1969 foi um ano marcado por ditadura política e revolução cultural - Jornal O Globo
Economia

1969 foi um ano marcado por ditadura política e revolução cultural

RIO - A ditadura comia solta, mas o que se ouvia no rádio era Wilson Simonal cantando que morava "num país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza". Em 1969, viveu-se um período de contradições, de transição, de mudanças. Nos cinemas, Glauber Rocha lançou um de seus clássicos, "O dragão da maldade contra o santo guerreiro". Mas 1969 foi, principalmente, o ano de "Macunaíma", de Joaquim Pedro de Andrade. Até então, acreditava-se que cinema brasileiro era uma ideia na cabeça, uma câmera na mão e uma plateia vazia. "Macunaíma", que trazia o humor de Grande Otelo, o talento de Paulo José e o inacreditável carisma de Dina Sfat, reconciliou o Cinema Novo com o grande público. Só que, no mesmo ano, foi criada a Empresa Brasileira de Filme, a mítica Embrafilme, o instrumento que, justamente em nome da conquista do mercado, anunciava o fim do Cinema Novo. Era tempo de "Macunaíma" e "O dragão da maldade...", mas começavam a se criar os mecanismos que possibilitariam a chegada, na década seguinte, dos megassucessos de bilheteria "Dona Flor e seus dois maridos" e "Xica da Silva".

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O ano começou com todo mundo cantando "Bahia de todos os deuses", o samba-enredo que deu a vitória ao Salgueiro no carnaval, e terminou ao som de "Aquele abraço", o samba-saudação que Gilberto Gil deixou ao partir para o exílio em Londres. Entre um e outro, ouvia-se Elis Regina ("Madalena") e Caetano Veloso ("Atrás do trio elétrico").

Ainda era tempo de festivais de música popular brasileira. Mas eles não conseguiam deixar de mostrar que já estavam em decadência. Paulinho da Viola mostrou a obra-prima "Sinal fechado" e ganhou o Festival da Record. Mas nenhuma das outras canções concorrentes ainda é lembrada, e a Record nunca mais realizou a competição. Luiz Gonzaga Jr., com "O trem", venceu o Festival Universitário. Foi a revelação do ano. E o Festival Internacional da Canção deu o Galo de Ouro para "Cantiga por Luciana", embora todo o Maracanãzinho torcesse por "Love is all", representante da Inglaterra, na voz de Malcolm Roberts. Meu Deus, quem se lembra de Malcolm Roberts?

Foi em 1969 que surgiu "O Pasquim", o que fez com que as palavras "putz" e "duca" fossem incorporadas ao vocabulário brasileiro e - embora ainda se acompanhasse o concurso de Miss Brasil (Vera Fisher ganhou o título para Santa Catarina naquele ano) - Leila Diniz se transformasse em musa nacional.

Foi o ano de "Woodstock", mas, no Brasil, a filosofia hippie chegava na montagem dirigida por Adhemar Guerra de "Hair", musical estrelado por Aracy Balabanian, Altair Lima e Armando Bogus, e que tinha, no elenco de apoio, os novatos Sonia Braga, Ney Latorraca e Nuno Leal Maia. O Prêmio Molière foi de Marília Pêra, na pele da solteirona de "Fala baixo senão eu grito", de Leilah Assumpção. Polêmica mesmo foi a montagem de "O balcão", de Jean Genet, produzida por Ruth Escobar em São Paulo. O teatro fervia. No Rio, o Ipanema iniciava sua trajetória de referência da nova dramaturgia brasileira com o espetáculo "O assalto", de José Vicente, com Rubens Correa e Ivan de Albuquerque. Em São Paulo, o Oficina mostrava mais um Brecht, "Na selva das cidades". Mas 1969 ficará para sempre na História como o ano em que Cacilda Becker, então a maior de nossas atrizes, teve um derrame cerebral fatal durante uma sessão de "Esperando Godot".

Na televisão, as novelas já dominavam a programação, e uma delas se destacava: "Beto Rockfeller", de Braulio Pedroso, enterrou de vez os dramalhões recheados de ciganas, príncipes coroados e heróis justiceiros para eleger como galã um vendedor de sapatos que se passava por rico na alta sociedade paulistana. Daí para a frente, a novela nunca mais foi a mesma.

E não foi só isso: em 1969, Jorge Amado lançava "Tenda dos milagres"; o disco anual de Roberto Carlos trazia "As curvas da estrada de Santos" no repertório; o "Jornal Nacional" foi ao ar pela primeira vez... A ditadura comia solta, mas o Brasil era "um país tropical, abençoado por Deus, bonito por natureza" e com uma atividade cultural que faz 2009 morrer de inveja. Leia as demais reportagens da série especial sobre os 40 anos da editoria de Economia do GLOBO:

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