Walter Carvalho: a fotografia além da fotogenia
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Les métiers du cinéma

Walter Carvalho: a fotografia além da fotogenia

Entrevista realizada por João Vitor Leal
João Vitor Leal et Walter Carvalho
p. 43-55
Traduction(s) :
Walter Carvalho : la photographie au-delà de la photogénie [fr]

Résumés

Entretien avec le directeur de photographie et réalisateur brésilien Walter Carvalho. Depuis les années 1970, Carvalho a travaillé avec plus de 50 réalisateurs et a été le témoin des différents temps forts du cinéma brésilien. Dans cet entretien, il revient sur son parcours, depuis sa participation aux films documentaires réalisés par son frère aîné Vladimir Carvalho, jusqu’à la reconnaissance de son travail comme directeur de photographie dans les années 1990, puis comme réalisateur à partir des années 2000. Dans son témoignage, il met l’accent sur le rôle de la photographie au cinéma : “Je ne travaille pas avec la photogénie, je travaille avec la narration”.

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Texte intégral

Walter Carvalho et Antônio Nó́brega pendant le tournage de Brincante (2011)

Walter Carvalho et Antônio Nó́brega pendant le tournage de Brincante (2011)

Introdução

1Walter Carvalho é, aos 64 anos, um dos mais requisitados e premiados diretores de fotografia do cinema brasileiro. Sua parceria com os mais importantes diretores do país, de Glauber Rocha a Walter Salles e Cláudio Assis, nos oferece um atalho para a compreensão da história recente do cinema brasileiro, sobretudo da chamada “Retomada” do início dos anos 1990 – período durante o qual, após grave estagnação, a produção cinematográfica nacional reconquistou seu público e ganhou visibilidade internacional. Considerando-se um fotógrafo que chegou ao cinema pelas vias do documentário, Walter Carvalho também começou a dirigir seus próprios projetos a partir do início dos anos 2000.

2Ele me recebeu para esta entrevista em uma manhã de quinta-feira em seu hotel em São Paulo, às vésperas da primeira exibição de seu novo documentário, Raul – o início, o fim e o meio. Na semana seguinte, Raul venceu os prêmios do júri popular e do Ministério das Relações Exteriores de melhor documentário na 35ª Mostra de Cinema de São Paulo.

Raul – o início, o fim e o meio (2012) de Walter Carvalho

Raul – o início, o fim e o meio (2012) de Walter Carvalho

Como você se envolveu com o cinema, como se tornou diretor de fotografia?

A primeira influência foi meu irmão, o documentarista Vladimir Carvalho. Eu era adolescente quando fui ajuda-lo nas filmagens, eu já gostava de pintura e de desenho e aquilo me encantou. Eu ainda não sabia, mas o que acontecia era que meu irmão estava aplicando uma “substância” em mim chamada “cinema”, e eu fiquei dependente disso. Lembro-me de dois filmes dele que eu participei, ainda não como fotógrafo, mas como assistente de tudo, nas viagens pelo sertão e tal. Um foi A pedra da riqueza (1975), um curta-metragem que foi muito bem entendido na época. E o outro foi um longa-metragem chamado O país de São Saruê (1971).

Naquela época eu morava na Paraíba, mas fui estudar desenho industrial na Escola Superior de Desenho Industrial no Rio de Janeiro. Lá eu tive aulas de fotografia com o professor Roberto Maia, que também trabalhava como fotógrafo de cinema. Com ele, comecei a aprender a gostar de fotografia. Fui seu assistente em um filme do Sérgio Santeiro chamado Humor amargo (1973).

Eu estava me habituando com a fotografia quando meu irmão me chamou para fotografar um filme em Brasília. Fiquei com medo, achando que não sabia. O Roberto Maia me falou “vai, você sabe”, mas na verdade eu não tinha ideia do que estava fazendo. Fui com dois fotômetros, um emprestado pelo Roberto Maia e outro pelo José Carlos Avellar, que na época, era crítico do Jornal do Brasil. Eu tinha tanto medo de errar que media a luz duas vezes. Se estivesse medindo errado, estava medindo errado com os dois. A insegurança era grande. E o Vladimir me dizia que se eu errasse não tinha problema, “sou seu irmão, eu não conto pra ninguém”. Fotografei o filme, chamado Incelência para um trem de ferro (1972), e foi uma sorte tremenda, dessas coisas que marcam a vida da gente: eu ganhei um prêmio pela fotografia do filme.

Aquilo foi muito incentivador, ao mesmo tempo que era um cafuné, me desafiou. Eu precisava saber mais, estudar mais.

O cinema pode até ter aparecido na minha vida antes da fotografia, mas eu me entendo como um fotógrafo. Eu observo a realidade do ponto de vista da representação do objeto, das lentes; pra mim, isso é que ser fotógrafo.

No início da sua carreira, durante as décadas de 1970 e 1980, você trabalhou com diretores como Glauber Rocha, Ruy Guerra e Nelson Pereira dos Santos. Como essa experiência contribuiu para sua formação como diretor de fotografia?

Naquele período do Brasil você tem mais a pornochanchada e a pós-chanchada, filmes populares que não tinham assim uma qualidade artística. Mas você tem, paralelo a isso, a criação da Embrafilme que foi o grande fomento do cinema brasileiro. É isso que possibilitou o pós-Cinema Novo, possibilitou aos cineastas se reaproximarem de seus projetos. E foi também um período de regulamentação do curta-metragem no país. Neste cenário, eu comecei a me inserir.

Primeiro eu filmei alguns dias para o filme Que país é este? (1977) que o Leon Hirszman dirigiu para a RAI. Depois eu fotografei um curta do Glauber Rocha sobre o escritor Jorge Amado, chamado Jorge Amado no cinema. Comecei a ser chamado para fotografar filmes de outras pessoas, eu estava no meio desse “boom” muito interessante de política cultural com incentivo do governo. Eu estava, naquela época, mais dedicado a filmes de documentário.

Foi assim nas décadas de 1970 e 1980, até o meu encontro com o Walter Salles. Nosso primeiro encontro foi em 1986, 1987, no primeiro documentário que fizemos juntos, sobre o artista plástico Frans Krajcberg (Krajcberg – o poeta dos vestígios, 1987).

Nelson Pereira dos Santos

Nelson Pereira dos Santos

Há essa altura você já tinha muita experiência em cinema.

Já tinha feito vários filmes com a Sandra Werneck, com a Tânia Lamarca, com o Roberto Farias e também um longa com meu irmão chamado O homem de areia (1981). E tinha aprendido muito fazendo câmera para grandes diretores de fotografia como o Fernando Duarte.

Central do Brasil (1998) de Walter Salles

Central do Brasil (1998) de Walter Salles

Com o Walter Salles, depois de fazer o Krajcberg, eu fiz o Terra estrangeira (1996), eu diria que é um divisor de águas na minha trajetória como fotógrafo. E é um filme com uma particularidade muito importante: é em preto e branco.

Quando eu comecei a atuar como fotógrafo profissional – profissional no sentido de remunerado pelo trabalho – o preto e branco estava em decadência. Então, apesar de eu já ter feito um filme assim antes com o Vladimir, eu fui estudar de novo essa questão. Assisti a todos os filmes em preto e branco da Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, e fui muito marcado pelo trabalho do Giuseppe Rotunno, diretor de fotografia italiano, sobretudo no Rocco e seus irmãos, dirigido por Luchino Visconti em 1960. Lembro-me também da fotografia dos filmes do Kurosawa e do Henri Alekan, grande fotógrafo francês que teve como um de seus últimos trabalhos o belíssimo Asas do desejo (1987) do Wim Wenders.

E, claro, assisti a filmes brasileiros em preto e branco, de fotógrafos como o Fernando Duarte, o José Medeiros e o Ricardo Aronovich. Para citar três que me marcaram, tem o A hora e a vez de Augusto Matraga dirigido por Roberto Santos em 1965, fotografado pelo Hélio Silva; o Vidas secas dirigido por Nelson Pereira dos Santos em 1963, fotogradado pelo José Rosa; e o Deus e o diabo na terra do sol dirigido por Glauber Rocha em 1964, fotografado pelo Waldemar Lima.

Isso tudo resultou em coisas interessantes. O Terra estrangeira acabou ganhando o troféu de prata Manaki Brothers, que é um festival importante, exclusivamente de fotografia, realizado na Macedônia. Esse prêmio chamou a atenção para o meu trabalho, dei entrevistas e fizemos um livro do filme. E logo em seguida veio o Central do Brasil dirigido por Walter Salles em 1998, que projetou todo mundo que trabalhou nele.

E o Central do Brasil é, talvez, o grande filme deste início da Retomada...

Eu nunca entendi muito bem porque chamam a Retomada de Retomada. Esse nome sugere que algo está começando, mas também que é continuação de alguma coisa, e a gente não sabe direito até onde o momento vai. O cinema brasileiro é um cinema de ciclos, estamos sempre retomando.

Mas enfim, é isso, o Central do Brasil teve uma importância extraordinária para a chamada Retomada.

Como era essa sua parceria com o Walter Salles?

A entrada do Walter Salles no cinema também foi pelo documentário, e nosso encontro foi uma descoberta mútua. A minha formação como cinematógrafo e operador de câmera já estava sólida, eu já tinha certa facilidade pra andar com a fotografia no documentário. Ele tinha uma bagagem mais teórica, tinha estudado no exterior, mas ainda não tinha feito nenhum filme. Confiamos um no outro a ponto de, no filme do Krajcberg, eu viajar para filmar sem ele.

Nossas bagagens se completaram no Terra estrangeira. Sob o ponto de vista da imagem, ele tem a base do documentário: é a câmera na mão e o ator improvisando na rua.

Também no Central do Brasil houve uma troca entre nós. Parte do filme se passa no Nordeste, minha terra natal. O Walter Salles promoveu uma volta minha à região. Ele era um garoto jovem, com uma ideia para um filme passado nesse lugar pouco conhecido por ele, mas ele estava acompanhado desse homem mais velho que conhecia a região. Nesse retorno eu filmei pela primeira vez em Cinemascope, capturando tudo em sua abrangência panorâmica. Isso deu força ao filme e contribuiu para sublinhar minha relação com o Walter.

Amarelo manga (2003) de Cláudio Assis

Amarelo manga (2003) de Cláudio Assis

Quais outros filmes do período marcaram sua trajetória?

Depois do Central do Brasil houve o Lavoura arcaica (2001). Nele eu acho que pude exercitar todo o meu potencial. O filme foi dirigido pelo Luiz Fernando Carvalho, que é um grande parceiro desde a época das telenovelas na Rede Globo de Televisão.

E foi marcante também o meu encontro com o Júlio Bressane. Eu tinha feito um curta com ele na década de 1970, chamado A viola chinesa (1977),mas mas só em 2003 conseguimos fazer um longa juntos, o Filme de amor.

E mais recentemente você fez vários trabalhos com diretores mais jovens, como o Cláudio Assis e o Karim Aïnouz. Como foi trabalhar com eles?

O Karim eu conheci através do Walter Salles, ele trabalhou como roteirista no Abril despedaçado (2002) e foi para o Nordeste com a equipe. Talvez por identificações mútuas em conversas sobre cinema, sobre a questão da imagem no cinema, ele resolveu me convidar pra fazer o Madame Satã (2002).

Já o Cláudio eu conheci no Festival de Brasília. Depois de uma sessão foi oferecido um jantar. Eu estava no banheiro quando o Cláudio entrou e disse “ah, você é o Walter”, eu respondi “e você é o Cláudio!” Ele me perguntou se eu não estava com vontade de filmar no nordeste de novo. Eu disse que estava, então um dia ele me telefonou e nós fizemos o curta Texas hotel (1999).

O Texas hotel chamou muita atenção por todo seu aspecto formal, inclusive pela fotografia, eu até ganhei alguns prêmios. Nós queríamos fazer o curta inteiro em plano seqüência, mas não foi possível tecnicamente, seria preciso construir uma parafernália que a produção não podia pagar. Então eu desenvolvi uma maneira de filmar, um esquema para simular uma câmera aérea, e o filme acabou sendo decupado em apenas oito planos. Isso fascinou o Cláudio e ficamos amigos. O curioso é que o Texas hotel era, na verdade, uma seqüência escrita para o longa Amarelo manga. Com o sucesso do curta nós conseguimos fazer o longa filmando na mesma locação, e eu pude desenvolver todas as ideias que eu já tinha esboçado sobre o que fazer com a câmera e a luz.

Madame Satã (2002) de Karim Aïnouz

Madame Satã (2002) de Karim Aïnouz

E como é seu fluxo de trabalho?

Quando um diretor me chama pra fazer um filme, ele me dá um roteiro. Eu leio como se fosse um romance, sem prestar atenção às divisões de seqüência ou os efeitos que eventualmente estão escritos. Eu me apaixono, ou não, pela história, os personagens.

A partir daí eu vou conversar com o diretor e é aí que o diretor me diz tudo o que ele quer do filme, porque ele quer me conquistar. Em geral, os diretores de cinema, e eu me coloco dentro desse pacote, querem mudar o mundo, acham que estão para fazer o filme mais incrível da história do cinema... eles te dizem coisas, “o meu filme isso, o meu filme aquilo”. Então eu fico atento, levo um caderninho e uma caneta e anoto – uma frase que ele disser pode ser o segredo daquela história pra mim.

Eu vou te dar um exemplo. No Lavoura arcaica, eu baseei toda a parte da infância do personagem principal, em uma frase que eu li no livro do Raduan Nassar, no livro a partir do qual o filme foi feito. Ele escreveu “como era boa a luz da infância”. Isso me remeteu direto à minha infância. Eu passava férias no interior e via as minhas tias fazendo pão, acho que tive uma infância parecida com a personagem do ponto de vista da família. Ao ler o Raduan é que eu recordei que a luz da infância é mais solar, transparente, demarca mais o horizonte. Com isso em mente é que eu comecei a trabalhar os filtros e a maneira de expor. Já a luz do pai desse personagem era uma luz tenebrosa, que eu fui construindo a partir de pinturas de Rembrandt.

Outro exemplo é O veneno da madrugada (2004), do Ruy Guerra. O Ruy é muito eloqüente, intelectual, um filósofo do cinema. Quando ele fala sobre o filme ele me entrega muito facilmente o que eu preciso fazer para a fotografia desse filme. O veneno da madrugada se passa em uma noite chuvosa e, na conversa, o Ruy me dizia palavras como “musgo”, “ocre”, “penumbra”, “luz de vela”, “luz de lampião”: são as bases da fotografia do filme.

Depois da conversa com o diretor eu releio o roteiro pensando onde aquela história se situa. É na varanda da casa? No quarto, na rua, no escritório, no campo? Como é a luz do campo?

É um erro crasso querer levar uma luz para dentro do filme. Você tem que ler o roteiro sabendo que ali dentro, mesmo que não esteja escrito, tem uma luz, seu trabalho é descobrir qual é ela.

Lavoura arcaica / À la gauche du père (2001) de Luiz Fernando Carvalho

Lavoura arcaica / À la gauche du père (2001) de Luiz Fernando Carvalho

E o processo de filmagem?

Eu vou pesquisando até que, perto de filmar, eu me desligo daquilo. O que eu absorvi para aquela narrativa já está dentro de mim, como se eu tivesse colocado tudo em uma gaveta. Eu fecho essa gaveta, abro todas as outras e vou adiante. Então, quando começa a filmagem, coisas que estão naquela gaveta começam a escapar. Algumas coisas não conseguem sair, não sei por qual motivo, mas isso não me preocupa: eu começo a descobrir o que está na realidade na hora de filmar. Nesses momentos eu estou totalmente ao lado do acaso, e o acaso, se você não estiver preparado para ele, passa por você, bate em você.

Não gosto de conhecer tudo do objeto ou das pessoas. Gosto de conhecer até certo ponto e depois eu me desafio ao desconhecido. É assim no amor, é assim na vida, para mim. Se eu souber tudo o que eu vou fazer em um filme, vou me sentir muito seguro e não vou me desafiar. E toda vez que eu termino um filme eu olho para trás e penso que estou finalmente pronto para começar a fazê-lo. Mas aí já é tarde, porque eu já fiz! Levo dentro de mim muito mais do que eu deixo dentro do filme.

Janela da alma (2001) de João Jardim et Walter Carvalho

Janela da alma (2001) de João Jardim et Walter Carvalho

O veneno da madrugada (2006) de Ruy Guerra

O veneno da madrugada (2006) de Ruy Guerra

Alguns filmes desse período, anos 1990 e 2000 do cinema brasileiro, fizeram nascer uma grande discussão sobre a “cosmética da fome”, que faz referência ao termo “estética da fome” cunhado por Glauber nos anos 1960. A ideia é que os filmes estariam “embelezando” a miséria, “higienizando” a sociedade brasileira, ao invés de retratá-la de forma realista, sincera. Como fotógrafo deste período, como você recebeu essa crítica?

Acho que essa discussão do estético e do cosmético é um sofisma, uma forma que a crítica, naquele momento, achou para provocar alguns fotógrafos, sobretudo para provocar o Breno Silveira e para me provocar. Em particular, essas observações da crítica foram dirigidas ao Abril despedaçado, que eu tenho a impressão que é, visualmente, um filme bonito. É curioso que justamente nesse filme eu não tenha trabalhado com filtros nem efeitos de pós-produção, é um filme seco. Mas eu, junto com o Walter Salles e o diretor de arte, escolhi a localização da casa e a casa foi construída especialmente para o filme. Esse trabalho de produção revela uma certa sofisticação no olhar, e é isso que não foi entendido, ou que não quiseram entender. Usei a abrangência panorâmica do Cinemascope para enquadrar a serra, estudei e propus, junto com o Walter Salles, formas de ver diferentes do que vinha sendo feito. Era uma dedicação ao quadro como em poucos filmes eu tive.

Acho que a crítica especializada vê o filme dela dentro do seu filme, assim como eu assisto a um filme qualquer e penso “aquilo ali não devia ser daquele jeito”; isso é normal. Mas também é preciso compreender os meus filmes, os do Breno Silveira, os do Lauro Escorel, dentro de um contexto. Cada um de nós chegou com uma proposta, ou um olhar, que não estava acostumado a ser visto. Isso não chegou a ferir, mas causou uma reação.

E depois me disseram, a respeito do Lavoura arcaica, que o filme é “tão bonito, mas tão bonito, que eu não gosto”. Fui acusado de fazer um filme bonito demais, não podia ser tão bonito! Mas não faço filmes pensando neles serem bonitos, eu não trabalho com fotogenia. Trabalho com narrativa. Se a narrativa resultar em uma fotogenia, ótimo; se não resultar, o que importa continua sendo a narrativa. Qual é o problema de eu ter perseguido uma narrativa e no final dessa narrativa ter uma fotogenia?

Como, e por quê, você começou a dirigir?

Quando comecei a fotografar, na década de 1970, desenvolvi ideias em fotografia, fui seduzido pela imagem e exprimi isso através dos filmes que eu fotografei. A cada ano que passava se projetavam na minha frente projetos que eu tinha interesse em fazer, mas fui adiando as chances que eu tive de dirigir. A exceção foi um curta chamado MAM SOS, sobre o incêndio do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, que dirigi em 1978.

Através dos vários diretores com que eu trabalhei, mais de 50, eu fui descobrindo o que é ser diretor de cinema. Sem querer e sem me dar conta, aprendi o ofício da direção no próprio contato com esses colegas. E hoje eu percebo que, trabalhando como diretor de fotografia, eu acabei deixando nos filmes muitas coisas que seriam atitudes do diretor. Não falo isso por vaidade. Eu estava dando uma contribuição, em alguns momentos, que era muito mais do que a fotografia.

O que realmente me provocou para desenvolver os meus projetos foi quando eu co-dirigi o Janela da alma convidado pelo João Jardim. A Sandra Werneck me convidou para fazer com ela o Cazuza – o tempo não para (2004), e fiz sozinho o Moacir arte bruta (2005). Comecei a ter mais vontade de dirigir, mas acho que continuo não sendo um diretor de cinema. Eu sou um fotografo que dirige.

Seus filmes parecem ter em comum uma investigação da criatividade: no Janela da alma é o olhar como uma forma de criar algo, você fez filmes sobre o Cazuza e o Raul que são artistas, o Moacir também, o Costa no Budapeste (2009) é escritor...

Curioso você observar isso. É um escritor, é o olhar, é um artista plástico, os músicos... estou trabalhando agora em um filme com o Antônio Nóbrega, que canta, dança, compõe, e outro sobre o Armando Freitas Filho, um poeta carioca. Além desses, tem um documentário sobre o plano cinematográfico que realizo há mais de dez anos, Um filme de cinema, que ainda depende de financiamento.

Posso te responder dessa forma: acho que eu estou lançando mão de um artista por quem eu tenho admiração para fazer meu cinema através da obra dele. É curioso isso, mas é isso mesmo! Eu acho que é uma forma de falar da vida não através da minha visão especificamente, mas através da visão dos artistas.

Anna Azevedo et Walter Carvalho

Anna Azevedo et Walter Carvalho

Com relação ao cinema documentário, há uma forte crítica a filmes que, por se apegarem a uma espécie de cartilha ética, acabam colocando em risco o potencial estético do próprio filme. Os documentários que você dirigiu parecem escapar a essa crítica, como quando você traz um artista plástico renomado para contrapor à arte do Moacir; ou quando você, no Janela da alma, insiste para o Hermeto Paschoal, que é estrábico, olhar direito para dentro da câmera. Se você estivesse atento apenas a um “código ético”, talvez esses momentos não fosse registrados, não é mesmo?

Meu principio fundamental, como documentarista, é o respeito.

Acho inacreditável que, quando o Moacir arte bruta foi exibido, exatamente metade das pessoas achou a participação do Siron, o artista plástico, errada, e a outra metade achou que é exatamente assim que tinha de ser. O que eu queria fazer é muito simples: confrontar, fazer encontrar ou desencontrar, dois artistas, um cânone das artes plásticas e um considerado outsider. Como se dá esse confronto? Como que um artista quase primitivo, fora do circuito, perdido no meio do mato, se encontra com um artista que tem obras espalhadas pelo mundo inteiro? Eu queria ver o que ia acontecer! E o que aconteceu foi uma obra, um quadro que eles fizeram juntos, e eu fiquei feliz com aquilo. Agora, se a personalidade do Siron é uma personalidade sob um certo ponto de vista arrogante, aí é uma questão da personalidade do Siron.

No Raul tem um momento que um entrevistado mostra uma arma, e eu deixei isso no filme. Ele está dando uma entrevista, assim como eu estou dando esta entrevista, e é como se agora eu puxasse uma arma, “olha, eu tenho uma arma de verdade, com bala e tudo”. Recebi críticas dizendo que é um absurdo eu ter deixado aquele exibicionista mostrar uma arma no filme, e também tem gente que veio me dizer que achou fantástico! É engraçado como isso repercute. Eu confesso a você que, na hora que ele tirou aquela arma, se a gente não estivesse em um lugar fechado, em um hotel, se estivéssemos ao ar livre, eu ia pedir pra ele atirar. Ia ser engraçado, entende?

Você faz isso por curiosidade?

Eu me coloco como alguém que está conversando com um pintor e pergunta “por que você usa tanto vermelho nas suas telas?” Eu sempre, sempre tenho a esperança de que, quando eu pergunto isso, o pintor vai me dizer uma frase extraordinária sobre o vermelho. Estou pouco interessado no que ele pensa sobre política, interessa-me saber qual a intensidade que ele sente daquela cor.

Da mesma forma, eu estava entrevistando uma outra pessoa e tinha um lago atrás dela, então eu disse “você poderia, por favor, entrar naquele lago?”, ela olhou pra mim e disse que sim. E ela foi e entrou no lago. Eu não sei se isso é dentro das questões do documentário, se é um problema ético, se eu não poderia ter pedido isso. Eu pedi por curiosidade mesmo.

Tento deixar a pessoa à vontade. Antigamente eu ia entrevistar uma pessoa e ficava ansioso, estudava tudo. Hoje eu sei mais ou menos o principal e o resto eu vou descobrir com ela. Não trabalho com provocações para que o entrevistado faça revelações fantásticas.

Como você traz esse olhar do documentário para o seu cinema de ficção?

O poeta João Cabral de Melo Neto tem um poema no qual ele pergunta por que nós temos que fazer ficção. Por que temos que escrever uma história pra filmar? O cinema deveria ser só documentário, porque a realidade é tão rica... Não é que eu filme a ficção com questões do documentário; é que a minha formação é, invariavelmente, uma formação do documentário, e isso acaba vindo à tona no momento da filmagem.

Em uma cena do Budapeste, uma estátua do Lênin desce o rio em um barco. É uma homenagem ao Theo Angelopoulos que, no filme Um olhar a cada dia (1995), pegou uma estátua dessas que foram desmanchadas nos ex-países comunistas e a lançou no Danúbio. Pois eu inventei que essa estátua, lançada há mais de dez anos em uma zona rural da Romênia, passou pela Hungria, por Budapeste, no exato instante que eu estava filmando. Fiz isso por vários motivos. Budapeste é uma cidade muito bonita, então eu queria filmá-la, ao menos em uma cena, sem ter meus atores em primeiro plano, mas queria que essa filmagem não tivesse um tom de cartão postal. Além disso, descobri que o único país do leste europeu que não destruiu os monumentos do comunismo foi a Hungria. E também, ao final da seqüência, a câmera vira de cabeça para baixo, que é uma forma que eu encontrei para simbolizar a derrocada do comunismo. Então essa cena é uma síntese de várias coisas. E foi uma cena difícil de fazer, a filmagem demorou de 5 da manhã às 4 da tarde, precisamos de uma parafernália para fazer a câmera virar de cabeça para baixo, mais de 45 pessoas trabalhando, a estátua custou 26 mil euros... e sabe qual o maior elogio que eu recebi do Budapeste? Várias pessoas vieram me perguntar “quando você filmou aquela estátua, ela estava passando mesmo?”

Eu acho que quando o documentário se realiza na sua plenitude, vira ficção. E uma ficção, realizada na sua plenitude, vira documentário.

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Titre Walter Carvalho et Antônio Nó́brega pendant le tournage de Brincante (2011)
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Titre Raul – o início, o fim e o meio (2012) de Walter Carvalho
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Titre Glauber Rocha
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Titre Ruy Guerra
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Titre Nelson Pereira dos Santos
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Titre Central do Brasil (1998) de Walter Salles
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Titre Walter Salles
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Titre Amarelo manga (2003) de Cláudio Assis
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Titre Madame Satã (2002) de Karim Aïnouz
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Titre Lavoura arcaica / À la gauche du père (2001) de Luiz Fernando Carvalho
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Titre Janela da alma (2001) de João Jardim et Walter Carvalho
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Titre O veneno da madrugada (2006) de Ruy Guerra
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Titre Anna Azevedo et Walter Carvalho
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Pour citer cet article

Référence papier

João Vitor Leal et Walter Carvalho, « Walter Carvalho: a fotografia além da fotogenia »Cinémas d’Amérique latine, 20 | 2012, 43-55.

Référence électronique

João Vitor Leal et Walter Carvalho, « Walter Carvalho: a fotografia além da fotogenia »Cinémas d’Amérique latine [En ligne], 20 | 2012, mis en ligne le 17 avril 2014, consulté le 26 mai 2024. URL : http://journals.openedition.org/cinelatino/463 ; DOI : https://doi.org/10.4000/cinelatino.463

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Auteurs

João Vitor Leal

João Vitor Leal é formado em Comunicação pela Universidade Federal de Minas Gerais com Master 1 pela Universidade Grenoble-3. Trabalha como jornalista e videografista para a revista Veja.

Walter Carvalho

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