A sombra surreal da história, na quinta Bienal de Coimbra
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A sombra surreal da história, na quinta Bienal de Coimbra

Há muitos fantasmas a assombrar o Mosteiro de Santa Clara-a-Nova, em Coimbra, mas o maior deles é o da liberdade, o principal tema poético da quinta edição do Anozero – Bienal de Coimbra, curada este ano por Marta Mestre e Ángel Calvo Ulloa.

Com um número acrescido de artistas e de locais oficiais – esta realização conta com sete lugares diferentes espalhados pela cidade –, a Bienal apresenta-se como um enredo de visões oriundas de narrações políticas e ancestrais conectadas ao ambiente, sendo o seu título inspirado pelo filme surrealista do realizador espanhol Luis Buñuel, no centenário do nascimento do Movimento Artístico idealizado por André Breton, cujas influências ainda influem na alma e na prática de inúmeros artistas por todo o mundo.

Tal como a longa-metragem, O Fantasma da Liberdade foi dividida em 14 capítulos, unidos por uma personagem diferente; este recurso espelha-se na composição da Bienal, ao atravessar e interligar a multiplicidade de presenças para além dos temas e dos espaços.

De facto, a exposição vive em camadas porosas: de um lado, o aspecto surreal – o dos espectros pertencentes à imaginação e à modificação da realidade -, do outro, a sombra delineada pela tensão criada pelo impulso em direção às utopias e àquela liberdade ansiada pela humanidade que, porém, sempre ficou emaranhada nas redes da história e das convenções sociais: o ideal nunca está satisfeito.

Os projetos concebidos especificamente para o Anozero’24 são dez, incluindo a obra pública instalada no Pátio das Escolas, do angolano Yonamine, e as intervenções in situ nos muros do Mosteiro, realizadas pelas artistas espanholas Patricia Gómez e María Jesús González. Além disso, a Bienal levou a Coimbra grandes nomes da arte internacional, como Cildo Meireles e Paulo Nazareth, no Centro de Artes Plásticas, e a obra de Jeremy Deller, a acompanhar o olhar de quem passar pelo Jardim Botânico.

Logo na entrada do Mosteiro começa a aura surreal da Bienal: os visitantes são acolhidos pelo canto de pássaros, mas sem ter por base qualquer forma animal: trata-se de Imitating the sound of the birds (1979), do artista francês Robert Filliou, aderente do movimento Fluxus, que sempre trabalhou no limiar do fantástico, lembrando-nos como as formas de todas as artes visuais constituem um simulacro da realidade, uma exacerbação da linguagem ou, tal como Platão escreveu, uma réplica inexata da existência.

Continuando no reino das assombrações, os trabalhos de Bárbara Fonte (Morte de um opositor e Tratamento farmacológico da paranóia, entre outros) iluminam a relação que ocorre entre vida e poder, pondo em destaque as dinâmicas de submissão, trazendo-nos à mente o tratado de Michel Foucault, Vigiar e Punir. Não é por acaso que a artista gravou alguns dos vídeos aqui apresentados precisamente nas mesmas salas do Mosteiro, um lugar que, lembremo-nos, albergou freiras algo incomuns, ou seja, obrigadas pelas famílias a professar os votos e, logo após esses tempos, se transformou num quartel militar durante a ditadura.

Outro lado surreal da Bienal advém da potente reverberação sonora de um apito a tocar no ar, duas vezes por dia: o espanhol Berio Molina colocou, à beira da colina do Mosteiro, uma buzina de navio, Dislocación (2022), relembrando o passado das navegações portuguesas num lugar do país onde não há mar. Um absurdo a chamar também a atenção para as coisas que se passam no lugar onde a Bienal acontece até ao próximo dia 30 de junho.

A parte dos anjos, de João Marçal, é a intervenção protagonista do espaço da Cisterna de Santa Clara-a-Nova. Neste trabalho comissionado pela Bienal, Marçal oferece-nos pinturas “abstrato-sentimentais” inspiradas em padrões de assentos e em linhas arquitetónicas que relembram, quer os interiores dos comboios de Portugal, quer antigos papéis de parede: um ato criativo que se torna invisível, fantasma do próprio conceito de autoria.

Duas impressionantes instalações que parecem dialogar entre si, são a de Susanne Themlitz, E lá dentro. Vento. (2024), realizada no andar térreo do Mosteiro, e a de Felipe Feijão, Estrutura (2019-2024), colocada na Torre. Começada antes da pandemia, Estrutura destina-se a nunca terminar, pois ela modifica-se com base nos espaços que a vão hospedando e, também, conforme a própria vontade do artista: trata-se de uma reflexão sobre o ato criativo, envolvendo elementos arquitetónicos alheios a qualquer função, incluindo traves de casas que foram derrubadas pelo terremoto de Lisboa de 1755. Já E lá dentro. Vento., vive num ambiente mais específico, onde presenças humanas e fantasmagóricas se conectam, criando sons e labirintos visuais, e distorcendo as perceções entre o interno e o externo.

Fora do Mosteiro, na Sala da Cidade, Teresa Lanceta expõe um conjunto de obras que formam o trabalho El Raval (2019-2021). Inspirada pelo bairro cigano madrileno e composto por tecidos costurados e tapetes, a instalação é uma herança afetiva da memória da artista, que ali viveu na década de 1980 e, contemporaneamente, produzindo um paralelo histórico entre as vivências políticas de Espanha e Portugal, diferentes e unidas.

O Sanduíche muito branco de Cildo Meireles (1966), trabalho seminal do artista que abre o percurso na sede do Centro de Artes Plásticas, tem um sabor estranho, a lembrar situações onde os fantasmas pertencem aos universos dos devaneios, às lembranças das próprias origens e orientações: de facto, o ser humano, desde o início e até ao fim da sua vida, anda cheio de assombrações a acompanhá-lo!

A propósito de utopias nunca resolvidas e dos espíritos do passado, a videoinstalação de Paulo Nazareth, Antropologia do Negro (2014), transporta-nos até à época do colonialismo e do esclavagismo: a cabeça do artista, deitado no chão, está coberta por dezenas de crânios, a carregar metaforicamente tanto o peso do sofrimento dos antepassados, como o de todas as identidades apagadas em nome do poder mais cego.

Voltando atrás no tempo mas mantendo a mesma força, há a bonita homenagem a Luis Cília, cantor angolano naturalizado português, cujas letras denunciaram a guerra colonial na sua terra natal, na década de 1960, ligando-a também ao belo trabalho de Ilídio Candja Candja, artista moçambicano que realizou para a Bienal Pregador de almas, uma grande instalação que atualiza trechos da história colonial por meio de pinturas, tijolos em terra que voltarão à terra, e objetos em barro.

No Museu Nacional de Machado de Castro, a Fundação Altice exibe duas instalações das artistas Ana Vieira e Martinha Maia na exposição Entre Espaços, que visa oferecer uma leitura do conceito da liberdade na arte contemporânea, inspirado – é claro – no tema do Anozero’24. Em Pronomes (2001), Ana Vieira, falecida em 2016, esculpe silhuetas humanas utilizando fatos negros. Não há corpos, mas, sim, presenças voláteis a ocupar o espaço; fantasmas cujas identidades pertencem à nossa imaginação: quem vestiu essas roupas? Para onde olha essa figura? A ideia do ser humano desaparece, ocultando e desvelando a nossa verdadeira essência através uma ausência dos limites físicos. Já Fato II, de Martinha Maia (2004), convoca o exercício de uma ação-performance do corpo humano no espaço. Por meio de uma estrutura-roupa que se torna ora obstáculo, ora elemento determinante – pelas sua inéditas possibilidades de impedimentos ou movimentos –, propõe uma reflexão acerda dos paradoxos da liberdade, “na coragem de sermos nós mesmos, com autenticidade embora vulneráveis”.

Em suma, uma atmosfera evanescente parece permear esta Bienal, rodeada pela delicadeza de obras às vezes fugazes, atuando como num labirinto, entre perceções diferentes. Contudo, atualmente, o Mosteiro enfrenta um novo fantasma: o da gentrificação, que quer transformá-lo num hotel de cinco estrelas, acabando assim com a vida da Bienal e gerando mais um triste assombro na cultura do país e da Europa.

O dedo médio levantado na mão da animação digital Una vez más, obra realizada pela artista brasileira Regina Silveira, talvez seja a resposta mais apropriada aos fantasmas que ainda hoje limitam a liberdade em dezenas de lugares do mundo e sob milhares de diferentes formas. Ainda bem que a arte – pelo menos ela! -, de vez em quando tenta responder ao pavor.

Matteo Bergamini é jornalista e crítico de arte. Atualmente é Diretor Responsável da revista italiana exibart.com e colaborador para o semanário D La Repubblica. Além de jornalista, fez a edição e a curadoria de vários livros, entre os quais Un Musée après, do fotógrafo Luca Gilli, Vanilla Edizioni, 2018; Francesca Alinovi (com Veronica Santi), pela editora Postmedia books, 2019; Prisa Mata. Diario Marocchino, editado por Sartoria Editoriale, 2020. O último livro publicado foi L'involuzione del pensiero libero, 2021, também por Postmedia books. Foi curador das exposições Marcella Vanzo. To wake up the living, to wake up the dead, na Fundação Berengo, Veneza, 2019; Luca Gilli, Di-stanze, Museo Diocesano, Milão, 2018; Aldo Runfola, Galeria Michela Rizzo, Veneza, 2018, e co-curador da primeira edição de BienNoLo, a bienal das periferias, 2019, em Milão. Professor convidado em várias Academias das Belas Artes e cursos especializados. Vive e trabalha em Milão, Itália.

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