Paraty (RJ) – Foi como realizar um sonho antigo, desses que trazem, espantosamente, no meio da nebulosa on�rica, personagens criados pela genialidade de algu�m que voc� aprendeu a admirar desde cedo e povoam v�rias fases da sua vida. Entre o real e o imagin�rio, estavam l� centenas de p�ginas de livros marcadas a l�pis, manchadas pelas digitais no uso recorrente, viradas do avesso em busca de pistas sobre a origem das hist�rias contadas.
Numa manh� chuvosa em Paraty (RJ), com rasgos de sol brilhando de vez em quando sobre a mata atl�ntica e o oceano, parei, encantado – confesso, emocionado –, diante do casar�o do s�culo 18. No sobrado hoje meio arruinado, mas ainda de p�, a poucos metros do mar, viveu, na inf�ncia, a brasileira J�lia da Silva Bruhns (1851-1923), futura J�lia da Silva Bruhns Mann, m�e do escritor alem�o Thomas Mann (1875-1955), ganhador do Pr�mio Nobel de Literatura em 1929.
Apelidada Dod�, a menina nasceu em Paraty, tudo indica entre as localidades de Gra�na e Rio Pequeno, durante mudan�a da fam�lia. No livro autobiogr�fico “Da inf�ncia de Dod�” (“Aus Dodo kindheit”), de 1903, Julia narra os primeiros anos “na selva, ao lado do Oceano Atl�ntico, ao Sul do Equador, entre macacos e papagaios”.
A hist�ria de J�lia Mann, de forma especial seus verdes anos na cidade fluminense, � fonte inesgot�vel para pesquisadores e ficcionistas. Tanto que acaba de ser lan�ado “O regresso de J�lia Mann a Paraty” (Oficina Raquel), da autora portuguesa Teolinda Gers�o. O t�tulo, pode-se dizer, � uma licen�a po�tica, pois J�lia nunca retornou ao Brasil ap�s a partida, entre os 7 e 8 anos, em seguida � morte da m�e durante o parto, para viver definitivamente na Alemanha.
A obra cria tr�s hist�rias distintas com personagens hist�ricos (Sigmund Freud, J�lia Mann e Thomas Mann, que, vale dizer, nunca veio ao Brasil) e fatos reais.
FANTASMAS DO DESEJO
Mas vamos ao casar�o. Rondei a constru��o colonial, prestei aten��o nos detalhes, entrei em outra dimens�o, tal o desejo que me perseguia havia anos. Seria uma epifania? De uma janela, pareceu-me que o adolescente Tadzio, de “A morte em Veneza”, me espreitava, quase me considerando intruso, enquanto no v�o da porta da varanda vislumbrei a sombra de Hans Castorp, como se pairasse sobre “A montanha m�gica” em terras tropicais.Admirar o casar�o da antiga Fazenda Boa Vista ou Engenho Boa Vista, famosa na �poca pela produ��o de aguardente, hoje propriedade particular pertencente a uma marina distante tr�s quil�metros do Centro Hist�rico de Paraty, foi o mais perto que consegui chegar, excetuando-se, evidentemente, as p�ginas dos livros de um autor que considero perfeito na escrita, nas hist�rias, no entendimento do tempo, no desenvolvimento dos personagens, na profundidade das tramas, nos la�os afetivos com o leitor.
Ao chegar � Marina do Engenho, salpicada de embarca��es naquele dia de mar agitado, fui informado de que n�o poderia entrar na casa, devido �s condi��es prec�rias. Deveria respeitar a fita zebrada no entorno. Foi quando me deparei com o espectro de F�lix Krull perto do p� de fruta-p�o. Fiquei meio aturdido, mas logo em seguida vi a senhora Antoinette Buddenbrook, com seu “vestido preto, listrado de cinza-claro, sem enfeites” subindo a escadaria de pedra.
Despertei do del�rio ao contemplar Tonio Kr�ger e Hans Hansen seguindo em dire��o ao mar, que n�o era o B�ltico, e sim um recorte do Atl�ntico. Em dire��o oposta, vagava o compositor Adrian Leverk�hn – felizmente, sozinho. Assim como surgiram, alguns dos personagens criados pelo filho da ex-moradora da casa foram desaparecendo na atmosfera m�gica da regi�o.
para�so Como deve ter sido feliz a inf�ncia de J�lia Mann � beira-mar, “naquele peda�o do para�so”, como bem descreveu o escritor Jo�o Silv�rio Trevisan no romance “Ana em Veneza”. C�u, mar, terra, pitangueiras, bananeiras, animais pendurados nas �rvores, outros na toca. O cora��o da brasileirinha sempre aos pulos, batendo no compasso da natureza.
Ela seguiu assim, no casar�o cercado pela mata tropical, at� a morte da m�e, Maria Senhorinha da Silva. N�o passou muito tempo e o pai de J�lia, o abastado fazendeiro alem�o Johann Ludwig Hermann Bruhns, naturalizado brasileiro com o nome de Jo�o Luiz Germano Brunhs, levou a menina e irm�os para seu pa�s natal, mais exatamente para L�beck. Nessa cidade, J�lia adotou o alem�o como primeiro idioma e esqueceu de vez a l�ngua materna.
Casada aos 17 anos com o senador e comerciante alem�o Thomas Johann Heinrich Mann, de 29, J�lia teve cinco filhos: Heinrich (tamb�m escritor de renome), Thomas, Julia, Carla e Viktor. O ca�ula escreveu sobre a inf�ncia da m�e no Brasil.
A cada instante, diante dos meus olhos, o cen�rio remetia �s ra�zes brasileiras de Thomas Mann, embora o escritor nunca as explicitasse, com rar�ssima cita��o em sua obra.
Em “Confiss�es do impostor F�lix Krull”, escreveu sobre um casal de g�meos, “jovem cavalheiro e jovem dama”, num hotel: “Tinham uma apar�ncia quase que ultramarina, rosto moreno, talvez fossem sul-americanos de origem espanhola ou portuguesa, argentinos, brasileiros – s�o meras conjeturas.”
No livro “Terra m�tria – A fam�lia de Thomas Mann e o Brasil” (2013), de Karl-Josef Kuschel, Frido Mann e Paulo Astor Soethe, h� o trecho de uma carta de Thomas Mann a Karl Lustig-Prean, datada de 8 de abril de 1943, sobre o Brasil:
“Cedo soou em meus ouvidos o louvor de sua beleza, pois minha m�e veio de l�, era uma filha da terra brasileira; e o que ela me contou sobre essa terra e sua gente foram as primeiras coisas que ouvi sobre o mundo estrangeiro. Tamb�m sempre estive consciente do sangue latino-americano que pulsa em minhas veias e bem sinto o quanto lhe devo como artista. Apenas uma certa corpul�ncia desajeitada e conservadora de minha vida explica que eu ainda n�o tenha visitado o Brasil. A perda de minha terra p�tria ('mein vaterland') deveria constituir uma raz�o a mais para que eu conhecesse minha terra m�tria ('mein mutterland'). Ainda chegar� essa hora, espero.”
CR�NICA DA CASA ABANDONADA
A varanda de frente para a Ba�a de Paraty, a vegeta��o exuberante, a edifica��o dos tempos coloniais, o telhado, enfim, todos os elementos que configuram, no calor deste momento, esta “cr�nica da casa abandonada” e possu�da pelas hist�rias. E que merece urgente restaura��o como s�mbolo n�o s� do Brasil, neste ano do Bicenten�rio da Independ�ncia, como tamb�m das origens do autor de “Doutor Fausto”, “O eleito”, “As cabe�as trocadas” e tantos outros livros.“A casa est� abandonada. Ao longo dos anos, fiz v�rias den�ncias ao Iphan (Instituto do Patrim�nio Hist�rico e Art�stico Nacional), mas nada foi feito para recuper�-la”, lamenta Diuner Mello, estudioso da hist�ria de Paraty e pesquisador de documentos em cart�rios.
Respons�vel pela descoberta da certid�o de nascimento de J�lia Mann, ele destaca que a edifica��o se encontra em “zona de prote��o especial�ssima”, pois o munic�pio de Paraty � reconhecido como Monumento Nacional. “O casar�o precisa ser tombado, n�o podemos perd�-lo, deix�-lo cair.”
O Engenho Boa Vista foi visitado v�rias vezes pelo neto de Thomas Mann, o escritor Frido Mann, de 81 anos, que exp�s o interesse de instalar ali a Casa Mann, semelhante � existente em L�beck para guardar a mem�ria da fam�lia.
A empreitada n�o vingou – quem sabe com as homenagens � mem�ria de J�lia Mann, que ser� lembrada em 2023 pelo centen�rio da sua morte, o projeto finalmente decole e seja uma refer�ncia em hist�ria, literatura e tradi��es teuto-brasileiras.
''Cedo soou em meus ouvidos o louvor de sua beleza, pois minha m�e veio de l�, era uma filha da terra brasileira; e o que ela me contou sobre essa terra e sua gente foram as primeiras coisas que ouvi sobre o mundo estrangeiro. Tamb�m sempre estive consciente do sangue latino-americano que pulsa em minhas veias e bem sinto o quanto lhe devo como artista''
Thomas Mann, escritor
VISTORIAS
A dire��o do Iphan explica: “Ainda que n�o seja tombado individualmente, o casar�o da Fazenda/Engenho Boa Vista, em Paraty (RJ) integra o conjunto tombado da cidade. O Iphan vem acompanhando de perto a situa��o do im�vel e, com frequ�ncia, realiza vistorias ao bem cultural a fim de avaliar o estado de preserva��o da edifica��o, bem como orientar os propriet�rios sobre as medidas necess�rias para garantir a conserva��o do monumento.”E mais: “Como parte desses trabalhos, o Iphan aprovou a execu��o de obras de car�ter emergencial na edifica��o, que contemplam a recupera��o do telhado e outras interven��es. Embora j� tenham sido aprovadas pelo Iphan, essas obras ainda n�o foram iniciadas pelo propriet�rio.”
Viagens fascinantes a bordo da literatura de Thomas Mann
Muito j� se escreveu, e h� muito ainda para se registrar, sobre a trajet�ria de Thomas Mann (1875-1955), incluindo conturbadas quest�es familiares, posi��es pol�ticas, as duras cr�ticas a Adolf Hitler, inquieta��es do esp�rito, o ex�lio nos Estados Unidos, onde trabalhou como professor na Universidade de Princeton, o suic�dio do filho Klaus, em 1949, e o retorno, em 1952, � Europa ap�s a Segunda Guerra Mundial (1939-1945).
No casar�o de Paraty onde morou sua m�e, J�lia, e n�o se pode entrar, devido � precariedade – basta ver o desabamento do telhado do engenho –, todas as informa��es passam como legendas de um filme que come�ou, para mim, ao ler “Os Buddenbrook”, no fim da adolesc�ncia.
Foi ali, para minha surpresa, que descobri, na edi��o do C�rculo do Livro, que J�lia Mann era brasileira.
CINEMA
O passo seguinte foi dado com “A morte em Veneza”, que j� li algumas vezes e considero um bom in�cio para quem quiser conhecer o escritor. Melhor ainda �, ao virar a �ltima p�gina, assistir ao filme de mesmo nome dirigido pelo italiano Luchino Visconti e com elenco estelar.
Na sequ�ncia, vieram “T�nio Kr�ger”, o caudaloso “Doutor Fausto”, e eu sempre deixando “A montanha m�gica” para o momento oportuno. Na verdade, tinha certo medo da hist�ria, toda ambientada em um sanat�rio para tuberculosos, antes da Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Ledo engano.
A leitura fascinante, em quase 900 p�ginas, � como subir a montanha devagarinho, ficar um tempo por l�, observando o panorama, e depois come�ar a descida. Tem gente que volta ao topo, tal o entusiasmo, mas achei melhor mergulhar em outras �pocas, temas e personagens – vale destacar que Thomas Mann costuma ser bem divertido e impiedoso.
Nesse ambiente, imposs�vel n�o fortalecer a admira��o pela obra monumental do autor alem�o, cuja vida est� recontada em “The magician”, do irland�s Colm T�inb�n, com previs�o de lan�amento no Brasil no segundo semestre, pela Companhia das Letras.
Na despedida do casar�o, vi surgir um jovem casal, com mochila e determina��o. Eles circundaram a casa, miraram o mar, observaram as treli�as das janelas e depois sumiram como fantasmas. Fiquei satisfeito por n�o ser o �nico a tentar fazer parte dessa hist�ria.
Afinal, o “esp�rito do tempo” se faz presente nas paredes, telhas, gramados e �rvores frondosas. Basta estar com os sentidos abertos e o cora��o liberto para seguir as linhas do escritor. E descobrir seus mist�rios sem fim.
O leitor pode encontrar obras de Thomas Mann em sebos, mas nada se compara a adquirir uma nova e bem-cuidada edi��o, com tradu��o revista e, muitas vezes, contendo cr�tica in�dita. Desde 2015, a Companhia das Letras reedita livros do escritor alem�o, alguns pouco conhecidos, como o rec�m-lan�ada “Sua alteza real”.
J� chegaram �s livrarias “Os Buddenbrook” (1901), “A morte em Veneza” (1912) e “T�nio Kr�ger” (1903), num �nico volume. E tamb�m os livros “Sua alteza real” (1909), “A montanha m�gica” (1924), “As cabe�as trocadas” (1940), “Doutor Fausto” (1947), “O eleito” (1951), “Confiss�es do impostor F�lix Krull” (1954) e “Contos”. Ainda neste ano, deve ser lan�ada a nova edi��o de “M�rio e o m�gico” (1930).
Em 2023, est�o previstos os volumes 1 e 2 da tetralogia “Jos� e seus irm�os”, que come�ou a ser escrita em 1926.
M�E E FILHO,
DOIS CAMINHOS
1851 – Em 14 de agosto, J�lia da Silva Bruhns nasce em Paraty, entre as localidades de Rio Pequeno e Gra�na. Era filha do alem�o Johann Ludwig Hermann Bruhns e da brasileira Maria Senhorinha da Silva. Entre 7 e 8 anos, ap�s a morte da m�e, J�lia e seus irm�os v�o para Alemanha. Na �poca, havia epidemia de c�lera no Brasil.
1869 – J�lia se casa com o senador e comerciante alem�o Thomas Johann Heinrich Mann. O casal teve cinco filhos.
1875 – Em 6 de junho, nasce em L�beck, no Norte da Alemanha, Paul Thomas Mann, o escritor Thomas Mann, segundo filho do casal.
1897 – Thomas Mann come�a a escrever “Os Buddenbrook: Decad�ncia de uma fam�lia”, publicado quatro anos depois.
1905 – Em 11 de fevereiro, Thomas se casa, em Munique, com Katia Pringsheim. O casal teve seis filhos.
1912 – Publica “A morte em Veneza” e come�a a trabalhar em “A montanha m�gica”, lan�ado em 1924.
1923 – Em 11 de mar�o, J�lia Mann morre na Alemanha, aos 71 anos.
1926 – In�cio da reda��o da tetralogia “Jos� e seus irm�os”.
1929 – Em 10 de dezembro, Thomas Mann recebe o Pr�mio Nobel de Literatura.
1933 – Com a ascens�o dos nazistas ao poder, o escritor parte para a Holanda, no in�cio do seu ex�lio. Depois segue para Zurique, na Su��a.
1938 – Em setembro, muda-se para os Estados Unidos. Trabalha como professor de humanidades na Universidade de Princeton. Torna-se cidad�o americano em 1944.
1947 – Primeira viagem � Europa depois da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). O retorno definitivo ocorre em 1952.
1955 – Thomas Mann morre em 12 de agosto, aos 80 anos.