Teoria e Debate | Memória do Brasil, 60 anos de História concretada - Teoria e Debate

Especial do Golpe

Os militares em todos os escalões se calaram durante e depois, num pacto impenetrável do corporativismo. O plano foi perfeito. Vinte e um anos de censura, lavagem cerebral e apagamento da verdade, de cancelamento de vidas e de ideias.

“Nem D. Maria I e seus prepostos no Brasil condenaram os inconfidentes sem julgamento, como fizeram os militares da ditadura, sentenciando os jovens idealistas à morte sob tortura, no segredo dos calabouços.” Quem dizia isso era minha mãe, Zuzu Angel.

Ao fim dos 21 anos de horror, eles precisaram limpar o lixo de suas perversidades. Os sujismundos sanguinários limparam tudo. Faxina completa. Apagamento que começou com a Lei da Anistia, capenga, que também contemplava os malfeitores. Mas naquela ocasião não houve jeito de ser diferente. Era isso ou nada disso.

Para não deixar rastro, concretaram a prisão no subsolo da Base Aérea do Galeão e seu aparato de tortura. Não existem. Talvez tenham feito um jardim em cima, como naquele conto infantil em que a princesa enterrada viva fazia o gramado sussurrar ao vento: “Jardineiro / jardineiro / corte os meus cabelos”.

Na base aérea da Ilha do Governador, no Rio de Janeiro, não havia jardineiros, só carniceiros. Nos centros de tortura do Exército, não havia princesas para denunciar ao vento seus assassinatos. Mas houve princesas da coragem, como Inês Etienne Romeu, que sobreviveu para nos revelar a existência da Casa da Morte, em Petrópolis.

Os militares em todos os escalões se calaram durante e depois, num pacto impenetrável do corporativismo. O plano foi perfeito. Vinte e um anos de censura, lavagem cerebral e apagamento da verdade, de cancelamento de vidas e de ideias, de proibições e silêncios, de autoritarismo e obediência, de manda-quem-pode-obedece-quem-tem-juízo. As gerações seguintes mal ouviram falar. Os livros didáticos omitiram. Ainda hoje, não fossem as escolas de samba com seus enredos audaciosos, o povão jamais ouviria falar dos horrores praticados na ditadura. Também a produção cultural nos contemplou com filmes, peças de teatro, canções e livros a respeito. Sem a cultura, o esquecimento seria absoluto.

Ao longo dessas seis décadas, foram levas de jovens tecnocratas consumistas. Várias fornadas de estudantes com conhecimentos rasos da História, professando a cultura do “ganhar dinheiro”. Os mauricinhos do mercado financeiro. Os bitolados das apostilas dos concursos públicos.

Em nosso país, quando se fala em heroísmo, a única referência popular é Tiradentes. Fala-se também em militares, imperadores, imperatrizes, princesa Isabel. E onde está a brava gente brasileira? Os idealistas que padeceram nas masmorras das ditaduras de Getúlio e de 1964? Os mortos do Araguaia? Os sacrificados por não entregarem seus companheiros de luta, não são heróis? Militantes da Revolução Constitucionalista paulista, há três no livro dos Heróis da Pátria. Combatente contra a Ditadura Militar, apenas Zuzu Angel. E Carlos Marighela? E a Inês Etienne? E o heroico capitão Sergio Macaco, que teve a coragem de desobedecer ao plano diabólico do brigadeiro Burnier, durante a ditadura, salvando assim pelo menos 10 mil vidas que seriam vítimas de atentados? E minha cunhada Sonia Angel, morta pelas costas em fuga simulada, depois de ter os seios arrancados com alicate? Não são lembrados, não são cultuados, não são falados. Também não é enaltecido o marinheiro João Cândido, líder da Revolta da Chibata em 1910, quando as dolorosas chibatadas ainda eram aplicadas pela Marinha do Brasil, apesar de o castigo já ter sido legalmente abolido. Por que não o Almirante Negro que foi torturado, punido, perseguido por sua arma? Porque tudo isso melindraria os militares. Assim como melindraria, como bem revelou o ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, a realização de atos que, neste 60º aniversário do golpe de 1964. Lembrariam e contariam as verdades sobre aquelas duas décadas de exceção.

Após a morte de minha mãe, o historiador Hélio Silva, autor da coleção “Os governos militares”, escreveu-me uma carta. No livro volume 20, em que discorre sobre o Governo Médici, o professor publica na íntegra a carta de Alex Polari de Alverga, detalhando o suplício que levou à morte meu irmão, Stuart Angel Jones, na Base Aérea do Galeão.

Quando sofreu a emboscada que a matou, Zuzu transportava na mala de seu Karman Ghia algumas dezenas de exemplares desse livro, que entregava a quem achava que precisava saber. Antonina Murat, mãe de Lucia Murat que militou com Stuart, era companheira de Zuzu em algumas dessas distribuições. Antonina conta:

“Com um destemor sem limite, Zuzu resolveu entregar o livro ao Ministro do Exército, General Silvio Frota. Fomos em seu carro azul até a casa do general, quando fomos recebidas por policiais armados, porque se tratava de uma área militar. As armas foram colocadas em nossas cabeças. Mesmo assim, Zuzu conseguiu chegar até Silvio Frota, que realizava uma festa em sua residência, e entregar o livro. Com o mesmo destemor, fez a entrega de muitos outros exemplares.”

Quando minha mãe sofreu a emboscada na madrugada que a matou, seus algozes limparam a mala do carro azul. Não deixaram nem um exemplar. Católico, o historiador Hélio Silva me desejava em sua carta muita força e fé, pois eu teria “duas cruzes pesadas para carregar”. Duas cruzes. Ao ler, eu me senti até encabulada, pois não me via com estatura, capacidade ou mérito para carregar cruzes que representavam causas e ideais tão importantes. Lá se foram 48 anos, desde a morte de mamãe, e 53 anos da morte de meu irmão Stuart, e mesmo sem merecê-las eu carrego as duas cruzes até com certa leveza. Elas não são pesadas, como as correntes que os fantasmas arrastam nos castelos mal assombrados. São um alento, uma prova de confiança dos meus amados, um desafio, um sopro de inspiração para viver mais, viver muito, e manter viva essa memória, do jeito que conseguir.

Hildegard Angel é jornalista, filha da estilista Zuzu Angel e irmã do militante político Stuart Angel Jones.