Análise histórica da canção “Alegria, Alegria”, de Caetano Veloso | by Guilherme Serrano | Medium

Análise histórica da canção “Alegria, Alegria”, de Caetano Veloso

Guilherme Serrano
9 min readSep 30, 2022

Uma canção que fosse fácil de aprender por parte dos espectadores e que caracterizasse a nova atitude que queriam inaugurar. Uma marcha de Carnaval transformada: alegre, contaminada pelo pop internacional e que a letra fosse de tom crítico-amoroso em relação ao mundo onde este pop se dava. É assim que Caetano Veloso, em seu livro “Verdade Tropical”, descreve as pretensões que tinha quando acabou por escrever “Alegria, Alegria”, em 1966. Os espectadores citados pelo autor nessa passagem são o público do Festival de Música Popular Brasileira de 67, promovido pela TV Record. Evento no qual ele, Gilberto Gil e companhia pretendiam “deflagrar a revolução”, como o próprio Caetano utiliza no livro. Fazendo referência, é claro, à Tropicália, que praticamente fez a sua estreia naquele festival. Para alcançar tais pretensões naquela canção, o artista entendeu que seria conveniente utilizar um esquema de retrato em primeira pessoa, de um jovem típico da época andando pelas ruas da cidade. No caso, o Rio de Janeiro da segunda metade da década de 60, onde Caetano vivia, na pensão apelidada de “Solar da Fossa”, no bairro de Botafogo.

Dois anos antes, ainda na Bahia, ele compusera uma canção de nome “Clever Boy Samba” que trazia uma construção semelhante. No caso daquela, havia referências a lugares conhecidos de Salvador, gírias da época, artistas europeus e trechos de canções americanas. O intuito, segundo Caetano descreve em “Verdade Tropical”, era criar simpatia fácil do público da Boate Anjo Azul, onde a canção seria apresentada pela primeira vez. Já no caso de “Alegria, Alegria”, as citações deveriam ter um propósito mais definido. Uma distância necessária para a crítica. Ao mesmo tempo, haveria, nas palavras de Caetano, uma alegria imediata na fruição de todos os elementos ali citados. Daí o título da canção: “Alegria, Alegria”.

Ainda que componha o primeiro disco solo de Caetano Veloso, gravado em 1967 e lançado no início do ano seguinte, a canção foi inicialmente pensada para ser defendida no festival, que, por sua vez, era veiculado na televisão. Logo, é uma música que já nasce intrínseca a esse meio que, apesar de popular, àquela altura ainda era muito recente no Brasil. Tendo em vista que a primeira emissora de televisão do país foi a TV Tupi, inaugurada em setembro de 1950, é de se considerar que em 1967, essa mídia ainda era muito ligada a uma lógica urbana que, por sua vez, era em sua maioria restrita aos grandes polos. São Paulo (onde, aliás, era realizado o festival) e Rio de Janeiro eram os principais exemplos nesse sentido, já que detinham maior capital e acabavam por estar mais abertos às influências mundializadas que chegavam a um país ainda predominantemente rural.

O título da canção já é um sintoma disso: “alegria, alegria” era um bordão utilizado por Chacrinha, célebre apresentador de rádio e, posteriormente, comandante de programas de auditório na televisão que, por sua vez, o “roubou” de Wilson Simonal. A temática é retomada durante a letra, no verso: “ela não sabe até pensei/em cantar na televisão”. A simbologia da televisão aqui é a da estrutura de massa. De uma lógica que se relaciona com o imperialismo norte-americano e que estava, cada vez mais, rompendo paradigmas referentes à comunicação daquele tempo. Em algumas passagens, há sinais de aceitação dessa dominação e, de alguma forma, de uma celebração disso. Justamente no paradoxo “crítico-amoroso” citado pelo próprio Caetano. “Eu tomo uma coca-cola/ela pensa em casamento” é outro verso nesse sentido. A Coca-Cola, nunca antes citada em uma música brasileira até então, é um dos grandes símbolos do capitalismo e imperialismo norte-americanos e da lógica comercial. E, também, desse “mundo pop” da segunda metade da década de 60 que não só englobava televisão, mas também do qual o rock n roll, por exemplo, era intrínseco. A referência a esses elementos em uma canção dita de MPB, em uma canção a ser defendida em um festival, tende a gerar estranheza. Usualmente, nos festivais, o que se ouvia eram canções que negavam essa influência. Justamente porque o público daquilo que estava começando a ser chamado de “MPB” era, em sua maioria, de um ambiente universitário ligado a movimentos de esquerda. Em um contexto de ditadura militar, a definição de qualidade musical estava relacionada a um nacionalismo conservador quanto a utilização desses certos elementos. Já segundo Caetano, em “Verdade Tropical”, a menção ao refrigerante como que definia as feições da composição e fez com que a música fosse recebida como um marco histórico instantâneo.

A letra segue com outros elementos típicos da cidade, como se em alguns momentos o eu lírico fosse uma espécie de flâneur, tipo literário que o ensaísta alemão Walter Benjamin, inspirado na poesia de Charles Baudelaire, definiu como figura essencial do espectador urbano moderno do século XIX. Ainda mergulhando em referências europeias, é citada na letra a atriz francesa Brigitte Bardot, considerada um dos grandes símbolos sexuais entre as décadas de 50 e 60, além da atriz Claudia Cardinale, nascida na Tunísia e protagonista de filmes italianos. Esse pode ser uma espécie de contraponto em relação ao imperialismo norte-americano representado pela Coca-Cola. Antes da influência cultural estadunidense ter se dado tão fortemente no Brasil e em todo o continente americano, era comum que a cultura europeia — em especial a francesa — ocupasse esse papel. Por isso, àquela altura, produções audiovisuais e estrelas pop da França eram relativamente populares por aqui, tendo posteriormente sido substituídas pelas norte-americanas. Na própria obra de Caetano, que sempre considerou ter mais vocação de cineasta do que propriamente de músico, não é raro encontrar outras referências ao cinema europeu, como na canção “Giulietta Masina”, do álbum de 1987. De acordo com um artigo do poeta concretista Augusto de Campos, aliás, o também poeta Décio Pignatari vê “Alegria, Alegria” como uma letra “câmera na mão”, pois “por entre fotos e nomes” estaria relacionada ao Cinema Novo, movimento cinematográfico que se opôs ao estilo vigente até então no Brasil e que dialoga com a estética do Tropicalismo, tendo servido de inspiração para artistas dessa vertente musical.

Tal artigo foi publicado em 25 de novembro de 1967, no jornal O Estado de São Paulo. Nele, Augusto de Campos discorre sobre a canção “Alegria, Alegria” e afirma que ela “traz o imprevisto da realidade urbana, múltipla e fragmentária, captada, isomorficamente, através de uma linguagem nova, também fragmentária, onde predominam substantivos-estilhaços da implosão informativa moderna”. O poeta defende que o mundo representado na canção é o da comunicação rápida. Ou seja, o mundo da comunicação de massas, sintetizado nas tantas notícias das bancas de revista citadas na letra da música e, principalmente, na televisão. De acordo com Augusto de Campos, “Alegria, Alegria” descreve o caminho inverso da “A Banda”, música de Chico Buarque que ganhou muita evidência a partir do festival anterior, o de 1966. Isso porque, segundo o poeta, a música de Chico mergulha no passado na busca da pureza das bandinhas e dos coretos de infância, enquanto Caetano se enchera de presente para se envolver diretamente no dia-a-dia da comunicação moderna e urbana do Brasil e do Mundo. Ou seja, em um momento no qual ainda se debatia o papel da Música Popular Brasileira como agente de afirmação da nacionalidade e como espaço exclusivo para pautas nacionais, Augusto de Campos capta e chama a atenção para a faceta mundial da obra de Caetano Veloso. Entende que a música fala sobre o Brasil e para o Brasil, mas não se limita a olhar apenas para o país a fim de compreender melhor o contexto no qual a Terra Brasilis estava inserida.

A canção traz também um questionamento que é praticamente retórico. “Eu vou. Por que não?”. O verso sugere liberdade, dando a entender que não há nada que impeça o eu lírico de ir, de seguir em frente. Isso é sintomático pensando no que o Tropicalismo se propunha a fazer: estar livre para entrar em todas aquelas estruturas rígidas e pré-definidas, ser livre dentro delas e poder sair delas. Transitar entre os gêneros e apropriar-se de diferentes elementos de cada um deles para criar algo até então inédito. A inspiração de Caetano, aqui, remete ao existencialismo do filósofo francês Jean-Paul Sartre. Embora o título oficial da canção seja “Alegria, Alegria”, ela é popularmente conhecida como “Sem Lenço, Sem Documento”, verso que aparece duas vezes: uma no início, outra no fim da letra e que talvez a sintetize melhor, uma vez que traz essa ideia da desinstrumentalização, do desprendimento, da não existência de amarras. Na penúltima estrofe, ele é sucedido pelo verso “nada no bolso ou nas mãos”, citação do livro “As Palavras”, no qual Sartre escreve: “o que amo em minha loucura é que ela me protegeu, desde o primeiro dia, contra as seduções da elite: nunca me julguei feliz proprietário de um talento: minha única preocupação era salvar-me — nada na mão, nada nos bolsos — pelo trabalho e pela fé”. Essa fé não está ligada à religião, mas faz referência à ideia de ação, uma vez que, ainda segundo Sartre, “o homem não é senão o seu projeto, e ele só existe na medida em que se realiza. Não é portanto nada mais do que o conjunto dos seus atos, nada mais do que sua vida”. Ou seja, “nada no bolso ou nas mãos” lembra esse conceito sartreano de que a existência precede a essência. À medida que o homem existe, não há nada dado. A sua essência, o que ele será, não está definido. É o próprio homem que vai construir isso a partir de sua vida em desenvolvimento. Logo, o homem está inexoravelmente dentro de um campo de liberdade. O existencialismo é, seguindo algumas interpretações que dialogam com a de Simone de Beauvoir, por exemplo, a defesa da escolha. O Tropicalismo escolhe, como movimento dito livre, transitar por diferentes linguagens e ritmos, desenvolvendo-se e definindo sua essência enquanto vai em frente.

Como dito anteriormente, o rock n roll é intrínseco desse mundo pop no qual a canção pretende se inserir. E em 1967, ano de lançamento do álbum Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, os Beatles eram quase uma síntese do que representava uma estrela pop. O quarteto de Liverpool, evidentemente, já ressoava no Brasil a essa altura. Ronnie Von, Roberto Carlos e a turma da Jovem Guarda, por exemplo, tentavam copiar os cabelos lisos e jogados pro lado, enquanto incorporavam o rock n roll “iê-iê-iê” ou “água com açúcar”. Embora fizessem muito sucesso, aqueles que tentavam de alguma forma emular os Beatles aqui no Brasil eram repreendidos por parte da crítica e do público. Tanto por incorporarem a guitarra elétrica, tão condenada pela ala mais purista já citada anteriormente; quanto por fazerem canções limitadas ao entretenimento, que não tinham como propósito serem recebidas como qualquer espécie de protesto ou denúncia. Mas os tropicalistas sempre propõem uma leitura (ou uma audição) alternativa em relação àquilo que já está posto. E em relação à música dos garotos de Liverpool não foi diferente.

Em “Verdade Tropical”, Caetano Veloso explica que a visão proposta por Gilberto Gil acerca dos Beatles era a de aprender com o grupo inglês como transformar lixo comercial em criação inspiradora e livre. O mais importante não seria reproduzir os procedimentos musicais do grupo inglês, mas, sim, sua atitude em relação ao próprio sentido da música popular como fenômeno. Para tal, em “Alegria, Alegria”, Caetano contou com os Beat Boys, uma banda argentina de rock n roll formada por garotos de cabelo longo e guitarras coloridas. A ideia inicial, na verdade, era a de convidar o RC7, banda que acompanhava Roberto Carlos, mas ao conhecer os rapazes argentinos, Caetano entendeu que aquele era mesmo o melhor caminho. Assim, os Beat Boys chocaram o público do Festival de MPB, que os receberam com vaias e eternizaram o arranjo que, segundo Caetano, possui um “flagrante e intencional contraste com a Bossa Nova” e se relaciona com os Beatles pela “justaposição de acordes perfeitos maiores em relações insólitas”. Ou seja, em um momento de embate entre marchinhas e iê-iê-iê, “Alegria, Alegria” surge como uma marcha tocada por uma banda de rock n roll com guitarras elétricas cuja letra — embora parte da audiência não enxergasse — trazia uma crítica em relação ao contexto sociocultural que se consolidava na segunda metade da década de 60 no Brasil.

A música que carrega o nome da “revolução” deflagrada por Caetano Veloso, Gilberto Gil e companhia na segunda metade da década de 60, “Tropicália”, consta no mesmo disco de “Alegria, Alegria”. O disco de estreia de Caetano Veloso, se desconsiderarmos “Domingo”, lançado em 1967 e que tem o cantor baiano ao lado de Gal Costa. Essas duas são as canções mais marcantes para, sob a ótica caetaneana, entender o florescer do tropicalismo. O artista afirma que “Alegria, Alegria” é a sua música mais famosa, e de fato tem um peso maior por ter sido defendida no Festival de Música Popular Brasileira de 1967, tendo alcançado a quarta colocação. Já “Tropicália” abre o disco, deixando claras algumas das rupturas propostas pelo artista naquele trabalho e afirmando: “eu organizo o movimento”. Posteriormente, como quarta faixa, “Alegria, Alegria”, mais conhecida como “Sem Lenço, Sem Documento”, reforça essa simbologia e complementa a mensagem: “eu vou. Por que não?”.

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Guilherme Serrano

Cronista, jornalista ou coisa parecida