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04 de Agosto, 2016

Luz Long. O alemão que desafiou Hitler e ajudou Jesse Owens

Rui Pedro Silva

Luz Long com Jesse Owens/BILD

Percebeu que tinha um conselho que podia ajudar Owens a ultrapassar a qualificação no salto em comprimento e arriscou. Não foi além da medalha de prata mas ficou imortalizado pela história de desportivismo e pela medalha Pierre de Coubertin. Morreu a combater pela Alemanha Nazi durante a invasão dos Aliados na Sicília, em 1943. 

 

Uma amizade improvável

Esta não é a história de Jesse Owens. É a história de Luz Long, um advogado alemão nascido em 1913 que era visto como a grande esperança da Alemanha Nazi de Adolf Hitler para conquistar a prova de salto em comprimento nos Jogos Olímpicos de Berlim.

A concorrência de Jesse Owens, então detentor do recorde mundial, era dura, mas Long tinha a seu favor os sucessivos títulos de campeão nacional e a medalha de bronze nos Europeus disputados dois anos antes.

A história não tem suspense: Jesse Owens ganhou tudo o que havia para ganhar em Berlim. Inclusive um amigo improvável. Exatamente, Luz Long.

 

[Veja também a história de Helene Mayer, a judia que Hitler foi obrigado a apoiar]

 

Conselho decisivo

Disputava-se a qualificação para a final da prova e o objetivo era superar os 7,15 metros. Luz Long já tinha alcançado o objetivo, com direito a recorde olímpico, mas Owens tremia. Depois de um primeiro ensaio curto, o segundo foi nulo.

O que aconteceu a seguir é contado por Jesse Owens a Kai Long, filho de Luz, quando o norte-americano regressou a Berlim em 1964: «O teu pai veio em meu auxílio. Ajudou-me a medir um pé de distância para a tábua e o mesmo no sítio em que costumo correr. Consegui acertar mesmo no meio entre as duas marcas e foi assim que consegui a qualificação».

Foi o ponto de partida para a amizade entre Long e Owens. Pelo meio, um duelo espetacular na final. O norte-americano saltou para a liderança à segunda tentativa, com 7,87 metros, mas o alemão, impulsionado por 110 mil espetadores na bancada, com destaque para Hitler, não desistiu e levou o público ao rubro quando igualou a marca na quinta e penúltima tentativa.

A liderança partilhada foi curta. Logo a seguir, Jesse Owens aumentou o salto em sete centímetros e voltou a colocar a pressão sobre Long. Aí, o atleta de 21 anos, vacilou e fez um salto nulo.

«A vitória é mais doce quando se ganha pelo teu mérito do que por quando o adversário erra», lamentou Jesse Owens quase 30 anos depois. Ainda assim, o norte-americano queria sair em grande e passou dos oito metros na derradeira tentativa (8,06).

 

A atitude de Luz Long

Luz Long

Jesse Owens ainda não tinha tido praticamente tempo para sair da caixa de areia quando Luz Long o abraçou, felicitando-o pelo triunfo: «Não consegui evitar. Corri na direção dele e fui o primeiro a dar os parabéns. Respondeu-me dizendo que o tinha forçado a dar o seu melhor».

«Foi preciso uma grande coragem para se aproximar de mim à frente de Hitler. Podem derreter-se todas as medalhas e troféus que não serão suficientes para a amizade de 24 quilates que sinto por ele neste momento», reagiu Jesse Owens.

De facto, a atitude de Luz Long não caiu bem entre os líderes do partido nazi. Segundo a mãe de Luz, o secretário especial de Hitler, Rudolf Hess, avisou Luz para «nunca mais voltar a abraçar um preto».

 

Duas vidas separadas

Luz Long e Jesse Owens não voltaram a estar juntos depois dos Jogos Olímpicos. Nos Estados Unidos, o campeão olímpico era ovacionado por todos mas a segregação racial continuava a ser um problema. «Está toda a gente interessada no Jesse Owens que ganhou as medalhas mas ninguém lhe quer dar trabalho», queixava-se.

Do outro lado do oceano, Luz Long preparava-se para servir a Alemanha na II Guerra Mundial. Serviu na Wehrmacht e foi destacado para a Sicília em 1942. Entretanto, garantem vários relatos, continuava a trocar cartas com Jesse Owens.

Numa delas, já em 1942, não escondia o pessimismo: «O meu coração diz-me que esta será possivelmente a última carta da minha vida. Se for assim, imploro-te uma coisa: quando a guerra terminar, por favor viaja até à Alemanha, encontra o meu filho e conta-lhe sobre o pai. Conta-lhe da altura em que a guerra não nos separava e conta-lhe que as coisas podem ser diferentes entre as pessoas neste mundo».

 

Desejo cumprido

Luz Long morreu a 14 de julho de 1943 com 30 anos, na Sicília.

Conta Robert Stadler, um soldado nazi: «Tentámos fugir e corremos pelas nossas vidas, a fugir dos Aliados. Numa vinha próxima, encontrámos o Luz Long, que estava ali deitado e a sangrar abundantemente da coxa. Tentámos rapidamente fazer-lhe um torniquete, mas não ajudou muito».

Em 1964, Jesse Owens voltou a Berlim para falar com Kai. E, no mesmo relvado em que praticamente trinta anos antes tinha encantado o mundo, contou o que se tinha passado nos Jogos Olímpicos e falou sobre o homem que viria a receber a medalha Pierre de Coubertin, que premeia os atletas que melhor representam o espírito olímpico.

Mais de 70 anos depois, nos Mundiais de Atletismo de 2009 em Berlim, as duas famílias reencontraram-se. As netas de Long e Owens foram as convidadas de honra na cerimónia de entrega das medalhas do salto em comprimento.

A medalha de ouro foi para um norte-americano, Dwight Phillips, que saltou 8,54 – mais 48 centímetros do que Jesse Owens. O melhor alemão, Sebastian Bayer, não foi além dos 7,98 metros, apenas mais onze centímetros do que a marca de Long… 73 anos antes. 

RPS