Husserl, Edmund. Investigação Lógicas - Investigações Para A Fenomenologia E A Teoria Do Conhecimento [14309j27z94j]

Husserl, Edmund. Investigação Lógicas - Investigações Para A Fenomenologia E A Teoria Do Conhecimento

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Edmund Husserl “Husserl foi discípulo de Weierstrass. Brentano e Stumpf, ou seja. os seus estudos incidiram fundamentalmente nas áreas da Matemática, da Lógica e da Psicologia. As Investigações Lógi­ cas são, nas suas próprias palavras, uma tentativa de fundamentação da Lógica e de clarifica­ ção última da Matemática. Com este projeto de fundo, Husserl dedicara uma atenção muito particular à literatura relevante. John Stuart Mill, Sigwart. Hamilton e Erdmann são! depois do seu próprio “Psicologismo” na sua Philosophie der Arithmetik. Psychologische und Lo­ gische Untersuchungen (Filosofia da Aritmética. Investigações Psicológicas e Lógicas), todo um conjunto de pensadores que suscitam da sua parte uma viva oposição, pelo modo como a Lógica se via reconduzida à Psicologia como ciência empírica e genética da psique humana. Por outro lado, a Lógica como pura técnica de cálculo, desenvolvida nas obras de Boole e de Frege, não o podia satisfazer tão pouco - faltava-lhe, por assim dizer, a própria fundamen­ tação da sua possibilidade, ausência que, nela, assumia a forma de um objetivismo ingênuo. Em vez de esclarecer a possibilidade da Matemática e de, em geral, uma ciência operando calculatoriamente por meio de símbolos, a Lógica acabava por partilhar com a Matemática esta forma de proceder e de cair na mesma ausência de fundamentação. Retornando, contra “psicologistas” e “lógico-matemáticos”, ao projeto de uma Lógica pura, como disciplina filo­ sófica, é a tradição de Leibniz, Kant, Bolzano e Lotze que lhe surge como determinante. E é justamente a partir da ideia de que a Lógica pura opera no domínio das significações (as Be­ deutungen ou os Sätze - proposições, e as Vorstellungen an sich - representações em si, de Bolzano) e de que estas são objetividades ideais, que não se confundem com os atos subje­ tivos de representação e do juízo, que Husserl intervém com absoluta pertinência no debate do seu tempo, propondo toda uma nova concepção das relações entre Lógica e Psicologia”. Pedro M. S. Alves

w w w .f o r e n s e u n iv e rs ita ria . c o m . b r ISBN 978 - 85- 309- 4242-7

INVESTIGAÇÕES LÓGICAS Investigações para a Fenomenologia e a Teoria do Conhecimento

Eis finalmente a tradução para a Língua Portuguesa da segunda parte da obra que, só por si, funda todo um novo movimento, crucial na história da Filosofia no século XX: a “Fenomenologia”. Na verdade, sem referência a estas Logische Untersuchungen (Investigações Ló­ gicas), publicadas por Edmund Husserl em

duas partes, nos anos de 1900 e 1901, sem atenção à sua presença e ação continuadas, ao seu programa filosófico, às suas promes­ sas teóricas, aos seus pontos fortes e fragili­ dades, mas também às suas leituras críticas

INVESTIGAÇÕES LÓGICAS

ou às suas redescobertas periódicas, sem, em suma, uma atenção à longa e vigorosa eficácia desta obra, a Filosofia e boa parte da vida intelectual do século XX seriam lar­ gamente incompreensíveis. Poucas são as obras que compartilharam com as Logische Untersuchungen, sobretu­ do com este volume que ora se publica, essa capacidade de dar forma ao pensamento fi­ losófico do século XX, criando para ele todo um novo aparato conceituai, bem como uma nova definição dos seus problemas e da sua metodologia. Poucas são, de fato, as obras que tiveram este poder seminal de, mais do

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*K FORENSE UNIVERSITÁRIA

w w w . f o r e n s e u n iv e r s i t a r i a . c o m . b r

Edmund Husserl

INVESTIGAÇÕES LÓGICAS Segundo Volume, Parte I

Investigações para a Fenomenologia e a Teoria do Conhecimento De acordo com o texto de Husserliana XIX /1 Editado por

Ursula Panzer Tradução de

Pedro M. S. Alves Carlos Aurélio M orujão

Nacional

Diretor científico Pedro M. S. Alves

O GEN | Grupo Editorial Nacional reúne as editoras Guanabara Koogan, Santos, Roca, AC Farm acêutica, Forense, M étodo, LTC, E.RU. e Forense Universitária, que pu blicam nas áreas científica, técnica e profissional. E ssas em presas, respeitadas no m ercado editorial, con struíram catálogos inigualáveis,

Revisor técnico-ortográfico para adaptação da língua portuguesa falada no Brasil

Marco Antônio Casanova

com obras que têm sido decisivas na form ação acad êm ica e no aperfeiçoam ento de várias gerações de p rofission ais e de estudantes de A dm in istração, D ireito, E n ferm a­ gem , Engenharia, Fisioterapia, M edicina, O dontologia, E d u cação Física e m u itas outras ciências, tendo se torn ad o sin ôn im o de seriedade e respeito.

Aprovada pelos Arquivos-Husserl de Lovaina Phainomenon - Clássicos de Fenomenologia Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa

N o ssa m issão é prover o m elhor conteúdo científico e distribuí-lo de m an eira flexível e conveniente, a preços ju stos, geran do benefícios e servindo a autores, docentes, livrei­ ros, funcionários, colaboradores e acionistas. N o sso com portam ento ético in condicional e n o ssa resp on sabilidade social e am biental são reforçados pela natureza educacional de n o ssa atividade, sem com prom eter o cres­ cim ento contínuo e a rentabilidade do grupo.

Rio de Janeiro

A EDITORA FORENSE se responsabiliza pelos vícios do produto no que concerne à sua edição, aí com­ preendidas a impressão e a apresentação, a fim de possibilitar ao consumidor bem manuseá-lo e lê-lo. Os vícios relacionados à atualização da obra, aos conceitos doutrinários, às concepções ideológicas e referên­ cias indevidas são de responsabilidade do autor e/ou atualizador. As reclamações devem ser feitas até noventa dias a partir da compra e venda com nota fiscal (interpretação do art 26 da Lei n. 8.078, de 11.09.1990). Traduzido de Logische Untersuchungen - Zweiter Band. I. Teil: Untersuchungen zur Phänomenologie und Theorie der Erkenntnis Husserliana, Band XIX/1 The Hague: Martinus Nijhoff Publishers, 1984 Com base num convénio com a Springer Verlag e o Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, detentor dos direitos da tradução para língua portuguesa, a qual foi realizada no quadro do Projecto de Investigação “Tradução das Obras de Husserl” da FCT, sob a direcção de Pedro M. S. Alves.

Investigações Lógicas para a Fenomenologia e a Teoria do Conhecimento ISBN 978-85-309-309-4242-7 Direitos exclusivos da presente edição para o Brasil Copyright © 2012 by FORENSE UNIVERSITÁRIA um selo da EDITORA FORENSE LTDA. Uma editora integrante do GEN | Grupo Editorial Nacional Travessa do Ouvidor, 11 - 6o andar - 20040-040 - Rio de Janeiro - RJ Tels.: (0XX21) 3543-0770 - Fax: (0XX21) 3543-0896 [email protected] | www.grupogen.com.br O titular cuja obra seja fraudulentamente reproduzida, divulgada ou de qualquer forma utilizada poderá requerer a apreensão dos exemplares reproduzidos ou a suspensão da divulgação, sem prejuízo da indeni­ zação cabível (art. 102 da Lei n. 9.610, de 19.02.1998). Quem vender, expuser à venda, ocultar, adquirir, distribuir, tiver em depósito ou utilizar obra ou fonograma reproduzidos com fraude, com a finalidade de vender, obter ganho, vantagem, proveito, lucro direto ou indireto, para si ou para outrem, será solidariamente responsável com o contrafator, nos termos dos artigos precedentes, respondendo como contrafatores o importador e o distribuidor em caso de reprodução no exterior (art. 104 da Lei n. 9.610/98). Ia edição - 2012 Ia edição - 2a impressão - 2015 Editado por: Ursula Panzer Tradutor: Pedro M. S. Alves e Carlos Aurélio Morujão Diretor científico: Pedro M. S. Alves Revisor técnico-ortográfico: Marco Antonio Casanova CIP - Brasil. Catalogação-na-fonte. Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. H96i Husserl, Edmund, 1859-1938 Investigações lógicas: segundo volume, parte I: investigações para a fenomenologia e a teoria do conhecimento / Edmund Husserl; editado por Ursula Panzer; tradução de Pedro M. S. Alves, Carlos Aurélio Morujão; diretor científico Pedro M. S. Alves; revisor técnico-ortográfico para adaptação da língua portuguesa falada no Brasil Marco Antônio Casanova. - Rio de Janeiro: Forense, 2015. Tradução de: Logische Untersuchungen índice Contém glossário Alemão -Português “De acordo com o texto de Husserliana XIX/1” ISBN 978-85-309-4242-7 1. Lógica. 2. Teoria do conhecimento. 3. Fenomenologia. 4. Filosofia. I. Panzer, Ursula. II. Título. 12-5269.

CDD: 160 CDU: 16

Para João Paisana, leitor das Investigações.

ÍNDICE GERAL Apresentação da Tradução Portuguesa ......................................................................................

XIII

Introdução................................................................ .................................................................. § 1. Necessidade de investigações fenomenológicas para a preparação e clarificação críticognosiológica da Lógica p u r a ........................... ................................................................. § 2. Para uma clarificação dos objetivos de tais investigações................................................. § 3. As dificuldades da análise puramente fenomenológica ..................................................... § 4. Indispensabilidade de uma consideração do aspecto lógico das vivências ....................... § 5. Indicação das metas capitais das investigações analíticas subsequentes........................... § 6. Aditamentos ................................... ............................................................ . ....................... § 7. O princípio da ausência de pressupostos nas investigações gnosiológicas .......................

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EXPRESSÃO E SIGNIFICAÇÃO..............................................................................................

21

Capítulo I - AS DISTINÇÕES ESSENCIAIS........................... ............................................... § 1. Um duplo sentido do termo signo........................................................................................ § 2 . A essência da indicação ........................................................................................................ § 3. Remissão e demonstração .................................................................................................... § 4. Excurso sobre a origem da indicação a partir da associação ........................................... § 5. Expressões enquanto signos significativos. Exclusão de um sentido não pertinente de “expressão” ........................................................................................................................... § 6. A questão acerca das distinções fenomenológicas e intencionais que pertencem ás expres­ sões enquanto tais ................................................................................................................ § 7. As expressões na função com unicativa .............................................................................. § 8. As expressões na vida solitária da a l m a ....................................... § 9. As distinções fenomenológicas entre aparição física da expressão, ato doador de sentido e ato preenchedor do sentido ........................................................................................... § 10. A unidade fenomenológica destes atos ................ ............................................................. § 11. As distinções ideais: desde início, entre expressão e significação enquanto unidades ideais.. § 12. Continuação: a objetividade expressa .............................................................................. §13. Conexão entre significação e referência objetiva............................................................... § 14. O conteúdo enquanto objeto, enquanto sentido preenchedor e enquanto sentido ou significação pura e simples .................................................................................................. § 15. Os equívocos conectados com estas distinções dos termos significação e ausência de significação ......................................................................................................................... §16. Continuação. Significação e conotação ............................................................................

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Capítulo II - PARA UMA CARACTERIZAÇÃO DOS ATOS QUE CONFEREM A SIGNIFICAÇÃO................................................................................................................ § 17. As imagens ilustradoras da fantasia enquanto supostas significações ........................... §18. Continuação. Argumentos e contra-argumentos .............................................................

1

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índice Geral

Investigações Lógicas - Fenomenologia e Teoria do Conhecimento • Edmund Husserl

§ 19. Compreensão sem intuição ................................................................................................ § 20. O pensamento sem intuição e a “função substitutiva” do sig n o ..................................... § 21. Dúvidas relativas à necessidade de regressar à intuição correspondente para a clarifica­ ção das significações e para o conhecimento das verdades nelas fun dadas ...................... § 22. Os diferentes caracteres de compreensão e a “qualidade de conhecido” ......................... § 23. A apercepção na expressão e a apercepção na representação in tu itiva ................... Capítulo III - A FLUTUAÇÃO DAS SIGNIFICAÇÕES DAS PALAVRAS E A IDEALI­ DADE DA UNIDADE DE SIGNIFICAÇÃO............................. .................................... § 24. Introdução ......................................................................................................................... § 25. Relações de recobrimento entre o conteúdo da manifestação e o da denominação ........ § 26. Expressões essencialmente ocasionais e expressões objetivas........................................... § 27. Outros tipos de expressões flutuantes ............................ § 28. A flutuação das significações enquanto flutuação do significar ............................. § 29. A lógica pura e as significações id e a is .............................................................................. Capítulo IV - O CONTEÚDO FENOMENOLÓGICO E IDEAL DAS VIVÊNCIAS DE SIGNIFICAÇÃO............................................................................................................... § 30. O conteúdo da vivência expressiva em sentido psicológico e o seu conteúdo no sentido da significação u n itária ...................................................................................................... § 3 1 .0 caráter de ato do significar e a significação idealmente u n a ....................................... § 32. A idealidade das significações não é nenhuma idealidade em sentido norm ativo ........ § 33. Os conceitos “significação” e “conceito”, no sentido de espécie, não coincidem .............. § 34. A significação não está objetivamente consciente no ato de significar ............................ § 35. Significações “em si” e significações expressas ...................................................................

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A UNIDADE IDEAL DA ESPÉCIE E AS MODERNAS TEORIAS DA ABSTRAÇÃO . . .

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Introdução ..........................................................................

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Capítulo I - OS OBJETOS UNIVERSAIS E A CONSCIÊNCIA DE UNIVERSALIDADE .. § 1. Os objetos universais tornam-se conscientes para nós em atos essencialmente diferentes daqueles em que nos tornamos conscientes dos objetos individuais ............................... § 2. Caráter incondicionalmente necessário do discurso sobre objetos universais .................. § 3. Se a unidade da espécie deve ser entendida como unidade imprópria. Identidade e igualdade ............................................................................................................................. § 4. Objeções à redução da unidade ideal à multiplicidade dispersa ....................................... § 5. Continuação. A polêmica entre J. St. Mill e H. Spencer ..................................................... § 6. Transição para os capítulos seguintes..................................................................................

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Capítulo II - O HIPOSTASIAR PSICOLÓGICO DO UNIVERSAL................................... § 7 . 0 hipostasiar metafísico e psicológico do universal. O nominalismo ................................ § 8. Uma maneira de pensar ilu só ria ........................................................................................ § 9. A doutrina de Locke sobre as ideias abstratas .................................................................... §10. Crítica ................................................................................................................................. § 11. O triângulo universal de Locke................................................ § 12. A doutrina das imagens com uns ......................................................................................

VIII

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Capítulo III - ABSTRAÇÃO E ATENÇÃO............................................................................ §13. Teorias nominalistas, que concebem a abstração como realização da atenção .............. §14. Objeções que tocam, ao mesmo tempo, todas as form as de nominalismo ..................... a) A falta de uma fixação descritiva dos objetivos............................................................. § 15. b) A origem do nominalismo moderno, como reação exagerada contra a doutrina de Locke das ideias gerais. O caráter essencial deste nominalismo e a teoria da abstração pela atenção ..................................................................................................................... • • § 16. c) A universalidade da função psicológica e a universalidade como form a de significa­ ção. Os diferentes sentidos da relação do universal com um âm bito ............................... § 17. d) Aplicação à crítica do nominalismo ..................................................................... § 18. A doutrina da atenção como força generalizadora ......................................................... §19. Objeções, a) O atender exclusivo a um momento da nota característica não suprime a sua individualidade .................................................................................. § 20. b) Refutação do argumento a partir do pensar geométrico ............................................. § 21. A diferença entre o estar atento a um momento dependente do objeto intuído e o estar atento ao atributo correspondente in sp ecie..................................................................... § 22. Deficiências fundamentais na análise fenomenológica da aten ção ............................... § 23. O discurso com sentido sobre a atenção abrange a esfera total do pensar e não simples­ mente a do intuir..................................................................................................................

Capítulo IV - ABSTRAÇÃO E REPRESENTAÇÃO............................................................... § 24. A representação geral como artifício para a economia do pensar ................................... § 25. Se a representação universal poderia servir como característica essencial das represen­ tações universais .................................................................................................................. § 26. Continuação. As diversas modificações da consciência de universalidade e a intuição sensível................................................................................................................................. § 27. O sentido legítimo da representação universal ................................................................. § 28. A representação como substituição. Locke e Berkeley............................................. ......... § 29. Crítica da teoria da representação de Berkeley................................................................. § 30. Continuação. O argumento de Berkeley a partir do procedimento demonstrativo da Geom etria .................................................................................. § 31. A fonte principal das confusões indicadas ........................................... Capítulo V - ESTUDO FENOMENOLÓGICO SOBRE A TEORIA DA ABSTRAÇÃO DE HUM E..................................................................................................... ........................... § 32. Dependência de Hume em relação a Berkeley ......................................... ....................... § 33. A crítica de Hume às ideias abstratas e o seu pretenso resultado. O seu desatender aos pontos fenomenológicos p rin cipais .................................................................................... § 34. Recondução da investigação de Hume a duas questões ................................................... § 35. O princípio condutor, o resultado e o pensamento realizador principal da doutrina da abstração de H um e .................................................................................. § 36. A doutrina de Hume sobre a distinctio rationis na interpretação moderada e na inter­ pretação radical.................................................................................................................... § 37. Objeções a esta doutrina na sua interpretação ra d ic a l ................................................... § 38. Transferência do ceticismo dos conteúdos parciais abstratos para todas as partes em g e r a l ..................................................................................................................................... § 39. Ültimo desenvolvimento do ceticismo e sua refutação ..................................................... Apêndice: O humeanismo moderno .........................................................................................

IX

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índice Geral

Investigações Lógicas - Fenomenología e Teoria do Conhecimento • Edmund Husserl

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A DIFERENÇA ENTRE SIGNIFICAÇÕES INDEPENDENTES E DEPENDENTES E A IDEIA DE GRAMÁTICA P U R A .................................

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181

In trodução.....................................................................................................................................................

251

§ 1. Significações simples e compostas .............................................. § 2. Será que o caráter composto das significações é um simples reflexo do caráter composto dos objetos? ......................................................................................................................... § 3. Composição das significações e composição do significar concreto. Significações implícitas .. § 4. A questão sobre o valor significativo dos componentes “sincategoremáticos” das expres­ sões complexas..................................................................................................................... § 5. Significações independentes e dependentes. A dependência das partes das palavras sensí­ veis e expressivas.............................................................................. § 6. Contraposição de outras distinções. Expressões incompletas, anormalmente abreviadas e lacunares .............................................................................. § 7. A concepção das significações dependentes enquanto conteúdos fu n dad os ...................... § 8. Dificuldades desta concepção, a) Se a dependência da significação reside apenas propria­ mente na dependência doobjeto significado .................................................................... § 9. b) A compreensão de sincategoremas isolado s ................................................................... § 10. Legalidades apriorísticas na complexão de significações................................................. § 11. Objeções. Modificações de significação que se enraízam na essência das expressões, correspondentemente, das significações ............................................................................ § 12. Sem-sentido e contrassenso................................................................................................ § 13. As leis da complexão das significações e a doutrina puramente lógico-gramatical das f o r m a s ................................................................................................................................. § 14. As leis que evitam o sem-sentido e as que evitam o contrassenso. A ideia da Gramática puramente lógica .................................................................................................................

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SOBRE VIVÊNCIAS INTENCIONAIS E SEUS “CONTEÚDOS” ................................. . .

293

Introdução...................................................................................................................................

2^3

Capítulo VI - SEPARAÇÃO DE DIFERENTES CONCEITOS DE ABSTRAÇÃO E DE ABSTRATO....................................................................................................................... § 40. Confusão entre os conceitos de abstração e de abstrato, por um lado, relacionados com os conteúdos parciais dependentes e, por outro, relacionados com as espécies................ § 4L Separação dos conceitos que se agrupam em torno do conceito de conteúdo não autô­ nomo ......................... ................... ............. ........................................................................ § 42. Separação dos conceitos que se agrupam em torno do conceito de espécie ...................

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PARA A DOUTRINA DOS TODOS E DAS PARTES..........................................................

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Introdução...................................................................................................................................

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Capítulo I - A DIFERENÇA ENTRE OS OBJETOS INDEPENDENTES E DEPENDENTES . § 1. Objetos compostos e simples, articulados e não articulados ............................................. § 2. Introdução da distinção entre objetos (conteúdos) dependentes e independentes............ § 3. A inseparabilidade dos conteúdos dependentes ....................... ........................................ § 4. Análises de exemplos, segundo S tu m p f .............................................................................. § 5. A determinação objetiva do conceito de inseparabilidade................................................. § 6. Continuação. Enlace com a crítica de uma definição em voga ......................................... § 7. Cunhagem mais rigorosa da nossa definição por meio da introdução dos conceitos de lei pura e de gênero p u ro ........................................................................................................ § 7a. Ideias independentes e dependentes.................................................................................. § 8. Separação da diferença entre conteúdos independentes e dependentes, em relação à dis­ tinção entre conteúdos que, intuitivamente, se destacam e se fu n d e m ........................... § 9. Continuação. Indicação da esfera mais ampla do fenômeno de fu s ã o ............................. § 10. A multiplicidade das leis pertencentes aos diversos tipos de dependência ...................... § 11. A diferença entre estas leis “materiais” e as leis “form ais” ou “analíticas” ...................... § 12. Determinações fundamentais sobre proposições analíticas e sintéticas ......................... § 13. Independência e dependência relativas ............................................................................

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Capítulo II - PENSAMENTOS PARA UMA TEORIA DAS FORMAS PURAS DOS TO­ DOS E DAS PARTES......................................................................................................... § 14. O conceito de fundação e teoremas correspondentes....................................................... § 15. Transição para a consideração das relações mais importantes entre p a r t e s .................. § 16. Fundação recíproca e unilateral, mediata e im ed iata ..................................................... § 17. Definição exata dos conceitos de pedaço, momento, parte física, elemento abstrato, ele­ mento concreto .................................................. § 18. A distinção entre as partes mediatas e imediatas de um todo ......................................... § 19. Um novo sentido desta distinção: partes próximas e afastadas do todo .......................... § 20. Partes próximas e afastadas relativamente umas às outras............................................. § 21. Determinação exata dos conceitos pregnantes de todo e de parte, assim como dos seus tipos essenciais, por meio do conceito de fun dação ........................................................... § 22. Formas sensíveis de unidade e de to d o ............................................................................ § 23. Formas categoriais de unidade e to d o s ............................................................................ § 24. Os tipos puramente formais de todos e départes. O postulado de uma teoria a priori. . . § 25. Complementos sobre o desmembramento dos todos pelo desmembramento dos seus momentos.............................................................................................................................

X

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Capítulo I - CONSCIÊNCIA COMO CONSISTÊNCIA FENOMENOLÓGICA DO EU E CONSCIÊNCIA COMO PERCEPÇÃO INTERNA ..................................................... § 1. Plurivocidade do termo “consciência” ................................................................................ § 2. Primeiro: consciência como unidade real-fenomenológica das vivências do eu. O conceito de vivência ........................................................................................................................... § 3 . 0 conceito fenomenológico e o conceito popular de vivência ........................................... § 4. A relação entre consciência que vivência e conteúdo vivenciado não é um tipo de relação fenomenologicamente p e cu lia r ................. § 5. Segundo. A consciência “interna” enquanto percepção in tern a ....................................... § 6. Origem do primeiro conceito de consciência a partir do segundo ..................................... § 8. O eu puro e a consciencialidade .......................................................................................... Capítulo II - CONSCIÊNCIA COMO VIVÊNCIA INTENCIONAL .................................. § 9. O significado da delimitação brentaniana dos “fenômenos psíquicos” ............................. § 10. Caracterização descritiva dos atos enquanto vivências “intencionais” .........................

245

XI

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Investigações Lógicas - Fenomenologia e Teoria do Conhecimento • Edmund Husserl

§ 11. Rejeição de más interpretações induzidas pela terminologia: a) O objeto “mental” ou “imanente” .......................................................................................................................... § 12. b) O ato e a relação da consciência ou do eu com o objeto ............................................. § 13. Fixação da nossa terminologia .......................................................................................... § 14. Reservas a respeito da assunção de que os atos são uma classe de vivências descritiva­ mente fundada ............................ . ................................................................................... § 15. Se as vivências de um e mesmo gênero fenomenológico (em particular do gênero senti­ mento) podem ser em parte atos e em parte não atos ....................................................... a) Se há em geral sentimentos intencionais ...................................................................... b) Se há sentimentos não intencionais. Distinção entre sensações de sentimento e atos de sentimento ................................................................ § 16. Distinção entre conteúdo descritivo e conteúdo intencional........................................... § 17. O conteúdo intencional no sentido de objeto intencional ............................................... § 18. Atos simples e compostos, fundantes e fu n d a d o s ................................................... § 19. A função da atenção nos atos complexos. O exemplo da relação fenomenológica entre som de palavra e sen tido .................................................................................................... § 20. A diferença entre a qualidade e a matéria de um a t o ............................. § 21. A essência intencional e a essência significativa ................................. Apêndice aos parágrafos 11 e 20: Para a crítica da “teoria das imagens” e da doutrina dos objetos “imanentes” aos a t o s ..............................................................................................

índice Geral

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Capítulo V - CONTRIBUIÇÕES ULTERIORES PARA A DOUTRINA DO JUÍZO “RE­ PRESENTAÇÃO” COMO GÊNERO QUALITATIVO UNITÁRIO DOS ATOS NO­ MINAIS E PROPOSICIONAIS........................................................................................ § 37. O objetivo da investigação seguinte. O conceito de ato objetivante ............................... § 38. Diferenciação qualitativa e material dos atos objetivantes ............................................. § 39. A representação no sentido do ato objetivante e a sua modificação qualitativa ............ § 40. Continuação. Modificação qualitativa e modificação imaginativa ................................. § 41. Nova interpretação da proposição sobre a representação como base de todos os atos. Os atos objetivantes como portadores primários da m atéria ................................................. § 42. Mais desenvolvimentos. Princípios básicos dos atos com plexos ..................................... § 43. Recapitulação da interpretação anterior da proposição tratada .....................................

XII

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Capítulo VI - ARROLAMENTO DOS EQUÍVOCOS MAIS IMPORTANTES DOS TER­ MOS REPRESENTAÇÃO E CONTEÚDO..................................................................... § 44. “Representação” ................................................................................................................. § 45. “Conteúdo de representação” ............................................................................................

433 433 439

Glossário Alemão-Português....................................................................................................

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Capítulo III - A MATÉRIA DO ATO E A REPRESENTAÇÃO SUBJACENTE.................. 367 § 22. A pergunta acerca da relação entre matéria e qualidade do ato ..................................... 367 § 23. A concepção da matéria como um atofundante de “representar simples” ...................... 368 § 24. Dificuldades. O problema da diferenciação dos gêneros de qualidade ..................... 371 § 25. Análise mais precisa de ambas as possibilidades de solução ........................................... 374 § 26. Exame e rejeição da concepção proposta .......................................................................... 376 § 27. O testemunho da intuição direta. Representação perceptiva e percepção ...................... 378 § 28. Investigação especial da situação no caso do ju íz o ........................................................... 383 § 29. Continuação. “Aprovação” da ou “assentimento” à simples representação do estado-dec o isa s .................................................................. 385 § 30. A interpretação da compreensão idêntica dos nomes e das proposições como um “sim­ ples representar” ................................................................................................................. 390 § 31. Uma última objeção contra a nossa concepção. Simples representações e matérias isoladas. . . 391 Capítulo IV - ESTUDO DAS REPRESENTAÇÕES FUNDANTES COM ESPECIAL RE­ FERÊNCIA À DOUTRINA DO JUÍZO............................................... § 32. Um duplo sentido da palavra representação e a suposta evidência da proposição acerca da fundação de todo e qualquer ato por um ato de representação ................................. § 33. Restituição da proposição com base num novo conceito de representação. Nomear e asserir ............................................................................................................... § 34. Dificuldades. O conceito de nome. Nomes posicionantes e não posicionantes................ § 35. Posicionamento nominal e juízo. Se os juízos podem, em geral, tornar-se partes de atos n om in ais ................................................................................. § 36. Continuação. Se as asserções podem desempenhar a função de nomes completos........

413 413 415 420 423

395 395 397 400 403 408

XIII

a pr esen ta ç ã o d a t r a d u ç ã o po r t u g u esa

Eis finalmente a tradução para Língua Portuguesa da segunda parte (primeira série de cinco investigações, numeradas de I a V) da obra que, só por si, funda todo um novo movimento, crucial na história da Filosofia no século XX: a “Fenomenologia”. Na verdade, sem referência a estas Logische Untersuchungen (Investigações Lógicas ), publicadas por Edmund Husserl em duas partes, nos anos de 1900 e 1901, sem atenção à sua presença e ação continuadas, ao seu programa filosófico, às suas promessas teóricas, aos seus pontos fortes e fragilidades, mas também às suas leituras críticas ou às suas redescobertas periódicas, sem, em suma, uma atenção à longa e vigorosa eficácia desta obra, a Filosofia e boa parte da vida intelectual do século X X seriam largamente incompreensíveis. Poucas são as obras que compartilharam com as Logische Untersuchungen , sobretudo com este volume que ora se publica, essa capacidade de dar forma ao pensamento filosófico do século XX, criando para ele todo um novo aparato conceituai, bem como uma nova de­ finição dos seus problemas e da sua metodologia. Poucas são, de fato, as obras que tiveram este poder seminal de, mais do que se enfeudarem numa tradição estabelecida (o que tam ­ bém fizeram, certamente), criarem, elas próprias, a escola a que pertencem. Os escritos de Gotlob Frege, justamente o Begriffsschrift e as Grundlagen der Arithmetik (ambas as obras saídas no último quartel do século XIX, mas só saídas da obscuridade no século XX), a obra inicial de Bertrand Russell, The Philosophy o f M athematics, e os Principia Mathematica, com Alfred North Whitehead, certamente também o Tractatus Logico-Philosophicus, de Ludwig Wittgenstein, e, porventura, Ser e Tempo, de Martin Heidegger, são presumivelmente, em conjunto com estas Investigações Lógicasy os pontos de referência básicos a partir dos quais seria possível traçar a história das ideias filosóficas do século que passou e, a partir dela, compreender também boa parte do nosso presente. Ontem, como hoje, várias condições têm de estar reunidas para que esta extraordi­ nária força de reconfiguração e de reordenação possa irradiar de uma obra. Desde logo, ela tem de responder à condição da pertinência. Mais importante ainda, terá ela de responder à condição da inovação. E, por sobre tudo isso, sendo pertinente, ou seja, oportuna, filha do seu tempo, e simultaneamente inovadora, ou seja, imprevista, abrindo um novo tempo, ela terá ainda de satisfazer a condição maior de ser, afinal, convincente, a ponto de criar para si mesma um público, um movimento entusiasta de neófitos e o trabalho continuado de uma escola. Ela foi pertinente, sem dúvida, na sua esfera própria. Husserl foi discípulo de Weierstrass, Brentano e Stumpf, ou seja, os seus estudos incidiram fundamentalmente nas áreas da Matemática, da Lógica e da Psicologia. As Investigações Lógicas são, nas suas próprias palavras, uma tentativa de fundamentação da Lógica e de clarificação última da Matemática. Com este projeto de fundo, Husserl dedicara uma atenção muito particular à literatura rele­ vante. John Stuart Mill, Sigwart, Hamilton e Erdmann são, depois do seu próprio “Psicologismo” na sua Philosophie der Arithmetik. Psychologische und Logische Untersuchungen (Filo­ sofia da Aritmética. Investigações Psicológicas e Lógicas), todo um conjunto de pensadores que suscitam da sua parte uma viva oposição, pelo modo como a Lógica se via reconduzida à Psicologia como ciência empírica e genética da psique humana. Por outro lado, a Lógica como pura técnica de cálculo, desenvolvida nas obras de Boole e de Frege, não o podia satis-

Investigações Lógicas - Fenomenologia e Teoria do Conhecimento ® Edmund Husser!

Apresentação da Tradução Portuguesa

fazer tão pouco - faltava-lhe, por assim dizer, a própria fundamentação da sua possibilidade, ausência que, nela, assumia a forma de um objetivismo ingênuo. Em vez de esclarecer a pos­ sibilidade da Matemática e de, em geral, uma ciência operando calculatoriamente por meio de símbolos, a Lógica acabava por partilhar com a Matemática essa forma de proceder e de cair na mesma ausência de fundamentação. Retornando, contra “psicologistas” e “lógico matemáticos”, ao projeto de uma Lógica pura, como disciplina filosófica, é a tradição de Leibniz, Kant, Bolzano e Lotze que lhe surge como determinante. E é justamente a partir da ideia de que a Lógica pura opera no domínio das significações (as Bedeutungen ou os Sätze - proposições e as Vorstellungen an sich - representações em si, de Bolzano) e de que estas são objetividades ideais, que não se confundem com os atos subjetivos de representação e do juízo, que Husserl intervém com absoluta pertinência no debate do seu tempo, propondo toda uma nova concepção das relações entre Lógica e Psicologia. Foi precisamente na tentativa de traçar essa nova relação que residiu o seu caráter absolutamente inovador. A fundamentação da Lógica e da Matemática na Psicologia era um tópico recorrente, ao qual Husserl pagara já o seu tributo na sua Philosophie der Arithmetik (Filosofia da Aritmética), de 1891. Por outro lado, a crítica do Psicologismo, tanto do seu próprio como do alheio, objetivo central dos Prolegomena, de 1900, fora já antes encetada por Frege. A oposição fregiana entre a objetividade do pensamento (das Gedanke) e a sub­ jetividade da representação (die Vortsellung) permitia separar, de entrada, com total nitidez, os terrenos de ciências como a Lógica e a Psicologia. Esta separação era apenas um dos as­ pectos da luta teórica contra o relativismo cético, que Husserl também fez sua e para a qual descobriu, no célebre artigo de 1911, outros alvos. Mas se a Matemática era recondutível à Lógica (para Husserl, a uma forma plenamente desenvolvida desta última, como M annigfaltigkeitslehre - a teoria das multiplicidades -, expressão de Riemann, este genial revolucionador da Geometria que Husserl bem conhece, ou como mathesis universalis , uma expressão leibniziana), sem que a Lógica, pelo seu lado, se afundasse numa Psicologia que, sendo uma disciplina empírica, acabaria por destruir a sua validade absoluta e incondicionada, isso não esgotava, porém, a questão. Tudo se jogava na compreensão do teor da própria Psicologia, que deveria ser chamada a esclarecer a relação entre objetividade conhecida e atividade de pensar. E é esta a inovação decisiva de Husserl. Para a fundamentação da Lógica pura, não interessava, certamente, uma Psicologia empírica e genético-causal, mas importava, sim, uma Psicologia eidética e descritiva, que regredisse sistematicamente da objetividade das formações lógicas até os modos de consciência em que elas são dadas e se tornam acessíveis para o pensamento. Esta Psicologia de novo cunho, este estudo da consciência, não seria mais uma doutrina psicofísica, ou seja, uma teoria da consciência como objeto natural, mas antes um estudo da consciência de objeto, ou seja, da intencionalidade, nas suas estruturas de sentido; em segundo lugar, ela também não seria mais uma ciência empírica, mas antes uma teoria dos tipos essenciais puros da consciência objetiva enquanto tal, ou seja, uma dou­ trina das leis puras da essência, uma “ciência eidética”, como Husserl nos habituará a dizer. O conceito de uma Psicologia descritiva, tomado de Brentano, que serve, nas Investigações L ó ­ gicas, como primeira caracterização da Fenomenologia, albergava em si uma maneira de ver a consciência que, na sua forma madura, a partir de 1907, conduziria da Psicologia à Feno­ menologia transcendental. Desde 1904, aliás, Husserl se dera conta de que a Fenomenologia não era Psicologia descritiva. Tal é a inovação maior de Husserl contida nessas Investigações Lógicas - toda uma maneira de olhar a consciência que acaba, finalmente, por superar a sua objetivação psicológica.

Esta obra, em que tanta coisa nova se apresentava ou se anunciava, esta obra plena de tantas promessas, teve o seu público, os seus neófitos, a sua escola. Numa palavra, ela logrou ser convincente da única maneira verdadeiramente produtiva: não porque apresentasse a verdade, completa e acabada, mas porque dava a aparência de abrir uma nova via de acesso até ela, ao mesmo tempo que mostrava a razão por que as sendas antigas eram inviáveis uma nova via que muitos se sentiriam, em seguida, tentados a trilhar. Portanto, não uma obra perfeita, mas uma promessa, não uma verdade acabada, mas a indicação de uma via. Isso é justamente o que Husserl vê em si próprio e nestas suas Investigações Lógicas - uma obra de Durchbruch, ou seja, de desbravamento, como ele próprio notou, encetado, diremos nós, por alguém que, mais por condição que por vocação, será sobretudo um Wegweiser, um indicador de caminhos. Foi, de fato, no círculo das Investigações Lógicas que se formou o primeiro núcleo de fenomenólogos. A partir de setembro de 1901, Husserl passa de Halle a Gõttingen, onde David Hilbert pontificava entre uma plêiade de matemáticos. Aí se forma­ rá progressivamente, até o momento da primeira ruptura de 1913, o círculo dos primeiros fenomenólogos (a que se seguirão, depois de 1913, outros vultos tão importantes nas suas áreas como Hermann Weyl, Oskar Becker ou Martin Heidegger): Johannes Daubert, Moritz Geiger e Adolf Reinach vêm de Munique, de Theodor Lipps, seguindo-se-lhes Theodor Conrad, em 1907, Dietrich von Hildebrand, em 1909, Hedwig Conrad-Martius e Max Scheler, em 1910. O círculo cresce com estudantes de outras proveniências: Wilhelm Schapp, em 1905, Jean Hering, em 1909, Alexandre Koyré, em 1910, Hans Lipps, 1911, Ingarden, 1912, Kaufmann e Edith Stein, em 1913, entre outros. Dilthey, Wilhelm Wundt ou Paul Natorp são, por outro lado, alguns dos pensadores consagrados que se mostraram sensíveis ao enor­ me valor destas Investigações Lógicas. E, no entanto, as Investigações Lógicas eram apenas uma obra de preparação, mesmo no quadro do seu objetivo explícito: a fundamentação da Lógica. A Doutrina da Ciência, que exporia os tipos puros da consciência de objeto, segundo as suas articulações essenciais, no quadro de uma ontologia formal, é um desiderato ainda longínquo nestas Investigações. Estas se confinam a tarefas preliminares: o isolamento da unidade da significação a partir do ato expressivo, entendendo a sua idealidade como “ato em espécie” (primeira investigação); uma análise fenomenológica da consciência do geral, contra as incorreções nominalistas (segunda investigação); uma mereologia formal, definindo os conceitos de objeto dependente e inde­ pendente e as relações de fundação (terceira investigação); uma gramática pura lógica, m os­ trando que coisa é o significar, e como as estruturas da formação e derivação de sentido são uma ossatura que as línguas naturais revestem segundo as suas particularidades históricas e empíricas (quarta investigação); uma teoria dos ingredientes constitutivos da consciência de objeto, em torno dos conceitos de matéria intencional e de qualidade de ato (quinta investiga­ ção); finalmente, uma penetração na relação dos atos intencionais com a intuição correspon­ dente, surpreendendo nessa conexão o fenômeno do conhecimento (sexta investigação). Surpreendentemente, a escola dita “fenomenológica” não trouxe nenhuma contri­ buição absolutamente decisiva para estes tópicos (excetuando Reinach e os primeiros traba­ lhos de Heidegger). As Investigações tornaram-se uma espécie de livro de leitura obrigatória para a aprendizagem da Fenomenologia, mas não um campo para trabalho continuado de pesquisa e de descoberta. Daí uma estranha situação que lançou sombras sobre a vida das Investigações e fez parte do seu destino. Por um lado, as duas leituras mais criativas das In­ vestigações, a de Heidegger (em torno da sexta investigação) e a de Derrida (em torno da primeira), conduziram ambas para fora da Fenomenologia husserliana. Por outro, os pro­

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Investigações Lógicas - Fenomenologia e Teoria do Conhecimento • Edmund Husserl

Apresentação da Tradução Portuguesa

blemas que Husserl aí discutia detalhadamente encontramo-los assumidos como campos de pesquisa não na escola fenomenológica (onde se fossilizaram em conceitos “escolásticos”), mas antes na Filosofia de inspiração analítica. Problemas como o da flutuação da significação nos dêiticos e expressões indexicais, a construção de uma mereologia formal, a discussão em torno de problemas semânticos referentes à relação entre nomes e proposições, à sim ­ plicidade das significações dos nomes próprios em contraste com as descrições definidas, à ideia mesma de uma significação a distinguir da referência objetiva, a relação da função significativa da linguagem com os contextos comunicativos, as atitudes proposicionais, o privilégio da frase declarativa e dos atos objetivantes, e tantas outras questões ainda, como a da autonomia da lógica ou a naturalização da consciência e da intencionalidade (de que Husserl descria), encontram-se profusamente tratadas na tradição analítica e estranhamente silenciadas na tra(d)ição fenomenológica. Na verdade, o equívoco maior é falar de uma “tradição” fenomenológica e de uma “tradição” analítica (ou do Positivismo Lógico) no tempo das Investigações. De fato, isso não existe, ainda, nem existirá nas décadas subsequentes. Husserl trabalha no mesmo conjunto de problemas e no mesmo programa teórico que Frege ou Russell. É bem sabido o mútuo reconhecimento entre Husserl e Frege (que o havia acusado de Psicologismo ao tempo da pu­ blicação da Philosophie der Arithmetik - Filosofia da Aritmética); Russell, em 1924, descreve as Investigações como uma “obra monumental”; Moore conhecia-as e admirava-as; Kurt Gõdel, que descobriu e se deixou deslumbrar por Husserl a partir de 1959, escreveu explicitamente que a Fenomenologia era a única Filosofia da Matemática que se mantinha de pé, certamente em virtude do seu modo de ser sofisticadamente realista acerca das entidades matemáticas e da sua teoria da intuição categorial. Se a tradição analítica não seguiu Husserl na teoria da cons­ ciência que estava já implícita nas Investigações, ela permaneceu, porém, vinculada a boa parte dos problemas teóricos que preocupavam Husserl nessa obra. O momento simbólico da cisão - ou seja, da incomunicabilidade - entre a escola fenomenológica, “continental”, e a tradição dita analítica é bastante posterior. Ser e Tempo e Kant e o Problema da Metafísica, de Heidegger, este último publicado a seguir ao célebre encontro de Davos com Ernst Cassirer, em 1929, por um lado, e “A superação da metafísica por meio da análise lógica da linguagem”, um escrito de Rudolf Carnap (que assistira ao encontro de Davos), de 1931, totalmente dirigido contra a nova metafísica iniciada por Heidegger, são o verdadeiro momento de separação das águas. Portan­ to: não Husserl e Frege, ou Husserl e Russell, nem mesmo Husserl e Ryle, mas antes Heidegger e Carnap - eis as figuras e o momento da cisão entre a Filosofia dita (com alguma presunção) “científica” e a metafísica “fenomenológica” do Sein (do ser) e da Existem (da existência). Não é preciso sublinhar o quanto as Investigações Lógicas, de 1900-1901, eram estra­ nhas a este ambiente de final dos anos 1920, e o quanto ele reagiu sobre elas e as desfigurou, ao longo de décadas, a ponto de o leitor moderno típico não ter sequer, no momento em que enceta a leitura das Investigações, uma clara compreensão do objetivo teórico fundamental desta obra: a fundamentação da Lógica pura. Mas os múltiplos interesses que, ainda hoje, trazem sempre novos leitores para as Investigações, mesmo desconhecendo o que fora o seu objetivo teórico de fundo, é bem a prova da força, da vitalidade e da riqueza desta obra.

secretária e o teria levado a Max Niemeyer para impressão. Husserl só teria voltado a ver o manuscrito juntamente com as provas de impressão. Talvez por força desse incômodo inicial, que travava a decisão de publicar, as Inves­ tigações Lógicas são, com toda a certeza, a obra mais profusa e profundamente reelaborada por Husserl. Houve quatro edições das Investigações Lógicas durante a sua vida. Em 1900, saem as Logische Untersuchungen. Erste Teil: Prolegomena zur Reinen Logik, em Halle, editadas pela casa Max Niemeyer (Investigações Lógicas. Prim eira Parte: Prolegômenos à Lógica Pura). No ano seguinte, em 1901, aparecerá a segunda parte, no mesmo editor: Logische Untersuchun­ gen. Zweiter Teil: Untersuchungen zur Phänomenologie und Theorie der Erkenntnis (Investiga­ ções lógicas. Segunda parte: Investigações p ara a fenomenologia e a teoria do conhecimento).

Por volta de 1913 (na verdade, um pouco antes), Husserl encetará, sob a influência das suas Ideen zu einer Reinen Phänomenologie und Phänomenologischen Philosophie (Ideias para uma Fenomenologia pura e uma Filosofia Fenomenológica), uma profunda reelaboração da obra, alterando profusamente, e por vezes em profundidade, quase todas as in­ vestigações, e sobretudo a sexta. Relativamente a esta última, a reelaboração tentada foi de tal magnitude e tão subitamente interrompida, não sendo já um conjunto de alterações e melhoramentos do texto original, não terá chegado, porém, a ganhar a forma de um texto alternativo. O seu caráter inacabado ditou o seu silenciamento. O resultado desta gigantes­ ca Umarbeitung (reelaboração) da sexta investigação só foi publicado postumamente, no volume X X da Husserliana. Em consequência dessa revisão encetada, mas afinal frustrada da sexta investigação, Husserl planeará publicar, em 1913, na mesma casa editora, a obra em duas partes, como anteriormente, mas dividindo a segunda parte em dois volumes. O primeiro, contendo as investigações de I a V, sairá em segunda edição, com todas as investi­ gações alteradas em maior ou menor grau. O segundo volume da segunda parte, contendo apenas a Investigação VI, ficará por publicar. Só em 1921 surgirá, com alterações muito parcelares, sem vestígios da profunda reelaboração de 1913, o segundo volume da segunda parte, subintitulado Elemente einer Phänomenologischen A ufklärung der Erkenntnis (Elemen­ tos p ara um a Clarificação Fenomenológica do Conhecimento).

A crer numa história de Malvine Husserl, foi Cari Stumpf quem, perante a relutância do próprio Husserl em publicar as Investigações Lógicas, teria “retirado” o manuscrito da sua

Em 1922, também por Max Niemeyer, sairá uma edição de toda a obra (na verdade, uma reimpressão), sem qualquer modificação relativamente ao texto estabelecido em 1913 (para o primeiro volume da segunda parte), e em 1921 (para o segundo volume da segunda parte). Finalmente, em 1928, sairão de novo a primeira parte e o primeiro volume da segun­ da parte, em quarta edição, mantendo, porém, inalterado o texto da reelaboração de 1913. Na edição das Obras de Edm und Husserl, na coleção Husserliana, a segunda parte, primeiro volume, contendo as investigações de I a V, foi publicada no Volume XIX/ 1 (o XIX/2 publica a Investigação VI), em 1984, em Haia, por Martinus Nijhoff Publishers. A editora foi Ursula Panzer. Na sua cuidada edição, as versões que serviram de base para o estabelecimen­ to do texto principal foram a da segunda edição, de 1913, para as investigações I a V, e a de 1921, para a Investigação VI, ou seja, as reelaborações de Husserl por ele próprio publicadas. Relativamente ao volume X IX /1, a edição de 1913 é designada pela letra B. As variantes da primeira edição, ou seja, os textos da edição original de 1901 que foram corrigidos, alterados, substituídos ou suprimidos, são designados pela letra A e indicados em nota de rodapé. Assim, na edição de Ursula Panzer, é possível seguir o texto de ambas as edições, a de 1901 (A) e a de 1913 (B). Reproduzimos, na presente tradução, estes critérios de edição. Deste modo, para ler o texto de 1913, bastará ao leitor seguir o texto principal e as respecti-

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Investigações Lógicas - Fenomenologia e Teoria do Conhecimento • Edmund Husserl

vas notas de Husserl. Para reconstituir o texto de 1901, o leitor terá apenas de suprimir todas as palavras, frases ou textos que estão entre os sinais n e procurar, na nota de rodapé, o correspondente texto da primeira edição. No caso em que uma palavra, uma frase ou m es­ mo todo um ou vários parágrafos aparecem inseridos entre os sinais r 1, mas sem que haja qualquer nota de rodapé com um texto alternativo de A, isso significa que o texto em causa é um acréscimo de B e não uma simples alteração a um texto preexistente em A. Nesta edição luso-brasileira, as notas de Edmund Husserl são indicadas por N.A. (Nota do autor); as notas da Husserliana, contendo as indicações sobre a versão A do texto e, ocasionalmente, notas de Husserl, intituladas “Aditamentos e Melhoramentos”, são indicadas por numeração corrente, precedidas da letras A; finalmente, as raras notas do tradutor são indicadas por N.T. (nota do tradutor). A paginação da Husserliana é indicada entre aspas simples e a negrito. Assim, <123> significa página 123 do Volume X IX /1 da coleção Husser­ liana. Não conservamos, nesta edição, a paginação das edições de 1901 (A) e de 1913 (B). Por esta razão, as remissões em nota, muitas do próprio Husserl, foram reconvertidas para a paginação da Husserliana. Por fim, seja dito que, uma vez mais, esta tradução resultou do trabalho de colabora­ ção entre Pedro M. S. Alves e Carlos Aurélio Morujão. As partes traduzidas por Pedro M. S. Alves são as seguintes: - Introdução; - Primeira Investigação; - Quarta Investigação; - Quinta Investigação. Da responsabilidade de Carlos Aurélio Morujão é a tradução das seguintes partes: - Segunda Investigação; - Terceira Investigação. Completa esta edição um Glossário, em que as principais opções terminológicas são expressamente indicadas. Elas tiveram em conta a especificidade desta obra, mas também o pensamento global de Edmund Husserl e o trabalho realizado por todos os membros deste Projeto, no sentido de constituir um Glossário Geral de termos da Fenomenologia de Hus­ serl. Pedro M. S. Alves

<XIX/1,5 >

§ 1. Necessidade de investigaçõesfenomenológicas para a preparação e clarificação crítico-gnosiológica da Lógica pura A necessidade de fazer começar a Lógica com reflexões sobre a linguagem foi frequentemente reconhecida do ponto de vista da técnica lógica. “A lingua­ gem” - assim o lemos em Mill123- “é, patentemente, um dos principais auxiliares e instrumentos do pensamento, e, como qualquer um pode ver, toda e qualquer imperfeição no instrumento e no modo de usá-lo deve, mais do que qualquer outra, entravar e enredar o exercício desta técnica e destruir toda a confiança na bondade dos seus resultados [...]. Entrarmos no estudo dos métodos cien­ tíficos antes de estarmos familiarizados com a significação e o correto uso dos diferentes tipos de palavras não seria agir menos às avessas do que alguém que se quisesse iniciar nas observações astronômicas sem ter apreendido antes o correto uso do telescópio.” Mas uma razão mais profunda para a necessidade de, na Lógica, se começar com uma análise da linguagem vê-a Mill em que, sem esta, não seria possível investigar a significação das proposições, coisa que está “no pórtico” desta nossa ciência. Com esta última observação, move-se o distinto pensador para o ponto de vista que é determinante para a Lógica pura re, bem vistas as coisas, para a Lógica pura enquanto disciplina filosófica. Pressuponho, portanto, que não nos contentamos com a edificação da Lógica pura segundo o simples modo das nos­ sas disciplinas matemáticas, como um sistema de proposições que vai crescendo no quadro de uma validade ingenuamente objetiva, mas antes que, em unidade com isso, <6 > nos esforçamos por atingir a clareza filosófica a respeito destas proposições, isto é, nos esforçamos por atingir uma visão intelectiva sobre os modos de conhecimento que entram em jogo com a consumação e as aplicações idealmente possíveis destas proposições, bem como sobre as doações de senti­ do e validades objetivas que, com tais modos de conhecimento, por essência se constituem-1. Discussões sobre a linguagem pertencem r$eguramentel2 aos preparativos rfilosoficamente1 indispensáveis para a edificação da Lógica pura, porque só com a sua ajuda se poderá fazer sobressair, numa clareza inequívoca, os objetos próprios da investigação lógica e, numa consequência mais lata, os tipos e diferenciações essenciais destes objetos. Não se trata, aqui, porém, de discussões gramaticais rde ordem empírica13, num sentido referido a uma qual­ 1 2 3

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I ntrodução

N.A.: Logik, Livro I, cap. 1, § 1. A: rsem dúvida1. A: respeciais1.

Investigações Lógicas - Fenomenologia e Teoria do Conhecimento • Edmund Husserl

Introdução

quer língua historicamente dada, mas antes de discussões de tipo generalíssimo, que pertencem à esfera mais larga de uma Teoria do Conhecimento objetiva e, coisa que está com isso intimamente conectada, a uma fenomenologia rpuralA das vivências do pensamento e do conhecimento. rEsta, tal como a fenomenologia pura das vivências em geral, que a abarca, tem exclusivamente que ver, numa generalidade pura de essência, com as vivências captáveis e analisáveis na in­ tuição, mas não com as vivências empiricamente apercebidas, enquanto fatos reais, enquanto vivências de homens ou de animais que as vivem no mundo que aparece, no mundo que é posto como fato de experiência. As essências, diretamente captadas na visão de essência, e as conexões, que se fundam pura­ mente na essência, são descritivamente trazidas pela Fenomenologia à expressão genuína em conceitos relativos à essência e em asserções de essência relativas à lei. Cada uma destas asserções é uma asserção apriorística, no sentido primacial desta palavra.i Esta resferai45 é aquilo que deve ser explorado por mor de uma clarificação e preparação gnosiológica da Lógica pura; daí que as nossas6 inves­ tigações se movam no seu interior. A Fenomenologia pura representa um domínio de investigações neutras, no qual diferentes ciências <7> têm as suas raízes.7Por um lado, ela presta serviço à Psicologia enquanto ciência empírica. rNo seu procedimento intuitivo e puro, ela analisa e descreve, numa generalidade essencial - especialmente enquanto fenomenologia do pensamento e do conhecimento -,"1 as vivências representa­ tivas, judicativas e cognitivas, rque, empiricamente apreendidas como classes de acontecimentos reais no quadro da efetividade animal natural, a Psicologia submete a uma investigação científica no elemento da experiência"!. Por outro lado, i"a Fenomenologia"!8 dá acesso às “fontes” de onde “brotam” os conceitos fundamentais e as leis ideais da Lógica pura, fontes às quais se deve, de novo, fazê-los retornar, se quisermos obter a “clareza e distinção” que é exigível a uma compreensão crítico-gnosiológica da Lógica pura. A fundamentação gnosioló­ gica, correspondentemente, fenomenológica da Lógica pura envolve pesquisas de grande dificuldade, mas também de uma importância incomparável. Recor­ demos a nossa exposição, dada no iprimeiro volumei9 destas investigações, das

tarefas de uma Lógica pura10 - visava-se, com isso, a assegurar e esclarecer os conceitos e leis que conferem a todo e qualquer conhecimento a sua significação objetiva e a sua unidade teorética.

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A: rpuramente descritiva1. A: resfera no seu todo1. Em A segue-se: rpróximas1. A este e ao próximo período corresponde em A: Por um lado, ela presta serviço à prepa­ ração da1 Psicologia enquanto ciência empírica. rEla analisa e descreve (especialmente en­ quanto fenomenologia do pensamento e do conhecimento)1 as vivências representativas, judicativas e cognitivas, rque devem encontrar na Psicologia o seu esclarecimento genético e a sua investigação segundo conexões empírico-legais1. A: rela1. A: primeira parte1.

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§ 2. Para uma clarificação dos objetivos de tais investigações Toda e qualquer investigação teórica, se bem que não se mova, de modo algum, apenas em atos expressos ou mesmo em asserções completas, acaba, po­ rém, por terminar em asserções. Apenas sob esta forma se torna a verdade, e especialmente a teoria, um patrimônio permanente da ciência, ela torna-se o tesouro documentalmente registrado e sempre disponível do saber e da investi­ gação que se esforça por ir mais além. Seja qual for a ligação entre pensamento e fala, que <8 > o modo de aparição do juízo conclusivo na forma da asserção seja ou não necessária ra partir de fundamentos essenciais"! ,n é, em todo caso, certo que juízos que pertencem à esfera intelectual superiorr, particularmente à da ciência,"• '"mal'112 se poderiam efetuar sem expressão linguística. Em consequência, os objetos para cuja inquirição a Lógica pura está vol­ tada são, desde logo, dados sob vestes gramaticais. Para falar mais precisamente, eles são dados rpor assim dizer"! como embutidos nas vivências psíquicas con­ cretas que, tanto na função de ^intenção de significação113 como na do preenchi­ mento da significação (neste último aspecto, como intuição ilustrativa ou produ­ tora de evidência), correspondem a certas expressões linguísticas e formam com elas uma unidade fenomenológica. A partir destas unidades fenomenológicas complexas, o lógico tem de destacar os componentes que lhe interessam, em primeira linha, portanto, os caracteres de ato em que se consumam as operações lógicas de representar, de julgar e de conhecer, estudando-as na análise descritiva de uma maneira tão ampla quanto isto seja proveitoso para responder às exigências das suas tarefas propriamente lógicas. A partir do fato de que o teorético se r“realiza”i 14 em cer­ tas vivências psíquicas, que está dado nelas à maneira de um caso singular, não se deve assumir imediatamente como algo supostamente óbvio que estas vivên­ cias psíquicas devam valer como os objetos primários das investigações lógicas. Ao lógico i"puro"i não interessa iprimária e propriamente1 o juízo psicológico, isto é, o fenômeno psíquico concreto, mas, sim, o juízo lógico, isto é, a signifi-

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N.A.: Cf. O capítulo final dos Prolegomena, particularmente o §§ 66 e segs. A: rabsolutamente1. A: mão1. A: dignificação1. A: mealiza1.

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Investigações Lógicas - Fenomenologia e Teoria do Conhecimento • Edmund Husserl

Introdução

cação assertiva idêntica, a qual é uma e una, perante as múltiplas vivências judicativas, descritivamente muito diferentes umas das outras.15 Naturalmente que a esta unidade ideal corresponde um certo traço, que é por todo o lado comum nas vivências singulares. Como, porém, não é o concreto que importa ao rpuro1 lógico, mas antes a respectiva ideia, <9> o geral, captável na abstração, ele não tem nenhuma propensãor, ao que parece,“1para abandonar o terreno da abstra­ ção e para, em vez das ideias, fazer rda vivência concreta116 o ponto de mira dos seus interesses de pesquisa.17 No entanto, se bem que ra análise das vivências concretas de conhecimento não1 pertença ao domínio original da Lógica pura, rnão pode, contudo,1 ser dispensada no quadro das exigências da Investigação lógica pura1. Pois tudo o que é da ordem do lógico deve ser dado numa rplenitude concreta1,18na medida em que se torne nosso objeto de pesquisa próprio e que deva possibilitar a evidência das leis apriorísticas que sobre ele se fundam. De início, o lógico é-nos dado, contudo, numa forma imperfeita: o conceito, en­ quanto significação mais ou menos flutuante de uma palavra, e a lei, enquanto asserção não menos flutuante, porque construída a partir de conceitos. Não será por isso, certamente, que faltarão, aqui, visões intelectivas lógicas. Captamos com evidência a lei pura e reconhecemos que ela se fundamenta nas leis do pen­ samento puro. Mas esta evidência está pendente daquela significação das pala­ vras que estava viva quando da consumação atual do juízo acerca da lei. Por for­ ça de equívocos inapercebidos, as palavras podem, posteriormente, dar corpo a outros conceitos, e, agora, para as significações proposicionais alteradas, pode ser invocada falsamente a evidência antes experimentada. Inversamente, esta falsa interpretação, provinda do equívoco, pode também perverter o sentido das proposições lógicas puras (digamos, no sentido de proposições empíricas e psicológicas) e levar ao abandono da evidência anteriormente experimentada e do significado singularmente peculiar da esfera do lógico puro. Portanto, não pode bastar este ser dado das ideias lógicas e das leis puras que com elas se constituem. Surge, assim, a magna tarefa de levar à clareza e distinção gnosiológica as ideias lógicas, os conceitos e leis. E aqui começa a análise fenomenológica. <10> Os conceitos lógicos, enquanto unidades de pensamento dotadas de validade, devem ter a sua origem na intuição; eles devem, através da abstração ideadora, despontar com base em certas vivências, e devem comprovar-se sempre

outra vez em cada nova consumação desta abstração, devem ser captados na sua identidade consigo próprios. Dito de outro modo: não queremos, em absoluto, contentar-nos com “simples palavras”, ou seja, com uma compreensão verbal me­ ramente simbólicar, como a que temos, no início, nas nossas reflexões sobre o sen­ tido das leis estabelecidas na Lógica pura, acerca de “conceitos”, “juízos”, “verda­ des” etc., com as suas múltiplas particularizações1. Significações que são animadas apenas por intuições longínquas, vagas, impróprias - quando de todo por algumas - não nos podem satisfazer. Queremos retornar às “próprias coisas”. Com base em intuições plenamente desenvolvidas, queremos trazer, para nós, à evidência que isto, que aqui está dado numa abstração atualmente consumada, é verdadeira e efetivamente aquilo que as significações das palavras querem dizer na expressão das leis; e rqueremos, do ponto de vista da prática do conhecimento, despertar em nós a disposição119 para manter firmemente, na sua identidade inamovível, as significações, através da sua repetida mensuração pela intuição reprodutível (cor­ respondentemente, pela consumação intuitiva da abstração). Convencemo-nos de tais coisas por meio da ilustração intuitiva das significações variáveis, que se ligam ao mesmo termo lógico em diferentes contextos assertivos; adquirimos a evidência de que aquilo que a palavra quer dizer aqui e agora encontra o seu preenchimento em momentos ou formações essencialmente diferentes da intuição, corresponden­ temente, em conceitos gerais essencialmente diferentes. Através da separação dos conceitos que estão misturados e de adequada alteração da terminologia, obtere­ mos nós, então, a tão desejada “clareza e distinção” das proposições lógicas. A fenomenologia das vivências lógicas tem20 a finalidade de nos pro­ porcionar uma compreensão descritiva (mas não, digamos, uma compreensão empírica e psicológica) destas vivências psíquicas, e dos seus sentidos ínsitos, tão extensa quando o necessário para dar aos conceitos lógicos fundamentais significações fixas <11> e, certamente, significações que, elucidadas pelo retor­ no às rconexões de essência1,21 analiticamente investigadas, entre intenção de significação e preenchimento de significação, sejam compreendidas e, ao mesmo tempo, certificadas na sua possível função de conhecimento; numa palavra, sig­ nificações tais como exige o interesse da própria Lógica pura e, sobretudo, o inte­ resse da penetração intelectiva, crítico-gnosiológica, na essência desta disciplina. Os conceitos fundamentais lógicos re noéticos1 foram até o presente ainda mui­ to imperfeitamente esclarecidos; eles estão acometidos de múltiplos equívocos, e os estão de equívocos tão nocivos, tão difíceis de estabelecer e de manter numa separação consequente que aqui mesmo deverá ser procurada a razão principal para o estado retardatário da Lógica pura e da Teoria do Conhecimento.

15 N.Â.: Cf. § 11 da Investigação I. 16 A: rdesta sua vivência concreta, singular,1. 17 A este período corresponde em A: No entanto, se bem que ra análise ideal e não a fenome­ nológica1 pertença ao original da Lógica pura, mão pode, contudo, a última1 ser dispensada no quadro das exigências da primeira1. 18 A: rrealização subjetiva1.

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19 A: rqueremos despertar em nós a disposição1. 20 Em A segue-se: r, portanto,1. 21 A: xonexões1.

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Introdução

Devemos, sem dúvida, concordar que foram já evidenciados muitos tipos de distinções conceituais e de delimitações rda esfera lógica pura na atitude natural, por conseguinte,122 sem a análise fenomenológica. Na medida em que ros atos lógicos respectivos sei23 realizam numa adequada adaptação à intuição preenchente, não se refletiu acerca da própria situação fenomenológica. Mas mesmo a mais consumada evidência pode tornar-se confusa, ro que ela capta124 pode ser falsamente Interpretado1,25 a sua segura decisão pode ser recusada. So­ bretudo, a inclinação r(de nenhum modo acidental)1 da reflexão filosófica rpara permutar, imperceptivelmente, a atitude objetiva e a atitude psicológica, para misturar uns nos outros os dados relativos a cada um desses aspectos - dados que estão, pelo seu próprio teor essencial, mutuamente relacionados, mas que devem ser separados por razões de princípio - e, assim, para se deixar enganar na interpretação das objetividades lógicas por força das incompreensões psico­ lógicas - tudo isso exige investigações esclarecedoras. Segundo a sua natureza, estes esclarecimentos só podem ser realizados por uma doutrina fenomenológi­ ca da essência das vivências de pensamento e de conhecimento, tendo constan­ temente em vista o objeto que nelas é, segundo a essência, visado (precisamente no modo em que ele, enquanto tal, em si mesmo se “manifesta”, “apresenta”, e coisas semelhantes). Só por meio de uma Fenomenologia pura, que não é me­ nos que <12> a Psicologia, enquanto ciência de experiência das propriedades e estados psíquicos de realidades animais, pode o Psicologismo ser radicalmente superado. Só ela oferece, na nossa esfera também, todos os pressupostos para uma fixação definitivamente satisfatória do conjunto das distinções fundamen­ tais e das evidências puramente lógicas. Só ela corrige a aparência, provinda de fundamentos essenciais e, por isso mesmo, à partida inevitável, que tanto nos convida a reinterpretar o objetivamente lógico como algo psicológico.126 Os mesmo agora discutidos motivos para a análise fenomenológica restão, como facilmente se vê, essencialmente concatenados com os127 que des­ pontam das questões fundamentais rgeneralíssimas1 da Teoria do Conhecimento.

Porquer, se tomarmos estas questões na sua generalidade mais lata - ou seja, obviamente, na “formal”, que abstrai de toda e qualquer “matéria do conhecimen­ to” -, então elas dispõem-se128 no círculo de questões que dizem respeito a uma completa clarificação da ideia de Lógica pura. O fato de que pensar e conhecer, no seu todo, vão para objetos, correspondentemente, para estados-de-coisas r, pretensamente os tocam de tal modo que o seu “ser-em-si” se deve manifestar como unidade identificável na multiplicidade dos atos de pensamento, corres­ pondentemente, das significações efetivas ou possíveis1;29 o fato subsequente de que a todo e qualquer pensamento é inerente uma forma de pensamento, que está sob leis ideais, e certamente sob leis que circunscrevem a objetividade ou idealidade do conhecimento em geral - estes fatos, digo eu, suscitam sempre de novo estas questões: como rse deve entender que o “em si” da objetividade chegue à “representação”, e mesmo a uma “captação” pelo conhecimento, e que, por conseguinte, <13> se torne, no fim, de novo subjetivo1;30 que significa que o objeto seja “em si” e “dado” no conhecimento; como a identidade do geral pode entrar, enquanto conceito ou lei, no fluxo das vivências psíquicas reais31 e tornar-se, enquanto conhecimento, um patrimônio daquele que pensa; que significa a adaequatio rei ac intellectus cognitiva nos diferentes casos, segundo que o ícaptar132 cognoscente diga respeito a algo individual ou geral, a um fato ou a uma lei etc.? Agora, estará, porém, claro que estas e outras questões seme­ lhantes são, de todo em todo, inseparáveis das questões aludidas acima acerca do esclarecimento do rpuro lógico1.33 A tarefa de clarificação das ideias lógicas, como conceito e objeto, verdade e proposição, fato e lei etc. conduz, inevitavel­ mente, a precisamente as mesmas questões que temos já de ter em vista se não queremos que permaneça na obscuridade a própria essência da clarificação a que almejamos nas análises fenomenológicas.

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A: rde um modo puramente objetivo,1. A: relesse1. A: rela1. A: interpretada1. A: rpara misturar os modos objetivo e fenomenológico de consideração, sem clarificação gnosiológica das suas relações finais, para se deixar enganar por más interpretações fenomenológicas no domínio objetivo, faz com que uma fenomenologia suficientemente desenvolvida das vivências de pensamento e de conhecimento, em ligação com uma Te­ oria do Conhecimento, que lance luz sobre a relação entre o objetivo e o subjetivo, seja o pressuposto para a fixação, segura e definitiva, da maior parte, se não mesmo de todas as distinções e evidências lógico-objetivas1. 27 A: rnão são, como facilmente nos convenceremos, essencialmente diferentes dos1.

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§ 3. As dificuldades da análise puramente fenomenológica As dificuldades da clarificação dos conceitos lógicos fundamentais têm a sua causa natural nas dificuldades extraordinárias da análise rigorosamente fenomenológicar; elas são, no essencial, as mesmas, quer a análise imanente se 28 A: restas dispõem-se, elas próprias,1. 29 A: rcuja unidade é, relativamente à multiplicidade dos atos de pensamento efetivos ou possíveis, precisamente uma "unidade na multiplicidade", portanto, um caráter ideal1. 30 A: r, então, o "em si" da objetividade chega à representação e, portanto, se possa tornar, de certo modo, de novo subjetivo1. 31 N.T.: Real. 32 Em A entre aspas. 33 A: rpuro Lógico1.

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Introdução

dirija para as vivências segundo a essência pura (sob exclusão de toda e qualquer faticidade empírica e singularização individual), quer se dirija para as vivências em atitude empírico-psicológica"1. Os psicólogos costumam discutir rtais134 di­ ficuldades ao examinar35 a percepção interna, enquanto fonte de conhecimento psicológico singular; não de um modo correto, contudo, antes para estabelecer uma falsa contraposição entre a percepção externa e a interna.36 <14> A rfonte de todas as dificuldades137 reside na direção contranatural da intuição e do pen­ samento que é exigida na análise fenomenológica.38Em vez de nos entregarmos à vconsumação^ dos atos edificados de diversas maneiras uns sobre os outros e de, com isso, rpor assim dizer, pormos ingenuamente como ser os objetos visados no sentido desses atos, de determiná-los ou de supô-los hipoteticamente e de, por sobre isso, pôr as consequências, e coisas semelhantes"1, devemos antes “refletir”, ou seja, tornar objeto este próprio ato re o seu teor de sentido imanente"1. En­ quanto os objetos são intuídos, pensados, ^teoricamente examinados e, com isso, postos como efetividades numa qualquer modalidade de ser"1, não deveremos dirigir o nosso interesse teórico para esses objetosr, não os devemos pôr como efetividades, tal como"1 eles aparecem ou valem na intenção de cada ato, mas, em contraposição, rprecisamente aqueles atos"1 que, até agora, não eram de todo objetivosr, devem tornar-se os objetos da captação e da posição teorética; em novos atos de intuição e de pensamento, devemos nós"1considerá-los, analisá-los rsegundo a sua essência"1, descrevê-los, fazer deles objetos de um pensamento rempírico ou ideador1. Isto é, todavia, uma direção de pensamento contrária aos hábitos mais inveterados, continuadamente reforçados desde o início do nosso desenvolvimento psíquico. Daí a inclinação quase inextirpável para recair sem­ pre de novo da atitude fenomenológica de pensamento na atitude simplesmente objetiva, para substituir rpelas determinidades que, na consumação ingênua dos atos originais, eram atribuídas aos objetos destes atos, os próprios atos ou as

suas <15> “aparições” ou “significações” imanentes"1,3940123e mesmo para considerar rdasses inteiras de objetos que verdadeiramente são, como as ideias (tendo em conta que elas, na intuição ideativa, podem ser dadas com evidência),"140 como elementos integrantes fenomenológicos das suas representações. rUma dificuldade muito discutida, que parece ameaçar, por razões de princípio, a própria possibilidade da descrição imanente dos atos psíquicos e, numa fácil transposição, a possibilidade de uma doutrina fenomenológica da es­ sência, consiste em que, na passagem da consumação ingênua dos atos para a ati­ tude reflexiva, correspondentemente, na consumação do ato reflexivo respectivo, os primeiros atos se alteram necessariamente. Como poderão ser corretamente avaliados o tipo e o âmbito desta alteração, como poderemos nós saber qualquer coisa - seja como fato ou como possibilidade de essência - acerca dela?141 À dificuldade em adquirir resultados firmes, evidentes numa identifi­ cação repetida, vem juntar-se a dificuldade da sua apresentação e da sua co­ municação a outrem. Aquilo que, segundo a análise mais precisa, foi verificado com rplena142 evidência rcomo estado-de-essências43"1, deve ser apresentado em expressões cujas diferenciações mais ricamente matizadas só estão adaptadas à objetividade rnatural que nos é familiar1,44456enquanto as ryivências, em que esta objetividade natural se constitui para a consciência,145 só são diretamente designadas por meio de um punhado de palavras assaz plurívocas, como sen­ sação, percepção, representação, e semelhantes. E, para lá delas, devemos tirarnos de apuros usando expressões que denominam o intencional nestes atos, a objetividade a que ros atos se146 dirigem. <16> Não é absolutamente possível descrever os atos que visam sem recorrer, na expressão, às coisas visadas. rE como será, com isso, fácil perder de vista que esta “objetividade” codescrita, necessariamente trazida de arrasto em quase todas as descrições fenomenológi-

34 A: restas1. 35 Em A segue-se: r, em regra,1. 36 Em A segue-se numa nota de rodapé: rCf. a Investigação V e o primeiro apêndice no fim deste volume1. 37 A: rdificuldade essencial1. 38 Aos três períodos seguintes corresponde em A: Em vez de nos entregarmos à rconsumação1 dos atos edificados de diversas maneiras uns sobre os outros e de, com isso, restar exclu­ sivamente voltados para os seus objetos1, devemos antes "refletir", ou seja, tornar objeto este próprio ato re o seu teor de sentido imanente1. Enquanto os objetos são intuídos, pensados, rpostos em relação uns com os outros, considerados sob o ponto de vista ideal de uma lei1, não deveremos nós dirigir o nosso interesse teórico para esses objetos re para aquilo enquanto1 eles aparecem ou valem na intenção de cada ato, mas, em contraposição, rpara precisamente aqueles atos1, que, até agora, não eram de todo objetivos1; e estes atos devemos nós, agora, em novos atos de intuição e pensamento,1 considerá-los, analisá-los, descrevê-los, fazer deles objetos de um pensamento rcom parati vo e diferenciador.

39 A: ros objetos primariamente aparecentes pela própria aparição, portanto, pelas vivências empíricas fáticas1. 40 A: ros objetos intencionais em geral1. 41 A: rPorque nós, no ato secundário, devemos estar atentos aos atos primários, e que isto te­ nha de novo como pressuposto que, pelo menos até um certo grau, prestemos atenção aos seus objetos, então a "estreiteza da consciência" entra aqui em consideração, naturalmente, a título de circunstância agravante. Bem conhecida é, além disso, a influência perturbadora dos atos secundários da reflexão sobre o teor fenomenológico dos atos primários, coisa em que as alterações que se introduzem são facilmente perdidas de vista pelo observador inexperiente, mas são também de difícil avaliação pelo observador experimentado.1. 42 A: ra mais plena1. 43 N.T.: Wesensverhalt, palavra construída por analogia com Sachverhalt, estado-de-coisas. 44 A: rprimária1. 45 A: vivências subjetivas1. 46 A: v ie s se 1.

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cas, assumiu uma modificação de sentido pela qual ela própria pertence agora, precisamente, à esfera fenomenológica.147 Se nos abstrairmos, porém, destas dificuldades, levantam-se outras novas no que diz respeito a participar convincentemente a outrem as evidências adqui­ ridas. Estas evidências só podem ser reverificadas e confirmadas por aquele que obteve a capacidade bem exercitada rpara efetuar descrições puras neste hábito contranatural da reflexão, por conseguinte,148 por aquele que deixa agir sobre si, de um modo puro, as relações fenomenológicas. Esta rpureza exige que cesse qualquer imisção de todas as asserções falsificadoras, provenientes da aceitação e do ajuizamento ingênuos daquelas objetividades que sofreram uma posição de ser precisamente nesses atos que devem ser tratados fenomenologicamente. Mas ela proíbe também toda ultrapassagem, de qualquer outro tipo, do teor de essên­ cia próprio desses atos, portanto, toda e qualquer utilização das apercepções e posições naturais referidas a esses próprios atos, isto é, a sua suposição (mesmo de um modo indeterminadamente geral e exemplar) como realidades psicoló­ gicas, como estados de quaisquer “seres anímicos” desta ou de uma qualquer natureza. A1 capacidade rpara um tal nodo de pesquisa1 não é fácil de adquirir e não é, por exemplo, ou substituível ou obtenível por qualquer adestramento na experimentação rpsicológica1,4748950por mais rica que esta possa ser. Por maiores que sejam as dificuldades que se atravessam no caminho de uma Fenomenologia pura, em geral, e, especialmente, de uma Fenomenologia das vivências lógicas, elas não são, de modo nenhum, de um tipo tal que tor­ nassem desesperadas as tentativas para a sua superação. O trabalho coletivo e decidido <17> de uma geração de pesquisadores, conscientes do seu obje­ tivo e entregues à magna tarefa, levaria a uma completa solução (atrevo-me a afirmá-lo) as questões rmais importantes150 deste domínio r, que são relativas à sua constituição fundamental1. Eis aqui uma esfera de descobertas atingíveis e fundamentais para a rpossibilidade de uma Filosofia científica1.5152Certamente que se trata de descobertas a que falta o brilho ofuscante, a que falta a relação de utilidade, imediatamente perceptível, com a vida prática ou com o fomento de necessidades mais elevadas da alma, falta-lhes também o aparato imponente deste método experimental através do qual a Psicologia rexperimental152 ga­ nhou crédito e abundância de colaboradores. 47 A: rNecessitamos de expressões, para nós correntes, para o que é objetivo a fim de cons­ truir expressões perifrásticas, nas quais efetuamos alusões muito indiretas aos atos corres­ pondentes e suas diferenças descritivas1. 48 A: rpara se deslocar para este hábito contranatural da reflexão e da pesquisa reflexiva, e1. 49 A: rpsicofísica1. 50 A: rmais essenciais1. 51 A: teórica1. 52 A: rfisiológica florescente1.

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§ 4. Indispensabilidade de uma consideração do aspecto lógico das vivências A Fenomenologia analítica, de que o lógico necessita para os seus tra­ balhos de preparação e de fundamentação, diz respeito r, entre outras coisas e desde logo,1 às “representações” e, mais precisamente, às representações que são expressas. Nestas complexões, porém, o seu interesse primário vai para as vivências que estão na função da rintenção de significação153 ou na do preenchi­ mento de significação, as quais se apensam às “simples” expressões. No entanto, não se pode descurar, também, o lado linguístico-sensível da complexão (aquilo que nela constitui a “simples” expressão) e o modo do seu entrelaçamento com ro ato de significar, que a anima1,54 É bem sabido quão facilmente a análise das significações costuma deixar-se guiar pela análise gramatical, de um modo completamente inadvertido. Certamente que, dada a dificuldade da análise di­ reta das significações, será bem-vindo todo e qualquer meio, mesmo que im­ perfeito, de antecipar indiretamente ros seus resultados1;55 mas mais ainda que, por causa desta ajuda positiva, a análise gramatical torna-se importante pelos enganos que traz consigo quando se substitui <18> à análise propriamente dita das significações. A reflexão grosseira sobre os pensamentos e a sua expressão linguística, de que somos capazes sem adestramento particular, e de que temos frequentemente necessidade para finalidades práticas de pensamento, basta para que fiquemos atentos a uma espécie de paralelismo entre pensar e falar. Todos nós sabemos que as palavras significam qualquer coisa e que, para falar em termos gerais, diferentes palavras dão o seu cunho a diferentes significações. Se pudéssemos olhar esta correspondência como perfeita e como a priori dada, e, sobretudo, também, como uma correspondência tal que proporcionaria, para as categorias de significação essenciais, a sua contraparte perfeita nas categorias gramaticais, então uma fenomenologia das formas linguísticas conteria em si, ao mesmo tempo, uma fenomenologia das vivências de significação (das vi­ vências do pensamento, do juízo e semelhantes),56 a análise das significações coincidiria1-, por assim dizer,1 com a análise gramatical. Não são necessárias reflexões aprofundadas para verificar que um parale­ lismo que satisfaça estas pretensões de largo alcance rnão é, de modo algum, exi­ gido por qualquer fundamento essencial, nem mesmo faticamente157 acontece, e que, por conseguinte, a análise gramatical já não pode manejar apenas uma sim­ ples distinção entre expressões enquanto aparições sensíveis externas; ela está,

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A: rsignificação1. A: ra significação, que o anima1. A: ras suas vivências1. Em A segue-se: r, tanto quanto elas são ainda portadoras da significação1. A: rna verdade não1.

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antes, determinada, rde modo principal,158por rter em vista159 as diferenças das significações. Mas estas diferenças de significações gramaticalmente relevantes são ora essenciais, ora contingentes, segundo as finalidades práticas do discurso imponham formas de expressão próprias para diferenças de significações essen­ ciais ou contingentes (que apenas surgem com frequência na conversação). Como é bem sabido, não são apenas as diferenças de significação que condicionam a diferenciação das expressões. Recordo, aqui, apenas a diferença nos matizes de sentido, assim como as tendências estéticas do discurso, às quais repugna a uniformidade árida e a discordância sonora ou rítmica, <19> e que, por isso, exigem uma profusão de expressões sinônimas disponíveis. Dado que, em consequência do fato de que as distinções verbais e as do pensamento andam, grosso modo, a par umas das outras, e também sobretudo as formas verbais e as formas de pensamento, existe uma tendência natural para procurar uma diferença lógica sob toda e qualquer diferença gramaticalmente cunhada, seria, então, um importante assunto lógico levar à clareza analítica a relação da expressão com a significação e, no rretorno do significar vago até o

cação pode fornecer-nos, aqui, a posição intermédia segura e emprestar toda a distinção exigível à relação entre análise lógica e análise gramatical.

correspondente significar articulado, claro, saturado da plenitude das intuições exemplificadoras e que, por esta via, se preenche,160 reconhecer o meio pelo qual deve ser decidida, em cada caso dado, a questão de saber se uma distinção deve valer como lógica ou como meramente gramatical. Não é suficiente o conhecimento genérico, fácil de obter a partir de exem­ plos apropriados, da distinção entre diferenciações gramaticais e lógicas. Este conhecimento genérico de que as distinções gramaticais não andam sempre de mãos dadas com as distinções lógicas; por outras palavras, que as línguas cunham em formas terminantes aquelas distinções materiais das significações que têm uma vasta utilidade comunicativa, de modo semelhante a como o fa­ zem com as diferenças lógicas (a saber, as diferenças que se fundam na essên­ cia a priori das significações) - este conhecimento geral pode mesmo aplanar o terreno para um pernicioso radicalismo, que limita excessivamente a esfera das formas lógicas, que rejeita, como meramente gramatical, uma profusão de distinções logicamente significativas, e que apenas retém um pequeno punhado delas, que basta à justa para deixar ainda um qualquer conteúdo à silogística tradicional. É bem sabido que Brentano, apesar de uma tentativa, de outra ma­ neira muito significativa, de reforma da Lógica formal, caiu neste excesso. Só uma completa clarificação das rrelações fenomenológicas de essência161 entre expressão, significaçãor, intenção de significação1 e preenchimento de signifi58 59 60 61

A: A: A: A:

rnuma parte importante e completamente indispensável,1. rconstantemente em vista1. retorno da significação até a intuição preenchente,\ rrelações puramente fenomenológicas1.

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<20> § 5. Indicação das metas capitais das investigações analíticas subsequentes Seremos, com isto, remetidos para uma série de imvestigações analíticas dirigidas para a clarificação das ideias constitutivas para uma Lógica pura ou formal e, desde logo, das que dizem respeito à doutrina puramente lógica das formas,162 a qual, partindo da vinculação empírica das vivências de significa­ ção às “expressões”, procura estabelecer aquilo que o discurso, a múltiplos títu­ los equívoco, acerca das “expressões” ou do ^‘significar”163 visa propriamente; quais são as distinções essenciais, sejam elas fenomenológicas ou lógicas, que pertencem ra priori164 às expressões; como, além disso - para privilegiar, de início, o aspecto fenomenológico das expressões -, devem ser descritas ras vi­ vências, segundo a sua essência,165 em que gêneros rpuros1 deverão elas ser in­ seridas que, ra priori1,6263456678sejam capazes desta função do significar; como os atos de “representar” e de “julgar”, neles consumados, se comportam com a corres­ pondente “intuição”, como, com isso, estes atos rse “ilustram intuitivamente” e, eventualmente,1 são “reforçados”, “preenchidos” e encontram, assim, a sua “evi­ dência”, e coisas semelhantes. É fácil de perceber que as investigações que a isto dizem respeito devem preceder todas aquelas que são relativas à clarificação dos rconceitos fundamentais, das categorias lógicas1 67 À série destas investigações introdutórias pertence também a pergunta fundamental acerca dos atos, cor­ respondentemente, das significações ideais, que entram em consideração para a Lógica sob o título de representação. A rdarificação e separação168 dos múltiplos conceitos que a palavra representação cobriu, que confundem completamente os campos da Psicologia, da Teoria do Conhecimento e da Lógica, é uma tarefa importante. Análises semelhantes dizem também respeito ao conceito d e juízo, e certamente do juízo no sentido que vem a propósito para a Lógica. <21> Ê isso que tem em vista a chamada “Teoria do Juízo”, a qual, porém, de acordo com a sua parte capital ou com as suas dificuldades maiores, é uma “teoria da repre­ sentação”. Naturalmente, não se trata, com isto, de elaborar uma teoria psicoló62 A: trabalhos analíticos prévios tendo em vista tornar possível uma Lógica formal e, desde logo, tornar possível uma doutrina pura lógica das formas,1. 63 Em A faltam as aspas. 64 A: rem geral1. 65 A: rvivências psíquicas1. 66 A: rem geral1. 67 A: rconceitos lógicos fundamentais, das categorias1. 68 A: ranálise1.

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Introdução

gica, mas antes uma fenomenologia das vivências representativas e judicativas, circunscrita a partir de interesses gnosiológicos. Tal como o rteor próprio de essência169 das vivências expressivas, tam­ bém o seu rteor intencional1, 7 0 o sentido ideal da sua intenção objetiva, isto é, a unidade da significação e a unidade do objeto, exigirá uma investigação mais detalhada. Antes de tudo, porém, exige investigação mais detalhada a correlação dos dois aspectos, o modo, à partida enigmático, como a mesma vivência tem um conteúdo num duplo sentido, como, nela, ao lado do seu conteúdo próprio, rreal71172, pode e deve residir um conteúdo ideal, intencional. Nesta direção está também apontada a pergunta pela “objetividade”, cor­ relativamente, pela “ausência de objeto” dos atos lógicos, a pergunta pelo sentido da distinção entre objetos intencionais e verdadeiros, a clarificação da ideia de verdade na sua relação com a rideia da"1evidência judicativa e, do mesmo modo, a clarificação das restantes categorias lógicas re noéticas1, que estão intimamen­ te conectadas. Em parte, estas investigações são idênticas às que são relativas à constituição das formas lógicas, na medida, naturalmente, em que a pergunta sobre a assunção ou a rejeição de uma rpretensa1 forma lógica (a dúvida sobre se ela se distingue lógica ou apenas gramaticalmente das formas já bem conhecidas) seja resolvida com a clarificação dos conceitos categoriais, doadores de forma. Com isto, caracterizamos, de algum modo, o círculo de problemas rque foram o nosso guia nas investigações subsequentes1P De resto, elas de modo nenhum levantam a pretensão à completude. Não um sistema de Lógica, mas antes trabalhos prévios rpara uma Lógica filosófica, esclarecida a partir das fon­ tes primitivas da Fenomenologia, <22> é o que elas pretendem174 oferecer. E, naturalmente, os caminhos de uma investigação analítica são também diferen­ tes dos de uma apresentação conclusiva de uma verdade perfeitamente alcança­ da num sistema logicamente ordenado.

efetivamente exigido para que as ideias lógicas sejam clarificadas e levadas diretarnente à evidência. Ê que esta esfera não está dada desde o início, mas delimita-se, por vez primeira, no decurso da investigação.75 Sobretudo76 coage-nos a alargar a esfera de investigação o isolamento dos muitos e imprecisos conceitos que, na compreensão dos termos lógicos, correm obscuramente uns para os outros, bem como a descoberta dos que, entre eles, serão verdadeiramente termos lógicos. 2 oAditamento. A fundação fenomenológica da Lógica luta também com a dificuldade de utilizar, na sua exposição, quase todos os conceitos a cuja cla­ rificação almeja. Está ligada a isso uma certa lacuna, que não pode ser pura e simplesmente colmatada, a respeito da sequência sistemática das rinvestigações fundamentais fenomenológicas (e, ao mesmo tempo, gnosiológicas)1,77 Se o pensamento é, para nós, aquilo que deve ser clarificado em primeiríssimo lugar, então o uso acrítico dos conceitosr, ou dos termos178 em questão na própria ex­ posição clarificadora, é algo de inadmissível. Ora, antes de mais nada, não seria de esperar que a análise crítica dos conceitos em causa só se tornasse necessária a partir do momento em que a conexão substantiva das matérias lógicas tivesse conduzido a estes conceitos. Por outras palavras: considerada em e por si, a clarificação sistemática da Lógica pura, tal como a de outras disciplinas, exigiria que se seguisse passo a passo a ordem das coisas, a conexão sistemática da ciên­ cia que se pretende clarificar. No nosso caso, porém, a própria segurança da in­ vestigação exige que seja constantemente rompida esta ordem sistemática; que se ponham de parte as obscuridades conceituais, que fariam perigar a marcha da investigação, antes mesmo que a sequência natural das coisas nos conduza a estes conceitos. A investigação move-se, por assim dizer, em ziguezague; e esta <23> imagem é tanto mais adequada quando, em virtude da íntima dependência dos diferentes conceitos do conhecimento, temos de retornar sempre de novo às análises originais e comprová-las nas novas, tanto como as novas nelas.179 i~3° Aditamento. Se se compreendeu o nosso sentido de Fenomenologia, então não se poderá mais fazer a objeção seguinte, que teria, no entanto, a sua plena justificação contra a interpretação comum da Fenomenologia como Psico­ logia descritiva (no sentido naturalista de ciência da experiência): que a Teoria do Conhecimento no seu todo, enquanto clarificação sistemática, fenomenológica, do conhecimento, se edifica sobre a Psicologia. Que, portanto, também a Lógica pura, a saber, a que foi gnosiologicamente clarificada e que designamos como

§ 6. Aditamentos rI oAditamento. Inevitavelmente, as investigações referidas levam, sob mui­ tos aspectos, para lá da esfera estritamente fenomenológica, esfera cujo estudo é

69 70 71 72 73 74

A: Teor fenomenológico, portanto, puramente descritivo1. A: robjetivo\ N.T.: Reell. A: ratuah. A: ra que se referem as investigações subsequentes1 A: rpara o esclarecimento gnosiológico e para uma futura edificação da Lógica é o que eu quero aqui1.

14

75 76 77 78 79

Em A segue-se: rMuitas coisas parecem ter, à primeira vista, uma grande importância gnosiológica, que a análise posterior revela como sendo gnosiologicamente insignificante1. Em A segue-se: r, porém,1. A: investigações prévias gnosiológicas1. A: rou, antes, dos termos1. Em A os dois últimos parágrafos não estão em letras menores.

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uma disciplina filosófica, repouse, por fim, sobre a Psicologia, mesmo que seja sobre o mero estrato de base desta última, ou seja, a investigação descritiva das vivências intencionais. Para que, então, a luta tão zelosa contra o Psicologismo? Naturalmente, respondemos: se a palavra Psicologia conserva o seu sen­ tido antigo, então a Fenomenologia não é, precisamente, Psicologia descritiva, a descrição “pura” que lhe é peculiar - isto é, a visão da essência, consumada com base em intuições singulares e exemplares de vivências (mesmo que elas sejam fingidas na livre fantasia), bem como a fixação descritiva, em conceitos puros, da essência vista - não é nenhuma descrição empírica (científico-natural), mas exclui, ao contrário, a consumação naturalista de todas as apercepções e posi­ ções empíricas. Verificações descritivamente psicológicas sobre percepções, ju­ ízos, sentimentos, volições etc. dirigem-se ao que se designa como estados reais de seres animais da efetividade natural, de um modo completamente similar a como as verificações sobre estados físicos dizem respeito, obviamente, a acon­ tecimentos naturais e são feitos acerca dos acontecimentos da natureza efetiva e não de uma fingida. Toda e qualquer proposição geral tem, aqui, o caráter da ge­ neralidade empírica - válida para a Natureza. A Fenomenologia, porém, não fala de nenhum estado de seres animais (nem mesmo dos de uma Natureza possível em geral), ela fala de percepções, juízos, sentimentos etc., enquanto tais, acerca do que lhes pertence a priori, numa generalidade incondicionada, precisamente como singularidades puras dos tipos puros, do que se pode ver exclusivamente com base na captação puramente intuitiva da “essência” (gêneros e espécies de essência): de um modo inteiramente análogo ao modo como a Aritmética fala de números, a Geometria, de figuras espaciais, com base na intuição pura numa generalidade ideativa. Portanto, não a Psicologia, mas, sim, a Fenomenologia é o fundamento do esclarecimento puramente lógico (como de tudo o que tem que ver com a crítica da razão). Mas ela é, ao mesmo tempo, numa função total­ mente diferente, o fundamento necessário de toda e qualquer Psicologia - que se queira denominar, com pleno direito, como ciência estrita -, analogamente ao modo como a Matemática pura, por exemplo, a doutrina pura do espaço e do movimento, é o fundamento necessário de toda e qualquer ciência exata da natureza (doutrina natural acerca das coisas empíricas, com as suas formas em­ píricas, movimentos etc.). Visões de essência sobre percepções, <24> volições, e todo tipo de formas de vivência, valem, naturalmente, também para os estados empíricos correspondentes dos seres animais, do mesmo modo que as visões intelectivas geométricas valem para as formas espaciais da Natureza."180 80 A (sem letras menores): r3g Aditamento. A Fenomenologia é Psicologia descritiva. Por con­ seguinte, a Crítica do Conhecimento é, no essencial, Psicologia ou, pelo menos, algo que só no campo da Psicologia se pode edificar. Portanto, a Lógica pura repousa também sobre a Psicologia - para que, então, toda a luta contra o Psicologismo?

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§ 7 . O princípio da ausência de pressupostos nas investigações gnosiológicas

Uma investigação gnosiológica, que tenha uma séria pretensão à cientificidade, deve, como já frequentemente o sublinhamos, satisfazer o princípio da ausência de pressupostos. Em nossa opinião, porém, o princípio não pode querer dizer mais do que a Tigorosa1 exclusão de todas as rasserçõesl81 que não possam ser completa e totalmente realizadas fenomenologicamente. <25> Toda e qualquer investigação gnosiológica deve realizar-se a partir de fundamentos puramente fenomenológicos. A “teoria”, que nela se almeja, não é outra coisa senão a tomada de consciência e a compreensão evidente acerca do que o pensar e o conhecer, em geral, são, ra saber, segundo as suas essências puras genéricas; quais são as especificações e as formas a que estão vinculados por essência; que estruturas imanentes pertencem à sua relação com a objetividade; o que querem dizer, a respeito de tais estruturas, por exemplo, as ideias de vali­ dade, de justificação, de evidência imediata e mediata, e suas contrapartes; que particularizações assumem tais ideias, em paralelo com as possíveis regiões das objetividades de conhecimento; como as “leis de pensamento” formais e mate­ riais se esclarecem, em conformidade com o seu sentido e a sua operatividade, pela relação apriorística com as conexões estruturais de essências da consciência

Obviamente, manteremos contra esta objeção, em que nenhum leitor atento dos Prolego­ mena cairá, o que já indicamos no § 12: A necessidade de uma tal fundação psicológica da Lógica pura, a saber, de uma estritamen­ te descritiva, não nos pode perturbar quanto à recíproca independência das duas ciências, a Lógica e a Psicologia. Porque descrição pura é a simples etapa prévia para a teoria, não, porém, a própria teoria. Assim, uma e a mesma esfera de descrição pura pode servir para a preparação de ciências teoréticas bastante diferentes. Não é a Psicologia, enquanto ciência completa, que é um fundamento da Lógica pura, mas antes certas classes de descrições, que, constituindo a etapa prévia para as pesquisas teóricas da Psicologia (a saber, na me­ dida ela descreve os objetos empíricos cuja coesão genética esta ciência quer perseguir), constituem, ao mesmo tempo, a base para aquelas abstrações fundamentais nas quais o lógico capta com evidência a essência dos seus objetos e conexões ideais. Dado que, gnosiologicamente, tem um muito peculiar significado isolar a pesquisa pura­ mente descritiva das vivências de conhecimento - que é indiferente a todos os interesses de uma teoria psicológica - da pesquisa que é propriamente psicológica, que tem em mira a explicação empírica e a gênese, faremos bem se, em vez de Psicologia descritiva, falar­ mos antes de Fenomenologia. Isto se recomenda também por uma outra razão, porque a expressão Psicologia descritiva designa, no modo de falar de muitos investigadores, a esfera de investigação da Psicologia científica, circunscrita por meio do privilégio metódico da experiência interna e pela abstração de toda e qualquer explicação psicofísica.18 1 81 A: assunções1.

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Introdução

cognitiva e t c ,82 Se desta tomada de consciência do sentido do conhecimento não deve resultar qualquer opinião, mas antes um saber evidente, como é aqui rigorosamente requerido, então ela deve realizar-ser, enquanto pura intuição de essência,“1 sobre a base ^exemplar1 de vivências de conhecimento e de pen­ samento dadas. Que os atos de pensamento, segundo as ocasiões, se dirijam para objetos transcendentes ou então para objetos não existentes e impossíveis é coisa que não nos interessa aqui. Porque esta direção objetiva, o representar e o visar de um objeto rque não pode ser encontrado realmente8384no acervo fenomenológico da vivência“184 é r, como o devemos bem observar,1 um traço descritivo característico na vivência respectiva e, assim, o sentido de um tal vi­ sar deve poder ser estabelecido e esclarecido puramente com base na própria vivência; nem seria, de resto, possível proceder de outro modo. < 2 6 > 85 Separada da Teoria do Conhecimento rpura"1 está a questão acerca do direito com que admitimos realidades “psíquicas” e “físicas” rtranscendentes à consciência"!r, a questão de saber se as asserções do cientista natural, que se lhes referem, devem ser entendidas em sentido efetivo ou impróprio, se tem sentido e se há o direito de contrapor à Natureza aparecente, à Natureza enquanto correlato da ciência da natureza, ainda uma segunda, um mundo transcendente num sentido potenciado, e outras coisas semelhantes“1. A questão acerca da existência e da nature­ za do “mundo externo” é uma questão metafísica. A Teoria do Conhecimento, como esclarecimento geral sobre a essência ideal re"> sobre o sentido válido do pensamento cognoscente, abarca certamente a pergunta geral sobre se e em que medida é possível um saber ou um supor racional de objetos rcoisais “reais86”1

qUe rsejam principialmente transcendentes às vivências que os conhecem, e a que normas se deve conformar o sentido verdadeiro de um tal saber“»; mas ela não abarca a pergunta rorientada empiricamente“1 sobre se nós, Tomens,1 com base nos dados que nos são faticamente fornecidos, podemos efetivamente adquirir um tal saber, ou mesmo se temos a tarefa de realizar esse saber. De acordo com a nossa concepção, a Teoria do Conhecimento, propriamente falando, não é uma teoria.87 Ela não é uma ciência no sentido pleno de uma unidade de explicação teorética. Explicar, no sentido da teoria, é a conceitualização do singular a partir de leis gerais, e estas, de novo, a partir da lei fundamental. No domínio dos fatos, tra­ ta-se, com isso, do conhecimento de que aquilo que acontece sob uma colocação circunstancial de circunstâncias, acontece necessariamente, ou seja, segundo <27> leis da natureza. No domínio do apriorístico, trata-se, de novo, do captar concei­ tuai da necessidade das relações específicas de grau inferior a partir das necessi­ dades gerais que as abarcam e, derradeiramente, a partir das leis relacionais mais primitivas e mais gerais, a que chamamos axiomas. A Teoria do Conhecimento não tem, porém, nada a explicar, neste sentido teórico, ela não edifica quaisquer teorias dedutivas. rVemo-lo já suficientemente bem na Teoria do Conhecimento generalíssima, formal, por assim dizer, que nós encontramos nas exposições dos Prolegomena,188 que, enquanto complemento filosófico da Mathesis pura, entendi­ da no sentido mais lato que seja pensável, encadeia todo e qualquer conhecimento categorial apriorístico sob a forma de teorias sistemáticas. Com esta teoria das teorias, a Teoria do Conhecimento rformal1 que a elucida está antes de toda e qualquer teoria empírica: portanto, antes rde toda e qualquer ciência explicativa real, antes da ciência da natureza física, de um lado, e da Psicologia, de outro, e, naturalmente, também antes de toda e qualquer Metafísica1.89 Ela não quer expli­ car o conhecimento, o racontecimento f ático na natureza objetiva1,90 no sentido psicológico ou psicofísico, mas antes explicar a ideia de conhecimento segundo os seus elementos constitutivos ou as suas leis; ela não quer perseguir as conexões reais de coexistência e de sucessão em que os atos Táticos1 de conhecimento estão inseridos, mas antes compreender o sentido ideal das conexões específicas em que a objetividade do conhecimento se documenta; ela quer levar à clareza e distinção as formas e leis puras do conhecimento, por meio do retorno à intuição adequada­ mente preenchente. Esta elucidação rrealiza-se no quadro de uma fenomenologia do conhecimento, de uma Fenomenologia que, como o vemos, está dirigida para as estruturas essenciais das vivências “puras” e para os elementos de sentido que

82 A: rem que consiste propriamente a pretensão legítima à objetividade, quais são as formas essenciais que pertencem à ideia do conhecimento e, sobretudo, à ideia de conhecimento a priori, em que sentido as leis "formais", que se fundamentam nestas formas são leis de pensamento e em que sentido elas circunscrevem a possibilidade ideal do conhecimento teórico e do conhecimento em geral1. 83 U J.: Reeil. 84 A: rfenomenologicamente não realizado1. 85 Só o início deste parágrafo até "... a tarefa de realizar esse saber" corresponde em A: Separada rcompletamente1 da Teoria do Conhecimento está a questão acerca do direito com que ad­ mitimos realidades "psíquicas" e "físicas" rdiferentes do nosso próprio eu1ro que é a essência dessa realidade e a que leis está subordinada, se a ela pertencem os átomos e as moléculas do físico, e coisas semelhantes1. A questão acerca da existência e da natureza do "mundo externo" é uma questão metafísica. A Teoria do Conhecimento, rao contrário,1 como esclare­ cimento geral sobre a essência ideal row sobre o sentido válido do pensamento cognoscente, abarca certamente a pergunta geral sobre se e em que medida é possível um saber ou um supor racional de objetos que rnão são eles próprios dados na vivência de pensamento e que não são também conhecidos no sentido pleno do termo1; mas ela não abarca a pergunta particular1 sobre se nós, com base nos dados que nos são faticamente fornecidos, podemos efetiva mente adquirir um tal saber, ou mesmo se temos a tarefa de realizar este saber. 86 N.T.: Real.

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87 Em A segue-se: rE ela não contém nenhuma teoria1. 88 A: rDe acordo com as exposições dos Prolegomena, ela não é outra senão aquela1. 89 A : r, sobretudo, de toda e qualquer metafísica; mais além, também antes de toda e qualquer ci­ ência explicativa real, antes da Ciência da natureza, de um lado, e da Psicologia, do outro lado1. 90 A: acontecimento temporal1.

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lhes pertencem. Ela não contém, nas suas verificações científicas, desde o início e em todos os passos subsequentes, a menor afirmação sobre o ser real;91 portanto, nenhuma afirmação metafísica, <28> nenhuma afirmação científico-natural e, es­ pecialmente, psicológica deve funcionar, nela, como premissa1,92 rObviamente, a “Teoria” fenomenológica do Conhecimento, em si pura, encontra de seguida a sua aplicação a todas as ciências naturalmente nascidas, “ingênuas”, no sentido não pejorativo do termo, que, por este caminho, se transmutam em ciências “filosóficas” Por outras palavras, elas transmutam-se em ci­ ências que, em todos os sentidos possíveis e exigíveis, oferecem conhecimentos elucidados e assegurados. No que diz respeito às ciências da realidade, aquilo a que se chama a sua utilização pela “filosofia da natureza” ou “metafísica” é ape­ nas uma outra expressão para este trabalho gnosiológico de elucidação.1 Essa ausência rcientífico-natural,193 psicológica de pressupostos, e ne­ nhuma outra, é o que as investigações subsequentes querem satisfazer. Obvia­ mente, ela não será comprometida por observações laterais ocasionais, que não têm influência sobre o conteúdo e o caráter das análises, ou mesmo pelas muitas declarações em que o autor se dirige ao seu público, público cuja existência rtanto quanto a sua própria - 1 não constitui, por isso, qualquer pressuposto para o conteúdo da investigação. Não ultrapassamos os limites que nos impusemos a nós próprios quando, por exemplo, partimos do fato das línguas e examinamos a significação meramente comunicativa de muitas das suas formas de expressão, e outras semelhantes. Convencer-nos-emos facilmente de que as análises relati­ vas a este tema rtêm sentido e valor gnosiológico independentemente de que194 haja efetivamente línguas e um comércio recíproco entre os homens, para o qual elas sirvam, tqu se, em geral, há qualquer coisa como homens e uma Natureza,1 ou se tudo isso consiste apenas em imaginação e numa possibilidade. As verdadeiras premissas dos resultados que se pretendem devem residir em proposições que satisfaçam a exigência de que aquilo que asserem permita uma justificação fenomenológica adequada? ,95 portanto, <29> preenchimento através da revidência no sentido mais rigoroso do termo1;96 mais ainda, que as proposições devam ser sempre tomadas apenas no sentido em que foram intui­ tivamente estabelecidas. 91 N.T.: Real. 92 A: rexige, como o vemos, numa medida não despicienda uma fenomenologia das vivências de conhecimento e das vivências de intuição e de pensamento em geral, uma Fenomenologia que tem em vista a análise simplesmente descritiva das vivências segundo a sua consistência real [reelt], e de modo nenhum, porém, a sua análise genética segundo as suas conexões causais.1. 93 A: Tísica e1. 94 A: rconservam sentido e valor gnosiológico1. 95 A: rjustificação fenomenológica, adequada quando possível1. 96 A: evidência1.

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EXPRESSÃO e C

a p ít u l o

sig n if ic a ç ã o

I

AS DISTINÇÕES ESSENCIAIS § 1. Um duplo sentido do termo signo Não raro, os termos expressão e signo são tratados como sinônimos. Não será, porém, inútil observar que, na linguagem comum, eles de modo algum coin­ cidem em tudo. Todo e qualquer signo é signo de qualquer coisa, mas nem todo signo tem uma “significação”, um “sentido” que seja “expresso” com o signo. Em muitos casos, não se pode sequer dizer que o signo “designa” aquilo de que é cha­

mado signo. E, mesmo onde este modo de falar é lícito, é preciso observar que o designar nem sempre pretende valer como esse “significar” que caracteriza a expressão. Nomeadamente, signos no sentido de índices (signos caracterizadores, signos distintivos e outros do gênero) não expressam, a não ser que, ao lado da função de indicar, preencham ainda uma função de significação. Se desde logo nos limitarmos, como costumamos fazer quando falamos espontaneamente de ex­ pressões, às expressões tal como funcionam na conversação viva, então o conceito de indicação aparecerá aqui, em comparação com o conceito de expressão, como o conceito mais lato segundo a extensão. Mas de modo algum será ele, por causa dis­ so, o gênero em relação ao conteúdo. O significar não é uma espécie do ser-signo no sentido do indicar. <31> A sua extensão é mais estreita apenas porque o significar - no discurso comunicativo - está sempre entrelaçado com o ser-índice, e este, por sua vez, fundamenta um conceito mais lato, porque pode aparecer precisamente sem um tal entrelaçamento. As expressões, porém, desempenham a sua função significativa também na vida solitária da alma, onde elas não mais funcionam como índices. Na verdade, os dois conceitos de signo não estão, portanto, de modo algum, na relação entre um conceito mais lato e um conceito mais estreito. Todavia, são aqui necessárias explicações mais pormenorizadas.

§ 2. A essência da indicação Dos dois conceitos ligados à palavra signo, consideremos primeiro o de índice. À relação aqui reinante denominamos indicação. Neste sentido, o estigma

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Cap. I • As Distinções Essenciais

é o signo do escravo, a bandeira, o signo da nação. A isto pertencem, em geral, todas as “marcas distintivas”, no sentido original da palavra, enquanto proprieda­ des “características”, destinadas a tornar conhecidos os objetos a que se ligam. O conceito de índice estende-se, porém, para além do conceito de marca distintiva. Chamamos aos canais de Marte signos da existência de habitantes inteligentes em Marte, aos ossos fósseis, signos da existência de animais antediluvianos etc. Também pertencem a este conceito os signos mnemónicos, como o muito usado nó no lenço, os monumentos e coisas semelhantes. Se coisas e processos apropriados para tanto, ou determinações suas, são produzidos com o propósito de funcionarem como índices, chamam-se, então, signos, indiferen­ temente de exercerem ou não precisamente a sua função. Apenas a respeito dos signos formados arbitrariamente e com um propósito indicativo se fala também de designação; e, certamente, por um lado, tendo em vista a ação que cria os signos distintivos (a marcação a fogo do estigma, o traçar a giz), e, por outro lado, no sentido da própria indicação, por conseguinte, tendo em vista o objeto a indicar, ou seja, o objeto designado. Essas distinções e outras semelhantes não suprimem a unidade essen­ cial respeitante ao conceito de índice. Em sentido próprio, algo só pode ser de­ nominado índice quando e no caso de servir efetivamente como indicação de uma coisa qualquer para um ser pensante. <32> Se quisermos, por conseguinte, captar o que é por todo lado comum, deveremos, então, regressar aos casos em que esta função se exerce de um modo vivo. Neles encontramos, então, como elemento comum, a circunstância de quaisquer objetos ou estados-de-coisas, de cuja existência alguém tem um conhecimento atual, lhe indicarem a existên­ cia de certos outros objetos ou estados-de-coisas, no sentido de que a convicção acerca do ser de um é por ele rvivida11 como motivo (e certamente como um motivo não intelectivo) para a convicção ou a suposição acerca do ser de outros. A motivação produz, entre os atos judicativos em que, para o ser pensante, se constituem os estados-de-coisas indicador e indicado, uma unidade descritiva rque não deve ser apreendida como, digamos, uma “qualidade de forma” fun­ dada nos atos judicativos^2 - nela reside a essência da indicação. Dito mais claramente: a própria unidade de motivação dos atos judicativos tem o caráter de uma unidade judicativa e, com isso, ela tem, na sua integridade, um correla­ to objetual aparecente, um estado-de-coisas unitário que nela parece estar, que nela é visado. E, manifestamente, este estado-de-coisas não quer dizer outra coi­ sa senão que, precisamente, certas coisas poderiam ou deveriam existir, porque tais outras coisas são dadas. Este “porque”, apreendido como expressão de uma

conexão coisal, é o correlato objetivo da motivação, enquanto forma descritiva­ mente peculiar do entrelaçamento de atos judicativos num ato judicativo.

1 2

A: [sentida1. A: r; se se quiser: uma "qualidade de forma" fundada nos atos judicativos1.

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§ 3. Remissão e demonstração Com isso, a situação fenomenológica está, porém, descrita tão generi­ camente que compreende, juntamente com o remeter da indicação, também o demonstrar da autêntica dedução e fundamentação. Todavia, os dois conceitos devem certamente ser separados. Já aludimos acima à diferença por meio da acentuação do caráter não intelectivo da indicação. De fato, nos casos em que concluímos intelectivamente <33> ra existência"!3 de um estado-de-coisas a partir da de outros estados-de-coisas, não denominamos os últimos como ín­ dices ou signos dos primeiros. Inversamente, fala-se de uma demonstração, no sentido próprio da Lógica, apenas nos casos da dedução com intelecção, ou da dedução possivelmente intelectiva. Certamente que muito do que damos como demonstração, no caso mais simples, como conclusão, não está acompanhado de intelecção e é mesmo falso. Mas, ao dá-lo como demonstração, levantamos a pretensão de que a consequência possa ser percebida. Com isto está conectado o seguinte: ao concluir e demonstrar subjetivos correspondem, objetivamente, a conclusão e a demonstração, correspondentemente, a relação objetiva entre princípio e consequência. Estas unidades ideais não são as vivências judicativas em questão, mas antes os seus “conteúdos” ideais, as proposições. As premissas demonstram a conclusão, seja quem for que julgue essas premissas, a conclusão e a unidade de ambas. Nisto se manifesta uma legalidade ideal que ultrapassa os juízos que estão ligados hic et nunc por meio da motivação e que, numa ge­ neralidade supraempírica, reúne enquanto tais todos os juízos com o mesmo conteúdo ou, mais ainda, todos os juízos com a mesma “forma”. Subjetivamente, tomamos consciência desta legalidade precisamente na fundamentação intelectiva, e tomamos consciência da própria lei por meio da reflexão ideativa que incide sobre os conteúdos dos juízos - unitariamente vividos na conexão de motivação atual (na conclusão e na demonstração atuais) -, por conseguinte, por meio da reflexão que incide sobre as proposições respectivas. De nada disto se fala no caso da indicação. A intelectividade e, falando ob­ jetivamente, o conhecimento de uma conexão ideal dos juízos em questão estão aqui terminantemente excluídos. Quando dizemos que o estado-de-coisas A é um índice do estado-de-coisas B, que o ser de um indica que o outro seja, po­ demos então, na expectativa, estar completamente certos de encontrar também

3

A: ra validade12 .

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Cap. I • As Distinções Essenciais

realmente este último estado-de-coisa; mas, falando deste modo, não queremos dizer que exista uma relação inteligível, uma conexão objetivamente necessária entre A e B; os conteúdos judicativos não estão para nós, aqui, na relação das premissas com a conclusão. Pode suceder, sem dúvida, que falemos, ainda as­ sim, de índices nos casos em que uma conexão de fundamentação (e certamente uma mediata) exista objetivamente. <34> Para quem faz um cálculo (digamo-lo, por exemplo), a circunstância de que uma equação algébrica é de grau ímpar serve de índice de que ela tem pelo menos uma raiz real. Vendo mais de perto, porém, referimo-nos, com isso, apenas à possibilidade de que a verificação do caráter ímpar do grau da equação sirva àquele que calcula - sem que ele produza atualmente o encadeamento de pensamentos intelectualmente demonstrativos como motivo imediato, não intelectivo, para a assunção, para os fins do cálculo, da propriedade legalmente correspondente da equação. Em tais casos, quando certos estados-de-coisas servem realmente como índices para outros que, em si mesmos considerados, deles se seguem, eles não o fazem, rna consciência pen­ sante"1, como fundamentos lógicos, mas, sim, por força da '"conexão'14 que a de­ monstração anteriormente presente ou a aprendizagem crédula estabeleceram entre as convicções, enquanto vivências psíquicas ou disposições. Naturalmente, nada disto é alterado pelo saber - que acompanha eventualmente, mas que é sim­ plesmente habitual - a respeito da existência objetiva de uma conexão racional. De acordo com isto, se a indicação (correspondentemente, a conexão motivacional em que esta conexão aparece enquanto relação objetivamente dada) não tem qualquer relação essencial com o nexo necessário, pode, sem dúvida, ser questionado se ela não deverá reivindicar uma relação essencial com o nexo de probabilidade. Quando uma coisa remete para outra, quando a convicção acerca do ser de uma motiva empiricamente (portanto, de modo contingente, não ne­ cessário) aquela convicção acerca do ser da outra, não deve, então, conter a con­ vicção motivadora um fundamento de probabilidade para a convicção motivada? Não é aqui o lugar para examinarmos mais de perto esta questão, que se impõe por si mesma. Seja apenas observado que uma decisão afirmativa será segura­ mente válida, se for exato que também as motivações empíricas deste tipo estão subordinadas a uma jurisdição ideal, a qual permite falar de motivos legítimos e ilegítimos; por conseguinte, a uma jurisdição que permite falar, do ponto de vista objetivo, de índices reais (válidos, isto é, fundamentando a probabilidade <35> e, eventualmente, a certeza rempírica^5) em oposição aos aparentes (inválidos, isto é, não dando nenhum fundamento de probabilidade). Que se pense, por exem­ plo, na controvérsia quanto a saber se os fenômenos vulcânicos serão ou não índices reais de que o interior da Terra se encontra num estado ígneo e fluido, ou

semelhantes. Uma coisa é certa, a saber, que falar de índices não pressupõe uma relação determinada com considerações de probabilidade. Em regra, estão na sua base não simples suposições, mas, sim, juízos firmemente decididos; é por isso que a jurisdição ideal, a que reconhecemos aqui um campo próprio, deverá exi­ gir, desde logo, a modesta redução das convicções certas a simples suposições. Observo ainda que, em minha opinião, é incontornável falar-se de mo­ tivação no sentido geral, que abarca simultaneamente a fundamentação e a alusão empírica. Pois, de fato, há aqui uma comunidade fenomenológica com­ pletamente inegável, que é suficientemente visível para se manifestar mesmo na linguagem corrente: fala-se, em geral, de conclusão e inferência, não apenas no sentido lógico, mas também no sentido empírico da indicação. Esta comu­ nidade estende-se manifestamente ainda mais além, ela abarca o domínio dos fenômenos do ânimo e, especialmente, dos fenômenos volitivos, único domínio em que se fala originariamente de motivos. Também aqui o porquê desempenha o seu papel; o porquê que, verbalmente, se estende em geral tanto quanto a ideia de motivação no sentido mais genérico do termo. Não posso, pois, reconhecer como legítima a crítica de Meinong a respeito da terminologia brentaniana, que adaptei aqui.6* Concordo, porém, inteiramente com ele em que, na percepção da motivação, não se trata de nada menos que rpercepçãcf7 da causação.

4 5

A: xonexão empírico-psicológica1 A: Tísica1.

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§ 4. Excurso sobre a origem da indicação a partir da associação Os fatos psíquicos em que o conceito de índice tem a sua r“origeirC ,8isto é, nos quais ele pode ser captado abstrativamente, pertencem ao grupo mais lato de fatos que devem ser compreendidos sob o título histórico de “associação de ideias”. Pois, sob <36> este título está contido não apenas aquilo que as leis de associação exprimem, os fatos da “socialização das ideias” por meio da reevocação, mas tam­ bém os demais fatos em que a associação se mostra criadora, porquanto produz, nomeadamente, caracteres e formas de unidade peculiares do ponto de vista des­ critivo.9A associação não reinvoca apenas os conteúdos na consciência e deixa que eles se conectem com os conteúdos dados, tal como o prescreve legalmente a es6 7 8 9

N.A.: A. v. Meinong, Gótt. Gel. Anz., 1892, p. 446. "Aditamento e Melhoramento" a A: rpercepção interna (= evidente, adequada)1. A: r"origem psicológica"1. N.A.: Naturalmente, o discurso personificado a propósito da associação, que diz que ela cria qualquer coisa, e outras expressões semelhantes, que nós mais adiante usamos, não são inadmissíveis apenas porque são expressões de comodidade. Por mais importante que seja uma descrição científica precisa, mas também, porém, muito complicada, dos fatos pertinentes, o discurso figurado nunca é dispensável com vistas a uma compreensão mais fácil e nas direções em que a exatidão última não é exigível.

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sência de uns e de outros (a sua determinidade genérica). Ela não pode certamen­ te impedir estas unidades, que se fundam puramente nos conteúdos, por exemplo, a unidade dos conteúdos visuais no campo de visão, e semelhantes. Todavia, ela cria, para além disso, novos caracteres fenomenológicos e unidades, que, precisa­ mente, não têm o seu fundamento legal necessário nem nos próprios conteúdos vividos nem nos gêneros dos seus momentos abstratos.10123Quando A invoca B na consciência, não estão ambos apenas simultânea ou sucessivamente conscientes, mas costuma se impor por si mesma uma conexão perceptível, pela qual um reme­ te para o outro, este se apresenta como pertencente àquele. A partir de a simples coexistência formar a compertença - ou, para expressá-lo mais precisamente, for­ mar, a partir dela, unidades intencionais que apareçam como compertencentes -, tal é a rprestação111 contínua da função associativa. Toda e qualquer unidade de experiência, enquanto unidade empírica da coisa, do processo, da ordem e relação coisais, é unidade fenomênica por meio da compertença perceptível das partes e lados da objetividade aparecente, que se destacam unitariamente. Uma coisa remete para outra, na aparição, segundo uma ordem e ligação determinadas. E o próprio singular, neste remeter para diante e para trás, não é apenas o simples conteúdo vivido, mas antes o <37> objeto aparecente (ou a sua parte, a sua nota distintiva, e semelhantes), o qual apenas aparece porquanto a experiência confere aos conteúdos um novo caráter TenomenológicoV2 na medida em que eles não valem mais por si, mas tornam antes representável um objeto diferente deles. Ora, ao domínio destes fatos pertence também o da indicação, pelo qual um objeto correspondentemente, um estado-de-coisas - não apenas relembra um outro e para ele aponta desse modo, mas no qual também, ao mesmo tempo, um presta testemunho do outro, incita à assunção de que o outro igualmente existe, e isto de maneira imediatamente perceptível, segundo o modo descrito.

domínio de validade exclui muitas coisas que são designadas como expressão na linguagem comum. Deste modo, é sempre preciso fazer violência à língua, quando se trata de fixar terminologicamente conceitos para os quais dispomos somente de termos equívocos. Para que nos entendamos provisoriamente, esta­ beleçamos que cada discurso ou cada parte de um discurso, assim como todo e qualquer signo essencialmente do mesmo tipo, é uma expressão, não devendo importar se o discurso é ou não efetivamente dito, portanto, se ele é ou não di­ rigido a uma pessoa qualquer com um propósito comunicativo. Em oposição a isto, excluímos o jogo fisionômico e os gestos, com os quais acompanhamos in­ voluntariamente as nossas palavras sem propósito comunicativo, ou nos quais, mesmo sem o concurso da palavra, o estado de alma de uma pessoa é levado a uma “expressão” compreensível para o seu entorno. Tais exteriorizações não são nenhuma expressão no sentido do discurso, elas não são, como tais expressões, na consciência daquele que se exterioriza, fenomenalmente unas com as vivên­ cias exteriorizadas; nelas, ninguém comunica nada a ninguém, falta-lhes, com essa sua exteriorização, a intenção de declarar qualquer “pensamento” de um modo expresso, seja para outrem, seja <38> também para si mesmo, icontando que-113 esteja só consigo próprio. Em suma, “expressões” deste tipo não têm propriamente nenhuma significação. Nada se altera nesta situação com o fato de um outro interpretar as nossas exteriorizações involuntárias (por exemplo, os “movimentos expressivos”) e de, por meio delas, conseguir aprender muitas coi­ sas acerca dos nossos pensamentos e movimentos anímicos íntimos. Elas “sig­ nificam” algo para outrem, porquanto este precisamente as interpreta; também para outrem, porém, não têm elas quaisquer significações no sentido pleno dos signos linguísticos, mas apenas no sentido dos índices. Nas considerações que se vão seguir, essas distinções serão levadas a uma completa clareza conceituai.

§ 5. Expressões enquanto signos significativos. Exclusão de um sentido não perti­ nente de ‘expressão” Dos signos indicativos, distinguimos os significativos, as expressões. As­ sim sendo, tomamos o termo expressão certamente num sentido restrito, cujo

10 N.A.: Falo acima de conteúdos vividos, não, porém, de objetos ou processos aparecentes, visados. Tudo de que se constitui realmente [reell] a consciência individual "vivenciante" é conteúdo vivido. O que ela percebe, recorda, representa, e coisas semelhantes, é objeto (intencional) visado. [Em A segue-se: rsó excepcionalmente ambos coincidem.1] Trata-se disso mais detidamente na Investigação V. 11 A: rrealização psicológica1. 12 A: 'psíquico1.

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§ 6. A questão acerca das distinções fenomenológicas e intencionais que pertencem às expressões enquanto tais Por referência a toda e qualquer expressão, é costume distinguir duas coisas: 1. A expressão segundo o seu lado físico (o signo sensível, o complexo fônico articulado, o signo escrito no papel e coisas semelhantes). 2. Um certo montante de vivências psíquicas que, conectado associati­ vamente à expressão, faz dela, por essa via, expressão de qualquer coisa. Na maioria das vezes, estas vivências psíquicas são designadas como sentido ou sig­

13 A: ronde1.

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nificação da expressão, e certamente na intenção de ir ao encontro do que estes termos significam na linguagem comum. Veremos, porém, que esta concepção é incorreta e que, sobretudo para fins lógicos, não basta a simples distinção en­ tre os signos físicos e as vivências que conferem o sentido. Particularmente no que diz respeito aos nomes, tudo o que é aqui per­ tinente foi desde há muito observado. Distinguiu-se, para cada nome, entre o que ele “manifesta” (isto é, tais vivências psíquicas) e aquilo que ele significa. E, de novo, entre o que ele significa (o sentido, o “conteúdo” da representação nominal) e o que ele nomeia (o objeto da representação). Deveremos encontrar necessariamente distinções semelhantes para todas as expressões e explorar cir­ cunstanciadamente a sua essência. A estas se deve <39> que também separemos os conceitos de '"“expressão”114 e de '"“indicé”1,1415 separação com a qual não entra em conflito o fato de as expressões também funcionarem como índices no dis­ curso vivo, como explicaremos já em seguida. A isto vir-se-ão juntar, mais tarde, ainda outras importantes distinções, as quais dizem respeito às relações possíveis entre a significação e a intuição que a ilustra e, eventualmente, a torna evidente. Apenas tendo em conta estas relações é possível levar a termo uma clara deli­ mitação do conceito de significação e, por via de consequência, a contraposição fundamental da função simbólica das significações à sua função cognitiva.

discurso, entre as correspondentes vivências físicas e psíquicas das pessoas em comércio recíproco. Falar e ouvir, manifestação de vivências psíquicas no falar e recepção da manifestação das mesmas no ouvir são correlativos. <40> Quando olhamos sinoticamente essa conexão, reconhecemos, des­ de logo, que todas as expressões funcionam como índices no discurso comunicativo. Elas servem, para aquele que ouve, como signos para os “pensamentos” daquele que fala, isto é, para as vivências psíquicas que conferem a significação, assim como para as outras vivências psíquicas que pertencem à intenção de comunicação. A esta função dos signos linguísticos chamamos a função de ma­ nifestação. As vivências psíquicas manifestadas formam o conteúdo da manifes­ tação. O predicado “manifestado” pode ser tomado num sentido estrito e num sentido lato. No sentido estrito, restringimo-nos aos atos doadores de sentido, enquanto o lato pode abarcar todos os atos daquele que fala e que lhe são atribuí­ dos pelo ouvinte com base no seu discurso (e, eventualmente, porque o discurso os afirma). Por exemplo, quando declaramos algo acerca de um desejo, o juízo acerca do desejo é manifestado em sentido estrito, o próprio desejo, manifes­ tado em sentido lato. O mesmo se passa no caso de uma declaração perceptiva corrente, que será apreendida sem mais, pelo ouvinte, como pertencente a uma percepção atual. O ato perceptivo é, com isso, manifestado em sentido lato, o juízo que sobre ele se edifica será manifestado em sentido estrito. Notamos, desde logo, que o modo habitual de falar autoriza que designemos também as vivências manifestadas como expressas. A compreensão da manifestação não é um saber conceituai da manifes­ tação, não é um juízo do tipo assertivo; mas consiste simplesmente em que o ouvinte apreende (apercebe) intuitivamente o falante como uma pessoa que ex­ pressa isto e aquilo, ou, como o poderíamos dizer diretamente, que ele o percebe como pessoa. Quando ouço alguém, percebo-o precisamente como falante, ou­ ço-o narrar, demonstrar, duvidar, desejar etc. O ouvinte percebe a manifestação no mesmo sentido em que percebe a própria pessoa que se manifesta, se bem que, contudo, os fenômenos psíquicos que a transformam em uma pessoa não podem, tal como são, cair sob a intuição de um outro. A linguagem usual atribui-nos também uma percepção das vivências psíquicas de pessoas estranhas: “vemos” a sua cólera, a sua dor etc. Esta linguagem é perfeitamente <41 > correta porquanto, por exemplo, se admitem as coisas exteriores corpóreas como perce­ bidas e, falando em termos gerais, o conceito de percepção não seja restrito ao de percepção adequada, à intuição no sentido mais estrito. Se o caráter essencial da percepção consiste na presunção intuitiva de captar uma coisa ou um proces­ so como presentes eles próprios - e um tal presumir é possível, e mesmo dado na esmagadora maioria dos casos, sem qualquer apreensão conceituai expressa então a recepção da manifestação é uma simples percepção da manifestação. A distinção essencial, que acabamos precisamente de mencionar aqui, existe

§ 7. As expressões na função comunicativa Para que possamos pôr em relevo as distinções logicamente essenciais, consideremos desde logo a expressão na sua função comunicativa, para o pre­ enchimento da qual ela é originariamente chamada. O complexo sonoro ar­ ticulado (correspondentemente, o signo escrito efetivamente grafado, e coisas semelhantes) só se torna palavra dita, discurso comunicado em geral, porque aquele que fala o produz com o propósito de, por essa via, “se exprimir acerca de qualquer coisa”, em outras palavras, porque, em certos atos psíquicos, ele lhe confere um sentido que quer comunicar ao ouvinte. Esta comunicação, porém, só se torna, então, possível porque aquele que ouve compreende também a in­ tenção daquele que fala. E fá-lo na medida em que apreende aquele que fala como uma pessoa que não produz apenas sons, mas antes lhe fala, que, por conseguinte, ao mesmo tempo consuma, com os sons, certos atos conferidores de sentido que lhe quer tornar manifestos ou cujo sentido lhe quer comunicar. Aquilo que unicamente torna possível o comércio espiritual, e faz do discurso vinculante um discurso, reside nesta correlação, mediatizada pelo lado físico do 14 15

Em A faltam as aspas. Em A faltam as aspas.

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certamente. O ouvinte percebe que o falante exterioriza certas vivências psí­ quicas e, nessa medida, percebe também essas vivências; mas ele próprio não as vive, não tem delas nenhuma percepção “interna”, mas antes16 uma percepção “externa”. É a grande diferença entre captar efetivamente um ser na intuição adequada e o captar presuntivo de um ser com base numa representação intui­ tiva, porém, inadequada. No primeiro caso, é um ser vivido, no último, um ser suposto, a que nenhuma verdade corresponde. A compreensão recíproca exige, precisamente, uma certa correlação dos atos psíquicos, que se desdobram ao longo da manifestação e da recepção da manifestação, mas não exige, de modo algum, a sua completa igualdade.

como o que é visado por meio desse signo; a expressão parece, assim, dirigir o interesse de si própria para o sentido, apontar para este. Mas tal apontar não é o indicar, no sentido por nós discutido. A existência do signo não motiva a existência ou, mais precisamente, a nossa convicção acerca da existência da sig­ nificação. O que nos deve servir como índice (signo caracterizador) deve ser por nós percebido como existente. Isto acontece também para as expressões no dis­ curso comunicativo, não, porém, para as expressões no discurso solitário. Aqui, contentamo-nos, normalmente, com palavras representadas em vez de palavras reais. Na fantasia, paira diante de nós um signo verbal, falado ou escrito; em verdade, ele não existe de todo. Não confundiremos, pois, as representações da fantasia, ou mesmo os conteúdos da fantasia que lhes estão subjacentes, com os objetos fantasiados. Não é a palavra sonora fantasiada ou os caracteres impres­ sos fantasiados que existem, mas a sua representação da fantasia. A distinção é a mesma que a existente entre o Centauro fantasiado e a sua representação da fantasia. A não existência da palavra não nos perturba. Ela também não nos interessa, porém. Pois não importa para a função da expressão enquanto expres­ são. <43> Quando, porém, ela importa, ainda se liga, então, ao significar pre­ cisamente a função de manifestação: o pensamento não deve ser simplesmente expresso ao modo de uma significação, mas também comunicado por meio da manifestação; coisa que só é certamente possível no falar e no ouvir reais. Em certo sentido, fala-se também, na verdade, no discurso solitário, e é seguramente possível apreendermo-nos como falantes e, eventualmente, mes­ mo como falando com nós mesmos. Como, por exemplo, quando alguém diz a si próprio: “comportaste-te mal, não podes continuar a agir assim!” Mas, em tais casos, não se fala no sentido próprio, comunicativo, não nos comunicamos nada, apenas nos representamos enquanto falantes e comunicantes. No discurso monológico, as palavras não nos podem servir, portanto, na função de índices para a existência de atos psíquicos, porque esta indicação seria aqui totalmente inútil. Pois os atos em questão são por nós vividos no mesmo instante.

§ 8. As expressões na vida solitária da alma Até aqui, consideramos as expressões na função comunicativa. Esta fun­ ção repousa essencialmente no fato de as expressões atuarem como índices. Um importante papel está, contudo, também destinado às expressões na vida da alma fora do comércio comunicativo. É claro que a função alterada não toca naquilo que faz das expressões verdadeiras expressões. Elas têm, tanto antes como depois, as suas significações, e as mesmas significações que no diálogo. A palavra só cessa de ser palavra aí onde o nosso interesse exclusivo se dirige para o sensível, para a palavra enquanto simples <42> formação sonora. Quando, porém, vivemos na sua compreensão, ela exprime, e exprime o mesmo, seja ela dirigida a alguém ou não. Com isto, parece claro que a significação da expressão, e aquilo mais que, para além disso, lhe pertence essencialmente, não pode coincidir com a sua per­ formance manifestativa. Ou quiçá devamos dizer que, também na vida solitária da alma, manifestamos algo com a expressão, apenas não o fazendo para uma segunda pessoa que esteja diante de nós? Devemos dizer que aquele que fala solitariamente fala a si próprio, que também a ele as palavras servem de signos, nomeadamente, de índices das suas vivências psíquicas próprias? Não creio que uma tal concepção possa ser defendida. Certamente que as palavras funcionam como signos, aqui e por toda parte; e, sendo assim, sempre poderemos falar di­ retamente de um apontar. Quando refletimos sobre a relação entre expressão e significação e, para esse fim, desmembramos a vivência complexa e, ao mesmo tempo, intimamente unitária da expressão plena de sentido nos dois fatores da palavra e do sentido, então, aí, a própria palavra aparece-nos como em si mes­ ma indiferente, o sentido, porém, como o que é “tido em vista” com a palavra,

16

Em A segue-se: apenas1.

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§ 9. As distinções fenomenológicas entre aparição física da expressão, ato doador de sentido e ato preenchedor do sentido Se nos abstrairmos, agora, das vivências que pertencem especialmente à manifestação e se considerarmos as expressões do ponto de vista das distinções que lhes convêm, sem levarmos em consideração a questão de saber se funcionam no discurso solitário ou no diálogo, parece, então, restar ainda uma duplicidade: a própria expressão e aquilo que ela expressa como sua significação (como seu sentido). No entanto, múltiplas relações estão aqui entrelaçadas, e, em c°nsequência disso, é ambíguo falar daquilo que é expresso e de significação. 31

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Se nos pusermos17 no campo da descrição rpura"1,18 então o fenômeno concreto da expressão animada de sentido desmembra-se, por um lado, no fenômeno físi­ co, no qual se constitui a expressão segundo o seu lado físico, e, por outro lado, <44> nos atos que lhe dão a significação e, eventualmente, a plenitude intuitiva, e nos quais se constitui a referência a uma objetividade expressa. Por força destes últimos atos, a expressão é algo mais do que um simples som de palavra. Ela visa a qualquer coisa e, porque a visa, refere-se ao objetivo. Este elemento objetivo pode ou aparecer, por força de intuições acompanhantes, como atualmente pre­ sente, ou ser, pelo menos, presentificado (por exemplo, em imagens da fantasia). Onde isto acontece, a referência à objetividade é realizada. Ou então não é este o caso; a expressão funciona com sentido, ela é sempre algo mais que um som de palavra vazio, se bem que lhe falte a intuição fundante que lhe dá o objeto. Nesta medida, a referência da expressão ao objeto está, agora, não realizada, porquan­ to está encerrada na simples intenção de significação. O nome, por exemplo, nomeia em todas as circunstâncias o seu objeto, a saber, porquanto o visa. Com o simples visar, todavia, ele tem o que lhe basta quando o objeto não se encontra aí intuitivamente e, por conseguinte, também não se encontra aí como nomeado (isto é, como visado). Porquanto a intenção de significação, de início vazia, se preenche, realiza-se, então, a referência objetiva, o nomear, torna-se uma refe­ rência atualmente consciente entre nome e nomeado. Pondo de lado os atos sensíveis em que se consuma o aparecer da expres­ são enquanto som de uma palavra, se tomarmos por base esta diferença funda­ mental entre intenção de significação intuitivamente vazia e preenchida, então também será necessário distinguir dois tipos de atos ou de séries de atos: de um lado, aqueles que são essenciais para a expressão, porquanto ela queira ser ainda, em geral, uma expressão, isto é, um som de palavra animado de sentido. A estes atos chamamos atos que conferem a significação, ou também intenções de signifi­ cação. Por outro lado, os atos que são certamente extraessenciais para a expres­ são enquanto tal, mas que estão com ela na relação logicamente fundamental de que preenchem (confirmam, reforçam, ilustram) a sua intenção de significação com maior ou menor adequação e, com isso, precisamente atualizam a sua refe­ rência objetiva. A estes atos, que se fundem, na unidade de conhecimento ou de preenchimento, com os atos que conferem a significação, chamamos-lhes atos que preenchem a significação. Poderemos utilizar a expressão mais curta preen­ chimento de significação apenas quando está excluída a confusão, que está apenas a um passo, com a vivência completa, na qual uma <45> intenção de significação encontra o preenchimento no ato rcorrelativo"1.19 Na referência realizada da ex­

pressão à sua objetividade,20 une-se a expressão animada de sentido com os atos que preenchem a significação. O som de uma palavra unifica-se, desde logo, com a intenção de significação, e essa, por sua vez, se une (do mesmo modo como o fazem, em geral, as intenções com os seus preenchimentos) com o correspon­ dente preenchimento de significação. Sob o título expressão pura e simples, com­ preendemos, pois, normalmente, a não ser que se fale de “simples” expressão, a expressão animada de sentido. Por conseguinte, não se deverá dizer propria­ mente (se bem que isso aconteça frequentemente) que a expressão expressa a sua significação (a intenção). Mais apropriada é, aqui, a outra maneira de falar da ex­ pressão, maneira esta segundo a qual o ato que preenche aparece como aquilo que é expresso por meio da expressão completa; como quando, por exemplo, se diz de uma asserção que ela dá expressão a uma percepção ou a uma imaginação. Não precisa ser observado que tanto os atos que conferem a significação como os atos que preenchem a significação podem pertencer conjuntamente à manifestação, no caso de um discurso comunicativo. Os primeiros formam mes­ mo o núcleo essencial da manifestação. Torná-los diretamente conhecidos ao ouvinte deve ser, acima de tudo, o interesse da intenção comunicativa; apenas na medida em que o ouvinte os atribui ao falante é que ele o pode compreender.

Os atos acima distinguidos - da aparição da expressão, de um lado, e da intenção de significação e, eventualmente, também do preenchimento da signi­ ficação, do outro - não formam na consciência um simples conjunto, como se fossem simplesmente dados em simultâneo. Eles formam, antes, uma unidade intimamente fundida, com um caráter peculiar. Bem conhecida de cada um, a partir da sua experiência interna, é a não equivalência dos dois componentes re­ cíprocos, na qual se espelha a não equilateralidade da relação entre a expressão e o <46> objeto expresso (nomeado) pela significação. Vividos são ambos: re­ presentação da palavra e ato doador de sentido. No entanto, enquanto vivemos a representação do nome, não vivemos, contudo, de modo algum, no representar da palavra, mas antes, exclusivamente, na consumação do seu sentido, da sua significação. E porquanto o fazemos, porquanto nos absorvemos na consuma­ ção da intenção de significação e, eventualmente, no seu preenchimento, o nosso interesse pertence por inteiro ao objeto nela intencionado e por ela nomeado (visto mais de perto, uma coisa e outra querem dizer o mesmo). A função da

17 Em A segue-se: r, para começar,1. 18 A: 'psicológica1. 19 A: correlato1.

20 N.A.: Escolho frequentemente a expressão indeterminada "objetividade" porque nem sempre se trata, aqui, simplesmente de objeto no sentido estrito, mas antes também de estados-decoisas, notas distintivas, de formas reais ou categoria is dependentes e coisas semelhantes.

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§ 10. A unidade fenomenológica destes atos

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palavra (ou melhor, da representação intuitiva da palavra) é suscitar diretamen­ te em nós o ato que confere a significação e apontar para o que é “nele” inten­ cionado, talvez mesmo dado, por meio da intuição preenchedora, impelindo ao mesmo tempo o nosso interesse exclusivamente nesta direção. Esse apontar não pode ser descrito como o simples fato objetivo do desvio regulado do interesse de um para o outro. A circunstância de que um par de obje­ tos de representação AB estão, por força de uma coordenação psicológica oculta, numa relação tal que, com a representação de A, a de B seja regularmente desper­ tada e que, com isso, o interesse seja conduzido de A para B - esta circunstância não faz ainda de A uma expressão para a representação de B. O ser-expressão é, antes, um momento descritivo na unidade vivida entre o signo e o designado.21 No que diz respeito à diferença descritiva entre a aparição física do signo e a intenção de significação, que a cunha como uma expressão, ela sobressai do modo mais claro quando dirigimos, primeiro, o nosso interesse para o signo por si próprio, digamos, para a palavra impressa enquanto tal. Se o fazemos, temos, então, uma percepção externa (correspondentemente, uma representação ex­ terna intuitiva) como qualquer outra, e o seu objeto perde o caráter de palavra. Se ele funciona outra vez como palavra, então o caráter da sua representação fica totalmente alterado. A palavra (como indivíduo externo) está, decerto, ain­ da intuitivamente presente, ela ainda aparece; mas não é para ela que olhamos; em sentido próprio, ela <47> não é mais, agora, o objeto da nossa “atividade psíquica”. O nosso interesse, a nossa intenção, o nosso presumir - todas estas expressões sinônimas, se tomadas com a conveniente amplitude - vão exclusi­ vamente para a coisa que é visada no ato doador de sentido. Dito de um modo puramente fenomenológico, isto não quer dizer outra coisa senão: a representa­ ção intuitiva, na qual se constitui a aparição física da palavra, sofre uma modifi­ cação fenomenal essencial quando o seu objeto toma o valor de uma expressão. Enquanto permanece inalterado nela o que forma a aparição do objeto, altera-se o caráter intencional da vivência. Assim se constitui, sem que tenha de entrar em cena uma qualquer intuição preenchedora ou ilustradora, um ato de signi­ ficar, ato que encontra um apoio no teor intuitivo da representação da palavra, mas que é essencialmente diferente da intenção intuitiva dirigida para a própria palavra. Com este ato, então, estão com frequência fundidos, de um modo pe­ culiar, aqueles novos atos ou complexos de atos a que chamamos atos preenchedores, e cujo objeto aparece como aquele que é significado na significação, ou, correspondentemente, que é nomeado por meio da significação. No próximo capítulo, deveremos proceder a uma investigação comple­ mentar, tendo em vista saber se a “intenção de significação”, que, segundo a

nossa apresentação, constitui o característico da expressão em oposição ao som de palavra vazio, consiste na simples ligação ao som de uma palavra de imagens da fantasia do objeto intentado, numa palavra, se a intenção de significação se constitui com base numa tal ação da fantasia, ou se as imagens que acompa­ nham a fantasia pertencem antes ao componente extraessencial da expressão e já, propriamente, à função do preenchimento, mesmo que o preenchimento possa ter o simples caráter de algo parcial, indireto, provisório. No interesse de uma maior coesão do nosso caminho principal de pensamento, abstemo-nos, aqui, de uma entrada mais profunda nas questões fenomenológicas, do mesmo modo que, em toda esta investigação em geral, entramos no fenomenológico apenas até o ponto em que esta entrada se fez necessária para a fixação das pri­ meiras distinções essenciais. A partir das descrições provisórias que até aqui oferecemos, pode-se ver já que são precisas não menores prolixidades quando se quer descrever corre­ tamente a situação fenomenológica. De fato, elas aparecem como inevitáveis na medida em que <48> tornamos claro para nós mesmos que todos os objetos e relações objetivas apenas são para nós aquilo que são por meio dos atos de visar, deles essencialmente distintos, nos quais eles se tornam representáveis, nos quais eles se nos contrapõem precisamente como unidades visadas. Para o modo de consideração rpuramente fenomenológico“! ,22 nada há senão tecituras de tais atos intencionais. Quando predomina não o interesse fenomenológico, mas o interesse ingenuamente objetivo, quando vivemos nos atos intencionais, em vez de sobre eles refletirmos, então todo o discurso se torna naturalmente simples, sem rodeios. No nosso caso, fala-se, então, simplesmente de expressão e exprimido, de nome e nomeado, do desviar da atenção de um para o outro etc. Quando, porém, é o interesse fenomenológico que dá o padrão, laboramos, então, na dificuldade23 de ter de descrever relações fenomenológicas que são, sem dúvida, vividas inúmeras vezes, mas que, normalmente, não estão objeti­ vamente conscientes, e de ter de descrevê-las por meio de expressões que estão modeladas sobre a esfera do interesse normal, das objetividades aparecentes.

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22 A: rpsicológico-descritivo (puramente fenomenológico)1. 23 Em A, segue-se: r(discutida na Introdução)1.

Em A, segue-se: rmais precisamente, entre aparição do signo animado de sentido e ato que preenche o sentido1.

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§ 11. As distinções ideais: de início, entre expressão e significação enquanto uni­ dades ideais Consideramos, até aqui, a expressão plenamente compreensível enquan­ to vivência concreta. Em vez destes dois fatores respectivos - a aparição da ex­ pressão e as vivências que conferem e que, correspondentemente, preenchem

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a significação queremos considerar, agora, aquilo que está desse modo dado “neles”: a própria expressão, o seu sentido e a objetividade correspondente. Vol­ tamo-nos, por conseguinte, da relação real entre os atos para a relação ideal entre os seus objetos ou conteúdos. A consideração subjetiva cede o seu lugar à objetiva. A idealidade da relação entre expressão e significação mostra-se ime­ diatamente, em referência a ambos os membros, pelo fato de que, ao perguntar­ mos pela significação de uma qualquer expressão (por exemplo, resto quadráti­ co), não visarmos, compreensivelmente, sob o título de expressão, a esta forma­ ção sonora exteriorizada hic et nunc, o som fugidio <49> que jamais retorna de um modo idêntico. Visamos à expressão in specie. A expressão resto quadrático é identicamente a mesma, seja quem for que a possa expressar. E o mesmo é válido, de novo, quando falamos da significação, a qual, compreensivelmente, também não visa à vivência que confere a significação. Todo e qualquer exemplo mostra que, de fato, se deve fazer aqui uma distinção essencial. Quando assiro (no discurso veritativo, que sempre pressupomos aqui): as três alturas de um triângulo cruzam-se num ponto, está naturalmente na base desta asserção que eu assim o julgo. Quem ouve a minha asserção e a compreen­ de sabe-o também, isto é, apercebe-me como aquele que assim julga. É, porém, o meu julgar, que eu aqui manifestei, também a significação da frase declarativa; é isso que a asserção quer dizer e que leva, nesse sentido, à expressão? Eviden­ temente, não. A questão acerca do sentido e da significação da asserção não será, naturalmente, compreendida por ninguém de tal modo que lhe ocorresse recorrer ao juízo enquanto vivência psíquica. A esta questão qualquer um res­ ponderá antes: o que esta asserção assere é o mesmo, seja quem for que a possa enunciar afirmativamente e sejam quais forem as circunstâncias e os tempos em que o faça; e este mesmo é precisamente isto, que as três alturas de um triângulo se cruzam num ponto - nada mais nem nada menos. No essencial, repetimos, por conseguinte, ££a mesma” asserção, e repetimo-la porque ela é precisamente a forma de expressão única e especificamente apropriada para este idêntico que se chama a sua significação. Nesta significação idêntica, a qual, enquanto idêntica, podemos sempre trazer à consciência evidente na repetição da asserção, não se pode descobrir absolutamente nada acerca de um julgar e de alguém que jul­ gue. Acreditávamos estar seguros da validade objetiva de um estado-de-coisas e dávamos-lhe expressão enquanto tal na forma da frase declarativa. O próprio estado-de-coisas é o que é, quer afirmemos a sua validade, quer não. Ele é uma unidade de validade em si. Mas esta validade apareceu-nos, e, tal como nos apareceu objetivamente, apresentamo-la nós. Dissemos: é assim. Compreensi­ velmente, não teríamos feito isto, não teríamos podido asserir, se essa validade não nos tivesse aparecido assim; em outras palavras, se não tivéssemos julgado. Isto está, por conseguinte, <50> implicado na asserção enquanto fato psicológi­

co isto pertence à manifestação. Mas também apenas e só à manifestação. Pois, enquanto ela consiste em vivências psíquicas, aquilo que é asserido na asserção não é absolutamente nada de subjetivo. O meu ato de julgar é uma vivência fugi­ dia, que aparece e desaparece. O que a asserção assere, este conteúdo: que as três alturas de um triângulo se cruzam num ponto, não é, porém, algo que apareça e desapareça. Todas as vezes que eu, ou seja quem for, exteriorize esta mesma asserção com igual sentido, haverá, em cada uma dessas vezes, um novo julgar. Os atos de julgar são diferentes de caso para caso. O que eles julgam, porém, o que a asserção quer dizer, isso é por toda parte o mesmo. É algo idêntico, no sentido estrito da palavra, uma e a mesma verdade geométrica. O mesmo se passa com todas as asserções, mesmo que aquilo que dizem possa ser falso ou completamente absurdo. Também nestes casos distinguimos, das vivências fugidias do tomar-por-verdadeiro e do asserir, o seu conteúdo ideal, a significação da asserção enquanto unidade na multiplicidade. Nos atos evidentes da reflexão, reconhecemo-la, a cada vez, como o idêntico da intenção; não a colocamos arbitrariamente nas asserções, mas a encontramos nelas. Se falta a “possibilidade” ou a ££verdade”, então a intenção da asserção será realizar “apenas simbolicamente”; a partir da intuição, e das funções categoriais que precisam ser exercidas sobre a sua base, não poderá ela retirar a plenitude, que constitui o seu valor de conhecimento. Falta-lhe com isso, como se costuma dizer, a significação “verdadeira”, “autêntica”. Mais tarde, investigaremos mais pormenorizadamente esta diferença entre significação intencionada e preen­ chida. Caracterizar os diferentes atos, nos quais se constituem estas unidades ideias, que se pertencem mutuamente, e clarificar a essência do seu “recobrimento” atual no conhecimento exige investigações difíceis e de largo alcance. Seguro è, porém, que cada asserção, quer esteja numa função de conhecimento, quer não (ou seja, quer ela preencha e, em geral, possa preencher a sua intenção em intuições correspondentes e nos atos categoriais que as formam), tem a sua intenção, e que a significação se constitui nesta intenção renquanto o seu caráter específico e unitário"1. <51> Temos também em vista esta unidade ideal quando designamos “o” juízo como sendo a significação “da” frase declarativa - com a única diferença de que o equívoco fundamental desta palavra, “juízo”, imediatamente nos costuma levar a confundir a unidade ideal intelectualmente captada com o ato real de julgar, por conseguinte, o que a asserção quer dizer com aquilo que a asserção manifesta. O que apresentamos aqui para as asserções completas transpõe-se facil­ mente para as partes de asserções, reais ou possíveis. Quando julgo: se a soma dos ângulos de um triângulo qualquer não é igual a dois retos, então o axioma das paralelas também não é válido, o antecedente hipotético não é, então, por si mesmo, qualquer asserção; eu não afirmo que exista uma tal desigualdade. Não obstante, ele quer dizer também qualquer coisa, e aquilo que ele quer dizer é,

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decerto, de novo totalmente diferente daquilo que ele manifesta. O que ele quer dizer não é o meu ato psíquico da pressuposição hipotética, se bem que tenha tido, naturalmente, de consumá-lo para poder falar verdadeiramente, como de fato o faço; enquanto este ato subjetivo é manifestado, algo objetivo e ideal é antes levado à expressão, a saber, a hipótese, com o seu teor conceituai, que pode entrar em cena, em múltiplas vivências de pensamento possíveis, como a mesma unidade intencional que, na consideração ideal-objetiva, que caracteriza todo pensamento, se nos depara com evidência enquanto uma e a mesma. E o mesmo vale de novo para as partes restantes de asserções, mesmo para aquelas que não têm a forma de proposições.

expressão, distinguimos como aquilo que ela significa ou “quer dizer” e aquilo acerca de que ela diz qualquer coisa. A necessidade da distinção entre significação (conteúdo) e objeto tornase clara quando nos convencemos, pela comparação de exemplos, de que várias expressões podem ter a mesma significação, mas diferentes objetos, e, por sua vez, que elas podem ter significações diferentes, mas o mesmo objeto. Ao lado disto, existe, como é óbvio, a possibilidade de que elas difiram em ambas as dire­ ções, ou que concordem em ambas. A última possibilidade é o caso das expres­ sões tautológicas, por exemplo, das expressões de igual significação e nomeação, que correspondem umas às outras em diferentes línguas (London, Londres; dois, deux, duo etc.). <53> Os exemplos mais claros para a separação da significação e da re­ ferência objetiva são-nos oferecidos pelos nomes. No que diz respeito à refe­ rência objetiva, é corrente, acerca deles, falar-se de “nomeação”. Dois nomes podem significar coisas diferentes, mas nomear o mesmo. Assim, por exemplo: O vencedor de lena - O vencido de Waterloo; o triângulo equilátero - o triângulo equiângulo. A significação expressa é, em cada um desses pares, manifestamente diferente, se bem que, de um lado e do outro, seja visado o mesmo objeto. O mesmo se passa para os nomes que, por força da sua indeterminação, têm uma “extensão”. As expressões um triângulo equilátero e um triângulo equiângulo têm a mesma referência objetiva, a mesma extensão de possível aplicação. Inversamente, também pode acontecer de duas expressões significarem o mesmo, mas terem diferentes referências objetivas. A expressão um cavalo tem a mesma significação, seja qual for o contexto discursivo em que apareça. Quan­ do, porém, dizemos uma vez Bucéfalo é um cavalo e, uma outra vez, este sendeiro é um cavalo, então, na passagem de uma asserção para a outra, produziu-se ma­ nifestamente uma alteração na representação doadora de sentido. O “conteúdo”, a significação da expressão um cavalo, permaneceu decerto inalterado, mas a referência objetiva alterou-se. Por meio da mesma significação, a expressão um cavalo representa uma vez Bucéfalo e, na outra vez, o sendeiro. Assim acontece com todos os nomes universais, que têm uma extensão. Um é um nome que tem por toda parte uma significação idêntica, mas nem por causa disso se deve, num cálculo, pôr como idênticos os diferentes uns; todos eles significam o mesmo, mas diferem na sua referência objetiva. As coisas dão-se de maneira diversa no que concerne aos nomes pró­ prios, seja os de objetos individuais, seja os de objetos gerais. Uma palavra como Sócrates só pode nomear coisas diferentes se significar coisas diferentes; em ou­ tras palavras, se se tornar equívoca. Sempre que um nome se encontre com uma significação, ele também nomeia um objeto. Do mesmo modo para expressões como o dois, o vermelho etc. Distinguimos precisamente os nomes plurívocos (equívocos) dos nomes polivalentes (de larga extensão, universais).

§ 12. Continuação: a objetividade expressa Falar daquilo que uma expressão expressa tem já, segundo as considera­ ções feitas até aqui, várias significações essencialmente diferentes. De um lado, refere-se à manifestação em geral e, nela, especialmente ao ato doador de sentido; sobretudo, porém, também ao ato que preenche o sentido (porquanto tais atos estejam em geral disponíveis). Numa asserção, por exemplo, damos expressão ao nosso juízo (manifestamo-lo), mas também a percepções e outros atos que pre­ enchem o sentido, que ilustram a intenção da asserção. Do outro lado, a locução em questão refere-se aos <52> “conteúdos” destes atos, e, decerto, desde logo às significações, que frequentemente se designam como significações expressas. É duvidoso se as análises de exemplos do parágrafo anterior seriam su­ ficientes para uma compreensão, mesmo que apenas provisória, do conceito de significação, se não fosse imediatamente trazido à colação um novo sentido do ser-expresso. Os termos significação, conteúdo, estado-de-coisas, tanto como todos os termos aparentados, estão acometidos de equívocos tão poderosos que a nos­ sa intenção poderia sofrer más interpretações, apesar de todas as precauções no modo de expressão. O terceiro sentido do ser-expresso, que temos agora de exa­ minar, diz respeito à objetividade visada na significação e expressa por meio dela. Toda e qualquer expressão não quer apenas dizer qualquer coisa, mas também diz algo acerca de qualquer coisa; ela não tem apenas a sua significação, mas refere-se também a quaisquer objetos. Para uma só e única expressão, esta relação é múltipla, sob certas condições. Mas24*o objeto jamais coincide com a significação. Naturalmente, ambos pertencem à expressão apenas por força dos atos psíquicos que lhe dão a significação; e se, a respeito destas “representações”, se distingue “conteúdo” e “objeto”, então visamos ao mesmo que, a respeito da 24

Em A, segue-se: r(abstraindo-se de um caso totalmente excepcional e logicamente sem valor)1.

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<54> Algo semelhante é válido para outras formas de expressão, se bem que ofereça algumas dificuldades falar, a seu propósito, de referência objetiva, por força da sua diversidade. Se considerarmos, por exemplo, a frase declarativa da forma S é P, então, em regra, o objeto-sujeito é considerado como o objeto da asserção, por conseguinte, como aquele objeto “de” que se assere qualquer coisa. No entanto, também é possível uma outra concepção, que capte ra situ­ ação objetiva no seu conjunto, pertencente à asserção1,25 como um análogo do objeto nomeado no nome, e que a distinga da significação da frase declarativa. Se o fizermos, apelar-se-á, como exemplos, para pares de proposições do tipo: a é maior que b e b é menor que a. Ambas as proposições dizem, manifestamen­ te, coisas diferentes. Elas não são apenas gramaticalmente diferentes, mas são também diferentes “conceitualmente”, isto é, precisamente segundo o seu teor significativo. Elas exprimem, porém, ra mesma situação objetiva1;26 a mesma r“coisa”127 é predicativamente apreendida e asserida de dois modos. Que defi­ namos, agora, o termo “objeto da asserção” num ou noutro sentido (e cada um tem o seu direito próprio), permanecem sempre possíveis asserções significati­ vamente diferentes que se referem ao mesmo “objeto”.

na significação. A mesma intuição pode, porém (como o comprovaremos mais tarde), oferecer um preenchimento para diferentes expressões, nomeadamente, porquanto ela pode ser categorialmente captada de diferentes modos e sinteti­ camente conectada com outras intuições. As expressões e as suas intenções de significação adaptam-se, como o veremos, em conexões de pensamento e de co­ nhecimento, não simplesmente às intuições (refiro-me às aparições da sensibili­ dade externa e interna), mas também às diferentes formas intelectivas, por meio das quais os objetos simplesmente intuídos se tornam pela primeira vez objetos determinados e correlacionados segundo o entendimento. E, em conformidade com isto, as expressões, quando estão fora da função de conhecimento, aludem também, enquanto intenções simbólicas, às unidades categorialmente form a­ das. Assim, diferentes significações podem pertencer à mesma intuição (capta­ da de modo categorialmente diferente, porém), e, com isso, também ao mesmo objeto. Se, por outro lado, a uma significação corresponde um conjunto inteiro de objetos, então reside na essêiícia própria desta significação que ela seja inde­ terminada, isto é, que ela admita uma esfera de preenchimento possível. Essas indicações podem bastar provisoriamente; elas devem apenas evi­ tar, desde o início, o erro segundo o qual se teria de distinguir dois lados no ato doador de sentido, dos quais um daria à expressão a significação e o outro a determinação da referência objetiva.28

§ 13. Conexão entre significação e referência objetiva De acordo com estes exemplos, podemos considerar como segura a dis­ tinção entre a significação de uma expressão e a sua propriedade de se dirigir, nomeando, tanto para este como para aquele elemento objetivo (e, naturalmente, também a distinção entre a significação e o próprio objeto). É, de resto, claro que existe uma estreita conexão entre ambos os lados que devem ser distinguidos em cada expressão; a saber, que uma expressão só adquire referência objetiva pelo fato de que significa e de que, por conseguinte, com razão se diz que a expressão designa (nomeia) o objeto por meio da sua significação, correspondentemente, que o ato de significar é o modo determinado de visar ao objeto respectivo <55> - apenas que, precisamente, este modo do visar significativo e, com ele, a própria significação podem variar com idêntica fixação da direção objetiva. Uma clarificação fenomenológica mais aprofundada dessa relação só po­ deria ser realizada por meio da exploração da função cognitiva da expressão e das suas intenções significativas. Resultaria daí que a concepção de dois lados, que devem ser distinguidos em toda e qualquer expressão, não pode ser to­ mada seriamente, e que a essência da expressão reside, antes, exclusivamente

<56> § 14. O conteúdo enquanto objeto, enquanto sentido preenchedor e enquan­ to sentido ou significação pura e simples Os termos em relação - manifestação, significação e objeto - pertencem essencialmente a toda e qualquer expressão. Em cada uma, qualquer coisa é manifestada, qualquer coisa é significada e qualquer coisa é nomeada ou de algum modo designada. E, no discurso equívoco, tudo isto se diz “expresso”. Como o dissemos acima, é extra-essencial para a expressão a referência a uma objetividade atualmente dada, que preencha a sua intenção de significação. Se examinarmos este caso importante, ficaremos atentos para o fato de que, na referência realizada ao objeto, podem ser designadas ainda duas coisas como “expressas”: de um lado, o próprio objeto, e decerto como o de tal e tal modo visado. Por outro lado, e no sentido mais próprio, o seu correlato ideal no ato de preenchimento da significação que o constitui, a saber, o sentido preenche­ dor. Onde, nomeadamente, a intenção de significação se preenche com base na 28 N.A.: Cf. contra isto a assunção, por Twardowski, de uma "atividade de representação mo­ vendo-se numa dupla direção", no livro Zur Lehre vom Inhalt und Gegenstand der Vorstellun­ gen (Para a Doutrina do Conteúdo e do Objeto da Representação). Wien, 1894, p. 14.

25 A: ro inteiro estado-de-coisas asserido1. 26 A: ro mesmo estado-de-coisas1. 27 Em A faltam as aspas.

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intuição correspondente, em outras palavras, onde a expressão está referida ao objeto dado no nomear atual, aí o objeto constitui-se como “dado” em certos atos e, certamente, é-nos dado - porquanto a expressão se ajusta realmente ao que é intuitivamente dado - da mesma maneira em que a significação o visa. Nesta unidade de recobrimento entre significação e preenchimento da signi­ ficação, corresponde à significação, enquanto essência do significar, a essência rcorrelativa"!29 do preenchimento da significação, e é nesta última que consiste o sentido preenchedor e, como se pode também dizer, o sentido expresso por meio da expressão. É assim que, no caso da asserção perceptiva, por exemplo, se diz que ela dá expressão à percepção e também ao conteúdo da percepção. Tal como acontece com qualquer asserção, distinguimos, na asserção perceptiva, conteúdo e objeto, e distinguimo-los certamente de tal modo que, por conteúdo, se compreende a significação idêntica, que o ouvinte pode captar corretamente, mesmo que ele próprio não perceba. Ê precisamente a distinção correspondente que devemos realizar nos atos preenchedores, por conseguinte, na percepção e nas suas formações categoriais, atos por meio dos quais a objetividade visada segundo a significação <57> está intuitivamente diante de nós tal como é visada. Devemos, digo eu, distinguir de novo, nos atos preenchedores, entre o conteúdo - isto é, o significativo, por assim dizer, da percepção (categorialmente forma­ da) -, e o objeto percebido. Na unidade do preenchimento, este conteúdo pre­ enchedor “recobre-se” com o conteúdo intentante, de tal modo que, na vivência da unidade de recobrimento, o objeto ao mesmo tempo intencionado e “dado” está perante nós não duplamente, mas apenas como um. Tal como a captação ideal da essência intencional do ato que confere a sig­ nificação nos fornece a significação intentante enquanto ideia, assim a captação ideal da essência rcorrelativa">30 do ato que preenche a significação nos forne­ ce precisamente a significação preenchedora, igualmente enquanto ideia. É isto o conteúdo idêntico que, na percepção, pertence à globalidade das percepções possíveis, que visam de modo perceptivo ao mesmo objeto e que o fazem, de­ certo, como realmente o mesmo. Este conteúdo é, por conseguinte, o correlato ideal do objeto um, o qual, de resto, pode muito bem ser fictício. Os múltiplos equívocos que resultam de se falar daquilo que uma expres­ são expressa, ou de um conteúdo expresso, podem ordenar-se de tal modo que se distinga entre o conteúdo em sentido subjetivo31 e o conteúdo em sentido objetivo.32 Neste último aspecto, devem ser separados:

29 A: correlata1. 30 A: correlata1. 31 Em A segue-se: r(em sentido fenomenológico, descritivo-psicológico, empírico-real)1. 32 Em A segue.se: r(no lógico, intencional, ideal)1.

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cação

__ O conteúdo enquanto sentido intentante ou enquanto sentido, signifi­ pura e simples. _ O conteúdo enquanto sentido preenchedor. - O conteúdo enquanto objeto.

<58> § 15. Os equívocos conectados com estas distinções dos termos significação e ausência de significação Da aplicação dos termos “significação” e “sentido” não simplesmente ao conteúdo da intenção de significação (que é inseparável da expressão enquanto tal), mas também ao conteúdo do preenchimento da significação resulta, cer­ tamente, um equívoco assaz desagradável. Pois, como vem à tona já a partir das indicações preliminares que dedicamos ao fato do preenchimento, os atos recíprocos em que se constituem o sentido intentante e o sentido preenchente não são de modo algum os mesmos. O que impele diretamente à transposição dos mesmos termos da intenção para o preenchimento é a própria índole da unidade de preenchimento enquanto unidade de identificação ou de recobri­ mento: e assim é quase inevitável o equívoco, que tentamos tornar inócuo por meio de adjetivos que modificam os termos em questão. Compreensivelmente, continuaremos, porém, a entender por significação pura e simples aquela sig­ nificação que, enquanto elemento idêntico da intenção, é essencial à expressão enquanto tal. Significação vale, para nós, além disso, como sinônimo de sentido. Por um lado, é muito confortável ter em mãos termos paralelos precisamente para este conceito, entre os quais possamos alternar, sobretudo em investigações do tipo desta, na qual deve ser pesquisado justamente o sentido do termo significação. Mas há, contudo, uma outra coisa que deve ser levada em consideração, a saber, o hábito bem enraizado de utilizar ambas as palavras como sinônimas. Esta circunstância faz com que não seja inofensivo diferenciar as suas significações (como, por exemplo, o propôs Frege)33 e empregar uma para a significação no nosso sentido e a outra para o objeto expresso. Acrescentamos imediatamente que, não menos no uso científico da linguagem que no seu uso corrente, ambos os termos estão impregnados dos mesmos equívocos que distinguimos acima a respeito do termo “ser-expresso”, aos quais, além disso, ainda outros se vêm jun­ tar. De um modo assaz recuado para a clareza lógica, compreende-se, enquanto sentido ou significação da expressão em causa, não raro numa mesma cadeia de pensamento, ora os atos manifestados, <59> ora o sentido ideal, ora a objetivi33 N.A.: G. Frege, Über Sinn und Bedeutung (Sobre Sentido e Referência). Zeitschrift f. Philos. U. Philos. Kritik, 1005 volume, p. 25.

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dade expressa. Porque, aí onde uma separação terminológica firme se quebra, os próprios conceitos fluem confusamente uns para os outros. Há, em conexão com isto, confusões fundamentais. Por exemplo, sempre de novo são misturados os nomes universais e os nomes equívocos, porque não se soube separar, carecendo-se de conceitos fixos, a plurivocidade dos últimos e a polivalência dos primeiros, nomeadamente, a sua capacidade de estarem predi­ cativamente referidos a uma pluralidade de objetos. A isto se liga, de novo, a falta de clareza, que não raramente se manifesta, acerca da verdadeira essência da dis­ tinção entre nomes coletivos e nomes universais. Pois, nos casos em que signifi­ cações coletivas se preenchem, vem-nos uma pluralidade à intuição. Em outras palavras, o preenchimento articula-se numa pluralidade de intuições singulares, e, assim, pode de fato parecer, quando intenção e preenchimento não são, aqui, separados, que a expressão coletiva em questão tem múltiplas significações. E, porém, mais importante para nós separar com precisão os equívocos, marcados por consequências bem nocivas, de se falar de significação e sentido, correspondentemente, de expressões sem significação ou sem sentido. Se separa­ mos os conceitos misturados, resulta a série seguinte: 1. Pertence ao conceito de expressão que ela tenha uma significação. É precisamente isto que a distingue dos outros signos, como o expusemos acima. Para falar propriamente, uma expressão sem significação não é, por conseguinte, em geral, uma expressão; no melhor dos casos, ela é qualquer coisa que desperta a pretensão ou a aparência de ser uma expressão, se bem que isso, vendo mais de perto, não seja de modo algum o caso. Fazem parte disto formações sonoras articuladas que soam como uma palavra, tais como Abracadabra, mas também, por outro lado, complexos de palavras reais a que não corresponde nenhuma significação unitária, se bem que pareçam pretender ter uma pelo modo como se apresentam exteriormente, por exemplo, verde é ou. 2. Na significação, constitui-se a referência ao objeto. Por conseguinte, usarmos uma expressão com sentido e referirmo-nos, expressando-nos, ao obje­ to (representarmos o objeto) são um e o mesmo. Com isto, não é de modo algum importante saber se o objeto existe ou se é fictício, senão mesmo impossível. Se interpretamos, <60> porém, a proposição de que a expressão se refere a um obje­ to porque tem, em geral, uma significação, num sentido próprio, nomeadamente, no sentido de que implica a existência do objeto, então a expressão terá “signi­ ficação” quando existir um objeto que lhe corresponda, e será sem significação quando um tal objeto não existir. De fato, ouve-se frequentemente falar de signi­ ficações de tal maneira que, sob este termo, são os objetos significados que são vi­ sados; maneira de falar que dificilmente pode ser mantida de modo consequente, já que brotou, também, da mistura com o conceito autêntico de significação. 3. Se a significação é identificada com o objeto da expressão, como mes­ mo agora o foi, então um nome como montanha de ouro não tem significação.

De um modo geral, distingue-se aqui, porém, a ausência de objeto da ausên­ cia de significação. Contra isto, comprazem-se alguns em designar como sem sentido expressões contraditórias e, em geral, acometidas de incompatibilidades evidentes, como quadrado redondo, ou a constestar-lhes, por meio de formula­ ções equivalentes, uma significação. É assim que, segundo Sigwart,3i uma fór­ mula contraditória, como círculo quadrangular, não exprime nenhum conceito que possamos pensar, mas apenas apresenta palavras que envolvem uma tarefa insolúvel. A proposição existencial não há qualquer círculo quadrangular recusa, segundo ele, a possibilidade de ligar um conceito a essas palavras. Com isto, Sigwart entende expressamente por conceito “a significação geral de uma palavra”, por conseguinte (se o compreendemos corretamente) precisamente o mesmo que nós. Do mesmo modo ajuíza Erdmann,3435 em relação ao exemplo um círculo quadrangular é uma ligeireza de expressão. Consequentemente, com as expressões imediatamente absurdas, deveríamos denominar como sem sentido também as expressões mediatamente absurdas, por conseguinte, as inumeráveis expressões que os matemáticos provam como sendo a priori destituídas de objeto por meio de demonstrações indiretas e circunstanciadas; e deveríamos igualmente negar que conceitos como decaedro regular e semelhantes sejam em geral conceitos. <61> Marty objeta aos investigadores mencionados: “Se as palavras não tivessem sentido, como poderíamos compreender a questão de saber se há qualquer coisa desse tipo, e responder-lhe negativamente? Mesmo para negá-la, devemos representar de um modo qualquer tal matéria contraditória”.36 “ [...] Quando denominamos tais absurdos como sem sentido, tal só pode querer di­ zer que eles não têm, manifestamente, qualquer sentido racional [,..]”.37 Estas objeções são inteiramente acertadas, porquanto o modo de expressão destes in­ vestigadores nos leva à suposição de que misturam a autêntica ausência de sen­ tido, designada acima sub 1, com uma coisa totalmente diferente, a saber, com a impossibilidade apriorística de um sentido preenchedor. Neste sentido, uma expressão tem, por conseguinte, uma significação quando corresponde à sua intenção um preenchimento possível, em outras palavras, quando lhe corres­ ponde a possibilidade de uma ilustração intuitiva unitária. Manifestamente, esta possibilidade é tomada como sendo ideal; ela não respeita ao ato contingente do expressar e ao ato contingente do preenchimento, mas antes aos seus conte­ údos ideais: a significação enquanto unidade ideal (que deve ser aqui designada

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34 N.A.: Sigwart, Die Impersonalien, p. 62. 35 N.A.: B. Erdmann, Logik, I1, p. 233. 36 N.A.: A. Marty, Über Subjektlose Sätze und das Verhältnis der Grammatik zur Logik und Psychologie (Sobre Proposições sem Sujeito e a Relação da Gramática com a Lógica e a Psicologia), Art. VI, Vierteljahrsschrift f. wiss. Philosophie, XIX, p. 80. 37 N.A.: Op. cit, p. 81, Observação. Cf. artigo V, tomo XVIII, p. 464.

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como significação intentante) e a significação preenchedora que lhe é exata­ mente adequada, sob uma certa relação. Esta relação ideal é captada rpor meio da abstração ideadora, com base num ato de unidade de preenchimento-! ,38 Nos casos contrários, captamos a impossibilidade rideab do preenchimento da sig­ nificação com base na vivência da “incompatibilidade” das significações parciais na unidade de preenchimento intentada. A clarificação fenomenológica dessas relações exige, como o mostrará uma investigação ulterior mais ampliada, análises difíceis e circunstanciadas. 4. Com a questão de saber o que uma expressão significa, remetemos, naturalmente, para os casos em que ela exerce uma função de conhecimento ou, o que quer dizer o mesmo, para os casos em que a sua intenção de signifi­ cação se preenche na intuição. Deste modo, ganha a “representação conceituai” (isto é, precisamente, a intenção de significação) a sua “clareza e distinção”, ela confirma-se como “correta”, como “efetivamente” realizável. A “letra de câm­ bio” que, por assim dizer, <62> foi sacada em nome da intuição é liquidada. Porque, na unidade de preenchimento, o ato da intenção coincide com o ato do preenchimento e está com ele fundido do modo mais íntimo (porquanto resta aqui, em geral, ainda alguma coisa de diferente), é fácil que a coisa apa­ reça como se a expressão ganhasse aqui pela primeira vez a sua significação, como se ela a haurisse apenas no ato preenchedor. Isto desperta a tendência para encarar a intuição preenchedora (os seus atos categoriais formadores não costumam ser levados em consideração) como sendo as significações. O pre­ enchimento - deveremos estudar todas estas relações ainda de um modo mais aprofundado - nem sempre é, porém, completo. Frequentemente, as expressões são acompanhadas de intuições inteiramente afastadas ou apenas parcialmente ilustradoras, se é que em geral há alguma. Mas porque as distinções fenomenológicas dos diferentes casos não foram examinadas mais de perto, acabou-se, então, por transferir para as imagens intuitivas paralelas o valor significativo das expressões em geral, mesmo daquelas que não podem reivindicar qualquer preenchimento adequado. Naturalmente, isso leva à consequência de negar, em geral, significação para as expressões absurdas. O novo conceito de significação provém da mistura da significação com a intuição preenchedora. De acordo com ele, uma expressão tem significação, e apenas a tem, quando a sua intenção (na nossa maneira de falar, a sua intenção de significação) se preenche de fato, mesmo que o seja parcialmente, ou afastada e impropriamente; numa palavra, quando a sua compreensão está animada por quaisquer “representações de significação” (como se costuma dizer), isto é, por quaisquer imagens ilustradoras.

38

A: rabstrativamente, em atos de unidade fática de preenchimento1.

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Cap. I • As Distinções Essenciais

A refutação definitiva dessas concepções - em geral, benquistas, mas con­ trapostas às nossas - é de grande importância e exige, por isso, amplas conside­ rações. Remetemos, a este respeito, para o próximo capítulo e rprosseguimos, agora, com a enumeração dos diferentes conceitos de significação! ,39

<63> § 16. Continuação. Significação e conotação 5. Ao falar-se de ausência de significação, ainda um outro equívoco foi introduzido por J. St. Mill, com base num novo conceito, o quinto, de significa­ ção. Ele localiza, nomeadamente, a essência do valor significativo dos nomes na conotação ( connotation) e apresenta, em conformidade com isso, os nomes não conotativos como sendo destituídos de significação (por vezes, diz de modo pru­ dente, mas nem sempre claro: destituídos de significação em sentido “próprio” ou “estrito”). Como é sabido, Mill entende por nomes conotativos aqueles que designam um sujeito e que encerram em si um atributo; ele entende sob o título de não conotativos (not connotativé) aqueles que designam um sujeito (como é aqui dito mais claramente) sem indicar um atributo como lhe sendo inerente.40 Os nomes próprios são não conotativos, tal como os nomes para atributos (por exemplo, branco). Mill41 compara os nomes próprios com os sinais distintivos a giz, que o ladrão traçou na casa no bem conhecido conto das Mil e uma noi­ tes. E, no seguimento, diz: “Quando instituímos um nome próprio, realizamos uma operação que é, de certo modo, análoga à que o ladrão tinha em vista com o traço a giz. Certamente, não apomos uma nota distintiva no próprio objeto, mas, por assim dizer, na representação do objeto. Um nome próprio é apenas nm signo destituído de significação, que conectamos, no nosso espírito, com a representação do objeto, a fim de que, logo que o signo caia sob os nossos olhos ou assome nos nossos pensamentos, possamos pensar no objeto individual”. “Quando (assim o diz no parágrafo seguinte da obra citada), de uma qualquer coisa, asserimos o seu nome próprio, quando dizemos, apontando para um homem, este é Müller’ ou este é Mayer’, ou, apontando para uma ci­ dade, esta é Colônia’, não comunicamos ao ouvinte, com isto apenas, qualquer conhecimento acerca destes objetos, para lá de que são esses os seus nomes [...] A situação é outra quando falamos de objetos por meio de nomes conotativos. Quando dizemos: a cidade é <64> construída em mármore’, damos, assim, um conhecimento ao ouvinte, que pode ser completamente novo para ele, por meio da significação do nome conotativo, composto de várias palavras, construído em 39 A: rsegue agora a enumeração dos diferentes conceitos de significação1. 40 N.A.: J. St. Mill, Logik, Livro I, Cap. 2, § 5. Tradução de Gomperz: I, p. 14 e 16. 41 N.A.: Op. cit., p. 19 e segs.

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Cap. I • As Distinções Essenciais

mármore? Tais nomes são “não simples signos, mas antes mais, isto é, signos de significação; e a conotação é aquilo que constitui a sua significação”.42 Se cotejarmos essas explanações de Mill com as nossas próprias análises, não pode, então, deixar de ser reconhecido que Mill confunde diferenças rque devem, em princípio, ser separadas"1,43 Acima de tudo, a diferença entre signos e expressões. O traço a giz do ladrão é um simples índice (um signo caracterizador), o nome próprio, uma expressão. Tal como toda e qualquer expressão em geral, o nome próprio atua tam­ bém como um índice, nomeadamente na sua função de manifestação. Aqui resi­ de, de fato, a analogia com o traço a giz do ladrão. Quando o ladrão olha para o traço a giz, sabe, então, que essa é a casa que deve ser roubada. Quando ouvimos a elocução do nome próprio, é então despertada em nós a representação corres­ pondente, e sabemos o seguinte: esta representação é aquilo que o falante consu­ ma em si próprio e que, ao mesmo tempo, quer despertar em nós. Mas o nome tem, para além disto, a função de uma expressão. A função de manifestação é apenas um elemento coadjuvante para a função de significação. Primariamente, o que importa não é a representação; não se trata de conduzir o interesse para ela e para o que lhe possa dizer respeito, mas antes de conduzi-lo para o objeto repre­ sentado, como sendo aquilo que é visado e, com isso, nomeado, e de apresentá-lo para nós enquanto tal. Assim aparece ele, na asserção, como o objeto acerca do qual qualquer coisa é asserida, na frase optativa, como o objeto acerca do qual qualquer coisa é desejada etc. Só por causa desta performance é que o nome pró­ prio pode, como qualquer outro, tornar-se parte integrante de expressões com­ plexas e unitárias, tornar-se parte integrante de frases declarativas, optativas e semelhantes. Em relação ao <65> objeto, o nome próprio não é, porém, um índi­ ce. Isto se tornará claro, sem mais, se pensarmos que pertence à essência de um índice indicar um fato, uma existência, enquanto o objeto nomeado não precisa rvaler como existente"! ,44 Quando Mill, prosseguindo a sua analogia, pretende que o nome próprio esteja conectado com a representação da pessoa nomeada da mesma maneira que o traço de giz com a casa, mas acrescenta, ao mesmo tempo, que esta ligação - assim que o índice cai sob os nossos olhos ou assoma nos nossos pensamentos - acontece para que nós possamos pensar no objeto individual, então a analogia se quebra precisamente por causa deste acréscimo. Mill sublinha com razão a diferença entre os nomes que nos transmitem um “conhecimento” a respeito do objeto e aqueles que não o fazem; mas nem

eSta nem a distinção equivalente entre os nomes conotativos e não conotativos tem qualquer coisa em comum com a distinção entre com e sem sentido. No fundo, as primeiras duas diferenças são, de resto, não apenas equivalentes em sentido lógico, mas francamente idênticas. Trata-se simplesmente da diferença entre nomes atributivos e rnão atributivos“1.45 Transmitir um “conhecimento” de uma coisa e transmitir atributos seus significam aqui uma e a mesma coisa. Há, agora, decerto, uma diferença importante quanto a saber se um nome nomeia di­ retamente uma coisa ou se a nomeia por meio do atributo que lhe compete. Mas esta será uma diferença no interior do gênero unitário “expressão”, precisamente como a diferença - paralela e altamente importante, a respeito das significações nominais, ou “representações” lógicas - que separa as significações atributivas e não atributivas será uma diferença no interior do gênero unitário “significação”. O próprio Mill sente de uma certa maneira a diferença, pois se vê obriga­ do, na eventualidade, a falar da significação do nome próprio e, em contraposi­ ção, a propósito dos nomes conotativos, da significação em sentido “próprio” ou ‘ estrito”; coisa em que teria seguramente feito melhor se falasse de significação num <66> sentido totalmente novo (mas de modo algum aconselhável). Em todo caso, o modo como o lógico insigne introduz a sua valiosa distinção dos nomes conotativos e rnão conotativos"146 contribuiu muito para enredar as dis­ tinções de tipo totalmente diferente, que temos vindo precisamente a tratar. De resto, deve-se também observar que a distinção milleana entre o que um nome designa e aquilo que ele conota não deve ser misturada com a distin­ ção, simplesmente aparentada, entre o que um nome nomeia e o que ele signifi­ ca. Na apresentação de Mill, esta mistura é particularmente fomentada. As investigações sequentes mostrarão o quanto essas distinções são im­ portantes e o pouco que ajuda tratá-las com menosprezo e correspondente su­ perficialidade como “simplesmente gramaticais”; elas trarão à luz, esperamos, que, sem uma fina separação das distinções simples que propusemos, não se poderia pensar numa elaboração segura dos conceitos de representação e de juízo em sentido lógico.

42

N.A.: Cf. quanto a este propósito op. cit, p. 18: "Se os nomes que damos aos objetos co­ municam qualquer coisa, isto é, se eles têm uma significação no sentido próprio, então a significação reside não naquilo que eles designam, mas antes naquilo que eles conotam". 43 A: fundamentalmente diversas e importantes1. 44 N.A.: A: rde existir. A alteração em B corresponde aos "Aditamentos e Melhoramentos" a A.

48

45 A: rnão atributivos1. 46 A: rnão conotativos1.

49

o* <67> C a p ít u l o I I

PARA u m a

c a r a c t e r iz a ç ã o d o s a t o s q u e c o n f e r e m a

SIG N IFIC A Ç Ã O

§ 17. As imagens ilustradoras da fantasia enquanto supostas significações Orientamos o conceito de significação e, correspondentemente, o de in­ tenção de significação, segundo o caráter rfenomenológico11que é essencial para a expressão enquanto tal e que, na consciência - portanto, descritivamente -, a distingue do simples som de uma palavra. Segundo a nossa doutrina, este cará­ ter é possível, e frequentemente real, sem que a expressão esteja numa função de conhecimento, portanto, numa relação, por mais fraca e afastada que seja, com intuições sensibilizadoras. Chegou agora o momento de nos confrontarmos com uma concepção disseminada, se não mesmo predominante, que, em oposição à nossa, põe toda a performance da expressão significativa viva no despertar de certas imagens da fantasia que lhe estariam constantemente agregadas. Compreender uma expressão quereria dizer, de acordo com essa concep­ ção, encontrar as imagens correspondentes da fantasia. Onde elas faltassem, as expressões seriam destituídas de sentido. Não raramente, ouvimos estas ima­ gens da fantasia serem caracterizadas como sendo, elas próprias, as significações das palavras; e, decerto, com a pretensão de se ir ao encontro do que, no discur­ so corrente, se compreende como significação da expressão. É uma prova do estado retardatário da Psicologia descritiva o fato de que tais doutrinas, de início bem sugestivas, sejam possíveis, e de que o sejam apesar das objeções que os Investigadores12 sem preconceitos desde há mui­ to levantaram contra elas. Certamente, <68> as expressões linguísticas são, em muitos casos, acompanhadas de representações da fantasia, que estão numa re­ lação mais próxima ou mais afastada com a sua significação; todavia, contra­ diz os fatos mais manifestos de que tais acompanhantes sejam por toda parte exigíveis para a compreensão. Com isto está ao mesmo tempo dito que não é a sua existência que constitui o valor significativo da expressão (ou até mesmo a sua própria significação), e que a sua falta não pode obstar a este valor. A consideração comparativa das fantasias paralelas, encontradas ocasionalmente, ensina também que elas mudam multiplamente com uma significação de pa­ lavra inalterada e que, frequentemente, têm com essa apenas relações bastante

1 2

A: psíquico12 . A: observadores1.

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longínquas, enquanto a invocação das ilustrações intuitivas mais apropriadas, nas quais a intenção significativa da expressão se preenche ou reforça, só é bemsucedida depois de alguns esforços e, muitas vezes, não o é de todo. Que se leia uma obra que trate de um domínio de saber abstrato e que se observe - seguin­ do com plena compreensão o que diz o autor - aquilo que encontramos para lá das palavras compreendidas. Certamente, as circunstâncias de observação são, aqui, para a concepção adversa, as mais favoráveis que possíveis. Como o interesse diretor da observação, encontrar imagens da fantasia, promove ele próprio, psicologicamente, o surgimento de tais imagens, e, em meio à nossa inclinação para inserir, sem mais, no estado de coisas original, o que se pode encontrar na reflexão posterior, todas as novas imagens da fantasia, que afluem durante a observação, seriam também reclamadas para o teor psicológico da expressão. No entanto, apesar deste favor das circunstâncias, a tese combatida, que vê a essência do valor significativo em tais acompanhantes da fantasia, deve renunciar a procurar confirmações aparentes na observação psicológica, pelo menos na classe de casos indicados. Tomemos como exemplo signos algébricos plenamente compreendidos, ou fórmulas inteiras, ou proposições verbais como toda e qualquer equação algébrica de grau ímpar tem pelo menos uma raiz real, e façamos as observações necessárias. Se relato o que eu próprio agora mesmo en­ contro, então vem-me à mente, no último exemplo, o seguinte: um livro aberto (reconheço-o como a Álgebra de Serret), em seguida, o caráter sensível de uma função algébrica na impressão de Teubner e, para a palavra “raiz”, o bem conhe­ cido símbolo V. Entretanto, li a frase bem uma dúzia de vezes e a compreendi perfeitamente sem, todavia, encontrar o menor vestígio de fantasias paralelas que pertençam de algum modo à objetividade representada. <69> Do mesmo modo sucede, para nós, com a ilustração intuitiva de expressões como Cultura, Religião, Ciência, Arte, Cálculo Diferencial e outras semelhantes. Seja ainda indicado aqui que o que foi dito não toca apenas às simples ex­ pressões de objetividades assaz abstratas e mediatizadas por relações complica­ das, mas também os nomes para objetos individuais, para pessoas conhecidas, cidades, regiões. A capacidade para a presentificação intuitiva pode existir, mas ela não é realizada no momento dado.

Se novamente se objeta que a imagem se tornou talvez imperceptível ou que esteve imperceptível desde o inícior, mas - perceptível ou não - i 3 está aí e torna possível a compreensão continuada, não poderemos, também aqui, ficar na dúvida acerca da resposta. Diremos: que uma tal assunção seja necessária ou aconselhável por motivos genético-psicológicos é algo que não teremos de investigar aqui. Para a nossa questão descritiva, ela é, evidentemente, completa­ mente inútil. Admitimos que a imagem da fantasia é muitas vezes imperceptível. Também não negamos que, apesar disso, a compreensão da expressão pode existir e que pode até ser muito notável. Não será, porém, pôr as coisas às avessas admitir que um momento abstrato da vivência (nomeadamente, o momento da representação da fantasia, que deve constituir o sentido) seja notável enquanto a vivência no seu todo (a representação da fantasia concreta e completa) não é no­ tada? E o que acontece - assim teríamos ainda de perguntar - com os casos em que a significação é um absurdo? Aqui, a inotabilidade não pode basear-se nas contingências das forças psíquicas, mas, pelo contrário, a imagem não pode, em geral, existir, porque, <70> se não, ela garantiria com evidência a possibilidade do pensamento respectivo (a concordância da significação). Acerca disso, certamente que se poderia indicar que representamos sen­ sivelmente mesmo os absurdos, como as retas em si mesmas fechadas, os triân­ gulos como uma soma dos ângulos internos maior ou menor do que dois retos. Nos tratados de metageometria, encontramos mesmo desenhos de construções deste tipo. Apesar disso, ninguém pensará seriamente que intuições de tal tipo possam valer como efetivas ilustrações intuitivas dos conceitos em questão e, mais ainda, como depositárias das significações das palavras. Apenas onde a imagem da fantasia é efetivamente adequada à coisa visada, enquanto sua ima­ gem, estaremos próximos da tentação de procurar nesta imagem o sentido da expressão. Mas a adequação, mesmo quando descontamos as expressões absur­ das, que nem por sê-lo deixam de ter o seu sentido, é a regra? Já Descartes apon­ tava o exemplo do quiliágono para esclarecer, a partir dele, a diferença entre imaginatio e intellectio. A representação da fantasia do quiliágono não é mais adequada que estas imagens de retas fechadas ou de paralelas que se cortam; em ambos os casos, encontramos, em vez de exemplificações plenamente acabadas, imagens grosseiras e simplesmente parciais do que é pensado. Dizemos: reta fe­ chada, e desenhamos uma curva fechada, tornando sensível, portanto, apenas o fecho. Do mesmo modo, pensamos num quiliágono e imaginamos um polígono qualquer com “muitos” lados. De resto, os exemplos geométricos não precisam ser particularmente es­ colhidos para mostrar a inadequação da ilustração intuitiva, mesmo no caso de

§ 18. Continuação. Argumentos e contra-argumentos Se se objeta que a fantasia atua ainda em tais casos, mas de um modo muito fugidio, que a imagem interna aparece para, logo de seguida, de novo desapare­ cer, responderemos, então, que a plena compreensão das expressões, o seu sentido completo, vivo, continua ainda a se manter depois da desaparição da imagem e que, por consequência, a compreensão não pode residir precisamente nessa imagem. 52

3

A: r; perceptível ou não, ela1.

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significações concordantes. Observando com minúcia, nenhum conceito geométrico se deixa, em geral, sensibilizar de um modo adequado, como é de todos sabido. Imaginamos ou desenhamos o traço e dizemos ou pensamos uma reta. E é assim para todas as figuras. Por toda parte, a imagem serve apenas de suporte para a intellectio. Ela não oferece um exemplo efetivo da construção visada, mas apenas um exemplo de formas sensíveis que são do tipo sensível que é ponto de partida natural para as “idealizações” geométricas. Nestes processos intelectivos do pensamento geométrico, constitui-se a ideia da construção geométrica, que fica cunhada na significação fixa da expressão definidora. A consumação atual destes processos intelectivos é o pressuposto para a primeira formação <71 > e confirmação cognoscitiva das expressões geométricas primitivas, não, porém, para a sua compreensão recorrente e para o seu uso continuado com sentido. As imagens sensíveis fugidias funcionam, porém, Me um modo fenomenologicamente apreensível e descritível,"1como simples auxiliares da compreensão, e não como sendo, elas próprias, significações ou portadoras de significação. Talvez se faça à nossa concepção a acusação de nominalismo extremo, como se ela identificasse palavra e pensamento. Para alguns, parecerá francamente absurdo que um símbolo, uma palavra, uma frase, uma fórmula devam continuar a ser compreendidos quando, segundo a nossa doutrina, nada mais existe de intuitivo para além do corpo sensível e desprovido de espírito, para além deste risco sensível no papel e coisas semelhantes. No entanto, como o mostram as explanações do capítulo anterior,4 estamos muito longe de identi­ ficar palavra e pensamento. Para nós, nos casos em que compreendemos sím­ bolos sem o apoio de imagens paralelas, não se faz presente, de modo algum, o simples símbolo; ao contrário, temos aí a compreensão, esta vivência de um ato peculiar, referida à expressão, tornando-a translúcida, conferindo-lhe significa­ ção e, com isso, referência objetiva. O que diferencia a simples palavra, enquan­ to complexo sensível, da palavra significativa, é algo que sabemos muito bem a partir da nossa própria experiência. Podemos nos voltar muito bem exclusi­ vamente para o tipo sensível da palavra, não considerando a sua significação. Acontece também que, de início, algo sensível desperta por si mesmo o nosso interesse, e só posteriormente se torna consciente o seu caráter de palavra, ou de símbolo de outro tipo. O “hábito” sensível de um objeto não se altera quando adquire para nós o valor de um símbolo; ou, inversamente, quando não temos em conta o valor significativo de um objeto que funciona normalmente como símbolo. Não se juntou também nenhum conteúdo psíquico novo ao antigo conteúdo independente, como se, agora, estivesse diante de nós uma soma ou uma conexão de conteúdos igualmente legitimados. O mesmo e único conteúdo

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teve o seu “hábito” psíquico alterado, sentimo-lo de outra maneira, aparece-nos não simplesmente um risco sensível no papel, mas o que aparece fisicamente vale como um signo que compreendemos. Enquanto vivemos na sua compre­ ensão, consumamos não um representar ou um julgar, que se <72> refira ao signo enquanto objeto sensível, mas antes um representar e julgar totalmente diferentes e de outro tipo, que se referem à coisa designada. Por conseguinte, a significação reside no caráter de ato doador de sentido, o qual é totalmente dife­ rente segundo o interesse esteja dirigido para o signo sensível ou para o objeto que se torna representável por meio do signo (mesmo que não seja figurado por auaisquer representações da fantasia).

§19. Compreensão sem intuição À luz da nossa concepção, portanto, torna-se plenamente compreensível como é que uma expressão pode funcionar com sentido e, porém, sem intuição ilustradora. A respeito deste fato do pensamento simbólico, aqueles que colo­ cam o momento da significação na intuição estão diante de um enigma inso­ lúvel. Para eles, o falar sem intuição seria também destituído de sentido. Mas um falar verdadeiramente sem sentido não seria, em geral, nenhum falar, ele estaria em pé de igualdade com o ruído de uma máquina. Coisas semelhantes acontecem, quando muito, no recitar mecânico de versos aprendidos de cor, de fórmulas de oração etc.; mas isso não diz respeito aos casos que devem ser aqui esclarecidos. As diletas comparações com o palrar dos papagaios ou com o grasnar dos gansos, o bem conhecido provérbio r“onde faltam conceitos, apa­ rece oportunamente a palavra”! 5 e outras locuções semelhantes, não podem, de modo algum, ser tomadas estritamente, como o ensina uma ponderação só­ bria. Expressões como discurso nada judicioso ou discurso sem sentido podem e devem ser, pois, interpretadas em conformidade com expressões semelhantes, como homem sem sentimentos, sem espírito, destituído de pensamento. Com a expressão discurso nada judicioso, não visamos, obviamente, a um discurso em que falte qualquer juízo, mas sim a um discurso em que o juízo não proveio de uma reflexão própria e sensata. Também o absurdo (contrassenso), entendido como “ausência de sentido”, se constitui no sentido: pertence ao sentido de uma expressão que seja um contrassenso visar objetivamente a coisas incompatíveis. À parte contrária não resta nada mais que buscar refúgio na hipótese forçada de intuições inconscientes e não notadas. Mas quão pouco isto pode ajudar ensina-nos um olhar para a função da intuição fundante, no caso em que

5

A: r; perceptível ou não, ela1.

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N.A.: Cf., por exemplo, §10, p. <45> e segs.

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ela existe e é notada. <73> Na esmagadora maioria dos casos, ela não é, de modo algum, adequada à intenção significativa. Em todo caso, para a nossa concep­ ção, não há aqui nenhuma dificuldade. Se o valor significativo não reside na intuição, então o falar sem intuição não deverá ser, por via disso, um falar sem pensamento. Se falta a intuição, resta ainda, na expressão r(ou seja, na consci­ ência sensível da expressão)-1, precisamente um ato do mesmo tipo que aquele que, no outro caso, restá referido à intuição e que, eventualmente, transmite o conhecimento do seu objeto"1.6 Assim, o ato em que se consuma o significar existe num e noutro dos casos.7

é a realização de toda e qualquer arte calculatória. Os signos aritméticos são “de tal maneira escolhidos e levados a uma tal perfeição que a teoria, combinação, transformação etc., dos signos pode servir no lugar daquilo que, de outro modo, teria de ser efetuado com os conceitos”.8 Se olharmos mais de perto, veremos que não se trata, porém, dos signos no simples sentido de objetos físicos, cuja teoria, combinação etc. não nos seriam da menor utilidade. Um uso semelhante cairia na esfera da ciência física, ou seja, da práxis, e não na da Aritmética. A verdadeira intenção dos signos em questão surge se olharmos para a comparação muito em voga das operações do cálculo com as dos jogos segundo regras, por exemplo, o jogo de xadrez. No jogo, as peças não entram em consideração enquanto tais coisas assim modeladas, assim coloridas, de marfim, de madeira e semelhantes. O que as constitui fenomênico e fisicamente é totalmente indiferente e pode variar de maneira arbitrária. Ao contrário, elas tornam-se peças do jogo, isto é, marcas do jogo em questão, por meio das regras do jogo, as quais lhes dão a sua significação de jogo fixa. E assim possuem também os signos aritméticos, ao lado da sua significação originária, a sua significação de jogo, por assim dizer, a qual se orienta segundo o jogo das operações do cálculo e as suas regras de cálculo bem conhecidas. Se tomamos os signos aritméticos puramente como marcas de jogo, no sentido destas regras, então a solução dos problemas do jogo calculatório conduz a signos numéricos, isto é, a fórmulas numéricas, cuja interpretação segundo o sentido das significa­ ções originária e propriamente <75> aritméticas representa, ao mesmo tempo, a solução dos problemas aritméticos correspondentes. Por conseguinte, na esfera do pensamento aritmético-simbólico e do cál­ culo, não se opera com signos sem significação. Não são os “simples” signos, no sentido do físico, os signos desligados de toda e qualquer significação, que subrogam os signos originários animados de significações aritméticas; ou antes, o que sub-roga os signos significativos aritméticos são os mesmos signos, mas tomados numa certa significação operatória ou de jogo. Um sistema de equivocações formando-se natural e, por assim dizer, inconscientemente, torna-se infinitamente fecundo; o trabalho mental incomparavelmente maior que a ca­ deia original de conceitos exige é poupado pelas “operações simbólicas” mais ligeiras, que se consumam na cadeia paralela dos conceitos de jogo. Obviamente, deve-se fundamentar o direito lógico de um tal procedi­ mento e determinar de modo seguro os seus limites; trata-se aqui apenas de pôr de lado a confusão a que facilmente se chega quando se desconhece este pensamento “puramente simbólico” da Matemática. Se se compreende o sen­ tido acima exposto da expressão “simples signos”, signos estes que servem, na

§ 20. O pensamento sem intuição e a “função substitutiva” do signo Devemos deixar completamente claro para nós que, em vastas porções do pensamento, não apenas do pensamento descuidado e quotidiano, mas também do pensamento rigorosamente científico, a figuração ilustradora desempenha um papel diminuto ou mesmo nulo, e que podemos, no sentido mais atual, julgar, concluir, refletir e refutar com base em representações 'simplesmente simbólicas”. Fez-se uma descrição muito inapropriada desta situação quando se falou, aqui, de uma função substitutiva dos signos, como se os próprios signos sub-rogassem uma outra coisa qualquer, e como se o interesse do pensamento estivesse voltado para os próprios signos, no caso do pensamento simbólico. Na verdade, estes não são, porém, de modo algum, e também não ao modo de um substituto, os objetos da consideração pensante. Ao contrário, nós vivemos, antes, inteiramente na consciência de significação, correspondentemente, na consciência de compreensão, a qual não está ausente mesmo quando falta toda e qualquer intuição paralela. Deve-se ter presente que o pensamento simbólico é um pensamento apenas por causa do caráter “intencional” novo, ou caráter de ato, que faz a diferenciação do signo significativo perante o “simples” signo, isto é, perante o som de palavra que se constitui como objeto físico nas simples representações sensíveis. Este caráter de ato é um traço descritivo na vivência do signo que, sem intuição, é, todavia, compreendido. <74> Contra a interpretação do pensamento simbólico dada aqui, po­ der-se-á talvez objetar que ela se põe em contradição com os fatos mais certos que surgem na análise do pensamento aritmético-simbólico, fatos que por mim próprio foram sublinhados num outro lugar (na Filosofia da Aritmética). No pensamento aritmético, os simples signos sub-rogam realmente os conceitos. “Reduzir a teoria das coisas à teoria dos signos”, para o expressar com Lambert, 6 7

Em A em itálico. A: Teferido à intuição, mediatiza o conhecimento do seu objeto1.

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8

Em A segue-se: rou são, pelo menos, atos de tipo igual, que têm em comum a mesma es­ sência significativa.1

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Cap. II • Para uma Caracterização dos Atos que Conferem a Significação

Matemática, como “sub-rogados” dos conceitos aritméticos (ou seja, dos signos dotados das suas significações aritméticas), então será também claro que a re­ missão para a função substitutiva dos signos aritméticos não toca propriamente a questão que aqui nos ocupa, isto é, a questão de saber se é ou não possível um pensamento explícito sem uma intuição que o acompanhe - sem intuição ilus­ tradora, exemplificadora, evidenciadora. Pensamento simbólico, no sentido de um pensamento deste modo sem intuição, e pensamento simbólico, no sentido de um pensamento realizando-se com conceitos operatórios sub-rogantes, são coisas diferentes.

tivo do compreender, se bem que sejam um falar e um ouvir puramente simbóli­ cos A resposta à pergunta primeiramente feita dá-no-la, porém, a observação de as intenções de significação simplesmente simbólicas frequentemente não je isolam nitidamente umas das outras e não permitem aquela facilidade e certe­ za na identificação e na diferenciação de que também necessitamos para os fins de um juízo prático frutuoso, se bem que não evidente. Para conhecer diferenças de significação do tipo da que existe entre mosca e elefante, <77> não precisamos de quaisquer dispositivos especiais. Mas onde as significações se passam fluidaniente umas nas outras e as suas oscilações imperceptíveis dissipam os limites cuja manutenção é exigida para a segurança do juízo, aí é a ilustração intuitiva que oferece o meio natural de clarificação. Quando a intenção de significação da expressão se preenche em intuições diferentes e conceitualmente não coinciden­ tes, a diferença entre as intenções de significação sobressai, ao mesmo tempo, por via das direções de preenchimento nitidamente diferentes. No que diz respeito à segunda questão, é necessário observar, contudo, que toda e qualquer evidência do julgar (todo conhecer atual em sentido pleno) pressupõe as significações intuitivamente preenchidas. Quando se fala de conhe­ cimento que “nasce da análise das simples significações das palavras”, visa-se aí precisamente a uma coisa diferente daquela que as palavras deixam supor.13 O que é visado com isso são conhecimentos rpara cuja evidência basta a simples presentificação das “essências conceituais” em que as significações gerais das pa­ lavras encontram o seu preenchimento de um modo acabado1, enquanto a ques­ tão sobre a existência rde objetos1 que correspondam aos conceitos, mu seja, que se subordinem às essências conceituais,1 permanece fora de consideração. rEstas essências conceituais não são de modo algum, porém, as próprias significações das palavras,1 razão pela qual as duas locuções, “fundar puramente nos conceitos r(ou seja, nas essências)1” e “nascer das significações das palavras por meio da simples análise”, não podem dizer o mesmo senão por equivocação. Ao contrário, restas essências conceituais não são, em cada caso,1 outra coisa senão o sentido preenchedor, que é “dado” quando as significações das palavras r(mais precisa­ mente, as intenções de significação das palavras)1 terminam em representações rintuitivamente simples1 correspondentes e em certas elaborações ou enformações intelectuais das mesmas. A rreferida1 análise <78> não diz respeitor, por conseguinte,1 às intenções de significação vazias, mas antes ràs objetividades e formas que o seu preenchimento lhes dá1. É por isso que ela não fornece também nenhuma asserção sobre simples partes ou relações das significações, mas nos fornece antes necessidades intelectivas a respeito dos objetos em geral, que são pensados, por meio das significações, como de tal ou tal modo determinados.

§ 21. Dúvidas relativas à necessidade de regressar à intuição correspondente para a clarificação das significações e para o conhecimento das verdades nelas fundadas Poder-se-ia perguntar: se a significação da expressão funcionando de modo puramente simbólico reside no caráter de ato que diferencia a <76> apre­ ensão compreensiva do signo verbal rda19 apreensão de um signo sem sentido, como se explica, então, que '"regressemos'110 à intuição para estabelecer diferen­ ças de significação, para trazer à luz de um modo evidente plurivocidades ou para limitar a flutuação da intenção de significação? E de novo poderíamos perguntar: se a concepção aqui defendida do con­ ceito de significação é correta, como se explica, então, que também rnos sirvamos da intuição correspondente111 para examinar os conhecimentos que se fundam puramente nos conceitos, isto é, que surgem simplesmente através da análise das significações? De fato, diz-se em geral: para trazer à “consciência clara” o sentido de uma expressão (o conteúdo de um conceito), devemos produzir uma intuição correspondente - nela captamos o que é “propriamente visado” com a expressão. No entanto, a expressão funcionando simbolicamente visa também a qualquer coisa e a nenhuma outra coisa senão à expressão clarificada intuitiva­ mente. O significar não pôde consumar-se somente por meio da intuição; senão, deveríamos dizer que o que vivemos numa parte incomparavelmente maior dos nossos discursos e leituras seria um simples perceber externo ou um imaginar de complexos acústicos e óticos. Não precisamos repetir novamente que isso con­ tradiz ro conteúdo dos dados fenomenológicos1,9102 a saber, que, com os signos acústicos e grafados, visamos a isto e àquilo, e que esse visar é um caráter descri­

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N . A Lambert, Neues Organon, II. Bd,. 1764, §§ 23 e 24 e segs. (Lambert não se refere aí expressamente à Aritmética).

10 A: rperante a1. 11 A: rdevamos regressar. 12 A: rnão possamos passar sem a correspondente intuição1.

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13 A: ro conteúdo claro da experiência1

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Investigações Lógicas - Fenomenologia e Teoria do Conhecimento • Edmund Husserl

Cap. II • Para uma Caracterização dos Atos que Conferem a Significação

Sem dúvida que estas considerações nos reenviam para uma esfera de análises fenomenológicas já repetidamente por nós reconhecida como impres­ cindível, esfera esta que põe em evidência as relações apriorísticas entre sig­ nificação e conhecimento, ou seja, entre significação e intuição clarificadora, análises que devem proporcionar pela primeira vez uma claridade completa ao nosso conceito de significação, distinguindo-o do conceito de sentido preenchedor e investigando o sentido deste preenchimento.

«caráter de conhecido”, e Hõffding,15 de um modo menos adequado, por “qualidade de conhecido”.16 Mesmo palavras não compreendidas podem depararse-n0S como sendo há muito conhecidas; os bem memorizados versos gregos ficam na memória muito mais tempo do que a compreensão do seu sentido, eles aparecem ainda como bem conhecidos, mas não já são, contudo, compreendidos Com frequência, só posteriormente se nos faz luz sobre a compreensão em falta (eventualmente, muito antes da chegada de expressões que traduzam para a língua materna ou de outros suportes da significação), e o caráter de compreensão vem agora juntar-se ao caráter de conhecido como algo manifestamente novo, não alterando sensivelmente o conteúdo e, contudo, conferindo-lhe um novo caráter psíquico. Recordamo-nos, também, do modo como uma leitura ou recitação temporariamente maquinal de poemas há muito conhecidos se modifica numa leitura ou recitação compreensiva. Assim se oferece ainda uma profusão de outros exemplos, que trazem à evidência a peculiaridade do caráter de compreensão.

§ 22. Os diferentes caracteres de compreensão e a 'qualidade de conhecido” A nossa concepção pressupõe uma certa separação, se bem que não per­ feitamente nítida, dos caracteres de ato que conferem a significação, mesmo nos casos em que estas intenções de significação não têm ilustração intuitiva. E, realmente, não se pode admitir que as “representações simbólicas”, que re­ gem a compreensão, ou seja, o emprego com sentido dos signos, sejam descri­ tivamente equivalentes, que elas consistam num caráter indiferenciado, idêntico para todas as expressões, como se fossem apenas os sons de palavra, portadores sensíveis e contingentes da significação, que constituíssem a diferença. Conven­ cemo-nos facilmente disso por meio de exemplos de expressões equívocas, em que efetuamos e podemos reconhecer a súbita mudança de significação sem precisarmos da menor ilustração intuitiva paralela. A diferença descritiva, que vem aqui à luz do dia com evidência, não pode dizer respeito ao signo sensível, que é aqui o mesmo, mas ao caráter de ato, que, precisamente, sofre alterações específicas. E devemos remeter novamente para os casos em que a significação permanece idêntica enquanto a palavra se altera, por exemplo, para os casos em que existem simples diferenças idiomáticas. Os signos sensivelmente diferentes <79 > valem para nós como sendo equissignificativos (falamos mesmo, even­ tualmente, de uma “mesma” palavra, apenas pertencente a línguas diferentes), eles nos dão imediatamente a impressão de serem “o mesmo”, ainda antes que a fantasia reprodutiva nos possa prover de imagens que se refiram à ilustração intuitiva da significação. Com tais exemplos, torna-se para nós clara a insustentabilidade da con­ cepção, que aparece a princípio como plausível, a concepção segundo a qual o caráter de compreendido não é, no fim, nada mais que o que Riehl14designou por

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Daqui em diante até o fim do primeiro período da página <78> corresponde em A: O que é visado com isso são conhecimentos rque se produzem a partir da simples presentificação das "essências conceituais" das significações gerais das palavras1, enquanto a questão so­ bre a existência rdos objetos1 que correspondem aos conceitos permanece fora de conside­ ração. rEsta essência conceituai não é, porém, a própria significação da palavra,1 razão pela

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§ 23. A apercepção na expressão e a apercepção na representação intuitiva Precisamente na medida em que toda apreensão é, em certo sentido, um compreender ou interpretar (consumando-se sob diferentes formas), a apreen­ são compreensiva,1718na qual se consuma o significar de um signo, é aparentada com as apreensões objetivantes, nas quais, por meio de um complexo vivido de sensações, <80> desperta a representação intuitiva (percepção, imaginação, figuração etc.) de um objeto (por exemplo, de uma coisa “exterior”). No entanto, a restrutura"118 de ambas as apreensões é consideravelmente diferente. Suponha­ mos uma consciência antes de toda a experiência, então, segundo a ordem da possibilidade, ela sente o mesmo que nós. Mas ela não intui nenhuma coisa e nequal as duas locuções, "fundar puramente nos conceitos" e "nascer das significações das palavras por meio da simples análise" não podem dizer o mesmo senão por equivocação. Ao contrário, resta essência conceituai não é1 outra coisa senão o sentido preenchedor '(compreendido como espécie)1, que é "dado" quando as significações das palavras termi­ nam em representações 'intuitivamente sensíveis1 correspondentes e em certas elabora­ ções ou enformações intelectuais das mesmas. A análise <78> não diz respeito às intenções de significação vazias, mas antes ra estas objetivações e enformações preenchedoras1. 15 N.A.: A. Riehl, Der Philosophische Kritizismus (O Criticismo Filosófico). V. II, P Parte, p. 199. 16 N.A.: H. Hõffding, Über Wiedererkennen, Assoziation und Psychische Aktivität (Sobre Reco­ nhecimento, Associação e Atividade Psíquica). Vierteljahrsschriftf wiss. Philos. V. XIII, p. 427. 17 N.A.: Ver contra Volkelt, Erfahrung und Denken (Experiência e Pensamento), p. 362. 18 N.A.: Uso a palavra "compreender" não, digamos, no sentido mais limitado, que remete para a relação entre um locutor e um auditor. O pensador monológico "compreende" as SLias palavras, e este compreender é, pura e simplesmente, o significar atual.

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Cap. II • Para uma Caracterização dos Atos que Conferem a Significação

nhum acontecimento coisal, ela não percebe árvores e casas, não percebe nem o voo do pássaro nem o ladrar do cão. Sentimo-nos aqui imediatamente tentados a expressar a situação do seguinte modo: para uma tal consciência, as sensações não significam, não valem como signos das propriedades de um objeto, o seu complexo não vale como signo do próprio objeto; elas são pura e simplesmen­ te vividas, carecendo, porém, de uma interpretação objetivante (nascendo da “experiência”). Por conseguinte, pode-se tão bem falar aqui de significação e de signos como no caso das expressões e dos signos aparentados. No entanto, o que dissemos não deve, no caso da comparação com a per­ cepção (a que nos limitamos por mor da simplicidade), ser mal compreendido, de tal modo que disséssemos que a consciência olha para as sensações e que faz delas objetos de uma percepção e de uma interpretação que estaria primeiro fundada sobre esta percepção: como acontece para os objetos físicos, de que estamos de fato conscientes objetivamente, tais como, por exemplo, os sons de palavra, que funcionam como signos em sentido próprio. As sensações não se tornam manifestamente objetos de representação senão na reflexão psicológi­ ca, enquanto, no representar intuitivo ingênuo, são certamente componentes da vivência de representação (partes do seu conteúdo descritivo), mas de modo nenhum seus objetos. A representação perceptiva realiza-se19 pelo fato de que o complexo de sensação vivido é animado por um certo caráter de ato, por um certo apreender, visar; e, enquanto o é, aparece o objeto percebido, enquanto o próprio complexo de sensação não aparece quase nada como o ato em que o objeto percepcionado se constitui enquanto tal. A análise fenomenológica ensi­ na também que o conteúdo da sensação fornece, por assim dizer, um material de construção analógico para o conteúdo do <81> objeto que é através dela representado: daí que se fale de cores, extensões, intensidades etc. sentidas, por um lado, e percebidas (ou seja, representadas), por outro. O que corresponde nos dois lados não é de modo nenhum algo idêntico, mas antes algo aparentado segundo o gênero, como facilmente nos poderemos convencer com exemplos: a coloração uniforme da esfera, que nós vemos (percebemos, representamos e coisas semelhantes), não a tínhamos sentido antes. Uma tal “interpretação” está também na base dos signos no sentido de expressões, mas apenas enquanto primeira apreensão. Se considerarmos o caso mais simples em que a expressão é compreendida, mas não é animada por ne­ nhuma intuição ilustradora, então desponta, através da primeira apreensão, a aparição do simples signo, enquanto objeto físico dado aqui e agora (por exem­ plo, o som de palavra). Esta primeira apreensão fundamenta, porém, uma se­ gunda, que ultrapassa inteiramente o material da sensação e não encontra já

nele o material de construção analógico para a objetividade completamente nova que é agora visada. Esta última é visada no novo ato do significar, mas não é apresentada na sensação. O significar, o caráter do signo expressivo, pressupõe precisamente o signo, que aparece como este significar. Ou dito de um modo fenomenologicamente puro: o significar é um caráter de ato com esta ou aque­ la coloração, que pressupõe como fundamento necessário um ato intuitivo de representar. A expressão, como objeto físico, constitui-se neste último. Mas só através do ato fundado se torna ela, pela primeira vez, uma expressão no sentido pleno e próprio. O que vale no caso mais simples da expressão compreendida sem intui­ ção deve também valer nos casos complexos, em que a expressão está entre­ laçada com a intuição correspondente. Uma e a mesma expressão usada com sentido, mas uma vez com, outra sem intuição ilustradora, não pode retirar de atos diferentes a fonte do seu caráter significativo. Não é, sem dúvida, fácil analisar a situação descritiva segundo os seus mais finos matizes e ramificações, que não consideramos aqui. Tanto mais que levanta dificuldades captar corretamente a função das representações que ilus­ tram intuitivamente - a confirmação ou <82> mesmo o tornar evidente da in­ tenção de significação que elas realizam, a sua relação com o caráter de com­ preensão ou de significação, que serve de vivência conferindo sentido já mesmo na expressão sem intuição. Está aqui um largo campo para a análise fenomeno­ lógica, e um campo que o lógico não pode contornar, caso queira trazer à luz a relação entre significação e objeto, juízo e verdade, intenção obscura e evidência comprovante. Mais adiante, teremos de nos ocupar pormenorizadamente das análises respectivas.20

19 A: constituição1.

20 Em A segue-se: rsimplesmente1.

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<83> C a p í t u l o I I I

A FLU TUAÇÃO DAS SIG N IFIC A Ç Õ E S DAS P A LA V R A S E A ID EA LID A D E DA U N ID A D E D E SIG N IFIC A Ç Ã O

§ 24. Introdução

No último capítulo, ocupamo-nos do ato de significar. No entanto, nas determinações do primeiro capítulo, distinguimos o significar enquanto ato e a própria significação, a unidade ideal que está perante a multiplicidade dos atos possíveis. Essa distinção - tal como as outras distinções conexas: entre conteúdo expresso em sentido subjetivo e objetivo e, a respeito deste último, entre con­ teúdo enquanto significação e conteúdo enquanto denominação - é, em inu­ meráveis casos, de uma clareza indubitável. Assim o é para todas as expressões que figuram na concatenação de uma teoria científica adequadamente apresen­ tada. Em comparação, há também casos em que as coisas sucedem de outro modo. rEles"i1exigem uma atenção particular, pois tendem a confundir de novo as distinções já estabelecidas. Trata-se das expressões flutuantes a respeito da significação e, sobretudo, das expressões essencialmente ocasionais e vagas, as quais oferecem aqui sérias dificuldades. A solução destas dificuldades por meio da distinção entre os atos flutuantes de significar e as significações idealmente unas, entre as quais eles flutuam, é o tema do presente capítulo.

< 8 4 > § 25. Relações de recobrimento entre o conteúdo da manifestação e o da denominação

As expressões podem ter uma referência tanto a outros objetos como também às vivências psíquicas presentes daquele que se exprime. De acor­ do com isso, as expressões dividem-se naquelas que nomeiam (ou, em geral, ■ "designam"!2) o objetual ao mesmo tempo que o manifestam e naquelas em que o conteúdo nomeado e o conteúdo manifestado se separam. Exemplos da primeira classe oferecem-nos as frases interrogativas, optativas, imperativas; da segunda classe, as frases declarativas que se referem a coisas externas, a vivências pró­ prias passadas, a relações matemáticas etc. Se alguém exprime o desejo eu estou pedindo um copo dagua, então, para aquele que ouve, isto é um índice do desejo

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A: Aqueles1. A: rsinalizam1.

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Cap. III ® A Flutuação das Significações das Palavras e a Idealidade da Unidade de Significação

daquele que se exprime. Ao mesmo tempo, este desejo é, porém, o objeto da asserção. O que é manifestado e o que é nomeado recobrem-se aqui parcialmen­ te. Digo recobrimento parcial porque, obviamente, a manifestação se estende ainda mais além. A ela pertence também o juízo que é expresso nas palavras eu estou pedindo etc. O mesmo se passa naturalmente também com asserções que asserem algo acerca do representar, julgar, supor, daquele que fala, asserções que, por conseguinte, têm a forma eu represento-me, sou da opinião, eu julgo, eu suponho etc., que... À primeira vista, o caso de recobrimento total parece mesmo possível, tal como no exemplo as vivências psíquicas que eu manifesto precisamente pelas palavras agora expressas, se bem que a interpretação deste exemplo não seja sustentável num exame mais pormenorizado. Pelo contrário, em asserções como 2 x 2 = 4, o estado-de-coisas manifestado e o estado-decoisas rasserido13 são completamente disjuntos. Esta proposição não quer de modo algum dizer o mesmo que esta outra: eu julgo que 2 x 2 = 4. Elas não são sequer equivalentes; uma pode ser verdadeira e a outra falsa. No entanto, deve-se notar que, com uma concepção mais estrita do con­ ceito de manifestação (no sentido antes delimitado4), os <85> objetos nomeados dos exemplos anteriores não cairiam no domínio das vivências manifestadas. Quem assere algo sobre as suas vivências psíquicas momentâneas comunica a sua existência por meio de um juízo. Ê apenas porque ele manifesta este juízo (cujo conteúdo é que ele deseja, espera etc. isto ou aquilo) que aquele que ouve o pode aperceber como alguém que deseja, espera etc. A significação de uma tal asserção reside neste juízo, enquanto as vivências internas em questão fazem parte dos objetos acerca dos quais se julga. Se incluímos na manifestação em sentido estrito apenas estas vivências indicadas, as quais transportam em si a significação da expressão, então os conteúdos da manifestação e da denomina­ ção permanecem, aqui e em geral, separados.5

significação varia de caso para caso. Mas isto acontece de um modo tão peculiar que se terá dúvidas em falar aqui de equivocidade. As mesmas palavras desejo-te sorte, pelas quais dou agora expressão a um desejo, podem servir para inúmeras outras pessoas darem expressão a um desejo com o “mesmo” conteúdo. Todavia> não são apenas os próprios desejos que são diferentes de caso para caso, mas também o conteúdo das asserções optativas. Uma vez é a pessoa A que está perante a pessoa B , outra vez, é a pessoa M que está perante a pessoa N. Se  deseja a B “o mesmo” que M a N , então o sentido da frase optativa é um sentido obviamente diferente, porque ele contém a representação da pessoa que está perante a outra. Esta plurivocidade é, porém, totalmente diferente, digamos, da plurivocidade da palavra cão, que significa, uma vez, um tipo de animais e, na outra, um tipo de vagoneta (como aquelas que são comuns nas minas). É a classe <86> das expressões plurívocas apresentada neste último exemplo que, preferencialmente, se costuma ter em vista quando se fala de equivocidades. Com ela, a plurivocidade não está apta a fazer abalar a nossa convicção acerca da idealidade e objetividade da significação. Depende inteiramente do nosso ar­ bítrio limitar uma tal expressão a uma significação e, em todo o caso, a unidade ideal de cada uma das diferentes significações não é tocada pela circunstância contingente de terem designações iguais. Que se passa, porém, com as outras expressões? Há ainda que manter, para elas, esta unidade idêntica de significa­ ção, que tornamos clara para nós por meio da oposição à mudança das pessoas e das suas vivências, agora que as significações devem variar precisamente com as pessoas e as suas vivências? Trata-se aqui, obviamente, não de plurivocidades contingentes, mas inevitáveis, que não se poderia eliminar das línguas por qual­ quer dispositivo artificial ou por qualquer convenção. Para maior clareza, definimos a distinção que se segue entre expressões essencialmente subjetivas e ocasionais, de um lado, e expressões objetivas, do outro. Por mor da simplicidade, limitamo-nos às expressões que funcionam normalmente. Chamamos a uma expressão objetiva quando ela amarra ou pode amar­ rar a sua significação simplesmente por meio do seu teor sonoro aparecente e quando, por conseguinte, pode ser compreendida sem precisarmos ter necessa­ riamente em vista a pessoa que se expressa e as circunstâncias da sua elocução. Uma expressão objetiva pode ser equívoca, e pode sê-lo de maneiras diferentes: ela está, então, relativamente às várias significações, na relação que descrevemos acima, em que depende das circunstâncias psicológicas (da direção contingente do pensamento daquele que ouve, rdo que já foi dito no fio do discurso, das tendências nele sugeridas"16 e coisas semelhantes) qual destas significações a

§ 26. Expressões essencialmente ocasionais e expressões objetivas As expressões que têm uma referência denominativa ao conteúdo mo­ mentâneo da manifestação pertencem ao grupo mais largo das expressões cuja345* 3 4 5

A: nomeado1. N.A.: Cf supra, § 1, p. <39>. Em A segue-se ainda este parágrafo: rRelações semelhantes às que existem entre manifes­ tação e denominação existem também entre denominação e significação. Os casos nor­ mais, só eles importantes para o conhecimento objetivo, são aqueles em que significação e objeto estão disjuntos. Que sejam aqui possíveis relações de recobrimento é o que mostra o seguinte exemplo: a significação do primeiro nome que eu agora precisamente (nestas palavras) expressos

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A: rdas consequências internas do contexto de pensamento global do discurso1.

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Cap. II! • A Flutuação das Significações das Palavras e a Idealidade da Unidade de Significação

expressão evoca e significa de fato. Pode ser que, nesta circunstância, seja pro­ veitoso ter em vista a pessoa que fala e a sua situação. Mas não depende desta consideração, como de uma conditio sine qua non, saber se a palavra <87> pode ser, em geral, compreendida ou não numa destas significações. Do outro lado, chamamos essencialmente subjetiva e ocasional ou, numa palavra, essencialmente ocasional, toda e qualquer expressão a que corresponde de tal modo um grupo conceitual-unitário de significações possíveis que lhe seja essencial, em cada caso, orientar a significação a cada vez atual segundo a ocasião, segundo a pessoa que fala e a sua situação. Apenas tendo em vista as circunstân­ cias factuais da elocução pode o ouvinte constituir, aqui e em geral, uma significa­ ção determinada entre as significações correspondentes. Na representação destas circunstâncias e na sua relação regulada com a própria expressão deve haver, por conseguinte, supondo que a compreensão intervém sempre em condições nor­ mais, pontos de referência suficientes e seguros, captáveis por qualquer um, pon­ tos estes que possam guiar o ouvinte para a significação visada num dado caso. Às expressões objetivas pertencem, por exemplo, todas as expressões te­ óricas, por conseguinte, aquelas expressões a partir das quais se constroem os princípios e teoremas, as demonstrações e as teorias rdas ciências “abstratas”"1. Relativamente àquilo que, por exemplo, uma expressão matemática significa, as circunstâncias do discurso atual não têm a menor influência. Nós a lemos e a compreendemos sem pensar, em geral, na pessoa que fala. Uma coisa totalmen­ te diferente sucede com as expressões que servem para as necessidades práticas da vida comum, assim como com as expressões que ajudam, nas ciências, à preparação dos resultados teóricos. Tenho em vista sob este último aspecto as expressões com que o investigador acompanha o seu próprio labor intelectual ou manifesta a outros as suas reflexões e esforços, os seus dispositivos metodo­ lógicos e as suas convicções provisórias. A toda e qualquer expressão que contenha um pronome pessoal falta já um sentido objetivo. A palavra eu nomeia, de caso para caso, uma outra pessoa, e fá-lo por meio de uma significação sempre nova. Qual seja, em cada caso, a sua significação é algo que só pode ser deduzido do discurso vivo e das circunstân­ cias que intuitivamente lhe pertencem. Se lermos a palavra sem sabermos quem a escreveu, teremos, então, uma palavra que, se não é sem significação, está pelo menos afastada da sua significação normal. Ela dá, sem dúvida, uma impres­ são diferente da de um <88> arabesco qualquer: sabemos que é uma palavra e, certamente, uma palavra com a qual aquele que fala se designa a si próprio. Mas a representação conceituai assim despertada não é a significação da palavra eu. Se não, rpoderíamos"17 simplesmente substituir a palavra eu pela expressão

o respectivo falante, que se designa a si próprio. A substituição conduziria, ma­ nifestamente, não apenas a expressões inabituais, mas a expressões diferentes quanto à significação. Por exemplo, se, em vez de eu estou alegre, disséssemos o respectivofalante, que se designa a si próprio, está alegre. A função de significação geral da palavra eu é designar o falante respectivo, mas o conceito por meio do qual expressamos esta função não é o conceito que constitui imediatamente e por si próprio a sua significação. No discurso solitário, a significação de eu consuma-se essencialmente na representação imediata da personalidade própria, e nisso consiste também a significação dessa palavra no discurso comunicativo. Cada falante tem a sua representação do eu (e, com isso, o seu conceito individual do eu), e, por isso mesmo, a significação da palavra é, para cada um, diferente. Mas porque cada um, quando fala de si próprio, diz eu, a palavra se reveste, assim, do caráter de um índice universalmente eficaz para este fato. Por meio desta indicação, reali­ za-se para o ouvinte a compreensão da significação, ele apreende, doravante, a pessoa que intuitivamente se lhe depara não apenas como aquela que fala, mas também como o objeto imediato do seu próprio discurso. A palavra eu não tem em si força para despertar diretamente a representação particular do eu que de­ termina a sua significação no discurso respectivo. Ela não atua como a palavra leão, que é capaz de despertar, em si e por si, a representação do leão. Intervém antes nela uma função indicativa que, por assim dizer, adverte o ouvinte: aquele que está perante ti visa-se a si mesmo. Todavia, devemos ainda juntar aqui um complemento. Visto mais de per­ to, não devemos conceber a coisa como se a representação imediata da pessoa que fala contivesse em si a significação completa e plena da palavra eu. Segura­ mente que não podemos ver esta palavra como uma palavra equívoca, cujas sig­ nificações fossem identificáveis com as de todos os nomes próprios possíveis de pessoas. <89> Pertence também, manifestamente, de certo modo à significação da palavra a representação do visar-se-a-si-próprio e a alusão, nela subjacente, à representação individual direta da pessoa que fala. Devemos mesmo admitir que há aqui, de uma forma peculiar, duas significações edificadas uma sobre a outra. Uma, referente à função geral, está ligada com a palavra de tal maneira que uma função indicativa se pode consumar no representar atual: esta, por seu lado, faz-se agora em proveito da outra, a representação singular, e torna ao mesmo tempo o seu objeto conhecido ao modo de uma subsunção, como aquele que é visado hic et nunc. A primeira podemos designá-la como significação indicadora, a segunda, como significação indicada.8 8

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A: rpodemos1.

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N.A.: rCf., na Investigação VI, § 5, as explanações respeitantes a uma ulterior clarificação desta distinção.1 [Aditamento de B. Cf. "Aditamentos e Melhoramentos'' a A: rNa revisão final do § 26 e durante a impressão, não vi, infelizmente, que, na presente exposição, a velha

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Investigações Lógicas - Fenomenologia e Teoria do Conhecimento • Edmund Husserl

O que é válido para os pronomes pessoais vale também, naturalmente, para os demonstrativos. Se alguém diz isto, não despertará diretamente no ou­ vinte a representação daquilo a que visa, mas, antes de tudo, a representação, correspondentemente, a convicção de que visa a qualquer coisa presente no seu campo de intuição ou de pensamento, para a qual o quer remeter. Atendendo às circunstâncias do discurso, este pensamento torna-se uma guia suficiente para aquilo que é efetivamente visado. Ao isto lido isoladamente falta de novo a sua significação autêntica, e só o compreendemos na medida em que desperta o conceito da sua função remissiva (aquela que denominamos como s ig n ifica rã o indicadora da palavra). Mas a significação efetiva e plena só pode desenvolverse, no caso da sua função normal, sobre a base de uma representação confluente acerca daquilo a que esta significação se refere objetivamente. Deve-se, sem dúvida, observar que o demonstrativo funciona frequen­ temente de um modo que podemos considerar como equivalente a um modo objetivo. <90> Um isto num contexto matemático remete para qualquer coisa de tal ou tal maneira determinada de um modo conceitualmente fixo, a qual será compreendida como sendo assim visada, sem que se necessite de qualquer consideração do ato atual de elocução. Assim é, por exemplo, quando uma expo­ sição matemática, depois de ter nomeado explicitamente uma proposição, pros­ segue: isto se segue de que... Aqui, o isto poderia ser substituído, sem alteração considerável de sentido, pela respectiva proposição, e tal se compreende a partir do sentido objetivo da própria exposição. Deve-se, sem dúvida, atentar na conti­ nuidade do desenvolvimento, porque o que pertence em e por si ao demonstra­ tivo é apenas o pensamento da remissão, mas não a significação intentada. Aqui, a mediação através de uma significação indicadora serve apenas à concisão e à mais fácil regulação da direção principal das intenções de pensamento. Mani­ festamente que o mesmo não se pode dizer, porém, dos casos familiares em que o isto remissivo e fórmulas semelhantes visam, digamos, à casa que está perante aquele que fala ou o pássaro que diante dele voa, e casos análogos. Aqui, a intui­ ção individual (mudando de caso para caso) deve estar suposta, não bastando olhar retrospectivamente para os pensamentos objetivos antes expressos. À esfera das expressões essencialmente ocasionais pertencem, além disso, as determinações referidas ao sujeito, como aqui, ali, acima, abaixo, correspon­ dentemente, ontem, amanhã, depois etc. Para examinar ainda um último exem­ plo, aqui designa a cercania espacial do falante, vagamente delimitada. Quem usa a palavra visa ao seu lugar com base na representação intuitiva e na posição concepção (melhorada no decurso da minha investigação) não é suficientemente eliminada e que, por isso, a presente exposição não concorda totalmente com a Investigação VI, § 5. Para a distinção entre significação indicadora e indicada deve comparar-se, por conseguin­ te, a exposição melhorada e mais clara do aditamento, p. <494> e segs.1]

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da sua pessoa com a sua localização. Esta localização muda de caso para caso, e ainda de pessoa para pessoa, se bem que cada uma possa dizer aqui. É, de n0vo, função geral da palavra nomear a cercania espacial daquele que fala; e, certamente, de tal maneira que ra significação autêntica da palavra se constitui, pela primeira vez, com base na respectiva representação desse lugafi ,910Por um lado, a significação é, sem dúvida, genericamente conceituai, <91> porquanto aqui denomina, em geral, um lugar enquanto tal; mas a este geral junta-se a representação rdireta310 do lugar, variando de caso para caso, que, sob dadas circunstâncias do discurso, é apontada através desta representação conceituai indicativa do aqui e lhe está subordinada. O caráter essencialmente ocasional transpõe-se naturalmente para todas as expressões que contêm como partes estas representações ou outras seme­ lhantes, e isto abarca todas aquelas múltiplas formas discursivas em que o fa­ lante traz à expressão normal qualquer coisa que lhe diga respeito ou que seja pensada por meio de uma referência a si próprio, por conseguinte, todas as ex­ pressões para percepções, convicções, dúvidas, esperanças, receios, ordens etc. Portanto, fazem também parte disto todas as construções com o artigo definido, nas quais este diga respeito ao ser individual, apenas determinado por meio de conceitos de classe ou de propriedades. Quando nós, alemães, falamos de o Imperador, visamos naturalmente ao imperador alemão atual. Quando, ao anoitecer, pedimos a lamparina, cada um refere-se à sua. Nota. As expressões de significação essencialmente ocasional, tratadas neste parágrafo, não se inserem na útil repartição de Paul das expressões com uma significação usual e com uma significação ocasional. Esta repartição tem o seu fundamento no fato de que “a significação que uma palavra tem a cada vez que se emprega não tem de coincidir com aquela que, em e por si, lhe convém segundo o uso”.11 Não obstante, Paul inseriu também nas suas considerações as palavras essencialmente ocasionais no nosso sentido. Ele diz nomeadamente:12 “ [...] Há algumas [palavras em emprego ocasional] que, segundo a sua essência, estão destinadas a designar algo concreto, apesar de, porém, não se lhes ajuntar, em si, a referência a qualquer coisa concreta determinada, a qual deve ser dada apenas pelo emprego individual. Pertencem a este tipo os pronomes pessoais, possessivos, demonstrativos e os advérbios demonstrativos, e também palavras 9

A: ra significação primária da palavra reside na respectiva representação intuitiva deste próprio lugar. Cf. "Aditamentos e Melhoramentos" a A: rEm referência ao exemplo aqui, a p. <85> deverá querer dizer naturalmente e em consonância com a correta concepção da p. <84>: "a significação autêntica da palavra ['aqui'] constiui-se, pela primeira vez, com base na respectiva representação deste lugar. 10 A: nntuitiva e, em todo caso, direta1. 11 N.A.: H. Paul, Prinzipien der Sprachgeschichte (Princípios da História da Linguagem)3, p. 68. 12 N.A.: Op. cit, no último parágrafo.

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como agora, hoje, ontem”13Quer-me parecer, porém, que o ocasional neste sen­ tido cai fora da oposição pela qual foi definido. Pertence à significação usual desta classe de expressões deverem a sua determinação de significação apenas <92> à ocasião e serem, por conseguinte, ocasionais num certo sentido diverso. Podemos repartir, em geral, as expressões de significação usual (no sentido de Paul) em expressões de univocidade usual e de plurivocidade usual; as últimas, de novo em expressões que oscilam de modo usual entre significações determi­ nadas, que se podem indicar de antemão (as expressões equívocas contingentes, tais como cão, vela etc.), e expressões em que isso não acontece. A estas últimas pertencem as nossas expressões de significação essencialmente ocasional, na medida em que orientam a sua significação respectiva apenas segundo o caso singular, se bem que o modo como o fazem seja usual.

a circunstância contingente do discurso coadjuvasse a compreensão. <93> Por exemplo, Anda! Você! Meu Deus! Mas, mas...! etc. Por meio da situação objetiva intuitiva em que o falante e o ouvinte em comum se encontram, as significações em parte lacunares, em parte subjetivamente indeterminadas, complementamse ou diferenciam-se: elas tornam compreensíveis as expressões insuficientes. Sob as distinções referentes à plurivocidade das expressões, também nomeamos acima a distinção entre expressões exatas e vagas. Vagas são a maioria das expressões da vida comum, como árvore e arbusto, animal e planta, e semelhantes, enquanto são exatas todas as expressões que surgem como elementos integrantes das teorias e leis puras. As expressões vagas não possuem uma significação idêntica em todos os casos do seu emprego; elas orientam a sua significação segundo exem­ plos captados como típicos, mas apenas parcialmente claros e determinados, que costumam mudar reiteradamente numa e mesma trajetória de pensamento. Estes exemplos, tomados de uma esfera coisal unitária (ou que, pelo menos, parece valer como unitária), determinam conceitos diferentes, mas normalmente aparentados ou correlacionados, entre os quais, então, de acordo com as circunstâncias do dis­ curso e as incitações intelectuais que ele sofre, surge umas vezes um dado conceito e, outras vezes, um outro: isto acontece na maioria dos casos, porém, sem que haja possibilidade de uma identificação e diferenciação seguras, que nos rpudessem proteger114 de confusões imperceptíveis entre os conceitos correlacionados. Em conexão com a imprecisão dessas expressões vagas, está a das ex­ pressões para gêneros e espécies relativamente simples de determinações raparecentes1,141516que se convertem constantemente umas nas outras segundo o modo espacial, temporal, qualitativo, intensivo. Os caracteres típicos que se im­ põem com base na percepção e experiência, por exemplo, as formas espaciais e temporais, as formas cromáticas e sonoras etc., determinam expressões signifi­ cativas que, em consequência da transição fluente destes tipos (no interior dos seus gêneros superiores), deverão se tornar elas próprias fluentes. Certamente que o seu emprego é seguro no interior de certas distâncias e limites, nomea­ damente na esfera em que o típico surge claramente, <94> onde é identificável com evidência e onde é diferenciável com evidência de determinidades mais distantes (vermelho cor de fogo e negro como carvão, andante e presto). Mas estas esferas são de delimitação vaga, elas defluem para as esferas rcorrelativas116den­ tro dos gêneros abrangentes e condicionam a existência de esferas de transição em que a aplicação é completamente flutuante e insegura.17

§ 27. Outros tipos de expressões flutuantes O flutuar das expressões essencialmente ocasionais aumenta ainda por via da frequente imperfeição com que estas estampam a intenção do falante. Em geral, a distinção entre expressões essencialmente ocasionais e objetivas cruza-se com outras distinções que designam, ao mesmo tempo, novas formas da plu­ rivocidade. Assim acontece com as distinções entre expressões completas e in­ completas (entimemáticas), entre as que funcionam normal ou anormalmente, entre expressões exatas e vagas. As expressões impessoais do discurso corrente oferecem bons exemplos de como expressões aparentemente fixas e objetivas são, na realidade, subjetivamente flutuantes por força de abreviações entimemáticas. Ninguém compreenderá a frase há bolos como compreende a proposição mate­ mática há corpos regulares. No primeiro caso, não se entende que, de um modo geral, pura e simplesmente haja bolos, mas antes que aqui e agora - com o café - há bolos. Chove não quer dizer que chova por toda parte, mas antes que agora e láfora chove. Aquilo que falta à expressão não é apenas silenciado, mas, em geral, não é expressamente pensado: pertence, porém, certamente àquilo que é visado no discurso. A adjunção dos complementos faz surgir, manifestamente, expres­ sões caracterizáveis como essencialmente ocasionais, no sentido acima definido. Ainda maior é a diferença com o que é autenticamente expressado - no­ meadamente, entre o conteúdo assinalado e abarcado pelas funções de signi­ ficação, por todo lado idênticas, das respectivas palavras, de um lado, e a sua intenção ocasional, do outro - quando as expressões são tão abreviadas que não seriam sequer adequadas para dar expressão a um pensamento definido sem que 13

N.A.: A limitação às coisas concretas é, certamente, algo não essencial. Por exemplo, os pronomes demonstrativos podem remeter também a coisas abstratas.

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A: protegessem1. A: Tenomênicas1. A: correlatas1. N.A.: Cf. B. Erdmann, Theorie der Typeneinteilungen (Teoria das Distribuições dos Tipos), Philos. Monatshefte, v. XXX.

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§ 28. A flutuação das significações enquanto flutuação do significar Tomamos contato com diferentes classes de expressões que mudam na sua significação e que, em conjunto, são subjetivas e ocasionais, na medida em que as circunstâncias contingentes do discurso exercem influência sobre esta mudança. Perante elas estão outras expressões respectivas, que são objetivas e fixas num sentido correspondentemente lato, na medida em que a sua significação18 está normalmente livre de toda e qualquer flutuação. Se tomarmos este ser-livre de toda e qualquer flutuação de um modo completamente estrito, então ficam deste lado apenas as expressões exatas e, do outro, as expressões vagas, e, além disso, ainda as expressões que variam ocasionalmente por outras razões diferentes. Deve-se agora examinar a questão de saber se estes fatos importantes relativos à flutuação da significação estão habilitados a abalar a nossa concep­ ção das significações como unidades ideais (e, por isso, rígidas) ou a limitá-la essencialmente no que diz respeito à sua generalidade. São sobretudo as ex­ pressões plurívocas, que designamos acima como essencialmente subjetivas ou ocasionais, e, do mesmo modo, as diferenças entre expressões vagas e exatas, que poderiam dispor-nos à dúvida a respeito desta questão. Dividem-se, por conseguinte, as próprias significações em objetivas e subjetivas, em fixas e oca­ sionalmente variantes, e estará a diferença, como poderia parecer à partida, no fato de que, apenas para o exprimir com outras palavras, umas representam unidades ideais ao modo de espécies fixas, as quais permanecem intocadas pelo fluxo do representar e pensar subjetivos, enquanto as <95> outras submergem no fluxo das vivências psíquicas subjetivas e, enquanto acontecimentos passa­ geiros, existem umas vezes e outras não? Dever-se-ia1920decidir que uma tal concepção não é acertada. O conteú­ do a que a expressão subjetiva, orientada, quanto à sua significação, segundo a ocasião, visa num caso determinado é precisamente uma significação idealunitária no mesmo sentido que o conteúdo de uma expressão fixa. Isto o mostra claramente a circunstância de, idealmente falando, toda e qualquer expressão subjetiva ser substituível por expressões objetivas com manutenção idêntica da intenção de significação que lhe convém num dado momento. Devemos certamente confessar que esta substituição não se efetua apenas por razões de necessidade prática, digamos, por força da sua complicação, mas antes que, em larga medida, não é fatualmente realizável e deve até mesmo per­ manecer para sempre irrealizável.

Cap. III ® A Flutuação das Significações das Palavras e a Idealidade da Unidade de Significação

Com efeito, é claro que a nossa afirmação de que toda e qualquer expressão subjetiva se deixa substituir por uma objetiva não quer afirmar, no fundo, outra coisa senão a ausência de limites da razão objetiva. Tudo o que é, é “em si” cognoscível, e o seu ser é um ser determinado quanto ao conteúdo, que se atesta nestas e naquelas “verdades em si”. O que é tem em si as suas qualidades e relações fixamente determinadas, e, se é um ser real no sentido da natureza coisal, tem a sua extensão e posição fixamente determinada no espaço e no tempo, o seu modo fixamente determinado de persistência e alteração. O que é, porém, fixamente determinado deve poder deixar-se determinar objetivamente, e o que se deixa determinar objetivamente deixa-se, idealmente falando, exprimir em palavras que tenham significações fixamente determinadas. Ao ser em si correspondem as verdades em si e a estas, ainda, as asserções fixas e unívo­ cas em si. Sem dúvida que, para sempre poder realmente asseri-las, precisamos não simplesmente do necessário número de signos verbais bem diferenciados, mas sobretudo do número correspondente de expressões exatamente significati­ vas - tomando esta palavra no seu sentido pleno. É necessária a capacidade de formar todas estas expressões, por conseguinte, as <96> expressões para todas as significações que estejam teoreticamente em questão e, relativamente a elas, identificar ou distinguir com evidência as suas significações. Estamos, todavia, infinitamente afastados desse ideal. Que se pense ape­ nas na deficiência das determinações de tempo e de lugar, na nossa incapa­ cidade para determiná-las senão por meio da sua relação com existências in­ dividuais já dadas de antemão, enquanto estas são elas próprias inacessíveis a uma determinação exata, não perturbada por qualquer aplicação de expressões significativas essencialmente subjetivas. Suprimamos da nossa língua as pala­ vras essencialmente ocasionais e procuremos descrever uma qualquer vivência subjetiva de um modo unívoco e objetivamente fixo. Manifestamente, qualquer tentativa será vã. Não obstante, ré claro o bastante120 que, em si consideradas, entre signi­ ficações e significações não há qualquer diferença essencial. As significações de

Em A segue-se: rpor meio de uma associação fixa à palavra, ou, simultaneamente, na forma de uma conexão discursiva1. 19 A: rhem\

20 A: rquer-me parecer que, por exemplo, toda e qualquer determinação de lugar e de tempo pode tornar-se, de acordo com a possibilidade ideal, o substrato de uma significação pró­ pria correspondente. Cada lugar deve ser em si distinguível de qualquer outro, do mesmo modo que cada qualidade cromática deve ser distinguível de qualquer outra. E como é pos­ sível a priori uma representação que vise direta mente (não de modo circunscritivo e ainda menos por relação com um indivíduo dado de antemão) à qualidade idêntica consigo mes­ ma; como, mais ainda, é pensável a priori uma possível repetição desta representação com continuada identificação da sua intenção e, finalmente, a ligação desta intenção idêntica a uma expressão, enquanto sua significação: então deve o mesmo valer também para as de­ terminações individualizadoras, mesmo que elas possam distinguir-se consideravelmente das restantes determinações.

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fato das palavras são flutuantes, mudam frequentemente no decurso da mesma cadeia de pensamento; e, em grande parte, elas são determinadas, pela sua pró­ pria natureza, por meio da ocasião. Mas, vista mais de perto, a flutuação das significações é propriamente uma flutuação do significar. Ou seja, flutuam os atos subjetivos que conferem significação às expressões, e eles alteram-se não apenas individualmente, mas também e sobretudo segundo os caracteres especí­ ficos em que a sua significação reside. Não são, porém, as próprias significações que se alteram, e esta maneira de falar é decididamente um contrassenso, estan­ do pressuposto que continuamos, com isso, tanto para as expressões unívocas e objetivamente fixas como para as equívocas <97> e subjetivamente enredadas, a entender as significações como unidades ideais.21 Isto o exige não apenas a forma normal de falar, orientada pelas significações fixas, acerca de uma significação, que é sempre identicamente a mesma, seja quem for que possa enunciar a mesma expressão, mas exige-o acima de tudo o escopo condutor das nossas análises.

unidade, enquanto unidade de significação, à objetividade significada (e para n5s “dada” no conhecimento evidente). É inegável que aquilo a que, neste sen­ tido chamamos significação não abarca absolutamente senão unidades ideais, ue são expressas em múltiplas expressões e em múltiplas vivências de ato <98> são pensadas, e que, todavia, devem ser bem distinguidas tanto das expressões contingentes como das vivências contingentes daqueles que pensam. Se toda e qualquer unidade teórica dada é, segundo a sua essência, unidade de significação, e se a Lógica é a ciência da unidade teórica em geral, então é ao mesmo tempo evidente que a Lógica deve ser ciência das significações en­ quanto tais, das suas espécies e diferenças essenciais, tanto como das leis puras (portanto, ideais) que nelas se fundam. Porque destas diferenças essenciais fa­ zem certamente também parte aquelas diferenças entre significações objetivas e sem objeto, entre significações verdadeiras e falsas, e, por conseguinte, relativa­ mente a estas leis, também as “leis de pensamento” puras, que expressam a co­ nexão apriorística das formas categoriais das significações e a sua objetividade, ou seja, a sua verdade. Certamente que esta concepção da Lógica como uma ciência das signifi­ cações contradiz o modo comum de falar e de proceder da Lógica tradicional, a qual opera com termos psicológicos ou que são para interpretar psicologica­ mente, como representação, juízo, afirmação, negação, premissa, consequência, e semelhantes, e que, com isso, pretende estabelecer realmente simples diferen­ ças psicológicas e inquirir as legalidades psicológicas que se lhes referem. Toda­ via, de acordo com as investigações críticas dos Prolegômenos, esta concepção não mais pode induzir-nos em erro. Ela mostra apenas quão afastada está ainda a Lógica da reta compreensão dos objetos que formam o seu campo de investi­ gação mais próprio, e o quanto ela tem ainda de aprender com essas ciências ob­ jetivas que ela pretende, porém, levar à compreensão teorética da sua essência. Onde as ciências desenvolvem teorias sistemáticas, onde, em vez de co­ municar a simples marcha da investigação e fundamentação subjetivas, apre­ sentam como unidade objetiva o fruto maduro de verdades conhecidas, aí em parte alguma se fala de juízos, de representações e de outros atos psíquicos. O investigador objetivo define, sem dúvida, expressões. Ele diz: por fiorças vivas, por massa, por integral, por seno etc. entende-se isto e aquilo. Mas, com isso, ele remete apenas para a <99> significação objetiva das suas expressões, ele sinaliza os “conceitos” que tem diante dos olhos e que jogam o seu papel, como momen­ tos constitutivos, nas verdades do seu domínio. Não lhe interessa o compreen­ der, mas antes o conceito, que vale para ele como unidade de significação ideal, assim como a verdade, que se constrói ela própria a partir de conceitos. O investigador expõe, então, proposições. Naturalmente que, com isso, ele afirma, julga. Mas ele não quer falar do seu juízo ou do juízo de um qualquer outro, mas antes dos correspondentes estados-de-coisas, e quando, em reflexão

§ 29. A lógica pura e as significações ideais De fato, rsempre que trata de conceitos, juízos, raciocínios,"1 a Lógica pura tem que ver exclusivamente com estas unidades ideais, que denominamos aqui significações: e na medida em que nos esforçamos por extrair a essência ideal das significações dos seus vínculos psicológicos e gramaticais, na medida em que, para além disso, temos em vista clarificar as relações apriorísticas de adequação à objetividade significada fundadas nesta essência, estamos já no do­ mínio da Lógica pura. Isso é desde logo claro quando pensamos, por um lado, na posição que a Lógica assume relativamente à multiplicidade das ciências - segundo a qual ela é a ciência nomológica que se dirige à essência ideal da ciência enquanto tal ou, o que é o mesmo, a ciência nomológica do pensamento científico em geral, e certamente puramente segundo o seu teor e travação teorético; e quando, por outro lado, atentamos em que o teor teorético de uma ciência não é outro que o teor significativo das suas asserções teoréticas, independentemente de toda a contingência dos sujeitos que julgam e das circunstâncias dos seus juízos, que, com isto, as asserções são uma unidade na forma da teoria e que, mais ainda, a teoria deve a sua validade objetiva à adequação - conforme a leis ideais - da sua

Em todo caso, a possibilidade ideal que acabamos precisamente de considerar e que, as­ segurada a priori por evidência, representa um fundamento da teoria do conhecimento, torna para nós claro o bastante1. 21

Em A segue-se: r, por conseguinte, espécies1.

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Cap. III • A Flutuação das Significações das Palavras e a Idealidade da Unidade de Significação

crítica, se refere às proposições, visa então às significações assertivas ideais. Não aos juízos, mas, sim, às proposições denomina ele como verdadeiras ou falsas; certas proposições são, para ele, premissas, e certas proposições são, para ele, consequências. As proposições não se constroem a partir de atos psíquicos, a partir de atos de representar ou de ter-por-verdadeiro, mas antes, quando não outra vez a partir de proposições, finalmente a partir de conceitos. As proposições são as pedras de construção dos raciocínios. Também aqui existe de novo a distinção entre o ato de raciocinar e o seu conteúdo uni­ tário, o raciocínio, isto é, a significação idêntica de certas asserções complexas. A relação de consequência necessária, que constitui a forma do raciocínio, não é uma conexão empírico-psicológica de vivências judicativas, mas antes uma relação ideal entre significações de asserções possíveis, de proposições. Que ela r4exista 5"i22 ou r“subsista”"i23 quer dizer: ela vale, e a validade é qualquer coisa que não tem qualquer relação com aquele que empiricamente julga. Quando o cientista natural deduz o modo de funcionamento de uma máquina a partir das leis da alavanca, das leis do peso, e coisas semelhantes, ele vive certamente em si mesmo todo o tipo de atos subjetivos. Aquilo que ele pensa e liga unitariamente são, porém, conceitos e proposições, com as suas relações objetivas. À ligação subjetiva de pensamentos corresponde, com isso, uma unidade de significação objetiva (ou seja, adaptando-se adequadamente à objetividade “dada” na evi­ dência) que é aquilo que é, possa alguém atualizá-la no pensamento ou não. E assim por todo lado. Se o investigador científico não aproveita, com isso, o ensejo para separar expressamente a componente linguística e significativa do que é objetivamente pensado e relativo à significação, <100> ele sabe, porém, muito bem que a expressão é o contingente e que o pensamento, a significação rideal-idêntica"i ,24 é o essencial. Ele sabe também que não cria a validade obje­ tiva dos pensamentos e conexões de pensamento, a dos conceitos e verdades, como se se tratassem de contingências do seu espírito ou do espírito humano em geral, mas, sim, que as vê intelectualmente, as descobre. Sabe que o seu ser ideal não tem o significado de um “ser no nosso espírito”, de natureza psico­ lógica, porque, com a supressão da autêntica objetividade da verdade e do ser ideal em geral, todo ser real, inclusive o ser subjetivo, seria também suprimido. E, quando investigadores isolados ocasionalmente ajuízam de modo diferente estas coisas, então isso sucede fora do contexto das suas ciências especializadas e numa reflexão subsequente. Se nos é permitido, porém, ajuizar com Hume que as convicções verdadeiras dos homens se atestam melhor nas suas ações do que nos seus discursos, deveríamos então repreender esses investigadores por não

se compreenderem a si próprios. Eles não olham sem preconceitos para aquilo a que visam na sua investigação e fundamentação ingênuas, deixam-se antes in­ duzir em erro, através da presumida autoridade da Lógica, com as suas falácias psicológicas e a sua terminologia subjetivisticamente falsificada. Toda e qualquer ciência é, segundo o seu teor objetivo, enquanto teoria, constituída a partir dessa matéria homogênea una, ela é uma complexão ideal de significações.2526Poderíamos, sim, dizer ainda mais: toda esta trama de sig­ nificações, contudo tão variegada, que denominamos como unidade teorética da ciência, pertence ela própria, de novo, à categoria que abarca todos os seus elementos integrantes, constitui ela própria uma unidade de significação. Se é, portanto, a significação e não o significar, se é o conceito e a propo­ sição, não a representação e o juízo, aquilo que dá essencialmente a medida na ciência, então eles são necessariamente os objetos gerais de investigação na ci­ ência que trata da essência da ciência. De fato, tudo o que é da ordem da Lógica cai sob as categorias correlativamente correspondentes <101> de significação e objeto1 26 Por conseguinte, se falamos no plural de categorias lógicas, não se pode tratar senão de espécies puras que a priori se diferenciam no interior do gênero significação, ou de formas correlativamente correspondentes rda objetividade categorialmente captada enquanto tal1.27 Nestas categorias se fundam, então, as leis que são formuladas pela Lógica: de um lado, as leis que dizem respeito à simples complicação das significações em novas significações (não importando se “reais” ou “imaginárias”), não considerando as relações ideais entre intenção de significação e intenção de preenchimento, por conseguinte, a possível função cognitiva das significações.28 Do outro lado, as leis lógicas em sentido pleno, que se referem às significações a respeito da sua objetividade e ausência de objeto, da sua verdade e falsidade, da sua concordância e contrassenso, tanto quanto coisas semelhantes estão determinadas por meio da simples forma categorial das sig­ nificações. A estas leis correspondem, numa volta equivalente e correlativa, leis para objetos em geral, porquanto são pensados como determinados por meio de simples categorias. Estão incluídas nestas leis todas as asserções válidas sobre a existência e a verdade, que se deixam estabelecer sob o fundamento das simples formas da significação, abstraindo de qualquer matéria do conhecimento.

22 Em A faltam as aspas. 23 Em A faltam as aspas. 24 A: respecificamente idêntica1.

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25 Em A segue-se: rin specie1. 26 "Aditamentos e Melhoramentos" a A: significação, intuição {enquanto preenchimento da significação) e objeto1. 27 'Aditamentos e Melhoramentos" a A: rda intuição preenchente e da objetividade catego­ rialmente captada enquanto tal, que se constitui através dela1. 28 N.A.: rSobre isto, os pormenores serão expostos na Investigação IV.1

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mm

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< 102> C a p í t u l o

IV

O C O N T E Ú D O F E N O M E N O L Ó G IC O E ID E A L D A S V IV Ê N C IA S d e s ig n if ic a ç ã o

§ 30. O conteúdo da vivência expressiva em sentido psicológico e o seu conteúdo

no sentido da significação unitária

Não vemos a essência da significação na vivência que confere a significa­ ção, mas, sim, no seu “conteúdo”, que representa uma unidade intencional1idên­ tica perante a multiplicidade dispersa das vivências, reais ou possíveis, daquele que fala ou pensa. Neste sentido ideal, o “conteúdo” das respectivas vivências de significação não é nada menos que aquilo a que a Psicologia visa sob o título de “conteúdo”, a saber, qualquer parte real2 ou aspecto de uma vivência. Se compre­ endemos um nome - não importa se ele nomeia algo individual ou geral, físico ou psíquico, existente ou não existente, possível ou impossível - ou se compreen­ demos uma asserção - não importa se ela é, segundo o seu conteúdo, verdadeira ou falsa, se é coerente ou um contrassenso, se é objeto de um juízo ou imaginada -, então aquilo que uma ou outra dessas expressões quer dizer (numa palavra, a significação, que constitui o conteúdo lógico e que é diretamente designado, nos contextos puramente lógicos, como representação ou <103> conceito, juízo ou proposição e semelhantes) não é nada que pudesse valer, no sentido real, como parte do respectivo ato de compreensão. Naturalmente que esta vivência tem também os seus componentes psicológicos, ela é um conteúdo e consiste em con­ teúdos no sentido psicológico habitual. A eles pertencem antes de tudo os ele­ mentos integrantes sensíveis da vivência, a aparição da palavra segundo os seus conteúdos puramente visuais, acústicos e motores, e, para além disso, os atos da interpretação objetivante, que inserem as palavras no espaço e no tempo. A com­ posição psicológica é, a este respeito, consabidamente uma composição muito variegada, mudando consideravelmente de indivíduo para indivíduo; do mesmo modo, ela também varia para o mesmo indivíduo em diferentes tempos, e, certa­ mente, a respeito de “uma mesma” palavra. Que eu, nas representações de palavra com que acompanho e apoio o meu pensamento silencioso, fantasie, a cada vez, as palavras pronunciadas pela minha voz, que se costumem destacar, com isso, por vezes os sinais grafados da minha estenografia ou da minha caligrafia normal 1

2

N.A.: A palavra intencional pode ser aplicada, de acordo com a sua formação, tanto à sig­ nificação quanto ao objeto da intentio. Unidade intencional não significa, por conseguinte, necessariamente a unidade intencionada, a do objeto. N.T.: Real.

Investigações Lógicas - Fenomenologia e Teoria do Conhecimento • Edmund Husserl

Cap. IV • O Conteúdo Fenomenológico e Ideal das Vivências de Significação

- isso são as minhas peculiaridades individuais, que pertencem apenas ao con­ teúdo psicológico da minha vivência de representação. Ao conteúdo em sentido psicológico pertencem ainda diversas diferenças a respeito do caráter de ato, que nem sempre são fáceis de captar descritivamente e que constituem, do ponto de vista subjetivo, a intenção, correspondentemente, a compreensão. Quando ouço o nome Bismarck, é, então, completamente indiferente para compreensão da pa­ lavra na sua significação unitária que eu represente na fantasia o grande homem com chapéu e manto ou com uniforme couraceiro, que tome como padrão esta ou aquela imagem figurativa. Mesmo a circunstância de saber se, em geral, estão presentes ilustrações intuitivas ou imagens da fantasia, animando indiretamente a consciência de significação, não tem aqui qualquer relevância. Em confronto com uma concepção benquista, estabelecemos3que a essên­ cia do expressar reside na intenção de significação e não nas ilustrações intuitivas mais ou menos perfeitas, mais próximas ou mais afastadas, que se lhe podem associar preenchendo-a. Logo que elas estão disponíveis, porém, ficam intima­ mente fusionadas com a intenção de significação; e é por via disso concebível que <104> a vivência unitária da expressão, funcionando significativamente, mos­ tre, considerada caso a caso, diferenciações psicológicas observáveis também do lado da significação, se bem que, contudo, a sua significação permaneça inal­ terada. Mostramos também4 que a esta mesmidade da significação correspon­ de efetivamente, nos atos respectivos, qualquer coisa de determinado; que, por conseguinte, aquilo que denominamos como intenção de significação não é um caráter indiferenciado, que só pela conexão com a intuição preenchedora, por­ tanto extrinsecamente, se diferenciaria. Ao contrário, a significações diferentes, ou seja, a expressões funcionando diferentemente quanto à significação, perten­ cem também intenções de significação diferentemente caracterizadas quanto ao conteúdo; ao passo que todas as expressões compreendidas no mesmo sentido estão providas da mesma intenção de significação, como de um caráter psicoló­ gico identicamente determinado. E é através dele que as vivências de expressão, tão fortemente diferenciadas no seu teor psicológico, se tornam pela primeira vez vivências da mesma significação. Obviamente, a flutuação do ato de signifi­ car impõe, aqui, certas restrições, que não alteram, porém, a essência das coisas.

diferença que queremos clarificar a respeito das expressões e, corresponden­ temente, dos atos expressivos, a saber, a diferença entre o seu teor psicológico e o seu teor lógico. Como ao teor psicológico pertence, naturalmente, tanto o que é igual de caso para caso quanto o que muda ocasionalmente. E não é também de modo nenhum nossa doutrina que o próprio caráter de ato, que permanece por toda parte igual, seja já a significação. O que, por exemplo, a frase declarativa n é um número transcendente diz, o que nós, lendo, com­ preendemos e a que, falando, com isso, visamos, não é um traço individual do nosso pensamento, só que sempre recorrente. De caso a caso, este traço é sempre individualmente diferente, enquanto o sentido da <105> frase decla­ rativa deve ser idêntico. Se repetirmos, nós ou qualquer outra pessoa, a mesma proposição com igual intenção, então cada uma terá os seus fenômenos, as suas palavras e os seus momentos de compreensão. Perante esta multiplicida­ de ilimitada de vivências individuais, contudo, aquilo que nelas é expresso é, por toda parte, algo idêntico, é o mesmo, no sentido mais estrito da palavra. A significação da proposição não se multiplica com o número de pessoas e de atos, o juízo é um, no sentido lógico ideal. Que nós insistamos, aqui, na estrita identidade da significação e a distin­ gamos de qualquer caráter psíquico constante do significar não deriva de uma predileção subjetiva por distinções sutis, mas antes da segura convicção teórica de que só deste modo se pode fazer jus a uma situação fundamental para a com­ preensão da Lógica. Não se trata também, com isto, de uma simples hipótese, que só a sua produtividade explicativa deveria justificar; reivindicamo-la antes a título de verdade imediatamente compreensível e seguimos, nisto, a autoridade última para todas as questões relativas ao conhecimento - a da evidência. Vejo intelectualmente que, nos repetidos atos de representar e de julgar, viso ou pos­ so visar identicamente ao mesmo, ao mesmo conceito e, correspondentemente, à mesma proposição; vejo intelectualmente que, ao falar, por exemplo, da pro­ posição ou da verdade n é um número transcendente, não tenho diante dos olhos nada menos do que a vivência individual ou momento de vivência de qualquer pessoa. Vejo intelectualmente que este discurso reflexivo tem realmente como objeto aquilo que constitui a significação no discurso direto. Por fim, vejo in­ telectualmente que aquilo a que viso na frase mencionada, ou (quando a ouço) que apreendo como sua significação, é identicamente aquilo que é, pense eu ou não, exista eu ou não, e, em geral, haja ou não pessoas pensantes e atos de pensamento. O mesmo vale para toda e qualquer espécie de significações, para significações de sujeito, significações de predicado, de relações, de conexões etc. É válido sobretudo também para as determinidades ideais que não convêm pri­ mariamente senão às significações. A elas pertencem, para recordar algumas particularmente importantes, os predicados verdadeiro e falso, possível e imposswel, geral e singular, determinado e indeterminado etc.

§ 31. O caráter de ato do significar e a significação idealmente una Com a remissão a este elemento psicológico comum, em contraposi­ ção ao elemento psicológico variável, não caracterizamos ainda, contudo, a 3 4

N.A.: Cf. supra o Segundo Capítulo, §17, p. <67> e segs. fM.Â.: Cf. § 22, p. <78>.

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Essa verdadeira identidade que aqui afirmamos não é outra senão a iden­ tidade da espécie. Assim - e só, porém, assim - pode ela, enquanto unidade ideal, abarcar a dispersa multiplicidade das <106> singularidades individuais crujj.páXXeiv eiç ev.5 As singularidades múltiplas que formam a significação idealmente una são, naturalmente, os correspondentes rmomentos de ato1 do significar, as intenções de significação. Por conseguinte, a significação compor­ ta-se, relativamente aos respectivos atos de significar (a representação lógica relativamente aos atos de representar, o juízo lógico relativamente aos atos de julgar, o raciocínio lógico relativamente aos atos de raciocinar), como, digamos, o vermelho in specie se comporta relativamente às tiras de papel que estão aqui e que “têm” todas o mesmo vermelho. Cada tira tem, ao lado de outros momen­ tos constitutivos (extensão, forma e semelhantes), o seu vermelho individual, isto é, o seu caso singular desta espécie de cor, enquanto a espécie, ela própria, não existe realmente nem nesta tira, nem onde quer que seja no mundo, nem também, sobretudo, “no nosso pensamento”, na medida em que este pertence também ao domínio do ser real,6 à esfera da temporalidade. As significações formam, como poderíamos também dizer, uma classe de conceitos no sentido de “objetos gerais”. Elas não são, por via disso, objetos que existam, se não em alguma parte no “mundo”, pelo menos num tottoç oupávioç (um lugar celeste) ou no espírito divino, pois tal hipóstase metafísica seria ab­ surda. Para quem se habituou a compreender como ser apenas o ser “real”,7 como objetos, apenas objetos reais, falar de objetos gerais e do seu ser deve parecer completamente aberrante; ao contrário, não encontrará aqui qualquer escândalo aquele que toma, rde início1, estes modos de falar acerca de objetos gerais simplesmente como indicações para a validade89de certos juízos, ra sa­ ber, dos juízos em que se julga acerca de números, proposições, construções geométricas e coisas semelhantes, e que, além disso, se pergunta se aqui, como nos outros casos, não se deve atribuir de modo evidente, enquanto correlato da validade do juízo, o título de “objeto verdadeiramente existente” àquilo acerca de que se julga. De fato: logicamente19 considerado, os sete corpos regulares são sete objetos tanto quanto os sete Sábios; o princípio do paralelogramo das forças é um objeto tanto quanto o é a cidade de Paris.10

<107> § 32. A idealidade das significações não é nenhuma idealidade em sentido normativo

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N.T.: Em grego no original: "reunir no um". N.T.: Real. N.T.: Real. Em A segue-se: r(quanto mais não seja para a validade suposta)1. A: rou seja, os capta enquanto correlatos dos sujeitos destes juízos. Logicamente1. N.A.: A respeito da questão sobre a essência dos objetos gerais, cf. a Investigação II.

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A idealidade das significações é um caso particular da idealidade do es­ pecífico em geral. Ela não tem, portanto, de modo algum, o sentido da idealida­ de normativa, como se se tratasse de um ideal de perfeição, de um valor limite ideal que contraporíamos aos casos singulares da sua realização mais ou menos aproximada. Certamente que o “conceito lógico”, isto é, o termo, no sentido da lógica normativa, é um ideal, a respeito do ato que o significa. Porque assim reza a exigência do conhecimento: “usa as palavras numa significação absolutamente idêntica; exclui toda e qualquer flutuação das significações. Distingue as signi­ ficações e cura de conservar a sua diferenciação no pensamento assertivo, por meio de signos sensíveis nitidamente diferentes.” Mas esta prescrição refere-se rsomente111 àquilo que pode estar sujeito a uma prescrição: a construção de termos com significação, ao cuidado com a diferenciação subjetiva e com a ex­ pressão do pensamento. As significações são “em si” unidades específicas, por mais que o significar flutue (de acordo com o que já expusemos); elas próprias não são ideais. A idealidade no sentido comum, normativo, rnão exclui112 a rea­ lidade. O ideal é um protótipo concreto que pode até mesmo existir como uma coisa efetiva que está diante dos nossos olhos: como quando o artista aprendiz põe diante de si a obra de um grande mestre enquanto ideal, a qual ele almeja e procura seguir na sua criação. E mesmo onde o ideal não é realizável ele é pelo menos um indivíduo na intenção de representação. A idealidade do específico é, ao contrário, o oposto exclusivo da realidade ou individualidade; ele não é o objetivo de uma aspiração possível, a sua idealidade é a da “unidade na multi­ plicidade”; não a própria espécie, mas apenas o singular que sob ela cai poderá ser, eventualmente, um ideal prático.

<108> § 33. Os conceitos “significação” e “conceito”, no sentido da espécie, não coincidem As significações formam, dissemos, uma classe de “objetos gerais” ou de espécies. Certamente que cada espécie, quando dela queremos falar, pressupõe uma significação pela qual é representada, e esta significação é ela própria de novo uma espécie. Todavia, não é como se, digamos, a significação, pela qual a espécie é pensada, e o seu objeto, a própria espécie, fossem uma e a mesma coisa. Precisamente como, no domínio do ser individual, distinguimos entre o H A: rapenasT 12 A: nnclui1.

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próprio Bismarck e a sua representação, digamos Bismarck - o maior homem de Estado alemão , e coisas semelhantes, também distinguimos, no domínio do ser específico, por exemplo, entre o próprio número 4 e as representações (isto é, as significações) que têm o 4 como objeto, como, digamos, o número 4 - o se­ gundo número par na série dos números etc. Por conseguinte, a generalidade que pensamos não se dissolve na generalidade das significações em que a pensamos. As significações, não considerando agora que elas, enquanto tais, são objetos gerais, desagregam-se, a respeito dos objetos a que se referem, em significações individuais e especificas ou - como preferimos dizer, por razões linguísticas fa­ cilmente compreensíveis - gerais. Por conseguinte, por exemplo, as representa­ ções individuais são, enquanto unidades de significação, generalia, ao passo que os seus objetos são individualia.

fugidio no primeiro ato de pensamento, quando surge em nós pela primeira vez esse pensamento. Ao contrário, a reflexão lógica é consumada nos passos posteriores, é continuadamente de novo visada a significação da proposição que nós, na conexão unitária de pensamento, ideando e identificando, apreendemos como uma e a mesma. O mesmo se passa por toda parte onde se desenvolve uma fundamentação teórica unitária. Não podemos exprimir nenhum portanto sem que olhemos para o teor de significação das premissas. Enquanto julgamos acerca das premissas, vivemos não apenas no julgar, mas refletimos antes sobre os conteúdos do juízo; apenas por meio da consideração destes conteúdos é que a proposição conclusiva aparece como motivada. É precisamente por isso, e apenas por isso, que a forma lógica das proposições que figuram como premis­ sas (forma que, sem dúvida, não chega àquele destaque genérico-conceitual que encontra a sua expressão nas formas de inferência) pode tornar-se intelectual­ mente determinante para a dedução da proposição conclusiva.

§ 34. A significação não está objetivamente consciente no ato de significar Na vivência atual de significação, à significação unitária corresponde, dis­ semos, um traço individual, enquanto caso singular daquela espécie: tal como a diferença específica vermelho corresponde ao momento de vermelho nos obje­ tos vermelhos. Se consumamos o ato e se nele vivemos, por assim dizer, visamos então, naturalmente, ao seu objeto, e não à sua significação. Quando fazemos, por exemplo, uma asserção, julgamos, então, acerca da coisa em questão, e não acerca da significação da frase declarativa, acerca do juízo em sentido lógico. Este se torna para nós pela primeira vez um objeto num ato reflexivo de pen­ samento, no qual não lançamos apenas um olhar retrospectivo para a asserção realizada, mas consumamos também a abstração requerida (ou mais bem dito: a ideação). <109> Esta reflexão lógica não é, digamos, um ato que se realize sob condições artificiais, portanto, de um modo totalmente excepcional, mas antes um componente normal do pensamento lógico. O que caracteriza este compo­ nente é a conexão teórica e a ponderação teórica que tem em mira esta cone­ xão, a qual se fconsuma"113 em paulatinas reflexões sobre o conteúdo dos atos de pensamento já consumados. Como exemplo pode servir-nos uma forma muito comum da ponderação pensante: “é S P? Isso pode bem ser assim. Desta pro­ posição seguir-se-ia, porém, que M também seria. Isto não pode ser; portanto, deve também ser falso aquilo que primeiramente tomei como possível, a saber, que S seja P etc.” Que se atente para as palavras sublinhadas e as ideações nelas expressas. Como é óbvio, esta proposição, que S é P, proposição que atravessa a ponderação como seu tema, não é simplesmente o momento de significação13

§ 35. Significações “em si” e significações expressas Até aqui, falamos preferencialmente de significações que - como o diz já a palavra significação, que tem normalmente um sentido relativo - são signifi­ cações de expressões. Em si, não há, porém, qualquer nexo necessário entre as unidades ideais, que funcionam factualmente como significações, e os signos aos quais <110> elas estão ligadas, isto é, os signos por meio dos quais elas se reali­ zam na vida anímica humana. Também não podemos, portanto, afirmar que to­ das as unidades ideais deste tipo sejam significações expressas. Cada caso de uma nova formação conceituai ensina-nos como se realiza uma significação que antes não estava ainda realizada. Tal como os números - no sentido ideal pressuposto pela Aritmética - não aparecem e desaparecem com o ato de contar, tal como, aí, a série infinita dos números apresenta uma totalidade objetivamente fixa de objetos gerais, delimitada por uma nítida legalidade ideal que ninguém pode aumentar ou diminuir, o mesmo também se passa com as unidades ideais pura­ mente lógicas, com os conceitos, proposições, verdades, em uma palavra, com as significações lógicas. Elas formam uma totalidade idealmente fechada de objetos gerais, para a qual é contingente o fato de ser pensada ou expressa. Há, portan­ to, inumeráveis significações que são simples significações possíveis, no sentido relativo comum da palavra, porquanto não chegam jamais à expressão e jamais poderão chegar, em virtude dos limites da faculdade humana de conhecer.

13 A: rconstituP.

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<111> A U N ID A D E ID EA L DA ESPÉCIE E AS MODERNAS TEORIAS DA a b st r a ç ã o

In t r o d u ç ã o

Captamos a unidade ideal da significação, de acordo com as discussões da última investigação, tendo em vista o caráter de ato do significar que, na sua coloração determinada, distingue a consciência de significação da expressão dada de outra consciência diferente quanto à significação. Com isso, não se está, naturalmente, dizendo que este caráter de ato seja o elemento concreto sob cujo fundamento se constitui para nós a significação como espécie. O elemento con­ creto que lhe pertence é, antes, toda a vivência da expressão compreendida, na qual reside aquele caráter como coloração animadora. A relação entre a signifi­ cação e, respectivamente, a expressão significativa e a coloração significativa é, de fato, a mesma que a relação entre, respectivamente, a espécie “vermelho” e o objeto vermelho da intuição, ou seja, o momento de vermelho que nele aparece. Na medida em que visamos ao vermelho in specie, aparece-nos um objeto ver­ melho e, neste sentido, olhamos na sua direção (objeto este a que, todavia, ainda não visamos). Imediatamente, sobressai nele o momento de vermelho e, nessa medida, poderíamos aqui dizer, novamente, que olhamos para ele. Mas também não visamos a este momento, esse determinado traço individual isolado no ob­ jeto, como, por exemplo, o fazemos quando exprimimos a nota fenomenológica segundo a qual os momentos de vermelho das superfícies disjuntas do objeto que aparece são igualmente disjuntos. Enquanto aparece o objeto vermelho e o momento de vermelho nele realçado, visamos, antes, ao mesmo vermelho idên­ tico e visamo-lo num modo de consciência de tipo novo, por meio do qual se nos torna objetiva, precisamente, a espécie, em vez do individual. <112> O cor­ respondente deveria, por conseguinte, ser transportado para a significação, em relação à expressão e ao seu significar, independentemente do fato de ela estar ou não relacionada com uma intuição correspondente. A significação como espécie resulta, por conseguinte, do fundo mencio­ nado, por meio da abstração; mas não, certamente, por meio da abstração na­ quele sentido impróprio que domina a Psicologia e a Teoria do Conhecimento empiristas, que de forma alguma permite captar o específico e ao qual, na ver­ dade, se enaltece o fato de não o fazer. Para uma fundamentação filosófica da Lógica pura, a questão da abstração interessa duplamente. Em primeiro lugar, porque, sob as distinções categoriais das significações que a lógica pura tem de ter essencialmente em consideração, se encontra também a distinção que

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corresponde à oposição de objetos individuais e universais. Em segundo lugar, porém, e de forma totalmente particular, porque as significações em geral - e, de fato, significações no sentido de unidades específicas - configuram o domí­ nio da Lógica pura e, deste modo, cada desconhecimento da essência da espécie deve atingir a Lógica segundo a sua própria essência. Não se deverá, por isso, deixar de empreender, precisamente aqui na série introdutória de investiga­ ções, o ataque ao problema da abstração e, com a defesa do direito próprio dos objetos específicos (ou ideais) em face dos individuais (ou reais), assegurar o fundamento principal da Lógica pura e da doutrina do conhecimento. Este é o ponto no qual o relativismo psicologista e empírico se distingue do Idealismo, o qual expõe a única possibilidade de uma Teoria do Conhecimento concordante consigo mesma. Naturalmente que o discurso sobre o Idealismo não visa aqui a nenhuma doutrina metafísica, mas, sim, à forma da Teoria do Conhecimento que reco­ nhece o ideal como condição de possibilidade do conhecimento objetivo em geral e que não se equivoca sobre ele de um ponto de vista psicologista.

o * <113> C a p í t u l o I

OS OBJETOS UNIVERSAIS E A CONSCIÊNCIA DE UNIVERSALIDADE § 1. Os objetos universais tornam-se conscientes para nós em atos essencialmente diferentes daqueles em que nos tornamos conscientes dos objetos individuais Indicamos já, mais acima, a nossa própria posição, com algumas pala­ vras. Não serão necessárias muitas exposições posteriores para justificá-la. Pois tudo aquilo que defendemos - o valor da distinção entre objetos específicos e individuais e o modo distinto do representar no qual vêm até nós, para uma clara consciência, uns e outros objetos - é-nos garantido por meio da evidên­ cia. E esta evidência é dada por si mesma com a clarificação da representação correspondente. Precisamos apenas regressar aos casos nos quais as representa­ ções individuais ou específicas se preenchem intuitivamente e obteremos a mais plena clareza sobre o tipo de objetos a que propriamente visam e o que, nos seus sentidos, tem de valer como essencialmente idêntico ou como diferente. A reflexão sobre ambos os atos traz-nos, então, para diante dos olhos, se existem ou não diferenças essenciais no modo como eles se realizam. Em relação ao último aspecto, a consideração comparativa ensina que o ato no qual visamos a algo de específico é, de fato, essencialmente diferente da­ quele em que visamos a algo de individual; quer, em última instância, visemos a um concreto como totalidade, ou, nele, visemos a um pedaço individual ou a um traço individual. Certamente que há em ambos uma certa <114> comuni­ dade fenomenal. Em ambos aparece, de fato, o mesmo elemento concreto e, na medida em que aparece, são dados em ambos os mesmos conteúdos sensíveis nos mesmos modos de apreensão; quer dizer, o mesmo montante de conteúdos de sensação ou de fantasia atualmente dados subjaz à mesma “apreensão” ou “interpretação”, nas quais se constitui para nós o aparecimento do objeto com qualidades apresentadas através daquele conteúdo. Mas o mesmo aparecimento suporta, em ambos, atos diferentes. Da primeira vez, o aparecimento é o funda­ mento representativo de um ato de visar individual, quer dizer, de um ato tal no qual n ó sr, num simples voltar-se para,1 visamos ao rpróprio"> aparecente, resta coisa ou esta notai 1yeste pedaço na coisa. Da segunda vez, ele é o fundamento de representação de um ato rde apreender e"1 de visar especializante; quer dizer, enquanto aparece a coisa, ou melhor, a nota na coisa, não visamos a esta nota

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A: resta coisa como esta nota, ou1.

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objetiva, a este aqui e agora, mas visamos sim ao seu conteúdo, à sua ideia; não visamos a este momento de vermelho na casa, mas sim ao vermelho. rEste visar é, no que diz respeito à sua base de apreensão, claramente um visar fundado (cf., mais abaixo, VI Investigação, § 46), na medida em que, sobre a “intuição”, res­ pectivamente, da casa individual e do seu vermelho, se constrói um novo modo de apreensão, que é constitutivo para a doação intuitiva da ideia de vermelhoi234. E como, por meio do caráter deste imodo de apreensão13, se encontra a espécie como objeto universal, resultam, assim, conectando-se intimamente com isso, formações do tipo: um vermelho (isto é, algo tendo em si um caso de vermelho), este vermelho (o vermelho desta casa) e semelhantes. Evidencia-se a relação pri­ mitiva entre espécie e caso isolado, torna-se possível abranger uma multiplici­ dade de casos isolados e, eventualmente, julgar com evidência: em <115> todos os casos, o momento individual é diferente, mas “em” cada um realiza-se a mes­ ma espécie; esse vermelho é o mesmo que aquele vermelho - nomeadamente, considerado especificamente, é a mesma cor - e, todavia, este é, de novo, distin­ to daquele - nomeadamente, considerado individualmente, mesmo tratandose de um caso singular objetivo diferente. Como todas as distinções dógicas14 fundamentais, esta é também de natureza categorial. Pertence rà forma pura de objetividades de consciência possíveis enquanto tais. (Cf., em relação a isso, a VI Investigação, caps. 6o e segs.)1.5*

serções se deixassem interpretar de tal modo ou se a intenção dos pensamentos nominais e proposicionais que lhes dão significação pudesse ser compreendida de tal modo que os objetos autênticos da intenção seriam individuais, então te­ ríamos de admitir a doutrina oposta. Que não é este o caso, é algo que se mostra pela análise da significação de tais expressões, pelo fato de a sua intenção direta e autêntica, de forma evidente, não estar dirigida a nenhum objeto individu­ al; e mostra-se, sobretudo, que a relação de universalidade que lhes pertence é apenas indireta em relação a um âmbito de objetos individuais, indicando conexões lógicas cujo conteúdo (sentido) se desdobra pela primeira vez em novos pensamentos e exige novas expressões: por isso, a doutrina oposta é evi­ dentemente falsa. Na verdade, é, então, inteiramente inevitável distinguir entre as singularidades individuais, como os números e as multiplicidades na Mate­ mática, e as representações <116> e os juízos (os conceitos e as proposições) da Lógica pura. Número é um conceito que, tal como muitas vezes acentuamos, engloba em si, como singularidades, o 1, 2, 3... Um número é, por exemplo, o número 2, não qualquer grupo de dois objetos singulares individuais. Se vi­ samos a estes, mesmo que de forma completamente indeterminada, teremos também de o dizer, e, em todo caso, o pensamento também se modificou com a expressão. À diferença entre as singularidades individuais e específicas corresponde a diferença não menos essencial entre as generalidades (universalidades) indivi­ duais e específicas. Essas diferenças transportam-se, sem mais, para o domínio do juízo e atravessam toda a Lógica; os juízos singulares decompõem-se em in­ dividuais singulares, do gênero Sócrates é um homem, e específicos singulares, do gênero dois é um número par, um quadrado redondo é um conceito contraditório; os juízos universais decompõem-se em individuais universais, do gênero todos os homens são mortais, e específicos universais, do gênero todas as funções analí­ ticas são diferenciáveis, todas as proposições puramente lógicas são “a priori”. Essas diferenças e outras semelhantes não podem ser pura e simplesmen­ te comparadas. Não se trata de meras expressões abreviadas; pois não devem ser postas de lado por qualquer circunstancialidade da circunscrição. De resto, em cada exemplo, nós podemos nos persuadir por observação própria de que, no conhecimento, uma espécie se torna efetivamente objeto e que, em relação com ela, são possíveis juízos da mesma forma lógica que em relação a objetos individuais. Tomemos um exemplo dos grupos que particu­ larmente nos interessam. As representações lógicas, as significações singulares, são em geral, dissemos, objetos ideais, quer elas próprias representem algo de universal ou de individual. Por exemplo: a cidade de Berlim como o sentido idêntico em discursos e no visar repetidos; ou a representação direta do Teorema Pitágoras, cuja enunciação não temos de levar a cabo explicitamente; ou também esta mesma representação o Teorema de Pitágoras.

§ 2. Caráter incondicionalmente necessário do discurso sobre objetos universais Os excessos do realismo do conceito acarretaram o fato de se ter comba­ tido não apenas a realidade, mas também a objetividade da espécie. Certamente que sem razão. A pergunta sobre se é possível ou necessário conceber a espécie como um objeto só pode, abertamente, ser respondida porque se retrocede à significação (ao sentido, à visada) dos nomes que nomeiam a espécie e à signi­ ficação das asserções que reclamam valer para a espécie. Se esses nomes e as­

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3 4 5

Acréscimo de B. Cf. "Aditamentos e Melhoramentos" a A: rPara a distinção entre visar in­ dividual e visar universal: de acordo com a Investigação VI, trata-se, no visar individual, de um ato simples, quer dizer, a "aparição", o que será definido no 39 capítulo, § 26, da mesma investigação como representação, está simplesmente ligado com uma qualidade posicionai ou não posicionai; mas, no caso do visar universal, sobre, respectivamente, os atos simples e as representações simples, constrói-se uma nova, com um novo modo de apreensão, na qual se constitui a relação com o objeto universal.1. A: rmodo de consideração1. A: rgnosiológicas1. A: rà "forma da consciência". A sua "origem" reside no "modo de consciência", não na "ma­ téria mutável do conhecimento"1.

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Cap. I • Os Objetos Universais e a Consciência de Universalidade

Do nosso ponto de vista, indicaríamos como cada uma destas significa­ ções, no pensar, vale sem dúvida alguma como unidade e como é que julgamos sobre ela, <117> em certas circunstâncias, mesmo com evidência: ela pode ser comparada com outras significações e ser distinguida delas; ela pode ser o sujei­ to idêntico para múltiplos predicados, o ponto idêntico de referência em múl­ tiplas relações; pode ser coligida com outras significações e ser contada como unidade; como idêntica, ela é novamente objeto em relação a múltiplas signi­ ficações novas: tudo isso exatamente do mesmo modo que outros objetos que não são significações, objetos tais como cavalos, pedras, atos psíquicos etc. É só porque a significação é algo de idêntico que ela pode ser tratada como idêntica. Isto vale para nós como um argumento indiscutível, e vale naturalmente para todas as unidades específicas, mesmo para aquelas que são não significações.

comparação, apontamos, por meio de um termo genérico mais universal, para o círculo de diferenças específicas, no qual se encontra o que surge de forma idêntica nos elos comparados. Se duas coisas são iguais no que respeita à forma, então a forma da espécie correspondente é o idêntico; se elas são iguais no que respeita à cor, assim o é a espécie da cor etc. Certamente que cada espécie não está inequivocamente cunhada em palavras e, assim, faltará ocasionalmente a ex­ pressão conveniente para a perspectiva; será talvez difícil fornecê-la claramente; mas temo-la, todavia, diante dos olhos, e ela determina o nosso discurso sobre a igualdade. Naturalmente que nos apareceria como uma autêntica inversão do verdadeiro estado de coisas, se quiséssemos, mesmo que fosse apenas no domínio sensível, definir a identidade como um caso-limite da igualdade. A identidade é absolutamente indefinível, mas não a igualdade. A igualdade é a relação entre objetos aos quais subjaz uma e a mesma espécie. Quando não é mais permitido falar da identidade da espécie, da perspectiva na qual a igualdade existe, então o discurso acerca da igualdade perde também o seu solo.

§ 3 .Se a unidade da espécie deve ser entendida como unidade imprópria. Identi­ dade e igualdade Enquanto queremos manter com sinceridade a rigorosa identidade do específico no sentido da antiga tradição, a doutrina dominante apoia-se em dis­ cursos impróprios, muito difundidos, sobre a identidade. Perante coisas iguais falamos muitas vezes da mesma coisa. Dizemos, por exemplo, o mesmo armário, o mesmo casaco, o mesmo chapéu, onde existem produtos que, trabalhados de acordo com o mesmo modelo, se assemelham perfeitamente, quer dizer, são iguais em tudo aquilo que, em coisas desse tipo, tem interesse para nós. Neste sentido, falamos da mesma convicção, da mesma dúvida, da mesma pergunta, do mesmo desejo etc. Pensa-se que tal impropriedade se encontre também no discurso sobre a mesma espécie e, em particular, no discurso sobre a mesma significação. Em relação a uma vivência de significação por toda a parte igual, falamos da mesma significação (do mesmo conceito e proposição); em relação a uma coloração por toda a parte igual, falamos do mesmo vermelho (do vermelho em geral), do mesmo azul etc. A este argumento, faço a objeção de que o discurso impróprio sobre a identidade, a propósito de coisas iguais, precisamente como impróprio, reenvia a um discurso próprio correspondente; mas, com isso, para uma identidade. De fato, onde quer que exista igualdade, encontramos também uma identidade, no sentido rigoroso e verdadeiro. Não poderíamos indicar duas coisas como iguais sem fornecer a perspectiva na qual <118> elas são iguais. A perspectiva, disse, e aqui reside a identidade. Cada igualdade tem relação com uma espécie, que subjaz aos elementos comparados; e esta espécie não é, em ambos os casos, novamente, um mero igual, e não o pode ser, pois, de outra forma, o regressus in infinitum em sentido inverso seria inevitável. Na medida em que assinalamos a perspectiva da 94

§ 4. Objeções à redução da unidade ideal à multiplicidade dispersa Dirigimos também a nossa atenção para outra coisa. Se alguém quiser, de alguma forma, reconduzir o discurso acerca do atributo único ao estado de certas relações de igualdade, então ofereceremos à consideração a diferença que surge no seguinte confronto. Comparamos: 1. A nossa intenção quando apreendemos unificadamente qualquer gru­ po de objetos em unidade intuitiva, ou quando reconhecemos de um golpe a sua igualdade enquanto tal; ou também quando, em atos singulares de comparação, reconhecemos a igualdade <119> de um determinado objeto com os objetos singulares restantes e, finalmente, com todos os objetos do grupo.6 2. A nossa intenção quando, talvez até tendo como base o mesmo fun­ do intuitivo, captamos o atributo, que constitui a indicação da igualdade ou da comparação, como uma unidade ideal. É evidente que, em ambos os casos, o objetivo da nossa intenção, o ele­ mento objetivo, que é visado e nomeado como sujeito das nossas asserções, é totalmente diferente. Seja qual for a quantidade de objetos iguais em que pos­ samos pensar na intuição ou na comparação, eles e as suas igualdades não são certamente, no segundo caso, visados. Visado é o “universal”, a unidade ideal, e não estes singulares ou múltiplos. 6

N.A.: rCf. as exposições mais aproximadas sobre a apreensão coletiva intuitiva na minha Philosophie der Arithmetik, 1891, cap. XI; sobre o conhecimento intuitivo da igualdade, em particular a p. 233.1

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Cap. I • Os Objetos Universais e a Consciência de Universalidade

Ambas as situações intencionais são inteiramente distintas, não apenas logicamente, mas também psicologicamente. No segundo caso, não é exigível nenhuma intuição de igualdade, nem mesmo nenhuma comparação. Conheço este papel como papel e como papel branco e, para tal, torno claro para mim o sentido universal do enunciado papel e branco em geral, sem ter de realizar qualquer intuição de igualdade ou comparação. Além disso, pode-se dizer que as representações conceituais nunca teriam surgido, do ponto de vista psicoló­ gico, sem o aparecimento em comum de objetos idênticos, e, surgindo, através da igualdade, em relação intuitiva. Este fato psicológico, contudo, é aqui total­ mente irrelevante, aqui onde paira diante de nós a questão de saber com que qualidade é que o atributo vale no conhecimento e tem de valer com evidência. Finalmente, também está claro que, quando se quer tornar compreen­ sível a intenção relativamente a uma espécie por meio de uma representação (como quer que ela tenha sido concebida) de singularidades a partir de grupos de igualdade, as singularidades a cada vez representadas abrangem apenas al­ guns poucos elementos de grupos, portanto, nunca podem esgotar a totalidade do âmbito. Pode-se, por isso, perguntar o que é que produz, então, a unidade do âmbito, o que é que a torna possível para a nossa consciência e saber, se nos falta a unidade da espécie e, ao mesmo tempo, com ela, a forma de pensar da <120> totalidade, rpor meio da qual ela obtém uma relação17 com a imultiplicidade total de A18 que é representada pelo pensamento (no sentido da expressão a totalidade de A visada). A indicação do “mesmo” momento comum em geral, naturalmente, não pode ajudar em nada. Em termos numéricos, ele está tantas vezes aí quantas vezes os objetos singulares do âmbito forem representáveis. Como pode unir aquilo que, primeiro, carece de unificação? A possibilidade objetiva de conhecer todos os membros do âmbito como iguais entre si também não tem como ajudar em nada; ela não pode dar unidade ao âmbito para o nosso pensamento e conhecimento. De fato, esta possibilidade não é nada para a nossa consciência, quando não é pensada e reconhecida. Por um lado, porém, o pensamento da unidade do âmbito já está aí pressuposto; e, por outro lado, ele próprio está diante de nós como unidade ideal. Claramente, cada tentativa em geral de interpretar o ser do ideal num ser possível do real tem de falhar, pois as possibilidades são elas próprias, de novo, objetos ideais. Assim como não há como encontrar no mundo rreaP9 números em geral, triângulos em geral, também não há como encontrar possibilidades. A concepção empirista, que quer poupar a aceitação de objetos especí­ ficos pelo regresso ao seu âmbito, é, por conseguinte, irrealizável. Ela não nos

permite dizer o que é que dá unidade ao âmbito. A objeção seguinte torna isto ainda mais particularmente claro. A concepção contestada opera com “círculos de semelhança”, mas aceita com facilidade um pouco demasiada a dificuldade que consiste em cada objeto estar inserido numa multiplicidade de círculos de semelhança, e em se ter de responder à pergunta sobre o que é que separa uns dos outros estes círculos de semelhança. Vê-se que, sem a unidade já dada da espécie, um regressus in infinitum seria inevitável. Um objeto A é semelhante a outros objetos: a um, do ponto de vista a, a outro, do ponto de vista b etc. O próprio ponto de vista, porém, não deve significar que se encontra aí uma espé­ cie, que cria a unidade. Que é que efetua, por exemplo, o círculo de semelhan­ ça condicionado por vermelho, diante do condicionado por triangularidade? A concepção empirista pode apenas dizer: são <121> semelhanças diferentes. Se A e B são semelhantes em relação ao vermelho e se A e C são semelhantes em re­ lação à triangularidade, estas semelhanças são de espécies diferentes. Aí, porém, nos deparamos uma vez mais com gêneros. As próprias semelhanças tornam-se comparáveis e tornam-se gêneros e espécies tais como os seus membros absolu­ tos. Teríamos, por conseguinte, de regressar novamente às semelhanças destas semelhanças e assim in infinitum.

O fato de o modo psicologista de conceber, que dispersa a unidade da es­ pécie nos objetos que nela caem, não ser isento de dificuldades já foi certamente sentido de maneira suficientemente frequente; mas descansou-se cedo demais com a sua solução. É interessante observar como J. St. Mill,10 em oposição às suas doutrinas psicologistas, procura reter o discurso acerca da identidade dos atributos e legitimá-lo em face de Spencer, que, nisto mais consequente, ape­ nas quer admitir o discurso sobre atributos completamente iguais.11 A visão de homens diferentes desperta em nós impressões sensíveis, que não são idênti­ cas, mas, sim, apenas, completamente iguais, e assim, pensa Spencer, ta m bém a humanidade em cada homem deve ser indicada como um atributo diferente. Mas, então, o mesmo deve acontecer também, objeta Mill, com a humanidade do mesmo homem neste instante e meia hora mais tarde. Não, diz ele:12“Se cada representação universal não devesse ser considerada como o um em muitos’, mas, sim, precisamente, como tantas representações diferentes quantas forem as coisas às quais ela é aplicável, então não haveria quaisquer expressões univer-

7 8 9

10 N.A.: Logik de Mill, Livro II, Cap. II, § 3, Nota Condusiva. (Tradução de Gomperz, I1, p. 185 e segs.) 11 N.A.: Cf. Spencer, Psychologie, II, § 294, Nota. (Tradução de Von Vetter, II, p. 59 e segs.) 12 N.A.: Op. cit, p. 186.

A: rque lhe dá relação1. A: totalidade1. A: todo1.

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§ 5. Continuação. A polêmica entre J. St. Mill e H. Spencer

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Cap. I • Os Objetos Universais e a Consciência de Universalidade

sais. Um nome não teria em geral qualquer significação universal se Homem, na sua aplicação a João, devesse indicar uma coisa própria e, aplicado novamente a Pedro, uma outra coisa, mesmo que completamente semelhante. A objeção é correta, mas não afeta menos a autêntica doutrina de Mill. Todavia, diz-se umas linhas mais adiante: “A significação de <122> cada nome universal é um fenômeno externo ou interno, que, em última análise, consiste em sentimentos, e esses sentimentos, se a sua conexão fosse quebrada um ins­ tante, não seriam mais os mesmos sentimentos no sentido da identidade indi­ vidual.” A esta dificuldade, aqui tão rigorosamente indicada, Mill pensa poder escapar facilmente. “O que é, então”, ele pergunta, “esse algo em comum que dá a sua significação a um nome universal? Spencer pode apenas dizer que é a seme­ lhança dos sentimentos, e eu objeto: o atributo é precisamente esta semelhança. Os nomes dos atributos são, em última solução, nomes para semelhanças entre as nossas impressões sensíveis (ou outros sentimentos). Cada nome universal, seja de tipo abstrato ou concreto, designa ou designa concomitantemente uma ou mais destas semelhanças.”13 Uma solução peculiar. Por conseguinte, a “coindicação” não consiste mais em atributos em sentido habitual, mas sim nestas semelhanças. Mas que é que se obtém através desta comutação? Cada semelhança deste gênero já não visa âofeeling individual e momentâneo de semelhança, mas, sim, ao idêntico “um no múltiplo”, com o que é justamente pressuposto o que deveria ser explicado. Naturalmente que também não se realizou uma redução a um número menor de tais coisas inexplicadas. Todavia, a cada um dos diferentes atributos corres­ ponde uma destas semelhanças diferentes. Nesta medida, porém, será que não deveríamos apenas falar, propriamente, a cada vez, de uma semelhança, pois a cada caso singular de comparação corresponde uma semelhança particular, por conseguinte, a cada atributo corresponde um número limitado de semelhanças possíveis? Isto conduz à questão discutida acima sobre o que deve fundar a cor­ respondência unificada de todas estas semelhanças, uma questão que só se tem de colocar para reconhecer o caráter errôneo da concepção relativista. O próprio Mill sente o caráter duvidoso da sua explicação, pois acrescenta a seguinte proposição: “Dificilmente se estabelecerá o acordo de que, quando 100 impressões sensíveis são indistinguivelmente diferenciáveis, se deverá falar da sua semelhança como de uma única e não de 100 semelhanças, que são mera­ mente <123> semelhantes umas às outras. As coisas comparadas entre si são mui­ tas, mas o algo que é comum a todas elas deve ser captado como um, precisamen­ te como o nome é apreendido como um, apesar de, sempre que é pronunciado, corresponder, a cada vez, a impressões de tonalidade numericamente distintas.”

Peculiar autoilusão. Como se, ao decretar uma forma de discurso, pudéssemos determinar se corresponde ou não a uma multiplicidade de atos uma unidade do pensado, e como se a unidade ideal da intenção não desse somente ao discurso 0 Sentido unificado. É certo que as “coisas” comparadas são muitas, e é certo que o algo que lhes é comum tem de ser captado como um só; mas, todavia, nisso há apenas uma obrigação, porque aquele algo é precisamente um. E, se isto vale para as “semelhanças”, vale para os próprios atributos não disfarçados, que devem ser essencialmente distinguidos dos feelings. Por conseguinte, onde se investigam conceitos, não se deve mais falar como se levássemos a cabo psicologia. “A polêmica entre Spencer e eu”, diz Mill (ibidem, p. 185), “é meramente uma polêmica de palavras, pois nenhum de nós [...] acredita que um atributo seja uma coisa real, que possua existência objetiva; vemos nisso, apenas, uma maneira particular de nomear as nossas impressões sensíveis (ou as nossas ex­ pectativas delas), vistas do lado da sua relação com um objeto exterior, que as causa. A questão polêmica suscitada por Spencer não diz respeito, portanto, às propriedades de qualquer coisa efetiva existente, mas, sim, à comparativamente maior ou menor aptidão para fins filosóficos, que possuem dois gêneros diferen­ tes de utilização de um nome? Naturalmente que rnós tambémi14não ensinamos a realidade dos atributos, mas exigimos uma análise um pouco mais rigorosa daquilo que se encontra por trás destes “tipos de utilização de um nome” e do que funda “a aptidão do nome para fins filosóficos” e para o pensar em geral. Mill não repara que o sentido unitário de um nome e de cada expressão é, igualmente, uma unidade específica e que o problema, por conseguinte, é apenas posto para trás quando se reduz a unidade da espécie à unidade de significação da palavra.

Já nessa última consideração vimo-nos obrigados a tomar uma posição crítica perante concepções opostas. Tratava-se aí de uma série de pensamentos, na qual concordam todas as formas da teoria empirista da abstração, por mais que possam ser diferentes relativamente ao seu conteúdo. No entanto, parece indispensável conceder agora à crítica um maior espaço para tornar proveitosa para a análise comprobatória das diversas formas principais da moderna teoria da abstração a nossa concepção da essência dos objetos universais e das repre­ sentações universais. A comprovação crítica dos erros das concepções alheias dar-nos-á a oportunidade de, em complemento, configurar a nossa própria con­ cepção e, ao mesmo tempo, pôr à prova a sua fiabilidade.

13 N.A.: Op. cit , p. 186.

14 A: rtambém nós1.

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<124> § 6. Transição para os capítulos seguintes

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A “teoria da abstração”15empirista padece, como a maioria dos elementos doutrinários das modernas teorias do conhecimento, da diminuição de dois di­ ferentes interesses científicos essenciais, um dos quais diz respeito à explicação psicológica das vivências, o outro ao esclarecimento “lógico” do seu conteúdo pensante ou sentido e à crítica das suas possíveis realizações de conhecimento. Quanto ao primeiro aspecto, trata-se da comprovação das conexões empíricas que conectam a vivência pensante dada com outros fatos, no decurso de acon­ tecimentos reais. Fatos que, como causas, a produziram, ou sobre os quais ela exerce efeitos. Noutro aspecto, ao contrário, abrange-se com o olhar ra “origem dos conceitos”"116, que pertencem às palavras; por conseguinte, ro esclarecimen­ to da sua “visada própria” ou significação"117, por meio da confirmação eviden­ te da sua intenção em sentido preenchedor, que atualizamos, somente, através do aduzir da (Intuição118 conveniente. rO estudo da essência destas conexões fenomenológicas oferece os fundamentos indispensáveis para realizar o escla­ recimento, do ponto de vista da crítica do conhecimento, da “possibilidade” do conhecimento; <125> por conseguinte, no nosso caso: para trazer a uma clari­ dade essencial a possibilidade de enunciados válidos sobre objetos universais (nomeadamente, sobre objetos singulares como objetos do conceito universal correspondente) e, em conexão com isso, para determinar com clareza o sen­ tido correto no qual podem valer o universal como ente e o singular subjacen­ te a predicados universais.1 Cada doutrina da abstração que queira ter valor gnosiológico, quer dizer, que queira explicar o conhecimento, falha de antemão no seu objetivo quando, em vez de descrever a situação descritiva imediata na qual o específico nos vem à consciência, para, por seu intermédio, clarificar o sentido do nome atributivo e, em consequência posterior, trazer a uma solu­ ção evidente os múltiplos equívocos que a essência da espécie experimentou, se perde, em vez disso, em análises rempírico-psicológicas119 do processo de abs­ tração, segundo as causas e os efeitos, e, passando fugidiamente pelo conteúdo descritivo da consciência abstrativa, dirige o seu interesse, predominantemente, para as disposições inconscientes, para os entrelaçamentos hipotéticos de asso­ ciação. Encontramos nisso, habitualmente, o fato de que o rconteúdo essencial imanente120 da consciência de universalidade, com o qual a clarificação deseja­ da deve ser realizada sem mais, de forma alguma é atendido e indicado.

Cap. I ® Os Objetos Universais e a Consciência de Universalidade

Do mesmo modo, uma teoria da abstração falha de antemão no seu ob­ jetivo quando dirige o seu propósito para o campo do que se pode encontrar de maneira rimanente em toda a abstração autêntica (por conseguinte, intuitiva)121 e, com isso, anuncia o erro da confusão rentre análises essenciais e análises empíricas (esclarecedoras de um ponto de vista de crítica do conhecimento e explica­ tivas de um ponto de vista psicológico)122; mas, para isso, cai na outra confusão sugerida, sobretudo, pela multiplicidade de sentidos do discurso sobre represen­ tações universais, nomeadamente, na confusão entre análises fenomenológicas e análises objetivas: aquilo que o ato de significar atribui apenas, justamente, aos seus objetos é agora atribuído aos próprios atos como constituintes reais.23 <126> Não notada, a esfera raqui124normativa da ^consciência e da sua essência imanente125 é, assim, de novo abandonada, e tudo é deixado à confusão. As análises que se seguem mostrarão que esta característica sumária con­ vém às modernas e muito influentes teorias da abstração, e que essas, de fato, falham no seu objetivo, pelos motivos acima indicados em geral.

15 N.A.: Não se fala aqui de modo conveniente de uma teoria em que, todavia, de acordo com o que se segue no texto, nada há para teorizar, quer dizer, para explicar. 16 A: ra análise dos "conceitos"1. 17 A: ra explicação das significações1. 18 A: rfiguração1. 19 A: psicológicas1. 20 A: ro núcleo essencial1.

21 A: rocasionalmente em cada abstração atual na consciência1. 22 A: rentre análises esclarecedoras de um ponto de vista de crítica do conhecimento e expli­ cativas de um ponto de vista psicológico1. 23 N X : Reell. 24 A: rsomente de modo racional1. 25 A: rdo imediatamente consciente1.

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<127> C a p í t u l o II

O HIPOSTASIAR PSICOLÓGICO DO UNIVERSAL § 7 . 0 hipostasiar metafísico e psicológico do universal. O nominalismo

Dois equívocos dominaram o desenvolvimento das doutrinas sobre os objetos universais. Em primeiro lugar, o hipostasiar metafísico do universal, a aceitação de uma existência real de espécies fora do pensamento. Em segundo lugar, o hipostasiar psicológico do universal, a aceitação de uma existência real de espécies no pensamento. Contra o primeiro equívoco, que subjaz ao realismo platônico r(no sen­ tido da concepção tradicional)-1, voltou-se o antigo nominalismo e, na verdade, tanto o nominalismo extremo como o conceitualismo. Pelo contrário, a luta con­ tra o segundo equívoco, especialmente na forma das ideias abstratas de Locke, determinou o desenvolvimento da moderna teoria da abstração desde Berkeley e deu-lhe a inclinação decisiva para o nominalismo extremo (que, presentemen­ te, de forma errada, se costuma designar simplesmente por nominalismo e opor ao conceitualismo). Acredita-se, nomeadamente, para escapar ao caráter absur­ do das ideias abstratas de Locke, ter de negar, em geral, os objetos universais como unidade de pensamentos peculiares, e as representações universais como atos peculiares de pensamento. Na medida em que se desconheceu a diferença entre as intuições universais (a que pertencem, ao lado daquelas ideias abstratas, também as figuras comuns da lógica tradicional) e as significações universais, rejeitou-se, senão segundo o teor pelo menos segundo o sentido, <128> estas últimas “representações conceituais”, com a sua intenção peculiar de represen­ tação, e substitui-se-lhes representações individuais singulares, funcionando de maneira peculiar. Assim, liga-se àqueles dois equívocos, como terceiro equívoco, o do no­ minalismo, que, nas suas diversas formas, acredita poder transformar o univer­ sal relativamente ao objeto e ao ato de pensar, em particular. Temos de desmembrar em série estes equívocos, na medida em que têm ainda interesse atual. Reside na natureza da própria coisa, e já as nossas presen­ tes reflexões o tornam manifesto, que as questões polêmicas acerca da essência dos objetos universais não são separáveis das questões acerca da essência das representações universais. Está fora de propósito querer demonstrar, com força persuasiva, o valor próprio do discurso acerca de objetos universais, quando não se remedeia a dúvida sobre o modo como tais objetos podem tornar-se representáveis e, subsequentemente, quando não se refutam as teorias que, atra-

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Cap. II • O Hipostasiar Psicológico do Universal

vés de análises psicológicas científicas, rparecenP1 conduzir à comprovação de que existem meras representações singulares, que, por isso, só objetos singu­ lares podem ser tornados conscientes e que só eles sempre o foram, e que, por conseguinte, também o discurso sobre objetos universais tem de ser entendido, somente, como fictício ou como totalmente impróprio. Podemos deixar em tranquilidade os equívocos do realismo platonizante, como há muito tempo esgotados. Pelo contrário, os motivos de pensamento que parecem impelir ao realismo psicologizante são ainda hoje visivelmente ativos, como se nota, sobretudo, no modo como Locke costuma ser criticado. Entra­ mos nestes motivos, mais aproximadamente, neste capítulo.

um elemento constituinte real na vivência do pensar, não é também um conteúdo de pensamento no sentido de teor de significação, é antes um objeto pensado. Será possível que não se repare que um objeto, mesmo quando é um objeto real e verdadeiramente existente,3 não pode ser captado como um elemento real do ato que o pensa? E não é também o fictício e o absurdo, sempre que dele fala­ mos, algo pensado por nós? Naturalmente que não é nosso propósito colocar num mesmo nível o ser do ideal e o ser pensado do fictício ou do absurdo.4Este último absolutamente não existe, <130> rem sentido próprio"1 nada pode ser dito dele categoricamente; e quando, todavia, falamos como se ele existisse, como se ele tivesse o seu próprio modo de ser, a saber, o “meramente intencional”, este modo de falar, visto de forma mais exata, mostra-se como impróprio. Na verdade, subsistem apenas certas conexões legais válidas entre “representações sem objeto”, as quais, graças à sua analogia com as verdades relativas a representações objetivas, sugerem o discurso acerca de meros objetos representados, que, na verdade, não existem. Os objetos ideais, ao invés disso, existem verdadeiramente. Não tem, de for­ ma evidente, meramente um rbom"1 sentido falar de tais objetos (por exemplo, do número 2, da qualidade vermelho, do princípio de contradição e de coisas semelhantes) e representá-los como afetados de qualidades; pelo contrário, concebemos também de forma clarividente certas verdades rcategóricas"1 que são relacionáveis com tais objetos ideais. Se essas verdades são válidas, então também tem de existir tudo aquilo que pressupõe objetivamente o seu valor. Se eu compreendo que 4 é um número par, que o predicado expresso convém efe­ tivamente ao objeto ideal 4, então este objeto também não pode ser uma mera ficção, uma mera façon de parler, na verdade, um nada. Isto não exclui que o sentido desse ser e, com ele, o sentido da predicação, não seja aqui total e especialmente o mesmo que nos casos em que, a um sujeito real de um predicado real, seja acrescentada ou negada a sua rpropriedade1.5Dito de outro modo: não o negamos e, antes, atribuímos importância ao fato de, no interior da unidade conceituai do ente (ou, o que é o mesmo, do objeto em geral), residir uma diferença categorial fundamental, que temos justamente em conta por meio da diferença entre o ser real e o ser ideal, ser como espécie e ser como individual. E, precisamente do mesmo modo, a unidade conceituai da predicação divide-se em dois gêneros essencialmente diferentes, conforme for acrescentado ou negado, a algo de individual, as suas rpropriedades"1,6 a algo de específico, as

§ 8. Uma maneira de pensar ilusória À nossa concepção poder-se-ia opor a série de pensamentos seguinte, não tanto em honesta convicção, quanto para demonstrar apagogicamente o caráter insustentável do discurso sobre as espécies como objetos universais: Se as espécies não são nada de real, nem são nada no pensamento, então não são nada em geral. Como é que podemos falar de qualquer coisa <129> sem que, pelo menos, isso estivesse no nosso pensamento7. O ser do ideal é, por con­ seguinte, de forma evidente, ser na consciência. Por isso, chama-se, com razão, conteúdo da consciência. Em oposição a isso, o ser real não é, precisamente, um mero ser na consciência, ou um ser-conteúdo; mas, sim, rser-em-sil2, ser transcendente, ser fora da consciência. Entretanto, não nos queremos perder nos caminhos equivocados de tal metafísica. Como real, vale para nós tanto o “na” consciência, como o “fora”. Real é o indivíduo com todos os seus elementos constituintes; ele é um aqui e agora. Como nota caracterizadora da realidade basta-nos a temporalidade. Ser real e ser temporal não são, na verdade, conceitos idênticos, mas, sim, conceitos com igual extensão. Naturalmente que não pensamos que as vivências psíqui­ cas são coisas, no sentido da metafísica. Mas são também pertencentes a uma unidade coisal, se é que a antiga convicção metafísica tem razão ao afirmar que todo ente temporal, necessariamente, ou é uma coisa ou entra na constituição de uma coisa. Mas se a metafísica deve permanecer totalmente excluída, definese diretamente a realidade por meio da temporalidade. Pois a única coisa de que se trata aqui é a oposição ao “ser” intemporal do ideal. Além disso, é certo que o universal, sempre que dele falamos, é algo pen­ sado por nós; mas não é, por isso, um conteúdo de pensamento, no sentido de 1 2

A: rpareciam1. A: rser em-sr.

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Em A segue-se: rem gerah. N.A.: Cf., em sentido contrário, Erdmann, Logik, I1, p. 81 e 85. K. Twardowski, Zur Lehre vom Inhalt und Gegenstand der Vorstelling, p. 106. A: rqualidade\ A: qualidades1.

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Cap. II • 0 Hipostasiar Psicológico do Universal

suas determinações gerais. Mas esta diferença não suprime a unidade suprema no conceito de objeto e, rcorrelativamente, a17 da <131 > unidade categórica da proposição. Em qualquer dos casos, convém ou não convém a um objeto (su­ jeito) qualquer coisa (um predicado) e o sentido deste convir universal, com as leis correspondentes, determina também o sentido universal do ser em geral, nomeadamente, o do objeto: tal como o sentido mais especial da predicação geral determina (nomeadamente, pressupõe) o sentido do objeto ideal, com as leis que lhe estão subordinadas. Se tudo o que é vale para nós, justificadamente, como existente e, assim existindo, graças à evidência com a qual o captamos no pensa­ mento como existente, então nenhum discurso acerca disso pode significar que tenhamos de rejeitar o direito próprio do ser ideal. De fato, nenhuma arte interpretativa no mundo pode eliminar os objetos ideais do nosso falar e pensar.

zer, a capacidade para separar das coisas fenomenais, que nos são dadas como complexos de notas características, ideias parciais, ideias de notas características singulares, e de ligá-las a palavras como suas significações universais. A possibilidade e a efetividade de tal separação estão garantidas pelo fato de que cada nome universal tem a sua significação própria, por conseguinte, porta uma nota característica exclusivamente ligada a si; e, do mesmo modo, pelo fato de escolhermos, arbitrariamente, uma nota qualquer característica e podermos fa­ zer dela a significação particular de novos nomes universais. Certamente que a configuração de “ideias universais” ou “abstratas”, esta “invenção” ou “artifício” do espírito, não são desprovidas de dificuldade, “não se oferecem de forma tão fácil como estamos inclinados a acreditar. Não exigirá, por exemplo, um certo incômodo ou habilidade construir a ideia universal de um triângulo (que não pertence ainda às mais abrangentes ou difíceis)? Pois ele não deve ser nem oblíquo nem retângulo, nem equilátero ou isosceles nem escaleno, mas, sim, tudo isso e nada disso de uma só vez. De fato, ele é algo de incompleto, que não pode existir, uma ideia na qual são ligadas certas partes de muitas ideias diferentes e incompatíveis. Certamente que o espírito, neste seu estado imperfeito, necessitou de tal ideia e apressa-se em atingi-la o mais depressa possível, em prol da comunidade da comunicação e do alargamento do saber [...]. Não obstante, deixa-se com razão suspeitar que tais ideias são sinais da nossa imperfeição.”8

§ 9. A doutrina de Locke sobre as ideias abstratas Como ouvimos, teve um efeito histórico particular a hipostasia psicológica do universal na filosofia de Locke. Ela resultou da seguinte série de pensamentos: Na efetividade rreal1 não há nada de semelhante a um universal, há ape­ nas coisas reais individuais, que se ordenam de acordo com semelhanças e pa­ recenças, em gêneros e espécies. Detenhamo-nos na esfera do dado e vivido imediato, rdito à maneira de Locke,1 nas “ideias”: os aparecimentos de coisas são complexos de “ideias simples”, de tal modo que, em muitos de tais comple­ xos, costumam regressar as mesmas ideias simples, as mesmas notas fenome­ nais características, singularmente ou em grupo. Nomeamos agora as coisas, e nomeamo-las não meramente por meio de nomes próprios, mas, sim, predo­ minantemente, por meio de nomes comuns. Mas o fato de que muitas coisas poderiam ser nomeadas, sem ambiguidade, por meio de um e do mesmo nome universal, comprova que a este teria justamente de corresponder um sentido universal, uma “ideia universaT. Se virmos mais de perto de que modo o nome universal se relaciona com os objetos da classe que lhe pertence, mostra-se que ele o faz por meio de uma e mesma nota característica (ou complexo de notas) comum a todos estes objetos, e que a inequivocidade do nome universal apenas se estende ao ponto em que os objetos são nomeados por meio desta e de nenhuma outra nota característica (no­ meadamente, por meio desta e de nenhuma outra ideia de nota característica). <132> O pensamento universal, que se realiza em significações univer­ sais, pressupõe, por conseguinte, que temos a capacidade de abstração, quer di-

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A: rna da1.

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§10. Crítica Nesta linha de pensamento, entrelaçam-se muitos erros fundamentais. O defeito fundamental da teoria do conhecimento de Locke e dos ingleses <133> em geral, a falta de clareza da ideia de ideia, faz-se notar nas suas consequências. Notamos os pontos seguintes: 1. A ideia será definida como objeto da percepção interna: “ Whatever the mind perceives in itself, or is the immediate object of perception, thought or understanding, that I call idea?9'10 Numa extensão facilmente compreensível - a percepção não precisa ocorrer atualmente -, será depois concebido, sob o nome

8

N.A.: Essay de Locke, L. IV, cap. VII, p. 9 (na cuidada tradução de Th. Schultze, na Reclams Universalbibl., II, p. 273). 9 N.T.: "Tudo aquilo que a mente percebe em si própria, ou é o objeto imediato da percep­ ção, pensamento ou entendimento, a isso chamo ideia." 10 N.A.: Essay, L. II, cap. VIII, p. 8. Cf. também a segunda carta ao bispo de Worcester (Philos. Works, ed. J. A. St. John, London, 1882, II, p. 340 e 343): “He that thinks must have some immediate object of his mind in thinking: i. e. must have ideas"

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Cap. II • 0 Hipostasiar Psicológico do Universal

de ideia, qualquer objeto possível da percepção interna e, por fim, todo o conte­ údo em sentido •Imanente-psicológico1,n cada vivência psíquica em geral. 2. Mas ideia tem, em Locke, o sentido mais restrito de representação e, de fato, no sentido que indica uma classe muito restrita de vivências e, com mais proximidade, de vivências intencionais. Cada ideia é ideia de qualquer coisa, representa qualquer coisa. 3. Posteriormente, a representação e o representado enquanto tais serão confundidos por Locke, i"o aparecer, com o que aparece, o ato (o fenômeno-deato como elemento constituinte real112 - imanente ao fluxo da consciência), com o objeto visado"! ,13 Assim, o objeto aparecente torna-se uma ideia, a sua nota característica torna-se uma ideia parcial. 4. A confusão Indicada no ponto anterior"«14 relaciona-se com o fato de Locke trocar as notas características, que cabem aos objetos, com os conteúdos rimanentes"1que constituem o núcleo sensível do ato de representação, nomeada­ mente, com as sensações que o ato de captação interpreta objetivamente, ou com as quais ele supõe perceber e mesmo intuir as notas características objetivas. 5. Além disso, são confundidas, sob o nome de “ideias universais”, as notas características como atributos específicos e as notas características como momentos objetivos. <134> 6. O que, finalmente, é ainda de particular importância é o fato de, em Locke, faltar totalmente a diferença entre representação no sentido de repre­ sentação intuitiva (aparecimento, “imagem” vaga) e representação no sentido de representação de significação. Com isso, pode-se compreender, sob “represen­ tação de significação”, tanto a intenção de significação como o preenchimento de significação, pois os dois nunca serão separados também por Locke. Só estas confusões (de que a teoria do conhecimento padece até aos dias de hoje) dão à doutrina de Locke sobre as ideias abstratas universais a aparência de uma clareza evidente, que pôde iludir o seu criador. Não deixaremos valer, de forma alguma, os objetos das representações intuitivas, os animais, as árvores etc., e, na verdade, captados precisamente tal como nos aparecem (por conseguinte, não como as formações de “qualidades primárias” e de “forças” que, segundo Lo­ cke, são as coisas verdadeiras: pois, em todo caso, estas não são as coisas que nos aparecem nas representações intuitivas), como complexos de ^ideias”115 e, com isso, até mesmo como •"“ideias”1,16 Eles não são objetos da “percepção interior”

possível, como se constituíssem na consciência um conteúdo rfenomenológico117 complexo e pudessem ser encontrados aí rcomo dados reais1,18 rNão nos devemos deixar enganar pelo fato de indicarmos com as mesmas palavras, num discurso equívoco, as determinações-de-coisa que aparecem sen­ sivelmente e os momentos apresentativos das percepções, e, com isso, falarmos de “cor”, “lisura”, “figura”, às vezes no sentido de propriedades objetivas, outras vezes no sentido de impressões. Mas, do ponto de vista dos princípios, há uma oposição entre os dois. As impressões apresentam as determinações objetivas nas correspondentes percepções-de-coisa graças às captações que as animam, mas nunca são tais determinações. O objeto que aparece, tal como aí aparece, é transcendente ao aparecimento enquanto fenômeno. Poderíamos também dis­ tinguir as próprias determinações aparecentes, por razões quaisquer, em mera­ mente fenomenais e em verdadeiras, <135> ou, no sentido da tradição, em se­ cundárias e primárias. A subjetividade das determinações secundárias não pode nunca querer dizer o absurdo de elas serem elementos constituintes reais dos fenômenos. Os objetos aparecentes da intuição externa são unidades visadas, mas não “ideias” ou complexos de ideias no sentido do discurso de Locke. Além disso, por conseguinte, a nomeação por meio de nomes universais não con­ siste no fato de salientar, a partir de tais complexos de ideias, ideias universais comuns e de ligá-las a palavras, como a sua “significação”. A nomeação como autêntica, realizando-se tendo por base a intuição, pode dirigir-se especialmente a uma nota característica singular, mas este dirigir-se é um visar no sentido ana­ lógico àquele em que o dirigir-se a um objeto concreto é um visar. E este visar visa a qualquer coisa por si que, no visar do concreto, é, de certo modo, visado concomitantemente. Mas isto não significa que ele realize uma separação.119

11 12 13 14 15 16

A: rpsicológicon. N.T.: Reell. A: ro ato com o objeto visado, a aparição com o que aparece1. A: último1. Em A faltam as aspas. Em A faltam as aspas.

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17 A: psíquico1. 18 A: refetiva mente1. 19 A (ligando-se ao que antecede sem parágrafo): rPode acontecer que estes objetos intencio­ nais se construam (presumivelmente) a partir de elementos que provêm em conjunto de percepções internas [Nota de B: rA razão por que falo de percepção interna, onde não se trata, de forma alguma, de reflexão sobre atos psíquicos, será esclarecida pelas discussões do Apêndice sobre a percepção externa e interna, no final do volume.1] e que, de certo modo, são também realizáveis, posteriormente, através de tais percepções. Mas, normal­ mente, estes elementos não são dados, de forma alguma, de modo adequado, e se, em geral, são realizáveis adequadamente - o que, em todo o caso, está excluído para o seu complexo de conjunto como um todo - , esta possibilidade é, no melhor dos casos, aquela da percepção de conteúdos futuros, não se relaciona com o conteúdo de consciência em cada caso efetivo e encontrável, não se trata, por isso, simplesmente, de olhar para qual­ quer coisa que está psiquicamente presente. Os objetos da intuição "externa" e as suas no­ tas características são unidades visadas, mas não ideias, no sentido da definição de Locke. Esta situação torna claro que a possibilidade de uma intenção dirigida por si mesma para uma nota característica singular de forma alguma pressupõe a separação dessa nota carac-

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<136> Podemos em geral dizer: aquilo a que uma intenção se dirige tor­ na-se, com isso, o objeto próprio do ato. Tornar-se objeto próprio e tornar-se ob­ jeto separado de todos os outros objetos são duas afirmações fundamentalmente diferentes. As notas características, na medida em que entendemos por notas características os momentos atributivos, são, evidentemente, inseparáveis dos fundos concretos. Conteúdos deste tipo não podem existir por si mesmos. Mas podem ser visados por si mesmos. A intenção não separa, ela visa àquilo que visa, e o que visa isola-o eo ipso, na medida em que visa precisamente a isto e não a outra coisa. Isto vale para qualquer visar, e é preciso ter clareza quanto ao fato de que nem todo visar é uma intuição, de que nem toda intuição é adequada, é uma intuição que encerra em si o seu objeto, rperfeitamente e sem restoi .20 Mas tudo isto ainda não é suficiente rpara a nossa questão1. O momento individual singular robjetivo1 não é ainda o atributo in specie. Se for visado o primeiro, ou seja, o momento, o visar tem o caráter do individual; se for visado o específico, o visar tem o caráter de visar específico. Evidentemente que também aqui, de novo, o realce que experimenta o momento atributivo não significa nenhuma separação do mesmo. Na verdade, no último caso, o visar dirige-se de certo modo, também, ao momento aparecente, mas tal acontece num modo essencialmente novo; só no caráter de ato pode, de fato, residir a diferença, dada a identidade da base intuitiva. Deve-se atender a diferenças semelhantes entre a representação de gênero em sentido habitual (como árvore, cavalo e coisas parecidas) e representações diretas de coisa (em geral, representações diretas de elementos concretos). Acima de tudo, teremos de distinguir entre as intuições totais e parciais simples, que constituem a base, e os caracteres de ato mutáveis, que se constroem sobre eles como pensantes, sem que tivesse de ser mudado o mínimo no sensível-intuitivo. Para uma análise mais exata, viriam aqui naturalmente à consideração muito mais múltiplas diferenças do que aquelas que precisamos levar em consi­ deração com a finalidade da crítica a Locke. O intuitivo-singular <137> é, uma vez, visado diretamente como este aí, depois, novamente, é visado como suporte

de um universal, como sujeito de um atributo, como singular de um gênero empí­ rico; de novo, de outra vez, é visado o próprio universal, por exemplo, a espécie de uma nota característica realçada numa intuição parcial; depois, novamente, é vi­ sada uma tal espécie como tipo de um gênero (ideal) etc. Em todos estes gêneros de captação pode talvez funcionar, como base, uma e a mesma intuição sensível. A estas diferenças do pensar “autêntico”, nas quais se constituem atual­ mente as múltiplas formas categoriais, seguem-se, então, também, as intenções simbólicas das expressões. Tudo o que é dito e visado no modo da asserção e da significação não é, talvez, atualizado, de forma alguma, no modo autêntico e intuitivamente preenchido. O “pensar” é, então, um pensar “meramente simbó­ lico” ou “inautêntico”. Locke não consegue fazer justiça a este estado de coisas fenomenológico. A imagem sensível-intuitiva, por meio da qual se preenche a intenção de signi­ ficação, é, dissemos mais acima,21 tomada por Locke como sendo a própria sig­ nificação. A nossa última consideração confirma e esclarece esta objeção. Pois a identificação de Locke não acerta, nem quando, por significação, entendemos a significação a que visa, nem quando por tal entendemos a significação que preenche. A primeira encontra-se na expressão enquanto tal. A sua intenção de significação constitui o representar universal no sentido do significar univer­ sal, e tal é possível sem qualquer base intuitiva atual. Mas se, no caso presente, surgir um preenchimento, então, tal como resulta das nossas considerações, a imagem sensível-intuitiva não é o preenchimento da significação, mas é a mera base deste ato de preenchimento. Ao pensamento universal, apenas “simboli­ camente” realizado, corresponde, em seguida, o pensamento “autenticamente” realizado, o qual, pelo seu lado, se funda num ato de intuição sensível, mas não é idêntico a ele. <138> E agora entendemos perfeitamente as confusões enganadoras no movimento de pensamento de Locke. A partir da evidência de que cada nome universal tem a significação universal que lhe é própria, ele afirma que a cada nome universal pertence uma ideia universal, e esta ideia não é para ele outra coisa senão uma representação particular intuitiva (um aparecimento particu­ lar) de uma nota característica. Isto é uma consequência necessária do fato de confundir a significação da palavra, dado que ela se preenche tendo por base o aparecimento da nota característica, com este próprio aparecimento; assim, da significação separada (seja da que é visada ou da que é preenchida) surge a intuição separada da nota característica. Porque Locke, ao mesmo tempo, não mantém separados o aparecimento da nota característica e a nota característica que aparece,22 assim como não separa a nota característica como momento e a

terística, nomeadamente, do seu ser dado, como algo isolado. Se o objeto total nos é dado apenas sob o modo de algo visado, enquanto ele, ao ser visado, não é de forma alguma real no visar, então também se tornará real um visar que se dirige às notas características do objeto sem que estas, em sentido autêntico, sejam dadas, nomeadamente, sejam de novo reais no próprio visar. Isto será possível, tanto de modo intuitivo, por exemplo, no modo de uma percepção parcial, como também no modo de uma intenção de outro tipo, por exem­ plo, uma certa intenção de significação. Se, na verdade, a própria nota característica não é dada, não pode também haver um discurso sobre ela como se ela fosse dada ou tivesse de ser dada em separado.1

21 N.A.: Cf., mais acima, na enumeração das confusões de Locke, a última confusão. 22 N.A.: Cf., mais acima, p. 133, sub 3.

20 A: Tealmente1.

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nota característica como atributo específico,23 com a sua “ideia universal” reali­ zou-se, de fato, uma hipostasia psicológica do universal, o universal transformase num dado real24 da consciência.25

no sentido de correspondente ao que é visado. Mas ser-visado não quer dizer ser-realmente-psíquico. Antes de tudo, Locke também poderia ter dito: um triângulo é qualquer coisa que tem a triangularidade. Mas a triangularidade não é, ela própria, qual­ quer coisa que tenha a triangularidade. A ideia universal de triângulo, como ideia de triangularidade, é, por conseguinte, ideia daquilo que será tido por cada triângulo enquanto tal; mas ela própria não é a ideia de um triângulo. Se chamarmos conceito à significação universal, se ao próprio atributo chamarmos conteúdo conceituai, e a cada sujeito deste atributo objeto conceituai, podemos exprimir isto, também, desta forma: é absurdo captar o conteúdo conceituai, imediatamente, como objeto conceituai, ou subordinar o conteúdo conceituai ao âmbito conceituai.27 Nota-se, além disso, que Locke ainda acrescenta as absurdidades, na me­ dida em que não apenas capta o triângulo universal como triângulo, do <140> qual são descontáveis todas as diferenças específicas, mas também como um triângulo que as une a todas em simultâneo,28 por conseguinte, ele subordina ao conteúdo do conceito de triângulo o âmbito dos tipos que o dividem. Mas, em Locke, isto é apenas um lapso totalmente passageiro. Em todo o caso, as “difi­ culdades” das significações universais, como é evidente, não oferecem nenhum ensejo para sérios lamentos sobre a “imperfeição” do espírito humano. Nota. O pouco que os erros da doutrina de Locke sobre as ideias universais foram até agora esclarecidos mostra, entre outros,29 o novo tratamento da dou­ trina dos objetos universais, que, depois do exemplo de Erdmann, se começam de novo a fazer valer ao lado dos objetos individuais r- mas não, certamente, no sentido defendido por nós1. Assim, pensa Twardowski que “o que é representado por meio de representações universais é um objeto que lhes é específico”;30 e, de fato, “um grupo de elementos constituintes que são comuns a muitos objetos”.31 O objeto da representação universal é “uma parte do objeto de uma representação que lhe está subordinada, que se encontra numa relação de igualdade com partes determinadas de objetos de outras representações singulares”.32A representação universal é uma representação “em tal grau inautêntica” que foi tida por mui­ tos por impossível de realizar. “O fato de, todavia, existirem tais representações

§ 11. O triângulo universal de Locke Estes erros vingam-se por meio das absurdidades nas quais se envolvem o grande pensador, no exemplo da ideia universal de um triângulo. Esta ideia é a ideia de um triângulo que não é retângulo, nem isosceles etc. Certamen­ te que isto pode parecer fácil quando se capta a ideia universal de triângulo, em primeiro lugar, como a significação universal do nome e se lhe substitui de seguida, na consciência, a representação intuitiva particular, ou a existência particular intuitiva do complexo de notas características que lhe pertence. Te­ ríamos, então, uma imagem interior, que é um triângulo e mais nada; as notas características do gênero separadas das diferenças específicas e transformadas numa realidade psíquica evidente. Quase não precisa ser dito que esta concepção é não apenas falsa, mas também absurda. A inseparabilidade do <139> universal, ou a sua impossibi­ lidade de realização rvale a priori, funda-se na essência da espécie enquanto tal. Em126 relação a este exemplo, dir-se-á, talvez, de forma mais impressiva: a geometria demonstra a priori, com base na definição de triângulo, que cada triângulo é ou isosceles, ou obtusângulo, ou retângulo etc. E ela não conhe­ ce nenhuma diferença entre triângulos da “realidade” e triângulos da “ideia”, quer dizer, triângulos que flutuam, como imagens, no espírito. O que é incom­ patível a priori é-o pura e simplesmente, portanto, também em imagem. A imagem adequada de um triângulo é ela própria um triângulo. Assim, Locke ilude-se quando acredita poder ligar o reconhecimento expresso da não exis­ tência evidente de um triângulo universal real à sua existência na representa­ ção. Ele não repara que o ser psíquico também é um ser real e que, quando se opõem o ser-real e o ser-representado, não se tende nem se pode tender, com isso, para a oposição entre o psíquico e o extrapsíquico, mas, sim, para a opo­ sição entre o representado, no sentido de meramente visado, e o verdadeiro,

23 N.A.: Cf., mais acima, p. 133, sub 5. 24 N.T.: Reell. 25 N.A.: rÉ muito admirável que até mesmo Lotze, a quem devemos um profundo agradeci­ mento pela interpretação da teoria platônica das ideias, caiu no erro da hipostasia psico­ lógica do universal. Leiam-se as considerações na sua Lógica de 1874, p. 509 e segs., em particular o § 316.1 26 A: rfunda-se a priori no conceito de espécie. Especialmente em1.

27 N.A.: Não acharia, por conseguinte, [Em A segue-se: total mente1] correto dizer, com Meinong, que Locke confunde o conteúdo e o âmbito do conceito. Cf. Hume-Studien, I, p. 3 (Sitzungsber. der phil.-hist Klasse der Wiener Ak. d. W., Ano 1877, p. 187). 28 N.A.: Cf. a citação acima no § 9, p. 132, no lugar indicado em último lugar. 29 N.A.: Cf. também, por exemplo, o Anexo ao 52 capítulo desta investigação. 30 N.A.: Cf. Twardowski, Zur Lehre vom Inhalt und Gegenstand der Vorstellungen (Sobre a Doutrina do Conteúdo e do Objeto das Representações), p. 109. 31 N.A.: Op. cit, p. 105. 32 N.A.: Op. cit

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deve ser admitido por todo aquele que concebe que algo se pode exprimir para além dos seus objetos. Este é claramente o caso. Ninguém pode intuitivamente representar um triângulo universal: um triângulo que não seria nem retângulo, nem obtusângulo, nem isósceles, que não tivesse nenhuma cor nem nenhuma grandeza determinada; mas há certamente uma representação indireta de tais triângulos, assim como há representações indiretas de um garanhão branco, de canhões de aço feitos de madeira etc.” “As ideias de Platão”, lemos mais adiante, “não são senão objetos de representações universais. Platão atribuiu existência a tais objetos. Hoje, já não o fazemos. O objeto da representação universal é representado por nós, mas não existe [,..].”33 É claro que regressam aqui as absurdidades de Locke. O fato de termos uma “representação indireta” de um “triângulo universal” é uma coisa certa; pois, com isso, é apenas visada a significação daquela expressão absurda. Mas de modo algum se concederá que a representação universal o triângulo seja aquela representação indireta de um triângulo universal, <141> ou que seja a represen­ tação de um triângulo, encaixada em todos os triângulos, mas sem ser obtusa, isósceles etc. De forma totalmente consequente, Twardowski nega a existência de objetos universais, por ele considerados, com razão, coisas absurdas. Mas que é que se passa com proposições existenciais verdadeiras do tipo: há conceitos, proposições; há números algébricos etc.? De fato, em Twardowski, tal como acon­ tece conosco, existência não significa o mesmo que existência real. Também é dificilmente compreensível de que modo o objeto universal, que todavia deve ser um “elemento constituinte” do concreto subordinado, po­ deria carecer de intuitividade e não teria de, com este, tomar parte na intuição. Se um conteúdo total é intuído, então, com ele e nele, são intuídos todos os traços singulares, e muitos deles tornam-se notados por si mesmos, eles “sa­ lientam-se” e tornam-se, deste modo, objetos de intuições próprias. Não deve­ ríamos antes dizer que, tal como vemos a árvore verde, vemos nela a coloração verde? Certamente que não podemos ver o conceito de verde, nem o conceito no sentido de significação, nem o conceito no sentido de atributo, de espécie verde. Mas é igualmente absurdo captar o conceito como parte do objeto individual, do “objeto conceituai”.

cional sob a designação de ccimagem comum”, está afetada de iguais absurdidades e é o resultado de confusões semelhantes às de Locke. O caráter difuso e a fluidez das imagens comuns, em face das diferenças específicas, não m o­ dificam nada na sua concreção. Ter um caráter difuso é uma determinação de certos conteúdos, consiste numa certa forma de continuidade das transições qualitativas. Mas, no que diz respeito à fluidez, ela nada modifica, todavia, na concreção de cada conteúdo singular e mutável. O essencial do assunto não reside nos conteúdos mutáveis, mas, sim, na unidade da intenção dirigida às notas características constantes.

§ 12. A doutrina das imagens comuns Segundo estas considerações, é claro, sem novas análises, que aquela outra forma do hipostasiar do universal, que joga o seu papel na lógica tradi­

33

N.A.: Op. cit, p. 106 (para ambas as citações).

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<142> C a p í t u l o III a bstr a ç ã o e a ten çã o

§ 13. Teorias nominalistas, que concebem a abstração como realização da atenção Passamos agora para a análise de uma teoria da abstração muito influen­ te, constituída, em primeiro lugar, por /. St Mill no seu escrito polêmico contra Hamilton, de acordo com a qual o abstrair deve ser uma mera realização da atenção. Na verdade, diz-se, não há nem representações universais, nem ob­ jetos universais; todavia, enquanto representamos intuitivamente os elementos concretos individuais, podemos voltar uma atenção exclusiva, ou um interesse exclusivo, para as diversas partes e lados do objeto. A nota característica que, em e por si mesma, a saber, separada, não pode ser, nem efetiva, nem representada, é tida em conta por si mesma, torna-se objeto de um interesse exclusivo que, com isso, prescinde de todas as notas características ligadas a ela. É assim que se com­ preende a si mesmo o duplo uso, ora positivo, ora negativo, da palavra abstrair. O complemento a este pensamento principal é oferecido, em seguida, por considerações sobre a ligação associativa dos nomes universais a estes traços singulares realçados dos objetos intuitivos, e acerca das influências que sobre ela exercem os nomes, por meio de um despertar reprodutivo destes traços e da concentração habitual da atenção. Aponta-se para o modo como elas de­ terminam o decurso das associações posteriores, de preferência por meio do conteúdo das notas características realçadas e, assim, exigem a unidade coisal no movimento de pensamento. A execução mais próxima destes pensamentos retiramo-la melhor do <143> escrito polêmico acima mencionado de MUI que, de resto, retirou do seu opositor conceitualista Hamilton a concepção da abstra­ ção como uma função da atenção. Lemos: The formation [...] of a Concept, does not consist in separating the attributes which are said to compose it, from all other attributes of the same object, and enabling us to conceive those attributes, disjoined from any others. We neither conceive them, nor think them, nor cognise them in any way, as a thing apart, but solely as for­ ming, in combination with numerous other attributes, the ideal of an individual object. But, though thinking them only as part of a large agglomeration, we have the power of fixing our attention on them, to the neglect of the other attributes with which we think them combined. While the concentration of attention actually lasts, if it is sufficiently intense, we may be temporarily unconscious of any of the other attributes, and may really, for a brief interval, have nothing present to our mind but the attributes constituent o f the concept. In general, however, the attention is not so completely exclusive as this: it leaves room in consciousness for other elements o f the concrete idea: though of this the consciousness is faint, in proportion of the energy of

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there will be raised in the mind an idea of some objects possessing those attributes, in which idea those attributes alone will be suggested vividly to the mind, our cons­ ciousness <144> of the remainder of the concrete idea being faint. As the name has been directly associated only with those attributes, it is as likely, in itself, to recall them in any one concrete combination as in any other. What combination it shall recall in the particular case, depends on recency of experience, accidents of memory, or the influence of other thoughts which have been passing, or are even then passing, through the mind: accordingly, the combination is fa r from being always the same, and seldom gets itself strongly associated with the name which suggests it; while the association of the name with the attributes that form its conventional signification, is constantly becoming stronger. The association of that particular set of attributes with a given word, is what keeps them together in the mind by a stronger tie than that with which they are associated with the remainder of the concrete image. To express the meaning in Sir William Hamilton's phraseology, this association gives them a unity in our consciousness. It is only when this has been accomplished, that we possess what sir W. Hamilton terms a Concept; and this is the whole of the mental phaenomenon involved in the matter. We have a concrete representation, certain of the component elements of which are distinguished by a mark, designating them for special attention; and this attention, in cases of exceptional intensity, excludes all consciousness of the others.4

the concentrative effort, and the moment the attention relaxes, if the same concrete idea continues to be contemplated. Its other constituents come out in consciousness. General concepts, therefore, we have, properly speaking, none; we have only complex ideas of objects in the concrete; but we are able to attend exclusively to certain parts of the concrete idea: and by that exclusive attention, we enable those parts to deter­ mine exclusively the course of our thoughts as subsequently called up by association; and are in a condition to carry on a train of meditation or reasoning relating to those parts only, exactly as if we were able to conceive them separately from the rest. What principally enables us to do this is the employment of signs, and particularly the most efficient and fam iliar kind of signs, viz. Names.1-2

Mais adiante, lemos,123 em relação a um lugar das Lectures de Hamilton: The rationale of this is, that when we wish to be able to think of objects in respect of certain of their attributes - to recall no objects but such as are invested with those at­ tributes, and to recall them with our attention directed to those attributes exclusively - we effect this by giving to that combination of attributes, or to the class of objects which possess them, a specific Name. We create an artificial association between those attributes and a certain combination of articulate sounds, which guarantees to us that when we hear the sound, or see the written characters corresponding to it,

1 2

NX: “A formação [...] de um conceito não consiste na separação dos atributos que se diz

N.A.: J. St. Mill, An Examination of Sir William Hamilton's Philosophy5, p. 393 e segs.

3

que o compõem, de todos os outros atributos do mesmo objeto, permitindo-nos conceber estes atributos separados de todos os outros. Não os concebemos, nem pensamos neles, nem os conhecemos, seja de que modo for, como uma coisa separada, mas, sim, simples­ mente, como formando, em combinação com numerosos outros atributos, a ideia de um objeto individual. Mas, embora pensando-os apenas como parte de uma aglomeração mais vasta, temos o poder de fixar neles a nossa atenção, negligenciando outros atributos com os quais os pensamos combinados. Enquanto a concentração da atenção efetiva mente du­ rar, se ela for suficientemente intensa, poderemos estar temporariamente inconscientes de quaisquer outros atributos e poderemos mesmo, durante um curto espaço de tempo, não ter nada presente na nossa mente senão os atributos que constituem o conceito. Em geral, contudo, a atenção não é tão exclusiva: deixa lugar na consciência para outros elementos da ideia concreta: apesar de a consciência destes últimos ser vaga em proporção com a energia do esforço de concentração, e no momento em que a consciência se distende, se a mesma ideia concreta continuar a ser contemplada os seus outros constituintes surgem na consciência. Por isso, não temos, falando propriamente, conceitos gerais: temos apenas ideias complexas de objetos no concreto; mas temos a capacidade de prestar exclusiva­ mente atenção a certas partes da ideia concreta e, por meio desta atenção exclusiva, per­ mitimos que estas partes determinem exclusivamente o curso dos nossos pensamentos, à medida que são subsequentemente chamados pela atenção; e estamos em condições de levar a cabo um curso de meditação ou de raciocínio relacionado exclusivamente com estas partes, exatamente como se fôssemos capazes de as conceber separadamente do resto. O que, em primeiro lugar, nos capacita para o fazer é o emprego de sinais e, particularmen­ te, o tipo mais eficiente e particular de sinais, a saber, os nomes". N.A.: Op. cit, p. 394 e segs.

118

4

N X : "O efeito disto é que, quando desejamos ser capazes de pensar os objetos relativa­ mente a alguns dos seus atributos - recordar apenas os objetos que estão investidos por aqueles atributos, e recordá-los com a nossa atenção dirigida exclusivamente para estes atributos - , fazemo-lo dando a essa combinação de atributos, ou à classe de objetos que os possui, um nome específico. Criamos uma associação artificial entre estes atributos e uma certa combinação de sons articulados que nos garante que quando ouvimos o som, ou vemos os caracteres escritos que lhes correspondem, surgirá na mente uma ideia de um objeto qualquer possuindo esses atributos e na qual só tais atributos são sugeridos à mente de maneira vívida, <144> permanecendo vaga a nossa consciência da parte restante da ideia concreta. Como o nome foi direta mente associado apenas a estes atributos, é em si a mesma coisa recordá-los numa certa combinação concreta ou noutra qualquer. Que combinação ele deverá recordar no caso particular depende do caráter recente da experi­ ência, dos acidentes da memória, ou da influência de outros pensamentos que, entretanto, ocorreram, ou estão ainda ocorrendo na mente; de forma correspondente, a combinação está longe de ser sempre a mesma e muitas vezes está forte mente associada ao nome que a sugere, ao passo que a associação do nome com os atributos que formam a sua significação convencional se torna constantemente mais forte. A associação deste conjunto particular de atributos com uma dada palavra é o que os mantém juntos na mente por um laço mais forte do que aquele com o qual estão associados com o remanescente da imagem concreta. Para expressar o sentido na terminologia de Sir W. Hamilton, a associação dá-lhes uma unidade na nossa consciência. É só quando isto foi realizado que possuímos o que Sir W. Hamilton chama um conceito; e isto é a totalidade do fenômeno mental envolvido no assunto. Temos uma representação concreta, alguns dos seus elementos componentes es­ tão distinguidos por uma marca que os designa para uma atenção especial; e esta atenção, em casos de excepcional intensidade, exclui toda a consciência de outros elementos."

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Nestas exposições e em exposições semelhantes reparamos, em primeiro lugar, que, apesar de todo o pormenor, na verdade não é feita nenhuma tentativa para indicar exatamente o dado descritivo e o que precisa ser explicado, e para pô-los em relação um com o outro. Recapitulemos o nosso próprio movimento de pensamento, seguramente mais claro e mais natural. São-nos dadas certas diferenças no domínio dos nomes; entre elas, a diferença entre os nomes que nomeiam o individual e aqueles que nomeiam o específico. Em prol da simpli­ cidade, limitemo-nos aos nomes diretos (nomes próprios num sentido lato); encontram-se, diante uns dos outros, nomes do tipo Sócrates ou Atenas, por um lado, e nomes como quatro (o número quatro como membro singular da série dos números), dó, (o som dó, como um elemento da escala dos sons), vermelho (como nome de uma cor), por outro lado. Aos nomes correspondem certas sig­ nificações e, por seu intermédio, relacionamo-nos com os objetos. Poder-se-ia pensar que, sejam quais forem estes objetos nomeados, isto não pode ser posto em dúvida. Há, primeiro, a pessoa Sócrates, a cidade de Atenas, ou outro objeto individual qualquer; depois, o número quatro, o <145> nível de som dó, a cor vermelha, ou rqualquer outro objeto ideal“1.5Aquilo a que visamos no uso signi­ ficativo da palavra, ou seja, quais são os objetos que nomeamos e aquilo que eles valem ao serem nomeados, isso ninguém nos pode contestar. Ê, por conseguin­ te, evidente que quando digo quatro em sentido geral, tal como, por exemplo, na proposição quatro é um número primo relativo a sete, nomeio precisamente a espécie quatro, tenho-a objetivamente diante do olhar lógico, quer dizer, emito um juízo sobre ela como objeto (subjectum), não sobre algo de individual. Por conseguinte, também não emito um juízo sobre nenhum grupo individual de quatro coisas, ou sobre um momento constitutivo qualquer, sobre um elemento qualquer ou sobre uma parte de um tal grupo; pois cada parte, enquanto parte de algo de individual, é ela própria, novamente, individual. Tornar qualquer coisa de objetivo sujeito de predicações ou de atribuições é, porém, uma ou­ tra expressão para representar e, na verdade, representar rnumi6 sentido que é normativo (mesmo que não seja o único) em toda a lógica. Por conseguinte, a nossa evidência significa: tanto há “representações universais”, nomeadamente, representações de espécies, como há representações de indivíduos. Falamos de evidência. A evidência, relativamente a diferenças objetivas de significação, pressupõe que avancemos para além da esfera do mero uso simbó-

lico das expressões e nos voltemos, na intuição correspondente, para a instrução definitiva. Realizamos, na base de uma representação intuitiva, os preenchimen­ tos intuitivos correspondentes às meras intenções significativas, realizamos a sua visada “autêntica”. Se fizermos isso no nosso caso, paira com certeza diante de nós, em imagem, um certo grupo singular de quatro elementos e, nessa medida, ele subjaz ao nosso representar e julgar. Mas não emitimos um juízo sobre ele, não o visamos na representação subjetiva do exemplo anterior. O sujeito não é o grupo em imagem, mas, sim, o número quatro, a unidade específica da qual di­ zemos que é um primo relativo de sete. E, naturalmente, esta unidade específica, para falar autenticamente, também não é nada no e ligada ao grupo que aparece, pois tal seria, de fato, novamente, um elemento individual, um aqui e agora. Mas o nosso visar <146>, apesar de ser ele próprio um existente-agora, visa, todavia, a tudo, menos a um agora, visa ao quatro, à unidade ideal, intemporal. Na reflexão sobre a vivência do visar individual e específico - do pura­ mente intuitivo, do puramente simbólico e do simbólico que, simultaneamente, preenche a sua intenção significativa -, deveriam ser realizadas as descrições fenomenológicas ulteriores. Elas teriam a tarefa de indicar as relações, funda­ mentais para a clarificação do conhecimento, entre o visar cego (quer dizer, pu­ ramente simbólico) e o intuitivo (autêntico), e, no âmbito do visar intuitivo, apresentar com clareza os diversos modos como funciona a imagem individual rà medida da consciência1,7 conforme a intenção se dirigir ao individual ou ao específico. Por este meio, seríamos postos na posição de, por exemplo, respon­ der à pergunta sobre como e em que sentido o universal, num ato de pensar individual, poderia vir à consciência subjetiva i"e, eventualmente, à doação mais evidente1, e como ele poderia obter uma relação com a esfera ilimitada (e, por isso, não representável por nenhuma imagem apropriada) de singularidades que lhe estejam subordinadas. Na discussão de Mill, tal como em outras semelhantes, não se fala de um simples reconhecimento do dado por meio de evidência nem, em consequência, da descrição da via de pensamento que acabou de ser sinalizada. O que teria de valer como ponto firme no esclarecimento reflexivo é afastado despercebida­ mente e, assim, a teoria falha o seu objetivo, que ela de antemão perdeu de vista, ou melhor, nunca o captou penetrantemente com o olhar. O que nos diz pode ser instrutivo relativamente a estas ou àquelas pré-condições ou componentes da consciência de universalidade intuitivamente realizada, ou relativamente à função psicológica dos sinais na regulação de um traço de pensamento unifica­ do, e coisas semelhantes. Mas isto não diz respeito ao sentido objetivo das sig­ nificações universais e à verdade indubitável que se encontra no discurso sobre

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§ 14. Objeções que tocam, ao mesmo tempo, todas as formas de nominalismo a) A falta de uma fixação descritiva dos objetivos

A: ruma espécie qualquer. A: mo1.

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A: rcomo base da consciência1.

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objetos universais (sujeitos, singularidades) e nas significações que com eles se relacionam, e a relação mediata teria de ser, primeiro, posta a claro. Certamente que ra concepção-1 de Millycomo qualquer concepção empirista em geral, não pode recorrer àquele ponto de partida ou de chegada evidente, pois só lhe inte­ ressa mostrar a nulidade do que aquela <147> evidência deixa ver como verda­ deiramente subsistente: a saber, precisamente, tanto os objetos universais como as representações universais, nas quais tais objetos se constituem rà medida da consciência-1. Certamente que estas expressões: objetos universais, representações universais, despertam recordações de erros antigos e graves. Mas, seja qual for a quantidade de equívocos que elas possam ter historicamente experimentado, deve todavia existir uma interpretação normal que as justifique. E a Psicologia rempírica-18 não nos pode ensinar esta interpretação normal, mas, sim, apenas, o regresso ao sentido evidente das proposições, que se estruturam por meio de representações gerais e se relacionam com objetos universais, como sujeitos das suas predicações.

acordo com o seu conteúdo de significação objetivo, e comprova-o com tal con­ teúdo, que é constitutivo para a ideia da unidade do pensamento. Incorre-se, desse ponto de vista, nos equívocos da análise psicológica. A inclinação natural em dirigir o olhar, continuamente, ao primariamente intui­ tivo e, por assim dizer, captável, do fenômeno lógico, levou a captar, ao lado do nome, como significação do nome, as imagens interiores que o acompanham. Todavia, se ficar claro que a significação não é senão aquilo a que visamos com a expressão, ou aquilo na qualidade do qual a compreendemos, não poderemos permanecer nesta concepção. rEntão-1,10 o visar repousaria nas representações singulares intuitivas, que tornam “claro” para nós o sentido do nome universal, depois, o visado seriam os objetos destas representações e, na verdade, pura e simplesmente, tal como são representados intuitivamente, e cada nome seria um nome próprio equívoco. Para fazer justiça à diferença, diz-se que as repre­ sentações singulares intuitivas estão onde surgem em conexão com os nomes universais. São o suporte de novas funções psicológicas, de tal modo que de­ terminam decursos de representações de outro gênero, acomodam-se de outro modo ao decurso dos processos de pensamento, ou regem-no de outro modo. Entretanto, nada se disse com isso sobre o que pertenceria, de qualquer forma, às situações fenomenológicas. Visamos aqui e agora, no instante em que exprimimos, com sentido, o nome universal, a um universal, e este visar é di­ ferente do caso em que visamos a algo individual. Esta diferença tem de ser comprovada no conteúdo descritivo das vivências isoladas, na execução singular atual dos enunciados gerais. O que a isso se liga do ponto de vista causal, que tipo de consequências psicológicas pode atrair para si a vivência ocasional, isso é algo que não nos diz respeito aqui. Diz respeito à psicologia da abstração, mas não à sua fenomenologia. Sob a influência da corrente nominalista do nosso tempo, o conceito de conceitualismo ameaçou <149> deslocar-se, de modo que se questiona o no­ minalismo de /. St. Mill, que se designa a si mesmo, com tal decisão, como no­ minalista.1112Mas não devemos tomar como o essencial do nominalismo o fato de ele, no propósito de explicar o sentido e a realização teórica do universal, se perder no jogo associativo cego dos nomes como meros sons articulados; mas, sim, o fato de ele em geral e, na verdade, no propósito de tal explicação, não reparar na consciência peculiar que, por um lado, se manifesta no sentido vivo sensível dos sinais, no seu compreender atual, no sentido compreensível da asserção, e, por outro lado, nos atos rcorrelativos112 de preenchimento, que constituem o “autêntico” representar do universal, por outras palavras, na ride-

§ 15. b) A origem do nominalismo moderno, como reação exagerada contra a doutrina de Locke das ideias gerais. O caráter essencial deste nominalismo e a teoria da abstração pela atenção A teoria da abstração de Mill e dos seus seguidores empiristas, tanto quanto as teorias da abstração de Berkeley e de Hume, obstinam-se no combate ao erro das “ideias abstratas”. Ela obstina-se nisso na medida em que, devido à circunstância ocasional de Locke ter caído, na interpretação das representações universais, no seu absurdo triângulo universal, se deixa tentar pela opinião de que um discurso sério sobre representações universais exige necessariamente uma tal interpretação absurda. Não se repara que este erro nasceu, em primeiro lugar, da plurivocidade não esclarecida de sentidos da palavra idea (tal como da palavra alemã Vorstellung),9 e que aquilo que é absurdo para um conceito pode, para um outro, ser possível e justificado. E como é que se poderia também ver isso do lado dos adversários de Locke, se neles o conceito de ideia permaneceu na mesma falta de clareza que desorientou Locke? Em consequência desta situ­ ação, cavalgou-se no novo nominalismo, cuja essência não é mais determinada pela rejeição do realismo, mas, sim, pela do conceitualismo (bem compreendi­ do): rejeitaram-se não apenas as absurdas ideias gerais de Locke, mas também os conceitos universais <148> no sentido completo e autêntico da palavra, por conseguinte, no sentido que a análise do pensar comprova com evidência de 8 9

10 A: TDepois1. 11 N.A.: Cf., por exemplo, A. v. Meinong, Hume-Studien, I, p. 68 [250]. 12 A: rcorrelatos\

A: genética1. N X : Representação.

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ação intelectiva1,13 na qual o “próprio” universal nos é dado. Esta consciência significa para nós aquilo que significa, quer saibamos alguma coisa, quer não, de psicologia, de antecedentes e de consequentes psíquicos, de disposições as­ sociativas e de coisas semelhantes. Se o nominalista quiser explicar esta consci­ ência de universalidade rempiricamente, como fato da natureza humana"1,1415se ele quiser dizer que ela depende causalmente destes ou daqueles fatores, das ou daquelas vivências passadas, de disposições inconscientes e coisas semelhantes, não teríamos, contra isso, nenhuma objeção de princípio. Notaríamos, apenas, que estes fatos rempírico-psicológicos"115 não têm interesse para a lógica pura e para a teoria do conhecimento. Mas, em vez disso, o nominalista diria que o dis­ curso que diferencia as representações universais das individuais é, propriamen­ te, insignificante. Não existe nenhuma abstração, no sentido de consciência de universalidade peculiar, proporcionando evidência aos nomes e às significações universais; na verdade, há apenas intuições individuais e um jogo de processos conscientes e inconscientes, que não nos conduzem para lá da esfera do indivi­ dual e não constituemr, quer dizer, não trazem à consciência e, eventualmente, à autodoação1 nenhuma objetividade essencialmente nova. <150> Cada vivência de pensamento, assim como cada vivência psíquica, tem, rconsiderada do ponto de vista empírico, o seu teor descritivo, e, do ponto de vista causal"1,1617as suas causas e consequências, mas toca, de qualquer modo, no mecanismo da vida e exerce as suas funções genéticas. Mas à esfera da feno­ menologia e, acima de tudo, à da teoria do conhecimento (como clarificação fenomenológica das unidades ideais de pensamento ou de conhecimento), pertence apenas ra essência e o sentido:'117 a que ' em gerab visamos quando asserimos; aquilo que constitui este visar enquanto tal, de acordo com o seu sentido; como é que ele se estruturar, de acordo com a sua essência,"1 a partir de visadas parciais; quais as formas e diferenças essenciais que ele apresenta; e outras coisas seme­ lhantes. O que interessa à teoria do conhecimento deve ser apresentado exclusi­ vamente no conteúdo da própria vivência de significação e de preenchimento re, na verdade, como essencial"1. Quando também encontramos entre estas coisas apresentáveis de forma evidente a diferença entre representações universais e individuais-intuitivas (o que, todavia, indubitavelmente ocorre), então nenhum discurso sobre funções e conexões genéticas pode modificar qualquer coisa nis­ so, ou sequer contribuir qualquer coisa para o seu esclarecimento.

Nessas relações, não se vai consideravelmente mais longe, nem se escapa às nossas objeções, quando, como faz Mill, se observa a atenção exclusiva diri­ gida a uma determinação atributiva singular (a um traço dependente) do objeto da intuição, como sendo o ato existente na consciência atual, que proporciona ao nome a sua significação “universal”, na situação genética dada. Se investiga­ dores mais recentes, que compartilham aqui a concepção de Mill (embora não as suas tendências empiristas extremas), se chamam a si mesmos conceitualistas, na medida em que, de fato, com o interesse que objetiva os “atributos”, é garantida a permanência das significações universais, a sua doutrina, contudo, é e permanece, na verdade, uma doutrina nominalista. Com isso, a universalidade permanece o assunto da função associativa dos signos, e consiste na ligação psicologicamente regulada <151> “dos mesmos sig­ nos” com os “mesmos” momentos objetivos - ou melhor, com o momento que regressa sempre na mesma determinação e é, por vezes, acentuado pela atenção. Mas esta universalidade da função psicológica é totalmente diferente da própria universalidade que pertence ao conteúdo intencional da vivência lógica; ou, dito de forma objetiva e ideal, que pertence às significações e aos preenchimentos de significação. A última universalidade é totalmente perdida pelo nom inalismo,

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A: A: A: A: A:

rabstração atual1. 'geneticamente1. rgenéticos1. 'considerada do ponto de vista causal1. 'aquilo1.

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§ 16. c) A universalidade da função psicológica e a universalidade como forma de significação. Os diferentes sentidos da relação do universal com um âmbito Para trazer a uma completa clareza esta importante diferença entre a uni­ versalidade da função psicológica e a universalidade que pertence ao próprio conteúdo de significação, é inteiramente necessário prestar atenção nas diferen­ tes funções lógicas dos nomes e das significações universais e, em conexão com isso, aos diferentes sentidos do discurso sobre a sua universalidade ou sobre a sua relação com um âmbito de singularidades. Apresentamos, umas ao lado das outras, as seguintes três formas: um A, todos os A, o A em geral; por exemplo, um triângulo, todos os triângulos, o tri­ ângulo, este último caso interpretado conforme a proposição o triângulo é uma respécie~í defigura.ls 18 N.A.: A palavra que a letra A simboliza em tais relações terá de valer como sincategoremática1 [A: 'parece, em primeiro lugar, valer como sincategoremática1]. As expressões: o leão, um leão, este leão, todos os leões etc. têm seguramente, e até mesmo de forma evidente, um elemento de significação em comum; mas ele [Em A segue-se:', poder-se-ia pensar,1] não pode ser isolado. De fato, poderíamos dizer simplesmente "leão", mas a palavra só pode ter um sentido independente conforme uma daquelas formas. 'A pergunta sobre se uma destas significações está contida em todas as outras, se a representação direta da espécie pertencente a A não se introduz em todas as outras significações, teria de ser negada: a espécie A

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<152> Em função predicativa, a expressão um A pode servir, como predica­ do, num número ilimitado de enunciados categóricos, e a mais alta representação do enunciado verdadeiro, ou em si possível, deste tipo determina todos os sujeitos possíveis aos quais cabe verdadeiramente, ou sem incompatibilidade, ser um A; por conseguinte, numa palavra, o “âmbito” verdadeiro ou possível do “conceito” A. rEste conceito universal A, ou este predicado universal119 um A, relaciona-se com todos os objetos do “âmbito” (tomamos, em prol da simplicidade, o âmbito no sentido da “verdade”), quer dizer, valem as proposições da mais alta repre­ sentação indicada; e, dito rfenomenologicamente1,20 os juízos de conteúdo cor­ respondente são possíveis como evidentes. Esta universalidade, por conseguinte, pertence à função lógica do predicado. Em atos singulares, na realização ocasional da significação um A, ou do predicado adjetivado correspondente, ela nada é; ela é substituída nele pela forma da indeterminação. O que a pequena palavra um ex­ prime é uma forma que pertence, de modo evidente,21 à intenção de significação ou ao preenchimento de significação re, na verdade, tendo em vista aquilo a que ele visa"1. É um rmomento122 pura e simplesmente irredutível, cujo tipo específico é único que se pode reconhecer, mas não eliminar por meio de qualquer conside­ ração psicológico-genética. Para falar de forma ideal: o um exprime uma forma lógica primitiva.23 O mesmo vale, claramente, para a rconfiguração1 um A, que, rdo mesmo modo1, apresenta uma rforma de configuração1 lógica primitiva. A universalidade de que aqui falamos pertence, dissemos, à função lógica do predicado, ela consiste na possibilidade lógica de proposições de um certo tipo. A acentuação do caráter lógico desta possibilidade significa que se trata de uma possibilidade que deve ser vista apriori como pertencendo às significações enquanto unidades específicas, mas não aos atos psicológicos ocasionais. <153> Reconheçamos que vermelho é um universal, quer dizer, um predicado que se pode ligar a muitos rsujeitos124possíveis; mas a visada não se dirige ao que pode ser em sentido real, de acordo com as leis da natureza que regem a vivência tem­ poral. Não se fala aqui, de modo algum, de vivências, mas, sim, de predicado

uno e idêntico vermelho, e da possibilidade de certas proposições unificadas no mesmo sentido, nas quais este mesmo predicado surge. Se passarmos para a forma todo o A, então, a universalidade pertence aqui à forma do próprio ato. Visamos de fato, expressamente, a todo o A, com todos os quais se relacionam, num juízo universal, o nosso representar e pre­ dicar, embora talvez não representemos um único A, “ele próprio” ou “direta­ mente”. Esta representação do âmbito não é, justamente, nenhum complexo de representações dos elementos do âmbito, e é-o tão pouco que as representações singulares em geral, em que de algum modo se pensa, não pertencem à intenção de significação de todo o A. Também aqui o todo remete para uma forma de significação peculiar, com o que pode permanecer em suspenso se ele é ou não resolúvel em formas mais simples. Consideremos, por fim, a forma o A (in specie); também agora a universa­ lidade pertence, novamente, ao conteúdo de significação. Mas aqui encontramos uma universalidade de um gênero totalmente diferente, a universalidade do espe­ cífico, que se encontra numa relação lógica muito mais próxima com a universali­ dade do âmbito, mas que é evidentemente diferente dela. As formas o A e todo o A (precisamente: qualquer A em geral - seja qual for) não são idênticas quanto à sig­ nificação; a sua diferença não é “meramente gramatical” e, por fim, não é apenas determinada pelo teor. São formas logicamente diferentes, que dão uma expressão essencialmente diferente à significação. A consciência da universalidade específi­ ca tem de valer como um modo essencialmente novo do “representar” e, de fato, como um que não apenas apresenta um novo modo de representação de singu­ laridades individuais, mas traz à consciência um novo tipo de singularidades, a saber, as singularidades específicas. O tipo de singularidade que elas são e o modo como a priori se comportam em relação às singularidades individuais, ou delas se distinguem, deve ser, naturalmente, <154> retirado das verdades lógicas que, fun­ dando-se nas formas puras, valem a priori para uma e outra singularidades e para as suas relações recíprocas (quer dizer, de acordo com a essência pura, a ideia). Aqui, não há nenhuma falta de clareza nem nenhuma desorientação possível, na medida em que nos detivermos no sentido simples destas verdades ou, o que é o mesmo, no sentido simples das formas de significação correspondentes, cujas in­ terpretações evidentes se chamam, precisamente, verdades lógicas. Só a metabasis errônea para movimentos de pensamento psicológicos e metafísicos traz falta de clareza: elabora pseudoproblemas e pseudoteorias para a sua solução.

"introduz-se" nestas significações, mas apenas potencialmente e não como objeto visado1 [A: rNão estará, todavia, uma destas significações contida em todas as outras, não se introduzirá em todas as outras significações a representação direta da espécie pertencente a A?1].1 4 3 0 2 9 19 20 21 22 23

A: rA significação universal A, ou1. A: rsubjetivamenten. Em A segue-se: rao caráter de ato1. A: rmomento de consciência1. À frase que se segue até ao final do parágrafo, corresponde em A: Algo de semelhante vale claramente no caso do rmodo de ligação no complexo1 um A, que, rjustamente1, exprime uma rforma complexa1 lógica primitiva. 24 A: robjetos1.

Voltemo-nos de novo para a teoria nominalista da abstração. Ela erra, como deduzimos do que está dito antes, acima de tudo, pelo fato de desatender

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§ 17. d) Aplicação à crítica do nominalismo

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totalmente às formas de consciência (às formas de intenção e às formas de preen­ chimento que lhe são rcorrelativasl25) nas suas peculiaridades irredutíveis. Pelo caráter defeituoso das suas análises descritivas, falta-lhe o conhecimento de que as formas lógicas não são mais do que estas formas da intenção de significação, elevadas à unidade da consciência, por conseguinte, de novo objetivadas em espécies ideais. E a estas formas pertence também, justamente, a universalidade. O nominalismo confunde, além disso, os diferentes conceitos de universalidade, que acima separamos. Ele favorece unilateralmente a universalidade que perten­ ce aos conceitos na sua função predicativa e, de fato, como possibilidade de ligar predicativamente os mesmos conceitos a muitos sujeitos. No entanto, como ele desconhece o caráter lógico-ideal desta possibilidade, que se enraíza na forma significante, ele o substitui por conexões psicológicas que são necessariamente estranhas ao sentido dos predicados e das proposições correspondentes, e com ele incomensuráveis. O fato de, ao mesmo tempo, o nominalismo reclamar ter completamente esclarecido, em tais análises psicológicas, a essência das signi­ ficações universais diz respeito ao fato de confundir, de um modo particular­ mente crasso, a generalidade do universal e a do representar específico, <155> relativamente aos quais reconhecemos que pertencem à essência significante dos atos singulares enquanto tais, como íorm a de significação-126 que lhes é inerente. Aquilo que, fenomenologicamente, rpertence à essência imanente do ato singular"127 aparece agora interpretado equivocamente num jogo psicológico de acontecimentos que, relativamente ao ato singular, no qual, todavia, está ain­ da viva a consciência de universalidade completa e total, nada têm a dizer, nem sequer no modo de efeitos ou causas.

no aparecimento do complexo individual de atributos, a que chamamos o obje­ to fenomenal. Em tais complexos inumeráveis, porém, pode surgir o “mesmo” atributo, quer dizer, um atributo totalmente idêntico quanto ao conteúdo. Aqui­ lo que, de caso para caso, distingue as repetições deste mesmo atributo é, única e exclusivamente, a ligação individualizadora. A abstração age de tal modo como interesse exclusivo, que a diferenciação dos abstraídos perde a sua individua­ lização. O ter em vista todos os momentos individualizadores, como reverso do “voltar-se para” concentrado, fornece o atributo como algo que, de fato, em toda a parte, é um e o mesmo, <156> porque, em todos os casos de abstração a realizar, não se pode apresentar como diferente. Nessa concepção, segundo se diz, está, ao mesmo tempo, contido tudo o que é necessário para a compreensão do pensamento universal. Deixamos aqui a palavra, de preferência, ao genial Bispo de Cloyne, que foi o primeiro inspirador da doutrina exposta, embora na sua própria doutrina concedesse ainda a influ­ ência a outros pensamentos diferentes daqueles que aqui foram mencionados. Aparece de imediato como uma dificuldade - pensava - “como é que podemos saber que uma proposição sobre todos os triângulos singulares é verdadeira se­ não quando a tivermos visto demonstrada, em primeiro lugar, junto à ideia abs­ trata de um triângulo, que valha uniformemente para todos os singulares. Pois, do fato de se poder mostrar que uma propriedade pertence a qualquer triângulo singular, não se segue que ela pertença também, de modo idêntico, a qualquer outro triângulo, que não é idêntico àquele em qualquer consideração. Se, por exemplo, mostrei que os três ângulos de um triângulo retângulo isósceles são iguais a dois ângulos retos, não posso a partir daqui concluir que o mesmo valha para todos os outros triângulos, que não têm nem um ângulo reto, nem dois lados iguais entre si. Parece, por conseguinte, que, para termos a certeza de que esta proposição é universalmente verdadeira ou temos de introduzir uma prova particular para cada triângulo singular, o que é impossível, ou temos de mostrar de uma vez por todas, na ideia universal de triângulo, aquilo em que todos os singulares tomam parte sem diferenciação e pelo que todos eles serão represen­ tados da mesma forma.”

§ 18. A doutrina da atenção como força generalizadora A última nota crítica não diz, certamente, respeito a alguns novos inves­ tigadores, ligados a Mill (ou, para ir mais atrás, a Berkeley), na medida em que apresentam separadamente o problema de saber como surge a espécie como unidade indiferenciada, diante da multiplicidade, e em que procuram resolvê-lo sem o recurso à universalidade da função associativa, ou à aplicação universal do mesmo nome e conceito a todos os objetos do seu âmbito. O pensamento é, com isto, o seguinte: A abstração, como interesse exclusivo, produz eo ipso a universalização. De fato, o atributo abstraído é, certamente, apenas um elemento constituinte2 567 25 A: correlatas1. 26 A: formas de significação1. 27 A: constitui concomitantemente o ato singular.

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A isto respondo que, apesar de a ideia que tenho diante dos olhos, en­ quanto introduzo a prova, ser, por exemplo, a de que um triângulo retân­ gulo isósceles é aquele cujos lados têm um determinado comprimento, nem por isso posso estar menos certo que a mesma prova possa encontrar aplicação em todos os outros triângulos retilíneos, seja qual for a forma ou a grandeza que eles possam ter, e, de fato, precisamente porque, nem o ângulo reto, nem a igualdade dos dois lados, nem sequer o comprimen­ to determinado dos lados foram tomados em consideração, seja de que modo for, durante a demonstração. Na verdade, a figura que tenho diante dos olhos tem em si todas estas particularidades, mas de forma alguma aconteceu qualquer menção dela na prova da proposição. Não foi dito que 129

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três ângulos sejam iguais a dois retos pelo fato de um <157> deles ser reto, ou porque os lados que os incluem teriam o mesmo comprimento, o que mostra, de forma suficiente, que o ângulo que é reto teria podido ser agu­ do e ter os lados desiguais, e que, não obstante, a prova teria permanecido válida. Por esta razão, e não por ter fornecido a prova da ideia abstrata de um triângulo, concluo que o que foi provado de um triângulo retângulo isósceles singular é verdadeiro para qualquer triângulo não retangular e não isósceles. Deve aqui conceder-se que é possível considerar uma figura meramente como um triângulo, sem prestar atenção às propriedades par­ ticulares do ângulo ou às relações entre os lados. Nesta medida, pode-se abstrair: mas isto não prova, de forma alguma, que se possa formar uma ideia abstrata universal de um triângulo, que possua uma contradição interna. Na mesma medida, poderíamos considerar Pedro, na medida em que é um homem, sem formar a ideia abstrata acima mencionada de um homem ou de um ser vivo, na medida em que nem todo o percebido é levado em consideração.28

§ 19. Objeções, a) O atender exclusivo a um momento da nota característica não suprime a sua individualidade O fato de termos de afastar de imediato esta concepção tão atraente tornar-se-nos-á imediatamente claro se tornarmos presente a meta a que a teoria da abstração tem de servir, a saber, clarificar a diferença entre significações uni­ versais e individuais, quer dizer, estabelecer a sua essência intuitiva. Devemos tornar presentes os atos intuitivos nos quais as meras intenções verbais (as sig­ nificações simbólicas) se preenchem com intuições, e se preenchem de tal modo que podemos ver o que é “autenticamente visado” com as expressões e signi­ ficações. Por conseguinte, a abstração deve ser aqui o ato no qual a consciên­ cia de universalidade se realiza como o preenchimento da intenção dos nomes universais. Temos de conservar isto diante dos olhos. Observemos agora se a atenção que distinguimos é capaz desta realização que acabamos de esclarecer e, sobretudo, se ela se encontra sob o pressuposto <158> de que desempenha um papel essencial na teoria: nomeadamente, que o conteúdo que a atenção abstrativa indica é um momento constitutivo do objeto concreto da intuição, uma nota característica que lhe é realmente inerente. Como quer que a atenção possa ser caracterizada, ela é uma função que, de um modo descritivo peculiar, salienta os objetos da consciência e também só se distingue (não contando com certas diferenças graduais), de caso para caso, por meio dos objetos aos quais confere preferência. Seguidamente, de acordo 28

N.A.: Berkeley, A Treatise Concerning the Principles of Human Knowledge, Introdução, § 16 (na tradução de Überweg, p. 12-14).

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com a teoria que identifica o abstrair com o atender, não pode existir nenhuma diferença essencial entre o visar ao individual, tal como pertence, por exemplo, à intenção do nome próprio, e o visar ao universal, tal como ele adere aos no­ mes de atributos; a diferença consiste apenas em que, num caso, todo o obje­ to individual, noutro, o atributo, como que são fixados com o olhar espiritual. Perguntamos, porém, se, todavia, o atributo, uma vez que deve ser, no sentido da teoria, um momento constitutivo do objeto, não teria também de ser um sin­ gular individual, tal como o objeto total. Suponha-se que concentramos a nossa atenção no verde da árvore que precisamente se encontra diante de nós. Quem por si mesmo o conseguir, eleve a sua concentração raté mesmo^29 àquela au­ sência de consciência, aceita por Mill,30 relativamente a todos os momentos com ele ligados. Com isso desaparecem, como se diz, todos os pontos de referência de qualquer modo captáveis, para a realização da diferenciação individualizadora. Se, subitamente, nos fosse posto diante dos olhos um outro objeto pre­ cisamente da mesma coloração, não notaríamos qualquer diferença; o verde, para o qual estamos exclusivamente dirigidos, seria para nós um e o mesmo. Deixemos tudo isso valer. Mas seria este verde realmente o mesmo que aquele? Pode o nosso esquecimento ou a nossa cegueira propositada para tudo o que é diferenciador modificar alguma coisa no fato de que aquilo que é objetivamente diverso permanece, antes como depois, diferente, e no fato de que o momento objetivo <159>, a que atendemos, é precisamente este existente aqui e agora e nenhum outro? Todavia, não podemos duvidar de que a diversidade existe efetivamen­ te. A comparação de dois acontecimentos concretos e separados da “mesma” qualidade, por exemplo, do “mesmo” verde, ensina com evidência que cada um deles tem o seu verde. Os dois aparecimentos não são confundidos um com o outro, como se tivessem o “mesmo” verde em comum, como individualidêntico; pelo contrário, o verde de um está realmente tão separado do mesmo verde do outro como os todos concretos a que são inerentes. Como haveria, de outro modo, configurações qualitativas unitárias nas quais a mesma qualidade pode surgir repetida e que sentido teria ainda o discurso sobre a extensão de uma cor sobre toda uma superfície? A qualquer desmembramento geométrico da superfície também corresponde, evidentemente, um desmembramento da coloração unitária, ao passo que, todavia, sob o pressuposto de uma coloração totalmente idêntica, dizemos, e deveríamos poder dizer, que “a” cor é, por toda a parte, “a mesma”. Depois disso, a teoria não nos dá mais nenhuma explicação sobre o sentido do discurso acerca do único atributo idêntico, acerca da espécie enquanto 29 A: raté\ 30 N.A.: Cf., por exemplo, as palavras conclusivas do que foi acima citado, rp. <143>1.

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Cap. III • Abstração e Atenção

unidade na multiplicidade. É evidente que este discurso significa algo de com­ pletamente diferente do momento objetivo, que surge como caso singular da espécie na manifestação sensível. Enunciados que têm sentido e verdade para o caso singular tornam-se falsos e completamente absurdos para a espécie. A coloração tem o seu lugar e o seu tempo, ela expande-se e tem a sua intensida­ de, surge e desaparece. Aplicados à cor como espécie, estes predicados dão um puro absurdo. Quando uma casa arde, ardem todas as suas partes; as formas e qualidades individuais, todas as partes e momentos constituintes em geral desa­ parecem. Estão, na realidade, ardidas as correspondentes espécies geométricas, qualitativas e outras. Ou falar disso não será um puro disparate? Resumamos o que foi dito. Se é correta a teoria da atenção da abstração e se, no seu sentido, o reparar em todo o objeto e o reparar nas suas partes e notas características é, em essência, um e o mesmo ato, apenas distinguido pelos obje­ tos aos quais se dirige, não há para a nossa consciência, para o nosso saber, para o nosso enunciar, quaisquer espécies. Quer distingamos, quer confundamos, a consciência dirige-se, então, sempre ao singular individual e, enquanto tal, este está presente <160> para ela. Pelo fato de não se poder negar que falamos de espécies em sentidos distintos, porém, a que, em inúmeros casos, visamos e em que nomeamos não o singular, mas, sim, a sua ideia, que podemos fazer sobre este uno ideal como sujeito aproximadamente as mesmas asserções, que sobre o singular individual, a teoria falha o seu alvo: ela quer explicar a consciência de universalidade e abandona-a no conteúdo das suas explicações.

o abstraído, o caso singular concreto, do qual a31 consciência de universalidade retira a sua plenitude intuitiva, com o objeto da intenção pensante. Berkeley fala como se a demonstração geométrica fosse introduzida para o triângulo de tinta no papel, ou para o triângulo de giz no quadro, e como se, no pensamento uni­ versal em geral, os objetos singulares que pairam ocasionalmente diante de nós, em vez de meros apoios da nossa intenção pensante, fossem os seus objetos. Um <161> procedimento geométrico que partisse, no sentido de Berkeley, da figura desenhada, daria resultados absolutamente espantosos, mas dificilmente muito satisfatórios. Para o desenhado em sentido físico não vale nenhuma proposição geométrica, pois ele não é propriamente nenhuma figura retilínea, nenhuma figura geométrica em geral, e nunca o poderá ser. As determinações geométri­ cas ideais não se podem encontrar nele, do mesmo modo que, na verdade, na intuição do colorido se encontra a cor. É certo que o matemático olha para o desenho e o vê como qualquer outro objeto de intuição. Em nenhum dos seus atos de pensamento, porém, ele visa a este desenho ou a um traço singular in­ dividual nele; pelo contrário, visa, na medida em que não se desvia do assunto, a “uma figura retilínea em geral”. Este pensamento é o membro-sujeito da sua demonstração teórica. Aquilo em que, por conseguinte, reparamos não é nem o objeto concre­ to da intuição, nem um 'conteúdo parcial abstrato” (quer dizer, um momento dependente) do mesmo, mas é antes a ideia, no sentido da unidade específica. Ela é o abstrato em sentido lógico; e, de forma correspondente, deve-se desig­ nar como abstração, do ponto de vista lógico rei32 gnosiológico, não o mero salientar de um conteúdo parcial, mas, sim, a consciência peculiar que capta a unidade específica, diretamente, a partir de um fundamento intuitivo.

§ 20. b) Refutação do argumento a partir do pensar geométrico Mas que é que acontece com as vantagens que a teoria promete para a compreensão do pensar universal? Não será correto o que Berkeley tão insis­ tentemente expõe, a saber, que na demonstração geométrica de uma proposi­ ção que se refere a todos os triângulos temos, em cada caso, diante dos olhos um triângulo individual, o do desenho, e que, neste caso, apenas fazemos uso das determinações que caracterizam em geral um triângulo como triângulo, ao passo que não reparamos em todas as outras? Fazemos apenas uso destas de­ terminações, quer dizer, apenas prestamos atenção a elas, tornamo-las objeto de um atentar exclusivo. Por conseguinte, entendemo-nos sem ter de aceitar as ideias gerais. A última coisa é certa - na medida em que, sob ela, compreendemos as ideias da doutrina de Locke. Mas para evitar esta escolha não precisamos ainda de nos perder nos caminhos errados da doutrina nominalista. Podemos, no es­ sencial, aprovar totalmente as exposições de Berkeley; no entanto, temos de afas­ tar as interpretações com que as reveste. Ele confunde a base da abstração com 132

§ 21. A diferença entre o estar atento a um momento dependente do objeto intuído e o estar atento ao atributo correspondente in specie Não deve ser inútil prosseguir ainda um pouco as dificuldades da teoria con­ testada. Na oposição levada a efeito, a nossa própria concepção ganhará clareza. O estar atento concentrado num momento atributivo deve constituir o preenchimento intuitivo (o visar "autêntico”) da significação geral que adere ao nome do atributo correspondente. Visar intuitivamente à espécie e realizar o estar atento concentrado devem ser o mesmo. Mas o que é que se passa, pergun­ tamos agora, com os casos em que expressamente <162> tivemos em vista o mo­ mento individual7. Que é que, em ambos os casos, constitui a diferença? Quando 31 Em A segue-se: rprópria1. 32 A: rou1.

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Cap. III • Abstração e Atenção

reparamos, em qualquer traço individual do objeto, a sua coloração peculiar, a sua forma distinta, e coisas semelhantes, prestamos especialmente atenção a este traço, e, todavia, não realizamos nenhuma representação geral. A mesma per­ gunta diz respeito aos concreta completos. Em que é que reside a diferença entre a atenção exclusiva à estátua individual que aparece e o captar intuitivo da ideia correspondente, que se deveria efetivar em inumeráveis estátuas reais? Do lado oposto, responder-se-á certamente: na consideração individual, os momentos individualizadores caem no domínio do interesse, mas permane­ cem excluídos na consideração específica; “o interesse dirige-se apenas ao geral” quer dizer, a um conteúdo que, por si mesmo, não é suficiente para uma dife­ renciação individual. Em vez de colocar aqui a objeção feita acima - se, pois, só o atender às determinações individualizadoras constitui a individualidade, e se o não atender as suprime novamente -, fazemos antes a pergunta sobre se, na consideração individual, também visamos necessariamente aos momentos individualizadores, aos quais, por certo, devemos prestar atenção concomitante. O nome próprio individual nomeia explicitamente também as determinações individualizadoras, por conseguinte, a temporalidade e a localização? Está aqui o meu amigo João, e chamo-lhe João. Sem dúvida que está individualmente determinado, cabe-lhe, respectivamente, um lugar determinado, uma posição temporal determinada. Mas se estas determinações fossem visadas concomitan­ temente, o nome mudaria a significação a cada passo que o meu amigo João dá, e em cada caso singular em que eu, particularmente, o rnomeio1,33 Dificilmente se afirmará tal coisa e também rnão se quererá agarrar o pretexto"134 de que o nome próprio, autenticamente, é um nome geral: como se a generalidade que lhe é própria, em relação com ros múltiplos tempos, situações, estados135 da mesma coisa individual, não fosse diferente, na forma, da generalidade específi­ ca do ratributo de uma coisa ou da ideia de específica “coisa em geral”1,36 <163> Em todo o caso, na consideração atenta de um elemento ou de um traço característico no objeto, é para nós muitas vezes bastante indiferente o aqui e agora. Por conseguinte, não notamos especialmente nisso, enquanto não pensamos em realizar uma abstração, no sentido de uma representação geral. Talvez se procure aqui auxílio na aceitação do fato de que as determina­ ções individualizadoras sejam atendidas de passagem. Mas isto tem pouca uti­ lidade. Muita coisa é notada de passagem, mas, por isso, durante muito tempo ainda não é visada. Onde a consciência de generalidade se realiza intuitivamen­ te, como verdadeira e autêntica abstração, o objeto individual da intuição fun-

dadora é, certamente, rconcomitantemente consciente1,3738940embora não seja de forma alguma visado. O discurso de Mill sobre a falta de consciência em relação às determinações abstratamente exclusivas é uma ficção Tnútil e, tomada com exatidão,138 até mesmo absurda.39 Nos casos frequentes em que, em vista de um fato singular intuitivo, exprimimos a generalidade correspondente, o singular permanece diante dos nossos olhos, não nos tornamos subitamente cegos para o elemento individual do caso; certamente que tal não acontece quando, por exemplo, olhamos para este jasmim florescente e, inspirando o seu perfume, dizemos: o jasmim tem um perfume extasiante. Se quiséssemos, por fim, tomar a nova rinformação140 de que o individualizador, de fato, não é atendido tão especialmente como aquilo pelo que estamos principalmente interessados, e também não é atendido de passagem, como todo o objeto que se encontra fora do interesse dominante, mas é antes atendido con­ comitantemente como pertencente a este interesse e implicado pela sua intenção de modo peculiar - abandonaríamos já o terreno da teoria. Ela levantou, toda­ via, a pretensão de se entender com o olhar meramente pontuador para o objeto concreto dado, ou para a <164> particularidade dada nele, e agora termina com a suposição de diferentes formas de consciência, que deveria economizar.

33 34 35 36

A: A: A: A:

chamava1. rnão nos voltaremos para o pretexto1. ras múltiplas aparições1. rdo atributo ou da ideia específica concreta1.

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§ 22. Deficiências fundamentais na análise fenomenológica da atenção Isso nos conduz, imediatamente, ao ponto mais fraco da teoria. Ele reside na pergunta: o que é a atenção? Não censuramos, naturalmente, à teoria pelo fato de não nos oferecer nenhuma fenomenologia ou psicologia acabadas da atenção, mas, sim, pelo fato de não clarificar a essência da atenção na medida em que isso é totalmente exigível para os seus fins.41 Ela teria de se assegurar do que dá um senti­ do unitário à palavra atenção, para depois observar até onde se estende o âmbito da 37 A: xoncomitantemente atendido1. 38 A: r, tomada com exatidão, inútil e1. 39 N.A.: Vê-se facilmente que na sequência desta pretensa "falta de consciência" regressou o absurdo xwpiapóç da ideia geral de Locke. O que não é "consciente" não pode diferenciar coisas conscientes. Se o atender exclusivo ao momento triângulo em geral fosse possível de tal modo que o caráter diferenciador desaparecesse da consciência, o objeto "consciente", o intuitivo, seria o triângulo em geral, e nada mais. 40 A: rpretexto1. 41 Em A segue-se numa nota de rodapé: rA. v. Meinong julgou (1877) de outro modo nos seus estimulantes Hume-Studien (1,16 [198]). "A atenção pertence", diz ele, "também àqueles fa­ tos da vida espiritual para cuja explicação a psicologia fez ainda o mínimo. Todavia, conhecemo-la suficientemente bem, graças à experiência interna, pelo que a pergunta pela abstração deve ser pelo menos considerada como resolvida, mal esta se deixa reconduzir, tal como [...] quase indubitavelmente tem de ser, aos fenômenos da atenção e da associação de ideias."1

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Cap. III • Abstração e Atenção

sua aplicação e quais são, em cada caso, os objetos que têm de valer como aqueles a que prestamos atenção em sentido normal. E, acima de tudo, a teoria tem de per­ guntar a si mesma como é que o atender se comporta em relação ao significar e ao visar que tornam plenamente dotados de sentido os nomes e as restantes expres­ sões. Uma teoria da abstração, no sentido contestado, só será possível por meio do preconceito, já introduzido por Locke, de que os objetos, aos quais a consciência se dirige imediatamente e em sentido próprio, nos seus atos, e, especialmente, de que os objetos do atender teriam de ser necessariamente conteúdos psíquicos, aconte­ cimentos reais da consciência. De fato, parece ser totalmente evidente que, de for­ ma imediata, o ato de consciência só pode ser ativo junto àquilo que é efetivamente dado i"na consciência! ,42 rpor conseguinte,! nos conteúdos que rela compreende realmente em si como elementos constituintes! .43 Fora da consciência, por conse­ guinte, só pode existir o objeto mediato de um ato, e isto acontece simplesmente pelo fato de o conteúdo imediato <165> do ato, o seu objeto primeiro, funcionar como representante, como sinal ou como imagem do não consciente. Se estivermos habituados a este modo de considerar, então será fácil entender que, para clarificar as relações e as formas objetivas que pertencem à intenção dos atos, olhamos, antes de tudo, para os conteúdos presentes da consciência e, em seguida, iludidos pela evidência aparente do discurso sobre representantes ou sinais, deixamos totalmente fora de consideração os autênti­ cos objetos dos atos, aparentemente mediatos. Ao conteúdo acrescentamos, en­ tão, sem reparar, tudo aquilo que os atos põem no objeto, de acordo com o seu simples visar; os seus atributos, as suas cores, as suas formas etc. serão, então, simplesmente indicados como conteúdos e, efetivamente, interpretados como conteúdos em sentido psicológico, por exemplo, como sensações. O quanto toda essa concepção se opõe rà clara situação fenomenológica!44 e quanta desgraça ela preparou na teoria do conhecimento teremos ainda opor­ tunidade de observar abundantemente. Aqui bastará indicar que, quando, por exemplo, representamos um cavalo ou emitimos um juízo sobre ele, representa­ mos e julgamos precisamente o cavalo e não a nossa sensação respectiva. Esta úl­ tima possibilidade só a fazemos abertamente na reflexão psicológica, cujo modo de captação não devemos introduzir no conjunto imediato dos fatos. O fato de a quantidade respectiva de sensações ou fantasmas ser vivida e, neste sentido, ser consciente, não significa e não pode significar que ela seja objeto de uma consci­ ência, no sentido de um perceber, representar, julgar, a ela dirigidos. Essa concepção invertida exerce também a sua influência perniciosa sobre a doutrina da abstração. Equivocados por aquela presumível evidência, tomamos ro

conteúdo vivido como o objeto normal, ao qual estamos atentos1.454678O concretum aparecente vale como um complexo para uma imagem intuitiva de conteúdos unidos> nomeadamente, os atributos. E destes, como atributos captados como con­ teúdos (vividos, psíquicos), diz-se, depois, que, graças à sua dependência, <166> não poderão ser separados da imagem concreta completa, mas apenas atendidos nela. É incompreensível como é que, através de uma tal teoria da abstração, devem surgir as ideias abstratas daquela classe de determinações atributivas, que, de fato, podem ser percebidas, mas que, de acordo com a sua natureza, nunca podem ser percebidas adequadamente, rnem sequer146 podem ser dadas na forma de um conteúdo psíquico. Lembro, apenas, as figuras tridimensionais do espaço, em par­ ticular as superfícies fechadas dos corpos, ou corpos completos, como a esfera ou o cubo. E que é que se passa com as inumeráveis representações conceituais, que, em qualquer caso, são realizadas com a colaboração da intuição sensível e às quais, to­ davia, não corresponde nenhum momento intuitivo, nem sequer na esfera da sen­ sibilidade interna, como caso singular? Certamente que não se pode falar aqui de um mero atender ao dado na intuição (sensível), ou sequer ao conteúdo vivido. Do nosso ponto de vista, distinguiríamos, primeiro, na esfera da abstração sensível, até aqui mais salientada em prol da simplicidade, entre os atos nos quais é “dado” intuitivamente um momento atributivo, e os atos construídos a partir deles, que, em vez de meros atos de atenção a este momento, são, antes, atos de tipo novo, que, generalizando, visam à espécie que lhe pertence. Aqui, não se trata de saber se a intuição dá ou não de modo adequado o momento atributivo. Em complemento, distinguiríamos, em seguida, os casos de abstração sensível, quer dizer, da abstração simples e, eventualmente, ajustada de modo adequado à intuição sensível; e os casos de abstração não sensível ou, quando muito, parcial­ mente sensível, quer dizer, os casos em que a consciência de generalidade reali­ zada, quando muito, se constrói em parte sobre os atos de intuição sensível r,147 depois, por outro lado, sobre atos não sensíveis e, com isso, restá relacionada com formas pensantes (categoriais)148 que, de acordo com a sua natureza, não podem ser preenchidas em nenhuma sensibilidade. Oferecem exemplos conve­ nientes do primeiro caso os conceitos não misturados de sensibilidade externa e interna, tais como cor, cheiro, dor, juízo, vontade; do segundo caso, conceitos como <167> série, soma, disjuntivo, identidade, ser e outros semelhantes. Esta diferença terá de nos ocupar ainda seriamente nas investigações subsequentes.

42 A: mela1. 43 A: ra constituem1. 44 A: raos mais claros enunciados da experiência1.

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45 46 47 48

A: rcomo objeto normal, ao qual estamos atentos, o conteúdo vivido1. A: rpor conseguinte, não1. A: ren. A: inclui em si formas pensantes1. Cf. "Aditamentos e Melhoramentos a A: restá relacio­ nada com formas pensantes (= categoriais). Cf., em relação a toda a execução, VI, § 60, p. <711> e segs.1

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Cap. III • Abstração e Atenção

§ 23. O discurso com sentido sobre a atenção abrange a esfera total do pensar e não simplesmente a do intuir

estamos atentos, mas, sim, os objetos de pensamento que se tornaram “inteli­ gíveis” no decurso do ato, sob tais fundamentos, os objetos e estados-de-coisas captados de tal e tal forma pelo pensamento. E, naturalmente, a “abstração”, na qual, em vez de meramente olharmos para o que é intuível individualmente (percepcioná-lo atentamente, e coisas semelhantes), antes captamos um pensável à medida da significação, não significa senão que, nesta realização inteligível do pensável, vivemos atos formados ora de uma maneira ora de outra. O âmbito do conceito unitário de atenção é, por conseguinte, um âmbito tão amplo quer, sem dúvida,1 abrange todo o domínio do visar intuitivo e pen­ sante, por conseguinte, o do representar num sentido rigorosamente delimitado, mas captado de forma suficientemente ampla.55 rPor fim, ele alcança em geral tão longe quanto o conceito de consciência de qualquer coisa. O discurso diferenciador sobre o atentar, como um certo salientar no interior da esfera da iconsciência1, encontra, por conseguinte, uma certa diferença que é <169> independente do discurso sobre a espécie tip o de consciência1 (sobre o modo de rconsciência1). Certas '"“representações”1 são realizadas enquanto não estamos fconcentrados1 nos seus objetos, mas, sim, nos objetos de outras representações. Se representarmos o notar como um modo, simples e incapaz de descri­ ção posterior, como vêm à consciência de maneira separada os conteúdos que de outro modo afluem em conjunto à unidade da consciência, como eles são “salientados” ou “encontrados” por nós; se, em sentido semelhante, negarmos todas as diferenças no modo de representar e virmos, em seguida, a atenção como uma função iluminante e pontuadora, que domina neste círculo, então restringiremos excessivamente os conceitos cuja significação posterior, todavia, não se pode suprimir e aos quais regressamos, por isso, inevitavelmente. Deso­ rientados pela confusão entre objeto e conteúdo psíquico, não reparamos que os objetos que se nos tornam “conscientes” não se encontram simplesmente na consciência como numa caixa, rde tal modo1 que são aí meramente encontra­ dos e se pode andar no seu encalço; mas, sim, que eles se constituem, como aquilo que são e valem para nós, acima de tudo, em diferentes formas de in­ tenção objetiva. Não reparamos que decorre um conceito essencialmente uni­

O sentido unificado do discurso sobre a atenção exige tão poucos conteúdos”"i49 em sentido psicológico r(como os objetos que notamos)1,50 que se estende para além da esfera da intuição e abrange a esfera total do pensar. Com isso, é indiferente o modo como o pensamento se realiza, se ele está fun­ dado intuitivamente, ou de maneira puramente simbólica. Se nos ocuparmos teoricamente com a cultura do renascimento, a filosofia da antiguidade, o curso de desenvolvimento das representações astronômicas, as funções elípticas, as cur­ vas de enésima ordem, as leis das operações algébricas etc., estaremos atentos a tudo isso. Se realizarmos um pensamento da forma qualquer A, estaremos atentos precisamente a qualquer A e não a este que está aqui. Se o nosso juízo tiver a forma todos os A são B, a nossa atenção pertence a este estado-de-coisas nmiversal1,4 9501 trata-se para nós da totalidade e não desta ou daquela singularida­ de. E assim por toda a parte. Certamente que cada pensamento, ou, pelo menos, cada pensamento consistente, pode tornar-se rintuitivo1,52 na medida em que, de certo modo, se constrói sobre intuições ‘correspondentes”. Mas a atenção realizada sobre o seu fundamento, sobre o fundamento da sensibilidade interna ou externa, não pode querer dizer atenção ao seu conteúdo fenomenológico,5354 nem, muito menos, ao objeto nele aparecente. O qualquer coisa de certo, ou qualquer coisa ocasional, o todo e o cada, o e, ou, não, o se e o então, e coisas semelhantes, não são nada que se possa mostrar num objeto da intuição sensí­ vel subjacente, que se deixe sentir ou sequer apresentar exteriormente e pintar. <168> Certamente que a todos eles correspondem certos atos: as palavras têm, sem dúvida, a sua significação; na medida em que as compreendemos, realiza­ mos certas formas que pertencem à intenção objetivante. Mas estes ratos154 não são o elemento objetivo a que visamos; eles são, sem dúvida, o próprio visar (o representar), eles só se tornam objetivos na reflexão psicológica. O elemento objetivo do visar é, por consequência, em cada caso, o estado-de-coisas universal, todos os A são B, o geral o A (em espécie) é B , o singular indeterminado qualquer A é B etc. Nem a intuição individual, que, na verdade, acompanha a represen­ tação pensante para fundar a evidência, nem os caracteres de ato que formam a intuição ou se preenchem intuitivamente na intuição formada são aquilo a que

49 Em A faltam as aspas. 50 Em A faltam os parênteses. 51 A: rgerah. 52 A: evidente1. 53 Em A segue-se: ^descritivo-psicológico)1. 54 Em A segue-se: r(que, considerados fenomenologicamente, são, justa mente, conteúdos)1.

55 Até o fim deste parágrafo, corresponde em A: rEm vez de representar poderíamos, sem ser forçados, dizer também "notar", com o que esta última palavra deve ser tomada num sen­ tido correspondentemente amplo, totalmente ampliado, à medida da linguagem e não só artificialmente. (Novamente sinônimo é "consciência", uma palavra certamente muito am­ bígua.)1 O discurso diferenciador sobre o atender, como um certo salientar no interior da esfera do rnotar, encontra, por conseguinte, uma certa diferença, que é independente do discurso sobre <169> a espécie do tipo de representar (do modo de representar). Certas representações1 são realizadas enquanto não estamos "concentrados" nos seus objetos, mas, sim, nos objetos de outras representações.

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ficado, desde o rencontrar156 um conteúdo psíquico, quer dizer, desde o intuir puro rimanente"!57 de um tal conteúdo, até à percepção externa e à imaginação de objetos imanentes158 não encontrados e em cada caso encontráveis, e daí até às mais elevadas configurações do pensar com as suas múltiplas rformas categoriais12e formas de significação rapropriadas1;59 que por toda parte, quer intuamos perceptivamente, fantasiando, recordando, quer pensemos em formas empíricas e lógico-matemáticas, <170> está presente um visar, um tender para, que se dirige para um objetor, uma consciência que é consciência dele1. Mas a mera existência de um conteúdo no processo psíquico não é menos que o seu ser visado. Este surge, em primeiro lugar, no “notar” este conteúdo, que, enquanto um reparar nele, é precisamente um representar. Definir o mero ser vivido de um conteúdo como o seu ser representado e, em consequência, cha­ mar representações a todos os conteúdos vividos em geral é uma rdas piores falsificações conceituais que a filosofia conhece5657891.610 Em todo o caso, o número de erros gnosiológicos e psicológicos de que se tornou culpada é uma legião. Se nos detivermos no conceito de representação intencional, que é normativo para a teoria do conhecimento e para a lógica, nunca mais poderemos julgar que toda a diferença entre modos de representar se reduz à diferença entre os “conteúdos” representados. Pelo contrário, é evidente que, especialmente no domínio do puramente lógico, corresponde a cada forma lógica primitiva um “modo de consciência ’ próprio, ou um “modo de representar” próprio. Sobretu­ do, na medida em que cada novo modo de relação intencional, nomeadamente, rconstitui as novas formas, com161 as quais a objetividade se torna precisamente rconsciente1,63452 pode-se também perfeitamente dizer que toda a diferença do representar reside no representado. Em seguida, porém, deve-se atender a que as diferenças do representado, da objetividade, são precisamente de dois modos: diferenças na forma rcategorial163 e diferenças na r“ coisa mesmd^,64 que pode rser consciente165 como uma idêntica num grande número de formas. Sobre isto, veremos coisas mais particulares nas investigações que se seguem.

56 57 58 59 60 61 62 63

A: rencontrar autêntico1. A: nnterno1. A: verídicos1. Acréscimo de B. Cf. "Aditamentos e Melhoramentos" a A: formas categoriais apropriadas. A: falsificação conceituai que na Filosofia quase não tem igual1. A: relabora as formas pensantes, nas1. A: ■ pensada1. A: rà medida da significação1. Com a exceção dos itálicos, a modificação em B corresponde aos "Aditamentos e Melhoramentos" a A. 64 Em A faltam as aspas. 65 A: raparecer.

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<171> C a p ít u l o IV

abstração e representação § 24. A representação geral como artifício para a economia do pensar É um erro que provém do nominalismo medieval gostar-se de apresen­ tar os conceitos e nomes universais como meros artifícios para a economia do pensar, artifícios estes que nos deviam poupar a consideração individual e a nomeação individual de todas as coisas individuais. Diz-se que, por meio da função conceituai, o espírito pensante supera os limites que lhe são postos pela multiplicidade inabarcável das singularidades individuais, e que ele deve às suas realizações em termo de economia do pensar a obtenção indireta do objetivo do conhecimento, que jamais seria alcançável por caminhos diretos. Os conceitos gerais dão-nos a possibilidade de considerar as coisas como que em feixes, de fazer enunciados, com um golpe, para classes inteiras, por conseguinte, para inumeráveis objetos, em vez de ter de captar e avaliar cada objeto por si. A Filosofia Moderna conduziu Locke a esses pensamentos. Assim, por exemplo, diz-se nas palavras conclusivas do 3o Capítulo do Livro III do Essay: “... that men making abstract ideas, and settling them in their minds with names annexed to them, do thereby enable themselves to consider things, and discourse o f them as it were in bundles, fo r the easier and readier improvement and com­ munication o f their <172> knowledge; which would advance but slowly were their words and thoughts confined only to particulars” 1-2 Essa apresentação caracteriza-se como absurda, quando se pensa que, sem significações universais, nenhuma asserção e, por conseguinte, também ne­ nhuma asserção individual, se poderia realizar, e que em nenhum sentido lógico relevante de pensar, julgar, conhecer, se poderia falar tendo por base represen­ tações individuais meramente diretas. A mais ideal acomodação do espírito hu­ mano à multiplicidade das coisas individuais, a efetiva e mesmo fácil realização

1

2

N . T . : que os homens, ao fazerem as ideias abstratas, e estabelecendo-as nas suas mentes, com nomes a elas anexados, ficam, com isso, em condições de considerar as coisas e sobre elas discorrer como se elas estivessem juntas em molhos, para o mais fácil e pronto fomento e comunicação do seu conhecimento, que teria de avançar mais lentamente se as suas palavras e pensamentos estivessem confinados somente aos particulares". N.A.: Cf. igualmente a conclusão da citação no § 9 da presente investigação p. <172>. En­ tre os modernos, menciono Rickert, Zur Theorie der Naturwissenschaftl. Begriffsbildung (Sobre a Teoria da Formação Conceituai nas Ciências Naturais). In: l/ierteljahrsschrift f Wiss. Philos., XVIII.

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Cap. IV • Abstração e Representação

de uma captação individual adequada não tornaria supérfluo o pensar. Pois as realizações assim alcançáveis não são as realizações do pensar. No caminho da intuição não se encontra, por exemplo, nenhuma lei. Pode acontecer que o conhecimento das leis seja útil para a conservação do ser pensante, que tal conhecimento regule com utilidade a formação de repre­ sentações intuitivas de expectativa e o faça de modo muito mais útil do que o movimento natural da associação. Mas a relação entre a função do pensar e a conservação do ser pensante, e, no nosso caso, a humanidade, pertence à an­ tropologia psíquica e não à crítica do conhecimento. O que a lei realiza como unidade ideal, nomeadamente, conceber logicamente em si um sem número de casos singulares possíveis no modo da significação proposicional universal, ne­ nhuma intuição o pode realizar, ainda que fosse o intuir universal divino. Intuir, precisamente, não é pensar. A perfeição do pensar reside, certamente, no pensar intuitivo, como pensar “autêntico”, a saber, no conhecer, onde a intenção do pensar passa como que satisfeita para a intuição. Mas já de acordo com as breves exposições do capítulo anterior, poderíamos indicar como uma interpretação fundamentalmente falsa desta situação o querer captar o intuir - entendido no sentido habitual de atos da sensibilidade externa ou interna - como sendo a au­ têntica função intelectual de superar os limites infelizmente demasiado estreitos daquela função, por meio de recursos indiretos que poupassem a intuição. Esta seria a verdadeira <173> tarefa do pensar rconceituab .3 Com certeza, costuma­ mos considerar como um ideal lógico um espírito que tudo intui; mas isto ape­ nas porque nele, silenciosamente, com o intuir de tudo, introduzimos também o tudo saber, o tudo pensar, o tudo conhecer. Representamo-lo, por conseguinte, como um espírito que não se realiza apenas no mero intuir (vazio de pensa­ mento, mesmo que adequado), mas que também forma categorialmente as suas intuições e as liga sinteticamente, e, então, no assim formado e ligado, encontra o derradeiro preenchimento das suas intenções de pensamento, realizando, com isso, o ideal de tudo conhecer. Por isso, teremos de dizer: o objetivo, o verdadei­ ro conhecimento, não é a mera intuição, mas, sim, a intuição adequada, forma­ da categorialmente e, rassimi ,4 a intuição perfeitamente à medida do pensar, ou, ao invés disso, o pensamento que retira a evidência da intuição. Só no interior da esfera do conhecimento pensante é que a “economia do pensar”, que é antes uma economia do conhecer, tem um sentido e, então, o seu rico domínio.5

§ 25. Se a representação universal poderia servir como característica essencial das representações universais

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A: Te-presentativo1. Em itálico em A. N.A.: Cf., igualmente, os Prolegomena zur Reinen Logik (Prolegômenos à Lógica Pura), cap. IX. 142

A concepção, que acabamos de caracterizar, de conceito universal, como artifício que poupa o pensar, recebe a sua configuração mais exata por meio da teoria da representação: há na verdade, diz-se, apenas representações intuitivas singulares, e nelas realiza-se todo o pensar. Por necessidade ou comodidade, contudo, substituímos as representações, que precisam ser autenticamente re­ alizadas por certas outras, como seus substituintes. O artifício engenhoso da representação universal que se refere a toda uma classe permite obter resultados como se as autênticas representações estivessem sempre presentes; ou melhor, resultados de realização concentrada, que agrupam todos os resultados singula­ res <174> que poderíamos obter tendo por base uma representação efetiva. Obviamente que esta doutrina será também rebatida pelas nossas obje­ ções anteriores. Porém o pensamento da representação também desempenha um papel nas doutrinas da abstração que não põem qualquer peso considerável (ou não põem mesmo nenhum peso) no valor, do ponto de vista da econo­ mia do pensamento, da função substitutiva. Perguntar-se-á se este pensamen­ to, separado das doutrinas da economia do pensar, poderia servir utilmente de característica universal das significações universais. Em todo o caso, a palavra representação é de uma multiplicidade de sentidos vacilante. Não há dúvida de que se pode rarriscar a expressão de“i6 que o nome universal, ou a intuição singular nele fundada, é a i"“representante”i 7 da classe. Mas é de se considerar se as diferentes significações da palavra não se misturam umas com as outras e se, por isso, a sua aplicação como característica, em vez de clarificar, não favorecerá antes as desorientações ou, diretamente, as falsas doutrinas. De acordo com a nossa exposição, o que diferencia a representação universal (independentemente do fato de entendermos aqui a intenção significativa universal ou o preenchimento significativo correspondente) da representação singular intuiti­ va não pode ser uma mera diferença de função psicológica, uma mera diferença do papel que é atribuído a certas representações singulares da sensibilidade interna e externa, em conexão com o nosso processo psíquico vital. Em correspondência com isso, não achamos mais necessário entrar em confronto com apresentações da teoria da representação que falam da representação apenas como uma tal função psicoló­ gica, ao passo que não tocam o fato fenomenológico fundamental, os novos modos de consciência que conferem à vivência singular do exprimir e pensar universais todo o seu cunho. Por vezes, este ponto cardinal é tocado de passagem; denuncia-se, em afirmações singulares, o fato de não se desconhecer totalmente o ponto de vista 6 7

A: rdizer em bom sentido1. Em A faltam as aspas.

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fenomenológico. Talvez até mesmo a maioria responda à nossa repreensão dizendo que aquilo que acentuamos é também a sua opinião. Sem dúvida que a função re­ presentativa se anuncia <175> com um caráter fenomenológico peculiar. Com isso, porém, a representação universal não é senão uma representação singular, apenas colorida de um modo um pouco diferente; nesta coloração, o intuitivamente apresen­ tado vale para nós como representante de toda uma classe de indivíduos semelhantes entre si. Todavia, esta concessão pode servir de pouco quando se trata o que, deste modo, é mais importante do ponto de vista lógico e gnosiológico como um suple­ mento insignificante da intuição individual, que nada de considerável modifica no conteúdo descritivo da vivência. Apesar de não passar aqui totalmente despercebido o novo caráter de ato que anima, antes de tudo, de forma pensante, o som articulado e a imagem ilustrativa, não se tem por necessário dirigir-lhe um interesse descritivo especial; com o discurso ^superficial18 sobre a representação tem-se tudo por con­ cluído. Não se traz à consciência que neste e em caracteres semelhantes de ato está encerrado todo o lógico, que, onde, em sentido lógico, se fala de “representações” e “juízos” e das suas múltiplas formas, apenas atos deste gênero determinam os con­ ceitos. rNão se presta atenção que a essência imanente de tais caracteres de ato é ser a consciência do universal, e que todos os modos de universalidade visada, que ocu­ pam a lógica pura de acordo com a forma e a lei, são apenas dados por intermédio dos modos correspondentes de tais caracteres intencionais.1 Não se repara também que as intuições individuais fornecem de fato de certo modo os fundamentos para os novos atos, construídos sobre elas, do representar pensante (seja do representar “simbólico” ou do “autêntico”); mas que elas próprias, com a sua própria intenção sensível-intuitiva, não entram no conteúdo do pensamento e que, assim, falta preci­ samente aquilo que pressupõe o sentido preponderante (e visado pelos apoiantes da teoria da representação) do discurso sobre a representação.

geral, e, a cada vez, de acordo com o contexto de significação, no qual surge e que ajuda a cunhar, o conteúdo desta nova visada é (como já notamos de passagem)9 diferente, diferenciando-se de forma múltipla de acordo com a sua essência descritiva. O intuído individualmente não é mais visado pura e sim­ plesmente tal como aí aparece; mas ora é visada a espécie na sua unidade ideal (por exemplo, a nota musical dó, o número 3 ), ora a classe como totalidade das singularidades que tomam parte no universal (todos os tons desta nota musical; formalmente: todos os A), ora um singular indeterminado deste tipo (um A), ou desta classe (um qualquer entre os A), ora este singular intuído, mas pensado como suporte do atributo (este A aqui) etc. Cada uma destas modificações altera o “conteúdo” ou o “sentido” da intenção; por outras palavras, com cada passo modifica-se o que, no sentido da lógica, se chama '“‘representação”1:10 o repre­ sentado, tal como é captado e visado logicamente. Quer a intuição individual, que acompanha em cada caso, permaneça a mesma, quer ela continuamente se modifique, é indiferente: a representação lógica modifica-se quando a visada (o sentido da expressão) se modifica, e permanece a mesma de forma idêntica enquanto a sua visada permanecer a mesma. Não precisamos de, mais uma vez, atribuir importância ao fato de o fenômeno fundador poder faltar totalmente. A heterogeneidade da "apreensão” pensante e da “apreensão” sensível tem um caráter essencial; não é como se, por exemplo, apreendêssemos “o mesmo objeto”, uma vez como boneco de cera e, outra vez (prisioneiros de uma ilusão), como pessoa viva: como se apenas se trocassem entre si duas <177> apreensões individuais intuitivas. Também não pode iludir a circunstância de que a intenção representativa, sob as formas de representação singular pensante, representação de multiplicidade ou de totalidade, pode também estar dirigida para singulari­ dades individuais (de um, de muitos ou de todos os seus gêneros). É, na verdade, evidente que o caráter da intenção e, com isso, do teor significativo, é totalmente diverso diante de uma representação intuitiva (sensível) qualquer. Visar a um A é algo de diferente de representar um A de forma simplesmente intuitiva (sem o pensamento de um A), e é, de novo, diferente referir-se a isso em significação e nomeação diretas, por conseguinte, por meio de um nome próprio. A repre­ sentação um homem é diferente da representação Sócrates, e, da mesma forma, é diferente de ambas a representação o homem Sócrates. A representação alguns A não é a soma de intuições deste ou daquele A, nem sequer um ato coletor das intuições singulares pré-dadas, reunidas numa só (embora já esta unificação, com o seu correlato objetivo, o conteúdo, seja uma realização múltipla, que vai para além da esfera da intuição sensível). Onde tais coisas subjazem como in­ tuição exemplificadora, não são estas singularidades que aparecem, nem o seu

§ 26. Continuação. As diversas modificações da consciência de universalidade e a intuição sensível Não serão aqui inúteis exposições mais aproximadas. Aquela nova con­ cepção, que concede ao nome ou imagem um <176> caráter representativo, é, acentuamos, um novo ato do representar; no significar (e não apenas no signi­ ficar universal), realiza-se um novo tipo de visada, em comparação com a mera intuição do “sentido interno” ou “externo”, que tem um sentido completamente diferente e, muitas vezes, também, um objeto completamente diferente do que a visada na mera intuição. E, a cada vez, de acordo com a função lógica do nome

N.A.: Cf., mais acima, cap. III, § 16, p. <151> e segs. 10 Em A faltam as aspas. 9

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A: rprecisamente não muito claro1. 144

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conteúdo é aquilo em que reparamos; visamos precisamente a 'alguns” A e isto não se deixa ver em nenhuma sensibilidade interna ou externa. O mesmo vale, naturalmente, para outras formas universais de significação, por exemplo, para formas numéricas como dois ou três e, novamente, para a forma de universalida­ de como todos os A. A totalidade está representada em sentido lógico, tal como compreendemos e empregamos com sentido a expressão todos os A. Ela está, por conseguinte, representada no modo do pensar unitário, e só deste modo, ou numa forma “autêntica” correspondente, pode vir em geral à consciência como totalidade. Pois só podemos intuir isto ou aquilo. Por mais singularidades que percorramos com isso e por mais zelosos que sejamos ao coligi-las, no melhor dos casos seriam representados todos os A, se o esgotamento do âmbito do con­ ceito efetivamente se realizasse, e, todavia, não seriam representados todos os A, a representação lógica não estaria completa. Se, em contrapartida, o estiver, pode ansiar pela intuição e esperar dela e experimentar por meio dela uma cla­ rificação. Mas vê-se que não é a produção intuitiva-sensível da objetividade re­ presentada, a saber, o conjunto dos A, que consegue pôr diante dos olhos o que é “autenticamente visado”. Antes, é a intenção pensante, <178> no modo como o exigem a sua forma e o seu conteúdo, que tem de se relacionar com a intuição e preencher-se nela; e, assim, resulta um ato complexo que obtém a qualidade da clareza e da evidência, mas não pôs de lado o pensar nem o substituiu por uma mera imagem. Temos de nos contentar aqui com estas indicações provisórias e ainda bastante superficiais. Para clarificar a diferença entre pensar e intuir, represen­ tar inautêntico e autêntico, empregaremos análises mais abrangentes na última investigação deste livro, das quais sobressairá um novo conceito de intuição em face do conceito habitual, a saber, em face do conceito de intuição sensível.

como consciência indeterminada da unidade ou da multiplicidade, tudo estaria em ordem. O discurso acerca de uma função representativa da imagem intuiti­ va seria, então, utilizável, na medida em que a imagem intuitiva tornasse em si representável apenas um singular da espécie em questão, mas funcionasse como apoio para a consciência conceituai construída a partir dela, de forma que, por seu intermédio, surgisse a intenção em direção à espécie, à totalidade dos obje­ tos conceituais, a um singular indeterminado do gênero etc. Numa perspectiva objetiva, então, também poderia ser indicado o próprio objeto intuitivo como representante da espécie, da classe, do singular indeterminado visado etc. Aquilo que vale para as imagens intuitivas ilustradoras vale também para os nomes, onde eles funcionam “representativamente”, sem auxílio ilustrativo. <179> Assim como a consciência de significação pode se desdobrar tendo por base uma intuição inadequada e, por fim, muito afastada de uma exemplificação autêntica, assim também o pode com base em meros nomes. Que o nome é representante não significa, então, outra coisa senão que o seu aparecimento físico é o suporte da intenção significativa correspondente, na qual o objeto conceituai é visado. Nessa concepção, o nominalismo permaneceria excluído. Pois, agora, o pensamento já não se reduz mais a qualquer manejo exterior de nomes e ideias singulares, ou mesmo a mecanismos associativos inconscientes, que deixam as singularidades surgirem nos seus lugares, tal como as cifras de uma máquina de calcular; pelo contrário, há um representar conceituai descritivamente diferente do representar intuitivo (como o visar relacionado diretamente ao objeto que aparece): um visar de um gênero fundamentalmente novo, ao qual pertencem, rde acordo com a sua essência,1 as formas do um e do muitos, do dois e do três, do qualquer coisa em geral, do todo etc. E, entre tudo isso, encontra-se também a forma na qual se constitui a espécie, no modo de objeto representado, de forma que pode funcionar como sujeito de possíveis atribuições ou predicações.

§ 27. O sentido legítimo da representação universal § 28. A representação como substituição. Locke e Berkeley Depois destas considerações, poderemos estar muito menos inclinados a nos contentarmos com o antigo e amado discurso sobre a função representativa dos sinais universais e das imagens intuitivas. Graças à multiplicidade de sen­ tidos e, sobretudo, na interpretação que em conjunto se lhe dá, ela é incapaz de contribuir com qualquer coisa para uma caracterização clarificadora do pensa­ mento que se move em formas universais. A universalidade da representação deve residir na universalidade da re­ presentação. Se pudéssemos compreender esta última como aquele novo modo de consciência que se realiza na base da intuição, ou melhor, como aquelas modi­ ficações alternantes pelas quais é caracterizada a consciência de universalidade, seja como consciência do específico, seja como consciência da totalidade, seja 146

Mas o discurso acerca da representação universal não tem, na doutrina histórica da abstração, o conteúdo que acabamos de apresentar e unicamen­ te justificado, para o qual o nome de representação convém certamente muito pouco. É antes visada a substituição do indicado pelo indicar. Já Locke atribuiu um papel essencial à substituição, em conexão com a sua doutrina das ideias abstratas, e foi dela que a teoria da abstração de Berkeley e dos seus seguidores retirou estes pensamentos. Lemos, por exemplo, em Locke:11

11 N.A.: Essay, B. III, cap. III, sec. 11. 147

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It is plain [...], that general and universal belong not to the real <180> existence of things; but are the inventions and creatures of the understanding, made by it for its own use, and concern only Signs, wether words or ideas. Words are general, [...] when used for sings of general ideas, and so are applicable indifferently to many particular things: and ideas are general when they are set up as representatives of many particular things; [...] their general nature being nothing but the capacity they are put into by the understanding, of signifying or representing many particulars; for the signification they have is nothing but a relation, that, by the mind of man, is added to them.12

Os vivos ataques de Berkeley contra a doutrina da abstração de Locke di­ zem respeito às suas “ideias abstratas”; mas a mesma função representativa, que Locke atribui a estas ideias, é transferida por Berkeley para as ideias singulares em cada caso presentes, a saber, para os nomes gerais em e por si mesmos. Recordo as seguintes exposições na Introdução aos Principles of Human Knowledge: Se quisermos ligar às nossas palavras um sentido determinado e falar apenas do concebível, teremos, julgo, de reconhecer que uma ideia, que em si e por si é uma ideia singular, se torna universal pelo fato de ser utilizada para representar todas as outras ideias singulares do mesmo tipo, ou para aparecer em vez delas. Para que isto se torne claro através de um exemplo, pensemos que um geômetra prossiga a demonstração do modo como uma linha pode ser dividida em duas partes iguais. Ele traça, por exemplo, uma linha negra do comprimento de uma polegada; esta linha, que em e por si mesma é uma linha singular, não deixa, por isso, de ser, em relação àquilo que por ela é indicado, universal, pois ela, tal como aqui é usada, representa todas as linhas singulares, como quer que elas sejam concebidas, de forma que o que delas é demonstrado é demonstrado de todas as linhas ou, em outras palavras, de uma linha em geral. Exatamente do mesmo modo como a linha singular, pelo fato de servir como signo, se torna universal, também o nome linha, que, em si, é particular, se tornou universal pelo fato de servir como signo. E como a universalidade daquela ideia não repousa no fato de que ela seria um signo para <181> uma linha abstrata ou universal, mas, sim, no fato de ser um signo para todas as linhas retas singulares, que possam existir, terá de ser aceito que a palavra linha deve a sua universalidade à mesma causa, a saber, ao fato de designar indiferentemente diversas linhas singulares.13

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A universalidade, tanto quanto posso conceber, não consiste na essência absoluta positiva ou no conceito [nature or conception] de qualquer coisa, mas, sim, na relação em que qualquer coisa se encontra com outro singu­ lar, que é através disso designado ou substituído, com o que acontece de os nomes, coisas ou conceitos14que, de acordo com a sua própria nature­ za, são particulares, se tornarem universais.15 Parece [...] que uma palavra se torna universal na medida em que é empre­ gada como signo não de uma ideia abstrata universal, mas, sim, de muitas ideias singulares. Cada uma destas ideias é suscitada no espírito indife­ rentemente pela palavra [any one of which it indifferently suggests to the mind]. Se se diz, por exemplo: a alteração de movimento éproporcional à força empregada, ou: tudo o que é extenso é divisível, então estas regras do movimento e da extensão devem ser compreendidas universalmente; to­ davia, não se segue que elas suscitem no meu espírito uma representação do movimento sem um corpo movido, ou sem uma determinada direção e velocidade [...]; nisso, porém, reside apenas o fato de que, seja qual for o movimento que eu considere, seja ele rápido ou lento, vertical, horizontal ou oblíquo, seja ele o movimento deste ou daquele objeto, se confirmam uniformemente os axiomas que lhe dizem respeito. Do mesmo modo, confirma-se a outra proposição, em cada extensão particular [...].16

<182> § 29. Crítica da teoria da representação de Berkeley A esta exposição, poderemos objetar o que se segue. Com a afirmação de Berkeley de que a ideia singular é empregada para substituir todas as outras ideias singulares do mesmo gênero, não se pode ligar nenhum sentido defensável, relati­ vamente ao significado normal da palavra substituição. Falamos de um substituto onde um objeto assume realizações (ou é um objeto de realizações) que, a não ser assim, outro teria de realizar (ou de experimentar). Assim, o advogado com ple­ nos poderes realiza, como substituto, o negócio do seu cliente, o emissário subs­ titui o governante, o símbolo abreviado substitui a expressão algébrica complexa

12 N.T.: "É óbvio [...] que o geral e o universal não pertencem à existência real das coisas, mas são invenções e criaturas do entendimento, feitas por ele para seu próprio uso, e dizem res­ peito apenas a signos, sejam eles palavras ou ideias. Os nomes são gerais [...] quando usados signos de ideias gerais e, assim, são aplicáveis, indiferentemente, a muitas coisas particulares; e as ideias são gerais quando são estabelecidas como representativas de muitas coisas parti­ culares; [...] não sendo a sua natureza geral outra coisa senão a capacidade, que nelas é posta pelo entendimento, de significar ou representar muitos particulares; pois a significação que eles têm nada é senão uma relação que, por meio da mente humana, é adicionada a elas/' 13 N.A.: Cito (com pequenas divergências) a partir da tradução de Ueberweg, p. 9 e segs. (§ 12).

14 N.A.: Things or notions. Sabe-se que "coisas" para Berkeley, não são mais do que comple­ xos de1 "ideias". No entanto, no que diz respeito às “notions”, são aqui visadas, em todo o caso, as representações, que se relacionam com o espírito e com as suas atividades, ou também representações, cujos objetos, como o fazem todas as relações, "englobam" tais atividades. Estas representações, que Berkeley separa das ideias sensíveis, como sendo fundamentalmente diferentes, e não quer deixar que se chamem ideias (cf. see. 142), são, por conseguinte, idênticas às ideias da reflexão de Locke e, de fato, abrangem tanto as pu­ ras ideias de reflexão quanto também as ideias mistas. O conceito berkeleyano de notion é, acima de tudo, pouco unificado e com um sentido pouco claro. 15 N.A.: Op. cit, § 15, p. 12. 16 N.A.: Op. cit, § 11, p. 8 e segs. r(cf. The Works ofG . Berkeley, by A. C. Frazer, p. 144).1

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etc. Perguntamos, então, se, no nosso caso, a representação singular momentânea viva exerce também uma substituição, se ela recebe uma realização que uma outra ideia singular ou quiçá mesmo cada ideia singular da classe seria autenticamente chamada a levar a cabo. A resposta é certamente sim, segundo a clara literalidade da expressão berkeleyana. Na verdade, porém, não se pode dizer isso. É evidente que a realização que a ideia singular presente leva a cabo poderia ser efetivada do mesmo modo por qualquer outra; nomeadamente, cada uma poderia servir igualmente bem de fundamento da abstração, como fundação intuitiva da significação universal. O pensamento da substituição só surge, por conseguinte, por meio da reflexão de que cada ideia singular tem valor idêntico nesta função e que, quando escolhemos, uma qualquer outra poderia ocupar o seu lugar e vice-versa. Sempre que realizamos uma significação intuitiva, este pensamento é possível. De forma alguma, porém, ele é por isso efetivo; tanto mais porquanto ele próprio pressupõe, antes, o conceito univer­ sal que deve substituir. De forma correspondente, as ideias singulares são também, apenas, um substituto possível e não efetivo dos seus semelhantes. Mas Berkeley toma com seriedade a substituição e apoia-se, com isso, por um lado, no sentido das asserções universais e, por outro, no papel da figura na demons­ tração geométrica. O primeiro vale para a citação acima do § 11 da Introdução aos seus Principies. Se emitirmos o juízo: todo o extenso é divisível pensamos, de fato, que, seja qual for o corpo que possamos considerar, ele se provará como divisível. O nome universal (a saber, a ideia singular que o acompanha em todos os casos) re­ presenta, à medida do sentido simples da proposição, <183> cada singular extenso indiferentemente; por conseguinte, através da ideia singular dada, qualquer outra ideia singular da classe extensão é “sugerida ao espírito de modo indiferente”. Entretanto, Berkeley confunde aqui duas coisas diferentes: 1. O signo (nome ou ideia singular) é representante de cada âmbito sin­ gular do conceito, cuja representação, segundo Berkeley, ele suscita (suggests). 2. O signo tem o significado, o sentido, todo e qualquer A ou um A, seja ele qual for. Na última perspectiva, não se fala de representação no sentido de substi­ tuição. Podem ser sugeridos ou representados de modo plenamente intuitivo um ou mais A; mas o singular que eu justamente tenho diante dos olhos (sem o ter visto)117não aponta para nenhum outro em relação ao qual ele se mostraria como substituto, muito menos aponta para cada singular do mesmo gênero. Num sen­ tido totalmente diferente, todos os A, ou cada A ocasional, são representados, a saber, eles são representados deforma pensante. Num pulso unitário, num ato ho­ mogêneo e peculiar, é realizada a consciência de todos os A, um ato que não tem componentes, que se relaciona com todos os A singulares e que não seria possível

de produzir nem de substituir por nenhuma soma ou entrelaçamento de atos sin­ gulares ou de sugestões singulares. Por meio do seu “conteúdo”, do seu sentido ide­ al a captar, este ato relaciona-se com cada membro do âmbito; não de modo real, mas, sim, de modo ideal, isto é, lógico. Aquilo que asserimos de todos os A, por conseguinte, numa proposição unificada da forma todo A é B, vale evidentemente e a priori para cada A0 determinado existente. A conclusão do universal ao singu­ lar tem, em cada caso dado, de ser realizada, e o predicado B tem de ser asserido de cada AQcom justificação lógica. Por isso, contudo, o juízo universal não exclui realmente em si o particular, a representação universal não exclui a representação singular que cai sob ela, seja qual for o sentido psicológico ou rfenomenológico118 a conceber; e, com isso, também não no modo de um feixe de substituições. Já a infinitude do âmbito de todos os r“puros”1 <184> conceitos universais, não mis­ turados rcom posições empíricas de existência1, rcomo número, imagem espacial, cor, intensidade1, caracteriza esta interpretação como absurda.

17 A: considero1. 150

§ 30. Continuação. O argumento de Berkeley a partir do procedimento demons­ trativo da Geometria Em segundo lugar, Berkeley faz apelo ao exemplo da linha indicada, que serve de demonstração ao geômetra. Quantas vezes Berkeley se deixa equivoca­ damente conduzir pela inclinação empirista a preferir, acima de tudo, a singula­ ridade rsensível-intuitiva119 aos autênticos robjetos de pensamento1,181920 é algo que se mostra no fato de ele, aqui como também noutros lugares, reivindicar o caso singular sensível (ou melhor, o analogon sensível do caso singular ideal), que dá o seu apoio ao pensamento matemático, como sujeito da prova. Como se a de­ monstração fosse em cada caso conduzida para o traço no papel, para o triângulo de giz no quadro, e não para a reta, para o triângulo, pura e simplesmente ou “em geral”. Já acima21 corrigimos este erro e mostramos que a demonstração, na verdade, não é conduzida para a singularidade indicada, mas, desde o princípio, para a universalidade; para todas as retas em geral, pensadas num ato. Sobre isso, nada será modificado pela maneira de falar do geômetra, que expõe a sua propo­ sição de forma universal e começa a demonstração com as palavras: seja AB uma reta qualquer... Com isto, nada é dito quanto à demonstração ser conduzida, em primeiro lugar, para esta reta AB (ou para uma reta ideal determinada, substi­ tuída por esta), e esta, então, funcionar como substituta de qualquer outra reta; 18 19 20 21

A: '"descritivo1. A: intuitiva1. A: ratos de pensamento1. N.A.: Cf. § 20, p. <160>. rSobre isto, cf. Locke, B. IV, c. 1, § 9.1 151

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mas, com isso, é apenas dito que AB , em simbolização intuitiva, deveria tornar um exemplo representativo, para então servir de apoio à »“concepção122 intuitiva possível do pensamento uma reta em geral, pensamento este que constitui o ver­ dadeiro e permanentemente contínuo elemento constituinte da conexão lógica. <185> O quão pouco a substituição pode ajudar na clarificação do pensa­ mento universal também está salientado na questão sobre o que acontece nas re­ presentações universais múltiplas que têm de surgir na pretensa prova da reta na folha áe papel As intuitividades que lhes correspondem, todavia, não devem ser igualmente captadas como objetos do pensamento comprovativo. Pois, então, também não constituiríamos sequer uma proposição; teríamos puras ideias sin­ gulares substitutivas, mas nenhum pensamento. Acredita-se poder realizar uma predicação por meio de uma conglomeração qualquer de tais singularidades? Certamente que a função do nome universal e a sua significação universal no predicado é diferente das que tem no sujeito, e é em geral, como já mais acima notamos, multiplamente distinta, de acordo, a cada vez, com as formas lógicas, quer dizer, as formas das conexões pensantes com as quais se fundem as signifi­ cações runiversais, conservando idêntico um conteúdo nuclear e modificandose graças a funções sintáticas diferentes (cf. a nota à p. <151>)"». Como é que se quer apanhar todas estas formas, nas quais se anuncia a constituição do “pensar” enquanto tal, ou, dito objetivamente, nas quais a essência ideal da significação se desdobra apriori (tal como a essência da quantidade nas formas do número), como é que se quer apanhá-la com a única frase acerca da substituição?

fundamento de uma consciência conceituai). O fato de ser o “espírito” que lhes concede uma função substitutiva, o fato de ele utilizar como representantes as singularidades que aparecem, é-nos assegurado em diferentes formas de expres­ são; e o fato de estas atividades espirituais serem conscientes e, assim, caírem na esfera da reflexão, estes grandes pensadores tê-lo-iam certamente concedido. Mas os seus erros ou faltas de clareza gnosiológicos fundamentais resultam de um motivo já mais acima24 descoberto; a saber, do fato de eles se deterem, na análise fenomenológica, quase exclusivamente no singular intuído, por assim dizer, no captável da vivência de pensamento, nos nomes e nas intuições exemplificadoras, enquanto nada sabem fazer com os caracteres de ato, precisamente porque eles não são nada de captável. Continuamente, procuram quaisquer sin­ gularidades sensíveis posteriores e quaisquer manejos sensíveis nelas represen­ táveis, para dar ao pensamento o modo da realidade que elas favorecem e que ele se recusa a mostrar no fenômeno refetivo1,25 Não se toma a cargo considerar os atos de pensamento como aquilo que eles apresentam de modo puramente rfenomenológico1,2425627deixá-los, com isso, valer como caracteres de ato de um tipo completamente novo, como novos “modos de consciência” em face da intuição direta. Não se vê o que, para aquele que considera a situação rsem se descon­ certar pelos tradicionais“127 preconceitos, é o mais manifesto, a saber, que estes caracteres de ato são modos do visar, do significar rCom diferentes conteúdos de significação“», por trás dos quais, pura e simplesmente, nada se deve procurar que seja diferente e possa ser diferente de, precisamente, rvisar, significar“»,2829 <187> O que a “significação” é rpode nos ser dado de modo tão imedia­ to como nos é dado“»29 o que a cor e o som são. Isto não se pode definir ulteriormente, é um descritivo último. De todas as vezes que »“efetuamos ou com­ preendemos“» uma expressão, rela significa qualquer coisa para nós, estamos atualmente conscientes do seu sentido. Este“»30 compreender, significar, realizar um sentido não é o ouvir um som de palavra, ou a vivência de um fantasma si­ multâneo qualquer. E, assim como as diferenças rfenomenológicas“» entre sons rque aparecem“» são dadas de forma evidente, assim também as diferenças entre significações. Naturalmente que, com isso, a fenomenologia das significações31 não alcançou o seu fim, mas, pelo contrário, ela começa aqui. Por um lado, fixarse-á intuitivamente a diferença gnosiológica fundamental entre as significações

§ 31. A fonte principal das confusões indicadas23 Seria ir demasiado longe querer apresentar a Locke e a Berkeley a obje­ ção de não terem reparado na diferença descritiva entre <186> a ideia singular na intenção individual e a mesma ideia singular na intenção universal (como

22 A: rconstituição1. 23 "Aditamentos e Melhoramentos" a A: rÉ óbvio que, nestes parágrafos, sob o nome signi­ ficação, são concebidas não apenas as essências intencionais das intenções significativas, mas também as dos preenchimentos significativos. A comodidade do modo de expressão exigiria um conceito de significação igualmente alargado, tal como o concedemos no 89 capítulo da Investigação VI, com os termos pensar, julgar, representar, abstrair etc., segun­ do o que seria também de distinguir, por conseguinte, entre significações "inautênticas" e "autênticas". (Certamente que um tal discurso, sobretudo em face das concepções domi­ nantes da função significativa, não é totalmente desprovido de inconvenientes.) De forma correspondente, no prosseguimento da investigação, o conceito de significação universal deve ser tomado, a maior parte das vezes no sentido mais amplo, ele deve reunir tanto o vi­ sar simbólico como o ver intuitivo do universal. Assim, sobretudo no capítulo conclusivo.1 152

24 25 26 27 28 29 30 31

N.A.: § 15, rp. <147> e segs.1 A: simples1. A: rfenomenal1. A: rsem os óculos dos tradicionais1. A: visar ou significar1. A: rsabemo-lo de modo tão imediato como sabemos1. A: rcompreender significa qualquer coisa para nós, realizamos o seu sentido. E isto1. Em A segue-se: r, porém,1.

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simbólicas vazias e as intuitivamente preenchidas; por outro lado, têm de ser estudados os modos essenciais e as formas de ligação das significações. Este é o domínio da atual análise da significação. Resolvem-se os seus problemas por intermédio da presentificação dos atos que lhes dizem respeito re das suas doações. Com a-132 identificação e a diferenciação, a ligação e a separação, pu­ ramente fenomenológicas, assim como por meio da abstração generalizadora, obtêm-se os tipos e as formas de significação essenciais; em outras palavras, obtêm-se os conceitos lógicos elementares que, precisamente, não são senão as captações ideais das distinções significativas primitivas. Mas, em vez de analisar fenomenologicamente as significações, para de­ terminar as formas lógicas fundamentais, ou, inversamente, em vez de se cla­ rificar o fato de que as formas lógicas fundamentais não são senão os típicos caracteres de ato e as suas formas de ligação (na formação de intenções mais complexas), levamos a cabo análises lógicas em sentido habitual, refletimos sobre o que está visado nas significações de um ponto de vista objetivo, e procuramos em seguida realmente3 33 nos atos o que é visado nos objetos. Pensamos nas sig­ 2 nificações em vez de pensarmos sobre as significações; ocupamo-nos com os estados-de-coisas representados e julgados <188>, em vez de nos ocuparmos com as representações e os juízos (quer dizer, as significações nominais e proposicionais); pretende-se e acredita-se ter realizado uma ranálise descritiva dos atos-1,34 quando já há muito se abandonou o terreno da rreflexão-'3536e à análise fenomenológica se substituiu a objetiva. E objetiva é também a análise puramen­ te lógica que investiga “o que se encontra nos meros conceitos (ou significações)”, a saber, o que a priori deve ser atribuído aos objetos em geral, como pensados nestas formas. Neste sentido, os axiomas da lógica e da matemática pura surgem “por meio da mera análise de conceitos”. Num sentido completamente diferente, a atual análise das significações investiga “o que se encontra nas significações”. Só aqui o modo de expressão é autêntico; as significações tornam-se, reflexiva­ mente, objetos da investigação, perguntar-se-á pelas suas partes eformas efetivas, e não por aquilo que vale para os seus objetos. O modo como Locke chega à sua doutrina das ideias gerais e, entre outras, também à sua doutrina da represen­ tação; tal como o modo como Berkeley modifica e defende esta doutrina, como ele, de imediato, recorre ao sentido das proposições universais (comparem-se as suas análises exemplares, citadas mais acima na p. 181, retiradas do § 11 da introdução aos Principies) foferece136 puras comprovações do que foi dito.

32 A: rou tipos de atos; e1. 33

<189> C a p i t u l o ¥ e s t u d o f e n o m e n o l ó g ic o s o b r e a t e o r ia d a a bstr a ç ã o d e h u m e1

§ 32. Dependência de Hume em relação a Berkeley A concepção da abstração em Hume, como já hoje não haverá mais ne­ cessidade de acentuar, não é, de forma alguma, idêntica à de Berkeley.2 Não obstante, ela lhe é tão aparentada que não é totalmente incompreensível que, no começo da sua exposição, na 7a Secção do Tratado, Hume possa ter chegado ao ponto de atribuir a Berkeley as suas próprias teses. “Um grande filósofo”, diz ele,3 “combateu [...] a opinião recebida e afirmou que todas as ideias univer­ sais não são senão ideias individuais, enlaçadas com um nome determinado que lhes dá uma significação mais abrangente e faz com que, em casos dados, outras ideias singulares semelhantes sejam chamadas à recordação. Vejo nesta intelecção uma das descobertas maiores e mais dignas de estima que foram feitas, nos últimos anos, no domínio das ciências.” Certamente que esta não é totalmente a posição de Berkeley, que, <190> ao contrário do que quer Hume, não atribui apenas aos nomes universais a força de transformar as representa­ ções particulares que os acompanham em representantes das restantes repre­ sentações singulares da mesma classe. Segundo Berkeley, por si mesmos, sem representações singulares correspondentes, os nomes universais só poderiam funcionar de forma representativa. Todavia, as representações singulares tam­ bém poderiam funcionar deste modo sem nome, e, por fim, ambas as coisas podem ter lugar em simultâneo, com o que, porém, o nome, no enlace com a apresentação representativa, não detém nenhum privilégio. Todavia, o assunto principal permanece: a universalidade reside na representação; e esta Hume concebe-a expressamente, como substituição, pela singularidade que aparece 1

2 3

N.T.: Reell.

34 A: ranálise descritivo-psicológica1. 35 A: Teflexão psicológica1. 36 B: roferecem1.

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Aditamentos e Melhoramentos" a A: rPara o quinto capítulo e, sem dúvida, para toda a In­ vestigação, devemos recorrer ao recente tratado de Meinong sobre "Abstrair e comparar" (Z. F. Psych. u. PhisioL, Bd. XXIV). Infelizmente, não me foi mais possível, desde a conclusão do livro e durante a impressão, dedicar-me a novos estudos. Até hoje, ainda não vi o tra­ balho de E. Mally, citado por Meinong, sobre "Abstração e conhecimento de semelhança" (Arch. F Syst Philos., VI).1 N.A.: Cf. os Humestudien de Meinong, I, p. 316 [218]. N.A.: Cito a partir da meritória edição alemã de Lipps do Treatise (Troktat über die Menschliche Natur, I. Teil, VII. Abschnitt, p. 30), porém, substituo "representação" por "ideia". A expressão de Hume pode também manter vivo para nós o seu particular conceito de representação.

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de outras singularidades, as quais, através da primeirar, como Hume se expri­ miu,"! são psiquicamente “sugeridas”, ou, como Hume diz diretamente, são cha­ madas à recordação. Com isto, Hume é apanhado concomitantemente pelas nossas objeções e até mesmo apanhado de modo mais forte; pois, em Berkeley, a concepção lite­ ral da substituição e do estímulo da representação singular representada parece pairar ainda um pouco na falta de clareza, ao passo que, em Hume, surge com precisão indisfarçável e com clareza.

Por conseguinte, quanto ao assunto principal, o espírito da doutrina de Berkeley está vivo em Hume. Hume, no entanto, não é meramente reprodutivo, ele prossegue a doutrina; procura configurá-la com mais precisão e, sobretudo, aprofundá-la psicologicamente. Nesta perspectiva, não são tanto os argumentos que Hume dirige contra a doutrina das ideias abstratas que entram em conside­ ração, mas, em vez disso, muito mais as considerações de psicologia associativa que ele liga a elas. Aqueles argumentos não ultrapassam, quanto ao essencial, o círculo de pensamentos de Berkeley e são, quando fixamos corretamente o ob­ jetivo da prova, totalmente indiscutíveis. A impossibilidade das ideias abstratas, no sentido da filosofia de Locke, quer dizer, das imagens abstratas, surgidas por separação das ideias de notas características a partir de imagens concretas, é sem dúvida demonstrada. Mas o próprio Hume capta o seu resultado na proposição: “Representações (ideias) abstratas são, por conseguinte, em si individuais, por mais que possam ser universais relativamente àquilo que representam. <191> A imagem no nosso espírito é, simplesmente, a imagem de um objeto singular, mesmo que a sua utilização nos nossos juízos também possa ser de tal forma como se a imagem fosse universal.”4 A crítica de Hume não poderia provar estas proposições. Ela demonstrou que as imagens abstratas são impossíveis e a isso teria de ligar a conclusão segundo a qual quando, não obstante, falamos de re­ presentações universais, que pertencem aos nomes universais como suas signi­ ficações (nomeadamente, como preenchimentos de significação), alguma coisa que criasse esta universalidade da significação teria ainda de entrar nas imagens concretas. Isto que se acrescenta (poderia a tradição prosseguir corretamente) não pode consistir em novas ideias concretas, por conseguinte, também não em nomes-ideias; um conglomerado de imagens concretas nada mais pode efetuar

do que tornar, justamente, representativos os objetos concretos, cuja imagem contém. Se não deixarmos, assim, passar despercebido o fato de que a univer­ salidade do significar (seja como universalidade da intenção de significação ou, enquanto tal, do preenchimento de significação) é qualquer coisa que reside de forma palpável em cada caso singular em que compreendemos o nome universal e o relacionamos sensivelmente com a intuição, e que distingue esta representa­ ção universal, de modo imediatamente evidente, da intuição individual, então não resta senão a conclusão: deve ser o modo da consciência, deve ser o modo da intenção, que constitui diferença. Surge um novo caráter do visar no qual não é pura e simplesmente visado o objeto que aparece intuitivamente, nem aquele da palavra-ideia, nem o da coisa-ideia paralela, mas, sim, por exemplo, o da qualidade ou forma explicada em último lugar e, na verdade, entendida universalmente como unidade em sentido específico. Mas Hume permanece prisioneiro do pensamento de Berkeley sobre a representação e exterioriza-o completamente pelo fato de, em vez de olhar para o caráter de significação (em intenção de significação e preenchimento de signi­ ficação), se perder nas conexões genéticas que concedem ao nome uma relação associativa com os objetos da classe. Não o menciona com nenhuma palavra e não traz a uma clareza eficaz o fato de a universalidade se anunciar em vivência subjetiva e, na verdade, como há pouco foi acentuado, em <192> cada execução singular de uma significação universal. E ainda menos notou que aquilo que aqui se anuncia mostra uma nítida diferença descritiva: a consciência da “uni­ versalidade” tem, por vezes, o caráter da universalidade geral, por vezes o da universalidade universal, ou tinge-se, por outro lado, rde acordo com estas, ou com aquelas, “formas lógicas”1.5 Para a Psicologia e a Teoria do Conhecimento “ideológicas”, que querem reduzir tudo a “impressões” (sensações) e conexões associativas de “ideias” (a fantasmas, como sombras enfraquecidas das impressões), os modos da consci­ ência, os atos no sentido de vivências intencionais, são certamente incômodos. Recordo aqui o modo como Hume se ocupou em vão com o beliefe continua­ mente falhou ao pôr este caráter de ato das ideias como intensidade ou como algo de análogo da intensidade. Assim, mesmo a “representação” tem de ser reconduzida, de algum modo, ao captável. Isto deve ser, então, realizado pela análise genético-psicológica; ele deve mostrar como chegamos a utilizar a mera imagem singular que experimentamos, upara além da sua natureza próprid\ nos nossos juízos, “como se ela fosse universal”.6 A maneira de falar que acabamos de acentuar é característica, em uma medida particular, da falta de clareza da posição de Hume. Com o como se,

4

5 6

r§ 33.1 A crítica de Hume às ideias abstratas e o seu pretenso resultado. O seu desatender aos pontos fenomenológicos principais

N.A.: Op. c it, p. 34 (Green and Grose, I, p. 327 e segs.).

156

A: mas, ou naquelas, "formas lógicas"1. N.A.: Op. cit.

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Hume concede, no fundo, ao seu grande antecessor Locke, que a teoria das ideias gerais - se tais ideias fossem possíveis - preencheria o seu objetivo. Ele não nota que as ideias gerais de Locke, como partículas arrancadas aos conteúdos con­ cretos, apresentariam de novo, elas próprias, singularidades individuais e que a circunstância da sua indistinção relativamente a outras semelhantes a elas (se­ jam arrancadas, sejam inerentes às ideias concretas) não lhes concederia ainda a universalidade do pensar. Ele não nota que, para tal, seriam necessários atos próprios, modos próprios do visar ou do significar. Também sob o pressuposto dos abstrata de Locke seria necessária a forma do pensar da generalidade para vi­ sar realmente, de um modo unitário, a um âmbito infinito de singularidades não representadas. Da mesma forma, para nós, o gênero só rse constituiu"17 como unidade idêntica <193> rpara a consciência1 por meio dos atos do pensar geral. A relação de igualdade objetiva que existe, sem se anunciar subjetivamente, não pode ser o singular idêntico rconsciente1:8 a relação pensante com o círculo de igualdade não pode ser dada ao singular senão, justamente, pelo pensamento.

terem surgido, geneticamente, das rindividuais-intuitivas1,10 rserá tomado em sentido geral1.1112Mas se a consciência do universal se inflama constantemente n0 contato com a intuição individual, <194> haurindo dela clareza e evidência, ela não surgiu, por isso, diretamente da intuição individual. Por conseguinte, como é que chegamos a sair da intuição individual e, em vez de visar à singu­ laridade que aparece, visamos a outra coisa, a um universal que nela se singu­ lariza e que, todavia, não está nela realmente contido? E como é que surgiram todas as formas que dão ao universal uma objetividade mutável e constituem as diferenças do modo lógico de representar? Logo que, então, recorremos às conexões associativas com o objetivo de dar uma explicação, chocamo-nos ime­ diatamente com os grupos de semelhança disposicional e com os sinais com eles exteriormente enlaçados. Com isso, também a segunda questão se tornará atual, tal como é possível que os círculos de semelhança conservem a sua consistência fixa e não se confundam no pensar. Nessa situação, não constitui nenhuma contradição indicarmos, por um lado, o tratamento da abstração dado por Hume como uma confusão extrema e, por outro lado, reivindicarmos para ele a glória de ter mostrado o caminho à teoria psicológica da abstração. Ela é uma confusão extrema numa perspectiva lógica e gnosiológica, na qual se trata de investigar as vivências de conhecimen­ to de modo puramente fenomenológico, de considerar os atos de pensamen­ to como aquilo que são por si mesmos e no que contêm por si mesmos, para proporcionar clareza aos conceitos gnosiológicos fundamentais. Mas, no que diz respeito à análise genética de Hume, ela não pode certamente reivindicar a perfeição teórica e o caráter definitivo, pois lhe falta, como base, uma análise descritiva suficiente. Mas tal não impede que ela contenha séries valiosas de pensamentos, que, posteriormente, não podiam permanecer despercebidas e que exerceram também a sua ação fecunda. Com a falta total de uma análise rigorosamente descritiva do pensar, no­ meadamente, com a colocação da investigação rempírico-psicológica112 no lu­ gar da gnosiológica, conecta-se, além disso, o fato de Hume, na concepção do pensar como uma função de economia do conhecimento, também julgar pos­ suir um ponto de vista que permite a sua clarificação gnosiológica. Nisso, Hume é o discípulo autêntico da filosofia de Locke. <195> O que a tal se deve objetar, discutimo-lo suficientemente no capítulo anterior.13

§ 34. Recondução da investigação de Hume a duas questões Se lançarmos agora um olhar ao conteúdo das análises psicológicas de Hume, podemos exprimir o que ele quer realizar com elas por meio das duas questões seguintes: 1. Como é que a ideia singular chega à sua função representativa; como é que ela obtém, psicologicamente, a capacidade de funcionar como substituta de outras ideias semelhantes e, por fim, de todas as ideias possíveis da mesma classe? 2. A mesma ideia singular enquadra-se em muitos círculos de semelhan­ ça, enquanto representa, em cada conexão determinada de pensamento, apenas ideias de um tal círculo. Em que é que reside, então, o fato de justamente este círculo de representação estar distinguido nesta conexão, o que é que restringe deste modo a função substitutiva da ideia singular e torna possível, então, a unidade do sentido? Ê claro que essas questões psicológicas guardam o seu bom sentido quan­ do se deixa cair o conceito de representação que é aqui normativo e se o substitui pelo conceito bem compreendido e autêntico de representação universal como ato de significação universalr, ou de preenchimento de significação (da intuição universal no sentido da 6a Invest, § 52)1.9 O fato de as representações universais 7 8 9

A: rsurgiir. A: rvivido1. Acréscimo de B: Cf. 'Aditamentos e Melhoramentos" a A: rcorrespondentemente, preenchi­ mento de significação (da intuição universal no sentido da Investigação VI, § 52, p. <690>)n. 158

10 11 12 13

A: intuitivas1. A: ré certo1. A: rgenético-psicológica1. N.A.: Cf. § 24, rp. < m > e segs.1. 159'

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Hume exprime o princípio condutor da sua investigação psicológica com as seguintes palavras:

uma certa tendência habitual r(customp do representar. Esta tendência desperta, em seguida, uma outra representação singular, à medida que possamos carecer dela. Uma vez que o provocar todas as representações, para as quais o nome vale, é impossível na maioria dos casos, abreviamos aquele trabalho por meio de uma mera consideração parcial. Persuadimo-nos, de imediato, de que de um tal abre­ viar surgem apenas pequenos inconvenientes para o nosso pensar [...].16

Se as representações [que estão presentes em nosso espírito, sempre] de acordo com a sua natureza e, ao mesmo tempo, de acordo com o seu número, estão limi­ tadas individualmente, é somente com base na perspectiva habitual daquilo que representam que elas poderão se tornar universais e englobar em si um número ilimitado de outras representações.14

Essas citações devem servir para nos tornar presente o conteúdo princi­ pal da teoria de Hume com uma completude suficiente para os nossos fins. Não temos de entrar aqui na sua análise crítica, pois os problemas genéticos não caem no quadro da nossa tarefa.

§ 35. O princípio condutor, o resultado e o pensamento realizador principal da doutrina da abstração de Hume

O resultado tem o seguinte teor: Uma representação singular torna-se universal na medida em que um nome universal é enlaçado com ela, o qual, imediatamente, de acordo com o hábito, foi ligado a muitas outras representações singulares e, com isso, surgiu com elas em relação [associativa], de tal modo que conduz esta relação, prontamente, à imaginação.15

A citação seguinte caracteriza o pensamento principal da exposição: Esta utilização de representações para além da sua natureza própria consiste, en­ tão, no fato de podermos reunir no nosso espírito todos os graus possíveis de quantidade e de qualidade de um modo incompleto, mas que corresponde aos fins da nossa vida [...]. Quando verificamos que muitos objetos, que muitas vezes en­ contramos, têm semelhanças, precisamos do mesmo nome para todos, seja o que for que percebamos quanto a diferenças nos graus da sua quantidade e qualidade e sejam quais forem as ulteriores diferenças que neles surjam. Se, então, isto se tor­ nou para nós uma matéria habitual, o soar daquele nome desperta, imediatamen­ te, a representação de um daqueles objetos e faz com que a imaginação os capte com todas as suas propriedades determinadas e relações de grandeza. Mas, como pressupomos, a <196> mesma palavra foi frequentemente utilizada para outras coisas singulares que, em muitas relações, são diferentes daquela representação imediatamente presente ao espírito. A palavra não permite, então, evocar as repre­ sentações de todas estas coisas singulares. Ela toca, porém, se assim posso dizer, a alma e desperta aquele hábito que adquirimos pela contemplação delas. As coisas singulares não estão efetivamente e de fato presentes ao espírito, mas, sim, ape­ nas, potencialmente; não as salientamos a todas na nossa imaginação, mas antes detemo-nos, somente, preparados para captar no olhar algumas delas, tal como o propósito ou a necessidade nos poderiam, justamente, inspirar num dado instan­ te. A palavra provoca uma representação singular e, com ela, ao mesmo tempo,

14 N.A.: Op. c it, p. 39 (Green and Grose, I, p. 332). 15 N.A.: Op. c it, p. 37 (Green and Grose, I, p. 330). 160

§ 36. A doutrina de Hume sobre a distinctio rationis na interpretação moderada e na interpretação radical É de particular interesse para nós a doutrina de Hume sobre a distinctio rationis, doutrina esta por meio da qual, de forma mediata, a segunda questão acima formulada encontra ao mesmo tempo a sua execução. Trata-se da questão acerca do modo como podemos distinguir os momentos abstratos, que, todavia, não se poderiam transformar em ideias para si (a saber, por meio de uma abs­ tração, no sentido lockeano de separação), dos objetos intuitivos. <197> Como é que se chega à distinção entre a esfera branca que acabou de ser intuída e o branco, ou a forma esférica, pois, todavia, “branco” e “forma esférica” não po­ dem valer como ideias (no sentido de Locke) que estariam contidas nas ideias concretas como particulares e como partes delas destacáveis. Berkeley respon­ dera a esta questão por meio da indicação da força determinante da atenção. Hume procura ir mais fundo aqui e fornece a seguinte solução:17 Se compararmos a esfera branca com uma esfera preta e, por outro lado, com um cubo branco, notaremos duas semelhanças diferentes. Por meio de com­ parações mais frequentes deste tipo, os objetos separam-se para nós em círculos de semelhança, e aprendemos através das tendências crescentes do hábito (habits), “a considerar segundo diferentes pontos de vista , correspondentes às seme­ lhanças, que permitem a sua ordenação em círculos diferentes, mas determina­ dos. Quando, no caso dado, dirigimos a nossa atenção para as meras cores, o que aí acontece não é que separamos as cores, mas, sim, que “acompanhamos com um tipo de reflexão” a intuição efetivamente unitária e indivisível,,“da qual, graças ao hábito, temos apenas uma consciência muito pouco clara”. Nesta consciência pou-

16 N.A.: Op. cit., rp. 34 e segs.1 (B: p. 40); (Green and Grose, \, rp. 328 e segs.1). 17 N.A.: Op. cit., p. 40 (Green and Grose, \, p. 332 re segs.1). 161

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co clara, paira diante de nós, por exemplo, ro cubo branco“118 e, com isso, surge uma semelhança (a saber, uma semelhança relativamente à cor), à qual dirigimos o nosso olhar interior, de modo que a esfera branca percebida está apenas enqua­ drada no círculo de semelhança da cor. Sempre segundo o tipo desta reflexão, a saber, o das semelhanças, que nela são determinantes, atende-se, no mesmo objeto de intuição, a um “momento” diferente; ou, o que em essência vem dar no mesmo, a mesma intuição serve como base para a chamada abstração de repre­ sentações universais; ao mesmo círculo de semelhança pertence, associativamen­ te, um nome particular, de modo que, por meio daquela reflexão interior, com r0 ponto de vista“119 da consideração, também é determinado o nome universal. <198> A investigação psicológica não é aqui o nosso tema e, por isso, não nos compete propriamente apresentar criticamente o que há de valioso e, por outro lado, de novamente imaturo nesta tentativa teorética. Até um certo grau, porém, teremos de nos ocupar dela, tendo em atenção um pensamento para­ doxal que parece pôr em movimento a exposição de Hume, ao passo que só foi defendido, com uma rudeza indisfarçável, pelos modernos humeanos. As notas características, as qualidades internas, não são nada de inerente, em sentido verdadeiro, aos objetos que as “têm”. Ou, expresso psicologicamente: os lados ou momentos diferentes, inseparáveis uns dos outros, de um conteúdo intuitivo, tais como a coloração, a forma etc., que, todavia, pensamos captar como qualquer coisa presente neste conteúdo, na verdade, não são absoluta­ mente nada nele. Antes, existe apenas um tipo de partes efetivas, a saber, as partes que podem também aparecer separadas por si, numa palavra: os pedaços. Os chamados conteúdos parciais abstratos, dos quais se diz que, na verdade, não existem por si (nomeadamente, não são intuídos por si), mas podem tornar-se atendidos por si, são, de certo modo, meras ficções cum fundamentum in re. A cor não é nada no colorido, a forma não é nada no enformado; em vez disso, há, na verdade, apenas aquele círculo de semelhança, que incorpora em si o objeto em causa e certos habits pertencentes à sua intuição, disposições inconscientes, ou processos psíquicos em que se não reparou que foram suscitados ou encena­ dos durante a intuição. Considerada de forma mais exata, a dúvida seria, certamente, dupla: uma objetiva e outra subjetiva. Do ponto de vista objetivo, ela diz respeito aos objetos do aparecimento, em relação com as suas qualidades internas; de um ponto de vista subjetivo,20 ao próprio aparecimento r(entendido como vivência imanente)“121 em relação com o seu conteúdo em sensações e, em geral, em con­

teúdos sensíveis, quer dizer, com aqueles conteúdos que, nos atos da intuição, experimentam a ^apreensão” (apercepção)“122objetivadora. Nesta Apreensão“1,1 819203 realiza-se24 o aparecer das <199> notas características ou qualidades objetivas correspondentes. Por conseguinte, trata-se por um lado da própria esfera e das suas qualidades internas, por exemplo, a sua coloração branca uniforme; por outro lado, do aparecimento da esfera25 e do complexo de sensações que lhe é inerente; entre elas, por exemplo, a sensação de branco que se vai continuamen­ te esboçando: o correlato subjetivo do branco objetivo que aparece uniforme­ mente na percepção. Mas Hume, aqui como em toda a parte, não reparou nesta diferença. Para ele, o aparecimento e o que aparece confundem-se. Não tenho precisamente a certeza se acertei com a perspectiva própria de Hume nas teses formuladas acima, ou se ela (dirigida contra os lockeanos) não visa meramente ao fato de os objetos concretos, no que diz respeito às suas notas características, serem absolutamente simples e, na verdade, simples no sentido do não despedaçamento nestas notas características, ao passo que as no­ tas características, como “momentos de concordância”,26 permanecem, todavia, qualquer coisa presente nos próprios objetos singulares do mesmo tipo. Se esta interpretação é correta, Hume permanece de acordo com Berkeley no que diz respeito ao assunto, só que tendo apenas em mira explicar psicologicamente o modo como surge a distinctio rationis. O problema tem claramente um bom sentido, mesmo se insistirmos que os momentos abstratos são verdadeiramente inerentes. Pergunta-se, justamen­ te, como as notas características singulares - uma vez que só podem surgir na mais íntima penetração recíproca e nunca apenas por si mesmas -, podem se transformar, porém, em objetos exclusivos de intenções intuitivas e pensantes; e, na primeira perspectiva, sobre o modo como a proeminência da atenção tem de ser explicada, proeminência esta a qual, justamente agora, favorece o atentar para uma nota característica e, depois, para outra.

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§ 37. Objeções a esta doutrina na sua interpretação radical Não temos aqui que discutir as objeções que surgem sob o pressuposto da concepção moderada da interpretação de Hume, pois não é o interesse psi­ cológico que nos deve desviar. <200> Diga-se apenas que se pode perfeitamente

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A: ro cubo negro1. A: rperspectivan. Em A segue-se: rou psicológico1. A: r, a vivência psíquica atual1. 162

A: Interpretação1. A: Interpretação1. Em A segue-se: rpara nós1. Em A segue-se: r(a ideia de esfera)1. N.A.: Cf. Op. c it, p. 35 (Green and Grose, I, p. 328, nota). 163

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constituir uma teoria útil por meio de uma modificação conveniente na base do pensamento de Hume. Antes de tudo, não devemos levar a sério a mística “reflexão interna”. De um modo claro e penetrante, rG J E. Müller (nos ditados pu­ blicados por F. Schumann27) elaborou com exatidão a teoria de Hume e, embora pareça privilegiar a interpretação radical, surge, todavia, nesta caracterização, a fecundidade do ponto de partida ou do embrião de Hume. Voltemo-nos agora para a crítica da interpretação radical da doutrina de Hume. Ela cai no centro da esfera do interesse gnosiológico. As dificuldades nas quais ela se embrenha ao realizar-se consequentemente não são pequenas. Se os conteúdos abstratos, correspondentes às notas características ab­ solutas na própria intuição concreta, nada são, então, com maior razão, nada são os conteúdos de enlace e de relação na intuição de um conteúdo de forma de unidade correspondente. O problema da distinctio rationis e o princípio da sua solução é evidentemente o mesmo para todos os conteúdos abstratos. Por conseguinte, para os conteúdos de relação e de enlace vale o mesmo que para os conteúdos absolutos. Por isso, não podemos responder à pergunta sobre o modo como o aparente encontrar ou distinguir da cor surge no (ou a partir do) objeto colorido, recorrendo ao encontrar da semelhança entre o objeto colorido e outros objetos coloridos. Pois este encontrar, no prosseguimento consequente da explicação, reconduziria a um encontrar de uma semelhança desta seme­ lhança com outras semelhanças (no exemplo da cor: grupos de semelhança de semelhanças, tais como existem entre objetos coloridos); o princípio explicativo teria de ser novamente aplicado nesta semelhança, e assim sucessivamente. Esse argumento transfere-se dos conteúdos abstratos, entendendo por tais conteúdos momentos realmente vividos na unidade da intuição concreta, para as representações de notas características e <201> de complexos de formas de objetos “externos”. Deixamos, por conseguinte, que se torne efetiva a distinção que acentuamos mais acima contra Hume; a saber, a distinção entre a intuição concreta como rreal e presente aparecimento do objeto (como vivência)128 e o objeto intuído (percebido, fantasiado etc.). Com isto, deve-se prestar atenção a que a este objeto não se deve fimputar129 qualquer transcendência própria das ciências da natureza ou da metafísica, mas que o objeto é visado como aque­ le mesmo que aparece nesta intuição, como aquele que, nela, por assim dizer, vale. Por conseguinte, o aparecimento da esfera é oposto à esfera que aparece. Da mesma forma, sejam novamente opostos os conteúdos sentidos do apareci­

mento da esfera (como momentos que a ranálise fenomenológica130 descritiva consegue encontrar) e as partes ou lados (percepcionados, fantasiados) da esfera que aparece; por exemplo, a sensação de branco e o branco da esfera. Dito isso, poderíamos afirmar: se alguém quisesse explicar e afirmar que todos os discursos sobre a representação intuitiva de determinações objetivas abs­ tratas são um mero pseudodiscurso e que sempre que acreditamos, por exemplo, perceber uma qualidade “branco”, seria propriamente percebida, ou, como que re­ presentada, somente uma semelhança qualquer entre o objeto que aparece e outros objetos; tal pessoa embrulhar-se-ia num regresso infinito, pois o discurso sobre se­ melhanças representadas deveria ser reinterpretado de forma correspondente. Mas, aqui, o caráter absurdo da concepção combatida mostra-se também, imediatamente, no fato de, malgrado toda a evidência, ser Imputado131 ao ob­ jeto intencional algo de evidentemente diferente dele. Aquilo que se encontra na intenção de uma intuição, aquilo que eu, percebendo, pretendo captar, e, fanta­ siando, pretendo imaginar, está isento, num largo âmbito, de toda a disputa. Pos­ so iludir-me acerca da existência do objeto da percepção, mas não sobre o fato de o perceber determinado de tal ou tal modo e de ele, na visada deste perceber, não ser outro totalmente diferente, por exemplo, um abeto em vez de um besou­ ro. Esta evidência na <202> descrição determinante ou identificação e distinção recíproca do objeto intencional renquanto tal1 tem, na verdade, como se compre­ ende facilmente, os seus limites, mas é uma verdadeira e autêntica evidência. De fato, sem ela, mesmo a evidência muito famosa da percepção interna, com a qual ela é muitas vezes confundida r- onde quer que a percepção “interna” seja en­ tendida como percepção de vivências intencionais - 1, seria pura e simplesmente sem utilidade; mal o discurso expressivo tenha início e a distinção descritiva das ^vivências132 interiormente percebidas seja realizada, esta evidência é já pressu­ posta, rna medida em que, de fato, é já impossível a distinção e a descrição de vivências intencionais sem referência aos seus objetos intencionais1.3031233~34 Temos aqui em conta essa evidência. É qualquer coisa evidentemente di­ ferente intuir o vermelho deste objeto e intuir qualquer relação de semelhança. Quando se relega esta última intuição para o não notado ou para o inconsciente, apenas se acumula o incômodo, uma vez que se sacrifica a intenção evidente­ mente dada em favor de algo que não se pode notar. Na reflexão presente, referida aos objetos que aparecem, a reflexão an­ terior entra concomitantemente, na medida em que os conteúdos na análise

27 N.A.: F. Schumann, Zur Psychologie der Zeitanschauung (Para a Psicologia da Intuição Tem­ poral). Zeitschr. F. Psychologie und Physiologie der Sinneorgane (Psicologia e Fisiologia dos Órgãos de Sentido), Bd. 17, p. 107 e segs. 28 A: rreal e presente vivência psíquica1. 29 A: rnão deve ser imputada1.

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A: ranálise psicológica1. A: rter sido imputado1. A: rdos data 1. A: rou não se fala mais da evidência em geral1. N.A.: Cf., sobre isto, a nota 2 na conclusão deste parágrafo. 165

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rfenomenológica reflexiva135 se tornam objetos de percepção. Se não chamar­ mos mais mesmo o aparecimento da esfera r(a vivência)1 de uma coisa, e os conteúdos abstratos inerentes, de rpropriedades136 ou notas características, en­ tão a situação descritiva relativamente aos pontos que aqui estão em questão permanecerá, todavia, a mesma.37 As diferenças rentre coisa e propriedade são ontológicas, não são caracteres de vivência, não são1 nada no próprio fenômeno em cada caso dado <203> rno modo de um momento real38_i que aí resida e se possa mostrar; elas rantes remetem para conexões de vivências da consciência, nas quais aparecem de forma concordante, nas quais são experimentadas e de­ terminadas ao modo das ciências da natureza1. Atendendo a esta situação, também poderíamos reivindicar para a dis­ tinção intencional dos dados internos a evidência em vigor para a distinção dos objetos intencionais em geral. Neste caso limite, em que o objeto visado per­ tence ao conteúdo real3536789 da própria vivência r(tomada em plena concreção)1, surge também de imediato em ação a evidência da rpercepção “interna”1;40 não temos apenas a evidência da distinção dos dados visados, mas também a da sua existência efetiva. Onde, por exemplo, dirigimos o nosso interesse analítico não para a esfera que aparece, mas, sim, para o aparecimento da esfera, e nele dis­ tinguimos partes ou lados, e, com isso, arbitrariamente abstraímos daquilo que significam os conteúdos sentidos, aí, com a evidência de que este conteúdo de cor, este rconteúdo total etc. é percebido1,41 temos, ao mesmo tempo, a evidên­ cia que ele ré142 efetivamente. Mesmo que a abstração da interpretação não dê por toda parte resultado, e muito menos dê resultado qualquer prosseguimento da análise dos conteúdos experimentados, em linhas gerais, ambas as coisas são possíveis em qualquer caso. Assim como a evidência relativamente à diferença dos objetos intencionais não é também suprimida pelo fato de nos iludirmos fa­ cilmente acerca das nossas intenções, a saber, mal saímos da esfera das grandes diferenças; assim também, por conseguinte, a diferença, por exemplo, entre um besouro e um abeto r- ambos tomados tão puramente quanto são conscientes

na nossa intenção como objetos intencionais - 1 é uma autêntica evidência: as­ sim também há uma autêntica evidência que nos diz às vezes que se trata de um momento de cor, a sensação, realmente presente na intuição unitária, ou que se trata de qualquer coisa que a constitui concomitantemente e que nela é diferente do momento da figura. Para isso não sucede quase <204> nenhum registo pelo fato de não ser pensável uma separação destes momentos, um ser-para-si deles, em vez do mero ser-em-outro ou ser-possuído. Não faremos justiça a esta situação evidente pelo fato de dizermos que exis­ tem em si certos processos psíquicos, por exemplo, as excitações não notadas das séries de semelhança, e que, assim, o concreto absoluto simples a ser encontrado conserva apenas um certo caráter, uma certa coloração, um “fringe” jamesiano. Pois, em primeiro lugar, os “fringes” têm a sua realidade do mesmo modo que os processos supostamente inconscientes que, aliás, numa consideração puramente fenomenológica, não nos dizem respeito; e, em segundo lugar, os “fringes” são, todavia, um tipo de suplemento, que tanto se pode aí encontrar como estar em falta; por conseguinte, se identificarmos os “fringes” aqui supostos com os mo­ mentos evidentemente notados no concreto, estes momentos tornar-se-iam, em conjunto, meros apêndices num suporte, e este suporte teria totalmente o caráter da espantosa substância sem qualidades, que ninguém mais leva a sério. A evidência com que os rmomentos de sensação, os momentos de cor, os momentos de figura e outras determinações imanentes143 pertencem efetiva­ mente à unidade da intuição, como momentos constituintes dela, não tem como ser de modo algum afastada. Em todo caso, podemos explicá-los como resulta­ dos de uma fusão qualquer, ou, também, como produtos, que captam realmente os seus fatores, mas de modo ainda não notado; por mais interessante44 que isto possa ser do ponto de vista psicológico, contudo, na averiguação descritiva ime­ diata, nada se modifica com isto naquilo que só é levado em consideração para a clarificação dos conceitos e dos conhecimentos. Não teorizar os conteúdos abs­ tratos e, com eles, os conceitos abstratos, significa querer provar como fictício o que é, na verdade, o pressuposto de toda a intelecção no pensar e no provar. Talvez se objete ainda, cedendo a reflexões hipercríticas, que só a distinctio rationis é dada no juízo. De um lado, encontrar-se-ia o fenômeno absolutamente unitário e para ele surgiria, depois, a asserção, atribuindo-lhe distinções inter­ nas. Mas isto não prova que, por isso, o fenômeno tenha distinções internas. Responderíamos: há, <205> evidentemente, onde quer que julguemos sobre uma vivência, duas coisas, a saber, a vivência e a asserção. Mas a asserção pode, de fato, ser também verdadeira, e o é certamente quando é acompanhada de intelecção. Se quisermos fazer valer um caso qualquer em que um ser-contido

35 A: ■ psicológica1. 36 A: qualidades1. 37 Daqui até o final do parágrafo, corresponde em A: As diferenças são rde um ponto de vista metafísico (ou, se se quiser, do ponto de vista das ciências da natureza); a coisalidade não é nenhuma característica fenomenológica, ela não é1 nada que resida e se possa mostrar no próprio fenômeno em cada caso dado; rmas remete para conexões empíricas, por fim e objetivamente, para a unidade da legalidade da natureza1. 38 N.T.: Reell. 39 H X : Reell. 40 As aspas encontram-se em A noutro lugar: ^percepção interna"1. 41 A: rconteúdo de figura etc. aparece1. 42 A : restáan. 166

43 A: rcoloração unitária, figuras e semelhantes determinações internas1. 44 Em A segue-se: re importante1. 167

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é verdadeiramente dado e experimentado, o fato de ser assim só pode ser afir­ mado com base na evidência. E, se alguma vez a evidência falou a favor de um ser-contido, ela o fez seguramente aqui. Certamente que não devemos restringir desnecessariamente o conceito de ser-contido, ou seja, restringi-lo ao conceito de ser desmembrado em elementos discretos. Se nos detivermos neste conceito estreito, a palavra escapa-se, mas a coisa fpermanece145 clara.

nada existe senão o visar-a-este-objeto, por assim dizer, o conteúdo de significa­ ção da representação. Mas a evidência do fato de eu, com a representação “abeto”, visar precisamente a um abeto, a uma árvore do tipo determinado por esta ou aquela nota característica, e não, por exemplo, a um besouro ou a qualquer outra coisa, nunca se deixará indicar como uma mera percepção, seja uma percepção relativa à mera vivência da representação. Trata-se, antes, de uma evidência de as­ serções, cuja intenção significativa complexa se preenche na base de atos variados, de muitas representações, identificações e distinções que as enlaçam. E, mesmo se não contarmos com os atos que se encontram do lado da intenção, do lado do preenchimento nunca chegamos com meras percepções internas. A percepção in­ terna dos atos de identificar ou distinguir, que acabamos de mencionar, não pode, claramente, dar conta da evidência do subsistir de identidades e diferenças.

Notas

1. Uma série de pensamentos aparentados, aqueles que, precisamente, nos ocuparam, foi já anteriormente4 546encontrada. Tratava-se aí da questão de saber se as espécies podiam ser consideradas como objetos, ou se não seria mais correto dizer que, na verdade, só existem objetos individuais que se ordenam, de múltiplas for­ mas, segundo semelhanças. Em vez disso, nas últimas considerações, não se tratou de espécies, mas, sim, dos seus casos singulares. Não se nega apenas que se possa falar, em geral, de um objeto de pensamento vermelho, mas também que se possa falar de um caso singular de vermelho, de vermelho como momento surgindo aqui e agora numa intuição. Naturalmente que a consciência evidente de universalidade nada poderia constituir se o caso singular, cujo ser dado intuitivo é pressuposto como realização efetiva da abstração, fosse interpretado de um ponto de vista relativista. Assim, também os argumentos paralelos se relacionam essencialmente. 2. Como posteriormente notei, A. v. Meinong, no seu valioso trabalho Über Gegenstände Höherer Ordnung und Deren Verhältnis zur inneren Wahrnehmung (Sobre Objetos de uma Ordem Superior e sua Relação com a Percepção Interior) (o qual, infelizmente, foi publicado demasiado tarde para poder ser ainda de au­ xílio para as minhas Investigações Lógicas), dedicou algumas discussões à relação entre o reconhecimento evidente dos objetos imanentes enquanto tais e a per­ cepção interna. (Zeitschr.fi Psych. u. Phys. d. S., Bd. 21, 2a Parte, p. 205 e segs.) Se bem compreendo, segundo Meinong, a primeira evidência coincide com a da per­ cepção interna, relativa à existência da representação correspondente. Em seguida, ele não pode ter pensado na mesma evidência <206> em que nós pensamos no texto. O fato de o chamado objeto imanente não ser, em nenhum sentido sério, um objeto na representação (tal como ainda Twardowski47 expõe o assunto), é também, naturalmente, totalmente a minha concepção; do lado da representação,

45 A: ^ . 46 N.A.: Cf., mais acima, o primeiro capítulo desta investigação, particularmente os §§ 3 e segs., p. <117-123>. 47 N.A.: No tratado mais acima repetidamente criticado que, de resto, é inteira mente cuida­ doso e de valor. 168

§ 38. Transferência do ceticismo dos conteúdos parciais abstratos para todas as partes em geral Ao ceticismo, no que diz respeito aos conteúdos parciais abstratos, cor­ responde também um possível ceticismo em relação aos conteúdos parciais con­ cretos, aos elementos. Uma superfície branca homogênea vale para nós como um objeto que se pode dividir, e todas as partes que se podem distinguir em partição atual são postas por nós nela como partes previamente existentes. Tam­ bém transferimos isto para as sensações. O rconteúdo"1,48 que é experimentado atualmente pela consideração da superfície branca, contém elementos que se comportam, em relação ao conteúdo total, de modo análogo ao comportamento dos elementos objetivos da superfície em relação à superfície total. Se nos fize­ rem notar que, na representação intuitiva da superfície, “deixamos o olhar desli­ zar por ela” e que, com isso, experimentamos uma multiplicidade de conteúdos diferentes que fluem uns em direção aos outros, isso não desconcerta. Transpor­ tamos, depois, esta concepção precisamente para cada um destes conteúdos. Mas de onde é que sabemos que o conteúdo é efetivamente um compos­ to? Se fantasiarmos partes no interior da superfície branca unitária, <207> o conteúdo da sensação correspondente pode mostrar, efetivamente, uma ligação entre partes; mas, de fato, por meio do fantasiar, o conteúdo originário não per­ maneceu imutável. O conteúdo agora dado, complexo, fragmentado por descontinuidades, não é idêntico ao conteúdo originário, totalmente unitário, em si não cindido. “As partes, nas quais podemos pensar como decomposta uma tal unidade, são partes fictícias.”49 Exercemos, na base de conteúdos de consciência 48 A: rconteúdo psíquico1. 49 N.A.: F. Schumann, Op. c it , Z. F. Psych., Bd. 17, p. 130.

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inseparáveis, certas atividades de fantasia e de juízo e aquilo que elas engendram é incluído por nós, antes de tudo, no próprio conteúdo originário. Mas a dúvida agrava-se quando nos voltamos para a consideração do caso que, primeiro, permaneceu incontestável, a saber, o caso em que o conteúdo da intuição mostra já partições. cNão nos oferece também aqui a vivência, em pri­ meiro lugar, um certo conteúdo unitário"1,50que nós, posteriormente, designamos como composto por partes, na medida em que realizamos novas operações, que deixam justamente surgir aquele designar? Como diz o discurso habitual, pres­ tamos agora atenção ao conteúdo desta parte, depois ao de uma outra e, nova­ mente, de uma outra. Mas com cada passo modifica-se a vivência. Por meio da tendência para trocar o conteúdo sentido com o objeto percepcionado ou fanta­ siado, substituem-se, aos conteúdos originários, passo a passo, rconteúdos fortemente diferentes"1;5152a parte em cada caso atendida não se encontra, meramente, no ponto de mira do reparar, mas, sim, também, e mais literalmente, no ponto de mira do ver, fornecendo, assim, outras sensações do que no caso em que perma­ nece em segundo plano. Se nos detivermos mais rigorosamente nos conteúdos, então, a cada vez, o conteúdo salientado está apenas rodeado por uma como que massa totalmente caótica, não separada dele, mas entretecida com ele, não clara, um fringe, uma “auréola”, ou seja, como for que se queira, então, nomear o não nomeável. Passando de parte para parte, a situação, universalmente, é <208> a mesma, mas, segundo o conteúdo, é constantemente uma situação diferente; e isto mesmo quando não deixamos que o olhar se desloque. Seria, de fato, uma descrição grosseira da situação descritiva se quiséssemos expor o atender a esta ou àquela parte do indiretamente acontecido (a saber, da parte da vivência cor­ respondente) como se na unidade de conteúdo idêntico fosse apenas notada uma parte singular, sem que, com isso, fosse preciso temer modificações na própria vivência. Razões genéticas remetem-nos aqui, tal como no caso dos conteúdos abstratos, para certas conexões de experiência que possibilitam o que é notado por si e, de acordo com o seu efeito, se anunciam também na consciência. O in­ diretamente acontecido age como índice de qualquer outra coisa, a partir de uma esfera de semelhança delimitada segundo a experiência; com a elevação através da atenção é dada ao mesmo tempo, também, uma interpretação e, com esta nor­ malmente uma modificação de conteúdo ( trabalho interior da fantasia”"152). Se se objetar que a presentificação repetida dos conteúdos experimenta­ dos e a comparação nos informam que o discurso sobre uma partição é também legítimo no caso dos conteúdos, o cético recolher-se-á, com certeza, às ilusões permanentes que subjazem a tais comparações, à confusão entre a coisa que

aparece e o conteúdo experimentado, entre comparação objetiva e de conteúdo e coisas semelhantes.

§ 39. Último desenvolvimento do ceticismo e sua refutação Se prosseguirmos continuamente nesta direção cética, teremos de duvi­ dar da existência, em geral, de partes de um tipo qualquer; em consequência, teremos de duvidar se há em geral multiplicidades de conteúdos concretos, pois, por fim (se pudermos ainda aqui, todavia, arriscar um juízo), os conteúdos que surgem na coexistência e na sucessão são sempre, de certo modo, unitários. O ceticismo culminaria, por fim, na seguinte afirmação: a consciência é algo de absolutamente unitário, o qual, pelo menos, não podemos saber se tem, em geral, conteúdos parciais, se se desdobra, em geral, em quaisquer vivências, seja simultaneamente, seja numa sequência temporal. <209> É claro que um tal ceticismo tornaria impossível qualquer Psico­ logia.53 Não preciso dizer como ele deve ser combatido, depois das exposições feitas mais acima. Todo o fluxo de aparecimentos Tmanentes"154 não suprime a possibilidade de captá-los, em primeiro lugar, em conceitos vagos, embora totalmente claros (pois formados diretamente na base da intuição), e, depois, com base nestes conceitos, realizar rdistinções"155 múltiplas, sem dúvida muito grosseiras no que diz respeito ao assunto, que são completamente suficientes para tornar possível uma investigação psicológica. No que diz respeito ao caso da superfície branca, notamos perfeitamente, em considerações comparativas do conteúdo “superfície branca” (não viso aqui, por conseguinte, à própria superfície branca na consideração coisal), as modifica­ ções. Com as modificações, porém, notamos também o igual, de fato, o idêntico. Os limites postos pela fantasia não constituem apenas os elementos, mas antes apenas os delimitam. É evidente que estes elementos na unidade do conteúdo “su­ perfície branca” estavam efetivamente presentes, o conteúdo fixado em intenção idêntica cobre-se sem limites com o mesmo conteúdo apenas modificado pelo fantasiar, cobre-se com este na perspectiva das partes que o delimitam. As partes estavam e continuam a estar no todo, apenas não como, justamente, unidades se­ paradas por si. Um certo oscilar e fluir do conteúdo, a insegurança, mesmo a im­ possibilidade da sua fixação totalmente idêntica, não suprime a evidência destes

50 A: rNão teremos experimentado também aqui, em primeiro lugar, um certo conteúdo unitário1. 51 A: rmuito forte mente diferentes1. 52 Em A faltam as aspas.

53 N.A.: Se vejo corretamente, Schumann, no seu esforço em si certamente digno de elogio, contribui para o rigor possível e para a ausência de pressupostos de um tal ceticismo. (Cf. o trabalho mais acima citado [A: re digno de apreço1].) 54 A: psíquicos1. 55 A: decisões1. Corrigido na 3§ edição.

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juízos. Eles valem, como todos os juízos rpuramente descritivos"1,56que cairão ino modo de “expressões” fiáveis sobre o dado intuitivo enquanto tal1,57no interior de uma certa esfera de oscilar possível, por conseguinte, com um certo índice de vaguidade.585960Evidentemente que levamos em consideração apenas os casos em que todas as relações mostram diferenças grosseiras, por conseguinte, residem efetiva­ mente <210> na esfera das evidências grosseiras, da qual mais acima falamos. A evidência mostra-se também quando, prosseguindo numa direção oposta, pensamos como suprimido um desmembramento existente. Se uma superfície se decompõe numa seção branca e numa vermelha, permanece con­ servada, no caso de uma mera modificação qualitativa, a identidade de ambas as partes extensas. Se pensarmos o branco de uma e o vermelho de outra a fundirem-se continuamente um no outro, então ambos os elementos confluem agora numa unidade interna indistinta; mas, seja como for que isso aconteça, é evidente que o resultado não é um conteúdo absolutamente simples, mas, sim, uma unidade homogênea, na qual apenas as separações internas foram perdi­ das. As partes encontram-se aí de forma evidente, mas, embora cada uma tenha a sua qualidade e, em geral, tudo o que pertence à concreção, falta-lhes ainda, contudo, a descontinuidade qualitativa contrastante e, com isso, o caráter de separação terminada em face das partes que se fundem. Se transformarmos os conceitos e as relações empíricos em conceitos e relações exatos, se construirmos conceitos ideais de extensão, superfície, igual­ dade e continuidade qualitativa etc., surgirão proposições a priori exatas, que põem em separado o que se fundamenta nas intenções dos conceitos rigorosos. Em comparação com elas, as asserções rpuramente descritivas159 são aproxi­ mações inexatas. Mas, embora o vago, ra esfera das singularidades singulares fenomênicas160 em geral, não pertença à esfera do conhecimento exato (que opera com puras idealidades), não está, por isso, de forma alguma excluído da esfera do conhecimento em geral. De acordo com isso, é também claro como é que nos devemos comportar em relação às dúvidas que vêm a seguir e que conduzem à negação de todas as partes e distinções. Num caso singular é muito possível uma dúvida em face do fluir das vivências rsensíveis (como também especificamente psíquicas)1;61 mas esta dúvida não é possível em todos os casos. Onde as distinções são grosseiras, é alcançável uma evidência que retira legitimidade a cada dúvida.

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A: rempíricos1. A: rsobre vivências psíquicas1. N.A.: Aqui é, com certeza, necessária ainda uma investigação mais precisa. A: empíricas1. A: ro domínio da experiência1. A: psíquicas1.

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<211> Apêndice O humeanismo moderno A filosofia de Hume, com a sua riqueza em análises psicológicas geniais, assim como com o seu psicologismo do ponto de vista gnosiológico, levado a cabo por toda parte, corresponde muito às tendências dominantes no nosso tempo, para que pudesse faltar em influência viva. De fato, talvez se possa dizer que Hume nunca tenha exercido uma influência mais forte do que hoje e, com respeito a um número não insignificante de investigadores, poder-se-ia mesmo falar francamente de modernos humeanos. Com isso, também se pode observar aqui de novo que, no alargamento da influência histórica, as confusões desen­ volveram-se tanto como, ou quase ainda mais do que as qualidades. No que diz especialmente respeito à doutrina da áistinctio rationis, encontramos, em escri­ tos modernos, não poucas vezes, afirmações e realizações singulares que estão à medida do sentido radical desta doutrina.62 Com particular decisão e minúcia, porém, defendeu-a H. Cornelius, cuja Psychologie apresenta uma tentativa de re­ alizar universalmente uma teoria psicologista do conhecimento da forma mais extrema que jamais foi realizada sobre o solo da Psicologia moderna. Na medida em que esta obra, de fato, é Psicologia, ela inclui diversas realizações singulares muito interessantes e estimulantes; mas, na medida em que é Teoria do Co­ nhecimento, penso poder defender a afirmação: a confusão do que pertence ao conteúdo intencional do conhecimento (ao seu sentido ideal, àquilo que ele visa e que, com isso, é posto concomitantemente de forma necessária), com o que pertence ao objeto intencional do conhecimento, e estas duas coisas, de novo, com o que pertence, de perto ou de longe, à mera constituição psicológica da vivência do conhecimento (eventualmente, apenas, aos fenômenos que acom­ panham a intenção, ou aos seus fundamentos genéticos inconscientes ou não notados); estas confusões, digo, só continuam sendo realizadas em tal âmbito e não houve nenhum outro lugar no qual elas marcaram a totalidade do modo de tratamento dos problemas gnosiológicos em tal medida como nas exposições de Cornelius.63 Isto surge, em particular, também, na esfera das questões que aqui nos <212> ocupam. No interesse do assunto, queremos nos demorar aqui, tornando-o manifesto com o auxílio de algumas citações (retiradas em parte da 62 N.A.: Cf., por exemplo, também B. Erdmann, Logik, I1, p. 80. 63 N.A.: Cornelius recebeu de William James o combate contra a "Psicologia de mosaico", a doutrina âosfringes, mas não a posição rgnosiológica1 [A: rgnosiológica cuidadosa1]. James não moderniza, como seria dito de Cornelius, a filosofia de Hume. E o pouco que as geniais observações de James, no âmbito da psicologia descritiva das vivências de representação, forçam em direção ao psicologismo, vê-se a partir do presente escrito. Pois os avanços que devo, na análise descritiva, a este notável pensador apenas favoreceram o meu desprendi­ mento em relação ao ponto de vista psicologista.

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Psychologie, em parte de alguns tratados complementares do nosso autor). Para a comprovação de que uma corrente científica seguiu falsos caminhos, nada é, de fato, mais instrutivo do que estudar, nos seus defensores, as consequências levadas a cabo, e, com isso, persuadir-se de como a teoria acabada, que eles acre­ ditam ter obtido, os envolve, antes, em evidentes contradições. Em relação às notas ditadas de rG.~> E. Müller e concordando totalmente com o seu conteúdo, diz Cornelius64: “A distinção entre diversas notas caracte­ rísticas [...] baseia-se [...] no fato de os conteúdos, de acordo com as suas seme­ lhanças, serem reunidos e designados com nomes comuns em grupos. Não é se­ não à pertença de um conteúdo a tais grupos diversos de conteúdos semelhantes entre si e, por isso, com o mesmo nome, que aqui, portanto, visamos, quando falamos das diferentes notas características de um conteúdo.” Tão expressamen­ te nunca o tínhamos lido em Hume, e talvez o grande pensador tivesse hesitado em concordar com esta proposição. “Ao que nós visamos” é, todavia, o sentido e poder-se-á apenas por um instante afirmar que o sentido da proposição este som é fraco seja o mesmo que o sentido da proposição ele pertence a um grupo de semelhança, seja como for designado? Se se disser que, para podermos falar da fraqueza do som, teremos de ter necessariamente presentes alguns sons se­ melhantes quanto à fraqueza, não precisamos contestá-lo. Pode ser que seja as­ sim. Mas visamos à pertença a este grupo, por exemplo, de n objetos? E mesmo se os infinitamente muitos objetos semelhantes, como um grupo, se pudessem encontrar diante dos nossos olhos e efetivamente se encontrassem, o sentido da expressão em causa residiria na pertença a este grupo? Naturalmente que as expressões um som é fraco e pertence à representação dos objetos, que são iguais quanto à fraqueza são equivalentes quanto à significação. Mas equivalência não é identidade. Se se dissesse que o discurso sobre a fraqueza dos sons não poderia surgir se não tivéssemos reparado na semelhança entre sons fracos; e se se dis­ sesse, posteriormente, que os restos mnésicos de tais vivências anteriores foram, onde quer que falemos com sentido de sons fracos, de certo modo suscitados, determinando, em consequência disposicional, o caráter das vivências actuais: rpode, de fato, ser assim"1.65 Mas que tem tudo isso em comum com os sentidos, com aquilo a que visamos com as nossas palavras? Seja como for que a visada atual, que, todavia, é uma vivência dada imediatamente e peculiar, <213> possa ter surgido com o seu conteúdo evidente, seja o quer for que necessariamente lhe pertence do ponto de vista genético, seja o que for que lhe esteja fisiológica e psicologicamente na base, no inconsciente e no não notado; investigar tudo isto pode ser muito interessante. Mas procurar informação, por estes caminhos, 64

N.A.: H. Cornelius, Über Gestaltqualitäten (Sobre Qualidades da Figura). Z. F. Psychol. u. Physiol. d. Sinnesorgane, Bd 22, p. 103. 65 A: rcertamente que não nos contradiremos1.

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acerca daquilo a que visamos é absurdo. Trata-se de um erro que tem alguma analogia com o erro do materialismo vulgar, que nos quer assegurar que os sons são, na verdade, vibrações do ar, excitações do acústico e coisas semelhantes. Também aqui, suposições teóricas sobre a explicação genética rdo dado"166 são confundidas com o próprio dado. Que, em Cornelius, não se trata de uma inexatidão passageira da expres­ são é algo que nos mostram as exposições subsequentes. Assim, lemos:667 “Quase não necessita de menção o fato de, segundo a teoria que acabamos de expor, as “notas comuns” dos conteúdos simples não poderem encontrar emprego geral para a explicação da semelhança existente entre estes conteúdos, sob o modo como [...] estamos habituados a reconduzir a semelhança de um tapete com ou­ tro à igualdade da cor. Pois a afirmação daquela igualdade da cor não é, segundo a teoria exposta, senão a afirmação da semelhança de ambos os conteúdos com conteúdos já conhecidos noutro lado!' Uma afirmação é (e a palavra é acentuada pelo próprio Cornelius) a outra, elas são, por conseguinte, afirmações idênticas. No sentido desta exposição, aconteceria mesmo de a afirmação questionável de igualdade ter, para cada um, um sentido diferente, e um sentido diferente para tempos diferentes. Dependeria do “conhecido de outro modo”, por conseguinte, dos conteúdos anteriormente experimentados, que, todavia, mudam de pessoa para pessoa e de momento para momento. Quando Cornelius acrescenta6869701que “a significação da palavra predica­ do não precisa aparecer, todas as vezes, sob a forma de representações sepa­ radas, mas pode sim ser dada em associação rudimentar5”, isto pouco pode ajudar; o que a associação atual não pode realizar também não tem como ser realizado pela associação rudimentar, que apenas deve funcionar como um sucedâneo. De tal forma ^Cornelius recobre os fatos com a sua teoria"169 que diz diretamente70 que as expressões de conteúdos abstratos ou de representa­ ções abstratas são “abreviaturas55 da urepresentação da semelhança existente, de determinado ponto de vista, entre um conteúdo e outro conteúdo". <214> “ Qual das diferentes notas características é designada a cada vez por um conteúdo, segundo que direção ou ponto de vista o conteúdo é considerado, depende de qual daquelas diversas semelhanças nos rvem"171 à consciência (é ccinteriormente percebida” por nós).”

66 67 68 69 70 71

A: rda vivência1. N.A.: Op. c it, p. 104. N.A.: Op. cit., nota 3. A: rsubmete Cornelius os fatos à sua teoria1. N.A.: Op. cit., p. 108. A: venha1.

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Cornelius não quer que a sua concepção seja chamada nominalista. En­ tretanto, também o nominalismo extremo sempre pensou a relação do nome universal com a classe correspondente rcomo1 mediada por uma semelhança e, tal como nele, o nome universal também produz em Cornelius um tipo marcado pelo mero equívoco. Por razões psicológicas, o emprego do nome, no sentido desta teoria, está restringido à classe, mas a sua significação reside nas seme­ lhanças singulares em cada caso experimentadas e, com isso, mudando de caso para caso. A unidade ideal da classe circunscreve, de fato, esta multiplicidade de significações, mas não cria a única significação do conceito unívoco e não a pode criar. De resto, o modo como devemos saber qualquer coisa desta unidade ideal do grupo por meio de uma semelhança entre objetos abrangidos perma­ nece um mistério72 no terreno desta teoria; a teoria suprime, no conteúdo, o seu próprio pressuposto. Um certo sentimento de que a consciência de universalidade73 também é qualquer coisa, que se faz valer descritivamente e faz a exigência de explica­ ção, mostra-se, em Cornelius, em muitos lugares. Assim, lemos, por exemplo: “A palavra predicado não indica, de acordo com a sua origem e a sua signifi­ cação, este ou aquele conteúdo singular, nem também um certo número de conteúdos particulares, mas, sim, antes, qualquer coisa que é comum a todos estes conteúdos: a representação universal’, que está associada ao predicado e cuja significação condiciona, é a recordação (que não pode ser mais detalhada­ mente descrita, mas é conhecida imediatamente por cada um pela percepção interna) da semelhança que liga entre si todos aqueles conteúdos? Naturalmen­ te, o “não pode ser descrito mais detalhadamente e conhecido imediatamente pela percepção interna” é, justamente, a consciência peculiar da significação, o ato de rsignificari74 universal. Com as palavras que acabamos de citar, porém, este não descritível é, todavia, de certo modo descrito e, como mostraremos, incorretamente descrito, porque ao caráter de ato é substituído um conteúdo sensível e, ainda mais, um conteúdo fictício, que, rfenomenologicamente"1,75 em todo o caso, não se deixa encontrar. <215> Procuremos, no caso de esta passagem não dever ser tomada ao pé da letra, uma informação mais precisa na exposição de Cornelius sobre a psicologia; vejamos de novo nela o modo como Cornelius justifica o caráter de

ato que confere significação, que, todavia, enquanto claramente fixado como sendo o que precisa ser propriamente explicado, teria de estar essencialmente distinguido no seu tratado e, segundo estas distinções fixas, teria de iluminar to­ das as análises genéticas: assim, observemos duas confusões fundamentais. Em primeiro lugar, a confusão do fato objetivo, segundo o qual o nome universal está delimitado ao círculo de semelhança por meio de uma conexão associativa, com o fato subjetivo, segundo o qual visamos ao universal num ato singular e, por conseguinte, numa intenção nos relacionamos com a classe, com um sin­ gular determinado como membro da classe, com uma espécie unitária etc. É o equívoco do qual o nominalismo extremo como que se alimenta; só ele o torna possível, com ele, o nominalismo mantém-se ou cai. Entrelaçada com este equí­ voco, deparamo-nos, na Psychologie de Cornelius, com uma segunda confusão, na qual, de novo, coisas fundamentalmente diferentes andam uma com a ou­ tra, a saber, a confusão da inexatidão da memória, nomeadamente, do caráter confuso e da fluidez dos “obscuros” fantasmas reproduzidos, com o caráter de universalidade que pertence fa consciência de universalidade como a suai76 for­ ma de ato, ou, também, com a indeterminação, quanto ao conteúdo, rdaquelai77 intenção que constitui a significação determinada do artigo “indefinido”. Como prova, podem servir as seguintes citações. “Quanto mais frequentemente conteúdos semelhantes forem experimen­ tados, tanto menos [...] as suas imagens mnésicas reenviarão para conteúdos temporais determinados, e tanto mais estes conteúdos obterão o caráter de re­ presentações universais e poderão servir como símbolos daquele conteúdo oca­ sional, no interior de determinados limites de semelhança.”78 Junto daí, coloca­ mos a seguinte passagem:79 “Uma palavra ouvida pela primeira vez não pode ainda ser entendida [...]: mas logo que um conteúdo qualquer, que se encontra ligado em algum outro lugar com o complexo sonoro ouvido, for recordado, igualmente pela recordação da palavra, é dada com isso uma primeira significa­ ção da palavra.”80 [...] Correspondendo à [...] inexatidão da recordação, também a significação da palavra será em primeiro lugar inexata: uma vez que a repre­ sentação mnésica associada à palavra não serve meramente como símbolo de uma vivência totalmente determinada, mas, pelo contrário, deixa as suas pro­ priedades indeterminadas no interior de certos limites, também a palavra, por meio daquela associação mnésica, terá de tornar ambígua. Inversamente, em

72

N.A.: No essencial, esse poderia ser o argumento de Meinong (op. c it, Z F. Psych., Bd. 21, p. 235), embora na sua doutrina também falte a consciência ideal de unidade. Só pela con­ sideração da identidade da intenção e da sua forma peculiar se torna conclusiva a objeção de Meinong [segue-se em A: r, se vejo correta mente1]. 73 Em A segue-se: r(a qual, segundo a nossa concepção, é um caráter de ato peculiar, que constitui essencialmente a representação universal)1. 74 A: interpretar. 75 A: rpela percepção interna1.

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76 77 78 79 80

A: rà intenção de representação como sua1. A: rdaT N.A.: Psychologie ais Erfahrunswissenschaft (Psicologia como Ciência Empírica), p. 58. N.A.: Op. c it , p. 62-63. N.A.: Será que a circunstância de um a recordar um p faz já p ser a "significação" da "ex­ pressão" a? Então, a Igreja seria a significação do presbitério, e coisas semelhantes.

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conformidade com isto, também um conteúdo posterior da palavra deverá ser capaz de se associar, <216> desde que a sua diversidade em relação ao conteúdo anteriormente associado à palavra não ultrapasse aqueles limites. [...] Assim, por conseguinte, com o surgimento da significação de uma palavra [...] é ne­ cessariamente concebido um símbolo abstrato e talvez ambíguo, que designa do mesmo modo uma série de conteúdos diferentes e, de um determinado ponto de vista, semelhantes: a palavra contém significações conceituais na medida em que, graças ao surgimento da sua significação, serve ao indivíduo como símbolo para conteúdos reunidos, que residem numa série determinada de semelhança, no interior de certos limites.”81 No final do mesmo parágrafo, lemos ainda:82 “Parece-nos [...] que não apenas as palavras, mas também as representa­ ções podem ser (e são-no mesmo sempre, no interior de certos limites) universais, no sentido em que o conceitualismo afirma esta universalidade; mas que esta uni­ versalidade permanece encerrada em certos limites, determinados pela sutileza obtida pela distinção, ao passo que a universalidade da palavra de modo algum permanece encerrada nestes limites de universalidade do fantasma associado.” “Podemos conceder incondicionalmente a Berkeley, contra Locke, o fato de não existir nenhuma representação de um triângulo na qual as propriedades do acutângulo e do obtusângulo estivessem unidas: mas também poderíamos negar determinadamente que, em cada representação de um triângulo, estejam representadas relações totalmente determinadas dos lados e dos ângulos. Tam­ bém não podemos construir o fantasma de um triângulo com uma proporção entre os lados de maneira determinada e totalmente exata, tal como jamais es­ tamos em condições de desenhar um tal triângulo. Aquela primeira representa­ ção nomeada não é, por isso, possível, porque as diferenças de forma entre um triângulo acutângulo e obtusângulo são demasiado grandes e demasiado conhe­ cidas para que pudéssemos estar em dúvida, diante de cada forma triangular, relativamente às propriedades correspondentes. Mas a representação - realiza­ da - de um triângulo totalmente determinado é impossível por outras razões, porque a nossa distinção das formas triangulares nunca pode ser uma distinção totalmente exata, mas vêm permanentemente ao nosso encontro, pelo menos na recordação, pequenas distinções.” A partir destas citações, são evidentes, sem mais, as confusões acima mencionadas. Um símbolo para um singular, que, na sequência da nossa per­

manente mistura deste singular com singularidades semelhantes, indica cada membro de uma série de semelhanças, quer dizer, pode presumivelmente lem­ brar cada um deles, é já, segundo Cornelius, um símbolo universal. A indiferen­ ça do conceito universal relativamente às determinidades do objeto conceituai ocasional, que não pertencem ao seu conteúdo, é, posteriormente, identificada com o caráter vago da imagem mnésica. E, na passagem conclusiva, Cornelius acredita poder mediar a polêmica entre Berkeley e Locke acerca da ideia uni­ versal de triângulo, na medida em que submete a pergunta sobre a representabilidade sensível <217> de um triângulo com determinações contraditórias (nomeadamente, a ideia de triângulo, de Locke), a outras perguntas, a saber, se podemos projetar exatamente na fantasia um triângulo geométrico determina­ do por relações indicadas, ou reconhecer um triângulo projetado como cor­ respondente ao geometricamente ideal, e se somos capazes de distingui-lo de outros um pouco diferentes; com o que, de imediato, a indeterminação, como caráter vago, aparece confundida com a inexatidão da exemplificação do ideal. Segundo Cornelius, é possível que uma ideia sensível de triângulo una em si propriedades contraditórias e, de fato, um número infinitamente grande de tais propriedades; simplesmente, ela não pode querer unir diferenças tão grosseiras como são as propriedades do obtusângulo e do acutângulo. Não estamos de modo algum inclinados a concordar com esta reabilitação psicologista da ideia de triângulo de Locke, mesmo depois da sua restrição a diferenças sutis. Não nos decidiremos pela convicção de que seja psicologicamente possível aquilo que, de um ponto de vista lógico e geométrico, é um contrassenso.

81

N.A.: Em ligação com isto, a significação será definida como o âmbito das nomeações pos­ síveis, em contraste com o discurso sobre o "surgimento da significação", que diz respeito ao sentido da palavra, vivo em cada caso singular. Mas a distinção entre a significação como sentido e a significação como nomeação não obtém em Cornelius, de forma alguma, uma clara separação. 82 N.Â.: Op. cit, p. 66.

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<218> C a p í t u l o VI

SEPARAÇÃO DE DIFERENTES CONCEITOS DE ABSTRAÇÃO E DE ABSTRATO § 40. Confusão entre os conceitos de abstração e de abstrato, por um lado, rela­ cionados com os conteúdos parciais dependentes e, por outro, relacionados com as espécies A teoria da abstração por meio da atenção pressupõe o que nega a doutri­ na da distinctio rationis, a saber, que nos próprios conteúdos existe um certa dife­ rença que corresponde à diferença entre o abstrato e o concreto. No sentido desta referida doutrina, não deve haver apenas um tipo de parte, os elementos, as partes representadas como separáveis ou como separadas. Mas, do lado oposto, distinguem-se estas partes “autônomas” (na terminologia de Stumpf) dos “con­ teúdos parciais” dependentes, e atribuem-se a estes conteúdos as determinações internas de um conteúdo com exclusão dos elementos e, sob isso, também, as formas de unidade que nele se podem notar (falando objetivamente, que nele existem), formas estas por meio das quais as suas partes são enlaçadas para for­ mar a unidade do todo. Em relação a esta mesma distinção, fala-se também de conteúdos, ou de partes de conteúdos, concretos e abstratos.12 Na doutrina da abstração, desde Locke, o problema da abstração, no sen­ tido do salientar apontador destes “conteúdos abstratos” é confundido com o problema da abstração no sentido da formação de conceitos. Em relação a este último assunto, <219> trata-se de uma ranálise essencial12 descritiva do ato no qual uma espécie vem até nós para a consciência evidente, a saber, da clarifi­ cação da significação de um nome universal por meio do reenvio para a in­ tuição de preenchimento; mas, de um ponto de vista rempírico-psicológico1,3 no contexto da consciência humana, prescinde-se da investigação rdos fatos psicológicos correspondentes em favor da origem genética das representações universais humanas1,4 no processo natural rdo ir vivendo ingênuo1,5 ou no ar­ tifício da criação arbitrária e lógica de conceitos. As representações abstratas que, com isto, são questionadas são representações cujas intenções se dirigem às 1 2 3 4 5

N . A A terceira Investigação está dedicada à sua investigação mais minuciosa (no alarga­ mento necessário da distinção a objetos e a partes de objetos em geral). A: análise1. A: rgenético1. A: rda origem genética de tais significações1. A: rda experiência1.

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espécies e não àqueles conteúdos dependentes e abstratos.6 Se essas rintenções1 forem intuitivamente preenchidas, subjazem-lhes intuições concretas com con­ teúdos parciais abstratos rcomo que acentuados1; mas i"as espécies visadas1 não são estes mesmos conteúdos parciaisr, que não se tornam eles próprios visados em objetos de atos próprios de atenção, por mais que acentuemos a consciência de universalidade1. Todavia, como se pode ver na presente investigação crítica, torna-se permanente a confusão entre os momentos abstratos ou dependentes no objeto e a espécie, entre os conteúdos correspondentes subjetivamente vividos e os conceitos abstratos (as significações de certos nomes) e, de novo, entre ra acentuação, a saber,1 os atos de atender a estes conteúdos abstratos e aos atos de representação universal Em Locke, por exemplo, as ideias abstratas devem ser a significação universal; mas elas são descritas como rnotas características e psicologizadas como conteúdos abstratos de sensação1,7 separados das intuições concretas. Da mesma forma, a teoria da atenção mostra a possibilidade do aten­ der próprio ra tais18conteúdos rabstratos1 (sem a sua separação), e, com isso, ela acredita <220> ter esclarecido a origem dos conceitos universais (enquanto signi­ ficações). Da mesma forma, nega-se o caráter intuitivo dos conteúdos abstratos,9 embora eles mesmos sejam intuídos concomitantemente como momentos das intuições concretas; e tal acontece porque nos deixamos iludir pelo caráter in­ tuitivo rsensível1 dos conceitos universais. Certamente que estes conceitos não se deixam apresentar como uma imagem Se já é absurdo pintar sons ou querer representar cores por intermédio de cheiros, e, assim, conteúdos universalmente heterogêneos por intermédio do heterogêneo, seria duplamente absurdo querer apresentar de forma sensível algo que é por essência não sensível1.10 Temos de distinguir, em geral, conceitos diferentes de abstrato e de abs­ tração, e queremos agora examinar estas distinções.

§ 41. Separação dos conceitos que se agrupam em torno do conceito de conteúdo não autônomo rSe conservarmos o discurso acerca dos conteúdos, preferido pelas teo­ rias da abstração dos tempos modernos, poderemos dizer:1

Cap. VI • Separação de Diferentes Conceitos de Abstração e de Abstrato

a) Conteúdos “ abstratos” são conteúdos dependentes, conteúdos “concre­ tos” são conteúdos independentes. Pensemos estas distinções determinadas ob­ jetivamente; por exemplo, de tal modo que os conteúdos concretos, segundo a sua natureza própria, poderiam ser em e por si mesmos, enquanto os abstratos só são possíveis em ou junto de conteúdos concretos.11 É claro que o discurso acerca de conteúdos pode ser aqui levado mais longe e tem de ser levado mais longe do que no sentido rfenomenológico^12134de ele­ mentos rreais13-114 da consciência. O objeto fenomenal externo, que aparece, mas que não é um rdado real15da consciência! ,16é (pelo menos <221> quando não se interpreta falsamente o objeto “intencional”, quer dizer, meramente visado, como elemento constituinte rreab17 daquela rvivênciai18 na qual a intenção se realiza), enquanto um todo, concreto; as determinações que lhe são inerentes, tais como cor, forma etc., e, de fato, que são entendidas como momentos constitutivos da sua unidade, são abstratas. Esta distinção objetiva rentre abstrato e concreto"! é a mais universal; pois os conteúdos rimanentes"i19 são apenas uma classe espe­ cial de objetos (com o que, naturalmente, não está dito: de coisas). A diferença em questão seria, por conseguinte, indicada de forma mais apropriada como di­ ferença a indicar entre objetos abstratos e concretos, nomeadamente, partes de objetos. Se continuo a falar aqui de conteúdos, tal acontece para não suscitar um choque permanente na maioria dos leitores. Nesta distinção, nascida no solo da Psicologia, onde o tornar intuitivo é sempre captado, naturalmente, segundo exemplos sensíveis, a interpretação da palavra objeto como coisa é demasiado preponderante, como se a designação de uma cor ou de uma forma como objeto não pudesse ser sentida como incomodativa ou mesmo perturbante. Todavia, deve-se conservar rigorosamente diante dos olhos o fato de que o discurso sobre conteúdos não é aqui, deforma alguma, limitado à esfera dos conteúdos de consci­ ência em sentido real, mas abrange concomitantemente todos os objetos individuais e partes de objetos. Mesmo a esfera dos objetos que se tornam intuitivos para nós não nos limita. A distinção talvez tenha, também, valor rontológico"! ;20 todavia,

A este período corresponde em A: "Se estas rsignificaçõesn forem intuitivamente preenchi­ das, subjazem-lhes intuições concretas com conteúdos parciais apontados1; mas elas não são estes mesmos conteúdos parciais/' 7 A: rconteúdos abstratos1. 8 A: rde\ 9 N.A.: rAssim, por exemplo, também1 Hõfler-Meinong, Logik, p. 25. Cf., também, a nota crítica contra Twardowski, mais acima, p. <141>. 10 A: r, assim como os sons não se podem pintar, ou as corres representar por cheiros, e, assim, conteúdos universalmente heterogêneos não podem ser representados pelo heterogêneo1.

11 N.A.: Pormenores sobre a justificação e o conteúdo desta determinação na investigação seguinte. 12 A: rpsicológico1. 13 N.T.: Reell. 14 A: ’vividos1. 15 N.T.: Reell. 16 A: ’conteúdo psíquico1. 17 N.T.-.Reell. 18 A: ’vivência psíquica1. 19 A: ’psíquicos1. 20 A: ’metafísico1.

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Cap. VI • Separação de Diferentes Conceitos de Abstração e de Abstrato

são possíveis objetos que, Taticamente1,21 se encontram para lá de todos os fe­ nômenos acessíveis a toda a consciência humana em geral. Em resumo, a dis­ tinção diz respeito, numa universalidade sem limites, a objetos individuais em geral re pertence, enquanto tal, ao quadro da ontologia formal ap riorP . b) Se tomarmos agora por base o conceito objetivo r(ontológico)1 de “conteúdo abstrato”, então, sob abstração, será <222> visado o ato por meio do qual um conteúdo abstrato é “distinguido”, quer dizer, por meio do qual ele, na verdade, não é separado, mas, sim, contudo, transformado em objeto próprio de um representar intuitivo a ele dirigido. Ele aparece em e com o concreto a que diz respeito, do qual é abstraído, mas é especialmente visado e, com isso, todavia, não meramente visado (como num representar “indireto”, meramente simbólico), mas, sim, também, dado intuitivamente como aquilo em cuja qua­ lidade é visado. c) No entanto, temos de ter aqui ainda em consideração uma diferença importante e já várias vezes acentuada.22 Quando prestamos atenção a um dos lados de um cubo, “que aparece”, este lado é o “conteúdo abstrato” do nosso representar intuitivo. Todavia, o conteúdo verdadeiramente experimentado, a que corresponde este lado que aparece, é diferente dele; ele é apenas a base de uma “apreensão”, graças à qual, enquanto é sentido, a face do cubo, que é dife­ rente dele, vem à tona. Com isso, o conteúdo sentido não é o objeto do nosso representar intuitivo, ele só se torna objeto na “reflexão” psicológica r, nomeada­ mente, fenomenológica1. Não obstante, a análise descritiva ensina que ele não está meramente icontidoí2324567em geral na totalidade do aparecimento concreto do cubo, mas, sim, que, em face de todos os outros conteúdos que, neste repre­ sentar do lado respectivo, não funcionam representativamente, ele é de certa forma acentuado, apontado. Ele o é, naturalmente, também quando se torna ele próprio objeto de uma intenção representativa a ele propriamente dirigida; só que, depois (por conseguinte, na (reflexão124), ainda se apresenta precisamente esta intenção. Com isto, também este acentuar do conteúdo, o qual não é, ele próprio, nenhum ato,25 mas antes uma peculiaridade descritiva rdo lado da apa­ rição1 <223> de cada ato, na qual o conteúdo se transforma em suporte de uma intenção própria, rpoderial26 ser designado como abstração. rMas1, com isso, ("seria127 determinado um conceito totalmente novo de abstração.

d) Se aceitarmos que o abstrair é um ato próprio, ou, em geral, uma vi­ vência descritiva própria, responsável pelo salientar do conteúdo abstrato a partir do fundo concreto, ou se virmos precisamente no modo do acentuar o essencial do conteúdo abstrato enquanto tal, surgirá então, uma vez mais, um novo conceito de abstrato. A diferença relativamente ao concreto não é procu­ rada na natureza própria do conteúdo, mas, sim, no modo de ser dado; chama-se abstrato um conteúdo na medida em que é abstraído, concreto, na medida em que não o é. Notar-se-á facilmente que a inclinação para recorrer aos atos a fim de caracterizar a diferença de conteúdo é provocada pela confusão com os concei­ tos subsequentes de abstrato e de concreto, nos quais a essência da coisa reside certamente nos atos. e) Se entendermos por abstrair, em sentido positivo, o atender que privile­ gia um conteúdo, e por abstrair em sentido negativo o não reparar em conteúdos dados concomitantemente, a palavra perde a sua relação exclusiva com os conte­ údos abstratos, no sentido de conteúdos dependentes. Mesmo no caso de conteú­ dos concretos, fala-se, de fato, de abstração certamente apenas em sentido negati­ vo; atenta-se neles, por exemplo, “abstraindo relativamente ao plano de fundo”.

21 A: rsegundo o seu gênero1. 22 N.A.: Cf. também a Investigação VI, § 15 [A: Investigação V, capítulo 2^\ Cf. "Aditamentos e Melhoramentos" a A: r6§ (§ 15, p. 525 e segs.)1]. 23 A: rco-dadon. 24 A: rreflexão psicológica1. 25 N.A.: No sentido rigoroso que será fixado na Investigação V r§§ 9 e segs.1. 26 A: rpode1. 27 A: ré, por conseguinte,1.

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§ 42. Separação dos conceitos que se agrupam em torno do conceito de espécie28 a) Distinguimos conceitos abstratos e concretos e entendemos por con­ ceitos as significações dos nomes. Em conformidade com isso, a esta distinção corresponde, de imediato, uma distinção dos nomes, e, na Lógica nominalista, é também esta distinção gramatical apenas que costuma ser alegada. Podemos partir dela <224> comodamente. Os nomes podem nomear indivíduos, como homem, Sócrates; ou também atributos, como virtude, branco, semelhança. Aos primeiros, chamam-se nomes concretos; aos segundos, abstratos. As expressões predicativas correspondentes aos segundos, tais como virtuoso, branco, seme­ lhante, são contadas entre os nomes concretos. Mais precisamente, porém, terí­ amos de dizer que eles são concretos quando os sujeitos possíveis com os quais se relacionam são sujeitos concretos. Tal não é sempre o caso: nomes como atri­ buto, cor, número e outros semelhantes relacionam-se predicativamente com atributos (como rsingularidades129 específicas) e não com indivíduos, ou, pelo menos, só mediatamente é que se relacionam com indivíduos e com uma modi­ ficação do sentido predicativo. 28 "Aditamentos e Melhoramentos" a A: rPara o § 42, interessa também a nota mais acima ao § 31.1. 29 A: unidades1.

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Investigações Lógicas - Fenomenologia e Teoria do Conhecimento • Edmund Husserl

Cap. VI • Separação de Diferentes Conceitos de Abstração e de Abstrato

Por trás dessa distinção gramatical encontra-se, claramente, uma distin­ ção lógica, a saber, a distinção das significações ''nominais', que estão dirigidas aos atributos, e daquelas que estão dirigidas aos objetos, na medida em que têm participação nos atributos. Se, com Herbart, chamarmos conceito a todas as re­ presentações lógicas (e isto significa, como dissemos, a todas as significações nominais), os conceitos deste tipo decompõem-se em abstratos e concretos. Mas se privilegiarmos um outro sentido do discurso sobre conceitos, que co­ loca conceito - atributo, a diferença é entre as significações que representam conceitos e aquelas que representam objetos conceituais enquanto tais. Esta diferença é relativa, na medida em que os próprios objetos conceituais, a sa­ ber, em relação a certos novos objetos, podem ter o caráter de conceitos. Mas isto não pode acontecer in infinitum e, por fim, chegamos necessariamente à diferença absoluta entre conceitos e objetos conceituais que não podem mais funcionar como conceitos; por um lado, por conseguinte, atributos, por outro, objetos que “têm” atributos, mas que não são eles próprios atributos. Assim, à diferença de significações corresponde uma diferença no domínio objetivo, em outras palavras, entre objetos individuais e específicos (“universais”). Mas chamam-se equívocos tanto os objetos universais como as representações uni­ versais (significações universais), mais exatamente, as representações diretas de objetos universais, “conceitos”. O <225> conceito de vermelho nem é ele próprio vermelho - quando confrontamos este conceito com os seus múltiplos objetos, as coisas vermelhas -, nem é a significação do nome vermelho. Ambos se en­ contram claramente na mesma relação que a significação de Sócrates com o pró­ prio Sócrates. Certamente que também a palavra significação, na sequência da confusão destas diferenças, se torna equívoca, de modo que não se teme chamar às vezes significação ao objeto da representação, outras vezes ao seu “conteúdo” (o sentido do nome). Na medida em que a significação também se chama con­ ceito, torna-se, de resto, também equívoco o discurso que relaciona o conceito e o objeto conceituai: umas vezes, trata-se da relação (há pouco normativa) entre o atributo (vermelho) e o objeto que corresponde a este atributo (a casa verme­ lha); outras vezes, da relação totalmente diferente entre a representação lógica (por exemplo, a significação da palavra vermelho ou do nome próprio Tétis) e o objeto representado (o atributo vermelho, a deusa Tétis). b) Mas a diferença entre representações concretas e abstratas também pode ser captada de outra forma, nomeadamente, de tal modo que uma representação será chamada concreta quando representa diretamente um objeto individual, sem a mediação de representações conceituais (atributivas); e abstrata no caso opos­ to. De um lado encontram-se, então, no domínio da significação, as significações dos nomes próprios, do outro, todas as restantes significações ^nominais1. c) Às significações, assinaladas acima, da palavra abstrato também cor­ responde um novo círculo de significação para o discurso sobre a abstração. Ele

ocupar-se-á dos atos através dos quais surgem os “conceitos” abstratos. Dito mais exatamente: trata-se dos atos nos quais os nomes universais obtêm a sua re­ lação direta com unidades específicas; e, de novo, dos atos que pertencem a estes nomes na sua função atributiva ou predicativa, atos nos quais, por conseguinte, formas como um A, todos os A, algum A, S que é A etc. se constituem; finalmente, dos atos nos quais os objetos captados nestas múltiplas formas de pensar são “dados” evidentemente como captados desse modo, em outras palavras, dos atos nos quais as intenções conceituais se preenchem, obtêm a sua evidência e clareza. Assim, apreendemos diretamente a unidade específica vermelho, “ela própria”, com base em uma intuição singular de qualquer coisa de vermelho. Consideramos o <226> momento vermelho, mas realizamos um ato peculiar cuja intenção está dirigida à “ideia”, ao “universal”. A abstração, no sentido deste ato, é totalmente diferente da mera observação ou do salientar do momento ver­ melho; para indicar a diferença, falamos repetidas vezes de abstração ideadora ou generalizadora. O discurso tradicional sobre a abstração tem em vista este ato; no seu sentido, obtemos, por “abstração”, não traços singulares individuais, mas, sim, conceitos universais (representações diretas de atributos como uni­ dades de pensamento). Quando muito, o mesmo discurso estende-se às repre­ sentações conceituais das formas complexas indicadas; na representação um A, muitos A etc. abstraiu-se de todas as restantes notas características; a represen­ tação abstrata A recebe “novas formas”, mas nenhuma nova “matéria”.

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ov <227> PARA

a d o u t r in a d o s t o d o s e d a s p a r t e s

In t r o d u ç ã o

A diferença entre conteúdos “abstratos” e “concretos” que se apresenta como idêntica à diferença de Stumpf entre conteúdos dependentes e indepen­ dentes, é de grande importância para todas as investigações fenomenológicas, de modo que parece indispensável submetê-la antecipadamente a uma análise aprofundada. Já mencionei, na investigação anterior,1 que esta diferença, rsurgida em primeiro lugar no âmbito da psicologia descritiva dos dados de sensa­ ção,1 pode ser concebida como caso especial de uma diferença universal. Ela estende-se, então, para além da esfera dos conteúdos de consciência e torna-se uma diferença teoricamente muito significativa no âmbito dos objetos em geral. Com isso, o lugar sistemático da sua discussão seria na teoria pura (apriori) dos objetos enquanto tais, teoria esta na qual serão tratadas as Tdeias1,23pertencen­ tes à categoria objeto, tais rcomo todo e partes, sujeito e qualidade, indivíduo e espécie, gênero e espécie, relação e coleção, unidade, número, série, número ordinal, grandeza etc., assim como as verdades apriori <228> relacionadas com essas ideias13~4. Também aqui a nossa investigação analítica não se pode deixar novamente determinar pela sistemática dos assuntos. Não devemos deixar sem prova os conceitos difíceis com os quais operamos na investigação explicativa do conhecimento, e que, de certo modo, lhe têm de servir de alavanca, para es­ perar até que eles surjam na conexão sistemática do próprio âmbito lógico. De fato, não trabalhamos aqui numa exposição sistemática da lógica, mas, sim, na sua explicação gnosiológico-crítica e, ao mesmo tempo, numa preparação para cada exposição futura deste tipo. Uma fundamentação mais profunda da diferença entre conteúdos inde­ pendentes e dependentes conduz tão imediatamente às questões fundamentais da doutrina pura r(pertencente à ontologia formal)1 dos todos e das partes, que não podemos prescindir de entrar nestas questões com algum pormenor.

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N.A.: rP. <220> e segs.1 A: rrelações1. A: rentre todo e parte, sujeito e qualidade, entre partes coordenadas ou qualidades e mais coisas do mesmo gênero1. N.A.: rCf., sobre estas "categorias formais de objeto" e as verdades essenciais formal-onto­ lógicas que lhes pertencem, a exposição do capítulo conclusivo dos Prolegomena (I2, §§ 67 e segs.).1

r

<229> C a p ít u l o I

A D IFER E N Ç A EN T R E OS O B JE T O S IN D EP E N D E N T E S E D EPEN D EN TES

§ 1. Objetos compostos e simples, articulados e não articulados Uma vez que a investigação que se segue, de acordo com o assunto princi­ pal, gira em torno da relação entre as partes, antecipamos uma discussão muito geral sobre esta relação. Os objetos podem encontrar-se, uns em relação aos outros, na relação de todos e partes, ou mesmo na relação de partes coordenadas de um todo. Estas são tipos de relações fundadas a priori na ideia do objeto. Cada objeto é uma parte efetiva ou possível, quer dizer, há todos efetivos ou possíveis que o encer­ ram. Por outro lado, talvez nem todo objeto necessite ter partes, e, assim, surge a separação ideal dos objetos em simples e compostos. Os termos composto e simples são, assim, definidos por meio das seguin­ tes determinações: tendo partes - não tendo quaisquer partes. Mas eles podem ser compreendidos num segundo sentido talvez mais natural, no qual o fato de ser composto, tal como também a etimologia da palavra sugere, indica uma multiplicidade de partes disjuntas do todo, de modo que teria de ser designado como simples o que não se deixa “pôr em separado” numa multiplicidade de partes, quer dizer, aquilo em que não se podem distinguir pelo menos duas partes disjuntas. rNa unidade de algo que aparece sensivelmente, encontramos, por exemplo, a coloração vermelha totalmente determinada como momento e, depois, novamente, o momento genérico cor. Mas a cor e o vermelho de­ terminado <230> não são momentos disjuntos. Mas, por outro lado, são-no perfeitamente a coloração vermelha e a extensão que ela recobre, pois ambas, de acordo com o seu conteúdo, nada têm em comum entre si. Elas estão, em sentido amplo, como poderíamos dizer, enlaçadas uma com a outra, pelo que chama­ mos à relação geral entre partes, que aqui existe, àquelas partes disjuntas num interior de um todo, um enlace. É natural, em primeiro lugar, chamar às partes enlaçadas membros do enlace. No entanto, numa acepção tão ampla do discurso sobre membros de um todo, a cor e a figura teriam de ser consideradas como membros enlaçados na unidade de uma extensão colorida. A isto se opõe o uso da língua. Em tais todos, os membros são relativamente “dependentes” entre si e encontramo-los tão intimamente ligados que falaremos, diretamente, de uma ££penetração recíproca”. Acontece de forma diferente nos todos fragmentados ou fragmentáveis, em relação aos quais o discurso sobre membros ou desmembra­ mento é o único que é natural. As partes são aqui não apenas disjuntas, mas

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Cap. I • A Diferença entre os Objetos Independentes e Dependentes

também relativamente “independentes” umas em relação às outras, elas têm o caráter de “pedaços” enlaçados entre si. Vemos imediatamente, logo no começo de uma consideração das relações entre as partes, que estas se encontram sob diferentes formas características, e pressentimos que estas formas dependem da distinção cardinal entre objetivi­ dades independentes e dependentes, das quais prescindimos neste parágrafo J 1

O termo “parte” não é entendido num sentido assim tão amplo na ma­ neira habitual de falar. Se procurarmos precisar as restrições que distinguem do nosso o seu conceito de parte, nos depararemos com aquela distinção fun­ damental que designamos como distinção entre partes independentes e depen­ dentes. Quando se fala pura e simplesmente de partes, costuma-se ter diante dos olhos as partes independentes (designamo-las por pedaços). Porque cada parte pode se transformar em objeto (ou, como também se costuma dizer, em “conteúdo”) autêntico de uma representação que se lhe dirige e, assim, ser indi­ cada como objeto f(conteúdo)T ,6 a distinção entre as partes, que acabamos de mencionar, remete em geral para uma tal distinção dos objetos (conteúdos). O termo objeto é, com isso, tomado sempre no sentido nmais amplo-1J <232> Contudo, na maneira habitual de falar sobre objetos, tanto quanto sobre partes, costuma-se pensar, involuntariamente, em objetos independentes. Deste ponto de vista, o termo conteúdo é menos limitado. De forma geral, falase também, de fato, de conteúdos abstratos. Em vez disso, o discurso sobre con­ teúdos costuma mover-se na esfera meramente psicológica, uma limitação com a qual teremos, em verdade, de começar junto à distinção agora a investigar, mas na qual não permaneceremos.8 A distinção entre conteúdos independentes e dependentes nasceu rhistoricamente-1 no domínio psicológico, ou, para falar com mais exatidão, no do­ mínio da rfenomenologia19 da experiência interna. Em referência polêmica a Locke, Berkeley expôs o fato de que temos a capacidade de presentificar de novo as coisas singulares anteriormente percebidas, mas também de reuni-las ou di­ vidi-las na imaginação. Podemos representar um homem com duas cabeças, a parte superior do corpo de um homem ligada à parte inferior do corpo de um cavalo, ou, também, pedaços singulares, uma cabeça, um nariz, uma orelha, por si sós. Ao invés, é impossível construir uma “ideia abstrata”, por exemplo, sepa­ rar a “ideia” de um movimento da ideia de um corpo a mover-se. Só podemos abstrair, no sentido de separar dado por Locke, aquelas partes de um todo re­ presentado que, na verdade, estão unidas fatidicamente com outras partes, mas que também podem existir efetivamente sem elas. No entanto, como, segundo Berkeley, esse rsignifica aqui o mesmo que percipi, “não-poder-existir” também não significa-110 mais do que “não-poder-ser-percebido”. Além disso, deve-se

§ 2. Introdução da distinção entre objetos (conteúdos) dependentes e independentes Concebemos o conceito de parte no sentido mais amplo que ele permite, para chamar parte a tudo o que “em” um objeto se pode distinguir, ou, para falar objetivamente, está nele “presente”. Parte é tudo aquilo que um objeto r“tem” em sentido real,23no sentido de qualquer coisa que efetivamente o constrói-13 e, na verdade, o objeto em e para si, por conseguinte, abstraindo de todas as conexões nas quais está entretecido. De acordo com isto, cada predicado “real”4 não rela­ cional remete para uma parte do objeto-sujeito. Assim, por exemplo, os predica­ dos vermelho e redondo, mas não os predicados existente ou qualquer coisa. Do mesmo modo, cada forma de enlace r“real” no mesmo sentido-1,5por exemplo, o momento da configuração espacial, vale como uma parte autêntica do todo.

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2 3

A: rDiferenciando, poder-se-ia aqui falar, de preferência, de objetos simples e de compostos, em vez de desarticulados e articulados. Esta segunda diferença do simples e do composto refere-se a uma relação entre partes menos universal, embora ainda primitiva; a saber, a relação entre todos enlaçados e membros enlaçados. Por um "todo enlaçado", ou, abrevia­ damente, por um enlace, entendemos, por conseguinte, um todo que possui muitas partes disjuntas. Estas se chamam membros. No sentido amplo desta definição, a cor e a figura te­ riam de valer como membros enlaçados na unidade da extensão colorida. Num sentido mais restrito, fala-se de membros a propósito de partes disjuntas que são relativamente "autôno­ mas" umas em relação às outras, em outras palavras, a propósito de "pedaços" disjuntos de um todo. A fixação destes conceitos ocupar-nos-á pormenorizadamente em breve. O fato de ambos os pares conceituais distinguidos terem de ser mantidos separados é algo ensinado, por exemplo, pela relação entre momentos intuitivos correspondente à relação aristotélica entre gênero e espécie, a relação "lógica" de separação, na terminologia de Brentano. Um caso de cor determinado pela espécie ínfima é, no segundo sentido, simples (a saber, não articulado), no primeiro, composto: este <231> vermelho aqui diante de nós não pode, independentemente da sua extensão espacial, ser articulado em partes disjun­ tas, mas contém, todavia, partes. No vermelho abstrato encontra-se o momento cor, mas o que a cor acrescenta ao vermelho não é a ligação de um momento novo posterior, mas a cor "especifica-se" apenas em vermelho, que é uma cor e, todavia, não é idêntico à cor.1 N.T.: No original: "im "realen" oder besser, reellen Sinn". A: r"tem" em sentido real1.

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NX: Real.

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A: rreah.

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A: r(ou também conteúdo)1. A: ramplo que lhe é adequado1. N.A.: A confusão entre conteúdo representado, no sentido de um objeto qualquer repre­ sentado (na esfera psicológica: cada dado psicológico), e conteúdo representado no sen­ tido do "quê" significativo da representação, não representa nenhum perigo no círculo da presente investigação. 9 A: rfenomenologia pura1. 10 A: rsignifica o mesmo que percipi, assim... também significa1.

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prestar atenção ao fato de que, para ele, o percebido são as ideias, portanto, con­ teúdos de consciência no sentido de conteúdos realmente vividos. <233> Segundo isso, a visada essencial da distinção rde Berkeley111 po­ derá ser concebida, sob uma ligeira modificação da terminologia, também nas seguintes palavras:112 Sob o ponto de vista da copertença, os conteúdos sempre representados em conjunto (a saber, existindo em conjunto na consciência) separam-se em duas classes principais: conteúdos independentes e dependentes.13 Os conteú­ dos independentes estão presentes aí onde os elementos de um complexo repre­ sentativo [complexo de conteúdo] podem ser representados separados, segundo a sua natureza; os conteúdos dependentes, aí onde isto não acontece.

as restantes partes do cavalo e a totalidade do que está intuitivamente ao seu re­ dor. 15Visto com exatidão, ra coisa fenomênica, a saber, o pedaço da coisa, o que significa aqui, o que aparece sensivelmente enquanto tal (a figura espacial pre­ enchida com qualidades sensíveis),1 de acordo com o conteúdo descritivo, não permanecerá nunca absolutamente idêntica; em todo caso, porém, no conteúdo rdesta “aparição”1, não se encontra nada que exija necessariamente uma de­ pendência funcional das suas modificações relativamente àquelas modificações das •"“aparições”1 coexistentes. Podemos dizer que isto vale tanto em relação às raparições no sentido de objetos aparecentes enquanto tais1, como também em relação às raparições como vivências nas quais as coisas fenomênicas apa­ recem1, assim como, ao mesmo tempo, relativamente aos complexos de sen­ sações •'“apreendidos”1 objetivamente nestas ivivências1. Exemplos favoráveis disto são oferecidos pelas aparições de sons e imagens acústicas, de cheiros e de outras vivências, que facilmente pensamos como desligados de qualquer relação com a existência coisal.

§ 3. A inseparabilidade dos conteúdos dependentes Para uma caracterização mais detida desse poder ser, ou não poder ser, representado separadamente, deveria acrescentar-se o seguinte, utilizando as notas penetrantes e consideradas insuficientes de Stumpf14 Relativamente a certos conteúdos, temos a evidência de que a modificação ou a supressão de pelo menos um dos conteúdos dados em conjunto com ele (mas não nele incluídos) teriam de modificá-los ou suprimi-los. Noutros conteú­ dos, falta-nos esta evidência; o pensamento de que eles próprios permaneceriam intocados por qualquer modificação ou supressão de todos os conteúdos que com eles coexistem não encerra nenhuma incompatibilidade. Conteúdos do primeiro tipo são pensáveis apenas como partes de todos mais abrangentes, enquanto os últimos aparecem como possíveis, mesmo que fora deles absolutamente nada existisse, portanto, também nada que se ligasse com eles para formar um todo. <234> Representáveis como separados, no sentido que acabamos de preci­ sar, são cada coisa fenomenal e cada elemento seu. Podemos representar “sepa­ radamente” ou “para si” a cabeça de um cavalo, quer dizer, podemos fixá-la na fantasia, enquanto deixamos modificar-se de qualquer maneira, ou desaparecer,

Consideremos agora exemplos de conteúdos inseparáveis. Como um exemplo deste gênero pode servir-nos a relação entre a qualidade visual e a ex­ tensão, ou a relação das duas com afigura delimitante. De certo modo, vale, com certeza, o fato de que estes <235> momentos podem variar independentemente uns dos outros. A extensão pode permanecer a mesma enquanto a cor se m o­ difica arbitrariamente, e a cor pode permanecer a mesma enquanto a extensão e a figura se modificam arbitrariamente. Tomada com exatidão, contudo, esta variabilidade independente diz apenas respeito às espécies de momentos nos seus gêneros. Enquanto o momento de cor permanece imutável relativamente à espécie de cor, o brilho e a forma podem variar arbitrariamente de modo espe­ cífico, e vice-versa. A mesma qualidade (específica) e esboço qualitativo pode ser “estendida” ou “abrilhantada” sobre qualquer extensão, e, em vez disso, a

11 A: rberkeleyana1. 12 N.A.: E, na verdade, quase literalmente segundo Stumpf, Über den Psychologischen Urs­ prung der Raumvorstellung (Sobre a Origem Psicológica da Representação Espacial), 1873, p. 109. 13 N.A.: Stum pf utilizava ranteriormente1 a expressão conteúdo parcial, ratualmente, prefere a expressão "momento atributivo"1 [A: rna qual, neste sentido determinado, seria difícil de insistir.]. 14 N.A.: Utilizo1 [A: rEmprego1] nas exposições seguintes o meu ensaio "Über abstrakte und konkrete Inhalte" (Sobre Conteúdos Abstratos e Concretos) (n^ 1 dos Psychologischen Stu­ dien zur Elementaren Logik. Philos. Monatshefte, 1984, Bd. XXX).

15 Até o final deste parágrafo corresponde em A: Visto com exatidão, ra aparição fixada1 de acordo com o seu conteúdo descritivo, não permanecerá absolutamente idêntica; em todo caso, porém, nada se encontra no conteúdo da aparição1 que exija necessariamente uma dependência funcional das suas modificações relativamente às modificações das apari­ ções1 coexistentes. Podemos dizer que isto vale tanto em relação aos robjetos coisais apa­ recentes1, como em relação às raparições vividas1, assim como, igualmente, em relação aos complexos de sensações objetiva mente indicados1 nestes últimos1. Exemplos favoráveis pertencentes a isto são oferecidos pelas aparições de sons e de imagens acústicas, de chei­ ros e de outras vivências subjetivas1, que facilmente pensamos como desligadas de qual­ quer relação com a existência coisal.

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§ 4. Análises de exemplos, segundo Stumpf

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mesma extensão pode ser “coberta” com qualquer qualidade. Mas permanece ainda um Espaço de j o g e 16 para dependências funcionais na modificação dos momentos, dependências que, como devemos notar, não são criadas por aquilo que as espécies captam idealmente. O momento de cor, como conteúdo parcial imediato r
pendência dos momentos imediatos diz respeito, por conseguinte, a uma certa relação legal entre eles, que será determinada, puramente, por meio dos abstra­ tos próximos subordinados destes momentos. Stumpf acrescenta ainda a seguinte exposição, para nós plena de valor:20

De fato, a qualidade é coafetada pela modificação da extensão, embora o modo de modificação que lhe é próprio seja independente dela. Com isso, a qualidade não se torna menos verde ou vermelha; ela própria não tem graus, mas, sim, ape­ nas tipos, em si não pode crescer ou diminuir, mas apenas mudar. Apesar disso, contudo, quando a deixamos por modificar de acordo com este modo que lhe é totalmente peculiar (por exemplo, deixamo-la permanecer verde), ela é, todavia, afetada pela modificação quantitativa. E que isto não é apenas, de fato, uma ex­ pressão imprópria da linguagem, ou uma metáfora ilusória, mostra-se no fato de que ela diminui até o desaparecimento, e de que, por fim, por meio da mera modi­ ficação da quantidade, se toma nula.ls

<236> Apropriamo-nos dessa observação. Achamos apenas que é pre­ ciso mencionar que não é propriamente a qualidade que é afetada, mas, sim, o momento imediato que lhe pertence rna"i19 intuição. A qualidade teria de ser já perfeitamente captada como abstrato de segundo grau, tal como a figura e a grandeza da extensão. No entanto, justamente por causa da legalidade que aqui discutimos, o momento correspondente só pode ser nomeado por meio dos conceitos determinados através da qualidade dos gêneros e da extensão. O que distingue a qualidade do momento qualitativo existente não está mais delimitado por meio do gênero cor. Por isso, designamos com razão a qualida­ de, por exemplo, o matiz determinado de vermelho, como diferença ínfima no interior do gênero. Do mesmo modo, a figura determinada é a última diferença do gênero figura, embora o momento imediato correspondente da intuição seja ainda mais diferenciado. Mas a ligação de qualquer uma das últimas diferenças no interior dos gêneros figura e cor determina completamente os momentos, codetermina legalmente o que, por vezes, pode ser ainda igual e desigual. A de­

16 A: espaço1. 17 A: rda intuição concreta1. 18 N.A.: Op. cit, p. 112.

Assim, a partir daqui [a saber, a partir da dependência funcional, acima caracteri­ zada, dos momentos qualidade e extensão], segue-se que ambos, de acordo com a sua natureza, são inseparáveis, que eles, de qualquer modo, formam todo um conte­ údo, do qual são apenas um conteúdo parcial. Se fossem apenas um mero membro de uma soma, seria talvez pensável que, dito simplesmente, quando a extensão desaparece, desaparece também a qualidade (pois elas não existem de forma in­ dependente); mas o fato de a qualidade diminuir progressivamente de tal modo e desaparecer por meio da mera diminuição e desaparecimento da quantidade, sem, com isso, se modificar a seu modo como qualidade, seria incompreensível [...]. Em todo caso, não podem ser conteúdos independentes, de acordo com a sua natureza não podem existir separados e independentes uns dos outros na representação.

O mesmo poderia ser exposto acerca da relação entre intensidade e quali­ dade. A intensidade de um som não é qualquer coisa <237> de indiferente à sua qualidade, por assim dizer, algo que lhe seja estranho. Não podemos conservar a intensidade por si, como aquilo que ela é, e modificar a qualidade arbitra­ riamente, ou mesmo aniquilá-la. Com a supressão da qualidade, a intensidade é inevitavelmente suprimida e, da mesma forma, inversamente, com a supres­ são da intensidade, é suprimida a qualidade. E r, evidentemente,1 isto não é um mero fato rempírico1, mas, sim, uma necessidade ra priori121 r, fundando-se na essência pura1. Também no comportamento em caso de modificação se mostra, de resto, uma analogia com o caso discutido em primeiro lugar: experimenta­ mos, também, uma aproximação contínua da intensidade em face do limitezero como uma diminuição da impressão qualitativa, ao passo que a qualidade enquanto tal (específica) permanece imutável. Os momentos da unidade do conteúdo intuitivo oferecem, em grande quantidade, exemplos posteriores, momentos que, por conseguinte, construí­ dos sobre os elementos primariamente distinguíveis, constituem um enlace em todos sensíveis-intuitivos, que por vezes é igual, por vezes é de tipo diferente. Levando-os em consideração, obtemos os primeiros conceitos estritos de todo, enlace etc., e, posteriormente, os conceitos diferenciadores de diversos gêneros e espécies, de todos sensíveis externos ou internos. Ê óbvio que os momentos de unidade não são outra coisa senão aqueles conteúdos que foram designados, por Ehrenfels, como “qualidades de figura, e,

20 N.Â.: Op. cit, p. 113. 21 A: evidente1.

19 A: rda1.

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por mim mesmo, como momentos “figurais” e, por Meinong, como “conteúdos fundados”.222345678Todavia, ainda se necessita, com isso, da distinção complementar entre os momentos fenomenológicos de unidade, que dão unidade às rprópriasi ^vivências123 ou partes de vivências r(os dados fenomenológicos reais24)1, e os momentos objetivos de unidade, que pertencem aos objetos intencionais e são, em geral, Transcendentes em relação à esfera da vivência1.25 A expressão, que me foi casualmente proposta por Riehl, “momentos de unidadé\ tem, na sua <238> inteligibilidade imediata, uma preferência tão óbvia que a sua aceitação universal seria desejável.

Que significa, por conseguinte, a separabilidade deste conteúdo por meio da re­ presentação? Para tal, não encontraremos nenhuma resposta, senão a seguinte: A separabilidade não significa senão que podemos fixar rde forma idên­ tica1 este conteúdo na representação, por variação ilimitada (arbitrária, não im­ pedida por nenhuma lei fundada rna essência131 do conteúdo) dos conteúdos ligados concomitantemente e, em geral, dados concomitantemente r; e o mesmo quer dizer que o conteúdo, por meio da <239> supressão de qualquer existência de conteúdos dados concomitantemente1,32 permanece intacto. N issor, porém, está envolvido de forma evidente133 o seguinte: que a exis­ tência deste conteúdo1", enquanto reside em si mesmo, de acordo com a sua essência1,34 não é de forma alguma condicionada pela existência de outros con­ teúdos, de modo que, tal como é, poderia existir rapriori, quer dizer, precisa­ mente segundo a sua essência1, mesmo se35 fora dele não existisse absolutamen­ te nada, ou se tudo se modificasse à sua volta arbitrariamente, quer dizer, sem nenhuma lei. rOu o que tem claramente o mesmo valor: na ccnatureza do próprio con­ teúdo, na sua essência ideal, não se funda nenhuma dependência de outros con­ teúdos, ele é na sua essência, pela qual ele é aquilo que é, sem se preocupar com todos os outros. Faticamente, pode ser assim, de modo que, com a existência deste conteúdo, são dados outros conteúdos segundo regras empíricas; mas, na sua essência idealmente captável, o conteúdo é independente, esta essência não exige através de si mesma, por conseguinte, a priori, nenhuma outra essência com ela entrelaçada.136 E, correspondentemente, o sentido da não independência reside no pen­ samento positivo da dependência. O conteúdo, de acordo com a rsua essência1,37

§ 5. A determinação objetiva do conceito de inseparabilidade Enquanto Stumpf emprega reflexões desse tipo com o fim de demonstrar a inseparabilidade recíproca da extensão e da qualidade, por conseguinte, a sua dependência, preferimos antes retirar delas a utilidade de definir, respectiva­ mente, a inseparabilidade ou dependência e, por outro lado, a separabilidade ou a independência. O motivo para tal nos é oferecido pelo próprio Stumpf no últi­ mo passo da citação feita mais acima.26 Que significa podermos representar “por si” um conteúdo “separado”? rPara a127 esfera fenomenológica, rpara a128 esfera dos conteúdos efetivamente vividos, significa que um tal conteúdo poderia ser desligado da fusão com conteúdos coexistentes, por conseguinte, finalmente, ser arrancado à unidade da consciência? Claramente não. Neste sentido, todos os conteúdos são inseparáveis. rE o mesmo vale para os conteúdos coisais que aparecem, tendo em vista a unidade de conjunto do que aparece enquanto tal.1 Se nos representarmos por si o conteúdo cabeça de cavalo, representamo-lo, por isso, todavia, inevitavelmente numa conexão1,29 o conteúdo distingue-se de um plano de fundo raparecente objetivo1, é dado ao mesmo tempo, inevitavelmen­ te, com rmúltiplos130 outros conteúdos e, de certo modo, unido também a eles.

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N.A.: rCf. Ehrenfels, Über Gestaltqualitäten (Sobre Qualidades da Figura). Vierteljahrsschrift fü r wiss. Philosophie, 1890; a minha Philosophie d. Arithmetik, 1891, em particular todo o cap. XI; Meinong, Beiträge zur Theorie der Psychischen Analyse (Contribuições para a Teoria da Análise Psíquica). Zeitschr. f Psychologie u. Physiologie d. Sinnesorgane, VI, 1893.1

23 24 25 26 27 28 29 30

A: rvivências psíquicas1. N X : Reell. A: rnão psíquicos1. N.A.: Cf. as palavras por nós sublinhadas. A: rrestringindo-nos à1. A: rem relação à1. A: rna conexão da consciência1. A: rmilhares de1.

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31 32 33 34 35 36

A: rna natureza1. A: rde forma que o conteúdo, por fim, até pela sua supressão1. A: rreside, porém, de forma evidente1. A: rna representação e, em geral, na consciência1. Em A segue-se: rna consciência1. A: rSeria certamente de se ponderar se podemos afirmar tal coisa absolutamente. Nos nos­ sos exemplos, não reclamamos nenhuma evidência para os casos de autonomia, falamos, antes, da mera não evidência da não autonomia. Pode-se duvidar se temos de fato, seria­ mente, a evidência positiva de que exista um conteúdo relativamente independente de todos os outros com ele ligados, de modo que ele, identicamente conservado como aquilo que é, seja compatível com as variações arbitrárias de todos os conteúdos coexistentes. Sem dúvida, porém, supusemos a dependência, para a falta de independência evidente­ mente notada; o sentido da separação reside exclusivamente no pensamento: na natureza do próprio conteúdo não se funda nenhuma dependência de outros conteúdos, seja ele o que for, indiferente em relação a todos os outros.1

37 A: rsua natureza1.

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restá ligado“138 a um outro conteúdo, ele não pode existir se, ao mesmo tempo, não existirem com ele outros conteúdos. O fato de eles estarem em unidade com <240> ele não necessita, com isso, ser salientado. Pois há uma coexistência ressencial“1sem uma ligação ou “fusão” ainda que frouxa? Por conseguinte, con­ teúdos dependentes podem apenas ser partes de conteúdo. Precisamos apenas dizer, em vez de conteúdo e parte de conteúdo, objeto e parte de objeto (na medida em que vemos o termo conteúdo como o mais restrito, limitado à esfera rfenomenológica139), e obteremos uma distinção obje­ tiva, que está livre de toda a relação, por um lado, com os atos apreendedores, e, por outro, com quaisquer conteúdos que devam ser rfenomenologicamente^383940 apreendidos. Não é, por conseguinte, necessária nenhuma relação retrospectiva rcom a consciência, por exemplo, com a distinção no “modo do representar^ ,41 para determinar aqui a distinção em questão do “abstrato” e do “concreto”. To­ das as determinações que se servem de tal relação são ou incorretas (através da confusão com outros conceitos de abstrato), ou mal compreendidas, ou não são senão expressões subjetivamente empregadas da situação puramente objetiva re ideal“1, tal como tais locuções são também naturais e utilizáveis.

já foi rexpostoi42 acima) tanto objetos de representações para si dirigidos quan­ to conteúdos independentes, por exemplo, janela, cabeça etc. De outro modo, de forma alguma poderíamos falar deles. Atender por si e representar por si (no sentido que acabamos de pressupor) não se excluem de modo algum mutuamente, mas nós os encontramos antes em conjunto; na “apreensão” perceptiva, o que é atendido por si é, ao mesmo tempo, eo ipso, representado; e, de novo, o conteúdo completo representado por si, por exemplo, cabeça, é também aten­ dido por si. Na verdade, na representação, o por si visa a algo de completamente di­ ferente daquilo que acabamos de admitir. Remete já para tal, claramente, a ex­ pressão equivalente representar separado. É claramente visada a possibilidade de representar o objeto como qualquer coisa de existente por si, de autônomo, na sua existência em face de todos os outros. Uma coisa, ou um pedaço de uma coi­ sa, pode ser representada por si, quer dizer, é aquilo que é, mesmo que tudo fora de si seja aniquilado; se o representarmos, não seremos, por conseguinte, neces­ sariamente remetidos para um outro, no qual, junto ao qual ou em enlace com o qual ele seria, um outro graças ao qual, por assim dizer, ele existiria; podemos nos representar que ele existisse somente por si e que fora dele nada existisse. Se o representarmos intuitivamente, pode, todavia, ser dada concomitantemente uma conexão, um todo que o abranja, até mesmo ser dado concomitantemente de forma inevitável. Não podemos representar o conteúdo visual cabeça sem um pano de fundo visual, do qual ele se destaca. Este não poder é, porém, totalmen­ te diferente daquele que deve definir o conteúdo dependente. Caso façamos va­ ler como independente o conteúdo rvisual“1cabeça, então seremos da opinião de que ele, apesar do plano de fundo dado concomitantemente de forma inevitável, pode ser representado como existindo por si e, de forma correspondente, ser também intuído isoladamente por si; simplesmente, não o levamos a cabo gra­ ças à força de associações originárias ou adquiridas, ou <242> graças a outras conexões de tipo puramente factual. A possibilidade “lógica” permanece, com isso, inabalável, mesmo que o nosso campo de visão Apossa”“1,43 por exemplo, encolher para este único conteúdo etc. O que a palavra representar exprime aqui é designado de forma mais pregnante como pensar. Não podemos pensar uma nota característica, uma for­ ma de enlace e coisas semelhantes, como existindo em e por si mesmas, como separadas de todas as outras, portanto, como existindo exclusivamente; só po­ demos pensar tal coisa com o auxílio de conteúdos de tipo coisal. Sempre que a palavra pensar surge neste sentido peculiar, tem de se constatar aí uma viragem qualquer subjetiva r e, na verdade, a prior í,1 da situação objetiva, à qual já se

§ 6. Continuação. Enlace com a crítica de uma definição em voga Ouve-se, por vezes, exprimir do seguinte modo a distinção entre conteú­ dos independentes e dependentes por meio da fórmula atraente: os conteúdos independentes (ou partes de conteúdos) poderiam ser representados por si, os dependentes poderiam apenas ser notados por si, mas não representados por si. Contra esta fórmula, porém, deve-se objetar que o por si, na expressão diferenciadora: notado por si - representado por si, desempenha um papel muito diferente. Notado por si é o que é objeto de um notar propriamente dirigido para isso (de um atender que aponta para ele); representado por si é o que é objeto de um representar propriamente dirigido para isso, pelo menos <241 > se o por si deve ter aqui a função análoga à que tem ali. A partir desse pressupos­ to, contudo, não se pode manter a oposição entre o que é apenas atendido por si e aquilo que pode ser representado por si. Deve-se excluir, por exemplo, na mesma classe de casos, o atender distintivo e o representar? Mas os momentos dependentes, como as notas características ou as formas de relação, são (como

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Em A e B: rnão está ligado1. Corrigido na 3§ edição. Cf., também, o exemplar pessoal de Husserl, p. 239 (= aqui, p. 845). A 4§ edição corresponde nova mente ao texto de A e de B. 39 A: rpsíquica1. 40 A: psiquicamente1. 41 A: rao modo de representar.

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42 A: mota d o1. 43 Em A faltam as aspas.

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aludiu acima. Diferenças como esta, o fato de um objeto (escolhemos agora, de novo, o termo mais universal, que capta concomitantemente o conteúdo intui­ tivo suscetível de ser vivido) poder ser em e por si, enquanto um outro só pode ser em ou junto de um outro, não dizem respeito a rfaticidades do nosso pensar subjetivo-1,44 São diferenças que dizem respeito à própria coisar, que estão fun­ dadas na pura essência da coisa"1, mas que, porque existem e nós sabemos delas, nos determinam e nos levam à seguinte asserção: é impossível um pensar que se afaste delas, ou seja, um juízo que delas se afaste é um juízo invertido. Aquilo que não podemos pensar não pode existir, o que não pode existir não podemos pensar: esta equivalência determina a diferença entre o conceito pregnante de pensar e o representar e pensar em sentido habitual e subjetivo.

rreside nela-151 o fato de ela se encontrar numa conexão legal. O que52 proíbe o ser-outro é precisamente a lei, ou seja, ela não é meramente assim aqui e agora, mas, sim, em geral, numa legalidade universal, rAgora, porém, deve-se prestar atenção a que, assim como a necessidade de que aqui se fala, na nossa discussão dos momentos “dependentes”, tem a significação de uma necessidade ideal ou a priori, que se funda na essência material, a legalidade também tem, correla­ tivamente, a significação de uma legalidade essencial, por conseguinte, de uma legalidade não empírica, incondiconalmente universal. Nenhuma relação com a existência empírica deve restringir o âmbito do conceito de lei, nenhuma posi­ ção empírica da existência deve estar implicada na consciência da lei, tal como acontece nas regras e leis empiricamente universais. “Leis naturais”, leis no sen­ tido das ciências empíricas, não são leis essenciais (leis ideais, leis a priori); a necessidade empírica não é nenhuma necessidade essencial1.53 <244> O não-poder-existir-por-si de uma parte dependente significa, por conseguinte, que existe uma dei essencial 54segundo a qual, em geral, a exis­ tência de um conteúdo do tipo rpuro^ desta parte (por exemplo, o tipo cor, forma etc.) pressupõe a existência de certos tipos rpuros1 correspondentes, nomeada­ mente (para o caso de este aditamento ser ainda necessário), de conteúdos aos quais convém como parte, ou como qualquer coisa que lhe adere ou se enlaça consigo. Poderíamos dizer, de modo mais simples: objetos dependentes são ob­ jetos de tais tipos rpuros1, em relação aos quais existe a dei essenciab 55 segundo a qual, se eles existem, só existem como partes de um todo mais abrangente de um certo tipo rcorrespondente^. É precisamente isto a que visa a expressão mais concisa segundo a qual são partes que só existem como partes, que não podem ser pensadas como qualquer coisa existente por si mesma. A coloração deste papel é um momento dependente dele; ela não é apenas faticamente uma parte, mas, de acordo com a rsua essência1, o seu tipo rpuro1, está predestinada a ser parte; pois uma coloração em geral re puramente enquanto tal1 só pode existir como momento em algo colorido. Em objetos independentes falta uma tal rlei essencial1,56 eles podem ser incorporados em todos mais abrangentes, mas não é necessário que o sejam. A clarificação daquilo que tem de ser visado com o representar por si na formulação criticada na distinção que estamos determinando forneceu-nos, deste modo, a essência desta distinção com toda a nitidez. A distinção rsalienta-

§ 7. Cunhagem mais rigorosa da nossa definição por meio da introdução rdos conceitos de lei pura e de gênero puro~\454 6 Onde, por conseguinte, em conexão com o termo pregnante pensar, sur­ ge a pequena palavra poder, o que é visado não é a necessidade subjetiva, quer dizer, a incapacidade subjetiva do não-poder-representar-de-outro-modo, mas, sim, a necessidade robjetiva-ideah46 <243> do não-poder-ser-de-outro-modo.47 Esta vem rà doação, de acordo com a sua essência, na consciência da evidência apodíticài . 4 8 49 Se nos detivermos nas asserções desta consciência, teremos de re­ gistrar que rà essência de tal necessidade objetiva pertence, correlativamente, uma pura legalidade determinada em cada caso. Em primeiro lugar, vale, cla­ ramente, de forma totalmente geral, o fato de que a necessidade objetiva tem o mesmo valor que o ser com base na legalidade objetiva1.49 Uma singularidade singular50 “por si” é r, de acordo com o seu ser,1 contingente. Se ela é necessária,

44 45 46 47

A: rao nosso pensar subjetivo1. A: rdo pensamento de lei1. A: robjetiva1. N.A.: rA viragem ontológica, que se inicia com esta proposição e que é decisiva para o conteúdo da investigação posterior, a viragem do pensamento da evidência e sua trans­ formação em pensamento de uma pura legalidade da essência, foi já realizada com todo o rigor no meu Bericht über Deutsche Schriften zur Logik (Relatório sobre Escritos Alemães Relativos à Lógica), do ano de 1894. In: Archiv fü r sy st Philos., III, p. 225, nota l . 1 48 A: raté nós, subjetivamente (embora apenas de modo excepcional), à consciência na evi­ dência apodítica1. 49 A: ra essência de cada necessidade objetiva reside e encontra a sua definição numa lega­ lidade determinada de cada vez. Em outras palavras: a necessidade objetiva em geral não significa senão legalidade objetiva, a saber, ser com base na legalidade objetiva1. 50 N.T.: Eine singuläre Einzelheit.

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A: rtal significa1. Em A segue-se: misso1. Acréscimo de B. Em A não se segue nenhum novo parágrafo. A: le i1. A: le i1. A: le i1.

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se"i ,57 com isso, como uma distinção objetiva, fundada rna pura essência“!58 dos próprios objetos correspondentes (ou conteúdos parciais). Perguntar-se-á agora o que acontece com o resto daquela formulação, por conseguinte, o que é acres­ centado à definição com a asserção: objetos ou momentos dependentes “só” po­ dem ser notados por si, ou distinguidos dos que estão ligados a eles, por meio de uma atenção exclusiva [mas não representados por si]. Aqui, não podemos responder senão dizendo: absolutamente nada. Pois se o “só” se refere exclusi­ vamente àquele “representar por si”, então justamente com a oposição exclusiva <245> a ele é realizado tudo o que há a realizar. Visto com exatidão, certamente que a definição positiva se encontra do lado do dependente e a negativa do lado do independente; na medida em que indicamos o primeiro como não representável por si, retrocedemos, em dupla negação, ao autêntico ponto de partida.59 Mas, seja como for, não necessitamos do recurso à atenção acenturadora, nem se deve pôr de lado aquilo para que ela nos pode servir. Certamente que uma cabeça pode ser representada separada do homem que a tem. Uma cor, uma forma e coisas semelhantes não são representáveis deste modo: elas necessitam de um substrato no qual podem ser notadas de forma exclusiva, mas do qual não podem ser desligadas. Mas também a cabeça, rpor exemplo, em sentido visual“1,60 “só” pode ser “representada por si”, pois é inevitavelmente rfiada como parte integrante de um campo visual total1;61 e, quando não a captamos como parte integrante, quando “abstraímos” do plano-de-fundo, como de qualquer coisa de estranho e de indiferente quanto ao assunto, tal não tem nada em co­ mum com a particularidade do conteúdo, mas, sim, com as circunstâncias da apreensão da coisa.

ficado, como independentes e dependentes. Uma diferença ínfima de um gêne­ ro puro supremo pode, por exemplo, chamar-se relativamente independente, por referência à sequência de níveis das espécies puras até ao gênero supremo e com isto, cada espécie ínfima ser, de novo, chamada relativamente indepen­ dente perante as superiores. Espécies, cujas singularidades individuais corres­ pondentes não podem existir a priori, sem que, ao mesmo tempo, tivessem de pertencer à extensão individual, mas puramente pensada, de outras espécies, seriam dependentes relativamente a essas espécies, e, assim, mutatis mutandis, noutras esferas de exemplos.“1

r§ 7a. Ideias independentes e dependentes As nossas distinções relacionam-se, em primeiro lugar, com o ser das sin­ gularidades individuais, pensado em “universalidade ideal”, quer dizer, singu­ laridades que foram tomadas como singularidades de ideias. Todavia, aquelas distinções transportam-se, evidentemente, para as próprias ideias, que, por con­ seguinte, podem ser indicadas num sentido correspondente, se bem que modi­ 57 A: salientou-se1. 58 A: Tiatureza1. 59 N.T.: Esta afirmação faz sentido se tivermos em conta que, em Alemão, independente se diz selbständig, sem prefixo negativo, e que dependente se diz unselbständig, com prefixo negativo. A ideia positiva é a da independência {Selbständigkeit), que será também a dupla negação da dependência (algo como uma “Nicht-Unselbständigkeif'). 60 A: rcomo conteúdo visual1. 61 A: rparte integrante de um campo visual total1.

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<246> § 8. Separação da diferença entre conteúdos independentes e dependentes em relação à rdistinção162 entre conteúdos que, intuitivamente, se destacam e se fundem rTemos“163ainda de estar prevenidos contra uma objeção. Insistir-se-á talvez que, no modo como um conteúdo independente, valendo por si e separando-se de todos os outros ao seu redor, consegue a unidade, e no modo como, por outro lado, um conteúdo dependente é caracterizado como algo de dado apenas com base em outros conteúdos independentes, tem lugar uma distinção fenomenológica,64 para a qual não foi dada justificação suficiente pela nossa reflexão. Aqui pode ser considerada, então, em primeiro lugar, a seguinte situa­ ção descritiva. 65Os momentos dependentes das intuições não são meras partes, mas, de certo modo (não mediados conceitualmente), também temos de captálos como partes; i“a saber“1, eles não são passíveis de serem notados por si sem rque os conteúdos totais concretos, nos quais existem, venham a receber um destaque unitário; o que, certamente, não quer dizer que se tornariam objetivos em sentido expressivo1. Não podemos notar por si uma figura ou uma cor, sem

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A: rdistinção fenomenológica1. A: rEu tenho1. Em A segue-se: ruma diferença imediatamente sensíveh. Daqui até o fim do antepenúltimo período deste parágrafo corresponde em A: Os momen­ tos dependentes das intuições não são meramente partes, mas, de certo modo (ra saber, como não mediados conceitualmente), teríamos também de captá-los como partes; não são possíveis de ser notados por si sem ra ocorrência de um notar de certos outros conteúdos, nos quais são ou com os quais são unidos1. Não podemos notar por si uma figura ou uma cor sem, rem primeiro lugar, rter notado1 a totalidade do objeto que tem esta figura ou esta cor. Por vezes, parece, na verdade, oferecer-se nmediatamente1 uma cor ou forma "que se faz notar"; todavia, a presentificação da ocorrência torna rprováveh que também aqui, em primeiro lugar, a totalidade do objeto rseja o que nos ocorre1, mas, justamente graças àquela particularidade rpara a qual o interesse extravasa sem se deter e exclusivamente1.

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rque1 todo o objeto, que tem esta figura ou esta cor, rseja salientado"1. Ao mes­ mo tempo, parece, de fato, que rsimplesmente1 se oferece uma cor ou uma for­ ma “que sobressai”; todavia, a presentificação da ocorrência torna fclaro“1 que é também aqui a totalidade do objeto que rse destaca fenomenicamente“1, mas precisamente graças àquela particularidade rque sobressai para nós e que, so­ mente, é objetiva em sentido próprio1. Comporta-se de forma semelhante o pôr em evidência de um <247> momento sensível unitário - por exemplo, do mo­ mento de configuração espacial, o qual, ao lado de outros momentos unitários, funda o fechamento íntimo das quantidades sensíveis que se impõem como unidade - 6667para a captação do próprio todo sensível-unitário. Neste modo, por conseguinte, o rdestacar-se167 de um conteúdo é, por vezes, o fundamento para o notar de um outro que lhe pertence intimamente.68 Se investigarmos os fundamentos mais profundos dessa situação, aten­ taremos para o fato de que, com a diferença mencionada até aqui entre os con­ teúdos independentes e dependentes no râmbito1 fenomenológico, rnomeadamente, no âmbito das doações intuitivas enquanto tais1,6970se cruza uma segunda diferença, misturada com a primeira: a saber, a diferença do intuitivamente “se­ parado”, que se “distingue” ou “isola” dos conteúdos que se ligam, e dos conte­ údos ligados e fundidos, que neles transbordam sem separação. As expressões têm, certamente, vários significados, mas já a sua reunião tornará claro que se trata, de fato, de uma nova diferença essencial. Por conseguinte, um conteúdo está intuitivamente separado relativamen­ te a conteúdos coexistentes, nos quais não transborda “sem diferença”, de forma que consegue proporcionar para si um valor próprio ao lado deles e fchegar1 por si rà distinção17° O conteúdo intuitivamente não separado forma um todo com outros conteúdos coexistentes, no qual não se separa deste modo. Ele não está apenas ligado aos seus companheiros, mas também “fundido” com eles. Pensemos em conteúdos independentes no sentido anterior, que são aquilo que são, seja o que for que acontece com o seu entorno; eles não necessitam, para isso, da independência (que é de um tipo completamente diferente) da <248> separação. As partes de uma superfície intuitiva de um branco uniforme ou matizando-se continuamente são independentes, mas não separadas.

Se perguntarmos o que pertence à separação intuitiva, a imagem do trans­ bordar ou do fluir de um para o outro conduz, em primeiro lugar, aos casos em que os conteúdos se matizam continuamente. Isto vale, sobretudo, para o do­ mínio dos elementos sensíveis concretos (mais precisamente: para os conteúdos independentes na esfera da sensibilidade externa). A separação repousa, aqui, muitas vezes, na descontinuidade. Podemos exprimir a rproposição1:71 Dois elementos concretos sensíveis simultâneos constituem, necessariamen­ te, uma “unidade indiferenciada”, se todos os momentos constitutivos imediatos de um transitam “continuamente” para os momentos constitutivos correspondentes do outro. O caso da igualdade de quaisquer momentos correspondentes deve, com isto, valer como caso limite admissível da continuidade, nomeadamente, como contínua “transição para si mesmo”. Isso pode ser transposto, em forma facilmente compreensível, para um grande número de elementos concretos: nele, cada concreto singular perma­ nece não separado quando os elementos concretos da soma se deixam ordenar numa série, de tal modo que, passo a passo, continuamente, se deixam incluir uns nos outros, quer dizer, de tal modo que, para o par adjacente, vale aquilo que acabamos de indicar. Mas um elemento singular permanece já não separado de todos os outros quando não se destaca de um entre eles.

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N.A.: Cf. a minha Philosophie der Arithmetik (Filosofia da Aritmética), I (1891), cap. XI, p. 228 (uma "alameda" de árvores, um "bando" de pássaros, um "comboio" de formigas etc.). A: rnotar. N.A.: A partir dos meus Psychologischen Studien zur Elementaren Logik (Estudos Psicológi­ cos sobre a Lógica Elementar). Philos. Monatshefte, 1894, XXX, p. 162. A: rmas também apenas no âmbito fenomenológico1. A: rtornar-se notado1.

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§ 9. Continuação. Indicação da esfera mais ampla do fenômeno de fusão Sem dúvida que estas proposições oferecem, rem certo sentido1,72expressões idealizadas dos fatos. A continuidade e a descontinuidade não devem ser tomadas, naturalmente, com exatidão matemática. Os lugares de descontinuidade não são limites matemáticos e a separação não tem de ser r£Cdemasiado pequena”1,73 <249> Algo de mais refinado consistiria em distinguir entre separação ou limitação nítida e desvanecente e, na verdade, no sentido empiricamente vago em que falamos, por exemplo, na vida corrente, de cumes afiados e de cantos muito agudos em contraposição a cumes e cantos delgados ou mesmo arredon­ dados. rÉ claro que as configurações essenciais de todas as doações intuitivas enquanto tais não devem ser reduzidas, por razões de princípio, a conceitos “exatos” ou “ideais”, como são os conceitos matemáticos. A figura espacial da árvore percebida enquanto tal, precisamente como tomada tal como pode ser encontrada, como momento, na percepção correspondente ao seu objeto inten­ cional, não é uma configuração espacial, algo de “ideal” ou de “exato”, no sentido 71 A: rproposição (fortemente idealizada)1. 72 A: rapenas1. 73 Em A faltam as aspas.

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da Geometria exata. Da mesma forma, a cor que se pode intuir enquanto tal não é uma cor ideal, cuja espécie é um ponto ideal no “corpo colorido” As essências captadas nas doações intuitivas por meio de uma ideação direta são essências “inexatas”, e não devem ser confundidas com as essências “exatas”, que são ideias em sentido kantiano e que (como pontos “ideais”, superfícies ideais, figura espa­ cial ou espécie colorida “ideal” no corpo colorido “ideal”) surgem por meio de uma “idealização” peculiar. Os conceitos descritivos de toda a descrição pura, quer dizer, imediata e verdadeiramente adaptada à intuição, por conseguinte, também, os conceitos descritivos de toda a descrição fenomenológica, são con­ sequentemente diferentes, por princípio, dos que determinam as ciências objeti­ vas. Clarificar estas situações é i747568901234uma tarefa fenomenológica que rainda não foi seriamente'175 atacada e que, relativamente à distinção atual, não está resolvida. É também certo que essa separação por meio da descontinuidade, ou a fusão por meio da continuidade, abrange apenas um âmbito muito limitado. Recordo as valiosas investigações de Stumpf acerca dos fatos espantosos da fusão,76 em cuja esfera nos movemos aqui claramente. Certamente que os casos salientados por nós desempenham, no círculo dos fenômenos de fusão, um papel próprio. Se tivermos em vista mais detidamente estes casos, seremos, com eles, reconduzidos dos casos concretos, dos “todos sensíveis” independen­ tes, para os seus <250> momentos imediatos dependentes, a saber, para as es­ pécies que, em primeiro lugar, lhes pertencem. A descontinuidade enquanto tal refere-se às diferenças específicas ínfimas no interior de um e do mesmo rgênero puro-177 proximamente subordinado, por conseguinte, por exemplo, a qualidades de cor, em comparação com qualidades de cor. Mas não definimos a descontinuidade, por exemplo, como a mera distância entre conteúdos coe­ xistentes de tais diferenças íntimas. Sons simultâneos têm uma distância, mas falta a descontinuidade em sentido pleno. Esta se refere a momentos específicos diferenciadores apenas na medida em que estes estão “estendidos deforma ad­ jacente” sobre um momento que varia constantemente, a saber,78 o espacial ou

temporal. “Num” limite espacial ou temporal, a qualidade visual, por exemplo, transita para outra. Numa transição contínua de parte do espaço para parte do espaço, não progredimos apenas simultaneamente, também de forma contínua, na qualidade que o cobre, mas, ao menos num lugar do espaço, as qualidades “adjacentes” têm uma distância finita (e não demasiado pequena). E o mesmo acontece numa descontinuidade na sucessão fenomênica. Com isso, porém, não é meramente a qualidade que se separa, por exemplo, a cor da cor, mas são antes todos os elementos concretos que se delimitam uns aos outros, o campo de visão separa-se em partes. A distância entre as cores nesta conexão de cobertura (em relação à qual, somente, se fala de descontinuidade) conquista, precisamente ao mesmo tempo, os momentos ligados concomitantemente, no nosso exemplo, as partes recobertas do espaço, a separação. De outro modo, estas partes não po­ deriam, em geral, se desligar da fusão. A espacialidade varia, necessariamente, de forma contínua. Um pedaço desta variação, notado por si mesmo re, de ime­ diato, já destacado à medida da consciência,791 só pode aparecer quando uma descontinuidade é criada por meio dos momentos que se recobrem e, com isso, separa-se todo o elemento concreto correspondente. <251> Compreendemos"180 aqui por ^espacialidade”, em primeiro lugar, por exemplo, o momento da sensação^ ,81 cuja apercepção objetiva constitui so­ mente a espacialidade aparecente e autêntica. rPor outro lado, também podemos compreender aqui por espacialidade o “espacial”, com base na intuição ocasio­ nal apreensível na coisa que aparece enquanto tal; por conseguinte, o espacial compreendido como aquele momento intencional no qual se anuncia, preci­ samente de forma intuitiva, a figura espacial objetiva da “própria coisa” física, determinável numa medida objetiva, e que se anuncia em diferentes intuições, de modos diferentes. Se, então, o elemento concreto da intuição sensível deve a sua separação à distância dos momentos adjacentes, e, no entanto, o rdestacar-se182 da totalida­ de do concreto é o que acontece primeiro em face (do83) dos momentos do seu conteúdo que distam uns dos outros. Isto depende, certamente, da fusão par­ ticularmente íntima dos diferentes rmomentos184 do concreto, a saber, da sua “penetração” recíproca, que se manifesta na dependência mútua na modificação e na aniquilação. Esta fusão não é um confundir-se um no outro sob o modo da

74 A: rOs primeiros encontram-se ainda na linha dos conceitos ideais geométricos, os últimos, ao contrário, não se deixam de forma alguma idealizar em conceitos ideais geométricos. Mas, indiretamente, podem ser totalmente caracterizados de maneira mais detida por meio de conceitos exatos. Caracterizar, tão claramente quanto possível, as configurações vagas da intuição por meio de conceitos exatos é, em geral,1. 75 A: restá ainda longe de1. 76 N.A.: Stumpf define, como é sabido, a fusão, em primeiro lugar, em sentido estrito, como uma relação de qualidades sensíveis simultâneas, graças ao que aparecem como partes de um todo sensível. Mas não deixa de apontar para os conceitos mais amplos, que dão aqui, para nós, a medida. Cf. Tonpsychologie (Piscologia dos Sons), II, § 17, p. 64 e segs. 77 A: rgênero (em sentido aristotélico)1. 78 Em A segue-se: rsobren.

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79 N.A.: Cf. Investigação II, p. <220>, onde, figuradamente, falamos de um mero "ser acentu­ ado" de momentos dependentes na consciência da abstração ideadora, em face dos casos em que eles próprios são objetos intencionados, atendidos. 80 A: rÉ evidente que nós compreendemos1. 81 A: respacialidade o momento da sensação1. 82 A: ro notar-se por si de um ponto de vista fenomenológico1. 83 Em A segue-se: rnotar-se por si1. 84 A: lados1.

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continuidade, ou num outro modo que suprime a separação; mas é sempre um tipo particular de íntima compertença, que de um golpe re necessariamente"1 se destaca, o complexo total dos momentos que se interpenetram, tal como apenas um momento cria a condição prévia para tal por meio da descontinuidade. Uma análise profunda e mais penetrante poderia ainda comprovar aqui uma quantidade de diferenças descritivas interessantes; para os nossos objeti­ vos, porém, são suficientes estas exposições bastante grosseiras. Fomos suficien­ temente longe para ver que, com a diferença nelas abordada, entre conteúdos que se destacam e conteúdos que não se destacam (ou, se se quiser rassim cha­ mar"! , entre conteúdos representáveis e não representáveis por si, independentes e dependentes: pois também estas expressões se impõem aqui), nos <252> mo­ vemos na esfera das ântuitividades “subjetivas”"185 vagas, ro que tem também, justamente, as suas espantosas peculiaridades essenciais;1 e que nós, por conse­ guinte, com esta diferença, de forma alguma alcançamos a diferença rontológica universal 86 entre os conteúdos abstratos e concretos; ou, como acima lhe prefe­ rimos chamar, os rconteúdos1 independentes e dependentes. No primeiro caso, na distinção entre conteúdos que se separam unitariamente e conteúdos que se desvanecem no plano-de-fundo, trata-se de rfatos187 da análise e da fusão, nos quais os conteúdos que chegam à separação tanto podem ser independentes como dependentes. Por conseguinte, não devemos confundir as duas distin­ ções, como se faz, por exemplo, quando se põe num único nível a dependência das partes não separadas de uma superfície uniformemente colorida, com a de­ pendência dos momentos abstratos, que é totalmente diferente do ponto de vista descritivo; ou quando se quer fundar a essência da diferença ^ontológica1 entre concreto e abstrato por meio dos rfatos fenomenológicos que pertencem à esfera de ato1,85867889pelo fato de o ato de representar um elemento concreto ser mais ime­ diato e, nesta medida, ser independente, como se não necessitasse ter por base nenhum outro representar; mas de o ato de representar um conteúdo abstrato ser mais mediato e dependente, na medida em que o representar um elemento concreto a ele pertencente teria de constituir a base. rDa nossa análise resulta, contudo, que aquilo que é sólido nesta situação descritiva189 está ainda em cone­ xão com muitas outras coisas e, em todo o caso, é inapropriado para lançar luz sobre a essência da diferença «"ontológica1.90

<253> § 10. A multiplicidade das leis pertencentes aos diversos tipos de depen­ dência

85 86 87 88 89 90

A: A: A: A: A: A:

rvivências subjetivas1. rfundamental objetiva1. rmeros fatos1. rfatos subjetivos1. t> rMas nós reconhecemos que esta situação descritiva1. objetiva1.

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À não autonomia pertence, de acordo com as considerações feitas até ago­ ra, uma lei rapriorística1, que tem a sua base conceituai no universal das partes e dos todos correspondentes. Esta lei, porém, pode ser captada e expressa com uma maior ou menor determinação. Para a fixação do conceito de dependência basta dizer já que ele pode ser um objeto dependente como aquele que só é (ou seja, graças às suas rdeterminações essenciais191) num todo abrangente. No en­ tanto, conforme o caso, ele poderá ser de um tipo ou de outro e, com isso, modi­ fica-se também o tipo de complemento de que ele necessita para poder subsistir. Digamos, então, a título de exemplo: o momento da rqualidade sensível, por exemplo, o momento da cor sensível1,92 é dependente, exige um todo no qual possa ganhar corpo; então, a legalidade que aqui domina é determinada apenas por um lado, pelo lado da parte cujo caráter universal é indicado como rquali­ dade sensível1,93Ao invés disso, permanece indeterminado o tipo de todo de que ele necessita para existir. As coisas dão-se de modo totalmente diverso, quando dizemos: 94uma rqualidade sensível1 só pode existir num rccampo sensível”, ou melhor, uma cor sensível só pode existir no campo sensível visual, ou ela só pode existir como “qualificação” de uma “extensão”1. Aqui, a legalidade está também determinada segundo o routro lado1; o conceito do rcampo sensível visual1 é um conceito dado e indica, rentre os possíveis tipos de todos, um tipo particular e determinado. Da mesma forma, o conceito de “qualificação” e o de “exten­ são” indicam1 possibilidades rparticulares1 entre as diferentes possibilidades, tal como um elemento dependente é <254> legalmente inerente a um todo. rA particularidade é universalmente determinada pela essência da qualidade sensí91 92 93 94

A: rdeterminações gerais1. A: rqualidade1. A: rqualidade1. Daqui até "... resposta ulterior" corresponde em A: uma rqualidade1 só pode rse encontrar num objeto que a traz em si sob o modo de um momento interno, ou melhor, de uma nota característica interna1. Aqui, a legalidade está também determinada rpelo outro lado1; o conceito de rnota característica interna1 é um conceito dado e indica rapenas uma1 entre as diferentes possibilidades, tal como um elemento dependente é legalmente inerente a um todo. rO fato de a qualidade ter o seu modo específico determinado, tal como é uma nota característica interna na medida em que a determinação universal de ser uma nota característica interna se diferencia conforme a qualidade inerente é, ou uma intuição, ou uma coisa semelhante; isto torna a formulação da lei sobretudo uma formulação que não está absolutamente determinada; mas ela alcança tão longe quanto é em geral necessário e possível.1 Pois à pergunta sobre o que diferencia a determinação de ser uma Tnota carac­ terística interna1, da determinação de ser sob o modo da rqualidade de nota característica interna1, não se consegue dar nenhuma resposta ulterior.

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vel, ou pela essência da extensão, mas cada uma delas está contida, a seu modo, na unidade essencial da sensação visual ou do campo visual, que subordinam a si todas estas tais unidades. Este modo não se deixa mais descreverá Pois, rpor exemplo,"1 à questão sobre o que diferencia a determinação de ser rmomento de sensação1, da determinação de ser momento de sensação sob o modo da ^quali­ dade^ , não se consegue dar nenhuma resposta ulterior, não podemos mostrar uma determinação que se apresente e que não inclua o conceito de qualidade: assim como se à pergunta sobre o que se teria de apresentar como cor, para que com isso resultasse a espécie vermelho, só pudéssemos responder vermelho. Em todo caso, o conceito de elemento não autônomo, com a legalidade que o define e que, todavia, apenas o indica indireta e universalmente, refe­ re-se a deis de essência"195 determinadas pelo assunto e que se modificam de múltiplas formas. Não é uma estranheza de certos tipos de partes o fato de, em geral, apenas terem de ser partes enquanto permanece indiferente o que se conglomera com elas e o modo como estão constituídas as conexões nas quais se encaixam; pois existem relações de necessidade firmemente determinadas, por conseguinte, leis rpuras1 determinadas quanto ao conteúdo, que se modifi­ cam com os tipos apuros1 dos conteúdos dependentes e, em correspondência, prescrevem a uns complementos deste tipo, a outros, complementos daquele tipo. As espécies enlaçadas nestas leis, que delimitam as esferas das singularida­ des ocasionais (precisamente do ponto de vista destas leis), são, por vezes, mas não sempre, diferenças específicas ínfimas. Por exemplo, se uma lei prescreve a conexão de conteúdos do tipo cor com os do tipo extensão, ela não prescreve uma cor determinada a uma extensão determinada, e <255> também não, pre­ cisamente, o inverso. Os valores das diferenças ínfimas não se encontram aqui uns com os outros numa relação funcional. A lei nomeia apenas tipos inferio­ res (isto é, tipos que têm imediatamente sob si a multiplicidade das diferenças específicas últimas). Se considerarmos, por outro lado, a dependência da dis­ tância qualitativa às qualidades fundantes, ela é inequivocamente determinada por meio das diferenças específicas ínfimas destas últimas, por conseguinte, de novo, como diferença ínfima. rEm seguida, por conseguinte, o conceito de não autonomia é equivalente196 ao de legalidade rideal1 em conexões unitárias. Se uma parte se encontrar em conexão degalmente ideal197 e não meramente fática, ela é não autônoma; pois ruma tal1 conexão legal não significa, de fato, outra coisa senão que uma parte, moldada rsegundo a sua pura essência1, só poderia subsistir legalmente em enlace com certas outras partes deste ou daquele tipo correspon­

dente. Também onde uma lei fala, em vez de necessidade, de impossibilidade de um enlace, onde diz, por exemplo, a existência de uma parte A exclui a existên­ cia de uma parte B, incompatível com ela, também aí seremos reconduzidos à dependência. Pois um A só pode excluir um B, na medida em que ambos exi­ gem o mesmo em modo exclusivo. Uma cor exclui outra, nomeadamente, no mesmo elemento de superfície que ambas têm de cobrir totalmente, mas que ambas, justamente, não o podem fazer. A cada exclusão degalmente essenciah989 de determinadas delimitações corresponde uma exigência positiva e degalmente essencial-199 de delimitações correspondentes, e vice-versa.

95 A: leis1. 96 A: rNo essencial, cobre-se, por conseguinte, o conceito de não autonomia1. 97 A: iegal1.

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§ 11. A diferença entre estas leis “materiais” e as leis “form ais” ou “analíticas” As necessidades ou as leis, que definem qualquer classe de elementos dependentes, fundam-se, assim o acentuamos várias vezes, na particularidade ressenciab do conteúdo, no seu tipo específico; ou, dito com mais exatidão, elas fundam-se nos rpuros <256> gêneros, tipos, diferençasi ,100 sob os quais, rcomo singularidades ocasionais-1, caem os conteúdos correspondentes dependentes e complementares. rSe pensarmos na totalidade de tais objetos ideais, teremos, com isso, a totalidade das puras “essências”, das “essências”101 de todas as ob­ jetividades (existências) idealiter individuais possíveis. A estas essências cor­ respondem, posteriormente, ou bem “conceitos que respeitam ao conteúdo”, ou bem as proposições, que distinguimos rigorosamente dos “conceitos meramente formais” e das proposições que são livres de qualquer “matéria relativa ao con­ teúdo”. Aos últimos conceitos pertencem os lógico-formais e as categorias onto­ lógico-formais que se encontram em relação essencial com eles, categorias estas das quais se falou no capítulo final dos Prolegomena, além das configurações sintáticas que resultam deles. Conceitos tais como qualquer coisa ou um, objeto, qualidade, relação, enlace, multiplicidade, número, ordem, número ordinal, todo, parte, grandeza etc. têm um caráter fundamentalmente diverso de conceitos como casa, árvore, cor, som, espaço, sensação, sentimento etc., os quais, pelo seu lado, exprimem qualquer coisa relativa à matéria. Enquanto aqueles se agrupam em torno da ideia vazia de qualquer coisa ou de objeto em geral, e estão enlaça­ dos com ela por meio de axiomas ontológico-formais, os últimos ordenam-se em torno de gêneros supremos diferentes, relativos à matéria (categorias materiais), nos quais se enraízam ontologias materiais. Esta separação cardinal entre 98 99 100 101

A: legal1. A: legal1. A: 'tipos ou diferenças (aristotélicos)\ N.T.: Essências traduz Wesen, no primeiro caso, e Essenzen, no segundo.

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as esferas de essência “formais” e “relativas à matéria”, ou materiais, fornece a distinção autêntica entre disciplinas analíticas - a priori e disciplinas sintéticas - a priori, ou entre leis e necessidades; assunto sobre o qual o parágrafo seguinte deverá trazer uma determinação sistemática. Fica, então, imediatamente claro que todas as leis pertencentes a tipos de dependências, ou de necessidades, se ordenam na esfera do sintético a priori, e entende-se perfeitamente o que as separa das meramente formais, como não dizendo respeito à matéria.1102 Leis do tipo da lei da causalidade, que determina a dependência das modificações fcoisais-reais1, ou as leis (por regra, não for­ muladas de modo suficiente) <257> que determinam a dependência de meras qualidades, intensidades, extensões, limites, formas de relação etc., não serão postas no mesmo nível das generalidades rpuramente “analíticas”1103 como: um todo não pode existir sem partes, um rei, um senhor, um pai não podem existir se não houver súditos, servos, filhos etc. Em geral, diz-se aqui que os elemen­ tos correlativos se requisitam mutuamente, não podem ser pensados uns sem os outros, existir uns sem os outros. Se colocarmos ao lado destas proposições qualquer proposição determinada do outro gênero, por exemplo, uma cor não pode existir sem qualquer coisa colorida, ou ruma cor não pode existir sem uma certa extensão que recobre1 etc., a distinção salta aos olhos. Cor não é uma ex­ pressão relativa, cuja significação englobe a representação de uma referência a outra expressão. Apesar de a cor não ser “pensável” sem algo de colorido, todavia, a existência de qualquer coisa colorida, ou de uma extensão, não está fundada “analiticamente” no conceito de cor. A essência da distinção torna clara a seguinte consideração. Uma parte enquanto tal não pode, de forma alguma, existir sem um todo de que é parte. Mas, por outro lado, dizemos (nomeadamente, em relação às par­ tes independentes) que uma parte pode, frequentemente, existir sem um todo de que é parte. Nisso reside, naturalmente, uma contradição. Visa-se ao seguinte: se considerarmos a parte de acordo com o seu conteúdo interno, ra sua essência própria,1 ela pode, no que diz respeito ao próprio conteúdo, existir também sem o todo, no qual é; ela pode existir por si, sem enlace com outras partes e, então, não é, justamente, uma parte. A modificação e a completa supressão dos enlaces não tocam, aqui, o conteúdo rpróprio deste ou daquele tipo1104 de parte e não ro suprimem na existência1,10213405 só as suas relações faltam, o seu rser partes1.106

Com partes de outro tipo, passa-se o inverso: fora de todo o enlace, como não partes, elas são, graças ao tipo peculiar do seu conteúdo, <258> impensáveis. Estas impossibilidades ou possibilidades fundam-se, por conseguinte, nas pecu­ liaridades ressenciais1 dos conteúdos. As coisas se dão de modo completamente diferente com as trivialidades “analíticas”, por exemplo, que uma parte enquanto tal não pode existir sem o todo, de que é parte. Seria uma ^contradição”, ou seja, um absurdo “formal”, “analítico”1 ,m dirigirmo-nos a qualquer coisa como parte, onde falta um todo correspondente. O que está em questão aqui não é de modo algum o conteúdo interno da parte, a legalidade “formal” que aqui subjaz nada tem em comum com o que diz respeitoao conteúdo referido acima e tam­ bém não o pode incomodar. A determinação recíproca dos elementos correlativos indica, certamente, certos momentos que se exigem reciprocamente, a saber, relações e determina­ ções de relação pertencentes necessariamente umas às outras em cada relação. Mas ela o faz apenas em uma rindeterminação formal1,108A legalidade que aqui domina é uma para todas as relações renquanto tais1;109 ela é, precisamente, uma legalidade meramente formal, que rse funda em meras “essências analí­ ticas”, aqui, por conseguinte, na essência da categoria formal “relação”. Em si, ela não toma nada da peculiaridade de conteúdo das relações e dos membros da relação, e nomeia-os apenas como “certos”1,110 Ela diz, por exemplo, no caso simples de dois membros de relação: se um certo a está numa certa relação com um certo (3, então este mesmo (3 está numa certa relação correspondente com aquele a : a e (3 são, assim, variáveis ilimitadas.

102 A: rCom isto, é imediatamente indicada a distinção essencial que separa estas "necessida­ des sintéticas" das "analíticas" (em certo sentido; as "materiais" das "formais").! 103 A: ranalíticas\ 104 A: internos1. 105 A: rsuprime a sua existência1. 106 A: rser-partes1.

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r§ 12. Determinações fundamentais sobre proposições analíticas e sintéticas1111 Podemos dar as seguintes definições em geral: rLeis analíticas são proposições incondicionalmente universais (e, com isso, livres de qualquer posição existencial explícita ou implícita de <259> elementos individuais), que não contêm outros conceitos senão os formais. Por conseguin­ te, quando retrocedemos aos conceitos primitivos, eles não são senão categorias formais. Diante das leis analíticas, encontram-se as suas particularizações, que re­ sultam da introdução de conceitos relativos ao conteúdo e, eventualmente, pensa-

107 108 109 HO

A: rum absurdo1. A: rde forma total mente indireta e indeterminada1. A: rem geral1. A: rem si nada toma da peculiaridade das relações e dos membros da relação, e nomeia-os apenas como "certos"1. U I Em A não se segue nenhum novo parágrafo. Ver nota 1 à página < 261>.

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mentos que posicionam existências individuais (por exemplo, este, o imperador). Como, em geral, as particularizações de leis resultam em necessidades, assim, as particularizações de leis analíticas resultam em necessidades analíticas. Aquilo a que chamamos “proposições analíticas 5 são, regra geral, necessidades analíticas. Se implicarem posições de existência (por exemplo: se esta casa é vermelha, então o vermelho convém a esta casa), então a necessidade analítica refere-se, justamen­ te, àquele conteúdo da proposição graças ao qual ele é a particularização empírica da lei analítica, e não, por conseguinte, à posição empírica de existência.1 112rPodemos definir as proposições necessárias analiticamente1 como sen­ do aquelas que têm uma rverdade1 totalmente independente do modo peculiar rrelativo ao conteúdo1 das suas robjetividades (pensadas em uma universalida­ de determinada ou indeterminada) e da eventual faticidade do caso, do valor da eventual proposição de existência1; por conseguinte, proposições que se deixam captar como r proposição analítica. Pois vale &fórmula analítica segundo a qual a existência de um todo T (a, (3, y...) engloba, rem geral1, a existência das suas partes a , (3, y... Esta lei não implica nenhuma significação que dê expressão a um gênero ou espécie fconforme ao conteúdo1,114 rA posição individual de existência, que implica o desta no exem­ plo dado, é, como se vê, suprimida na passagem para uma lei pura. E esta é uma lei analítica1, constrói-se, puramente, a partir de rcategorias lógico-formais1115 e de formas categoriais. rSe tivermos o conceito de lei analítica e de necessidade analítica, resulta eo ipso o conceito de lei sintética apriori e de necessidade sintética apriori. Cada1 2345

lei pura, que engloba de certo modo conceitos conformes ao conteúdo, que não admite uma formalização destes conceitos salva veritate (em outras palavras, cada uma de tais leis que não é uma necessidade analítica), é uma lei sintética a priori. Particularizações de tais leis são necessidades sintéticas: entre elas, na­ turalmente, também particularizações empíricas, tais como, por exemplo, este vermelho é diferente deste verde1,116 O que foi aqui aduzido podería bastar para tornar evidente a diferença essencial entre as leis que se fundam na natureza específica dos conteúdos, leis com as quais se encontram articulados os elementos dependentes, e as leis ana­ líticas e formais, as quais, fundadas rcomo puras nas “categorias” formais1,117são insensíveis a toda a “matéria do conhecimento”. rNota 1. Comparem-se as determinações aqui fornecidas com as kan­ tianas, que, em nossa opinião, não merecem, de forma alguma, ser chamadas “clássicas”. Ver-se-á que, com as primeiras, um dos mais importantes problemas teórico-científicos chegou a uma solução satisfatória e, ao mesmo tempo, se rea­ lizou um primeiro e decisivo passo para uma separação sistemática da ontologia a priori. Prosseguimentos serão dados em futuras publicações. Nota 2. Vê-se facilmente que os principais entre os conceitos por nós tra­ tados neste parágrafo, todo e parte, independência e dependência, necessidade e lei, experimentam uma essencial <261 > modificação de sentido, quando não são compreendidos no sentido de acontecimentos essenciais, por conseguinte, como conceitos puros, mas, sim, são interpretados como empíricos. Mas, para os objetivos das nossas investigações seguintes, não é necessário discutir estes conceitos empíricos e a sua relação com os que aparecem de forma pura.1118

112 A todo este parágrafo corresponde em A: rAs proposições analíticas1 são aquelas que têm um valor totalmente independente do modo peculiar rdo conteúdo1 dos seus robjetos (e, com isso, também das formas de enlace objetivas)1; por conseguinte, são proposições que se dei­ xam captar Total mente formalizadas1 e como casos especiais ou Tneras1 aplicações das rleis formais ou analíticas1 que rdan resultam. rA formalização consiste no fato de, nas proposi­ ções analíticas pré-dadas, todas as determinações conforme o conteúdo serem substituídas por algo indeterminado e estas, em seguida, serem captadas como variáveis ilimitadas.1 113 Em A sem itálicos. 114 A: rcom conteúdo1. 115 A: categorias1.

116 A: rSobre isto, falaremos mais adiante.1 Em A não se segue nenhum novo parágrafo. 117 A: rnas puras categorias1. 118 Acréscimo de B. Em A segue-se o § 12: r§ 12. Elemento concreto e coisa. Alargamento do conceito de independência e de depen­ dência por meio da transferência para o domínio da sucessão e da causalidade O conceito de elemento concreto como conteúdo autônomo, com o qual pode ser entendi­ do o conteúdo no sentido mais amplo de objeto em geral, não coincide, por exemplo, com o conceito de coisa, tal como, também, os conteúdos dependentes não podem valer, sem mais, como propriedades coisais. Assim, encontramos certa mente, por exemplo, no domínio da sensação, elementos concretos, mas não coisas. À coisalidade pertence mais do que um elemento concreto isolado; pertence-lhe (dito de forma ideal) uma multiplicidade infinita que se sucede temporalmente, de acordo com a possibilidade, no sentido dos conceitos de "modificação" e "persistência" de elementos concretos, de uma e mesma forma, passando permanentemente de uns para os outros, multiplicidade essa que será abarcada (seja em si própria, seja em conjunto com determinadas multiplicidades que lhe pertencem de uma mesma constituição) por meio da unidade da causalidade. Isto significa que, em relação a esta multiplicidade, existe uma legalidade que torna claramente dependentes os elementos concretos, coexistentes para qualquer momento do tempo, dos elementos concretos que

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lhe estão subordinados, no sentido da modificação ou da persistência em relação a um momento anterior do tempo, determinado, mas podendo ser arbitrariamente escolhido Se falarmos tendo em vista cada decurso concreto de modificação ou persistência, de um e o mesmo elemento concreto que se modifica ou permanece, poderemos também dizeras coisas são elementos concretos, abrangidos unitariamente por uma legalidade causal, a saber, elas se encontram submetidas a uma legalidade de acordo com a qual, por meio dos valores do elemento concreto para cada instante (a saber, as determinações que constituem os elementos concretos em dados instantes), os valores dos "mesmos" elementos concre­ tos são determináveis por cada instante posterior, por conseguinte, os últimos valores são apresentáveis por intermédio dos primeiros como funções inequívocas de tempo. Se quisermos caracterizar uma conexão legal deste tipo, que cunha um grupo de elementos concretos numa suma ou num sistema de coisas que se encontram sob uma legalidade causal, de um modo mais formal ou com uma exatidão continuada, temos de tomar, por exemplo, o seguinte ponto de partida: Sejam T J a ^ , pw,...; t), T2 (a(2), p(2),...; t ) ,... T (a ^ , p^,...; t) n elementos concretos quaisquer. Neles, a determinação temporal t deve ter, por toda a par­ te, o mesmo valor e, nas variações imediatamente efetuadas, ela deve se modificar de forma correspondente. Os símbolos oc, p,... terão de indicar tipos de determinação diferentes na generalidade, da mesma forma que os símbolos Tlf T2...T, formas de unidade de elementos concretos, diferentes na generalidade. Todavia, isto não exclui que, nestas relações, exista uniformidade; todavia - se, por exemplo, todos os l x devessem ser de um e o mesmo tipo, por exemplo T, as determinações correspondentes não deveriam, naturalmente, ser idênticas a ponto de resultar uma identidade individual em vez da mera semelhança ou igualdade. <262> Se pensarmos agora como variáveis os símbolos a (1), p(1)... ot(2), p(2)..., então a lega­ lidade causal consiste antes de tudo no fato de não ser possível uma livre variação, mas de os valores dessas variáveis serem determinados inequivocamente para cada momen­ to subsequente do tempo, por meio de um valor arbitrário, mas determinado, de t, por exemplo, tQ, e os valores das variáveis que lhe pertencem, por conseguinte, oc0(1), p0(1)... a 0(2), P0(2)... Mas esta legalidade não diz respeito apenas aos T considerados n vezes, mas, sim, a elementos concretos da forma T em geral, quer dizer, a elementos concretos ocasionais da classe de formas de concreção pertencentes unitariamente à ideia de causalidade. As leis elementares, a partir das quais se constrói a legalidade, são, por isso, de tal tipo que, com base nelas, o comportamento de modificação de cada elemento concreto singular que deve ser afirmado, se ele for considerado sob o pressuposto da sua existência única ou da sua coexistência com outros elementos concretos ocasionais, pode ser determinado inequivocamente. Todavia, deveria ainda, de forma complementar, ser fixado o conceito do sistema causal essencial unitário, a saber, um grupo de coisas abrangido por meio da ação recíproca unitária. Trata-se, com isso, do caso em que uma legalidade especial enlaça, de um modo unitário, as coisas em conjunto do grupo considerado, de modo tal que, por exemplo, mesmo com o desaparecimento de uma coisa teria de se modificar, de imediato, a série de modificações de todas as outras, e que, em geral, seria impossível uma decom­ posição de todo o grupo em muitos grupos indiferentes uns em relação aos outros (por conseguinte, em grupos com séries de modificações meramente coexistentes do ponto de vista temporal, mas relativamente independentes entre si). Na causalidade, os elementos concretos de um instante, seja para si mesmos, seja em li­ gação com outros elementos concretos coexistentes, elementos dos quais dependem ins­ tantes anteriores, são, por conseguinte, em certo sentido, dependentes. Deve-se, porém, observar que o conceito de independência foi apenas definido por nós até aqui como in-

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<263> § 13. Independência e dependência relativas Até agora, a independência foi considerada por nós como um absolu­ to, como uma certa não pendência de todos os conteúdos concomitantes; de­ pendência, como o oposto contraditório, como pendência correspondente pelo menos de um conteúdo. Mas é importante definir os conceitos também como relativos, de tal modo que, então, a distinção absoluta se caracteriza como caso limite da relativa. O estímulo para tanto encontra-se na própria coisa. No in­ terior da esfera das rmeras doações de sensação (por conseguinte, agora, não das coisas que nelas se apresentam, se mostram, enquanto tais) vale“1119para nós como autônomo o momento do respaçamento visual120“1121, com todas as suas par­ tes. No entanto, no interior do ^espaçamento1122 considerado in abstrato, cada um dos seus pedaços vale como relativamente independente; cada um dos seus momentos, por exemplo, a forma, que deve ser distinguido de r“situação” ou grandeza”1192023*“1, vale como relativamente dependente. Por conseguinte, um discurso

dependência na coexistência. Certa mente que, com isso, também se falou de modificação; mas isso, apenas, num sentido semelhante ao da Geometria, onde as conexões funcionais na coexistência são postas claramente por meio da ponderação ideal das variações conco­ mitantes, não sendo, contudo, visadas, com isso, quaisquer dependências causais. Na modi­ ficação geométrica trata-se, meramente, de uma substituição variável de valores singulares determinados na lei, e de um prosseguimento pensante das séries de valores codeterminantes. E assim também, de forma semelhante, no nosso caso. Entretanto, o conceito de conteúdos independentes e dependentes pode ser facilmente universalizado, de tal modo que seria de distinguir entre o caso da coexistência e o da sucessão. Para tanto, precisamos meramente alargar convenientemente o conceito de todo (e os conceitos que analiticamen­ te lhe pertencem), de tal modo que se possa falar não apenas de todos (unidades, enlaces) de coexistência, mas, sim, também, de todos de sucessão. Os nossos conceitos são, então, sem mais, transportáveis para as coisas, com o que se deve apenas atender ao conteúdo peculiar, a saber, o que aceita o discurso sobre existência e coexistência nas coisas. A inde­ pendência é direta mente expressa e, na verdade, como independência em sentido absolu­ to, na definição de substância por Descartes: "res quae ita existit, ut nulla alia re indigeat ad existendum". Todavia, conduzir-nos-ia aqui muito longe aflorar esta complicação produzida pela relação causal. Limitar-nos-emos aos elementos concretos somente de instante para instante efetivos e unidos em todos temporais, que fornecem os fundamentos para as leis coisais. Por conseguinte, não temos mais que nos ocupar de coisas, mas, de agora em dian­ te, podem ser normativos os conceitos universais, alargados à unidade da sucessão. 119 A: rdos conteúdos de consciência aparece1. 120 N.A.: rO momento apresentador para a extensão espacial da figura espacial colorida que aparece.1 121 A: extensão1. 122 A: extensão1. 123 N.A.: r"Situação" e "grandeza" designam aqui, naturalmente, acontecimentos na esfera da sensação, momentos apresentadores para a situação e a grandeza intencional (aparecen-

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Cap. I • A Diferença entre os Objetos Independentes e Dependentes

relativo sobre a independência que, tomada absolutamente ou noutra relação, poderia ser dependência, se relaciona aqui com um todo que, por intermédio do seu conceito total de partes (o próprio que para tal é exigido), produz uma esfera no interior da qual se têm de mover as distinções realizadas anteriormen­ te de forma ilimitada. Poderíamos, por conseguinte, definir: Chama-se dependente e relativo ao todo T, ou ao conceito total de conteúdo determinado por T, a cada um dos seus conteúdos parciais, que só podem existir como parte e, na verdade, como parte de um tipo de todo que está representado neste conteúdo. Cada conteúdo parcial para o qual isto não vale rsignifica1124 in­ dependente no todo T e relativamente a ele. Abreviadamente, falamos também de partes autônomas e não autônomas do todo <264> e, em sentido correspondente, de partes de partes (todos de partes) do todo não autônomas e autônomas. A definição pode ser ainda, claramente, generalizada. A saber, podemos rcaptar~i125 a definição de forma tão fácil que não é fmeramente1126 posto um conteúdo parcial em relação com um todo mais abrangente, mas, sim, deforma totalmente universal, um conteúdo em relação com outro conteúdo, mesmo que ambos sejam disjuntivos. Em correspondência, damos a definição: Um conteúdo a é relativamente independente de um conteúdo p, respec­ tivamente, do conceito total de conteúdos determinado por P e de todas as suas partes, quando existe uma rlei pura"1127 fundada na particularidade dos gêneros de conteúdo encontrados, pelo que um conteúdo do gênero fpuro1 a só pode existir rapriorP em ou renlaçado1128 com outros conteúdos, a partir do conteú­ do total, determinado por P, de gêneros rpuros1 de conteúdo. Se faltar uma tal lei, chamamos a a independente relativamente a p. rPodemos dizer de modo mais simples: um conteúdo a é relativamente autônomo em relação a um conteúdo p, quando existe uma lei que se funda na essência genérica a p, pela qual pode existir apriori um conteúdo do puro gêne­ ro a em ou enlaçado com um conteúdo do gênero p. Deixamos evidentemente em aberto o fato de os gêneros a e p serem também gêneros de complexos, de modo que muitos gêneros correspondentes aos elementos dos complexos podem estar entrelaçados entre si. Resulta da definição que um a enquanto tal está entregue ao ser dado concomitante e unitário de um P qualquer, ou, dito de outro modo, que o gênero puro a , relativamente à existência possível das singularidades individuais que lhe correspondem, está entregue ao gênero p, a

saber, ao ser dado ligado concomitante de singularidades do âmbito de p. Com brevidade, poderíamos dizer: o ser de um a é relativamente autônomo ou não autônomo no que diz respeito ao gênero p .1 <265> O rnecessário1 existir em conjunto, do qual se fala na definição, é ou uma coexistência rque se deve relacionar com um ponto do tempo1 qualquer,129 ou mesmo um existir em conjunto numa extensão de tempo. No último caso, P é um todo temporal e as determinações temporais figuram, então (e, na verdade, como relações temporais, extensões temporais), com o conceito de conteúdo de­ terminado por p. Assim, um conteúdo k , que contém em si a determinação tem­ poral t0, pode exigir o ser de um outro conteúdo X, com a determinação temporal ti = t0 + A e, nessa medida, ser independente. rNa esfera dos acontecimentos fenomenológicos do “fluxo de consciência”, a lei de essência oferece comprovantes exemplares da dependência mencionada em último lugar, segundo a qual cada consciência-de-agora atual e preenchida passa, necessária e continuamente, para um já sido; por conseguinte, que o presente da consciência coloca exigências contínuas ao futuro da consciência; e, relacionando-se com isso, que a consciên­ cia retencional do já sido, que tem ela própria o caráter imanente do agora atual, exige o já sido do fenômeno que acabou de ser consciente. Naturalmente que o tempo, ao qual nos referimos neste discurso, é a forma temporal que pertence, de modo imanente, ao fluxo fenomenológico da consciência.1 No sentido da nossa definição, rpara recorrer também a exemplos orien­ tados de outro modo,1130 diremos que no e relativamente ao todo rconcreto1 de uma rintuição momentânea1 visual rindependente, cada pedaço, quer dizer, cada seção concreta e preenchida do campo de visão1,131132cada cor de um tal pe­ daço, a configuração colorida do todo, e coisas semelhantes, são dependentes. De novo, em e relativamente ao todo da intuição de conjunto momentânea e sensível, o campo de visão preenchido, o campo de tato preenchido etc. são in­ dependentes, e as qualidades, formas etc., independentemente do fato de aderi­ rem ao todo ou a membros singulares, são dependentes; notamos, de imediato, que tudo o que vale aqui como dependente ou independente relativamente ao todo do exemplo precedente tem também de valer para o todo que é agora nor­ mativo enquanto tal. Vale, nomeadamente, a verdade geral: <266> 132rO que está, independentemente ou dependentemente, em rela­ ção com um P permanece também, precisamente nesta propriedade, mantido1

te), em sentido não modificado.1 124 A: dignificou1. 125 A: tnodelar. 126 A: triais1.

129 A: temporal1. 130 A: rpor exemplo1. 131 A: intuição momentânea, cada pedaço, quer dizer, cada seção concreta preenchida do campo de visão,1. 132 Ao primeiro período deste parágrafo corresponde em A: rO que é independente ou de­ pendente em relação a um todo T, também permanece conservado precisamente nesta

127 A: r/e/i. 128 A: rem conjunto1.

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em relação com cada todo rp-1, relativamente ao qual rpi é indepentente131456723 rou dependente-1: uma proposição que, certamente, não admite a inversão. Ainda que, por conseguinte, a cada vez de acordo com o modo como alargamos os limites, a relação se modifique; e ainda que, com isso, os conceitos relativos se modifiquem; a lei que acabamos de mencionar para os rgrupos de conteúdo"^133 que se encontram na conexão indicada facilita uma certa relação. Assim acon­ tece, por exemplo, quando comparamos quaisquer grupos de coexistência, que pertencem a cada ponto do tempo, com os grupos de sucessão que os abrangem, e, eventualmente, também com os grupos totais do tempo r(fenomenológico)1 infinito total. O independente do último grupo é o mais abrangente, portanto, também nem tudo o que vale como independente na ordem da coexistência terá também de valer como tal na ordem da sucessão; mas antes o inverso. De fato, um elemento independente da coexistência (por exemplo, um elemento delimi­ tado do rcampo de visão sensível1,134 na sua plenitude concreta) é dependente relativamente ao todo do tempo preenchido, na medida em que pensamos a sua determinação temporal como mero ponto de tempo. Pois um ponto de tempo renquanto tal, de acordo com o que acima foi aduzido, é1135 dependente, só pode ser concretamente preenchido rem conexão com uma preenchida1136 ex­ tensão temporal, com uma duração. Mas se substituirmos o ponto de tempo por uma duração de tempo, no qual o conteúdo concreto encontrado seja pensado como absolutamente imodificado, então esta coexistência em duração também pode rser considerada como independente1137na esfera ampliada.

propriedade1 em relação a cada todo rT\ rei ativa mente ao qual T 1 é independente1: uma proposição que, certa mente, não admite a inversão. 133 134 135 136 137

A: grupos1. A: rcampo de visão1. A: ré, enquanto tal,1. A: muma1. A: raté mesmo valer como absolutamente autônoma: com o que não seria tocada por meio de relações causais que se apresentem1.

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<267> C a p í t u

lo

II

PEN SA M EN TO S PARA UM A TEO RIA DAS FO RM A S PU RAS D O S T O D O S E DAS PARTES

§ 14. O conceito de fundação e teoremas correspondentes

A lei expressa e avaliada no último parágrafo da seção anterior não é uma lei empírica, imas, por outro lado, também não é uma lei essencial ime­ diata; ela11 admite, tal como muitas leis aparentadas, uma prova a priori. Nada ilumina de maneira mais clara o valor de determinações Tigorosas12 do que a possibilidade de poder fundar dedutivamente tais proposições, que nos são familiares noutra roupagem. Tendo em conta o grande interesse científico que, em cada âmbito, a constituição exige de uma teorização científica, queremos demorar-nos aqui um pouco. Definições. Se, rde acordo com leis essenciais, um a enquanto tal13 só pode existir numa unidade abrangente que o enlaça com um p, dizemos que seria necessário, a um a enquanto tal a fundação por meio de um p, ou também que um a enquanto tal necessita de um complemento por meio de um p. Se, de forma correspondente, cc0, p0 são casos singulares determinados, realizados num todo, dos gêneros ipuros1 a ou p existentes na relação indicada, dizemos que a Qestá fundado através de p0 e, na verdade, exclusivamente fundado através de p0? quando a necessidade de complemento de a Qsó é satisfeita por meio de p . Naturalmente que poderíamos transportar esta terminologia para os próprios tipos. O equívoco é aqui perfeitamente inofensivo. Dizemos, depois, de modo mais indeterminado, que ambos os conteúdos ou que ambos os tipos fpuros1 se encontravam <268> numa relação de fundamentação, ou também numa relação de enlace necessário; com o que permanece certamente em aberto qual das duas relações possíveis que não se excluem mutuamente é visada. As expressões in­ determinadas: a 0 necessita de complemento, ele está fundado num certo momen­ to, têm claramente o mesmo significado que a expressão a Qé dependente. 1a Proposição: se um a enquanto tal necessita de fundação por meio de um p, então cada todo que tem a como parte, mas não p, também necessita precisa­ mente de uma tal fundação. A proposição é axiomaticamente evidente. Se um a não puder existir se não for completado por um p, então também um todo de oc, que não compreen1 2 3

A: nnas1. A: exatas1. A: rum § enquanto tal (portanto, segundo uma lei)1.

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Cap. II • Pensamentos para uma Teoria das Formas Puras dos Todos e das Partes

de em si nenhum \x, não pode saciar a necessidade de complemento de a e deve, ele próprio, então, compartilhá-la. Como corolário, atentando para a definição do parágrafo anterior, pode­ ríamos enunciar: 2aProposição: um todo, que engloba como parte um momento dependente, sem o complemento que ele exige, é igualmente dependente; e o é relativamente a cada todo superior independente, no qual esteja também contido aquele momento dependente. 3a Proposição: se Té uma parte independente de [por conseguinte,4 relativa a] T, então cada parte independente t de T é também uma parte independente de T. Se, por exemplo, t, considerado relativamente a T, necessitasse de um complemento p, por conseguinte, possuísse, no âmbito de T, uma fundação p ele teria também de estar compreendido em T. Senão T, de acordo com a I a Proposição, estaria necessitando de um complemento relativamente a p, e isso porque p0 é uma parte de T dependente relativamente a T, de acordo com a 2a Proposição; o que contraria o pressuposto. De acordo com ele, porém, t é uma parte autônoma de T, por conseguinte, também relativa a T; por conseguinte, no âmbito de T nada pode existir que possa servir de fundação a t; consequente­ mente, também não no âmbito total de T. A presente proposição também pode ser enunciada com a designação convenientemente modificada de letras: <269> Se a é uma parte independente de p, P uma parte independente de x, então também a é uma parte independente de x. Ou ainda mais abreviadamente: Uma parte independente de uma parte independente é uma parte indepen­ dente do todo. 4a Proposição: se x é uma parte dependente de um todo T, ele é também uma parte dependente de qualquer outro todo de que T seja uma parte. Que y é dependente relativamente a T, isso significa que possui uma fun­ dação num p0 pertencente ao domínio de T. Naturalmente que este mesmo p0 tem de surgir no âmbito de qualquer todo a que T esteja subordinado, quer dizer, que inclua T como parte; por conseguinte, x também tem de ser depen­ dente relativamente a qualquer destes todos. (Em contrapartida, x pode, tal como acrescentamos, ser perfeitamente independente no que concerne a um todo subordinado; precisamos apenas traçar os seus limites de tal forma que o complemento necessário p permaneça excluído dele. Assim, um pedaço de uma extensão rque aparece1 é in abstrato r, mas tomada como momento1, in­ dependente relativamente a esta extensão; mas esta é, ela própria, dependente relativamente ao todo concreto da extensão preenchida.)

A nossa proposição pode se exprimir de forma análoga à anterior; a saber: Se a é uma parte dependente de p, e P é uma parte dependente de x, então também a é uma parte dependente de x. Uma parte dependente de uma parte dependente é uma parte dependente de um todo. 5a Proposição: um objeto relativamente dependente é também absoluta­ mente dependente; em contrapartida, um objeto relativamente independente pode ser dependente em sentido absoluto. Para a demonstração, comparar os parágrafos anteriores. 6a Proposição: se a e (3 são partes independentes de um todo T qualquer, elas são também independentes relativamente uma à outra. Pois se a necessitasse de complemento por meio de (3, ou por meio de uma parte qualquer de p, haveria, no conceito das partes determinadas por T, algumas (nomeadamente, as de P) nas quais a seria fundado: por conseguinte, a não seria autônomo relativamente ao seu todo T.

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N.A.: A saber, no sentido do modo de dizer abreviadamente definido no último parágrafo, que devemos ter aqui acima de tudo em atenção.

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<270> § 15. Transição para a consideração das relações mais importantes entre partes Consideremos agora algumas das distinções mais dignas de nota nas re­ lações rapriorísticas1 entre todo e parte, assim como entre as partes de um e o mesmo todo. A universalidade destas relações deixa, de fato, um amplo espaço de jogo para as mais variadas distinções. Nem todas as partes estão contidas no todo do mesmo modo, e nem todas estão entrelaçadas com as outras do mesmo modo, na unidade do todo. Encontramos, na comparação das relações entre partes em todos diferentes, ou mesmo na comparação entre partes num e no mesmo todo, distinções que sobressaem, nas quais se baseia o discurso habitual sobre tipos diferentes de todos e de partes. A mão, por exemplo, é uma parte do homem de um modo completamente diferente do que são a cor dessa mão, a extensão total do corpo, os atos psíquicos e, de novo, os momentos internos destes fenômenos. As partes da extensão estão ligadas entre si de um modo diferente do modo como elas próprias estão ligadas às suas cores etc. Veremos, de imediato, que esta distinção pertence totalmente ao círculo das nossas inves­ tigações presentes.

§16. Fundação recíproca e unilateral, mediata e imediata Se olharmos para um par qualquer de partes de um todo, existem as se­ guintes possibilidades: 1. Entre ambas as partes existe uma relação de fundação. 225

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2. Essa relação não existe. No primeiro caso, a fundação pode ser: a) Recíproca. b) Unilateral, conforme o fato de a correspondente conformidade a uma lei ser reversível ou não. Assim, a cor e a extensão fundam-se reciprocamente numa intuição unitária,5 pois nenhuma cor é pensável sem uma certa exten­ são, nem nenhuma extensão é pensável sem uma certa cor. Em contrapartida, o caráter de um juízo está <271 > unilateralmente fundado nas representações que lhe subjazem, uma vez que estas não têm de funcionar como fundamento de juízo. A distinção de Brentano entre partes com “separabilidade recíproca5 e com “separabilidade unilateral55 concorda segundo o âmbito, não segundo a definição, com a presente distinção. À falta de cada fundação corresponde o discurso complementar de Brentano sobre a “separabilidade recíproca55. De algum interesse é ainda a questão sobre o que é que acontece aqui com a independência ou dependência relativas das partes, naturalmente, relativa­ mente ao todo no qual são consideradas. Se existe entre duas partes uma relação de fundação recíproca, então a sua dependência relativa está fora de questão: assim, por exemplo, na unidade de qualidade e de lugar. Passa-se outra coi­ sa quando a relação é meramente unilateral: neste caso, o conteúdo que funda (embora, naturalmente, não o fundado) pode ser independente. Assim, numa extensão, a figura de um pedaço está fundada num pedaço, por conseguinte, um elemento dependente rrelativamente ao todo desta extensão1,6 num indepen­ dente rrelativamente a ele1. A fundação de uma parte numa outra pode, posteriormente: a) Ser imediata. b) Ser mediata, conforme ambas as partes se encontrem num enlace ime­ diato ou mediato. Esta relação, tal como a anterior, não está rnaturalmente1 li­ gada aos momentos individuais presentes, mas diz respeito antes às relações de ; fundação de acordo com o seu restado essencial1.7 Se a está imediatamente fundado em P0, mas mediatamente em y0 (nomeadamente, na medida em que |3(| está mediadamente fundado em y0), então rvale universalmente e de acordo com a pura essência19, que um a em geral restá18 imediatamente fundado num p, e mediatamente fundado num y. Esta é a consequência do fato de que, quando um a e um p estão em geral enlaçados, o estão imediatamente, e, de novo, de que, quando um a e um y estão enlaçados, o estão apenas mediatamente.9rA orde­

5 6 7 8 9

N.A.: rDito mais exatamente: na unidade de um intuído visual enquanto tal1. A: r(a saber, relativamente ao todo desta extensão)1. A: restado universal1. A: esteja1. Daqui até o final do penúltimo período deste parágrafo corresponde em A: rA ordenação da mediatez e da imediatez está fundada legalmente nos gêneros.1 Por exemplo, o tto-

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Gap. II • Pensamentos para uma Teoria das Formas Puras dos Todos e das Partes

nação da mediatez e da imediatez está fundada, legalmente, nos gêneros apuros? Por exemplo, o <272> rmomento genérico1 cor re, de modo completamente di­ ferente, de novo, o momento claridade1, só podem ser realizados em e com um rmomento de diferença ínfima1, como vermelho, azul etc. rO último1, de novo, apenas em conexão com uma certa rdeterminação de extensão1. Estes enlaces e fundações sempre imediatos condicionam o mediato entre os momentos cor rou claridade e determinação de extensão1. Claramente, as leis de conexão, que pertencem às fundações mediatas, são consequências analíticas e, na verdade, consequências finais daquelas que pertencem às fundações imediatas.

§ 17. Definição exata dos conceitos de pedaço, momento, parte física, elemento abstrato, elemento concreto Agora, também podemos reduzir uma série posterior de conceitos co­ nhecidos e fundamentais aos conceitos fixados mais acima, concedendo-lhes, por meio daí, uma determinação exata. Alguns dos termos, como antecipada­ mente pode ser notado, podem ser duvidosos; os conceitos que, em seguida, lhe estão coordenados, são em todos os casos de grande valor. Fixamos, em primeiro lugar, uma divisão fundamental do conceito de parte, a saber, a divisão em pedaços ou partes em sentido estrito, e em momentos10 ou partes abstratas do todo. Chamamos a cada parte autônoma relativamente a um todo T, um pedaço, a cada parte não autônoma em relação a ele, um momento (numa parte abstrata) deste mesmo todo. Com isto, é indiferente se o próprio todo, considerado absolutamente ou em relação a um todo superior, é indepen­ dente ou não. Em conformidade com isso, as partes abstratas podem novamente ter pedaços, e os pedaços, novamente, ter partes abstratas. Falamos de <273> pe­ daços de uma duração temporal, embora isto seja algo de abstrato, assim como de pedaços de uma extensão. As formas destes pedaços são partes abstratas que lhes são inerentes. A pedaços que não têm nenhum pedaço idêntico em comum, chamamos pedaços que se excluem {disjuntos). À repartição de um todo numa multiplicidade de pedaços que se excluem chamamos o seu despedaçamento. Dois de tais peda-

mento1 só cor pode ser realizado num e com um mnomento específico1, como vermelho, azul etc. rEste\ de novo, apenas em conexão com uma certa rdeterminação local1. Estes enlaces e fundações sempre imediatos condicionam o mediato entre os momentos cor re determinação local1. 10 Em A segue-se: ^"aspectos")1. 11 Em A segue-se: rum aspecto ou1.

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Cap. II • Pensamentos para uma Teoria das Formas Puras dos Todos e das Partes

ços podem ainda ter em comum um momento idêntico. Assim, o limite comum é um momento idêntico para os pedaços confinantes de um contínuo repartido. Chamam-se separados aos pedaços quando estão disjuntos em sentido estrito, por conseguinte, quando também não têm mais nenhum momento idêntico. Pelo fato de uma parte abstrata ser também abstrata em relação a cada todo mais abrangente e, em geral, a cada conceito de robjetos112-13 que abrange este todo, também um elemento abstrato, em consideração relativa, é eo ipso abstrato em consideração absoluta. Este último pode ser definido como o caso limite da consideração relativa, no qual a relação é determinada pelo conceito total de robjetos"114em geral; de modo que ele, por conseguinte, não necessita de uma definição prévia do abstrato, ou dependente, em sentido absoluto. Portan­ to, um elemento abstrato é pura e simplesmente um robjeto"115para o qual há em geral um limite, relativamente ao qual ele é uma parte dependente. 16Se um rtodo1 admite um tal despedaçamento, de modo que os pedaços, rde acordo com a sua essência1, são do mesmo gênero ínfimo do que o determina­ do por meio do todo indiviso, chamamos-lhe um Hodo extensivo1, e às suas partes apartes extensivas1. A isto pertence, por exemplo, a divisão de uma extensão em <274> extensões, mais especialmente, de uma porção de espaço em porções de espaço, de uma porção de tempo em porções de tempo e coisas semelhantes. Podemos acrescentar ainda aqui as seguintes definições: Um robjeto1,17relativamente aos seus momentos abstratos, chama-se rele­ mento concreto relativo118e, na verdade, em relação aos seus momentos próximos, chama-se elemento concreto próximo. (Definiremos com mais exatidão, nos pará­ grafos seguintes, a distinção aqui pressuposta entre momentos próximos e afas­ tados.) Um elemento concreto, que não é abstrato rsegundo nenhuma direção1,19 pode ser chamado elemento concreto absoluto. Sendo válida a proposição segundo a qual cada conteúdo absoluto autônomo possui partes abstratas, cada um deles também pode ser visto e designado como elemento concreto absoluto. Ambos os conceitos têm, por conseguinte, o mesmo âmbito. Pela mesma razão, podemos também dizer, em vez de pedaço, parte concreta, com o que, naturalmente, a con-

ereção deve ser entendida como absoluta ou como relativa, conforme o próprio todo tenha, a cada vez, apenas partes abstratas, ou seja, conforme ele próprio seja abstrato. Onde a expressão elemento concreto é pura e simplesmente utilizada, o que é visado é normalmente o elemento concreto absoluto.

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A: ■ conteúdos1. N.A.: Segundo a proposição 4 da página <269>. A: rconteúdos (objetos)1. A: rconteúdo1. Ao primeiro período deste parágrafo corresponde em A: Se um elemento abstrato admite um tal despedaçamento, de modo que os pedaços são relementos abstratos1 do mesmo gênero ínfimo do que é determinado pelo todo indiviso, chamamos-lhe um rtodofísico1, e aos seus pedaços apartes físicas1. 17 A: rconteúdo1. 18 A: relemento concreto1. 19 Acréscimo de B.

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§ 18. A distinção entre as partes mediatas e imediatas de um todo Com a distinção entre os pedaços e as partes abstratas conecta-se inti­ mamente a distinção entre as partes mediatas e imediatas, ou, dito com mais clareza, entre as próximas e as afastadas. Pois o discurso sobre a imediatez e a mediatez pode ser entendido num duplo sentido. Falamos, em primeiro lugar, do sentido mais imediato deste discurso. Se 0(T) é uma parte do todo T, então uma parte dessa parte, por exemplo, 0(0 (T)), é de novo uma parte do todo, mas uma parte mediata. 0(T) pode, então, chamar-se uma parte comparativamente imediata do todo. A distinção é relativa, pois o próprio 0(T) pode ser, de novo, uma parte mediata, a saber, em relação a <275> uma outra parte do todo, na qual está incluído como parte. A distinção relativa transforma-se numa distinção absoluta quando, por partes absolutamente mediatas, entendemos aquelas relativamente às quais há, no todo, partes nas quais elas residem como partes; por partes absolutamente imediatas, por conseguinte, partes que não devem valer como partes de nenhuma parte do mesmo todo. Me­ diata, neste sentido absoluto, é cada parte geométrica de uma extensão; pois uma extensão tem continuamente partes (geométricas), que abrangem aquelas. É mais difícil apresentar exemplos convenientes de partes absolutamente imediatas. Po­ der-se-ia, por exemplo, recorrer ao seguinte: se salientarmos numa intuição visual o complexo unitário de todos os momentos internos, que permanecem idênticos com a mera modificação de lugar, então eles são uma parte de um todo, que não pode mais possuir uma parte subordinada. O mesmo valeria para o todo das suas meras extensões, tendo em vista os corpos geométricos congruentes, independen­ temente da posição. Se restringirmos a distinção a partes de um e do mesmo tipo, então já o momento da coloração unitária é uma parte absolutamente imediata, na medida em que não existe nenhum momento homogêneo do todo ao qual aquele devesse ser incorporado como parte. Em vez disso, a coloração, à qual adere um pedaço do todo, deve ser considerada como mediata, na medida em que contribui para a coloração total do todo. O mesmo vale, em relação ao tipo extensão, para a extensão total, que é uma extensão absolutamente imediata, e para um pedaço desta extensão, o qual12134567890 é uma parte absolutamente mediata da coisa extensa.

20 A: ra qual1.

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§ 19. Um novo sentido desta distinção: partes próximas e afastadas do todo Esse discurso sobre partes imediatas e mediatas obtém um conteúdo to­ talmente novo quando atentamos para certas distinções dignas de nota, que se impõem na consideração comparativa das <276> relações entre todos e partes mediatas.212345Quando pensamos num todo rextensivo122 desagregado, os pedaços admitem novamente a desagregação, os pedaços dos pedaços a mesma coisa etc. Aqui, as partes das partes são partes do todo, precisamente do mesmo modo que as partes '"originárias'1;23 e, na verdade, não notamos meramente a igualdade na referência ao tipo de relação entre partes que, tendo em consideração o todo, con­ diciona o discurso sobre partes idênticas - os pedaços dos pedaços são, novamen­ te, pedaços do todo24 -, mas anuncia-se também aí uma igualdade dessas relações entre o todo e, por um lado, as partes mediatas, e, por outro, as partes (relativa­ mente) imediatas, de tal modo que, rgraças à diversidade das divisões possíveis, nas quais a mesma parte surge e pode surgir, às vezes mais cedo, outras vezes mais tarde1, não encontramos ocasião para atribuir primazia rabsoluta a umas relativa­ mente às outras, quanto ao tipo do estar contidas no todo1: à ordenação graduada das divisões não corresponde aqui uma graduação objetiva, determinada e fixa, na relação das partes com o todo. Tal não quer dizer o discurso sobre partes media­ tas e imediatas seja totalmente arbitrário, carecendo de fundamento objetivo. O todo físico tem, verdadeiramente, aquelas partes consideradas em primeiro lugar e estas, de novo, não têm menos, verdadeiramente, as partes nelas distinguidas, por conseguinte, mediatas em relação ao todo; e assim em cada passo da divisão progressiva. Em si mesmas, porém, as mais afastadas destas partes não estão mais afastadas do todo do que as mais próximas. As partes devem a sua sucessão rem cada caso também125 à sucessão das divisões, e a estas últimas falta o fundamento objetivo. Não há, nos todos rextensivos1,26 nenhuma divisão em si primeira, nem tampouco nenhum grupo fixamente delimitado de divisões como um primeiro nível de divisão; a partir de uma dada <277> divisão, não há nenhum progresso, determinado pela natureza da coisa, em direção a uma nova divisão, ou nível de divisão. Podemos começar com qualquer divisão, sem menosprezar qualquer pri­ vilégio interno. Cada parte mediata, de acordo com o modo de divisão preferido, pode valer também como imediata, e cada imediata valer como mediata.

21 Cf. Bolzano, Wissenschaftslehre (Doutrina da Ciência), I, § 58, p. 251 e segs., e Twardowski, Op. cit., § 9, p. 49 e segs. 22 A: rfísico1. 23 A: Imediatas1. 24 N.A.: Uma nova expressão da proposição 3, no § 14, p. <268>. 25 A: Tneramente1. 26 A: rfísicos1.

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Cap. II • Pensamentos para uma Teoria das Formas Puras dos Todos e das Partes

Passa-se algo de completamente diferente quando levamos em consi­ deração outros exemplos. Uma sequência de sons intuitivamente unitária, por exemplo, uma melodia, é um todo, no qual encontramos sons singulares como partes. Cada um destes sons tem, de novo, partes, um momento de qualidade, um momento de intensidade etc., os quais, enquanto partes de partes, são tam­ bém partes da melodia; mas é aqui claro que a mediação, na qual, por exemplo, o momento de qualidade do som singular é inerente ao todo, não deve ser posta na conta da nossa sequência subjetiva da divisão, ou de outros motivos subje­ tivos. 27Na verdade, é certo que r, se o momento da qualidade do som singular deve ser notado por si mesmo, o próprio som tem de ser “realçado”. A captação particular1 da parte mediata pressupõe o Tealce particular1 da imediata r. Mas esta relação fenomenológica1 não deverá ser confundida com a situação ob­ jetiva que raqui nos interessa1: é evidente que a qualidade em si só é parte da melodia, na medida em que é parte do som singular; pertence imediatamente a este som, e apenas mediatamente à configuração total dos sons. Por conseguin­ te, este “mediatamente” não se refere aqui a um privilégio arbitrário, ou sequer condicionado por um impulso psicológico, de um certo decurso de divisão, no qual, primeiro, tivéssemos de esbarrar com o som e, depois, com o seu momen­ to de qualidade; mas, em si, na totalidade da melodia, o som é a primeira parte e a sua qualidade é a parte posterior, mediata. O mesmo se passa com a intensida­ de do som; de fato, quase podería parecer aqui que ela nos transportaria ainda um passo para além da totalidade da melodia, como se a intensidade não fosse um momento imediato do som, mas, sim, mais próxima da sua qualidade, por conseguinte, em referência a ele, uma parte já secundária (uma concepção que, certamente, <278> merece reparos, e, por isso, necessitaria de uma ponderação mais minuciosa). Se estivermos autorizados a retirar, por exemplo, da qualidade q do som considerado, uma parte, que representa aquilo que nele é comum a todos os outros sons enquanto tais, por conseguinte, o seu momento específi­ co, então a esta parte é inerente, primariamente, a qualidade, secundariamente, o som, a configuração do som, pelo menos em terceiro lugar etc. Da mesma forma, o momento de cor ou o momento de forma, inerentes a uma rparte ex­ tensiva de algo de intuído visualmente (enquanto tal)1,28 acomodam-se, em pri­ meiro lugar, a esta parte, e só secundariamente ao todo da intuição. De modo mais imediato ainda se comporta relativamente ao todo a “volumness” inerente

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Daqui até "... situação objetiva" corresponde em A: Na verdade, é certo que mós, para no­ tarmos por si o momento da qualidade do som singular, temos, antes de mais, de salientar o próprio som; a captação particular1 da parte mediata pressupõe raqui, por conseguinte,1 a rcaptação particular1 da imediatar; mas esta necessidade subjetiva1 não se confundirá com a situação objetiva evidente1. 28 A: rparte física de uma intuição visual1.

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à rextensão configurada1,29 a grandeza que primeiramente lhe pertence r(na esfera da pura dação intuitiva não se fala, naturalmente, de uma determinação quantitativa peculiar enquanto tal)1.30 Após essas discussões, deveria estar claro o sentido novo e significativo da distinção entre partes mediatas e imediatas. Mas a distinção não é meramente relativa, na medida em que em cada todo há partes que pertencem diretamente a ele e não, antes de tudo, a uma das suas partes. Para a parte singular, está nela fixamente determinado se é uma parte mediata ou não no sentido presente e, no primeiro caso, se ela é mediata no primeiro, no segundo ou no terceiro níveis. Para distinguir do ponto de vista terminológico, pode-se falar aqui de partes próximas e afastadas; para efeitos de uma determinação mais exata também de partes primárias, secundárias... do todo; conservamos os termos partes mediatas e imediatas no sentido mais geral, aplicável a quaisquer partes. As partes secun­ dárias são primárias das primárias, as partes terciárias são secundárias das pri­ márias etc. Os conceitos desta série são, manifestamente, incompatíveis entre si. As partes primárias podem ser (e, de fato, tornam-se, em geral) absolu­ tamente mediatas. Todavia, há também partes primárias que são absolutamente imediatas, quer dizer, que não estão contidas, como partes, em nenhuma parte do seu todo. Cada pedaço de uma extensão está nela primariamente <279> contido, embora sempre possa ser captado como parte mediata desta mesma extensão. Objetivamente, há sempre partes de que ele é uma parte. Em contrapartida, a for­ ma de uma extensão não está contida como parte em nenhuma das suas partes.

ma a nP°y, chamamos mediata. Se existirem ainda enlaces posteriores yn8, 8ns, etc., diremos que os seus elos singulares 8, £,... estão enlaçados numa relação mediata progressiva ascendente com a , que 8 é uma parte mais afastada do que y, e s ainda mais afastada do que 8 etc. Com isso, manifestamente, é caracteri­ zado apenas um caso especial simples. Cada letra a , p, y... poderia resumir uma unidade complexa de partes, por conseguinte, todo um grupo de elos unitários enlaçados; e, então, aparecem também os elos dos grupos distintos - na base dos encadeamentos que ligam entre si como um todo as unidades parciais - em relações de conexão mais próximas ou mais afastadas. Se existem ainda enlaces de outro tipo e, especialmente, se entre os elos enlaçados de forma mediata há ainda enlaces diretos (e talvez até do mesmo gênero que entre os <280> gêneros imediatamente enlaçados), sobre isto não se disse nada no que foi mencionado anteriormente. Consideramos os elos ex­ clusivamente segundo as formas das relações reunidas, que são determinadas pelos enlaces elementares. Naturalmente que a consideração destas formas será de significado particular naquela classe indicada de casos, que interessam, na maior parte das vezes, do ponto de vista teórico ou prático, e cujo tipo peculiar é fácil de clarificar nos enlaces de pontos no interior de uma reta. Se salientarmos uma série de pontos qualquer numa reta, notamos que os enlaces imediatos dos elos mediatos enlaçados pertencem, juntamente com os enlaces dos imediatos próximos, a um e ao mesmo gênero ínfimo de enlace e de tal modo que apenas se distinguem deles por meio de uma diferença específica ínfima, ao passo que esta mesma diferença é claramente determinada pelas diferenças dos enlaces ocasionais que medeiam. Assim acontece com as sequências de tempo, com as configurações espaciais, em resumo, por toda a parte onde os enlaces devem ser caracterizados por segmentos dirigidos de um e do mesmo gênero. Numa pala­ vra, existe, por toda a parte, uma adição de segmentos. Entretanto, de tudo isto podemos prescindir na nossa consideração totalmente formal. O essencial pode ser captado conceitualmente do seguinte modo. Dois enlaces constituem um encadeamento quando têm em comum alguns, mas não todos os elos (por conseguinte, não se recobrem, como quando, por exemplo, os mesmos elos são unidos por meio de enlaces múltiplos). Cada encadeamento é, por conseguinte, um enlace complexo. Os enlaces dividem-se, então, naqueles que contêm encadeamentos e naqueles que não os contêm; e os enlaces do pri­ meiro tipo são complexos de enlaces do último tipo. Os elos de um enlace livre de encadeamentos chamam-se imediatamente enlaçados ou vizinhos. Em cada en­ cadeamento e, assim, em cada todo contendo encadeamentos, têm de existir elos imediatamente enlaçados, a saber, aqueles que pertencem a enlaces parciais, que não contêm mais encadeamentos. Todos os elos restantes de tal todo chamam-se ligados mediatamente uns aos outros. O elo comum de um <281> encadeamento simples a np°y (simples porque não tem como parte nenhum encadeamento) é,

§ 20. Partes próximas e afastadas relativamente umas às outras Falamos acima de partes mediatas e imediatas, próximas e afastadas, re­ lativamente ao todo a que pertencem. Mas mesmo aí onde consideramos partes em relação umas com as outras costumamos utilizar estes termos, embora num sentido completamente diferente; falamos numa conexão mediata e imediata das partes e, no último caso, fazemos ainda distinções. Umas, dizemos, estão próximas entre si, as outras estão afastadas. Consideramos aqui as seguintes relações. Há um caso habitual em que uma forma de enlace resume em si, numa unidade de partes que exclui outras partes, duas partes a e P; uma outra em que p, mas não a , está enlaçada com y precisamente do mesmo modo. Nesta situação, então, a também está enlaçado com y, a saber, graças a uma forma complexa de unidade que se constrói a partir dos enlaces a nP e Pny. A estes úl­ timos, então, chamamos imediatos, e à ligação de a com y, que se realiza na for­ 29 A: 'figura1. 30 A: r(sc. diante de toda a determinação quantitativa)1.

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no sentido destas determinações, enlaçado imediatamente com os seus vizinhos, estes mesmos mediatamente ligados entre si etc. O discurso acerca de partes próximas e afastadas umas das outras refere-se sempre a encadeamentos: os con­ ceitos de vizinho (= elo imediatamente enlaçado), vizinho de um vizinho etc. dão, segundo um complemento facilmente determinável de um ponto de vista formal, a gradação da “distância” e não são, então, senão os números ordinais: primeiro, segundo etc. O complemento aspira, naturalmente, a cuidar da univocidade destes conceitos por meio da fixação de uma “direção de progresso”; por exemplo, por meio do recurso à desigualdade essencial de uma classe de relações, da qual surgem configurações de conceitos, como vizinho direito de A (o primei­ ro à direita de A), vizinho direito do vizinho direito de A (o segundo à direita de A) etc. Os objetivos essenciais da presente investigação não exigem que se entre mais neste ponto, que em si não é destituído de importância.

discurso sobre o caráter unitário da fundação deve significar que cada conteúdo se relaciona com qualquer outro, direta ou indiretamente, por meio da fundação. Isto pode suceder de tal modo que todos estes conteúdos se encontrem fundidos uns nos outros, sem auxílio exterior, imediata ou mediatamente; ou também de tal modo que, ao invés disso, todos em conjunto fundam um novo conteúdo e, de fato, novamente, sem auxílio externo. No último caso, não está excluído que este conteúdo unitário se construa a partir de conteúdos parciais que, pelo seu lado, estão fundados, de modo idêntico, em grupos parciais do conjunto pressupos­ to, tal como o conteúdo total no conjunto total. Por fim, são também possíveis casos intermediários, em que a unidade da fundação, por exemplo, se realiza de tal modo que a com P funda um novo conteúdo, e, depois, p de novo com y, y com 8 etc., em resumo, sob o modo do encadeamento. Note-se de imediato como, por meio de distinções semelhantes, são de­ terminadas separações essenciais do todo. Nos casos indicados em primeiro lugar, as “partes” (definidas como elos do conceito em questão) “penetram-se” mutu­ amente; nos outros casos, as partes são “exteriores umas às outras”, mas deter­ minam formas de enlace reais, seja todas em conjunto, seja encadeando-se aos pares. Onde se fala de ligação, enlace e de coisas semelhantes, em sentido estrito, visam-se a todos do segundo tipo; ou seja, conteúdos relativamente independen­ tes entre si (nos quais, então, o todo deve ser desagregado como nos seuspedaços) fundam novos conteúdos como “formas que os ligam”. Também o discurso sobre todo e partes em geral costuma estar orientado apenas segundo estes casos. <283> O mesmo todo pode, relativamente a certas partes, ser penetração, relativamente a outras, ligação: assim, a coisa rsensíveP que aparecer, a figura do espaço intuitivamente dada, revestida de qualidade sensível (precisamente como aí aparece) relativamente aos seus momentos reciprocamente fundados, como cor e extensão“1,31323 e a mesma em relação aos seus pedaços.

§ 21. Determinação exata dos conceitos pregnantes de todo e de parte, assim como dos seus tipos essenciais, por meio do conceito de fundação rNas considerações precedentes, o nosso interesse dirigiu-se às relações essenciais mais universais entre todos e partes, ou entre as partes umas com as outras (de conteúdos que se unem num “todo”). Nas nossas definições e descri­ ções a este respeito, o conceito de todo estava pressuposto. Todavia, podemos"131 por toda a parte evitar este conceito, podemos substituí-lo pela existência em conjunto dos conteúdos, que foram indicados como partes. Assim, poderíamos, por exemplo, definir: Um conteúdo do tipo a está fundado num conteúdo do tipo P quando um a , de acordo com ra sua essência"132 (quer dizer, segundo a lei, na <282> base da sua peculiaridade específica) não pode existir sem que um P também exista; com o que permanece aberto se é ainda exigível ou não a existência concomi­ tante de certos y, 8. Passa-se uma coisa parecida com as restantes definições. Se captarmos tudo nesta generalidade, podemos definir o conceito pregnante de todo de um modo notável, por meio do conceito de fundação, tal como se segue: Por um todo entendemos um conjunto de conteúdos que se tornam abrangentes por meio de uma fundação unitária e, na verdade, sem o auxílio de conteúdos posteriores. Aos conteúdos de um tal conceito chamamos partes. O 31 A: rAté aqui, assim como nas nossas definições também nas proposições deduzidas e nas descrições, sempre falamos de todos, nos quais captávamos os conteúdos ocasionais, como partes. Mas podemos agora [evitar] o conceito de todo1. 32 A: ra sua natureza1.

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§ 22. Formas sensíveis de unidade e de todo Antes de prosseguirmos, é bom apontar expressamente para o fato de que, segundo a nossa definição, não é necessário que pertença a cada todo uma forma própria, no sentido de um momento de unidade particular ligando todas as partes. Se, por exemplo, a unidade surge por encadeamento, de tal modo que cada par de elos vizinhos funda um novo conteúdo, então está satisfeita a exigência da nossa definição, sem que estivesse presente um momento próprio fundado em todas as partes em conjunto, a saber, um momento de unidade; e dificilmente podemos

33 A: Telativamente aos seus lados1.

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apontar apriori o fato de um tal momento ter de ser ocasionalmente suposto. De acordo com o nosso conceito de todo, não é nunca exigido que as partes sejam enlaçadas apenas como grupos ou pares, por meio de momentos próprios de uni­ dade. Só quando o todo é um todo '"extensivo”-134 e, em geral, desagregável em pedaços, é que tais momentos são, como é evidente, indispensáveis a priori. 35rPoderia parecer estranho que, com estas definições, não obstante, pu­ déssemos prosseguir e mesmo arriscar o pensamento de que1 todos os todos, com a simples exceção dos desagregáveis, rcarecem de formas unitárias de liga­ ção,1 por exemplo, que a unidade de extensão e coloração, de qualidade do som e de intensidade do som, rou que a unidade entre o estado de sensação de uma <284> percepção de coisa e aquilo que, perante ele, faz entrar a consciência de percepção em momentos fenomenológicos peculiares, e outras coisas se­ melhantes1, frepouse1 em fundações simplesmente unilaterais ou recíprocas, sem que, para além disso, por meio da sua reunião, fosse fundado um conteúdo formal próprio, um momento peculiar de unidade. Em todo caso, é um fato manifesto que, onde quer que se possam efetivamente mostrar rna intuição136 formas de enlace como momentos rpróprios1,34356738os enlaçados são partes rela­ tivamente independentes umas das outras; por exemplo, sons na unidade da melodia, ou colorações separadas como pedaços na unidade de configuração da cor, ou figuras parciais na unidade da figura complexa, e coisas semelhantes. Em contrapartida, é em vão que nos esforçamos por encontrar, na unidade do fenômeno visual, em face dos conteúdos de forma que dão unidade aos peda­ ços, também aqueles que enlaçam os rmomentos dependentes138 uns com os outros, por exemplo, cor e extensão, ou, no interior dos primeiros, tons de cor e de clareza, no interior dos últimos ro momento de forma ou de grandeza1,39 e coisas semelhantes. Mas, falando propriamente, estamos muito afastados de querer substituir ao não encontrar um não ser. Em todo o caso, contudo, é de grande importância considerar a possibilidade de unidades sensíveis sem forma sensível que se possa abstrair, e, se possível, expô-las claramente.

Nessa perspectiva, pode, em primeiro lugar, dar a impressão estranha de que as meras necessidades de coexistência, de que as exigências de complemento, que não consistem senão no fato de o ser de conteúdos de certos tipos condicionar o mero ser em simultâneo de conteúdos de certos tipos subordinados, que exi­ gências desta natureza, dizia eu, deveriam funcionar como doadoras de unidade. Objetar-se-á de imediato: não poderiam os conteúdos, em todos os casos, rencontrar-se uns ao lado dos outros em completa separação, remetendo uns para os outros na sua existência e, todavia, <285> estar totalmente desligados, em vez de, como aqui se pretende, a fundação significar já afirmar uma unidade ligada^40 A nossa resposta é clara. O discurso sobre a separação41 implica o pensa­ mento da independência relativa dos conteúdos separados; e excluímos preci­ samente estes. A imagem da contiguidade dá-nos testemunho disso; ela pressu­ põe, manifestamente, conteúdos relativamente independentes que, precisamen­ te porque o são, podem fundar esta forma sensível da contiguidade. O que esta imagem inadequada (inadequada já porque quer ilustrar a ausência sensível de forma por meio de um caso de forma sensível) tanto sugere é a indiferença, de uns em relação aos outros, dos conteúdos dados na mera conexão espacial. Introduz-se, com isso, o pensamento seguinte: onde nem sequer uma vez une uma forma tão frouxa, nem em geral nenhuma forma une, aí, com maior razão, os conteúdos nada teriam a ver uns com os outros; nunca e em parte alguma viriam em conjunto, mas permaneceriam eternamente isolados. E não é um absurdo querer ligar conteúdos sem um vínculo? Naturalmente que tudo isto é inteiramente correto para os conteúdos que a imagem pressupõe. Mas aqueles de que falamos têm muito a ver uns com os outros, estão, na realidade, fundidos uns nos outros e, precisamente por isso, não precisam de quaisquer cadeias ou vínculos para estarem encadeados ou ligados.42 De fato, todas estas expressões

34 A: ^'físico"1. 35 Daqui até "... um momento peculiar de unidade" corresponde em A: rPoderia parecer ainda mais estranho se eu exprimisse o pensamento de que1 talvez todos os todos, com a simples exceção dos desagregáveis, rsão sensíveis e sem forma,1 por exemplo, que a unidade de extensão e coloração, de qualidade do som e de intensidade do somr, de sensação e de in­ terpretação objetiva etc.1, Tepousaria1 em meras fundações unilaterais ou recíprocas, sem que, para além disso, através ainda do seu estar em conjunto, fosse fundado um conteúdo formal próprio, um momento peculiar de unidade. 36 A: rpor conseguinte, através da percepção externa ou interna1. 37 A: sensíveis1. 38 A: lados1. 39 A: ra forma e quantidade de massa {volumness)1.

40 A: restar arbitrariamente dispersos em todo o mundo, em vez de pairarem diante de nós, como efetiva mente o fazem, em unidade intuitiva? Contra isto, indicaríamos que sempre que um a está fundado num (3, não é possível ne­ nhum ser independente, por conseguinte, nenhuma consciência independente, nenhum ato vivencial independente e concluído, que contivesse a e não p. Também por mais estrei­ tamente que tracemos os limites de um ser-para-si psíquico, P, se ele realizar a, deverá, ao mesmo tempo, realizar p. O seu ser-para-si, a sua independência, consiste, na realidade, no fato de permanecer o que é, mesmo que todo o real seja aniquilado. Mas, com o p, a seria também aniquilado e, com isso, P seria modificado. Com certeza, responder-se-á do lado oposto. Mas, com isso, não é dada ainda nenhuma unidade real, no domínio psíquico não é dada a unidade da intuição. No último caso, po­ deriam ambos os conteúdos estar, na verdade, necessariamente um ao lado do outro na mesma consciência e, todavia, estar totalmente separados.1 41 Em A segue-se:r, independentemente de existir uma separação que é produzida por cons­ ciências distintas, ou uma separação no interior da mesma consciência.1. 42 Em A segue-se: retc.1.

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não têm, para eles, qualquer sentido. Onde não faz qualquer sentido falar em separação, <286> também o problema sobre como é que a separação deverá ser suprimida não faz sentido. É evidente rque esta concepção vale não apenas no âmbito dos objetos que se podem intuir (especialmente, dos conteúdos fenomenológicos), que nos servem de exemplo, mas, sim, parai43 0 âmbito dos objetos em geral. Tudo o que verdadeiramente une, diríamos diretamente, são as relações de fundação. Em consequência, mesmo a unidade de objetos independentes não surge se­ não por meio da fundação. Pelo fato de eles, como independentes, não esta­ rem fundidos uns nos outros, resta apenas que eles próprios e, na verdade, em conjunto, fundam novos conteúdos, que, então, em prol desta situação, tendo em vista os “elos” que provocam a fusão, se chamam conteúdos doadores da unidade. Todavia, têm também unidade - e uma unidade incomparavelmente mais íntima, porque menos mediada - os conteúdos que estão fundidos uns nos outros (seja reciprocamente, seja unilateralmente). A “intimidade” reside, precisamente, no fato de a sua unidade não ser só produzida por meio de um novo conteúdo, o qual, de fato, pelo seu lado, apenas “produz” unidade pelo fato de estar fundado, em conjunto, nos muitos elos em si separados. Se chamarmos “unidade” a um tal conteúdo, então a unidade é, certamente, um “predicado real”, um rconteúdoi44 “positivo” “real”; e então, neste sentido, os outros todos não têm unidade; e, então, não podemos mais dizer nenhuma vez que momen­ tos de unidade rautênticosi45 se identificam com os dos elos unidos. Mas, se não quisermos aceitar uma terminologia tão inadequada e que, na prática, força de tal forma o equívoco, teremos, precisamente, de falar de unidades e de todos até o ponto onde for suficiente uma fundação unitária. Para cada conceito de con­ junto unido deste modo, deveremos, então, dizer que tem unidade, embora o predicado que lhe é desta forma atribuído não seja um predicado “real”, rcomo se1,46 no todo, se pudesse salientar qualquer elemento constituinte de “unidade”. A unidade não é, justamente, um predicado categorial. Teremos também de avaliar a vantagem teórica, que não é pequena, pro­ metida pela nossa concepção, rao <287> afastar uma dificuldade, desde há mui­ to conhecida e profundamente sentida, na doutrina do todoí. Trata-se da infini­ ta confusão das relações entre as partes, que parece exigir uma infinita confusão entre os momentos de unidade, e, na verdade, em cada todo. A perspectiva con­ tra a qual se dirigem as nossas reflexões parte da pretensa evidência segundo a

qual, onde quer que dois conteúdos formem um todo real, tem de existir uma parte autêntica (o momento de unidade) que os enlaça mutuamente. Se, então, a a e a & pertence o momento de unidade 8, então pertence também a a e a e - p o i s também estes dois são, de fato, um só - um novo momento e ^ a è e a s , novamente, um outro s2; a s e el5 do mesmo modo que a 8 e s2, o novo momento e1e s2, e assim até o infinito. Se também não fizermos a distinção entre enlace e re­ ferência, entre as distintas “matéria sensível” e “forma categorial”, se se introduz antes nos objetos, como momentos reais, a multiplicidade ilimitada a priori de possíveis concepções de distinção, complicando-se infinitamente segundo uma legalidade ideal; surgem, assim, aquelas análises, tão sutis quanto extravagantes, que Twardowski nos ofereceu na sua investigação “psicológica”.47 A nossa concepção poupa esse infinito regresso de partes, que se cindem em séries sempre novas. Realmente (perceptível numa sensibilidade possível) nada mais existe do que o conceito de elo do todo, tanto quanto as formas sen­ síveis de unidade, que fundam os elos em conjunto. Mas o que dá unidade aos momentos no interior dos elos, tal como aos momentos de unidade com os elos, são as fundações no sentido da nossa definição. Por fim, no que diz respeito ao conceito de momento de unidade, que nós, por conseguinte, distinguimos ainda do de “form a”, que dá unidade a um todo, já o definimos de passagem mais acima. Concebido expressamente, entendemos por tal um conteúdo que está fundado por meio de uma multiplicidade de conte­ údos e, na verdade, rpor meio deles todos e não, meramente, por meio de <288> alguns entre elesi.48 (Evidentemente que, com isso, pressupomos o nosso con­ ceito de fundação.) Se nos restringirmos à esfera fenomenológica, este conteúdo tanto pode ser, de acordo com a natureza dos seus fundamentos, um conteúdo da sensibilidade externa como da interna. Nota. Os momentos de unidade, tal como os outros conteúdos abstratos, ordenam-se em rpurosi gêneros e espécies.49'50Assim, o gênero afigura espacial1 diferencia-se do gênero afigura de triângulo1 e este, novamente, do gênero ínfi­ mo [figura determinada de triângulo, em último casoí no sentido em que rele é “o mesmo”1 em cada transposição e rotação. Tornemos também claro para nós

43 A: rtransfere-se esta concepção acerca do âmbito dos objetos fenomenológicos (especial­ mente, dos conteúdos fenomenológicos), que até agora tivemos diante dos olhos, para1. 44 A: rconteúdo "sensível"1. 45 A: sensíveis1. 46 A: rassim como1.

47 N.A.: Op. cit, § 10, p. 51 e segs. 48 A: rde modo que ele está fundado por meio deles todos e não, meramente, por meio de um entre eles1. 49 N.A.: Cf. a minha Philosophie der Arithmetik (Filosofia da aritmética -18 9 1 ), p. 232. 50 A este período corresponde em A: Assim, o gênero rfigura espacial1 diferencia-se da respécie triângulo1 e esta, novamente, da espécie ínfima Triângulo determinado, em último caso1 no sentido em que rele "é o mesmo"1 em cada transposição e rotação. rA última dife­ renciação possível é oferecida pela descida ao triângulo determinado também segundo a sua posição absoluta, que é sempre um elemento abstrato e, em relação a todos os gêneros a que se subordina, um concreto relativo.1

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em tais exemplos, que o gênero dos momentos de unidade está determinado pelo gênero dos conteúdos que o fundam e que, da mesma forma, a diferença ínfima da primeira está determinada inequivocamente pela da última. Note-se, além disso, que, nos momentos de unidade, devem ser distinguidos momen­ tos ou formas do primeiro, segundo, terceiro... níveis, segundo a forma esteja fundada imediatamente em conteúdos absolutos51 ou já em tais formas de pri­ meiro grau, ou, posteriormente, em formas que estão elas próprias, novamente, fundadas em formas do primeiro nível, e assim por diante. Vê-se, além disso, que os conteúdos formais de nível superior estão necessariamente entrelaçados num todo com a série ascendente das formas de nível inferior e, com isso, neste entrelaçamento, sempre se apresentam formas complexas relativas aos elementos absolutos que fundam em último lugar. Na esfera das figuras sensíveis comple­ xas, sobretudo na das visuais e acústicas, isto pode ser facilmente exemplificado, enquanto a situação geral deve ser vista a priori a partir de conceitos.

pondente à mera “forma” do pensar"!, que indica ro correlato de uma certa"1 unidade do visar, rrelacionada com todos os objetos ocasionais"!. Os próprios objetos não fundam, na medida em que estão apenas reunidos pelo pensamen­ to, nem à maneira de grupos, nem todos em conjunto, um novo conteúdo; não lhes é proporcionada, por meio da intenção unitária, nenhuma forma coisal de enlace, eles são, talvez, “em si mesmos não ligados e sem relação”. Isto se mostra no fato de que a forma conceituai é totalmente indiferente diante da sua matéria, quer dizer, que ela pode permanecer nas variações completamente arbitrárias dos conteúdos captados.55 Mas um conteúdo fundado depende da “natureza” particular dos conteúdos fundantes; existe uma lei “pura”, que torna o gênero do conteúdo fundado dependente dos gêneros determinadamente designados dos conteúdos fundantes. Em geral, um todo, em sentido completo e autêntico, <290> é uma conexão determinada pelos gêneros inferiores das “partes”. A cada unidade coisal pertence uma lei. De acordo com as diferentes leis, em outras palavras, de acordo com os diversos tipos de conteúdo que devem funcionar como partes, determinam-se diversos tipos de todos. Por conseguinte, o mesmo conteúdo não pode, por livre-arbítrio, funcionar uma vez como parte deste tipo de todo, outra vez como parte daquele tipo. O ser parte e, mais proximamente, o ser parte deste tipo determinado (do tipo parte metafísica, física ou lógica, e tudo o que ainda puder ser distinguido) funda-se na rpura"i determinidade es­ pecífica dos conteúdos respectivos segundo leis, que, no rnosso sentido"1,56 são leis a priori rou leis de essência"!. Este é um conhecimento fundamental que, à medida, certamente, do seu significado, tem de ser tratado e, por isso, também formulado alguma vez. Com ele, o fundamento de uma teoria sistemática das relações de todos e partes é ao mesmo tempo dado de acordo com as suas for­ mas puras, de acordo com os seus tipos categorialmente definíveis e passíveis de serem abstraídos da matéria sensível dos todos. Antes de perseguirmos esse pensamento, temos ainda de afastar um re­ ceio. A forma da representação é uma forma puramente categorial e, em opo­ sição a ela, aparece-nos a forma do todo, da unidade de fundação, como uma forma material. No entanto, no parágrafo anterior, não se disse que a unidade (e falou-se, precisamente, de unidade rpor meio dei57 fundação) é um predicado categorial? Entretanto, deve-se prestar aqui atenção a quer, no sentido da nossa doutrina, a ideia de unidade ou de todo está baseada na de fundação e esta, de novo, na de lei pura; além disso, quei a forma da lei em geral é uma forma ca-

§ 23. Formas categoriais de unidade e todos No sentido da definição do conceito de todo, aqui procurada, uma mera súmula de quaisquer conteúdos (um mero <289> estar em conjunto52) não pode ser chamada um todo, tão pouco quanto uma igualdade (como um ser do mesmo tipo) ou distinção (ser de tipo distinto, ou, noutro sentido: ser não idêntico).53 “Súmula” é a expressão para uma Qmidadei54 “categorial” rcorres51 52 53

Em A segue-se: Tundados1. Em A segue-se: momeadamente, ser visado em conjunto1. N.A.: Da igualdade como unidade categorial deve distinguir-se o momento da igualdade sensível, o qual se relaciona com aquele precisamente como os caracteres sensíveis dos conjuntos, que nos servem como indícios da multiplicidade e da não identidade, se rela­ cionando com as próprias multiplicidade e não identidade. Cf. ra minha Philosophie der Arithmetik, p. 233. Em geral, este meu primeiro escrito (a reelaboração da minha tese de habilitação em Halle, do ano de 1887, não publicada e apenas em parte impressa) deve ser confrontado em relação a todas as realizações da presente obra sobre conteúdos, momen­ tos de unidade, complexos, todos e objetos de nível superior. Devo, acerca disto, exprimir o meu lamento pelo fato de nos muitos e novos tratamentos da doutrina das "qualidades de figura" este escrito ter permanecido geralmente sem ser notado, apesar de, todavia, uma parte considerável das realizações posteriores de Cornelius Meinong entre outros, sobre as questões de análise, de captação da multiplicidade, de complexos, se encontrar já, quanto ao pensamento fundamental, na Philosophie der Arithmetik, mesmo que com outra terminologia. Quer-me parecer que ainda hoje seria de utilidade, para os temas fenomenológicos e ontológicos em questão, ver com cuidado a Philosophie der Arithmetik, sobretudo porque ela é o primeiro escrito que se dedicou aos atos e objetos de ordem superior e os investigou pormenorizadamente.1 [A: r Philosophie der Arithmetik, I, p. 233.1] 54 A: rou uma "pura forma do pensar"1.

55 "Aditamentos e Melhoramentos" a A: rO conceito aqui em causa de matéria, que tem o seu oposto na categoria, será distinguido de outros conceitos de matéria na 65 Investigação, § 42, p. 608, sob o nome de material.1 56 A: raté num certo sentido1. 57 A: ra partir da1.

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Cap. II • Pensamentos para uma Teoria das Formas Puras dos Todos e das Partes

tegorial (a lei não é nada rque tenha conteúdo, por conseguinte, nadai que se possa perceber) e que, nessa medida, por conseguinte, também o conceito de todo de fundação é um conceito categorial. Todavia, o conteúdo da lei perten­ cente a cada um de tais todos é determinado pela particularidade material dos tipos de conteúdo fundantes e, rem sequência posterior, dos fundados"!, e esta lei determinada pelo conteúdo <291 > é o que dá ao todo a sua unidade. 58Por isso, chamamos ra cada particularidade ideal possível da ideiai de tal unidade, com razão, uma runidade"i material ou também real. De acordo com as nossas exposições anteriores,59 as leis constitutivas dos diversos tipos de todos são leis constitutivas sintéticas a priori, em oposi­ ção às leis analíticas a priori , que pertencem às meras formas categoriais, tais como, por exemplo, à ideia de forma do todo em geral e a todas as particula­ rizações meramente formais desta ideia. Queremos, no seguimento, salientar tais particularizações.“1

significação, as substituições correspondentes de puros pensamentos categoriais por pensamentos materiais.63 Características formais, que são para levar a cabo de forma puramente categorial, são, neste sentido, as diferenças entre partes abstratas e pedaços, tal como se conclui, sem mais, das nossas definições anteriores. A questão é que, se estas definições tiverem de ser interpretadas convenientemente, de acordo com a nossa tendência atual para uma formalização última, teria de lhes sub­ jazer o puro conceito de todo, no sentido da nossa última definição. Também a diferença entre partes próximas e afastadas, que clarificamos anteriormente64'65 de forma meramente descritiva, a partir de exemplos, deixa-se agora reduzir à mera forma de certas relações de fundação e formalizar completamente. Nos nossos exemplos, vimos mais acima que, numa sequência de níveis de despedaçamento, de muitos todos intuíveis resultavam, continuamente, pe­ daços do próprio todo, os quais, em relação ao todo, se encontravam à mesma distância e, precisamente da mesma forma, poderiam ser considerados como resultado de um primeiro despedaçamento. A sequência dos despedaçamentos, nestes exemplos, rnão estava pré-indicada pela essência do todo"1,66 O que aqui é posto em questão é, em primeiro lugar, a proposição segundo a qual pedaços de pedaços do todo são, novamente, pedaços do todo, uma proposição que, mais aci­ ma67 (apenas por outras palavras),68 provamos de modo puramente formal. Em segundo lugar, trata-se com isso de pedaços para os quais a sequência do despe­ daçamento era insignificante, pois a ela não correspondia nenhuma sequência de níveis na fundação. Relativamente ao todo, todos os pedaços se encontravam, sempre na mesma relação de fundação. Assim, faltava aquela <293> distinção na forma da relação com o todo, todas as partes estavam “contidas no todo do mesmo modo”. A coisa era já totalmente diferente quando desmembrávamos unidades estéticas, por exemplo, a figura de uma estrela, composta novamente por figuras de estrelas, que, por fim, são compostas de linhas e, finalmente, de pontos. Os pontos fundam as linhas, as linhas fundam, como novas unidades estéticas, as estrelas singulares e estas, de novo, fundam ra configuração da es­

§ 24. Os tipos puramente form ais1 de todos e de partes. O postulado de uma teoria a priori De acordo com a forma pura da lei, determinam-se as formas puras de todos e de partes. Com isso, impõe-se apenas o universal formal da relação de fundação, tal como está cunhado na definição, assim como, também, os com­ plexos a priori que ele possibilita. Elevamo-nos, em qualquer tipo de todo, à sua pura forma, ao seu tipo categorial, na medida em que “abstraímos” da par­ ticularidade do tipo de conteúdo em questão. rDito'160 mais claramente, ressa “abstração” formalizante é algo de completamente diferente daquilo que, habi­ tualmente, se tem diante dos olhos sob o nome de abstração, por conseguinte, uma realização completamente diversa daquela que salienta, por exemplo, o “vermelho” geral a partir de uma doação visual concreta, ou o momento espe­ cífico “cor” a partir do vermelho já abstraído. Formalizando, colocamos"161 no lugar do nome rque designa o tipo de conteúdo correspondente"! ,62 expressões indeterminadas do gênero: um certo tipo de conteúdo, um certo tipo de conteúdo diferente etc.; e, com isso, ao mesmo tempo, encontram-se, <292> do lado da

58

59 60 61 62

Daqui até o final do § 23 corresponde em A: Por isso, chamamos a restan unidade, com razão, uma unidade real ou materiak Por outro lado, isto não quer dizer que ela seja uma unidade com uma forma sensível que se possa abstrair.1 N.A.: rCf. §§ 11 e segs., p. <255> e segs.1 A: rPara falar1. A: restabelecemos que1. A: rque a designa1.

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63 N.A.: rCf. sobre o papel da formalização para a constituição da ideia de uma lógica pura como mathesis universalis o vol. I, §§ 67-72. Acentue-se ainda que, onde nós próprios fala­ mos, pura e simplesmente, de abstração, tal como até agora, o que é visado é o salientar de um momento independente de conteúdo, a saber, sob o nome de uma abstração ideadora a ideação correspondente, e não, por conseguinte, a formalização1. 64 N.A.: Cf. § 19, p. <275>. 65 Em A, em vez da nota de rodapé, segue-se: r(§ 19)1. 66 A: rera algo de meramente subjetivo, na própria coisa não existia nenhuma ordem natural1. 67 N.A.: P. <268>, proposição 3. 68 Em A faltam os parênteses.

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trela, como a unidade superior no caso dado1.69 Os pontos, as linhas, as estrelas e, por fim, as configurações de estrelas não estão agora coordenadas umas com as outras, tal como, por exemplo, as partes de reta de uma reta; a elas pertence uma sequência fixa de níveis de fundação, na qual o fundado de um nível se transforma em fundante do nível superior próximo e, na verdade, de tal modo que, sob cada nível, são determinadas formas novas e só atingíveis neste nível. Podemos juntar aqui o princípio universal: Os pedaços são, essencialmente, partes imediatas ou mais afastadas do todo, do qual são partes quando estão unidos com outros pedaços por meio de formas de enlace, que constituem, elas próprias, de novo, por meio deformas novas, todos de ordem superior. A diferença entre as partes mais próximas ou mais afastadas relativamen­ te ao todo tem aqui, por conseguinte, o seu fundamento essencial na distinção formalmente expressa das relações de fundação. O mesmo se mostra no círculo dos momentos independentes, a saber, quando levamos em conta a diferença formal essencial entre aqueles momentos que só podem satisfazer no todo completo a sua necessidade de complemento, e aqueles que já o podem em pedaços do todo. Isto produz de novo uma diferen­ ça no modo da solidariedade, na forma da fundação: de acordo com ela, umas partes, tais como, por exemplo, a extensão total da coisa percebida, pertencem exclusivamente à coisa como todo, outras partes, tais como, por exemplo, a ex­ tensão de um pedaço, pertencem especialmente a este pedaço e só mais afastadamente ao todo. Este caráter mediato não é mais algo de não essencial, como os pedaços de segundo nível na divisão de uma reta, mas, sim, algo de essencial, que deve ser caracterizado por meio da natureza formal da relação. <294> De novo, e a partir de fundamentos manifestamente semelhantes, pedaços de mo­ mentos dependentes e próximos do todo se encontram mais afastados do todo do que, justamente, estes momentos; assim, pelo menos no caso de ser exata a pro­ posição que encontramos como válida no âmbito da intuição, tais pedaços só podem ser fundados imediatamente num pedaço do todo. Também a proposi­ ção seguinte pode ser formalmente expressa: partes abstratas de partes abstratas estão mais longe do todo do que estas últimas. De um ponto de vista formal, po­ demos em geral dizer: as partes abstratas estão mais afastadas do todo, são partes essencialmente mediatas, quando a sua necessidade de complemento é satisfeita na esfera de uma mera parte. Esta parte pode, então, ser ela própria já uma par­ te do todo, ou ter ainda necessidade de um complemento posterior. O caráter mediato, neste último caso, reside no fato de a lei do complemento, na qual se encontra a forma da fundação, remeter para um todo na parte abstrata origina-

riamente considerada que, graças a uma nova lei de complemento, é e tem de ser parte de um todo mais abrangente: precisamente, do todo completo que, com isso, contém apenas mediatamente a primeira parte. Por conseguinte, podemos também dizer: as partes abstratas do todo, que não são partes abstratas de um pedaço, estão mais próximas do todo do que as partes abstratas do pedaço. Esses pensamentos só querem ser e só podem ser considerados como meras sugestões para um tratamento futuro da doutrina do todo e das partes. Uma realização efetiva da teoria pura, que temos aqui diante dos olhos, teria de definir todos os conceitos com exatidão matemática e deduzir os teoremas por meio de argumenta in forma, isto é, matematicamente. Assim, resultaria um panorama legalmente completo sobre as complicações apriori possíveis nas formas dos todos e das partes e um conhecimento exato das relações possíveis nesta esfera. Que o objetivo é alcançável, isso é algo que foi mostrado neste ca­ pítulo pelos pequenos começos de um tratamento puramente formal. Em todo caso, o progresso das configurações conceituais e das teorias vagas para as mate­ maticamente exatas é aqui tanto quanto em toda a parte a pré-condição de uma intelecção completa rna conexão apriorP e a exigência irrecusável da ciência.

Para concluir, acrescente-se uma nota talvez não destituída de interesse. Que os pedaços, considerados na relação com o todo de que são pedaços, não podem ser fundidos entre si, nem unilateralmente nem reciprocamente, nem como um todo, nem segundo as suas partes, é uma proposição analítica. rPor outro lado, de forma alguma deve-se concluir, a partir do conteúdo das definições normativas, a impossibilidade de os pedaços1,7071em relação a um todo mais abrangente, nos quais todos eles têm o valor de momentos dependentes, fundamentarem uma relação de fundação. rMas, de fato , não encontramos171 nenhum exemplo no âmbito rque nos é acessível1 da pura intuição e evidência, e, com isso, conectam-se precisamente neste âmbito relações parciais dignas de nota. Nomeadamente, poderíam osr, num sentido mais amplo,1 exprimir a se­ guinte proposição fenomenológica: a cada pedaço, num elemento abstrato que lhe seja relativo, corresponde um pedaço em cada um dos seus elementos con­ cretos que lhe são relativos, e, na verdade, de tal modo que os pedaços que se excluem do primeiro fundam pedaços que se excluem em cada um dos últimos. Em outras palavras: o despedaçamento de um momento dependente condiciona

69 A: rcomo a unidade superior no caso dado, a configuração da estrela1.

70 A: rA priori, não nos estorva, porém, que eles1. 71 A: rNão encontramos certamente1.

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<295> § 25. Complementos sobre o desmembramento dos todos pelo desmembra­ mento dos seus momentos

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um despedaçamento do todo concreto, na medida em que os pedaços que se ex­ cluem, sem surgirem eles próprios numa relação de fundação recíproca, atraem para si novos momentos, por meio dos quais podem ser substituídos, então, singu­ larmente, por pedaços do todo. Alguns exemplos para esclarecimento. O despedaçamento da extensão rquase espacial"!7273de um conteúdo visual, que dura sem se modificar, mas con­ siderado na abstração do momento temporal, determina também um despeda­ çamento deste mesmo conteúdo. rO mesmo acontece com as doações intuitivas espaciais, em relação a despedaçamentos espaciais.1 Os pedaços espaciais separa­ dos fundem, uns diante dos outros, momentos complementares independentes: a coloração de um <296> pedaço não está, na verdade, fundada pela coloração de um outro qualquer; e, nessa medida, também é possível dizer que estes mo­ mentos complementares serão despedaçados pelo despedaçamento do espacial que os fundam, ou que eles se repartem, como pedaços, pelos pedaços do espa­ cial. As colorações dos pedaços estão na mesma relação de divisão (exclusão, inclusão, cruzamento) que os próprios pedaços. Esta situação peculiar, que aqui traz consigo, ao mesmo tempo, o despedaçamento de um momento e o despe­ daçamento do todo, consiste, claramente, em que os pedaços do momento não se fundam, também, uns nos outros, no todo mais abrangente, mas, a cada vez, ne­ cessitam de novos momentos para a sua fundação; todavia, ao mesmo tempo em que estes mesmos novos momentos também encontram de novo a sua fundação necessária apenas naqueles pedaços, mas não uns nos outros reciprocamente. Precisamente a mesma coisa acontece com os todos temporais da intui­ ção: se despedaçarmos a duração de um decurso temporal concreto, despedaçamo-lo a ele próprio: às seções do tempo correspondem seções do movimento (pelo que temos de entender este termo no mais amplo sentido aristotélico). O mesmo vale para o caso do repouso; também ele tem as suas seções, que têm de valer como pedaços no sentido da nossa determinação, pois o repouso durante uma duração parcial e o repouso durante uma qualquer outra duração parcial de nenhum ponto de vista se encontram numa relação evidente de fundação. 73Passa-se algo de completamente diferente quando, em vez de nos restrin­ girmos rà esfera das doações essenciais que devem ser investigadas na intuição1, levamos antes em consideração as conexões rempírico-reais da natureza1.

("Todavia, essa passagem obriga a um alargamento dos conceitos. Referimos todas as configurações de conceitos à esfera pura da essência, as leis de fundação encontravam-se sob leis puramente essenciais, as partes eram, no todo, essencial­ mente uma só com base nas conexões apriori das ideias correspondentes às partes e aos momentos. <297> Por outro lado, no que diz respeito à natureza com todas as suas coisas, ela também tem, seguramente, o seu a priori, cuja elaboração e desdobramento sistemáticos são a tarefa ainda não resolvida de uma ontologia da natureza. De antemão, porém, não há dúvida de que as leis da natureza, no sentido habitual, não pertencem a este a priori, a esta “forma” pura e universal da natureza, que elas não têm o caráter de verdades essenciais, mas, sim, de verdades de fato. A sua universalidade, por conseguinte, não é “pura” ou “incondicionada” e, preci­ samente do mesmo modo, a “necessidade” de todos os seus acontecimentos coisais subordinados está afetada pela “contingência”. A natureza, com todas as suas leis físicas, é, justamente, um fato, que poderia ser de outro modo. Se tratarmos, então, as leis da natureza, sem repararmos neste estar afetado pela contingência, como leis efetivas, se referirmos a elas todos os conceitos puros cunhados por nós, obteremos, então, ideias modificadas: de fundação empírica, de todo empírico, de independências e dependências empíricas. Mas se pensarmos na ideia de uma natureza fática em geral, cuja particularização singular é a nossa natureza dada, obteremos, então, ideias universais e não ligadas à nossa natureza, ideias de todos empíricos, independências empíricas etc., e, na verdade, ideias que, claramente, são constitutivas da ideia de uma natureza em geral e que se devem subordinar às relações essenciais que lhe pertencem, numa ontologia universal da natureza. Pressuposto isso, regressemos à nossa questão particular. Enquanto, na esfera essencial material, não encontramos nenhum exemplo onde um des­ pedaçamento de um momento independente, por exemplo, de um momento espacial ou temporal, não traga consigo o despedaçamento do todo concreto, passa-se algo de diferente no âmbito de todas as conexões empírico-reais em coexistência e sucessão. Isto1 se tornará claro quando refletirmos sobre o senti­ do das referências rempíricas1 necessárias, que enlaçam umas nas outras coisas separadas espacial e temporalmente. Se, de acordo com uma determinada lei de causalidade, numa sucessão de modificações concretas num espaço de tempo f - tQ,for acrescentada, necessariamente, uma certa nova sucessão no espaço de <298> tempo confinante t2 - t , a primeira perde, por isso, a sua independência em face da última. Se, então, pertencem rontologicamente (como encerradas na ideia da natureza em geral),1 a qualquer decurso concreto de modificação deste gênero, leis determinadas r- e que só podem ser conhecidas empiricamente, de

72 A: espacial1. 73 Daqui até "... em coexistência e sucessão. Isto" corresponde em A: Passa-se algo completa­ mente diferente quando, rem vez de nos restringirmos aos conteúdos intuitivos e às lega­ lidades que neles se fundam de forma evidente1, levamos antes em consideração as cone­ xões Teais em coexistência e sucessão1, ra cujo conhecimento só chegamos pelo caminho a posteriori da indução. Que, aqui, um despedaçamento do momento espacial e temporal não traz consigo, sem mais, o despedaçamento do todo concreto (da coisa ou do decurso real de modificação)1 tornar-se-á claro quando discutirmos o sentido bestas1 referências

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necessárias, rnão evidentemente óbvias, mas supostas com verosimilhança,1 que enlaçam umas nas outras coisas separadas espacial e temporalmente. P. <297>, linha 27: mão1 falta em B. Foi acrescentado na 3ã edição.

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acordo com a sua essência - 1 que lhe destinam certas consequências necessárias que lhe são temporalmente contíguas; e se, por excesso, cada uma tem de ser de novo, ela própria, uma consequência necessária de antecedentes prévios; com isso, já se disse que cada decurso de modificação concreto rda natureza"1 não é independente em relação à totalidade mais abrangente do tempo na qual se realiza e que, por conseguinte, nenhum despedaçamento de uma extensão tem­ poral condiciona o despedaçamento da totalidade do tempo concreto que lhe pertence. Por certo que a restrição a decursos de modificação não é necessária, nem, rigorosamente considerada, sequer admissível. Tal como a mecânica con­ sidera o repouso e o movimento sob um certo ponto de vista; tal como capta o repouso como caso limite e especial do movimento; temos também de proceder analogicamente com o conceito mais alargado, no sentido da terminologia aristotélica. Também o caso fictício de um '"“repouso”"174 isolado e fixo, válido para todo o mundo, não está subtraído às leis da causalidade pormenorizadamente formuladas. Se pensarmos numa extensão temporal, por menor que seja, com um conteúdo concreto, numa fixa imutabilidade r, no caso de a ideia de natureza permitir isto como possibilidade de pensar,"1 e se pensarmos em toda a efetivi­ dade real, durante todo este tempo, reduzida a este ser imutável; então, ra lei da causalidade exige seguramente que"1 ela, a parte post, tenha de permanecer imutável por toda a eternidade (ao passo que surgiu aparte ante, seja do repou­ so eterno, seja de uma modificação regida por leis). Tendo em vista as conside­ rações causais, às quais nenhum ser temporal se subtrai, deveríamos também afirmar que um despedaçamento de um momento de tempo nunca traz consigo o despedaçamento do todo concreto do tempo. Os momentos complementares que pertencem aos pedaços temporais são, na verdade, separados de acordo com os pedaços do tempo, mas esta separação não leva ainda a termo, no tempo concreto, nenhum despedaçamento; isto é impedido justamente pela fundação causal recíproca dos conteúdos temporalmente separados. <299> O mesmo tem de se passar, naturalmente, com o despedaçamento espacial, pelo menos no todo no qual a extensão espacial e a temporal se reco­ brem, de tal modo que, com cada despedaçamento de um momento, é dado o despedaçamento do outro, e vice-versa. Assim como o despedaçamento do momento espacial de um movimento, o despedaçamento de seu momento tem­ poral também não condiciona o despedaçamento do próprio movimento. Dessas considerações também vem à tona o fato de q u e,rno interior do tem­ po objetivo, o tempo da natureza,"1 os espaços de tempo, que possuem in abstrato, tendo em vista qualquer extensão de tempo que os abranja, o caráter de pedaços, perdem também, juntamente com este caráter, a independência recíproca, quando os consideramos em relação com uma unidade concreta temporalmente preenchi­

da, na qual residem como momentos dependentes. A proposição segundo a qual cada rduração temporal objetiva"175 é uma mera parte do tempo, que não apenas permite o alargamento bilateral in infinitum, mas também o exige, é, como facil­ mente se pode ver, uma mera consequência da causalidade e tem, com isso, uma referência ao preenchimento do tempo. Por meio dela, a parte do tempo torna-se uma parte não autônoma, não apenas em vista do seu preenchimento por si, mas também tendo em vista as partes adjacentes do tempo e os seus preenchimentos. Esta não autonomia das partes do tempo e a sua fundação recíproca rencontramse subordinadas a leis que não enlaçam apenas, em geral, espaços de tempo com espaços de tempo, mas, sim,"176qualquer todo do tempo concretamente preenchido com quaisquer todos do tempo. Porque nestas leis, ao lado das variáveis restantes, que apresentam momentos do conteúdo preenchido do tempo, os tempos, ou os espaços de tempo, também funcionam como variáveis que se influenciam recipro­ camente, estes espaços de tempo obtêm também, mediatamente, uma relação de fundação, em relação com a unidade concreta mais abrangente. O mesmo aconte­ ce, naturalmente, com pedaços do espaço em relação com unidades de espaço mais abrangentes e, finalmente, com a totalidade infinita do espaço rda natureza"1. Tam­ bém a proposição segundo a qual cada pedaço do espaço exige um alargamento em todas as direções, ou - como aqui temos de dizer com mais exatidão - a possibili­ dade real de alargamento em todas as direções e, na verdade, até à infinitude <300> do único espaço, é uma consequência certa de leis causais, ou melhor, de certas leis da natureza. O fato de alargarmos arbitrariamente, em fantasia, porções do espaço ou do tempo, o fato de nos podermos transplantar, em fantasia, para cada limite do espaço ou do tempo, com o que rsurgem"177 sempre diante do nosso olhar interior, continuamente, novos espaços e tempos, tudo isto não comprova a fundação rela­ tiva dos pedaços do espaço e do tempo, não comprova a necessidade de o espaço e o tempo terem de ser realiter infinitos, ou de poderem ser também infinitos apenas realiter. Isso só pode ser provado por uma legalidade causal, que pressupõe e, com isso, exige a possibilidade de prosseguir para além de qualquer limite dado.747568

74

Em A faltam as aspas.

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75 A: respaço de tempo1. 76 A: rsão imediatas, nessa medida não existem leis que enlacem exclusivamente espaços de tempo com espaços de tempo, mas antes apenas tais1. 77 A: rsurgiriam1. 78 Em A, segue-se ainda o seguinte parágrafo: rAceitam-se ainda a posteriori as conexões causais, no caminho da indução e da verosimilhança; em todo o caso, elas são possíveis a priori, são evi­ dentes como possibilidades. Por conseguinte, se nos quisermos aqui restringir ao que pode pre­ ceder a investigação científica especial e, por conseguinte, não a pressupõe, teremos, pelo me­ nos, de distinguir como casos possíveis aqueles que apresentamos mais acima como efetivos: a saber, os casos em que os pedaços de um momento não autônomo, considerados do ponto de vista de um todo mais abrangente e mais concreto, podem surgir numa relação de fundação, em oposição aos casos em que isto não acontece e onde, eventualmente, o despedaçamento dos momentos independentes pode atrair a si um despedaçamento do todo concreto1.

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<301> a d if e r e n ç a e n t r e s i g n i f i c a ç õ e s i n d e p e n d e n t e s e d e p e n d e n t e s e a id e ia d e g r a m á t ic a p u r a 12

In t r o d u ç ã o

Nas reflexões seguintes, queremos voltar a nossa atenção para uma dife­ rença fundamental no domínio das significações, diferença que se oculta por trás de distinções gramaticais pouco perceptíveis, a saber, das distinções entre expressões categoremáticas e sincategoremáticas, completas e incompletas. A clarificação de tais distinções conduz a uma aplicação da nossa distinção geral entre robjetos“12 independentes e dependentes ao domínio das significações, de tal modo que a distinção intentada na presente investigação deve ser caracte­ rizada como a distinção entre significações independentes e dependentes. Ela constitui o fundamento necessário para o estabelecimento das categorias essen­ ciais de significação <302> em que, como veremos já de seguida, se radica uma multiplicidade de leis de significação apriorísticas, que fazem abstração da vali­ dade objetiva (da verdade real ou formal, correspondentemente, da objetivida­ de) das significações. Estas leis, que regem a esfera das complexões de significa­ ções e que têm por função separar, nela, o sentido e o sem-sentido, não são ainda aquilo que se denomina como leis lógicas em sentido pleno; elas dão à lógica pura a s formas possíveis de significação, isto é, as formas apriori de significações complexas, unitariamente plenas de sentido, cuja verdade “form al”, ou seja, “ob­ jetividade”, as leis lógicas em sentido pleno de seguida regulam. Enquanto es­ tas primeiras leis impedem o sem-sentido, as últimas impedem o rcontrassenso formal ou analítico-1,3 o absurdo formal. Se essas leis puramente lógicas dizem o

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Aditamentos e Melhoramentos" a A: rÀ Investigação IV e, especialmente, ao parágrafo con­ clusivo da Introdução: se tomarmos o conceito de significação preenchedora de uma forma suficientemente lata, de modo a que ele compreenda a esfera total das intuições, sejam elas perfeitas, sejam simbolicamente mescladas, e se tomarmos, com isso, o conceito de intuição no sentido do alargamento ao domínio do categorial realizado na Investigação VI, § 45, deveremos, então, desenvolver completamente o "na maioria dos casos" na segunda linha do parágrafo conclusivo citado. "Significação" é, então, um equivalente de "essência intencional de um ato objetivante em geral", e todos os resultados da Investigação IV conti­ nuam a ser válidos para este conceito de significação (prevendo algumas modificações com­ preensíveis por si). Cf. o aditamento mencionado ao § 31, p. <185> [nota] e à Investigação II em geral; além disso, o Oitavo Capítulo da Investigação VI (particularmente, os §§ 62-65)1. A: rconteúdos\ A: rcontrassenso, isto é, a contradição formah.

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A Diferença entre Significações Independentes e Dependentes e a Ideia de Gramática Pura

que exige, apriori, a unidade possível do objeto, sob ofundamento da pura forma, então as leis da complexão de significações determinam o que exige a simples unidade do sentido, isto é, elas determinam segundo que formas apriorísticas as significações das diferentes categorias de significação, em vez de produzirem um sem-sentido caótico, se unem numa significação. A Gramática moderna acredita que se deve edificar exclusivamente com base na Psicologia e em outras ciências empíricas. Contra isto, desponta aqui para nós a visão evidente de que a velha ideia de uma Gramática Geral re, espe­ cificamente, de uma"i4 Gramática a priori recebe, por via da nossa comprovação da existência de leis que determinam as formas possíveis de significação, um fundamento indubitável, e, rem todo caso, uma15 esfera nitidamente delimita­ da de validade. rAté que ponto devem ser exibidas ainda outras esferas perten­ centes a uma Gramática a priori é uma questão que está, aqui, fora do quadro dos nossos interesses.1 No interior da Lógica pura, há uma esfera de leis que abstraem de toda e qualquer objetividade e que, diferindo das leis lógicas no sentido comum e pleno, se poderiam denominar, com boas razões, como leis rgramaticais puramente lógicas1 .6 <303> rOu melhor: contrapomos à doutrina pura das formas das significações a doutrina pura da validade das significações, que a pressupõe.17

Se, agora, numa significação parcial, encontramos novamente significa­ ções parciais, também podem surgir nestas de novo significações parciais; m a­ nifestamente, isto não pode, porém, continuar in infinitum. Por fim, na divisão contínua, deveremos nos deparar sempre com significações simples enquanto elementos. Que haja efetivamente significações simples é algo que nos ensina o exemplo indubitável do qualquer coisa. A vivência de representação que se consuma na compreensão da palavra é seguramente composta, mas não há na significação a menor sombra de composição.

§ 1. Significações simples e compostas Tomamos como ponto de partida a repartição, à primeira vista compre­ ensível, das significações em simples e compostas. Ela corresponde à distinção gramatical entre expressões ou discursos simples ou compostos. Uma expressão composta é uma expressão, porquanto tenha uma significação: enquanto expres­ são composta, ela constrói-se a partir de partes que são elas próprias, de novo, expressões e que têm, enquanto tais, de novo a sua própria significação. Se le­ mos, por exemplo, um homem de ferro; um rei que conquista o amor dos seus súditos, e proposições semelhantes, impõem-se-nos, como expressões parciais, homem, ferro, rei, amor etc.

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A: re até mesmo1. A: rao mesmo tempo, uma1. A: tpuramente gramaticais'. A (num novo parágrafo): rA natureza das distinções a examinar traz consigo o fato de que, no seu círculo, se possa compreender, na maioria dos casos, sob o título de significações, tanto as significações intencionantes como as preenchedoras. Isso se deve à correspondência ja indicada, e que se deverá delimitar mais precisamente nas partes posteriores desta obra, entre os atos da intenção e do preenchimento, ou seja, entre os seus conteúdos ideais.1.

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§ 2. Será que o caráter composto das significações é um simples reflexo do caráter composto dos objetos? Por mais claro que isso pareça, impõe-se, porém, todo tipo de perguntas e de dúvidas. <304> De início, a pergunta sobre se a composição ou a simplicidade das significações8 é um simples reflexo da composição ou simplicidade dos objetos nelas Hrepresentados segundo o modo do significai ,9 Num primeiro momen­ to, talvez isso se pudesse admitir. A representação põe o objeto diante de nós e é a sua imagem espiritual. No entanto, a menor reflexão mostra que esta metáfora das imagens engana, tanto aqui como em muitos outros casos, e que o para­ lelismo pressuposto não existe de nenhum dos lados. Primeiro: significações compostas podem “representar” objetos simples. Um exemplo tão claro quanto decisivo nos é oferecido pela nossa própria expressão objeto simples. É, neste caso, completamente indiferente que haja ou não um tal objeto.10 Mas é também verdade que, inversamente, significações simples rpodem representar” objetos compostos, que com eles se relacionam precisamente se­ gundo o modo do significar1.n Podemos duvidar (se bem que infundadamente, em minha opinião) se, nos exemplos acima, os nomes simples (homem, ferro, rei e semelhantes) dão expressão a efetivas isignificações simples1;12 dever-se-á, po-

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N.A.: Poderíamos do mesmo modo dizer: das representações. Pois, com a resposta à per­ gunta específica, está também obviamente respondida a pergunta mais geral, que se refere às representações em geral r(aos atos objetivantes em geral)1. 9 A: representados1. 10 N.A.: Twardowski (loc. cit, p. 94) abandona manifesta mente todo o campo das decisões que devem ser tomadas, quando objeta a Bolzano (que nós aqui seguimos) que não há quaisquer objetos simples. Cf. a própria maneira de questionar de Twardowski, loc. cit, p. 92, onde fala expressamente de objetos representados. rTrata-se aqui de objetos significa­ dos enquanto tais.1 11 A: representam objetos compostos1. 12 A: representações simples1.

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A Diferença entre Significações Independentes e Dependentes e a Ideia de Gramática Pura

rém, admitir a validade de nomes como qualquer coisa e um. Com estes é claro que, noa sua indeterminação, se podem referir a tudo o que seja possível, por con­ seguinte, a todo e qualquer objeto composto"! ?13se bem qUe? certamente, do modo mais indeterminado de todos, precisamente enquanto qualquer coisa simples. <305> Além disso, é claro que, também quando ruma significação com­ posta está referida a um objeto composto"1,14 não corresponde a cada parte da significação uma parte do objeto, e ainda menos inversamente. Sem dúvida que Twardowski contestou o exemplo pertinente de Bolzano “país sem montanhas”; mas esta contestação esclarece-se pelo fato de que ele ridentifica significação e re­ presentação intuitivamente direta do objeto significado"1,15 ao passo que lhe esca­ pa inteiramente o conceito fundamental, só ele logicamente determinante, de sig­ nificação. Daí que caia no erro de conceber elementos integrantes da significação (“sem montanhas”) como “representações auxiliares sob o modo de étimos”.16178920

complexas que nós compomos paulatinamente, analisando numa direção obje­ tiva o conteúdo da representação Schultze, sob a forma um A, que é a, /}, y... 21Com um exame mais detido, notamos que se deve distinguir aqui um duplo sentido de simplicidade e composição, de tal modo que a simplicidade, tomada num desses sentidos, não exclui a composição no outro sentido. De início, deveremos recusar sem margem para dúvidas a interpretação da signifi­ cação própria como uma significação articulada em significações e, deste modo, como uma significação composta; ao mesmo tempo, deveremos, porém, con­ ceder que, aqui, a consciência de significação contém efetivamente em si uma certa complexão r, certamente muito carecida de clarificação"!. rNa verdade, é certo que tudo o que a explicação subsequente e a apreensão conceituai fazem sobressair como determinação do Schultze, nomeado e representado com um certo conteúdo, fornece sempre novas significações e não, digamos, significa­ ções parciais, realmente implicadas na significação original, que apenas careces­ sem de ser postas em relevo. A significação própria é indubitavelmente simples. É sobretudo claro que o teor representativo, com o qual este Schultze é repre­ sentado em unidade com o nome próprio, pode variar de múltiplas maneiras, enquanto o nome próprio funciona, porém, com uma significação idêntica, no­ meando sempre “diretamente” o mesmo Schultze. Por outro lado, não se trata de representações contingentes anexas à consciência de significação, mas antes de um acervo necessário, mesmo que mutante do ponto de vista do conteúdo, sem o qual a significação atual não pode obter a sua direção para o objeto sig­ nificado e, portanto, não pode, em geral, existir como significação. Para usar o nome próprio com sentido, devemos representar o que é nomeado propriamen­ te, aqui uma determinada pessoa Schultze, como esta pessoa determinada com um qualquer conteúdo. Por mais não intuitiva, <307> escassa, vaga ou indeterminadamente que ela possa ser representada, o conteúdo de representação não pode faltar completamente. A indeterminação - que, de resto, é aqui uma indeterminação mesmo em larga medida necessária (uma vez que a representa­ ção intuitivamente mais viva e mais rica em conteúdo de uma coisa real é, por princípio, uma representação meramente incompleta e unilateral) - não pode, de modo algum, ser uma indeterminação completamente vazia de conteúdo. Ela transporta na sua essência, manifestamente, possibilidades de uma deter­ minação mais precisa, e isto certamente não segundo a direção que se queira, mas precisamente na direção da idêntica pessoa Schultze, visada no caso dado, e de nenhuma outra. Ou, coisa que é equivalente: pela sua própria essência, cada consciência de significação, tomada na sua plena concreção, fundamenta possibilidades de recobrimento preenchedor com intuições de um certo grupo e

§ 3. rComposição das significações e composição do significar concreto.117Signifi­ cações implícitas É certo que, em amplas classes de casos, surgem dúvidas ainda de um outro lado, a saber, quanto a decidir18 se uma dada significação vale como composta ou como simples. Se queremos conceber, por exemplo, a significação corresponden­ te a um nome próprio, numa palavra, a significação própria, como simples, então parece falar contra isso a circunstância de termos de asserir, num certo sentido manifestamente correto, que nos representamos com o nome Schultze, a título de exemplo (compreendido como nome de uma pessoa rconhecida119), um certo homem, portanto, um ser que possui todas as partes e propriedades que convêm em geral a um homem, assim como muitas peculiaridades individuais que dis­ tinguem essa pessoa das outras. Por outro lado, <306> hesitar-se-á, porém, em rcoordenar, no interior da significação própria, como suas significações parciais, as determinações atributivas, que vão sobressaindo sucessivamente, do objeto da significação própria, representado de um modo mais ou menos claro,120 ou mesmo em admitir que esta significação própria seja idêntica às significações 13 A: rna sua indeterminação, podem visar a tudo o que seja possível, por conseguinte, a todo e qualquer objeto composto1. 14 A: ra uma significação composta corresponde um objeto composto1. 15 A: rvê como significação a representação intuitivamente direta do objeto significado1. 16 N.A.: Twardowski, loc. cit, p. 98. 17 A: rO sentido pleno da composição de significações. Implícitos1. 18 Em A segue-se: rsem margem para dúvidas1. 19 A: rbem conhecida1. 20 A: rdesdobrar a significação própria em significações parciais1.

21 Em A não há novo parágrafo.

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não de outro. Fica, assim, claro que esta consciência, mesmo se ela é totalmente não intuitiva, leva necessariamente consigo um certo teor intencional por meio do qual o indivíduo é representado, ainda que não seja significado, não como uma coisa qualquer completamente vazia, mas, sim, como algo determinado e determinável segundo certos tipos (como coisa física, animal, homem etc.). Assim se mostra de início aqui, com a consciência de significação per­ tencente ao nome próprio, uma certa duplicidade, uma dupla direção em que se poderá falar de composição e, correspondentemente, de simplicidade. Uma das faces determina a simplicidade ou a composição da própria significação. Ela é, portanto, a face em que reside a pura essência do significar enquanto tal; apenas a ela pertence aquela essência intencional da consciência de significação concretamente plena que, captada especificamente, é a significação. No nosso caso do significar próprio, esta face é simples. Ela pressupõe necessariamente, porém, um teor intencional mais alargado enquanto plano de fundo, corres­ pondendo precisamente à circunstância de que o mesmo, que é significado com um sentido idêntico (ou seja, que é nomeado pelo mesmo nome próprio de um modo unívoco), pode ser “representado” de modo assaz diferente, com uma composição variável de notas características determinantes, e que deve sê-lo com uma composição qualquer - enquanto esta variação e a complexão desta composição não tocam, porém, a própria significação. Esse é o lado que fornece as possibilidades de explicitações e, em segui­ da, de apreensões predicativas da significação, do tipo das que consumamos quando, por exemplo, procuramos responder à questão de saber como que, como quão determinadamente <308> é representado, num dado caso, o objeto nomeado como Schultze. Por contraste entre estas formações, que complicam a consciência originária de significação, e esta própria, podemos pela primeira vez tornar clara a essência da distinção aqui tratada: a distinção entre vivências (concretas) que conferem a significação, que, a respeito do significar puramen­ te enquanto significar, são compostas (ou simples), e as que não o são senão num segundo aspecto, ou seja, segundo o teor representativo com o qual esta­ mos a cada vez conscientes daquilo que é significado. Manifestamente, como vimos acima, as significações que surgem com as explicitações predicativas da­ quilo que é a cada vez representado são concebidas de modo novo e não estão, de algum modo, realmente implicadas na significação original, na significação própria, em si mesma completamente simples. O nome próprio N nomeia (ou seja, a significação própria N significa) o objeto, por assim dizer, num só raio, que é em si uniforme e, assim, não é diferenciável no que diz respeito ao mes­ mo objeto intencional. Significações explicativas como N é a; (Na), que é b; Nb, que é a; e semelhantes, são polirradiais, constituindo-se, em qualquer caso, em múltiplos níveis e em diferentes formas, de tal modo que elas podem ir para um mesmo objeto com um diferente teor. A pluralidade de níveis não obsta

à sua unidade: elas são significações compostas unitárias. A respeito da pura significação, a consciência de significação correspondente é um significar, mas um significar composto."122 <309> Pressupusemos acima que o nome próprio223 seja de uma pessoa co­ nhecida. Isso implica que ele funciona normalmente e, por conseguinte, que ele não seja compreendido num sentido simplesmente indireto, como uma certa pes­ soa denominada Schultze. Esta última significação seria, naturalmente, composta. As dificuldades e tentativas de solução são, manifestamente, análogas para os casos em que se trata de muitas outras significações substantivas e, fi­ nalmente, também de certas rsignificaçõesi24 adjetivas entre outras; por exem­ plo, homem, virtude, justo e semelhantes. Deve ser ainda mencionado que a definição lógica, com a qual pomos um limite às dificuldades da análise das articulações, mas acima de tudo às flutuações da significação das palavras, é, naturalmente, apenas um artifício lógico-prático por meio do qual a significa­ ção não fica delimitada e internamente articulada no sentido próprio do termo. Aqui, uma nova significação com teor articulado será antes contraposta à sig­ nificação tal como ela é, ou seja, será contraposta enquanto norma de acordo com a qual nos devemos guiar nos juízos que se apoiam na significação em questão. Para evitar perigos lógicos, excluímos como inadmissíveis precisa­ mente os juízos em que as significações em questão não são substituíveis pelos

22 A: rPorque o nome próprio representa precisamente apenas esta pessoa, e sem dúvida de um modo direto, as múltiplas determinidades desta pessoa devem se manifestar na inten­ ção representativa; elas são, portanto, representadas de um certo modo; mas elas o são, por assim dizer, de um só lance, o são apenas implicitamente, não explicitamente. A signi­ ficação própria não é composta de significações, que estejam dirigidas para as determini­ dades objetivas (ou seja, para aquelas que constituem o objeto representado enquanto tal) enquanto intenções separadas. Somente as análises progressivas e os atos de atribuição ou predicação que se lhe seguem fornecem uma significação separada para cada nota caracte­ rística implicitamente intencionada. A representação articulada, que nasce deste modo, não é apenas subjetiva mente distinta da representação inarticulada original: como se os momentos singulares da última fos­ sem dissociados apenas para a nossa atenção subjetiva; pelo contrário, a comparação nos mostra que os dois atos são diferentes quanto ao seu conteúdo essencial, isto é, quanto às significações. A significação própria é, enquanto significação, simples, ela é sem articulação e forma do ponto de vista da significação, se bem que possa comportar em si momentos diferenciáveis, que correspondam a certas significações que funcionem como partes da significação a explicitar. A diferença mostra-se também no fato de <309> que há, para uma e a mesma significação simples, numerosas formas lógicas e, com isso, diferentes explica­ ções de acordo com o teor de significação. Pode-se observar que já formas imediatamente equivalentes, como um a, que é 6yÕ...; um a6, que é yÕ...; um 6, que é ayÕ... e semelhantes, são diferentes do ponto de vista da significação.1. 23 Em A segue-se: r, no nosso exemplo,1. 24 A: rsignificações de palavras1.

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seus equivalentes normais, e recomendamos ao mesmo tempo, como regra, utilizar tanto quanto possível, na atividade de conhecimento, estas significa­ ções normais das palavras ou regular as significações dadas por meio de uma frequente medição pelas significações normais e por meio de disposições de uso apropriadas no seu efeito cognitivo. rNota: A duplicidade nas intenções de significação, já tratada na primeira redação deste parágrafo, sofreu na presente nova redação uma formulação mais clara e fenomenologicamente mais profunda. Na concepção original deste livro, o autor não esgotou o sentido pleno e, com isso, também o alcance da distinção. O <310> leitor meticuloso notará que a Investigação VI não a toma devidamen­

§ 4. A questão sobre o valor significativo dos componentes “sincategoremáticos” das expressões complexas

te em consideração.125

25 A (Sem letras de corpo pequeno, num novo parágrafo): rComo resultado importante des­ tas considerações, impõe-se-nos um duplo conceito de composição e, com isso, tam­ bém de simplicidade. Num sentido, a composição consiste em partes, que possuem elas próprias de novo o carácter de significações. É precisamente um fato último que uma pluralidade de significações se possam conectar numa só significação. Digo "podem", i porque isto não acontece para toda e qualquer pluralidade de significações, como veremos; temos, então, um amontoado de significações, mas nenhuma significação unitária. Onde, por outro lado, a unidade da significação carece de um tal tipo de composição, vale ela como simples. Neste sentido normal, fala-se de significações compostas de modo análogo ao modo como se fala de máquinas compostas, números, figuras e coisas seme­ lhantes, sob as quais se entende máquinas que são compostas de máquinas, números que são compostos de números, figuras, de figuras. Se é necessário acentuar o sentido particular desta composição, então seria melhor falar de significações que são compostas enquanto significações.

Em segundo lugar, há significações que comportam em si certos momentos diferenciáveis, mas não sob a forma de significações articuladas separadas; elas não são compostas en­ quanto significações, mas o são certa mente enquanto conteúdos. De tais significações di­ zemos que elas implicam ou que têm um conteúdo implicado. Manifestamente será, então, válida a seguinte proposição: Para cada significação implicante há uma outra que articula ou explicita o seu conteúdo. Falar de significações compostas e simples poderia ser compreendido num sentido geral, que abarca igualmente as diferenciações aqui efetuadas, a saber, no sentido de que, em geral, apenas seriam contrapostas as significações com partes e as significações sem par­ tes. Esta generalidade deixaria, então, indecidida a questão de saber se as próprias partes são de novo significações ou não. (Simples, neste sentido generalíssimo, por conseguin­ te, em qualquer sentido, seria, manifestamente, a significação qualquer coisa; ela não e apenas simples enquanto significação, mas não teria também qualquer traço de conteúdo implicado.) No entanto, não seria recomendável que se falasse aqui de composição e de simplicidade neste sentido generalíssimo. Continuaremos a nos basear no sentido normal de composição e simplicidade, segundo o qual, portanto, as significações complexas sao compostas de significações.1.

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A consideração das significações compostas conduz imediatamente a uma diferenciação nova e fundamental. Tais significações nos são dadas normalmen­ te como significações de complexões articuladas de palavras. A respeito destas, levanta-se, porém, a questão de saber se a cada palavra da complexão está agrega­ da uma significação que lhe seja própria <3I1> e se, em geral, toda articulação e forma da expressão linguística têm de valer como o cunho de uma articulação ou forma correspondente da significação. Segundo Bolzano, “cada palavra da língua serve para a designação de uma representação própria, algumas também para a designação de proposições inteiras”;26 ele também atribui, portanto (sem, de resto, incluir explicações mais precisas), mesmo a cada conjunção ou preposição, uma significação que lhe é própria. Por outro lado, não é raro ouvir falar de pala­ vras e expressões que são “simplesmente cossignificantes”, isto é, que não possuem por si qualquer significação, mas antes a adquirem pela primeira vez em conexão com outras significações. Distingue-se entre expressões completas e incompletas de representações e, além disso, também entre juízos e fenômenos afetivos e volitivos, fundamentando-se nesta distinção o conceito de signo categoremático ou sincategoremático. É assim que Marty designa, com a expressão signo ou nome categoremático, “todos os meios de designação linguísticos que, não sendo sim­ plesmente cossignificantes (como do pai, em torno, não obstante e semelhantes), também não formam por si mesmos, porém, a expressão completa de um juízo (asserção), de um sentimento, de uma vontade e coisas semelhantes (pedidos, ordens, questões etc.), mas são simplesmente a expressão de uma representação. Ofundador da Ética, umfilho que ofendeu a seu pai, são nomes”.27Porque Marty e, com ele, também outros autores - compreende num mesmo sentido os termos sincategoremático e cossignificante e, sem dúvida, no sentido de signos “que não têm uma significação completa senão juntamente com outras partes do discurso, seja porque ajudam a despertar um conceito e são, por conseguinte, simples­ mente partes de um nome, seja porque contribuem para a expressão de um juízo (uma asserção) ou para a manifestação de um transporte afetivo ou volitivo”,28* seria propriamente mais consequente se concebesse com uma amplidão corres26 N.A.: B. Bolzano, Wissenschaftslehre (Doutrina da Ciência). Sulzbach, 1837, I, § 57. ^'Re­ presentação" significa aqui o mesmo que "representação em si", coisa que corresponde ao nosso conceito de significação.1 27 N.A.: A. Marty, Über Subjektlose Sätze Usw (Sobre Proposições sem Sujeito), III. Art., Vier­ tel]. f wiss. Philos.,. Ano VIII, p. 293, nota. 28 N.A.: A. Marty, Über das Verhältnis von Grammatik und Logik (Sobre a Relação entre Gramáti­ ca e Lógica). In: Symbolae Pragenses. Festgabe der deutschen Gesellschaft für Altertumskun­ de in Prag zur 42. Versammlung deutscher Philologen und Schulmänner, 1893, p. 121, nota 2.

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pondente o conceito de expressão categoremática, <312> de tal modo que se es­ tendesse a todas as expressões completas ou por si mesmas significativas de quais­ quer rvivências intencionais (“fenômenos psíquicos”, no sentido brentanianó)i ,29 para em seguida separar as expressões categoremáticas de representações ou nomes e as expressões categoremáticas de juízos ou asserções etc. rSaber se este paralelismo é, na verdade, justificável, se, por exemplo, os nomes são expressões de representações no mesmo sentido em que frases petitórias são expressões de pedidos, frases optativas, expressões de desejos etc.; saber igualmente se aquilo que se diz ser “expresso” por meio de nomes e proposições são as próprias vivên­ cias do significar e como podem elas estar relativamente às intenções de signifi­ cação e, correlativamente, às significações - tudo isto são questões com as quais deveremos ainda nos ocupar seriamente.130 rSeja como for, porém, a distinção entre expressões categoremáticas e sincategoremáticas e aquilo que costuma ser dito para a sua introdução tem seguramente alguma131justificação, e assim nos é sugerida uma concepção a respeito das palavras sincategoremáticas que contra­ diz a doutrina de Bolzano acima mencionada. A saber, porque a distinção entre o categoremático e o sincategoremático é gramatical, poderia, assim, parecer que também a situação que lhe subjaz seria “simplesmente gramatical”. Servimo-nos frequentemente de várias palavras para exprimir uma '"“representação”132 - isto se deve, poder-se-ia pensar, às peculiaridades contingentes da respectiva língua. A articulação na expressão não tem nenhuma relação com uma qualquer arti­ culação na significação. As palavras sincategoremáticas, que ajudam a construir a expressão, são, portanto, inteiramente destituídas de sentido, e só à expressão total conviria verdadeiramente uma significação. A distinção gramatical permite, todavia, ainda uma outra interpretação, contanto que se decida apreender a completude ou incompletude das expressões como o cunho de uma <313> certa completude ou incompletude das significa­ ções, por conseguinte, contanto que se apreenda a distinção gramatical como o cunho de uma certa distinção essencial ao nível da significação.33 Não é por acaso e capricho que a língua se serve, por exemplo, de nomes compostos de várias pa-

lavras para a expressão de uma representação, mas antes para criar uma expressão adequada para uma pluralidade de Representações parciais1,34 pertencendo-se mutuamente, e de formas representativas dependentes no interior da unidade de representação independente encerrada sobre si.3536Também um momento depen­ dente, por exemplo, uma forma intencional de conexão por meio da qual duas representações se encadeiam numa nova representação, pode encontrar a sua expressão significativa, pode rdeterminar136 a intenção de significação peculiar de uma palavra ou de uma complexão de palavras. 37É claro que, se as Represen­ tações de “pensamentos” expressáveis de qualquer tipo1 devem se espelhar [felmente1 na esfera das intenções de significação, deve, então, como também acon­ tece a priori, corresponder a cada forma do lado da representação uma forma do lado da significação. E se, além disso, a língua deve espelhar fielmente no seu material verbal as significações possíveis a priori, ela deve dispor de formas gra­ maticais que permitam conferir a todas as formas diferenciáveis das significações uma “expressão” diferenciávelr, ou seja, assinaturas sensíveis diferenciadas1.

<314> § 5. Significações independentes e dependentes. A dependência das partes das palavras sensíveis e expressivas Manifestamente, esta concepção é a única correta. Devemos distinguir não simplesmente entre expressões categoremáticas e sincategoremáticas, mas tam­ bém entre significações categoremáticas e sincategoremáticas;38falamos, contudo, mais caracteristicamente de significações independentes e dependentes. Não está

exprime de um modo completamente claro que a distinção gramatical deve ser fundada numa distinção essencial no domínio da significação, como era segura mente a opinião de Marty.

29 A: rfenômenos psíquicos1. 30 A (numa nota de rodapé): rSaber se este paralelismo é, na verdade, justificável, se, por exemplo, os nomes são expressões de representações no mesmo sentido em que frases petitivas são expressões de pedidos, frases optativas, expressões de desejos etc.-tudo isto são questões com as quais teremos ainda de nos ocupar seriamente.1. 31 A: rSeja, porém, qual for a terminologia que aqui possa ser escolhida, a própria distinção não carece certa mente de uma certa1. 32 Em A faltam as aspas. 33 N.A.: No ensaio que citamos em último lugar, Marty define um signo categoremático como um signo que desperta só por si uma representação completa e que por seu intermédio no­ meia um objeto. Todavia, a definição, aí adjunta, do signo sincategoremático (ver acima) não

34 A: representações-parciais1. 35 N.A.: rPonderado com mais precisão, a palavra "representação" não quer dizer aqui "ato de representar", mas o representado na representação enquanto tal, com as articulações e formas com as quais temos precisamente dele consciência neste representar. A "forma de representação" é, portanto, forma do representado enquanto tal, coisa em que deveremos atentar no que se segue.1 36 A: Torrnar. 37 A este período corresponde em A: É claro que, se as representações "próprias"1 se devem espelhar na esfera das intenções de significação r(as representações "simbólicas") fielmen­ te1, deve, então, como também acontece a priori, corresponder a cada forma do lado da representação r(às do preenchimento possível)1 uma forma do lado da significação. 38 N.A.: rA. Marty vem falando ultimamente, na sua investigação Zur Grundlegung der Allgemeinen Grammatik und Sprachphilosophie (Para a Fundamentação da Gramática e da Filosofia da Linguagem Geral). Halle a. S., 1908, de signos "autossemânticos" e "sin-semânticos" (p. 205 e segs.).1

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naturalmente excluído que, no processo de deslocamento da significação, surja uma significação inarticulada no lugar de uma significação originariamente ar­ ticulada, de tal modo que, agora, na significação da expressão no seu todo, nada mais corresponda aos membros da expressão. Nestes casos, a expressão perdeu, porém, o caráter de uma expressão composta em sentido autêntico, e costuma, então, no desenvolvimento da língua, fundir-se também numa só palavra. Os seus membros não poderão valer, agora, para nós como expressões sincategoremáticas, porque eles não podem em geral valer como expressões. Denominamos expressões apenas os signos significativos, e denominamos as expressões como compostas apenas quando são compostas a partir de expressões. Ninguém desig­ nará a palavra rainha como uma expressão composta por consistir de vários sons e sílabas. Ao contrário, admitimos como compostas expressões com várias pala­ vras, porque pertence ao conceito de palavra exprimir qualquer coisa; só que não é preciso que a significação da palavra seja precisamente uma significação in­ dependente. Tal como as significações dependentes podem existir apenas como momentos de certas significações independentes, assim também expressões lin­ guísticas de significações dependentes só podem funcionar como constituintes formais das expressões de significações independentes. <315> Elas tornam-se, portanto, expressões linguisticamente dependentes, expressões “incompletas”. A concepção puramente exterior, que imediatamente se impõe, acerca da distinção entre expressões categoremáticas e sincategoremáticas põe as partes sincategoremáticas das expressões no mesmo nível que partes de expressões de um tipo totalmente diferente, letras, sons e sílabas, desprovidos em geral de sig­ nificação. Digo: em geral, porque também entre estas partes de expressões há muitos sincategoremas autênticos, tais como os prefixos e sufixos flexionais. Na incomparável maioria dos casos, porém, não são partes da expressão enquanto expressão, isto é, partes significantes, mas apenas partes da expressão enquanto aparição sensível. Daí o fato de os sincategoremas serem compreendidos, mesmo quando estão isolados; eles são apreendidos enquanto portadores de momentos de significação determinantes quanto ao conteúdo, momentos que exigem uma certa complementação, e certamente uma complementação que, se bem que in­ determinada segundo a matéria, está, porém, codeterminada segundo a sua for­ ma e, assim, legalmente circunscrita por meio do conteúdo dado. Por outro lado, aí onde o sincategorema funciona normalmente, portanto, quando surge em co­ nexão com uma expressão independente acabada, ele sempre tem, então, como o ensina qualquer exemplo que evoquemos, uma relação significativa determinada para o pensamento no seu todo, ele é portador de significação para um certo membro dependente do pensamento e dá, assim, a sua contribuição determina­ da para a expressão enquanto tal. A correção desta observação torna-se evidente quando consideramos que a mesma expressão sincategoremática pode surgir em inumeráveis composições distintas e desempenhar sempre a mesma função de

significação; é por isso que, nos casos de sincategoremas equívocos, podemos ponderar racionalmente, duvidar ou disputar se a mesma partícula, a mesma palavra relativa ou predicado significa o mesmo num e noutro lugar. Portanto, de uma partícula como mas, de um genitivo como dopai , dizemos num sentido cor­ reto que eles têm uma significação; mas não de um fragmento de palavra como hi. Certamente, tanto um como outro se nos deparam como carentes de comple­ mento; mas a carência de complemento é, num caso e noutro, essencialmente diferente: no primeiro caso, ela toca não simplesmente a expressão, mas antes de tudo e em primeiro lugar o pensamento; no segundo caso, ela toca apenas a ex­ pressão ou, melhor, o fragmento da expressão, que só o complemento pode tor­ nar pela primeira vez uma expressão, um possível suscitador de um pensamento. Com a sucessiva formação da contextura complexa <316> das palavras, constróise progressivamente a inteira significação,3940ao passo que, na formação sucessiva da palavra, se constrói simplesmente a palavra e só então, estando pronta, voa para ela o pensamento. Certamente que, de uma certa maneira, o fragmento de palavra suscita já um pensamento, o pensamento de que ele é precisamente um fragmento de palavra e de como deveria ser completado; mas naturalmente que isto não é a significação do fragmento. E quando intervém ora este, ora aquele complemento (hi - bifronte, biológico, bigode, bilhar; cambista...), varia, então, a significação, mas nada comum pode ser descoberto nesta multiplicidade, que pudesse ser atribuído à parte de palavra comum a título de sua significação; rem vão procuraremos também uma articulação140 na significação de cada palavra singular que, a título de membro, dissesse respeito ao valor significativo da parte da palavra: esta é pura e simplesmente desprovida de significação.

39 N.A.: IMão devemos, como o fez Marty (Untersuchungen zur Grundlegung, p. 211 e segs.) tomar ao pé da letra este modo de expressão e colocar à sua base agora a ideia de uma construção da significação inteira a partir de significações parciais, como se fossem "pedras de construção" que também pudessem existir por si mesmas. Que esta ideia seja um contrassenso é precisamente o tema da minha doutrina das significações dependentes, que fundamentarei minuciosamente em seguida! Não posso admitir que a exposição no meu texto se aproxime de tal concepção, e que ela seja, no seu todo, de qualquer modo tocada pela objeção de Marty. Cf. as discussões subsequentes sobre a compreensão de sincatego­ remas isolados1. Nota: Marty, Symbolae Prag., p. 105, nota. 40 A: rnão encontramos também qualquer articulação.1

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§ 6. Contraposição de outras distinções. Expressões incompletas, anormalmente abreviadas e lacunares Antes de caracterizarmos mais precisamente a diferença entre significa­ ções independentes e dependentes r, antes de a submetermos a uma clarificação

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muito necessária1 por meio da sua conexão com conceitos mais gerais e, em ligação com isso, antes de fixarmos os fatos mais importantes do domínio das significações - a existência das legalidades que as regem pode ser útil separar a diferença rgramatical,141 rque nos serve como ponto de partida,1 de outras diferenças que com ela se rconfundem1.42 <317> As expressões sincategoremáticas são, enquanto dependentes, de certo modo carentes de complemento, e é nessa medida que são denominadas também como expressões incompletas. Falar de incompletude, porém, tem ain­ da um outro sentido, que não pode ser confundido com a carência de comple­ mento que está aqui em questão. Para clarificar isto, observemos, de início, que a repartição das significações em independentes e dependentes se cruza com a repartição das significações em simples e compostas. Significações como, por exemplo, maior que ruma casa1; sob o céu de Deus; as aflições da vida; ^mas os teus mensageiros venerar, Senhor143 são dependentes e, apesar da multipli­ cidade de componentes distinguíveis, significações unitárias. Várias significa­ ções dependentes, ou em parte independentes e em parte dependentes, podem entrelaçar-se em unidades relativamente acabadas que, enquanto todos, têm, po­ rém, apenas o caráter de significações dependentes. Este fato das significações compostas dependentes estampa-se gramaticalmente na unidade relativamente acabada de expressões sincategoremáticas compostas. Cada uma destas é uma expressão, pois lhe pertence uma significação, e ela é uma expressão compos­ ta, pois confere expressão membro a membro a uma significação composta. Quanto a esta significação, ela é uma expressão completa. Se, não obstante, a tomamos agora como incompleta, tal é devido ao fato de a sua significação, sem prejuízo do seu caráter unitário, ser carente de complementação. Porque ela só pode existir num contexto de significação mais vasto, a sua expressão linguística remete também para um contexto linguístico mais vasto, a saber, para o comple­ mento de um discurso em si mesmo acabado. Passa-se algo completamente diferente com os discursos anomalamente abreviados que conferem ao pensamento, seja ele independente ou dependente, uma expressão incompleta, se bem que plenamente compreensível tendo em conta as circunstâncias dadas do discurso. Podemos destacar aqui também as expressões lacunares, nas quais faltam membros sintáticos isolados na continui­ dade da conexão proposicional, se bem que, mesmo assim, possa manter-se ain­ da reconhecível uma certa conexão entre os disjecta membra. <318> A carência de complemento de tais discursos lacunares tem, manifestamente, um caráter totalmente diferente da carência de complemento dos sincategoremas. O dis­

curso lacunar não pode funcionar como discurso acabado, nem mesmo, em geral, como um discurso; e isso não porque a significação a ele pertencente seja dependente, mas porque lhe falta em geral uma significação unitária. Quando, ao decifrarmos uma inscrição lacunar, lemos Caesar... qui... duabus..., os pontos de apoio exteriores podem indicar que se trata de uma certa proposição unitá­ ria, de uma certa unidade da significação; mas este pensamento indireto não é a significação do presente fragmento e, assim, tal como é, não possui ele, em geral, qualquer significação unitária e não forma, por isso, qualquer expressão; uma justaposição desconexa de significações, em parte independentes, em parte dependentes, e, correlacionado com ela, um pensamento lateral, que é estranho a estas significações, de que elas devem pertencer a uma certa unidade de signi­ ficação - isto é tudo o que nos é dado. Falar de expressões inacabadas, incompletas, carentes de complemento, abarca, como é visível, coisas bem diferentes. De um lado, as expressões sincategore­ máticas, do outro, as anomalamente abreviadas e, por fim, as expressões lacunares, que não são propriamente expressões, mas apenas fragmentos de expressões. Estes diferentes conceitos cruzam-se. Uma expressão abreviada pode ser categoremática, uma expressão sincategoremática pode não ter lacunas, e coisas semelhantes.

41 A: rem questão1. 42 A: rcruzam1. 43 A: re semelhantes1.

§ 7. A concepção das significações dependentes enquanto conteúdos fundados Reconhecemos que à distinção, em aparência tão anódina, das expres­ sões em categoremáticas e sincategoremáticas corresponde uma distinção fun­ damental no domínio das significações. Se tomamos a primeira como ponto de partida, a última se mostra, porém, como a originária, a saber, como a que fundamenta pela primeira vez toda e qualquer distinção gramatical. Já o conceito de expressão, correspondentemente, a distinção entre a par­ te simplesmente sonora e, em geral, sensível da expressão e as expressões par­ ciais no sentido autêntico da palavra ou, como também poderemos dizer de um modo mais pertinente, das partes sintáticas (radicais <319>, prefixos, sufixos,44* palavras, complexos harmônicos de palavras), só pode ser fixada por meio do recurso a uma distinção das significações. Se estas se dividem em simples e compostas, então devem também as expressões a elas adequadas ser ou simples ou compostas, e esta composição reconduz necessariamente a partes significa­ tivas últimas, a partes sintáticas, e, assim, de novo a expressões. Ao contrário, a divisão das expressões, enquanto simples aparições sensíveis, dá sempre como resultado partes também simplesmente sensíveis e não já partes significativas. 44 N.A.: Estas e as precedentemente nomeadas, tanto quanto não tenham perdido a sua sig­ nificação articulada ao longo do desenvolvimento da língua.

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O mesmo se verifica com a distinção, construída sobre a precedente, das ex­ pressões em categoremáticas e sincategoremáticas. Pode-se, em todos os casos, descrevê-la pelo fato de as primeiras poderem servir como expressões comple­ tas, como discursos acabados, enquanto as segundas não. Mas se se quer limitar a plurivocidade desta caracterização e determinar o seu sentido aqui pertinente e, com isso, simultaneamente, o fundamento interno pelo qual certas expressões podem existir isoladamente por si como discursos acabados, deveremos, então, como vimos, retornar ao domínio da significação e nele atestar esta carência de complemento que é inerente a certas significações enquanto “incompletas”. Com a denominação das significações sincategoremáticas como depen­ dentes, já está dito aquilo em que nós vemos a essência destas significações. Nos nossos ensaios sobre os conteúdos dependentes em geral, determinamos genericamente o conceito de dependência, e é esta mesma dependência que cre­ mos dever supor aqui, no domínio da significação. Conteúdos dependentes são, assim o dissemos,45 conteúdos que não podem existir por si, mas tão somente como partes de todos mais vastos. Este não poder tem o seu fundamento legal rapriorístico"!46 rno tipo de essência147 dos conteúdos em questão. A cada de­ pendência pertence uma lei segundo a qual, em geral, um <320> conteúdo do tipo correspondente, digamos do tipo a, só pode ser no contexto de um todo T(a /?... p), onde j3... \i são signos para tipos determinados de conteúdos. Para tipos determinados, sublinhamos; pois nenhuma lei quer dizer apenas que, en­ tre o tipo a e quaisquer outros tipos existe uma conexão, que, por conseguinte, um a apenas carece em geral e indiferentemente de um complemento qualquer, mas antes que à legalidade pertence uma determinidade no tipo de conexão; variáveis dependentes e independentes têm a sua esfera delimitada por meio de caracteres genéricos ou específicos fixos. Com os tipos fica, então, determinada, eo ipso e rpor uma lei de essência1,48 &forma genérica da conexão. Servimo-nos como exemplos sobretudo dos concreta da intuição sensível. Mas também po­ deríamos ter retirado exemplos de outros domínios, como o rdas vivências de ato149 e seus conteúdos abstratos. Aqui, interessam-nos apenas as significações. Captamo-las como unida­ des ideais; compreensivelmente, porém, a nossa distinção transpôs-se do do­ mínio real para o ideal. À significação corresponde um certo momento no ato concreto do significar, o qual constitui o caráter essencial deste ato, ou seja, rque pertence necessariamente a cada ato concreto em que esta mesma significação

se “realiza”1,50 Tendo em consideração a repartição dos atos em simples e com­ postos, um ato concreto pode conter, porém, várias partes, e tais atos parciais podem, por sua vez, residir no todo quer como partes independentes quer como partes dependentes. Especialmente, um ato de significar enquanto tal também pode ser composto, ou seja, ser composto de atos de significar. Ao todo per­ tence, então, uma significação total, a cada ato parcial, uma significação par­ cial (uma significação parcial que é ela própria de novo uma significação). Em conformidade com isso, denominaremos uma significação como independente quando ela puder constituir a significação completa e total de um ato de significar concreto, e dependente quando <321> tal não for o caso. Ela só poderá, então, ser realizada num ato parcial dependente de um ato concreto de significar; ape­ nas em conexão com certas outras significações, que a complementam, pode adquirir concreção; apenas num todo de significação é que ela poderá “ser”. A dependência assim definida da significação enquanto significação determina, na nossa concepção, a essência dos sincategoremas.

45 46 47 48 49

N.A.: Cf. supra Investigação III, §§ 5-7, p. 235 e segs. A: robjetivo1. A: rna natureza1. A: legalmente1. A: rdos atos psíquicos1.

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§ 8. Dificuldades desta concepção, a) Se a dependência da significação reside ape­ nas propriamente na dependência do objeto significado Todavia, também queremos refletir agora sobre as dificuldades da nossa concepção. Desde logo, discutamos a relação entre a independência e a depen­ dência das significações e a independência e a dependência dos objetos signi­ ficados. Num primeiro momento, poder-se-ia crer, com efeito, que a primeira distinção se reduziria à última.51 Os atos que conferem a significação referem-se, enquanto r“representações”, enquanto vivências “intencionais”1,52 a objetos. Se, agora, uma parte qualquer integrante do objeto é dependente, então ela não pode ser “representada” por si só; por conseguinte, a significação correspondente exi­ ge um complemento, ela é, rpelo seu lado1,53 dependente. Parece resultar daqui, compreensivelmente, a seguinte determinação: as expressões categoremáticas vão para objetos independentes, as sincategoremáticas, para dependentes.54 Convencemo-nos imediatamente de que uma tal concepção é falsa. Já a própria expressão momento dependente nos dá um contraexemplo decisivo. Ela é

50 A: ro caracteriza como significante1. 51 N.A.: Uma questão análoga e substantivamente muito aparentada ocupou-nos anterior­ mente no § 2, p. <303> e segs. 52 A: representações1. 53 A: rela própria1. 54 Em A segue-se: r(isto é, para momentos objetivos, sejam eles notas características ou for­ mas de relação)1.

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uma expressão categoremática e representa, todavia, algo dependente. E assim se deixa, em <322> geral, todo e qualquer momento dependente, e certamente tam­ bém de um modo mais direto, transformar num objeto de uma ^significaçãoi 55 independente, por exemplo, vermelhidão, figura, igualdade, grandeza, unidade, ser. Vê-se por meio destes exemplos que não é apenas aos momentos objetuais materiais, mas também às formas categoriais que correspondem significações independentes, as quais estão expressamente dirigidas para estas formas e, nes­ ta medida, fazem delas objetos por si, enquanto estes últimos não são por si no sentido da independência.56 A possibilidade de significações independentes estarem dirigidas para momentos dependentes nada tem de espantoso quan­ do pensamos que a significação “representa” certamente algo objetual, que ela não tem, apesar disso, o caráter de uma imagem, mas que a sua essência resi­ de, ao contrário, numa certa intenção que, precisamente segundo o modo da intenção,57 pode estar “dirigida” para não importa o quê, tanto para o indepen­ dente como para o dependente. E, assim, não importa o quê pode tornar-se algo objetivo rsegundo o modo do significar1, isto é, um objeto intencional.

dora uma proposição da forma a - b . Se quisermos esclarecer o significado da palavra e, deveremos, então, consumar efetivamente um ato qualquer de coligir e, no conjunto que assim chega à representação em sentido próprio, levar ao preenchimento uma significação da forma a e b. E assim para todos os casos. A dependência da significação preenchedora, a qual funciona necessariamente, portanto, em cada preenchimento efetuado, como elemento integrante de uma significação preenchedora de teor mais vasto, condiciona, então, que se fale, por transposição, da dependência da significação intencionante.58 Há aqui, sem dúvida, um pensamento correto e valioso. Podemos também expressá-lo assim: nenhuma significação sincategoremática, ou seja, nenhum ato de intenção significativa dependente, pode estar nafunção de conhecimento senão em conexão com uma significação categoremática. E, naturalmente, em vez de significação, poderíamos também dizer expressão, compreendida normalmente como unidade do som de palavra e da significação ou sentido. Levanta-se agora a questão de saber se, tendo em consideração a unidade de recobrimento en­ tre significação intentante e significação preenchedora, que reina no estado de preenchimento, poderá ser admitido que a significação preenchedora seja inde­ pendente e a significação intentante dependente; em outras palavras, pode-se ser admitido que falar de dependência a propósito das intenções de significação e das expressões intuitivamente não preenchidas não seja senão uma maneira imprópria de falar, a saber, uma maneira de falar apenas determinada pela de­ pendência relativamente a um possível preenchimento? Isto é dificilmente ad­ missível, <324> e, assim, somos remetidos para a concepção de que também as intenções de significação vazias - as representações “impróprias”, “simbólicas”, que conferem sentido à expressão fora de qualquer função de conhecimento comportam em si a distinção entre independência e dependência. Mas, então, a questão levantada inicialmente retorna: como esclarecer o fato incontestável de que sincategoremas isolados, por exemplo, a palavra isolada e, sejam com­ preendidos7. Eles são dependentes a respeito da sua intenção de significação, o que quer dizer, portanto, que tais intenções de significação só podem existir em contextos categoremáticos; por conseguinte, a partícula isolada, o e isolado, deveria ser um som vazio. A dificuldade só pode ser resolvida da seguinte maneira: Ou o sincategorema isolado não tem de modo algum a mesma signi­ ficação que num contexto categoremático, ou então tem-na, mas sofre um

§ 9. b) A compreensão de sincategoremas isolados A compreensão dos sincategoremas isolados de qualquer conexão preparanos uma séria dificuldade. Se a nossa concepção é correta, então não poderá haver uma coisa tal; segundo ela, os elementos dependentes são inseparáveis do discur­ so categorematicamente acabado (Xóyoç). Como seria possível tomar em consi­ deração estes elementos, como, todavia, o fez j á Aristóteles, fora de toda e qualquer conexão? Sob o título de (xá áveu aujxTrXoxriç, xd xocxd jJiqSejj.Í£XV cmjJLirXoxfjv Xeyójuevoc, ele abarca todos os tipos de palavras, mesmo os sincategoremas. Poderíamos fazer face de início a essa objeção, remetendo para a distinção entre representações “próprias” e “impróprias”, ou, o que quer dizer o mesmo, para a distinção entre as significações simplesmente intentadas e preenchidas. Poderíamos mesmo dizer: <323> Sincategoremas isolados, tais como igual, em ligação com, e, ou, não podem obter qualquer compreensão intuitiva, qualquer preenchimento da significação a não ser no contexto de um todo de significação mais vasto. Se quisermos “esclarecer” o que significa a palavra igual, teremos, então, de olhar para uma igualdade intuitiva, deveremos consumar atualmente (“propriamen­ te”) uma comparação e, sob o seu fundamento, levar à compreensão preenche55 A: representação1. 56 A: dependência1. 57 Em A segue-se: rdo visar que tem algo em vista,1.

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58 N.A.: rManifestamente, em toda esta exposição, o "preenchimento" pode ser substituído pela sua contrapartida, a "decepção", por conseguinte, pela forma fenomenologicamente peculiar como, num todo de significação, significações conectadas sob a forma do contrassenso apresentam a sua "incompatibilidade" evidente, por meio da clarificação intuitiva e da intelecção: a unidade intentada "decepciona-se" na desunião intuitiva.1

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complemento de significação, mesmo que, substantivamente, seja totalmente indeterminado, de tal modo que se torne, então, uma expressão incompleta da significação completada, que é atual no momento. Compreendemos o e iso­ lado ou bem por meio do fato de que o pensamento indireto, se bem que não verbalmente articulado, de ruma certa e bem conhecida partícula159 se lhe as­ socia enquanto significação anômala, ou bem por meio do fato de que, com a ajuda de representações concretas vagas e sem qualquer complemento verbal, surge um pensamento do tipo A e B. No último caso, a palavrinha e funciona normalmente, porquanto ela pertence propriamente apenas a um momento da intenção de significação completa que é interiormente executada, e, em verda­ de, no mesmo momento em que no contexto de expressões categoremáticas de coleções; ela funciona anomalamente, porém, porquanto não está em conexão com outras expressões que deem uma expressão normal às partes complemen­ tares da significação em questão. Desse modo, afastam-se as dificuldades, e deveremos admitir que a dis­ tinção entre significações independentes e dependentes diz respeito tanto ao domínio da intenção de significação como ao do preenchimento e que, assim, realmente existe a situação <325> que é necessariamente requerida pela possi­ bilidade de adequação entre intenção e preenchimento.

(apriorísticas)1,63 Certamente que o fato importante que está aqui presente não é só peculiar ao domínio da significação, mas desempenha o seu papel sempre que há uma conexão. Todas as rconexões em geral estão subordinadas a leis pu­ ras, e, assim, o é particularmente para todas as conexões materiais, limitadas a um domínio coisal unitário1,59601236465pelas quais os resultados da conexão devem cair no mesmo domínio que os membros da conexãor: em oposição aos membros de conexão formais (“analíticos”) que, como as conexões coletivas, são indepen­ dentes das particularidades coisais de um domínio e não estão vinculadas às essências coisais dos seus membros da conexão. Em nenhum domínio165 <326> podemos unir não importa que singularidades por não importa que formas, mas o domínio de singularidades limita ra priorP o número de formas possíveis e determina as legalidades do seu preenchimento. A generalidade deste fato não nos desvincula, porém, do dever de atestá-lo em cada domínio dado e de inves­ tigar as leis determinadas sob as quais ele se desenvolve. No que diz especialmente respeito ao domínio das significações, a mais breve reflexão já ensina que não somos livres de conectar uma significação com não importa que significação e que, por isso, numa dada unidade de conexão plena de sentido, não podemos misturar arbitrariamente os elementos de uma forma desordenada. As significações ajustam-se apenas sob certos modos, pre­ viamente determinados, e constituem de novo significações unitárias plenas de sentido, enquanto as possibilidades combinatórias restantes ficam legalmen­ te excluídas: delas resulta apenas um amontoado de significações em vez de uma significação. A impossibilidade da conexão é uma impossibilidade rlegal essencial1,66678isto é, ela não é, desde logo, uma impossibilidade simplesmente subjetiva - que não possamos realizar uma tal unidade não assenta simples­ mente na nossa incapacidade fática (nos constrangimentos da nossa “organiza­ ção espiritual”). Nos rcasosl67 que temos aqui em vista, a impossibilidade é, ao contrário, uma impossibilidade objetiva, Tdeal, fundamentando-se na “nature­ za”, na essência pura do domínio da significação,168 e, enquanto tal,69 uma im­ possibilidade captável numa evidência apodítica. Para falar com mais precisão, esta impossibilidade fixa-se não à singularidade particular das significações a unir, mas antes aos gêneros essenciais sob os quais elas caem, ou seja, às cate­ gorias de significação. Certamente que a significação singular é já ela própria

§ 10. Legalidades apriorísticas na complexão de significações Se a distinção das significações independentes e dependentes é referida à distinção mais geral dos robjetos160 independentes e dependentes, então está já aí, em sentido próprio, coimplicado um dos fatos mais fundamentais do do­ mínio das significações, a saber, que as significações estão sob leis rapriorísticas^ que regulam a sua conexão em novas significações. A cada caso de uma signifi­ cação dependente pertence, segundo o que expusemos de um modo totalmente genérico para robjetos161 dependentes em geral, uma certa rlei de essência"162 que regula a sua necessidade de complemento por meio de novas significações e que, por conseguinte, aponta os tipos e formas de conexões em que ela deve ser inserida. Porque não há r, em geral,1 qualquer conexão de significações em novas significações sem formas de conexão, que possuem de novo o caráter de significações, e, sem dúvida, de significações dependentes, é claro que, em toda e qualquer conexão de significações, estão operantes ilegalidades de essência 59 Em A entre aspas. 60 A: rconteúdos1. 61 A: conteúdos1. 62 A: le i1.

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63 A: legalidades1. 64 A: rconexões estão em geral subordinadas a leis, sobretudo todas as conexões materiais, limitadas a um domínio coisal unitário1. 65 A: r. Nunca1. 66 A: legal1. 67 A: inumeráveis casos1. 68 A: rfundamentando-se a priori na natureza do domínio da significação,1. 69 Em A segue-se: rela é1.

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algo específico, mas, relativamente à categoria de significação, ela é precisamen­ te uma rparticularidade singular"’70. É assim que, mesmo na Aritmética, o nú­ mero determinado numericamente é de fato uma rparticularidade singular"!71 relativamente às formas e leis numéricas. Por conseguinte, sempre que temos em vista a impossibilidade da conexão de significações dadas, esta impossibili­ dade remete para uma lei geral rincondicionada"i <327> de acordo com a qual significações das categorias correspondentes de significação, conectadas numa ordem igual e em conformidade com as mesmas formas puras, devem, em geral, ser desprovidas de qualquer resultado unitário r- em outras palavras, trata-se de uma impossibilidade apriorística. Naturalmente, tudo o que acabamos de expor é válido tanto para a im­ possibilidade como também para a possibilidade de conexões de significação. Consideremos agora um exemplo. A expressão esta árvore é verde é uma expressão unitariamente significativa. Se passarmos, formalizando, da significa­ ção dada (da proposição lógica independente) para o teor de significação puro correspondente, para a £tforma proposicional”, obtemos, então, este S ép, uma ideia formal que abarca na sua extensão apenas significações independentes. Ê agora claro que a materialização desta forma - a sua particularização em proposições determinadas, por assim dizer - é possível numa infinidade de modos, mas que, todavia, não somos aí plenamente livres. Ao contrário, estamos vinculados a li­ mites fixos. Não se pode substituir a variável S e a variável p por não importa que significação. No quadro desta forma, podemos certamente transmutar o nosso exemplo esta árvore é verde em este ouro, este número algébrico, este corvo azul etc. é verde, numa palavra, podemos colocar aqui não importa que matéria nominal, num certo sentido alargado, e do mesmo modo para o p, colocar, obviamente, não importa que matéria adjetiva: obteremos, então, sempre de novo uma significação unitária plena de sentido, e, de certo, uma proposição independente da forma dada - todavia, enquanto não observarmos as categorias das matérias da significação, perderemos a unidade de sentido. Onde está uma matéria nominal, pode estar não importa que outra matéria nominal, mas não uma adjetiva, ou uma relacio­ nal, ou uma matéria inteiramente proposicional; onde, porém, está uma matéria de tais categorias, pode sempre de novo estar uma semelhante, isto é, pode sempre estar uma matéria da mesma categoria e não de uma outra. Isto é válido para não importa que significações, seja qual for a complexidade da sua forma. Da permuta de matérias no interior da sua categoria podem resultar sig­ nificações (proposições inteiras ou possíveis membros de proposições) falsas, estultas ou risíveis. Desta permuta, porém, resultam necessariamente significa­ ções unitárias, correspondentemente, expressões gramaticais cujo sentido pode

ser unitariamente efetivado. Assim que transgredimos as categorias, isto dei­ xa de acontecer. Podemos certamente pôr as palavras <328> umas ao lado das outras: esta ligeireza de expressão72 é verde; mais intenso é redondo; esta casa é igual; numa asserção relacional da forma a é semelhante a b, podemos substituir 'semelhante3por cavalo, mas não obtemos deste modo mais do que uma cadeia de palavras em que cada uma das palavras tem, enquanto tal, certamente um sentido, ou seja, remete para uma conexão plena de sentido, mas não obtemos, por princípio, um sentido unitariamente completo. Com maior razão, não se­ ria este o caso se, numa significação unitariamente articulada, permutássemos arbitrariamente os membros, que são já eles próprios unidades revestidas de uma forma, ou se substituíssemos um membro por um outro, retirado de não importa que outras significações; como, por exemplo, quando tentamos trocar o antecedente hipotético (um simples membro no todo de significação, o qual de­ nominamos pura e simplesmente como proposição hipotética) por um membro nominal, ou quando, num juízo disjuntivo, procuramos trocar um dos membros disjuntos por um consequente hipotético. Em vez de o fazermos in concreto, po­ demos tentá-lo também nos correspondentes conteúdos puros de significação (formas proposicionais); imediatamente desponta, deste modo, a visão intelectiva apriorística da legalidade segundo a qual ligações do tipo das intentadas es­ tão excluídas pela essência dos membros das formas puras em questão, ou seja, que os membros assim enformados são apenas possíveis enquanto membros de formas de significação com uma determinada constituição. É finalmente compreensível que momentos puros de forma, na unidade concreta de uma significação, não sejam nunca permutáveis com momentos receptores de forma, ou seja, com aqueles momentos que dão à significação uma referência às coisas, correspondentemente, que a particularização das formas de significação unitariamente plenas de sentido - como, por exemplo, um S é p: se S ép, então Q é r etc. - não pode, por princípio, acontecer de tal modo que momentos de forma abstratamente tomados substituam os “termos”, ou seja, as matérias das formas de significação que contêm referência às coisas. Podemos, com efeito, encadear as palavras umas em seguida das outras: se o ou verdeja, uma árvore é etc.; mas a cadeia de palavras não é compreensível como uma significação. É uma proposição analítica que, num todo em geral, as formas não podem funcionar como matérias e as matérias como formas, e isto se transpõe, compreensivelmente, para a esfera da significação.

70 A: rsingularidade contingente1. 71 A: rsingularidade contingente1.

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72 N.A.: Escrevemos propositadamente o adjetivo, que está na posição do sujeito, com minús­ culas para indicar que a significação adjetiva, precisamente como está enquanto predicado adjetivo, deve ser colocada na posição marcada para o sujeito. Cf. infra § 11 [N.T.: na língua alemã, a maiúscula serve para marcar a forma substantiva, a qual é a única compatível com a posição de sujeito na estrutura sintática da frase predicativa aqui em questão: 5 é p].

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<329> Em resumo, efetuando e aprofundando análises de exemplos desse tipo, reconhecemos que cada significação concreta é uma interpenetração de materiais e de formas, que cada significação está submetida a uma ideia de for­ ma, que se pode expor puramente por meio da formalização, e, para além disso, que a cada ideia tal corresponde uma lei apriorística de significação. Trata-se de uma lei de construção de significações unitárias a partir de materiais sintáticos - os quais estão sob categorias fixas, pertencentes a priori ao domínio da sig­ nificação - e de formas sintáticas, que são igualmente determinadas a priori e, como o reconheceremos já em seguida, se fecham num sistema fixo de formas. Daqui desponta a magna tarefa, igualmente fundamental para a Lógica e para a Gramática , de expor esta constituição apriorística abrangendo o reino das signi­ ficações, de investigar; numa “doutrina das formas das significações”, o sistema apriorístico das estruturas formais, isto é, das estruturas que deixam em aberto toda e qualquer particularização material das significações.

em proposições do tipo “se” é uma partícula , “e” é uma significação dependente. Certamente que as palavras estão aqui na posição do sujeito, mas, como é desde logo visível, a sua significação não é a mesma que a que lhes é própria no con­ texto normal. Que, em geral, cada palavra e cada expressão possam ser levadas, na esteira da alteração da significação, a qualquer posição num todo categoremático não é nada de espantoso. O que temos aqui em vista não é, todavia, a composição das palavras, mas antes a das significações, quanto muito a das palavras com manutenção constante da sua significação. Considerada do ponto de vista lógico, toda e qualquer mudança de significação deve ser ajuizada como uma anomalia. O interesse lógico, que vai para as significações identicamente unitárias, exige constância na função de significação. Mas a natureza das coisas traz consigo o fato de que certas alterações de significação pertençam mesmo ao conteúdo gramatical normal de toda e qualquer língua. Por meio do contexto do discurso, a significação modificada pode ser, ainda assim, facilmente compreen­ sível, e se os motivos da modificação se impõem pela sua generalidade, se se en­ raízam, por exemplo, no caráter geral da expressão enquanto tal ou mesmo rna essência pura"i74 do domínio de significação em si, então as classes de anomalias respectivas são recorrentes e o que é logicamente anômalo aparece, então, como sancionado gramaticalmente. Faz parte disto a suppositio materialis, no modo de falar dos escolásticos. Toda e qualquer expressão, não importando se - na sua significação normal - é um categorema ou um sincategorema, pode surgir em seguida como nome de si própria, ou seja, ela nomeia-se <331> a si própria enquanto aparição gramatical. Se dissermos “a Terra é redonda' é uma asserção, aquilo que funciona enquanto representação do sujeito não é a significação da asserção, mas antes uma repre­ sentação da asserção enquanto tal; julga-se não a respeito do estado-de-coisas de que a Terra seja redonda, mas, sim, a respeito da frase declarativa, e esta frase funciona ela própria anomalamente como seu próprio nome. Se dissermos “e” é uma conjunção, teremos, então, não o momento de significação que normal­ mente corresponde à palavra “e” na posição do sujeito, mas encontra-se nessa posição a significação independente dirigida para a palavra “e”. Nesta significa­ ção anômala, o V 5não é, na verdade, um sincategorema, mas antes uma expres­ são categoremática, ele nomeia-se a si próprio como palavra. Um análogo exato da suppositio materialis está presente quando a expressão veicula, em vez da sua significação normal, uma representação dessa signi-

§ 11. Objeções. Modificações de significação que se enraízam na essência das ex­ pressões, correspondentemente, das significações Falta agora, porém, ter em consideração as possíveis objeções. Não nos devemos desde logo deixar desconcertar pelo fato de significações de qualquer categoria, e mesmo formas sincategoremáticas, como e, poderem ser levadas para a posição de sujeito, na qual costumam estar as significações substanti­ vas. Se virmos mais de perto, verificaremos que isso acontece inteiramente na esteira da modificação de significação, por força da qual aquilo que surge, por exemplo, na posição da significação nominal é, na verdade, de novo uma signi­ ficação nominal, em vez de uma significação de um outro teor sintático ser pura e simplesmente para aí transplantada (digamos, uma significação adjetiva ou mesmo uma simples forma). Um tal caso está presente, por exemplo,"!73 <330>

73 A: r. A expressão se é verde é, por exemplo, uma expressão que carece de significação e, quando o vemos com evidência, reconhecemos também que, em geral, a partir da forma S é P, resulta uma fórmula carente de sentido quando se substitui S, em vez de "se", por qual­ quer outro sincategorema. "Se" sendo, todavia, uma expressão formal, funciona aqui não precisamente enquanto expressão formal, mas como elemento variável que, no sentido da legalidade subjacente para cada caso do mesmo tipo (a partir da categoria das <330> significações dependentes), pode ser substituído. Se escrevemos, porém, se a árvore é ver­ de, o se funciona em conjunto com o é como uma forma invariável, enquanto as restantes significações constituem a matéria variável; isto a respeito da legalidade segundo a qual, de cada conexão da forma se S é P resulta uma significação plena de sentido se e apenas se 5 e P permanecem limitados à extensão de certas classes de significações (para as quais nos faltam até agora nomes de suficiente generalidade e, ao mesmo tempo, unívocos).

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§ 11. Objeção. A suppositio materialis e o seu análogo Só bem pouco ou quase nada é que nos deixaremos perturbar aqui pela objeção segundo a qual todo e qualquer sincategorema pode ser posto na posição de sujeito, a saber. A: rna natureza pura1.

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ficação (isto é, uma significação que está dirigida para esta significação como seu objeto). Assim acontece, por exemplo, quando dizemos; “e”, “mas”, “maior” são significações dependentes. Em regra, deveríamos dizer aqui: as significações das palavras e, mas, maior são dependentes. Do mesmo modo, na expressão “homem”, “mesa”, “cavalo” são conceitos de coisas, são as representações destes conceitos e não os próprios conceitos que funcionam como representações do sujeito. Tanto neste como nos casos anteriores, a alteração de significação é, nor­ malmente, pelo menos nas expressões escritas, indicada por aspas, por exemplo, e outros meios heterogramaticais de expressão (como lhes poderíamos adequa­ damente chamar). Todas as expressões providas de predicados “modificadores” em vez de “determinantes” funcionam anomalamente, do modo que acabamos de designar ou de outro modo semelhante: de uma maneira mais ou menos complexa, o sentido normal do discurso no seu todo deve ser substituído por um outro sentido que - seja como for, aliás, que possa ser construído - contém, no lugar do sujeito aparente segundo a interpretação normal, uma representação que se lhe refere de um ou de outro modo, que é ora uma representação <332> no sentido lógico-ideal, ora uma representação no sentido empírico-psicológico rou também no sentido puramente fenomenológico"1. Por exemplo, o centauro é uma ficção dos poetas. Parafraseando um pouco, poderíamos dizer: as nossas representações de centauros (isto é, as representações subjetivas com o teor de significação “centauro”) são ficções dos poetas. Os predicados é, não é, é verda­ deiro ou é falso, e semelhantes, são predicados modificados. Elas não exprimem propriedades do sujeito aparente, mas antes propriedades das correspondentes significações-sujeito. Por exemplo, qu e2 x 2 = 5 éfalso; ou seja, o pensamento é rum falso pensamento, a proposição, uma falsa proposição"! .7S76 Se, entre os exemplos do último parágrafo, separarmos aqueles em que a representação modificada é uma representação subjetiva, rmais precisamente, uma representação em sentido psicológico ou fenomenológico,"1 e se compre­ endermos o análogo da suppositio materialis com ra restrição com que"176 desde o início o explicamos acima, então observamos que se trata, aqui, de alterações da significação ou, para o dizer de um modo mais preciso, de alterações do sig­ nificar que radicam na natureza ideal do domínio da própria significação. A sa­ ber, elas radicam em modificações de significação, tomando “significação” num certo sentido diferente, por abstração das expressões, sentido que é, de algum modo, um análogo do discurso aritmético sobre “transformações” de fórmulas aritméticas. No domínio da significação, há legalidades apriorísticas de acordo com as quais significações, com a manutenção de um núcleo essencial, podem ser rde múltiplas maneiras1 transformadas em novas significações. Daí depende

também a transformação que, a priori, qualquer significação pode sofrer numa “representação direta” que a ela se refira r, isto é, na significação própria da sig­ nificação original. Em conformidade com isto, a expressão linguística funciona, na significação modificada, como “nome próprio” da sua significação original. Esta modificação177 condiciona, por força da sua generalidade apriorística, uma vasta <333> classe de equívocos na esfera da gramática universal, enquanto mo­ dificações do significar verbal, equívocos que se estendem a todas as línguas rempíricasi ,78 para lá das suas particularidades. rTeremos, de resto, ainda oca­ sião, nas investigações subsequentes, de encontrar outros casos de modificações deste tipo, que se fundam na essência das próprias significações, tais como, por exemplo, os casos importantes em que proposições inteiras podem surgir, por meio da nominalização, na posição de sujeito e, em geral, em qualquer posição que exija um membro nominal. Que sejam ainda indicados, aqui, os casos de nominalização de predicados, correspondentemente, de atributos, para destruir eventuais dúvidas contra a exposição por nós feita no parágrafo precedente. O adjetivo está, por assim dizer, predestinado para a função predicativa e, em consequência, atributiva, ele funciona normalmente na significação “originá­ ria”, não modificada, como no nosso exemplo precedente esta árvore é verde. Ele permanece em si mesmo inalterado - abstraindo da sua função sintática - quando dizemos esta árvore verde. Este modo de alteração da forma sintática perante o material sintático - o qual, por exemplo, também acontece quando uma significação nominal, funcionando como sujeito, toma a função de objeto, ou quando uma proposição que funciona como antecedente toma a função de consequente - deve ser desde logo fixado e constitui um tema capital da des­ crição das estruturas universais do domínio da significação. O que é adjetivo, no sentido da matéria sintática idêntica perante a alteração das funções predi­ cativas em funções atributivas, sofre, porém, ainda uma modificação quando o adjetivo não funciona simplesmente como momento atributivo de uma signi­ ficação nominal, mas é ele próprio nominalizado, ou seja, quando se torna um nome. Por exemplo, verde é uma cor e ser-verde (o verde) é uma diferença do sercolorido (da coloração). Uma e outra não significam, sem mais, a mesma coisa, apesar da deslocação equívoca das palavras, uma vez que, no primeiro caso, pode ser visado um momento dependente do acervo de conteúdos de um ob­ jeto concreto e, no segundo caso, porém, se visa à nominalização do ser, a qual é o correlato da tese predicativa efetuando-se do lado do membro predicado e sobreposta no membro sujeito. A mesma palavra verde altera, por conseguinte, a sua significação na nominalização; na expressão escrita, indica-se pelo menos um traço genérico desta modificação por meio da utilização <334> de maiús77 Em A: r. Ela1. 78 Em A: rsingulares1.

75 A: rfalso, um pensamento "vazio"1. 76 A: ro sentido restringido em que1.

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cuias79 (que não é, portanto, destituída de valor tanto lógica como gramaticalmente). A significação originária e a nominalizada ( verde e o verde;80 é verde e ser-verde) têm manifestamente em comum um momento essencial, um “núcleo” idêntico, que é algo abstrato e que, a cada vez, tem formas-nucleares diferentes, formas que devem ser distinguidas das formas-sintáticas (as quais pressupõem já conteúdos nucleares, enquanto materiais-sintáticos, em e com formas nu­ cleares quaisquer). Se, da modificação da forma-nuclear do conteúdo-nuclear adjetivo (do próprio núcleo), resulta um material sintático do tipo nome, então este nome, em si mesmo construído de modo determinado, pode entrar em todas as funções sintáticas que exigem nomes enquanto materiais sintáticos, segundo as leis formais da significação. Isto basta aqui como indicação. Uma visão mais aproximada inserir-se-á num desenvolvimento sistemático da nossa doutrina das formas.1

reivindicar esta representação indireta, ela própria, como sendo a significação desta complexão de palavras. Na sua função normal, a expressão desperta a sig­ nificação; mas, quando a compreensão não se realiza, a expressão - por força, digamos, da sua semelhança sensível com expressões com sentido, ou seja, com expressões compreendidas - convoca a representação imprópria de uma “certa” significação correspondente, se bem que se sinta a falta da própria significação. A diferença entre ambas as incompatibilidades é, por conseguinte, clara: num caso, certas significações parcelares não se compatibilizam na unidade de uma significação, na medida em que está em questão a objetividade, correspon­ dentemente, a verdade das rsignificações1 no seu todo. Um objeto (por exemplo, uma coisa, um estado-de-coisas), no qual esteja unido tudo o que a significação una, por força das significações mutuamente “incompatíveis”, representa como lhe sendo unitariamente pertencente, não existe e não pode em geral existir; mas a própria significação existe. Nomes como ferro de madeira e quadrado redondo, ou proposições como todos os quadrados têm cinco ângulos, são no­ mes ou proposições tão respeitáveis como quaisquer outros. No outro caso, a possibilidade da própria significação unitária não sustenta que certas signifi­ cações parcelares nela coexistam. Possuímos, então, apenas uma representação indireta, tendente à síntese de tais significações parcelares numa significação e, com isso, simultaneamente, a visão de que a uma tal representação jamais corresponderá um objeto, isto é, de que uma significação do tipo da que é aqui intentada não pode existir. O juízo de incompatibilidade versa, aqui, sobre as representações e, no primeiro caso, sobre os objetos; onde aqui surgem Repre­ sentações de representações1 82 são, no primeiro caso, simples representações que surgem na unidade judicativa. As incompatibilidades e, por outro lado, as compatibilidades rapriorísticas1 tratadas aqui, e, correspondentemente, as legalidades rque lhes pertencem1 da ligação das significações, encontram a sua expressão gramatical, pelo me­ nos parcialmente, nas regras que governam a ligação das partes do discurso. Se perguntarmos pelas razões pelas quais, na nossa língua, certas ligações <336> são permitidas e outras interditas, seremos remetidos, sem dúvida, numa parte considerável, para hábitos contingentes da língua e, em geral, para fatualidades do desenvolvimento da língua, que se consumam de um modo para uma comu­ nidade linguística e de outro modo para outra. Na outra parte, porém, deparase-nos a distinção essencial entre significações dependentes e independentes, assim como as leis apriorísticas, intimamente ligadas com ela, da ligação re da mutação1 das significações, leis que, em toda e qualquer língua evoluída, se de-

§ 12. Sem-sentido e contrassenso Naturalmente, deve-se distinguir bem as incompatibilidades segundo leis, a que o estudo dos sincategoremas conduziu, daquelas outras que o exemplo um quadrado redondo ilustra. Como o sublinhamos já na primeira investigação,81 o que carece de sentido (o sem sentido) não se confunde com o absurdo (o con­ trassenso), o qual, numa linguagem exagerada, se costuma designar igualmente como sem-sentido, se bem que constitua, antes, um domínio parcelar do que é pleno de sentido. A combinação um quadrado redondo fornece verdadeiramen­ te uma significação unitária, rque tem o seu modo de “existência”, o seu modo de ser no “mundo” das significações ideais1; é, porém, uma evidência apodítica que, à significação existente, não pode corresponder qualquer objeto existente. Ao contrário, se dissermos um redondo ou, um homem e é, e coisas semelhantes, então não existem quaisquer significações que correspondam a estas ligações enquanto seus sentidos expressos. As palavras postas em conjunto despertam certamente a representação indireta de uma certa significação unitária expressa através delas; mas temos ao mesmo tempo a evidência apodítica de que tal signi­ ficação não pode existir, de que partes de significação desses tipos e assim ligadas <335> são incompatíveis numa significação unitária. Não poderíamos querer

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N.T.: Em alemão, o substantivo é grafado com letra maiúscula.

80 N.T.: A lição do texto é: "grün und Grün". Na impossibilidade de reproduzir em português a diferença gramatical e lógica entre as formas adjetiva e substantiva pela alterância da minúscula e da maiúscula, optamos por escrever “o verde", a fim de tornar sensível a pas­ sagem da forma adjetiva original para a forma substantiva. 81 N.A.: Cf. supra Investigação I, § 151, p. <60>, sub 3.

82 A: Tepresentações de representação (para nos exprimirmos como Bolzano)1. [Nota: rWissenschaftslehre (Doutrina da Ciência), I, § 90 (Bolzano denomina-as também "representa­ ções simbólicas").q

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vem rmanifestar mais ou menos claramente*8384na doutrina das formas gramati­ cais e numa classe correspondente de incompatibilidades gramaticais.

A tarefa de uma ciência das significações plenamente desenvolvida seria, então, a de investigar a estrutura legal-essencial das significações e as leis, que nela se fundamentam, da conexão e da modificação das significações-*,85 recon­ duzindo-as a um número mínimo de leis elementares independentes. Compreensivelmente, seria, porém, para isso necessário i r primeiro no encalço das for­ mas primitivas das significações, das suas estruturas internas e, em ligação com isso, estabelecer as categorias puras da significação, as quais delimitam, nas leis, o sentido e a extensão dos indeterminados (ou das variáveis, num sentido exata­ mente análogo ao da Matemática). O que as leis formais da conexão efetuam"*86 pode nos ser esclarecido, de certo modo, pela Aritmética. Há certas formas da síntese segundo as quais, seja em geral, seja apenas sob condições determinadas a serem precisadas, de dois números resultam novos números. As “operações diretas” a + h ah abetc. fornecem novos números <337> sem limitações; as “in­ versas” a - b , a ± b , H a , blog a etc. apenas sob certas limitações fornecem núme­ ros como resultados. Ora, o fato de que é assim deve, a cada vez, ser estabelecido por uma proposição de existência, ou melhor, por uma lei de existência, e ser eventualmente demonstrado a partir de certos axiomas primitivos. Já a partir do pouco que pudemos até agora indicar, torna-se claro que existem leis seme­ lhantes relativas ao domínio da significação, a saber, leis a respeito da existência e, correspondentemente, da não existência de significações, e que, nestas leis, as significações não são variáveis livres, mas antes variáveis limitadas à extensão de tais ou tais categorias, fundando-se na natureza do domínio da significação. rNa lógica pura das significações, cujofim mais alto reside nas leis da valida­ de objetiva das significações, tanto quanto tal validade está condicionada pela pura forma da significação, a doutrina acerca da estrutura essencial das significações e das leis de construção das suas formas constitui o fundamento necessário. A este

respeito, a lógica tradicional oferece alguns pontos de partida isolados na dou­ trina do conceito e do juízo, mas sem consciência do fim geral, a ser estabelecido do ponto de vista da ideia pura da significação. Manifestamente, a doutrina das estruturas elementares e das formas concretas de construção dos “juízos” - que devem agora ser compreendidos como “proposições” - abarca no seu todo, de resto, a doutrina das formas da significação, na medida em que toda e qualquer forma concreta de significação é ou uma proposição ou se insere em proposições como membro possível. Deve-se sempre ter em conta que, segundo a exclusão da “matéria do conhecimento”, a que intimamente se obriga a lógica pura enquanto tal, permanece excluído tudo o que poderia dar às formas de significação (ti­ pos, figuras) referência determinada a esferas de ser coisal. Aos conceitos coisais (também mesmo relativamente aos mais elevados, como coisa física, espacial, psíquica etc.) substituem-se, por toda parte, representações gerais indetermina­ das de coisalidades em geral, que são, todavia, de uma categoria de significação bem determinada (por exemplo, significação nominal, adjetiva, proposicional). Numa doutrina puramente lógica das formas das significações, trata-se, por conseguinte, antes de tudo, para operar no quadro da pureza acima descrita, <338> do estabelecimento das formas primitivas. Mais precisamente, deveriam ser fixadas as formas primitivas das significações independentes, das proposições completas, com as suas articulações imanentes e as estruturas dentro das arti­ culações. Em seguida, as formas primitivas da complicação e modificação, que admitem, segundo a sua essência, as diferentes categorias de membros possí­ veis (com o que se deve notar que também proposições completas podem ser membros de outras proposições). Numa sequência ulterior, trata-se"*87 de uma visão panorâmica sistemática da multiplicidade ilimitada de formas ulteriores, as quais são deriváveis por via da complicação ou modificação Continuadas1. rNaturalmente“*,88 as formas a serem estabelecidas são *"“ válidas”; isso quer dizer aqui que elas são formas que, uma vez particularizadas de modo arbitrário, fornecem significações que existem efetivamente - que existem en­ quanto significações. Por conseguinte,"*89 a cada form a primitiva pertence, ^de início,1 ao mesmo tempo, uma certa lei existencial Cpriorística1 declarando que toda e qualquer conexão de significações que siga esta forma também produz efetivamente uma significação unitária, desde que os termos (os indetermina-

83 A: rdocumentar. 84 A: lógica1. 85 A: ras leis da ligação das significações (e as da modificação das significações, estreita mente relacionadas com elas)1. 86 A: isolar primeiro as categorias essenciais de significação, as quais funcionam, nestas leis, como indeterminados (ou como variáveis, num sentido análogo ao da Matemática). O que é aqui exigido1.

87 A (num novo parágrafo): rNa Lógica pura, a esfera natural à qual cabe o desenvolvimento dos problemas que acabamos de indicar é a doutrina das formas da significação ou, como também podemos dizer, a doutrina acerca das formas dos juízos lógicos ou proposições. (Porque, manifesta mente, esta inclui totalmente em si própria a doutrina acerca das re­ presentações lógicas - tomadas no sentido mais estrito, enquanto significações de sujeito possíveis.) Trata-se, com isso, do estabelecimento das formas primitivas e1. 88 A (sem parágrafo, ligando-se com o anterior): rDe um modo por si mesmo compreensível1. 89 A: rválidas; por conseguinte,1.

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§ 13. As leis da complexão das significações e a doutrina rpuramente lógicogramatical184 das formas

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dos, as variáveis da forma) pertençam a certas categorias de significação. No que diz respeito, porém, à dedução das formas derivadas, ela pretende ser, ao mesmo tempo, a dedução da sua validade; portanto, devem corresponder-lhe também leis de existência, as quais são, porém, deduzidas das leis das formas primitivas. Por exemplo, corresponde ra duas significações nominais M e N a forma primitiva de conexão M e N , juntamente com a lei segundo a qual o resultado da conexão é de novo uma significação da mesma categoria. Existe a mesma lei quando tomamos, em vez das significações nominais, as das outras categorias, por exemplo, significações proposicionais ou <339> adjetivas. Duas proposições quaisquer, conectadas segundo a forma M e N, produzem de novo uma propo­ sição, dois adjetivos, de novo um adjetivo (de novo uma significação, que pode figurar como um atributo ou predicado, complexo, mas unitário). Além disso, pertencem a duas proposições quaisquer, M, N, as formas primitivas de conexão se M, então N , M ou N, de tal modo que o resultado é de novo uma proposição. A uma significação nominal qualquer Se a uma significação adjetiva qualquer p corresponde a forma primitiva Sp (por exemplo, casa vermelha); segundo uma lei, o resultado é uma nova significação da categoria significação nominal. Po­ deríamos dar, assim, ainda muitos exemplos de formas primitivas de conexão. É preciso levar em conta, para todas as asserções de leis atinentes a esta matéria, que, com a concepção das ideias categoriais proposição, representação nominal, adjetiva etc., as quais determinam as variáveis das leis, se abstrai das formas sin­ táticas cambiantes que necessariamente pertencem a tais significações em cada caso dado e sob uma certa determinidade. Falamos do mesmo nome, quer ele esteja na posição de sujeito ou na função de objeto relativo, do mesmo adjetivo, quer ele funcione como predicado, quer atributivamente, da mesma proposição, seja ela uma proposição livre ou uma proposição conjuntiva, disjuntiva, hipo­ tética, um antecedente ou um consequente, seja ela ainda um membro nesta ou naquela posição num complexo proposicional qualquer. Manifestamente, determina-se com isto o discurso da lógica tradicional sobre os termos, discurso muito frequente, mas jamais cientificamente esclarecido. Nas leis lógico-formais que caem no seu âmbito,90 bem como nas nossas leis estruturais, tais “termos” funcionam como variáveis, e as categorias que delimitam o domínio da variabi­ lidade são categorias de termos. A fixação científica destas categorias é, manifes­ tamente, uma das primeiras tarefas da nossa doutrina das formas.-191

Se substituirmos ragora, nas formas primitivas destacadas,-! passo a passo e sempre de novo um termo simples por uma conexão destas mesmas formas, e aplicarmos sempre <340> as leis existenciais primitivas, resultam, então, novas formas encaixadas umas nas outras, segundo um grau de complicação qualquer, ãe validade dedutivamente assegurada. Por exemplo, rpara a ligação conjuntiva de proposições1 (M eN) eP ( M e N ) e ( P e Q) {(Aí eN) eP} e Q etc.r, do mesmo modo que para a conexão disjuntiva e hipotética de pro­ posições e para outros modos de conexão de quaisquer categorias de significa­ ção.1 Compreende-se sem mais que as complicações, de um modo combinatorialmente visível, progridem in infinitum, que cada nova forma permanece vinculada à mesma categoria de significação, enquanto esfera de variabilidade para os seus termos, e que, porquanto esta esfera seja mantida, todas as ligações de significações a serem construídas desta maneira necessariamente existem, isto é, devem apresentar um sentido unitário. Vê-se também que as proposições existenciais correspondentes são, compreensivelmente, sequências dedutivas das proposições correspondentes às formas primitivas. rEm vez de empregar sempre a mesma forma de conexão, podemos, obviamente, variando de modo arbitrário no interior do que é legalmente admissível, utilizar combinatorialmente diferentes formas conectivas para as construções, e, assim, de um modo legalmente determinado, pensar como produzida uma infinitude de formas complexas.1 Ao mesmo tempo que tomamos uma consciência expressa destas fsituações1,92 desponta em nós a visão intelectiva da constituição apriorística do domínio da significação a respeito de todas essas formas que têm a sua origem apriorística rnas formas fundamentais1,93 E, naturalmente, essa visão intelectiva re, finalmente1,9495a visão intelectiva omniabrangente da constituição formal do domínio inteiro da significação é o único escopo das investigações deste gênero. Seria irrazoável ligar à formulação dos tipos de significação e às leis existenciais correspondentes a esperança de poder também adquirir, com isso, regras práticas valiosas para a complexão das significações e, correspondentemente, para a complexão gramatical das expres­ sões. Não há aqui nenhuma tentação de falhar a linha do que é correto, <341 > por conseguinte, também não há qualquer interesse em determinar cientificamente fessa195 linha. Com cada desvio das formas normais, o sem-sentido salta

N.A.: rO que ela oferece de doutrinas em realidade puramente lógicas, assim a silogística por inteiro, insere-se na lógica das significações assertivas (na lógica "apofântica")1 91 A: rà forma primitiva M e N a lei existencial segundo a qual todo e qualquer par de signifi­ cações nominais (significações de sujeito possíveis) conectadas por isso e produz de novo uma significação nominal.1 Em A não se segue qualquer novo parágrafo. 90

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A: A: A: A:

Trivialidades1. rnas formas fundamentais simples de conexão coletiva de dois membros1. r, ou antes1. ra mesma1.

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tão imediatamente aos olhos que nós rmal196 podemos cair em tais desvios na prática do pensamento e da fala. E tanto maior é, todavia, o interesse teórico que se liga à investigação ^sistemática de todas as formas de significação possíveis e das estruturas primitivas"1.9697 Trata-se sim, para o dizer mais precisamente, da intelecção de que todas as significações possíveis em geral restão submetidas a uma típica fixa de estruturas categoriais, traçada na ideia geral de significação-1,98910 e que, no domínio da significação, impera uma legalidade apriorística, segundo a qual todas as formas possíveis rde configurações concretas1 estão na depen­ dência sistemática de um pequeno número de formas primitivas, estipuladas por meio de leis existenciaisr, a partir das quais elas podem ser derivadas por construção pura1. Com esta legalidade, porque ela é uma legalidade apriorística e puramente categorial, acede à consciência científica um elemento fundamental e capital da constituição da crazão teórica”. Aditamento. Falei acima de complicação e de modificação. De fato, as leis da modificação pertencem também à esfera a delimitar. O que queremos dizer fica esclarecido por meio da analogia com a suppositio materialis, de que aci­ ma falamos. Outros exemplos nos são fornecidos pelas diferenças, não fáceis de clarificar, da função de conexão r(as sintaxes apriorísticas)1, como quando, digamos, o nome sujeito é levado para a posição de objeto; diferenças que, por conseguinte, muitas vezes confundidas com diferenças empíricas, se inserem nos casos das formas declinadas re, em geral, nas formas sintáticas gramaticais1. A diferença entre a função atributiva e a predicativa da significação adjetiva, e outras semelhantes, tem aqui o seu lugar."

Certamente que,1101 ao falarmos de leis lógicas, quase não pensamos nelas; pen­ samos rexclusivamente1 nas outras leis que, limitando-se às significações plenas de sentido, estão incomparavelmente mais próximas dos interesses rpráticos1 do conhecimento e que dizem respeito à sua possibilidade e verdade objetivas. Reflitamos um pouco mais de perto acerca de ambos os tipos de leis. As leis apriorísticas pertencentes à constituição essencial das formas de significação deixam totalmente em aberto se as significações a serem construí­ das sob tais formas são “objetivas” ou “sem objeto”, se (quando se trata de formas proposicionais) delas resulta ou não uma possível verdade. Conforme o que foi dito, estas leis têm a simples função de separar sentido e sem-sentido. A palavra sem-sentido (para o sublinhar de novo) deve ser, aqui, própria e estri­ tamente tomada; um amontoado de palavras tais como rei mas ou semelhante e não pode ser, de todo, unitariamente compreendido; cada palavra tem, por si, o seu sentido, mas não a composição. Estas leis do sentido ou, normativamente formuladas, do sem-sentido a evitar, consignam à Lógica as formas de significa­ ção possíveis rem geral1, cujo valor objetivo ela <343> tem primeiro que tudo de determinar. E ela o faz de um modo tal que expõe, com isso, as leis totalmente diferentes que separam i"o sentido formalmente concordante do sentido formal­ mente discordante, o contrassenso formal. A concordância e, correspondentemente, o absurdo das significações querem dizer possibilidade (concordância, compatibilidade) objetiva, por isso apriorística, em contraposição à impossibilidade objetiva (incompatibilidade); em outras palavras, elas querem dizer possibilidade ou impossibilidade do ser dos objetos significados (compatibilidade e incompatibilidade ôntica das deter­ minações objetivas significadas), na medida em que elas estão condicionadas pela essência própria das significações e em que, com isso, são através desta essência visíveis numa evidência apodítica. Por via das nossas determinações conceituais, esta oposição entre sentido objetivo - sentido concordante de acor­ do com a significação - e contrassenso está nitidamente separada da oposição entre sentido e sem-sentido (sendo que se deve apenas atentar para o fato de que, no discurso impreciso de todos os dias, os conceitos se confundem uns com os outros e de que o contrassenso, e mesmo qualquer desrespeito grossei­ ro pela verdade empírica, costuma ser designado como sem-sentido). Também precisamos aqui, porém, da separação entre contrassenso material (sintético), a que os conceitos coisais (núcleos últimos de significação coisal) têm de respon­ der, tal como é o caso, por exemplo, da proposição um quadrado é redondo e de

<342> § 14. As leis que evitam o sem-sentido e as que evitam o contrassenso. A ideia da Gramática rpuramente lógica1100 rAs leis formais da significação de que falamos, leis estas que se preocu­ pam com a simples partição dos domínios do pleno de sentido e do sem-sentido, devem valer, no sentido mais amplo do termo, como leis lógico-formais.

96 A: rde modo nenhum1. 97 A: rdestas trivialidades1. 98 A: rse ordenam em formas categoriais fixas1. 99 N.A.: Espero poder apresentar, em breve, para o grande público, no meu Jahbuch für Philosophie und Phanomenol. Forschung, as investigações relativas à doutrina das formas da sig­ nificação rque anunciei neste lugar, na primeira edição, e que, entretanto, apresentei, com múltiplos melhoramentos, nas minhas lições universitárias de Gõttngen, desde 19011. 100 A: ''pura1.

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101 A: rDe resto, não queremos de modo algum afirmar que as leis que se preocupam com a simples distinção do domínio do que é pleno de sentido e do sem-sentido, e que valem certamente como leis lógicas num sentido da palavra mais alargado, fechem o círculo das leis lógicas. Ao contrário,1.

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toda e qualquer proposição puramente geométrica que seja falsa, e o contrassenso formal ou analítico, no qual compreendemos, precisamente, toda e qualquer in­ compatibilidade objetiva simplesmente formal, que se funde na pura essência das categorias de significação sem ter em conta qualquer “matéria de conhecimento” coisal. (Uma separação análoga atravessa, naturalmente, o conceito contrário de sentido concordante.)1102 Leis, como o princípio de não contradição, rcomo a1 da dupla negação roul103 como o modus ponens, são, instituídas normativa­ mente, leis para evitar o contrassenso form al Elas mostram-nos o que vale como objetivo, <344> em geral, por força da pura r“forma de pensamento”1,104 rjsto é1,102134051067mostram-nos o que pode ser asserido para a rvalidade objetiva"1106 das sig­ nificações, com base na pura forma da significação em que elas são pensadas, de um modo a priori relativamente a toda a matéria da objetividade significada. Estas leis não podem ser desrespeitadas, se não quisermos que resulte rjá“i uma falsidade, antes mesmo de termos lid o em conta1107 o objeto na sua particula­ ridade rcoisal1. fElas são, no sentido da nossa terceira investigação,108 leis “ana­ líticas”, em oposição às leis sintéticas apriorísticas, que contêm conceitos coisais e estão a eles vinculadas quanto à sua validade. Na esfera das leis analíticas em geral, estas leis formais, isto é, as leis cuja validade objetiva se fundamenta nas categorias puras de significação, distinguem-se das leis ontológico-analíticas, que se fundamentam nas categorias ontológico-formais (como as de objeto, pro­ priedade, pluralidade etc.), e determinam rigorosamente um segundo sentido, mais estreito, do analítico. Podemos denominá-lo como apofântico-analítico, no sentido da lógica apofântica. Em parte, mas apenas em parte, existem leis de equivalência entre ambos os tipos de leis, coisa sobre a qual não podemos ir aqui mais longe. Se, abstraindo-nos de toda e qualquer questão acerca da validade objetiva, nos limitarmos, agora, ao a priori que se enraíza puramente na essência genérica da significação enquanto tal, isto é, se nos limitarmos à disciplina ensinada na presente investigação, que investiga as estruturas primitivas de significação, os tipos primitivos de articulação e conexão, bem como as leis operatórias, sobre

eles fundadas, da complexão e da modificação de significações - reconhecere­ mos então, ao mesmo tempo, o direito indubitável da ideia de uma Gramática Universal, concebida pelo racionalismo dos séculos XVII e XVIII.1109 O que a este respeito dissemos já, de modo alusivo, na Introdução <345> quase não ca­ rece de desenvolvimento mais pormenorizado. Os antigos gramáticos tinham instintivamente em vista sobretudo a esfera de leis que acabamos de designar, mesmo que não tivessem conseguido levá-la à plena clareza conceituai. Na es­ fera gramatical, há também uma medida fixa, uma norma apriorística que não pode ser transgredida. Tal como, na esfera propriamente lógica, o que é apriorístico se distingue, enquanto “Lógica pura”, do empírica e praticamente lógico, do mesmo modo, na esfera gramatical, o que é por assim dizer “puramente” gramatical, ou seja, precisamente o apriorístico (a “forma ideal” da língua, como incisivamente se diz), se distingue do que é empírico. De ambos os lados, o que é empírico é determinado, em parte, por meio dos traços gerais - portanto, sim­ plesmente factuais - da natureza humana e, na outra parte, também por meio das particularizações contingentes da raça, mais precisamente, do povo e da sua história, bem como do indivíduo e da sua experiência de vida individual. Con­ tudo, tanto num caso como noutro, tal como em todos, aliás, o apriorístico, pelo menos nas suas formas primitivas, é “compreensível por si”, mesmo trivial; e, no entanto, a sua demonstração rsistemática"i V 110 a sua pesquisa teórica re clari­ ficação fenomenológica1 são, científica e filosoficamente, empreendimentos do mais alto interesse re de não pouca dificuldade1. Naturalmente, pode-se alargar a ideia da gramática universal mais além da esfera apriorística quando aduzimos a esfera r(vaga, sob vários aspectos)1111 do universal humano em sentido empírico. rDeve haver uma gramática universal neste sentido, que é o mais amplo, e estou longe (e estive-o sempre) de duvidar de que esta esfera alargada “é rica de conhecimentos importantes e suficientemente determinados”.112Aqui, porém, como por todo lado onde estão em jogo interesses filosóficos, é uma questão da maior importância distinguir nitidamente o aprio­ rístico e o empírico, e reconhecer que, no interior desta disciplina, apreendida na sua amplitude plena, os conhecimentos relevantes para o gramático sobre a doutrina das formas de significação têm o seu caráter próprio, precisamente en­ quanto <346> pertencentes a uma disciplina apriorística que deve ser isolada na

102 A: ro sentido formal (formalmente "possível") do contrassenso formal. Certa mente que este contrassenso chama-se também frequentemente sem-sentido, tal como também ouvimos chamar sem sentido a uma ofensa demasiadamente grosseira à verdade empírica; mas este visa, agora, à incompatibilidade objetiva e, mais precisa mente, formal, fundando-se puramen­ te nas categorias lógicas, a qual é indiferente a toda e qualquer "matéria do conhecimento".1.

103 A: v . 104 105 106 107 108

Em A faltam as aspas. A: rcorrespondentemente1. A: objetividade1. A: rolhado1. N.A.: rCf. supra III, §§ 11 e segs., p. <255> e segs.

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109 A (num novo parágrafo): rAs leis de significação apriorísticas, cuja essência é clarificada por cada "forma" no sentido da Lógica, são aquelas a que a ideia de uma Gramática Universal, concebida pelo Racionalismo dos séculos XVII e XVIII, deu um firme suporte.1. 110 A: o 1. U I A: ralgo vaga1. 112 N.A.: rComo A. Marty - surpreendentemente, na intenção de me contradizer - o diz nas suas Unters, z. Grundlegung, p. 61.1

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sua pureza. Devemos aqui, como por toda parte, nos conformar com a grande visão kantiana, devemos nos deixar penetrar inteiramente pelo seu sentido filo­ sófico: que não há um aumento das ciências, mas antes uma desfiguração, quan­ do deixamos que se confundam os seus limites. Devemos ter em boa conta que uma Gramática Universal, neste sentido mais amplo, é uma ciência concreta que, precisamente ao modo de uma ciência concreta, com a finalidade de explicar os acontecimentos concretos, combina muitos conhecimentos que têm o seu lugar teórico em ciências teóricas essencialmente diferentes, a saber, ora em ciências empíricas, ora em ciências apriorísticas. Na nossa época dominada pelas ciências da natureza, há a preocupação de que as pesquisas empíricas gerais não sejam deixadas de lado, tanto no domínio gramatical como em todos os outros. As coi­ sas passam-se de outro modo nas ciências apriorísticas, cujo sentido quase ame­ açou estiolar-se na nossa época, se bem que todas as evidências principiais a elas reconduzam. E assim tomo, aqui, a defesa do direito de uma boa parte da antiga doutrina acerca de uma “grammaire générale et raisonnée”, de uma Gramática Filosófica; a saber, tomo a defesa do que nela, ao modo de uma intenção obscura e não amadurecida, almejava ao “racional” da língua em sentido autêntico, parti­ cularmente ao “lógico”, ao apriori da forma da significação.113"1114 Se vejo bem, será, então, de um significado fundamental para a investiga­ ção da língua, tomarmos clara consciência das diferenças aqui indicadas apenas de um modo preliminar e icompenetrarmo-nos da evidência"1115 de que a língua não tem apenas ros seus fundamentos fisiológicos, psicológicos e histórico-cultu­ rais, mas também os seus fundamentos apriorísticos"1,116 <347> rEstes últimos"1117 dizem respeito às formas essenciais de significação e às leis apriorísticas da sua complexão e modificação; e nenhuma língua seria pensável que não fosse es­ sencialmente codeterminada rpor este apriorP .118Todo e qualquer investigador da língua opera com conceitos que provêm deste domínio, tenha ele uma clara consciência disso ou não.1345678

Podemos dizer conclusivamente: no interior da Lógica pura, delimita-se a doutrina pura das formas de significação, enquanto esfera primeira e fundamentadora quando considerada em si mesma L Considerada do ponto de vista da Gramática, ela estabelece simplesmente uma ossatura ideal"1119 que cada lín­ gua fática, segundo motivos em parte genericamente humanos, em parte empí­ ricos, e variando de um modo contingente, enche e reveste de diferentes modos com material empírico. Por mais que o conteúdo factual das línguas históricas, tanto como as suas formas gramaticais, possa ser deste modo empiricamente determinado, todas elas estão vinculadas a esta ossatura ideal; e, assim, a sua investigação deve constituir um dos fundamentos para a clarificação científica última de toda e qualquer língua em geral. rPrecisamos apenas manter sempre diante dos olhos o ponto capital: todos os tipos de significação explicitados na doutrina pura das formas, sistematicamente investigados segundo as suas arti­ culações e estruturas - as formas fundamentais das proposições, a proposição categórica com as suas numerosas figuras particulares e formas de articulação, os tipos primitivos de proposições complexas, como as unidades preposicionais conjuntiva, disjuntiva, hipotética ou a diferença entre universalidade e particu­ laridade, por um lado, e singularidade, por outro, as sintaxes da pluralidade, da negação, das modalidades etc. -, tudo isto são conteúdos inteiramente aprio­ rísticos, enraizando-se na essência ideal das significações enquanto tais, como não o são menos as formas de significação a serem produzidas, em sequência, segundo tais formas primitivas e as leis operatórias da complexão e da modifi­ cação. Perante as cunhagens gramaticais empíricas, <348> estes conteúdos são, por conseguinte, o que é em si primeiro, e assemelham-se, de fato, a uma “ossa­ tura ideal” absolutamente fixa, que se manifesta de uma maneira mais ou menos perfeita sob um revestimento empírico.120 Temos de o ter diante dos olhos para podermos perguntar com sentido: como expressa o Alemão, o Latim, o Chinês etc., “a” proposição existencial, “a” proposição categórica, “o” antecedente hipo­ tético, “o” plural, “as” modalidades do “possível” e do “provável”, o “não” etc.? Não pode ser indiferente se o gramático se contenta com a sua visão privada, pré-científica, acerca das formas da significação, correspondentemente, se ele se contenta com as representações, empiricamente emaranhadas, que a gramática histórica - por exemplo, a latina - lhe põe ao alcance da mão, ou se ele tem dian­ te dos olhos o sistema puro das formas, sob uma configuração cientificamente determinada e teoricamente coerente; precisamente na forma da nossa doutrina sobre as formas das significações."1121

113 N.A.: rAdmito de bom grado as objeções de A. Marty (que, em minha opinião, não fazem jus às peculiaridades de princípio da presente investigação, como também das restantes investigações desta obra) de que será ir longe demais dizer, como na primeira edição, que "toda a censura dirigida à velha doutrina da grammaire générale et raisonnée atingia so­ mente a obscuridade da sua forma histórica e a mistura do apriorístico com o empírico". Em todo caso, as palavras de censura mais agudas dirigiam-se-lhe precisamente, na medida em que ela pretendia outorgar validade, na linguagem, a um elemento racional, lógico.1 114 A: rDevemos tornar claro, porém, que toda a censura dirigida à velha doutrina da grammaíre générale et raisonnée atingia somente a obscuridade da sua forma histórica e a mistura do apriorístico com o empírico \ Em A sem novo parágrafo. 115 A: rdespertarmos a evidência1. 116 A: rum fundamento fisiológico, psicológico e histórico-cultural, mas também um apriorístico1. 117 A: rEle1. 118 A: rprecisamente por estas leis1.

119 A : r; isto é, a doutrina das categorias puras de significação e as leis a priori, nelas se funda­ mentando, da complexão e modificação. Ela estabelece uma ossatura ideal1. 120 N.A.: rContra a impugnação de A. Marty da adequação desta imagem, op. cit, p. 59, nota.1 121 Aditamento de B. Em A não se segue qualquer novo parágrafo.

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Tendo presente que, nesse domínio lógico basilar, as perguntas acerca da verdade, da objetividade, da possibilidade objetiva, permanecem ainda fora de jogo, e tendo presente a função, que acabamos de caracterizar, deste domínio para a compreensibilidade da essência ideal de toda e qualquer língua, poderse-ia designar este domínio fundante da lógica pura como ^Gramática pura­ mente lógica1.m

conhecimentos lógico-gramaticais, que remeto para a Lógica, têm, “do ponto de vista teórico”, “a sua terra natal natural na Psicologia da Linguagem. E é a esta que a Lógica e a parte nomotética da Psicologia da Linguagem pedem de empréstimo o que é conveniente e adequado para os seus fins”. Não tenho senão como considerar a concepção de Marty como principialmente errônea. Seguin­ do-a, seríamos levados a inserir a Aritmética e, como consequência mais lata, o conjunto das disciplinas da matemática formal, na Psicologia, se não mesmo na Psicologia da Linguagem. Em minha opinião, a Lógica pura em sentido estreito, no sentido de uma doutrina da validade das significações e, com esta, a doutri­ na pura das formas, está essencialmente unida a estas disciplinas (cf. o capítulo final dos Prolegômenos). É nesta unidade essencial de uma “mathesis universalis” que todas elas devem ser tratadas e, em todo caso, perfeitamente separadas de toda e qualquer ciência empírica, chame-se ela Física ou Psicologia. Mesmo que de um modo ingenuamente dogmático, excluindo os problemas especificamen­ te filosóficos, é isto que faz o <350> matemático, sem se afligir com as objeções dos filósofos - para grande proveito da ciência, segundo penso.1 «“3.1127 Nada confundiu mais a discussão da questão relativa à reta relação entre Lógica e gramática que a permanente mistura das duas esferas lógicas que distinguimos nitidamente enquanto esfera basilar e esfera superior, e que carac­ terizamos por meio das suas contrapartidas negativas - a esfera do sem-sentido e a do contrassenso «"formal1. O lógico, no sentido da esfera superior, orientado para a verdade formal ou para a objetividade, é certamente indiferente para o gramático. Mas não o é a Lógica em geral. Mas se se quisesse desacreditar a esfera de base devido ao seu caráter supostamente estreito «"e óbvio, bem como devido à sua1128 inutilidade prática, ter-se-ia desde logo de responder que ao filósofo, defensor por vocação dos interesses da teoria pura, seria de mau tom deixar-se determinar por questões de utilidade prática. Ele rdeve também saber já1129 que são precisamente os problemas mais difíceis que se escondem sob o título do “óbvio” «", e isto é tanto assim que, paradoxalmente, mas não sem um sentido profundo, se poderia designar a Filosofia como a ciência das triviali­ dades. Em todo caso, também aqui o que, à primeira vista, parece tão trivial revela-se, numa consideração mais precisa, uma fonte de problemas profundos e com múltiplas ramificações. Porque estes não são os problemas que, para o lógico, devido ao seu interesse dirigido para a validade objetiva, são sentidos como primeiros - se bem que sejam, dito aristotelicamente, os “em si primeiros” -, não é de se espantar que, na Lógica desenvolvida até o presente (e também na bolzaniana), não se tenha chegado uma vez sequer a uma formulação científica

Notas

rl. Disse na primeira edição “Gramáticapura”, um nome que foi pensado e expressamente designado como análogo da “Ciência pura da Natureza” de Kant. Mas, na medida em que não pode ser afirmado que a doutrina pura das formas da significação abarque o inteiro a priori gramatical na sua generalidade - por exemplo, às relações de mútua compreensão entre sujeitos psíquicos, tão influentes para a gramática, pertence já um <349> a priori próprio -, a expres­ são Gramática puramente lógica merece, então, a preferência.1 r2.“i12123124Depois das explanações precedentes, ninguém nos atribuirá a ideia de que consideramos possível uma Gramática “geral”, no sentido de uma ciência geral, que abarcasse em si todas as gramáticas particulares enquanto especifi­ cações contingentes; mais ou menos como a teoria matemática geral encerra em si, a priori, todos os casos específicos possíveis e os resolve de uma só vez. Naturalmente, fala-se aqui de Gramática geral re, mais precisamente, de Gra­ mática pura lógica1 rnum sentido análogo1124 àquele em que comumente se fala de ciência geral da língua. Do mesmo modo que esta trata, em geral, das teorias genéricas, que podem preceder as línguas determinadas, nomeadamente, por conseguinte, os pressupostos ou fundamentos que entram igualmente em conta para todas elas, assim o é com a Gramática rpura lógica1,125126789no seu círculo mais estreito, que pesquisa apenas um destes fundamentos, precisamente aquele cujo solo natal é a Lógica pura. A sua «"inserção1126na ciência da língua serve, natural­ mente, ao simples interesse da aplicação, tal como, noutra direção, a ciência da língua serve em muitos capítulos da Psicologia. «"Nesse assunto - como em todos os outros que dizem respeito à ordem teórica das investigações apriorísticas e empíricas -, Marty é certamente de um outro parecer. (Cf., op. cit, § 21, p. 63 e segs.) Na nota à página 67, opina que os

122 123 124 125 126

A: A: A: A: A:

r"Gramática pura"1. rl.T rnum mesmo sentido1. rgeral1. rordenaçãon.

127 A: a .\ 128 A: r, óbvio, e à sua1. 129 A: rsabe já também1.

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destes problemas, ou seja, à concepção da ideia de uma doutrina pura lógica das formas. Deste modo, falta à Lógica um fundamento primeiro, falta uma distinção cientificamente rigorosa e fenomenologicamente clarificada dos ele­ mentos primitivos e das estruturas de significação, bem como o conhecimento das correspondentes leis de essência. Fica assim esclarecida, também, a razão por que especialmente as muitas teorias do “conceito” e do “juízo”, que, por uma parte essencial, se estendem até este domínio, produziram resultados tão pou­ co duradouros. De fato, isto se deve, numa grande parte, à falta de pontos de vista e objetivos corretos, à confusão dos estratos de problemas que devem ser radicalmente separados e a um psicologismo operando umas vezes abertamen­ te, outras sob diversos disfarces. Manifestamente, <351> nesta falha (porque o olhar do lógico repousa sempre na forma) revela-se, porém, a dificuldade que jaz nas próprias coisas.“«130 r4.i131 Sobre concepções relacionadas, mas opostas, compare-se Einleitung in die Psychologie und Sprachwissenschaft (Introdução à Psicologia e à Ciência da Linguagem), de H. Steinthal (Introdução, IV, “Sprechen und Denken. Grammatik und Logik” - Fala e Pensamento. Gramática e Lógica). Refirase, em particular, a bela maneira como se precisa a concepção de W. v. Humboldt (op. cit.y p. 63 e segs.), da qual se segue que de algum modo nos aproximamos, com o aqui exposto, deste grande investigador, tido também em alta estima pelo próprio Steinthal. O que Steinthal objeta, ele que se coloca do lado oposto, pa­ rece encontrar uma solução tão clara através das nossas distinções que se pode dispensar aqui uma crítica mais aprofundada.

130 A : r. Em segundo lugar, seria de ponderar que uma doutrina das formas falta ainda até aqui, mesmo que seja satisfatória apenas de um modo grosseiro; para falar mais precisamente, que ninguém conseguiu até aqui estabelecer uma diferenciação cientifica mente rigorosa e fenomenologicamente clarificada dos elementos primitivos de significação e um conspecto científico sobre a multiplicidade de formas derivadas na sua ligação e transformação, coisa que não se apresenta, portanto, como uma tarefa que seja fácil, em todo caso.1. 131 Em A e, por engano, também em B: r3.1.

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ov <352>

SOBRE VIVÊNCIAS INTENCIONAIS E SEUS “CONTEÚDOS55 In

tro du ção

Na Segunda Investigação, deixamos claro o sentido da idealidade da es­ pécie em geral e, juntamente com isso, aquele sentido da idealidade das signifi­ cações que importa para a Lógica pura. Como acontece com todas as unidades ideais, também correspondem às significações possibilidades reais e, eventual­ mente, efetividades, às significações in specie correspondem os atos de significar, e elas não são outra coisa senão «momentos idealmente captados nestes atos“«3 Levantam-se, todavia, novas questões relativamente ao gênero das vivências psí­ quicas, nas quais o gênero supremo “significação” tem a sua origem, e de modo semelhante relativamente às espécies inferiores destas vivências, em que se de­ senvolvem as espécies, essencialmente diferentes, de significação. Trata-se, por conseguinte, da resposta à pergunta sobre a origem do conceito significação e das suas especificações essenciais, «“correspondentemente,“«2 de uma resposta a esta pergunta que penetre mais profundamente e que vá mais além do que as nossas investigações o fizeram até aqui. Em conexão intimíssima com ela estão ainda mais questões: as significações devem residir em Tntenções significativas“«3 que podem entrar numa certa relação com a intuição. Falamos de muitos modos de preenchimento da <353> intenção significativa por meio da intuição correspon­ dente e r, acerca disso,“« dissemos que a forma suprema deste preenchimento está dada na evidência. Daí surge, portanto, a tarefa de descrever esta notável relação «“fenomenológica“«4 e de determinar o seu «“papel“«,5 ou seja, de esclarecer os conceitos de conhecimento nela fundados. Para a investigação analítica, estas tarefas e as anteriores, acerca da essência da significação (especialmente da re­ presentação lógica e do juízo lógico), não devem ser separadas. A presente investigação não se ocupará ainda dessas tarefas, porque, para que as pudéssemos tratar, necessitaríamos muito de investigações fenomenológicas mais gerais. “Âfos” devem ser as vivências do significar, e o significativo em cada ato singular deve residir precisamente «“nas vivências de ato“«6 e não no 1 2 3 4 5 6

A: A: A: A: A: A:

ros caracteres de ato destes, idealmente captados1. rou1. ratos significativos1. rfenomênica1. rpapel lógico1. rno caráter de ato1.

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objeto, rei deve residir no que faz delas uma vivência “intencional”, “dirigida5 para os objetos. Do mesmo modo, a essência da intuição preenchedora reside em certos atos: pensamento e intuição devem ser diferentes enquanto atos. E, naturalmente, o preencher-se deve ser, ele próprio, uma relação que pertence especialmente aos caracteres de ato. Ora, na Psicologia descritiva, não há ne­ nhum termo mais controverso que o de “atos”; e devem ter se erguido dúvidas, quando não mesmo recusas liminares, em todos os lugares das investigações precedentes em que o conceito de ato serviu para caracterizar e para expressar a nossa concepção. É, por conseguinte, uma importante condição prévia para a solução das tarefas indicadas que este conceito seja esclarecido antes de todos os demais. Tornar-se-á patente que o conceito de ato, no sentido de vivência inten­ cional, delimita um gênero importante na esfera das vivências r(captadas na sua pureza fenomenológica)i7 e que, assim, a inserção das vivências do significar neste gênero nos fornece, de fato, uma valiosa caracterização das mesmas. Compreensivelmente, a clarificação da distinção entre caráter de ato e con­ teúdo de ato pertence também à inquirição sobre a essência fenomenológica dos atos enquanto tais, e, neste último ponto de vista, <354> a atestação das significa­ ções fundamentalmente diferentes em que se fala de “conteúdo55de um ato. A essência dos atos enquanto tais não pode ser discutida de um modo suficiente sem que penetremos bastante fundo na fenomenologia das “repre­ sentações55. Sobre esta conexão íntima, recordamos a bem conhecida proposição segundo a qual cada ato ou é uma representação, ou tem representações por base. No entanto, pode-se perguntar, a este respeito, entre os muito diferentes conceitos de representação, a qual deles deveremos nós recorrer; assim, torna-se uma parte essencial da nossa tarefa a separação dos fenômenos que se misturam uns nos outros e que estão, aqui, na base dos equívocos. Esse tratamento dos problemas, que acabamos de indicar grosso modo (aos quais ainda alguns outros se virão conectar intimamente), ligamo-lo nós, não impropriamente, com a diferenciação rpsicológico-descritivai de vários concei­ tos de consciência, que se fundem uns nos outros. Designa-se frequentemente os atos psíquicos como “atividades da consciência55, como “relação da consciên­ cia com um conteúdo (objeto)55, e, por vezes, define-se diretamente “consciên­ cia55como uma expressão abrangente para atos psíquicos de todo tipo.

<355> C a p í t u l o I

C O N SC IÊ N C IA CO M O C O N SIST Ê N C IA FE N O M EN O LÓ G IC A DO EU E C O N SC IÊ N C IA CO M O PER CEPÇ Ã O IN TERN A

§ 1. Plurivocidade do termo “consciência” Na Psicologia, fala-se sobretudo de consciência e, do mesmo modo, de conteúdos de consciência e de vivências de consciência (habitualmente, fala-se simplesmente de conteúdos e de vivências), principalmente em relação com a separação entre fenômenos psíquicos e físicos, pela qual devem ser designados os fenômenos que pertencem, de um lado, ao domínio da Psicologia e, do outro, ao domínio das ciências físicas. À questão que versa sobre esta separação liga-se estreitamente o problema que nos é posto, o problema de delimitar r, segundo a sua essência fenomenológica,11 o conceito de ato psíquico, na medida em que este conceito surgiu precisamente neste contexto, a saber, como suposta delimitação do domínio psicológico. Ora, para a correta realização desta deli­ mitação, um conceito de consciência tem uma aplicação justificada, enquanto a determinação do conceito de ato psíquico fornece um outro conceito. Em todo caso, vale distinguir vários conceitos substantivamente aparentados que, por isso, facilmente se misturam. Discutiremos, no que se segue, três conceitos de consciência pertinentes para os nossos interesses: <356> 1. Consciência como a consistência fenomenológica rreal">12 con­ junta do reu empírico, enquanto entrelaçamento das vivências psíquicas na uni­ dade da corrente de vivências1.3 2. Consciência como o interno dar-se conta das vivências psíquicas próprias. 3. Consciência como designação global para todo e qualquer tipo de “atos psíquicos55ou “vivências intencionais55. Que nem todos os equívocos do termo em questão estejam esgotados é coisa que mal precisa ser dita. Por exemplo, recordo maneiras de falar, correntes no uso extracientífico da língua, como “entrar na consciência55ou “vir à consci­ ência55, “alta55ou “reduzida consciência de si próprio55, o “despertar da consciência de si55 (esta última expressão é também usada na Psicologia, mas com um senti­ do completamente diferente do da vida corrente), e ainda outras semelhantes. 1 2 3

7

A: rpsíquicas\

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A: apropriadamente1. N.T.: Reeíl. A: reu espiritual. (Consciência = o eu fenomenológico, enquanto "feixe" ou entrelaçamento das vivências psíquicas.)1.

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Dada a equivocidade de todos os termos que de algum modo podem estar em questão na designação diferenciadora, a determinação unívoca dos concei­ tos a destacar só é possível de um modo indireto, a saber, apenas por meio do agrupamento das expressões sinônimas e por contraposição às que devem ser separadas, assim como por meio de paráfrases e explicações apropriadas. Tere­ mos, por conseguinte, de fazer uso desses meios auxiliares.

rSeja agora também indicado que este conceito de vivência pode ser tomado de um modo puramente fenomenológico, isto é, de tal modo que seja excluída toda e qualquer referência à existência empírico-real (a homens ou animais da natureza): a vivência, no sentido psicológico-descritivo (no sentido empíricofenomenológico), torna-se, então, a vivência no sentido da Fenomenologia pu­ ra.13 Pelos exemplos clarificadores que vamos dar agora, podemos e devemos nos convencer de que a exclusão exigida está a cada momento na nossa liber­ dade e que as explicitações realizadas ou a realizar a seu respeito, “psicológicodescritivas” no começo, devem ser tomadas “puramente”, no sentido indicado, e que, numa consequência mais lata, deverão ser compreendidas como visões intelectivas puras de essência (como apriorísticas). <358> E o mesmo se veri­ fica, naturalmente, em todos os casos aparentados.-!14 Por exemplo, no caso da percepção externa, o rmomento da sensação cor-!, que constitui um elemento integrante real15 de um ato concreto de visão (no sentido rfenomenológico2 da aparição visual perceptiva), é, por conseguinte, um “conteúdo vivido” ou “de consciência”, do mesmo modo que o caráter do perceber, e do mesmo modo que a completa aparição perceptiva do objeto colorido. Pelo contrário, o próprio objeto, se bem que seja percebido, não é vivido, nem está na consciência; e, do mesmo modo, também não o é a cor nele percebida. Se o objeto não existe, se, por conseguinte, a percepção deve ser rcriticamente-!16 avaliada como engano,17 como alucinação, ilusão e coisas semelhantes, então não existe também a cor percebida, a cor vista, a cor do objeto. Estas diferenças entre percepção normal e anormal, correta e enganosa, não tocam o caráter interno, puramente descri­ tivo ou fenomenológico da percepção. Enquanto a cor vista - isto é, a cor que, na percepção visual, rcomparece no objeto aparecente enquanto sua proprie­ dade e que é posta, em unidade com ele, como sendo presentemente218 -, se é que existe, não existe certamente enquanto vivência,19 corresponde-lhe, porém, nesta vivência, ou seja, na aparição perceptiva, um elemento integrante real.20 Corresponde-lhe a sensação de cor, o momento rfenomenológico-121 de cor qua-

§ 2. Primeiro: consciência como unidade rreal456-fenomenológicalS das vivências do eu. O conceito de vivência Começamos com a seguinte sinopse: se a Psicologia moderna define ou pode definir a sua ciência como uma ciência dos indivíduos psíquicos enquanto runidades de consciência-16 concretas ou como a ciência das vivências de cons­ ciência rde indivíduos que vivenciam2 ou como a ciência dos seus conteúdos de consciência, <357> a justaposição dos termos, neste contexto, determina um certo conceito de consciência e, simultaneamente, certos conceitos de vivência e de conteúdo. Sob estes últimos termos de vivência e conteúdo, visa a Psicologia moderna às ocorrências reais7 (Wundt diz com razão: os acontecimentos) que, mudando de momento para momento, em múltiplas ligações e interpenetrações, rfazemP8910a unidade rreaP210 de consciência do respectivo indivíduo psíquico. Neste sentido, são vivências ou conteúdos de consciência as percepções, as repre­ sentações da fantasia e as representações de imagem, os atos do pensamento con­ ceituai, as suposições e dúvidas, as alegrias e as dores, as esperanças e os temores, os desejos e as volições, e coisas semelhantes, tal como têm lugar na nossa cons­ ciência. E, com estas vivências na sua totalidade e plenitude concreta, as partes e momentos abstratos que as compõem são também vividos, as partes e os mo­ mentos abstratos são conteúdos de consciência reais.11 Naturalmente, de pouco importa se as partes em questão são, por si mesmas, articuladas de algum modo, se elas são delimitadas por atos que lhes estejam referidos, e, especialmente, se elas são, por si mesmas, objetos de percepções “internas”, que as captam na sua rexistência de consciência-! ;12 e se, de um modo geral, elas o podem ser ou não.

13 14

4 5 6 7 8 9 10 11 12

N X : Reell. A: rfenomenológica1. A: rconsciência (unidades de consciência)1. N X : Real. A: fconstituem\ N X : Reell. A: rreah. N X : Reell. A: rexistência de consciência evidente1.

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15 16 17 18 19 20 21

rVeja-se a esse propósito as minhas Ideen zu einer Reinen Phänomenologie (Ideias sobre uma Fenomenologia Pura) etc., em Jahrbuch f. Philos. u. Phänom. Forschung, 1,1913, 2^ Secção.1 Do início do parágrafo até os parênteses corresponde em A: Por exemplo, no caso da percepção externa, o rmomento de co r, que constitui um elemento integrante real do mieu1 ver concreto (no sentido psicológico1 da aparição visual perceptiva). N X : Reell. A: rdo ponto de vista da crítica do conhecimento1. Em A segue-se: psicologicamente avaliada1. A. ré atribuída ao objeto aparecente enquanto sua propriedade1. Em A segue-se: rdaquele que vê1. NX.: Reell. A: rsubjetivo1.

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litativamente determinado, que sofre a “apreensão” objetivante na percepção ou num componente que pertença propriamente à percepção (à “aparição da coloração objetual”). <359> Não raro, confundem-se ambas, a sensação de cor e a coloração objetiva do objeto. Precisamente nos nossos dias, é muito benquis­ ta uma concepção segundo a qual uma e outra seriam a mesma coisa, apenas considerada sob diferentes “pontos de vista e interesses”; psicológica ou subjeti­ vamente considerada, chamar-se-ia sensação, física ou objetivamente, chamarse-ia propriedade da coisa externa. Basta, porém, indicar aqui a distinção, fácil de perceber, entre o vermelho desta esfera, visto objetivamente como uniforme, e a indubitávelr, e mesmo necessário,1 adumbração das sensações subjetivas de cor na própria percepção - uma diferença que se repete em todos os tipos de propriedades objetivas e nos complexos de sensação que lhe correspondem.22 Aquilo que dissemos acerca das determinidades singulares transpõe-se para os todos concretos. É fenomenologicamente falsa a afirmação seguinte: a distinção entre o conteúdo consciente na percepção e o objeto exterior nele per­ cebido r(perceptivamente visado)1 será uma simples distinção quanto ao modo de consideração, o qual considera a mesma aparição uma vez num contexto subjetivo (no contexto da aparição referida ao eu) e, outra vez, num contexto objetivo (no contexto da própria coisa). Nunca é demais sublinhar o equívoco que permite designar como aparição não só a vivência em que consiste o aparecer do objeto (por exemplo, a vivência perceptiva concreta, em que o próprio objeto está supostamente presente), mas também o objeto aparecente renquanto tal1. O engano deste equívoco desvanece-se assim que damos fenomenologicamente conta do que, do objeto que aparece, se pode encontrar realmente23 na vivência da aparição. A aparição da coisa (a vivência) não é a coisa que aparece (o que presumivelmente se nos “depara” rna sua ipseidade em carne e osso1). <360> Vivemos as aparições rcomo pertencentes à tessitura da consciência1;24 as coisas aparecem-nos como rpertencentes ao mundo fenomênico1,25 As próprias apari­ ções não aparecem, são vividas. Se aparecemos a nós próprios como membros do mundo fenomênico, então as coisas físicas e psíquicas (corpos e pessoas) aparecem numa referência física e psíquica ao nosso eu fenomênico. Esta referência do objeto fenomênico (que igualmente se gosta de denominar como conteúdo de consciência) ao su­ jeito fenomênico (o eu como pessoa empírica, como coisa) deve, compreensivelmente, ser separada da referência do conteúdo de consciência, no nosso sentido rda vivência1, à consciência no sentido da unidade dos conteúdos de consciência

( ra consistência fenomenológica do eu empírico1).26 Trata-se, ali, da relação en­ tre duas coisas raparecentes1; aqui, trata-se antes da relação de uma vivência singular com a complexão das vivências. Do mesmo modo, e em vez disso, a referência do eu-pessoa raparecente1 à coisa que aparece externamente deve ser distinta, naturalmente, da relação entre a aparição coisal, enquanto vivência, e a coisa que aparece. Se falamos desta última referência, então nada mais fazemos do que tornar claro que a ryivência1273012não é, ela própria, aquilo que “nela” está rintencionalmente128 presente: como quando, por exemplo, verificamos que os predicados da aparição não são, ao mesmo tempo, predicados daquilo que nela aparece. E uma referência nova é, ainda, a referência objetivante ao objeto que aparece, que nós atribuímos à complexão de sensações vividas na aparição, a sa­ ber, quando dizemos que, no ato do aparecer, a complexão de sensações é vivida, mas rcom isso1 também “apreendida” de um certo modo, <361> “apercebida”, e que rneste caráter fenomenológico da apreensão animadora129 das sensações consiste aquilo que denominamos como o aparecer do objeto.30 Para os outros “atos”, devem ser também feitas rdistinções de essência131 semelhantes àquelas que encontramos necessariamente a respeito da percepção, para distinguir o que nela é vivência, a saber, o que a rcompõe132 realmente,33 do que “nela está” num sentido impróprio (o sentido “intencional”). Aqui, importa apenas obstruir desde o início certas direções de pensamento errôneas, que po­ deriam obscurecer o sentido simples dos conceitos a esclarecer.

22 Em A segue-se: re que apenas nos casos-limite será de igualar1. 23 N.T.: Reell. 24 A: ma tessitura da consciência1. 25 A: rsendo no mundo fenomênico1.

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§ 3 . 0 conceito fenomenológico e o conceito popular de vivência Com o mesmo propósito, indicamos ainda que o nosso conceito de vivência não está em consonância com o popular, sendo que desempenha uma vez mais neste caso o seu papel a distinção acima delineada entre conteúdo real34 e intencional. Se alguém diz: “vivenciei as guerras de 1866 e de 1870”, aquilo a que, nesse sentido, se chama “vivenciado” é uma complexão de acontecimentos ex­ ternos, e o vivenciar consiste, aqui, em percepções, ajuizamentos e outros atos, 26 27 28 29 30 31 32 33 34

A: ro eu fenomenológico1. A: vivência subjetiva1. A: supostamente1. A: mesta apreensão interpretativa1. N.T.: rOu também aparição, no sentido empregado acima e também no que se segue, no qual a própria vivência (fenomenologicamente compreendida) é chamada "aparição"1. A: rdistinções1. A: rconstitui1. N.T.: Reell. N.T.: Reell.

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nos quais estes acontecimentos se tornam uma aparição objetiva e, frequen­ temente, objetos de um certo ato de posição referido ao eu empírico. A cons­ ciência35 que os vivência, no sentido fenomenológico para nós determinante, não tem naturalmente em si estes acontecimentos, tal como as coisas que de­ les fazem parte, enquanto suas “ vivências psíquicas”, enquanto seus elementos reais36 integrantes ou conteúdos. O que ela encontra em si, o que nela <362> está realmente37 disponível, são os atos correspondentes do perceber, do julgar etc., juntamente com o seu material de sensação sempre mutanter, o seu teor de apreensão, os seus caracteres posicionais etc.1 E, assim, também o vivenciar significa, aqui, qualquer coisa completamente diferente do que significava no caso precedente. Vivenciar os acontecimentos externos significa: ter certos atos de percepção, de cognição (seja como for que se determinem), e outros seme­ lhantes, dirigidos para estes acontecimentos. Este “ter” roferece-nos desde o início138 um exemplo para o tipo totalmente diferente de vivenciar que está em questão no sentido rfenomenológico1.39 Ele quer dizer apenas que certos con­ teúdos são elementos integrantes de uma unidade de consciência rna corrente de consciência fenomenologicamente unitária de um eu empírico1.40 Este é, ele próprio, um todo Teal,41142 que se compõe realmente43 de múltiplas partes, e cada uma destas partes é “vivenciada”. Neste sentido, aquilo que o eu ou a cons­ ciência vivência é precisamente a sua vivência. Entre o conteúdo vivenciado ou consciente e a própria vivência não há qualquer diferença. Por exemplo, o que é sentido não é nada diferente da própria sensação. Mas se uma vivência “se refere” a um objeto que precisa ser distinto dela própria, como, por exemplo, a percepção externa se distingue do percebido, como a representação nominal se distingue do objeto nomeado, e coisas semelhantes, então este objeto não é vivenciado nem consciente no sentido que deve ser aqui estabelecido, mas é antes percebido, nomeado etc. Essa situação legitima que se fale de conteúdos, maneira de falar que é, aqui, inteiramente própria. O sentido normal da palavra conteúdo é um sen­ tido relativo, ele remete, de um modo completamente geral, para uma uni­ dade abrangente que possui o seu conteúdo na totalidade das partes que lhe pertencem. Tudo o que se deixa captar como parte num todo e que, em ver-

dade, o iconstitui realmente144 pertence ao conteúdo do todo. No discurso rpsicológico-descritivo145 corrente a respeito de conteúdos, o ponto de refe­ rência tácito, ou seja, o correspondente <363> todo, é a unidade de consci­ ência real.46 O seu conteúdo é a soma total das “vivências” presentes e, sob a designação de “conteúdos” no plural, entende-se, então, as próprias vivências, isto é, tudo o que constitui, enquanto parte real,47 ra respectiva corrente feno­ menológica de consciência1,48

35 36 37 38 39 40 41 42 43

Em A segue-se: rou o eu14 . 0 9 8 7 6 5

N.T.: Reell. N.T.: Reell. A: ré imediatamente1. A: 'Interno1. A: rnum sujeito psíquico que "vivência"1.

§ 4 .A relação entre consciência que vivenda e conteúdo vivenciado não é um tipo de relação fenomenologicamente peculiar Segundo a exposição anterior, é claro que a relação pela qual pensamos a referência das vivências a uma consciência que as vivência r(ou a um “eu fenomenológico”49 que vivência)150 não reenvia para qualquer situação fenome­ nológica peculiar. O eu, no sentido do discurso comum, é um objeto empírico, o eu próprio o é assim tal como o eu alheio, e qualquer eu o é tal como qualquer coisa física, como uma casa ou uma árvore etc. A elaboração científica pode modificar, em seguida, tanto quanto queira o conceito do eu, mas, desde que se mantenha afastada de ficções, o eu permanece um objeto individual rcoisal1 que, tal como todos os outros objetos que o são, não tem, do ponto de vista rfenomênico1,51 qualquer outra unidade para além da que é dada através das propriedades Tenomênicas1 unidas, unidade que se funda52 na própria con­ sistência do seu conteúdo. Se separarmos o eu corporal do eu empírico e se limitarmos, portanto, o eu psíquico puro ao seu teor fenomenológico, então ele reduz-se à unidade de consciência, por conseguinte, à complexão real53 de vi­ vências que nós (ou seja, cada um para o seu próprio eu), numa parte, encontra­ mos com evidência como disponível para nós próprios e que, na parte restante, supomos com razões fundadas. rÇ) eu fenomenologicamente reduzido não é,

44 45 46 47 48 49 50 51 52 53

N.T.: Reell. A: rreah.

N.T.: Reell. 300

A: rco-constitur. A: rpsicológicon. H J.: Reell. N.T.: Reell. A: ro respectivo eu ou consciência1. N.A.: rNa primeira edição, a corrente de consciência era, em geral, designada como "eu fenomenológico".1 A: rou indivíduo psíquico ou eu1. A: fenomenológico1. Em A segue-se: reo ipso1. N X : Reell.

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portanto, nada de peculiar“«,54 que <364> pairasse sobre as múltiplas vivências, mas ré simplesmente idêntico à própria unidade de ligação destas vivências“«,55 Na natureza dos conteúdos e nas leis a que estão submetidos, fundam-se certas formas de ligação, Elas correm de múltiplos modos de conteúdo para conteúdo, de uma complexão de conteúdos para outra complexão de conteúdos, e, por fim, constitui-se uma totalidade unitária de conteúdos que não é outra coisa se­ não o próprio eu rfenomenologicamente reduzido“«. Os conteúdos, como todos os «“conteúdosi56 em geral, têm precisamente os seus modos legalmente deter­ minados de se juntar uns com os outros, de se fundir em unidades mais vastas, e, na medida em que se tornam um e que são apenas um, já se constituiu o eu rfenomenológico“« ou a unidade de consciência, sem que, por sobre isso, se care­ ça de um princípio egológico próprio, que seja portador de todos os conteúdos e que os unifique ainda uma vez mais. Aqui, como no demais, a operatividade de um tal princípio seria incompreensível.57“58

mente, um sentido psicológico-descritivo e, com a “purificação” fenomenológica, um sentido puramente fenomenológico!. É este sentido que queremos manter do­ ravante, a não ser que outros conceitos sejam expressamente indicados. Um segundo conceito de consciência está estampado na expressão consci­ ência interna. Esta é a “percepção interna” que acompanha as vivências ^atual­ mente^ presentes, seja no geral, seja em certas classes de casos, e que lhes deve estar referida enquanto elas são os seus objetos. A evidência que comumente se atribui à percepção interna indica que ela é compreendida como uma percep­ ção adequada, que nada atribui interpretativamente aos seus objetos que não seja intuitivamente representado e que não esteja realmente59 dado na própria vivência perceptiva; e, em vez disso, que precisamente representa e põe os ob­ jetos de um modo tão intuitivo quanto eles são, de fato, vivenciados na e com a percepção.60 Toda e qualquer percepção é caracterizada pela intenção de captar o seu objeto como presente ma sua ipseidade em carne e osso-1. A esta inten­ ção corresponde rcom uma perfeição assinalável! a percepção, ela é radequada1 quando o objeto rem si próprio!, efetivamente re no sentido mais estrito, está presente “em carne e osso”,! é rcaptado sem resto! naquilo que ele mesmo é, por conseguinte, quando restá realmente61 incluído! no próprio perceber. Com isto, torna-se compreensível, e mesmo evidente, a partir da ressência pura! da percepção, que a percepção adequada é apenas percepção r“interna”! , que ela pode ir apenas até as vivências que são dadas em simultâneo consigo própria, <366> que pertencem com ela a uma consciênciar, e que, visto de mais perto, tal é válido apenas para as vivências no sentido fenomenológico puro. Por outro lado,! não se pode, inversamente, rdizer que, na acepção psicológica,! toda e qualquer percepção dirigida para as próprias vivências (que, em conformidade com o sentido natural da palavra, teria de ser designada como interna) tem de ser uma percepção adequada. Tendo em conta a equivocidade, que acabamos de expor, do termo percepção interna, seria melhor estabelecer uma distinção

§ 5. Segundo. A consciência “interna enquanto percepção interna De acordo com as considerações dos três últimos parágrafos, fica determi­ nado um sentido dos termos consciência, vivência e conteúdo«", dito mais precisa­

54 A: rÉ compreensível que o eu não seja nada de peculiar1. 55 A: rque seja simplesmente idêntico à própria unidade de ligação dessas vivências1. 56 A: rconteúdos reais1. [Real]. 57 N.A.: O autor não aprova mais a oposição, expressa neste parágrafo, à doutrina do eu "puro", como é evidente a partir das suas ideen, acima citadas (cf., op. c/t., § 57, p. 109; § 80, p. 159). 58 Em A, segue-se ainda o parágrafo: rSe quisermos ser mais precisos, teremos de distinguir entre o eu fenomenológico do instante, o eu fenomenológico na extensão do tempo e o eu enquanto objeto persistente, como aquilo que permanece na mudança. Tal como uma coisa externa não é a complexão de características do instante, mas antes se constitui como o persistente na mudança, na unidade que atravessa a multiplicidade das alterações efetivas e possíveis, também o eu só se constitui como objeto subsistente na unidade que abarca todas as alterações efetivas e possíveis. E esta unidade não é mais uma unidade fenomenológica, ela reside na legalidade causal. Certamente que deveremos deixar aqui em aberto a questão de saber se pertence efetivamente à simples continuidade unitária dos conteúdos de consciência - em virtude da qual eles se convertem uns nos outros ao modo de uma al­ teração unitária, conteúdos que são de início, naturalmente, a cada instante, unitariamente contínuos - um laço legal-causal, que faça surgir, aqui, uma unidade coisal no sentido meta­ físico (não num sentido místico). Devemos deixar, em geral, em aberto se e como coisas psí­ quicas e físicas precisam ser distintas umas das outras enquanto unidades coisais de iguais direitos. Aqui, importa apenas o aspecto fenomenológico e, aí, é seguro que o eu fenomenologicamente reduzido, por conseguinte, o eu segundo a sua consistência em vivências que continuadamente se desenvolvem de momento para momento, é em si próprio portador da sua unidade, possa ele valer ou não, do ponto de vista causal, como uma coisa1.

59 N.T.: Reell. 60 Deste período até "... percepção adequada" corresponde em A: Toda e qualquer percep­ ção é caracterizada pela intenção de captar o seu objeto como rele próprio1 presente1, precisamente como ele é, enquanto existente e visado1. A essa intenção corresponde1 a percepção, ela é adequada1 quando o objeto r"aí" está, presente em carne e osso1, efetivamente naquilo que ele mesmo é, por conseguinte, quando restá presente1 no próprio percepcionar re faz unidade com ele1. Com isto, torna-se compreensível e mesmo evidente, a partir do rsimples conceito1 de percepção, que a percepção adequada é apenas percep­ ção 'interna1, que ela pode ir apenas até as vivências que são dadas em simultâneo consigo própria, <366> que pertencem com ela a uma consciência r; enquanto,1 em vez disso, de modo nenhum toda e qualquer percepção dirigida para as próprias vivências (que, em con­ formidade com o sentido natural da palavra, teria de ser designada como interna) terá de ser uma percepção adequada. 61 N.T.: Reell.

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terminológica entre percepção interna (enquanto percepção das próprias vivên­ cias) e percepção adequada (evidente). Então, também desapareceria a enviesa­ da oposição gnosiológica, igualmente usada psicologicamente, entre percepção interna e externa, que se vê substituída pela oposição autêntica entre percepção adequada e não adequada r, que se fundamenta na essência fenomenológica pura de tais vivências1.62 Em muitos investigadores, tal como, por exemplo, em Brentano, é estabele­ cida uma relação estreita entre ambos os conceitos de consciência aqui tratados, porque eles creem poder tomar a consciência (ou o ser-vivenciado) de conteúdos, no primeiro sentido, como sendo, ao mesmo tempo, uma consciência no segundo sentido. Neste último sentido, está consciente ou é vivenciado tudo aquilo que é internamente percebido (e isso significa, em Brentano, sempre também adequa­ damente); consciente, no primeiro sentido, significava aquilo que está em geral presente renquanto vivência na unidade de consciência1P O equívoco que aí nos impele a compreender a consciência como uma espécie de saber, e mesmo de sa­ ber intuitivo, poderia ter sugerido, aqui, uma concepção que estivesse acometida de inconveniências demasiado duras. Recordo a regressão ao infinito, que resulta da circunstância de a própria percepção interna <367> ser de novo uma vivência, que carece, portanto, de uma nova percepção, para a qual o mesmo é válido outra vez etc., uma regressão que Brentano procurou resolver por meio da distinção entre direção primária e secundária da percepção. rPorque o nosso propósito é, aqui, o de fazer verificações puramente fenomenológicas, devemos deixar de lado teorias deste tipo,164 enquanto a necessidade de presumir uma ação contínua da percepção interna não for rfenomenologicamente165 comprovada.

aqui por eu. Mas porque, por outro lado, deveremos admitir que a evidência da proposição eu sou não pode estar dependente do conhecimento ou da assunção dos conceitos filosóficos de eu, que permanecem sempre questionáveis, podere­ mos na melhor das hipóteses dizer: no juízo eu sou , a evidência está pendente de um certo núcleo, não delimitado com acuidade conceituai, da representação em­ pírica do eu. Se, agora, levantarmos ainda a questão de saber o que pode muito bem pertencer a este núcleo conceitualmente impreciso e, por isso mesmo, ine­ fável, se, por conseguinte, levantarmos a questão acerca do que constitui, a cada vez e com uma segurança evidente, ro dado no eu empírico,i o mais próximo será remeter para os juízos da percepção interna (= adequada). Não é apenas o eu sou que é evidente, mas também inumeráveis juízos da forma eu percebo isto ou aquilo - a saber, na medida <368> em que não apenas presumo, mas estou antes seguro com evidência de que o percebido está também dado tal como é presumido, que o capto, a ele próprio, tal como é. Por exemplo, este prazer que me preenche; esta aparição da fantasia que precisamente paira diante de mim e coisas semelhantes. Todos estes juízos partilham do destino do eu sou, eles não são, do ponto de vista conceituai, perfeitamente apreensíveis e exprimíveis, eles são apenas evidentes na sua intenção vivente, não, porém, adequadamente comunicáveis por meio de palavras. O que é adequadamente percebido, seja ex­ presso por asserções vagas deste tipo ou permaneça inexpresso, constitui, agora, o domínio gnosiologicamente em si primeiro e absolutamente seguro daquilo que, a cada instante, rresulta da redução do eu empírico fenomênico ao seu teor captável de um modo puramente fenomenológicop68 seria também corre­ to dizer, em vez disto, que, no juízo eu sou, o que é adequadamente percebido sob a expressão £eu” constitui, precisamente, o núcleo que torna pela primeira vez possível a evidência e que a fundamenta.69 A este domínio junta-se agora ralgo mais vasto do que tudo aquilo que a retenção, essencialmente conectada com a percepção, revela como tendo sido mesmo agora presente; e, o mesmo acontece com a recordação iterativa, enquanto pertencente a uma atualidade de vivências anterior, quando tudo isso é reduzido ao seu teor fenomenológico passado, quando, por conseguinte, por meio da reflexão ££na” retenção e na

§ 6. Origem do primeiro conceito de consciência a partir do segundo É irrecusável que o segundo conceito de consciência é o mais “originário’ e que, certamente, ele é6667“em si anterior”. De um modo cientificamente ordena­ do, poderíamos progredir dele, o mais estreito, para o primeiro, mais lato, atra­ vés da seguinte reflexão: se tomarmos o cogito, ergo sum, ou antes o simples sum, como uma evidência que se pode manter contra todas as dúvidas quanto à sua validade, é então compreensível que não será o eu rempírico167 que pode passar

62 63 64 65 66 67

Cf. a este propósito o apêndice sobre percepção interna e externa. A: psicologicamente1. A: rBem poderemos dispensar teorias artificiais deste tipo,1. A: rempiricamente1. Em A segue-se: também1. A: rempírico pleno1.

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68 A: rpertence ao eu1. 69 N.A.: rA exposição deste texto, retirada sem alterações essenciais da primeira edição, não faz justiça à circunstância de que o eu empírico é uma transcendência com a mesma digni­ dade que a coisa física. Se a exclusão desta transcendência e a redução ao dado puramente fenomenológico não retêm qualquer eu puro enquanto resíduo, então não poderá também ser dada qualquer efetiva evidência (adequada) da forma "eu sou". Mas se essa evidência efetiva mente existe, enquanto evidência adequada - e quem estaria disposto a negá-lo? -, como poderíamos dispensar a assunção de um eu puro? Ele é, precisamente, o eu captado na execução da evidência do cogito, e a execução pura capta-o, eo ipso, necessariamente e de um modo fenomenologicamente puro, enquanto sujeito de uma vivência "pura" do tipo cogito?

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Cap. I • Consciência como Consistência Fenomenológica do Eu e Consciência como Percepção Interna

recordação, retornamos ao reprodutivamente fenomenológico. Procedemos do mesmo modo com o170 que, por razões empíricas, podemos considerar como co­ existente com o que é adequadamente percebido a cada instante, rou como tendo sido coexistente com o dado reflexivo da <369> retenção e da recordação itera­ tiva,-1 e, certamente, como estando com ele contínua e unitariamente conectado. Quando digo “contínua e unitariamente conectado”, viso com isso à unidade do todo rfenomenológico1 concreto, cujas partes ou são momentos, que se fundam reciprocamente na coexistência e que, portanto, se exigem, ou pedaços, que, pela sua própria natureza, fundam na sua coexistência formas de unidade, e decerto rformas171 que pertencem efetivamente ao conteúdo do todo, enquanto momen­ tos que nele realmente72 residem. E as unidades de coexistência passam constan­ temente de ponto temporal para ponto temporal, elas constituem uma unidade de alteração, ra do fluxo de consciência,1 a qual exige, por seu lado, constante persistência ou constante alteração de pelo menos um momento, essencial para a unidade do todo e que é, portanto, inseparável dele próprio enquanto todo.73De­ sempenha este papel, antes de tudo, ro tempo que pertence de modo imanente à forma de apresentação do fluxo de consciência, enquanto unidade que aparece temporalmente (não, portanto, o tempo do mundo das coisas, mas antes o tempo que aparece com o próprio fluxo de consciência, no qual este deflui). Cada ponto temporal deste tempo apresenta-se por meio de um adumbramento contínuo de “sensações de tempo”, por assim dizer; cada fase atual do fluxo de consciência, porquanto nela se apresenta todo um horizonte temporal do fluxo, possui uma forma que abarca todo o seu conteúdo, que permanece continuamente idêntica, enquanto o conteúdo se altera constantemente.1 Isso constitui, por conseguinte, o conteúdo Hfenomenológico1 do eur, do eu empírico no sentido do sujeito anímico. Da redução ao fenomenológi­ co resulta esta unidade da “corrente de consciência”, realmente7071234 em si mesma fechada e que temporalmente sempre continua desenvolvendo-se.1 O conceito

de vivência alargou-se do “internamente percebido” - e que está, neste sentido, consciente - até o conceito rdo <370> “eu fenomenológico”, que constitui inten­ cionalmente o eu empírico.175

70 A : r, ainda mais, tudo o que a recordação nos apresenta de modo evidente como tendo sido presente anteriormente e, com isso, como pertecente ao próprio eu passado (evidência, correspondentemente, probabilidade evidente do eu era). E, então, outra vez com aquilo1. 71 A: Tormas reais1. 72 N.T.: Reell. 73 Daqui até o fim do segundo período do próximo parágrafo corresponde em A: Desempenha este papel, antes de tudo, Também a consciência subjetiva do tempo, compreendida en­ quanto adumbramento das "sensações de tempo", a qual, por mais paradoxal que isso soe, representa uma forma omniabrangente do instante de consciência, portanto, uma forma das vivências coexistentes num ponto temporal objetivo.1 Isto constitui, por conseguinte, o conteúdo do eu rcomo unidade anímica de todas as suas "vivências", como unidade realmente mesma fechada sobre si e desenvolvendo-se tempo­ ralmente.1 74 N.T.: Reell.

75 A: rdaquilo que constitui realmente [reell] a alma ou o eu permanente; alargou-se, portan­ to, por aí, até o conceito que determina o domínio da Psicologia, enquanto doutrina que versa sobre as vivências "psíquicas" ou os "conteúdos de consciência".1 Tanto a frase se­ guinte como o § 7 foram riscados em B: rÉ aqui o lugar apropriado para tomar posição sobre a questão controversa, muito tratada e do maior interesse para a teoria do conhecimento, a respeito da delimitação recíproca da Psicologia e da ciência da natureza física. "§ 7. Delimitação recíproca da Psicologia e da Ciência da Natureza A Psicologia tem de estudar - descritivamente - as vivências do eu (ou os conteúdos de consciência) segundo os seus tipos e formas de composição essenciais e, em seguida, pro­ curar - geneticamente - o seu nascimento e a sua desaparição, as formas e leis causais da sua formação e transformação. Os conteúdos de consciência são conteúdos do eu, e, assim, terá ela também a tarefa de investigar a essência real do eu (não um em-si místico, mas que seja empiricamente fundamentado), a composição de elementos psíquicos num eu e, mais além, o seu desenvolvimento e desaparição. Ao eu empírico contrapõem-se as coisas físicas empíricas, os não-eu, igualmente unidades de coexistência e de sucessão com a pretensão da existência coisal. A nós, que somos, cada um, um eu, elas são dadas apenas como unidades intencionais, ou seja, enquanto unidades visadas em vivências psíquicas, unidades representadas ou ajuizadas. Mas elas não são, por isso, simples representações, tão pouco como o são cada eu que é, relativamente a nós, um eu alheio, acerca do qual vale precisamente o mesmo. As coisas físicas nos são dadas, elas deparam-se-nos, são objetos - isto é, temos certas percepções e juízos a elas ajustados, que estão "dirigidos para estes objetos". Ao sistema de todas estas percepções e juízos corresponde, como correlato intencional, o mundo físico. Distinguir-se-ia, numa visão mais aproximada, o mundo do eu singular, o mundo da comunidade social empírica e, finalmente, o mundo de uma comunidade ideal de sujeitos de conhecimento, o mundo da Ciência (idealmente acabada), o mundo em si, se considerássemos o sistema desses juízos no indivíduo singular, numa comunidade de indivíduos singulares (como um sistema judicativo que lhes fosse comum) e na unidade da Ciência. Também as vivências psíquicas e cada eu apenas na ciência se documentam, segundo o seu ser e as suas conexões legais, enquanto sistema de representações e de juízos objetivamente válidos, e eles são dados apenas como pontos-alvo de vivências intencionais no eu. Numa certa esfera mais estrita, porém, as vivências são verdadeiramente dadas tal como são, enquanto uma coisa tal ja­ mais acontece para as coisas físicas. A doutrina de Berkeley e de Hume, que reduz os corpos aparecentes a feixes de "ideias", não faz jus ao fato de que, mesmo se as ideias elementares destes feixes fossem psiquicamente realizáveis, os próprios feixes, as complexões intencio­ nadas dos elementos, não estariam, porém, realmente [reell] presentes em nenhuma cons­ ciência humana enquanto ideias complexas e não o poderiam estar jamais. Nenhum corpo é internamente perceptível - não porque seja "físico", mas antes porque, por exemplo, a forma espacial tridimensional não é suscetível de ser adequadamente intuída por nenhu­ ma consciência. A intuição adequada é, contudo, o mesmo que <371> percepção interna. A fraqueza fundamental das teorias fenomenalistas é que não distingam entre aparição, enquanto vivência intencional, e objeto aparecente (o sujeito dos predicados objetivos) e que, por isso, identifiquem as complexões de sensações vividas com a complexão de notas características objetivas. Em todo caso, as unidades objetivas da Psicologia e da Ciência da

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Natureza não são idênticas, pelo menos não o são tal como, enquanto primeiras doações, esperam ainda a elaboração científica. Se as duas ciências, plenamente desenvolvidas, se poderão ainda apresentar como separadas, depende de que, de uma parte e de outra, se trate efetiva mente de realidades separadas ou, pelo menos, de realidades relativamente independentes (e a independência não significa, naturalmente, que as realidades postas lado a lado devam ser separadas por qualquer abismo místico, por uma diferença comple­ tamente inaudita). Talvez fosse melhor dizer ao contrário: se uma tal separação subsiste, isso é coisa que só o progresso de ambas as ciências pode ensinar. Certo é que elas são numa larga medida independentes uma da outra segundo o seu ponto de partida, a saber, segundo a esfera originária de fatos que submetem a uma elaboração, e também, para além disso, segundo os seus avanços progressivos. Certamente que não está excluída a possibilidade de que o fenomenalismo introduza, en­ quanto teoria fundamentada (em minha opinião, ele não passou para além do nível das sequências vagas de ideias, se bem que de modo nenhum destituídas de valor), de que os fundamentos objetivos de todo o nosso discurso acerca das coisas físicas e dos aconteci­ mentos resida em simples correlações legais, que são instituídas entre as vivências psíqui­ cas das múltiplas consciências. Mas, mesmo com a assunção desta teoria, a separação das ciências não seria suprimida. A diferença entre as vivências (conteúdos de consciência) e as não vivências que são nelas representadas (e mesmo percebidas, correspondentemente, tidas judicativamente como existentes) permanece, tal como antes, o fundamento para a separação das ciências enquanto domínios de investigação, por conseguinte, para aquele tipo de separação que pode estar em questão no estádio atual de desenvolvimento das ciências. À exigência de uma "Psicologia sem alma", ou seja, de uma Psicologia que abstrai de todas as presunções metafísicas a respeito da alma - e delas abstrai porque elas só poderiam se tornar intelecções definitivas na ciência plenamente acabada - , corresponde a exigência de uma "Ciência da Natureza sem corpos ", ou seja, de uma Ciência da Natureza que rejeitasse de início todas as teorias a respeito da natureza metafísica do físico. Uma tal teoria de antemão metafisicamente vinculante também o é, porém, a fenomenalista. Ela não tem o direito de decidir de antemão a questão sobre a separação de ambas as ciên­ cias. A separação deve repousar sobre fundamentos puramente fenomenológicos e, a este respeito, creio que as explanações precedentes são plenamente apropriadas para pôr em ordem de um modo satisfatório uma questão tão controvertida. Elas usam apenas a dis­ tinção fenomenológica fundamentalíssima entre conteúdo descritivo e objeto intentado, tanto das percepções como dos "atos" em geral. Compreensivelmente, essa distinção não escapou aos psicólogos. Encontramo-la já em Hobbes, Descartes e Locke. Podemos dizer que todos os grandes pensadores da Modernidade a tocaram ocasionalmente ou a discutiram. Só que, infelizmente, o fizeram mesmo de um modo ocasional, em vez de terem começado com esta distinção e de regressarem a ela com precisão crescente em cada novo passo da investigação; em outras palavras, em vez de fazerem dela o fundam ento da Teoria do Conhecimento e da Psicologia científicas. Apenas desse modo se tornaria cientificamente correto tanto o discurso como o modo de pensar, se bem que, certa mente, também muito complicado e incômodo. <372> O que está consciente, no sentido estreito, é aparecente, portanto, se o queremos de­ signar, de modo usual, como fenômeno, é fenôm eno psíquico. Ao contrário disso, no restan­ te, a parte maior do que está consciente em sentido alargado não é aparecente em sentido próprio. Porque seguramente que não poderíamos afirmar que todo o anímico é percebido ou perceptível (ou seja, no sentido da possibilidade real). A definição da Psicologia como ciência dos fenôm enos psíquicos não deve ser compreendida de modo diferente da defini­ ção da Ciência da Natureza, enquanto ciência dos fenômenos físicos. Os fenômenos corres-

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<372> §8. O eu puro e a consciencialidade Não pensamos até aqui no eu puro (o eu da “apercepção pura”) que, se­ gundo os que se encontravam próximos de Kant, mas também segundo mui­ tos investigadores rempíricosV6 deve fornecer o ponto de referência unitário a que se refere, de um modo completamente único, todo e qualquer conteúdo de consciência enquanto tal. Por conseguinte, este eu puro pertence essencial­ mente ao fato do “viver subjetivo” ou da consciência. “Estar-consciente é relação com o eu”, e o que está nesta relação será um conteúdo de consciência. “Deno­ minamos por conteúdo tudo aquilo que está referido apenas7 677 a um eu, tenha este, de resto, as propriedades que se queira”. “Esta relação é, manifestamente, uma e a mesma para todo e qualquer conteúdo, por mais que ele possa variar; ela é propriamente o que constitui o comum e o específico da consciência. Mar­ camo-la r(diz Natorp, que continuadamente citamos aqui),i78 para distingui-la do fato global do ser-consciente, pela expressão particular consciencialidade \ “O eu, enquanto centro de referência subjetivo de todos os conteúdos de que estou consciente, contrapõe-se a estes conteúdos de um modo singular, ele não tem com estes conteúdos uma relação de tipo igual ao que eles têm com ele, ele não está conscientemente dado para os seus conteúdos como os conteúdos o estão para ele; ele mostra-se, precisamente por isso, como igual apenas a si próprio, porque pode bem ter consciência de outra coisa, mas jamais outra coisa pode ter consciência dele. Não pode tornar-se conteúdo e em nada é semelhante a tudo o que, de algum modo, pode ser um conteúdo da consciência. Precisamente por isso, ele não se deixa <373> descrever de um modo mais aproximado, porque tudo por meio de que tentássemos descrever o eu ou a relação com o eu não poderia ser nomeado senão como um conteúdo da consciência e não tocaria o eu ou a relação com o eu. Dito de outro modo: toda e qualquer representação que poderíamos construir para nós do eu torná-lo-ia um objeto. Ora, nós ces­ samos já de pensá-lo como um eu quando o pensamos como objeto. Ser eu não significa ser objeto, mas, perante todo e qualquer objeto, ser aquele para quem qualquer coisa é um objeto. O mesmo vale para a relação com o eu. Ser para a consciência significa ser objeto para um eu: este ser-objeto não se deixa, por seu turno, converter num objeto. pondentes designam, num caso e noutro, não o domínio de objetos da ciência, que seria exaurível através deles, mas apenas os pontos de ataque mais imediatos das investigações científicas. Naturalmente que, assim entendidas, nada temos a objetar a estas definições.1 76 A: rempiristas1. 77 Em A segue-se: rsempre1. 78 N.A.: Cf. todo o § 4 de Einleitung in die Psychologie nach kritischer M ethode (Introdução à Psicologia segundo um método Crítico), de Natorp, p. 11 e segs.

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“A consciencialidade, como fato, se bem que seja o fato fundamental da Psicologia, pode bem ser verificada, fazer-se notar por diferenciação, mas não pode ser nem definida nem derivada de outra coisa.” Por mais impressionantes que sejam estas explanações, não posso, depois de cuidada reflexão, aprová-las. Como poderíamos verificar este “fato funda­ mental da Psicologia” se não o pensássemos, e como o poderíamos pensar sem “tornar em objeto” o eu e a consciência, enquanto temas da verificação? Isto deveria já ser válido mesmo se não nos pudéssemos referir a este fato a não ser por pensamentos indiretos, simbólicos; mas, segundo Natorp, ele deve ser o “fato fundamental” que, enquanto tal, nos deve ser dado em intuição direta. Na realidade, Natorp ensina expressamente que ele poderia ser “verificado como existente e tornado visível por meio de diferenciação”. Ora, não será um con­ teúdo o que é verificado, notado? Não se torna ele objetivo? Pode-se, quando muito, excluir um conceito estrito de objeto; no entanto, trata-se, de início, do conceito mais lato. Do mesmo modo que o volver-se da atenção para um pen­ samento, para uma sensação, para um sentimento de mal-estar etc. torna estas vivências objetos da percepção interna, sem que, com isso, as torne objetos no sentido de coisas, também esse eu centro de referência e essa relação determi­ nada do eu com um conteúdo seria, enquanto expressamente notada, também objetivamente dada. <374> Devo agora confessar que não consigo encontrar, pura e simples­ mente, esse eu primitivo, enquanto centro de referência necessário.79 A única coisa que estou em condições de notar e, por conseguinte, de perceber, é o eu empírico e a sua relação empírica com aquelas suas próprias vivências ou com aqueles objetos externos que se tornam, num instante dado, objetos de especial “consideração atenta”, se bem que, tanto “fora” como “dentro”, muita coisa sobeje a que falta esta relação com o eu. Para clarificar a situação, não posso encontrar aqui nenhum outro cami­ nho senão submeter a uma análise fenomenológica o eu empírico e a sua relação empírica com os objetos; daí resultará, então, necessariamente a concepção que defendemos acima. Eliminamos o eu-corpo, que aparece como uma coisa física tal como qualquer outra, e consideramos o eu espiritual, empiricamente a ele ligado, e que aparece como lhe pertencendo. Reduzido ao dado rfenomenologicamente atual"1,80 ele fornece a complexão acima descrita de vivências rcaptáveis reflexivamente"1.81 Esta complexão comporta-se, relativamente ao eu anímico,

ranalogamente182 a como, na percepção, o lado visto de uma coisa externa per­ cebida se relaciona com a coisa no seu todo. A relação intencional consciente do eu com os seus objetos não posso compreender de um modo diferente do que dizendo que rpertencem à consistência fenomenológica total da unidade de consciência precisamente essas vivências intencionais em que o eu-corpo, o eu enquanto pessoa espiritual e, assim, o eu-sujeito empírico por inteiro (eu, o ho­ mem) é um objeto intencional,"183 e que estas vivências intencionais constituem, ao mesmo tempo, um núcleo fenomenológico essencial do reu">84 fenomênico. Com isto, ficamos diante do terceiro conceito de consciência, o qual é delimitado precisamente por meio dos atos ou vivências intencionais, e que analisaremos já em seguida no próximo capítulo. Quem <375> contesta a es­ pecificidade das vivências intencionais, quem não quer reconhecer o que vale, para nós, como o mais seguro de tudo, a saber, que ser-objeto reside, fenomenologicamente falando, em certos atos em que qualquer coisa aparece ou é pensa­ da como objeto, este não poderá, certamente, compreender como o ser-objeto pode tornar-se ele próprio objetivo. Em nossa opinião, a coisa é totalmente cla­ ra: os atos “dirigem-se para” a níndole peculiar"!85 dos atos em que qualquer coisa aparece; ou os atos dirigem-se para ro eu empírico e para a sua relação"!86 com o objetor. O187 núcleo fenomenológico do eu (do eu empírico) é, com isto, forma­ do por atos que lhe “trazem à consciência” objetos, “neles” o eu “dirige-se” para o objeto respectivo. Não posso também divisar como se pode considerar como válida a con­ cepção segundo a qual a relação do eu com o conteúdo de consciência seria destituída de qualquer diferenciação; porque se, sob o título de “conteúdo”, é compreendida a vivência (o constituinte real88 do eu fenomenológico), então o modo como os conteúdos se inserem na unidade da vivência depende comple­ tamente da particularidade dos conteúdos, de um modo inteiramente idêntico ao que ocorre com a inserção das partes num todo em geral. Se, sob o título de “conteúdo”, é, porém, visado um objeto qualquer, para o qual a consciência se dirige segundo o modo da percepção, da imaginação, da recordação ou da expectativa, do representar conceituai ou do predicar etc., então subsistem, de direito, diferenças notórias, que despontam já na mera justaposição das expres­ sões que acabamos de utilizar.

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N.A.: rEntretanto, aprendi a encontrá-lo, ou aprendi, na captação pura do dado, a não me deixar transtornar por temores diante dos abastardamentos da metafísica do eu. Cf. A nota ao § 6, p. <368>18 7 6 5 4 3 80 A: ratuah. 81 A: psíquicas1.

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82 83 84 85 86 87 88

A: rdo mesmo modo1. A: rà complexão das vivências pertencem também vivências intencionais1. Em A entre aspas. A: rpeculiaridade1. A: ra relação empírica do eu1. A: re o1. N X : Reell.

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Talvez se fique chocado com nossa afirmação antecedente de que o eu rpara si próprio aparece,1 de que ele tem de si próprio ^consciência e especial­ mente1 percepção. Contudo, a autopercepção do eu empírico é a coisa mais cor­ rente, que não oferece quaisquer dificuldades à compreensão. O eu é percebido tal como qualquer coisa externa. Que o objeto não caia na percepção com todas as suas partes e lados, isso não altera nada na questão, nem aqui nem no caso da percepção externa. Porque o essencial é que o perceber seja uma presumida cap­ tação do objeto, mas não um intuir adequado. O próprio perceber, se bem que pertença ao eu segundo a sua consistência fenomenológica, não cai compreensivelmente, tal como <376> tantas outras coisas que estão ‘conscientes”, mas não são “notadas”, rno campo de captação da189 percepção, rde um modo algo1 se­ melhante a como, digamos, ros momentos aparecentes e, porém, não captados190 de uma coisa externa percebida não rcaem191 na percepção. Do mesmo modo se diz, porém, como percebido, num caso, o eu, e, no outro caso, a coisa; e são efeti­ vamente percebidos, ao modo de uma autopresença corpórea consciente. rAdendo à 2a edição. Seja expressamente sublinhado que a minha tomada de posição, aqui realizada (e que já não aprovo, como já o disse), a respeito da questão do eu puro permanece irrelevante para as investigações deste volume. Por mais importante que seja esta questão, e por mais que o seja também enquanto questão puramente fenomenológica, esferas de problemas extremamente latas da Fenomenologia, que tocam, numa certa generalidade, os conteúdos reais das vivências intencionais e as suas relações de essência com os objetos intencio­ nais, podem ser submetidas a uma investigação sistemática sem que se tenha de tomar, em geral, posição sobre a questão do eu. As investigações presentes limitam-se exclusivamente a estas esferas. Não risquei pura e simplesmente es­ tas explanações tendo em conta que uma obra tão significativa como o Primeiro Volume, acabado de aparecer, da segunda edição da Einleitung in die Psychologie (Introdução à Psicologia), de P. Nartorp, se confrontava criticamente com os desenvolvimentos precedentes.1

<377> C a p ít u l o II

CONSCIÊNCIA COMO rVIVÊNCIA INTENCIONAL11 A análise do terceiro conceito de consciência, que concorda com o con­ ceito de “ato psíquico” rsegundo a sua consistência fenomenológica essencial1, requer explanações detalhadas. Em conexão com ele, o termo “conteúdo de consciência”, especialmente “conteúdo das nossas representações, juízos etc.” adquire também uma significação múltipla, cuja diferenciação e estudo porme­ norizado são da maior importância.

§ 9. O significado da delimitação brentaniana dos “fenômenos psíquicos”

Entre as delimitações de classes da Psicologia descritiva, não há nenhu­ ma mais notável e mais significativa, do ponto de vista filosófico, do que a que foi feita por Brentano sob o título de “fenômenos psíquicos” e que serviu para a sua bem conhecida partição dos fenômenos em psíquicos e físicos. Não que eu rpossa12aprovar a convicção que guiou aqui este rgrande13investigador re que14 se exprime já nos próprios termos escolhidos: a saber, a convicção de ter obtido uma classificação exaustiva dos “fenômenos”, por meio da qual poderia separar os domínios de investigação da Psicologia e da Ciência da Natureza e solucio­ nar, de um modo bastante simples, a questão controversa a respeito <378> da correta determinação rdos domínios de investigação1 destas disciplinas. Pode ser que se possa dar um bom sentido à definição da Psicologia como ciência dos fenômenos psíquicos e à definição correlativa da Ciência da Natureza como ciência dos fenômenos físicos;5 mas pode-se contestar com sérias razões que os conceitos da distinção brentaniana sejam os mesmos conceitos que, com nomes idênticos, entram nas definições em questão. Pode-se mostrar que, de modo algum, todos os fenômenos psíquicos, no sentido de uma possível definição da Psicologia, são tais no sentido de Brentano - ou seja, atos psíquicos - e que, por outro lado, sob o nome de r“fenômenos físicos”1,6 nome este que em Brentano funciona de um modo equívoco, se encontra uma boa parte de fenômenos ver-

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89 A: ma1. 90 A: ro lado de trás1. 91 A: rcar.

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A: rato psíquico1. A: rqueira1. A: rdistinto1. A: r, a qual1. Em A segue-se: r, e nós próprios indicamos um tal sentido acima1. A: r"fenômeno físico"1.

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dadeiramente psíquicos.7No entanto, o valor da concepção brentaniana do con­ ceito de “fenômeno psíquico” não depende, de modo nenhum, das finalidades que ele perseguiu com este conceito. Nós nos deparamos aqui com uma classe rigorosamente delimitada de vivências, que compreende em si tudo o que, num certo sentido pleno, caracteriza a existência psíquica, consciente. Um ser rreab8 que carecesse de tais vivências, que, digamos, tivesse em si simples conteúdos do tipo das vivências sensoriais,910sendo incapaz de interpretá-las objetivamente ou de se representar objetos por meio delas - incapaz, com maior razão, de se referir em novos atos a objetos, rde ajuizá-los, de sobre eles se110 alegrar ou <379> se entristecer, rde amá-los ou odiá-los1,11 de desejá-los ou detestá-los -, a um tal ser ninguém mais poderia querer designar como um ser psíquico. rSe alguém acha questionável que seja, em geral, possível pensar um tal ser, que seria um simples complexo de sensações, bastar-nos-á, então, indicar as coisas externas fenomênicas, que se apresentam à consciência através de complexos de sensações, mas que não aparecem elas próprias de modo algum como tais complexos112 e que, por isso, designamos como seres rsem alma113 ou corpos, porque estão privadas de quaisquer vivências psíquicas no sentido indicado. rSe nos abstrairmos114 da Psicologia e se entrarmos no círculo das disciplinas filo­ sóficas mais estritas, então a importância fundamental desta classe de vivências manifesta-se no fato de só as vivências que lhe correspondem entrarem em con­ sideração nas ciências normativas mais elevadas; porque só nelasr, porquanto as captamos na pureza fenomenológica,1 podemos encontrar as bases concretas para a abstração dos conceitos fundamentais, que desempenham o seu papel sistemático na Lógica, na Ética, na Estética, a saber, enquanto conceitos sobre os quais se edificam as leis ideais destas disciplinas. Ao nomear aqui também a

Lógica, recordamos, ao mesmo tempo, o interesse particular que nos leva a uma consideração mais precisa destas vivências.

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10 11 12 13 14

N.A.: Que a minha concepção divergente não se mova na direção das restrições que o próprio Brentano, bem consciente do caráter inapropriado de simples definições, julgou necessário introduzir (cf. Psychologie vom Emp. Standp. - Psicologia de um Ponto de Vista Empírico, I, p. 127 e segs.), é o que o mostram as explicações do r2^ Apêndice, no fim deste volume. N.T.: Real. N.A.: Já não poderíamos dizer: que as vivenciasse. A origem do conceito de vivência reside no domínio dos atos "psíquicos", e se a sua extensão nos conduziu a um conceito de vivên­ cia que inclui também não atos, a referência a um contexto [A: rcontexto real1] que lhes incorpore ou anexe atos, numa palavra, a referência a uma unidade de consciência, perma­ nece, porém, tão essencial que, se ela faltasse, não mais poderíamos falar de vivências. A: rde sobre eles julgar e presumir, se1. A: resperá-los ou recear. A: rSeria bem um ser do mesmo tipo da coisa externa fenomênica, que nos aparece como simples complexão de conteúdos sensíveis1. A: rsem consciência1. A: rE se abstrairmos1.

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§ 10. Caracterização descritiva dos atos enquanto vivências “intencionais” É tempo de determinar a essência dessa delimitação de classe feita por Brentano, por conseguinte, a essência do conceito de consciência no sentido de ato psíquico. Levado pelo interesse classificatório acima mencionado, o próprio Brentano conduz a respectiva investigação sob a forma de uma separação recí­ proca das duas classes capitais de “fenômenos” por ele admitidos, os psíquicos e os físicos. Ele obtém seis determinações, <380> das quais apenas duas podem ser de início levadas em conta por nós, porque em todas as outras entram em jogo, de um modo destrutivo, certos equívocos enganadores, que tornam insus­ tentáveis os conceitos brentanianos de fenômeno, especialmente de fenômeno físico, e, em seguida, de percepção interna e externa.15 Das duas determinações que privilegiamos, uma delas indica diretamente a essência dos fenômenos psíquicos ou dos atos. Ela impõe-se-nos incontornavelmente em quaisquer exemplos que escolhamos. Na percepção, qualquer coi­ sa é percebida; na consciência figurativa, qualquer coisa é figurada; na asserção, qualquer coisa é asserida; no amor, qualquer coisa é amada; no ódio, odiada; no desejo, qualquer coisa é desejada etc. Brentano tem em vista o comum, que pode ser captado em tais exemplos, quando diz: “Todo e qualquer fenômeno psíquico é caracterizado pelo que os escolásticos da Idade Média denominavam como inexistência intencional (ou também mental) de um objeto e que nós, se bem que com expressões não completamente inequívocas, poderíamos denominar como a referência a um conteúdo, a direção para um objeto (pelo qual não se deve entender uma realidade) ou para a objetividade imanente. Todo e qualquer fenômeno psíquico contém em si qualquer coisa como objeto, se bem que cada um a seu modo”.16 Este “modo de referência da consciência a um conteúdo” (como Brentano frequentemente se exprime em outros lugares) é, na represen­ tação, precisamente o modo representativo; no juízo, o judicativo etc. Como é sabido, a tentativa de classificação, por parte de Brentano, dos fenômenos psí­ quicos em representações, juízos e movimentos afetivos (“fenômenos do amor e do ódio”), fundamenta-se neste modo de referência, no qual Brentano distingue precisamente três tipos fundamentalmente diferentes (que eventualmente se es­ pecificam de múltiplas maneiras).

15 N.A.: Serão dados mais detalhes no Apêndice que acabamos de citar. 16 N.A.: Psychologie, I, p. 115.

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Cap. II • Consciência como Vivência Intencional

Não se trata aqui de saber se consideramos a classificação brentaniana dos “fenômenos psíquicos” como acertada e se lhe reconhecemos esse signifi­ cado fundamental para o tratamento da Psicologia no seu todo, significado este que ro seu genial autor"117 reclamou para ela. Apenas temos em vista uma coisa como sendo, para nós, <381> importante: que há diferenças essenciais específi­ cas da relação intencional ou, numa palavra, da intenção (que constitui o caráter descritivo genérico do “ato”). O modo como uma r“simples representação”"!18 de um estado-de-coisas visa a este seu “objeto” é diferente do modo do juízo, que toma o estado-de-coisas por verdadeiro ou falso. Mais ainda, uma coisa é o modo da suposição e outra o da dúvida, o modo da esperança ou do temor, da satisfação e do desprazer, do desejo e da aversão; da decisão de uma dúvi­ da teórica (decisão judicativa) ou de uma dúvida prática (decisão da vontade, no caso de uma escolha ponderada); da confirmação de uma opinião teórica (preenchimento de uma intenção judicativa) ou de uma opinião prática (preen­ chimento da intenção volitiva) etc. Certamente que, se não todos, pelo menos a maior parte dos atos são vivências complexas, e muito frequentemente as in­ tenções são, por isso, elas próprias múltiplas. As intenções afetivas constroem-se a partir de intenções representativas ou judicativas, e coisas semelhantes. Mas é indubitável que, pela decomposição destes complexos, chegamos sempre a caracteres intencionais primitivos q u e , segundo a sua essência descritiva,"i19 não se deixam reduzir a vivências psíquicas de outro tipo; e é também indu­ bitável que a unidade do gênero descritivo “intenção” (“caráter de ato”) mostra diferenças específicas, que se fundamentam na essência rpura1 deste gênero e que, assim, rprecedem, enquanto a priori, a faticidade psicológica empírica"! .20 Há tipos e subtipos essencialmente diferentes de intenção. Tanto mais que é também impossível reduzir toda e qualquer diferença entre os atos a diferenças entre as representações e os juízos aí envolvidos, recorrendo simplesmente a elementos que não pertencem ao gênero intenção. É assim que, por exemplo, a aprovação ou desaprovação estética é um modo de relação intencional que se mostra, perante o simples representar ou o ajuizar teórico do objeto estético, como sendo um modo evidentemente e por essência peculiar. A aprovação es­ tética re o predicado estético"1podem, seguramente, ser asseridos, e a asserção é um juízo e, enquanto tal, inclui representações. Mas, então, a intenção estética, <382> do mesmo modo que o seu objeto, é objeto de representações e de juízos;

ela própria permanece essencialmente distinta destes atos teóricos. rAvaliar"!21 um juízo como racertado"i ,22 uma vivência afetiva como23 magnânima, e coisas semelhantes, pressupõe, certamente, intenções análogas e aparentadas, mas não especificamente idênticas. O mesmo é válido para a comparação entre as deci­ sões judicativas e as decisões volitivas etc. À relação intencional - compreendida de modo puramente descritivo, enquanto peculiaridade de certas vivências - concebemo-la nós como deter­ minação essencial dos “fenômenos psíquicos” ou r“atos”"i ,24 de maneira que ve­ mos na definição de Brentano, segundo a qual eles seriam “esses fenômenos que contêm intencionalmente em si um objeto”,25 uma definição essencial, cuja r“realidade”"i26 (no sentido antigo da palavra) está naturalmente assegurada por meio dos exemplos.27 rDito em outras palavras e, ao mesmo tempo, apreendido puramente de modo fenomenológico: a ideação, realizada sobre casos exempla­ res de tais vivências - e realizada de tal forma que toda e qualquer apreensão e posição de existência empírico-psicológica fique fora de causa e apenas se con­ sidere o teor fenomenológico real28 destas vivências -, dá-nos a ideia genérica, puramente fenomenológica, vivência intencional ou ato, tanto como, em segui­ da, os seus tipos puros.29"! Q ue nem todas as vivências sejam rintencionais"! ,30 mostram-no as sensações e complexos de sensações. <383> Qualquer porção do campo de visão sentido, seja como for que seja preenchido por conteúdos visuais, é uma vivência que pode conter em si múltiplos conteúdos parciais, mas

17 18 19 20

A: ’Brentano1. Em A faltam as aspas. A: rdescritivamente1. A: mão devem ser apreendidos como simples diferenças das vivências que completam es­ tes momentos para formar uma unidade concreta1.

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21 22 23 24 25 26 27

A: rReconhecer ou aprovar. A: rverdadeiro1. Em A segue-se: rbem1. A: r"atos psíquicos"1. N.A.: Op. c it, p. 116. Em A faltam as aspas. N.A.: Por isso, para nós, não há quaisquer questões controversas como a de saber se todos os fenômenos psíquicos têm efetiva mente a peculiaridade indicada, por exemplo, os fenômenos afetivos. Em vez desta questão, haveria antes que perguntar se os referidos fenômenos são mesmo "fenômenos psíquicos". A estranheza desta questão nasce do caráter inapropriado das palavras. Faremos uma consideração mais detida sobre este ponto mais abaixo.

28 N.T.: Reell. 29 N.A.: rSe nos mantivermos no quadro da apercepção psicológica, então o conceito puro fenomenológico de vivência contém em si o de uma realidade psíquica ou, dito de um modo mais preciso, ele se modifica no conceito de estado psíquico de um ser animal (seja da natureza fática, seja de uma natureza ideal possível, com seres "animais" ideais possíveis - neste último caso, com exclusão de posicionamentos existenciais). Numa consequência mais lata, também se modifica a ideia genérica puram ente fenom enológica de vivência intencional na ideia psicológica genérica, que é paralela e aparentada. Segundo se exclui ou inclui a apercepção psicológica, as mesmas análises adquirem, deste modo, uma signifi­ cação ora fenomenológica ora psicológica.1 30 A: r"fenômenos psíquicos", neste sentido da palavra1.

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estes conteúdos não são, digamos, qualquer coisa intentada no todo, que seria nele um objeto rintencional1.31 As reflexões que vão se seguir estabelecerão de um modo mais claro a dis­ tinção fundamental entre uma e outra das acepções do termo ^conteúdo”1,32 Œ convencer-nos-emos, em geral, de que aquilo que, na análise e comparação de exemplos, é captado em ambos os conteúdos, é visível, na ideação, como uma diferença pura de essência. Todas as verificações fenomenológicas, a que aqui aspiramos, devem ser compreendidas (mesmo sem que o acentuemos particu­ larmente) como verificações de essência.-1 Brentano surpreende uma segunda determinação, para nós valiosa, dos fenômenos psíquicos, quando afirma “que eles ou são representações ou repou­ sam em representações como sua base”.33 “Nada pode ser ajuizado, mas nada pode também ser desejado, nada pode ser esperado ou detestado se não for representado.”3435Nesta determinação, não se entende, naturalmente, por “repre­ sentação” o conteúdo representado (objeto), mas antes o representar, o ato. O que não deixa essa determinação aparecer como um ponto de partida apropriado para as nossas investigações é a circunstância de que ela pressu­ põe já um conceito de representação quando, por força dos múltiplos equívocos deste termo, que não são fáceis de diferenciar, se deveria começar por elaborálo. Para tanto, porém, a explicação do conceito de rato135 constitui o ponto de partida natural. Em todo caso, com esta determinação é expressa, ao mesmo tempo, uma importante <384> proposição, cujo conteúdo incita a investigações ulteriores e a que teremos de regressar.

§ 11. Rejeição de más interpretações induzidas pela terminologia a) O objeto “mental” ou “imanente”

Se bem que retenhamos a determinação essencial de Brentano, os distan­ ciamentos que indicamos relativamente às suas convicções próprias forçam-nos a recusar a sua terminologia. Faremos bem em não falar nem de fenômenos psí­ quicos nem, em geral, de fenômenos, quando se tratar de vivências da classe em questão. A primeira expressão só tem justificação a partir do ponto de vista de Brentano, segundo o qual o domínio de investigação da Psicologia deve ser deli-

31 32 33 34 35

A: visado1. A: r"estar contido"1. N.A.: Op. cit., p. 111. N.A.: Op. cit., p. 104. A: rato psíquico1.

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mitado por esta classe (quanto ao essencial), enquanto, em nossa opinião, todas as vivências são equivalentes a este respeito. No que concerne, porém, ao termo “fenômeno”, ele não está apenas afetado de muitas equivocidades desvantajosas, mas implica também uma convicção teórica assaz duvidosa, que vemos expres­ samente assumida em Brentano, a saber, a convicção de que toda e qualquer vi­ vência é precisamente fenômeno. Porque no discurso predominante, também assumido por Brentano, “fenômeno” designa um objeto aparecente enquanto tal, segue-se que toda e qualquer vivência intencional não terá apenas referência a objetos, mas será também, ela própria, um objeto de certas vivências intencio­ nais; pensa-se sobretudo, aqui, naquelas vivências que nos trazem qualquer coisa à aparição, em sentido respecialíssimo1,36 a saber, nas percepções: “Todo e qual­ quer fenômeno psíquico é objeto da consciência interna”. Já falamos, porém, das sérias reservas que temos em dar o nosso assentimento a esta proposição. Mais objeções se levantam contra as expressões que Brentano emprega paralelamente ao termo “fenômeno psíquico” ou sob a forma de perífrase, as quais são também bastante usuais. Em qualquer caso, é bastante duvidoso e muitas vezes conduz mesmo ao erro dizer que os objetos percebidos, fantasia­ dos, julgados, desejados etc. (correspondentemente, <385> de modo perceptivo, representativo etc.) “entram na consciência” ou, inversamente, que “a consciên­ cia” r(ou “o eu”y entra em relação com eles de um modo ou de outro, que eles, de um modo ou de outro, “são recebidos na consciência” etc.; do mesmo modo que dizer que as vivências intencionais “contêm em si mesmas qualquer coisa como objeto”, e coisas semelhantes.37 38Expressões deste tipo levam a duas más interpretações; primeiro, à de que se trataria de rum processo real39 ou de um re­ lacionar-se real, que se passaria entre a consciência ou eu e a coisa “consciente”1; segundo, à de que se trataria de uma Telação entre duas coisas que poderiam de igual modo ser realmente encontradas na consciência1, o ato e o objeto inten­ cional, e, assim, de qualquer coisa como um encaixe recíproco de um conteúdo psíquico no outro. Se é inevitável falar aqui de uma relação, devem, contudo, ser evitadas as expressões que convidam à má interpretação da relação como

36 A: rmais restrito1. 37 N.A.: Cf. Brentano, op. c it, p. 266, 267, 295 e passim. 38 Ao próximo período corresponde em A: Expressões desse tipo levam a duas más inter­ pretações: primeiro, a de que se trataria de ruma ação real [reelle] da consciência ou eu sobre a coisa "consciente", pelo menos de uma relação entre ambos que seria verificável descritivamente em cada ato1; segundo, a de que se trataria de uma rrelação real [reelles] entre duas coisas que poderiam de igual modo ser encontradas na consciência1, o ato e o objeto intencional, e, assim, de qualquer coisa como um encaixe recíproco rreah [real] de um conteúdo psíquico no outro. 39 H J.iR e a l.

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qualquer coisa rpsicologicamente real,40 correspondentemente, como qualquer coisa pertencente ao conteúdo real414235da vivência."142-43 Examinemos mais de perto a má interpretação mencionada em segundo lu­ gar. Ela é especialmente sugerida tanto pela expressão objetividade imanente, usa­ da para designar a peculiaridade essencial das vivências intencionais, como pelas expressões escolásticas sinônimas inexistência intencional ou inexistência mental de um objeto. As vivências intencionais têm como traço peculiar referirem-se de vários modos a objetos representados. Esse é precisamente o <386> sentido da intenção. Um objeto é nelas r“ visado”44145, é r“tido em vista”"1,464 78950e isso certamente segundo o modo da representação ou, ao mesmo tempo, segundo o modo do julgar etc. Contudo, isto não significa senão que certas vivências estão presentes, que têm um caráter de intenção, especificamente, o da intenção representativa, judicativa, optativa etc. Não há duas coisas presentes rna vivência"147 (abstraímo-nos aqui de certos casos excepcionais); não vivenciamos o objeto e, ao lado dele, ra vivência intencional que"148 para ele se dirige; não há também duas coisas no sen­ tido da parte e do todo envolvente, mas apenas ruma"149 está presente, a vivência intencional, cujo caráter descritivo essencial é precisamente a intenção em ques­ tão. Segundo a sua particularização especial, é ela que constitui completa e exclu­ sivamente o representar, o ajuizar etc. deste objeto. Se esta vivência está rpresente, então está eo ipso - tal reside, sublinho, na sua própria essência 50 consumada a “relação intencional com um objeto”, eo ipso está um objeto “intencionalmente presente”, pois uma coisa e outra querem dizer precisamente o mesmo. E natural­ mente que uma tal vivência pode estar na consciência com esta sua intenção sem que o objeto exista de todo ou possa mesmo existir; o objeto é visado, ou seja, o visá-lo é uma vivência, mas ele é apenas presumido e, em verdade, nada é. Se me represento o deus Júpiter, então esse deus é o objeto representado, ele está “imanentemente presente” no meu ato, tem nele “inexistência mental” - ou como quer que rezem todas estas maneiras de dizer que, numa interpretação estri-

40 M J.: Real. 41 M J : Real. 42 A: rpara tomar descritivamente.1. 43 Em A segue-se numa nota de rodapé: rDe resto, comparar o apêndice no fim do capítulo, 44 45 46 47 48 49 50

p. <436>.1. N.A.: O atentar distinto, o reparar, não está aqui compreendido no sentido literal do 'Visar", da "intenção". Cf. mais sobre isto infra, § 17. Em A faltam as aspas. A nota de rodapé é um acréscimo de B. Em A faltam as aspas. A: psiquicamente1. A: ro ato intencional que1. A: ruma coisa1. rpresente na sua plenitude psíquica, concreta, então está eo ipso1.

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ta, se revelam errôneas. “Eu represento o deus Júpiter” significa que eu tenho uma certa vivência de representação, que rna minha consciência"151 se consuma um representar-o-deus-Júpiter. Por meio da análise descritiva, podemos decompor esta vivência intencional tanto quanto queiramos, mas não poderemos encontrar naturalmente aí qualquer coisa como o deus Júpiter; o objeto “imanente”, “mental”, <387> não pertence, por conseguinte, à consistência descritiva r(real)">52da vivên­ cia, ele não é, para dizer a verdade, imanente ou mental. Certamente que também não é qualquer coisa extra mentem. Ele não existe de todo. Mas isto não impede que este representar-o-deus-Júpiter seja refetivamente1 uma vivência de tal cará­ ter, uma forma determinada de disposição tal que quem a experimenta pode dizer com razão que se representa aquele mítico rei dos deuses, do qual se efabula isto e aquilo. Se, por outro lado, o objeto intentado existe, a situação não precisa ser alte­ rada do ponto de vista rfenomenológico"1,53Para a consciência, o dado é essencial­ mente idêntico, quer o objeto representado exista, quer seja ficcionado, quer seja mesmo um contrassenso. Não me represento Júpiter de uma maneira diferente de Bismarck, a Torre de Babel de uma maneira diferente da Catedral de Colônia, um polígono regular de mil lados de um sólido regular de milfaces.54 Se os chamados conteúdos imanentes são antes simples conteúdos inten­ cionais (intentados), então, por outro lado, os conteúdos verdadeiramente ima­ nentes, que pertencem à consistência real55 das vivências intencionais, são não intencionais: eles edificam o ato, possibilitam a intenção, enquanto pontos de referência necessários, mas eles próprios não são intentados, não são os objetos que são representados nos atos. Não vejo sensações de cor, mas, sim, coisas co­ loridas; não ouço sensações de som, mas antes a canção da cantora etc.56

51 A: rem mim (na minha consciência)1. 52 N.T.: Reeil. 53 A: psíquico1. 54 N.A.: Podemos nos abstrair aqui dos eventuais caracteres posicionais, que rconstituerYr> [A: implicam1] a convicção acerca do ser do objeto representado. r~ Convencemo-nos de novo que, nas considerações agora feitas, devem ser excluídos todos os pressupostos de uma realidade natural, com homens e outros animais capazes de vivenciar, de tal maneira que estas considerações devem ser compreendidas como reflexões sobre possibilidades ideais. Por fim, vemos que elas assumem o caráter de ponderações sobre a exclusão, que levam à separação do que é matéria de apercepção transcendente e de posição, a fim de realçar o que pertence à própria vivência segundo a sua consistência essencial real [reeil]. A vivência torna-se, então, vivência fenomenológica pura, na medida em que a sua apercepção psico­ lógica é excluída.1 [A: rA convicção pode bem faltar ou ser falsa1] 55 M J: Reeil. 56 N.A.: A respeito desta distinção, aparentemente tão compreensível, entre objetos imanen­ tes e transcendentes, que se orienta pelo velho esquema tradicional: imagem internamen­ te consciente versus ser-em-si exterior à consciência, cf. o apêndice no final deste capítulo rp. <421> e segs.1.

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<388> E o que é válido para as representações também vale para as outras vivências intencionais sobre elas edificadas. Representar um objeto, por exem­ plo, o Palácio âe Berlim, é, segundo dizemos, um tipo de disposição descritiva­ mente determinado de tal e tal maneira. Julgar acerca deste palácio, alegrar-se pela sua beleza arquitetônica ou acalentar o desejo de poder fazer, e coisas se­ melhantes, tudo isto são novas vivências, caracterizadas fenomenologicamente de um modo novo. Todas têm em comum serem modos da intenção objetiva que não podemos, no discurso normal, exprimir de outro modo senão dizendo que o palácio é percebido, fantasiado, representado em imagem, ajuizado, que é objeto desta alegria, daquele desejo etc. Seria preciso uma investigação detalhada para pôr em destaque o que justifica que falemos, metaforicamente, do objeto representado na representa­ ção, ajuizado no juízo, e com or, em geral, se deve compreender plenamente a referência objetiva dos atos-1;57589mas, ao ponto que chegamos até agora, é em todo caso claro que fazemos bem em rejeitar reste modo de falar158 acerca de objetos imanentes. É, de resto, fácil privarmo-nos dele, já que temos rà disposição a ex­ pressão objeto intencional,159 que não está sujeita a reservas semelhantes. Com referência ao caráter impróprio do discurso acerca de um “estar con­ tido” intencional do objeto no ato, é incontestável que as expressões paralelas e equivalentes, segundo as quais o objeto está rconsciente, na consciência, é imanente d consciência1,606 12345789e semelhantes, sofrem de um equívoco assaz prejudicial; 1 pois o rser-consciente161 significa, aqui, uma coisa totalmente diferente daquela que poderia querer dizer segundo o padrão das duas significações explicitadas7 anteriormente. Toda a rPsicologia e1 a Teoria do Conhecimento contemporâne­ as estão lançadas na confusão por este equívoco e por outros que lhe estão apa rentados. Por força da influência preponderante do modo psicológico de pensar e da sua terminologia, faríamos mal se colocássemos os nossos próprios <389> termos em oposição aos da Psicologia hodierna. Porque o nosso primeiro con­ ceito de consciência - o qualr, captado de um modo empírico-psicológico, ca­ racteriza como “consciente” tanto a corrente de consciência pertencente à uni­ dade real do indivíduo psíquico, como todos os162 momentos que a constituem realmente63 - revela uma tendência para se impor rna Psicologia,1 decidimos já no capítulo anterior rdar preferência a este conceito (de modo fenomenologica-

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mente puro, por conseguinte, fazendo apenas abstração do que é propriamente psicológico)164 e, com isso, deveremos, rsenão evitar totalmente (coisa que di­ ficilmente será realizável), pelo menos falar com a precaução necessária165 de consciência no sentido da percepção interna e da relação intencional.

§12. b) O ato e a relação da consciência ou do eu com o objeto

Passa-se o mesmo com a má interpretação primeiramente mencionada,66 como se a consciência, de um lado, e a coisa consciente, do outro, pudessem entrar em relação uma com a outra num sentido nreaF168. Frequentemente, em vez de r“a consciência”169 diz-se diretamente r“o eu”1.70 De fato, na reflexão natural, aparece não o ato singular, mas antes o eu, enquanto um dos pontos de referência da relação em questão, cujo segundo ponto reside no objeto. Se, ago­ ra, se atenta para a vivência do ato, então parece que o eu se refere necessaria­ mente ao objeto através do ato ou no ato e, em última análise, poder-se-ia ficar inclinado a inserir um eu em cada ato, enquanto ponto de unidade essencial por toda parte idêntico. Com isso, regressaríamos, agora, à assunção, antes <390> recusada, de um eu puro como centro de referência. Mas se, por assim dizer, vivermos nos atos em questão, se, por exemplo, nos abandonarmos a uma consideração perceptiva de um processo que nos apa­ rece, ou ao jogo da fantasia, à leitura de um conto, à realização de uma demons­ tração matemática e a coisas semelhantes, não notamos qualquer eu enquanto ponto de referência dos atos que consumamos. A representação do eu pode bem “estar de prontidão”, irromper com uma facilidade particular ou, melhor, consumar-se de novo; mas só quando ela efetivamente se consuma e se põe em unidade com o ato em questão é que “nós” “nos” referimos ao objeto de uma maneira tal que, a este referir-se do eu, corresponde qualquer coisa descritiva­ mente explicitável. O que reside, então, descritivamente na vivência efetiva é um correspondente ato complexo, que contém em si, de um lado, a representação do eu e, do outro, a respectiva representação, juízo, desejo etc. acerca da coisa em questão. Naturalmente que é correto que, tomado objetivamente (portanto, também a partir do ponto de vista da reflexão natural), o eu se refere inten­

57 A: rse deve compreender a objetividade dos atos intencionais em geral1. 58 59 60 61 62

A: rfalar. A: r, na expressão "objeto intencional" uma expressão1. Em A não em itálico. Em A não em itálico, mas antes com aspas. A: rcaracteriza como "consciente" as vivências que pertencem à unidade real do indivíduo psíquico, a saber, tudo o que lhe é realmente [reell] inerente, os1.

63

N X : Reell.

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64 65 66 67 68 69 70

A: rreter firmemente este conceito1. A: rem todos os casos que exigem o rigor terminológico, evitar falar1. N.A.: Cf. supra rp. <371>1 [A: rp. <351>1]. N X : Real. A: rpróprio1. N X : Em A faltam as aspas. N X : Em A faltam as aspas.

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cionalmente, em cada ato, a um objeto. 71Isto é mesmo uma pura trivialidade, porquanto o eu não vale, para nós, como nada mais do que a ‘ unidade da cons­ ciência”, como o respectivo “feixe” das vivências ou, rsegundo uma concepção empírica mais real e natural1, como a unidade coisal contínua que se rconstitui intencionalmente na unidade de consciência como sendo o sujeito pessoal das vivências - como o eu, que tem nessas vivências os seus “estados psíquicos”, que consuma a intenção, a percepção, o juízo respectivos etc.1 Se está presente uma vivência com esta ou aquela intenção, então, eo ipso, o eu tem essa intenção. <391> Por conseguinte, a proposição “o eu representa-se um objeto, re­ fere-se de modo representativo a um objeto, tem-no como objeto intencional da sua representação” quer dizer72 o mesmo que a proposição “no eu rfenomenológico1, nesta complexão concreta de vivências, está realmente presente uma certa vivência, denominada, segundo a sua peculiaridade específica, represen­ tação do objeto respectivo5”. De igual maneira, a proposição “o eu julga acerca do objeto55 quer dizer o mesmo que a proposição “está nele presente uma vivência judicativa de tal e tal maneira determinada etc.” Na descrição, a referência ao eu que vive não pode73 ser contornada; mas a própria vivência em questão não consiste numa complexão que contivesse a representação do eu como vivência parcial. A descrição consuma-se com base numa reflexão objetivante; nela, a reflexão sobre o eu conecta-se com a reflexão sobre a vivência de ato para formar um ato relacional em que o próprio eu aparece como se referindo, através do ato, ao objeto deste último. Manifestamente, consumou-se, com isto, uma alteração descritiva essencial. Acima de tudo, o ato originário já não está só e simplesmen­ te aí, nós já não vivemos nele, mas atentamos nele e julgamos acerca dele. A má interpretação deve, portanto, ser mantida longe de nós, e fica, tam­ bém, excluída por meio da reflexão de que a relação com o eu é qualquer coisa que pertence à consistência essencial da própria vivência intencional.74 71 Ao próximo período corresponde em A: Isto é mesmo uma pura trivialidade, porquanto o eu não vale para nós como nada mais do que a "unidade da consciência", como o respectivo "feixe" das vivências ou, mnelhor ainda1, como a unidade coisal contínua que se rconstitui nas vivências pertencentes ao "eu" uno, porque ela é legal mente exigida de acordo com a particularidade específica e causal destas vivências. A esta unidade, enquanto parte assim constitutiva, pertence também a vivência intencional correspondente, a correspondente percepção, o juízo etc.1 Se está rar presente uma vivência com esta ou aquela intenção, en­ tão, eo ipso, o eu temr, enquanto todo omniabarcante,1 essa intençãor, do mesmo modo que a coisa psíquica tem as propriedades que, enquanto conteúdos parciais, a constituem. Se a parte é referida ao todo unitário, então resulta daí a relação do "ter": o todo "tem" a parte, e, assim, "tem" também o eu a relação intencional, ele é o eu que representa, que julga etc.1 72 Em A segue-se: rprecisamente1. 73 Em A segue-se: maturalmente1. 74 N.A.: rCf. o apêndice ao Capítulo 1, supra, p. <363>, bem como as minhas Ideen zu Einer Reinen Phänomenologie (Ideias a uma Fenomenologia Pura), loc. c/t.1.

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§ 13. Fixação da nossa terminologia De acordo com estes preliminares críticos, fixamos a nossa própria termi­ nologia, que, em conformidade com eles, escolhemos de tal maneira que fiquem excluídos, na medida do possível, tanto os pressupostos controversos como as ambiguidades comprometedoras. Evitaremos totalmente, por conseguinte, a ex­ pressão “fenômeno psíquico55e, sempre que a precisão seja exigível, falaremos de vivências intencionais. “Vivência55será, assim, <392> para tomar no sentido rfenomenológico1 acima fixado.75768O adjetivo determinativo rintencional176nomeia o rcaráter essencial177 comum da classe de vivências a delimitar, a propriedade da intenção, que se refere a algo objetivo segundo o modo rda representação178 ou segundo algum outro modo análogo. Para ir ao encontro dos hábitos lin­ guísticos tanto próprios como alheios, usaremos, como expressão mais breve, a palavra ato. Seguramente que estas expressões também não estão totalmente isentas de reservas. Falamos frequentemente de uma intenção no sentido do atentar especialmente para algo, do prestar atenção. Contudo, nem sempre o objeto in­ tencional é79 algo em que se repara, algo observado. Por vezes, vários atos estão ao mesmo tempo presentes e entrelaçados, mas a atenção “atua55 num deles de uma maneira marcante. Vivemos todos em simultâneo, mas ficamos, por as­ sim dizer, absorvidos em um - neste. Em todo caso, atendendo à expressão transmitida historicamente e de novo muito usada, desde Brentano, de obje­ tos intencionais, não seria talvez inapropriado falar de intenção num sentido ■“correlativo1,80 tanto mais que temos precisamente este termo, atentar, para a intenção no sentido da atenção (a qual rtemos razões para não a considerar como um ato peculiar)81"1,82 Contudo, ainda um outro equívoco deve ser levado em conta. A expressão intenção representa a propriedade dos atos com base na imagem do “ter em vista55, e está muito bem adaptada aos múltiplos atos que podem ser designados, sem dificuldade e de um modo genericamente compre­ ensível, como um ter em vista de algo, de um modo teórico ou prático. Mas esta imagem não se adapta igualmente bem a todos os atos, <393> e, se olharmos com mais precisão os exemplos agrupados no § 10, não nos pode escapar que 75 Em A segue-se: r, simplesmente como elemento constitutivo integrante real [reell], ou mo­ mento, na unidade do indivíduo psíquico1. 76 Em A, não em itálico, mas antes com aspas. 77 A: rcaráter genérico1. 78 A: rd o visa r. 79 Em A segue-se: rde preferência1. 80 A: rcorrelato1. 81 N.A.: Cf. § 19, p. <419>1. 82 A: rsegundo o anterior, não estamos inclinados a considerar como um ato peculiar)1.

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deverá ser distinguido um conceito mais estrito e um conceito mais lato de inten­ ção. Em imagem, à ação de ter em vista algo corresponde, como correlato, a ação do alcançar (do apontar e do atingir o alvo). Precisamente do mesmo modo, correspondem a certos atos, enquanto “intenções” (por exemplo, intenções judicativas, desej antes), outros atos enquanto “alcance” ou “preenchimento”. E é por isso que a imagem se adapta tão perfeitamente aos primeiros atos; contu­ do, os preenchimentos são também atos, portanto, também “intenções”, se bem que eles (pelo menos em geral) não sejam intenções naquele sentido estrito que remete para um preenchimento correspondente. Uma vez reconhecido, o equívo­ co é inofensivo. Compreensivelmente, sempre que o sentido estrito esteja em questão, isso deve ser expressamente dito. Quanto ao resto, a expressão paralela caráter de ato ajuda-nos a manter afastadas eventuais más interpretações. No que, por outro lado, diz respeito ao termo atos, não se deve, natural­ mente, pensar aqui no sentido literal original de actus, a ideia de atividade deve permanecer absolutamente excluída.83 No vocabulário de um grande número de psicólogos, a expressão “ato” está, porém, tão firmemente enraizada e, por outro lado, tão desgastada e afastada do seu sentido original, que podemos mantêla sem preocupações, sobretudo depois de termos feito expressamente esta re­ serva. Dado que não queremos introduzir termos técnicos inteiramente novos, estranhos ao sentido vivo da língua e a toda a tradição histórica, não podemos evitar inconvenientes deste tipo.

ela, tam bém mesmo1 algumas más interpretações em que incorreu, tiveram uma influência desconcertante e não deixaram que fosse reconhecido o seu va­ lioso teor descritivo. Ela é, por exemplo, decididamente contestada por Natorp. Contudo, quando este rdestacado1 investigador objeta:8485679“posso muito bem considerar o som por si ou em relação com outros conteúdos de consciência sem ponderar mais além a sua existência para um eu, mas não posso levar em consideração, por si mesmos, tanto a mim como ao meu ato de ouvir, sem pen­ sar no som”, não encontramos aí nada que nos possa desconcertar. Que o ato de ouvir não se deixe separar da audição do som, como se ele fosse ainda alguma coisa sem o som, isso é certo. Com isso não é dito, porém, que não haja, aqui, uma duplicidade para distinguir: o som ouvido, o objeto perceptivo e o ouvir do som, o ato de percepção. Certamente que é correto o que Natorp diz do som ouvido: “o seu ser para mim é a minha consciência dele. Se alguém pode surpre­ ender a sua consciência ainda de qualquer outro modo que na existência de um conteúdo para ele, não estou em condições [...] de lhe seguir o exemplo”. Mas evidentemente que me parece que “a existência de um conteúdo para mim” é coisa que permite e exige uma análise rfenomenológica1 mais avançada. Desde logo, há diferenças no modo como se repara em algo. O conteúdo está aí para mim de um modo diferente consoante <395> ou reparo nele apenas implicita­ mente rnum todo, sem destaque singularizante, ou o destaco, e, de novo, se185 apenas reparo lateralmente nele ou o tenho privilegiadamente diante dos olhos, o fito em particular. Mais importantes, para nós, serão as distinções entre a exis­ tência do conteúdo, no sentido da sensação consciente, mas que não se tornou ela própria um objeto de percepção, e do conteúdo precisamente no sentido do objeto de percepção. A escolha dos sons como exemplos encobre um pouco a distinção, sem, no entanto, suprimi-la.86 Eu ouço - isto pode, na Psicologia, querer dizer: eu sinto; contudo, na linguagem corrente, quer dizer: eu percebo - eu ouço o Adágio do violinista, o chilrear dos pássaros e coisas semelhantes. Diversos ratos"'87 podem rperceber188 o mesmo e, no entanto, rSentir coisas totalmente diferentes. Ouvimos o mesmo som uma vez perto de nós no espaço e, outra vez, longe. Do mesmo modo, inversamente, “apreendemos” os mesmos conteúdos de sensação uma vez de uma maneira e, outra vez, de outra.189 Ha­ bitualmente, na teoria da “apercepção”, dá-se uma importância preponderante à

<394> § 14. Reservas a respeito da assunção de que os atos são uma classe de vivências descritivamente fundada Em todas essas discussões terminológicas, entramos já muito profundamente no tipo de análises descritivas que são exigidas pelos nossos interesses lógico-gnosiológicos. Antes de as prosseguirmos, será, porém, necessário levar em consideração certas objeções que tocam nos fundamentos das nossas descrições. Em primeiro lugar, a delimitação da classe de vivências que descrevemos sob o título de “ato” ou “vivência intencional” é pura e simplesmente contestada por um grupo de investigadores. A este respeito, o modo original como esta delimitação foi introduzida por Brentano, os objetivos que ele perseguiu com

83

N.A.: Concordamos inteiramente com Natorp (Einleitung in die Psychologie - Introdução à Psicologia, p. 21) [A: rOp. c/t.1], quando objeta contra os que sustentam seriamente a concep­ ção dos atos psíquicos como atividades da consciência ou do eu: "é apenas porque a consci­ ência é frequentemente ou mesmo sempre conduzida pelo esforço, que ela aparece como um fazer e o seu sujeito como um agente". Negamos também a "mitologia das atividades, definimos os "atos" não como atividades psíquicas, mas antes como vivências intencionais.

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84 85 86 87 88 89

N.A.: P. Natorp, Einleitung in die Psychologie, p. 18. A: row. Em A segue-se: rcompletamente1. A: indivíduos1. A: rsentir. A: rperceber coisas total mente diferentes. Nós próprios "interpretamos" conteúdos de sen­ sação iguais uma vez de uma maneira e, outra vez, de maneira diferente.1.

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Investigações Lógicas - Fenomenologia e Teoria do Conhecimento • Edmund Husserl

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circunstância de que, se pressupomos estímulos iguais, o conteúdo sentido não será sempre o mesmo, dado que, por força das disposições sedimentadas das vivências anteriores, aquilo que é efetivamente condicionado pelo estímulo é sufocado por momentos que provêm da atualização dessas disposições (pouco importa se de todas ou de apenas algumas). Ora, argumentos deste tipo não são de todo suficientes e, acima de tudo, não é disto que se trata, fenomenologicamente falando. Seja como for que tenham nascido os conteúdos presentes na consciência (os conteúdos vividos), é pensável que, na consciência, conteúdos de sensação iguais estejam presentes e, no entanto, sejam apreendidos de um modo diferente, em outras palavras, que diferentes objetos sejam percebidos com base nos mesmos conteúdos. A própria Apreensão"190 não se deixa jamais reduzir a um afluxo de novas sensações, ela é um caráter de ato, um “modo da <396> consciência”, da “disposição”; chamamos rao viver das sensações neste modo de consciência191 uma percepção do objeto correspondente. rO que foi aqui estabelecido do ponto de vista da ciência natural psicológica, no quadro da existência natural, mostra-nos, por meio da exclusão de todo e qualquer ser empírico e real, a sua consistência puramente fenomenológica. Se olharmos para as vivências puras e para o seu teor essencial próprio, então captamos ideativamente espécies puras e situações objetivas específicas, portanto, no caso vertente, as espécies puras sensação, apreensão, percepção em relação com o seu percepcionado, bem como as relações de essência que lhes correspondem. Vemos também, então, como uma situação objetiva geral, que o ser do conteúdo sentido é totalmente diferente do ser192 do objeto percebido, que é tornado pre­ sente por meio do conteúdo, mas que não está realmente93 na consciência. rTudo isto se torna ainda mais claro194 por meio de uma mudança apro­ priada do exemplo, passando para a esfera da percepção visual. Apresentemos aqui, diante dos olhos daquele que está mergulhado na dúvida, as considerações que se seguem. Vejo uma coisa, por exemplo, esta caixa, não vejo as minhas sensações. Vejo sempre esta caixa, uma e mesma, seja como for que a rode e oriente. Tenho, com isso, sempre os mesmos “conteúdos de consciência” - se me aprouver designar o objeto percebido como “conteúdo de consciência”. Com cada rotação, tenho um novo conteúdo de consciência, se assim designar, num sentido90912345 mais apropriado, os conteúdos vivenciados. Por conseguinte, são vi­ vidos conteúdos muito diferentes e, contudo, é o mesmo objeto que é perce­

bido. Por conseguinte, para ir mais além e falar genericamente, digamos que o conteúdo vivenciado não é o objeto percepcionado. rDeve atentar-se, com isto, que, para a própria essência da vivência perceptiva, é irrelevante o ser ou não ser efetivo do objeto e, assim, que este ser ou não ser é também irrelevante para o fato de a vivência perceptiva ser percepção deste objeto aparecendo deste e daquele modo, sendo presumidamente isto ou aquilo."! Que nós, ralém disso"!, presumamos que, na mudança dos conteúdos vivenciados, captamos perceptivamente um e o mesmo objeto, <397> é qualquer coisa que pertence de novo ao domínio das vivências. Nós vivenciamos sim a “consciência de identidade”, ou seja, esta presunção de captar a identidade. Pergunto agora: que está na base des­ ta consciência? Não seria uma resposta certeira dizer que, em ambos os casos, certamente diferentes conteúdos de sensação nos são dados, mas que eles são rapreendidos, apercebidos"!96 no “mesmo sentido” e que a rapreensão^ ,97 segun­ do esse asentido”, é o caráter de vivência que pela primeira vez constitui a “existên­ cia do objeto para mim'7. E que, para além disso, a consciência de identidade se consuma com base nestes mútuos caracteres de vivência, enquanto consciência imediata de que ambos visam precisamente ao mesmo7 E não é esta consciência, de novo, um ato, no sentido da nossa definição, cujo correlato objetivo reside na identidade designada? Quero crer que todas estas questões exigem, com evi­ dência, uma resposta afirmativa. Não posso encontrar nada mais evidente que a diferença aqui salientada entre conteúdos e atos, especialmente entre conteúdos de percepç