente, a mobi
lidade dos processos atuantes.
Sobre a mulher extrovertida escreveu J o r d a n : uma cer
ta desenvoltura e oportunismo, mais do que perseverança c
conseqüência. Em sua vida acumulam-se, regularmente, inú
meras coisas'insignificantes e secundárias. Nisto superam o
próprio Lorde Beaconsficld, que dizia não serem as coisas
insignificantes assim tão insignificantes e as coisas importan
tes não muito importantes. Insiste em afirmar, com compla
cência — como já fazia sua avó e como o farão seus netos —
que os homens e as coisas, de modo geral, estão cada vez
piores. Está- convencida de que nada sairia bem se ela não
estivesse de olho em tudo. Revela freqüentemente a sua uti
lidade* nos movimentos sociais. O esbanjamento de energias
nas limpezas caseiras constitui a finalidade vital e exclusiva
para muitas. Com freqüência, nenhuma idéia, paixão, re
pouso c defeito nelas se manifesta. O seu desenvolvimento
afetivo alcança rapidamente a maturidade. Aos 18 anos é
quase tão razoável quanto aos 28 ou aos 48. Seu campo de
visão espiritual não é profundo nem amplo, mas é claro desde
o primeiro instante. Sc estiver bem dotada, guindar-se-á
a uma posição preeminente. Na sociedade manifesta bons
sentimentos e com todos é generosa c acolhedora. Faz apre
ciações críticas sobre todos e esquece que ela própria é
criticada. É solícita e prestimosa. Não conhece paixões pro
fundas. Para ela, o amor é preferência, o ódio apenas uma
194
TIPOS PSICOLÓGICOS
aversão c o ciúme simples manifestação de orgulho ferido.
Seus entusiasmos são "sol de pouca duração". Sente maior
deleite na beleza da poesia que em seu pathos. Sua fé e
sua incredulidade são mais íntegras do que robustas. Não
tem verdadeiras convicções, mas também não abriga propó
sitos malévolos. Não crê, supõe. Não é incrédula, não sabe.
Não investiga nem duvida. Nas questões importantes guia-se
pela autoridade, nas coisas de somenos chega a conclusões
precipitadas. No seu microcosmos, tudo está ao contrário do
que devia ser, mas no grande mundo acha que tudo está
bem. Resiste, instintivamente, a converter cm prática as con
clusões racionais. Ein casa, manifesta um caráter comple
tamente distinto do que mostra em sociedade. No matrimô
nio, inclui substancialmente a ambição, o gosto de mudan
ça, ou então a obediência aos hábitos tradicionais, o desejo
de estabelecer uma vida numa "base sólida” ou alcançar
uma esfera de influência mais ampla. Se o seu marido per
tence ao tipo "impassioncd” quer aos filhos mais do que a
ela. Tudo de desagradável lhe acontece no âmbito familiar.
Entrega-sc a incoerentes votos de censura. É impossível pre
ver, por um instante sequer, quando "vai fazer bom tem
po”. Não sc analisa nem exerce a autocrítica. Se alguma vez
se lhe recriminar por suas constantes críticas e censuras, assombra-se e mostra-se ofendida, jurando que assim procede
com as melhores intenções deste mundo, mas que há pes
soas que não sabem o que lhes convém. Frocura ser útil
com a sua família de um modo totalmente diverso do que
usa com as pessoas estranhas. O círculo doméstico deve
estar sempre a postos, para que o mundo possa vê-lo em
qualquer ocasião. A sociedade tem de ser ajudada, para
que seja próspera. £ preciso causar boa impressão nas clas
ses elevadas e manter as inferiores na devida distância. A
própria casa é o se\i inverno, a sociedade o seu verão. A
metamorfose opera-se assim que chega uma visita.
Não sente a menor inclinação para a ascese, pois sua
respeitabilidade prescinde de semelhante coisa. Gosta de
mudanças, movimento e diversões. Pode começar o dia na
igreja e acabá-lo na ópera cômica. As relações sociais fa
zem suas delícias. Nelas encontra tudo: trabalho e felici
dade. Crè na sociedade, e a sociedade crô nela. Seus sen
timentos são pouco influenciados pelos preconceitos e é “de
cente” por hábito. Ê propensa à imitação e escolhe os me-
O PROBLEM A DOS TIPOS NO CONHECIMENTO DO H O M E M
195
lhores modelos, mas não dá contas sobre os detalhes. Os
livros qué lò devem estar cheios de vida c de ação em seus
personagens. 5
Esse conhecida tipo de mulher, que J ou d a n classifica de
"less impassioned”, é extrovertido, sem dúvida. Todo o seu
comportamento é uma alusão constante ao tipo que, precisa
mente por sua índole específica, se designa como extroverti
do. A constante atividade judicativa, que nunca se baseia nu
ma verdadeira reflexão, é a extroversão de impressões fugidias,
que nada têm a ver com os pensamentos genuínos. Ocorre-me
um gracioso aforismo que li algures: ‘ Ê tão difícil pensar...
que a maioria dá m i tenças!" A reflexão, a meditação* exi
gem tempo, sobretudo. Por isso, a pessoa que medita não tem
oportunidade de emitir constantemente seus juízos e opiniões.
A incoerência e a inconsequência judicativa, sua sujeição ã
tradição e à autoridade, revelam à saciedade uma falta de
reflexão própria. Evidenciam também um defeito, nessa fal
ta de reflexão própria, que é traduzido pela ausência de au
tocrítica e de independência. Na verdade, a carência de vida
espiritual íntima encontra uma expressão muito mais nitida
neste tipo que no introvertido, segundo u descrição preccdente. De acordo com a descrição que no momento nos ocupa,
haveria que deduzir uma falha tão grande ou maior ainda de
afetividade, pois esta é superficial, de pouco calado, quase
falsa, visto que o propósito a ela vinculado, ou que nela se
denuncia sempre, priva de qualquer valor a própria tendên
cia afetiva. Estou inclinado a acreditar, porém, que o autor
rebaixou tanto neste caso como ressaltou no anterior. Ape
sar do reconhecimento ocasional de boas qualidades, o tipo
resultou, contudo, em seu conjunto, bastante sofrível.
Acredito, neste caso, numa ccrta prevenção por parte do
autor. Hasta a má experiência pessoal com um ou com vá
rios representantes de um determinado tipo para que se
aposse de nós uma prevenção inevitável perante casos pare
cidos. Não se pode esquecer que a compreensão da m u
lher introvertida se baseia numa adaptação exata dos seus
conteúdos mentais ao pensamento geral, ao passo que a afetindade da mulher extrovertida possui uma certa mobilida
de e superficialidade, em virtude da sua adaptação à vida
5
Loc. cit.,
págs. 9 o
sogs.
196
TIPOS PSICOLÓGICOS
geral da sociedade humana. Trata-se, neste caso, de uma
afetividade socialmente diferenciada, dc indiscutível vali
dade geral, que inclusive contrasta vantajosamente com a
seriedade, a teimosia c a paixão obstinada do afeto intro
vertido. A afetividade diferenciada apagou o caótico do
pathos, convertendo-se numa função disponível e adaptável,
por certo à custa da vida íntima espiritual, que brilha por
sua total ausência. Mas nem por isso deixa de existir no
inconsciente c de uma forma que corresponde à paixão intro
vertida, isto é, num estado dc germinação ou latência. Esse
estado caracteriza-se pelo infantilismo e arcaísmo. No in
consciente, o espírito por desenvolver incute à tendência afe
tiva conteúdos c motivos secretos que não deixam de im
pressionar o observador crítico, embora passem despercebi
dos ao indivíduo isento de capacidade crítica. Devido à
desagradável impressão que a percepção de mal disfarçados
motivos egoístas produz no observador, esquecem-se com de
masiada rapidez a efetividade e a utilidade adaptada das ten
dências exibidas. Tudo o que é fácil, o que é facultativo,
ponderado, inofensivo e superficial na vida parece desapare
cer quando não existem afetos diferenciados. A pessoa sen
tir-se-ia asfixiar 1 1 0 pathos interminável ou no vazio da pai
xão reprimida. Se o indivíduo é, principalmente, quem per
cebe a função social do introvertido, por seu lado o extro
vertido estimula a vida de sociedade, que também tem direi
to a existir. Ê por isso que o indivíduo necessita da extro
versão, que é, sobretudo, a ponte para estabelecer comuni
cação com o próximo. A exteriorização dos afetos gera, co
mo se sabe, um efeito bastante sugestivo, ao passo que o
mental só dc maneira mediata, após uma árdua interpretação,
atinge e desenvolve sua completa efetividade. Os afetos que
mais convêm à função social não devem ser profundos, em
absoluto, pois tio contrário instigam a paixão dos demais.
Ora, a paixão perturba a vida e a boa saúde social. Assim,
o espírito adaptado e diferenciado do introvertido não é pro
fundo, e sim mais extenso, razão por que não perturba nem
excita, pois, ao contrário, é razoável e tranqüilizador. Mas
assim como o introvertido chega a ser perturbador pela vio
lência da sua paixão, o extrovertido gera a excitação pelo seu
pensar e sentir semiconscientes, muitas vezes sob a forma
de opiniões irrefletidas e despidas de tato, que afligem o
próximo de um modo incoerente e implacável. Se reunir-
O PROBLEM A DOS TIPOS NO CONHECIMENTO DO H O M E M
197
mos todos esses juízos e tentarmos construir com eles, sinte
ticamente, uma psicologia, obteremos, para começo de con
versa, uma concepção básica inteiramente animal, que em bar
barismo irremediável, rudeza e imbecilidade não deixa atrás,
com certeza, a mortífera atividade do introvertido. Por isso
não posso concordar com a afirmação de J o r d a n , de que os
piores caracteres encontram-se entre as naturezas introver
tidas. Não há menos maldade, nem menos perversidade radi
cal entre os extrovertidos. Se a paixão introvertida se mani
festa em acontecimentos rudes, a malignidade do pensar in
consciente comete atos de infâmia na alma da vítima. Não
sei o que será pior. A desvantagem do primeiro caso con
siste no fato de ser visível, ao passo que a maldade intencio
nal do segundo se esconde sob o manto de um comporta
mento aceitável. Quero sublinhar, neste ponto, a diligência
social deste último tipo, sua participação ativa no bem-estar
do próximo, assim como a sua notória tcndôncia para pro
porcionar alegria aos outros. Na maioria dos casos, o intro
vertido só possui essa qualidade na fantasia. Os afetos di
ferenciados tem, além disso, a vantagem da elegância, da bela
forma. Difundem uma atmosfera estética e benéfica. H á uma
surpreendente quantidade de extrovertidos que praticam uma
arte (a música, geralmente), menos por estarem especial
mente dotados para ela do que por assim poderem servir a
propósitos sociais. Também não se pode dizer que a mania
de criticar tenha sempre um caráter desagradável e sem
valor. Com grande freqüência, reduz-se a uma tendência edu
cadora adaptada, que faz muito bem. Também não cons
titui sempre um mal a subordinação de opiniões, pois, na
verdade, poderá contribuir em muitos casos para a repres
são de extravagâncias e exageros perniciosos, que nenhum
bem acarretam â vida e à saúde sociais. Seria totalmente
injustificado pretender afirmar que, sol» qualquer ponto de
vista, um dos tipos seja mais valioso que o outro. Os tipos
completam-se mutuamente e da diversidade específica a cada
um deles resulta, precisamente, aquela medida de tensão
de que o indivíduo e a sociedade' precisam para a conserva
ção da vida.
c)
O Homem Extrovertido (“The Less Impassioned Man”)
Sobre o homem extrovertido, assim se pronunciou'J o r d a n :
imperscrutável e indefinido em sua disposição, tendência pa
198
TIPOS PSICOLÓGICOS
ra o capricho e casmurrice, propensão excitável, costuma ser
fácil de descontentar c dc fazer críticas, julgando tudo e to
dos, sempre depreciativamente, mas nunca deixando dc es
tar satisfeito consigo próprio. Embora seus juízos sejam
amiúde errados e seus projetos fracassem, tem neles uma
confiança ilimitada. Dele poderíamos dizer o que Sydney
Smith disse a respeito dc um famoso estadista do seu tempo:
“A todo instante estava disposto a tomar o comando da es
quadra do Canal ou a amputar uma perna, se fizesse falta”.
Para tudo o que acontece tem sua fórmula: ou a coisa não é
certa... ou e coisa que já se sabia há muito tempo. No
seu firmamento não há lugar para dois sóis. Se houver ou
tro, além dele, é um mártir. Ê precoce. Gosta de adminis
tração e pode ser de imensa utilidade para a sociedade. Se
pertence a uma organização de beneficência, interessa-se tan
to na escolha de uma lavadeira como na eleição de um dire*
tro, além dele. é um mártir, Ê precoce. Gosta dc adminisApresenta-se nela com toda a confiança que deposita em si
mesmo e na sua perseverança. Está sempre disposto a rea
lizar experiências, pois delas se vale. Prefere ser o presi
dente conhecido de uma comissão dc três membros do que
o benfeitor anónimo dc todo um povo. Ao que estiver mo
destamente dotado não lhe sobrará importância, dc maneira
alguma. Se está muito atarefado, convencer-se-á de que é
enérgico. Se bate um papo, acrcdita-se um talento para a
oratória.
Raramente lhe ocorrem novas idéias ou abre novos ca
minhos, mas é grande a sua agilidade e rapidez para imitar,
adotar, aplicar e pôr cm prática. Por inclinação, cinge-se
ao estabelecido e aceito pela generalidade, no tocante a con
vicções religiosas e políticas. Em certas ocasiões, inclina-se para a admiração de sua própria ousadia, a respeito de
idéias heréticas. Não é raro que o seu ideal seja tão ele
vado c vigoroso que nada possa impedir sua conversão numa
ampla c justa concepção da vida. Sua existência caracteriza-se, de modo geral, pela moralidade, veracidade c princípios
ideais, mas, por vezes, fica em dificuldades por causa da
sua atração pelos efeitos imediatos. Quando, por exemplo,
numa reunião pública está casualmente ocioso, quer dizer,
quando nada tem que propor, ou que apoiar, ou nada sobre
que pedir contas ou a que se opor, é capaz de levantar-se
para pedir que se feche uma janela porque há corrente de
O PROBLEM A DOS TIPOS NO CONHECIMENTO DO H O M E M
199
ar, ou ainda melhor: que se abra para que entre mais ar.
Pois necessita, para viver, tanto de ar como de chamar a
atenção. Está sempre disposto a fazer o que ninguém lhe
pediu que fizesse. Está convencido de que as pessoas o con
sideram ta] como ele deseja ver-se considerado, isto é, como
pessoa que se desvela pelo bem do próximo. Faz que as
outras pessoas lhe fiquem obrigadas, pelo que não deixará,
mais cedo ou mais tarde, de receber uma compensação. £
capaz de emocionar pela palavra, sem que ele próprio se
emocione. Investiga prontamente os desejos e opiniões dos
demais. Está sempre prevenido ante o perigo que ameaça
e sabe desvencilhar-se e tratar habilmente com o adversário.
Tem sempre projetos e exibe ostensivamente uma diligencia
sensacional. Tem que fazer o possível para agradar à socie
dade, de uma ou outra maneira, isto ti, pelo menos terá de
assombrá-la e, se não o conseguir, então é preciso tentar as
sustá-la ou fazer tremer. £ um redentor de profissão. E,
como redentor reconhecido, não deixa de agradecer. Por nós
próprios, nada podemos fazer concretamente... mas pode
mos crer neJe, dar graças a Deus por sua intercessão no nos
so caso e suplicar-lhe que nos dirija a palavra. A tranqüi
lidade fá-lo infeliz e jamais repousa tranqüilo. Depois de
um dia de trabalho, necessita de uma noitada excitante no
teatro, no concerto, na igreja, no restaurante, no clube, per
correndo as lojas, ou cm todos esses lugares. Se não puder
comparecer a uma reunião, perturba-a, pelo menos, com um
telegrama pedindo desculpa pela ausência. *
Nesta descrição, o tipo também está bastante nítido. Mas
ainda mais do que na descrição da mulher extrovertida e
apesar de reconhecer algumas coisas, é evidente o propósito
bem acentuado de uma desvalorização caricatural. Disso tem
a culpa, em parte, o falo de com tal método descritivo não
ser possível fazer justiça ao caráter extrovertido, desde o
momento em que, por assim dizer, não há possibilidade, com
os meios intelectuais, de projetar a luz. mais adequada sobre
o valor específico do extrovertido, o que com o introvertido
é muito mais fácil, já que sua racionalidade e motivação
conscientes podem exprimir-se por meios intelectuais, tanto
quanto sua paixão afetiva e os fatos que dela derivem. No
*
Loc. cli., págs. 26 t segs.
200
TIPOS PSICOLÓCICOS
extrovertido, pelo contrário, o valor supremo está na relação
com o objeto. Na minha opinião, ó a vida, única e exclusi
vamente, que dá ao extrovertido a razão que a crítica intelec
tual não pode conceder-lhe. Somente a vida realça e reco
nhece os seus valores. Pode-se comprovar, claro, que o ex
trovertido é socialmente útil, que é credor de grandes mé
ritos no que diz respeito ao progresso da sociedade humana,
etc. Mas uma análise de seus meios e motivos dará sempre
um resultado negativo, pois o valor supremo do extroverti
do não reside nele próprio, mas em sua relação mútua com
o objeto. A relação com o objeto é um desses imponderáveis
que a formulação intelectual jamais poderá apreender.
À crítica intelectual caberia, pelo menos, proceder anali
ticamente e projetar a máxima claridade sobre o observado,
com o acarrear dc motivos e propósitos. Mas isso dá origem
a um retrato que, para a psicologia do extrovertido, vale
tanto quanto uma caricatura e assim, aquele que acreditar,
por exemplo, que está adotando a atitude apropriada perante
o extrovertido, recorrendo a semelhantes descrições, será sur
preendido ao constatar aue apenas caricaturou a verdadeira
personalidade que era alvo dc sua descrição. Na verdade.,
essas concepções unilaterais constituem um obstáculo à adap
tação do extrovertido. Para que se lhe faça justiça, será
preciso eliminar por completo o especular a seu respeito,
do mesmo modo que o extrovertido só poderá adaptar-se con
venientemente ao introvertido se for capaz dc aceitar seus
conteúdos mentais, tal como eles são, prescindindo de sua
possível aplicação prática. A análise intelectual tem, pelo
menos, que atribuir ao extrovertido toda espécie dc pensa
mentos c intuitos premeditados, que realmente não existem
ainda, mas se aglomeram no fundo do inconsciente para
eventuais efeitos projetados. Ê verdade que o extrovertido,
quando nada tem que dizer pede que, pelo menos, se abra
ou feche uma janela. Mas, quem o nota? A quem surpreen
de como algo essencial? Só a quem procure esclarecer os mo
tivos e propósitos possíveis de semelhante ação, quer dizer,
quem reflete, pormenoriza c reconstrói, ao passo que para os
demais o pequeno rumor que isso produz fica abafado pelo
ruído geral da vida, sem que descubra motivos para ver ein
tal ação isto ou aquilo ou mais para la do que concretamente
se passou. Mas é desse modo, justamente, que se manifesta
a psicologia do extrovertido, ê algo que se integra na vida
O PROBLEMA. DOS TIPOS NO CONHECIMENTO DO H O M E M
201
cotidiana do homem e nada está subentendido nem transcen
de o simples evento. Só quem cogita vè mais além. . . e vê
destorcidamcnte — no que respeita à vida — ainda que veja
muito bem no que diz respeito ao fundo inconsciente do pen
samento do introvertido. Não vê o homem positivo, mas
apenas sua sombra. E a sombra dá razão ao juízo formu
lado, à custa do homem positivo consciente. Penso que se
ria conveniente, por motivos de compreensão, separar o ho
mem da sua sombra, o inconsciente, pois de outra maneira
o exame fica ameaçado de uma incomparável confusão de
conceitos. Apontam-se no homem muitas coisas que não
correspondem à sua psicologia consciente, mas que apenas
se vislumbram no seu inconsciente; isso leva-nos a atribuir-lhe, erroneamente, uma qualidade observada como se per
tencesse a um eti consciente. A vida e o destino assim se
conduzem, sem dúvida, mas não devia ser essa a maneira
de proceder do psicólogo, que procura, antes de mais nada,
o conhecimento da estrutura cia psique e deseja, sincera
mente, por outra parte, uma compreensão melhor entre os
homens — para o que deveria tentar a separação pura entre
o homem consciente e o inconsciente, pois somente pela con
jugação dos pontos de vista conscientes será possível chegar
ao esclarecimento e à compreensão, e jamais pela redução
a motivos inconscientes entrevistos, com luzes indiretas e
quartos de tom.
d)
O Homem Introvertido
Sobre o caráter do homem introvertido (“the more impassioncd and reflective man”), disse J o r d a n : Suas diver
sões não mudam de hora cm hora, seu amor a uma diversão
é de natureza genuína, não obedece à pura intranqüilidade
ou irrequictismo. Se ocupa um cargo público é porque pos
sui a capacidade apropriada, porque tem alguma ideia que
desejaria pôr em prática. Conseguido o seu objetivo e pron
ta a sua tarefa, deixa o cargo de bom grado, é capaz de re
conhecer o mérito alheio e prefere ver o seu assunto ir para
diante nas mãos de outro do que fracassar em suas próprias
mãos. Sobrestima facilmente os méritos de seus colabora
dores. Não é, nem pode ser, um maníaco da crítica. Evo
lui lentamente, é indeciso, não tem propensão alguma para
a liderança religiosa, nunca está seguro de si mesmo a ponto
de saber qual é o erro que o poderia fazer mandar o próximo
TIPOS PSICOLÓGICOS
20 2
para a fogueira. Se bem que não lhe falte coragem, não
põe toda a sua convicção numa verdade própria e infalível,
a ponto de se deixar matar por ela. Se possui dotes notáveis,
é exaltado pelos que o cercam, ao passo que o outro tipo
avança sozinho para as luzes da ribalta.7
Parece-me bastante eloqüente que no capítulo sobre o
homem introvertido de que sc trata, o autor não diga efe
tivamente mais do que acima reproduzo. Falta, sobretudo,
uma descrição da paixão, já que o tipo foi qualificado como
“impassioned’\ £ verdade que é preciso andar com cautcla
nas conjeturas diagnósticas — mas neste caso é tentadora a
suposição dc que o capitulo sobre o homem introvertido re
sultou tão fraco por razões puramente subjetivas. Depois da
descrição, tão injusta quanto circunstanciada, do tipo extro
vertido, seria de esperar um rigor semelhante na descrição
do tipo introvertido. Por que nos privou o autor dessa ri
gorosa descrição?
Se supuséssemos o caso do próprio Jo r d a n se incluir en
tre os introvertidos, seria compreensível que não desse com
facilidade uma descrição do género da que, por implacável
rigor, dedica ao tipo que lhe é antagônico. Ê eu não diria
4ue por falta de objetividade, mas por falta de conhecimento
dc sua própria sombra. Com que aspecto o introvertido apa
rece ante os olhos do seu tipo antagônico, é algo impossível
de ser conhecido ou imaginado pelo introvertido, a não scr
oue faça tal pedido ao próprio extrovertido para que este
Ine conte como o vê e correndo o risco de ser obrigado a
tomar algum desforço pessoal. Pois, na verdade, assim como
o extrovertido não se inclina a aceitar as características antes
aduzidas como imagem bem intencionada c certa do seu ca
ráter, também o introvertido não está disposto a aceitar a
descrição das suas características feita por um observador
crítico extrovertido. Uma seria tão desvalorizadora quanto
a outra. Com efeito, do mesmo modo que o introvertido, ao
pretender apreender o extrovertido, deixa-se completamente
ficar à margem, o extrovertido, pelo contrário, tentará com
preender a vida íntima mental do introvertido, segundo o
ponto de vista da exterioridade — acabando assim por ficar
tão à margem quanto o outro. O introvertido comete sem
pre o èrro de querer derivar a ação da psicologia subjetiva
7
L oc. cit., págs. 35 c segs.
O PROBLEMA DOS TTPOS NO CONHECIMENTO DO H O M E M
203
do extrovertido e, ao contrário, o extrovertido só pode con
ceber a vida íntima mental como uma conseqüência do cir
cunstâncias exteriores. Um processo abstrato de pensar pa
recerá, sem dúvida, ao extrovertido, uma fantasia, uma espé
cie dc quimera, enquanto não se concretize a relação objeti
va. F., efetivamente, as quimeras do pensamento introvertido
apenas são, com freqüência, isso mesmo: quimeras. Em
todo caso, haveria muito que dizer sobre o introvertido e
eu poderia oferecer uma imagem sua, um reflexo fiel da sua
sombra, tão completo e desfavorável quanto aquele com que
Jo r d a n nos brinda no capítulo anterior, relativamente ao ex
trovertido.
Parece-me importante a observação de Jo r d a n de que
a diversão do introvertido é dc “natureza genuína”. Tem de
fato o aspecto de ser uma peculiaridade importante do senti
mento introvertido.
genuína, c porque é por si mesma, pren
de suas raízes na mais funda natureza do homem, emerge, de
certo modo, de si própria como fim em si, não quer servir
a fins alheios, nem a isso se presta, e limita-se a cumprir os
compromissos consigo mesma. Isto obedece à espontanei
dade do fenômeno arcaico e natural, que não chegou ainda
ao extremo de render-se incondicionalmente às finalidades
práticas da civilização. Com ou sem razão, em todo caso,
sem ter em conta a razão ou sem-razão, a conveniência ou
inconveniência, o estado afetivo manifesta-se e impõe-se ao
sujeito, inclusive de modo inesperado e contra a sua vonta
de. Nada contém que permita inferir a motivação premedi
tada.
Não examinaremos aqui os demais capítulos do livro de
Cita ele personalidades históricas, o que dá lugar
a toda espécie de pontos de vista equivocados, que se ba
seiam no erro, já por nó§ acentuado, do autor fazer inter
ferir o critério do ativo e do passivo, misturando-o com os
demais critérios. Assim se chega, freqüentemente, à conclu
são de que uma personalidade ativa deve incluir-se no tipo
não-apaixonado e que, vice-versa, uma natureza apaixonada
há de ser sempre passiva ou contemplativa. Por minha parte,
procuro fugir a tal erro, eliminando simplesmente o motivo
da atividade como ponto de vista.
Mas pertence a Jo r d a n o mérito de nos ter dado pela
primeira vez (que eu saiba) uma descrição caracteroüógica
relativamente certa dos tipos emocionais.
Jo r d a n .
V
O PROBLEMA DOS TIPOS
NA CRIAÇÃO POÉTICA
O "Prometeu c Epimeteu” de Cari Spitteler
1.
Introdução aos Tipos de Spitteler
e , e m c o n j u n t o com os temas que a complexidade da vida
afetiva oferccc ao poeta, o problema dos tipos não represen
tasse também um papel importante, seria isso uma prova da
sua total inexistência. Mas já vimos, a respeito de S c h i l l k r ,
como esse problema apaixonava tanto o poeta quanto o pen
sador que nele coexistia. Dedicaremos, portanto, o presente
capítulo, ao exame de uma criação poética que se baseia,
quase exclusivamente, como seu motivo, no problema dos ti
pos. Refiro-inc ao problema do Prometeu e Epimeteu, de
C a i u . S p i t t f . l e b , obra publicada pela primeira vez cm 1881.
S
De maneira alguma estaria cm minhas cogitações con
siderar, em princípio, a Prometeu como o que em seu pen
samento se antecipa, como o introvertido, t* a Epimeteu, o
atuante que só sai a campo com seu pensamento em último
recurso, como o extrovertido. No conflito entre essas duas
figuras trata-se, em primeiro plano, do duelo entre a linha
evolutiva introvertida e a extrovertida, dentro do mesmo
indivíduo, mas que a exposição poética materializou em duas
figuras independentes, com seus destinos típicos.
É inegável que Prometeu revela evidentes traços carac
terísticos da introversão. Oferece-nos a imagem dc um intro
vertido fiel ao seu mundo interior, à sua alma. Exprime
fielmente a sua natureza nas seguintes palavras com que
O PROBLEM A DOS TIPOS NA CRIAÇÃO POÉTICA
205
responde ao anjo: 1 “Mas nada posso decidir que seja hos
til ao semblante de minha alma, pois, atenta bem, ela é
minha senhora e é meu deus na alegria c na dor, também,
e tudo o que sou a ela devo".
“E por isso quero compartilhar com ela minha glória e,
se assim tiver de ser, renunciar à glória em seu apogeu.*’
Assim, Prometeu entrega-se incondicionalmente à sua
alma, quer dizer, à função de relacionação com o mundo in
terior. A alma tem um caráter misterioso e metafisico, em
virtude dc sua relação com o inconsciente. Prometeu impri
me-lhe um significado absoluto, como senhora e guia, de
um modo tão incondicional quanto aquele como Epimeteu se
entrega ao mundo. Sacrifica o seu eu individual à alma, à
relação com o inconsciente, que é a matriz das imagens e
significados eternos, assim se afastando, ao faltar-lhe o con
trapeso da pessoa como ponto intermédio,2 da relação com
0 objeto exterior. Entregando-se à sua alma, Prometeu per
de toda a ligação com o mundo à sua volta, e, com ela, a liga
ção imprescindível com a realidade externa. Essa perda é
incompatível com a essência deste mundo. Por isso, repre
sentando evidentemente o governo deste mundo, aparece a
Prometeu um anjo, o que traduzido em termos psicológicos,
quer dizer: a imagem projetada de uma tendência orientada
no sentido da adaptação real e concreta. Nesta conformi
dade, o anjo diz a Prometeu:
“Assim acontecerá sc não te livrares da natureza injusta
de tua alma, e ficarás privado de muitos anos de prêmio e
3c felicidade para o teu coração, e de todos os frutos de
eu espírito multiforme.” E diz ainda mais: “Serás banido
no dia dc tua glória por culpa de tua alma, que não conhece
1 Deus, nem obedece
lei, nada sendo sagrado para a sua
altivez, nem na terra nem no céu”. 3
Como Prometeu está unilateralmente com a alma, todas
as tendências de adaptação ao mundo exterior são reprimi
das c acumulam-se no inconsciente. Daí resulta que, ao se-
1
p4g.
C arl
S f it t e l e r ,
Prometheus und Epimctheus,
Ie n a ,
1911,
9.
2 Cf. J u n g , D ie Beziehungen zwischen dem Ich und dem Unbe
wussten, entre outra- s.
s
S f itte le r ,
l-oc. e i l., p a g . 9 .
206
TIPOS PSICOLÓGICOS
rcm percebidas, apareçam como se não pertencessem à pró
pria personalidade e assim são projetadas. Isto representa
uma contradição, de certo modo, com o fato de também a
alma, de cujo lado Prometeu se coloca e que se acolhe total
mente, por assim dizer, no consciente, aparecer projetada.
Sendo a alma uma relação de função, tal como a pessoa, com
põe-se, de certo modo, de duas partes, uma que pertence ao
indivíduo c outra que corresponde ao objeto da relação, nes
te caso o inconsciente. De modo geral, a tendência é para
dar somente ao inconsciente — quando não se é adepto, pre
cisamente, da Filosofia de H a r t m a n n — a existência relativa
de um fator psicológico. Ora, baseando-nos cm razões pró
prias da teoria do conhecimento, não estamos, de modo al
gum, cm condições de aduzir algo de válido, por assim dizer,
sobre uma realidade objetiva do complexo fenomenal psico
lógico a que chamamos inconsciente, do mesmo modo que
nada poderemos aduzir de válido a respeito da essência das
coisas reais, para além das nossas faculdades psicológicas.
Mas, por motivos de experiência, devo mencionar o fato de
que os conteúdos do inconsciente, relacionados com a ati
vidade da nossa consciência, reclamam o mesmo direito à
realidade, graças à sua persistência e obstinação, que as coi
sas reais do mundo exterior, por incrível que isso possa
parecer a uma mentalidade orientada para o exterior. Não
se deve esquecer que sempre houve pessoas, e em grande
número, para quem os conteúdos do inconsciente possuem
um maior valor de realidade que as coisas tio mundo exterior.
O testemunho da história do espírito humano manifesta-se
favoravelmente a ambas as realidades. Com efeito, uma in
vestigação profunda da psique humana revela, de pronto,
uma influência da atividade consciente igualmente poderosa
de ambos os lados, de maneira que, psicologicamente, até
por motivos evidentemente empíricos, somos obrigados a con
siderar os conteúdos do inconsciente tão reais quanto as coi
sas do mundo exterior, embora ambas as realidades se con
tradigam e pareçam ser incompatíveis entre si. Mas seria
uma impertinência injustificável pretender sobrepor uma rea
lidade à outra. A teosofia e o espiritualismo são transgres
sões tão violentas quanto o materialismo. Bem ou mal, limitar-nos-emos à esfera da nossa faculdade psicológica. Gra
ças à sua realidade peculiar, temos de considerar como ob
jetos os conteúdos do inconsciente e com um direito tão legí-
O PROBLEM A DOS TIPOS NA CRIAÇÃO POÉTICA
207
limo quanto o de sc considerarem objetos as coisas do mun
do exterior. Ora, assim como a pessoa, enquanto relação,
está sempre condicionada pelo objeto exterior e, por conse
qüência, está tão ancorada, por assim dizer, na exterioridade
objetiva quanto o sujeito, também a alma, como relação com
o objeto interior, está representada pelo próprio objeto inte
rior, donde resulta que seja sempre, num certo sentido, dis
tinta do sujeito e, sendo distinta, é portanto perceptível co
mo tal. £ por isso que Prometeu a vé como algo completa
mente distinto do seu cu individual. Embora o homem pos
sa entregar-se inteiramente ao mundo exterior, este continua
sendo, contudo, um objeto distinto do homem. Do mesmo
modo, o mundo inconsciente das imagens comporta-se tam
bém como um objeto distinto do sujeito, ainda que se dè o
caso do homem se lhe entregar inteiramente.
Da mesma maneira que o mundo inconsciente das ima
gens míticas fala indiretamente, através da vivência da coisa
exterior a que o mundo exterior se entrega por completo,
assim também o mundo exterior real e seus requisitos falam
indiretamente ao que se entrega por completo à alma, pois
ninguém pode fugir a ambas as realidades. O que tende
para fora tem de viver o seu mito, o que tende para dentro
sonhará seu meio ambiente, a chamada vida real. Assim falou
a alma a Prometeu:
Deus sacrílego sou, que tc desvio para as sendas in
terditas, por escabrosas veredas. Mas tu não ouviras e as
sim te aconteceu por minhas palavras, e assim te privaram
da glória de teu nome e das venturas de tua vida, por mi
nha culpa.” *
Prometeu recusa o reino que o anjo lhe oferece, quer
dizer, rechaça a adaptação ao concreto, ao dado, porque em
troca se lhe exige a alma. Conquanto o sujeito, quer dizer,
Prometeu, seja a e natureza inteiramente humana, a alma ó
de essência bastante diversa. É demoníaca, pois o objeto
interior a que, como relação, está vinculada, nela transpa
rece, quer dizer, o inconsciente suprapessoal e coletivo. O
inconsciente, considerado como um plano inferior, de ordem
histórica, da psique, contém em forma concentrada toda a
série de engramas que, durante muito tempo, condiciona
ram a atual estrutura psíquica. Os engramas não são mais
TIPOS PSICOLÓGICOS
208
do que pistas funcionais indicadoras da maneira como, cm
termos médios e com que freqücncia e intensidade, a psi
que humana funcionou. Esses engramas funcionais apresen
tam-se como motivos mitológicos e imagens, tal como se en
contram, cm forma análoga ou muito semelhante, cm todos
os povos e tal como sc pode localizar, senv dificuldade, na
matéria inconsciente do homem moderno. Ê compreensível,
pois, que entre os conteúdos inconscientes apareçam traços
ou elementos inegavelmente animais, a par de figuras subli
mes que sempre acompanharam o homem ao longo da vida.
Trata-se de um mundo imagístico cujo âmbito ilimitado em
nada é inferior ao do mundo das coisas "reais". Assim co
mo para o homem que de maneira pessoal e total sc entrega
ao mundo, este sai ao seu encontro personificado num ente
querido e próximo, e o qual, se a dedicação suprema ao
objeto pessoal for para ele destino, apreciará a ambivalên
cia do mundo e da própria essência, também sai ao encontro
do outro tipo de homem uma personificação demoníaca do in
consciente, encarnando a totalidade, o extremismo c a am
bigüidade do mundo das imagens. Trata-se de fenômenos
limítrofes que excedem o plano médio e normal e que por
isso estão fora do alcance da mediania humana, que nada
sabe desses cruéis enigmas. Para ela não existem. Sempre
são poucos os que logram alcançar aquele limite do mundo
onde sua irnagem começa. Para quem se mantém sempre entre
as coordenadas da mediania, a alma possui um caráter hu
mano, não um caráter ambivalente, equívoco ou demoníaco,
assim como o próximo jamais lhe parece problemático. Só a
entrega total a um ou a outro suscita a sua ambigüidade.
A intuição de S p i t i l l e r apreendeu a imagem psíquica que
uma natureza mais inocente teria sobretudo sonhado.
Assim lemos: “E enquanto ele assim se conduz na im
pulsividade de seu zelo, uma estranha contração se desenha
na boca c no semblante dela, c suas pálpebras brilham con
tinuamente, abrindo e fechando muito depressa; por trás das
finas pestanas algo espreita e ameaça e escorre, semelhante
ao fogo que assolapadamente desliza para dentro de uma
casa, semelhante ao tigre que se encolhe e oculta no mato,
vislumbrando-se apenas entre a vegetação escura seu listrado
corpo amarelo”. 5
5
Loc.
c/f., pág. 25.
O PROBLEMA DOS TIPOS NA CRIAÇÃO POÉTICA
20 9
A linha da vida que Prometeu escolhe c, pois, sem dúvida
alguma, a introvertida, Sacrifica o presente e sua relação
com ele no altar de um futuro distante, cuja criação premeditav
Com Epimetcu ocorre inteiramente o oposto. Reconhece
que a sua inclinação o chama para o mundo e para o que
no mundo impera. Assim fala ao anjo: “Na verdade, essa
é, pois, minha ambição e atentai, minha alma está em vossas
mãos, e se vos apraz, dai-me uma consciência, dai-rne a sa
bedoria e ensinai-me toda a ciência que convenha". e Epimeteu não pode resistir à tentação de cumprir sua determi
nação própria, submetendo-se ao ponto de vista “sem alma”
Essa vinculação ao mundo tem sua imediata recompensa:
“E sucedeu que Epimeteu levantou-se, elástico, e perce
beu que era maior sua estatura, mais firme seu ânimo e mais
harmonioso todo o seu ser como uma peça, saudável o seu
sentimento, que estava pletórico de bem-estar. E assim vol
tou com passo firme pelo vale, ereto, como quem a nada se
esquiva, olhar franco e reto, como que possuído pela idéia
da própria exuberância.”
Como Prometeu disse, "vendeu sua alma livre por um
pouco de sabedoria". A alma fugiu-lhe (cm benefício de
seu irmão). Obedeceu à sua extroversão e, ao orientar-se
no sentido do objeto exterior, anulou-se nos anseios e espe
ranças do mundo, aparentemente, para sua grande vanta
gem imediata. Chegou à extroversão depois de ter vivido
com seu irmão, por muitos anos, na mais completa solidão,
como um extrovertido falsificado pela imitação do introver
tido.
Essa involuntária “simulation dans le caractère”
( P a u l h a n ) não é rara.
O seu desenvolvimento na orientatação do verdadeiro extrovertido e já dentro de sua esfera
pressupõe, por conseguinte, um progresso no sentido da “ver
dade” c mcrece a recompensa de que ó participante.
Enquanto Prometeu, obedecendo às tirânicas exigências
da alma, vê-se privado de todas as relações com o objeto
exterior e levará a cabo os mais cruéis sacrifícios, sempre a
serviço de sua alma, a Epimetcu é concedida uma defesa efi
caz contra o perigo que ameaça o extrovertido, que é a total
dispersão no objeto exterior. Essa defesa consiste na cons
ciência, apoiada nos “conceitos adequados” tradicionais, quer
o
14
Loc. cit., págs. 10 e seg.
TIPOS l*SiCüLÓCICOS
210
dizer, no apreciável patrimônio da arte dc viver legado pela
tradição, do qual a opinião pública faz o mesmo uso que o
juiz do código penal. Dessa maneira foi impedido Epimeteu
dc entregar-se ao objeto na medida em que Prometeu se en
trega à sua alma. Como, por sua parte, Prometeu volta as
costas ao mundo dos homens e à sua consciência codificada,
fica entregue à alma, que o domina cruelmente, c à sua apa
rente arbitrariedade, pagando o abandono do mundo com
enormes sofrimentos. Mas a prudente limitação de uma cons
ciência irrepreensível coloca uma venda nos olhos dc Epime
teu, de um modo tal que viverá cegamente o seu mito, sem
pre com o sentimento de bem agir, pois coincide sempre
com o que geralmente se espera dele e tem sempre êxito
ao cumprir o que é o desejo de todos. Assim há de ser o
rei, personificado por Epimeteu até o fim inglório e jamais,
até então, pelo sustentáculo do aplauso geral. Sua autocon
fiança c a justiça que a si próprio sc faz, a infalível convic
ção de que "está certo", seu indubitável agir esclarecido,
permitem reconhecer, sem dificuldade, o caráter descrito por
J o r d a n . Veja-se a descrição da visita de Epimeteu a Prome
teu doente, durante a qual o Ilei Epimeteu quer curar seu
sofredor irmão: "E, quando isso foi feito, apareceu o rei,
caminhando hesitante, apoiando-se num amigo e com pala
vras bem-intencionadas assim falou: — De todo o coração o
sinto, Prometeu, meu amado irmãol Mas tem coragem.
Olha, aqui te trago uma pomada que cura maravilhosamente
todos os males do mundo, quer o calor abrase ou o frio
paralise, üsa-o, pois, seja para teu refrigério ou teu castigo.
— E enquanto assim falava, pediu seu bastão, apanhou o ungüento e, com gestos protetores e graves, estendeu-o ao irmão,
que, ao ver o aspecto da pomada e sentir o seu cheiro, vol
tou a cabeça com repugnância. E quando o rei percebeu,
mudou o tom de voz e começou a gritar, pressagiando com
veemência: — Na verdade, pareces necessitar um grande
castigo, visto que não te chega o ensinamento que o destino
te deu. — E enquanto assim falou, retirou um espelho de
uma dobra da túnica e explicou tudo desde o princípio,
com grande nitidez, mostrando-se muito esclarecido e conhe
cedor de todos os seus defeitos". 7
7
Loc. cit.,
págs. 102 « sofi.
O PROBLEMA IX)S TIPOS N’A CIUAÇÃü POÉTICA
211
Esta cena ilustra cabalmente as palavras de J o r d a n :
“Socicty must be pleawd if possible; if it will not be plcascd, it
must be astonished; if it will neither be pleased nor ostonished,
it must be pestered and shocked". 6 Nesta cena encontramo-nos, pouco mais ou menos, com o mesmo clímax. No
Oriente, o rico proclama a sua dignidade só se apresentando
cm público apoiado em dois escravos. Epimcteu recorre a
essa pose, para causar impressão. A boa obra deve ser
acompanhada de admoestações e ensinamentos morais. E
se isto não produzir o desejado efeito, haverá pelo menos
que intimidar a vítima com a imagem de sua própria per
versidade. Pois, sobretudo, o que interessa ó fazer impres
são. Um provérbio americano diz que na América têm êxi
to duas espécies de homens: os que realmente são capazes c
os que conhecem todos os bluffs. Isto é, a aparência tem,
por vezes, tanto êxito quanto a verdadeira eficiência. Essa
característica do extrovertido apóia-se, dc preferência, no
aparenta. O introvertido quer impor-se e desse modo deita
a perder o seu próprio trabalho. Reunamos Prometeu e
Epimeteu numa só personalidade, e o resultado será um Epimeteu humano por fora c Prometeu por dentro, dc maneira
que ambas as tendências se hostilizarão mutuamente, dc um
modo constante, procurando cada uma delas conquistar o
eu cm definitivo.
2.
Analise Comparativa do "Prometeu” de Spltteler e do
"Prometeu” de Goetlie
Tem bastante interesse uma comparação entre esta con
cepção de Prometeu e aquela que de Prometeu nos oferece
G o k t iie .
Creio ter motivos suficientes para presumir que
G o e t i i e pertence mais ao tipo extrovertido que ao introverti
do, ao passo que incluo J o r d a n entre os do segundo tipo.
Uma prova cabal, quanto á exatidão dessa hipótese, só nos
poderia scr oferecida através de uma investigação e de uma
análise meticulosas e conscientes da própria biografia de
G o e t iie .
A minha suposição baseia-se em diversas impres-
»
luc. cit., pág. 3 1 . [Eru i D g lê s d o t e x t o : “Sc p o s s ív e l,
à s o c i e d a d e ; s e e s t a náo f i c a r s a t i s f e i t a , , d e v e - s ^ e s
p a n t á - l a ; s e não m o s t r a r u c m
a g r a d o uem e s p a u t o , d e v e s c r m o l e s
t a d a e c h o c a d a " . (N. do 1'.)]
deve-se
Jo r d a n ,
agm dor
TIPOS PSICOLÓGICOS
21 2
sõcs que não quero citar, para não expor elementos sem su
ficiente comprovação.
A disposição introvertida não tem por que coincidir, ne
cessariamente, com a figura de Prometeu. Com isto quero
dizer que a figura tradicional de Prometeu pode inteqjretar-se também de maneira diversa. A versão que encontramos,
por exemplo, no Protúgoras de P l a t ã o é distinta, aparecendo
ai Epimeteu e não Prometeu como o vivificador dos seres
recém-formados de fogo e terra. Nesse trecho, como no pró
prio mito, efetivamente, Prometeu é o mais rico dos dois em
ardis e estratagemas (de acordo com o gosto antigo). Duas
versões de G o e t i i e chegaram até nós. No fragmento de 1773,
Prometeu é o obstinado criador e modelador, livre em seus
atos, de divina semelhança, que despreza os deuses. Sua al
ma é Minerva, a filha de Zeus. A relação entre Prometeu
e Minerva é muito semelhante à do Prometeu de S p m E L E F .
com sua alma. Assim fala Prometeu a Minerva:
Desde o princípio foram tuas palavras, para mim,
[a luz do céu!
Era sempre como se minhalma consigo própria falasse
E a si própria se confiara,
De seus arcanos surgindo
A ressonância de inatas harmonias.
E era como se falasse uma divindade
Quando me imaginava falar eu próprio,
E quando com deuses imaginava falar
Era eu próprio quem falava.
E assim era contigo e comigo,
Os dois como um só, Ultimamente,
Eternamente teu, minha amada!
E mais adiante:
Tal como a suave luz crepuscular
Do sol que se despede
E além flutua e emerge
Sobre o tenebroso Cáucaso,
Mirdxalma envolvendo em paz e refrigério,
Ausente e Presente ao mesmo tem po...
Assim cresceram minhas forças,
A cada sopro de teu divino alento. 9
o
G o e t iie ,
PromethciLifragjncnt, Ed. Cotta, Vol. V II, pág. 2 0 ’
O PROBLEM A DOS TIPOS NA CRIAÇÃO POÉTICA
213
O Prometeu dc G o e t h e tambcm está na dependência
de sua alma. Ê grande a semelhança com a relação entre
o Prometeu de S p i t t e l e r e a sua alma, à qual dirige pala
vras como estas: “E embora me tenham despojado de tudo,
continuo sendo imensamente rico enquanto me restes tu e
me chames ‘meu amigo’ com teus doces lábios, e sobre mim
desça o teu olhar, em teu semblante gracioso e soberbo”. 10
Apesar da semelhança entre as duas figuras e sua relação
com a alma, existe entre elas, porém, uma diferença essen
cial: o Prometeu dc G o e t h e é criador e modelador, e Miner
va anima suas figuras de barro. O Prometeu de S p i t t e l e r
não 6 criador, mas paciente. Apenas sua alma é criadora,
mas de um criar oculto c misterioso. Assim, na despedida,
a alma diz: "E agora tenho de me separar de ti, pois penso
que me espera um trabalho grande, um trabalho formida
velmente árduo, c há muita urgência cm concluí-lo.” 11 Pa
rece que, em S p it t e l e r , c o m p e te
alma o trabalho criador
prometéico, enquanto o próprio Prometeu apenas sofre a
tortura da alma criadora. Mas o Prometeu de G o e t h e é ele
próprio o centro de atividade, agindo de maneira criadora,
em primeiro lugar, e em termos exclusivos, sendo essa força
criadora que lhe permite desafiar os deuses.
Quem veio em minha ajuda
Contra a arrogância dos titãs?
Quem me salvou da morte
E da escravidão?
Não foste tu próprio quem levaste tudo a bom termo
Aventurado c ardente coração? 12
Epimcteu, no fragmento goethiano, está escassamente re
tratado, em tudo inferior ao Prometeu, paladino do senti
mento coletivo, concebendo o serviço da alma como “obsti*
nação", apenas.
Estás só!
Tua teimosia ignora a delicia
«o
S p itte le h ,
11
Loc. cit.,
12
C o E T llE ,
loc. cit.,
pág.
pág.
25.
28.
loc. cit.,
pág.
213.
TIPOS PSICOLÓGICOS
211
De sentir, unidos como um todo,
Os deuses, tu, os de teu sangue,
E o mundo e o céu. 13
As indicações que o “Fragmento de Prometeu” goethiano
nos proporciona são demasiado escassas para, através delas,
conhecermos cabalmente o caráter de Epimeteu. Mas nas
características do Prometeu de G o e t iie nota-se uma diferen
ça significativa, ao compararmo-lo com o Prometeu de S p it
teler.
O primeiro cria c atua no mundo de dentro para
fora, situa no espaço as figuras por ele formadas e anima
das em sua alma, enche o mundo com as obras de sua cria
ção e é, ao mesmo tempo, mestre e educador do homem.
No Prometeu de S p it t e l e r , pelo contrário, tudo se refugia
numa esfera intimista, desaparecendo nas trevas da psique,
e ao mesmo tempo desaparece do mundo, desertando até
de sua terra natal para, de certo modo, ficar mais invisível
entre as gentes. Segundo o princípio compensador da nossa
psicologia analítica, a alma, ou seja, a personificação do in
consciente, deve cm tais casos desenvolver uma atividade
especial e preparar sua obra. Mas é, mesmo assim, uma em
presa invisível. Além do trecho citado, S p i t i e l e r oferece-nos
ainda uma descrição completa do processo de equivalência
que era de esperar que ocorresse. Encontramo-la no Pandorazwischenspiel, o “entreato de Pandora”.
Pandora, essa enigmática figura do mito de Prometeu,
é em SpirrELF.it a filha do deus que, se pusermos de lado
uma relação de profundíssima natureza, carece de outra re
lação com Prometeu. Esta versão baseia-se na história do
mito, segundo a qual a mulher que estabelece relações com
Prometeu é Pandora ou Palas Atenéia. O Prometeu mito
lógico tem sua relação psíquica com Pandora ou Atenéia, tal
como em G o e t h e . Mas, cm S p it t e l e r , nota-se uma impor
tante cisão que está, sem dúvida, assinalada já no mito his
tórico, e é aquela em que Prometeu-Pandora sofrem a in
fluência eontaminadora da analogia Héfaistos-Atenéia. Em
G o e t h e , deu-se a preferência á versão Prometeu-Atenéia. Em
S p it t e l e r , pelo contrário, foi retirado Prometeu da esfera
divina c deu-se-lhe alma própria. Mas sua essência divina
J3
Loc. c it., pág. 200.
O P RO BLEM A DOS TIPOS NA CRIAÇÃO POÉTICA
21 5
e svia mística relação original com Pandora são conservadas
como rcplica cósmica no Além celeste e atuam por si. As
coisas que acontecem no Além, são coisas que sucedem no
além da nossa consciência, quer dizer, no inconsciente. As
sim, o entreato <le Pandora é uma exposição do que ocorre
no inconsciente, durante os sofrimentos de Prometeu, enquan
to este desaparece do mundo e corta os últimos elos que
poderiam mantê-lo em contato com a humanidade, afundan
do-se em si próprio, na sua própria profundidade c seu úni
co contorno, seu único objeto, que é ele próprio. Contudo,
ele preserva a divina semelhança, pois, segundo a sua defi
nição, Deus é o ser que em todas as partes repousa em si pró
prio e sempre, e em toda parte constitui seu próprio objeto,
em virtude da sua onipresença. Naturalmente, Prometeu não
sente a sua divina semelhança. Sente-se incomensuravelmente infeliz. Depois que Epimeteu ultrajou sua dor, inicia se
o interlúdio no Além, naturalmente, 110 instante em q u e foi
reprimido, em Prometeu, todo o vínculo com o mundo, até a
sua eliminação. A experiência nos ensina que esses são os
momentos cm que se oferece aos conteúdos do inconsciente
a melhor oportunidade para adquirirem independência e vi
vacidade, até o ponto de serem capazes de impor-se violen
tamente í\ consciência.14 Portanto, no inconsciente refle
te-se o estado de Prometeu, do modo seguinte: “E na ma
nhã sombria do mesmo dia, caminhava, por deserto e silen
cioso campo, sobre todos os mundos, Deus, o criador de
toda a vida, em sua missão de recorrer o círculo maldito,
obedecendo à índole singular de sua enigmática e maligna
enfermidade”.
“Pois cm virtude dessa enfermidade não concluiria ja
mais essa sua tarefa de ronda, nem encontraria descanso no
caminho por seus pés percorrido, mas teria de rondar eter
namente, com passos iguais, dia a dia, ano a ano, os cam
pos silenciosos, com andar penoso, a cabeça dobrada, a fron
te enrugada e o semblante desfigurado, com os olhos sombrios
voltados sempre, sempre, para o centro do círculo.”
“E enquanto assim o fazia hoje, como todos os dias, ine
vitavelmente, com a aflição sua cabeça ainda mais se incli1' Cf. J c n g , Inhalt der Psychose, Wandlungen und Symbole der
Libido (nova edi^So, Symbole der Wandlung, 1952), Die Beziehungen
zwischen dem Ich und dem Unbewussten, etc.
216
TIPOS PSICOLÓCICOS
nava e seu passo era ainda mais penoso de fadiga, e a fonte
primitiva de sua vida parecia exausta e seca, após a noite
passada em vigília. E foi então que, através da noite e do
crepúsculo chegou Pandora, a mais jovem de suas filhas e
com passo hesitante aproximou-se, timidamente, do lugar sa
grado, desviando-se humildemente para um lado e saudando
com olhar tranqüilo, enquanto seus lábios interrogavam com
um reverente mutismo.” 16
Sem mais, é desde já significativo que Deus padeça a
enfermidade de Prometeu. Pois assim como Prometeu faz
afluir toda a libido de sua alma, toda a sua paixão, ao mais
íntimo do ser e se consagra de maneira única e exclusiva
ao serviço de sua alma, também Deus "faz a ronda" cm
torno do centro do mundo e em tal tarefa se esgota, tal como
Prometeu, que está a ponto de extinguir-se. Quer dizer que
a sua libido foi totalmente transfundida para o inconsciente,
onde uma equivalência será elaborada. Essa equivalência é
Pandora c a valiosa dádiva que oferece a seu pai é a que
desejaria entregar aos homens para refrigério de seus tor
mentos.
Se transferirmos o exemplo precedente para a esfera hu
mana de Prometeu, o seu significado será o seguinte: En
quanto Prometeu sofre um estado de semelhança divina, sua
alma prepara uma obra destinada a mitigar as dores da hu
manidade. Assim procurava sua alma ir ao encontro dos ho
mens. Mas a obra que realmente sua alma projeta e cria
não é igual à obra de Pandora. A valiosa dádiva de Pandora
é uma imagem inconsciente que representa simbolicamente
a verdadeira obra da alma ue Prometeu. Do texto deduz-se,
de maneira inequívoca, qual seja essa dádiva de excepcio
nal valor: um Deus-Redentor, uma renovação do sol. 16 Esse
profundo desejo, essa ânsia, encontra expressão na doença di
vina. Deus sente a dolorosa nostalgia do renascer e por isso
toda a sua energia vital converge para o centro de si mesmo,
quer dizer, para o mais profundo do inconsciente, donde a
vida virá de novo à luz. Por isso, a aparição da dádiva no
mundo descreve-se como se fosse um distante eco do qua
is
loc. cit., pág. 107.
ifl No que diz respeito ao motivo da dádiva e do renascimento,
cf. os meus livros Wflnmungcn uai Si/mbole der LihUlo e Psychologie
vnd Alchcmie.
O P RO BLEM A DOS TIPOS NA CRIAÇÃO POKT1CA
217
dro do nascimento de Buda, jio Lalitavistara, 0 ressoando na
descrição: Pandora depõe sua valiosa dádiva sob uma no
gueira. assim como Maia deu à luz seu filho sob a figueira.
"Na sombra da. meia-noite, arde, rebrilha e resplandece
sem, cessar, sob a árvore; e, semelhantes à estrela matutina
rompendo 11 0 céu obscuro, brilhavam na distância os raios
diamantinos.”
“E também as abelhas e borboletas que bailavam sobre
os jardins floridos acudiram com alvoroço para cercar, em
grande alegria, o menino maravilhoso. . . e dos ares desce
ram as cotovias, ansiosas por renderem suas homenagens ao
novo e mais belo rosto do sol, e quando já muito perto con
templaram o imaculado fulgor, uma vertigem se apossou
de seus frágeis e pequenos corações... E por sobre tudo
se desdobrava a gigantesca e frondosa copa da árvore eleita,
aberto o pesado e verde manto, as régias mãos protetoras
«obre o rosto de sous filhos."
"E a ramaria abundante vergava amorosamente e incli
nava-se para o chão, como se quisesse ciosamente impedir,
com a sua cortina, que os olhos estranhos gozassem do favor
imerecido da dádiva, que os ramos assim quisessem contem
plar sozinhos. E os milhares de folhas em movimento, como
se possuíssem alma, delicadamente balouçavam e estreme
ciam de puro deleite, murmurando de prazerosa exaltação, e
entoavam um suave coro. doce e claríssimo, de harmoniosos
rumores. Quem sabia o que se ocultava sob o humilde teto?
Quem sonhava a preciosa dádiva que repousa entre nós?” 17
Quando chegou para Maia a hora do parto, deu à luz
um filho sob a figueira Plaksa, que para a terra inclinava
sua copa protetora. Do Bodhisattva encarnado emana um
fulgor imenso que se derrama por todo o universo. Os deu
ses e a natureza participam no nascimento. Quando o
Bodhisattva tocou na terra com os pés. cresceu debaixo de
les uma grande flor de lótus c, erguido sobre o lótus, con
templou o mundo. Daí resultou a oração tibetana com sua
fórmula: Hom m ani padme hum" — oh, a jóia no lótus!
O instante da reencarnação surpreende o Bodhisattva sob
0 Um dos principais textos budistas em sànscrito budista. Cf.
Budismo, de Richard A. Card, cm Biblioteca de Cultura Religiosa,
de Zahar Editores, 1964, trad. de Affonso Blacheyre.
S p j t t e i x . r , loc. cit., p á g s . 126 e s e g s .
21 8
T ir o s PSICOLÓGICOS
a árvore eleita Bodhi, onde sc converte cm Buda (o ilumina
do). Esse renascimento, ou renovação, é acompanhado do
mesmo resplendor c dos mesmos portentos da natureza que
sc observaram no nascimento.
Mas no reino de Epimeteu, onde domina a consciência
c não a alma, a preciosa dádiva perdeu-se. O anjo, irado
com a grosseira insensibilidade do Epimeteu. invectiva-o: “E
não havia uma alma cm ti, ser rude e irracional, que te
ocultas como os animais ante a maravilhosa divindadeP” 1*
Pode-se observar que a preciosa dádiva de Pandora é
uma renovação de Deus ou um Deus novo. Mas isto acon
tece na esfera divina, quer dizer, no inconsciente. Os pres
sentimentos que desse evento surgem na consciência não são
apreendidos pelo elemento epimetéico, que domina a relação
com o mundo. S p it t k l e r expõe isto com muita clareza, se
guidamente, 10 fazendo-nos ver como o mundo - quer dizer, a
consciência e sua disposição racional, orientada para os ob
jetos exteriores — é incapaz de apreciar justamente o valor
e o significado da preciosa dádiva. E esta perde-se, assim,
de um modo irrecuperável.
O Deus renovado significa uma nova disposição, ou seja,
uma nova possibilidade de vida intensa, uma nova dimensão
da vida. visto que Deus, psicologicamente, pressupõe sempre
o valor supremo, a máxima soma dc libido, a máxima inten
sidade vital, a ótima atividade psicovital. Em S p it te lk m ,
revelam-se insuficientes tanto a disposição prometéica quan
to a epimetéica. Ambas as tendências sc dissociam; a dis
posição cpimetéica harmoniza-se com a situação real do mun
do, mas não é prometéica, pelo que esta aplicar-se-á à tare
fa de renovação da vida. E cria uma nova disposição ante
o mundo (a da preciosa dádiva oferecida ao mundo), sem
encontrar qualquer eco em Epimeteu. Contudo, em S p it t e l e r , é fácil dc reconhecer, na dádiva de Pandora, o intuito
simbólico de solução que destacamos ao tratar das cartas dc
S C H IL I.KR.
Estamo-nos referindo ao problema da conjugação
das funções diferenciada e indiferenciada.
Loc. cit., pâg. 160. S p itte le r representa a famosa cons
ciência dc Epimeteu como um pequeno animal. Corresponde tamWm ao in.stinto animal de oportunidade.
Loc. cit.,
págs. 132. e segs.
O PROBLF.MA DOS TIPOS NA CRIAÇÃO POÉTICA
21 9
Antes de prosseguirmos no exame deste problema, temos
de reverter, porém, ao Prometeu de C o f .t iie . Como já vimos,
existem inegáveis diferenças entre o Prometeu criador de
G o e t h e e a sofredora figura de S p i t t e l e r . Também se dis
tinguem, de modo significativo, no que se refere à relação
com Pandora. Em S p i t t f . l e r , Pandora pertence ao Além,
é uma réplica da alma de Prometeu, na esfera divina. Em
G o e t h e , pelo contrário, é completamente uma criatura e fi
lha do titã, estando, portanto, numa dependência absoluta
dele. Já a relação entre o Prometeu de G o e t h e e Minerva
situa-o no lugar de Vulcano, e o fato de Pandora ser com
pletamente uma criatura sua e não aparecer criada pelos
deuses faz dele uni deus criador c subtrai-a à esfera humana.
Por isso Prometeu disse:
E uma divindade falava
Quando eu próprio mc imaginava falando,
E quando imaginava falar a uma divindade
Era eu próprio quem falava.
No Prometeu de S p it t e l e r , pelo contrário, foi apagada
toda e qualquer marca de divindade e até a própria alma
não passa de um demônio não-oficial; a divindade é algo
parte, separada do humano. A versão de G o e t h e tem cará
ter antigo, ao assinalar a divindade do titã. Por conseguin
te, Epimetcu tinha de ficar bastante menosprezado, ao passo
que S p it t e l e r lhe confere um contorno muito mais positivo.
Ora, na Pandora, de G o e t h e , encontramos, por sorte, uma
peça que nos dá uma caracterização mais completa de Epimeteu do que a do fragmento de que nos temos ocupado até
agora. Epimeteu apresenta-se da seguinte maneira:
Não há, para mim, uma distinção absoluta do Dia e da
[Noite
E arrasto a antiga maldição de meu nome:
Pois Epimetcu me chamou o Criador.
Cogitar sobre o passado, voltar ao fugaz evento,
Eis um penoso jogo do pensamento,
Possibilidade que as figuras confundem no domínio
[obscuro.
Tão amargo cret o esforço que se impunha ao jovem
Que, impaciente, se lançou na vida;
220
TIPOS PSICOLÓGICOS
Eu, irrefletidamente, apeguci-me ao presente
Para encontrar novas inquietações, novas torturas que
me oprimem. 20
Com estas palavras se caracterizou a natureza de Epimeteu. Cogita sobre o passado c não pode libertar-se de
Pandora, a quem (segundo a fábula clássica) desposara, isto
é, não pode fugir à recordação de sua imagem. Pessoalmente,
distanciara-se dele, deixando-lhe sua filha Epimeléia, a in
quietação, c levando consigo Elpore, a esperança. Descre
ve-se aí tão bem o períil de Epimeteu que podemos perfei
tamente depreender a função psicológica que ele representa.
Enquanto Prometeu continua sendo na peça Pandora o mes
mo criador e modelador, e todos os dias abandona cedo O
leito, com o mesmo e inesgotável impulso criador, o mesmo
desejo de atuar no mundo, Epimeteu, pelo contrário, entre
ga-se completamente & fantasias, sonhos c recordações, cheio
de inquietações e constantes reflexões. Pandora aparece co
mo criatura dc Ilcfaistos, rechaçada por Prometeu, mas es
colhida por Epimeteu como esposa. Dela diz:
"A própria dor sofrida por semelhante jóia c um deleite.”
Pandora é para ele uma delicada jóia, inclusive o supremo
Bem:
E pertence-me, para sempre, a esplendorosa!
A bem-aventurança inunde meus sentidos!
Eu possuí a beleza e ria me aprisionou,
Ao surgir-me, esplêndida, com seu séquito primaveril.
Reconheci-a, colhi-a, tudo se consumou!
Qual névoa se dissiparam as alucinações sombrias;
Da terra me arrancou e me elevou aos céus.
Se se buscarem as palavras para louvá-la dignamente,
Poder-se-á, talvez, enaltecê-la; mas já está nas alturas.
Se se comparar com o melhor, o melhor será mau.
Se fala, é uma reflexão apenas: já tem razão.
Sc te opões, ganhará a batalha.
Hesitas em servi-la e já és seu escravo.
O bom, o amável, cis sua réplica.
Dc que vale a altivez? Por ela se humilhará.
20
CorriiE, Pandora, Ed. Cotta, 1858, Vol. X , pág. 210.
O PROBLEM A DOS
TIPOS
N'A
CRIAÇÃO POÉTICA
221
Posta na meta, dá asas í) corrida.
Posta no caminho, detém tudo o que passa.
Se queres obedecer a uma ordem, ela te impelirá.
Por cia darás riqueza, sabedoria e tudo.
A terra desce sob m il formas,
Flutua sobre eis águas e erra pelos campos.
Tem, por lei sagrada, resplendor c eco,
E de maneira única enobrece a forma o conteúdo,
Emprestando-lhe e inculcando-se o poder supremo.
Em minha juventude, tinha forma de Mulher. 21
Kstes versos demonstram, de maneira nítida, que Pan
dora tem, para Epimeteu, o significado de uma imagem da
alma, que é para -ele a representação da própria alma. Isso
explica seu poder divino, sua irrefragável superioridade. Sem
pre que se aplicam tais atributos a determinadas personali
dades, pode-se deduzir com segurança que estamos na pre
sença de veículos simbólicos, ou seja, imagens de conteúdos
projetados pelo inconsciente, visto que tais conteúdos são os
que atuam com a prepotência acima descrita, especialmente
daquela maneira que G o e t h e caracteriza de modo insu
perável no verso:
Se queres obeclecer a uma ordem, ela te impelirá.
Com estas palavras, fica perfeitamente descrito o espe
cial esforço afetivo de determinados conteúdos da consciên
cia, por associação com análogos conteúdos do inconsciente.
Esse reforço tem algo de demoníaco-inevitável, quer dizer,
um caráter "divino” ou “diabólico”.
Classificamos de extrovertida a figura do Prometeu goethiano. Continua a sê-lo em Pandora, mas, nesta obra, falta
a relação entre Prometeu e a alma, o inconsciente feminino.
Por outro lado, aparece-nos Epimeteu orientado para o pró
prio íntimo, como o introvertido. Cogita, faz maquinações,
evoca as recordações de um passado morto, "pensa”,
com
pletamente distinto do Epimeteu de S p it t e l ic r . Podemos afir
mar, pois, que na Pandora de G o e t h e realiza-se o caso ante
riormente indicado, em que Prometeu corresponde à disposi
ção extrovertida, ativa, e Epimeteu ã introvertida e reflexiva.
21
Loc. cit., págs. 233 c seg.
222
1IPOS PSICOLÓGICOS
Este Epimctcu redunda, portanto, numa forma extrover
tida daquilo que, em S ititf.llh , é uma forma introvertida.
Na Pandora, pelo contrário, Prometeu é o puro criador com
finalidades coletivas, instala cm sua mente uma verdadeira
fábrica onde se produzem artigos de primeira necessidade
para o consumo de todo o mundo. Encontra-se, portanto, di
vorciado de seu inundo interior, atribuindo-se desta vez a
Epimeteu a relação com <> íutimo, isto é, os modos de pen
sar e sentir puramente reativos e secundários que revelam
todas as características da função interiormente diferenciada.
Ê justamente por isso que Epimeteu se entrega a Pandora
de um modo tão absoluto e total, ao ser-lhe ela superior em
todos os aspectos. Isto significa, psicologicamente, que a
função consciente, epimetéica, do extrovertido, quer dizer,
esse imaginar caviloso, repetido e fantástico, é imposto pela
intervenção da alma. Quando a alma estabelece contato
com a função inferiormente diferenciada, tem de se inferir
que a função de validade superior ou inteiramente diferen
ciada é demasiado coletiva, quer dizer, está a serviço da
consciência coletiva e não da liberdade.22 Sempre que isso
acontece (e acontece com bastante freqüência), a função in
feriormente diferenciada, ou seja, “o outro lado”, é reforçado
por uma egocentricidade patológica, quer dizer, o tempo li
vre do extrovertido povoa-se de cogitações melancólicas ou
hipocondríacas, quando não de fantasias histéricas e outros
sintomas dessa cspccie;23 o introvertido, pelo contrário, à
assaltado por sentimentos de inferioridade, que sc lhe impõem
e não o fazem menos sombrio.21
O Prometeu de Pandora já não corresponde ao de
S p it t e le r .
É uma simples ânsia de atividade coletiva, que
em sua unilateralidade supõe uma repressão do erótico. Seu
filho, Fileros, é pura paixão erótica;25 pois como filho de
seu pai tem de reparar por compulsão inconsciente (caso
muito freqüente entre os filhos) o que por seus pais foi
22
A “llcit u n d Kdt" d e S t í t t e l f r ,
23 Em seu lugar pode-se observar (amWm, como compensação,
uma sociabilidade mais intensa, um mais intensivo labor social, cm
cuja mutação contínua so procura, nostalgicamente, o esquecimento.
Ern compensação, pode-se observar também uma atividade
morbidamento iutenia, colocada igualmente a serviço da rcprciSio.
Fileros: o que ama o eros (o amor).
O PROBLEMA DOS TIPOS NA CRIAÇÃO ÍOÉTICA
223
deficientemente vivido. Filha da irreflexão, do que só de
pois é considerado, e filha de Epimetcu, Epimeleia v, sig
nificativamente, a solidão e a inquietação. 1'iieros ama Epimeléia, filha de Pandora, e assim fica expiada a culpa de
Prometeu, que rechaçara Pandora. Ao mesmo tempo, ficam
unidos Prometeu c Kpimeteu, ao evidenciar-se a operosida
de de Prometeu como erotismo não-reconhecido c a cons
tante íetrospecção de Epimetcu como inquietação racional
que quisera sustar o produzir incessante :!e Prometeu, redu
zindo-o a uma justa medida. Essa tentativa gocthiana de
solução, que parece promanar de urna psicologia extroverti
da, leva-nos de volta ao intuito solucionador de S p o t e l k r ,
que tínhamos abandonado para tratar do Prometeu de G o k t i i e .
O Prometeu do S m t t e l e r , tal como o seu Deus, desvia
o olhar do mundo, da periferia, e dirige-o para o ponto cen
tral, a “estreita passagem” do renascer. Esta concentração
ou introversão encaminha a libido, pouco a pouco, no sen
tido do inconsciente, reforçando assim a atividade dos con
teúdos inconscientes. A alma começa a "trabalhai” e cria
uina obra que tem por finalidade; romper do inconsciente para
a superfície da consciência. Ora, a consciência possui duas
tendências: a prometéica, que absorve a libido do inundo e
a introverte, sem dar. c a epimetéica, que dá continuamente,
desalmadamente, guiada pelas exigências do objeto exterior.
Quando Pandora ia / entrega de sua dádiva ao mundo, isto
significa, psicologicamente, que um produto inconsciente de
alto valor está prestes a atingir a superfície da consciência
extrovertida, quer dizer, está prestes a entrar em relação com
o mundo exterior real. /Vinda que o lado prometéico, quer
dizer, o artista, capta intuitivamente o alto valor da obra,
a sua relação pessoal com o mundo encontra-se, porém, con
dicionada u tal ponto pela tradição, em todos os seus as
pectos, que a obra somente é concebida como obra de arte
e não como o que ela verdadeiramente é: um símbolo que
significa a renovação da vida. Mas, para que atingisse a
realidade, saindo do puro significado estético, teria de ingres
sar também na vida, para que a obra encontrasse um acesso
a ela e fosse ai vivida. Entretanto, se a disposição for de cará
ter introvertido, cinge-se principalmente à abstração e a fun
ção de extroversão é, por sua parte, de validade inferior, ou
seja, está sob o jugo da restrição coletiva. Essa restrição
impede que o símbolo criado pela alma chegue a viver.
22 4
TIPOS PSICOLÓGICOS
Dessa maneira, perde-se a dádiva preciosa. Nlas não se pode
verdadeiramente viver se 'Deus", quer dizer, o Supremo va
lor vital que encontra sua expressão no símbolo, não puder
atingir a vida. Por isso, a perda da dádiva preciosa pressu
põe o começo do crepúsculo epimetéico.
É então que principia a enantiodromia. Em vez de um
estado propício ser sucedido por outro estado ainda mais
propício, corno preferem supor todos os racionalistas e oti
mistas, uma vez que tudo se movimenta em “evolução ascen
dente”, o homem da consciência perfeita c dos princípios mo
rais geralmente reconhecidos como válidos faz um pacto com
Belzebu e suas hostes malignas, vendendo incluso ao diabo
os filhos de Deus que estavam confiados à sua guarda. Isto
significa, psicologicamente, que a disposição orientada no sen
tido do mundo, coletiva, não-diferenciada, asfixia os valores
supremos da humanidade, convertendo-se desse modo num
poder destruidor cuja ação irá aumentando até que 0 lado
prometéico, ou seja, a disposição ideal e abstrata, se coloque
a serviço da valiosa dádiva psíquica c, como autêntico Pro
meteu do mundo, acenda um fogo virgem. O Prometeu de
S p i t t e l f j i terá de abandonar sua solidão para, com risco da
própria vida, dizer aos homens que erram e ondè erram.
Terá de reconhecer a essência inexorável da verdade, assim
como o Prometeu de G o e t h e terá de experimentar a inexo
rabilidade do amor de Fíleros.
Que o elemento destrutivo da disposição epimetéica é,
de fato, a restrição tradicional c coletiva, ficou claramente
demonstrado pela ira de Epimeteu contra o “cordeirinho”,
que é uma caricatura transparente do cristianismo tradicio
nal. Nesse afeto algo nos lembra a quase contemporânea fes
ta do burro de Zaratustra. Uma corrente dessa época aí en
controu sua expressão.
O homem sempre esquece, e volta sempre a esquecer,
que o que foi bom uma vez nem sempre pode continuar a
sê-lo por toda a eternidade. Percorre ainda os antigos ca
minhos, que foram bons outrora, mas já não o são mais, pois
se converteram em maus caminhos e só com os maiores sa
crifícios e incríveis esforços pode desembaraçar-se da obses
são de que o bom de um tempo passado ainda é bom e não
se fez velho. E isto tanto acontece no grande como no pe
queno. Dos modos e pendores da infância, bons no seu
devido tempo, pode a muito custo desembaraçar-se, embora
O PROBLEM A DOS TIPOS NA CRIAÇÃO PO&TICA
225
há já muito tempo tivessem demonstrado que estavam sendo
perniciosos. O mesmo, numa gigantesca ampliação, ocorre
com a transformação da tendência histórica. A uma disposi
ção de caráter universal corresponde uma dada religião, e as
mutações religiosas constituem um dos mais arriscados e de
licados momentos da história do mundo. A nossa época é,
indubitavelmente, nesse aspecto, de uma cegueira única. Pre
tende-se que, com o fato de declarar falsa ou sem validade
uma fórmula de confissão religiosa, é o bastante para ficar
mos psicologicamente livres de toda a influência e ação tra
dicional da religião cristã ou judaica. Acredita-se na ilus
tração intelectual como se uma conversão do intelecto exer
cesse uma influência de natureza profunda sobre os proces
sos anímicos ou mesmo sobre o inconsciente! Esquece-se por
completo que a religião dos 2 OCX) anos transcorridos é uma
disposição psicológica, um modo e maneira determinados do
adaptação di* fora para dentro e de dentro para íora que
originaram uma certa forma de cultura e criaram com isso
uma atmosfera que não é influenciável, absolutamente, pela
negação intelectual. .Esta reveste-se, por certo, de impor
tância sintomática como alusão a possibilidades vindouras,
mas as camadas profundas da psique prosseguem funcionan
do ainda, por longo tempo, na antiga disposição, de acordo
com a inércia psíquica. Daí resulta o fato do inconsciente
ter mantido vivo o paganismo. A facilidade com que o espi
rito antigo se reergue pude ser verificada 110 Renascimento.
A facilidade com que se reergue o espírito primitivo, muito
mais antigo ainda, pode ser observada 11 0 nosso tempo, e
melhor do que em qualquer outra época historicamente co
nhecida. Quanto mais fundo uma disposição se radicar, tan
to mais violentos serão os esforços para libertarmo-nos dela.
O grito da época do iluminismo, “Ecrasez linjàm c!", foi 0
prelúdio do movimento revolucionário religioso, no âmbito
da Revolução Francesa, o que psicologicamente só significa
va uma essencial correção dispositiva. Mas faltou-lhe uni
versalidade. O problema de uma transformação geral de
disposição nunca mais deixou de ser agitado a partir desse
momento, reaparecendo cm muitos espíritos insignes do século
XIX. Já vimos como S c h il l e r tentou superar o problema.
Nos intentos de G o e t h e , relativamente ao problema Prometeu-Epimeteu, reconhecemos também o propósito de unir, de
algum modo, a função superiormente diferenciada, que corresis
226
TIPOS PSICOLÓGICOS
ponde ao ideal cristão de preferencia do Bem, com a função
inferiormente diferenciada, cuja repressão c o não-reconhecimento, por sua vez, correspondem também ao ideal cris
tão de recusa do Mal. 20 Com o símbolo Prometeu-Epimeteu, a dificuldade que S c h ü .l e r tentou superar estético-filosoficamente ficou ornamentada com os atavios do mito anti
go. Isso dá lugar a uma constatação que por mim já foi sa
lientada, como algo que ocorro de maneira típica e regular:
quando o homem depara com uma tarefa difícil, que não é
capaz de resolver com os recursos de que dispõe, produz-se
automaticamente um refluxo de libido, quer dizer, ocorre
uma regressão. A libido afasta-se do problema atual, introverte-se e instiga-se no inconsciente uma analogia, mais ou
menos primitiva, da situação consciente, com o seu meio pri
mitivo de adaptação. Esta lei condiciona a eleição do sím
bolo goethiano: Prometeu é o redentor que teria de levar
fogo e luz à humanidade que definhava. £ verdade, porém,
que G o e t h e , com toda a sua sabedoria, poderia ter apura
do, certamente, que a determinação citada não subentende
um suficiente esclarecimento. Consistirá, antes, no espírito
antigo que a época em que G o k t h e escreveu, em fins do
século X V III, considerava absolutamente compensador, ex
pressando-o em todos os campos da atividade intelectual,
desde o estético e do filosófico ao moral e até no catnpo
político (helenofilia). C) paganismo da antiguidade, cele
brado como “liberdade”, “ingenuidade”, “beleza”, etc., era
o que correspondia ao ideal da época, um anseio que tinha
sua origem, como sc verifica nitidamente em S o h il l e r , na
sensação de insuficiência, de barbarismo psíquico, de ausên
cia de liberdade moral, de falta de beleza. Essas sensações
derivam, de modo geral, da avaliação unilateral c do fato
concomitante de se ter feito sentir a dissociação psicológica
entre a função superiormente diferenciada e a inferiormente
diferenciada. A dicotomia cristã de um homem valioso e
outro desprezado em cada indivíduo chegou a ser insupor
tável naquela época de elevada sensibilidade, comparada com
épocas anteriores. A propensão para o pecado, a culpabi
20
Cf. Geheimnisse (Mistérios), de
tentada a
soluçáo rosacruz, isto é, a união
Dioniso e Cristo, a
e a
Cruz. O poema deixa-nos frios. Não pode meter vinho novo cm
pipas velhas.
G o e th e .
de
A í
fo i
Rosa
se
O PROBLEM A 1>0S T ir o s NA CRIAÇÃO POÉTICA
227
lidade, chocavam-se com a percepção da eterna beleza na
tural, de cuja contemplação era possível então gozar i\ von
tade. Pof isso se retrocedeu para uma época em que a
idéia de culpabilidade não fizera ainda a cisão da integri
dade do homem, em que, com absoluta ingenuidade e sem
prejuízo da percepção moral e estética, o sublime e o sel
vático da natureza humana podiam conviver.
Mas a tentativa de um Renascimento regressivo ficou
paralisada nos seus começos, como no Prometheusfragment
e na Pandora. A solução clássica já não era satisfatória, pois
os séculos de cristianismo que tinham decorrido entrementes,
com a profunda comoção de sua vivência, não toleravam a
negação. Por esse motivo a tendência para o antigo teve
de suportar uma atenuação de sentido medieval. Tí?1 proces
so insere-se, nitidamente, na estrutura do Fausto de v.»o e t i i e ,
onde cr problema é enfrentado sem subterfúgios. A compe
tição divina entre o Bem e o Mal é francamente admitida.
Ao encontro de Fausto, o Prometeu medieval, sai Mefistófeles, o Epimeteu medieval, e com ele pactua. E aqui temos
o problema já amadurecido, a ponto de se poder ver como
Fausto e Mcfistófeles são uma e a mesma pessoa. O ele
mento epimetéico, que submete tudo à sua reflexão e tudo
reduz à possibilidade de fusão de formas- do caos primevo
ou original, essencializa-se na figura do diabo, convertendo-se então no poder do mal que amplia “o frio punho diabó
lico” 0 a todo ser vivente e queria perseguir implacavelmente
a luz, até fazê-la retroceder c ocultar-se no fundo da Mãe
Noite de onde saíra. O diabo revela sempre um verdadeiro
pensamento epimetéico, o pensamento do "nada como antes",
o qual reduz tudo o que c vivo ao nada primordial. A
ingênua paixão de Epimeteu pela Pandora de Prometeu con
verte-se nos diabólicos desígnios de Mefistófeles a respeito
da alma de Fausto. E a prudente precaução de Prometeu,
rechaçando a divina Pandora, é expiada pela tragédia do
episódio de Margarida, pela nostalgia de Helena, tardiamente
satisfeita, c pela ascensão infinda às Mães excelsas. (“O eter
no feminino leva-nos para além.")
® Convém salientar que a palavra “punho” é, em alemSo, Faust.
Logo, simbolicamente, o "punho diabólico” (Tcufclsfaust) presta-se à
dupla acepçáo procurada por G o e t h k , visto que “Fausto pertence a o
diabo". (N. do T.)
22 8
TIPOS PSICOLÓGICOS
Na figura do feiticeiro medieval oculta-se o duelo prometéico com os deuses existentes. O feiticeiro conservou
uma parcela de antiquíssimo paganismo,27 seu próprio cará
ter manteve-se imune à cisão cristã, quer dizer, continuou
tendo acesso ao inconsciente, que ainda c pagão e onde os
contrastes ainda estão conjugados, com ingenuidade primi
tiva e além de toda a culpabilidade, mas que, admitidos na
vida consciente, com o mesmo impulso primário e a mesma
energia, de conseqüente essência demoníaca, são mais capa
zes de fazer o mal que o bem. (“Uma parte dessa energia,
que quer sempre o mal c sempre busca o bem.” ) Por isso
tanto é corruptor como redentor (ver Fausto, “O Passeio”).
Eis os motivos pelos quais essa figura é, mais do que qual
quer outra, capaz de ser o veículo adequado do símbolo,
numa tentativa de conjunção. Por outra parte, priva-se o
feiticeiro medieval da antiga ingenuidade, que chegara a
ser impossível, absorvendo inteiramente a atmosfera cristã,
com uma vigorosa vivência. A parcela de paganismo, cm
primeiro lugar, é impelida totalmente para a negação de si
própria e para a autodilaceração cristã, pois sua ânsia de
redenção é tão poderosa que todos os meios servem. Por
fim, malogra-se também o intuito de solução cristã e veri
fica-se, então, que na ânsia redentora e na obstinação da
parcela pagã em afirmar-se a si própria reside precisamente
a única possibilidade de redenção, ao revelar-se que o sím
bolo anticristão oferece uma possibilidade de transito para o
mal. Assim, a intuição de G o e t h e captou o problema com toda
a acuidade desejável. É significativo, sem dúvida, que as ou
tras tentativas de solução menos profunda, como os frag
mentos do "Prometeu”, “Pandora” e a tradução rosacruz de
um sincretismo de júbilo dionisíaco e sacrifício cristão, nos
Mistérios, tenham ficado incompletas. A redenção de Faus
to começa com a sua morte. Sua vida conservou o caráter
de divindade prometéica, de que só foi despojado por sua
morte, isto é, pelo seu renascimento. Isto significa, psico
logicamente, que a disposição fáustica tem que cessar para
que se registre a unidade do indivíduo. A (pie no princí
pio aparece como Margarida e, num mais alto nível, con
27 Os que possuem virtudes mágicas sSo, muitas vezes, repre
sentantes da antiga tradição popular: os nepalescs, ua Índia, os ciga
nos, na Europa, os capuchinhos, nos paises protestantes.
O P R O B LEM A DOS TIPOS NA CRIAÇÃO POÉTICA
229
verte-se em Ilelena, sublima-se finalmente como mater glo
riosa. Não me proponho esgotar aqui o tratamento desse
símbolo de múltiplas significações. Apenas direi que se
trata da imagem primordial que já preocupara, cm grande
parte, a gnose, quer dizer, a idéia das divinas meretrizes:
Eva, Ilelena, Maria e Sofia-Achamoth.
3.
Significado do Símbolo dc União
S e , partindo do ponto de vista a (pie chegamos, obser
varmos a elaboração inconsciente do problema cie S p i t t e l e r ,
a nossa atenção será imediatamente atraída para o fato de
que o pacto com o mal não obedece ao desígnio de Pro
meteu, mas à inadvertência de Epimeteu, possuidor apenas
de uma consciência coletiva, porém destituído de qualquer
faculdade diferenciadora para as coisas do mundo exterior.
Deixa-se determinar exclusivamente pelos valores coletivos,
pondo à margem, portanto, o que é novo c singular. Isso é
o que sempre acontece, como sabemos, com o ponto de vista
coletivo, orientado no sentido do objeto, por outras pala
vras, com a.s normas ou padrões coletivos, cujo valor cor
rente pode ser medido, sem dúvida, mas não os recém-cria
dos, para os quais somente a livre avaliação — uma coisa do
sentimento vivo — pode indicar-nos um valor exato. Para
tal necessita-se nm ser que tenha "alma”, e não apenas uma
relação com o objeto exterior. A queda de Epimeteu inicia-se com a perda da divina imagem recém-nascida. Seu pen
samento, sentimento c ação, moralmente inexpugnáveis, de
maneira alguma excluem a possibilidade de que o mal, o
destrutivo e o vazio, tenham-se infiltrado. Essa invasão do
mal pressupõe a metamorfose do que antes era bom em algo
maléfico. Nestes termos quer S p i t t e l e r expressar que o prin
cípio moral até esse momento em vigor foi imaculado e justo,
sob todos os aspectos, mas que, com o decorrer do tempo,
acabou perdendo sua relação com a vida, ao não ser capaz
de abranger a plenitude dos fenômenos vitais. O racional
mente justo é um conceito demasiado apertado para poder
abranger e exprimir suficientemente c a longo prazo a vida,
em sua total plenitude. Ora o evento irracional do nasci
mento de Deus situa-se além das fronteiras do acontecer ra
cional. O nascimento dc Deus quer dizer, psicologicamente,
que um novo símbolo foi criado, uma nova expressão da má
TIPOS PSICOLÓGICOS
23 0
xima intensidade vital. Tudo o que é epimetéico no homem
e todo homem epimetéico revelam-se incapazes de uma apre
ensão desse evento. Não obstante, a partir desse momento
preciso, só na nova linha vital se encontrará a máxima inten
sidade da vida. Toda e qualquer outra orientação vai gra
dualmente definhando, quer dizer, extingue-se por causa da
destruição e da dissolução. O novo símbolo vivificante tem
sua origem no amor de Prometeu por sua alma, o que im
plica uma pujança do caráter demoníaco. Pode-se afirmar,
por conseguinte, que com o novo símbolo c sua beleza vital
confluiu também o elemento do mal, pois de outro modo
lhe faltaria a vida lumino-sa, bem como a beleza, visto que
no plano natural vida e beleza são moralmente indiferentes.
Por isso a coletividade epimetéica nada encontra nele que
seja digno de apreço. A unilateralidade de seu ponto de
vista moral cega-a completamente. Este ponto de vista identifica-SC com o "cordeirinho”, quer dizer, com o cristianismo
tradicional. Assim, a cólera de Epimetcu contra o “cordeirinho” significa apenas o “écrasez Tinfâme” numa nova for
ma, um protesto contra <> cristianismo tradicional, incapaz
de compreender o novo símbolo e de com ele orientar a vida
segundo um novo rumo.
A comprovação desse fato poderia deixar-nos totalmen
te indiferentes se os poetas não fossem aquilo que são, os
intérpretes do inconsciente coletivo. São, no devido tempo,
os primeiros a captar as misteriosas correntes subterrâneas e
a exprimi-las, de acordo com as faculdades individuais, cm
símbolos mais ou menos eloqüentes. Vaticinam, pois, como
autênticos profetas, o que ocorre no inconsciente, “o que é
vontade de Deus”, segundo a linguagem do Antigo Testa
mento, e que com o tempo há de emergir na superfície como
fenômeno de caráter geral. O significado do ato de Prome
teu, a queda de Epiincteu, sua reunião com o irmão que
vive a alma c a vingança de Epimetcu no cordeiro, que em
seu horror lembra a cena entre Ugolino e o arcebispo Huggieri,211 preparam uma solução do conflito associado a uma
cruel rebelião contra a moral coletiva tradicional.
26 D , "Inferno", XXXII. [Há aqui u t n erro. possivelmente
tipográfico. O episódio do encarceramento do Conde Ugolino e seus
filhos, por ordem do arcebispo de Pisa, Ruggieri degli Ubaldini, na
Torre Gualandi, a sinistramente célebre "Torre da Fome”. 6 no Canto
XXXIII. N. do T.l
anto
O P ROBLEM A DOS TIPOS NA CRIAÇÃO POÉTICA
231
Supõe-se que, num poeta de menores proporções, a cúpu
la de sua obra não superará o nível dc suas alegrias, sofri
mentos e desejos pessoais. Mas em S p i i t k i .f r a obra supe
ra o destino pessoal. Por isso, a sua solução do problema
não foi isolada. Dela a Zaratustra, o destruidor das Tábuas,
é apenas um passo. Junta-se-lhe também um S t i r n e r , de
pois de Sc h o p j í n 11AUEit ter sido o primeiro a formular a
doutrina da negação. Falou da negação do mundo. Psico
logicamente, “inundo’' quer dizer o mundo que v e j o - £ a
minha disposição ante o mundo, visto que o mundo pode
ser considerado como “minha vontade” e "minha representa
ção”. O mundo, em si, é indiferente. O meu Sim e o meu
Não ocasionam as diferenças. A negação refere-se, pois, à
disposição do próprio S c h o p e n h a u e r em face do mundo, o
que, por uma parte, é puramente de ordem racionaí-intelectualista c supõe, por outra parte, uma vivência do mundo da
máxima intensidade pelo próprio sentimento, em virtude de
uma adesão mística. Esta disposição é introvertida e res
sente-se, portanto, do antagonismo tipológico. Ora, como
se sabe, toda a obra de S c h o p e n i i a u e r reflete a sua perso
nalidade em muitos aspectos. Ele disse em voz alta o que
milhares pensavam e sentiam vagamente. O mesmo acon
tece com N i e t z s c h e . N o seu Zaratustra ressaltam claramen
te, sobretudo, os conteúdos do inconsciente’ coletivo da nossa
época. Por isso nele encontramos os traços fundamentais e
decisivos: a revolta iconoclasta contra a moral tradicional e
a admissão do homem “feiíssimo”, que em N i e t z s c h e leva à
estarrecedora tragédia inconsciente que se representa em Za
ratustra. Ora, o que os espíritos criadores extraem do in
consciente é o que, verdadeiramente, nele se encontra. Por
isso, mais cedo ou mais tarde, subirá à superfície como um
fenómeno psicológico das massas. O anarquismo, os assas
sinatos dc príncipes que, em época recentíssima, demonstram
uma cisão, de verificação cada vez mais clara, do elemento
anárquico da extrema esquerda socialista, com o seu progra
ma absolutamente hostil à cultura — eis alguns fenómenos
psicológicos da massa, eloqüentemente descritos há já muito
tempo pelos poetas e pensadores dotados da virtude cria
dora. Por isso os poetas não nos podem deixar indiferentes,
pois em suas obras capitais c cm suas inspirações mais pro
fundas, nutrem-se do inconsciente coletivo e proclamam em
voz alta o que os outros apenas sonham. Contudo, aquilo
232
•riPOS PSICOLÓGICOS
que exprimem é unicamente o símbolo, no qual auferem de
leite estético, mas sem verdadeira consciência do significado
subjacente.
Não pretendo discutir quais os poetas e pensadores que
exercem uma influência educadora sobre os seus contem
porâneos c na posteridade. Mas eu diria, entretanto, que a
influência deles se baseia, essencialmente, em dizerem mais
alto e mais claro algo que todos sabemos — c que só ao ex
primirem esse “saber” inconsciente e coletivo possuem, de
fato, uma virtude educadora e uma sedução. A maior e mais
imediata sugestão é a exercida pelo poeta que consegue ex
primir, de maneira adequada, a camada mais superficial do
inconsciente. Quanto mais profunda for a visão do espirito
criador, tanto mais estranha será para a massa e maior a
resistência com que tropeça em todos os que, de certo modo,
se distinguem ante as massas. Estas não o entendem, embora
vivam, inconscientemente, aquilo que o criador exprime; e não
é porque ele o exprima, mas porque vive o inconsciente co
letivo onde o espírito criador penetrou com sua aguda visão.
Os melhores da nação entendem, certamente, algo do que
ele diz, mas, por uma parte, porque o expressado coincide
com o que acontece na massa e, por outra parte, porque an
tecipa suas próprias tendências, eles odeiam o criador de
tais pensamentos. E não o fazem por maldade, mas por
mero instinto de conservação. Quando o conhecimento do
inconsciente coletivo atinge uma profundidade tal que a ex
pressão consciente já não consegue apreender o conteúdo, é
impossível afirmar, no momento, se se trata de um produto
mórbido ou de um produto incompreensível por causa de sua
grande profundidade. De modo geral, há sempre algo de
mórbido num conteúdo insuficientemente apreendido, mas de
profunda significação. E OS produtos mórbidos são regular
mente significativos. Em ambos os casos, porém, dificilmen
te são acessíveis. A glória desses criadores, se efetivamente
chega a manifestar-se, é póstuma c, muitas vezes, com um
atraso de séculos. A afirmação de O s t w a l d de que, hoje
em dia, um espírito genial o máximo que pode permanecer
ignorado é um decênio, é de supor que se restrinja ao domí
nio das invenções técnicas. De outro modo, tal afirmação
seria extremamente ridícula.
Temos de sublinhar ainda outro ponto, que em meu en
tender é de especial transcendência. A solução do problema
O P ROBLEM A I>OS TIPOS NA CRIAÇÃO POÉTICA
23-3
no Fausto, 110 Parsifal, de W a g n e r , em S c h o p e n i i a u e r e
mesmo no Zaraíustra, de X i e t z s c i i e , é religiosa. Não sur
preende. portanto, que S p u t e l e r se visse também induzido
a uma versão religiosa. Que um problema seja religiosa
mente concebido significa muito, no plano psicológico: que
é de especial valor, que se refere à totalidade do homem e,
portanto, também ao inconsciente (reino de Deus, o Além,
etc.). Em S p i t t e l e r , a forma religiosa é, inclusive, de gran
de fecundidade, com o que o especificamente religioso per
de em profundidade, sem dúvida, mas ganha cm riqueza mi
tológica, em arcaísmo c, portanto, cm simbolismo prospec
tivo. A exuberância da teia mitológica perturba ainda mais
a concepção e solução do problema, assim tornando a obra
dificilmente acessível. O abstruso, grotesco e de inau-gosto,
que sempre acompanha a exuberância mitológica, impede-nos a profunda penetração na obra, isolando assim o seu sen
tido e dando ao conjunto o ressaibo desagradável daquela ori
ginalidade que só em virtude de uma tímida e cautelosa adap
tação se distingue com êxito noutras partes da anormalidade
psíquica.
A exuberância mitológica, por mais cansativa e de gosto
duvidoso que seja, tem sempre uma vantagem: a de que o
símbolo pode desenvolver-se • nela, ainda que o faça, sem
dúvida, de um modo tão inconsciente que o talento conscien
te do poeta não saiba que fazer com a expressão do sentido
c tenha de colocar seu esforço a serviço da referida exube
rância mitológica e sua representação figurativa e plástica.
A criação poética de S p i t t e í .e r diferencia-se tanto do Fausto
como dc Zaratustra, na medida em que, nestas duas obras,
a participação consciente do poeta é maior no sentido do
símbolo; portanto, 110 Fausto, está reprimida a exuberância
mitológica c em Zaratustrci a exuberância dc pensamentos,
em prol de uma solução almejada. Por isso, tanto o Fausto
como Zaratustra são muito mais belos que o Prometeu de
S p i t t e l e r . Por ou Iro lado, este é mais verdadeiro como ima
gem, relativamente fiel, dos autênticos processos que se de
senvolvem no inconsciente coletivo. Fausto e Zaratustra revelam-sc sumamente úteis na superação individual do proble
ma versado, o Prometeu e Epimeteu, de S p i t t e l e r , possibi
lita, pelo contrário, um conhecimento mais global do proble
ma e da sua fenomenologia coletiva, graças à exuberância
mítica que por todos os meios foi favorecida. O que a de
23 4
TIPOS PSICOLÓGICOS
monstração de S p i t t e l e r revela, em primeiro lugar, como
conteúdo religioso inconsciente, c o símbolo da renovação de
Deus, que depois foi amplamente desenvolvido em Olympischen Friihling (Primavera Olímpica). Este símbolo apare
ce estreitamente ligado ao contraste de tipos c funções; tem,
evidentemente, o significado de uma tentativa de solução
sob a forma de uma renovação da disposição geral, o que,
na linguagem do inconsciente, traduz-se por uma renovação
de Deus. A renovação de Deus é uma imagem corrente e
primordial que, por assim dizer, encontra-se em todas as par
tes. Referir-me-ei apenas a todo o complexo do deus que
morre e ressuscita, e a todas as suas prévias graduações, des
de a invocação de fetiches e mandingas com energia mági
ca. A imagem significa que a disposição foi alterada, geran
do uma nova tensão de energia, uma nova possibilidade de
manifestação vital, uma nova fecundidade. Esta última ana
logia explica a ligação, bastante citada, da renovação de Deus
com os fenômenos das estações e dos ciclos vegetais. Natu
ralmente, há os que se inclinam a deduzir dessas analogias
mitos de estações, de vegetação, astrais ou lunares. Mas es
quece-se por completo que um mito, como tudo o que é psí
quico, não pode estar apenas condicionado pelo evento exte
rior. O psíquico colabora também com suas próprias con
dições íntimas, pelo que se poderia afirmar, com o mesmo
direito, ser o mito al^o puramente psicológico c que mera
mente se serve dos dados fornecidos pelos processos meteo
rológicos ou astronômicos como simples material de expres
são. A arbitrariedade e absurdo de muitas afirmações míti
cas primitivas fazem que esta versão pareça, freqüentemente,
ser mais esclarecedora e correta que qualquer outra.
A situação psicológica resultante da renovação de Deus
é uma crescente divergência nos processos de aplicação da
energia psíquica da libido. Uma das metades orienta-se no
sentido do processo prometéieo de aplicação e a outra no
sentido cpimctéico. Claro que esses contrastes não consti
tuem apenas um obstáculo mútuo, na sociedade, mas também
no próprio indivíduo, daí resultando que o ótimo vital recue
cada vez mais, desviando-se dos extremos antagônicos para en
contrar uma situação intermédia que será, necessariamente,
irracional e inconsciente, pois só os extremos são conscientes
e racionais. Ora, tendo a posição intermédia um caráter irra
cional como traço de união de antagonismos e sendo ainda
O PROBLEMA DOS TIPOS NA CRIAÇÃO FOETICA
235
inconsciente, aparece projetada como Deus mediador ou Mes
sias. Para as nossas formas religiosas ocidentais, primitivas
no tocante ao conhecimento, a nova possibilidade vital apa
rece como salvador ou redentor, o qual, em virtude de seu
amor ou por solicitude paterna, nascidos de sua própria deci
são íntima, anula a divergência quando e como lhe conve
nha, por motivos que nos são desconhecidos. A puerilidade
de semelhante concepção salta aos nossos olhos. Há milha
res de anos que o Oriente captou esse processo e estabele
ceu, por conseqüência, uma doutrina psicológica de salva
ção que coloca o caminho da redenção ao alcance dos de
sígnios humanos. Assim, tanto a religião hindu como a chi
nesa, e como o budismo, que constitui o traço de união entre
ambas as esferas, possuem um rumo intermédio e redentor,
por virtude mágica, que é acessível por disposição conscien
te. A concepção védica procura a libertação dos pares anta
gônicos para atingir o caminho da redenção.
a)
A Concepção Bramanista do Problema dos Antagonismos
A expressão sânscrita para par antagônico é dvandva. Nou
tros casos significa também parelha (especialmente de macho
e fêmea), disputa, duelo, dúvida, etc. Os pares opostos já
foram feitos pelo criador do mundo;
“Além disso, a fim de distinguir ações, separou o méri
to do demérito, c fez que as criaturas fossem afetadas pelos
pares de opostos, tais como a dor e o prazer.” 2() O exegeta
Knlluka menciona ainda entre os pares contrapostos o desejo
e a cólera, o amor e o ódio, a fome e a sede, a preocupação
e a evasão a honra e a infâmia. “De maneira constante,
este mundo ressentir-se-á dos pares contrapostos.” *° Com
efeito, constitui uma tática ética essencial o não deixarmo-nos
influenciar pelos contrastes ( nirdvandva
livre, imune aos
contrastes) e, pelo contrário, superá-los, pois o livrarmo-nos
deles conduz-nos à redenção. Reproduzimos, a seguir, uma
série de depoimentos documentais.
Do Livro de Manu: “Quando pela presença de seu sen
timento se torna indiferente a todos os objetos, alcança a bem20 Màruua-Dhannaçâstra I, 26.
Vol. 25, pág. 13.
30
Râmâyana II, 84, 20.
Ed. Sacrcd Books of the East,
236
TIPOS PSICOLÓGICOS
-aventurança eterna tanto neste mundo como depois da mor
te. Quem assim renunciou gradualmente a todos os vínculos
e está livre dos pares contrapostos, repousa em Brahman”. 31
A conhecida admoestação de Krishna: “Os vedas esta
belecem relação com as três gunas; 32 mas tu, ó Arjuna, sede
indiferente a elas, indiferente aos contrastes (nirdvandm),
perseverante sem desfalecimento em teu esforça’.'33
No Yogasutra de Pantajali diz-se: "Então (na mais pro
funda concentração, samâdhi) tem lugar a inexpugnabilidade
ante os contrastes”. 34
Do sábio: “Aí mesmo se desembaraça de suas boas e
más ações; seus conhecidos c seus amigos tomam suas boas
ações, c os (jue não são amigos, tomam as más; como o que
vai depressa numa carruagem e olha para as rodas, assim
considera o dia e a noite, e assim as boas c as más ações
e todos os contrastes. Mas ele, livre das boas c más ações,
instruído em Brahman, ingressa no Brahman”.
(Mergulhou em profunda concentração) “quem supera
cólera e avidez, o apego ao mundo e o gozo dos sentidos.
Quem se liberta dos contrastes, quem renuncia ao sentimento
do eu (ou ao egoísmo) e quem está isento dc esperança'’. 30
Pându, que quer ser eremita, diz: “Coberto de pó, vi
vendo ao ar livre, quero encontrar abrigo na raiz de uma
árvore e renunciar a tudo, ao amor e ao desamor, admitir
dc igual modo o elogio e a censura, não albergar esperanças
nem testemunhar veneração, livre dos contrastes (nirdvandm),
sem bolsa nem bens materiais”. 37
"O que ao viver c ao morrer, na fortuna e na desgraça,
no ganhar e no perder, no amor e no ódio, permanece igual
a si próprio, esse será redimido. Quem a nada aspira e nada
si Mânaca-Dhanncçà.itra VI, 80 e segs., loc. cit., págs. 21 e scg.
32 Qualidades, ou fatores, ou elementos que compõem o mundo.
33 Bhagavadgitd II. Em Sacred Books. Vol. 8, pág. <13.
31
D e v s s e n , Allgcmeinc Geschlchte der Philosophir, I, 3 , p á g .
527. Sabe-se que ioga 6 um sistema de exercícios para alcançar um
estado de elevada desvinculação.
35 Kaushitoki-Upanisfuid,
-1.
Scchzlg Upanishad'$
des Veda, 3.a edição, pág. 26.
38 Tejobindtt-Upanishod 3. Cf. Dkussen, loc. cit., pág. 664.
37 Maíiábhârata I, 119, 8 e scg.
I,
D eussen,
O PROBLEM A DOS TIPOS NA CRIAÇÃO POÉTICA
237
despreza, quein está livre de todos os contrastes (nirdvtindva),
aquele cuja alma desconhece as paixões, alcançou a reden
ção perfeita'*.
"O que não comcte justiça nem injustiça, que renuncia
ao tesouro de (boas e más) obras acumulado desde existên
cias anteriores; aquele cuja alma se apazigua quando desa
parecem os elementos físicos; o que se mantém livre dos
contrastes, esse será redimido."S8
"Mil anos completos desfrutei as coisas dos sentidos e
ainda o apetite desperta, sempre de novo. Por isso quero
renunciar a eles e orientar meu espírito para Brabma, indi
ferente aos contrastes (nirdvandva), quero perder-me nas sel
vas.” 30
“Pelo respeito a todos os seres, pelo comportamento as
cético, pelo domínio de si mesmo e a ausência dc desejos,
pelos votos e pela vida imaculada, pela resistência aos con
trastes, o homem será partícipe da delícia do Brahma, isento
de qualidades.” 40
"O que está livre de orgulho c de cegueira, e superou
o defeito de ter dedicação a alguma coisa, o que permanece
fiel ao supremo Atman, aquele cujos desejos se extinguiram,
que não está contaminado pelos contrastes dc prazer e dor,
todos os que estiverem livres de cegueira, alcançam os luga
res imorredouros." 41
Como se deduz das citações42 acima, são, cin primeiro
lugar, os contrastes exteriores, como frio c calor, aqueles a
que tem de se negar a participação psíquica, mas depois tam
bém as extremas variações afetivas, como amor c ódio, etc.
As variações afetivas acompanham dc maneira constante, na
turalmente, todos os contrastes psíquicos, bem como (também
naturalmente) Iodas as concepções antagônicas, no plano mo
ral e outros. A experiência diz-nos «pie esses afetos são tan
33 Matiábhárata XIV, 19, 4 c scgs.
3® Bliágovata-Purâiia IX, 19, 18 e s«g. “Depois dc ter aboli
do o não calar c o silêncio, convertcr-se-á num Brahmana.” Brihadáranyaka-Upanis 3, 5. D e u s s e n , loc. cit., pág. 436.
*0 Bhâgai-cia-Purâna IV, 22, 24.
41 Gamda-Purâjia Pretakalpa 10, 110.
42 Agradeço a tradução dessas citações, para mim inacessíveis,
à amistosa ajuda do indiulogista Prof. Dr. Abcgg, de Zurique.
n ro s
238
p s ic o l ó g ic o s
to maiores quanto mais em contato estiver o momento exci
tante com a totalidade do indivíduo. É claro, portanto, o
desígnio da tendência hindu. Busca, efetivamente, a liber
tação dos contrastes da natureza humana, no intuito de al
cançar uma nova vida em Brahman, estado redentor e Deus
ao mesmo tempo. Brahman tem dc significar, por conse
guinte, a união irracional dos contrastes e, dessa maneira, a
sua definitiva superação. Embora os contrastes brahmànieos
procedam, como alicerce e criador do mundo, esses mesmos
contrastes terão de anular-se no Brahman, se quisermos que
signifiquem, ao mesmo tempo, o estado dc redenção. Eis
alguns testemunhos:
"Brahman ó sat e asat, o essente e o não-essente, satyam
e asatyam, a realidade e a irrealidade." 43
"Na verdade, há duas formas de Brahman, a saber: o
enformado e o amorfo, o imortal e o mortal, o estático e o
dinâmico, o que é e o alóm-ser.” 41
"O Deus, o criador de todas as coisas, o grande Eu, que
tem sua matriz perene no coração dos homens, é percebido
pelo coração, pela alma e pela mente. O que o sabe alcan
ça a eternidade. Quando a luz se extingue não há dia nem
noite, nem ser nem não-ser.” 45
“Duas coisas estão latentes no eterno, infinitamente ex
celso Brahman; saber e não saber. Efêmero é o não saber,
eterno é o saber, mas quem como senhor domina ambos é
Outro.” 40
"O Eu, menor que o menor, maior que o maior, escon
de-se no coração dessa criatura. O homem livre de apeti
tes e de aflições contempla a majestade do eu por obra e
graça do criador. Mesmo quieto, peregrina na distância;
ainda que repouse tranqüilo, vai a toda parte. Quem, senão
<3
D eussen,
Geschichte der Philosophie,
Bríhadâranyaka-U panishad
2,
3.
I,
2,
D kusskn,
pág.
60
117.
U panishad's,
pág.
(Trad, inglesa: . .die material and the immaterial, the mortal
and the immortal, the solid and the fluid, ‘Suit’ [ser, definido] c ‘Tya*
[um, indefinido].’’ Sacred B ook s, Vol. pág.
•*5 Çvetâçvatara-Upanishad 4. 17 c seg. Sacred Books, Vol. 15,
pág. 253.
46 Çvetâçurtara-Upanishad 5, 1. D e u s s e n , he. tit., pág. 304.
Sacred Books, Vol. 15, pág. 255.
■*<
413.
15,
1 0 7 .)
O PKOIJUEMA DOS TIPOS NA CHI AÇÃO POÉTICA
23 í)
eu próprio, é capaz de reconhecer esse Deus que rejubila
c não rejubila?” 47
“Uno — sem movimento, mas rápido, porém, como o
[pensamento —
Ir,alcançável em seu carro pelos deuses. . .
Quieto, ultrapassa todos os que correm.. .
Entrelaçaram-no já a primeira água e o deus do vento.
Repousa e não tem repouso,
Está distante, mas tão próximo!
Está no íntimo de tudo
E, entretanto, fora dc tudo.” 4K
“Mas assim como no alto, cm pleno espaço, um falcão
ou uma águia, após seu vôo, cansado dobra suas asas e des
ce para buscar pouso, também o espírito se precipita nesse
estado em que, adormecido, já não tem apetites nem sonha
visões.”
“Essa é sua verdadeira forma, livre dc anseios, de cala
midades e dc temores. Pois assim como quem está nos bra
ços da mulher amada não tem consciência do que é dentro
e do que é fora, também o espirito, nos braços do cu cognoscente (o Brahman), não tem consciência do que é fora e
do que é dentro.” '10 (Anulação do antagonismo sujeito-objeto.)
"Um oceano é este instante de contemplação, livre de
dualidade. Eis o mundo dc Brahman, ó rei! Assim o ensi
nava Yajnavalkya. Essa é sua meta suprema, seu máximo
triunfo, seu mais alto mundo c suprema delícia.” 50
“O que está em movimento e, contudo, está quieto,
O que respira c não respira, o que fecha os olhos,
<7 Kâthaka- Upanishad l, 2, 20 e seg. Sacred Booksh Vol. 15,
pág. 11. D
, loc. cit., págs. 27-1 e seg., traduz assim:
"Está
quieto e peregrino, entretanto, na distância; jaz c deambula por donde
quer. Quem, fora de mim, entende este ir e vir ondulante de Deus?''
eussen
*3
lçõ-Vpanishad 4 e 5 . D e u s s e n , loc. cit., p á g . 5 2 5 .
BriJiadâranyaka-Upanis/uul
D eu ssen , loc. cit.,
4, 3, 19, 21.
pág. 470.
&o Brihadúrar.yaka-Upanishad 4, 3, 32. Sacred
pág. 171.
15
Book,
Vol. 15,
TIPOS ISICOLÓCICOS
24 0
Esse sustenta a terra inteira e oniforme,
E converte o que é conjunto cm unidade.” 51
Estas citações demonstram que Brahman é a união e
anulação dos contrastes, situando-se, ao mesmo tempo, co
mo grandeza irracional, ' 2 acima deles. £ um ser divino c,
simultaneamente, o eu (por certo cm menor medida com o
conceito afim do Atman) e um determinado estado psicoló
gico que se caracteriza pelo seu alheamento das oscilações
afetivas. Como o sofrimento é um afeto, a libertação dos
afetos pressupõe uma redenção. A libertação das oscilações
dos afetos, quer dizer, da tensão dos antagonismos, equivale
ao caminho da redenção, que conduz gradualmente ao estado
brahmànico. Por conseguinte, Brahman também c, num cer
to sentido, não apenas urn estado, mas ainda urn processo,
uma “duração criadora-'. Não surpreende, pois, que o seu
conceito tenha sido expresso nos upanichades com todos os
símbolos que apontei como símbolos da libido.83 Eis os
depoimentos apropriados, que a seguir passo a transcrever.
b)
A Concepção Bramanista do Símbolo de União
“Quando se diz: Brahman nasceu no Oriente primeiro,
que Brahman nasce, dia após dia, no Oriente, como o sol.” 54
"Esse homem que está no sol é Paramexetin, Brahman,
Atman.” 50
“Esse homem que mostram no sol é Indra, é Prajàpati, é
Brahman.” 50
“O Brahman é uma luz semelhante ao sol.” 07
"O que este Brahman precisamente é: o que arde como
uma brasa igual que o disco do sol." 58
é
•
I,
51
1,
pág.
Atharvaveda
10,
8,
11.
D eussen,
Geschichte d. Philosophie,
320.
52
1’o r
53
Wandlungen und Symbole der Libido.
Çatapatha-Brílhmanajn 1 4 , 1. 3 , 3 . D e u s s e n , loc. d t.,
54
250.
ss
56
57
59
is s o
é
c o m p le t a m e n te
in c o g n o s c ív e l
e
in c o m p r e e n s ív e l.
Junc,
Taittiríya-Aranyakam 1 0 , 6 3 , 1 5 . D e u s s e n . loc. cit., pág.
Çánkhàtjatui-Bràhmanam 8 , 3 . D e u s s e n , loc. cit., p á g .
Vâjasoneyi-Somhitâ 2 3 , *18. D e u s s e n , loc. cit., pág. 2 5 0 .
Çatapatha-Bráhmanam 8 , 5 , 3 , 7 . D e u s s e n , loc. cit., p á g .
pág.
250.
250.
250.
O PROBLEMA DOS TIPOS NA CRIAÇÃO POÉTICA
241
“Brahman nasceu primeiro no Oriente.
Cobre o horizonte com seu fulgor, o propício;
As formas deste mundo, as ínfimas, as supremas,
Ele as revela, berço do que é e do que não é.
Pai do rutilante, gerador de tesouros;
Propagou-se pelo espaço, oniforme. Ao jovem.
Que c Brahman e que por Brahman (oração) faz-se crescer.
Celebram cantos de exaltação e louvor.
O Brahman criou as divindades, Brahman criou o
[Mundo:’ ™
Destaquei, cm tipo diferente, alguns trechos especialmente
significativos, dos quais se deduz que Brahman não é só
criador, mas também criado, o que advém sempre de novo.
O sobrenome “o propício” (cena) que se dá ao sol se em
prega noutras partes para qualificar o vidente favorecido
pela divina luz, que à semelhança do Brahman-Sol trans
forma também o espírito do vidente “em contemplação da
terra e do céu, de Brahman”. fi0 Esta íntima relação, iden
tidade até, da essência divina com o eu (Atman) do ho
mem, devia ser algo conhecido de um modo geral. Eis um
exemplo do Atharvaveda:
“O discípulo de Brahman vai animando ambos os mundos.
Nele estão unanimes todos os deuses.
Sustenta c carrega a terra e o céu,
E sacia cojn seu tapas o próprio mestre. 61
Aproximam-se do discípulo de Brahman, para visitá-lo,
Patriarcas e deuses, um por um e em multidão;
E a todos os deuses sacia, com seu tapas”. 0,2
O discípulo de Brahman é ele próprio uma encarnação
de Brahman. dc onde se depreende, indiscutivelmente, a iden
tidade que existe entre a essência de Brahman e um deter
minado estado psicológico.
í,!l
Taittirít/o-Brâhmanam
págs. 251
00
e
2.
8,
1;
11,
8.
8
c
segs.
D eussen,
Atharvaveda 2,
1;
4,
5.
01 Tapas: exercício, retiro para meditação. Cf.
lungcn und St/mbole der Libido.
«2
10
loc. cit.,
seg.
D eu ssen , loc. cit., pág. 279.
J u n jo ,
W a iu i-
t ip o s f s ic o l Ó g ic o s
242
“Impelido pelos deuses brilha além, insuperado, o sol;
Por ele adivinho a energia de Brahman, o supremo
[Brahman,
Dos deuses iodos e 0 que os torna imortais.
O discípulo de Brahman é portador do fulgor de Brahman,
A ele estão os deuses todos enlaçados.” C3
Brahman também é "pràna” = alento vital c princípio
cósmico, e é "vayu” = vento, que no Brihadâranyaka-Upanishad (3, 7) é tido como princípio vital cósmico e psíquico.84
“Aquele que é este (Brahman) no homem e aquele que
é esse (Brahman) no sol, ambos são um ."65
(Oração de um moribundo): “O rosto do verdadeiro
(o Brahman) está coberto por um disco dourado. Abre-o, ó
Pushari (Savitar, sol), para que possamos ver o rosto do ver
dadeiro. O Püshan, vidente único. Yama, Surya (sol), filho
de Prajàpati, estende-lhe teus raios e rocolhç-o. A luz, que
é a tua mais bela forma, eu vejo-a. Sou o que cie é (quer
dizer, o homem no sol)". fl'5
"E esta luz que alumia no céu, mais alta que todas as
coisas, no mundo supremo, sobre o qual já não há mais
mundos, é a mesma luz que está no íntimo do homem. De
que assim é, temos a prova evidente quando distinguimos o
teu calor aqui em contato com o corpo. ’ 1,7
"Como um grão de arroz, ou como um grão de cevada,
ou como um grão de milho, ou como a semente de um grão
de milho, assim é este espírito no meu eu íntimo, áureo
como uma chama sem fumaça. E é maior que o céu, maior
que o espaço, maior que esta terra, maior que todos os se
res. E a alma da vida, é minha alma; a ele, daqui entrego
minha alma, em meu derradeiro suspiro.” 69
Atharvavctfa 1 1 , 5 , 2 .3 o s c g . D k u s s e n , loc. cit., p á g . 2 8 2 .
D k u s s e n , Gcschichte d. Philosophic, I, 2 , p á g s . 9 3
e segs.
o®
TaUtiritja-Upanishad 2 . 8 , 5 . Sacred Books, Vol. 1 5 , p á g . 6 1 .
Cf. D k u s s e n , 00 Upanishad’s, p á g . 2 3 3 .
o* Brihadârantjaka-lJpaiúshad 5, 15, 1 e st-gs.
Siicrcd Books,
Vol. 15, p á g . 199. Cf. D e l s s e n , loc. cit., págs. 495) e seg.
«• Châiulogi/ü-1'panishod 3, 13. 7. Sacrcd Hooks, Vol. 1, p á g . ‘17. Cf.
D e u s s e n , Geschichtç der PhUosophie, 1, 2, p á g . 154.
•53 Çatapatha-BTàhnwnam 10, 6, 3.
D e u s s e n , Gcschichte d.
Philosophic, I. 1, j)ág. 26-1.
<33
<h
O PR0U U 2M A DOS
t ip o s
na
c r ia ç ã o
p o é t ic a
243
O Brahmau é concebido no Atharvavcdu (10, 2) como
o princípio vital, a energia criadora da vida de todos OS
órgãos e seus correspondentes instintos.
‘ Qucin é (jue entretece o fio da geração, que põe a semente e nela concentra as forças do espírito e a este dá
voz c expressão?” ei>
O poder d«) homem também promana de Brahinan. De
todos os testemunhos acima transcritos, cujo número pode
ria multiplicar-se, depreende-se indubitavelmente que o con
ceito Brahinan, em virtude de todos os seus símbolos e atri
butos, coincide com a idéia de uma grandeza dinâmica ou
criadora a que chamo “libido". A palavra “Brahinan” signi
fica: oração, expressão ou fórmula de encantamento e con
juro. o Verbo divino, a Sabedoria divina (veda), ;i Peregri
nação divina, o Absoluto e o estado dc bem-aventurança (dos
brahmanes). D e u s s e n salientou, como especialmente carac
terístico, o significado de oração.711 Brahman deriva de
btirh, correspondente ao latim fardre, o “recheio” 71 isto é,
a “oração" concebida como "a vontade do homem ascendente,
em busca do snnto e divino”.
Fssa derivação refere-se a um determinado estado psi
cológico, mais precisamente, uma concentração específica de
libido que, em virtude de uma transbordante inervação, dá
lugar a um estado geral de tensão associado à sensação de
enchimento, dc estar recheado. Por isso na linguagem popu
lar, quando uma pessoa sc refere a um semelhante estado
de tensão, costuma exprimir imagens alusivas ao desbordamento e diz que “está cheia", que “não pode agüentar mais”
ou “está prestes a rebentar”, ctc. O procedimento hindu pro
cura suscitar esse estado de estancamento ou acumulação de
libido, dc um modo metódico, fazendo refluir a atenção (a
libido) dos objetos e dos estados psíquicos, dos ‘ contras
tes’’. A cisão da percepção sensível e a extinção do conteú
do da consciência conduzem violentamente a um transbordamento da própria consciência, em geral (exatamente o mes
60
D eussen,
™
D e u s s e n *,
loc. cit.,
hc. cit.,
pág.
págs.
268.
240
e
scgs.
71 Corroborando esta versão, pode-se aduzir a ligação Brahman-prâna-mâtariçvan (o que se enche na mãe). Atharvaveda 11, 4, 15.
D e u s s e n , loc. cit., pág. 304.
214
TIPOS rSICOLÓGICOS
mo que sucede na hipnose), e tonificam assim os conteúdos
do inconsciente, quer dizer, as imagens primordiais que, por
sua universalidade e sua idade ilimitada, revestem-se de um
caráter cósmico e sobre-humano. De tal maneira se inter
ligam todas essas alegorias do sol, fogo, chama, vento, sopro,
etc., que desde sempre foram símbolos de uma força cria
dora e de um poder dinâmico do mundo. Como já me ocu
pei detalhadamente de todos esses símbolos da libido, numa
investigação especial,72 dispenso-me de fazer aqui repeti
ções. A idéia de um princípio universal criador é uma pro
jeção da percepção do ser vivo no próprio homem. Convém
conceber abstratamente esse ser como energia, para evitar
toda c qualquer falsa interpretação vitalista. Por outra parte,
é certo que também é preciso refutar, severamente, a hipó
tese do conceito de energia que é aventada pela moderna
energética. Com o conceito de energia está formulado o
conceito de contraste, visto que uma afluência energética re
quer necessariamente a existência de uma afluência oposta,
quer dizer, dois estados distintos, sem o que uma afluência
não pode ter, com efeito, uma efetivação concreta. Todo fe
nômeno energético (na realidade, todos os fenómenos o são)
põe em destaque dois pólos opostos: princípio e fim, alto e
baixo, quente e frio, antes c depois, origem e término, etc.,
ou seja, os pares antagônicos. A inseparabilidade do concei
to de contraste também é inerente ao conceito de libido. Os
símbolos da libido, de natureza mítica ou especulativa, es
tão representados, portanto, ou diretamente pelos contrastes
ou decompõem-se. de maneira bastante imediata, em contras
tes. Já me referi há tempo a essa íntima cisão da libido, ten
do esse critério meu suscitado oposição c discordância, sem
motivos certos, em minha opinião, visto que a associação ime
diata de um símbolo da libido com o conceito em contraste
me dá toda a razão. Essa mesma associação encontramos
também no conceito 0 11 símbolo de Brahman. De um modo
muitíssimo interessante encontramos a forma Brahman como
oração e ao mesmo tempo como força criadora pré-cósmica
(resolvida esta nos contrastes de sexo) num hino do Rigvcda:
“E esta oração do cantor, que de si mesma se amplia,
Tornou-se uma vaca* que antes do inundo já era.
'2
J u n g , Wandlungen titul Symbole der Libido.
Symbole der Wandlung.
Nova
e d iç ã o :
O PROBLEMA DOS TIPOS NA CRIAÇÃO POÉTICA
245
Neste seio de Deus, convivendo,
Pupilos cki mesma criação os deusas são.
Que aconteceu com a madeira e com a árvore
De que o céu c a terra foram extraídos,
Ambas livres da velhice e eterno amparo,
Quando os dias se extinguem e antes das auroras?
Tão grande quanto ele já nada existe.
Ele é o touro que sustenta o céu e a terra,
Cinge, como se fosse uma pele, a manta crivada de nuvens,
O Senhor, quando — como Súri/a vai em seu earro,
[tirado por oveiros.
Como raio de sol, irradia sobre a vastidão da terra,
liuge no intimo dos seres, como o vento sobre a neve;
Quando vagueia, como Mitra e Varuna,
E reparte fulgor de brasas, como no bosque Agni.
Quando, fustigada, a vaca o pariu,
Criou o que se move e. livremente pasta e não se move —
—
O filho foi parido mais velho do que os pais.. .'*73
Noutra forma, encontramos essa natureza antagônica as
sociada ao criador do mundo expressa também no Çatapatha -Brâhmanam (2, 2. 1): “Prajâpati 74 estava, no principio, so
zinho no mundo, c pensou: Como poderei reproduzir-me?
Esforçou-se e exercitou-se no tapas ; 75 e cis que de sua boca
gerou um Agni (o fogo); c porque de sua boca o gerou 70
é que Agni ficou sendo o devorador dc alimentos. . . . Prajâpati meditou: como devorador de alimentos criei este Agni
de mim próprio. Mas fora dc mim próprio nada existe que
possa comer, pois então a terra estava completamente nua;
não havia ervas nem árvores. Isso estava em seu pensamen
to. Então Agni voltou-se contra ele, de goelas escancara
das. .. Foi nessa ocasião que sua própria grandeza lhe fa
lou desta maneira: 'Sacrifica!’ Prajâpati reconheceu e disse
para si mesmo: ‘Minha própria grandeza me falou’. E sacri73 Bigveda 10. 31. 6. D k p s s k .v , for. Hl.. pAgs. 140 a seg.
71 Princípio criador cósmico = libido.
Taitlirtija-Sa mhitâ 5.
5. 2, 1: "As criaturas, depois de havê-las criado, impregnou de amor”.
D k c s s e k , loc. cit., pág. 191.
73 Ensimesma mento, ascese, introversfio.
7I* A criação do fogo com a boca tem uma curiosa relação com
a linguagem. Cf. J w c , Wandfungen und Stjmhplç der JAbidn.
TIPOS PSICOLÓGICOS
24 6
ficou... Então subiu o que resplandece #alcm (o sol). E
ergueu-se o que purifica (o vento). Assim, sacrificando,
Prajàpati reproduziu-se e, ao mesmo tempo, salvou-se da mor
te que, como Agni, queria devorá-lo...” 77
O sacrifício supõe sempre a renúncia a uma parte valio
sa. donde resulta que se ameace o oficiante dc ser devorado,
quer dizer, não sc verifica uma transformação no oposto, mas
uma conjunção e conciliação, da qual surge, no momento de
vido, uma nova forma dc libido ou nova forma vital, o sol
e o vento desencadeados. Noutra passagem do Çatapatha•Brâhmanam, diz-se que uma metade da Prajàpati é mortal,
a outra metade imortal.7*
De modo semelhante, assim como Prajàpati se divide em
touro c vaca, também se divide nos dois princípios: Manas
(entendimento) e Vâc (verbo). “Prajàpati estava sozinho
no mundo, vâc cra o seu eu c vác era o seu segundo (o seu
alter ego). E meditou: quero que este vâc seja criador, que
se solte e transcenda os espaços. Libertou então a vâc e
este partiu c encheu o mundo.” 79 O interesse especial deste
trecho reside no fato do verbo ser aí considerado como um
movimento criador de extroversão da libido, como diástole,
na acepção gocthiana. Fncontramos um paralelo no seguin
te trecho: “Prajàpati estava neste mundo, na verdade, c dele
o seu segundo era vâc, com quem praticou a cópula. Da
sua gravidez nasceram estas criaturas e vâc reintegrou-se em
Prajàpati”. fi0 Em Çaiapatha-Brâhmanam faz-se uma trans
cendente definição do próprio vâc: “Na verdade, vâc 6 o
sábio Viçvakarman, que por intermédio do vâc fez este mun
do inteiro”. 81 Noutro trecho, debate-se a questão da prima
zia entre manas e vâc: “Aconteceu uma vez que o enten
dimento e o verbo disputaram entre si a primazia. O enten
dimento falou desta maneira: 'Sou melhor que tu, pois nada
dizes que eu não tivesse pensado antes...’ E o verbo res
loc. cit., p á g s . 180 e scg.
77
D ecssen ,
78
c f . o m o tiv o dos d ió sc u ro s c m
bole der Libido.
70 Pancavinça-Brâhmanam 20,
14,
Jv n c ,
2.
Wandlungen und Sym
D eussen,
loc. cit., pág-
D eussen,
Geschichte d.
206.
so W e h e r , Indische Studien, 9 , 477.
Philosophie, I , 1, p á g . 206.
8, 1, 2, 9. D e v ss e n ,
lo c . cit.,
pág. 207.
O PROBLEMA DOS TIPOS NA CRJAÇÃO POÉTICA
2-17
pondeu: ‘Sou melhor que tu, pois proclamo e divulgo o que
por ti é conhecido’, Para que decidissem a questão, recor
reram a Prajâpati, que concordou com o entendimento e as
sim se explicou: 'Por certo o entendimento é melhor que
tu, pois o que o entendimento gera, tu imitas e segues no
seu rastro. Mas o pior costuma imitar o que o melhor faz'.” 82
Este trecho evidencia ambos os princípios em .sua natu
reza de funções psicológicas: manas como introversão da li
bido, gerando-se um produto íntimo, c vâc como função de
alienação, de extroversão.
Os trechos acima demonstram que o criador do mundo
também pode ser dividido em partes antagônicas, manas e
vâc. Ambos os princípios sc conservam, como D e u s s e n su
blinhou, em Prajâpati, criador do mundo, o que se pode de
duzir. aliás, da seguinte passagem: “Prajâpati desejava: que
ro ser muitos, quero reproduzir-me. K meditou em silen
cio cm seu manas. O que era em manas metamorfoseou-se
cm Brihat; 83 e então pensou: 'isto jaz em mim como fruto das
minhas entranhas e quero pari-lo por meio de vâc. E assim
criou v â c .. : ”
Esta passagem evidencia ambos os princípios em sua
natureza dc funções psicológicas: manas como introversão da
libido, gerando um produto íntimo, e vâc como função de
alienação, de extroversão. Com este preâmbulo poderemos
compreender perfeitamente outra passagemS5 respeitante a
Brahman: “Brahman criou dois mundos. Ao ingressar na
metade de além (do mundo), meditou: ‘Como poderei al
cançar esses mundos c penetrar neles?’ E alcançou esses
mundos c neles entrou por ambos, pela Forma e pelo S o m e ...
Estes são os dois grandes monstros de Brahman. Quem conhcce os dois grandes monstros de Brahman converte-se tom
bem em grande monstro. Estas são as duas grandes apari
ções do Brahman
’.
pág.
$2 Çaicpatha-Brâhmanam
194.
1, 4, 5, 8-11.
s:í
Nome d c um Sâman =
8*
Pancat;inça-Bràhmanam
83
o seg.
Deussen,
loc.
cit.,
cântico.
7,
(j.
Çatapatha-Bráhmanam 11,
2,
D eussen,
3.
loc. cit.,
D eussen,
pág.
205.
loc. cit., págs.
259
TIPOS PSICOLÓGICOS
Pouco depois, considera-se a forma como manas ("manas
c a forma, pois pelo manas se sabe que essa é a forma") e o
nome como vâc ("pois por meio de vâc se faz o nome”).
Os dois “monstros” de Brahman aparecem, portanto, como
duas funções psíquicas por meio das quais o Brahman "al
cança e entra” em dois mundos, o que, evidentemente, quer
expressar uma relação. Por intermédio de manas, a forma
das coisas é “apreendida” ou "admitida”; com vâc diz-se, por
extroversão, o nome das coisas. Ambos são relações, adap
tações ou assimilações das coisas. Ambos os monstros se
imaginam também personificados, naturalmente, fato a que se
refere também o outro nome empregado — “aparição” —
Yaksha — que significa, simplesmente, demônio ou ser sobre
natural. A personificação supõe sempre, psicologicamente,
uma relativa independência (autonomia) do conteúdo per
sonificado, quer dizer, uma relativa divergência dentro da
hierarquia psíquica. Tal conteúdo não obedece à reprodu
ção arbitrária, registrando-se, pelo contrário, uma reprodução
espontânea ou, do mesmo modo, esquivam-se à consciência. 8<í
Semelhante cisão apresenta-se, por exemplo, quando existe
uma incompatibilidade entre o eu e um determinado com
plexo. Sabemos que tal dissensão se observa com bastante fre
qüência entre o eu e o complexo sexual. Mas existem outros
complexos que também podem cindir-se como, por exemplo,
o complexo de poder, isto é, a soma de todas as aspirações,
esforços e planos orientados para a realização efetiva do po
der pessoal. Mas há ainda outra espécie de dissidência, que
c a seguinte:
A cisão do cu consciente, em combinação com uma dada
função, e dos demais componentes da personalidade. Est;<
cisão pode-se caracterizar como uma identificação do cu com
uma função determinada ou mesmo com um grupo de funções.
Esta cisão verifica-se com bastante freqüência naqueles que
mergulham enormemente numa de suas funções psíquicas, dis
tinguindo-a marcantemente como única função consciente de
adaptação. Um bom exemplo literário de um ser dessa ín
dole 6 Fausto, no princípio da tragédia. As demais partes
integrantes da sua personalidade aproximam-se na forma do
cão e depois na de Mefistófeles. Embora Mefistófeles repre
sente também o complexo sexual, como se pode demonstrar
8® Cf. Juno, über die Psychologie der Dementia praccox.
O PROBLEMA DOS TIPOS NA CRIAÇÃO POl-TICA
2*19
inegavelmente por numerosas associações, seria injustificado,
em minha opinião, considerar-se Mefi.stófelcs corno um exem
plo de complexo cindido, como sexualidade reprimida, por
exemplo. Essa explicação seria demasiado estreita, pois Mefistófcles é algo mais que pura sexualidade; também é poder,
na verdade, é a vida toda de Fausto, se excetuarmos o pen
sar c investigar. Isto demonstra, dt* maneira óbvia, o êxito
do pacto com o diabo. Que perspectiva de possibilidades insuspeitadas se abre perante um Fausto rejuvenescido! Acho
acertada, portanto, a interpretação segundo a qual Fausto
identifica-se com uma função, separando-se com ela do con
junto da sua personalidade. Mais tarde, o pensador separa-sc de Fausto na forma dc Wagner.
A faculdade consciente da unilateralidade è um sinal de
elevada cultura. A parcialidade involuntária, pelo contrário,
quer dizer, o ser unilateral por não poder nem saber ser ou
tra coisa, i sinal dc barbárie, Por isso se encontram as dife
renciações mais parciais entre os povos bárbaros, por exem
plo, os fenômenos, repulsivos ao bom gosto, do ascetismo
cristão e os fenômenos paralelos dos iogues e do budismo
tibetano. Para o bárbaro, inclusive, existe sempre o gran
de perigo de poder vir a ser vítima de uma parcialidade qual
quer, perdendo assim de vi^ta sua personalidade como coisa
íntegra e total. Com esse conflito abre, por exemplo, a Épica
dc Gilgamesh. A unilateralidade de movimento produz-se no
bárbaro com uma intensidade demoníaca. Alguma coisa exis
te na cólera de Berserker e na frenética corrida de Amok. A
parcialidade bárbara pressupõe sempre um certo grau de des
figuração do instinto que falta no primitivo, pelo que este
costuma ainda estar livre da parcialidade bárbara.
A identificação com uma determinada função conduz ime
diatamente a uma tensão dc contraste, Quanto maior pres
são se exerça sobre a parcialidade, quer dizer, quanto mais
irresistível for o ímpeto da libido que influi num sentido,
tanto mais demoníaca será a própria parcialidade. Com efei
to, o homem fala de estar possesso ou de ser induzido magi
camente, quando é arrastado por sua própria libido indomá
vel e desenfreada. Assim, pois, manas e vâc são, na verdade,
grandes demônios, já que podem exercer uma tão formidá
vel influência sobre os homens. Todas as categorias que exer
cem uma grande influência sempre foram concebidas como
deuses ou demônios. Assim, manas foi personificado pela
Tiros rsicoLÓcicos
25 0
gnóstica 11 0 sinuoso noas o vdc no logos. Vãc comporta-se
em relação a Prajâpati como logos em relação a Deus. Por
assim dizer, experimentamos cotidianamente até que ponto a
introversão c a extroversão são demônios. Vemos <*m nossos
pacientes e sentimos em nós próprios com que força e de
que maneira irresistível a libido aflui e reflui, ou de que ma
neira inabalável se fixa numa disposição introvertida ou ex
trovertida. Assim, chamar monstros de Brahman a manas e
vdc é algo que corresponde inteiramente ao fato psíquico de
que a libido, quando manifesta sua presença, cinde-se ime
diatamente em duas fluências que, de um modo regular, al
ternam tcmporalmentc, mas que também se apresentam, por
vezes, ao mesmo tempo, em forma de conflito de fluxo e re
fluxo. O demoníaco de ambas as fluências está em seu cará
ter irresistível c em sua prepotência. É certo que essa qua
lidade só se torna ostensiva quando o instinto do primitivo
já se encontra restringido em sua maior parte, impedindo-se
dessa maneira uma reação de natureza prática contra a unilateralidade, c quando a cultura não progrediu ainda tanto
que o homem já domine a sua libido a ponto de assistir, por
seu arbítrio e deliberação, às influências de introversão e ex
troversão da libido.
c)
O Símbolo de União como Norma Dinâmica
Examinamos o desenvolvimento do princípio redentor par
tindo dos pares antagônicos e a origem destes partindo do
mesmo princípio, citando fontes hindus, obtendo assim as
bases informativas de um acontecimento psicológico, subor
dinado, evidentemente, a normas que se coadunam, sem difi
culdade, aos conceitos da nossa psicologia moderna. Essa
impressão de acontecimento subordinado a norma é-nos tam
bém transmitida pelas fontes hindus, ao identificarem Brah
man e Rita. E o que é Rita? Rita significa ordem, determi
nação. orientação, decisão, uso sagrado, preceito, lei divina,
o certo, o verdadeiro. O seu significado fundamental, segun
do a prova etimológica, é junção, ritmo (certo), orientação,
diretriz. O acontecimento condicionado por rifa enche o
mundo inteiro, mas o rita evidencia-se, sobretudo, nos proces
sos naturais que se conservam sempre idênticos a si próprios
e que imediatamente despertam a impressão de uma reafirma
ção regular: "Segundo o rita refulgiu a aurora do céu nas*
O PROBLEMA DOS TIPOS NA CRIAÇÃO POÉTICA
251
cicia”. Os pais ordenadores do mundo "chegaram, segundo o
rita, até o cume <lo céu, ao sol”, que C, de próprio, "o rosto
visível e iluminado do rita”. Pelo céu corre a roda de doze
raios do rita, cm seu curso de um ano e que jamais envelhece.
Agni é o nome do filho de rita. Nas obras humanas, rita
atua como a moral que impõe a verdade e o caminho certo.
“Para quem obedece ao rita o caminho 6 belo de percorrer
e sem obstáculos”
Também no culto se verifica a presença do rita, na me
dida em que supõe a confirmação mágica ou a produção do
evento cósmico. Assim como, obedecendo ao rita, correm os
rios c se acende a aurora, também o sacrifício sc inflama "sob
o impulso de rita”. 87 Pelo caminho do rita, Agni leva o
sacrifício aos deuses. "Aos deuses conjuro, limpo cie ma
gia; com o rita faço minha obra e crio meu pensamento",
diz o oficiante. O rita não aparece personificado nos vedas;
por outro lado, segundo B e r o a ic n e , é-lhe inerente uma certa
dose de essência concreta. Como rita exprime uma orien
tação, um rumo do evento, há um "caminho de rita", há
um “auriga” ou piloto88 e há a nave de rita, estabelecendo-se ocasionalmente um paralelo com os deuses. Assim, por
exemplo, diz-se do rita o mesmo que se diz de Varuna. Tam
bém Mitra, o velho deus do sol. é referido a rita (como no
caso antecedente). De Agni se diz: “Serás convertido em Va
runa se aspiras ao rita”. 80 Os deuses são os guardiães de
rita.00 Eis algumas citações relacionadas com esta questão.
“Rita é Mitra, pois Mitra é o Brahman e rita é o Brahman.” 01
“Oferecendo a vaca aos Brahmanes conquistam-se todos
os mundos, pois neles se encerra ritam. o Brahman e o tapas
também.” 02
87 Alusão no caoalo (Pferd), em relação com a natureza dinâmica
do conceito de rita.
A Agni é dado o nome de “auriga do rita”. Vedic TJymns,
Sacred Books, Vol. *46, pág. 158, 7; pág. 160. 3; pág. 229, 8.
*9
C f . Oi.r>K\'REnc, Nachrichten der Göttinger Gesellschaft der
Wissenschaften, 1916-, págs. 167 e segs. Religion des Veda, págs. 194 c
5e.es. Agradeço estes elementos à amabilidade do Doutor Abcgg, de
Zurique.
fO
D h v s s e n , Geschichte d. Philosophie, I, 1, p á g . 192.
s* Çatapatha-Brâhmanam 4. 1, 4. 10. Sacrcd Books, Vol. 26,
pág. 272.
52
A t h o r v a o e d a 10, 10 , 3 3 .
D e v s s e n , lo c . c if., p á g . 2 3 7 .
25 2
TIPOS TSICOLÓCICOS
"A Prajápati chama-se o primogénito do rita.” 03
“Os deuses obedeceram às leis do rita.” 1,4
"Ele, o que viu o incógnito (Agni), ele, que se aproxi
mou do rio de rita.” *5
“Oh, sabedor do rita, sabe o rita!
rita.” *«
Penetra no caudal de
O penetrar alude ao ofício de Agni, a que esse hino se
consagra. (A Agni também aqui se chama o “vermelho tou
ro do rita”.) No ofício de Agni, a penetração pelo fogo ó o
símbolo mágico da recriação da vida. A penetração do cau
dal de rita reveste-se, evidentemente, do mesmo significado,
quer dizer, dele emergem novas correntes vitais, a libido
emancipação de todos os freios. 97 O efeito produzido pela
penetração ritual plutôniea ou pelo recitado nos hinos é con
siderado pelos crentes, naturalmente, como um efeito mági
co do objeto, mas, na realidade, supõe um “encantamento
do sujeito, quer dizer, uma intensificação do sentimento vital,
uma libertação, um aumento de força vital, um restabeleci
mento do potencial psíquico.
Assim, diz-se: “Embora (Agni) seja esquivo e fugi
dio, a oração vai direta a ele. Elas (as orações) produziram
os caudalosos rios do rita”. es
O aparecimento do sentir vital, do sentimento de uma
energia fluente, 6 comparado, com efeito, ao nascer de um
manancial, quando na primavera se derretem os gelos do
inverno, ou com as chuvas que vêm depois da seca. p0
s*3 Atharvaveda 10. 12, 1, 61. Sacred Books, Vol. 42.
Vedic Jlymns. Secred liopks, Vol. 46, p.i£. 54,
Loc. cit., pág. 61.
Loc. cit., pág. 393.
9' A libertação da libido verifica-se por meio do exercício ritual,
o que pressupõe um fornecimento de libido conscientemente aplicável,
de libido suscetível de ser controlada. A libido é levada de um esta
do instintivo e incontrolável a um estado de disponibilidade. Ê isto
o que se descreve no versículo seguinte: "Quando os soberanos, os
generosos senhores, o extraíram (a Agni) do abismo, da forma do
to u r o ...” ( Vedic líym ns, loc. cit., pág. 147).
f'8 Loc. cit., pág. 147.
Cf. o "Cântico de Tishtriya”, c m J u n g , W andlungcn und
Syrnbole der Libido.
O PROBLEMA DOS TIPOS NA CRIAÇÃO POÉTICA
25 3
O seguinte trecho mostra-nos uma perfeita coincidência
com tudo isso: “As mugidoras vacas leiteiras do rita ...
tinham seus úberes transbordantes. Os rios, que desde lon
ge clamavam pelo favor (dos deuses), fenderam os rochedos
com suas ondas”. 100
Esta imagem alude, claramente, a uma forte pressão da
libido, provocando a sua descarga. Rita aparece aqui como
detentor do benefício, dono das “vacas mugidoras”, verdadei
ro manancial da energia libertada.
Com a acima citada imagem da chuva, aplicada à liber
tação da libido, coincide o seguinte trecho: “Dissipam-se as
neblinas, estrondeiam as nuvens. Depois de conduzir pelo
caminho mais reto o que se farte com o leite de rita, Aryamnn,
Mitra e Varuna enchem o saco de couro (a nuvem) que cer
ca a terra no seio do de baixo (da atmosfera)”. 101
Agni é o que se enche eoin o leite do rita, aqui com
parado com a energia do relâmpago que irrompe das nu
vens acumuladas e prenhes de chuva. Rita aparece-nos como
verdadeira fonte de energia, da qual também jorra Agni,
como explicitamente se diz nos Hinos Védicos. 102 Rita é
também caminho ou rumo, quer dizer, uma afluência subor
dinada a uma diretriz ou norma.
“Aclamaram com veemência os rios do delta que se ocul
tavam no lugar do nascimento de Deus, em sua matriz. Quan
do jazia, dividido, no seio das águas, bebeu, etc.” 103
Este trecho completa o que antes se disse a respeito do
rita como fonte de libido, em que Deus reside c da qual se
faz que ele surja, pelo procedimento sagrado. Agni é a
aparição positiva da libido antes cm estado latente, é o ze
lador e o agente do rita, o “auriga’' ou condutor que aparelha
as duas éguas vermelhas c de longas crinas de rita.104 In
clusive, domina o rita como se fosse um cavalo pela rédea.105
Aproxima os deuses do homem, quer dizer, a energia e os be100
101
102
103
101
105
Vcdic Hymns, loc. cit., págs. 88 c seg.
Loc. cit.. P*R- 103.
Loc. cit., P*g- 161. 7.
Loc. cit., P*g- 160, 2.
Loc. cit.. Pág- 244, 6, c pág. 310, 3.
Loc. cit., P*g- 362, 3.
25 4
TIPOS PSICOLÓGICOS
nefícios que dolos promanam, o que equivale apenas a de
terminados estados psicológicos em que o sentimento e âs
energias vitais fluem mais livres, mais felizes, c com elas se
funde o gelo. N i e t z s c h e apreendeu o significado desse 'es
tado naqueles seus maravilhosos versos:
Tu, que com o dardo flamejante,
Fundiste o gelo de tninfialma,
Que, bramindo, se precipita já )>ara o mar
Da suprema esperança.
(Mote para Sanctus Januarius)
Com isto coincidem as seguintes invocações:
"Que sc abram as portas divinas, as que aumentam o
r it a ... Os ansiados portos, que façam surgir us deuses. Que
de noite e pela madrugada. . . se estendam juntas, nos gra
mados do sacrifício, as jovens mães do rita ..." etc. 100
É inegável a analogia com a saída do sol. Rita aparece
como o sol, pois que da noite e do crepúsculo nasce o sol
novo.
“ó divinos portões, de tão fácil acesso, abri vos para
nosso amparo! Cumulai de bem-aventurança o sacrifício,
cada vez mais: Eis que nos aproximamos (com orações)
pela noite c pela m an h ã... das que aumentam a força da
vida, às duas jovens mães do Rita” 107
Creio não ser preciso acumular maior número de teste
munhos demonstrativos de que o conceito de rita é um sím
bolo da libido, como o sol, o vento, etc. Só que o conceito
do rita c dc natureza menos concretista e contém o elemen
to abstrato da orientação determinada e da norma, quer d i
zer, do rumo ou afluência determinados e subordinados a
uma ordem ou norma, ft, portanto, um símbolo já filosó
fico da libido, comparável ao conceito estóico da etnaçuévr^
Como se sabe, nos estóicos nuuoum] tem o significado de
calor criador primordial e, ao mesmo tempo, de certa afluên
cia subordinada ã norma (donde vem o seu significado dc
10«
Loc. cit., pág. 153 e pág. 8.
107
Loc. cit., pág. 377.
O PROBLEMA DOS TIPOS NA CRIAÇÃO POÉTICA
255
“coação dos astros” ou destino). Tais atributos convêm na
turalmente à libido como conceito psicológico de energia. O
conceito de energia inclui eo ipso a ideia de uma afluência de
determinada orientação, pois a afluência verifica-se sempre
da tensão superior para a inferior. O mesmo acontece com
o conceito de libido, cujo significado é, apenas, o de ener
gia da afluência vital. A libido como conceito de energia é
uma fórmula quantitativa para os fenômenos vitais que, como
se sabe, são de diferentes intensidades. A libido, como a
energia física, passa por todas as transformações possíveis,
que se manifestam através das fantasias do inconsciente e dos
mitos. Essas fantasias são, desde logo. auto-reproduções dos
processos energéticos de metamorfose que, por conseguinte,
obedecem a leis determinadas, seguem um "caminho” deter
minado em sua afluência. Esse caminho pressupõe .a curva
do ótimo de energia descarregada, assim como o correspon
dente rendimento de trabalho. Portanto, esse caminho 6 a
expressão pura e simples da energia que flui e se manifesta.
O caminho é rita, é o "rumo certo”, o rio de energia vital, a
libido, o curso determinado pelo qual é possível uma afluên
cia sempre renovada, tal como um rio que corre sempre pelo
seu leito. Tal caminho é também o destino, na medida em
que o destino depende da nossa psicologia. Enfim, e o rumo
da nossa própria determinação e da nossa lei. Seria basi
camente errado afirmar que semelhante orientação é apenas
um naturalismo, assim expressando a opinião de que o ho
mem se entrega aos seus instintos. Parte-se do princípio, as
sim, que os instintos impelem sempre “para baixo” e que o
naturalismo c um deslizar constante e imoral por um plano
inclinado. Nada tenho a opor aos que assim entendem o
naturalismo, mas devo assinalar que o homem a si mesmo
abandonado e que, portanto, teria todas as oportunidades para
deslizar por planos análogos (o-primitivo, por exemplo) tem
uma moral e uma lei que, no rigor austero de suas exigên
cias, superam bastante, muitas vezes, a nossa moral cultural.
Não levamos em conta o fato do bem e do mal poderem ser
no primitivo diferentes dos nossos. O mais importante é que
o “naturalismo” dele conduz à instituição das leis. A morali
dade não c um mero equívoco inventado no Sinai por um
Moisés soberbo e ambicioso; é algo que diz respeito às leis
vitais, algo que se produz no processo normal da vida, como
uma casa. um barco ou qualquer outro instrumento de cultu
256
TIPOS FSICOLÓCICOS
ra. A fluência natural da libido, esse rumo intermédio, su
põe, precisamente, uma obediência total às leis básicas da
natureza humana e é simplesmente impossível instituir um
princípio moral mais elevado que essa coincidência com as
leis naturais, cuja concordância orienta a libido no sentido
onde se encontra o ótimo vital. Este ótimo vital não está
ao lado do egoísmo brutal, pois o homem jamais alcançará o
ótimo vital na linha do egoísmo; no fundo, sua natureza é tal
que a alegria causada por ele ao próximo constitui algo vital
para o homem. O ótimo vital também não é viável através
de um desenfreado impulso individualista de supra-ordenação, pois o elemento coletivo é tão poderoso no homem que
uma ânsia comunitária iria amargurar seu gozo de um indi
vidualismo nu e cru. ü ótimo vital só se pode alcançar obe
decendo às leis da fluência da libido, nas quais a sístole e
diástole se sucedem, que dão a alegria e a necessária limi
tação e que estabelecem as tarefas vitais da natureza indivi
dual, sem cujo cumprimento o ótimo vital jamais poderá ser
atingido.
Se o objetivo desse caminho consistisse apenas no indiví
duo deixar-se levar, como pretende o que se queixa de “na
turalismo", a mais profunda especulação filosófica que a liistória do espírito efetivamente conhece não teria qualquer jus
tificação. Tendo em consideração a filosofia upanichade, dir-se-ia que o alcançar-se o caminho certo não será missão a
que se possa rigorosamente chamar fácil. A nossa suficiên
cia ocidental, perante as concepções hindus, revela a nossa
essência bárbara, ainda muito longe de imaginar sequer a
profundidade realmente extraordinária dos seus pensamentos
e do rigor surpreendente da sua psicologia. Nossa educação
é ainda tão deficiente que precisamos de leis impostas de
fora para dentro e de sentinelas, por exornplo, o padre que
nos faça saber o que está bem feito e como se deve praticar
ei bem. E como ainda somos tão bárbaros, a confiança nas
leis da natureza humana e do caminho humano parecem-nos
um naturalismo perigoso c imoral. Por quê? Porque no bár
baro, sob a fina camada da cultura, surge em seguida a fera
e o indivíduo teme-a, com toda a razão. Mas a fera não se
doma enjaulando-a. Não há moral sem liberdade. Quando
um bárbaro deixa a sua fera à solta, isso não significa liber
dade, mas falta de liberdade. Para poder ser livre, é preciso
ter antes superado a barbárie. Isfo consegue-se, em princí
O PROBLEMA DOS TIPOS NA ClllAÇÃO POÉTICA
25 7
pio, ([uando os alicerces e a força motivadora da moral são
percebidos e sentidos pelo indivíduo como partes integrantes
da sua própria natureza e não como limitações exteriores. Mas
como poderá o homem chegar a essa percepção e a essa intui
ção, sc não for pelo conilito dos contrastes?
d)
O Símbolo de União na 1'ilosofia Chinesa
O conceito de um caminho ou rumo intermédio dos con
flitos encontra-se também na China, sob a forma do tau.
O princípio de tau está associado, geralmente, ao nome de
L ao T sf. ( circa 601 A. C.). Mas o conceito é mais antigo
que a Filosofia de L a o T se . Relaciona-se com determinadas
representações da velha religião popular de “tau”, o “cami
nho" do céu. Esse conceito corresponde ao ríta védico. 'Tau”
significa rumo, senda, caminho, método, princípio, força da
natureza ou força vital, processos naturais subordinados a
normas, cosmovisão, causa fenomenológica, o justo, o bom c
a ordem moral do mundo. Alguns traduzem também “tau”
por deus, com certa justificação, pois '‘tau” reveste-se do mes
mo teor de substancialidade concreta que rita.
Passo a transcrever, a seguir, alguns testemunhos extraí
dos do Tao-te-king, o livro, clássico de L a o T s e :
“Não sei de quem é filho (Tau); pode-se considerá-lo
existente antes da divindade.” 108
"Existiu algo indeterminável e perfeito em ação, antes de
haver (erra e céu. Que tranqüilo era e que amorfo, só para
si, imutável, abrangendo tudo, inesgotável! Pode-se consi
derá-lo mãe de todas as coisas. Ignoro seu nome, mas cha
mo-lhe Tau.” 100
L a o T se compara o tau com a água, para definir sua
csscncia: “O benefício da água revela-se no fato de fazer bem
a todos e, além disso, busca sempre, sem oposição, o lugar
mais baixo que todos os homens evitam. Ê-lhe inerente, pois,
algo próprio do t a u .. .” A idéia do “plano inclinado” não
poderia exprimir-se com mais acerto.110
íoâ Tao-te-king, Cnp. 4.
100 Lee. cit., Cap. 25, Cf.
I, 3, págs. 093 e scg.
!1 °
Lee. cit., Cap. 8. Cf.
D eussen,
Ceschichte d. Thilosophic,
D eussen,
loc. cit.,
pág.
701.
TIPOS PSICOLÓCICOS
258
"O que nunca tem apetites, contempla sua essência.
O que tem apetites contempla sempre sua
[exterioridade.” 111
Ê inegáv el a a fin id a d e com os pensam entos bram ànicos
fu nd am e nta is, sem q u e p o r isso q ueiram os afirm ar q u e tenha
h a v id o a necessidade for-çosa de u m contato direto. L a o T se
é u m pensador p ro fu n d a m e n te origin al, e a im ag e m p rim or
d ia l q u e serve de base p a ra o conceito rita-brahman-atm an
e p a ra o “tau ‘' é algo q u e se reveste d c u m caráter generica
m e nte h u m a n o ; e com o conceito p rim itiv o de energia, com o
"força p síq u ic a ”, ou c o m o se q u e ira chamar-lhe, encontra
mo-la p o r to da parte.
“Quem conhece o eterno é infinito. Infinito, logo justo.
Justo, logo rei. Rei, logo do céu. Do céu, logo de tau.
Logo, de tau constantemente, sacrificando o corpo sem cor
rer riscos.” 112
O conhecimento de “tau” produz, assim, o mesmo efeito
de ascensão e redenção que o conhecimento de Brahman.
Chega-se à unificação com o “tau’', com a infinita “duração
criadora”, para conjugar convenientemente este novo conceito
filosófico com o seu antigo parente, pois “tau’' também é o
curso do tempo.
Tau é uma grandeza irracional, logo inaprecnsível: “Tau
é essência, mas inapreensível e incompreensível”. 113
Tau também não é algo que é: “Todas as coisas sob o
céu têm sua origem nele como o que é, mas ele, isso que é,
tem sua origem no que não é”. 114 “Tau é incógnito, anô
nimo.” 116 Evidentemente, tau é uma conjunção irracional
dos contrastes c, por conseguinte, um símbolo que é e que
não é.
“O espirito d o ta u é im ortal e chama-se a p ro fu n d id a d e
fe m inina. A porta d a p ro fu n d e za fe m in in a chama-se céu e
a d a terra raiz.” 110
Loc. cit., Cap. 1.
Cf. D k u s s k .v , loc. cit., pág. (394.
u s Loc. cit., Cap. 16.Cf. D e v s s e n , loc. cit., pág. 694.
n a Loc. cit., Cap. 21.
Cf. D e v s s e n , loc. cit., pág. 094.
1 » Loc. cit., Cap. 40.
Cf. D e u s s e n , loc. cit., pág. 695.
H 5 Loc. cit., Cap. 41.
Cf. D e u s s e n , loc. cit., pág. 695.
il®
Tj k . cit., Cap. 6.
Cf. D e u s s e n , loc. cit., pág. 695.
u i
O
P RO BLEM A
DOS
TIPOS NA CRIAÇÃO POÉTICA
25 9
Tau é a essência criadora que íccunda como pai e dá à
luz como mãe. £ o princípio c fim de todos os seres.
"Aquele cuja ação coincide com o tau, converte-se em um
com ele."117 Por isso, o ser perfeito liberta-se dos contras
tes, cuja relação íntima e presença alterna intui. Assim, diz-se no Capítulo 9: “Aquele que a si próprio se retira está no
caminho do céu’3. 113
“Por isso, ele (o perfeito) c inacessível à amizade e ao
afastamento, inacessível
vantagem e ao prejuízo, inacessí
vel à honra e à infâmia. " 119
A unificação com o tau assemelha-se ao estado mental
de uma criança.120
Como se sabe, essa disposição psicológica é também algo
estreitamente ligado à aquisição do reino de Deus dos cris
tãos que, no fundo — e malgrado todas as interpretações ra
cionais — constitui a essência central, irracional, imagem e
símbolo de que emana o influxo redentor. A diferença está,
apenas, cm que o símbolo cristão tem um caráter mais social
(estatal) que os conceitos orientais afins. Estes ordenam-se,
de um modo mais imediato, na mesma linha das representa
ções de natureza dinâmica, quer dizer, da imagem de uma
força mágica que emana das coisas e dos seres ou, em nível
mais elevado, dos deuses ou princípios.
Segundo as concepções da religião tauísta, o “tau” divi
de-se num par antagônico fundamental: yang e yin. Yang
é calor, luz, virilidade, e Yin é frio, obscuro, feminilidade.
Yang também é o céu, Yin a terra. Da força de Yang pro
mana schen, a parte celeste da alma humana; e da força de
Yin, ktvei, a parte terrena da alma. Dessa maneira, o ho
mem, como um microcosmo, é também um elemento de con
junção dos pares contrapostos. Céu, homem e terra consti
tuem os três principais elementos do mundo, os s-an-tsai.
Esta imagem é uma representação antiquíssima que, de uma
forma semelhante, encontramos em diversas regiões; por exem
plo, no mito africano ocidental de Obatala e Odudua, o par
de pais primordiais (céu e terra) que jazem numa cabaça
117
lis
ii&
120
l.oc. c/í., Cap. 23. Cf. D e u s s e n , loc. cit., pág. 096.
Loc. cit., Cap. 9. D e u s s e n , loc. cit., pág. 697.
Loc. cit., Cap. 50. D e u s s e n , loc. cit., pág. 699.
j'0C' cj f Cap. 10, 28, 55. D e u s s e n , loc. cit., p á g . 700.
TIPOS PSICOLÓGICOS
26 0
até que um filho, o hoinem, surge entre eles. O homem co
mo microcosmo e conjugação cm si próprio dos contrastes
universais corresponde, portanto, ao símbolo irracional que
une os antagonismos psicológicos. Dessa imagem primordial
do homem chega, evidentemente, um eco até S c i i i l l e r , quan
do chama ao símbolo uma forma viva.
A dicotomia da alma humana numa alma schcn ou hwun
e uma alma kicei ou poh é uma grande verdade psicológica.
Dessa representação chinesa chega, por sua vez, um eco àque
la famosa estrofe do Fausto:
Duas almas, ai, vivem vo meu peito,
Uma querendo separar-se da outra;
Uma agarra-se, com vigorosa volúpia
E órgãos como âncoras, ao mundo;
A outra eleva-se, com violento ímpeto,
Do pó ãs alturas antiquíssimas.
A existência das duas tendências opostas e dispersivas,
ambas impelindo o homem para duas disposições extremas
que lhe complicam a existência no mundo — quer cm seu
aspecto espiritual, quer no material — e o antagonizam con
sigo mesmo, impõe a existência de um contrapeso que é,
precisamente, o âmbito irracional do tau. Por isso o crente,
angustiado, esforça-se por viver de acordo com o tau para
não cair nas garras da tensão provocada pelos antagonismos.
Como o tau é uma grandeza irracional, não pode realizar-se
deliberadamente, como L a o Tse o sublinha repetidas vezes.
A essa circunstância deve seu especial significado outro con
ceito específico chinês, o de wuteei, que significa “nada fa
zer”, mas, na verdade, o seu sentido é “não fazer" c não o de
“nada fazer”. O racional “querer produzir”, que constitui
a grandeza e a calamidade da nossa época, não conduz ao tau.
A tendência da ética tauísta proclama, pois, a redenção
da tensão dos contrastes, que deriva das próprias bases do
mundo, mediante um retorno ao tau. Nesta ordem de idéias,
não podemos deixar de citar o “sábio de Omi", N a k a e T o j u , 121
o notável filósofo japonês do século VII. Baseando-se na
doutrina da escola Chu-Hi, de origem chinesa, enunciou dois
»21
Cf. T e t s v j ino Inovye, Dic jajxinischc Philosophie.
O PROBLEMA DOS TIPOS NA CRIAÇÃO POÉTICA
261
princípios, Ri e Ki. Ri é a alma, ki a matéria ou substância
do mundo. Mas ri e ki são uma c a mesma coisa, visto se
rem ambos atributos de Deus c só nelo e por ele serem.
Deus é a sua conjunção. Assim, a alma abrange ri e hi. Sobre
Deus disse Toju: “Deus, como essência do mundo, com
preende o mundo, mas encontra-se também muito próximo
de nós, em nosso próprio coqxT. Deus é, para ele, um Eu
universal, ao passo que o cu individual ó o "céu” em nós,
algo supra-sensível e divino que designa por ryochi. Ryochi
é “Deus cm nós” e está em todos os indivíduos, f. o ver
dadeiro eu. T o ju distinguiu urn eu verdadeiro e um eu fal
so. O eu falso é uma personalidade adquirida, formada de
falsas opiniões. Poderíamos chamar simplesmente “persona”
a esse eu falso, como imagem global da nossa essência, a qual
foi por nós formada em virtude da experiência da nossa atua
ção no mundo circundante e do seu efeito sobre nós pró
prios. Por “persona” entendemos o que parecemos a nós
próprios e o que parecemos aos que nos cercam, mas não o
que somos, para falar como S c h o i ’En h a u k h . O que cada um
é”, o seu eu individual c, segundo Toju, "verdadeiro” é o
ryochi. Chama-se ainda ao ryochi o "ser só”, o "saber só”,
evidentemente por tratar-se de um estado relacionado com a
essência do cu, para além dc todo e qualquer juízo pessoal
formado pela experiência exterior. T oju concebeu o ryochi
como “summum bonum”, a "delícia” (Brahman é ananda =
delícia). Ryochi é a luz que atravessa o mundo, motivo por
que I n o u y e estabelece também o paralelo com Brahman.
Ryochi é amor humano, imortal, onisciente, bom. O mal
vem do querer, da volição ( S c h o p e n h a u e r afirmou o mes
mo!). É a função que se regula a si própria, mediadora e
unificadora dos contrastes ri e ki. É, recorrendo à imagem
indiana, “o velho sábio que habita em teu coração” ou, como
disse o chinês W a n g Y a n g M in g , pai da Filosofia japonesa:
“Em todo coração reside um sejin (sábio). Mas não se crê
com bastante firmeza, e por isso a totalidade se conserva en
terrada".
Tomando tudo isto cin devida consideração, não ofere
cerá dificuldade a compreensão da imagem primordial que
contribui para a solução do problema no Parsifal de W a g n e r .
O sofrimento consiste na tensão antagônica entre o Cral e o
poder de Klingsor, que é o detentor da sagrada lança. Kundry, a força vital instintiva e natural que falta a Amfortas, es
26 2
TIPOS PSICOLÓGICOS
tá sob a magia dc Klingsor. Parsifal liberta a libido de dei
xar-se levar incessantemente, ao não cair, por uma parte,
em seu poder e ao conservar-se, por outra parte, separado de
Gral. Amfortas está com o Gral e sofre, justamente, porque
lhe falta o outro. A Parsifal ambas as coisas faltam, é “nirdvandva", livre dos contrastes e por isso é o redentor, o ser
ue vivifica, o semeador de energia vital renovada e unificaor dos contrastes: o claro, celeste e feminino do Gral e o
sombrio, terreno e viril da lança. A morte de Kundry expli
ca-se, sem dificuldades de maior, como a libertação da libido
de sua forma natural e indomável (da “forma táurca”, cf. o
precedente), da qual se emancipa como de um peso morto,
ao passo que a energia, como novo influxo vital, abre cami
nho e irrompe no Gral resplandecente. Pela abstenção, cm
parte involuntária, dos contrastes, Parsifal gera uma acumu
lação que torna possível tim novo “salto”, um novo plano in
clinado, e dessa maneira consegue uma renovada demonstra
ção de energia. Poderíamos ser facilmente atraídos pelo ine
gável idioma sexualista, conduzindo-nos a uma interpretação
unilateral da conjunção da lança c da taça do Gral como li
bertação da sexualidade. Mas o destino dc Amfortas demons
tra que a sexualidade não é culpada e que, pelo contrário,
foi justamente a sua queda numa disposição natural, de natu
reza animal, que acabou por ser a causa de seus sofrimentos
e perda de força. A sedução por Kundry tem o valor dc um
ato simbólico, cujo significado não é tanto que caiba à sexua
lidade a culpa de feridas semelhantes, mas, outrossim, à dis
posição do “deixar-se levar” natural, isto é, a submissão apá
tica ao gozo biológico. Essa disposição equivale ao predo
mínio, em nossa psique, da parte animal. Ao que é dominado
pelo animal, a ferida do sacrifício atinge o animal que se lhe
destinava (em benefício da ulterior evolução do homem).
Como já sublinhei no meu livro Wandlungen und Symbole
der Libido, não está em causa, efetivamente, o problema se
xual, mas a domesticação da libido, c só se trata dc sexuali
dade na medida em que esta constitui uma das mais impor
tantes e perigosas formas de expressão da libido. Se apenas
víssemos no caso de Amfortas e na união da lança e do Gral
um problema sexual, cairíamos numa contradição inextrincável, pois a doença teria de ser ao mesmo tempo o remédio.
Semelhante paradoxo só é aceitável e verdadeiro quando se
considera, simultaneamente, a conjunção dos contrastes num
3
O PROBLEMA DOS TIPOS NA CRIAÇÃO POÉTICA
26 3
nível superior, quer dizer, quando a entendemos no sentido
cie que não se trata de sexualidade, nesta ou noutra forma,
mas única e exclusivamente daquela disposição a que se en
contra subordinada toda e qualquer ação, incluindo portanto
a sexual.
Devo insistir cm afirmar que o problcrna da psicologia
analítica é algo muito mais profundo do que a sexualidade
e sua repressão. Semelhante ponto de vista é valioso, sem
dúvida, para explicarmos o setor infantil e, por conseguinte,
mórbido da psique, mas é insuficiente como princípio expli
cativo da totalidade da alma humana. ° O que se situa para
além da sexualidade ou do instinto de poder é a disposição
para a sextialidxide ou a propensão para o poder. Sempre
que a disposição não seja meramente intuitiva, quer dizer,
um fenômeno inconsciente espontâneo, é principalmente con
cepção.
Em todas as coisas problemáticas, a nossa concepção é
sumamente influenciada por certas idéias coletivas que cons
tituem a nossa atmosfera mental, raramente dc maneira cons
ciente e, de modo geral, inconscientemente. Essas idéias
coletivas estão vinculadas à concepção vital ou noção do
mundo de séculos ou milênios passados. Não afeta à coisa
o fato de sermos conscientes ou inconscientes dessa subordi
nação, porquanto essas idéias já em nós influem até pela
própria atmosfera que respiramos. Essas idéias coletivas têm
sempre um caráter religioso; e uma idéia filosófica só atinge
um caráter coletivo quando expressa uma imagem primordial,
ou seja, uma imagem coletiva elementar. O caráter religio
so dessas idéias deriva do fato delas exprimirem determina
dos estados do inconsciente coletivo e serem capazes, por
conseguinte, de desencadear as energias latentes do incons
ciente. Os grandes problemas vitais, entre os quais a sexua
lidade é um deles, estão sempre associados às imagens , pri
mordiais do inconsciente coletivo. Essas imagens são, in
clusive, segundo os casos, aqueles fatores de equilíbrio ou
compensação que influem na solução dos problemas que a
° Ncstc parágrafo, como o leitor terá observado, Jung enuncia
mna de suas mais profundas divergências com a teoria psicaualitica de
Fkki/d, que defendia o primado sexualista e suas atividades repressi
vas. (N . do T.)
TIPOS PSICOLÓGICOS
26 4
vida coloca sobre a balança da realidade. Isto nada tem
de extraordinário, uma vez que as imagens constituem uma
condensação de experiências milenárias de adaptação e de
luta pela existência. Por esse motivo, todas as grandes vivên
cias, todas as mais elevadas tensões vitais, estabelecem con
tato com esse patrimônio de imagens, fazendo-as emergir cm
nosso íntimo, de um modo consciente, quando se tem um
autoconhecimento e uma capacidade de apreensão bastantes
para que o indivíduo pense a sua vivência, em vez de se
limitar a verificá-la e, sem o saber, viva concretamente o mito
e o símbolo.
4.
A Relatividade do Símbolo
a)
Culto da Mulher e Culto da Alma
O princípio da conjunção cristã dos contrastes é o culto
de Deus, no budismo é o culto do Eu (evolução do Eu), em
G o k t h e e cm S p i t t e l e b encontramo-lo formulado cm sím
bolos do culto da mulher e culto da alma, como princípio de
solução unificadora. Neste ponto, observa-se, por um lado,
o moderno princípio individualista, mas, por outro lado, tam
bém um primitivo princípio polidemonistu que não só apon
ta a cada raça, mas a cada nação, a cada família e até a
cada indivíduo o seu próprio princípio religioso.
O modelo medieval do Fausto tem particular importân
cia porque o moderno individualismo foi inspirado, com efei
to, em elementos medievais. Km minha opinião, começa
com o culto da mulher, por cujo intermédio a alma do ho
mem, como fator psicológico, foi bastante revigorada. Culto
da mulher significa culto da alma. Isto foi expresso da ma
neira mais bela e cabal na Divina Comédia, de D a n t f .. D a n t e
é o cavaleiro espiritual de sua dama. Por ela se lançou na
aventura do mundo transcendental e do inframundo. E, nes
sa heróica tarefa, sua imagem eleva-se à altura de mística e
extraterrena figura da Mãe de Deus, figura que, assim con
vertida em personificação de um estado de coisas puramente
psicológico, fica desligada de seu objeto, isto é, daquele con
teúdo inconsciente a que chamo alma. No Canto X X X III
O PROBLEMA DOS TIPOS NA CRIAÇÃO POÉTICA
265
do “Paraíso’*, atente-se para o seguinte coroamento da evo
lução psíquica de D a n t e , na Súplica de Bernardo: °
ó Virgem Mãe, filha de teu Filho!
Que excedeste, mais alta que todas cias,
As humildes criaturas cujo prazo
Foi de antemão fixado 110 concílio eterno 1
Que em ti a natureza humana tanto enobreceste
Que o seu Criador não desdenhou
Tomar-se Fie próprio criação Sua.
À
e v o lu ç ã o
de
D
ante
r e fe r e m - s e o s v e r s o s
22
e
s e g u in te s :
De joelhos, eis aqui alguém que da vida espiritual,
Um a um, conheceu todos os estados,
Desde a ínfima lacuna do universo a esta altura
Em que ora está, suplicando-Te a graça
De uma virtude mais alta ainda: a de erguer
Seus olhos para a suprema beih-aventurança.
Versos 31 e seguintes:
......... para que afastes dele, para bem longe,
Cada nuvem de sua mortalidade, com tuas preces,
E o prazer sitpremo a sexis olhos se desvende.
Versos 37 e seguintes:
......... protege-o das paixões humanas.
Vô Beatriz! Com quantas e santas ttiãos se uniu
Para que a minha prece chegue a ti mais forte.
O fato de D ante falar aqui pela boca de S. Bernardo é
uma alusão à metamorfose e sublimação de sua própria es
sência. A mesma metamorfose se observou no Fausto, que
0 O Canto X X X III inicia-sc com a súplica dc S. Bernardo à
Virgem Maria para que interceda por D a n t e , a fim de que o Poeta
receba a graça de contemplar o fulgor da Majestade Divina. > O pe
dido foi aceito e D a n t e roga então a Deus que lhe dô o gènio bastante
para rc-fletir em sua obra uma parte, ao menos da glória celestial. Por
fim, D a n t e pode vislumbrar um relance do grande mistério: a Trin
dade e a União de Deus com 0 Homem. (N. do T.)
TIPOS PSICOLÓGICOS
266
de Margarida se eleva a Helena e desta à Mãe de Deus e,
transformando sucessivamente o seu caráter por mortes figu
radas, alcança, como Doutor Marianus, o fim supremo. Co
mo tal disse Fausto a sua precc à Virgem Mãe:
Rainha suprema do mundo,
Deixa-me contemplar teu mistério
No azul e vastíssimo
Pálio celeste!
Sabedora do que agita,
Crave e delicado, o peito do homem
E com santo, amoroso deleite
Para ti voa.
Invencível é o nosso ânimo
Quando tu, ó sublime, ordenas.
E o fogo em nós abranda, num repente,
Quando o aplacas tu.
Virgem, pura da mais bela maneira,
Mãe digna de honrarias,
Nossa eleita rainha,
Dos deuses igual.
E mais:
Contemplem, extasiados, o olhar salvador,
Os pacíficos, os arrependidos,
E, dando graças, convertam-se
No símbolo bem-aventurado!
E purifiquem suas intenções,
Prontos ao vosso serviço!
Virgem, deusa, mãe, rainha,
Tem misericórdia dc nós/
A tal respeito, convém mencionar ainda os significativos
atributos simbólicos da Virgem, na Litania Lateranense:
Mater amabilis
Mater admirabilis
Mater boni consilii,
Speculum justitiae
Sedes sapientiae
Causa nostrae laetitiae
Vas spirituale,
O PnOBLEM A DOS TIPOS NA CRIAÇÃO POÉTICA
267
Vas honorabile,
Vas insigne devotionis.
Rosa mtjstica,
Turris Davidica,
Turris ebúrnea,
Domus aurea,
Foederis arca
Janua coeli
Stella matutina.
(Missale Romanum)
Estes atributos demonstram o significado funcional da
imagem da virgem-mãe. Demonstram como a imagem da
alma atua como forma perseverante, como fonte de sabe
doria e renovação.
Esse trânsito característico do culto da mulher para o
culto da alma observa-se, da maneira mais definitiva e clara,
num escrito confessional cristão-primitivo do ano 110 D. C.:
a Pastoral, de H e r m a s . O original grego consta de uma
série de visões e revelações que, essencialmente, representam
a afirmação de uma nova fé. Antes de ser reprovado, esse
livro foi considerado canônico durante algum “tempo. Co
meça da seguinte maneira:
"Quem me criou vendeu-me a uma certa Rhoda, em Ro
ma. No fim de muitos anos, voltei a vê-la e comecei a
querer-lhe como a uma irmã. Algum tempo depois, vi-a ba
nhando-se no rio Tibre e dei-lhe a mão para ajudá-la a sair
da água. Ao contemplar sua beleza, pensei estas palavras
em meu coração: 'Seria- feliz se tivesse uma mulher desta
formosura e desta qualidade’. Esse era o meu desejo e nada
mais que isso. (eifoov òè ovôè ?v).»
A vivência que neste episódio se relata foi o ponto de
partida para o subseqüente episódio visionário. Tudo faz
supor que Hermas servisse a Rhoda como escravo e, uma
vez liberto, encontrara-a tempos depois, despertando nele,
tanto por gratidão como por complacência, um sentimento
amoroso que, na consciência dele, apenas se revestia de um
caráter fraterno. Além disso, como logo se depreende do
texto, Hermas era cristão e já nessa altura pai de família,
circunstâncias que tornam facilmente compreensível a re
pressão do elemento erótico. A situação particular ostava
268
TIPOS PSICOLÓGICOS
tanto mais próxima, com efeito, que deixa em suspenso mui
tas perguntas suscetíveis de manter na consciência o desejo
erótico. Na realidade, passa por sua mente a idéia dc que
queria possuir Rhoda como mulher, idéia essa que aparece
bastante explícita, mas se limita, como Hcrmas tem o cui
dado de salientar, à simples comprovação, sem dúvida por
que o que imediatamente sc lhe seguiu foi alvo dc uma pron
ta repressão moral. Mas, como se deduz a seguir do texto,
inequivocamente, essa libido reprimida originou no incons
ciente de Hermas uma formidável transformação, na medida
cm que avivou a imagem da alma e nela suscitou espontanea
mente a ação. Continuaremos com o texto original:
“Ao fim de algum tempo, quando me dirigia a Cuinas e
louvava a criação de Deus por sua beleza, sua grandeza c
poder, senti sono enquanto caminhava. E um espirito me
amparou e levou por um caminho sem atalhos, pelo qual ne
nhum ser humano poderia aventurar-se sozinho. Era uma
região cheia de abismos e cursos dc água. Atravessei um
rio e encontrei-me cm terreno plano, onde caí de joelhos e
orei a Deus, e confessei meus pecados. Quando assim reza
va, o céu abriu-se e pude contemplar a mulher a quem eu
desejava, que me saudou desde o céu e disse: 'Salve, Ilermas!
Enquanto a contemplava, respondi: ‘Senhora, que
fazeis nesse lugar?’ Ao que ela replicou: ‘Aqui vim tra
zida para denunciar teus pecados ao Senhor’. E eu disse:
'Me acusais agora?’ 'Não — disse ela — mas escuta as pa
lavras que te vou dizer. O Deus que está- nos céus e que
do nada fez tudo o que é, e o aumentou e multiplicou para
a sua santa igreja, está znn^ado contigo, pois contra mim
pecaste/ Discordei e disse: Como pequei contra ti? Onde
c quando disse eu uma palavra má de ti? Não tc consi
derei sempre e em toda a parte como sc uma deusa fosses?
Não tc tratei sempre como uma irmã? Por que, mulher, me
acusas falsamente de tão más e impuras coisas? Ela riu e
assim me respondeu: ‘Em teu coração cresceu o apetite do
pecado. Ou não te parece um feito pecaminoso para um ho
mem justo, que o apetite do pecado se aposse do seu cora
ção? Sim, é um grande pecado', acrescentou. Tois o justo
só ao justo pode aspirar’.”
Os passeios solitários são, como se sabe, propícios à fan
tasia. A caminho de Cumas, Hermas certamente pensou em
sua dama, arrastando pouco a pouco para o inconsciente a
O PROBLEM A DOS TIPOS NA CRIAÇÃO POÉTICA
269
libido de sua fantasia erótica reprimida. Em conseqüência
disso e cm virtude de sua intensidade consciente recalcada,
sentiu ser invadido pela sonolência, encontrando-se num es
tado de sonambulismo ou de êxtase, que não é outra coisa
senão uma fantasia excessivamente intensa que se apodera
por completo da consciência. JÉ significativo que não o as
salte uma fantasia erótica, mas uma em que, de certo modo,
é transportado para outras regiões representadas pela fan
tasia, como a travessia de um rio e um caminho onde não
havia atalhos. Assim, o inconsciente apresenta-se-lhe como
uma região hostil, estranha ao mundo ou superior a este,
onde acontecem coisas e se movimentam pessoas como se
estivessem no mundo real. Sua dama — a Mulher — não
foi ao seu encontro numa fantasia erótica, mas surge-lhe no
céu, em forma “divina", como uma deusa. Esta circunstân
cia sugere imediatamente o fato de que a impressão erótica
reprimida no inconsciente avivou a im agem primordial já
predisposta da deusa, quer dizer, a imagem primitiva da al
ma. E evidente, pois, que a impressão erótica uniu-se no
inconsciente coletivo a esses resíduos arcaicos que conser
vam os traços de poderosas impressões da essência da mu
lher como mãe e como donzela apetecível. Essas impres
sões eram poderosas porque, tanto no infante como 1 1 0 ho
mem maduro, desencadeavam torças que mereciam, para já, 0
atributo da natureza divina, ou seja, do que é irresistível e
inapclavelmente urgente. Não há dúvida de que 0 reconhe
cimento dessas forças como poderes demoníacos deve sua
origem, apenas, a uma repressão moral ou, ainda melhor, a
uma auto-regulação do organismo psíquico que, mediante
essa transferência, procura fugir à perda de equilíbrio. Na
verdade, se a psique consegue erguer uma posição defensiva
contra a força arrebatadora da paixão que lança 0 homem,
impiedosamente, numa órbita alheia, e o consegue arrancan
do o ídolo, 11 0 momento culminante da própria paixão, ao
objeto que se apetecia sem limites, colocando assim o ho
mem em estado de cair de joelhos ante a imagem divina,
poder-se-á então afirmar que o redimiu da maldição que o
prendia ao objeto. Foi devolvido a si próprio e encontra-se
de novo vinculado à sua própria órbita, entre homens c deu
ses, submetido apenas às suas próprias leis. A timidez enor
me que era inerente ao homem primitivo, uma timidez ante
tudo o que 0 impressionava e 0 maravilhava, como se as coi
270
TIPOS PSICOI.ÓOICOS
sas estivessem prenhes de mágicas virtudes, protege-o prati
camente da perda da alma, por assim dizer, tão temida por
todos os povos primitivos e a que sucederia o temor da
doença e da morte. A perda da alma equivale à amputação
de uma parte da própria essência, ao desaparecimento e
emancipação de um complexo que se transforma, assim, num
usurpador tirânico da consciência, oprime o homem em sua
inteireza, arranca-o de sua orbita e leva-o ao cometimento
de atos cuja unilateralidade cega acarreta, inevitavelmente, a
própria destruição. í) sabido que o homem primitivo encon
tra-se exposto a essa espécie de fenômenos, como a corrida
de Amoíc, a fúria do Berseker, o "diabo no corpo", etc. O
reconhecimento do caráter demoníaco da força pressupõe uma
defesa eficiente, ao privar essa idéia do objeto de seu mais
forte encanto e transferir sua origem para o mundo demo
níaco, isto é, para o inconsciente, que e donde realmente
promana a força da paixão. Essa devolução da libido ao
inconsciente é o que pretendem também os conjuros e ritos
cuja finalidade é a redução da alma e a dissipação do en
canto.
Foi também esse, evidentemente, o mecanismo que vimos
funcionar no caso de Hermas. A transformação de Rhoda
na divina senhora privou o objeto real da sua desvairada e
excitante força de paixão, ao mesmo tempo que reduzia Her
mas à lei de sua própria alma c de suas determinações cole
tivas. Sem dúvida, ele participava profundamente, dadas as
suas faculdades, nas correntes espirituais do seu tempo. Por
essa época, seu irmão Pio fora elevado à dignidade episco
pal romana. Hermas estava chamado, portanto, a colaborar
na grande missão da época, por certo num grau muito mais
elevado do que um antigo escravo poderia compreender cons
cientemente. Nesses tempos, nenhum espírito capaz tinha
possibilidades de resistir indefinidamente à tarefa histórica
da cristianização, salvo sc as limitações e imperativos de raça
lhe apontassem, de maneira natural, uma função distinta no
grande processo de transformação espiritual. Assim como as
condições vitais externas impõem ao homem funções sociais,
também a alma contém determinantes coletivas que impõem
a socialização de opiniões e convicções. Por uma metamor
fose operada numa eventual transgressão social e pela con
versão de um possível dano em si mesmo, por culpa de uma
paixão, em culto da alma, Ilermas foi impelido ao cumpri-
O PROBLEMA DOS TIPOS NA CRIAÇÃO POÉTICA
271
mento dc uma missão social de natureza espiritual que, para
a sua época, era de suma importância.
Para torná-lo apto ao desempenho dessa missão, era ob
viamente imprescindível que a alma destruísse nele, até o
derradeiro vestígio, a possibilidade de uma ligação erótica com
o objeto. Essa possibilidade representaria a própria deson
ra. Quando Ik-rmas se nega ao desejo erótico, apenas de
monstra que lhe seria mais agradável se o desejo erótico não
existisse nele, mas de maneira alguma quer dizer que os in
tuitos c fantasias eróticas lhe faltem. E é por isso que sua
senhora, a Mulher, a Alma, nele desvenda implacavelmente
a existência do pecado, libertando-o assim de uma vinculação secreta ao objeto. Acolhe e conserva em si, como “um
vaso sagrado", n paixão que antes estava prestes a desperdi
çar-se em vão no objeto. Disso tinha mie emancipar-se to
talmente, para cumprir assim a missão histórica que consis
tia na amputação radical da vinculação dos sentidos c na
"participation mystique” primitiva do homem. Para o ho
mem desse tempo, tal vinculação chegara a ser insuportável.
Tinha de produzir-se, portanto, uma diferenciação do espi
ritual para restabelecer o equilíbrio psíquico. '1’odas as ten
tativas filosóficas de restabelecimento do equilíbrio psíquico,
da aequanimitos, que se consubstanciaram sobretudo na dou
trina cstóica, fracassaram sob a influencia do racionalismo.
A razão só pode acarretar equilíbrio para aqueles em que a
própria razão já constitui por si um órgão regulador. Mas
para que quantidade de homens e em que cpocas da histó
ria isso acontece? O homem, em sua posição única, deve
possuir, via de regra, um contraste que o obrigue a procurar
um determinado ponto intermédio. Pela razão pura jamais
renunciará à plenitude da vida e à excitação sensível do seu
estado imediato. Assim, contra a força e o gozo do temporal,
teria dc interpor-se a alegria do eterno; e contra a paixão dos
sentidos, as delícias do supra-sensível. Uma coisa é tão pre
mente c efetiva quanto verdadeira é, indubitavelmente, a
outra.
Com a noção consciente da verdadeira existência de seu
desejo erótico, foi possível a Hermas chegar ao reconheci
mento da realidade metafísica, quer dizer, a imagem da al
ma conquistou para si, dessa maneira, a libido sensível que,
até então associada ao objeto concreto, passará daí em dian
te a incutir na imagem, no ídolo, aquela realidade antes mo
27 2
T ir o s PSICOLÓGICOS
nopolizada pelo objeto dos sentidos. Assim pode a alma
falar com eficácia e impor seus próprios termos e exigên
cias. Depois do diálogo com Rhoda, que acima reproduzi
mos, sua imagem desapareceu e o céu fechou-se de novo.
Km seu lugar apareceu “uma mulher velha, envolta numa
túnica resplendente'*, que fez compreender a Hermas como
seu desejo erótico subentendia um intuito pecaminoso e de
pravado contra um espírito digno de veneração, mas que
não era por isso que Deus estava zangado com ele, outrossim por tolerar os pecados de sua família. Dessá maneira
hábil se retira completamente à libido o desejo erótico e,
com uma nova e rápida manobra, é encaminhada no senti
do da missão social. Uma sutileza especial se observa no
fato da alma ter renunciado à imagem de Rhoda e ter ado
tado, em seu lugar, a de uma mulher velha, para enterrar
ainda mais o elemento erótico. Mais tarde, Hermas averi
guou, por meio de uma revelação, que a mulher velha era a
própria Igreja, com o que se dissolve o concreto-pessoal na
abstração e se adquire uma idéia de fatualidade e realidade'
que antes não tinha. Depois, a velha lô-Ihe um livro mis
terioso em que se diz algo sobre infiéis e apóstatas, e cujo
sentido ele foi incapaz de compreender. Também se ave
rigua mais tarde que o livro contém uma missão. Assim, sua
senhora-mulher impõe-lhe um cometimento que, como ca
valheiro, ele há de cumprir. Também não faltou a prova
de virtude. Pouco depois, Hermas teve uma visão em que
lhe apareceu a velha, prometendo voltar na hora quinta c
interpretar-lhe a revelação. Hermas dirigiu-se para o lugar
combinado, no campo. ■Quando aí chegou, encontrou um lei
to de marfim, com almofadas e finos lençóis.
"Quando vi tais coisas” — escreve H e r m a s — “fiquei
muito assombrado c diria que se apoderara de mim um tre
mor, eriçando-se-ine os cabelos e sentindo um terror pânico
por me encontrar ali sozinho. Quando voltei a mim e recor
dei a glória de Deus, recuperando assim o ânimo, caí dc joe
lhos e confessei meus pecados ao Senhor, como já fizera an
tes. E veio ela com seis homens jovens, que eu já vira antes,
c postou-se junto de mim, ouvindo como eu confessava meus
pecados ao Senhor. Então me tocou e falou dessa maneira:
‘Hermas, acaba já com todas essas súplicas por teus pecados.
Pede também justiça, para que possas levar para casa um
pedaço’. Dito isto, estendeu-me a mão, para quo eu me levan-
O PROUl.EMA DOS
TIPOS
NA CRIAÇÃO
POÉTICA
27 3
lasse, e levou-me até o leito, dizendo aos homens jovens:
‘Ide e edificai!' E quando os jovens desapareceram, disse-me: ‘Senta-te aqui!’ Respondi: ‘Senhora, que se sentem
antes os velhos’. E ela respondeu: ‘Faz o que te digo e
senta-te’. Mas quando, segundo o seu desejo, dispunha-me
a tomar assento à sua direita, indicou-me com um aceno de
mão que deveria sentar-me do seu lado esquerdo. Como
notasse em mim um ar pensativo e contristado por não me
deixar sentar do seu lado direito, assim falou: ‘Estás triste,
Hennas? O lugar da direita é para outros, gratos a Deus,
que por seu nome sofreram. Mas a ti ainda falta muito para
que possas sentar-te à sua direita. Segue, porém, sendo sim
ples como até agora e chegarás a sentar-te junto deles, e as
sim acontecerá a todos os que tiverem cumprido sua tarefa
e suportado o -que eles já suportaram’.”
Hennas esteve muito perto do desconhecimento erótico
da situação. O encontro apresenta, para já, o efeito de uma
entrevista marcada para 11111 "lugar formoso e oculto” (como
ele disse). () requintado leito que aí fora armado recorda
inevitavelmente Eros, de modo que é bastante compreensí
vel a angústia que, ao vê-lo, se apodera de Hennas. Ele de
ve ter percebido a manifesta associação erótica, mas não su
cumbiu ao impulso pecaminoso. Ao que parece, não se aper
cebeu com certeza da tentação, uma vez que tal apercebi
mento não figura 11 a descrição de sua angústia como algo
implícito nela, o que é de supor como mais viável na honra
dez de um homem desse tempo do que no homem moderno.
Pois o homem de então estava, em geral, mais próximo que
nós de sua natureza e cm melhores condições, portanto, de
perceber suas reações de maneira imediata e de reconhecê-las com precisão. Neste caso, a confissão de seus pecados
referir-se-ia, justamente,
percepção de um sentimento não-santo. De qualquer modo, a questão subsequente sobre se
deverá sentar-se à direita ou à esquerda, alude a uma indi
cação de ordem moral que recebe dc sua senhora. Embora
nos augúrios romanos se considerassem favoráveis os signos
do lado esquerdo, entre os gregos, porém, assim como entre
os romanos, considerava-se o lado esquerdo, de um modo
bastante genérico, como desfavorável, donde resultou 0 duplo
sentido de “sinistro”. Ora, num trecho a seguir, mostra-se
que a questão aí posta de esquerda e direita nada tem que
ver com a superstição popular e origina-se, pelo contrário,
18
274
TIPOS PSICOLÓGICOS
na Bíblia, aludindo evidentemente a Mateus, XXV, 33: “E
porá as ovelhas à sua direita, mas os cabritos à esquerda”.
As ovelhas, por sua natureza inocente e mansa, alegorizam
o Bem, ao passo que os cabritos, por irrequietos e lascivos,
são a imagem do Mal. Quando a Senhora lhe aponta o lado
esquerdo, dá-lhe a entender com gentileza a compreensão
de sua psicologia. Quando Ilermas ocupa seu lugar à es
querda, contristado, como ele próprio salientou, a Senhora
traça-lhe um quadro visionário que se desenrola ante seus
olhos: \è os jovens, ajudados por milhares de homens, edi
ficando uma torre majestosa, cujos blocos de pedra se uniam
de tal modo que não era possível enxergar as junções. Essa
torre maciça, de tamanha solidez, indestrutível, ê a Igreja,
segundo Hermas entendeu. A Senhora é a Igreja e a Torre
também, já vimos nos atributos da Litania Lateranense que
se invoca Maria como turris JJavidica e turris eburnca. Pa
rece tratar-se aqui de uma relação idêntica ou semelhante.
Sem dúvida, atribui-se à torre uma significação de solidez,
de segurança, tal como, por exemplo, no Salmo LXI, 4.
“Pois tu me tens sido refúgio e torre forte contra o inimigo."
Terá de excluir-se aqui uma certa semelhança com a torre
de Babel, em virtude de poderosos motivos contra, mas, no
entanto, deve haver um longínquo eco da mesma, pois Her
nias teve por certo de soírer o deprimente espetáculo dos
intermináveis cismas e disputas heréticas da Igreja primitiva,
como todos os espíritos capazes naquela esfera de ação. Essa
impressão constituiu, além disso, o motivo básico para que
ele redigisse esse escrito confessional, segundo se deduz da
indicação de que o livro revelado era um ataque contra os
infiéis e os apóstatas. A confusão de línguas, que tornou
impossível a construção da torre de Babel, reinava justa
mente nos primeiros séculos da Igreja Cristã, dc um modo
quase total, e exigia os esforços mais ingentes por parte dos
fieis, para superarem esse heteroglotismo. A cristandade es
tava então muito longe de constituir um rebanho dócil, sob
a orientação de um pastor único, sendo por isso natural que
Hermas reclamasse o “pastor' poderoso c uma forma segura
e firme que unisse num só feixe, com um laço indissolúvel,
os elementos díspares trazidos dos quatro quadrantes da
Terra, dos montes e dos mares.
Os apetites telúricos, a sensualidade em suas múltiplas
formas, com sua escravidão obstinada às excitações do mun
o p r o b x je m a d o s t ip o s n a c r ia ç ã o p o é t ic a
275
do circunjacentc e seus ímpetos lúdicos, a distração da ener
gia psíquica na ilimitada variedade de coisas terrenas, c o
principal obstáculo para a realização final de uma disposi
ção orientada no sentido unitário. Vencer tal obstáculo cons
tituía, portanto, uma das tarefas básicas da época. É com
preensível, pois, que seja essa a tarefa proposta na Poimcn
( “Pastoral") de H e r m a s . Vimos corno a excitação erótica ori
ginal e a energia por ela gerada foram canalizadas para a
personificação do complexo inconsciente, da figura da Ekklesia,
da mulher velha, que com a sua aparição visionária apregoa
a natureza espontânea do complexo em que se baseia. Vi
mos depois que a velha, a igreja, convertcu-sc, por assim
dizer, na torre, já que a torre também é igreja. Esta tran
sição surpreende-nos, pois não vemos com facilidade o nexo
entre torre e mulher velha. Mas os atributos de Maria na
Litania Lateranense indicam-nos a verdadeira pista, pois,
como se viu, na litania chama-se “torre” à Virgcm-Mãe.
Esse atributo provém do "Cântico dos Cânticos” IV, 4:
“Sicut turris David coUum tuum, quae aedificata est cum
propugnaculis”. (Teu colo é como a torre de Davi, que foi
construída com baluartes.) 122 VII, 4, 4: "CoUum tuum sicut
turris ebúrnea’. (Teu colo é qual torre de marfim.) E do
mesmo modo, em V III, 10: “Kgo murus, et ubera mea sicut
turris”. °
Como se sabe, o “Cântico dos Cânticos” é, na realidade,
um poema de amor profano, talvez um cântico nupcial a
que, inclusive, os sábios judaicos, em época não muito re
mota, recusavam dar sua ratificação canônica. Ora, à exe
gese mística sempre agradou interpretar a esposa como Israel
e o esposo como Jeová, no que demonstra um instinto certo,
pois encaminha o sentimento erótico no sentido de uma
união do povo com Deus. E pelos mesmos motivos, o cris
tianismo apoderou-se do “Cântico dos Cânticos” quando con
verteu Jesus Cristo no esposo c a Igreja na esposa. Tal ana
logia ajusta-se maravilhosamente bem à psicologia medieval,
animando um pouco a austeridade c despojamento eróticos
do Cristo da mística desse tempo, de que M a t il d e d e M a d e iíu r c o é um dos mais notáveis exemplos.
Foi de acordo com
ia2
*
Ai citações foram extraídas da Bíblia luterana.
Eu sou a muralha e meu seio é como a torro. (N . do '£.)
TIPOS PSICOLÓGICOS
276
esse espírito que nasceu a Litania Latcranense. Para deter
minados atributos da Virgem recorreu ao “Cântico dos Cân
ticos”, como vimos no que se refere ao símbolo da torre.
A rosa — assim como o lirio — já serve de atributo mariano
aos patriarcas gregos, que igualmente se inspiram no ‘Cân
tico dos Cânticos" 11, 1 e seguinte: “Ego fios campi et
lilium convallium. Siciit lilium inter spinas, sic arnica mea
inter filias". (Eu sou uma flor dos campos e um lírio do
vale. Tal como a rosa entre os espinhos, assim esta minha
amiga entre as filhas.) Uma imagem habitual dos hinos marianos da Idade Media é a do "horto fechado”, como no “Cân
tico dos Cânticos" IV, 1 2 (" hortus conclusus, soror nica sponsa"), bem como a da “fonte selada (“fons signatus”). A
natureza inegavelmente erótica dessas alegorias, no “Cântico
dos Cânticos”, foi expressamente aceita como tal pelos Padres
da Igreja. Assim, por exemplo, A m b r ó s io interpreta o "hortus conclusus” como “virginitas". ,:-'J Do mesmo modo, com
para também Maria com a cesta de junco de Moisés: "Per
fiscellam scirpeam, beata virgo designata est. Mater ergo
fiscellam scirpeam m qua Moyses ponebatur praeparaoit, quia
sapientia Dei, quae est filius Dei, beatam Mariam Virginem
clegit, in cuitis utero hominem, cui per unitatem personae con~
jungeretur, formavit”. 12 ‘ A g o s t i n h o serviu-se da analogia,
que mais tarde passaria a ser habitual, do “thalamus” (alco
va nupcial), também com alusão expressa ao sentido ana
tômico: “Elegit sibi thalamum castum, ubi conjungeretur
sponsus s p o n s a e 125 E: “processit de thalamo suo, id est,
de utero virgiiwli" . 1L>0
A in t e r p r e t a ç ã o d e txis ( r e c i p i e n t e )
seg u ra, ao
d iz e r
A
m h h ó s io ,
com o
p a r a le la m e n t e
ao
uterus
p arece
c ita d o
tre ch o
«23 A m h h ó s i o , De Im iituiione Virg/nis. Micnb, Vatr. L<;t., Vol.
16, col. 335 e seg.
12 » ' Por cesta de junco é designada a santa virgem. Paia servir
de mãe foi preparada a cesta de junco cm que Moisés foi abandonado;
e assim, a sapiência de Deus, que é filho de Deus, elegeu a santa vir
gem Maria para em seu ventre se formar o [Deus] homem, o qual
foi concebido como Pessoa unigénita." ÁMiinósio, Lxpositio beati A mbrosii Episcopi super Apocaltjpsin.
125 “Elegeu para si um casto leito nupcial, onde o esposo e a
esposa se uniram.”
‘Brotou do seu tálam o, isto é. do ventre da virgem.’’ A g os
tin h o ,
192. Micne, Patr. Lot., Vol. 38, col. 1013.
Scrmo
o
problem a
nos
t ip o s
na
c r ia ç ã o
p o é t ic a
27 7
d e A g o s t i n h o : “non de terra... sed de coelo vas sibi hoc, per
quod descenderei, Christus elegit rt sacravit templum pudoris”. 127 Também não é raro entre os padres gregos o recurso à
expressão c / í t o ç , vaso. Não é improvável a sugestão do alegorismo erótico do “Cântico dos Cânticos”, embora a palavra
vas não apareça no texto da Vulgata, ainda que, por outro
lado. apareça a imagem da taça e da libação: "Umbilicus tuus
cratcr tornatilis, nunquam mdigens poculis. Venter tuus sicut
acervus tritici, vallatus liliis“. (Teu seio é qual taça tornea
da, onde nunca faltou que beber. Teu ventre é qual seara
de trigo, cercada de rosas. VII, 2) Paralela ao sentido do
primeiro período é a comparação de Maria com o cântaro
de azeite da viúva de Sarcpta, no Cancioneiro Manuscrito de
Colmar.128 E paralelamente ao segundo período disse Amb r ó s io :
"In quo üirginis utero sirnul acervus tritici. et lilii
floris gratia germinabat: quoniam et granum tritici generabat,
et liliu m .. . " 120 Nos documentos católicos,13Q o simbolismo
do vaso refere-se a trechos dc sentido bastante remoto como,
po rexemplo, o “Cântico dos Cânticos” I, 2: “Osculetur me
osculo orrs stii: quia meliora sunt ttbera tua vino”. (Beija-me com o beijo dc tua boca, pois teu amor (literalmente,
“teus seios”] é mais capitoso que o vinho.) Inclusive se re
porta fala de Moisés no "Êxodo”. XVI, 33: "E Moisés disse
a A r ã o : Toma um vaso e mete nele maná quanto pode con
ter um gomar; e põe-no em reserva diante do Senhor, para
se conservar pelas vossas gerações”. Estas referências arti
ficiosas constituem mais um argumento contra que a favor
da proveniência, bíblica do simbolismo do vaso. Parece ser
também um argumento a favor da possibilidade de uma
origem extrabíblica o fato de todos os hinos marianos medie
vais se aproveitarem de quanto encontrem, sem indagar da
127 “Não «Ia torra, mas <Io céu, elegeu (Cristol o seu vaso, no
qual desceu c consagrou como Templo do Pudor.'' A m o r ó s i o , D c
I mtitutionc Virginis. M i g n e , Patr. Lat., Vol. 16, col. 328.
128 Meisterlieder der Kolmarer Handschrift. Ed. de K. B a r t s c h ,
piig. 216.
12í' "No ventre da virgem germinavam, simultaneamente, a sea
ra de trigo e a formosura das flores de lis; pois nela fecundavam o
grão de trigo c a semente do lír io ...” A m b r ó s i o , loc. cit-, col. 341.
>30
S a l z e r , A . Die Sinnbilder und Bciicorte Mariens in der
deutschen Literatur und lateinischen lU/mnçn-Poesie des Mittelalters,
1893.
278
TIPOS PSICOLÓGICOS
proveniência, mas que por sua delicadeza alegórica possa ser
referido à Virgem. Que o símbolo do vaso seja muito antigo
— aparece nos séculos III e IV — nada significa quanto à sua
origem profana, pois já os antigos Padres sc inclinavam para
o uso de alegorias cxtrabíblicas ou “pagãs", como T f . r t u l i a n o 131 o A g o s t i n h o , 1:12 por exemplo, que comparam Maria
com a terra virgem, com o agro não lavrado também, não
sem uma alusão ostensiva, certamente, aos coros dos misté
rios. Essas alegorias foram compostas na base dc modelos
pagãos, de maneira semelhante à iluminação dos códiccs do
primeiro quartel da Idade Media, como foi demonstrado por
C u m o n t com o exemplo da ascensão de Elias, que costuma
ser atribuída a um antigo modelo mítico. Em inúmeros usos,
dos quais não foi o menor a referência ao nascimento de
Cristo como “natalis solfs iiwicti”, a Igreja seguiu os modelos
pagãos. JerÔMMO compara a Virgem com o sol, mãe da Luz.
Esses atributos de natureza extrabíblica só podem ter sua
origem nas formas de concepção pagã que ainda nessa épo
ca eram correntes. Por isso reputo pertinente, no que diz
respeito ao símbolo do vaso, tomar em consideração o sim
bolismo gnóstico relativo ao mesmo objeto, que então era dc
tal maneira conhecido e divulgado. Chegaram aos nossos
dias inúmeras gemas da época com o símbolo do vaso na
fonna de um cântaro, com estranhas ligaduras cm redor do
bojo que, à primeira vista, recordam um útero com as “ligamenta lata”. M a t t k r chama-lhe Vasc cf Sm (o vaso do
pecado), em contraste, pouco mais ou menos, com os hinos
marianos que louvam a Virgem como txis virtutum. K i n g 333
refuta esse critério, que considera arbitrário, e aponta corno
sua origem uma opinião de K Õ h l e r , segundo o qual a ima
gem das gemas (sobretudo egípcias) é uma alusão aos alca
truzes da nora com que se extrai a água do Nilo, aos mesmos
referindo-se também as estranhas ataduras, que serviam evi
dentemente para prendê-los à roda.
»ai "Via terra v i r p o nondum p/uvlfs r ig a la nec im hribm foeçundata”. etc. ( Ela é a torra virgem que as chuvas não regaram, nem as
cheias fecundaram ainda.)
132 “Veritas de terra orta est, qiiia Christus dc virgine natus
cst." (A verdade è que da terra nasceu, assim como Cristo que da
virgem foi nado.)
Lia King, C. W ., The Gnottics and their Rcmainj, pág. 111.
o p r o b l e m a d o s t ip o s n a c r ia ç ã o p o é t ic a
279
A fecunda atividade do alcatruz reflete-se na antiga fra
seologia, segundo Kinc assinalou, como “fecundação de Tsis
pelo sêmen de Osíris”. E freqüente observar-se uma forqui
lha colocada sobre o vaso, alusão provável à “rnifstica vannus
Jacchi”, o Xixvov, simbolizando o germe do grão, símbolo
do deus da fecundidade.134 Da cerimônia nupcial grega fa
zia parte colocar sobre a cabeça da noiva uma forquilha car
regada de frutos, símbolo evidente da fecundidade da virtu
de mágica. A esse critério opõe-se a concepção egípcia de
que tudo provém da água primeva, de Nu ou Nut, identifi
cada também com o Nilo ou com o oceano. Mu escreve-se
com três hídrias, tres símbolos da água e um símbolo do céu.
Num hino dedicado a Ptah-Tencn diz-se: “Criador do grão
que dele surge em seu nome, Nu o velho, que fecunda a
massa de água do céu e faz surgir a água nos montes, para
dar vida a homem e mulher”. 135 Sir W a l l is B u p c e fez-me
notar que o simbolismo uterino ainda vigora no hinterland
meridional do Egito, nas cerimônias rituais para provocar
as chuvas e como símbolo de mágicas virtudes fecundantes.
Ocorre, por vezes, os indígenas matarem uma mulher e dela
extraírem o útero para se servirem do órgão em seus ritos
mágicos. 136 Se levarmos em conta até que ponto — e ape
sar da forte oposição desencadeada contra essas heresias —
os Padres da Igreja eram influenciados pelas idéias gnósticas,
não é impossível que no simbolismo do vaso se infiltrasse,
precisamente, uma corrente pagã suscetível de ser cristãmente
aproveitada, tanto mais fácil de acontecer quanto é certo que
o próprio culto mariano já constitui um gracioso remanes
cente que garantiu para a Igreja cristã o legado pagão da
magna mater (de Isis, entre outras divindades). Também
a imagem do vas sapientiae (o vaso da sabedoria) recorda o
legado gnóstico de Sophia, símbolo da maior importância
na gnose.
Insisti no simbolismo do vaso mais do que por certo os
meus leitores esperavam. Mas interessava-me esclarecer psi
cologicamente a lenda do Gral, tão característica da Idade
1S>‘ Cf. J u n g , Wandltitigen ur.d St/mbole der Libido, pág. 319.
is» W a l l i s B v t jc e , 'lhe Gods of the Ezyptians, Vol. I, pág. 511.
1SB Cf. P. A m a u r y T a l b o t , ln the Shadow of the Bush, págs.
67 c 74 e scgs.
280
TIPOS PSICOLOCICOS
Média, ern suas relações com o culto da mulher. A ideia
religiosa central desse lendário tema, dc inúmeras tí conhe
cidas variantes, é o vaso sagrado, imagem que de maneira
alguma é cristã, evidentemente, e cuja origem teremos de pro
curar cm qualquer parte, menos nas fontes canônicas. 137 Pelo
que ficou dito, parece-me que se trata de um elemento gnóstico, conservado por tradição secreta, que resistiu ao aniqui
lamento das heresias ou que ficou devendo seu reaparecimen
to a uma reação inconsciente contra o cristianismo oficial que
então vigorava. A sobrevivência ou reaparição inconsciente
do símbolo do vaso denuncia o princípio feminino na psico
logia viril da época. A simbolização numa figura enigmá
tica pressupõe uma espirituali/.ação do erotismo que o culto
da mulher reanimara. Ora, a espiritualização sempre acar
reta a retenção de uma certa quantidade de libido, que
não fosse isso iria desaguar diretamente na satisfação sexual.
Mas. ao ser retida uma dada quantidade de libido, a expe
riência ensina-nos que uma parte aflui, de fato, ã expressão
espiritualizada; mas outra parte mergulha no inconsciente e
produz aí uma certa animação do imagens equivalentes, que
são justamente as que se expressam através do simbolismo do
vaso. O símbolo vive graças à retenção dc certas formas de
libido e gera, por sua vez, a retenção dessas formas de libi
do. A redução do símbolo equivale a um desvio de libido
para a sua aplicação direta ou. pelo menos, a um impulso
quase invencível de aplicação direta. Ora, um símbolo vital
afasta semelhante perigo. Um símbolo perde a sua virtude
mágica, por assim dizer, ou, se preferirmos, a sua virtude re
dentora, logo que se reconheça a sua redutibilidade. Por
isso, um símbolo ativo deve ter uma fatura inacessível. Terá
157 Outra prova da origem pagã do simbolismo do vaso encon
tra-se no "vaso mágico" da mitologia ecltica. Dagda, um dos dnu.es
benévolos da antiga Irlanda, possuía um desses vasos, que utilizava
para seu sustento e prazer. O deus celta Bran também possuía um
vaso da fecundidade.
Sabe-se agora qvie o nome “Brons" — uma
das figuras da Lenda do Gral — derivou do nome do Bran. A l f r e d
K c rr foi o primeiro a apurar que "Bran”, o Senhor do Vaso, e '■Brons'’
representam degraus na evolução da primitiva saga que viria a ser
ernheeida como a "Demanda do Santo Gral". Assim, o belo tema do
Gral já existia, cm sua essência, na primordial mitologia ecltica. Sou
muito grato ao Dr. Maurice N’icoll, cie Londres, por me ter fornecido as
informações acima, resultantes de suas investigações pessoais sobre o
assunto.
O PROBLEMA DOS TIPOS NA CRIAÇÃO POÉTICA
281
de ser a ótima expressão imaginável da concepção do mundo
respectivo, simplesmente insuperável por seu significado, e
há de ser também algo tão inacessível à compreensão que o
intelecto crítico não disporá dos meios necessários para re
duzi-lo de maneira eficaz; e, finalmente, sua forma estética
terá de ser persuasiva para os sentimentos, para que não dê
margem a argumentos sentimentais a ele adversos. O símbolo
do Gral, durante um certo tempo, preencheu essas condições,
evidentemente, o que foi devido a sua ação, a seu efeito
vital, que, como se demonstra pelo exemplo de W a g n e r , ain
da não se extinguiu por completo, embora a nossa época e a
nossa psicologia mostrem sua incessante redução.
Dessa maneira, portanto, o cristianismo oficial vigente
absorveu também os elementos gnósticos que se revelam no
culto da Mulher, integrando-os num intenso culto mariano.
Escolhi a Litania Latcranensc como exemplo reconhecido
desse processo de assimilação, entre inúmeros testemunhos
que considero igualmente interessantes. Com essa assimila
ção pelo símbolo geral cristão, perdeu-se, em primeiro lugar,
a possibilidade de florescimento de uma cultura psíquica do
homem, que brotara no culto da mulher. Sua alma, que en
contrava expressão na imagem da senhora eleita, perdeu essa
expressão individual com a transferência para o símbolo ge
ral. Perdeu também, assim, a possibilidade de uma diferen
ciação individual, ao ser suplantada por uma expressão cole
tiva. Perdas semelhantes costumam acarretar más conseqüên
cias, as quais se fizeram logo notar neste caso, precisamente.
Ao expressar-se a relação psíquica com a mulher através do
culto mariano coletivo, privou-se a imagem da mulher de um
valor a que, entretanto, o ser humano pretende ter um certo
e natural direito. Esse valor, que só na eleição individual
encontra sua expressão natural, cai no domínio do incons
ciente ao substituir-se uma expressão individual por uma co
letiva. Ora, no inconsciente aloja-sc a imagem da mulher,
de um modo que reanima as dominantes infantil-arcaicas. A
desvalorização relativa da mulher real é dessa maneira com
pensada por traços demoníacos, na medida em que todos os
conteúdos inconscientes se projetam sobre o objeto, íogo que
são ativados por quantidades escindidas da libido. A relati
va desvalorização da mulher pressupõe que o homem, ein cer
to sentido a quer menos, surgindo, em seu lugar, a mulher
como ser perseguidor, isto é, como feiticeira. Assim, com
282
TIPOS PSICOLÓCICOS
o culto mâriano, cada dia rnais intenso, e como resultado do
mesmo, Foi-se desenvolvendo c ganhando incremento a obeecação das bruxas, essa inapagável nódoa de infâmia dos
finais da Idade Média. Mas essa não seria a única conse
qüência. Pela repressão e extinção de uma importante ten
dência progressiva, produziu-se, efetivamente, uma certa ativa
ção do inconsciente. E essa ativação não podia encontrar
suficiente expressão no símbolo geral cristão, dado que a ex
pressão mais apropriada teria consistido, sem dúvida, em
formas individuais de expressão. Tal circunstância abriu o
caminho aos cismas e heresias. A consciência orientada em
sentido cristão reagiria com fanatismo, inevitavelmente. Os
sinistros desatinos da Inquisição foram uma supercompensação da Dúvida que brotava, imperativa, do inconsciente e
que, por fim. redundaria no maior cisma da Igreja: a Refor
ma protestante.
Estes longos esclarecimentos oferecem-nos uma perspec
tiva do seguinte quadro geral: partimos da visão de Hermas,
na qual ele via sor construída uma torre. A mulher velha,
que anteriormente se revelara como a Igreja, declara por sua
vez que a torre é o símbolo da própria Igreia. O seu signi
ficado transfere-se. portanto, para a torre, de que se ocupa
o texto subseqüente do Poirnen. Para IJermas, trata-se ago
ra da torre e não da velha, e muito menos ainda da Rhoda
real. Conclui-se dessa maneira o desprendimento da libido,
que se divorcia do obfeto real para transportar-se ao símbolo,
representando esse transito uma função simbólica. A idéia
de uma Igreja universal e unitária, expressa na torre inaba
lável, sem fissuras ou brechas aparentes, como de um só blo
co, çonverte-se assim, na mente de Hermas, numa realidade
que já não é mais retrovertível ou passível de anulação.
O desprendimento da libido do objeto transporta-a para
o interior do sujeito, ativando as imagens do inconsciente. Es
sas imagens são formas arcaicas de expressão que se conver
teram em símbolos e estes, por seu tumo, aparecem como equi
valentes de objetos relativamente desvalorizados. De qual
quer mndo, semelhante processo é tão velho quanto a própria
humanidade, pois já encontramos símbolos entre os vestí
gios deixados pelos homens pré-históricos, bem como no tipo
humano inferior ainda sobrevivente em certas civilizações pri
mitivas. A formação de símbolos deve também constituir,
O PROBLEM A
DOS
TIPOS
N'A
CRIAÇÃO POÉTICA
28 3
portanto, uma função dc grande importância biológica. Co
mo o símbolo só pode viver graçaç a uma relativa desvalo
rização do objeto, terá dc servir também, evidentemente, pa
ra os fins de desvalorização dos objetos. Se um objeto pos
suísse valor absoluto, seria também absolutamente imperativo
para o sujeito, com o que a liberdade de ação do sujeito fica
ria totalmente anulada, visto ser impossível a coexistência de
uma liberdade relativa com uma determinação absoluta, por
parte do objeto. O estado dc referenciação absoluta ao ob
jeto equivale à exteriorização total do processo consciente,
quer dizer, a uma identificação entre sujeito e objeto, fican
do assim anulada toda a possibilidade de conhecimento. P.
esta a situação que hoje se observa, de forma atenuada, en
tre os primitivos. As chamadas projeções com que depara
mos, freqüentemente, na prática da análise, são apenas resí
duos de uma identificação original entre sujeito e objeto.
A exclusão do conhecimento e a impossibilidade de uma ex
periência consciente que esteja condicionada por semelhante
estado subentendem uma importante perda na capacidade
de adaptação, o que para o homem, inerme e desamparado
por natureza, com sua prole em condições dc inferioridade,
durante muitos anos, em relação aos outros animais, equivale
a uma desvantagem dc peso. Mas o estado desprovido de
conhecimento também pressupõe, do ponto de vista da afetividade, uma perigosa inferioridade, nomeadamente quando
identifica o sentimento com o objeto sentido, dc modo que,
em primeiro lugar, qualquer objeto pode, à sua vontade, exer
cer sobre o sujeito uma forte impressão e, cm segundo lugar,
qualquer afeto do sujeito pode, sem mais, incluir cm si
o objeto c violá-lo. Um episódio da vida do bosquímano
exemplifica perfeitamente o que pretendemos dizer. Um
bosquímano tinha um filhinho a quem queria com aque
le afetuoso amor simiesco que é próprio do ser primitivo.
Esse amor, naturalmente, do ponto de vista psicológico, é de
natureza totalmente auto-crótica, quer dizer, o sujeito ama-se a si próprio no objeto. De certo modo, o objeto serve
como um espelho erótico. Certo dia, o bosquímano chegou
mal-humorado em casa porque não conseguira pescar nada.
Como sempre, o guri saiu ao seu encontro, correndo alegre
mente. O pai torceu-lhe o pescoço no mesmo instante. Cla
ro que depois chorou o pequeno morto, com a mesma desfa
çatez com que o sacrificara.
TIPOS PSICOLÓGICOS
Este caso revela, com ioda a clareza, a identidade do
objeto com o afeto momentâneo. £ evidente que tal menta
lidade constitui um obstáculo a toda organização da bor
da que garanta uma defesa eficiente. Assim, no que respeita
à reprodução e multiplicação da espécie, constitui Min fator
desfavorável e, por conseguinte, tem de ser substituído e trans
formado numa espécie cie forte vitalidade. Esta é a origem
e finalidade do símbolo, que ao absorver do objeto uma
determinada quantidade de libido o desvaloriza relativamen
te, concedendo assim ao sujeito uma mais-valia. Ora, esta
mais-valia atinge o inconsciente do sujeito, dado que este fica
situado entre um determinante interior e outro exterior, ori
ginando-se a possibilidade do eleição e escolha, bem como
a relativa liberdade do próprio sujeito.
O símbolo promana sempre de remanescentes arcaicos,
de históricos ertgramas de anccstralidadc, sobre os quais se
pode especular bastante, mas nada de seguro pode ser ave
riguado. .Seria um completo erro pretender derivar os sím
bolos de fontes pessoais, como, por exemplo, da sexualidade
individualmente reprimida. Tal repressão poderia, quando
muito, fornecer a dose de libido necessária .para ativar o
engrama arcaico. Mas o engrama equivale a um modo fun
cional herdado, cuja existência se deve não a uma secular
repressão sexual, por exemplo, mas, de fato, a uma diferen
ciação instintiva. Mas a diferenciação instintiva sempre foi
e continua sendo uma medida biológica necessária que não
é exclusiva da espécie humana pois se manifesta, igualmente,
no definhar sexual das abelhas-obreiras. Mostrei, neste caso
do símbolo do vaso, aqui tratado, a procedência do símbolo
de representações arcaicas. O fato desse símbolo funda
mentar-se na representação primordial cio útero torna viável
uma semelhante procedência para o símbolo da torre. Este
último quadra-se perfeitamente na linha de símbolos do fun
do fálico, de que tão fértil é a história dos símbolos. O
fato de Hermas, no preciso momento em que se viu obriga
do a reprimir a fantasia erótica, à vista do leito sedutor, ter
sido assaltado por um símbolo fálico, que naturalmente cor
responde à ereção, não pôde surpreender, já vimos que ou
tros atributos simbólicos da Virgem e da Igreja são de ori
gem erótica, como tal atestados tanto por sua procedência
do "Cântico dos Cânticos“ como pela interpretação expressa
que lhes foi dada pelos Padres da Igreja. O símbolo da
O PROBLEMA DOS TIPOS NA CRIAÇÃO POÉTICA
28 5
torre, da Litania l.ateranense, provém cia mesma fonte e
terá, portanto, sua base num semelhante significado funda
mental. O atributo ebúrnea da torre c de indiscutível natu
reza erótica, quando se refere à cor c lisura da pele (“Seu
corpo é como puro m arfim ").128 Mas também a própria
torre nos é apresentada num inequívoco contexto erótico,
como na seguinte passagem do 'Cântico dos Cânticos” VIII,
10: “Sou uma muralha e meus seios são como torres’“. Dessa
maneira se faz alusão aos seios eretos e à sua túrgida consis
tência, tal como acontece em relação às pernas, em V, 15:
“Suas pernas são como colunas de mármore’’. O mesmo sen
tido têm os versículos VII, 5: "Teu colo é como ebúrnea
torre” e "Teu nariz é como a torre do Líbano”, fazendo-se
assim alusão ao esbelto e ao saliente. Esses atributos tem sua
origem em percepções táteis e orgânicas, que foram proje
tadas no objeto. Assim como um humor sombrio vê tudo
triste e cinzento, e um humor alegre vè tudo claro e colo
rido, também a faculdade tátil sente, sob o influxo dc per
cepções sexuais subjetivas, neste caso a percepção de ere
ção, transmitindo ao objeto suas qualidades. A psicologia
erótica do “Cântico dos Cânticos” aplica ao objeto as ima
gens sugeridas no sujeito, a fim de ampliar o respectivo
valor. A psicologia eclesiástica serve-se das mesmas imagens
para encaminhar a libido no sentido do objeto figurado, mas
a psicologia de Ilermas enaltece a imagem inconscientemente
sugerida, dotando-a de finalidade própria, para nela consubs
tanciar os pensamentos que, para a mentalidade da época,
eram de suma importância, quer dizer, os que se referiam
à estabilização e organização da cosmovisão ou concepção
cristã do mundo que fora recentemente conquistada.
b)
A Relatividade do Conceito dc Deus cm Mestre Eckhart
O processo por que Hermas passou representa, em pe
quena escala, o- que na psicologia do primeiro quartel da
Idade Media ocorreu em grande escala: um redescobrimento
da mulher e a formulação, dele derivada, do símbolo femi
nino do Gral. Hermas vô Rhoda a uma nova luz, mas a
quantidade de libido que se liberta transforma-se, da maneira
imprevista, no preenchimento da missão que a época exige.
*3S "Cântico dot Cânticos" V, 14.
280
TIPOS PSICOLÓGICOS
Em minha opinião, é característico para a nossa psicolo
gia o fato de que, no limiar da nova época, apareçam dois
espíritos a que estava reservado exercerem uma influencia
formidável no coração e na mente das novas gerações: W a g n e r
e K ie t z s c h e , o primeiro, paladino do amor, que em sua mú
sica faz ressoar toda a gama dc matizes do sentimento, desde
Tristão até a paixão incestuosa, na escala descendente, e des
de o mesmo até a espiritualidade suprema do Gral, na escala
ascendente; paladino, o segundo, da força e da vontade triun
fante da individualidade. Em sua máxima e suprema ex
pressão, W a g n e r liga-se à lenda do Gral, assim como G o e t h e
se uniu a D a n t e , e X ie t z s c iie a uma visão da raça de senho
res c a uma ética de senhores, tal como na Idade Média
se observou, ern tantas figuras heróicas de cavaleiros de ca
belo louro. W a g n e r fez saltar os laços que aprisionavam o
amor e N ie t z s c iie fez em pedaços as “Tábuas de Valores”
que punham limites à individualidade. Ambos perseguiram
finalidades semelhantes, mas suscitaram a insanável divergên
cia, pois onde há amor não impera a força do indivíduo, e
onde está a força do indivíduo o amor não domina.
Que três dos maiores espíritos alemães, e em suas obras
de maior envergadura, enlacem com a primeira época da
Idade Média, parece demonstrar que desde então, precisa
mente, está equacionada uma questão que ainda não foi re
solvida.
Devemos considerar essa questão com maior detalhe.
Por minha parte, creio que esse algo estranho que encontrou
uma válvula para a sua essência cm certas ordens de cava
laria dessa época (os Templários, por exemplo) c que parece
ter encontrado sua expressão na lenda do Santo Gral, cons
tituía o germe e a raiz de lima nova possibilidade de orien
tação; por outras palavras, era um novo símbolo, em sua
essência. A natureza não-eristã Ou gnóstica do símbolo do
Gral reporta-se, de um modo retrospectivo, às primitivas he
resias cristãs, aquelas manifestações incipientes, em certos as
pectos formidáveis, que transbordavam de idéias atrevidas c
luminosas. Ora, a gnose revela-nos uma psicologia incons
ciente opulentamente desenvolvida, inclusive com uma per
versa exuberância, quer dizer, o elemento mais renitente à
regula jiâei, esse algo promctéico e criador que só se inclina
ante a própria alma e não aceita normas coletivas de com
portamento. Na gnose encontramos, só em forma rudimentar,
O PROBLEMA DOS TIPOS NA CIUAÇÀO POÉTICA
287
sem dúvida, essa fé 1 1 0 poder da própria revelação e do pró
prio conhecimento, cuja falta se nota nos séculos posterio
res. Essa fc tem sua origem no orgulhoso sentimento do
divino parentesco próprio, que não cede ante qualquer pre
ceito humano c que, se for preciso, até se impõe aos deuses
pela força do conhecimento. .Na gnose está o começo da ten
dência que concorre nos conhecimentos (psicologicamente
importantes) da mística alemã, cujo florescimento ocorria,
precisamente, na época a que nos referimos. É de interesse,
no que se refere à caracterização do problema que nos ocupa,
recordar agora o maior pensador desse tempo: M e s t r e
E c k i l a r t . Tal como no espírito da cavalaria se tomavam evi
dentes os sintomas de uma nova orientação, assim se obser
vam também em E c k h a r t pensamentos da mesma orientação
psíquica que levou D a n t e a desccr ao submundo do inconscien
te, seguindo a imagem de Beatriz, e que inspirou os trovadores
que cantaram novas do Gral. Infelizmente, nada sabemos
da vida pessoal de E c k h a r t que nos explique o caminho por
cie percorrido para chegar à alma, mas o ar de firmeza e de
superioridade com que nos fala do arrependimento, permite
supor que se trate de experiências pessoais. Produz em nós
uma estranha impressão, ante o sentimento cristão de culpa
bilidade, o sentimento de E c k h a r t de uma intima afinidade
divina. Dá-nos a impressão de que nos encontramos na at
mosfera dos upanichades. Com certeza se verificou cm
E c k h a r t uma ampliação do valor da alma, verdadeiramente
extraordinária, isto é, um aumento do valor da própria infe
rioridade, para que pudesse elevar-se a uma concepção, por
assim dizer, puramente psicológica e, por conseguinte, rela
tiva, de Deus e de suas relações com o homem. O conheci
mento e a detalhada formulação da relatividade de Deus
em face do homem e de sua alma constitui, quanto a mim,
um dos mais importantes passos no caminho de uma percep
ção psicológica do problema religioso e, com isso, de uina
possibilidade de emancipação da função religiosa das incô
modas limitações que lhe são opostas pela crítica intelectual,
por sua vez, também com direito a existência própria.
Assim chegamos ao verdadeiro tema deste capítulo, isto
é, ao exame da relatividade do símbolo. Por relatividade de
Deus entendo um ponto de vista segundo o qual Deus não
existe de um modo "absoluto", quer dizer, desligado do sujei
to humano e para além de todo 0 vinculo humano, dependen
28 8
TIPOS PSICOLÓGICOS
do, outrossim, num certo sentido, do sujeito humano, obser
vando-se uma relação mútua e inevitável entre o homem c
Deus; assim que, por uma parte, pode-se entender o homem
como função de Deus e, por outra parte, Deus como função
psicológica do homem. Para a nossa psicologia analítica, co
mo ciência que tem de scr concebida empiricamente, segun
do o ponto dc vista humano, a imagem de Deus é a expres
são simbólica dc um determinado estado psicológico, ou a
função caracterizada pelo fato de superar, sem restrições, a
vontade consciente do sujeito, sendo, portanto, capaz de im
por ou tornar possíveis acontecimentos ou ações cuja veri
ficação seria impossível, por inacessível, a todo e qualquer
esforço consciente. Esse impulso prepotente* — na medida
em que a função divina se manifeste em ação — ou essa
inspiração superadora do conhecimento consciente tem sua
origem uuma acumulação de energia no inconsciente. Por
meio desse acúmulo de libido, são refletidas imagens em
posse do inconsciente coletivo como possibilidades latentes,
entre as quais se encontra a imago de Deus, essa impressão
que desde tempos remotos constituía característica coletiva
dos mais poderosos e irrestritos influxos das concentrações
inconscientes da libido sobre a consciência. Para a nossa Psi
cologia, que como ciência tem de restringir-se ao empírico,
dentro dos limites impostos ao nosso conhecimento, Deus nem
ó sequer algo relativo, mas, tão-somente, uma função do in
consciente, quer dizer, a manifestação da quantidade de libi
do que se desprendeu e foi ativada pela imago de Deus.
Para a concepção ortodoxa, Deus è, naturalmente, absoluto
— quer dizer, existente por si mesmo. Dessa maneira se ex
pressa uma total dissociação do inconsciente, o que psicolo
gicamente quer dizer que passa inadvertido o fato do influxo
divino ter sua origem no próprio íntimo. Pelo contrário, o
conceito de relatividade de Deus significa que uma parte não-desprezível dos processos inconscientes é reconhecida, pelo
menos a título informativo, como um conjunto de conteúdos
psicológicos. Tal concepção só pode ser conseguida, natu
ralmente, or.de se conceda à alma uma atenção que exceda
o habitual, fazendo refluir os conteúdos inconscientes de suas
projeções nos objetos, e incutindo-lhes (aos conteúdos) uma
certa consciência que os faz parecer como se pertencessem ao
sujeito e, por conseguinte, como se estivessem subjetivamente
condicionados. É este o caso dos místicos.
O 1‘HOUJHiMA D<)S TIPOS NA CRIAÇÃO POÉTICA
26 9
Isto não significa que com eles ficasse definitivamente
comprovada a ideia da relatividade de Deus. Entre os pri
mitivos observa-se, de vim modo natural e em princípio, uma
relatividade de Deus ao estar em toda parte; com efeito, nas
camadas inferiores, dc natureza puramente dinâmica,, a con
cepção de Deus, quer dizer, Deus é uma força divina, uma
energia salutar, anímica, médica, da riqueza, do chefe, etc.,
que poderá ser acelerada por certos métodos para & produ
ção das coisas necessárias à vida e à saúde do homem, bem
como para a produção dc virtudes e efeitos mágicos e hostis.
Essa energia é sentida pelo primitivo, tanto fora como den
tro de si, quer dizer, tanto como sua própria energia vital,
ou como “remédio” no seu amuleto, ou ainda como influên
cia oriunda do seu chefe. £ esta a primeira idéia compará
vel de uma energia espiritual que em tudo penetra e tudo
inunda. Psicologicamente, a energia do fetiche ou o prestí
gio do curandeiro são valorizações subjetivas e inconscientes
desses objetos. Trata-se, portanto, no fundo, da libido que
se encontra no inconsciente do sujeito c que é percebida no
objeto porque todo inconsciente, desde que ativado, aparece
em projeção. Assim, a relatividade de Deus que se apresen
ta na mística medieval pressupõe um retrocesso ao estado pri
mitivo de coisas. Por outra parte, as idéias afins do Oriente
sobre o Atman individual c supra-individual não constituem
regressões ao primitivo, mas um processo evolutivo e em cons
tante progressão, partindo do primitivo, de acordo com a es
sência do Oriente, e mantendo os princípios que no primitivo
já se evidenciam com clàreza. O retrocesso ao primitivo não
deve surpreender, uma vez que toda forma religiosa verda
deiramente viva organiza, cultual ou eticamente, esta ou
aquela tendência primitiva nela afluindo, pois, os misterio
sos impulsos que originam a perfeição da essência humana no
prOCéSSo religioso. 133 Esse retrôcesso ao primitivo ou, c õ n i O
no caso dos indianos, a ininterrupta ligação com aquele, suben
tende um contato com a terra materna, fonte imediata de
toda energia. Na acepção de todo conceito diferenciado num
nível racional ou ético, esses impulsos são dc natureza "im
pura". Mas a própria vida, tal como é, promana simultanea
130
Neste
cluí aipins c m
domínio,
poderíamos
citar
numerosos
W a n d lu n g en u n d S ym b ole d er L ib id o .
St/inbole d er W a n d lu n g .
exemplos.
In
N o v a edição,
TIPOS PSICOLÓGICOS
290
mente de mananciais límpidos e turvos. Daí que toda a
grande "pureza” careça de vida. Toda renovação da vida
cem de passar pelo turvo, antes de alcançar o claro. Mas
cjuanto maiores forem o esclarecimento e a diferenciação, tan
to mais escassa será a intensidade vital, em virtude da exclu
são das substâncias turvas. O processo evolutivo tanto preci
sa de aclarar-se como de turvar-se por igual. E isso terá
sido o que vislumbrou, com certeza, o grande relativista que
íoi M e s t r e E c k h a r t .
Por uma parte, em virtude da profundidade de sua visão
psicológica e, por outra parte, tendo em conta a elevação de
seus pensamentos e sentimentos religiosos, M e s t r e E c k i i a u t
foi a mais brilhante figura do movimento crítico que se ob
serva na Igreja, em finais do século X III. 140 Será pertinente,
pois, citarmos agora, entre suas máximas, algumas das que
podem contribuir para elucidar sua concepção relativista de
Deus:
“Pois, na verdade, o homem é Deus e Deus, na verdade,
é homem.” 141
“Aquele que, pelo contrário, não tem Deus, de tal modo,
cm sua íntima posse, tendo que trazê-lo de fora, seja daqui
ou dali — onde quer que o busque, de modo insuficiente, por
intermédio de certas obras, ou pessoas, ou lugares — poderá
dizer que não tem Deus e, nesse caso, sobrevêm facilmente
algo que o perturba. E não só a má companhia estorva uma
pessoa, mas a boa também, não só a rua, mas a igreja, c não
só as más palavras e obras mas igualmente as boas. Pois
o impedimento reside dentro de nós próprios: Deus ainda
não se fez mundo em nós. Sc isso tivesse acontecido, sentir-se-ia em todas as partes e em todas as gentes seria bem
acolhido: teríamos sempre Deus”, etc.14Este trecho é de especial interesse psicológico; assinala
um fragmento da concepção primitiva de Deus, tal como aci
ma esboçamos. “Trazer Deus de fora” equivale ao critério
no F. P
, Deutsche Mystiker, 1857, Vol. II, pág. 557.
m Von den Hindernissen an wahrer Geistlichkeit. Eni H.
B .
, Meister Eckcharts Schriften und Predigten, 1909, Vol. II.
pág. 185.
n s Geistliche Unterweisung, 4. H. B u e t t . v e r , loc. d t., Vol. II,
f e if f e r
uf t t n e r
päß. 8.
O PHOBLKMA DOS TJPOS NA CRIAÇÃO POÉTICA
291
primitivo dc obter o "tondi” Ma no exterior. Em Eckiiart
pode tratar-se, sem dúvida, de linguagem figurada, na qual
o sentido primário transparece com clareza. Em todo caso,
é evidente que E c k i i a r t concebe Deus como um valor psico
lógico. Isto se deduz de suas próprias palavras quando afir
ma que, se temos dc trazer Deus de fora, os objetos nos per
turbam, quer dizer, quem tem Deus fora de si próprio tem-no projetado no objeto, com o que se irnputa a este uma
mais-vaíia. Ora, nos casos em que tal ocorre, é possível afir
mar que o objeto exerce uma influência desmesurada sobre o
sujeito, submetendo-o a uma certa e escravizante subordina
ção. E c k i i a r t alude, por certo, à conhecida vinculação ao
objeto, que faz aparecer o mundo em figura de Deus, oti exer
cendo o papel dc Deus, isto é, com uma amplitude absoluta
mente condicionadora. Por esse motivo ele afirma, seguida
mente, que tal acontece porque “Deus ainda não se fez. mun
do em nós”, querendo assim dizer que o mundo substituía
Deus para nós. Ou, o que vem a ser o mesmo, que não reti
ráramos a mais-valia do objeto, introvertendo-a, de maneira
que nós próprios possuíssemos essa “valia”, esse valor, em
nosso íntimo. Se assim tivesse ocorrido, teríamos Deus (esse
valor, precisamente) como objeto permanente, como mundo,
e então Deus ter-se-ia feito mundo em nós. Mais adiante,
E c k i i a r t diz ainda:
“Aquele cujo ânimo é justo, adapta-se
a todos os lugares e a todas as gentes; quem o tiver injusto,
não está bem em lugar algum nem com gente dc espécie
alguma. Um ânimo justo tem Deus em si*’. 144 Quer dizer,
quem possuir o dito valor está de bom ânimo cm toda parte,
não depende dos objetos, não sente necessidade nem espera
dò objeto aquilo que lhe falte. Isto demonstra, de maneira
cabal, que Deus é, para E c k i i a r t , um estado psicológico ou,
mais exatamente, um estado psicodinâmico,
“Outras vezes, entendem por reino de Deus a alma.
Pois a alma tem uma composição idêntica à da divindade.
Portanto, tudo o que se disse aqui sobre o reino de Deus, na
medida em que Deus é este próprio reino, poderá também
afirmar-se, na verdade, em relação à alma. Tudo foi feito
n a “Tondi” é o conceito de libido entre os bataques. Ver JW a h n k c k , Dlc Religion der Batck. Assim, ''tondi” designa a força
mágica em torno da qual tudo gira, por assim dizer.
144 H. B u e t t n e r , loc. cit., Vol. II, págs. 6 e seg.
TIPOS PSICOLÓGICOS
29 2
por ela, disse São João Pela alma, entenda-se, pois a alnui
é o todo. É-o ao ser imagem de Deus. Mas, como tal, é
também o reino de Deus. Em tal medida está Deus na alma,
disse um mestre, que todo o seu ser divino se baseia nela.
Ê um estado muito mais excelente que Deus esteja na alma
do que se a alma estivesse em Deus, pois por estar ela cm
Deus não poderá julgar-se ainda bem-aventurada, mas estan
do Deus nela, sim. Podeis estar certos: Deus é cie próprio
bem-aventurado na ahnu!" u:'
A alma, esse conceito de múltiplos sentidos e múltiplas
interpretações, corresponde historicamente a um conteúdo psi
cológico a que deve ser atribuída uma certa independência,
dentro dos limites da própria consciência. Pois se assim não
fosse, nunca se teria cogitado de atribuir à alma uma essên
cia independente, como se estivesse em causa algo objetiva
mente perceptível. Tem de ser um conteúdo dotado de es
pontaneidade e, concomitantemente, de uma inconsciência
parcial também, como todo complexo autónomo. O primitivo
tem regularmente, como se sabe, várias almas, de modo que
estas lhe infundem respeito como essências diferenciadas (o
mesmo cjue acontece a certos doentes mentais!). Em níveis
evolutivos mais elevados, o número de almas diminui, até se
chegar ao nível máximo de cultura atingido ate agora, em
que a alma sc dilui por completo na consciência de todos os
processos psíquicos e já defende apenas sua existência como
um termo para designar a soma total dos processos psíquicos.
Essa consumição da alma não constitui apenas uma caracte
rística da cultura ocidental, mas também da cultura oriental.
No budismo, tudo se dilui na consciência, inclusive as
“samskaras”, as forças imagísticas inconscientes, que terão de
ser apreendidas e transformadas pela auto-evolução religiosa.
0 ponto de vista da Psicologia analítica está em contradição
com essa evolução histórica do conceito de alma, de um cará
ter bastante genérico, desde o momento em que o seu con
ceito dc alma não coincide com a totalidade das funções psí
quicas. Definimos concretamcntc a alma, por um lado, como
uma relação com o inconsciente, mas, por outro lado, como
uma personificação dos conteúdos inconscientes. Do ponto
de vista da cultura c lamentável que ainda existam personi
ficações de conteúdos inconscientes, do mesmo modo que,
H5
Vom Gottesrcich.
H.
B c f.ttn e r ,
loc. cit., Vol. II, pág.
195.
O PROBLEMA DOS TIPOS NA CRIAÇÃO POÉTICA
29 3
do ponto de vista de uma consciência esclarecida e diferen
ciada. também é lamentável que se aceitem ainda conteúdos
inconsciente^. Mas como a Psicologia analítica se ocupa
do homem tal como ele é e não como, segundo determinados
critérios, deveria ser, resulta que justamente aqueles fenô
menos que já levavam o primitivo a falar de “almas” conti
nuam manifestando sua presença, tal como num certo país
europeu e culto ainda bá muita gente que acredita nos fan
tasmas de seus castelos. Sc aceitarmos a teoria da “unida
de do eu”, segundo a qual não podem existir complexos inde
pendentes. à natureza não importarão, de maneira alguma,
semelhantes teorias inteligentes. Tal como a alma é uma
personificação de conteúdos inconscientes, segundo a nossa
definição, assim Deus é também um conteúdo inconsciente,
uma personificação, na medida em que é pensado pessoal
mente, e uma imagem ou expressão, na medida cm que é
exclusiva ou predominantemente pensado dc um modo dinâ
mico. quer dizer, em essencia, o mesmo que a alma quando
é pensada como personificação dc um conteúdo inconsciente.
O ponto de vista de M kstrk E c k h a r t é. por conseguinte,
puramente psicológico. Enquanto a alma só está em Deus,
como ele disse, não c bem-aventurada. Sc por "bem-aventurança” entendermos um estado vital sobremodo salutar e
intenso, tal estado não pode concretizar-se, segundo E c k h a r t ,
enquanto a di/namis, a libido chamada Deus, permanecer ocul
ta nos objetos. Pois, ainda de acordo com E c k h a r t , enquanto
o valor principal ou Deus está na alma, a força está fora,
isto c. nos objetos. Deus, o valor principal, tem de ser recu
perado dos objetos, único processo para que Deus entre na
alma, o que equivale a "um estado mais excelente” e implica
a "bem-aventurança” para Deus. Psicologicamente, isto quer
dizer cjue quando a libido “divina”, “de Deus'', ou seja, a
mais-valia projetada, é reconhecida como projeção,,<fl de ma
neira que os objetos percam sua importância mediante o co
nhecimento. passa a ser considerada como pertencente ao indi
víduo, o que dá então lugar a um sentimento vital intensilt,í O fato de se reconhecer aipo como projeção não deve ser
<rreneamente interpretado como rim processo apenas intelectual. O
conhecimento intelectual só desprende uma projeção quando chegou à
maturidade e, dc qualquer modo, está apta a desprendê-la. Ê impos<m qualquer caso, extrair mediante juízo intelectual, ou por ato
voliiivo, a libido de uma projeção cujo prazo não esteja cumprido.
29 4
TIPOS PSICOLÓGICOS
ficado, ou seja, a uma nova inclinação. Deus, quer dizer, a
suprema intensidade vital, encontra-sc então na alma, no in
consciente. Mas isto não deve ser entendido na acepção de
que Deus seja algo totalmente inconsciente e que também
uma idéia de Deus fuja aos domínios da consciência. Deve
entender-se, outrossim, 110 sentido de que o valor principal
foi deslocado, de que passou a estar dentro e não fora. Os
objetos deixaram de ser, portanto, os fatores autônomos, v i s t o
que o próprio Deus se converteu num complexo psicológico
autônomo. Ora, um complexo autônomo sempre é apenas
em parte consciente, uma vez que só condicionalmente se as
socia ao eu, quer dizer, nunca do modo tal que o eu possa
integralmente abrangê-lo, pois nesse caso já não seria autô
nomo.
Por isso, a partir desse momento, já o objeto snpervalorizado não é 0 determinante, mas o inconsciente. As influên
cias condicionantes decorrem então do inconsciente, quer di
zer. sente-se e sabe-se que promanam do inconsciente, geran
do-se dessa maneira uma “unidade da essência" ( E c k h a b t ),
uma relação entre o consciente e o inconsciente em que.este
último, sem dúvida, tem preponderância. Devemos, então,
perguntar a nós próprios qual é a origem dessa bem-aventurança ou amoroso deleite (ànarula, como os hindus chamam
ao estado de Brahm an).147 Em tal estado, o supremo valor
reside no inconsciente. Ilá. portanto, uma inclinação para o
inconsciente, o que significa que o inconsciente aparece como
grandeza determinante, desaparecendo o eu quase por com
pleto, no processo, da consciência de realidade onde se situava.
Esse estado tem, por uma parte, uma semelhança enorme
com o da criança e, por outra parte, com o do primitivo, que
também é influenciado em alto grau pelo inconsciente. Poder-se-ia afirmar, convíctamenle, que «a causa dessa bem-aventurança é o estabelecimento do antigo estado paradisíaco.
Fica por averiguar qual o motivo por que esse estado primevo
é tão delicioso. Tal sentimento de bem-aventurança acom
panha todos os momentos caracterizados pela sensação de
vida fluente, ciuer dizer, os momentos ou estados em que o
acumulado pode fluir sem obstáculos, em que não é preciso
W i l l i a m B l a k e , o místico inglís, disse em The Marriage oj
Heaven and It ell: “Energy w clcrna! delight” (A energia à a delícia
eterna]. The W ritings oj William Blake, Londres. 1925. Vol. I, pág. 182.
O
PROBLEMA IX)S t i p o s n a c r ia ç ã o p o é t ic a
29 5
fazer isto ou aquilo, com um esforço consciente, para encon
trar uma saída ou produzir um efeito. São aquelas situa
ções ou estados de ânimo em que “^s coisas acontecem por
si mesmas”, em que não é necessário procurar afanosamente
certas condições, seja qual for a sua natureza, que prome
tam redundar em alegria ou prazer. Dessa alegria que brota
do íntimo, indiferente a motivações externas e em tudo insu
flando seu próprio calor, a época da infância constitui o
inesquecível símbolo. Por conseguinte, a "infantilidade” é
o símbolo adequado de uma condição íntima e peculiar, sob
a qual se produz a “bem-aventurança”. Ter uma reserva de
libido acumulada c que possa ainda afluir é, por assim dizer,
ser como uma criança. Esta faz a libido afluir às coisas,
assim conquistando o mundo e assim se perdendo gradual
mente nele. também (como se diz na linguagem religiosa),
quando as coisas acabam por ser supervalorizadas. pouco a
pouco, p lngo se verifica a subordinação íis coisas. D aí resul
ta a necessidade dc sacrifício, ou seja, a necessidade de fazer
refluir a libido, de desfazer os vínculos. A doutrina intuitiva
do sistema religioso procura, dessa maneira, recuperar dc novo
a energia; com efeito, ela representa até em seus símbolos
esse processo dc recuperação. A mais-valia do obwto, face
;i menns-valia do sujeito, domina uma inclinação retrocessiva.
de modo que a libido refluiria, da maneira mais natural, ao
suieito, se não fosse pelos obstáculos que lhe são impostos
pelas forças da consciência. Xo primitivo, observamos o exer
cício natural da religião, em toda parte, visto que obedece
sem dificuldade ao impulso que se manifeste quer numa ou
noutra direção. Pelo exercício religioso procura-se alcançar
de novo a virtude mágica necessária ou reintegrar-se a alma
perdida durante a noite.
Essa diretriz das grandes religiões “não é deste mundo”;
dessa maneira se imprime ao movimento da libido uma orien
tação no sentido do íntimo do sujeito, ou seia, do seu incons
ciente. O refluxo geral e a introversão da libido produz uma
concentração de libido simbolizada como “delícia”, ou em
linguagem análoga, como “pérola deliciosa” e "tesouro no
agro”. Dessa analogia serve-se E c k i i a r t . interpretando-a ain
da da seguinte maneira: “O reino dos céus é como um tesou
ro oculto num agro. disse Cristo. Esse agro é a a lm a ... na
qual jaz, oculto, o tesouro do reino de Deus. Por isso Deus
TIPOS PSICOLÓGICOS
296
e todas as criaturas são bem-aventurados na alma”. 1IÃ Esta
interpretação coincide com a iiOSSa re fle x ão psicológica. A al
ma é a personificação do inconsciente. No inconsciente jto
o tesouro, quer dizer, a libido oculta ou submersa no incons
ciente mediante a introversão. A essa soma dc libido dá-se
o nome de “reino de Deus". O reino de Deus significa uma
permanente unidade ou conjunção com Deus, uma vida no
seu reino, isto é, no estado caracterizado pela presença de
uma dose preponderante de libido no inconsciente, a partir
do qual a vida consciente é determinada. A libido concen
trada no inconsciente promana dos objetos, do mundo, cujo
anterior predomínio condicionava. Então, Deus “estava fo
ra", enquanto atua agora "de dentro”, como o tesouro oculto
que foi concebido como “reino de Deus”. É evidente que
assim se quer exprimir o fato da libido acumulada na alma
representar uma relação com Deus (reino dc Deus). Ora.
quando M estue E ckhart chega à conclusão de que a alma
é o próprio reino de Deus, a alma é pensada como relação
com Deus, e Deus seria a força que nela atua e por ela é
percebida. E c k h a r t também chama à alma imagem dc Drns.
As concepções etnológicas e históricas da alma revelam cla
ramente que ela é considerada, por uma parte, como um con
teúdo pertencente ao sujeito, mas também, por outra parte,
como pertencente ao mundo dos espíritos, quer dizer, ao in
consciente. Por isso ;i alma também comporia sempre em si
algo telúrico e espectral. O mesmo acontece no primitivo
com a virtude.mágica, a energia divina, ao passo que a con
cepção própria dos níveis superiores da cultura distingue
nitidamente Deus do homem e, finalmente, eleva-o à mais
pura idealidade suprema. Mas a alma jamais perde a sua
posição intermédia. Temos de invocá-la, portanto, como fun
ção situada entre o sujeito consciente e as profundezas do
inconsciente, inacessíveis ao sujeito. A energia determinante
(Deus) que atua a partir dessas profundezas ó refletida pela
alma, quer. dizer, a alma cria símbolos, imagens, e ela pró
pria só é imagem. Através dessas imagens transmite-se a
energia do inconsciente à consciência. Assim, é vaso e
veículo, órgão pcrceptivo dos conteúdos inconscientes. O
que ela percebe são símbolos. Ora, na verdade, os símbolos
são energias sem forma, forças, quer dizer, idéias detenni-
U 8 II. BWETTNER,
lo c . d t . ,
Vol. II, pág. 195.
O PROBLEMA DOS TIPOS KA CRIAÇÃO POÉTICA
297
nantes cujo valor espiritual é tão grande quanto o afetivo.
Quando, eomo disse E c k h a r t , a alma está em Deus, não é
bem-aventurada; por outras palavras, quando essa função perceptiva está totalmente inundada pela dynamis, o estado que
se origina não é de delícia. Ao invés, quando Deus está na
alma, ou seja, quando a alma, a apercepção, apreende o in
consciente e transfigura-se cm imagem c símbolo seu, o es
tado que assim se origina é delicioso. Mas observe-se que o
estado de delícia é um estado criador.
Assim disse M estre E c k h a r t , com belas palavras: “Quan
do me perguntam por que rezamos, por que jejuamos, por
que praticamos boas obras, por que nos batizamos, por que
Deus se fez homem, eu respondo: para que Deus possa nas
cer na alma e, por sua vez, a alma em Deus. Para isso se
escreveu a Escritura. Para isso Deus criou o mundo. Para
que Deus possa nascer na alma c, por sua vez, a alma em
Deus. A mais íntima natureza de todo grão quer dizer trigo;
e de todo metal, ouro; e de todo nascimento, o homem!” 119
Aqui expressa claramente E c k h a r t que Deus está numa
inegável situação de dependência em relação a alma o, ao
mesmo tempo, que a alma é o lugar de nascimento de Deus.
Esta última parte é fácil de compreender, de acordo com as
nossas anteriores considerações. A função percepliva (alma),
apreende os conteúdos do inconsciente e, como função cria
dora, gera a dynamis numa forma simbólica. ir,° O que a
alma gera, psicologicamente falando, são imagens que o precondicionamento racional supõe, cm geral, despidas de qual
quer valor. E , efetivamente, tais imagens carecem de valor
no sentido de que não podem impor-se com êxito, de um
modo imediato, no mundo objetivo. A possibilidade mais
próxima de utilização é a artística, na medida em que se dis
ponha de uma capacidade artística dc expressão; 181 uma
segunda possibilidade de aplicação é a especulação filosófi
ca 152 e uma terceira, quase religiosa, é a que conduz à here140
Von der Erfüllung.
Para
compreendido.
»60
151
B a r la c h
C o E T iu i
H.
B u e ttn e u ,
loc. cit.,
V o l.
I,
pág.
1.
E c k h a r t , a alma
Cf. B u e t t n e r ,
São
d is s o
6 tanto o que compreende como o
loc. cit., Vol. 1, p á g . 186.
exemplos lite r á r io s : E. T. A. H o f f m a n n , M e y r i n k ,
(Der to te Tag) e ,
(Faust) c W
.
,52 N ie t zsc h e
num
agnkh
em Z o r a tm tr a .
p la n o
m a is
e le v a d o ,
S p itte i.e r .
298
T irOS PSICOLÓGICOS
sia c à fundação dc seitas; e Há ainda uma quarta possibili
dade. que é a da aplicação da energia contida nas imagens
a todas as espécies de desvairamento. Kstas duas últimas
aplicações incorporaram-se, de um modo particularmente no
tório, às duas tendências gnósticas: a cncratística (abstinente,
ascética) c a antitáctica (fln-arquística).
Porém, a consciencialização das imagens reveste-se indi
retamente de valor para a adaptação à realidade, dado que,
quando isso acontece, o mundo real, em redor, vè-se livre
de misturas fantásticas. Mas, por outra parte, as imagens
tèin seu valor capital no que diz respeito à felicidade c bem-estar subjetivos, prescindindo de que sejam favoráveis 0 1 1
desfavoráveis as condições exteriores. A adaptação constitui,
sem dúvida, um ideal. Mas nem sempre é possível a adap
tação. se tivermos em conta a existência de situações cm que
a única adaptação possível é um paciente suportar e sofrer.
Esta forma dc adaptação passiva é possibilitada e facilitada
pelo desenvolvimento das imagens da fantasia. Digo "descnvolvimonto'’ porque as fantasias só são, para já. simples
matéria-prima de valor duvidoso. Assim, têm de ser subme
tidas a uma elaboração para que adquiram a fonna adequa
da que garanta o máximo de valor estimulante. Essa elabo
ração é uma questão técnica que, no presente contexto, não
posso analisar. Apenas posso dizer, por amor à clareza, que
há duas possibilidades de elaboração: o método redutivo e o
método sintético. O primeiro trata de reduzir aos instintos
primitivos e o segundo, partindo dos elementos dados, desen
volve um processo de diferenciação da personalidade. Os
métodos redutivo e sintético completam-se mutuamente, visto
que a redução ao instinto conduz à realidade, à supervalorização da realidade e. concomitantemcnte, á necessidade de
sacrifício. O método sintético desenvolve as fantasias sim
bólicas que resultam da libido introvertida pelo sacrifício.
Desse desenvolvimento surge uma nova disposição ante o
mundo, que em virtude de sua diferença garante uma nova
inclinação. A esse percurso, na nova disnosição, dá-se o no
me de junção transcendente. 155 Na disposição renovada,
a libido antes oculta no inconsciente, emerge de novo como
153 Vcjam-se os parágrafos relativos à /■'unção Trr.nsccmlcnte, nas
"Definições” do prcsrnte livro, c o meu ensaio Dic lra>vszen<Iento Funktion, cm Ccist U ni W crk, 1958.
O PROBLEMA DOS TIPOS NA CRIAÇÃO POÉTICA
299
ação positiva. Equivale a uma recuperação da vida visível.
Iãío quer dizer, o símbolo do nascimento de Deus. Pelo
contrário, quando a libido se retira do objeto exterior e sub
merge 11 0 inconsciente, então a alma “nasce em Deus”. Con
tudo. isto não constitui um estado dc delícia (como E c k h a b t
sublinhou acertadamente), pois trata-se de um ato negativo
a respeito da vida cotidiana, de uma descida até deus absconditus, o qual possui qualidades muito diferentes das pró
prias do Deus que resplandece na claridade do dia.
E c k h a r t fala-nos do nascimento de Deus como de um
processo que freqüentemente se repete. Com efeito, o pro
cesso de que estamos tratando é um processo psicológico que,
inconscientemente, repete-se de um modo quase contínuo, mas
de que só temos uma consciência relativa em suas grandes
variações. O conceito goethiano de sístole e diástole acertou
cm cheio, intuitivamente. Deve tratar-se de um ritmo do
fenômeno vital dc oscilações próprias fias energias vitais que,
regularmente, transcorrem dc um modo inconsciente. Deve-Ihe obedecer também o fato dc que para designar tudo isto,
a terminologia existente seja, preponderantemente, religiosa
ou mitológica, pois semelhantes expressões ou formas refe
rem-se sempre, cm primeira linha, a estados psicológicos de
coisas cuja índole é inconsciente, e não ás fases lunares ou
outros processos planetários, como a explicação científica dos
mitos pretende muitas vezes demonstrar. Tratando-se, pre
ponderantemente, de processos inconscientes, terá do custar-nos um considerável esforço científico, de fato, vermo-nos
livres da linguagem imagística, pelo menos até conseguirmos
alcançar o nível de linguagem figurada das outras ciências.
O temor que os grandes mistérios naturais impõem e que a
linguagem religiosa esforça-se por exprimir em símbolos con
sagrados por sua antiguidade, pela austeridade de seu signi
ficado e por sua beleza, não terá por que sentir-se ferido
com o avanço da Psicologia nesses domínios onde, até agora,
a ciência não tivera acesso. Tudo o que fazemos é recuar
um pouco a fronteira dos símbolos e trazer para a luz uma
parcela dos antigos domínios, mas sem cair no erro de ima
ginar que, com isso, fazemos algo que não seja formular um
13< Disse E c k h a r t : “Por iss<> regresso sempre a mim próprio e
em mim encontro sempre a mais profunda paragem, mais profunda que
o inferno”
Von ciem Zcrtic der Seele und von ihrer rechten Stätte
B v e t t n e h , loc. eit.. Vol. I. pág. 180.
30 0
TIPOS PSICOI.ÓCICOS
novo símbolo para o mesmo enigma, pois enigma foi por todo
o tempo que nos precedeu. A nossa ciência também é uma
linguagem imagística, mas, do ponto de vista prático, é mais
adequada que a antiga hipótese mitológica, a qual se expri
mia através de representações concretas cm lugar de concei
tos, como fazemos.
A alma, disse E c k h a r t , “antes de mais nada, só em
sua qualidade de criatura fez Deus, de modo que não o gerou
enquanto ela própria não foi algo criado. Eu disse há al
gum tempo: 'Sou uma das causas de que Deus seja Deus1.
Deus é Deus pela alma, mas o fato de ser a divindade
deriva-o de si próprio**.105
"Mas também Deus advém e perece.” ,5fl
“Ao ser expressado por todas as criaturas. Deus advém.
Quando eu ainda permanecia no fundo e no seio da Divin
dade, em seu caudal e em seu manancial, ninguém me per
guntava para onde eu ia e o que fazia: ninguém havia que
me pudesse perguntar. Só quando eu emergi, todas as cria
turas proclamaram D e u s... E por que não falam da Divin
dade? Tudo o que está na Divindade é Uno c dele nada se
pode dizer! S<5 Deus faz algo; a Divindade nada faz, nada
tem que fazer.
nem se deteve vez alguma para cogitá-lo
Deus e Divindade distinguem-se entre si como Fazer e Não-Fazerl Quando volto a meu abrigo em Deus. já nada ima
gino em mim e, assim, esse meu transbordamento e muito
mais excelente que a minha primeira emergência, pois eu
— o Uno — elevo a todas as criaturas do próprio sentir delas
ao meu, de modo que, em mim. convertem-se em Uno! Quan
do regresso ao fundo e ao seio da Divindade, ao seu caudal
e ao seu manancial, ninguém me pergunta donde venho e on
de estive: ninguém deu por minha falta... Isto significa;
Deus morre" 167
Deduz-se das citações acima que E c k h a r t distingue en
tre Deus e Divindade, no sentido de que a Divindade é o
universo que não se conhece nem se possui, ao passo que
iss Vom Schauen Gottes und oon Seligkeit. B u k t t n ij v , loc. eil.,
Vol. I, p*R. 198.
15« Von des GeUtcs Ausgang ui\d Heimkehr. Buetvnek, loc.
d t., Vol. I, páfi. 147.
157 BuETTKEH, loc. d l., Vol. I, pig. 148.
C) PROBLEMA DOS TIPOS NA CRIAÇÃO POÉTICA
30 1
Deus aparece como uma função da alma, e a alma, por sua
vez, como função da Divindade. A Divindade é, claramente,
a potência criadora onipresente, quer dizer, do ponto de
vista psicológico é o impulso gerador e criador que a si
mesmo se desconhece e não se possui, comparável à concep
ção de Vontade, em Sc h o p e n h a u e r . Ora, Deus aparece co
mo algo que advém da Divindade e tia alma. A alma, como
criatura, dá-lhe “expressão”. £ Deus na medida em que a
alma esteja diferenciada do inconsciente e na medida em
que perceba as energias e conteúdos do inconsciente; c morre
logo que a alma submerge no “caudal c no manancial” da
energia inconsciente. Assim disse E c k h a r t , noutro trecho:
“Quando saí de Deus, todas as coisas disseram: 'Há um
Deus!’ Mas isto não me faz aventurado, pois assim me con
cebo como criatura. Mas no transbordamento em que quero
estar livre na vontade de Deus, c livre também dessa von
tade de Deus, c de todas as suas obras, e do próprio D eus...
então sou mais do que todas as criaturas, pois nem sou Deus
nem sou criatura: sou o que era, o que continuarei sendo
agora e para sempre! Kcccbo então um impulso que ine trans
porta para além de todos os anjos. E com esse impulso de tal
maneira me enriqueço que não me pode bastar Deus, segun
do o que Deus é, segundo todas as suas divinas obras, pois
nesse ímpeto percebo o que eu c Deus somos em comum.
Sou aqui o que era, não aumento nem diminuo, pois aqui
sou algo imóvel que move todas as coisas. Aqui já Deus não
encontra abrigo no homem, pois aqui voltou a ser o homem, por sua indigência, o que eternamente tem sido c
continuará sendo. Aqui Deus ingressa no espírito”. 108
"Emergir” equivale a tornar-se consciente do conteúdo
e da energia inconsciente, na forma de uma idéia nascida da
alma. Esse ato supõe uma diferenciação consciente da dtjnamis inconsciente, uma separação entre o Eu, como sujeito, e
Deus (ou seja, a dynamis inconsciente), como objeto. Assim
“advém” Deus. Quando essa diferenciação é anulada pela
“ruptura”, pela “separação" do Eu e do mundo, e pela iden
tificação do Eu com a dynamis à deriva do inconsciente, en
tão Deus desaparece como objeto e converte-se no sujeito,
que já não é diferenciado pelo Eu, quer dizer, o Eu como
las Von der Armut <im Geiste.
176 o seg.
Buettneb, loc. cit., Vol. I, p&gs.
T ir o s PSICOLÓGICOS
:102
produto de diferenciação relativamente tardia entra de novo
em associação com a totalidade referencial, mística c dinâmi
ca (a “participation mysiique" dos primitivos). Isto equivale
h submersão no “caudal e manancial’'. São eloqüentes, para
já, as numerosas analogias com as idéias do Oriente. Ora,
este paralelismo sem influência direta demonstra que E c k h ah t
fala desde as profundidades do espírito coletivo comum ao
Oriente e ao Ocidente. lísse fundo comum, de que não pode
responsabilizar-se uma história comum, é o fundo primário
da disposição natural do espírito característico do primitivo,
com seu conceito energético e primitivo de Deus, cm que a
dtjnamis à deriva não cristalizou ainda numa idéia abstrata de
Deus. Esse retrocesso à natureza primária, essa regressão,
religiosamente organizada, às condições psiquicas da Pré-ílistória, é comum a todas as religiões, em suas mais pro
fundas e vitais acepções, desde as retroidcntificações das ce
rimônias totêmicas dos indígenas australianos,J&& até os êx
tases dos místicos cristãos de nosso tempo e nossa cultura.
Por meio desse retrocesso, estabelece-se uma situação iniciática, o inverossímil da identidade com Deus c, em virtude
dessa inverossimilhança convertida, não obstante, numa impressionantíssima vivência, domina-sc uma nova inclinação;
o mundo é recriado ao renovar-se a disposição do homem em
relação ao objeto.
É um dever da consciência histórica recordar, neste pon
to, ao referirmo-nos à relatividade do símbolo de Deus, aque
le solitário da sua época que, em virtude de um destino
trágico, não foi capaz de estabelecer a relação precisa com
sua própria visão: A k c e l u s S il e s iu s .
O que M kstre K c k iia r t se esforça por formular com
grande labor mental e, muitas vezes, em linguagem de difícil
compreensão, S il e s iu s disse-o em versos íntimos, concisos c
comovedores que, no entanto, no pensamento que os inspirou
descrevem a mesma relatividade de Deus já apreendida por
M estre E c k h ah t . Alguns desses versos falam por si mesmos:
Eu sei que, sem mim, nem um instante Deus pode viver;
Se em nada eu me converter, terá Ele que renunciar ao espírito.
Spencer
tral/a.
e
C c ix E N ,
The Northern Tríbcs of Central Aus
O PROBLEMA DOS TIPOS NA CRIAÇÃO POÉTICA
303
Deus não é capaz, sem mim, de criar sequer ínfimo verme;
Sç não O sustento, prontamente se abate.
Sou como Deus tão grande e ó Deus, como eu, pequeno.
Não pode estar sobre mim nem sob Ele posso eu estar!
Deus é, cm mim, o fogo e eu sou nE le o resplendor;
Não somos ambos, assim, profundamente Um?
Deus, mais que a si próprio me ama; amo-0 cu mais do
[que a mim;
Tanto vale o que eu Lhe cedo como o que Deus me concede.
Det/s é homem para mim e eu, para Ele, sou Deus:
Mitigo assim Sna sede e Ele acode cm minha ajuda.
A os1 humanos Deus se amolda e está em nossa vontade;
Ai de nós, se não formos aquilo que ser devemos1
Deus é o que é: eu sou o que sou;
E se conheces um, estarás conhecendo os dois.
Fora de Deus não sou; Deus não é fora de mim.
Eu sou sua luz e halo; Ele é minha recompensa.
Eu sou a vide no Filho; planta e consome o Pai;
O Fruto que de mim brota é Deus, o Santo Espírito.
Sou criatura e filho de Deus, Ele é minha criatura:
Como pode ser assim, que ambas as coisas somos?
Eu próprio hei de ser o sol e dar-lhe todo o fulgor,
Ao mar imenso- e sem cor da Divindade.
Seria ridículo pretender que pensamentos tão audaciosos
quanto os de M estre E c k h a r t não passavam de meras e fúteis
invenções da especulação consciente. Tais pensamentos são
sempre fenômenos historicamente significativos e dos quais
as correntes inconscientes da psique coletiva são o veículo.
Milhares de indivíduos distintos e anônimos situam-se, ao
fundo, com sentimentos e pensamentos parecidos, prestes a
abrirem os portais de uma nova era. Na audácia desses pen
samentos exprimem-se a desproocupação c a segurança ina
balável do espírito inconsciente que, em conseqüência de
uma lei da natureza, realizará uma transformação e uma re-
TIPOS PSICOLÓGICOS
novação espiritual, com a Keforma, a corrente surgiu, de
modo geral, na superfície da vida cotidiana. A Reforma eli
minou, em elevado grau, a nunciatura redentora da Igreja e
restabeleceu a relação pessoal com Deus. Assim ficava su
perada a culminância da máxima objetivação da idéia de
Deus c, desde esse instante, cada vez mais se subjetivou o
conceito de Deus. A fragmentação em seitas foi a conse
qüência lógica desse processo de subjetivação. A conse
qüência extrema é o individualismo, o qual representa uma
nova forma de divórcio, de perecimento, de “despedida”, e
cujo perigo imediato é a submersão na dtjnamis inconsciente.
Nesta evolução tem sua origem o culto da “fera loura” c
muitas outras coisas que, por contraste, distinguem a nossa
época de outras. Mas, assim que ocorre a submersão no ins
tinto, de outro lado se ergue sempre a resistência contra o
meramente amorfo, contra o caos da pura dtjnamis, bem como
a necessidade de forma c de lei. Quando a alma submer
ge na corrente, tem de criar também o símbolo que em si
comporte a força, que a mantenha c lhe dè expressão. Esse
processo da psique coletiva é o que sentem e pressentem aque
les artistas e poetas que criam, principalmente, na base das
percepções inconscientes, quer dizer, na base de conteúdos
inconscientes e cujo horizonte espiritual é suficientemente am
plo para apreenderem — cm sua aparência externa, pelo me
nos — os problemas fundamentais da sua época.
O “Prometeu” de S pit t e lk r marca um momento psicoló
gico culminante: faz a descrição do divórcio dos pares opos
tos, antes conjugados. Prometeu, o criador de formas, o es
cravo da alma, desaparece do campo de visão do homem, do
próprio círculo da sociedade humana; obedecendo a uma de
salmada rotina moral, cai cm poder de Behemoth, das conse
qüências antagônicas,, destrutivas, de um ideal sobrevivente,
Em tempo, cria Pandora (a alma) que, no inconsciente, é a
dádiva redentora e que não chega a alcançar a humanidade
porque esta não a compreende. A virada para melhor só se
produz pela intervenção da tendência prometéica que, em
virtude de sua visão e compreensão, faz alguns reconsidera
rem, primeiro, e logo muitos, fí natural que não aconteça
de outra maneira, já que essa obra há de radicar-se na vivên
cia íntima do criador. Ora, se essa vivência puramente pes
soal consistisse apenas numa elaboração poética, faltar-lhe-ia
a vigência e duração universais, num elevado grau. Mas, ao
O PROBLEMA DOS TIPOS NA CRIAÇÃO POÉTICA
305
ser não apenas pessoal e envolver, sobretudo, os problemas
coletivos do nosso tempo, vividos, representados e tratados
pessoalmente, essa vivência puramente pessoal está investi
da de uma validade geral. Simultaneamente, porém, lerá
de enfrentar, logo que aparece, o desinteresse c relutância dos
contemporâneos, pois estes, em sua imensa maioria, estão em
penhados em conservar de pé o presente imediato e formar
um coro ein seu louvor, assim preparando o seu final funesto,
cuja complicação o espirito criador tentara já resolver, ao
equacioná-la.
A Natureza- do Símbolo de União cm Spilteler
5.
Devemos considerar ainda a importante questão da na
tureza da dádiva e símbolo da vida renovada, que o poeta
percebe como anúncio de alegria c de redenção. Já forne
cemos uma série de provas documentais quç demonstram a
natureza "divina”, a "divindade” da dádiva. Isto diz clara
mente que nesse símbolo residem possibilidades de novos
resgates energéticos, quer dizer, de libertação da libido in
conscientemente vinculada. O símbolo exprime sempre que,
em sua forma reside, mais ou menos, uma possibilidade de
nova manifestação de vida, de urna redenção dos vínculos
e do cansaço vital. A libido resgatada do inconsciente pelo
simbolo está simbolizada num deus rejuvenescido ou, princi
palmente, num novo deus, do mesmo modo que no cristia
nismo, por exemplo, se efetuou a transformação de Jeová no
Pai amante e numa superior moralidade do espírito. O mo
tivo da renovação de Deus *•<> 6 algo universalmente difun
dido e pode por isso considerar-se como coisa válida. No
tocante à virtude redentora da dádiva, disse Pandora:
Senão considera: escutei certa vez gentes do povo, ricas
cm sofrimento, dignas de compaixão e, por isso, inventei uma
dádiva que, porventura, quando tu a consintas, servirá de
consolação e lenitivo aos seus muitos sofrimentos.” 161 As
folhas da árvore tutelar do parto assim cantam: “Pois eis
aqui o presente, a divina bem-aventurança c a graça”. 102
'60 Cf. JuNC, Wandlungen un<I Symbolc der Lihido. Nova edi
ção: Syrnbole der W ondlung.
S p i t t k i . k k , Promcthcas und Epimetheus. Im a, 1911, p&g. 108.
162 Loc. c/f.* pág. 127.
20
306
Tiros
PSICOI-ÓCICOS
A mensagem do menino prodigioso, do símbolo novo, é de
amor e alegria, pressupondo, pois, um estado de índole para
disíaca. Há nele um paralelismo com a natividade de Jesus,
ao passo que a saudação pela deidade solar 103 e o milagre
do nascimento, que torna os homens bons e os bendiz à
distancia 104, são atributos do renascimento de Buda. Da
“Bendição de Deus” eu gostaria de assinalar aqui o seguinte
trecho: "Que estas imagens guiem ao que, de menino, con
templou um dia a visão variegada e sonhadora do futuro”. 1<i5
Dessa maneira se pede, evidentemente, que se cumpram as
fantasias da infância, quer dizer, que não se percam essas
imagens, mas que as propiciem, de novo, ao homem maduro,
para que se tornem realidade. () velho Kule assim fala, em
Der tote Tag, de B à b l a c h : ,a« "Quando de noite estou es
tendido e o manto de trevas me oprime, por vezes se acerca
de mim uma luz fulgurante, visível a meus olhos e audível a
meus ouvidos. Eis que, em redor de meu leito, se erguem
as belas formas de um futuro melhor. Ainda rudimentares,
mas de uma imponente beleza, embora inertes... Mas quem
as despertasse dotaria o mundo de um melhor rosto. Seria um
herói quem tal conseguisse!. . .
Que corações assim pulsa
riam! E outros corações, muitos outros, de ritmos tão dife
rentes”. . . . (Refere-se agora às imagens.) “Não estão ilu
minadas por sol de nenhuma cspccie, nem a luz dele as
alcança em parte alguma. Mas querem e têm que arrancarse, de uma vez, às sombras da noite. Seria isso uma obra
de arte: trazê-las para o sol e então viveriam.” Também
Epimetcu sente essa nostalgia da visão, da imagem, da dá
diva; no diálogo sobre a estátua de Hércules (o Herói 1), diz:
"Este é o significado da imagem e, com inteligência, com
preenderemos que, de um modo único e extraordinário, a
nossa glória está em podermos sentir e conceber que uma
dádiva amadurece sobre as nossas cabeças e ao nosso alcan
ce está ganhá-la".167 Quando a dádiva, recusada por Epimeteu, foi levada aos sacerdotes, estes também cantam, pre-
163 J.oc. cit., pág. 132.
l i« Loc. cit., pág. 129.
100 Loc. cit., pág. 128.
168 Berlim, 1919, págs. 30 c seg.
107 Srmxi.En, loc. cit., pág. 138.
O PROBLEMA DOS TIPOS NA CRIAÇÃO POÉTICA
307
cisamentc, no mesmo sentido da nostalgia que Epimeteu
antes sentira pela dádiva: “Vem, ó Deus, concede-nos tua
graça!” Mas imediatamente recusam também a dádiva ce
lestial que lhes c oferecida c blasfemam dela. Não é difícil
reconhecer no começo do hino entoado pelos sacerdotes, o
cântico da Igreja protestante:
Vem, ó vem, espírito da vida,
Deus verdadeiro, desde a eternidade!
Não será vã a força constante
Que tu nos- infundes cada dia:
E assijti haverá espírito, e luz, e fulgor
Nos corações obscuros.
Ó espírito de energia c de poder,
Novo espírito, de verdade,
Aviva tuas obras em n ó s ... etc.
Este hino está perfeitamente em paralelo com as nossas
anteriores considerações. Que os mesmos sacerdotes que o
exaltam, repudiem o novo espírito vital, o novo símbolo, e
algo que corresponde inteiramente à essência racionalista das
criaturas epimetéicas. A razão procura sempre uma solução
por meios racionais, conseqüente e lógica com o que decide
em todas as situações e problemas de nível mediano, mas de
nunciando sua insuficiência logo que tem de enfrentar gran
des e decisivas questões. É incapaz de criar a imagem, o
símbolo. O símbolo é irracional. Quando o método racional se
converte num beco sem saída — o que é habitual acontecer ao
fim de certo tempo — então aparece a solução por onde me
nos se espera. (“Que poderá vir de bom de Nazaré?” ) Essa
lei psicológica constitui, por exemplo, o fundamento das pro
fecias messiânicas. As próprias manifestações proféticas são
projeções do inconsciente que pressentiu o evento luturo.
Sendo a solução irracional, a aparição do redentor prende-se
a uma condição impossível, quer dizer, irracional: à gravidez
de uma virgem, por exemplo.108 Esta profecia é, como tan
tas outras, de duplo sentido; como, por exemplo: “A Macbeth nenhum poder inimigo abaterá, se não avançar para
Dunsman a floresta hostil de Bimam”.
16 S
haias, V II, 14.
303
TIPOS PSICOLÓGICOS
0 nascimento do redentor, isto é, a gênese do símbolo,
verifica-se onde menos se espera e chega, precisamente, don
de é altamente improvável que possa vir uma solução. As
sim disse lsaías (L III, 1): "Mas quem acredita em nossas
profecias? E a quem será revelado o braço do Senhor?''
“Então nasceu diante dele como um rebento e como
uma raiz da terra estéril. Não tinha forma nem beleza; vimo-lo, mas não havia nele forma alguma que pudesse agra
dar-nos."
"Era o mais desprezível e desvalioso, todo sofrimento e
enfermidade. Tão desprezível que se voltava a cara ao vê-lo.
Por isso não lhe temos qualquer apreço.”
A redenção surge não só donde menos se espera como
aparece também sob uma forma que nada tem de recomen
dável para o critério epimetéico. No trecho onde o símbolo
é repudiado, Spitteler não sc apóia conscientemente no mo
delo bíblico, pois se o fizesse notá-lo-íamos por suas pala
vras. Inspirou-se, outrossim, na mesma profundeza da fonte
geradora dos símbolos de dissociação, onde os criadores e
profetas beberam também.
O aparecimento do redentor pressupõe uma união dos
contrastes: “Os lobos farão convivência com os cordeiros,
e as panteras deitar-se-ão junto dos chibos. Uma criança
dominará os vitelos; e os jovens leões farão companhia aos
cevados, num único bando”.
“Vacas e ursos irão pastar juntos, e juntas andarão suas
crias; os leões comerão palha como os bois.”
“E uma criança de mama irá brincar no covil das ser
pentes; e a mais crescida meterá sua mão no antro dos basi
liscos.” l6t>
A natureza do símbolo redentor é a de uma criança,17,>
quer dizer, a infantilidade c a ausência de prevenção orien
tadora são algo próprio do símbolo e de sua função. Essa
disposição “infantil’' traz consigo o aparecimento como guia,
ein lugar da obstinação e do desígnio racional, de outro prin
cípio cuja “divindade” equivale a "prepotência”. Esse princípio-guia é de natureza irracional, motivo por que surge
lsaías, XI, 6 e se^s.
170 o “menino prodigioso” de SrrnxiXB.
Einfiihrunf' m das W csen der Mtjthologie, 1042.
Cf. Kerkkyi e Jung,
O PROBLEMA DOS TIPOS N'A CRIAÇÃO POÉTICA
309
envolto na aura do milagroso. Isaías expressa com muita
beleza essa ligação (IX , 5): “Pois um menino nos nasceu,
um filho nos foi dado c sobre seus ombros está o império;
e chama-se milagroso, conselho, força, herói, pai eterno, prín
cipe da paz”.
Essas determinações apresentam as qualidades essenciais
do símbolo redentor, a que já nos referimos antes. O crité
rio do influxo “divino" é a força irresistível do impulso in
consciente. O herói é sempre uma figura dotada de mágico
poder, que torna possível o impossível. O símbolo é a
eslrada intermédia em que se opera a união dos contrastes,
num movimento novo, manancial que jorra, espargindo fecun
didade, após a prolongada seca. A ansiedade que precede o
desfecho é comparável a uma gravidez:
"Tal como a grávida, quando está prestes a dar à luz,
assim é o seu medo, e sua angústia, e assim grita em suas
dores: o m esm o nos acontece, Senhor, quando estam os em
tua presença”.
"Grávidos nos sentimos também, e o medo se apossa
de nós, cortando-nos o alento: mas à terra não podemos dar
ajuda a lg u m a ...”
"Mas os teus mortos viverão, meus cadáveres ressusci
tarão.” »71
No ato de redenção revive o que estava sem vida, o que
estava morto; isto e, psicologicampnte, aquelas funções que
permaneciam inanimadas e estéreis, inativas, reprimidas, desprer .das. subestimadas, etc., animam-se prontamente e come
çam a viver, ft precisamente a função de validade inferior
aquela que dá continuidade ã vida que ameaçava extinguir-se na função diferenciada.172 O tema ressurge na idéia de
cuiozatáaraoiç jrávtfov, do Novo Testamento, o conceito de
restituição 173 que pressupõe um superior desenvolvimento da
idéia, universalmente divulgada, do mito heróico, segundo o
qual o herói, ao sair do ventre da baleia, arrebata igual
mente seus pais c a quantos mais o monstro engolira, o
que F r o b e n iu s designa como “AUausschlüpfen”, ^74 Em
112
17 *
Isaías, XXVI, 17 e scgs.
Cf. as anteriores considerações sobic as caria? do Scmu-tn.
“Aos Romanos”, V III, 19.
F r o b e n i u s , Dos Zeitalter dis Sonnengottes, 1 9 0 4 .
TIPOS PSICOLÓGICOS
310
Isaías também se conserva a associação com o mito do he
rói, dois versículos mais adiante (X X X II, 1): "Quando che
gar esse tempo, o Senhor castigará com sua dura, grande e
forte espada o Leviatã., que é urna serpente rastejante, e o
Leviatã que é uma serpente enroscada, e estrangulará a dra
gão no mar".
Com o nascimento do símbolo cessa a regressão da libi
do ao inconsciente. A regressão converte-se em progressão, a
represa torna-se rio. Assim se quebra o poder de atração
da força primária. E por isso Kule diria:
— E eis que, em redor do meu leito, se erguem as
belas formas de um futuro melhor. Ainda rudimenta
res mas de uma beleza imponente, embora inertes...
M js quem as despertasse dotaria o mundo de um me
lhor rosto. Seria um herói quem tal conseguisse!
“K u l e :
A M ãe : — Heroísmo, entre angústias e protestos!
Kule : — Mas talvez cie [o herói] surja!
A Mãe: — Teria que enterrar antes sua mãe! ’ 175
O tema do “dragão materno” já foi por mim tratado com
grande pormenorização documental, pelo que me dispenso
de repetições.170 O desabrochar da nova vida c da nova
fecundidade, onde menos se poderia esperar, também foi ci
tado por Isaías (XXXV, 5 e segs.): “Abriram-se então os
olhos dos cegos e os ouvidos dos surdos;
“E então os paralíticos deram saltos como os cervos e
as línguas mudas entoaram hinos. Pois jorrará a água no
deserto e os rios cruzarão as terras secas.
“E onde havia secura, haverá lagos; c onde a terra era
estéril, jorrarão poços c fontes. Onde antes se estendiam os
chacais, crescerão ervas, canaviais e juncos.
"E aí mesmo haverá um caminho e uma estrada, à cjual
sc chamará via sacra, por onde os impuros não poderão pas
sar. E será de um inodo tal que quantos por ela sigam não
possam errar as portas.”
B a t u .a c h , F.., Der tote Tag, p ágs. 3 0 c seg.
Ver Wandlungen urul Symbole der Libido. Encontramos cm
S p i t t e l e r um paralelo na morte de Leviatã e na sujeição de Behcmot.
179
O P R O B LE M A DOS TIPOS N A CRIAÇÃO POÉTICA
31 1
O símbolo redentor é um caminho, uma via pela qual a
vida pode avançar sem dor nem esforço.
H ö l d e r l in
diz, em Patmos:
Próximo eslá
E difícil dc alcançar, Deus.
Mas com o perigo, aumenta
A Redenção também.
É como se um Deus próximo representasse um perigo,
quer dizer, como sc a concentração de libido no inconsciente
correspondesse a um risco para a vida consciente. Na rea
lidade assim ó: quanto mais libido se inverte, melhor dizen
do. inverte-se por si mesma, no inconsciente, tanto mais au
menta o influxo, a possibilidade eficaz do inconsciente, o
que, por outras palavras, quer dizer que todas as possibili
dades funcionais recusadas, abandonadas, sobrevividas, até
perdidas por completo há muitas gerações, revivem e come
çam a exercer um crescente influxo sobre a consciência, ape
sar da resistência desesperada do critério consciente. A re
denção está no símbolo capaz dc abranger o consciente e o
inconsciente, logrando a sua união c conjugação. Enquanto
a libido disponível da consciência, a pouco e pouco, se esgo
ta na função diferenciada e se completa sempre com lenti
dão e dificuldade, c enquanto os sintomas de divergência se
acumulam, aumenta, por outro lado, o perigo de um desbordamento e destruição pelos conteúdos inconscientes; mas, si
multaneamente, cresce também o símbolo chamado a resol
ver o conflito assim formulado. Ora, o símbolo está vin
culado, da maneira mais íntima que se possa imaginar, ao
perigoso c ameaçador, pelo que pode ser confundido com
ele ou provocar a destruição e o mal, precisamente por sua
aparição. Em todo caso, a aparição do redentor está ligada
ao que destrói e devasta. Sc o velho não tivesse atingido
a maturidade mortal, nada de novo apareceria c o velho não
poderia nem necessitaria ser destruído, se não obstruísse de
maneira perniciosa o caminho do novo. Esta natural união
dos contrastes encontra-se cm Isaías, VII, 1-1 e segs. Aí sc
diz que uma virgem dará à luz um filho cujo nome será
Emanuel. É significativo o fato de Emanuel traduzir-se co
mo “Deus conosco", isto é, conjugação com a dytmmis la
tente do inconsciente, de que o símbolo redentor é a garan
312
TIPOS PSICOLOCICOS
tia. Mas o que tal conjunção significa, desde já, encontra*se expresso nos dois versículos seguintes:
"Pois sem que a criança tenha aprendido a repudiar o
mal e a aceitar o bem, será devastado o país ante cujos dois
reis tremes”.
V III, 1: “E o Senhor me falou assim: Toma uma gran
de tábua e nela escreve, empunhando um estilete de grafite,
como os homens usam: Agarra depressa! A presa foge!”
V III. 3: “E assim me dirigi à profetisa: Tu ficarás grá
vida c terás um filho. E o senhor me falou: Diz-lhe “Agar
ra depressa; a presa joge! . . . ”
“Pois antes que a criança possa dizer “querido pai!” e
“querida mãe!” serão arrebatados o poder de Damasco c a
presa de Samaria pelo rei da Assíria".
V III, 6: '’Pois este povo despreza a água de Siloa, que
corre tranqüila...”
“Considera: Assim o Senhor fará cair sobre eles m ui
tas e fortes águas caudalosas, em particular sobre o rei da
Assíria e toda a sua magnificência, rios que saem todos de
seus leitos e transbordam pelas margens.”
"E abater-se-ão sobre Judá, inundando e arrastando tu
do à sua frente, até chegar às barbas, e abrirão suas asas até
que a tua terra, ó Emanuel, ficará coberta em toda a sua
vastidão.”
já em meu livro sobre Wandlungen und Symhole der
Libido 177 fiz referência ao fato de que o nascimento de Deus
ocorre sob a ameaça do dragão, da inundação c do infanti
cídio. Psicologicamente, isto quer dizer que a dynamis la
tente pode abrir caminho para inundar a consciência. ísaías
personifica esse perigo na figura do monarca estrangeiro que
reina sob um poderoso e hostil império. Naturalmente, para
Isaías, o problema não é de caráter psicológico mas algo
concreto, cm virtude de sua projeção interior. Em S p i t t e l e r ,
pelo contrário, já se trata de um problema notoriamente psi
cológico e, por isso. está desligado do objeto concreto. Não
obstante, exprime-s:e de uma forma bastante semelhante à
de Isaías, se bem que devamos supor, apenas, uma influência
177
Nova edição: Symbde der W andlung, 1952.
O P R O B L E M A DOS TIPOS N'A CRIAÇÃO POÉTICA
313
consciente. O nascimento do redentor equivale a uma enor
me catástrofe, ac surgir uma nova e poderosa vida onde ne
nhuma sc suspeitava, nem força alguma, nem qualquer possi
bilidade de crescimento. Surge, portanto, do inconsciente, ou
seja, daquela parte da psique que. premeditada ou impremeditadamente, não se conhcce e, por isso, 6 tratada por todos
os racionalistas como coisa de somenos valia. Dessa parte
condenada c nao-aceita provém o novo reforço de energia,
a renovação vital. Mas, que é, então, isso condenado, não-aceito e não-acreditado? É, simplesmente, o conjunto de
conteúdos psíquicos que tiveram de reprimir-se, por serem
incompatíveis com os valores conscientes, ou seja, o feio. o
imoral, o falso, o impróprio, o inútil; etc., enfim, tudo o que
um determinado indivíduo assim lhe parecia, num dado mo
mento. Ora. o perigo está em que o homem, em virtude da
força com que essas coisas ressurgem, através de seu novo
c prodigioso brilho, veja-se arrastado de modo tal que, por
causa delas, recuse ou esqueça todos os antigos valores. O
que antes era motivo de desprezo, é agora princípio supre
mo; o que antes era verdade, agora é erro. Esta inversão
de valores corresponde à destruição dos valores vitais que
vigoravam até o momento, sendo assim comparável à inun
dação que devasta um país.
Assim, cm S p i t t e l e u , a dádiva celeste de Pandora traz
maldição à terra e aos homem. E tal como da caixa de
Pandora, na lenda clássica, saem ás doenças que assolam o
país, assim a dádiva também dá lugar a calamidades seme
lhantes. Para compreendennos isto, é preciso ter em conta
a nature/a desse símbolo. Os primeiros que encontram a
dádiva são camponeses, assim como são pastores os primei
ros que sc acercam do Redentor. Vão passando-a de uns a ou
tros. dando-lhe voltas em suas mãos, "até que, por fim, deles se
apossou um enonne espanto, ao notarem sua aparência es
tranha, imoral e fora da lei”. 178 Levarara-na então ao rei
c quando este, para subineté-!a à prova, mostrou-a à cons
ciência. a fim de que esta declarasse sim ou não, a consciên
cia deu um salto, assustada, do estrado para o chão. e foi
esconder-se debaixo do leito, “o que era impossível de pre
ver”. Como um caranguejo que foge, “fulminando com os
olhos, crispando, ameaçadoras, as mandíbulas aduncas... as
its
S p r n r i j;« ,
loc.
c/í., pág. 133.
TIPOS PSICOLÓGICOS
314
sim assomava a consciência, debaixo do leito, c aconteceu
cjue quanto mais Epimeteu se aproximava, tanto mais a ima
gem recuava, com movimentos de repulsa. E assim, em si
lêncio, ali se agachou sem proferir palavra, nem uma sílaba
sequer por muito que o rei insistisse, suplicasse e incitasse
em diversos tons de fala”. 179
£ evidente que a consciência antipatizara imenso com o
novo símbolo, motivo por que o rei aconselhou os lavradores
a levarem-no aos sacerdotes. “Bastou que o Hiphil-IIophal
(Sumo Sacerdote) contemplasse o semblante da imagem para
ficar assustado e fazer gestos de repugnância, gritando e cla
mando, enquanto cruzava os braços diante de si, para pro
teger-se:
“Fora com esta coisa desprezível, pois algo existe nela
de antidivino, e carnal é seu coração, e a insolência cintila
em seus olhos”. 190
Então os camponoses decidiram levar a dádiva h Acade
mia. Mas para os mestres da preclara Escola, faltava i\ima
gem “sentimento c alma” bem como "a gravidade que lhe com
petia. E, sobretudo, carecia de um pensamento orientador”. IR1
Por fim, o ourives concluiu que a dádiva era uma jóia
falsa e de material ordinário. No mercado, onde os campo
neses tentaram desembaraçar-se da dádiva, encontraram a
policia do mercado. Os guardiães da justiça exclamaram,
ao ver a imagem: “Tendes uni coração em vosso peito e
uma consciência cm vossa alma, e ousais semelhante coisa,
expondo publicamente aos olhos de todos essa nudez sein
véus, desavergonhada e libidinosa?...”
“Afastai-vos, pois, depressa! E ai de vós se porventura
deixardes que se manche com este espetáculo a pureza de
nossos filhos e de nossas prudentes esposasl” 182
O símbolo é caracterizado pelo poeta como algo estra
nho, imoral, ilegal, contrário à ética, oposto ao sentimento de
nossa idéia do psíquico, assim como ao nosso conceito do
divino, como algo sensual, despudorado e pernicioso, em alto
>7® Loc. cit., pág.
Loc. cit., pág.
J m c . cit., pág.
Loc. cit., pág.
139.
1-12.
144.
147.
O PROBLEMA DOS TIPOS N'A CRIAÇÃO POÉTICA
31 5
grau, para a saúde pública, como um incentivo às fantasias
sexuais. Esses atributos determinam, portanto, uma essência
que está ein nítida contradição com os nossos valores morais
e, em segundo lugar, também com o juízo estético dc valor,
sendo assim uma essência em que estão ausentes os altos
valores do sentimento e em que a falta dc um “pensamento
orientador’ refere-se à irracionalidade de seu conteúdo inte
ligível. O veredicto de “antidivino” poderia enunciar-se igual
mente pela expressão “anticristão", já que esta estória não
sc encontra localizada na antiguidade remota nem na China.
Esse símbolo é, pois, segundo todo.s os atributos, uma repre
sentação da função de validade inferior, logo, dos conteúdos
psíquicos não-reconhccidos. Se bem que tal não seja dito
em parte alguma, a imagem representa, sem dúvida alguma,
uma figura* hutnana desnuda, uma “forma viva”.
Essa forma expressa a total liberdade de sermos como
somos e, ao mesmo tempo, dc* sermos como efetivamente so
mos; pressupõe, assim, uma possibilidade máxima de beleza
tanto estética quanto moral, mas de um modo natural e não
na fonna artificiosa e ideal do homem, tal como poderia ser.
A tal imagem, colocada ante os olhos do homem, tal como ó
atualmente, não competirá nada menos do que soltar o que,
preso e adormecido nele, não convive. Se o acaso quiser
que ele esteja apenas semicivilizado e que uma sua metade sc
conserve bárbara, ante um espetáculo semelhante toda a sua
barbárie erguer-se-á desperta. O ódio do homem concentra-se sempre naquilo que o torna consciente de suas más qua
lidades, naquilo que o torna claramente cônscio disso. Por
esse motivo se pode dizer que o destino da dádiva preciosa
estava selado desde o momento de sua aparição no mundo.
O pequeno pastor mudo que foi o primeiro a encontrá-la, foi
espancado até ficar agonizante pelos camponeses furiosos,
Os quais lançaram depois, com violência, a dádiva à rua. As
sim conclui o símbolo redentor o seu curso, breve, inas típico.
A influência da idéia cristã da Paixão é inegável. A natu
reza redentora da dádiva também fica esclarecida pelo fato
de só aparecer uma vez em cada mil anos; é um raro evento,
esse “florescer do tesouro” e essa aparição de um Salvador, de
um Saoshyant, de um Buda.
O final reservado pelo destino à dádiva tem um caráter
misterioso: cai nas mãos de um judeu errante. “Não era
um judeu deste mundo, e seus trajos eram sobremodo eslra-
TIPOS PSICOLÓCICOS
318
183 Esse judeu d e t ã o e s p e c i a l a s p e c t o s ó p o d e s e r
Asstiero, o que repudiou o Salvador v i v o e q u e , por assim
d i z e r , r o u b o u uma imagem d o r e d e n t o r .
A l e n d a d e Assucro
é u m a l e n d a c r i s t ã t a r d i a q u e , c o m o t a l , n ã o p o d e datar-se
a lé m
d o s p r in c íp io s d o
s é c u l o XVII
Provém, p s i c o l o
g i c a m e n t e , d e u m a soma d e l i b i d o o u f r a g m e n t o d e p e r s o
nho s”.
n a lid a d e
que
r e la tiv a m e n te
Desse
id é ia
a
do
re d e n to r, d e
p r ó p r io
c íd io
é
e
ao
scm pT e
a lu c in a n t e
h o m ic íd io
um a
um a
r itu a l
e n c o n tra
v id a
fra g m e n to
r e s u lta n d o
A
não
à
a p lic a ç ã o
m undo,
os
ju d e u s
p e r s e g u iç ã o
r itu a l
na
sendo
c o n té m
d is p o s iç ã o
por
fo ra m
v ig a
no
o lh o
do
ta m b é m
a
id é ia
v iz in h o .
um
um
papel
c o n tra
do
em
daí
e le s .
do
no olho
r e p ú d io
a r g u e ir o
A
c r is tã ,
r e p r im id a .
s ím b o lo ,
m e d ie v a l
f o r m a a c e n t u a d a , p o is u m
re p re s e n ta
is s o
iu é ia
do
h o m i
S p it t e l e r ,
ao
errante o menino p r o d i g i o s o e n v i a d o a o c é u .
Esse pensamento c o n s t i t u i uma projeção m i t o l ó g i c a da p e r
cepção inconsciente de que o i n f l u x o r e d e n t o r é anulado, rep e t i d a m e n t e , pela p r e s e n ç a n » inconsciente de nina fração
ir r e d im id a .
Essa f r a ç ã o irredimida, não-domesticada, iiie d u c a d a ou b á r b a r a , que só agrilhoada p o d e ser s u j e i t a
e
m e s m o a s s im não pode ainda ser deixada à s o l t a , é p r o j e
t a d a s o b r e as gentes q u e não aceitaram o cristianismo, s e n d o
assim, na realidade, aquele f r a g m e n t o que não passou a i n d a
pelo processo de domesticação do cristianismo. Existe a per
c e p ç ã o i n c o n s c i e n t e dessa f r a ç ã o rebelde, cuja existência ha
veria v o n t a d e de negar... resultando daí sua p r o j e ç ã o . A
in q u ie ta ç ã o
é um a
expressão concreta da irredenção.
A
parte i r r e d i m i d a apo<Icru-se l o g o da nova luz, da energia do
novo símbolo. Dessa maneira f i c a expresso o q u e , d e um
modo distinto, já expusemos com r e f e r e n c i a ao impacto d o
s í m b o l o na psique geral, is t o é , que o s í m b o l o s u s c i t a um
a l v o r o ç o em todos o s conteúdos reprimidos e n ã o - r e c o n h e c idos, t a l como a c o n t e c e , p o r exemplo, aos "guardiães d o m e r
cado'’ e a Iliphil-Hophal, que em conseqüência da o p o s i ç ã o
inconsciente à sua própria religião faz salientar o caráter
a n t i d i v i n o e carnal do s í m b o l o . O afeto d o repúdio c o r r e s
ponde
soma d e l i b i d o reprimida. Com a transformação
moral da pura dádiva celeste nas f e b r i s m a q u i n a ç õ e s q u i
m é r i c a s d e s s a s mentes, consuma-se o s a c r i f í c i o r i t u a l .
Conro u b a r o ju d e u
J&3
***
Loc. cit., pág. 16-3.
E. K o e n i c , Ahasver, 1907.
O PROBLEM A DOS TIPOS NJA CRIAÇÃO POÉTICA
31 7
tudo, a aparição do símbolo não deixou dc produzir seus efei
tos. É certo que não foi aceito em sua forma pura, mas foi
digerido pelas potências arcaicas e indiferenciadas, para o que
contribuíram substancialmente a moralidade e estética cons
cientes. E dessa maneira tem início a enantiodromia, a trans
formação do valor que ate o momento era vigente em algo
desprovido de valor, a metamorfose do Bem em Mal.
O reino do Bem, de que Epimeteu é o rei, estava desde
há muito tempo em luta com o reino de Behemoth. Recorde-se que Behemoth e Leviatã185 são dois monstros de Deus
no “Livro de Jó”, expressões simbólicas de seu poderio e for
ça. Corno símbolos animais primários caracterizam psicolo
gicamente as energias aplicadas da natureza humana. líl9 Por
isso Jeová disse: “Vê Behemoth, a quem criei junto de
ti..
“Vê, sua força está em seus músculos, seu poder nos ten
dões de seu ventre. Sua cauda ergue-se como um cedro e
süo espessos os tecidos de suas patas.197 Por ele começam
os caminhos de Deus.”
Convém prestar atenção ao fato de que com essa força
"começam os caminhos de Deus”, quer dizer, partindo de
Jeová, o Deus judaico que no Novo Testamento se despe da
antiga forma, deixando assim de ser o Deus da Natureza.
Do ponto de vista psicológico, quer isto dizer que esse aspec
to instintivo e primário da libido acumulada 110 inconsciente
e refreado, permanentemente, na disposição cristã. Dessa ma
neira, reprime-se uma metade de Deus, é imputada à respon
sabilidade do homem e, cm última análise, limitada aos do
mínios do Diabo. Daí resulta que, quando a energia incons
ciente começa a surgir, quando “começam os caminhos de
Deus”, Deus aparece na fonna de Behemoth.1S9 O mesmo
poderia ser dito, com boas razões, que Deus se apresenta em
156
S j'IT T E L E R , loc. C it ., pÄg. 179.
Cf. Wandiungen und Symbole der Libido, pag. 58, assim coino
H. ÎC H A E R F , Die Gestalt des Satans im Alten Testament, em J u n g ,
Symbolik des Geistes, 1948.
187 A Vulgata diz, inclusive: nervi testiculorum ejus perplexl sunt.
I m S p i t t e l e h , Astartéia é, cloquentemente, filha de Behemoth.
iss “Livro de Jö", XL, 10 o segs.
>89
Cf. F l o u r n o y , Une Mystique Moderne, Archives d e Psycho
logie, Tomo XV, L915.
186
318
TIPOS PSICOLÓGICOS
figura diabólica. Mas essas avaliações morais são ilusões
ópticas: as forças da vida estão acima do juízo axiológico.
M l s t r e E c k h a jit disse:
“Se digo, pois, Deus é bom, não é
verdade: eu sou bom. Deus não é bom! Vou ainda mais
longe: eu sou melhor que Deus! Pois só o eme é bom pode
ser melhor e só o que pode ser melhor poae chegar a ser
o Melhor. Deus não é bom, logo não pode ser melhor c ao
não poder ser melhor também não pode chegar a ser o
Melhor. Longe de Deus se situam essas très determinações,
"bom’', “melhor”, “o melhor"; Deus está acima das três’’. 190
A conseqüência seguinte do símbolo redentor é a união
dos pares opostos; assim, verifica-se a conjunção do reino
ideal de Epimeteu com o reino de Behemoth; quer dizer, a
consciência moral estabelece uma perigosa união com os con
teúdos inconscientes e a respectiva libido. Ora, a Epimeteu
foram confiados os filhos dc Deus, isto é, os bens supremos
da humanidade, sem os quais o homem não passa de uma
fera. Pela conjunção com o próprio contraste inconsciente,
sobrevêm o perigo de deserção, aniquilamento e transbordamento, quer dizer, os valores da consciência poderiam perder-se sob a avalanche dos valores energéticos do inconsciente.
Se a imagem da beleza e moral naturais tivesse sido aceita
e protegida; e se, em virtude apenas de sua inocente natura
lidade, não tivesse servido de estímulo à sufocante imundície
acumulada nos fundos da nossa cultura “moral”, os filhos de
Deus não teriam então corrido perigo, apesar do pacto com
Behemoth, pois a todo momento Epimeteu poderia distin
guir, nesse caso, entre o valor e o sem-valor. Mas parecendo
o símbolo inaceitável ã nossa parcialidade e á nossa dife
renciação (simultaneamente, mutilação) racionalista, falta
toda e qualquer norma para o valor e o não-valor. Não
obstante, quando ocorre a união dos pares opostos, como
um evento máximo, sobrevêm forçosamente o perigo de
inundação c destruição c isto, de um modo eloqüente e
característico, ocorre mediante a infiltração clandestina de
perigosas tendências contrárias, sob o disfarce de “concei
tos justos”, convenientes e adequados. O Mal e o per
nicioso também podem ser racionalizados c estetizados.
Assim, os filhos de Deus são entregues a Behemoth, um
pág. 1G5.
Von der Erncttung am Geiste.
B cettneh,
loc. cit.. Vol. I,
O P ROBLEM A DOS TIPOS N A CRIAÇÃO POÉTICA
319
após outro, quer dizer, os valores conscientes são troca
dos pelo puro instintivisnio e imbecilização. As tendências
bárbaras e grosseiras, antes inconscientes, devoram os valo
res conscientes, razão por que se estabeleceu como símbolo
do princípio de Behemoth e Leviatã, uma baleia invisível,
ao passo que a ave c o símbolo que se atribui ao reino epimetéico. A baleia, como habitante dos mares, c geralmente
o símbolo do inconsciente que traga e devora.11,1 A ave, co
mo habitante dos ares puros e límpidos, é símbolo do pen
samento consciente, inclusive do ideal (asas!) e do Espírito
Santo.
A intervenção de Prometeu evita a derrocada definitiva
do Bem. Liberta o último dos filhos de Deus, o Messias,
do poder de seus inimigos. O Messias toma-se herdeiro do
reino de Deus, enquanto Prometeu e Epimeteu, personifica
ções dos contrastes opostos, retiram-se juntos para o seu “Vale
nativo”. Ambos estão livres de poderes de mando: Epime
teu porque a isso teve de renunciar e Prometeu porque a tal
nunca aspirou. Em termos psicológicos, isto quer dizer que
a introversão e extroversão deixam de ser, em seus domínios,
diretrizes unilaterais, assim terminando também a dissocia
ção da psique. Em seu lugar aparece uma nova função, sim
bolicamente representada por um menino chamado Messias,
que durante um vasto interregno permaneceu adormecido.
Messias é o mediador, o símbolo de uma nova disposição
aglutinante dos contrastes antagônicos. É a Criança, o Me
nino, segundo a antiga herança do "puer aeternus” (a crian
ça eterna), que por sua juventude indica o renascimento, a
recuperação do perdido (Apokatastasis). O que Pandora trou
xe à terra como imagem, o repudiado pelos homens, o que
íoi sua perdição, cumpre-se no Messias. A esta associação
simbólica corresponde uma observação freqüente na prática
da Psicologia analítica: quando em sonhos aparece um sím
bolo, é rechaçado (pelos motivos longamente expostos) e sus
cita mesmo uma reação contrária que equivale à invasão de
Behemoth. Desse conflito resulta uma simplificação da personalidade, relativamente às características básicas do indi
víduo, existentes desde o começo da vida c que garantem a
101
Cf. a abundante documentação em Wandlungen und Sym
bole der Libido.
TIPOS PSICOLÓGICOS
320
ligação entre a personalidade madura e as fontes de energia
da infância. Como S pittkleh demonstrou, existe nesse trân
sito o grave perigo de que, em vez do símbolo, sejam admi
tidos por manobras racionalistas os instintos arcaicos exci
tados e se instalem nas formas tradicionais de concepção.
O místico inglês W. B l a k k disse: "Ilá duas categorias
de homens: os fecundos 11)2 e os devoradores. 193 A religião
é uma tentativa de reconciliação entre ambos”. ,?1 Com es
tas palavras de B l a k e , que de maneira tão simples conden
sam as idéias fundamentais de S p i t t e l e r e minhas próprias
considerações, desejaria encerrar este capitulo. Se lhe dei
uma extensão extraordinária e, de certo modo, imprevista, o
fato deve-se, como na análise feita às cartas de S c i u l l r h , ao
intuito de querer cabalmente corresponder, mediante o nosso
estudo, à riqueza de pensamentos e sugestões contidos no
Prometheus und Epimetheus, de S p i t t k l e r . Procurei redu
zir-me, na medida cio possível, ao essencial, passando por alto,
propositadamente, uma série de problemas que teriam de ser
tratados num estudo global da obra.
I52
103
The prolific = o fecundo, o que dá de si.
The devouring — o que devora, o que toma para si.
"Religion is an endeavour to reconcile the twol”, Poetical
Works, 1906, Vol. I, pág. 249. CÍ. The Marriage of Heaven and Hell,
cm The Writings of W illiam Blake, Londres, 1925, pág. 190.
VI
O PROBLEMA DOS TIPOS
KA PS1COPATOLOGIA
n c o n t r a m o -n o s , doravante, empenhados no intuito de estabeleeer, sob o ponto de vista da Psiquiatria, d,ois tipos des
tacados da confusa multiplicidade das chamadas inferioridades psiçQpálicas. Esse grupo, incrivelmente vasto, abrange
todos os estados psieopáticos limítrofes, que já não se podem
incluir no domínio das psicoses, propriamente ditas, quer di
zer, todos os estados de neurose e de degeneração como sejam,
entre outros, as inferioridades intelectuais, morais, afetivas e
demais de caráter psíquico. Tal inter.to toi levado a efeito
por O n o G r o s s , que publicou em 1^02, com o título Die
zercbrale Sckundàrfunktion, um estudo teórico cuja hipótese
básica o levou ao estabelecimento de dois tipos psicológic o s . K m b o r a o material empírico poj ele estudado seja ex
traído da área da inferioridade psíquica, nada impede que se
transporte, porém, o ponto de vista assim obtido para o do
mínio mais vasto da Psicologia normal, uma vez que.o esta
do de desequilíbrio psíquico apenas pressupõe, para o inves
tigador, uma oportunidade particularmente ía\orável para
observar, com uma nitidez quase excessiva, determinados fe
nómenos psíquicos que, dentro dos limites normais, só são
perceptíveis de urn modo bastante imperfeito. O estado anor
mal serve-nos, com freqüência, de lente de aumento. O pró
prio G r o s s , como veremos, estende suas conclusões, no capí
tulo final da citada obra, a mais vastas áreas.
Ü
1 y ma exP°siCão exaustiva dos seus tipos, mas sem alterações
<'sendais, é-nos ciada por Gross em seu livro Ü b e r psycopathische Min<h rwcrtigkeiten, 1909, págs. 27 e segs.
21
ESCRIÇÂO GERAL DOS TIPOS
1. Introdução
N
que se seguem, tentarei fazer uma descrição
geral da psicologia dos tipos. Em primeiro lugar, conside
a s p á g in a s
rarei os dois tipos gerais que designamos como introvertido
e extrovertido. Em seguida, procurarei oferecer üma deter
minada característica daqueles tipos mais especiais cuja sin
gularidade chega a produzir-se em virtude do indivíduo ten
tar, principalmente, adaptar-se e orientar-se pela função que
nele estiver mais diferenciada. Designarei os primeiros como
tipos gerais de disposição, que se distinguem pela direção da
da a seus interesses e ao movimento da libido; os segundos
serão designados como tipos funcionais.
Os tipos gerais de disposição distinguem-se, como se viu
reiteradamente nos capítulos anteriores, por sua tendência par
ticular em relação ao objeto. O introvertido comporta-se da
maneira adequada à abstração. No fundo, está sempre dis
posto a privar o objeto de libido, como se tivesse de evitar e
impedir a preponderância do objeto. O extrovertido, pelo
contrário, comporta-se positivamente em face do objeto. Afir
ma a sua significação em tal medida que orientará sua pro
pensão subjetiva no sentido do objeto e relacioná-la-á consi
go próprio, de um modo constante. No fundo, o objeto nun
ca tem para ele valor suficiente e por isso tem de acentuar-se
a sua significação. Os dois tipos são completamente distin
tos, e o contraste é de tal maneira evidente que a sua existên
cia se impôs inclusive ao leigo nessas matérias, uma vez que
lhe tenha sido apontada. Todos estamos familiarizados com
essas naturezas fechadas, difíceis de conhecer, freqüentemen
te tímidas, que constituem o mais flagrante contraste com
DESCRIÇÃO GERAL DOS TIPOS
387
aquelas outras naturezas abertas e acessíveis, que se dão bem
com todo mundo, ou que talvez briguem e discutam, mas
estabelecem sempre uma relação, intiuenciam sempre as de
mais pessoas e permitem que estas influam nelas. Estamos
inclinados, naturalmente, a considerar essas diferenças como
casos peculiares e individuais de caráter. Mas quem tiver
a oportunidade de conhecer a fundo grande numero de pes
soas notará que, em semelhante contraste, não se trata, ab
solutamente, de casos individuais e isolados, mas, outrossim,
de disposições típicas muito mais genéricas do que uma ex
periência psicológica limitada poderia deixar supor. De fa
to, trata-se, como os anteriores capítulos terao suficiente
mente demonstrado, de um contraste fundamental, umas ve
zes evidente, outras menos claro, mas sempre visível quando
se trata de indivíduos de personalidade marcante. JNão só
encontramos semelhantes tipos humanos entre os cultos como
em todas as camadas sociais. Tanto se pode comprovar a sua
existência no trabalhador ou no campónio mais vulgares, co
mo nos indivíduos mais diferenciados de uma nação. A di
ferenciação de sexo também não exerce qualquer influência
no caso. Os mesmos contrastes se observam entre as mulhe
res de todas as camadas sociais.
Uma tão grande propagação por certo não poderia ocor
rer se se tratasse de um assunto de consciência, de disposi
ções consciente e deliberadamente escolhidas. Nesse caso,
uma determinada camada social, localmente restrita, que ti
vesse recebido a mesma educação e idêntica instrução, seria o
expoente principal de uma dessas disposições. Mas não só
isto não acontece como, de fato, ocorre tudo ao contrário,
quer dizer, os tipos distribuem-se indiscriminadamente, ao
que parece. Na mesma família, um dos filhos é introvertido
e o outro é extrovertido. Como, de acordo com esses fatos,
não é possível tratar-se, no tipo de disposição, como fenômeno
geral e em aparência casualmente repartido, de uma questão
de juízo consciente ou de consciente propósito, deverá en
tão sua existência, por certo, a uma causa inconsciente,
instintiva. O contraste de tipos terá, portanto, como fenô
meno psicológico de ordem geral, um precedente biológico de
uma ou outra espécie.
A relação entre sujeito e objeto é, biologicamente consi
derada, uma relação de ajustamento, uma vez que toda rela
ção entre sujeito e objeto pressupõe sempre efeitos modifi-
388
TIPOS PSICOLÓGICOS
cadores de um sobre o outro. Essas modificações constituem
o ajustamento. As disposições típicas a respeito do objeto
sao, portanto, processos de ajustamento. A natureza conta
com dois caminhos fundamentais e distintos de ajustamento
e de possível resistência ao mesmo, por parte dos organis
mos. Um caminho é o da fecundidade intensificada, com
um poder de defesa e duração de vida relativamente escas
sos em cada indivíduo; o outro caminho é o da dotação do
indivíduo com múltiplos meios de conservação própria, mas
de fecundidade relativamente diminuta. Esse contraste bioiógico não só nos dá uma analogia como tambem uma base
geral para os nossos meios de ajustamento psicológico. Eu
gostaria de cingir-me, neste ponto, a uma referência geral,
quer dizer, por uma parte, à particularidade de entrega cons
tante de si mesmo que singulariza o extrovertido e, por outra
parte, à tendência para defender-se das solicitações exterio
res e evitar toda a emissão de energia que se dirija direta
mente ao objeto, que caracteriza o introvertido, a par da ten
dência para obter uma posição tão sólida e segura quanto
possível. A intuição de B l a k e não classificaria em vão essas
duas disposições como “prolific” e “devouring typé”. 1 Como
nos ensina a Biologia geral, ambos os caminhos são viáveis e
eficazes à maneira respectiva. O mesmo acontece com as
disposições típicas. O que uma consegue por relações em mas
sa, a outra consegue-o por um monopólio.
O
fato de que desde os primeiros anos da infância já é
possível, ocasionalmente, reconhecer-se com segurança a dis
posição típica, força-nos a supor que uma determinada dis
posição psíquica não é importa peia luta pela existência, tal
como geralmente se interpreta. Poder-se-ia objetar, com fun
damentos, por certo, que também a criança, inclusive o bebê,
possuirá já, embora de natureza inconsciente, essa capacidade
de ajustamento psicológico, a qual resulta, sobretudo, do ca
ráter peculiar das reações específicas provocadas na criança
pela influência materna. Este argumento pode valer-se de
fatos indiscutíveis, mas também poderá ser abalado se recor
rermos ao fato, igualmente indiscutível, de que em dois fi
lhos da mesma mãe é possível encontrar, desde muito cedo,
tipos completamente distintos, sem que se possa comprovar
qualquer alteração na disposição típica da mãe. Se bem que
i
Cf. o último parágrafo do capítulo V do present* volume.
DESCRIÇÃO GERAL DOS TIPOS
389
eu não pretenda, evidentemente, rebaixar a tremenda importancía da influência dos pais, essa experiência obriga-nos, con
tudo, a concluir que o fator decisivo terá de buscar-se na
própria disposição da criança. Em última análise, portanto,
havera que atribuir à disposição individual, dada a maior
igualdade possível de condições externas, a inclusão das crian
ças num ou noutro tipo. Só tenho em vista, naturalmente, os
casos que se dão em condições normais. Sob condições anor
mais, quer dizer, onde estiverem em causa disposições extre
mas e, portanto, anormais das mães, pode-se impor aos filhos
uma disposição relativamente idêntica, violentando a dispo
sição individual que porventura teria escolhido outro tipo
se não tivesse havido a intervenção de perturbadoras influên
cias exteriores e anormais. Sempre que se verifica seme
lhante falsificação do tipo, imposta por uma influência es
tranha, o indivíduo acabará geralmente neurótico, com o de
correr do tempo, e sua cura só será possível restaurando nele
a disposição que naturalmente lhe correspondia.
No que diz respeito à disposição peculiar, apenas sei di
zer que há, evidentemente, indivíduos com maior facilidade
e capacidade (ou têm maior conveniência) de ajustamento, de
uma ou outra maneira. Teríamos de considerar aqui várias
causas inacessíveis ao nosso conhecimento, em última análi
se, causas de natureza fisiológica. Deduzi a probabilidade
de que se poása tratar, com efeito, de tais causas, do fato
comprovado de que uma inversão de tipo pode, em certas
circunstâncias, prejudicar imenso o bem-estar fisiológico do
organismo, uma vez que, na maioria dos casos, produz um
forte abatimento.
2.
O Tipo Extrovertido
Para maior clareza da nossa exposição, toma-se necessá
rio, na descrição deste tipo e do seguinte, efetuar o confron
to da psicologia do consciente e do inconsciente. Passemos,
em primeiro lugar, à descrição dos fenômenos da consciência.
a) A Disposição Geral da Consciência
Todos nós sabemos que cada indivíduo se orienta de acor
do com os dados que o mundo exterior lhe fornece. Contudo,
observamos que isso acontece de um modo mais ou menos
V 390y
TIPOS PSICOLÓGICOS
/decisivo. O fato de que está fazendo frio lá fora impele uma
/pessoa a vestir um casacão, enquanto outra acredita, fiel ao
t seu propósito de enrijamento físico, que pode prescindir de
|qualquer proteção especial. Um admira o novo tenor porI que todo mundo o admira, enquanto outro não o admira não
| porque o tenor lhe desagrade, mas porque acredita que o
f que todos admiram não é, forçosamente, digno de ser admi' rado. Um acomoda-se às circunstâncias dadas porque, se
gundo a experiência demonstra, não é possível outra coisa;
mas outro está convencido de que, embora uma coisa tenha
acontecido mil vezes, na milésima-primeira trata-se de uma
novidade, e assim por diante. O primeiro orienta-se deacordo com os dados exteriores, ao passo ^jue o~sè^lindo prefere
marner um puntcrde'v'istâ^que se interpõe entre ele e o obje
tivamente dado. Quando predomina a orientação segundo o
objeto e o objetivamente dado, de modo que as principais
e mais freqüentes decisões e ações estejam condicionadas,
não por pontos de vista subjetivos mas por circunstâncias ob
jetivas, falamos de tipo extrovertido. Quem assim pensa, sen
te e atua, numa palavra,
diretamente de acordo,
com as relações objetivas e seus requisitos, no bom ou no
nrãú sentido, podemos afirmar que é um extrovertido, -OZive^
de~maneira tal que, evidentemente, o objeto representa em
'OTarsõnsciência, como grandeza determinante, uma função mais
'importante do que a do seu ponto de vista subjetivo. É
cfercrquetem opiniões subietivas, mas a sua força determinãnfêT^lnenor dp que a das. condições objetivas exteriores.
ÏTpor issò que nunca previu a possibilidade de deparar, em
sua própria intimidade, com alguma espécie de fator abso
luto, pois só encontra tais fatores no mundo exterior. De ma
neira epimetéica, sua intimidade entrega-se à exigência ex
terna, não sem luta, por certo. Mas, no fim de contas, a decisão
favorece sempre a condição subjetiva. Toda a sua consciência
está olhando para fora, pois a determinação importante e decisi
va sempre vem de fora. Mas, se assim acontece, é porque
assim espera que aconteça. Partindo dessa disposição funda
mental obtêm-se, por assim dizer, todas as singularidades de
sua psicologia, enquanto estas não se baseiam no primado
de uma função psicológica determinada ou em particulari
dades individuais.
O interesse e a atenção acompanham os acontecimentos
objetivos, sobretudo ^)s do mundo que nos cerca. Não só as
DESCRIÇÃO GERAL DOS TIPOS
391
pessoas, mas as coisas inspiram também interesse. Nesta
^conformidade, a maneira como se atua é~igualmente influen
ciada por pessoas e coisas. Recorre diretamente a determi
nações e dados objetivos, através dos quais integralmente se
explica, por assim dizer. O atuar está evidentemente refe
rido a relações objetivas. Mesmo que a atuação não consti
tua simples reação às excitações do mundo circundante, reve
la sempre um caráter aplicável às circunstâncias reais e, den
tro dos limites do objetivamente dado, encontra espaço ade
quado e suficiente. Não mostra qualquer tendência séria pa
ra ultrapassar tais limites. O mesmo se pode dizer quanto ao
interesse. Nos eventos objetivos encontra uma excitação qua
se inesgotável, de modo que o interesse não pede, normal
mente, mais do que isso. As leis morais do trato entre pes
soas (e da ação pessoal) coincidem com os requisitos corres
pondentes da sociedade ou com a concepção moral vigente.
Se esse critério moral vigente e geral fosse distinto do que
é, as diretrizes morais subjetivas também seriam diversas, sem
que por esse motivo tivesse de haver uma alteração do hábi
to psicológico total.
Esse severo relativismo da pessoa, ante os fatores obje
tivos, de maneira alguma supõe, como poderia parecer, uma
adaptação total, inclusive ideal, às condições gerais da vida.
Para um ponto de vista extrovertido, semelhante ajustamento
ao objetivamente dado parecerá, com certeza, uma adaptação
total, pois a esse ponto de vista não é concedido, em geral,
outro critério. Contudo, vendo as coisas por um ângulo mais
elevado, é absolutamente' impossível afirmar que o objetiva
mente dado seja, ácima de tudo, o normal. As condições ob
jetivas podem, hístórico-temporalmente ou localmente, ser
anormais. Um indivíduo que se ajuste a semelhantes circuns
tâncias marchará, certamente, de acordo com o estilo anor
mal do mundo que o cerca, mas, ao mesmo tempo, ambos se
encontram — o indivíduo e o seu “mundo” — numa situação
anormal, no tocante às leis universalmente válidas da vida.
O indivíduo pode, sem dúvida, progredir em tais circunstân
cias, mas só até o momento em que, por violar as leis uni
versais da vida, se afunda com tudo o que o cerca. Partici
pará nesse descalabro com a mesma segurança com que antes
se acomodava ao objetivamente dado. O que ele fizera fora
acomodar-se, não ajustar-se, pois o ajustamento requer algo
mais do que o cômodo estar de acordo, sem obstáculos, com
392
TEPOS PSICOLÓGICOS
quaisquer condições que, em cada caso, se destaquem no seu
mundo imediato e circundante. (Estou-me referindo ao Epimeteu de S p i t t e l e r . ) O ajustamento exige a observância da
quelas leis que representem algo mais universal do que as
circunstâncias histórico-temporais e locais. Na simples aco
modação reside, com efeito, a limitação do tipo extrovertido
normal.
O tipo extrovertido deve agradecer sua “normalidade’’,
por um lado, à circunstância de acomodar-se quase sem difi
culdades sérias às condições dadas, não tendo, naturalmente,
outra pretensão que não seia a de esgotar as possibilidades que
lhe são objetivamente dadas, como, por exemplo, escolher a
profissão que neste lugar e neste momento lhe oferece possi
bilidades mais promissoras, fazer ou produzir aquilo que de
momento é preciso, evitar toda a novidade que não seja de
uma convincente evidência, deixar de fazer quanto exceda
aquilo que de nós se espera. Por outro lado, contudo, sua
"normalidade” baseia-se também na importante circunstância
de que o extrovertido leva em conta a efetividade de suas
necessidades subjetivas. Este é, de fato, o seu ponto frágil,
pois a tendência do seu tipo desloca-se de tal maneira de
dentro para fora, que até o mais evidente, para os sentidos,
de todos os fatos objetivos, a saúde do corpo, não é tido su
ficientemente em conta, considerado como coisa pouco objeti
va, muito pouco “exterior”, e assim não chega sequer a verifi
car-se a satisfação de necessidades elementares, imprescin
díveis para o bem-estar físico. Por conseguinte, o corpo res
sente-se, para não mencionar a alma, Mas esta circunstân
cia é pouco notada, regra geral, pelo extrovertido, e menos
ainda por quantos o rodeiam, intimamente, no ambiente fami
liar. Só se dará conta da perda de equilíbrio quando tiver
as primeiras sensações físicas anormais.
Nessa altura, já não poderá ignorar o fato palpável. Ê
natural que o considere como algo concreto e “obietivo”,
pois para a sua mentalidade não existe qualquer outra coi
sa... nele próprio. Quanto ao resto, está sempre dispostç a
acreditar que se trata de “imaginação". Uma disposição de
masiado extrovertida pode chegar a um tal extremo contra
o sujeito que este acabe totalmente sacrificado; por exemplo,
em conseqüência de um constante aumento dos negócios, pois
há encomendas e é preciso corresponder às possibilidades que
se oferecem, até esgotá-las.
DESCRIÇÃO GERAL DOS TIPOS
393
O risco que o extrovertido corre é o de ser absorvido pe
los objetos, perdendo-se ele próprio neles, totalmente. As
perturbações funcionais (nervosas) ou genuinamente físicas,
que assim ocorrem, têm um significado compensador, pois
obrigam o sujeito a uma restrição involuntária. Se os sin
tomas forem funcionais, poderão exprimir simbolicamente, por
sua natureza peculiar, a situação psicológica. É, por exem
plo, o caso de uma cantora cuja fama alcançou rapidamente
alturas perigosas, o que lhe impõe um desgaste desproporcio
nal de energias; de repente, por uma inibição nervosa, tem
uma falha nas notas altas. Num homem que, desde as mais
humildes origens ascendeu rapidamente a uma posição social
de influência e repleta de promessas, manifestam-se psicogènicamente todos os sintomas do mal-das-montanhas. Um
indivíduo que se dispõe a contrair matrimônio com uma mu
lher de caráter bastante duvidoso, a quem cie adora desme
suradamente, sente-se atacado de um espasmo nervoso na
garganta, o que o obriga a reduzir sua alimentação para duas
xícaras de leite por dia, exigindo cada uma três horas para
ser bebida. Isto impede-o, efetivamente, de visitar sua noiva,
pois vê-se obrigado a tratar exclusivamente da própria ali
mentação. Um indivíduo que já não pode agüentar o peso
de trabalho que seu negócio exige e cujo progresso foi devi
do ao seu próprio esforço, é vítima de ataques de sede
nervosos e, em conseqüência desses acessos constantes, aca
ba por entregar-se rapidamente a um alcoolismo histérico.
Em minha opinião, a mais freqüente forma de neurose do
tipo extrovertido é a histeria.
O caso histérico clássico está sempre caracterizado por
uma superlativamente exagerada relação com as pessoas, bem
como por uma acomodação, realmente imitativa, às circuns
tâncias, que é uma de suas peculiaridades características.
Traço fundamental da natureza histérica é a constante ten
dência para tomar-se interessante e causar impressão nas
pessoas. Traço correlativo é a proverbial sugestionabilidade,
o ser influenciável por outras pessoas. Uma inequívoca
extroversão revela-se também na ânsia de comunicação dos
histéricos que, por vezes, chega aos relatos de conteúdo pu
ramente fantástico, dando origem à repreensão da mentira
histérica. O “caráter” histérico é, em primeiro lugar, um exa
gero da disposição normal, logo complicada com reações com
pensadoras por parte do' inconsciente, as quais, perante a
exagerada extroversão, impõem a introversão à energia psí
394
TIPOS PSICOLÓGICOS
quica, mediante perturbações físicas. Pela reação do incons
ciente surge outra categoria de sintomas que se reveste de
um caráter mais introvertido. Aqui se inclui, sobretudo, a
atividade da fantasia mórbida intensificada. Depois dessa
caracterização geral da disposição extrovertida, passemos a
descrever as alterações a que essa disposição submete as
funções psicológicas fundamentais.
b)
A Disposição do Inconsciente
Talvez pareça estranho que se fale de uma “disposição
do inconsciente”. Como já expliquei detalhada e longamen
te, penso que a relação entre inconsciente e consciência tem
um caráter compensatório. Segundo este ponto de vista,
pode-se atribuir ao inconsciente uma disposição, do mesmo
modo que à consciência.
Destaquei a tendência da disposição extrovertida para
uma certa unilateralidade, quer dizer, para deixar que preva
leça o fator objetivo no decorrer do acontecimento psíquico.
O tipo extrovertido está sempre disposto à entrega, em favor
(aparentemente) do objeto, e à assimilação do seu sujeito ao
objeto. Aludi circunstanciadamente às conseqüências que po
dem resultar de um exagero da disposição extrovertida, ou se
ja, da opressão prejudicial do fator subjetivo. Será de es
perar, portanto, que uma compensação da disposição extro
vertida realce, de maneira especial, o fator subjetivo, quer
dizer, comprovar-se-á no inconsciente uma tendência acentuadamente egocêntrica. Com efeito, essa tendência pode ser
comprovada na prática. Não me detenho aqui no aspecto
casuístico, o que farei posteriormente, ao procurar expor a
disposição característica do inconsciente, em cada tipo fun
cional. Como, por ora, trata-se apenas da compensação de
uma disposição geral extrovertida, limitar-me-ei a uma ca
racterização igualmente geral da disposição compensatória
do inconsciente.
A disposição do inconsciente, na acepção de um com
plemento efetivo da disposição consciente extrovertida, tem
uma espécie de caráter de introversão. Concentra a energia
no momento subjetivo, quer dizer, sobre todos os requisitos
e necessidades que uma disposição consciente excessivamente
extrovertida oprimiu ou reprimiu. Pelo que foi anteriormen
te dito, é evidente e fácil de perceber que uma orientação
no sentido do objeto e do objetivamente dado terá que vio-
DESCRIÇÃO GERAL DOS TIPOS
395
lentar, fatalmente, um sem-número de emoções, opiniões, de
sejos e necessidades, privando-os da energia que deveria,
naturalmente, corresponder-lhes. O homem não é uma má
quina transformável para fins totalmente diversos e que,
na hipótese de ser transformada, continue funcionando com
a mesma regularidade de antes. O homem leva sempre con
sigo toda a sua história e a história da humanidade. Com
efeito, o fator histórico representa uma necessidade vital, à
qual compete responder com uma sábia economia. Ao pas
sado deve ser consentido, de algum modo, que fale e convi
va no presente. A total assimilação ao objeto tropeçará, pois,
no protesto da oprimida minoria do preexistente e do que
existiu desde um princípio. Por essa reflexão genérica poder-se-á compreender que os requisitos inconscientes do tipo ex
trovertido possuem um caráter primitivo, infantil e egoísta.
Quando F r e u d disse, a respeito do inconsciente, que pode
“somente desejar”, devemos entender que se referia, no mais
elevado grau, ao inconsciente do tipo extrovertido. A aco
modação e assimilação ao objetivamente dado impedem que
as emoções insuficientemente subjetivas se tornem conscien
tes. Essas tendências (pensamentos, desejos, afetos, necessi
dades, sentimentos, etc.), segundo o grau em que são re
primidas, adotam um caráter agressivo, quer dizer, quanto
menos reconhecidas forem, tanto mais infantis e arcaicas se
tornam. A disposição consciente priva-as de sua dotação de
energia relativamente disponível, concedendo-lhes apenas que
conservem aquela dose de energia de que não foi capaz de as
desapossar. Esse resto, de um poder ainda apreciável, é o
que se deve considerar como instinto primitivo. O instinto
não pode ser suprimido pelas imposições arbitrárias de um
único indivíduo, pois que, para isso acontecer, seria neces
sária a transformação lenta e orgânica de muitas gerações,
visto ser o instinto a expressão energética de uma determina
da conformação orgânica.
Assim, na opressão de toda e qualquer tendência, acaba
sempre por ficar uma dose considerável de energia que cor
responde ao poder do instinto e mantém sua eficácia, se bem
que, ao ser privado de certas quantidades de energia,
tenha passado ao nível inconsciente. Quanto mais completa
fnr a disposição extrovertida consciente, tanto mais infantil
e arcaica será a disposição inconsciente. O egoísmo que ca
racteriza a disposição inconsciente é algo que, por vezes,
excede largamente o infantil, alcançando os limites do brutal
39 6
TIPOS PSICOLÓGICOS
e do perverso. Aí encontram terreno propício os desejos in
cestuosos que F r e u d descreve. Claro que todas essas coisas
são completamente inconscientes e mantêm-se ocultas aos
olhos do observador leigo, enquanto a disposição extrovertida
consciente não atingir um elevado grau. Mas se se chegar
ao exagero do ponto de vista consciente, o inconsciente mani
festa-se, quer dizer, o egoísmo, o infantilismo e o arcaísmo
perdem seu caráter compensador original e adotam uma ati
tude de oposição, mais ou menos aberta, contra a disposi
ção consciente. Isto acontece, em primeiro lugar, por uma
absurda exacerbação do ponto de vista consciente que deve
ria servir para uma opressão do inconsciente, mas que, regra
geral, redunda numa reâuctio aã absurdum da disposição cons
ciente, isto é, num colapso. Pode ser um colapso objetivo,
quando se verifica a substituição gradual dos fins objetivos
por subjetivos. Conhecemos o caso de um tipógrafo que, de
pois de vinte anos de árduo trabalho na situação de humilde
empregado, atingiu a posição de proprietário de um estabe
lecimento muito importante. Seu negócio progrediu, ampliou-se e chegou à um ponto em que essa pessoa se deixou domi
nar pelo interesse que nele havia posto, a um extremo tal
que, por causa desse grande empenho, anulou todos os seus
interesses secundários» Acabou devorado por essa preocu
pação. Isto aconteceu da seguinte maneira: como compen
sação inconsciente do seu interesse exclusivo nos negócios*
foram* reavivadas certas recordações de sua infância. Tinha
então um prazer enorme em pintar e desenhar. Ora, em vez
de deixar que essa capacidade se desenvolvesse como ocupa
ção secundária de compensação, canalizou-a para o seu
negócio e começou a fantasiar a tíãnsformação “artística’'
dos seus produtos. Infelizmente, as fantasias convertem-se
em realidade. Começou, de fato, a produzir'de acordo com
o seu gosto infantil e primitivo, disso resultando que, em pou
cos anos, as dívidas eram tantas que faliu. Agira em obe
diência a um dos nossos "ideais de cultura*, segundo o qual
o homem ativo e enérgico deve exclusivamente concentrar-se
na consecução de uma única finalidade. Mas. neste caso,
a medida transbordou e a pessoa foi vítima do poder de
solicitações subjetivas e infantis.
O desfecho catastrófico também pode ser de uma espécie
subjetiva, adotando a forma de um colapso nervoso. Isto
ocorre sempre que a reação inconsciente é capaz de parali
sar, finalmente, a ação consciente. Neste caso, os requisitos
DESCRIÇÃO GERAL DOS TIPOS
397
do inconsciente impõem-se de modo categórico à consciên
cia, dando assim lugar a uma divergência funesta que, em
geral, revela-se por uma perda de noção do que realmente se
quer, por uma ânsia ou uma inapetência exageradas de coisas
que são totalmente inacessíveis ou impossíveis. Por razões
culturais, a muitas vezes necessária opressão dos requisitos
infantis e primitivos leva facilmente à neurose ou ao abuso
de substâncias entorpecentes, como o álcool, a morfina, a co
caína, etc. Em casos ainda mais graves, essa divergência
tem por desfecho o suicídio. Constitui uma característica
pecuhar das tendências inconscientes o fato de que, na mes
ma medida em que, por seu não-reconhecimento consciente,
são privadas de energia, adotam um caráter destrutivo e dei
xam de ser compensatórias. Mas também deixam de atuar
com caráter de compensação quando atingem um ponto de
depressão que equivale a um nível de cultura inteiramente
incompatível com o nosso. A partir desse instante, as ten
dências inconscientes formam um bloco oposto, em todos os
sentidos, à disposição consciente, cuja existência acarreta um
conflito evidente.
O fato de que a disposição do inconsciente compensa a
do consciente se manifesta, em geral, no equilíbrio psíquico.
Uma disposição extrovertida normal nunca significa, natural
mente, que o indivíduo tenha de comportar-se sempre de acor
do com o esquema extrovertido, em todas as circunstâncias.
Num mesmo indivíduo observar-se-ão, sob qualquer situação,
numerosos processos psicológicos em que o mecanismo da
introversão intervém. Só chamamos extrovertido ao hábito
em que predomine o mecanismo da extroversão. Nesse caso,
observa-se sempre a função psíquica mais diferenciada sen
do empregada extrovertidamente, ao passo que as funções me
nos diferenciadas são introvertidamente empregadas, isto é,
a função de valor superior é, em geral, consciente e está sub
metida, de modo mais completo, ao controle da consciência e
do objetivo consciente, enquanto as funções menos diferen
ciadas também são menos conscientes ou são em parte in
conscientes, estando sujeitas, em muito menor grau, ao arbí
trio consciente. A função de valor superior subentende sem
pre a expressão da personalidade consciente, suas finalidades,
sua vontade e suas realizações, ao passo que as funções infe
riormente diferenciadas dizem respeito às coisas que aconte
cem correntemente às pessoas. Não precisam ser lapsus lin-
3 98
TIPOS PSICOLÓGICOS
ou lapsus càlami, ou qualquer outro gênero de equívocos,
podendo derivar apenas de meias intenções, ou de três quar
tos de propósitos, uma vez que as funções inferiormente di
ferenciadas possuem uma consciencialidade ínfima. Um clás
sico exemplo disso é o tipo de sentimento extrovertido que
mantém ótimas relações com quantos o rodeiam, mas que,
por vezes, é capaz de formular opiniões ou conceitos de uma
completa falta de tato. Essas opiniões refletem seu pensa
mento inferiormente diferenciado e inferiormente consciente,
que só em parte é capaz de controlar e que, além disso, está
insuficientemente referido ao objeto, podendo assim produzir,
em alto grau, uma desconsideração ou uma brutalidade.
Na disposição extrovertida, as funções inferiormente di
ferenciadas denunciam sempre um extraordinário condicio
nalismo subjetivo, de declarada egocentricidade e preconceito
pessoal, o que demonstra sua íntima relação com o incons
ciente. Nessas funções, o inconsciente revela-se continuadamente. Não se suponha, por isso, que o inconsciente jaz so
terrado por uma série de camadas que, em certa medida,
não lhe permitem ser desvendado senão por meio de proiundas e árduas sondagens. Pelo contrário, o inconsciente ir
rompe constantemente na superfície do evento psicológico
consciente, o que toma muitas vezes difícil ao observador de
terminar quais são as características que correspondem à per
sonalidade consciente e quais à personalidade inconsciente,
Essa dificuldade encontra-se, principalmente, nas pessoas que
se manifestam com bastante assiduidade. Isto também depen
de, naturalmente, da disposição do observador, quer dizer, se
este apreende com mais facilidade o caráter consciente ou o
inconsciente de uma dada personalidade. -De modo geral,
um observador de orientação judicativa compreenderá me
lhor o caráter consciente, enquanto o observador de orienta
ção perceptiva sentirá mais o influxo do caráter inconsciente,
pois ao primeiro interessa sobretudo a motivação consciente
do evento psíquico, ao passo que a percepção do segundo re
gistra melhor o evento em si. Ora, se nos servirmos em idên
tica medida do juízo e da percepção, pode acontecer facil
mente que uma personalidade nos pareça introvertida e ex
trovertida ao mesmo tempo, sem que saibamos distinguir
imediatamente a qual das disposições corresponde a função
superiormente valorizada. Será preciso recorrermos a uma aná
lise profunda e metódica das qualidades funcionais para cheguae
DESCRIÇÃO GERAL DOS TIPOS
399
garmos a uma concepção válida. Teremos de averiguar qual
é a função que está inteiramente sujeita ao controle e moti
vação conscientes, e quais são as funções que revelam um
caráter contingente e espontâneo. A primeira função está
sempre diferenciada num grau superior às outras, evidencian
do estas, além do mais, qualidades algo infantis e primitivas.
Por vezes, a primeira função produz uma impressão de nor
malidade, ao passo que nas segundas se encontram elemen
tos de conteúdo anormal ou patológico.
c) As Particularidades das Funções Psicológicas Funda
mentais na Disposição Extrovertida
O Pensamento
Em conformidade com a disposição extrovertida de con
junto, o pensamento orienta-se no sentido do objeto e dos
dados objetivos. Dessa orientação do pensamento resulta
uma nítida característica.
Por uma parte, o pensamento alimenta-se, sobretudo, de
fontes subjetivas e, por outra parte, dos dados objetivos que
lhe são transmitidos pelas percepções sensoriais. O pensa
mento extrovertido é determinado, em maior grau, pelos úl
timos fatores do que pelos primeiros. O juízo pressupõe
sempre uma norma; para o juízo extrovertido é principal
mente válida a norma que se obtém através das relações ob
jetivas, sem que interesse apurar se está representada por um
fato objetivo sensorialmente percebido ou por uma idéia ob
jetiva, visto que uma ídéia objetiva constitui também algo
exteriormente dado, recebido do exterior, mesmo quando se
lhe ajusta subjetivamente. Por conseguinte, o pensamento ex
trovertido de maneira alguma necessita ser um pensar em fa
tos puramente concretos, visto poder ser também, sem dú
vida alguma, um pensar puramente ideal, na medida em que
se possa provar que as idéias com que se pensa foram, em sua
maior parte, recebidas do exterior, isto é, que se trata de idéias
transmitidas pela tradição, pela educação e pela formação pes
soal. O critério crítico para apurar se um pensamento é ex
trovertido baseia-se, em primeiro lugar, na questão de saber
qual a norma seguida pelo juízo, ou seja, se foi tomado do
exterior ou é de origem subjetiva.
400
TIPOS PSICOLÓGICOS
Também pode servir de critério a direção adotada peias
conclusões, isto é, a questão de saber se o pensamento se
orienta ou não, de preferência, para o exterior. O fato do
pensamento ocupar-se de objetos concretos não é prova sufi
ciente de sua natureza extrovertida, visto que posso, com
o meu pensamento, ocupar-me de um objeto concreto, quan
do abstraio dele o meu pensamento ou, então, quando neie
e por ele concretizo o meu pensamento. Mesmo quando o
meu pensar se ocupa de coisas concretas e enquanto o faz,
podendo considerar-se extrovertido, o que é discutível e ca
racterístico é a direção que ele irá adotar, quer dizer, se no
seu processo ulterior de evolução me levará ou não, de novo,
para o domínio de dados concretos e objetivos, de fatos exte
riores ou genéricos, de conceitos previamente dados. No pen
samento prático do comerciante, do técnico, do investigador
naturalista, é desde logo evidente a direção no sentido do
objeto. No pensamento do filósofo pode haver dúvidas, quan
do a direção do seu pensar se cinge ao domínio das idéias.
Neste caso, é preciso apurar, de uma parte, se essas idéias
não serão apenas abstrações de experiências realizadas com
objetos, representando, se assim for, conceitos coletivos su
periores que comportam uma soma de fatos objetivos. Por
outra parte, convirá averiguar se essas idéias (quando não
tiver sido comprovado que se tratava de abstrações de expe
riências diretas) são de origem tradicional ou toram recebi
das do ambiente espiritual. Se isto for afirmativamente apu
rado, essas idéias ticam também incluídas na categoria dos
dados objetivos, com o que se poderá qualificar de extrover
tido o respectivo pensamento.
Se bem que fosse meu propósito examinar a essência do
pensamento introvertido num capítulo à parte, creio indis
pensável fazer já aqui algumas observações. De fato, se me
ditarmos sotyre o que acabo de dizer a respeito do pensa
mento extrovertido, poderemos chegar facilmente à conclu
são de que me referi a tudo o que entendemos, simplesmente,
por pensamento. Dir-se-ia que um pensamento que não se cin
ja a fatos objetivos ou idéias gerais não merece sequer que
se lhe chame “pensamento”. Estou inteiramente cônscio de
que o nosso tempo e seus excelsos representantes só conhe
cem e reconhecem o tipo extrovertido de pensamento. Isto
tem origem, por uma parte, no fato de que, regra geral, todo
pensamento visível na superfície do mundo, quer na forma
DESCRIÇÃO GERAL DOS TIPOS
401
de ciência e filosofia, quer na forma de arte, promana dire
tamente dos objetos ou desemboca nas idéias gerais. Por
ambas as razões é que parece, se não sempre evidente, pelo
menos compreensível, em sua essência, e por isso relativa
mente válido. Neste sentido, pode-se dizer que só o intelec
to extrovertido, quer dizer, o que se orienta pelo objetiva
mente dado, é conhecido. Mas também existe, na verdade —
e estou falando agora do pensamento introvertido — um gê
nero de pensar completamente distinto, ao qual será difícil
negar o direito à designação de “pensamento”, isto é, um
gênero que não se orienta no sentido da experiência objetiva
imediata, nem no das idéias gerais e objetivamente transmi
tidas.
Chega-se a essoutro tipo de pensamento da seguinte ma
neira: quando o meu pensamentouse ocupa de um objetcLcon
creto ou de uma. idéia geral, de .modo tal que a direção do
meu pensamento valla-se, em última análise, para os meus
objetos, esse processo intelectual não constitui o único pro
cesso psíquico que, nesse momento,, acontece em mim. Po
nho de lado todas as sensações e sentimentos possíveis que
se destacam, mais ou menos perturbadoramente, à margem do
curso evolutivo do meu pensar, e insisto no fato de que o
meu processo mental, que já parte do objetivamente dado
e tende para o objetivo, encontra-se também em relação cons
tante com o sujeito. Esta relação constitui uma conditio sine
qua non, pois sem ela não seria possível o próprio processo
de pensar. Por muito que o meu processo de pensar se
oriente no sentido do objetivamente dado, nem por isso dei
xará de ser a minha ordem de idéias ou pensamentos subje
tivos, que não pode evitar a intromissão do subjetivo nem
fugir à mesma. Quando pretendo dar ao processo do meu
pensamento uma direção objetiva, em todos os aspectos, não
posso furtar-me a um processo subjetivo paralelo nem impe
dir a sua participação geral, sem privar da luz da vida o
curso dos meus pensamentos. Esse processo subjetivo para
lelo tem a natural e só mais ou menos evitável tendência
para subjetivar o objetivamente dado, quer dizer, para assimilá-lo ao sujeito. Ora, se a ênfase recair sobre o processo
subjetivo, o resultado será aquela outra espécie de pensamen
to que se opõe ao tipo extrovertido, isto é, a direção que se
orienta no sentido do sujeito e do subjetivamente dado e a
que chamo introvertida. Desta nova orientação nasce um
23
402
TIPOS PSICOLÓGICOS
pensamento que não é determinado por fatos objetivos nem
se limita ao objetivamente dado; é, portanto, um pensamento
que parte do subjetivamente dado e se rege pelas idéias sub
jetivas ou fatos de natureza subjetiva. Não me deterei mais,
por ora, no exame desse tipo de pensamento. Quero apenas
deixar registrada a sua existênGia para assim dar ao processo
mental extrovertido seu imprescindível complemento, a fim
de que sua essência se destaque com a maior clareza.
O pensamento extrovertido só chega, portanto, a ser um
fato quando a orientação objetiva ganha certa preponderân
cia. Tal circunstância, porém, nada altera na lógica do pen
samento, dando apenas lugar a uma diferença entre os pensa
dores que J a m e s atribuía a uma questão de temperamentos.
Como dissemos, a orientação no sentido do objeto nada alte
ra na essência da função mental, e apenas em sua aparência.
Ao orientar-se no sentido do dado objetivo, aparece-nos como
se fosse fascinada pelo objeto e não pudesse existir sem a
sua orientação exterior. É quase como se aderisse ao corte
jo dos fatos exteriores ou atingisse o seu auge quando se une
a uma idéia de validade universal. Parece agir incessante
mente sobre ela o objetivamente dado, não lhe sendo possível
chegar a qualquer conclusão sem contar primeiro com a
anuência do objetivo. Por isso, suscita sempre a impressão
de falta de liberdade e, por vezes, de falta de visão, apesar
de toda a agilidade que demonstra dentro do espaço limi
tado pelas fronteiras objetivas.
O que estou descrevendo aqui é a simples impressão do
fenômeno do pensamento extrovertido no observador que tem
de situar-se noutro ponto de vista, pois só assim ele poderá
realmente observar o fenômeno do pensamento extrovertido.
Em conseqüência dessa posição distinta, ele só pode ver o
fenômeno e não sua essência. Mas quem se situar na pró
pria essência desse pensamento poderá, certamente, ver a es
sência, mas não o fenômeno. O juízo que ser guia unicamen
te pelo fenômeno não pode julgar a essência, razão por que
costuma ser desvalorizador. Segundo a essência, porém, tal
pensamento não é menos fértil e criador que o introvertido,
sucedendo apenas que a sua capacidade está dedicada a fins
diversos. Essa diferença faz-se sentir, especialmente, quan
do o pensamento extrovertido se apodera de uma matéria que
constitui objeto específico do pensamento subjetivamente
orientado. Ê o caso que se verifica, por exemplo, quando
DESCRIÇÃO GERAL DOS TIFOS
403
uma convicção subjetiva é explicada por fatos objetivos ou
em conseqüência ou decorrência de idéias objetivas. Para
a nossa consciência, que é orientada pelas Ciêneias Naturais,
torna-se ainda mais acentuada a diferença entre ambos os
tipos de pensamento, sempre que o pensar subjetivamente
orientado tenta inserir o objetivamente dado em contextos não
objetivamente dados, quer dizer, quando tenta subordiná-lo
a uma idéia subjetiva. Ambos os casos são considerados trans
gressões, sendo ainda preciso acrescentar o efeito recíproco
de sombra que se observa nitidamente nos dois gêneros de
pensamento. O pensar subjetivamente orientado aparece co
mo pura arbitrariedade e o pensar extrovertido como uma incomensurabilidade trivial. É por isso que ambos os pontos
de vista são incessantemente antagônicos e mutuamente hostis.
Poder-se-ia supor que a pura e simples demarcação en
tre uma situação subjetiva e uma de natureza objetiva poria
facilmente termo a esse conflito de antagonismos. Mas se
melhante demarcação é inteiramente impossível, se bem que
já tivesse sido tentada. Entretanto, ainda que fosse possí
vel, representaria uma verdadeira calamidade, pois ambas
as orientações são unilaterais e de validade restrita, razão por
que necessitam, justamente, dessa mútua influência. Quan
do, de algum modo, o objetivamente dado submete à sua
influência, em elevado grau, o pensamento, este fica esteri
lizado e rebaixado a uma espécie de simples apêndice do
dado objetivo, de tal maneira que, em nenhum aspecto, será
capaz de libertar-se já do objetivamente dado para formar
um conceito abstrato. O processo de pensar reduz-se, então,
a um simples "refletir”, mas não se pense que é no sentido
de “meditar” e sim no de mera imitação ou reprodução, o
que essencialmente nada nos diz que se observe já, de modo
evidente e imediato, no objetivamente dado. Semelhante tipo
de pensar, naturalmente, apóia-se no objetivamente dado, mas
sem jamais exceder seus limites, isto é, sem chegar sequer
a associar a experiência com uma idéia objetiva. Inversa
mente, quando tal pensar tem por objeto uma idéia objetiva,
é incapaz de chegar a uma experiência prática e conserva-se,
portanto, numa situação mais ou menos tautológica. A men
talidade materialista oferece-nos, neste caso, os exemplos mais
eloqüentes.
Quando a conseqüência de uma determinação reforçada
pelo objeto do pensar extrovertido fica subordinada ao obje-
404
TIPOS PSICOLÓGICOS
tivamente dado, por uma parte, perde-se completamente na
experiência singular e, por outra, provoca um acúmulo de
materiais empíricos não-assimilados. A massa opressiva de
experiências singulares mais ou menos desligadas entre si dá
lugar a um estado de dissociação mental que exige, além do
mais, uma regular compensação psicológica. Consiste essa
compensação numa idéia tão simples quanto universal que pro
piciará a associação entre as várias parcelas do conjunto acumu
lado, mas intimamente dissociado ou, pelo menos, uma conjetura de associação. Para tal fim, são propícias as idéias
como, por exemplo, “matéria” ou “energia”. Mas se o pen
samento não depende tanto de fatos exteriores como de uma
idéia transmitida, surge como compensação à parcimônia des
se pensamento uma acumulação ainda mais impressionante
de fatos agrupados unilateralmente segundo um ponto de vis
ta relativamente limitado e estéril, assim se perdendo com
pletamente os aspectos muito mais valiosos e ricos de con
teúdo das coisas. Essa abundância da chamada literatura
científica dos nossos dias, uma abundância que chega a de
sorientar-nos, deve sua existência, em grande medida, infeliz
mente, a essa mesma desorientação.
O Tipo Pensativo Extrovertido
A experiência demonstra que as funções psicológicas fun
damentais raramente, para não dizermos nunca, têm no mes
mo indivíduo uma potencialidade idêntica ou um mesmo grau
de desenvolvimento. De modo regular, predomina sempre
uma ou outra função, quer por sua força, quer por seu desen
volvimento. Quando, entre as funções psicológicas, se atri
bui ao pensamento a primazia, quer dizer/ quando em sua
orientação vital o indivíduo é principalmente guiado pela
meditação reflexiva, de maneira que toda ação derive de mo
tivos intelectuais pensados, ou revele, pelo menos, uma ten
dência para que assim aconteça, é porque se trata de um
tipo pensativo. Pode ser introvertido ou extrovertido, Tra
taremos, por ora, do tipo pensativo extrovertido.
Este tipo evidenciará, por definição, e na medida em
que se trate de um tipo puro, naturalmente, a tendência para
subordinar todas as suas manifestações humanas a conclu
sões intelectuais que, em última análise, orientam-se sempre
com base no objetivamente dado, quer se trate de fatos oBjetivos ou de idéias de validade universal. Esse tipo huma-
DESCRIÇÃO GERAL DOS TIPOS
405
no, não só para si próprio como para. os que o rodeiam, con
cede o poder decisivo à afetívidade objetiva ou à sua fórmula
objetivamente orientada. Essa fórmula constitui a medida
do bom e do mau, do belo e do feio. £ bom tudo o que cor
responda favoravelmente, mau tudo o que contradiga a fórmula, e éjcontingente tucío quanto ocorra, indiferentemente,
à margem dela. Ào apresentar-se tal fórmula como símbolo
'representativo do mundo, dela se faz lei do mundo que será
sempre e acima de tudo estabelecida pela realidade, tanto no
particular como no universal. Q_ tipo pensativo' extrovertido
não so_se subordina ^ sua fórmula como pretende Tàmbém
que assim procedam todos quantos o cercam, para o bem
próprio de cada um, pois quem não o Fizer prevarica ejeqntradiz a lei ^lo münao, sendo, portanto, insensato, imoral e
sem consciência. Ào tipo pensativo extrovertido é proibido'
tolerar exceções, pois seu ideal terá de ser uma realidade,'
acima de tuao, visto que, èm seu entènder, trata-se cta formulação mais pura da afetívidade objetiva e, por conseguin
te, há de ser uma verdade universalmente válida, imprescin
dível para a salvação da humanidade. É tudo isto não tem
por causa o amor ao próximo, mas, de acordo com o seu
ponto de vista superior, a justiça e a verdade. Tudo quanto,
em sua natureza, se revele em contradição com essa fórmula
constitui, simplesmente, uma imperfeição, uma falha contin
gente que será eliminada na primeira oportunidade. Se ísfó
não se conseguir, é porque se trata de algo defeituoso e mór
bido., Se a tolerância com os doentes, os sofredores e anor
mais tiver de constituir parte integrante da fórmula, cuidar-se-á da correspondente organização, como, por exemplo, ca
sas de socorro, hospitais, penitenciárias, colônias, etc., ou os
planos e projetos respectivos. Para a realização concreta, não
costuma ser bastante o motivo da iustiça e da verdade, pois
requer-se também, em geral, o verdadeiro amor ao próximo,
coisa que é mais adequada ao sentimento que a uma fórmula
intelectual. O “realmente seria preciso que” ou o “seria ne
cessário” desempenham uma grande função, de fato. Se a
fórmula for suficientemente ampla, este tipo pode, como re
formador, como promotor e depurador público das consciên
cias ou como propagandista de importantes inovações, re
presentar um papel extremamente útil para a vida social.
Mas quanto mais limitada for a fórmula, tanto mais este
tipo aparecerá com as características do crítico eternamente
descontente, argumentador e auto-suficiente, que desejaria en-
406
TIPOS PSICOLÓGICOS
caixar-se —a si próprio e aos demais —num determinado es:
quema. Assim ficam' assinalados os dois extremos entre os
quais se situa a maioria desses tipos.
De acordo com a essência da disposição extrovertida, _as
influências e manifestações são tanto melhores ou mais favo
ráveis, quanto mais de fora estiverem situadas. Seu aspec
to mais favorável verifica-se na periferia da respectiva zona
de influência. Quanto mais penetrarmos em sua zona de
poder, tanto mais as conseqüentes inconveniências de sua
tirania se fazem sentir. Na periferia, sente-se a pulsação dè
outra vida que recebe a verdade da fórmula como um valio
so aditivo aos demais fatores. Mas quanto mais aprofunda
a zona de poder da fórmula, tanto mais se extingue toda a
vida que não responda à fórmula. Em geral, são os próprios
parentes os que mais têm de suportar as conseqüências desa
gradáveis de uma fórmula extrovertida, visto serem os primei
ros que por ela são inexoravelmente contemplados. Mas quem
sofre mais è o próprio suieito, e isto leva-nos imediatamente
ao outro aspecto da psicologia desse tipo.
O fato de que nunca tenha havido, nem possa haver,
uma fórmula intelectual capaz de abranger e exprimir adeonadamente a plenitude da vida e de todas as suas possibi
lidades dá lugar a um impedimento e provoca a exclusão de
outras formas de atividade vital. Neste tipo humano, são
as formas vitais que dependem do sentimento aouelas que
sofrem, em primeiro lugar, a repressão: as atividades esté
ticas. o gosto, o sentido artístico, o culto da amizade, etc.
As formas irracionais, tais como as experiências religiosas,
as paixões, etc.. são freqüentemente erradicadas até a incons
ciência total. Essas formas vitais, por vezes de uma extra
ordinária importância, arrastam uma existência quase sempre
inconsciente. Se bem que haia homens extraordinários capa
zes de ofertar sua vida inteira em sacrifício, em prol de uma
determinada fórmula, a maior parte é incapaz* a longo pra
zo, de viver com semelhante exclusividade. /Mais cedo ou
mais tarde ~ segundo as circunstâncias exteriores e a idios
sincrasia ou disposições interiores — as formas vitais repri
midas pela disposição intelectual far-se-ão sentir indireta
mente, perturbando o comportamento vital consciente Ouan
do essa perturbação atinge um elevado grau de intensidade,
é costume falarmos de neurose. Na maioria dos casos, não
chega a tal extremo, pois o indivíduo é capaz, instintivamente,
DESCRIÇÃO GERAL DOS TIPOS
407
de algumas medidas preventivas que atenuam o efeito da
fórmula, as quais se revestem, sem dúvida, de uma apro
priada configuração racional. Dessa maneira se consegue
uma válvula de segurança.
Em resultado da relativa ou total inconsciência das fun
ções e tendências excluídas pela disposição consciente, elas
não costumam ultrapassar um estado relativamente rudimen
tar. Estão numa situação de inferioridade em face da função
consciente. Enquanto são inconscientes, encontram-se mis
turadas aos demais conteúdos inconscientes, razão por que ad
quirem um caráter bizarro. Enquanto são conscientes, re
presentam um fator secundário, se bem que tenham bastante
importância para o quadro psicológico geral. O impedimen
to originado na consciência diz respeito, em primeiro lugar,
aos sentimentos, visto serem estes os que mais contradizem
uma fórmula rígida de ordem intelectual, sendo por isso òs
que sofrem uma repressão mais intensa, Não há função que
possa ser eliminada em sua totalidade, Tudo o mais é pas
sível de uma considerável desfiguração. Na medida em que
os sentimentos permitam sua configuração e subordinação
arbitrárias, _apoiarão fatalmente a disposição consciente e adaptar-se-ão a suas finalidades. Mas isso só e possível até certo
ponto. Uma parcela do sentimento conserva-se insubmissa
e tem de ser reprimida. Se isto se conseguir, o plano cons
ciente esvai-se e, ao abrigo da consciência, desenvolve uma
atividade que contraria aquelas finalidades conscientes e,
por vezes, consegue obter efeitos cuja aparição constitui um
enigma para o próprio indivíduo. Assim, por exemplo, o
altruísmo consciente, freqüentemente extraordinário, entrecruza-se com um secreto egoísmo que se_oçulta ao próprio indi
víduo e imprime um caráter interessado em ações que, no
fundo, são-desinteressadas. Finalidades puramente éticas po
dem levar o indivíduo a. situações críticas em que algo mais
do que-a mera^aparência, .parece sugerir que se trata de tudo
menos^de- motivos .éticos* JS o caso daqueles salvadores voluntários ou guardiães de costumes que, de súbito, parecem_
estar mais empenhados ou necessitados de salvação própríaf
Seus propósitos salvadores costumam levá-los a recorrer a
meios apropriados para realizar aquilo que se queria evitar.
Há idealistas extrovertidos que desejariam, de modo tão ex
tremado, forçar a realização de seus ideais, para bem da hu
manidade, que não se detêm ante a mentira e recorrem a
408
TIPOS PSICOLÓGICOS
outros meios inconfessáveis. Na ciência, conhecem-se alguns
exemplos dolorosos de investigadores de grande; mérito que,
convencidos da verdade e da universal validade de suas fór
mulas, não hesitaram em falsificar provas e documentos jus
tificativos, julgando servirem assim seus ideais e pensando
que o fim justifica os meios. Somente uma função do senti
mento em situação de inferioridade, que atua de maneira
atrativa e inconsciente, pode provocar semelhantes desvios
em pessoas que, em todos os demais aspectos, são excelentes.
A inferioridade do sentimento, nesse tipo, ainda se demonstra de outra maneira. A disposição consciente-e, segundo a fórmula objetiva predominante, mais ou menosímpessoal, a um ponto tal que, com freqüência, os interesses'
pessoais são substancialmente menosprezados. Se sé tratã’
de uma disppsição consciente em grau extremo, caem pela
base todas as considerações pessoais, inclusive as que dizem
respeito à própria pessoa. Descuida-se da saude, da posição
social, e a própria família é muitas vezes prejudicada em seus
interesses mais vitais, física, monetária e moralmente, e tudo
isso em prol do ideal. Em todo caso, ressente-se o interesse
pessoal pelos outros, na medida em que não se trate, pôr
acaso, de um defensor e promotor da mesma fórmula. Não
é raro oue os membros mais próximos da família, os pró
prios filhos, por exemplo, apenas vejam no pai um tirano
cruel, enquanto em seu âmbito se propaga e ressoa o eco
de sua pura humanidade. Não é por causa da elevada imoersonalidade da disposição consciente, mas em virtude dessa
mesma impersonalidade, que os sentimentos inconscientes são
extraordinariamente suscetíveis na esfera pessoal e provocam
certos preconceitos secretos, como seja, por exemplo, certa
propensão para interpretar erradamente qualquer -oposição
obietiva à fórmula como prova de má vontade pessoal, ou
para estabelecer sempre um pressuposto negativo das ’ quãK:
daáes ^cTe outras pessoas, a fim de enfraquecer de antemão
seus argumentos e assim criar, naturalmente, uma proteção
para a própria suscetibilidade. É freqüente a suscetibilidadé
inconsciente fazer que o tom da linguagem se]a àspéro, cortante e agressivo, As insinuações sucedem-se -amiúde. Os
sentimentos revestem-se do carâtér urgente e^tardio que é
próprio de uma situaçãode inferioridade. Por isso se evi
dencia uma declarada tendência,jpara-ü ressentimento. O sa
crifício individual, em nome da finalidade intelectual, é tão
DESCIUÇAO GERAL DOS TIPOS
409
grande quanto mesquinhos, vacilantes, caprichosos e conser
vadores são os sentimentos, tudo o que for nova & n ã o estiyer
já contido na fórmula é encarado através""3e uma cortina dg
ódio' inconsciente e assim julgado. Em meados do século
passado, deu-se o caso de um médico famoso por sua huma
nidade que ameaçou expulsar um seu assistente porque este
usara um termômetro. A fórmula exigia que se tomasse a
febre pelo pulso. É sabido que estes casos abundam. Quan
to mais _forte for a repressão dos sentimentos, _tanto mais
perigosa e secretamente influem no pensamento, que em tudo
o mais pode ser impecável. O ponto de vista intelectual
que, em virtude do valor que efetivamente lhe corresponde,
deveria porventura aspirar ao reconhecimento geral, sofre uma
alteração característica, provocada pela influência da suscetibilidade pessoal inconsciente*, toma-se dogmático e rígido.
A auto-afirmação da „personalidade transFere-sepára elé. A
yerdade não se abandona a seus efeitos naturais, mas, pêlo
contrário, em virtude de sua identificação com o sujeito, eT
tratada como uma donzela sentimental a quem os críticos
maldosos fizeram padecer. Se tanto for jnecessário, o crítico
será injuriado com invectivas pessoais e nenhum argumento,
conforme as circunstâncias, poderá ser bastante mau contra
ele. A verdade será exposta até o ponto em que o publico
comece a perceber que, evidentemente, trata-se menos da
verdade que do seu progenitor pessoal.
O dogmatismo do ponto de vista intelectual sofre, por ve
zes, em virtude da interferência inconsciente dos sentimen
tos pessoais inconscientes, outras alterações singulares que
são menos atribuíveis ao sentimento, numa acepção estrita,
do que à intromissão de outros fatores igualmente inconscien
tes que se misturam, no inconsciente, ao sentimento reprimi
do. Apesar da própria razão demonstrar que todas as fór
mulas intelectuais só podem constituir uma verdade de vali
dade limitada e que, por conseguinte, nunca poderá preten
der impor suas reivindicações em todos os campos, na práti
ca. porém, a fórmula adquire tamanha preponderância que
todos os demais pontos de vista e possibilidades retrocedem
diante dela e passam para um segundo plano. Substitui toda e
qualquer outra concepção mais genérica e indeterminada do
mundo e, portanto, mais modesta e verdadeira. Por isso se
sobrepõe a essa concepção geral que denominamos religião,
convertendo-se a própria fórmula em religião e embora, se
410
TIPOS PSICOLÓGICOS
gundo sua essência^ nada de religioso tenha. Assim adquire
também o caráter de valor absoluto que é essencialmente gróprio de qualquer religião. Toma-se uma espécie dê supers.^Sãi^intelectual, por assim „dizerv Entretanto, todas as ten
dências psicológicas reprimidas por ela reúnem-se no incons
ciente como oposição e provocam acessos de hesitação, de
dúvida e vacilação. Para defender-se da dúvida, a disposição
consciente fanatiza-se. Com efeito, o fanatismo não é senão
uftia compensação da dúvida. Esse processo acaba por criar
uma posição consciente, defendida com exagero, e uma posi
ção inconsciente e totalmente oposta que, por exemplo, em
contraste com o racionalismo consciente é irracional em grau
extremo, ou em contraste com o cientificismo moderno do
ponto de vista consciente é arcaica e supersticiosa em extremo.
Na história das ciências, são uma conseqüência disso aquelas
opiniões acanhadas e ridículas em que acabaram por cair, a
longo prazo, investigadores de grande mérito. Nesse tipo de
homem, o aspecto inconsciente personifica-se, por vezes, numa
mulher.
Este tipo, por certo bastante conhecido dos leitores, en
contra-se sobretudo entre os homens, segundo os dados de
minha experiência, já que o pensar é uma função mais sus
cetível de predominar no homem do que na mulher; Quan
do o pensar chega a ter predomínio numa mulher é porque sej
trata, em minha opinião, de um pensamento que, na maior1
parte dos casos, resulta de atividade espiritual predominante
mente intuitiva.
O pensamento do tipo reflexivo extrovertido é positivo,
quer dizer, cria. Conduz-nos a novos fatos ou então a con
cepções gerais baseadas em materiais díspares da experiên
cia. Seus juízos são. de modo geral, sintéticos. Pode-se mes
mo afirmar que ainda quando decompõe está construindo, ao
superar a decomposição mediante uma nova composição uma
nova concepção que volta a unir o dissociado de uma forma
distinta ou acrescentando alguma coisa ao material anterior.
É por isso que se poderia designar essa eategoria de juízos,
em geral, como predicativos. De qualquer modo, é sinto
mático que nunca seja totalmente desvalorizador ou destrui
dor, uma vez que substitui sempre por outro o valor que se
destruiu. Essa qualidade origina-se no fato de que o pen
samento do tipo reflexivo (ou pensativo) constitui, por assim
dizer, o canal por cujo intermédio flui, principalmente, sua
DESCRIÇÃO GERAL DOS TIPOS
411
energia vital. O constante progresso da vida manifesta-se
no seu pensamento, que assim adquire um caráter progressi
vo e gerador. £ um pensamento que está muito longe de
ser paralisante e regressivo. Mas estas são, precisamente, as
qualidades que distinguem o pensamento, quando nele exis
te o primado da consciência. Neste caso, ao haver nele uma
carência relativa de significação, nota-se igualmente a falta
do que caracteriza uma atividade vital positiva. Vai no
rastro das outras funções; torna-se epimetéico, contentando-se
em ruminar, ainda que de modo incongruente, em suas co
gitações, tudo o que precedeu, o que já aconteceu, limitando-se a decompô-lo e a digeri-lo. Dessa maneira, situan
do-se o criador noutra função, o pensamento deixa de ser
progressivo para tornar-se paralisante. Seu critério revela
um nítido caráter de inerência, quer dizer, reduz-se aos li
mites, dó material que lhe é dado, sem que jamais os ultra
passe. Contenta-se com uma comprovação mais ou menos
abstrata, sem conceder ao material da experiência algum
valor que ele já não tivesse desde o primeiro instante, O
critério de inerência do pensamento extrovertido orienta-se
no sentido do objeto, quer dizer, sua comprovação realiza-se sempre no sentido de uma significação objetiva da ex
periência. . Assim, não só se mantém sob a influência do
objetivamente dado, mas, inclusive, submete-se ao fascínio
da experiência singular e nada à respeito desta nos declara
que não tenha iá sido dito por ela própria. Esse tipo 5e
pensamento pode ser facilmente observado naquelas pessoas
que, levadas pôr uma. impressão ou uma experiência, o mí
nimo que fazem é formular uma observação, razoável e indu
bitavelmente válida, mas que não ultrapassa os limites fixa
dos pela própria experiência. No fundo, tais observações
apenas significam: ‘Compreendi & caso e passo meditar a
tal respeito” Mas terá de conformar-se com isso. Semelhan
te critério traduz, sobretudo, a alienação de uma experiência,
dentro de uma conexão objetiva. Mas toma-se desde logo
evidente que a experiência se enquadra em tal situação.
Ora, se uma função distinta do pensar chamar a si, num
grau elevado, a primazia na consciência, o pensar, na medida
em que for consciente e se encontrar subordinado direta
mente à função predominante, adota um caráter negativo.
Enquanto se subordina à função predominante, o pensamen
to pode, sem dúvida, parecer positivo, mas uma investiga-
412
T iro s PSICOLÓGICOS
ção profunda revelará, facilmente, que se limita a refletir a
função predominante, a apoiá-la com argumentos que, com
freqüência, estão em flagrante contradição com as leis da
lógica que são próprias do pensamento, Em nossas consi
derações, não nos interessa agora, portanto, esse tipo de pen
samento. O que nos interessa é o caráter do pensar que não
pode subordinar-se ao primado de outra função, manten
do-se fiel, pelo contrário, a seus próprios princípios. Tal
pensamento é de observação e investigação difíceis, desde o
momento em que, no caso concreto, costuma ficar mais ou
menos deslocado pela disposição da consciência. Terá de ser
arrancado, portanto, do fundo da consciência, se porventura
não emergir na superfície, num momento de fraqueza. Na
maioria dos casos, será atraído com perguntas como esta:
"O que é que você, aqui entre nós, realmente pensa, no fun
do, sobre este assunto?” Ou, recorrendo a um ardil, pode
-se formular a pergunta desta maneira: "O que é que você
julga que eu penso sobre o assunto?” Esta segunda forma
deverá ser escolhida nos casos em que o verdadeiro pensa
mento é inconsciente e, por conseguinte, projetado.1
, O pen
sar que dessa maneira for atraído à superfície da consciên
cia revela aquelas qualidades características que nos levaram
a classificá-lo como negativo. O seu hábito fica caracteriza
do da melhor maneira com as palavras “nada como tal”. 9
G o e t h e personificou essa maneira de pensar na figura de Mefistófeles. Revela, acima de tudo, a tendência para reduzir
o objeto de seu juízo a uma trivialidade, para retirar-lhe qual
quer significado independente. Isto consegue-se apresentan
do o pensamento como algo dependente de outra coisa que
seja, em si mesma, trivial. Se entre os homens, por exemplo,
surgir um conflito de natureza aparentemente objetiva, o
nensamento negativo exclama: "Cherchez la femme”, Se
for averiguado ou propagado algo sobre determinada pessoa,
o pensamento negativo não está interessado no que isso pos
sa significar, ou na sua importância, limitando-se a pergun
tar: "Quanto ganha no caso?” A expressão atribuída a
M o l e s c h o t t : "Não indagues como eu-sou, mas o que eu
*
A expressão “nicht ais” (que traduzimos por “nada como tal”)
define o conceito de nada qua nada, isto é, nada enquanto nada ou
nada na medida em que é nada. ou ainda, nada pelo nada. Esta é a
intenção redutora do conceito. (N. do T.)
DESCRIÇÃO GERAL DOS TIPOS
413
como”, * está igualmente incluída nesse gênero, como tan
tas outras expressões e conceitos que não vale a pena enu
merar literalmente.
O aspecto destrutivo desse pensamento, bem como, em
certos casos, sua utilidade limitada, não exigem um esclare
cimento ulterior. Mas há ainda outra forma de pensamento
negativo que, à primeira vista, seria bastante difícil reconhe
cer como tal. Refiro-me ao pensamento teosófico, que hoje
se propaga rapidamente pelo mundo, talvez como um fenô
meno de reação, em face do materialismo da época imedia
tamente anterior. O pensamento teosófico não é, aparente
mente, um pensar redutivo, mas, pelo contrário, procura elevar tudo a um plano de idéias transcendentes, que abrànjam o mundo inteiro. Assim, por exemplo, um sonho deixa
de ser apenas um simples sonho para se tomar uma vfvjncia num “plano distinto”. O até hoje inexplicável fenSmeno da telepatia explica-se, simplesmente, por “vibrações” que
vão de um para outro indivíduo. Uma vulgar perturbação
nervosa explica-se porque aconteceu alguma coisa ao corpo
astral. Certas particularidades antropológicas dos habitantes
das costas atlânticas explicam-se, com a maior facilidade, pelo
cataclismo da Atlântida, etc. Bastará folhear um Tivro de
Teosofia para nos sentirmos aniquilados pela afirmação pe
remptória de que já se sabe tudo, de que tudo lístá perfei
tamente explicado e nada mais resta fazer, que nénKiin enig-*
ma precisa ser explicado já nas “ciências do espírito’V Este
tipo de pensamento é, no fundõ, tão negativo qüãntõ o pen
samento naturalista. Quando este último concebe a psico
logia como uma alteração química das células glandulares ou
como um movimento de dilatação e contração das apófises
cerebrais, ou ainda como uma secreção interna, é tão supers
ticioso quanto a Teosofia. A única diferença consiste em
que o materialismo cinge-se à Fisiologia corrente, ao passo
que a Teosofia reduz tudo aos conceitos da Metafísica hindu.
Quando se atribui um sonho ao estômago excessivamente cheio,
o fenômeno fica tão pouco explicado quanto pela telepatia
ao atribuir o mesmo sonho a vibrações. Pois que vem a ser
essa coisa de “vibração”? Ambas as explicações não só reve-
•
A expressão original alemã é “Der Mensch ist, was er iss?', que
também poderia traduzir-se como “Diz-me o que comes, dir-te-ei como
és’\ (N. do T.)
414
TIPOS PSICOLÓGICOS
lam impotência como também são destrutivas, na medida
em que impedem uma investigação séria do problema, afas
tando dele o interesse com suas falsas explicações e concen
trando-se no estômago, no primeiro caso, e nas vibrações ima
ginárias, no segundo caso. Ambos os modos de pensar são
estéreis e esterilizantes. A qualidade negativa provém da
indescritível gratuidade, 3a pobreza de energia fecundante
e criadora desse pensamento. Ê um pensar a reboque dê
outras funções.
O Sentimento
Na disposição extrovertida, o sentimento orienta-se para
o objetivamente dado, quer dizer, o objeto é o determinante
insubstituível do modo de sentir. Coincide com os "valores
objetivos. Quem sempre conheceu o sentimento como um
fato subjetivo não compreenderá, de início, a essêrícia do
sentimento extrovertido», poia este tratoude emancipar^e ao
máximo do fator subjetivo e submèteu~se por completo à
influência do objeto, Mesmo nos casos em que, aparente
mente, manifesta alguma independência em relação à quali
dade do objeto concreto, situa-se, não obstante, sob o domí
nio de valores tradicionais ou de valores que, de algum mo
do, têm uma vigência geralmente aceita. Possa-me^sentir
atraído pelos jaredicados “bom” e “belo”, nao pelo fato de,
enO lfíide- do meu.; sentimento objetivo, achar “belo” ou
“bom” o „objeto, mas porque. convém cliamar-lhe 'bom” Ou
“belo", E convém porque o juízo contrário seria perturbado,
de algum modo, pela situação sentimental genérica, Em tais
‘critérios sentimentais de conveniência, não se trata, absolu
tamente, de uma questão de simulação ou, muito menos ain
da, de mentira, mas de verdadeiros atos de acomodação, de
conveniente adaptação, ^ssim^pop -exemplo—pode-se quali
ficar de “belo” um quadro, apenas porque se pressupõe que
um.quadro exposto num determinado salão e assinado por
um artista de renome tem geralmente que ser “belo”, ou entãõ porque o predicado “feio” desgostaria a família do feliz
possuidor da obra, ou ainda porque o visitante está dispos
to a criar uma atmosfera sentimentalmente agradável, para
o que é necessário suscitar o sentimento de agrado em tudo.
Tais sentimentos obedecem às normas de determinantes ob
jetivas. Como tal, são genuínos e representam toda a fun
ção perceptível do sentimento. Do mesmo modo que o pen-
DESCRIÇÃO GERAL DOS TIPOS
415
sarnento extrovertido faz todo o possível por livrar-se dos
influxos subjetivos, o sentimento extrovertido tem de passar
igualmente por um certo processo de diferenciação, até ficar
livre de todos os ingredientes subjetivos, As valorizações que
resultam do ato de sentimento respondem diretamente a va
lores objetivos ou, pelo menos, a certos padrões de valor tra
dicional geralmente difundidos.
A esse tipo de sentir devemos atribuir, em grande medi
da, o fato de tanta gente acorrer ao teatro, ao concerto ou à
igreja, animada de sentimentos positivos corretamente medi
dos e avaliados, A isso se devem também as modas e, o
que vale muito mais, a ajuda positiva e ampla dos empreen
dimentos sociais, filantrópicos e culturais em geral. O sen
timento extrovertido mostra ser um fator fecundo nesses do
mínios. Assim, por exemplo, uma vida de sociedade bela e
harmônica não é concebível sem essa maneira de sentir. Nes
te aspecto, o sentimento extrovertido é uma potência benfei
tora, razoável e eficiente, tanto quanto o pensamento extro
vertido. Mas esses salutares efeitos perdem-se logo que o
objeto recebe um excessivo influxo. Nesse caso, o sentimento
extrovertido concentra demais a personalidade no objeto, quer
dizer, o objeto assimila a pessoa, perdendo-se o caráter pes
soal do sentimento, que constitui o seu principal"ènçanto,
O sentimento torna-se frio, objetivo, desconfiado. Denuncia
propósitos secretos ou, pelo menos, gera essa suspeita no ob
servador ingênuo. Deixa de produzir então aquele efeito agra
dável e refrescante que acompanha sempre o sentimento ge
nuíno. Percebe-se a pose ou teatralidade, se bem que o in
tuito egocêntrico seja ainda inteiramente inconsciente. Esse
exagerado sentimento extrovertido satisfaz, sem dúvida, à
expectativa estética, mas já não fala ao coração, pois apenas
se dirige aos sentidos — ou ainda pior — e ao enténdimento.
Pode certamente desempenhar uma função estética, mas a
isso se reduz e não vai mais além. Acabou por ser estéril. Se
o processo continuar em seu desenvolvimento progressivo, o
sentimento sofrerá uma dissociação curiosa e algo contradi
tória. Apodera-se de qualquer objeto, com suas valorizações
sentimentais, e estabelecem-se numerosas relações que se
contradizem íntima e reciprocamente. Não sendo isso possí
vel com um sujeito de sólida consistência, a oposição exerce-se, em certa medida, sobre os remanescentes de um ponto
de vista verdadeiramente pessoal. O sujeito é de tal manei
ra absorvido pelos diversos aspectos singulares do processo
416
TIPOS PSICOLÓGICOS
de senti/ que o observador fica com a impressão de que já
se trata apenas de um processo ao qual falta um sujeito pro
priamente dito. Em tal situação, o sentimento perde por
completo seu calor humano original, gera um efeito de pose,
de volubilidade, de insegurança, que deixa de inspirar con
fiança e, nos casos mais graves, produz um efeito de histe
rismo.
O Tipo Sentimental Extrovertido
Na medida em que ,o sentimento constitui, inegavelmen
te, uma particularidade mais evidente na psicologia femini
na do que o pensamento, encontraremos no sexo feminino os
tipos sentimentais melhor definidos. Quando se atribui o
primado ao sentir extrovertido, falamos de um tipo senti
mental extrovertido. Os exemplos que me ocorrem, respei
tantes a esse tipo, referem-se a mulheres, quase sem exce
ção. Essa categoria de mulheres vive guiada por seu senti
mento. Este sentimento, que é uma conseqüência da edu
cação, reveste-se de uma função que, em casos não-extremos, conseguiu acomodar-se e submeter-se ao controle da
consciência. Nos casos extremos, o sentimento reveste-se de
um caráter pessoal, se bem que ojsubjetivo já tenha sido re
primido em elevado grau. Podèr^se-Ta Hizer, portanto, que
a personalidade se adaptou às circunstâncias objetivas. Os
sentimentos correspondem a situações objetivas e a yalores
de vigência geral. Isto evidencia-se com a maíòr clareza
na chamada eleiçaô amorosa. O amado é o homem que “con
vém” ou que se adapta, e não outro; e convém não porque
ÇJ.-SÊ1 L caráter corresponda inteiramente à éssencia oculta Sa
mulher — disso ela na3a sabe, habitualmente — mas porque
suá posição social, sua idade, sua fortuna, sua presença física
ou no respeitante à sua família, corresponde a todas as exi
gências razoáveis. Poder-se-ia rejeitar semelhante formula
ção, naturalmente, como irônica e desvalorizadora, Contudo,
estou plenamente convencido de que o sentimento amoroso
de tais mulheres corresponde cabalmente à sua eleição. Trata-se de uma escolha autêntica e não de uma simulação razoá
vel. São inúmeros os matrimônios “razoáveis” desse tipo e
nem por isso costumam ser os piores, de maneira alguma.
Tais mulheres são boas companheiras de seus maridos e boas
mães, enquanto seus maridos e filhos possuem a constituição
psíquica corrente; Só se pode sentir “corretamente” quando
DESCRIÇÃO GERAL DOS TIPOS
417
nenhuma outra coisa perturba o sentimento. Ora nada exis'te que mais perturbe o sentir que o pensar. É compreensível,
portanto, que nesse tipo o pensamento seja, tanto quanto pos
sível, reprimido. Mas não se deve deduzir, por tal fato, que
essas mulheres nunca pensam. Pelo contrário, pensam muito
e com bastante inteligência^mas seu pensamento nuncisPe“
sul generis: cbnstitui, antes, um apêndice epimetcico de seu
sentimento. São incapazes de pensar conscientemente Jtqirilo que não possam sentir, "“Nao" posso pensar o 'que hao
sinto", disse-me numa ocasião, com ar resignado, uma pa
ciente. Enquanto o sentimento o consentir, pode pensar per
feitamente, mas uma conclusão, por mais lógica que seja, que
possa provocar uma perturbação do que ela sente, é logo
rejeitada desde o primeiro instante. Nem chega sequer à
ser pensada. Assim, tudo quanto for~~Bom, segundo uma“
valorização objetiva, é apreciado e amado; tudo o mais pa
rece existir fora dela própria.
Este quadro tem, contudo, outras características quan
do o significado do objeto atinge um grau ainda mais ele
vado. Como já expliquei, ocorre então tal assimilação do
sujeito ao objeto, que o sujeito "do sentimento mais ou me
nos desaparece. O sentimento perde seu caráter pessoal, con
verte-se num sentir em si próprio e fica-se com a impressão
de que a personalidade se dissolveu completamente no sen"tímento em questão. Ora, como a vida se compõe de uma
seqüência constante de situações diversas, de situações que
mudam continuamente, suscitando uma diversidade de tô
nicas sentimentais, até opostas em muitos casos, a persona
lidade dissolve-se noutros tantos sentimentos distintos. Hoje
sou assim, logo serei outro, amanhã ainda outro... acTque
parece. Mas* nâ realidade, semelhante multiplicidade da per
sonalidade é impossível. Á base do Eu, apesar de tudo, man
ter-se-á idêntica a si propria e opor-se-á constantemente, de
.maneira nítida, à mudança de estados sentimentais, Por esse
motivo, o observador já não é capaz de perceber o senti
mento exibido como expressão pessoal da pessoa que sente,
mas como uma alteração do Eu dessa pessoa, quer dizer,
como um capricho. Conforme o grau de dissociação entre
o Eu e o estado sentimental que se evidencia em cada caso,
surgem com maior ou menor intensidade os sintomas de di
vergência interna, ou seja, a disposição do inconsciente, ini
cialmente compensadora, converte-se em declarada oposição.
Isto revela-se, claramente, nas manifestações sentimentais exa27
418
TIPOS PSICOLÓGICOS
geradas, por exemplo, nos predicados,, sentimentais ruidosos e.
maçadores em que _não_ se pode acreditar muito^ Soam a
Taíso e não~cõnvencemr Teío contrário, denunciam ja a pos
sibilidade de que com eles esteja sendo compensada uma opo
sição e, por conseguinte, semelhantes critérios sentimentais
são bem capazes de ter uma distinta significação. E isso é
o que realmente acontece, em pouco tempo. Basta modi.flçar_um pPUço a situação para que imediatamente ocorra
uma valorização inversa, por completo, do mesmo objeto,
O resultado de semelhante experiência é o observador não
poder levar a sério um ou outro juízo. Começa a reservar
para si a formulação de um juízo próprio. Ora, como nesse
tipo está em causa, sobretudo, o estabelecimento de uma in
tensa relação sentimental com outras pessoas, são exigidos
"esforços intensivos para vencer a reserva daquelas. E a si
tuação piora, através de um círculo vicioso. Quanto mais
acentuada for a relação sentimental com o objeto, tanto mais
s£ oposição inconsciente se aproximará da superfície.
Já vimos que ojipo sentimental extrovertido é o que mais
reprime seu pensamento, justamente por ser o pensar que
provoca a maior perturbação do sentir. Por esse motivo, o
pensamento, por seu lado, ao querer chegar a um resultado
autêntico, exclui o sentimento ae tudo o que lhe é possível,
visto nada existir que possa perturbar e falsear com maior
facilidade que os valores sentimentais, Assim, o pensamento
do tipo sentimental extrovertido, enquanto função indepen
dente, é reprimido. Mas não por completo, como já sublinhei,
e apenas na medida em que sua lógica implacável force ou
imponha conclusões que não convêm ao sentimento. Mas
tolera-se-lhe que fique a serviço do sentimento, melhor dito,
como seu escravo. Foi quebrada sua espinha dorsal e já
não é capaz de verificar-se a si próprio de acordo com suas
próprias leis. Mas, como existe uma lógica e existem dedu
ções inexoravelmente exatas, estas nalguma parte ocorrerão
e é o que realmente se verifica, mas fora da consciência, isto
é, no inconsciente. Por isso o conteúdo inconsciente desse
tipo é, sobretudo, um modo curioso de pensar. Semelhante
pensamento é infantil, arcaico e negativo. Enquanto o sen
tir consciente conserva o caráter pessoal ou, por outras pa
lavras, enquanto a personalidade não é absorvida pelos di
versos estados sentimentais, o pensamento inconsciente revela
uma virtude compensadora. Mas logo que a personalidade se
dissocia e dissolve em diversos estados sentimentais mutua-
DESCRIÇÃO GERAL DOS TIFOS
419
mente contraditórios, perde-se a identidade do Eu e o sujeito
torna-se inconsciente/ Mas assim que o sujeito se situa na
inconsciência, assbcia-se ao pensamento inconsciente e pro
cura obter para ele uma consciência ocasional. Quanto mais
forte é a relação sentimèntal consciente, e por isso mesmo,
quanto mais o sentimento se “desfaz do Eu”, tanto mais vi
gorosa se torna a oposição consciente. Isto manifesta-se cla
ramente no fato de ser, justamente, em redor do objeto mais
valorizado que se agrupam os pensamentos que implacavel
mente réBàixãmlTseú valor. O pensamento no estilo de “na
da como taT’ ocupa aqui seu lugar competente, pois anula o
predomínio do sentimento ligado ao objeto.
O pensamento inconsciente vem à superfície sob a for
ma de ocorrências, muitas vezes com o caráter de observa
ções cuja natureza é de modo geral, negativa e desvalorizadora. Por isso, nas mulheres ciesse tipo, há momentos em
que os piores pensamentos se unem, precisamente, àqueles
objetos que mais valorizam o sentimento. O pensar nega
tivo recorre a todos os preconceitos e paralelos infantis ca
pazes de provocarem uma vacilação, no que diz respeito ao
valor sentimental, e mobiliza todos os instintos primitivos para
poder explicar os sentimentos como “nada como tal”. A tí
tulo de observação marginal, direi que, dessa maneira, exi
ge-se também a intervenção do inconsciente coletivo, da to
talidade de imagens primordiais, de cuja elaboração resulta
rá a possibilidade de uma regeneração da disposição noutra
base.
A principal forma de neurose desse tipo é a histeria,
com seu mundo inconsciente. de características representa
ções infanto-sexuais.
Resumo dos Tipos Racionais
Classifico ambos os tipos precedentes como tipos racio
nais, ou tipos jiidicativos, porque se caracterizam pelo prima
do das funções racionais ou julgadoras. E característico de
ambos os tipos o fato da vida estar subordinada, em elevado
grau, ao juízo ou critério racional. Convém ter na devida
conta, sem dúvida, se estamos falando do ponto de vista da
psicologia subjetiva ou segundo o prisma do observador que
percebe e julga de fora. Esse observador poderia facilmen-
420
TIPOS PSICOLÓGICOS
te chegar a um juízo oposto, bastando para isso que percebesse
apenas intuitivamente o que acontece e julga, segundo ele
próprio. A vida desse tipo jamais depende apenas do juízo
racional, mas também, e quase em idêntica medida, da irra
cionalidade inconsciente. Quem observa apenas o que acon
tece, sem prestar atenção à economia íntima da consciência
individual,,pode facilmepte perceber em maior grau a irra
cionalidade e a contingência de certas manifestações incons
cientes do indivíduo do que a racionalidade e as motivações
conscientes de seus propósitos. Mas reconheço que também
seria possível conceber e expor inversamente semelhante psi
cologia. Estou igualmente convencido de que se eu pró
prio possuísse outra psicologia individual, descreveria, de
maneira inversa, os tipos racionais como irracionais, a
partir do inconsciente. Esta circunstância dificulta a ex
posição e compreensão dos fatos psicológicos, de modo
bastante apreciável, e facilita imenso a possibilidade de
interpretações errôneas. As discussões que resultam des
sas falsas interpretações são, via de regra, irremediáveis,
pois não passam de diálogos entre surdos. Essa expe
riência constituiu, para mim, uma razão mais que me
levou a basear minha exposição na psicologia subjetiva cons
ciente do indivíduo, pois assim me propicia, pelo menos, um
certo pretexto objetivo, a que teria de renunciar por comple
to se quisesse fundamentar no inconsciente a legitimidade psi
cológica. Nesse caso, o objeto nada poderia dizer, pois co
nhece menos a respeito do inconsciente do que de tudo o
mais. O juízo ficaria única e exclusivamente entregue ao
observador, ao sujeito — uma segura garantia de que ele se
baseará em sua própria psicologia individual, impondo-a ao
observado. Em minha opinião, este caso tanto se verifica
na Psicologia de F r e u d como na de A d l e r . O indivíduo fica
assim entregue ao parecer do observador que julga. Ora, isto
não pode acontecer quando nos baseamos na psicologia cons
ciente do observador. Neste caso, só ele é competente, pois
é o único que conhece seus motivos conscientes.
A racionalidade do comportamento vital consciente de
ambos esses tipos pressupõe uma exclusão consciente do con
tingente e irracional. O juízo racional representa nesta psi
cologia uma força que impõe, ou que pretende impor, pelo
menos, ao desordenado e contingente do evento real, formas
determinadas. Isso dá origem, por uma parte, a uma certa
seleção entre as possibilidades vitais, as quais somente são
DESCRIÇÃO GERAL DOS TIPOS
421
aceitas, conscientemente, com a concordância da razão; e,
por outra parte, a uma restrição essencial da independência
e do influxo daquelas funções psíquicas que servem para per«
ceber o que acontece. Essa restrição da percepção e da intui
ção não é absoluta, naturalmente. Tais funções nunca dei
xaram de existir, e o que sucede é estarem seus produtos sub
metidos à seleção do juízo racional. , A intensidade absoluta
da percepção, por exemplo, não é decisiva para a motivação
de ações. O decisivo é o juízo. Portanto, as funções perceptivas compartilham, numa certa medida, do destino do sen
timento, nos casos do primeiro tipo, e do pensamento, no se
gundo tipo. Estão relativamente reprimidas e, conseqüen
temente, num estado menos diferenciado, o que imprime um
cunho peculiar ao inconsciente dos nossos dois tipos.
O que esses tipos humanos fazem de um modo conscien
te e deliberado é racional (de acordo com a razão deles! ),
mas o que lhes passa é da responsabilidade, por um lado, do
caráter das percepções infantis e primitivas, e, por outro lado,
das intuições dessa mesma natureza. Posteriormente, expli
carei o que esses conceitos significam. De qualquer manei
ra, o que passa a esses tipos é irracional (segundo o ponto
de vista deles, naturalmentel). Ora, dada a existência de nu
merosos seres humanos que vivem mais daquilo que lhes pas
sa do que daquilo que fazem, em virtude de um propósito
racional, pode muito bem acontecer que um deles classifi
que como irracionais os nossos dois tipos, após uma análise
meticulosa. Temos de concordar que não é raro o incons
ciente do indivíduo produzir uma impressão muito mais forte
do que o seu consciente, e seus cometimentos terem muito
mais peso, freqüentemente, que suas motivações racionais.
A racionalidade de ambos os tipos está objetivamente
orientada, depende do objetivamente dado, correspondendo,
pois, ao que se reveste de validade racional no coletivo. Sub
jetivamente, nada para eles possui validade racional, uma
vez que não seja geralmente considerado como racional. Mas
a razão também é, em grande parte, subjetiva e individual.
No nosso caso, essa parte está reprimida num grau tanto mais
elevado quanto maior for a importância do objeto. Portan
to, o sujeito e a razão subjetiva estão sempre sob a ameaça
de repressão e quando são vítimas dela caexyi sob o domínio
do inconsciente, que em tal caso revela particularidades bas
tante desagradáveis. Do seu pensamento já falamos antes,
422
TIPOS PSICOLÓGICOS
faltando acrescentar as percepções primitivas, que se mani
festam como obsessões, por exemplo, na forma de uma ânsia
anormal e persistente de prazeres que poderá assumir todas
as formas possíveis, ou na de intuições primitivas que pode
rão chegar a constituir uma verdadeira tortura direta para
quem delas for vítima, bem como para aqueles que o ro
deiam. Tudo o que é desagradável e penoso, tudo o que é
feio e mau, tudo o que é hostil e adverso é pressentido ou
pressujposto, tratando-se, na maioria dos casos, de meias-ver
dades que, como tal, são ótimas para dar lugar a falsas in
terpretações do gênero mais venenoso. Graças ao poderoso
impacto da oposição dos conteúdos inconscientes, produz-se,
necessariamente, uma freqüente ruptura da regra racional
consciente, quer dizer, uma surpreendente vinculação a con
tingências que, quer por sua intensidade perceptiva, quer por
sua significação inconsciente, adquirem uma influência ir
resistível.
A Percepção
Ng. jdisposiçãa -extravertida,..aj3ercepção está predominan
temente condicionada pelo objeto. ~Como percepção sensoriaírdepende naturalmente do objeto. Mas, de maneira igual
mente natural, depende também do sujeito, o que significa
haver ainda uma percepção subjetiva que, por sua própria
natureza, é completamente distinta da percepção objetiva. Na
disposição extrovertida, a participação subjetiva da percep
ção está prejudicada ou reprimida, na medida em que se trate
de sua aplicação consciente. Do mesmo modo, a percepção
como função irracional está relativamente reprimida, quando
se atribui o primado ao pensamento ou ao sentimento. Quer
isto dizer que só funciona conscientemente na medida em que
a função judicativa consciente permite que as percepções con
tingentes -se convertam em conteúdos conscientes, isto é, que
se realizem. A função sensorial, no seu sentido mais estrito,
é naturalmente absoluta. Assim, por exemplo, vê-se e ouve-se
tudo o que é fisiologicamente possível, mas nem tudo alcan
ça os valores liminares que as percepções terão de possuir
para que sejam, por sua vez, apercebidas. Isto modifica-se
quando nenhuma^ outra função, que não seja a própria per
cepção, reivindica o primado. Neste caso, nada é excluído
nem reprimido na percepção dos objetos (se excetuarmos a
DESCRIÇÃO GERAL DOS TIPOS
423
participação subjetiva, como já dissemos). A percepçãp. é
determinada, de preferência, pelo objeto; e aqueles objetos
que suscitam a percepção mais intensa são os decisivos pára
a psicologia do indivíduo. Dessa maneira, surge uma inequí
voca vinculação sensorial aos objetos. A percepção consti
tui, pois, uma função vital dotada do mais intenso impulso
de vida. Na medida em que os objetos suscitam percepções,
adquirem validade e são integralmente aceitos pela consciên
cia, enquanto isto for possível por meio da percepção, quer
convenha ao juízo racional, quer não. O critério de seu va
lor é unicamente composto pela intensidade da percepção,
dadas as suas qualidades objetivas condicionadas. Por con
seqüência, são admitidos na consciência todos os processos
objetivos, desde que suscitem percepções. Ora, somente os
objetos ou os processos concreta e sensorialmente perceptí
veis provocam percepções na disposição extrovertida, e ex
clusivamente aqueles que qualquer pessoa, em qualquer mo
mento, percebe como objetos concretos. O indivíduo orien
ta-se, portanto, por fatos puramente sensoriais. As funções
judicatívas situam-se em nível inferior ao dos fatos concretos
da percepção, patenteando, assim, as qualidades das funções
inferiormente diferenciadas, quer dizer, um certo caráter ne
gativo, com traços infanto-arcaicos. A função mais oposta
à percepção, ou seja, a percepção inconsciente, a intuição,
é, naturalmente, a que sofre uma repressão mais intensa.
O Tipo Perceptivo Extrovertido
Não há tipo humano que se iguale ao tipo perceptivo
extrovertido em realismo. O seu sentido objetivo dos fatos
está extraordinariamente desenvolvido. Acumula em sua vida
experiências reais sobre o objeto concreto e quanto mais este
último for destacado, tanto menos uso fará de sua experiên
cia. Em certos casos, sua vigência não chega a merecer o
nome de “experiência”. O que percebe serve-lhe, além dis
so, para canalizar novas percepções, e tudo o que de novo
ingressar no círculo de seus interesses é adquirido através da
percepção e há de servir para tal fim. Porquanto nos incli
namos a considerar bastante racional uma propensão marcan
te para sentir tudo o que respeita ao puro mundo dos fatos,
enalteceremos como racionais esses tipos humanos. Mas, na
realidade, não o são, visto encontrarem-se tão subordinados à
424
TIPOS PSICOLÓGICOS
percepção da contingência irracional quanto à do evento ra
cional. Semelhante tipo — neste caso, costuma tratar-se de
homens — pretende, naturalmente, não estar “subordinado’' à
percepção. Pelo contrário, essa expressão fá-lo-á sorrir co
mo algo inteiramente inexato, pois para ele percepção é equi
valente de manifestação vital concreta; pressupõe uma pleni
tude de vida real. Seus propósitos, bem como sua moralida
de, têm por alvo o gozo concreto. Na verdade, o gozo autên
tico tem sua moral particular, sua medida e legitimidade es
peciais, seu desinteresse e vontade de sacrifício. De maneira
alguma necessita exibir uma grosseria sensorial, visto poder
distinguir suas percepções até a máxima pureza estética sem
precisar jamais ser infiel ao princípio de percepção objetiva
nem ao da percepção mais abstrata. O cicerone de W u l f e n 2
para o mais grosseiro e desenfreado gozo da vida é a confis
são sem disfarce de um ou outro desses tipos. É por esse
ângulo que me parece ser digno de leitura esse livro.
Nas fases inferiores, esse tipo corresponde ao homem da
realidade palpável, sem propensão alguma para as reflexões
e sem intuitos de predomínio. Seu motivo constante é per
ceber o objeto, ter sensações e gozá-las tanto quanto possível.
Não deixa de ser um tipo humano amável, pois costuma pos
suir uma agradável capacidade de gozo, cheia de vivacidade,
algumas vezes companheiro alegre, outras vezes um esteta
de requintado gosto. No primeiro caso, os grandes proble
mas da vida dependem, mais ou menos, de um bom almoço;
no segundo, incluem-se na esfera do bom-gosto. Pode-se di
zer que, para ele, tudo está realizado e cumprido quando per
cebe. Nada pode ser mais concreto e real. Os pressupostos
e hipóteses à margem desse fato, ou que o excedam, só são
aceitos na medida em que reforcem a percepção. Não é pre
ciso que a reforcem num sentido agradável, pois esse tipo
não é o de um vulgar gozador. Somente procura a percepção
mais intensa que, de acordo com a sua natureza, virá sempre
do exterior. O que vem de dentro parece-lhe sempre mór
bido e digno de repulsa. Embora pense e sinta, reduz sem
pre tudo a bases objetivas, ou seja, a influências que provêm
do objeto, sem que lhe interesse apurar se, para tal fim, teve
de violar a lógica em alto grau. Em qualquer caso, só res
2 W i l l e m V a n W u l f e n , Der Genussmensch; ein Cicerone
rücksichtslosen Lebensgenuss, 1911.
im
DESCRIÇÃO GERAL DOS TIPOS
425
pira à vontade diante da realidade palpável. Nesse aspecto,
é de uma credulidade indescritível. Sem refletir no assunto,
atribuirá prontamente a causa de um sintoma psicogêníco às
oscilações barométricas. A existência de um conflito psíquico
parecer-lhe-á uma fantasia anormal. Sem duvidàr por instan
tes, sequer, atribuirá seu amor aos encantos sensuais do ob
jeto, à excitação que este lhe provoca nos sentidos. Na me
dida em que é normal, adaptar-se-á evidentemente à reali
dade dada. Digo evidentemente, até pelo fato de que é sem
pre uma adaptação visível. Seu ideal são os fatos reais e,
a tal respeito, dá provas da máxima consideração. Não pos
sui idéias ideais. Por isso mesmo, não tem motivo algum pa
ra comportar-se como um estranho, ante a realidade dos fatos.
Isto manifesta-se até sem seu exterior. De acordo com a
sua posição, veste-se bem, come-se e bebe-se bem na sua
casa, sua companhia é muito agradável ou, pelo menos, ob
serva-se que seu refinamento leva na devida conta as exi
gências daqueles que o cercam. Pode convencer até os de
mais que, decididamente, vale a pena fazer alguns sacrifícios
para bem do estilo.
No entanto, quanto mais a percepção preponderar, a pon
to do sujeito eme percebe eclipsar-se atrás da sensação, tanto
mais esse tipo poderá chegar a ser desagradável. Ou con
verte-se num vulgar gozador ou num esteta refinado, sem es
crúpulo de espécie nenhuma. Quanto mais o objeto for para
ele imprescindível, tanto mais se desvalorizará como algo que
existe em si mesmo e por si mesmo. É rudemente violado e
extorquido, quando passa apenas a ser empregado como mo
tivo de percepção. A vinculação ao objeto é levada ao limite
máximo. Mas, dessa maneira, o inconsciente também passa
de uma função estabilizadora para a oposição déclarada.
Sobretudo, as intuições reprimidas impõem sua presença ativa
no objeto, sob a forma de projeções. Surgem, então, as mais
audaciosas e levianas hipóteses. Assim, se se tratar de um
objeto sexual, os ciúmes fantásticos desempenham um impor
tante papel, bem como os estados de angústia. Nos casos
graves, declaram-se fobias de todas as espécies e, sobretudo,
uma sintomatologia obsessiva. Registra-se, com freqüência,
uma argúcia rabulista, uma ridícula moralidade, repleta de
escrúpulos, uma religiosidade supersticiosa e “mágica” que
recorre a ritos abstrusos. Tudo isto provém das funções re
primidas, inferiormente diferenciadas, que nesses casos de-
426
TIPOS PSICOLÓGICOS
frontam rudemente a consciência e manifestam-se com tanto
maior evidência quanto parecem fundamentar-se nas mais ab
surdas hipóteses, em completo contraste com o sentido cons
ciente dos fatos. Toda a cultura do sentimento e do pensa
mento surge deformada como primitivismo doentio, nessa se
gunda personalidade. A razão é desvirtuada com argúcia e
exagerada meticulosidade, a moral converte-se num vago pru
rido moralizante, num declarado farisaísmo, a religião torna-se absurda superstição, a faculdade de pressentir, esse notá
vel dom do homem, passa a ser uma sutileza humana, expul
sa e varrida de todos os cantos, e em lugar de se desenvol
ver no sentido cada vez mais amplo, deriva para a estreiteza,
da pequenez demasiado humana.
O especial caráter compulsivo dos sintomas neuróticos
representa a réplica da ausência consciente de obrigações mo
rais próprias de uma disposição meramente perceptiva que, se
gundo o prisma do juízo racional, aceita sem discussão o que
acontece. Se bem que a falta de pressupostos do tipo per
ceptivo não signifique, de maneira alguma, a ausência total
de leis e de limites, não possui, entretanto, aquela limitação
básica que o juízo impõe. Ora, o juízo racional representa
uma obrigação consciente que, segundo parece, o tipo racio
nal voluntariamente se impõe a si próprio. Essa obrigação
recai sobre o tipo perceptivo, imposta desde o inconsciente.
Além disso, a vinculação ao objeto do tipo racional nunca
supõe tanto — precisamente pela existência de um juízo —
quanto a relação incondicional que se estabelece entre o tipo
perceptivo e o objeto. Quando a sua disposição atinge um
nível extremo de parcialidade anormal está, por isso, num pe
rigo tão grande de cair sob as garras do inconsciente como
ao aderir conscientemente ao objeto. Se chegar a sucumbir
a uma neurose, é muito mais difícil tratá-lo por métodos ra
cionais, pois as funções a que o médico se dirige encontram-se num estado relativamente indiferenciado, pelo que pou
co — ou nada — se poderá confiar nelas. É exigida amiúde
a pressão afetiva para que chegue a estar consciente de al
guma coisa.
A Intuição
A intuição, como função da percepção inconsciente, orienta-se^on5píetffl»efíter^'^ispMÍçãÕ~êxfrovértida, para os ob
jetos exteriores. Sendo a intuição, sobretudo, um processo
DESCRIÇÃO GERAL DOS TIPOS
427
inconsciente, é muito difícil definir conscientemente sua es
sência. A função intuitiva está representada por certa ati
tude de expectativa, por um intuir e atribuir em que so
mente o resultado posterior poderá demonstrar o que é que
foi percebido e o que realmente havia no objeto. Assim co
mo a percepção, enquanto exerce a primazia, a intuição não
constitui apenas um processo de reação, que para o objeto
já carece de significado, mas também uma actio que apreen
de e configura o objeto, uma simples visão, quando não um
processo ativo e criador que tanto dá como retira do objeto.
Assim como obtém inconscientemente uma vidência, exerce
também uma influência inconsciente no objeto. A intuição, em
primeiro lugar, apenas fornece a imagem ou vidência de re
ferências e relações que seria impossível obter através de
outras funções ou que só se conseguiriam recorrendo a com
plicados rodeios. Essas imagens têm o valor de certos co
nhecimentos que influem decisivamente na ação, desde que
a intuição exerça o predomínio. Neste caso, a adaptação psí
quica baseia-se quase exclusivamente em intuições. O pen
samento, o sentimento e a percepção ficam relativamente des
locados, disso se ressentindo sobretudo a percepção, por cons
tituir, como função sensorial, o maior obstáculo à intuição.
A percepção dificulta a pura e ingênua vidência, sem precon
ceitos, com importunas excitações sensoriais que fazem deri
var a visão para domínios físicos, quer dizer, precisamente
para aquelas coisas a que a intuição pretende chegar. Desde
o momento em que, na disposição extrovertida, a intuição
cinge-se predominantemente ao objeto, está, na realidade, apro
ximando-se bastante do objeto, pois a atitude de expectativa
em face dos objetos exteriores tem quase as mesmas proba
bilidades de servir-se da percepção. Mas para que a intui
ção se concretize, a percepção terá de ser reprimida ao má
ximo. Neste caso, entendo* por percepção a simples e direta
percepção sensorial como dado fisiológico e psíquico clara
mente definido. Isto tem de ficar desde já bem esclarecido,
pois se perguntarmos por que coisas o intuitivo se orienta
ele nos falará de coisas incrivelmente parecidas com as per
cepções sensoriais. Empregará também com freqüência a
palavra “percepção”. E, de fato, tem percepções, só que não
se orienta por elas. Apenas lhe servem de ponto de refe
rência para a visão intuitiva. Não alcança o valor fundamen
tal da percepção mais forte, no campo fisiológico, mas ou
tra qualquer que a disposição inconsciente do intuitivo tenha
428
TIPOS PSICOLÓGICOS
elevado consideravelmente em seu respectivo valor. Dessa
maneira se atinge, eventualmente, o valor fundamental, e o
intuitivo aparece na consciência como se fosse uma percepção
pura. Mas, na realidade, não o é.
Tal como na disposição extrovertida a percepção procu
ra alcançar a mais sólida efetividade, pois só assim se pro
move o aparecimento de uma vida plena, também a intuição
aspira à apreensão das possibilidades máximas, pois é com a
vidência de possibilidades que se dá maior satisfação ao pres
sen tim e nto A intuição procura descobrir possibilidades no
objetivamente dado e é por isso que, como simples função
coordenada (quer dizer, quando porventura não desfrute pri
mazia), serve também de instrumento que atua automatica
mente quando nenhuma outra função acerta com a solução
para uma situação que parece não tê-la. Se à intuição se
atribuir o primado, todas as situações da vida cotidiana pa
recem espaços fechados que a intuição teve de abrir. Cons
tantemente procura saídas e novas probabilidades de vida ex
terior. Para a disposição intuitiva, toda a situação vital aca
ba por ser, a curto prazo, como uma prisão, uma algema de
que é preciso libertarmo-nos. Por vezes, os objetos parecem
de um valor quase exagerado e isso ocorre, precisamente, quan
do têm de servir para uma solução, uma libertação, a desco
berta de uma nova possibilidade. Logo que cumpriram sua
missão como degrau ou ponte, dir-se-ia que perderam todo
o seu valor e são eliminados como apêndice incômodo, Um
fato só tem validade na medida em que ajude a descobrir no
vas possibilidades que o superam e livram dele o indivíduo.
A emergência de possibilidades é o motivo urgente de que a
intuição não pode emancípar-se e ao qual sacrifica todo o
resto.
O Tipo Intuitivo Extrovertido
Onde quer que a intuição predomine, ocorre uma psico
logia singular e inconfundível. Quando a orientação se orien
ta pelo objeto, revela-se uma intensa dependência das situa
ções exteriores, mas de uma natureza completamente diversa
aa que é própria do tipo perceptivo. O intuitivo nunca será
atraído para onde possa encontrar valores de uma realidade
universalmente reconhecida’, lhas para onde éhcontré possi
bilidade. Tem um sentido apurado para o latente prenhe ~cfe
DESCRIÇÃO GERAL DOS TIPOS
429
futuro, jamais se adapta a situações estáveis, que existam
e estejam solidamente radicadas há muito tempo, de valor
universalmente reconhecido, mas limitado. Como anda sem
pre em busca de novas possibilidades, corre perigo de asfi
xia nas circunstâncias estáveis. Localiza, sem dúvida, novos
objetos e orientações ou rumos com enorme intensidade e,
por vezes, com um entusiasmo extraordlnaríõ” para Iógò re
nunciar a eles friamente, sem piedade e sem recordações, ao
que parece, assim que tiver fixado seus contornos e não se
pressintam já novos frutos, coto uma amplitude considerável.
Onde subsistir uma possibilidade, aí se agarra o intuitivo, com
uma força de destino. ÍTcomo se pusesse toda a sua vida na
nova situação. Dá-nos a impressão, de que ele próprio com
partilha, de ter atingido o ponto culminante de sua vida e
de que, daí em diante, não poderá pensar ou sentir outra
cõisa. Por razoável e prático que seja, e ainda que todos os
argumentos imagináveis se pronunciem em favor da estabi
lidade, nada impedirá que, em determinado dia, passe a con
siderar como uma prisão, e nessa conformidade atue, aquela
mesma situação que antes parecia ter trazido para ele a eman
cipação e a redenção. A razão e o sentimento não o deterão nem o amedrontarão em face de uma nova possibilidade,
mesmo que esta contradiga suas anteriores convicções. O
sentimento e o pensamento, que são indispensáveis componen
tes da coijvicção, no intuitivo não passam de funções inferior
mente diferenciadas, que não influem decisivamente nem po
dem, portanto, opor resistência duradoura à força da intui
ção. Entretanto, só essas funções são capazes de compensar
eficazmente o primado da intuição, ao proporcionarem ao
intuitivo o juízo de que, como tipo, completamente carece.
A moralidade do intuitivo não é intelectual nem sentimental.
Tem sua moral própria, que é a fidelidade à sua intuição e a
sujeição voluntária à sua força. É pouca a sua consideração,
no que diz respeito ao bem-estar das pessoas que o cercam.
Que se sintam bem, ou ele próprio, considera um argumento
sem solidez. Também não respeita as convicções e hábitos
dos que vivem à sua volta, pelo que não é raro ser reputado
como indivíduo imoral e aventureiro sem escrúpulos. Como
a sua intuição se cinge aos objetos exteriores e pressente pos
sibilidades exteriores, costuma dedicar-se a profissões que ofe
recem terreno fecundo às suas faculdades. Muitos comer
ciantes, empresários, especuladores, agentes, políticos, etc.,
incluem-se nesse tipo.
430
TIPOS PSICOLÓGICOS
Esse tipo parece ser mais freqüente nas mulheres do que
nos homens. No primeiro caso, a atividade intuitiva reyela-se de um modo muito mais social que profissional. As mu
lheres sabem extrair o maior partido de todas as possibili
dades sociais, estabelecer relações na sociedade, encontrar ho
mens que lhes ofereçam possibilidades, para acabarem re
nunciando a tudo quando encontrem uma nova possibilidade.
Ê bastante compreensível que, tanto do ponto de vista
econômico quanto do ponto de vista de promoção da cultura,
esse tipo seja de enorme importância. Quando é de boa ín
dole, quer dizer, quando não é excessivamente interesseiro,
pode realizar grandes coisas como precursor ou iniciador; ou,
pelo menos, como animador de toda obra incipiente. Ê o
paladino natural de toda minoria prometedora. Desde o
momento em que, quando se prende menos às coisas que às
pessoas, tem para elas uma visão, no que se refere às suas
faculdades e méritos, serve para encaminhá-las proveitosa
mente. Não há como o intuitivo para animar ou~entusíasmar~
por algo novo, se bem que esteja disposto a abandonar na pri
meira ocasião os mesmos a quem animara e entusiasmara.
Quanto mais forte é a intuição, tanto mais seu sujeito se fun
de com a possibilidade intuída. Insufla-lhe vida, coloca-a
em evidência, de modo convincente e caloroso, personifica-a, por assim dizer. Não se trata de uma encenação, mas de
um destino,
Essa disposição tem seus grandes riscos, pois o intui
tivo fraciona sua vida com enorme facilidade, ao exercer uma
influência animadora sobre pessoas e coisas, difundindo vida,
exuberantemente, à sua volta, mas uma vida que ele
e só os outros. Se fosse capaz de demorar nas coisas, apro
veitar-se-ia do fruto de seu trabalho; mas tem de correr
sempre atrás de novas possibilidades, abandonando seus cam
pos recém-plantados cujos frutos serão colhidos por outros.
No fim, está de mãos vazias. Ora, quando o intuitivo chega
a esse ponto extremo, seu inconsciente já está agindo contra
ele. O inconsciente do intuitivo revela certa semelhança com
o do tipo perceptivo, O pensamento e o sentimento aparecem
relativamente reprimidos e dão lugar, no inconsciente, a pen-’
'sarnentos e sentimentos infantis, arcaicos, e do tipo que é
característico no perceptivo. Emergem também sob a forma
de projeções intensas e tão absurdas quanto as do tipo per
ceptivo, faltando-lhes apenas, em minha opinião, o caráter
DESCRIÇÃO GERAL DOS TIPOS
431
místico, pois preferem referir-se, na maioria dos casos, a coi
sas concretas, quase reais, como presunções sexuais, financei
ras, etc., ou a presságios de doença, de morte, etc. Essa
diversidade parece provir das percepções reais que foram re
primidas. Estas fazem-se sentir, por exemplo, no fato do
intuitivo ficar subitamente preso de uma mulher que é intei
ramente ^desajustada para ele ( ou> no cas0 inverso, de um
homem que é inteiramente desajustado para ela), e isso apenas porque foi conseguido um contato inconsciente na esfera
arcaica da percepção. Daí resulta a inconsciência em relação
a um objeto de duvidosas probabilidades, na maioria dos ca
sos. Uma semelhante situação pressupõe a existência de um
sintoma bastante característico desse tipo. Pretende estar
livre e desvinculado, como o tipo perceptivo, em virtude de
não sujeitar suas decisões a juízos racionais, mas, pelo con
trário, unicamente à percepção das possibilidades contin
gentes. Desenvencilha-se de todas as restrições através da
razão e cai, por meio da neurose, na obsessão inconsciente,
em lucubrações e sutilezas, na vinculação forçada à percepção
do objeto. Na esfera da consciência, comporta-se perante a
percepção e o objeto percebido com soberana superioridade
e desprezo. Não porque pretenda ser depreciativo ou adotar
uma postura de superioridade, mas, simplesmente, porque
não vê o objeto que todos podem ver e passa-o por alto de
um modo parecido ao que adota o tipo perceptivo. Mas este
não vê a alma do objeto. Por seu lado, o objeto prepara a
sua vingança sob a forma de idéias obsessivas hipocondríacas,
de fobias e toda casta de sensações Usicas absurcTas.
Resumo dos Tipos Irracionais
Considero irracionais os dois tipos precedentes pela razão,
já exposta, de que baseiam sua ação e seu prescindir de ação
não em juízos racionais, mas na intensidade absoluta da per
cepção. Esta cinge-se, pura e simplesmente, ao que aconte
ce, ao que não foi submetido a qualquer seleção por parte
do juízo. Nesse aspecto, estes dois últimos tipos revelam
uma notável superioridade em relação aos dois primeiros ti
pos, que eram judicativos. O que objetivamente acontece
é legítimo e contingente. Na medida em que ó legítimo é
acessível à razão; e é inacessível na medida em que é contin
gente. De modo inverso, poder-se-ia dizer que chamamos
432
TIPOS PSICOLÓGICOS
legítimo àquilo que assim parece à nossa razão e contingente
àquilo em que não conseguimos descobrir legitimidade. O
postulado de uma legitimidade universal não deixa de ser,
apenas, um postulado da nossa razão e de maneira nenhuma
um postulado de nossas funções perceptivas. Como estas
jamais se baseiam no princípio racional e seus postulados,
isso quer dizer, portanto, que são irracionais e!m sua essên
cia. E é por isso que considero essencialmente irracionais
os tipos perceptivos.
Mas seria um erro crasso classificar esses tipos como “ir
racionais” pelo simples fato de colocarem a percepção acima
do juízo. De fato, são apenas empíricos ao máximo; baseiam-se exclusivamente na experiência, a tal ponto que seu juízo
não é capaz de acompanhar a experiência e fica para trás
dela. Mas as funções judicativas existem, porém, embora
arrastem, em sua maioria, uma existência inconsciente. En
quanto o inconsciente, apesar de sua separação do sujeito
consciente, impõe repetidas vezes sua presença, na vida dos
tipos irracionais observam-se também juízos e atos seletivos
surpreendentes, na forma de um aparente desejo de racioci
nar, de uma fria tendência judicativa, e de uma escolba, apa
rentemente deliberada, de pessoas e situações. Essas carac
terísticas evidenciam uma natureza infantil e até primitiva.
Por vezes, são surpreendentemente ingênuos; outras, depre
ciativos, rudes e violentos. Do ponto de vista da disposição
racional, poderá facilmente parecer que se trata de indiví
duos racionalistas, segundo o seu verdadeiro caráter, e que
obedecem sempre a uma premeditação, no seu pior sentido.
Mas semelhante conceito só se aplicaria ao seu inconsciente
e de maneira alguma à sua psicologia consciente, a qual es
tá completamente organizada sobre os alicerces da percep
ção e, por sua essência irracional, é inacessível ao juízo racio
nal. Segundo o ponto de vista racional poderá parecer, em
última análise, que semelhante aglomeração de contingências
não merece sequer o nome de “psicologia”. O irracional, por
sua vez, faz concorrência a esse juízo estimativo com a im
pressão que o racional nele produz: vê-o como algo semivivo,
cujo intuito vital consiste apenas em sujeitar tuao em suas
algemas e asfixiá-lo em seus conceitos. Estes são, natural
mente, extremos crassos, mas que existem.
Do ponto de vista do juízo racional, seria fácil considerar
o irracional como um racional de qualidade inferior, se o
DESCRIÇÃO GERAL DOS TIPOS
433
concebermos através daquilo que lhe passa. Não é o contin
gente o que lhe passa — nisso ele é mestre — mas o juízo e o
intuito racionais, pois é nisso que tropeça. Eis um fato que
só é concebível para o racional, um fato cuja incompreensibilidade só pode ser comparada com o assombro do irracio
nal ao descobrir que existe quem coloque as idéias racionais
acima do vivo e do acontecimento real. Semelhante coisa
parece-lhe incrível. Em geral, nada se conseguirá aduzindo
princípios nesse sentido, pois para ele uma compreensão ra
cional é coisa tão ignorada, ou mesmo repulsiva, quanto para
o racional é inconcebível um contrato sem prévio acordo e
obrigações recíprocas.
Esse ponto leva-nos ao problema das relações psíquicas
entre os representantes dos diversos tipos. A relação psíqui
ca é designada na Psiquiatria moderna pela expressão
“rapport,r, usada na escola francesa de hipnotismo. O rapport
consiste, sobretudo, num sentimento de concordância dura
doura e constante, apesar da reconhecida diversidade. Inclu
sive, o reconhecimento das diferenças existentes, na medida
em que seja comum, já constitui um rapport, um sentimento
de concordância. Se, conforme o caso, tornarmos consciente
esse sentimento, num grau elevado, descobriremos que não se
trata, afinal, de um mero sentimento cuja contextura não é
suscetível de continuar sendo analisada, mas que, simulta
neamente, constitui um juízo ou um conteúdo de conheci
mento que, sob a forma de pensamento, representa o ponto
de concordância. Ora, essa exposição racional só possui vali
dade para o racional e de maneira alguma para o irracional,
desde o momento em que o seu rapport não se baseia no juí
zo, mas no paralelismo do que acontece, no evento vivo.
Seu sentimento de concordância é a evidência comum de
uma percepção ou de uma intuição. O racional diria que o
rapport com o irracional baseia-se na pura contingência.
Quando as situações objetivas coincidem por acaso, ocorre
uma espécie de relação humana, mas ninguém poderá dizer
qual é sua validade ou sua duração. Para o racional, chega a
ser penosa a simples idéia de que a relação, com freqüência,
dure exatamente o tempo, que as circunstâncias exteriores
tardam em evidenciar casualmente alguma coisa em comum.
Isso não lhe parece muito humano. O resultado é um consi
derar o outro falho de relação, como um ser humano em quem
não se pode confiar e com quem não é possível estabelecer
qualquer acordo. Mas a esse resultado só se chega quando
28
434
TIPOS PSICOLÓGICOS
se pretende esclarecer conscientemente a natureza das rela
ções com terceiros. Mas como não é freqüente registrar-se
uma atitude psicológica tão sábia, o resultado é chegar-se
muitas vêzes ao estabelecimento de uma espécie de rapport,
apesar da completa divergência de pontos de vista, o que
acontece da seguinte maneira: uma das partes pressupõe, com
tácita projeção, que a outra alimenta a mesma opinião, nos
pontos essenciais; a outra parte, por sua vez, pressente ou
percebe algo de objetivo em comum, de que a primeira não
tem, conscientemente, a menor idéia e cuja existência se apres
saria em negar, ao passo que à segunda jamais ocorreria
que a sua relação tivesse de basear-se numa opinião comum,
É este o tipo de rappoit mais vulgar. Baseia-se na projeção,
o que irá provocar falsas interpretações. Na disposição ex
trovertida, a relação psíquica está sempre regulamentada por
fatores objetivos e por condições externas; aquilo que se é
interiormente nunca tem importância decisiva. No que diz
respeito ao problema das relações humanas, a disposição ex
trovertida dá-nos uma medida, em princípio, na cultura atuâl.
É claro que o princípio introvertido também a dá, mas con
sidera-se uma exceção e exige que se apele para a tolerân
cia dos contemporâneos.
3.
O Tipo Introvertido
a)
A Disposição Geral da Consciência
Como já expliquei no decorrer deste capítulo, o tipo in
trovertido distingue-se do extrovertido pelo fato de que não
se orienta, como o segundo, pelo objeto e pelo objetivamente
dado, mas por fatores subjetivos. Mencionei, na competente
seção, que o introvertido interpõe uma opinião subjetiva en
tre a percepção do objeto e sua própria atividade, impedindo
que esta possua um caráter adequado ao objetivamente dado.
Trata-se, naturalmente, de um caso especial aduzido como
exemplo, em busca de uma exposição clara e simples. Ago
ra, somos obrigados a procurar, compreensivelmente, formu
lações mais genéricas.
A disposição introvertida observa, sem dúvida, as condi
ções exteriores, mas elege como decisivas as determinações de
caráter subjetivo. Portanto, é um tipo que se orienta de
DESCRIÇÃO GERAL DOS TIPOS
435
acordo com aquele fator da percepção e do conhecimento
que representar a disposição subjetiva capaz de admitir a
excitação dos sentidos. Duas pessoas vêem, por exemplo, o
mesmo objeto, mas nunca se poderá afirmar que o vêem de
um modo que as duas imagens resultantes da visão sejam in
teiramente idênticas. Mesmo deixando de lado, completa
mente, a diversa capacidade dos órgãos sensoriais e a dis
tinta equação pessoal, existem com grande freqüência dife
renças profundas na natureza e medida da imagem psíquica
percebida e assimilada. Enquanto o tipo extrovertido cinge-se sempre àquilo que recebe do objeto, o introvertido cinge*se, sobretudo, ao que a impressão exterior opera no sujeito.
No caso singular de uma apercepção, a diferença pode, natu
ralmente, ser bastante delicada, mas, no conjunto da econo
mia psíquica, aquela faz-se sentir imenso, sob a forma de
uma reserva do Eu. Devo declarar antecipadamente o se
guinte: é minha opinião que, como princípio, está completa
mente errado e desvalorizado o ponto de vista que W e i n i n g e r
classificou como disposição filáutica e outros de auto-erótica,
egocêfitrica, subjetivista, egoísta, etc. - Isto corresponde ao
preconceito da disposição extrovertida, diante da essência da
introvertida. Nunca se deve esquecer — e o ponto de vista
extrovertido esquece-o com excessiva facilidade — que toda
percepção e todo conhecimento se encontram não só objetiva
mas também subjetivamente condicionados. O mundo não é
só por si e para si, mas também tal como aparece. Poder-se-ia mesmo afirmar que, no fundo, não dispomos de crité
rio algum que nos ajude a ajuizarmos um mundo não-assimilável pelo sujeito. Seria equivalente à falsificação^ da grande
dúvida como possibilidade absoluta de conhecimento, ao pas
sar por alto o fator subjetivo. Seria penetrar no atalho do
vazio e insípido positivismo que tanto desfigurou os comeÇos do nosso século, voltar àquela falta de humildade inte
lectual que foi a precursora da rudeza de sentimentos e da
atitude de violência tão grosseira quanto presunçosa que o
positivismo consubstanciou. Com a supervalorização da
faculdade cognitiva de natureza objetiva, suplantamos o sig
nificado do fator subjetivo, ou, simplesmente, o significado
do sujeito. Mas que é o sujeito? O sujeito é o homem, nó.s
somos o sujeito. Acho uma prova de morbidez esquecer que
há um sujeito do conhecimento e que, portanto, não existe
para nós um mundo onde não possamos declarar “eu co
nheço”, com o que já fica expressa a limitação subjetiva de
430
TIPOS PSICOLÓGICOS
todo conhecimento. Vale dizer o mesmo no que respeita
a todas as funções psíquicas: possuem todas elas um sujeito
que é tão imprescindível quanto o objeto. É característico da
avaliação extrovertida da nossa época que a palavra “sub
jetivo” soe, por vezes, até como uma espécie de censura e
que na versão “meramente subjetivo” constitua, em todo caso,
uma arma perigosa que se destina a ferir quantos não esti
verem completamente convencidos da superioridade absoluta
do objeto.
Convém, portanto, deixar bem claro o que no presente
estudo se entende por “subjetivo”. Chamo fator subjetivo
à ação ou reação psicológica que se funde com a influência
do objeto para constituir um novo estado psíquico. Ora, na
medida em que o fator subjetivo permanece idêntico a si mes
mo, no mais alto grau, em todos os tempos e para todas as
gentes da Terra — ao serem as percepções e conhecimentos
elementares os mesmos em toda parte e em todos os tem
pos — pode-se afirmar que constitui uma realidade tão soli
damente radicada quanto o objeto exterior. Se assim não fos
se, seria impossível falar de uma realidade duradoura e idên
tica a si mesma no essencial, bem como compreender o pa
trimônio da tradição. O fator subjetivo é, portanto, dentro
dessa ordem de idéias, algo tão providencialmente dado quan
to a extensão dos mares e o raio da Terra. Neste aspecto,
o fator subjetivo também é digno de ser considerado uma
grandeza determinante do mundo, não podendo deixar de ser
tomada na devida conta. É a outra lei do mundo, e quem nela
se baseia poderá contar com a mesma segurança, a mesma
duração e a mesma validade com que contam os que se cin
gem ao objeto. Ora, assim como o objetivamente dado de
maneira alguma se conserva imutável o tempo todo, visto
estar sujeito às leis da caducidade e da causalidade, também
o fator subjetivo, por sua parte, está submetido à mutação e
contingência individuais, razão por que o seu valor é igual
mente relativo, apenas. O desenvolvimento excessivo do
ponto de vista introvertido na consciência não conduz a uma
aplicação válida do fator subjetivo, mas a uma subjetivação
artificial da consciência, merecendo por isso á censura que
se encerra na expressão “meramente subjetivo”. Assim, aca
ba por ser produzida uma réplica da subjetivação da cons
ciência numa disposição extrovertida exagerada, à qual se
aplica perfeitamente o qualificativo de "misáutica” que lhe foi
dado por W e i n in g e r .
DESCRIÇÃO GERAL DOS TIPOS
437
Baseando-se a disposição introvertida numa condição que,
de modo geral, existe, sumamente real e absolutamente im
prescindível, as expressões do gênero de “filáutico”, “egocên
trico” e outras são tanto mais impróprias e refutáveis quanto
mais suscitam o preconceito de que se trata sempre, única e
exclusivamente, do amor do Eu. Nada mais errôneo que se
melhante suposição, mas a verdade é que a encontramos a
todo instante, quando se examinam os fuízos que o extro
vertido formula a respeito do introvertido. Eu não atribui
ria, certamente, esse erro ao extrovertido isolado, como pes
soa singular, mas ao ponto de vista extrovertido geral que
atualmente domina e não se limita, apenas, ao tipo extro
vertido, visto que, contra si próprio, é igualmente represen
tado pelo outro tipo. A este pode-se inclusive censurar a
infidelidade cometida contra o seu próprio caráter, ao passo
que ao primeiro não se pode fazer, pelo menos, tal censura.
A disposição introvertida cinge-se, no caso normal, à es
trutura psicológica, que em princípio é dada por herança e
constituí uma grandeza inerente ao sufeito. Mas não se deve
compará-la, simplesmente, ao Eu do sujeito, o que certamen
te aconteceria se usássemos os termos acima citados, pois a
realidade é a estrutura psicológica do sujeito, antes do desen
volvimento de um Eu. O sujeito básico tem muito maior
amplitude que o Eu, na medida em que também abrange o
inconsciente, ao passo que o Eu constitui, essencialmente, o
próprio centro da consciência. Se Eu e sujeito fossem idên
ticos, seria inconcebível que aparecessem, por vezes, com
aspecto e significado completamente distintos nos sonhos. Ora,
na verdade, constitui uma particularidade bem característica
do introvertido o fato de, obedecendo tanto à sua propensão
como a um amplo preconceito, confundir o seu Eu com o seu
sujeito, elevando o Eu à categoria de sujeito do processo psi
cológico e dando assim lugar à citada subjetivação da cons
ciência que desta aliena o objeto.
A estrutura psicológica corresponde ao que Semon 8 cha
mou de Mneme e que eu designo por inconsciente coletivo.
O sujeito individual é um a parte ou parcela ou representante
de uma essência, onde quer que viva, e de um modo de afluên
cia psicológica que, por sua vez, é inato em cada um de nós.
8 R ic h a r d Sem on, D ie M n e m e als erhaltendes P rin zip im W e c h se l
d e s o rgan ische n G e sch eh e n s , 1904.
438
TIPOS PSICOLÓGICOS
Desde tempos muito remotos que ao modo inato de atuar
se tem chamado instinto, enquanto para o modo ou forma
de apreensão psíquica do objeto propus o termo arquétipo.
Parto do princípio de que se sabe o que deve entender-se por
instinto. Quanto ao arquétipo, o caso é outro. Equivale ao
que entendo, apoiado em Ja k o b B u r c k h a b d t , por “imagem
primordial”, 4 O arquétipo é uma fórmula simbólica que se
apresenta e entra em função onde não se disponha ainda de
conceitos conscientes ou onde estes não sejam possíveis, quer
por motivos de natureza íntima, quer por motivos exteriores.
Os conteúdos do inconsciente coletivo aparecem na consciên
cia como tendências e concepções bem marcadas. São regu
larmente concebidos pelo indivíduo como algo condicionado
pelo objeto, o que no fundo é falso, pois provêm da estru
tura inconsciente da psique, limitando-se a influência do ob
jeto a provocar sua manifestação. Essas tendências e con
cepções subjetivas são mais poderosas que a influência do
próprio objeto, seu valor psíquico é mais elevado e, assim,
sobrepõem-se a toda e qualquer impressão. Tal como ao
introvertido parece inconcebível que o objeto tenha de ser
sempre o fator decisivo, assim para o extrovertido o enigma
é constituído pelo fato de que um conceito subjetivo possa
sobrepor-se à situação objetiva. Acabará acreditando, inevi
tavelmente, que o introvertido é um egoísta vaidoso ou um
charlatão doutrinário. Hoje em dia, faria valer a hipótese
de que o introvertido age sob a influência de um complexo
de poder. O introvertido tropeça em tal preconceito, sem
dúvida, porque a maneira determinada e francamente gene
ralizadora como se exprime e que, para começar, exclui logo
todas as outras opiniões favorece bastante o preconceito ex
trovertido. Além disso, a determinação e rigidez do juízo
introvertido, supra-ordenado a priori em relação a tudo o que
for objetivamente dado, bastam por si só para dar essa im
pressão de um forte egocentrismo. Em face de tal precon
ceito, o introvertido nao encontra, via de regra, o argumento
exato. Na realidade, ele nada sabe sobre os pressupostos in
conscientes, mas de vigência geral do seu juízo subjetivo ou
de suas percepções subjetivas. Acompanhando o estilo do
tempo, faz suas indagações fora da consciência, em lugar de
recorrer ao seu interior. E, se for um pouco neurótico, isso
equivale a uma identificação, mais ou menos completa, do
4
Cf. capítulo XI, n o título “I m a g e m ”.
DESCRIÇÃO GERAL DOS TEPOS
439
Eu com o sujeito, em virtude da qual a importância do su
jeito se reduz a zero e o Eu ganha dimensões extraordinárias.
A inegável força determinante universal do fator subjetivo é
então atribuída ao Eu, assim dando vida a uma incomensu
rável ânsia de poder e a um egocentrismo realmente tolo e
descabido. Toda psicologia que reduz a essência do ho
mem ao impulso inconsciente de poder tem origem nessa dis
posição. Muitas faltas de gosto que se observam em N i e t z s c h e ,
por exemplo, devem-se à subjetivação da consciência.
b)
A Disposição do Inconsciente
A situação de superioridade do fator subjetivo na cons
ciência supõe uma valorização inferior do fator objetivo. O
objeto não tem a importância que, na realidade, deveria ser-lhe atribuída. Assim como na disposição extrovertida de
sempenha uma função excessiva, na disposição introvertida é
por demais diminuto o papel que se lhe reserva. À medida
que a consciência do introvertido se subjetíviza, atribuindo-se ao Eu um significado impróprio, o objeto vai ficando nu
ma posição que acabará, a longo prazo, por ser inteiramente
insustentável. O objeto constitui uma grandeza de inegável
força, ao passo que o Eu é bastante restrito e frágil. Outra
coisa seria se competisse ao sujeito enfrentar o objeto. Su
jeito e mundo são grandezas comensuráveis. Por isso, uma
disposição introvertida normal tem tanto direito à existência
e à vigência quanto uma disposição extrovertida normal. Ora,
se o Eu se investe dqs direitos do sujeito, produz-se, como
compensação natural, um reforço inconsciente da influência
do objeto. Essa mudança faz-se sentir no fato de que, ape
sar dos esforços por vezes desesperados para garantir a su
perioridade do Eu, tanto o objeto como o objetivamente dado
recebem influências prepotentes, difíceis de superar quando o
indivíduo é inconscientemente subjugado, e impondo-se de
maneira irresistível à consciência, portanto. Devido à rela
ção insuficiente que se estabelece entre o Eu e o objeto — à
vontade de domínio não se pode chamar adaptação — sur
ge no inconsciente uma relação compensadora com o obje
to, a qual se faz sentir no consciente como uma total e irre
primível vinculação ao objeto. Quanto mais o Eu se esforça
por garantir para si todas as liberdades, todas as autonomias
e todas as licenças ou prerrogativas possíveis, tanto mais se
440
TIPOS PSICOLÓGICOS
afunda na escravidão ao objetivamente dado. À liberdade
do espírito é imposta a algema de uma mesquinha dependên
cia econômica, a tranqüilidade criadora é violada, repetida
mente, pelo temor angustiado da reação pública, a superio
ridade moral afunda no pântano das relações de qualidade in
ferior e a ânsia de poder termina num dorido anseio de ser
amado.
O inconsciente facilita, em primeiro lugar, a relação com
o objeto, de modo tal que a ilusão de poder e a fantasia de
superioridade da consciência ficam radicalmente destruídas.
O objeto adquire tímidas dimensões, apesar da consciência
procurar rebaixá-las. Por conseguinte, a separação entre o
obieto do eu e seu domínio por ele realiza-se ainda mais radi
calmente. Por fim, o eu rodeia-se de um verdadeiro sis
tema de segurança (corretamente descrito por A d l e r ) , por
meio do qual se procura manter, pelo menos, a ilusão dessa
superioridade. Mas, com isso, o introvertido fica inteira
mente divorciado do objeto e desgasta-se, por uma parte, em
simples medidas de defesa, por outra parte, em tentativas inú
teis para impressionar e impor-se ao objeto. Essas tentati
vas, porém, entrechocam-se constantemente com as avassala
doras impressões provenientes do objeto. Contra a sua von
tade, o objeto impressiona-o insistentemente, provoca nele os
efeitos mais incômodos e impertinentes, seguindo-o por toda
parte como se fosse sua própria sombra. Por isso, é obriga
do a um contínuo e intenso esforço interior, para poder “sus
tentar-se”. Daí que sua forma típica de neurose seja a psicastenia, doença que se caracteriza, por um lado, niuma enor
me sensibilidade e, por outro lado, num grande esgotamento,
uma fadiga crônica.
Da análise do inconsciente individual resultam inúmeras
fantasias de poder, a par do medo e angústia em face de um
obieto poderosamente animado, de que o introvertido, com
efeito, é uma fácil vítima. A angústia perante o objeto dá
lugar a uma peculiar covardia, um receio de impor a própria
personalidade ou a própria opinião, porquanto se teme o in
fluxo reforçado do obfeto. Receiam-se os afetos suscetíveis
de impressionar e não se pode dominar o medo de ficar sub
metido à influência de terceiros. Os objetos recebem qua
lidades em que o temor é prepotente, conscientemente inevi
táveis, mas que o introvertido julga perceber através de seu
inconsciente. Como suas relações com o objeto estão rela-
DESCRIÇÃO GERAL DOS TIPOS
441
tivamente reprimidas, envereda pelo caminho do inconsciente
e assume suas qualidades. Estas são, sobretudo, infanto-arcaicas. Por conseguinte, a relação com o objeto toma-se pri
mitiva, adotando todas as qualidades que distinguem a rela
ção primordial com o objeto. Dir-se-ía, então, que o objeto
possui uma virtude mágica. Os objetos novos e insólitos pro
vocam medo e desconfiança, como se encerrassem ocultos periços. Quanto aos objetos tradicionais, dir-se-ia que estão
presos à alma por fios invisíveis, pois toda e qualquer altera
ção provoca um efeito perturbador, quando não perigoso, uma
vez que o objeto logo se anima, por sua causa, de um módo
que parece mágico. O ideal chega a ser uma ilha deserta
onde não possa agitar-se nada que se oponha à nossa vontade.
O romance de F. Th. V i s c h e r , Âuch Einer, oferece-nos uma
certa visão desse aspecto do estado psíquico introvertido, ao
mesmo tempo que reflete o fundamento simbólico do incons
ciente coletivo, do qual prescindo nesta descrição, por tra
tar-se de um aspecto genérico e não específico do tipo agora
em estudo.
c)
As Particularidades das Funções Psicológicas Funda
mentais na Disposição Introvertida
O Pensamento
Na descrição do pensamento extrovertido já tive opor
tunidade de oferecer uma caracterização sucinta do pensa
mento introvertido, para a qual remeto o leitor, neste ponto.
O pensam^xitD_ijitrow^ orienta-se, em primeiro lugar, pelo
fator subjetivo. Este encontra-Sè' fêpíesèritadÕ,' pêlõ“ ménos,
por um sentimento subjetivo de orientação que, em última
análise, é o que determina o juízo. Por vezes, é também
uma imagem mais ou menos acabada que, até certo ponto,
serve de padrão. Esse pensamento pode tratar de grandezas
concretas ou abstratas, mas, nos momentos decisivos, orien
ta-se sempre pelo subjetivamente dado. Não conduz, portanto,
da experiência concreta para novas coisas objetivas, mas para
o conteúdo subjetivo. Os eventos exteriores não são a causa
e o fim desse pensamento, se bem que o introvertido dê essa
aparência, muitas vezes, ao seu pensar, que de fato começa
no sujeito e a ele regressa, embora empreenda os mais ras
gados vôos pelo domínio dos acontecimentos reais. Assim,
44 2
TIPOS PSICOLÓGICOS
no que diz respeito ao estabelecimento de novos fatos, seu
valor é sobretudo indireto, na medida em que facilita, em
primeiro lugar, novos pontos de vista e muito menos o co
nhecimento de novos fatos. Equaciona problemas e teorias,
fornece visões e sugestões, mas conserva uma atitude de pru
dente reserva ante os fatos. Aceita-os como ilustração e exem
plo, mas não lhes concede preponderância. Os exemplos
acumulam-se como provas, mas nunca como fatos em si.
Quando isto ocorre, é apenas como uma concessão cavalhei
resca aó estilo extrovertido. Para tal forma de pensar, _osfatos são de importância secundária, porquapto o que nele
predomina é^o valor do desenvolvimento e exposição da idéia
subjetiva^ l!a~irnagem slrnbóTica incipiente gttê, 3e um modo
nluis ÜXT TTTgfiõs^^ ^ Q ^ - Q ffire ce-se à visão mtíma. Por isso,
nunca pretende fomentar uma reconstrução mental dos fatos
concretos, mas a transformação da imagem vaga e imprecisa
numa idéia nítida e luminosa. Quer chegar aòs fatos, quer
ver como os fatos exteriores vão preenchendo o quadro de
sua idéia, e afirma seu poder criador ao demonstrar que esse
pensamento é capaz de produzir a idéia que não residia nos
fatos exteriores, mas que, não obstante, é sua expressão abs
trata mais apropriada, considerando sua missão concluída
no momento em que a idéia por ele criada parece decorrer
dos fatos exteriores, os quais poderão também demonstrar a
validade daquela.
Mas do mesmo modo que o pensamento extrovertido nem
sempre consegue obter um conceito eficaz da experiência,
também o pensamento introvertido pode não conseguir a trans
ferência de uma imagem incipiente para uma idéia adequada
dos fatos e por estes corroborada. Assim como no primeiro
caso a acumulação empírica dos fatos menospreza a idéia
e anula o seu sentido, no segundo caso o pensamento intro
vertido revela uma perigosa tendência para forçar os fatos
a submeterem-se e conformarem-se à imagem previamente
formada, ou a ignorá-los para que possa expor a imagem cria
da em sua fantasia. Neste caso, a idéia exposta não poderá
negar sua proveniência da obscura imagem arcaica. Ser-lhe-á inerente o traço mitológico, suscetível de ser interpretado
como “originalidade”, e no pior dos casos como arbitrariedade,
sempre que o seu caráter arcaico não seja evidente aos inves
tigadores, pouco ou nada familiarizados com os motivos mi
tológicos. A força de convicção de uma idéia subjetiva cos
tuma ser tanto maior quanto menos estiver em contato com
DESCRIÇÃO GERAL DOS TIPOS
443
os fatos. Conquanto ao que representa a idéia possa parecer
que o seu escasso material empírico constitui a razão e causa
de sua autenticidade, isto não é assim, de maneira alguma,
pois a idéia recebe sua força de convicção do respectivo ar
quétipo inconsciente, que em sua própria verdade se reveste
de validade universal e eterna. Mas essa verdade é a tal
ponto genérica e simbólica que terá de ser antes incluída nos
conhecimentos reconhecidos e exeqüíveis para que possa che
gar a ser, alguma vez, uma verdade prática ae valor vital.
O que seria, por exemplo, uma causalidade que nunca pu
desse ser identificada em causas práticas e em efeitos prá
ticos?
Este pensamento perde-se, com facilidade, na imensa ver
dade do fator subjetivo. Cria teorias pela vontade de criar
teorias, lançando seus olhares, aparentemente, para os fatos
reais ou, pelo menos, viáveis, mas com uma acentuada ten
dência para transitar do ideal para o meramente imaginário.
Ocorrem dessa maneira, sem dúvida, concepções de muitas
possibilidades, mas que nunca chegam a converter-se em rea
lidade concreta, e acaba-se por criar imagens alheias a toda
e qualquer expressão exterior, que “só” simbolizam, simples
mente, o incognoscível. Ê dessa maneira que o pensamento
introvertido se torna místico e tão estéril quanto o pensa
mento que só se desenvolvesse no quadro dos fatos objetivos.
E assim como este desce ao nível da representação objetiva,
perde-se aquele na representação do irrepresentável, de tudo
o que se situa além de qualquer possibilidade de redução a
imagem. A representação empírica é, com efeito, indiscutí
vel, pois está excluído o valor subjetivo, e os fatos falam por
si próprios. A representação do irrepresentável também possui
um poder subjetivo e imediato de convicção, que por sua pró
pria essência se comprova. A primeira diz: Est, ergo est. Diz a
segunda: Cogito, ergo cogito. O pensamento introvertido,
levado a suas conseqüências extremas, acaba por chegar à
evidência do seu próprio ser subjetivo. Por outro lado, o pen
samento extrovertido chega à evidência de sua identidade
total com o fato objetivo. Ora, assim como este a si mesmo
se nega, quando se deixa absorver inteiramente no objeto,
aquele despe-se de todo o conteúdo ao conformar-se com
sua simples presença. Em ambos os casos, imprime-se à evo
lução da vida um curso obrigatório, que fica de fora da fun
ção de pensar e é canalizado para outras funções psíquicas
de cuja existência estivera, até então, relativamente incons-
444
TIPOS PSICOLÓGICOS
ciente, A extraordinária pobreza de fatos objetivos no pen
samento introvertido é compensada por uma multidão de fa
tos inconscientes, Quanto mais a consciência se reduz, com
a função do pensamento, a um círculo mínimo e o mais pos
sível vazio, mas que se diria conter toda a plenitude da di
vindade, tanto mais a fantasia inconsciente se enriquece com
uma diversidade imensa de grandezas mágicas ou irracionais,
de fatos arcaicamente configurados, adquirindo uma feição
especial segundo a natureza da função que tiver substituído,
como veículo vital, a função de pensar, Se for uma função
intuitiva, o “outro lado” é visto com os olhos de um K u b i n ou
de um M e y r i n k . Se for uma função do sentimento, emer
gem relações e critérios sentimentais nunca vistos, fantás
ticos, de caráter contraditório e incompreensível. Se for uma
função perceptiva, os sentidos descobrem no corpo e fora
dele coisas novas, até então jamais sentidas nem experimen
tadas. Uma investigação meticulosa dessas transformações
provará, sem dificuldade, a interferência da psicologia pri
mitiva, com todos os seus traços característicos. Naturalmen
te, o experimentado não é apenas primitivo, mas também
simbólico, e quanto mais remoto e primário parecer, tanto
mais prenhe estará de verdades futuras, pois tudo o que é
arcaico no nosso inconsciente pressupõe um devir. Em cir
cunstâncias correntes, nem sequer é conseguida uma transi
ção para o “outro lado”, e muito menos, pois, a travessia sal
vadora pelos domínios do inconsciente. Essa transição im
pede, em geral, que a oposição consciente sujeite o Eu à
efetividade inconsciente, à realidade condicionadora do ob
jeto inconsciente. Semelhante estado constitui uma disso
ciação ou, por outras palavras, uma neurose, com o caráter
de consumição interna e crescente esgotamento cerebral, a
psicastenia.
O Tipo Pensativo Introvertido
Assim como um D a k w i n poderia representar o tipo pen
sativo extrovertido normal, K a n t poderia representar o tipo
pensativo introvertido normal. Enquanto o primeiro fala de
fatos, o segundo cinge-se ao fator subjetivo. D a r w i n dispõe
do vasto campo da realidade dos fatos, ao passo que K a n t
se reserva a crítica do conhecimento como tal. Se pensarmos
em C uvder e o colocarmos em frente de N i e t z s c h e , o contraste
será ainda mais nítido.
DESCRIÇÃO GERAL DOS TIPOS
445
O tipo pensativo introvertido caracteriza-se pela natu
reza do pensamento descrito. Tal como seu paralelo extro
vertido, sofre decisivamente a influência das idéias, com a
diferença, porém, de que no introvertido elas não têm sua ori
gem no objetivamente dado, mas no fundamento subjetivo.
Obedecerá, tal como o extrovertido, a suas idéias próprias,
mas, por assim dizer, em sentido inverso, não de dentro para
fora, mas de fora para dentro. Tende a aprofundar, não a
dilatar^ E é èsse seu fundamento que o diferencia do pa
ralelo extrovertido, de um modo superlativo e inconfundível.
O que caracteriza o outro tipo, ou seja, sua intensa refe
renciação ao objeto, falta quase por completo no introvertido.
Se o objeto é um ser humano, este sente que só se trata ne
gativamente dele. Na melhordas hipóteses, perceberá..que
está sobrando; nos casos mais graves^ séntir-se-ái diretamente
rechaçado como perturbador. Essa relação negativa com o
objeto, que vai desde a indiferença ao declarado repúdio, é
característica de todo introvertido, tornando extremamente di
fícil a descrição do tipo introvertido em geral. Nele, tudo
propende a desaparecer e ocultar-se. Seu juízo parece frio^
inflexível, arbitrário e depreciativo^jia medida em que se
'refere menos ao objeto do que ao sujeito. Não se percebe
o que é que dá ao objeto um maior valor, pois o que se vê
sempre é um alheamento, um distanciamento do objeto, tornando-se transparente a superioridade do sujeito. Ainda que
se possa notar ^ortesia, amabilidade, franqueza, observar-se-á
que são freqüentemente acompanhadas de uma estranha to
nalidade, certa timidez ^e inquietação que denuncia um pro
pósito, o de desarmar os antagonistas. JÊTj|>reciso tranqüilizá-lo ou aquietá-lo, caso contrário será um motivo de pertur
bação. _Não se trata de um antagonista, por certo, mas se fõr
um indivíduo sensível perceberá certa repulsa e talvez se sin
ta mesmo desvalorizado. O objeto é sempre desprezado, até
certo ponto, e nos casos mais graves é rodeado de desnecessá
rias medidas de precaução. Assim, esse tipo costuma eclip
sar-se atrás de uma cortina de incompreensões, tanto mais
densa quanto maiores forem seus esforços para adotar, a tí
tulo de compensação e com a ajuda de suas funções inferio
res, a máscara de certa urbanidade, no mais vivo contraste
com sua verdadeira essência. Se na construção do seu mun
do imagísticojaão se detém ante nenhuma audácia, por mais
temerária que seja, nem diante de pensamento algum, por
mais arriscado, revolucionário, herético e ofensivo aos senti-
446
TIPOS PSICOLÓGICOS
mentos alheios que possa parecei^ por outro lado apodera-se
d ^ ju m a angústia maior quando a iniciativa se converte nu
ma realidade ~exterior. Isso excede suas conveniências. Se
traz ao mundo’seus pensamentos, não os acompanha como
mãe carinhosa com os filhos, mas jainda mais se indigna por
não descobrir o' caminho sem ajuda. Sua falta, em geral
enorme, de capacidade jprática ou sua aversão ao reclamo, em
todos os seus aspectos, favorece essa atitude, Quando seu
produto subjetivo lhe parece legitimo e verdadeiro, é porque
teEo_dê .^star simplesmente certov e todos os demais terão.
de dobrar-se a essa verdade. Dificilmente lhe occrrerá a
idéia de pedir um favor, sobretudo a pessoas de influência.
É, quando a tal se decíHe, fá-lo geralmente de um modo tão
desajeitado que costuma conseguir o contrário do que pre
tendia. Com os concorrentes em sua própria especialidade
ou ramo, costuma passar por experiências desagradáveis, pois
erra sempre ao querer ganhar-lhes a boa-vontade e, inclusive,
dá-lhes a entender que estão de mais.
_Éjpertinaz na Consecução de suas idéias, insensível e imune_fè toda influêntfia externa.^ Contrasta singularmente com
isto sua sugestionabilidade ante os influxos pessoais. Reco
nhecido o caráter inofensivo aparente de um objeto, esse tipo
é extremamente acessível aos elementos de valor inferior, que
o assaltam a partir do inconsciente. Deixa-se brutalizar e
explorar da maneira mais ignóbil, contanto que o curso de
suas idéias não seja perturbado. Não vê que o roubam e o
prejudicam na prática, pois sua relação com o objeto é se
cundária e não tem noção do valor daquilo que produz. Co
mo inventa seus próprios problemas, sempre que possível,
também os complica e por isso se' encontra, constantemente, *
nas maiores dificuldades. Tão clara como llie parece a es
trutura íntima de seus pensamentos, lhe parece obscura a
maneira, o como e o quando, de os inserir no mundo real.
Não é capaz de encontrar uma solução, mesmo supondo que
o que lhe parece claro seja igualmente para os demais. Com
plica, via de regra, seu estilo com toda espécie de limitações,
precauções, dúvidas, que promanam de seus escrupülõs e
vacilações. Em suas mãos, o trabalho é árduo. Ou è tacituimo, ou tropeça com pessoas que não o entendem. E as- .
sim vai acumulando provas sobre a insondável estupi3ezTm-\
mana, ~Se porventura sé sente compreendido, é vítima fácil
*e crédula da sobrestimação. Também costuma ser vítima
dócil de mulheres ambiciosas, que sabem aproveitar-se da fal-
DESCRIÇÃO GERAL DOS TIFOS
447
ta de crítica desse tipo, em face do objeto. Oujíntão acaba
solteiro, jmisantropo e de coração infantil. _ Sua apresenta
ção pessoal também costuma ser desajeitada, excessivamente
descuidada, para evitar atrair as atençõe^ ou d e ju a desalinho inconsciente, "ingenuamente infantil E m seu ramo de
atividade suscita a mais feroz oposição," o que o deixa atô
nito, quando não se lança numa polêmica tão encarniçada
quanto estéril. É tido por pessoa sobranceira e autoritária.
Quanto mais intimamente for conhecida, tanto mais favora
velmente será julgada. _Os que vivem no seu círculo mais che
gado apreciam neste tipo, sobretudo, a sua intimidade. Aos
que vivem afastados dele, parece-lhes um ser esquivo, inaces
sível, altivo e até, por causa de seus preconceitos anti-sociais,
*amargurado. Sua influência pessoal como mestre é diminu-'
1ta, pois desconhece a mentalidade de seus discípulos. No
fundo, também não lhe interessa ensinar, se isso não consti
tuir para ele um problema de ordem teórica. É mau profes
sor, pois durante suas lições preocupa-se quase exclusivamen
te com o tema sem condescender na explicação do mesmo.
Quanto mais acentuada for a introversão, tanto ^mais rí-‘
gidas e inflexíveis vão ficando as convicções dos indivI3uos^
aesse tipo. São eliminadas as influências estranhas, e ele
acaba por tomar-se antipático mesmo para aqueles que vivem
distanciados, quanto mais para os que com ele privem de
perto. jSua linguagem torna-se cada vez mais pessoal e so
branceira^ suas idéias mais profundas, mas já não são capa
zes de se exprimirem suficientemente com o material de que
dispõem. O defeito é suprido pela emotividade e sensibili
dade. A influência estranha, que repudia se vier do exte
rior, surpreende-o.de dentro4 ao inconsciente, e acumulará
provas contra coisas qué aos estranhos parecerão inteiramen
te supérfluas. ^Tomo sua consciência se subjétivizá, por falta
de relações com o objeto, acaba por lhe parecer mais impor
tante que tudo o que, secretamente, disser respeito à sua pes
soa. Começa confundindo sua verdade subjetiva com sua
pessoa. É certo que não pretende coagir ninguém, pessoal
mente, com suas convicções^ mas reagirá violentamente con
tra todaTe qualquer crítica^ por mais justa que seja. Ãssim,
vai "ficando gradualmente isolado, em todos os aspectos. Suas
*idéias, inicialmente fecundas, tornam-se destrutivas, envenêí
nadas, por um sedimento de amargura' Com o isolamento
""cie dentro para fora, inicia-se a luta contra a influência in
consciente que, pouco a pouco, principia a exercer sobre ele
448
TIPOS PSICOLÓGICOS
efeitos paralisantes. Sua tendência para a solidão protege-o
dos influxos inconscientes, masPm de rigrãTücaBà por afun
dá-lo ainda mais no ^conflito que intimamente o devora,.
O pensamento do tipo introvertido é positivo e sintético
no que diz respeito ao desenvolvimento das idéias que, em
cada vez maior medida, se aproximam da validade eterna das
imagens primordiais. Ora, se a sua conexão for desarmada
pela experiência objetiva, essas idéias tomam-se mitológicas
e deixam de ser verdadeiras para o período momentâneo do
tempo. Por isso, é um pensamento que só tem valor para os
seus contemporâneos na medida em que estiver em relação
visível e inteligível com os fatos conhecidos do momento. Con
tudo, o pensamento que se toma mitológico fica simultanea-,
mente irrelevante e decorre em si mesmo. As funções de sentiXj intuir e perceber, relativamente inconscientes, que defron
tam este pensamèntó7~sãó inferiores e possuem um caráter
primitivo extrovertido, que sefá~mdigitado como responsável
por todas as influências perturbadoras dos objetos a que está^
jjjjjjeito o tipo pensativo introvertido.' As medidas ae pre* caução, as zonas de obstáculos de que essas pessoas costumam
cercar-se, são bastante conhecidas para que se tome neces
sário descrevê-las aqui. Tudo isso serve de defesa contra as
influências “mágicas , entre as quais se conta um medo cada
vez maior ao belo sexo.
O Sentimento
O sentimento introvertido é principalmente determinado
pelo fato subjetivo. Pára õ jmzfh da sentimento, isto suben
tende uma diferença tão essencial, em relação ao sentimento
extrovertido, quanto a que existe, como vimos, entre a intro
versão e a extroversão ao pensamento. É difícil, sem dúvida,
expor intelectualmente o processo do sentimento introvertido,
ou fazer sequer a sua descrição aproximada, se bem que o
caráter singular do mesmo chame logo a atenção, quando
nele nos demoramos. Como está principalmente subordina
do a prévias condições subjetivas e só se prende secundaria
mente ao objeto, é normal que se manifeste menos e que, quan
do o faz, costume ser incompreendido. Trata-se de um sen-'
timento que,“ao qiiê""pãTece;- <ksvalori^T os objetos e que,
portanto, faz-se sentir negativamente. A existência de um
sentimento positivo terá de ser inferida, por assim dizer,
DESCRIÇÃO GERAL DOS TIPOS
449
indiretamente. Não procura adaptar-se ao objetivo, mas, pe
lo contrário, dominá-lo, na medida em que tenta realizar in
conscientemente suas idéias básicas. É por isso que procura
sempre uma imagem que não se encontra na realidade e que,
em certa medida, foi prevista. É como se pairasse sobre o
objeto, despreocupadamente, não esperando que ele se adap
te a seus fins interiores. Aspira a uma intensidade íntima,
para a qual os objetos ainda mais contribuem com uma exci
tação. A profundidade de tal sentimento apenas se pode
pressentir, visto não ser fácil de apreender com clareza. Tor
na o homem taciturno, de difícil acesso; fá-lo reagir com a
suscetibilidade de uma mimosa, ante a brutalidade do obje
to, para mergulhar totalmente nas profundezas do sujeito.
Como defesa, protege-se em juízos negativos do sentimento
ou numa indiferença notável.
As imagens primordiais, como se sabe, tanto são idéia
como sentimento. Por esse motivo, idéias fundamentais, co
mo a idéia de Deus, de liberdade e de eternidade, são valo
res do sentimento e, ao mesmo tempo, revestem-se da im
portância e significado de idéias. Portanto, seria possível
transferir para o sentimento introvertido tudo quanto se dis
se a respeito do pensamento introvertido, com a única dife
rença de que no primeiro é sentido tudo quanto no segundo
é pensado. Ora, o fato dos pensamentos poderem, via de
regra, ser expressos de maneira muito mais compreensível
que os sentimentos, condiciona a necessidade de se estar do
tado, ao tratar deste sentimento, de uma capacidade invulgar
de expressão, lingüística ou artística, a fim de se poder des
crever e transmitir sua riqueza, mesmo de modo superficial
e aproximado. Se o pensamento subjetivo, dada a inexistên
cia de uma referenciação objetiva, só com dificuldade é ca
paz de suscitar uma compreensão adequada, o mesmo se po
derá dizer, talvez em grau ainda maior, do sentimento subje
tivo. Para poder comunicar-se a outros, terá de encontrar
uma forma externa que seja capaz de receber conveniente
mente o sentimento subjetivo e, ao mesmo tempo, de transmiti-lo a terceiros, de modo que neles suscite um movimento
paralelo. Graças à relativa igualdade interna (e externa)
dos homens, tal efeito pode ser conseguido, embora seja bas
tante difícil encontrar uma forma que corresponda ao senti:
mento, enquanto este estiver ainda orientado, principalmente,
pelas imagens primordiais. Ora, se o efeito for falseado pelo
egocentrismo, torna-se antipático, porque nesse caso se ocupa
450
TIPOS PSICOLÓGICOS
sobretudo do Eu. Gera, portanto, a impressão infalível de
um amor-próprio sentimental, de um querer mostrar-se inte
ressante e, inclusive, de uma complacência mórbida no apre
ço por si mesmo. Assim como a consciência objetiva do tipo
pensativo introvertido tende para uma abstração das abstra
ções, atingindo dessa maneira a intensidade máxima de um
pensar em si vazio, também o sentimento egocêntrico desva
nece-se num apaixonar-se sem conteúdo algum, que só a si
mesmo se sente. Essa fase é místico-extática e prepara o
caminho para as funções extrovertidas que foram desloca
das pelo sentimento.
Do mesmo modo que o pensamento introvertido é de
frontado por um sentimento primitivo, ao qual aderem os ob
jetos com virtude mágica, o sentir introvertido é defrontado
por um pensamento primitivo, que em seu concretismo e
sua escravidão aos fatos é inigualável. - O sentimento vai-se
libertando gradualmente da relação com o objeto, criando-lhe uma liberdade de ação e de consciência apenas subjeti
vamente vinculada e que, em determinados casos, desemba
raça-se de tudo o que for tradicional.
O Tipo Sentimental Introvertido
O primado do sentimento introvertido foi por mim obser
vado, sobretudo, nas mulheres. O provérbio que diz “as
águas tranqüilas correm fundo” é adequado a essas mulhe
res. Costumam ser caladas, dificilmente acessíveis, freqüen
temente incompreensíveis por trás de uma máscara infantil
ou banal. São também, amiúde, de temperamento melancó
lico, Não têm grande aparência nem se fazem notar em es-,
pecial. Como se deixam guiar, sobretudo, pelo sentimento
subjetivamente orientado, seus verdadeiros motivos mantêm-se, em geral, incógnitos. Exteriormente, mostram essa harmo
nia que não pretende chamar a atenção, uma agradável tran
qüilidade, um simpático paralelismo, que não pretende pro
vocar ou impressionar, e muito menos coagir e alterar o pró
ximo. Se esse aspecto exterior for muito acentuado, „faz-se
sentir a suspeita da indiferença e frialdade que pode, injclusivamente, reforçar a impassibilidade perante as alegrias
~e dores do próximo. Percebe-se nitidamente o movimento
sentimental que se afasta do objeto. Esse caso só se verifica,
certamente, no tipo normal, quando a influência do objeto é
DESCRIÇÃO GERAL DOS TIFOS
451
demasiado poderosa. O acompanhamento sentimental har
mônico só se observa quando o objeto se mantém numa po
sição sentimental intermédia e em seu próprio caminho sem
pretender interceptar o caminho alheio, As emoções autên
ticas do objeto não suscitam acompanhamento e são, pelo
contrário, atenuadas, sustadas ou, melhor dito, “esfriadas” com
um juízo sentimental de natureza negativa. Se bem que exis
ta uma propensão no sentido de um acompanhamento harmô
nico e tranqüilo das coisas, quando se trata de enfrentar o
objeto estranho ^não se manifesta amabilidade alguma, nem
uma receptividade calorosa, mas apenas uma atitude aparen
temente fria, indiferente, inclusive de repulsa.. Por vezes, sen
te-se até a superfluidade da própria existência. Na presença
de algo que arrebate, que entusiasme, esse tipo assume ime
diatamente uma neutralidade auto-suficiente, por vezes com
uma ponta de superioridade e de crítica que facilmente de
sencoraja um objeto sensível. Uma emoção avassaladora pode
ser rejeitada com rudeza, com a mais esmagadora frialdade,
se é que não consegue, ocasionalmente, apoderar-se do indi
víduo pelo lado do inconsciente, quer dizer, animar uma ima
gem sentimental primária, apropriando-se do sentimento des
se tipo. Quando isso acontece, as mulheres costumam per
ceber uma paralisação momentânea, contra a qual se levan
tará logo uma oposição de igual veemência que atingirá o
objeto no seu ponto mais vulnerável. Na medida do possí
vel, a relação com o objeto conservar-se-á numa posição sen
timental intermédia, tranqüila e segura, com a obstinada in
terdição de todos os excessos apaixonados. A manifestaçSe
do sentimento é sóbria, por conseguinte, e~o objeto sente-se
continuamente desvalorizado, se acaso se der conta do que
ocorre. Isto nem sempre acontece, porém, visto que não se
tem consciência da margem, a todo instante; mas, pelo con
trário, dá origem, com o decorrer do tempo, em resposta à
exigência sentimental, a sintomas que obrigam a uma aten
ção redobrada.
Como esse tipo parece, de modo geral, frio e reservado,
um juízo superficial negar-lhe-á todo e qualquer sentimento.
Isso é completamente falso, pois os sentimentos não são ex
tensivos, mas intensivos. Surge em profundidade. Enquanto,
por exemplo, um sentimento extensivo de compaixão manifes
ta-se convenientemente com palavras e fatos, assim ficando
rapidamente livre da impressão, uma compaixão intensiva,
452
TIPOS PSICOLÓGICOS
por seu lado, abstém-se dc todas as manifestações e contrai
_uma profundidade apaixonada que abrange a miséria do mundo inteiro e com ela se espanta. Em seu excesso, poderá até
transbordar explosivamente num fato desconcertante, de natu
reza heróica, por exemplo, a respeito do qual nem o objeto,
nem o sujeito, podem encontrar a proporção exata, fara
quem está de fora e para os olhos cegos do extrovertido, essa
compaixão assume um aspecto de frieza, pois nada faz de
visível, e uma consciência extrovertida é incapaz de crer nos
poderes invisíveis. Essa incompreensão do meio é caracte
rística na vida do introvertido, constituindo um importantís
simo argumento para que ele seja contra toda e qualquer re
lação sentimental profunda com o objeto. Mas, no tipo nor
mal, só é capaz cie pressentir qual seja o verdadeiro objeto
desse sentimento. Exprime ante si mesmo suas finalidades
e seu conteúdo, talvez numa religiosidade oculta, timidamen
te apartada dos olhares profanos, ou em formas poéticas igual
mente a recato de qualquer surpresa, não sem um secreto
orgulho por se obter assim uma superioridade sobre o ob
jeto. As mulheres que tem filhos atuam bastante dessa ma
neira, ao infundir-lhes secretamente sua paixão de mães.
Se bem que, no tipo normal, a mencionada tendência pa
ra dominar ou impor-se violentamente ao objeto, de maneira
franca e visível, aquilo que foi secretamente sentido, não re
presente uma função perturbadora nem conduza a qualquer
tentativa séria nesse sentido, não obstante, algo se revela na
ação pessoal sobre o objeto, na forma de um influxo domi
nante que por vezes é difícil de definir. Percebe-se como
uma espécie de sentimento opressivo ou denso que condena
o ambiente, Assim, esse tipo adquire certo poder misterio
so capaz de fascinar imenso o homem extrovertido, pois es
tabelece contato com o seu inconsciente. Esse poder deriva
das imagens inconscientes que o sentimento transferiu, mas
pode ser facilmente deslocado para o Eu e, com o influxo,
acabará falsificado num critério de tirania pessoal. Ora,
quando o sujeito inconsciente se identifica com o Eu, o po
der misterioso do sentimento intensivo transforma-se em des
potismo vulgar e presunçoso, em vaidade e pretensões tirâ
nicas. Surge, assim, aquele tipo de mulher tão desfavora
velmente conhecido por sua ambição sem escrúpulos e sua
crueldade pérfida. Mas, neste ponto, já estamos na curva
da neurose.
DESCRIÇÃO GERAL DOS TIPOS
453
Enquanto o Eu se mantém em nível inferior ao sujeito
inconsciente e o sentimento descobre algo acima e mais po
deroso que o Eu, o tipo é normal. O pensamento incons
ciente é arcaico, sem dúvida, mas compensa com reduções
apropriadas os intuitos ocasionais de conversão do Eu em
sujeito. Mas se, apesar de tudo, isso acabar por acontecer,
em virtude da repressão total das influências redutoras do
pensamento inconsciente, ésse passa à oposição, projetando-se
nos objetos. Então, o sujeito, ao tornar-se egocêntrico, co
meça a sentir o poder e a importância dos objetos desvalori
zados. Á consciência começa a sentir “o que os outros pen
sam”. Naturalmente, os outros pensam todas as infâmias
possívejs^ urdem planos malévolos^ intrigas em segredo, etc.
O sujeito terá de enfrentar tudo isso, começando por tomar ^
suas precauções, intrigar, espiar e conluiar ele próprio. Dar- \
-se-á conta de todos òs boatos e rumores, e fará tremendos í
esforços para transformar a situação de inferioridade que o /
ameaça numa situação de superioridade, até onde isso for i
possível. Surgem secretas e intermináveis rivalidades e, na f
luta encarniçada, nenhum recurso se despreza, por malévo- y
lo e baixo que seja, e até das virtudes se abusa para conquistar o triunfo, jogando tudo por tudo. Assim se chega *
ao esgotamento. A forma de neurose é, neste caso, menos
histérica que neurastênica, ressentindo-se, sobretudo nas mu
lheres, a saúde física, por exemplo, a anemia e suas conse
qüências.
J
Resumo dos Tipos Racionais
Os dois tipos precedentes são racionais, uma vez que se
baseiam em funções que julgam racionalmente. O iuízo ra
cional não se fundamenta apenas no objetivamente dado, mas
também no subietivo. O predomínio de um ou de outro fa
tor. condicionado por uma disposição psíquica, que existe
com freqüência desde a infância mais remota, dobra a razão,
sem dúvida. Um juízo verdadeiramente racional poderia re
correr tanto ao fator objetivo quanto ao subjetivo, satisfa
zendo ambos de um modo cabal. Mas isso constituiria uma
situação ideal, em que seria necessário partir do princípio
de que a extroversão e a introversão se desenvolviam harmo
niosamente. Contudo, as duas tendências excluem-se mutua
mente e não podem evoluir a par enquanto se mantiver seu
dilema, ou seja, quando muito uma sucederá à outra. Por
454
TIPOS PSICOLÓGICOS
isso, nas circunstâncias habituais, uma razão ideal é impos
sível. A razão do tipo racional é sempre tipicamente variá
vel, Assim, os tipos racionais introvertidos revielam, sem
dúvida, um juízo racional, mas este cinge-se mais ao fator
subjetivo. Não fará falta a reflexão lógica, pois a unilateralidade reside na premissa, que é a preponderância do fator
subjetivo, anterior a toda e qualquer conclusão, a todo e qual
quer juízo. Apresenta-se como um valor naturalmente supe
rior ao do objetivo, Não se trata, como dissemos, de um
valor concécTído, mas de uma disposição natural, anterior a
toda concessão de valor. Ê por isso que, para o introvertido,
o juízo racional apresenta-se com tonalidades algo diferen
tes que para o extrovertido. Para citar o caso mais geral, é
essa a explicação para o fato da seqüência de deduções que
levam ao fator subjetivo parecer ao introvertido mais racio
nal do que a dirigida para o objeto. Tal diferença, que no
caso singular é insignificante, quase imperceptível, em gran
de escala dá lugar a contrastes insuperáveis, tanto mais irri
tantes quanto menos consciente se está do deslocamento mí
nimo de ponto de vista, manobrado pela premissa psicoló
gica, Neste ponto, um dos principais equívocos em que ha
bitualmente se incorre consiste no esforço desenvolvido para
demonstrar o erro de conclusão, em vez de se reconhecer a
diferença na premissa psicológica. Mas, para todos os tipos
racionais, tal reconhecimento é duro de aceitar, pois abala
ria a validade aparentemente absoluta de seus respectivos
princípios, entregando-a ao tipo contrário, o que equivale a
uma catástrofe.
Entretanto, quase mais do que o tipo extrovertido, é o
introvertido vítima da falsa interpretação. Não porque o
extrovertido seja para ele um adversário de maior poder crí
tico e mais depreciativo, mas porque o estilo da época em
que vive está contra elç. Encontra-se em minoria, não no
referente ao número, certamente, mas ao sentimento, e não
só em face do extrovertido, mas da nossa concepção geral e
ocidental do mundo. Como entrega confiado sua anuência
ao estilo geral, abala sua própria posição, pois o estilo atual,
com seu reconhecimento quase exclusivo do que é visível e
palpável, está contra o princípio introvertido. Tem que des
valorizar o fator subjetivo, por causa de sua invisibilidade e
impalpabilidade, e impor a si próprio uma participação na
supervalorização extrovertida do objeto, Ele mesmo tem o
fator subjetivo em baixa estima, sendo por isso atormentado
DESCRIÇÃO GERAL DOS TIPOS
455
pelos sentimentos de inferioridade. Não causa espanto, por
tanto, que justamente na nossa época e, em especial, naque
las tendências que a antecipam, o fator subjetivo se manifes
te de uma forma exagerada e, portanto, de mau gosto e cari
catural. Refiro-me à arte hodierna. O desapreço pelo pró
prio princípio torna o introvertido egoísta e impõe-lhe uma
psicologia de oprimido. Quanto mais longe chegar em seu
egoísmo, tanto mais lhe parecerá que os outros, os que par
ticipam sem restrições no estilo vigente, são os opressores, con
tra os quais terá de se defender e buscar proteção. Via de
regra, não costuma dar-se conta de que seu maior erro está
no fato de não se cingir ao fator subjetivo com a fidelidade
incondicional com que o extrovertido se cinge ao seu obje
to. O desapreço pelo próprio princípio faz que a tendência
do introvertido para o egoísmo seja irremediável, merecendo
por isso a desconfiança do extrovertido. Se permanecesse
fiel ao seu princípio, seria um erro enorme classificá-lo de
egoísta, e a justificação de sua disposição ficaria confirmada
pela sua efetividade geral, assim se dissipando as incompreensões.
A Percepção
Também a percepção, que segundo toda a sua essência
tem'de estar sujeita ao objeto e à excitação objetiva, sofre
uma transformação notável na disposição introvertida. Tam
bém aqui há um fator subjetivo, porquanto, além do objeto
que será percebido, existe um sujeito que percebe e forne
ce à excitação objetiva sua disposição subjetiva. Na dispo
sição introvertida, o ato perceptivo baseia-se, sobretudo, na
participação subjetiva da percepção. O que isto significa
é explicado, da maneira mais clara, pelas obras de arte que
reproduzem objetos exteriores. Se, por exemplo, vários pin
tores se esforçam por reproduzir fielmente a mesma paisa
gem, os quadros serão, apesar disso, bastante distintos entre
si, não só devido a uma capacidade mais ou menos desen
volvida, mas, principalmente, por causa de diferentes visões.
Inclusive, algumas das pinturas denunciarão uma nítida dife
renciação psíquica, no estado de ânimo, no movimento de cor
e formas. Essas qualidades apontam uma intervenção mais
ou menos intensa do fator subjetivo. O fator subjetivo da
percepção vem a ser o mesmo, essencialmente, que nas ou
tras funções já mencionadas. Trata-se de uma disposição in-
450
TIPOS PSICOLÓGICOS
consciente-que altera a percepção--sensorial, logo no seu iní
cio, privando-a do caráter de puro influxo -objetivo. Neste
caso, a percepção refere-se, sobretudo, ao sujeito e só secun
dariamente ao objeto.
Na arte, revela-se da maneira mais cristalina até que
ponto o fator subjetivo pode ser um elemento preponderan
te. Esse predomínio do fator subjetivo chega, por vezes, a
uma repressão total do simples influxo do objeto e, não obs
tante, a percepção continua sendo percepção, ainda que con
vertida, é certo, a uma percepção do fator subjetivo e fican
do o influxo do objeto reduzido à categoria de simples estí
mulo. É neste sentido que evolui a percepção introvertida.
Existe, sem dúvida alguma, uma autêntica percepção sensorial, mas dir-se-ia que os objetos, na realidade, não encon
tram acesso ao sujeito. Ê como se este visse as coisas de
um modo completamente distinto dos outros seres humanos.
Na realidade, o sujeito percebe as coisas que todo mundo
percebe, mas não se detém na pura influência do objeto e
prefere cingir-se à percepção subjetiva que foi suscitada pela
excitação objetiva.
A percepção subjetiva é acentuadamente distinta da ob
jetiva. Não a encontraremos, de maneira alguma, no objeto
— senão a título de indicação. Isso quer dizer que pode,
certamente, ser semelhante nos outros, mas rião se baseará
diretamente no comportamento objetivo das coisas. É dema
siado autêntica para dar a impressão de um produto da cons
ciência. Pode dar a impressão de algo de natureza psíquica,
porém, uma vez que nela se revelem elementos de uma or
dem psíquica superior. Contudo, essa ordem de elementos
não coincide com o conteúdo da consciência. Trata-se de
pressupostos coletivo-inconscienteâ ou disposições, de ima
gens míticas, de possibilidades primordiais de representações.
O caráter de significativo é inerente à percepção subjetiva.
Diz mais do que a pura imagem do objeto, naturalmente
àqueles a quem o fator subjetivo diz alguma coisa. Para ou
tros, uma impressão subjetiva reproduzida parece-lhes res
sentir-se da qualidade de evidenciar insuficientemente uma
semelhança com o objeto, não satisfazendo, portanto, à sua
finalidade. A percepção subjetiva apreende, pois, mais o
fundo que a superfície do mundo físico. Não percebe a
realidade do objeto como fator decisivo, mas a realidade do
fator subjetivo, isto é, as imagens primárias que, na sua totali-
DESCRIÇÃO GERAL DOS TIFOS
457
dade, espelham o mundo psíquico* Mas esse espelho tem a
particularidade de não representar o conteúdo atual da cons
ciência, na forma corrente em que o conhecemos* e sim, num
certo sentido, sub specie aetemitatis, quer dizer, tal como se
ria visto por uma consciência com um milhão de anos de
idade. Semelhante consciência veria o nascer e morrer das
coisas com seu ser atual e momentâneo, e não só isso, pois
veria também o outro, o que era antes do evento e o que
será depois do fim do evento. O momento atual é inveros
símil para tal consciência. Claro que se trata apenas de um
exemplo, mas necessário, creio eu, para mostrar, em certa
medida, a essência peculiar da percepção introvertida.
Assim, a percepção introvertida transmite uma imagem
que, mais do que reprtíduzir apenas o objeto, cobre-o com o
sedimento de antiquíssima experiência e com a experiência
futura. A mera impressão sensorial desenvolve-se, pois, nas
profundezas do pressentimento, ao passo que a percepção
extrovertida apreende o ser momentâneo e manifesto das
coisas.
O Tipo Perceptivo Introvertido
O primado da percepção introvertida dá lugar a um tipo
determinado que se caracteriza por certas peculiaridades. É
um tipo irracional na medida que não seleciona o que acon
tece, segundo juízos racionais, mas cinge-se^apenas ao que
acontece. Enquanto o tipo perceptivo extrovertido está con
dicionado pela intensidade do influxo do objeto, o introver
tido orienta-se pela intensidade da participação perceptiva
subjetiva, suscitada pela excitação objetiva. É evidente que,
dessa maneira, não se verifica uma ligação proporcional entre
o objeto e a percepção; pelo contrário, estabelece-se uma co
nexão inteiramente arbitrária e desproporcional. Nunca se
pode prever de fora, por assim dizer, o que é que fará im
pressão e o que não fará. Se existisse uma capacidade ex
pressiva e condescendente que fosse proporcional à intensi
dade da percepção, a irracionalidade desse tipo chamaria ex
traordinariamente a atenção. Isso ocorre, .por exemplo, quan
do o indivíduo é um artista criador. Como este é um caso
excepcional, a dificuldade expressiva característica do intro
vertido esconde também sua irracionalidade. Pelo contrá
rio, a verdade é que poderá até despertar as atenções por sua
458
TIPOS PSICOLÓGICOS
tranqüilidade ou passividade, ou por um razoável autodomí
nio. Essa particularidade, que desorienta qualquer juízo su
perficial, deve sua origem à não-referência ao objeto. É certo
que o objeto de maneira alguma é desvalorizado consciente
mente, nos casos normais, mas fica privado de seu estímulo,
substituído por uma reação objetiva que já não se refere à
realidade do objeto. Isso produz, naturalmente, o efeito de
uma desvalorização do objeto. Semelhante tipo pode facilmente_ suscitar a pergunta sobre qual é a finalidade de se
existir, qual a justificação para a existência dos objetos, uma
vez que tudo o que é essencial decorre prescindindo deles.
Essa dúvida pode-se justificar em casos extremos, mas não
nos casos normais, porquanto à percepção é imprescindível a
excitação objetiva, e o que sucede é essa excitação provocar
outra coisa distinta daquela que o estado exterior deixaria
supor.
Vista a coisa de fora, dír-se-ia que a influência do objeto
não encontra reação no sujeito. Esta impressão está justifi
cada assim que um conteúdo subjetivo, proveniente do in
consciente, interpõe-se e capta o influxo do objeto. Essa
interposição pode ocorrer de um modo tão brusco que se tem
a impressão do indivíduo, na realidade, estar tentando pro
teger-se contra as influências do objeto. Nalguns casos, de
certa manéírã int’ensific'ados, dá-se efetivamente essa defesa
protetora, Quando o inconsciente está reforçado/a partici
pação perceptiva subjetiva anima-se de tal maneifa^qué se
sobrepõe quase totalmente ao influxo do objetó. Surge as
sim, por uma parte,, um sentimento de completa desvaloriza
ção no objeto e no sujeito; por outra parte, registra-se uma
.concejptç^.0 ilusória da realidade que só em casos patológicos
chega, efetivamente, ao extremo do indivíduo já não ser ca
paz de distinguir entre o objeto real e a percepção subje
tiva. Se bem que essa capacidade tão importante de distin
ção só desapareça por completo nos estados psicóticos decla
rados, a percepção subjetiva já pode influir muito antes, em
elevado grau, sobre o pensamento, o sentimento e a ação,
embora o objeto ainda seja nitidamente observado em sua
realidade integral. Nos casos em que a influência do objeto,
devido a circunstâncias especiais, como, por exemplo, uma
intensidade particular ou uma analogia total com a imagem
inconsciente, encontra acesso ao sujeito, também o caso nor
mal desse tipo se encontra induzido a atuar de acordo com o
seu padrão inconsciente. Tal ação é de caráter ilusório, em
DESCRIÇÃO GERAL DOS TIPOS
459
relação à realidade objetiva, e, portanto, extremamente insó
lito. De um golpe, põe a descoberto a subjetividade do tipo,
estranha à realidade. Mas onde o influxo do objeto não en
contrar franco acesso, deparará com uma neutralidade
benevolente, pouco disposta a participar e sempre inclinada
a tranqüilizar e equilibrar. Êleva-se um pouco o excessiva
mente inferior, rebaixa-se outro tanto o por demais elevado,,
atenua-se o entusiasmo, abranda-se o extravagante, o extra
ordinário é reduzido à fórmula "apropriada”, e tudo isso para
manter ò influxo do objeto dentro dos necessários limites.
Assim, verifica-se que esse tipo produz um efeito sufocante
nos indivíduos que com ele privam^ se bem que^ não haja
^dúvidas sobre o seu caráter totalmente inofensivo. Quando
"tal acontece, õ Indivíduo será fácil vítima da agressividade,
e da ambição de domínio dos demais. Esse tip_o humano dei
xa, geralmente, que ^abusem dele e vinga-se, de modo inadequado, por meio de uma redobradaT resistência e obstinação.
Se não possuir capacidade artística de expressão^ refugiam-se nas profundezas do seu íntimo todas as impressões
que exercem algum fascínio sobre a consciência, sem que
consiga impor-se à impressão fascinante por meio da expres
são consciente. Para suas impressões, esse tipo unicamente
dispõe de possibilidades arcaicas de expressão, uma vez que
o sentimento e o pensamento são relativamente inconscientes;
mas, quando são conscientes, dispõe apenas das imprescindí
veis expressões banais e cotidianas. Por conseguinte, como
funções conscientes, são inteiramente impróprias para redu
zir, de maneira adequada, as percepções subjetivas. Assim,
esse tipo é extremamente inacessível à compreensão objetiva
e costuma-lhe faltar, inclusive, compreensão por si próprio.
Sua evolução afasta-o, sobretudo, da realidade do obje
to e entrega-o às percepções subjetivas que orientam a sua
consciência no sentido de uma realidade arcaica, embora não
esteja consçiente, em absoluto, desse fato, devido à ausência
de um juízo comparativo. JNa realidade, move-se num mun
do mitológico em que os homens, os animais, os trens, as ca
sas, os rios e os montes lhe parecem, em parte, deuses cle
mentes e, em parte, demônios malévolos. Ele próprio não
está cônscio de que as coisas assim lhe pareçam. Mas como
tal influem em seus juízos e ações. Julga e atua como se
tivesse que enfrentar semelhantes poderes. Só começa a
dar-se conta disso quando descobre que as suas percepções
460
TIPOS PSICOLÓGICOS
são inteiramente distintas da realidade. Se porventura se
inclinar para um raciocínio objetivo, logo assinalará essa dife
rença como uma percepção mórbida das coisas. Mas se for
fiel 'à sua irracionalidade e estiver disposto a atribuir um
valor dç realidade à sua percepção, o mundo objetivo acabará
convertido em ficção e comédia. Porém, só aqueles casos
que tendem para uma posição extrema chegam a confrontar
semelhante dilema. Em geral, o indivíduo conforma-se com
uma atitude ensimesmada e com a banalidade do mundo real,
antes de comportar-se inconscientemente dessa maneira ar
caica.
^Seiv inconsciente caracteriza-se, sobretudo, pela repressão
da in tu ição, qUe possui um caráter extrovertido e arcaico.
Enquânto a intuição extrovertida evidencia uma argúcia, um
“bom faro” para todas as possibilidades. da realidade objeti
va, a intuição extrovertida arcaica revela uma capacidade es
pecial para as camadas ambíguas, sombrias, imundas e peri
gosas que subjazem na realidade. Essa intuição, em vez de
admitir o propósito real e consciente do objeto, como que
fareja todas as prévias fases arcaicas de tal propósito. Evi
dencia, portanto, um intuito bastante perigoso e demolidor,
que freqüentemente se situa no mais violento contraste com
a inofensiva tolerância da consciência. Enquanto o indiví
duo não se mantiver excessivamente afastado do objeto, a
intuição inconsciente atua como uma compensação salutar da
disposição algo fantástica, e com tendência um tanto exces
siva para a credulidade, da consciência^ Mas se o incons
ciente desencadear^ a oposição contra a consciência, vêm à
superfície essas intuições e exercem sua influência perniciosa
no indivíduo, impondo-se-lhe obsessivamente e dando lugar,
por sua vez. a obsessões da mais repulsiva espécie, com refe
rência aos obietos. Ã neurose que se declara em semelhante
crise é. via de regra, uma neurose obsessiva em que os sin
tomas histéricos se eclipsam atrS dos sintomas de profundo
esgotamento.
Á Intuição
Na disposição introvertida, a intuição cinge.-s£ aos obje
tos interiores, como poderíamos denominar, -corretamente, os
elementos do inconsciente. Os objetos interiores comportam-se, em relação à consciência, de modo inteiramente análogo
DESCRIÇÃO GERAL DOS TIPOS
461
aos objetos exteriores, apesar da sua realidade não ser física,
mas psicológica. Os objetos interiores apresentam-se à per
cepção intuitiva como imagens subjetivas de coisas que não
podem ser observadas na experiência exterior, pois consti
tuem o conteúdo do inconsciente e, em última análise, do in
consciente coletivo. Naturalmente, por sua própria essência,
esse conteúdo é inacessível a toda e qualquer experiência,
qualidade essa que tem em comum com o objeto exterior.
Assim como os objetos exteriores só muito relativamente são
tal qual os percebemos, também são relativas as formas apa
rentes dos objetos interiores, produto de sua essência que
para nós é inacessível e da natureza peculiar da função in
tuitiva. Tal como a percepção, a intuição também tem seu
fator subjetivo, qüé[ hãTrítítíção extrovertida está reprimido
ao máximo,, mas na introvertida se converte numa grandeza
decisiva. Embora a intuição introvertida receba seu impul
so dos objetos exteriores, não se guia pelas possibilidades ex
ternas, mas por aquilo que tiver sido interiormente suscitado
pelo exterior. Enquanto a percepção introvertida se limita,
principalmente, à percepção pelo inconsciente dos fenômenos
peculiares da inervação, neles se detendo, a intuição reprime
esse aspecto do fator subjetivo e percebe a imagem que a
inervação provocou. Assim, por exemplo, ao sentir-se ataca
do de uma tontura de natureza psicogênica, a percepção de
tém-se nas características particulares dessa perturbação na
inervação e percebe todas as suas qualidades, sua intensidade,
seu processo temporal, seu modo de se apresentar e desapa
recer, com todos os seus pormenores, sem ultrapassar esses
limites nem entrar, de maneira alguma, no conteúdo donde
essa perturbação tenha partido. Pelo contrário, a intuição
apenas recebe da percepção o impulso que a ponha em ati
vidade imediata. Procura ultrapassá-la com sua visão, per
cebendo rapidamente a imagem subjacente que o fenômeno
expressivo, ou seja, a tontura, provocou. Tem a visão de um
homem cambaleante, com uma flecha cravada no coração.
Essa imagem fascina a atividade intuitiva, que nela se de
tém e procura explorar todos os seus pormenores. Agarra
a imagem e comprova, com o mais vivo interesse, como ela
vai mudando e transformando-se, até desaparecer por fim.
‘ Dessa maneira, a intuição introvertida percebe todos os
processos que se desenrolam no fundo da consciência, com
a mesma nitidez com que a percepção extrovertida apreende
os objetos exteriores. Para a intuição, portanto, as imagens
462
TIPOS PSICOLÓGICOS
inconscientes estão investidas da dignidade de coisas ou ob
jetos. Porém, como a intuição excluí a participação da per
cepção, não lhe é possível notar (ou só o nota de um modo
insuficiente) as perturbações de inervação, a influência que
as imagens inconscientes exercem no corpo. Assim, as ima
gens aparecem como que desligadas do sujeito, como se exis
tissem por si mesmas e sem qualquer relação com a pessoa.
Portanto, no exemplo acima mencionado, jamais ocorrerá ao
intuitivo introvertido atacado de tonturas que a imagem per
cebida poderá referir-se a si próprio. Naturalmente, ao indi
víduo dotado de uma disposição judicativa, tal situação pare
cer-lhe-á pouco menos que inconcebível. Contudo, trata-se de um fato que pude freqüentemente observar nesse tipo,
A curiosa indiferença que se observa no intuitivo extro
vertido, relativamente aos objetos exteriores, o introvertido tam
bém a manifesta em relação aos objetos interiores, Assim co
mo o intuitivo extrovertido espreita constantemente novas pos
sibilidades e segue atrás delas sem que lhe importe o mal
ou o bem, próprio ou alheio, atropelando despreocupadamente
todas as considerações de ordem humana, derrubando, em
seu eterno ímpeto de mudança, o que mal acabara de ser
construído, o introvertido também vai de imagem em ima
gem, em busca de todas as possibilidades que jorrem do
fecundo manancial do inconsciente, sem estabelecer a cone
xão entre ele próprio e o fenômeno. Do mesmo modo que,
para quem não ultrapassa a mera percepção do mundo, este
nunca se lhe converte em problema moral, também para o
intuitivo o mundo imagístico jamais se converte em problema
moral. Tanto para um como para outro, constitui um pro
blema^estético, uma questão de percepção, uma “sensação”.
Dessa maneira, no indivíduo introvertido apaga-se a cons
ciência, quer de sua existência física, quer de seu efeito so
bre os outros. O ponto de vista extrovertido diria “que a
realidade não existe para ele, que se prende a sonhos esté
reis”. A visão das imagens do incon *
a força criadora produz com uma inesgotável
certamente
estéril no tocante à sua utilidade imediata. Contudo, na me
dida em que essas imagens subentendem uma possibilidade
de concepções que podem oferecer, num determinado mo
mento, novas vias de escoamento para a energia, tal função,
que está o mais possível afastada do mundo exterior, é im
prescindível no conjunto da economia psíquica, do mesmo
modo que na vida psíquica de um povo não deve faltar, de
DESCRIÇÃO GERAL DOS TIPOS
463
maneira alguma, o tipo correspondente a essa função. Se
esse tipo não existisse, Israel não teria tido seus profetas.
A intuição introvertida apreende as imagens que provêm
do o priori, quer dizer, dos fundamentos do espírito incons
ciente, formados pela hereditariedade, Esses arquétipos, cuja
essência íntima é inacessível à experiência, representam o se
dimento do funcionamento psíquico de todas as gerações de
antepassados, quer dizer, as experiências da existência orgâ
nica acumuladas pela sua repetição durante muitos milhões
de anos e condensadas em tipos. Nesses arquétipos estão
representadas, portanto, todas as experiências realizadas no
planeta, desde os mais remotos tempos. Quanto mais fre
qüentes e intensas tiverem sido, mais nítidas aparecem no ar
quétipo. Para dizer como K ant , o arquétipo seria o noumenon da imagem que a intuição percebe e gera nessa per
cepção. Como o inconsciente não é, de modo algum, coisa
que permaneça inerte como um caput mortuum psíquico, mas
algo que vive e passa por transformações íntimas, profunda
mente relacionadas com o acontecimento geral, a intuição in
trovertida fornece, mediante a percepção dos processos ínti
mos, determinados dados que podem ser de suma importân
cia para a apreensão do acontecimento geral. Pode até prever,
de maneira mais ou menos clara, tanto as possibilidades no
vas como as que sobrevirão, efetivamente, mais tarde. Sua
previsão profética explica-se pela sua relação com os arquéti
pos, nos quais está representado o processo legítimo de todas
as coisas experimentais.
O Tipo Intuitivo Introvertido
A peculiaridade da intuição introvertida dá origem, quan
do consegue a primazia, a um particular tipo humano: por
uma parte, o sonhador e o profeta místicos; por outra parte,
o fantasista e ò artista. Este último caso deve ser o normal,
pois costuma obsêrvar-se neste tipo a tendência para limitar-se ao caráter perceptivo da intuição. O intuitivo não passa,
geralmente, da percepção; seu principal problema é perceber,
e, quando se trata de um artista criador, a configuração da
percepção. O fantasista contenta-se com a visão, pela qual
se deixa conformar, quer dizer, determinar. Ao afundar-se,
a intuição opera, naturalmente, um distanciamento, freqüen
temente extraordinário, entre o indivíduo e a realidade pal-
464
TIPOS PSICOLÓGICOS
pável, de modo que chega a constituir um completo enigma,
inclusive para aqueles que com ele privam mais de perto.
Se ior artista* sua arte revela coisas distantes e estranhas ao
mundo, extraordinárias, policromas, transcendentes ou banais,
belas ou grotescas. Se não for artista, trata-se muitas vezes
de um gémo desconhecido, de um vagabundo com grandeza,
de uma espécie de .sábio semilunático, de um personagem de
romance "psicológico .
Se bem que o fazer da percepção um problema moral não
se situe inteiramente na linha üo tipo intuitivo introvertido,
pois para tanto seria necessário um reforço das funções judicativas, basta, porém, uma diferenciação relativamente pe
quena do juízo para conseguir que a intuição passe do ter
reno puramente estético para o terreno moral. Surge assim
uma variedade desse tipo, a qual, embora seja essencialmente
distinta da sua forma estética, é característica, no entanto,
do intuitivo introvertido. O problema moral aparece quan
do o intuitivo estabelece relações com sua visão, quando não
se conforma com a mera intuição, com sua valorização e con
figuração estéticas, e chega ao ponto de indagar: Que signíficará isto para mim ou para o mundo? O que é que para
mim ou para o mundo poderá resultar no que <3íz respeito jT
'unT dever ouTuma missão? O intuitivo puro que reprime o
juízo ou somente faz üscf dele sob o fascínio da percepção
não chega, no fundo, a formular essas perguntas, visto que o
seu problema se limita ao “como” da percepção. Por isso o
problema moral lhe é incompreensível ou mesmo absurdo,
motivo por que faz todo o possível para banir os pensamentos
sobre o intuído. O intuitivo com propensão moral comporta-se de maneira distinta. JPreocupa-se com o significado de
sua visão, dá menos importância às possibilidades estitlcaT
ulteriores que aos possíveis efeítos morais, que, para éTe, sacf
suscetíveis de derivarem do significado do conteúdo da visão.
O seu juízo permite-lhe reconhecer freqüentemente, sem dú
vida, como numa aurora, que como ser humano, como um
todo, está de certo modo abrangido em sua visão e que esta
não só há de ser intuída como deverá inserir-se na vida do
sujeito. Graças a tal conhecimento, sente-se obrigado a transformar a visão de sua própria vida. Ora, como na maioria dbs
casos Tjãseia-se, principalmente, na visão e só nela, o seu in
tuito moral não ultrapassa os limjtes da unilateralidade; é
capaz de simbolizar-se a si próprio e à sua vida, adaptando-
DESCRIÇÃO GERAL DOS TIPOS
465
-se, certamente, ao sentido íntimo e eterno do evento, mas
não se adapta à realidade concreta e atual. Assim, perde nela
a sua eficiência, pois não se con^reen3e.^_ àya linguagem
não é _a_ q ue geralmente se Tffla, mas uma subjetiva« _Aos
seus argumentos falta uma ratio convincente. Só pode converter ou revelar! E sua a voz que clama no deserto.
O intuitivo introvertido é quem mais reprime a percep
ção do objeto. É isso o que caracteriza o seu inconsciente,
onde domina uma função perceptiva extrovertida e compen
sadora, de caráter arcaico. Poder-se-ia, portanto, descrever
melhor a personalidade inconsciente como um tipo extrover
tido perceptivo de espécie inferior e mais primitiva, A im
petuosidade instintiva e a falta de um sentido de propor
ções são as qualidades inerentes a essa percepção, somadas
a uma extraordinária vinculação à percepção sensorial. Tais
qualidades compensam a atmosfera rarefeita das altitudes que
é própria da sua disposição consciente, contribuindo com
certa gravidade, a fim de evitar a “sublimação” total. En
tretanto, se em virtude de um exagero forçado da disposi
ção consciente se produzir uma sujeição total à percepção
interior, o inconsciente passa à oposição e surgem percep
ções obsessivas com exagerada vinculação ao objeto e opos
tas à disposição consciente. A forma de neurose será obses
siva, revelando como sintomas, em parte, fenômenos hipocon
dríacos e, também em parte, uma hipersensibilidade dos ór
gãos sensoriais, a par de vinculações _obsessivas a determinadas pessoas ou_a outros objetos.
Resumo dos Tipos Irracionais
Os dois tipos que acabamos de descrever são quase ina
cessíveis a um julgamento exterior. Como são introvertidos e
possuem, portanto, uma diminuta capacidade, ou um peque
no desejo, de manifestação, apenas oferecem um pretexto para
um juízo rigorosamente exato. Sendo para o interior que se
orienta sua principal atividade, no exterior apenas se observa
discrição, fingimento, impassibilidade, insegurança ou pertur
bação aparentemente injustificados e sem base. Se alguma
coisa se manifesta, trata-se, em geral, de manifestações indi
retas das funções inferiores e relativamente inconscientes. Es
se gênero de manifestações condiciona, naturalmente, o pre
conceito existente contra tais tipos. Por isso costumam ser
466
TIPOS PSICOLÓGICOS
subestimados, via de regra, ou incompreendidos. Assim co
mo esses tipos não se concebem a si próprios, visto faltar*
-lhes, em alto grau, a capacidade de ajuizar, também não
podem compreender que a opinião pública os tenha, cons
tantemente, em tão baixa estima. .Na realidade, não perce
bem que o seu comportamento externo é, de fato, de índole
inferior. Sua visão está hipnotizada pela riqueza do acon
tecimento subjetivo. Tudo quanto acontece é de tal modo
cativante e de um tão inesgotável encanto que não percebem
haver pouquíssimo conteúdo naquilo que dos acontecimentos
comunicam, apenas uma parcela ínfima do que eles próprios
experimentam como vivência. O caráter fragmentário e, em
geral, apenas episódico, de suas manifestações, exige demasia
do da compreensão e boa vontade das outras pessoas. Além
disso, falta-lhes aquele calor que se insufla no objeto e que
era a única coisa capaz de possuir bastante força de convic
ção. Esses tipos, pelo contrário, revelam um comportamento
exterior brusco e pouco amável, se bem que não tenham cons
ciência disso nem seja esse o propósito. Julga-se com maior
justiça e indulgência essa categoria de tipos quando se sabe
o difícil*que é reduzir a visão íntima a uma expressão inte
ligível. Contudo, essa indulgência não deve chegar ao ponto
de isentá-los de satisfazerem as exigências próprias da comu
nidade. Isso ocasionaria um grave dano a esses tipos. O
próprio destino lhes prepara, talvez com maior freqüência
que aos outros homens, imponentes dificuldades exteriores,
capazes de curá-los da embriaguez de suas visões íntimas.
Mas terá de ser uma grande necessidade que, por fim, lhes
arranque uma manifestação humana.
Do ponto de vista extrovertido e racionalista, esses tipos
são, certamente, os seres humanos mais inúteis. Encarados
de um ponto de vista superior, constituem eles testemunhos
vivos do fato de que o mundo, rico e agitado, e sua vida transbordante e capitosa, não estão somente do lado de fora, mas
também no íntimo de cada um. Esses tipos são, por certo,
demonstrações unilaterais da natureza, mas têm algo de elo
qüente que não se deixa deslumbrar pela voga espiritual de
um dado momento. Os homens dotados de semelhante dis
posição são fomentadores da cultura e, a seu modo, educa
dores. Ensinam mais com suas vidas do que com suas pala
vras. Suas vidas e, nãu de somenos importância, a incapa
cidade comunicativa que os caracteriza mostram-nos um dos
maiores erros da nossa cultura, que é a superstição da pala-
DESCRIÇÃO
GERAL DOS TIPOS
467
via e da explicação, a supervalorização desmedida do ensino
verbal e metódico. É certo que uma criança fica impressio
nada pelas pomposas palavras de seus pais, chegando mes
mo a acreditar que elas a educam. Na realidade, o que a
educa é aquilo que seus pais vivem. Tudo o mais que acres
centarem com gestos verbais só poderá servir para aumen
tar a confusão. Vale dizer o mesmo a respeito dos profes
sores. Mas acredita-se nos métodos a um extremo tal que,
contanto que o método seja aproveitável, santifica-se o pro
fessor que se servir dele. Um homem inferior nunca poderá
ser um bom mestre. Mas esconde sua nefasta inferioridade,
que envenena secretamente o discípulo, por trás da opulên
cia magnífica do método e de uma capacidade intelectual de
expressão não menos magnífica. Naturalmente, o discípulo
já mais formado nada de melhor pede que o conhecimento
dos métodos úteis, uma vez que já se integrou na tendência
geral que acredita nos métodos vitoriosos. Ele teve oportu
nidade de comprovar, por experiência, que o indivíduo de
cabeça a mais vazia pode chegar a ser o melhor discípulo,
se aprender a repetir fielmente um método. À sua volta, vê
e ouve, na vida e nas palavras, que todo êxito e boa sorte
estão “fora”, bastando escolher o método mais conveniente
para conseguir o que se quer. Ou estará porventura de
monstrado na vida de seu mestre de religião que essa sorte
reside na riqueza esplendorosa da visão íntima? Sem dúvida,
os tipos irracionais introvertidos não são os mestres da huma
nidade plena. Neles, a razão e a ética da razão encontram-se
menosprezadas. Mas suas vidas apontam-nos a outra pos
sibilidade, aquela que, infelizmente, está faltando em nossa
cultura.
As Funções Principais e Secundárias
As descrições precedentes não pretendem, de maneira
alguma, sugerir a idéia de que na prática se depara a todo
instante com tais tipos em suas formas puras. Não deixam de
ser uma espécie de fotografias de família, à maneira de Galton, que acumulam os traços comuns e, portanto, típicos, de
nunciando-os acentuadamente, ao passo que os traços indi
viduais se desvanecem, de um modo igualmente desmedido.
O exame pormenorizado do caso individual tem como resul
tado o fato, de natureza legítima, evidentemente, de que sem-
4GS
TIPOS PSICOLÓGICOS
pre se observa na consciência, a par da função mais diferen
ciada, uma segunda função de significado secundário e, por*
tanto, de diferenciação inferior, que é relativamente deter
minante.
Repetiremos, por uma questão de clareza: todos os pro
dutos de todas as funções podem ser conscientes, mas reterimo-nos à consciência de uma função não só quando seu exer
cício obedece à vontade, mas também quando o seu princí
pio determina a orientação da consciência. Isso acontece, por
exemplo, quando o pensamento não é como um refletir e
cogitar tardio, mas quando suas deduções possuem validade
absoluta, de modo que a dedução lógica, em determinado
caso, sem necessitar de outras provas, tem validade de mo
tivo e de garantia na ação prática. Essa prerrogativa abso
luta só pode corresponder, empiricamente, a uma função, e
só a uma função pode ser atribuída, pois a intervenção igual
mente independente de qualquer outra função teria como resul
tado, necessariamente, uma orientação distinta e em contra
dição com a primeira, peio menos em parte. Ora, como a
posse de fins sempre claros e bem definidos constitui uma
condição vital do processo consciente de adaptação, fica na
turalmente excluída a equiparação de uma segunda função,
em nível idêntico. Portanto, a segunda função só pode ter
um significado secundário, o que sempre se confirma empi
ricamente. Seu significado secundário consiste em não se
confiar nela, única e absolutamente, como acontece com a
função principal, sendo levada em conta de função auxiliar
ou complementar. Só pode atuar como função secundária,
naturalmente, uma função cuja essência não esteja em con
tradição com a função principal. Assim, por exemplo, o
pensamento nunca aparecerá junto do sentimento como fun
ção secundária, pois sua essência contradiz demais a do pen
samento. O pensar terá dè excluir cuidadosamente o sentir,
se quiser ser um pensamento autêntico e fiel a seus princí
pios. Isso não exclui, naturalmente, o fato de haver indiví
duos em quem o pensar alcança o mesmo nível do sentir, sen
do ambos de igual capacidade motivadora consciente. Mas
é que, em tais casos, não se trata de tipos diferenciados, mas
de um pensamento e de um sentimento relativamente rudi
mentares. Portanto, a consciência ou o inconsciente unifor
mes das funções são um sinal característico da fase primi
tiva do espírito.
DESCRIÇÃO GERAL DOS TIPOS
469
A função secundária, ensina-nos a experiência, é sempre
uma função cuja essência se distingue da função principal,
mas não a contradiz. Assim, por exemplo, o pensamento co
mo função principal pode emparelhar-se perfeitamente com
a intuição ou a percepção como funções secundárias, mas,
como acentuamos, jamais com o sentimento. A intuição e a
percepção não contradizem o pensamento, quer dizer, não
têm por que ser forçosamente excluídas, visto não serem de
essência semelhante ao pensamento, mas, pelo contrário (o
que não acontece no caso do sentimento, que concorre com
o pensamento, como função judicativa), são funções perceptivas que colaboram com o pensar. Portanto, quando alcancassem o mesmo nível do pensamento, efetuariam uma trans
formação na disposição que iria contradizer a tendência pró
pria do pensamento. Converteriam a disposição judicativa
numa disposição r>erceptiva. Assim, o princípio de raciona
lidade, imorescindível para o pensamento, seria reprimido
em favor da irracionalidade da simples percepção. Por con
seguinte, a função secundária só é possível e útil na medida
em aue serve à função principal, sem que possa aspirar à au
tonomia do seu próprio princípio.
Para todos os tipos com que deparamos na prática é
válido o princípio básico de que, álém da função principal,
dispõem de uma função secundária relativamente consciente,
mas inteiramente distinta, sob todos os aspectos, da essência
da função principal. Assim, por exemplo, resultam dessas
misturas os aspectos bem conhecidos do intelecto prático que
se alia à percepção, do talento especulativo interligado à in
tuição, da intuição artística que escolhe e expõe suas ima
gens servindo-se do juízo do sentimento, da intuição filosó
fica que, em virtude de um vigoroso intelecto, transfere sua
visão para a esfera inteligível, etc.
Correspondendo à relação funcional consciente, consti
tui-se o agrupamento funcional inconsciente. Assim, por
exemplo, a um intelecto prático consciente corresponde uma
disposição inconsciente íntuitTvo-sentímentnl, em qu* a fun
ção de sentir está relativamente mais travada que a de intuir.
Essa particularidade só tem interesse, é certo, para os que
se ocupam, na prática, do tratamento psicológico de tais ca
sos. Mas, para esses, é muito importante conhecê-la. Ob
servei, por exemplo, com bastante freqüência, que num in
telectual sui generfs, o médico esforçava-se por provocar o de
470
TIPOS PSICOLÓGICOS
senvolvimento da função sentimental atuando diretamente so
bre o inconsciente. Tal intento estava irremediavelmente con
denado ao fracasso, pois envolve uma violência enorme, do
ponto de vista consciente. Mas se houvesse êxito, acarreta
ria uma verdadeira subordinação obsessiva do paciente em
relação ao médico, uma “transferência” que só brutalmente
poderia ser anulada,, visto que pela violência praticada o
paciente ficaria privado de ponto de vista, ou melhor, seu
ponto de vista seria o seu médico, O acesso ao inconsciente
e à função reprimida abre-se por si mesmo, por assim dizer,
e com uma suficiente' garantia para o ponto de vista cons
ciente, quando se provoca o desenvolvimento através da fun
ção secundária, como no caso de um tipo racional por meio
de uma função irracional: Esta fornece ao ponto de vista
consciente uma visão panorâmica tal do possível, do que se
prenuncia, do devir, que a consciência fica suficientemente
protegida contra a ação destrutiva do inconsciente. Inver
samente, um tipo irracional quer um desenvolvimento mais
vigoroso da função secundária representada na consciência,
que lhe permita estar suficientemente preparado para en
frentar a investida do inconsciente.
As funções inconscientes encontram-se em estado arcaico-animal. Suas expressões simbólicas, que aparecem em so
nhos e fantasias, costumam representar dois animais ou dois
monstros que lutam ou que se defrontam.
í a l v e z ao leitor pareça supérfluo acrescentar ao texto da
minha investigação um capítulo especial sobre definições de
conceitos. Mas sei, por experiência, que todas as precau
ções são poucas, precisamente em obras psicológicas, no que
diz respeito a conceitos e expressões, visto que, de fato, ob
servam-se, no âmbito da Psicologia, as maiores variações nos
conceitos, dando origem às mais pertinazes e errôneas inter
pretações. Essa desvantagem não parece derivar apenas do
fato da Psicologia ser uma ciência nova, mas também do fato
da matéria de experiência, os materiais que se oferecem ao
exame científico, não ser de molde a facilitar uma apresen
tação concreta, por assim dizer, aos olhos do leitor. O psi
cólogo investigador vê-se obrigado, repetidas vezes, a expor
a realidade por ele observada recorrendo a descrições difu
sas e mais ou menos indiretas. Só quando nos referimos a
coisas elementares, acessíveis ao número e à medição, pode
mos fazer uso da descrição direta. Mas o que é que na ver
dadeira psicologia do homem pode experimentar-se e obser
var-se como fato suscetível de' apreensão pela medida e o
número? Tais fatos existem e eu próprio creio já ter demons
trado, precisamente, com os meus estudos sobre associações,1
que certos fatos complicados são acessíveis a um método que
utiliza a medição. Mas quem tiver penetrado mais fundo na
essência da Psicologia e, ao considerá-la uma ciência, enfren
tá-la com um máximo de exigências, não se conformando com
que sua existência se reduza aos limites impostos pela meto
dologia própria das Ciências Naturais, reconhecerá inevita
i
Jc n c ,
Diagnostische Ássozlationsstudien,
472
TIPOS PSICOLÓGICOS
velmente que jamais conseguirá fazer que um método expe
rimental corresponda e satisfaça ao que a essência da alma
liumana exige, e, ainda direi mais, não conseguirá sequer ofe
recer-nos uma imagem de fidelidade aproximada aos com
plexos fenômenos psíquicos.
Quando abandonamos o âmbito dos fatos apreensíveis pe
la medida e o numero, temos de cingir-nos a conceitos que
nos sirvam de substitutivos para o número e a medida. A
certeza que éstes outorgam ao fato observado pode ser subs
tituída pela certeza do conceito. Ora, todos os investigadores
deste ramo sabem até que ponto são vagos e èquívocos os
conceitos psicológicos correntes. Isto chega ao extremo de
que só com muito custo é possível fazerem-se entender. Se
considerarmos, por exemplo, o conceito “sentimento” e ten
tarmos averiguar tudo o que nele se inclui, poderemos fazer
uma idéia de quanto é variável e equívoca a natureza dos
conceitos psicológicos, ainda os mais correntes. Contudo, al
go de característico se exprime com tal conceito, inacessível,
sem dúvida, à medida e ao número, mas apreensível em sua
existência, apesar de tudo. Não é possível renunciar ou ne
gar esses fatos, à semelhança do que faz a Psicologia fisio
lógica de W u n d t , como fenômenos fundamentais e essenciais,
substituindo-os por fatos elementares ou diluindo-os neles.
Uma das partes principais da Psicologia perder-se-ia, com
efeito.
Para superar essa situação, criada pela supervalorização
da metodologia própria das Ciências Naturais, somos obriga
dos a recorrer a conceitos bem definidos. Para chegarmos
a isso, é necessário, sem dúvida, o trabalho de muitos, até
certo ponto, o consensus gentium. Ora, como não se pode
chegar a esse ponfo com facilidade nem rapidez, o investi
gador terá de esforçar-se, pessoalmente, em dar pelo menos
aos seus próprios conceitos alguma solidez e exatidão. A
melhor maneira de fazê-lo é explicando o significado dos
conceitos de que se serviu em suas obras, de maneira que
todo mundo fique em situação de saber o que, com eles, se
pretende exprimir.
Respondendo a essa necessidade, passo a seguir, a ex
plicar, por ordem alfabética, os principais conceitos psico
lógicos de que me utilizo. Ao mesmo tempo, solicito ao lei
tor que, em caso de dúvida, cinja-se a essas explicações. Na
turalmente, todos compreenderão que, com tais esclarecimen
DEFIN IÇÕES
473
tos e definições, proponho-me justificar o sentido em que me
utilizo dos conceitos, mas sem pretender, de maneira ne
nhuma, que o uso que deles faço seja o único possível ou
aquele que reputo absolutamente certo e insubstituível.
Abstração. A abstração é, como a palavra já indica, uma
extração ou separação de um conteúdo (um significado, uma
característica geral, etc.) de um contexto que ainda contém
outros elementos, cuja combinação constitui, em conjunto, al
go único e individual e, portanto, inigualável. O singular,
o único, o inigualável, constituem um obstáculo ao conheci
mento, pelo que, ao propósito de conhecer, parecerão incon
venientes todos os demais elementos combinados com aquele
que considera essencial.
Por conseguinte, a abstração é aquela atividade do espí
rito que liberta o conteúdo ou o fato considerado essencial,
de sua vinculação a elementos considerados inconvenientes,
deles diferenciando (ver Diferenciação) o dito conteúdo ou
fato. Em sua acepção mais ampla, abstrato é tudo o que
fica separado de quanto se considera inconveniente, no que
se refere a seu significado.
A abstração é uma atividade que se identifica, principal
mente, com as funções psicológicas. Existe um pensamento
que abstrai, assim como um sentimento, uma percepção e uma
intuição (ver estes conceitos). O pensamento que abstrai
separa daquilo que não lhe convém o conteúdo caracterizado
por qualidades lógicas e de reflexão. O sentimento que abs
trai faz o mesmo com o conteúdo sentimentalmente caracte
rizado. A percepção e a intuição agem de maneira idêntica.
Por conseguinte, há pensamentos abstratos, tanto quanto sen
timentos abstratos. S u l l y classificava estes últimos de inte
lectuais, estéticos e morais.2 N a h l o w s k y acrescentou o sen
timento religioso.8 O sentimento abstrato, em minha opi
nião, corresponde aos sentimentos “superiores” ou "ideais”
de N a h l o w s k y . A percepção abstrata poderia classificar-se
como percepção estética, em contraste com a percepção sensorial (ver Percepção), e a intuição abstrata como intuição
simbólica, em confronto com a intuição fantástica (ver Fan
tasia e Intuição).
T h e H ttm an M l n d , 1892, Vol. II, cap. 10.
a
Su ix y ,
*
N a h l o w s k y ,
D a s G efühlsleben, 1907, pág. 48.
476
TIPOS PSICOLÓGICOS
lidades sentimentais de prazer e gosto ou de desprazer e
desgosto”. 7 Bleuler diferencia da afetiviçlade, por uma par
te, as percepções sensoriais e outras percepções físicas; e,
por outra parte, os “sentimentos”, na medidá em que cons
tituem processos perceptivos interiores (por exemplo, o sen
timento de certeza, de probabilidade) e pensamentos, oü co
nhecimentos obscuros. 8
Alma. No decorrer de minhas investigações sobre a es
trutura do inconsciente, fui obrigado a estabelecer uma dis
tinção conceptual entre alma e psique. Por psique entendo a
totalidade dos fenômenos psíquicos, tanto da consciência co
mo do inconsciente. Por outra parte, entendo alma como
um limitado complexo de funções que fica melhor caracteri
zado pela expressão "personalidade”. Para a descrição do
que pretendo agora dizer, vefo-me obrigado a recorrer a al
guns pontos de vista que se afastam um pouco do tema. Tra
ta-se, principalmente, dos fenômenos do sonambulismo, da
duplicidade de caráter e do desdobramento de personalidade,
a propósito dos quais se devem aos franceses, principalmente,
obras de grande mérito. Foram tais fenômenos que nos le
varam a adotar o ponto de vista de uma eventual multipli
cidade de personalidades num mesmo e único indivíduo. 9 É
claro que, num indivíduo normal, semelhante multiplicidade
de personalidades nunca se manifestará