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"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando
por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo
nível."
DO ORIGINAL INGLÊS:
H1STORY OF WESTERN PHILOSOPHY
HISTÓRIA DA FILOSOFIA OCIDENTAL
LIVRO PRIMEIRO
A FILOSOFIA ANTIGA
LIVRO SEGUNDO
A FILOSOFIA CATÓLICA
LIVRO TERCEIRO
A FILOSOFIA MODERNA
LIVRO QUARTO
A FILOSOFIA MODERNA
1957
Direitos para a língua portuguesa adquiridos pela
COMPANHIA EDITORA NACIONAL
Rua dos Gusmões, 639 – São Paulo
Que se reserva a propriedade desta tradução.
Impresso nos Estados Unidos do Brasil
Printed in the United States of Brazil
ÍNDICE
PREFÁCIO
INTRODUÇÃO
LIVRO PRIMEIRO
A Filosofia Antiga
PRIMEIRA PARTE – OS PRÉ-SOCRÁTICOS
CAPÍTULO I
O Nascimento da civilização Grega
CAPÍTULO II
A Escola de Mileto
CAPÍTULO III
Pitágoras
Capítulo IV
Heráclito
CAPÍTULO V
PARMÊNIDES
CAPÍTULO VI
Empédocles
CAPÍTULO VII
Atenas e a Cultura
CAPÍTULO VIII
Anaxágoras
CAPITULO IX
Os Atomistas
CAPÍTULO X
Protágoras
SEGUNDA PARTE – SÓCRATES, PLATÃO E ARISTÓTELES
CAPÍTULO XI
Sócrates
CAPÍTULO XII
A Influência de Esparta
CAPÍTULO XIII
A Fonte das idéias de Platão
CAPÍTULO XIV
A Utopia de Platão
CAPÍTULO XV
A Teoria das idéias
CAPÍTULO XVI
A Teoria de Platão Sobre a Imortalidade
CAPÍTULO XVII
A Cosmogonia de Platão
CAPÍTULO XVIII
Conhecimento e Percepção Em Platão
CAPÍTULO XIX
A Metafísica de Aristóteles
CAPÍTULO XX
A Ética de Aristóteles
CAPITULO XXI
A Política de Aristóteles
CAPÍTULO XXII
A Lógica de Aristóteles
CAPÍTULO XXIII
A Física de Aristóteles
CAPÍTULO XXIV
As Matemáticas e a Astronomia Gregas Primitivas
TERCEIRA PARTE – A FILOSOFIA ANTIGA DEPOIS DE ARISTÓTELES
CAPÍTULO XXV
O Mundo Helenístico
CAPÍTULO XXVI
Cínicos e Céticos
CAPÍTULO XXVII
Os Epicuristas
CAPÍTULO XXVIII
O Estoicismo
CAPÍTULO XXIX
O Império Romano em Relação com a Cultura
CAPÍTULO XXX
Plotino
HISTÓRIA DA FILOSOFIA OCIDENTAL
Livro Segundo
INTRODUÇÃO
LIVRO SEGUNDO
A Filosofia – Católica
PRIMEIRA PARTE – OS PADRES DA IGREJA
CAPÍTULO I
O DESENVOLVIMENTO RELIGIOSO DOS JUDEUS
CAPÍTULO II
O CRISTIANISMO DURANTE OS QUATRO PRIMEIROS
SÉCULOS
CAPÍTULO III
TRÊS DOUTORES DA IGREJA
CAPÍTULO IV
A FILOSOFIA E A TEOLOGIA DE SANTO AGOSTINHO
CAPÍTULO V
OS SÉCULOS QUINTO E SEXTO
CAPÍTULO VI
SÃO BENEDITO E GREGÓRIO O GRANDE
SEGUNDA PARTE – OS ESCOLÁSTICOS
CAPÍTULO VII
O PAPADO NA ERA DO OBSCURANTISMO
CAPÍTULO VIII
JOÃO SCOTO ERÍGENA
CAPÍTULO IX
A REFORMA ECLESIÁSTICA NO SÉCULO XI
CAPÍTULO X
A CULTURA E A FILOSOFIA MAOMETANAS
CAPÍTULO XI
O SÉCULO XII
CAPÍTULO XII
O SÉCULO XIII
CAPÍTULO XIII
SANTO TOMAS DE AQUINO
CAPÍTULO XIV
OS ESCOLÁSTICOS FRANCISCANOS
CAPÍTULO XV
O ECLIPSE DO PAPADO
LIVRO TERCEIRO
A Filosofia Moderna
PRIMEIRA PARTE – DA RENASCENÇA ATÉ HUME
CAPÍTULO I
CARACTERÍSTICAS GERAIS
CAPÍTULO II
A RENASCENÇA ITALIANA
CAPÍTULO III
MAQUIAVEL
CAPÍTULO IV
ERASMO E SIR THOMAS MORE
CAPÍTULO V
A REFORMA E A CONTRA-REFORMA
CAPÍTULO VI
A ASCENSÃO DA CIÊNCIA
CAPÍTULO VII
FRANCIS BACON
CAPÍTULO VIII
O LEVIATÃ DE HOBBES
CAPÍTULO IX
DESCARTES
CAPÍTULO X
SPINOZA
CAPÍTULO XI
LEIBNIZ
CAPÍTULO XII
O LIBERALISMO FILOSÓFICO
CAPÍTULO XIII
A TEORIA DO CONHECIMENTO DE LOCKE
CAPÍTULO XIV
A FILOSOFIA POLÍTICA DE LOCKE
CAPÍTULO XV
A INFLUÊNCIA DE LOCKE
CAPÍTULO XVI
BERKELEY
CAPÍTULO XVII
HUME
LIVRO QUARTO
A Filosofia Moderna
SEGUNDA PARTE – DESDE ROUSSEAU ATÉ O PRESENTE
CAPÍTULO XVIII
O MOVIMENTO ROMÂNTICO
CAPÍTULO XIX
ROUSSEAU
CAPÍTULO XX
KANT
CAPÍTULO XXI
CORRENTES DO PENSAMENTO NO SÉCULO XIX
CAPÍTULO XXII
HEGEL
CAPÍTULO XXIII
BYRON
CAPÍTULO XXIV
SCHOPENHAUER
CAPÍTULO XXV
NIETZSCHE
CAPÍTULO XXVI
OS UTILITÁRIOS
CAPÍTULO XXVII
KARL MARX
CAPÍTULO XXVIII
BE RG SO N
CAPÍTULO XXIX
WILLIAM JAMES
CAPÍTULO XXIX
JOHN DEWEY
CAPÍTULO XXXI
A FILOSOFIA DA ANÁLISE LÓGICA
PREFÁCIO
Algumas palavras de desculpa e de explicação são aqui necessárias, para que
este livro não depare com uma crítica ainda mais severa do que aquela que
indubitavelmente merece.
Devo apresentar minhas desculpas tanto aos especialistas das várias escolas,
como aos filósofos, individualmente. Com a possível exceção de Leibniz, todos os
outros filósofos de que trato são mais familiares a algumas outras pessoas do que
a mim. Todavia, para que possa escrever-se livros que abranjam um amplo
campo, é inevitável, já que não somos imortais, que aqueles que escrevem tais
obras dediquem menos tempo a cada uma de suas partes do que o indivíduo que
se limita unicamente a um autor ou a um breve período. Certos eruditos de
inflexível austeridade hão de julgar, certamente, que os livros que abrangem
amplo campo não deveriam, de modo algum, ser escritos, mas que, se o fossem,
deveriam consistir de monografias redigidas por grande número de autores. Na
cooperação, porém, de muitos autores, algo de essencial se perde. Para que haja
unidade no movimento da história, para que haja relação íntima entre o que
aconteceu antes e o que vem depois, é necessário que, em tal exposição, os
períodos anteriores e os que lhes sucedem sejam sintetizados num único espírito.
O estudante de Rousseau poderá ter dificuldade em fazer justiça quanto à relação
existente entre ele e a Esparta de Platão e de Plutarco; o historiador de Esparta
pode não ter, profeticamente, consciência de Hobbes, Fichte e Lenin. Tornar
patentes tais relações constitui um dos propósitos deste livro – e esse propósito
somente uma ampla perspectiva poderia realizar.
Há muitas histórias da filosofia, mas nenhuma delas, que eu saiba, tem a mesma
finalidade da minha. Os filósofos são, ao mesmo tempo, causa e efeito: efeito de
suas circunstâncias sociais e da política e instituições de sua época; causa
(quando afortunados) de crenças que modelam a política e as instituições de
épocas posteriores. Na maioria das histórias da filosofia, cada filósofo aparece
como se estivesse no meio de um vácuo; suas idéias são expostas sem conexão,
exceto, quando muito, quanto ao que se refere aos filósofos anteriores. Eu
procurei, ao contrário, apresentar cada filósofo, tanto quanto a verdade o permite,
como um produto de seu milieu, um homem em quem se cristalizaram e
concentraram pensamentos e sentimentos que, de maneira vaga e difusa, eram
comuns à comunidade a que pertencia.
Isso exigiu a inserção de certos capítulos de história puramente social.
Ninguém pode compreender os estóicos e os epicuristas sem possuir certos
conhecimentos da época helenística, nem entender os escolásticos sem saber
alguma coisa do desenvolvimento da Igreja, desde o século V ao século XIII.
Expus, pois, brevemente, aquelas partes dos principais momentos históricos que,
na minha opinião, maior influência exerceram sobre o pensamento filosófico,
tendo-o feito, da maneira mais completa possível, nos pontos em que a história
talvez possa ser menos familiar a alguns leitores — como, por exemplo, ao
referir-me ao começo da Idade Média. Excluí, todavia, rigorosamente, desses
capítulos históricos, tudo o que me pareceu ter pouca ou nenhuma relação com a
filosofia contemporânea ou subsequente.
O problema de seleção, num livro como este, é muito difícil. Sem
pormenores, um livro torna-se árido e desinteressante; com demasiados
pormenores, corre o risco de tornar-se intoleravelmente extenso. Procurei
encontrar um meio termo, tratando apenas dos filósofos que me parecem ter
considerável importância, mencionando, em relação a eles, certos pormenores
que, embora destituídos de importância fundamental, tem valor, devido a certas
qualidades vivas e esclarecedoras.
A filosofia, desde tempos remotos, não tem sido apenas um tema das escolas
ou uma discussão entre um punhado de homens cultos. Tem constituído uma
parte integral da vida da comunidade, e foi como tal que procurei encará-la. Se
existe algum mérito neste livro, é deste ponto de vista que certamente deriva.
Este livro deve sua existência ao Dr. Albert C. Barnes, tendo sido elaborado
originalmente e apresentado, em parte, em forma de conferências, proferidas na
Fundação Barnes, na Pensilvânia.
Como na maior parte de minha obra publicada desde 1932, minha esposa,
Patrícia Rtissell, me prestou grande assistência, não só na parte de pesquisas,
como, também, de muitas outras maneiras.
INTRODUÇÃO
Os conceitos da vida e do mundo que chamamos “filosóficos” são produto de
dois fatores: um, constituído de fatores religiosos e éticos herdados; o outro, pela
espécie de investigação que podemos denominar “científica”, empregando a
palavra em seu sentido mais amplo. Os filósofos, individualmente, tem diferido
amplamente quanto às proporções em que esses dois fatores entraram em seu
sistema, mas é a presença de ambos que, em certo grau, caracteriza a filosofia.
“Filosofia” é uma palavra que tem sido empregada de várias maneiras, umas
mais amplas, outras mais restritas. Pretendo empregá-la em seu sentido mais
amplo, como procurarei explicar adiante.
A filosofia, conforme entendo a palavra, é algo intermediário entre a teologia
e a ciência. Como a teologia, consiste de especulações sobre assuntos a que o
conhecimento exato não conseguiu até agora chegar, mas, como ciência, apela
mais à razão humana do que à autoridade, seja esta a da tradição ou a da
revelação. Todo conhecimento definido — eu o afirmaria — pertence à ciência;
e todo dogma, quanto ao que ultrapassa o conhecimento definido, pertence à
teologia. Mas entre a teologia e a ciência existe uma Terra de Ninguém, exposta
aos ataques de ambos os campos: essa Terra de Ninguém é a filosofia. Quase
todas as questões do máximo interesse para os espíritos especulativos são de tal
índole que a ciência não as pode responder, e as respostas confiantes dos teólogos
já não nos parecem tão convincentes como o eram nos séculos passados. Achase o mundo dividido em espírito e matéria? E, supondo-se que assim seja, que é
espírito e que é matéria? Acha-se o espírito sujeito à matéria, ou é ele dotado de
forças independentes? Possui o universo alguma unidade ou propósito? Está ele
evoluindo rumo a alguma finalidade. Existem realmente leis da natureza, ou
acreditamos nelas devido unicamente ao nosso amor inato pela ordem? É o
homem o que ele parece ser ao astrônomo, isto é, um minúsculo conjunto de
carbono e água a rastejar, impotentemente, sobre um pequeno planeta sem
importância. Ou é ele o que parece ser a Hamlet? Acaso é ele, ao mesmo tempo,
ambas as coisas? Existe uma maneira de viver que seja nobre e uma outra que
seja baixa, ou todas as maneiras de viver são simplesmente inúteis? Se há um
modo de vida nobre, em que consiste ele, e de que maneira realizá-lo? Deve o
bem ser eterno, para merecer o valor que lhe atribuímos, ou vale a pena
procurá-lo, mesmo que o universo se mova, inexoravelmente, para a morte?
Existe a sabedoria, ou aquilo que nos parece tal não passa do último refinamento
da loucura? Tais questões não encontram resposta no laboratório. A teologia tem
pretendido dar respostas, todas elas demasiado concludentes, mas a sua própria
segurança faz com que o espírito moderno as encare com suspeita. O estudo de
tais questões, mesmo que não se resolva esses problemas, constitui o empenho da
filosofia.
Mas por que, então, — poderíeis perguntar — perder tempo com problemas
tão insolúveis? A isto, poder-se-ia responder como historiador ou como indivíduo
que enfrenta o terror da solidão cósmica.
A resposta do historiador, tanto quanto me é possível dá-la, aparecerá no
decurso desta obra. Desde que o homem se tornou capaz de livre especulação,
suas ações, em muitos aspectos importantes, tem dependido de teorias relativas
ao mundo e à vida humana, relativas ao bem e ao mal. Isto é tão verdadeiro em
nossos dias como em qualquer época anterior. Para compreender uma época ou
uma nação, devemos compreender sua filosofia e, para que compreendamos sua
filosofia, temos de ser, até certo ponto, filósofos. Há uma relação causal
recíproca. As circunstâncias das vidas humanas contribuem muito para
determinar a sua filosofia, mas, inversamente, sua filosofia muito contribui para
determinar tais circunstâncias. Essa ação mútua, através dos séculos, será o tema
das páginas seguintes.
Há, todavia, uma resposta mais pessoal. A ciência diz-nos o que podemos
saber, mas o que podemos saber é muito pouco e, se esquecemos quanto nos é
impossível saber, tomamo-nos insensíveis a muitas coisas sumamente
importantes. A teologia, por outro lado, nos induz à crença dogmática de que
temos conhecimento de coisas que, na realidade, ignoramos e, por isso, gera uma
espécie de insolência impertinente com respeito ao universo. A incerteza, na
presença de grandes esperanças e receios, é dolorosa, mas temos de suportá-la,
se quisermos viver sem o apoio de confortadores contos de fadas. Não devemos
também esquecer as questões suscitadas pela filosofia, ou persuadir-nos de que
encontramos, para as mesmas, respostas indubitáveis. Ensinar a viver sem essa
segurança e sem que se fique, não obstante, paralisado pela hesitação, é talvez a
coisa principal que a filosofia, em nossa época, pode proporcionar àqueles que a
estudam.
A filosofia, ao contrário do que ocorreu com a teologia, surgiu, na Grécia, no
século VI antes de Cristo. Depois de seguir o seu curso na antiguidade, foi de
novo submersa pela teologia quando surgiu o Cristianismo e Roma se
desmoronou. Seu segundo período importante, do século XI ao século XIV, foi
dominado pela Igreja Católica, com exceção de alguns poucos e grandes
rebeldes, como, por exemplo, o imperador Frederico II (1195-1250). Este
período terminou com as perturbações que culminaram na Reforma. O terceiro
período, desde o século XVII até hoje, é dominado, mais do que os períodos que
o precederam, pela ciência. As crenças religiosas tradicionais mantém sua
importância, mas se sente a necessidade de que sejam justificadas, sendo
modificadas sempre que a ciência torna imperativo tal passo. Poucos filósofos
deste período são ortodoxos do ponto de vista católico, e o Estado secular adquire
mais importância em suas especulações do que a Igreja.
A coesão social e a liberdade individual, como a religião e a ciência, achamse num estado de conflito ou difícil compromisso durante todo este período. Na
Grécia, a coesão social era assegurada pela lealdade ao Estado – Cidade; o
próprio Aristóteles, embora, em sua época, Alexandre estivesse tomando
obsoleto o Estado-Cidade, não conseguia ver mérito algum em qualquer outro
tipo de comunidade. Variava grandemente o grau em que a liberdade individual
cedia ante seus deveres para com a Cidade. Em Esparta, o indivíduo tinha tão
pouca liberdade como na Alemanha ou na Rússia modernas; em Atenas, apesar
de perseguições ocasionais, os cidadãos desfrutaram, em seu melhor período, de
extraordinária liberdade quanto a restrições impostas pelo Estado. O pensamento
grego, até Aristóteles, é dominado por uma devoção religiosa e patriótica à
Cidade; seus sistemas éticos são adaptados às vidas dos cidadãos e contem grande
elemento político. Quando os gregos se submeteram, primeiro aos macedônios e,
depois, aos romanos, as concepções válidas em seus dias de independência não
eram mais aplicáveis. Isto produziu, por um lado, uma perda de vigor, devido ao
rompimento com as tradições e, por outro lado, uma ética mais individual e
menos social. Os estóicos consideravam a vida virtuosa mais como uma relação
da alma com Deus do que como uma relação do cidadão com o Estado.
Prepararam, dessa forma, o caminho para o Cristianismo, que, como o
estoicismo, era, originalmente, apolítico, já que, durante os seus três primeiros
séculos, seus adeptos não tinham influência no governo. A coesão social, durante
os seis séculos e meio que vão de Alexandre a Constantino, foi assegurada, não
pela filosofia nem pelas antigas fidelidades, mas pela força — primeiro a força
dos exércitos e, depois, a da administração civil. Os exércitos romanos, as
estradas romanas, a lei romana e os funcionários romanos, primeiro criaram e
depois preservaram um poderoso Estado centralizado. Nada se pode atribuir à
filosofia romana, já que esta não existia.
Durante esse longo período, as idéias gregas herdadas da época da liberdade
sofreram um processo gradual de transformação. Algumas das velhas idéias,
principalmente aquelas que deveríamos encarar como especificamente
religiosas, adquiriram uma importância relativa; outras, mais racionalistas, foram
abandonadas, pois não mais se ajustavam ao espírito da época. Desse modo, os
pagãos posteriores foram se adaptando à tradição grega, até esta poder
incorporar-se na doutrina cristã.
O Cristianismo popularizou uma idéia importante, já implícita nos
ensinamentos dos estóicos, mas estranha ao espírito geral da antiguidade, isto é, a
idéia de que o dever do homem para com Deus é mais imperativo do que o seu
dever para com o Estado.{1} A opinião de que “devemos obedecer mais a Deus
que ao homem”, como Sócrates e os Apóstolos afirmavam, sobreviveu à
conversão de Constantino, porque os primeiros cristãos eram arianos ou se
sentiam inclinados para o arianismo. Quando os imperadores se tornaram
ortodoxos, foi ela suspensa temporariamente. Durante o Império Bizantino,
permaneceu latente, bem como no Império Russo subsequente, o qual derivou do
Cristianismo de Constantinopla.{2} Mas no Ocidente, onde os imperadores
católicos foram quase imediatamente substituídos (exceto em certas partes da
Gália) por conquistadores bárbaros heréticos, a superioridade da lealdade
religiosa sobre a lealdade política sobreviveu e, até certo ponto, persiste ainda
hoje.
A invasão dos bárbaros pôs fim, por espaço de seis séculos, à civilização da
Europa Ocidental. Subsistiu, na Irlanda, até que os dinamarqueses a destruíram
no século IX. Antes de sua extinção produziu, lá, uma figura notável, Scotus
Erigena. No Império Oriental, a civilização grega sobreviveu, em forma
dissecada, como num museu, até à queda de Constantinopla, em 1453, mas nada
que fosse de importância para o mundo saiu de Constantinopla, exceto uma
tradição artística e os Códigos de Direito Romano de Justiniano.
Durante o período de obscuridade, desde o fim do século V até a metade do
século XI, o mundo romano ocidental sofreu algumas transformações
interessantes. O conflito entre o dever para com Deus e o dever para com o
Estado, introduzido pelo Cristianismo, adquiriu o caráter de um conflito entre a
Igreja e o rei. A jurisdição eclesiástica do Papa estendia-se sobre a Itália, França,
Espanha, Grã-Bretanha e Irlanda, Alemanha, Escandinávia e Polônia, A
princípio, fora da Itália e do sul da França, foi muito leve o seu controle sobre
bispos e abades, mas, desde o tempo de Gregório VII (fins do século XI), tomouse real e efetivo. Desde então o clero, em toda a Europa Ocidental, formou uma
única organização, dirigida por Roma, que procurava o poder inteligente e
incansavelmente e, em geral, vitoriosamente, até depois do ano 1300, em seus
conflitos com os governantes seculares. O conflito entre a Igreja e o Estado não
foi apenas um conflito entre o clero e os leigos; foi, também, uma renovação da
luta entre o mundo mediterrâneo e os bárbaros do Norte. A unidade da Igreja era
um reflexo da unidade do Império Romano; sua liturgia era latina, e os seus
homens mais proeminentes eram, em sua maior parte, italianos, espanhóis ou
franceses do sul. Sua educação, quando esta renasceu, foi clássica; suas
concepções da lei e do governo teriam sido mais compreensíveis para Marco
Aurélio do que para os monarcas contemporâneos. A Igreja representava, ao
mesmo tempo, continuidade com o passado e com o que havia de mais civilizado
no presente.
O poder secular, ao contrário, estava nas mãos de reis e barões de origem
teutônica, os quais procuravam preservar, o máximo possível, as instituições que
haviam trazido das florestas da Alemanha. O poder absoluto era alheio a essas
instituições, como também era estranho, a esses vigorosos conquistadores, tudo
aquilo que tivesse aparência de uma legalidade monótona e sem espírito. O rei
tinha de compartilhar seu poder com a aristocracia feudal, mas todos esperavam,
do mesmo modo, que lhes fosse permitido, de vez em quando, uma explosão
ocasional de suas paixões em forma de guerra, assassínio, pilhagem ou rapto. É
possível que os monarcas se arrependessem, pois, eram sinceramente piedosos e,
afinal de contas, o arrependimento era em si mesmo uma forma de paixão. A
Igreja, porém, jamais conseguiu produzir neles a tranquila regularidade de uma
boa conduta, como a que o empregador moderno exige e, às vezes, consegue
obter de seus empregados. De que lhes valia conquistar o mundo, se não podiam
beber, assassinar e amar como o espírito lhes exigia? E por que deveriam eles,
com seus exércitos de altivos, submeter-se às ordens de homens letrados,
dedicados ao celibato e destituídos de forças armadas? Apesar da desaprovação
eclesiástica, conservaram o duelo e a decisão das disputas por meio das armas, e
os torneios e o amor cortesão floresceram. Às vezes, num acesso de raiva,
chegavam a matar mesmo eclesiásticos eminentes.
Toda a força armada estava do lado dos reis, mas, não obstante, a Igreja saiu
vitoriosa. A Igreja ganhou a batalha, em parte, porque tinha quase todo o
monopólio do ensino e, em parte, porque os reis viviam constantemente em
guerra uns com os outros; mas ganhou-a, principalmente, porque, com muito
poucas exceções, tanto os governantes como o povo acreditavam sinceramente
que a Igreja possuía as chaves do céu. A Igreja podia decidir se um rei devia
passar a eternidade no céu ou no inferno; a Igreja podia absolver os súditos do
dever de fidelidade e, assim, estimular a rebelião. Além disso, a Igreja
representava a ordem em lugar da anarquia e, por conseguinte, conquistou o
apoio da classe mercantil que surgia. Na Itália, principalmente, esta última
consideração foi decisiva.
A tentativa teutônica de preservar pelo menos uma independência parcial da
Igreja manifestou-se não apenas na política, mas, também, na arte, no romance,
no cavalheirismo e na guerra. Manifestou-se muito pouco no mundo intelectual,
pois o ensino se achava quase inteiramente nas mãos do clero. A filosofia
explícita da Idade Média não é um espelho exato da época, mas apenas do
pensamento de um grupo. Entre os eclesiásticos, porém — principalmente entre
os frades franciscanos — havia alguns que, por várias razões, estavam em
desacordo com o Papa. Na Itália, ademais, a cultura estendeu-se aos leigos
alguns séculos antes de se estender até ao norte dos Alpes. Frederico II, que
procurou fundar uma nova religião, representa o extremo da cultura antipapista;
Tomás de Aquino, que nasceu no reino de Nápoles, onde o poder de Frederico
era supremo, continua sendo até hoje o expoente clássico da filosofia papal.
Dante, cerca de cinquenta anos mais tarde, conseguiu chegar a uma síntese,
oferecendo a única exposição equilibrada de todo o mundo ideológico medieval.
Depois de Dante, tanto por motivos políticos como intelectuais, a síntese
filosófica medieval se desmoronou. Teve ela, enquanto durou, uma qualidade de
ordem e perfeição de miniatura: qualquer coisa de que esse sistema se ocupasse,
era colocada com precisão em relação com o que constituía o seu cosmo
bastante limitado. Mas o Grande Cisma, o movimento dos Concílios e o papado
da renascença produziram a Reforma, que destruiu a unidade do Cristianismo e a
teoria escolástica de governo que girava em torno do Papa. No período da
Renascença, o novo conhecimento, tanto da antiguidade como da superfície da
terra, fez com que os homens se cansassem de sistemas, que passaram a ser
considerados como prisões mentais. A astronomia de Copérnico atribuiu à terra e
ao homem uma posição mais humilde do que aquela que haviam desfrutado na
teoria de Ptolomeu. O prazer pelos fatos recentes tomou o lugar, entre os homens
inteligentes, do prazer de raciocinar, analisar e construir sistemas. Embora a
Renascença, na arte, conserve ainda uma determinada ordem, prefere, quanto
ao que diz respeito ao pensamento, uma ampla e fecunda desordem. Neste
sentido, Montaigne é o mais típico expoente da época.
Tanto na teoria política como em tudo o mais, exceto a arte, a ordem sofre um
colapso. A Idade Média, embora praticamente turbulenta, era dominada, em sua
ideologia, pelo amor da legalidade e por uma teoria muito precisa do poder
político. Todo poder procede, em última análise, de Deus; Ele delegou poder ao
Papa nos assuntos sagrados, e ao Imperador nos assuntos seculares. Mas tanto o
Papa como o Imperador perderam sua importância durante o século XV. O Papa
tornou-se simplesmente um dos príncipes italianos, empenhado no jogo
incrivelmente complicado e inescrupuloso do poder político italiano. As novas
monarquias nacionais na França, Espanha e Inglaterra tinham, em seus próprios
territórios, um poder no qual nem o Papa nem o Imperador podiam interferir. O
Estado nacional, devido, em grande parte, à pólvora, adquiriu uma influência
sobre o pensamento e o modo de sentir dos homens, como jamais exercera
antes — influência essa que, progressivamente, destruiu o que restava da crença
romana quanto à unidade da civilização.
Essa desordem política encontrou sua expressão no Príncipe, de Maquiavel.
Na ausência de qualquer princípio diretivo, a política se transformou em áspera
luta pelo poder. O Príncipe dá conselhos astutos quanto à maneira de se participar
com êxito desse jogo. O que já havia acontecido na idade de ouro da Grécia,
ocorreu de novo na Itália renascentista: os freios morais tradicionais
desapareceram, pois eram considerados como coisa ligada à superstição; a
libertação dos grilhões tomou os indivíduos enérgicos e criadores, produzindo um
raro florescimento do gênio; mas a anarquia e a traição resultantes,
inevitavelmente, da decadência da moral, tornou os italianos coletivamente
impotentes, e caíram, como os gregos, sob o domínio de nações menos
civilizadas do que eles, mas não tão destituídas de coesão social.
Todavia, o resultado foi menos desastroso do que no caso da Grécia, pois as
nações que tinham acabado de chegar ao poder, com exceção da Espanha, se
mostravam capazes de tão grandes realizações como o havia sido a Itália.
Do século XVI em diante, a história do pensamento europeu é dominada pela
Reforma. A Reforma foi um movimento complexo, multiforme, e seu êxito se
deve a numerosas causas. De um modo geral, foi uma revolta das nações do
Norte contra o renovado domínio de Roma. A religião fora a força que subjugara
o Norte, mas a religião, na Itália, decaíra: o papado permanecia como uma
instituição, extraindo grandes tributos da Alemanha e da Inglaterra, mas estas
nações, que eram ainda piedosas, não podiam sentir reverência alguma para
com os Bórgias e os Médices, que pretendiam salvar as almas do purgatório em
troca de dinheiro, que esbanjavam no luxo e na imoralidade. Motivos nacionais,
motivos econômicos e motivos religiosos conjugaram-se para fortalecer a
revolta contra Roma. Além disso, os príncipes logo perceberam que, se a Igreja
se tomasse, em seus territórios, simplesmente nacional, eles seriam capazes de
dominá-la, tomando-se, assim, muito mais poderosos, em seus países, do que
jamais o haviam sido compartilhando o seu domínio com o Papa. Por todas essas
razões, as inovações teológicas de Lutero foram bem recebidas, tanto pelos
governantes como pelo povo, na maior parte da Europa Setentrional.
A Igreja Católica procedia de três fontes. Sua história sagrada era judaica; sua
teologia, grega, e seu governo e leis canônicas, ao menos indiretamente,
romanos. A Reforma rejeitou os elementos romanos, atenuou os elementos
gregos e fortaleceu grandemente os elementos judaicos. Cooperou, assim, com
as forças nacionalistas que estavam desfazendo a obra de coesão nacional que
tinha sido levada a cabo primeiro pelo Império Romano e, depois, pela Igreja
Romana. Na doutrina católica, a revelação divina não terminava na sagrada
escritura, mas continuava, de era em era, através da Igreja, à qual, pois, era
dever do indivíduo submeter suas opiniões pessoais. Os protestantes, ao contrário,
rejeitaram a Igreja como veículo da revelação divina; a verdade devia ser
procurada unicamente na Bíblia, que cada qual podia interpretar à sua maneira.
Se os homens diferissem em sua interpretação, não havia nenhuma autoridade
designada pela divindade que resolvesse tais divergências. Na prática, o Estado
reivindicava o direito que pertencera antes à Igreja — mas isso era uma
usurpação. Na teoria protestante, não devia haver nenhum intermediário terreno
entre a alma e Deus.
Os efeitos dessa mudança foram importantes. A verdade não mais era
estabelecida mediante consulta à autoridade, mas por meio da meditação íntima.
Desenvolver-se, rapidamente, uma tendência para o anarquismo na política e
misticismo na religião, o que sempre fora difícil de se ajustar à estrutura da
ortodoxia católica. Aconteceu que, em lugar de um único Protestantismo,
surgiram numerosas seitas; nenhuma filosofia se opunha à escolástica, mas havia
tantas filosofias quantos eram os filósofos. Não havia, no século XIII, nenhum
Imperador que se opusesse ao Papa, mas sim um grande número de reis
heréticos. O resultado disso, tanto no pensamento como na literatura, foi um
subjetivismo cada vez mais profundo, agindo primeiro como uma libertação
saudável da escravidão espiritual, mas caminhando, depois, constantemente, para
um isolamento pessoal, contrário à solidez social.
A filosofia moderna começa com Descartes, cuja certeza fundamental é a
existência de si mesmo e de seus pensamentos, dos quais o mundo exterior deve
ser inferido. Isso constitui apenas a primeira fase de um desenvolvimento que,
passando por Berkeley e Kant, chega a Fichte, para quem tudo era apenas uma
emanação do eu. Isso era uma loucura, e, partindo desse extremo, a filosofia tem
procurado, desde então, evadir-se para o mundo do senso comum cotidiano.
Com o subjetivismo na filosofia, o anarquismo anda de mãos dadas com a
política. Já no tempo de Lutero, discípulos inoportunos e não reconhecidos
haviam desenvolvido a doutrina do anabatismo, a qual, durante algum tempo,
dominou a cidade do Münster. Os anabatistas repudiavam toda lei, pois
afirmavam que o homem bom seria guiado, em todos os momentos, pelo Espírito
Santo, que não pode ser preso a fórmulas. Partindo dessas premissas, chegam ao
comunismo e à promiscuidade sexual. Foram, pois, exterminados, após uma
resistência heroica. Mas sua doutrina, em formas mais atenuadas, se estendeu
pela Holanda, Inglaterra e Estados Unidos; historicamente, e a origem do
“quakerismo”. Uma forma mais feroz de anarquismo, não mais relacionada com
a religião, surgiu no século XIX. Na Rússia, Espanha e, em menor grau, na Itália,
obteve considerável êxito, constituindo, até hoje, um pesadelo para as autoridades
americanas de imigração. Esta versão moderna, embora anti-religiosa, encerra
ainda muito do espírito do protestantismo primitivo; difere principalmente dele
devido ao fato de dirigir contra os governos seculares a hostilidade que Lutero
dirigia contra os Papas.
A subjetividade, uma vez desencadeada, já não podia circunscrever-se aos
seus limites, até que tivesse seguido seu curso. Na moral, a atitude enfática dos
protestantes, quanto à consciência individual, era essencialmente anárquica. O
hábito e o costume eram tão fortes que, exceto em algumas manifestações
ocasionais, como, por exemplo, a de Münster, os discípulos do individualismo na
ética continuaram a agir de maneira convencionalmente virtuosa. Mas era um
equilíbrio precário. O culto do século XVIII à “sensibilidade” começou a romper
esse equilíbrio: um ato era admirado não pelas suas boas consequências, ou
porque estivesse de acordo com um código moral, mas devido à emoção que o
inspirava. Dessa atitude nasceu o culto do herói, tal como foi manifestado por
Carly le e Nietzsche, bem como o culto by roniano da paixão violenta, qualquer
que esta seja.
O movimento romântico, na arte, na literatura e na política, está ligado a essa
maneira subjetiva de julgar-se os homens, não como membros de uma
comunidade, mas como objetos de contemplação esteticamente encantadores.
Os tigres são mais belos do que as ovelhas, mas preferimos que estejam atrás de
grades. O romântico típico remove as grades e delicia-se com os saltos
magníficos com que o tigre aniquila as ovelhas. Incita os homens a imaginar que
são tigres e, quando o consegue, os resultados não são inteiramente agradáveis.
Contra as formas mais loucas do subjetivismo nos tempos modernos tem
havido várias reações. Primeiro, uma filosofia de semi-compromisso, a doutrina
do liberalismo, que procurou delimitar as esferas relativas ao governo e ao
indivíduo. Isso começa, em sua forma moderna, com Locke, que é tão contrário
ao “entusiasmo” — o individualismo dos anabatistas — como à autoridade
absoluta e à cega subserviência à tradição. Uma rebelião mais extensa conduz à
doutrina do culto do Estado, que atribui ao Estado a posição que o Catolicismo
atribuía à Igreja, ou mesmo, às vezes, a Deus. Hobbes, Rousseau e Hegel
representam fases distintas desta teoria, e suas doutrinas se acham encarnadas,
praticamente, em Cromwell, Napoleão e na Alemanha moderna. O comunismo,
na teoria, está muito longe dessas filosofias, mas é conduzido, na prática, a um
tipo de comunidade bastante semelhante àquela de que resulta a adoração do
Estado.
Durante todo o transcurso deste longo desenvolvimento, desde 600 anos antes
de Cristo até aos nossos dias, os filósofos tem-se dividido entre aqueles que
querem estreitar os laços sociais e aqueles que desejam afrouxá-los. A esta
diferença, acham-se associadas outras. Os partidários da disciplina advogaram
este ou aquele sistema dogmático, velho ou novo, chegando, portanto, a ser, em
menor ou maior grau, hostis à ciência, já que seus dogmas não podiam ser
provados empiricamente. Ensinavam, quase invariavelmente, que a felicidade
não constitui o bem, mas que a “nobreza” ou o “heroísmo” devem ser a ela
preferidos. Demonstravam simpatia pelo que havia de irracional na natureza
humana, pois acreditavam que a razão é inimiga da coesão social. Os partidários
da liberdade, por outro lado, com exceção dos anarquistas extremados,
procuravam ser científicos, utilitaristas, racionalistas, contrários à paixão violenta,
e inimigos de todas as formas mais profundas de religião. Este conflito existiu, na
Grécia, antes do aparecimento do que chamamos filosofia, revelando-se já,
bastante claramente, no mais antigo pensamento grego. Sob formas diversas,
persistiu até aos nossos dias, e continuará, sem dúvida, a existir durante muitas
das eras vindouras.
É claro que cada um dos participantes desta disputa — como em tudo que
persiste durante longo tempo — tem a sua parte de razão e a sua parte de
equívoco. A coesão social é uma necessidade, e a humanidade jamais conseguiu,
até agora, impor a coesão mediante argumentos meramente racionais. Toda
comunidade está exposta a dois perigos opostos: por um lado, a fossilização,
devido a uma disciplina exagerada e um respeito excessivo pela tradição; por
outro lado, a dissolução, a submissão ante a conquista estrangeira, devido ao
desenvolvimento da independência pessoal e do individualismo, que tornam
impossível a cooperação. Em geral, as civilizações importantes começam por
um sistema rígido e supersticioso que, aos poucos, vai sendo afrouxado, e que
conduz, em determinada fase, a um período de gênio brilhante, enquanto perdura
o que há de bom na tradição antiga, e não se desenvolveu ainda o mal inerente à
sua dissolução. Mas, quando o mal começa a manifestar-se, conduz à anarquia e,
daí, inevitavelmente, a uma nova tirania, produzindo uma nova síntese, baseada
num novo sistema dogmático. A doutrina do liberalismo é uma tentativa para
evitar essa interminável oscilação. A essência do liberalismo é uma tentativa no
sentido de assegurar uma ordem social que não se baseie no dogma irracional, e
assegurar uma estabilidade sem acarretar mais restrições do que as necessárias a
preservação da comunidade. Se esta tentativa pode ser bem-sucedida, somente o
futuro poderá demonstrá-lo.
LIVRO PRIMEIRO
A Filosofia Antiga
PRIMEIRA PARTE – OS PRÉ-SOCRÁTICOS
CAPÍTULO I
O Nascimento da civilização Grega
Em toda a história, não há nada tão surpreendente nem tão difícil de explicar
como o repentino aparecimento da civilização na Grécia. Muito do que constitui
uma civilização já havia existido, milhares de anos antes, no Egito e na
Mesopotâmia, estendendo-se aos países vizinhos. Mas faltavam certos elementos
que foram fornecidos pelos gregos. O que estes realizaram na arte e na literatura
é conhecido de toda a gente, mas o que realizaram no campo puramente
intelectual é ainda mais excepcional. Inventaram as matemáticas{3}, a ciência e
a filosofia; foram os primeiros a escrever histórias, em lugar de meros anais;
especularam livremente sobre a natureza do mundo e as finalidades da vida, sem
que se achassem acorrentados a qualquer ortodoxia herdada. Foi tão espantoso o
que ocorreu que, até recentemente, os homens se contentavam em ficar
boquiabertos e a falar misticamente do gênio grego. É possível, porém,
compreender o desenvolvimento da Grécia em termos científicos, e vale bem a
pena fazê-lo.
A filosofia começa com Tales, que, afortunadamente, pode ser situado
cronologicamente devido ao fato de haver predito um eclipse que, segundo os
astrônomos, ocorreu no ano 585 antes de Cristo. A filosofia e a ciência — que, a
princípio, não se achavam separadas — nasceram, pois, juntas, no começo do
século VI. Que é que havia acontecido na Grécia e nos países vizinhos antes
dessa época?
Qualquer resposta tem de ser, em parte, conjetural, mas a arqueologia, em
nosso século, nos proporcionou muito mais conhecimentos do que os que
possuíam os nossos avós.
A arte de escrever foi inventada no Egito cerca do ano 4 000 antes de Cristo, e,
não muito mais tarde, na Mesopotâmia. Em cada um dos países, a escrita
começou com desenhos dos objetos que se queria designar. Esses desenhos se
tornaram logo convencionais, de modo que as palavras eram representadas por
ideogramas, como ainda o são na China. No decurso de milhares de anos, esse
incômodo sistema se transformou na escrita alfabética.
O início do desenvolvimento da civilização no Egito e na Mesopotâmia foi
devido ao Nilo, ao Tigre e ao Eufrates, que tomaram a agricultura muito fácil e
bastante produtiva. A civilização era, em muitos aspectos, semelhante à que os
espanhóis encontraram no México e no Peru. Havia um rei, um rei divinizado,
com poderes despóticos; no Egito, todas as terras lhe pertenciam. Havia uma
religião politeísta, com um deus supremo com o qual o rei tinha relação
particularmente íntima. Existia uma aristocracia militar, bem como uma
aristocracia sacerdotal. Esta última conseguia, com frequência, usurpar o poder
real, se o rei era fraco ou estivesse empenhado numa guerra difícil. Os
cultivadores do solo eram servos, pertencentes ao rei, à aristocracia ou ao clero.
Havia diferença considerável entre a teologia egípcia e a babilônica. Os
egípcios preocupavam-se com a morte, e acreditavam que as almas dos mortos
desciam a um mundo subterrâneo, onde eram julgadas por Osíris segundo a sua
maneira de viver terrena. Acreditavam que a alma voltaria finalmente ao corpo;
isso conduziu à mumificação e à construção de túmulos esplêndidos. As
pirâmides foram construídas por vários reis no fim do quarto milênio antes de
Cristo, e no começo do terceiro. Depois desse tempo, a civilização egípcia
tornou-se cada vez mais estereotipada, e o conservantismo religioso tornou
impossível o progresso. Cerca de 1 800 anos antes de Cristo, o Egito foi
conquistado pelos semitas chamados hicsos, que governaram o país durante
cerca de dois séculos. Não deixaram vestígio permanente no Egito, mas a sua
presença lá deve ter contribuído para que a civilização egípcia se estendesse à
Síria e à Palestina.
A Babilônia teve um desenvolvimento militar maior do que o do Egito. A
princípio, a raça dominante não era a semita, mas a dos “sumérios”, cuja origem
é desconhecida. Inventaram a escrita cuneiforme, que os conquistadores semitas
adotaram. Houve um período em que existiam várias cidades independentes que
lutavam entre si, mas, no fim, a Babilônia conquistou a supremacia, criando um
império. Os deuses das outras cidades tiveram de subordinar-se, e Marduk, o deus
da Babilônia, adquiriu uma posição como a que mais tarde teve Zeus no panteão
grego. Ocorrera o mesmo no Egito, mas em tempos muito mais remotos.
As religiões do Egito e da Babilônia, como outras religiões antigas, foram
originalmente cultos à fecundidade. A terra era feminina; o sol, masculino. O
touro era considerado, em geral, como encarnação da fertilidade viril, sendo
comuns os deuses-touros. Na Babilônia, Ishtar, a deusa da terra, era a mais alta
das divindades femininas. Em toda a Ásia Ocidental, a Grande Mãe era adorada
sob vários nomes. Quando os colonizadores gregos da Ásia Menor fundaram
templos em sua honra, chamaram-na Ártemis e adotaram o culto existente. Esta
é a origem da “Diana dos Éfesos”.{4} O Cristianismo transformou-a na Virgem
Maria, e um Concilio, em Éfeso, legitimou o título de “Mãe de Deus” aplicado a
Nossa Senhora.
Nos lugares em que uma religião estava ligada ao governo de um império,
motivos políticos contribuíram muito para transformar o seu caráter primitivo. Se
um deus ou uma deusa estivessem associados ao Estado, tinham de proporcionar
não apenas uma colheita abundante, mas vitória na guerra. Uma rica casta
sacerdotal elaborava o ritual e a teologia, e reunia num panteão as diversas
divindades das regiões que compunham o império.
Através de sua ligação com o governo, os deuses associavam-se também com
a moralidade. Os legisladores recebiam seus códigos de um deus; dessa maneira,
uma infração da lei se transformava numa impiedade. O código legal mais
antigo que se conhece é o de Hammurabi, rei da Babilônia, cerca de 2 100 A. C.
O rei afirmou que esse código lhe fora entregue por Marduk. A conexão existente
entre a religião e a moralidade se tornou cada vez mais estreita nos tempos
antigos.
A religião da Babilônia, ao contrário da do Egito, preocupava-se mais com a
prosperidade neste mundo do que com a felicidade no outro. A magia, a profecia
e a astrologia, embora não fossem tipicamente babilônicas, desenvolveram-se
muito mais lá do que em qualquer outro lugar, e foi principalmente através da
Babilônia que se transmitiram à antiguidade posterior. Procedem da Babilônia
algumas coisas que pertencem à ciência: a divisão do dia em vinte e quatro
horas, bem como a do círculo em 360 graus, além do descobrimento de um
círculo de eclipses, que permitiu predizer-se com segurança os eclipses lunares, e
com certa probabilidade os eclipses solares. Este conhecimento babilônico, como
veremos, foi adquirido por Tales.
As civilizações do Egito e da Mesopotâmia eram agrícolas, e as das nações
vizinhas, a princípio, pastoril. Um novo elemento entrou com o desenvolvimento
do comércio, que era, no começo, quase que inteiramente marítimo. As armas,
até cerca do ano 1 000 A. C., eram feitas de bronze, e as nações que não tinham
em seus territórios os metais necessários eram obrigados a obtê-los por meio do
comércio ou da pirataria. A pirataria era um expediente temporário, e onde as
condições sociais e políticas eram bastante estáveis, o comércio se tornava mais
proveitoso. Parece que, no comércio, a ilha de Creta foi pioneira. Durante onze
séculos, aproximadamente, isto é, do ano 2 500 A. C. Ao ano 1 400 A. C., uma
cultura artisticamente avançada, chamada Minoana, floresceu em Creta. O que
sobrevive da arte cretense dá uma impressão de alegria e de um luxo quase
decadente, muito diferente da melancolia aterradora dos templos egípcios.
Quase nada se sabia dessa importante civilização antes das escavações de Sir
Arthur Evans e outros. Era uma civilização marítima, em estreito contato com a
do Egito (exceto durante o tempo dos hicsos). Pelas pinturas egípcias, vê-se,
claramente, que uma parte considerável do comércio entre o Egito e Creta era
realizada pelos navegantes cretenses. Esse comércio atingiu o auge cerca do ano
1 500 A. C. A religião cretense parece ter tido certas afinidades com as religiões
da Síria e da Ásia Menor, mas na arte havia mais afinidade com o Egito, embora
a arte cretense fosse mais original e extraordinariamente cheia de vida. O centro
da civilização cretense era o chamado “palácio de Minos”, em Cnosso, do qual
ficaram recordações nas tradições da Grécia clássica. Os palácios de Creta eram
magníficos, mas foram destruídos no fim do século XIV antes de Cristo,
provavelmente por invasores vindos da Grécia. A cronologia da história cretense
baseia-se em objetos egípcios encontrados em Creta, e em objetos cretenses
encontrados no Egito. Nossos conhecimentos baseiam-se apenas em provas
arqueológicas.
Os cretenses adoravam uma deusa, ou, talvez, várias deusas. Dentre estas, a
mais segura era a “Senhora dos Animais”, que era caçadora e, provavelmente, a
fonte da Ártemis clássica.{5} Ao que parece, era ela também mãe; a única
deidade masculina, à parte o “Senhor dos Animais”, era o seu pequeno filho. Há
certas provas de fé numa outra vida, na qual, como na crença egípcia, as ações
praticadas na terra recebem recompensa ou castigo. Mas, em seu todo, parece
que os cretenses foram um povo alegre, não muito oprimido por superstições
sombrias. Apreciavam corridas de touros, nas quais toureiros não apenas
masculinos, mas, também, femininos, realizavam surpreendentes proezas
acrobáticas. Sir Arthur Evans achava que as corridas de touros constituíam
celebrações religiosas, e que os participantes pertenciam à mais alta nobreza,
mas esta opinião não é aceita por todos. As pinturas que sobreviveram são cheias
de movimento e realismo.
Os cretenses possuíam uma escrita linear, mas esta não foi decifrada. No lar,
eram tranquilos, e suas cidades não possuíam muralhas; eram defendidos, sem
dúvida, pela força naval.
Antes da destruição da cultura minoana, esta se estendeu, no ano de 1 600,
aproximadamente, pelo continente grego, onde sobreviveu, através de fases
graduais de modificação, até cerca do ano 900 A. C. Esta civilização do
continente se chamava micênica; é conhecida através dos túmulos dos reis e das
fortalezas situadas nos cumes dos montes, os quais revelam mais receio da
guerra do que o que existia em Creta. Tanto os túmulos como as fortalezas
continuaram a impressionar a imaginação da Grécia clássica. Os produtos mais
antigos da arte, existentes nos palácios, pertencem realmente ao artesanato
cretense ou são muitíssimos semelhantes aos de Creta. A civilização micênica,
vista através das brumas da lenda, é a que foi descrita por Homero.
Há muita incerteza quanto ao que se refere aos micenenses. Deviam acaso
sua civilização ao fato de terem sido conquistados pelos cretenses? Falavam
grego, ou pertenciam a uma raça indígena anterior? Estas perguntas não
comportam nenhuma resposta precisa, mas há indícios de que foram,
provavelmente, conquistadores que falavam o grego, e de que pelo menos a
aristocracia consistia de invasores loiros do Norte, que trouxeram consigo o
idioma grego{6}. Os gregos chegaram à Grécia em três ondas sucessivas;
primeiro os jônios, depois os aqueus e, finalmente, os dórios. Os jônios, embora
conquistadores, parecem ter adotado quase inteiramente a civilização da Grécia.
Mas os jônios foram perturbados e, em grande parte, despojados pelos seus
sucessores, os aqueus. Sabe-se, pelas inscrições encontradas em Boghaz-Keui,
que os aqueus tinham um grande império organizado no século XIV A. C. A
civilização micênica, que havia sido debilitada pela guerra dos jônios e aqueus,
foi praticamente destruída pelos dórios, os últimos invasores gregos. Enquanto
que os invasores anteriores haviam adotado, em grande parte, a religião
minoana, os dórios conservaram a religião indo-europeia de seus ancestrais. A
religião dos tempos micênicos, todavia, persistiu, principalmente nas classes
inferiores, sendo que a religião da Grécia clássica era uma mistura de ambas.
Algumas das deusas clássicas eram, com efeito, de origem micênica.
Embora a descrição acima pareça provável, devemos lembrar-nos de que
não sabemos se os micenenses eram gregos ou não. O que sabemos é que sua
civilização decaiu, que, na época em que chegou ao fim, o ferro substituiu o
bronze e que, durante algum tempo, a supremacia marítima passou aos fenícios.
Tanto durante a última parte da época micênica como depois de seu término,
alguns dos invasores se estabeleceram e tomaram-se agricultores, enquanto
outros seguiram para diante, penetrando primeiro nas ilhas da Ásia Menor e,
depois, na Sicília e no sul da Itália, onde fundaram cidades que viviam do
comércio marítimo. Foi nessas cidades marítimas que os gregos realizaram,
qualitativamente, contribuições novas à civilização; a supremacia de Atenas veio
mais tarde, e achava-se igualmente associada, quando surgiu, ao poder naval.
O território grego é montanhoso e, na maior parte, estéril. Há, porém, muitos
vales férteis, com fácil acesso ao mar, mas as montanhas impedem uma
comunicação terrestre fácil entre uns e outros. Nesses vales, cresceram
pequenas comunidades isoladas, que viviam da agricultura e se centralizaram ao
redor de uma cidade, em geral perto do mar. Em tais circunstâncias era natural
que, logo que a população de qualquer localidade se tornasse demasiado grande
para os seus recursos internos, os que não podiam viver em terra se entregassem
à navegação. As cidades do continente fundaram colônias, muitas vezes em
lugares onde era muito mais fácil encontrar-se meios de subsistência do que na
terra natal. Assim, no período histórico mais remoto, os gregos da Ásia Menor, da
Sicília e da Itália eram muito mais ricos do que os do território grego.
O sistema social era muito diferente em regiões diversas da Grécia. Em
Esparta, uma pequena aristocracia subsistia graças ao trabalho de servos
oprimidos de uma raça diferente; nas regiões agrícolas mais pobres, a população
consistia principalmente de agricultores que cultivavam suas terras com o auxílio
de suas próprias famílias. Mas, nos lugares em que o comércio e a indústria
floresciam, os cidadãos livres enriqueciam mediante o emprego de escravos: os
homens nas minas, e as mulheres na indústria têxtil. Esses escravos, na Jônia,
provinham da população bárbara vizinha, sendo geralmente adquiridos, a
princípio, na guerra. Com o aumento crescente da riqueza, as mulheres
respeitáveis foram-se isolando cada vez mais, até que, em épocas posteriores,
pouco participaram dos aspectos civilizados da vida grega, exceto em Esparta e
em Lesbos.
Houve uma evolução bastante geral, primeiro da monarquia à aristocracia;
depois, a tirania e a democracia se alternavam. Os reis não eram absolutos,
como os do Egito e da Babilônia; eram dirigidos por um Conselho de Maiores, e
não podiam transgredir impunemente os costumes. “Tirania” não significava,
necessariamente, mau governo, mas apenas o governo de um homem cujo
direito ao trono não era hereditário. “Democracia” significava governo por todos
os cidadãos, entre os quais não eram incluídos escravos nem mulheres. Os
primeiros tiranos, como os Medicis, adquiriram o seu poder por serem os
membros mais ricos de suas respectivas plutocracias. Frequentemente, a fonte de
sua riqueza era a posse de minas de ouro e prata, que se tomaram ainda mais
proveitosas devido à nova instituição da cunhagem de moedas, que procedia do
reino da Lídia, adjacente à Jônia {7}. A cunhagem de dinheiro parece ter sido
inventada pouco antes do ano 700 A. C.
Um dos resultados mais importantes, para os gregos, do comércio ou
pirataria — a princípio as duas coisas mal se distinguiam — foi a aquisição da
arte de escrever. Embora a escrita tivesse existido durante milhares de anos no
Egito e na Babilônia, e os cretenses minoanos tivessem um sistema de escrever
(que ainda não foi decifrado), não há nenhuma prova concludente de que os
gregos possuíssem uma escritura alfabética antes do século X A. C. Aprenderam
essa arte dos fenícios, os quais, como os outros habitantes da Síria, se achavam
expostos a influências não só egípcias como babilônicas, e que mantiveram a
supremacia no comércio marítimo até o aparecimento das cidades gregas da
Jônia, Itália e Sicília. No século XIV, ao escrever a Ikhnaton (o rei herético do
Egito), os sírios ainda empregaram a escrita cuneiforme babilônica: mas Hiram
de Tiro (969-936) usava o alfabeto fenício, que talvez proviesse da escrita
egípcia. Os egípcios usaram, a princípio, uma escritura constituída inteiramente
de imagens; aos poucos, as imagens, muito convencionais, chegaram a
representar sílabas (as primeiras sílabas dos nomes dos reis representados) e, por
fim, letras isoladas. Assim, por exemplo, “A era um arqueiro que atirou numa
rã”.{8} Este último passo, que não foi dado por completo pelos próprios egípcios,
mas, sim, pelos fenícios, teve como resultado o alfabeto, com todas as suas
vantagens. Os gregos, tomando-o dos fenícios, modificaram o alfabeto, para que
este se adaptasse ao seu idioma, realizando a importante inovação de
acrescentar-lhe vogais, em lugar de empregar somente consoantes. Não há
dúvida de que a aquisição de um método conveniente de escrever contribuiu
grandemente para apressar o desenvolvimento da civilização grega.
O primeiro produto notável da civilização helênica foi Homero. Tudo que se
relaciona a Homero é conjetural, mas há um ponto de vista, bastante aceito,
segundo o qual se trata de uma série de poetas, ao invés de um único indivíduo.
De acordo com aqueles que mantém essa opinião, demorou cerca de duzentos
anos para se terminar a Ilíada e a Odisseia. Alguns afirmam que isso se deu entre
750 e 550 A. C.,{9} enquanto outros dizem que o “Homero” já estava quase
terminado em fins do século VIII.{10} Os poemas homéricos, em sua forma
atual, foram levados a Atenas por Pisístrato, que reinou (com interrupções), de
560 a 527 A. C. Dessa época em diante, os jovens atenienses aprendiam Homero
de cor, sendo essa a parte mais importante de sua educação. Em algumas partes
da Grécia, principalmente em Esparta, Homero não teve o mesmo prestígio
senão muito mais tarde.
Os poemas homéricos, como os romances cortesãos da Idade Média,
representam o ponto de vista de uma aristocracia civilizada que, sendo plebeia,
ignora várias superstições ainda muito disseminadas entre a população. Em
tempos muito posteriores, muitas dessas superstições surgiram novamente.
Guiados pela antropologia, muitos autores modernos chegaram à conclusão de
que Homero, longe de ser primitivo, era um expurgador, uma espécie de
pensador racionalista do século VIII diante dos mitos antigos, mantendo o ideal
de uma classe superior urbana e esclarecida. Os deuses olímpicos, que
representam, em Homero, a religião, não eram apenas objeto de adoração entre
os gregos, nem em sua época, nem posteriormente. Havia outros elementos mais
obscuros e selvagens na religião popular, acossados pelo que havia de melhor no
intelecto grego, mas que se mantinham à espreita, a fim de dar o golpe em
momentos de fraqueza ou de terror. Na época da decadência, as crenças que
Homero havia rejeitado provaram que ainda persistiam, meio soterradas,
durante todo o período clássico. Este fato explica muitas coisas que, de outro
modo, parecem contraditórias e surpreendentes.
A religião primitiva, em toda a parte, era mais tribal do que pessoal.
Realizavam-se certos ritos que, através da magia, tinham por finalidades
favorecer os interesses da tribo, principalmente com respeito à fertilidade,
vegetal, animal e humana. O solstício de inverno era o tempo em que se tornava
mister animar o sol, a fim de que o seu vigor não diminuísse; a primavera e a
colheita também exigiam cerimônias adequadas. Estas eram, com frequência,
festas tendentes a produzir grande excitação coletiva, na qual os indivíduos
perdiam a sua sensação de isolamento, sentindo-se integrados no resto da tribo.
No mundo todo, durante certa fase da evolução religiosa, animais sagrados e
criaturas humanas eram mortos e comidos em certas cerimônias. Em regiões
diferentes, isso ocorreu em épocas diversas. O sacrifício humano, em geral,
durou mais do que as cerimônias em que se sacrificavam e comiam criaturas
humanas; na Grécia, isso persistia ainda no começo dos tempos históricos. Os
ritos da fertilidade, sem esses aspectos cruéis, eram comuns em toda a Grécia; os
mistérios de Elêusis, particularmente, eram essencialmente agrícolas em seu
simbolismo.
Deve-se admitir que a religião, em Homero, não é muito religiosa. Os deuses
são inteiramente humanos, diferindo dos homens apenas quanto à imortalidade e
por possuírem poderes sobre-humanos. Moralmente, nada se pode dizer em seu
favor, e é difícil de compreender-se como podiam inspirar tanto pavor. Em
algumas passagens, que se supõe posteriores, são eles tratados com uma
irreverência voltairiana. O sentimento genuíno religioso que se encontra em
Homero tem menos que ver com os deuses do Olimpo do que com seres
nebulosos, tais como os Fados, a Necessidade e o Destino, aos quais o próprio
Zeus tem de submeter-se. Os Fados exerciam grande influência sobre todo o
pensamento grego, sendo talvez uma das fontes de que se derivou a crença nas
leis da natureza.
Os deuses homéricos eram deuses de uma aristocracia conquistadora, e não
os úteis deuses da fertilidade daqueles que realmente amanhavam a terra. Diz
Gilbert Murray :{11}
“Os deuses da maioria das nações pretendem haver criado o mundo. Os do
Olimpo, não. O máximo que faziam, era conquistá-lo … E, após conquistar seus
reinos, que é que faziam? Atendiam ao governo? Incentivavam a agricultura?
Praticavam o comércio ou a indústria? De modo algum. Por que haveriam de
trabalhar honestamente? Achavam mais fácil viver dos impostos e aterrorizar
com trovões aqueles que não os pagavam. Eram chefes conquistadores, piratas
reais. Lutavam, realizavam festas, divertiam-se e faziam música; bebiam muito
e riam-se às gargalhadas do pobre diabo que os servia. Não temiam coisa
alguma, exceto o seu próprio rei. Jamais mentiam, exceto no amor e na guerra”.
Os heróis humanos de Homero também não se comportam muito bem. A
família principal é a Casa de Pélope, mas não conseguiu dar exemplo de uma
vida familiar feliz.
“Tântalo, o fundador asiático da dinastia, começou sua vida com uma ofensa
direta contra os deuses; segundo alguns, procurando enganá-los para que
comessem carne humana — a de seu filho Pélope. Pélope, tendo voltado
miraculosamente à vida, também, por sua vez, os injuriou. Venceu a sua famosa
corrida de carros contra Oinomaos, rei de Pisa, mediante conivência com o
próprio condutor do rei, My rtilos, livrando-se depois de seu cúmplice, a quem
prometera uma recompensa, jogando-o ao mar. A maldição recaiu sobre seus
filhos, Atreo e Thy estes, na forma do que os gregos chamavam at, um impulso
forte, realmente irresistível, para o crime. Thy estes corrompeu a esposa de seu
irmão, conseguindo roubar, assim, a “sorte” da família, o famoso carneiro do
tosão de ouro. Atreo, por sua vez, conseguiu que o irmão fosse desterrado e,
chamando-o de volta, sob pretexto de reconciliação, ofereceu-lhe uma festa, na
qual lhe deu a comer a carne de seus próprios filhos. A maldição foi então
herdada pelo filho de Atreo, Agamenon, o qual ofendeu a Ártemis matando um
cervo sagrado; sacrificou sua própria filha Ifigênia para aplacar a deusa e obter a
passagem segura de sua frota para Tróia, e que foi, por sua vez, assassinado pela
sua infiel esposa Clitemnestra e o amante desta, Aigisthos, um filho sobrevivente
de Thy estes. Orestes, filho de Agamenon, vingou, por sua vez, o pai, matando sua
mãe e Aigisthos”.{12}
Homero, como realização perfeita, foi um produto da Jônia, isto é, de uma
parte da Ásia Menor helênica e das ilhas adjacentes. Em certa época, em fins do
século VI, os poemas homéricos adquiriram sua forma atual. Foi durante esse
século que a ciência, a filosofia e as matemáticas gregas começaram. Ao
mesmo tempo, estavam ocorrendo acontecimentos de suma importância em
outras regiões do mundo. Confúcio, Buda e Zoroastro, se é que existiram,
pertenceram, provavelmente, a esse mesmo século.{13} Em meados do século,
o Império Persa foi estabelecido por Ciro; em seus últimos anos, as cidades
gregas da Jônia, às quais os persas haviam concedido uma autonomia limitada,
iniciaram uma rebelião frustrada, que foi dominada por Dario, sendo os seus
melhores homens exilados. Vários filósofos desse período eram refugiados que
andavam de cidade em cidade nas regiões ainda não subjugadas do mundo
helênico, disseminando a civilização que, até então, se limitara principalmente à
Jônia. Eram tratados com simpatia em suas perambulações. Xenófanes, que
floresceu na última metade do século VI, e que era um dos refugiados, conta:
“Isto é o que devíamos dizer junto à lareira, no inverno, deitados em leitos
macios, após uma boa refeição, bebendo vinho doce e comendo grãos-de-bico:
De que país é o senhor e que idade tem, meu bom amigo? E quantos anos tinha
quando chegaram os medos?” O resto da Grécia conseguiu manter a sua
independência nas batalhas de Salamina e Platéia, depois das quais a Jônia foi
libertada durante algum tempo.{14}
A Grécia era dividida em grande número de pequenos estados independentes,
consistindo em cada qual de uma cidade cercada de um território agrícola. O
nível de civilização era muito diferente nas diversas regiões do mundo grego,
sendo que somente uma minoria de cidades contribuía para o conjunto total da
realização helênica. Esparta, da qual muito terei que dizer posteriormente, era
importante no sentido militar, mas não culturalmente. Corinto era rica e próspera,
um grande centro comercial, mas não deu muitos grandes homens.
Existiam, também, comunidades rurais puramente agrícolas, tais como a
proverbial Arcádia, que os homens da cidade imaginavam como sendo idílica,
mas que, na realidade, estava cheia de antigos e bárbaros horrores.
Os habitantes adoravam Hermes e Pã, e tinham uma multidão de cultos à
fecundidade, nos quais, frequentemente, um simples pilar quadrado fazia o papel
da estátua de algum deus. A cabra era o símbolo da fertilidade, pois os
camponeses eram muito pobres para possuir touros. Quando o alimento era
escasso, a estátua de Pã era agredida a pancadas. (Coisas semelhantes
verificam-se ainda hoje em remotas aldeias chinesas). Havia um clã que se
supunha constituído de homens transformados em lobos, o qual se entregava,
provavelmente, ao canibalismo e ao sacrifício de seres humanos. Acreditava-se
que a pessoa que provasse da carne de uma vítima humana sacrificada se
transformaria em lobo. Existia uma caverna sagrada consagrada a Zeus Ly kaios
(o Zeus-lobo), na qual ninguém tinha sombra. Aquele que nela entrava morria
dentro de um ano. Todas essas superstições ainda floresciam nos tempos
clássicos.{15}
Pã, cujo nome original era (segundo alguns afirmam) “Paon”, o que significa
aquele que alimenta ou pastor, adquiriu o nome pelo qual é melhor conhecido, e
que é interpretado como Deus Universal, quando os atenienses adotaram o seu
culto no século V, depois da guerra da Pérsia.{16}
Existia, porém, na Grécia antiga, muita coisa como a que podemos hoje
entender por religião. Isso se relacionava não com os Olímpicos, mas com
Dionísio, ou Baco, ao qual consideramos, muito naturalmente, como sendo o deus
irrefutável do vinho e da embriaguez. A maneira pela qual surgiu, dessa
adoração, um misticismo profundo, que influenciou grandemente a muitos
filósofos, contribuindo mesmo para dar forma à teologia cristã, é notável, e deve
ser compreendida por toda pessoa que deseje estudar o desenvolvimento do
pensamento grego.
Dionísio, ou Baco, era originalmente um deus da Trácia. Os trácios eram
muito menos civilizados do que os gregos, que os consideravam bárbaros. Como
todos os agricultores primitivos, eles tinham cultos à fertilidade, bem como um
deus que a proporcionava. O nome desse deus era Baco. Nunca ficou muito claro
se Baco tinha a forma de homem ou de touro. Quando descobriram a maneira de
se fabricar cerveja, passaram a considerar a embriaguez como uma coisa
divina, e prestaram honras a Baco. Mais tarde, quando conheceram o vinho e
aprenderam a bebê-lo, consideraram-no um deus ainda melhor. Suas funções
como promotor da fertilidade em geral ficaram um tanto subordinadas às suas
funções quanto ao que dizia respeito à uva e à loucura divina produzida pelo
vinho.
Não se sabe em que data o seu culto passou da Trácia para a Grécia, mas
parece ter sido pouco antes do começo dos tempos históricos. O culto a Baco
encontrou hostilidade entre os ortodoxos, mas, não obstante, se estabeleceu.
Continha muitos elementos bárbaros, como, por exemplo, cortar os animais em
pedaços e comê-los crus. Encerrava, também, um curioso elemento de
feminismo. Matronas e donzelas respeitáveis, em grandes grupos, passavam
noites inteiras nuas, nas colinas, entregues a danças que estimulavam o êxtase,
num estado de embriaguez que talvez fosse, em parte, alcoólico, mas,
principalmente, místico. Os maridos achavam tal prática aborrecida, mas não
ousavam opor-se à religião. Tanto a beleza como a selvageria desse culto são
descritas nas Bacantes, de Eurípides.
O êxito de Dionísio na Grécia não é nada surpreendente. Como todas as
comunidades que se civilizaram rapidamente, os gregos, ou, pelo menos, uma
parte deles, revelavam amor pelo que era primitivo, bem como uma ânsia por
uma maneira de viver mais instintiva e apaixonada do que a sancionada pela
moral corrente. Para o homem ou a mulher que, por coerção, é mais civilizado
no procedimento do que no sentimento, a razão é uma coisa incômoda, e a
virtude uma carga e uma escravidão. Isto conduz a uma reação de pensamento,
sentimento e conduta. É a reação quanto ao que se refere ao pensamento o que
nos interessa particularmente, mas é preciso que antes se diga algo a respeito da
reação do sentimento e da conduta.
O homem civilizado distingue-se do selvagem principalmente pela prudência,
ou, para empregar um termo um pouco mais amplo, pela previsão. Está disposto
a sofrer dores momentâneas tendo em vista prazeres futuros, mesmo que os
prazeres futuros se achem bastante distantes, este hábito começou a tornar-se
importante com o advento da agricultura; nenhum homem ou animal trabalharia
na primavera para ter alimento no próximo inverno, salvo em algumas formas
puramente instintivas de ação, como, por exemplo, as abelhas fabricando o mel
ou os esquilos enterrando nozes. Nestes casos, não há previsão; há um impulso
direto para um ato que, para o espectador humano, iria, evidentemente, ser útil
mais tarde. A verdadeira previsão só aparece quando o homem realiza algo sem
que nenhum impulso o obrigue, porque sua razão lhe diz que isso lhe será
proveitoso mais tarde. A caça não requer previsão, pois é agradável; mas o
amanho do solo constitui trabalho, e é coisa que não se faz por impulso
espontâneo.
A civilização sofreia o impulso não apenas mediante a previsão, que constitui
um freio voluntário, mas também por meio da lei, da moral e da religião. Herda
este freio do barbarismo, mas torna-o menos instintivo e mais sistemático. Certos
atos são considerados criminosos — e são punidos; outros, embora não sejam
punidos pela lei, são considerados maus, expondo os culpados à desaprovação
social. A instituição da propriedade privada traz consigo a sujeição da mulher e,
em geral, a criação de uma classe escrava. Por outro lado, os propósitos da
comunidade são impostos ao indivíduo e, por outro lado, o indivíduo, tendo
adquirido o hábito de encarar a sua vida como um todo, cada vez sacrifica mais o
seu presente em benefício do futuro.
É evidente que este processo pode ser levado demasiado longe, como, por
exemplo, no caso do avaro. Mas, mesmo sem chegar a tais extremos, a
prudência pode facilmente acarretar a perda de algumas das melhores coisas da
vida. Os adoradores de Dionísio reagem contra a prudência. Na embriaguez,
física ou espiritual, readquirem uma intensidade de sentimento que a prudência
destruiu; o mundo parece-lhes cheio de delícias e de beleza, e sua imaginação se
liberta, subitamente, da prisão das preocupações cotidianas. O ritual báquico
produzia o que se chamava “entusiasmo”, o que significa, etimologicamente, que
o deus penetrava no adorador, o qual acreditava que ele e o deus se tornavam um
único ser. Muitas das maiores coisas produzidas pelo homem contem certo
elemento de embriaguez,{17} um afastamento da prudência pela paixão. Sem o
elemento báquico, a vida seria desinteressante; com ele, é perigosa. A luta entre a
prudência e a paixão é um conflito que se estende por toda a história. Não é um
conflito no qual devamos colocar-nos deste ou daquele lado.
Na esfera do pensamento, a civilização sóbria é, o mais das vezes, sinônimo
de ciência. Mas a ciência pura não é satisfatória; os homens precisam também
de paixão, arte e religião. A ciência pode estabelecer limites quanto ao
conhecimento, mas não quanto à imaginação. Entre os filósofos gregos, como
entre os dos tempos posteriores, havia os que eram principalmente científicos e
os que eram principalmente religiosos; estes últimos deviam muito, direta ou
indiretamente, à religião de Baco. Isto se aplica, principalmente, a Platão e,
através dele, às filosofias posteriores que foram, finalmente, incorporadas à
teologia cristã.
O culto a Dionísio, em sua forma original, era selvagem e, sob muitos
aspectos, repulsivo. Não foi nessa sua forma que exerceu influência sobre os
filósofos, mas na forma espiritualizada atribuída a Orfeu, que era asceta, e
substituía a embriaguez física pela mental.
Orfeu é uma figura vaga, mas interessante. Alguns afirmam que era uma
personagem real; outros, que era um deus ou um herói imaginário. Segundo a
tradição, veio da Trácia, como Baco, mas parece mais provável que viesse (ele
ou o movimento ligado ao seu nome) de Creta. É certo que as doutrinas de Orfeu
contém muitas idéias que parecem ter sua origem no Egito, e foi principalmente
através de Creta que o Egito exerceu influência sobre a Grécia.
Afirma-se que Orfeu era um reformador que foi destroçado por mênades
frenéticas, instigadas pela ortodoxia báquica. Seu amor pela música não se
destaca tanto, nas versões antigas da lenda, como foi ressaltado mais tarde. Foi,
principalmente, sacerdote e filósofo.
Quaisquer que tenham sido os ensinamentos de Orfeu (se é que existiu), os
que hoje se conhecem são os ensinamentos dos órficos. Acreditavam na
transmigração das almas; ensinavam que a alma podia desfrutar, no outro
mundo, de uma bem-aventurança eterna ou passar por tormentos temporários,
segundo a sua maneira de viver na terra. Tinham por aspiração tornar-se
“puros”, quer em parte, mediante cerimônias de purificação, quer evitando
certas espécies de contaminação. Os mais ortodoxos entre eles se abstinham de
alimentos animais, exceto em ocasiões rituais, quando os comiam como
sacramento. O homem, afirmavam, é feito metade de terra, metade de céu;
mediante uma vida pura, a parte celestial aumenta, diminuindo a parte terrena.
No fim, o homem poderá tornar-se uno em Baco, e ser chamado “Baco”. Havia
uma teologia cuidadosamente elaborada, segundo a qual Baco nascera duas
vezes, uma de sua mãe Semeie, e outra de uma coxa de seu pai Zeus.
O mito de Dionísio contém muitas formas. Numa delas, Dionísio é filho de
Zeus e Perséfona; quando ainda menino, foi feito em pedaços pelos Titãs, que lhe
comeram a carne, menos o coração. Outros dizem que o coração foi dado por
Zeus a Semeie; outros, ainda, que Zeus o engoliu. Em ambos os casos, isso deu
lugar ao segundo nascimento de Dionísio. Dilacerar animais selvagens e comerlhes a carne crua significava, para os báquicos, a repetição do dilaceramento e
da devoração de Dionísio pelos Titãs, sendo que o animal, em certo sentido,
representava uma encarnação do deus. Os Titãs eram nascidos da terra, mas,
depois de devorar o deus, ficavam possuídos de uma centelha de divindade.
Assim, o homem é, em parte, feito de terra e, em parte, divino. Quanto aos ritos
báquicos, procuravam torná-lo quase inteiramente divino.
Eurípides põe na boca de um sacerdote órfico a seguinte instrutiva confissão:
{18}
Senhor dos confins tírios da Europa,
Filho, de Zeus, que prostras a teus pés
As cem cidadelas de Creta,
Eu te busco desde o obscuro sacrário,
Coberto pela Viga lavrada
Pelo aço de Chaly b e o sangue do touro selvagem,
Unidos pela impecável madeira de ciprestes
Solidificados. Numa corrente pura
Transcorreram os meus dias. Eu, sou o servo
Iniciado do Júpiter de Ida;{19}
Onde o Zagreus{20} da meia-noite vagueia, eu vagueio;
Suportei o seu grito, como o do trovão;
Cumpri suas festas rubras e sangrentas;
Sustive a chama da montanha da Grande Mãe,
Fui libertado e chamam-me pelo nome
De Baco os Sacerdotes que usam cotas de malha.
Vestido de branco imaculado, mantive-me puro
Do nascimento vil do homem e do barro do ataúde,
Desterrando sempre de meus lábios
O contato de toda carne onde antes houve Vida.
Foram
da pessoa
que devia
partidas e
encontradas, em túmulos, inscrições órficas, dando instruções à alma
morta sobre a maneira de encontrar o seu caminho no outro mundo e o
dizer para provar que era digna de salvação. Essas inscrições se acham
incompletas; a mais completa (a tábua de Petélia) diz:
Encontrarás à esquerda da Casa de Hades, uma fonte,
E, a seu lado, um branco cipreste.
Não te aproximes desse manancial.
Mas encontrarás um outro junto ao Lago da Memória,
De onde fluem águas frescas e, diante do qual, há guardiães.
Diz-lhes: “Sou um filho da terra e do céu estrelado;
Mas minha raça é do céu (somente). Vós próprios o sabeis.
E — Ai de mim! — Estou ressequido de sede, e pereço. Dai-me rapidamente
A água fresca que flui do Lago da Memória”.
E eles mesmos te darão de beber do manancial sagrado,
E, desde então, tu dominarás entre os outros heróis …
Outra tábua diz:
“Salve, tu que sofreste o sofrimento … De homem, tu te converteste
em Deus”.
E outra diz o seguinte:
“Ó feliz e bendito, tu serás Deus em lugar de um mortal”.
O manancial do qual a alma não deve beber é o Letes, que produz o
esquecimento; a outra fonte é Mnemosy ne, a recordação. Para que a alma, no
outro mundo, consiga a salvação, é preciso que não esqueça, devendo, ao
contrário, adquirir uma memória que vá além do que é natural.
Os órficos eram uma seita de ascetas; o vinho, para eles, era apenas um
símbolo, como, mais tarde, no sacramento cristão. A embriaguez que buscavam
era a do “entusiasmo”, da união com o deus. Julgavam adquirir, desse modo, um
saber místico que não conseguiriam obter por meios comuns. Este elemento
místico entrou na filosofia grega com Pitágoras, que era um reformador do
orfismo, como Orfeu foi um reformador da religião de Dionísio. Através de
Pitágoras, elementos órficos entraram na filosofia de Platão e, através de Platão,
na maior parte da filosofia posterior de índole religiosa.
Certos elementos tipicamente báquicos sobreviveram onde quer que o orfismo
tivesse influência. Um deles era o feminismo, do qual havia muito em Pitágoras,
e que, em Platão, chegou a ponto de reivindicar completa igualdade política para
as mulheres. “As mulheres, como sexo — diz Pitágoras — são, por natureza,
mais propensas à piedade”. Outro elemento báquico consistia no respeito pela
emoção violenta. A tragédia grega nasceu dos ritos de Dionísio. Eurípides,
principalmente, adorava os dois deuses principais do orfismo: Dionísio e Eros.
Não sente respeito algum pelo homem frio e de proceder correto, o qual, em
suas tragédias, quase sempre é levado à loucura ou sofre qualquer outro castigo
dos deuses, devido à sua atitude blasfema.
A tradição convencional, com respeito aos gregos, é a de que eles revelavam
uma serenidade admirável, que lhes permitia contemplar a paixão de fora,
percebendo toda a sua beleza, mas mantendo-se calmos e olímpicos. Esta é uma
opinião bastante unilateral. Talvez seja certa quanto ao que diz respeito a
Homero, Sófocles e Aristóteles; mas é positivamente falsa quanto ao que se
refere aos gregos que eram tocados, direta ou indiretamente, por influências
báquicas ou órficas. Em Elêusis, onde os mistérios desse mesmo nome
constituíam a parte mais sagrada da religião estatal ateniense, cantava-se o
seguinte hino:
Com a tua taça de vinho erguida no ar,
E a tua orgia enlouquecedora,
Ao florido vale de Elêusis
Tu chegas. Salve Baco! Salve Pã!
Nas Bacantes, de Eurípides, o coro das mênades revela uma combinação de
poesia e de selvageria que é precisamente o contrário da serenidade. Celebram a
delícia de destroçar, membro por membro, um animal selvagem, comendo-o
cru de vez em quando.
Ó que alegria, que alegria,
Desmaiar, exausta, nas Montanhas,
Quando o fauno sagrado nos envolve E tudo o mais se desvanece!
Para a alegria das rápidas fontes rubras,
O sangue do cabrito montês dilacerado,
A glória das fúrias do animal selvagem,
Onde o dia surpreende o cume do monte.
Aos montes de Frigia e de Lídia,
É Bromios{21} que indica o caminho.
A dança das mênades na fralda das montanhas não era apenas selvagem; era
uma evasão dos fardos e preocupações da civilização para um mundo de beleza
não humana e a liberdade do vento e das estrelas. Num estado de espírito menos
frenético, cantam:
Virão de novo a mim, algum dia,
As danças infindáveis, infindáveis,
Que prosseguem na escuridão até que as estrelas empalidecem?
Sentirei o orvalho em minha garganta, e a corrente
Do vento em meus cabelos? Brilharão nossos brancos pés
Nos escuros espaços?
Oh, os pés dos faunos correm pelo bosque,
Sozinhos, na relva e na beleza;
O salto do perseguido, já sem terror,
Além das armadilhas e da perseguição mortal.
No entanto, uma voz na distância ainda soa,
Uma voz e um temor e uma matilha de cães.
Oh, a fadiga insana, a fuga veloz
Junto ao rio e pelo estreito vale …
É a alegria ou o terror o que move os rápidos pés?
Em direção dos campos queridos e solitários, não perturbados pelos
homens.
Onde nenhuma voz se ouve, e entre o verde sombrio,
Vivem as pequenas coisas ignoradas dos bosques.
Antes de se repetir que os gregos eram “serenos”, procuremos imaginar as
matronas de Filadélfia procedendo dessa maneira, mesmo numa peça de Eugene
O’Neill.
O órfico não é mais “sereno” que o impenitente adorador de Dionísio. Para o
órfico, a vida neste mundo é sofrimento e enfado. Estamos ligados a uma roda
que gira interminavelmente em tomo do nascimento e da morte; nossa vida
verdadeira está nas estrelas, mas achamo-nos atados à terra. Somente pela
purificação, pela renúncia e por uma vida ascética, podemos escapar a essa roda
e alcançar, finalmente, o êxtase da união com Deus. Esta não é a opinião de
criaturas para as quais a vida é fácil e agradável. Assemelha-se mais à canção
dos negros:
Vou contar a Deus todos os meus sofrimentos
Quando chegar em casa.
Nem todos os gregos, mas sim uma grande parte deles, eram apaixonados,
infelizes, em conflito consigo mesmos, conduzidos, de um lado, pelo intelecto e,
de outro, pelas paixões, com imaginação suficiente para conceber o céu e a auto
asserção deliberada que cria o inferno. Tinham a máxima “nada em excesso”,
mas eram, na realidade, excessivos em tudo: no pensamento puro, na poesia, na
religião e no pecado. Era a combinação de paixão e intelecto que os tornou
grandes, enquanto o foram. Nenhum desses dois elementos, por si só, teria
transformado o mundo para todos os tempos vindouros, como eles o
transformaram. Seu protótipo na mitologia não é o Zeus Olímpico, mas
Prometeu, que trouxe o fogo do céu e foi castigado com o tormento eterno.
Contudo, se tomássemos como característica dos gregos, em conjunto, o que
acabamos de dizer, essa seria uma opinião tão unilateral como a que afirma que
os gregos se caracterizavam pela “serenidade”. Havia, com efeito, duas
tendências na Grécia: uma, apaixonada, religiosa, mística, voltada para o além;
outra, jovial, empírica, racionalista, interessada em conhecer a diversidade dos
fatos. Heródoto representa esta última tendência, o mesmo acontecendo com os
primeiros filósofos jônios e, até certo ponto, com Aristóteles. Beloch (op. Cit., I, I,
p. 434), após descrever o orfismo, diz:
“Mas a nação grega era demasiado cheia de vigor juvenil para que fosse
aceita, de maneira geral, uma crença que nega este mundo e transfere a vida
real para o Além. Por conseguinte, a doutrina órfica permaneceu limitada ao
círculo relativamente estreito dos iniciados, sem adquirir a menor influência
sobre a religião do Estado, nem mesmo nas comunidades em que, como Atenas,
introduzira a celebração dos mistérios no rito oficial, sob proteção legal. Um
milênio inteiro haveria ainda de passar antes que essas idéias — em roupagens
ideológicas muito diversas, é verdade — pudessem sair vitoriosas no mundo
grego”.
Isto poderia parecer um exagero, principalmente quanto ao que diz respeito
aos mistérios de Elêusis, os quais se achavam saturados de orfismo. Falando-se
de um modo geral, porém, aqueles que eram de temperamento religioso se
voltavam para o orfismo, enquanto que os racionalistas o desprezavam. Poderse-ia estabelecer um paralelo entre a situação do orfismo e do metodismo na
Inglaterra, em fins do século XVIII e começos do século XIX.
Sabemos mais ou menos o que um grego culto aprendia de seu pai, mas muito
pouco do que, em seus primeiros anos, aprendia da mãe, que era, em alto grau,
excluída da civilização que tão grande entusiasmo despertou nos homens. Parece
provável que os atenienses cultos, mesmo em seu melhor período, por mais
racionalistas que pudessem ter sido em seus métodos mentais explicitamente
conscientes, conservavam da tradição e da infância uma maneira de pensar e
sentir mais primitiva, que predominava sempre em ocasiões de tensão. Por isso,
nenhuma análise simples da ideologia grega tende a ser adequada.
A influência da religião, principalmente da religião não olímpica, sobre o
pensamento grego, não foi devidamente reconhecida senão há pouco tempo. Um
livro revolucionário. Prolegômenos ao Estudo da Religião Grega, de Jane
Harrison, ressaltou tanto os elementos primitivos como os dionisíacos na religião
dos gregos em geral. Da Religião à Filosofia, de F. M. Cornford, propõe-se a
mostrar aos estudantes de filosofia a influência da religião sobre os filósofos, mas
não pode ser inteiramente aceito como digno de fé em muitas de suas
interpretações, como, por exemplo, na parte que se refere à antropologia.{22} A
opinião mais equilibrada que conheço é exposta em A Filosofia Grega Primitiva,
de John Bumet, principalmente no capítulo II, “Ciência e Religião”. O conflito
entre a ciência e a religião surgiu, diz ele, “do renascimento religioso que se
verificou na Hélade no século VI A. C.”, bem como da mudança de cenário da
Jônia para o Ocidente. “A religião da Hélade continental — prossegue ele — se
desenvolveu de maneira inteiramente diferente da Jônia. Principalmente o que se
refere à adoração de Dionísio, que veio da Trácia, e à qual Homero mal se
refere, e que continha o germe de uma maneira inteiramente nova de se encarar
a relação existente entre o homem e o mundo. Seria certamente um erro quererse atribuir aos próprios trácios idéias muito exaltadas; mas não pode haver dúvida
que o fenômeno do êxtase sugeriu que a alma era algo mais do que a outra parte
débil do ser, e que somente “fora do corpo” é que revelava a sua verdadeira
natureza …
Dir-se-ia que a religião grega estava prestes a entrar na mesma fase a que já
haviam chegado as religiões do Oriente; e, não fora o aparecimento da ciência,
dificilmente se compreenderia o que poderia haver detido tal tendência. É
comum dizer-se que os gregos foram salvos de uma religião de tipo oriental por
não possuir uma casta sacerdotal; mas isso seria confundir o efeito com a causa.
Os sacerdotes não criam dogmas, embora os conservem, uma vez existentes; e,
nas primeiras fases de seu desenvolvimento, os povos orientais não tinham uma
classe sacerdotal nesse sentido. Não foi tanto a ausência de uma classe sacerdotal
como a existência de escolas científicas o que salvou a Grécia.
“A nova religião — pois, num sentido era ela nova, embora noutro fosse tão
velha como a humanidade — atingiu o ponto culminante de seu desenvolvimento
com a fundação das comunidades órficas. Tanto quanto nos é dado constatar, o
seu país originário era a Ática; mas estenderam-se com extraordinária rapidez,
principalmente na Itália Meridional e na Sicília. Eram, antes de mais nada,
associações para a adoração de Dionísio; mas distinguiam-se por características
novas entre os helênicos. Encaravam a revelação como sendo a fonte da
autoridade religiosa, e achavam-se organizados como comunidades artificiais. Os
poemas que continham sua teologia eram atribuídos ao Orfeu da Trácia, que
havia descido, ele próprio, ao Hades, e que era, portanto, um guia seguro em
meio dos perigos que perseguiam, no outro mundo, as almas desencarnadas”.
Burnet prossegue dizendo que há extraordinária semelhança entre as crenças
órficas e as que prevaleceram na Índia mais ou menos na mesma época,
embora afirme que não pode ter havido nenhum contato entre ambas. Chega,
depois, à significação original da palavra “orgia”, que era empregada pelos
órficos no sentido de “sacramento”, e que tinha por fim purificar a alma do
crente, permitindo-lhe escapar à roda do nascimento. Os órficos, ao contrário dos
sacerdotes dos cultos olímpicos, fundaram o que poderíamos chamar “igrejas”,
isto é, comunidades religiosas às quais qualquer pessoa, sem distinção de raça ou
sexo, poderia ser admitida por iniciação, e de sua influência surgiu a concepção
da filosofia como um modo de vida.
CAPÍTULO II
A Escola de Mileto
Em toda história da filosofia para estudantes, a primeira coisa que se diz é que
a filosofia começou com Tales, que disse que tudo era feito de água. Isso
desanima o principiante, que está lutando — talvez de maneira não muito
árdua — por sentir respeito pelo currículo que dele se espera. Há, porém, amplas
razões para se sentir respeito por Tales, embora talvez mais como homem de
ciência do que como filósofo, no sentido moderno da palavra.
Tales era natural de Mileto, na Ásia Menor, uma cidade comercial
florescente, em que havia uma grande população escrava, bem como uma luta
de classe ferrenha entre os ricos e os pobres pertencentes à população livre. “Em
Mileto, o povo saiu primeiro vitorioso, e assassinou as esposas e os filhos dos
aristocratas; depois, os aristocratas prevaleceram e queimaram vivos os seus
adversários, iluminando os espaços abertos da cidade com tochas vivas”.{23}
Condições idênticas prevaleciam na maioria das cidades gregas da Ásia Menor,
na época de Tales.
Mileto, como outras cidades comerciais da Jônia, passou por importante
desenvolvimento econômico e político durante os séculos VII e VI. A princípio, o
poder político estava nas mãos de uma aristocracia rural, proprietária de terras,
mas foi passando, aos poucos, para uma plutocracia de comerciantes. Esta, per
sua vez, foi substituída por um tirano que (como era habitual) chegou ao poder
com o apoio do partido democrático. O reino da Lídia estava situado a leste das
cidades gregas costeiras, mas permaneceu em bons termos com elas até à queda
de Nínive (606 A. C.). Isso permitiu à Lídia voltar a atenção para o oeste, mas
Mileto conseguiu manter as suas relações amistosas principalmente com Creso, o
último rei dos lídios, que foi derrotado por Ciro no ano 546 A. C. Manteve
também relações importantes com o Egito, onde o rei dependia dos mercenários
gregos, e havia aberto certas cidades ao comércio grego. A primeira colônia
grega no Egito foi um forte ocupado por uma guarnição milésia, mas a mais
importante, durante o período 610-560 A. C., foi Dalne. Aqui, Jeremias e muitos
outros fugitivos judeus se refugiaram, fugindo de Nabucodonosor (Jeremias,
XLIII, 5 e seg.); mas, embora o Egito haja, indubitavelmente, influenciado os
gregos, os judeus não o fizeram, e não podemos supor que Jeremias sentisse
senão horror quanto ao que dizia respeito aos céticos jônios.
Quanto à época em que Tales viveu, o melhor dado, como vimos, é que foi
famoso por haver predito um eclipse que, segundo os astrônomos, deve ter
ocorrido no ano 555 A. C. Outro indício, por assim dizer, concorda em situar as
suas atividades mais ou menos nessa época. Não é prova de um gênio
extraordinário de sua parte haver predito um eclipse. Mileto era aliada da Lídia, e
esta mantinha relações culturais com a Babilônia, cujos astrônomos haviam
descoberto que os eclipses ocorrem em ciclos de cerca de dezenove anos.
Sabiam predizer os eclipses da lua com bastante segurança, mas, com respeito
aos eclipses solares, depararam com obstáculos, devido ao fato de serem eles
visíveis num lugar e não em outro. Por conseguinte, podiam apenas saber que
nesta ou naquela data era de se esperar que houvesse um eclipse — e isto é,
provavelmente, tudo o que Tales sabia. Nem ele nem os outros sabiam qual a
razão desse ciclo.
Conta-se que Tales viajou pelo Egito, e que de lá levou aos gregos a ciência da
geometria. O que os egípcios sabiam de geometria eram, principalmente, coisas
rudimentares, não havendo razão para se acreditar que Tales haja chegado a
provas dedutivas, como as que foram, posteriormente, descobertas pelos gregos.
Parece que ele descobriu como se calcula a distância de um navio no mar, por
meio de observações feitas em dois pontos situados em terra, bem como a
maneira de se calcular a altura de uma pirâmide pelo comprimento de sua
sombra. Muitos outros teoremas geométricos lhe são atribuídos, mas, talvez,
erroneamente.
Foi um dos Sete Sábios da Grécia, cada um dos quais se tornou famoso por
haver proferido um dito sábio; o seu foi, como erroneamente se supõe, “a água é
melhor”.
Segundo Aristóteles, achava ele que a água é a substância original da qual são
formadas todas as outras; e afirmava que a terra descansa sobre a água.
Aristóteles também diz que Tales acreditava que o ímã tinha alma, porque fazia
mover o ferro; e, ainda, que todas as coisas estavam cheias de deuses.{24}
A afirmação de que tudo é feito de água deve ser encarada como uma
hipótese científica e, de modo algum, como uma tolice. Há vinte anos, a idéia
geralmente aceita era a de que tudo era feito de hidrogênio, que é dois terços de
água. Os gregos eram temerários em suas hipóteses, mas a escola de Mileto, pelo
menos, estava preparada para demonstrá-las empiricamente. Muito pouco se
sabe de Tales para que se possa reconstruí-lo satisfatoriamente, mas de seus
sucessores de Mileto se sabe mais, e é razoável supor-se que algo de sua visão
provinha dele. Tanto sua ciência como sua filosofia eram primitivas, mas
bastavam para estimular o pensamento e a observação.
Existem muitas lendas sobre ele, mas não me parece que se saiba mais do que
os poucos fatos a que me referi. Algumas dessas histórias são agradáveis, como,
por exemplo, a que foi contada por Aristóteles em sua Política (1259a ):
“Censuravam-no pela sua pobreza, porque esta demonstrava que a sua filosofia
não servia para nada. Segundo a lenda, ele sabia, pelo conhecimento que tinha
das estrelas, quando era ainda inverno, que iria haver uma grande colheita de
azeitonas no ano seguinte; assim, tendo um pouco de dinheiro, arrendou armazéns
para uso de todas as prensas de azeitonas de Quio e Mileto, as quais foram por ele
alugadas a baixo preço por não haver ninguém que as desejasse. Quando chegou
a época da colheita, e todos as queriam ao mesmo tempo, ele as alugou pelo
preço que quis, e ganhou muitíssimo dinheiro. Mostrou, assim, ao mundo, que os
filósofos, se quiserem, podem enriquecer facilmente, mas que a sua ambição era
de outra natureza”.
Anaximandro, o segundo filósofo da escola de Mileto, é muito mais
interessante do que Tales. As datas que lhe dizem respeito são incertas, mas
supõe-se que contava sessenta e quatro anos de idade em 546 A. C., e há razões
para se acreditar que isso se aproxima da verdade. Afirmava ele que todas as
coisas provinham de uma única substância primária, mas esta não era a água,
como dizia Tales, nem qualquer outra das substâncias conhecidas. Era uma
substância infinita, eterna e sem idade, “e envolvia todos os mundos” — pois
considerava o nosso mundo apenas um entre muitos. Essa substância primária é
transformada nas várias substâncias que conhecemos, sendo estas, por sua vez,
transformadas umas nas outras. A este respeito, faz uma afirmação importante e
curiosa:
“De onde as coisas se originaram, passam elas a uma outra coisa, como é
ordenado, pois efetuam a reparação e a compensação mútua por suas injustiças
conforme a ordem do tempo”.
A idéia de justiça, tanto cósmica como humana, desempenhou, na religião e
na filosofia gregas, um papel que não é muito fácil aos modernos
compreenderem; a nossa palavra “justiça”, com efeito, expressa muito mal o
que então isso queria dizer, mas é difícil encontrar-se outra que fosse preferível.
A idéia que Anaximandro aí manifesta parece ser a seguinte: devia haver uma
certa proporção de fogo, de terra e de água no mundo, mas cada elemento
(concebido como deus) procura, incessantemente, alargar o seu império. Existe,
porém, uma espécie de necessidade ou lei natural que restitui constantemente o
equilíbrio; onde antes havia fogo, há cinza, que é terra. Essa concepção de
justiça — de não ultrapassar os limites eternamente fixados — era uma das mais
profundas crenças gregas. Os deuses estavam tão sujeitos à justiça como os
homens, mas esse poder supremo não era pessoal, nem um deus supremo.
Anaximandro tinha um argumento para demonstrar que a substância primária
não podia ser a água, ou qualquer outro elemento. Se um desses elementos fosse
anterior, conquistaria os outros. Segundo Aristóteles, Anaximandro dizia que esses
elementos conhecidos estavam em luta uns com os outros. O ar é frio, a água é
úmida, o fogo é quente. “Portanto, se qualquer um deles fosse infinito, os outros
já não existiriam”. A substância primária, portanto, deve ser neutra nessa luta
cósmica.
Havia um movimento eterno, no curso do qual se produziu a origem dos
mundos. Os mundos não foram criados, como na teologia judaica ou cristã, mas
evoluíram. Essa evolução também se verificou no reino animal. As criaturas
humanas surgiram do elemento úmido, quando este se evaporou devido ao sol. O
homem, como todos os outros animais, provinha dos peixes. Devia proceder de
animais de uma espécie diferente, pois, devido à sua longa infância, não teria
sobrevivido, originalmente, como é hoje.
Anaximandro era cheio de curiosidade científica. Afirma-se que foi o
primeiro homem a fazer um mapa. Afirmava que a terra tem a forma de um
cilindro. Segundo fontes diversas, teria ele dito que o sol era tão grande como a
terra, ou vinte e sete ou vinte e oito vezes maior do que ela.
É sempre original em suas afirmações; sempre científico e racionalista.
Anaxímenes, o último do trio de Mileto, não é tão interessante como
Anaximandro, mas fez várias contribuições importantes. As datas que a ele se
referem são muito incertas. Foi, seguramente, posterior a Anaximandro, tendo
vivido, com toda a certeza, antes do ano 494 A. C., já que, nesse ano, Mileto foi
destruída pelos persas, quando estes sufocavam a revolta dos jônios.
A substância fundamental, disse ele, é o ar. A alma é ar; o fogo, ar rarefeito;
quando condensado, o ar transforma-se primeiro em água e, depois, se condensa
ainda mais, em terra, e, por fim, em pedra. Esta teoria tem o mérito de
estabelecer diferenças quantitativas entre substâncias diferentes, dependendo
inteiramente do grau de condensação.
Acreditava que a terra tem a forma de uma mesa redonda, e que o ar envolve
tudo: “Assim como a nossa alma, sendo ar, nos sustenta, assim também a
respiração e o ar envolvem o mundo todo”. Dir-se-ia que o mundo respira.
Anaxímenes foi mais admirado, na antiguidade, do que Anaximandro,
embora hoje ocorra o contrário em quase todo o mundo civilizado. Exerceu ele
grande influência sobre Pitágoras, bem como sobre as especulações filosóficas
posteriores. Os pitagóricos descobriram que a terra é esférica, mas os atomistas
aderiram à opinião de Anaxímenes, de que ela tem a forma de um disco.
A escola de Mileto é importante não tanto pelo que realizou, como pelo que
tentou. Surgiu devido ao contato do espírito grego com a Babilônia e o Egito.
Mileto era uma cidade comercial rica, em que os preconceitos e as superstições
primitivos foram atenuados pelo trato com muitas outras nações. A Jônia, até à
época em que foi subjugada por Dario, no começo do século V, era,
culturalmente, a parte mais importante do mundo helênico. Quase não foi tocada
pelo movimento religioso ligado a Dionísio e Orfeu; sua religião era olímpica,
mas parece que não lhe deram muita importância. As especulações de Tales,
Anaximandro e Anaxímenes devem ser consideradas como hipóteses científicas,
sendo que raras vezes revelam qualquer intrusão indevida de desejos
antropomórficos ou idéias morais. Os problemas que apresentavam eram
importantes, e seu vigor inspirou os investigadores subsequentes.
A fase seguinte da filosofia grega, associada às cidades gregas do sul da Itália,
é mais religiosa e, em particular, mas órfica, sendo, sob certos aspectos, mais
interessante e admirável em sua realização, mas de espírito menos científico que
o dos filósofos de Mileto.
CAPÍTULO III
Pitágoras
Pitágoras, cuja influência nos tempos antigos e modernos constitui o tema
deste capítulo, foi, intelectualmente, um dos homens mais importantes que já
existiram, tanto quando era sábio, como quando não o era. A matemática, como
argumento dedutivo-demonstrativo, começa com ele e, nele, está ligada a uma
forma peculiar de misticismo. A influência das matemáticas sobre a filosofia, em
parte devida a ele, tem sido, desde então, tão profunda quanto funesta.
Comecemos com o pouco que sabemos de sua vida. Nasceu na ilha de Samos
e floresceu cerca do ano 532 A. C. Alguns dizem que era filho de um cidadão
abastado, Mnesarcos; outros, que era filho do deus Apolo. O leitor que escolha
entre essas duas alternativas. Na época em que viveu, Samos era governada pelo
tirano Polícrates, um velho patife que se tornou imensamente rico e que possuía
uma imensa frota.
Samos era a rival comercial de Mileto; seus comerciantes chegavam até à
Tartéside, na Espanha, que era famosa pelas suas minas. Polícrates tornou-se
tirano de Samos no ano 535, aproximadamente, e reinou até 5.15 A. C. Não o
perturbavam muito os escrúpulos morais; desfez-se de seus dois irmãos, os quais,
a princípio, compartilhara de sua tirania, e usava a sua esquadra principalmente
para a pirataria. Valeu-se do fato de Mileto ter-se submetido, recentemente, à
Pérsia. A fim de impedir qualquer nova expansão dos persas para o oeste, aliouse a Amasis, rei do Egito. Mas quando Cambises, rei da Pérsia, dedicou todas as
forças à conquista do Egito, Polícrates viu que este tinha possibilidade de vencer,
e passou-se para o outro lado. Enviou uma frota, composta de seus inimigos
políticos, para atacar o Egito; mas suas tripulações se amotinaram e voltaram a
Samos para atacá-lo. Conseguiu, todavia, dominá-los, mas caiu, por fim, vítima
de uma armadilha traiçoeira preparada pela sua própria avareza. O Sátrapa
persa de Sardes fingiu que tencionava rebelar-se contra o Grande Rei, e que
pagaria enormes somas pelo auxílio de Polícrates. Este seguiu para o continente a
fim de realizar uma entrevista — e foi aprisionado e crucificado.
Polícrates era patrono das artes, e embelezou Samos com notáveis obras
públicas. Anacreonte era o poeta de sua corte. Pitágoras, porém, não apreciava o
seu governo, e deixou Samos. Afirma-se, com visos de probabilidade, que
Pitágoras visitou o Egito, adquirindo lá uma grande parte de sua sabedoria. Seja
como for, o certo, porém, é que ele, finalmente, se radicou em Crotona, no sul da
Itália.
As cidades gregas do sul da Itália eram, como Samos e Mileto, ricas e
prósperas; além disso, não estavam expostas ao perigo dos persas.{25} As duas
maiores eram Síbaris e Crotona. Síbaris tornou-se famosa pelo luxo; sua
população, segundo Diodoro, chegou a 300.000 habitantes, embora esta cifra
seja, sem dúvida, exagerada. Crotona tinha o mesmo tamanho de Síbaris. As
duas cidades viviam da importação de mercadorias jônias para a Itália, em parte
para consumo neste país, em parte para a reexportação, pela costa ocidental, à
Gália e Espanha. As várias cidades gregas da Itália lutavam encarniçadamente
entre si; quando Pitágoras chegou a Crotona, esta acabava de ser derrotada por
Lócrida. Logo depois de sua chegada, porém, Crotona obteve completa vitória na
guerra contra Síbaris, que foi quase toda destruída (510 A. C.). Síbaris estivera
intimamente ligada, pelo comércio, a Mileto. Crotona era famosa pela medicina:
um certo Democedes de Crotona foi médico de Polícrates e, depois, de Dario.
Em Crotona, Pitágoras fundou uma sociedade de discípulos, a qual, durante
algum tempo, gozou de prestigio na cidade. Mas, no fim, os cidadãos voltaram-se
contra ele, e teve de seguir para Metaponto (também no sul da Itália), onde
morreu. Transformou-se logo numa figura lendária, à qual se atribuíam milagres
e poderes mágicos, mas foi, também, fundador de uma escola de matemáticos.
{26} Assim, duas tradições opostas disputaram sua memória, e é difícil de se
desemaranhar a verdade.
Pitágoras é uma das figuras mais interessantes e desconcertantes da história.
Não só as tradições que se referem a ele são uma mistura quase inexplicável de
verdade e fantasia, como, também, em sua forma menos discutível e nua, nos
apresentam uma psicologia sumamente curiosa. Pode ser descrito, em poucas
palavras, como uma combinação de Einstein e Mrs. Eddy. Fundou uma religião
cujos dogmas principais eram a transmigração das almas{27} e a abstenção de
se comer favas. Sua religião estava contida numa ordem religiosa que, aqui e ali,
assumiu o controle do Estado e estabeleceu uma regra dos santos. Mas os não
regenerados ansiavam por feijão e, mais cedo ou mais tarde se rebelaram.
Eis aqui algumas das regras da ordem de Pitágoras:
1.
2.
3.
4.
5.
6.
7.
8.
9.
10.
11.
12.
Abster-se de favas.
Não apanhar o que caiu.
Não tocar em galo branco.
Não partir o pão.
Não passar por cima de uma viga.
Não atiçar o fogo com ferro.
Não comer de uma broa de pão inteira.
Não apanhar uma grinalda.
Não sentar sobre uma medida de um quarto.
Não comer coração.
Não andar pelas estradas.
Não deixar que as andorinhas se aninhem no telhado da
própria casa.
13. Quando se tira a panela do fogo, não deixar a sua marca nas
cinzas, mas remexê-las.
14. Não olhar no espelho ao lado de uma luz.
15. Ao levantar da cama, enrolar as cobertas e alisar a marca
deixada pelo corpo.{28}
Cornford (Da Religião à Filosofia) diz que, na sua opinião, “a escola de
Pitágoras representa a corrente principal dessa tradição mística, que pusemos em
contraste com a tendência científica”. Considera Parmênides, a quem chama “o
descobridor da lógica”, como um produto do pitagorismo, e o próprio Platão
como tendo encontrado na filosofia italiana a fonte principal de sua inspiração. O
pitagorismo, diz ele, foi um movimento de reforma no orfismo, e o orfismo foi
um movimento de reforma no culto a Dionísio. O contraste entre o racional e o
místico, que se estende por toda a história, aparece primeiro, entre os gregos,
como uma oposição entre os deuses olímpicos e os outros deuses menos
civilizados, que tinham mais afinidade com as crenças primitivas de que tratam
os antropólogos. Nesta divisão, Pitágoras estava do lado do misticismo, embora
seu misticismo fosse de uma espécie particularmente intelectual. Atribuía a si
mesmo um caráter semidivino, e parece haver dito: “Há homens e deuses, e
seres como Pitágoras”. Todos os sistemas que inspirou, diz Cornford, “tem uma
tendência ultraterrena, dando todo valor à unidade invisível de Deus, e
condenando o mundo visível como falso e ilusório, um meio túrbido no qual os
raios da luz celestial se quebram e se transformam em bruma e escuridão”.
Dicaiarco afirma que Pitágoras ensinava “primeiro, que a alma é uma coisa
imortal, e que se transforma em outras espécies de coisas vivas; ademais, tudo o
que nasce torna a nascer nas revoluções de um determinado ciclo, nada sendo
absolutamente novo; e que todas as coisas que nascem com vida devem ser
tratadas como coisas afins”.{29} Conta-se que Pitágoras, à semelhança de São
Francisco, pregava aos animais.
Na sociedade que fundou, homens e mulheres eram admitidos em igualdade
de condições; a propriedade era comum, e havia uma maneira de viver comum.
Mesmo as descobertas científicas e matemáticas eram consideradas coletivas e,
num sentido místico, devidas a Pitágoras, mesmo depois de sua morte. Hippasos
de Metaponto, que violou esta regra, naufragou, castigado por Deus pela sua
impiedade.
Mas que é que tudo isto tem que ver com as matemáticas? Está ligado a elas
por meio de uma ética que louvava a vida contemplativa. Burnet resume essa
ética da seguinte maneira:
Somos estrangeiros neste mundo, e o corpo é o túmulo da alma; não obstante,
não devemos tentar fugir por meio do suicídio, pois somos rebanho de Deus, que
é nosso pastor, e, sem que ele o ordene, não temos o direito de desaparecer.
Nesta vida, há três espécies de homens, assim como há três espécies de pessoas
que vão aos jogos olímpicos. A classe mais baixa é constituída daqueles que vão
comprar e vender; a classe que vem logo acima é composta daqueles que vão
competir. Mas a melhor de todas é aquela constituída de pessoas que vão apenas
assistir ao espetáculo. A maior purificação de todas, portanto, é a ciência
desinteressada, e é o homem que se dedica inteiramente a ela, o filósofo
verdadeiro, o que se liberta mais efetivamente da “roda do nascimento”.{30}
As mudanças que se verificam no sentido das palavras são, com frequência,
muito instrutivas. Referi-me, há pouco, à palavra “orgia”; desejo, agora, falar
sobre a palavra “teoria”. Era, originalmente, uma palavra órfica, interpretada
por Cornford como “contemplação apaixonada simpática”. Nesse estado, diz ele,
“o espectador se identifica com o Deus que sofre, morre a sua morte e renasce
novamente com o seu nascimento”. Para Pitágoras, a “contemplação
apaixonada simpática” era intelectual, tendo como resultado o conhecimento das
matemáticas. Dessa maneira, através do pitagorismo, a palavra “teoria”
adquiriu, pouco a pouco, o seu sentido moderno; mas, para todos os que foram
inspirados por Pitágoras, conservou um elemento de revelação estática. Para
aqueles que, relutantemente, aprenderam na escola um pouco de matemática,
isto poderá parecer estranho; mas, para aqueles que experimentaram a deliciosa
embriaguez da súbita compreensão que as matemáticas proporcionam, de
quando em quando, aos que a amam, o ponto de vista de Pitágoras parecerá
perfeitamente natural, mesmo que não seja certo. Poderia parecer que o filósofo
empírico é escravo de seu material, mas que o matemático puro, como o
músico, é criador livre de seu mundo de beleza ordenada.
É interessante observar-se, na descrição que Burnet faz da ética de Pitágoras,
a oposição aos valores modernos. Os homens de nessa época, por exemplo, num
jogo de futebol, consideram os jogadores mais importantes do que os
espectadores. O mesmo acontece com respeito ao Estado: admiram mais os
políticos, que são os que participam do jogo, do que os simples espectadores. Esta
mudança de valores está relacionada com a mudança que se verificou no
sistema social: o guerreiro, o aristocrata, o plutocrata e o ditador tem, cada qual,
as suas próprias normas para julgar o que é bom e o que é verdadeiro. O
aristocrata teve um certo conhecimento da teoria filosófica por estar associado
com o gênio grego, porque a virtude da contemplação adquiriu a aprovação
teológica, e porque o ideal da verdade desinteressada dignificou a vida
acadêmica. O aristocrata deve ser definido como um indivíduo pertencente a
uma sociedade de iguais que vive do trabalho de escravos ou, em todo caso, do
trabalho de homens cuja inferioridade é indiscutível. Conviria observar que esta
definição inclui o santo e o sábio, porquanto a vida desses homens é mais
contemplativa do que ativa.
As definições modernas da verdade, tais como as do pragmatismo e do
instrumentalismo, que são mais práticos do que contemplativos, são inspiradas
pelo industrialismo, em lugar da aristocracia.
Pense-se o que se quiser de um sistema social que tolera a escravidão, é à
aristocracia, no sentido descrito acima, que devemos as matemáticas puras. O
ideal contemplativo, já que conduziu à criação das matemáticas puras, foi a fonte
de uma atividade útil; isto aumentou o seu prestígio e assegurou-lhe um êxito na
teologia, na ética e na filosofia, que de outra maneira não teria desfrutado.
O mesmo se pode dizer como explicação dos dois aspectos de Pitágoras:
como profeta religioso e como matemático puro. Em ambos os sentidos, exerceu
influência incomensurável, e esses dois campos não se achavam tão separados
como pode parecer ao espírito moderno.
A maior parte das ciências esteve ligada, a princípio, a alguma forma de
crença, falsa, que lhes dava um valor fictício. A astronomia achava-se ligada à
astrologia, a química à alquimia. As matemáticas achavam-se associadas a um
tipo mais refinado de erro. O conhecimento matemático parecia ser certo, exato,
e aplicável ao mundo real; ademais, podia ser adquirido por meio de simples
raciocínio, sem necessidade de observação. Por conseguinte, acreditava-se que
proporcionava um ideal, do qual o conhecimento empírico cotidiano ficava muito
longe. Supunha-se, com base na matemática, que o pensamento é superior aos
sentidos, e a intuição, à observação. Se o mundo dos sentidos não se ajusta às
matemáticas, tanto pior para o mundo dos sentidos. Procurou-se, de várias
maneiras, métodos que permitissem ao homem aproximar-se do ideal do
matemático, e as sugestões que daí resultavam foram a fonte de muitos erros na
metafísica e na teoria do conhecimento. Esta forma de filosofia começa com
Pitágoras.
Pitágoras, como todos sabem, afirmou que “todas as coisas são números”.
Esta afirmação, interpretada à maneira moderna, é logicamente um disparate,
mas o que Pitágoras queria dizer não o era de todo. Descobriu ele a importância
dos números na música, e a ligação por ele estabelecida entre a música e a
aritmética sobrevive nos termos matemáticos “média harmônica” e “progressão
harmônica”. Imaginava os números como figuras, tal como aparecem nos dados
e nos baralhos. Ainda hoje falamos dos quadrados e dos cubos dos números,
termos esses que devemos a Pitágoras. Também falamos de números oblongos,
números triangulares, números piramidais, e assim por diante. Eram estes os
números de seixos (ou, como diríamos com mais naturalidade, grãos de chumbo)
necessários para fazer as formas em questão. Ele considerava o mundo,
provavelmente, como atômico, e os corpos feitos de moléculas compostas de
átomos dispostos de várias formas. Esperava, assim, fazer da aritmética o estudo
fundamental para a física e a estética.
A maior descoberta de Pitágoras, ou de seus discípulos imediatos, foi a
proposição referente a triângulos retângulos, de que a soma dos quadrados dos
catetos é igual ao quadrado da hipotenusa. Os egípcios já sabiam que um
triângulo cujos lados são 3, 4, 5 tem ângulo reto, mas, ao que parece, os gregos
foram os primeiros a observar que 32+42 =52 e seguindo esta sugestão, a
descobrir uma prova da proposição geral.
Infelizmente para Pitágoras, seu teorema conduziu imediatamente à
descoberta dos incomensuráveis, os quais pareciam refutar toda a sua filosofia.
Num triângulo retângulo isósceles, o quadrado da hipotenusa é o dobro do
quadrado de cada cateto. Suponhamos que cada cateto mede uma polegada; que
comprimento tem, pois, a hipotenusa? Suponhamos que o seu comprimento seria
de m/n polegadas; tem-se, então, m/n2 =2. Se m e n tem um fator comum,
faça-se a divisão e, então, m ou n tem de ser ímpares. Agora m2 =2n2, portanto
m2 é par, portanto m é par e n é ímpar. Suponhamos que m =2p. Temos, então,
4p2 =2n2, portanto n2 =2p2 e, portanto, n é par, contra hip. Por conseguinte,
nenhuma fração de m/n medirá a hipotenusa. Esta prova está, substancialmente,
em Euclides, Livro x.{31}
Este argumento provou que, qualquer que seja a unidade de comprimento que
possamos adotar, há comprimentos que não tem relação numérica exata com a
unidade, no sentido de que não há dois inteiros m, n, de modo que m vezes o
comprimento em questão seja n vezes a unidade. Isso convenceu os matemáticos
gregos de que a geometria deve ser estabelecida independentemente da
aritmética. Existem passagens nos Diálogos de Platão que provam que o
tratamento independente da geometria já estava bastante adiantado em sua
época. Euclides aperfeiçoou-a. No Livro II, Euclides prova, geometricamente,
muitas coisas que nós naturalmente demonstraríamos por meio da álgebra,
como, por exemplo, (a+b) 2 – a 2+2ab+b2. Foi devido à dificuldade dos
incomensuráveis que ele considerou necessário este método. O mesmo se aplica
às proposições relativas à proporção, nos Livros V e VI. Todo o sistema é
logicamente delicioso e antecipa o rigor dos matemáticos do século XIX.
Enquanto não existia nenhuma teoria aritmética adequada dos incomensuráveis,
o método de Euclides era o melhor possível na geometria. Quando Descartes
introduziu a geometria coordenada, com a qual tomou de novo a aritmética
suprema, supôs a possibilidade de uma solução do problema dos
incomensuráveis, embora em sua época tal solução não tivesse sido encontrada.
A influência da geometria sobre a filosofia e o método científico foi profunda.
A geometria, tal como foi estabelecida pelos gregos, começa com axiomas que
são (ou estão condenados a ser) evidentes em si mesmos, e prossegue, por meio
de raciocínios dedutivos, até teoremas que estão muito longe de ser por si
mesmos evidentes. Os axiomas e teoremas são considerados como certos quanto
ao que se refere ao espaço real, que é algo que pode ser dado pela experiência.
Assim, parecia ser possível descobrir-se coisas do mundo real verificando-se
primeiro o que é evidente por si mesmo, e empregando-se, depois, a dedução.
Este ponto de vista influenciou Platão e Kant, bem como a maioria dos filósofos
das épocas intermediárias. Quando a Declaração da Independência diz
“consideramos estas verdades como evidentes por si mesmas”, tem por modelo
a Euclides. A doutrina do século XVIII referente aos direitos naturais é uma
busca de axiomas euclidianos no campo da política.{32} A forma dos Principia,
de Newton, apesar de seu material reconhecidamente empírico, é inteiramente
dominada por Euclides. A teologia, em suas formas escolásticas exatas, nutre-se
da mesma fonte. A religião pessoal deriva-se do êxtase; a teologia, da
matemática — e ambas são encontradas em Pitágoras.
A matemática é, creio eu, a fonte principal da crença na verdade exata e
eterna, bem como num mundo supersensível e inteligente. A geometria trata de
círculos exatos, mas nenhum objeto sensível é exatamente circular; por mais
cuidadosos que sejamos no uso de nosso compasso, haverá sempre certas
imperfeições e irregularidades. Isto sugere a idéia de que todo raciocínio exato
compreende objetos ideais, em contraposição a objetos sensíveis; é natural ir-se
além e arguir que o pensamento é mais nobre do que os sentidos, e os objetos do
pensamento mais reais do que aqueles que percebemos através dos sentidos. As
doutrinas místicas quanto as relações do tempo com a eternidade são também
fortalecidas pela matemática pura, porque se os objetos, tais como os números,
são reais, são eles eternos, e não colocados no tempo. Tais objetos eternos podem
ser concebidos como pensamentos de Deus. Daí a doutrina de Platão, de que
Deus é um geômetra, e a crença de Sir James Jeans, de que Ele ama a
aritmética. A religião racionalista, em contraposição à religião apocalíptica, foi
sempre, de Pitágoras em diante e, principalmente, desde Platão, completamente
dominada pelas matemáticas e pelo método matemático.
A combinação das matemáticas e da teologia, que começou com Pitágoras,
caracterizou a filosofia religiosa na Grécia, na Idade Média, e, nos tempos
modernos, até Kant. O orfismo, antes de Pitágoras, era análogo às religiões
asiáticas de mistérios. Mas em Platão, Santo Agostinho, Santo Tomás de Aquino,
Descartes, Spinoza e Leibniz, há uma fusão íntima de religião e raciocínio, de
aspiração moral a par de admiração lógica pelo que é eterno, que vem de
Pitágoras, e distingue a teologia intelectualizada da Europa do misticismo mais
direto da Ásia. Foi somente em época bastante recente que se tornou possível
dizer-se claramente onde Pitágoras incorria em erro. Não conheço nenhum outro
homem que haja exercido como ele tanta influência na esfera do pensamento.
Digo-o porque aquilo que nos parece platonismo é, quando analisado,
essencialmente pitagorismo. Toda a concepção do mundo eterno, revelada ao
intelecto, mas não aos sentidos, deriva dele. Se não fosse por ele, os cristãos não
teriam considerado Cristo como sendo o Verbo: se não fosse por ele, os teólogos
não teriam procurado provas lógicas da existência de Deus e da imortalidade.
Mas, em Pitágoras, tudo isso permanece ainda explícito. Como isso se tornou
explícito, veremos mais adiante.
CAPÍTULO IV
Heráclito
Dua s correntes opostas são comuns, hoje em dia, com respeito aos gregos.
Uma, praticamente desde a Renascença até época bastante recente, considera os
gregos com uma adoração quase supersticiosa, como os inventores de tudo o que
há de melhor e como homens de gênio sobre-humano, com os quais os modernos
não podem esperar comparar-se. A outra atitude, inspirada pelos êxitos da
ciência e por uma crença otimista no progresso, considera a autoridade dos
antigos como um incubo, e afirma que a maior parte de suas contribuições ao
pensamento deveria agora ser esquecida. Quanto a mim, não me é possível
adotar nenhuma dessas posições extremas; cada uma delas, diria eu, tem a sua
parte de razão e a sua parte de erro. Antes de entrar em qualquer pormenor,
procurarei dizer que espécie de sabedoria podemos ainda extrair do estudo do
pensamento grego.
Quanto à natureza e estrutura do mundo, várias hipóteses são possíveis. O
progresso na metafísica, enquanto existiu, consistiu de um refinamento gradual
de todas essas hipóteses, um desenvolvimento de suas implicações e uma nova
formulação de cada uma delas para enfrentar as objeções levantadas pelos
partidários de hipóteses rivais. Aprender a conceber o universo segundo cada um
desses sistemas é uma delícia para a imaginação e um antídoto contra o
dogmatismo. Ademais, mesmo que nenhuma das hipóteses possa ser
demonstrada, há um conhecimento verdadeiro na descoberta do que faz com que
cada uma delas esteja de acordo consigo mesma e com os fatos conhecidos.
Ora, quase todas as hipóteses que dominaram o filósofo moderno foram, a
princípio, formuladas pelos gregos, sua força imaginativa em matérias abstratas
jamais poderá ser suficientemente elogiada. Tudo o que direi dos gregos
procederá, principalmente, deste ponto de vista. Considerá-los-ei como criadores
de teorias que tiveram vida e desenvolvimento independentes, e que, embora, a
princípio, um tanto infantis, demonstraram ser capazes de sobreviver e
desenvolver-se durante mais de dois mil anos. Os gregos contribuíram, é
verdade, com algo que demonstrou ser de valor mais permanente para o
pensamento abstrato: descobriram as matemáticas e a arte do raciocínio
dedutivo. A geometria, em particular, é uma invenção grega, sem a qual seria
impossível a ciência moderna. Mas, com relação às matemáticas, evidencia-se a
unilateralidade do gênio grego; raciocinava dedutivamente partindo do que
parecia ser evidente por si mesmo, e não dedutivamente partindo do que tinha
sido observado. Seus êxitos surpreendentes no emprego deste método induziram a
erro não somente o mundo antigo, mas, também, a maior parte do mundo
moderno. Foi só muito lentamente que o método científico, que procura chegar
aos princípios indutivamente, mediante a observação de determinados fatos,
substituiu a crença helênica na dedução partindo de axiomas luminosos extraídos
da mente do filósofo. Por esta razão, entre outras, é um erro tratar-se os gregos
com reverência supersticiosa. O método científico, embora tenham sido eles os
que primeiro o vislumbraram, é, em seu todo, alheio ao seu espírito, e a tentativa
de glorificar os gregos diminuindo o progresso intelectual dos últimos quatro
séculos, tem um efeito paralisador sobre o pensamento moderno.
Existe, no entanto, um argumento mais geral contra tal reverência, tanto com
respeito aos gregos como a outros. Ao estudar-se um filósofo, a atitude correta
consiste em não se experimentar nem reverência nem desprezo, mas, desde o
começo, uma espécie de simpatia hipotética, até que seja possível saber se deve
crer em suas teorias, sendo que somente então deve manifestar um renascimento
da atitude crítica, a qual deve assemelhar-se, tanto quanto possível, ao estado de
espírito de uma pessoa que abandona as opiniões que até então professava. O
desprezo impede a primeira parte deste processo; a reverência, a segunda.
Duas coisas devem ser lembradas: primeiro, que um homem cujas opiniões e
teorias são dignas de estudo deve ter possuído uma certa inteligência, mas que é
provável que nenhum homem haja chegado à verdade completa e definitiva
sobre qualquer matéria. Quando um homem inteligente manifesta uma opinião
que nos parece evidentemente absurda, não deveríamos procurar que ela, de
certo modo, é verdadeira, mas deveríamos procurar compreender como foi que
ela chegou a parecer verdadeira. Este exercício de imaginação histórica e
psicológica amplia, ao mesmo tempo, o escopo de nosso pensamento, e nos
ajuda a compreender quão tolos muitos de nossos preconceitos mais caros
parecerão a uma época de espírito diverso.
Entre Pitágoras e Heráclito, dos quais nos ocuparemos neste capítulo, houve
um outro filósofo de menor importância — Xenófanes. São incertas as datas
referentes à sua vida; baseiam-se, principalmente, no fato de Pitágoras e
Heráclito terem-se referido a ele. Era jônio de nascimento, mas viveu a maior
parte de sua vida no sul da Itália. Acreditava que todas as coisas são feitas de
terra e água. Com respeito aos deuses, era um livre-pensador bastante acentuado.
“Homero e Hesíodo atribuíram aos deuses tudo o que é vergonhoso e infortunado
entre os mortais: roubos, adultérios e falsidades … Os mortais julgam que os
deuses são gerados como eles próprios, usam roupas e tem voz e formas como as
deles … Se os bois, cavalos e leões tivessem mãos, e produzissem obras de arte
como os homens, os cavalos pintariam os seus deuses com formas de cavalo, os
bois com formas de boi, formando os seus corpos à imagem dos da sua própria
espécie. Os etíopes fazem os seus deuses negros e de nariz chato; os deuses dos
trácios tem olhos azuis e cabelos ruivos.” Ele acreditava num Deus único,
diferente dos homens em forma e pensamento, que “sem esforço movia todas as
coisas pela força de sua mente”. Xenófanes zombava da doutrina pitagórica da
transmigração. “Afirmam que, certa vez, ele (Pitágoras) estava passando por um
lugar onde alguém maltratava um cão. “Pára, não lhe batas! É a alma de um
amigo! Reconheci-o logo que lhe ouvi a voz!” Xenófanes achava que era
impossível certificar-se a gente da verdade em questões de teologia. “A verdade
absoluta é que não existe homem algum que saiba, ou que venha a saber, a
respeito dos deuses e de todas as coisas de que falo. Sim, mesmo que, por acaso,
alguém diga algo profundamente acertado, ainda assim não o saberá; não existe
nada em coisa alguma, a não ser suposições.” {33}
Xenófanes tem o seu lugar entre os nacionalistas que se opunham às
tendências místicas de Pitágoras e outros, mas, como pensador independente, não
é de primeira plana.
A doutrina de Pitágoras, como vimos, é muito difícil de desentranhar-se da de
seus discípulos, e embora o próprio Pitágoras seja muito anterior, a influência de
sua escola é posterior à de vários outros filósofos. Destes, o primeiro a inventar
uma teoria que ainda exerce influência foi Heráclito, que floresceu cerca do ano
500 A. C. Pouco se sabe de sua vida, exceto que era cidadão aristocrata de Éfeso.
Foi famoso na antiguidade principalmente pela sua doutrina de que tudo se acha
num estado fluente, mas isto, como veremos, constitui apenas um aspecto de sua
metafísica.
Heráclito, embora jônio, não pertencia à tradição científica da escola de
Mileto.{34} Era um místico, mas pertencente a uma classe especial. Considerava
o fogo como substância fundamental; tudo, como a chama no fogo, nasce da
morte de alguma outra coisa. “Os mortais são imortais, e os imortais são mortais;
uns vivem a morte de outros e morrem a vida de outros”. Há unidade no mundo,
mas é uma unidade composta de uma combinação de elementos opostos. “Todas
as coisas procedem de uma, e esta uma de todas as coisas”; mas as muitas coisas
têm menos realidade do que uma só, que é Deus.
A julgar pelo que sobreviveu de seus escritos, ele não parece ter sido uma
criatura de caráter amável. Era desdenhoso, sendo exatamente o oposto de um
democrata. Referindo-se aos seus concidadãos, diz ele: “Fariam bem os efésios
se enforcassem, pelo menos os homens adultos, deixando a cidade para os
rapazes imberbes, pois desterraram a Hermodoro, o melhor dentre eles, dizendo:
“Não teremos ninguém que seja superior a nós; se há alguém assim, que o seja
em outra parte e entre outros”. Fala mal de todos os seus predecessores
eminentes, com uma única exceção. “Homero devia ser tirado das listas e
chicoteado”. “De todos os discursos que ouvi, não há nenhum que compreenda
que a sabedoria é alheia a todos”. “O conhecimento de muitas coisas não
significa entendimento, pois, se assim fosse, teria ensinado a Hesíodo e a
Pitágoras, a Xenófanes e a Hecateo”. “Pitágoras … considerava como sua
própria sabedoria o que não era senão um conhecimento de muitas coisas e uma
arte para o embuste”. A única exceção em suas sentenças condenatórias é
Teutamo, que é por ele considerado como “mais importante que o resto”.
Quando procuramos a razão de tal elogio, verificamos que Teutamo afirmou que
“os homens, em sua maioria, são maus”.
Seu desprezo pela humanidade levou-o a pensar que somente a força os
obrigará a agir em seu próprio benefício. Diz: “Todo animal é levado ao pasto a
chicotadas”. E, ainda: “Os asnos prefeririam a palha ao ouro”.
Como se poderia esperar, Heráclito acreditava na guerra: “A guerra é o pai de
tudo e o rei de todas as coisas; fez de certas criaturas deuses e de outros homens;
umas, livres e, outras, escravas”. E também: “Homero estava errado ao dizer:
“Oxalá desapareça a luta entre deuses e homens!” Não via que estava rezando
pela destruição do universo, pois, se sua prece fosse ouvida, todas as coisas
desapareceriam”. E em outra passagem: “Devemos compreender que a guerra
é comum a todos, e a luta é justiça, e que todas as coisas nascem e morrem por
meio de luta”.
Sua ética é uma espécie de ascetismo orgulhoso, muito semelhante à de
Nietzsche. Considera a alma como uma mistura de fogo e água; o fogo é nobre e
a água ignóbil. A alma que possui mais fogo, ele a designa como “seca”. “A alma
seca é a mais sábia e a melhor”. “É um prazer para as almas tornarem-se
úmidas”. “Quando um homem se embebeda, é conduzido por um rapaz imberbe,
que tropeça, sem saber onde pisa, pois tem a alma úmida”. “Umedecer-se é a
morte da alma”. “É difícil lutar-se contra o desejo do coração. O que quer que o
coração deseje, consegue-o à custa da alma”. “Não é bom para o homem
conseguir tudo que deseja”. Pode-se dizer que Heráclito aprecia o poder obtido
mediante autodomínio, e que despreza as paixões que distraem o homem de suas
ambições centrais.
A atitude de Heráclito para com as religiões de sua época, pelo menos quanto
ao que se refere à religião báquica, é grandemente hostil, mas não é a hostilidade
de um racionalista científico. Tem a sua própria religião e, em parte, interpreta a
teologia corrente, a fim de adaptá-la à sua doutrina, em parte a rejeita com
bastante desdém. Foi chamado báquico (por Cornford), e considerado como um
intérprete dos mistérios (por Pfleiderer). Não creio que os fragmentos
correspondentes a este tema justifiquem esta opinião. Diz ele, por exemplo: “Os
mistérios praticados entre os homens não são mistérios sagrados”. Isto sugere que
ele tinha em mente mistérios que não eram “não sagrados”, mas que seriam
muito diferentes daqueles que existiam. Se não houvesse desdenhado tanto o
vulgar a ponto de empreender uma propaganda, teria sido um reformador
religioso.
São os seguintes os trechos existentes de Heráclito que se referem à sua
atitude diante da teologia da sua época: “O Senhor, que possui o oráculo de
Delfos, não profere nem oculta o que pretende dizer, mas o revela por um sinal.
E a Sibila, que com lábios delirantes profere coisas tristes, sem adornos e sem
perfume, abrange mais de mil anos com a sua voz, graças ao deus que há nela.
As almas cheiram mal no Hades.
As mortes maiores obtêm partes maiores (Os que morrem destas mortes se
transformam em deuses).
Sonâmbulos, mágicos, sacerdotes de Baco, e sacerdotisas do tonel de vinho,
traficantes em mistérios.
Os mistérios praticados entre os homens não são mistérios sagrados.
E rezam a essas imagens, como se alguém falasse com a casa de um homem,
sem saber o que são deuses ou heróis.
Porque se não fosse por Dionísio, para quem fazem uma procissão e cantam
vergonhosos hinos fálicos, estariam agindo da maneira mais desavergonhada.
Mas o Hades é o mesmo que Dionísio, em cuja honra enlouquecem e celebram
a festa do tonel de vinho.
Purificam-se em vão, maculando-se de sangue, como se alguém que
caminhasse na lama lavasse os pés na própria lama. Qualquer homem que o
visse agir assim, considerá-lo-ia louco”.
Heráclito acreditava que o fogo era o elemento primordial, do qual todas as
coisas haviam surgido. Tales, como o leitor recordará, achava que todas as coisas
eram feitas de água; Anaxímenes considerava o ar como o elemento primitivo;
Heráclito preferia o fogo. Por fim, em pédocles sugeriu um compromisso
diplomático, permitindo quatro elementos: terra, ar, fogo e água. A química dos
antigos parou neste ponto. Nenhum novo progresso se verificou na ciência até
que os alquimistas maometanos se entregaram à busca da pedra filosofal, o elixir
da vida, e um método para converter os metais em ouro.
A metafísica de Heráclito é suficientemente dinâmica para satisfazer ao mais
inquieto dos modernos:
“Este mundo, que é o mesmo para todos, não foi feito nem pelos deuses nem
pelos homens; mas sempre foi, é e será um Fogo eterno, com unidades que se
acendem e unidades que se apagam”.
“As transformações do Fogo são, antes de tudo, os mares; e o mar é metade
terra, metade turbilhão”.
Em tal mundo, era de esperar-se uma transformação perpétua, e era nessa
transformação perpétua que Heráclito acreditava.
Tinha, porém, outra doutrina, à qual se entregava mais do que à fluxo
perpétuo: era a teoria da mistura de coisas opostas. “Os homens não sabem — diz
ele — de que maneira o que não concorda está de acordo consigo mesmo. É
uma harmonia de tensões opostas, como a do arco e a lira”. Sua crença na luta
está ligada a esta teoria, pois, na luta, os opostos se combinam para produzir um
movimento que é harmonia. Há unidade no mundo, mas é uma unidade
resultante de diversidade.
“As coisas pares são coisas inteiras e não inteiras, o unido e o separado, o
harmonioso e o discordante. O uno é feito de todas as coisas, e todas as coisas
provêm do uno”.
Fala, às vezes, como se a unidade fosse mais fundamental do que a
diversidade:
“O bem e o mal são uma única coisa”.
“Para Deus, todas as coisas são justas, boas e corretas, mas os homens
consideram certas coisas erradas e outras certas”.
“Deus é dia e noite, inverno e verão, guerra e paz, saciedade e fome; mas Ele
adota várias formas, como o fogo, que, quando é misturado a especiarias, é
chamado segundo o sabor de cada uma delas”.
Não obstante, não haveria unidade, se não existissem antagonismos que
combinar: “É o oposto que é bom para nós”.
Esta doutrina contém o gérmen da filosofia de Hegel, que procede mediante
uma síntese de contrários.
A metafísica de Heráclito, como a de Anaximandro, é dominada por uma
concepção de justiça cósmica, que impede que a luta de opostos termine com a
vitória completa de uma das partes.
“Todas as coisas podem transformar-se em Fogo, e o Fogo em todas as coisas,
o mesmo que a mercadoria em ouro e o ouro em mercadoria”.
“O Fogo vive a morte do ar, e o ar vive a morte do Fogo; a água vive a morte
da terra, a terra a da água”.
“O sol não ultrapassará a sua medida; se o fizer, as Eríneas, servas da Justiça,
o perseguirão”.
“Devemos saber que a guerra é comum a tudo, e que a luta é justiça”.
Pleráclito fala repetidamente de “Deus”, distinguindo-o de “os deuses”. “O
homem não possui sabedoria, mas Deus a possui … Deus chama ao homem
criança, como o homem chama ao menino … O homem mais sábio é um
macaco comparado a Deus, assim como o macaco mais belo é feio comparado
ao homem”.
Não há dúvida de que Deus é a encarnação da justiça cósmica.
A doutrina de que tudo se acha num estado fluente é a mais famosa das
opiniões de Heráclito e a que seus discípulos mais ressaltam, como se vê no
Teeteto, de Platão.
“Não se pode pisar duas vezes nos mesmos rios, pois as águas novas estão
sempre fluindo sobre ti”.{35}
“O sol é novo cada dia”.
Sua crença na transformação universal, segundo se supõe comumente, foi
manifestada na frase “todas as coisas fluem”, mas isso é, provavelmente,
apócrifo, como a sentença de Washington: “Pai, não posso mentir”, ou a de
Wellington: “A postos, guardas, e a eles!” Suas palavras, como as de todos os
filósofos anteriores a Platão, são apenas conhecidas através de citações, em
grande parte feitas por Platão e Aristóteles em suas refutações. Se pensarmos no
que aconteceria a qualquer filósofo moderno, se fosse apenas conhecido através
das polêmicas de seus rivais, teremos uma idéia de quão admiráveis deviam ter
sido os pré-socráticos, já que mesmo em meio da névoa de malícia estendida
pelos seus inimigos eles ainda nos parecem grandes. Seja como for, Platão e
Aristóteles concordam em que Heráclito ensinava que “nada é, pois tudo se está
fazendo” (Platão) e que “nada é constante” (Aristóteles).
Voltarei à consideração desta doutrina em relação a Platão, que se empenha
muito em refutá-la. Por ora, não investigarei o que a filosofia tem a dizer a
respeito, mas unicamente o que os poetas sentiram e os homens da ciência
ensinaram.
A busca de algo permanente é um dos instintos mais profundos que levam os
homens à filosofia. Deriva-se, sem dúvida, do amor do lar e do desejo de um
refúgio contra o perigo; vemos, por conseguinte, que essa busca é mais
apaixonada naquelas cujas vidas se acham mais expostas a catástrofes. A religião
procura a permanência de duas maneiras: Deus e imortalidade. Em Deus, não há
variação nem sombra de mudança; a vida, depois da morte, é eterna e
invariável. A jovialidade do século XIX fez com que os homens se voltassem
contra tais concepções estáticas, e a teologia liberal moderna acredita que haja
progresso no céu e evolução na mente de Deus. Mas mesmo nesta concepção há
algo permanente: o próprio progresso e o seu objetivo imanente. E é possível que
muitas desgraças possam fazer com que os homens se voltem de novo para as
suas crenças supra terrenas: se a vida não apresentar mais esperança, é somente
no céu que se poderá procurar a paz.
Os poetas têm lamentado o poder do Tempo, que varre todos os objetos de seu
amor.
O tempo transforma a flor da juventude,
E acentua as linhas paralelas na fronte da beleza;
Nutre-se do que há de raro na verdade da natureza
E nada resiste aos golpes de sua foice.
Acrescentam, geralmente, que os seus próprios versos são indestrutíveis.
E, no entanto, meus versos esperam resistir ao tempo,
Louvando teu valor, apesar de sua mão cruel.
Mas isto não passa de uma vaidade literária convencional.
Os místicos com tendências filosóficas, incapazes de negar que tudo o que é
temporal é transitório, inventaram uma concepção de eternidade no sentido de
uma não persistência pelo tempo infinito, mas uma existência fora de todo o
processo temporal. A vida eterna, segundo certos teólogos, como, por exemplo,
Dean Inge, não significa existência durante cada momento do tempo futuro, mas
um modo de ser inteiramente independente do tempo, no qual não há nem antes
nem depois e, portanto, nenhuma possibilidade lógica de mudança. Este ponto de
vista foi poeticamente expresso por Vaughan:
Vi, ontem à noite, a Eternidade,
Como um grande círculo de luz pura e infinita,
Tudo tão calmo como brilhante;
E, redonda, embaixo dela, o Tempo em horas, dias, anos,
Dirigido pelas esferas
Como uma grande sombra se movia; nele, o mundo
E tudo o que ele arrasta ia lançado.
Vários dos mais famosos sistemas filosóficos procuraram expor esta
concepção em prosa sóbria, exprimindo que a razão, pacientemente procurada,
nos obrigará, por fim, a crer.
O próprio Heráclito, apesar de toda a sua crença na transformação, admitiu
alguma coisa duradoura. A concepção de eternidade (oposta à de duração
infinita), que provém de Parmênides, não se encontra em Heráclito, mas em sua
filosofia o fogo central jamais se extingue: o mundo “sempre foi, é e será um
Fogo de vida eterna”. Mas o fogo é algo que varia incessantemente, e a sua
permanência é antes a de um processo do que a de uma substância — embora
não se deva atribuir esta opinião a Heráclito.
A ciência, como a filosofia, procurou evadir-se da doutrina do fluxo perpétuo,
encontrando algum substrato permanente entre os fenômenos de transformação.
A química parecia satisfazer a esse desejo. Verificou-se que o fogo que parece
destruir, apenas transmuda: os elementos se combinavam novamente, mas cada
átomo que existia antes da combustão ainda existe quando o processo se
completa. Acreditou-se devido a isso, que os átomos eram indestrutíveis, e que
toda mudança no mundo físico consistia simplesmente numa nova disposição de
elementos persistentes. Esta opinião prevaleceu até à descoberta da
radioatividade, quando se verificou que os átomos podiam desintegrar-se.
Sem desanimar, os físicos inventaram unidades novas e menores, chamadas
elétrons e prótons, das quais se compõem os átomos. Durante alguns anos,
julgou-se que essas unidades possuíam a indestrutibilidade atribuída antes aos
átomos. Infelizmente, parecia que os elétrons e prótons podiam chocar-se e
explodir, formando não uma nova matéria, mas uma onda de energia que se
estendia pelo universo com a velocidade da luz. A energia tinha de substituir a
matéria quanto à permanência. Mas a energia, ao contrário da matéria, não é o
refinamento da noção vulgar de uma “coisa”; é simplesmente uma característica
de processos físicos. Poderia ser, arbitrariamente, identificada com o Fogo de
Heráclito, mas se trata da ação de arder, e não do que arde. “O que arde”
desapareceu da física moderna.
Passando do pequeno ao grande, a astronomia já não nos permite que
consideremos os corpos celestes como permanentes. Os planetas procedem do
Sol, e o Sol de uma nebulosa. Durou e durará ainda mais — mas, mais cedo ou
mais tarde, provavelmente dentro de um milhão de milhões de anos, explodirá,
destruindo todos os planetas. Pelo menos assim o afirmam os astrônomos. Talvez,
à medida que se aproxime o dia fatal, descubram algum erro em seus cálculos.
A doutrina do fluxo perpétuo, tal como a ensinou Heráclito, é dolorosa, e a
ciência, como vimos, nada pode fazer para refutá-la. Uma das principais
ambições dos filósofos foi reviver esperanças que a ciência parecia haver
matado. Os filósofos, portanto, procuram, com grande persistência, algo que não
esteja sujeito ao império do Tempo. Essa busca começa com Parmênides.
CAPÍTULO V
PARMÊNIDES
Os gregos não eram partidários da moderação, nem na teoria, nem na prática.
Heráclito afirmava que tudo muda; Parmênides replicou que nada muda.
Parmênides nasceu em Eléia, no sul da Itália, e floresceu na primeira metade
do século V antes de Cristo. Segundo Platão, Sócrates, em sua juventude (ou seja,
no ano 450 A. C., aproximadamente), avistou-se com Parmênides, que já era
velho, e aprendeu muito com ele. Quer esta entrevista seja ou não histórica,
podemos pelo menos inferir, como é de qualquer modo evidente, que o próprio
Platão foi influenciado pelas doutrinas de Parmênides. Os filósofos do sul da
Itália e da Sicília eram mais inclinados ao misticismo e à religião do que os da
Jônia, que eram, em geral, científicos e céticos em suas tendências. As
matemáticas, porém, sob a influência de Pitágoras, floresceram mais na Magna
Grécia do que na Jônia; no entanto, os matemáticos, nessa época, emaranharamse no misticismo. Parmênides foi influenciado por Pitágoras, mas a extensão
dessa influência é conjetural. O que torna Parmênides historicamente importante
é ter ele inventado uma forma de argumento metafísico que, desta ou daquela
forma, é encontrado na maioria dos físicos posteriores, incluindo Hegel. Dele,
diz-se, com frequência, ter sido o inventor da lógica, mas o que realmente
inventou foi a metafísica baseada na lógica.
A doutrina de Parmênides foi exposta num poema intitulado Da Natureza.
Considerava os sentidos como enganadores, e condenava, como mera ilusão, a
multidão de coisas sensíveis. O único ser verdadeiro é “o Único”, que é infinito e
indivisível. Não é, como em Heráclito, uma união de opostos, já que não há
opostos. Ao que parece, achava, por exemplo, que “frio” significava apenas “não
quente”, e “escuro” apenas “não claro”. O “Único” não é concebido, por
Parmênides, como concebemos Deus; parece que o imaginou como sendo
material e extenso, pois fala dele como de uma esfera. Mas não pode ser
dividido, porque o conjunto está presente em toda a parte.
Parmênides divide seus ensinamentos em duas partes, chamadas,
respectivamente, “o caminho da verdade” e “o caminho da opinião”. Não há
necessidade de que nos ocupemos desta última. Quando se refere ao caminho da
verdade, no que nos ficou de seus ensinamentos, diz, em seus pontos essenciais, o
seguinte:
“Não podes saber o que não é — isso é impossível — nem o manifestar;
porque é a mesma coisa que pode ser pensada e existir”.
“Como pode, então, o que é vir a ser no futuro? Ou como poderia vir a ser? Se
vem a ser, então não é; tão pouco o é, se vai ser no futuro. Assim, o tornar-se
desaparece, e o passar não se percebe.
“A coisa que pode ser pensada, e aquilo pelo qual existe o pensamento, é o
mesmo; porque não podes encontrar uma idéia sem algo que é, e a respeito do
qual ela se manifesta”.{36}
A essência deste argumento é: quando pensas, pensas em algo; quando
empregas um nome, tem de ser o nome de algo. Portanto, o pensamento e a
linguagem requerem objetos externos. E já que podes pensar numa coisa e falar
dela tanto num momento como noutro, tudo o que pode ser pensado e de que se
pode falar tem de existir em todos os tempos. Por conseguinte, não pode haver
mudança, pois que a mudança consiste em que as coisas venham a ser ou
deixem de ser.
Este é o primeiro exemplo, na filosofia, de um argumento sobre o pensamento
e a linguagem com referência ao mundo em geral. Não pode, naturalmente, ser
aceito como válido, mas vale a pena ver-se o elemento de verdade que encerra.
Podemos expor o argumento da seguinte maneira: se a linguagem não carece
de sentido, as palavras devem significar alguma coisa e, de um modo geral, não
devem significar apenas outras palavras, mas sim algo que existe, quer falemos
ou não disso. Suponhamos, por exemplo, que se fale de George Washington. Se
não houvesse uma personagem histórica que tivesse esse nome, o nome (assim
nos pareceria) careceria de sentido, e as frases que contivessem tal nome seriam
absurdas. Parmênides afirmava que George Washington não somente deveria ter
existido no passado, mas que, de certo modo, deveria ainda existir, já que
podemos empregar o seu nome com sentido. Isto não nos parece, evidentemente,
certo, mas de que maneira poderemos contornar o argumento?
Tomemos, por exemplo, uma personagem imaginária: Hamlet. Examinemos
a afirmação: “Hamlet era príncipe da Dinamarca”. Em certo sentido, isto é
verdade, mas não no sentido histórico absoluto. A afirmação correta é;
“Shakespeare diz que Hamlet era príncipe da Dinamarca”, ou, de maneira ainda
mais explícita, “Shakespeare diz que havia um príncipe da Dinamarca chamado
Hamlet”. Aqui já não há nada imaginário. Shakespeare e a Dinamarca e o
ruidoso “Hamlet” são todos reais, mas o ruidoso “Hamlet” não é realmente um
nome, posto que ninguém realmente se chamou “Hamlet”. Se dissermos:
“Hamlet é o nome de uma pessoa imaginária”, isso não é estritamente correto;
dever-se-ia dizer: “Supõe-se que “Hamlet” é o nome de uma pessoa real”.
Hamlet é um indivíduo imaginário; os unicórnios são uma espécie imaginária.
Certas frases em que aparece a palavra “unicórnio” são certas, enquanto outras
são falsas, mas, em cada caso, não de modo direto. Vejamos, por exemplo: “um
unicórnio tem um único corno” e “uma vaca tem dois cornos”. Para comprovar
a última frase, basta olhar uma vaca; não basta que se diga em alguns livros que
a vaca tem dois cornos. Mas a prova de que os unicórnios têm apenas um corno
se encontra somente em livros; na realidade, a afirmação correta é: “Certos
livros afirmam que há animais com um corno, chamados unicórnios”. Todas as
afirmações sobre os unicórnios são, na realidade, sobre a palavra “unicórnio”,
assim como todas as afirmações sobre Hamlet se referem à palavra “Hamlet”.
Mas é evidente que, na maioria dos casos, não falamos de palavras, mas do
que as palavras significam. E isto nos leva de volta ao argumento de Parmênides,
que se uma palavra pode ser usada com sentido deve significar algo, e não nada,
e, portanto, o que a palavra significa deve, em certo sentido, existir.
Que dizer-se, então, de George Washington? Parece que só há duas
alternativas: uma, dizer-se que ele ainda existe; a outra, dizer-se que, quando nós
empregamos as palavras “George Washington”, não estamos realmente falando
do homem que teve esse nome. Tanto uma como outra parecem um paradoxo,
mas a última o é menos, e tentarei mostrar um sentido em que é verdadeira.
Parmênides supõe que as palavras têm um significado constante; esta é
realmente a base do argumento, que para ele era indiscutível. Mas, embora o
dicionário ou a enciclopédia deem o que se pode chamar o significado oficial e
socialmente sancionado de uma palavra, não há duas pessoas que, empregando a
mesma palavra, tenham a mesma idéia em sua mente.
O próprio George Washington poderia usar o seu nome e a palavra “eu” como
sinônimos. Podia perceber seus pensamentos e os movimentos de seu corpo,
podendo, pois, empregar o seu nome com um sentido mais amplo do que o que
seria possível a qualquer outra pessoa. Seus amigos, quando em sua presença,
poderiam perceber os movimentos de seu corpo e adivinhar-lhe os pensamentos;
para eles, o nome “George Washington” denotava ainda algo de concreto em sua
própria experiência. Depois de sua morte, tiveram de substituir as percepções
pela memória, o que trazia consigo uma mudança dos processos mentais que se
verificavam cada vez que mencionavam o seu nome. Para nós, que não o
conhecemos, os processos mentais são ainda diferentes. Podemos pensar em seu
retrato e dizer para nós mesmos: “Sim, este é o homem”. Podemos pensar:
“O primeiro presidente dos Estados Unidos”. Se formos muito ignorantes, ele
poderá ser, para nós, simplesmente, “o homem que se chamou George
Washington”. O que quer que seja que o nome nos sugira, não será o próprio
homem, pois que jamais o conhecemos, mas algo que está presente no sentido,
na lembrança ou no pensamento. Isto demonstra o erro do argumento de
Parmênides.
Esta mudança perpétua na significação das palavras é oculta pelo fato de que,
em geral, a mudança não faz diferença quanto à verdade ou à falsidade das
proposições em que as palavras ocorrem. Se tomarmos qualquer frase
verdadeira em que apareça o nome “George Washington”, ela, regra geral,
permanecerá certa, se o substituirmos por “o primeiro presidente dos Estados
Unidos”. Há exceções a essa regra. Antes da eleição de Washington, alguém
poderia dizer: “Espero que o primeiro presidente dos Estados Unidos será o
primeiro presidente dos Estados Unidos”, a menos que tivesse uma paixão
incomum pelo princípio de identidade. Mas é fácil estabelecer uma regra para a
exclusão desses casos excepcionais, e, nos que permanecem, podemos usar, em
lugar de George Washington, qualquer frase descritiva que se aplique somente a
ele.
Parmênides afirma que, já que agora não podemos saber o que se considera
comumente como passado, este não pode ser realmente o passado, mas deve,
em certo sentido, existir agora. Daí, infere ele que não existe o que chamamos
mudança. O que vimos falando a respeito de George Washington coincide com
este argumento. Pode-se dizer, em certo sentido, que não temos conhecimento do
passado. Quando nos lembramos, as lembranças nos ocorrem agora, e não são
idênticas ao acontecimento lembrado. Mas a lembrança nos fornece uma
descrição do acontecimento passado e, para a maioria dos fins práticos, não é
necessário distinguir entre a descrição e aquilo que é descrito.
Todo este argumento mostra como é fácil tirar-se deduções metafísicas da
linguagem, e como o único meio de evitar argumentos falsos desta espécie é
levar o estudo lógico e psicológico da linguagem mais além do que tem sido feito
pela maioria dos metafísicos.
Creio, porém, que, se Parmênides pudesse reviver e ler o que venho dizendo,
consideraria isso muito superficial. “Como sabe o senhor — perguntaria ele —
que as suas afirmações sobre George Washington se referem a um tempo
passado? Segundo suas próprias palavras, a referência direta diz respeito a coisas
presentes; suas recordações, por exemplo, ocorrem agora, e não no tempo de
que o senhor julga que se lembra. Se aceitamos a memória como fonte de
conhecimento, o passado deve estar agora diante da mente, devendo, portanto,
em certo sentido, ainda existir.”
Não procurarei responder agora a este argumento, pois o mesmo requer uma
discussão sobre a memória, o que constitui tema difícil. Coloquei aqui o
argumento para lembrar ao leitor que as teorias filosóficas, se importantes,
podem, em geral, ser revividas em uma nova forma, após terem sido refutadas
na forma originalmente manifestada. As refutações raras vezes são definitivas;
na maioria dos casos, são apenas um prelúdio para novos refinamentos.
O que a filosofia posterior, até os tempos modernos, aceitou de Parmênides,
não foi a impossibilidade de toda mudança — o que era um paradoxo por demais
violento — mas a indestrutibilidade da substância. A palavra substancia não
ocorre em seus sucessores imediatos, mas o conceito já se acha presente em
suas especulações. Supunha-se que uma substância era o sujeito persistente de
predicados variáveis. E assim se tornou e permaneceu, durante mais de dois mil
anos, uma das concepções fundamentais da filosofia, psicologia, física e teologia.
Mais tarde terei muito que dizer a respeito. Por ora, estou interessado apenas em
observar que ela foi introduzida como uma maneira de se fazer justiça aos
argumentos de Parmênides, sem negar fatos evidentes.
CAPÍTULO VI
Empédocles
A mistura de filósofo, profeta, homem de ciência e charlatão, que já
encontramos em Pitágoras, manifesta-se de maneira mais completa em
Empédocles, que viveu em redor do ano 440 A. C., e que foi, assim, um
contemporâneo, mais jovem, de Parmênides, embora sua doutrina tenha, de
certo modo, mais afinidade com a de Heráclito. Foi um cidadão de Acragas, na
costa sul da Sicília; era um político democrático que, ao mesmo tempo,
reivindicava para si a qualidade de Deus. Na maioria das cidades gregas e,
principalmente, nas da Sicília, havia uma luta constante entre a democracia e a
tirania; os líderes do partido que fosse, no momento, vencido, eram executados
ou exilados. Os que eram exilados raramente sentiam escrúpulos em entrar em
negociações com os inimigos da Grécia: a Pérsia, a leste, e Cartago, a oeste.
Empédocles, também, foi exilado, mas parece que, depois de seu desterro,
preferiu a vida de sábio à de refugiado intrigante. Parece provável que tenha
sido, na juventude, mais ou menos órfico; que, antes de seu exílio, combinasse a
política com a ciência, e que somente mais tarde, quando desterrado, se tornou
profeta.
A lenda tem muito que contar a respeito de Empédocles. Segundo se supunha,
realizava milagres, ou o que parecia tal, às vezes por meio de magia, outras vezes
mediante o seu conhecimento científico. Sabia dominar os ventos, conforme nos
contam; restaurou à vida uma mulher que parecia morta há já trinta dias e,
finalmente, morreu por saltar à cratera do Etna, a fim de provar que era deus,
como o dizem as palavras do poeta:
O grande Empédocles, essa alma ardente,
Saltou no Etna e foi totalmente torrado.
Matthew Arnold escreveu um poema sobre este tema, mas, embora seja um
de seus piores, não contém os versos acima.
Como Parmênides, Empédocles escreveu em verso. Lucrécio, que foi por ele
influenciado, louvou-o muito como poeta, mas, a este respeito, as opiniões se
acham divididas. Como sobreviveram somente fragmentos de seus escritos, seu
mérito poético deve ficar em dúvida.
É necessário tratar separadamente sua ciência e sua religião, pois não tem
relação entre si. Examinarei primeiro sua ciência, depois sua filosofia e,
finalmente, sua religião.
Sua contribuição mais importante à ciência foi a descoberta do ar como
substância à parte. Isto foi por ele provado pela observação de que quando um
balde ou outro objeto semelhante é colocado na água, com o fundo para cima, a
água não entra no balde. Diz ele:
“Quando uma menina, brincando com uma clepsidra de metal brilhante,
coloca o orifício do tubo em sua bela mão, submergindo a clepsidra na massa
cedente de água prateada, a corrente não penetra em seu interior, mas o volume
de ar que se acha dentro, fazendo pressão sobre as perfurações abundantes, a
mantém afastada, até que a menina destape a corrente comprimida; mas então o
ar escapa e entra um volume igual de água”.
Esta passagem aparece numa explicação sobre a respiração.
Também descobriu pelo menos um exemplo de força centrífuga; se girar, na
extremidade de uma corda, uma xícara com água, a água não sai.
Sabia que as plantas têm sexo, e tinha uma teoria (um tanto ou quanto
fantástica, deve-se admitir) a respeito da evolução e sobrevivência dos mais
aptos. Originalmente, “inumeráveis tribos de mortais esparramaram-se pelo
mundo, dotadas das mais diversas formas: uma verdadeira maravilha”. Havia
cabeças sem pescoços, braços sem ombros, olhos sem testas, membros soltos
procurando uma articulação. Essas coisas se uniram arbitrariamente, por puro
acaso; havia criaturas desajeitadas, com inúmeras mãos; criaturas com caras e
peitos voltados em direções opostas; criaturas com caras de boi e corpos
humanos. Havia hermafroditas que eram, ao mesmo tempo, homens e mulheres,
mas estéreis. No fim, certas formas sobreviveram.
Quanto à astronomia: sabia que a lua brilha por refletir a luz, e pensava o
mesmo do sol; disse que a luz leva certo tempo para percorrer distâncias, mas tão
pouco tempo que não podemos observar; sabia que os eclipses solares são
produzidos pela interposição da lua, fato este que parece ter aprendido de
Anaxágoras.
Foi o fundador da escola italiana de medicina, e a escola médica que dele se
originou exerceu influência tanto sobre Platão como sobre Aristóteles. Segundo
Buraet (p. 234), influiu sobre todas as tendências do pensamento científico e
filosófico.
Tudo isto revela o vigor científico de seu tempo, que não foi igualado nas
épocas posteriores da Grécia.
Falarei, agora, de sua cosmologia. Foi ele, como já dissemos, que estabeleceu
os quatro elementos: a terra, o ar, o fogo e a água (embora a palavra “elemento”
não fosse por ele empregada). Todos eram permanentes, mas poderiam
misturar-se em diferentes proporções e produzir, assim, as substâncias
complexas mutáveis que encontramos no mundo. Eram unidas pelo Amor e
separadas pela Luta. O Amor e a Luta eram, para Empédocles, substâncias
primitivas, tais como a terra, o ar, o fogo e a água. Havia períodos em que o
Amor predominava, e outros em que a Luta era mais poderosa. Houve uma
idade de ouro em que o Amor saiu completamente vitorioso. Nessa época, os
homens veneravam somente a Afrodite de Chipre (fr. 128). As transformações
que se verificam no mundo não são governadas por nenhuma finalidade, mas
unicamente pelo Acaso e pela Necessidade. Há um ciclo: quando os elementos
foram misturados profundamente pelo Amor, a Luta, aos poucos, os desune;
depois que a Luta os separou, o Amor os torna a reunir, gradativamente. Assim,
toda substância composta é temporal; somente os elementos, juntamente com o
Amor e a Luta, são eternos.
Existe nisso certa analogia com Heráclito, mas muito ligeira, posto que não é
somente a Luta, mas o Amor e a Luta, juntos, que produzem a mudança. Platão,
no Sofista (242), combina as idéias de Heráclito e Empédocles.
“Há jônios e, mais recentemente, sicilianos — diz ele — que chegaram à
conclusão de que a união dos dois princípios (o do Único e o dos Muitos) é mais
segura, e dizem que o ser é um e muitos, e que estes estão unidos pela inimizade
e a amizade, que sempre se separam e sempre tomam a unir-se, como o
afirmam as Musas mais severas, enquanto as mais gentis não insistem em que há
continuamente luta e paz, mas admitem um afrouxamento e uma alternação
entre elas; a paz e a unidade às vezes prevalecem sob o cetro de Afrodite, e então
há de novo pluralidade e guerra, por razão de um princípio de luta.”
Empédocles afirma que o mundo material é uma esfera; que na Idade do
Ouro a Luta estava fora e o Amor dentro; depois, aos poucos, a Luta entrou e o
Amor foi expulso, até que, no pior momento, a Luta estará inteiramente dentro e
o Amor completamente fora da esfera. Então — embora a razão disso não seja
muito clara — começa um movimento contrário, até que volte a Idade do Ouro,
mas não para sempre. Repete-se, então, todo o ciclo. Poder-se-ia supor que
qualquer um dos extremos fosse estável, mas essa não é a opinião de
Empédocles. Queria explicar o movimento levando em conta o argumento de
Parmênides, e não desejava chegar, em fase alguma, a um universo que não
mudasse.
As opiniões de Empédocles a respeito da religião são, principalmente,
pitagóricas. Num fragmento que, com toda a probabilidade, se refere a
Pitágoras, diz ele: “Havia entre eles um homem de extraordinários
conhecimentos, muito hábil em toda a espécie de obras sábias, um homem que
havia alcançado a máxima riqueza da sabedoria, pois, sempre que submeteu à
tensão o seu espírito, viu com facilidade tudo de todas as coisas que há em dez ou,
mesmo, vinte vidas humanas”. Na Idade do Ouro, como já mencionamos, os
homens adoravam apenas Afrodite, “e o altar não estava manchado com o
sangue do boi puro, pois se considerava a maior das abominações, entre os
homens, comer os membros, depois de tirar a vida aos animais”.
A certa altura, fala de si mesmo, de maneira exuberante, como de um deus:
“Amigos que habitais a grande cidade que contempla o rochedo amarelo de
Acragas, próximo da cidadela, empenhada em boas obras, porto de honra para o
forasteiro: homens incapazes de mesquinharias, saúdo-vos a todos. Ando entre
vós como deus imortal, não mortal agora, honrado entre todos, coroado de fitas e
grinaldas de flores. Logo que entro com elas, em minha comitiva, nas cidades
florescentes, tanto os homens como as mulheres me rendem culto; seguem-me
multidões incontáveis, perguntando-me qual caminho devem tomar; alguns
desejam oráculos, enquanto que outros, atormentados há muito, por toda a
espécie de enfermidades, desejam ouvir de mim a palavra que cura …, mas por
que me detenho eu a falar nestas coisas, como se tivesse grande importância o
fato de eu ultrapassar os homens mortais e perecíveis?”
Em outra ocasião, sente-se grande pecador, e sofre a expiação de sua
impiedade:
“Existe um oráculo da Necessidade, uma antiga ordem dos deuses, eterna e
selada por profundos juramentos, que diz que sempre que um dos demônios, cuja
parte está na extensão dos dias, polui, pecadoramente, as suas mãos com sangue,
ou empreende uma luta e comete perjúrio, deve caminhar três vezes dez mil
anos, partindo da morada dos abençoados e carregando, através do tempo, toda a
espécie de formas mortais, trocando um caminho penoso da vida por outro. Pois
o poderoso Ar a empurra para o Mar, e o Mar o faz girar de volta para a Terra
firme; a Terra lança-o aos raios do Sol ardente, e este o atira de novo aos
redemoinhos do Ar. Um o arranca de outro, e todos o rejeitam. Um deles sou eu
agora, um desterrado e errante dos deuses, pois ponho a minha confiança numa
luta insensata”.
Qual tenha sido o seu pecado, não o sabemos; talvez nada que
considerássemos muito grave. Porque ele diz:
“Ah, ai de mim, que o dia implacável da morte não destruiu antes que eu
cometesse ações terríveis com os meus lábios! …
“Aparta-te inteiramente do laurel …
“Miseráveis, grandíssimos miseráveis, afastai vossas mãos das favas!”
É possível, pois, que não haja feito nada pior do que mastigar alguns louros e
engolir umas favas.
A passagem mais famosa de Platão, na qual ele compara este mundo a uma
caverna em que vemos apenas sombras das realidades do luminoso mundo que
existe em cima, já fora empregada por Empédocles; sua origem se acha no
ensinamento dos órficos.
Há criaturas — provavelmente as que se abstém do pecado durante muitas
encarnações — que obtém, por fim, a felicidade imortal na companhia dos
deuses:
“Mas, no fim, eles aparecem {37} entre os mortais como profetas, autores de
cantos, médicos e príncipes; e daí se elevam como deuses exaltados com honras,
compartilhando da terra e da mesma mesa dos outros deuses, livres dos
sofrimentos humanos, a salvo do destino, invulneráveis”.
Em tudo isto, parece haver muito pouco que já não estivesse contido nos
ensinamentos do orfismo e do pitagorismo.
A originalidade de Empédocles, à parte a ciência, consiste na doutrina dos
quatro elementos, e no emprego dos princípios do Amor e da Luta para explicar
a mudança.
Rejeitou o monismo e considerou o curso da natureza como regulado pela
casualidade e a necessidade, e não por uma finalidade. A este respeito, sua
filosofia foi mais científica do que as de Parmênides, Platão e Aristóteles. Quanto
ao mais, recaiu, sem dúvida, nas superstições vulgares; mas, nisto, não foi pior do
que muitos homens de ciência modernos.
CAPÍTULO VII
Atenas e a Cultura
A grandeza de Atenas começa na época das duas guerras pérsicas (490 A. C.
E 480-79 A. C.). Antes dessa época, a Jônia e a Magna Grécia (as cidades gregas
do sul da Itália e da Sicília) produziram grandes homens. A vitória de Atenas
contra o rei persa Dario em Maratona (490) e a vitória das frotas gregas unidas
contra seu filho e sucessor Xerxes (480), sob comando ateniense, deram grande
prestígio a Atenas. Os jônios, nas ilhas e em parte do continente da Ásia Menor,
rebelaram-se contra a Pérsia, e a sua libertação se efetuou por meio de Atenas,
depois que os persas foram expulsos do território grego. Os espartanos, que se
interessavam apenas pelo seu próprio território, não participaram dessa
operação. Assim, Atenas tornou-se a parte predominante na aliança contra a
Pérsia. Segundo a constituição da aliança, todo Estado participante devia
contribuir com um número determinado de navios, ou o equivalente ao custo dos
mesmos. A maioria escolheu esta alternativa e Atenas adquiriu, desse modo,
supremacia naval sobre os outros aliados, e transformou, aos poucos, a aliança
num Império Ateniense. Atenas tornou-se rica, prosperando sob a sábia direção
de Péricles, que governou, por livre escolha dos cidadãos, durante cerca de trinta
anos, até à sua queda, no ano 430 antes de Cristo.
A época de Péricles foi a mais feliz e gloriosa da história de Atenas. Esquilo,
que lutara nas guerras pérsicas, iniciou a tragédia grega; uma de suas obras, os
“Persas”, deixando de lado o costume de escolher-se temas homéricos, trata da
derrota de Xerxes. Foi logo seguido por Sófocles, e Sófocles por Eurípides.
Ambos se estendem pelos dias sombrios da Guerra do Peloponeso que se
seguiram à queda e morte de Péricles, sendo que Eurípides reflete em suas obras
o ceticismo do último período. Seu contemporâneo Aristófanes, o poeta cômico,
zomba de todos os “ismos”, do ponto de vista de um senso comum rude e
limitado; censura, em particular, a Sócrates, por negar a existência de Zeus e
dedicar-se a mistérios profanos e pseudocientíficos.
Atenas havia sido capturada por Xerxes, e os templos da Acrópole destruídos
pelo fogo. Péricles dedicou-se à sua reconstrução. O Parthenon e outros templos,
cujas ruínas perduram e impressionam a nossa época, foram construídos por ele.
Fídias, o escultor, foi encarregado, pelo Estado, de talhar estátuas colossais de
deuses e deusas. No fim desse período, Atenas era a cidade mais bela e
esplêndida do mundo helênico.
Heródoto, o pai da história, nasceu em Halicarnasso, na Ásia Menor, mas
viveu em Atenas, foi encorajado pelo Estado ateniense e escreveu o seu relato
das guerras pérsicas do ponto de vista ateniense.
As realizações de Atenas, ao tempo de Péricles, são, talvez, as mais
surpreendentes de toda a história. Até então, Atenas havia sido superada pelas
outras cidades gregas; nem na arte, nem na literatura, produzira qualquer grande
homem (exceto Solon, que era, antes de tudo, um legislador). Súbito, sob o
estímulo da vitória, da riqueza e da necessidade de reconstrução, arquitetos,
escultores e dramaturgos, que até hoje ainda não foram superados, realizaram
obras que dominaram, até hoje, o futuro. Isto é tanto mais surpreendente quando
se considera o pequeno número de seus habitantes. Atenas, ao atingir o auge de
seu prestígio, no ano 430 A. C., aproximadamente, contava, segundo se calcula,
cerca de 230.000 almas (incluídos os escravos), sendo que o território que a
cercava, da Ática rural, continha, provavelmente, uma população ainda menor.
Nunca antes, nem depois, a mesma proporção de habitantes, em qualquer lugar
do mundo, se mostrou capaz de realizar obras de tão elevada qualidade.
Na filosofia, Atenas contribuiu com dois « mandes nomes: Sócrates e Platão.
Platão pertence a um período um tanto mais tardio, mas Sócrates passou a
juventude e parte da sua idade madura sob o governo de Péricles. Os atenienses
interessavam-se o bastante pela filosofia para escutar avidamente os mestres de
outras cidades. Os sofistas eram procurados pelos jovens que desejavam
aprender a arte da disputa; em Protágoras, o Sócrates platônico faz uma
descrição satírica divertida dos ardentes discípulos presos à palavra do visitante
eminente. Péricles, como veremos, trouxe Anaxágoras para Atenas, do qual
Sócrates dizia haver aprendido a preeminência do espírito na criação.
A maioria dos diálogos de Platão devia ser considerada, segundo ele próprio o
disse, como tendo se verificado durante a época de Péricles, e oferecem uma
descrição agradável da vida entre os ricos. Platão pertencia a uma família
aristocrática de Atenas, e criou-se na tradição do período anterior à guerra, antes
que a democracia destruísse a riqueza e a segurança das classes superiores. Os
jovens, que não tinham necessidade de trabalhar, passavam a maior parte das
suas horas de lazer em busca da ciência, das matemáticas e da filosofia;
conhecem Homero quase de cor, e são juízes críticos dos méritos dos recitadores
profissionais de poesia. A arte do raciocínio dedutivo tinha acabado de ser
descoberta, e proporcionava o estímulo das teorias novas, falsas e verdadeiras, a
todo o campo do conhecimento. Era possível, nessa época, como em poucas
outras, ser, ao mesmo tempo, inteligente e feliz e, o que é mais, feliz devido à
inteligência.
Todavia, o equilíbrio de forças que produziu essa idade de ouro era precário.
Era ameaçado tanto por dentro como por fora: por dentro, pela democracia; por
fora, por Esparta. Para se compreender o que aconteceu depois de Péricles,
temos de tratar, brevemente, do começo da história da Ática.
A Ática, no início do período histórico, era uma região agrícola que bastava a
si mesma; Atenas, sua capital, não era grande, mas continha uma população
crescente de artesãos e artífices hábeis, os quais desejavam dispor de seus
produtos no estrangeiro. Verificou-se, aos poucos, que era mais vantajoso o
cultivo de vinhas e olivais do que de cereais, importando-se o grão,
principalmente da costa do Mar Negro. Esta forma de cultivo requeria maior
capital do que o cultivo de cereal, e os pequenos agricultores ficaram
endividados. A Ática, como outros Estados gregos, fora, na época de Homero,
uma monarquia, mas o rei tornou-se mero funcionário religioso, sem poder
político. O governo caiu nas mãos da aristocracia, que oprimia tanto os
agricultores rurais como os artesãos urbanos. Um compromisso no sentido
democrático foi efetuado por Solon no começo do século VI, sendo que uma
grande parte da sua obra perdurou na época subsequente de tirania, sob o
governo de Pisistrato e seus filhos. Quando esse período chegou ao fim, os
aristocratas, como oponentes da tirania, inclinaram – se para a democracia. Até
à queda de Péricles, os processos democráticos deram poder à aristocracia,
como ocorreu na Inglaterra no século XIX. Nos últimos anos da vida de Péricles,
porém, os líderes da democracia ateniense começaram a exigir uma
participação maior no poder político. Ao mesmo tempo, sua política imperialista,
à qual estava ligada a prosperidade econômica de Atenas, causou um atrito cada
vez maior com Esparta, levando, por fim, à Guerra do Peloponeso (431-404), na
qual Atenas foi completamente derrotada.
Apesar do colapso político, o prestígio de Atenas sobreviveu e, durante quase
um milênio, a filosofia teve nela o seu centro. Alexandria eclipsou Atenas nas
matemáticas e na ciência, mas Platão e Aristóteles haviam assegurado a
supremacia de Atenas na filosofia. A Academia, onde Platão ensinou, sobreviveu
a todas as outras escolas, e perdurou, como uma ilha de paganismo, até dois
séculos depois da conversão do Império Romano ao Cristianismo. Por fim, no
ano 529 da era cristã, foi fechada por Justiniano, devido ao fanatismo religioso
deste imperador, e a Idade das Trevas desceu sobre a Europa.
CAPÍTULO VIII
Anaxágoras
O filósofo Anaxágoras, embora não esteja à altura de Pitágoras, Heráclito e
Parmênides, tem, não obstante, considerável importância histórica. Era jônio e
continuou a tradição científica racionalista da Jônia. Foi o primeiro a introduzir a
filosofia em Atenas e a sugerir o espírito como causa primária de mudanças
físicas.
Nasceu em Clazomene, na Jônia, cerca do ano 500 A. C., mas passou trinta
anos de sua vida em Atenas, de 452 a 432 A. C., aproximadamente. Foi Péricles,
provavelmente, quem o induziu a ir para Atenas, pois que se empenhava em
civilizar os seus compatriotas. Talvez Aspásia, que veio de Mileto, o haja
apresentado a Péricles. Platão, em Fedro, diz:
“Parece que Péricles se interessou por Anaxágoras, que era um homem de
ciência; e ocupando-se da teoria das coisas em nível elevado, e tendo atingido o
conhecimento da natureza verdadeira do intelecto e da loucura, que eram os
temas principais de Anaxágoras, tirou dessa fonte tudo o que pudesse contribuir
para o seu adiantamento na arte do discurso”.
Diz-se que Anaxágoras também exerceu influência sobre Eurípides, mas isto
é mais duvidoso.
Os cidadãos de Atenas, como os de outras cidades em outras épocas e
continentes, revelavam certa hostilidade para com aqueles que tentavam
introduzir um nível mais elevado de cultura do que aquele a que estavam
acostumados. Quando Péricles estava envelhecendo, seus adversários iniciaram
uma campanha contra ele, começando por atacar os seus amigos. Acusaram
Fídias de haver guardado para si uma parte do ouro que devia ser empregado em
suas estátuas. Criaram uma lei permitindo a denúncia dos que não praticavam a
religião e ensinavam teorias sobre “coisas do alto”. Baseados nessa lei, moveram
um processo contra Anaxágoras, que foi acusado de ensinar que o Sol era uma
pedra incandescente e que a Lua era terra. (Essa mesma acusação foi repetida
pelos perseguidores de Sócrates, que zombou deles, chamando-os de antiquados).
Não se sabe com certeza o que aconteceu, exceto que Anaxágoras teve de deixar
Atenas. Parece provável que Péricles o tirou da prisão e o ajudou a partir. Voltou
à Jônia, onde fundou uma escola. De acordo com o seu testamento, o aniversário
de sua morte foi mantido como feriado escolar.
Anaxágoras afirmava que tudo é infinitamente divisível, e que mesmo a
menor partícula de matéria contém algo de cada elemento. As coisas parecem
ser aquilo que contem mais. Assim, por exemplo, tudo contém um pouco de
fogo, mas somente podemos chamar fogo aquilo em que este elemento
predomina. Como Empédocles, argui contra o vazio, dizendo que a clepsidra ou
uma pele cheia de vento mostram haver ar onde parece não haver nada.
Difere de seus predecessores quanto ao que se refere ao espírito (nous) como
substância que entra na composição das coisas vivas, distinguindo-as, assim, da
matéria morta. Em todas as coisas — diz ele — há uma porção de tudo, exceto
espírito, sendo que certas coisas também contêm espírito. O espírito tem poder
sobre todas as coisas que possuem vida; é infinito e regido por si mesmo, e não se
mistura com nada. Exceto quanto ao que diz respeito ao espírito, todas as coisas,
por pequenas que sejam, contem porções de todos os opostos, tal como o frio e o
calor, o branco e o preto. Afirmava que a neve é negra (em parte).
O espírito é a fonte de todo movimento. Produz uma rotação, que se estende,
aos poucos, pelo mundo inteiro, fazendo com que as coisas mais leves vão para a
circunferência, e as mais pesadas caiam na direção do centro. O espírito é
uniforme, e vale tanto nos animais como nos homens. A superioridade aparente
do homem se deve ao fato de ele possuir mãos; todas as diferenças aparentes da
inteligência são devidas, na realidade, a diferenças corporais.
Tanto Aristóteles como o Sócrates platônico se queixam de que Anaxágoras,
depois de introduzir o espírito, o emprega muito pouco. Aristóteles ressalta que
ele somente introduz o espírito como causa quando não encontra outra. Sempre
que pode, dá uma explicação mecânica. Rejeita a necessidade e o acaso como
causas da origem das coisas; não obstante, não existe “Providência” em sua
cosmologia. Parece não haver pensado muito a respeito de ética ou religião; era,
provavelmente, ateu, como o afirmavam os seus perseguidores. Todos os seus
predecessores o influenciaram, com exceção de Pitágoras. A influência de
Parmênides foi, em seu caso, a mesma que a de Empédocles.
Anaxágoras teve grande mérito na ciência. Foi quem primeiro explicou que a
lua brilha com luz reflexa, embora haja um fragmento críptico em Parmênides
que também sugere que ele o sabia. Anaxágoras deu a teoria correta dos
eclipses, e sabia que a lua se acha abaixo do Sol. O Sol e as estrelas, disse ele, são
pedras ardentes, mas não sentimos o calor das estrelas porque elas estão muito
distantes. O Sol é maior do que o Peloponeso. A Lua tem montanhas e (achava
ele) habitantes.
Anaxágoras, segundo se diz, pertenceu à escola de Anaxímenes; não há
dúvida de que manteve viva a tradição racionalista e científica dos jônios. Nele,
não se encontra a preocupação ética e religiosa que, passando dos pitagóricos a
Sócrates, e de Sócrates a Platão, levou algo da tendência obscurantista à filosofia
grega. Embora não seja absolutamente de primeira plana, é uma figura
importante, por ter sido o primeiro a levar a filosofia a Atenas, e como uma das
influências que ajudaram a formar o espírito de Sócrates.
CAPITULO IX
Os Atomistas
For a m dois os fundadores do atomismo: Leucipo e Demócrito. É difícil
distingui-los, pois são, em geral, mencionados juntos e, ao que parece, certas
obras de Leucipo foram, posteriormente, atribuídas a Demócrito.
Leucipo, que parece ter vivido cerca do ano 440 A. C.,{38} provinha de
Mileto, trazendo consigo a filosofia científica racionalista ligada ao nome dessa
cidade. Foi muito influenciado por Parmênides e Zeno. Sabe-se tão pouco dele
que Epicuro (adepto posterior de Demócrito) negou, ao que se diz, a sua
existência, sendo que alguns modernos reviveram essa teoria. Há, porém, em
Aristóteles, numerosas alusões a ele, parecendo impossível que estas (as quais
incluem citações textuais) tivessem ocorrido, se ele tivesse sido simplesmente um
mito.
Demócrito é uma figura muito mais definida. Nasceu em Abdera, na Trácia;
quanto à época em que viveu, afirmou que era jovem quando Anaxágoras era
velho, ou seja, cerca do ano 432 A. C., devendo, pois, ter produzido as suas obras
ao redor do ano 420 A. C. Viajou muito, por terras do Sul e de leste, em busca de
conhecimento. É provável que haja passado longa temporada no Egito, tendo
visitado, certamente, a Pérsia. Voltou, depois, a Abdera, onde permaneceu.
Zeller considera-o “superior a todos os filósofos anteriores e contemporâneos em
riqueza de conhecimentos, e, a muitos deles, quanto à penetração e correção
lógica do pensamento”.
Demócrito era contemporâneo de Sócrates e dos sofistas, e deveria, por
razões puramente cronológicas, ser tratado um tanto posteriormente em nossa
história. A dificuldade está em que é difícil separá-lo de Leucipo. Por isso, ocupome dele antes de Sócrates e dos sofistas, embora parte de sua filosofia se
destinasse a ser uma réplica a Protágoras, aos seus concidadãos e ao mais
eminente dos sofistas. Protágoras, quando visitou Atenas, foi recebido
entusiasticamente; Demócrito, de sua parte, diz: “Fui para Atenas e ninguém me
conheceu”. Durante muito tempo, sua filosofia foi ignorada em Atenas. “Não se
tem certeza — diz Bumet — de que Platão soubesse algo a respeito de
Demócrito … Aristóteles, por outro lado, conhecia-o bem, pois também era um
jônio do Norte”.{39} Platão jamais o mencionou nos Diálogos, mas Diógenes
Laércio diz que Platão o odiava tanto que desejava que todos os seus livros
fossem queimados. Heath tem-no em alto apreço como matemático.{40}
As idéias fundamentais da filosofia comum de Leucipo e Demócrito foram
devidas ao primeiro, mas é difícil separá-los quanto à elaboração; de qualquer
maneira, para a nossa finalidade, não é importante tentar fazê-lo. Leucipo, se não
Demócrito, foi levado ao atomismo tendo em vista encontrar um meio entre o
monismo e o pluralismo, tal como os representara Parmênides e Empédocles,
respectivamente. Seu ponto de vista assemelha-se, surpreendentemente, com o
da ciência moderna, tendo evitado muitas das falhas a que a especulação grega
era propensa. Acreditavam que tudo se compunha de átomos, os quais são
fisicamente, mas não geometricamente, indivisíveis; que entre os átomos existe
um espaço vazio; que os átomos são indestrutíveis; que sempre estiveram, e
sempre estarão, em movimento; que há um número infinito de átomos e,
mesmo, de espécies de átomos, e que as diferenças dizem respeito à forma e ao
tamanho. Aristóteles{41} afirma que, segundo os atomistas, os átomos também
diferem quanto ao calor, e que os átomos esféricos, que compõem o fogo, são os
mais quentes; quanto ao peso, cita Demócrito, como tendo dito: “Quanto maior é
o indivisível, tanto mais pesa”. Mas a questão de se saber se os átomos possuíam,
originariamente, peso, nas teorias dos atomistas, é ponto de controvérsia.
Os átomos estavam sempre em movimento, mas há desacordo entre os
comentaristas quanto ao caráter do movimento original. Alguns, principalmente
Zeller, afirmam que os átomos eram considerados como estando sempre a cair,
e que os mais pesados caíam mais depressa; assim, quando estes arrastavam os
mais leves, havia sempre impactos, e os átomos defletiam como bolas de bilhar.
Esta era, certamente, a opinião de Epicuro, que, sob muitos aspectos, baseou suas
teorias nas de Demócrito, embora procurasse, de maneira pouco inteligente,
levar em conta a crítica de Aristóteles. Há, porém, razões ponderáveis para se
crer que o peso não era uma propriedade original cios átomos de Leucipo e
Demócrito. Parece mais provável que, segundo a opinião de ambos, os átomos se
movessem, a princípio, ao acaso, como na moderna teoria cinética dos gases.
Demócrito disse que não havia alto nem baixo no vazio infinito, e comparou o
movimento dos átomos na alma às partículas de poeira num raio de sol, quando
não há vento. Este é um ponto de vista muito mais inteligente que o de Epicuro, e
penso que podemos supor tenha sido o de Leucipo e Demócrito.{42}
Como resultado de colisões, os grupos de átomos chegavam a formar vórtices.
O resto procedia como diz Anaxágoras, mas constitui um progresso explicar os
vórtices mecanicamente, e não como resultado de uma ação do espírito.
Era comum, na antiguidade, censurar-se os atomistas, por atribuírem tudo à
casualidade. Eram, ao contrário, deterministas rigorosos, que acreditavam que
tudo acontece de acordo com as leis naturais. Demócrito negava explicitamente
que alguma coisa possa ocorrer por acaso.{43} Leucipo, embora sua existência
seja duvidosa, disse, segundo se sabe, uma coisa: “Nada acontece por nada, mas
tudo ocorre por uma razão e por necessidade”. É verdade que não explicou por
que razão o mundo, originalmente, devia ter sido como era; isto talvez possa ter
sido atribuído à casualidade. Mas, uma vez que o mundo passou a existir, seu
desenvolvimento interior foi fixado inalteravelmente por princípios mecânicos.
Aristóteles e outros censuravam-no e a Demócrito por não levarem em conta o
movimento original dos átomos, mas nisto os atomistas eram mais científicos do
que os seus críticos. A causa tem de partir de algo e, origine-se onde quer que
seja, não se pode atribuir uma causa ao dado inicial. Pode-se atribuir o mundo a
um Criador, mas mesmo assim o Próprio Criador não pode ser explicado. A
teoria dos atomistas, com efeito, aproximava-se mais da ciência moderna do que
qualquer outra teoria da antiguidade.
Os atomistas, ao contrário de Sócrates, Platão e Aristóteles, procuravam
explicar o mundo sem introduzir a noção de “propósito” ou “causa final”. A
“causa final” de uma ocorrência é um acontecimento no futuro por causa da
qual a ocorrência se verifica. Nas coisas humanas, esta concepção é aplicável.
Por que o padeiro faz pão? Porque as pessoas terão fome. Por que são
construídas estradas de ferro? Porque as pessoas desejarão viajar. Em tais casos,
as coisas são explicadas pelo fim a que se destinam. Quando perguntamos “por
quê? A respeito de uma ocorrência, podemos referir-nos a uma ou outra dessas
duas coisas. Podemos querer dizer: “Para que fim serve esta ação?”, ou: “Que
circunstâncias anteriores causaram este acontecimento?” A resposta à primeira
pergunta é uma explicação teológica, ou uma explicação por causas finais; a
resposta à segunda é uma explicação mecanicista. Não compreende como se
poderia saber de antemão qual dessas duas perguntas a ciência deveria fazer, ou
se deveria fazer ambas. Mas a experiência demonstrou que a pergunta
mecanicista conduz ao conhecimento científico, enquanto que a teológica não. Os
atomistas fizeram a pergunta mecanicista, e deram uma resposta mecanicista.
Seus sucessores, até à Renascença, interessaram-se mais pela questão teológica,
conduzindo assim a ciência a um beco sem saída.
Com respeito a ambas as questões, existe uma limitação frequentemente
ignorada, tanto no pensamento popular como na filosofia. Nenhuma dessas
perguntas pode ser feita, de maneira inteligível, com respeito à realidade como
um todo (incluindo Deus), mas somente sobre partes dela. Quanto à explicação
teológica, chega logo, geralmente, a um Criador, ou ao menos a um Artífice,
cujos objetivos se realizam no curso da natureza. Mas se um homem é tão
obstinadamente teológico a ponto de continuar a perguntar que fim tem em vista
o Criador, sua pergunta se torna, evidentemente, ímpia. Ademais, isso carece de
sentido, já que, para dar-lhe significado, teríamos de supor que o Criador fosse
criado por algum Super-criador, a cujos fins Ele servisse. A concepção da
finalidade, portanto, é somente aplicável dentro da realidade, e não à realidade
como um todo.
Um argumento semelhante se aplica às explicações mecanicistas. Um
acontecimento é causado por outro, o outro por um terceiro, e assim por diante.
Mas se perguntarmos a causa do todo, somos levados de novo ao Criador, o qual
não deve ter causa. Todas as explicações causais, portanto, devem ter um
começo arbitrário. Eis aí porque não constitui um erro da teoria dos atomistas ter
deixado de explicar os movimentos originais dos átomos.
Não se deve supor que as razões para suas teorias fossem inteiramente
empíricas. A teoria atômica foi revivida, nos tempos modernos, para explicar os
fatos da química, mas estes fatos não eram conhecidos pelos gregos. Não havia
uma distinção nítida, nos tempos antigos, entre observação empírica e argumento
lógico. Parmênides, é verdade, tratou com desprezo os fatos observados, mas
Empédocles e Anaxágoras costumavam combinar grande parte de sua
metafísica com as observações em clepsidras e cubos em rotação. Até à época
dos sofistas, nenhum filósofo parece ter duvidado de que uma metafísica
completa e uma cosmologia podiam ser estabelecidas mediante uma
combinação de muito raciocínio e alguma observação. Os atomistas depararam,
por acaso, com uma hipótese cuja comprovação se verificou mais de dois mil
anos depois, mas sua crença nela, mesmo na sua época, não deixava de ter
fundamento sólido.{44}
Como os outros filósofos de sua época, Leucipo estava interessado em
descobrir um meio de reconciliar os argumentos de Parmênides com os fatos
evidentes do movimento e da mudança. Como diz Aristóteles:{45}
“Embora essas opiniões (as de Parmênides) pareçam ter uma sequência
lógica numa discussão dialética, seria, no entanto, quase loucura acreditar-se
nelas, considerando-se os fatos. Porque, com efeito, nenhum demente está a tal
ponto privado de seus sentidos que possa supor que o fogo e o gelo são uma
“única” coisa: entre o que é certo e o que parece certo devido ao costume,
somente alguns são suficientemente loucos para não estabelecer diferença”.
Leucipo, porém, julgava possuir uma teoria que se harmonizava com a
percepção dos sentidos, e que não abolia nem o que ia ser, nem o que estava
passando, ou o movimento e multiplicidade das coisas. Fez essas concessões aos
fatos da percepção; por outro lado, concedeu aos monistas que não poderia haver
movimento dentro do vazio. O resultado é uma teoria que ele expõe da seguinte
maneira: “O vazio é um não-ser; porque o que é, no sentido estrito da palavra, é
um pleno absoluto. Este pleno, porém, não é uma unidade: é, pelo contrário, uma
multiplicidade infinita em número e invisível, devido à pequenez de seu tamanho.
A multiplicidade move-se no vazio (pois existe um vazio) e, juntando-se, produz
um vir a ser, enquanto que, separando – se, produz um passar. Ademais, atuam e
sofrem a ação onde quer que se encontrem e estabeleçam, por acaso, contato
(pois não são unos), e produzem-se ao juntar-se e entrelaçar-se. Do
genuinamente uno, por outro lado, não poderia jamais provir uma multiplicidade,
nem da genuína multiplicidade saiu um único: é impossível”.
Veremos que havia um ponto em que todos estavam até então de acordo, isto
é, que não poderia haver movimento num pleno. Quanto a isto, todos eles
estavam enganados. Pode haver movimento cíclico num pleno, contanto que este
haja sempre existido. A idéia era de que uma coisa não podia mover-se num
espaço vazio, e que, num pleno, não há espaços vazios. Poder-se-ia contestar,
talvez validamente, que o movimento não poderia jamais começar num pleno,
mas não seria acertado afirmar que não pudesse ocorrer de modo algum. Os
gregos, porém, acreditavam que se tem de aceitar o universo imutável de
Parmênides, ou, então, admitir-se o vazio.
Ora, os argumentos de Parmênides contra o não-ser pareciam logicamente
irrefutáveis com respeito ao vazio, e foram reforçados pela descoberta de que
parecia não existir nada no ar. (Este é um exemplo da confusa mistura de lógica
e observação que era comum). Podemos apresentar a posição de Parmênides da
seguinte maneira: “Dizes que há o vazio; portanto, o vazio não é um nada;
portanto não é o vazio”. Não se poderia dizer que os atomistas responderam a
esse argumento; eles simplesmente afirmaram que preferiam ignorá-lo, por ser
o movimento um fato da experiência, devendo, portanto, existir um vazio, por
mais difícil que seja concebê-lo.{46}
Vejamos agora a história subsequente do problema. A primeira e a mais
evidente maneira de evitar-se a dificuldade lógica é distinguir entre matéria e
espaço. Segundo este ponto de vista, o espaço não é um nada, mas possui a
natureza de um receptáculo, que pode ou não ter uma parte cheia de matéria.
Aristóteles diz (Física. 208 b): “A teoria de que o vazio existe implica na
existência de lugar: porque se definiria o vazio como um lugar privado de corpo”.
Esta idéia é expressa, da maneira mais explícita possível, por Newton, que
afirma a existência de um espaço absoluto e, assim, distingue o movimento
absoluto do relativo. Na controvérsia de Copérnico, ambas as partes (por pouco
que o hajam percebido) concordaram com esta opinião, pois acreditavam que
havia uma diferença entre dizer-se que “o céu gira de leste a oeste” e “a terra
gira de oeste a leste”. Se todo movimento é relativo, essas duas afirmações
constituem simplesmente maneiras diferentes de dizer a mesma coisa, como
“João é o pai de Jaime” e “Jaime é o filho de João”. Mas se todo movimento é
relativo e o espaço é não-substancial, fica-nos nas mãos o argumento de
Parmênides contra o vazio.
Descartes, cujos argumentos são exatamente da mesma espécie que os dos
filósofos gregos primitivos, disse que a extensão é a essência da matéria e que,
portanto, há matéria em toda a parte. Para ele, extensão é um adjetivo, e não um
substantivo; seu substantivo é a matéria e, sem o seu substantivo, ela não pode
existir. O espaço vazio, para ele, é tão absurdo como a felicidade sem a
existência de um ser que a sinta. Leibniz, por razões um tanto diferentes também
acreditava no pleno, mas afirmava que o espaço é simplesmente um sistema de
relações. Sobre este tema, houve uma famosa controvérsia entre ele e Newton,
este último representado por Clarke. A controvérsia permaneceu sem solução, até
que surgiu Einstein, cuja teoria deu definitivamente a vitória a Leibniz.
O físico moderno, embora ainda acredite que a matéria é, em certo sentido,
atômica, não acredita no espaço vazio. Onde não existe matéria, há ainda alguma
coisa, notadamente as ondas de luz. A matéria já não ocupa o alto lugar que
adquiriu na filosofia devido aos argumentos de Parmênides. Não é substância
invariável, mas simplesmente uma maneira de agrupar acontecimentos. Certos
acontecimentos pertencem a grupos que podem ser considerados como coisas
materiais: outros, tais como as ondas de luz, não. São os acontecimentos que
constituem a substância do mundo, e cada um deles é de breve duração. A este
respeito, os físicos modernos são partidários de Heráclito contra Parmênides.
Mas estavam do lado de Parmênides até que chegaram Einstein e a teoria do
quantum.
Com respeito ao espaço, a opinião moderna é a de que não é nem substância,
como o afirmou Newton, e como deviam ter dito Leucipo e Demócrito, nem um
adjetivo dos corpos extensos, como pensava Descartes, mas um sistema de
relações, como Leibniz afirmava. Não está de modo algum claro se este ponto de
vista é compatível com a existência do vazio. Talvez, como matéria de lógica
abstrata, possa não estar em desacordo com o vazio. Poder-se-ia dizer que, entre
duas coisas quaisquer, há uma distância um tanto maior ou um tanto menor, e
que a distância não implica na existência de coisas intermediárias. Não é
possível, porém, empregar-se tal ponto de vista na física moderna. Desde o
aparecimento de Einstein, a distância é entre acontecimentos, e não entre as
coisas, compreendendo tanto o tempo como o espaço. É, essencialmente, uma
concepção causal, sendo que na física moderna não há ação a distância. Tudo
isso, porém, se baseia mais em razões empíricas do que lógicas. Além disso, o
ponto de vista moderno não pode ser exposto senão em termos de equações
diferenciais, o que seria incompreensível para os filósofos da antiguidade.
Dir-se-ia, pois, que o desenvolvimento lógico das idéias dos atomistas é a
teoria de Newton sobre o espaço absoluto, o qual depara com a dificuldade de
atribuir realidade ao não-ser. Para esta teoria, não há objeções lógicas. A
principal objeção é que o espaço absoluto é absolutamente incognoscível, e não
pode, portanto, ser uma hipótese necessária numa ciência empírica. A objeção
mais prática é a de que a física pode prescindir dela. Mas o mundo dos atomistas
permanece logicamente possível, tendo mais afinidade com o mundo verdadeiro
do que o mundo de qualquer outro dos filósofos da antiguidade.
Demócrito elaborou suas teorias de maneira bastante pormenorizada, e
algumas dessas elaborações são interessantes. Cada átomo, diz ele, é
impenetrável e indivisível porque não contém vazio. Quando se usa uma faca
para cortar uma maçã, a faca tem de encontrar espaços vazios onde penetrar; se
a maçã não contivesse vazio, seria infinitamente dura e, portanto, fisicamente
indivisível. Cada átomo é interiormente invariável e, com efeito, uma unidade
parmenidiana. A única coisa que os átomos fazem é mover-se e chocar-se uns
com os outros, e, às vezes, combinar-se, quando, por acaso, tem formas que
podem ajustar-se. Têm toda a espécie de formas; o fogo é composto de
pequenos átomos esféricos, do mesmo modo que a alma. Os átomos, por colisão,
produzem vórtices, os quais geram corpos e, por último, mundos.{47} Existem
muitos mundos, uns em crescimento, outros em decadência; talvez alguns não
tenham sol nem lua; outros possuem vários. Cada mundo tem um princípio e um
fim. Um mundo pode ser destruído por colisão com outro mundo maior. Esta
cosmologia pode ser resumida nas palavras de Shelley :
Mundos após mundos estão sempre rolando
Desde sua criação até seu fim,
Como as borbulhas num rio,
Brilhando, rompendo-se, levadas embora.
A vida originou-se do limo primevo. Há fogo em todas as partes do corpo
vivente, mas principalmente no cérebro e no peito. (Quanto a isto, as autoridades
diferem). O pensamento é uma espécie de movimento e, assim, pode causar
movimento em outra parte. A percepção e o pensamento são processos físicos.
Há duas espécies de percepção: uma, dos sentidos; outra, da inteligência. As
percepções desta última espécie dependem também de nossos sentidos e, por
isso, podem ser enganadoras. Como Locke, Demócrito afirmava que qualidades
tais como o calor, o gosto e a cor, não estão realmente no objeto, mas são
devidas aos nossos órgãos do sentido, enquanto que o peso, a densidade e a dureza
pertencem realmente ao objeto.
Demócrito era um materialista completo; para ele, como vimos, a alma se
compunha de átomos, e o pensamento era um processo físico. Não havia
finalidade no universo; havia apenas átomos governados por leis mecânicas. Não
acreditava na religião popular, e argumentava contra o nous de Anaxágoras. No
campo da ética, considerava a alegria como o objetivo da vida, e encarava a
moderação e a cultura como a melhor maneira de consegui-la. Detestava tudo
que fosse violento e apaixonado; era contra o sexo, porque, dizia ele, acarretava a
preponderância do prazer sobre o consciente. Dava valor à amizade, mas
pensava mal das mulheres e não desejava ter filhos, pois a educação dos
mesmos interferiria em sua filosofia. Assemelhava-se, em tudo isso, a Jeremy
Benthan, bem como em seu amor ao que os gregos chamavam democracia.{48}
Demócrito — ao menos na minha opinião — é o último dos filósofos gregos a
libertar-se de uma certa falha que comprometeu todo o pensamento antigo
posterior, bem como o medieval. Todos os filósofos de que tratamos até aqui,
empenharam-se num esforço desinteressado para compreender o mundo.
Acharam muito mais fácil compreendê-lo do que na realidade o é, mas sem este
otimismo não teriam tido a coragem de dar o primeiro passo. Sua atitude, em
geral, era genuinamente científica, sempre que não representava simplesmente
os preconceitos de sua época. Mas não era somente científica; era imaginativa,
vigorosa e cheia do prazer da aventura. Interessavam-se por tudo: meteoros e
eclipses, peixes e redemoinhos, religião e moralidade; a um intelecto penetrante
uniam um entusiasmo infantil.
Deste ponto em diante, há, primeiro, certas sementes de decadências, apesar
das inigualadas realizações anteriores e, depois, uma decadência gradual. O que
está errado, mesmo nos melhores filósofos posteriores a Demócrito, é uma
ênfase indevida com respeito ao homem em comparação com o universo.
Primeiro surge o ceticismo, com os sofistas, levando ao estudo de como
chegamos ao conhecimento, em lugar de uma tentativa no sentido de adquirir
novos conhecimentos. Depois, com Sócrates, a ênfase recai sobre a ética; Platão
rejeita o mundo dos sentidos em favor de um mundo de pensamento puro criado,
criado pelo homem, individualmente. Aristóteles manifesta a crença na
finalidade como a concepção fundamental da ciência. Apesar do gênio de Platão
e Aristóteles, suas idéias tinham defeitos que demonstraram ser infinitamente
prejudiciais. Depois de sua época, houve uma decadência de vigor e, aos poucos,
uma recrudescência da superstição popular. Uma perspectiva parcialmente nova
surgiu como resultado da vitória da ortodoxia católica; mas não foi senão na
Renascença que a filosofia readquiriu o vigor e a independência que
caracterizam os predecessores de Sócrates.
CAPÍTULO X
Protágoras
Os grandes sistemas pré-socráticos de que estivemos tratando depararam, na
última metade do século V, com um movimento cético, do qual a figura mais
importante foi Protágoras, o cabeça dos sofistas. A palavra “sofista’’ não tinha, a
princípio, sentido pejorativo; significava, bastante aproximadamente, o que hoje
chamamos “professor”. Um sofista era um homem que ganhava a vida
ensinando aos jovens certas coisas consideradas úteis na vida prática. Como o
Estado não proporcionava tais estudos, os sofistas ensinavam somente àqueles
que dispunham de meios, ou cujos pais eram pessoas de posses. Isso, de certo
modo, contribuía para que eles constituíssem uma classe, acrescentando-se a isto
as circunstâncias políticas da época. Em Atenas e em muitas outras cidades, a
democracia triunfava politicamente, mas nada se fizera para diminuir a riqueza
dos que pertenciam às velhas famílias aristocráticas. Eram os ricos, em geral,
que encarnavam o que hoje nos aparece como cultura helênica: tinham
educação e lazer, as viagens haviam aplainado as arestas de seus preconceitos
tradicionais, e o tempo que haviam passado a discutir lhes aguçara a inteligência.
A chamada democracia não se envolvia na instituição da escravidão, que
permitia ao rico desfrutar de sua riqueza sem oprimir os cidadãos livres.
Em muitas cidades, porém, — e, de modo particular, em Atenas — os
cidadãos mais pobres sentiam dupla hostilidade contra os ricos: a da inveja e a do
tradicionalismo. Os ricos eram considerados — às vezes com razão — como
ímpios e imorais; estavam subvertendo as antigas crenças e, provavelmente,
procurando destruir a democracia. A democracia política achava-se, pois,
associada ao conservantismo cultural, enquanto aqueles que eram inovadores
culturais tendiam a ser reacionários políticos. Situação um tanto semelhante
existe na América de hoje, onde a Tammany, como organização principalmente
católica, está empenhada na defesa da teologia tradicional e dos dogmas éticos
contra os assaltos da ilustração. Mas os esclarecidos são, nos Estados Unidos,
politicamente mais fracos do que o eram em Atenas, pois não conseguiram fazer
causa comum com a plutocracia. Todavia, existe uma classe importante e
altamente intelectual encarregada da defesa da plutocracia, isto é, a dos
advogados de corporações. Em certos aspectos, suas funções são semelhantes às
que, em Atenas, eram realizadas pelos sofistas.
A democracia ateniense, embora tivesse a grave limitação de não incluir
escravos nem mulheres, era, sob certos aspectos, mais democrática do que
qualquer sistema moderno. Os juízes e a maioria dos altos funcionários
executivos eram escolhidos por sorteio, e serviam durante breves períodos; eram,
pois, cidadãos comuns, como os nossos jurados, com os preconceitos e a falta do
profissionalismo característicos dos cidadãos médios. Em geral, havia um grande
número de juízes para ouvir cada causa, O acusador e o acusado compareciam
em pessoa, e não mediante advogados profissionais. Naturalmente, o êxito ou o
fracasso dependiam, em grande parte, da habilidade oratória em apelar para os
preconceitos populares. Embora o indivíduo tivesse de fazer o seu próprio
discurso, podia contratar os serviços de um profissional para que o escrevesse,
ou, como muitos preferiam, podia pagar o ensino que lhe proporcionasse a arte
necessária para conseguir êxito nas cortes de justiça. Segundo se supõe, tal arte
era ensinada pelos sofistas.
A época de Péricles, na história de Atenas, é análoga à época vitoriana na
história da Inglaterra. Atenas era rica e poderosa, pouco perturbada por guerras,
e possuía uma constituição democrática administrada por aristocratas. Como
vimos em relação a Anaxágoras, uma oposição democrática a Péricles foi,
pouco a pouco, adquirindo vigor, atacando, um a um, os seus amigos. A Guerra
do Peloponeso irrompe no ano 431 A. C.{49}; Atenas (bem como muitos outros
lugares) foi devastada pela peste; a população, que fora de cerca de 230.000
habitantes, ficou grandemente reduzida, jamais voltando ao seu nível antigo
(Bury, História da Grécia, I, p. 444). O próprio Péricles, em 430 A. C., foi
destituído de seu posto e multado por apropriação indébita de dinheiros públicos,
sendo, depois, reempossado. Seus dois filhos legítimos morreram da peste, e ele
próprio faleceu no ano seguinte (429). Fídias e Anaxágoras foram condenados;
Aspásia foi processada por impiedade e por má conduta em sua casa, mas foi
absolvida.
Em semelhante comunidade, era natural que os homens que tinham
probabilidade de incorrer na hostilidade de políticos democráticos desejassem
adquirir habilidade forense. Porque Atenas, embora muito dada à perseguição,
era, sob certo aspecto, mais liberal do que a América de hoje, já que os acusados
de impiedade e de corromper os jovens podiam cuidar da sua própria defesa.
Isto explica a popularidade dos sofistas no seio de uma classe e a sua
impopularidade por parte de outra. Mas, na realidade, serviam a fins menos
pessoais, e é evidente que muitos deles se interessavam verdadeiramente pela
filosofia. Platão entregou-se à tarefa de caricaturá-los e envilecê-los, mas não
devemos julgá-los pelas suas polêmicas. De gênero mais ligeiro é a seguinte
passagem de Eatidemo, na qual dois sofistas, Dionisodoro e Eutidemo, procuram
desconcertar um indivíduo de espírito simples, chamado Clesipo. Dionisodoro
começa:
– Dizes que tens um cachorro?
– Sim, um cachorro vulgar — respondeu Clesipo.
– Tem filhotes?
– Tem, e os filhotes parecem-se muito com ele.
– E o cachorro é o pai deles?
– É — respondeu ele — pois eu bem vi quando ele e a mãe dos
cachorrinhos se encontraram.
– E ele não é teu?
– Claro que é.
– Então ele é o pai e é teu; portanto, é teu pai, e os cachorrinhos são
teus irmãos.
Tomemos o diálogo chamado O Sofista, de veia mais séria. É uma discussão
lógica da definição, que usa o sofista como exemplo. No momento, não é a sua
lógica que nos interessa; a única coisa que desejo, por ora, mencionar, com
respeito a este diálogo, é a conclusão final:
“A arte de contradizer, procedente de uma espécie falsa de arremedo, que
procura formar semelhanças, provém da confecção de imagens, distinguidas
como uma parte não divina, mas humana, da produção, que apresenta um jogo
de sombras com as palavras — eis aí o sangue e a linhagem que se pode, com
absoluta certeza, atribuir ao sofista autêntico”. (Tradução de Cornford).
Há uma história a respeito de Protágoras, sem dúvida apócrifa, que ilustra a
relação existente entre os sofistas e as cortes de justiça na mente popular. Contase que ele instruiu um jovem sobre as condições em que devia cobrar seus
honorários, se o jovem ganhasse a sua primeira causa, mas não de outra
maneira, e que a primeira causa foi movida por Protágoras, para poder receber
seus honorários.
É hora, porém, de abandonar estes preliminares e ver o que realmente se sabe
sobre Protágoras.
Protágoras nasceu cerca do ano 500 A. C., em Abdera, a cidade de onde
Demócrito provinha. Visitou duas vezes Atenas, sendo que sua segunda visita se
verificou antes do ano 432 A. C. Elaborou, em 444-3 A. C., um código para a
cidade de Thurii. Segundo se diz, foi processado por ser ímpio, mas isto parece
ser falso, apesar do fato de haver escrito um livro, Sobre os Deuses, que começa
assim: “Com respeito aos deuses, não me é possível ter certeza se existem ou
não, nem que aspecto tem, pois há muitas coisas que impedem o conhecimento
seguro: a obscuridade do tema e a brevidade da vida humana”.
Sua segunda visita a Atenas é descrita, de maneira um tanto satírica, no
Protágoras, de Platão, e suas doutrinas são discutidas, seriamente, no Theeteto.
Destaca-se, principalmente, pela sua doutrina de que “o homem é a medida de
todas as coisas, das coisas que são o que são, e das coisas que não são o que não
são”. Isto é interpretado como significando que cada homem é a medida de todas
as coisas, e que, quando os homens diferem, não há nenhuma verdade objetiva
em virtude da qual um tenha razão e o outro esteja errado. A doutrina é
essencialmente cética, baseando-se, presumivelmente, no lato de serem os
sentidos “enganadores”.
Um dos três fundadores do pragmatismo, F. C. S. Schiller, tinha o hábito de
dizer-se discípulo de Protágoras. Isso, creio eu, porque Platão, no Theeteto,
sugere, como uma interpretação de Protágoras, que uma opinião pode ser melhor
do que outra, embora não possa ser mais verdadeira. Quando alguém, por
exemplo, tem icterícia, tudo parece amarelo. Não tem sentido dizer-se que as
coisas não são realmente amarelas, mas sim da cor com que são vistas por um
homem são; podemos dizer, porém, que, desde que a saúde é melhor do que a
enfermidade, a opinião do homem que tem saúde é melhor do que a do homem
que tem icterícia. Este ponto de vista, evidentemente, tem afinidade com o
pragmatismo.
A falta de crença numa verdade objetiva transforma a maioria das pessoas,
praticamente, em árbitros daquilo em que se deve acreditar. Partindo daí,
Protágoras foi levado a defender a lei, a convenção e a moralidade tradicional.
Embora, como vimos, não soubesse se os deuses existiam, estava convencido de
que deviam ser adorados. Este ponto de vista é, evidentemente, adequado ao
homem cujo ceticismo teórico é profundo e lógico.
Protágoras passou a idade adulta numa espécie de viagem de conferências
contínuas pelas cidades da Grécia, ensinando, a troco de honorários “a todo
aquele que desejasse possuir capacidade prática e uma cultura mental mais
elevada” (Zeller, p. 1299). Platão objeta — de maneira um tanto pedante,
segundo as noções modernas — que os sofistas cobravam dinheiro pela instrução.
Platão possuía meios próprios suficientes, sendo incapaz, ao que parece, de
compreender as necessidades daqueles que não tinham essa boa sorte. É curioso
que os professores modernos, que não veem razão para recusar um salário,
hajam repetido com tanta frequência os juízos de Platão.
Há, porém, um outro ponto no qual os sofistas diferiam da maioria dos
filósofos seus contemporâneos. Era comum, exceto entre os sofistas, que um
professor fundasse uma escola, com características semelhantes às de uma
irmandade; existia uma vida em comum mais ou menos extensa, às vezes algo
que se parecia a normas monásticas e, geralmente, uma doutrina esotérica não
proclamada em público. Tudo isto era natural sempre que a filosofia provinha do
orfismo. Entre os sofistas, não havia nada disso. O que tinham a ensinar,
achavam eles, não se relacionava com a religião ou a virtude. Ensinavam a arte
de arguir e todo o conhecimento que pudesse ser-lhe útil. Falando-se de modo
geral, estavam preparados, como os advogados modernos, para mostrar de que
maneira se argumenta contra ou a favor de qualquer opinião, sem procurar
defender suas próprias idéias. Aqueles para quem a filosofia constituía um meio
de vida, estreitamente ligado à religião, mostravam – se, naturalmente, chocados;
para eles, os sofistas pareciam frívolos e imorais.
Até certo ponto — embora seja impossível dizer-se até onde — o ódio
suscitado pelos sofistas, não só entre o público em geral, mas, também, quanto ao
que se refere a Platão e aos filósofos subsequentes, foi devido ao seu mérito
intelectual. A busca da verdade, quando inteiramente sincera, deve ignorar as
considerações de ordem moral; não podemos saber de antemão se a verdade
acabará sendo o que se julga edificante, em determinada sociedade. Os sofistas
estavam preparados para seguir um argumento aonde quer que os pudesse levar.
Às vezes, ela os conduzia ao ceticismo. Um deles, Górgias, afirmava que nada
existe; que se alguma coisa existe é incognoscível; e que, mesmo concedendo-se
que ela existisse e pudesse ser conhecida por qualquer homem, este jamais
poderia comunicá-la a outrem. Não sabemos quais eram os seus argumentos,
mas bem posso imaginar que tinham uma força lógica que obrigava seus
adversários a refugiar-se no que era edificante. Platão está sempre interessado
em defender idéias que tornem as pessoas, segundo sua maneira de ver,
virtuosas; quase nunca é honesto intelectualmente, pois se permite julgar as
doutrinas pelas suas consequências sociais. E mesmo nisto não é honesto;
pretende seguir o argumento e estar julgando segundo padrões puramente
teóricos, quando, na realidade, está torcendo a discussão, para levá-la a um fim
virtuoso. Introduziu vício na filosofia, onde persistiu desde então. Foi,
provavelmente, a sua grande hostilidade contra os sofistas que deu esse caráter
aos seus diálogos. Um dos defeitos de todos os filósofos, desde Platão, é que suas
investigações éticas procedem da suposição de que já conhecem as conclusões a
que devem chegar.
Parece que havia homens, em Atenas, no fim do século V, que ensinaram
doutrinas políticas que pareciam imorais aos seus contemporâneos, como
também o parecem às nações democráticas de nossos dias. Trasímaco, no
primeiro livro da República, argui que não há justiça, exceto o interesse do mais
forte; que as leis são feitas pelos governos para sua própria vantagem; e que não
existe qualquer padrão impessoal ao qual apelar-se nas contendas pelo poder.
Callicles, segundo Platão (em Górgias), defendeu uma doutrina parecida. A lei da
natureza, disse ele, é a lei do mais forte; mas, por conveniência, os homens
estabeleceram instituições e preceitos morais para refrear o forte. Tais doutrinas
conseguiram maior aplauso em nossa época do que na antiguidade. E, pense-se o
que se quiser delas, não são características dos sofistas.
Durante o século V, — qualquer que seja a parte que os sofistas possam ter
tido na mudança, — verificou-se, em Atenas, uma transformação, passando-se
de uma certa e rigorosa simplicidade puritana a um cinismo engenhoso e um
tanto cruel, em conflito com a defesa pouco sagaz e igualmente cruel de uma
ortodoxia que se desmoronava. No começo do século, surge a direção ateniense
das cidades da Jônia contra os persas, e a vitória de Maratona, em 490 A. C. No
fim, verifica-se a derrota de Atenas por Esparta, no ano 404 A. C., e a execução
de Sócrates, em 399 A. C. Depois dessa época, Atenas deixou de ser
politicamente importante, mas adquiriu, indubitavelmente, supremacia cultural,
que conservou até à vitória do Cristianismo.
É essencial conhecer-se alguma coisa da história de Atenas no século V para
compreender Platão e todo o pensamento grego posterior. Na primeira guerra
com os persas, a glória principal coube aos atenienses, devido à vitória decisiva
de Maratona. Na segunda guerra, dez anos depois, os atenienses foram ainda os
melhores combatentes no mar, mas em terra a vitória foi devida, principalmente,
aos espartanos, que eram os líderes reconhecidos do mundo helênico.
Os espartanos, porém, eram estreitamente provincianos em sua visão das
coisas, e deixaram de opor-se aos persas, quando foram expulsos da Grécia
europeia. A chefia dos gregos asiáticos, bem como a libertação das ilhas que
haviam sido conquistadas pelos persas, foi empreendida, com grande êxito, por
Atenas. Esta cidade se tornou a principal potência marítima, e adquiriu
considerável domínio imperialista sobre as ilhas jônias. Sob a direção de Péricles,
que era democrata moderado e imperialista também moderado, Atenas
prosperou. Os grandes templos, cujas ruínas são ainda a glória de Atenas, foram
construídos por sua iniciativa, a fim de substituir os que haviam sido destruídos
por Xerxes. A riqueza da cidade aumentou rapidamente, bem como a cultura e,
como acontece, invariavelmente, em tais ocasiões, principalmente quando a
riqueza é devida a comércio exterior, a moral e as crenças tradicionais
decaíram.
Havia, nessa época, em Atenas, um número extraordinariamente grande de
homens geniais. Os três grandes dramaturgos — Ésquilo, Sófocles e Eurípides —
pertenceram todos ao século V. Ésquilo combateu em Maratona e presenciou a
batalha de Salamina. Sófocles era ainda religioso ortodoxo em questões
religiosas. Mas Eurípides foi influenciado por Pitágoras e pelo espírito livrepensador da época. Sua maneira de tratar os mitos é cética e subversiva.
Aristófanes, o poeta cômico, zombou de Sócrates, dos sofistas e dos filósofos,
mas, não obstante, pertenceu ao seu círculo; no Symposium, Platão o representa
como estando em muito boas relações de amizade com Sócrates. Fídias, o
escultor, como vimos, pertencia ao círculo de Péricles.
Nesse período, Atenas se destacou mais artística do que intelectualmente.
Nenhum dos grandes matemáticos ou filósofos do século V era ateniense, com
exceção de Sócrates, e este não era escritor, mas um homem que se limitava a
discussões orais.
A irrupção da Guerra do Peloponeso, em 431 A. C., e a morte de Péricles, em
429 A. C., iniciaram um período sombrio da história ateniense. Os atenienses
eram superiores no mar, mas os espartanos tinham supremacia em terra, e
ocuparam a Ática repetidamente (exceto Atenas) durante o verão. O resultado
foi que Atenas ficou superpovoada e sofreu grandemente com a peste. Em 414
A. C., os atenienses enviaram uma grande expedição à Sicília, na esperança de
capturar Siracusa, que era aliada de Esparta, mas a tentativa malogrou. A guerra
transformou os atenienses em gente feroz e perseguidora. Em 416 A. C.,
conquistaram a ilha de Meios, mataram todos os homens em idade militar e
escravizaram os outros habitantes. As Mulheres de Tróia, de Eurípides, é um
protesto contra tal barbárie. O conflito tinha um aspecto ideológico, pois Esparta
era defensora da oligarquia e Atenas da democracia. Os atenienses tinham razão
para alimentar suspeitas de traição por parte de alguns membros de sua própria
aristocracia, os quais segundo geralmente se considerava, haviam desempenhado
certo papel na derrota naval final, por ocasião da batalha de Agospótamos, em
405 A. C.
No fim da guerra, os espartanos estabeleceram, em Atenas, um governo
oligárquico, conhecido como o dos Trinta Tiranos. Alguns dos Trinta, incluindo
Crítias, seu chefe, haviam sido discípulos de Sócrates. Eram, merecidamente,
impopulares, sendo destituídos dentro de um ano. Com a aquiescência de Esparta,
a democracia foi restaurada, mas era uma democracia rancorosa, impedida, por
uma anistia, de uma vingança direta contra os seus inimigos externos, mas que se
valia alegremente de qualquer pretexto, não coberto pela anistia, para perseguilos. Foi nessa atmosfera que se verificaram, no ano 399 A. C., o julgamento e a
morte de Sócrates.
SEGUNDA PARTE – SÓCRATES, PLATÃO E ARISTÓTELES
CAPÍTULO XI
Sócrates
Sócrates constitui um tema muito difícil para o historiador. Há muitos homens
a respeito dos quais a certo que sabemos pouca coisa, e muitos outros a respeito
dos quais é certo que sabemos muito; mas, no caso de Sócrates, a dúvida consiste
em saber se conhecemos muito pouco ou muitíssimo. Era, indubitavelmente, um
cidadão ateniense de posses moderadas, que passava o tempo a discutir e a
ensinar filosofia aos jovens, mas não por dinheiro, como os sofistas. Foi,
seguramente, julgado, condenado à morte e executado em 399 A. C., quando
contava cerca de setenta anos de idade. Foi, sem dúvida, uma figura muito
conhecida em Atenas, já que Aristófanes o caricaturou em As Nuvens. Mas,
além deste ponto, vemo-nos envoltos em controvérsias. Dois de seus discípulos,
Xenofonte e Platão, escreveram amplamente sobre ele, mas disseram coisas
muito diferentes. Mesmo quando estão de acordo, julga Burnet que Xenofonte
está copiando Platão. Quando discordam, há quem acredite num, quem acredite
no outro, e quem não acredite em nenhum. Numa disputa assim tão perigosa, não
me atrevo a tomar qualquer partido, mas exporei brevemente os vários pontos de
vista.
Comecemos com Xenofonte, que era militar, dotado não muito liberalmente
de inteligência e, de um modo geral, convencional em sua maneira de ver as
coisas. Xenofonte mostra-se condoído ante o fato de Sócrates ter sido acusado
como ímpio e corruptor da juventude; afirma, pelo contrário, que Sócrates era
eminentemente piedoso e exercia influência inteiramente benéfica sobre os que
se submetiam aos seus ensinamentos. Suas idéias, ao que parece, longe de serem
subversivas, eram, antes, moderadas e comuns. Esta defesa vai demasiado longe,
pois deixa sem explicação a hostilidade que Sócrates provocou. Como diz Bumet
(De Tales a Platão, p. 149): “A defesa de Sócrates, por Xenofonte, é demasiado
bem-sucedida. Ele jamais teria sido condenado à morte, se fosse daquele modo”.
Houve uma certa tendência para se acreditar que tudo que Xenofonte diz deve
ser verdade, pois que ele não tinha espírito suficiente para pensar algo que fosse
inverídico. Este é um argumento bastante frouxo. A descrição de um tolo sobre as
idéias de um homem inteligente nunca é exata, porque traduz inconscientemente
aquilo que ouve em algo que lhe seja possível compreender. Eu preferiria ser
interpretado pelo meu mais ferrenho inimigo, entre os filósofos, a sê-lo por um
amigo que não conheça filosofia. Não podemos, pois, aceitar o que Xenofonte
diz, quanto ao que se refere a qualquer ponto importante de filosofia ou a um
argumento que prove que Sócrates foi injustamente condenado.
Não obstante, algumas reminiscências de Xenofonte são bastante
convincentes. Diz (como Platão também o faz) como Sócrates se ocupava
continuamente do problema de encontrar homens competentes para os postos de
comando. Costumava fazer perguntas como esta: “Se eu quiser que me
consertem os sapatos, a quem devo recorrer?” Ao que algum jovem ingênuo
responderia: “A um sapateiro, ó Sócrates!”. Depois, referia-se a carpinteiros,
caldeireiros, etc., e, finalmente, perguntava: “Quem deve consertar a nave do
Estado?” Quando entrou em conflito com os Trinta Tiranos, Crítias, líder do
grupo, que o conhecia bem porque havia estudado com ele, proibiu-o de
continuar a ensinar os jovens, acrescentando: “Melhor seria que te ocupasses de
teus sapateiros, carpinteiros e caldeireiros. Teus sapatos devem estar com os
saltos bastante gastos, a julgar pelo uso que deles fizeste” (Xenofonte,
Memorabilia. Livro I, cap. Ii). Isto aconteceu durante o breve governo
oligárquico estabelecido pelos espartanos no fim da Guerra do Peloponeso. Mas,
a maior parte do tempo, Atenas foi democrática, tanto que até os generais eram
escolhidos por sorteio. Sócrates encontrou um jovem que queria ser general e o
persuadiu de que lhe seria útil conhecer algo da arte da guerra. O jovem, então,
se retirou e fez breve curso de estratégia. Quando voltou, Sócrates, após alguns
elogios satíricos, o mandou de volta, a fim de que continuasse estudando (ibid.,
livro III, cap. I). Outro jovem foi por ele estimulado a aprender os princípios das
finanças. Procurou agir dessa mesma forma com muita gente, inclusive o
ministro da guerra; mas ficou decidido que era mais fácil silenciá-lo por meio da
cicuta do que sanar os males de que ele se queixava.
Com respeito ao que Platão diz de Sócrates, a dificuldade é inteiramente
diferente da que se apresenta no caso de Xenofonte, isto é: muito difícil julgar-se
até que ponto Platão queria retratar o Sócrates histórico, e até onde pretendia que
a pessoa chamada “Sócrates” fosse, em seus diálogos, simplesmente o porta-voz
de suas próprias idéias. Platão, além de filósofo, era um escritor imaginativo, de
grande gênio e encanto. Ninguém supõe, nem ele o pretende seriamente, que as
conversações de seus diálogos hajam ocorrido como ele as registra. Não
obstante, ao menos nos seus primeiros diálogos, a conversação é inteiramente
natural e os caracteres bastante convincentes. É precisamente a alta qualidade de
Platão como escritor que lança dúvida sobre a sua pessoa como historiador. Seu
Sócrates é uma figura coerente e extraordinariamente interessante, muito além
do que a capacidade da maioria dos homens teria podido inventar. Mas creio que
Platão poderia tê-lo inventado. Se realmente o fez, constitui, por certo, uma outra
questão.
O diálogo que se considera, em geral, como o mais histórico, é a Apologia.
Pretende ser o discurso que Sócrates proferiu em sua própria defesa durante o
julgamento — não, certamente, um relato taquigráfico, mas o que ficou na
memória de Platão vários anos depois do acontecimento, reunido e elaborado
literariamente. Platão estava presente ao julgamento, e parece bastante razoável
que o que está escrito é aquilo de que Platão se lembrava de Sócrates haver dito,
e que a intenção é, falando-se de maneira geral, histórica. Com todas as suas
limitações, isso é suficiente para dar um retrato bastante nítido do caráter de
Sócrates.
Os fatos principais do julgamento de Sócrates não oferecem dúvida. A
instauração do processo baseava-se na acusação de que “Sócrates era um
malfeitor e uma pessoa curiosa, que vivia a indagar de coisas subterrâneas e de
coisas que se achavam além do céu; um indivíduo que fazia com que as coisas
más parecessem boas, e que ensinava tudo isso aos outros”. A verdadeira razão
da hostilidade que despertou foi, quase com certeza, a suposição de que se
achava ligado ao partido aristocrático; a maioria de seus discípulos pertencia a
esta facção e alguns deles, ocupando postos oficiais, tinham agido de maneira
sumamente perniciosa. Mas este motivo não poderia ser provado, devido à
anistia. Foi declarado culpado por uma maioria, sendo-lhe depois concedido,
segundo a lei ateniense, que solicitasse uma pena menor que a de morte. Os
juízes tinham de escolher, se julgassem o acusado culpado, entre a pena exigida
pela acusação e o castigo sugerido pela defesa. Era, pois, do interesse de Sócrates
sugerir um castigo material, que o tribunal pudesse aceitar como adequado. Ele,
porém, propôs uma multa de trinta minas, pela qual alguns de seus amigos (entre
eles, Platão) estavam dispostos a responder. Era um castigo tão pequeno que
causou indignação ao tribunal, que o condenou à morte por uma maioria ainda
mais numerosa do que a que o havia declarado culpado. Ele, indubitavelmente,
previu tal resultado. É claro que não desejava evitar a pena de morte mediante
concessões que pudessem dar a impressão de que reconhecia a sua culpa.
Os acusadores eram Any to, político democrata; Meleto, um poeta trágico,
“jovem e desconhecido, de cabelo escorrido, barba escassa e nariz em forma de
gancho”; e Ly kon, um retórico obscuro. (Vide Burnet, De Tales a Platão, pg. 180).
Afirmaram que Sócrates era culpado de não adorar os deuses que o Estado
cultuava e de introduzir outras divindades novas, além de corromper os jovens
com seus ensinamentos.
Sem que nos preocupemos de novo com a questão insolúvel da relação
existente entre o Sócrates platônico e o homem real, vejamos o que Platão faz
com que ele diga em resposta a essa acusação.
Sócrates começa por acusar de eloquência aos seus acusadores, repelindo
essa mesma acusação quanto à sua pessoa. A única eloquência de que é capaz,
diz ele, é a da verdade. E não devem indispor-se contra ele se fala como está
habituado, e não “numa oração elaborada, convenientemente adornada de
palavras e frases”.{50} Tem mais de setenta anos e jamais compareceu, antes, a
qualquer corte de justiça; devem, pois, perdoar-lhe a maneira de falar pouco
jurídica.
Prossegue dizendo que, além de seus acusadores legais, existe um grande
número de acusadores gratuitos, que, desde o tempo em que os juízes eram
crianças, vinham por aí “a falar de um tal Sócrates, um sábio que especulava
sobre os céus e indagava dos mundos subterrâneos, fazendo com que o que era
mau parecesse bom”. Julga-se que tais homens não acreditam na existência dos
deuses. Esta antiga acusação pela opinião pública é mais perigosa do que a
acusação legal, tanto mais quanto não se sabe quais são as pessoas de que ela
procede, exceto no caso de Aristófanes.{51} Assinala, em resposta a essas
antigas razões de hostilidade, que ele não é um homem de ciência — “nada tenho
que ver com as especulações físicas” — que não é professor, e que não recebe
dinheiro pelos seus ensinamentos. Continua zombando dos sofistas e negando-lhes
os conhecimentos que eles pretendem ter. Qual é, pois, “a razão por que sou
chamado sábio e por que tenho tão má fama?”
O oráculo de Delfos, ao que parece, foi certa vez consultado, para se saber se
existia algum homem que fosse mais sábio do que Sócrates — e respondeu que
não existia. Sócrates declara que ficou inteiramente intrigado, uma vez que nada
sabia — e, no entanto, um deus não pode mentir. Procurou, pois, o convívio de
homens reputados sábios, para ver se podia convencer o deus de seu erro.
Dirigiu-se primeiro a um político, “que era considerado sábio por muitos e ainda
mais sábio por ele próprio”. Verificou, logo, que o homem não era sábio, e disselhe isso delicada, mas firmemente, “e o resultado foi que ele passou a odiar-me”.
Dirigiu-se, então, aos poetas, e pediu-lhes que lhe explicassem trechos de seus
escritos, mas eles não foram capazes de o fazer. “Fiquei então sabendo que não é
por sabedoria que os poetas escrevem, mas por uma espécie de gênio e
inspiração”. Depois, foi aos artesãos, mas os achou também decepcionantes.
Enquanto isso, diz ele, fez muitos inimigos perigosos. Concluiu, finalmente, que
“somente Deus é sábio, e que, com a sua resposta, pretende mostrar que a
sabedoria dos homens vale pouco ou nada; não está falando de Sócrates; usa-lhe
apenas o nome à guisa de ilustração, como se dissesse: “oh, homens, o mais sábio
é aquele que como Sócrates, sabe que a sua sabedoria, na verdade, nada vale”. A
tarefa de educar os pretendentes à sabedoria tomou-lhe todo o tempo, deixando-o
em extrema pobreza, mas achava que era seu dever vindicar o oráculo.
Os jovens das classes mais ricas, diz ele, não tendo muito que fazer, gostam de
ouvir suas explicações sobre os indivíduos, pondo-se a fazer o mesmo e
aumentando, assim, o número de seus inimigos. “Pois não gostam de confessar
que sua pretensão de ser sábios foi descoberta”.
O mesmo podia dizer-se quanto à primeira classe de acusadores.
Sócrates passa, depois, a examinar o seu acusador Meleto: “aquele homem
bom e verdadeiro amante de sua pátria, como ele próprio se diz”. Pergunta quais
são as pessoas que contribuem para o aperfeiçoamento dos jovens. Meleto
menciona primeiro os juízes; depois, sob pressão, é levado, passo a passo, a dizer
que todo ateniense, exceto Sócrates, educa bem os jovens. Diante disso, Sócrates
se congratula com a cidade pela sua boa sorte. A seguir, ressalta que os homens
bons devem viver melhor entre eles do que os maus, e que, portanto, ele não
pode ser tão tolo a ponto de corromper os seus concidadãos intencionalmente;
mas se o faz sem má intenção, então Meleto, ao invés de acusá-lo, devia instruílo.
A acusação havia dito que Sócrates não apenas negava os deuses do Estado,
como, ainda, introduzira outros deuses próprios. Meleto, porém, afirma que
Sócrates é completamente ateu, e acrescenta: “Diz que o Sol é uma pedra e a
Lua terra”. Sócrates replica que Meleto parece crer que está acusando
Anaxágoras, cujas opiniões podem ser escutadas no teatro por uma dracma
(provavelmente nas obras de Eurípides). Sócrates assinala que esta nova
acusação de completo ateísmo está em contradição com as anteriores, e passa,
então, a considerações de caráter mais geral.
O resto da Apologia é feito em tom essencialmente religioso. Ele fora soldado
e permanecera em seu posto, como lhe haviam ordenado. Agora “Deus me
ordena que cumpra a missão do filósofo, da busca em mim mesmo e nos outros
homens”, e seria tão vergonhoso desertar o seu posto agora como no momento
da batalha. O medo da morte não é sabedoria, já que ninguém sabe se a morte
não será, afinal de contas, o mais alto bem. Se lhe oferecessem a vida sob
condição de deixar de especular, como fizera até então, responderia: “Homens
de Atenas, eu vos respeito e amo, mas obedecerei antes a Deus do que a vós,
{52} e enquanto tiver vida e forças não deixarei jamais de praticar e ensinar a
filosofia, exortando a todos os que encontre em meu caminho … pois sei que este
é o mandado de Deus; e creio que jamais houve melhor coisa no Estado que o
meu serviço a Deus”. E prossegue:
“Tenho algo mais a dizer — algo que talvez desperte vossos protestos, mas
creio que o ouvir-me vos será um bem e, portanto, rogo-vos não me
interrompais. Desejaria que soubésseis que, se matardes uma criatura como eu,
fareis maior mal a vós mesmos do que a mim. Nada me causará dano; nem
Meleto, nem Any to podem fazer-me qualquer mal, pois um homem mau não
pode ferir outro melhor do que ele. Não nego que Any to possa talvez matá-lo, ou
desterrá-lo, ou privá-lo de seus direitos civis; e ele talvez possa imaginar, como os
demais, que está infligindo um grande dano ao outro; mas não estou de acordo.
Porque o mal de agir como está agindo — o mal de tirar, injustamente, a vida a
outro homem — é muitíssimo maior”.
É pelos juízes, diz ele, e não em seu próprio benefício, que se defende. Ele é
um moscardo, enviado ao Estado por Deus, e não será fácil encontrar outro
homem como ele. “Ouso dizer que talvez vos sintais irritados (como uma pessoa
que é despertada subitamente de seu sono) e penseis que vos seria fácil matarme, como Any to aconselha, e que depois poderíeis dormir o resto de vossas
vidas, a menos que Deus, em sua providência, vos mande um outro moscardo”.
Por que falava apenas de coisas pessoais e não públicas? “Já me ouvistes
falar, em várias ocasiões e em diversos lugares, de um oráculo ou signo que me
aparece, e que é a divindade que Meleto ridiculiza em sua acusação. Esse signo,
que é uma espécie de voz, começou a aparecer-me quando eu era criança;
sempre me proíbe, mas nunca me ordena fazer algo que vou fazer. Eis aí o que
me impede de ser político. Prossegue dizendo que, na política, nenhum homem
honesto pode viver muito. Dá dois exemplos de casos em que se viu,
inevitavelmente, metido em questões públicas; no primeiro, opôs-se à
democracia; no segundo, aos Trinta Tiranos, sempre que as autoridades
procediam ilegalmente.
Assinala que, entre os presentes, se acham muitos de seus antigos discípulos,
bem como pais e irmãos de seus alunos; nenhum deles foi apresentado pela
acusação a fim de testemunhar que ele corrompe os jovens. (Este é quase o
único argumento na Apologia que um advogado de defesa sancionaria). Recusase a seguir o costume de apresentar ao tribunal filhos chorosos, a fim de abrandar
o coração dos juízes; tais cenas, diz ele, tomam tanto o acusado como a própria
cidade ridículos. Compete-lhe convencer os juízes, e não lhes pedir um favor.
Depois do veredicto, e tendo-lhe sido negado, como alternativa, o pagamento
das trinta minas (que é o momento em que Sócrates se refere a Platão como um
dos fiadores e presente na corte) pronuncia o seu discurso final:
“E agora, ó homens que me condenastes, eu vos faço umas profecias, pois
vou morrer e, na hora da morte, os homens são dotados de poder profético. E eu
vos profetizo, a vós que sois meus assassinos, que, imediatamente após minha
partida, um castigo muito mais grave do que o que me infligistes vos
aguardará … Se pensais que, matando homens, podeis evitar que alguém vos
censure pela vossa má vida, estais enganados; esta não é uma maneira de fuga
possível nem honrosa; o modo mais fácil e nobre não é eliminar os outros, mas
fazer com que vós próprios vos eleveis”.
Volta-se aos juízes que haviam votado pela sua absolvição e diz-lhes que, em
tudo o que ele fizera naquele dia, seu oráculo jamais se lhe opôs, embora em
outras ocasiões o haja detido, com frequência, no meio de um discurso. “É um
sinal de que o que me aconteceu é bom, e que aqueles dentre nós que
consideram a morte como um mal estão equivocados”. Porque ou a morte é um
sono sem sonhos — o que é francamente bom — ou a alma emigra para outro
mundo. E “que não daria um homem para conversar com Orfeu e Museo,
Hesíodo e Homero? Ora, se isso é certo, deixai que eu morra muitas mortes”. No
outro mundo, ele conversará com outros que sofreram morte injusta e, além de
tudo, continuará a sua busca do conhecimento. “No outro mundo, não condenam
um homem à morte por fazer perguntas: seguramente não. Pois, além de mais
felizes do que nós, são imortais, se o que se diz é certo …”
“A hora da partida chegou, e seguimos nosso caminho: eu a morrer, e vós a
viver. Qual o melhor, só Deus o sabe!”
A Apologia apresenta um retrato perfeito de um homem de determinado tipo:
um homem muito seguro de si mesmo, de espírito elevado, indiferente aos êxitos
mundanos, que acreditava ser guiado por uma voz divina e estava persuadido de
que o raciocínio claro constitui o requisito mais importante para uma vida reta.
Exceto nesse último ponto, assemelha-se a um mártir cristão ou a um puritano.
Na passagem final, ao considerar o que acontece depois da morte, é impossível
não se sentir que ele acreditava firmemente na imortalidade, e que a sua
professada incerteza era apenas fingida. Não se mostra perturbado, como os
cristãos, por receios do tormento eterno: não duvida que sua vida, no outro
mundo, será feliz. No Fédon, o Sócrates platônico apresenta as razões de sua fé
na imortalidade; se estas eram as razões que influenciaram o Sócrates histórico é
coisa impossível de dizer-se.
Parece não haver a menor dúvida de que o Sócrates histórico se dizia guiado
por um oráculo ou daimón. Se isto era análogo ao que o cristão chamaria a voz da
consciência, ou se lhe aparecia como uma voz verdadeira, é impossível de se
saber. Joana D’Arc era inspirada por vozes, sintoma comum de loucura. Sócrates
era sujeito a transes catalépticos; ao menos esta parece ser a explicação natural
de um incidente ocorrido quando ele prestava serviço militar:
Uma manhã, meditava ele sobre algo que não conseguia resolver; não quis
ceder e continuou a pensar desde o amanhecer até ao meio-dia — inteiramente
concentrado em seus pensamentos. Ao meio-dia, sua atitude já havia chamado a
atenção dos demais, correndo o rumor, entre a multidão perplexa, de que
Sócrates estava ali a pensar algo desde o romper da alvorada. Por fim, à noite,
depois da ceia, alguns jônios, por curiosidade (eu diria que isto ocorreu não no
inverno, mas no verão) trouxeram suas esteiras e dormiram ao ar livre, a fim de
poder observá-lo e ver se ele ficaria de pé a noite inteira. E lá permaneceu ele
até à manhã seguinte; ao voltar a luz do dia, elevou uma oração ao Sol e retirouse (Symposium, 220).
Coisas como essa, em menor escala, ocorriam frequentemente a Sócrates. No
começo do Symposium, Sócrates e Aristodemo vão juntos a um banquete, mas
Sócrates fica para trás, absorto. Quando Aristodemo chega, Agáthon, o anfitrião,
pergunta: “Que fizeste de Sócrates?” Aristodemo é tomado de perplexidade, ao
ver que Sócrates não está em sua companhia; um escravo é enviado à sua
procura e encontra-o junto ao pórtico de uma casa das vizinhanças. “Lá está ele
imóvel — informa o escravo, ao voltar — e quando o chamei não se moveu”. Os
que o conhecem bem explicam que “ele tem o costume de parar em qualquer
lugar e ficar perdido sem qualquer razão”. Deixam-no sozinho, e quando entra a
festa já está na metade.
Todos estavam de acordo em que Sócrates era muito feio; tinha nariz chato e o
ventre bastante proeminente; era “mais feio do que todos os silenos do drama
satírico” (Xenofonte, Symposium). Trajava sempre roupas puídas e velhas e ia
descalço a toda a parte. Sua indiferença ante o calor e o frio, a fome e a sede,
surpreendia a todos. Alcebíades, no Symposium, descrevendo Sócrates por
ocasião do serviço militar, diz:
“Sua resistência era simplesmente maravilhosa quando isolados de nossos
suprimentos, éramos obrigados a ficai sem alimento. Nessas ocasiões, frequentes
em tempo de guerra, era superior não só a mim, mas a todos: não havia ninguém
que se lhe comparasse sua fortaleza para suportar o frio era espantosa. Fazia frio
intenso, pois o inverno, naquela região, é realmente tremendo, e todos ficavam
em casa ou, se saíam, vestiam uma quantidade enorme de roupas, usavam bons
calçados e envolviam os pés em feltro e panos de lã. Em meio de tudo isso.
Sócrates, com os pés nus sobre o gelo e com suas vestes comuns, marchava
melhor do que os soldados que usavam sapatos e o olhavam com raiva, porque
ele parecia desprezá-los”.
Seu domínio sobre todas as paixões do corpo é constantemente ressaltado.
Raramente bebia vinho, mas, quando o fazia, podia beber mais do que qualquer
outra pessoa, embora ninguém jamais o visse embriagado. No amor, mesmo
diante das mais fortes tentações, permanecia “platônico”, se é que Platão fala a
verdade. Era o perfeito santo órfico: no dualismo entre a alma celestial e o corpo
terreno, adquiriu completo domínio da alma sobre o corpo. Sua indiferença
diante da morte, por fim, é a prova final desse domínio. Ao mesmo tempo, não é
um órfico ortodoxo; aceita somente as doutrinas fundamentais, e não as
superstições e cerimônias de purificação.
O Sócrates platônico se antecipa tanto aos estóicos como aos cínicos. Os
estóicos mantinham que a virtude constitui o bem supremo, e que um homem
não pode ser privado da virtude devido a causas externas; esta doutrina está
implícita na afirmação de Sócrates, de que os seus juízes não podem causar-lhe
dano. Os cínicos desprezavam os bens do mundo, e demonstravam esse seu
desprezo rejeitando os confortos da civilização. É o mesmo ponto de vista que
fazia com que Sócrates andasse descalço e malvestido.
Parece bastante certo que as preocupações de Sócrates eram de caráter mais
ético que científico. Na Apologia, como vimos, diz ele: “Nada tenho que ver com
especulações físicas”. Os primeiros diálogos de Platão, considerados, em geral,
como os mais socráticos, tratam principalmente da busca de definições de
termos éticos. O Charmides trata da definição da temperança ou moderação; o
Lysis, da amizade; o Laches, da coragem. Em todos eles, não se chegou a
nenhuma conclusão, mas Sócrates explica que acha importante o exame de tais
questões. O Sócrates platônico afirma, com insistência, que nada sabe, sendo
apenas mais sábio do que os outros por saber que nada sabe; mas não considera o
conhecimento inatingível. Ao contrário, acha que a busca do conhecimento é da
máxima importância. Afirma que nenhum homem peca intencionalmente e que,
portanto, os homens só necessitam de conhecimento para ser completamente
virtuosos.
A estreita relação entre a virtude e o conhecimento é característica de
Sócrates e Platão. Até certo grau, existe em toda a filosofia grega, ao contrário
da do Cristianismo. Na ética cristã, um coração puro é essencial, e isso é pelo
menos tão fácil de encontrar-se tanto entre os ignorantes como entre as pessoas
de cultura. Esta diferença entre a ética grega e a cristã persiste até hoje.
A dialética, isto é, o método de se procurar o conhecimento por meio de
perguntas e respostas, não foi inventada por Sócrates. Parece haver sido
praticada primeiro, sistematicamente, por Zeno, discípulo de Parmênides; no
diálogo Parmênides, de Platão, Zeno submete Sócrates à mesma espécie de
tratamento a que, em outra passagem de Platão, Sócrates submete os outros. Mas
há bastante razão para supor-se que Sócrates praticou e desenvolveu esse
método. Como vimos, ao ser condenado à morte. Sócrates reflete, feliz, que no
outro mundo pode continuar a fazer perguntas para sempre, não podendo ser
condenado à morte, por ser imortal. Certamente, se é que praticou a dialética da
maneira descrita na Apologia, pode-se explicar facilmente a hostilidade de que se
tornou alvo: todos os charlatães de Atenas se uniram contra ele.
O método dialético presta-se a algumas questões, mas não se presta a outras.
Talvez isto haja contribuído para determinar o caráter das perguntas de Platão, as
quais eram, em sua maior parte, de uma índole que permitia esse tratamento.
Através da influência de Platão, a maior parte da filosofia subsequente esteve
sujeita a limitações resultantes de seu método.
Certas matérias, evidentemente, não podem ser tratadas dessa maneira —
como, por exemplo, a ciência empírica. É certo que Galileu empregava diálogos
para defender suas teorias, mas isso apenas para vencer preconceitos: as bases
positivas de seus descobrimentos não poderiam ser inseridas num diálogo, exceto
de maneira sumamente artificial. Sócrates, nas obras de Platão, pretende sempre
que está apenas desentranhando conhecimentos que já pertenciam ao homem
que ele está interrogando; ele próprio se compara, por isso, a uma parteira.
Quando, no Fedón e no Meno, aplica seu método a problemas geométricos, tem
de fazer perguntas que qualquer juiz desaprovaria. O método harmoniza-se com
a doutrina da reminiscência, segundo a qual aprendemos lembrando-nos do que
já sabíamos numa existência anterior. Contra este ponto de vista, considere-se
qualquer descoberta feita por meio do microscópio, como, por exemplo, a
disseminação de doenças por meio de bactérias. Dificilmente poderia dizer-se
que tal conhecimento poderia ser conseguido de uma pessoa anteriormente
ignorante, pelo método de pergunta e resposta.
Os temas adequados ao método socrático são aqueles de que já possuímos
conhecimento suficiente para chegar a uma conclusão acertada, mas que não
alcançamos por confusão de espírito ou por falta de análise, e da qual não
tiramos proveito. Uma pergunta, por exemplo, como “que é a justiça?” é
sumamente adequada para discussão num diálogo platônico. Nós todos
empregamos livremente as palavras “justo” e “injusto” e, examinando a
maneira pela qual as empregamos, podemos chegar, indutivamente, à definição
que melhor se adapta ao uso. Basta-nos, para isso, saber de que maneira as
palavras em questão são empregadas. Mas, terminado o nosso inquérito,
percebemos que fizemos apenas uma descoberta linguística, e não uma
descoberta de sentido ético.
Podemos, porém, aplicar o método, de maneira vantajosa, a uma classe um
tanto mais amplo de casos. Sempre que aquilo que se discute é mais lógico que
efetivo, a discussão constitui um bom método de se verificar a verdade.
Suponhamos que alguém afirme, por exemplo, que a democracia é boa, mas que
a pessoa que manifeste essa opinião esteja proibida de votar. Neste caso,
podemos convencê-la dessa incompatibilidade e provar que ao menos uma das
suas duas asserções deve ser mais ou menos errônea. Os erros lógicos são, penso
eu, de maior importância prática do que muita gente crê, pois permitem àqueles
que os cometem manter, por sua vez, uma opinião sobre qualquer tema que se
discuta. Toda doutrina logicamente coerente é, com toda a certeza, contrária aos
preconceitos correntes. O método dialético — ou, de maneira mais geral, o
hábito da discussão sem entraves — tende a proporcionar congruência lógica,
sendo, desse modo, útil. Mas de nada serve quando se trata de descobrir fatos
novos. Talvez pudesse definir-se a “filosofia” como sendo a soma total das
indagações que podem ser investigadas mediante os métodos de Platão. Mas se
esta definição é adequada, deve-se tal fato à influência de Platão sobre os
filósofos posteriores.
CAPÍTULO XII
A Influência de Esparta
Para se compreender Platão e, com efeito, muitos dos filósofos posteriores, é
necessário saber-se alguma coisa de Esparta. Esta cidade teve duplo efeito sobre
o pensamento grego: através da realidade, e através do mito. As duas coisas são
importantes. A realidade permitiu aos espartanos derrotar Atenas na guerra; o
mito exerceu influência sobre a teoria política de Platão e a de inumeráveis
escritores posteriores. O mito, plenamente desenvolvido, pode ser encontrado na
Vida de Licurgo, de Plutarco; os ideais que defende tiveram grande papel na
formação das doutrinas de Rousseau. Nietzsche e do Nacional Socialismo.{53} O
mito é ainda mais importante, historicamente, do que a realidade. Não obstante,
começaremos com esta última. Porque a realidade foi a fonte do mito.
A Lacônia, da qual Esparta, ou Lacedemônia, era a capital, ocupava o sudeste
do Peloponeso. Os espartanos, que eram a raça dominante, haviam conquistado o
país ao tempo da invasão dória pelo Norte, reduzindo a população que lá
encontraram à condição de servos. Estes servos eram chamados ilotas. Nos
tempos históricos, toda a terra pertencia aos espartanos, que estavam, no entanto,
proibidos, pela lei e pelo costume, de a cultivar eles próprios, sob alegação de que
tal trabalho era degradante e, ainda, a fim de que pudessem estar livres para o
serviço militar. Os servos não eram comprados nem vendidos, mas
permaneciam ligados à terra, que era dividida em lotes, um ou mais para cada
espartano adulto. Estas parcelas de terra, como os ilotas, não podiam ser
compradas nem vendidas, e passavam, legalmente, de pai a filho. (Podiam,
porém, ser legadas). O proprietário recebia do ilota que a cultivava a soma de
setenta medimnos (cerca de 105 bushels) de cereal para si, doze para a esposa e
uma determinada quantidade anual de vinho e fruta.{54} Tudo que passasse disso
pertencia ao ilota. Os ilotas eram gregos, como os espartanos, e ressentiam-se
amargamente dessa condição servil. Quando lhes foi possível, rebelaram-se. Os
espartanos tinham um corpo de polícia secreta que se encarregava de conjurar
tal perigo, mas, além desta precaução, valiam-se ainda de outra: uma vez por
ano, declaravam guerra aos ilotas, de modo que seus jovens pudessem matar
todos aqueles que parecessem insubordinados, sem incorrer, por isso, na culpa de
homicídio. Os ilotas podiam ser emancipados pelo Estado, mas não pelos seus
amos; eram emancipados, mas muito raramente, por bravura excepcional no
campo de batalha.
Em certa época do século VIII antes de Cristo, os espartanos conquistaram o
país vizinho de Messênia, reduzindo quase todos os seus habitantes à condição de
ilotas. Havia falta de Labensraum (espaço vital) em Esparta, mas o novo território
removeu, durante algum tempo, essa fonte de descontentamento.
Esses lotes de terras se destinavam à economia comum dos espartanos; a
aristocracia possuía propriedades rurais próprias, enquanto que essas outras terras
eram destinadas pelo Estado à comunidade.
Os habitantes livres de outras partes da Lacônia, chamados “periecos”, não
compartilhavam do poder político.
A única ocupação do cidadão espartano era a guerra, para a qual era
adestrado desde o berço. Os meninos doentios eram abandonados, depois de
examinados pelos chefes das tribos. Somente os que eram considerados vigorosos
chegavam à maioridade. Até à idade de vinte anos, todos os rapazes eram
educados numa grande escola. A finalidade da educação era torná-los rijos,
indiferentes à dor, submissos à disciplina. Não se perdia tempo com educação
cultural ou científica: o único objetivo era formar bons soldados, inteiramente
devotados ao Estado.
À idade de vinte anos, começava o verdadeiro serviço militar. O casamento
era permitido a todos os maiores de vinte anos, mas, até aos trinta, cada homem
tinha de viver na “casa dos homens”, dirigindo o seu casamento como se fosse
uma aventura ilícita e secreta. Depois dos trinta, era um cidadão completo. Cada
cidadão pertencia a um departamento e comia com os outros membros; tinha de
fazer uma contribuição em espécie, proveniente de sua porção de terra. Segundo
a teoria do Estado, nenhum cidadão espartano devia ser pobre ou rico. Esperavase que cada um vivesse do produto de sua propriedade, que não podia ser
alienada, exceto por livre legado. Ninguém podia possuir ouro ou prata, e o
dinheiro era feito de ferro. A simplicidade espartana tomou-se proverbial.
A posição das mulheres, em Esparta, era peculiar. Não eram recluídas, como
as mulheres respeitáveis no resto da Grécia. As moças recebiam a mesma
educação física ministrada aos rapazes. O que é ainda mais notável, rapazes e
moças faziam ginástica juntos, completamente nus. Desejava-se (cito o Licurgo,
de Plutarco, na tradução de North) “que as donzelas enrijecessem o corpo com
exercícios de corridas, lutas, lançamento de dardo, a fim de que o fruto que
pudessem conceber se alimentasse de um corpo forte e vigoroso, tivesse bom
desenvolvimento e melhorasse a raça, e para que o fortalecimento conseguido
mediante tais exercícios fizesse com que suportasse melhor as dores do parto …
E embora as jovens se mostrassem assim, completamente nuas, não se via nisso
nada de indecoroso; não havia propostas desonestas, mas, ao contrário, todos os
divertimentos e desportos se verificavam sem que houvesse qualquer
licenciosidade”.
Os homens que não casavam eram considerados “infames pela lei”, sendo
obrigados, mesmo no tempo mais frio, a andar nus de um lado para outro fora do
lugar onde os jovens realizavam seus exercícios.
As mulheres não podiam manifestar qualquer emoção que não fosse
proveitosa para o Estado. Podiam demonstrar desprezo por um covarde, sendo
elogiadas se tratasse de seu próprio filho; mas não podiam demonstrar sofrimento
se o filho recém-nascido era condenado à morte devido à sua debilidade, ou se
seus filhos fossem mortos em combate. Eram consideradas, pelos outros gregos,
como mulheres excepcionalmente castas; ao mesmo tempo, uma mulher casada
sem filhos não fazia nenhuma objeção se o Estado lhe ordenasse que procurasse
algum outro homem que fosse mais bem-sucedido que o marido em gerar-lhe
filhos. A legislação encorajava a procriação de filhos Segundo Aristóteles, o pai
de três filhos ficava isento de serviço militar, e o pai de quatro de todos os
deveres para com o Estado.
A constituição de Esparta era complicada. Havia dois reis, pertencentes a duas
famílias diferentes, que se sucediam por herança. Um ou outro dos reis
comandava o exército em tempo de guerra, mas, em tempos de paz, seus
poderes eram limitados. Nas festas comunais, recebiam o dobro do alimento
servido aos demais, e quando um deles morria era decretado luto geral. Eram
membros do Conselho de Maiores, um corpo constituído de trinta homens
(incluindo os reis); os outros vinte e oito deviam ter mais de sessenta anos, e eram
escolhidos, de maneira vitalícia, pela totalidade dos cidadãos, mas só provinham
de famílias aristocráticas. O Conselho julgava os casos criminais e preparara os
assuntos que deviam ser submetidos à apreciação da Assembleia. Este organismo
(a Assembleia) consistia de todos os cidadãos; não lhe era dado iniciar coisa
alguma, mas podia votar a favor ou contra qualquer proposta que lhe fosse
apresentada. Nenhuma lei podia ser aprovada sem seu assentimento. Mas seu
assentimento, embora necessário, não bastava: os maiores e magistrados tinham
de proclamar a decisão para que esta se tornasse válida.
Além dos reis, do Conselho dos Maiores e da Assembleia, havia um quarto
ramo do governo, peculiar a Esparta. Eram os cinco éforos. Estes eram
escolhidos, entre a totalidade dos cidadãos, por um método que Aristóteles
considerava “demasiado infantil”, e que, segundo Bury, não passava de um
sorteio. Constituíam o elemento “democrático” da constituição,{55} destinado, ao
que parece, a estabelecer o equilíbrio com os reis. Todos os meses os reis
juravam respeitar a constituição, e os éforos, por sua vez, juravam defender os
reis enquanto estes se mantivessem fiéis ao seu juramento. Quando um dos reis
participava de uma expedição bélica, dois éforos o acompanhavam, a fim de
observar seu procedimento. Os éforos constituíam a corte civil suprema, tendo
ainda jurisdição criminal sobre os reis.
A constituição espartana, segundo se supunha na antiguidade, era obra de um
legislador chamado Licurgo, que, conforme se dizia, promulgara suas leis no ano
885 A. C. O sistema espartano, com efeito, desenvolveu-se pouco a pouco, e
Licurgo foi um personagem mítico, originariamente um deus. Seu nome
significava “o que expulsa os lobos”, sendo que ele procedia da Arcádia.
Esparta despertou entre os gregos uma admiração que nos parece, hoje, um
pouco estranha. No começo, havia entre ela e as outras cidades gregas menos
diferença do que mais tarde; em seu início, produziu poetas e artistas tão bons
como os de qualquer outra parte. Mas, no século VII antes de Cristo,
aproximadamente, ou talvez um pouco mais tarde, sua constituição (falsamente
atribuída a Licurgo) cristalizou-se na forma que vimos; tudo era sacrificado ao
êxito na guerra, e Esparta deixou de ter qualquer participação naquilo com que a
Grécia contribuiu para a civilização do mundo. Para nós, o Estado espartano
parece um modelo em miniatura do Estado que os nazistas teriam estabelecido,
se vitoriosos. Mas os gregos o encaravam de outra maneira. Diz Bury :
“Um forasteiro vindo de Atenas ou de Mileto, no século V, que visitasse as
aldeias disseminadas que formavam essa cidade despretensiosa, sem muralhas,
deveria ter a impressão de ser transportado a uma época muito remota, em que
os homens eram mais valentes, melhores e mais simples, ainda não estragados
pelas riquezas nem perturbados pelas idéias. Para um filósofo como Platão, que
especulava sobre a ciência política, o Estado espartano era quase ideal. O grego
comum encarava-o como uma estrutura de severa e simples beleza, uma cidade
dórica imponente como o templo dórico, muito mais nobre que sua própria
morada, mas não tão confortável para se viver.{56}
Uma das razões para a admiração que os outros gregos sentiam por Esparta,
era a sua estabilidade. Todas as outras cidades gregas tinham revoluções, mas a
constituição espartana permaneceu invariável durante séculos, exceto quanto a
um aumento gradual do poder dos éforos, que se processou por meios legais, sem
violência.
Não se pode negar que, durante longo período, os espartanos foram bemsucedidos em seu objetivo principal: a criação de uma raça de guerreiros
invencíveis. A batalha das Termópilas (480 A. C.), embora tecnicamente uma
derrota, constitui, talvez, o melhor exemplo de sua coragem. As Termópilas eram
uma passagem estreita através das montanhas, onde se esperava poder deter o
exército persa. Trezentos espartanos, com tropas auxiliares, repeliram todos os
ataques frontais. Mas, por fim, os persas descobriram um desvio por entre as
colinas e conseguiram atacar os gregos, simultaneamente, por ambos os lados.
Todos os espartanos morreram em seu posto. Dois homens tinham estado
ausentes, com permissão, por estarem sofrendo de uma doença dos olhos que
acarretava quase uma cegueira temporária. Um deles insistiu para que o seu ilota
o conduzisse à batalha, onde pereceu; o outro, Aristodemo, achou que estava
muito doente para combater, e permaneceu ausente. Quando voltou a Esparta,
ninguém lhe dirigiu a palavra; apodaram-no de “o covarde Aristodemo”. Um
ano mais tarde, acabou com essa desgraça, morrendo bravamente na batalha de
Platéia, onde os espartanos saíram vitoriosos.
Depois da guerra, os espartanos erigiram um monumento no campo de
batalha das Termópilas, cuja inscrição dizia apenas: “Estrangeiro, conta aos
lacedemônios que aqui jazemos, em obediência às suas ordens”.
Durante longo tempo, os espartanos foram invencíveis em terra. Mantiveram
sua supremacia até ao ano 371 A. C., quando foram derrotados pelos tebanos na
batalha de Leuctra. Este foi o fim de sua grandeza militar.
Fora da guerra, a realidade de Esparta jamais correspondeu de todo à teoria.
Heródoto, que viveu na época de sua grandeza, observa, de maneira que nos
surpreende, que nenhum espartano sabia resistir ao suborno. E isto apesar do fato
de o desprezo pelas riquezas e amor pela vida simples ser uma das coisas
principais inculcadas pela educação espartana. Contam-nos que as mulheres
espartanas eram castas; no entanto, aconteceu várias vezes que os que eram
considerados herdeiros do reino tiveram de ser afastados por não serem filhos
dos maridos de suas mães. Contam-nos que os espartanos eram patriotas
inquebrantáveis; no entanto, o rei Pausânias, o vencedor de Platéia, acabou como
traidor, a serviço de Xerxes. À parte tais fatos, flagrantes, a política de Esparta
sempre foi provinciana e mesquinha. Quando Atenas libertou os gregos da Ásia
Menor e das ilhas adjacentes, os quais se achavam sob domínio persa, Esparta
permaneceu arredia; enquanto o Peloponeso foi considerado seguro, o destino
dos outros gregos lhe foi indiferente. Toda tentativa no sentido de uma
confederação do mundo helênico se viu frustrada pelo particularismo de Esparta.
Aristóteles, que viveu depois da queda de Esparta, nos dá uma versão bastante
hostil de sua constituição.{57} O que ele diz é tão diferente do que os outros
contam que é difícil de acreditar que se trata do mesmo lugar. Por exemplo: “O
legislador queria tornar o Estado rijo e sóbrio, e levou avante sua intenção quanto
ao que se refere aos homens, mas descuidou das mulheres, que vivem entregues
a toda a espécie de excessos e de luxo. O resultado é que nesse Estado se dá
demasiado valor à riqueza, principalmente se os cidadãos se acham sob o
domínio de suas mulheres, como ocorre com muitas raças guerreiras … mesmo
quanto ao que se refere à coragem, que de nada vale na vida cotidiana, e de que
só se necessita na guerra, a influência das mulheres lacedemônias foi
sumamente nociva. Essa licenciosidade das mulheres lacedemônias existiu desde
tempos remotos — e não se poderia esperar outra coisa. Porque quando Licurgo,
segundo nos diz a tradição, quis submeter as mulheres às suas leis, elas resistiram,
e ele abandonou tal propósito”.
Acusa, depois, os espartanos de avareza, que atribui à distribuição desigual da
propriedade. Embora as porções de terra não possam ser vendidas, diz ele,
podem ser doadas ou legadas. Dois quintos de todas as terras pertencem às
mulheres. A consequência disso é uma grande diminuição no número dos
cidadãos: havia antes, segundo se afirmava, dez mil, mas, na época da derrota
por Tebas, existiam menos de mil.
Aristóteles critica todos os pontos da constituição espartana. Diz que os éforos
são, com frequência, muito pobres e, portanto, fáceis de subornar. Seu poder é
tão grande que até mesmo os reis são obrigados a cortejá-los, de modo que a
constituição se transformou numa democracia. Os éforos tem demasiada
liberdade e vivem de modo contrário ao espírito da constituição, enquanto que o
rigorismo nas relações entre os cidadãos comuns é tão intolerável que estes se
refugiam em uma indulgência ilícita, secreta, dos prazeres sensuais.
Aristóteles escreveu quando Esparta já estava em decadência, mas, em
alguns pontos, diz expressamente que o mal a que se refere existia desde tempos
remotos. Seu tom é tão seco e realista que é difícil não se acreditar nele, e está de
acordo com toda a experiência moderna quanto aos resultados de uma
severidade excessiva das leis. Mas não foi a Esparta de Aristóteles que
permaneceu na imaginação dos homens: foi a Esparta mítica de Plutarco, bem
como a idealização filosófica de Esparta tal como aparece na República de
Platão. Século após século, os jovens leem essas obras e ardem de desejo de
converter-se em Licurgos, ou reis-filósofos. A união resultante de idealismo e
amor do poder tem desencaminhado repetidamente os homens, como ainda está
ocorrendo em nossa época.
Para os leitores medievais e modernos, o mito de Esparta foi fixado
principalmente por Plutarco. Quando ele escreveu, Esparta já pertencia ao
passado romântico; sua grande época já estava tão distante de seu tempo como a
de Colombo o está de nossa época. O que ele diz deve ser examinado com muita
cautela pelo historiador das instituições, mas para o historiador do mito é de
extraordinária importância. A Grécia influiu sempre no mundo através de seu
efeito sobre a imaginação, os ideais e as esperanças dos homens, e não devido,
diretamente, ao seu poder político. Roma abriu caminhos que ainda hoje
sobrevivem, e leis que são a fonte de muitos códigos modernos, mas foram os
exércitos de Roma que tornaram essas coisas importantes. Os gregos, embora
lutadores admiráveis, fizeram poucas conquistas, pois desencadearam sua fúria
militar principalmente entre si próprios. Coube ao semibárbaro Alexandre
disseminar o helenismo por todo o Oriente Próximo, transformando o grego na
língua literária do Egito, da Síria e das regiões interiores da Ásia Menor. Os
gregos jamais teriam podido realizar tal cometimento, não por falta de força
militar, mas devido à sua incapacidade para a coesão política. Os veículos
políticos do helenismo sempre foram não – helênicos; mas o gênio grego inspirou
de tal forma as nações estrangeiras, que estas disseminaram a cultura dos que
haviam sido por elas vencidos.
O que interessa ao historiador universal não são as pequenas guerras entre as
cidades gregas, ou as sórdidas disputas pelo predomínio deste ou daquele partido,
mas as memórias conservadas pela humanidade após o término desse breve
episódio, como a lembrança de um radiante amanhecer nos Alpes, enquanto o
alpinista luta com um áspero dia de vento e neve. Essas lembranças, ao se
desvanecerem pouco a pouco, deixaram no espírito dos homens as imagens de
certos cumes que cintilaram com brilho peculiar em meio à primeira claridade
matinal, mantendo viva a idéia de que, além das nuvens, perdurava ainda um
esplendor que poderia, a qualquer momento, manifestar-se. Dentre eles, Platão
foi o mais importante, nos primeiros tempos do Cristianismo, e Aristóteles na
Igreja medieval; mas quando, após a Renascença, os homens começaram a dar
valor à liberdade política, era para Plutarco, sobretudo, que se voltavam. Exerceu
ele profunda influência sobre os liberais ingleses e franceses do século XVIII,
bem como sobre os fundadores dos Estados Unidos; influiu no movimento
romântico na Alemanha e continuou, principalmente através de canais indiretos,
a influir no pensamento alemão até aos nossos dias. Sob certos aspectos, sua
influência foi benéfica; sob outros, má. Com respeito a Licurgo e Esparta, foi má.
O que tem a dizer-nos de Licurgo é importante, e darei um breve resumo,
mesmo à custa de repetição.
Licurgo — assim o diz Plutarco — tendo resolvido dar leis a Esparta, viajou
muito, a fim de estudar as diferentes instituições. Gostava das leis de Creta, que
eram “muito retas e severas”,{58} mas não apreciava as da Jônia, onde havia
“coisas supérfluas e vaidades”. No Egito, aprendeu a vantagem de separar os
soldados do resto do povo e, mais tarde, após regressar de suas viagens,
“introduziu essa prática em Esparta”, onde se estabeleceram comerciantes,
artífices e trabalhadores, tendo cada qual alguma coisa de seu, e fundou uma
nobre comunidade”. Fez uma divisão igual de terras entre todos os cidadãos de
Esparta, a fim de “banir da cidade a pobreza, a inveja, a avareza, as delícias e,
ainda, toda riqueza e pobreza”. Proibiu as moedas de ouro e prata, permitindo
somente as de ferro, de tão pequeno valor que, “para reunir o valor de dez minas,
seria preciso ocupar toda a adega de uma casa”. Eliminou, desse modo, “todas as
ciências supérfluas e de pouco proveito”, já que não havia dinheiro bastante para
pagar os que as praticavam. Com essa mesma lei, tornou impossível todo o
comércio exterior. Retóricos, alcoviteiros e joalheiros, como não gostassem de
dinheiro de ferro, evitavam Esparta. Ordenou, depois, que todos os cidadãos
comessem juntos, e que todos tivessem o mesmo alimento.
Licurgo, como outros reformadores, considerava a educação das crianças
como “o principal e o mais importante assunto que um reformador de leis
deveria resolver”; e como todos os que aspiram, antes de tudo, ao poder militar,
mostrava-se ansioso por manter elevada a média da natalidade. “Os jogos, os
esportes e as danças, que as jovens praticavam nuas diante dos rapazes,
constituíam uma provocação para arrastá-los ao casamento, não por razões
geométricas, como disse Platão, mas pelo amor e pelo gosto”. O hábito de tratar
o casamento, durante os primeiros anos, como se fosse um assunto clandestino,
“estimulava de parte a parte um amor sempre ardente e um desejo sempre
novo”. Eis aí, pelo menos, a opinião de Plutarco. Explica ele, ainda, que não se
pensava mal de um velho, casado com mulher jovem, se permitisse que um
outro jovem gerasse filhos em sua esposa. “Era legal também que um homem
honrado que amasse a mulher de um outro, rogasse ao marido que lhe permitisse
deitar a seu lado, gozando com ela e lançando, desse modo, a semente de filhos
sãos”. Não eram tolerados ciúmes tolos, pois “Licurgo não queria que os filhos
pertencessem aos pais, mas sim que se tornassem propriedade da comunidade,
para bem de todos; por essa razão, queria também que aqueles que devessem
tornar-se cidadãos não fossem gerados por qualquer homem, mas somente pelos
homens mais honestos’. Prossegue em sua explicação, dizendo ser esse o
princípio que os fazendeiros aplicam ao seu gado.
Quando nascia uma criança, o pai a levava à presença dos membros mais
velhos da família, para que a examinassem; se era saudável, devolviam-na ao
pai, para ser criada; se não, jogavam-na a um poço profundo. As crianças, desde
cedo, eram submetidas a um severo processo de enrijecimento, sob certos
aspectos bom; não eram, por exemplo, metidas em faixas e cueiros. Aos sete
anos de idade, os meninos eram afastados de casa e postos num internato, onde
os dividiam em grupos, cada qual sob as ordens de um de sua classe, escolhido
por sua inteligência e coragem. “Com respeito ao estudo, aprendiam apenas o
que lhes convinha; o resto do tempo, passavam-no aprendendo a obedecer, a
suportar a dor, a aguentar o trabalho e a portar-se bem na luta”. Brincavam nus,
juntos, a maior parte do tempo; depois de completar doze anos, não usavam
agasalhos; andavam sempre “sujos e desleixados”, e só tomavam banho em
certos dias do ano. Dormiam em camas de palha, misturada, no inverno, com
cardo. Eram ensinados a roubar e punidos quando apanhados em flagrante —
não por roubar, mas pela estupidez.
O amor homossexual, senão entre as mulheres ao menos entre os homens, era
um costume reconhecido em Esparta, constituindo uma parte reconhecida na
educação do adolescente. O amante de um adolescente tinha boa ou má fama,
segundo o comportamento do rapaz; Plutarco conta que, certa vez, tendo um
rapaz chorado, por ter sido ferido numa luta, seu amante foi multado pela
covardia do menino.
Havia pouca liberdade em qualquer fase da vida de um espartano.
A disciplina e a vida ordenada continuavam mesmo depois que o indivíduo se
tornava adulto, pois não era legal viver cada qual como desejasse. Achavam-se
em sua cidade como num acampamento, onde cada homem sabia o que fazer e
as obrigações que tinha de cumprir. Em suma: todos estavam convencidos que
não haviam nascido para viver sua própria vida, mas para servir o seu país. Uma
das melhores coisas que Licurgo levou à sua cidade foi o grande descanso e lazer
a que obrigou os seus cidadãos, proibindo-lhes apenas que se entregassem a
ocupações vis ou baixas. Quanto a estes, tampouco tinham necessidade de
preocupar-se em adquirir grandes riquezas, num lugar onde os bens não eram
nem estimados, nem vantajosos. Porque os ilotas, que eram homens convertidos
em escravos pelas guerras, lhes cultivavam a terra, entregando-lhes certa renda
anual.
Plutarco conta a história de um ateniense condenado por ociosidade, a qual,
ouvida por um espartano, fez com que este exclamasse: “Mostra-me o homem
condenado por viver nobremente e como um senhor”.
Licurgo — prossegue Plutarco — “acostumou seus cidadãos de modo a que
não vivessem nem pudessem viver sós, mas sim como homens ligados entre si,
sempre juntos, como as abelhas ao redor da rainha”.
Os espartanos não tinham permissão para viajar, nem os forasteiros eram
admitidos em Esparta, exceto a negócios, pois se receava que os costumes
estrangeiros corrompessem a virtude dos lacedemônios.
Plutarco conta que havia uma lei segundo a qual os espartanos podiam matar
ilotas sempre que o desejassem, mas recusa-se a acreditar que uma coisa tão
abominável possa ter sido devida a Licurgo. “Porque não posso convencer-me de
que Licurgo jamais inventasse ou instituísse uma lei tão má e perversa como
essa. Porque, pela clemência e justiça que o vemos praticar em todos os seus
outros atos, eu o imagino como tendo sido uma criatura de natureza amável e
bondosa”. Exceto neste ponto, Plutarco não tem senão palavras de louvor para
com a constituição de Esparta.
A influência de Esparta sobre Platão, de quem nos ocuparemos agora
particularmente, ressaltará do relato de sua Utopia, tema do capítulo seguinte.
CAPÍTULO XIII
A Fonte das idéias de Platão
Platão e Aristóteles foram, dentre todos os filósofos antigos, medievais ou
modernos, os que maiores influências exerceram; e, dos dois, foi Platão o que
teve maior influência sobre as épocas posteriores. Digo-o por duas razões:
primeiro, porque o próprio Aristóteles é um produto de Platão; e, em segundo
lugar, porque a teologia e a filosofia cristãs, ao menos até o século XIII, foram
muito mais platônicas do que aristotélicas. É necessário, pois, que, numa história
das idéias filosóficas, se trate de Platão e, em grau menor, de Aristóteles, mais
amplamente do que de qualquer um de seus predecessores ou sucessores.
As obras mais importantes da filosofia de Platão são: primeiro, sua Utopia,
que foi a primeira de uma longa série; segundo, sua teoria das idéias, que
representa uma tentativa de pioneiro no sentido de tratar do problema ainda
insolúvel dos universais; terceiro, seus argumentos a favor da imortalidade;
quarto, sua cosmogonia; quinto, sua concepção do conhecimento mais como
reminiscência do que percepção. Antes, porém, de tratar de qualquer desses
temas, direi algumas palavras sobre as circunstâncias de sua vida e as influências
que determinaram suas idéias políticas e filosóficas.
Platão nasceu em 428 A. C., nos primeiros anos da Guerra do Peloponeso. Era
um aristocrata abastado, aparentado com várias pessoas que participaram do
governo dos Trinta Tiranos. Era jovem quando Atenas foi vencida, e pôde
atribuir a derrota à democracia, que talvez lhe merecesse desprezo devido à sua
situação social e relações de família. Foi discípulo de Sócrates, por quem sentia
profundo afeto e respeito; e Sócrates foi condenado à morte pela democracia.
Não é, pois, de estranhar, que se voltasse para Esparta em busca de um modelo
para a sua comunidade ideal. Platão possuía a arte de disfarçar de tal modo as
sugestões antiliberais, que enganou as épocas futuras, as quais admiraram a
República sem jamais perceber o que continham as suas propostas. Sempre foi
moda elogiar-se Platão sem que se o compreendesse. Este é o destino comum
dos grandes homens. Meu objetivo é o oposto. Desejo compreendê-lo, mas tratálo de maneira tão pouco reverente como se ele fosse um inglês ou americano
contemporâneo partidário do totalitarismo.
As influências de índole puramente filosóficas experimentadas por Platão
eram de molde a predispô-lo a favor de Esparta. Essas influências, de modo
geral, foram: Pitágoras, Parmênides, Heráclito e Sócrates.
De Pitágoras (quer através de Sócrates ou não), Platão derivou os elementos
órficos de sua filosofia: a tendência religiosa, a crença na imortalidade, o outro
mundo, o tom sacerdotal e tudo o que a metáfora da caverna encerra — bem
como o seu respeito pelas matemáticas e a sua maneira de entrelaçar
estreitamente o intelecto com o misticismo.
De Parmênides, derivou a crença de que a realidade é eterna e intemporal, e
que, logicamente, toda mudança tem de ser ilusória.
De Heráclito, derivou a doutrina negativa de que não há nada permanente no
mundo sensível. Isso tudo, combinado com a doutrina de Parmênides, o levou à
conclusão de que o conhecimento não é derivado dos sentidos, mas algo que
somente se consegue atingir por meio do intelecto. Esta maneira de pensar se
adaptava, por sua vez, ao pitagorismo.
De Sócrates, aprendeu, provavelmente, a refletir sobre os problemas éticos,
bem como a tendência para procurar antes explicações teológicas do que
mecânicas do mundo. “O bom” dominava mais as suas idéias do que a dos présocráticos, e é difícil deixar de atribuir-se tal fato à influência de Sócrates.
De que maneira ligar tudo isso ao autoritarismo na política?
Em primeiro lugar, a bondade e a realidade não estão sujeitas ao tempo e,
portanto, o melhor Estado é aquele que quase chega a copiar o modelo celeste,
tendo um mínimo de mudança e um máximo de perfeição estática. Seus
governantes devem ser aqueles que melhor compreendam o Bem eterno.
Em segundo lugar, Platão, como todos os místicos, tem, em suas crenças, um
núcleo de certezas essencialmente incomunicável, exceto no modo de viver. Os
pitagóricos tinham procurado estabelecer regras para os iniciados, e isto, no
fundo, era o que Platão desejava. Para que um homem seja um bom estadista,
deve conhecer o Bem; e isto ele só poderá fazer mediante uma combinação de
disciplina intelectual e moral. Se aqueles que não passaram por tal disciplina
tiverem participação no governo, inevitavelmente o corromperão.
Em terceiro lugar, toma-se mister educação apurada para formar um bom
governante, segundo os princípios de Platão. Não nos parece sensato haver ele
ensinado geometria ao jovem Dionísio, tirano de Siracusa, a fim de torná-lo bom
rei, mas, do ponto de vista de Platão, isso era essencial. Era suficientemente
pitagórico para pensar que, sem as matemáticas, não era possível uma
verdadeira sabedoria. Esta opinião implica em oligarquia.
Em quarto lugar, Platão, como a maioria dos filósofos gregos, considerava o
ócio essencial à sabedoria, que não será encontrada, portanto, entre aqueles que
tem de trabalhar para ganhar a vida, mas só entre os que dispõem de meios
suficientes para ser independentes, ou entre os que o Estado livrou de
preocupações quanto à sua subsistência, este ponto de vista é essencialmente
aristocrático.
Duas questões gerais surgem ao confrontar-se Platão com as idéias modernas.
A primeira é: existe uma “sabedoria”? A segunda é: supondo-se que exista,
poder-se-á elaborar uma constituição que lhe dê poder político?
A “sabedoria”, nesse sentido, não seria nenhuma espécie da habilidade
especializada, como a que possuem o sapateiro, o médico ou o estrategista
militar. Deve ser algo mais generalizado do que isso, já que a sua possessão,
segundo se supõe, dá à homem capacidade para governar sabiamente. Penso que
Platão teria dito que consiste no conhecimento do bem, acrescentando a esta
definição a doutrina socrática de que nenhum homem peca voluntariamente, de
onde se segue que todo aquele que conhece o bem faz o que é certo. Para nós,
essa opinião parece estar longe da realidade. Diríamos, com mais naturalidade,
que há interesses divergentes, e que o estadista deveria chegar ao melhor acordo
possível. Os membros de uma classe ou de uma nação podem ter interesses
comuns, mas estes poderão estar em conflito com os interesses de outras classes
ou de outras nações. Há, sem dúvida, interesses comuns a toda a humanidade,
mas não bastam para determinar a ação política. Talvez isso aconteça no futuro,
mas não, certamente, enquanto houver muitos Estados soberanos. Mas, mesmo
então, a parte mais difícil da ação a favor dos interesses comuns consistiria em
chegar-se a acordos entre determinados interesses, reciprocamente hostis.
Mas, mesmo supondo-se que exista uma “sabedoria”, há alguma forma de
constituição que dê o governo aos sábios? É claro que as maiorias, como os
conselhos gerais, podem errar, e assim tem ocorrido. As aristocracias nem
sempre são sábias; os reis são, muitas vezes, tolos; os Papas, apesar da sua
infalibilidade, têm cometido graves erros. Advogaria alguém a entrega do
governo a homens de educação universitária ou, mesmo, a doutores em teologia?
Ou a homens que, tendo sido pobres, fizeram grandes fortunas? É evidente que
nenhuma seleção legalmente definível de cidadãos tem probabilidade de ser
mais sábia, na prática, do que todo o corpo estatal.
Poder-se-ia sugerir que se desse aos homens sabedoria política mediante
educação adequada. Mas surgiria a questão: em que consiste uma educação
adequada? E isto acabaria por se transformar numa questão de partido.
O problema de encontrar um grupo de homens “sábios” e entregar-lhes o
governo é, pois, insolúvel. Eis aí a razão definitiva a favor da democracia.
CAPÍTULO XIV
A Utopia de Platão
O diálogo mais importante de Platão, a República, consiste, de um modo
geral, de três partes. A primeira (até quase o final do Livro V) refere-se à
constituição de uma comunidade ideal; é a primeira das Utopias.
Uma de suas conclusões é que os governantes devem ser filósofos. Os livros
VI e VII procuram definir a palavra “filósofo”. Esta discussão constitui a
segunda parte.
A terceira consiste, principalmente, de uma discussão sobre espécies de
constituições reais, seus méritos e defeitos.
O propósito principal da República é definir a “justiça”’. Mas, logo de início,
afirma que, já que tudo é mais fácil de ver-se em ponto grande do que pequeno,
será melhor averiguar o que faz com que um Estado seja justo do que o que faz
com que um indivíduo seja justo. E, posto que a justiça deva figurar entre os
atributos do melhor Estado imaginável, é preciso que se esboce primeiro um tal
Estado, decidindo-se depois qual de suas perfeições deve chamar-se “justiça”.
Descrevamos primeiro a Utopia de Platão em grandes traços, e depois
consideremos os pontos que vão surgindo.
Platão começa dizendo que os cidadãos devem ser divididos em três classes; a
gente comum, os soldados e os guardiães. Só estes últimos devem ter poder
político. Devem ser em menor número do que os pertencentes às duas outras
classes. Em primeira instância, ao que parece, devem ser escolhidos pelo
legislador; depois, suceder-se-ão, normalmente, por hereditariedade, mas, em
casos excepcionais, uma criança promissora poderá ascender de uma das classes
inferiores, enquanto que, entre os filhos dos guardiães, uma criança ou um jovem
que não seja satisfatório pode ser degradado.
O problema principal, como Platão o percebe, é fazer com que os guardiães
executem as intenções do legislador. Para isso, faz várias propostas de caráter
educativo, econômico, biológico e religioso. Nem sempre fica claro até que
ponto essas propostas se aplicam às outras classes; é evidente que algumas delas
se aplicam aos soldados, mas, de modo geral, Platão se ocupa somente dos
guardiães, que elevem constituir uma classe à parte, como os jesuítas no velho
Paraguai, os clérigos nos Estados da Igreja até 1870, e o Partido Comunista na U.
R. S. S. Até os nossos dias.
A primeira coisa a considerar é a educação. Esta se divide em duas partes:
música e ginástica. Cada uma tinha um sentido mais amplo do que hoje:
“música” significava tudo que estivesse dentro da província das musas, e
“ginástica” tudo o que se relacionava com o adestramento e a capacidade física.
“Música” tinha um significado quase tão amplo como o que chamamos
“cultura”, e “ginástica” um sentido um tanto mais extenso do que o “atletismo”
moderno.
A cultura deve dedicar-se a transformar os homens em gentlemen, no sentido
que, em grande parte devido a Platão, tem esse termo na Inglaterra. A Atenas de
sua época era, sob certo aspecto, semelhante à Inglaterra do século XIX: em
ambas havia uma aristocracia que desfrutava de riqueza e de prestígio social,
mas sem monopólio sobre o poder político; em ambas, a aristocracia tinha de
assegurar todo o poder que lhe fosse possível por meio de uma conduta que
impressionasse. Na Utopia de Platão, porém, a aristocracia governa soberana.
A gravidade, o decoro e a coragem parecem ser as principais qualidades que
a educação deve cultivar. Deve haver rigorosa censura, desde os primeiros anos,
quanto à literatura a que os jovens têm acesso e as músicas que podem ouvir. As
mães e amas devem contar às crianças somente histórias autorizadas. Homero e
Hesíodo, por muitas razões, não devem ser lidos. Primeiro porque, às vezes,
representam os deuses como procedendo mal, o que não e edificante; os jovens
devem aprender que as coisas más jamais procedem dos deuses, pois Deus não é
o autor de todas as coisas, mas somente das boas. Em segundo lugar, há coisas
em Homero e Hesíodo ditas com a intenção de que o leitor receie a morte,
enquanto que, na educação, se deve procurar, por todos os modos, fazer com que
os jovens se mostrem dispostos a morrer na batalha. Nossos rapazes devem ser
ensinados a achar a escravidão pior do que a morte e, portanto, não devem ler
histórias em que homens bons choram e se lamentam, mesmo no caso da morte
de amigos. Em terceiro lugar, o decoro exige que não se ria jamais a
gargalhadas — e, não obstante, Homero se refere à “gargalhada sem fim dos
deuses abençoados”. Como pode um professor combater eficazmente a
hilaridade, se os jovens podem citar essa passagem? Em quarto lugar, há trechos,
em Homero, em que são louvadas as ricas festas, e outros que descrevem os
prazeres dos deuses. Tais trechos desencorajam a temperança. (O deão Inge,
autêntico platônico, manifesta-se contra um verso do famoso hino: “Seus gritos
eram de triunfo, seu canto, de festa”, que aparece numa descrição das alegrias
celestiais). Tampouco devem ser lidas histórias em que os maus são felizes e os
bons infortunados. Por todos esses motivos, os poetas devem ser condenados.
Platão passa a apresentar um curioso argumento a respeito do drama. Os
bons, diz ele, não deviam querer imitar os maus; ora, a maioria das peças teatrais
contém vilãos; portanto, o dramaturgo e o ator que desempenha o papel de vilão
tem de imitar gente culpada de vários crimes. Não somente os criminosos, mas,
também, de modo geral, mulheres, escravos e inferiores, não deviam ser
imitados por homens superiores. (Na Grécia, como na Inglaterra elisabetana, os
papéis femininos eram representados por homens). As peças teatrais, portanto, se
permitidas, não devem conter senão personagens heróicos, masculinos, de alto
nascimento. A impossibilidade disso é tão evidente que Platão resolve banir de
sua cidade todos os dramaturgos:
“Quando um desses senhores pantomímicos, tão vivos que sabem imitar tudo,
nos visitar, propondo-nos uma exibição de si próprio e de sua poesia, cairemos de
joelhos e o adoraremos como algo sagrado, doce e maravilhoso; mas devemos
também informá-lo de que, em nosso Estado, não se permite, por lei, a existência
de semelhantes criaturas.
E, depois de untar-lhe o corpo de mirra e colocar-lhe à cabeça uma coroa de
lã, mandá-lo-emos a outra cidade”.
Chegamos, depois, à censura da música (no sentido moderno). As harmonias
lídias e jônias devem ser proibidas, as primeiras porque exprimem tristeza, as
segundas porque são decadentes. Somente a dórica (pela sua coragem) e a frigia
(pela temperança) são permitidas. Os ritmos permissíveis devem ser simples,
exprimindo uma vida corajosa e harmoniosa.
A educação física deve ser austera. Ninguém deve comer peixe nem carne,
não sendo esta assada, ficando proibidos os molhos e os doces. As pessoas criadas
com este regime não terão necessidade de médicos.
Até uma certa idade, os jovens não devem ver nada de feio nem vicioso. Mas,
num momento adequado, devem ser expostos a “encantamentos”, tanto na
forma de terrores, que não devem aterrorizá-los, como na de prazeres baixos,
que não devem seduzir-lhes a vontade. Somente depois de terem passado por
estas provas é que serão julgados aptos para o posto de guardiães.
Os meninos, antes da idade adulta, devem ver a guerra, embora não devam
combater.
Quanto à economia, Platão propõe um completo comunismo para os
guardiães e, penso eu, também para os soldados, embora isto não seja muito
claro. Os guardiães terão pequenas casas e farão uso de alimentos simples;
viverão como num acampamento, comendo juntos, em grupos; não devem ter
propriedade privada, além do absolutamente necessário. O ouro e a prata são
proibidos. Embora não sejam ricos, não há razão para que não se sintam felizes;
todavia, o objetivo da cidade é o bem de todos, conjuntamente, e não a felicidade
de uma única classe. Tanto a riqueza como a pobreza são prejudiciais e, na
cidade de Platão, não existirá nem uma coisa, nem outra. Há um argumento
curioso com relação à guerra: o de que será fácil comprar aliados, já que nossa
cidade não deseja participar de modo algum dos despojos da vitória.
Com fingida relutância, o Sócrates platônico põe-se a aplicar o seu
comunismo à família. Os amigos, diz ele, devem ter todas as coisas em comum,
inclusive mulheres e filhos. Admite que isto apresenta certas dificuldades, mas
não as considera insuperáveis. Antes de mais nada, as meninas devem ter a
mesma educação que os meninos: aprender música, ginástica e a arte da guerra
em comum, com os rapazes. As mulheres devem ter, em todos os sentidos,
absoluta igualdade com os homens. “A mesma educação que faz de um homem
um bom guardião, também o fará de uma mulher, pois, no fundo, sua natureza é
a mesma”. Há diferenças, sem dúvida, entre homens e mulheres, mas nada tem
que ver com a política. Algumas mulheres possuem índole filosófica, sendo aptas
para guardiãs; outras são dotadas de espírito bélico, podendo dar bons soldados.
O legislador, depois de haver escolhido os guardiães, homens e mulheres,
ordenará que tenham casa e comida em comum. O casamento, como vimos,
será radicalmente modificado.{59} Em certas festas, as noivas e os noivos, em
número necessário para conservar constante a população, serão unidos por
sorteio, no qual se procurará fazer com que acreditem; mas, na realidade, os
governantes da cidade manipularão o sorteio baseado em princípios eugênicos.
Farão as coisas de modo a que os melhores casais tenham o maior número de
filhos. Todas as crianças serão retiradas dos pais ao nascer, tendo-se o máximo
cuidado em fazer com que os pais não saibam quais são os seus filhos. As
crianças, por sua vez, não deverão conhecer os pais. As crianças deformadas, ou
os filhos de pais inferiores, “serão levados a um lugar misterioso, desconhecido”.
As crianças procedentes de ligações não sancionadas pelo Estado serão
consideradas ilegítimas. As mães devem ter entre vinte e quarenta anos: os pais
entre vinte e cinco e cinquenta e cinco. Fora dessas idades, é livre a relação entre
os sexos, mas o aborto ou infanticídio, compulsório. Nos “casamentos”
arranjados pelo Estado, as pessoas em questão não têm voto; devem agir levadas
pela idéia de dever para com o Estado, e não por essas emoções comuns que os
poetas costumavam celebrar.
Já que ninguém sabe quem são os seus pais, deve ser chamado “pai” todo
aquele cuja idade indique que o poderia ser e, agindo-se do mesmo modo com
respeito a “mãe”, “irmão” e “irmã”. (Coisas como estas ocorrem entre certos
selvagens, e costumavam intrigar os missionários). Não deverá haver casamento
entre “pai” e “filha”, ou “mãe” e “filho”; de modo geral, mas não absoluto,
devem ser evitados os casamentos entre “irmão” e “irmã”. (Acho que se Platão
tivesse refletido um pouco mais sobre este ponto, verificaria que proibira todos os
casamentos, exceto aqueles entre “irmão-irmã”, que ele considera como raras
exceções).
Supõe-se que os sentimentos hoje ligados às palavras “pai”, “mãe”, “filho” e
“filha”, continuariam a ser inerentes a essas palavras sob as novas disposições de
Platão; um jovem, por exemplo, não agrediria um velho, pois poderia estar
agredindo o pai.
A vantagem que se tinha em vista era, certamente, reduzir ao mínimo as
emoções pessoais e remover, desse modo, os obstáculos para o domínio do
espírito público, bem como fazer com que os indivíduos concordassem com a
ausência da propriedade privada. Foram, em grande parte, motivos de caráter
idêntico que levaram o clero ao celibato.{60}
Chego, finalmente, ao aspecto teológico do problema. Não penso nos deuses
gregos admitidos, mas em certos mitos que o governo deve inculcar. A mentira,
diz explicitamente Platão, deve ser uma prerrogativa do governo, como
administrar a medicina o é dos médicos. O governo, como vimos, deve enganar
os indivíduos no que se refere ao casamento por sorteio, mas esta não é uma
questão religiosa.
Deve haver uma “mentira real”, que, como espera Platão, possa enganar os
governantes, mas que, de qualquer modo, enganará o resto da cidade. Essa
“mentira” é exposta de maneira bastante pormenorizada. A parte mais
importante dela é o dogma de que Deus criou três espécies de homens, a melhor
feita de ouro, a segunda de prata e o rebanho vulgar de cobre e ferro. Os que são
feitos de ouro servem para guardiães; os de prata devem ser soldados, e os
restantes devem encarregar-se dos trabalhos manuais. Geralmente, mas nem
sempre, as crianças pertencerão ao mesmo grau que seus pais; quando não,
devem ser promovidas ou rebaixadas, conforme for o caso. Não se julga possível
fazer com que a geração atual acredite nesse mito, mas a próxima, e todas as
gerações subsequentes, podem ser educadas de modo a não duvidar disso.
Platão está certo ao pensar que a crença em tal mito poderia formar-se no
espaço de duas gerações. Os japoneses ensinaram, desde 1868, que o Micado
descende da deusa do Sol, e que o Japão foi criado antes do resto do mundo.
Qualquer professor universitário que, mesmo numa obra cientifica, lance dúvidas
sobre esses dogmas, é demitido, por exercer atividades anti-japonesas. O que
Platão parece não compreender é que a aceitação compulsória de tais mitos é
incompatível com a filosofia, e implica uma espécie de educação que embota a
inteligência.
A definição de “justiça”, que constitui o objetivo nominal de toda a discussão,
é dada no livro IV. Consiste, diz-nos ele, em que toda a gente realize o seu
trabalho e não seja intrometida: a cidade está no ponto exato quando cada qual
faz o que lhe compete, sem interferir com o trabalho das outras classes.
Que cada qual cuide da sua própria vida é, sem dúvida, um preceito
admirável, mas dificilmente corresponde ao que o homem moderno chamaria
“justiça”. A palavra grega assim traduzida corresponde a um conceito muito
importante no pensamento grego, mas para o qual não temos um equivalente
exato. Vale a pena recordar o que Anaximandro disse:
“Naquilo em que tem sua origem, as coisas passam uma vez mais, como é
ordenado, pois se reparam e satisfazem mutuamente da injustiça, de acordo com
o tempo indicado”.
Antes do aparecimento da filosofia, os gregos tinham uma teoria ou um
sentimento a respeito do universo que se pode chamar de religioso ou ético.
Segundo essa teoria, todas as pessoas e todas as coisas tem o seu lugar e a sua
função determinada. Isto não depende da vontade de Zeus, pois o próprio Zeus
está sujeito à mesma espécie de lei que governa os outros. A teoria se acha ligada
à idéia do destino ou da necessidade. Aplica-se enfaticamente aos astros. Mas
onde há vigor, há tendência de se ultrapassar certos limites — e daí surge o
conflito. Uma espécie de lei super-olímpica impessoal castiga a hubris, e restaura
a ordem eterna que o transgressor procurou violar. Toda essa visão, a princípio
talvez vagamente consciente, passou para a filosofia; e é encontrada, também,
nas cosmologias de luta, como as de Heráclito e Empédocles, bem como nas
doutrinas monistas, tais como a de Parmênides. É a fonte de crença tanto na lei
natural como na lei humana, e acha-se nitidamente sublinhada na concepção de
justiça de Platão.
A palavra “justiça”, como é ainda usada no direito, assemelha-se mais ao
conceito de Platão do que ao sentido em que é empregada na especulação
política. Sob a influência da teoria democrática, chegamos a associar a justiça
com a igualdade, enquanto que para Platão não tem tal significação. “Justiça”, no
sentido em que é quase sinônimo de “lei” — como quando falamos de “cortes de
justiça” — diz respeito quase que exclusivamente a direitos de propriedade, que
nada tem que ver com igualdade. A primeira definição sugerida de “justiça”, no
começo da República, é que consiste em a gente pagar as dívidas. Esta definição
é logo posta de lado como inadequada, mas, no fim, ainda fica algo dela.
Há, na definição de Platão, vários pontos dignos de nota. Primeiro, pode haver
desigualdade de poder e de privilégio sem que haja injustiça. Os guardiães
devem ter todo o poder, porque são os membros mais sábios da comunidade; a
injustiça somente ocorreria, segundo a definição de Platão, se houvesse, nas
outras classes, homens mais sábios do que alguns dos guardiães. Eis aí porque
Platão se ocupa da promoção e rebaixamento dos cidadãos, embora ache que a
dupla vantagem do nascimento e da educação tornará, na maioria dos casos, os
filhos dos guardiães superiores aos filhos dos outros. Se houvesse uma ciência
mais exata do governo e mais certeza de que os homens seguissem seus
preceitos, haveria muito que dizer a favor do sistema de Platão. Ninguém julga
injusto colocar-se os melhores homens numa equipe de futebol, embora
adquiram, com isso, grande superioridade. Se o futebol fosse dirigido tão
democraticamente como o governo ateniense, os estudantes que jogam para as
suas universidades seriam escolhidos por sorteio. Mas, em matéria de governo, é
difícil saber-se quem é mais capaz, e muito pouco provável que um político
empregue suas faculdades mais no interesse público do que no próprio, ou no de
sua classe, partido ou credo.
O ponto seguinte é que a definição de Platão da “justiça” pressupõe um
Estado organizado segundo as idéias tradicionais, ou um Estado que realize, como
o que ele próprio concebeu, de modo geral, um ideal ético. A justiça, dizem-nos,
consiste em cada homem dedicar-se a seu trabalho. Mas, qual é esse trabalho?
Num Estado que, como o antigo Egito ou o reino dos Incas, permanece invariável
geração após geração, o trabalho do filho é o mesmo que o do pai, e não surge
problema algum. Mas no Estado de Platão ninguém tem um pai legal. Seu
trabalho, portanto, tem de ser decidido ou pelos seus próprios gostos ou pelo juízo
do Estado quanto às suas aptidões. Isto é o que Platão, evidentemente, desejaria.
Mas algumas espécies de trabalhe, embora altamente especializadas, podem ser
consideradas perniciosas; Platão pensa assim da poesia, e eu da ação de
Napoleão. Os propósitos do governo, portanto, são essenciais para determinar-se
qual o trabalho de cada homem. Embora todos os governantes devam ser
filósofos, não deverá haver inovações: um filósofo terá de ser, durante todo o
tempo, um homem que compreenda e concorde com Platão.
Quando perguntamos: que conseguirá a República de Platão? A resposta é
bastante insípida. Conseguirá êxito em guerras contra povos de populações mais
ou menos iguais, e assegurará o sustento de um pequeno número de pessoas. É
quase certo que não produza arte nem ciência, devido à sua rigidez; a este
respeito, como em outros, será como Esparta. Apesar de todas as belas palavras,
a habilidade na guerra e uma alimentação suficiente será tudo o que conseguirá.
Platão conheceu épocas de fome e de derrota em Atenas; talvez,
subconscientemente, achasse que o melhor que um homem de Estado poderia
fazer seria evitar esses males.
Uma Utopia, feita a sério, tem de encarnar, evidentemente, os ideais de seu
criador. Consideremos, por um momento, o que podemos designar como
“ideais”. Em primeiro lugar, são eles desejados por aqueles que neles acreditam;
mas não são desejados exatamente da mesma maneira que se deseja o conforto,
como, por exemplo, o alimento e a habitação. A diferença entre um “ideal” e um
objeto comum de desejo consiste em que o primeiro é impessoal, é algo que não
tem (ao menos ostensivamente) relação especial com o ego daquele que sente tal
desejo, podendo, portanto, teoricamente, ser desejado por todos. Assim, pois,
podemos definir o “ideal” não como uma coisa que se deseja egocêntricamente,
mas como algo que a pessoa que sente quer também que todos experimentem.
Posso desejar que todos tenham o suficiente para comer, que todos tenham amor
ao próximo, etc., e, desejando tal coisa, também desejaria que os outros a
desejassem. Deste modo, posso construir algo que se pareça a uma ética
impessoal, embora, na realidade, isso se baseie em meus próprios desejos — pois
o desejo permanece meu, mesmo quando o que é desejado não tenha referência
a mim. Alguém pode desejar, por exemplo, que todos compreendam a ciência;
uma outra pessoa, que todos apreciem a arte: é a diferença pessoal entre ambos
que produz essa diferença em seus desejos.
O elemento pessoal torna-se aparente no momento em que a controvérsia
entra em jogo. Suponhamos que alguém diga: “Você está errado, ao desejar que
toda a gente seja feliz; você devia desejar a felicidade dos alemães e a
infelicidade de todos os demais”. Aqui o “devia” pode ser interpretado como
querendo significar aquilo que a pessoa que fala desejaria que eu desejasse. Eu
poderia responder que, não sendo alemão, é psicologicamente impossível que eu
deseje a infelicidade de todos os que não sejam alemães. Mas esta resposta
parece inadequada.
Pode haver um conflito de ideais puramente impessoais, o herói de Nietzsche
difere de um santo cristão; não obstante, ambos são admirados de maneira
impessoal, um pelos nietzschianos, o outro pelos cristãos. De que maneira
podemos decidir entre os dois, exceto por meio de nossos desejos? No entanto, se
não houver nada mais, um desacordo ético só poderá ser decidido por questões
emotivas, ou pela força — ou, em último caso, pela guerra. Em questões de fato,
podemos apelar para a ciência e para os métodos científicos de observação; mas,
em questões últimas de ética, parece não haver nada análogo. No entanto, se este
for realmente o caso, as discussões éticas se resolvem em lutas pelo poder —
incluindo o poder da propaganda.
Este ponto de vista é exposto cruamente, no primeiro livro da República, por
Trasímaco, que, como quase todos os personagens dos diálogos de Platão, era
uma pessoa verdadeira. Era um sofista da Calcedônia e famoso professor de
retórica; apareceu na primeira comédia de Aristófanes, 427 A. C. Depois que
Sócrates, durante algum tempo, já vinha discutindo, amigavelmente, a justiça,
com um velho chamado Cefalo e com os irmãos mais velhos de Platão, Glauco e
Adimanto, Trasímaco, que estivera a escutar com crescente impaciência,
irrompe protestando com veemência contra essa tolice tão pueril. Proclama,
enfaticamente, que “a justiça nada mais é do que o interesse do mais forte”.
Esse ponto de vista é refutado, com sutilezas, por Sócrates, não sendo jamais
enfrentado diretamente. Surgem daí as questões fundamentais da ética e da
política, isto é: existe uma norma para o “bem” e o “mal”, exceto a que deseja o
homem que emprega essas palavras? Se não existe, muitas das conclusões a que
chegou Trasímaco parecem iniludíveis. Mas, como diremos que existe tal
norma?
Quanto a isto, a religião tem, à primeira vista, uma resposta simples. Deus
determina o que é bom e o que é mau; o homem que está em harmonia com a
vontade de Deus, é um bom homem. Esta resposta, todavia, não é inteiramente
ortodoxa. Os teólogos dizem que Deus é bom, e isto implica na existência de uma
norma independente da vontade de Deus. Somos, pois, obrigados a encarar de
frente a questão; há uma verdade ou falsidade objetivas numa afirmação como,
por exemplo, “o prazer é bom”, no mesmo sentido em que há na afirmação de
que “a neve é branca”?
Seria necessária uma longa discussão para se responder a essa pergunta. Há
quem ache que podemos, por fins práticos, evitar a questão fundamental e dizer:
“Não sei o que se entende por “verdade objetiva”, mas tenho por “verdadeira”
uma afirmação se todos, ou virtualmente todos, que a investigaram, concordem
em confirmá-la”. Nesse sentido, é verdade que a neve é branca, que César foi
assassinado, que a água é composta de hidrogênio e oxigênio, e assim por diante.
Deparamos, então, com a questão: existem afirmações aceitas analogamente na
ética? Se existem, podem constituir a base tanto da conduta privada, como de
uma teoria da política. Se não existem, vemo-nos levados, na prática, qualquer
que possa ser a verdade filosófica, a uma luta pela força ou propaganda, ou por
ambas, sempre que houver uma diferença ética irreconciliável entre grupos
poderosos.
Para Platão, esta questão não existe realmente. Embora seu senso dramático o
leve a anotar forçosamente a posição de Trasímaco, nada percebe de sua força,
permitindo a si mesmo agir e argumentar contra ela de maneira bastante injusta.
Platão está convencido de que existe “o bem”, e que sua natureza pode ser
averiguada; quando as pessoas não estão de acordo a respeito, uma delas, pelo
menos, está cometendo um erro intelectual, tanto como se tratasse de um
desacordo científico sobre uma questão de fato.
A diferença entre Platão e Trasímaco é muito importante, mas, para o
historiador da filosofia, basta observá-la, não decidi-la. Platão crê que pode
provar que a sua República ideal é boa; um democrata que aceita a objetividade
da ética poderá julgar-se capaz de provar que a República é má; mas quem quer
que concorde com Trasímaco dirá: “Não se trata de provar ou deixar de provar;
a questão consiste em saber se gosta da espécie de Estado que Platão deseja. Se
ela lhe agrada, melhor para você; se não, pior”. Se muitos gostam e muitos não
gostam, a decisão não pode ser feita por meio da razão, mas somente pela força,
verdadeira ou encoberta”. Este é um problema filosófico que está ainda para ser
resolvido; de ambos os lados, há pessoas que impõem respeito. Mas, durante
muito tempo, a opinião de Platão permaneceu quase indiscutível.
Conviria observar-se, ademais, que a opinião que substitui o consenso comum
por uma norma objetiva acarreta certas consequências que poucos aceitariam.
Que dizer-se de inovadores científicos como Galileu, que defendem uma opinião
de que poucos compartilham, mas que, finalmente, conseguem o apoio de quase
toda a gente? Conseguem fazê-lo por meio de argumentos, e não por apelos
emotivos, propaganda do Estado ou emprego da força. Isto implica, pois, num
critério diferente do da opinião geral. Na ética, existe algo análogo no caso dos
grandes mestres religiosos. Cristo ensinou que não há mal algum em se colher
espigas de milho no sábado, mas que é mau odiarmos nossos inimigos. Tais
inovações éticas implicam, evidentemente, uma norma diferente da geral, mas
tal norma, qualquer que ela seja, não é um fato objetivo, como numa questão
científica. Este é um problema difícil, e não me confesso capaz de resolvê-lo. For
ora, contentemo-nos em anotar a questão.
A República de Platão, ao contrário das Utopias modernas, talvez se destinasse
a ser verdadeiramente fundada. Isso não é coisa tão fantástica ou impossível
como talvez possa parecer-nos. Muitas de suas cláusulas, inclusive algumas que
teríamos achado inteiramente impraticáveis, foram postas em prática em
Esparta. O governo dos filósofos fora tentado por Pitágoras e, na época de Platão,
Arquitas, o pitagórico, tinha influência política em Taras (a moderna Tarento)
quando Platão visitou a Sicília e o sul da Itália. Era prática comum que as cidades
empregassem um sábio para elaborar suas leis; Solon fez isso para Atenas, e
Protágoras para Túrion. As colônias, naqueles tempos, eram completamente
livres do controle de suas cidades-mães, e teria sido inteiramente factível a um
grupo de platônicos estabelecer a República nas costas da Espanha ou da Gália.
Infelizmente, a sorte levou Platão a Siracusa, grande cidade comercial,
empenhada em guerras tremendas com Cartago. Numa tal atmosfera, nenhum
filósofo poderia ter conseguido muito. Na geração seguinte, o florescimento da
Macedônia tornou antiquados todos os pequenos Estados, demonstrando a
inutilidade de todos os experimentos políticos em miniatura.
CAPÍTULO XV
A Teoria das idéias
A metade da República, a partir da última parte do Livro V até o final do Livro
VII, ocupa-se principalmente de questões de filosofia pura, em contraposição à
política. As seguintes questões são introduzidas mediante uma afirmação um
tanto abrupta:
“Até que os filósofos sejam reis, ou os reis e príncipes deste mundo tenham o
espírito e o poder filosóficos, e a grandeza política se una estreitamente à
sabedoria, e até que as naturezas mais vulgares que buscam a exclusão de ambas
as coisas sejam compelidas a permanecer de lado, as cidades jamais terão
descanso destes males — e nem mesmo a raça humana, segundo creio — e
somente então este nosso Estado poderá viver e gozar da luz do dia.”
Se isto é certo, precisamos decidir o que é que constitui um filósofo, bem
como o que entendemos por “filosofia”. A discussão sobre este tema é a parte
mais famosa da República, e a que talvez haja exercido maior influência. Possui,
em certas passagens, extraordinária beleza literária; o leitor pode não estar de
acordo (como eu) com o que é dito, mas não pode deixar de sentir-se comovido.
A filosofia de Platão baseia-se na distinção entre a realidade e a aparência,
exposta pela primeira vez por Parmênides; durante toda a discussão de que agora
vamos tratar, surgem constantemente frases e argumentos de Parmênides.
Há, porém, um tom religioso acerca da realidade, o qual é mais pitagórico
que parmenidiano; há, também, muita matemática e música, derivadas
diretamente dos discípulos de Pitágoras. Essa combinação da lógica de
Parmênides com o ultramundo de Pitágoras e dos órficos, produziu uma doutrina
satisfatória, segundo se julgava, tanto para o intelecto como para as emoções
religiosas; o resultado foi uma síntese poderosa que, com várias modificações,
exerceu influência sobre a maioria dos grandes filósofos, até Hegel, inclusive.
Mas não foram somente os filósofos que sentiram a influência de Platão. Por que
fizeram os puritanos objeção à música, à pintura e ao esplêndido ritual da Igreja
Católica? A resposta se encontra no Livro X da República. Por que são as
crianças das escolas obrigadas a aprender aritmética? As razões são dadas no
livro sétimo.
Os parágrafos seguintes resumem a teoria das idéias de Platão.
Nosso problema é: Que é um filósofo? A primeira resposta está de acordo
com a etimologia: um filósofo é um amante da sabedoria. Mas isto não é a
mesma coisa que amante do conhecimento, no sentido que se poderia empregar
tratando-se de uma pessoa inquisitiva. A curiosidade vulgar não faz um filósofo. A
definição é, pois, corrigida: o filósofo é um homem que ama a “visão da
verdade”. Mas, qual é essa visão?
Suponhamos que uma pessoa ame as coisas belas, que faça questão de estar
presente à estréia de novos dramas, de ver quadros novos, de ouvir música nova.
Tal homem não é filósofo, porque ama apenas coisas belas, enquanto que o
filósofo ama a beleza em si. O que somente ama as coisas belas está sonhando,
enquanto que o homem que conhece a beleza absoluta está bem desperto. O
primeiro tem somente uma opinião; o segundo, conhecimento.
Qual a diferença entre “conhecimento” e “opinião”? O que possui
conhecimento tem conhecimento de alguma coisa, isto é, de algo que existe, pois,
o inexistente não é nada. (Isto lembra Parmênides). Assim, o conhecimento é
infalível, já que é logicamente impossível que se equivoque. Mas a opinião pode
estar errada. Como é isso possível? Não se pode opinar a respeito do que não
existe, pois isso é impossível; nem tampouco a respeito do que existe, pois isso
seria conhecimento. Portanto, a opinião tem de ser tanto do que é, como do que
não é.
Mas, de que modo é isto possível? A resposta é que as coisas particulares
contem sempre caracteres opostos: o que é belo é, também, sob certo aspecto,
leio; o que é justo é, sob certo aspecto, injusto; e assim por diante. Todos os
determinados objetos sensíveis, afirma Platão, possuem esse caráter
contraditório; são, pois, o intermédio entre o ser e o não ser, e apropriados como
objetos de opinião, mas não de conhecimento. “Mas os que veem o absoluto, o
eterno e imutável pode dizer-se que conhecem, e não que tem apenas uma
opinião”.
Chegamos, assim, à conclusão de que a opinião se forma do mundo
apresentado aos sentidos, enquanto que o conhecimento é de um mundo eterno
supersensível; a opinião, por exemplo, trata de coisas belas determinadas; o
conhecimento ocupa-se da beleza em si.
O único argumento apresentado é que constitui uma contradição supor-se que
uma coisa possa ser, ao mesmo tempo, bela e não bela, ou, simultaneamente,
justa e injusta, e que, não obstante, determinadas coisas parecem reunir
caracteres assim tão contraditórios. Portanto, essas coisas não são reais.
Pleráclito havia dito: “Entramos e não entramos no mesmo rio; somos e não
somos”. Combinando isso com Parmênides, chegamos ao resultado de Platão.
Há, porém, na doutrina de Platão, algo muito importante que não provém de
seus predecessores, isto é, a teoria das idéias e das formas. Essa teoria é em parte
lógica, em parte metafísica. A parte lógica diz respeito ao significado das
palavras em geral. Existem muitos animais dos quais podemos verdadeiramente
dizer: “este é um gato”. Que queremos dizer com a palavra “gato”?
Evidentemente, algo diferente de cada gato em particular. Um animal é um gato,
ao que parece, porque participa da natureza geral comum a todos os gatos. A
linguagem não pode funcionar sem palavras gerais como “gato”, e tais palavras,
evidentemente, não carecem de sentido. Mas se a palavra “gato” significa
alguma coisa, essa coisa não é este ou aquele gato, mas certa espécie de gato
universal. Isso não nasce quando nasce um determinado gato, e não morre
(quando ele morre. Não tem, com efeito, posição no espaço ou no tempo; é
“eterno”. Esta a parte lógica da doutrina. Os argumentos em seu favor, sejam
realmente válidos ou não, são fortes, e inteiramente independentes da parte
metafísica da doutrina.
Segundo a parte metafísica, a palavra “gato” significa um certo gato ideal, “o
gato”, criado por Deus, e único. Os gatos determinados participam da natureza
“do gato”, mas de modo mais ou menos imperfeito. É somente devido a essa
imperfeição que pode haver muitos deles. O gato é real; os gatos determinados
são somente aparentes.
No último livro da República, como preliminar a uma condenação dos
pintores, há uma exposição bastante clara da doutrina das idéias e das formas.
Aqui Platão explica que, sempre que um número de indivíduos tem um nome
comum, tem também uma “idéia” ou “forma” comum. Embora, por exemplo,
haja muitas camas, há somente uma “idéia” ou “forma” de cama. Assim como
o reflexo de uma cama num espelho é apenas aparente, e não real, assim,
também, as várias camas particulares são irreais, sendo somente cópias da
“idéia”, que é a única cama verdadeira, feita por Deus. Desta única cama, feita
por Deus, pode haver conhecimento, mas, como respeito às muitas camas feitas
por carpinteiros, pode haver apenas opinião. O filósofo, como tal, somente se
interessa pela única cama ideal, e não pelas muitas camas encontradas no mundo
sensível. Sentirá certa indiferença diante de assuntos mundanos comuns: “Como
pode ele, que tem um espírito magnífico, e é o espectador de todo o tempo e de
toda a existência, interessar-se muito pela vida humana?” O jovem capaz de
tornar-se filósofo se distinguirá, entre seus companheiros, como pessoa justa e
amável, ávida de aprender, dotada de boa memória e de um espírito
naturalmente harmonioso. Tal pessoa deve ser educada para ser filósofo e
guardião.
Nesta altura, Adimanto interrompe a discussão com um protesto. Quando
procura arguir com Sócrates, diz ele, sente-se um pouco indeciso a cada passo,
até que, no fim, todas as suas idéias anteriores se veem viradas de pernas para o
ar, mas, diga Sócrates o que quiser, o caso é que, como toda a gente pode ver,
aqueles que se dedicam à filosofia se transformam em monstros estranhos, para
não se dizer tratantes. Mesmo os melhores dentre eles, tornam-se inúteis devido à
filosofia.
Sócrates admite que isto é certo no mundo tal qual é, mas afirma que a culpa
disso cabe aos outros indivíduos, e não aos filósofos; numa comunidade
inteligente os filósofos não pareceriam tolos; somente entre os tolos é que os
sábios são considerados destituídos de sabedoria.
Que faremos diante de tal dilema? Haveria duas maneiras de inaugurar a
nossa República: por filósofos que se convertessem em governantes, ou por
governantes que se tornassem filósofos. A primeira maneira se afigura
impossível como começo, pois numa cidade não filosófica os filósofos são
impopulares. Mas um príncipe nato poderia ser filósofo, e “um é suficiente; que
haja um homem ao qual uma cidade inteira obedeça, e poderia ele realizar a
política ideal em que o mundo crê tão pouco”. Platão esperava haver encontrado
tal príncipe no jovem Dionísio, tirano de Siracusa, mas este o decepcionou.
Nos livros VI e VII da República, Platão ocupa-se de duas questões: primeiro,
que é filosofia? Segundo, como um homem ou uma mulher jovem, de
temperamento adequado, podem ser educados para tornar-se filósofos?
A filosofia, para Platão, é uma espécie de visão, a “visão da verdade”. Não é
puramente intelectual, não é meramente sabedoria, mas amor da sabedoria. O
“amor intelectual de Deus”, de Spinoza, contém muito dessa mesma união íntima
de idéias e sentimentos. Todo aquele que já realizou qualquer espécie de trabalho
criador experimentou, sem maior ou menor grau, o estado de espírito no qual,
depois de longo labor, a verdade ou a beleza aparecem, ou parecem aparecer,
em súbita glória; pode ser uma coisa insignificante ou algo a respeito do universo.
A experiência é, no momento, bastante convincente; a dúvida poderá surgir mais
tarde, mas, no momento, há absoluta certeza. Se isso ocorre tanto com os outros
como comigo, não o posso dizer. De minha parte, verifiquei que, quando desejo
escrever um livro sobre certo tema, preciso primeiro saturar-me de pormenores,
até que todas as partes isoladas do assunto me sejam familiares; depois, um dia
qualquer, se tenho sorte, percebo o conjunto, com todas as partes devidamente
articuladas. Depois disso, tenho apenas de escrever o que vi. Ocorre o mesmo
que se passa com alguém que caminhe por uma montanha em meio da névoa,
até que todos os caminhos, cumes e vales lhe são, cada qual, familiares, e depois,
a distancias, percebe toda a montanha em conjunto, nítida e brilhante ao sol.
Esta experiência, creio, é necessária a um bom trabalho criador, mas não é
suficiente; com efeito, a certeza subjetiva que produz pode conduzir a erros
fatais. William James descreve um homem que experimentou o gás hilariante;
sempre que se achava sob a sua influência, sabia o segredo do universo, mas,
quando voltava a si, já o havia esquecido. Por fim, com imenso esforço,
escreveu o segredo antes que a visão se dissipasse. Quando se refez
completamente, correu a ver o que havia escrito. Era isto: “Prevalece sobre tudo
um cheiro de petróleo”. O que se nos apresenta como súbita visão pode conduzirnos a erro; tem, pois, de ser verificado em estado de perfeita sobriedade, quando
a embriaguez divina haja passado.
A visão de Platão, na qual ele confiou inteiramente na ocasião em que
escreveu a República, necessita da ajuda de uma parábola, a parábola da
caverna, a fim de explicar ao leitor a sua natureza. Mas é conduzida por várias
discussões preliminares, destinadas a fazer com que o leitor veja a necessidade
do mundo das idéias.
Primeiro, o mundo do intelecto distingue-se do mundo dos sentidos; depois, o
intelecto e a percepção sensorial são, cada qual, divididos em duas classes.
Quanto a estas duas espécies de percepção sensorial, não há necessidade de que
nos ocupemos delas aqui; as duas espécies de intelecto são chamadas,
respectivamente, “razão” e “entendimento”. Destas, a razão é de categoria mais
elevada: ocupa-se das idéias puras, e o seu método é o dialético. O entendimento
pertence à espécie de intelecto que se emprega nas matemáticas; é inferior à
razão, porquanto usa hipóteses que não pode comprovar. Dizemos, por exemplo,
na geometria: “Suponhamos que ABC seja um triângulo retilíneo”. É contrário às
regras perguntar se ABC é realmente um triângulo retilíneo, embora, se tratar de
uma figura que foi por nós traçada, possamos estar certos de que não o é, porque
somos incapazes de traçar linhas absolutamente retas. Assim, as matemáticas
não podem jamais nos dizer o que é, mas unicamente o que seria se … Não há
linhas retas no mundo sensível; portanto, para que as matemáticas contenham
mais do que verdades hipotéticas, devemos encontrar a evidência de linhas retas
supersensíveis num mundo supersensível. Isto não pode ser feito pelo
entendimento, mas, segundo Platão pode ser feito pela razão, que mostra que
existe um triângulo retilíneo no céu, do qual as proposições geométricas podem
ser afirmadas categoricamente, e não hipoteticamente.
Há, neste ponto, uma dificuldade que não passou despercebida a Platão, e que
se tornou evidente para os filósofos idealistas modernos. Vimos que Deus fez uma
única cama, e seria natural supor-se que fez uma única linha reta. Mas se existe
um triângulo celeste, tem de ter criado pelo menos três linhas retas. Os objetos da
geometria, embora ideais, devem existir em vários exemplos; necessitamos de
dois círculos interseccionais, e assim por diante. Isso sugere que a geometria,
segundo a teoria de Platão, não seria capaz da verdade última, mas que devia ser
condenada como parte do estudo da aparência. Deixaremos, pois, de lado este
ponto, a respeito do qual a resposta de Platão é um tanto obscura.
Platão procura explicar a diferença entre a clara visão intelectual e a visão
confusa da percepção dos sentidos por meio da analogia do sentido da vista. A
vista, diz ele, difere dos outros sentidos, já que exige não apenas o olho e o objeto,
mas, também, a luz. Vemos claramente os objetos que são iluminados pelo sol;
ao crepúsculo, vemos confusamente e, na escuridão completa, nada. Ora, o
mundo das idéias é o que vemos quando o objeto é iluminado pelo sol, enquanto
que o mundo das coisas passageiras é um confuso mundo crepuscular. O olho é
comparado à alma, e o sol, como fonte de luz, à verdade ou à bondade.
“A alma é como os olhos: quando pousa sobre o que a verdade ou o ser
iluminam, a alma percebe e compreende, e irradia inteligência; mas, quando se
volta para o crepúsculo do vir a ser e do perecer, então só possui opinião, e anda
a piscar de um lado para outro, sendo ora de uma opinião, ora de outra,
parecendo não ter inteligência … Ora, o que confere verdade ao conhecido e ao
poder de conhecer é o que gostaria que chamásseis a idéia do bem, e isto
reconhecereis por certo como a causa da ciência”.
Isso conduz à famosa metáfora da caverna ou cova, segundo a qual aqueles
que são destituídos de filosofia podem ser comparados a prisioneiros numa
caverna, que só podem olhar numa direção, pois que estão agrilhoados, tendo
atrás um fogo e na frente uma parede. Entre eles e a parede não existe nada;
veem apenas as suas próprias sombras e a dos objetos que estão atrás deles,
projetados na parede pela luz do fogo. Inevitavelmente, consideram tais sombras
como reais, e não tem noção dos objetos a que pertencem. Por fim, alguém
consegue fugir da caverna para a luz do sol; pela primeira vez, vê as coisas reais,
percebendo que até então fora enganado por sombras. Se é um filósofo apto a
tornar-se guardião, considera seu dever para com aqueles que foram seus
companheiros de prisão descer de novo à caverna, instruí-los quanto à verdade e
ensinar-lhes o caminho para cima. Mas terá dificuldade em persuadi-los, porque,
vindo da luz do sol, verá as sombras menos claramente do que eles, e lhes
parecerá mais tolo do que antes da fuga.
“E agora, disse eu, permiti que vos mostre, numa imagem, até que ponto
nossa natureza é iluminada ou não. Atendei! As criaturas humanas vivem numa
caverna subterrânea que tem uma abertura para a luz, que se estende por todo o
interior; aí estiveram desde a infância, com as pernas e os pescoços agrilhoados,
de modo que não podem mover – se, podendo apenas olhar para diante, pois que
as correntes lhes impedem de voltar a cabeça. Em cima e atrás deles, um fogo
arde a distância e, entre o fogo e os prisioneiros, existe um caminho escarpado, e
vereis, se olhardes, um muro baixo ao longo do caminho, como a tela que os
manipuladores de marionetes têm diante de si, e sobre a qual exibem seus
bonecos.
“Eu vejo.
“E vedes, disse-lhes, homens que passam junto à parede, carregando toda a
espécie de vasos, estatuetas e figuras de animais feitos de madeira, de pedra e de
vários materiais, e que aparecem do outro lado dela;
“Vós me mostrastes uma estranha imagem, e eles são estranhos prisioneiros.
“Como vós próprios, respondi-lhes; e veem somente suas próprias sombras ou
as sombras dos outros, que o fogo projeta na parede oposta da caverna”.
O papel do bem, na filosofia de Platão, é bastante peculiar. A ciência e a
verdade, diz ele, são semelhantes ao bem, mas o bem ocupa um lugar mais
elevado. “O bem não é essência, mas excede em muito a essência em dignidade
e poder”. A dialética conduz ao fim do mundo intelectual na percepção do bem
absoluto. É por meio do bem que a dialética é capaz de renunciar às hipóteses do
matemático. A suposição subentendida é a de que a realidade, ao contrário da
aparência, a completa e perfeitamente boa. Perceber o bom, portanto, é
perceber a realidade. Através de toda a filosofia de Platão, há a mesma fusão de
intelecto e misticismo, como no pitagorismo, mas, nessa culminação final, o
misticismo tem, claramente, a última palavra.
A doutrina das idéias de Platão contém muitos erros evidentes. Mas, apesar
disso, assinala um progresso muito importante na filosofia, pois é a primeira
teoria a ressaltar o problema dos universais, o qual, de várias maneiras,
permaneceu até aos nossos dias. Todos os começos costumam ser imperfeitos,
mas não se deve desprezar, por isso, sua originalidade. Algo permanece do que
Platão tinha a dizer, mesmo depois de feitas todas as correções necessárias. O
mínimo absoluto que permanece, mesmo na opinião dos mais hostis a Platão, é
que não podemos expressar-nos numa linguagem composta inteiramente de
nomes próprios, mas precisamos ter também palavras gerais, como “homem”,
“cão”, “gato”, ou, se não estas, ao menos palavras de relações, tais como
“semelhante”, “antes”, e assim por diante. Tais palavras não são ruídos sem
significação, e é difícil de ver-se de que maneira poderiam ter sentido se o
mundo consistisse inteiramente de coisas particulares, como as que são
designadas pelos seus nomes próprios. Pode haver muitas maneiras de contornarse este argumento, mas, de qualquer modo, trata-se de um caso prima facie a
favor dos nomes universais. Provisoriamente, aceitá-lo-ei como sendo, até certo
ponto, válido. Mas, concedido isto, o resto do que Platão diz de modo algum
decorre do que foi dito antes.
Em primeiro lugar, Platão não compreende a sintaxe filosófica. Posso dizer:
“Sócrates é humano”, “Platão é humano”, e assim por diante. Em todas essas
afirmações, pode-se supor que a palavra “humano” tenha exatamente o mesmo
significado. Mas, signifique o que quer que seja, significa algo que não é da
mesma espécie de Sócrates, Platão e os demais indivíduos que compõem a raça
humana. “Humano” é um adjetivo; seria estúpido dizer “o humano é humano”.
Platão comete um erro análogo. Acha que a beleza é bela; acha que o “homem”
universal é o nome de um homem-tipo criado por Deus, do qual os homens
verdadeiros são cópias imperfeitas e um tanto irreais. Deixa internamente de
perceber quão grande é o abismo entre o universal e o particular; suas “idéias”
não passam, na realidade, de outros particulares, ética e esteticamente superiores
às do tipo corrente. Ele próprio, mais tarde, começa a ver essa dificuldade, como
aparece no Parmênides, que contém um dos casos mais notáveis da história da
autocrítica de um filósofo.
Segundo se supõe, o Parmênides foi relatado por Antifon (meio irmão de
Platão), que é o único que se lembra da conversação, mas que então só se
interessa por cavalos. Encontram-no carregando uma brida, e é com dificuldade
que o persuadem a narrar a famosa discussão entre Parmênides, Zeno e
Sócrates. Isso, segundo nos contam, ocorreu quando Parmênides era velho
(sessenta e cinco anos, aproximadamente), Zeno tinha meia idade (cerca de
quarenta) e Sócrates era jovem. Sócrates expõe a teoria das idéias. Está
convencido de que há idéias de semelhança, justiça, beleza e bondade; não está
certo de que haja uma idéia do homem; rejeita, indignado, a sugestão de que
poderia haver idéias de coisas como cabelo, lama e sujeira — embora,
acrescenta ele, haja ocasiões em que julga que não existe nada sem uma idéia.
Afasta-se desta opinião porque receia cair num poço sem fundo de tolices.
“Sim, Sócrates — disse Parmênides — isso é porque ainda és jovem; chegará
o tempo, se não estou equivocado, em que a filosofia deitará firmemente as
garras sobre ti, e então não desprezarás nem mesmo as coisas mais humildes”.
Sócrates concorda em que, na sua opinião, “há certas idéias de que participam
todas as outras coisas, e das quais derivam seus nomes; que as similares, por
exemplo, se tornam similares, porque participam da similaridade; e que as coisas
grandes se tornam grandes porque participam da grandeza; e que as coisas justas
e belas se tomam justas e belas porque participam da justiça e da beleza”.
Parmênides põe-se a criar dificuldades. (a) Participa o indivíduo de toda a
idéia, ou somente de uma parte? Para ambas as opiniões há objeções. No
primeiro caso, uma coisa está em muitos lugares ao mesmo tempo; no segundo,
a idéia é divisível, e uma coisa que tem uma parte de pequenez será menor do
que a pequenez absoluta, o que é absurdo. (b) Quando um indivíduo participa de
uma idéia, o indivíduo e a idéia são similares; portanto, terá de haver uma outra
idéia, abrangendo tanto os particulares como a idéia original. E terá de haver
ainda uma outra, abrangendo os particulares e as duas idéias, e assim por diante
ad infinitum. Assim, cada idéia, ao invés de ser uma, se transforma numa série
infinita de idéias. (Isto é o mesmo que o argumento de Aristóteles sobre o
“terceiro homem”). (c) Sócrates sugere que talvez as idéias sejam somente
pensamentos, mas Parmênides assinala que tem de ser de alguma coisa. ( d ) As
idéias não podem parecer-se aos nomes particulares que delas participam, pelas
razões dadas em ( b ) . ( e ) As idéias, se é que as há, devem ser-nos
desconhecidas, pois nosso pensamento não é absoluto. (f) Se o conhecimento de
Deus é absoluto, Ele não nos conhecerá e, portanto, não pode governar-nos.
Não obstante, a teoria das idéias não é inteiramente abandonada. Sem idéias,
diz Sócrates, não haverá nada sobre que o espírito possa apoiar-se e, portanto, o
raciocínio será destruído. Parmênides diz-lhe que suas dúvidas provêm da falta
de educação prévia, mas não se chega a nenhuma conclusão definitiva.
Não creio que as objeções lógicas de Platão quanto à realidade suportem um
exame. Diz ele, por exemplo, que qualquer coisa que seja bela é, também, sob
certos aspectos, feia; o duplo é também metade, etc. Mas quando dizemos que
uma obra de arte é, sob certos aspectos, bela, e feia sob outros, a análise sempre
nos permitirá (ao menos teoricamente) dizer: “esta parte ou aspecto é belo,
enquanto que aquela parte ou aspecto é feio”. Quanto a “duplo” e “metade”, há
termos relativos; não existe contradição no fato de 2 ser o dobro de 1 e a metade
de 4. Platão está sempre se metendo em dificuldades por não compreender os
termos relativos. Acha ele que, se A é maior do que B e menor do que C, então A
é, ao mesmo tempo, grande e pequeno, o que lhe parece uma contradição. Tais
confusões se encontram entre as doenças infantis da filosofia.
A distinção entre realidade e aparência não pode teias consequências que lhe
são atribuídas por Parmênides, Platão e Hegel. Se a aparência realmente
aparece, não é nada e, portanto, faz parte da realidade; este é um argumento
correto do tipo parmenidiano. Se a aparência realmente não aparece, por que
quebramos a cabeça com isso? Mas talvez alguém diga: “A aparência não
aparece realmente, mas parece que aparece”. Isto de nada valerá, pois
perguntaremos de novo: “Realmente parece aparecer, ou só aparentemente
parece aparecer?” Mais cedo ou mais tarde, mesmo se a aparência parece
aparecer, devemos chegar a algo que realmente apareça, e que é, portanto, parte
da realidade. Platão não pensaria em negar que parece haver muitas camas,
embora haja apenas uma cama real, isto é, a que foi feita por Deus. Mas parece
que não enfrentou o que há de implícito no fato de que há muitas aparências, e
que esta pluralidade faz parte da realidade. Qualquer tentativa no sentido de
dividir o mundo em partes, das quais uma seja mais real do que outra, está
condenada ao fracasso.
Ligada a esta, há uma outra curiosa opinião de Platão — a de que o
conhecimento e a opinião devem referir-se a diferentes questões. Nós
deveríamos dizer: Se acho que vai nevar, isso constitui uma opinião; se, depois,
vejo que está nevando, isso é conhecimento; mas o tema é o mesmo em ambos
os casos. Platão, porém, acha que aquilo que pode ser, em qualquer ocasião, uma
questão de opinião, não pode ser jamais uma questão de conhecimento. O
conhecimento é certo e infalível; a opinião não é meramente falível, mas,
necessariamente, errônea, já que supõe a realidade de algo que é somente
aparência. Tudo isso repete o que já fora dito por Parmênides.
Há um aspecto em que a metafísica de Platão é aparentemente diferente da
de Parmênides. Para Parmênides, há somente o Único; para Platão, existem
muitas idéias. Não há apenas beleza, verdade e bondade, mas, como vimos,
existe a cama celeste criada por Deus; existem um homem, um cão, um gato
eternos, etc., abrangendo toda uma arca de Noé. Mas parece que tudo isso não
foi bem exposto na República. Uma idéia platônica de forma não é um
pensamento, embora possa ser objeto de um pensamento. É difícil de ver-se
como Deus possa tê-la criado, já que sua essência é intemporal, e não poderia
haver criado uma cama, a não ser que seu pensamento, quando resolveu fazê-lo,
tivesse tido por objeto a mesma cama platônica por Ele criada. O que não está no
tempo não deve ter sido criado. Deparamos, aqui, com uma dificuldade que
preocupou muitos teólogos filósofos. Só o mundo contingente, o mundo no espaço
e no tempo, pode ter sido criado; mas este é o mundo cotidiano, que foi
condenado não somente como ilusório, mas, também, mau. Portanto o Criador,
ao que parece, criou somente a ilusão e o mal. Alguns agnósticos foram tão
coerentes com suas doutrinas que adotaram esta opinião, mas, em Platão, a
dificuldade se encontra ainda sob a superfície, e parece, a julgar-se pela
República, que ele jamais a percebeu.
O filósofo destinado a guardião devia, segundo Platão, voltar à caverna, e
viver entre os que jamais haviam visto o sol da verdade. Dir-se-ia que o próprio
Deus, se quisesse corrigir a Sua criação, deveria fazer o mesmo, um platônico
cristão poderia interpretar assim a Encarnação. Mas é completamente impossível
explicar por que razão Deus não estava contente com o mundo das idéias. O
filósofo vê que a caverna existe, e sua benevolência faz com que volte para ela;
mas o Criador, se criou tudo, poderia ter evitado inteiramente a caverna.
Talvez esta dificuldade surja apenas da noção cristã de um Criador, não
podendo ser atribuída a Platão, que diz que Deus não criou todas as coisas, mas
somente o que é bom. A multiplicidade do mundo sensível, segundo esta opinião,
teria uma outra fonte que Deus. E talvez as idéias não tenham sido criadas por
Deus, mas sejam parte da Sua essência. O pluralismo aparente compreendido na
multiplicidade das idéias não seria, pois, fundamental. Fundamentalmente, existe
apenas Deus ou o Bem, com respeito ao qual as idéias são adjetivas. Isto, de
qualquer modo, constitui uma possível interpretação de Platão.
Platão passa a fazer, depois, um esboço interessante sobre a educação
adequada a um jovem que deve ser guardião. Vimos que o jovem era escolhido
pela sua honorabilidade, tendo por base uma combinação de qualidades
intelectuais e morais; deve ser justo e amável, amar o estudo, possuir boa
memória e espírito harmonioso. O jovem escolhido devido a tais méritos
dedicar-se-á, dos vinte aos trinta anos, aos quatro estudos de Pitágoras:
aritmética, geometria (plana e de volume), astronomia e harmonia. Estes estudos
não deverão ser feitos com espírito utilitário, mas a fim de preparar a mente para
a visão das coisas eternas. Na astronomia, por exemplo, não deve preocupar-se
demasiado com os astros reais, mas antes com a matemática do movimento dos
corpos celestes ideais. Para o homem moderno, isso poderá parecer absurdo,
mas, embora pareça estranho, demonstrou ser um ponto de vista fecundo quanto
à astronomia empírica. É curiosa a maneira como isso ocorre, e vale a pena
examiná-la.
Os movimentos aparentes dos planetas, antes de que fossem profundamente
analisados, pareciam irregulares e complicados, e não como um Criador
pitagórico teria desejado. Todos os gregos acreditavam, evidentemente, que os
céus deviam ser o exemplo da beleza matemática, o que só ocorreria se os
planetas se movessem em círculos. Isto seria especialmente óbvio quanto ao que
dizia respeito a Platão, devido à importância que atribuía ao que é bom. Surgiu,
pois, o problema: existe uma hipótese que reduza a desordem aparente dos
movimentos planetários à ordem, beleza e simplicidade? Se existe, então a idéia
do bem nos justifica na afirmação dessa hipótese. Aristarco de Samos
estabeleceu a hipótese de que todos os planetas, inclusive a Terra, giram em torno
do Sol em círculos. Esta opinião foi rejeitada durante dois mil anos, em parte
devido a autoridade de Aristóteles, que atribui uma hipótese um tanto semelhante
“aos pitagóricos” (De Coelo, 293 a). Foi revivida por Copérnico, poderia parecer
justificar a tendência estética de Platão na astronomia. Infelizmente, porém,
Kepler descobriu que os planetas se movem em elipses, e não em círculos, com
o Sol em um foco, e não ao centro; depois, Newton descobriu que não se movem
nem mesmo em elipses exatas. E, assim, a simplicidade geométrica que Platão
procurava, e que Aristarco de Samos aparentemente encontrou, resultou, no fim,
ilusória.
Esta passagem da história científica ilustra uma máxima geral; que qualquer
hipótese, por mais absurda que seja, pode ser útil na ciência, se permitir ao
descobridor conceber as coisas de uma maneira nova; mas que, depois de servir
por acaso tal propósito, tem probabilidade de converter-se num obstáculo a novos
progressos. A crença no bem como chave da compreensão científica do mundo
foi útil, em certa época, na astronomia, mas revelou-se nociva em todas as
épocas posteriores. As tendências éticas e estéticas de Platão e, em maior grau
ainda, de Aristóteles, contribuíram muito para matar a ciência grega.
É digno de nota o fato de os platônicos modernos, com poucas exceções, não
saberem matemática, apesar da imensa importância que Platão atribuía à
aritmética e à geometria, e da enorme influência que haviam exercido em sua
filosofia. Eis aí um exemplo dos inconvenientes da especialização: ninguém devia
escrever sobre Platão, a menos que houvesse passado tanto tempo da sua
juventude a estudar o grego, que não tivesse tido tempo para dedicar-se às coisas
que Platão considerava importantes.
CAPÍTULO XVI
A Teoria de Platão Sobre a Imortalidade
O diálogo que tem o nome de Fédon é interessante sob vários aspectos. Tem
por fim descrever os últimos momentos da vida de Sócrates: sua conversação
imediatamente antes de beber a cicuta, e depois, até perder a consciência.
Apresenta o ideal de Platão do homem que é, no mais alto grau, sábio e bom, e
que não teme de modo algum a morte. Sócrates, diante da morte, tal como o
descreve Platão, foi eticamente importante tanto na antiguidade como na época
moderna. O que o relato evangélico da Paixão e da Crucificação era para os
cristãos, o Fédon o foi para os pagãos ou filósofos livres-pensadores.{61} Mas a
imperturbabilidade de Sócrates, em sua última hora, está ligada à sua fé na
imortalidade, e o Fédon é importante porque expõe não apenas a morte de um
mártir, mas, também, muitas doutrinas que se tomaram, depois, cristãs. A
teologia de São Paulo e dos Padres da Igreja deriva-se, direta ou indiretamente,
delas, e dificilmente poderiam ser compreendidas se ignorasse Platão.
Um diálogo anterior, o Crito, conta como alguns amigos e discípulos de
Sócrates elaboraram um plano pelo qual ele podia fugir para a Tessália.
Provavelmente, as autoridades atenienses teriam ficado bastante satisfeitas, se
ele houvesse escapado, podendo-se supor que o plano sugerido tinha todas as
probabilidades de ser bem-sucedido. Sócrates, porém, não quis saber de nada
disso. Respondeu que havia sido condenado por um processo legal, e que seria
errado agir de maneira ilegal para fugir ao castigo. Foi o primeiro a proclamar o
princípio que associamos ao Sermão da Montanha, de que “não devemos pagar o
mal com o mal, qualquer que tenha sido o mal que nos hajam feito”. Depois,
imagina-se empenhado num diálogo com as leis de Atenas, as quais lhe dizem
que ele lhes deve a mesma espécie de respeito que um filho deve a um pai, ou
um escravo a seu amo, mas num grau ainda maior. Dizem-lhe, ademais, que
todo cidadão ateniense tem liberdade para emigrar, se não estiver de acordo com
o Estado ateniense. As leis terminam um longo discurso com as seguintes
palavras:
“Escuta, pois, Sócrates, a nós que te criamos. Não penses, em primeiro lugar,
na vida e nos filhos e, depois, na justiça, mas primeiro na justiça, para que possas
ser justificado ante os príncipes do mundo lá de baixo. Porque nem tudo nem
ninguém que te pertença será mais feliz, mais santo ou justo nesta vida, ou mais
feliz na outra, se fizeres como Crito te pede. Agora partes inocentes, como
vítima, e não como malfeitor; uma vítima não das leis, mas dos homens. Mas se
continuares a pagar o mal com o mal, e a ofensa com a ofensa, rompendo os
pactos e acordos que fizeste conosco, e a fazer o mal àqueles a quem menos
devias fazê-lo, isto é, a ti mesmo, aos teus amigos, à tua pátria e a nós, zangar-
nos-emos contigo enquanto viveres, e as nossas irmãs, as leis do outro mundo,
receber-te-ão como inimigo, pois saberão que fizeste o que podias para destruirnos”.
Esta voz, diz Sócrates, “parece soar-me aos ouvidos como o som da flauta nos
ouvidos do místico”. Resolve, pois, que é seu dever ficar e cumprir a sentença de
morte.
No Fédon, a última hora soou; seus grilhões são removidos, e ele tem
permissão para conversar livremente com os amigos. Despede-se da esposa
lacrimosa, para que seu sofrimento não interfira com a discussão.
Começa Sócrates por afirmar que todo aquele que possui espírito filosófico
não temerá a morte, mas, ao contrário, a receberá de bom grado: contudo, não
se suicidará, por ser isso considerado ilegal. Perguntam-lhe os amigos por que se
considera o suicídio ilegal, e sua resposta, que está de acordo com as doutrinas
órficas, é quase exatamente o que um cristão poderia dizer: “Existe uma
doutrina, sussurrada em segredo, segundo a qual o homem é um prisioneiro que
não tem o direito de abrir a porta de seu cárcere e fugir; é um grande mistério,
que não compreendo muito bem”. Compara a relação do homem com Deus
com a que existe entre o gado e o seu dono. “Ficarias furioso, diz ele, se o teu boi
tomasse a liberdade de matar-se, e, assim, poderá haver razão em dizer-se que o
homem deve esperar, não tirando a sua própria vida até que Deus o chame,
como agora me está chamando”. Não se sente pesaroso diante da morte, pois
está convencido “em primeiro lugar, de que vou ao encontro de outros deuses,
mais sábios e bons (dos quais estou tão certo como se pode estar nestes assuntos)
e, em segundo lugar, ao encontro dos homens que já se foram, melhores que os
que deixo para trás. Tenho muita esperança de que ainda existe algo para os
mortos, algo muito melhor para os bons do que para os maus”.
A morte, diz Sócrates, é a separação entre o corpo e a alma. Aqui, chegamos
ao dualismo de Platão: entre a realidade e a aparência, idéias e objetos sensíveis,
razão e percepção pelos sentidos, alma e corpo. Esses pares estão ligados: o
primeiro em cada par é superior ao segundo em realidade e bondade. Uma
moral ascética era a consequência natural desse dualismo. O Cristianismo adotou
em parte esta doutrina, mas não inteiramente. Havia dois obstáculos. O primeiro
era que a criação do mundo visível, se é que Platão tinha razão, poderia parecer
uma coisa má e, portanto, o Criador não poderia ser bom. O segundo era que o
Cristianismo ortodoxo jamais poderia ser levado a condenar o casamento,
embora considerasse o celibato mais nobre. Os maniqueus eram mais coerentes
em ambos os sentidos.
A distinção entre espírito e matéria, que se tornou lugar-comum na filosofia,
na ciência e no pensamento popular, teve origem religiosa, e começou pela
diferença entre corpo e alma. Os órficos, como vimos, declaram-se filhos da
terra e do céu estrelado; da terra procede o corpo; do céu, a alma. É essa teoria
que Platão procura exprimir em linguagem filosófica.
Sócrates, em Fédon, passa a desenvolver as implicações ascéticas dessa
doutrina, mas seu ascetismo é moderado, de gentleman. Não diz que o filósofo
deva abster-se inteiramente dos prazeres vulgares, mas somente que não deve
deixar-se escravizar por eles. O filósofo não deve preocupar-se com a comida ou
a bebida, mas deve comer, sem dúvida, tanto quanto julgar necessário; não há
alusão alguma ao jejum. E conta-nos que Sócrates, embora indiferente ao vinho,
podia, em certas ocasiões, beber mais do que ninguém, sem embriagar-se. Não
era o beber que ele condenava, mas o vício da bebida. Do mesmo modo, o
filósofo não deve interessar-se pelos prazeres do amor, ou pelo luxo no vestir,
sandálias ou outros adornos de sua pessoa. Deve ocupar-se inteiramente da alma,
e não do corpo. “Gostaria, tanto quanto possível, de afastar-se do corpo e voltarse para a alma”.
É evidente que esta doutrina, popularizada, se tornasse ascética; mas na
intenção não o é. O filósofo não se absterá, com esforço, dos prazeres dos
sentidos, mas pensará em outras coisas. Tendo conhecido muitos filósofos que se
esqueciam de comer, e liam um livro quando por fim se punham a comer. Esses
homens estavam agindo como Platão diz que deviam agir: não se abstinham da
gula mediante um esforço moral, mas estavam interessados em outras coisas. Ao
que parece, o filósofo deveria casar, ter filhos e educá-los dessa mesma maneira
absorta, mas desde a emancipação das mulheres isto se tornou mais difícil. Não
estranha que Xantipa fosse uma megera.
Os filósofos — prossegue Sócrates — procuram separar a alma de sua
comunhão com o corpo, enquanto que as outras pessoas acham que a vida não
vale a pena de ser vivida, se o homem não tiver “sentido para o prazer e não
participar dos prazeres corporais”. Nesta frase, Platão parece — talvez
inadvertidamente — aprovar a opinião de certa classe de moralistas, de que os
prazeres corporais são os únicos que contam. Estes moralistas acham que o
homem que não procura os prazeres dos sentidos tem de afastar por completo o
prazer e viver virtuosamente. Isso é um erro que tem causado danos
inenarráveis. Até onde se pode aceitar a divisão entre espírito e corpo, tanto os
piores como os melhores prazeres são mentais — como, por exemplo, a inveja e
muitas formas de crueldade e ambição de poder. O Satã de Milton ergue-se
superior ao tormento físico e dedica-se ao trabalho de destruição do qual deriva
um prazer puramente mental. Muitos eclesiásticos eminentes, tendo renunciado
aos prazeres dos sentidos, e não estando em guarda contra outros, são dominados
pela ambição de poder, que os conduz, em nome da religião, a crueldades e
perseguições espantosas. Em nossa época, Hitler pertence a este tipo: os prazeres
dos sentidos são, sob todos os aspectos, pouco importantes para ele. A libertação
da tirania do corpo contribui para a grandeza, mas tanto para a grandeza no
pecado como para a grandeza na virtude.
Isto, porém, é uma digressão, da qual devemos voltar a Sócrates.
Chegamos, agora, ao aspecto intelectual da religião, que Platão (com razão ou
não) atribui a Sócrates. Diz que o corpo é um obstáculo à aquisição do
conhecimento, e que a vista e o ouvido são testemunhas inexatas: a verdadeira
existência, se é que é revelada à alma, o é pelo pensamento, e não pelos sentidos.
Consideremos, por um momento, as implicações desta doutrina. Compreende
uma rejeição completa do conhecimento empírico, incluindo toda a história e
geografia. Não podemos saber se existiu um lugar chamado Atenas, ou um
homem chamado Sócrates; sua morte e sua coragem ao morrer pertencem ao
mundo das aparências. É somente através da vista e do ouvido que sabemos algo
a tal respeito, e o filósofo verdadeiro ignora a vista e o ouvido. Que é, pois, que
lhe resta? Em primeiro lugar, a lógica e as matemáticas; mas estas são
hipotéticas, e não justificam qualquer asserção categórica a respeito do mundo
real. O passo imediato — que é o crucial — depende da idéia do bem. Tendo
chegado a esta idéia, supõe-se que o filósofo saiba que o bem é o real, podendo,
assim, inferir que o mundo das idéias é o mundo real. Filósofos posteriores
tinham um argumento com que provar a identidade do real com o bom, mas
parece que Platão o aceitou como evidente por si mesmo. Se quisermos
compreendê-lo, devemos, hipoteticamente, aceitar como justificada esta
suposição.
O pensamento é melhor, diz Sócrates, quando a mente se concentra sobre si
mesma e não se acha perturbada por sons, visões exteriores, sofrimento ou
prazer, mas abandona o corpo e aspira ao ser verdadeiro; “e, nisso, o filósofo
desonra o corpo”. Partindo deste ponto, Sócrates passa às idéias, ou formas ou
essências. Há justiça absoluta, beleza absoluta e bem absoluto, mas não são
visíveis. “E não falo só destas coisas, mas da grandeza absoluta, da saúde, da
força e da essência ou natureza verdadeira de todas as coisas”. Tudo isso é visto
unicamente pela visão intelectual. Portanto, enquanto estamos no corpo, e
enquanto a alma se ache infetada pelos males do corpo, nosso desejo de verdade
não será satisfeito.
Este ponto de vista exclui a observação científica e o experimento como
métodos para a consecução do saber. A mente do experimentador não está
“concentrada em si própria”, nem procura evitar os sons e a vista das coisas. As
duas espécies de atividade mental a que o homem pode dedicar-se, observando o
método recomendado por Platão, são as matemáticas e a percepção mística. Isto
explica por que motivo estas duas coisas se acham tão intimamente ligadas em
Platão e nos pitagóricos.
Para o empirista, o corpo é o que nos põe em contato com o mundo da
realidade externa; mas, para Platão, é duplamente mau, como um meio
deformante que nos obriga a ver obscuramente, como se olhássemos através de
um vidro escuro, e como fonte de luxúrias que nos distrai da busca do
conhecimento e da visão da verdade. Algumas citações tornarão isto claro:
O corpo é a fonte de infinitos incômodos, devido ao simples fato de termos de
alimentá-lo; e está sujeito a doenças que sobrevêm e impedem nossa busca da
verdade: enche-nos de amor, de desejos, de medos, de fantasias de toda a
espécie, de intermináveis loucuras e, com efeito, como dizem os homens, nos
priva de todo o poder do pensamento. De onde vêm as guerras, as lutas e as
facções? De onde, senão do corpo e dos desejos do corpo? As guerras são
causadas pelo amor do dinheiro, e o dinheiro tem de ser adquirido para o corpo e
para o serviço do corpo; e, devido a todos esses obstáculos, não temos tempo para
dedicar à filosofia; e, por último, e o que é ainda pior, mesmo que tenhamos
tempo para entregar-nos a certas especulações, o corpo está sempre a
importunar-nos, causando torvelinhos e confusões em nossas pesquisas e
deixando-nos de tal modo perplexos que não podemos ver a verdade. A
experiência nos tem provado que, se quisermos ter conhecimento verdadeiro de
algo, devemos livrar-nos do corpo; só a alma deve ver as coisas em si; e, então,
atingiremos a sabedoria que desejamos, e da qual nos declaramos amantes; não
enquanto vivermos, mas depois da morte; porque se, enquanto se acha em
companhia do corpo, a alma não pode adquirir o conhecimento puro, tem de
adquiri-lo depois da morte, se é que isso poderá ser conseguido.
E, dessa forma, tendo-nos libertado da loucura do corpo, seremos puros e
conversaremos com os puros, e conheceremos, por nós próprios, a luz clara que
se encontra em toda a parte, pois não há outra luz senão a da verdade. Porque os
impuros não podem aproximar-se dos puros … E que é a purificação, senão a
separação entre a alma e o corpo? E esta separação e libertação entre a alma e o
corpo se chama morte … E só os filósofos verdadeiros, somente eles, procuram
incessantemente a libertação da alma.
Existe apenas uma moeda pela qual todas as coisas podem ser trocadas: a
sabedoria.
Os fundadores dos mistérios parecem ter dito algo com um significado real, e
não estavam dizendo tolices quando insinuaram numa figura, há muito tempo,
que aquele que passa, não santificado e não iniciado, no mundo de baixo,
permanecerá num pântano, mas aquele que chega após a iniciação e a
purificação habitará com os deuses. Porque muitos, como dizem nos mistérios,
são os portadores de tirsos, mas poucos os místicos, o que quer dizer — segundo a
minha interpretação — os verdadeiros filósofos.
Toda esta linguagem é mística, e deriva-se dos mistérios. A “pureza” é uma
concepção órfica, tendo, primeiramente, uma significação ritual, mas, para
Platão, significa libertação da escravidão do corpo e de suas necessidades. É
interessante vê-lo dizer que as guerras são causadas pelo amor ao dinheiro, e que
se necessita de dinheiro somente para servir o corpo. A primeira parte dessa idéia
coincide com a de Marx, mas a segunda pertence a uma visão inteiramente
diferente. Platão acha que um homem poderia viver com muito pouco dinheiro,
se suas necessidades fossem reduzidas a um mínimo, e isso, sem dúvida, é certo.
Mas também acha que um filósofo devia prescindir do trabalho manual; devia,
pois, viver da riqueza criada por outros. Num Estado muito pobre não haverá,
provavelmente, filósofos. Foi o imperialismo de Atenas, na época de Péricles,
que tornou possível aos atenienses o estudo da filosofia. Falando-se de um modo
geral, os bens intelectuais são tão caros como as comodidades materiais, e,
igualmente, pouco independentes das condições econômicas. A ciência requer
bibliotecas, laboratórios, telescópios, microscópios, etc., e os homens de ciência
tem de ser mantidos com o trabalho dos outros. Mas, para o místico, tudo isso é
tolice. Um homem santo da índia ou do Tibete não necessita de aparato: usa
apenas um pano em torno da cintura, come somente arroz e é mantido mediante
magra caridade, por ser considerado sábio. Isto constitui o desenvolvimento
lógico do ponto de vista de Platão.
Voltando-se ao Fédon: Cebes manifesta dúvidas a respeito da sobrevivência
da alma depois da morte, e insiste para que Sócrates apresente argumentos. Ele
assim o faz, mas é mister dizer-se que os argumentos são muito pobres.
O primeiro argumento é que todas as coisas que tem contrários são geradas de
seus contrários — afirmação que nos recorda as opiniões de Anaximandro a
respeito da justiça cósmica. Ora, a vida e a morte são opostas e, portanto, devem
gerar-se mutuamente. Segue-se daí que as almas dos mortos existem em algum
lugar e voltam à terra na ocasião devida. A afirmação de São Paulo, de que “a
semente não se reproduz senão quando morre”, parece pertencer a uma teoria
semelhante.
O segundo argumento é que o conhecimento é recordação e, portanto, a alma
deve ter existido antes do nascimento. Esta teoria se baseia principalmente no
fato de que temos idéias, tais como a da igualdade exata, que não podem provir
da experiência. Temos experiência da igualdade aproximada, mas a igualdade
absoluta jamais é encontrada entre os objetos sensíveis, e, não obstante, sabemos
o que queremos dizer com “igualdade absoluta”. Já que não aprendemos isso por
experiência, devemos ter trazido a experiência conosco de uma existência
anterior. Um argumento semelhante, diz ele, se aplica a todas as outras idéias.
Assim, a existência das essências, bem como a nossa capacidade de apreendêlas, prova a preexistência da alma com conhecimento.
A afirmação de que todo conhecimento é reminiscência é desenvolvida, de
maneira mais extensa, no Mênon (82). Aqui, diz Sócrates que “não há ensino,
mas somente recordação”. Declara que vai provar essa sua opinião mandando
Mênon chamar um rapaz escravo, a quem Sócrates se põe a fazer perguntas
sobre problemas geométricos. As respostas do rapazinho devem mostrar que ele
conhece realmente geometria, embora até então ele não soubesse que possuía tal
conhecimento. Chega-se à mesma conclusão tanto em Mênon como em Féclon,
isto é, a de que o conhecimento foi trazido pela alma de uma existência prévia.
Quanto a isto, pode-se observar, em primeiro lugar, que o argumento é
inteiramente inaplicável ao conhecimento empírico. O rapaz escravo não podia
ter sido levado a “recordar” quando as pirâmides foram construídas, ou quando
realmente ocorreu o cerco de Tróia, a menos que houvesse estado presente a tais
acontecimentos. Somente a espécie de conhecimento que se chama a priori —
especialmente na lógica e nas matemáticas — pode ter existido, talvez, em cada
indivíduo, independente de experiência. Com efeito, é esta a única espécie de
conhecimento (à parte a penetração mística) que Platão admite como sendo
realmente conhecimento. Vejamos de que modo se pode tratar deste argumento
quanto ao que se refere às matemáticas.
Tomemos o conceito de igualdade. Devemos admitir que não temos
experiência, entre os objetos sensíveis, da igualdade exata; vemos somente a
igualdade aproximada. Como, pois, chegamos à idéia da igualdade absoluta? Ou
talvez não tenhamos tal idéia?
Consideremos um caso concreto. Define-se o metro como sendo o
comprimento de certa vara que se acha em Paris a uma certa temperatura. Que
quereríamos dizer, se disséssemos, de uma outra vara, que o seu comprimento
era exatamente um metro? Creio que não diríamos nada. Poderíamos dizer: os
procedimentos mais exatos de medição que a ciência moderna conhece não
conseguem mostrar que a nossa vara é mais curta ou mais comprida do que o
metro-padrão existente em Paris. Poderíamos, se fossemos suficientemente
temerários, acrescentar uma profecia — a de que nenhum refinamento
subsequente, na técnica da medição, modificará esse resultado. Mas isto ainda é
uma afirmação empírica, no sentido de que a evidencia empírica poderá, a
qualquer momento, apresentar uma prova contrária. Não creio que possuamos,
realmente, a idéia da igualdade absoluta que Platão nos atribui.
Mas, mesmo que a tenhamos, é claro que nenhuma criança a possui antes de
atingir uma certa idade, e que a idéia se elucida pela experiência, embora não se
derive diretamente dela. Ademais, se a nossa existência, antes do nascimento,
não tivesse percepção sensorial, teria sido tão incapaz de gerar idéias como o é
esta vida; e, se supuser que a nossa existência anterior era, em parte,
supersensível, por que não se supor o mesmo a respeito de nossa existência
presente? Por todas essas razões, o argumento falha.
Considerando estabelecida a doutrina da reminiscência, diz Cebes: “Cerca da
metade do que era requerido, foi provado, isto é: que nossas almas existiam antes
do nosso nascimento; que a alma existirá depois da morte, como antes do
nascimento, é a outra parte da questão, que precisa ser ainda comprovada”.
Sócrates, então, procura desempenhar – se disso. Diz que se deduz do que se disse
sobre a questão que tudo foi gerado de seus opostos, e que, assim, a morte deve
gerar a vida, assim como a vida gera a morte. Todavia, acrescenta um outro
argumento, que tinha uma longa história na filosofia: que somente o complexo
pode ser dissolvido, e que a alma, como as idéias, é simples e não composta de
partes. O que é simples, segundo se acredita, não pode começar, nem terminar,
nem mudar. Ora, as essências são imutáveis: a beleza absoluta, por exemplo, é
sempre a mesma, enquanto que as coisas belas mudam constantemente. Assim,
as coisas vistas são temporais, mas as coisas invisíveis são eternas. O corpo é
visível, a alma invisível; portanto, a alma deve ser classificada no grupo das
coisas eternas.
A alma, sendo eterna, sente-se à vontade na contemplação das coisas eternas,
isto é, das essências; mas sente-se perdida e confusa quando, como na percepção
dos sentidos, contempla o mundo das coisas mutáveis.
A alma, quando emprega o corpo como instrumento da percepção, isto é,
quando usa o sentido da vista, do ouvido ou qualquer outro (pois a significação de
perceber através do corpo é o mesmo que o fazer através dos sentidos) é
arrastada pelo corpo para a região do que é mutável, onde anda às cegas e se
sente confusa; o mundo gira em torno dela, e ela é como um bêbado, quando
depara com a mudança. Mas quando, ao voltar a si, reflete, passa para o outro
mundo, a região da pureza, da eternidade, da imortalidade, da imutabilidade, as
quais são da sua espécie, e com elas vive sempre, quando está em si mesma e
não se lhe antepõem obstáculos; cessa, então, de vagar a esmo e, estando em
comunhão com o imutável, é imutável. E este estado da alma é chamado
sabedoria.
A alma do verdadeiro filósofo, que, em vida, se libertou da escravidão da
carne, partirá, depois da morte, para o mundo invisível, para viver em bem-
aventurança na companhia dos deuses. Mas a alma impura, que amou o corpo,
transformar-se-á num fantasma a assombrar o sepulcro, ou entrará no corpo de
um animal, um burro, um lobo ou gavião, segundo o seu caráter. Aquele que foi
virtuoso sem ser filósofo transformar-se-á numa abelha, vespa ou formiga, ou
algum outro animal gregário e sociável.
Somente o verdadeiro filósofo vai para o céu quando morre. “Ninguém que
não haja estudado filosofia, e que não esteja completamente puro na ocasião de
sua partida, terá permissão para entrar na companhia dos deuses, mas somente o
que ama a sabedoria”. Eis aí por que os verdadeiros adeptos da filosofia se
abstém dos prazeres da carne; não que temam a pobreza ou a desgraça, mas
porque “tem consciência de que a alma estava simplesmente atada ou colada ao
corpo; até que a filosofia a recebesse, podia apenas ver a existência real através
das barras de uma prisão, e não nela ou através dela própria … pois, devido ao
prazer, se convertera no cúmplice principal de seu próprio cativeiro”. O filósofo
será moderado, porque “cada prazer e sofrimento é uma espécie de cravo que
prega e liga a alma ao corpo, até que ela se torna como o corpo, e acredita ser
verdade o que o corpo lhe insinua como tal”.
Nesta altura, Simmias defende a opinião pitagórica de que a alma é uma
harmonia, e diz: se a lira se parte, pode sobreviver a harmonia? Sócrates replica
que a alma não é uma harmonia, pois a harmonia é complexa, e a alma é
simples. Ademais, diz ele, a opinião de que a alma é uma harmonia é
incompatível com sua preexistência, que foi provada pela doutrina da
reminiscência — pois a harmonia não existe antes da lira.
Sócrates põe-se, a seguir, a descrever o seu próprio desenvolvimento
filosófico, que é muito interessante, mas que não se coaduna com o argumento
principal. Passa a expor a doutrina das idéias, chegando à conclusão de que “as
idéias existem, e que outras coisas participam delas e derivam delas os seus
nomes”. Por fim, descreve o destino das almas depois da morte: os bons vão para
o céu, os maus para o inferno, e os meio-termo para o purgatório.
O seu fim e as suas despedidas são descritos. Suas últimas palavras são: “Crito,
devo um galo a Asclépio; não te esquecerás de pagar a dívida?” Os homens
pagavam um galo a Asclépio, quando se restabeleciam de uma doença, e
Sócrates havia se restabelecido das crises de febre da vida.
“De todos os homens de seu tempo — conclui Fédon — foi ele o mais sábio, o
mais justo e o melhor”.
O Sócrates platônico foi, durante muitas épocas, um modelo para os filósofos
posteriores. Que devemos pensar dele eticamente? (Ocupo-me apenas do
homem, tal como Platão o retrata). Seus méritos são evidentes. É indiferente aos
êxitos mundanos, tão destituído de medo que permanece calmo, cortês e de bom
humor até o último momento, preocupando-se mais com o que ele acreditava ser
a verdade do que com qualquer outra coisa. Tinha, no entanto, alguns defeitos
muito graves. Era desonesto e sofistico em seus argumentos e, em seu
pensamento privado, emprega o intelecto para provar conclusões que lhe são
agradáveis, ao invés de dedicar-se a uma busca desinteressada da sabedoria. Há
algo de fátuo e de lambido em sua maneira de ser, o que nos lembra um tipo
desagradável de clérigo. Sua coragem diante da morte teria sido mais notável, se
não acreditasse que iria gozar da bem-aventurança eterna em companhia dos
deuses. Ao contrário de alguns de seus predecessores, não era científico em seus
raciocínios, mas estava resolvido a provar que o universo estava de acordo com
os seus padrões éticos. Isso é uma traição à verdade, e o pior de seus pecados
filosóficos. Como homem, podemos crer que fosse admitido na comunhão dos
santos; mas, como filósofo, necessita de uma longa permanência num purgatório
científico.
CAPÍTULO XVII
A Cosmogonia de Platão
A cosmogonia de Platão é exposta no Timeu,{62} traduzido para o latim por
Cícero, e que foi, ademais, o único dos diálogos conhecido no Ocidente durante a
Idade Média. Tanto então, como antes, no neoplatonismo, teve mais influência do
que nenhuma outra obra de Platão, o que é curioso, pois contém, sem dúvida,
mais coisas simplesmente tolas do que qualquer outro de seus escritos. Como
filosofia, não é importante, mas, historicamente, exerceu tanta influência que é
preciso considerá-lo um tanto pormenorizadamente.
O lugar ocupado por Sócrates nos diálogos anteriores é tomado, no Timeu, por
um pitagórico, e as doutrinas dessa escola são, em geral, adotadas, inclusive (até
certo ponto) a opinião de que o número é a explicação do mundo. Há, primeiro,
um resumo dos primeiros cinco livros da República e, depois, do mito da
Atlântida, da qual se diz que foi uma ilha situada ao largo dos Pilares de Hércules,
maior que a Líbia e que a Ásia juntas. Depois, Timeu, que é um astrônomo
pitagórico, põe-se a contar a história do mundo até a criação do homem. Diz, em
linhas gerais, o seguinte:
O imutável é apreendido pela inteligência e pela razão; o mutável é
apreendido pela opinião. O mundo, sendo sensível, não pode ser eterno, e deve
ter sido criado por Deus.
Já que Deus é bom, fez o mundo conforme o modelo do eterno; não tendo
ciúmes, desejava que tudo fosse, o mais possível, como Ele próprio. “Deus
desejava que todas as coisas fossem boas e, tanto quanto possível, que nada fosse
mal”. “Vendo que toda a esfera celeste visível não se achava em repouso, mas
movendo-se de maneira irregular e desordenada, da desordem fez a ordem”.
(Assim, parece que o Deus platônico, ao contrário do Deus dos judeus e cristãos,
não criou o mundo do nada, mas reordenou o material já existente). Pôs a
inteligência na alma, e a alma no corpo. Fez o mundo, em conjunto, como uma
criatura viva, dotada de alma e inteligência. Há um único mundo, e não muitos,
como vários pré-socráticos haviam ensinado; não pode haver mais do que um,
pois que se trata de uma cópia criada destinada a concordar, tanto quanto
possível, com o original eterno, compreendido por Deus. O mundo, em sua
totalidade, é um animal visível, abrangendo em si todos os outros animais. É um
globo, porque o semelhante é melhor do que o diferente, e somente um globo é
igual em toda a parte, gira, porque o movimento circular é o mais perfeito; e,
como este é o seu único movimento, não necessita de pés nem de mãos.
Os quatro elementos — fogo, ar, água e terra — cada um dos quais é
representado por um número estão em contínua proporção, isto é, o fogo é para o
ar o que o ar é para a água e a água para a terra. Deus empregou todos os
elementos na construção do mundo e, portanto, o mundo é perfeito, não estando
sujeito à velhice ou enfermidade. É harmonizado pela proporção, o que faz com
que tenha o espírito da amizade, sendo, portanto, indissolúvel, exceto por Deus.
Deus fez primeiro a alma, depois o corpo. A alma é composta do invariávelindivisível e do variável-divisível; é uma terceira e intermédia espécie de
essência.
Aqui, segue-se uma descrição pitagórica dos planetas, que conduz a uma
explicação da origem do tempo:
“Quando o pai e criador viu mover-se e viver a criatura que ele havia feito, a
imagem criada dos deuses imortais, rejubilou-se e, na sua alegria, decidiu tomar
a cópia ainda mais semelhante ao original, e, como este era eterno, procurou
fazer, tanto quanto lhe era possível, o universo eterno. Ora, a natureza do ser ideal
era perpétua, mas concedei plenamente este atributo a uma criatura era
impossível. Portanto, resolveu ter uma imagem móvel da eternidade e, quando
pôs o céu em ordem, fez essa imagem eterna, mas movendo-se segundo o
número, enquanto que a eternidade em si permanece em unidade — e é essa
imagem que chamamos Tempo”.{63}
Antes disso, não havia noites nem dias. Da essência eterna, não devemos dizer
que era ou será; o correto é somente é. Está implícito que, da “imagem móvel da
eternidade”, se pode dizer que era e será.
O tempo e o céu nasceram no mesmo instante. Deus fez o Sol para que os
seres pudessem aprender aritmética: sem a sucessão dos dias e das noites, não
teríamos pensado, segundo se supõe, nos números. A vista do dia e da noite,
meses e anos, criou o conhecimento do número e deu-nos a concepção do
tempo, e daí veio a filosofia. É esta a maior coisa que devemos à vista.
Há (à parte o mundo como um todo) quatro espécies de seres: deuses, aves,
peixes e animais terrestres. Os deuses são principalmente fogo; as estrelas fixas
são divinas e animais eternos. O Criador disse aos deuses que poderia destruí-los,
mas que não o faria. Deixou com que fizessem a parte mortal de todos os outros
animais, depois que fez a parte imortal e divina. (Esta, como outras passagens a
respeito dos deuses em Platão, talvez não deva ser tomada muito a sério. No
começo, Timeu diz que procura apenas a probabilidade, e que não lhe é possível
ter certeza. Muitos pormenores são, evidentemente, imaginativos, e não devem
ser tomados literalmente).
O Criador, diz Timeu, fez uma alma para cada estréia. As almas têm
sensações, amor, medo e raiva; se as conseguem dominar, vivem corretamente:
do contrário, não. Se um homem vive bem, vai, depois da morte, viver feliz em
sua estrela. Mas, se vive mal, se tornará, na outra vida, mulher; se ele (ou ela)
persiste em fazer o mal, ele (ou ela) se converterá em animal, continuando assim
através de muitas transmigrações, até que, por fim, a razão triunfa. Deus pôs
algumas almas na Terra, outras na Lua, em outros planetas e nas estrelas, e
deixou entregue aos deuses a formação de seus corpos.
Há duas espécies de causas, as inteligentes e as que, movidas por outras, são,
por sua vez, obrigadas a mover a outras. As primeiras são dotadas de espírito, e
fazem as coisas boas e justas, enquanto que a última produz efeitos ocasionais,
sem ordem nem desígnio. Ambas as classes devem ser estudadas, pois a criação
é mista, sendo feita de necessidade e espírito. (Observar-se-á que a necessidade
não está sujeita ao poder de Deus). Timeu põe-se, então, a tratar da parte
contribuída pela necessidade.{64}
A terra, o ar, o fogo e a água não são os primeiros princípios, letras ou
elementos; não são sílabas ou compostos primitivos. O fogo, por exemplo, não
deve ser chamado este, mas tal, isto é, não é uma substância, mas antes um
estado da substância. Neste ponto, surge a questão: são as essências inteligíveis
somente nomes? A resposta trata, segundo nos dizem, de saber se o espírito é ou
não a mesma coisa que a verdadeira opinião. Se não é, o conhecimento deve ser
o conhecimento de essências e, portanto, as essências não podem ser meros
nomes. Ora, o espírito e a opinião verdadeira certamente diferem, pois, o
primeiro é implantado pela instrução, e o segundo pela persuasão; um é
acompanhado pela razão verdadeira, a outra não; todos os homens participam da
opinião verdadeira, mas o espírito é um atributo dos deuses e de pouquíssimos
homens.
Isto conduz a uma teoria um tanto estranha do espaço, como algo de
intermédio entre o mundo da essência e o mundo das coisas sensíveis
passageiras.
“Há uma espécie de ser que é sempre o mesmo, incriado e indestrutível, que
não recebe em si nada que vem de fora, e que tampouco concede a outro o que
quer que seja, mas que é invisível e imperceptível pelos sentidos, e do qual a
contemplação pertence somente à inteligência. E há uma outra natureza do
mesmo nome que ele, e que se parece com ele, percebida pelo sentido, criada,
sempre em movimento, estando num lugar e desaparecendo novamente, e que é
apreendida pela opinião e pelo sentido. E existe uma terceira natureza, que é
espaço eterno, e não admite destruição e provê um lugar para todas as coisas
criadas, e que é apreendida sem o auxílio dos sentidos, por uma espécie de razão
espúria e quase irreal; vendo-a como em sonhos, dizemos que ela, como tudo que
existe, deve, necessariamente, estar em algum lugar e ocupar um espaço, mas o
que não está nem no céu nem na terra não tem existência.”
Esta é uma passagem muito difícil, que não pretendo compreender
completamente. A teoria que expressa deve, creio eu, ter surgido de reflexões
sobre a geometria, que parecia ser um assunto da razão pura, como a aritmética,
e que, no entanto, tinha que ver com o espaço, que era um aspecto do mundo
sensível. Em geral, é imaginário encontrar-se analogias com filósofos
posteriores, mas não posso deixar de pensar que Kant deve ter gostado dessa
idéia de espaço, como tendo afinidade com a sua.
Os elementos verdadeiros do mundo material, diz Timeu, não são a terra, o ar,
o fogo e a água, mas duas espécies de triângulos retângulos, um dos quais é meio
quadrado e o outro um meio triângulo equilateral. Originalmente, tudo se achava
em confusão, e “os vários elementos tinham lugares diferentes, antes de serem
ordenados para formar o universo”. Mas então Deus os dispôs em forma e
número, “tornando-os tanto quanto possível, as coisas melhores e mais justas
dentre as que não eram justas nem boas”. As duas espécies de triângulos
referidos acima são as formas mais belas e, portanto, Deus as empregou para
construir a matéria. Por meio desses dois triângulos, é possível construir-se quatro
dos cinco sólidos regulares, sendo que cada átomo de um dos quatro elementos é
um sólido regular. Os átomos da terra são cubos; os do fogo, tetraedros; os do ar,
octaedros; os da água, icosaedros. (Tratarei, adiante, do dodecaedro).
A teoria dos sólidos regulares, exposta no livro décimo – terceiro de Euclides,
era, na época de Platão, uma descoberta recente; foi completado por Teeteto,
que aparece como homem jovem no diálogo que tem o seu nome. Foi ele,
segundo a tradição, o que primeiro provou que há somente cinco espécies de
sólidos regulares, descobrindo o octaedro e o icosaedro.{65} O tetraedro, o
octaedro e o icosaedro regulares, tem como faces triângulos equilaterais; o
dodecaedro tem pentágonos regulares, e não pode, portanto, ser construído dos
dois triângulos de Platão. Por essa razão, ele não o emprega em relação com os
quatro elementos.
Quanto ao dodecaedro, diz Platão que “somente houve até agora uma quinta
combinação, empregada por Deus no delineamento do universo”. Isto é obscuro,
e sugere que o universo é um dodecaedro; mas, em outra passagem, diz-se que é
uma esfera.{66} O pentagrama sempre foi preeminente na magia e, ao que
parece, deve sua situação aos pitagóricos, que o chamavam “Saúde” e o usavam
como símbolo de reconhecimento dos membros da irmandade.{67} Parece que
devia suas propriedades ao fato de que o dodecaedro tem como faces
pentágonos, sendo, em certo sentido, um símbolo do universo. Este tópico é
atraente, mas é difícil verificar-se com certeza muitas coisas definitivas a
respeito dele.
Depois de uma discussão sobre a sensação, Timeu procura explicar as duas
almas do homem, uma imortal, outra mortal — uma criada por Deus, a outra
pelos deuses. A alma mortal está “sujeita a afetos terríveis e irresistíveis”:
primeiro o prazer, o maior incitamento ao mal; depois, a dor, que nos dissuade do
que é bom; também a irreflexão e o temor, dois conselheiros insensatos; a fúria,
difícil de ser aplacada, e a esperança, que se extravia com facilidade; estas
coisas, eles (os deuses) misturaram com o sentido irracional e com um amor
inteiramente temerário, segundo as leis da necessidade, e assim formaram os
homens”.
A alma imortal é a cabeça; a mortal é o peito.
Há uma fisiologia curiosa, como, por exemplo, que a finalidade dos intestinos
é impedir a gula, conservando em seu interior os alimentos, e outra teoria
referente à transmigração. Os homens covardes ou maus serão, na outra vida,
mulheres. Os homens inocentes, simplórios, que pensam que se pode aprender
astronomia olhando apenas as estrelas, sem conhecimento das matemáticas,
serão aves; aqueles que não possuem filosofia se tornarão animais terrestres; os
mais estúpidos se transformarão em peixes.
O último parágrafo do diálogo resume tudo:
“Podemos agora dizer que o nosso discurso sobre a natureza do universo tem
um fim. O mundo recebeu animais, mortais e imortais, e está cheio deles, e se
transformou num animal visível contendo os invisíveis; o Deus sensível é a
imagem do céu intelectual, o maior, o melhor, o mais justo e o mais perfeito dos
céus — o único céu gerado”.
É difícil de saber-se o que se deve levar a sério em Timeit, e o que se deve
considerar apenas como um jogo de fantasia. Creio que a história da criação
como tendo posto ordem ao caos deve ser encarada seriamente; e também a
proporção entre os quatro elementos, bem como sua relação com os sólidos
regulares e os triângulos que os constituem. As descrições do tempo e do espaço
são, evidentemente, o que Platão acredita, bem como a opinião do mundo criado
como cópia do arquétipo eterno. A mistura de necessidade e finalidade no mundo
é uma crença comum a praticamente todos os gregos, datando de muito antes do
aparecimento da filosofia; Platão aceitou-a e, assim, evitou o problema do mal,
que perturba a teologia cristã. Penso que ele pensava seriamente num animalmundo. Mas os pormenores referentes à transmigração, bem como a parte
atribuída aos deuses, e outras coisas pouco essenciais, são, penso eu,
acrescentados apenas para dar ao tema um aspecto mais concreto.
Todo o diálogo, como disse antes, merece ser estudado, devido à sua grande
influência sobre a filosofia antiga e medieval; e esta influência não se limita ao
que é menos fantástico.
CAPÍTULO XVIII
Conhecimento e Percepção Em Platão
A maioria dos homens modernos aceita como coisa assente que o
conhecimento empírico depende ou se deriva da percepção. Há, no entanto, em
Platão, e nos filósofos de outras escolas, uma doutrina muito diferente, isto é, que
não há nada digno de chamar-se “conhecimento” que se derive dos sentidos, e
que o único conhecimento real diz respeito aos sentidos. Assim, “2+2 =4” é um
conhecimento genuíno, mas a afirmação de que “a neve é branca” é tão cheia
de ambiguidade e de incerteza que não pode encontrar lugar entre as verdades do
filósofo.
Essa opinião talvez provenha de Parmênides, mas, em sua forma explícita, o
mundo filosófico a deve a Platão. Proponho-me, neste capítulo, tratar da crítica
de Platão relativa à idéia de que o conhecimento é idêntico à percepção, a qual
ocupa a primeira parte do Teeteto.
Esse diálogo tem por finalidade encontrar uma definição do “conhecimento”,
mas termina sem chegar senão a uma conclusão negativa; várias definições são
propostas e rejeitadas, sendo que nenhuma delas e considerada satisfatória.
A primeira das definições sugeridas, é a única que aqui considerarei, é exposta
por Teeteto nas seguintes palavras:
“Parece-me que o que sabe algo está percebendo a coisa que conhece, e,
tanto quanto me é dado ver no momento, o conhecimento não é outra coisa senão
percepção”.
Sócrates identifica esta doutrina com a de Protágoras, de que “o homem e a
medida de todas as coisas”, isto é, que qualquer coisa determinada “é para mim
o que me parece ser, e para ti aquilo que te parece”. Sócrates acrescenta: “A
percepção, então, é sempre algo que é, e sendo conhecimento, é infalível”.
Uma grande parte do argumento que se segue trata da caracterização da
percepção; uma vez que isso se completa, não demora muito para se provar que
a percepção, tal como chegou a ser, não pode ser conhecimento.
Sócrates acrescenta à doutrina de Protágoras a de Heráclito, de que tudo
muda sempre, isto é, que “todas as coisas que gostamos de dizer que “são” estão
realmente em processo de formação”. Platão acredita que isso se dá com os
objetos sensíveis, mas não com os objetos do conhecimento verdadeiro. Durante
todo o diálogo, porém, suas doutrinas positivas permanecem em segundo plano.
Da doutrina de Heráclito, mesmo que se aplique unicamente a objetos dos
sentidos, juntamente com a definição de conhecimento como percepção, se
deduz que o conhecimento é o que se está formando, e não o que é.
Neste ponto, surgem problemas de caráter bastante elementar. Dizem-nos
que, já que 6 é maior que 4, mas menor que 12, 6 é, ao mesmo tempo, grande e
pequeno, o que é uma contradição. Ora, Sócrates é mais alto que Teeteto, que é
um jovem ainda não de todo desenvolvido; mas, dentro de poucos anos, Sócrates
será mais baixo que Teeteto. Portanto, Sócrates é, ao mesmo tempo, alto e baixo.
A idéia de uma proposição relativa parece haver intrigado Platão, como
aconteceu com a maioria dos grandes filósofos até Hegel (inclusive). Esses
problemas, porém, não são muito pertinentes ao assunto, e podem ser ignorados.
Voltando à percepção, é ela considerada como devida a uma interação entre o
objeto e o órgão do sentido, sendo que ambos, segundo a doutrina de Heráclito,
estão sempre mudando e, ao mudar, modificam o perceptor. Sócrates afirma
que, quando está bem, acha doce o vinho e que, quando se sente indisposto, este
lhe parece azedo. Há, aqui, uma mudança no perceptor que produz uma
mudança no percepto.
Fazem-se certas objeções à doutrina de Protágoras, mas algumas são, depois,
retiradas. Afirma-se que Protágoras devia ter admitido símios e porcos como
medidas de todas as coisas, já que são também dotados de percepção. Surgem
questões quanto à validez da percepção nos sonhos e na loucura. Se Protágoras
tem razão, nenhum homem sabe mais do que outro: não apenas Protágoras é tão
sábio como os deuses, mas, o que é mais sério, não é mais sábio do que um tolo.
Ademais, se o juízo de um homem é tão correto como o de outro, as pessoas que
acham que Protágoras está equivocado podiam ser consideradas como tendo
tanta razão como ele.
Sócrates propõe-se encontrar uma resposta a muitas dessas objeções,
colocando-se, no momento, no lugar de Protágoras. Quanto aos sonhos, os
perceptos são verdadeiros como perceptos. Quanto ao argumento a respeito de
símios e porcos, é posto de lado como abuso vulgar. Com respeito ao argumento
de que, se cada homem é a medida de todas as coisas, uma pessoa é tão sábia
como qualquer outra, Sócrates sugere, a favor de Protágoras, uma resposta
bastante interessante, isto é, a de que, embora um juízo não possa ser mais
verdadeiro do que outro, poderá ser melhor, no sentido de ter melhores
consequências. Isto nos sugere o pragmatismo.{68}
Esta resposta, porém, embora Sócrates a haja inventado, não o satisfaz. Diz
ele, por exemplo, que, quando um médico prediz o curso de uma enfermidade,
sabe, na verdade, mais a respeito do futuro do doente do que o próprio doente. E
quando os homens diferem quanto ao que o Estado deve decretar, o resultado
mostra que certos homens tinham maior conhecimento do futuro que outros.
Assim, não podemos fugir à conclusão de que um sábio é uma medida melhor
das coisas que um tolo.
Todas essas são objeções à doutrina de que cada homem é a medida de todas
as coisas, e só indiretamente à doutrina de que “conhecimento” significa
“percepção”, até ao ponto em que esta doutrina conduz à outra. Não obstante, há
um argumento direto, isto é, o de que se deve admitir não só a percepção como a
memória. Isto é admitido, e a definição proposta é, neste sentido, corrigida.
Chegamos, depois, à crítica da doutrina de Heráclito. Esta é, de início, levada
ao extremo, de acordo com a prática de seus discípulos, entre os quais se
contavam brilhantes jovens de Éfeso. Uma coisa pode mudar de duas maneiras:
por locomoção e por mudança de qualidade, sendo que a doutrina do fluxo
afirma que tudo está sempre mudando em ambos os sentidos,{69} E não apenas
está tudo sofrendo alguma mudança qualitativa, como também tudo está sempre
mudando todas as suas qualidades — segundo a opinião das pessoas inteligentes
de Éfeso. Isto tem más consequências. Não podemos dizer “isto é branco”, pois,
se era branco quando começamos a falar a respeito, já não o será quando
tivermos terminado a frase. Não podemos estar certos ao dizer que vemos uma
coisa, pois o ver está se transformando perpetuamente em não-ver.{70} Se tudo
está mudando de todas as maneiras, o ver não pode ser chamado senão não-ver,
e a percepção não pode ser chamada senão não-percepção. E quando dizemos
que “percepção é conhecimento”, poderíamos dizer, com o mesmo direito, que
“percepção é o não-conhecimento”.
Em suma, o argumento acima significa que, qualquer que seja a coisa que
possa estar em fluxo perpétuo, os significados das palavras devem ser fixados, ao
menos por algum tempo, pois que, de outro modo, nenhuma asserção é
determinada, e nenhuma delas é mais verdadeira que falsa. Deve haver algo
mais ou menos constante, para que a discussão e o conhecimento sejam
possíveis. Isto, creio eu, deve ser admitido. Mas uma grande parte de fluxo é
compatível com esta admissão.
Quanto a este ponto, não se quer discutir Parmênides, sob alegação de que é
demasiado grande e estupendo. É “uma figura venerável e terrível”. “Havia nele
uma profundidade inteiramente nobre”. É ele “um ser que respeito acima de
tudo”. Nessas observações, revela Platão seu amor por um universo estático, e
sua aversão pelo fluxo de Heráclito, que esteve até então admitindo a bem da
argumentação. Mas, depois dessa manifestação de reverência, abstém – se de
desenvolver a alternativa parmenidiana, em contraposição à de Heráclito.
Chegamos, agora, ao argumento final de Platão contra a identificação do
conhecimento com a percepção. Começa ele por assinalar que percebemos
através dos olhos e dos ouvidos, ao invés de com eles, afirmando, a seguir, que
uma parte de nosso conhecimento não tem ligação com qualquer órgão sensorial.
Podemos saber, por exemplo, que os sons e as cores são diferentes, embora
nenhum órgão do sentido possa perceber a ambos. Não há nenhum órgão
especial para ‘‘existência e não existência, semelhança e dessemelhança, o
mesmo e o diferente, bem como para a unidade e os números em geral”. O
mesmo se aplica a honrado e desonrado, o bom e o mau. “O espírito contempla
certas coisas mediante seu próprio instrumento; outras, através da faculdade do
corpo”. Percebemos o duro e o macio pelo tato, mas é o espírito que julga que
existem e que são contrários. Somente o espírito pode chegar à existência, e não
podemos alcançar a verdade se não alcançarmos a existência. Segue-se daí que
não podemos saber as coisas somente pelos sentidos, pois somente através dos
sentidos não podemos saber se existem coisas. Portanto, o conhecimento consiste
em reflexão, e não em impressões, e a percepção não é conhecimento, pois “não
desempenha papel algum na captação da verdade, já que não o tem na captação
da existência”.
Desemaranhar o que pode ser e o que não pode ser aceito, neste argumento
contra a identificação do conhecimento com a percepção, não é, de modo
algum, tarefa fácil. Há três teses relacionadas entre si, discutidas por Platão:
(1) O conhecimento é percepção;
(2) O homem é a medida de todas as coisas;
(3) Tudo se encontra num estado de fluxo.
(4) A primeira, a única de que o argumento se ocupa
particularmente, mal é discutida por si mesma, exceto na passagem
final de que acabamos de tratar. Aqui se diz que a comparação, o
conhecimento da existência e a compreensão do número são essenciais
ao conhecimento, mas não podem ser incluídos na percepção, pois que
não são causados por qualquer órgão dos sentidos. A coisas que podem
ser ditas a respeito são diferentes. Comecemos com a semelhança e a
dessemelhança.
Que dois matizes de cor, que estou vendo, são semelhantes ou dessemelhantes,
conforme o caso, é algo que eu, de minha parte, aceitaria, não como um
“percepto”, mas como um “juízo de percepção”. Um percepto, diria eu, não é
um conhecimento, mas simplesmente algo que acontece, e que pertence,
igualmente, ao mundo da física e ao mundo da psicologia. Consideramos,
naturalmente, a percepção, como Platão, como uma relação entre o perceptor e
um objeto. Dizemos: “Eu vejo uma mesa”. Mas, aqui, “eu” e “mesa” são
construções lógicas. O núcleo do acontecimento é constituído simplesmente de
certos matizes. Estes, são associados a imagens do tato, podem produzir palavras
e tornar-se fontes de memórias. O percepto, como conteúdo de imagens
palpáveis, torna-se um objeto, que se supõe físico; o percepto, quando cheio de
palavras e memórias, transforma-se em “percepção”, que é parte de um
“sujeito” e se considera mental. O percepto não passa de um acontecimento,
nem falso nem verdadeiro; o percepto, como conteúdo de palavras, é um juízo,
capaz de verdade ou de falsidade. Esse juízo, eu o chamo de “juízo de
percepção”. A proposição “conhecimento é percepção” deve ser interpretada
como significando “o conhecimento consiste no juízo de percepção”. Somente
dessa forma pode ser gramaticalmente correto.
Voltando à semelhança e dessemelhança, é inteiramente possível, quando
percebo, simultaneamente, duas cores, que a sua semelhança ou dessemelhança
constituam uma parte do dado e que seja preciso asseverá-lo segundo um juízo
de percepção. O argumento de Platão, de que não temos órgão do sentido que
perceba o que é parecido e o que é diferente, ignora o córtex, pressupondo que
todos os órgãos dos sentidos devem estar na superfície do corpo.
O argumento para se incluir a semelhança e a dessemelhança como possíveis
dados de percepção é o seguinte, suponhamos que vemos dois matizes de cor A e
B, e que julguemos que “A é como B”. Suponhamos, ainda, como Platão o faz,
que um tal juízo é em geral correto, sendo particularmente correto no caso que
estamos considerando. Há, então, uma relação de semelhança entre A e B, e não
apenas um juízo de nossa parte ao afirmarmos que tal semelhança existe. Se
houvesse somente o nosso juízo, seria um juízo arbitrário, incapaz de verdade ou
falsidade. Posto que, evidentemente, é capaz de verdade ou falsidade, a
semelhança pode subsistir entre A e B, sem que seja simplesmente mental”. O
juízo “A é como B” é verdadeiro (se o for) em virtude de um “fato”, do mesmo
modo que o juízo “A é vermelho” ou “A é redondo”. A mente não está mais
implicada na percepção daquilo que é semelhante que na percepção da cor.
Chego, agora, à existência, ponto a que Platão dá grande realce. Temos, diz
ele, com respeito ao som e à cor, um pensamento que inclui, ao mesmo tempo, a
ambos, isto é, que existem. A existência estende-se a tudo e está entre as coisas
que a mente apreende por si; sem alcançar a existência, é impossível alcançar-se
a verdade.
O argumento contra Platão, aqui, é completamente diferente do argumento
sobre a semelhança e a dessemelhança. Aqui, tudo o que Platão diz, sobre a
existência é gramaticalmente errado, ou, antes, é de má sintaxe. Este ponto é
importante, não apenas em relação a Platão, mas, também, a outros assuntos,
como, por exemplo, o argumento ontológico da existência da deidade.
Suponhamos que se diga a uma criança que “os leões existem, mas os
unicórnios não”. Quanto ao que diz respeito aos leões, isso pode ser provado
levando-se a criança a um jardim zoológico e dizendo-lhe: “Veja aquilo é um
leão”. Ninguém acrescentaria, exceto se tratasse de um filósofo: “Como você
pode ver, aquilo existe”. Se, como filósofo, acrescentarmos essa frase, estaremos
dizendo uma tolice. Dizer que “existem leões” significa que “há leões”, isto é, “x
é um leão” é certo para um x adequado. Mas não podemos dizer do x
determinado que ele “existe”; podemos apenas aplicar este verbo a uma
descrição, completa ou incompleta. “Leão” é uma descrição incompleta, pois se
aplica a muitos objetos: “O maior leão do zoológico” é completa, porque se
aplica somente a um único objeto.
Suponhamos, agora, que estou olhando uma mancha vermelha brilhante.
Posso dizer: “Isto é o que percebo neste momento”; e também posso dizer: “Isto
que agora percebo existe”; mas não devo dizer “isto existe”, pois, a palavra
“existe” só tem significação quando aplicada a uma descrição em contraposição
a um nome.{71} Isto dispõe de existência como uma das coisas que o espírito
percebe nos objetos.
Chego, agora, à compreensão dos números. Há aqui a considerar duas coisas
muito diferentes: de um lado, as proposições da aritmética e, de outro, as
proposições empíricas de enunciação. “2+2 =4” pertence a primeira classe; “Eu
tenho dez dedos”, à segunda.
Concordo com Platão em que a aritmética e a matemática pura em geral não
se derivam da percepção. A matemática pura consiste de tautologias, análogas a
“homens são homens”, mas, em geral, mais complicadas. Para saber que uma
proposição matemática é correta, não é preciso que estudemos o mundo, mas
somente os significados dos símbolos; e os símbolos, quando nos ocupamos das
definições (das quais o propósito é meramente uma abreviatura), verificamos
que palavras como “ou” e “não”, e “tudo” e “algum”, não denotam, como
“Sócrates”, algo do mundo real. Uma equação matemática assevera que dois
grupos de símbolos tem o mesmo significado; e, enquanto nos limitamos à
matemática pura, este significado deve ser tal que possa ser entendido sem que
nada se saiba a respeito do que pode ser percebido. A verdade matemática,
portanto, é, como Platão assevera, independente da percepção; mas é uma
verdade de tipo bastante peculiar, que trata somente de símbolos.
As proposições de enumeração, tais como “Eu tenho dez dedos”, são de uma
categoria muito diferente e, evidentemente, ao menos em parte, dependem da
percepção. O conceito “dedo” está, claramente, abstraído da percepção; mas,
que acontece com o conceito “dez”? Parece que chegamos, aqui, a um
verdadeiro universal ou idéia platônica. Não podemos dizer que “dez” ó abstraído
da percepção, pois qualquer percepto que possa ser considerado como dez de
alguma espécie de objetos pode ser igualmente considerado de outra maneira.
Suponhamos que dou o nome de “digitário” a todos os dedos de uma mão, em
conjunto; então, posso dizer que “tenho dois digitários”, e isto descreve o mesmo
fato de percepção antes descrito com a ajuda do número dez. Assim, na
afirmação “Eu tenho dez dedos”, a percepção desempenha um papel menor, e a
concepção um maior do que numa afirmação como “isto é vermelho”. A
questão, no entanto, é apenas de grau.
A resposta completa, com respeito a proposições nas quais a palavra “dez”
ocorre, é que, quando tais proposições são corretamente analisadas, se verídica
que elas não contem elemento algum correspondente à palavra “dez”. Explicarse isto, no caso de um número tão grande como dez, seria muito complicado;
portanto, substituamos por “Eu tenho duas mãos”. Isto significa:
“Existe um a tal que há um b, de forma tal que a e b não são idênticos, e o que
quer que x possa ser, “x é uma de minhas mãos” é certo quando, e somente
quando x é a ou x é b”.
Aqui a palavra “dois” não ocorre. É certo que aparecem duas letras, a e b,
mas não precisamos saber que são duas, assim como não precisamos saber se
são brancas ou pretas, ou qualquer que possa ser a sua cor.
Assim, os números são, em certo sentido, formais. Os fatos que verificam
várias proposições que asseveram que vários conjuntos têm cada qual dois
membros, possuem em comum não um elemento constituinte, mas uma forma.
Nisto, diferem de proposições sobre a Estátua da Liberdade, ou a Lua, ou George
Washington. Tais proposições se referem a uma determinada parte de espaçotempo; isto é o que tem em comum todas as afirmações que podem ser feitas
sobre a Estátua da Liberdade. Mas não há nada em comum entre proposições
“há dois tal e tal”, exceto uma forma comum. A relação do símbolo “dois” com
o significado de uma proposição na qual ocorre e muito mais complicada do que
a relação do símbolo “vermelho” com o significado de uma proposição na qual
aparece. Podemos dizer, em certo sentido, que o símbolo “dois” não significa
nada, pois, quando aparece numa afirmação verdadeira, não há elemento
correspondente no significado da afirmação. Podemos continuar, se quisermos,
dizendo que os números são eternos, imutáveis, e assim por diante, mas temos de
acrescentar que são ficções da lógica.
Há ainda um outro ponto. Com respeito ao som e à cor, Platão diz que “dois
juntos são dois, e cada um deles é um. Consideramos o “dois”; vejamos, agora, o
“um”. Há aqui um equívoco análogo ao que diz, respeito à existência. (O
predicado “um” não é aplicável a coisas, mas somente a classes de unidade.
Podemos dizer “a Terra tem um satélite”, mas é um erro sintático dizer-se “a
Lua é uma”. Que pode significar tal afirmação? Podia-se dizer, do mesmo modo,
a Lua é muitos”, já que tem muitas partes. Dizer “a Terra tem um satélite” é dar
uma propriedade do conceito “satélite da Terra”, isto é, a seguinte propriedade:
“Há um c tal que “x é um satélite da Terra” é certo quando, e somente
quando, x é c”.
Isto é uma verdade astronômica; mas se, em lugar de “um satélite da Terra”,
se puser “a Lua” ou qualquer outro nome próprio, o resultado ou não tem sentido
ou é uma mera tautologia. “Um”, portanto, é uma propriedade de certos
conceitos, assim como “dez” é a propriedade do conceito “meu dedo”. Mas
mostrar que “a Terra tem um satélite, isto é, a Lua, e que, portanto, a Lua é uma”
é tão falso como dizer que “os Apóstolos eram doze; Pedro era um apóstolo;
portanto, Pedro era doze”, o que seria válido se “doze” fosse substituído por
“branco”.
As considerações acima demonstraram que, embora haja uma espécie
formal de conhecimento, a lógica e as matemáticas, a qual não se deriva da
percepção, os argumentos de Platão, com respeito a todos os outros
conhecimentos, são falazes. Isto não prova, certamente, que a conclusão é falsa;
prova apenas que ele não apresentou nenhuma razão válida para supor que seja
certa.
Chego agora à posição de Protágoras, de que o homem é a medida de todas as
coisas, ou, como é ela interpretada, de que cada homem é a medida de todas as
coisas. Aqui, é essencial decidir o nível sobre o qual a discussão deve prosseguir.
É óbvio que, para começar, temos de distinguir entre perceptos e inferências.
Quanto aos perceptos, cada homem está, inevitavelmente, confinado ao seu; o
que sabe dos perceptos dos outros, sabe-o por inferência baseada em seus
próprios perceptos, ao ouvir e ler. Os perceptos de sonhadores e loucos, como
perceptos, são tão válidos quanto os dos outros; a única objeção que se lhes faz é
a de que, como o seu contexto é pouco usual, tem probabilidade de dar lugar a
inferências falazes.
Mas, que dizer-se a respeito das inferências? São igualmente pessoais e
privadas? Em certo sentido, devemos admitir que o são. Devo acreditar naquilo
em que creio devido a alguma razão me levar a isso. É certo que a minha razão
pode ser a asserção de outra pessoa, mas isto pode ser uma razão perfeitamente
adequada; por exemplo, se sou um juiz que escuta a apresentação de uma prova.
E, por mais protagórico que eu seja, é razoável aceitar a opinião de um contador
de preferência à minha, com referência a uma série de números, pois posso ter
verificado, repetidamente, que, se a princípio não concordo com ele, um pouco
mais de cuidado me mostra que ele tinha razão. Neste sentido, posso admitir que
um outro homem é mais sábio do que eu. A posição protagórica, corretamente
interpretada, não implica a opinião de que nunca cometo erros, mas somente de
que a evidência de meus erros tem de mostrar-se a mim. O meu ser anterior
pode ser julgado exatamente como se tratasse de uma outra pessoa qualquer.
Mas tudo isso pressupõe que, quanto ao que diz respeito a inferências como coisas
opostas aos perceptos, há um certo padrão impessoal de correção. Se qualquer
inferência que por acaso eu faça é tão válida como qualquer outra, então a
anarquia intelectual que Platão deduz de Protágoras na verdade se segue. Sobre
este ponto, pois, que é importante, Platão parece ter razão, mas os empiristas
diriam que as percepções são a prova da correção, quanto à inferência na
matéria empírica.
A doutrina do fluxo universal é caricaturada por Platão, e é difícil supor que
alguém já a haja afirmado da maneira extrema pela qual ele o faz. Suponhamos,
por exemplo, que as cores que vemos se modificam continuamente. A palavra
‘‘vermelho’ se aplica a muitos matizes, e se dizemos “vejo uma coisa vermelha”,
não há razão para que isso não seja certo durante o tempo necessário para que a
gente o diga. Platão obtém o seu resultado aplicando oposições lógicas a
processos de mudança contínua, oposições tais como perceber e não perceber,
saber e não saber. Tais oposições, porém, não servem para descrever esses
processos. Suponhamos que, num dia brumoso, observamos um homem que se
afasta de nós numa estrada: seu vulto se torna cada vez menos nítido, até que
chega o momento em que se está convencido de que a gente não mais o vê, mas
há um período intermediário de dúvida. As oposições lógicas foram inventadas
para nossa conveniência, mas a mudança contínua requer um mecanismo
quantitativo cuja possibilidade Platão ignora. O que ele diz, sobre este assunto,
portanto, é coisa que nada tem a ver com o mesmo.
Ao mesmo tempo, deve-se admitir que, a não ser que as palavras, até certo
ponto, tenham significados fixos, seria impossível o entendimento entre os
homens. Aqui também, no entanto, é fácil ser demasiado absoluto. As palavras
mudam de significado: tomemos, por exemplo, a palavra “idéia”. Somente
mediante considerável processo de educação é que aprendemos a dar a essa
palavra algo semelhante ao significado que Platão lhe dava. É necessário que as
modificações verificadas no significado das palavras sejam mais lentas que as
mudanças que as palavras descrevem; mas não é necessário que não haja
mudança nas significações das palavras. Talvez isto não se aplique às palavras
abstratas da lógica e das matemáticas, mas estas palavras, como vimos, somente
se aplicam à forma, e não ao tema, das proposições. Aqui, novamente,
verificamos que a lógica e as matemáticas são peculiares. Platão, sob a
influência dos pitagóricos, acomodou em demasia outros conhecimentos nas
matemáticas. Compartilhou esse erro com muitos dos maiores filósofos, mas,
apesar disso, não deixa de ser um erro.
CAPÍTULO XIX
A Metafísica de Aristóteles
A o ler qualquer filósofo importante, mas, sobretudo, Aristóteles, é necessário
que a gente o estude de duas maneiras: com referência aos seus predecessores, e
com referência aos seus sucessores. No primeiro caso, os méritos de Aristóteles
são enormes; no segundo, suas falhas são igualmente enormes. Quanto às falhas,
porém, seus sucessores são mais responsáveis do que ele. Chegou no fim do
período criador do pensamento grego e, depois de sua morte, passaram-se dois
mil anos antes que o mundo produzisse qualquer filósofo que se lhe pudesse
comparar. No fim desse longo período, sua autoridade se tomou quase tão
indiscutível como a da Igreja e, tanto na ciência como na filosofia, se converteu
num sério obstáculo ao progresso. Desde o princípio do século XVII, quase todo o
progresso intelectual importante tinha de começar com um ataque a alguma
doutrina de Aristóteles; na lógica, isso ocorre ainda em nossos dias. Mas teria
sido, ao menos, igualmente desastroso, se qualquer de seus predecessores (com
exceção, talvez, de Demócrito) houvesse adquirido tal autoridade. Para fazer-lhe
justiça, devemos, para começar, esquecer sua excessiva fama póstuma, bem
como a condenação póstuma, igualmente excessiva, a que conduziu.
Aristóteles nasceu, provavelmente, no ano 384 A. C., em Estagira, na Trácia.
Seu pai herdara o lugar de médico de família do rei da Macedônia. Aos dezoito
anos, aproximadamente, Aristóteles chegou a Atenas, tornando-se discípulo de
Platão; permaneceu na Academia quase vinte anos, até à morte de Platão, em
348-7 A. C. Depois, viajou durante algum tempo, casando com a irmã ou a
sobrinha de um tirano chamado Hermias. (A história escandalosa conta que era
irmã ou concubina de Hermias, mas as duas versões são desmentidas pelo fato
de que ele era um eunuco). Em 343 A. C., tornou-se professor de Alexandre, que
contava então treze anos de idade, e continuou nesse emprego até que, com a
idade de dezesseis anos, Alexandre foi declarado, pelo pai, maior de idade e
nomeado regente durante a ausência de Filipe. Tudo o que se gostaria de saber
sobre as relações entre Aristóteles e Alexandre é indecifrável, tanto mais que
logo foram inventadas lendas a respeito. Existem cartas trocadas entre eles as
quais são consideradas, em geral, como falsificações. As pessoas que admiram
os dois supõem que o tutor exercia influência sobre o discípulo. Hegel acha que a
carreira de Alexandre demonstra a utilidade prática da filosofia. Quanto a isto,
diz A. W. Benn: “Seria lamentável que a filosofia não tivesse melhor testemunho
a seu favor do que o caráter de Alexandre … Arrogante, bêbado, cruel, vingativo
e enormemente supersticioso, reunia os vícios de um capitão de montanheses e o
arrebatamento de um déspota oriental”.{72}
De minha parte, embora concorde com Benn quanto ao caráter de Alexandre,
penso, não obstante, que sua obra foi extraordinariamente importante e benéfica,
já que, se não fosse por ele, toda a tradição da civilização helênica poderia ter
perecido. Quanto à influência de Aristóteles sobre ele, temos liberdade de
conjeturar o que nos pareça mais plausível. Quanto a mim, suponho-a nula.
Alexandre era um rapaz ambicioso e ardente, que não se dava bem com o pai e
que, provavelmente, se sentia impaciente com os estudos. Aristóteles era de
parecer que nenhum Estado devia ter mais de cem mil cidadãos,{73} e pregava
a doutrina da dourada mediocridade. Não posso imaginar que seu aluno o
considerasse senão um velho prosaico e pedante, imposto por seu pai para que
ele não cometesse tolices. Alexandre, é certo, tinha um respeito verdadeiramente
snob pela civilização ateniense, mas isso era comum em toda a sua dinastia, que
desejava provar que não eram bárbaros. Era uma coisa análoga ao que os
aristocratas russos do século dezenove sentiam com respeito a Paris. Isto,
portanto, não se podia atribuir à influência de Aristóteles. Nada mais vejo, no
caráter de Alexandre, que pudesse ter procedido dessa fonte.
O mais surpreendente é que Alexandre tivesse tão pouca influência sobre
Aristóteles, cujas especulações sobre política não levam em conta o fato de que a
era dos Estados-Cidades havia cedido lugar à era dos impérios. Tenho a
impressão de que, até o fim, Aristóteles o considerou como “esse rapaz
preguiçoso e voluntarioso, que jamais entendeu nada de filosofia”. De um modo
geral o contato entre esses dois grandes homens parece ter sido tão estéril como
se eles tivessem vivido em mundos diferentes.
Desde 335 A. C. Até 323 A. C. (sendo este último o ano em que Alexandre
morreu), Aristóteles viveu em Atenas. Foi durante esses doze anos que fundou
sua escola e escreveu a maioria de seus livros. À morte de Alexandre, os
atenienses rebelaram-se, voltando-se contra seus amigos, inclusive Aristóteles,
que foi acusado de impiedade, mas que, ao contrário de Sócrates, fugiu para
evitar o castigo. No ano seguinte (322) morreu.
Aristóteles, como filósofo, é diferente, sob muitos aspectos, de todos os seus
predecessores. É o primeiro a escrever como um professor: seus tratados são
sistemáticos, suas discussões divididas em capítulos; é um professor profissional,
e não um profeta inspirado. Sua obra é crítica, cuidadosa, prosaica, sem qualquer
sinal de entusiasmo báquico, os elementos órficos de Platão estão sedimentados e
misturados, em Aristóteles, com uma forte dose de senso comum; onde é
platônico, sente-se que seu temperamento natural foi dominado pelos
ensinamentos a que estava sujeito, não é apaixonado, nem, em qualquer sentido
profundo, religioso. Os erros de seus predecessores eram os erros gloriosos da
juventude tentando o impossível; seus erros são os de uma idade que não pode
livrar-se dos preconceitos habituais. Atinge o seu ponto mais alto no pormenor e
na crítica; falha nas construções mais amplas, por falta de clareza fundamental e
de fogo titânico.
É difícil decidir por onde começar a descrição da metafísica de Aristóteles,
mas talvez o melhor lugar seja a sua crítica da teoria das idéias e sua própria
doutrina alternativa dos universais. Lança contra a teoria das idéias uma série de
bons argumentos, muitos dos quais já podiam ser encontrados no Parmênides de
Platão. O argumento mais forte é o do “terceiro homem”: se um homem é um
homem porque se assemelha ao homem ideal, deve haver um, ainda mais ideal,
ao qual se parecem tanto os homens comuns como o homem ideal. Sócrates é,
ao mesmo tempo, homem e animal, e surge a questão de saber-se o homem
ideal é um animal ideal; se assim é, deve haver tantos animais ideais quantas são
as espécies de animais. É inútil seguir o tema; Aristóteles torna evidente que,
quando um número de indivíduos participa de um predicado, isso não pode ser
devido à relação de algo da mesma espécie que eles, mas algo mais ideal. Podese muito bem considerar isso como provado, mas a própria doutrina de
Aristóteles está longe de ser clara. Foi essa falta de clareza que tornou possível a
controvérsia medieval entre nominalistas e realistas.
A metafísica de Aristóteles, em termos gerais, pode ser descrita como um
Platão diluído pelo senso comum. Coisa difícil, pois Platão e o senso comum não
se misturam facilmente. Quando se procura compreendê-lo, pensa-se, a maior
parte do tempo, que ele está manifestando as idéias de uma pessoa que nada sabe
de filosofia, e que, durante o resto do tempo, está expondo o platonismo com
auxílio de um novo vocabulário. Não se pode destacar demais uma única
passagem, pois é provável que haja mais adiante uma correção ou modificação.
De um modo geral, a maneira mais fácil de se compreender tanto sua teoria dos
universais como sua teoria da matéria e da forma é expor primeiro a doutrina do
senso comum, que é a metade de sua idéia, e, depois, considerar as modificações
platônicas a que a submete.
Até certo ponto, a teoria dos universais é bastante simples. Na linguagem, há
nomes próprios e adjetivos. Os nomes próprios se aplicam a “coisas ou
“pessoas”, cada uma das quais é a única coisa ou pessoa a que se aplica o nome
em questão. O Sol, a Lua, a França, Napoleão, são únicos; não são numerosos os
exemplos de coisas a que tais nomes se aplicam. Por outro lado, palavras como
“gato’, “cão”, “homem”, aplicam-se a muitas coisas diferentes. O problema dos
universais ocupa-se dos significados de tais palavras, bem como de adjetivos, tais
como “branco”, “duro”, “redondo”, etc. Diz ele:{74} “Pelo termo “universal”,
refiro-me ao que é de tal natureza que constitui o predicado de muitos sujeitos, e
por “individual”, o que não possui tal predicado”.
O que se quer dizer com um nome próprio é uma “substância”, enquanto que
o que é significado por um adjetivo ou nome de classe, como “humano ou
“homem”, é chamado um “universal”. Uma substância é um “isto”, mas um
universal é um “tal”. (A cama eterna de Platão seria um “isto” para os que
podiam percebê-la; neste ponto, Aristóteles está em desacordo com Platão).
“Parece impossível — diz Aristóteles — que qualquer termo universal deva ser o
nome de uma substância. Porque a substância de cada coisa é o que lhe é
peculiar, o que não pertence a nenhuma outra coisa; mas o universal é comum,
já que se chama universal o que pertence a mais de uma coisa”. O ponto
essencial da questão, até agora, é que um universal não pode existir por si
mesmo, mas somente em coisas particulares.
Superficialmente, a doutrina de Aristóteles é bastante simples. Suponhamos
que eu diga “existe uma coisa come o jogo de futebol”; a maioria das pessoas
encararia tal afirmação como um truísmo. Mas se eu inferisse que o futebol
podia existir sem jogadores, dir-se-ia, com razão, que eu estava dizendo uma
tolice. Do mesmo modo, afirmar-se-ia, existe uma coisa que se chama
paternidade, mas isso somente porque existem pais; existe uma coisa como
doçura, mas somente porque existem coisas doces; existe a vermelhidão, mas
somente porque existem coisas vermelhas. Quanto a essa dependência, é
considerada como não sendo recíproca: os homens que jogam futebol ainda
existiriam mesmo que não jogassem nunca futebol; coisas que são habitualmente
doces podem tornar-se azedas; e meu rosto, que é, em geral, vermelho, pode
tornar-se pálido, sem deixar de ser o meu rosto. Assim, podemos ser levados a
concluir que o que um adjetivo quer significar depende em sua existência do
significado que se atribui a um nome próprio, mas não vice-versa. Eis aí, penso
eu, o que Aristóteles queria dizer. Sua doutrina, neste ponto, como em muitos
outros, é um preconceito de senso comum manifestado de maneira pedante.
Mas não é fácil conceder-se precisão a esta teoria. Mesmo supondo-se que o
futebol não pudesse existir sem jogadores, poderia perfeitamente existir sem este
ou aquele jogador. E posto que uma pessoa possa existir sem jogar futebol, não
poderá existir, apesar disso, sem fazer alguma coisa. A qualidade da vermelhidão
não pode existir sem algum objeto, mas pode existir sem este ou aquele objeto;
do mesmo modo, um objeto não pode existir sem alguma qualidade, mas pode
existir sem esta ou aquela qualidade. A suposta razão para a distinção entre coisas
e qualidades parece, pois, ilusória.
A verdadeira razão da distinção é, na verdade, linguística; deriva-se da sintaxe.
Há nomes próprios, adjetivos e palavras relativas; podemos dizer “João é sábio,
Jaime é tolo, João é mais alto que Jaime”. Aqui, “João” e “Jaime” são nomes
próprios, “sábio” e “tolo” são adjetivos e “mais alto” são palavras de relação. Os
metafísicos, desde Aristóteles, têm interpretado metafisicamente essas
diferenças sintáticas: João e Jaime são substâncias, sabedoria e tolice são
universais. (As palavras de relação são ignoradas ou mal interpretadas). Pode ser
que, analisadas com suficiente cuidado, as diferenças metafísicas possam ter
certa relação com as diferenças sintáticas, mas, se assim for, será somente
mediante longo processo, envolvendo, incidentalmente, a criação de uma
linguagem filosófica artificial. E essa linguagem não conterá nomes tais como
“João” e “Jaime”, nem adjetivos como “sábio” e “tolo”; todas as palavras da
linguagem ordinária se prestariam à análise, e seriam substituídas por palavras de
significação menos complexa. Até que tal trabalho seja realizado, a questão dos
particulares e universais não pode ser adequadamente discutida. E quando
chegarmos ao ponto em que possamos, finalmente, discuti-la, verificaremos que
a questão que estamos discutindo é inteiramente diferente do que supúnhamos
que fosse a princípio.
Se, portanto, não me foi possível expor com clareza a teoria dos universais de
Aristóteles, tal se deve (principalmente) ao fato de ela não ser clara. Mas
constitui, certamente, um progresso na teoria das idéias, e ocupa-se, sem dúvida,
de um problema autêntico e muito importante.
Há outro termo importante em Aristóteles e seus seguidores escolásticos: o
termo “essência”. Não é, de modo algum, sinônimo de “universal”. Vossa
“essência” é “o que sois pela vossa própria natureza”. É, pode-se dizer, aquela de
nossas qualidades que não podemos perder sem deixarmos de ser nós mesmos.
Não só uma coisa individual, mas uma espécie, tem uma essência. Voltarei a
tratar do conceito de “essência” em relação com a lógica de Aristóteles. Por ora,
observarei, simplesmente, que me parece ser uma noção intrincada, incapaz de
precisão.
O ponto imediato, na metafísica de Aristóteles, é a distinção entre “forma” e
“matéria”. (Deve-se entender que “matéria”, no sentido em que se opõe a
“forma”, é diferente de “matéria” como oposto a “espírito”).
Aqui, novamente, há uma base de senso comum para a teoria de Aristóteles,
mas aqui, mais do que no caso dos universais, as modificações platônicas são
muito importantes. Podemos começar com uma estátua de mármore; neste caso,
o mármore é a matéria, enquanto que a forma dada pelo escultor é a forma. Ou,
para usarmos os exemplos de Aristóteles: se um homem faz uma esfera de
bronze, o bronze é a matéria, e a redondeza é a forma; enquanto que, no caso de
um mar calmo, a água é a matéria e a lisura é a forma. Até aqui, tudo é simples.
Prossegue dizendo que é em virtude da forma que a matéria é uma coisa
determinada, e esta é a substância da coisa. O que Aristóteles quer dizer parece
ser simples senso comum: uma “coisa” deve ser limitada, e os limites constituem
a forma. Tomemos, por exemplo, um volume de água: qualquer parte dela pode
ser delimitada do resto, se a encerrarmos num recipiente, e, então, esta parte se
torna uma “coisa”, mas enquanto essa parte não for separada do resto da massa
homogênea não é uma “coisa”. Uma estátua é uma “coisa”, e o mármore de
que é composta não é, em certo sentido, diferente de quando era parte de um
bloco ou parte do conteúdo de uma pedreira. Nós, naturalmente, não devíamos
dizer que é a forma que confere substancialidade, mas sim que isso é devido à
hipótese atômica enraigada em nossa imaginação. Cada átomo, no entanto, se é
uma coisa, o é em virtude de ser delimitado de outros átomos, e por ter. Assim,
uma “forma”.
Chegamos, agora, a uma nova afirmação, que, à primeira vista, parece difícil.
A alma, segundo nos dizem, é a forma do corpo. É claro, aqui, que “forma” não
significa “formato”. Voltarei, mais tarde, ao sentido em que a alma é a forma do
corpo; por ora, observarei apenas que, no sistema de Aristóteles, a alma é o que
faz do corpo uma coisa, com unidade de propósito, e com os característicos que
associamos à palavra “organismo”. A finalidade de um olho é ver, mas ele não
pode ver quando separado do corpo. Com efeito, a alma é que vê.
Pareceria, então, que “forma” é o que dá unidade a uma porção da matéria, e
que essa unidade é habitualmente, senão sempre, teleológica. Mas “forma” vem
a ser muito mais do que isso, e esse mais é muito difícil.
A forma de uma coisa, dizem-nos, é sua essência e substância primária. As
formas são substanciais, embora os universais não o sejam. Quando um homem
faz uma esfera de bronze, tanto a matéria como a forma já existiam, e tudo o
que ele faz é juntá-las; assim como não faz o bronze, o homem também não faz
a forma. Nem tudo tem matéria; existem coisas eternas, e estas não têm matéria,
exceto aquelas que se movem no espaço. As coisas aumentam em realidade, ao
adquirir forma; a matéria sem forma é apenas uma potencialidade.
A idéia de que as formas são substâncias que existem independentemente da
matéria em que são exemplificadas parece expor Aristóteles aos seus próprios
argumentos contra as idéias platônicas. Entende ele a forma como algo
inteiramente diferente de um universal, mas que tem muitas das mesmas
características. A forma é mais real que a matéria; isto é uma reminiscência da
única realidade das idéias. A modificação que Aristóteles faz na metafísica de
Platão é, dir-se-ia, menor do que ele crê. Eis uma opinião expedida por Zeller,
que diz, a respeito da matéria e da forma:{75}
“A explicação final da falta de clareza de Aristóteles quanto a este assunto é,
não obstante, encontrada no fato de que ele só havia se emancipado em parte,
como veremos, da tendência de Platão de substanciar as idéias. As “formas”
tinham para ele, como as “idéias” tinham para Platão, uma existência metafísica
própria, condicionando todas as coisas individuais. E embora tenha seguido com
penetração o desenvolvimento das idéias da existência, não é menos certo que
essas idéias, principalmente no ponto em que mais se afastam da experiência e
da percepção imediata, se transformam, no fim, de um produto lógico do
pensamento humano, num pressentimento imediato de um mundo supersensível,
e no objeto, nesse sentido, de uma intuição intelectual”.
Não vejo de que maneira Aristóteles poderia ter encontrado uma resposta a
esta crítica.
A única resposta que posso imaginar seria a de que duas coisas não podem ter
a mesma forma. Se um homem faz duas esferas de bronze (teríamos que dizer),
cada uma tem sua esfericidade especial, que é substancial e particular, um
exemplo da “esfericidade” universal, mas não idêntica a ela. Não creio que a
linguagem dos trechos por mim citados apoiaria prontamente esta interpretação.
E estaria exposta à objeção de que a esfericidade particular seria, segundo a
opinião de Aristóteles, incognoscível, enquanto que é da essência da sua
metafísica que, ao ter mais forma e menos matéria, as coisas se tornam,
gradualmente, mais cognoscíveis. Isto não é compatível com o resto de suas
opiniões, a menos que a forma possa ser encarnada em muitas coisas
particulares. Se dissesse que há tantas formas de exemplos de esfericidade
quantas são as coisas esféricas, teria ele de fazer muitas modificações radicais
em sua filosofia. Sua opinião, por exemplo, de que a forma é idêntica à sua
essência, é incompatível com a saída acima sugerida.
A doutrina da matéria e da forma em Aristóteles está relacionada com a
distinção de potencialidade e autenticidade. A matéria nua é concebida como
uma potencialidade da forma; toda mudança é o que chamaríamos “evolução”,
no sentido de que depois da mudança a coisa em questão tem mais forma do que
antes. A que tem mais forma é considerada mais “autêntica”. Deus é pura forma
e pura autenticidade; Nele, portanto, não pode haver mudança. Ver-se-á que esta
doutrina é otimista e teleológica: o universo e tudo nele se desenvolve no sentido
de algo continuamente melhor do que antes.
O conceito de potencialidade é conveniente em certas relações, contanto que
seja empregado de modo que possamos traduzir nossas afirmações numa forma
em que o conceito esteja ausente. “Um bloco de mármore é uma estátua
potencial” significa que “de um bloco de mármore, mediante trabalhos
adequados, se faz uma estátua”. Mas quando a potencialidade é usada como um
conceito fundamental e irredutível, oculta sempre uma confusão de idéias. O
emprego que Aristóteles faz dele é um dos pontos fracos de seu sistema.
A teologia de Aristóteles é interessante, e se acha estreitamente ligada ao resto
da sua metafísica; “teologia”, com efeito, é um dos nomes com que nos
referimos à “metafísica”. (O livro que conhecemos por esse nome não foi assim
chamado por ele).
Há, diz ele, três espécies de substâncias: as sensíveis e perecíveis, as sensíveis,
mas não perecíveis, e as que não são nem sensíveis nem perecíveis. A primeira
classe inclui plantas e animais; a segunda, os corpos celestes (os quais, segundo
Aristóteles, não sofriam mudança alguma, exceto o movimento); e a terceira, a
alma racional no homem, e também Deus.
O argumento principal a respeito de Deus é a Causa Primeira: deve haver
algo que origina o movimento, e este algo, em si, não deve ser movido, e ser
eterno, substância e atualidade. O objeto do desejo e o objeto do pensamento, diz
Aristóteles, causam desse modo o movimento, sem que eles próprios estejam em
movimento. Assim, Deus produz o movimento por ser amado, enquanto que toda
outra causa de movimento age porque está em movimento (como uma bola de
bilhar). Deus é pensamento puro; porque o pensamento é aquilo que é melhor. “A
vida também pertence a Deus; porque a realidade do pensamento é a vida, e
Deus é essa realidade; e a realidade auto dependente de Deus é a vida
sumamente boa e eterna. Dizemos, pois, que Deus é um ser vivo, eterno,
sumamente bom, de modo que a vida e a contínua e eterna duração pertencem a
Deus; porque, isto é, Deus” (1072a).
“Está claro, pois, pelo que se disse, que existe uma substância que é eterna e
fixa e separada das coisas sensíveis. Demonstrou-se que essa substância não pode
ter nenhuma magnitude, mas que não possui partes e é indivisível, mas também
se demonstrou que é impassível e inalterável; pois todas as outras modificações
são posteriores à mudança de lugar” (1073a).
Deus não tem os atributos de uma Providência Cristã, pois seria derrogá-lo de
Sua perfeição pensar-se noutra coisa senão no qual é perfeito, isto é, Ele próprio.
“Deve ser sobre si mesmo que o divino pensa (já que é o mais excelente de todas
as coisas), e o seu pensamento é um pensamento sobre o pensamento”. (1074b).
Devemos inferir que Deus não conhece a existência de nosso mundo sublunar.
Aristóteles, como Spinoza, afirma que, embora os homens devam amar a Deus,
é impossível que Deus ame os homens.
Deus não é definível como o “motor imóvel”. Ao contrário, as considerações
astronômicas conduzem à conclusão de que há quarenta e sete ou cinquenta e
cinco motores imóveis (1074a). A relação destes com Deus não é esclarecida; a
interpretação natural, com efeito, seria a de que há quarenta e sete ou cinquenta
e cinco deuses. Porque depois de uma das passagens acima, sobre Deus,
Aristóteles prossegue: “Não devemos ignorar a questão de saber se devemos
supor uma tal substância ou mais do que uma” e, logo após, emprega o
argumento que conduz aos quarenta e sete ou cinquenta e cinco motores imóveis.
O conceito de um motor imóvel é difícil. Para o espírito moderno pareceria
que a causa de uma mudança deve ser uma mudança prévia, e que, se o
universo fosse completamente estático, permaneceria assim eternamente. Para
se compreender o que Aristóteles quer dizer, temos de levar em conta o que ele
diz, a respeito das causas. Há, segundo ele, quatro classes de causas, que foram
chamadas, respectivamente, material, formal, eficiente e final. Voltemos ao
homem que está fazendo uma estátua. A causa material da estátua é o mármore,
a causa formal é a essência da estátua a ser produzida, a causa eficiente é o
contato do cinzel com o mármore, e a causa final é o propósito que o escultor
tem em vista. Na terminologia moderna, a palavra “causa” limitar-se-ia à causa
eficiente. O motor imóvel pode ser considerado como uma causa final:
proporciona um propósito para a mudança, que é, essencialmente, uma evolução
no sentido da semelhança com Deus.
Disse que Aristóteles não era, por natureza, profundamente religioso, mas isto
só em parte é certo. Poder-se-ia, talvez, interpretar um aspecto de sua religião,
um tanto livremente, da seguinte maneira:
Deus existe eternamente, como pensamento puro, felicidade, auto realização
completa, sem quaisquer propósitos não realizados. O mundo sensível, ao
contrário, é imperfeito, mas tem vida, desejo, pensamento de uma espécie
imperfeita, e aspiração. Todas as coisas vivas têm consciência, em maior ou
menor grau, de Deus, sendo levadas à ação por admiração e amor a Deus.
Assim. Deus é a causa final de toda atividade. A mudança consiste em dar forma
à matéria, mas, quanto ao que se refere às coisas sensíveis, permanece sempre
um substrato de matéria. Somente Deus consiste de forma sem matéria. O
mundo está evoluindo continuamente no sentido de um grau maior de forma,
tornando-se, assim, progressivamente, mais semelhante a Deus. Mas o processo
não pode ser completado, porque a matéria não pode ser de todo eliminada. Esta
é uma religião de progresso e evolução, pois a perfeição estática de Deus move o
mundo somente através do amor que os seres finitos sentem por Ele. Platão era
matemático; Aristóteles, biólogo; isto explica as diferenças existentes em suas
religiões.
No entanto, isto seria uma opinião unilateral da religião de Aristóteles; ele
também possui o amor dos gregos pela perfeição estática e preferência mais
para a contemplação do que para a ação. Sua doutrina da alma ilustra este
aspecto de sua filosofia.
Se Aristóteles ensinou ou não a imortalidade em alguma forma, sempre foi
uma questão que agitou os seus comentaristas. Averroes, que afirmava que não,
tinha adeptos nos países cristãos, os mais extremos dos quais se chamaram
epicuristas, que Dante encontrou no inferno. A doutrina de Aristóteles, com
efeito, é complexa, e presta-se facilmente a mal-entendidos. Em seu livro Da
Alma, considera a alma unida ao corpo, e põe em ridículo a doutrina pitagórica
da transmigração (407b). Parece que a alma perece com o corpo: “Segue-se daí,
indubitavelmente, que a alma é inseparável do corpo” (413a); mas logo
acrescenta: “ou, em todo caso, certas partes dela”. O corpo e a alma são
apresentados como matéria e forma: “a alma deve ser uma substância no sentido
da forma de um corpo material que tem potencialidade de vida dentro dele. Mas
a substância é atualidade e, assim, a alma é a atualidade de um corpo, tal como o
caracterizamos acima 412a). A alma “é substância, no sentido que corresponde à
fórmula definitiva da essência de uma coisa. Isso significa que é a “qualidade
essencial” de um corpo, que tenha o caráter que acabamos de atribuir-lhe” (isto
é, que tenha vida) (412b). A alma é o primeiro grau de atualidade de um corpo
natural que tenha potencialmente vida. O corpo assim descrito é um corpo
organizado (412a). Perguntar se a alma e o corpo são unos, é tão sem sentido
como perguntar se a cera e a forma que o sinete lhe dá são a mesma coisa
(412b). A auto nutrição é o único poder físico que as plantas possuem (413a). A
alma é a causa final do corpo (414a).
Nesse livro, ele faz distinção entre “alma” e “espírito”, colocando o espírito
mais alto do que a alma e menos unido ao corpo. Depois de falar da relação
entre alma e corpo, diz: “O caso do espírito é diferente; parece ser uma
substância independente implantada na alma e incapaz de ser destruída” (40Sb).
E, novamente: “Não temos ainda evidência quanto ao que diz respeito ao espírito
ou à capacidade de pensar; parece ser uma classe muito diversa de alma,
diferençando-se como o eterno daquilo que perece; só ela é capaz de existir
isolada de todos os outros poderes psíquicos. Todas as outras partes da alma — é
evidente pelo que dissemos — são, apesar de certas afirmações em contrário,
incapazes de uma existência separada” (413b). O espírito é a parte de nós que
compreende as matemáticas e a filosofia; seus objetos são intemporais e,
portanto, considerados intemporais. A alma é o que move o corpo e percebe os
objetos sensíveis; caracteriza-se por auto nutrição, sensibilidade, pensamento e
mobilidade (413b); mas o espírito tem a função mais elevada do pensamento,
que não tem relação com o corpo nem com os sentidos. Daí poder o espírito ser
imortal, embora o resto da alma não possa sê-lo.
Para se compreender a doutrina aristotélica da alma, devemos lembrar-nos
de que a alma é a “forma” do corpo, e a forma espacial de uma espécie de
“forma”. Que há em comum entre a alma e a forma? Creio que o que tem em
comum é conferir unidade a certa quantidade de matéria. A parte de um bloco
de mármore que depois se transforma em estátua não é, enquanto não estiver
separada do mármore, uma “coisa”, e não tem ainda unidade. Depois que o
escultor fez a estátua, tem ela unidade, que se deriva de sua forma. Ora, o traço
essencial da alma, em virtude do qual é a forma do corpo, é que faz deste um
todo orgânico dotado de propósito, como uma unidade. Um órgão isolado tem
propósitos situados fora de si mesmo; o olho, isoladamente, não pode ver. Assim,
muitas coisas podem ser ditas em que um animal ou uma planta, considerado
como um todo, ó o sujeito, o que não se pode dizer de qualquer parte dele. É
neste sentido que a organização ou forma conferem substancialidade. Aquilo que
confere substancialidade a um animal ou a uma planta é o que Aristóteles chama
sua “alma”. Mas o “espírito” é algo diferente, ligado menos intimamente ao
corpo; talvez seja uma parte da alma, mas é uma coisa que somente uma
pequena minoria dos seres humanos possui (415a). A mente como especulação
não pode ser causa de movimento, pois jamais pensa a respeito do que é
praticável, e nunca diz o que deve ser evitado ou o que se deve procurar (432b).
Uma doutrina semelhante, embora com uma ligeira modificação na
terminologia, é exposta na Ética para Nicômaco. Há na alma um elemento que é
racional e outro que é irracional. A parte irracional é dupla: a vegetativa,
encontrada em tudo que vive, mesmo nas plantas, e a apetitiva, que existe em
todos os animais (1102b). A vida da alma racional consiste na contemplação, que
é a felicidade completa do homem, embora não seja inteiramente atingível. “Tal
vida seria demasiado alta para o homem, pois não é quanto ao que diz respeito a
homem que ele vive assim, mas quanto a alguma coisa de divino que se
apresenta nele; e tanto quanto isto é superior à nossa natureza composta, é sua
atividade superior àquela, que é o exercício de outro gênero de virtude (o gênero
prático). Se a razão é divina em comparação com o homem, então a vida é
divina, por isso mesmo, em comparação com a vida humana. Mas não devemos
seguir aqueles que, sendo homens, nos aconselham a pensar em coisas humanas
e, sendo mortais, em coisas mortais, mas devemos, tanto quanto possível, tornar a
nós próprios imortais, e forçar cada nervo a viver de acordo com o que de
melhor há em nós; porque mesmo que seja pequeno em volume, ultrapassa tudo
o mais em poder e valor (1177b).
Parece, a julgar-se por essas passagens, que a individualidade — que distingue
um homem de outro — está ligada ao corpo e à alma irracional, enquanto que a
alma racional ou mente é divina e impessoal. Um homem gosta de ostras, outro
de abacaxis; isto os distingue entre si. Mas quando pensam sobre a tabela de
multiplicar, contanto que pensem corretamente, não há diferença entre eles. O
irracional nos separa, o racional nos une. Assim, a imortalidade da mente ou da
razão não é uma imortalidade pessoal de homens isolados, mas uma participação
da imortalidade de Deus. Não parece que Aristóteles acreditasse na imortalidade
pessoal, no sentido em que foi ensinada por Platão e, depois, pelo Cristianismo.
Acreditava somente que os homens, até onde são racionais, participam do divino,
que é imortal. Está ao alcance do homem aumentar o elemento do divino em sua
natureza, e fazer isso constitui a mais alta virtude. Mas se o conseguisse
completamente, deixaria de existir como pessoa isolada. Talvez esta não seja a
única interpretação possível das palavras de Aristóteles, mas parece-me a mais
natural.
CAPÍTULO XX
A Ética de Aristóteles
No corpo das obras de Aristóteles encontram-se três tratados de ética, mas
dois deles são, em geral, atribuídos a seus discípulos. O terceiro, a Ética Para
Nicômaco, permanece, em sua maior parte, como inquestionavelmente
autêntico, mas, mesmo neste livro, há uma parte (livros V, VI e VII) que se
considera como tendo sido incorporada de alguma das obras de seus discípulos.
Ignorarei, no entanto, esta questão de controvérsia, e tratarei do livro como um
todo e como sendo de Aristóteles.
As opiniões de Aristóteles a respeito da ética representam, em sua maioria, as
opiniões predominantes entre os homens educados e experimentados de sua
época. Não se acham, como as de Platão, impregnadas de religião mística; nem
contém teorias tão pouco ortodoxas como as que se encontram na República,
referentes à propriedade e à família. Aqueles que não ficam por baixo nem se
erguem acima do nível dos cidadãos decentes e de bom procedimento,
encontrarão na Ética uma descrição sistemática dos princípios pelos quais
afirmam que a sua conduta deve ser regulada. Aqueles que exigem algo mais
ficarão desapontados. O livro atrai os homens respeitáveis de meia-idade, e foi
por eles usado, principalmente a partir do século XVII, para reprimir os ardores
e entusiasmos dos jovens. Mas, para um homem dotado de sensibilidade mais
profunda, é provável que pareça repulsivo.
O bem, dizem-nos, é a felicidade, que é uma atividade da alma. Aristóteles diz
que Platão tinha razão ao dividir a alma em duas partes, um racional e a outra
irracional. A parte irracional, ele a divide em vegetativa (que é encontrada
mesmo nas plantas), e apetitiva (que é encontrada em todos os animais). A parte
apetitiva pode ser, em certo grau, racional, quando os bens que busca são tais que
a razão os aprova. Isto é essencial para a descrição da virtude, pois a razão, em
Aristóteles, é puramente contemplativa, e não conduz, sem a ajuda do apetite, a
qualquer atividade prática.
Há duas espécies de virtude, intelectual e moral, correspondentes às duas
partes da alma. As virtudes intelectuais procedem do ensino; as virtudes morais,
do hábito. Compete ao legislador tornar os cidadãos bons, inculcando-lhes bons
costumes. Tornamo-nos justos executando atos justos, acontecendo o mesmo
quanto às outras virtudes. Sendo obrigados a adquirir bons costumes, acabaremos,
com o tempo, pensa Aristóteles, encontrando prazer em praticar boas ações. Isso
faz com que nos lembremos do discurso de Hamlet à mãe:
Finge uma virtude, se não a tens.
Esse monstro, o costume, que devora todos os sentimentos,
Sendo um demônio quanto aos hábitos, é um anjo, porque
Para executar ações belas e boas
Nos dá, do mesmo modo, um hábito de frade ou uma libré,
Que vestimos sem dificuldade.
Chegamos, agora, à famosa doutrina do justo meio-termo. Toda virtude é um
meio entre dois extremos, cada um dos quais é um vício. Prova-se isso mediante
o exame das várias virtudes. A coragem é um meio entre a covardia e a
temeridade; a liberalidade, entre a prodigalidade e a mesquinhez; o amorpróprio, entre a vaidade e a humildade; o dito espirituoso, entre a chocarrice e a
grosseria; a modéstia, entre a timidez e o descaramento. Certas virtudes parecem
não se adaptar a este esquema — como, por exemplo, a veracidade. Aristóteles
diz que esta é um meio-termo entre a jactância e a falsa modéstia (1108a), mas
isso somente se aplica à verdade a nosso próprio respeito. Não vejo de que modo
a veracidade, em qualquer sentido mais amplo, possa ser adaptada a este
esquema. Havia, certa vez, um prefeito que havia adotado a doutrina de
Aristóteles; ao terminar seu mandato, fez um discurso dizendo que procurara
seguir uma linha estrita de conduta, agindo, de um lado, com parcialidade e, de
outro, com imparcialidade. O conceito da veracidade como um meio parece
apenas um pouco menos absurdo.
As opiniões de Aristóteles sobre questões morais são sempre aquelas aceitas
convencionalmente em sua época. Sob certos aspectos, diferem das de nossa
época, principalmente quando dizem respeito a alguma forma de aristocracia.
Cremos que os seres humanos, pelo menos segundo a teoria ética, tem todos
direitos iguais, e que a justiça implica igualdade; Aristóteles acha que a justiça
implica não em igualdade, mas em proporção correta, o que somente algumas
vezes é igualdade. (1131b).
A justiça de um amo ou de um pai é coisa diferente da de um cidadão, pois
um filho ou escravo são propriedade, e não pode haver injustiça com o que se
possui (1134b). Com respeito a escravos, porém, há uma ligeira modificação
nesta doutrina em relação com a questão de saber-se é possível a um homem ser
amigo de seu escravo: “Nada há em comum entre as duas partes; o escravo é
um instrumento vivo. Como escravo, pois, não se pode ser seu amigo. Mas como
homem se pode, pois, parece ser de certa justiça, entre um homem e outro, que
ambos participem de um sistema de lei ou sejam parte de um acordo; portanto,
pode também existir amizade para com ele, quanto ao que se refere ao homem”
(1161b).
Um pai pode repudiar o filho, se este for um malvado, mas um filho não pode
repudiar o pai, pois que lhe deve mais do que lhe seria possível restituir,
principalmente a existência (1163b). Nas relações desiguais, é justo, já que todos
deveriam ser amados em proporção com o seu valor, que o inferior amasse mais
o superior que o superior ao inferior: as esposas, os filhos, os súditos, deveriam
amar mais aos esposos, aos pais e aos monarcas que estes a aqueles. Num bom
casamento, “o homem governa de acordo com o seu valor, e nos assuntos em
que um homem deve governar, mas os assuntos que competem às mulheres
devem ser-lhes entregues” (1160b). Não deve intrometer-se na jurisdição delas;
menos ainda, deverá ela imiscuir-se na dele, como, às vezes, acontece, quando
ela é herdeira.
O melhor indivíduo, segundo Aristóteles o concebe, é um indivíduo muito
diferente do santo cristão. Deve ter amor próprio e não subestimar seus próprios
méritos. Deve desprezar todo aquele que mereça ser desprezado (1124b). A
descrição do homem altivo ou magnânimo{76} é muito interessante, por mostrar
a diferença entre as éticas pagã e cristã, bem como o sentido em que Nietzsche
estava justificado ao considerar o Cristianismo como uma moral de escravos.
“O homem magnânimo, já que merece o máximo, deve ser bom no mais alto
grau; pois o homem melhor sempre merece mais, e o superior o máximo.
Portanto, o homem verdadeiramente magnânimo deve ser bom. E a grandeza
em cada virtude parece ser a característica do homem magnânimo. E seria
sumamente impróprio a um homem magnânimo fugir do perigo a abanar os
braços ao longo do corpo, ou prejudicar a outrem; pois, com que fim deveria ele
cometer atos vergonhosos, ele, para quem nada é grande? … A magnanimidade,
pois, parece ser uma espécie de coroa das virtudes; porque as engrandece, e sem
ela não existem. Portanto, é difícil ser verdadeiramente magnânimo; impossível
sê-lo sem nobreza e bondade de caráter. A honra e a desonra são, pois, o que
interessa, principalmente, ao homem magnânimo; e, diante de grandes honras,
conferidas por homens bons, mostrar-se-á moderadamente satisfeito, pensando
que elas são merecidas ou mesmo menores que seu merecimento; porque não
pode haver honra que seja digna da virtude perfeita; não obstante, ele, de
qualquer modo, as aceitará, já que nada tem de mais elevado para oferecer-lhe;
mas honrarias que provenham de gente fundamentalmente frívola, ele as
desdenhará por completo, já que não é isso que ele merece, e tampouco a
desonra, pois que, nesse caso, não será justa … O poder e a riqueza são
desejáveis por causa da honra; e para aqueles a quem mesmo as honrarias são
uma pequena coisa, as outras coisas também o devem ser. Daí o achar-se que os
homens magnânimos são desdenhosos … O homem magnânimo não corre em
busca de perigos insignificantes, mas enfrentará grandes perigos e, quando
estiver em perigo, não poupará muito a vida, sabendo que há ocasiões em que
não vale a pena conservá-la. Pertence à classe de homens que dispensa favores,
mas envergonha-se de recebê-los; porque uma dessas coisas é sinal de
superioridade, e a outra de inferioridade. É capaz de conferir, em troca,
benefícios ainda maiores, pois, assim, o benfeitor original, além de ser pago,
incorrerá em dívida para com ele … É sinal de homem magnânimo não pedir
nada, ou quase nada, mas prestar auxílio prontamente, sendo digno diante das
pessoas que gozam de altas posições, mas modesto com os da classe média; pois
é uma coisa difícil e elevada ser superior junto às primeiras, mas fácil junto a
estas últimas, e uma atitude altiva junto às primeiras não é falta de educação,
mas, entre as criaturas humildes, é tão vulgar como uma exibição de força
contra os fracos … Deve também ser franco em seu ódio e em seu amor, pois,
ocultar os próprios sentimentos, isto é, preocupar – se menos com a verdade do
que com a opinião alheia, é próprio de covardes … Fala livremente porque é
desdenhoso, e costuma dizer a verdade, exceto quando fala com ironia às
criaturas vulgares … Também não é dado à admiração, pois, para ele, nada é
grande … Não é loquaz, pois não falará nem de si mesmo nem dos outros, já que
não se preocupa de ser elogiado, nem que os outros sejam censurados...
Preferirá antes coisas belas e inúteis a coisas proveitosas e úteis … Além disso,
um caminhar lento, uma voz grave e uma dicção uniforme, são próprios do
homem magnânimo … Eis aí, pois, o homem magnânimo: o homem que está
aquém dele é indevidamente humilde e, o que vai além, é vão” (1123b —
1125a).
Causa-nos arrepios pensar como seria o homem vão.
Pense-se o que se quiser do homem magnânimo, uma coisa é certa: não pode
haver muitos como ele numa comunidade. Não me refiro apenas ao sentido
geral de que não há, provavelmente, muitos homens virtuosos, devido ao fato de
a virtude ser difícil; o que quero dizer é que as virtudes do homem magnânimo
dependem, em grande parte, de ter ele uma posição social excepcional.
Aristóteles considera a ética como um ramo da política, e não é de estranhar que,
depois de seu elogio do orgulho, a gente verifique que ele acha a monarquia a
melhor forma de governo e, depois dela, a aristocracia. Os monarcas e os
aristocratas podem ser “magnânimos”, mas os cidadãos comuns seriam risíveis,
se procurassem viver de acordo com tal padrão.
Isto sugere uma questão que é meio ética, meio política. Podemos encarar
como moralmente satisfatória uma comunidade que, por sua constituição
essencial, limita as coisas melhores a uns poucos indivíduos e requer que a
maioria se contente com o que é melhor em segundo lugar? Platão e Aristóteles
dizem que sim, e Nietzsche concorda com eles. Os estóicos, os cristãos e os
democratas dizem que não. Mas há grandes diferenças em suas maneiras de
dizer que não. Os estóicos e os primeiros cristãos consideram como o maior bem
a virtude afirmando que as circunstâncias externas não podem impedir que um
homem seja virtuoso; não há, pois, necessidade de se procurar um sistema social
justo, pois que a injustiça social afeta apenas matérias sem importância. Os
democratas, ao contrário, afirmam, habitualmente, que, ao menos quanto ao que
diz respeito à política, os bens mais importantes são o poder e a propriedade; não
podem, portanto, concordar com um sistema social que é injusto a este respeito.
O ponto de vista estóico-cristão requer uma concepção da virtude muito
diferente da de Aristóteles, já que deve afirmar que a virtude é possível tanto
para o escravo como para o amo. A ética cristã desaprova o orgulho, que
Aristóteles considera uma virtude, e louva a humildade, que ele considera um
vício. As virtudes intelectuais, que Platão e Aristóteles valorizam acima de todas
as outras, tem de ser arrancadas da lista para sempre, a fim de que o pobre e o
humilde possam ser tão virtuosos como qualquer outro. O Papa Gregório o
Grande repreendeu solenemente um bispo, por ensinar gramática.
A opinião aristotélica, de que a mais alta virtude é somente para poucos, achase logicamente ligada à subordinação da ética à política. Se o objetivo é a boa
comunidade, antes que o bom indivíduo, é possível que a boa comunidade possa
ser aquela em que haja submissão. Numa orquestra, o primeiro violino é mais
importante do que o oboé, embora ambos sejam necessários para a excelência
do conjunto. É impossível organizar-se uma orquestra tendo por base o princípio
de dar a cada homem o que lhe seria melhor como indivíduo isolado. A mesma
espécie de coisa se aplica ao governo de um grande Estado moderno, embora
democrático. Uma democracia moderna — ao contrário das da antiguidade —
confere grande poder a certos indivíduos escolhidos, presidentes ou primeiros
ministros, e deve esperar deles espécies de méritos que não se esperam dos
cidadãos comuns. Quando os indivíduos não estão pensando em termos de
religião ou de controvérsia política, tem probabilidade de achar que um bom
presidente é mais digno de respeito que um bom pedreiro. Numa democracia,
não se espera que um presidente seja exatamente como o homem magnânimo
de Aristóteles, mas espera-se, não obstante, que seja um tanto diferente do
cidadão comum, e que tenha certos méritos relacionados com as suas funções.
Tais méritos peculiares talvez não fossem considerados “éticos”, mas isso porque
usamos este adjetivo num sentido mais estreito do que o empregado por
Aristóteles.
Como um resultado do dogma cristão, a distinção entre os méritos morais e
outros se tomou muito mais acentuada do que no tempo dos gregos. É um mérito
um homem ser grande poeta, compositor ou pintor, mas não é um mérito moral;
não o consideramos mais virtuoso por possuir tais aptidões, ou com mais
probabilidade de ir para o céu. O mérito moral diz respeito apenas aos atos da
vontade, isto é, escolher-se com acerto entre os possíveis cursos de ação.{77}
Não sou merecedor de censura por não compor uma ópera, pois não sei como
fazê-lo. A opinião ortodoxa é a de que, sempre que dois cursos de ação são
possíveis, a consciência me diz qual o correto, sendo que escolher o outro é
pecado. A virtude consiste principalmente em evitar-se o pecado, mais do que
em qualquer coisa de positivo. Não há razão para se esperar que um homem
educado seja moralmente melhor do que um homem sem educação, ou um
homem inteligente melhor do que um estúpido. Dessa maneira, numerosos
méritos de grande importância social são afastados do reino da ética. O adjetivo
“anti-ético”, no uso moderno, tem um alcance muito mais estreito do que o
adjetivo “indesejável”. É indesejável ser um débil mental, não anti-ético.
Muitos filósofos modernos, no entanto, não aceitaram este conceito de ética.
Acharam que se devia primeiro definir o bom e dizer-se depois quais de nossas
ações deveriam ser tais que tendessem à realização do bom. Este ponto de vista
se assemelha mais ao de Aristóteles, que afirma que a felicidade é o bem. A
mais alta felicidade, é certo, está somente ao alcance do filósofo, mas para
Aristóteles isto não constitui objeção à teoria.
As teorias éticas podem ser divididas em duas classes, segundo considerem a
virtude como um fim ou um meio Aristóteles, em conjunto, adota a opinião de
que as virtudes são meios para um fim, isto é, a felicidade. “Sendo, pois, o fim o
que desejamos, e o meio aquele que deliberamos e escolhemos, as ações
referentes ao meio devem estar de acordo com a escolha e a voluntariedade.
Ora, o exercício das virtudes está relacionado com os meios” (1113b). Mas há
outro sentido de virtude no qual está incluído o fim da ação: “O bem humano é a
atividade da alma de acordo com a virtude numa vida completa” (1098a). Penso
que deveríamos dizer que as virtudes intelectuais são fins, mas que as virtudes
práticas são apenas meios. Os moralistas cristãos afirmam que, conquanto as
consequências das ações virtuosas são, em geral, boas, não são tão boas como as
próprias ações virtuosas, que devem ser valorizadas por si próprias, e não devido
a seus efeitos. Por outro lado, aqueles que consideram o prazer como bem,
julgam as virtudes unicamente como meios. Qualquer outra definição de bem,
exceto a sua definição como virtude, terá a mesma consequência, a de que as
virtudes são meios para outros bens que elas próprias. Nesta questão, Aristóteles,
como já foi dito, concorda de modo geral, embora não inteiramente, com
aqueles que acham que a primeira tarefa da ética é definir o bem, e que a
virtude deve ser definida como uma ação tendente a produzir o bem.
A relação entre a ética e a política dá margem a outra questão ética de
considerável importância. Supondo-se que o bem que a ação correta devia ter
em mira é o bem de toda a comunidade, ou, em última instância, de toda a raça
humana, é este bem social uma soma dos bens desfrutados pelos indivíduos, ou é
algo que pertence essencialmente ao todo, e não às partes? Podemos ilustrar o
problema pela sua analogia com o corpo humano. Os prazeres, em geral,
acham-se associados a diferentes partes do corpo, mas nós os consideramos
como pertencentes a uma pessoa em conjunto; podemos gozar de um perfume
agradável, mas sabemos que o nariz somente não poderia gozá-lo. Há quem não
concorde com isto, afirmando que, numa comunidade organizada a rigor, há,
analogamente, excelências que pertencem ao todo, e não a quaisquer das partes.
Se são metafísicos, poderão afirmar, como Hegel, que qualquer qualidade que é
boa constitui um atributo de universo como um todo; mas, em geral,
acrescentarão que é menos errado atribuir-se o que é bom a um Estado do que a
um indivíduo. Logicamente, essa opinião pode ser exposta da seguinte maneira:
podemos atribuir ao Estado vários predicados que não podem ser atribuídos a
seus membros isolados — como o ser populoso, extenso, poderoso, etc. O aspecto
que estamos considerando coloca os predicados éticos nesta classe, e diz que só
derivativamente pertencem a indivíduos. Um homem pode pertencer a um
Estado populoso; mas ele, dizem, pode não ser nem bom nem populoso. Esta
opinião, amplamente defendida pelos filósofos alemães, não pertence a
Aristóteles, exceto, possivelmente, em certo grau, em sua concepção da justiça.
Uma parte considerável da Ética trata da discussão da amizade, incluindo
todas as relações que envolvem afeto. A amizade perfeita só é possível entre os
bons, e é impossível ser amigo de muita gente. Não se deve ser amigo de uma
pessoa de posição mais elevada do que a gente, a menos que ela seja também de
virtude mais elevada, o que justificará o respeito que se lhe testemunhe. Vimos
que, nas relações desiguais, tais como as de marido e mulher, ou pai e filho, o
superior deve ser o mais amado. É impossível ser amigo de Deus, pois Ele não
pode amar-nos. Aristóteles examina se um homem pode ser amigo de si mesmo,
e chega à conclusão de que isso é inteiramente impossível se tratar de um
homem bom: os maus, afirma ele, detestam, com frequência, a si próprios. O
homem bom deveria amar a si próprio, mas nobremente (1169a). Os amigos
constituem um conforto no infortúnio, mas não se deveria torná-los infelizes
procurando-se sua compaixão, como fazem as mulheres e os homens
efeminados (1171b). Não é só no infortúnio que os amigos são desejáveis, pois o
homem feliz precisa de amigos com quem compartilhar sua felicidade.
“Ninguém escolheria o mundo todo sob a condição de estar só, já que o homem
é uma criatura política, e faz parte de sua natureza viver na companhia dos
demais” (1169b). Tudo o que se diz sobre a amizade é sensato, mas não existe
uma única palavra que se eleve acima do senso comum.
Aristóteles mostra de novo o seu bom senso ao discutir o prazer, que Platão
tratou de maneira um tanto ascética. O prazer, no sentido em que Aristóteles
emprega a palavra, é diferente da felicidade, embora não possa haver felicidade
sem prazer. Há, diz ele, três opiniões sobre o prazer:
(1) que jamais é bom; (2) que, às vezes, é bom, mas quase sempre,
mau; (3) que o prazer é bom, mas não é o melhor. Rejeita a primeira
baseado na afirmação de que o sofrimento é, sem dúvida, mau e,
portanto, o prazer deve ser bom. Diz muito justamente, que é tolice
afirmar-se que o homem pode ser feliz no meio de tormentos: é
necessário para a felicidade um certo grau de boa sorte exterior.
Participa também da opinião de que todos os prazeres são corporais;
todas as coisas têm algo de divino e, portanto, certa capacidade para
prazeres mais elevados. Os homens bons desfrutam de prazer, a menos
que sejam infelizes, e Deus goza sempre de um único e simples prazer
(1152-1154).
Há uma outra discussão sobre o prazer na última parte do livro, que não é
inteiramente compatível com a anterior. Argumenta-se, nela, que existem
prazeres maus, os quais, no entanto, não são prazeres para as pessoas boas
(1173b); que talvez os prazeres difiram em qualidade (ibid.); e que os prazeres
são bons ou maus segundo estejam relacionados com atividades boas ou más
(1175b). Há coisas mais apreciadas que o prazer; ninguém se sentiria contente de
seguir pela vida com um intelecto de criança, mesmo que isso fosse agradável.
Cada animal tem o seu próprio prazer, e o prazer próprio do homem está ligado à
razão.
Isto conduz à única doutrina do livro que não é simples senso comum. A
felicidade reside na atividade virtuosa, e a felicidade perfeita consiste na melhor
atividade, que é contemplativa. A contemplação é preferível à guerra, à política,
ou a qualquer carreira prática, pois permite o lazer, e o lazer é essencial à
felicidade. A virtude prática produz apenas uma espécie secundária de felicidade;
a felicidade suprema está no exercício da razão, pois a razão, mais do que
qualquer outra coisa, é o homem. O homem não pode ser inteiramente
contemplativo, mas, até onde o é, participa da vida divina. “A atividade de Deus,
que sobrepassa a todas em bem-aventurança, deve ser contemplativa”. De todos
os seres humanos, o filósofo é o mais divino em sua atividade e, portanto, o mais
feliz e o melhor:
“Aquele que exerce sua razão e a cultiva parece achar-se, ao mesmo tempo,
no melhor estado de espírito e ser o mais querido dos deuses. Porque se os deuses
se ocupam de algum modo com os assuntos humanos, como se supõe que o
fazem, seria razoável que se deleitassem com o que fosse melhor e tivesse mais
afinidade com eles (isto é, a razão), e que recompensassem os que mais amam e
respeitam tais coisas, importando-se com as coisas que lhes são caras e agindo, a
um tempo, com correção e nobreza. E é manifesto que todos esses atributos
pertencem, mais que a ninguém, ao filósofo. Ele, portanto, é o predileto dos
deuses. E aquele que assim for, será, também, presumivelmente, o mais feliz; de
maneira que, desse modo, o filósofo também será, mais do que ninguém, feliz
(1179a).
Esta passagem constitui, virtualmente, a peroração da Ética; os poucos
parágrafos que se seguem dizem respeito à transição para a política.
Procuremos, agora, decidir o que devemos pensar dos méritos e deméritos da
Ética. Ao contrário de muitos outros assuntos tratados pelos filósofos gregos, a
ética não fez nenhum progresso definitivo, no sentido de descobrimentos
indiscutíveis; nada na ética é conhecido no sentido científico. Não há razão,
portanto, para que um antigo tratado seja, sob qualquer aspecto, inferior a um
moderno. Quando Aristóteles fala de astronomia, podemos afirmar,
definitivamente, que ele está errado; mas quando fala a respeito de ética não
podemos dizer, no mesmo sentido, se está equivocado ou se tem razão. Falandose de um modo geral, há três perguntas que podem ser feitas quanto à ética de
Aristóteles, ou de qualquer outro filósofo: (1) É ela compatível com o seu próprio
conteúdo? (2) É coerente com o resto das opiniões do autor? (3) Responde a
problemas éticos que estejam em consonância com os nossos próprios
sentimentos éticos? Se a resposta à primeira ou à segunda pergunta for negativa,
o filósofo em questão é culpado de algum erro intelectual. Se, porém, for
negativa a resposta à terceira pergunta, não temos o direito de dizer que ele está
equivocado; temos apenas o direito de dizer que não nos agrada.
Examinemos essas três questões separadamente, com respeito à teoria ética
exposta na Ética Para Nicômaco.
(1) De um modo geral, o livro é coerente consigo mesmo, exceto sob
alguns aspectos pouco importantes. A doutrina de que o bem é a
felicidade, e de que a felicidade consiste numa atividade bem-sucedida,
é bem elaborada. A doutrina de que cada virtude é um meio entre dois
extremos, embora desenvolvida de maneira muito engenhosa, é menos
feliz, já que não se aplica à contemplação intelectual, que, segundo nos
dizem, é a melhor de todas as atividades. Pode-se afirmar, no entanto,
que a aplicação da doutrina do meio termo tem em vista somente as
virtudes práticas, e não as do intelecto. Talvez, para se apresentar outro
ponto, a posição do legislador seja um tanto ambígua. Cumpre-lhe fazer
com que as crianças e os jovens adquiram o hábito de praticar boas
ações, o qual, no fim, os levará a encontrar prazer na virtude e a agir
virtuosamente sem necessidade de compulsão legal. É evidente que o
legislador poderia, igualmente, fazer com que os jovens adquirissem
maus hábitos; para que isso seja evitado, deve possuir toda a sabedoria
de um guardião platônico; e, se não for evitado, o argumento de que a
vida virtuosa é agradável cairá por terra. Este problema, porém, talvez
pertença mais à política do que à ética.
(2) A ética de Aristóteles é, sob todos os aspectos, compatível com a
sua metafísica. Com efeito, suas teorias metafísicas são, por si sós, a
expressão de um otimismo ético. Acredita na importância científica das
causas finais, e isso implica a crença de que o propósito governa o curso
do desenvolvimento do universo. Acha ele que as mudanças são, em sua
maioria, de molde a representar um aumento de organização ou
“forma”, e que, no fundo, as ações virtuosas são aquelas que favorecem
tal tendência. É certo que uma grande parte de sua ética prática não é
particularmente filosófica, mas simplesmente o resultado da observação
das questões humanas; todavia, essa parte de sua doutrina, embora possa
ser independente de sua metafísica, não é incompatível com ela.
(3) Quando chegamos a comparar os gostos éticos de Aristóteles com
os nossos, verificamos, em primeiro lugar, como já se observou, uma
aceitação da desigualdade que repugna ao sentimento moderno. Não só
não há nele objeções à escravidão, ou à superioridade de maridos e pais
sobre esposas e filhos, como ainda afirma que o que é melhor se destina
apenas a alguns poucos, homens magnânimos e filósofos. Poder-se-ia
depreender daí que a maioria dos homens constitui simplesmente um
meio para a produção de uns poucos legisladores e sábios. Kant
afirmava que cada ser humano constitui um fim em si mesmo, e isto
pode ser aceito como uma expressão do critério introduzido pelo
Cristianismo. Há, porém, uma dificuldade lógica na opinião de Kant, já
que não apresenta os meios de se chegar a uma decisão quando os
interesses de dois homens se chocam. Se cada qual é um fim em si
mesmo, como chegar-se a um princípio para determinar qual deles
deverá ceder caminho? Um tal princípio deve dizer mais respeito à
comunidade que ao indivíduo. No sentido mais amplo da palavra, terá de
ser um princípio de “justiça”. Bentham e os utilitaristas interpretam
“justiça” como “igualdade”: quando os interesses de dois homens se
chocam, o curso certo é o que produz o maior total de felicidade,
independentemente de qual dos dois o apreciará, ou como será
compartilhada por eles. Se dá mais ao homem melhor que ao pior, isto
é, porque, no fim de contas, a felicidade geral é aumentada, ao
recompensar-se a virtude e castigar-se o vício, e não devido à doutrina
ética segundo a qual o bom merece mais do que o mau. A “justiça”, sob
este aspecto, consiste em considerar somente a soma de felicidade em
questão, sem favorecer a um indivíduo ou classe em lugar de outro. Os
filósofos gregos, inclusive Platão e Aristóteles, tinham uma concepção
diferente de justiça, que é a que ainda hoje prevalece amplamente.
Achavam — a princípio por razões decorrentes da religião — que cada
coisa ou pessoa tinha a sua própria esfera, e que ultrapassar a mesma
era “injusto”. Certos homens, em virtude de seu caráter e aptidões, tem
uma esfera mais ampla que outros, e não há injustiça se desfrutarem de
um quinhão maior de felicidade. Este conceito é aceito por Aristóteles
como coisa assente, mas sua base na religião primitiva, que é evidente
nos primeiros filósofos, já não é mais evidente em seus escritos.
Há em Aristóteles uma ausência quase completa do que se poderia chamar
benevolência ou filantropia. Os sofrimentos da humanidade, até o ponto em que
tem deles conhecimento, não o comovem; considera-os, intelectualmente, como
um mal, mas não há sinal de que lhe causem infelicidade, exceto quando
acontece de os sofredores serem seus amigos.
De maneira mais geral, há uma pobreza emocional da Ética, que não se
encontra nos filósofos antigos. Há algo indevidamente delambido e confortável
nas especulações de Aristóteles sobre os assuntos humanos; tudo o que faz com
que os homens sintam um interesse apaixonado pelos seus semelhantes parece
ter sido esquecido. Mesmo a sua descrição da amizade é morna. Não revela sinal
algum de haver passado por uma dessas experiências que tornam difícil à gente
manter o equilíbrio mental; todos os aspectos mais profundos da vida moral lhe
são, ao que parece, desconhecidos. Deixa de lado, pode-se dizer, toda a esfera da
experiência humana que diz respeito à religião. O que tem a dizer é só o que
serve para o uso de homens acomodados e de paixões fracas; mas nada tem a
dizer àqueles que são possuídos por um deus ou por um demônio, ou a quem os
infortúnios exteriores conduzam ao desespero. Por essas razões, na minha
opinião, a sua Ética, apesar de sua fama, carece de importância intrínseca.
CAPITULO XXI
A Política de Aristóteles
A Política de Aristóteles é não só interessante, como, também, importante:
interessante porque mostra os preconceitos comuns dos gregos educados de sua
época, e importante como fonte de muitos princípios que continuaram a exercer
influência até o fim da Idade Média. Não creio que haja nela muita coisa que
possa ser de utilidade prática para um estadista de nossa época, mas há muita
coisa que lança luz sobre os conflitos dos partidos em diferentes partes do mundo
helênico. Não há uma percepção muito grande dos métodos de governo nos
Estados não helênicos. Há, é certo, alusões ao Egito, Babilônia, Pérsia e Cartago,
mas, exceto no caso de Cartago, são elas um tanto superficiais. Não há
referência a Alexandre, e nem mesmo a mais leve consciência da completa
transformação que ele estava realizando no mundo. Toda a discussão diz respeito
às Cidades – Estados, e não há previsão quanto ao fato de se tornarem obsoletas.
A Grécia, devido à sua divisão em cidades independentes, era um laboratório de
experimentos políticos; mas nada do que tinha importância nesses experimentos
existiu desde o tempo de Aristóteles até o desenvolvimento das cidades italianas
na Idade Média. Sob muitos aspectos, a experiência a que Aristóteles apela é
mais importante para o mundo comparativamente moderno do que para o que
existiu, durante mil e quinhentos anos, depois que o livro foi escrito.
Há muitas notas sobre incidentes curiosos, algumas das quais podem ser
destacadas, antes que nos entreguemos ao exame de sua teoria política. Ficamos
sabendo que Eurípides, quando se encontrava na corte de Arquelau, rei da
Macedônia, foi acusado de mau hálito por um certo Decamnico. Para aplacar
seu furor, o rei deu-lhe permissão para açoitar Decamnico, o que ele fez.
Decamnico, depois de aguardar muitos anos, participou de uma conspiração
bem-sucedida que tinha por objetivo matar o rei; mas, nessa época, Eurípides já
havia morrido. Somos informados de que as crianças devem ser concebidas no
inverno, quando o vento sopra do Norte; que se deve ter o cuidado de evitar as
indecências, porque “as palavras vergonhosas conduzem a atos vergonhosos”, e
que a obscenidade não deve jamais ser tolerada, exceto nos templos, onde a lei
permite até mesmo a pornografia. Os indivíduos não devem casar muito jovens,
pois, se o fizerem, os filhos serão fracos e do sexo feminino, as esposas se
tornarão devassas e os maridos serão prejudicados em seu desenvolvimento
físico. A idade certa para o casamento é de trinta e sete anos para os homens e
dezoito para as mulheres.
Ficamos sabendo de que maneira Tales, tendo sido escarnecido pela sua
pobreza, comprou todas as prensas de azeite a prestações, podendo, então, cobrar
uma taxa pelo seu uso. Isto, ele o fez para mostrar que os filósofos podem ganhar
dinheiro, e que, se permanecem pobres, é porque tem algo mais importante
sobre que pensar que a riqueza. Tudo isso, no entanto, ele o diz de passagem; já é
tempo de tratar de assuntos mais sérios.
O livro começa por assinalar a importância do Estado; este é a mais alta
espécie de comunidade, e tem por objetivo o bem mais elevado. Por ordem de
tempo, a família vem primeiro; é construída sobre as duas relações fundamentais
de homem e mulher, amo e escravo, sendo que ambas são naturais. Várias
famílias reunidas constituem uma aldeia; várias aldeias, um Estado, contanto que
a combinação seja suficientemente grande para bastar a si mesma. O Estado,
embora posterior em tempo à família, é anterior a ela, e mesmo ao indivíduo,
pela sua natureza; porque “o que uma coisa é, quando plenamente desenvolvida,
é o que chamamos sua natureza”, e a sociedade humana, completamente
desenvolvida, é um Estado, e o todo é anterior à parte. A concepção aqui
implícita é a de organismo: uma mão, quando o corpo é destruído, não é mais
uma mão. A implicação e a de que uma mão deve ser definida pelo seu
propósito – o de agarrar – o qual só pode ser executado quando ligada a um corpo
vivo. Do mesmo modo, um indivíduo não pode cumprir o seu propósito, a menos
que faça parte de um Estado. Aquele que fundou o Estado, diz Aristóteles, foi o
maior dos benfeitores; porque sem lei o homem é o pior dos animais, e a lei
depende, para sua existência, do Estado. O Estado não é uma mera sociedade
para a troca e a prevenção do crime: “O fim do Estado é tornar a vida boa … E o
Estado é a união de famílias e aldeias numa vida perfeita e autossuficiente, com
o que queremos dizer uma vida feliz e honrada” (1280b). “Uma sociedade
política existe para a causa de ações nobres, e não de mero companheirismo”
(1281a).
Como o Estado se compõe de lares, cada um dos quais consiste numa família,
a discussão de política deveria começar na família. A maior parte desta discussão
se ocupa da escravidão, pois, na antiguidade, os escravos eram sempre
reconhecidos como parte da família. A escravidão é conveniente e justa, mas o
escravo deve ser naturalmente inferior ao amo. Desde o nascimento, certos
indivíduos são destinados à sujeição; outros, a mandar; o homem que não é por
natureza dono de si mesmo, mas que pertence a outro homem, é por natureza
escravo. Os escravos não deviam ser gregos, mas de uma raça inferior, dotada
de menos espírito (1255a 1330a). Os animais domésticos são muito melhores
quando governados pelo homem, e o mesmo acontece com aqueles que são, por
natureza, inferiores, quando dirigidos por seus superiores. Poder-se-ia perguntar
se a prática de tornar escravos os prisioneiros de guerra são justificados; o poder,
como o que conduz à vitória na guerra, parece implicar virtude superior, mas
nem sempre é este o caso. A guerra, porém, é justa, quando se luta contra
homens que, embora destinados pela natureza a ser governados, não querem
submeter-se (1256b); e, neste caso, é implícito, seria justo tornar escravos os
vencidos. Isto pareceria suficiente para justificar qualquer conquistador que já
viveu, pois, nação alguma admitirá que é destinada pela natureza a ser
governada, sendo que a única prova quanto às intenções da natureza deve provir
do resultado da guerra. Em cada guerra, portanto, os vencedores estão com a
razão e os vencidos estão errados. Muito satisfatório, isto!
Vem, logo a seguir, uma discussão sobre o comércio, que influenciou
profundamente a casuística escolástica. Cada coisa tem dois usos, um próprio e
outro impróprio; um sapato, por exemplo, pode ser usado, o que constitui o seu
próprio uso, ou trocado, o que é um uso impróprio. Deduz-se daí que há algo
degradante num sapateiro, que deve trocar seus sapatos para viver. O comércio a
varejo, diz-nos ele, não é uma parte natural da arte de adquirir riqueza (1257a). A
maneira natural, é adquirir-se riqueza mediante a hábil direção da casa e da
terra. Para a riqueza que pode ser adquirida deste modo há um limite; mas para a
que pode ser feita pelo comércio não há limite algum. O comércio tem que ver
com o dinheiro, mas a riqueza não é a aquisição de moedas. A riqueza
proveniente do comércio é justamente odiada, pois não é natural. “A espécie
mais odiada, com grande razão, é a usura, que tira proveito do próprio dinheiro, e
não do objeto natural dele, pois o dinheiro é destinado ao uso na troca, mas não
para ser aumentado com interesses … De todos os modos de se adquirir riqueza,
este é o menos natural” (1258).
O que adveio deste dito pode ser lido na obra Religion and the Rise of
Capitalism (A Religião e o Advento do Capitalismo), de Tawney. Mas, embora esta
história seja fidedigna, seu comentário revela uma tendência a favor de uma
situação pré-capitalística.
“Usura” significa todo empréstimo de dinheiro a juros, e não só, como agora,
empréstimo a juros exorbitantes. Desde o tempo dos gregos até nossos dias, a
humanidade, ou, pelo menos, a parte mais economicamente desenvolvida dela,
esteve dividida em credores e devedores; os devedores têm desaprovado os
interesses, e os credores os tem aprovado. Em quase todos os tempos, os
proprietários de terras têm sido devedores, e os homens empenhados no
comércio, credores. As opiniões dos filósofos, com poucas exceções, têm
coincidido com os interesses pecuniários de sua classe. Os filósofos gregos
pertenciam ou eram empregados pela classe proprietária de terras; por isso,
desaprovavam tais interesses. Os filósofos medievais eram eclesiásticos, e as
propriedades da Igreja consistiam, principalmente, de terras; por isso, não viram
razões para fazer uma revisão na opinião de Aristóteles. Sua objeção à usura foi
reforçada pelo antissemitismo, pois o capital mais fluido era judeu. Os
eclesiásticos e os barões tinham querelas, às vezes bastante sérias; mas podiam
unir-se contra o perverso judeu que os havia ajudado a vencer uma má colheita
e achava que merecia alguma recompensa pela sua poupança.
Com a Reforma, a situação mudou. Muitos dos protestantes mais ardentes
eram homens de negócio, para quem emprestar dinheiro a juros era essencial.
Por conseguinte, primeiro Calvino e, depois, outros líderes protestantes,
sancionaram tal interesse. Por fim, a Igreja católica foi obrigada a seguir o jogo,
pois as antigas proibições não se adaptavam ao mundo moderno. Os filósofos,
cujas rendas derivavam da aplicação de capital em universidades, foram
favoráveis ao empréstimo de dinheiro a juros, desde que deixaram de ser
eclesiásticos e, por isso, se ligaram à propriedade rural. Em todos os períodos,
houve grande riqueza de argumentos teóricos em favor dessa conveniente
opinião econômica.
A Utopia de Platão é criticada por Aristóteles por vários motivos. Há primeiro
o comentário muito interessante que dá excessiva unidade ao Estado, e que o
converteria num indivíduo. Depois vem a espécie de discussão contra a proposta
abolição da família, que naturalmente ocorre a todo leitor. Platão acha que, por
dar simplesmente o título de “filho” a todo aquele cuja idade tome possível a sua
situação de filho, um homem adquire para com toda a multidão os sentimentos
que os homens têm atualmente para com os seus filhos verdadeiros e, vice-versa,
quanto ao que se refere ao título de “pai”. Aristóteles, ao contrário, diz que o que
é comum ao maior número recebe os menores cuidados, e que, se os “filhos”
forem comuns a muitos “pais”, serão negligenciados em comum; é melhor ser,
na realidade, um primo do que um “filho” no sentido de Platão. O plano de
Platão tornaria o amor insípido. Há, depois, uma curiosa discussão, segundo a
qual, já que abster-se de adultério constitui uma virtude, seria uma pena ter-se
um sistema social que abolisse essa virtude e o vício correspondente (1263b).
Perguntasse-nos, então: se as mulheres são comuns, quem dirigirá a casa?
Escrevi, certa vez, um ensaio, intitulado “A Arquitetura e o Sistema Social”, no
qual assinalei que todos aqueles que ligam o comunismo à abolição da família
também advogam casas comunais para o maior número de indivíduos — casas
dotadas de cozinhas, refeitórios e creches comunais. Este sistema pode ser
descrito como mosteiros sem celibato. É essencial para a execução dos planos de
Platão, mas não é certamente mais impossível do que muitas outras coisas que
ele recomenda.
O comunismo de Platão aborrece Aristóteles. Conduziria, diz ele, à irritação
contra os indivíduos preguiçosos, e a toda a sorte de disputas comuns entre
companheiros de viagem. É melhor que cada qual trate de seus próprios assuntos.
A propriedade deveria ser privada, mas as pessoas deviam ser educadas, de tal
modo, dentro de um espírito de benevolência, que permitissem que o seu uso
fosse amplamente comum. A benevolência e a generosidade são virtudes, e, sem
a propriedade privada, são impossíveis. Finalmente, diz-nos que, se os planos de
Platão fossem bons, alguém já teria pensado neles antes.{78} Não concordo com
Platão, mas se há algo que me pudesse fazer pensar o contrário, seriam os
argumentos de Aristóteles contra ele.
Como vimos na parte referente à escravidão, Aristóteles não crê na igualdade.
Admitindo-se, porém, a sujeição dos escravos e das mulheres, fica ainda de pé a
questão de saber-se todos os cidadãos deviam ser politicamente iguais. Alguns
homens, diz ele, julgam isso desejável, baseados no fato de que todas as
revoluções voltam à regulamentação da propriedade. Rejeita esse argumento,
afirmando que os maiores crimes são devidos antes ao excesso que à
necessidade; nenhum homem se torna tirano a fim de evitar a sensação de frio.
Um governo é bom quando tem em vista o bem de toda a comunidade; mal
quando se ocupa apenas de si próprio. Há três classes de governo que são boas: a
monarquia, a aristocracia, e o governo constitucional (ou constituição); há três
que são más: a tirania, a oligarquia e a democracia. Há, ainda, muitas outras
formas mistas intermediárias. Observar-se-á que os governos bons e maus se
definem pelas qualidades éticas dos detentores do poder, e não pela forma da
constituição. Isto, porém, somente em parte ó verdadeiro. Uma aristocracia é um
governo de homens de virtude, uma oligarquia é um governo de ricos, e
Aristóteles não considera a virtude e a riqueza como sendo estritamente
sinônimos. O que ele afirma, de acordo com a doutrina do meio-termo dourado,
é que uma competência moderada tem mais probabilidade de estar associada à
virtude; “A humanidade não adquire ou preserva a virtude com a ajuda de bens
externos, mas sim os bens externos com a ajuda da virtude, e a felicidade, quer
consista no prazer ou na virtude, ou em ambos, é encontrada com mais
frequência naqueles que tem a mente e o caráter mais altamente cultivados, e
possuem apenas uma parte moderada de bens externos, do que nos que possuem
bens externos de uma extensão inútil, mas são deficientes quanto ao que se refere
às mais altas qualidades” (1323a e b). Há, portanto, uma diferença entre o
governo dos melhores (aristocracia) e o dos mais ricos (oligarquia), posto que os
melhores possuam, provavelmente, apenas fortunas moderadas. Há também
uma diferença entre democracia e constituição, além da diferença ética no
governo, pois o que Aristóteles chama “constituição” conserva certos elementos
oligárquicos (1293b). Mas, entre a monarquia e a tirania, a única diferença é
ética.
Ressalta a diferença existente entre oligarquia e democracia, devido ao estado
econômico do partido governante: há oligarquia quando os ricos governam sem
preocupar-se com os pobres, e democracia quando o poder está nas mãos
desnecessitados, e estes não levam em consideração o interesse dos ricos.
A monarquia é melhor que a aristocracia, a aristocracia melhor que a
constituição. Mas a corrupção do melhor é o pior; portanto, a tirania é pior que a
oligarquia, e a oligarquia que a democracia. Desta maneira, Aristóteles chega a
uma hábil defesa da democracia; porque os mais autênticos governos são maus
e, por isso, entre os governos autênticos, as democracias tendem para o melhor.
A concepção grega da democracia era, sob muitos aspectos, mais extrema
que a nossa; Aristóteles, por exemplo, diz que eleger magistrados é oligárquico,
ao passo que é democrático designá-los por sorteio. Nas democracias extremas,
a assembleia dos cidadãos estava acima da lei, e decidia cada questão
independentemente. As cortes de justiça atenienses eram compostas de grande
número de cidadãos escolhidos por sorteio, sem ajuda de qualquer jurista;
estavam, por certo, sujeitos a ser levados pela eloquência ou paixão partidária.
Quando a democracia é criticada, deve compreender-se o que isso significa.
Há uma longa discussão sobre as causas das revoluções. Na Grécia, as
revoluções eram tão frequentes como até há pouco tempo na América Latina e,
portanto, Aristóteles tinha uma copiosa experiência da qual tirar as suas
deduções. A causa principal era o conflito entre oligarcas e democratas. A
democracia, diz Aristóteles, surge da crença de que os homens que são
igualmente livres devem ser iguais sob todos os aspectos; a oligarquia, do fato de
que os homens que são superiores em alguns aspectos reivindicam demais para si
próprios. Ambas possuem uma espécie de justiça, mas não a melhor espécie.
“Por isso as duas partes, sempre que a sua participação no governo não está de
acordo com as suas idéias preconcebidas, instigam a revolução (1301a). Os
governos democráticos são menos propensos a revoluções que as oligarquias,
porque os oligarcas podem estar em atrito entre si. Os oligarcas parecem ter sido
indivíduos vigorosos. Em algumas cidades, segundo nos dizem, faziam um
juramento: “Serei um inimigo do povo, e arquitetarei todo o mal que possa contra
ele”. Hoje em dia, os reacionários não são assim tão francos.
As três coisas necessárias para evitar-se a revolução são: a propaganda do
governo na educação, o respeito pela lei, inclusive nas pequenas coisas, e a
justiça na lei e na administração, isto é, “igualdade segundo a proporção, e que
cada homem goze do que lhe pertence” (1307a, 1307b 1310a). Parece que
Aristóteles jamais percebeu a dificuldade da “igualdade segundo a proporção”.
Para que haja verdadeira justiça, a proporção deve ser de virtude. Ora, é difícil
medir-se a virtude, que é, ademais, uma matéria de controvérsia dos partidos. Na
prática política, portanto, a virtude tende a ser medida pela renda; a distinção
entre a aristocracia e a oligarquia, que Aristóteles tenta fazer, só é possível onde
há uma nobreza hereditária bem estabelecida. Mesmo então, logo que exista uma
grande classe de homens ricos que não são nobres, estes têm de ser admitidos no
poder, devido ao receio de que façam uma revolução. A aristocracia hereditária
não pode reter por muito tempo o poder, exceto nos lugares onde a terra é quase
que a única fonte de riqueza. Toda desigualdade social, em última análise, é uma
desigualdade de renda. Isto é parte do argumento a favor da democracia: que a
tentativa de se fazer uma “justiça proporcional”, baseada em qualquer outro
mérito que não seja a riqueza, cairá seguidamente por terra. Os defensores da
oligarquia pretendem que a renda é proporcional à virtude; o profeta disse que
nunca viu um homem correto esmolando seu pão, e Aristóteles acha que os
homens bons dispõem mais ou menos da renda que lhes corresponde, não muito
grande nem muito pequena. Mas tais opiniões são absurdas. Qualquer outra
espécie de “justiça” que não seja a igualdade absoluta recompensará, na prática,
alguma outra qualidade que não a virtude e, por isso, deve ser condenada.
Há uma parte interessante sobre a tirania. Um tirano deseja riquezas, ao passo
que um rei deseja honrarias. O tirano tem guardas que são mercenários,
enquanto que o rei possui guardas que são cidadãos. Os tiranos são, em sua maior
parte, demagogos, que adquirem o poder mediante promessas de proteger o povo
contra os notáveis. Num tom ironicamente maquiavélico, Aristóteles explica o
que um tirano deve fazer para reter o poder. Deve impedir o aparecimento de
qualquer pessoa de mérito excepcional, se necessário mediante execução ou
assassínio. Deve proibir as refeições em comum, clubes, ou qualquer educação
que nossa produzir sentimentos hostis. Não deve haver assembleias nem
discussões literárias. Deve impedir que os indivíduos conheçam bem uns aos
outros, e obrigá-los a viver em público junto às portas de seu palácio. Deve
empregar espias, como os detetives femininos de Siraeusa. Deve semear
animosidades e empobrecer seus súditos. Deve mantê-los ocupados em grandes
obras, como fizeram os reis do Egito ao mandar construir as pirâmides. Deve dar
poder às mulheres e aos escravos, a rim de transformá-los em delatores. Deve
fazer guerras, para que os seus súditos tenham algo que fazer e sintam sempre a
necessidade de um líder (1313a e b).
É uma reflexão melancólica que esta passagem seja, de todo o livro, a mais
apropriada para os nossos dias. Aristóteles conclui que não há perversidade
demasiado grande para um tirano. Há, no entanto, um outro método de
preservar-se a tirania, isto é, mediante a moderação e a aparência religiosa. Não
decide qual dos dois métodos será, provavelmente, o mais bem-sucedido.
Há um longo argumento para provar que a conquista estrangeira não é a
finalidade do Estado, o que demonstra que muita gente adotava o ponto de vista
imperialista. Há, é certo, uma exceção: a conquista dos “escravos naturais” é
justa e lícita. Isto, segundo Aristóteles, justificaria as guerras contra os bárbaros,
mas não contra gregos, pois que nenhum grego ó “escravo natural”. Em geral, a
guerra é apenas um meio, e não um fim; uma cidade numa situação isolada,
onde a conquista não seja possível, deve ser feliz; os Estados, que vivem isolados
precisam não estar inativos. Deus e o universo são ativos, embora a conquista
estrangeira lhes seja impossível. A felicidade que um Estado deveria procurar,
portanto, embora a guerra possa ser, às vezes, um meio para isso, não deveria ser
a guerra, mas as atividades da paz.
Isto conduz à questão: de que tamanho deveria ser um Estado? As cidades
grandes, diz ele, jamais são bem governadas, pois uma grande multidão não pode
ser bem ordenada. Um Estado deve ser suficientemente grande para bastar-se,
mais ou menos, a si mesmo, mas não demasiado grande para o governo
constitucional. Deve ser suficientemente pequeno para que os seus cidadãos
conheçam o caráter do próximo, pois, do contrário, não haverá justiça nas
eleições nem nos litígios. O território deverá ser suficientemente pequeno para
poder ser contemplado em toda a sua extensão do alto de uma colina. Diz-nos
que, assim, se bastaria a si mesmo (1326b), e que deveria ter um comércio de
exportação e importação (1327a), o que nos parece incongruente.
Os homens que trabalham para viver não deviam ser admitidos à cidadania.
“Os cidadãos não deveriam dedicar-se ao artesanato ou ao comércio, pois tal
vida é ignóbil e inimiga da virtude”. Também não deveriam ser lavradores, pois
isso não lhes permitiria momentos de ócio. Os cidadãos deviam possuir
propriedades, mas os agricultores deveriam ser escravos de uma outra raça
(1330a). As raças nórdicas, diz ele, são ardentes; as raças meridionais,
inteligentes; portanto, os escravos deveriam ser de raças meridionais, pois seria
inconveniente que fossem ardentes. Só os gregos são, ao mesmo tempo, ardentes
e inteligentes; são melhor governados que os bárbaros e, unidos, poderiam
governar o mundo (1227b). Poder-se-ia esperar, neste ponto, alguma alusão a
Alexandre, mas não há nenhuma.
Com respeito ao tamanho dos Estados, Aristóteles comete, em escala
diferente, o mesmo erro que é cometido por muitos liberais modernos. Um
Estado deve ser capaz de defender-se na guerra e, mesmo, para que possa
sobreviver alguma cultura liberal, defender-se sem grandes dificuldades. Quanto
ao tamanho de um Estado, neste sentido, depende da técnica da guerra e da
indústria. Na época de Aristóteles, a Cidade-Estado era obsoleta porque não pôde
defender-se da Macedônia. Em nossos dias, a Grécia, em conjunto, incluindo a
Macedônia, é também obsoleta neste sentido, como ficou recentemente provado.
{79} Advogar-se completa independência para a Grécia, ou qualquer outro país
pequeno, é hoje tão inútil como advogar-se a completa independência de uma
única cidade, cujo território possa ser visto inteiro do alto de uma eminência. Não
pode haver verdadeira independência, exceto para um Estado ou aliança
suficientemente forte, que possa, pelo seu próprio esforço, repelir qualquer
tentativa de conquista estrangeira. Nada que seja menor do que os Estados
Unidos e o Império Britânico combinados poderá satisfazer este requisito; talvez
mesmo isso fosse uma unidade demasiado pequena.
O livro, que, na forma em que se conserva, parece estar inacabado, termina
com uma discussão sobre a educação. A educação, certamente, destina-se
apenas a crianças que vão ser cidadãos; aos escravos, ensinar-se-á artes úteis,
tais como cozinhar, mas estas não fazem parte da educação. O cidadão deveria
ser amoldado à forma de governo sob a qual vive, e deve haver, portanto,
diferenças, segundo a cidade em questão seja oligárquica ou democrática. Na
discussão, porém, Aristóteles admite que os cidadãos terão alguma participação
no poder político. As crianças deveriam aprender o que lhes é útil, mas não o que
as tornasse vulgares. Não se lhes deveria ensinar, por exemplo, nenhuma
profissão que lhes deformasse o corpo, ou que lhes permitisse ganhar dinheiro.
Deveriam praticar, moderadamente, o atletismo, mas não a ponto de adquirir
habilidade profissional; os rapazes que se adestram para os jogos olímpicos
sofrem em sua saúde, como é demonstrado pelo fato de que aqueles que tem
sido vencedor raramente o são como homens. As crianças deveriam aprender a
desenhar, a fim de apreciar a beleza da forma humana; dever-se-ia também
ensinar-lhes a apreciar a pintura e a escultura como expressão de idéias morais.
Poderão aprender a cantar e a tocar instrumentos musicais o suficiente para
serem capazes de julgar criticamente a música, mas não até o ponto de se
tornarem executantes exímios, pois nenhum homem livre cantaria ou tocaria, a
menos que estivesse embriagado. Deveriam, certamente, aprender a ler e
escrever, apesar da utilidade destas artes. Mas o propósito da educação é a
“virtude”, e não a utilidade. O que Aristóteles compreende por “virtude”, dissenos ele na Ética, obra a que se refere com frequência.
As suposições fundamentais de Aristóteles, na sua Política, são muito
diferentes das de um escritor moderno. O objetivo do Estado, na sua opinião, é
produzir cavalheiros cultos — homens que combinem a mentalidade aristocrática
com o amor do saber e das artes. Esta combinação existe, na sua mais alta
perfeição, na Atenas de Péricles, não entre a população em geral, mas entre as
pessoas de posses. Começou a desmoronar-se nos últimos anos de Péricles. O
populacho, que não tinha cultura, voltou-se contra os amigos de Péricles, que
foram levados a defender os privilégios dos ricos mediante traição, assassínio,
despotismo ilegal e outros métodos semelhantes, não muito cavalheirescos.
Depois da morte de Sócrates, a hipocrisia da democracia ateniense diminuiu, e
Atenas permaneceu o centro da antiga cultura, mas o poder político foi para
outro lugar. Durante toda a antiguidade posterior, o poder e a cultura estiveram,
habitualmente, separados: o poder nas mãos dos rudes soldados, e a cultura com
os gregos sem poder, amiúde escravos. Isto só parcialmente é verdade quanto ao
que diz respeito à Roma em seu apogeu, mas é enfaticamente certo antes de
Cícero e depois de Marco Aurélio. Depois da invasão dos bárbaros, os
“cavalheiros” eram bárbaros nórdicos, e os homens de cultura sutis eclesiásticos
meridionais. Este estado de coisas continuou, mais ou menos, até à Renascença,
quando os leigos começaram a adquirir cultura. Da Renascença em diante, a
concepção grega de governo por cavalheiros cultos passou, gradualmente, a
prevalecer cada vez mais, alcançando seu ponto culminante no século XVIII.
Várias forças puseram fim a esse estado de coisas. Primeiro, a democracia,
encarnada na Revolução Francesa e suas consequências. Os cavalheiros cultos,
depois da época de Péricles, tinham de defender seus privilégios contra a
população e, neste empenho, deixavam de ser cavalheiros e cultos. Uma segunda
causa foi o advento do industrialismo, com uma técnica científica muito diferente
da cultura tradicional. Uma terceira causa foi a educação popular, que conferiu o
poder de ler e escrever, mas não conferiu cultura; isto permitiu que um novo tipo
de demagogo praticasse um novo tipo de propaganda, como vemos nas ditaduras.
Para bem e para mal, portanto, já passou a época do cavalheiro culto.
CAPÍTULO XXII
A Lógica de Aristóteles
A influência de Aristóteles, que foi muito grande em campos diversos, foi
maior ainda no campo da lógica. Na remota antiguidade, quando Platão era
ainda supremo na metafísica, Aristóteles era a autoridade reconhecida em
lógica, e conservou essa posição durante toda a Idade Média. Não foi senão no
século XIII que os filósofos cristãos lhe concederam a supremacia no campo da
metafísica. Esta supremacia, ele a perdeu, em grande parte, depois da
Renascença, mas sua supremacia na lógica perdurou. Mesmo em nossos dias,
todos os professores católicos de filosofia, bem como muitos outros, ainda
rejeitam, obstinadamente, os descobrimentos da lógica moderna, aderindo, com
estranha tenacidade, a um sistema que é, positivamente, tão antiquado quanto a
astronomia de Ptolomeu. Isso torna difícil fazer-se justiça histórica a Aristóteles.
Sua influência, nos dias atuais, é tão contrária ao raciocínio claro que é difícil
lembrar-se a gente do grande progresso por ele realizado sobre todos os seus
predecessores (inclusive Platão), ou quão admirável sua obra lógica ainda
pareceria, se tivesse havido um período de progresso contínuo, ao invés de ser
(como, de fato, era) um caminho interrompido, seguido por mais de dois mil
anos de estagnação. Ao tratar-se dos predecessores de Aristóteles, não é
necessário lembrar ao leitor que eles não possuíam inspiração verbal; não é
possível, pois, elogiá-los pela sua habilidade sem que se suponha que a gente
subscreve todas as suas doutrinas.
Aristóteles, ao contrário, é ainda, principalmente na lógica, um campo de
batalha, e não pode ser tratado com espírito puramente histórico.
A obra mais importante de Aristóteles, no terreno da lógica, é a sua doutrina
do silogismo. Um silogismo é um argumento constituído de três partes: uma
premissa maior, uma premissa menor, e uma conclusão. Os silogismos são de
diferentes gêneros, cada um dos quais tem um nome, dado pelos escolásticos. O
mais familiar é o chamado “Bárbara”:
Todos os homens são mortais (premissa maior).
Sócrates é um homem (premissa menor).
Portanto: Sócrates é mortal (conclusão).
Ou: todos os homens são mortais.
Todos os gregos são homens.
Portanto: todos os gregos são mortais.
(Aristóteles não faz distinção entre essas duas formas; isto, como veremos
depois, é um erro).
Outras formas são: nenhum peixe é racional; todos os tubarões são peixes;
portanto, nenhum tubarão é racional. (Este é conhecido por “Celarent”).
Todos os homens são racionais; certos animais são homens, portanto, certos
animais são racionais. (Este é chamado “Darii”).
Nenhum grego é negro; certos homens são gregos; portanto, certos homens
não são negros. (Este é chamado “Ferio”).
Estes quatro formam a “primeira figura”; Aristóteles acrescenta uma segunda
e uma terceira figuras, e os escolásticos acrescentam uma quarta. Mostra-se que
as três últimas figuras podem ser reduzidas à primeira mediante vários
procedimentos.
Há várias inferências que podem ser feitas partindo-se da primeira premissa.
De “certos homens são imortais”, podemos inferir que “certos mortais são
homens”. Segundo Aristóteles, isso também pode ser inferido de “todos os
homens são mortais”. De “nenhum deus é mortal”, podemos inferir “nenhum
mortal é deus”, mas de “certos homens não são gregos” não se pode deduzir que
“certos gregos não são homens”.
À parte inferências tais como as anteriores, Aristóteles e seus adeptos
achavam que toda inferência dedutiva, quando estritamente formulada, é
silogística. Expondo-se, pois, todas as espécies válidas de silogismo, bem como
quaisquer argumentos sugeridos em forma silogística, seria possível evitar todas
as falsidades.
Este sistema constituiu o começo da lógica formal e, como tal, foi não só
importante como admirável. Mas, considerado como um fim, e não um começo
da lógica formal, está sujeito a três espécies de crítica:
(1) Defeitos formais dentro do próprio sistema.
(2) Excessivo apreço pelo silogismo, comparado a outras formas de
argumento dedutivo.
(3) Excessivo apreço pela dedução como forma de argumento.
É necessário que se diga algo sobre cada uma delas.
(1) Defeitos formais. Comecemos com as duas afirmações: “Sócrates
é um homem”, e “todos os gregos são homens”. É mister fazer-se nítida
distinção entre as duas, o que não é feito na lógica aristotélica. A
afirmação “todos os gregos são homens” é comumente interpretada
como implicando que há gregos; sem esta implicação, certos silogismos
de Aristóteles não são válidos. Tomemos, por exemplo: “Todos os gregos
são homens, todos os gregos são brancos; portanto, certos homens são
brancos”. Isto é válido se houver gregos, mas não de outra maneira. Se
eu dissesse: “Todas as montanhas são douradas; todas as montanhas
douradas são de ouro; portanto, certas montanhas são de ouro”, minha
conclusão seria falsa, embora, em certos sentidos, minhas premissas
fossem verdadeiras. Para sermos explícitos, temos, pois, de dividir a
afirmação “todos os gregos são homens” em duas, uma dizendo que “há
gregos” e a outra que diga que “se alguém é grego, é homem”. A última
exposição é puramente hipotética, e não implica que haja gregos.
A afirmação “todos os gregos são homens” é, pois, muito mais complexa na
forma que a afirmação “Sócrates é um homem”. “Sócrates é um homem” tem
Sócrates como sujeito, mas “todos os gregos são homens” não tem “todos os
gregos” como sujeito, porque nada há sobre “todos os gregos” quer na
declaração de que “há gregos”, quer na afirmação “se alguém é grego é
homem”.
Este erro puramente formal foi uma fonte de erros na metafísica e na teoria
do conhecimento. Considere-se o estado de nosso conhecimento com respeito às
duas proposições: “Sócrates é mortal” e “todos os homens são mortais”.
A fim de saber a verdade de “Sócrates é mortal”, muitos dentre nós se
contentam com testemunhos; mas se os testemunhos não forem fidedignos, isso
nos deverá levar a alguém que haja conhecido Sócrates e o tenha visto morto. O
fato percebido — o corpo morto de Sócrates — juntamente com o conhecimento
de que isso se chamou “Sócrates”, é bastante para assegurar-nos da mortalidade
de Sócrates. Mas quando chegamos a “todos os homens são mortais”, o caso é
diferente. A questão de nosso conhecimento quanto ao que diz respeito a
proposições gerais é muito difícil. Às vezes são meramente verbais: “todos os
gregos são homens é coisa que se sabe, pois nada se chama “um grego” a menos
que seja um homem. Tais afirmações gerais podem ser verificadas com auxílio
do dicionário; estes, nada nos dizem sobre o mundo, exceto como se usam as
palavras. Mas “todos os homens são mortais” não pertence a esta classe; não há
nada que seja, por si mesmo, contraditório acerca de um homem imortal.
Cremos na proposição baseados na indução, pois não há nenhum caso bem
autenticado de homem que haja vivido mais, digamos, de 150 anos; mas isto
torna apenas a proposição provável, e não certa. Não pode ser certa enquanto
existirem homens vivos.
Os erros metafísicos surgem de se supor que “todos os homens” é o sujeito de
“todos os homens são mortais”, no mesmo sentido em que Sócrates é o sujeito de
“Sócrates é mortal”. Isso faz com que seja possível afirmar-se que, em certo
sentido, “todos os homens” denota uma entidade da mesma espécie da que é
denotada por “Sócrates”. Isto levou Aristóteles a dizer que, em certo sentido, uma
espécie é uma substância. Ele mostra-se cuidadoso ao qualificar esta afirmação,
mas seus adeptos, principalmente Porfírio, revelaram menos cautela.
Outro erro em que cai Aristóteles devido a este equívoco é pensar que um
predicado de um predicado pode ser um predicado do sujeito original. Se digo
“Sócrates é grego, todos os gregos são humanos”, julga Aristóteles que
“humano” é um predicado de “grego”, enquanto “grego” é um predicado de
“Sócrates” e, evidentemente, “humano” é um predicado de “Sócrates”. Mas, de
fato, “humano” não é um predicado de “grego”. A distinção entre nomes e
predicados, ou, em linguagem metafísica, entre particulares e universais, fica,
assim, cancelada, com desastrosas consequências para a filosofia. Uma das
confusões resultantes foi supor-se que uma classe com um só membro é idêntica
àquele membro. Isto tornou impossível ter-se uma teoria correta do número um,
conduzindo a uma falsa e interminável metafísica sobre a unidade.
(2) Apreço excessivo do silogismo. O silogismo é uma única espécie
de argumento dedutivo. Nas matemáticas, que são inteiramente
dedutivas, o silogismo dificilmente aparece. Seria possível, certamente,
reescrever os argumentos matemáticos em forma silogística, mas isso
seria muito artificial, e não os tornaria mais convincentes. Tomemos, por
exemplo, a aritmética. Se compro gêneros no valor de 16 xelins e 3
pence e pago com uma nota de uma libra, quanto devo receber de
troco? Colocar esta simples quantia em forma de silogismo seria
absurdo, contribuindo para ocultar a natureza real do argumento. Por
outro lado, dentro da lógica não há inferências não silogísticas, tais
como: “Um cavalo é um animal; logo, uma cabeça de cavalo é a
cabeça de um animal”. Os silogismos válidos, com efeito, são só alguns
entre as deduções válidas, e não tem nenhuma prioridade lógica sobre os
outros. A tentativa de dar-se preeminência ao silogismo na dedução fez
com que os filósofos se extraviassem quanto à natureza do raciocínio
matemático. Kant, que percebeu que as matemáticas não são
silogísticas, inferiu que elas empregam princípios extra lógicos, os quais,
não obstante, supunha ele, eram tão certos como os da lógica. Ele, como
os seus predecessores, embora de maneira diversa, se equivocou por
respeito a Aristóteles.
(3) Apreço excessivo da dedução. Os gregos, em geral, atribuíam
mais importância à dedução como fonte de conhecimento do que os
filósofos modernos. A este respeito, Aristóteles foi menos culpado que
Platão. Admitiu, repetidamente, a importância da indução, dedicando
considerável atenção à questão: de que maneira se conhecer as
primeiras premissas de onde deve surgir a dedução? Não obstante, ele,
como muitos gregos, deu indevida preeminência à dedução na sua teoria
do conhecimento. Concordamos em que (digamos assim) Mr. Smith é
mortal, e podemos, livremente, dizer que sabemos isso porque sabemos
que todos os homens são mortais. Mas o que realmente sabemos não é
que “todos os homens são mortais”; o que sabemos é algo assim como
“todos os homens nascidos há mais de cento e cinquenta anos são
mortais, como também o são quase todos os homens nascidos há mais
de cem anos”. Eis aí a razão para pensarmos que Mr. Smith morrerá.
Mas este argumento é uma indução, e não uma dedução. É menos
convincente que uma dedução, e apresenta apenas uma probabilidade, e
não uma certeza; mas, por outro lado, proporciona novo conhecimento,
o que a dedução não faz. Todas as inferências importantes, fora da
lógica e da matemática pura, são indutivas, não dedutivas; as únicas
exceções são a lei e a teologia, cada uma das quais deriva seus
primeiros princípios de um texto inquestionável, isto é, os livros de leis ou
as Escrituras.
À parte Os Analíticos Anteriores, que trata do silogismo, há outros escritos
lógicos de Aristóteles que tem considerável importância na história da filosofia.
Um deles é o breve trabalho intitulado Das Categorias. Porfírio, o neoplatônico,
escreveu um comentário sobre este livro, que teve notável influência sobre a
filosofia medieval; mas, por ora, ignoremos Porfírio, limitando-nos a Aristóteles.
O que significa, exatamente, a palavra “categoria”, seja em Aristóteles, Kant
ou Hegel, devo confessar que não me foi possível jamais compreender. Quanto a
mim, não creio que o termo “categoria” seja, em qualquer sentido, útil na
filosofia, como representando qualquer idéia clara. Há, em Aristóteles, dez
categorias: substância, quantidade, qualidade, relação, lugar, tempo, posição,
estado, ação e paixão. A única definição apresentada do termo “categoria” é:
“expressões que, sob nenhum aspecto, são de significado composto” — e seguese a lista acima. Isso parece significar que toda palavra cujo significado não é
composto dos significados de outras palavras significa uma substância ou uma
quantidade, etc. Não há indicação de qualquer princípio segundo o qual a lista das
dez categorias tenha sido compilada.
“Substância” é, em princípio, o que não é predicável de um sujeito nem
presente num sujeito. Diz-se que uma coisa está “presente num sujeito” quando,
embora não sendo uma parte do sujeito, não possa existir sem o sujeito. Os
exemplos dados são um fragmento de conhecimento gramatical que se acha
presente numa mente, e uma certa brancura que pode estar presente num corpo.
Uma substância, no sentido primário acima, é uma coisa, pessoa ou animal
individual. Mas, num sentido secundário, uma espécie ou um gênero — por
exemplo, “homem” ou “animal” — pode ser chamado uma substância. Este
sentido secundário parece indefensável, e abriu a porta, nos escritores
posteriores, a metafísicas muito más.
Os Analíticos Posteriores é uma obra em grande parte interessada numa
questão que deverá perturbar qualquer teoria dedutiva, isto é: Como obter-se as
primeiras premissas? Já que a dedução deve partir de alguma parte, devemos
começar por algo não provado, que tem de ser conhecido de outro modo que não
o da demonstração, não exporei pormenorizadamente a doutrina de Aristóteles,
pois que ela depende da noção de essência. Uma definição, diz ele, é uma
exposição da natureza essencial de uma coisa. A noção de essência é uma parte
íntima de toda filosofia posterior a Aristóteles, até chegar aos tempos modernos.
É, em minha opinião, uma noção irremediavelmente confusa, mas sua
importância histórica exige que se diga algo sobre ela, a “essência” de uma coisa
parece haver significado “aquelas de suas propriedades que não podem mudar
sem perder sua identidade”. Sócrates pode, às vezes, sentir-se feliz e, outras
vezes, triste; às vezes, bem, outras vezes, mal. Já que ele pode mudar tais
propriedades sem deixar de ser Sócrates, elas não fazem parte de sua essência.
Mas se supõe que pertence à essência de Sócrates o ser homem, embora um
pitagórico, que acreditasse na transmigração, não admitisse isso. A questão da
“essência”, com efeito, refere-se ao emprego das palavras. Aplicamos o mesmo
nome, em ocasiões diferentes, a acontecimentos um tanto diferentes, os quais
encaramos como manifestações de uma única “coisa” ou “pessoa”. Na verdade,
porém, isto constitui apenas uma conveniência verbal. A “essência” de Sócrates,
assim, consiste naquelas propriedades na ausência das quais não deveríamos
empregar o nome “Sócrates”. A questão é puramente linguística: uma palavra
pode ter uma essência, mas uma coisa não.
A concepção de “substância”, como a de “essência”, é uma transferência
para a metafísica do que é apenas uma conveniência linguística. Achamos
conveniente, ao descrever o mundo, descrever um certo número de ocorrências
como acontecimentos da vida de “Sócrates”, e certo número de outras
ocorrências como acontecimentos da vida de “Mr. Smith”. Isso nos leva a pensar
em “Sócrates” ou “Mr. Smith” como denotando algo que persiste através de certo
número de anos, e que é, de certo modo, mais “sólido” e “real” do que os
acontecimentos que lhes ocorreram. Se Sócrates está doente, pensamos que
Sócrates, em outras ocasiões, está bem de saúde, e, portanto, o ser de Sócrates é
independente de sua enfermidade; a enfermidade, por outro lado, requer que
alguém esteja doente. Mas embora Sócrates não precise estar doente, algo há de
estar acontecendo com ele, para que o consideremos como um ser que existe.
Ele não é, portanto, na realidade, mais “sólido” do que as coisas que lhe
acontecem.
“Substância”, quando encarada seriamente, é um conceito impossível de estar
livre de dificuldades. Supõe-se que uma substância seja o sujeito de certas
propriedades, e que seja, ainda, algo diferente de todas essas propriedades. Mas
quando retiramos as propriedades, e procuramos imaginar a substância em si,
verificamos que não ficou nada. Para expor a questão sob outro aspecto: que é
que distingue uma substância de outra? Não é a diferença de propriedades, pois,
segundo a lógica da substância, uma diferença de propriedades pressupõe
diversidade numérica entre as substâncias em questão. Duas substâncias,
portanto, devem ser somente duas, sem que sejam, em si próprias, distinguíveis
por outro meio. Como, pois, poderemos verificar que elas são duas?
“Substância”, com efeito, é simplesmente um modo conveniente de se reunir
acontecimentos em feixes. Que podemos saber acerca de Mr. Smith? Quando o
olhamos, vemos uni conjunto de cores; quando o escutamos falar, ouvimos uma
série de sons. Acreditamos que, como nós, ele tem pensamentos e sentimentos.
Mas, o que é Mr. Smith, à parte todas essas ocorrências? Um simples cabide
imaginário, do qual se supõe que essas ocorrências se dependurem. Na verdade,
não tem necessidade de um gancho, assim como a terra não tem necessidade de
um elefante sobre o qual se apoiar. Qualquer pessoa pode ver, no caso análogo de
uma região geográfica, que uma palavra como, por exemplo, “França” não
passa de uma conveniência linguística, e que não há uma coisa chamada
“França”, além de suas várias partes. O mesmo pode dizer-se a respeito de “Mr.
Smith”; é um nome coletivo para um número de ocorrências. Se o tomarmos
como algo mais, denotará alguma coisa completamente incognoscível e,
portanto, desnecessária para a expressão do que conhecemos.
“Substância”, numa palavra, é um erro metafísico, devido à transferência
para a estrutura do mundo da estrutura de sentenças compostas de um sujeito e
um predicado.
Concluo que as doutrinas aristotélicas de que vimos tratando neste capítulo são
completamente falsas, com exceção da teoria formal do silogismo, que carece
de importância. Qualquer pessoa que, hoje em dia, deseje aprender lógica,
estará desperdiçando o seu tempo, se ler Aristóteles ou qualquer de seus
discípulos. Não obstante, os escritos de lógica de Aristóteles revelam grande
habilidade, e teriam sido úteis à humanidade se tivessem aparecido num tempo
em que a originalidade intelectual estivesse ainda ativa. Infelizmente,
apareceram exatamente no fim do período criador do pensamento grego e, por
isso, chegaram a ser aceitos como autorizados. No tempo em que a originalidade
lógica reviveu, um reinado de dois mil anos havia tornado muito difícil destronarse Aristóteles. Durante todos os tempos modernos, praticamente, cada um dos
progressos na ciência, na lógica ou na filosofia, teve de ser feito contra a
encarniçada oposição dos discípulos de Aristóteles.
CAPÍTULO XXIII
A Física de Aristóteles
Neste capítulo, proponho-me considerar dois livros de Aristóteles: o chamado
Física e o intitulado Dos Céus. São dois livros intimamente relacionados entre si; o
segundo toma o argumento no ponto em que o primeiro o havia deixado. Ambos
exerceram grande influência, dominando a ciência até ao tempo de Galileu.
Palavras tais como “quinta-essência” e “sublunar” se derivam das teorias
expressas nesses livros. O historiador da filosofia, por conseguinte, deve estudálos, apesar do fato de que dificilmente qualquer sentença contida em qualquer
um deles poderá ser aceita à luz da ciência moderna.
Para se compreender as opiniões de Aristóteles, como as da maioria dos
gregos, sobre a física, é necessário apreender o seu fundo imaginativo. Cada
filósofo, além do sistema formal que oferece ao mundo, possui outro, muito mais
simples, cuja existência ele próprio poderá ignorar completamente. Se tem
consciência dele, percebe, provavelmente, que o mesmo não lhe serve para
nada; por isso, oculta-o, e expõe algo mais complicado, em que crê porque se
assemelha mais ao seu sistema ainda tosco, mas que pede aos outros que o
aceitem porque julga que o fez de tal modo que não poderá ser refutado. A
adulteração surge mediante refutação de refutações, mas isso, por si só, jamais
dará um resultado positivo: mostra, na melhor das hipóteses, que uma teoria pode
ser verdadeira, mas não que deve ser. O resultado positivo, por pouco que o
filósofo possa percebê-lo, é devido às suas preconcepções imaginativas, ou aquilo
que Santay ana chama de “fé animal”.
Em relação à física, o fundo imaginativo de Aristóteles era muito diferente do
de um estudante moderno. Hoje em dia, um rapaz começa com a mecânica, a
qual, pelo seu próprio nome, sugere máquinas. Está acostumado com automóveis
e aeroplanos; nem mesmo no mais íntimo recesso de sua imaginação
subconsciente pensa que um automóvel contém alguma espécie de cavalo em
seu interior, ou que um aeroplano voa porque suas asas são as de um pássaro
dotado de poderes mágicos. Os animais perderam sua importância em nossas
reproduções imaginativas do mundo, no qual o homem se encontra relativamente
só como dono de um ambiente material quase todo inerme e em grande parte
subserviente.
Para os gregos, que procuravam apresentar uma descrição científica do
movimento, o ponto de vista puramente mecânico dificilmente lhes ocorria,
exceto no caso de uns poucos homens de gênio, como Demócrito e Arquimedes.
Duas séries de fenômenos pareciam importantes: os movimentos dos animais, e
os movimentos dos corpos celestes. Para o homem de ciência moderno, o corpo
de um animal é uma máquina muito elaborada, com uma estrutura físicoquímica enormemente complexa; cada nova descoberta consiste em diminuir o
abismo aparente existente entre os animais e as máquinas. Para os gregos,
parecia mais natural comparar os movimentos aparentemente sem vida aos dos
animais. Uma criança ainda distingue os animais vivos de outras coisas devido ao
fato de que podem mover-se por si; para muitos gregos e, particularmente,
Aristóteles, essa peculiaridade se apresentava por si mesma como a base de uma
teoria geral da física.
Mas, e os corpos celestes? Diferem dos animais pela regularidade de seus
movimentos; isto, porém, pode ser devido apenas à sua superior perfeição. Todo
filósofo grego, qualquer que possa haver chegado a ser seu pensamento na vida
adulta, foi ensinado, na infância, a considerar o Sol e a Lua como deuses;
Anaxágoras foi processado por impiedade por pensar que eles não estavam
vivos. Era natural que um filósofo que não pudesse mais encarar os próprios
corpos celestes como divinos, imaginasse que eles se moviam pela vontade de
um Ser Divino, dotado de um amor helênico pela ordem e pela simplicidade
geométrica. Assim, a fonte final de todo movimento é a Vontade: na terra, a
vontade caprichosa dos seres humanos e dos animais, mas, no céu, a Vontade
imutável do Artífice Supremo.
Não pretendo sugerir que isso se aplique a todos os pormenores do que
Aristóteles tem a dizer. O que sugiro é que proporciona o seu fundo imaginativo e
representa a espécie de coisa que, ao empreender suas investigações, esperaria
comprovar.
Depois destes preliminares, examinemos o que ele realmente diz.
A física, em Aristóteles, é a ciência que os gregos chamaram “phusis” (ou
“phy sis”), uma palavra que é traduzida por “natura”, mas que não tinha
exatamente o sentido que lhe atribuímos. Falamos ainda de “ciências naturais” e
“história natural”, mas “natureza”, por si mesma, embora seja uma palavra
bastante ambígua, raramente significa com exatidão o que “phusis” significava.
“Phusis” era algo que se referia ao desenvolvimento; poder-se-ia dizer que a
“natureza” de uma bolota era transformar-se em carvalho e, neste caso, a gente
estaria empregando a palavra no sentido aristotélico. A “natureza” de uma coisa,
diz Aristóteles, é o seu fim, pelo qual ela existe. Assim, a palavra tem uma
implicação teológica. Certas coisas existem por natureza, outras devido a causas.
Os animais, as plantas e os corpos simples (elementos) por natureza; tem um
princípio interno de movimento (a palavra traduzida por “moção” ou
“movimento” tem um significado mais amplo que “locomoção”; além de
locomoção, inclui mudança de qualidade ou de tamanho). A natureza é uma
fonte de seres móveis ou em repouso. As coisas “tem uma natureza”, se possuem
um princípio interno dessa espécie. A frase “de acordo com a natureza” aplica-se
a estas coisas e a seus atributos essenciais. (Foi através desse ponto de vista que
“antinatural” veio a expressar censura). A natureza está mais na forma que na
matéria; o que é potencialmente carne e osso não adquiriu ainda sua própria
natureza, e uma coisa é mais do que é quando atinge o seu máximo. Todo este
ponto de vista parece ser sugerido pela biologia: a bolota é “potencialmente” um
carvalho.
A natureza pertence à classe de coisas que opera em atenção a algo. Isto
conduz à discussão do ponto de vista de que a natureza age por necessidade, sem
propósito, em relação com o qual Aristóteles discute a sobrevivência dos mais
aptos, na forma ensinada por Empédocles. Isso não pode ser verdade, diz ele,
porque as coisas ocorrem segundo métodos fixos e, quando uma série chega a
completar-se, todos os passos precedentes são por causa dela. São “naturais” as
coisas que “por um movimento contínuo, partindo de um princípio interno,
chegam a alguma completação” (199b).
Esta concepção total de “natureza”, embora pudesse parecer admiravelmente
adequada para explicar o desenvolvimento dos animais e das plantas, tomou-se,
neste caso, um grande obstáculo ao progresso da ciência, bem como a origem de
muitas coisas más na ética. Quanto a este último aspecto, é ainda hoje
prejudicial.
Movimento, diz ele, é a realização do que existe em estado potencial. Esta
opinião, além de outros defeitos, é incompatível com a relatividade da
locomoção. Quando A se move com relação a B, B se move com relação a A, e
carece de sentido dizer-se que um dos dois está em movimento enquanto o outro
se acha em repouso. Quando um cão apanha um osso, parece ao senso comum
que o cão se move enquanto o osso permanece quieto (enquanto está
abocanhado), e que o movimento tem um propósito, isto é. Atender à “natureza”
do cão. Mas acabou-se por verificar que este ponto de vista não pode ser aplicado
à matéria inerte, e que, para o propósito da física científica, nenhuma concepção
de “fim” é útil, nem pode um movimento ser tratado, de maneira estritamente
científica, senão de modo relativo.
Aristóteles rejeita o conceito de vazio, tal como o defendem Leucipo e
Demócrito. Passa, então, a uma discussão bastante curiosa sobre o tempo. Poderse-ia afirmar, diz ele, que o tempo não existe, já que se compõe de passado e
futuro, dos quais um já não mais existe enquanto o outro não existe ainda. Esta
opinião, porém, é por ele rejeitada. O tempo, diz, é um movimento que admite
numeração. (Não está claro por que razão considera a numeração essencial).
Podemos muito bem perguntar, continua ele, se o tempo poderia existir sem a
alma, posto que não pode haver nada para contar, exceto se houver alguém que
conte, e o tempo supõe numeração. Parece que pensa no tempo como constituído
de tantas horas, dias ou anos. Certas coisas, acrescenta, são eternas, no sentido de
que não estão no tempo; é de presumir-se que pense, aqui, em coisas tais como
os números.
Sempre houve movimento, e sempre o haverá; porque não pode haver tempo
sem movimento, e todos estão de acordo em que o tempo é incriado, exceto
Platão. Quanto a este ponto, os adeptos cristãos de Aristóteles foram obrigados a
dissentir dele, já que a Bíblia nos diz que o universo teve um princípio.
A Física termina com um argumento de um motor imóvel, que já foi por nós
considerado em relação com a Metafísica. Há um motor imóvel que produz
diretamente um movimento circular. Movimento circular é o gênero primário, e
o único gênero que pode ser contínuo e infinito. O primeiro motor não tem partes
ou magnitude e está na circunferência do mundo.
Tendo chegado a esta conclusão, passamos a tratar dos céus.
O tratado Dos Céus expõe uma teoria simples e agradável. As coisas que estão
em baixo da Lua estão sujeitas a geração e decadência; da Lua para cima, tudo é
ingerado e indestrutível. A Terra, que é esférica, está no centro do universo. Na
esfera sublunar, todas as coisas são compostas de quatro elementos: terra, água,
ar e fogo; mas há um quinto elemento, de que se compõem os corpos celestes. O
movimento natural dos elementos terrestres é retilíneo, mas o do quinto elemento
é circular. Os céus são perfeitamente esféricos, e as regiões superiores são mais
divinas do que as inferiores. As estrelas e os planetas não são compostos de fogo,
mas do quinto elemento; seu movimento é devido ao das esferas a que estão
ligados. (Tudo isto aparece, em forma poética, no Paraíso de Dante).
Os quatro elementos terrestres não são eternos, mas gerados uns dos outros: o
fogo é absolutamente luz, no sentido de que o seu movimento natural é para
cima; a terra é absolutamente pesada. O ar é relativamente leve e a água
relativamente pesada.
Esta teoria proporcionou muitas dificuldades às épocas posteriores. Os
cometas, que foram considerados como destrutíveis, tinham de ser atribuídos à
esfera sublunar, mas, no século XVII, verificou-se que descreviam órbitas ao
redor do Sol e que raramente estão tão próximos quanto a Lua. Já que o
movimento natural dos corpos terrestres é retilíneo, afirmava-se que um projétil
disparado horizontalmente se moveria, em posição horizontal, por algum tempo,
começando, depois, de repente, a cair verticalmente. A descoberta de Galileu, de
que um projétil se move descrevendo uma parábola, escandalizou seus colegas
aristotélicos. Copérnico, Kepler e Galileu tiveram de combater tanto Aristóteles
como a Bíblia, ao estabelecer o conceito de que a Terra não é o centro do
universo, mas que gira sobre um eixo uma vez por dia e dá volta em redor do Sol
uma vez por ano.
Para chegar a uma matéria mais geral: a física de Aristóteles é incompatível
com a “Primeira Lei do Movimento” de Newton, originalmente enunciada por
Galileu. Esta lei estabelece que todo corpo, abandonado a si mesmo, continuará,
se já estiver em movimento, movendo-se em linha reta com uma velocidade
uniforme. Assim, são requeridas causas exteriores, não para justificar o
movimento, mas para justificar a mudança de movimento, quer na velocidade,
quer na direção. O movimento circular, que Aristóteles achava “natural” nos
corpos celestes, supõe uma mudança contínua na direção do movimento e,
portanto, requer uma força dirigida para o centro do círculo, como na lei da
gravitação de Newton.
Finalmente: o conceito de que os corpos celestes são eternos e incorruptíveis
teve de ser abandonado. O Sol e as estrelas têm vida longa, mas não eterna.
Nasceram de uma nebulosa e, no fim, explodirão ou morrerão de frio. Nada no
mundo visível está isento de mudança e decadência; a crença aristotélica, pelo
contrário, embora aceita pelos cristãos medievais, é um produto da adoração
pagã do Sol. Da Lua e dos planetas.
CAPÍTULO XXIV
As Matemáticas e a Astronomia Gregas Primitivas
Ocupo-me neste capítulo, das matemáticas, não por si mesmas, mas em
relação à filosofia grega — relação essa que, principalmente em Platão, era
muito estreita. A preeminência dos gregos aparece com mais nitidez nas
matemáticas e na astronomia do que em qualquer outra coisa. O que fizeram na
arte, na literatura e na filosofia, pode julgar-se melhor ou pior segundo os gostos,
mas o que realizaram na geometria está inteiramente acima de qualquer questão.
Aprenderam alguma coisa do Egito e um pouco menos da Babilônia; mas o que
obtiveram dessas fontes foram, nas matemáticas, principalmente regras
rudimentares e, na astronomia, registros de observações que se estendiam sobre
períodos muito longos. A arte da demonstração matemática foi, quase
inteiramente, de origem grega.
Há muitas histórias divertidas, provavelmente não históricas, mostrando quais
dos problemas práticos estimularam as investigações matemáticas. A primeira e
a mais simples se refere a Tales, que, quando se encontrava no Egito, foi
interpelado pelo rei, para que determinasse a altura de uma pirâmide. Aguardou
ele a hora do dia em que as sombras fossem tão longas como a sua própria
altura; mediu, então, a sombra da pirâmide, a qual era, certamente, igual à sua
altura. Afirma-se que as leis da perspectiva foram primeiro estudadas pelo
geômetra Agatarco, a fim de que pudesse pintar o cenário para as obras de
Ésquilo. O problema de determinar a distância de um navio no mar, que se dizia
fora estudado, por Tales, foi corretamente resolvido em época anterior. Um dos
grandes problemas que ocuparam a atenção dos geômetras gregos, o da
duplicação do cubo, se originou, diz-se, entre os sacerdotes de um certo templo,
os quais foram informados pelo oráculo que o deus desejava uma estátua que
tivesse o dobro do tamanho da que lhe fora erigida. A princípio, pensaram
simplesmente em duplicar todas as dimensões da estátua, mas verificaram,
então, que o resultado seria oito vezes maior que o original, o que implicaria
maior gasto do que o que o deus havia pedido. Enviaram, então, uma comissão a
Platão, perguntando-lhe se alguém, na Academia, poderia resolver o problema.
Os geômetras aceitaram a incumbência e trabalharam nele durante séculos,
produzindo, incidentalmente, muitos trabalhos admiráveis. O problema é, por
certo, o de determinar a raiz cúbica de 2.
A raiz quadrada de 2, que foi o primeiro irracional a ser descoberto, era
conhecida dos primeiros pitagóricos, sendo que foram descobertos engenhosos
métodos de aproximação de seu valor. O melhor é o seguinte: forme-se duas
colunas de números, às quais chamaremos de a e b; cada uma começa com 1. O
a seguinte, em cada fase, é formada pela adição do último a e b já obtidos; o b
seguinte pela adição do duplo do a e do b anteriores. Os primeiros 6 pares assim
obtidos são (1,1), (2,3), (5,7), (12,17), (29,41), (70,99). Em cada par, 2a 2 – b2 é 1
ou – 1.
Assim b/a é quase a raiz quadrada de dois, e a cada novo passo vai-se
aproximando mais. O leitor, por exemplo, pode verificar que o quadrado de
99/ é muito aproximadamente igual a 2.
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Pitágoras — sempre uma figura um tanto brumosa — é descrito por Proclo
como sendo o primeiro que fez da geometria uma educação liberal. Muitas
autoridades, inclusive Sir Thomas Heath,{80} acreditam que, provavelmente, foi
ele o primeiro a descobrir o teorema que tem o seu nome, isto é, que num
triângulo retângulo, o quadrado do lado oposto ao ângulo reto é igual à soma dos
quadrados dos outros dois lados. De qualquer modo, este teorema era conhecido
dos pitagóricos desde data muito distante. Sabiam também que a soma dos
ângulos de um triângulo é igual a dois ângulos retos.
Além da raiz quadrada de dois, outros irracionais foram estudados, em casos
particulares por Teodoro, um contemporâneo de Sócrates e, de modo mais geral,
por Teeteto, que, de certo modo, era contemporâneo de Platão, embora mais
velho. Demócrito escreveu um tratado sobre irracionais, mas pouco se conhece
de seu conteúdo. Platão interessava-se profundamente pelo assunto; refere-se ao
trabalho de Teodoro e Teeteto no diálogo que tem o nome deste último. Nas Leis
(819-820) diz ele que a ignorância geral sobre este assunto é lamentável, dando a
entender que ele próprio começou a estudar a matéria em fase já bastante
avançada de sua vida. A matéria teve, por certo, grande influência na filosofia
pitagórica.
Uma das consequências mais importantes da descoberta dos irracionais foi a
invenção, por Eudóxio (ca. 408 — ca. 355 A. C.), da teoria geométrica da
proporção. Antes dele, havia apenas a teoria aritmética da proporção. Segundo
sua teoria, a razão de a b é igual à razão de c a d se a vezes d for igual a b vezes
c. Esta definição, na ausência de uma teoria aritmética dos irracionais, é somente
aplicável aos racionais. Eudóxio, no entanto, deu uma nova definição não sujeita
a essa restrição, arquitetada de uma maneira que lembra os métodos da análise
moderna. A teoria é desenvolvida por Euclides, e tem uma grande beleza lógica.
Eudóxio também inventou ou aperfeiçoou o “método exaustivo”, que foi
depois empregado com grande êxito por Arquimedes. Este método é uma
antecipação do cálculo integral. Tomemos, por exemplo, a questão da área do
círculo. Pode-se inscrever num círculo um hexágono regular, ou um dodecágono
regular, ou um polígono regular de mil ou um milhão de lados. A área de um tal
polígono, qualquer que seja o número de lados que possua, é proporcional ao
quadrado do diâmetro do círculo. Quantos mais lados tenha o polígono, tanto mais
se aproxima do círculo. Pode-se provar que, se der ao polígono uma quantidade
suficiente de lados, sua área pode vir a diferir da do círculo menos do que uma
área previamente determinada, por menor que esta seja. Com este propósito,
usa-se o “axioma de Arquimedes”. Este estabelece (um tanto quanto
simplificado) que se encontrar a metade da maior de duas quantidades,
dividindo-se depois essa metade pela metade, e assim por diante, será obtida, no
fim, uma quantidade que é menor do que a menor das duas quantidades originais.
Em outras palavras, se a é maior do que b, há algum número inteiro n tal que 2n
vezes b é maior do que a.
O método exaustivo conduz, às vezes, a um resultado exato, como no
quadrado da parábola, que foi determinado por Arquimedes; às vezes, como na
tentativa da quadratura do círculo, poderá apenas conduzir a sucessivas
aproximações. O problema da quadratura do círculo é o problema de determinar
a relação da circunferência de um círculo quanto ao diâmetro, chamada pi.
Arquimedes usou em seus cálculos a aproximação 22/7, inscrevendo e
circunscrevendo um polígono regular de 96 lados, provou que pi é menor que 3
1/ e maior do que 3 10/ , O método podia ser levado a qualquer grau requerido
7
71
de aproximação, e isso é tudo que qualquer método pode fazer quanto a este
problema. O uso de inscrever e circunscrever polígonos para as aproximações de
pi se remonta a Antifon, contemporâneo de Sócrates.
Euclides, que ainda em minha mocidade era o único texto conhecido de
geometria para rapazes, viveu em Alexandria, ao redor do ano 300 A. C., poucos
anos depois da morte de Alexandre e Aristóteles. A maior parte de seu Elementos
não era original, mas a ordem das proposições, bem como a estrutura lógica,
eram dele. Quanto mais se estuda geometria, mais admirável isso nos parece. O
tratamento das paralelas por meio do famoso postulado das paralelas tem o duplo
mérito do rigor na dedução e de não ocultar a dúvida da suposição inicial. A
teoria da proporção, continuada por Eudóxio, evita todas as dificuldades
relacionadas com os irracionais, mediante métodos essencialmente semelhantes
aos introduzidos por Weierstrass na análise, no século XIX. Euclides passa,
depois, a uma espécie de álgebra geométrica, e trata, no Livro X, da questão dos
irracionais. Depois disso, trata da geometria dos sólidos, terminando com a
construção dos sólidos regulares, que havia sido aperfeiçoada por Teeteto e
adotada no Timeu de Platão.
Os Elementos, de Euclides, são, sem dúvida, um dos maiores livros jamais
escritos, e um dos monumentos mais perfeitos do intelecto grego. Tem, por certo,
as limitações gregas típicas: o método é puramente dedutivo, e não há maneira,
dentro dele, de verificar-se as suposições iniciais. Estas suposições eram
consideradas inquestionáveis, mas, no século XIX, a geometria não euclidiana
demonstrou que podiam ser, em parte, errôneas, e que somente a observação
poderia decidir se o eram.
Há em Euclides o desdém pela utilidade prática, que lhe fora inculcado por
Platão. Conta-se que um aluno, após ouvir uma demonstração, perguntou que
ganharia ele em aprender geometria; diante disso, Euclides chamou um escravo
e disse-lhe: “Dê a esse jovem três moedas, já que ele necessita ganhar dinheiro
com o que aprende”. O desdém pela prática era, no entanto, pragmaticamente
justificado. Ninguém, no tempo dos gregos, supunha que as secções cônicas
tivessem qualquer utilidade; por fim, no século XVII, Galileu descobriu que os
projéteis se movem em parábolas, e Kepler que os planetas se movem em
elipses. Subitamente, o trabalho que os gregos tinham feito por puro amor à teoria
se tornou a chave das operações militares e da astronomia.
Os romanos tinham espírito demasiado prático para apreciar Euclides; o
primeiro deles a citá-lo é Cícero, em cuja época não havia, provavelmente
tradução latina; não há, com efeito, nenhum registro de tradução para a latim
antes de Boécio (cerca de 480 A. D.), Os árabes apreciaram-no mais: o
imperador bizantino deu uma cópia ao califa cerca do ano 760 de nossa era,
sendo que se fez uma tradução para o árabe, sob o mandato de Harun al Raschid,
no ano 800, aproximadamente. A primeira tradução latina, ainda existente, foi
feita do árabe, em 1120 A. D., por Abelardo de Bath. A partir dessa época, o
estudo da geometria renasceu, gradualmente, no Ocidente; mas não foi senão no
último período da Renascença que se verificaram progressos importantes.
Chego, agora, à astronomia, em que as realizações dos gregos foram tão
notáveis como na geometria. Antes de sua época, entre os babilônios e os
egípcios, muito séculos de observações já haviam lançado um alicerce. Os
movimentos aparentes dos planetas já haviam sido anotados, mas não se sabia
que a estrela matutina e a estrela vespertina eram a mesma. Fora descoberto um
ciclo de eclipses, com toda a certeza na Babilônia e, provavelmente, no Egito, o
qual tornou a predição dos eclipses lunares bastante segura, mas não a dos
eclipses solares, pois que estes nem sempre eram visíveis num determinado
lugar. Devemos aos babilônios a divisão do ângulo reto em noventa graus, e do
grau em sessenta minutos; gostavam muito do número sessenta, havendo mesmo
um sistema de numeração baseado nele. Os gregos gostavam, também, de
atribuir a sabedoria de seus pioneiros às viagens pelo Egito, mas o que se havia
realmente conseguido antes dos gregos era muito pouco. A predição de um
eclipse por Tales foi, porém, um exemplo de influência estrangeira; não há razão
para se supor que haja acrescentado o que quer que fosse ao que aprendera em
fontes egípcias e babilônias, e foi um golpe de sorte que a sua predição se
verificasse.
Comecemos com algumas das primeiras descobertas e hipóteses corretas.
Anaximandro pensava que a Terra flutuava livremente, e que não se apoiava em
nada. Aristóteles,{81} que rejeitava, com frequência, as melhores hipóteses
formuladas em sua época, fez objeções à teoria de Anaximandro, dizendo que a
Terra, estando no centro, permanecia, imóvel porque não havia razão para que se
movesse, preferentemente, numa direção em lugar de outra. Se isto fosse válido,
diz ele, um homem colocado no centro de um círculo, com alimentos em vários
pontos da circunferência, morreria de fome por falta de razões para escolher
uma parte de comida, ao invés de outra. Este argumento reaparece na filosofia
escolástica, não em relação com a astronomia, mas com o livre arbítrio.
Reaparece na forma do “asno de Buridan”, que era incapaz de escolher entre
dois feixes de feno colocados, a igual distância, à esquerda e à direita, e que, por
isso, morreu de fome.
Pitágoras, com toda probabilidade, foi o primeiro a supor que a Terra era
esférica, mas suas razões eram (deve-se supor) mais estéticas que científicas. As
razões científicas, porém, foram logo encontradas. Anaxágoras descobriu que a
luz brilha porque reflete a luz, e deu a teoria correta dos eclipses. Quanto a ele,
ainda julgava a Terra chata, mas a forma da sua sombra nos eclipses lunares deu
a Pitágoras elementos concludentes a favor da esfericidade. Foram além, e
consideraram a Terra como um dos planetas. Sabiam — afirma-se que pelo
próprio Pitágoras — que a estréia matutina e a estréia vespertina eram idênticas,
e pensavam que todos os planetas, inclusive a Terra, se moviam em círculos, não
em torno do Sol, mas do “fogo central”. Haviam descoberto que a Lua volta
sempre a mesma face para a Terra, e deduziram que a Terra sempre volta a
mesma face para o “fogo central”. As regiões do Mediterrâneo ficavam sempre
do lado invisível. O fogo central era chamado “a casa de Zeus”, ou “a Mãe dos
deuses”. Supunham que o Sol brilhava devido à luz reflexa do fogo central. Além
da Terra, havia um outro corpo, a contra terra, à mesma distância do fogo
central. Para isso, tinham duas razões, uma científica, outra derivada de seu
misticismo aritmético. A razão científica era a observação correta de que um
eclipse da Lua às vezes ocorre quando tanto o Sol como a Lua se acham acima
do horizonte. A refração, que é a causa deste fenômeno, era por eles
desconhecida, e pensavam que, em tais casos, o eclipse deve ser devido à
sombra de outro corpo que não a Terra. A outra razão era a de que o Sol e a Lua,
os cinco planetas, a Terra e a contra terra e o fogo centrai, perfaziam dez corpos
celestes, sendo que dez era o número místico dos pitagóricos.
Esta teoria pitagórica é atribuída a Filolau, um tebano, que viveu no fim do
século V antes de Cristo. Embora seja uma teoria caprichosa e, em parte, nada
científica, é muito importante, já que envolve a maior parte do esforço
imaginativo requerido para conceber-se a hipótese de Copérnico. Conceber-se a
Terra, não como centro do universo, mas como um dos planetas, não
eternamente fixo, mas errante pelo espaço, é coisa que revelava extraordinária
emancipação do pensamento antropocêntrico. Uma vez dada essa sacudidela no
quadro natural do universo dos homens, não era tão difícil ser levado, por
argumentos científicos, a uma teoria mais exata.
Para isso, contribuíram várias observações de Enópidas, que, pouco depois de
Anaxágoras, descobriu a obliquidade da eclíptica. Tornou-se logo claro que o Sol
devia ser muito maior que a Terra, fato esse defendido pelos que negavam que a
Terra era o centro do universo. O fogo central e a contra terra foram postos de
lado pelos pitagóricos logo depois da época de Platão. Heráclides de Ponto (cujas
datas se situam entre 388 e 315 A. C., contemporâneo de Aristóteles) descobriu
que Vênus e Mercúrio giram em torno do Sol, e adotou o critério de que a Terra
gira sobre o seu próprio eixo cada vinte e quatro horas. Este último era um passo
muito importante, que nenhum de seus predecessores havia dado. Heráclides era
da escola de Platão, e deve ter sido um grande homem, mas não foi tão
respeitado como poderia supor-se. É descrito como um janota gordo.
Aristarco de Samos, que viveu, aproximadamente, de 310 a 230 A. C., e que
era cerca de vinte e cinco anos mais velho que Arquimedes, é o mais
interessante de todos os astrônomos antigos, pois antecipou a hipótese completa
de Copérnico de que todos os planetas, inclusive a Terra, giram em círculos em
torno do Sol, e que a Terra gira sobre o seu próprio eixo cada vinte e quatro horas.
É um tanto decepcionante verificar-se que a única obra existente de Aristarco,
Dos Tamanhos e das Distâncias do Sol e da Lua, adira ao conceito geocêntrico. É
verdade que, para os problemas de que o livro trata, não faz diferença qual a
teoria adotada, e bem pode ser que ele haja julgado imprudente sobrecarregar
seus cálculos com uma oposição desnecessária à opinião geral dos astrônomos;
pode também ser que haja chegado à hipótese de Copérnico depois de já haver
escrito seu livro. Sir Thomas Heath, em sua obra sobre Aristarco,{82} que
contém o texto desse livro com uma tradução, inclina-se para esta última opinião.
A evidência de que Aristarco sugeriu o critério copernicano é, de qualquer modo,
bastante concludente.
A primeira e a melhor evidência é a de Arquimedes, que, como vimos, era
contemporâneo, um tanto mais jovem, de Aristarco. Escrevendo a Gelon, rei de
Siracusa, diz ele que Aristarco produziu “um livro consistindo de certas
hipóteses”, e continua: “suas hipóteses são as de que as estrelas fixas e o Sol
permanecem imóveis, que a Terra gira ao redor do Sol na circunferência de um
círculo, ficando o Sol no meio da órbita”, Há uma passagem em Plutarco onde se
diz que Cleanto “pensava que era dever dos gregos acusar Aristarco de Samos de
impiedade, por colocar em movimento o Coração do Universo (isto é, a Terra),
pois esse foi o efeito de sua tentativa para salvar os fenômenos, supondo que o
céu permanece em repouso e que a Terra gira num círculo oblíquo, ao mesmo
tempo em que faz o mesmo em seu próprio eixo”. Cleanto era contemporâneo
de Aristarco, e morreu no ano 232 antes de Cristo, aproximadamente. Em outro
trecho, diz Plutarco que Aristarco apresentou essa sua opinião apenas como
hipótese, mas que o seu sucessor Seleuco a afirmava como coisa definitiva.
(Seleuco floresceu cerca do ano 150 A. C.). Aécio e Sexto Empírico também
asseveram que Aristarco antecipou a hipótese heliocêntrica, mas não diz que ela
foi por ele exposta somente como hipótese. Mesmo que o houvesse feito, não
parece improvável que ele, como Galileu dois mil anos mais tarde, fosse
influenciado pelo receio de ofender preconceitos religiosos, receio esse que a
atitude de Cleanto (acima mencionado) mostra ter sido bastante justificado.
A hipótese copérnica, depois de ter sido antecipada, positiva ou tentativamente,
por Aristarco, foi definitivamente adotada por Seleuco, mas por nenhum outro
astrônomo antigo. Essa repulsa geral foi devida, principalmente, a Hiparco, que
viveu de 161 a 126 A. C. Heath descreve-o como “o maior astrônomo da
antiguidade”.{83} Foi o primeiro a escrever sistematicamente sobre
trigonometria; descobriu a precessão dos equinócios; calculou a extensão do mês
lunar com erro de menos de um segundo; aperfeiçoou os cálculos de Aristarco
quanto aos tamanhos e as distâncias do Sol e da Lua; organizou um catálogo de
oitocentas e cinquenta estrelas fixas, dando sua latitude e longitude. Contra a
hipótese heliocêntrica de Aristarco, adotou e aperfeiçoou a teoria dos epiciclos,
que havia sido inventada por Apolônio, o qual viveu cerca do ano 220 A. C.; foi
um desenvolvimento desta teoria que veio a ser conhecido, mais tarde, como
sistema ptolomaico, do astrônomo Ptolomeu, que floresceu em meados do
segundo século de nossa era.
Copérnico talvez chegasse a saber algo, embora não muito, das hipóteses
quase esquecidas de Aristarco, sentindo-se animado a encontrar uma autoridade
antiga para a sua inovação. Por outro lado, o efeito desta hipótese sobre a
astronomia subsequente foi praticamente nulo.
Os astrônomos antigos, ao calcular o tamanho da Terra, da Lua e do Sol, bem
como as distâncias da Lua e do Sol, empregaram métodos teoricamente válidos,
mas foram prejudicados pela falta de instrumentos de precisão. Muitos de seus
resultados, tendo-se em vista essa falta, foram surpreendentemente bons.
Erastóstenes calculou o diâmetro da Terra como sendo de 7.850 milhas, o que é
somente umas cinquenta milhas menos que a verdade. Ptolomeu calculou a
distância média da Lua como sendo vinte e nove vezes e meia o diâmetro da
Terra. A cifra correta é, aproximadamente, 30.2. Nenhum deles se aproximou do
tamanho e da distância do Sol, que foram subestimados por todos. Seus cálculos,
tomando como base o diâmetro da Terra, foram:
Aristarco, 180;
Hiparco, 1.245;
Possidônio, 6.545.
A cifra correta é 11.726. Os leitores terão por certo notado que esses cálculos
foram continuamente aperfeiçoados (o de Ptolomeu, no entanto, mostra um
retrocesso); o de Possidônio{84} é de cerca da metade da cifra correta. Em
conjunto, seu quadro do sistema solar não estava muito longe da verdade.
A astronomia grega não era dinâmica, e sim geométrica. Os antigos
pensavam que os movimentos dos corpos celestes eram uniformes e circulares,
ou compostos de movimentos circulares. Não tinham a concepção de força.
Havia esferas que se moviam como um todo, e as quais se achavam fixos vários
corpos celestes. Com Newton e a gravitação, um novo ponto de vista, menos
geométrico, foi introduzido. É curioso observar que há uma reversão ao ponto de
vista geométrico na Teoria Geral da Relatividade, de Einstein, da qual a
concepção de força, no sentido newtoniano, foi banida.
O problema, para o astrônomo, é o seguinte: dados os movimentos aparentes
dos corpos celestes na esfera celeste, introduzir, por hipótese, uma terceira
coordenada, profunda, de molde a tomar tão simples quanto possível a descrição
dos fenômenos. O mérito da hipótese copernicana não é a sua verdade, mas a
sua simplicidade; em vista da relatividade do movimento, nenhuma questão de
verdade está aqui implicada. Os gregos, em sua busca de hipóteses que pudessem
“salvar os fenômenos”, estavam, com efeito, embora de maneira não
inteiramente intencional, atacando o problema de maneira corretamente
científica. Uma comparação com seus predecessores e com seus sucessores, até
Copérnico, deve convencer qualquer estudante de seu gênio verdadeiramente
assombroso.
Dois homens muito grandes, Arquimedes e Apolônio, no terceiro século antes
de Cristo, completam a lista dos matemáticos gregos de primeira plana.
Arquimedes era amigo e, provavelmente, primo do rei de Siracusa, e foi
assassinado quando os romanos capturaram a cidade, no ano 212 A. C. Apolônio,
desde a juventude, viveu em Alexandria. Arquimedes não era apenas
matemático, mas, também, físico e estudante de hidrostática. Apolônio é notável
principalmente devido à sua obra sobre secções cônicas. Nada mais direi a
respeito deles, pois que chegaram demasiado tarde para influir na filosofia.
Depois destes dois homens, embora continuasse a ser feito em Alexandria, um
trabalho, respeitável, a época de ouro estava terminada. Sob o domínio romano,
os gregos perderam a confiança em si mesmos — a confiança que advém da
liberdade política — e, perdendo-a, adquiriram um respeito paralisante pelos seus
predecessores. O soldado romano que matou Arquimedes foi um símbolo da
morte do pensamento original que Roma produziu em todo o mundo helênico.
TERCEIRA PARTE – A FILOSOFIA ANTIGA DEPOIS DE ARISTÓTELES
CAPÍTULO XXV
O Mundo Helenístico
A história do mundo de língua grega, na antiguidade, pode ser dividida em três
períodos: o das Cidades-Estados livres, levado a seu fim por Filipe e Alexandre; o
do domínio macedônico, de que o último resíduo se extinguiu com a anexação
romana do Egito, depois da morte de Cleópatra e, finalmente, o do Império
Romano. Desses três períodos, o primeiro se caracteriza pela liberdade e pela
desordem, o segundo pela sujeição e pela desordem, e o terceiro pela sujeição e
pela ordem.
O segundo desses períodos é conhecido como a idade helênica. Nas ciências e
matemáticas, a obra realizada durante este período é a melhor já produzida pelos
gregos. Na filosofia, inclui a fundação das escolas epicurista e estóica, bem como
a do ceticismo como doutrina definitivamente formulada; é, portanto, ainda
filosoficamente importante, embora menos do que no período de Platão e
Aristóteles. Depois do terceiro século de nossa era, não há nada realmente novo
na filosofia grega até os neoplatônicos, no século III depois de Cristo.
Entrementes, porém, o mundo romano estava sendo preparado para a vitória do
Cristianismo.
A breve carreira de Alexandre transformou, subitamente, mundo grego. Em
dez anos, de 334 a 324 A. C., conquistou a Ásia Menor, a Síria, o Egito, Babilônia,
Pérsia, Samarcande, Bactria e o Punjab. O Império Persa, o maior que o mundo
conhecera, foi destruído em três batalhas. O antigo saber dos babilônios, com
suas antigas superstições, tomou-se familiar à curiosidade grega; o mesmo
ocorreu com o dualismo de Zoroastro e (em menor grau) com as religiões da
Índia, onde o Budismo caminhava para a supremacia. Aonde quer que
Alexandre penetrasse, mesmo nas montanhas do Afeganistão, nas margens do
Jaxartes e nos tributários do índus, fundava cidades gregas, nas quais procurava
reproduzir as instituições gregas, tendo em vista, até certo ponto, um governo
autônomo. Embora seu exército fosse quase todo constituído de macedônios e os
gregos europeus se submetessem a ele de má vontade, considerou-se, a princípio,
como o apóstolo do helenismo. Gradualmente, porém, à medida que suas
conquistas se estendiam, adotou a política de promover uma fusão amigável
entre gregos e bárbaros.
Para isso, tinha ele vários motivos. Por um lado, era óbvio que os seus
exércitos, os quais não eram muito grandes, não poderiam manter,
permanentemente, pela força, um império tão vasto, devendo, no fim, depender
da conciliação das populações conquistadas. Por outro lado, o Oriente estava
acostumado a qualquer forma de governo, exceto o de um rei divino, papel que
Alexandre achava que poderia muito bem desempenhar. Se julgava ou não um
deus, ou somente tomava os atributos da divindade por motivos políticos, é
questão que compete ao psicólogo decidir, já que a evidencia histórica não é
decisiva. De qualquer modo, desfrutou claramente da adulação que recebeu no
Egito como sucessor dos faraós, e na Pérsia como Grande Rei. Seus capitães
macedônios — os “Companheiros”, como se chamavam — tinham para com ele
a atitude que os nobres do Ocidente adotavam ante seus soberanos
constitucionais: negavam-se prostrar-se diante dele, aconselhavam-no e
manifestavam-lhe suas críticas mesmo sob risco de suas vidas e, num momento
crucial, dirigiam suas ações, quando o obrigaram, junto ao Índus, a voltar à
pátria, ao invés de marchar para a conquista do Ganges. Os orientais eram mais
submissos, contanto que seus preconceitos religiosos fossem respeitados. Isso não
ofereceu dificuldade a Alexandre; era necessário, apenas, identificar Amon ou
Baal com Zeus, e declarar-se ele próprio filho do deus. Os psicólogos observam
que Alexandre odiava Filipe, sendo, provavelmente, cúmplice de seu assassínio:
teria gostado de crer que sua mãe, Olímpia, à semelhança de algumas damas da
mitologia grega, tivesse sido a amada de um deus. A carreira de Alexandre foi
tão miraculosa que bem poderia ter ele pensado numa origem miraculosa como
a melhor explicação para o seu prodigioso êxito.
Os gregos tinham um sentimento muito forte de superioridade sobre os
bárbaros; Aristóteles, sem dúvida, expressa a opinião geral, quando diz que as
raças nórdicas são ardentes, as raças meridionais civilizadas, mas que só os
gregos são, a um tempo, ardentes e civilizados. Platão e Aristóteles consideravam
um erro escravizar os gregos, mas não os bárbaros. Alexandre, que não era
inteiramente grego, procurou destruir essa atitude de superioridade. Ele próprio
casou com duas princesas bárbaras, e obrigou os seus principais macedônios a
casar com mulheres persas de nascimento ilustre. Suas inumeráveis cidades
gregas, poder-se-ia supor, deveriam conter um número muito maior de
colonizadores masculinos do que femininos, e seus homens devem, portanto, ter
seguido o seu exemplo, contraindo matrimônio com mulheres da localidade. O
resultado dessa conduta foi levar à mente dos pensadores a concepção da
humanidade como um todo; a velha lealdade à Cidade-Estado e (em menor
grau) à raça grega, já não parecia adequada. Na filosofia, este ponto de vista
cosmopolita começa com os estóicos, mas, na prática, começa mais cedo, com
Alexandre. Teve como resultado fazer com que a interação entre gregos e
bárbaros fosse recíproca: os Bárbaros aprenderam alguma coisa da ciência
grega, enquanto que os gregos aprenderam muito das superstições bárbaras. A
civilização grega, ao abranger uma área mais ampla, tornou-se menos
puramente grega.
A civilização grega era essencialmente urbana. Havia, certamente, muitos
gregos entregues à agricultura, mas contribuíam pouco para o que havia de
distintivo na cultura helênica. A partir da escola de Mileto, os gregos, que eram
eminentes na ciência, na filosofia e na literatura, estiveram associados às ricas
cidades comerciais, cercadas, amiúde, por populações bárbaras. Este tipo de
civilização foi inaugurado não pelos gregos, mas pelos fenícios; Tiro, Sidon e
Cartago dependiam de escravos para os trabalhos manuais do lar, e de
mercenários alugados para empreender suas guerras. Não dependiam, como as
modernas capitais, de grandes populações rurais do mesmo sangue e com iguais
direitos políticos. A analogia moderna mais próxima terá de ser encontrada no
Extremo Oriente durante a última metade do século XIX. Singapura e HongKong, Xangai e outros portos internacionais da China, eram pequenas ilhas
européias, onde o homem branco constituía uma aristocracia comercial que vivia
do trabalho dos coolie. Na América do Norte, ao norte da linha Mason-Dixon, já
que tal trabalho não poderia ser encontrado, os brancos foram obrigados a
praticar a agricultura. Por essa razão, o domínio do homem branco, na América
do Norte, é seguro, enquanto que o seu domínio no Extremo Oriente já diminuiu
consideravelmente, podendo, com facilidade, cessar por completo. Muito de seu
tipo de cultura, especialmente o industrialismo, sobrevive, apesar de tudo. Esta
analogia nos ajudará a compreender a posição dos gregos nas partes orientais do
império de Alexandre.
A influência de Alexandre, sobre a imaginação da Ásia, foi grande e
duradoura. O Primeiro Livro dos Macabeus, escrito séculos depois de sua morte,
começa com uma descrição da sua carreira:
“E aconteceu, depois que Alexandre, filho de Filipe o Macedônio, saiu da terra
de Chetiim, e abateu Dario, rei dos persas e dos medos, que ele reinou em seu
lugar, o primeiro sobre a Grécia, e fez muitas guerras, e conquistou muitos e
poderosos domínios, e matou os reis da terra, e foi até aos confins dela, e tomou
os despojos de muitas nações, de tal modo que a terra ficou tranquila diante dele;
em consequência disso, foi exaltado, e o seu coração se alevantou. E reuniu
hostes extremamente poderosas, e governou sobre países, e nações e reis, que se
tornaram seus tributários. E depois destas coisas se sentiu doente e percebeu que
ia morrer. Chamou, pois, os seus servidores, os que eram mais dignos, e que o
acompanhavam desde a sua juventude, e dividiu seu reino entre eles, enquanto
estava ainda vivo.{85} Assim, Alexandre reinou doze anos, e depois morreu”.
Sobreviveu como um herói legendário na religião maometana, e até hoje
pequenos chefes do Himalaia se dizem seus descendentes.{86} Nenhum outro
herói rigorosamente histórico apresentou jamais uma tal oportunidade para a
faculdade do mito poético.
Na ocasião da morte de Alexandre, houve uma tentativa no sentido de
preservar-se a unidade de seu império. Mas, de seus dois filhos, uma era criança
e o outro não havia ainda nascido. Cada qual tinha partidários, mas, na guerra
civil que se seguiu, ambos foram postos de lado. No fim, seu império foi dividido
entre as famílias de três generais, dos quais, falando-se de modo geral, um
obteve as possessões européias, outro as africanas, e o terceiro as possessões
asiáticas de Alexandre. A parte europeia caiu, finalmente, nas mãos dos
descendentes de Antígono; Ptolomeu, que obteve o Egito, fez de Alexandria a sua
capital; Seleuco, que conseguiu a Ásia após muitas guerras, estava demasiado
ocupado em suas campanhas para ter uma capital fixa, mas, nos últimos tempos,
Antióquia foi a principal cidade de sua dinastia.
Tanto os ptolomeus como os selêucidas (como era chamada a dinastia de
Seleuco), abandonaram as tentativas de Alexandre no sentido de produzir uma
fusão entre gregos e bárbaros, e estabeleceram tiranias militares baseadas, a
princípio, sobre uma parte do exército macedônio, fortalecida com mercenários
gregos. Os ptolomeus mantiveram o Egito com razoável segurança, mas, na
Ásia, dois séculos de confusas guerras dinásticas só terminaram com a conquista
dos romanos. Durante esses séculos, a Pérsia foi conquistada pelos partos, sendo
que os gregos bactrianos se viram cada vez mais isolados.
No segundo século antes de Cristo (após o que declinaram rapidamente)
tiveram um rei, Menandro, cujo império indiano era muito extenso. Sobreviveu
em Pali um par de diálogos entre ele e um sábio budista, bem como, em parte,
uma tradução chinesa. O Dr. Tarn sugere que o primeiro deles se baseia num
original grego; o segundo, que conclui com a abdicação de Menandro, convertido
em santo budista, certamente não o é.
O Budismo, nesse tempo, era uma religião vigorosa e proselitista, Açoca (264228), o santo rei budista, registra, numa inscrição ainda existente, que enviou
missionários a todos os reis macedônios: “E esta é a principal conquista, na
opinião de Sua Majestade — a conquista pela Lei; isto também é o que efetuou
Sua Majestade tanto em seus próprios domínios como em todos os reinos vizinhos
até seiscentas léguas de distância, mesmo até onde o rei grego Antíoco reside, e,
além de Antíoco, onde residem os quatro reis que se chamam, respectivamente,
Ptolomeu, Antígono, Magas e Alexandre … bem como aqui mesmo, nos
domínios do rei, entre os y onas” {87} (isto é, os gregos do Punjab). Infelizmente,
não sobreviveu nenhum relato ocidental desses missionários.
A Babilônia foi muito mais profundamente influenciada pelo helenismo. Como
vimos, o único antigo que seguiu Aristarco de Samos na manutenção do sistema
copernicano foi Seleuco de Selêucia, no Tigre, que floresceu cerca do ano 150 A.
C. Tácito conta-nos que, no primeiro século de nossa era, a Selêucia não havia
“resvalado para os costumes bárbaros dos partos, mas mantinha ainda as
instituições de Seleuco,{88} seu fundador grego. Trezentos cidadãos, escolhidos
por sua riqueza ou sabedoria, constituíam uma espécie de Senado; a população
também tinha a sua parte de poder”.{89} Por toda a Mesopotâmia, como mais
além do Ocidente, o grego tornou-se a linguagem da literatura e da cultura,
mantendo-se assim até a conquista maometana.
A Síria (excluindo a Judéia) tornou-se completamente helenizada nas cidades,
quanto ao que dizia respeito à linguagem e à literatura. Mas as populações rurais,
mais conservadoras, mantiveram as religiões e as linguagens a que estavam
acostumadas.{90} Na Ásia Menor, as cidades gregas do litoral experimentaram,
durante séculos, a influência de seus vizinhos bárbaros. Isto foi intensificado pela
conquista Macedônia. O primeiro conflito do helenismo com os judeus é relatado
no Livro dos Macabeus. É uma história profundamente interessante, sem
semelhança com qualquer outra coisa no Império Macedônio. Tratarei dela
posteriormente, quando chegar à origem e desenvolvimento do Cristianismo. Em
nenhuma outra parte, a influência grega encontrou tão tenaz oposição.
Do ponto de vista da cultura helênica, o êxito mais brilhante do terceiro século
antes de Cristo foi a cidade de Alexandria. O Egito estava menos exposto à
guerra que as partes européias e asiáticas do domínio macedônio, e Alexandria
achava-se numa posição extraordinariamente favorável para o comércio. Os
ptolomeus eram patronos do saber e atraíram para a sua capital muitos dos
melhores homens da época. Os matemáticos eram e continuaram a ser, até à
queda de Roma, principalmente alexandrinos. Arquimedes, é certo, era siciliano
e pertencia a uma parte do mundo em que as Cidades-Estados gregas (até o
momento de sua morte, no ano 212 A. C.) mantiveram a sua independência: mas
também ele havia estudado em Alexandria. Erastóstenes foi bibliotecário da
famosa biblioteca de Alexandria. Os matemáticos e os homens de ciência
ligados, mais ou menos intimamente, a Alexandria, no século terceiro antes de
Cristo, eram tão hábeis como qualquer dos gregos dos séculos anteriores, e
realizaram uma obra de igual importância. Mas não eram, como os seus
predecessores, homens que limitassem todo o conhecimento às suas
especialidades e, assim, propuseram filosofias universais; eram especialistas no
sentido moderno. Euclides, Arquimedes e Apolônio contentavam-se em ser
matemáticos; na filosofia, não aspiravam à originalidade.
A especialização caracterizou a época em todos os setores, não apenas no
mundo do saber. Nas cidades gregas de governo próprio, nos séculos V e IV,
supunha-se que um homem fosse capaz de tudo. Seria, chegada a ocasião,
soldado, político, legislador ou filósofo. Sócrates, embora detestasse a política,
não pôde evitar de imiscuir-se em disputas políticas. Em sua juventude foi
soldado e (apesar de sua negativa na Apologia) estudante de ciências físicas.
Protágoras, quando o seu ensino de ceticismo a jovens aristocratas que
procuravam a última novidade lhe deixava algum tempo livre, redigia um código
de leis para Turios. Platão meteu-se em política, embora sem êxito. Xenofonte,
quando não estava escrevendo sobre Sócrates nem sendo senhor rural, passava
suas horas vagas como general. Os matemáticos pitagóricos tentaram adquirir o
governo das cidades. Toda a gente tinha de servir no júri e cumprir vários outros
deveres públicos. No terceiro século, tudo isto estava modificado. Continuava
ainda a existir, é certo, políticos nas velhas Cidades-Estados, mas haviam-se
tornado políticos locais, sem importância, já que a Grécia se encontrava à mercê
dos exércitos macedônios. As lutas sérias para a conquista do poder verificavamse entre soldados macedônios; não envolviam questão alguma de princípio, mas,
meramente, a distribuição de territórios entre aventureiros rivais. Quanto às
questões administrativas e técnicas, esses soldados, mais ou menos incultos,
empregavam especialistas gregos; no Egito, por exemplo, foram realizadas
excelentes obras de irrigação e drenagem. Havia soldados, administradores,
físicos, matemáticos, filósofos, mas não havia ninguém que fosse tudo isso ao
mesmo tempo.
A época era tal que, nela, um homem que tivesse dinheiro e não desejasse o
poder podia desfrutar de uma vida bastante agradável — presumindo-se sempre
que nenhum exército saqueador lhe saísse pelo caminho. Os homens cultos que
gozavam do favor de algum príncipe podiam desfrutar de um alto grau de luxo,
contanto que fossem aduladores hábeis e não se importassem de ser alvo de
estúpidos gracejos reais. Mas não havia segurança. Uma revolução palaciana
podia desalojar o patrono do sábio adulador; os gálatas poderiam destruir a vila
do rico; a cidade em que se morava poderia ser saqueada como acidente de uma
guerra dinástica. Em tais circunstâncias, não é de estranhar que as pessoas
passassem a adorar a deusa da Fortuna, ou da Sorte. Não parecia haver nada de
racional na ordem dos assuntos humanos. Aqueles que insistiam, obstinadamente,
em encontrar racionalidade onde quer que fosse, se recolhiam a si próprios e
decidiam, como o Satanás de Milton, que
A mente é o seu próprio lugar e, em si,
Pode fazer um céu do inferno, e um inferno do céu.
Exceto para os aventureiros que só pensavam em si, não havia mais qualquer
incentivo que levasse alguém a interessar-se pelos assuntos públicos. Depois do
brilhante episódio das conquistas de Alexandre, o mundo helênico estava
mergulhando no caos, por falta de um déspota suficientemente forte para
conseguir uma supremacia estável, ou um princípio bastante poderoso para
produzir a coesão social. A inteligência grega, defrontando-se com novos
problemas políticos, revelou completa incompetência. Os romanos, sem dúvida,
eram estúpidos e brutais comparados aos gregos, mas, ao menos, criaram
ordem. A antiga desordem dos dias de liberdade havia sido tolerável porque os
cidadãos dela participavam; mas a nova desordem macedônia, imposta aos
súditos por governantes incompetentes, era inteiramente intolerável — mais
ainda que a sujeição subsequente a Roma.
Havia amplo descontentamento social e receio de revolução. Os salários do
trabalho livre baixaram, talvez devido à concorrência do trabalho escravo
oriental; enquanto isso, subiam os preços das coisas necessárias. Encontramos
Alexandre, no início de seu empreendimento, dispondo de tempo para fazer
tratados destinados a manter os pobres em seu lugar. “Nos tratados feitos, em
335, entre Alexandre e os Estados da Liga de Corinto, determinou-se que o
Conselho da Liga e o representante de Alexandre procurassem fazer com que
em nenhuma cidade houvesse confisco da propriedade privada, divisão de terras,
cancelamento de dívidas ou libertação de escravos com fins revolucionários”.
{91} Os templos, no mundo helênico, eram os banqueiros; possuíam as reservas
de ouro e controlavam o crédito. No começo do terceiro século, o templo de
Apolo, em Delos, fazia empréstimos a dez por cento; antes, a média dos juros era
ainda mais elevada.{92}
Os trabalhadores livres que achavam seus salários insuficientes mesmo para
as necessidades mais imediatas, podiam, se fortes e vigorosos, obter emprego
como mercenários. A vida de um mercenário, sem dúvida, era cheia de
provações e perigos, mas oferecia, também, grandes possibilidades. Alguma rica
cidade do Ocidente podia ser saqueada; podia surgir, ainda, a oportunidade de um
motim lucrativo. Deveria ser perigoso para um comandante tentar debandar o
seu exército, e talvez essa tenha sido uma das razões por que as guerras eram
quase contínuas.
O velho espírito cívico sobreviveu mais ou menos nas antigas cidades gregas,
mas não nas cidades novas fundadas por Alexandre, sem excetuar Alexandria.
Nos primeiros tempos, uma nova cidade era quase sempre uma colônia
composta de emigrantes de alguma cidade mais antiga, e permanecia ligada à
mãe por um laço sentimental. Esta espécie de sentimento tinha grande
longevidade, como demonstram, por exemplo, as atividades diplomáticas de
Lâmpsaco, no Helesponto, no ano 196 A. C. Esta cidade se achava ameaçada
pelo rei selêucida Antíoco III, e decidiu apelar a Roma para que a protegesse. Foi
enviada uma embaixada, mas esta não seguiu diretamente para Roma; dirigiu-se
primeiro, apesar da imensa distância, a Marselha, que, como Lâmpsaco, era
uma colônia de Focéia, sendo encarada, ademais, com bons olhos pelos romanos.
Os cidadãos de Marselha, tendo escutado um discurso do emissário, decidiram
incontinente enviar uma sua missão diplomática a Roma, a fim de apoiar a
cidade irmã. Os gauleses que viviam no interior, fora de Marselha, uniram-se a
eles com uma carta a seus parentes da Ásia Menor, os gálatas, recomendando
Lâmpsaco à sua amizade. Roma, naturalmente, ficou satisfeita de ter um
pretexto para imiscuir-se nos assuntos da Ásia Menor e, mediante a intervenção
de Roma, Lâmpsaco preservou a sua liberdade — até que ela se tornou
inconveniente para os romanos.{93}
Em geral, os governantes da Ásia chamavam a si próprios de “filo-helenos” e
favoreciam, tanto quanto suas necessidades políticas e militares o permitiam, as
antigas cidades gregas. As cidades desejavam e (quando podiam) reclamavam,
como de direito, governo democrático independente, ausência de tributos, e
liberdade para viver sem a presença de uma guarnição real. Valia a pena aos
romanos mostrarem-se conciliadores, pois elas eram ricas, podiam fornecer
mercenários e, muitas delas, tinham portos importantes. Mas se colocavam do
lado errado numa guerra civil, expunham-se a ser simplesmente conquistadas.
De um modo geral, os selêucidas, bem como outras dinastias que gradualmente
se desenvolveram, tratavam-nas toleravelmente, mas havia exceções.
As novas cidades, embora tivessem, em certa medida, governo próprio, não
conservavam as mesmas tradições que as antigas. Seus cidadãos não eram de
origem homonênea, mas provinham de todas as partes da Grécia. Eram, em
geral, aventureiros como os conquistadores ou os colonos de Joliannesburg, e não
peregrinos piedosos como os primeiros colonizadores gregos ou os pioneiros da
Nova Inglaterra. Por conseguinte, nenhuma das cidades de Alexandre constituía
uma forte unidade política. Isto era conveniente do ponto de vista do governo do
rei, mas uma fraqueza do ponto de vista da extensão do helenismo.
A influência da religião e das superstições não gregas no mundo helenístico foi
em grande parte perniciosa, mas não de todo. Poderia não ter sido este o caso. Os
judeus, os persas e os budistas tinham, todos eles, religiões que eram
positivamente superiores ao politeísmo popular grego, e que poderiam mesmo ter
sido estudadas com vantagem pelos melhores filósofos. Infelizmente, foram os
babilônios, ou caldeus, os que mais impressionaram a imaginação dos gregos.
Plavia, antes de mais nada, a sua fabulosa antiguidade; os registros sacerdotais
datavam de milhares de anos e. Segundo se dizia, remontavam, ainda, a outros
tantos milênios. Havia, ademais, uma certa sabedoria verdadeira: os babilônios
sabiam mais ou menos predizer os eclipses muito antes que os gregos. Mas estas
eram simples causas de receptividade; o que se aceitou foi, principalmente, a
astrologia e a magia. “A astrologia — diz o Prof. Gilbert Murray — caiu sobre o
espírito helenístico como uma nova doença cai sobre os habitantes de alguma ilha
remota. A tumba de Ozvmandias, tal como é descrita por Deodoro, foi coberta de
signos astrológicos, e a de Antíoco I, que foi descoberta em Commagene, é do
mesmo caráter. Era natural aos monarcas acreditar que as estrelas velavam por
eles. Mas todos estavam preparados para receber o gérmen”.{94} Parece que a
astrologia foi ensinada aos gregos, pela primeira vez, no tempo de Alexandre, por
um caldeu chamado Berosus, que ensinava em Cos e que, segundo Sêneca,
“interpretou Baal”. “Isto – diz o Prof. Murray – significa que traduziu para o
grego o Olho de Baal um tratado de setenta tábuas encontrado na biblioteca de
Assurbanipal (686-626 A. C.), mas composto por Sargão I no terceiro milênio
antes de Cristo” (ibid, p. 176).
Como veremos, mesmo a maioria dos melhores filósofos deixou-se levar pela
crença na astronomia. Pressupunha ela, já que considerava o futuro predizível,
uma crença na necessidade ou no destino, a qual podia ser colocada contra a fé
prevalecente na fortuna. A maioria dos homens, sem dúvida, acreditava em
ambas as coisas, sem jamais perceber tal incongruência.
A confusão geral estava destinada a produzir uma decadência moral, mais
ainda do que uma debilitação intelectual. As épocas de incertezas prolongadas,
conquanto sejam compatíveis com o mais alto grau de santidade em uns poucos
indivíduos, são inimigas das prosaicas virtudes cotidianas dos cidadãos
respeitáveis. Parece inútil a poupança, quando amanhã todas as nossas
economias podem ser dissipadas; de nenhuma vantagem a honestidade, quando
aquele com quem a gente a pratica quase seguramente nos enganará: não tem
sentido aderir a gente a uma causa, quando nenhuma causa é importante, nem
tem probabilidade de uma vitória estável; nenhum argumento a favor da
verdade, quando somente a flexível tergiversação torna possível a preservação
da vida e da fortuna. O homem cuja virtude não tem outra origem senão uma
prudência puramente terrena, converter-se-á, num mundo assim, num
aventureiro, se tiver a coragem e, se não a tiver, procurará a obscuridade, como
um tímido contemporizador.
Menandro, que pertence a essa época, diz:
Assim, muitos casos conheci
De homens que, embora não fossem velhacos por natureza,
Se tornaram tais, devido ao infortúnio, por coação.
Isto resume o caráter moral do terceiro século antes de Cristo, exceto quanto a
uns poucos homens excepcionais. Mesmo entre estes poucos, o medo tomou o
lugar da esperança; a finalidade da vida era mais escapar ao infortúnio do que
realizar qualquer bem que fosse positivo. “A metafísica passa para segundo
plano, e a ética, agora individual, adquire primordial importância. A filosofia já
não é o pilar de fogo que alguns intrépidos buscadores da verdade carregam
diante de si: é antes uma ambulância que segue o rasto da luta pela existência e
recolhe os fracos e os feridos”.{95}
CAPÍTULO XXVI
Cínicos e Céticos
As relações entre os intelectuais eminentes e a sociedade contemporânea
foram muito diferentes em épocas diversas. Em algumas épocas afortunadas,
estiveram, de modo geral, em harmonia com o ambiente em que viviam,
sugerindo, sem dúvida, as reformas que lhes pareciam necessárias, mas bastante
confiados em que suas sugestões seriam bem recebidas, não desgostando do
mundo em que se achavam mesmo que este continuasse sem reforma. Em
outras ocasiões, foram revolucionários, considerando que se impunham
modificações radicais, mas esperando que, em parte como resultado de sua
defesa, tais modificações se realizariam em futuro próximo. Em outras épocas,
porém, desesperavam do mundo, e achavam que, embora eles soubessem o que
se necessitava, não havia esperança de que isso se cumprisse. Este estado de
espírito mergulha com facilidade no desespero mais profundo que considera a
vida sobre a Terra como coisa essencialmente má, e espera o bem somente
numa vida futura, ou em alguma transfiguração mística.
Em algumas épocas, todas estas atitudes foram adotadas por homens
diferentes que viviam no mesmo período. Considere-se, por exemplo, o começo
do século XIX. Goethe sente-se à vontade, Bentham é um reformador, Shelley
um revolucionário e Leopardi um pessimista. Mas na maior parte dos períodos
houve um tom predominante entre os grandes escritores. Na Inglaterra, sentiamse confortáveis sob o reinado de Elizabeth e, ainda, durante o século XVIII; na
França, tornaram-se revolucionários em 1750, aproximadamente; na Alemanha,
foram nacionalistas desde 1813. Durante o período de domínio eclesiástico, do
século V ao XV, houve um certo conflito entre aquilo em que se acreditava
teoricamente e aquilo que verdadeiramente se sentia. Teoricamente, o mundo
era um vale de lágrimas, um preparativo, em meio de tribulações, para o mundo
que viria. Mas, na prática, os escritores, sendo quase todos clérigos, não podiam
deixar de sentir-se jubilosos ante o poder da Igreja; encontraram oportunidade
para a abundante atividade de um gênero que acreditavam útil. Tinham, portanto,
a mentalidade de uma classe governante, e não de homens que se sentissem
exilados num mundo estranho. Isto é uma parte do curioso dualismo que
atravessa toda a Idade Média, devido ao fato de que a Igreja, embora baseada
em outras crenças extraterrenas, era a mais importante instituição do mundo
cotidiano.
A preparação psicológica do Cristianismo para a outra vida começa no
período helenístico, e está ligada ao eclipse da Cidade-Estado. Até Aristóteles, os
filósofos gregos, embora pudessem queixar-se disto e daquilo, não se sentiam, de
modo geral, cosmicamente desesperados, nem se achavam politicamente
impotentes. Podiam, em certas ocasiões, pertencer a um partido vencido, mas,
nesse caso, sua derrota era devida aos acasos do conflito, e não a uma inevitável
impotência dos sábios. Mesmo aqueles que, como Pitágoras e, de certo modo,
Platão, condenaram o mundo das aparências e procuraram uma evasão no
misticismo, tinham planos práticos para transformar as classes governantes em
santos e sábios. Quando o poder político passou para as mãos dos macedônios, os
filósofos gregos, como era natural, deram as costas à política e dedicaram-se
mais ao problema da virtude e da salvação individual. Já não perguntavam: como
podem os homens criar um bom Estado? Em lugar disso, perguntavam: como
podem os homens ser virtuosos num mundo mau, ou felizes num mundo de
sofrimento? A mudança, por certo, é apenas de grau; tais perguntas tinham sido
feitas antes, e os últimos estóicos, durante algum tempo, se ocuparam outra vez
de política: a política de Roma, não da Grécia. Mas nem por isso a mudança
deixou de ser menos real. Exceto até certo limite, durante o período romano do
estoicismo, a visão dos que pensavam e sentiam seriamente se tornou cada vez
mais subjetiva e individualista, até que, afinal, o Cristianismo desenvolveu um
evangelho de salvação individual que inspirou o zelo missionário e criou a Igreja.
Até que isso acontecesse, não havia instituição alguma a que o filósofo pudesse
aderir de todo o coração e, por conseguinte, não havia nenhuma saída adequada
para o seu legítimo amor do poder. Por essa razão, os filósofos do período
helenista eram mais limitados, como seres humanos, do que os homens que
viveram enquanto a Cidade-Estado podia ainda inspirar lealdade. Pensavam
ainda, pois não podiam deixar de pensar; mas mal esperavam que seus
pensamentos produzissem frutos no mundo dos negócios.
Quatro escolas de filosofia foram fundadas no tempo de Alexandre. As duas
mais famosas – a dos estóicos e a dos epicuristas – serão objeto de capítulos
posteriores; no presente capítulo, trataremos dos cínicos e dos céticos.
A primeira dessas escolas se deriva, através de seu fundador Diógenes, de
Antístenes, um discípulo de Sócrates, cerca de vinte anos mais velho que Platão.
Antístenes era um tipo notável, sob certos aspectos um tanto semelhante a Tolstoi.
Até depois da morte de Sócrates, viveu no círculo aristocrático de seus
condiscípulos, não revelando qualquer sinal de heterodoxia. Mas algum motivo –
a derrota de Atenas, ou a morte de Sócrates, ou o seu desagrado pelas cavilações
filosóficas – fez com que ele, já não muito jovem, passasse a desprezar as coisas
que anteriormente apreciara. Não queria saber de outra coisa senão da simples
bondade. Associou-se aos trabalhadores, e vestia-se como eles. Entregou-se a
prédicas ao ar livre, num estilo que as pessoas incultas podiam compreender.
Reputou inútil toda a filosofia refinada; aquilo que se podia conhecer, podia ser
conhecido pelo homem simples. Acreditava na “volta à natureza”, tendo levado
muito longe tal crença. Não devia haver governo, nem propriedade privada, nem
casamento, nem religião estabelecida. Seus adeptos, senão ele, condenavam a
escravidão. Não era exatamente um asceta, mas desdenhava o luxo e a busca de
todos os prazeres artificiais dos sentidos. “Fui mais louco que voluptuoso”, diz ele.
{96}
A fama de Antístenes foi ultrapassada pela de seu discípulo Diógenes, “um
jovem de Sinope, no Euxino, com quem ele (Antístenes) não se simpatizara à
primeira vista; era filho de um cambista de má reputação, que fora enviado à
prisão por falsificar moedas. Antístenes mandou o rapaz embora, mas este não
lhe deu atenção; bateu-lhe com seu bastão, mas o outro nem sequer se moveu:
Queria “sabedoria”, e viu que Antístenes podia dar-lha. Seu objetivo na vida era
fazer o que o pai havia feito: “falsificar a moeda”, mas numa escala muito
maior. Falsificaria toda a moeda corrente do mundo. “Todas as cunhagens
convencionais eram falsas. Os homens cunhados como generais e reis; as coisas,
cunhadas como honra e sabedoria e felicidade e riquezas; tudo era metal vil com
inscrições mentirosas”.{97}
Resolveu viver como um cão e, por isso, foi chamado “cínico”, que significa
“canino”. Rejeitou todas as convenções, quer fossem de religião, de maneiras, de
trajos, de habitação, de alimentação ou de decência. Contam-nos que vivia num
tonel, mas Gilbert Murray nos assegura que isto é um erro: tratava-se de um
grande cântaro, dos que eram usados, nos tempos primitivos, para os enterros.
{98} Como um faquir indiano, vivia mendigando. Proclamava a sua irmandade
não só com toda a raça humana, mas também com os animais. Era um homem
em torno do qual se amontoavam histórias, mesmo no tempo em que viveu. Toda
a gente sabe como Alexandre o visitou, perguntando-lhe se desejava algum
favor; “desejo somente que não me tires o sol”, respondeu.
A doutrina de Diógenes não era, de modo algum, o que hoje chamaríamos
“cínica”, mas precisamente o contrário. Sentia ardente paixão pela “virtude”, em
comparação com a qual considerava sem importância os bens terrenos.
Procurava a virtude e a liberdade moral na libertação do desejo: sê indiferente
aos bens que a fortuna tem para oferecer, e estarás livre do medo. A este
respeito, sua doutrina, como veremos, foi adotada pelos estóicos, mas não o
seguiram na parte referente à rejeição das amenidades da civilização.
Considerava que Prometeu foi justamente castigado por trazer ao homem as
artes que produziram a complicação e a artificialidade da vida moderna. Nisto,
parece-se aos taoístas, a Rousseau e a Tolstoi, mas era mais coerente que eles.
Sua doutrina, embora ele fosse contemporâneo de Aristóteles, pertence, por
sua tempera, à época helenística. Aristóteles é o último filósofo grego que
enfrenta o mundo alegremente; depois dele, todos os outros praticaram, desta ou
daquela forma, uma filosofia de fuga. O mundo é mau; aprendamos a tornar-nos
independentes dele. Os bens externos são precários; são dons da fortuna, e não a
recompensa de nossos próprios esforços. Somente os bens subjetivos – a virtude,
ou o contentamento pela resignação – são seguros e, portanto, terão valor para o
homem sensato. Pessoalmente, Diógenes era um homem cheio de vigor, mas
sua doutrina, como todas as da época helenística, era de molde a seduzir o
homem cansado, em quem as decepções houvessem destruído o entusiasmo
natural. E não foi, certamente, uma doutrina calculada para promover a arte, a
ciência e a estadística, ou qualquer atividade útil, exceto a de protestar contra o
poder do mal.
É interessante observar-se em que se transformou a doutrina cínica, ao
popularizar-se. Na primeira parte do terceiro século antes de Cristo, os cínicos
estavam na moda, principalmente em Alexandria. Publicaram pequenos
sermões assinalando quão fácil é a gente viver sem posses materiais, quão feliz
se pode ser com alimentos simples, e de que maneira pode a gente aquecer-se no
inverno sem roupas dispendiosas (o que poderia ser verdade no Egito!), e como
era tolice sentir-se afeto pelo seu próprio país ou lamentar a morte dos filhos ou
amigos. “Porque meu filho ou minha esposa morreram — diz Teles, que era um
destes cínicos populares — há alguma razão para que eu não cuide de mim
mesmo, que ainda vivo, ou que deixe de zelar pela minha propriedade?” {99}
Neste ponto, é difícil sentir-se simpatia pela vida simples, que se tornou
demasiado simples. Fica-se a imaginar quais eram os indivíduos que apreciavam
tais sermões. Era o rico, que desejava pensar nos sofrimentos dos pobres como
se fossem imaginários? Ou era o pobre, que estava procurando desprezar o
homem de negócios bem-sucedido? Ou eram os bajuladores, que desejavam
convencer a si mesmos de que não tinha importância a caridade que aceitavam?
Diz Teles a um rico: “Tu dás liberalmente e eu tomo corajosamente de ti, sem
rastejar, resmungar ou rebaixar-me”.{100} Uma doutrina muito conveniente,
sem dúvida. O cinismo popular não ensinava a abstinência das coisas boas do
mundo, mas apenas uma certa indiferença diante delas. No caso do que toma
emprestado, isto poderia adquirir a forma de diminuir a obrigação para com o
que empresta. Pode ver-se, aqui, a maneira pela qual a palavra “cínico” adquiriu
o seu significado cotidiano.
O que havia de melhor na doutrina dos cínicos passou para o estoicismo, que
era uma filosofia muito mais completa e escorreita.
O ceticismo, como doutrina de escola, foi primeiro proclamado por Pirro, que
pertenceu ao exército de Alexandre e chegou a acompanhá-lo até à índia.
Parece que isso lhe bastou quanto ao gosto pelas viagens, pois passou o resto de
sua vida em sua cidade natal, Elis, onde morreu no ano 275 A. C. Não havia
muita coisa nova em sua doutrina, além de uma certa sistematização e
formalização de velhas dúvidas. O ceticismo, com respeito aos sentidos, havia
perturbado os filósofos gregos desde época bastante distante; as únicas exceções
foram os que, como Parmênides e Platão, negaram o valor cognoscitivo da
percepção, fazendo da sua negação uma oportunidade para um dogmatismo
intelectual. Os sofistas, particularmente Protágoras e Górgias, haviam sido
levados, pelas ambiguidades e aparentes contradições da percepção sensorial, a
um subjetivismo não muito diferente do de Hume. Parece que Pirro (que, muito
sensatamente, não escreveu livros) havia acrescentado o ceticismo moral e
lógico ao ceticismo dos sentidos. Diz-se que ele afirmava que jamais poderia
haver qualquer fundamento racional para se preferir uma maneira de agir à
outra. Na prática, isso significava que o homem se conformava com os costumes
de qualquer país em que vivesse. Um discípulo moderno iria à igreja aos
domingos e realizaria as genuflexões corretas, mas sem experimentar qualquer
das crenças religiosas que, segundo se supõe, inspiram essas ações. Os antigos
céticos passavam por todo o ritual pagão, sendo que, às vezes, eram até mesmo
sacerdotes; seu ceticismo lhes assegurava que não se poderia provar que essa
conduta fosse errada, e seu senso comum (que sobreviveu à sua filosofia) lhes
assegurava que isso era conveniente.
O ceticismo, naturalmente, exerceu atração sobre muitos espíritos não
filosóficos. As pessoas observavam a diversidade de escolas e a aspereza de suas
disputas, e decidiram que todas elas aspiravam a um conhecimento que, na
realidade, era inatingível. O ceticismo era a consolação do homem preguiçoso,
já que mostrava que o ignorante era tão sábio como o homem de reputado saber.
Para os homens que, por temperamento, exigiam um evangelho, poderia parecer
insatisfatório, mas, como toda doutrina do período helenístico, recomendava-se
como um antídoto contra a preocupação. Por que preocupar-nos com o futuro? O
futuro é inteiramente incerto. Melhor gozarmos o presente; “o que está por vir é
ainda inseguro”. Por essas razões, o ceticismo desfrutava de considerável êxito
popular.
Seria conveniente observar que o ceticismo, como filosofia, não é
simplesmente dúvida, mas o que pode chamar-se dúvida dogmática. O homem
de ciência diz: “Penso que isto é assim e assim, mas não tenho certeza”. O
homem de curiosidade intelectual diz: “Não sei como é, mas espero descobrir”.
O filósofo cético diz: “Ninguém sabe, e ninguém poderá jamais saber”. É este
elemento de dogmatismo que torna o sistema vulnerável. Os céticos, por certo,
negam que afirmam a impossibilidade de conhecer-se dogmaticamente, mas
suas negativas não são muito convincentes.
Timon, discípulo de Pirro, porém, apresentou alguns argumentos intelectuais
que, do ponto de vista da lógica grega, eram muito difíceis de se responder. A
única lógica admitida pelos gregos era dedutiva, e toda dedução tinha de partir,
como em Euclides, de princípios gerais considerados como evidentes por si
mesmos. Tudo, portanto, terá de ser provado por meio de alguma outra coisa, e
todo argumento será circular ou uma cadeia infinita pendente do nada. Este
argumento, como podemos ver, corta pela raiz a filosofia aristotélica que
predominou na Idade Média.
Algumas formas de ceticismo que, em nossos dias, são defendidas por
homens que não são, de modo algum, céticos, não ocorreram aos céticos da
antiguidade. Não duvidaram dos fenômenos ou da proposição de questões que,
em sua opinião, só exprimiam o que sabemos diretamente a respeito dos
fenômenos. A maior parte da obra de Timon se perdeu, mas dois fragmentos
existentes ilustram este ponto. Um diz: “O fenômeno é sempre válido”. O outro
diz:
“Que o mel é doce, é coisa que me nego a afirmar; que parece doce, eu o
garanto plenamente”.{101} Um cético moderno assinalaria que o fenômeno
simplesmente ocorre, mas não é válido nem inválido; o que é válido ou inválido
deve ser uma exposição, e nenhuma exposição pode ser tão estreitamente ligada
ao fenômeno que possa ser capaz de falsidade. Pela mesma razão, diria que a
afirmação “o mel parece doce” é apenas muitíssimo provável, e não
absolutamente certa.
Timon viveu em Atenas durante os últimos anos de sua longa vida, e morreu
no ano 235 A. C. Com a sua morte, a escola de Pirro, como escola, chegou ao
fim, mas suas doutrinas, um tanto modificadas, foram adotadas, por estranho que
pareça, pela Academia, que representava a tradição platônica.
O homem que realizou essa surpreendente revolução filosófica foi Arcesilau,
contemporâneo de Timon, que morreu, velho, cerca do ano 240 A. C. O que a
maioria dos homens tomou de Platão é a crença num mundo intelectual
supersensível e na superioridade da alma imortal sobre o corpo mortal. Mas
Platão tinha muitas facetas e, sob certos aspectos, podia ser encarado como se
estivesse ensinando o ceticismo. O Sócrates platônico professa não conhecer
nada; naturalmente, consideramos isto como uma ironia, mas poderíamos levá-lo
a sério. Muitos dos diálogos não chegam a nenhuma conclusão, mas tem por fim
deixar o leitor num estado de confusão. Dir-se-ia que alguns deles — a última
metade de Parmênides, por exemplo, — não tem propósito algum, exceto
mostrar que cada um dos lados de toda questão pode ser mantido com idêntica
plausibilidade. A dialética platônica poderia ser tratada mais como um fim do que
como um meio, e, se tratada desta maneira, presta-se admiravelmente à defesa
do ceticismo. Parece ter sido esta a maneira pela qual Arcesilau interpretou o
homem a quem, no entanto, professava seguir. Havia decapitado Platão, mas, de
qualquer modo, o torso que restava era verdadeiro.
A maneira de ensinar de Arcesilau teria sido muito de elogiar-se, se os jovens
a quem ensinava houvessem sido capazes de evitar de ver-se paralisados por ela.
Não defendia tese alguma, mas refutaria qualquer tese estabelecida por um
aluno. Apresentava, às vezes, duas proposições contraditórias em ocasiões
sucessivas, mostrando a maneira de argumentar-se convincentemente a favor de
qualquer uma delas. Um aluno suficientemente vigoroso para rebelar-se poderia
haver aprendido destreza e a evitar o que fosse falso; nenhum deles, com efeito,
parece haver aprendido qualquer outra coisa exceto habilidade intelectual e
indiferença pela verdade. Tão grande foi a influência de Arcesilau que a
Academia permaneceu cética durante uns duzentos anos.
No meio deste período cético, ocorreu um incidente divertido. Caniéades,
digno sucessor de Arcesilau como chefe da Academia, foi um dos três filósofos
enviados por Atenas numa missão diplomática a Roma, no ano 150 A. C. Não viu
razão alguma por que sua dignidade de embaixador devesse interferir com essa
grande oportunidade, de modo que anunciou uma série de conferências em
Roma. Os jovens, que, nesse tempo, estavam ansiosos por imitar as maneiras e
adquirir a cultura grega, se congregaram para ouvi-lo. Expôs, em sua primeira
conferência, as opiniões de Aristóteles e Platão sobre a justiça, e foi bastante
edificante. Sua segunda conferência, no entanto, tinha por objetivo refutar tudo o
que havia dito na primeira, não com a finalidade de estabelecer conclusões
opostas, mas simplesmente demonstrar que toda conclusão carece de garantia. O
Sócrates de Platão arguira que infligir injustiça constituía maior dano ao que a
perpetrava do que àquele que era vítima dela. Carnéades, em sua segunda
conferência, tratou esta tese com desdém. Os grandes Estados, assinalou ele,
tinham-se tornado grandes por meio de agressões injustas contra vizinhos mais
fracos; em Roma, isso não podia ser negado. Num naufrágio, pode-se salvar a
vida à custa de outro mais fraco, e a gente seria um idiota se não o fizesse.
“Primeiro as mulheres e as crianças”, parece pensar, não é uma máxima que
conduza à sobrevivência individual. Que farias se, fugindo de um exército
vitorioso, houvesses perdido teu cavalo e encontrasses um camarada ferido a
cavalo? Se és sensato, tu o arrancarias do animal e lhe tomarias o cavalo, seja o
que for que a justiça pudesse ordenar. Toda esta argumentação, não muito
edificante, é surpreendente num homem que se dizia adepto de Platão, mas
parece que isso agradou aos jovens romanos de espírito moderno.
Houve um homem a quem não agradou, e esse homem era o velho Catão,
que representava o severo, rígido, estúpido e brutal código moral mediante o qual
Roma derrotara Cartago. Da juventude à velhice, vivera com simplicidade,
levantando-se cedo, praticando árduos trabalhos manuais, comendo somente
alimentos grosseiros e não vestindo nunca túnica que custasse mais de cem
moedas de cobre. Para com o Estado, era escrupulosamente honesto, recusando
qualquer suborno ou pilhagem. Exigia de todos os outros romanos as virtudes que
ele próprio praticava, asseverando que acusar e perseguir os maus era a melhor
coisa que um homem honesto poderia fazer. Fez vigorar, tanto quanto podia, a
velha severidade de maneira romana:
“Catão expulsou do Senado também um tal Manílio, que tinha grandes
probabilidades, de tornar-se cônsul no ano seguinte porque este beijou a esposa
com demasiado ardor à luz do dia e diante da filha; e, ao censurá-lo, disse-lhe
que sua esposa jamais o beijava, exceto quando trovejava”.{102}
Quando estava no poder, reprimiu o luxo e os festins. Fez com que a esposa
amamentasse não só os próprios filhos como, também, os de seus escravos, a fim
de que, tendo sido nutridos com o mesmo leite, pudessem amar os seus filhos.
Quando seus escravos eram muito velhos para trabalhar, vendia-os sem o menor
remorso. Insistia em que seus escravos estivessem sempre trabalhando ou
dormindo. Animava os escravos a que tivessem disputas entre si, “pois não podia
permitir que fossem amigos”. Quando um escravo cometia alguma falta grave,
reunia os outros escravos e fazia com que condenassem o delinquente a morte;
executava, depois, a sentença com suas próprias mãos, na presença dos
sobreviventes.
O contraste entre Catão e Carnéades era o mais completo possível: um, brutal
devido a uma moralidade demasiado estrita e tradicional; o outro, ignóbil devido
a uma moralidade demasiado lassa, corrompida pela dissolução social do mundo
helenístico.
“Marco Catão, desde o momento em que os jovens começaram a estudar a
língua grega e que esta aumentou de prestígio em Roma, passou a odiá-la,
receoso de que a juventude de Roma, que se mostrava desejosa de cultura e
eloquência, abandonasse por completo a honra e a glória das armas... Assim,
abertamente, considerou, certo dia, como uma falta, no Senado, o fato de que os
senadores lá se encontrassem havia muito tempo sem que o expediente houvesse
ainda sido despachado; considerou, também, que eram homens astutos e
poderiam facilmente convencer os demais do que quisessem. E, se não houvesse
nenhum outro aspecto, este, por si só, deveria persuadi-los a determinar alguma
resposta para eles, e enviá-los de novo a suas escolas, a fim de que, deixando de
lado as crianças de Roma, ensinassem as crianças da Grécia a obedecer às leis e
o Senado, como tinham feito antes. Ora, falava assim ao Senado não por má
vontade para com Carnéades, como alguns julgavam, mas porque, de um modo
geral, odiava a filosofia.{103}
Os atenienses, segundo a opinião de Catão, eram uma pequena casta sem lei;
não lhe importava que fossem degradados pela sofistica superficial dos
intelectuais, mas a juventude romana devia ser conservada puritana, imperialista,
implacável e estúpida. Não obstante, fracassou; os últimos romanos, embora
conservassem muitos de seus vícios, adotaram também os de Carnéades.
O chefe seguinte da Academia, depois de Carnéades (ca. 180 A. C. A ca. 110
A. C.) foi um cartaginês cujo nome real era Asdrúbal, mas que, em seu trato
com os gregos, preferia chamar a si mesmo Clitômaco. Ao contrário de
Carnéades, que se limitava a realizar conferências, Clitômaco escreveu mais de
quatrocentos livros, alguns dos quais em língua fenícia. Seus princípios parecem
ter sido os mesmos que os de Carnéades. Sob certos aspectos, foram úteis. Estes
dois céticos se opuseram à crença na adivinhação, magia e astrologia, as quais se
expandiam cada vez mais. Desenvolveram, ainda, uma doutrina construtiva a
respeito dos graus de probabilidade: embora jamais possamos justificá-las até à
certeza, certas coisas têm mais probabilidade de ser verdadeiras do que outras. A
probabilidade devia ser nosso guia na prática, pois que é razoável agir conforme
à mais provável das hipóteses. Esta é uma opinião com a qual a maioria dos
filósofos modernos estaria de acordo. Infelizmente, os livros que o demonstram
se perderam, e é difícil reconstruir-se a doutrina pelas alusões que restam.
Depois de Clitômaco, a Academia deixou de ser cética e, a partir do tempo de
Antíoco (que morreu em 69 A. C.), suas doutrinas se tornaram, durante séculos,
praticamente indistinguíveis das dos estóicos.
O ceticismo, porém, não desapareceu. Reviveu com o cretense Enesidemo,
que procedia de Cnosso, onde, pelo que sabemos, devia ter havido céticos desde
dois mil anos antes, os quais entretinham cortesãos dissolutos com dúvidas quanto
à divindade dos domadores de animais. A data de Enesidemo é incerta. Rejeitou
as doutrinas sobre a probabilidade defendidas por Carnéades e retrocedeu às
primeiras formas de ceticismo. Sua influência foi considerável; foi seguido pelo
satírico Luciano no século segundo A. C. E, pouco depois, por Sexto Empírico, o
único filósofo cético cujas obras sobrevivem. Há, por exemplo, um breve
tratado, “Argumentos Contra a Crença Num Deus”, traduzido por Edwy n Bevan
em seu livro Later Greek Religion, pp. 52-56, que, diz ele, foi provavelmente
tomado, por Sexto Empírico, de Carnéades, segundo Clitômaco.
Este tratado começa por explicar que, na conduta, os céticos são ortodoxos:
“Nós, céticos, seguimos, na prática, o caminho do mundo, mas sem que
manifestemos qualquer opinião a respeito. Falamos dos deuses como se
existissem, rendemos-lhes culto e dizemos que exercem a providência, mas, ao
dizê-lo, não expressamos crença alguma e evitamos as temeridades dos
dogmatizadores.”
Afirma, depois, que as pessoas diferem quanto à natureza de Deus; alguns
supõem, por exemplo, que Ele é corpóreo; outros, que é incorpóreo. Como não
temos experiência a respeito dele, não podemos conhecer seus atributos. A
existência de Deus não é evidente por si mesma e, portanto, requer prova. Há um
argumento um tanto confuso destinado a demonstrar que tal prova não é possível.
Aborda, a seguir, o problema do mal, e conclui com estas palavras:
“Aqueles que afirmam positivamente que Deus existe não podem evitar de
cair na impiedade, porque, se dizem que Deus controla todas as coisas, o
transformam em autor de coisas más; se, por outro lado, dizem que Ele controla
somente certas coisas, ou que Ele nada controla, são obrigados a fazer de Deus
um ser invejoso ou impotente, e fazer isso é, evidentemente, uma impiedade”.
O ceticismo, embora continuasse a exercer atração sobre alguns indivíduos
cultos até o terceiro século antes de Cristo, era contrário ao espírito da época, que
se voltava cada vez mais para a religião dogmática e as doutrinas da salvação. O
ceticismo tinha força bastante para tornar os homens educados, insatisfeitos com
a religião do Estado, mas não possuía nada de positivo, mesmo na esfera
puramente intelectual, para oferecer em seu lugar. Da Renascença em diante, o
ceticismo teológico foi suplementado, na maioria de seus defensores, por uma
crença entusiástica na ciência, mas na antiguidade não havia tal suplemento à
dúvida. Sem responder aos argumentos dos céticos, o mundo antigo voltou-lhes as
costas. Desacreditados os olímpicos, estava aberto caminho para uma invasão de
religiões orientais, as quais competiram a favor dos supersticiosos até a vitória do
Cristianismo.
CAPÍTULO XXVII
Os Epicuristas
As duas grandes novas escolas do período helenístico, estóica e a epicurista,
foram contemporâneas em sua fundação. Seus fundadores, Zeno e Epicuro,
nasceram na mesma época, estabelecendo-se em Atenas, como chefes de suas
respectivas seitas, com poucos anos de diferença. É, pois, uma questão de gosto
saber-se qual das duas se há de considerar primeiro. Começarei com os
epicuristas, porque suas doutrinas foram fixadas de uma vez para sempre por seu
fundador, enquanto que o estoicismo teve longo desenvolvimento, estendendo-se
até à época do imperador Marco Aurélio, que morreu no ano 180 A. C.
A principal autoridade quanto ao que se refere à vida de Epicuro é Diógenes
Laércio, que viveu no terceiro século antes de Cristo. Há, porém, duas
dificuldades: primeiro, Diógenes Laércio está disposto a aceitar lendas de pouco
ou nenhum valor histórico; segundo, parte de sua Vida consiste na narração das
escandalosas acusações feitas contra Epicuro pelos estóicos, sendo que nem
sempre se tem certeza se ele próprio está fazendo alguma afirmação ou
simplesmente referindo-se a um libelo. Os escândalos inventados pelos estóicos
são fatos referentes àqueles, para serem recordados quando se elogia sua
elevada moralidade; mas não são fatos referentes a Epicuro. Há, por exemplo,
uma lenda segundo a qual sua mãe era uma sacerdotisa charlatã. A respeito, diz
Diógenes:
“Eles (os estóicos, ao que parece) dizem que ele costumava andar de casa em
casa em companhia da mãe, lendo as orações de purificação, e que assistia o pai
em seus ensinamentos elementares, a troco de miserável esmola”.
Sobre isto, comenta Bailey :{104} “Se é que há alguma verdade na história de
que acompanhava a mãe como acólito, recitando as fórmulas de seus
encantamentos, é bem possível que isso lhe haja despertado, desde tenra idade, o
ódio pela superstição, que foi, depois, um traço tão pronunciado em seus
ensinamentos”. Esta teoria é atraente, mas, em vista da extrema falta de
escrúpulo da última fase da antiguidade em inventar escândalos, não me parece
que isso possa ser aceito como tendo qualquer fundamento.{105} Há contra isso
o fato de que tinha afeto pouco comum pela mãe.{106}
Os fatos principais da vida de Epicuro, todavia, parecem bastante certos. Seu
pai era um pobre ateniense, colono em Samos; Epicuro nasceu em 342-1 A. C.,
mas não se sabe se em Samos ou na Ática. De qualquer modo, o certo é que
passou a infância em Samos. Segundo ele próprio o afirma, dedicou-se ao estudo
da filosofia aos catorze anos de idade. Aos dezoito, mais ou menos ao tempo da
morte de Alexandre, foi para Atenas, ao que parece para estabelecer sua
cidadania, mas, enquanto lá se encontrava, os colonos atenienses regressaram de
Samos (322 A. C.). A família de Epicuro refugiou-se na Ásia Menor, onde ele se
reuniu a ela. Em Taos, nessa época ou, talvez, mais cedo, um tal Nausifanes,
adepto, ao que parece, de Demócrito, lhe ensinou filosofia. Embora sua filosofia
madura deva mais a Demócrito que a qualquer outro filósofo, nunca manifestou
senão desdém para com Nausifanes, a quem se referia como “o Molusco”.
No ano 311, fundou sua escola, que foi a primeira em Mitilene, depois em
Lâmpsaco e, de 307 em diante, em Atenas, onde morreu em 270-1 A. C.
Depois dos árduos anos de sua juventude, sua vida em Atenas decorreu
plácida, sendo incomodado apenas pela sua má saúde. Tinha uma casa e um
jardim (ao que parece separado da casa), e era no jardim que ele ensinava. Seus
três irmãos, e algumas outras pessoas mais, haviam sido membros da escola
desde o princípio, mas em Atenas o grupo aumentou, não apenas com discípulos
de filosofia, mas com amigos, os filhos destes escravos e heteras. Estas últimas
eram motivo para que seus inimigos se escandalizassem, mas, ao que parece, de
maneira inteiramente injusta. Tinha extraordinária capacidade para a amizade
puramente humana, e escreveu cartas amáveis aos filhos jovens dos membros
de sua comunidade. Não praticava essa dignidade e reserva na expressão das
emoções, que costuma esperar-se dos filósofos antigos; suas cartas eram
surpreendentemente naturais e sem afetação.
A vida de sua comunidade era muito simples, em parte por princípio e em
parte, sem dúvida, por falta de dinheiro. Sua alimentação consistia,
principalmente, de pão e água, o que Epicuro considerava bastante satisfatório.
“Vibro de satisfação física — diz ele — quando vivo de pão e água, e cuspo nos
prazeres do luxo, não por si próprios, mas pelos inconvenientes que acarretam”.
A comunidade dependia, pelo menos em parte, de contribuições voluntárias.
“Envia-me queijo — escreve ele — para que possa, quando me apetecer, darme uma festa”. E a outro amigo: “Em teu nome e no de teus filhos, manda-me
presentes para a manutenção de nosso sagrado corpo”. E ainda: “A única
contribuição que reclamo é aquela que pedi que os discípulos me enviem,
mesmo que se encontrem entre os hiperbóreos. Desejo receber de cada um de
vós duzentas e vinte dracmas{107} por ano, e nada mais”.
Epicuro sofreu durante toda a vida de má saúde, mas aprendeu a suportá-la
com grande fortaleza de ânimo. Foi ele, e não um estóico, quem primeiro
afirmou que um homem podia ser feliz em meio do tormento. Duas cartas
escritas, uma pouco antes de morrer, e a outra no dia de sua morte, mostram que
tinha direito a essa sua opinião. A primeira diz: “Sete dias antes de escrever isto, a
obstrução se tomou completa e sofri dores das que levam o homem ao seu último
dia. Se alguma coisa me acontecer, cuidai dos filhos de Metrodoro por quatro ou
cinco anos, mas não gasteis com eles mais do que agora gastais comigo”. A
segunda diz: “Neste dia verdadeiramente feliz de minha vida, em que estou
prestes a morrer, escrevo-te isto. As doenças de minha bexiga e de meu
estômago seguem o seu curso com toda a sua severidade habitual; mas, contra
tudo isto, está a alegria em meu coração, ao recordar minhas conversações
contigo. Tu, como devo esperar de tua dedicação, desde a infância, para comigo
e minha filosofia, toma todo o cuidado com os filhos de Metrodoro”. Metrodoro,
que fora um de seus primeiros discípulos, havia morrido; Epicuro zelou por seus
filhos em seu testamento.
Embora Epicuro fosse gentil e amável com a maioria das pessoas, um lado
diferente de seu caráter aparece em suas relações com os filósofos,
especialmente com aqueles a quem deveria considerar-se penhorado.
“Suponho — diz — que esses resmungões me consideram discípulo do Molusco
(Nausifanes) e que ouvi seus ensinamentos em companhia de alguns jovens
beberrões. Porque, com efeito, o sujeito era um mau homem, tendo hábitos que
jamais poderiam conduzi-lo à sabedoria”.{108} Jamais reconheceu a extensão
de sua dívida para com Demócrito e, quanto a Leucipo, asseverou que não havia
tal filósofo — significando, sem dúvida, não que não houvesse tal homem, mas
que o homem não era filósofo. Diógenes Laércio dá uma lista completa de
epítetos insultantes que, segundo se supõe, foram por ele aplicados ao mais
eminente de seus antecessores. A sua falta de generosidade para com os outros
filósofos, junta-se ainda uma outra: a do dogmatismo ditatorial. Seus adeptos
tinham de aprender uma espécie de credo que encerrava suas doutrinas, sobre as
quais ele não admitia dúvidas. Até o fim, nenhum deles acrescentou ou
modificou coisa alguma. Quando Lucrécio, duzentos anos depois, transformou a
filosofia de Epicuro em poesia, nada acrescentou de teórico, tanto quanto se pode
julgar, aos ensinamentos do mestre. Sempre que a comparação é possível,
verifica-se que Lucrécio concorda intimamente com o original, sendo que, em
geral, se afirma que é possível lançar-se mão dele para preencher as lacunas de
nosso conhecimento devidas à perda de todas as trezentas obras de Epicuro. De
seus escritos nada resta, exceto umas poucas cartas, alguns fragmentos e uma
exposição das “Doutrinas Principais”.
A filosofia de Epicuro, como todas as de sua época (com exceção, em parte,
do ceticismo) destinava-se principalmente a assegurar tranquilidade. Considerava
que o prazer era o bem e aderia, com notável consistência, a todas as
consequências dessa opinião. “O prazer — afirma — é o começo e o fim da vida
abençoada”. Diógenes Laércio cita-o como tendo dito, num livro sobre A
Finalidade da Vida: “Não sei de que modo posso conceber o bem, se prescindir
dos prazeres do gosto e afastar-me dos prazeres do amor, do ouvido e dos olhos”.
E, ainda: “O princípio e a raiz de todo o bem é o prazer do estômago; mesmo a
sabedoria e a cultura tem de referir-se a este”. Os prazeres do espírito, diz-nos,
estão na contemplação dos prazeres do corpo. Sua única vantagem sobre os
prazeres corporais é que podemos aprender a contemplar antes o prazer que a
dor, tendo, assim, mais controle sobre os prazeres mentais que sobre os físicos. A
“virtude”, a menos que signifique “prudência na busca do prazer”, é um nome
vazio. A justiça, por exemplo, consiste em agir de maneira a não ter ocasião de
temer-se o ressentimento dos outros homens — opinião que conduz a uma
doutrina da origem da sociedade em nada diferente da teoria do Contrato Social.
Epicuro discorda de alguns de seus predecessores hedonistas ao distinguir
entre prazeres ativos e passivos, prazeres dinâmicos e estáticos. Os prazeres
dinâmicos consistem na consecução de um fim almejado, tendo sido o desejo
prévio acompanhado de uma dor. Os prazeres estáticos consistem num estado de
equilíbrio, resultante da existência do estado de coisas que desejaríamos, se nos
faltasse. Penso que se pode dizer que a satisfação da fome, enquanto está em
progresso, é um prazer dinâmico, mas que o estado de quietação que sobrevêm,
quando a fome é completamente satisfeita, é um prazer estático. Destes dois
gêneros, Epicuro considera mais prudente buscar-se o segundo, já que é puro e
não depende da existência da dor como estímulo do desejo. Quando o corpo se
encontra num estado de equilíbrio, não há dor; deveríamos, portanto, tender ao
equilíbrio e aos prazeres tranquilos, antes que a gozos mais violentos. Epicuro, ao
que parece, desejaria, se possível, estar sempre num estado de quem comeu
moderadamente, e nunca no de quem sente o desejo voraz de comer.
É assim conduzido, na prática, a encarar a ausência de dor, mais do que a
presença do prazer, como o objetivo do homem sensato.{109} O estômago pode
ser a raiz de todas as coisas, mas os sofrimentos produzidos por uma dor de
estômago sobrepujam os prazeres da gula; por isso, Epicuro vivia de pão, ao qual
acrescentava um pouco de queijo nos dias de festa. Desejos tais como os de
riqueza e de honrarias são inúteis, pois tornam um homem inquieto, quando
poderia estar contente. “O maior de todos os bens é a prudência: é uma coisa
ainda mais preciosa do que a filosofia”. A filosofia, como ele a compreendia, era
um sistema prático destinado a assegurar uma vida feliz; exigia apenas bom
senso, e não lógica, matemática ou qualquer dos exercícios complicados
prescritos por Platão. Insta com o seu jovem discípulo e amigo Py tocles a que
“fuja de toda forma de cultura”. Era uma consequência natural de seus
princípios que aconselhasse a abstinência da vida pública, pois, à medida que um
homem alcança o poder, aumenta o número daqueles que o invejam e que
desejam, por isso, fazer-lhe mal. Mesmo que escape ao infortúnio exterior, a paz
de espírito é impossível em tal situação. O homem sensato procurará viver sem
chamar a atenção dos outros, a fim de evitar inimigos.
O amor sexual, como um dos prazeres mais “dinâmicos”, cai, naturalmente,
dentro dessa proscrição. “As relações sexuais — declara o filósofo — nunca
fizeram bem ao homem, e poderá dar-se por feliz se não for prejudicado”.
Gostava de crianças (dos outros), mas, ao satisfazer esse gosto, parece ter
contado com que os demais não seguissem seu conselho. Parece, com efeito, ter
amado as crianças, contra seu melhor juízo, pois considerava o casamento e os
filhos como uma distração de ocupações mais sérias. Lucrécio, que o seguiu em
sua denúncia contra o amor, não vê mal algum nas relações sexuais, contanto
que estejam divorciadas da paixão.
O mais seguro dos prazeres sociais, na opinião de Epicuro, é a amizade.
Epicuro, como Bentham, é um homem que considera que todos os homens, em
todas as épocas, procuram apenas o seu próprio prazer, às vezes sensatamente,
outras vezes não; mas, de novo como Bentham, é constantemente levado pela sua
própria natureza, amável e afetuosa, a uma conduta admirável, da qual, de
acordo com suas próprias teorias, deveria ter-se abstido. Amou, evidentemente,
seus amigos, sem considerar o que recebia deles, mas persuadiu-se de que era
tão egoísta como sua filosofia considerava todos os homens. Segundo Cícero,
afirmava que “a amizade não pode ser divorciada do prazer e que, por essa
razão, deve ser cultivada, porque sem ela ninguém pode viver seguro e sem
medo, e nem mesmo agradavelmente”. Em certas ocasiões, porém, esquece,
mais ou menos, suas teorias: “Toda amizade é desejável por si mesma” — diz
ele, e ajunta: “embora parta de necessidade de ajuda”.{110}
Epicuro, embora sua ética parecesse aos outros grosseira e destituída de
exaltação moral, estava falando sério. Como vimos, refere-se à comunidade no
jardim como “o nosso sagrado corpo”; escreveu um livro intitulado Da
Santidade; possuía todo o ardor de um reformador religioso. Deve ter sentido
forte emoção piedosa pelos sofrimentos da humanidade, bem como a inabalável
convicção de que diminuiriam muito se os homens adotassem sua filosofia. Era
uma filosofia de valetudinário, destinada a adaptar-se a um mundo no qual a
problemática felicidade se tornara quase impossível. Coma pouco, com medo de
indigestão; beba pouco, com medo da manhã seguinte; evite a política, o amor e
todas as atividades violentamente passionais; não entregue reféns à sorte casando
e tendo filhos; em sua vida mental, aprenda a contemplar antes os prazeres que
os sofrimentos. A dor física é, certamente, um grande mal, mas, se severa, é
breve e, se prolongada, pode ser suportada mediante disciplina mental e o hábito
de se pensar, apesar de tudo, em coisas felizes. Acima de tudo, viver-se de modo
a evitar o medo.
Foi através do problema de evitar o medo que Epicuro foi levado à filosofia
teórica. Afirmava que as duas maiores fontes do medo eram a religião e o terror
da morte, os quais se achavam ligados, pois que a religião encoraja a opinião de
que os mortos são infelizes. Assim, procurou ele uma metafísica que provasse
que os deuses não interferem com os assuntos humanos, e que a alma perece
com o corpo. A maioria das criaturas modernas considera a religião como um
consolo, mas para Epicuro era o contrário. A interferência do sobrenatural no
curso da natureza parecia-lhe uma fonte de terror e, a imortalidade, fatal para a
esperança de nos libertarmos da dor. Por conseguinte, construiu uma doutrina
meticulosa, destinada a curar os homens das crenças que inspiram medo.
Epicuro era materialista, mas não determinista. Seguiu Demócrito em sua
crença de que o mundo consiste de átomos e de vazio; mas não acreditava, como
Demócrito, que os átomos são, em todos os momentos, dirigidos completamente
por leis naturais. A concepção de necessidade na Grécia era, como vimos, de
origem religiosa, e talvez ele tivesse razão em considerar que um ataque à
religião seria incompleto se admitisse a necessidade de sobreviver. Seus átomos
tinham peso e estavam continuamente caindo; não na direção do centro da Terra,
mas para baixo, num sentido absoluto. De vez em quando, porém, um átomo,
posto em movimento por algo assim como um livre arbítrio, desviava – se
ligeiramente de seu caminho direto para baixo,{111} e, assim, entrava em
colisão com algum outro átomo. Deste ponto em diante, o desenvolvimento dos
vórtices, etc., prossegue de maneira muito semelhante à de Demócrito. A alma é
material e compõe-se de partículas como as da respiração e do calor. (Epicuro
considerava o hálito e o vento como sendo de substâncias diferentes da do ar; não
eram simplesmente ar em movimento). Os átomos anímicos são distribuídos por
todo o corpo. A sensação é devida a tênues películas expelidas pelos corpos e que
correm até tocar os átomos-almas. Tais películas podem ainda existir quando os
corpos dos quais procedem já foram dissolvidos; isto explica os sonhos. Por
ocasião da morte, a alma se dispersa, e seus átomos, que por certo sobrevivem,
já não são capazes de sensação, porque não estão mais em contato com o corpo.
Segue-se daí, nas palavras de Epicuro, que “a morte não é nada para nós, pois o
que é dissolvido não tem sensação, e aquilo que não tem sensação não é nada
para nós”.
Quanto aos deuses, Epicuro crê firmemente em sua existência, já que, de
outra maneira, não pode explicar a difundida existência da idéia dos deuses. Mas
está persuadido de que eles não se preocupam com as questões de nosso mundo
humano. São hedonistas racionais, que seguem seus preceitos e abstém-se da
vida pública; o governo seria um trabalho desnecessário, pelo qual, em sua vida
de completa bem-aventurança, não sentem nenhuma tentação. A adivinhação e
os augúrios, bem como todas as outras práticas semelhantes, são, certamente,
simples superstições, do mesmo modo que a crença na Providência.
Não há, portanto, fundamento algum para que temamos poder incorrer na ira
dos deuses, ou que possamos sofrer no Hades depois de mortos. Embora sujeitos
aos poderes da natureza, que podem ser estudados cientificamente, temos ainda o
livre arbítrio e somos, dentro de certos limites, os senhores de nosso próprio
destino. Não podemos fugir à morte, mas a morte, bem entendida, não é má. Se
vivermos com prudência, de acordo com as máximas de Epicuro, é provável que
consigamos, dentro de certa medida, libertar-nos da dor. Este é um evangelho
moderado, mas, para um homem impressionado pela miséria humana, basta
para inspirar entusiasmo.
Epicuro não se interessava pela ciência por si mesma; reconhecia-lhe valor
somente como provedora das explicações naturalistas dos fenômenos que a
superstição atribui à ação dos deuses. Quando há várias explicações naturalistas
possíveis, afirma que não há razão para se procurar decidir entre elas. As fases
da Lua, por exemplo, têm sido explicadas de muitas maneiras; qualquer uma
delas, contanto que não traga à baila os deuses, é tão boa como qualquer outra, e
seria curiosidade ociosa tentar determinar qual é a verdadeira. Não é de
estranhar que os epicuristas não contribuíssem, praticamente, com nada quanto
ao conhecimento natural. Serviram a um propósito útil com seu protesto contra a
crescente devoção dos últimos pagãos pela magia, a astrologia e a adivinhação;
mas permaneceram, como o seu fundador, dogmáticos, limitados e sem
verdadeiro interesse por nenhuma felicidade individual exterior. Aprenderam de
cor o credo de Epicuro e não lhe acrescentaram nada durante os séculos em que
a escola sobreviveu.
O único discípulo eminente de Epicuro é o poeta Lucrécio (99-55 A. C.), que
era contemporâneo de Júlio César. Nos últimos dias da República Romana, estava
na moda o livre pensamento, e as doutrinas de Epicuro tornaram-se populares
entro as pessoas educadas. O imperador Augusto introduziu uma restauração
arcaica da virtude antiga e da religião, a qual fez com que o poema de Lucrécio,
Da Natureza das Coisas, se fizesse popular e continuasse a sê-lo até a
Renascença. Dele, semente um manuscrito sobreviveu até a Idade Média,
escapando por pouco à destruição dos fanáticos. Dificilmente qualquer grande
poeta teve de esperar tanto tempo para ser reconhecido, mas, nos tempos
modernos, seus méritos foram quase que universalmente aceitos. Ele e Benjamin
Franklin, por exemplo, foram os autores prediletos de Shelley.
Seu poema expõe em verso a filosofia de Epicuro. Embora os dois homens
professem a mesma doutrina, seus temperamentos são muito diferentes.
Lucrécio era apaixonado, e necessitava muito mais de prudência que Epicuro.
Suicidou-se e parece ter sofrido de loucura periódica, produzida, como alguns
afirmam, por sofrimentos de amor ou os efeitos inesperados de um filtro
amoroso. Sente-se diante de Epicuro como se estivesse diante de um redentor e
aplica uma linguagem de intensidade religiosa àquele a quem considera como o
destruidor da religião:{112}
Quando prostrada sobre a terra jaz a vida humana
Visivelmente pisada e sujamente amassada
Debaixo da crueldade da religião, que, enquanto isso,
Do alto das regiões celestiais,
Mostra, carrancuda, a cara aos mortais,
De aspecto horrível, então um homem da Grécia
Ousou erguer para ela os seus olhos mortais;
Foi o primeiro a levantar-se e a desafiá-la.
A ele, nem as histórias dos deuses, nem os raios,
Nem o céu, a murmurar ameaças, puderam subjugar,
Mas, ao contrário, lhe despertaram na alma
Decidida coragem, até que ansiou ser o primeiro
A romper pelas portas bem aferrolhadas da Natureza.
Por isso, sua fervente energia de espírito
Prevaleceu, e seguiu para a frente, indo longe,
Além das flamejantes muralhas do mundo,
Percorrendo na mente e no espírito, ao largo e ao longo,
Todo o imensurável universo; e, de lá,
Vencedor, voltou para nós, trazendo
Conhecimento tanto do que pode como do que não pode
Vir a ser, ensinando-nos, em suma,
Sobre que princípios cada coisa tem seus poderes
Limitados e seus pétreos limites profundamente assentados.
A religião, pois, foi agora derrubada
Sob os pés dos homens e, por sua vez, pisada:
Nós próprios sua vitória bem alto exalta.
O ódio à religião, expresso por Epicuro e Lucrécio, não é muito fácil de
compreender-se, se aceitar as descrições convencionais da alegria da religião e
do ritual gregos. A Ode a Uma Urna, de Keats, por exemplo, celebra uma
cerimônia religiosa, mas não se trata de algo que pudesse encher a mente dos
homens de sombrios e soturnos terrores. Creio que as crenças populares não
eram, em grande parte, desse gênero alegre. A adoração dos deuses do Olimpo
tinha menos crueldade supersticiosa do que as outras formas da religião grega,
mas mesmo os deuses do Olimpo exigiam, em certas ocasiões, sacrifícios
humanos, até ao século sétimo ou sexto antes de Cristo, e esta prática foi
registrada no mito e no drama.{113} Por todo o mundo bárbaro, o sacrifício
humano era ainda reconhecido no tempo de Epicuro; até à conquista romana, foi
ele praticado, em tempos de crise, tais como as Guerras Púnicas, mesmo pelas
mais civilizadas das populações bárbaras.
Como foi demonstrado, de maneira sumamente convincente, por Jane
Harrison, os gregos tinham, além dos cultos oficiais de Zeus e sua família, outras
crenças mais primitivas, associadas a ritos mais ou menos bárbaros. Estes foram
incorporados, até certo ponto, ao orfismo, que se tornou a crença dominante
entre os homens de temperamento religioso. Às vezes se supõe que o inferno foi
uma invenção cristã, mas isto é um erro. O que o Cristianismo fez, a este
respeito, foi somente sistematizar as crenças populares primitivas. Desde o
princípio da República de Platão está claro que o medo ao castigo depois da
morte era comum, em Atenas, no século V, e não é provável que haja diminuído
no intervalo entre Sócrates e Epicuro. (Não estou pensando na minoria educada,
mas na população em geral.)
Certamente também era comum atribuir as pragas, terremotos, derrotas na
guerra e outras calamidades tais, ao desagrado divino ou à falta de respeito pelos
presságios. Creio que a literatura e a arte gregas nos conduzem, provavelmente, a
erro, quanto às crenças populares. Que saberíamos do metodismo em fins do
século XVIII, se não sobrevivessem, desse período, senão seus livros e pinturas
aristocráticas? A influência do metodismo, como a da religiosidade na idade
helenística, partiu de baixo; era já bastante poderosa na época de Boswell e Sir
Joshua Rey nolds, embora as alusões que lhe foram feitas não deem idéia da
força da sua influência. Não devemos, portanto, julgar a religião popular na
Grécia pelas pinturas das “urnas gregas” ou pelas obras de poetas e filósofos
aristocratas. Epicuro não era aristocrata, nem por nascimento nem por seus
discípulos; talvez isto explique sua excepcional hostilidade contra a religião.
É através do poema de Lucrécio, principalmente, que a filosofia de Epicuro se
tornou conhecida desde a Renascença. O que mais impressiona aos leitores,
quando não são filósofos profissionais, é o contraste com as crenças cristãs em
matérias tais como o materialismo, a negação da Providência e a rejeição da
imortalidade. O que surpreende, principalmente, o leitor moderno, é ver tais
opiniões — as quais, hoje em dia, são encaradas, em geral, como lúgubres e
depressivas — apresentadas como um evangelho de libertação do fardo do
medo. Lucrécio está firmemente persuadido como qualquer cristão da
importância da verdadeira crença em matérias religiosas. Após descrever como
os homens procuram fugir de si mesmos quando vítimas de um conflito interior,
buscando inutilmente alívio numa mudança de lugar, diz ele:{114}
Cada homem foge do seu próprio eu;
Na verdade, porém, desse eu não tem poder
Para escapar: a despeito de si mesmo, adere a ele
E também o odeia, pois, embora esteja doente,
Não percebe a causa de sua enfermidade.
Se pudesse compreendê-la corretamente,
Deixaria todas as coisas de lado e primeiro
Procuraria aprender a natureza do mundo,
Já que é o nosso estado durante o tempo eterno,
E não simplesmente por uma hora, que está em dúvida,
Aquele estado pelos quais os mortais terão de passar
Por todo o tempo que os aguarda depois da morte.
A época de Epicuro foi uma época fatigada, e a extinção poderia parecer um
repouso bem-vindo para as lidas do espírito. Os últimos tempos da República,
pelo contrário, não foram, para a maioria dos romanos, um tempo de desilusões:
homens de energia titânica estavam criando do caos uma nova ordem, coisa que
os macedônios não tinham conseguido. Mas, para o aristocrata romano, que
permanecia afastado da política e não se interessava pelo poder e a pilhagem, o
curso dos acontecimentos pode bem ter sido profundamente desalentador. Quanto
a isso se juntava a aflição da loucura periódica, não é estranho que Lucrécio
aceitasse a esperança da não existência como uma libertação.
Mas o medo da morte acha-se tão profundamente enraizado no instinto, que o
evangelho de Epicuro não pôde, em certas épocas, tornar-se amplamente
popular; permaneceu sempre como credo de uma minoria culta. Mesmo entre
filósofos, depois do tempo de Augusto, foi, regra geral, rejeitado em favor do
estoicismo. Sobreviveu, é certo, embora com vigor decrescente, por seiscentos
anos depois da morte de Epicuro; mas, à medida que os homens se iam tornando
cada vez mais oprimidos pelas misérias de nossa existência terrena, exigiam
continuamente remédios mais fortes da filosofia ou da religião. Os filósofos
refugiaram-se, com poucas exceções, no neoplatonismo; os incultos voltaram-se
para várias superstições orientais e, depois, em número cada vez maior, para o
Cristianismo, que, em sua forma primitiva, colocava todos os bens da vida do
outro lado do túmulo, oferecendo assim aos homens um evangelho que era
exatamente o oposto do de Epicuro. Doutrinas muito semelhantes a esta, no
entanto, foram reavivadas pelos filósofos franceses em fins do século XVIII, e
levadas para a Inglaterra por Bentham e seus adeptos; isso se fez em oposição
consciente ao Cristianismo, que era encarado por esses homens de maneira tão
hostil como Epicuro encarou as religiões de sua época.
CAPÍTULO XXVIII
O Estoicismo
O estoicismo, embora contemporâneo, em sua origem, do epicurismo, teve
uma história mais longa e menos constância em suas doutrinas. Os ensinamentos
de Zeno, seu fundador, em princípios do terceiro século antes de Cristo, não
foram, de modo algum, idênticos aos de Marco Aurélio na segunda metade do
século II A. C. Zeno foi um materialista, cujas doutrinas eram, em sua maior
parte, uma combinação do cinismo e de Heráclito; mas, gradualmente, através
de uma mistura de platonismo, os estóicos abandonaram o materialismo, até que,
no fim, poucos vestígios restavam dele. Sua doutrina ética, é certo, mudou muito
pouco, e foi o que a maioria deles considerava como de maior importância.
Mesmo a esse respeito, porém, há alguma mudança quanto ao que se refere à
ênfase. A medida que o tempo passa, fala-se cada vez, menos acerca dos outros
aspectos do estoicismo, atribuindo-se cada vez maior força exclusiva sobre a
ética e aquelas partes da teologia que são mais relevantes para a ética. Com
respeito aos primeiros estóicos, deparamos com a dificuldade de que suas obras
sobrevivem apenas em uns poucos fragmentos. Sêneca, Epicteto e Marco
Aurélio, que pertencem ao primeiro e segundo séculos de nossa era, são os
únicos cujas obras se conservam completas.
O estoicismo é menos grego que qualquer das escolas de filosofia de que
tratamos até aqui. Os primeiros estóicos eram, na maior parte, sírios; os últimos,
em sua maioria, romanos. Tarn (A Civilização Helenística, p. 287) suspeita de
influências caldéias no estoicismo. Ueberweg apenas observa que, ao helenizar o
mundo bárbaro, os gregos abandonaram o que se adaptava somente a eles
próprios. O estoicismo, ao contrário das primeiras filosofias puramente gregas, é
emocionalmente estreito e, em certo sentido, fanático; mas também contém
elementos religiosos de que o mundo sentia a necessidade, e que os gregos
pareciam incapazes de fornecer. Atraía, em particular, os governantes: “quase
todos os sucessores de Alexandre — e, podemos dizer, todos os principais reis que
existiam nas gerações que se seguiram à de Zeno — se declaravam estóicos”, diz
o Prof. Gilbert Murray.
Zeno era um fenício nascido em Cítio, em Chipre, a certa altura da segunda
metade do IV século A. C. Parece provável que sua família se dedicasse ao
comércio, e que tenham sido assuntos comerciais os que o levaram, pela
primeira vez, a Atenas. Uma vez lá, porém, sentiu-se ansioso por estudar
filosofia. Os conceitos dos cínicos estavam mais de acordo com ele do que os de
qualquer outra escola, mas ele tinha algo de eclético. Os adeptos de Platão
acusaram-no de plagiar a Academia. Sócrates foi o santo principal dos estóicos
durante toda a sua história; sua atitude, na ocasião de seu julgamento, sua recusa
à fuga, sua serenidade diante da morte, e a sua afirmação de que o perpetrador
da injustiça causa maior dano a si próprio do que à sua vítima, tudo isso se
ajustava perfeitamente ao ensinamento dos estóicos. Assim também sua
indiferença ao calor e ao frio, sua simplicidade em questões de alimentação e de
vestuário, bem como sua completa independência de todos os confortos
corporais. Mas os estóicos jamais adotaram a doutrina das idéias de Platão, sendo
que a maioria deles rejeitou seus argumentos a favor da imortalidade. Somente
os últimos estóicos o seguiram, quanto a considerar a alma como imaterial; os
primeiros estóicos concordaram com Heráclito, para quem a alma era composta
de fogo material. Verbalmente, sua doutrina pode também ser encontrada em
Epicteto e Marco Aurélio, mas parece que, neles, o fogo não deve ser tomado
literalmente como um dos quatro elementos de que se compõem as coisas
físicas.
Zeno não tinha paciência com as subtilezas metafísicas. A virtude era o que
ele considerava importante, e só dava valor à física e à metafísica até ao ponto
em que contribuíam para a virtude. Tentou combater as tendências metafísicas
da época por meio do bom senso, o que na Grécia significava materialismo. As
dúvidas quanto à confiança que nos merecem os sentidos aborreciam-no, e
levou, assim, ao extremo a doutrina oposta.
“Zeno começa por afirmar a existência do mundo real. “Que é que entendes
por real?” Perguntou o cético. “Entendo o que é sólido e material. Entendo que
esta mesa é de matéria sólida”, “E Deus?”, pergunta o cético. “E a alma?”
“Perfeitamente sólidos”, responde Zeno; “mais sólidos, se possível, do que a
mesa”, “E a virtude, ou a justiça, ou a Regra de Três? Também matéria sólida?”.
“Claro — responde Zeno — perfeitamente sólidas”.{115}
É evidente que, neste ponto, Zeno, como muitos outros, foi arrastado, por zelo
anti-metafísico, a uma metafísica própria.
As principais doutrinas a que a escola permaneceu sempre fiel se relacionam
com o determinismo cósmico e a liberdade humana. Zeno acreditava que o
acaso não existe, e que o curso da natureza é rigidamente determinado por leis
naturais. No princípio, havia apenas fogo; depois, os outros elementos — ar, água
e terra, nessa ordem — emergiram gradualmente. Mais cedo ou mais tarde,
porém, haverá uma conflagração cósmica, e tudo se transformará de novo em
fogo. Isso, segundo a maioria dos estóicos, não será uma consumação final,
como o fim do mundo na doutrina cristã, mas somente a conclusão de um ciclo;
todo esse processo se repetirá infindavelmente. Tudo o que acontece já
aconteceu antes, e acontecerá de novo, não uma vez, mas incontáveis vezes.
Até aqui, a doutrina poderia parecer triste, e de modo algum mais consoladora
que o materialismo comum, tal como o de Demócrito. Mas este é apenas um de
seus aspectos. O curso da natureza, tanto no estoicismo como na teologia do
século XVIII, era ordenado por um Legislador, que era também uma
Providência benfeitora. Mesmo em seus mínimos pormenores, o todo estava
destinado a assegurar certos fins por meios naturais. Estes fins, exceto quanto ao
que se refere a deuses e demônios, são encontrados na vida do homem. Tudo
tem um propósito relacionado com os seres humanos. Certos animais são bons
para comer, outros dão provas de coragem; mesmo os percevejos de cama são
úteis, já que nos ajudam a despertar pela manhã e a não permanecer demasiado
tempo na cama. O poder Supremo chama-se, às vezes, Deus; outras vezes, Zeus.
Sêneca distinguia este Zeus do objeto da crença popular, que era também real,
mas subordinado.
Deus não está separado do mundo; Ele é a alma do mundo, e há em cada um
de nós uma parte do Fogo Divino. Todas as coisas são partes de um único sistema,
que é chamado Natureza; a vida individual é boa quando está em harmonia com
a Natureza. Em certo sentido, toda vida está em harmonia com a Natureza, já
que foram as leis desta última que a causaram; mas, em outro sentido, a vida
humana somente está em harmonia com a Natureza quando a vontade individual
é dirigida a algum fim que está entre os da Natureza. A virtude consiste em uma
vontade que está de acordo com a Natureza. Os maus, embora obedeçam por
força às leis de Deus, fazem-no involuntariamente; segundo o símile de Cleantes,
são como um cão atado a um carro e obrigado a ir aonde este vá.
Na vida do ser humano, a virtude é o único bem; coisas tais como a saúde, a
felicidade, os bens materiais, não contam. Posto que a virtude reside na vontade,
todas as coisas realmente boas ou más na vida de um homem dependem
somente dele próprio. Pode ficar pobre — mas que tem isso? Ainda pode ser
virtuoso. Um tirano pode pô-lo na prisão, mas ele ainda pode perseverar em
viver em harmonia com a Natureza. Pode ser condenado à morte, mas pode
morrer nobremente, como Sócrates. Outros homens têm poder apenas sobre as
coisas externas; a virtude, que é a única coisa verdadeiramente boa, repousa
inteiramente no indivíduo. Todos os homens, portanto, tem perfeita liberdade,
contanto que se libertem dos desejos mundanos. É somente devido a falsos juízos
que tais desejos prevalecem; o sábio, cujos juízos são verdadeiros, é senhor do
seu destino em tudo o que para ele tem valor, já que nenhuma força exterior
pode privá-lo da virtude.
Há evidentes dificuldades lógicas nesta doutrina. Se a virtude é realmente o
único bem, uma Providência generosa há de interessar-se somente em produzir
virtude, embora as leis da Natureza hajam produzido abundantes pecadores. Se a
virtude é o único bem, não pode haver razão contra a crueldade e a injustiça, já
que, como os estóicos não se cansam de assinalar, a crueldade e a injustiça
proporcionam ao sofredor as melhores oportunidades para o exercício da virtude.
Se o mundo é completamente determinado, as leis naturais decidirão se serei ou
não virtuoso. Se sou mau, a Natureza obriga-me a sê-lo, e a liberdade que se
supõe que a virtude proporciona não me é possível.
A um espírito moderno, não é difícil sentir entusiasmo por uma vida virtuosa,
mesmo que nada se consiga com isso. Sentimos admiração por um médico que
arrisca a vida durante uma epidemia, porque julgamos que a enfermidade é um
mal e esperamos diminuir a sua frequência. Mas se a enfermidade não é um
mal, o médico poderia muito bem ficar confortavelmente em casa. Para o
estóico, sua virtude é um fim, e não algo que produz o bem. E, encarando as
coisas de maneira mais ampla, qual o resultado último? Uma destruição do
mundo atual pelo fogo e, depois, uma repetição de todo o processo. Poderia
haver algo mais devastadoramente inútil? Pode haver progresso aqui e acolá,
durante algum tempo, mas, no fim de contas, há apenas uma repetição. Quando
presenciamos alguma coisa insuportavelmente penosa, esperamos que, com o
tempo, tais coisas deixem de acontecer; mas o estóico nos assegura que aquilo
que está agora acontecendo acontecerá de novo, repetidamente. A Providência,
que tudo vê — não se pode deixar de pensar — deve, no fim, ficar exausta de
desespero.
Com isto, vai implícita uma certa frieza na concepção estóica da virtude. Não
são condenadas apenas as más paixões, mas todas as paixões. O sábio não sente
simpatia; quando sua esposa ou seus filhos morrem, reflete que esse
acontecimento não constitui obstáculo à sua própria virtude e. Por isso, não sofre
profundamente. A amizade, tão altamente louvada por Epicuro, está muito bem,
mas não deve ser levada ao ponto em que a infelicidade de um amigo possa
destruir a nossa santa calma. Quanto à vida pública, pode ser que seja nosso
dever participar dela, já que proporciona oportunidade para a virtude, a fortaleza,
e assim por diante; mas não devemos agir por um desejo de beneficiar a
humanidade, pois que os benefícios que podemos oferecer — tais como a paz, ou
um suprimento mais adequado de víveres — não são verdadeiramente benefícios
e, de qualquer modo, nada nos importa, exceto a nossa própria virtude. O estóico
não é virtuoso a fim de fazer o bem, mas faz o bem a fim de ser virtuoso. Nunca
lhe ocorreu amar o seu semelhante como a si mesmo; o amor, exceto num
sentido superficial, acha-se ausente da sua concepção de virtude.
Ao dizer isto, estou pensando no amor como emoção, não como um princípio.
Como princípio, os estóicos pregaram o amor universal: este princípio é
encontrado em Sêneca e seus sucessores, tendo sido, provavelmente, tomado dos
primeiros estóicos. A lógica da escola conduziu a doutrinas que foram atenuadas
pela humanidade de seus adeptos, que, foram homens muito melhores do que
teriam sido se houvessem sido coerentes. Kant — que se assemelha a eles — diz
que devemos ser bondosos para com o nosso irmão, não porque gostemos dele,
mas porque a lei moral impõe a bondade; duvido, porém, que ele, na vida
privada, vivesse de acordo com este preceito.
Deixando de lado estas generalidades, vamos à história do estoicismo.
De Zeno,{116} conservam-se apenas alguns fragmentos. Por estes, parece
que definiu Deus como sendo a mente ígnea do mundo, que disse que Deus era
uma substância corporal e que todo o universo é formado da substância de Deus.
Tertuliano diz que, segundo Zeno, Deus corre por todo o mundo material como o
mel corre por toda a colméia. De acordo com Diógenes Laércio, Zeno julgava
que a Lei Geral, que é a Razão Reta, difundindo-se por tudo, é o mesmo que
Zeus, o Chefe Supremo do governo do universo; Deus, Mente, Destino, Zeus, são
uma única coisa. O Destino é um poder que move a matéria; a “Providência” e a
“Natureza” são outros nomes dos mesmos. Zeno não acredita que deva haver
templos para os deuses: “Não há necessidade de construir-se templos; porque um
templo não deve ser considerado como uma coisa de grande valor ou algo santo.
Nada que seja obra de construtores e mecânicos poderá ser grande ou santo.”
Parece que ele, como os estóicos posteriores, acreditou na astronomia e na
adivinhação. Cícero diz que atribuiu poder divino às estrelas. Diógenes Laércio
diz: “Os estóicos deixam válidos todos os gêneros de adivinhação.
Deve haver adivinhação, dizem eles, se é que há Providência. Provam a
realidade da arte da adivinhação mediante numerosos casos nos quais as
predições se realizaram, como afirma Zeno”. Crisipo é explícito quanto a este
assunto.
A doutrina estóica sobre a virtude não aparece nos fragmentos existentes de
Zeno, mas parece ter sido mantida por ele.
Cleantes de Assos, o sucessor imediato de Zeno, é notável principalmente por
duas coisas. Primeiro, como já vimos, afirmou que Aristarco de Samos devia ser
processado por impiedade, pois fez do Sol, em lugar da Terra, o centro do
universo. Segundo, o seu Hino a Zeus, grande parte do qual poderia ter sido
escrita por Pope, ou por qualquer cristão culto do século posterior a Newton. Mais
cristã ainda é a breve prece de Cleantes:
Leva-me, ó Zeus, e tu, ó Destino,
Leva-me contigo.
Seja qual for a missão que me envies,
Leva-me contigo.
Sigo-te sem receio, e se, desconfiado,
Hesitasse e não quisesse, ainda assim devera seguir-te.
Crisipo (280-207 A. C.), sucessor de Cleantes, foi um autor que, segundo se
afirma, escreveu setecentos e cinco livros. Tomou o estoicismo sistemático e
pedante. Afirmou que somente Zeus, o Fogo Supremo, é imortal; os outros
deuses, inclusive o Sol e a Lua, nascem e morrem. Dizem que achava que Deus
não participava da motivação do mal, mas não está claro de que maneira podia
ele reconciliar tal coisa com o determinismo. Em outras partes, trata do mal à
semelhança de Heráclito, afirmando que o oposto implica um contrário, e, assim,
o bem sem o mal é logicamente impossível. “Não pode haver nada mais inepto
do que as pessoas que supõem que o bem poderia ter existido sem a existência do
mal. O bem e o mal são antitéticos; para subsistir, necessitam ambos de
oposição.” Em apoio dessa doutrina apela para Platão, não para Heráclito.
Crisipo afirmava que o homem bom é sempre feliz e, o mau, infeliz, e que a
felicidade do homem bom não difere era nenhum aspecto da de Deus. Quanto à
questão da sobrevivência da alma depois da morte, as opiniões achavam-se
divididas. Cleantes asseverava que todas as almas sobrevivem até à próxima
conflagração universal (quando todas as coisas são absorvidas por Deus); mas
Crisipo afirmava que isso só era verdade quanto ao que dizia respeito às almas
dos sábios. Era menos exclusivamente ético que os últimos estóicos; com efeito,
tornou fundamental a lógica. O silogismo hipotético e disjuntivo, bem como a
palavra “disjunção”, são devidos aos estóicos; assim como o estudo da gramática
e a invenção dos “casos” na declinação.{117} Crisipo, ou outros estóicos
inspirados pela sua obra, tinham uma teoria complicada do conhecimento, em
geral empírica e baseada na percepção, embora permitissem certas idéias e
princípios que eram reputados como estabelecidos por consensus Pentium, o
consentimento das gentes. Mas Zeno, como os estóicos romanos, considerava
todos os estudos teóricos como subordinados à ética: diz ele que a filosofia é
como uma horta, na qual a lógica são as sebes, a física as árvores e a ética os
frutos: ou como um ovo, do qual a lógica é a casca, a física a clara e a ética a
gema.{118} Crisipo, dir-se-ia, concedeu um valor mais independente aos estudos
teóricos. Talvez sua influência explique o fato de existir entre os estóicos homens
que realizaram progressos nas matemáticas e outras ciências.
O estoicismo, depois de Crisipo, foi consideravelmente modificado por dois
homens importantes: Panécio e Possidônio. Panécio introduziu um elemento
considerável de platonismo, e abandonou o materialismo. Era amigo do mais
jovem dos Scipiões, e exerceu influência sobre Cícero, através de quem,
principalmente, o estoicismo se tornou conhecido dos romanos. Possidônio, sob
cuja direção Cícero estudou em Rodes, o influenciou ainda mais. Possidônio foi
educado por Panécio, que morreu cerca do ano 110 A. C.
Possidônio (ca. 135-ca. 51 A. C.) era um grego da Síria, e se achava ainda na
infância quando o império selêucida chegou ao fim. Talvez fosse a sua
experiência da anarquia na Síria que fez com que viajasse para o Ocidente,
primeiro para Atenas, onde se embebeu de filosofia estóica e, depois, mais para
diante, para as partes ocidentais do Império Romano. “Viu com os seus próprios
olhos o pôr-do-sol no Atlântico, além da orla do mundo conhecido, e a costa
africana em frente da Espanha, onde as árvores eram cheias de macacos, e as
aldeias de gente bárbara, para além de Marselha, onde cabeças humanas,
penduradas nas portas das casas como troféus, constituíam um espetáculo
cotidiano”.{119} Tomou-se escritor fecundo de assuntos científicos; com efeito,
uma das razões para as suas viagens foi o seu desejo de estudar as marés, o que
não podia ser feito no Mediterrâneo. Realizou excelente trabalho no campo da
astronomia; como vimos no capítulo XXIV, seu cálculo quanto à distância do Sol
foi o melhor que se fez na antiguidade.{120} Foi também um historiador digno de
nota — como continuador de Políbio. Mas foi conhecido principalmente como
filósofo eclético: adaptou ao estoicismo muitos dos ensinamentos de Platão, os
quais a Academia, em sua fase cética, parecia ter esquecido.
Essa afinidade com Platão é demonstrada em seus ensinamentos acerca da
alma e da vida depois da morte. Panécio havia dito, como a maioria dos estóicos,
que a alma perece com o corpo. Possidônio, pelo contrário, diz que ela continua a
viver no ar, onde, em muitos casos, permanece imutável até a próxima
conflagração mundial. Não há inferno, mas os maus, depois da morte, não são
tão afortunados como os bons, pois o pecado obscurece os vapores da alma,
impedindo-a de elevar-se até onde se eleva a alma dos bons. Os muito maus
permanecem próximos da Terra e são reencarnados; os verdadeiramente
virtuosos elevam-se à esfera estelar e passam o tempo a observar o giro das
estrelas. Podem ajudar outras almas; isto explica (pensa ele) a verdade da
astrologia. Bevan sugere que, pela sua renovação das nações órficas e
incorporação de crenças neopitagóricas, Possidônio bem pode ter aberto o
caminho para o gnosticismo. Acrescenta, muito acertadamente, que o que foi
fatal para filosofias como a sua não foi o Cristianismo, mas a teoria de
Copérnico.{121} Cleantes tinha razão ao considerar Aristarco de Samos como
inimigo perigoso.
Muito mais importantes historicamente (embora não filosoficamente) do que
os primeiros estóicos, foram os três que estavam ligados a Roma: Sêneca,
Epicteto e Marco Aurélio, — um ministro, um escravo e um imperador,
respectivamente.
Sêneca (ca. 3 A. C. a 65 A. D.) era um espanhol, cujo pai, homem culto,
residia em Roma. Sêneca adotou a carreira política, e estava sendo
moderadamente bem-sucedido quando foi banido para a Córsega (41 A. D.) pelo
imperador Cláudio, por haver incorrido na inimizade da imperatriz Messalina. A
segunda esposa de Cláudio, Agripina, mandou chamar Sêneca no exílio, no ano
48 de nossa era, e nomeou-o tutor de seu filho, de onze anos de idade. Sêneca foi
menos afortunado que Aristóteles com o seu aluno, que era o imperador Nero.
Embora, como estóico, Sêneca oficialmente desprezasse as riquezas, reuniu
considerável fortuna, que montava, ao que se dizia, a trezentos milhões de
sestércios (cerca de três milhões de libras esterlinas). Grande parte deste dinheiro
adquiriu-a ele emprestando dinheiro à Bretanha; segundo Dio, os juros excessivos
por ele cobrados foram uma das causas da revolta naquele país. A heroica rainha
Boadicéia, se isto é verdade, estava à frente de uma rebelião contra o
capitalismo, representado pelo apóstolo filosófico da simplicidade.
Gradualmente, à medida que os excessos de Nero se tornaram mais
desenfreados, Sêneca foi perdendo os seus favores. Por fim, foi acusado, justa ou
injustamente, de cumplicidade numa vasta conspiração que tinha por objetivo
assassinar Nero e colocar um novo imperador — alguns dizem que o próprio
Sêneca — no trono. Em vista de seus serviços anteriores, porém, permitiu-se-lhe,
como graça, que se suicidasse (65 A. D.).
Seu fim foi edificante. A princípio, ao ser informado da decisão do imperador,
começou a redigir um testamento. Quando lhe comunicaram que não havia
tempo para um assunto tão extenso, voltou-se para a sua desolada família e disse:
“Não importa. Deixo-vos uma coisa muito mais valiosa do que riquezas terrenas:
o exemplo de uma vida virtuosa” — ou coisa que o valha. Depois abriu as veias e
pediu aos seus secretários que anotassem suas últimas palavras. Segundo Tácito,
sua eloquência continuou a fluir durante seus últimos momentos. Seu sobrinho
Lucano, o poeta, sofreu, ao mesmo tempo, morte semelhante, e expirou
recitando seus próprios versos. Sêneca foi julgado, pelas épocas posteriores, mais
pelos seus preceitos admiráveis do que pelas suas práticas mais ou menos dúbias.
Vários dentre os Padres da Igreja o consideraram cristão, e uma suposta
correspondência entre ele e São Paulo foi aceita como genuína por homens
como São Jerônimo.
Epicteto (nascido cerca do ano 60 e morto ao redor do ano 100 de nossa era)
era um tipo de homem muito diferente, embora muito afim como filósofo. Era
grego, originalmente escravo de Epafrodito, um liberto de Nero e, depois, seu
ministro. Era coxo, em consequência, diz-se, de um castigo cruel em seus dias de
escravidão. Viveu e ensinou em Roma até o ano 90, quando o imperador
Domiciano, que nada queria com os intelectuais, exilou todos os filósofos.
Epicteto, diante disso, retirou-se para Nicópolis, no Epiro, onde, depois de alguns
anos passados a escrever e a ensinar, morreu.
Marco Aurélio (121-180 A. D.) achava-se no outro extremo da escala social.
Foi adotado como filho pelo bom imperador Antonino Pio, que era seu tio e
sogro, e ao qual sucedeu em 161 A. D., reverenciando-lhe sempre a memória.
Como imperador, dedicou-se à virtude estóica. Tinha ele muita necessidade de
fortaleza, pois seu reino era assaltado por calamidades: terremotos, pestes,
guerras longas e difíceis, insurreições militares. Suas Meditações, dirigidas a si
mesmo, e que, segundo parece, não se destinavam a publicação, mostram que
ele achava molestos os seus deveres públicos e que sofria de grande cansaço. Seu
único filho, Cômodo, que o sucedeu, acabou por ser um dos piores dos muitos
imperadores maus, mas, enquanto o pai viveu, conseguiu ocultar suas propensões
viciosas. A esposa do filósofo, Faustina, foi acusada, talvez injustamente, de
grandes imoralidades, mas jamais suspeitou dela e, depois de sua morte, se
preocupou com a sua deificação. Perseguiu os cristãos, porque estes recusavam
a religião do Estado, por ele considerada politicamente necessária. Em todas as
suas ações foi consciencioso, mas, na maioria delas, não foi bem-sucedido. Era
uma figura patética: ante uma lista de desejos mundanos a que devia resistir, o
que lhe parecia mais sedutor era o desejo de retirar-se para uma tranquila vida
rural. Quanto a isto, jamais teve oportunidade de o fazer. Algumas de suas
Meditações são datadas do campo, em campanhas distantes, cujas asperezas lhe
causaram, eventualmente, a morte.
É notável que Epicteto e Marco Aurélio estejam completamente de acordo
em todas as questões filosóficas. Isto sugere que, embora as circunstancias
sociais afetassem a filosofia da época, as circunstâncias individuais têm menos
influência do que as vezes se pensa sobre a filosofia de um indivíduo. Os filósofos
são, habitualmente, homens de certa largueza de espírito, que podem descontar,
em grande parte, os acidentes de suas vidas privadas; mas nem mesmo eles
pedem erguer-se acima dos maiores bens ou males de sua época. Nos tempos
maus, inventam consolos; nos tempos bons, seus interesses são mais puramente
intelectuais.
Gibbon, cuja história, pormenorizada, começa com os vícios de Cômodo, está
de acordo com a maioria dos escritores do século XYIII, ao considerar o período
dos Antoninos como uma idade áurea. “Se convidasse um homem — diz ele —
para fixar o período da história do mundo em que as condições da raça Humana
eram as mais prósperas e felizes, nomearia, sem hesitação, o período
transcorrido desde a morte de Domiciano até a ascensão de Cômodo”. É
impossível concordar-se inteiramente com este juízo. Os males da escravidão
acarretavam sofrimento imenso, e estavam solapando o vigor do mundo antigo.
Havia espetáculos de gladiadores e lutas com animais selvagens, as quais eram
intoleravelmente cruéis e devem ter envelhecido as populações que apreciavam
tais exibições. Marco Aurélio, é certo, decretou que os gladiadores deviam lutar
com espadas cegas; mas sua reforma teve pouca duração, e nada fez quanto ás
lutas com animais selvagens. O sistema econômico era muito mal; a Itália estava
com a sua agricultura cada vez mais reduzida e a população de Roma dependia
da distribuição gratuita de grãos provenientes das províncias. Toda a iniciativa
estava concentrada no imperador e seus ministros; por toda a vasta extensão do
Império, ninguém, exceto em raras rebeliões gerais, nada podia fazer senão
submeter-se. Os homens voltavam-se para o passado em busca do que este tinha
de melhor; o futuro, pensavam, seria, na melhor das hipóteses, uma coisa
fastidiosa e, na pior, um horror. Quando comparamos o tom de Marco Aurélio
com o de Bacon, Locke ou Condorcet, vemos a diferença entre uma época
cansada e uma época esperançosa. Numa época de esperança, os grandes males
presentes podem ser suportados, porque se pensa que irão passar; mas, numa
época de cansaço, mesmo os bens verdadeiros perdem o seu sabor. A ética
estóica adaptava-se à época de Epicteto e Marco Aurélio, pois seu evangelho era
mais de resignação que de esperança.
Indubitavelmente, a época dos Antoninos foi muito melhor do que qualquer
época posterior até a Renascença, do ponto de vista da felicidade geral. Mas um
estudo cuidadoso mostra que não era tão próspera como o que resta de sua
arquitetura nos leva a supor. A civilização greco-romana deixara poucos vestígios
nas regiões agrícolas; limitava-se, praticamente, às cidades. Mesmo nas cidades,
havia um proletariado que sofria uma pobreza muito grande; havia, ainda, uma
grande classe escrava. Rostovtseff resume uma discussão sobre as condições
sociais e econômicas nas cidades da seguinte maneira:
“Este quadro de suas condições sociais não é tão sedutor como o quadro de
sua aparência externa. A impressão causada pelas nossas fontes é a de que o
esplendor das cidades foi criado e existia somente para uma minoria bastante
pequena de sua população; que o bem-estar mesmo dessa pequena minoria se
baseava em alicerces relativamente frágeis; que as grandes massas da população
citadina ou dispunham de meios muito moderados ou viviam em extrema
pobreza. Numa palavra, não devemos exagerar a riqueza das cidades: seu
aspecto exterior é enganador”.
Na terra, diz Epicteto, somos prisioneiros de um corpo terreno. Segundo
Marco Aurélio, costumava dizer: “Tu és uma pequena alma carregando um
cadáver”. Zeus não pôde tomar a alma livre, mas deu-nos uma parte da sua
divindade. Deus é o pai dos homens e somos todos irmãos. Não devíamos dizer
“sou ateniense”, ou “sou romano”, mas “sou um cidadão do universo”. Se fosses
parente de César, tu te sentirias seguro; quão mais seguro não te sentirias se
fosses Rostovtseff, The Social and Economic History of the Roniati Empire, p. 179.
Perante de Deus? Se compreendermos que a virtude é o único bem verdadeiro,
veremos que nenhum mal real poderá ocorrer-nos.
“Devo morrer. Mas preciso morrer gemendo? Tenho de ser preso. Mas
preciso também choramingar? Devo ser exilado. Mas há alguém que me impeça
de seguir com um sorriso, com ânimo forte e em paz? “Conta-me o segredo”.
Recuso-me a contá-lo, porque me pertence. “Pois eu te meterei a ferros”. Que
dizes, camarada? Meter-me a ferros? Minha perna poderás encadear, sem
dúvida, mas não a minha vontade; não, nem Zeus pede conquistá-la. “Mandar-teei para a prisão”. Um pedaço de meu corpo, queres dizer. “Decapitar-te-ei”. Por
quê? Quando foi que te disse que eu era o único homem no mundo que não podia
ser decapitado?
Eis aí pensamentos que aqueles que buscam a filosofia deveriam ponderar;
essas são as lições que deveriam escrever dia a dia, e nas quais deveriam
exercitar-se.” {122}
Os escravos são iguais aos outros homens, porque todos são filhos de Deus.
Devemos submeter-nos a Deus como um bom cidadão se submete à lei. “O
soldado jura não respeitar nenhum homem acima de César, mas nós respeitamos
a nós próprios acima de tudo”.{123} “Quando compareceres diante dos
poderosos da terra, lembra-te de que um Outro observa de cima o que está
acontecendo, e que deves agradar mais a Ele do que a estes homens”.{124}
“Quem, pois, é um estóico?
Aponta-me um homem modelado de acordo com os juízos que emite, do
mesmo modo que chamamos fídica a uma estátua modelada de acordo com a
arte de Fídias. Aponta-me um que, estando doente, seja feliz; em perigo e, no
entanto, feliz; morrendo e, no entanto, feliz; no exílio, e feliz; na desgraça, e feliz.
Aponta-mo. Pelos deuses, gostaria de ver um estóico. Não, tu não podes mostrarme um estóico acabado; mostra-me, então, um que esteja sendo moldado, um
que já haja colocado o seu pé no caminho. Faze-me este favor; não prives um
velho como eu de uma coisa que não vi até agora. Como! Pensas que vais
mostrar-me o Zeus de Fídias ou a sua Atcnéia, essa obra de marfim e ouro? É
uma alma que eu quero; deixa que um de vós me mostre a alma de um homem
que deseje estar em unidade com Deus, e que não mais culpe Deus ou os
homens, que não falhe em nada, que não sinta o infortúnio, que seja livre do ódio,
da inveja e do ciúme — alguém que (por que ocultar o sentido de minhas
palavras?) Deseje trocar seu estado de homem pela divindade, e que nesse seu
pobre corpo tenha o propósito de estar em comunhão com Deus. Mostra-mo.
Não, não podes”.
Epicteto não se cansa de mostrar de que maneira deveríamos tratar o que
consideramos infortúnios, o que faz, amiúde, por meio de diálogos caseiros.
Com os cristãos, afirma que devíamos amar nossos inimigos. Em geral, em
comum com outros estóicos, despreza o prazer, mas há uma espécie de
felicidade que não se deve desprezar. “Atenas é bela. Sim, mas a felicidade é
mais bela — a libertação da paixão e da perturbação, a consciência de que
nossos assuntos não dependem de ninguém” (p. 428). Todo homem é ator numa
obra em que Deus distribuiu os papéis; é nosso dever desempenhar nosso papel
com dignidade, qualquer que ele possa ser.
Há uma grande sinceridade e simplicidade nos escritos que registram os
ensinamentos de Epicteto. (Foram tirados de notas redigidas por seu aluno
Ariano). Sua moralidade é elevada e ultraterrena; numa situação em que o
principal dever de um homem fosse resistir ao poder tirânico, seria difícil
encontrar-se outra coisa mais útil. Sob alguns aspectos, como, por exemplo, ao
reconhecer a fraternidade dos homens e ao pregar a igualdade dos escravos, é
superior a quanto se possa encontrar em Platão, Aristóteles ou qualquer filósofo
cujo pensamento se inspire na Cidade-Estado. O mundo real, ao tempo de
Epicteto, era muito inferior ao da Atenas de Péricles; mas o mal no que existia
libertou suas aspirações, e seu mundo ideal é tão superior ao de Platão como seu
mundo real é inferior à Atenas do V século.
As Meditações de Marco Aurélio começam por reconhecer a sua dívida para
com seu avô, pai, pai adotivo, vários professores e os deuses. Algumas das
obrigações que enumera são curiosas. Aprendeu de Diogneto (diz ele) a não dar
ouvidos aos milagreiros; de Rústico, a não escrever poesia; de Sexto, a praticar a
gravidade sem afetação; de Alexandre, o gramático, a não corrigir a má
gramática alheia, mas a empregar logo depois a expressão correta; de
Alexandre, o Platônico, a não se desculpar por tardar em responder a uma carta
alegando excesso de ocupações; de seu pai adotivo, a não se apaixonar por
rapazes. Devia aos deuses (continua) não ter sido educado durante muito tempo
pela concubina de seu avô, nem ter dado provas muito cedo de sua virilidade; que
seus filhos não fossem estúpidos nem deformados de corpo; que sua esposa fosse
obediente, afetuosa e simples; e que, ao dedicar-se à filosofia, não tivesse
desperdiçado seu tempo com a história, o silogismo ou a astronomia.
O que é impessoal nas Meditações concorda estreitamente com Epicteto.
Marco Aurélio tem dúvida quanto à imortalidade, mas diz, como o poderia fazer
um cristão: “Já que é possível que possas partir da vida neste mesmo momento,
regula todo ato e pensamento de acordo com isso”. A vida em harmonia com o
universo, eis o que é bom; e harmonia com o universo é o mesmo que obediência
à vontade de Deus.
“Tudo o que está em harmonia contigo, ó Universo, harmoniza-se comigo.
Nada, para mim, é demasiado cedo ou demasiado tarde, se está no devido tempo
para ti. Para mim, é fruto tudo o que as tuas estações trazem, ó Natureza: de ti
provêm todas as coisas, em ti estão todas as coisas, para ti voltam todas as coisas.
O poeta diz: querida cidade de Cécrope; e tu não dirás, querida cidade de Zeus?”
Vê-se que a Cidade de Deus, de Santo Agostinho, foi tirada, em parte, do
imperador pagão.
Marco Aurélio está persuadido de que Deus dá a todo homem um demônio
especial como guia — uma crença que reaparece no Anjo da Guarda cristão.
Encontra consolo em imaginar o universo como um todo intimamente tecido; é,
diz ele, um ser vivo, dotado de uma substância e de uma alma. Uma de suas
máximas é: “Considerar com frequência a conexão entre todas as coisas do
universo”. “O que quer que possa acontecer-te, foi preparado para ti em toda a
eternidade; e a implicação das causas vinha já da eternidade tecendo a
contextura de teu ser”. Está de acordo com isto, apesar de sua posição no Estado
Romano, a crença estóica na raça humana como comunidade única: “Minha
cidade e país, até o ponto em que sou Antonino, é Roma, mas, como homem, é o
mundo”. Há a dificuldade, que se encontra em todos os estóicos, de conciliar o
determinismo com a liberdade da vontade. “Os homens existem uns para os
outros”, diz ele, quando pensa em seus deveres como governante. “A maldade de
um homem não fere a outro”, diz na mesma página, quando pensa na doutrina de
que só o virtuoso é bom. Jamais infere que a bondade de um homem de nada
adianta a outro, e que não faria mal a ninguém, senão a si próprio, se fosse um
imperador tão mal quanto Nero; e, no entanto, essa à conclusão que parece
seguir.
“É peculiar ao homem — diz — amar mesmo aqueles que lhe fazem mal. E
isto ocorre se, quando praticam o mal, eles se parecem nossos parentes, e que
são injustos por ignorância, sem intenção, e que logo tanto eles como nós
morreremos; e, acima de tudo, que o que praticou o mal não te causou nenhum
dano, já que não fez com que a tua faculdade diretiva fosse pior do que antes”.
E ainda: “Amai a humanidade; segui a Deus … Não basta que nos lembremos
que a Lei rege tudo”.
Estes trechos revelam claramente as contradições inerentes à ética e à
teologia estóicas. Por um lado, o universo é um todo único rigidamente
determinístico, no qual tudo o que acontece é resultado de causas prévias. Por
outro lado, a vontade do indivíduo é inteiramente autônoma, e nenhum homem
pode ser forçado a pecar devido a causas externas. Isto é uma contradição, mas
há ainda uma segunda, estreitamente ligada a ela. Já que a vontade é autônoma,
e que somente a vontade virtuosa é boa, um homem não pode fazer bem ou mal
a outro; portanto, a benevolência é uma ilusão. É mister que se diga algo sobre
cada uma dessas contradições.
A contradição entre o livre arbítrio e o determinismo é uma das que correm
pela filosofia desde os tempos primitivos até os nossos dias, adquirindo formas
diferentes em épocas diferentes. Por ora, é a forma estóica a que nos interessa.
Penso que um estóico, se o pudéssemos submeter a um interrogatório
socrático, defenderia sua opinião mais ou menos da seguinte maneira: o universo
é um Ser único e animado, dotado de uma alma que pode chamar-se Deus ou
Razão. Como um todo, este Ser é livre. Deus decidiu, desde o princípio, que Ele
agiria de acordo com as leis gerais fixadas, mas que escolheria as que
produzissem os melhores resultados, ÀS vezes, em determinados casos, os
resultados não são inteiramente desejáveis, mas vale a pena suportar-se tais
inconvenientes, como nos códigos das leis humanas, em benefício da rigidez
legislativa. Um ser humano é em parte fogo, em parte argila inferior; enquanto é
fogo (de qualquer modo, quando é da melhor qualidade) é parte de Deus.
Quando a parte divina de um homem exerce virtuosamente à vontade, essa
vontade é parte da vontade de Deus, que é livre; em tais circunstâncias, portanto,
a vontade humana será também livre.
Até certo ponto, esta é uma boa resposta, mas cai por terra quando
consideramos as causas de nossas volições. Todos nós sabemos, como questão de
fato empírico, que a dispepsia, por exemplo, tem maus efeitos sobre a virtude do
homem, e que, mediante o emprego de drogas adequadas aplicadas a força, a
vontade pode ser anulada. Tomemos o caso favorito de Epicteto, de um homem
aprisionado injustamente por um tirano, do qual tem havido mais exemplos, nos
últimos anos, do que em qualquer outro período da história humana. Alguns
desses homens agiram com heroísmo estóico; outros, de maneira um tanto
misteriosa, não. Tornou-se claro não apenas que um grau suficiente de tortura
abaterá quase toda a fortaleza de um homem, mas, ainda, que a morfina ou a
cocaína podem reduzir um homem à docilidade. A vontade, com efeito, só é
independente do tirano enquanto este não age cientificamente. Este é um
exemplo extremo, mas os mesmos argumentos que existem a favor do
determinismo no mundo inanimado também existem na esfera das volições
humanas em geral. Não digo — não creio — que estes argumentos sejam
concludentes; digo apenas que são igualmente fortes em ambos os casos, e que
não pode haver nenhuma boa razão para que os aceitemos num plano e os
rejeitemos noutro. O estóico, quando empenhado em pregar uma atitude
tolerante para com os pecadores, insistirá em que a vontade pecadora é um
resultado de causas prévias; é só a vontade virtuosa a que lhe parece livre. Isto,
no entanto, é inconsistente. Marco Aurélio explica sua própria virtude como
devida à boa influência de seus pais, avós e professores; a boa vontade, tanto
quanto a má, é resultado de causas prévias. O estóico pode verdadeiramente
dizer que a sua filosofia é uma causa de virtude naqueles que a adotam, mas
parece que ela não terá esse efeito desejável, a menos que haja uma certa
mistura de erro intelectual. A percepção de que tanto a virtude como o pecado
são o resultado inevitável de causas prévias (como os estóicos deveriam ter
afirmado) tem probabilidade de exercer um efeito um tanto paralisante sobre o
esforço moral.
Chego, agora, à segunda contradição, de que os estóicos, embora pregassem a
benevolência, julgavam, na teoria, que nenhum homem pode fazer bem ou mal
a outro, já que somente a vontade virtuosa é boa, e que a vontade virtuosa é
independente das causas externas. Esta contradição é mais patente do que a
outra, e mais peculiar aos estóicos (incluindo certos moralistas cristãos). A
explicação de não o terem notado é que, como muitas outras pessoas, tinham dois
sistemas de ética, uma superfina para eles próprios e outra inferior para “as
castas inferiores sem lei”. Quando o filósofo está pensando em si mesmo, afirma
que a felicidade e todos os outros bens chamados terrenos nada valem; diz
mesmo que desejar-se a felicidade é contrário à natureza, querendo com isso
dizer que denota falta de resignação ante a vontade de Deus. Mas como homem
prático que administrava o Império Romano, Marco Aurélio sabia muito bem
que essa classe de coisas não dá resultado. Compete-lhe ver que os barcos de
grãos provenientes da África cheguem a Roma no devido tempo, quais as
medidas que deverão ser tomadas para aliviar os sofrimentos causados pela
peste, e o que se deve fazer para que os inimigos bárbaros não atravessem as
fronteiras. Isso quer dizer que, ao lidar com aqueles de seus súditos aos quais não
considera como filósofos estóicos, reais ou potenciais, aceita os padrões
mundanos ordinários do que é bom ou mau. É por aplicar esses padrões que ele
chega a cumprir seus deveres de administrador. O curioso é que este dever, por si
mesmo, está na esfera mais alta daquilo que o sábio estóico deveria fazer,
embora seja deduzido de uma ética que o sábio estóico encara como sendo
fundamentalmente errada.
A única resposta que posso imaginar para esta dificuldade talvez seja
logicamente inatacável, mas não é muito plausível. Seria, creio eu, dada por
Kant, cujo sistema ético é muito semelhante ao dos estóicos. Na verdade, poderia
ele dizer, não há nada bom senão a vontade boa, mas a vontade é boa quando
dirigida a certos fins que, em si mesmos, são indiferentes. Não importa se o
senhor A é feliz ou infeliz, mas, se sou virtuoso, agirei de uma maneira que me
pareça torná-lo feliz, porque isso é o que a lei morai ordena. Não posso fazer
com que o Sr. A seja virtuoso, porque sua virtude depende apenas dele próprio;
mas posso fazer algo no sentido de torná-lo feliz, ou rico, ou culto, ou saudável. A
ética estóica pode ser, pois, exposta da seguinte maneira: certas coisas são
vulgarmente consideradas boas, mas isto é um erro; o que é bom é uma vontade
orientada no sentido de assegurar esses falsos bens a outras pessoas. Esta doutrina
não envolve nenhuma contradição lógica, mas perde toda a sua plausibilidade, se
acreditarmos verdadeiramente que as coisas consideradas como boas não têm
valor algum, pois, neste caso, a vontade virtuosa poderia muito bem ser dirigida
para outros fins inteiramente diferentes.
Há, com efeito, no estoicismo, um elemento de uvas verdes.{125} Não
podemos ser felizes, mas podemos ser bons; vamos, pois, fingir que, enquanto
formos bons, não importa que sejamos infelizes. Esta doutrina é heroica e, num
mundo mau, útil; mas não é nem inteiramente verdadeira, nem, num sentido
fundamental, completamente sincera.
Embora a importância principal dos estóicos fosse ética, houve dois aspectos
em que produziram frutos em outros campos. Um deles é a teoria do
conhecimento; o outro, a doutrina das leis naturais e dos direitos naturais.
Na teoria do conhecimento, a despeito de Platão, aceitaram a percepção; a
qualidade enganosa dos sentidos, afirmam, era realmente um juízo falso, e
poderia ser evitada com um pouco de cuidado. Um filósofo estóico, Esfero,
discípulo imediato de Zeno, foi convidado, certa vez, a uma ceia em companhia
do rei Ptolomeu, que, tendo ouvido falar de sua doutrina, lhe ofereceu uma romã
feita de cera. O filósofo procurou comê-la, o que fez com que o rei se risse dele.
Respondeu que não tivera nenhuma certeza de que se tratava de uma romã
verdadeira, mas que julgara pouco provável que se servisse na mesa do rei
alguma coisa que não fosse comível.{126} Nessa resposta, apelava a uma
distinção estóica entre as coisas que podem ser conhecidas com certeza tendo por
base a percepção, e aquelas que, sobre tal base, são apenas prováveis. De um
modo geral, esta doutrina era sã e científica.
Outra de suas doutrinas sobre a teoria do conhecimento exerceu maior
influência, embora fosse mais questionável. Era a crença nas idéias e princípios
inatos. A lógica grega era inteiramente dedutiva, e isso levantava a questão das
primeiras premissas. As primeiras premissas tinham de ser, pelo menos em
parte, gerais, e não existia nenhum método para prová-las. Os estóicos diziam
que há certos princípios luminosamente óbvios, admitidos por todos os homens;
estes poderiam servir, como nos Elementos de Euclides, como o ponto de partida
das definições. Este ponto de vista foi aceito durante toda a Idade Média, e até
mesmo por Descartes.
A doutrina do direito natural, tal como aparece nos séculos XVI, XVII e
XVIII, é o renascimento de uma doutrina estóica, embora com modificações
importantes. Foram os estóicos que distinguiram o fus naturate do jas gentiurn. A
lei natural se derivava dos primeiros princípios do gênero considerado como base
de todo o conhecimento geral. Por natureza, afirmavam os estóicos, todos os
seres humanos são iguais. Marco Aurélio, em suas Meditações, era a favor de
“uma política em que haja a mesma lei para todos, uma política administrada
tendo em vista direitos iguais e igual liberdade de palavra, e um governo real que
respeite, acima de tudo, a liberdade dos governados”. Este era um ideal que não
podia ser consistentemente realizado no Império Romano, mas influiu na
legislação, particularmente para melhorar a situação das mulheres e dos
escravos. O Cristianismo adotou esta parte dos ensinamentos estóicos, juntamente
com muitas outras coisas. E quando, por fim, no século XVII, chegou a
oportunidade de combater eficazmente o despotismo, as doutrinas estóicas da lei
natural e da igualdade natural, em suas roupagens cristãs, adquiriram uma força
prática que, na antiguidade, nem mesmo um imperador conseguiu dar-lhes.
CAPÍTULO XXIX
O Império Romano em Relação com a Cultura
O Império Romano afetou a história da cultura sob vários aspectos mais ou
menos separados.
Primeiro: há a influência direta de Roma sobre o pensamento helenístico. Esta
não é muito importante nem profunda.
Segundo: a influência da Grécia e do Oriente sobre a metade ocidental do
império. Esta foi profunda e duradoura, pois que incluiu a religião cristã.
Terceiro: a importância da longa paz romana na difusão da cultura, fazendo
com que os homens se habituassem à idéia de uma só civilização associada a um
único governo.
Quarto: a transmissão da civilização helenística aos maometanos e, através
deles, por fim, à Europa ocidental.
Antes de considerar estas influências de Roma, será útil uma breve sinopse de
sua história política.
As conquistas de Alexandre haviam deixado o Mediterrâneo ocidental intacto;
este era dominado, no começo do terceiro século antes de Cristo, por duas
poderosas Cidades-Estados: Cartago e Siracusa. Na primeira e segunda guerras
púnicas (264-241 e 218-201), Roma conquistou Siracusa e reduziu Cartago a uma
situação insignificante. Durante o segundo século, Roma conquistou as
monarquias macedônicas. O Egito, é verdade, permaneceu como Estado vassalo
até à morte de Cleópatra (30 A. C.). A Espanha foi conquistada como um
acidente da guerra com Aníbal; a França foi conquistada por César em meados
do primeiro século A. C., e a Inglaterra cerca de cem anos mais farde. As
fronteiras do império, em seus grandes dias, eram o Reno e o Danúbio na
Europa, o Eufrates na Ásia e o deserto no norte da África.
O imperialismo romano atingiu, talvez, o seu apogeu, no norte da África
(importante na história cristã como pátria de São Cipriano e Santo Agostinho),
onde grandes áreas, sem cultivo antes e depois dos tempos romanos, foram
tornadas férteis, mantendo cidades populosas. O Império Romano permaneceu,
em seu todo, estável e pacífico durante mais de duzentos anos, desde o acesso de
Augusto (30 A. C.) até os desastres do século III.
Enquanto isso, a constituição do Estado Romano sofrerá importantes
modificações. Roma havia sido, originalmente, uma pequena Cidade-Estado, não
muito diferente das da Grécia, principalmente as que, como Esparta, não
dependiam do comércio estrangeiro. Os reis, como os da Grécia homérica,
haviam sido sucedidos por uma república aristocrática. Gradualmente, enquanto
o elemento aristocrático, incorporado no Senado, permanecia poderoso,
elementos democráticos foram-se agregando; o compromisso resultante foi
considerado por Panácio o Estóico (cujas idéias são reproduzidas por Políbio e
Cícero) como uma combinação ideal de elementos monárquicos, aristocráticos e
democráticos. Mas a conquista perturbou o equilíbrio precário; trouxe nova e
imensa riqueza à classe senatorial e, em grau ligeiramente menor, aos
“cavalheiros”, como era chamada a alta classe média. A agricultura italiana, que
estivera nas mãos de pequenos agricultores que cultivavam grão com o seu
próprio trabalho e o de suas famílias, veio a transformar-se em imensas
propriedades rurais, pertencentes à aristocracia romana, onde os vinhedos e os
olivais eram cultivados pelo trabalho escravo. O resultado disso foi uma
onipotência virtual do Senado, que era usado desavergonhadamente para o
enriquecimento dos indivíduos, sem levar em consideração os interesses do
Estado ou o bem-estar de seus súditos.
Um movimento democrático, inaugurado pelos Gracos na segunda metade do
segundo século antes de Cristo, conduziu a uma série de guerras civis e,
finalmente — como acontecera amiúde na Grécia — ao estabelecimento de
uma “tirania”. É curioso ver-se a repetição, em tão vasta escala, de
manifestações que, na Grécia, se haviam limitado a áreas diminutas. Augusto, o
herdeiro e filho adotivo de Júlio César, que reinou de 30 A. C. a 14 A. D., pôs fim
à luta civil e (com poucas exceções) às guerras externas de conquista. Pela
primeira vez, desde o começo da civilização grega, o mundo antigo gozou de paz
e segurança.
Duas coisas haviam arruinado o sistema político grego: primeiro, a pretensão
de cada cidade a uma soberania absoluta; segundo, as amargas e sangrentas lutas
entre ricos e pobres dentro da maior parte das cidades.
Após a conquista de Cartago e dos reinos helenísticos, a primeira dessas
causas já não mais afligia o mundo, pois que não era possível nenhuma
resistência efetiva a Roma. Mas a segunda causa persistiu. Nas guerras civis, um
general proclamava-se a si próprio o campeão do Senado, outro o do povo. A
vitória cabia ao que oferecia as mais altas recompensas aos soldados. Os
soldados queriam não apenas soldo e pilhagem, mas concessões de terras; por
isso, cada guerra civil terminava com a expulsão legal de muitos proprietários
rurais, que eram nominalmente arrendatários do Estado, para dar lugar aos
legionários do vencedor. Os gastos da guerra, enquanto esta se achava em
progresso, eram custeados mediante a execução dos ricos e o confisco de suas
propriedades. Este sistema, desastroso como era, não podia terminar facilmente;
por fim, para surpresa de todos, Augusto acabou tão completamente vitorioso que
não restava já nenhum competidor que lhe disputasse o poder.
Para o mundo romano, a descoberta de que o período da guerra civil havia
terminado constituiu uma surpresa, que foi causa de regozijo para todos, exceto
para um pequeno partido senatorial. Para todos os demais, foi um profundo alívio
quando Roma, sob o governo de Augusto, conseguiu, finalmente, a estabilidade e
a ordem que os gregos e os macedônios haviam procurado em vão, e que Roma,
antes de Augusto, não conseguira produzir. Na Grécia, segundo Rostovtseff, a
Roma republicana não “introduzira nada de novo, exceto a depauperação, a
bancarrota e a interrupção de toda atividade política independente”.{127}
O reinado de Augusto foi um período de felicidade para o Império Romano. A
administração das províncias foi por fim organizada tendo em vista o bem-estar
da população, e não sobre um sistema puramente predatório. Augusto não só foi
oficialmente deificado depois de sua morte, mas espontaneamente considerado
como um deus em várias cidades provinciais. Os poetas glorificavam-no, as
classes comerciais acharam a paz universal conveniente, e mesmo o Senado, que
ele tratou com todas as formas exteriores de respeito, não perdeu nenhuma
oportunidade de amontoar honras, e ofícios sobre sua cabeça.
Mas, embora o mundo se sentisse feliz, a vida perdera certo sabor, já que se
preferira a segurança à aventura. Nos primeiros tempos, toda cidade grega livre
tivera a oportunidade da aventura; Filipe e Alexandre puseram fim a esse estado
de coisas e, no mundo helenístico, somente as dinastias macedônias desfrutavam
de liberdade anárquica. O mundo grego perdeu sua juventude, e tornou-se cínico
ou religioso. A esperança de incorporar ideais às instituições terrenas se
desvaneceu e, com ela, os melhores homens perderam seu entusiasmo. O céu,
para Sócrates, era um lugar onde ele podia continuar suas argumentações; para
os filósofos posteriores a Alexandre, era algo muito diferente da sua existência
aqui embaixo.
Em Roma, um desenvolvimento semelhante veio mais tarde, e de maneira
menos penosa. Roma não foi conquistada, como a Grécia, mas tinha, pelo
contrário, o estímulo de um imperialismo triunfante. Durante todo o período das
guerras civis, foram os romanos os responsáveis pelas desordens. Os gregos não
asseguraram nem a ordem nem a paz submetendo-se aos macedônios, enquanto
que tanto os gregos como os romanos asseguraram ambas as coisas se
submetendo a Augusto. Augusto era romano, a quem a maior parte dos romanos
se submetiam de boa vontade, e não devido apenas ao seu poder superior; além
disso, teve o trabalho de disfarçar a origem militar de seu governo, e de baseá-lo
em decretos do Senado. A adulação manifestada pelo Senado era, sem dúvida,
grandemente insincera, mas, fora da classe senatorial, ninguém se sentia
humilhado.
A disposição de ânimo dos romanos era como a de um Jenne homme rangé na
França do século XIX que, após uma vida de aventuras amatórias, acaba
assentando, mediante um casamento vantajoso. Esse estado de ânimo, embora
satisfatório, não é criador. Os grandes poetas da época de Augusto haviam sido
formados em tempos mais perturbados; Horácio fugiu de Filipe, e tanto ele como
Virgílio perderam suas fazendas por confisco, em benefício dos soldados
vitoriosos. Augusto, a bem de sua estabilidade, pôs-se a trabalhar, um tanto
insinceramente, a fim de restaurar a piedade antiga, e foi, portanto,
necessariamente, um tanto hostil à livre pesquisa. O mundo romano começou a
estereotipar-se, e o processo continuou sob o governo dos últimos imperadores.
Os sucessores imediatos de Augusto entregaram-se a espantosas crueldades
para com os senadores e todos os possíveis competidores à púrpura. Até certo
ponto, o desgoverno desse período se estendeu às províncias; mas, de um modo
geral, a máquina administrativa criada por Augusto continuou a funcionar
bastante bem.
Um período melhor começou com a ascensão de Traja – no ao poder, em 48
A. D., continuando até à morte de Marco Aurélio, em 180 A. D. Durante esse
tempo, o governo do Império era tão bom quanto o pode ser qualquer governo
despótico. O terceiro século, pelo contrário, foi um espantoso desastre. O exército
percebeu o seu poder, fez e desfez imperadores a troco de dinheiro e da
promessa de uma vida sem guerras, deixando, por conseguinte, de ser uma força
combatente eficaz. Os bárbaros, procedentes do Norte e de leste, invadiram e
saquearam o território romano. O exército, preocupado com os ganhos privados
e a discórdia civil, foi incompetente na defesa. Todo o sistema fiscal se
desmoronou, pois que havia uma imensa diminuição de recursos e, ao mesmo
tempo, um aumento enorme de despesas com uma guerra malsucedida e com o
suborno do exército. A peste, além da guerra, diminuiu grandemente a
população. Era como se o império estivesse a ponto de sucumbir.
Esse resultado foi impedido por dois homens enérgicos, Diocleciano (286-305
A. D.) e Constantino, cuja soberania indiscutida durou de 312 a 337 de nossa era.
O Império foi por eles dividido numa metade oriental e outro ocidental,
correspondendo, aproximadamente, à divisão entre as línguas grega e latina. A
capital da parte oriental foi estabelecida, por Constantino, em Bizâncio, a que deu
o nome de Constantinopla. Diocleciano, durante algum tempo, dominou o
exército, modificando-lhe o caráter; a partir de então, as forças combatentes
mais eficientes eram compostas de bárbaros, principalmente germanos, os quais
podiam chegar às mais altas posições de comando. Esse era, evidentemente, um
expediente perigoso e, logo no início do século V, produziu os seus frutos naturais.
Os bárbaros decidiram que era mais vantajoso lutar para si próprios do que para
um amo romano. Não obstante, tal expediente serviu seu propósito durante mais
de um século. As reformas administrativas de Diocleciano foram igualmente
bem-sucedidas durante algum tempo, e igualmente desastrosas em suas
consequências. O sistema romano era o de permitir governo próprio às cidades, e
deixar que seus funcionários recebessem os impostos, dos quais apenas a quantia
total devida por uma cidade era fixada pelas autoridades centrais. Esse sistema
funcionou bastante bem em épocas de prosperidade, mas agora, no estado de
exaustão em que se encontrava o império, a renda exigida era maior que a que
poderia ser suportada sem excessiva agrura. As autoridades municipais eram
pessoalmente responsáveis pelos impostos, e fugiram para escapar ao
pagamento. Diocleciano obrigou os cidadãos prósperos a aceitar a função
municipal, declarando ilegal a fuga. Levado por motivos semelhantes,
transformou a população rural em servos, ligando-a à terra e proibindo a
emigração. Este sistema foi mantido pelos imperadores sucessivos.
A inovação mais importante de Constantino foi a adoção do Cristianismo como
religião do Estado, ao que parece devido ao fato de uma grande proporção de
seus soldados ser constituída de cristãos.{128} O resultado disso foi que, quando,
durante o século V, os germanos destruíram o Império Ocidental, seu prestígio os
levou a adotar a religião cristã, preservando, deste modo, para a Europa
ocidental, tanto da antiga civilização quanto havia sido absorvido pela Igreja.
O desenvolvimento do território destinado à metade oriental do Império foi
diferente. O Império oriental, embora diminuindo constantemente de extensão
(exceto durante as conquistas passageiras de Justiniano no século VI), sobreviveu
até 1453, quando Constantinopla foi conquistada pelos turcos. Mas a maior parte
das terras que haviam sido províncias romanas no oriente, incluindo a África e a
Espanha no ocidente, se tornaram maometanas. Os árabes, ao contrário dos
germanos, rejeitaram a religião, mas adotaram a civilização daqueles a quem
haviam conquistado. O Império oriental era grego, e não latino, em sua
civilização; assim, desde o século VII até o XI, foi o Império oriental e os árabes
que preservaram a literatura grega e o que sobreviveu da civilização grega,
como oposta à latina. Do século XI em diante, a princípio através de influências
mouriscas, o ocidente foi recuperando, aos poucos, o que havia perdido da
herança grega.
Chego agora aos quatro aspectos em que o Império Romano afetou a história
da cultura.
A influência direta de Roma sobre o pensamento grego. Esta começa no
segundo século antes de Cristo, com dois homens, o historiador Políbio e o
filósofo estóico Panécio. A atitude natural do grego para com o romano era de
desdém, misturado com medo; o grego sentia-se mais civilizado, mas,
politicamente, menos poderoso. Se os romanos se mostravam mais bemsucedidos na política, isso mostrava apenas que a política é uma ocupação
ignóbil. O grego médio do segundo século A. C. Era amante do prazer, de espírito
ágil, esperto nos negócios e sem escrúpulo em coisa alguma. Não obstante, ainda
havia homens de capacidade filosófica. Alguns deles — principalmente os
céticos, tais como Carnéades — tinham permitido que a inteligência destruísse a
seriedade. Outros, como os epicuristas e uma parte dos estóicos, se haviam
retirado inteiramente para uma tranquila vida privada. Mas uns poucos, dotados
de maior penetração do que a que fora demonstrada por Aristóteles em relação a
Alexandre, perceberam que a grandeza de Roma era devida a certos méritos que
não existiam entre os gregos.
O historiador Políbio, nascido em Arcádia cerca do ano 200 A. C., foi enviado
a Roma como prisioneiro, e lá teve a boa fortuna de tomar-se amigo do mais
jovem dos Scipiões, ao qual acompanhou em muitas de suas campanhas. Era
raro que um grego conhecesse latim, embora a maioria dos romanos cultos
conhecesse o grego; as circunstâncias de Políbio, no entanto, o levaram a uma
completa familiaridade com o latim. Escreveu, para benefício dos gregos, a
história das últimas guerras púnicas, que haviam permitido a Roma conquistar o
mundo. Sua admiração pela constituição romana ia-se tornando antiquada
enquanto escrevia suas obras, mas, até o seu tempo, podia ser comparada, em
estabilidade e eficiência, com as instituições, que mudavam constantemente, da
maioria das cidades gregas. Os romanos, naturalmente, leram a sua história com
prazer; se os gregos também o fizeram, é duvidoso.
Panécio, o estóico, já foi considerado no capítulo anterior. Era amigo de
Políbio e, como ele, protegido do mais jovem dos Scipiões. Enquanto Scipião
viveu, estava ele frequentemente em Roma, mas depois da morte de Scipião, em
129 A. C., permaneceu em Atenas como chefe da escola estóica. Roma ainda
tinha o que a Grécia perdera: a esperança, unida à oportunidade da atividade
política. Por conseguinte, as doutrinas de Panécio eram mais políticas, e menos
afins com as dos cínicos, do que o eram as dos primeiros estóicos.
Provavelmente a admiração de Platão pelos romanos cultos o haja influenciado,
fazendo com que abandonasse a estreiteza dogmática dos seus predecessores
estóicos. Na forma mais ampla dada por ele e pelo seu sucessor Possidônio ao
estoicismo, este atraiu fortemente os mais sérios dentre os romanos.
Em época posterior, Epicteto, embora grego, viveu a maior parte de sua vida
em Roma. Roma proporcionou-lhe a maior parte de seus exemplos; ele está
sempre a exortar os sábios a que não tremam na presença do imperador.
Sabemos da influência exercida por Epicteto sobre Marco Aurélio, mas sua
influência sobre os gregos é difícil de traçar-se.
Plutarco (ca. 46-120 A. D.), em suas Vidas de Gregos e Romanos Nobres,
traçou um paralelo entre os homens mais eminentes dos dois países. Passou um
tempo considerável em Roma, sendo honrado pelos imperadores Adriano e
Trajano. Além das Vidas, escreveu numerosas obras sobre filosofia, religião,
história natural, e moral. Suas Vidas têm, evidentemente, por objetivo reconciliar
a Grécia e Roma no pensamento do homem.
De um modo geral, à parte tais homens excepcionais, Roma atuou como uma
praga na parte do império que falava o grego. O pensamento e a arte
declinaram. Até o fim do século II de nossa era, a vida, para os remediados, foi
agradável e fácil; não havia incentivo para o trabalho árduo, e poucas
oportunidades para grandes realizações. As escolas de filosofia reconhecidas — a
Academia, os peripatéticos, os epicuristas e os estóicos — continuaram a existir,
até que foram fechadas por Justiniano. Nenhuma delas, porém, revelou qualquer
vitalidade durante todo o tempo posterior a Marco Aurélio, com exceção dos
neoplatônicos no século III A. D., aos quais nos referiremos no capítulo seguinte,
e sobre esses homens Roma quase nenhuma influência exerceu. As metades
latina e grega do império tornaram-se cada vez mais divergentes; o
conhecimento do grego tornou-se raro no ocidente e, depois de Constantino, o
latim, no oriente, somente sobreviveu no direito e no exército.
A Influência da Grécia e do Oriente Sobre Roma. Há aqui duas coisas muito
diferentes a se considerar: primeiro, a influência da arte, da literatura e da
filosofia helênicas sobre a maioria dos romanos cultos; segundo, a difusão, por
todo o mundo ocidental, das religiões e superstições não helênicas.
Quando os romanos entraram, pela primeira vez, em contato com os gregos,
consideraram-se a si próprios, em comparação com os mesmos, bárbaros e
grosseiros. Os gregos eram, sob vários aspectos, incomensuravelmente
superiores: na manufatura e na técnica da agricultura; nas classes de
conhecimentos necessários a um bom servidor público; na – conversação e na
arte de gozar a vida; na arte, na literatura e na filosofia. As únicas coisas em que
os romanos eram superiores eram a tática militar e a coesão social. As relações
entre romanos e gregos eram algo semelhante às existentes entre prussianos e
franceses em 1814 e 1815; mas estas últimas foram temporárias, enquanto que
aquelas duraram longo tempo. Depois das guerras púnicas, os jovens romanos
passaram a admirar os gregos. Aprenderam a língua grega, copiaram a
arquitetura grega, empregaram escultores gregos. Os deuses romanos foram
identificados com os deuses da Grécia. A origem troiana dos romanos foi
inventada para que existisse uma ligação com os mitos homéricos. Os poetas
latinos adotaram o metro grego, os filósofos latinos as teorias gregas. Até o fim,
Roma foi, culturalmente, um parasito da Grécia. Os romanos não inventaram
nenhuma forma de arte, não construíram nenhum sistema original de filosofia,
não fizeram nenhuma descoberta científica. Fizeram boas estradas, códigos
legais sistemáticos e exércitos eficientes; quanto ao resto, voltaram-se para a
Grécia.
A helenização de Roma trouxe consigo uma certa amenização de maneiras
que desagradava sumamente ao velho Catão. Até as guerras púnicas, os romanos
haviam sido um povo bucólico, com virtudes e vícios de agricultores: austeros,
laboriosos, brutais, obstinados e estúpidos. Sua vida familiar fora sólida e
estavelmente estabelecida sobre a pátria potestas; as mulheres e os jovens viviam
em completa submissão. Tudo isso mudou sob o influxo da súbita riqueza. Os
pequenos agricultores desapareceram, sendo substituídos por enormes
propriedades rurais, nas quais o trabalho escravo era utilizado para realizar novos
métodos científicos de agricultura. Surgiu uma grande classe de mercadores,
bem como número ainda maior de homens enriquecidos pela pilhagem, como os
nababos existentes na Inglaterra no século XVIII. As mulheres, que haviam sido
escravas virtuosas, tornaram-se livres e dissolutas; o divórcio tornou-se comum;
os ricos deixaram de ter filhos. Os gregos, que haviam passado por um
desenvolvimento semelhante séculos antes, encorajaram, com o seu exemplo, o
que os historiadores chamam a decadência da moral. Mesmo nas épocas mais
dissolutas do império, o romano médio ainda considerava Roma como a
mantenedora de um padrão ético mais puro contra a decadente corrupção da
Grécia.
A influência cultural da Grécia sobre o Império ocidental diminuiu
rapidamente do século III A. D. Em diante, principalmente porque a cultura, em
geral, decaiu. Para isso, houve várias causas, mas uma delas, em particular, deve
ser mencionada. Nos últimos tempos do Império ocidental, o governo mostrou-se
de uma tirania militar menos disfarçada do que até então, sendo que o exército,
geralmente, escolhia um general triunfante para imperador; mas o exército,
mesmo em suas mais elevadas patentes, já não era composto de romanos cultos,
mas de semibárbaros da fronteira. Esses rudes soldados pouco se importavam
com a cultura, e consideravam os cidadãos civilizados somente como fontes de
renda. Os particulares estavam demasiado empobrecidos para gastar muito com
a educação, e o Estado considerava a educação desnecessária. Por conseguinte,
no ocidente, apenas poucos homens de saber excepcional continuavam a ler o
grego.
A religião e a superstição não helênicas, pelo contrário, adquiriam, à medida
que o tempo passava, influência cada vez maior sobre o ocidente. Já vimos como
as conquistas de Alexandre introduziram no mundo grego as crenças dos
babilônios, persas e egípcios. Do mesmo modo, as conquistas romanas
familiarizaram o mundo ocidental não só com essas doutrinas, como, também,
com as dos judeus e cristãos. Referir-me-ei, adiante, aos judeus e cristãos; por
ora, limitar-me-ei, tanto quanto possível, às superstições pagãs.{129}
Em Roma, toda seita e todo profeta se achavam representados, gozando, às
vezes, dos favores dos mais altos círculos governamentais. Luciano, que, apesar
da credulidade da sua época, defendia o ceticismo são, conta uma história
divertida, aceita, em geral, como verdadeira, sobre um profeta e milagreiro
chamado Alexandre o Paflagônio. Este homem curava os doentes e predizia o
futuro, enveredando, às vezes, pela chantagem. Sua fama chegou aos ouvidos de
Marco Aurélio, que então lutava contra os marcomanos no Danúbio. O
imperador consultou-o sobre a maneira de ganhar a guerra, e o outro lhe
respondeu que se lançasse três leões ao Danúbio resultaria disso uma grande
vitória. Seguiu o conselho do vidente, mas foram os marcomanos que obtiveram
uma grande vitória. Apesar desse contratempo, a fama de Alexandre continuou
crescendo. Um romano preeminente, de categoria consular, Rutiliano, após
consultá-lo sobre vários pontos, procurou, por fim, seu conselho quanto à escolha
de uma esposa. Alexandre, como Endimião, havia gozado dos favores da Lua e
tido com ela uma filha, a quem o oráculo recomendou a Rutiliano. “Rutiliano,
que tinha então sessenta anos, cumpriu imediatamente a injunção divina e
celebrou seu matrimônio por meio de hecatombes inteiras à sua sogra celestial”.
{130}
Mais importante do que a carreira de Alexandre o Paflagônio foi o reinado do
imperador Elogábalo ou Heliogábalo (218-22 A. D.), que foi, até sua elevação
por eleição do exército, um sacerdote sírio do Sol. Em seu lento progresso da
Síria para Roma, foi ele precedido de seu retrato, enviado como presente ao
Senado. “Vestia suas roupas sacerdotais de seda e ouro, amplas e frouxas, à
maneira dos medos e fenícios; cobria-lhe a cabeça uma alta tiara, e seus
numerosos colares e braceletes eram adornados com gemas de inestimável
valor. Tinha as sobrancelhas tingidas de preto e as faces pintadas de um vermelho
e branco artificiais. Os graves senadores confessaram com um suspiro que, após
haver experimentado durante longo tempo a severa tirania de seus próprios
compatriotas, Roma foi, afinal, humilhada pelo luxo efeminado do despotismo
oriental”.{131} Apoiado por uma grande parte do exército, continuou, com zelo
fanático, a introduzir em Roma as práticas religiosas do Oriente; seu nome era o
do deus Sol adorado em Emesa, onde havia sido sacerdote maior. Sua mãe, ou
avó, que era o verdadeiro governante, percebera que ele fora longe demais, e
destronou-o a favor de seu sobrinho Alexandre (222-35), cujas inclinações
orientais eram mais moderadas. A mistura de credos, possível em seus dias, era
ilustrada pela sua capela particular, na qual colocou as estátuas de Abraão,
Orfeu, Apolônio de Tiana e Cristo.
A religião de Mitra, que era de origem persa, competiu de perto com o
Cristianismo, particularmente durante a última metade do século III de nossa era.
Os imperadores, que estavam fazendo esforços desesperados para controlar o
exército, sentiram que a religião poderia proporcionar uma estabilidade de que
tanto se necessitava; mas teria que ser uma das novas religiões, já que eram estas
que os soldados favoreciam. O culto foi introduzido em Roma, e tinha muito a
recomendá-lo quanto ao espírito militar. Mitra era um deus do Sol, mas não tão
efeminado como o seu colega sírio; era um deus que se interessava pela guerra,
a grande guerra entre o bem e o mal, que fazia parte do credo persa desde
Zoroastro. Rostortseff reproduz um baixo-relevo que representa a sua adoração,
achado num santuário subterrâneo em Heddernheim, na Alemanha, e que
mostra que seus discípulos deviam ter sido numerosos entre os soldados, não só
no Oriente, como, também, no Ocidente.
A adoção do Cristianismo por Constantino foi, politicamente, bem-sucedida,
embora as tentativas anteriores, para se introduzir uma nova religião, houvessem
fracassado; mas as tentativas anteriores haviam sido, do ponto de vista
governamental, muito semelhantes a essa. Todas elas derivavam sua
possibilidade de êxito dos infortúnios e do cansaço do mundo romano. As
religiões tradicionais da Grécia e Roma adaptavam-se a homens interessados no
mundo terreno, e que tinham esperança de gozar de felicidade na Terra. A Ásia,
com uma experiência mais longa de desespero, havia aperfeiçoado antídotos
mais eficazes em forma de esperança na outra vida; de todos eles, o Cristianismo
era o mais eficiente em proporcionar consolo. Mas o Cristianismo, ao tempo em
que se tornou religião do Estado, havia absorvido muito da Grécia, transmitindoo, juntamente com o elemento judaico, às eras sucessivas no Ocidente.
A unificação do governo e da cultura. Devemos primeiro a Alexandre e,
depois, a Roma, o fato de que as realizações da grande época da Grécia não se
hajam perdido para o mundo, como as da idade de Minos. No século V antes de
Cristo, se acontecesse de surgir um Gengis Khan, poderia haver destruído tudo o
que era importante no mundo helênico; Xerxes, com um pouco mais de
competência, poderia ter tomado a civilização grega muito inferior ao que se
tomou depois de ser repelido. Considere-se o período que vai de Ésquilo a Platão:
tudo o que se fez nesse tempo foi realizado pela minoria da população de umas
poucas cidades comerciais. Estas cidades, como o futuro o demonstrou, não
tinham grande capacidade para resistir a conquistadores estrangeiros, mas, por
um golpe extraordinário de boa sorte, seus conquistadores, macedônios e
romanos, eram filo-helenos, e não destruíram o que haviam conquistado, como
Xerxes ou Cartago o teriam feito. O fato de conhecermos o que os gregos
realizaram na arte, na literatura, na filosofia e na ciência, se deve à estabilidade
introduzida pelos conquistadores ocidentais, que tiveram o bom senso de admirar
a civilização que governaram, fazendo o máximo por preservá-la.
Sob certos aspectos, políticos e éticos, Alexandre e os romanos foram as
causas de uma filosofia melhor que nenhuma outra das professadas pelos gregos
em seus dias de liberdade. Os estóicos, como vimos, acreditavam na fraternidade
humana, e não limitaram suas simpatias aos gregos. O longo domínio de Roma
habituou os homens à idéia de uma civilização única sob um governo único. Nós
sabemos que houve partes importantes do mundo que não estiveram sujeitas a
Roma — a índia e a China, mais concretamente. Mas, quanto aos romanos,
parecia-lhes que, fora do Império, havia apenas tribos mais ou menos bárbaras,
que poderiam ser conquistadas em qualquer momento que valesse a pena fazer
tal esforço. O império era, essencialmente, na idéia e na mente dos romanos, de
âmbito universal. Essa concepção passou à Igreja, que, apesar dos budistas,
confucionistas e (mais tarde) maometanos, era “católica”. Securtis judicat orbis
terrarum é uma máxima dos últimos estóicos adotada pela Igreja; deve sua
sedução à aparente universalidade do Império Romano. Durante toda a Idade
Média, depois da época de Carlos Magno, a Igreja e o Sacro Império Romano
eram, em idéia, mundiais, embora toda a gente soubesse que não o eram de fato.
A concepção de uma família humana, uma religião católica, uma cultura
universal e um Estado de âmbito mundial, ocorriam insistentemente aos homens
desde sua realização aproximada por Roma.
O papel desempenhado por Roma no alargamento da área da civilização foi
de imensa importância. A Itália setentrial, Espanha, França e partes ocidentais da
Germânia, achavam-se civilizadas em consequência de conquistas eficazes pelas
legiões romanas. Todas essas regiões se mostraram capazes de um nível tão
elevado de cultura como a própria Roma. Nos últimos dias do Império ocidental,
a Gália produziu homens pelo menos iguais a seus contemporâneos das regiões
de civilizações mais adiantadas. Foi devido à difusão da cultura por Roma que os
bárbaros produziram apenas um eclipse temporário, e não uma obscuridade
permanente. Pode-se argumentar que a qualidade da civilização nunca foi de
novo tão boa como na Atenas de Péricles; mas, num mundo de guerra e
destruição, a quantidade é, no fim de contas, quase tão importante como a
qualidade, e a quantidade se devia a Roma.
Os maometanos como veículos de helenismo. No século VII, os discípulos do
Profeta conquistaram a Síria, o Egito e o norte da África; no século seguinte,
conquistaram a Espanha. Suas vitórias foram fáceis e a luta fraca. Exceto talvez
durante os primeiros anos, não se mostraram fanáticos; os cristãos e judeus não
eram molestados, contanto que pagassem seus tributos. Dentro de muito pouco
tempo, os árabes adquiriram a civilização do Império ocidental, mas com a
esperança de uma política crescente, ao invés do cansaço da decadência. Seus
homens de cultura liam os autores gregos em traduções e escreviam
comentários. A reputação de Aristóteles é devida principalmente a eles; na
antiguidade, não o consideravam como situado no mesmo nível que Platão.
É instrutivo considerar algumas das palavras derivadas do árabe, tais como
álgebra, alquimia, alambique, álcali, azimute, zênite. Com exceção de
“álcool” — que significa não uma bebida, mas uma substância usada na
química — essas palavras dariam uma boa idéia de algumas das coisas que
devemos aos árabes. A álgebra foi inventada pelos gregos alexandrinos, sendo,
porém, desenvolvida pelos maometanos. “Alquimia”, “alambique”, “álcali”, são
palavras ligadas à tentativa de transformar metais básicos em ouro, o que os
árabes tomaram dos gregos e em cuja busca apelaram para a filosofia grega.
{132} “Azimute” e “zênite” são termos de astronomia, empregados,
principalmente, pelos árabes em relação com a astronomia.
O método etimológico oculta o que devemos aos árabes com relação ao
conhecimento da filosofia grega, porque, quando foi de novo estudada na Europa,
os termos técnicos requeridos foram tomados do grego ou do latim. Na filosofia,
os árabes foram melhores comentadores do que os pensadores originais. Sua
importância, para nós, é que eles, e não os cristãos, foram os herdeiros imediatos
daquelas partes da tradição grega que somente o Império oriental manteve vivas.
O contato com os maometanos na Espanha e, em grau menor, na Sicília, fez com
que o Ocidente tomasse conhecimento de Aristóteles, bem como dos números
arábicos, álgebra e química. Foi esse contato que produziu o renascimento da
cultura no século XI, conduzindo à filosofia escolástica. Foi mais tarde, do século
XIII em diante, que o estudo do grego permitiu que os homens fossem
diretamente às obras de Platão e Aristóteles, bem como de outros escritores
gregos da antiguidade. Mas se os árabes não houvessem preservado a tradição,
talvez os homens da Renascença não tivessem suspeitado quanto se poderia
ganhar com o renascimento da cultura clássica.
CAPÍTULO XXX
Plotino
PLOTINO (204-70 A. D.), o fundador do neoplatonismo, é o último dos
grandes filósofos da antiguidade. Sua vida é coletânea de um dos períodos mais
desastrosos da história romana. Pouco antes de seu nascimento, o exército
começou a ter consciência de sua força, passando a adotar a prática de escolher
imperadores a troco de recompensas monetárias e a assassiná-los depois, para
ter ocasião de renovar a venda do Império. Essas preocupações inabilitaram os
soldados para a defesa das fronteiras e permitiram vigorosas incursões de
germanos, pelo Norte, e de persas, pelo Leste. A guerra e a peste diminuíram a
população do Império em cerca de um terço, enquanto que o aumento dos
impostos e a diminuição dos recursos causaram a ruína financeira mesmo nas
províncias onde não haviam penetrado forças hostis. As cidades, que haviam sido
portadoras de cultura, sofreram golpes particularmente duros; os cidadãos
prósperos fugiam em grande número, a fim de escapar ao coletor de impostos.
Somente depois da morte de Plotino é que a ordem foi restabelecida, sendo o
império salvo, temporariamente, pelas vigorosas medidas tomadas por
Diocleciano e Constantino.
De tudo isto não há menção alguma nas obras de Plotino. Ele voltou as costas
ao espetáculo de ruína e miséria do mundo real, para contemplar um mundo
eterno de bondade e beleza. Nisto, estava em harmonia com os homens mais
sérios de sua época. Para todos eles, tanto cristãos como pagãos, o mundo das
coisas práticas parecia não oferecer nenhuma esperança, e só o Outro Mundo
lhes parecia merecedor de fidelidade. Para o cristão, o Outro – Mundo era o
Reino do Céu, para ser gozado depois da morte; para os platônicos, era o mundo
eterno das idéias, o mundo real, oposto ao mundo das aparências ilusórias. Os
teólogos cristãos combinaram esses pontos de vista, e incorporaram muito da
filosofia de Plotino. O Deão Inge, em seu valioso livro sobre Plotino, ressalta,
acertadamente, o que o Cristianismo lhe deve. “O platonismo — diz ele — é
parte da estrutura vital da teologia cristã, com a qual nenhuma outra filosofia,
ouso dizê-lo, poderia funcionar sem atritos’. Há, diz, uma “extrema
impossibilidade de extirpar-se o platonismo do Cristianismo, sem que o
Cristianismo se faça em pedaços”. Assinala que Santo Agostinho se refere ao
sistema de Platão como “o mais puro e brilhante de toda a filosofia”, e a Plotino
como um homem em quem “Platão viveu de novo”, e que, se houvesse vivido
um pouco mais tarde, teria “mudado algumas palavras e frases e se tornado
cristão”. Santo Tomás de Aquino, segundo o Deão Inge, “está mais próximo de
Plotino que do verdadeiro Aristóteles”.
Plotino, por conseguinte, é historicamente importante como uma influência
que modelou o Cristianismo da Idade Média e a teologia católica. O historiador,
ao falar de Cristianismo, deve ter o cuidado de reconhecer as grandes
modificações pelas quais este passou, bem como a variedade de formas que
pode assumir em determinada época. O Cristianismo dos Evangelhos Sinópticos é
quase destituído de metafísica. O Cristianismo da América de hoje é, a este
respeito, como o Cristianismo primitivo; nos Estados Unidos, o platonismo é
alheio ao pensamento e ao sentimento popular, sendo que a maioria dos cristãos
americanos está mais ocupada com os seus deveres aqui na Terra, e com o
progresso social do mundo cotidiano, do que com as esperanças transcendentes
que consolaram os homens quando tudo o que era terreno lhes inspirava
desespero. Não me refiro a nenhuma mudança de dogma, mas a uma diferença
de tom e de interesse. Um cristão moderno, a menos que perceba quão grande é
essa diferença, não compreenderá o Cristianismo do passado. Nós, já que o nosso
estudo é histórico, estamos interessados nas crenças efetivas dos séculos passados
e, quanto a estas, é-nos impossível discordar do que o Deão Inge diz sobre a
influência de Platão e Plotino.
Plotino, todavia, não é importante só historicamente. Representa, melhor do
que qualquer outro filósofo, um tipo importante de teoria. Um sistema filosófico
pode ser julgado importante por várias espécies diferentes de razões. A primeira
e mais óbvia é que pensemos que possa ser verdadeiro. Poucos estudantes de
filosofia, em nossa época, sentiriam assim a respeito de Plotino; o Deão Inge é,
neste sentido, uma rara exceção. Mas a verdade não é o único mérito que uma
metafísica possa possuir. Poderá ter beleza, e isto se encontra, certamente, em
Plotino; há passagens que nos recordam os últimos cantos do Paraíso de Dante, e
quase nada mais do que existe na literatura. De vez em quando, deparamos com
suas descrições do mundo eterno de glória.
À nossa primorosa fantasia apresenta
Aquela tranquila canção de pura harmonia
Cantada ante o trono cor de safira
Aquele que nele se assenta.
Uma filosofia, ademais, pode ser importante por exprimir bem aquilo em que
os homens estão propensos a crer em certos estados de espírito ou em
determinadas circunstâncias. A alegria e a tristeza sem complicação não são
matéria para a filosofia, mas antes para os gêneros mais simples da poesia e da
música. Somente a alegria e a tristeza acompanhadas de reflexão sobre o
universo geram teorias metafísicas. Pode ser um alegre pessimista ou um
otimista melancólico. Talvez Samuel Butler possa servir como exemplo do
primeiro; Plotino é um exemplo admirável do segundo. Numa época como
aquela em que viveu, a infelicidade é imediata e urgente, enquanto que a
felicidade, se atingível, deve ser procurada mediante a reflexão sobre coisas
remotas das impressões dos sentidos. Tal felicidade traz sempre consigo um
elemento de tensão; é muito diferente da felicidade simples de uma criança. E
como não se deriva do mundo cotidiano, mas do pensamento e da imaginação,
exige o poder de ignorar ou desprezar a vida dos sentidos. Não são, pois, aqueles
que gozam de felicidade instintiva os que inventam as espécies de otimismo
metafísico que dependem da crença na realidade de um mundo supersensível.
Entre os homens que foram infelizes num sentido mundano, mas que estavam
firmemente resolvidos a encontrar uma felicidade mais alta no mundo da teoria,
Plotino ocupa lugar muito elevado.
Não são de desprezar, de modo algum, seus méritos puramente intelectuais.
Sob muitos aspectos, esclareceu os ensinamentos de Platão; desenvolveu, de
maneira tão consistente quanto possível, o tipo de teoria que defendeu em
comum com muitos outros. Seus argumentos contra o materialismo são bons, e
sua concepção total da relação entre alma e corpo é mais clara que a de Platão
ou Aristóteles.
Como Spinoza, possui ele uma espécie de pureza e elevação moral que
impressiona muito. É sempre sincero, jamais acerbo ou reprovador, empenhado
invariavelmente em dizer ao leitor, com toda a simplicidade possível, o que lhe
parece importante. Pense-se dele o que se quiser como filósofo, não é possível
deixar de amá-lo como homem.
A vida de Plotino é conhecida, tanto quanto se pode conhecê-la, através de
uma biografia escrita por um seu amigo e discípulo, Porfírio, um semita cujo
nome real era Marchus. Há, porém, elementos miraculosos nesse relato, o que
torna difícil depositar-se completa confiança em suas partes mais críveis.
Plotino considerava sem importância sua aparência espaço-temporal, e
detestava falar acerca dos acidentes de sua existência histórica. Afirmou, não
obstante, que nascera no Egito, e sabe-se que, quando jovem, estudara em
Alexandria, onde viveu até a idade de trinta e nove anos, tendo sido, nesta última
cidade, aluno de Ammonio Saccas, considerado, amiúde, como fundador do
neoplatonismo. Juntou-se, então, à expedição do imperador Gordiano III contra
os persas, com a intenção, segundo se diz, de estudar as religiões do oriente. O
imperador, que era ainda jovem, foi assassinado pelo exército, como era então
costume. Isto ocorreu durante sua campanha na Mesopotâmia, no ano 244 de
nossa era. Em vista disso, Plotino abandonou seus projetos orientais e
estabeleceu-se em Roma, onde logo começou a ensinar. Entre seus ouvintes
havia muitos homens influentes, e ele foi favorecido pelo imperador Galieno.
Certa ocasião, formou o plano de fundar a República de Platão na Campânia,
construindo para tal uma nova cidade, que deveria chamar-se Platonópolis. O
imperador, a princípio, mostrou-se favorável, mas, no fim, retirou sua permissão.
Pode parecer estranho que houvesse espaço para uma cidade tão próxima de
Roma, mas, provavelmente, naquele tempo, havia malária na região, como
agora, mas não tinha havido antes. Nada escreveu antes dos quarenta e nove
anos; depois, escreveu muito. Suas obras eram editadas e organizadas por
Porfírio, que era mais pitagórico do que Plotino, fazendo com que a escola
neoplatônica se tomasse mais supernaturalista do que o teria sido se seguisse mais
fielmente a Plotino.
O respeito de Plotino por Platão era muito grande; refere-se habitualmente a
Platão como “Ele”. Em geral, os “benditos antigos” são tratados com reverência,
mas essa reverência não se estende aos atomistas. Os estóicos e epicuristas, que
estavam ainda ativos, eram refutados — os estóicos somente pelo seu
materialismo, os epicuristas por todas as partes de sua filosofia. Aristóteles
desempenha um papel mais amplo do que parece, pois o que lhe tomavam
emprestado não era, com frequência, mencionado. Sente-se, em muitos pontos, a
influência de Parmênides.
O Platão de Plotino não é tão pletórico como o Platão real. A teoria das idéias,
as doutrinas místicas do Fédon e o Livro VI da República, bem como a discussão
do amor no Symposium, constituem quase todo o Platão, tal como aparece nas
Enéadas (como são chamados os livros de Plotino). Os interesses políticos, a
procura de definições de virtudes isoladas, o gosto pelas matemáticas, a
apreciação dramática e afetuosa de indivíduos e, acima de tudo, a jovialidade de
Platão, acham-se inteiramente ausentes em com respeito a Galieno, Gibbon
observa: “Era um mestre de várias ciências curiosas, mas inúteis, orador fluente
e poeta elegante, hábil jardineiro, excelente cozinheiro e o mais desprezível dos
príncipes. Quando, nas ocasiões de emergência, o Estado requeria sua presença e
atenção, estava ele empenhado em conversações com o filósofo Plotino,
gastando seu tempo em prazeres insignificantes ou licenciosos, preparando sua
iniciação nos mistérios ou solicitando um lugar no Areópago de Atenas”. (Cap.
X).
Plotino. Platão, como disse Carly le, “está perfeitamente à vontade no Sião”;
Plotino, ao contrário, está sempre procurando proceder da melhor maneira.
A metafísica de Plotino começa com uma Santa Trindade: o Um, o Espírito e
a Alma. Estes, não são iguais, como as Pessoas da Trindade cristã; o Um é
supremo, o Espírito vem depois e, por último, a Alma.{133}
O Um é um tanto indistinto. É, às vezes, chamado Deus; outras vezes, o Bem;
transcende o Ser, que é a primeira sequência do Um. Não devemos atribuir-lhe
predicados, mas apenas dizer “é”. (Isto lembra Parmênides). Seria um erro falar
de Deus como “o Todo”, porque Deus transcende o Todo. Deus está presente em
todas as coisas. O Um pode estar presente sem que se aproxime: “enquanto não
está em nenhuma parte, em nenhuma parte está”. Embora se fale, às vezes, do
Um como de Deus, também nos dizem que ele precede tanto a Bondade como a
Beleza.{134} Às vezes, o Um parece assemelhar-se ao Deus de Aristóteles;
afirmam-nos, porém, que Deus não tem necessidade de Seus derivativos e ignora
o mundo criado. O Um é indefinível e, quanto a isto, há mais verdade no silêncio
do que em quaisquer palavras que possam ser ditas.
Chegamos agora à Segunda Pessoa, à qual Plotino chama nous. É sempre
difícil encontrar-se uma palavra inglesa que represente o nous. A tradução
corrente do dicionário é mind (mente), mas esta não tem as conotações corretas,
principalmente quando a palavra é empregada numa filosofia religiosa. Se
fossemos dizer que Plotino colocava a mente acima da alma, daríamos uma
impressão inteiramente falsa. McKenna, o tradutor de Plotino, emprega
“Princípio-Intelectual”, mas esta é uma expressão canhestra, e não sugere um
objeto adequado à veneração religiosa. O Deão Inge usa “Espírito”, que talvez
seja a melhor palavra de que dispomos. Mas ela omite o elemento intelectual,
importante em toda a filosofia religiosa grega posterior a Pitágoras. As
matemáticas, o mundo das idéias, e todo o pensamento do que é sensível, tem,
para Pitágoras, Platão e Plotino, algo de divino; constituem a atividade do nous
ou, pelo menos, dentre tudo o que podemos conceber, o que mais se aproxima de
sua atividade. Foi esse elemento intelectual da religião de Platão que levou os
cristãos — notadamente o autor do Evangelho de São João — a identificar Cristo
com o Logos. O Logos deveria ser traduzido, neste sentido, como “razão”; isso nos
impede de usar “razão” como tradução de nous. Usarei, como o Deão Inge,
“Espírito”, mas com a ressalva de que nous tem uma conotação intelectual na
palavra “Espírito”, tal como é habitualmente compreendida. Mas, com
frequência, empregarei a palavra nous sem traduzir.
Nous, dizem-nos, é a imagem do Um; é engendrada porque o Um, em sua
auto-investigação, possui visão; esta visão é o nous. Este é um conceito difícil.
Um Ser sem partes, diz Plotino, pode conhecer a si mesmo; neste caso, o vidente
e o visto são uma única coisa. Em Deus, que é concebido, como o faz Platão,
utilizando a analogia do Sol, o doador de luz e o que é luz são o mesmo. Seguindose tal analogia, o nous pode ser considerado como a luz mediante a qual o Um vê
a si mesmo. É-nos possível conhecer a Mente Divina, que esquecemos por
vontade própria. Para conhecer a Mente Divina, precisamos estudar a nossa
própria alma quando esta mais se assemelha a Deus: temos de deixar de lado o
corpo e a parte da alma que modelou o corpo e “os sentidos com os desejos e
impulsos e todas as inutilidades”; o que então resta é a imagem do Intelecto
Divino.
“Aqueles divinamente possuídos e inspirados um pelo menos o conhecimento
de que contém, dentro de si, alguma coisa maior do que eles próprios, embora
não saibam dizer o que é; pelos movimentos que os agitam e as expressões que
vêm deles podem perceber, não a si mesmos, mas o poder que os move: do
mesmo modo, deve ser, nos comportamos diante do Supremo, quando
conservamos o nous puro; percebemos, no íntimo, o Espírito Divino, que dá o Se?
E todas as outras coisas dessa ordem; mas conhecemos também outro, que não é
nenhum destes, mas um princípio mais nobre do que o que conhecemos como
Ser; mais pleno e maior; acima da razão, da mente e dos sentimentos; conferindo
estes poderes, mas sem confundir-se com ele”.{135}
Assim, quando somos “divinamente possuídos e inspirados”, não vemos
apenas o nous, mas também o Um. Quando estamos, pois, em contato com o
Divino, não podemos raciocinar nem expressar a visão em palavras; isto vem
depois. “No momento do contato, não há poder algum para se fazer qualquer
afirmação; não há tempo; o raciocínio sobre a visão é posterior. Podemos saber
que tivemos a visão quando a alma, subitamente, recebeu a luz. Essa luz vem do
Supremo e é o Supremo; podemos acreditar na Presença, quando, como aquele
outro Deus ao chamamento de um certo homem, Ele veio trazendo a luz; a luz é
a prova do advento. Assim, a alma não iluminada permanece sem aquela visão;
iluminada, possui o que busca. E esta é a verdade colocada diante da Alma:
receber essa luz, ver o Supremo pelo Supremo e não pela luz de qualquer outro
princípio — ver o Supremo que é também o meio da visão; porque o que ilumina
a Alma é o que deve ser visto, como é pela própria luz do Sol que vemos o Sol.
Mas como isto há de realizar-se?
Afastando-se tudo”.{136}
A experiência do “êxtase” (estar-se fora do próprio corpo) ocorria, com
frequência, a Plotino: “Ocorreu muitas vezes: elevar-me. Do corpo para mim
mesmo; tornar-me alheio a todas as outras coisas e concentrado em mim
próprio, a contemplar uma beleza maravilhosa; depois, mais do que nunca,
convencido da comunidade com a ordem mais alta; vivendo a mais nobre das
vidas, adquirindo identidade com o divino; estacionando dentro dele por haver
atingido essa atividade; pairar acima do que quer que seja, no Intelectual, é
menos do que o Supremo: no entanto, chega o momento de se descer da
intelecção para o raciocínio e, depois dessa estada no divino, eu me pergunto o
que ocorre para que eu possa estar agora descendo, e de que maneira a Alma
entra sempre em meu corpo, a Alma que, mesmo dentro de meu corpo, é a
coisa mais alta que demonstrou ser”.{137}
Isto nos conduz à Alma, o terceiro e mais baixo membro da Trindade. A
Alma, embora inferior ao nous, é a autora de todas as coisas vivas; fez o Sol, a
Lua e as estrelas, bem como todo o mundo visível. É o fruto do Intelecto Divino.
É dupla: há uma alma íntima, atenta ao nous, e outra voltada para o exterior. Esta
última está associada a um movimento para baixo, no qual a Alma gera a sua
imagem, que é a natureza e o mundo dos sentidos. Os estóicos haviam
identificado a natureza com Deus, mas Plotino a considerou como uma esfera
inferior, algo que emana da Alma quando esta esquece de olhar para o alto, na
direção do nous. Isto pode ter sugerido a opinião dos gnósticos, de que o mundo
visível é mal, mas Plotino não adota tal opinião. O mundo visível é belo, e o a
morada dos espíritos abençoados: é menos bom, apenas, do que o mundo
intelectual. Numa discussão polêmica muito interessante da opinião gnóstica, de
que o Cosmos e o seu criador são maus, admite ele que certas partes da doutrina
gnóstica, tal como o ódio à matéria, podem ser devidas a Platão, mas afirma que
as outras partes, que não provêm de Platão, são falsas.
Suas objeções ao gnosticismo são de duas classes. Por uma parte, diz que a
Alma, quando cria o mundo material, o faz devido à memória do divino, e não
por estar decaída; o mundo dos sentidos, pensa ele, é tão bom quanto o possa ser
um mundo sensível. Sente fortemente a beleza das coisas percebidas pelos
sentidos: “Quem realmente percebe a harmonia do Reino Intelectual poderia
deixar, se tiver qualquer inclinação para a música, de responder à harmonia em
sons sensíveis? Que geômetra ou aritmético poderia deixar de sentir prazer nas
simetrias, correspondências e princípios de ordem observados em coisas
sensíveis? Considere-se, mesmo, o caso das pinturas: aqueles que veem pelo
sentido corporal as produções da arte da pintura, não veem a coisa apenas por
um aspecto; sentem-se profundamente comovidos ao reconhecer nos objetos
pintados para os olhos a representação do que reside na idéia, e assim são
chamados à lembrança da verdade — a própria experiência de que surge o
Amor.
Ora, se a vista da Beleza, excelentemente reproduzida, de um rosto, precipita
a mente aquela outra Esfera, certamente ninguém, vendo o predigo encanto do
mundo dos sentidos — esta vasta regularidade, a forma que as estrelas, mesmo
em sua grande distância, exibem — ninguém poderia ser tão embotado de
espírito, tão insensível, que não fosse levado por tudo isso à recordação e presa de
reverente temor ao pensar em tudo isso, tão grande, surgido dessa grandeza. Não
se responder a isso, só poderia ser devido a não se ter percebido a grandiosidade
deste mundo nem tido uma visão do outro” (II, 9, 16).
Há uma outra razão para se rejeitar a opinião gnóstica. Os gnósticos acham
que nada divino está associado ao Sol, à Lua ou às estrelas; estes, foram criados
por um espírito mau. Somente a alma do homem, entre as coisas percebidas,
possui bondade. Mas Plotino está firmemente persuadido de que os corpos
celestes são os corpos de seres semelhantes a Deus, incomensuravelmente
superiores ao homem. De acordo com os gnósticos, a “sua própria alma, a alma
do mais ínfimo do gênero humano, é declarada imortal, divina; mas todos os céus
e as estrelas dentro dos céus não haviam tido comunhão com o Princípio Imortal,
embora estes fossem muitíssimos mais puros e encantadores do que as suas
próprias almas” (II, 9, 5). Para o conceito de Plotino há autoridade no Timeu,
sendo adotado por alguns Padres cristãos, como, por exemplo, Orígenes. É
imaginativamente atraente; exprime sentimentos que os corpos celestes
naturalmente inspiram, e tomam o homem menos solitário no universo físico.
No misticismo de Plotino, não há nada de rabugento ou hostil à beleza. Mas é
ele o último professor religioso, por muitos séculos, de quem se pode dizer isso. A
beleza e todos os prazeres a ela associados chegaram a ser considerados como
coisas do Diabo; tanto os pagãos como os cristãos chegaram a glorificar a
fealdade e a sujeira. Juliano o Apóstata, como outros santos ortodoxos seus
contemporâneos, vangloriava-se do que lhe povoava a barba. Não há nada disso
em Plotino.
A matéria é criada pela Alma e não tem realidade independente. Toda alma
tem sua hora; quando esta soa, ela baixa e penetra no corpo que lhe é adequado.
O motivo disso não é a razão, mas algo mais análogo ao desejo sexual. Quando a
alma deixa o corpo, deve, se foi pecadora, entrar em outro corpo, pois a justiça
requer que ela deva ser punida. Se, nesta vida, assassinaste tua mãe, serás mulher
na próxima vida e serás assassinada por teu filho (III, 2, 13). O pecado deve ser
castigado; mas o castigo acontece naturalmente, mediante os incessantes
impulsos dos erros do pecador.
Lembramo-nos desta vida depois de mortos? A resposta é perfeitamente
lógica, mas não a que a maioria dos teólogos modernos daria. A memória
relaciona-se com a nossa vida no tempo, ao passo que a nossa vida mais
verdadeira e melhor é na eternidade. Portanto, à medida que a alma cresce na
direção da vida eterna, recordará cada vez menos; amigos, filhos, esposa, serão,
aos poucos, esquecidos; no fim, não conheceremos nada das coisas deste mundo,
mas só contemplaremos o reino intelectual. Não haverá memória da
personalidade, a qual, na visão contemplativa, não percebe a si própria. A alma
se tornará una com o nous, mas não para sua própria destruição: o nous e a alma
individual serão, simultaneamente, dois e um (IV, 4, 2).
Na Quarta Enéacla, que trata da Alma, uma parte, o Tratado Sétimo, é
dedicada à discussão da imortalidade.
O corpo, sendo composto, é claramente não imortal; e se, pois, faz parte de
nós, não somos inteiramente imortais. Mas qual a relação entre a alma e o corpo?
Aristóteles (que não é explicitamente mencionado) disse que a alma era a forma
do corpo, mas Plotino rejeita essa opinião, baseado no argumento de que o ato
intelectual seria impossível se a alma fosse uma forma do corpo. Os estóicos
acham que a alma é imaterial, mas a unidade da alma prova que isto é
impossível. Ademais, já que a matéria é passiva, não pode ter-se criado a si
própria; a matéria não poderia existir se a alma não a houvesse criado e, se a
alma não existisse, a matéria desaparecia num abrir e fechar de olhos. A alma
não é nem a matéria nem a forma de um corpo material, mas Essência, e a
Essência é eterna. Este conceito está implícito no argumento de Platão de que a
alma é imortal porque as idéias são eternas, – mas é somente com Plotino que
isso se torna explícito.
Como entra a alma no corpo, vindo do separado mundo intelectual? A resposta
é: por meio do apetite. Mas o apetite, embora às vezes seja ignóbil, pode ser
relativamente nobre. No que tem de melhor, a alma “deseja elaborar a ordem
segundo o modelo do que viu no Princípio-Intelectual (nous)”. Em outras
palavras, a alma contempla o reino da essência interior, e quer produzir alguma
coisa, tão semelhante a ela quanto possível, que possa ser vista olhando-se de
fora, ao invés de olhada de dentro — como (poderíamos dizer) um compositor
que imagina primeiro a sua música e, depois, deseja ouvi-la executada por uma
orquestra.
Mas este desejo de criar da alma tem resultados infortunados. Enquanto a
alma vive no mundo da essência pura, não está separada de outras almas que
vivem no mesmo mundo; mas logo que se junta a um corpo, tem a tarefa de
governar o que é inferior a si própria e, devido a essa tarefa, vem a separar-se
das outras almas, que tem outros corpos. Exceto em poucos homens e em poucos
momentos, a alma acaba encadeada ao corpo. “O corpo obscurece a verdade,
mas lá {138} tudo permanece claro e separado” (IV, 9, 5).
Esta doutrina, como a de Platão, tem dificuldade em evitar o conceito de que
a criação foi um erro. A alma, em sua melhor forma, contenta-se com o nous, o
mundo da essência; se permanecesse sempre em sua melhor forma, não criaria,
mas apenas contemplaria. Parece que o ato da criação tem de ser executado
tendo por base que o mundo criado, em suas linhas principais, é o melhor dos
mundos logicamente possíveis; mas esta é uma cópia do mundo eterno e, como
tal, possui a beleza que é possível numa cópia. Eis a exposição mais definida do
Tratado sobre os gnósticos (II, 9, 8):
“Perguntar por que a Alma criou o Cosmos, é perguntar por que há uma alma
e por que um Criador cria. A questão, também, supõe um princípio no eterno e,
ainda, representa a criação como o ato de um Ser inconstante que passa disto
para aquilo.
Aqueles que assim pensam deveriam ser instruídos — se pudessem aceitar a
correção — quanto à natureza do Supremo, e levados a desistir dessa blasfêmia
dos poderes augustos que lhes ocorre tão facilmente, onde tudo deveria ser
escrúpulo reverente.
Mesmo na administração do Universo não há base para tal ataque, pois
fornece prova manifesta da grandeza do Gênero Intelectual.
Este Todo que emergiu para a vida não é uma estrutura amorfa — como
aquelas formas menores dentro das quais nasceram a noite e o dia, devido ao que
há de pródigo na sua vitalidade; o Universo é uma vida organizada, efetiva,
complexa, que tudo abrange, e que revela uma insondável sabedoria. Como, pois,
pode alguém negar que é uma imagem nítida, formosamente formada, das
Divindades Intelectuais? É, sem dúvida, uma cópia, e não o original; mas esta é a
sua verdadeira natureza; não pode ser, simultaneamente, símbolo e realidade.
Mas dizer-se que é uma cópia inadequada, é falso; nada foi omitido do que uma
bela representação, dentro da ordem física, poderia incluir.
Deveria haver, necessariamente, uma tal representação — embora não por
deliberação e desígnio — pois o Intelectual não poderia ser a última das coisas,
mas deve ter um duplo Ato, um dentro de si e outro exterior; deve, pois, haver
algo posterior ao Divino; porque só a coisa em que todo poder termina deixa de
passar para baixo algo de si mesmo”.
Esta é talvez a melhor resposta aos gnósticos que os princípios de Plotino
tornam possível. O problema, em linguagem ligeiramente diferente, foi herdado
pelos teólogos cristãos; eles também acharam difícil explicar a criação sem
admitir a conclusão blasfema de que, antes disso, estava faltando algo ao Criador.
Com efeito, sua dificuldade é maior que a de Plotino, pois que ele pode dizer que
a natureza da Mente torna a criação inevitável, ao passo que, para o cristão, o
mundo era um resultado do exercício sem entraves da livre vontade de Deus.
Plotino tem um sentido muito vivido de certa espécie de beleza abstrata. Ao
descrever a posição do Intelecto como intermediário entre o Um e a Alma,
irrompe, de repente, numa passagem de rara eloquência:
O Supremo, em seu progresso, não poderia jamais ter produzido um veículo
sem alma, nem mesmo diretamente sobre a Alma; será anunciado por certa
beleza inefável; antes do Grande Rei em sua marcha vem primeiro o séquito
menor, depois, fileira após fileira, os maiores e mais exaltados e, perto do Rei, os
mais augustos; a seguir, sua própria e honrada companhia, até que, por último,
entre todas essas grandezas, surge subitamente o próprio Monarca Supremo, e
todos — exceto, com efeito, aqueles que se contentaram com o espetáculo antes
de sua chegada e foram embora — se prostram e clamam-no (V, 5, 3).
Há um Tratado sobre a Beleza Intelectual que mostra a mesma espécie de
sentimento (V, 8):
Certamente todos os deuses são augustos e belos, de uma beleza superior à
nossa expressão. E que é que os faz assim? O Intelecto — principalmente o
Intelecto que opera dentro deles (o divino Sol e as estrelas) à nossa vista …
O “viver tranquilo” Lá está; e, para esses seres divinos, a verdade é mãe e
ama, existência e sustentáculo; tudo o que não é processo, mas existência
autêntica, eles veem, como veem a si próprios em tudo; pois tudo é transparente,
nada obscuro, nada resistente; todo ser é lúcido para outro em largura e
profundidade; a luz corre através da luz. E cada um deles contém tudo dentro de
si mesmo e, ao mesmo tempo, vê tudo em todos os outros, de modo que em toda
a parte está tudo, e tudo é tudo em cada tudo, e infinita a glória. Cada um deles é
grande; o pequeno é grande; o Sol, lá, é todas as estrelas; e cada estrela, por sua
vez, é todas as estrelas e o Sol. Embora certas maneiras de ser predominem em
cada um, todos são modelados em cada outro.
Além da imperfeição que o mundo inevitavelmente possui, porque é uma
cópia, há, tanto para Plotino como para os cristãos, o mal mais positivo, resultante
do pecado. O pecado é uma consequência do livre arbítrio, que Plotino sustém
contra os deterministas e, particularmente, contra os astrólogos. Não ousa negar
inteiramente a validade da astrologia, mas procura estabelecer-lhe limites, a fim
de tornar compatível com o livre arbítrio o que permanece. Faz o mesmo com
respeito à magia; o sábio, diz ele, está isento do poder dos mágicos. Porfírio relata
que um filósofo rival tentou lançar feitiços sobre Plotino, mas que, devido à sua
santidade e sabedoria, o feitiço se voltou contra o rival. Porfírio e todos os adeptos
de Plotino são muito mais supersticiosos do que ele. A superstição, nele, é tão
ligeira quanto podia sê-lo naquela época.
Procuremos, agora, resumir os méritos e defeitos da doutrina ensinada por
Plotino e, em geral, aceita pela teologia cristã, enquanto esta permaneceu
sistemática e intelectual.
Há, primeiro e acima de tudo, a construção do que Plotino acreditava ser um
refúgio seguro de ideais e esperanças, e um refúgio que, ademais, envolvia tanto
um esforço moral como intelectual. No século III, e nos séculos posteriores à
invasão dos bárbaros, a civilização ocidental chegou quase à sua destruição total.
Foi uma sorte que, enquanto a teologia foi quase que a única atividade mental
sobrevivente, o sistema que se aceitou não fosse puramente supersticioso, mas
conservasse, embora às vezes profundamente soterradas, doutrinas que
encarnavam muito do trabalho do intelecto grego e muito da devoção moral
comum aos estóicos e aos neoplatônicos. Isto possibilitou o aparecimento da
filosofia escolástica e, mais tarde, com a Renascença, o estímulo derivou do
estudo renovado de Platão e, partindo deste, dos demais filósofos antigos.
Por outro lado, a filosofia de Plotino tem o defeito de induzir os homens a
olhar mais para dentro do que para fora de si próprios; quando olhamos para
dentro, vemos o nous, que é divino, ao passo que, quando olhamos para fora,
vemos as imperfeições do mundo sensível. Esta espécie de subjetividade teve
desenvolvimento gradual; é encontrada nas doutrinas de Protágoras, Sócrates e
Platão, bem como nas dos estóicos e epicuristas. A princípio, porém, foi só
doutrinal, e não temperamental; durante muito tempo não conseguiu destruir a
curiosidade científica. Vimos como Possidônio, cerca do ano 100 A. C., viajou
pela Espanha e pela costa atlântica da África a fim de estudar as marés.
Aos poucos, porém, o subjetivismo invadiu tanto os sentimentos como as
doutrinas dos homens. Já não se cultivava a ciência, e somente a virtude era
considerada importante, A virtude, tal como a concebia Platão, implicava tudo o
que então era possível no campo da realização mental; mas, nos séculos
posteriores, chegou a pensar-se, cada vez mais, que envolvia apenas a vontade
virtuosa, e não o desejo de compreender o mundo físico ou aperfeiçoar o mundo
das instituições humanas. O Cristianismo, em suas doutrinas éticas, não estava
livre deste defeito, embora, na prática, a crença na importância de propagar a fé
cristã haja dado à atividade moral um objetivo praticável, o qual não mais se
limitava ao aperfeiçoamento do ser.
Plotino é tanto um fim como um princípio — um fim, com respeito aos
gregos; um princípio, com relação à Cristandade. Para o mundo antigo, cansado
de séculos de decepções, exausto pelo desespero, sua doutrina podia parecer
aceitável, mas não podia ser estimulante. Para o mundo bárbaro, mais rude, onde
a energia superabundante precisava antes ser refreada e regulada do que
estimulada, foi benéfico o que pôde nele penetrar de seus ensinamentos, já que o
mal a ser combatido não era a languidez, mas a brutalidade. A tarefa de
transmitir o que pôde sobreviver de sua filosofia foi levada a cabo pelos filósofos
cristãos da última época de Roma.
Do Original Inglês:
HISTORY OF WESTERN PHILOSOPHY
Publicado por
George Allen & Unwin Ltd.
LONDRES
Direitos para a língua portuguêsa adquiridos pela
COMPANHIA EDITORA NACIONAL
Rua dos Gusmões, 639 – São Paulo 2, SP
Que se reserva a propriedade desta tradução.
1969
Impresso no Brasil
BIBLIOTECA DO ESPÍRITO MODERNO
FILOSOFIA Série 1. ª*Volume 23-A
HISTÓRIA DA FILOSOFIA OCIDENTAL
Livro Segundo
INTRODUÇÃO
A Filosofia Católica no sentido em que usarei o termo, é a que dominou o
pensamento europeu desde Agostinho até a Renascença. Houve filósofos, antes e
depois desse período de dez séculos, que pertenceram à mesma escola geral.
Antes de Agostinho, foram os primeiros Padres, principalmente Orígenes; depois
da Renascença, houve muitos, incluindo, em nossos dias, todos os professores
ortodoxos católicos de filosofia, que aderem a certo sistema medieval,
particularmente o de Tomás de Aquino. Mas é só desde Agostinho até a
Renascença que os maiores filósofos da época se dedicam a construir ou
aperfeiçoar a síntese católica. Nos séculos cristãos anteriores a Agostinho, os
estóicos e os neoplatônicos sobrepujam os Padres em habilidade filosófica;
depois da Renascença, nenhum dos filósofos preeminentes, mesmo entre os que
eram católicos ortodoxos, se dedicou a levar avante a tradição escolástica ou
agostiniana.
O período de que nos ocuparemos neste livro difere dos primeiros e dos últimos
tempos não apenas na filosofia, mas em muitos outros aspectos. Destes, o mais
notável é o poder da Igreja. A Igreja colocou as crenças religiosas em relação
mais estreita com as circunstâncias sociais e políticas do que a que tinham tido
antes ou depois do período medieval, o qual podemos calcular como datando
desde cerca do ano 400 até o ano 1400 de nossa era. A Igreja é uma instituição
social construída sobre um credo em parte filosófico, em parte relacionado com a
história sagrada. Conseguiu poder e riqueza por meio desse credo. Os governantes
leigos, que se achavam em constante conflito com ela, foram derrotados porque a
grande maioria da população, inclusive a maior parte dos próprios governantes
leigos, estava profundamente convencida da verdade da fé católica. Houve
contradições, a romana e a germânica, contra as quais a Igreja teve de lutar. A
tradição romana era mais forte na Itália, principalmente entre os legisladores; a
tradição germânica era mais forte na aristocracia feudal que surgiu da conquista
dos bárbaros. Mas, durante muitos séculos, nenhuma dessas tradições se mostrou
suficientemente poderosa para gerar uma oposição bem-sucedida à Igreja; e isto
foi devido, em grande parte, ao fato de não estarem elas incorporadas a qualquer
filosofia adequada.
Uma história do pensamento, como esta de que nos ocupamos, é
inevitavelmente unilateral, ao tratar da Idade Média. Com muito poucas
exceções, todos os homens desse período que contribuíram para a vida intelectual
eram eclesiásticos. O Estado secular, na Idade Média, construiu lentamente um
vigoroso sistema político e econômico, mas suas atividades eram, em certo
sentido, cegas. Houve, no fim da Idade Média, uma importante literatura leiga,
muito diferente da literatura da Igreja; numa história geral essa literatura exigiria
maior consideração do que a qual requer uma história no pensamento filosófico.
Só ao chegar a Dante é que encontramos um leigo escrevendo com pleno
conhecimento da filosofia eclesiástica de sua época. Até o século catorze, os
eclesiásticos tiveram um monopólio virtual da filosofia, e esta, por conseguinte, é
escrita do ponto de vista da Igreja. Por essa razão, o pensamento medieval não
pode tornar-se inteligível sem um relato bastante extenso do desenvolvimento das
instituições eclesiásticas e, especialmente, do papado.
O mundo medieval, em contraste com o mundo da antiguidade, caracteriza-se
por várias formas de dualismo. Há o dualismo do clero e o secular, o dualismo do
latino e o teutônico, o dualismo do reino de Deus e os reinos deste mundo, o
dualismo do espírito e a carne. Todos estes estão exemplificados no dualismo do
Papa e o Imperador. O dualismo do latino e o teutônico é uma consequência da
invasão dos bárbaros, mas os outros tem origens mais antigas. As relações entre o
clero e o estado secular na Idade Média iriam ter por modelo as relações entre
Samuel e Saul; a demanda pela supremacia do clero surgiu do período dos
imperadores e reis arianos ou semi-arianos. O dualismo entre o reino de Deus e os
reinos deste mundo é encontrado no Novo Testamento, mas foi sistematizado na
Cidade de Deus, de Santo Agostinho. O dualismo entre o espírito e a carne é
encontrado em Platão, e foi ressaltado pelos neoplatônicos; é importante nos
ensinamentos de São Paulo; e dominou o acetismo cristão dos séculos IV e V.
A filosofia católica divide-se em dois períodos na era do obscurantismo, durante
a qual, na Europa ocidental, a atividade intelectual foi quase inexistente. Desde a
conversão de Constantino até a morte de Boécio, o pensamento dos filósofos
cristãos acha-se ainda dominado pelo Império Romano, quer como atualidade,
quer como memória recente. Os bárbaros, nesse período, são considerados
apenas como um estorvo, e não como uma parte independente da Cristandade.
Existe ainda uma comunidade civilizada, na qual os indivíduos acomodados sabem
ler e escrever e um filósofo tem de apelar tanto ao Estado secular como ao clero.
Entre este período e a idade do obscurantismo, em fins do século VI, está Gregário
o Grande, que se considera a si próprio súdito do imperador bizantino, mas é altivo
em sua atitude para com os reis bárbaros. Depois dessa época, por toda a
Cristandade ocidental, a separação entre o clero e o estado secular se torna cada
vez mais acentuada. A aristocracia secular cria o sistema feudal, que refreia
ligeiramente a predominante e turbulenta anarquia; a humildade cristã é pregada
pelo clero, mas praticada somente pelas classes inferiores; o orgulho pagão
revela-se no duelo, no julgamento por combate, no torneio e na vingança pessoal,
coisas que desagradam à Igreja, mas que esta não pode impedir. Com grande
dificuldade, a partir do século XI, a Igreja consegue emancipar-se da aristocracia
feudal, e essa emancipação é uma das causas do ressurgimento da Europa,
mergulhada na era do obscurantismo.
O primeiro grande período da filosofia católica foi dominado por Santo
Agostinho, e por Platão entre os pagãos. O segundo período culmina em Santo
Tomás de Aquino, para quem — bem como para seus sucessores — Aristóteles
sobrepuja Platão. O dualismo da A Cidade de Deus, porém, sobrevive em plena
força. A Igreja representa a Cidade de Deus e os filósofos políticos defendem os
interesses da Igreja. A filosofia estava interessada em defender a fé e invocava a
razão para proporcionar-lhe argumentos contra aqueles que, como os
maometanos, não aceitavam a validez da revelação cristã. Mediante essa
invocação da razão, os filósofos desafiaram a crítica, não simplesmente como
teólogos, mas como criadores de sistemas destinados a apelar aos homens,
quaisquer que fossem os seus credos. Afinal de contas, o apelo à razão talvez fosse
um erro, mas, no século XIII, parecia constituir grande êxito.
A síntese do século XIII, que tinha um ar de perfeição e finalidade, foi destruída
por diversas causas. Destas, talvez a mais importante haja sido o desenvolvimento
de uma rica classe comercial, primeiro na Itália e depois em outros lugares. A
aristocracia feudal, em geral, fora ignorante, estúpida e bárbara; a gente comum
havia tomado o partido da Igreja, como superior à nobreza em inteligência, na
moralidade e na capacidade para combater a anarquia. Mas a nova classe
comercial era tão inteligente quanto o clero, tão bem informada em assuntos
mundanos, mais capaz de lidar com os nobres e mais aceitável, para as classes
inferiores urbanas, como campeã da liberdade civil. As tendências democráticas
vieram à tona e, após ajudarem o Papa a vencer o Imperador, empreenderam a
tarefa de emancipar a vida econômica do controle eclesiástico.
Outra causa do fim da Idade Média foi o advento de fortes monarquias
nacionais na França, Inglaterra e Espanha. Havendo suprimido a anarquia
interna, e aliando-se aos mercadores ricos contra a aristocracia, os reis, depois de
meados do século XV, estavam suficientemente fortes para lutar contra o Papa no
interesse nacional.
O papado, entrementes, perdera o prestigio moral de que desfrutara e que, de
modo geral, merecera, nos séculos XI, XII e XIII. Primeiro por subserviência à
França durante o período em que os papas viveram em Avinhão e, depois, devido
ao Grande Cisma, persuadiram o mundo ocidental, sem o pretender, de que uma
autocracia papal desenfreada não era possível nem desejável. No século XV, sua
posição como dirigentes da Cristandade ficou subordinada, na prática, à sua
posição de príncipes italianos, envolvidos no jogo complexo e inescrupuloso dos
poderes políticos italianos.
E, assim, a Renascença e a Reforma romperam a síntese medieval, que não
havia ainda sido sucedida por nada tão metódico e aparentemente tão completo. O
desenvolvimento e a decadência dessa síntese é o assunto do livro II.
O estado de espírito dos homens de pensamento, durante todo esse período, foi
de profunda infelicidade com relação aos assuntos deste mundo, somente
suportável pela esperança de um mundo melhor depois desta vida. Essa
infelicidade era um reflexo do que estava acontecendo em toda a Europa
ocidental. O século III foi um período desastroso, em que o nível geral de bemestar se viu grandemente diminuído. Após um intervalo de calma durante o século
IV, o V trouxe consigo a extinção do Império ocidental e o estabelecimento dos
bárbaros por quase todo o seu antigo território. Os ricos urbanos e cultos, dos
quais dependia a última civilização romana, foram, em sua grande maioria,
reduzidos à condição de refugiados destituídos de meios; o resto passou a viver em
suas propriedades rurais. Novos choques continuaram a ocorrer até cerca do ano
1000 de nossa era, sem espaços suficientes para que se pudesse respirar e
empreender uma reconstrução. As guerras de bizantinos e lombardos destruíram
quase tudo que restava da civilização da Itália. Os árabes conquistaram a maior
parte do território do Império oriental, estabeleceram-se na África e na Espanha,
ameaçaram a França e, mesmo, em certa ocasião, saquearam Roma. Os
dinamarqueses e normandos causaram devastações na França, na Inglaterra, na
Sicília e na Itália meridional. A vida, durante esses séculos, era precária e cheia
de agruras. Má como era na realidade, as superstições tenebrosas tornaram-na
ainda pior. Pensava-se que a grande maioria, mesmo de cristãos, iria para o
inferno. A todo momento, os homens sentiam-se tomados de espíritos maus e
expostos às maquinações de bruxas e feiticeiros. Nenhum gozo da vida era
possível, exceto, em momentos afortunados, àqueles que conservavam a
inconsciência das crianças. A miséria geral aumentou a intensidade do sentimento
religioso. A vida do bom aqui embaixo era uma peregrinação à cidade celestial;
nada de valor era possível no mundo sublunar, exceto a firme virtude que
conduziria, no fim, à bem-aventurança eterna. Os gregos, em seus grandes dias,
haviam encontrado alegria e beleza no mundo cotidiano. Empédocles,
apostrofando a seus concidadãos, diz: Amigos que habitais a grande cidade que se
defronta com o rochedo amarelo de Acragas, por sobre a cidadela, empenhados
em boas obras, porto de honra para o forasteiro, homens não adestrados na
mesquinhez, saúdo-vos a todos! Em épocas posteriores, até a Renascença, os
homens não gozavam de uma felicidade tão simples no mundo visível, mas
voltavam suas esperanças para o invisível. Acragas foi substituída em seu amor
por Jerusalém, a Dourada. Quando a felicidade terrena por fim retornou, a
intensidade do anseio pelo outro mundo se tornou, gradualmente, menor. Os
homens empregavam as mesmas palavras, mas com uma sinceridade menos
profunda.
No intento de tornar a gênese e a significação da filosofia católica inteligíveis,
achei necessário dedicar mais espaço à história geral do que o que se exige em
relação com a filosofia antiga ou moderna. A filosofia católica é, essencialmente, a
filosofia de uma instituição, isto é, a Igreja Católica; a filosofia moderna, mesmo
quando está longe de ser ortodoxa, ocupa-se em grande parte de problemas,
principalmente na ética e na teoria política, que se derivam dos conceitos cristãos
da lei moral e das doutrinas católicas quanto ás relações entre a Igreja e o Estado.
No paganismo greco-romano não há uma dupla lealdade como essa que o cristão,
desde o começo, devia a Deus e a César ou, em termos políticos, à Igreja e ao
Estado.
Os problemas criados por essa dupla lealdade eram, em sua maior parte,
elaborados, na prática, antes que os filósofos fornecessem a teoria necessária.
Nesse processo, houve duas fases bastante distintas: uma, antes da queda do
Império ocidental, e a outra depois dela. A prática de uma longa fila de bispos,
culminando em Santo Ambrósio, forneceu a base para a filosofia política de Santo
Agostinho. Depois veio a invasão dos bárbaros, seguida de um longo tempo de
confusão e de crescente ignorância. Entre Boécio e Santo Anselmo, num período
de mais de cinco séculos, há apenas um filósofo eminente, Johannes Scotus, o
qual, como irlandês, havia escapado aos vários processos que estavam modelando
o resto do mundo ocidental. Mas esse período, apesar da ausência de filósofos, não
deixou de ter certo desenvolvimento intelectual. O caos suscitou problemas
práticos urgentes, que foram tratados por meio de instituições e maneiras de
pensar que dominaram a filosofia escolástica e que são, ainda hoje, grandemente
importantes. Essas instituições e maneiras de pensar não foram apresentadas ao
mundo pelos teóricos, mas por homens práticos na tensão do conflito. A reforma
moral da Igreja no século XI, que foi o prelúdio imediato da filosofia escolástica,
foi uma reação contra a crescente absorção da Igreja no sistema feudal. Para
compreender os escolásticos, precisamos compreender Hildebrando, e para
compreender Hildebrando precisamos conhecer alguns dos males contra os quais
ele lutou. Tampouco podemos ignorar a fundação do Sacro Império Romano e seus
efeitos sobre o pensamento europeu.
Por estas razões, o leitor encontrará, nas páginas seguintes, uma história
eclesiástica e política um tanto extensa, cuja importância, no desenvolvimento do
pensamento filosófico, talvez não seja imediatamente evidente. Mas é muito
necessário relatar-se algo dessa história, pois que o período em apreço é não só
bastante obscuro, como, também, nada familiar a muitos que conhecem bem tanto
a história antiga como moderna. Poucos filósofos técnicos tiveram tanta influência
sobre o pensamento filosófico como Santo Ambrósio, Carlos Magno e Hildebrando.
Relatar o essencial a respeito desses homens e das épocas em que viveram é, pois,
indispensável em qualquer exposição adequada de nosso tema.
LIVRO SEGUNDO
A Filosofia – Católica
PRIMEIRA PARTE – OS PADRES DA IGREJA
CAPÍTULO I
O DESENVOLVIMENTO RELIGIOSO DOS JUDEUS
A RELIGIÃO CRISTÃ, ao passar das mãos do último Império Romano aos
bárbaros, consistia de três elementos: primeiro, de certas crenças filosóficas,
derivadas, principalmente, de Platão e dos neoplatônicos, mas também, em
parte, dos estóicos; segundo, de uma concepção da moral e da história derivada
dos judeus; e, terceiro, de certas teorias, principalmente as da salvação as quais
eram, em conjunto, novas no Cristianismo, embora, em parte, remontassem ao
orfismo e aos cultos afins do Oriente Próximo.
Os elementos judeus mais importantes do Cristianismo, parece-me, são os
seguintes:
1. Uma história sagrada que começa com a criação,
conducente a uma consumação no futuro e justificativa da
conduta de Deus para com o homem.
2. A existência de um pequeno setor do gênero humano a
quem Deus ama particularmente. Para os judeus, este setor
era o Povo Escolhido; para os cristãos, o eleito.
3. Uma nova concepção de « justiça» . A virtude da caridade,
por exemplo, foi tomada pelo Cristianismo ao último
judaísmo. A importância atribuída ao batismo talvez derive
do orfismo ou de religiões pagãs orientais de mistérios, mas
a filantropia prática, como elemento da concepção cristã de
virtude, parece haver procedido dos judeus.
4. A Lei. Os cristãos conservaram parte da Lei Hebraica,
como, por exemplo, o Decálogo, embora haja rejeitado seu
cerimonial e as partes rituais. Mas, na prática, vincularam
ao Credo muitos dos mesmos sentimentos que os judeus
vinculavam à Lei. Isto implicava a doutrina de que a crença
correta é pelo menos tão importante quanto a ação virtuosa,
doutrina essencialmente helênica. O que é de origem
judaica é a exclusividade do eleito.
5. O Messias. Os judeus acreditavam que o Messias lhes traria
prosperidade temporal e vitória sobre seus inimigos aqui na
Terra; continuava ele, além disso, existindo no futuro. Para
os cristãos, o Messias era o Jesus histórico, também
identificado com o Logos da filosofia grega; e não era sobre
a Terra, mas no céu, que o Messias permitiria que seus
adeptos triunfassem sobre seus inimigos.
6. O Reino do Céu. O conceito do outro mundo é uma
concepção de que tanto os judeus como os cristãos
compartilham, em certo sentido, como o platonismo
posterior, mas que tomou, com eles, uma forma muito mais
concreta do que entre os filósofos gregos. A doutrina
grega — encontrada em grande parte da filosofia cristã,
mas não no Cristianismo popular — era a de que o mundo
sensível, no espaço e no tempo, é uma ilusão, e que,
mediante disciplina moral e intelectual, o homem pode
aprender a viver no mundo eterno, que é o único real. A
doutrina judaica e cristã, por outro lado, concebe o Outro
Mundo não como metafisicamente diferente deste mundo,
mas colocado no futuro, quando o virtuoso gozará de eterna
bem-aventurança e o mau sofrerá eterno tormento. Esta
crença encerrava a psicologia da vingança e era inteligível a
toda a gente, como o não eram as doutrinas dos filósofos
gregos.
Para compreender-se a origem dessas crenças, devemos levar em conta
certos fatos da história judaica, para os quais voltaremos agora a nossa atenção.
A história primitiva dos israelitas não pode ser confirmada por qualquer outra
fonte fora do Antigo Testamento, e é impossível saber-se em que ponto deixa de
ser puramente legendária. Davi e Salomão podem ser aceitos como reis que
tiveram, provavelmente, existência real, mas nos primeiros pontos a que
chegamos a algo certamente histórico há já dois reinos, Israel e Judá. A primeira
pessoa citada no Antigo Testamento da qual existe um registro independente é
Acab, rei de Israel, de quem se fala numa carta assíria de 853 A. C. Os assírios
conquistaram, finalmente, o reino setentrional em 722 A. C., removendo grande
parte da população. Depois dessa época, o reino da Judá só conservou a religião e
a tradição israelitas. O reino da Judá sobreviveu por pouco tempo aos assírios,
cujo poder chegou ao fim com a captura de Nínive pelos babilônios e medos no
ano 606 A. C. Em 586, porém, Nabucodonosor conquistou Jerusalém, destruiu o
Templo e removeu uma grande parte da população para Babilônia. O reino
babilônico caiu em 538 A. C., quando Babilônia foi capturada por Ciro, rei dos
medos e dos persas. Ciro, em 537 A. C., publicou um edito permitindo a volta dos
judeus à Palestina. Muitos deles o fizeram, sob o mando de Nehemias e Esdras; o
Templo foi reconstruído e a ortodoxia cristã começou a cristalizar-se.
No período de cativeiro e, durante algum tempo, antes e depois desse período,
a religião judaica passou por desenvolvimento bastante importante. Parece não
ter havido, em sua origem, grande diferença, do ponto de vista religioso, entre os
israelitas e as tribos adjacentes. Jeová era, a princípio, apenas um deus tribal que
favorecia os filhos de Israel, mas não se negava que havia outros deuses e que
seu culto era habitual. Quando o primeiro mandamento diz: « Não terás outro
Deus senão eu» , está dizendo algo que era uma inovação no tempo
imediatamente anterior ao cativeiro. Isto é evidente através de diversos textos dos
primeiros profetas. Foram os profetas dessa época que ensinaram, pela primeira
vez, que a adoração dos deuses pagãos era pecado. Para se conseguir a vitória
nas constantes guerras daquele tempo, proclamavam essencial o favor de Jeová;
e Jeová retiraria seu favor, se outros deuses fossem também venerados. Jeremias
e Ezequiel, principalmente, parecem ter inventado a idéia de que todas as
religiões, exceto uma, eram falsas, e que o Senhor castiga a idolatria.
Algumas citações ilustrarão esses ensinamentos e a preponderância das
práticas pagãs contra as quais protestavam. « Acaso não vês tu o que estes fazem
nas cidades de Judá, e nas praças de Jerusalém? Os filhos ajuntam a lenha, e os
pais acendem o fogo, e as mulheres misturam a manteiga com os mais adjuntos
necessários para fazerem tortas à rainha do céu (Ester), e para sacrificarem a
deuses estranhos, e para me provocarem a ira» .{139} O Senhor está irritado
com isso. « E edificaram os altos de Tofeth, que está no vale do filho de Ennom,
para queimarem no fogo os seus filhos e as suas filhas; o que eu não mandei,
nem pensei no meu coração» .{140}
Há uma passagem muito interessante em Jeremias, na qual denuncia os
judeus no Egito pela sua idolatria. Ele próprio viveu entre eles durante algum
tempo. O profeta diz aos refugiados judeus no Egito que Jeová os destruirá a
todos, porque suas mulheres queimaram incenso a outros deuses. Mas eles se
negam a escutá-lo, dizendo: « Mas pontualmente cumpriremos toda a palavra
que sair da nossa boca, de sacrificarmos à rainha do céu, e de lhe oferecermos
libações, como nós o temos feito, e nossos pais, nossos reis, e nossos príncipes,
nas cidades de Judá e nas praças de Jerusalém; e tivemos fartura de pão, e nos ia
bem, e não vimos mal algum» . Mas Jeremias lhes assegura que Jeová notou
essas práticas idólatras, e que o infortúnio havia chegado por causa delas. « Eis
aqui estou eu que jurei pelo meu grande nome, diz o Senhor, que de nenhum
modo será pronunciado mais o meu nome por boca de nenhum homem judeu
em toda a terra do Egito … Eis aqui estou eu, que vigiarei sobre vós para mal, e
não para bem; e todos os varões de Judá, que há na terra do Egito, perecerão à
espada, e de fome, até que todos sejam consumidos.» {141}
Ezequiel mostra-se igualmente chocado com as práticas idólatras dos judeus.
O Senhor, numa visão, mostra-lhe mulheres, à porta norte do Templo, chorando
por Tammuz (uma deidade babilônica); depois, mostra-lhe « maiores
abominações» , vinte e cinco homens à porta do templo adorando o Sol. O Senhor
declara: « Desafogarei, pois, o meu furor contra ti: e não te poupará o meu olho,
nem me apiedarei de ti: e embora gritem em meus ouvidos com altas vozes, não
os ouvirei.» {142}
A idéia de que todas as religiões, exceto uma, são perversas, e que o Senhor
castiga a idolatria, foi, ao que parece, inventada por esses profetas. Os profetas,
de modo geral, eram nacionalistas ferrenhos, e aguardavam o dia em que o
Senhor destruiria inteiramente os gentios.
O cativeiro prestou-se para justificar as denúncias dos profetas. Se Jeová era
todo-poderoso e os judeus o seu Povo Escolhido, seus sofrimentos só podiam ser
explicados pela sua maldade. A psicologia é a da correção paterna: os judeus
tinham de purificar-se pelo castigo. Sob a influência dessa crença,
desenvolveram, no desterro, uma ortodoxia muito mais rígida e muito mais
nacionalmente exclusiva do que a que havia predominado enquanto eram
independentes. Os judeus que ficaram para trás e não foram transplantados a
Babilônia não experimentaram essa modificação no mesmo grau. Quando
Esdras e Nehemias voltaram para Jerusalém depois do cativeiro, ficaram
escandalizados ao verificar que haviam sido comuns os matrimônios mistos, e
dissolveram todos esses casamentos.{143}
Os judeus distinguiam-se de todas as outras nações da antiguidade pelo seu
inflexível orgulho nacional. Todas as outras, quando conquistadas, aquiesciam
tanto em seu íntimo como exteriormente; somente os judeus conservavam a
crença em sua própria preeminência e a convicção de que seus infortúnios eram
devidos à ira de Deus, porque haviam deixado de conservar a pureza de sua fé e
de seu ritual. Os livros históricos do Antigo Testamento, que foram, em sua
maioria, compilados depois do cativeiro dão uma impressão errônea, já que
sugerem que as práticas idólatras contra as quais os profetas protestaram eram
uma decadência da primitiva severidade, quando, na verdade, a primitiva
severidade jamais existiu. Os profetas eram inovadores, num grau muito maior
do que o que aparece na Bíblia quando não é lida de maneira histórica.
Certas coisas que se tornaram, depois, características da religião judaica, se
desenvolveram, embora provenientes, em parte, de fontes anteriormente
existentes, durante o cativeiro. Devido à destruição do Templo, que era o único
lugar onde podiam oferecer-se sacrifícios, o ritual judaico tornou-se,
forçosamente, privado dos mesmos. As sinagogas começaram nesse tempo, com
leituras das partes das Escrituras já existentes. A importância do Sabá foi
ressaltada, pela primeira vez, nesse período, bem como a circuncisão, como
sendo a marca dos judeus. Como já vimos, foi somente durante o exílio que o
casamento com os gentios passou a ser proibido. Desenvolveu-se toda a forma de
exclusividade. « Eu sou o Senhor vosso Deus, que vos separarei dos outros
povos.» {144} « Sede santos» , porque eu sou santo, o Senhor vosso Deus.» {145}
A Lei é um produto deste período. Foi uma das forças principais que preservaram
a unidade nacional.
O que temos como Livro de Isaías é obra de dois profetas diferentes, um
anterior ao desterro e outro posterior. O segundo destes, que é chamado, pelos
estudantes bíblicos, Déutero Isaías, é o mais notável dos profetas. É o primeiro
que se refere ao Senhor como tendo dito: « Não há outro Deus senão eu»
Acredita na ressurreição do corpo, talvez como resultado da influência persa.
Suas profecias relativas ao Messias foram, mais tarde, os principais textos do
Antigo Testamento utilizados para mostrar que os profetas previram a vinda de
Cristo.
Nos argumentos cristãos destinados tanto aos pagãos como aos judeus, esses
textos de Déutero Isaías desempenharam papel muito importante e, por essa
razão, citarei os mais dignos de nota. Todas as nações serão, no fim, convertidas:
« E julgará as nações, e arguirá muitos povos; e das suas espadas forjarão relhas
de arado, e das lanças foices; não levantará a espada uma nação contra outra
nação, nem daí por diante se adestrarão mais para a guerra» (Isaías, II, 4). « Eis
que uma virgem conceberá, e parirá um filho, e será chamado o seu nome
Emanuel.» {146} (Quanto a este texto, há uma controvérsia entre judeus e
cristãos; os judeus diziam que a tradução correta era « uma jovem mulher
conceberá» , mas os cristãos achavam que os judeus mentiam). « Este povo, que
andava em trevas, viu uma grande luz; aos que habitaram na região da sombra
da morte, lhes nasceu o dia … porquanto já um pequenino se acha nascido para
nós, e um filho nos foi dado a nós; e foi posto o principado sobre o seu ombro; e o
nome com que se apelide será Admirável, Conselheiro, Deus forte, Pai da
eternidade, Príncipe da paz.» {147} A mais profética, ao que parece, dessas
passagens, é o capítulo cinquenta e três, que contém os textos familiares: « Feito
um objeto de desprezo, e o último dos homens, um varão de dores, e
experimentado nos trabalhos … Verdadeiramente ele foi o que tomou sobre si as
nossas fraquezas, e ele mesmo carregou com as nossas dores … Mas ele foi
ferido pelas nossas iniquidades, foi quebrantado pelos nossos crimes; o castigo
que nos devia trazer a paz caiu sobre ele, e nós fomos sarados pelas suas
pisaduras … Ele foi oferecido, porque ele mesmo quis, e não abriu a sua boca;
ele será levado como uma ovelha ao matadouro, e, como um cordeiro diante do
que o tosquia, emudecerá, e não abrirá a sua boca.» A inclusão dos gentios na
saudação última é explícita: « E andarão as gentes na tua luz, e os reis no
esplendor do teu nascimento.» {148}
Depois de Esdras e Nehemias, os judeus desapareceram por um momento da
história. O Estado judeu sobreviveu como teocracia, mas seu território era muito
diminuto — somente uma região de dez ou quinze milhas em torno de Jerusalém,
segundo E. Bevan.{149} Depois de Alexandre, tornou-se um território disputado
entre os ptolomeus e os selêucidas. Isso, no entanto, raramente provocou lutas no
verdadeiro território judeu, deixando os judeus livres, por muito tempo, para
exercer a sua religião.
Suas máximas morais, nesse tempo, são expostas no Eclesiástico, escrito,
provavelmente, cerca do ano 200 A. C. Até recentemente, este livro era
conhecido apenas em tradução grega; essa a razão para que fosse excluído dos
Apócrifos. Mas um manuscrito hebreu foi recentemente descoberto, sob certos
aspectos diferente do texto grego traduzido em nossa versão dos Apócrifos. A
moralidade ensinada é muito mundana. A reputação entre os vizinhos é altamente
louvada. A honestidade constitui a melhor política, pois é útil para que se tenha
Jeová de nosso lado. É recomendada a dádiva de esmolas. O único sinal de
influência grega está no elogio da medicina.
Os escravos não devem ser tratados com demasiada bondade. « A forragem,
o varal e a carga são para o asno; e o pão, o castigo e o trabalho para o criado …
Põe-no a trabalhar, que é o que lhe compete; se ele não for obediente, põe-lhe
grilhões mais pesados» (XXIII, 24, 28). Ao mesmo tempo, lembra-te de que
pagaste um preço por ele, e que se ele fugir perderás o teu dinheiro; isto
estabelece um limite à severidade proveitosa (ibid., 30, 31). As filhas são fontes
de grandes preocupações; ao que parece, durante o tempo em que viveu o
escritor, eram bastante propensas à imoralidade (XLII, 9-11). Tinha péssima
opinião das mulheres: « Das roupas vêm as traças, e das mulheres a maldade»
(ibid., 13). É um erro sermos joviais com nossos filhos; o caminho reto é
« dobrar-lhes o pescoço desde a juventude» (VII, 23, 24).
De um modo geral, como o velho Catão, representa ele a moralidade do
homem de negócios virtuoso, sob uma luz muito pouco atraente.
Essa tranquila existência de cômoda virtude foi interrompida bruscamente
pelo rei selêucida Antíoco IV, que estava resolvido a helenizar todos os seus
domínios. Em 175 A. C., estabeleceu um ginásio em Jerusalém, e ensinou os
jovens a usar gorros gregos e a praticar o atletismo. Foi ajudado nisso por um
judeu helenizado chamado Jasão, ao qual fez alto sacerdote. A aristocracia
sacerdotal tornar-se frouxa, sentindo-se atraída pela civilização grega; mas havia
um partido que se lhe opunha com veemência, chamado « Hasidim» (que
significa « Santo» ), e que era forte entre a população rural.{150} Quando, em
170 A. C., Antíoco se envolveu em guerra com o Egito, os judeus se rebelaram.
Diante disso, Antíoco retirou os vasos santos do Templo e colocou nele a imagem
de Deus. Identificava Jeová com Zeus, seguindo uma prática que fora bemsucedida em todos os outros lugares.{151} Resolveu extirpar a religião judaica,
acabando com a circuncisão e com a observância das leis relativas aos
alimentos. A tudo isso Jerusalém se submeteu, mas, fora de Jerusalém, os judeus
resistiram com a máxima obstinação.
A história desse período é contada no Primeiro Livro dos Macabeus. O
primeiro capítulo conta como Antíoco decretou que todos os habitantes do reino
deviam ser um único povo, abandonando suas leis separadas. Todos os pagãos
obedeceram, bem como muitos dos israelitas, embora o rei ordenasse que
deviam profanar o Sabá, sacrificar carne de porco e deixar seus filhos
incircuncisos. Todos os que desobedecessem deviam sofrer pena de morte. Não
obstante, muitos resistiram. « Mataram algumas mulheres que haviam mandado
circuncidar os filhos. E dependuraram as crianças pelos pescoços, e saquearam
as suas casas e mataram aos que os haviam circuncidado. Seja como for, muitos
em Israel estavam decididos e firmes no propósito de não comer nenhuma coisa
impura. Por isso, preferiram antes morrer a manchar-se com os alimentos,
profanando o pacto sagrado: assim, pois, morreram.» {152}
Foi a esse tempo que, entre os judeus, muitos passaram a crer na doutrina da
imortalidade. Pensava-se que a virtude seria recompensada aqui na Terra; mas a
perseguição, que recaiu sobre os mais virtuosos, tornou evidente que esse não era
o caso. A fim de salvaguardar a justiça divina, portanto, era necessário crer-se
nas recompensas e castigos na vida futura. Esta doutrina não era adotada por
todos os judeus; no tempo de Cristo, os saduceus ainda a rejeitavam. Mas, nessa
altura, constituíam um pequeno partido e, em tempos posteriores, todos os judeus
acreditavam na imortalidade.
A revolta contra Antíoco foi chefiada por Judas Macabeu, um hábil
comandante militar que recapturou primeiro Jerusalém (164 A. C.), lançando-se
depois à agressão. Às vezes, matava todos os varões; outras vezes, circuncidavaos à força. Seu irmão Jônatas, que foi feito alto sacerdote, teve permissão para
ocupar Jerusalém com uma guarnição, e conquistou parte da Samaria,
adquirindo Joppa e Acra. Realizou negociações bem sucedidas com Roma,
assegurando completa autonomia. Sua família era de altos sacerdotes até
Herodes, sendo conhecida como a dinastia hasmônia.
Ao suportar e resistir à perseguição, os judeus de então revelaram imenso
heroísmo, embora em defesa de coisas que não nos parecem importantes, tais
como a circuncisão e a proibição de se comer carne de porco.
O tempo da perseguição por Antíoco IV foi crucial na história judaica. Os
judeus da Dispersão estavam, nesse tempo, se tornando cada vez mais
helenizados; os judeus da Judéia eram poucos; e mesmo entre eles os ricos e
poderosos se achavam inclinados a aquiescer às inovações gregas. Não fosse a
heroica resistência do Hasidim, e a religião judaica poderia haver facilmente
perecido. Se isso houvesse acontecido, nem o Cristianismo nem o Islã poderiam
ter existido na forma que realmente tomaram. Townsend, em sua introdução ao
Quarto Livro dos Macabeus, diz:
« Afirmou-se, finalmente, que se o judaísmo, como religião, houvesse
perecido sob o governo de Antíoco, a semente do Cristianismo teria faltado;
assim, pois, o sangue dos mártires macabeus, que salvaram o judaísmo, se
tornou, por fim, a semente da Igreja. Portanto, como não só a Cristandade, mas
também o Islã, derivam seu monoteísmo de uma fonte judaica, pode bem ser
que o mundo de hoje deva a própria existência do monoteísmo, tanto no Oriente
como no Ocidente, aos macabeus.» {153}
Os próprios macabeus, todavia, não eram admirados pelos últimos judeus,
porque sua família, constituída de altos sacerdotes, adotou, depois de seus êxitos,
uma conduta mundana e contemporizadora. A admiração era pelos mártires. O
Quarto Livro dos Macabeus, escrito, provavelmente, em Alexandria, mais ou
menos ao tempo de Cristo, ilustra tanto este como outros pontos interessantes.
Apesar de seu título, não se refere, em parte alguma, aos macabeus, mas relata a
surpreendente fortaleza, primeiro de um velho e, depois, de sete irmãos jovens,
que foram todos torturados e depois queimados por Antíoco, enquanto a mãe, que
se achava presente, os exortava a que se mantivessem firmes. O rei, a princípio,
procurou conquistá-los pela benevolência, dizendo-lhes que, se apenas
consentissem em comer porco, ele os tomaria sob sua proteção, fazendo com
que tivessem êxito em suas carreiras. Quando recusaram, mostrou-lhes os
instrumentos de tortura. Mas eles permaneceram inabaláveis, dizendo-lhe que ele
sofreria tormentos eternos depois da morte, ao passo que eles herdariam para
sempre a bem-aventurança. Um a um, na presença uns dos outros e na de sua
mãe, foram primeiro exortados a comer porco e, quando se negaram, torturados
e mortos. No fim, o rei voltou-se para os soldados e disse-lhes que esperava que
eles aproveitassem aquele exemplo de coragem. O relato é, certamente,
embelezado pela lenda, mas é historicamente verdadeiro que a perseguição foi
severa e suportada com heroísmo — como também que os seus pontos principais
eram a circuncisão e o comer carne de porco.
The Apocrypha and Pseuâepigrapha o) the Old Testament in English, editado
por R. H. Charles, Vol II, p. 659.
Esse livro também é interessante sob outro aspecto. Embora o autor seja,
evidentemente, um judeu ortodoxo, emprega a linguagem da filosofia estóica e
procura provar que os judeus vivem completamente de acordo com os seus
preceitos. O livro começa com a seguinte sentença:
« Filosófica no mais alto grau é a questão que me proponho discutir, isto é, se a
Razão Inspirada tem domínio supremo sobre as paixões e, para a filosofia disso,
suplicaria seriamente a vossa mais viva atenção.»
Os judeus alexandrinos estavam dispostos, na filosofia, a aprender dos gregos,
mas aderiam com extraordinária tenacidade à Lei, principalmente a circuncisão,
a observância do Sabá e a abstinência de carne de porco e outros alimentos
impuros. Desde o tempo de Nehemias até depois da queda de Jerusalém, no ano
70 da nossa era, a importância que atribuíam à Lei aumentou constantemente. Já
não toleravam os profetas que tinham algo de novo a dizer. Aqueles dentre eles
que se sentiam impelidos a escrever no estilo dos profetas pretendiam haver
descoberto um velho livro de Daniel, Salomão ou algum outro antigo de
impecável respeitabilidade. Suas peculiaridades rituais os mantinham unidos
como nação, mas a ênfase quanto à Lei lhes destruiu, gradualmente, a
originalidade, tornando-os extremamente conservadores. Essa rigidez torna
sumamente digna de nota a revolta de São Paulo contra o domínio da Lei.
O Novo Testamento, no entanto, não constitui um começo tão completamente
novo como pode parecer àqueles que nada sabem da literatura judaica no tempo
justamente anterior ao nascimento de Cristo. O fervor profético não estava, de
modo algum, extinto, embora tivesse de adotar o ardil do pseudônimo a fim de
ser ouvido. Do maior interesse, a este respeito, é o Livro de Enoc,{154} obra
composta por vários autores, sendo o primeiro pouco anterior ao tempo dos
macabeus, e o último de cerca do ano 64 A. C. Quase todos se propõem a relatar
visões apocalípticas do patriarca Enoc. É muito importante quanto ao que se
refere ao setor do judaísmo que se voltou para o Cristianismo. Os escritores do
Novo Testamento estão familiarizados com ele; São Judas o considera como
sendo realmente de Enoc. Os primeiros Padres Cristãos, como, por exemplo,
Clemente de Alexandria e Tertuliano, o tratavam como canônico, mas Jerônimo
e Agostinho rejeitaram-no. Caiu, em consequência disso, no esquecimento e
perdeu-se, até que, no começo do século XIX, três de seus manuscritos, em
etiópico, foram encontrados na Abissínia. Desde então, manuscritos de partes
dele foram encontrados em versões gregas e latinas. Parece ter sido escrito,
originalmente, parte em hebraico e parte em aramaico. Seus autores eram
membros do Hasidim, e seus sucessores os fariseus. Denuncia reis e príncipes,
significando a dinastia hasmonia e os saduceus. Influiu na doutrina do Novo
Testamento, principalmente com relação ao Messias, ao Sheol (inferno) e à
demonologia.
O livro consiste de « parábolas» , as quais são mais cósmicas que as do Novo
Testamento. Há visões do céu e do inferno, do Juízo Final e assim por diante;
lembra, nos trechos em que a qualidade literária é boa, os dois primeiros livros do
Paraíso Perdido e, nas partes em que é inferior, os livros proféticos de Blake.
Há uma expansão do Gênese (VI, 2, 4) que é curiosa e prometeica. Os anjos
ensinaram aos homens metalurgia e foram castigados por revelar « segredos
eternos» . Eram também canibais. Os anjos que haviam pecado se converteram
em deuses pagãos, e suas mulheres em sereias; mas, no fim, foram punidos com
tormentos eternos.
Há descrições do céu e do inferno que tem considerável mérito literário. O
Juízo Final é realizado pelo « Filho do Homem, que tinha justiça» e que está
sentado no trono de Sua glória. Alguns dos gentios, no fim, se arrependerão e
serão perdoados; mas a maior parte dos gentios e dos judeus helenizados sofrerá
condenação eterna, pois os justos suplicarão vingança e as suas preces serão
ouvidas.
Há uma parte sobre astronomia, onde aprendemos que o Sol e a Lua andam
em carros impelidos pelo vento, e que o ano consiste de 364 dias, que os pecados
humanos fazem com que os corpos se afastem de seus caminhos, e que somente
o virtuoso pode conhecer astronomia. As estrelas cadentes são anjos que caem e
são castigados pelos sete arcanjos.
A seguir vem a história sagrada. Até os macabeus, prossegue ela o curso
conhecido da Bíblia em suas partes primitivas e o da história em suas últimas
partes. Depois, o autor penetra no futuro: a Nova Jerusalém, a conversão dos
gentios restantes, a ressurreição dos justos, e o Messias.
Refere-se muito ao castigo dos pecadores e à recompensa dos justos, que
nunca revelaram uma atitude de perdão cristão para com os pecadores. « Que
fareis, ó pecadores, e para onde fugireis no dia do Juízo, quando ouvirdes a voz
dos que suplicam justiça?» « O pecado não foi enviado sobre a Terra, mas o
próprio homem o criou» . Os pecados são recordados no céu. « Vós, pecadores,
sereis para sempre amaldiçoados, e não tereis paz» . Os pecadores podem ser
felizes durante toda a vida e mesmo ao morrer, mas suas almas descerão para o
Sheol, onde sofrerão « a escuridão, e os grilhões, e uma chama abrasadora» .
Quanto aos justos, porém, « Eu e meu Filho estaremos unidos a eles para
sempre» .
As últimas palavras do livro dizem: « Ao fiel, Ele dará fidelidade na morada
dos caminhos retos. E eles verão os que nasceram na escuridão ser conduzidos às
trevas, enquanto os justos serão resplandecentes. E todos os pecadores chorarão
em altos brados e os verão resplendentes, e irão, com efeito, para onde os dias e
as estações lhes estão prescritos.»
Tanto os justos como os cristãos pensavam muito no pecado, mas poucos deles
pensavam em si próprios como pecadores. Isto foi, em sua maior parte, uma
inovação cristã, introduzida pela parábola do fariseu e o publicano, e ensinada
como uma virtude nas denúncias de Cristo com respeito aos escribas e fariseus.
Os cristãos procuravam praticar a humildade cristã; os judeus, em geral, não o
faziam.
Há, no entanto, exceções importantes entre os judeus ortodoxos pouco antes
do tempo de Cristo. Considere-se, por exemplo, « Os Testamentos dos Doze
Patriarcas» , escritos entre 109 e 107 A. C. por um fariseu que admirava João
Hircano, um alto sacerdote da dinastia hasmônia. Este livro, na forma em que o
lemos, contém interpolações cristãs, mas estas dizem respeito ao dogma. Quando
estas são expungidas, os ensinamentos éticos que restam permanecem
estreitamente semelhantes aos dos Evangelhos. Como o disse o Reverendo Dr. R.
H. Charles:
O Sermão da Montanha reflete em vários exemplos, chegando, mesmo, a
reproduzi-las, as próprias frases de nosso texto: muitas passagens nos Evangelhos
revelam traços do mesmo, e São Paulo parece haver usado o livro como um
vade mecum» (op. Cit., pp. 291-2). Encontramos nesse livro preceitos tais como
os seguintes: « Amai-vos uns aos outros de todo coração; se um homem peca
contra ti, fala-lhe pacificamente, e não abrigues falsidade em tua alma; e se ele
se arrepender e confessar, perdoa-lhe. Se ele se negar a fazê-lo, não te
apaixones, para que não apanhe o veneno de ti, torne a blasfemar e, assim, peque
duplamente … E se ele for desavergonhado e persistir em suas más ações, ainda
assim deves perdoá-lo de coração e deixar a Deus a vingança» .
O Dr. Charles é de opinião que Cristo deve ter tido conhecimento dessa
passagem. Encontramos ainda o seguinte:
« Ama o Senhor e a teu próximo» .
« Ama o Senhor durante toda a tua vida, bem como o teu próximo, com o
coração sincero» .
« Eu amo o Senhor, assim como a todo o homem com todo o meu coração» .
Isto deve ser comparado a Mateus (XXII, 37-39). Há uma reprovação de todo
o ódio nos « Testamentos dos Doze Patriarcas» , como, por exemplo:
« A ira é cegueira, e não permite que vejamos com verdade a face de
qualquer outro homem» .
A ira, portanto, é um mal, pois está constantemente ligada à mentira» . O autor
deste livro, como poderia esperar-se, afirma que não apenas os judeus, mas
todos os gentios, serão salvos.
Os cristãos aprenderam nos Evangelhos a pensar mal dos fariseus; no entanto,
o autor deste livro era fariseu e ensina, como vimos, aquelas mesmas máximas
éticas que consideramos como sendo as mais características do ensinamento de
Cristo. A aplicação, porém, não é difícil. Em primeiro lugar, ele deve ter sido, em
sua época, um fariseu excepcional; a doutrina mais comum era, sem dúvida, a
do Livro de Enoc. Em segundo lugar, sabemos que todos os movimentos tendem
a ossificar-se; quem poderia inferir os princípios de Jefferson pelos das Filhas da
Revolução Americana? Em terceiro lugar, sabemos, com respeito aos fariseus
em particular, que sua devoção à Lei, como a verdade absoluta e final, pôs logo
um fim em tudo o que era pensamento e sentimento vivo e espontâneo entre eles.
Como diz o Dr. Charles:
« Quando o farisaísmo, rompendo com os antigos ideais de seu partido, se
entregou a interesses e movimentos políticos e, ao mesmo tempo, se dedicou
mais por completo ao estudo da Lei, deixou logo de oferecer escopo para o
desenvolvimento de um sistema tão elevado de ética como o que os Testamentos
(dos Patriarcas) o atestam, e, assim, os verdadeiros sucessores dos primeiros
hasidas e seus ensinamentos abandonaram o judaísmo e encontraram seu lar
natural no seio do Cristianismo primitivo» .
Depois de um período de governo pelos altos sacerdotes, Marco Antônio fez
de seu amigo Herodes o rei dos judeus. Herodes era um aventureiro jovial,
frequentemente à beira da bancarrota, acostumado à sociedade romana e que
vivia muito distante da piedade judaica. Sua esposa era da família dos altos
sacerdotes, mas ele era idumeu, o que, por si só, já bastaria para torná-lo objeto
de suspeita por parte dos judeus. Era hábil contemporizador, e abandonou
Antônio prontamente, quando se tornou evidente que Otávio iria ser o vencedor.
No entanto, tentou, incansavelmente, reconciliar os judeus com o seu governo.
Reconstruiu o Templo, embora em estilo helenístico, com fileiras de pilares
coríntios; mas colocou sobre a entrada principal uma grande águia de ouro,
infringindo, desse modo, o segundo mandamento. Ao correr o rumor de que ele
estava agonizante, os fariseus arrancaram a águia, mas ele, com vingança, fez
com que muitos deles fossem levados à morte. Morreu em 4 A. C., e logo depois
de sua morte os romanos aboliram o reinado, colocando a Judéia sob o mando de
um procurador. Pôncio Pilatos, que se tornou procurador no ano 26 de nossa era,
carecia de tato, sendo logo retirado.
Em 66 A. D., os judeus, conduzidos pelo partido dos fanáticos, rebelaram-se
contra Roma. Foram vencidos, e Jerusalém foi capturada em 70 A. D. O Templo
foi destruído, e poucos judeus permaneceram na Judéia.
Os judeus da Dispersão tinham-se tornado importantes havia já séculos. Em
sua origem, haviam sido, quase todos, gente que se dedicava à agricultura, mas
aprenderam a traficar com os babilônios, durante o cativeiro. Muitos deles
permaneceram em Babilônia depois do tempo de Esdras e Nehemias e, entre
estes, alguns eram muito ricos. Depois da fundação de Alexandria, grande
número de judeus estabeleceu-se nessa cidade; tinham um bairro especial
destinado a eles, não como um ghetto, mas com a finalidade de mantê-los livres
do perigo de contaminação devido ao contato com os gentios. Os judeus
alexandrinos tornaram-se muito mais helenizados do que os da Judéia e
esqueceram o idioma hebraico. Por essa razão, foi necessário traduzir para grego
o Antigo Testamento; o resultado foi a Septuaginta. O Pentateuco foi traduzido em
meados do século III A. C.; as outras partes um pouco mais tarde.
Surgiram lendas em torno da Septuaginta, assim chamada por ter sido obra de
setenta tradutores. Dizia-se que cada um dos setenta traduzira a obra toda
independentemente e que, quando as versões foram comparadas, se verificou
que eram idênticas até mesmo nos mais insignificantes pormenores, pois que
todas haviam sido feitas por inspiração divina. Não obstante, os eruditos
posteriores mostraram que a Septuaginta continha erros graves. Os judeus, depois
do advento do Cristianismo, fizeram pouco uso dela, voltando a ler o Antigo
Testamento em hebraico. Os primeiros cristãos, poucos dos quais sabiam o
hebraico, dependiam, pelo contrário, da Septuaginta, ou de traduções latinas da
mesma. Um texto melhor foi produzido, devido ao trabalho de Orígenes, no
século III, mas os que só conheciam o latim tiveram versões muito defeituosas
até que Jerônimo, no século V, produziu a Vulgata. Esta foi, a princípio, muito
criticada, pois os judeus haviam ajudado a estabelecer o texto, e muitos cristãos
achavam que os judeus haviam, deliberadamente, falsificado os profetas, a fim
de que não parecessem haver profetizado a vinda de Cristo. Aos poucos, porém,
a obra de São Jerônimo foi aceita, e permanece até hoje como obra autorizada
da Igreja Católica.
O filósofo Filo, que foi contemporâneo de Cristo, é a melhor ilustração da
influência grega sobre os judeus na esfera do pensamento. Embora ortodoxo na
religião, Filo é, primariamente, na filosofia, um platônico; outras influências
importantes são as dos estóicos e neopitagóricos. Conquanto sua influência entre
os judeus haja cessado depois da queda de Jerusalém, os Padres Cristãos viram
que ele havia mostrado a maneira de reconciliar a filosofia grega com a
aceitação das Escrituras Hebraicas.
Em toda cidade importante da antiguidade chegou a haver colônias
consideráveis de judeus, que compartilhavam, com os representantes de outras
religiões orientais, de uma influência sobre aqueles que não estavam satisfeitos
nem com o ceticismo, nem com as religiões oficiais da Grécia e de Roma.
Foram muitas as conversões ao judaísmo, não apenas no Império, como,
também, no sul da Rússia. Foi provavelmente, aos círculos judeus e semi-judeus
que o Cristianismo primeiro apelou. O judaísmo ortodoxo, no entanto, se tornou
mais ortodoxo e mais estreito depois da queda de Jerusalém, exatamente como
havia feito depois da primeira queda devida a Nabucodonosor. Depois do
primeiro século, o Cristianismo também se cristalizou, e as relações entre o
judaísmo e o Cristianismo foram completamente hostis e exteriores; como
veremos, o Cristianismo estimulou poderosamente o antissemitismo. Durante
toda a Idade Média, os judeus não participaram da cultura dos países cristãos,
tendo sido perseguidos com excessiva severidade para que pudessem contribuir
para a civilização, além de fornecer capital para a construção de catedrais e
outros empreendimentos semelhantes. Foi só entre os maometanos, nesse
período, que os judeus foram tratados com humanidade, podendo dedicar-se à
filosofia e à especulação esclarecida.
Durante toda a Idade Média, os maometanos foram mais civilizados e mais
humanos do que os cristãos. Os cristãos perseguiram os judeus, principalmente
nos tempos de exaltação religiosa; as Cruzadas estiveram associadas a espantosos
pogroms. Nos países maometanos, pelo contrário, os judeus, em quase todos os
tempos, não foram maltratados de forma alguma. Na Espanha mourisca,
particularmente, contribuíram para a cultura; Maimônides (1135-1204), que
nascera em Córdoba, é considerado por alguns como sendo a fonte de grande
parte da filosofia de Spinoza. Quando os cristãos reconquistaram a Espanha,
foram os judeus que, em grande parte, lhes transmitiram os ensinamentos dos
mouros. Os judeus cultos, que sabiam hebraico, grego e árabe, e tinham
conhecimento da filosofia de Aristóteles, transmitiram seu conhecimento a
eruditos menos cultos. Transmitiram também coisas menos desejáveis, tais como
a alquimia e a astrologia.
Depois da Idade Média, os judeus ainda contribuíram muito para a civilização
como indivíduos, mas não mais como raça.
CAPÍTULO II
O CRISTIANISMO DURANTE OS QUATRO PRIMEIROS SÉCULOS
O CRISTIANISMO, a princípio, foi pregado de judeus para judeus, como um
judaísmo reformado. São Tiago e, em menor grau, São Pedro queriam que ele
permanecesse exatamente assim, e teriam prevalecido, se não fosse por São
Paulo, que estava resolvido a admitir os gentios, sem exigir a circuncisão ou a
submissão à Lei Mosaica. A pugna entre as duas facções é relatada nos Atos dos
Apóstolos, do ponto de vista paulino. As comunidades de cristãos que São Paulo
estabeleceu em muitos lugares eram, sem dúvida, constituídas em parte de
judeus convertidos e, em parte, de gentios que procuravam uma nova religião.
As certezas do judaísmo tornavam-no sedutor, numa época, de fé dissolvente,
mas a circuncisão era um obstáculo à conversão dos homens. As leis rituais
relativas aos alimentos eram também inconvenientes. Esses dois obstáculos,
mesmo que não houvesse outros, teriam tornado impossível à religião hebraica
fazer-se universal. O Cristianismo, devido a São Paulo, conservou o que havia de
atraente nas doutrinas dos judeus, sem os traços que os gentios achavam difícil
assimilar.
O conceito de que os judeus eram o Povo Escolhido continuou, no entanto, a
ser ofensivo ao orgulho dos gregos. Este conceito foi radicalmente rejeitado pelos
gnósticos. Eles, ou pelo menos alguns deles, afirmavam que o mundo sensível
havia sido criado por uma deidade inferior chamada Ialdabaoth, o filho rebelde
de Sofia (a sabedoria celestial). Ele, diziam, é o Jeová do Antigo Testamento
enquanto que a serpente, longe de ser má, estava empenhada em chamar a
atenção de Eva para as decepções dele. Por muito tempo, a deidade suprema
permitiu que Ialdabaoth agisse à vontade; por fim, Ele enviou Seu filho, a fim de
que habitasse, temporariamente, o corpo do homem Jesus e libertasse o mundo
dos falsos ensinamentos de Moisés. Aqueles que defendiam este ponto de vista,
ou algo semelhante, combinavam o mesmo, em geral, com uma filosofia
platônica; Plotino, como vimos, encontrou certa dificuldade em refutá-lo. O
gnosticismo apresentava um termo médio entre o paganismo filosófico e o
Cristianismo, pois, enquanto honrava a Cristo, pensava mal dos judeus. O mesmo
aconteceu, mais tarde, com o maniqueísmo, através do qual Santo Agostinho
chegou à Fé Católica. O maniqueísmo combinava elementos cristãos e
zoroástricos, ensinando que o mal é um princípio positivo, incorporado na
matéria, enquanto que o bem é um princípio positivo, incorporado no espírito.
Condenava que se comesse carne e tudo o que dizia respeito ao sexo, mesmo no
casamento. Estas doutrinas intermediárias ajudaram muito a conversão gradual
dos homens cultos de língua grega; mas o Novo Testamento adverte os crentes
verdadeiros contra elas: ó Timóteo, guarda o depósito, evitando as profanas
novidades de palavras e as contradições de uma ciência (o gnosticismo) de nome
falso, da qual, fazendo alguns profissão, descaíram da fé» .{155}
Os gnósticos e maniqueístas continuaram a florescer até que o governo se
tornou cristão. Depois desse tempo, foram levados a ocultar as suas crenças, mas
ainda exerciam uma influência subterrânea. Uma das doutrinas de uma certa
seita de gnósticos foi adotada por Maomé. Ensinava que Jesus era um simples
homem, e que o Filho de Deus desceu sobre ele no batismo e o abandonou
durante a Paixão. Em apoio dessa opinião, apelavam para o texto: « Deus meu,
Deus meus, por que me desamparaste?» {156} — texto que, é preciso confessar,
os cristãos sempre acharam difícil. Os gnósticos consideravam indigno do Filho
de Deus haver nascido, ter sido criança e, sobretudo, ter morrido na cruz; diziam
que tais coisas haviam acontecido ao homem Jesus, mas não ao divino Filho de
Deus. Maomé, que reconheceu Jesus como profeta, embora não como divino,
tinha o forte sentimento de classe de que os profetas não deviam chegar a um
mau fim. Adotou, portanto, o ponto de vista dos céticos (uma seita gnóstica),
segundo a qual era um simples fantasma o que se dependurou da cruz, diante do
qual, impotentes e ignorantes, os judeus e os romanos satisfizeram sua ineficaz
vingança. Desse modo, algo do gnosticismo passou para a doutrina ortodoxa do
Islã.
A atitude dos cristãos para com os judeus seus contemporâneos se tornou logo
hostil. A opinião aceita era a de que Deus falara aos patriarcas e profetas, que
eram homens santos e haviam predito o advento de Cristo; mas quando Cristo
veio, os judeus deixaram de reconhecê-lo, tendo, desde então, de ser
considerados como maus. Além disso, Cristo anula a Lei Mosaica, substituindo os
dois mandamentos de amor a Deus e ao próximo; também isso, os judeus,
perversamente, deixaram de reconhecer. Logo que o Estado se tornou cristão, o
antissemitismo, em sua forma medieval, começou, nominalmente, como uma
manifestação de zelo cristão. Até que ponto os motivos econômicos, pelos quais
foi ele inflamado em épocas posteriores, agiram no Império cristão, é coisa que
parece impossível estabelecer-se.
À medida que o Cristianismo se ia helenizando, ia-se tornando teológico. A
teologia judaica sempre foi simples. Jeová, de deidade tribal que era, passou a
ser o único Deus onipotente que criou o céu e a terra; a justiça divina, quando se
viu que não conferia prosperidade terrena aos virtuosos, foi transferida para o
céu, o que implicava a crença na imortalidade. Mas, em toda a sua evolução, o
credo judaico não envolvia nada de complicado ou metafísico; não tinha
mistérios, e todo judeu podia compreendê-lo.
Essa simplicidade judaica, de um modo geral, ainda caracteriza os
Evangelhos sinópticos (Mateus, Marcos e Lucas), mas já desapareceu em João
onde Cristo é identificado com o Logos platônico-estóico. É menos o Cristo
homem que o Cristo figura teológica o que interessa ao quarto evangelista. Isto é
ainda mais verdade quanto ao que diz respeito aos Padres; encontrar-se-á em
seus escritos um número muito maior de alusões a São João do que aos outros
três evangelhos reunidos. As epístolas paulinas também contém muita teologia,
principalmente com respeito à salvação; mostram, ao mesmo tempo,
considerável conhecimento de cultura grega: uma citação de Menandro, uma
alusão a Epimênides o cretense, que disse que todos os cretenses são mentirosos,
e assim por diante. Não obstante, São Paulo{157} diz: « Guarda-te, para que
nenhum homem te despoje pela filosofia e pelo vão engano» .
A síntese da filosofia grega e das escrituras hebraicas permaneceu mais ou
menos acidental e fragmentária até o tempo de Orígenes (185-254 A. D.).
Orígenes, como Platão, vivia em Alexandria, que, devido ao comércio e à sua
universidade, foi, desde sua fundação até sua queda, o centro principal do
sincretismo culto. Como seu contemporâneo Plotino, foi aluno de Ammonio
Sacas, considerado por muitos como o fundador do neoplatonismo. Suas
doutrinas, expostas na obra De Principiis, tem muita afinidade com as de
Plotino — mais, com efeito, do que é compatível com a ortodoxia.
Não há nada, diz Orígenes, completamente incorpóreo, exceto Deus — Pai,
Filho e Espírito Santo. As estrelas são seres vivos racionais, aos quais Deus deu
almas que já existiam. O Sol, pensa ele, pode pecar. As almas dos homens, como
ensinou Platão, vêm a eles, de alguma parte, ao nascer, tendo existido sempre
desde a Criação. Nous e alma são distinguidos mais ou menos como em Plotino.
Quando o nous decai, converte-se em alma; a alma, quando virtuosa,
transforma-se em nous. Por último, todos os espíritos se tornaram inteiramente
submissos a Cristo, e serão, então, incorpóreos. Mesmo o demônio se salvará por
fim.
Orígenes, apesar de ser reconhecido como um dos Padres, foi, nos últimos
tempos, condenado, por haver mantido quatro heresias:
1. A preexistência das almas, como Platão ensinou.
2. Que a natureza humana de Cristo, e não apenas a sua
natureza divina, existiu antes da Encarnação.
3. Que, na ressurreição, nossos corpos serão transformados em
corpos absolutamente etéreos.
4. Que todos os homens, e mesmo os demônios, serão, no fim,
salvos.
São Jerônimo, que havia manifestado uma admiração um tanto imprudente
por Orígenes, pelo seu trabalho em estabelecer o texto do Antigo Testamento,
achou prudente, mais tarde, gastar muito tempo no repúdio veemente de seus
erros teológicos.
As aberrações de Orígenes não eram apenas teológicas; foi culpado, em sua
juventude, de um erro irreparável, devido a uma interpretação demasiado literal
do texto: « Porque há castrados, que a si mesmos se castraram por amor do reino
dos céus» . Este método de escapar às tentações da carne, que Orígenes
imprudentemente adotou, havia sido condenado pela Igreja; ademais, tornou-se
inelegível para as ordens santas, embora alguns eclesiásticos pareçam ter
pensado de outra maneira, dando, assim, margem a controvérsias nada
edificantes.
A obra mais extensa de Orígenes é um livro intitulado Contra Celso. Celso era
autor de um livro (hoje perdido) contra o Cristianismo, e Orígenes procurou
responder-lhe ponto por ponto. Celso começa por objetar aos cristãos, por estes
pertencerem a associações ilegais; Orígenes não nega que assim seja, mas
afirma que isso é uma virtude, como o tiranicídio. Ocupa-se, a seguir, do que
constitui, sem dúvida, a base real da aversão ao Cristianismo: o Cristianismo diz
Celso, vem dos judeus, que são bárbaros; e somente os gregos podem extrair
sentido dos ensinamentos dos bárbaros. Orígenes replica que qualquer um que
viesse da filosofia grega para os Evangelhos concluiria que eles são verdadeiros,
e apresenta uma demonstração satisfatória para o intelecto grego. Mais, adiante,
acrescenta: « O Evangelho tem uma demonstração própria, mais divina do que
qualquer uma estabelecida pelos dialéticos gregos. E esse método divino é
chamado pelo apóstolo a « manifestação do Espírito e do poder; do « Espírito» ,
devido a profecias, que são suficientes para produzir fé em quem quer que as
leia, principalmente quanto às coisas que se relacionam com Cristo; e de
« poder» , devido aos signos e maravilhas que devemos crer foram realizados,
tanto baseados em outros fatos como nesses, cujos vestígios se conservam ainda
entre aqueles que norteiam suas vidas de acordo com os preceitos do
Evangelho» .{158}
Esta passagem é interessante, porque mostra, já, o duplo argumento a favor
da crença que caracteriza a filosofia cristã. Por um lado, a razão pura, exercida
corretamente, basta para estabelecer o essencial da fé cristã, ou, mais
especialmente, de Deus, a imortalidade e o livre arbítrio. Por outro lado, porém,
as Escrituras provam não apenas essas partes essenciais em si, mas muito mais; e
a inspiração divina das Escrituras é provada pelo fato de que os profetas
predisseram o advento do Messias, pelos milagres e pelos efeitos benéficos da
crença nas vidas dos que tem fé. Alguns desses argumentos são hoje
considerados extemporâneos, mas o último deles foi ainda empregado por
William James. Todos eles, até a Renascença, foram aceitos por todos os
filósofos cristãos.
Alguns dos argumentos de Orígenes são curiosos. Diz ele que os mágicos
invocam o « Deus de Abraão» sem que saibam, amiúde, quem é Ele; mas, ao
que parece, tal invocação é particularmente poderosa. Os nomes são essenciais
na magia; não é diferente que se chame a Deus pelo Seu nome judaico, egípcio,
babilônio, grego ou brâmane. A fórmula mágica perde sua eficácia quando
traduzida. Somos levados a supor que os mágicos da época usavam fórmulas de
todas as religiões conhecidas, mas, se Orígenes tem razão, as que se derivavam
de fontes hebraicas eram as mais eficientes. O argumento é tanto mais curioso
quanto ele próprio assinala que Moisés proibiu a feitiçaria.{159}
Os cristãos, segundo somos informados, não deviam participar do governo do
Estado, mas somente da « nação divina» , isto é, a Igreja. Esta doutrina,
certamente, foi um tanto ou quanto modificada depois do tempo de Constantino,
mas algo dela sobreviveu. Está implícita na Cidade de Deus, de Santo Agostinho.
Fez com que os eclesiásticos, ao tempo da queda do Império oriental,
observassem passivamente os desastres seculares, enquanto exerciam seus
talentos, verdadeiramente grandes, na disciplina da Igreja, nas controvérsias
teológicas e na difusão do monasticismo. Há ainda alguns vestígios disso: a
maioria das pessoas considera a política como « mundana» , indigna de um
homem realmente santo.
O governo da Igreja desenvolveu-se lentamente durante os primeiros três
séculos, e rapidamente depois da conversão de Constantino. Os bispos eram
eleitos popularmente; aos poucos, adquiriram considerável poder sobre os
cristãos de suas dioceses, mas antes de Constantino era difícil qualquer forma de
governo central sobre toda a Igreja. O poder dos bispos, nas grandes cidades, era
aumentado pela prática de dar escolas: as oferendas dos fiéis eram administradas
pelo bispo, que podia conceder ou recusar caridade aos pobres. Formou-se, logo,
uma multidão de pobres, pronta a obedecer ao bispo. Quando o Estado se tornou
cristão, foram concedidas aos bispos funções judiciais e administrativas. Chegou
também a haver um governo central, ao menos em matéria de doutrina.
Constantino sentiu-se aborrecido com as disputas entre católicos e arianos: tendose unido à sorte dos cristãos, queria que os mesmos constituíssem um partido
unido. Com o fim de sanar as dissenções, convocou o Concilio ecumênico de
Nicéia, que elaborou o credo niceno,{160} e, quanto ao que dizia respeito a
controvérsia ariana, determinou para sempre uma ortodoxia padrão. Outras
controvérsias posteriores foram igualmente decididas por concílios ecumênicos,
até que a divisão do Oriente e do Ocidente, e a negativa do Oriente em admitir a
autoridade do Papa, as tornou impossíveis.
O Papa, embora fosse, oficialmente, o indivíduo mais importante da Igreja,
não teve autoridade sobre a Igreja, como um todo, senão muito mais tarde. O
desenvolvimento gradual do poder papal é tema muito interessante, que tratarei
em capítulos posteriores.
O desenvolvimento do Cristianismo antes de Constantino, bem como os
motivos de sua conversão, foram explicados, de maneira diversa, por vários
autores. Gibbon{161} lhes atribui cinco causas:
« I. O inflexível e, se podemos usar a expressão, o intolerante zelo dos cristãos,
derivado, é certo, da religião judaica, mas purificado do espírito mesquinho e
anti-social que, em lugar de atrair, impedia que os gentios abraçassem a lei de
Moisés.
« II. A doutrina de uma vida futura, melhorada para todas as circunstâncias
adicionais que pudessem dar peso e eficácia aquela importante verdade.
« III. Os poderes miraculosos atribuídos à Igreja primitiva.
« IV. A moral pura e austera dos cristãos.
« V. A união e disciplina da república cristã, que formou aos poucos, um
Estado independente e crescente no coração do Império Romano» .
De um modo geral, esta análise pode ser aceita, mas com alguns comentários.
A primeira causa — a inflexibilidade e intolerância derivadas dos judeus — pode
ser aceita totalmente. Temos visto, em nossos próprios dias, as vantagens da
intolerância na propaganda. Os cristãos, em sua maior parte, acreditavam que só
eles iriam para o céu, e que os mais terríveis castigos recairiam, no outro mundo,
sobre os pagãos. As outras religiões que competiam pelo favor durante o século
III não tiveram esse caráter ameaçador. Os adoradores da Grande Mãe, por
exemplo, embora tivessem uma cerimonia — o Taurobolium — análoga ao
batismo, não ensinavam que aqueles que não fossem batizados iriam para o
inferno. Pode-se acentuar, incidentalmente, que o Taurobolium era dispendioso:
um touro tinha de ser morto, fazendo-se com que o seu sangue se derramasse
sobre o convertido. Um rito desse gênero é aristocrático, e não pode constituir a
base de uma religião que deve abranger o grosso da população, ricos e pobres,
libertos e escravos. Sob este aspecto, o Cristianismo levava vantagem sobre todos
os seus rivais.
Com respeito à doutrina da vida futura, foi ela primeiro ensinada pelos órficos
e adotada, depois, por filósofos gregos. Os profetas hebreus, alguns deles,
ensinaram a ressurreição do corpo, mas parece que foi dos gregos que os judeus
aprenderam a acreditar na ressurreição do espírito.{162} A doutrina da
imortalidade, na Grécia, tinha uma forma popular no orfismo e uma forma culta
no platonismo. Esta última, baseada em argumentos difíceis, não pôde ser
amplamente popular; a forma órfica, porém, talvez tenha tido grande influência
sobre as opiniões gerais da antiguidade, não somente entre os pagãos, mas
também entre os judeus e cristãos. Elementos de religiões de mistério, órficos e
asiáticos, entram em grande parte na teologia cristã; em todos eles, o mito central
é o do Deus mortal que se ergue de novo.{163} Penso, pois, que a doutrina da
imortalidade deve ter tido menos que ver com a difusão do Cristianismo do que o
supunha Gibbon.
Os milagres, certamente, desempenharam papel bastante importante na
propaganda cristã. Mas os milagres, nos últimos tempos da antiguidade, eram
muito comuns, e não eram prerrogativas de nenhuma religião. É muito fácil de
ver-se por que razão, nessa competição, os milagres cristãos vieram a ser mais
amplamente aceitos do que os das outras seitas. Penso que Gibbon omite uma
matéria muito importante, isto é, a possessão de um Livro Sagrado. Os milagres a
que os cristãos apelavam haviam começado numa antiguidade remota, entre
uma nação que os antigos consideravam como misteriosa; havia uma história
coerente da Criação em diante, segundo a qual a Providência havia sempre
operado maravilhas, primeiro para os cristãos, depois para os judeus. A um
estudante moderno de história é óbvio que a história primitiva dos israelitas é, em
sua maior parte, legendária, mas não ocorria o mesmo com os antigos.
Acreditavam na narração homérica do cerco de Tróia, em Rômulo e Remo, e
assim por diante; por que, pergunta Orígenes, devemos aceitar essas tradições e
rejeitar as dos judeus? Para este argumento não havia uma resposta lógica. Era,
portanto, natural aceitar os milagres do Antigo Testamento e, uma vez admitidos,
aqueles de data mais recente se tornavam críveis, principalmente diante da
interpretação cristã dos profetas.
A moral dos cristãos, antes de Constantino, era individubtavelmente, superior à
dos pagãos comuns. Os cristãos eram, às vezes, perseguidos, e viam-se quase
sempre em situação de desvantagem em sua competição com os pagãos.
Acreditavam firmemente que a virtude seria recompensada no céu e o pecado
punido no inferno. Sua ética sexual tinha um rigor que era raro na antiguidade.
Plínio, cujo dever oficial era perseguidos, apresenta seu testemunho quanto ao
seu elevado caráter moral. Depois da conversão de Constantino, houve,
certamente, contemporizadores entre os cristãos; mas os eclesiásticos
preeminentes, com algumas exceções, continuaram a ser homens de inflexíveis
princípios morais. Penso que Gibbon tem razão em atribuir grande importância a
este elevado padrão moral como uma das causas da disseminação do
Cristianismo.
Gibbon expõe, por último, « a união e disciplina da república cristã» . Creio
que, de um ponto de vista político, essa foi a mais importante das suas cinco
causas. No mundo moderno, estamos acostumados à organização política; todo
político tem de contar com o voto católico, mas este é equilibrado pelo voto de
outros grupos organizados. Um candidato católico à presidência dos Estados
Unidos está em situação de desvantagem, devido ao preconceito protestante.
Mas, se não houvesse uma coisa assim como o preconceito protestante, um
candidato católico teria maiores possibilidades do que qualquer outro. Estes
parecem ter sido os cálculos de Constantino. O apoio dos cristãos, como um único
bloco organizado, só poderia ser obtido por meio de favores. Qualquer aversão
que existisse pelos cristãos, era desorganizada e politicamente ineficiente. É
provável que Rostovtseff tenha razão ao afirmar que uma grande parte do
exército era constituída de cristãos, tendo sido isso o que mais influiu sobre
Constantino. Seja como for, os cristãos, embora constituíssem ainda uma
minoria, tinham uma espécie de organização que era então nova, e que lhes deu
toda a influência política de um grupo compacto ao qual nenhum outro grupo
compacto se opunha. Era essa a consequência natural de seu monopólio virtual
do zelo, e seu zelo era uma herança dos judeus.
Infelizmente, logo que os cristãos adquiriram poder político, voltaram esse
zelo uns contra os outros. Tinha havido heresias, e não poucas, antes de
Constantino, mas os ortodoxos não dispunham de meios para puni-las. Quando o
Estado se tornou cristão, grandes prêmios, na forma de poder e riqueza, estavam
ao alcance dos eclesiásticos; houve eleições disputadas e contendas teológicas
tendo em vista vantagens terrenas. O próprio Constantino manteve um certo grau
de neutralidade nas disputas dos teólogos, mas, depois de sua morte (337), seus
sucessores (exceto Juliano, o apóstata) eram, em maior ou menor grau,
favoráveis aos arianos, até a ascenção de Teodósio, em 379.
O herói desse período é Atanásio (ca. 297-373), que foi, durante toda a sua
longa vida, o mais intrépido campeão da ortodoxia nicena.
O período que vai de Constantino ao Concilio de Calcedônia (451) é peculiar,
devido à importância política da teologia. Duas questões agitaram
sucessivamente o mundo cristão: primeiro, a natureza da Trindade e, a seguir, a
doutrina da Encarnação. Somente a primeira delas estava em primeiro plano no
tempo de Atanásio. Ário, culto sacerdote alexandrino, afirmava que o Filho não é
igual ao Pai, mas criado por Ele. Num período anterior, uma tal opinião teria
despertado grande antagonismo, mas, no século IV, a maioria dos teólogos a
rejeitou. O conceito que, afinal, prevaleceu era o de que o Pai e o Filho eram
iguais e da mesma substância; eram, no entanto, Pessoas distintas. A opinião de
que não eram distintas, mas apenas aspectos diferentes de um Ser, foi a heresia
sabeliana, assim chamada devido ao nome de seu fundador, Sabélico. A
ortodoxia, assim, teve de seguir uma linha estreita: aqueles que ressaltavam
indevidamente a distinção entre o Pai e o Filho estavam em perigo de arianismo,
e os que acentuavam, indevidamente, a sua unidade, corriam o risco de ser
considerados adeptos do sabelianismo.
As doutrinas de Ario foram condenadas pelo Concilio de Nicéia (325) por
esmagadora maioria. Mas várias modificações foram sugeridas por diversos
teólogos e favorecidas pelos imperadores. Atanásio, que foi bispo de Alexandria
desde 328 até sua morte, esteve constantemente no exílio devido a seu zelo pela
ortodoxia nicena. Gozava ele de imensa popularidade no Egito, que, durante toda
a controvérsia, o seguiu sem vacilar. É curioso que, no curso da controvérsia,
teológica, o sentimento nacional (ou, pelo menos, regional), que parecia extinto
desde a conquista romana, renasceu. Constantinopla e a Ásia inclinavam-se para
o arianismo; o Egito era fanaticamente atanasiano; o Ocidente aderiu com
firmeza aos decretos do Concilio de Nicéia. Depois de terminada a controvérsia
ariana, novas controvérsias, de gênero mais ou menos semelhante, surgiram, e o
Egito se tornou herético numa direção e a Síria noutra. Essas heresias, que foram
perseguidas pelos ortodoxos, comprometeram a unidade do Império oriental e
facilitaram a conquista maometana. Os movimentos separatistas, em si próprios,
não causam surpresa, mas é curioso que estivessem associados a questões
teológicas sumamente sutis e abstrusas.
Os imperadores, de 335 a 378, favoreceram mais ou menos, tanto quanto
ousaram, os conceitos arianos, com exceção de Juliano o Apóstata (361-363),
que, como pagão, se mantinha neutro quanto às disputas internas dos cristãos. Por
fim, em 379, o imperador Teodósio deu integral apoio aos católicos, e sua vitória,
por todo o Império, foi completa. Santo Ambrósio, São Jerônimo e Santo
Agostinho, dos quais trataremos no capítulo seguinte, viveram a maior parte de
suas vidas durante esse período de triunfo católico. Este foi sucedido, no entanto,
no Ocidente, por outra dominação ariana, a dos godos e vândalos, os quais
conquistaram, entre si, a maior parte do Império ocidental. Seu poder durou
cerca de um século, no fim do qual foi destruído por Justiniano, os lombardos e os
francos, dos quais Justiniano e os francos e, por último, também os lombardos,
eram ortodoxos. Assim, finalmente, a fé católica logrou seu triunfo definitivo.
CAPÍTULO III
TRÊS DOUTORES DA IGREJA
QUATRO HOMENS são os chamados Doutores da Igreja ocidental: Santo
Ambrósio, São Jerônimo, Santo Agostinho e o Papa Gregório o Grande. Destes,
os três primeiros eram contemporâneos, enquanto que o quarto pertenceu a uma
época posterior. Darei, neste capítulo, alguns pormenores da vida e da época dos
três primeiros, reservando para um capítulo subsequente a descrição das
doutrinas de Santo Agostinho, que era, para nós, o mais importante dos três.
Ambrósio, Jerônimo e Agostinho floresceram durante o breve período que
medeia entre a vitória da Igreja católica no Império Romano e a invasão dos
bárbaros. Os três eram jovens durante o reinado de Juliano o Apóstata; Jerônimo
viveu ainda dez anos depois do saque de Roma pelos gôdos comandados por
Alarico; Agostinho viveu até a irrupção dos vândalos na África, e morreu
enquanto estes estavam assediando Hipona, da qual era bispo. Imediatamente
após sua época, os donos da Itália, Espanha e África não eram só bárbaros, mas
heréticos arianos. A civilização declinou durante séculos, e não foi senão quase
mil anos depois que a Cristandade produziu de novo homens que foram seus
iguais em erudição e cultura. Durante toda a idade do obscurantismo e o período
medieval, sua autoridade foi reverenciada; eles, mais dos quaisquer outros
homens, fixaram o molde a que se ajustou a Igreja. De um modo geral, Santo
Ambrósio determinou a concepção eclesiástica da relação entre a Igreja e o
Estado; São Jerônimo deu à Igreja ocidental a sua Bíblia latina e uma grande
parte do ímpeto monástico; enquanto que Santo Agostinho fixou a teologia da
Igreja até a Reforma e, mais tarde, uma grande parte das doutrinas de Lutero e
Calvino. Poucos homens foram mais influentes que esses três no decurso da
história. A independência da Igreja em relação ao Estado secular, como foi
triunfalmente mantida por Santo Ambrósio, era uma doutrina nova e
revolucionária, que prevaleceu até a Reforma. Quando Hobbes a combateu no
século XVII, era contra Santo Ambrósio que, principalmente argumentava. Santo
Agostinho ocupou o primeiro plano das controvérsias teológicas durante os
séculos XVI e XVII, sendo a seu favor os protestantes e jansenistas, e contra eles
os católicos.
A capital do Império Ocidental, no fim do século IV, era Milão, da qual
Ambrósio era bispo. Seus deveres punham-no constantemente em contato com
os imperadores, com os quais falava como um igual e, às vezes, como um
superior. Suas relações com a corte imperial ilustram um contraste geral
característico da época: enquanto o Estado era fraco, incompetente, governado
por homens sem princípios, que procuravam defender apenas seus próprios
interesses, sem qualquer política que fosse além de expedientes do momento, a
Igreja era vigorosa, hábil, dirigida por homens prontos a sacrificar tudo no
interesse dela, e possuidora de uma política de tão grande alcance que lhe
assegurou a vitória durante os mil anos subsequentes. É verdade que esses
méritos eram com frequência contrabalançados pelo fanatismo e pela
superstição, mas, sem eles, nenhum movimento reformador poderia haver
triunfado naquele tempo.
Santo Ambrósio teve muitas oportunidades para conseguir êxito no serviço do
Estado. Seu pai, que também se chamava Ambrósio, era alto funcionário:
prefeito dos gauleses. O santo nasceu, provavelmente, em Treves, uma cidade de
guarnição da fronteira, onde as legiões romanas se achavam estacionadas, a fim
de manter ao largo os germânicos. Aos treze anos de idade foi levado para
Roma, onde recebeu boa educação, incluindo uma sólida base de grego. Mais
tarde, dedicou-se ao estudo das leis, no qual foi muito bem-sucedido; aos trinta
anos, foi feito governador da Ligúria e Emília. Não obstante, quatro anos depois
voltou as costas ao governo secular e, por aclamação popular, tornou-se bispo de
Milão, em oposição a um candidato ariano. Deu aos pobres todos os seus bens
terrenos, e dedicou o resto de sua vida ao serviço da Igreja, às vezes com grande
risco pessoal. Esta escolha, certamente, não foi ditada por motivos mundanos,
mas, se o fosse, teria sido uma decisão acertada. No Estado, mesmo que
houvesse chegado a imperador, não teria podido, naquela época, encontrar tal
âmbito para a sua capacidade administrativa como o que encontrou no
desempenho de seus deveres episcopais.
Durante os primeiros nove anos do episcopado de Ambrósio, o imperador do
Ocidente era Graciano, católico, virtuoso e negligente. Era tão dedicado à caça
que descuidava do governo e, no fim, foi assassinado. Sucedeu-o, na maior parte
do Império Ocidental, um usurpador chamado Máximo; mas, na Itália, a
sucessão passou para as mãos de um irmão mais moço de Graciano,
Valentiniano II, que era ainda adolescente. A princípio, o poder imperial foi
exercido pela sua mãe Justina, viúva do imperador Valentiniano I; mas, como era
ariana, os conflitos entre ela e Santo Ambrósio se tornaram inevitáveis.
Os três santos de que nos ocupamos neste capítulo escreveram grande número
de cartas, das quais muitas ainda se conservam; o resultado disso é que sabemos
mais a respeito deles do que de quase todos os filósofos pagãos, e mais do que
todos os eclesiásticos da Idade Média, com apenas umas poucas exceções. Santo
Agostinho escreveu cartas a toda gente, a maior parte sobre a doutrina ou as
disciplinas da Igreja; as cartas de São Jerônimo são dirigidas principalmente a
senhoras, dando-lhes conselhos sobre a maneira de preservar a virgindade; mas
as cartas mais importantes e interessantes de Santo Ambrósio são endereçadas a
imperadores, dizendo-lhes quais os pontos em que não cumpriram seus deveres,
ou, em algumas ocasiões, congratulando-se com eles por os haverem cumprido.
A primeira questão pública com que Ambrósio teve de haver-se foi a do altar
e a estátua da Vitória em Roma. O paganismo persistiu mais tempo entre as
famílias senatoriais da capital do que em qualquer outra parte; a religião estava
nas mãos de um clero aristocrático e achava-se ligada ao orgulho imperial dos
conquistadores do mundo. A estátua da Vitória na Casa do Senado havia sido
removida por Constâncio, o filho de Constantino, e restaurada por Juliano o
Apóstata. O imperador Graciano removeu de novo a estátua, diante do que uma
deputação do Senado, encabeçado por Símaco, prefeito da cidade, solicitou que
se renovasse a restauração.
Símaco, que também desempenhou papel na vida de Agostinho, era membro
ilustre de uma família nobre, rico, aristocrático, culto e pagão. Foi banido de
Roma por Graciano em 382, devido ao seu protesto contra a remoção da estátua
da Vitória, mas não por muito tempo, pois foi prefeito da cidade em 384. Era avô
do Símaco que foi sogro de Boécio e teve atuação preeminente no reinado de
Teodorico.
Os senadores cristãos objetaram e, com auxílio de Ambrósio e do Papa
(Dâmaso), sua opinião foi a que prevaleceu ante o imperador. Depois da morte
de Graciano, Símaco e os senadores pagãos fizeram uma petição ao novo
imperador, Valentiniano II, em 384 A. D. Em sinal de revide a essa nova
tentativa, Ambrósio escreveu ao imperador, afirmando a tese de que, assim
como todos os romanos deviam serviço militar ao imperador, assim ele (o
imperador) devia serviço a Deus Todo-poderoso.{164} « Que ninguém — diz
ele — se aproveite de tua juventude; se é um pagão quem te pede isso, não há
razão para que até a tua mente com os laços da sua própria superstição; mas pelo
seu zelo deve ele ensinar-te e admoestar-te para que sejas cioso da tua
verdadeira fé, já que defende coisas vãs com toda a paixão da verdade» . Ser
compelido a jurar no altar de um ídolo — diz ele — é, para um cristão,
perseguição. « Se tratasse de uma causa civil, o direito de réplica estaria
reservado à parte contrária; trata-se de uma causa religiosa e eu, como bispo,
faço uma reclamação … Certamente, se alguma coisa mais for decretada, nós,
bispos, não poderemos sofrer constantemente, sem tomar conhecimento; na
verdade, podes vir à Igreja, mas não encontrarás nela nenhum sacerdote, nem
ninguém que te resista» .{165}
A epístola seguinte assinala que os bens da Igreja servem a propósitos jamais
servidos pela riqueza dos templos pagãos. « Os bens da Igreja são para a
manutenção dos pobres. Que eles contém quantos cativos dos templos foram
resgatados, que alimentos foram por eles distribuídos aos pobres, e a quantos
exilados forneceram os meios de subsistência» . Este era um argumento de peso,
perfeitamente justificado pela prática cristã.
Santo Ambrósio ganhou a questão, mas um usurpador subsequente, Eugênio,
que favorecia os pagãos, restaurou o altar e a estátua. Foi somente depois da
derrota de Eugênio por Teodósio, em 394, que a questão foi, finalmente, decidida
a favor dos cristãos.
O bispo estava, a princípio, em termos muitos amigáveis com a corte
imperial, sendo empregado numa missão diplomática junto ao usurpador
Máximo, que, receava-se, poderia invadir a Itália. Antes, porém, surgiu um
grave motivo de controvérsia. A imperatriz Justina, como ariana que era, solicitou
que uma das igrejas de Milão fosse cedida aos arianos, mas Ambrósio recusouse. O povo colocou-se de seu lado e reuniu-se na basílica em grande multidão. Os
soldados gôdos, que eram arianos, foram enviados para se apoderar dela, mas
acabaram confraternizando-se com o povo. « Os condes e tribunos — diz ele
numa carta corajosa à irmã {166} — vieram instar comigo para que entregasse
incontinente a basílica, dizendo-me que o imperador estava exercendo seus
direitos legais, uma vez que tudo se achava sob seu poder. Respondi que se ele me
pedisse o que era meu, isto é, minhas terras, meu dinheiro ou qualquer coisa
deste gênero que fosse minha, eu não o recusaria, embora tudo o que possuo
pertença aos pobres, mas que as coisas que são de Deus não estão sujeitas ao
poder imperial. « Se exigirem meu patrimônio, entregá-lo-ei; se meu corpo, irei
incontinente. Quereis meter-me a ferros ou causar-me a morte? Será um prazer
para mim. Não me defenderei com multidões de indivíduos, nem me agarrarei
aos altares, a rogar pela minha vida, mas, pelos altares, permitirei alegremente
que me matem» . Fiquei, com efeito, aterrorizado quando soube que homens
armados haviam sido enviados para tomar conta da basílica, receoso de que, em
vista do povo que a estava defendendo, pudesse haver alguma carnificina que
tendesse a prejudicar toda a cidade. Orei para que eu não sobrevivesse à
destruição de uma cidade tão grande, ou o que pudesse ocorrer em toda a
Itália» .
Tais receios não eram exagerados, pois a soldadesca gôda era bem capaz de
entregar-se a selvagerias, como o fez vinte e cinco anos mais tarde, por ocasião
do saque de Roma.
A força de Ambrósio residia no apoio do povo. Foi acusado de incitá-lo, mas
replicou que « estava em meu poder não o excitar, mas nas mãos de Deus o
aquietá-lo» . Nenhum dos arianos, diz ele, ousou prosseguir, pois não havia
nenhum ariano entre os cidadãos. Foi formalmente intimado a entregar a basílica
e os soldados receberam ordem de empregar violência, se necessário. Mas, no
fim, recusaram-se a usar de violência, e o imperador foi obrigado a ceder. Havia
sido ganha uma grande batalha na contenda pela independência eclesiástica;
Ambrósio demonstrara que havia matérias em que o Estado devia submeter-se à
Igreja, estabelecendo, assim, um novo princípio, que mantém até hoje sua
importância.
O conflito seguinte foi com o imperador Teodósio. Uma sinagoga fora
incendiada, e o Conde do Ocidente informou que isso havia sido feito por
instigação do bispo local. O imperador ordenou que os incendiários reais fossem
punidos, e que o bispo deveria reconstruir a sinagoga. Santo Ambrósio não admite
nem nega a cumplicidade do bispo, mas mostra-se indignado pelo fato de o
imperador colocar-se do lado dos judeus, contra os cristãos. Suponha-se que o
bispo se negasse a obedecer. Teria, então, de tornar-se um mártir, se persistisse,
ou um apóstata, se cedesse. Suponha-se que o próprio conde decida reconstruir a
sinagoga a expensas dos cristãos. Neste caso, o imperador terá um conde
apóstata, e o dinheiro cristão será tomado para apoiar os infiéis. « Construir-se-á,
então, um lugar para a descrença dos judeus com os despojos da Igreja, e o
patrimônio conseguido pelos cristãos com o favor de Cristo será transferido aos
tesouros dos descrentes?» . E prossegue: « Mas talvez a causa da disciplina seja a
que te move, ó Imperador. Que é, pois, de maior importância: a exibição de
disciplina ou a causa da religião? É necessário que o julgamento se submeta à
religião. Não ouviste, ó Imperador, que, quando Juliano ordenou que o Templo de
Jerusalém fosse restaurado, aqueles que estavam removendo os escombros
foram consumidos pelo fogo?»
É claro que, na opinião do santo, a destruição das sinagogas não devia ser
castigada de modo algum. Eis aí um exemplo da maneira pela qual, logo que
adquiriu poder, a Igreja começou a estimular o antissemitismo.
O Conflito seguinte, entre o imperador e o santo, foi mais honroso para o
segundo. Em 390 A. D., quando Teodósio se encontrava em Milão, uma multidão,
na Tessalônica, assassinou o capitão da guarnição. Teodósio, ao receber tal
notícia, foi tomado de incontrolável fúria, e ordenou uma vingança abominável.
Quando o povo se achava reunido no circo, os soldados caíram sobre ele e
massacraram pelo menos sete mil pessoas, numa carnificina indiscriminada.
Diante disso, Ambrósio, que, de antemão, procurara inutilmente conter o
imperador, escreveu-lhe uma carta cheia de esplêndida coragem, sobre um
conceito puramente moral, não envolvendo, pela primeira vez, nenhuma questão
de teologia ou de poder da Igreja:
« Ocorreu tal fato, do qual nenhum registro semelhante existe, na cidade de
Tessalônica, e eu não pude evitar que ocorresse; o qual, na verdade, eu disse que
seria atrocíssimo, nas várias petições que fiz contra isso.»
Davi pecou repetidamente e confessou seus pecados em penitência.{167}
Fará Teodósio o mesmo? Ambrósio decide que « eu não ousarei oferendar o
sacrifício se for vossa intenção estar presente. Acaso o que não é permitido após
derramar-se o sangue de uma pessoa inocente, é permitido após derramar-se o
sangue de muitas? Não o creio» .
O Imperador arrependeu-se e, despojado da púrpura, fez penitência pública
na catedral de Milão. Desde então, até sua morte, em 395, não teve qualquer
atrito com Ambrósio.
Ambrósio, conquanto estadista eminente, foi sob outros aspectos,
simplesmente típico de sua época. Escreveu, como outros autores eclesiásticos,
um tratado em louvor da virgindade, bem como um outro, censurando o
casamento de viúvas. Quando decidiu qual o lugar em que devia erguer-se a
nova catedral, dois esqueletos (revelados numa visão, segundo se disse) foram
convenientemente descobertos no terreno, tendo ele declarado que se tratava de
dois mártires. Outros milagres são relatados em suas cartas, com toda a
credulidade característica de seu tempo. Foi inferior a Jerônimo como erudito e a
Agostinho como filósofo. Mas, como estadista, que hábil e corajosamente
consolidou o poder da Igreja, destaca-se como homem de primeira plana.
Jerônimo é notável, principalmente, como o tradutor da Vulgata, que
permanece até hoje como a versão católica oficial da Bíblia. Até sua época, a
Igreja ocidental confiou, com respeito ao Antigo Testamento, principalmente em
traduções da Septuaginta, que, em pontos importantes, diferia do original
hebraico. Os cristãos, como vimos, eram dados a afirmar que os judeus, desde o
advento do Cristianismo, haviam falsificado o texto hebraico nos pontos em que
parecia predizer a vinda do Messias. Era uma opinião que a erudição sólida
demonstrou ser insustentável, e que Jerônimo rejeitou firmemente. Aceitou a
ajuda de rabinos, prestada em segredo por receio dos judeus. Defendendo-se da
crítica cristã, disse: « Que aqueles que não concordam com alguma coisa nesta
tradução consultem os judeus» . Devido à sua aceitação do texto hebraico na
forma em que os judeus consideravam correta, sua tradução teve, a princípio,
uma recepção bastante hostil; mas conseguiu impor-se, devido, em parte, a Santo
Agostinho, que de modo geral, a apoiou. Foi uma grande realização, envolvendo
considerável crítica textual.
Jerônimo nasceu em 345 — cinco anos depois de Ambrósio — não distante de
Aquiléia, numa cidade chamada Estridon, que foi destruída pelos gôdos em 377.
Sua família era acomodada, mas não rica. Em 363, ele foi para Roma, onde
estudou retórica e pecou. Após viajar pela Gália, estabeleceu-se em Aquiléia e
tornou-se asceta. Os cinco anos seguintes, passou-os como eremita no deserto
sírio. « Sua vida, no deserto, foi de rigorosa penitência, de lágrimas e gemidos
alternados com êxtases espirituais e com as tentações das lembranças da vida
romana, que o perseguiam; viveu numa cela ou caverna; ganhava seu pão de
cada dia e vestia-se com tecidos de sacos» .{168} Depois desse período, viajou
para Constantinopla, e viveu em Roma por espaço de três anos, onde se tornou
amigo e conselheiro do Papa Dâmaso, com o encorajamento do qual
empreendeu a sua tradução da Bíblia.
São Jerônimo foi homem de muitas contendas. Disputou com Santo Agostinho
sobre a conduta um tanto questionável de São Pedro, relatada, segundo São
Paulo, em Gálatas II; rompeu com seu amigo Rufino a respeito de Orígenes; e
mostrou-se tão veemente contra Pelágio que seu mosteiro foi atacado por uma
multidão de pelagianos. Depois da morte de Dâmaso, parece ter tido uma disputa
com o novo Papa; conheceu, durante sua permanência em Roma, diversas
senhoras, ao mesmo tempo aristocráticas e pias, persuadindo-as a que adotassem
a vida ascética. O novo Papa, em comum com muitas outras pessoas de Roma,
não gostou disso. Por esta razão, entre outras, Jerônimo deixou Roma, seguindo
para Belém, onde permaneceu desde 386 até sua morte, em 420.
Entre as distintas damas convertidas, duas foram particularmente notáveis: a
viúva Paula e sua filha Eustóquia. Ambas o acompanharam em sua viagem
indireta a Belém. Eram da mais alta nobreza, e não se pode deixar de sentir um
certo esnobismo na atitude do santo para com elas. Quando Paula morreu e foi
enterrada em Belém, Jerônimo compôs um epitáfio para o seu túmulo:
Dentro desta tumba jaz uma filha de Scipião,
Uma filha da casa paulina, de amplo renome,
Descendente dos Gracos, da estirpe
Do próprio e ilustre Agamenon:
Aqui jaz a nobre Paula, bem-amada
De seus pais, com Eustóquia
Por uma filha ela, a primeira das damas romanas
Que preferiu os trabalhos e Belém por Cristo.{169}
Algumas cartas de Jerônimo a Eustóquia são curiosas. Ele lhe dá conselhos,
muito pormenorizados e francos, sobre a conservação da virgindade; explica-lhe
o exato significado anatômico de certos eufemismos existentes no Antigo
Testamento; e emprega uma espécie de erotismo místico ao louvar as alegrias da
vida conventual. Uma freira é a Noiva de Cristo; este casamento é celebrado no
Cântico de Salomão. Numa longa carta, escrita na ocasião em que ela fez os
votos, enviou à mãe uma mensagem invulgar: « Estás zangada com ela porque
quer ser a esposa de um rei (Cristo) e não de um soldado? Ela te conferiu um
grande privilégio; és agora a sogra de Deus» .{170}
À própria Eustóquia, diz ele na mesma carta (XXII):
« Deixa sempre que a intimidade da tua habitação te guarde; deixa sempre
que o Noivo se divirta dentro contigo. Rezas? Falas com o Noivo. Lês? Ele fala
contigo. Quando o sono te surpreende, Ele vem por trás e põe a mão através do
buraco da porta, e teu coração se comoverá por Ele; e tu despertarás e te
levantarás dizendo: Estou doente de amor. E Ele então, responderá: Um jardim
fechado é minha irmã, minha esposa; uma primavera encerrada, uma fonte
selada» .
Na mesma carta, conta ele como, depois de isolar-se por completo dos
parentes e amigos, « e — coisa mais dura ainda — dos delicados alimentos a que
estava habituado» , não conseguiu, contudo, afastar-se de sua biblioteca, e levoua consigo para o deserto. « E assim, homem miserável como eu era, jejuava
somente para que pudesse depois ler Cícero» . Depois de dias e noites de
remorso, caía de novo, e lia Plauto. Depois de tal indulgência, o estilo dos
profetas parecia-lhe « rude e repelente» . Por fim, durante uma febre, sonhou
que, no Juízo Final Cristo lhe perguntou quem era ele, e respondeu que era um
cristão. Veio a resposta: « Mentes; é um adepto de Cícero e não de Cristo» . Em
consequência disso, foi ordenado que fosse açoitado. Por fim, Jerônimo, em seu
sonho, exclamou: « Senhor, se eu algum dia possuir de novo livros mundanos ou
tornar a lê-los, ter-te-ei renegado» . Isto, acrescenta ele, « não foi no sono ou um
simples sonho» .{171}
Depois disso, durante alguns anos, suas cartas contém poucas citações
clássicas. Decorrido algum tempo, porém, cai em falta de novo com versos de
Virgílio, Horácio e, mesmo, Ovídio. Parecem, no entanto, citados de memória,
pois ele os repete amiúde.
As cartas de Jerônimo exprimem sentimentos produzidos pela queda do
Império Romano, e o fazem mais vividamente do que os escritos de quaisquer
outros autores que eu conheça. Em 396, escreve:{172}
« Tremo ao pensar nas catástrofes de nosso tempo. Por vinte anos ou mais, o
sangue dos romanos foi derramado diariamente entre Constantinopla e os Alpes
julianos. A Cítia, a Trácia, a Macedônia, a Dácia, a Tessália, a Acaia, o Epiro, a
Dalmácia e as Panônias — todas elas têm sido saqueadas, pilhadas e devastadas
por gôdos e sármatas, quados e alanos, hunos, vândalos e outros invasores … O
mundo romano está caindo: não obstante, mantemos nossas cabeças erguidas,
em lugar de curvá-las. Que coragem tem agora, pensai, os coríntios ou os
atenienses, ou os lacedemônios, ou arcadianos, ou quaisquer dos gregos sobre os
quais os bárbaros exercem seu mando? Referi-me apenas a umas poucas
cidades, mas estas foram, em outros tempos, capitais de Estados nada
desprezíveis» .
Descreve, a seguir, as devastações dos hunos no Oriente, e termina com esta
reflexão. « Para tratar tais temas como eles o merecem, Tucídides e Salústio
seriam tão eloquentes como um mundo» .
Dezessete anos depois, três anos após a queda de Roma, escreve: 10
« O mundo mergulha em ruínas, sim! Mas, no entanto, nossos pecados ainda
vivem e florescem. A famosa cidade, capital do Império Romano, está engolfada
em tremendo incêndio; não há parte da Terra onde os romanos não estejam
exilados. Igrejas antes consideradas sagradas não são hoje senão montes de
escombros e cinzas; e, não obstante, temos as nossas mentes voltadas para o
desejo de lucro. Vivemos como se devêssemos morrer amanhã; no entanto,
construímos como se fossemos viver sempre neste mundo. Nossos muros
brilham de ouro, bem como nossos tetos e os capitéis de nossos pilares; no
entanto, Cristo morre diante de nossas portas, nu e faminto, nas pessoas de Seus
pobres» .
Esta passagem ocorre incidentalmente numa carta a um amigo que decidiu
dedicar a filha à virgindade perpétua, e a maior parte dela se ocupa das regras a
serem observadas na educação das jovens assim dedicadas. É estranho que, com
toda a profundidade de seus sentimentos relativos à queda do mundo antigo,
Jerônimo considere a preservação da virgindade mais importante do que a vitória
sobre os hunos, os vândalos e os gôdos. Nem uma vez, sequer, seus pensamentos
se voltam para uma possível medida de estadismo prático; nem uma vez, sequer,
assinala ele os males do sistema fiscal, ou a confiança num exército composto de
bárbaros. O mesmo pode dizer-se a respeito de Ambrósio e Agostinho;
Ambrósio, é certo, era estadista, mas somente a favor da Igreja. Não é de
estranhar-se que o Império se desmoronasse em ruínas, quando todos os
melhores e mais vigorosos espíritos da época se mostravam tão completamente
alheios aos interesses seculares. Por outro lado, se a ruína era inevitável, a
perspectiva cristã era admiravelmente adequada para dar fortaleza aos homens,
permitindo-lhes preservar suas esperanças religiosas, num momento em que as
esperanças terrenas pareciam vãs. A expressão deste ponto de vista, em A Cidade
de Deus, foi o supremo mérito de Santo Agostinho.
De Santo Agostinho, falarei neste capítulo apenas como homem; como
teólogo e filósofo, ocupar-me-ei dele no capítulo seguinte.
Nasceu em 354, nove anos depois de Jerônimo e catorze anos depois de
Ambrósio. Era natural da África, onde passou grande parte de sua vida. Sua mãe
era cristã, mas o pai não. Após um período de maniqueísmo, tornou-se católico,
sendo batizado por Ambrósio em Milão. Tornou-se bispo de Hipona, não distante
de Cartago, cerca do ano 396. Lá permaneceu até sua morte, em 430.
Dos começos de sua vida sabemos muito mais do que no caso da maioria dos
eclesiásticos, porque ele o contou em suas Confissões. Este livro teve imitadores
famosos, particularmente Rousseau e Tolstoi, mas não creio que tenha
predecessores comparáveis. Santo Agostinho assemelha-se, sob certos aspectos,
a Tolstoi, a quem, no entanto, é superior em intelecto. Foi um homem
apaixonado, estando muito longe, em sua juventude, de ser um modelo de
virtudes, mas impelido por íntimo impulso a buscar a verdade e a justiça. Como
Tolstoi, foi obcecado, em seus últimos anos, por um sentimento de pecado, o que
tornou sua vida austera e sua filosofia pouco humana. Combateu a heresia
vigorosamente, mas alguns de seus conceitos, quando repetidos por Jansênio no
século XVII, foram considerados heréticos. Contudo, enquanto os protestantes
não adotaram suas opiniões, a Igreja Católica jamais impugnou sua ortodoxia.
Um dos primeiros incidentes de sua vida, relatado nas Confissões, ocorreu em
sua infância, e não o distingue grandemente, por si mesmo, dos outros meninos.
Parece que, com alguns companheiros de sua mesma idade, despojou uma
pereira de um vizinho, embora não estivesse com fome e seus pais tivessem
peras melhores em casa. Continuou, durante toda a vida, a considerar tal ato
como sendo de uma maldade quase inacreditável.
Não teria sido tão mal se ele estivesse com fome, ou não tivesse outros meios
de obter peras; mas, tal como aconteceu, o foi de pura maldade, inspirado por
amor à própria perversidade. Isso era o que o tornava inenarravelmente mau. E
suplica a Deus para que o perdoe:
« Olha meu coração, ó Deus, olha meu coração, do qual tiveste piedade no
fundo do abismo. Agora, deixa que meu coração te diga o que lá buscava, para
que eu fosse desnecessariamente perverso, não tendo tido nenhuma tentação
para praticar aquela má ação, mas sim pela própria má ação em si. Era vil e eu
a amei; amei até sucumbir, amei minha própria falta, mas não foi por ela que
pratiquei a falta, mas foi a minha própria falta que eu amei. Alma imunda,
caindo do firmamento para ser expulsa da Tua presença; não procurando outra
coisa na vergonha senão a própria vergonha!» {173}
Prossegue ele assim durante sete capítulos, e tudo devido a algumas peras
arrancadas de uma árvore durante uma travessura infantil. Para o espírito
moderno, isto parece mórbido,{174} mas em sua própria época isso parecia
correto e um sinal de santidade. O senso do pecado, que era então muito forte,
ocorria aos judeus como uma maneira de reconciliar a importância própria com
os fracassos exteriores. Jeová era onipotente, e Jeová estava particularmente
interessado pelos judeus; por que, então, não prosperavam? Porque eram maus:
eram idólatras, casavam com o gentio, deixavam de observar a Lei. Os
propósitos de Deus estavam centralizados sobre os judeus, mas, como a retidão é
o maior dos bens, e deve ser conseguido através de tribulação, precisavam antes
ser castigados, e deviam reconhecer seus castigos como um sinal do amor
paternal de Deus.
Os cristãos puseram a Igreja no lugar do Povo Escolhido, mas, exceto sob um
aspecto, isso fez pouca diferença quanto à psicologia do pecado. A Igreja, como
os judeus sofria tribulações; a Igreja era perturbada por heresias; os cristãos
individuais caíam em apostasia sob o peso da perseguição. Houve, porém, um
progresso importante, já feito, em grande parte, pelos judeus, e que foi a
substituição do pecado comunal pelo pecado individual. Originariamente, era a
nação judaica que pecava, e que era punida coletivamente; mais tarde, porém, o
pecado tornou-se mais pessoal, perdendo, assim, o seu caráter político. Quando a
nação judaica foi substituída pela Igreja, essa mudança se tornou essencial, já
que a Igreja, como uma entidade espiritual, não podia pecar, mas o pecador
individual poderia deixar de estar em comunhão com a Igreja. O pecado, como
acabamos de dizer, está ligado à importância que o indivíduo atribui a si mesmo.
No princípio, a importância era da nação judaica, mas, subsequentemente,
passou a ser a do indivíduo — não da Igreja, porque a Igreja jamais pecou. E,
assim, aconteceu que a teologia cristã teve duas partes, uma concernente à
Igreja, e outra à alma individual. Em épocas posteriores, a primeira delas foi a
mais ressaltada pelos católicos, e a segunda pelos protestantes, mas em Santo
Agostinho ambas existem igualmente, sem que ele tenha qualquer sensação de
desarmonia. Os que são salvos são aqueles que Deus predestinou à salvação; esta
é uma relação direta da alma com Deus. Mas ninguém será salvo a menos que
haja sido batizado, tendo-se tornado, assim, um membro da Igreja; isto faz da
Igreja uma intermediária entre a alma e Deus.
O pecado é o que é essencial à relação direta, já que explica como uma
Deidade benfeitora pode fazer com que os homens sofram, e como, apesar disso,
as almas individuais podem ser o que há de mais importante no mundo criado.
Não é, pois, surpreendente que a teologia sobre a qual se baseava a Reforma
fosse devida a um homem cujo sentido do pecado era anormal.
Até aqui, o que se refere às peras. Vejamos, agora, o que as Confissões têm a
dizer sobre outros assuntos.
Agostinho narra como aprendeu latim, sem esforço, nos joelhos da mãe; mas
detestava o grego, que procuravam ensinar-lhe na escola, onde « insistiu (com
ele) veementemente, com ameaças e castigos cruéis» . Até o fim da vida, seu
conhecimento de grego foi sempre superficial. Diante disso, poder-se-ia supor
que ele tirasse, desse contraste, algum exemplo moral a favor de métodos mais
suaves de educação. O que diz, porém, é o seguinte:
« Fica, pois, claro, que uma livre curiosidade tem mais poder para fazer-nos
aprender essas coisas do que uma obrigação aterradora. Somente essa obrigação
impede as vacilações daquela liberdade quanto às Tuas leis, ó meu Deus, Tuas
leis, desde a vara do amo até as provações do mártir, pois Tuas leis tem o efeito
de misturar para nós certas amarguras benéficas, que nos chamam de novo para
Ti das folganças em que nos achamos, e por meio das quais nos afastamos de
Ti.»
Os castigos do mestre-escola, embora fracassassem quanto ao aprendizado do
grego, curaram-no de ser perniciosamente folgazão, e foram, deste modo, uma
parte desejável de sua educação. Para os que fazem do pecado a coisa mais
importante dos assuntos humanos, este conceito é lógico. Continua ele a assinalar
que pecou não apenas quando era menino de escola que mentia e furtava
guloseimas, mas mesmo muito mais cedo; com efeito, dedica um capítulo inteiro
(Livro I, cap. VII) a provar que mesmo as crianças de colo são cheias de
pecados — gulodice, ciúmes e outros vícios horríveis.
Quando chega à adolescência, o desejo da carne o venceu. « Onde estava eu,
e quão longe me achava exilado das delícias da Tua casa, naqueles dezesseis
anos de idade da minha carne, quando a loucura da luxúria, permitida pelos
vícios do homem, mas proibida pelas Tuas leis, assumiu o comando sobre mim e
me entreguei inteiramente a ela?» {175}
Seu pai não teve nenhum cuidado de impedir esse mal, limitando-se apenas a
ajudar os estudos de Agostinho. Sua mãe. Santa Mônica, pelo contrário, exortavao à castidade, mas em vão. E nem mesmo ela, naquela época, sugeriu o
casamento, « temerosa de que meus planos pudessem ser embaraçados pelo
estorvo de uma esposa» .
Aos dezesseis anos, foi para Cartago, « onde todos que me cercavam ferviam
num caldeirão de amores ilícitos. Não amava ainda, mas amava o amor e, por
uma necessidade profundamente enraigada, odiava-me por não precisar agir
assim. Procurei o que eu podia amar, apaixonado pelo amor, e odiava a
segurança … pois, nessa época, amar e ser amado era doce para mim; mais
ainda quando eu conseguia gozar a pessoa a quem amava. Conspurquei, pois, a
fonte da amizade, e obscureci seu brilho com o inferno da lascívia» .{176} Estas
palavras descrevem suas relações com uma amante a quem amou fielmente
durante anos,{177} e com quem teve um filho, ao qual também amou,
empenhando-se, depois de sua conversão, por dar-lhe uma educação religiosa.
Chegou a ocasião em que ele e a mãe acharam que devia começar a pensar
em casamento. Ficou noivo de uma jovem que contava com a aprovação da
mãe, julgando-se necessário que rompesse com a amante. « Minha querida —
diz ele — foi arrancada de meu lado como um empecilho ao meu casamento, e
meu coração, que estava cravado nela, foi dilacerado e ferido, a sangrar. E ela
voltou para a África (Agostinho estava, nessa época, em Milão) jurando por ti
que jamais conheceria outro homem, e deixando comigo o filho que me
dera.» {178} Como, no entanto, o casamento não podia realizar-se antes de dois
anos, devido à pouca idade da jovem, ele tomou, enquanto isso, outra amante,
menos oficial e menos conhecida. Sua consciência perturbava-o cada vez mais, e
ele costumava orar: « Dá-me castidade e continência, mas não por
enquanto.» {179} Por fim, antes que houvesse transcorrido o tempo para o seu
matrimônio, a religião conseguiu completa vitória, e dedicou o resto da vida ao
celibato.
Voltando a um tempo anterior: aos dezenove anos, tendo terminado com êxito
o estudo de retórica, foi atraído pela filosofia por Cícero. Tentou ler a Bíblia, mas
achou que ela carecia de dignidade ciceroniana. Foi nessa época que se tornou
maniqueu, o que afligiu sua mãe. Era, por profissão, professor de retórica.
Dedicou-se à astronomia, à qual, no fim da vida, foi contrário, porque ensina que
« a causa inevitável de teu pecado está no céu» .{180} Lia filosofia, toda a que
podia ser lida em latim; refere-se, particularmente, às Dez Categorias de
Aristóteles, que, diz ele, compreendeu sem auxílio de professor. « E de que me
aproveitou que eu, o mais vil escravo das vis paixões, lesse por mim todos os
livros das chamadas artes « liberais» e compreendesse aquilo que lia? Pois tinha
as costas voltadas para a luz e o meu rosto para as coisas iluminadas; daí a minha
cara … ela própria, não estar iluminada.» {181} Nessa época, acreditava que
Deus era um corpo vasto e brilhante. Ter-se-ia desejado que ele expusesse
pormenorizadamente os princípios dos maniqueus, ao invés de dizer
simplesmente que eram errôneos.
É interessante que as primeiras razões de Santo Agostinho para rejeitar as
doutrinas de Maniqueu fossem científicas. Recordava-se — assim nos diz
ele {182} — do que aprendera de astronomia nos escritos dos melhores
astrônomos, « e os comparava com os ditos de Maniqueu, que, em sua louca
insensatez, escrevera muito e copiosamente sobre tais assuntos; mas nenhum de
seus raciocínios sobre os solstícios, ou os equinócios, ou os eclipses, ou o que quer
que, a respeito, eu houvesse aprendido nos livros de filosofia secular, me era
satisfatório. Ordenavam-me, no entanto, que acreditasse; não obstante, isso não
correspondia com os raciocínios obtidos por meio de cálculos ou por minhas
próprias observações, mas justamente o contrário.» Tem o cuidado de assinalar
que os erros científicos não são, em si, um sinal dos erros quanto à fé, mas que só
se convertem nisso quando proferidos com ar de autoridade, como se fossem
devidos a uma inspiração divina. Fica-se a imaginar o que teria ele pensado se
houvesse vivido no tempo de Galileu.
Na esperança de resolver suas dúvidas, um bispo maniqueu chamado Fausto,
considerado como o membro mais ilustrado de sua seita, visitou-o e procurou
raciocinar com ele. Mas « achei-o, em primeiro lugar, inteiramente ignorante
das ciências liberais, salvo a gramática, mas isto de maneira bastante comum.
No entanto, por haver lido algumas das orações de Túlio, alguns livros de Sêneca,
algumas coisas dos poetas e uns poucos volumes de sua própria seita, escritos em
latim e em ordem lógica, e por praticar a oratória diariamente, adquiriu uma
certa eloquência, que se tornava ainda mais agradável e sedutora por achar-se
sob o controle de seu bom senso, além de possuir uma certa graça
natural.» {183}
Achou Fausto completamente incapaz de resolver suas dificuldades
astronômicas. Os livros dos maniqueus, diz-nos ele, « são cheios de extensas
fábulas o céu, as estrelas, o Sol e a Lua» , que não concordam com o que foi
descoberto pelos astrônomos; mas, quando inquiriu Fausto sobre essas matérias
Fausto confessou francamente sua ignorância. « Justamente por isso gostei mais
dele. Porque a modéstia de um espírito franco é ainda mais atraente do que o
conhecimento das coisas que eu desejava saber; e isso encontrei nele, em todas
as mais difíceis e sutis questões.» {184}
Este sentimento é surpreendentemente liberal; coisa que não se teria esperado
naquela época. Nem está em completa harmonia com a atitude posterior de
Santo Agostinho com respeito aos heréticos.
Nessa altura, decidiu seguir para Roma, não, diz ele, porque lá os proventos de
um professor fossem mais elevados do que em Cartago, mas porque ouvira dizer
que as classes eram mais ordenadas. Em Cartago, as desordens perpetradas pelos
estudantes eram tais que o ensino se tornava quase impossível; mas, em Roma,
embora houvesse menos desordem, os estudantes deixavam fraudulentamente de
efetuar seus pagamentos.
Em Roma, esteve ainda associado com os maniqueus, mas menos convencido
da verdade do que pregavam. Começou a pensar que os acadêmicos tinham
razão ao afirmar que os homens deviam duvidar de tudo.{185} Contudo, ainda
concordava com os maniqueus, ao pensar « que não somos nós próprios que
pecamos, mas há uma outra natureza (qual, eu não o sei) que peca em nós» .
Acreditava, ainda, que o Mal é uma certa espécie de substância. Isto torna claro
que, antes de sua conversão, a questão do pecado já o preocupava.
Após permanecer em Roma cerca de um ano, foi enviado a Milão pelo
prefeito Símaco, em resposta à solicitação daquela cidade, que desejava um
professor de retórica. Em Milão, travou conhecimento com Ambrósio,
« conhecido de toda a gente como um dos melhores homens» . Veio a gostar de
Ambrósio pela bondade e a preferir a doutrina católica à dos maniqueus; mas,
durante algum tempo, foi refreado pelo ceticismo que aprendera com os
acadêmicos, « a cujos filósofos, não obstante, por não contarem com o nome
redentor de Cristo, me neguei por completo a entregar o cuidado de minha alma
enferma» .{186}
Em Milão, uniu-se a ele a mãe, que teve poderosa influência em apressar os
últimos passos de sua conversão. Ela era católica fervorosa, e ele sempre
escreveu a respeito num tom de reverência. Foi tanto mais importante para ele,
nessa época, porque Ambrósio se achava demasiado ocupado para trocar idéias
com ele em particular.
Há um capítulo muito interessante {187} no qual compara a filosofia platônica
com a doutrina cristã. O Senhor, diz, forneceu-lhe nessa época « alguns livros dos
platônicos, traduzidos para o grego e o latim. E nele li, não verdadeiramente com
estas palavras, mas com o mesmo propósito, reforçado por muitas e diversas
razões, que « no princípio era o Verbo, e o Verbo era com Deus, e o Verbo era
Deus: o mesmo aconteceu no começo com Deus; todas as coisas foram criadas
por Ele e, sem Ele, nada se fez: o que foi feito por Ele é vida, e a vida era a luz
dos homens, e a luz brilha na escuridão e a escuridão não a contém. E que a alma
do homem, embora seja « testemunha da luz» , por si mesma « não é aquela
luz» , mas Deus o Verbo de Deus, « é a verdadeira luz que ilumina todo homem
que vem ao mundo» . E que « Ele estava no mundo, e o mundo foi feito por Ele,
e o mundo não O conhecia» . Mas que Ele veio a Si mesmo, e Ele mesmo não O
recebeu; mas, a todos os que O receberam, Ele deu o poder para que se
tornassem os filhos de Deus, mesmo àqueles que acreditaram em Seu Nome» ;
isto não li lá. Também não leu lá, que « o verbo se fez carne e habitou entre nós;
nem que « Ele se humilhou e se fez obediente até a morte, mesmo a morte na
Cruz; nem que, « ao ouvir-se o nome de Jesus, todo joelho devia dobrar-se» .
Falando-se de um modo geral, encontrou nos platônicos a doutrina metafísica
do Logos, mas não a doutrina da Encarnação e a doutrina consequente da
salvação humana. Algo não muito diferente dessas doutrinas existia no orfismo e
em outras religiões de mistério; mas isso Santo Agostinho parece ter ignorado. De
qualquer modo, nenhuma delas estava ligada a um acontecimento relativamente
recente, como acontecia com o Cristianismo.
Contra os maniqueus, que não eram dualistas, Agostinho passou a acreditar
que o mal se origina não em certas circunstâncias, mas na perversidade da
vontade.
Encontrou especial conforto nos escritos de São Paulo.{188}
No fim, após apaixonadas lutas interiores, converteu-se (386); renunciou à sua
profissão de professor, à amante, à noiva e, depois de breve período de
meditação em retiro, foi batizado por Santo Ambrósio. Sua mãe regozijou-se
com isso, mas morreu não muito depois. Em 388, voltou à África, onde
permaneceu o resto de sua vida, inteiramente ocupado com os seus deveres
episcopais e com os seus escritos polêmicos contra várias heresias, donatista,
maniquéia e pelagiana.
CAPÍTULO IV
A FILOSOFIA E A TEOLOGIA DE SANTO AGOSTINHO
SANTO AGOSTINHO foi um escritor muito fecundo, principalmente sobre
assuntos teológicos. Alguns de seus escritos polêmicos tratavam de tópicos locais
e perderam seu interesse devido ao seu próprio êxito; mas alguns deles,
particularmente os que se referem aos pelagianos, continuaram a ter influência
prática até os tempos modernos. Não tenciono tratar de suas obras de maneira
extensiva, mas apenas discutir o que me parece importante, intrínseca ou
historicamente. Considerarei:
Primeiro: sua filosofia pura e, em particular, sua teoria do tempo;
Segundo: sua filosofia da história, tal como ele a desenvolveu na Cidade de
Deus;
Terceiro: sua teoria da salvação, proposta contra os pelagianos.
I. Filosofia pura
Santo Agostinho pouco se ocupa de filosofia pura, mas, quando o faz, revela
grande habilidade. É o primeiro de uma longa série cujos conceitos puramente
especulativos são influenciados pela necessidade de concordar com a Escritura.
Isto não se pode dizer dos primeiros filósofos cristãos, como, por exemplo,
Orígenes; em Orígenes, o Cristianismo e o platonismo acham-se lado a lado e
não se entrecruzam. Em Santo Agostinho, por outra parte, o pensamento original
na filosofia pura é estimulado pelo fato de que o platonismo, sob certos aspectos,
não está em harmonia com o Gênese.
A melhor obra puramente filosófica dos escritos de Santo Agostinho é o livro
décimo primeiro das Confissões. As edições populares das Confissões terminam
no Livro X, sob alegação de que o que se segue é desinteressante; é
desinteressante porque é boa filosofia, e não biografia. O Livro XI trata do
problema: tendo a Criação ocorrido como afirma o primeiro capítulo do Gênese,
e como Santo Agostinho mantém contra os maniqueus, devia ter ocorrido o mais
cedo possível. Assim imagina ele a objeção de algum interlocutor.
O primeiro ponto a verificar, para que se compreenda a sua resposta, é que a
Criação saiu do nada, como ensina o Antigo Testamento, como uma idéia
inteiramente alheia à filosofia grega. Quando Platão fala de criação, imagina
uma matéria primitiva a que Deus deu forma; e o mesmo ocorre com
Aristóteles. Seu Deus é um artífice ou arquiteto, mais do que um criador. A
substância é considerada como eterna e incriada; somente a forma é devida à
vontade de Deus. Contra essa opinião, Santo Agostinho afirma, como o deve
fazer todo cristão ortodoxo, que o mundo foi criado não de uma certa matéria,
mas do nada. Deus criou a substância, e não somente a ordem e a disposição.
O conceito grego, de que a criação partindo do nada é impossível, foi repetido,
a intervalos, nos tempos cristãos tendo conduzido ao panteísmo. O panteísmo
afirma que Deus e o mundo não são distintos, e que tudo no mundo é parte de
Deus. Este conceito é desenvolvido mais amplamente por Spinoza, mas do nada.
Deus criou a substância, e não somente a ordem durante todos os séculos cristãos,
que os místicos tiveram dificuldade em manter-se ortodoxos, já que acham
difícil acreditar que o mundo é exterior a Deus. Agostinho, porém, não vê
dificuldade alguma nisso; o Gênese é explícito, e isso lhe basta. Sua opinião sobre
esta matéria é essencial à sua teoria do tempo.
Por que não foi o mundo criado antes? Porque não havia o « antes» . O tempo
foi criado quando se criou o mundo. Deus é eterno, no sentido em que está fora
do tempo; em Deus não existe antes nem depois, mas só um presente eterno. A
eternidade de Deus está isenta da relação de tempo; todo tempo está presente
para Ele simultaneamente. Ele não precede sua própria criação do tempo, pois
isso implicaria que Ele estava no tempo, enquanto que Ele permanece
eternamente fora da corrente do tempo. Isto leva Santo Agostinho a uma teoria
relativista do tempo sumamente admirável.
« Que é, pois, o tempo?» , pergunta. « Se ninguém me pergunta, eu o sei; se
desejo explicar a quem o pergunta, não o sei.» Várias dificuldades o confundem.
Nem o passado nem o futuro, diz ele, mas só o presente realmente é; o presente
é somente um momento, e o tempo só pode ser medido enquanto está passando.
Não obstante, há realmente tempo passado e tempo futuro. Parece que somos
levados aqui a contradições. A única maneira que Agostinho consegue encontrar
para evitar tais contradições é dizer que o passado e o futuro só podem ser
considerados como presente: o « passado» tem de ser identificado com a
memória, e o « futuro» com a espera, sendo a memória e a espera fatos
presentes. Há, diz ele, três tempos: « um presente das coisas passadas, um
presente das coisas presentes, e um presente das coisas futuras» . « O presente
das coisas passadas é a memória; o presente das coisas presentes é a vista, e o
presente das coisas futuras é a espera.» {189} Dizer que há três tempos, passado,
presente e futuro, é uma maneira livre de falar.
Percebe que, com essa teoria, não resolveu realmente todas as dificuldades.
« Minha alma anseia por conhecer este profundo enigma» , diz, e roga a Deus
para que ilumine, assegurando-Lhe que seu interesse pelo problema não é devido
a simples curiosidade. « Confesso-Te, ó Senhor, que ainda ignoro o que é o
tempo.» Mas o ponto capital da solução por ele sugerida é o de que o tempo é
subjetivo: o tempo está na mente humana, que espera, considera e recorda.{190}
Segue-se daí que não pode haver tempo sem um ser criado,{191} e que falar de
tempo antes da criação é coisa sem sentido.
Quanto a mim, não concordo com esta teoria, na parte em que faz do tempo
uma coisa mental. Mas é, sem dúvida, uma teoria muito hábil, que merece ser
seriamente considerada. Eu iria além, e diria que é um grande progresso diante
de tudo o que se encontra sobre o assunto na filosofia grega. Contém uma
exposição melhor e mais clara do que a de Kant acerca da teoria subjetiva do
tempo — uma teoria que, desde Kant, tem sido amplamente aceita entre os
filósofos.
A teoria de que o tempo é apenas um aspecto de nossos pensamentos é uma
das formas mais extremadas do subjetivismo que, como vimos, aumentou pouco
a pouco na antiguidade, a partir de Protágoras e Sócrates. Seu aspecto emocional
é a obsessão do pecado, que veio mais tarde que os seus aspectos intelectuais.
Santo Agostinho revela ambas as espécies de subjetivismo. O subjetivismo leva-o
a antecipar não só a teoria do tempo, de Kant, como o cogito de Descartes. Em
seus Solilóquios, diz: « Tu, que queres saber, sabes quem és? Sei. Onde estás? Não
sei. Sabes que tu pensas? Sei.» Isto contém não apenas o cogito de Descartes,
mas sua resposta ao ambulo ergo sum de Gassendi. Como filósofo, portanto,
Agostinho merece um alto lugar.
II. A Cidade de Deus
Quando, em 410, Roma foi saqueada pelos gôdos, os pagãos, não de maneira
ilógica, atribuíram o desastre ao abandono dos deuses antigos. Enquanto Júpiter
foi adorado, diziam, Roma permaneceu poderosa; agora que os imperadores se
afastaram dele, não mais protege os romanos. Este argumento pagão exigia uma
resposta. A Cidade de Deus, escrita, pouco a pouco, entre 412 e 427, foi a
resposta de Santo Agostinho; mas empreendeu, ao fazer-se um voo muito mais
amplo e desenvolveu um esquema cristão completo da história passada, presente
e futura. Foi um livro que exerceu imensa influência durante toda a Idade Média,
principalmente nas lutas entre a Igreja e os príncipes seculares.
Como alguns outros livros muito grandes, apresenta-se à memória dos que o
leram como algo melhor do que aparece na releitura. Contém muita coisa que
dificilmente alguma pessoa, em nossa época, poderá aceitar, e a sua tese central
é um tanto obscurecida pelas excrescências pertencentes à sua época. Mas a
ampla concepção de um contraste entre a Cidade deste mundo e a Cidade de
Deus permaneceu como uma inspiração para muitos, e mesmo hoje pode ser
exposta de novo em termos não teológicos.
Omitir-se pormenores numa descrição do livro, concentrando-se a gente na
idéia central, daria, a respeito do mesmo, uma opinião indevidamente favorável;
por outro lado, concentrar-se nos pormenores, seria omitir o que há de melhor e
mais importante nele. Procurarei evitar tanto um como outro desses erros,
descrevendo primeiro alguns pormenores e passando, depois, para a idéia geral,
tal como aparece no desenvolvimento histórico.
O livro começa com considerações surgidas por motivo do saque de Roma e
destinadas a mostrar que coisas ainda piores ocorreram em tempos pré-cristãos.
Entre os pagãos que atribuem o desastre ao Cristianismo, há muitos, diz o santo,
que, durante o saque, procuraram refúgios nas Igrejas, as quais os gôdos, sendo
cristãos, respeitaram. No saque de Tróia, pelo contrário, o templo de Juno não
ofereceu proteção alguma, nem os deuses preservaram a cidade de destruição.
Os romanos jamais pouparam os templos nas cidades conquistadas; a este
respeito, o saque de Roma foi menos severo do que muitos outros, e essa
mitigação foi um resultado do Cristianismo.
Os cristãos que sofreram o saque não tinham motivo para queixar-se, por
várias razões. Alguns gôdos perversos talvez tivessem prosperado à sua custa,
mas sofrerão no outro mundo: se todos os pecados fossem castigados neste
mundo, não haveria necessidade do Juízo Final. O que os cristãos suportaram se
converteria, se fossem virtuosos, em sua edificação, pois os santos, diante da
perda de coisas temporais, não perdem nada de valor. Não importa que seus
corpos permaneçam insepultos, pois os animais rapaces não podem interferir na
ressurreição do corpo.
Vem depois a questão das virgens puras que foram violadas durante o saque.
Ao que parece, houve quem afirmasse que essas damas, sem nenhuma culpa
pessoal, haviam perdido a coroa de sua virgindade. O santo, de maneira muito
razoável, opõe-se a tal opinião. « A lascívia de outro não pode poluir-se.» A
castidade é uma virtude da mente e não se perde pela violação, mas perde-se
pela intenção do pecado, mesmo quando não realizado. Sugere-se que Deus
permitiu as violações porque as vítimas se haviam mostrado demasiado
orgulhosas de sua continência. É mau que alguém se suicide a fim de evitar de
ser violada; isto conduz a uma longa discussão de Lucrécia, que não devia ter-se
suicidado, porque o suicídio é sempre um pecado.
Há uma condição para a exculpação das mulheres virtuosas que são
violentadas: não devem gozar. Se o fizerem estarão pecando.
Trata, a seguir, da perversidade dos deuses pagãos. Por exemplo: « Suas peças
teatrais, esses espetáculos de imundície, essas vaidades licenciosas, não foram
primeiro trazidos a Roma pela corrupção dos homens, mas por ordem direta de
seus deuses.» {192} Seria melhor adorar um homem virtuoso, como Scipião, do
que esses deuses imorais. Mas, quanto ao saque de Roma, não devia perturbar os
cristãos, que tem um santuário na « peregrina cidade de Deus» .
Neste mundo, as duas cidades — a terrena e a celestial — estão misturadas;
mas, no outro mundo, os predestinados e os réprobos estarão separados. Nesta
vida, não podemos saber quem, mesmo entre os nossos inimigos aparentes, será
encontrado, no final, entre os eleitos.
A parte mais difícil da obra, diz-nos ele, consistirá na refutação dos filósofos,
com os melhores dos quais os cristãos estão, em grande parte, de acordo —
como, por exemplo, com respeito à imortalidade e à criação do mundo por Deus.
{193}
Os filósofos não abandonaram a adoração dos deuses pagãos, e suas
instruções morais eram fracas porque os deuses eram maus. Não se sugere que
os deuses fossem meras fábulas; Santo Agostinho afirma que existem, mas que
são demônios. Gostavam de ouvir contar histórias imundas sobre eles, pois
queriam prejudicar os homens. As façanhas de Júpiter contam mais, entre os
pagãos, do que as doutrinas de Platão ou as opiniões de Catão. « Platão, que não
admitiria que os poetas vivessem numa cidade bem governada, mostrou que seu
único mérito era melhor do que aqueles deuses, que desejavam ser honrados
com comédias.» {194}
Roma fora sempre perversa, desde o rapto das Sabinas em diante. Muitos
capítulos são dedicados à pecaminosidade do imperialismo romano. Também
não é verdade que Roma não haja sofrido antes de o Estado tornar-se cristão;
desde os gauleses e as guerras civis sofreu tanto ou mais do que a partir dos
gôdos.
A astrologia não é apenas má, como, também, falsa; isto pode ser provado
pelas diferentes fortunas de gêmeos que tiveram o mesmo horóscopo.{195} A
concepção estóica do destino (que se relacionava com a astronomia) é errônea,
já que os anjos e os homens têm livre arbítrio. É certo que Deus tem préconhecimento de nossos pecados, mas não pecamos por causa desse Seu préconhecimento. É um erro supor-se que a virtude traz infelicidade, mesmo neste
mundo; os imperadores romanos, quando virtuosos, foram felizes, mesmo que
não tivessem sido afortunados — e Constantino e Teodósio foram também
afortunados; por outro lado, o reino judaico durou enquanto os judeus aderiram à
verdade da religião.
Há uma descrição muito simpática de Platão, a quem coloca acima de todos
os outros filósofos. Todos os outros tem de ceder-lhe lugar: « Que Tales se vá com
a sua água, Anaxímenes com o ar, os estóicos com o seu fogo, Epicuro com os
seus átomos.» {196} Todos eles eram materialistas; Platão não o era. Platão viu
que Deus não é nenhuma coisa corpórea, mas que todas as coisas recebem a sua
forma de Deus, e de algo imutável. Teve também razão ao dizer que a percepção
não é a fonte da verdade. Os platônicos são os melhores na lógica e na ética, e os
que mais se aproximam do Cristianismo. « Diz-se que Plotino, que não viveu
senão mais tarde, compreendeu Platão melhor do que ninguém.» Quanto a
Aristóteles, era inferior a Platão, mas muito acima dos demais. Ambos, porém,
disseram que todos os deuses são bons e devem ser adorados.
Ao contrário dos estóicos, que condenavam todas as paixões, Santo Agostinho
afirma que as paixões dos cristãos podem ser causa de virtude; a ira, ou a
piedade, não devem ser condenadas per se, mas devemos verificar sua causa.
Os platônicos têm razão acerca de Deus, mas estão errados quanto ao que se
refere aos deuses. Estão também errados em não reconhecer a Encarnação.
Há uma longa discussão sobre anjos e demônios, a qual tem relação com os
neoplatônicos. Os anjos podem ser bons ou maus, mas os demônios são sempre
maus. Para os anjos, conhecimento das coisas temporais (embora eles o
possuam) é vil. Santo Agostinho mantém, com Platão, que o mundo sensível é
inferior ao eterno.
O Livro XI começa com a descrição da natureza da Cidade de Deus. A
Cidade de Deus é a sociedade dos eleitos. Há coisas que podem ser descobertas
pela razão (como nos filósofos), mas, para qualquer novo conhecimento
religioso, temos de confiar nas Escrituras. Não devemos procurar compreender o
tempo e o espaço antes da criação do mundo: não havia tempo antes da Criação,
e não há lugar onde não há mundo.
Tudo o que é bendito é eterno, mas nem tudo o que é eterno é bendito como,
por exemplo, o inferno e Satanás. Deus previu os pecados dos demônios, mas
também a sua utilidade para melhorar o universo como um todo, o que é análogo
à antítese na retórica.
Orígenes erra ao pensar que as almas receberam corpos como castigo. Se
assim fosse as almas más teriam corpos maus; mas os demônios, mesmo os
piores deles, tem corpos aéreos, que são melhores que os nossos.
A razão de o mundo ter sido criado em seis dias é ser o seis um número
perfeito (isto é, igual à soma de seus fatores).
Há anjos bons e anjos maus, mas mesmo os anjos maus não tem uma
essência que seja contrária a Deus. Os inimigos de Deus não o são por natureza,
mas sim por vontade. A vontade viciosa não tem uma causa eficiente, mas
apenas deficiente; não é um efeito, mas um defeito.
O mundo tem menos de seis mil anos de existência. A história não é cíclica,
como alguns filósofos supõem: « Cristo morreu uma vez pelos nossos
pecados.» {197}
Se nossos primeiros pais não houvessem pecado, não teriam morrido, mas,
como pecaram, toda sua posteridade morre, O comer a maçã não trouxe apenas
a morte natural, mas a morte eterna, isto é, a condenação.
Porfírio está errado, ao negar corpos aos santos no céu. Terão corpos
melhores que o de Adão antes da queda; seus corpos serão espirituais, mas não
espíritos, e não terão peso. Os homens terão corpos masculinos, as mulheres
corpos femininos, e os que morreram na infância se levantarão de novo com
corpos adultos.
O pecado de Adão teria trazido a toda a humanidade a morte eterna (isto é, a
condenação), mas a graça de Deus libertou a muitos disso. O pecado veio da
alma, não da carne. Tanto os platônicos como os maniqueus erram ao atribuir o
pecado à natureza da carne, embora os platônicos não sejam tão maus como os
maniqueus.
O castigo de toda a humanidade pelo pecado de Adão foi justo, pois, em
consequência desse pecado, o homem, que poderia ter sido espiritual no corpo, se
tornou carnal na mente.{198}
Isto conduz a uma longa e minuciosa discussão da luxúria sexual, à qual
estamos sujeitos como parte de nosso castigo pelo pecado de Adão. Esta
discussão é muito importante como reveladora da psicologia do ascetismo;
devemos, portanto, ir a ela, embora o santo confesse que o tema é imodesto. A
teoria exposta é a seguinte:
Deve-se admitir que a relação sexual no matrimônio não é pecado, contanto
que a intenção seja a de gerar prole. Mas, mesmo no casamento, um homem
virtuoso desejará poder agir sem lascívia. Mesmo no casamento, como o desejo
de recato o demonstra, os indivíduos se envergonham das relações sexuais,
porque « esse ato legítimo da natureza é (desde os nossos primeiros pais)
acompanhado de nossa vergonha penal» . Os cínicos acham que se podia
prescindir da vergonha, e Diógenes nem queria ouvir falar nela, desejando ser,
em todas as coisas, como um cão; no entanto, mesmo ele, depois de uma
tentativa, abandonou, na prática, esse extremo de descaramento. O que há de
vergonhoso na lascívica é ser independente da vontade. Adão e Eva, antes da
queda, poderiam ter tido relação sexual sem lascívia, embora isso não haja, de
fato, acontecido. Os artesãos, na execução de seu ofício, movem as mãos sem
luxúria; do mesmo modo, Adão, se houvesse se conservado afastado da
macieira, teria podido executar as funções do sexo sem as emoções que agora
exige. Os órgãos sexuais, como o resto do corpo, teriam obedecido à vontade. A
necessidade de lascívia nas relações sexuais é um castigo pelo pecado de Adão,
pois, não fosse por isso, o sexo poderia ter estado divorciado do prazer. Omitindose alguns pormenores fisiológicos que o tradutor, de maneira muito apropriada,
deixou na decente obscuridade do original latino, o que se disse acima é a teoria
de Santo Agostinho acerca do sexo.
É evidente, pelo que foi dito acima, que o que faz com que o asceta sinta
desagrado pelo sexo é a sua independência da vontade. A virtude, afirma-se,
exige um domínio completo da vontade sobre o corpo, mas tal domínio não basta
para tornar possível o ato sexual. O ato sexual, portanto, parece incompatível
com uma vida perfeitamente virtuosa.
Desde a queda, o mundo sempre foi dividido em duas cidades, das quais uma
reinará eternamente com Deus, enquanto a outra será atormentada eternamente
por Satanás. Caim pertence à cidade do demônio, Abel à Cidade de Deus. Abel,
por graça, e em virtude de predestinação, era um peregrino sobre a Terra, e um
cidadão do céu. Os patriarcas pertencem à Cidade de Deus. A discussão sobre a
morte de Matusalém leva Santo Agostinho à debatida questão da comparação
entre a Septuaginta e a Vulgata. Os dados, conforme são apresentados na
Septuaginta, conduzem à conclusão de que Matusalém sobreviveu por catorze
anos ao dilúvio, o que é impossível, já que ele não se encontrava na Arca. A
Vulgata, seguindo os manuscritos hebraicos, dá uma data segundo a qual ele
morreu no ano do dilúvio. Quanto a este ponto, Santo Agostinho afirma que São
Jerônimo e os manuscritos hebraicos devem ter razão. Algumas pessoas
afirmavam que os judeus haviam falsificado deliberadamente os manuscritos
hebraicos, por maldade para com os cristãos. Esta hipótese é rejeitada. Por outro
lado, a Septuaginta deve ter sido divinamente inspirada. A única conclusão é que
os copistas de Ptolomeu cometeram erros ao transcrever a Septuaginta. Falando
das traduções do Antigo Testamento, diz ele: « A igreja recebeu a dos Setenta
como se não houvesse outra, pois muitos dos cristãos gregos, usando inteiramente
esta, não sabiam se havia outras ou não. Nossa tradução latina provém também
dela. Embora um certo Jerônimo, sacerdote culto, e grande linguista, haja
traduzido as mesmas Escrituras do hebraico para o latim. Mas, embora os judeus
afirmem que todo o seu trabalho erudito é verdadeiro, e garantam que os Setenta
erraram frequentemente, as Igrejas de Cristo asseveram que nenhum homem
deve ser preferido a tantos, principalmente sendo aqueles escolhidos, para essa
tarefa, pelos altos sacerdotes» . Aceita a história do acordo miraculoso entre as
setenta traduções independentes, e considera isso como uma prova de que a
Septuaginta é divinamente inspirada. A hebraica, não obstante, é igualmente
inspirada. Esta conclusão deixa sem resolver a questão quanto à autoridade da
tradução de Jerônimo. Talvez pudesse ter estado mais decididamente do lado de
Jerônimo, se os dois santos não houvessem tido uma divergência sobre as
inclinações oportunistas de São Pedro.{199}
Dá-nos um sincronismo da história sagrada e profana. Ficamos sabendo que
Enéias chegou à Itália quando Abdom {200} era juiz em Israel, e que a última
perseguição se verificaria sob o Anticristo, mas em data desconhecida.
Depois de um capítulo admirável contra a tortura judicial, Santo Agostinho
passa a combater os novos Acadêmicos, que afirmam que todas as coisas são
duvidosas. « A Igreja de Cristo detesta essas dúvidas, que considera como
loucura, tendo um conhecimento sumamente certo das coisas que apreende.»
Devíamos acreditar na verdade das Escrituras. Continua explicando que não há
virtude à parte da verdadeira religião. A virtude pagã « é prostituída pela
influência de demônios obscenos e imundos» . O que seriam virtudes num cristão
são vícios num pagão. « Essas coisas que ela (a alma) parece considerar com
virtudes, dominando, assim, seus afetos, são, com efeito, mais vícios do que
virtudes» . Aqueles que não pertencem a esta sociedade (a Igreja) sofrerão
tormento eterno. « Em nossos conflitos aqui na Terra, ou é vencedora a dor, e,
nesse caso, a morte lhe tira todo o sentido, ou, então, triunfa a natureza, e expele
a dor. Mas, então, a dor será uma aflição eterna, e a natureza sofrerá
eternamente, suportando ambas a continuação do castigo infligido» .
Há duas ressurreições: a da alma na morte, e a do corpo no Juízo Final. Depois
de uma discussão de várias dificuldades relativas ao milênio, e os atos
subsequentes de Gog e Magog, chega ele a um texto em II Tessalonicenses (II,
11, 12): « E Deus lhes enviará a operação do erro, para que creia a mentira, para
que sejam condenados todos os que não creram a verdade, antes tiveram prazer
na iniquidade» . Alguns poderiam achar injusto que o Onipotente primeiro os
enganasse e depois os castigasse por terem sido enganados. Mas, para Santo
Agostinho, isso parece estar perfeitamente certo. « Estando condenados, estão
seduzidos e, estando seduzidos, condenados. Mas sua sedução se verifica pelo
julgamento secreto de Deus, justamente secreto e secretamente justo; mesmo o
Seu, que julgou continuamente, desde o começo do mundo.» Santo Agostinho
assevera que Deus dividiu a humanidade em eleitos e réprobos, não devido a seus
méritos ou deméritos, mas arbitrariamente. Todos merecem igualmente a
condenação e, portanto, os réprobos não tem motivo de queixa. Da passagem
acima, de São Paulo, deduz-se que são maus porque são réprobos, e não réprobos
porque são maus.
Depois da ressurreição do corpo, os corpos dos condenados arderão
eternamente sem que sejam consumidos. Não há nada de estranho nisto, pois que
acontece com a salamandra e o Monte Etna. Os demônios, embora incorpóreos,
podem ser queimados pelo fogo corpóreo. Os tormentos do inferno não
purificam, nem diminuirão mediante a intercessão dos santos. Orígenes errou ao
pensar que o inferno não é eterno. Os hereges e os católicos pecadores serão
condenados.
O livro termina com uma descrição da visão de Deus que os santos têm no
céu, e da felicidade eterna da Cidade de Deus.
Do resumo acima, talvez não se possa deduzir com clareza a importância da
obra. O que exerceu influência foi a separação da Igreja e o Estado, com a clara
implicação de que o Estado só poderia ser uma parte da Cidade de Deus
submetendo-se à Igreja em todas as questões religiosas. Desde então, esta tem
sido a doutrina da Igreja. Durante toda a Idade Média e o desenvolvimento
gradual do poder papal, bem como durante todo o conflito entre o Papa e o
Imperador, Santo Agostinho forneceu à Igreja ocidental a justificação teórica de
sua política. O Estado judaico, no tempo legendário dos Juízes e no período
histórico posterior à volta do cativeiro em Babilônia, fora uma teocracia; o Estado
cristão devia imitá-lo a este respeito. A fraqueza não só dos imperadores, como
da maioria dos monarcas medievais ocidentais, permitiu que a Igreja, em grande
parte, realizasse o ideal da Cidade de Deus. No Oriente, onde o imperador era
poderoso, isso jamais se verificou, e a Igreja permaneceu muito mais sujeita ao
Estado do que no Ocidente.
A Reforma, que reviveu a doutrina de Santo Agostinho sobre a salvação,
abandonou seus ensinamentos teocráticos e tornou-se erastiana,{201} devido
principalmente às exigências práticas da luta com o catolicismo. Mas o
erastianismo protestante era apático, e os mais religiosos entre os protestantes
eram ainda influenciados por Santo Agostinho. Os anabatistas, os homens da
Quinta Monarquia e os quakers adotaram uma parte de sua doutrina, mas deram
menos importância à Igreja. Ele era partidário da predestinação, bem como da
necessidade do batismo para a salvação; estas duas doutrinas não se harmonizam
bem, e os protestantes extremados abandonaram esta última. Mas sua escatologia
permaneceu agostiniana.
A Cidade de Deus contém pouca coisa que seja fundamentalmente original. A
escatologia é de origem judaica, e entrou no Cristianismo principalmente através
do Livro da Revelação. A doutrina da predestinação e eleição é paulina, embora
Santo Agostinho a desenvolvesse mais ampla e logicamente do que se pode
encontrar nas Epístolas. A diferença entre a história sagrada e a profana é
exposta com muita clareza no Antigo Testamento. O que Santo Agostinho fez foi
reunir esses elementos e relacioná-los com a história de sua própria época, de tal
modo que a queda do Império ocidental e o período subsequente de confusão
pudessem ser assimilados pelos cristãos sem que isso constituísse uma provação
demasiado severa para a sua fé.
O exemplo judaico de história, passada e futura, é de molde a atrair
poderosamente os oprimidos e infortunados de todos os tempos. Santo Agostinho
adaptou esse modelo ao Cristianismo; Marx, ao socialismo. Para se
compreender, psicologicamente, Marx, dever-se-ia empregar o seguinte
dicionário:
Jeová = Materialismo dialético
O Messias = Marx
Os eleitos = O proletariado
A Igreja = O Partido Comunista
O Segundo Advento = A revolução
Inferno = O castigo dos capitalistas
O milênio = O Estado comunista
Os termos da esquerda dão o conteúdo emocional dos termos da direita, e é
esse conteúdo emocional, familiar àqueles que tiveram uma educação cristã ou
judaica, o que torna cível a escatologia de Marx. Um dicionário semelhante
poderia ser feito para os nazistas, mas suas concepções são mais puramente estilo
Antigo Testamento e menos cristãs que as de Marx — e o seu Messias é mais
análogo aos macabeus do que a Cristo.
III. A controvérsia pelagiana
Uma grande parte do que há de mais influente na teologia de Santo Agostinho
se destina a combater a heresia pelagiana. Pelágio era um galês, cujo nome
verdadeiro era Morgan, o que significa « homem do mar» , o mesmo que
Pelágio em grego. Era um eclesiástico culto e agradável, menos fanático do que
muitos de seus contemporâneos. Acreditava no livre arbítrio, punha em dúvida a
doutrina do pecado original e achava que, quando os homens agem
virtuosamente, isso se deve ao seu próprio esforço moral. Se agem bem e são
ortodoxos, vão para o céu em recompensa pelas suas virtudes.
Essas opiniões, embora hoje pareçam lugares-comuns, causaram, em seu
tempo, grande agitação, e foram declaradas, devido, em grande parte, aos
esforços de Santo Agostinho, heréticas. Tiveram, não obstante, considerável êxito
temporal. Agostinho teve de escrever ao patriarca de Jerusalém, a fim de
adverti-lo contra o astuto herisiarca, que havia persuadido muitos teólogos
orientais a adotar suas idéias. Mesmo depois dessa condenação, outros indivíduos,
chamados semi-pelagianos, defenderam formas mais atenuadas de suas
doutrinas. Demorou longo tempo para que os ensinamentos mais puros de Santo
Agostinho fossem completamente vitoriosos, principalmente na Franca, onde a
condenação final da heresia semi-pelagiana teve lugar, por ocasião do Concilio
de Orange, em 529.
Santo Agostinho ensinou que Adão, antes da queda, tinha livre vontade e teria
podido abster-se do pecado. Mas como ele e Eva comeram a maçã, a corrupção
entrou neles e passou a toda a sua descendência, de modo que ninguém, pelos
seus próprios poderes, pode abster-se do pecado. Somente a graça de Deus
permite que os homens sejam virtuosos. Já que todos nós herdamos o pecado de
Adão, merecemos todos a condenação eterna. Todos os que morrem sem ser
batizados, mesmo as criancinhas, irão para o inferno e sofrerão tormentos sem
fim. Não temos razão para que nos queixemos disso, uma vez que todos nós
somos maus. (Nas Confissões, o santo enumera os crimes de que foi culpado no
berço). Mas, pela livre graça de Deus, certas pessoas, dentre os que foram
batizados, são escolhidas para ir para o céu; estes, são os eleitos. Não vão para o
céu porque são bons; todos nós somos inteiramente depravados, exceto quando a
graça de Deus, que só é concedida aos eleitos, nos permite ser de outra maneira.
Não se pode dar nenhuma razão que explique o fato de alguns serem salvos e o
resto condenado; isso é devido a uma escolha de Deus sem motivo algum. A
condenação é uma prova da justiça de Deus; a salvação, da Sua misericórdia.
Ambas revelam a sua bondade.
Os argumentos a favor dessa doutrina feroz — que foi reavivada por Calvino
e, desde então, abandonada pela Igreja católica — são encontrados nos escritos
de São Paulo, particularmente na Epístola aos Romanos. Santo Agostinho tratou
deles como um advogado trata a lei: a interpretação é hábil e os textos são
analisados de modo a dar o seu último significado. A gente se persuade, no fim,
não de que São Paulo acreditasse no que Agostinho deduz, mas que, tomando-se
certos trechos, isoladamente, implicam justamente no que ele diz. Poderá
parecer estranho que a condenação das criancinhas não batizadas pudesse não ter
sido considerada chocante, mas sim que fosse atribuída a um Deus bom. A
convicção do pecado, porém, dominava-o de tal modo, que ele realmente
acreditava que as crianças recém-nascidas fossem membros de Satanás. Uma
grande parte do que há de mais feroz na Igreja medieval se deve ao seu sombrio
conceito da culpa universal.
Há somente uma dificuldade intelectual que realmente perturba Santo
Agostinho. Não é que lhe pareça lastimável o fato de o homem ter sido criado,
pois que a imensa maioria da raça humana está predestinada ao tormento eterno.
O que o perturba é que, se o pecado original foi herdado de Adão, como ensina
São Paulo, tanto a alma como o corpo devem ser propagados pelos pais, pois o
pecado pertence à alma, não ao corpo. Vê dificuldades nessa doutrina, mas diz
que, já que a Escritura silencia, não pode ser necessário à salvação que se
chegue a uma opinião justa sobre a matéria. Deixa-a, portanto, sem resolver.
É estranho que os últimos homens de eminência intelectual, antes da época do
obscurantismo, se ocupassem não de salvar a civilização, ou de expulsar os
bárbaros, ou de reformar os abusos da administração, mas de pregar o mérito da
virgindade e falar da condenação das criancinhas não batizadas. Vendo-se que
essas eram as preocupações que a Igreja transmitiu aos bárbaros convertidos,
não é de estranhar que a época seguinte ultrapasse, em crueldade e superstição,
quase todos os outros períodos históricos.
CAPÍTULO V
OS SÉCULOS QUINTO E SEXTO
O SÉCULO V foi o da invasão dos bárbaros e o da queda do Império
ocidental. Depois da morte de Agostinho, em 430, houve pouca filosofia; foi um
século de ação destrutiva, o qual, não obstante, determinou, em grande parte, as
linhas em que a Europa deveria desenvolver-se. Foi nesse século que os ingleses
invadiram a Bretanha, fazendo com que se transformasse na Inglaterra; foi
também nesse século que a invasão dos francos transformou a Gália em França,
e que os vândalos invadiram a Espanha, dando o seu nome à Andaluzia. São
Patrício, em meados do século, converteu os irlandeses ao Cristianismo. Por todo
o mundo ocidental, rudes reinos germânicos sucederam à burocracia
centralizada do Império. O correio imperial cessou, as grandes estradas entraram
em decadência, a guerra acabou com o comércio em grande escala, e a vida de
novo se tornou local, tanto política como economicamente. A autoridade
centralizada foi conservada somente na Igreja, e isso com muita dificuldade.
Das tribos germânicas que invadiram o Império no século V, as mais
importantes eram os gôdos. Foram expulsos para o ocidente pelos hunos, que os
atacaram pelo Leste. A princípio, tentaram conquistar o Império ocidental, mas
foram derrotados; voltaram-se, então para a Itália. Desde Diocleciano, haviam
sido empregados como mercenários romanos; isso lhes ensinou mais a respeito
da arte da guerra do que os bárbaros poderiam ter, de outro modo, aprendido.
Alarico, rei dos gôdos saqueou Roma em 410, mas morreu no mesmo ano.
Odoacro, rei dos ostrogodos, pôs fim ao Império ocidental em 476 e reinou até
493, quando foi assassinado, traiçoeiramente, por outro ostrogodo, Teodorico, que
foi rei da Itália até 526. Dele, terei mais o que dizer dentro em pouco. Foi figura
importante tanto na história como na lenda; nas Niebelungenlied, aparece como
« Dietrich von Bern» (« Bern» significa Verona).
Entrementes, os vândalos estabeleceram-se na África, os visigodos no sul da
França e os francos no Norte.
Quando ia em meio a invasão germânica, tiveram lugar as incursões dos
hunos, sob o mando de Átila. Os hunos eram de raça mongólica, mas aliavam-se
frequentemente aos gôdos. Num momento crucial, porém, ao invadir a Gália,
em 451, tiveram uma disputa com os gôdos; os gôdos e os romanos, unidos,
derrotaram-nos, nesse mesmo ano, em Chalons. Átila voltou-se então contra a
Itália e pensou em marchar sobre Roma, mas o Papa Leão o dissuadiu de tal,
assinalando que Alarico morrera depois de haver saqueado Roma. Sua
abstenção, no entanto, de nada lhe valeu, pois morreu no ano seguinte. Depois de
sua morte, o poder dos hunos sofreu um colapso.
Durante esse período de confusão, a Igreja foi perturbada por uma
complicada controvérsia sobre a Encarnação. Os protagonistas dos debates
foram dois eclesiásticos, Cirilo e Nestório, dos quais, de maneira mais ou menos
acidental, o primeiro foi proclamado santo e, o segundo, herege. São Cirilo foi
patriarca de Alexandria desde cerca de 412 até sua morte, em 444; Nestório foi
patriarca de Constantinopla. A questão em debate era a relação da divindade de
Cristo com a Sua humanidade. Havia duas pessoas, uma humana e outra divina?
Esta era a opinião mantida por Nestório. Caso contrário, havia uma natureza, ou
duas naturezas numa única pessoa, uma natureza humana e outra divina? Estas
questões despertaram, no século V, um grau quase inacreditável de paixão e
fúria. « Uma discórdia secreta e incurável estabeleceu-se entre os que receavam
confundir e os que se achavam temerosos de separar a divindade e a
humanidade de Cristo» .{202}
São Cirilo, o defensor da unidade, era homem de zelo fanático. Usava sua
posição de patriarca para instigar pogroms contra a grande colônia judaica de
Alexandria. Sua fama se deve, principalmente, ao linchamento de Hipatia, uma
ilustre dama que, na época do fanatismo, aderiu a filosofia neoplatônica e
dedicou seu talento à matemática. Foi « arrancada de seu carro, despojada de
suas roupas, arrastada para a Igreja e desumanamente assassinada por Pedro o
Leitor e uma horda de fanáticos selvagens e implacáveis: sua carne foi raspada
dos ossos por meio de afiadas conchas de ostras, e seus trêmulos membros
lançados ao fogo. A justa investigação judicial e o castigo foram detidos por
meios de dádivas consideráveis» .{203} Depois disso, Alexandria não foi mais
perturbada por filósofos.
São Cirilo sofreu ao saber que Constantinopla estava sendo desencaminhada
pelos ensinamentos de seu patriarca Nestório, que afirmava haver duas pessoas
em Cristo, uma humana e outra divina. Baseado nisso, Nestório se opôs ao novo
costume de se chamar à Virgem « Mãe de Deus» , esta era, dizia ele, somente a
mãe da Pessoa humana, enquanto que a Pessoa divina, que era Deus, não tinha
mãe. Quanto a esta questão, a Igreja estava dividida: de um modo geral, os
bispos que se achavam ao leste de Suez eram a favor de Nestório, enquanto que
os do Oeste eram favoráveis a São Cirilo. Convocou-se um Concilio, em Éfeso,
em 431, para que decidisse a questão. Os bispos ocidentais chegaram primeiro e,
cerrando as portas aos que estavam atrasados, decidiram apressadamente, a
favor de São Cirilo, que presidiu a reunião. « Este tumulto episcopal, à distância
de treze séculos, adquire o venerável aspecto do terceiro Concilio
ecumênico.» {204}
Como resultado desse Concilio, Nestório foi condenado como herege. Ele não
se retratou, tornando-se, pelo contrário, fundador da seita nestoriana, que teve
grande número de adeptos na Síria e em todo o Oriente. Alguns séculos mais
tarde, o nestorianismo estava tão forte na China que seu credo parecia ter
probabilidade de converter-se na religião estabelecida. Os missionários espanhóis
e portugueses encontraram nestorianos na índia, no século XVI. A perseguição do
nestorianismo pelo governo católico de Constantinopla causou um desgosto que
ajudou muito os maometanos em sua conquista da Síria.
A língua de Nestório, que, pela sua eloquência, seduzira a tantos, foi comida
por vermes — pelo menos segundo o que nos afirmam.
Éfeso aprenderá a substituir Artemis pela Virgem, mas conservava ainda o
mesmo zelo incontido que sentia pela sua deusa no tempo de São Paulo. Dizia-se
que a Virgem fora lá enterrada. Em 449, depois da morte de São Cirilo, um
sínodo de Éfeso tentou levar o triunfo mais longe, caindo assim em heresia oposta
à de Nestório, ou seja, a chamada heresia monofisita, que afirma que Cristo só
tem uma natureza. Se São Cirilo estivesse ainda vivo, teria certamente apoiado
esta idéia, convertendo-se, desse modo, em herege. O imperador apoiou o
sínodo, mas o Papa o repudiou. Por fim o Papa Leão — o mesmo Leão que fez
com que Átila desistisse de saquear Roma — no ano da batalha de Chalons,
conseguiu convocar um concilio ecumênico na Calcedônia em 451, que
condenou os monofisitas e decidiu, finalmente, a doutrina ortodoxa da
Encarnação. O Concilio de Éfeso havia decidido que há somente uma Pessoa em
Cristo, mas o Concilio da Calcedônia decidiu que Ele existe em duas naturezas,
uma humana e outra divina. A influência do Papa foi decisiva nesta questão.
Os monofisitas, como os nestorianos, não se submeteram. O Egito, em sua
quase totalidade, adotou a sua heresia, que se estendeu Nilo acima até a
Abissínia. A heresia dos abissínios foi apresentada por Mussolini como uma das
razões para que ele os conquistasse. A heresia do Egito, como a heresia oposta da
Síria, facilitou a conquista árabe.
Durante o século VI, houve quatro homens de grande importância na história
da cultura: Boécio, Justiniano, Benedito, e Gregório o Grande. Ocupar-me-ei
principalmente deles no que resta deste capítulo e no seguinte.
A conquista da Itália pelos gôdos não pôs fim à civilização romana. Sob o
governo de Teodorico, rei da Itália e dos gôdos, a administração civil da Itália foi
inteiramente romana; a Itália desfrutou de paz e de tolerância religiosa (até quase
o fim); o rei era, ao mesmo tempo, sensato e vigoroso. Nomeou cônsules,
preservou o direito romano e manteve o Senado: quando chegava a Roma, sua
primeira visita era ao Senado.
Embora ariano, Teodorico manteve-se em bons termos com a Igreja até seus
últimos anos. Em 523, o imperador Justino proscreveu o arianismo, e isso
aborreceu Teodorico. Tinha razão para temer, pois a Itália era católica, tendo-se
colocado, por simpatia teológica, ao lado do imperador. Acreditava ele, certa ou
erradamente, que havia uma conspiração em que estavam comprometidos
homens de seu próprio governo. Isto o levou a encarcerar e executar o seu
ministro, o senador Boécio, cuja Consolação da Filosofia foi escrita na prisão.
Boécio era uma figura singular. Durante toda a Idade Média, foi lido e
admirado, considerado sempre como cristão devoto e tratado quase como se
tivesse sido um dos Padres da Igreja. Não obstante, sua Consolação da Filosofia,
escrita em 524, enquanto aguardava sua execução, é puramente platônica; não
prova que não tenha sido um cristão, mas revela que a filosofia pagã exerceu
muito mais influência sobre ele do que a teologia cristã. Algumas obras
teológicas, principalmente uma sobre a Trindade, que lhe é atribuída, são
consideradas por muitos autores como apócrifas; mas foi provavelmente devido
a elas que a Idade Média pôde considerá-lo ortodoxo, tirando dele muitas idéias
platônicas que, de outro modo, teriam sido encaradas com suspeita.
Na obra o verso se alterna com a prosa: Boécio em seu próprio nome, fala em
prosa, enquanto que a filosofia responde em verso. Há uma certa semelhança
com Dante, que foi, sem dúvida, influenciado por ele em sua Vita Nuova.
A Consolação, que Gibbon chama com razão um « volume de ouro» , começa
afirmando que Sócrates, Platão e Aristóteles são os verdadeiros filósofos; os
estóicos, epicuristas e os demais são usurpadores considerados erroneamente,
pela multidão profana, como amigos da filosofia. Boécio diz que obedeceu à
ordem pitagórica de « seguir a Deus» (e não o mandado cristão). A felicidade,
que é o mesmo que bem-aventurança, é o bem, não o prazer. A amizade é uma
« coisa sumamente sagrada» . Grande parte de sua moral concorda
estreitamente com a doutrina estóica e é tirada, com efeito, em grande parte, de
Sêneca. Há um resumo, em verso, do começo do Timeu. Segue-se a isso uma
grande parte de metafísica puramente platônica. A imperfeição, diz-nos ele, é
uma falta, implicando a existência de um modelo perfeito. Adotou a teoria
privativa do mal. Passa, depois, para um panteísmo que deveria ter chocado os
cristãos, mas que, por alguma razão, não o fez. A bem-aventurança e Deus, diz,
constituem ambas o maior bem, sendo, portanto, idênticos. « Os homens se
tornam felizes mediante a obtenção da divindade» . « Aqueles que obtém a
divindade se tornam deuses» . Portanto, todo aquele que é feliz é um Deus, mas,
por natureza, existe somente um Deus, embora possa haver muitos por
participação» . « A soma, origem e causa de tudo o que se busca é a bondade,
conforme, acertadamente, se acredita» . « A substância de Deus não consiste
noutra coisa senão na bondade» . Pode Deus fazer o mal? Não. Portanto o mal
não é nada, já que Deus pode fazer tudo. Os homens virtuosos são sempre
poderosos, e os maus sempre fracos; ambos desejam o bem, mas só o virtuoso o
consegue. Os maus são mais infelizes quando escapam ao castigo do que quando
o sofrem. « Nos homens sábios não há lugar para o ódio» .
O tom do livro se assemelha mais ao de Platão que ao de Plotino. Não há
vestígio da superstição ou da morbidez da época, nenhuma obsessão quanto ao
pecado, nenhuma ânsia excessiva em busca do inatingível. Há uma perfeita
calma filosófica — tanta, com efeito, que, se o livro houvesse sido escrito na
prosperidade, poderia ser considerado como presunçoso. Escrito como foi, na
prisão, sob sentença de morte, é tão admirável como os últimos momentos do
Sócrates platônico.
Não se encontra uma atitude análoga senão depois de Newton. Citarei, in
extenso, um poema do livro que, em sua filosofia, se parece com o Ensino Sobre
o Homem, de Pope.
Se queres ver
As leis de Deus com o espírito mais puro,
Deves fixar o teu olhar no céu,
Cujo curso estabelecido as estrelas em paz assinalam.
O brilhante fogo do Sol
Não detém a parelha da irmã.
Nem deseja o Urso nórdico
Nas ondas do oceano ocultar o seu raio.
Embora ela veja
As outras estrelas lá acaçapadas,
Continua, não obstante, a rolar
Pelo alto céu, jamais tocando o oceano.
A luz da tarde,
Com curso certo, mostra
A chegada da noite sombria,
E Lúcifer se vai antes do dia.
Este amor mútuo
Traça rumos eternos,
E das esferas estreladas lá do alto
Deriva toda a causa de guerra e de discórdias perigosas.
Esse doce assentimento
Ata, com laços iguais,
A natureza de cada elemento,
De modo que as coisas úmidas cedem ante as secas.
O frio penetrante
Com chamas reúne as amizades,
E o trêmulo fogo mantém o lugar mais alto,
E a pesada Terra mergulha na profundidade,
O ano florido
Respira aromas na primavera,
O verão ardente produz o grão,
O outono traz frutos às árvores carregadas.
A chuva que cai
Dá umidade ao inverno.
Estas leis, assim, alimentam e mantém
Todas as criaturas que sobre a Terra vivem.
E quando morrem,
Elas as levam ao seu fim,
Enquanto o seu Criador está sentado nas alturas,
Mantendo nas mãos as rédeas do mundo inteiro.
Ele, como seu rei,
Governa-os com senhoril poder.
Dele nascem, florescem e fluem;
Ele, como sua lei e juiz, decide seus direitos.
As coisas cujo curso
Desliza mais rapidamente,
Seu poderio, às vezes, faz retroceder,
E, subitamente, cessa o seu errante movimento.
A menos que sua força
Sua violência limitasse,
E se os que de outro modo vagariam em toda a sua extensão
Não fossem submetidos a um círculo,
Essa firme lei
Que agora tudo adorna
Seria logo destruída e partida,
Ficando as coisas longe de seu princípio.
Esse poderoso amor
É comum a tudo
Que, por desejo do bem, se move
De volta às fontes de onde primeiro saiu.
Nenhuma coisa terrena
Pode ter continuação
Se o amor não a levar de volta
A causa que primeiramente lhe deu a essência.
Boécio foi, até o fim, amigo de Teodorico. Seu pai era cônsul, assim como ele
e os seus dois filhos. O sogro, Símaco, (neto, provavelmente, do que teve a
controvérsia com Ambrósio sobre a estátua da Vitória) era figura importante na
corte do rei gôdo. Teodorico encarregou Boécio da reforma da moeda e para
assombrar os reis bárbaros menos sofisticados com inventos tais como relógios
de sol e clepsidras. É possível que as famílias aristocráticas de Roma não
estivessem mais livres de superstições do que as de outros lugares; mas a
existência de uma grande erudição e de zelo pelo bem público era única naquela
época. Durante os dois séculos anteriores ao seu tempo e os dez séculos
posteriores, não conheço nenhum europeu culto que fosse, como ele tão livre de
superstição e de fanatismo. Tampouco são os seus méritos meramente negativos;
sua visão das coisas é elevada, desinteressada, sublime. Teria sido notável em
qualquer época; no tempo em que viveu, é simplesmente extraordinário.
A fama medieval de Boécio deve-se, em parte ao fato de haver sido ele
considerado como um mártir da perseguição ariana — uma idéia que surgiu
duzentos ou trezentos anos depois de sua morte. Em Pavia, era tido como santo,
embora, na verdade, não fosse canonizado. Embora Cirilo fosse santo, Boécio
não o foi.
Dois anos depois da execução de Boécio, Teodorico morreu. No ano seguinte,
Justiniano tornou-se imperador. Reinou até 565 e, nesse longo período, logrou
fazer muito mal e algum bem. É por certo famoso, principalmente, pelo seu
Digesto, mas não me aventuro a tratar deste tema, que pertence aos advogados.
Era um homem profundamente piedoso, do que deu mostra, dois anos depois de
sua ascensão ao trono, fechando as escolas de filosofia de Atenas, onde o
paganismo ainda reinava. Os filósofos, desalojados, seguiram para a Pérsia, onde
o rei os recebeu amavelmente. Mas eles se escandalizaram — mais do que lhes
seria próprio como filósofos, diz Gibbon — com as práticas da poligamia e do
incesto, de modo que voltaram de novo à pátria, desaparecendo na obscuridade.
Três anos depois desse feito (532), Justiniano empreendeu uma tarefa, mais
digna de louvor: a construção de Santa Sofia. Não vi nunca Santa Sofia, mas
admirei, em Ravena, os belos mosaicos contemporâneos, inclusive retratos de
Justiniano e da imperatriz Teodora. Ambos eram piedosos, embora Teodora fosse
uma mulher de poucas virtudes, que ele trouxera de um circo. O que era ainda
pior, inclinava-se para o monofisismo.
Mas basta de escândalos. Quanto ao imperador, alegra-me dizê-lo, era de
uma ortodoxia impecável, mesmo na questão dos « Três Capítulos» . Esta foi
uma controvérsia irritante. O Concilio da Calcedônia havia pronunciado como
ortodoxo três padres suspeitos de nestorianismo; Teodora, juntamente com muitos
outros, aceitou todos os outros decretos do Concilio, menos este. A Igreja
ocidental acatou tudo o que foi decidido pelo Concilio, e a imperatriz foi levada a
perseguir o Papa. Justiniano adorava-a e, depois de sua morte, em 548, ela foi
para ele o que o extinto príncipe consorte era para a rainha Vitória. Assim, no
fim, caiu ele em heresia — a do Aphthartodocetismo. Um historiador seu
contemporâneo (Evagrio), escreve: « Tendo recebido, no fim da vida, a paga de
suas más ações, foi em busca da justiça que lhe era devida antes de ocupar o
banco de julgamento do inferno» .
Justiniano aspirava conquistar a maior parte possível do Império ocidental. Em
535, invadiu a Itália, tendo, a princípio, rápido êxito contra os gôdos. A população
católica recebeu-o bem, pois vinha como representante de Roma contra os
bárbaros. Mas os gôdos se uniram e a guerra durou dezoito anos, durante os quais
Roma e a Itália, de modo geral, sofreram muito mais do que durante a invasão
dos bárbaros.
Roma foi capturada cinco vezes, três pelos bizantinos e duas pelos gôdos,
ficando reduzida a uma pequena cidade. A mesma coisa aconteceu na África,
que Justiniano também, de certo modo, reconquistou. A princípio seus exércitos
foram bem recebidos; depois, verificou-se que a administração bizantina era
corrupta e seus impostos ruinosos. No fim, muita gente desejava a volta dos
vândalos e dos gôdos. A Igreja, porém, até os seus últimos anos, manteve-se
firmemente do lado do imperador, devido à sua ortodoxia. Não tentou
reconquistar a Gália, em parte porque se achava muito distante e, também,
porque os francos eram ortodoxos.
Em 568, três anos depois da morte de Justiniano, a Itália foi invadida por uma
nova e ferocíssima tribo germânica — os lombardos. As guerras entre eles e os
bizantinos continuaram, intermitentemente, por espaço de duzentos anos, até
quase o tempo de Carlos Magno. Os bizantinos ocuparam cada vez menos partes
da Itália; no Sul, tiveram de enfrentar também os sarracenos. Roma permaneceu
nominalmente sujeita a eles, e os papas tratavam com deferência os
imperadores orientais. Mas, em muitas regiões da Itália, depois da vinda dos
lombardos, tinham muito pouca ou nenhuma autoridade. Foi este período que
arruinou a civilização italiana. Exilados que fugiam dos lombardos fundaram
Veneza, e não, como costuma dizer a tradição, fugitivos de Átila.
CAPÍTULO VI
SÃO BENEDITO E GREGÓRIO O GRANDE
NA DECADÊNCIA geral da civilização, que se verificou mais ou menos
durante as incessantes guerras do século VI e seguintes, foi principalmente a
Igreja que preservou o que sobreviveu da cultura da antiga Roma. A Igreja
realizou essa obra de maneira bastante imperfeita, pois o fanatismo e a
superstição prevaleciam mesmo entre os maiores eclesiásticos da época, e a
cultura secular era considerada um mal. Não obstante, as instituições
eclesiásticas criaram uma estrutura sólida, dentro da qual se tornou possível, em
tempos posteriores, um renascimento do saber e das artes civilizadas.
No período de que tratamos, três das atividades da Igreja merecem especial
atenção: primeiro, o movimento monástico; segundo, a influência do papado,
principalmente sob Gregório o Grande; terceiro, a conversão dos bárbaros
pagãos por meio de missões. Falarei de cada uma delas sucessivamente.
O movimento monástico começou simultaneamente no Egito e na Síria mais
ou menos em princípios do século IV. Teve duas formas: a dos eremitas solitários
e a dos mosteiros. Santo Antônio, o primeiro dos eremitas, nasceu no Egito cerca
do ano 250, e retirou-se do mundo em 270, aproximadamente. Durante quinze
anos, viveu sozinho numa cabana perto de sua casa; depois, por espaço de vinte
anos, em solidão remota, no deserto. Mas sua fama se disseminou, e as multidões
desejavam ouvi-lo pregar. Assim, em 305, saiu a ensiná-las, encorajando os
homens a que vivessem como eremitas. Praticava a austeridade extrema,
reduzindo os alimentos, a água e o sono a um mínimo necessário à manutenção
da vida. O diabo perseguia-o constantemente com visões luxuriosas, mas ele
resistia valentemente à maldosa diligência de Satanás. No fim de sua vida, a
Tebaida {205} estava cheia de eremitas que haviam sido inspirados pelo seu
exemplo e pelos seus preceitos.
Poucos anos depois — cerca de 315 ou 320 — outro egípcio, Pacômio, fundou
o primeiro mosteiro. Nele, os monges levavam vida em comum, sem
propriedade privada, com refeições e práticas religiosas em comunidade. Foi
desta forma, mais do que da maneira de Santo Antônio, que o monasticismo
conquistou o mundo cristão. Nos mosteiros estabelecidos à semelhança do de
Pacômio, os monges trabalhavam muito, principalmente na agricultura, ao invés
de passar quase todo o tempo a resistir às tentações da carne.
Mais ou menos na mesma época, o monasticismo surgiu na Síria e na
Mesopotâmia. Aqui, o ascetismo foi levado a um grau ainda maior do que no
Egito. São Simeão Estilita e outros eremitas de colunas eram sírios. Foi do Oriente
que o monasticismo passou para os países de língua grega, devido,
principalmente, a São Basílio (cerca de 360). Seus mosteiros eram menos
ascéticos; tinham orfanatos e escolas para rapazes (e não somente para os que
iam ser frades).
A princípio, o monasticismo foi um movimento espontâneo, inteiramente fora
da organização da Igreja. Foi Santo Atanásio quem reconciliou os eclesiásticos
com esse movimento. Em parte, como resultado de sua influência, converteu-se
em regra que os monges deveriam ser sacerdotes. Também foi ele, enquanto se
achava em Roma, em 339, que introduziu o monasticismo no Ocidente. São
Jerônimo muito fez para estimulá-lo, e Santo Agostinho o introduziu na África.
São Martinho de Tours inaugurou mosteiros na Gália; São Patrício, na Irlanda. O
mosteiro de lona foi fundado por São Columbo em 566. Nos primeiros tempos,
antes que os monges pudessem encontrar lugar na organização eclesiástica,
haviam sido uma fonte de desordens. Para começar, não havia maneira de se
discriminar entre os ascetas genuínos e os homens que, nada possuindo de seu,
achavam os estabelecimentos monásticos relativamente confortáveis. Havia,
ainda, uma outra dificuldade: os monges apoiavam, de maneira turbulenta, o seu
bispo favorito, fazendo com que os sínodos (e quase que os Concílios) caíssem
em heresia. O sínodo (não o Concílio) de Éfeso, que decidiu a favor dos
monofisitas, achava-se sob um reino fradesco de terror. Não fosse a resistência
do Papa, e a vitória dos monofisitas poderia ter sido permanente. Em tempos
posteriores, tais desordens não mais ocorreram.
Parece que havia freiras antes de haver monges — já na metade do século
III.
Encaravam a limpeza com aversão. Os piolhos eram chamados « pérolas de
Deus» , constituindo um sinal de santidade. Os santos e as santas vangloriavam-se
de a água jamais lhes haver tocado os pés, exceto quando tinham de atravessar
rios. Nos séculos posteriores, os monges ocuparam-se de muitas coisas úteis:
eram agricultores hábeis, sendo que alguns deles mantiveram viva ou reviveram
a cultura. Mas, no começo, particularmente quanto ao que se referia aos
eremitas, não há de nada disso. A maioria dos monges não trabalhava, jamais
liam coisa alguma, exceto o que a religião prescrevia, e concebiam a virtude de
uma maneira inteiramente negativa, como abstenção do pecado, principalmente
os pecados da carne. São Jerônimo, é certo, levou sua biblioteca para o deserto,
mas acabou por achar que isso fora um pecado.
No monasticismo ocidental, o nome mais importante é o de São Benedito, o
fundador da Ordem Beneditina. Nasceu, em 486, aproximadamente, perto de
Spoleto, sendo descendente de uma família nobre da Umbria; aos vinte anos,
fugiu dos luxos e prazeres de Roma para a solidão de uma caverna, onde viveu
durante três anos. Depois desse período, sua vida foi menos solitária e, cerca do
ano 520, fundou o famoso mosteiro de Monte Cassino, para o qual redigiu a
« Regra Beneditina» . Esta se adaptou aos climas ocidentais, e exigia menos
austeridade do que a que fora até então comum entre os monges egípcios e sírios.
Havia uma rivalidade pouco edificante em extravagância ascética, sendo que os
mais extremados eram considerados os mais santos. São Benedito acabou com
isso, decretando que o ascetismo que fosse além da regra só poderia ser
praticado com permissão do abade. O abade era revestido de grande poder; sua
eleição era vitalícia e tinha, dentro da Regra e dos limites da ortodoxia um poder
quase despótico sobre seus monges, aos quais não mais era permitido, como
anteriormente, deixar o seu mosteiro por outro, conforme lhes apetecesse. Mais
tarde, os beneditinos foram notáveis pelos estudos que realizaram, mas no
começo quase toda a sua leitura era religiosa.
As organizações têm vida própria, independente das intenções de seus
fundadores. Deste fato, o exemplo mais evidente é a Igreja Católica, que
assombraria Jesus e, mesmo, Paulo. A Ordem Beneditina é um exemplo de
menor importância. Os frades fazem voto de pobreza, obediência e castidade.
Quanto a isto, Gibbon observa: « Ouvi ou li em algum lugar a confissão franca de
um abade beneditino: « Meu voto de pobreza me proporcionou cem mil coroas
por ano; meu voto de obediência elevou-me à categoria de um príncipe
soberano» . « Esqueci as consequências do voto de castidade» .{206} Os desvios
da Ordem quanto às intenções de seu fundador não foram, porém, de modo
algum, lamentáveis. Isto é verdade, em particular, quanto à cultura. A Biblioteca
de Monte Cassino era famosa e, sob vários aspectos, o mundo muito deve aos
gostos eruditos dos ulteriores beneditinos.
São Benedito viveu em Monte Cassino desde sua fundação até sua morte, em
543. O mosteiro foi saqueado pelos lombardos pouco antes de Gregório o
Grande, que era, ele próprio, beneditino, ter-se tornado Papa. Os frades fugiram
para Roma; logo, porém, que a fúria dos lombardos cessou, voltaram a Monte
Cassino.
Pelos diálogos de Gregório o Grande, escritos em 593, aprendemos muita
coisa a respeito de São Benedito. Foi « educado em Roma no estudo de
humanidades. Mas como viu que muitos, devido a tais estudos, se entregavam a
uma vida dissoluta e licenciosa, arredou passo, embora até então houvesse
andado muito pelo mundo, receoso de que, entrando muito em contato com eles,
pudessem também ele cair nesse abismo perigoso e sem Deus; por isso, deixando
os livros e abandonando a casa de seu pai e as riquezas, com a decisão resoluta
de servir somente a Deus, procurou um lugar onde pudesse realizar o desejo de
seus santos propósitos. E, assim, partiu, instruído de ignorância erudita e levando
consigo uma sabedoria não erudita» .
Adquiriu imediatamente o poder de realizar milagres. O primeiro deles foi
consertar uma peneira partida por meio de oração. Os habitantes do lugar
penduraram a peneira na porta da igreja, e ela « continuou lá durante muitos
anos, mesmo em meio dos próprios distúrbios dos lombardos» . Abandonando a
peneira, foi para a sua caverna, desconhecida de todos, menos de um amigo, o
qual secretamente lhe fornecia comida, deixando-a descer por uma corda, à qual
estava ligada uma sineta, para que o santo soubesse da chegada de seu alimento.
Mas Satanás atirou uma pedra na corda, partindo tanto esta como a sineta. Não
obstante, o inimigo da humanidade foi frustrado em sua esperança de
interromper o fornecimento de comida ao santo.
Quando São Benedito já havia permanecido na caverna o tempo suficiente
para servir aos propósitos de Deus, Nosso Senhor apareceu, num domingo de
Páscoa, a um certo sacerdote, revelando-lhe o paradeiro do santo e pedindo-lhe
para que repartisse com ele seus alimentos de Páscoa. Mais ou menos na mesma
ocasião, alguns pastores o encontraram. « A princípio, quando o espiaram através
dos arbustos e viram suas vestes feitas de peles, pensaram, na verdade, que se
tratava de algum animal, mas, depois de travar conhecimento com o servo de
Deus, muitos deles se converteram, por seu exemplo, trocando a vida animalesca
pela graça, a piedade e a devoção» .
Como outros eremitas, Benedito sofreu as tentações da carne. « Houve certa
mulher, que vira em determinada ocasião, e cuja lembrança o espírito do mal
colocava em sua mente, inflamando por tal modo de concupiscência a alma do
servo de Deus que, quase dominado pelo prazer, já estava resolvido a abandonar
o deserto. Mas, subitamente, assistido pela graça de Deus, caiu em si; e, vendo
muitas urzes e arbustos espinhosos que cresciam em torno, despojou-se de suas
vestes e lançou-se em meio deles, espojando-se lá tanto tempo que, quando se
ergueu, sua carne estava lastimavelmente dilacerada; e, assim, pelas feridas do
corpo, curou ele as feridas da alma» .
Como sua fama se estendeu por outros países, os frades de certo mosteiro,
cujo abade acabara de morrer, lhe suplicaram para que o sucedesse. Ele assim o
fez, insistindo na observância estrita da virtude, de modo que os frades,
enfurecidos, decidiram envenená-lo com um copo de vinho. Ele, porém, fez o
sinal da cruz sobre o copo e este se partiu. Depois disso, voltou para o deserto.
O milagre da peneira não foi o único praticamente útil realizado por São
Benedito. Certo dia, um gôdo virtuoso estava usando uma alabarda para limpar
urzes quando a cabeça caiu do cabo e caiu em água profunda. O santo,
informado disso, enfiou o cabo na água, o ferro subiu por si mesmo e juntou-se
novamente ao cabo.
Um sacerdote vizinho, invejoso da fama do santo homem, enviou-lhe um pão
envenenado. Mas Benedito soube, milagrosamente, que o pão estava
envenenado. Tinha ele o hábito de dar pão a certo corvo, e quando este veio,
naquele dia, o santo lhe disse: « Em nome de Jesus Cristo Nosso Senhor, leva este
pão e deixa-o num lugar em que nenhum homem possa encontrá-lo» . O corvo
obedeceu e, ao voltar, recebeu seu alimento habitual. O sacerdote mau, vendo
que não podia matar o corpo de São Benedito, resolveu matar-lhe a alma, e
enviou ao mosteiro sete jovens nuas. O santo, receando que algum dos frades
mais moços pudesse ser levado ao pecado, abandonou o mosteiro, a fim de que o
sacerdote não tivesse mais motivo para tais atos. Mas o sacerdote foi morto pelo
desabamento do teto de sua casa. Um frade foi à procura de Benedito com a
notícia, alegrando-se e pedindo-lhe que voltasse. Benedito lamentou a morte do
pecador e impôs uma penitência ao frade, por haver este se rejubilado com o
sucedido.
Gregório não somente relata milagres, como também se digna, de vez em
quando, contar fatos relativos à carreira de São Benedito. Depois de fundar doze
mosteiros, chegou, finalmente, a Monte Cassino, onde havia uma « capela»
dedicada a Apolo, ainda utilizada pela gente do campo em suas adorações pagãs.
« Até mesmo então, a louca multidão de infiéis realizava os mais terríveis
sacrifícios» . Benedito destruiu o altar, fundou em seu lugar uma igreja e
converteu os pagãos das vizinhanças. Satanás estava desgostoso: « O antigo
inimigo da humanidade, não aceitando isso de bom grado, apresentou-se, então,
não ocultamente ou em sonhos, mas abertamente diante dos olhos do santo padre
e, em altos berros, queixou-se de que fora vítima de violência. Os outros frades,
embora não pudessem vê-lo, ouviram a gritaria que Satanás fazia; mas, como o
venerando pai lhes disse, apareceu visivelmente ante ele com terrível aspecto,
como se, com sua boca medonha e olhos chamejantes, quisesse despedaçá-lo.
Quanto ao que o demônio lhe disse, todos os frades o ouviram; primeiro,
chamou-o pelo nome, mas, como o homem de Deus não se dignou responderlhe, pôs-se a insultá-lo; quando exclamou « Benedito, Benedito» e viu que o santo
não lhe dava nenhuma resposta, mudou incontinente de tom, dizendo-lhe:
« Maldito Benedito, e não bendito: que é que tens contra mim? E por que me
persegues desta maneira?» Aqui termina a história; a gente deduz que Satanás
desistiu, desesperado.
Citei esses diálogos de maneira um tanto extensa porque tem tripla
importância. Primeiro, são a fonte principal do que sabemos da vida de São
Benedito, cuja Regra se tornou o modelo para todos os mosteiros ocidentais,
exceto os da Irlanda ou os que foram fundados por irlandeses. Segundo, porque
apresentam um quadro bastante vivido da atmosfera mental em que vivia a
maioria das pessoas no fim do século VI. Terceiro, porque são escritos pelo Papa
Gregório o Grande, quarto e último dos doutores da Igreja ocidental e,
politicamente, um dos papas mais eminentes. A ele devemos voltar agora a nossa
atenção.
O Venerável W. H. Hutton, arcediago de Northampton{207} afirma que
Gregório foi o maior homem do século VI; seus únicos competidores poderiam
ser, diz ele, Justiniano e São Benedito. Todos três, sem dúvida exerceram
profunda influência sobre as épocas subsequentes: Justiniano, pelas suas leis (não
pelas suas conquistas, que foram efêmeras); Benedito pela sua ordem monástica;
e Gregório pelo incremento do poder papal, que se deve a ele. Nos diálogos que
venho citando, ele parece pueril e crédulo, mas, como estadista, é astuto, hábil,
perfeitamente a par do que se podia conseguir no mundo variável e complexo
em que tinha de agir. O contraste é surpreendente; mas os mais eficientes
homens de ação são, com frequência, inferiores intelectualmente.
Gregório o Grande, o primeiro papa desse nome, nasceu em Roma, cerca do
ano 540, de família rica e nobre. Parece que seu avô havia sido papa depois de
enviuvar. Ele próprio, quando jovem, possuía um palácio e imensa riqueza. Teve
o que se considerava uma boa educação, embora esta não incluísse o
conhecimento do grego, que ele jamais adquiriu, apesar de haver vivido seis anos
em Constantinopla. Em 573, foi prefeito da cidade de Roma. Mas a religião o
chamava: demitiu-se de seu posto, deu sua riqueza à fundação de mosteiros e
obras de caridade e transformou seu próprio palácio em convento, tornando-se
beneditino. Dedicou-se à meditação e ao ascetismo, o que lhe prejudicou
permanentemente a saúde. O papa Pelágio II, porém, percebeu sua capacidade
política e enviou-o, como emissário, a Constantinopla, à qual, desde o tempo de
Justiniano, Roma se achava nominalmente sujeita. Gregório viveu em
Constantinopla de 579 a 585, representando os interesses do Papa junto à corte do
imperador, e a teologia papal nas discussões com os eclesiásticos orientais,
sempre mais propensos a heresias do que os do Ocidente. O patriarca de
Constantinopla, essa vez, defendeu a opinião errônea de que os nossos corpos, no
dia da ressurreição, serão impalpáveis, mas Gregório salvou o imperador de cair
nesse desvio da fé verdadeira. Não conseguiu, porém, persuadir o imperador a
empreender uma campanha contra os lombardos, o que constituía o principal
objetivo de sua missão.
Esses cinco anos, de 585 a 590, Gregório os passou como chefe de seu
mosteiro. O Papa morreu e Gregório o sucedeu. Os tempos eram difíceis, mas a
própria confusão reinante oferecia grandes oportunidades para um estadista
hábil. Os lombardos estavam devastando a Itália; a Espanha e a África achavamse em estado de anarquia, devido à franqueza dos bizantinos, a decadência dos
visigodos e as depredações dos mouros. Na França, havia guerras entre o norte e
o sul. A Bretanha, que fora cristã sob o domínio romano, havia voltado, desde a
invasão saxônia, ao paganismo. Havia ainda restos de arianismo, e a heresia dos
Três Capítulos não estava, de modo algum, extinta. Os tempos turbulentos
contagiaram até mesmo os bispos, muitos dos quais viviam de maneira nada
exemplar. A simonia estava na ordem do dia e continuou a ser um mal terrível
até o final do século XI.
Gregório combateu com energia e sagacidade todas essas fontes de
perturbação. Antes de ser pontífice, o bispo de Roma, embora reconhecidamente
o homem mais alto na hierarquia, não era considerado como tendo jurisdição
fora de sua própria diocese. Santo Ambrósio, por exemplo, que vivia nos
melhores termos com o Papa de então, não se considerou nunca, evidentemente,
sujeito à sua autoridade. Gregório, devido, em parte, às suas qualidades pessoais
e, em parte, à anarquia reinante, conseguiu impor com êxito uma autoridade que
era aceita pelo clero de todo o Ocidente e mesmo, em menor grau, pelo clero do
Oriente. Exercia sua autoridade principalmente por meio de cartas a bispos e
governantes seculares de todas as regiões do mundo romano, embora também o
fizesse por outros meios. Seu Livro de Regra Pastoral, que continha conselhos aos
bispos, teve grande influência durante o começo da Idade Média. Tinha por
finalidade servir de guia aos deveres dos bispos, e como tal era aceito. Escreveuo, em primeiro lugar, para o bispo de Ravena, enviando-o também ao bispo de
Sevilha. No governo de Carlos Magno, era oferecido aos bispos na consagração.
Alfredo o Grande traduziu-o para o anglo-saxão. No Oriente, circulava em
grego. Dá conselhos sensatos, senão surpreendentes, aos bispos, como, por
exemplo, não descuidar dos negócios. Diz-lhes, também, que os governantes não
deviam ser criticados, mas que convinha lembrar-lhes sempre do perigo do
inferno, caso não seguissem os conselhos da Igreja.
As cartas de Gregório são extraordinariamente interessantes, não apenas
como reveladoras de seu caráter, mas, ainda, por dar-nos um quadro de sua
época. Seu tom, exceto quando se dirige ao imperador ou às senhoras da corte de
Bizâncio, é o de um líder: às vezes ordenando, outras vezes censurando, jamais
demonstrando a mais leve hesitação quanto ao seu direito de dar ordens.
Tomemos, por exemplo, suas cartas durante um ano (599). A primeira é uma
carta para o bispo de Cagliari, na Sardenha, que, embora velho, era mau. Diz, em
parte: « Fui informado de que, no Dia do Senhor, antes de celebrar as solenidades
da missa, foste recolher os cereais do portador destes presentes … Soube ainda
que, depois das solenidades da missa, não receaste arrancar os marcos dessa
propriedade … Vendo que ainda respeitamos teus cabelos grisalhos, volta de novo
a ti, ancião, e refreia tal leviandade de procedimento, bem como ações assim
perversas» . Escreve, ao mesmo tempo, sobre esse assunto, às autoridades
seculares da Sardenha. O bispo em questão devia, antes de mais nada, ser,
reprovado, pois cobrava uma taxa para dirigir funerais, e depois porque, com seu
assentimento, um judeu convertido colocou a cruz e uma imagem da Virgem
numa sinagoga. Sabia-se, ademais, que tanto ele como outros bispos da Sardenha
viajavam sem permissão de seus superiores metropolitanos. Isto precisava
acabar. Vem, a seguir, uma carta muito severa ao pro-cônsul da Dalmácia,
dizendo, entre outras coisas: « Não vemos de que maneira prestais satisfação a
Deus ou aos homens» . E, ainda: « Quanto ao que diz respeito ao fato de querer
descontar com o nosso favor, é necessário que, com todo o coração e toda a
alma, e com lágrimas, como vos convém, devais dar satisfação a vosso Redentor
por tais coisas» . Não sei o que o infeliz havia feito.
Vem, depois, uma carta a Calínico, exarca da Itália, congratulando-se com ele
pela vitória sobre os eslavos, e dizendo-lhe como devia agir contra os hereges de
Istria, que haviam errado com respeito aos Três Capítulos. Escreve também
sobre o assunto ao bispo da Ravena. Excepcionalmente, encontramos também
uma carta dirigida ao bispo de Siracusa, na qual Gregório defende a si próprio,
em lugar de encontrar faltas nos outros. A questão em apreço é importante: saber
se devia dizer « Aleluia» em certo ponto da missa. O costume de Gregório, diz
ele, não é adotado por subserviência aos bizantinos, como o bispo de Siracusa
sugere, mas procede de São Tiago, através do bendito Jerônimo. Aqueles que
achavam que ele estava sendo indevidamente subserviente ao costume grego
estavam, pois, equivocados. (Uma questão semelhante foi uma das causas do
cisma dos Antigos Crentes na Rússia).
Há diversas cartas dirigidas a soberanos bárbaros, homens e mulheres.
Brunilda, rainha dos francos, desejava lhe fosse conferido o pálio outorgado a
certo bispo francês, e Gregório estava disposto a aceder ao pedido; mas,
infelizmente, o emissário por ela enviado era partidário do cisma. A Agilulfo, rei
dos lombardos, escreve felicitando-o por haver feito a paz. « Pois se,
infortunadamente, não se houvesse feito a paz, que outra coisa poderia advir,
com pecado e perigo de ambos os lados, senão o derramamento do sangue de
miseráveis camponeses cujo trabalho é proveitoso para ambos?» Ao mesmo
tempo, escreve à esposa de Agilulfo, a rainha Teodolinda, dizendo-lhe que influa
no ânimo do marido, para que este persista no bom caminho. Escreve de novo a
Brunlida, a fim de censurar duas coisas em seu reino: o fato de leigos serem
imediatamente promovidos a bispos, sem tempo de prova como sacerdotes
ordinários; e de os judeus poderem ter escravos cristãos. A Teodorico e
Teodoberto, reis dos francos, escreve dizendo que, devido à piedade exemplar
dos francos, gostaria apenas de proferir coisas agradáveis, mas que não podia
deixar de assinalar a prevalência de simonia em seu reino. Escreve de novo a
respeito de um agravo infligido ao bispo de Turim. Uma das cartas, dirigida a um
soberano bárbaro, contém apenas cumprimentos: trata-se de Ricardo, rei dos
visigodos, que fora ariano, mas que se havia tornado católico em 587. Devido a
isso, o Papa o recompensa, enviando-lhe « uma pequena chave do santíssimo
corpo do bendito apóstolo Pedro para dar-lhe sua bênção, contendo ferro de seus
grilhões, para que aquilo que lhe cingiu o pescoço no martírio possa livrar-vos de
todos os pecados» . Espero que Sua Majestade haja ficado satisfeito com esse
presente.
O bispo de Antioquia é instruído a respeito do sínodo herético de Éfeso, e
informado de que « chegou aos nossos ouvidos que, nas Igrejas do Oriente,
ninguém obtém as ordens sagradas (a ordenação) exceto por meio de
suborno» — coisa que o bispo deve retificar sempre que esteja em seu poder
fazê-lo. O bispo de Marselha é censurado por destruir certas imagens que
estavam sendo adoradas: é certo que a adoração de imagens é um mal, mas as
imagens, não obstante, são úteis, e deveriam ser tratadas com respeito. Dois
bispos da Gália são censurados porque uma senhora que se tornara freira foi,
depois, obrigada a casar. « Se este é o caso, deves ter o ofício de mercenário, e
não o mérito de pastor» .
As cartas acima datam de um único ano. Não é de estranhar que ele não
tivesse tempo para a contemplação, como se lamenta numa carta desse ano
(CXXI).
Gregório não era partidário do estudo secular. A Desidério, Bispo de Viena, na
França, escreve:
« Chegou a nossos ouvidos uma coisa que não podemos mencionar sem
vergonha: que a tua Fraternidade (isto é, tu) tem o hábito de explicar a gramática
a certas pessoas. Isto não nos parece nada bem, e o desaprovamos
energicamente, de modo a transformar o que dissemos antes em gemidos e
tristeza, já que o louvor de Cristo não pode encontrar lugar na boca de quem
elogia Júpiter … Assim como é execrável que isso se relacione com um
sacerdote, é preciso verificar-se, com a mais estrita veracidade, se isso é
verdade ou não» .
Esta hostilidade quanto à ciência pagã perdurou, na Igreja, pelo menos
durante quatro séculos, até o tempo de Gerberto (Silvestre II). Foi somente do
século XI em diante que a Igreja aceitou de bom grado a erudição, a atitude de
Gregório para com o imperador é muito mais respeitosa do que antes os reis
bárbaros. Escrevendo a um correspondente em Constantinopla, diz: « O que
agrade ao mais piedoso imperador, seja o que for que ele ordene, está em seu
poder. Como ele o determinar, assim será. Que ele apenas não nos envolva na
destituição (de um bispo ortodoxo). Não obstante, o que fizer, se for canônico,
será obedecido. Mas, se não for canônico, nós o toleraremos até onde possamos
sem cometer pecado de nossa parte» . Quando o imperador Maurício foi
destronado por uma rebelião, cujo líder era um centurião obscuro chamado
Focas, este usurpador chegou ao trono e entregou-se ao massacre dos cinco filhos
de Maurício na presença do pai, após o que matou o velho imperador. Focas foi,
naturalmente, coroado pelo patriarca de Constantinopla, que não tinha outra
alternativa senão a morte. O que é mais surpreendente é que Gregório, da
distância relativamente segura em que se achava, em Roma, escrevesse cartas
de repugnante adulação ao usurpador e à esposa. « Há uma diferença — escreve
ele — entre os reis das nações e os imperadores da república: os reis das nações
são senhores de escravos, mas os imperadores da república são senhores de
homens livres … Possa Deus Todo-Poderoso, em todo pensamento e feito, ter o
coração de vossa Piedade (isto é, vós) em Sua mercê; e quaisquer que sejam as
coisas que se façam com justiça e com clemência, que sejam elas dirigidas pelo
espírito Santo que mora em vosso peito» . A esposa de Focas, a Imperatriz
Leôncia, escreve ele: « Que língua poderá bastar para falar, que mente para
pensar, e que grandes agradecimentos não devemos nós a Deus Todo-Poderoso
pela serenidade de vosso reinado, em que tão pesados e longos fardos foram
retirados de nossos ombros, e no qual voltou o amável jugo da supremacia
imperial!» Poder-se-ia supor que Maurício tivesse sido um monstro na verdade,
porém não passava de um bom velho. Os apologistas desculparam Gregório, sob
alegação de que ignorava as atrocidades cometidas por Focas; mas ele,
certamente, conhecia o procedimento habitual dos usurpadores bizantinos, e não
aguardou o tempo suficiente para verificar se Focas era ou não uma exceção.
A conversão dos pagãos era uma parte importante da crescente influência da
Igreja. Os gregos haviam sido convertidos, antes do fim do século IV, por Úlfilas,
ou Úlfila, — infelizmente ao arianismo, que foi também a crença dos vândalos.
Depois da morte de Teodorico, porém, os gôdos tornaram-se, aos poucos,
católicos: o rei dos visigodos, como vimos, adotou a fé ortodoxa no tempo de
Gregório. Os francos eram católicos desde o tempo de Clóvis. Os irlandeses
foram convertidos, antes da queda do Império ocidental, por São Patrício, um
nobre rural de Somersetshire {208} que viveu entre eles desde 432 até sua morte,
em 461. Os irlandeses, por sua vez, muito fizeram para evangelizar a Escócia e o
norte da Inglaterra. Nesta obra, o maior missionário foi São Columbo; outro foi
São Columbiano, que escreveu longas cartas a Gregório sobre a data da Páscoa e
outros assuntos importantes. A conversão da Inglaterra, à parte Nortúmbria,
mereceu cuidado especial por parte de Gregório. Toda a gente sabe que, antes de
ser Papa, viu dois rapazes loiros, de olhos azuis, no mercado de escravos, em
Roma, e, ao saber que eram anglos, replicou: « Não. São anjos» . Quando se
tornou Papa, enviou Santo Agostinho a Kent, a fim de converter os anglos. Há
muitas cartas em sua correspondência com Santo Agostinho, com Edelberto, rei
de Angel, e com outros, a respeito da missão. Gregório decreta que os templos
pagãos da Inglaterra não devem ser destruídos, mas sim os ídolos, consagrandose depois os templos como igrejas. Santo Agostinho apresenta uma série de
problemas ao Papa — como, por exemplo, se os primos podiam casar, se os
esposos que tiveram relações amorosas na noite anterior podiam ir à Igreja (sim,
se lavaram, responde Gregório) e assim por diante. A missão, como sabemos,
prosperou, e é por isso que hoje somos todos cristãos.
O período que estivemos considerando é peculiar pelo fato de que, embora
seus grandes homens sejam inferiores aos de muitas outras épocas, sua
influência sobre as épocas futuras foi maior. O direito romano, o monasticismo e
o papado devem em grande parte sua longa e profunda influência a Justiniano,
Benedito e Gregorio. Os homens do século IV, embora menos civilizados que
seus predecessores, foram muito mais civilizados que os homens dos quatro
séculos seguintes, conseguindo estabelecer instituições que, por fim,
domesticaram os bárbaros. É digno de nota o fato de que, dos três homens
referidos, dois foram aristocratas nativos de Roma e o terceiro um imperador
romano. Gregório é, num sentido bastante real, o último dos romanos. Seu tom de
comando, embora justificado pelo seu posto, tem sua base instintiva no orgulho
aristocrático romano. Depois dele, durante muito tempo, a cidade de Roma
deixou de produzir grandes homens. Mas, em sua queda, conseguiu prender as
almas de seus conquistadores: a reverência que sentiam pela Cadeira de Pedro
era uma consequência do temor respeitoso que sentiram pelo trono dos Césares.
No Oriente, o curso da história foi diferente. Maomé nasceu quando Gregório
contava, aproximadamente, trinta anos.
SEGUNDA PARTE – OS ESCOLÁSTICOS
CAPÍTULO VII
O PAPADO NA ERA DO OBSCURANTISMO
DURANTE os quatro séculos decorridos entre Gregório o Grande e Silvestre
II, o papado sofreu espantosas vicissitudes. Às vezes, estava sujeito ao imperador
grego, outras ao imperador ocidental e, ainda, à aristocracia romana local. Não
obstante, os papas vigorosos dos séculos VIII e IX, valendo-se de momentos
propícios, erigiram a tradição do poder papal. O período que vai de 600 a 1000 A.
D. é de importância vital para a compreensão da Igreja medieval e de sua
relação com o Estado.
Os papas lograram tornar-se independentes dos imperadores gregos, não tanto
pelos seus próprios esforços como pelas armas dos lombardos, pelos quais não
sentiam, no entanto, gratidão alguma. A Igreja grega permaneceu sempre, em
alto grau, subserviente ao imperador, que considerava competente para decidir
questões de fé e nomear e depor bispos e, mesmo, patriarcas. Os monges
lutaram para tornar-se independentes do imperador e, por isso, colocavam-se, às
vezes, ao lado do Papa. Mas os patriarcas de Constantinopla, embora dispostos a
submeter-se ao imperador, recusavam-se a considerar-se sujeitos de qualquer
modo, à autoridade papal. Às vezes, quando o imperador necessitava da ajuda do
Papa contra os bárbaros, na Itália, era mais amável com o Papa do que com o
patriarca de Constantinopla. A causa principal da separação definitiva das Igrejas
do Ocidente e Oriente foi esta última ter-se recusado a submeter-se à jurisdição
papal.
Depois da derrota dos bizantinos pelos lombardos, os papas tinham razão para
temer que eles também fossem conquistados por esses bárbaros vigorosos.
Salvaram-se mediante uma aliança com os francos, os quais, sob o mando de
Carlos Magno, conquistaram a Itália e a Alemanha. Esta aliança produziu o Sacro
Império Romano, que tinha uma constituição que presumia harmonia entre o
Papa e o imperador. O poder da dinastia carolíngia, todavia, decaiu rapidamente.
A princípio, o Papa colheu as vantagens dessa decadência e, na última parte do
século IX, Nicolau I elevou o poder papal as alturas até então desconhecidas. A
anarquia geral, porém, conduziu, praticamente, à independência da aristocracia
romana, que, no século X, controlou o papado, com resultados desastrosos. A
maneira pela qual, mediante um grande movimento de reforma, o papado e a
Igreja, em geral, se salvaram da subordinação à aristocracia feudal, constituirá o
tema de um capítulo posterior.
No século VII, Roma estava ainda sujeita ao poder militar dos imperadores, e
os papas tinham de obedecer ou sofrer. Um ou outro, como, por exemplo,
Honório, obedeceu, a ponto de chegar à heresia; outros, como Martinho I,
resistiram, sendo aprisionados pelo imperador. De 685 a 752, a maioria dos papas
foram sírios ou gregos. Aos poucos, porém, à medida que os lombardos iam
conquistando cada vez mais a Itália, o poder bizantino declinou. O imperador
Leão Isáurico, em 726, lançou o seu decreto iconoclasta, considerando como
herético não só em todo o Ocidente como, também, em grande parte do Oriente.
A isso, os papas opuseram-se vigorosamente, com êxito; por fim, em 787, sob o
reinado da imperatriz Irene (a princípio como regente), o Oriente), abandonou a
heresia iconoclasta. Enquanto isso, porém, os acontecimentos no Ocidente
haviam terminado para sempre com o controle bizantino sobre o papado.
Cerca do ano 751, os lombardos capturaram Ravena, capital da Itália
bizantina. Este acontecimento, embora expusesse os papas a grande perigo por
parte dos lombardos, os libertou de toda independência dos imperadores gregos.
Os papas preferiram os negros aos lombardos por várias razões. Primeiro, a
autoridade dos imperadores era legítima, enquanto que os reis bárbaros, a menos
que reconhecidos pelos imperadores, eram considerados como usurpadores.
Segundo, os gregos eram civilizados. Terceiro, os lombardos eram nacionalistas,
ao passo que a Igreja mantinha o internacionalismo romano. Quarto, os
lombardos haviam sido arianos e, mesmo depois de sua conversão, conservavam
ainda ódio.
Os lombardos, sob o comando do rei Liutprando, tentaram conquistar Roma
em 739, encontrando violenta oposição por parte do Papa Gregório III, que se
voltou para os francos à procura de auxílio. Os reis merovíngios, descendentes de
Clóvis, haviam perdido todo poder real no reino dos francos, o qual era
governado pelos « Admiradores do Palácio» . Nessa época, o mordomo do
Palácio era um homem excepcionalmente hábil e vigoroso, Carlos Martel, que,
como Guilherme o Conquistador, era bastardo. Em 732, havia ele ganho a
batalha decisiva de Tours contra os mouros, salvando com isso a França para a
Cristandade. Isso deveria ter-lhe conquistado a gratidão da Igreja, mas
necessidades financeiras levaram-no a apoderar-se de algumas terras da Igreja,
o que fez com que diminuísse muito a apreciação de seus méritos pela mesma.
Ele e Gregório III, porém, morreram em 741, e seu sucessor, Pepino, foi
inteiramente satisfatório, do ponto de vista da Igreja. O Papa Estêvão III, em
754, a fim de fugir dos lombardos, atravessou os Alpes e visitou Pepino, ocasião
em que se fez um convênio muito vantajoso para ambas as partes. O Papa
necessitava de proteção militar, mas Pepino precisava de algo que somente o
Papa poderia conceder: a legitimação de seu título de rei em lugar do último dos
merovíngios. Em troca disso. Pepino concedeu Ravena ao Papa, bem como todo
o território do anterior Exarcado da Itália. Como não se podia esperar que
Constantino reconhecesse essa doação, produziu-se a separação política do
Império oriental.
Se os papas houvessem permanecido sujeitos aos imperadores gregos, o
desenvolvimento da Igreja Católica teria sido muito diferente. Na Igreja oriental,
o patriarca de Constantinopla jamais adquiriu a independência da autoridade
secular ou a superioridade sobre os outros eclesiásticos conseguida pelo Papa.
Originariamente, todos os bispos eram considerados iguais, sendo que essa
opinião perdurou, de maneira bastante considerável, no Oriente. Havia, ademais,
outros patriarcas orientais em Alexandria, Antioquia e Jerusalém, enquanto que o
Papa era o único patriarca no Ocidente. (Este fato, todavia, perdeu sua
importância depois da conquista maometana). No Ocidente, mas não no Oriente,
os leigos foram, na maior parte, durante muitos séculos, iletrados, e isto
proporcionou à Igreja, no Ocidente, uma vantagem que não possuía no Oriente.
O prestígio de Roma ultrapassou o de qualquer cidade oriental, pois unia à
tradição imperial lendas do martírio de Pedro e
Paulo, e de Pedro como primeiro Papa. O prestígio do imperador poderia ter
bastado para competir com o do Papa, mas nenhum monarca ocidental o
conseguiu. Os imperadores do Sacro Império Romano careciam, com
frequência, de poder real; ademais, só se tornavam imperadores quando o Papa
coroava. Por todas essas razões, a emancipação do Papa do domínio bizantino
era essencial tanto para a independência da Igreja em relação com os monarcas
seculares, como para o estabelecimento definitivo da monarquia papal no
governo da Igreja ocidental.
Certos documentos de grande importância, a « Doação de Constantino» e as
Falsas Decretais, pertencem a esse período. As Falsas Decretais não nos
interessam, mas devemos dizer algo sobre a Doação de Constantino. A fim de dar
um ar de antiga legalidade à doação de Pepino, os clérigos forjaram um
documento, como se fosse um decreto emitido pelo imperador Constantino, por
meio do qual, ao fundar a Nova Roma, teria concedido ao Papa da Velha Roma
todos os seus territórios ocidentais. Esta concessão, que era a base do poder
temporal do Papa, foi aceita como genuína durante todo o resto da Idade Média.
Foi rejeitada como uma falsificação, pela primeira vez, no tempo da
Renascença, por Lorenzo de Valia, em 1439. Este havia escrito um livro sobre
« as elegâncias da língua latina» , o qual, naturalmente, se achava ausente numa
produção do século VIII. É sumamente estranho que, depois de haver publicado
seu livro contra a Doação de Constantino, bem como um tratado em louvor de
Epicuro, fosse nomeado secretário apostólico pelo Papa Nicolau V, que se
interessava mais pela latinidade do que pela Igreja. Nicolau V, todavia, não se
propunha renunciar às propriedades da Igreja, embora o título de Papa se
baseasse na suposta Doação.
O conteúdo desse notável documento foi resumido, da seguinte maneira, por
C. Delisle Burns:{209}
« Depois do resumo do credo niceno, a queda de Adão e o nascimento de
Cristo, Constantino diz que está sofrendo de lepra, que os médicos de nada lhe
valeram e que ele, portanto, se aproximou « dos sacerdotes do Capitólio» . Eles
propuseram que ele devia matar várias crianças e lavar-se em seu sangue, mas,
devido as lágrimas das mães, desistiu disso. Nessa noite, Pedro e Paulo lhe
apareceram e disseram que o Papa Silvestre, que estava oculto numa caverna no
Soracte, o curaria. Dirigiu-se a Soracte, onde o « Papa universal» lhe disse que
Pedro e Paulo eram apóstolos, e não deuses, após o que lhe mostrou retratos nos
quais reconheceu as figuras de sua visão, admitindo ele tal fato diante de todos os
« sátrapas» . O Papa Silvestre, então, prescreveu-lhe um período de penitencia,
durante o qual deveria usar uma camisa grosseira; depois, batizou-o, quando viu
uma mão que, vindo do céu, lhe tocava o corpo. Foi curado da lepra e abandonou
a adoração de ídolos. Depois, « com todos os seus sátrapas, o Senado, seus nobres
e todo o povo romano, achou de bom alvitre conceder poder supremo a Sé de
Pedro» , e superioridade sobre Antioquia, Alexandria, Jerusalém e
Constantinopla. Construiu depois uma igreja em seu palácio de Latrão. Conferiu
ao Papa sua coroa, tiara e vestes imperiais. Colocou uma tiara sobre a cabeça do
Papa e segurou as rédeas de seu cavalo. Deixou a « Silvestre e seus sucessores
Roma e todas as províncias, distritos e cidades da Itália, bem como o Ocidente,
para que ficasse para sempre sujeitos à Igreja Romana» ; depois, seguiu para o
Oriente, porque « onde o principado dos bispos e o chefe da religião cristã foram
estabelecidos pelo Imperador celestial um imperador terreno não devia ter
poder» .
Os lombardos não se submeteram pacificamente a Pepino e ao Papa, mas,
em repetidas guerras com os francos, foram vencidos. Por fim, em 774, o filho
de Pepino, Carlos Magno, marchou sobre a Itália, derrotou completamente os
lombardos, fez-se reconhecer como seu rei e, depois, ocupou Roma, onde
confirmou a doação de Pepino. Os Papas de sua época, Adriano e Leão III,
acharam vantajoso fomentar seus planos de todos os modos. Conquistou ele a
maior parte da Alemanha, converteu os saxões por meio de vigorosa perseguição
e, finalmente, em sua própria pessoa, fez reviver o Império ocidental, sendo
coroado imperador, pelo Papa, em Roma, no Natal de 800 A. D.
A fundação do Sacro Império Romano marca uma época na teoria medieval,
embora o faça muito menos na prática. A Idade Média era muito dada a ficções
legais, sendo que até então havia persistido a fantasia de que as províncias
ocidentais do antigo Império Romano estavam ainda sujeitas a de jure, ao
imperador de Constantinopla, que era considerado como a única fonte de
autoridade legal. Carlos Magno, adepto de ficções legais, afirmava que o trono do
Império estava vago, porque Irene, a rainha do Império oriental (que chamava a
si própria imperador, e não imperatriz) era uma usurpadora, já que mulher
alguma poderia ser imperador. A legitimidade de Carlos derivava do Papa.
Houve, assim, desde o princípio, uma curiosa interdependência entre o Papa e o
imperador. Ninguém podia ser imperador a não ser que fosse coroado pelo Papa
em Roma; por outro lado, durante séculos, todo imperador forte reivindicava
para si o direito de nomear ou depor os Papas. A história medieval do poder
legítimo dependia tanto do imperador como do Papa; sua dependência recíproca
era molesta para ambos, mas foi, durante séculos, uma coisa inevitável. Havia
atritos constantes, ora com vantagem para uma parte, ora para outra. O Papa foi
vitorioso, mas perdeu, logo depois, a autoridade moral. Tanto o Papa como o
Sacro Imperador Romano sobreviveram — o Papa até hoje, o imperador até o
tempo de Napoleão. Mas a meticulosa teoria medieval, elaborada tendo em vista
seus respectivos poderes, deixou de ser eficaz. A unidade da Cristandade, que ela
mantinha, foi destruída, na esfera secular, pelo poder das monarquias francesa,
espanhola e inglesa, e, na esfera religiosa, pela Reforma.
O caráter de Carlos o Grande e da sua entourage foi resumido da seguinte
maneira pelo Dr. Gerhard Seeliger.{210}
« Desenvolveu-se uma vida vigorosa na corte de Carlos. Vemos, lá,
magnificência e gênio, mas, também, imoralidade. Porque Carlos não punha
muito cuidado na escolha da gente que o cercava. Ele próprio não era uma
criatura exemplar, e suportava a maior licenciosidade nas pessoas que apreciava
e considerava úteis. Era chamado « Sacro Imperador» , embora sua vida
revelasse pouca santidade. É assim chamado por Alcuíno, que também louva a
formosa filha do imperador, Rotrud, cujas virtudes exalta, apesar de haver tido
um filho com o Conde Rodrigo de Maine, sem ser sua esposa. Carlos não queria
separar-se das filhas, nem permitir que casassem, tendo, pois, de aceitar as
consequências. A outra filha, Berta, teve também dois filhos com o piedoso abade
Angilberto de São Riquier. Na verdade, a corte de Carlos era um centro de vida
dissoluta» .
Carlos Magno era um bárbaro forte, politicamente em aliança com a Igreja,
mas sem que se achasse indevidamente sobrecarregado de piedade pessoal. Não
sabia ler nem escrever, mas inaugurou um renascimento literário. Levava vida
dissoluta e amava excessivamente as filhas, mas fez tudo o que estava a seu
alcance para fomentar a vida virtuosa entre os seus súditos. Ele, como seu pai
Pepino, valeu-se habilmente do zelo dos missionários para fomentar sua
influência na Alemanha, procurando fazer, no entanto, com que os Papas
obedecessem suas ordens. Isso eles o faziam de bom grado, pois Roma se tornara
uma cidade bárbara, na qual a pessoa do Papa não estava segura sem proteção
externa, e as eleições papais haviam degenerado em lutas desordenadas de
partido. Em 799, inimigos locais apoderaram-se do Papa, aprisionaram-no e
ameaçaram cegá-lo. Durante a vida de Carlos, parecia que uma nova ordem
seria inaugurada; mas, depois de sua morte, pouco sobreviveu, exceto uma
teoria.
Os êxitos da Igreja e, mais particularmente, do papado, eram mais sólidos que
os do Império ocidental. A Inglaterra havia sido convertida por uma missão
monástica sob as ordens de Gregório o Grande, e permanecia muito mais sujeita
a Roma do que os países cujos bispos estavam acostumados à autonomia local. A
conversão da Alemanha foi devida, em grande parte, à obra de São Bonifácio
(680-754), um missionário inglês que era amigo de Carlos Martel e Pepino, e
muito fiel ao Papa. Bonifácio fundou muitos mosteiros na Alemanha; seu amigo
São Gall fundou o mosteiro suíço que tem o seu nome. Segundo algumas
autoridades, Bonifácio ungiu Pepino como rei, de acordo com um ritual tirado do
Primeiro Livro dos Reis.
São Bonifácio era nativo de Devonshire, educado em Exeter e Winchester.
Seguiu para Frísia em 716, mas logo teve de voltar. Em 717, foi a Roma e, em
719, o Papa Gregório II enviou-o à Alemanha a fim de combater a influência
dos missionários irlandeses (os quais, como se recordará, erraram quanto à data
da Páscoa e o formato da tonsura). Depois de grandes êxitos, voltou a Roma em
722, onde foi feito bispo por Gregório II, ante o qual fez juramento de
obediência. O Papa deu-se uma carta dirigida a Carlos Martel, encarregando-o
de suprimir a heresia, além de converter os pagãos. Em 732, tornou-se arcebispo;
em 738, visitou Roma pela terceira vez. Em 741, o Papa Zacarias fê-lo seu
legado, encarregando-o da reforma da Igreja dos francos. Fundou a abadia de
Falda, à qual deu regulamentos mais estritos que o dos beneditinos. Teve, depois,
uma controvérsia com o bispo de Salsburg, chamado Virgílio, que afirmava
haver outros mundos além do nosso, mas que foi, não obstante, canonizado. Em
754, depois de voltar à Frísia, Bonifácio e seus companheiros foram massacrados
pelos pagãos. Deve-se a ele o fato de o Cristianismo alemão ter sido papal, e não
irlandês.
Os mosteiros ingleses, particularmente os de Yorkshire, eram muito
importantes nessa época. A civilização que havia existido na Britânia romana
havia desaparecido, e a nova civilização, introduzida pelos missionários cristãos,
centralizava-se inteiramente em torno das abadias beneditinas, que deviam tudo,
diretamente, a Roma. O venerável Bede era monge em Jarrow. Seu discípulo
Ecgberto, primeiro arcebispo de York, fundou uma escola arcebispal, onde
Alcuíno foi educado.
Alcuíno é uma figura importante na cultura de seu tempo. Foi a Roma em 780
e, no decurso de sua viagem, encontrou Carlos Magno em Parma. O imperador
empregou-o para ensinar latim aos francos e educar a família real. Passou
grande parte de sua vida na corte de Carlos Magno, empenhado em ensinar e na
fundação de escolas. No fim da vida, foi abade do convento de São Martinho, em
Tours. Escreveu diversos livros, inclusive uma história em verso da igreja de
York. O imperador, embora iletrado, acreditava bastante no valor da cultura e,
durante breve período, diminuiu um pouco as trevas da era do obscurantismo.
Mas sua obra nesse sentido foi efêmera. A cultura de Yorkshire foi, durante certo
tempo, destruída pelos dinamarqueses, enquanto que a da França foi prejudicada
pelos normandos. Os sarracenos invadiram o sul da Itália, conquistaram a Sicília
e, em 846, atacaram até mesmo Roma. Em seu todo, o século X foi, para a
Cristandade ocidental, quase que a sua época mais sombria; quanto ao século IX,
foi redimido pelos eclesiásticos ingleses e pela surpreendente figura de Johannes
Scotus, do qual teremos mais o que dizer oportunamente.
A decadência do poder carolíngio depois da morte de Carlos Magno e a
divisão de seu império redundaram, a princípio em vantagem para o papado. O
Papa Nicolau I (858-67) elevou o poder papal a alturas que jamais atingira antes.
Lutou contra os imperadores do Oriente e do Ocidente, com o rei Carlos o Calvo,
de França, e o Lotário II, de Lorena, bem como com o episcopado de quase
todos os países cristãos; mas foi bem-sucedido em quase todas as suas disputas. O
clero, em muitas regiões, havia-se tornado dependente dos príncipes locais, e
procurava remediar tal situação. Suas duas grandes controvérsias diziam respeito
ao divórcio de Lotário II e à deposição anticanônica de Inácio, patriarca de
Constantinopla. O poder da Igreja, durante toda a Idade Média, teve muito que
ver com os divórcios reais. Os reis eram homens de fortes paixões, que achavam
que a indissolubilidade do matrimônio era uma doutrina apenas para os súditos.
Mas somente a Igreja podia consagrar um casamento e, se declarasse inválido
um casamento, era muito provável que isso tivesse como resultado uma sucessão
disputada e uma guerra de dinastia. A Igreja, portanto, achava-se em posição
bastante forte ao opor-se a divórcios reais e casamentos irregulares. Na
Inglaterra, perdeu essa posição sob o reinado de Henrique VIII, mas
reconquistou-a durante o reinado de Eduardo VIII.
Quando Lotário II pediu o divórcio, o clero de seu reino concordou. O Papa
Nicolau, porém, depôs os bispos que haviam aquiescido, recusando-se
inteiramente a admitir o pedido de divórcio do rei. O irmão de Lotário, o
imperador Luís II, marchou, diante disso, sobre Roma, com a intenção de
intimidar o Papa; mas prevaleceram certos temores supersticiosos, e ele se
retirou. No fim, prevaleceu a vontade do Papa.
A questão do patriarca Inácio foi interessante, pois demonstrou que o Papa
podia ainda impor-se no Oriente. Inácio, que era hostil ao regente Bardas, foi
deposto, e Fócio, até então um leigo, foi elevado a seu posto. O governo bizantino
solicitou do Papa a sanção desse procedimento. O Papa enviou dois legados para
investigar o assunto; quando estes chegaram a Constantinopla estavam
aterrorizados e deram seu consentimento. Durante algum tempo, os fatos foram
ocultados do Papa, mas, quando chegaram a seu conhecimento, este tomou
providências imediatas. Convocou um concilio em
Roma para considerar a questão; destituiu um dos legados de seu bispado, bem
como o arcebispo de Siracusa, que consagrara Fócio; lançou o anátema sobre
Fócio, depôs todos os que havia ordenado e restaurou todos os que havia deposto
por se oporem a ele. O imperador Miguel III enfureceu-se e escreveu ao Papa
uma carta enfadada, mas o Papa respondeu: « A época dos sacerdotes – reis e
pontífices imperadores já passou; a Cristandade separou as duas funções, e os
imperadores cristãos necessitam do Pana com relação à vida eterna, enquanto
que os Papas não têm necessidade dos imperadores, exceto quanto ao que diz
respeito a coisas temporais» . Fócio e o imperador responderam com a
convocação de um concilio, que excomungou o Papa e declarou herética a
Igreja Romana. Logo depois, porém, Miguel III foi assassinado, e seu sucessor,
Basílio, restaurou Inácio em seu posto, reconhecendo, explicitamente, a
jurisdição papal no assunto. Este triunfo se verificou logo depois da morte de
Nicolau, e foi atribuído quase que inteiramente aos acidentes das revoluções de
palácio. Depois da morte de Inácio. Fócio tornou-se de novo patriarca, e
aumentaram as Igrejas oriental e ocidental. Não se pode dizer, pois, que, em
última análise, a política de Nicolau sobre esse assunto tenha sido vitoriosa.
Nicolau teve quase mais dificuldade em impor sua vontade ao episcopado do
que aos reis. Os arcebispos tinham passado a considerar-se homens muito
importantes, e mostravam-se relutantes em submeter-se de boa vontade ao
monarca eclesiástico. Este, no entanto, afirmava que os bispos deviam sua
existência ao Papa e, enquanto viveu, conseguiu, de modo geral, fazer com que
esta opinião prevalecesse. Durante todos esses séculos reinou grande dúvida
quanto à maneira de se nomear os bispos. Originariamente, eram eleitos por
aclamação dos fiéis nas cidades em que se achavam suas catedrais, depois,
frequentemente, por um sínodo de bispos vizinhos; depois, algumas vezes, pelo rei
e, outras, pelo Papa. Os bispos podiam ser depostos por motivos graves, mas não
era claro se deviam ser julgados pelo Papa ou por um sínodo provincial. Todas
essas incertezas tornavam os poderes de um posto dependentes da energia e da
astúcia de seus ocupantes. Nicolau estendeu o poder papal ao limite extremo a
que este podia então chegar; sob seus sucessores, esse poder diminuiu de novo
muito.
Durante o século X, o papado permaneceu inteiramente sob o domínio da
aristocracia romana local. Não havia ainda uma regra fixa quanto à eleição dos
Papas; às vezes, deviam sua eleição a aclamação popular; outras vezes, a
imperadores ou reis e, ainda, como durante o século X, aos detentores do poder
local em Roma. Roma não era, nessa época, uma cidade civilizada, como ainda
havia sido no tempo de Gregório o Grande. Às vezes, havia lutas entre as
facções: outras vezes, al – ruma família rica adquiria poder mediante uma
combinação de violência e corrupção A desordem e a fraqueza da Europa
ocidental eram tão grandes, nesse período, que a Cristandade correu o risco de
ser completamente destruída. O imperador e o rei de França eram incapazes de
dominar a anarquia produzida em seus reinos pelos potentados feudais que eram
nominalmente seus vassalos. Os húnsaros realizaram incursões no norte da Itália.
Os normandos invadiram a costa francesa, até que, em 911, lhes foi dada a
Normandia, em troca do que se tornaram cristãos. Mas o maior perigo, na Itália
e no sul da Franca, provinha dos sarracenos, que não podiam ser convertidos e
não sentiam respeito pela Igreja. Completaram a conquista da Sicília em fins do
século IX; estabeleceram-se junto ao rio Garigliano, perto de Nápoles;
destruíram Monte Cassino e outros grandes mosteiros; tinham uma colônia na
costa da Provença, de onde realizavam incursões à Itália e aos vales dos Alpes,
interrompendo o tráfico entre Roma e o Norte.
A conquista da Itália pelos sarracenos foi evitada pelo Império oriental, que
derrotou, em 915, os sarracenos de Garigliano. Mas não foi bastante forte para
governar Roma, como fizera depois da conquista de Justiniano, e o papado se
converteu, durante cerca de um século, numa fonte de vantagem acidental da
aristocracia romana ou dos condes de Túsculo. Os romanos mais poderosos, no
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