Um teto todo seu, Virginia Woolf. (…) uma mulher precisa ter dinheiro e… | by Érika Batista | Medium

Um teto todo seu, Virginia Woolf

Érika Batista
11 min readMar 9, 2019
Virginia Woolf em agosto de 1902. Retrato tirado pelo fotógrafo George Charles Beresford.

(…) uma mulher precisa ter dinheiro e um teto todo seu, um espaço próprio, se quiser escrever ficção.

Até pouco tempo, eu nunca tinha lido Virginia Woolf, e pelo que ouvira falar do seu estilo de ficção, não tinha interesse em ler, mesmo sendo uma grande fã da literatura inglesa. No começo do ano passado, porém, tive a oportunidade de acompanhar de perto alguns momentos da realização de uma nova versão em português de A Room of One’s Own pela experiente tradutora Denise Bottmann, num grupo em que ela compartilhou trechos desafiadores e descobertas e observações do processo de tradução.

Foi a primeira vez que tive contato com o livro e o assunto — mulheres e escrita, mais especificamente, escrita de ficção — me chamou a atenção.

Ao longo do ano, no entanto, deixei o livro para lá e esqueci dele. Até que ali por volta de novembro, nas primeiras aulas de um curso, me deparei com uma resenha deste livro como material de apoio. Essa resenha me plantou uma pulga atrás da orelha. O seu autor insistia muito em afirmar e provar que o livro Um teto todo seu não era feminista, que as feministas estavam erradas em considerá-lo assim, apesar de ele abordar, de fato, questões relativas à dificuldade histórica da mulher em encontrar um espaço não só no cenário literário como na vida em geral. Em suma, o texto tinha um grito de “Not all men” subjacente, em tom culto e contido, mas bem audível para ouvidos acostumados.

Ora, alguma coisa devia haver nesse livro para despertar essa defesa tão ferrenha da “imparcialidade” da Virginia Woolf. E foi por isso que eu decidi lê-lo. “Vamos tirar a teima”, pensei.

Não me arrependi.

Um teto todo seu é um ensaio que tem como ponto de partida um convite feito a Virginia Woolf para palestrar sobre mulheres e ficção. O tema parece à autora muito amplo, e, enquanto pensa em como abordá-lo, ela dá à luz um alter ego ficcional a quem podemos seguir para acompanhar o passo a passo da elaboração da palestra. Em um bem empregado truque de escritor, esse passo a passo consubstancia todo o discurso.

A ponderação do alter ego começa quando essa mulher hipotética está sentada à beira de um rio, na propriedade de uma renomada universidade fictícia, meditando sobre mulheres e literatura. Quando ela decide que precisa pesquisar um pouco sobre o assunto e resolve se dirigir à biblioteca da mesma universidade, descobre que não é bem-vinda ali. Já no caminho repreendem-na por estar onde não devia, e embora a repreensão se refira à trilha que ela tomou, o incidente tem um peso simbólico que reforça o momento em que vedam à futura palestrante seu acesso à biblioteca. As cenas breves, porém icônicas evidenciam o primeiro ponto: o acesso das mulheres à educação superior era algo muito novo e ainda limitado.

Por quê?

Começamos a descobrir os motivos à partir da cena seguinte. A protagonista, aborrecida por ter sido contrariada em suas intenções, resolve passar direto ao compromisso que motivara sua presença na universidade naquela manhã, um almoço na casa de um figurão local. O almoço é suntuoso, e a personagem não consegue deixar de comparar com ele a refeição frugal que consome de noite, em sua hospedagem na ala universitária feminina.

…um bom jantar é de suma importância para uma boa conversa. Não se pode pensar direito, amar direito, dormir direito quando não se jantou direito.

Uma reclamação não sensível ou de bom tom, porque aquela refeição é o que as mulheres da instituição podem prover com suas rendas oriundas de doações incomparavelmente menores que as recebidas pelas instituições dedicadas ao ensino dos homens. E essa distribuição desigual é causada por séculos e séculos em que o controle (quase) exclusivo dos recursos materiais coube aos homens, que podiam, assim, investir na educação de seus homenzinhos. As mulheres, enquanto isso, estavam ocupadas gerando e cuidando de muitos filhos, sem tempo para ganhar dinheiro. E mesmo quando o ganhavam, a lei costumava legar ao marido a administração dessas riquezas, de modo que as mulheres, mesmo que não tivessem sido culturalmente induzidas a ignorar a importância da educação superior, dificilmente conseguiriam investir na de suas descendentes. Estavam presas em um ciclo vicioso de ignorância e pobreza.

Deixando de lado por um momento o tema material, a autora nos leva a outra biblioteca, ante a necessidade de continuar a pesquisa. Ela decide consultar o que foi escrito pelas mulheres e sobre elas. Surpreende-se positivamente ao ver o quão pouco as mulheres escreviam sobre os homens, dentre o pouco que saíra da pena feminina, de modo geral. O contrário passa longe de ser verdadeiro, porém: segundo a constatação da pesquisadora, homens de todas as épocas e várias ideologias têm se ocupado sempre em manifestar sua opinião — nem sempre solicitada — sobre as mulheres.

Essas opiniões, que por vezes elevavam o sexo feminino a categorias super-humanas, na maior parte dos casos visavam enfaticamente reafirmar sua posição inferior ao outro sexo. E a futura palestrante as acha pouco convincentes, não por estarem mal elaboradas em termos de lógica, mas por esconderem um elemento de raiva como o que ela via em seu próprio desenho do professor disforme. Tais textos constituiriam uma reação defensiva de quem se sente ameaçado, de quem, em um mundo competitivo, cruel e com altos padrões de exigência, não consegue fazer uma boa imagem de si mesmo sem colocar alguém abaixo de si numa espécie de escala — a dignidade fica reparada pela comparação, e pode até gerar uma atitude benevolente para com o ser inferior. Desde que ele nunca questione essa relação de superioridade.

Verdadeira quanto a indivíduos, essa reação também se aplica a classes inteiras.

Ou, ponderei, a raiva é de alguma forma o usual, o espírito auxiliar do poder? Os ricos, por exemplo, ficam bravos com frequência porque desconfiam que os pobres querem se apoderar de sua riqueza. […] A vida para ambos os sexos — e olhei para os dois, acompanhando o caminho deles pela calçada — é árdua, difícil, uma luta perpétua. Requer coragem e força gigantescas. Mais que qualquer coisa, talvez, criaturas da ilusão como somos, ela requer confiança em si mesmo. Sem autoconfiança, somos como bebês no berço. E de que modo podemos adquirir essa qualidade imponderável, que também é tão inestimável, o mais rápido possível? Pensando que as outras pessoas são inferiores. Sentindo que temos uma superioridade inata — pode ser riqueza, status, um nariz perfeito ou o retrato de um avô feito por Romney; os artifícios da imaginação humana não têm fim — sobre os outros.

Detendo-se em uma das afirmações categóricas sobre a inferioridade do talento feminino, a autora faz um interessante exercício para analisar sua justeza. Ela nos convida a imaginar que Shakespeare tivesse uma irmã, igualmente talentosa, vivendo na mesma época que ele. Faz-nos ver que, nas condições objetivas do período elisabetano, a irmã de Shakespeare provavelmente nunca poderia dar vazão a seu talento, e se tentasse seguir os passos do irmão, trilhando o mesmo caminho que ele trilhou para ingressar na carreira teatral, acabaria numa vala, prostituída e morta antes de ultrapassar a adolescência.

É provavelmente nesse momento que a fictícia Mary faz uma pausa para o lanche e, ao pagar a conta, reflete sobre as conquistas que obteve recentemente, o direito ao voto e uma renda mensal de quinhentas libras deixada por uma tia. A questão material volta ao centro do palco.

Mesmo entre os escritores homens, os provenientes de famílias pobres são minoria. Os literatos costumam com frequência receber seu sustento de outra fonte, porque, embora o mundo condescenda e eventualmente goste da literatura quando pronta,

… não pede às pessoas que escrevam poemas, romances e histórias; ele não precisa disso. Não se importa se Flaubert encontra a palavra certa ou se Carlyle verifica com cuidado este ou aquele fato. Naturalmente, não vai pagar por aquilo que não quer.

Por isso, não é coincidência que as primeiras mulheres da literatura inglesa às quais somos apresentados no tour cuidadosamente preparado pela autora só conseguiram se publicar porque contaram com uma combinação favorável de condições materiais: eram ricas, sem filhos, e tinham maridos benevolentes, que não se opunham às suas “excentricidades”.

Muito magoou essas autoras, deixando marcas profundas em suas obras, o fato de nunca conseguirem que sua escrita fosse levada a sério. Só quando apareceu uma mulher que começou a ganhar dinheiro com essas “excentricidades”, a escrita feminina ganhou um grama de crédito “o dinheiro dignifica o que é frívolo se não for remunerado*”.

Nem o dinheiro, porém, bastou para tornar a ocupação da escrita recomendável para mulheres de respeito. Sim, … ganhava dinheiro com seus poemas, mas muitas cortesãs também ganhavam muito dinheiro, e nem por isso seu ofício era recomendável. Entre … e as cortesãs, a propósito, as semelhanças eram grandes.

Esse estigma social ainda pesou por muito tempo sobre as escritoras inglesas e levou autoras como Jane Austen, as irmãs Brönte ou Mary-Ann Evans (a George Eliot) a deixarem de assinar suas obras com os nomes verdadeiros, com frequência ocultando-se por trás de pseudônimos masculinos. E essa não era a única limitação que condicionou a escrita feminina na Inglaterra do Século XIX. Havia limitações de forma: Woolf especula que o romance predominou entre essas escritoras não tanto por ser novidade em termos de gênero literário, mas por ser mais fácil de desenvolver em circunstâncias que implicavam interrupções constantes e ausência de privacidade. Havia limitações temáticas: “todo o treinamento literário que uma mulher tinha no começo do século XIX consistia em exercitar a observação de personagens, a análise das emoções”, e embora elas transformassem essa desvantagem em seu ponto forte e fizessem maravilhas com ela, suas obras não podiam escapar da acusação de serem um tanto monotemáticas.

As autoras encontravam-se num impasse insolúvel: estavam confinadas à sala de visitas, mas quando falavam do que ocorria por lá, recebiam bocejos e narizes tortos por parte dos homens, afinal, estavam tratando de assunto “de mulherzinha”. É fato injusto, porém notório que “de mulherzinha” é uma locução adjetiva historicamente pejorativa.

E uma vez que o romance equivale à vida real, seus valores são, em certa medida, os da vida real. Mas é óbvio que os valores das mulheres diferem com frequência dos que foram forjados pelo outro sexo; naturalmente, é assim. Ainda assim, são os valores masculinos que prevalecem. Falando friamente, futebol e esportes são “importantes”; a adoração da moda, a compra de roupas, “trivial”. E esses valores são inevitavelmente transferidos da vida para a ficção. Este livro é importante, a crítica presume, porque trata da guerra. Este livro é insignificante porque trata dos sentimentos das mulheres na sala de pintura. Uma cena no campo de batalha é mais importante do que uma cena em uma loja — em todo lugar e de forma muito sutil, a diferença de valores persiste. Toda a estrutura do romance do começo do século XIX, portanto, foi construída, para quem era mulher, por uma mente que foi afastada de leve da retidão e forçada a alterar sua visão límpida em deferência a autoridades externas.

É uma triste verdade que essa relação de importância dos temas de uma obra se perpetua até hoje, não só na literatura, porém na arte e no mercado em geral.

E não é a única herança sinistra com que as escritoras — e as leitoras — de hoje têm que lidar.

Os efeitos do longo monopólio masculino na produção literária atingiram também as mulheres dentro dos livros. A pesquisadora se dá conta disso ao se surpreender quando encontra retratada em um livro moderno uma amizade entre mulheres. Por muitos e muitos séculos, as mulheres foram retratadas apenas por homens e na sua relação com os homens.

Suponham, por exemplo, que os homens fossem retratados na literatura somente como os amantes das mulheres, e nunca fossem amigos de homens, ou soldados, pensadores, sonhadores; poucos personagens das peças de Shakespeare poderiam ser a eles atribuídos; como a literatura sofreria! Poderíamos ter quase todo o Otelo e um bom pedaço de Antônio, mas nada de César, nem Brutus, nem Hamlet, nem Lear, nem Jaques — a literatura seria incrivelmente depauperada, como de fato é depauperada além da conta pelas portas que foram fechadas na cara das mulheres.

E de fato, mesmo mulheres literárias com potencial só nos são apresentadas pela metade, a metade que interessa aos homens, as poucas características a que eles se dão o trabalho de atentar. O que sabemos de Ofélia? Muito pouco além de que ela apreciava a simbologia das flores e tinha tendências suicidas. E Beatrice? Quem ela era de fato? Tudo que Dante nos mostra é a imagem que pintou dela. E digo pintou, e não esculpiu, porque a Beatrice que ele nos mostra fazendo uma pontinha no Paraíso não chega a ser tridimensional.

Claro que é preciso ter sensibilidade histórica. Da forma como a sociedade era estruturada naquela época, Dante dificilmente poderia nos apresentar um retrato melhor de Beatrice; talvez ele mesmo conhecesse muito pouco dela, considerando as próprias condições das relações entre homens e mulheres então. Em todo caso, uma participação mais delongada provavelmente não se adequaria ao escopo da Divina Comédia.

São compreensíveis as limitações sociais que condicionaram essa e tantas outras obras a nascerem com as características que lhe são próprias. Mas isso não nos impede de reconhecer e lamentar as perdas ocasionadas por essas estruturas históricas e se indignar com a perpetuação da mesma forma de-homem-pra-homem de se fazer arte, como, por exemplo, no caso das mulheres nos quadrinhos.

Estamos em pleno século XXI, e se essa mensagem não nos chegasse de nenhuma outra parte, este livro da Virginia Woolf já está aí há quase cem anos expondo as desigualdades que atravancam o desenvolvimento da literatura.

Sim, porque enquanto o sexo feminino continuar sendo marginalizado — na vida ou na arte — a humanidade jamais poderá explorar todo o seu potencial.

A razão óbvia seria a de que é natural que os sexos cooperem entre si. Há um instinto profundo, se não irracional, em favor da teoria de que a união de um homem e uma mulher colabora para uma satisfação generalizada, para a mais completa felicidade. […] O estado de espírito normal e cômodo é aquele em que os dois estão juntos em harmonia, cooperando espiritualmente. Se a pessoa é um homem, ainda assim a porção mulher de seu cérebro deve produzir resultados; e a mulher também deve se comunicar com o homem que há dentro de si. […] É quando ocorre essa fusão que a mente é fertilizada por completo e usa todas as suas faculdades.

Mas e então, o livro é feminista ou não?

A meu ver, sim. Talvez o colega resenhista tenha uma ideia errada do movimento, uma imagem mental de amazonas vingativas doidas para tomar o poder e beber sangue de macho. É uma imagem errônea.

Sem entrar em detalhes técnicos, datas e correntes, ou mesmo questionar se Woolf queria que a obra saísse feminista, cabe observar que a essência do feminismo é a busca pela igualdade entre homens e mulheres. Um teto todo seu ajuda a identificar as estruturas que impedem a obtenção dessa igualdade. A obra dá o diagnóstico — o remédio, cabe a nós encontrar.

(As citações foram extraídas de “Um teto todo seu”, tradução Bia Nunes de Sousa, publicado pela Editora Tordesilhas, com exceção dos trechos assinalados com um *, que eu traduzi do original).

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Érika Batista

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