Crítica: Musical sobre Elvis retrata músico sem medo de polêmicas
Crítica

Elenco de peso faz pulsar com energia história errante de Elvis Presley em musical O Rei do Rock

Espetáculo usa das canções do músico para narrar trajetória estelar que moldou a cultura popular do século 20

Publicado em 12/05/2024

Figura histórica da cultura popular dos Estados Unidos que teve sua imagem alçada à imortalidade após sair de cena no final da década de 1970, Elvis Presley (1935-1977) entrou para a eternidade menos como um dos maiores cantores da segunda metade do século 20 e mais como personagem folclórico de trajetória errante como um anti-herói de sua própria história, responsável por inspirar covers e imitadores de seus trejeitos e canções ao redor do mundo.

Tendo isso em vista, é surpreendente constatar que sua história nunca tenha sido contada em um musical na Broadway, ou no West End, na Inglaterra. Seja por questões envolvendo a família e os direitos de execução de suas canções, seja por uma possível falta de interesse de produtores, um musical sobre Elvis Presley sempre foi mancha não resolvida na história das obras biográficas oficiais nos grandes mercados.

Pelo menos até agora. Em O Rei do Rock, escrito por Beto Sargentelli a partir do luto da perda de seu pai, o também ator e cantor Roberto Sargentelli (1962-2016), fã do músico americano, essa mancha começa a ser apagada com êxito no registro do teatro musical ao redor do globo.

Em cartaz no palco do Teatro Claro Mais, na Vila Olímpia, em São Paulo, O Rei do Rock dá a visão de Sargentelli, o filho, acerca da vida do intérprete de clássicos como Love me Tender (1956) e Suspicious Mind (1969), sob influência da admiração de Sargentelli, o pai.

Impedido por questões legais de usar o nome do músico, o ator recuperou o epíteto pelo qual o músico passaria a ser conhecido após estourar nas rádios norte americanas com sucessos que mesclavam o country de sua terra natal, o Mississipi, com a cena blues local a partir da obra de cantores como Sister Rosetta Tharpe (1915-1973) e B.B King (1925-2015), reverenciados na montagem em cartaz até 19 de maio.

O Rei do Rock, musical sobre Elvis Presley

Sob a direção de João Fonseca, parceiro artístico de Sargentelli, responsável por encenar obras como Os Últimos Cinco Anos e o excelente Bonnie & Clyde – O Musical, O Rei do Rock desenvolve com fluidez a história de Presley partindo de sua juventude, quando já dava os primeiros passos como músico local, até chegar a seu sucesso e derrocada por vício em álcool e em remédios controlados.

Armadilha que geralmente traga musicais do gênero para a monotonia, dar conta da vida de um artista em detalhes é justamente o ponto que faz O Rei do Rock crescer, uma vez que o texto de Sargentelli não se priva de abordar polêmicas em prol da manutenção da figura de um ídolo, e tampouco julga o protagonista com anacronismo – fórmula usada para “atualizar” espetáculos do gênero, que geralmente resulta equivocada e desinteressante.

Sem medo da personagem, Sargentelli mergulha não só na vida de Elvis, mas na trajetória daqueles que o cercaram ao longo de sua ascendência e queda. Seja através dos músicos Scotty e Bill (Luiz Paccin e Aquiles), deixados pelo caminho durante a subida ao hall da fama, seja pela figura de Priscilla Presley, a parceira com quem viveu relação que foi do céu ao inferno.

Na pele da personagem, Bel Moreira marca seu retorno aos musicais quase uma década após sua última investida no gênero, e constroi uma Priscilla intensa e dúbia, em registro que convida o público a tomar suas próprias conclusões sobre seu papel na vida de Elvis. Em excelente forma vocal, Moreira é um dos destaques da produção neste que é não só seu melhor desempenho, mas seu melhor papel no teatro musical até aqui.

Aliás, o elenco é o principal ponto alto da montagem, cuja dramaturgia dá espaço para que todos desenvolvam alguma importância no decorrer da montagem. Outra armadilha da qual o texto se livra com maestria. Ao se abrir para os momentos de holofote, a dramaturgia jamais pausa a história em busca de um solo, mantendo o ritmo dinâmico.

Mérito da direção de João Fonseca, que, assim como em Bonnie & Clyde, preza pelo ritmo e um avanço sequencial da história, o que faz com que as quase três horas de espetáculo passem imperceptíveis. 

Mérito também da dramaturgia que ao construir história alicerçada essencialmente em seu elenco busca pontos de proximidade com o público, e os encontra a partir da escalação de nomes como Stella Maria Rodrigues, no papel da mãe de Elvis, Gladys Presley (1912-1958), e Stepan Nercessian como o empresário Tom Parker (1909-1997).

Atriz e cantora que faz parte do primeiro time do teatro musical brasileiro, Stella Maria Rodrigues encontrou em sua Gladys ponto imediato de reconhecimento do público ao não tentar emular uma figura fielmente biográfica, mas dar vida a uma mãe devotada e apaixonada pelo filho, dosando com precisão seus registros cômico e dramático. 

É bonito o jogo de cena que a atriz estabelece com Sargentelli e com Romis Ferreira, que dá vida ao pai do astro, Vernon Presley (1916-1979), em registro sóbrio e delicado. É nessa sobriedade, inclusive, que mora a marca da personagem, capaz de ser algoz e aliado do próprio filho em uma mesma cena.

Já Nercessian faz de seu Tom Parker uma figura encantadora. Usando do arquétipo do clássico malandro carioca, o ator se mostra à vontade em cena, estabelecendo diálogo fluido com a plateia sem deixar de sublinhar o tom cruel e vilanesco da figura que entrou para a história como o responsável pela ascensão meteórica e a queda de Presley.

Stepan Nercessian e Beto Sargentelli em cena em O Rei do Rock, musical sobre Elvis Presley

Na pele da dupla B.B King e Rosetta Tharpe, entre outras muitas personagens, Danilo Moura e Aline Cunha ganham um dos números mais enérgicos – e um dos melhores – da montagem, o soul Johnny B. Goode (1958), popularizado na voz e na guitarra de Chuck Berry (1926-2017) em 1960, mas posicionado sem rigor histórico no espetáculo.

Berry também reverenciado, ainda que não com uma personagem, mas como o verdadeiro responsável do embrião daquilo que viria a se tornar o rock and roll.

O que impressiona em O Rei do Rock é a escalação do elenco, que se divide em múltiplas personagens sem jamais resvalar no grande mal que assolou o teatro musical brasileiro ao longo das últimas décadas, quando o ensemble era formado por ótimos bailarinos e cantores, mas atores limitados.

Em O Rei do Rock há grandes atores, entre eles Neusa Romano, Rafael de Castro, Jéssica Stephens, Nathalia Serra (que também brilha na pele da atriz e principal affair de Elvis, Ann Margret), Rafael Pucca e Gui Giannetto, escalados em todos os tipos de papel.

Mas o destaque mais impressionante da montagem é realmente Beto Sargentelli, que encarna Elvis Presley em um período de pouco mais de 20 anos, absorvendo trejeitos e emulando sua emissão vocal à perfeição. Ainda que corresse o risco de resvalar na imitação de um cover de Presley, Sargentelli consegue construir sua personagem com delicadeza impressionante.

Prestando um tributo a seu pai, Beto humaniza Elvis Presley e seus dramas, como a solidão, a perda da mãe, os problemas de saúde e o fato de não saber lidar com a fama e as finanças, com a mesma precisão que expõe seus abusos com Priscila, suas irresponsabilidades e dependência de álcool e remédios sem jamais torná-lo uma vítima.

Ator que veio depurando sua arte ao longo dos anos com papeis de maior ou menor destaque, Sargentelli cresceu em cena ao encenar Os Últimos Cinco Anos, que lhe rendeu um Prêmio Bibi Ferreira de Melhor Ator, modulou sua boa forma vocal em Nautopia, espetáculo tão bom quanto subestimado, e chegou ao ápice de sua arte ao dar vida a Tony, uma das principais personagens do teatro musical moderno, na montagem de Charles Möeller e Claudio Botelho do clássico West Side Story.

Se Bonnie & Clyde serviu como ótima manutenção de seu ofício, em O Rei do Rock, o ator dá novo passo adiante mergulhando profundamente nas sombras que levaram ao crepúsculo o ídolo de gerações, que de tão amado se vê no papel de anti-heroi da própria história errática, estelar e definidora da cultura pop da segunda metade do século passado.

Mérito também da parceria com João Fonseca, que reza pela cartilha do uso em cena apenas daquilo que é essencial. Daí a escolha de cenário simples, mas prático, que dialoga com o ótimo desenho de luz de Paulo César Medeiros e dá espaço para uma relação do elenco e da plateia com o sexteto comandado por Thiago Gimenes, que assina a excelente direção musical.

Gimenes dá lufada de ar fresco nos sucessos de Elvis com arranjos de peso, mas que jamais descaracterizam títulos como Can’t Help Falling in Love e Burning Love, que embalam O Rei do Rock, destaque da temporada ao rezar pela cartilha da homenagem sem se deixar levar pelo medo de manchar a imagem de figura com fãs aguerridos e alçado à imortalidade duas vezes: ao sair de cena e ao ganhar espetáculo que mostra que o pulso do rock and roll de Elvis Presley ainda pulsa.

COTAÇÃO: * * * * (ÓTIMO)

SERVIÇO:

Data: 15 de março a 19 de Maio

Local: Teatro Claro Mais- São Paulo (SP)

Endereço: R. Olimpíadas, 360 – Vila Olímpia

Horário: Quintas e Sextas às 20h | Sábados às 16h30 e às 20h30 | Domingos às 15h30 e às 19h30

Preço do ingresso: R$ 32,50 (meia) a R$ 350