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Bachelet encerra seu mandato como alta comissária de Direitos Humanos

31 agosto 2022

A alta comissária de Direitos Humanos das Nações Unidas, Michelle Bachelet, encerra seu mandato nesta quarta-feira (31). Ela concedeu uma entrevista à ONU News relembrando os últimos quatro anos de trabalho.

Durante a conversa, a chilena abordou tanto os pontos altos de seu período à frente do Alto Comissariado, como uma resolução que inclui o direito a um meio ambiente limpo como fundamental, quanto os grandes desafios, como a pandemia de COVID-19.

Bachelet também destacou que está pronta para aconselhar seu sucessor no cargo, compartilhando as lições que aprendeu nos últimos quatro anos.

 

A Alta Comissária das Nações Unidas, Michelle Bachelet, encerra seu mandato de quatro anos nesta quarta-feira (31)
Legenda: A Alta Comissária das Nações Unidas, Michelle Bachelet, encerra seu mandato de quatro anos nesta quarta-feira (31).
Foto: © Antoine Tardy/ONU

A alta comissária de Direitos Humanos das Nações Unidas, Michelle Bachelet, deixa hoje (31) o seu cargo,  após quatro anos. Ela falou sobre o final de seu mandato em entrevista à ONU News. A chilena contou como os desafios dos últimos anos, como a pandemia de COVID-19, as crises humanitárias, a mudança climática e novos conflitos pelo mundo, deixaram o trabalho ainda mais complexo.

Ela apontou como uma das principais conquistas do seu período como chefe de Direitos Humanos da ONU a aprovação de uma resolução que inclui o direito a um meio ambiente limpo como fundamental. Entre as dificuldades, Bachelet citou os momentos em que precisou testemunhar a dor de pessoas vulneráveis, como no caso da minoria rohingya, em Mianmar.

Ao falar de recente visita à China, ela ressaltou a importância de expor às autoridades de Pequim as recomendações necessárias em relação à situação dos direitos humanos no país. Segundo Bachelet, a viagem foi um ponto alto de seu mandato, já que a última reunião de um alto comissário com o governo chinês havia sido há 17 anos.

Bachelet ainda afirmou que estará à disposição de seu sucessor para dar aconselhamento e compartilhar as “lições aprendidas”. 

Confira a íntegra da entrevista, realizada pelo jornalista da ONU News em espanhol, António Lafuente:

Há quatro anos, quando começou seu mandato, você disse que a defesa dos direitos humanos é uma tarefa que não termina. Quais foram as principais coisas que você fez e o que não conseguiu resolver?

Michelle Bachelet: Bem, eu vou ter que responder novamente o que eu disse há quatro anos. É uma tarefa que nunca termina, então provavelmente há muitas coisas que não conseguimos fazer ou alcançar. Mas nós, junto com a sociedade civil e outras agências, demos alguns passos importantes. A decisão da Assembleia Geral, de que existe o direito humano a um ambiente saudável e a luta contra a poluição, é um exemplo disto. Essa foi uma luta de longa data da sociedade civil e depois de uma parceria forte entre nós e a Organização Mundial da Saúde (OMS), a resolução do Conselho de Direitos Humanos foi aprovada por ampla maioria na Assembleia Geral.

Eu também diria que vimos uma tendência de abolição da pena de morte. Mais de 170 países já aboliram ou estabeleceram uma moratória sobre a pena de morte e mais países anunciaram que vão na mesma direção. Isso eu acho uma notícia muito boa também.

Em alguns lugares conseguimos apoiar as pessoas, para que suas vozes sejam ouvidas, leis sejam alteradas de forma a proteger e promover direitos humanos, das mulheres e das crianças. Além disso, diria que temos trabalhado para a proteção dos defensores dos direitos humanos. Temos apoiado, com outras agências e a [Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe] CEPAL, o Acordo de Escazú na América Latina. É o primeiro acordo que questiona a importância da participação das pessoas em termos de mudança climática, mas também a importância de proteger os defensores do meio ambiente, sejam defensores indígenas ou defensores da terra. 

Nestes quatro anos, os princípios dos direitos humanos passaram por duras provas, de uma pandemia sem precedentes a novas e inesperadas guerras, e de ataques aos direitos das mulheres,  golpes militares e novas ditaduras. Você acha que a evolução dos direitos humanos universais está em retrocesso?

MB: O mundo mudou dramaticamente em quatro anos. Claro, você já mencionou a pandemia e o impacto cada vez mais forte das mudanças climáticas. E agora estamos vendo os choques reverberantes da crise de alimentos, combustíveis e finanças como consequência da guerra na Ucrânia. Vimos também uma grande polarização no nível internacional, movimentos de protesto e golpes de Estado em Mianmar, Burquina Fasso, Guiné e no Mali,  além da tomada do Talibã no Afeganistão. 

Além disso, durante a pandemia de COVID-19, alguns países usaram as restrições necessárias a saúde para restringir a liberdade de imprensa e a liberdade de expressão, atitude que não é necessária para combater uma pandemia. 

Ninguém pensou que uma nova guerra poderia acontecer na Europa.  Agora nós temos uma. Pensávamos que os direitos humanos eram dados como certos, mas não são. Vemos que os países que sempre falam sobre direitos humanos, não necessariamente os respeitam sempre. Diria que esta é uma luta constante e permanente, apelando aos Estados-membros para que continuem com a sua responsabilidade de proteger, promover e apoiar a sociedade civil para que também possa fazer a sua parte. 

Por outro lado, vimos movimentos importantes, jovens se manifestando pelo planeta, mulheres, a campanha Me Too, Black Lives Matter e todas as manifestações a favor do fim do racismo sistêmico e assim por diante. Eu diria que houve a reversão em algumas áreas, mas por outro lado, houve um passo importante em outras. Então, como sempre na vida, você tem momentos bons e momentos difíceis e você tem que trabalhar com ambos.

Michelle Bachelet se encontrou com a jovem ativista sueca Greta Thunberg na COP25 Madrid em 2019
Legenda: Michelle Bachelet se encontrou com a jovem ativista sueca Greta Thunberg na COP25 Madrid em 2019.
Foto: © Anthony Headley/ACNUDH

Quais foram os momentos mais difíceis para você pessoalmente no comando do Alto Comissariado para os Direitos Humanos?

MB: Às vezes você tem que lidar com casos individuais terríveis que realmente te tocam muito, quando você entra em um lugar e vê a dor das pessoas. Acabo de voltar de Cox's Bazar e conversei com rohingyas, que estão pedindo a nós, a ONU, uma garantia para que possam voltar para Mianmar. E não podemos garantir agora, porque não temos as condições para que eles possam entrar de maneira segura.

Uma das questões que foi muito difícil, não só no mundo, mas também no escritório, foi a pandemia de COVID-19. Tivemos que aprender a nos adaptar à nova situação e a viver em circunstâncias diferentes. A paralisação, as quarentenas, foram muito complicadas para muitas pessoas, para nossos colegas com crianças pequenas e assim por diante. Tivemos que lidar com a falta de igualdade em termos de acesso a vacinas ou acesso a tratamento.

A COVID-19 desnudou todas as desigualdades do mundo. Deixou tão claro, que depois que conseguimos nos recuperar da pandemia, nosso objetivo não era voltar à normalidade porque essa normalidade era muito ruim. Essa normalidade nos trouxe a esse ponto, mas também nos deu a possibilidade de discutir o que queremos para o futuro. Por isso, começamos a falar sobre “reconstruir melhor”, mas agora estamos mudando isso para “reconstruir melhor para o futuro”. 

Se você tivesse que escolher, qual foi o momento em que sentiu mais orgulho em ser alta comissária para os Direitos Humanos?

MB: Às vezes um pequeno triunfo deixa você muito feliz, e às vezes grandes questões como a mudança climática são realmente importantes, porque você sabe que está dando talvez um passo maior em direção à pior ameaça para a humanidade.

Seu antecessor, Zeid Ra'ad Al-Hussein, disse no final do mandato que era melhor estar errado e se pronunciar do que ficar calado diante da injustiça. Você teve que ficar em silêncio algumas vezes ou se sentiu livre para sempre falar o que pensa?

MB: Bem, em primeiro lugar, sou uma subsecretária-geral da ONU. Então, toda vez que falo, falo como alto comissária. Sou sempre independente para dizer o que acho que tenho a dizer. Mas eu não falo como pessoa, eu falo como ONU, antes de tudo. É diferente se você é um cidadão ou uma ONG. A maneira como você fala pode ser diferente, porque você deseja determinados objetivos que podem não ser os mesmos de outras entidades. Mas, dito isso, sempre me senti livre para dizer o que achava que deveria ser dito ou o que achava importante.

Para mim, tão importante quanto falar ou não ficar calado, é ter resultados positivos, dizer algo que possa ajudar a avançar para ajudar a resolver um problema. Então, eu sempre tento identificar o que há de melhor em cada situação, porque nem toda situação é igual. Às vezes você não tem outra escolha a não ser falar e com muita força. Em outras, você pode sentir que talvez possa usar estratégias diferentes, mas nunca senti que alguém me impôs a ficar em silêncio. Sempre me senti livre para dizer ou não dizer o que achava necessário.

Bachelet encontrou-se com o ministro das Relações Exteriores da China, Wang Yi.
Legenda: Bachelet encontrou-se com o ministro das Relações Exteriores da China, Wang Yi.
Foto: © ACNUDH

Uma de suas últimas viagens foi à China. O que sente que realizou lá?

MB: Bem, esta foi a primeira viagem de um alto comissário para os Direitos Humanos em 17 anos. Tive a oportunidade de me encontrar com autoridades nacionais, regionais e locais – autoridades provinciais. Pude transmitir todas as mensagens que achei importante que eles ouvissem de um alto comissário de Direitos Humanos e fazer nossas observações sobre coisas deveriam estar em conformidade com a lei internacional de direitos humanos. Pude dizer livremente tudo o que achava que precisava ser discutido com eles em termos de análise de certas leis que sentimos não estarem em conformidade com as leis de direitos humanos, mas também em termos de discussão de questões como minorias e direitos humanos, grupos étnicos, liberdade de religião e negócios. É uma grande quantidade de temas que acreditamos serem essenciais, em áreas onde recebemos denúncias de violação de direitos humanos.

O que você gostaria de fazer quando observa os direitos humanos sendo violados em conflitos como na Ucrânia, mas também naqueles no Iêmen ou Tigray?

MB: Continuamos trabalhando em todas essas questões. Mas gostaria que a comunidade internacional não esquecesse essas situações, e às vezes porque tantas coisas estão na agenda e algumas coisas ganham mais relevância na mídia politicamente falando. É que algumas delas, particularmente no conflito prolongado, sinto que estão esquecidas e as pessoas estão se sentindo abandonadas pela comunidade internacional.

Por exemplo, vemos no Iêmen que, apesar da trégua, há violações. E por isso achamos que o cessar-fogo é uma coisa boa, mas precisamos agora de diálogo e processos políticos e garantir a proteção dos civis. Acho que a redução da hostilidade melhorou a capacidade dos atores humanitários de apoiar o país. Mas apenas 41% do financiamento humanitário são cobertos, por exemplo. 

Se falamos sobre a Síria, vemos o conflito em nossas telas de televisão regularmente, mas uma das coisas que é importante é que ainda há a tarefa de procurar dezenas de milhares de pessoas desaparecidas. O secretário-geral vai lançar um relatório no qual estamos propondo um mecanismo sobre isso.

No Sahel, por exemplo, durante minha visita a Burquina Fasso, vi em Burquina, no Níger, no Mali, tantas crises cruzadas. Acho importante que a comunidade internacional intensifique seu apoio a essas situações. E no Haiti, por exemplo, vimos também, entre janeiro e junho deste ano, 934 assassinatos e 680 sequestros documentados na capital. Há confrontos entre gangues que significam que 38 mil foram deslocados internamente e violência armada e cinco mil crianças fora da escola. Esses números mostram por que o Haiti e essas outras crises devem permanecer na agenda internacional.

 Bachelet também esteve na Burkina Faso
Legenda: Bachelet também esteve na Burkina Faso.
Foto: © Anthony Headley/ACNUDH

Algum conselho ou recomendação para o seu sucessor?

MB: Espero ter uma conversa pessoal com ele ou ela, seja quem for escolhido. Quero compartilhar minhas experiências, coisas que muitas vezes você não sabe antes de chegar nesta posição. Que eu possa oferecer lições aprendidas. E meu conselho seria, para ser franca, envolver todos os Estados-membros com as partes interessadas, para explicar porque é tão difícil essa posição, porque ela pede que você seja a voz dos sem voz. Ao mesmo tempo que pede que você se envolva com os Estados-membros, dê assistência técnica, capacitação, mas também monitoramento e relatórios.

Portanto, é um mandato bastante contraditório, que nem sempre facilita, mas existem maneiras de lidar com isso e navegar nisso. Então, eu quero dar a eles um conselho particular em relação a cada um desses pontos.

Entidades da ONU envolvidas nesta atividade

ACNUDH
Escritório do Alto Comissariado para os Direitos Humanos

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