Crítica de Vivendo no Limite (1999) | Cineplayers Saltar para o conteúdo

Vivendo no Limite

(Bringing Out the Dead, 1999)
7,2
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Críticas

Cineplayers

“Salvar a vida de alguém é como se apaixonar. A melhor droga do mundo.”

9,0

Para alguns cineastas, Nova York é muito mais que uma cidade a ser utilizada como cenário em seus filmes, surgindo como um personagem que assume vida própria em narrativas que lhe conferem papéis diversos. Woody Allen, Abel Ferrara e Martin Scorsese são os primeiros a virem à cabeça. Para esse última, em seu ótimo Vivendo No Limite (Bringing Out the Dead, 1999), Nova York é uma moribunda que sangra. Dói. E grita por socorro.

E o único que parece capaz de atender ao pedido desesperado é o paramédico Frank Pierce, interpretado por Nicolas Cage. Se o Travis Bickle de Robert De Niro em Taxi Driver (Taxi Driver, 1976), espécie de irmão temático de Vivendo No Limite atravessava as noites de insônia dirigindo seu carro e assumindo a postura de um dilúvio humano, que espera o momento de limpar todo o “lixo social” de sua amada cidade para recomeçá-la do zero, purificada, Frank surge como um Noé que ao invés de uma arca utiliza sua ambulância para salvar uma espécie da extinção – o povo nova-iorquino. A diferença fundamental entre o personagem de Cage e a figura bíblica, no entanto, é que Frank não faz distinção sobre quem ou quantos salvar. Como diz em um dos melhores diálogos do longa, se Nova York não faz distinção entre seus habitantes na hora de engoli-los, ele não possui direito de julgar quem entra em seu veículo. Assim, se Travis se enoja ao desbravar os becos e ruelas da cidade e esbarrar em todo tipo de “escória”, Frank arrisca a vida para manter vivos traficantes, drogados, prostitutas e qualquer outra pessoa que precise dele.

O problema é que ele nem sempre consegue. Quando começamos a acompanhar o período de três dias e noites nos quais transcorre o filme, Frank já está há semanas sem salvar ninguém. E em sua profissão, não salvar ninguém significa ver essas pessoas morrerem ao seu lado, não raramente em seus braços. Rose (Cynthia Roman) morreu em seus braços, por uma falha no procedimento de intubação por parte de Frank. A garota agora atormenta o protagonista surgindo constantemente em visões que lhe lembram sua ação fracassada e lhe impedem de dormir – “eu sempre tive pesadelos, mas agora os fantasmas não esperam mais eu dormir”. Daí o personagem viver em constante estado de estresse, constantemente apelando à medicamentos e ao álcool para manter-se inteiro. Algo que apenas adia uma explosão psicológica inevitável.

Em determinado ponto do filme, Frank descreve em off a sensação de salvar a vida de alguém como sendo a melhor droga do mundo – e a euforia de seus companheiros ao saírem para um novo atendimento não o deixa mentir (e é interessante como o sentimento é passageiro, precisando ser alimentado seguidamente, como qualquer outro vicio, com o risco de se não for, resultar em uma espécie de crise de abstinência) –, mas o protagonista não consegue aproveitar esse sentimento, pois o peso de cada fracasso suplanta todos os seus sucessos. Quando determinado personagem se dirige ao protagonista com um “você me salvou”, então, tudo que sai da boca de Frank é um seco “eu sei”, como se aquilo fosse apenas sua obrigação. Quando um recém nascido morre pouco após o atendimento do personagem de Cage, no entanto, o mundo parece cair sobre suas costas (e a postura do ator - em uma daquelas atuações que nos lembra que existe um grande intérprete por trás de todas as excentricidades –, sempre curvada e de expressão cansada, contribui para tornar essa sensação quase literal) e sabemos que caso sua posição nesse momento fosse invertida com a do parceiro interpretado por Ving Rhames, nada mudaria, pois ele continuaria se culpando por uma morte ao invés de celebrar um caso que se encontra nos menos de 10% de sucesso de sua profissão.

Aí mais um trauma se soma à psique de Frank. Não à toa as duas alucinações/pesadelos do protagonista quando entra em contato com uma droga para dormir – em um cenário com gritantes tons vermelhos, por que o ápice da derrocada dos personagens scorseseanos neles mesmo sempre chega tingido nessa cor – são um retorno ao ponto da morte de seu fantasma mais traumático, a jovem Rose, e uma visão de si mesmo retirando os fantasmas que assistiu morrer da cidade-túmulo pela qual dirige. E não apenas essas cenas, mas o filme inteiro é visto por Scorsese como um pesadelo acordado, sendo registrado em uma vertiginosa combinação de luzes, cores, sons, arquitetura e linguagem cinematográfica que transforma, com o auxílio do fotógrafo Robert Richardson, a cidade de Nova York em um verdadeiro pesadelo em forma de concreto e aço.

Pelo menos até o personagem de Cage perceber que não precisa se culpar por todas as mortes que viu. Que ninguém o pediu para sofrer, foi uma ideia dele. Aí Frank pode finalmente descansar em um abraço, nos braços da bela Mary Burke (Patricia Arquette), filha de um homem socorrido pelo protagonista e que surge tão sofrida e problemática quanto ele – o abraço então surge mais como duas pessoas se identificando uma com a outra do que dando carinho, apesar dele existir –, quando a atmosfera parece antecipar um sono tranquilo e cede lugar ao calmo fade out que não mais antecipa pesadelos, mas sim sonhos, que podem até não durar muito tempo – Frank manterá sua aposentadoria? Conseguirá não se culpar? –, mas apenas por conferir um instante de calmaria na vida daquelas duas figuras já surge como algo otimista e acolhedor.

Texto do autor convidado Pedro H. S. Lubschinski

Comentários (1)

Ted Rafael Araujo Nogueira | sexta-feira, 15 de Setembro de 2023 - 11:22

Material altamente visceral e lisérgico, e é nessa dicotomia escrota que mora o tesão (um deles, são vários) dessa fita.

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