Era segunda-feira de Pentecostes de 1828, por volta das cinco da tarde. Um jovem de aspecto andrajoso e com dificuldades de locomoção apareceu em Nuremberga. Repetia sem parar a mesma frase: “Um cavaleiro como o meu pai é o que quero ser.” Além disso, trazia consigo uma carta na qual se dizia que queria servir o rei, bem como uma nota anexa: uma carta deixada pela sua mãe ao abandonar o filho recém-nascido, que o identifica como Kaspar, filho de uma criada e de um soldado de cavalaria, na qual pedia que tratassem dele até completar 17 anos, altura em que deviam mandá-lo a prestar serviço militar em cavalaria.

Uma nota misteriosa

A princípio, o rapaz conseguia apenas balbuciar poucas palavras. Quando aprendeu a falar, contou que se chamava Kaspar Hauser e que passara toda a vida encarcerado numa cela, onde tinha uma cama de palha e um cavalo de madeira. Todas as manhãs encontrava apenas pão e água para se alimentar. O único ser humano com quem tivera contacto fora um homem com o rosto coberto que o ensinou a andar, a escrever o seu nome ea repetir a frase do cavaleiro.

Apesar de não haver sinais de loucura nem de deficiência cognitiva, os médicos confirmaram que Kaspar não estava devidamente desenvolvido para a sua idade. Também observaram anomalias físicas na sua pélvis e pernas, das quais deduziram que ele deveria ter passado muitos anos sentado. Encontraram também uma marca da vacina contra a varíola, que só era administrada às crianças das classes privilegiadas.

nota

A carta que Kaspar Hauser (à esquerda) trazia consigo ao chegar a Nuremberga estava escrita numa grafia pouco destra e num alemão cheio de falhas. Dizia: “O rapaz já foi baptizado. O seu nome é Kaspar [...] Suplico que tome conta dele até aos 17. Nasceu a 30 de Abril de 1812, sou uma rapariga pobre, não posso alimentá-lo. O seu pai está morto.”

O estranho caso atraiu à cidade bávara um grande número de pessoas interessadas naquele ser inocente, criado à margem da civilização. As autoridades puseram Hauser sob a tutela de Georg Friedrich Daumer, poeta e ocultista que sonhava com uma nova religião e via em Hauser um enviado de Deus, “tão puro como a luz”. Ensinou-o a ler, a escrever, a pintar e a jogar xadrez e incentivou-o a escrever tudo o que se recordasse do seu passado. Também o submeteu a inúmeras experiências de homeopatia e magnetismo, muito populares nessa época. No entanto, os acontecimentos inexplicáveis não terminaram. A 17 de Outubro de 1829, Hauser foi encontrado no sótão da casa de Daumer com uma ferida na cabeça. Kaspar contou que um homem vestido de negro o atacara com um punhal e que lhe parecia ter reconhecido a voz do indivíduo que o levara para Nuremberga.

Ao cuidado de um lorde

Durante esses dias, o inglês Philip Henry, quarto conde de Stanhope, de visita à cidade, interessou-se vivamente pelo estado de Kaspar. Doou 500 ducados para os cuidados do jovem e cobriu-o de atenções e presentes, pois estava muito interessado em esclarecer o mistério da sua origem. Henry obteve a tutela do rapaz e mudou-se com ele para a vizinha Ansbach. Uma vez ali instalado, porém, o britânico sentiu que Kaspar não progredia e começou a duvidar da credibilidade do seu protegido.

Por fim, foi-se embora, deixando o jovem ao cuidado de um professor, Johann Georg Meyer.

Kaspar Hauser

Quando Kaspar chegou à Praça Unschlitt, vestido “à maneira dos camponeses, de casa- ca curta, lenço vermelho ao pescoço e botas altas”, o sapateiro Weikmann levou-o até ao capitão do quarto esquadrão do Sexto Regimento de Dragões de Nuremberga, tal como pedido na carta trazida pelo jovem.

Pouco depois, ocorreu outro facto estranho. No dia 14 de Dezembro de 1833, poucos dias depois de uma grande discussão com Meyer, Kaspar foi visto a sair a correr do palácio de Ansbach, onde trabalhava, para sua casa para mostrar a Meyer uma ferida a sangrar que tinha no peito. Segundo Hauser, um homem – novamente vestido de negro – aproximara-se dele com a desculpa de lhe dar uma bolsa, apunhalando-o em seguida. A ferida foi fatal e Kaspar morreu no dia 17 de Dezembro. Apolícia encontrou no local do crime uma bolsa com uma nota escrita em espelho, assinada pelo agressor como M. L. Ö. As incoerências da versão de Hauser e o facto de a nota conter um erro gramatical e outro ortográfico frequentemente dados pelo rapaz fizeram pensar que ele próprio se ferira. Três dos médicos que realizaram a autópsia afirmaram que ele se magoara a si mesmo e outro disse que a ferida fora causada por outra mão. Actualmente, ninguém sabe quem era Kaspar Hauser, onde nasceu, nem quem o matou. A teoria mais aceite desde o início defende que se trataria do filho e herdeiro de Carlos II e Estefânia de Beauharnais, grão-duques de Baden, tal como sugerido numa carta anónima recebida em Nuremberga pouco após a chegada de Hauser.

Kaspar Hauser

Kaspar Hauser teve diversos tutores entre 1829 e 1833. Este desenho da época mostra-o em casa de Georg Daumer, o primeiro deles.

Bebé trocado

Carlos e Estefânia de Baden tiveram um filho varão em 1812 que morreu com poucas semanas. Isto permitiu que, após a morte de Carlos II, o seu meio-irmão Leopoldo I subisse ao trono, apesar de carecer originalmente de direitos dinásticos, pois a sua mãe era uma nobre de estatuto inferior. Teria sido justamente a mãe de Leopoldo a trocar o único filho varão dos soberanos de Baden quando este nasceu, em 1812, pelo filho morto de uma criada, a fim de abrir o caminho dos seus descendentes até ao trono. O rapaz em questão seria o alegado Kaspar Hauser. Isto explicaria que tivesse ficado confinado numa cela durante a sua infância, sem comunicar com ninguém. E também permitia compreender as agressões que o rapaz sofrera em Nuremberga e Ansbach, pois o objectivo seria liquidar o legítimo herdeiro do grão-ducado de Baden, usurpado por Leopoldo desde Março de 1830.

A chave do DNA

Esta tese – evidentemente fantasiosa – foi popularizada pela literatura, especialmente pela novela de Jakob Wassermann, Kaspar Hauser ou a indolência do coração (1908). Em 1996, o sangue da roupa de Hauser foi analisado e concluiu-se que o seu DNA não correspondia ao dos descendentes de Estefânia de Beauharnais, embora outra análise realizada em 2002, desta vez de uma madeixa de cabelo, concluísse que tal hipótese não podia ser descartada.

Kaspar Hauser

A praça de Martinho Lutero de Ansbach com a Igreja de São Gumberto ao fundo. Hauser viveu nesta cidade durante dois anos, até à sua morte, em finais de 1833.

Actualmente, a interpretação mais interessante centra-se no Tirol, onde o nome de Kaspar Hauser surge num monólito que recorda os mortos em 1809, na luta contra as tropas bávaras que tinham ocupado a região no início do século. Sabe-se que existe nessa região uma doença endémica que provoca as anomalias musculares e cerebrais documentadas em Kaspar. A marca no seu braço dever-se-ia ao facto de as autoridades bávaras terem, nessa época, introduzido a obrigatoriedade da incipiente vacina contra a varíola, que causava danos na zona.

Podemos supor que Kaspar fosse fruto da relação entre um soldado bávaro e uma camponesa local. Os tiroleses teriam devolvido um rapaz doente, sem qualquer utilidade, ao seu progenitor. Quanto ao nome, talvez quisessem recordar um Kaspar Hauser que morreu lutando contra Napoleão em 1809 e ao qual se prestou homenagem num monólito erigido na zona.