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No coração das trevas: Conrad, o Congo, a fama, o poder e a Amazônia

A obra-prima de Conrad me veio à mente com as imagens do fogo consumindo o Brasil do meio para cima

atualizado

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Antonio Cruz/ Agência Brasil
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1 de 1 amazonia - Foto: Antonio Cruz/ Agência Brasil

Não tenho muita leitura. Li pouco para o que deveria ter lido, mas o pouco que li ficou inteiro em mim. Li (leio) duas ou três vezes o mesmo livro (foi assim com “Dom Casmurro”, “Lolita”, “O Coração das Trevas”, “Madame Bovary”, “A Cidade e as Serras”, “Alice no País das Maravilhas” e ainda será, se tudo der certo, com “Grande Sertão: Veredas” e “Dom Quixote”. (Meus planos costumam ser bem modestos, talvez por medo de me frustrar.)

Nenhum outro livro dos poucos que li me atordoou mais do que “O Coração das Trevas”, de Joseph Conrad. Se o termômetro não acusou, erro dele, porque senti febre na leitura. E ela volta, como agora. A obra-prima de Conrad me veio à mente com as imagens do fogo consumindo o Brasil do meio para cima.

Lembrar de Conrad diante de uma grande tragédia humanitária se tornou quase um clichê: “O horror! O horror!”.

A tragédia de agora não é só humanitária e não é mais no Congo trucidado por um dos mais infames regimes coloniais do século 19/começo do 20. Colônia belga durante 52 anos, um dos territórios mais ricos em recursos minerais, em fauna e flora, o país africano foi sugado por um monarca genocida, Leopoldo II, rei da Bélgica por 44 anos. Nas suas costas pesam de 10 a 15 milhões de congoleses mortos e outros tantos torturados e amputados. É nesse Congo que Conrad sustentou sua ficção febril. Rico em ouro, diamante, marfim, com imensa floresta tropical.

Jorge Luís Borges considerou o livro de Conrad “o mais intenso dos relatos que a imaginação humana jamais concebeu”, mas há um novo olhar de alguns intelectuais africanos que desqualificam o autor por ele supostamente ter diminuído em seu relato o povo congolês. Essa é outra conversa, literatura e ativismo são coisas muito diferentes.

Voltando ao coração das trevas.

Obra que inspirou “Apocalipse Now”, de Coppola, o livro de Conrad conta a história de um inglês, Charles Marlow, que é contratado para transportar marfim rio abaixo e trazer Kurtz, chefe de posto de comércio, das profundezas da floresta.

Não há trégua no texto. Conciso, daqueles que não param em pé na prateleira, “O Coração das Trevas” rouba o ar do leitor, como quem acorda numa montanha russa que terminará fatalmente num precipício.

Um dos trechos mais estremecedores é quando o capitão encontra o louco comerciante de marfim:

“Alma! Se alguém alguma vez lutou com uma alma, esse alguém sou eu. E não pensem que eu estava argumentando com um louco. Acreditem ou não, sua mente encontrava-se perfeitamente lúcida… se bem que concentrada nele próprio com tremenda intensidade; e ali estava minha única oportunidade… a não ser, é claro, que o matasse, o que não seria muito aconselhável, pois faria um barulho inevitável. Mas sua alma havia enlouquecido. Estando sozinha na selva, havia olhado para dentro de si e, por Deus, não tenho dúvida de que enlouquecera. Eu tinha – por causa dos meus pecados, imagino – de passar pela provação de olhar para dentro dela também. Nenhuma eloquência poderia ter sido tão devastadora à nossa crença na humanidade como sua explosão final de sinceridade.”

Ou essa outra, que não me causa menos tremores e febres:

“Kurtz discursava. A voz! A voz! Ressoou profunda até o final. Sobrevivera às suas forças para ocultar nas magníficas dobras da eloquência as áridas trevas do seu coração. Oh, ele lutou! Lutou! Os restos de seu cérebro cansado eram agora assombrados por imagens sombrias – imagens de riqueza e fama revolvendo obsequiosamente em torno de seu inextinguível dom de nobre e elevada expressão. Minha Prometida, meu posto, minha carreira, minhas ideias – essas eram os objetos de suas ocasionais expressões de elevados sentimentos. A sombra do Kurtz original frequentava o criado-mudo dessa imitação vazia, cujo destino era ser realmente enterrado no barro da terra primordial. Mas tanto o amor diabólico como o ódio sobrenatural dos mistérios que havia penetrado lutavam pela posse daquela alma saciada de primitivas emoções, ávida de falsa fama, de enganosa distinção, de todas as aparências de sucesso e poder”.

O Congo real conquistou a independência em 1960. A hoje República Democrática do Congo é  o 13º país mais pobre do mundo; a Bélgica, o 22º mais rico.

* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.

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