Do futebol, no fim, fica a memória que nos contam
Brasil

Do futebol, no fim, fica a memória que nos contam

Com as mortes de Antero, Silvio Luiz e Apolinho, perde o futebol, perde o jornalismo, mas ficam as histórias

Não adianta muito ter visto que o Flamengo e o Palmeiras ganharam na quarta-feira, que o Fluminense e o Botafogo venceram na quinta, se tudo não fizer parte de uma longa e eterna travessia em que as histórias, os jogos e os personagens vão fazendo parte do que somos, protagonistas das nossas lembranças, quase que tomando para si todo ruído de qualquer recordação, às vezes de forma tão flagrante, evidente, que alguém em volta vai dizer que soa exagero. Do futebol, no fim, fica a memória que nos contam, esse grande eco a partir dos fragmentos de uma vida, um causo de gol, um fiapo de pedaço incerto de um lance que você quase tem certeza que aconteceu assim, desse jeito.

Nos anos 1970, o documentarista Jonas Mekas realizou “Reminiscências de Uma Viagem para a Lituânia”, quando ele retornou ao vilarejo de seu nascimento, no nordeste do país, depois de quase trinta anos. É uma espécie de filme-diário, com retalhos, partes de imagens que vão construindo suas rememorações, e eu sempre volto nessa ideia quando imagino o que poderiam ser as reminiscências de uma viagem às origens de uma pessoa apaixonada por futebol feito a gente, sabe, que não sabe ao certo o dia em que conhecemos o amor de nossas vidas, mas poderia garantir que é simples de puxar esse fio, porque um pouco antes de sair de casa, depois do banho, era um Ponte Preta x Santos na televisão, o goleiro precisou sair da área, foi gol, ou foi pênalti, talvez um gol ali e um pênalti depois, porque ao chegarem ao bar passavam os lances de novo, um jogo em Campinas, foi a primeira vez que a vi, o Santos de branco, ela linda, foi um jogaço, só pode ter sido.

E ainda que a gente possa ficar aqui batendo cabeça sobre o calendário, os desfalques por conta da seleção brasileira, o jogo que termina com o metrô quase fechando, os absurdos da CBF, o VAR, minha nossa, como eu reclamo do árbitro de vídeo, enfim, ainda que tenhamos assuntos ordinários a conversar sobre essa coisa apaixonante e um tanto quanto excessiva em nossas vidas, ainda que tenhamos a capacidade de renovar as mesmas conversas retóricas no labirinto de sempre – o que é mais memorável, ganhar ou jogar bem? –, ao entardecer, nas nossas horinhas de descuido, o que a gente vai fazer é contar. É um futebol contado, o ziguezague do tempo contornando jogo após jogo, e ali no meio a família, os empregos, as casas em que moramos, os namoros passados, os tempos bons, os tempos ruins, semana a semana um jogo da Ponte Preta contra o Santos, o Santos de branco, ela chegando no bar.

Quando a gente se despede de um Antero Greco, faz a passagem um coautor dessas memórias todas. O que eu acho da Copa Rio de 1951 do nosso time, Antero, o que eu acho sobre usar ou não a camisa amarela da seleção brasileira, sobre o debate entre o espetáculo do Sarriá e uma certa frieza do Rose Bowl, sobre talvez comemorar gol contra o ex-clube, sobre depois dançar na comemoração, tudo o que eu posso ver, ouvir, pensar e contar para alguém, eu o faço porque você me contou, vocês me contaram. Uma ressonância anônima, ao mesmo tempo que tão íntima, circulando a sala de casa, a TV baixinha porque o pai acorda cedo, com certeza ele teria algo sensível e menos óbvio para falar sobre o camisa 10 do Flamengo usar a blusa do Corinthians, porque essas histórias estão aí para que a gente converse, um bar na Tijuca, a foto do Gabigol, que texto e que fala mais assentada a sua, Antero, como é que você sempre tinha algo tão no ponto para nos dizer, afinal.

Quando a gente se despede de um Apolinho, deixamos de ouvir um criador de nossa forma de se emocionar no mundo. Fiquei igual pinto no lixo, Apolinho, quando já mais grandinho, com internet em casa e tudo, vi uma matéria numa revista que contava que pelo computador a gente agora podia ouvir as rádios do mundo inteiro. Eu lá queria saber do mundo, Apolinho, eu entrava naquele site aos domingos, minha mãe perguntando se a conta não ia vir tão cara em ficar transmitindo coisa de outros lugares, para ouvir você, o Penido, o Garotinho, era uma briga de cachorro grande para ver que estação eu poderia escolher naquele Campeonato Brasileiro particular das caixinhas com chiado, como se o mundo, gigantesco, ficasse agora pequenino naquele barulho de conexão discada, eu ouvindo futebol direto do Maracanã, que um dia eu sonhava tanto em conhecer e você me contou como era enorme, a maior coisa do mundo, os geraldinos lá embaixo, era onde eu queria estar, você falava com tanto carinho deles.

Quando a gente se despede de um Silvio Luiz, fica um silêncio de criatividade na hora de narrar nossos joguinhos da vida, não só o futebol de botão, mas a chegada do ônibus, a fila para o dentista, o trejeito do garçom, a menina que tropeçou ao atravessar a rua porque estava com a cara pendurada no celular. Eu acho um barato que cantar um gol dizendo que foi, foi, foi, foi, foi, foi, foi, foi ele, era só um cacoete que surgiu numa transmissão porque enquanto você não tinha certeza de quem tinha feito o gol, era melhor manter o ritmo de alguma narração, então o foi, foi, foi era, na verdade, um desespero, foi quem, caramba? Como é que uma pessoa, uma só, não uma reunião dessas de mesa comprida, sala vedada por vidros e café de máquina de baixa qualidade, como é que uma pessoa só pode ter colocado para a gente a ideia de: olho no lance! É, Silvio, quando eu era bem criança uma bisavó dizia para a minha mãe me levar no médico porque esse menino só pode ser mudo, ele não fala nada, e eu demorei a começar a falar, mas eu ouvia, ouvia muito, e se a gente hoje pode falar brincando, se fingir disperso quando dos assuntos mais importantes, levar a rotina narrando as esquinas para a gente mesmo, é porque fomos criados em ouvidos atentos e boa prosa, pelo amor dos meus filhinhos.

Eu tenho um exercício, uma anedota, geralmente eu o faço naqueles dias mais difíceis, cheios, complicados, que é mandar um áudio para o meu pai perguntando como é que jogava fulano, se era bom de bola mesmo, parecido com quem. Ele não me manda nenhuma foto, nenhum vídeo, nenhum link para eu saber mais, ele só responde começando com ‘ô, junior!’, e desanda a contar que você tinha que ver esse cara indo na linha de fundo e cruzando, era hoje assim, digamos, um Vinicius Junior, um Mbappé, um cara para jogar em Copa do Mundo, Real Madrid, um craque, e olha, era folgado, hein, era rebelde, ele tinha o jeitão dele, metia a boca, comprava as brigas, não fugia do pau, não, e olha, hoje não tem mais ninguém assim. A gente vai ouvindo e levando, as vozes da cabeça juntando lé com cré como nos inspiram nossos contadores de histórias, e hoje à noite tem jogo de novo.

Foto de Paulo Junior

Paulo Junior

Paulo Junior é jornalista e documentarista, nascido em São Bernardo do Campo (SP) em 1988. Tem trabalhos publicados em diversas redações brasileiras – ESPN, BBC, Central3, CNN, Goal, UOL –, e colabora com a Trivela, em texto ou no podcast, desde 2015. Nas redes sociais: @paulo__junior__.
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