Louis Pasteur, 200 anos: entenda como o cientista, cheio de espírito competitivo, mudou o curso da história

Com capacidade de arrebanhar recursos públicos e privados e tino para o marketing pessoal, francês participou de descobertas geniais

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São Carlos (SP)

A lista de revoluções científicas atribuídas ao francês Louis Pasteur (1822-1895) é gigantesca. Ele teria sido o responsável por demonstrar, entre outras coisas, que seres vivos não surgem por geração espontânea, que doenças infecciosas são causadas por micróbios e que era possível desenvolver uma metodologia confiável para a fabricação de vacinas contra várias dessas doenças.

O bicentenário de seu nascimento, neste 27 de dezembro, seria a ocasião perfeita para mostrar como um único cientista é capaz de mudar o curso da história.

Busto de homem com barba
Busto do cientista Louis Pasteur exposto no museu dedicado à sua memória em Paris - Stephane de Sakutin - 20.dez.2020/AFP

De fato, todos os itens da lista contaram com participações importantes de Pasteur, mas, em muitos casos, o cenário que levou à transformação do pesquisador em um ícone foi bem mais complexo e interessante do que a de descobertas geniais isoladas.

Ele conseguiu deixar sua marca, em parte, graças a um espírito competitivo implacável, à capacidade de arrebanhar recursos tanto públicos quanto privados e a seu tino para o marketing pessoal, cultivando cuidadosamente a própria imagem.

Pasteur também conseguiu reputação duradoura ao não dar muita importância à suposta separação entre ciência "pura" e pesquisa aplicada. Em vários casos, seu trabalho combinava a tentativa de achar respostas pontuais a problemas econômicos da França do século 19 com desdobramentos muito mais profundos —a origem dos seres vivos e das doenças, por exemplo.

Segundo Andrew Mendelsohn, historiador da ciência da Queen Mary University de Londres, é possível que essa abordagem relativamente "mão na massa" esteja ligada às origens de Pasteur na França rural, na cidadezinha de Dole (leste do país), hoje com pouco mais de 20 mil habitantes. Seu pai tinha um modesto curtume, o que pode ter estimulado o interesse dele por processos manufatureiros que envolviam os produtos da região.

Na infância e começo da adolescência, porém, o pequeno Louis não dava mostras de grande interesse pela escola, preferindo desenhar e pescar. Aos trancos e barrancos, incluindo algumas reprovações, ele começou a mostrar interesse por matemática, física e química, sendo, por fim, admitido na Escola Normal Superior, em Paris, onde, depois de formado, passou algum tempo como assistente de laboratório.

Foi aceito como professor de química na Universidade de Estrasburgo em 1848, onde conheceu sua futura mulher, Marie Laurent, filha do reitor. O casal teve cinco filhos, mas só dois deles chegaram à idade adulta —os demais morreram de febre tifoide, um tipo de infecção bacteriana.

A princípio, nada indicava que Pasteur fosse se tornar um dos responsáveis por elucidar a relação entre os micróbios e os organismos de animais e plantas. Seus primeiros trabalhos científicos versavam sobre a estrutura dos cristais formados por diferentes compostos químicos.

ilustração de livro infantil
Ilustração de 'Louis Pasteur' O Cientista que Combateu os Micróbios', livro da Coleção Folha - Grandes Biografias para Crianças - Reprodução

Várias dessas substâncias, no entanto, eram relevantes para a nascente indústria alimentícia e para os fabricantes de vinhos franceses. Alguns deles começaram a procurar a ajuda do pesquisador para enfrentar problemas prosaicos, como os casos em que o vinho azedava.

Na época, já havia sido demonstrado que a fermentação da cerveja era causada por organismos vivos. Numa série de trabalhos, Pasteur ajudou a generalizar essa ideia, mostrando que diferentes micróbios também estavam presentes na fermentação do vinho e também quando ele estragava, assim como no leite que azedava. A partir disso, ele desenvolveu os processos hoje conhecidos como pasteurização, os quais, por meio do aquecimento, impedem que a maioria dos micróbios subsista nessas bebidas.

E foi justamente a capacidade de conectar os diferentes achados sobre a ação dos micróbios sobre frutas, grãos e bebidas que levou o pesquisador a se envolver com o debate sobre a chamada geração espontânea —a ideia de que micro-organismos poderiam aparecer "do nada" em determinadas condições, colonizando a matéria orgânica em decomposição, por exemplo.

Ocorre que Pasteur e seus colaboradores haviam demonstrado, por exemplo, que uvas esterilizadas, ou cujo suco fosse obtido por meio de seringas esterilizadas, eram incapazes de fermentar. Os achados provocaram controvérsias, o que levou a Academia Francesa de Ciências a oferecer um prêmio em dinheiro para quem conseguisse obter evidências conclusivas contra ou a favor da ideia de geração espontânea.

Pasteur alcançou esse objetivo com experimentos como o dos recipientes "col de cygne" ("pescoço de cisne"), basicamente uma garrafa cuja ponta é um tubo de vidro muito longo na horizontal. Dentro do recipiente era colocado um caldo nutritivo que, depois, era fervido, de maneira a matar todos os micróbios dentro dele.

Partículas de poeira carregando micro-organismos do ar podiam entrar pela ponta do tubo, mas só entrariam em contato com o caldo caso a garrafa fosse inclinada. Sem isso, o caldo não estragava, demonstrando que os micróbios precisavam vir de algum lugar, e não "brotavam do nada". Assim, Pasteur foi declarado vencedor da disputa.

Nas décadas seguintes, também inicialmente graças ao contato com produtores rurais que buscavam resolver problemas do cotidiano, o pesquisador passou a se envolver com o desenvolvimento do que, mais tarde, ele chamaria de vacinas (na época, o termo "vacinação" era aplicado apenas para a rudimentar vacina contra a varíola, a única que existia). Seria a área que mais cimentaria a sua fama e, ao mesmo tempo, a que mais parece ter envolvido atitudes questionáveis.

Seus trabalhos envolveram primeiro a cólera aviária (que afeta galinhas, causada por uma bactéria batizada depois em sua homenagem, a Pasteurella multocida) e, pouco depois, o antraz, que afetava o gado bovino, ovino e caprino. Nesses estudos, Pasteur começou a formular o chamado princípio da atenuação, segundo o qual seria possível usar métodos como a passagem de uma linhagem de bactérias por diversos hospedeiros (de espécies diferentes, por exemplo) para fazer com que elas se tornem menos agressivas.

Com isso, seria possível usar essas linhagens atenuadas como vacinas, infectando as possíveis vítimas e preparando o sistema de defesa do organismo delas para o contato com as versões "violentas" dos micro-organismos.

Ele colocou esse princípio em prática com as duas doenças de animais, com vários aparentes sucessos iniciais, mas análises posteriores mostraram que tinha cantado vitória antes da hora —as vacinas contra cólera aviária e antraz não eram suficientemente confiáveis. Além disso, análises de seus cadernos de laboratório mostraram que ele tinha usado um método parecido com o de um competidor que criticava, sem revelar isso ao público.

O triunfo final de Pasteur com vacinas veio com seu trabalho com a raiva, doença até hoje praticamente incurável. Em julho de 1885, Pasteur recebeu, em seu laboratório em Paris, a visita de uma mãe desesperada para que ele tentasse salvar a vida de seu filho. O garoto de nove anos, chamado Joseph Meister, tinha sido mordido por um cão raivoso em várias partes do corpo.

Pasteur, nos anos anteriores, tinha desenvolvido um método no qual ressecava a medula espinhal de coelhos infectados com a raiva e ia inoculando o tecido nervoso em cães saudáveis. Ele descobriu que os fragmentos de medula tinham cada vez menos chance de causar a doença depois de passarem muito tempo secando.

Conforme ia injetando tecidos nervosos cada vez mais "frescos" nos cães que já tinham recebido injeções anteriores, eles iam ficando mais protegidos, até que uma última injeção vinda da medula de um coelho recém-sacrificado não causava efeito negativo nenhum.

Pasteur usou a mesma abordagem em Joseph Meister. O menino não só sobreviveu como, ao crescer, passou a trabalhar no Instituto Pasteur. Seu fim foi trágico —quando os nazistas ocuparam Paris na Segunda Guerra, fizeram-no abrir o túmulo de Pasteur para que eles o visitassem. Envergonhado, Meister cometeu suicídio.

A metodologia criada originalmente também era pouco confiável para os padrões atuais: uma em cada 200 pessoas que recebiam a vacina contra a raiva tinham paralisia e morriam, por causa da reação de seu organismo ao tecido nervoso injetado.

Segundo o historiador da ciência Bert Hansen, da Universidade do Estado de Nova York, Pasteur cultivava relações próximas com a imprensa para divulgar todos esses resultados, posando também para pintores e fotógrafos que o registravam em ação no laboratório. Isso lhe conferiu um status de celebridade e garantiu doações constantes para o Instituto Pasteur, aberto em 1888 —uma das doações, inclusive, veio do imperador brasileiro dom Pedro 2º.

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