D Gaspar de Bragança - Cenáculo e as afinidades com outros Bibliófilos
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Manuel Martins

2.3. Cenáculo e as afinidades com outros Bibliófilos

2.3.1. D Gaspar de Bragança

D. Gaspar de Bragança2 nasceu em Lisboa, a oito de Outubro de 1716 e morreu em Braga, em dezoito de Janeiro de 1789. Era um dos três “meninos de Palhavã”, tendo sido perfilhado pelo monarca D. João V em Agosto de 1742, é reconhecido como irmão por D. José I em Agosto de 17523.

Foi escolhido para Arcebispo - Primaz de Braga por D. José, em vinte e três de Agosto de 1756, tendo entrando solenemente na cidade apenas em vinte e oito de Outubro de 1759.4

Prelado de sangue real, ficou ligado a várias obras em Braga, fazendo dos livros um dos seus principais enlevos.

De acordo com P. Tavares, D. Gaspar juntou no Paço Arquiepiscopal uma magnífica biblioteca, a qual iria causar grande admiração ao seu sucessor5. Esta livraria

1

Cardoso, Ler na livraria…, 15.

2

Para dados biográficos mais pormenorizados acerca do percurso de D. Gaspar veja-se: Manuel José dos Santos Farinha, Subsídios para a história da “Lisboa Antiga” – O Palácio de Palhavã (Lisboa: Parceria António Maria Pereira, 1923) António Ferrão, O Marquês de Pombal e os “Meninos de Palhavã”, (Coimbra, Imprensa da Universidade, 1923).

3 José Arieiro, «D. Gaspar de Bragança», em Enciclopédia luso-Brasileira de Cultura, ed. Século XXI, v.13

(Lisboa - S.Paulo, editorial Verbo, 2000),67.

4

José Augusto Ferreira, Fastos Episcopaes da Igreja Primacial de Braga, t. III. (Porto: Mitra Bracarense, 1932),380.

acabaria por desaparecer num incêndio que afetou o Paço em 18661, havendo, como testemunho da sua existência e dos livros que a compunham, um índice manuscrito, ordenado alfabeticamente dos “Livros, de que se compõem a Bibliotheca do

Serenissimo Sn.r Dom Gaspar Arcebispo Primaz” 2.

O documento acima referido é omisso nalgumas informações sobre as edições, nomeadamente datas e locais de edição dos exemplares, mas, de acordo com o estudo de P. Tavares, fornece algumas pistas interessantes sobre as recolhas e predisposições intelectuais de D. Gaspar de Bragança. Ao índice previamente referido, juntam-se alguma correspondência relativa a compras e encomendas de livros e uma lista de livros trazidos para o Paço por D. Gaspar, que torna mais evidentes alguns dos interesses bibliográficos deste prelado3.

Tendo em atenção as indicações apresentadas, a documentação existente permite perceber um desejo de atualização bibliográfica por parte deste arcebispo, que terá acrescentado a um núcleo inicial de dois mil setecentos e sessenta e quatro volumes4 várias aquisições, onde despendeu de avultadas somas. A biblioteca reunida por D. Gaspar de Bragança em Braga causou, como atrás mencionámos, admiração no sucessor deste prelado, sendo “digna de um filho de D. João V e adequada ao perfil de um prelado das Luzes”5.

O catálogo dos livros que compunham a biblioteca de D. Gaspar incluía um total de quinhentos e sessenta e oito títulos, com presença de várias matérias, tais com a Teologia, os Estudos Escriturísticos, a Oratória Sacra, a Jurisprudência, a Literatura (profana, ascética e mística), a História (eclesiástica, civil e literária), Ciências e Artes e Poligrafia6.

São vários os livreiros de Lisboa que se correspondem com secretários de D. Gaspar, predispondo-se a satisfazer encomendas, a trocar informações e propondo preços especiais às aquisições deste prelado, que estava a fazer livraria. 7.Isto parece

indiciar que se tratava de uma biblioteca bastante diversificada em termos de temáticas, mas também que se procurava dotar constantemente, dai os contactos com

1

Ferreira, Fastos Episcopaes…, 380.

2

A.D.B. – Pasta Ms. 911, apud. Tavares, «A biblioteca e a bibliofilia…», 274.

3 Tavares, «A biblioteca e a bibliofilia…»,274. 4

Livros que fez transportar de Lisboa para Braga.

5

Tavares, «A biblioteca e a bibliofilia…»,276.

6

Tavares, «A biblioteca e a bibliofilia…»,278.

os diversos livreiros, que estavam conscientes que esta era uma biblioteca em construção, isto é, “que se estava a fazer”. Tendo isso em consideração, julgamos natural que este esforço de dotação possa ter contribuído para a atualização bibliográfica que foi apontada pelo autor que temos vindo a citar.

A biblioteca constituía-se como um motivo de orgulho deste prelado, que gostava de a mostrar a visitantes ilustres, fazendo parte da coleção não apenas livros, mas também outros objetos, nomeadamente medalhas e moedas. A própria coleção de livros dá nota do interesse pela numismática e medalhística, sendo que a coleção de moedas e medalhas de D. Gaspar, rivalizando com a que D. Frei Manuel do Cenáculo reunira no Alentejo, se terá constituído como a mais rica de Portugal1.

Tendo por base as indicações aduzidas pelo autor que temos vindo a citar, procuramos na correspondência de D. Frei Manuel do Cenáculo a carta onde esta coleção é referida. Constatámos, no documento original, a grande valia atribuída à coleção de D. Gaspar de Bragança, afirmando-se que este arcebispo possuía, sem dúvida, a melhor coleção de medalhas de Portugal2.

A pertença à Família Real decerto facilitaria os recursos necessários à reunião de tal coleção, contudo, de acordo com as indicações fornecidas pelo estudo a que temos vindo a aludir, D. Gaspar não se limitou à mera aquisição de peças raras e valiosas. Recorreu à troca de impressões com vários entendidos, com vista a decifrar e classificar algumas das peças e aos livros como instrumento e fonte de conhecimentos teóricos de apoio à sua atividade de colecionador3. Neste sentido, poderemos dizer que apresenta algumas afinidades com Frei Manuel do Cenáculo, uma vez que utilizou também a correspondência como meio de aquisição e informação sobre os vários espécimes das suas coleções, num perfil de atuação comum a muitos dos intelectuais da época.

No que respeita à coleção de livros propriamente dita, são várias as matérias constantes da coleção, encontrando-se exemplares da Enciclopédia, de obras filosóficas com a de David Hume – Discours politiques; do Marquês D’Argens –

Memoires; de Voltaire – Le siécle de Louis XIV e de Rousseau – Discours sur l’Origine de

1 Tavares, «A biblioteca e a bibliofilia…», 280. A conclusão é retirada a partir da análise da

documentação apresentada por Marcadé, Frei Manuel do Cenáculo…, 246, na qual se refere uma carta dirigida por João Vidal da Cunha a Cenáculo, datada de 3 de Setembro de 1775.

2

B.P.E. Códice CXXVII/1-12, f.17. Publicada sob o número 2297, em Gusmão,Catálogo….

l’Inegalité parmi les Hommes; mas também o Journale des Savants, entre diversos

outros1.

Indo de encontro ao afirmado pelo autor que temos vindo a citar, a consideração global dos títulos da biblioteca de D. Gaspar, dá nota de uma modernidade e atualização bibliográfica da coleção, consonantes com o perfil de um prelado atento às questões ideológicas e culturais do momento, acompanhando a atividade cultural europeia contemporânea2. Na sua coleção destaca-se a diversidade temática e a atualidade da coleção. Constata-se a presença de autores franceses, a pouca representatividade de áreas como a Teologia Dogmática3, o maior espaço concedido à Teologia Moral, por contraponto à Dogmática e também a presença de vários escritos anti-jesuíticos4. As grandes áreas de distribuição bibliográfica testemunhadas pelo catálogo bibliográfico de D. Gaspar eram, ainda de acordo com o mesmo autor, o Direito, a História e as Ciência, incluindo as Ciências Económicas, as da Natureza e mesmo a Matemática e a Medicina5.

Subscrevendo as palavras do autor supramencionado, as fontes disponíveis e por eles estudadas acerca da bibliofilia de D. Gaspar de Bragança, para além de interessantes informações sobre leitura, comércio e escolha de livros, põe em evidência uma personalidade que corresponde à imagem de um prelado ilustrado do seu tempo, em ambiente peninsular, com horizontes e possibilidades intelectuais de príncipe e meio-irmão de um monarca que havia imposto, às camadas dirigentes do país, formas de comportamento fortemente dirigidas perante fenómenos culturais, não sendo por isso expectável uma atitude pessoal de inequívoca autonomia ou singularidade6.

A biblioteca de D. Gaspar espelha assim os interesses intelectuais gerais na Europa culta das “Luzes”, aparecendo marcada pela realidade política envolvente do Regalismo oficial, face ao qual abundam leituras de Bossuet, Van Espen, Febrónio, P. Pereira, entre diversos outros. Muitas das escolhas do príncipe, nas quais entravam

1 Tavares, «A biblioteca e a bibliofilia…»,281. 2

Tavares, «A biblioteca e a bibliofilia…», 282.

3

Onde encontramos um valor embelemático da época, Melchior Cano, várias vezes referido por Cenáculo e também citado no Compêndio Histórico do Estado da Universidade de Coimbra.

4

Cf. Tavares, «A biblioteca e a bibliofilia», 281-287.

5

Para uma análise mais detalhada de quais as obras mais relevantes de cada área que se encontravam na biblioteca, cf. Tavares, «A biblioteca e a bibliofilia…», 281-294.

eruditos autores galicanos e filojansenistas, seriam assim insinuadas pela política cultural da corte nessa época. Isto não inviabiliza que o próprio arcebispo tenha tomado parte nalgumas reformas, nomeadamente a religiosa, ao empenhar-se na reedição e adoção na Arquidiocese de Braga do Catecismo de Montepelier1, que como veremos em momento posterior deste trabalho, será também um dos eleitos por D. Frei Manuel do Cenáculo.

A bibliofilia deste arcebispo e a sua ação na arquidiocese pautaram-se por padrões de um aggiornamento ao campo do Iluminismo Católico, não apenas no campo da bibliofilia, mas também no patrocínio a sociedades económicas como a Limiana, no apoio à fundação de instituições caritativas de promoção sociocultural como o Colégio das Ursulinas de Braga, os Recolhimentos de Santa Teresa, entre diversos outros2.

Considerando a trajetória deste arcebispo, admitimos que poderemos considerar que há uma certa proximidade de D. Gaspar ao espectro intelectual3 de Frei Manuel do Cenáculo, sendo que algumas áreas de atuação e interesses são coincidentes com os do prelado. Certamente, terão pautado as suas atuações de forma singular, mas parecem partilhar interesses, princípio de organização e preocupação na direção das respetivas dioceses e nos interesses revelados em termos do “mundo intelectual”.