Este livro foi digitalizado e corrigido por Raimundo do Vale Lucas,
entre janeiro e fevereiro de 2008, com a
intenção de dar aos cegos a oportunidade de apreciarem mais uma
manifestação do pensamento humano.
HAROLD BLOOM
GÊN
IO '
Os 100 autores mais criativos da história da literatura
Ah, se nosso Génio tivesse um pouco mais de génio! - Ralph Waldo Emerson,
"Experiência"
Tradução JOSÉ ROBERTO 0'SHEA
Revisão MARTA M. 0'SHEA
(c) 2002 by Harold Bloom Limited Liability Company Todos os direitos reservatios
Título original Genius: a mosaic of one hundred exemplary
creative minds
Todos os direitos desta edição reservados à
EDITORA OBJETIVA LTDA., rua Cosme Velho, 103
Rio de Janeiro - RJ - CEP 22241-090
Tel.: (21) 2556-7824 - Fax: (21) 2556-3322
www.objetiva.com.br
Capa Silvia Ribeiro
Revisão
Renato Bittencourt
Umberto de Figueiredo
Editoração Eletrônica
FUTURA
Bloom, Harold
Génio: Os 100 autores mais criativos da história da literatura/Harold Bloom.
Rio de Janeiro : Objetiva, 2003
826 p.
ISBN 85-7302-510-7
Tradução de: Genius
1. Literatura - Crítica. 2. Escritores - Crítica. I. Título
CDD 801.9
A memória querida de Mirjana Kalezic
*
SUMÁRIO
Prefácio
11
Sobre a organização do livro: génio e cabala
13
Lustros
19
Gnosticismo: A religião da literatura
21
Introdução: O que é génio?
23
Génio: Uma definição pessoal
35
I.
Keter
39
Lustro 1: William Shakespeare, Miguel de Cervantes, Michel de Montaigne,
John Milton, Leon Tolstoi
41 Lustro 2:
Lucrécio, Virgílio, Santo
Agostinho, Dante Alighíeri, Geoffrey
Chaucer
95
II.
Hokmah
137
Lustro 3:
O Javista, Sócrates e Platão, São Paulo, Maomé
139 Lustro 4:
Samuel Johnson, James Boswell, Johann Wolfgang von Goethe, Sigmund Freud, Thomas
Mann
181
III.
Binah
211
*
Lustro 5:
Friedrich Nietzsche, Sõren Kierkegaard, Franz Kafka, Mareei
Proust, Samuel Beckett
213 Lustro 6:
Molière, Henrik Ibsen, Anton
Tchekhov, Oscar
Wilde, Luigi Pirandello
245
Hesed
275
Lustro 7: John Donne, Alexander Pope, Jonathan Swift, Jane Austen, Lady
Murasaki
277 Lustro 8:
Nadianiel Hawthorne, Herman Melville,
Charlotte Bronte, Emily
Jane Bronte, Virgínia Woolf
315
Din
349
Lustro 9:
Ralph Waldo Emerson, Emily Dickinson, Robert Frost, Wallace
Stevens, T. S. Eliot
351 Lustro 10: William Wordsworth, Percy
Bysshe Shelley, John Keats, Giacomo
Leopardi, Lorde Alfred Tennyson
393
Tiferet
435
Lustro 11: Algernon Charles Swinburne, Dante Gabriel Rossetti, Christina
Rossetti, Walter Pater, Hugo von Hofmannsthal
437 Lustro 12: Victor
Hugo, Gérard de Nerval, Charles Baudelaire, Arthur
Rimbaud, Paul Valéry
469
Nezah
511
Lustro 13: Homero, Luis Vaz de Camões, James Joyce, Alejo Carpentier,
Octávio Paz
513 Lustro 14: Stendhal, Mark Twain, William Faulkner,
Ernest Hemingway,
Flannery 0'Connor
567
Hod
597
Lustro 15: Walt Whitman, Fernando Pessoa, Hart Crane, Federico Garcia
Lorca, Luis Cernuda
599 Lustro 16: George Eliot, Willa Cather,
Edidi Wharton, F. Scott Fitzgerald, íris
Murdoch
633
Yesod
665
Lustro 17: Gustave Flaubert, José Maria Eça de Queirós, Joaquim Maria
Machado de Assis, Jorge Luis Borges, ítalo Calvino
667 Lustro 18:
William Blake, D. H. Lawrence, Tennessee Williams, Rainer Maria
Rilke, Eugénio Montale
707
X.
Malkhut
745
Lustro 19: Honoré de Balzac, Lewis Carroll, Henry James, Robert Browning,
WilliamButlerYeats
747 Lustro 20: Charles Dickens, Fiodor
Dostoiévski, Isaac Babel, Paul Celan, Ralph
Ellison
791
* Coda:
O Futuro
do Génio
827
PREFÁCIO
Por que estes 100 autores? À certa altura, considerei incluir muitos outros
nomes, mas uma centena me pareceu número suficiente. Excetuando aqueles que
jamais
poderiam ser omitidos - Shakespeare, Dante, Cervantes, Homero, Virgílio, Platão
e companheiros -, minha seleção é totalmente arbitrária e idiossincrática. A
lista
não encerra, em absoluto, "os 100 melhores", na avaliação de quem quer que seja,
inclusive na minha. Apenas estes autores são aqueles sobre os quais desejei
escrever.
Porquanto a minha competência se restringe às esferas da crítica literária e,
até certo ponto, religiosa, este livro não trata de Einstein, Delacroix, Mozart,
Louis Armstrong, ou quem mais o leitor quiser. Apresento um mosaico de génios da
linguagem, embora Sócrates pertença à tradição oral, e o islamismo afirme que
Alá
ditou o Alcorão a Maomé.
Constata-se um certo retrocesso, por parte de indivíduos que descartam o
conceito de génio, por considerá-lo mero fetiche do século XVIII. O pensamento
em bloco
é a praga que assola a presente Era da Informação, atacando, de modo
especialmente danoso, as nossas instituições académicas obsoletas, que, desde
1967, vêm cometendo
um suicídio lento. O estudo da mediocridade, seja qual for a sua origem, gera
mediocridade. Thomas Mann, descendente de fabricantes de móveis, previu que a
obra
José e Seus Irmãos haveria de sobreviver ao tempo por ser bem feita. Não
aceitamos mesas e cadeiras cujos pés se despreguem, não importa quem as tenha
fabricado,
mas exortamos os jovens a estudarem escritos medíocres, pernetas.
O presente livro, Génio, difere do meu trabalho anterior à medida que
procuro, tão-somente, definir, da melhor maneira possível, a genialidade
específica de cada
um dos
11
Harold Bloom
100 personagens elencados. Recorro à mescla de crítica biográfica e formalista,
e evito o historicismo.
Ninguém haveria de implicar com a ideia de se estudar o contexto de uma obra.
Mas reduzir literatura, espiritualidade ou ideias a um historicismo tendencioso
é algo que não me interessa. As mesmas pressões sociais, económicas e culturais
produzem, simultaneamente, obras imortais e obras datadas. Thomas Middleton,
Philip
Massinger e George Chapman vivenciavam a mesma energia cultural que,
supostamente, moldou Hamlet e Rei Lear. Mas as 25 melhores peças de Shakespeare
(de um total
de 39) não são obras datadas. Se não conseguimos outro meio de explicar
Shakespeare (ou Dante, Cervantes, Goedie, Walt Whitman), por que não retomar o
estudo da
antiga ideia de génio? Habilidade não é algo inato; genialidade o será,
necessariamente.
Sou grato a meus assistentes de pesquisa: Tara Mohr, Kate Cambor, Yoojin
Grace Kim, Aislinn Goodman e Mei Chin. Agradeço, também, aos meus editores,
Jamie Raab
e Larry Kirshbaum, aos meus agentes literários, Glen Hartley e Lynn Chu, e à
minha esposa, Jeanne.
Harold Bloom
Timothy Dwight College, Universidade de Yale
8 de dezembro de 2001
/
12
SOBRE A ORGANIZAÇÃO DO LIVRO
Génio e Cabala
Dividi a centena de génios da linguagem aqui relacionados em dez conjuntos,
cada qual contendo dez nomes; em seguida, dividi cada conjunto em subconjuntos
de
cinco nomes. Todo génio, a meu ver, é idiossincrático, extremamente arbitrário
e, em última instância, solitário. Qualquer contemporâneo de Dante poderia
compartilhar
da relação que o poeta teve com a tradição, do conhecimento e de algo semelhante
ao amor do poeta por Beatriz, mas somente Dante escreveu a Comédia. Cada um dos
100 autores por mim selecionados é singular, mas, tanto quanto qualquer outro
livro, este requer algum princípio de organização ou classificação. Estruturei-o
como
um mosaico, por acreditar no surgimento de contrastes e inspirações importantes.
Desde o primeiro momento, anos atrás, em que pensei este livro, tive em mente
a imagem dos Sefirot cabalistas. Meus dez conjuntos são denominados segundo os
nomes
mais frequentemente atribuídos aos Sefirot. A Cabala é uma ciência especulativa
que depende de linguagem extremamente figurada. Dentre as principais figurações
ou
metáforas da Cabala destacam-se os Sefirot, atributos, a um só tempo, de Deus e
de Adão Cadmo, ou Homem Divino, feito à imagem de Deus. Tais atributos, ou
qualidades,
emanam de um centro não-localizado, inexistente, por ser infinito, e movem-se em
direção a uma circunferência localizada e finita. A ideia de emanação
fiindamenta-se
em Plotino, o maior dos neoplatonistas, mas, de acordo com Plotino, a emanação
procede de Deus, ao passo que na Cabala os Sefirot encontram-se no próprio cerne
de
Deus, ou do Homem Divino. Uma vez que os cabalistas acreditavam que o universo
13
fora criado por Deus a partir de si mesmo, sendo ele Ayin (nada), os
Sefirotdelineiam o processo da criação; encerram, portanto, os nomes de Deus, à
medida que este
trabalha na criação. Os Sefirot são metáforas tão abrangentes que se tornam, em
si, poemas, ou mesmo poetas. A palavra hebraica sappir ("safira") é a provável
origem
do vocábulo Sefirot. É possível entender os Sefirot como luzes, textos ou
estágios da criação. Neste livro, os 100 génios estão classificados em meus
breves ensaios
segundo os Sefirot que me parecem, respectivamente, mais pertinentes; mas duas
almas jamais concordarão sobre o que lhes será mais pertinente.
A minha classificação dessa centena de génios não pretende fixá-los em
determinadas categorias, pois os Sefirot são imagens em movimento constante, e
qualquer
espírito criativo deve percorrer todos os Sefirot, passando por muitos
labirintos de transformação.
Gershom Scholem, precursor dos estudos modernos sobre a Cabala, identificou-a
com o espírito da religião judaica. Moshe Idel, sucessor de Scholem, a despeito
do surgimento aparentemente súbito da Cabala entre os judeus da Provença e da
Catalunha, no século XIII, detecta na Cabala a recorrência de antigas
especulações
judaicas. Em certo sentido, Scholem e Idel concordam com a asserção expressa na
Cabala de que nela voltamos a Adão e Eva, antes da queda, no Éden, e com a
hipótese
contundente de que Moisés a recebeu como o elemento esotérico da Lei Oral a ele
comunicada por Javé no Monte Sinai.
Os Sefirot constituem o centro da Cabala, pois pretendem representar a
interioridade de Deus, os segredos do caráter e da personalidade divina. São
atributos
do génio de Deus, em todos os sentidos em que o termo "génio" é empregado neste
livro.
Keter, o primeiro Sefirah, poderia ser denominado "a coroa", uma vez que é
representado por Adão Cadmo coroado, o Deus-Homem, antes da queda. Porém, assim
como
todos os Sefirot, Keter é um paradoxo, pois os cabalistas também o chamam de
Ayin, ou nada. Borges observou que Shakespeare era todo mundo e ninguém,
concepção por
mim modificada, a tudo e nada, a coroa da literatura e, ao mesmo tempo, o nada
primordial. Na qualidade de Bardólatra-Mor, não vejo audácia em considerar o
génio
de Shakespeare uma espécie de divindade secular, motivo pelo qual o posiciono em
primeiro lugar, entre os 100 génios da linguagem.
Em seguida a Shakespeare, ainda em Keter, incluo quatro figuras que a ele
quase se comparam: Cervantes, o "primeiro romancista"; Montaigne, o primeiro
autor de
ensaios de natureza pessoal; Milton, que reinventou a poesia épica; e Tolstoi,
que realizou a fusão entre o épico e o romance. Em um segundo grupo, apresento
uma
sequência de quatro grandes autobiógrafos: os poetas Lucrécio e Virgílio, o
psicólogo e teólogo
14
Hokmah, o segundo Sefirah, é, com frequência, traduzido por "sabedoria", que
remete à aura da "literatura sábia", relativa à Bíblia hebraica e respectivos
comentários.
Apresento Sócrates, Platão, o Javista, São Paulo e Maomé na condição de
integrantes do primeiro grupo de figuras sábias, contrapostos a um segundo
contingente, que
reúne Samuel Johnson e seu biógrafo, Boswell, os sábios Goethe e Freud, e o
irónico Thomas Mann, juntos, plêiade de sapiência secular.
O terceiro Sefirah, Binah, é o intelecto em estado receptivo; não se trata da
inteligência passiva, mas inteiramente aberta à ação da sabedoria. A meu ver,
Nietzsche,
Kierkegaard e Kafka representam a mente aberta, assim como Proust, o último dos
grandes romancistas, e o visionário anglo-irlandês Beckett. Na segunda
sequência,
agrupei cinco dos maiores dramaturgos europeus - Molière, Ibsen, Tchekhov, Wilde
e Pirandello -, todos dotados da rapidez de raciocínio que os cabalistas
associam
ao Binah.
Em Hesed, que corresponde ao pacto de amor pleno que emana de Deus (ou de
mulheres e homens), deparo-me, primeiramente, com as figuras de cinco grandes
mestres
da ironia, com efeito, ironistas do amor: John Donne, Alexander Pope, Jonathan
Swift e - mais sutis, no domínio das aspirações irónicas - Jane Austen e Lady
Murasaki.
Um segundo grupo é formado por outros génios de Eros, embora estes lidem mais
com a angústia decorrente da promessa divina: Hawthorne e Melville, as irmãs
Bronté
e Virgínia Woolf.
Dm, que vem em seguida, também é conhecido por Gevurah. Din significa algo
semelhante a "juízo rigoroso", enquanto Gevurah é a força que permite tal rigor.
Aqui
inicio com uma série de grandes poetas-visionários norte-americanos, rigorosos e
geniais: Emerson, Emily Dickinson, Frost, Wallace Stevens, T. S. Eliot, todos
exemplos
da nossa estirpe nativa, outrora uma vertente de puritanismo. São seguidos de
cinco poetas do Alto Romantismo que manifestaram a força e o rigor da
imaginação: Wordswortli,
Shelley, Keats, Tennyson e o italiano Leopardi.
15
Em Tiferet, cujo significado é beleza, também conhecida como Rahamin, ou
compaixão, focalizo, primeiramente, cinco grandes nomes do Estetismo Swinburne, os
Rossetti, Walter Pater e o austríaco Hofmannsthal - e, em seguida, os maiores
poetas do Romantismo francês e seus herdeiros: Victor Hugo, Nerval, Baudelaire,
Rimbaud
e Valéry.
O sétimo Sefirah, Nezah, pode ser entendido como a vitória de Deus, ou como a
fortitude eterna, que jamais será derrotada. Aqui inicio com três gigantes do
género
épico - Homero, Camões e James Joyce -, seguidos do excepcional ficcionista
épico de Cuba, Alejo Carpentier, e do poeta mexicano Octávio Paz, poderoso em
seus "breves
épicos". O segundo grupo talvez compartilhe menos em termos de vitórias e mais
quanto à fortitude extrema: Stendhal, Mark Twain, Faulkner, Hemingway e Flannery
0'Connor,
todos irónicos com relação à eternidade.
Hod, esplendor, ou majestade da força profética, aqui rege, em primeiro
lugar, uma série de poetas-profetas, a partir de Walt Whitman e outros três por
ele influenciados:
Pessoa, Hart Crane e Federico Garcia Lorca, este de Andaluzia (ao sul da
Espanha). Cernuda, grande poeta espanhol moderno, que vive no exílio, completa
esse grupo
majestoso. Símbolo do esplendor moral, Hod determina, também, uma sequência de
romancistas: George Eliot, Willa Cather, Edith Wharton, Scott Fitzgerald, e a
falecida
filósofa e ficciocista íris Murdoch.
Em Yesod o nono Sefirah, às vezes traduzido por "origem", constata-se uma
postura que remete ao antigo significado latino da palavra "génio", força
geradora.
Sob a égide de Yesod incluí, primeiramente, uma série de mestres da narrativa
erótica: Flaubert, o português Eça de Queirós, o afro-brasileiro Machado de
Assis,
o argentino Borges e o fabulista moderno italiano, ítalo Calvino. Aqui, uma
segunda série é constituída por cinco vitalistas heróicos: o profeta-poeta
William Blake,
o romancista profético D. H. Lawrence, o grande dramaturgo norte-americano
Tennessee Williams, fortemente influenciado por Lawrence e Hart Crane, e dois
poetas modernos
originais, o austro-germânico Rilke e o italiano Montale.
O décimo e último Sefirah é Malkhut, o reino, também conhecido por Atarah, o
diadema. Embora Malkhut identifique-se com Shekhinah, radiação feminina de Deus
descida
à Terra, em vista da profunda interioridade de Malkhut, reuni dez génios do sexo
masculino que transcendem a sexualidade. A meu ver, Malkhut é o mais fascinante
dos Sefirot, porque demonstra a imanência divina no reino terrestre. Só é
possível chegar aos demais Sefirot através de Malkhut, por conseguinte, recorro
a Malkhut,
a princípio, para situar uma série diversificada e, ao mesmo tempo, curiosamente
inter-relacio-nada, de indivíduos que criaram suas próprias comédias humanas:
Balzac,
Lewis Carroll, o psicólogo e romancista Henry James, Robert Browning, criador do
monólo16
go interior, e W. B. Yeats, dramaturgo lírico irlandês. O segundo grupo é
constituído por Dickens e Dostoiévski, romancistas visionários do grotesco;
Isaac Babel,
contista judeu-russo; Paul Celan, judeu-romeno e criador de uma poesia pósHolocausto, na Alemanha, comparável à radiação inerente às narrativas em prosa
de Kafka
escritas em língua alemã. O falecido ficcionista afro-americano Ralph Waldo
Ellison, cujo génio visionário alcançou a perfeição na obra O Homem Invisível,
complementa
essa descida de Malkhutem nossos tempos, sendo o último dos 100 génios estudados
neste livro.
17
LUSTROS
Cada um dos dez conjuntos regidos por determinado Sefirah está dividido em de
grupos de cinco, aqui denominados "Lustros". A título de introdução a cada Lusti
um
ou dois parágrafos procuram indicar parte do processo utilizado na associação c
cinco figuras respectivas.
"Leio em busca de lustros", Emerson disse, em consonância com Plutarco e outi
clássicos pertencentes à tradição platónica. "Lustros", nesse sentido, refere-se
ao bril decorrente da luz refletida, o lustre, o esplendor de um génio refletido
em outro, ui vez justapostos nesse meu mosaico.
19
GNOSTICISMO
A Religião da Literatura
Este livro adota dois paradigmas, ambos bem menos esotéricos do que parecem
Cabala e gnosticismo. Convém, na verdade, acrescentar um terceiro, o Corpuí
Hermético,
ou Hermética, notável coletânea de tratados compostos na helênia Alexandria, no
século I da Era Cristã (e. c). Os estudiosos denominam o respectivc culto
místico
pagão, de origem greco-egípcia, "Hermetismo", a fim de diferenciá-lo d
ramificações renascentistas e modernas, geralmente designadas "hermeticismo".
O Hermetismo exerceu imensa influência durante a Renascença, devido à noçãc
equivocada de que os textos originários da seita seriam anteriores a Moisés, e
não
contemporâneos ao Evangelho de João, conforme, de fato, o eram. Os hermetistas
eran platonistas que absorveram as práticas alegóricas dos judeus de Alexandria
e
que levaram adiante a especulação de origem judaica relativa ao primeiro Adão, o
Antropos, 01 Homem Primevo, chamado Adão Cadmo, na Cabala, e "deus mortal",
segundo
os hermetistas: "o humano na Terra é um deus mortal [enquanto] deus no Céu é um
humano imortal." Trata-se de gnose, ou conhecimento, decorrente do processo
relativo
à Criação e Queda que seria elaborado pelos cristãos gnósticos um século mais
tarde. embora jamais com a eloquência característica do primeiro tratado
hermetista,
Poimandres, em que o deus mortal sucumbe à nossa aflição de "amor e sono":
Quando o homem viu refletida na água uma forma semelhante à sua, assim
como existia na natureza, sentiu amor pela forma e desejou nela habitar; desejo
e
ação ocorreram
no mesmo instante (...). Embora ele seja imortal (...), a humanidade
está sujeita à mortalidade (...), [e] ainda que esteja acima da estrutura
cósmica, uma ves no
interior da mesma, ele se tornou escravo. É andrógino porque foi gerado por pa
21
andrógino, e jamais dorme porque foi gerado por aquele que não tem sono.
Todavia, o amor e o sono são seus senhores.
Trata-se de uma concepção narcisista, e não edipiana, do processo de Criação e
Queda, uma concepção platónica, e não judeu-cristã, que se aproxima do conceito
de "Autoconfiança", em Emerson, segundo o qual os aspectos primordiais,
superiores, do eu não são vistos como inerentes à natureza. O gnosticismo
qualificava tais
elementos do eu como pneuma, isto é, espírito ou sopro autêntico, a pessoa
verdadeira.
O termo "gnosticismo" foi empregado pela primeira vez no século XVII, para
definir a antiga "heresia" surgida entre pagãos, judeus e cristãos no final do
século
I da Era Comum.1 Quase todos os textos gnósticos cuja autenticidade não foi
contestada datam do século II, mas â antiga tradição judaica já venerava o
primeiro
Adão,
considerado o verdadeiro profeta. O grande estudioso israelita da Cabala na
atualidade, Moshe Idel, especula que o gnosticismo, assim como a Cabala judaica
medieval,
retomou antigas controvérsias judaicas sobre Adão, Deus, a criação e a queda.
A literatura gnóstica cristã disponível em língua inglesa deve ser lida na
tradução de Bentley Layton, intitulada The Gnostic Scriptures, com ênfase em
Valentim,
o génio poético entre os gnósticos de Alexandria. A partir de Valentim, passando
pelo poeta romântico alemão Novalis, o romântico francês Nerval e o inglês
William
Blake, o gnosticismo tem-se mostrado inseparável da genialidade em termos de
imaginação. Tendo meditado sobre o gnosticismo ao longo de toda a vida, arrisco
afirmar
que, na prática, a concepção constitui a religião da literatura. Decerto, há
poetas cristãos geniais que jamais foram acusados de hereges, desde John Donne a
Gerard
Manley Hopkins e ao neocristão T. S. Eliot. Contudo, os poetas mais ousados da
tradição romântica ocidental, que fizeram da poesia sua religião, foram
gnósticos,
de Shelley e Victor Hugo a William Butler Yeats e Rainer Maria Rilke.
Proponho, para o entendimento da noção de génio, uma definição simplificada de
gnosticismo: trata-se de um conhecimento que liberta a mente criativa dos
ditames
da teologia, do historicismo e de qualquer divindade que se anteponha àquilo que
existe de mais criativo no eu. Um Deus alienado do eu interior é um Deus
Carrasco,
conforme o chamou James Joyce, o Deus que gera a morte. O gnosticismo, como
religião do génio literário, repudia o Deus Carrasco.
Hans Jonas, no meu entendimento, o estudioso mais lúcido do gnosticismo, disse
que os antigos gnósticos experimentaram "a intoxicação causada pela falta de
precedentes".
Lembro-me de ter observado diante de Jonas, pessoa brilhante e genial, que ele
acabara de descrever a busca permanente de grandes poetas: liberdade para o eu
criativo,
para a expansão da autoconsciência da mente.
Isto é, Era Cristã, segundo os judeus. As reduções aqui utilizadas serão e.c.
(Era Comum) e a.e.c (antes da Era Comum). [N. do T.]
INTRODUÇÃO
O Que É Génio
Ao empregar um esquema, ou paradigma, cabalístico na organização deste livro
baseio-me na convicção de Gershom Scholem de que a Cabala é o espírito da
religião
segundo a tradição judaica. As 100 figuras por mim selecionadas, começando poi
Shakespeare até o falecido Ralph Ellison, talvez representem uma centena de
atitude;s
diferentes no que concerne à espiritualidade, abrangendo uma escala completa, de
Sãc Paulo e Santo Agostinho à secularidade de Proust e Calvino. Ocorre que a
Cabala,
a meu ver, possibilita a anatomia do génio, seja mulher ou homem, assim como a
anatomia do processo de fusão entre homem e mulher, em Ein Sof, a infinitude de
Deus
Pretendo recorrer aqui à Cabala como ponto de partida da minha visão pessoal
sobre
o conceito e a natureza do génio.
Scholem observou que a obra de Franz Kafka constitui uma Cabala secular e, poi
conseguinte, concluiu que os escritos de Kafka contêm "algo da luz intensa do
canónico,
de uma perfeição que destrói". Em contrapartida, Moshe Idel argumenta que
o canónico, seja de ordem bíblica ou cabalística, é "a perfeição que absorve".
Confrontai
a plenitude da Bíblia, do Talmude e da Cabala é tentar "absorver perfeições".
O que Idel define como "qualidade de absorção da Tora" assemelha-se à
qualidade de absorção constatada em todos os génios autênticos, que sempre têm a
capacidade
de nos absorver. No inglês falado nos Estados Unidos, o verbo "to absorb"
significa diversos processos relacionados: realizar a absorção de algo, por
exemplo, através
dos poros; dedicar total interesse ou atenção; ou assimilar plenamente.
22
23
Estou ciente de estar transferindo à noção de génio algo que Scholem e Idel,
seguindo a Cabala, atribuem a Deus, mas, ao fazê-lo, apenas dou continuidade à
antiga
tradição romana que estabeleceu, pela primeira vez, as concepções de génio e
autoridade. Em Plutarco, o génio de Marco António é o deus Baco, ou Dionísio. Na
versão
de Shakespeare, intitulada António e Cleópatra, o deus Hércules, nesse caso,
génio de António, abandona o general romano. O Imperador Augusto, que derrota
António,
proclama que o deus Apolo é o próprio génio do Imperador (segundo Suetônio). O
culto ao génio do Imperador tornou-se, portanto, um ritual romano, deslocando os
dois
significados anteriores, isto é, de força geradora da família e de alter ego de
cada cidadão.
Autoridade, ou*ro conceito romano fundamental, talvez seja mais relevante ao
estudo do génio do que a própria noção de "génio", com seus significados
contraditórios.
As origens da autoridade, fenómeno que desapareceu da cultura ocidental,
conforme Hannah Arendt demonstrou, de modo convincente, remontam a Roma, e não à
Grécia
ou à cultura hebraica. Na Roma antiga, o conceito de autoridade tinha caráter
originário. Auctoritas derivava do verbo augere, "aumentar", e autoridade
dependia
sempre de um aumento na origem, desse modo transportando o passado vivo ao
presente.
Homero travou um embate dissimulado com a poesia que o precedeu e, creio eu,
trabalhando na Babilónia, o Redator da Bíblia Hebraica, ao montar o arcabouço
que
abrange de Génesis a Reis, buscou truncar o autor que o precedeu, e que foi por
ele inserido no texto, a fim de manter à distância a estranheza e a força
excepcional
do Javista, conhecido pela inicial J. Era impossível excluir o Javista, à medida
que as histórias por ele (ou ela) relatadas tinham autoridade, mas quanto ao
desconcertante
Javé, humano-por-demais-humano, era plausível calar-lhe a voz, recorrendo-se a
outras vozes divinas.
Qual a relação entre um novo génio e a autoridade originária? No presente
momento, início do século XXI, eu diria: "Absolutamente nenhuma." A confusão a
respeito
de padrões canónicos relativos à genialidade encontra-se atualmente
institucionalizada, de modo que o juízo relativo ao discernimento entre talento
e genialidade
está à mercê da mídia, atendendo aos caprichos da política cultural.
Visto que este livro, ao apresentar um mosaico composto por 100 génios
autênticos, propõe-se estabelecer critérios de juízo, arriscarei aqui uma
definição estritamente
pessoal do conceito de génio, definição esta que pretende ser útil nesses
primeiros anos do novo século. A ideia de que carisma, necessariamente,
acompanha o génio
parece-me problemática. Das 100 figuras incluídas neste livro, conheci,
pessoalmente, três - íris Murdoch, Octávio Paz e Ralph Ellison -, todos
falecidos há, relativamente,
pouco
tempo. Recordo-me, também, de breves encontros com Robert Frost e Wallace
Stevens, muitos anos atrás. Embora fossem personalidades impressionantes, cada
um à sua
maneira, nenhum deles tinha a exuberância e a autoridade de Gershom Scholem,
cujo génio o acompanhava de modo tangível, apesar de toda a ironia e elevada
dose de
bom humor.
William Hazlitt escreveu um ensaio que discorre sobre indivíduos que
gostaríamos de ter conhecido. Examino o meu sumário cabalístico e me pergunto
quais personalidades
escolheria. O crítico Sainte-Beuve aconselhava-nos a nos perguntar: o que este
autor que estou lendo pensaria de mim? O meu herói pessoal nessa centena de
nomes
é Samuel Johnson, deus da crítica literária, mas não tenho a coragem de me expor
ao seu
juízo.
O génio exerce autoridade sobre mim, sempre que eu admito estar diante de
forças maiores do que as minhas. Emerson, sábio a quem procuro seguir,
desaprovaria essa
minha capitulação pragmática, mas o génio de Emerson era tão grande que lhe era
plausível pregar a Autoconfiança. Há 45 anos, atuo, ininterruptamente, em
magistério,
e gostaria de conferir aos meus alunos uma autoconfiança emersoniana, mas, de
modo geral, não sou capaz de fazê-lo, e não o faço. Tenho a esperança de
cultuar-lhes
a sua própria genialidade, mas só consigo incutir-lhes o génio da apreciação.
Eis o objetivo principal deste livro: suscitar em meus leitores o génio da
apreciação,
se assim me for
possível.
Escrevo estas páginas uma semana após 11 de setembro de 2001, data do triunfo
terrorista, concretizado na destruição do World Trade Center e das pessoas que
se
encontravam no interior das torres. Ao longo da semana passada, ministrei aulas
sobre Wallace Stevens e Elizabeth Bishop, sobre as primeiras comédias
shakespearianas
e sobre a Odisseia. Não tenho como saber se, de fato, ajudei meus alunos, mas,
quanto a mim, consegui, momentaneamente, lidar com o trauma, ao renovar a
apreciação
dos
génios.
O que será que eu, e tantas outras pessoas, apreciam no génio? Um registro (27
de outubro de 1831) nos Diários àt Emerson sempre paira em minha memória:
Mas tudo não está dentro de nós? Que estranho! Olha esta congregação de
homens... palavras são pronunciadas - embora não haja, aqui, neste momento quem
as pronuncie
-, palavras que talvez os fizessem cambalear e tremer como se estivessem
alcoolizados. Quem poderá duvidar? Já recebeste instrução de um homen sábio e
eloquente?
Lembra, pois, se não foram as palavras que gelaram teu sangue que te fizeram
enrubescer, que te fizeram tremer de satisfação - mas não achaste que tais
palavras
tinham
a tua idade? Não é verdade que já sabias, ou esperas que o púlpi
24
25
to, ou qualquer homem que seja, possa comover-te com algo que não seja a pura
verdade? Jamais. É Deus em ti que responde a Deus fora de ti, e que afirma as
próprias
palavras, trémulas, nos lábios de outrem.
Os dizeres ainda queimam o meu ser: "não achaste que tais palavras tinham a
tua idade?". Longino, crítico que viveu na Antiguidade, definia o génio
literário como
"Sublime", e reconhecia, no processo em questão, uma transferência de poder, do
autor ao leitor:
Tocada pelo autêntico sublime, a alma eleva-se, naturalmente, adquire altivez,
enche-se de júbMo e vaidade, como se ela própria houvesse criado aquilo que
acabara
de ouvir.
A genialidade literária, difícil de ser definida, para ser constatada, depende
de uma leitura profunda. O leitor aprende a se identificar com aquilo que lhe
parece
uma grandeza que pode ser somada ao eu, sem com isso violar a integridade do
ser. A noção de "grandeza" está fora de moda, assim como a ideia de
transcendência,
mas é difícil continuar vivendo sem alguma esperança de se deparar com o
extraordinário.
Encontrar o extraordinário em outra pessoa é experiência cujas propensões são
enganosas ou ilusórias. A isso chamamos "apaixonar-se"; deparar-se com o
extraordinário
em um livro - seja a Bíblia, ou as obras de Platão, Shakespeare, Dante, Proust é benefício, praticamente, sem custo. Os escritos dos génios constituem o melhor
caminho em direção à sabedoria, que é, creio eu, a verdadeira utilidade da
literatura para a vida.
Quando perguntado a respeito de que obra levaria consigo para uma ilha
deserta, James Joyce respondeu: "Gostaria de responder: Dante, mas teria de
levar o inglês,
porque é mais fecundo." A resposta expressa bem a rispidez irlandesa de Joyce
com relação aos ingleses, mas a opção por Shakespeare é justa, e, por isso, ele
lidera
o elenco das 100 personalidades incluídas neste livro. Conquanto alguns génios
literários aproximem-se de Shakespeare - o Javista, Homero, Platão, Dante,
Chaucer,
Cervantes, Molière, Goethe, Tolstoi, Dickens, Proust, Joyce -, nem mesmo estes
12 mestres da representação conseguem igualar a milagrosa descrição da realidade
criada
por Shakespeare. Por causa de Shakespeare enxergamos o que, sem ele, jamais
enxergaríamos, pois ele nos transforma. Dante, o rival mais próximo, convencenos da
realidade terrível descrita no Inferno e no Purgatório, e quase nos induz a
aceitar o Paraíso. Contudo, nem mesmo o personagem mais completo da Divina
Comédia Dante, o Poeta-Peregrino - chega a
sair das páginas da Comédia, para habitar o mundo em que vivemos, como o fazem
Falstaff, Hamlet, lago, Macbeth, Lear e Cleópatra.
A invasão da nossa realidade por parte das principais figuras shakespearianas
atesta a vitalidade dos personagens literários, quando criados por um génio.
Todos
já experimentamos uma sensação de vazio, ao lermos ficção popular e constatarmos
que as páginas contêm apenas nomes, e não pessoas. Com o passar do tempo, apesar
dos elogios excessivos, esse tipo de ficção se torna datada, e acaba no lixo.
Vale lembrar que a palavra "caráter" ainda hoje denota, no sentido primeiro, um
grafismo,
e.g., uma letra do alfabeto, refletindo a provável origem do vocábulo no termo
do grego antigo "charac-tef, estilete afiado, ou a marca deixada pelas incisões
de
um estilete. A palavra moderna "caráter" também significa ethos, atitude diante
da vida.2
Era moda, até pouco tempo atrás, falar da "morte do autor", mas essa noção
também já virou lixo. O génio morto está mais vivo do que nós, assim como
Falstaff e
Hamlet estão bem mais vivos do que muita gente que conheço. A vitalidade é a
medida do génio literário. Lemos em busca de mais vida, e só o génio é capaz de
nos
prover de mais vida.
O que possibilita o surgimento de um génio? Sempre existirá um Espírito da
Época, e sentimos certa satisfação em nos iludir com a ideia de que o mais
importante
a respeito de uma figura memorável é aquilo que em tal figura seria comum à era
em que ela viveu. Segundo essa visão equivocada, seja no âmbito académico ou
popular,
os seres humanos são determinados por fatores sociais. A imaginação pessoal
rende-se à antropologia social, ou à psicologia de massa, e, assim, é explicada
de modo
simplista.
Este livro, Génio, fundamenta-se na minha certeza de que a apreciação é um
meio mais produtivo de se compreender façanhas do que todos os métodos
analíticos empregados
na explicação do surgimento de indivíduos excepcionais. A apreciação pode
expressar juízo, mas o faz sempre com reconhecimento, e, muitas vezes, com
admiração e
reverência.
Com o termo "apreciação", sugiro algo além de "devida estima". Ela também
abrange a noção de necessidade, à medida que nos voltamos ao génio de terceiros
para
compensar alguma carência em nós mesmos, ou encontramos no génio um estímulo às
nossas próprias forças, seja lá quais forem.
Apreciação pode desenvolver-se em amor, assim como tomar consciência de um
génio desaparecido provoca o incremento da própria consciência. O desejo mais
profundo
do eu solitário é a sobrevivência, seja aqui e agora, ou em alguma dimensão
transcendental. Crescer por efeito do génio de terceiros é aumentar as
possibilidades
de sobrevivência, ao menos no presente e no futuro próximo.
2 Os dois sentidos mencionados ocorrem em português; apenas o outro sentido da
palavra, em língu; inglesa, "character", significando "personagem", não possui
correspondente
em português. [N. do T.J
26
27
Não sabemos como e/ou por que surge o génio, sabemos apenas que - para nossa
imensa gratificação - génios existem, e talvez (em número menor) continuem a
aparecer.
Embora as nossas instituições académicas estejam repletas de impostores que
conclamam o génio como nada mais do que um mito capitalista, apraz-me citar Leon
Trotsky,
que instava os escritores comunistas a ler e estudar Dante. Se o génio é um
mistério da consciência ampla e aberta, o que há de menos misterioso no fenómeno
é a
sua relação íntima com a personalidade, e não com o caráter. A personalidade de
Dante é intimidadora, a de Shakespeare, indefinível, enquanto a de Jesus (assim
como
a de Hamlet, embora ficcional) parece revelar facetas diferentes a cada leitor
ou ouvinte.
O que é a personalidade? Lamentavelmente, hoje em dia empregamos o termo, no
uso popular, como sinonimo de "celebridade", mas insisto em não desistir da
palavra
em favor do mundo da moda. Quando se torna possível reunir dados suficientes
sobre a biografia de um determinado génio, podemos compreender o significado de
se falar
da personalidade de Goethe, Byron, Freud ou Oscar Wilde. Em contrapartida,
diante da carência de conhecimento biográfico, concordamos quanto às incertezas
sobre
a personalidade de Shakespeare, o que constitui um grande paradoxo, porquanto é
viável especular que suas peças tenham inventado a personalidade conforme hoje
tão
prontamente a identificamos. Se me desafiarem, poderia escrever um livro sobre a
personalidade de Hamlet, Falstaff ou Cleópatra, mas não arriscaria um livro a
respeito
da personalidade de Shakespeare ou de Jesus.
O pai de Benjamin Disraeli, o literato Isaac D'Israeli, escreveu um livro
bastante ameno, intitulado The Literary Character ofMen of Genius, obra
precursora do
presente livro, Génio, ao lado de Vidas Paralelas, de Plutarco, Homens
Representativos, de Emerson, e Sobre os Heróis e o Culto do Herói, de Carlyle.
Isaac D'Israeli
observa que "é preciso surgir muitos génios, antes que apareça um determinado
génio." Todo génio tem seus predecessores, ainda que, em um passado remoto, seja
difícil
identificá-los. Johnson considerava Homero o primeiro e mais original dos
poetas; a nosso ver, Homero é figura relativamente tardia que enriqueceu a
própria obra
com frases e fórmulas criadas pelos antecessores. Emerson, no ensaio "Citação e
Originalidade", observou, com astúcia: "Somente um inventor sabe tomar
emprestado."
As grandes invenções de um génio influenciam aquele mesmo génio por meio de
procedimentos cuja apreciação nos leva tempo para consolidar. Falamos da
presença do
autor, ou autora, na obra; melhor seria falarmos da presença da obra na pessoa
que a criou. Porém, mal sabemos como discutir a influência da obra no autor, ou
de
uma determinada mente em si mesma. Considero esse o objetivo primordial deste
livro. Com relação a todas as figuras exibidas no meu mosaico, a ênfase há de
recair
sobre o embate que travam com elas mesmas.
28
A luta contra o próprio eu pode esconder-se atrás de algum outro processo,
inclusive da inspiração em precursores idealizados: Platão, com relação a
Sócrates; Confúcio
e o duque de Chou; Buda e suas próprias encarnações anteriores. De modo
especial, o autor da Bíblia Hebraica, na forma em que hoje a conhecemos, o
Redator da sequência
que compreende de Génesis a Reis, vale-se do próprio génio, ao recriar a
Aliança, ao mesmo tempo em que celebra as virtudes (e falhas) dos antepassados.
Todavia,
conforme argumenta Donald Harmon Akenson, o autor-redator, ou editor-redator,
alcançou uma "beleza excepcional", toda sua. Exilado na Babilónia, o Redator não
poderia
supor que estivesse criando Escrituras; na qualidade de historiador primeiro, é
possível que acreditasse estar apenas defendendo a causa perdida do Reino de
Judá.
Contudo, sendo por demais perspicaz, não deixaria de notar que a invenção de uma
continuidade e, portanto, de uma tradição era, em grande parte, fruto do seu
trabalho.
Tanto no caso do Redator, quanto nos casos de Confúcio e Platão, é possível
observar a angústia na obra que, evidentemente, refletia-se no autor. Como estar
à
altura de antepassados que falavam, diretamente, com Javé, ou do grande Duque de
Chou, que comandava o povo sem recorrer à violência? É possível ser um autêntico
discípulo de Sócrates, que, sem se queixar, submeteu-se ao martírio para afirmar
a sua verdade? Em última instância, a angústia da influência não decorre da
impressão
de que o espaço pretendido já foi ocupado, mas de que a grandeza talvez não
consiga renovar-se a si mesma, que a inspiração seja maior do que o talento para
concretizá-la.
O termo génio não mais cativa a simpatia dos estudiosos, muitos dos quais se
tornaram "niveladores culturais" um tanto imunes à admiração. Contudo, junto ao
público,
a noção de génio continua a ser prestigiada, apesar do desgaste sofrido do termo
em si Precisamos do génio, por mais inveja ou constrangimento que a noção cause
a muitos de nós. Não é necessário aspirarmos, pessoalmente, à condição de génio;
todavia, no íntimo, lembramo-nos de que tínhamos, ou temos, um génio. O desejo
pelo
transcendental, pelo extraordinário, faz parte do nosso legado comum; quando tal
desejo se vai, c faz lentamente, e jamais por completo.
Afirmar que a obra está no autor, ou que a noção religiosa está no líder
carismático não é um paradoxo. Shakespeare, hoje sabemos, era usurário, assim
como Shylock;
ma terá esse fato contribuído para a decisão de que O Mercador de Veneza fosse
uma come dia? Não o sabemos. No entanto, buscar a obra no autor é buscar a
influência
e o efeito da peça no desenvolvimento de Shakespeare, partindo da comédia,
passando pela tragi comédia, e chegando à tragédia. É perceber Shylock tornar
Shakespeare
mais sombria Examinar os efeitos das parábolas de Jesus no próprio Jesus é
conduzir uma investiga ção em moldes similares.
29
A palavra "génio" possui dois sentidos antigos (em latim), dotados de ênfase
bastante diversa. O primeiro sentido expressa a noção de gerar, fazer germinar,
isto
é, ser um pater famílias. O outro refere-se a um espírito que rege cada pessoa e
lugar, a um espírito bom ou mau, portanto, à possibilidade de se exercer
influência
marcante sobre alguém, para o bem ou para o mal. O segundo sentido é mais
importante do que o primeiro; nosso génio, por conseguinte, é nossa aptidão,
nosso talento
natural, nossa força intelectual ou criadora, inata, e não a capacidade de gerar
vigor em terceiros.
Todos aprendemos a distinguir, de modo firme e definitivo, entre génio e
talento. Na Antiguidade, "talento" significava peso ou moeda, portanto, por mais
que existisse,
era, necessariamente, limitado. Já a palavra "génio", mesmo em sua origem
linguística, não tem limites. ,,
Atualmente, por génio, costumamos entender capacidade criativa, em
contraposição à habilidade. O historiador vitoriano Froude observou que génio "é
uma fonte cujo
conteúdo é sempre mais caudaloso do que o líquido que jorra". Os maiores
exemplos de génios estéticos que conhecemos são Shakespeare e Dante, Bach e
Mozart, Michelangelo
e Rembrant, Donatello e Rodin, Alberti e Brunelleschi. Diante do génio
religioso, a questão se torna mais complexa, especialmente em um país obcecado
por religião,
como no caso dos Estados Unidos. Considerar Jesus e Maomé génios religiosos (ou
seja lá o que mais forem) é torná-los, ao menos nesse aspecto, semelhantes não
apenas
entre si, mas a Zoroastro e a Buda, bem como a certas figuras seculares, génios
da ética, tais como Confúcio e Sócrates.
Definir a noção de génio mais precisamente do que nunca é um dos objetivos
deste estudo. O outro é defender a noção de génio, atualmente aviltada por
detratores
e redu-cionistas, cujas fileiras abrangem desde sociobiólogos e materialistas da
escola do genoma até os mais diversos historicistas. Porém, o meu objetivo
precípuo
é, a um só tempo, incrementar a apreciação da genialidade e demonstrar como,
invariavelmente, o fenómeno é engendrado pelo estímulo de algum génio anterior,
muito
mais do que em função de contextos culturais e políticos. A influência que um
génio exerce sobre si mesmo, conforme já mencionado, constitui um dos pontos de
destaque
do livro.
Meu tópico é universal, nem tanto porque, no passado, existiram génios cuja
obra alterou o mundo e, no futuro, existirão outros génios, mas porque, apesar
de reprimida,
a genialidade pode ser encontrada em tantos leitores. Emerson acreditava que
todos os norte-americanos eram poetas e místicos em potencial. Este livro não
ensina
como ler, ou que autores ler, mas como pensar sobre vidas exemplares e seus
aspectos mais criativos.
Examinando-se o sumário deste livro é possível notar que exclui exemplos de
génios ainda vivos, e inclui apenas três recentemente desaparecidos. Vejo-me
forçado
a ser breve,
INTRODUÇÃO
conciso em meu relato sobre cada génio, pois acredito ser possível aprender
muito atravé da justaposição de diversas figuras, egressas de culturas distintas
e períodos
históricos con trastantes. As diferenças existentes entre os integrantes de uma
centena de homens mulheres, selecionados em um espaço de tempo que abrange 25
séculos,
superam, en muito, as analogias e semelhanças, e o propósito de reunir tudo isso
em um único volurm pode parecer por demais ambicioso. Contudo, os génios têm
características
comuns, um; vez que a especulação intensa e individualizada bem como a
espiritualidade e a criativida de dependem da originalidade, da audácia e da
autoconfiança.
Emerson, em Homens Representativos, inicia com um parágrafo animador:
E natural acreditar em grandes homens. Se nossos companheiros de infância s
tornarem heróis e assumirem nobre condição, não nos surpreenderemos. Todas a
mitologias
surgem a partir de semideuses, e as respectivas circunstâncias são elevada e
poéticas; isto é, a ênfase recai sobre o génio. Nas lendas de Gautama, os
primeiro homens
devoraram a terra e acharam-na deliciosa.
Gautama, o grande Buda, busca e obtém liberdade, como se fosse um dos
primeiros homens. A história recontada por Emerson é mais norte-americana do que
budista,
poi os primeiros homens por ele mencionados sugerem a noção de Adãos americanos,
ante de reencarnações de luminares anteriores. Talvez eu, também, consiga tãosomente
pre conizar uma visão norte-americana, mas é possível que nisso resida a suprema
utilizaçã dos génios do passado; temos de adaptá-los ao nosso tempo e lugar,
para
sermos pc eles iluminados ou inspirados.
Emerson identificou seis grandes homens representativos: Platão, Swedenborç
Montaigne, Shakespeare, Napoleão e Goethe. Quatro destes estão presentes neste
livre
substituí Swedenborg por Blake, e descartei Napoleão, assim como todos os
generais políticos. Platão, Montaigne, Shakespeare e Goethe permanecem
essenciais, assir
como os demais por mim esboçados. Essenciais a quê? Ao nosso autoconhecimento,
en relação ao outro, pois esses mortos poderosos fazem parte da alteridade que
nos
é possi vel conhecer, conforme diz Emerson, em Homens Representativos.
Não precisamos temer o excesso de influência. A confiança generosa é permitid:
Sirvamos aos grandes.
E no entanto, assim é o livro concluído:
O mundo é jovem: os grandes homens do passado chamam-nos com afeiçãc Nós,
também, devemos escrever Bíblias, com o propósito de, novamente, unir o ce
30
31
e a terra. O segredo do génio é não tolerar qualquer ficção, a fim de existir
para nós; realizar tudo o que sabemos.
Realizar tudo o que sabemos, inclusive ficção, é empresa momentosa demais para
nós, que vivemos um dorido século e meio depois de Emerson. O mundo já não
parece
jovem, e nem sempre ouço tons de afeto quando a voz de um génio me chama. Mas,
vale lembrar, tenho a vantagem, ou a desvantagem, de viver depois de Emerson. O
génio
da influência transcende as angústias que a constituem, desde que delas tomemos
ciência, e que possamos conjecturar nosso posicionamento com relação à contínua
prevalência
das mesmas.
Thomas Carlyk, génio vitoriano escocês hoje fora de moda, escreveu um estudo
admirável que quase ninguém mais lê: Sobre os Heróis, o Culto do Herói e o
Heróico
na História. A obra contém a melhor observação sobre Shakespeare de que tenho
conhecimento:
Se me pedirem para definir a faculdade de Shakespeare, eu diria superioridade
de intelecto e, nisso, creio estar incluindo tudo.
Prefigurando a observação, Carlyle, de modo característico, faz irromper
utilíssima advertência relativa à equivocada divisão do génio em seus
componentes ilusórios:
O que são, de fato, as faculdades? Falamos de faculdades como se fossem
distintas, elementos separados; como se um homem tivesse intelecto, imaginação,
criatividade
etc, assim como tem mãos, pés e braços.
"Capacidade de discernimento", prossegue Carlyle, constitui a nossa força
vital. Como reconhecer tal capacidade no génio? Podemos recorrer às suas obras,
e à memória
de suas personalidades. Emprego este último termo de modo bastante deliberado,
seguindo Walter Pater, outro génio vitoriano, um génio que desafia os modismos,
pois
assemelha-se a Emerson e Nietzsche. Esses três pensadores argutos profetizaram
grande parte do futuro intelectual do século que acaba de terminar e
dificilmente
deixarão de influenciar o que ora inicia. O prefácio escrito por Pater para o
seu livro mais importante, A Renascença, salienta que o "crítico estético"
("estético",
no sentido de "perceptivo") é capaz de identificar génios em cada período
histórico:
Em todas as eras existem alguns artífices excelentes, e alguma arte excelente.
As perguntas por ele [o crítico estético] formuladas são sempre: Em quem pulsa o
génio, em quem está localizado o espírito da era? Onde se encontrava o
receptáculo do seu refinamento, a distinção, o bom gosto? "As eras são todas
iguais", diz
William Blake, "mas o génio está sempre acima da era em que vive."
Blake, génio visionário quase sem par, é um modelo excepcional da relativa
independência manifestada pelo génio com relação ao tempo: "o génio está sempre
acima
da era em que vive". Não podemos enfrentar o século XXI sem esperar que ele nos
traga um Stravinski ou um Louis Armstrong, um Picasso ou um Matisse, um Proust
ou
um James Joyce. Desejar um Dante ou um Shakespeare, um J. S. Bach ou um Mozart,
um Michelângelo ou um Leonardo é pedir demais, de vez que talentos de tal
magnitude
são muito raros. Contudo, desejamos, necessitamos de algo que esteja acima do
século XXI, seja lá o que for.
A utilidade do meu mosaico é auxiliar a nossa preparação para esse novo
século, por meio da lembrança de traços da personalidade e de façanhas de muitos
entre
os indivíduos mais criativos que nos precederam. Na Antiguidade, o romano fazia
uma oferenda ao seu próprio génio, no dia do aniversário, dedicando a data ao
"deus
da natureza humana", conforme o poeta Horácio chamava o espírito mentor de cada
pessoa. Nosso costume do bolo de aniversário é descendente direto dessa
oferenda.
Acendemos velas, e convém lembrar aquilo que estamos celebrando.
32
33
GÉNIO
Uma Definição Pessoal
o
,'*
Evitei, neste livro, falar de génios vivos, em parte para escapar à perturbação
das provocações. Com meus botões, sou capaz de identificar na atualidade
determinados
escritores de génio tangível: o ficcionista português José Saramago, a poeta
canadense Anne Carson, o poeta inglês Geoffrey Hill e, pelo menos, meia dúzia de
romancistas
e poetas norte e latino-americanos (cujos nomes abstenho-me de mencionar).
Refletindo sobre o meu mosaico de uma centena de mentes criativas exemplares,
chego a uma definição pessoal, tentativa, de génio literário. A questão do génio
foi preocupação constante de Ralph Waldo Emerson, que é a mente dos Estados
Unidos, assim como Walt Whitman é o poeta e Henry James o ficcionista da nação
(o dramaturgo
ainda está por surgir). Para Emerson, génio era o Deus interior, o eu de que
fala o ensaísta em "Autoconfiança". Portanto, esse eu, segundo Emerson, não é
constituído
pela História, pela sociedade ou pela linguagem. E aborígine. Concordo,
plenamente.
Shakespeare, génio supremo, difere de seus contemporâneos, até mesmo de
Christopher Marlowe e Ben Jonson. Cervantes destaca-se de Lope de Vega e de
Calderón. Algo
em Shakespeare e Cervantes, assim como em Dante, Montaigne, Milton e Proust
(para citar apenas alguns exemplos), permanece, nitidamente, acima da era em que
viveram.
Uma originalidade arrebatadora é o componente crucial do génio literário, mas
essa mesma originalidade é sempre canónica, à medida que reconhece e interage
com
os pre35
cursores. Até mesmo Shakespeare firma uma aliança implícita com Chaucer, seu
maior predecessor na invenção do humano.
Se génio é o Deus interior, é lá que devo buscá-lo, no abismo do eu aborígine,
entidade desconhecida de quase todos os "Explicadores" dos dias atuais,
localizados
nas nossas universidades intelectualmente deprimidas e nos engenhos tenebrosos e
satânicos da mídia.
Emerson e o gnosticismo da Antiguidade concordam que o que há de melhor e
primordial em cada um de nós não faz parte da Criação, da Natureza, ou do NãoEu. Cada
um de nós, presume-se, é capaz de identificar o que tem de melhor, mas como
identificar o que nos é primordial!
Onde principia o eu? A resposta freudiana é que o ego faz um investimento em
si mesmo, desse modo identificando um eu. Shakespeare chama de "eu mesmo" a
noção
que temos de identidade; quando Jack Falstaff se torna Falstaff? Quando
Shakespeare se torna Shakespeare? A Comédia dos Erros já é obra de génio; no
entanto, quem
poderia prever Noite de Reis, baseando-se no advento da citada farsa, escrita no
início da carreira de Shakespeare? Sempre reconhecemos um génio por meio de um
processo
retroativo, mas como o génio reconhece a si mesmo?
A resposta, desde a Antiguidade, é que existe um deus dentro de nós, e esse
deus fala. Definições materialistas do conceito de génio são inviáveis, motivo
pelo
qual a noção se encontra tão desacreditada na presente era, em que predominam as
ideologias materialistas. A noção de génio, necessariamente, remete ao
transcendental
e ao extraordinário, por assumir plena consciência de tais fatores. Consciência
é o que define o génio: Shakespeare, assim como o Hamlet por ele criado, em
termos
de consciência, excede a todos nós, vai além do nível mais elevado de
consciência que somos capazes de alcançar sem o seu auxílio.
O gnosticismo, por definição, é um saber, e não um credo. Em Shakespeare, não
temos um sábio, nem um crente, mas uma consciência tão vasta que não tem, em
absoluto,
concorrente: seja em Cervantes ou Montaigne, em Freud ou Wittgenstein. Aqueles
que escolhem uma das religiões do mundo, ou por elas são escolhidos,
frequentemente,
postulam uma consciência cósmica à qual atribuem origens sobrenaturais. Mas a
consciência shakespeariana, que transforma matéria em imaginação, não precisa
violar
a natureza. A arte shakespeariana é a própria natureza, e a consciência de
Shakespeare mais parece produto do que produtora dessa arte.
Aos confins da mente, leva-nos o génio shakespeariano: uma consciência formada
por todas as consciências por ele imaginadas. Shakespeare permanecerá, ao que se
presume para sempre, o maior exemplo da utilidade da literatura para a vida, isto
é, contribuir com o processo de conscientização.
Embora a consciência de Shakespeare seja a mais vasta entre aquelas estudadas
neste livro, todas as demais mentes criativas exemplares aqui incluídas
contribuíram
com a expansão da consciência dos respectivos leitores e ouvintes. As questões
que devemos colocar a qualquer escritor são as seguintes: ele ou ela alarga a
nossa
consciência? E como isso se dá? Sugiro um teste simples, mas eficaz: fora o
aspecto do entretenimento, a minha conscientização foi aguçada? Expandiu-se a
minha consciência,
tornou-se mais esclarecida? Se não, deparei-me com talento, e não com génio.
Aquilo que há de melhor e de primordial em mim não terá sido tocado.
36
37
LUSTRO 1
William Shakespeare, Miguel de Cervantes, Michel de Montaigne, John Milton,
Leon Tolstoi
f:
*"
éter, ou coroa, na Cabala, simultaneamente, tudo e nada, inicia com este
primeiro Lustro de mestres, cada qual tendo dominado, para sempre, seu
respectivo género
literário. Shakespeare arrebatou todo o teatro moderno; Cervantes, o romance;
Montaigne, o ensaio; e Milton, o épico pós-clássico. Tolstoi, seja como
romancista
ou contista, aproxima-se do outro elemento arrebatado por Shakespeare: a própria
natureza.
Shakespeare, Cervantes e Montaigne foram contemporâneos, e Shakespeare, sempre
propenso a absorver influência, utiliza em sua obra tanto Montaigne quanto
Cervantes
(embora a peça Cardênio, adaptação de Cervantes feita por Shakespeare e John
Fletcher, não tenha sobrevivido). Milton, a contragosto, é profundamente
influenciado
por Shakespeare: Satanás reúne aspectos de lago, Macbeth e até mesmo de Hamlet.
Tolstoi, apesar de odiar e condenar Shakespeare, a quem considerava imoral,
apreciava
Falstaff, e Hadji Murad o romance excepcional escrito por Tolstoi já idoso, é
shakespeariano, em riqueza de personagens.
41
Gasto do espírito, em perda e vergonha,
- A lascívia em ação; e até a ação
Ela é falsa, é culpada e a medonha
Selvagem assassina, é traição;
Lenta em fruir-se, mas logo esquecida,
E caça além do siso, relutante,
Mas cansa além do siso, isca engolida
Que ao que fisgou enlouquecera antes.
Tanto no perseguir e em ter pegado,
Coisa tida e havida irrefreável.
Prazer provado e logo reprovado,
"
Promessa anterior - já sonho instável.
O mundo o sabe - e não foge ao eterno
Céu que os homens dirige a este inferno.1
- Soneto 129
Shakespeare, que ao menos alterou o nosso modo de representar a natureza
humana, se não é que alterou a própria natureza humana, não retrata a si mesmo
em nenhuma
de suas peças. Se ele revela, nos 154 sonetos que compôs, o próprio interior, é
discutível, mas seu génio é neles manifestado quase que infalivelmente.
Publicados
em 1609, os Sonetos podem ter sido escritos já em 1593, mas mesmo que sejam, de
alguma maneira, autobiográficos, distanciam-se, propositadamente, da autorevelação.
O mais incisivo de todos, o Soneto 129, sustém-se em um tom extraordinário,
denotando uma intensidade controlada, ao mesmo tempo em que, com toda a cautela,
poupa
os personagens integrantes dos Sonetos: o belo jovem, a Dama Morena, o poeta
rival e, de modo crucial, o "eu" que entoa quase todos os demais sonetos do
ciclo. Vontade,
desejo e até mesmo repulsa são aqui tornados impessoais, mas a energia estranha
desses 14 versos expressa, com terrível eloquência, um julgamento negativo sobre
o elemento indiscriminado inerente ao impulso sexual masculino, cujo clímax orgiástico é "um
desperdício de vergonha". A "dissipação" sexual é mero "desperdício de espírito"
no "inferno"
qualquer vagina, como conclui o poema.
Shakespeare, criador de Rosalinda, Falstaff, Hamlet, lago, Lear, Macbeth,
Cleópatra _ figuras a quem somos capazes de conhecer melhor do que a nós
próprios -,
recusa-se a criar-se a si mesmo nos Sonetos. Apresenta-nos uma gama quase
infinita de especulações, mas esquiva-se até da sua própria (suposta) humilhação
erótica
e do próprio sofrimento. Talvez a alienação a que o poeta se submete seja uma
indicação que ele nos dá, a fim de suportarmos o intenso sofrimento estético que
nos
será causado pelas grandes tragédias.
Willíam Shakespeare: Sonetos. Tradução e notas de Jorge Wanderley. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1991, p. 289. [N. do T.]
42
43
WILLIAM SHAKESPEARE (1564-1616)
O génio de Shakespeare constitui, ao mesmo tempo, o desespero e o êxtase do
crítico. É duvidoso que, no leito de morte, Shakespeare, com apenas 52 anos,
pudesse
se consolar por ter criado Hamlet, Falstaff, Lear, lago, Cleópatra, Rosalinda e
Macbeth: homens e mulheres cuja realidade, supostamente ficcional, transcende a
nossa.
Se eu pudesse entrevistar algum autor falecido, escolheria Shakespeare, e não
perderia um segundo sequer, pedindo-lhe que revelasse a identidade da Dama
Morena,
ou que precisasse os elemento* homoeróticos do relacionamento com Southampton
(ou qualquer outro indivíduo). Ingenuamente, deixaria escapar: foi para ti um
alento
ter criado mulheres e homens mais reais do que homens e mulheres de carne e
osso?
A linguagem de Shakespeare é fundamental à arte por ele praticada, e é uma
linguagem exuberante. O poeta demonstrava imensa propensão a cunhar novos
termos, e
sempre me estarrece o fato de ele ter empregado mais do que 21 mil palavras
diferentes. Dentro desse léxico, ele inventou, aproximadamente, uma em cada 12
palavras:
cerca de 1.800 neologismos, muitos dos quais de uso ainda corrente. Racine,
extraordinário praticante de uma arte antitética à de Shakespeare, empregou dois
mil
vocábulos, pouco mais do que o número de termos criados por Shakespeare. Embora,
para a crítica retórica, analisar a grande celebração da linguagem realizada por
Shakespeare configure uma tarefa tão produtiva quanto árdua, a diferença entre
Shakespeare e um punhado de outros poetas de língua inglesa, cujos recursos
verbais
são, praticamente, infindáveis, é questão de grau, e não de natureza. O
verdadeiro diferencial shakespeariano, a singularidade de seu génio, reside em
outro aspecto:
em sua universalidade, na convincente ilusão (será ilusão?) de que ele povoou um
mundo, extraordinariamente semelhante ao nosso, de homens, mulheres e crianças
dotadas
de uma naturalidade sobrenatural. Cervantes rivaliza com Shakespeare na criação
de duas personalidades gigantescas: Dom Quixote e Sancho Pança, mas Shakespeare
produziu
personalidades às centenas. Bernardino, em Medida por Medida, conta com apenas
cinco falas em toda a peça, somando não mais do que sete sentenças, e, no
entanto,
temos a impressão de conhecê-lo inteiramente.
Terá algum outro dramaturgo se destacado, igualmente, na comédia e na
tragédia? Não temos comédias de Sófocles, ou tragédias de Aristófanes. Ben
Jonson aventurou-se
em ambos os géneros, mas somos-lhe mais gratos pelas comédias, Volpone e O
Alquimista, e concordamos com seus contemporâneos: Sejanus quase não é
encenável. Não
esperamos comédias de Racine, ou tragédias de Molière. Ibsen recorre a uma
forma mesclada: Peer Gynt não é bem uma comédia, e Hedda Gabler difere de
tragédia. George Bernard Shaw, decerto, deveria ter ficado restrito à comédia:
Pigmalião
ainda viceja, mas Santa Joana é um fiasco. Apenas Shakespeare é capaz de
escrever uma peça como Noite de Reis e outra como Rei Lear. Por quê?
Ao final do Banquete de Platão, os participantes retornam às suas casas, ou
adormecem, embriagados, exceto o trágico Agáton, Aristófanes e Sócrates, capazes
de
beber mais do que toda Atenas. Os três "sobreviventes" passam uma grande tigela
de vinho, de mão em mão, e seguem bebendo, enquanto Sócrates defende a tese de
que
competia a um mesmo homem escrever comédias e tragédias. Vencidos pelos
argumentos do sábio e pelo vinho, Aristófanes e Agáton adormecem, um em seguida
ao outro.
Depois de fazê-los dormir, Sócrates retira-se, ao alvorecer.
Gracejos à parte, o próprio Platão parece estar participando do debate.
Podemos especular a sua reação a Shakespeare, cuja arte, de grande abrangência,
levaria
o dramaturgo a ser, imediatamente, expulso da República platónica. De vez que
somente Shakespeare responde ao desafio de Sócrates, vale a pena conjecturar
como e
por que o autor de Como Gostais pôde escrever Macbeth. Não há qualquer traço de
família entre Sir John Falstaff e lago, nenhuma ligação aparente entre Shylock e
Hamlet. Nem mesmo Feste, palhaço supremo, nem o Bobo, este em Rei Lear, têm
qualquer elemento em comum, exceto a profissão.
Shakespeare não era um grande dramaturgo trágico, até escrever Hamlet, na
virada do século XVII. Tal feito ensejou, em sequência, Otelo, Rei Lear,
Macbeth, António
e Cleópatra e Coriolano. Entre as primeiras tragédias, Tito Andrônico é, ao
mesmo tempo, caricatura e farsa sangrenta, com efeito, uma paródia. Romeu e
Julieta é
um esplêndido poema lírico, mas é tragédia de circunstância; nada no próprio
caráter de Julieta conduz à catástrofe. Samuel Johnson considerava Júlio César
uma peça
fria, opinião com a qual concordo; a bem articulada tragédia de Bruto não nos
comove, por se tratar de um homem vazio, preso ao solipsismo de sua própria
nobreza.
Shakespeare teve de aprender a escrever tragédias, e só dominou o género na
quarta tentativa. Não era um trágico inato, e tragédia não era para ele o género
inescapável;
foi preciso pagar caro, intimamente, pela descida ao abismo de lago, Edmundo,
Macbeth.
Todavia, em comédia, Shakespeare foi brilhante, desde o início da carreira. A
Comédic dos Erros é subestimada pela crítica. A peça não é apenas belamente
estruturada;
a caracterização de Antífolo de Siracusa possui grande ressonância psicológica,
além de contorno preciso. Costumamos ler e encenar A Megera Domada de maneira
equivocada,
como uma estripulia misógina: a peça é exatamente o contrário, ao relatar, corr
sutileza, como se faz um verdadeiro casamento, a fim de se defender da suposta
sapiência
do mundo. Trabalhos de Amor Perdidos é quase uma obra-prima desconhecida, quí
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45
esconde a sua riqueza cómica atrás do esplendor barroco de uma retórica elevada.
Sem Shylock, O Mercador de Veneza seria uma das comédias românticas mais
inventivas;
com Shylock, é um grande enigma. Os triunfos cómicos de Shakespeare, que nem
mesmo Molière conseguiu igualar, são Sonho de Uma Noite de Verão, Como Gostais,
Noite
de Reis e, o que costumo chamar, as peças de Falstaff, isto é, as duas partes de
Henrique IV. Na segunda parte, FalstaíF se torna sombrio, ao final,
marginalizado,
no limbo habitado por Shylock e pelo pobre Malvolio. Contudo, Falstaff é o que
William Hazlitt definiu: o ápice da realização cómica, em toda a literatura,
como
convém a uma figura que se equipara a Hamlet e a Rosalinda, em espirituosidade,
inteligência e agudeza psicológica.
Seguindo o próprio impulso, Shakespeare escreveu comédias, até que sombras
envolveram Tróilo e Créssida, Bem Está o Que Bem Acaba e Medida por Medida,
scherzo
que destrói o género. Contrafeito, Shakespeare compôs tragédias, até que Timão
de Atenas, de modo similar, encerrou a prática do género para o dramaturgo.
Quanto
à fase final, equivocamo-nos, novamente, ao adotar a nomenclatura "romance",
empregada por Edward Dowden, crítico irlandês que viveu no final do século XIX.
Os trechos
shakes-pearianos em Péricles e, já no final da carreira, Os Dois Nobres Parentes
são tragicomé-dias, assim como Cimbeline, O Conto do Inverno e A Tempestade.
Estas
últimas são comédias diferentes, mas, sem dúvida, são comédias.
Pelo que se supõe, um misto de interesses comerciais e pessoais guiavam o
movimento de Shakespeare entre uma peça e outra, embora, provavelmente, jamais
venhamos
a ter conhecimento de suas motivações pessoais. Ocorre que estamos falando da
consciência mais aberta e do intelecto mais penetrante de toda a literatura,
ultrapassando
até mesmo Dante. Embora Shakespeare, ao contrário de Ben Jonson, sempre
misturasse géneros dramáticos, infringindo todas as regras, dificilmente, não
teria ciência
do alcance infinito da sua própria força. O teatralismo à moda antiga e o
tumulto causado por encenadores e académicos entusiastas de um "Shakespeare
francês" (como
se fosse escrito por Foucault) têm tornado obscura a complexidade literária das
principais peças shakespearianas.
Mesmo que não existissem as peças publicadas in-quarto - sejam tais
publicações autorizadas ou pirateadas -, se lermos com atenção, constataremos
que Shakespeare
contava com a leitura de seus textos dramáticos. Hoje em dia, afogamo-nos na
mídia visual; o público à época de Shakespeare, habituado a frequentar a igreja,
era
mais capacitado a absorver complexidades através da audição. No entanto, mesmo
os espectadores mais perspicazes teriam dificuldade de apreender a fala crucial
do
Ator Rei, na "peça-dentro-da-peça" (Ato 3, cena 2, linhas 183-209), composta de
26 versos de grande densidade e assim concluída:
Cada fato é à ideia tão avesso,
Que os planos ficam sempre insatisfeitos;
As ideias são nossas, não os feitos.2
Refletir sobre o génio é, necessariamente, refletir sobre a originalidade
autêntica e i primazia da criatividade. Em relação a Homero e à Bíblia,
Shakespeare surgiu
posteriormente, mas tanto Homero, na tradução de Chapman, quanto a Bíblia de
Genebra não representaram mais do que fontes secundárias para Shakespeare, ambas
menos
importantes, em termos práticos, do que Ovídio. Exceto durante os primeiros anos
da carrein de dramaturgo, em que a figura de Christopher Marlowe o incomodava um
pouco, Shakespeare aceitou de bom grado a influência de predecessores. A criação
de FalstaíF t Hamlet livrou-o de quaisquer resquícios da influência de Marlowe,
a não ser por certo; aspectos que Shakespeare, ironicamente, transformaria em
instrumentos de paródia. Com a prosa de Falstaff, assim como com a poesia e a
prosa
de Hamlet, Shakespeare celebra o seu próprio génio.
Além dos personagens shakespearianos, há outros na literatura mundial que
parecen sempre ter existido, desde muito antes do momento em que foram criados
pelos
respectivos autores. No entanto, a peculiaridade do triunfo de Shakespeare é que
as mulhere; e os homens por ele imaginados (e foram muitos) fazem-nos supor que
Shakespeare fo criado por eles, ou, pelo menos, que é um deles, um de seus
companheiros. Willian Hazlitt, referindo-se a Falstaff, afirmou: "O próprio
personagem
é um ator, quase come se estivesse no palco." Aprecio, imensamente, quase tudo
que FalstaíF diz, mas, principalmente, a declaração que faz a Hal:
Fazes sempre citações execráveis; és capaz de corromper um santo. Tu me tens
prejudicado muitíssimo, Hal; Deus te perdoe. Antes de conhecer-te, Hal, ignorava
tudo;
e agora, para dizer toda a verdade, valho pouco mais que um pecador.3
Haverá, em toda a literatura, personagem que tanto se divirta com aquilo que
diz quanto FalstaíF nesse momento? Eis o ponto-chave da observação de Hazlitt: o
própric
FalstaíF é um ator, além de ser um papel. Falstaff sempre atua no papel de Sir
Johr FalstaíF, assim como sua alma gémea shakespeariana, Cleópatra, jamais deixa
de
representar o papel de sábia serpente do Nilo. Atónito, sempre procuro me
lembrar qu£ FalstaíF e Cleópatra são papéis destinados a atores, mas o lembrete
é sempre
ineficaz.
2
Hamlet. Tradução de Anna Amélia Carneiro de Mendonça. Rio de Janeiro:
Editora Agir, 1968. p. 13
[N. do T.]
3
Henrique IV. Tradução de Carlos Alberto Nunes. São Paulo: Edições
Melhoramentos, s.d. [N. do T.J
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47
Não é para menos. A realidade de um personagem literário ou dramático é
predicado necessário, a fim de que a leitora possa resguardar o sentido da sua
própria
realidade. Não existe a morte do autor, contrariamente ao que afirma o ilustre
Foucault. Aos 71 anos de idade, um indivíduo, com toda a razão, torna-se
impaciente
diante dos que pretendem reduzir escritores à energia social, leitores a
compiladores de fonemas, e Falstaff, Hamlet e Cleópatra a meros papéis
destinados a atores
e atrizes. Nossa morte é real o suficiente; será a nossa vida menos real? Tudo o
que Hamlet, Falstaff e Cleópatra requerem de nós é que não os entediemos.
Diante de que altar haveremos de nos prostrar? A quem mais adorar? Sancho
Pança ou Dom Quixote talvez escolhessem Cervantes, mas esses dois personagens
sublimes
estão sozinhos. Com que frequência é possível desempenhar um papel que não é de
Shakespeare? Quero dizer: que já não é de Shakespeare? Emerson considerava o
criador
de Falstaff o rei da folia junto à humanidade. Mas até Emerson assentia;
Falstaff rivaliza o Sócrates de Montaigne, na posição de sábio da consciência
humana. A
despeito do elogio condicional de Johnson, e do entusiasmo de Hazlitt,
Swinburne, A. C. Bradley e Harold Goddard, Falstaff ainda me parece - levando-se
em conta
talento e mérito - o personagem mais subestimado em toda a Literatura Ocidental.
Portanto, detenho-me aqui no génio de Sir John Falstaff.
O perene bom humor do personagem, embora demonstrando um encanto sublime, é
mais uma questão de carisma do que genialidade, em qualquer sentido que tomemos
a palavra
"génio". Embora Falstaff, acertadamente, congratule-se consigo mesmo pela sua
própria "espirituosidade" - termo que à época abrangia um campo semântico bem
maior
do que hoje -, Sir John não é mais espirituoso do que Hamlet, Rosalinda e
Cleópatra, ou, na acepção negativa do conceito, lago e Edmundo. Falstaff, como
sempre,
acerta ao observar que não é apenas espirituoso, mas que suscita a
espirituosidade de terceiros. Falstaff é um mestre, e a disciplina por ele
ministrada é a espirituosidade,
mesmo que à custa de si mesmo. A companhia de palhaços que o cerca é constituída
de alunos relapsos, meros imitadores do mestre. Mas ele tem um aluno promissor:
brilhante, racional, empedernido, hipócrita, o maquiavélico Príncipe Hal pupilo dotado de autêntico génio. Antes do início da ação na Primeira Parte de
Henrique
TV, os estudos de Hal já foram completados, e o escandaloso professor Falstaffirreprimível e onipre-sente - deve, na avaliação do Príncipe, ser liquidado,
talvez
com o máximo de parcialidade, na forca. Shakespeare, no entanto, não toleraria a
ideia de entregar Falstaff ao carrasco. Na verdade, não foi capaz de mostrar a
morte
de Falstaff (ou Macbeth!) no palco. Mas Hal deseja ardentemente, e com efeito
precisa retirar Falstaff de cena, pois, enquanto Falstaff detém a nossa atenção,
Hal
não consegue ser a estrela. Ao longo de toda a ação na Primeira Parte de
Henrique Iv, Hal esforça-se para integrar a peça a um grande
épico em torno dos reis de nome Henrique, destruindo Hotspur e, assim,
usurpando-lhe a "honra" conquistada, e subjugando Falstaff, a qualquer custo.
Hal, lutador
imbatível, pergunta-se: Quem pode subjugar Falstaff? Shakespeare e o próprio Hal
demonstram conhecer a resposta a essa pergunta quando, na Segunda Parte de
Henrique
IV, Hal compartilha (não será essa a palavra adequada!) com Falstaff não mais do
que duas cenas. O Príncipe espiona Falstaff, de maneira, ao mesmo tempo, tocante
e espalhafatosa, cortejar a prostituta Doll Tearsheet, e, ao final, fazendo uso
de uma brutalidade moralista, rejeita e humilha o velho companheiro.
Shakespeare,
no epílogo, promete levar Falstaff à França, em Henrique V, mas, sabiamente,
muda de ideia. Mesmo rejeitado, Falstaff roubaria a cena de Hal, na peça em que
este
constitui o centro. Sir John transformaria a Batalha de Agincourt em uma reprise
da Batalha de Shrewsbury, e já não existiria mais a peça. Imagine Henique V
conclamando
- "Nós, poucos; nós, os poucos felizardos" - a um destacamento que incluísse
Falstaff. É inconcebível. Agincourt não era o tipo de batalha do qual se
participasse
levando à cinta uma garrafa de xerez. E nem o autor nem o público tolerariam ver
Sir John enforcado, como o fora o pobre Bardolfo, a fim de animar os demais.
Shakespeare, embora incapaz de permitir a Falstaff uma morte em cena, concede
a melhor fala de Henrique Va. Mistress Quickly, que canta uma esplêndida ária,
em
cock-ney, relatando o falecimento de 5/VJohn Falstaff:
Não, ele não está no Inferno, não. Está perto de Artur; se é que algum homem se
foi para perto de Artur. Teve um belo fim; foi-se como um bebezinho batizado.
Foi-se
entre doze e uma, na hora que a maré virou - quando o vi tatear o lençol,
brincar com flores e sorrir para a ponta do próprio dedo, percebi que não tinha
mais jeito.
O nariz estava fino como pena de escrever, e esverdeado. "Ora, Sir John?",
disse-lhe eu. "Vamos, homem! Não vais te animar?" E ele gritou "Deus, Deus,
Deus", três
ou quatro vezes. Então, para confortá-lo, disse-lhe que não ficasse pensando em
Deus, que esperava ainda não ser chegada a hora de se preocupar com tais
pensamentos.
E ele me pediu que colocasse mais panos sobre seus pés. Enfiei a mão embaixo das
cobertas e toquei-lhe os pés; estavam frios como pedra. Então, toquei-lhe até os
joelhos, e mais acima, e mais.acima, e tudo estava frio como pedra.
E assim, a Sir John é conferida uma canção fúnebre comparável à de Hamlet,
enquanto Shakespeare murmura, pesaroso, referindo-se às suas maiores criações:
'Deixai-as
em paz."
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Contudo, não pretendo deixar em paz o génio da educação que é Falstaff, o
Sócrates de Eastcheap, que também morre em consequência de veneno. Henrique V
destrói
o que há de mortal em SzVJohn, com o mesmo radicalismo com que aniquila o
exuberante Hotspur. Mas Sócrates tinha o seu demónio, ou génio, tanto quanto
Falstaff,
e o génio é um deus que está além do alcance da vingança de Hal. Wyndham Lewis e
William Empson insinuaram a existência de um antigo relacionamento homoerótico
entre
Hal e Falstaff, mas não encontro qualquer insinuação dessa natureza no texto
shakespeariano. Alcibíades diz que tentou seduzir Sócrates, mas não obteve
sucesso.
É improvável que Hal pretendesse realizar peripécia tão grotesca, durante o
longo período que antecede as aventuras encenadas nas peças em que figura Sir
John Falstaff.
Hal e Hotspur apresentam nuanças mais convincentes de homoerotismo, em seu
relacionamento antagónico, mas o estilo de docência de Falstaff é muito
diferente do de
Sócrates. Sócrates professa sábia ignorância, mas SzVJohn exibe o próprio
conhecimento, e sua didática é a do excesso, do transbordamento, e não de
ascesis. Os predecessores
de Falstaff na obra shakespeariana são Falconbridge, o Bastardo, em King John, e
o tão subestimado Bottom, de Sonho de uma Noite de Verão. Mais do que esses
precursores,
Falstaff desafia todo revés, e triunfa até morrer de amor: amor de mestre, eu
salientaria.
Mas já ouvi céticos questionarem esse amor. Pois bem, o que vem a ser amor de
mestre? No mundo académico de língua inglesa, dirigido por puritanos tão
atentos,
temos hoje em dia grupos de tricô semelhantes ao de Madame Defarges, esperando,
com sadismo, o espetáculo da guilhotina, punição cabível em caso de "assédio
sexual",
essa pobre paródia do eros socrático. Conquanto aos 71 anos de idade e,
portanto, um indivíduo para quem virtude e exaustão tornaram-se sinónimos,
continuo a acreditar
que um eros ainda mais dualista do que o de Sócrates seja necessário, com
efeito, essencial ao magistério bem-sucedido. Emerson, com satisfação, fez
lembrar aos
norte-ameri-canos (e a todos os demais povos) que somente o transcendental, o
extraordinário seria o bastante. A respeito do Gólgota, Emerson observou: "Foi
uma
Grande Derrota - nós exigimos a Vitória, a vitória dos sentidos, tanto quanto da
alma." O atrevimento emer-soniano é, absolutamente, falstaffiano - Sir John,
também,
exige a vitória, em tudo, exceto no campo de batalha, para onde esse zombador da
honra é arrastado, mesmo a contragosto. Por quê? A motivação do Príncipe Hal é
suficientemente
clara: qualquer morte honrosa haveria de redimir o mestre que se tornara
inconveniente. Shakespeare responde com Falstaff: "Sir Walter Blunt! Que honra,
que nada!
Não me agrada o sorriso honroso que vejo em Sir Walter. Dêem-me vida!"
Falstaff não seria integrado ao corpo docente de West Point, nem de Sandhurst.
Seria contratado pela Universidade de Yale? Mesmo que, por talento ou malícia,
fosse
efetivado em Yale, teria de constituir, sozinho, o seu próprio departamento, sem
colegas, embora atraísse muitos alunos. As instituições pedem aos professores que
sejam "bons cidadãos académicos", o que significa, em época de eleição, sair
cedo para
votar, e fazê-lo sempre, bem como seguir a moda, seja lá qual for. Como eleitor,
Falstaff é um tanto tinhoso (uma das melhores imagens norte-americanas), mas, em
sua taverna-sala de aula, ele ensina a qualquer pessoa qualificada que o
significado tem início a partir da auto-escuta, da vitalidade da mente, e que o
sentido
nasce para que a comédia floresça. Falstaff ou Hamlet, qual dos dois seria o
centro da obra de Shakespeare? Orson Welles, zombando de si mesmo, imaginava que
Hamlet
teria se mudado para a Inglaterra, ficado velho e gordo e se tornado Sir John
Falstaff Bernard Shaw, que odiava Falstaff e Cleópatra, despachou Falstaff para
o Egito,
submeteu-o a uma dieta rígida, a uma cirurgia e alteração de sexo,
transformando-o, de Sir John, o sábio de Eastcheap, em Serpente do Nilo.
Falstaff, Hamlet, Cleópatra:
basta acrescentar Rosalinda, lago, Macbeth e o quarteto Lear, Edmundo, Edgar e o
Bobo, e tenho um grupo de personagens sobre os quais poderia meditar para todo o
sempre. Não pretendo com isso desistir do Bastardo Falconbridge, de Bottom,
Julieta, Feste, Viola, Leontes, Imogênia, Próspero e outras duas dúzias mais;
porém,
meditar sobre Shylock é, para mim, algo por demais doloroso, assim como nos
casos de Otelo, Desdêmona, António, Coriolano, Timão e alguns outros.
Onde encontrar Shakespeare na obra de Shakespeare? Todos querem encontrá-lo
nos Sonetos, mas ele é astuto demais, e só o próprio diabo seria capaz de
encontrá-lo
naqueles versos. Atuou no papel de Fantasma, em Hamlet, e do Velho Adão, o
criado em Como Gostais. É possível que tenha feito o papel de António,
respectivamente,
em O Mercador de Veneza e Noite de Reis, e, ao que tudo indica, representou uma
quantidade de reis e nobres idosos - Júlio César, Henrique IV, o Conde de
Gloucester
-, mas tudo não passa, admito, de conjectura. Na opinião de James Joyce,
Shakespeare ficaria muito à vontade no papel do Fantasma do pai de Hamlet, e
Joyce pode,
de fato, estar certo. Poldy Bloom, porta-voz de Joyce, é assombrado por dois
fantasmas: o do pai e o do filho. O pai e o filho único de Shakespeare morreram
antes
de a versão final de Hamlet ser encenada. Hamlet é um homem assombrado, até
conseguir se livrar do fantasma do pai, durante a viagem marítima, e voltar,
extraordinariamente
diferente, a fim de passar pela catástrofe do quinto ato.
O desenvolvimento de Hamlet, de aluno assustado a mestre de teatralismo, não e
muito diverso do shakespeariano, mas isso me parece uma questão menor. De maior
peso para a arte de Shakespeare foi a influência de Falstaff em Shakespeare, que
ensejou Hamlet. Ainda mais importante foi a influência de Hamlet em Shakespeare,
que ensejou tudo.
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Wilhelm Meister, de Goethe, tenta desenvolver a própria persona dirigindo-se a
si mesmo no papel de Príncipe da Dinamarca, em uma montagem de Hamlet, peça que
ele acredita ser, em parte, um romance. Com bastante ironia, Goethe centra esse
suposto aspecto romanesco, inteiramente, no Fantasma. Um estranho, encapuzado e
misterioso,
trajando capa branca, veste a armadura e atua como Fantasma, contracenando com o
Hamlet desempenhado por Wilhelm. Wilhelm, convencido de que se trata do próprio
pai já falecido, supera-se como ator, pois, em última instância, atua no papel
de si mesmo.
Talvez Goethe, no que diz respeito a Shakespeare, finalmente, atue no papel de
si mesmo, no estranho ensaio intitulado Schãkespear und kein Endel, de 1815, em
que Shakespeare parece, se tornar o fantasma do pai de Goethe. O verdadeiro pai,
Johann Caspar Goethe, morto em 1782, amealhara fortuna e adquirira um brasão de
armas, mas não conseguira ascender socialmente. Caspar Goethe passou então a se
concentrar no filho, cujo sucesso se tornou para o pai uma obsessão. É
impossível
superar o sucesso obtido em vida pelo sábio e poeta Goethe, e, no entanto,
Goethe continuou a ser assombrado por Shakespeare e, especialmente, por Hamlet.
Goethe
não tinha como saber se o próprio Shakespeare fora o primeiro a fazer o papel do
Fantasma do pai de Hamlet, mas teria apreciado a ironia decorrente do fato de
Shakespeare
escalar a si mesmo para o papel. Goethe tampouco sabia que John Shakespeare, pai
de William, havia perdido a condição de cavalheiro dotado de brasão de armas, o
que lhe foi mais tarde resgatado por William.
Goethe teve a imensa vantagem de carecer de precursores marcantes em alemão. A
obra de Shakespeare, embora inserida na tradição inglesa, chauceriana, prestase,
esplendidamente, à tradução à língua alemã, fato que incomodava Goethe mais do
que ele estava disposto a admitir. A Segunda Parte de Fausto, magnificamente
ultrajante,
é, em diversos trechos, paródia a Shakespeare, especialmente a Hamlet. Incapaz
de reinventar o humano, como o fizera Shakespeare, Goethe viu-se compelido a
ironizar
todas as representações do humano, inclusive em seu próprio Fausto, um mortovivo quando lido em comparação a Hamlet. Isso pouco importava a Goethe, pois sua
personalidade
transcendia qualquer inventividade de que ele fosse capaz. Shakespeare escondese no interior e atrás da própria obra; até mesmo a Segunda Parte de Fausto tem
dificuldade
em alcançar Goethe.
Devemos a Goethe a interessante ideia - hoje em dia tão fora de moda no mundo
anglófono - de que se lucra mais lendo Shakespeare do que assistindo a
encenações
de suas obras. Goethe estava certo, e sua suposição de que as grandes peças
shakespearianas transcendem a questão do género está, fundamentalmente, correta.
As duas
partes de Henrique IV, lidas em sequência, constituem, ao mesmo tempo, grande
teatro e romance extraordinário, ancestrais dos Irmãos Karamazov, assim como Hamlet é
precursora de Crime e Castigo. O que pode um espectador fazer, diante das
alusões obsessivas
de Falstaff à parábola de Jesus sobre Lázaro e o glutão? Shakespeare desenvolve
o tema na cena da rejeição, que conclui a Segunda Parte de Henrique IV, e leva a
questão à apoteose, no relato feito por Mistress Quickly sobre a morte de Sr
John Falstaff, em Henrique V. E os aspectos romanescos de Hamlet vão muito além
das
exigências perturbadoras feitas pelo Fantasma. A invenção do humano, por
Shakespeare, foi elemento tão importante na invenção do romance quanto a
transformação que
Cervantes fez do picaresco, em análise de personagem, que configura o
relacionamento entre Quixote e Sancho.
Onde começa o nosso eu? Goethe, autoridade em questões de desenvolvimento, não
se detinha a refletir sobre a própria origem. Shakespeare, psicólogo
incomparável,
inventou para nós uma nova origem, na ideia mais iluminada até hoje descoberta
ou inventada por um poeta: o auto-reconhecimento gerado pela auto-escuta. Quando
se
deu o nosso princípio? Terá o Fantasma, em Hamlet, concebido Shakespeare e
Goethe, e todos os grandes escritores desde então, ou terá o crime cometido por
Cláudio,
que é o crime de Caim, gerado todos nós, especialmente, nesses dois últimos
séculos? Seríamos capazes de escutar a nós mesmos e, como consequência de certos
impactos,
passar por mudanças, se não nos confrontássemos com o fantasma do nosso pai,
prefigurado no Fantasma do Rei Hamlet?
Tenho sido mal compreendido quanto a essa noção; portanto, desejo aqui
desenvolvê-la. John Stuart Mill observou que a poesia é ouvida por acaso, em vez
de ser,
simplesmente, ouvida. Não somos o Príncipe Hamlet, mas, às vezes, ouvimos a nós
mesmos, por acaso, e nos assustamos. Despertamos para novos níveis de
autoconsciência
ou apenas percebemos que não somos o que pensávamos ser? Diante do espírito
armado do pai, Hamlet fica tão surpreso quanto no momento em que escuta, por
acaso, o
próprio espírito?
Oh Deus, eu poderia viver preso numa casca de noz e me sentir um rei de espaços
infinitos, se não fossem esses maus sonhos que tenho.
Eis a origem de Ham, na peça de Samuel Beckett intitulada Fim de Jogo, e a
origem do próprio Beckett, mediado por Joyce e Proust, e, em último caso, como
todos
nós, por Hamlet, mestre da escuta por acaso. Kierkegaard, que desejava aprender
a trabalhar a ironia a partir da dificuldade em se tornar cristão, na verdade,
absorveu
a noção de
Tradução de Carneiro de Mendonça, op. cit., p. 92. [N. do T.]
52
53
ironia junto aos métodos de Hamlet, cujas palavras raramente expressavam o
sentido mais óbvio. Proust, outro mestre da ironia, escreveu um ensaio
extraordinário
a respeito da leitura como processo de auto-escuta, no prefácio à sua própria
tradução de Sesame and Lilies, de John Ruskin. Ler, diz Proust, não é conversar
com
terceiros. O diferencial da leitura consiste
em cada um de nós receber a comunicação de um outro pensamento, mas enquanto
permanecemos sozinhos, enquanto continuamos a desfrutar a força intelectual de
que dispomos
na solidão, força essa que a conversa dissipa,
imediatamente.
*
A força intelectual de Hamlet jamais se dissipa, pois o Príncipe fala a todos,
mas não ouve ninguém, exceto, talvez, o Fantasma. Tenho minhas dúvidas se
qualquer
personagem shakespeariano ouve alguém. Otelo é destruído pela genialidade de
lago, em termos dé sugestão e insinuação; porém, se ouvisse lago com mais
atenção, seria
menos suscetível ao engano. Macbeth, após ouvir, brevemente, a esposa, fica a
tal ponto imerso em auto-escuta que mal percebe a perda da mulher, primeiro, em
consequência
da loucura, e, em seguida, da morte. De maneira um tanto ou quanto hilariante,
António e Cleópatra não ouvem ninguém, exceto eles mesmos. O pobre António
exclama:
"Morrendo, Egito, estou morrendo. Dá-me / Vinho, e me deixa falar um pouco." E
Cleópatra responde: "Não, deixa eu falar!".5 Assim como Proust mais tarde,
Shakespeare
não tinha muitas ilusões, em se tratando de amizade e amor.
Em Shakespeare, auto-escuta é o caminho real da mudança. Hamlet, notoriamente,
sofre alterações cada vez que ouve as próprias palavras, motivo pelo qual não se
pode falar em trecho principal nesse texto de quatro mil linhas, das quais 1.500
constituem o papel do Príncipe. Recriações de si mesmo realizadas por Hamlet
através
de um processo de auto-escuta permeiam a peça, mas recorro à primeira cena do
quinto ato, linhas 66-216, a cena extraordinária de Hamlet no cemitério, que
culmina
com o príncipe contemplando o crânio de Yorick. É possível afirmar que a peça A Tragédia de Hamlet, Príncipe da Dinamarca - transcorre entre as relíquias
medonhas
dos dois pais de Hamlet, isto é, o Fantasma do Rei Hamlet e o crânio do bobo da
corte, Yorick, substituto da figura paterna para o jovem Príncipe, a quem o
verdadeiro
pai não prestava muita atenção:
Carregou-me nas suas costas mais de mil vezes; e agora como é horrível imaginar
essas coisas! Aperta-me a garganta ao pensar nisso. Aqui ficavam os lábios que
eu
beijei nem sei quantas vezes.
O Fantasma jamais diz ter amado o filho, sendo improvável que o Rei Hamlet
levara o Príncipe às costas uma vez sequer, muito menos mil. É duvidoso que o
Príncipe
tenha beijado Ofélia e Gertrudes "não sei quantas vezes". Se, em criança, Hamlet
foi amado, e amou, o objeto desse sentimento teria sido Yorick. Não creio que,
quando
adulto, Hamlet ame quem quer que seja, a despeito de suas declarações, o que
torna ainda mais misterioso o motivo pelo qual nos juntamos à população
dinamarquesa,
em afeto a esse alienado tão carismático.
Goethe parodia a cena do cemitério, ao compor o relato da morte e sepultamento
de Fausto, mas o próprio Hamlet não deixa espaço para qualquer paródia
posterior:
Essa caveira já teve uma língua, já pôde cantar um dia; olha como esse idiota
a atira ao solo, qual fosse a queixada de Caim, que cometeu o primeiro
assassinato!7
E assim, o assassinato do Rei Hamlet, nas mãos de Cláudio, que faz lembrar o
ato praticado por Caim, desaparece nesse excesso paródico de exuberância
negativa.
O que significa dizer que Hamlet escuta a si mesmo, ao fazer essa alusão a Caim?
Haverá alguma diferença entre ouvir com atenção e ouvir por acaso as próprias
palavras?
Quando nos surpreendemos, ao ouvir nossas vozes em uma gravação, estamos ouvindo
com atenção ou por acaso? Os dicionários definem "overhear" como "ouvir por
acaso".
Ouvir a si mesmo por acaso é não perceber, a princípio, a própria fala. Essa
ausência de percepção é tão breve, que o processo de auto-escuta parece mesmo
constituir
algo metafórico, embora o momento de não-reconhecimento seja autêntico.
Shakespeare, a meu ver, inspirando-se em Chaucer, aproveita-se desse momento
para moldar
uma nova versão da vontade que tem o ser humano de modificar-se.
Tal processo teria uma dimensão suficiente para configurar a invenção (ou
reinvenção) do humano? No mais famoso de seus sete solilóquios, Hamlet ouve (por
acaso?)
a si mesmo contemplar a possibilidade de armar-se contra um mar de desventuras e
dar-lhes fim tentando evitá-las. Todos nós, que defendemos interesses
literários,
herdamos a noção equivocada de Hamlet, relativa ao poder da mente do poeta
diante de um mar, de um universo mortal. O que Shakespeare inventa, de modo
supremo, por
meio de
5 António e Cleópatra. Tradução e notas de José Roberto 0'Shea. S5o Paulo:
Mandarim, 1997, p. 297. [N. do T.]
54
6
7
55
Tradução de Carneiro de Mendonça, op. cit., p. 210. [N. do T.]
Tradução de Carneiro de Mendonça, op. cit., p. 203. [N. do T.]
Hamlet, é a afirmação interior de uma oposição àquilo que mais ameaça o sempre
dinâmico espírito do eu. O estudo que Hamlet faz de si mesmo é algo absoluto, e
reduz
o que está fora do eu a um mar de desventuras. Sempre refletindo sobre as
próprias palavras, como se fossem e não fossem ditas por ele mesmo, Hamlet
torna-se teólogo
da própria consciência, cujo perímetro é tão vasto que jamais pode ser
apreendido.
Será possível esbanjar toda a nossa inteligência na interpretação de Hamlet,
sem nos tornarmos, de certo modo, Hamlet? Se em uma mesma montagem atuava como
Fantasma
e Ator Rei, visto que era comum à época um ator desempenhar esses dois papéis,
Shakespeare confrontava Hamlet duas vezes: uma vez como pai, a outra como
estudante
de teatro. O pai e o filho único de Shakespeare (Hamnet) já haviam falecido,
quando a versão definitiva de Hamlet foi encenada, em 1600-1601. Hamlet morre
sem filho
e sem pai, e sucumbe na plenitude do próprio carisma, sem clamar por
ressurreição ou imortalidade poética, querendo apenas preservar a dignidade do
seu nome. Um
grande niilista, por exemplo, lago ou Svidrigailov, pouco se importaria com o
fato de o próprio nome ser manchado para sempre.
O Hamlet do quinto ato controla as nossas perspectivas: não sabemos mais do
que ele, e ele acredita que sabemos menos. Será que Shakespeare sabia mais do
que Hamlet?
No sentido hegeliano, Hamlet é o mais livre dos artistas de si mesmo, e seria
capaz de nos dizer muito mais sobre o que representa, se para tal houvesse
tempo. Na
minha interpretação, isso significa que Hamlet é o artista supremo da autoescuta acidental e, portanto, pode nos ensinar ao menos os princípios dessa arte
desconcertante.
Ouvir a si mesmo, ainda que por um instante, sem se dar conta, é abrir o
espírito às tempestades da mudança. Shakespeare conferiu esse tipo de abertura,
de modo
mais abrangente, a Hamlet e Falstaff, mas a característica é uma constante em
toda a obra madura do dramaturgo. Ilustro a questão, até onde posso fazê-lo, com
Edmundo,
agonizante, em Rei Lear, porque, no extremo, a mudança sofrida por esse
personagem, em termos dramáticos, parece-me ser a mais convincente em toda a
obra shakespeariana.
Iago de Edgar, afilhado de Lear. Iago exibe
uma satisfação um tanto traquinas, em sua bela perversidade, mas Edmundo está
acima disso. Os niilistas de Dostoiévski - Svidrigailov e Stavrogin - aprenderam
certas
lições com Edmundo, mas são incapazes de igualar-lhe a frieza sublime. Amante de
Goneril e Regan, monstros rivais das profundezas, e traidor do pai e do irmão,
Edmundo
supera-se ao ordenar a execução secreta de Lear e Cordélia. Remorso, compaixão,
afeto, nem mesmo a luxúria autêntica têm lugar na natureza de Edmundo. Estirado
no
chão, agonizando em consequência do ferimento mortal desferido por Edgar, ele se
torna cordato, ao saber que seu algoz é de estirpe tão nobre quanto a sua:
"Girou
a roda e completou o círculo, / Estou aqui."8 Um tanto comovido pelo relato de Edgar sobre a
morte do pai, Edmundo torna-se propenso à mudança, que ocorre de modo decisivo,
por
meio de uma auto-escuta surpreendente. Os corpos de Goneril e Regan são trazidos
ao palco, e Edmundo decifra sua própria situação:
Mas Edmundo foi amado: Por mim, uma envenena a outra, e mata-se Depois.9
Extremamente surpreso ao se ouvir dizendo "Mas Edmundo foi amado", o filho
bastardo de Gloucester só pode crer naquilo que ouve quando acrescenta o óbvio,
tão doloroso:
"Por mim, uma envenena a outra, e mata-se / Depois". Nesse momento, em que
Edmundo ouve as próprias palavras, sem se dar conta, e com pouca intenção de
fazê-lo,
a auto-escuta por acaso não é apenas uma metáfora. Não há momentos similares em
Homero ou na Bíblia, em Virgílio ou Dante. Temos aqui uma nova interioridade,
que
gera, em lugar de confrontar, mudança. Tardiamente, "oposto a mi'a maldade",10
Edmundo renega seus mandos assassinos e tenta salvar Cordélia e Lear. Para
Cordélia,
é tarde demais, e Lear, novamente louco, entra em cena trazendo nos braços o
corpo da filha. Shakespeare aperfeiçoa a auto-escuta por acaso, tornando-a um
mecanismo
que será crucial a Tchekhov e Stendhal, Dostoiévski e Proust, e muitos outros
escritores. Se inventar o sempre crescente espírito interior, inclusive a
capacidade
de auto-escuta por acaso, não constitui a invenção do humano, da maneira como
temos entendido o ser humano, então, talvez estejamos por demais esmagados pela
História
Social e pelas ideologias, para reconhecermos nossa dívida com William
Shakespeare.
8
Rei Lear. Tradução e notas de Ma de Oliveira Gomes. Rio dfrjailttio:
EdUFRJ, 2000, p. 315. [N. do T..
9
Tradução de Oliveira Gomes, op. cit" p. 321. [N. do T.]
10
Ibid.
56
57
MIGUEL DE CERVANTES
"Mas de tudo o que vi enquanto estive lá, o mais doloroso foi o que aconteceu
durante uma conversa com Montesinos, quando uma das duas companheiras
desafortunadas
de Dulcinéa aproximou-se de mim sem que eu percebesse, e, com lágrimas nos
olhos, e voz tremula, disse:
Minha senhora, Dulcinéa dei Toboso beija-lhe as mãos, excelência, e
pede-me que
obtenha notícias suas; e, também, porque a necessidade é grande, pede-me que
pergunte
a vossa excelência, com todo fervor, se não poderia emprestar-lhe seis pesos, ou
qualquer
importância que trouxer consigo, recebendo como garantia esta anágua de algodão,
novinha em folha, que tenho comigo; e a senhora promete pagamento muito breve.
Tais palavras deixaram-me absolutamente mudo; por conseguinte, voltei-me para
Montesinos e perguntei-lhe:
Senhor Montesinos, é possível, a pessoas de estirpe nobre, uma vez
enfeitiçadas,
passar necessidade?
Ao que ele respondeu:
Acredite, excelência, senhor Dom Quixote de la Mancha, a condição a
que chama
mos "necessidade" está em toda a parte, ignorando quaisquer fronteiras ou
limites, e
não poupa os que estiverem enfeitiçados; portanto, se a senhora Dulcinéa dei
Toboso
envia à vossa excelência esse pedido de seis pesos, e se a garantia oferecida é
segura, parece-me recomendável confiar-lhe a soma estipulada, pois, sem dúvida, deve estar
mesmo
necessitada."
- "Na Caverna de Montesinos", vol. 2, capítulo 23, Dom Quixote
Será que o notável cavaleiro, Dom Quixote, acredita em seu próprio relato
fabuloso sobre a descida à Caverna de Montesinos? Quixote não aceita a anágua de
algodão
oferecida pela pobre Dulcinéa como garantia e, consternado, envia-lhe apenas
quatro dos seis pesos solicitados, pois é tudo o que possui. Em meio às
maravilhas surrealistas
da Caverna, o Cavaleiro pode ser ele mesmo: sagaz, bondoso, gentil, galante e
não muito insano. Não temos como saber se ele acredita, literalmente, nas
histórias
que conta, porque, à semelhança do seu criador, Cervantes, Quixote é um génio da
narrativa, tão metafísico quanto romântico.
A defesa que Dom Quixote faz da própria carreira é, a um só tempo, ética e
metafísica, e, notavelmente, ocorre no contexto das críticas que lhe faz um
padre. O
pobre clérigo equivoca-se, ao acusar o Cavaleiro de estar fora da realidade: "Vá para
casa! (...) pare de errar por aí." A resposta de Quixote é arrasadora: "Acertei
contas
relativas a ofensas e insultos, corrigi injustiças, puni arrogância, derrotei
gigantes e pisoteei monstros."
O romance, de Cervantes a Proust, criou um esplendor ético e metafísico que só
declinaria recentemente, com a Era do Cinema. O contributo de Cervantes a essa
criação
foi a coragem quixotesca - literal, moral, visionária. Cervantes compartilha com
Shakespeare e Dante um aspecto específico do Keter (ou coroa) cabalista: a
audácia
de Adão no início da manhã (conforme dizia Walt Whitman), a participação na
vontade divina, ao que os cabalistas chamavam Razon. Toda e qualquer emanação
literária
posterior irradia de Cervantes, assim como de Shakespeare.
58
59
MIGUEL DE CERVANTES (1547-1616)
A vida de Cervantes foi tão repleta de incidentes e infortúnios que, em grande
parte, parece exemplificar os relatos ficcionais desse que foi o maior escritor
em língua espanhola, eminência, para todo o sempre, comparável a Dante,
Shakespeare, Montaigne, Goethe e Tolstoi, que escreveram nos demais grandes
idiomas vernáculos
ocidentais. Pretendo discutir a influência de Dom Quixote em Cervantes,
retomando um dos fios condutores (ao menos, no meu entender) deste livro: a obra
dentro da
vida, e não a vida dentro da obr*. Nessa abordagem, sigo o próprio Cervantes,
que, na conclusão do seu incrível livro sem limites, declara: "E Dom Quixote
nasceu
apenas para mim, assim como para ele nasci: ele sabia atuar e eu, escrever;
juntos, formamos uma unidade."
Dom Quixote é obra de tamanha originalidade que, cerca de quatro séculos após
ter sido escrita, continua sendo o trabalho de ficção em prosa mais avançado que
existe. Tal asserção, porém, é reducionista; o livro é, também, o mais fluente
e, em última instância, o mais complexo dos relatos romanescos. Eis o paradoxo
que
Cervantes compartilha com Shakespeare: Hamlet e Dom Quixote, Falstaff e Sancho
Pança são universalmente constatáveis, ao mesmo tempo em que esgotam a
capacidade
de reflexão de qualquer mente. A influência somada de Cervantes e Shakespeare
(que morreram na mesma data) define todo o percurso da Literatura Ocidental
subsequente.
A fusão de Cervantes e Shakespeare produziu Stendhal e Turgenev, Moby Dick e
Huckleberry Finn, Dos-toiévski e Proust. Trinta anos atrás, Harry Levin
registrou o
paradoxo "de que um livro que versa sobre a questão da influência literária, na
verdade, que se posiciona contrário a essa influência, tenha exercido influência
literária tão ampla e decisiva". Dom Quixote trata de um herói enlouquecido em
consequência de leituras, se tomarmos a situação no sentido mais literal.
Contudo,
dependendo do nosso entendimento sobre sabedoria, fantasia e loucura, o
Cavaleiro é o indivíduo mais sensato do livro, mais sensato do que Sancho.
Miguel de Unamuno
(1864-1936), grande contista e crítico, escreveu o comentário sobre Cervantes
que mais me agrada, intitulado, na versão em língua inglesa, Our Lord Don
Quixote.11
Como o título sugere, Unamuno exorta-nos a vislumbrar Dom Quixote como nosso
salvador, fundador da verdadeira religião espanhola - quixo-tismo -, em
contrapartida
ao catolicismo. Cervantes interessa a Unamuno apenas à medida que Dom Quixote é
o génio, ou demónio de Cervantes. Unamuno, ironicamente, admite que Dom Quixote
era
louco, mas apenas segundo o ponto de vista cristão de
11 Isto é: "Nosso Senhor Dom Quixote."
MIGUEL DE CERVANTES
Alonso Quixano, de quem Quixote ressuscitou em carne e osso, e a quem retorna,
na hora da morte:
Grande era a loucura de Dom Quixote, e era grande porque a raiz da qual germinou
era grande: o desejo insaciável de sobreviver, fonte das fantasias mais
extravagantes,
bem como dos atos mais heróicos. Os mais notáveis benfeitores da pátria e da
humanidade são os que sonham com a fama e a posteridade.
Erasmo, humanista holandês cuja obra foi, com toda certeza, lida por
Cervantes, distingue, no Elogio da Loucura (1509), dois tipos de loucura, um
pernicioso, o
outro sublime: "ou seja, o tipo que se origina em mim e que é o mais digno de se
desejar. Ocorre sempre que uma agradável desordem mental alivia o coração de
ansiedades
e preocupações e, ao mesmo tempo, acalma-o com o bálsamo constituído por
prazeres diversos." Isso é mais Cervantes do que Unamuno, cujo Quixote estava
mais desesperado
para sobreviver do que ansioso para desfrutar do lúdico. Unamuno, grande leitor,
considerava o trecho mais belo do livro o momento, no segundo volume, capítulo
58,
em que Dom Quixote e Sancho Pança, novamente na estrada, reencontram a
liberdade, após a longa estada na corte sádica do Duque e da Duquesa, onde o
Cavaleiro sofrera
a "cortesia pegajosa" de Altisidora, que, por zombaria, dissimulara grande
paixão pelo Dom. Cavaleiro e Escudeiro deparam-se com um grupo de camponeses que
levam
com eles entalhes em baixo-relevo destinados à decoração de um altar. Dom
Quixote contempla as imagens de São Jorge, São Martinho, São Diego Matamoros e
São Paulo,
e é levado a verbalizar a diferença existente entre os santos e ele próprio:
"Eles (...) combateram em guerras de Deus, ao passo que eu, pecador, combato em
guerras
da humanidade. Conquistaram o céu através das armas, pois o céu não rejeita a
força e a violência; quanto a mim, até o presente, não sei o que minha luta terá
conquistado,
mas, se minha Dulcinéa dei Toboso for libertada, minha sorte pode melhorar e
minha mente se fortalecer; pode até ser que eu consiga me conduzir por um
caminho melhor
do que este que sigo agora."
A Dulcinéa encantada, visível apenas como a rude camponesa Aldonza Lorenza,
uma vez livre do perverso feitiço, talvez possa libertar Quixote da percepção
complexa
que se localiza na base problemática de sua busca. No entanto, sendo Dulcinéa
génio de Dom Quixote, assim como Beatriz era de Dante, e Quixote é de Cervantes,
o
Cavaleiro tem consciência do potencial destrutivo inerente à libertação do
ideal. Unamuno, plenamente consciente, leva-nos a mais ironia:
Para mim, Dulcinéa dei Toboso sempre simbolizou a glória, isto é, a glória
mundana, a sede insaciável de deixar o nome e a fama no mundo, para sempre. O
60
61
engenhoso Fidalgo, em um ataque de sanidade, declara que se fosse possível
curar-se da sede de glória, de notoriedade mundana, voltar-se-ia para a obtenção
de uma
outra glória, na qual a devoção de cristão antigo o levara a crer.
Se Cervantes - ao contrário de Quixote e Sancho - era um cristão-velho (isto
é, não descendente de judeus convertidos), simplesmente, não o sabemos. Assustame
um pouco o fato de Sancho, enumerando as suas qualidades, exclamar: "E também
sou inimigo mortal dos judeus!" Uma sombra pairava sobre Cervantes; malgrado os
feitos
heróicos de guerra, ele jamais contou com o apoio real, e talvez fosse
antipatizado por Felipe II. Cristãos-novos eram cidadãos de segunda categoria,
sempre sob
a suspeita da Igreja-Estado. Cervantes lutara bravamente na grande vitória naval
sobre os turcos, em Lepanto, ocasião em que teve a mão esquerda mutilada. O
heróico
comandante de seu destacamento era Dom João da Áustria, filho bastardo do
Imperador Carlos V, e meio-irmão (ressentido) de Felipe II da Espanha. Seja qual
for o
motivo, o governo nada fez em favor de Cervantes. Quatro anos após a Batalha de
Lepanto, foi capturado pelos turcos e mantido como escravo em Argel, até ser
resgatado
pelos frades trinitários (e não pela casa real). Sendo-lhe negado qualquer
auxílio financeiro, Cervantes fracassou, comercialmente, como dramaturgo, e
recorreu à
função de cobrador de impostos, tendo sido preso por (supostos) atrasos no
processo de acerto de contas. A obra Dom Quixote foi iniciada durante um segundo
período
na prisão. Apesar do sucesso imediato do primeiro volume (1605), o editor reteve
todos os direitos, e o pobre Cervantes nada ganhou com o livro, exceto a fama
instantânea.
Somente o tardio apoio do Conde de Lemos, de 1613 até a morte de Cervantes, em
1616, permitiu ao escritor um relativo conforto no final da vida.
Assim como Quixote visava à fama e à posteridade na busca maravilhosa e
absurda da encantada Dulcinéa, Cervantes buscava fama e posteridade em Quixote.
O Cavaleiro
e o autor encontraram tudo o que desejavam, em termos de reputação, o que
Unamuno traduziu como imortalidade, a bênção de deixar a própria marca no tempo
e no espaço.
Influenciado por Kierkegaard e, talvez, por Kafka, Unamuno aspirava pelo
indestrutível, noção nada fácil de definir. Cervantes, cuja vida foi sempre
triste, dolorosa,
sabia ter triunfado em Dom Quixote, e a percepção do autor é bastante comovente:
Uma das maiores satisfações para um homem virtuoso e distinto é, ainda em vida,
ver-se lançado em meio às nações e idiomas do mundo, impresso e encadernado,
desfrutando
de boa reputação.
São palavras de Dom Quixote, referindo-se ao primeiro volume de seu livro, após
ser informado, no segundo volume, a respeito de sua fama internacional. Ao longo
do segundo volume, surgem os momentos impressionantes em que é impossível
distinguir entre Cavaleiro e narrador. Recorro, mais uma vez, a Unamuno, que
lutou contra
o culto espanhol à morte, mesmo nos momentos finais, enquanto confrontava o
general fascista Quiepo de Llano, que, de pistola em punho, gritava palavras de
ordem:
"Morte à inteligência!" e "Viva a morte!". Unamuno, aos 72 anos de idade,
deposto do cargo de reitor da Universidade de Salamanca, resguardou a dignidade
da instituição,
mesmo sob a ameaça do fascista ensandecido. O verdadeiro espírito quixotesco
torna-se, portanto, mais audível do que nunca em OurLordDon Quixote.
Creio ser um equívoco, ao se falar do chamado culto espanhol à morte, afirmar
que não amamos a vida, porque a consideramos por demais severa conosco, ou dizer
que
o espanhol jamais sentiu forte ligação com a vida. Ao contrário, creio que o
espanhol tem com a vida uma grande ligação, precisamente porque a vida é tão
severa
com ele, e, dessa intensa ligação com a vida, nasce o que chamamos culto à
morte.
A vontade quixotesca de sobreviver é a religião de Unamuno, que ele considera
a religião espanhola. Há muitas outras leituras menos proveitosas de Dom
Quixote,
pois a obra pode ser qualificada, legitimamente, como a Bíblia da Realidade. Ao
longo de todo o livro, Cervantes dirige-se ao leitor solitário, que, cada vez
mais,
identifica-se com o Cavaleiro, e não com os outros dois protagonistas, Sancho
Pança e o irónico narrador. A inovação desse primeiro romance é de tal ordem que
a
sua imensa originalidade não pode ser absorvida, mesmo depois de muitas
releituras. Há tantos Dons Quixotes quanto leitores, assim como há mais Hamlets
e Falstaffs
do que atores que encenem tais papéis. Cervantes e Shakespeare realizam o
milagre de unir a consciência infinita - os dois Cavaleiros e o Príncipe - à
ordem do lúdico.
Em uma história deliciosa, intitulada "Encontro em Valladolid", o falecido
Anthony Burgess reúne Shakespeare e Cervantes, por ocasião da assinatura de um
suposto
tratado de paz entre Inglaterra e Espanha; no conto, a companhia dramática de
Shakespeare encena várias peças do dramaturgo, merecendo apenas o desdém e a
ironia
de Cervantes. Um tanto irritado, Shakespeare replica de modo tão notável quanto
satisfatório:
Amanhã, ou depois de amanhã, encenaremos Hamlet. Mas agora introduzimos na peça
algumas modificações, acrescentando-lhe Sir John Falstaff. Não vos espanteis. É
fácil
dispor da peça. Hamlet tem coerência já no ponto em que o
62
63
Príncipe é enviado à Inglaterra, onde será executado, sob as ordens do Rei. Na
Inglaterra, após ler e destruir o despacho que contém a ordem de execução, o
Príncipe
é informado de que forças dinamarquesas estão prestes a invadir a Inglaterra,
porque esta não tem pago os tributos devidos à Dinamarca. Finalmente, Hamlet
decide
agir, e tal decisão, aliada ao companheirismo de Falstaff e amigos, faz sustar
os pensamentos de suicídio. Falstaff pode referir-se a Hamlet como "caro Ham",
substituto
de Hal, pois a diferença é de apenas uma letra. A guerra é cancelada, ao ser
informada a morte do Rei Cláudio. Hamlet dirige-se a Elsinore, como herdeiro do
trono.
Falstaff e amigos seguem o Príncipe, mas são, obviamente, rejeitados ao final.
* Quando Shakespeare e Cervantes se encontram depois do espetáculo,
o espanhol protesta, "O gordo e o magro roubastes de mim", ao que Will retruca,
"Oh,
não. Estavam lá, nos teatros londrinos, muito antes de eu saber da vossa
existência." Todavia, no leito de morte, em Stratford, o Shakespeare criado por
Burgess
ainda rumina a agilidade de Cervantes, que foi capaz de imaginar um personagem
universal, amálgama de Hamlet e Falstaff em uma mesma alma, tendo em Sancho
Pança
uma figura córica, o aspecto mundano de SzVJohn Falstaff
Burgess, ao lado de quem consumi várias garrafas de Fundador, enquanto
explorávamos as complexidades de Hamlet/Falstaff e Dom Quixote/Sancho Pança,
certa vez,
observou que esse conjunto de peças e romance era o único que compensava uma
abordagem comparatista. Em seguida, desenvolveu uma analogia musical cuja
compreensão
escapava à minha competência, sugerindo Verdi e Mozart como agentes capazes de
reconciliar as diferenças entre Shakespeare e Cervantes. A meu ver, Falstaff é
um
pouco Dom Quixote, um pouco Sancho Pança, e, antes de mim, muitos já apontaram a
semelhança entre Dom Quixote e Hamlet. W. H. Auden, que não gostava de Hamlet,
considerava
Dom Quixote e Falstaff santos cristãos, ao passo que o perverso Hamlet carecia
de fé em Deus e em si mesmo. Quanto à interpretação de Quixote, prefiro Unamuno
a
Auden, e não vejo graça cristã em Falstaff, ou orgulho satânico em Hamlet.
Dom Quixote, segundo Auden, é a antítese de Hamlet, o ator, porque o Cavaleiro
é "absolutamente incapaz de ver a si mesmo como se estivesse desempenhando um
papel".
Esse Quixote "carece, totalmente, de reflexão". Confesso que não consigo ver o
Quixote de Auden no livro. O Quixote de Cervantes diz: "Sei quem sou, e quem
posso
me tornar, se assim o decidir." Não convém santificar Dom Quixote, nem
subestimá-lo. Ele joga duro com a realidade, com o Estado, com a Igreja-Estado e
com a História
social e religiosa da Espanha - um Quixote carente de reflexão é uma
impossibilidade.
Cervantes, a despeito da encantadora fantasia criada por Burgess, não chegou a
ouvir falar de Shakespeare, mas este, na fase final da carreira, fez-se ciente
de
Cervantes. Shakespeare leu Dom Quixote, em 1611, quando a tradução de Shelton
surgiu na Inglaterra, e observou os amigos, Ben Jonson e Beaumont e Fletcher, em
suas
respectivas obras, tornarem-se cientes de Cervantes. Em colaboração com
Fletcher, Shakespeare escreveu uma peça, Cardênio, baseada no personagem
homónimo de Dom
Quixote, mas a peça, até o presente, ainda não foi encontrada. Concordo com a
suposição de Burgess, relativa ao porquê de a obra de Cervantes incomodar um
pouco
Shakespeare. Entre os contemporâneos de Shakespeare, temos em Cervantes o único
verdadeiro rival, cuja arte popular havia criado duas figuras que permaneceriam
para
sempre universais. Para igualar Dom Quixote, é preciso reunir as 25 melhores
peças de Shakespeare, empreendimento só realizado com o advento do Primeiro
Fólio, depois
da morte de Shakespeare. O Shakespeare e o Cervantes criados por Burgess
discutem de modo fascinante. Cervantes diz "Jamais produzireis um Dom Quixote",
e Will retruca:
"Já escrevi boas comédias, além de tragédias, que são realização máxima do
talento de um dramaturgo", ao que Cervantes responde, em tom de repreensão:
Não são e jamais o serão. Deus é autor de comédias. Deus não sofre as
consequências trágicas de uma consciência falha. A tragédia é por demais humana.
A comédia
é divina.
Shakespeare não precisa responder; Noite de Reis é a resposta a Dom Quixote, e
cabe indagar se Dom Quixote seria uma comédia divina, ou mesmo se seria uma
comédia,
em que pese toda a violência cómica presente no romance. Decerto, a
caracterização que José Ortega y Gasset faz de Dom Quixote como herói não se
coaduna com qualquer
herói cómico de que tenho conhecimento, ao menos na Literatura Ocidental:
Não penso haver originalidade mais profunda do que essa originalidade "prática ,
ativa, do herói. A sua vida é uma resistência perpétua ao habitual, ao
costumeiro.
Cada movimento seu, primeiramente, precisa superar o costumeiro e inventar um
novo tipo de gesto. Uma vida assim é um sofrimento perpétuo, um constante
distanciamento
da parte do ser que se rende ao hábito, e que é prisioneira da matéria.
A comédia de Cervantes está ligada à dor e ao sofrimento: é uma modalidade de
comédia tão original que se torna extremamente difícil de ser definida. Mas, na
verdade,
muitos aspectos de Dom Quixote estão além dos nossos parâmetros literários. Em
64
65
seguida, discuto a descida do Cavaleiro à Caverna de Montesinos, conforme
descrita por Quixote, no segundo volume, capítulo 23, incidente que resiste a
qualquer
tipo de análise. Embora seja, talvez, o capítulo que cause maior perplexidade
nesse extenso romance, o episódio narrado é bastante representativo do enigma
que cerca
a consciência e a busca do Cavaleiro, ao longo de toda a visão de realidade
apresentada por Cervantes. Passadas 800 páginas, muito sabemos a respeito de Dom
Quixote,
no entanto ele permanece tão inescrutável quanto Hamlet, ao final das quatro mil
linhas da peça, das quais a maioria consiste nas falas do Príncipe.
Dotada de reputação lendária, a Caverna de Montesinos atrai Dom Quixote com a
perspectiva de alguma aventura que lhe seja digna. O episódio permite ao
Cavaleiro
parodiar as descidas épicas de Ulisses e Eneas aos infernos. A descida de
Quixote ocorre por meio de uma corda amarrada à cintura, sendo ele içado,
aparentemente
adormecido, tendo se passado não mais de uma hora. Ainda que o Dom seja ferrenho
contador de verdades, não fica muito claro se ele acredita em seu próprio relato
da jornada ao mundo inferior. Vale lembrar, ele está ciente de que a
incomparável Dulcinéa é invenção sua, um poema, por assim dizer, e,
supostamente, ele sabe que
o relato da Caverna de Montesinos é mais um fruto de sua sublime imaginação.
Cervantes, entretanto, evita nos dar qualquer certeza a esse respeito, assim
como em
relação a quase tudo o mais. Dom Quixote conta-nos que adormeceu e, ao
despertar, viu-se na Caverna, onde Montesinos, saindo de um castelo de cristal,
veio ao seu
encontro. No interior do castelo, jaz o ilustre cavaleiro Durandarte, ao mesmo
tempo, morto e loquaz, à semelhança do Caçador Gracchus, de Kafka, flutuando
morto-vivo
em seu navio da morte. Em meio a um bando de cavaleiros e heroínas, Belerma
perambula, chorando a morte de Durandarte, trazendo nas mãos o coração do bravo.
Merlin,
feiticeiro perverso, é o responsável pela situação, mas não temos tempo de
refletir sobre o ocorrido, porque, subitamente, aparece Dulcinéa, disfarçada de
camponesa,
e logo se retira, para enviar à Caverna as duas companheiras que pedirão ao
Cavaleiro um empréstimo de seis pesos, oferecendo como garantia a anágua de
algodão da
solicitante! O amante heróico tem apenas quatro pesos e, generosamente, envia-os
a ela.
Espantosa, da primeira à última página, a história, ou sonho-visão, permanece
além de qualquer análise, fazendo-me lembrar Kafka, que por ela foi,
nitidamente,
influenciado. O que move Kafka, em termos de ímpeto narrativo, é o propósito de
se manter além da interpretação, de maneira que o que carece de interpretação é
o
porquê dessa opacidade do autor. "A Verdade sobre Sancho Pança" (título de uma
parábola de Kafka) apresenta Sancho como o leitor obsessivo de romances de
cavalaria,
fato que tanto lhe desviou o demónio pessoal (Dom Quixote), ao ponto de torná-lo
cavaleiro errante. Espontâneo, e propenso a filosofar, Sancho segue seu demónio
e por ele é
entretido diariamente. Cervantes, embora mantendo-se, de bom grado, além da
interpretação, é um escritor de tal porte que nos premia, assim como o faz
Shakespeare,
com um verdadeiro mundo de entretenimento. Dom Quixote é demónio de si mesmo, e
suas andanças não visam à salvação da Espanha de Felipe III, que, tanto quanto a
de Felipe II, não pode ser salva, mas à nossa salvação, conforme insiste
Unamuno. Haveremos de ser salvos (do ponto de vista secular) à medida que nos
tornemos ficções?
O efeito do primeiro volume de Dom Quixote na vida de Cervantes pode ser
constatado, praticamente, em todas as páginas do segundo volume. O pobre
Cervantes - herói
mal recompensado, dramaturgo fracassado, escravo dos turcos, prisioneiro do
Estado espanhol, eterno desafortunado - transformou-se em personalidade mundial
porque
Dom Quixote e Sancho Pança são celebridades. O segundo volume de Dom Quixote
está sempre a invocar o primeiro, sempre definindo-o como livro, enquanto o
segundo
volume não o é. O segundo volume é o próprio Cervantes; esse segundo Dom Quixote
é o que William Blake chamava "Homem Verdadeiro, a Imaginação". Defendendo-se da
repreensão de um padre, Dom Quixote (no capítulo 32 do segundo volume) proclama
suas façanhas:
Acertei contas relativas a ofensas e insultos, corrigi injustiças, puni
arrogância, derrotei gigantes e pisoteei monstros.
Cervantes sabia escrever, Dom Quixote sabia atuar: juntos formam uma unidade;
nasceram um para o outro.
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67
MICHEL DE MONTAIGNE
Qualquer tópico é, para mim, fértil. Uma mosca serve ao meu propósito; Deus
permita que o tópico que ora tenho em mãos não tenha sido escolhido a partir de
uma vontade
volúvel! Que eu inicie com o tema que me aprouver, pois todos os temas estão
interligados.
- "Sobre Versos de Virgílio"
*
O segredo de Montaigne é a universalidade, ao menos para leitores do sexo
masculino. Emerson, ensaísta discípulo de Montaigne, celebrou o precursor,
definindo-o
como "o mais franco e honesto dos escritores". T. S. Eliot, que não gostava de
Montaigne, atribuía a força do ensaísta francês à articulação de um ceticismo
universal.
Porém, tanto Emerson quanto Eliot, isto é, admirador e detrator, parecem estar
equivocados com respeito à universalidade do apelo de Montaigne. O ceticismo não
é
central ao génio de Montaigne, tampouco ao de Hamlet, claramente partidário de
Montaigne. O ensaísta francês é um cómico carismático, um génio em termos de
personalidade,
e Shakespeare, estimulado pela leitura dos Ensaios, criou o lado brincalhão de
Hamlet à imagem de Montaigne. Hamlet, no entanto, não é capaz de seguir
Montaigne
com relação à sabedoria de viver, de agir, uma vez que Montaigne rejeita a
tragédia.
Na perspectiva de Montaigne, a loucura de Hamlet decorre do desejo do Príncipe
de
escapar à condição humana. Montaigne rejeita o autodesprezo, considerando-o o
mais
*
ensandecido dos posicionamentos, mas Hamlet só consegue se livrar de
tal atitude no quin-
to ato. O que faz de Montaigne um génio verdadeiramente universal é a eloquente
sabedoria tocante à auto-aceitação, fundamentada em um profundo
autoconhecimento.
O que Freud tentou, em vão, ensinar-nos, Montaigne, mestre mais capaz, repete
página após página: humanizai vosso idealismo, "desempenhai bem e dignamente o
papel
de homem".
Aos 71 anos de idade, repito comigo, amiúde, o que há de mais eloquente em
Montaigne:
Detesto aquele arrependimento fortuito que surge com a idade. Jamais
agradecerei à impotência qualquer benefício que ela porventura me traga (...).
Remédio miserável,
que faz com que a saúde dependa da doença!
Tais palavras parecem configurar a universalidade de Falstaff, mas não a de
Hamlet, e, nessa universalidade, ouço Montaigne convocar-nos ao regozijo da vida
mundana.
4 #
MICHEL DE MONTAIGNE
(1533-1592)
O primeiro dos ensaístas continua sendo o melhor; Montaigne criou o termo
"ensaio", um experimento, um teste ao seu raciocínio, fundamentado na autoanálise. Os
Ensaios de Montaigne foram um sucesso imediato, e continuam sendo, para leitores
sérios em quase todas as nações. Mesmo confessando que, ao escrever sobre a
sapiência,
segue a tradição de Séneca e Plutarco, Montaigne é sempre muito original, nem
tanto na modalidade do ensaio pessoal por ele praticado, mas no detalhado autoretrato,
tão íntimo, sem precedentes. Agostinho oferece-nos uma autobiografia espiritual,
culminando em conversão. Montaigne oferece-nos todo o seu eu; vem de Emerson o
maior
tributo conferido ao ensaísta francês: "Se cortadas, essas palavras sangram; são
dotadas de vascularidade, de vida."
Dirigindo-se ao leitor, Montaigne proclama, acertadamente: "O tópico deste
livro sou eu mesmo." Pensando em se retirar da vida pública, em 1570, para
escrever
os Ensaios, Montaigne foi, no entanto, chamado a ser prefeito de Bordeaux e a
atuar como mediador entre Henrique III, da França, e o protestante Henrique de
Navarra,
que se tornou Henrique IV, o mais talentoso dos reis franceses. Não fosse a
intervenção da morte, Montaigne teria desempenhado um papel crucial como
conselheiro
da corte de Henrique IV. A despeito da admiração que sentia por Navarra, seu
conterrâneo da Gasconha, Montaigne, sem dúvida, teria se arrependido de abrir
mão do
isolamento que lhe permitiu dedicar-se aos Ensaios. A influência de tais
escritos na vida do autor é comparável ao efeito exercido por Dom Quixote em
Cervantes.
Após a primeira edição dos Ensaios (1580), Montaigne dedicou os últimos 12 anos
de vida à revisão do livro.
A "conversão" de Montaigne ocorreu em 1576, e envolveu a figura de Sócrates,
que seria, para sempre, o mentor do ensaísta francês. O Sócrates de Montaigne
(tanto
quanto o seu Platão) era um "poeta isolado", o que seria inaceitável para o
autor da República e dos Diálogos. Vale destacar a perspicácia de Montaigne, ao
distinguir
a diferença fundamental entre Sócrates e Platão. Para Platão, a natureza não é
benigna, e toda sexualidade deve ser desencorajada, exceto visando à procriação.
Sócrates
vê de modo mais generoso o homem natural, visão essa que, após 1576, passa a ser
a do próprio Montaigne, que se refere a Sócrates como "o homem mais sábio que já
existiu". Embora Sócrates nada tenha escrito, o seu método dialético serviu de
base aos "testes" de auto-avaliação realizados por Montaigne, de maneira que a
ideia
do ensaio é, na verdade, socrática. Ser um homem livre é "saber desfrutar da
vida de acordo com a lei . Sócrates é imune à ansiedade, ou a qualquer tipo de
medo.
Um dos últimos ensaios de
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69
Montaigne - "Sobre a Fisionomia" (1585-1588) - cita um longo trecho do discurso
de Sócrates aos juízes, conforme consta da Apologia de Platão, e acrescenta o
magnífico
comentário:
Não temos aqui uma defesa sóbria, sensata e, ao mesmo tempo, natural e humilde,
extremamente digna, verdadeira, franca, absolutamente incomparável? (...) Sua
vida
não lhe pertencia; antes, era um exemplo que pertencia ao mundo.
Essa última asserção não se aplicaria também ao próprio Montaigne? Ele, no
entanto, não pensaria ser esse o caso, pois considerava-se imitador de Sócrates,
um
seguidor tardio. Contudo, "sperava que seu livro servisse ao mundo como exemplo
de algo que o estudioso Herbert Luthy chamou "arte de ser verdadeiro". Montaigne
escreve tão-somente para si, mas precisa de nós, leitores, para poder revelar-se
a si mesmo. Conforme Montaigne observou, com toda correção, Sócrates não fala
somente
para si, mas para todos os que forem capazes de se beneficiar de seu discurso. O
autor dos Ensaios é astuto e modesto, mas também é capaz de chocar, e nem sempre
é bem recebido pelas feministas de hoje. Uma das obras-primas de Montaigne é o
ensaio "Sobre Versos de Virgílio", uma reflexão sobre a sexualidade. Eis uma
amostra
de trechos que ilustram o que há de mais franco em Montaigne:
Competem ao casamento a utilidade, a justiça, a honra e a constância: trata-se
de um prazer raso, mas universal. O amor é fundamentado apenas no prazer e, na
verdade,
tal prazer é por demais estimulante, vivaz e intenso: um prazer inflamado pela
dificuldade. Há que existir dor em tal prazer. Não será amor se não houver
ferimento
e fogo. A liberalidade das mulheres é excessiva no casamento, e faz cegar o fio
do afeto e do desejo.
As mulheres não estão, absolutamente, erradas, quando rejeitam as regras de
conduta que vigoram no mundo, de vez que foram os homens que as criaram, sem
consultá-las.
Existe entre as mulheres e nós uma contenda, uma rixa natural: a comunhão mais
íntima que tivermos com elas será sempre tumultuosa, tempestuosa.
Ah, que vantagem decorre do senso de oportunidade! Se perguntado sobre a
primeira questão do amor, diria que é saber agir no momento certo; a segunda e a
terceira
também; tudo depende do senso de oportunidade.
A todos repele a visão de um homem queimado vivo, mas a vê-lo morrer todos
correm. Para destruí-lo buscamos um espaço aberto, em plena luz do dia; para
construí-lo
buscamos um cantinho escuro.
Montaigne era casado e apenas um de seus descendentes diretos, uma filha,
sobreviveu. Os Ensaios contêm somente duas referências fugazes à mãe do autor;
chamava-se
Antoinette de Lopes, pertencente a uma importante família de judeus-espanhóis,
originária de Tolouse. A filha de Montaigne é objeto de poucas referências, um
tanto
ou quanto desdenhosas. O afeto do autor era dirigido ao pai e ao melhor amigo,
Étienne de La Boétie, morto em 1563, ao cabo de um período de quatro anos em que
o
ensaísta se viu livre da solidão interior que voltaria a prevalecer ao longo dos
quase 30 anos de vida que ainda lhe restavam. Talvez Henrique de Navarra
houvesse
preenchido tal vazio, se Montaigne tivesse vivido além de 1592. Ao que parece,
Montaigne, com seu comportamento gascão, "tipicamente, sensual", no íntimo, era
um
solitário shakespeariano, fazendo lembrar Hamlet, personagem que, sem dúvida,
foi por ele influenciado (Shakespeare, obviamente, leu a tradução de John Florio
ainda
em forma manuscrita, visto que Florio era agregado do Conde de Southampton).
Donald Frame, tradutor moderno de Montaigne para a língua inglesa, o mais
eminente dos
especialistas no autor francês, observa que cada um de nós tem o seu próprio
Montaigne, assim como temos o nosso próprio Hamlet e o nosso próprio Dom
Quixote. O
comentário me agrada, pois o auto-retrato de Montaigne nos Ensaios é tão vívido
ao ponto de ofuscar Santo Agostinho, Goethe e Samuel Johnson; trata-se, com
efeito,
de um personagem tão bem delineado que chega a parecer fictício, um personagem
tão literário quanto o meu herói, Sir John Falstaff.
Herbert Luthy enfatiza a marcante presença da arte, nos métodos adotados por
Montaigne para ser verdadeiro: "Talvez seja esse o escândalo de Montaigne:
contentar-se
com o imperfeito e fragmentário, e, ao mesmo tempo, permanecer inteiramente nãotrágico. Assim como não existe um método para a crítica literária externo à
pessoa
do próprio crítico (espera-se que este, no desempenho de suas funções, seja o
mais inteligente possível), Montaigne não dispõe de um método de
autoconhecimento.
O ensaísta procurou contemplar a si mesmo como contemplaria o próximo, e deixou
de lado uma carreira pública honrosa e bem-sucedida, a fim de proceder a um
auto-escrutínio.
1 odavia, Montaigne não é um reducionista, ao contrário da grande dame criada
por Wallace Stevens, "Mrs. Alfred Uruguay", que canta: "Limpei a luz da lua como
se
fosse lama. Montaigne, nada romântico, não nos oferece a luz da lua, uma vez que
a sua visão a respeito de sexo é extremamente pragmática, mas, com toda certeza,
não acha que para conhecermos o seu verdadeiro ser, precisamos conhecer-lhe o
lado pior.
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Conduz-se com equanimidade, como o Cavaleiro de Chaucer, nos Contos de
Canterbury, porque ninguém melhor do que Montaigne sabe que estamos sempre
comparecendo a
encontros que não marcamos. Católico moderado e monarquista abnegado, Montaigne
viu-se dividido durante os sangrentos conflitos religiosos franceses. Cercos e
incêndios
eram frequentes na Gasconha, onde protestantes e aventureiros detinham relativo
poder, e Montaigne vivenciou situações de perigo. Decidido a não ser herói nem
santo,
o racional e disciplinado Montaigne isolava-se em sua biblioteca, sempre que
possível, e sobreviveu, para concluir o grandioso terceiro tomo dos Ensaios, que
contém
a obra-prima "Sobre a Experiência" (1587-1588). Preciso aqui me deter, a fim de
produzir um comentário mais aprofundado, pois percorro agora terreno para mim
sagrado.
O melhot,ensaio de Emerson - "Experiência" - é rebento do derradeiro ensaio de
Montaigne, e eu sou um (entre tantos) dos derradeiros rebentos de Emerson.
"Sobre a Experiência", ao longo de cerca de 40 páginas, examina a condição do
próprio Montaigne e da humanidade como um todo. Desconheço outro ensaio, na
tradição
que vai de Montaigne a Freud, que investigue, com tamanha profundidade, a
metafísica do eu, e que de modo tão convincente nos exorte a aceitar a
necessidade:
Não pereceis por estardes enfermos, mas por estardes vivos. A morte vos consome
perfeitamente bem, sem precisar do auxílio da enfermidade. A doença adia a morte
de alguns, que vivem um pouco mais, pensando que estão prestes a escapar, e,
enquanto isso, estão morrendo.
O que sei eu? Sobre a morte, nada sei, e com relação a esse nada Montaigne
adota a posição de Sócrates. Assim como Sócrates, Montaigne torna-se mais forte
à medida
que envelhece, alcançando total auto-aceitação: "É a perfeição absoluta, é algo
potencialmente divino, saber desfrutar legalmente da existência." Isso, e não o
conhecimento
de um Deus distante e insondável, é o bem maior. E nenhuma redução da nossa
existência deve ser sancionada:
Eu, que me gabo de abraçar os prazeres da vida de modo tão aplicado e especial,
neles encontro, quando os contemplo bem de perto, nada além de vento. E até
mesmo
o vento, mais sabiamente do que nós, se apraz de fazer ruído e correr, e se
satisfaz com as próprias funções, sem almejar estabilidade e solidez, questões
que não
lhe dizem respeito.
Eis a sabedoria que fica além da desilusão, além do desejo de não ser
enganado. Apenas Shakespeare, entre os maiores escritores ocidentais, exibe algo
semelhante
à descrença de Montaigne quanto à possibilidade de transcendência:
Querem sair de si mesmos e escapar da condição humana. Isso é loucura: em vez de
se transformarem em anjos, transformam-se em feras; em vez de se elevarem,
rebaixam-se.
Esses humores transcendentais me assustam, como o fazem os píncaros inacessíveis
e, na biografia de Sócrates, mais do que qualquer outro aspecto, tenho
dificuldade
em aceitar-lhe os êxtases e momentos em que é possuído por seu demónio.
Emerson, que tinha o seu próprio demónio, e vários anseios transcendentais,
sentia pelo pai, Montaigne, o devido respeito:
Devemos afirmar que Montaigne foi sábio, e que, no que toca à conduta da vida,
expressou a mente humana de modo definitivo e correto?
Demonstrando reverência ao precursor, Emerson avança, defendendo o seu próprio
êxtase:
Pretendo valer-me dessa ocasião para celebrar nosso Santo Michel de Montaigne,
enumerando e descrevendo as referidas dúvidas e refutações.
Emerson aqui se refere às suas próprias dúvidas e refutações, relativas ao seu
entendimento do ceticismo de Montaigne, mas o Montaigne que a nós se apresenta
em
"Sobre a Experiência" é o que Donald Frame denomina "Homem Inteiro". E, conforme
Frame demonstra, esse homem é avesso à ideia da possessão demoníaca, mesmo que o
demónio seja o de Sócrates. Em seu ensaio - "Experiência" -, Emerson, em última
instância, cede à noção de que o demónio sabe como proceder.
Tudo o que sei foi recebido; sou e tenho, mas nada obtenho. Digo ao génio, desculpando-me por recorrer a um cliché, miséria pouca é bobagem.
Montaigne é por demais unitário para dirigir-se ao próprio génio, ou demónio.
A seu ver, tais elementos não possuíam uma existência à parte, ao contrário do
que
pensavam Sócrates, Emerson, Goethe, W. B. Yeats e tantos outros. Mais do que
Emerson e Goethe, Montaigne hoje é nosso contemporâneo, em parte devido à imagem
da
pessoa inteira por ele tão singularmente encarnada.
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73
JOHN MILTON
JOHN MILTON
(.. .) Só não me encontro; Tu me acompanhas, sacrossanta Musa,
Enquanto gozo do ligeiro sono E des'que surge a aurora purpurina. Meu canto
sempre, ó tu,
dirige, Urânia: Hábeis ouvintes dá-me, inda que poucos; Mas lança longe o
bárbaro alarido Dessas bacantes loucamente alegres, Cuja terrível ascendência
outrora No
Ródope estroncou o trácio bardo Que encantava os rochedos e as florestas De sua
voz coa mágica doçura, Té que o rude clamor da turba fera Os sons da lira e o
canto
lhe sufoca. Não pôde a Musa defender seu filho.12
- Paraíso Perdido, Canto 7, 28-42
Na Invocação do Canto 9 de Paraíso Perdido, o Canto da Queda, Milton roga à
protetora celestial, a Musa, por um "estilo condizente". Para Milton,
"condizente" significava,
em primeiro lugar, um estilo que fizesse jus ao grandioso tema abordado, mas
significava, também, um estilo que estivesse à altura do seu génio e de seu
conceito
sumamente individualizado de Deus.
O sparagmos, o dilacerar de Orfeu pelas bacantes da Trácia, constitui
verdadeira obsessão na obra de Milton. Mas a identificação com Orfeu é mais
contundente em
termos de orgulho do que de temor, pois a Musa do épico heróico, Calíope, é mãe
de Orfeu. Ver a si mesmo como nova encarnação de Orfeu é promover uma
identificação
entre o próprio génio e a poesia. O orgulho poético de Milton, extraordinário e
justificado, paira no cerne do seu talento.
Milton, assombrado pela figura de Shakespeare, chegou a considerar uma versão
de Macbeth, mas achou por bem desistir do projeto. A força de Paraíso Perdido e
Sansão
Agonistes, dramas restritos ao teatro da mente, decorre do fato de o género
literário a que pertencem não constituir qualquer desafio a Shakespeare. O
Satanás de
Milton existe à sombra de Iago, mas Milton consegue imprimir o seu génio,
extremamente individualizado, em Satanás.
Paraíso Perdido. Tradução de António José Lima Leitão. Rio de Janeiro: W. M.
Jackson Inc., 1952, p. 198.
74
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(1608-1674)
John Milton, glória da língua inglesa, ao lado de Shakespeare e Chaucer,
nasceu na casa do pai, em 9 de dezembro de 1608. Shakespeare viveu até 1616, e,
vale lembrar,
Milton era um menino de oito anos de idade, quando seu principal precursor
faleceu. Já aos 16 anos, Milton era poeta; em 1632, foi publicado o poema de sua
autoria
intitulado "Sobre Shakespeare", supostamente elogioso. Na propriedade rural do
pai, em Horton, Milton dedicou-se à leitura de autores gregos e latinos. Comus,
esplêndida
mascarada mitológica de sua autoria, foi encenada em Horton, em 1634.
A mãe de Milton (a quem ele pouco se refere) morreu em 1637; no ano seguinte,
a partir da morte de um colega de sala, Edward King, Milton escreveu a
extraordinária
elegia clássica "Lycidas", talvez o melhor poema curto escrito em língua
inglesa. Na minha leitura, "Lycidas" é uma pré-elegia para o próprio Milton,
ainda que a
morte da mãe permeie o poema.
Em maio de 1638, Milton partiu em uma grande viagem pelo continente europeu:
foi à França, e depois à Itália, mas a explosão da guerra civil na Inglaterra
fez
com que ele regressasse ao país já em julho de 1639. Por volta de 1641, Milton
atuava, de modo contundente, na guerra panfletária, defendendo o lado Puritano.
O
casamento infeliz com Mary Powell, em 1642, ensejaria o tratado sobre o
divórcio. Já em setembro de 1643, a visão do poeta começou a declinar, fato que
não impediu
o surgimento, em novembro de 1644, de Aeropagitica, tratado sobre a liberdade de
imprensa.
Planos de um novo casamento foram frustrados pelo retorno da primeira esposa,
em 1645. No mesmo ano, a coletânea Poemas de John Milton foi registrada, com o
propósito
de publicação, o que ocorreu em janeiro de 1646. No ano seguinte, o pai de
Milton faleceu. Na primavera de 1649, o poeta foi nomeado Secretário de Idiomas
Estrangeiros,
junto ao regime de Cromwell, cargo que fez de Milton o porta-voz oficial da
Revolução. Após o nascimento de três filhas e um filho, faleceu a primeira
esposa e,
logo em seguida, o menino. Já em fevereiro de 1652, Milton estava totalmente
cego. Casou-se em 1656, mas a esposa morreu dois anos mais tarde.
Em 1659, a República inglesa claudicava; Milton continuou a publicar panfletos
republicanos, mesmo após o advento da Restauração. Em maio de 1659, o poeta teve
de se refugiar; em agosto, seus livros foram incinerados por um carrasco em
Londres, e, em outubro, Milton foi detido, permanecendo encarcerado durante
cerca de
dois meses. Para o novo regime, Milton representava um grande problema: havia
defendido o regicídio publicamente, mas estava cego, era famoso em toda a Europa
e
considerado
JOHN MILTON
o maior poeta e intelectual da época. A contragosto, os conselheiros de Carlos
II preferiram libertar Milton a serem difamados por tê-lo executado.
O relacionamento do poeta cego com as filhas não era dos melhores, e a
situação deteriorou com o advento de uma terceira esposa, em 1663. Em agosto de
1667, foi
publicado o poema Paraíso Perdido, ampliado na segunda edição, em 1674. Paraíso
Recuperador. Sansão Agonistesforam publicados, simultaneamente, em 1671. Entre 8
e 10 de novembro, John Milton faleceu.
Esses são os fatos externos da vida do poeta-profeta, mas, se considerarmos
que nos seus últimos 20 anos Milton esteve totalmente cego, temos, em Paraíso
Perdido,
um oráculo de vida interior. Não existe em língua inglesa obra-prima mais
premeditada, e, nesse caso, "obra-prima" é qualificação reducionista. Esse poema
épico
é um esplendor do barroco: presta-se à reflexão infinita; lido em voz alta, é
assombroso, e constitui um eterno desafio, até aos admiradores mais ardorosos. A
um
leitor novato, leigo e carente de conhecimento de Literatura Clássica, convém
ler Paraíso Perdido como uma espeta-cular obra de ficção científica. Os rivais
de Milton
em língua inglesa são poucos: Shakespeare, Pope, James Joyce - nossos maiores
virtuosos. Embora Milton já tenha sido considerado o poeta protestante, assim
como
Dante ainda é o poeta católico, após 60 anos lendo Milton, incessantemente,
tenho cada vez mais dúvidas se ele seria até mesmo um poeta cristão, a não ser à
medida
que se possa considerar William Blake e Emily Dickinson poetas cristãos.
Individualmente, os três constituem seitas de um só seguidor, hereges
extremamente originais,
cujo cristianismo é bastante questionável. A. D. Nuttall (um dos melhores
críticos vivos) duvida que, ao envelhecer, Milton acreditasse nos princípios do
calvinismo
normativo, e o historiador Christopher Hill (já falecido) sugeria que Milton se
tornara seguidor de Muggleton, o que pode parecer um disparate, mas a noção de
inspiração
pessoal defendida por Lodowicke Muggleton, morto em 1698, cerca de 40 anos após
ter fundado a seita que ficou conhecida pelo seu nome, aproxima-se bastante da
versão
miltoniana de Luz Interior. Sabemos que Milton rompera com os Congregacionistas
ou Independentes, e Nuttall argumenta que o poeta tinha tendências gnósticas,
assim
como Christopher Marlowe e William Blake, e que formulara "trindades
alternativas". O que parece óbvio é que Milton cometeu inúmeras heresias, todas
a partir da
rejeição do dualismo paulino e agostiniano que postulava uma separação rígida
entre corpo e alma. Ardente defensor do monismo, Milton praticou ao menos quatro
grandes
heresias: a rejeição da criação a partir do nada; o mortalis-mo, i.e., o credo
de que corpo e alma morrem juntos e juntos ressuscitam; o antitrinda-dismo, que
afirmava
ser Javé uma só Pessoa; e o arminianismo, i.e., a negação da predestinação
calvinista. No entanto, tanto quanto Nuttall, tenho dúvidas se, nos últimos
76
77
anos de vida, Milton acreditava em algo. O poeta pensava ter conhecimento de
certas verdades, mas não se tratava de um credo.
Milton, tanto quanto Shakespeare e Dante, é um génio tão flagrante, que tentar
des-crever-lhe o talento pode parecer redundância, assim como tentar descrever a
beleza de Sophia Loren, nos dias da minha juventude longínqua. A força e a
fertilidade de Milton são imensas, primárias, mas meu interesse principal recai
sobre
o julgamento que fazemos do seu tão criticado alter ego demoníaco, Satã. Se
Satanás, por mais perverso que seja, não for um génio, o poema não existe, e
muito me
tem desagradado, ao longo de toda a minha vida, o fato de estudiosos cristãos, à
imagem de C. S. Lewis, um dos pavões da crítica mpderna, arremedarem o veredicto
de Lewis, que Satã é tolo. Shelley, com a mesma correção de Borges e Oscar
Wilde, observou, astutamente: "O Diabo tudo deve a Milton". O Satanás de Paraíso
Perdido
é discípulo do Iago shakespeariano, grande mestre da cilada. Satanás não tem a
estirpe pobre de Iago, mas é (por assim dizer) um diabo autêntico e esperto, que
faz
o melhor possível para progredir, e o leitor deve oferecer-lhe todo o estímulo.
Ao contrário do que propõe C. S. Lewis, não devemos ter, com relação a Satanás,
um
ódio preconcebido, antes mesmo de lermos o poema. Conforme escrevi alguns anos
atrás, devemos considerá-lo uma espécie de Tio Satã, longe de ser a Má Nova, em
um
poema em que a Boa Nova, Jesus Cristo, é transformado em um Rommel, ou um
Patton, no comando de um ataque blindado, a bordo da Merkabah, ou Carruagem da
Divindade
Paterna (em cuja honra os israelenses batizaram seu principal tanque de guerra),
veículo que cospe fogo e cuja função é expulsar Satã e suas hostes do Paraíso.
O pobre Satã acaba mal, obviamente, desaparecendo no Mar Morto, como uma
serpente virulenta, mas Milton (assim como a maioria dos grandes poetas, sempre
à exceção
de Shakespeare) não joga limpo. Milton tinha motivos para mágoas: Oliver
Cromwell, seu grande ídolo, depois de morto, fora pendurado às portas de
Londres, e Harry
Vane, o melhor amigo do poeta, fora executado como regicida. Além disso, por
mais corajoso que fosse, Milton, já totalmente cego, deve ter sofrido muito, ao
ser
preso, enquanto seus livros eram queimados, e o inimigo Belial, o Conde de
Clarendon, provavelmente, teve de interceder por meio de procedimentos
diplomáticos, para
que o poeta fosse poupado. Milton e seu partido foram derrotados na guerra,
assim como Satã e seus garbosos demónios haviam sido derrotados em uma outra
luta. Perder
uma guerra, mesmo que seja uma batalha cultural, não faz bem ao organismo: eu
era uma pessoa mais amável, antes de as nossas universidades se renderem a um
suposto
bem social e passarem a selecionar textos de leitura com base em origem racial,
género, preferência sexual e filiações étnicas de
Novos Autores, do passado e do presente, sem levar em conta o fato de eles
saberem ou não escrever.
Satã, assim como o predecessor, Iago, sofre em decorrência de Mérito Ignorado,
pois foi preterido por Cristo, assim como Iago foi preterido por Cássio. A
sensação
de Mérito Ignorado costuma gerar ressentimento, e tanto Iago quanto Satanás são
verdadeiros arquétipos de todos os Ressentidos em nossos dias. Até que ponto,
cabe
a pergunta, o próprio Milton sofreria em decorrência de Mérito Ignorado? A minha
resposta é que o referido mal não afligia, em absoluto, o poeta. Milton passara,
isso sim, por um contra-apocalipse, diante do desmoronamento de esperanças
nacionais e pessoais. O filho morrera, as filhas mantinham-se distantes, dois
casamentos
haviam terminado, a visão fora perdida, a imagem pública destruída, os amigos
haviam sido condenados e executados, ou se refugiado no exílio. Paraíso Perdido
e Sansão
Agonistes surgem da derrota total, com força e energia extraordinárias, e
manifestam autoridade, orgulho e autoconfiança sublimes, além de espantosa
combatividade.
Acorrentado, e ameaçado pelo gigante Harapha, Sansão lança o desafio: "Meus pés
estão presos, mas meu punho está livre!" - um dos versos que mais me agradam em
toda
a obra de Milton.
Em 1660, uma vez em curso a restauração dos Stuart, Milton, como um Jeremias,
dirigiu-se a um povo que não o escutava: "agora que escolhestes um líder que vos
levará de volta ao Egito, pensai um pouco, e considerai o destino que seguis".
Depois disso, o poeta exilou-se internamente, dedicando-se a compor Paraíso
Perdido.
Quando, ainda jovem, contemplara o triunfo Puritano na Inglaterra, Milton
escrevera, referindo-se aos hinos e aleluias dos santos: "Quiçá ouviremos alguém
disposto
a cantar e celebrar, em tons elevados e versos novos e altivos." Qual seria esse
Canto Triunfal jamais saberemos, mas cabe a conjectura de que seria um romance
no
estilo de Spenser, tendo por tema a Britânia, elevada ao êxtase de nação
redimida. Em vez disso, Cromwell morreu, a Revolução dos Santos fracassou, e,
cego, Milton
compôs Paraíso Perdido.
Na minha juventude, Paraíso Perdido não era apreciado, pois o Vigário de
Cristo do meio universitário, T. S. Eliot, não gostava do poema (bem mais tarde,
Eliot
permitiu o reingresso da obra no cânone). A maioria dos críticos lia o poema de
Milton como se tivesse sido escrito por C. S. Lewis, um épico de exaltação ao
cristianismo.
Há muito tempo perdi a conta do número de vezes que li Paraíso Perdido e, como
um judeu-gnostico, sou, necessariamente, suspeito, mas a releitura mais recente,
que
acabo de concluir, não me induz a classificar esse esplendor da poesia barroca
como "épico cristão . Milton é mais circunspecto do que Blake e Emily Dickinson,
mas
a religião do primeiro é tão individualizada quanto a dos outros dois. Jesus
Cristo quase não é personagem em Paraíso Perdido. Deus o proclama seu Filho, por
conseguinte,
causando a
78
79
rebelião de Satã, segundo William Empson. A próxima aparição de Cristo, ha
qualidade de comandante armado, já foi aqui mencionada. Mas o trecho crucial,
quase risível,
de tão vexatório, é aquele em que John Milton fala da Crucificação:
(...) em cruz alçada
Mesmo os seus próprios nacionais o pregam. Morre ele para dar aos outros vida:
Na sua mesma cruz pregar consegue Teus inimigos, a lei que te é contrária, E as
culpas
todas da progénie humana: Não mais hão de danar assim quem creia Remido ser por
esse sacrifício. Morre Deus, porém vivo eis que ressurge.13 -Canto 12,415-23
O itálico foi acrescentado por mim. Um épico cristão em 12 livros e milhares
de versos dedica apenas sete palavras à morte e ressurreição de Jesus Cristo!
Milton
é obrigado a fazer a referência, mas afasta-se da mesma com uma pressa que chega
a ser hilariante; até um descrente é capaz de sentir aqui um certo
constrangimento.
A esse respeito, fas-cina-me um comentário de A. D. Nuttall: "Pelo menos aqui,
Milton parece tão imperdoável e vivaz quanto Pope." A verdade é que Milton
revela-se,
no mínimo, insensível à Crucificação; com efeito, parece até constrangido pelo
fato. O poema pode ser cristão, mas não será, absolutamente, cristológico. Na
obra
De Doctrina Cbristiana, cautelosamente reservada para publicação póstuma (só foi
impressa em 1825), Milton declara-se implacável herege ariano, aceitando o Pai,
mas rejeitando a Trindade. Agrada-me, mais uma vez, a crítica de Nuttall, que
observa a inexistência de alusão a Prometeu em Paraíso Perdido; penso que algo
profundo
em Milton, partidário do arianismo, tenha levado o poeta a evitar Prometeu.
Milton exalta a liberdade humana, inclusive a liberdade de pecar, mas tenta não
exaltar
a rebeldia humana contra um tirano celestial. Na percepção de Blake e Shelley,
um Prometeu subjaz em Milton, mas tal imputação em muito desagradaria ao autor.
Paraíso Perdido é um trabalho magnífico, mas a sublime ambição da obra explicar o mal de uma vez por todas - causa a queda de Milton no épico por ele
próprio
composto. O poeta não foi capaz de explicar o mal da Restauração monárquica,
assim como
13 Tradução de A. J. L. Leitão, op. cit., p. 371. [N. do T.]
não somos capazes de explicar os campos de extermínio instituídos por Hitler e
os horrores de Stalin e de Pol Pot. Contudo, meu tema aqui não é o fracasso
inevitável
do argumento central de Paraíso Perdido, e sim o génio de John Milton. A
despeito do gosto dos críticos normativos, algo extraordinário ocorre na poesia
de Milton
(e com a poesia de Milton) sempre que Satã fala. Não creio que Satanás seja o
demónio, ou génio, do próprio Milton, mas o génio de Milton é ativado por Satã,
pouco
importa o número de vezes em que o narrador se expressa negativamente a respeito
do personagem.
Milton é um poeta erótico, nem tanto no estilo ovidiano de Shakespeare, mas ao
modo hebraico, do Cântico dos Cânticos bíblico. Não será exagero afirmar que o
génio
de Milton é, essencialmente, erótico; Milton não consegue descrever Eva sem
desejá-la, e nenhum outro poeta mostra-se tão fascinado pela ideia de brincar
com os
cabelos emaranhados de uma linda mulher. Nossa mãe Eva é uma beldade, e o pobre
Satanás sofre a agonia voluptuosa de um voyeur.
Assim disse Eva; conjugal ternura Rutilando-lhe então nos olhos lindos, Ela se
entrega a Adão e se lhe encosta, Com transporte submisso, puro e meigo, Ao peito
nu
que ternamente abraça Jaz reclinada ali; somente a cobrem Das soltas tranças as
douradas ondas; De deleites num mar ele nadando, Cativado de tanta formosura, De
tanta submissão, de afagos tantos, Com ar de superior está sorrindo, E uma vez e
outra vez da esposa os lábios Com puros beijos docemente aperta
(Assim como Juno está Júpiter quando Nuvens gera que em maio espalham
flores). Dali Satã de inveja o rosto vira; Mas com torcido olhar, ciumento,
ervado, Vê de
relance tão ditosa cena. Logo a si mesmo queixa-se destarte: "O vista odiosa,
quanta dor me vibras! Um do outro em braços, habitantes do Éden, Outro Éden mais
feliz
inda desfrutam, Delícias tendo assim sobre delícias!
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81
Enquanto eu sou lançado nos Infernos
Onde amor e alegria nem vislumbram,
Mas onde pertinaz, feroz desejo,
Suplício não menor que os mais suplícios,
Nunca se satisfaz, sempre atormenta!
Contudo... não me passe da lembrança
O que por eles mesmos hei sabido:
Seu aqui, como entendo, não é tudo;
De uma árvore fatal comer não podem,
E essa... Arvore da Ciência se intitula.
Vedar a ciêneia? Absurdo suspeitoso!
E Deus, por que lhe veda? E culpa da ciência?
Da ciência pode germinar a morte?
Só na ignorância lhes é dada a vida?
Neste estado feliz consiste a prova
Da obediência e da fé que lhe tributam?
Que belo fundamento onde se erija
Plano infalível que os estrague em breve!
Já lhes vou excitar a fantasia
De ciência com desejo incontrastável;
Rejeitarão preceitos invejosos
Só inventados para seu ludíbrio,
Se a ciência os pode erguer ao grau de numes;
Pungidos pois por ambição tamanha,
Hão de comer o proibido fruto
E assim terão em recompensa a morte;
Mais verossímil que isto.. . eu nada vejo.
Porém primeiro com sagaz cuidado
O jardim todo pesquisar me cumpre
Sem que o menor recanto aqui me escape.
Só pode o acaso conduzir-me aonde
Algum celeste espírito descanse,
Ou já sentado junto à fresca fonte,
Ou retirado em marachão espesso,
Que o mais me avente que saber preciso.
No entanto, par feliz, da vida goza;
Enquanto eu não voltar, exulta ovante:
Que esses curtos prazeres vão sumir-se Num pélago de longos infortúnios".14 Canto 4, 492-53.
É possível argumentar que um Milton lascivo ocupa a posição de Satã, visto que
Milton, bem como o leitor, são, igualmente, voyeurs. Mas a atitude de Milton com
relação a Eva é por demais apaixonada e complexa, como se o poeta,
agressivamente heterossexual, precisasse buscar na ficção por ele mesmo criada
todo o amor que,
não importa o motivo, as esposas e filhas lhe haviam negado. Depois de Satanás,
Eva é a glória estética de Paraíso Perdido, verdadeira manifestação de
alteridade
do génio milto-niano. A crítica feminista tende a interpretar o poema de modo
literal, enfatizando a representação de Eva como objeto sexual magnífico, e, ao
fazê-lo,
ignora a sutil dimensão que Milton confere à contundente subjetividade da
personagem, à sua consciência vivaz (e perigosa). Apraz-me citar a ilustre
especialista
em Milton, Barbara Lewalski, cuja advertência serve para reforçar o argumento
deste livro sobre o génio:
(...) grandes poetas têm a capacidade de, como a fénix, surgir das cinzas
remanescentes de processos de revolução social e intelectual; portanto, em
breve, poderemos
voltar a ler Milton, valorizando os conteúdos de importância duradoura, e não
aquilo que é condicionado historicamente, na concepção do poeta a respeito do
masculino
e do feminino.
Assim como Shakespeare, Milton, na minha leitura, perpassa a História,
permitin-do-nos contemplar o que está, e sempre esteve, presente, mas que, não
fosse ele,
jamais enxergaríamos. Nuttall comenta, com excepcional perspicácia, que "a
rebeldia de Eva, com relação ao marido, torna-se uma viagem de descoberta, em
que ela
é o líder, Adão, o seguidor". Sob o impacto das declarações de Eva, temos motivo
para esquecer o infeliz verso miltoniano: "Ele, só por Deus, Ela por Deus nele."
Algo, ao mesmo tempo, radicalmente novo e antigo como a História transparece,
quando Eva verbaliza uma das maiores ironias desse épico:
"Não te admirava, Adão, minha demora? Nesta penosa ausência achei-te menos;
Mui pungente saudade a fez mais longa. Que agonia a de amor! Nunca a sentira;
Nunca,
jamais a sentirei desde hoje:
"Tradução de A. J. L. Leitão, op. cit., pp. 115-16. [N. doTJ
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83
Não mais tenciono suportar a pena
De te não ver; fui nisso leve e ignara.
Porém a causa ouvir de tal demora
Há de assombrar-te de estranheza e pasmo.
Esta árvore não é (qual se nos disse),
Para quem come dela, um dano imenso,
Nem para risco algum abre caminho;
Mas por divino efeito aclara os olhos
E ergue quem come dela ao grau de nume;
De tais prodígios há sobejas provas.
A serpente diícreta (ou não obstada
Como nós somos, ou porque é rebelde)
Comeu do fruto, e... não morreu ainda
(Castigo com que muito nos ameaçam);
Pelo contrário, desde então possui
Humana voz, entendimento humano,
Persuasivo poder, razão pasmosa,
Que por bons argumentos conseguiram
Que eu comesse também tão grato fruto
E nele encontre análogos efeitos.
Sinto os olhos mais claros que eram dantes,
Mais vasta a mente, o coração mais nobre.
E ao ser de divindade ir-me elevando.
Para ti mais busquei tais privilégios;
Dispensá-los sem ti bem poderia.
Tenho por dita a dita em que tens parte;
Ódio e tédio me faz se não a partilhas.
Come também: no amor como iguais somos,
Nos dotes, na alta dita iguais fiquemos:
E bem pondera que, se tu não comes,
Diversa hierarquia nos desune;
E, quando mesmo renunciar eu queira
Ao grau de nume porque muito te amo,
Talvez já seja tarde e o fado me obste".15
- Canto 9, 856-94.
Tradução de A. J. L. Leitão, op. cit., pp. 272-73. [N. do T.]
Dois leitores, sejam alunos ou críticos, jamais interpretam essa fala exatamente
da mesma maneira, fato por mim constatado sempre que tento iniciar um debate
sobre
tais versos. Em parte, isso ocorre porque o próprio Milton encerra aqui atitudes
antitéti-cas. De início, as palavras caem muito mal nos ouvidos de Adão, que
delas
depreende a sentença de morte da esposa e, em seguida, afirma que ao seu lado há
de morrer. Todavia, Adão refere-se a Eva como "última e mais perfeita obra de
Deus".
Prometo doravante não mais malhar C. S. Lewis (a propósito, atual herói dos
fundamentalistas do Sul dos Estados Unidos), mas ele ousa afirmar que Eva é
culpada de
tramar a morte de Adão! Com efeito, Eva receia ser substituída por uma segunda
mulher, e os cabalistas especulam que ela própria já seria a segunda esposa de
Adão,
depois que este e Lilith, a primeira mulher, romperam, por discordarem a
respeito da posição física adequada ao
ato sexual.
A questão central da fala de Eva é se o vasto conhecimento a torna uma
divindade, conforme expressa Keats. A pergunta leva-nos de volta ao labirinto da
imaginação
de Milton e, inevitavelmente, à questão de Satanás, que, enfim, abordo. Em
termos sha-kespearianos, Satanás é um herói-vilão, fazendo lembrar
características de
Macbeth e de lago. De vez que Milton reúne espírito e poder em um só conceito, o
poeta é um vitalista teomórfico, nos moldes do Jacó, ou Tamar, de Javé. A
maioria
de nós não vê com a mesma seriedade de Milton a ideia de sermos criados à imagem
de Deus. Milton acreditava no Deus interior, e não no Pai-de-Ninguém, pensado
por
Blake, conquanto seja essa a figura divina retratada pelo autor em Paraíso
Perdido. O problema estético da obra é, precisamente, o Deus irado, ameaçador,
um equívoco
de um grande poeta. Milton deveria ter imitado o atrevimento do autor bíblico,
que nos apresenta um Javé inteiramente humano, que, à sombra de uma árvore,
devora
o repasto preparado por Sara - vitela, pães, coalhada e leite - e, em seguida,
tem a satisfação de profetizar que ela haverá de dar à luz um filho. Em vez
disso,
um Milton monístico apresenta-nos um Deus dualista, propenso a posturas
espirituais. Nos momentos mais autênticos, Milton rejeita a perda dos sentidos
humanos, pois,
para ele, a realidade era apreendida através da sensação, certeza esta que a
cegueira só viria reforçar. O génio miltoniano nega qualquer distinção entre o
natural
e o transcendental, motivo pelo qual Satanás assume uma representação tão
extraordinária.
A liberdade da imaginação miltoniana, segundo o próprio poeta, estava
associada ao conceito de Luz Interior, preconizado pela tradição protestante
radical, e à
interpretação que o poeta advogava com respeito à Liberdade Cristã e à Liberdade
dos Santos. A regeneração miltoniana aperfeiçoa a natureza sem a mutilar. Satã,
dualista católico, não compreende a fusão de espírito e energia nele próprio
contida - eis a sua tragédia. O crítico de Milton que mais me agrada, W. B. C.
Watkins,
afirma que "a paixão é sem84
85
pre mais forte, em Milton, do que a razão". Paraíso Perdido é o épico da paixão,
e não da razão. Por isso, Satã é, esteticamente, superior a Adão, embora não a
Eva.
Na tentativa de distanciar-se de Satã, Milton, no Canto 5, apresenta-se como o
serafim Abdiel, cujo nome (que significa "criado de Deus"), na Bíblia hebraica,
pertence
a um humano, não a um anjo. Abdiel é o único recalcitrante, em meio à numerosa
hoste celestial de Satanás, o único anjo que se opõe a Satã, "envolto em chamas
iradas".
Na avaliação dos outros anjos, Abdiel "perdeu o momento", assim como Milton
perdeu o momento, a partir de 1660, até falecer, em 1674.
O desafio de Abdiel provoca a resposta de Satanás, a meu ver, a mais
problemática encontrada em todo o poema, justamente porque essa resposta se
aproxima do cerne
do génio do próprio Milton:
Lembras-te tu de como foste feito,
De quando aprouve a Deus assim formar-te?
Não conhecemos época nenhuma
Em que não existíamos como hoje;
Ninguém antes de nós não conhecemos.16
- Canto 5, 856-860
Satanás aqui não fala por Milton, o ser humano, mas não será esse o
posicionamento de Milton, o poeta? Não teria ele dito, também, "a nossa pujança
emana de nós
mesmos", e não de Shakespeare, ou de Spenser? A liberdade do poeta é a maior
aspiração de Milton, o âmago da sua integridade. O leitor pode afirmar, se
quiser, que
essa liberdade resulta de uma leal obediência à vontade de Deus, mas quem haverá
de interpretar tal vontade? Milton a interpretava para si mesmo, confiando,
exclusivamente,
em sua própria autoridade, para ele, idêntica ao seu próprio génio.
16 Tradução de A. J. L Leitão, op. át., p. 164. [N. do TJ
LEON TOLSTOI
- Ah, que sujeito extraordinário! - exclamou o chefe. - Foi agraciado com muita
terra!
O empregado de Pahóm chegou, correndo, e tentou erguê-lo, mas viu que o sangue
lhe jorrava da boca. Pahóm estava morto!
Os Bashkir estalaram a língua, demonstrando compaixão.
O criado pegou a pá e cavou uma sepultura suficientemente longa para conter o
corpo do Pahóm, e ali o enterrou. Um metro e oitenta e cinco, dos pés à cabeça,
era
tudo o que ele precisava.
- "De Quanta Terra Precisa um Homem?"
James Joyce considerava o conto escrito por Tolstoi, já no final da carreira,
intitulado "De Quanta Terra Precisa um Homem?", a melhor história escrita até
então.
O meu voto seria para a noveleta de Tolstoi, Hadji Murad, mas ninguém duvide que
Tolstoi foi o melhor dos contistas, pois sua prática artística, assim como a de
Shakespeare, confunde arte e natureza. Não surpreende o fato de Tolstoi não
gostar de Shakespeare. Tolstoi insistia que Harriet Beecher Stowe era muito
superior
ao poeta dramático inglês.
As narrativas de Tolstoi são de uma riqueza espantosa. Tolstoi enfurecia-se
com Rei Lear, considerando a peça imoral. Em toda a obra shakespeariana, o
escritor
russo gostava apenas de Falstaff. Trata-se da reação de um génio a outro génio,
algo que está fora do nosso alcance, mas sempre podemos aprender com Tolstoi e,
mais
do que nunca, quando ele está redondamente enganado.
O génio de Tolstoi era, perigosamente, semelhante ao de Shakespeare, o que, de
certo modo, estarrecia o criador de Guerra e Paz, Anna Karenina, Hadji Murad e A
Sonata a Kreutzer. O leitor pode-se iludir com a ideia de que Shakespeare e
Tolstoi são os mais naturais dos escritores, pois essa ilusão é quase universal.
Tolstoi
e Shakespeare são incomparáveis ao retratar mudanças, e o que há de mais natural
do que um processo cuja forma final é a morte? Pierre, na conclusão de Guerra e
Paz, é totalmente diferente daquilo que era no início do romance, mas a
continuidade do personagem é mais do que convincente. Falstaff, ao percorrer o
grande arco
que vai da alegria à rejeição, é sempre Falstaff, e não um duplo. Tolstoi não
perdoava Shakespeare, por este ter chegado antes dele.
86
87
LEON TOLSTOI
(1828-1910)
Em 1882, Tolstoi estudou hebraico com um rabino e dedicou-se, arduamente, à
leitura da Bíblia, para desespero da esposa. Sempre que a religião o absorvia, o
relacionamento
do casal esfriava e, de modo geral, reaproximavam-se quando ele voltava a
escrever ficção. Havia muito tempo, Tolstoi deixara de comungar com a Igreja
Ortodoxa Russa,
tornando-se um "tolstoiano", com muitos seguidores, na Rússia e no exterior. O
comentário definitivo sobre a religião de Tolstoi partiu de Maxim Gorki: "As
relações
entre ele e Deus são bastante suspeitas; às vezes, fazem-me lembrar a relação
entre dois ursos em uma mesma caverna." Era impossível para Deus ficar à vontade
na
companhia do conde Leon Tolstoi.
Definir o génio de Tolstoi é empreendimento absurdo; o escritor russo possuía
a exuberância e a criatividade de Balzac e Hugo, mas quase nada da inibição e do
atrevimento dos colegas franceses. A avaliação que Tolstoi faz da grande
literatura é mais enigmática do que afrontosa. Ele censura Shakespeare,
especialmente Rei
Lear, mas aceita Falstaff, porque o mestre da espirituosidade "não fala como um
ator". De certa maneira, Tolstoi percebia que Shakespeare era o seu grande
rival,
como ficcionista. Cada vez mais constato que as duas partes de Henrique IV,
consideradas em sequência, constituem o romance dos romances.
Minha obra predileta de Tolstoi continua sendo Hadji Murad mas, tendo escrito
sobre a mesma já em outras duas ocasiões, recorro a outra noveleta, para
ilustrar
a genialidade do autor: A Sonata a Kreutzer (1889), composta vários anos antes
de Hadji Murad. Reler A Sonata a Kreutzer é quase uma experiência traumática:
não
sei se elogio Tolstoi, por hipnotizar-me, ou se estremeço diante do narrador da
história, o insano Pozdnyshev. Esse personagem ensandecido não é Tolstoi, que,
afinal,
jamais assassinou a condessa, embora, flagrantemente, às vezes desejasse fazêlo. No entanto, o relato contém um posfácio em que Tolstoi endossa a tese de
Pozdnyshev,
de que todo relacionamento sexual é nocivo e, portanto, deve ser sustado, mesmo
entre marido e mulher. No parágrafo anterior, isentei Tolstoi do atrevimento
tímido
de Balzac e Hugo; ocorre que atrevimento como esse que consta do referido
posfácio excede qualquer ousadia, trans-portando-nos ao cosmo tolstoiano, que é
dotado
de princípios singulares. O génio de Tolstoi é tão absoluto que, de início, é
preciso considerar a autoridade cosmológica do escritor, o que nos convence
estarmos
diante de uma ficção inigualável, e esse diferencial, por sua vez, reforça o que
sou obrigado a denominar "autoridade estética", expressão que o deixaria
furioso.
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Tudo o que Tolstoi escreveu, inclusive os tratados morais e teológicos mais
desvairados, constitui leitura sumamente interessante. À semelhança de
Shakespeare, tem-se,
em Tolstoi, a ilusão de que a natureza é quem escreve. O paradoxo, óbvio a todos
os leitores, é que a arte clássica das narrativas de Tolstoi e dos dramas
shakespearianos
só parece ser arte depois que nos recuperamos do impacto mimético e nos forçamos
à prática analítica. O crítico marxista Gyõrgy Lukács foi obrigado a considerar
Tolstoi um "caso especial", de vez que a perspectiva formalista não dava conta
da visão do autor, nem do mundo por ele criado. Lukács queria ver em Tolstoi a
expressão
derradeira do Romantismo europeu, mas, sendo um leitor extraordinário, rendeu-se
aos momentos grandiosos em que Tolstoi "mostra-nos um mundo claramente
diferenciado,
concreto e realista". Um cosmo de tamanha dimensão transcende o género romance,
e faz o épico
renascer:
O mundo é a esfera da realidade social pura, na qual o homem existe como
homem, não como ser social, ou como essência isolada, singular, pura e,
portanto, abstrata.
Se o mundo vier a existir como algo natural e, simplesmente, percebido através
da experiência, como se fosse a única realidade verdadeira, um novo e completo
sistema
poderá ser construído a partir das substâncias e relações existentes. Seria um
mundo em que a nossa realidade dividida não seria mais do que um pano de fundo,
onde
estaria superado o nosso mundo dualista da realidade social, assim como
superamos o mundo da natureza. Mas a arte jamais poderá ser o agente desse tipo
de transformação:
o grande épico é uma forma restrita ao momento histórico, e qualquer tentativa
de retratar o utópico como real está fadada a destruir a forma, não a criar uma
realidade.
O romance é a forma da era do pecado absoluto, como disse Fichte, e há de
permanecer a forma dominante, enquanto o mundo for regido pelos mesmos astros.
Em Tolstoi,
insinuações de avanço rumo a uma nova era são visíveis; mas tais insinuações
permanecem polémicas, nostálgicas e abstratas.
Lukács, eminente crítico, a um só tempo fortalecido e limitado pela
perspectiva marxista, atesta a força suprema da capacidade de representação de
Tolstoi, comparável
apenas a um reduzido grupo de escritores: Homero, o autor bíblico, Dante,
Chaucer, Shakespeare, Cervantes, Proust. Tal força provoca a ilusão de o autor
de A Sonata
a Kreutzer ser o menos "literário" dos escritores, ilusão que se deve a uma
profunda ten-denciosidade e a uma perseguição incessante ao leitor, fatores que
posicionam
Tolstoi entre Santo Agostinho e Freud, mestres de uma retórica que se configura
como um tipo de psicologia. Tolstoi almeja a salvação e a cura do leitor; na
Sonata,
o autor parece uni
89
tanto ou quanto insano, e espera garantir salvação e cura a partir da suspensão
universal da prática do ato sexual, seja dentro ou fora do casamento. O fato de
uma
história baseada em tal premissa constituir leitura sumamente interessante, na
verdade, irresistível, é uma prova desconcertante do génio quase singular de
Tolstoi.
Shakespeare, em sua última comédia, Medida por Medida, criou uma Viena mítica,
onde a lei determina a decapitação de todo homem que praticar sexo fora do
casamento.
Na realidade, se tal lei fosse cumprida à risca, o mundo seria, rapidamente,
despovoado, embora de modo menos radical do que aquele vislumbrado por Tolstoi,
em carta
ao companheiro Chertkov:
Portanto, o ¦homem deve evitar o casamento e, se casado, deve viver com a
esposa como se fossem irmãos (...). Dirias, em objeção, que isso implicaria o
fim da
espécie humana? (...) Grande infortúnio! Os animais que viviam antes do dilúvio
desapareceram da Terra; os animais humanos desaparecerão também.
Maxim Gorky, na obra Lembranças de Tolstoi, relata uma ocasião em que Tolstoi,
assobiando, tentou acompanhar o canto de um tentilhão; incapaz de fazê-lo,
afirmou:
Criaturinha raivosa! Está enfurecido. Que pássaro é esse?
Falei-lhe do tentilhão, de como é ciumento.
A vida toda, um só canto - ele disse - e, ainda, ciumento. O homem
traz no
coração mil cantos e, mesmo assim, também é culpado de ciúme; isso é justo?
Tolstoi falava em tom meditativo, como se dirigisse as perguntas a si mesmo.
Em certos momentos, um homem diz a uma mulher mais do que ela deveria
saber a seu respeito. Ele fala e se esquece, mas ela se lembra. Quiçá, o ciúme
não
decorre do medo de aviltar a alma, de ser humilhado, ridicularizado? Não é
perigosa
a mulher que domina o homem pela luxúria, mas a que o domina pela alma (...).
Quando apontei a contradição existente entre tal pensamento e a Sonata, o
brilho de um súbito sorriso irrompeu-lhe da barba, e ele disse:
Não sou um tentilhão.
A noite, enquanto caminhávamos, ele disse, repentinamente:
O homem sobrevive a terremotos, epidemias, aos horrores da doença e à
agonia da alma, mas, em todos os tempos, a sua maior tragédia tem sido, e sem
pre o será, a tragédia da cama.
O pobre Pozdnyshev é um tentilhão, que se torna assassino em consequência da
"tragédia da cama". O crítico John Bayley esclarece Tolstoi, comparando-o a
Goethe
e pondo em xeque o contraste que Thomas Mann estabelece entre os dois grandes
escritores:
Tolstoi também era um grande egoísta, mas um egoísta bastante diferente.
Enquanto Goethe interessava-se apenas por si mesmo, Tolstoi nada mais era, além
de si mesmo;
e o entendimento de Tolstoi, quanto ao sentido que a vida passara a ter para
ele, é mais íntimo e mais tocante.
Decerto, a aproximação entre Tolstoi e o leitor é algo intensamente misterioso
e, no caso da Sonata a Kreutzer, desconcertante. Todavia, não conheço um único
leitor
que simpatize com o desgraçado Podznyshev, embora ninguém possa deixar de se
comover diante do horror e do realismo da descrição do momento em que o marido
enlouquecido
de ciúme mata a esposa:
- Não minta, infeliz! - gritei, agarrando-lhe o braço com a mão esquerda, mas
ela conseguiu escapar. Então, sem largar o punhal, ainda com a mão esquerda,
agarrei-lhe
a garganta, atirei-a de costas no chão e tentei estrangulá-la. Que pescoço firme
(...)! Com as duas mãos, ela agarrou a minha, tentando livrar a própria
garganta;
como se estivesse apenas esperando aquela reação, golpeei-a, com toda a minha
força, enterrando-lhe o punhal abaixo das costelas.
Quando alguém diz que não se lembra do que fez durante um acesso de fúria, é
tudo mentira, falsidade. Lembro-me de tudo, e nem por um instante perdi a
consciência
do que estava fazendo. Quanto mais alucinado, mais claramente a luz da
consciência brilhava dentro de mim, de modo que era impossível deixar de saber o
que estava
ocorrendo. Eu sabia o que fazia a cada segundo. Não posso dizer que já soubesse,
antecipadamente, o que iria fazer; mas sabia o que fazia enquanto o fazia, e,
creio,
até pouco tempo antes de fazê-lo, como que para possibilitar o arrependimento e
convencer-me de parar. Sabia que o golpe fora desferido abaixo das costelas e
que,
naquele ponto, o punhal penetraria. No momento do ato, sabia que estava fazendo
algo terrível, algo que jamais fizera antes, algo que teria consequências
terríveis.
Mas tal pensamento passou-me pela mente como um relâmpago, e o ato seguiu de
perto o pensamento. Agi com uma clareza extraordinária. Lembro-me de ter
sentido, momentaneamente,
a resistência do corpete, de outro elemento, e, em seguida, da sensação do
punhal penetrando algo mole. Ela agarrou o punhal com as duas mãos, cortando-se,
mas não
foi capaz de impedi-lo.
90
91
Durante muito tempo, na prisão, tendo passado por uma mudança de natureza
moral, pensei naquele momento, relembrei os detalhes da cena, e muito refleti.
Lembrei-me
de que, por uma fração de segundo, antes de cometer o ato, tomei consciência de
estar matando, de ter matado, uma mulher indefesa, minha esposa! Lembro-me do
horror
da constatação e, por isso, segundo uma vaga lembrança, após enfiar o punhal,
retirei-o, imediatamente, tentando remediar o que fizera, tentando parar com
tudo aquilo.
Permaneci imóvel, durante um segundo, esperando para ver o que sucederia, se
havia algum meio de reverter a situação.
Ela pôs-se de pé e gritou: - Criada! Ele me matou!
Talvez, somente por se tratar de Tolstoi seja possível apontar genialidade no
trecho acima, sem incorrer em moralismo, ou sadismo. Quando penso em Tolstoi, as
lembranças chegam a me oprimir: o Príncipe André, apaixonando-se por Natasha, ao
vê-la cantar ao clavicórdio; Anna Karenina, na cama, olhando a chama da última
vela,
que oscila e se extingue; Hadji Murad, ferido de morte, "trôpego, avançando
(...), punhal na mão, diretamente, contra o inimigo". Somada a essas lembranças,
a memória
da mulher de Pozdnyshev, agarrada ao punhal, cortando as mãos, sem conseguir
contê-lo, faz-me estremecer.
Tem fundamento o chavão da crítica de que Tolstoi enxerga as coisas como se
ninguém as houvesse visto antes, embora, ao mesmo tempo, revista de um sentido
universal
a estranheza daquilo que descreve. É um tanto desconcertante testar esse chavão
recorrendo à cena em que Pozdnyshev assassina a esposa, mas o fato é que a
máxima
parece válida. A habilidade de Tolstoi como contador de história é tamanha, que
torna esse homicídio fictício tão memorável quanto o assassínio de Duncan
adormecido,
perpetrado por Macbeth. Shakespeare perturbava Tolstoi porque o distanciamento
deste, como autor, assemelha-se ao de Shakespeare e, nos momentos em que a arte
suprema
se afirma, o moralismo exacerbado cessa. Deixa-me aturdido a ideia de que, na
opinião de Tolstoi, meus comentários seriam provenientes de mais uma vítima
seduzida
por sua arte, arte esta por ele próprio rejeitada, mesmo quando nela triunfa.
Gary Saul Morson expressa o dilema, de modo irrefutável: "A Sonata a Kreutzer é
uma
obra-prima estética, construída com brilhantismo, que nos ensina a desprezar
esse mesmo constructo, esse mesmo domínio artístico - eis a dupla estratégia da
obra."
Os diálogos de Platão, porém, expressam a mesma duplicidade: são esplendores
estéticos que nos ensinam a marginalizar a experiência estética. Tolstoi, assim
como
Platão, condena a arte por ter certeza de conhecer a verdade, mas Tolstoi é o
Sócrates de si mesmo, disposto a se martirizar pela verdade. Tanto Platão quanto
Tolstoi,
supremos artistas literários, são capazes de recorrer à sedução ao mesmo tempo
em que a censuram.
A Sonata a Kreutzer é concluída com um páthos, para mim, irresistível e
imperdoável:
Ele tentou continuar, mas, não conseguindo controlar os soluços, calou-se. Uma
vez recomposto, prosseguiu:
Só comecei a entender quando a vi no caixão...
Acometeu-lhe mais um soluço, mas ele prosseguiu, falando depressa:
Só quando a vi morta pude entender o que havia feito. Dei-me conta de
que
eu, eu, a matara; que, em consequência do meu ato, ela, que estava viva, mexendo-se, cálida, agora estava imóvel, uma estátua de cera, e fria, e que a
situação não
poderia, jamais, em lugar algum, de modo algum, ser revertida. Quem não pas
sou por isso não pode compreender... -Após inúmeros soluços, ele se calou.
Permanecemos em silêncio durante um longo tempo. Ele continuava a soluçar e
tremer, calado, sentado à minha frente. Seu rosto tornara-se fino e comprido, e
a boca
parecia atravessar-lhe o semblante, de lado a lado.
É - ele disse, subitamente. - Se eu soubesse o que sei agora, tudo
seria dife
rente. Nada me faria casar com ela... Jamais teria me casado.
E voltou a ficar calado durante um bom tempo.
Perdão...
Deu-me as costas e deitou-se no assento, cobrindo-se com a manta de la. Quando
chegamos à estação em que eu deveria desembarcar (eram oito horas da manhã),
dirigi-me
a ele, a fim de me despedir. Se dormia, ou se apenas fingia estar dormindo, o
fato é que não se mexia. Toquei-o com a mão. Ele descobriu o rosto, e pude ver
que
não pregara os olhos.
- Adeus - disse-lhe, estendendo-lhe a mão. Estendeu-me a sua, com um leve
sorriso, tão digno de pena que quase me fez chorar.
- Sim, perdão... - ele disse, repetindo as palavras com que havia concluído o
relato.
Tolstoi, decidido a nos punir por sermos incapazes de resistir à sua
genialidade, não nos reserva qualquer perdão. Ele (que teve 13 filhos com a
esposa), realmente,
quer dizer que não deveria ter se casado, e que nós tampouco deveríamos tê-lo
feito. O fato de autor e leitor/crítico não chegarem ao perdão mútuo não faz a
menor
diferença, quando se trata de apreender a ficção de Tolstoi - o que me parece um
meio adequado de iden-tificar-lhe o génio.
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LUSTRO 2
Lucrécio, Virgílio, Santo Agostinho, Dante Alighieri, Geoffrey Chaucer
E
stabeleci este segundo Lustro de Keter como o grupo da influência, de modo que
surge aqui um reflexo obtido através de justaposição. Lucrécio permeia Virgílio
com
uma intensidade espantosa, o que explica a versão mais vibrante de epicurismo
encontrada neste último. Agostinho, cujo pensamento levou a uma retórica cristã
e a
uma teoria de leitura, é perseguido por Virgílio, autor do principal texto nãobíblico que concorreu para a formação da mente do bispo de Hipona. Dante, cuja
força
justificaria, plenamente, a sua inclusão no Lustro 1, é aqui situado porque seu
auto-retrato como Peregrino repete o de Agostinho, sendo, também, parodiado pelo
Peregrino de Chaucer, um irónico que, afavelmente, censura a maioria dos valores
absolutos. Chaucer poderia, também, ser situado no primeiro Lustro, pois suas
maiores
criações - o Vendedor de Indulgências e a Mulher de Bath - são os precursores
fundamentais dos niilistas e vitalistas shakespearianos, embora não possuindo o
estofo
titânico do niilista e vitalista, Hamlet, Príncipe da Dinamarca.
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TITO LUCRÉCIO LARO
6 iw í míP CUÍÈP
LUCRÉCIO
A amada não 'stá perto, para variar? Mas sua imagem 'stá, e o doce
nome Ressoa em teus ouvidos. Mas devemos Dessas sombras fugir, afugentar O
alento do
amor, voltando a atenção Para outro alguém... lançando nosso suco Em corpos
disponíveis, sem guardá-lo Para uma só amante, a nós mesmos Causando apenas dor
e sofrimento.
Alentada, a ferida vai crescendo, Empola-se, levando à aflição... Melhor é curar
males co' algo novo, Andando atrás de quem anda na rua;
Volta a atenção p'ra outra, enquanto podes!
*
Não será surpresa o fato de Lucrécio ter desaparecido durante mais de mil anos
cristãos, até o grande poema de sua autoria ser revivido no século XV. É
possível
que Dante jamais tenha ouvido falar em Lucrécio, e teria ficado constrangido com
De rerum natura (Sobre a Natureza das Coisas), especialmente porque, com
certeza,
perceberia o quanto Virgílio devia a Lucrécio.
Poetas influenciados por Lucrécio - de Virgílio a Shelley e Wallace Stevens carac-terizam-se pelo distanciamento da superstição, mas o efeito mais marcante
de
Lucrécio pode ser percebido em poetas cristãos abalados pelo vigoroso
materialismo do predecessor romano: Tasso, Spenser, Milton, Tennyson.
Nada em Lucrécio é mais estimulante do que o desprezo do poeta pelo idealismo
erótico, conforme ilustrado nos versos acima. Byron, com a sua argumentação em
favor
da "mobilidade" sexual, foi, talvez, o mais sábio pupilo do erotismo lucreciano.
Os males e as perdas do amor não têm melhor médico do que Lucrécio, cuja visão
do
cosmo na condição de "plataforma em chamas" constitui uma perspectiva de cura
para ansiedades de origem sexual.
Um génio que nos adverte da proximidade da superstição organizada e do erotismo
altado deveria estar em desvantagem nos dias atuais. Mas a grande relevância de
Lucrécio é que nenhum outro poeta ensina-nos tão bem a não temer a morte,
ensina-nto do qual Montaigne foi seguidor. Descartando, sumariamente, a
sobrevivência e
a imortalidade, Lucrécio procura livrar-nos do medo e da melancolia, libertação
que a
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97
TITO LUCRÉCIO CARO
TITO LUCRÉCIO CARO (c. 99-c. 55 A.E.C.)
Lucrécio, o mais eloquente defensor do "ateísmo" e do materialismo metafísico
em nossa tradição, tem sido, constantemente, lido de maneira equivocada, fato,
com
toda certeza, inevitável, de vez que a filosofia epicurista de Lucrécio é
inaceitável ao cristianismo, ao islamismo, ao judaísmo e a toda tradição
religiosa ocidental.
São Jerónimo descartou Lucrécio, difamando-o com tamanha eficácia que o poeta
desapareceu durante mais de mil anos, sendo resgatado somente no século XV. Bom
seria
que Dante tivesse lido Lucrécio: níjp teria o poeta epicurista se tornado um
contraste diabólico de Virgílio, Estácio, Ovídio e Lucano, presenças cruciais na
Commediâ.
Ninguém é capaz de cristianizar Lucrécio, nem mesmo Dante.
Sobre a vida de Lucrécio, nada sabemos, exceto da difamação cristã imputada
por São Jerónimo. Supostamente, a esposa do poeta, Lucília, reagindo à
indiferença
sexual do marido, ministrou-lhe um elixir do amor que o levou à loucura. Pelo
que consta, Lucrécio compôs Sobre a Natureza das Coisas, seu esplêndido poema
didático,
em certos momentos de lucidez, e suicidou-se aos 44 anos. Talvez seja positivo o
fato de Dante jamais ter encontrado sequer uma referência ao nome de Lucrécio.
Seria
revoltante contemplar o poeta-mor epicurista levantando-se do túmulo, no
Inferno, para fazer um relato dantesco sobre a própria vida, seus enganos
teológicos e o
suicídio. Em todo caso, já temos algo semelhante, no magistral monólogo
dramático de Tennyson - "Lucrécio" (1868) -, em que, envenenado, o bardo do
materialismo
filosófico vocifera a agonia de suas tempestuosas alucinações:
Fez-se na natureza algum vazio; Romperam-se os vínculos em tudo; Vi riachos de
átomos em chamas, Torrentes do confuso universo, Irrompendo em meio ao grande
vácuo,
Colidiram em pleno espaço aéreo, Construindo sucessivas ordens vivas, Para
sempre: foi este, pois, meu sonho, Era só meu, assim como é do cão Dedicado a
floresta
percorrida: Mas a visão seguinte! Pensei ver Todo o sangue de Cila, como chuva
Caindo sobre a Terra e, do vermelho Prado, não emergiam dragões guerreiros,
Conforme eu esperava ver no sonho, Mas jovens, Hetairai, de ofício indigno,
Animalismo
escravo, tão vil quanto O que fez a má fama das orgias Do Ditador de faces
azuladas, Orgias mais infames que as dos deuses. De mãos dadas, gritavam e
giravam A meu
redor, chegando-se a mim, E eu gritei, sufocado, dando um salto... Era o clarão
do meu último dia?
Então, em meio às sombras, vi os seios, Eram seios de Helena, protegidos Por
espada, ora acima, ora por baixo, Ora à frente, disposta ao combate, Mas eis que
se
abateu ante à beleza; Enquanto eu contemplava, surge um fogo, Fogo que destelhou
a antiga Tróia, Entre os seios, queimando-me - acordei.
Nesse grandioso pesadelo sexual, Tennyson realiza uma estranha mescla de si
mesmo, Lucrécio e Enéas (de Virgílio). Cila (Sula) é o ditador de faces
azuladas, célebre
pelas orgias que organizava, segundo consta, sensacionais, mesmo para padrões
romanos. As Hetairai (prostitutas) cercam o Tennyson virgiliano, até o momento
em que
ele avista Helena, ameaçada pelo vingativo Enéas, mas os fabulosos seios
desarmam a espada troiana, nitidamente, fálica. O que tudo isso tem a ver com
Lucrécio e
seu grande poema sobre a natureza das coisas? Muito pouco, exceto que a
bisbilhotice cristã de Jerónimo transmite a Tennyson uma leitura equivocada do
verdadeiro
Lucrécio. Além disso, lennyson aqui reage contra o epicurismo contemporâneo dos
poemas de Algernon Charles Swinburne e dos primeiros ensaios de Walter Pater.
Epicuro (341-270 a.e.c.) propusera em Atenas um racionalismo hedonista, baseado
em uma teoria materialista (atómica). O epicurismo nega a imortalidade da alma,
descarta
a noção de Divina Providência e ignora o idealismo platónico, especialmente na
es era erótica, defendendo uma lépida e sensata promiscuidade, não
gratuitamente,
mas _ para evitar os desastres da paixão. Epicuro e seu discípulo poético,
Lucrécio, afirmam a
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alegria da existência natural e nos exortam a aceitar a realidade da morte, sem
o falso consolo da religião. Os deuses existem, mas não têm relevância,
mantendo-se
distantes de nós e indiferentes ao nosso sofrimento e ao nosso prazer.
Epicuro, assim como, mais tarde, Lucrécio, tem merecido poucos elogios por
parte da cultura oficial do Ocidente, mas é inegável a grande influência de
Lucrécio,
às vezes tácita, sobre um leque de poetas que vai de Virgílio a Wallace Stevens.
Meu aforismo emersoniano predileto é, estritamente, epicurista e central à
tradição
de Lucrécio:
Assim como as preces dos homens são uma doença da vontade, suas crenças são uma
doença do intelecto.
*
Os conteúdos de Lucrécio são fortes, e têm provocado sentimentos ambivalentes
em seus admiradores, desde Virgílio, passando pelos poetas renascentistas
(Tasso,
Spenser, Du Bartas), chegando a Montaigne, Molière, Dryden, Shelley e Walt
Whitman. De modo surpreendente, o dogmatismo hedonista do sublime Lucrécio
sempre me remete
à tendenciosidade de Agostinho e Dante, tão fervorosamente convictos de sua
verdade cristã quanto Lucrécio de seu epicurismo. Sobre a Natureza das Coisas
apresenta
a poesia da crença, tomando Epicuro como o fundador de uma religião antireligiosa, da qual ele era, basicamente, uma espécie de líder, na Atenas de seus
dias. Lucrécio
procura ser o mais devoto dos epicuristas, mas é extremamente idiossincrático o
seu temperamento, cuja melhor expressão, em língua inglesa, são as traduções de
John
Dryden (1685), que, infelizmente, verteu apenas alguns trechos do poema. Dryden
observou, com correção, que "as características marcantes de Lucrécio (quero
dizer,
de sua alma e de seu génio) são uma espécie de orgulho nobre e a asserção
positiva de suas opiniões". O mesmo poderia ser dito sobre Dante, o antiLucrécio, o que
nos faz lembrar que as sensibilidades dos poetas são mais importantes do que
suas ideologias.
George Santayana, no livro Three Philosophical Poets (1910), aproxima Lucrécio
de sua antítese, Dante, e de Goethe, este mais epicurista do que cristão. Porém,
o estudo de Santayana foi escrito há quase um século, e, a meu ver, nenhum dos
três poetas era, basicamente, filosófico. Lucrécio não é Epicuro em versos;
Dante
não é Agostinho em versos; e Goethe é tão-somente Goethe em versos. Nem mesmo a
rapsódica invocação a Epicuro que abre o Livro 3 de Sobre a Natureza das Coisas
exprime
a voz do precursor grego, mas a severa sublimidade romana que faz de Lucrécio o
anti-Dante:
Quando a razão, surgida da mente divina, eleva a voz a fim de proclamar a
natureza do universo, os pavores da mente são afugentados, os baluartes do mundo
se abrem,
e posso contemplar a marcha dos eventos através do espaço.
São reveladas a majestade dos deuses e o plácido local onde residem, jamais
sacudido por tempestades, nem encharcado por nuvens carregadas de chuva, nem
desfigurado
por nevascas congeladas. Um céu de éter sem nuvens os encima, e sorri, com um
brilho pródigo e grandioso. Tudo o que necessitam lhes é suprido pela natureza,
e nada,
jamais, corrompe-lhes a paz de espírito. Não vejo, em parte alguma, as antesalas do Inferno, embora a Terra não me impeça de contemplar tudo o que se passa
nos
espaços inferiores. Diante disso, sou tomado por um deleite divino e um tremor
reverente, pois, pela vossa força, a natureza se descobre e se manifesta em toda
parte.
tom
vii
Tais palavras, sem dúvida, advêm do Evangelho segundo Epicuro, mas a visão e o
pertencem, exclusivamente, a Lucrécio. Seu "deleite divino" é expresso com um
gor
sustentado intensamente, um panorama do universo da natureza, contemplado das
alturas. A autoconfiança cosmológica de Lucrécio leva-nos a deixar de lado o
medo da
morte, e considerá-lo irrelevante. Lucrécio enfrenta, com serenidade, o mundo
violento com o qual o seu poema não foi capaz de ensinar a Virgílio a lidar
(serenamente).
A arte de Lucrécio é menos variada do que a de Virgílio, e o efeito estético da
mesma sobre mim não é tão intenso quanto o de Virgílio; porém, ganho mais lendo
Lucrécio.
100
101
VIRGÍLIO
Eram tantas as almas, quanto folhas Que dos galhos se soltam e percorrem Matas
na precoce geada outonal, Ou aves migratórias oceânicas Que o céu encobrem,
quando
chega o frio E a terras luminosas as impele; Lá estavam, implorando prioridade
Na travessia, braços estendidos Ao litoral longínquo.
- Eneida, Livro 6, 307-15
O Virgílio de Dante pouco tem a ver com o poeta romano, que não ansiava pela
dis-pensação cristã. Virgílio, profundamente influenciado por Lucrécio, tinha
uma
visão epicurista da prevalência da dor e do sofrimento na existência, e não
contemplava qualquer transcendência futura. Em vez de servir de guia a Dante, o
Virgílio
histórico estaria no Inferno, dividindo um mesmo túmulo com Farinata, ou
correndo sobre as areias escaldantes com os sodomitas. A opção de Dante por um
determinado
guia foi de natureza estética, sem qualquer relação com a alegoria teológica.
Como génio poético, Virgílio nada tem em comum com Dante, mas as afinidades do
poeta romano com Lucrécio e Tennyson são autênticas e reveladoras, e certos
aspectos
de Robert Fiost são, igualmente, relevantes.
Virgílio é o laureado do pesadelo: a sua versão da deusa Juno é a mais
incisiva representação literária que conheço do medo universal masculino com
relação à força
da mulher. Na Eneida, o amor é uma espécie de suicídio. Dido, a figura mais
cativante do épico, mata-se antes de suportar a humilhação de ser abandonada
pelo puritano
e carola Enéas, mais parecido com o protetor de Virgílio, o Imperador Augusto,
do que com Aquiles ou Ulisses.
Todos nós, em Virgílio, estendemos os braços ao litoral longínquo, deixando
para trás os prazeres naturais e as dores eróticas, enquanto somos transportados
ao
sombrio além. Para Virgílio, não existe vitória na vitória, e seus deuses são
tão pobres de espírito quanto poderosos no domínio que exercem sobre nós. No
entanto,
a eloquência de Virgílio é extraordinária: a litania da perda jamais voltaria a
ter o mesmo primor.
Cwi^ CmètJ Cm^J
VIRGÍLIO (70-19 A.E.C.)
Poeta, psicólogo-teólogo e poeta dos poetas (excluindo-se Shakespeare), os
três estarão para sempre interligados, em consequência de uma nostalgia pela
autoridade
romana o anseio pela ordem, ao mesmo tempo, transcendental e mundana. Contudo,
os três não viveram vidas paralelas. Virgílio morreu sem ter concluído o épico
Eneida,
e, claramente, desejava a destruição do manuscrito. Agostinho, Bispo de Hipona,
região hoje correspondente à Argélia, morreu no momento em que os vândalos
forçavam
os portões da cidade em que ele habitava. Dante faleceu em consequência de
malária, contraída em missão diplomática realizada em favor de um patrono que o
auxiliara
financeiramente durante o longo período em que esteve exilado de Florença. Uma
tristeza é comum a essas três mortes: Virgílio queria ver sua obra destruída;
Agostinho
temia o futuro do seu rebanho, ameaçado por hereges bárbaros, e Dante morreu
quando faltava apenas um quarto de século para chegar à idade "perfeita" (81
anos),
ocasião em que a sua profecia seria concretizada. Contudo, cada um desses
visionários realizou milagres de génio: a Eneida; as Confissões e A Cidade de
Deus, e A
Divina Comédia.
Pensando em termos da nossa contemporaneidade, Virgílio teria sido um poeta
profissional, com efeito, laureado pelo Império Agostinho, um professor de
literatura
convertido a bispo católico; e Dante, um político florentino fracassado
transformado em poeta-profeta, à semelhança de Isaías e Ezequiel. No século que
acaba de
terminar, não tivemos quem se comparasse a esses titãs. Joyce, católico
renegado, Proust, cético meio-judeu, e Kafka, epítome do judeu exilado, são as
nossas pedras
de toque, no que concerne à imaginação, e talvez não sejam, sumariamente,
superados por Virgílio, Agostinho e Dante, em Lermos de originalidade criativa.
E não há
qualquer nostalgia pela ordem romana, em Joyce, Proust ou Kafka. Para
detectarmos anseios por noções arcaicas de ordem, temos de recorrer a figuras
menores, como
Ezra Pound e T. S. Eliot. Pound, em que pese a eloquência esporádica, não é um
Virgílio, e Eliot, apesar do rigor, não se iguala a Agostinho, como intelecto,
nem
a Dante, como poeta. Se (conforme achava W. H. Auden) o Dante dos nossos tempos
foi Kafka, é possível designar Proust o nosso Agostinho, visionário da memória e
do tempo, e Joyce o nosso Virgílio, ambos seguidores de Homero. Mas a tríade do
século XX era composta de mestres do caos, não de defensores da ordem.
O latim, elemento comum a Agostinho, cristão, e a Virgílio, pagão, foi o
antepassado do vernáculo toscano de Dante, convertido em linguagem literária de
toda a
Itália,
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precisamente por ter sido utilizado na Divina Comédia. Para um romano-africano
erudito como Agostinho, a proximidade de Virgílio, passados quatro séculos,
compara-se
à que hoje existe entre Shakespeare e nós. Agostinho foi um leitor
extraordinário, análogo a Samuel Johnson, na Inglaterra do século XVIII. Em um
estudo recente,
The Shadows ofPoetry: Verga in the Mind of Augustine (1998), Sabine MacCormack
observa que o teólogo cristão "foi, sem dúvida, o mais inteligente e curioso
leitor
de Virgílio em toda a Antiguidade". Eu diria que o que atraía Dante a Agostinho
não era tanto a questão teológica, mas a admiração de ambos por Virgílio. Os
estudos
atuais equivocam-se ao enfatizarem a ortodoxia católica de Dante, de vez que o
poeta florentino impôs o próprio génio à fé tradicional de Paulo e Agostinho.
Mas,
cabe registrar, Dante batizou a imaginação de Virgílio,* convertendo um poeta
epicurista em celebrante protocristão. Agostinho cita Virgílio, copiosamente, em
contextos
cristãos, a fim de salientar a moral cristã, mas esquiva-se de qualquer
interpretação forte, pessoal, como a que Dante confere à obra do poeta romano.
O Virgílio da Divina Comédia é, necessariamente, um personagem literário,
tanto quanto Dante, o Peregrino. Dante é tão convincente em termos de autoridade
poética
que o leitor pode levar um certo tempo até perceber que, apesar dos nomes
históricos, todas as figuras da Comédia são personagens literários. O poeta
latino Estácio
jamais se converteu ao cristianismo, mas Dante precisava dele, em uma cena
crucial e comovente, um encontro com Virgílio, no Purgatório, e, assim, a reles
verdade
histórica foi alterada. Virgílio, conforme veremos, foi, em vários aspectos,
discípulo do grande poeta epicurista, Lucrécio, evidentemente, desconhecido de
Dante
e cuja obra teria estarrecido o mestre toscano.
A Comédia tem apenas três personagens principais: Dante, o Peregrino;
Virgílio, o "pai"; e a figura magnífica, enigmática de Beatriz, elevada por
Dante à extraordinária
eminência na hierarquia celeste. O enigma de Beatriz é ser invenção do próprio
Dante, audácia difícil de ser equiparada em toda a literatura. Não fosse Dante
um
dos dois poetas supremos do mundo ocidental, Beatriz seria a imposição
ultrajante de um mito pessoal à formidável estrutura da teologia católica.
Sugiro, no espírito
deste livro, que pensemos Beatriz como o génio de Dante Alighieri, sua "amante
interior", para usar uma expressão de Wallace Stevens. O génio de Virgílio era o
pesadelo
- Juno -, sempre um mau agouro. Para Dante, Beatriz era a boa-nova, o Evangelho
segundo Dante.
A Divina Comédia é um "poema sagrado", e não um épico, e, pode-se dizer, Dante
considerava a obra o Terceiro Testamento, um complemento das Escrituras. Não
encontramos
em Shakespeare uma única figura que possa ser considerada seu génio: Hamlet,
Falstaff, Cleópatra, lago, Macbeth, Lear, Rosalinda podem ser arrolados, mas
apenas
como um todo. O génio de Milton, segundo Blake e Shelley, é Satã; mas o
apel cabe melhor à Luz Interior, convocada pelo poeta protestante na Invocação
do Livro 3 de Paraíso Perdido.
Toda grande poesia perde algo em tradução, e a Comédia, melhor poema, tem mais
a perder do que a Eneida. Paradoxalmente, Dante sobrevive melhor à tradução do
que
Virgílio. O Purgatório, tradução do poeta norte-americano W. S. Merwin, que
acabo de reler, expressa mais da originalidade inventiva de Dante do que
trabalhos igualmente
admiráveis, tais como as versões da Eneida, feitas por Robert Fitzgerald e Allen
Mandelbaum. Dante, mestre da nuança, ainda mais do que Virgílio, é dotado de
tamanho
poder cognitivo, força de vontade e desejo, que o seu texto, mesmo quando carece
de nuança, ainda assim denota uma potência sobrenatural. A autoconfiança de
Dante
é imensa, igualada pelos melhores poetas da Inglaterra - Shakespeare, Chaucer,
Milton -, mas uma ironia comum a Shakespeare e Chaucer esconde-nos a
autoconfiança
que ambos têm. A exuberância de Milton constitui o caminho mais próximo para a
de Dante, mas é difícil identificar um poeta de língua inglesa que se assemelhe
muito
a Virgílio. Tennyson e T.' S. Eliot têm seus aspectos virgilianos, e ambos se
aproximam, embora de modo bastante distinto, da eloquência onírica e
horripilante de
Virgílio.
A Eneida é um poema infinitamente paradoxal, pois, de certo modo, o herói
épico, protagonista, é baseado em Otávio César, o Imperador Augusto (sobrinho e
herdeiro
de Júlio César), que derrotou António e Cleópatra e, indiscutivelmente, fundou o
Império Romano. Augusto era protetor de Virgílio; foi Augusto que recebeu e
preservou
a Eneida, contrariando a vontade do autor no leito de morte. O Imperador
necessitava do poema porque este conferia à era noções de ordem e grandiosidade,
conquistas
básicas da autoridade; Enéas sempre vislumbra o futuro, o surgimento de uma nova
Tróia em Roma, que há de pôr um fim ao exílio e dar início à justiça. Dante,
exilado
dos exilados, encontrou justiça na Comédia, mas cabe inquirir se Enéas e
Virgílio não teriam as suas diferenças. Tudo o que Virgílio encontra é
sofrimento, sofrimento
sem fim. Enéas é o herói do poema, mas não de Virgílio, divergência que torna o
épico ainda mais interessante, pois inserir o herói errado no poema certo é
antecipar
a arte de Shakespeare.
Fico deveras perplexo diante do fato de jamais ter encontrado um leitor que
preferisse o herói, Enéas, por mais admirável que seja, a Dido, amada e
abandonada
por Enéas, e a Turno, morto por Enéas, embora só tenha conseguido fazê-lo depois
que o herói italiano foi entorpecido por ação de uma fúria obscena, "enviada"
por
Juno. Qual seria o objetivo de Virgílio, concedendo ao herói uma vitória escusa,
em que ele mata algo que, com efeito, já está morto?
Os deuses de Epicuro e Lucrécio permanecem distantes de todas as questões
humanas, mas o Virgílio epicurista, que lia Lucrécio como Escritura Sagrada,
oferece-nos
um Júpiter pouco mais benevolente que a esposa - Juno é um monstro. O génio de
Virgílio
104
105
é ativado a partir de profunda compaixão pelo sofrimento humano, inclusive o
dele próprio, e, no entanto, a essência desse mesmo génio parece ser a ansiedade
constante,
o terror extremo ante a ira interminável de Juno. Em Virgílio, a figura de Juno
pode ser considerada a terrível projeção onírica de algo universal relacionado
ao
medo que o homem tem da força feminina. Com sutileza, Virgílio sugere uma
orientação homoeró-tica (favorável a Dido, amante desprezada por Enéas),
deflagrada por
Turno, rival e vítima de Enéas. Virgílio, que celebrava Augusto César como a
esperança de ordem, paz e justiça no mundo, não enfrentava a realidade com uma
atitude
que sequer se aproximasse da esperança.
O génio de Virgílio está, em parte, contido na extraordinária capacidade de
expressão do poeta e em sua fantástica sensibilidade ao sofrimento. Tais
qualidades
compensam a relativa fraqueza de Virgílio, no aspecto em que, geralmente, o
génio manifesta toda a sua potência: a originalidade. Na primeira metade da
Eneida, Virgílio
dedica-se a imitar a Odisseia, na segunda, a Ilíada. E a filosofia religiosa do
poeta baseia-se na intensidade epicurista de Lucrécio, poeta que jamais seria
lido
por Dante, mas cuja obra, supõe-se, estava sempre sobre a mesa de Virgílio.
Virgílio talvez seja o primeiro autor europeu a demonstrar que, em termos de
inventividade,
o génio pode ser, relativamente, fraco, desde que possua sensibilidade marcante
e versátil. Quando penso na Eneida, sem abrir as páginas do livro, lembro-me da
humilhação
de Dido, abandonada por Enéas, o cafajeste virtuoso, insuportável em sua
nobreza. Entretanto, esta é apenas uma das perspectivas possíveis, pois Virgílio
é, a um
só tempo, frio com seus personagens femininos e extremamente sensível à sua
realidade. Os personagens jovens, do sexo masculino, têm, para o autor, uma
pungência
de que Dido carece. Mulher alguma em Virgílio (segundo me recordo) é comparada a
uma flor, mas os rapazes são como flores. Essa atitude transcende um
homoerotismo
latente, estando relacionada a uma visão de mundo que, ao mesmo tempo, aceita e
repele a aridez lucreciana no que concerne ao domínio de Vénus. Notoriamente,
sempre
posicionando-se dos dois lados do muro, Virgílio talvez seja o mais ambivalente
de todos os grandes poetas, superando até Baudelaire.
A Eneida é, francamente, um épico; contudo, a tonalidade do poema é tão
elegíaca que o torna absolutamente ímpar no género. O herói traz o coração
partido, em
luto eterno por Tróia, mesmo enquanto persegue a missão de fundar Roma. Poetas
cristãos, de Dante a T. S. Eliot, insistem que Virgílio é um poeta em busca de
revelação,
ideia que me parece tão estranha quanto as supostas afinidades entre os
Evangelhos e a Ilíada, apontadas por Simone Weil. Eliot, meio século atrás,
escreveu: "Somos
todos, à medida que herdamos a civilização europeia, cidadãos do Império Romano,
e o tempo ainda não refutou Virgílio." Já bastante fatídica após o horror
nazista,
a observação de Eliot, nos dias de hoje, chega a ser bizarra. A ideologia
augustiana que permeia a obra de
Vireílio era compatível com a romanização do cristianismo, mas é arcaica na era
atual do império da informação. O nosso Imperador Augusto é o segundo George
Bush,
que dispensa qualquer Virgílio. O fato de o génio de Virgílio ainda ser válido e
atual susten-ta-se exclusivamente, devido à persistente sensibilidade do poeta,
que pouco tem a ver com Enéas, ou com Augusto.
O cosmo de Virgílio é comandado por um Júpiter surpreendente, nem homérico nem
lucreciano. Em Homero, os deuses constituem a nossa audiência; em Lucrécio, nada
têm a ver conosco. Em Virgílio, Júpiter decide os nossos destinos: sua vontade
faz as nossas guerras, estabelece o perene domínio romano, o abandono de Dido
por
Enéas. O destino - ou vontade de Júpiter - é masculino, e não pode ser
distinguido da força, do poder. Juno - irmã e esposa de Júpiter - é imagem digna
de um pesadelo,
e pode ser considerada a Musa da Eneida, pois a ira e o ressentimento da deusa
empurram o poema como marcha fúnebre, um progresso rumo à destruição fulgurante.
Um
dos principais atributos estéticos da Eneida é o avanço constante da ação. Os
eventos se sucedem sem remorso, contra Virgílio, extremamente suscetível a toda
e qualquer
angústia retratada. Essa discrepância, entre a inexorabilidade da narrativa e o
sofrimento implícito do poeta, constitui um traço extremamente original da
Eneida,
raro até mesmo na literatura mais criativa. Dante, cuja afinidade com Virgílio
é, em grande parte, um mito, não exibe (aos meus ouvidos) esse contracanto
virgiliano.
Virgílio era epicurista, mas, ao contrário de Lucrécio, o autor da Eneida não
encontrava consolo nas advertências de Epicuro com relação ao medo e à
ansiedade. Existirá
poeta com uma angústia mais sublime do que Virgílio? Tanto quanto o seu
protagonista, Enéas, Virgílio é impelido por uma vontade mais forte do que ele
próprio, e
que torna o heroísmo supérfluo. Todavia, Virgílio não é carola, ao contrário de
Enéas. Não temos a impressão de que Virgílio idolatre o destino, assim como não
venera
a terrível Juno.
Dido, Rainha de Cartago, ainda confere a Virgílio glória inusitada, passados
tantos séculos da história literária. O amor que leva à morte de Dido possui
energia
ainda hoje espantosa: será possível que o incolor Enéas tenha nela provocado
tamanha paixão? Temos a sensação de que ela encontrou o homem errado: Turno, o
rei italiano
morto por Enéas ao final da epopeia, teria sido parceiro mais adequado, um
António, fosse ela uma Cleópatra. Os temperamentos de Dido e Turno são
incendiários; Enéas,
em dados momentos, pressagia Daniel Deronda, de George Eliot, o mais cioso dos
puritanos. Mas Dido, vitimada por Vénus, por Juno e, na verdade, por Enéas, é
inesquecível,
em sua ousadia tão autêntica:
- I or que esconder meus sentimentos? Com receio de que males piores devo me
conter? Ele suspirou, enquanto eu chorava? Sequer olhou para mim? Cedeu, ver106
107
teu lágrimas ou compadeceu-se daquela que o amava? O. que devo dizer primeiro? E
depois? Não, nem a poderosa Juno nem o velho Saturno encaram essas coisas com
justiça!
A boa-fé já não merece confiança. Eu o acolhi, náufrago, mendigo, e, loucamente,
com ele dividi meu trono; resgatei-lhe a frota perdida, salvei da morte os
tripulantes.
Ai de mim! Rodopio em meio ao fogo. Primeiro, o profético Apolo, depois, os
oráculos lícios, então, um mensageiro dos deuses, enviado pelo próprio Júpiter trazem-me
pelo ar essa ordem terrível. Decerto, isso é trabalho para os deuses, é
tribulação para lhes perturbar a paz! Não te deterei; não contestarei tuas
palavras. Vai,
parte para a Itália com o próximo vento; busca teu reino além das ondas. Mas,
tenho fé, se os deuses justos têm algum poder, provarás da taça da vingança nos
rochedos
do caminho, e chamarás o nome de Dido.
Ela já está decidida a se suicidar, e as traduções, por mais fiéis e literais,
não expressam nem a humilhação nem o trauma de Dido, sentimentos dos quais
Virgílio
é o grande mestre. Dido tenta denunciar tudo ao mesmo tempo, a fim de exprimir a
sensação de ser consumida pelas chamas. O desdém que ela demonstra pelo plantel
de divindades, cuja função é levar a termo o abandono de uma única mulher
apaixonada, é intenso, e sua fúria por ter sido traída faz lembrar Medeia. Seria
interessante
saber como Dante interpretaria esse trecho, pois, em sua vida amorosa, o poeta
toscano deve ter provocado reações bastante semelhantes à de Dido. Não há
misoginia
em Virgílio, apesar das conclusões de estudiosos. Como sempre, o poeta não é
imparcial; antes, de modo curioso, posiciona-se tanto do lado de Dido quanto de
Enéas,
feito, praticamente, impossível. Enéas não tem defesa: aproveita-se da viúva
virtuosa, sem por ela estar apaixonado, e a melhor explicação que consegue
apresentar
para a sua própria cafajestada é patética: os deuses obrigaram-me a assim
proceder, e por que não posso fundar a minha cidade, assim como fundaste a tua?
Quem não
desejaria que Dido tivesse atirado uma lança em Enéas?
Chegando a Averno, o sedutor de viúvas passa por maus momentos, durante um
encontro com a sombra de Dido, mas Virgílio cochila nesta cena, conforme
denunciado
pelo grande crítico, Samuel Johnson, para quem Virgílio não passava de um
imitador do originalíssimo Homero. Chegando ao Hades, Ulisses é desprezado por
Ajax, que
para ele perdera as armas e a armadura de Aquiles. Muito aprecio a energia
esplêndida de Johnson, ao destruir Virgílio:
Enviado por Virgílio ao mundo das trevas, Enéas encontra Dido, Rainha de
Cartago, levada ao túmulo pela perfídia do herói; ele a aborda, com carinhos e
desculpas,
mas a dama dá-lhe as costas, como o fizera Ajax, ignorando-o com desdém Ela se afasta, como Ajax, mas a este não se assemelha, quanto ao exercício
das qualidades que conferem dignidade ou decoro ao silêncio. Ela bem poderia, de
acordo
com sua conduta prévia, ter irrompido em imprecações e denúncias, como qualquer
outra mulher injuriada; mas a imaginação de Virgílio estava tomada por Ajax, e,
portanto,
foi incapaz de convencer o poeta a ensinar a Dido qualquer outro meio de
expressar ressentimento.
-The Rambler, N2121
Johnson é aqui injusto com Virgílio, mas o comentário não deixa de ser
procedente. Acossada por Homero, a originalidade de Virgílio advém do páthos e
da negatividade
desdenhados por Johnson, mas que tanto apelam às nossas incertezas, assim como
tocaram e convenceram os primeiros leitores de Virgílio. Tais visões negativas,
inclusive
a história de Dido, emergem de um conflito em Virgílio, entre a rejeição da
glória política, militar e erótica (segundo Lucrécio), de um lado, e a exaltação
romântica
do heroísmo e a busca do reencontro com Penélope (na Odisseia), de outro. Do
ponto de vista poético, felizmente, Virgílio não consegue resolver sua
ambivalência.
Houvesse Lucrécio convertido Virgílio, inexoravelmente, a um epicurismo severo,
a morte não teria para Virgílio qualquer importância, e perderíamos uma
sublimidade
plangente, para sempre singular:
Daqui, uma estrada leva às águas do Aqueronte tártaro. Aqui, em meio a espesso
lodaçal e correntes profundas, um redemoinho regurgita, vomita areia no Cocito.
Essas
águas são guardadas por um barqueiro sisudo, esquálido - Caronte -, que tem no
queixo um tufo de cabelos grisalhos, e olhos como globos em chamas; a capa suja
lhe
é presa ao ombro por um nó. Sozinho, com uma vara, ele impele o barco, iça as
velas e, em seu ofício tenebroso, transporta os mortos - está velho, mas a
velhice
de um deus é intrépida, vigorosa. Para aqui corre a multidão, fluindo a estas
margens; mães, homens, corpos de heróis de almas nobres, agora sem vida;
meninos, jovens
solteiras, filhos levados à pira diante dos olhos dos pais; são tantos quanto as
folhas da floresta que, na primeira geada do outono, despregam-se e caem; tantos
quantos os pássaros que, vindos do oceano, convergem para o litoral, quando o
tempo frio os lança ao mar, em busca de terras ensolaradas. Lá estão, implorando
preferência
na travessia, braços estendidos, ansiando pela margem distante. Mas o barqueiro
carrancudo escolhe a quem transportar, empurrando os demais para longe da orla.
-Livro 6, 295-313
108
109
A metáfora das folhas como gerações de seres humanos é de Homero, mas é
transformada por Virgílio, com uma criatividade que inspirou muitos poetas, de
Dante a
Spenser, Milton e Shelley, chegando a Whitman e Wallace Stevens, nos Estados
Unidos. Passamos, das folhas outonais e das aves migratórias, ao grande páthos
das almas
infelizes, insepultas, empurradas para trás, destinadas a perambular pelas
margens malditas das águas negras durante um século. Estender os braços,
ansiando pela
margem distante, é desejar o esquecimento, característica de Virgílio, não de
Homero, nem de Lucrécio. Augusto e o destino romano recuam; o que permanece é
esse
anseio negativo.
SANTO AGOSTINHO
Eles lêem, eles selecionam, eles amam: lêem para todo o sempre, e o que lêem
jamais fica ultrapassado. Ao ler, selecionam e, ao selecionar, amam. Seu códice
jamais
se fecha, seu livro jamais é cerrado, pois o próprio Deus é o seu texto,
eternamente.
- Confissões
Os anjos não precisam ler, mas nós precisamos. Não são pegos pelos dilemas da
memória e do tempo. O génio de Agostinho definiu tais dilemas, especialmente no
que
respeita à leitura, com uma clareza permanente. Brian Stock, no estudo Augustine
the Reader (1996), atribuiu a Agostinho a primeira teoria de leitura elaborada
no
Ocidente; a meu ver, a teoria de Agostinho talvez ainda seja a melhor de que
dispomos. Se a era do livro encontra-se em decadência (temporariamente, espero
eu),
é vital recordar que Agostinho teve muito a ver com a instituição do livro como
base do pensamento. No entanto, sendo um cristão extremamente devoto, Agostinho
duvidava
que a leitura, de fato, promovesse o esclarecimento, conquanto insistisse que
jamais poderíamos prosseguir em nosso crescimento espiritual sem leitura intensa
e
extensa.
A memória autobiográfica, como base de reflexão, é, essencialmente, fruto da
criatividade de Agostinho. Se alguns de nós pensamos em nossas vidas como
textos,
devemos a noção a Agostinho.
Como narrador das Confissões, Agostinho torna-se um Enéas cristão, ao mesmo
tempo, perturbando-nos e nos impressionando tanto quanto o Enéas de Virgílio. A
fiel
concubina de Agostinho, mãe de seu filho, foi, duramente, abandonada, à
semelhança de Dido. Se Enéas pode parecer um puritano hipócrita, Agostinho pode
parecer algo
pior, um santarrão presunçoso. Vale lembrar, porém, que grandes génios nem
sempre têm uma personalidade capaz de espalhar alegria à sua volta.
Agostinho temia a vontade, que, tantas vezes, à moda de Hamlet, posiciona-se
contraria à palavra. A vontade de Deus é inescrutável, a menos que se aceite uma
grande
margem de erro, e a não ser através de uma leitura da Bíblia profundamente
informada pelo desejo sincero de conhecer Deus. Agostinho sabia que o único
leitor ideal
é o próprio Deus, e, no entanto, jamais existiu leitor cristão mais consumado.
110
111
SANTO AGOSTINHO
SANTO AGOSTINHO
(354-430)
Santo Agostinho foi um escritor extraordinário, intelectual formidável, e o
mosaico de génios aqui proposto não pode dispensá-lo, apesar de todo o meu
constrangimento.
Agostinho defendia a dispersão dos judeus, e não o seu extermínio, mas foi
também o primeiro teórico da Inquisição, segundo o biógrafo oficial, Peter
Brown. Atualmente,
muitos leitores das duas obras mais célebres de Agostinho - Confissões e A
Cidade de Deus - pendem a uma reação ambivalente, a não ser os crentes
dogmáticos. Garry
Wills, em recente estudo sucinto, sugere, com perspicácia, o emprego do título
Testemunho, em lugar de Confissões, a fim de evitar implicações que, de maneira
equivocada,
remetam à noção de "confissões verdadeiras". Infelizmente, a estratégia não
funciona; as referências a Testemunho, no estudo de Wills, irritam o leitor, já
familiarizado
com o título original. O tema de Agostinho é a formação de um cristão, conquanto
sua história transcenda o que a maioria dos norte-amerícanos hoje chama
"conversão"
a Cristo.
A originalidade de Agostinho é responsável pela invenção da autobiografia, mas
eu não depositaria ali o seu génio. O pensamento é impossível sem a memória, e a
memória,
em uma consciência ampla, pode muito bem depender da leitura. Ainda hoje,
Agostinho oferece mais reflexão sobre a memória do que qualquer outro estudioso,
e talvez
continue a ser o melhor professor de leitura. Sobrecarrega-me um pouco tal
afirmação, pois prezo Samuel Johnson e Ralph Waldo Emerson, e não gosto de
Agostinho,
mas ele foi o primeiro grande leitor, na concepção defendida por Johnson e
Emerson, e, de certo modo, ainda é o mais apto, descontando-se sua
tendenciosidade, comparável
à de Freud, embora em direção oposta. Em uma voga que só agora começa a chegar
ao fim, temos sofrido a imposição de "teóricos" da leitura um tanto enfadonhos.
Agostinho
é apresentado por Brian Stock como o teórico que proveu os fundamentos de uma
cultura baseada na leitura, o que me parece irrefutável. Grande parte do
entendimento
a que pude chegar sobre a minha própria obsessão pela leitura e pela memória
advém de Agostinho (às vezes, a contragosto).
Começo com Virgílio, pois em Virgílio tem início Agostinho, que sempre
interagiu com o poeta romano. Embora criativa, a leitura que Dante fez de
Virgílio foi
distorcida, mas Agostinho leu Virgílio corretamente, o que produz uma fascinante
curiosidade: o Virgílio de Dante é agostiniano, mas o Virgílio de Agostinho,
absolutamente,
não o é. Tanto para Agostinho quanto para Dante, Virgílio é o predecessor
idealizado (no caso de Agostinho, confundido, estranhamente, com Santo
Ambrósio), mas Virgílio
não foi o verdadeiro precursor literário nem do bispo africano, nem do poeta
florentiNo caso de Dante, tal figura seria um misto do humanista Brunetto Latini e do
poeta florentino Guido Cavalcanti. Para Agostinho, os verdadeiros precursores
foram
os neoplatonistas Plotino e Porfírio, ambos tendo rejeitado Cristo. Virgílio,
conforme já observei, viveu à sombra de Homero e, mais ainda, de Lucrécio.
Agostinho
leu Lucrécio e, como seria de se esperar, detestava-o, mas fascina-me a noção de
Lucrécio não ter estado disponível a Dante, cuja reação à leitura de Lucrécio
seria a fúria.
Embora Agostinho, ao lado de Ambrósio e Jerónimo, tenha se tornado um dos
"fundadores da Idade Média", conforme os chamou E. K. Rand, é importante ter em
mente
o fato de que o bispo-teólogo começou a carreira na função que hoje chamamos
professor de literatura, e seu texto primordial era Virgílio, assim como o nosso
texto
central são as obras completas de Shakespeare. Agostinho inebriava-se nas
palavras, sempre fascinado por linguagem figurada, embora, com o passar do
tempo, só aprovasse
o uso desse tipo de linguagem na Bíblia. Mais até do que Dante (sempre um
político, mesmo no exílio), Agostinho era um homem de letras, uma personalidade
literária
antes mesmo de se tornar figura-chave da Igreja ocidental. Agostinho, o teólogo,
pouco me interessa aqui, conquanto salientar-lhe a acuidade psicológica e a
perspicácia
literária signifique, igualmente, invocar-lhe a originalidade espiritual, mesmo
que a aspereza dessa espiritualidade dificulte a sua aceitação.
Os estudos da consciência, Agostinho, com efeito, iniciou com Plotino, mas
rompeu, decisivamente, com o neoplatonismo ao entender o autoconhecimento como
resultado
da memória, e não da intuição. Vemos a nós mesmos, como um processo de
continuidade, através do exercício de recriação ensejada pela memória: a
autobiografia é,
praticamente, inconcebível sem a memória, o que, em grande parte, constitui uma
descoberta agostiniana. Virgílio, presença contínua para Agostinho, da infância
à
velhice, contribuiu, implicitamente, para essa formulação do papel da memória na
construção da consciência individual. Contudo, para Virgílio, e para o Enéas por
ele criado, memória implicava nostalgia, ou pesadelo. Virgílio é, por assim
dizer, um aperitivo da insistência de Nietzsche de que a dor é mais memorável
que o prazer.
Para Agostinho, ate o esquecimento constitui parte vital da memória, pois tornase um mito cristão da memoria, no qual as três forças da alma refletem, em nós,
a
Trindade e sua unidade misteriosa. A noção de "entendimento" foi herdada da
filosofia clássica, mas a "vontade agostiniana, assim como a "memória", é
criação de
Agostinho, por mais surpreendente que a asserção possa parecer. Todavia, para se
revalorizar a memória, é preciso modificar a visão que se tem de intelecto, e,
para
Agostinho, o que une memória a intelecto é a vontade de Deus, atuando na alma
como o princípio paulino de caritas, o amor do Deus criador por suas criaturas,
homens
e mulheres. A memória, conforme
112
113
reiterado nas Confissões, é o agente por meio do qual as outras forças da alma
são forjadas à imagem de Deus. Apresento aqui uma amostra das Confissões, Livro
10:
É prodigiosa a força da memória, meu Deus. E um santuário vasto, imensurável.
Quem pode sondar-lhe as profundezas? Todavia, é uma faculdade da minha própria
alma.
Embora seja parte da minha natureza, não consigo entender tudo o que sou(...)
Chegamos a denominá-la [a memória] mente(...)
A força da memória é grande, O Senhor. É assombrosa, em sua complexidade
profunda e incalculável. No entanto, é a minha própria mente: sou eu mesmo. O
que, então,
sotueu, meu Deus? Qual a minha natureza? Uma vida sempre a variar, cheia de
mudanças, dotada de imensa força. As vastas planícies da minha memória e suas
inúmeras
cavernas e vales estão repletas de incontáveis elementos, de todos os tipos(...)
Mas em que parte da minha memória estás presente, O Senhor? Que cela
construíste para ti em minha memória?
(...) Estavas no meu interior, e eu, no mundo exterior. Procurei por ti no
mundo exterior. Procurei por ti no mundo exterior, e, embora desvirtuado, deparei-me
com as tuas adoráveis criações. Estavas comigo, mas eu não estava contigo.
Está implícita, nos trechos anteriormente citados, a transição, quase
invisível, da memória à vontade, processo denominado conversão. Não somos
capazes de recordar
todo o conteúdo da nossa memória, e o que somos mais propensos a esquecer é a
felicidade de ter conhecimento de Deus. A memória é força mais poderosa do que o
eu,
até que o eu chegue à seguinte percepção: "Estavas comigo, mas eu não estava
contigo." A vontade de conhecer Deus supera a fraqueza que nos faz dele
esquecermos.
Tal fraqueza envolve um mistério a ela relacionado - o tempo:
O que, então, é o tempo? Sei muito bem, desde que ninguém me pergunte; porém, se
perguntado, ao tentar explicar, fico perplexo.
Não podemos entender a eternidade, pois a nossa linguagem está inserida no
tempo, e, portanto, como poderemos definir, precisamente, a natureza do tempo? O
tempo
presente é apenas uma ficção de permanência, um poema, ou um conto; todavia,
tudo o que sabemos do passado ou do futuro está contido nesse poema, ou conto, à
medida
que o escrevemos. Não vejo a Trindade no trecho notável a seguir, ao contrário
de Garry Wills, mas lembro-me dessas palavras sempre que recito um poema em voz
alta,
o que
SANTO AGOSTINHO
significa que, embora descrente, penso em Agostinho várias vezes todos os dias,
pois quem mais teve essa percepção com respeito à experiência interior de
recitar
um poema que se tem na memória?
Suponhamos que eu vá recitar um salmo, de memória. No momento inicial, a minha
capacidade de expectativa é tomada pela totalidade do salmo. Após ter iniciado,
os trechos do salmo por mim removidos da esfera da expectativa, previamente
relegados ao passado, passam a ocupar a minha memória, e o escopo da ação por
mim sendo
realizada é dividido entre as duas faculdades, da memória e da expectativa, uma
olhando, em retrospectiva, para o trecho já recitado, a outra contemplando o
trecho
que ainda falta ser recitado. Mas a faculdade da atenção está presente o tempo
todo, e, através dela, aquilo que era futuro flui para o passado. À medida que o
fenómeno
prossegue, a esfera da memória estende-se, na proporção em que a esfera da
expectativa se retrai, até a expectativa ser totalmente absorvida. Isso ocorre
no momento
em que concluo a recitação, e tudo já fluiu para a esfera da memória.
O que vale para o salmo, como um todo, vale também para as partes, e para cada
sílaba. Vale para qualquer ação de caráter mais demorado da qual eu me ocupe e
na
qual a recitação do salmo represente apenas uma pequena parte. Vale para a vida
inteira de um homem, na qual todas as suas ações fazem parte. Vale para toda a
História
da humanidade, da qual a vida de cada homem faz parte.
- Confissões, Livro 11, 28
Declamo um poema lírico de W. B. Yeats, ou uma meditação de Wallace Stevens,
e, por causa de Agostinho, percebo que preciso confrontar a minha mortalidade, e
até
mesmo o meu conceito de História. Talvez o processo envolva a relação "três em
um" (poema, vida, História da humanidade), talvez não, mas Agostinho transformou
a
minha atividade em um ato de consciência que vai muito além das minhas
intenções, que se estendiam somente até o ponto da minha satisfação estética. A
força especial
de Agostinho é a capacidade de nos incomodar com seu poder de aguçar-nos a
consciência de vulnerabilidade, por menos que nos interesse o fato de ele
transcender
tal abismo.
O leitor, se assim desejar, pode entender Agostinho como uma ponte entre
Virgílio e Dante, mas considero tal conexão enganosa. A devoção de Dante - assim
como
a de John Milton ou a de William Blake - tem um caráter bastante pessoal, e
logra converter tao-somente os estudiosos anglo-americanos obcecados por
teologia. Agostinho,
igualmente idiossincrático, era um místico, interessado, em primeiro lugar, na
elevação da alma a Deus através da contemplação. Dante louva os contemplativos,
mas
ninguém
114
115
que o lê com atenção, nem mesmo no Paraíso, o confundirá com São Bernardo.
Embora Santo Agostinho tenha lutado contra a influência de Plotino e Porfírio,
jamais
conseguiu escapar da sombra de ambos. Peter Brown, mais uma vez, é conclusivo:
Agostinho, no entanto, estava impregnado dos métodos de pensamento neoplatônicos. Para ele, o mundo se caracterizava pelo "devir", uma hierarquia de formas
realizadas
de modo imperfeito, cuja qualidade dependia da "participação" no Mundo
Inteligível das Formas Ideais. O universo estaria em estado de tensão constante
e dinâmica,
em que as formas imperfeitas da matéria buscavam concretizar uma estrutura fixa,
ideal. *
A Igreja é a imagem sombria de uma igreja mais verdadeira, distante, situada
na Eternidade não aparente. Mas tal Eternidade, diferentemente do sistema
celestial
dantesco, é plotiniana, sendo alcançada somente através dos recursos da alma
interior. Esse neoplatonismo residual jamais abandona Agostinho, pois passa a
fazer
parte de sua natureza interior. Plotino é, para Agostinho, um ferimento mortal,
assim como Virgílio, gradualmente, evolui, de consolo mortal a oponente querido,
em A Cidade de Deus. Quando Agostinho pensava em "poesia", pensava em Virgílio;
os Salmos estavam além da poesia, sendo verdade. Dido era poesia, para
Agostinho,
assim como o é para nós. Agostinho sabia que a Dido histórica, Rainha de
Cartago, suicidara-se para não ter de casar com um rei africano um tanto
doentio. A história
do trágico amor de Dido pelo pilantra carola Enéas é invenção de Virgílio, em
que Dido assume o papel de uma Cleópatra combatida por Augusto, e de profetisa
das
terríveis guerras romanas contra o general cartaginês, Aníbal. Virgílio dá-nos
páthos, e não a verdade, conclusão que Agostinho estendeu ao mito,
universalmente
difundido, desde a era de Constantino, o imperador cristão, até os dias do
próprio Agostinho. Em sua quarta Écloga (cerca de 40 a.e.c), Virgílio profetiza
o advento
de uma criança divina:
E chegada a era final do canto de Cumas; a grande linhagem dos séculos é
reiniciada. Agora a Virgem retorna, e retorna o reino de Saturno; agora desce
dos céus uma
nova geração (...); sob a vossa influência todo e qualquer resquício da nossa
culpa tomar-se-á nulo, livrando a Terra do medo permanente. Ele terá o dom da
vida
divina.
Retorna a idade de ouro de Saturno, e retorna, também, a Virgem Astréia,
trazendo consigo a justiça divina. Equivocado, Constantino interpretou o messias
infante
de Virgílio como se fosse Jesus Cristo, assim transformando o pagão Virgílio em
profeta
do Advento Cristão. Agostinho, estudioso por demais competente para incorrer em
tamanho absurdo, não pretendeu acrescentá-lo às Escrituras, mas aprazia-se de
citá-lo,
como mecanismo de conversão de pagãos.
O que mais comovia Agostinho na obra de Virgílio era o sofrimento heróico de
Dido, bem como o tema central do exílio de Enéas de Tróia. Porém, depois da
queda
de Roma ante os hereges visigodos, em 420, Agostinho passa a manifestar uma
atitude diferente com relação a Virgílio, em A Cidade de Deus. Virgílio
permanece o melhor
e mais querido dos poetas, mas é rejeitado como o Virgílio de Augusto, que
encontra na Roma antiga apenas deuses corruptos, e almas corruptas que os
veneravam. À
medida que envelhecia, Agostinho manifesta o que Peter Brown chamou de
"humanismo obscurecido, que ligava o poeta pré-cristão ao presente cristão, na
expressão de
uma desconfiança comum quanto ao prazer sexual".
O génio de Agostinho não tem a grandeza literária daquele de Dante, ou de
Chaucer, mas é comparável à eloquência sombria de Lucrécio e ao lirismo elegíaco
de Virgílio.
No extremo, tal génio deve ser apreciado (ao menos por mim) com base em padrões
que não são nem espirituais nem estéticos. Agostinho, o Leitor (conforme o
celebra
Brian Stock), é um dos heróis da arte da leitura, hoje em extinção. Qualquer
pessoa que se dispuser a reler, ao longo de toda a vida, os seus livros
prediletos,
é discípula de Agostinho, embora este só reconhecesse o valor do aprendizado que
conduzisse à aceitação da revelação cristã.
116
117
DANTE ALIGHIERI
- Ó irmãos - eu disse -, que atravessando cem mil perigos alcançaram o oeste,
não nos impeçais de experimentar esta breve vigília dos sentidos que nos resta,
nos
raios do sol, o mundo despovoado. Considerai a semente de onde germinastes. Não
nascestes para viver como brutos, mas para seguir a virtude e o conhecimento.
- Inferno, Canto 26, 112-20
Ulisses assim se dirige aos seus seguidores, no momento em que se aproximam do
desastre, nos limites geográficos do mundo conhecido. Muitas das autoridades
atuais
em estudos dantescos pedem a nossa condenação a Ulisses, argumentando que a
linguagem do viajante é unicamente autocentrada, e que exalta a aventura heróica
sem
levar em conta o dever moral. Será a moralidade ou o génio de Dante que nos leva
a ler a sua obra? Benedetto Croce, o grande crítico italiano, preferia o génio:
"Nenhum contemporâneo era mais impelido pela paixão do saber do que Dante",
paixão essa que é a mesma do Ulisses de Dante, conquanto o personagem seja
situado nas
profundezas do Inferno, cercado de outros falsos conselheiros.
O próprio Dante, Peregrino da Comédia, nada diz, em resposta à fala de
Ulisses, for-çando-nos a conjecturar a reação do poeta à eloquência do herói. De
vez que
a viagem de Dante, no poema, constitui uma "fuga louca", semelhante à de
Ulisses, a identidade poética entre os dois tem mais peso do que a divergência
moral. Sendo
um leitor de 71 anos de idade, não me soa bem ouvir Ulisses falar da "breve
vigília dos sentidos que nos resta", sem, de certo modo, concordar com ele. Algo
em Dante,
a despeito dos entusiastas teológicos, também concorda com Ulisses.
Nada destrói o génio de Dante mais prontamente do que comentários que lhe
exaltem a suposta devoção religiosa e as virtudes humanas. Poeta algum, nem
mesmo John
Milton, foi um poço de orgulho assim como o foi Dante. Não podemos confiar na
atitude de Dante, com relação a Brunetto Latini, seu "mestre", situado no
Inferno devido
a uma sodomia talvez inventada pelo próprio Dante. Estácio, poeta romano
medíocre, que, decerto, se manteve pagão, surge na Comédia como grande poeta,
secretamente,
cristão. Não sendo, na verdade, um mártir, é possível que o Estácio de Dante
seja uma insinuação ao próprio poeta florentino, cujo génio era para ele mais
importante
do que as santidades de Agostinho e Aquino.
118
(1265-1321)
A vida de Dante Alighieri assemelha-se a um poema atribulado, mais próximo ao
Inferno do que ao Purgatório criados pelo poeta, bem distante do Paraíso. A
maioria
das biografias existentes não faz jus ao génio de Dante, à exceção da primeira
de todas, de autoria de Giovanni Boccaccio, devidamente descrita por Giuseppe
Mazzotta
como uma "obra ficcional discreta, similar à Vida Nova, do próprio Dante,
trabalho bastante sensível à contínua autodramatização levada a termo por Dante
em seus
próprios escritos". Tal ideia não deve causar surpresa a ninguém; Dante, assim
como Shakespeare, tem uma espécie de pensamento e imaginação tão vastos, que
biógrafos,
estudiosos e críticos tendem a contemplar apenas certos aspectos de um conjunto
extraordinário. Sempre recomendo a meus alunos, em lugar de todas as biografias
de
Shakespeare, a obra do falecido Anthony Burgess, Nothing Like the Sun, um
romance, de certo modo, joyciano, narrado por Shakespeare, na primeira pessoa.
O tão louvado Dante considerava-se um profeta, comparável ao menos a Isaías
ou Jeremias. Shakespeare, podemos supor, não se julgava profeta algum; o criador
de
Hamlet, FalstafF e Lear tem muito em comum com Geoffrey Chaucer, criador do
Vendedor de Indulgências e da Mulher de Bath, e Chaucer, sutilmente, zomba de
Dante.
Só mesmo alguém da eminência de Chaucer teria condições de tratar Dante com
ironia, e, na verdade, Chaucer admira muito mais do que diverge.
Não se pode discutir a questão de génio na História mundial sem se enfocar a
figura de Dante, pois somente Shakespeare, entre todos os génios da linguagem, é
mais
dotado do que o poeta florentino. Shakespeare, em grande parte, reinventou a
língua inglesa: cerca de 1.300 palavras, entre as 21 mil por ele utilizadas, são
de
sua criação, e todas as vezes que leio o jornal encontro inúmeras expressões
shakespearianas, frequentemente, sem que o respectivo autor se dê conta da
alusão. Contudo,
o inglês de Shakespeare foi herdado de Chaucer e William Tyndale, este o
principal tradutor da Bíblia protestante. Mesmo que Shakespeare nada houvesse
escrito, a
língua inglesa, conforme hoje a conhecemos, teria prosperado, mas o dialeto
toscano de Dante veio a ser a língua italiana, em grande parte, devido ao poeta.
Dante
é o poeta nacional, assim como o é Shakespeare, onde quer que se fale inglês, e
Goethe, em regiões onde predomina o alemão. Nenhum poeta francês, nem Racine,
nem
Victor Hugo, mereceria semelhante honra de modo tão consensual, e nenhum poeta
de língua espanhola é tão central quanto Cervantes. No entanto, Dante, embora
tenha,
praticamente, criado a língua iteraria italiana, mal se considerava toscano,
muito menos italiano. Era um florentino,
119
obsessivamente, e esteve exilado da cidade natal durante os últimos 19 dos 56
anos em que viveu.
Certas datas são cruciais para o leitor de Dante, a partir da morte de
Beatriz, ideal de amante, ou amante idealizada, em 8 de junho de 1290, quando o
poeta estava
com 25 anos de idade. Segundo o relato do próprio Dante, o amor por Beatriz era
o que denominamos platónico, embora tudo o que se refira a Dante só possa ser
qualificado
de dantesco, inclusive o seu catolicismo. Ao concluir, em 1314, o Inferno, a
primeira e mais célebre parte da Divina Comédia, o poeta estabeleceu a Páscoa de
1300
como data fictícia da jornada por ele empreendida no poema. Nos sete anos de
vida que lhe restavam, o poeta teve a fortuna sublime de compor o Purgatório e o
Paraíso,
de modo que o magnífico poema estava inteiramente concluído cerca de um ano
antes da sua morte.
Shakespeare morreu ao completar 52 anos, mas nada perdemos com a sua morte,
pois ele havia parado de escrever cerca de três anos antes. Quanto a Dante,
temos
a impressão de que teria realizado outros feitos literários, se tivesse vivido
um quarto de século a mais, para atingir a idade por elè considerada "perfeita"
81 anos, nove vezes nove, em uma perspectiva numerológica por ele próprio
esboçada, impossível de ser, inteiramente, decifrada.
Eis Dante, no Convívio (Livro 4, 24), dizendo-nos que a idade termina no 70a
ano, mas que pode haver sublimidade, se vivermos mais:
Daí consta que Platão - que (seja pela força da sua própria constituição, seja
segundo a descrição de Sócrates, quando da primeira vez que o viu), podemos
acreditar,
deve ter tido uma natureza excelente - viveu 81 anos, conforme afirma Túlio, na
obra Sobre a Velhice. E creio que se Cristo não tivesse sido crucificado, e
vivesse
o tempo que cabia, naturalmente, à sua vida, quando alcançasse a idade de 81
anos, seria transformado, de um corpo mortal, em um corpo eterno.
Que transformação Dante esperava ao completar 81 anos? Teria Beatriz, a Dama
dos Nove, ressurgido diante dele, nesta vida? George Santayana via em Beatriz a
plato-nização
do cristianismo; para E. R. Curtis, ela era o cerne do saber poético e pessoal
de Dante. Beatriz tem uma relação decisiva com a transfiguração que Cristo
sofreria
ao completar 81 anos, pois a data de morte da dama, segundo a obra do amante
intitulada Vida Nova, é estabelecida por um processo em que o número nove perfeito
- é repetido nove vezes. Aos 25 anos, ela é transformada, de corpo mortal, em
corpo eterno.
Dante, implícita e explicitamente, afirma ao longo da Comédia que ele próprio,
Dante, é a verdade. O mártir sufista Hallaj morreu por se autoproclamar a
verdade,
embora na Religião Norte-americana (em suas inúmeras vertentes) esse tipo de
afirmação seja lugar-comum. Converso com mórmons dissidentes, sectários batistas
e muitos
pente-costais que, sinceramente, afirmam ser a verdade. Nem Agostinho nem Aquino
teriam afirmado que eram a verdade. A Comédia não faria sentido se Beatriz não
fosse
a verdade e, no entanto, sem Dante, nenhum de nós teria ouvido falar de Beatriz,
A meu ver, é impossível exagerar a importância dessa questão, e não consigo
entender
por que Dante, que hoje em dia define o catolicismo para tantos intelectuais,
subjugou a possibilidade de o seu mito pessoal - Beatriz - ser uma heresia
comparável
aos mitos gnósticos de Sofia, ou princípio feminino, na Divindade. Simão, o
Mago, encontrou a sua Helena em um prostíbulo de Tiro, proclamando-a, a um só
tempo,
Helena de Tróia e Sofia (ou Sabedoria Divina) desonrada. O samaritano Simão,
sempre denunciado pelos cristãos, foi o primeiro Fausto, audacioso e criativo,
mas hoje
em dia é considerado um charlatão. Dante encontrou a sua versão da honrada
Sabedoria Divina em uma jovem florentina, e a elevou à hierarquia celestial.
Simão, o
Mago, tanto quanto Jesus, o mago, pertence à tradição oral, ao passo que Dante à exceção de Shakespeare - é o poeta supremo de toda a história e cultura
ocidentais.
Todavia, Dante não foi menos arbitrário do que Simão, fato de que não devemos
esquecer. Embora afirme o contrário, Dante apropria-se da autoridade poética e
se estabelece
em uma posição central à cultura do Ocidente.
Como a centralidade de Dante difere da de Shakespeare! Dante impõe-nos a sua
personalidade; Shakespeare, mesmo nos Sonetos, esquiva-se de nós, por meio de um
distanciamento
espantoso. Na obra Vida nova, Dante insere-nos na história do seu amor
extraordinário por uma jovem que mal conhecia. O primeiro encontro se dá quando
ambos têm
nove anos de idade, conquanto esse "nove" seja uma advertência a respeito da
literalização do relato. Nove anos depois que o poeta viu Beatriz pela primeira
vez,
ela dirigiu-lhe a palavra, um cumprimento formal, em plena via pública. Houve um
ou dois encontros subsequentes: uma decepção, quando ele confessou, em poesia, o
amor por outra dama, na verdade, um subterfúgio; e uma ocasião social, em que,
segundo consta, Beatriz teria aderido a uma troça inofensiva, cujo alvo era o
admirador
apaixonado - todo o relacionamento parece reduzir-se a isso. O melhor comentário
sobre esses poucos fatos partiu do fabulista argentino Jorge Luis Borges, que
fala
da "nossa certeza sobre um amor infeliz e supersticioso", não correspondido por
Beatriz.
odemos falar do "amor infeliz e supersticioso" de Shakespeare pelo belo e
jovem nobre dos Sonetos, mas seria necessária alguma outra frase para qualificar
a descida
de Shakespeare ao Inferno da Dama Morena presente no mesmo ciclo de sonetos.
Chamar
120
121
de neoplatônico o amor de Dante por Beatriz seria inexato, mas como definir tal
amor? A paixão de alguém pelo seu próprio génio, a musa criada por esse alguém,
poderia
parecer auto-idolatria, em se tratando de qualquer outro indivíduo, mas não do
homem central. O mito, ou a figura de Beatriz, funde-se à obra da vida de Dante;
em
um sentido crucial, ela é a Divina Comédia, e não pode ser compreendida fora do
poema. Todavia, Dante a apresenta como a verdade, conquanto não deva ser
confundida
com o Cristo, que é o caminho, a verdade, a luz.
Os estudos dantescos, extremamente úteis em se tratando do esclarecimento das
complexidades da Comédia, no entanto, não oferecem grande ajuda à compreensão de
Beatriz. Ela é mais cristológica em Vida Nova do que na Comédia, embora nesta
última, em dados momentos, Beatriz me faça lembrar o que os gnósticos chamaram
"o Cristo
Anjo", pois ela desfaz a distinção entre o humano e o angélico. A fusão entre o
divino e o mortal pode ser herética ou não, dependendo de como é apresentada. A
visão
de Dante não me parece agostiniana nem tomista, mas, embora hermética, não é,
por assim dizer, hermetista. Em vez de identificar-se com a teologia, Dante
busca identificar
a teologia consigo mesmo. A presença do humano no divino não é algo idêntico à
presença de Deus em uma pessoa, especialmente, em Beatriz.
Isso pode parecer estranho, visto que Dante não foi William Blake, que nos
instava a adorar apenas o que ele chamava Divina Forma Humana. Entretanto, desde
logo,
Dante definiu Beatriz como milagre. Tal milagre visava a Florença, como um todo,
e não apenas a Dante, ainda que ele fosse o único celebrante do fenómeno. Mais
tarde,
o melhor amigo e mentor do poeta, Guido Cavalcanti, é condenado por Dante, por
não se juntar à celebração, mas a relação entre Dante e Cavalcanti é similar à
do
jovem Shakespeare e Christopher Marlowe, uma sombra da angústia da influência.
Devemos crer em Dante, quando sugere que Cavalcanti teria sido salvo, se
houvesse
reconhecido Beatriz? A originalidade compartilhada permanece original?
Na condição de leitores, podemos deixar a suposta teologia de Dante para os
exegetas, mas não podemos ler Dante sem procurar entender Beatriz. Ela é,
certamente,
uma Encarnação, fenómeno que, para o poeta, jamais rivaliza com a Encarnação.
Beatriz, insiste o poeta, é toda a felicidade que ele teve na vida e, sem ela,
não
teria encontrado o caminho da salvação. Mas Dante não é Fausto, a ser condenado
ou salvo, nem Hamlet, que morre em consequência da verdade. Dante busca o
triunfo,
a vingança total, a realização de uma profecia. Os "pais" do poeta, Brunetto
Latini e Virgílio, transcendem pelo amor, mas são postos de lado. Os "irmãos" em
poesia
são reconhecidos (no caso de Cavalcanti, de modo bastante sombrio), mas não se
tornam companheiros de jornada. Será que Dante chega a nos convencer, na
Comédia,
que Beatriz é algo além do génio do poeta? Dante está tanto dentro quanto fora
do poema, assim como ocorre com
Beatriz, em Vida Nova. Será que Beatriz tem uma realidade que lhe permita ser
invocada por terceiros?
Os maiores personagens shakespearianos têm a capacidade de sair de suas
respectivas peças e viver na concepção que temos das mesmas. Terá Beatriz tal
capacidade?
A personalidade de Dante é tão grande, que não sobra espaço para mais ninguém; o
Peregrino da Eternidade ocupa todos os espaços. Isso não constitui,
absolutamente,
um defeito poético, conforme seria o caso em se tratando de qualquer outro
poeta. Em Dante, trata-se de uma qualidade poética, energizada por uma
originalidade total,
uma vitalidade que é incansável, a despeito de constantes releituras, e que não
pode ser assimilada às fontes, literárias ou teológicas.
Agostinho, opondo-se aos grandes neoplatonistas - Plotino e Porfírio -,
insistia que autoconfiança e orgulho não bastavam para a ascensão a Deus. Eram
necessárias
orientação e ajuda, que só poderiam partir do próprio Deus. Haverá orgulho ou
autoconfiança mais acirrados do que em Dante? Ele retrata a si mesmo como um
peregrino,
dependente de orientação, consolo e ajuda, mas, como poeta, é mais profeta
atendendo a um chamado do que cristão em processo de conversão. Será que sequer
se ocupa
de nos convencer de sua humildade? Na prática, o heroísmo - espiritual,
metafísico, criativo - faz de Dante, o poeta, um milagre comparável ao de sua
Beatriz.
Felizmente, o poeta apresenta-se como personalidade, não como milagre.
Conhecemo-lo tão bem, o cerne e não apenas o contorno, que aceitamos as mudanças
por que
ele passa (a duras penas), ao longo da Comédia. Com efeito, só ele pode se
desenvolver na Comédia, pois todos os demais encontram-se em um estágio final,
embora
os residentes do Purgatório devam passar por um processo de refinamento. Por
mais extraordinariamente marcantes que sejam, os personagens da Comédia
encontram-se
além do estágio em que lhes é possível evoluir, em sua natureza. Não são
passíveis de mudança, a partir do que Dante os faça dizer ou realizar. Isso
torna possível
a revelação total: a respeito dos personagens, Dante tem a palavra final,
indisputável, sempre gerando perplexidade. Se ainda nos é possível ter
personalidade, depois
de nos ter sido imputado um julgamento final, é uma bela questão.
Beatriz, como criação de Dante, tem pouca personalidade, porque, nitidamente,
teve uma preexistência angelical, antes de nascer em Florença. Em Vida Nova,
Dante
mos-tra-nos apenas que ela possui uma beleza sobrenatural e que é capaz de agir
com severidade, sendo que, no que toca à interação com Dante, esta última
característica
é exacerbada na Comédia, embora conserve o caráter retórico. Constata-se um
salto, por assim izer, em Beatriz: enquanto vivia, pouco reconhecia o amante que
a idealizava;
depois e mona, demonstra uma preocupação cosmológica com a sua salvação. É tão
óbvia a
122
123
condição de Beatriz, de génio, ou anjo protetor
torna facilmente aceitável. Para nossa surpresa
tristonho
Laertes diz que Ofélia, rejeitada, será um anjo
integrando as revoadas de anjos proclamadas por
desde
de Dante, que a transmutação se
quando remoemos a questão, um
bom após a morte, supõe-se,
Horácio ao final da peça. Dante,
logo preparando para si mesmo uma apoteose, submete Beatriz a um longo
treinamento.
Nenhum outro escritor é tão formidável quanto Dante, nem mesmo John Milton e
Leon Tolstoi. Shakespeare, milagre de intangibilidade, é todo mundo e ninguém,
conforme
disse Borges. Dante é Dante. Ninguém pode simplificar Dante, recorrendo a um
processo de historicização, ou imitando-lhe a audaciosa autoteologização. Se
Cavalcanti
tivesse vivido mais? sem dúvida, teria escrito poemas líricos ainda mais
contundentes do que os que escreveu, mas não teria escrito o Terceiro
Testamento, exatamente
o que a Divina Comédia parece ser. A questão do génio shakespeariano está sempre
fora do nosso alcance, mas o génio de Dante é uma resposta, não uma questão.
Excetuando-se
Shakespeare, que surgiu três séculos mais tarde, o poeta mais notável do mundo
ocidental concluiu a maior obra literária do Ocidente por volta do final da
segunda
década do século XIV. Para igualar a Comédia e, de certo modo, superá-la, seria
necessário considerar, como se fossem uma unidade, as 24 melhores peças
shakespearianas,
entre um total de 39. Mas é muito difícil considerar Dante e Shakespeare em
sequência; se tentarmos ler Rei Lear após o Purgatório, ou Macbeth após o
Inferno, sentiremos
estranha perturbação. Esses dois poetas centrais são violentamente
incompatíveis, ao menos segundo a minha experiência. Dante pretendia que o
leitor considerasse
Beatriz o Cristo da alma do poeta; essa noção pode causar constrangimento a
muitos de nós, por vários motivos, e como nos assustaríamos, se Shakespeare, nos
Sonetos,
insinuasse que o belo e jovem lorde (Southampton, ou seja lá quem for) era uma
espécie de Cristo para um poeta que viria a compor Hamlete Rei Lear.
Para o leitor comum capaz de absorver a Comédia no original, Beatriz não
constitui um enigma, pois os críticos italianos, cuja visão mundana de Dante
permeia a
cultura italiana, adotam uma abordagem bastante distinta da praticada pelos
estudiosos anglo-americanos. Prezo muito o comentário de Giambattista Viço, de
que até
Homero se renderia a Dante, se o poeta toscano fosse menos erudito em teologia.
Dante, assim como Freud (e os místicos), acreditava na possibilidade de
sublimação
erótica, nisso divergindo do amigo, Cavalcanti, para quem o amor era uma
enfermidade que tinha de ser enfrentada. Dante, que, em consequência de
adultério, situa
Francesca e Paolo no Inferno, era célebre por sua luxúria com relação a mulheres
muito diferentes (a seu ver) da sagrada Beatriz. O único ponto de contato entre
Dante e Shakespeare é a supremacia de ambos na descrição do sofrimento causado
pelo amor, em outros e neles mesmos:
Riachos morro acima vão correr, Contrários, nesta mata úmida e verde, Até o fogo
do amor arder, como arde Numa jovem, por mim, que a vida inteira Em pedra
dormiria,
ou, qual as feras, Relva ingeria, a ver sombras do traje.
Os versos acima são de Dante Gabriel Rossetti, da sua versão da sextina
"pedregosa" intitulada "Para a Luz Sombria", uma entre as "rimas pedregosas",
apaixonadas,
dirigidas por Dante a uma mulher chamada Pietra. Beatriz não é muito
shakespeariana; Pietra, sim, e se sairia bem como a Dama Morena dos Sonetos:
Consumir o espírito em vergonha É a luxúria em ação; e, até agir, A luxúria é
falsa, sanguinária, Assassina, culpada, primitiva, Rude, cruel, extrema;
desprezada
Tão logo satisfeita...
Interpretações carolas da obra de Dante não chegam a ser tão inúteis quanto as
tentativas de cristianizar as tragédias de Hamlet e Lear, mas são mais danosas à
Comédia do que o ressentimento feminista que costuma desconfiar da idealização
de Beatriz. O louvor de Dante a Beatriz é imensamente tocante; a exaltação ao
amor
não-correspondido é mais problemática, a menos que nos lembremos de visões da
nossa infância, quando nos apaixonamos por alguém que mal conhecíamos e, talvez,
jamais
tenhamos voltado a ver. T. S. Eliot concluiu, com perspicácia, que o amor de
Dante por Beatriz deve ter surgido antes da idade de nove anos, e o paradigma
numerológico
pode, de fato, ter induzido Dante a localizar a experiência dois ou três anos
após ela ter ocorrido. Não sendo Dante, a maioria de nós seria incapaz de tirar
muito
proveito de uma epifania ocorrida em idade tão tenra, e parte da façanha de
Dante é ter conseguido criar grandeza a partir de uma epifania de infância.
Embora, em suas origens, Beatriz seja universal, na Comédia, ela se torna uma
figura esotérica, o centro da sapiência de Dante, pois é por ela, e através
dela,
que Dante articula conhecimentos bem menos ortodoxos do que a maioria dos
exegetas está disposta a admitir. A notoriedade perene do Inferno não obscurece
a eloquência
dramática do Purgatório, que continua a contar com um público leitor
razoavelmente amplo. O Paraíso é um livro imensamente difícil, mas essa
dificuldade representa
o que há de
124
125
Keter
DANTE ALIGHIERI
mais indiscutível no génio de Dante, rompendo os limites da literatura
ficcional. Nada se assemelha ao Paraíso, a não ser certos trechos das Revelações
de Meca,
do andaluz sufi Ibn Arabi (1165-1240), que encontrara a sua Beatriz em Meca.
Nizam, a Sofia de Meca, assim como a Beatriz de Florença, é o centro de uma
teofania
e converte Ibn Arabi a um amor idealizado, sublimado.
Aos 71 anos, talvez eu ainda não esteja pronto para o Paraíso (onde, sendo
judeu, afinal de contas, não serei admitido), e começo a recuar diante do
Inferno, obra
verdadeiramente horripilante, não obstante sublime. Surpreendo-me relendo o
Purgatório, por motivos expressos de modo magistral por W. S. Merwin, no
prefácio à sua
admirável tradução do livro central da Comédia:
* Das três partes do poema, somente o Purgatório localiza-se na
Terra, assim como as
nossas vidas, pés no chão, caminhando pela praia, escalando uma montanha (...).
Até chegarmos ao cimo do monte, a esperança confunde-se com a dor, o que torna
a experiência ainda mais próxima ao nosso presente, (xiii)
Cada um dos meus amigos tem o seu Canto predileto do Purgatório; o meu é a visão
de Matilde colhendo flores, no Paraíso Terrestre, Canto 28, os primeiros 51
versos:
Vagar já nos recessos desejando
Da selva divinal, vívida, espessa,
Que ao novo dia o lume faz mais brando,
Daquela encosta a me afastar dou pressa. Pela veiga me interno a passo lento,
Doce aroma sentindo, que não cessa.
Do ar, que circulava, o doce alento, Mas sempre igual, a fronte me afagando,
Tinha o bafejo do suave vento.
As folhas, molemente balançando, Do santo monte à parte se inclinavam, A que a
sombra primeira vai baixando.
Mas, no meneio seu, não se encurvavam Em modo, que na rama aos passarinhos Os
hinos perturbassem, que entoavam.
Pousados ledamente entre os raminhos
Saudavam com seus cantos a alvorada
Da fronde os acordando aos murmurinhos;
Assim de Chiássi no pinhal soada
De ramo em ramo corre quando a amara
Prisão, abre ao mestre Eolo a entrada.
Com demorado andar eu caminhara Na selva antiga tanto, que não via Mais o lugar,
por onde penetrara.
Eis andar um ribeiro me tolhia, Que, à sestra deslizando-se, beijava A ervinha,
que às margens lhe crescia:
O cristal dessa linfa superava
Da terra água a mais pura e transparente;
Quanto continha em si patente estava.
Entanto, pela sombra permanente, Que luz da lua ou sol nunca atravessa, Negreja
aquela plácida corrente.
O pé detenho, e a vista se arremessa Além do humilde rio, contemplando Primores,
com que maio se adereça,
Então se of rece aos olhos, como quando De súbito um portento surge à mente, De
outro pensar qualquer a desviando,
Uma dama sozinha de repente,
Que, cantando, escolhia, dentre as flores,
Que o chão cobriam de matiz ridente.
126
127
"Bela dama, que sentes os fervores Do amor divino, se por teu semblante Da tua
alma julgar devo os ardores" Assim falei - "se caminhar avante
Até perto do rio te aprouvera,
Te entendera esse canto inebriante.
Tão linda, em tal lugar, lembras qual era Prosérpina, ao perdê-la a mãe querida
E ao perder também ela a primavera."17
Embora um tanto à custa do significado literal, a tradução preserva a terça
rima (inventada por Dante) e expressa a surpresa e o esplendor do advento de
Matilde,
revertendo a queda de Prosérpina e Eva e pressagiando o ressurgimento da visão
de Beatriz diante de Dante. Shakespeare, na quarta cena do quarto ato de O Conto
do
Inverno, estabelece Perdita como equivalente de Matilde:
(...) Ó Prosérpina!
Se eu tivesse as flores que, assustada,
^
Deixaste cair do carro de Plutão!
Narcisos, que antecipam andorinhas,
E cujo encanto enleia o vento em março.
Por que Dante chamou de Matilde essa jovem cantante do Éden é algo
enigmático, que diversos estudiosos tentam em vão explicar. A Matilde de Dante
faz apenas uma
breve aparição, mas, perversamente, prefiro Matilde a Beatriz, que ralha e faz
sermão, sempre superior a Dante. Assim como a Perdita de Shakespeare, Matilde
nos
encanta. Quem a não ser o impetuoso Dante poderia se apaixonar novamente pela
Beatriz celestial? Quem não se apaixonaria por Matilde?
"Saber igual aos outros comparando Não existe ao desta água. Ao teu pedido
Satisfação hei dado assim falando.
Corolário, porém, lhe seja adido: Não receio que assim te desagrade, Indo além
do que fora prometido. Poetas que cantavam de ouro a idade E sua dita, em
Pamasso,
certamente Sonharam desta estância a f licidade.
Estirpe humana aqui fora inocente;
"18
Eterna primavera aqui domina;
Foi este néctar, que inventou sua mente.
Bela e graciosa, epítome da jovem apaixonada, Matilde caminha pelos prados, ao
lado de Dante, como se a Idade de Ouro houvesse retornado. A jovem move-se como
uma dançarina, e não há por que estorvar-lhe os passos, fazendo pesar-lhe às
costas alegorias, ou identificando-a com figuras históricas da nobreza, ou com
beatas
contemplativas. Dante, notoriamente suscetível à beleza feminina, se apaixonaria
por Matilde, se Beatriz, encantada, ao mesmo tempo mãe repressora e objeto de
desejo,
não estivesse aguardando por ele no próximo Canto.
William Hazlitt, extraordinário crítico literário do Romantismo britânico,
exibia uma reação a Dante muito mais ambivalente do que aquela observada em
Shelley
e Byron; no entanto, Hazlitt percebeu a verdade da originalidade de Dante, o
efeito do seu génio:
Ele nos interessa apenas por provocar a nossa simpatia através da emoção da qual
está tomado no momento. Ele não posiciona à nossa frente os objetos que
provocaram
a referida emoção, mas cativa a nossa atenção, mostrando-nos o efeito que tais
objetos produzem em seus sentimentos; e sua poesia, de fato, frequentemente,
causa-nos
a sensação emocionante, arrasadora, que sentimos ao contemplar o rosto de alguém
que acaba de ver um objeto de pavor.
Hazlitt pensava aqui no Inferno, e não em Matilde, no Purgatório, onde temos a
sensação de contemplar o rosto de alguém que acaba de ver um objeto de total
felicidade.
Tradução de J. P. Xavier Pinheiro. W. M. Jackson, Rio de Janeiro, 1960. [N. do
T.J
8 Tradução de J. P. Xavier Pinheiro. W. M. Jackson, Rio de Janeiro, 1960. [N. do
T.]
128
129
GEOFFREY CHAUCER
Meu Jesus Cristo! Quando me recordo Da minha juventude, da alegria, Arrepia-me
a raiz do coração. Até hoje ao coração me faz um bem Ter tido o meu mundo no meu
tempo. Mas a idade - ai de mim! - que tudo estraga Roubou-me a beleza e o vigor.
Pois, que se vá, adeus! Para o diabo! Acabou-se a farinha, já não há: Resta-me,
então, vender só o farelo.
"Até hoje ao coração me faz um bem / Ter tido o meu mundo no meu tempo." É
difícil não ceder ao encanto da Mulher de Bath, símbolo do génio de Chaucer,
assim como
Falstaff o é de Shakespeare. Que Shakespeare tinha em mente a Mulher de Bath, ao
criar Falstaff, é algo verificável; os dois grandes vitalistas referem-se a São
Paulo, quando afirmam não haver pecado na vocação de ambos os personagens.
Todavia, a Mulher de Bath insinua ter se livrado de ao menos um marido, e o fato
de ela
não ter filhos é um tanto desconcertante.
Chaucer, o Peregrino, é um grande admirador da Mulher de Bath, mas, na
verdade, ele tem apreço pela maioria dos companheiros de peregrinação, e com
eles se diverte,
ou melhor, apraz-se de nos dizer o que sente sobre os viajantes. A ironia mais
ubíqua resulta do auto-retrato de Chaucer como Peregrino, cujos julgamentos dos
demais
peregrinos não nos causam dúvida, porque Chaucer, o poeta, pretende nos fazer
questionar quase todos os julgamentos de ordem moral.
Ao que parece, Chaucer teve uma atitude correta de ambivalência com relação a
Dante, cujos julgamentos de ordem moral são atrozes e constantes. O tão bem
pensado
bom humor da Mulher de Bath fala pelo próprio Chaucer: a alegria irrompe a todo
momento. Os desejos da mulher não se aplacam, e o desafio que ela faz à velhice
é
maravilhoso: "Pois, que se vá, adeus! Para o diabo!"
CwtiD C^iiP í#tií
GEOFFREY CHAUCER
(1340?~1400)
O riso não acompanha a leitura de Lucrécio e Virgílio, Agostinho e Dante. O
génio ômico de Geoffrey Chaucer, que se recusava a se deter em nostalgia, fosse
de natureza
fidalga ou espiritual, é ainda mais bem-vindo, considerando os companheiros dos
quais o cerquei. A companhia não é arbitrária: existe uma relação de influência
entre
Dante e Chaucer, embora o verdadeiro precursor de Chaucer tenha sido Boccaccio,
jamais mencionado pelo poeta inglês. Profundamente impressionado e irritado
(ainda
que de modo espirituoso) por Dante, Chaucer criou uma paródia de Dante, o
Peregrino, com Chaucer, o Peregrino dos Contos de Canterbury.
Especialistas em Dante têm motivos para reverenciar o poeta italiano. Chaucer,
o escritor mais marcante da língua inglesa, excluindo-se Shakespeare, estava
disposto
a aprender com Dante, mas era por demais irónico para reverenciá-lo. Lucrécio
tinha a convicção de conhecer a verdade: a verdade era epicurista. Virgílio,
incerto
com relação a tudo, é uma espécie de epicurista volúvel: não se sustenta na
verdade do materialismo metafísico, aspira por uma certa transcendência e sabe
que jamais
a encontrará. Agostinho e Dante conheciam a verdade, mas esta constituía uma
revelação àqueles que estavam dispostos a aceitá-la. Chaucer, com grande alento,
duvida
que qualquer escritor seja capaz de atingir a verdade por meio da linguagem. Com
sua incerteza e hesitação, Chaucer é um poeta secular, portanto, o mais
autêntico
precursor de Shakespeare.
Ainda hoje prefiro G. K. Chesterton, contista questionador e católico, a todos
os demais estudiosos de Chaucer, visto que Chesterton possui o entendimento mais
acertado sobre a grandeza do autor de Contos de Canterbury. O estudioso percebe
que Chaucer tem a eminência de Dante e Shakespeare, e reconhece que Shakespeare,
malgrado a sua fé interior, escreve uma poesia secular, até mesmo pagã, quando
assim convém aos seus propósitos. No entanto, Chesterton não chega a apartar
Dante
de Chaucer, embora, penso eu, a distinção lhe fosse visível. Sabemos,
exatamente, o julgamento de Dante, com respeito a cada figura em seu poema,
conquanto o próprio
Dante, às vezes, não tolere o julgamento por ele mesmo praticado, como no caso
de rrancesca. Mas ninguém pode ter conhecimento da atitude de Chaucer com
relação
ao Vendedor de Indulgências, à Mulher de Bath ou ao Cavaleiro, e quem pode dizer
o que Shakespeare sentia com relação a Falstaff e Hamlet, lago e Cleópatra?
Chaucer
e nakespeare não fingem ter as conclusões, e podemos deduzir que julgamentos de
ordem moral provocavam-lhes a veia irónica. Dante parece, de fato, estar a par
de
todo o conhecimento disponível em 1300, mas o poeta insiste em conhecer e dizer
a verda130
131
de, que não estava mais disponível à época do que hoje. Com efeito, a
inventividade de Dante opera incessantemente, a fim de preencher o mapa do seu
poema assombroso.
Brunetto Latini era sodomita? Pouco nos importa (a não ser que sejamos
fundamentalistas ou filiados ao Partido Republicano), mas Dante parece ter
inventado a orientação
sexual do velho professor. Virgílio, conforme já observei, era, basicamente,
epicurista, e não um cristão antes de Cristo, e a Beatriz da vida real, decerto,
não
levou Dante muito a sério. Dante, como a maioria de nós, sofreu bastante, mas
muitos de nós hesitaríamos, antes de povoar o Inferno de nossos inimigos
pessoais.
Chaucer, irónico demais para dizer coisas semelhantes às que disse Dante,
certamente tem conhecimento delas e as sente, mas, nem no caso do Vendedor de
Indulgências,
presta-se a especular a respeito de condenações espirituais.
Haverá ironia na Comédia que não seja cruel? Quero esclarecer que a questão
aqui não é de fé. Shelley, conforme demonstrarei adiante, exibe um amor e um
entendimento
pela poesia de Dante mais profundos do que qualquer outro poeta de língua
inglesa, inclusive T. S. Eliot. Shelley detestava o cristianismo, e não
considerava o dogmatismo
de Dante uma barreira:
A poesia de Dante pode ser considerada uma ponte através do tempo, unindo o
mundo moderno ao antigo. As noções distorcidas das coisas invisíveis idealizadas
por
Dante e seu rival Milton são apenas a máscara e o manto com os quais esses
grandes poetas caminham pela eternidade, disfarçados. É difícil determinar até
que ponto
estavam conscientes da distinção que deve ter subsistido em suas mentes entre as
suas crenças e a crença do povo. Dante, ao menos, parece querer registrar plena
consciência da questão, ao posicionar Riphaeus, a quem Virgílio chama
justissimus unus, no Paraíso, e ao praticar um verdadeiro capricho de heresia,
por meio de
seu sistema de recompensa e punição.
(...) A Diviva Comédia e Paraíso Perdido conferiram à mitologia moderna uma
forma sistemática; e quando as mudanças e o tempo houverem acrescentado mais uma
superstição
ao conjunto de superstições que surgem e desaparecem no mundo, os estudiosos se
ocuparão de elucidar a religião da Europa ancestral, que só não terá sido
totalmente
esquecida porque foi sancionada pela eternidade do génio.
A afável profecia de Shelley tem se realizado mais na Europa (à exceção da
Irlanda) do que nos Estados Unidos, embora eu não reconheça muito da "religião
da Europa
ancestral" naquilo que insisto em chamar Religião Norte-americana, uma mistura
de orfismo, gnosticismo e entusiasmo que vem propulsionando a espiritualidade
dos
A
Unidos desde 1800. Os nossos pentecostais, mórmons, adventistas, inúmeros
istas e demais invenções são apenas a ponta-de-lança, mas a maioria dos 89 por
cen-de
norte-americanos que afirmam que Deus os ama em uma dimensão pessoal, indi-¦A ai
encontram-se um tanto ou quanto distantes da Europa ancestral, mesmo quando se
denominam
católicos, luteranos, metodistas, anglicanos ou presbiterianos.
Shelley está certo, é claro, embora poucos estudiosos de Dante, e número ainda
menor de especialistas em Milton, concordem com o que ele diz. O que faz
Riphaeus
no Paraíso? Rachel Jacoff esclarece que Dante levanta a questão a fim de não
respondê-la:
Entre os seis governantes nos olhos e sobrancelhas da águia encontra-se
Riphaeus, personagem que é objeto de breve menção na Eneida. Dante pergunta,
assim como o
faria qualquer leitor: "Como isso é possível?". À semelhança da presença
improvável de Cato às margens do Purgatório, a inesperada presença de Riphaeus
no Paraíso
nos faz refletir sobre a leitura que Dante fez dos clássicos e sobre os
procedimentos de apropriação adotados pelo poeta. Riphaeus é, ao mesmo tempo,
sinal da inescrutabilidade
de Deus e da liberdade do poeta. Virgílio chamara Riphaeus "o mais justo", mas o
relato de Dante sobre a rejeição de Riphaeus ao "paganismo fétido" é pura
invenção.
A teologia católica previa o "batismo voluntário", mas ninguém, a não ser Dante,
teria apontado Riphaeus como exemplo de tal instituto.
Por que Riphaeus? Por que não Virgílio? E por que Beatriz? Dante é o autor do
poema, e faz o que mais convém à obra; no entanto, convém, igualmente, perceber
que
Dante era uma seita de um só seguidor, e não um tomista, agostiniano ou seja lá
o que fosse. Milton, nitidamente, era uma seita de um só seguidor, e talvez a
única
diferença entre Shelley, Dante e Milton seja o fato de o primeiro recusar-se a
se considerar cristão. A teologia de Dante não fazia a menor diferença para
Chaucer,
mas a aspereza e a arbitrariedade do florentino em nada agradavam o compassivo e
irónico poeta inglês. Relutamos em falar da arrogância lancinante de Dante, mas,
de modo geral, o poeta não considerava Deus inescrutável. Dante não nos revela
todos os segredos de Deus, mas parece estar ciente da maioria deles, e talvez
houvesse
revelado mais, se tivesse vivido o quarto de século de que precisava para
completar nove vezes nove.
Mais do que um ceticismo comedido, com relação ao julgamento moral praticado
por um Dante onipotente, observa-se em Chaucer um descontentamento relativo aos
retratos
de homens e mulheres congelados por Dante. Pode-se conjecturar que Chaucer seria
a diferença entre Dante e Shakespeare porque a Mulher de Bath enseja o milagre
de
Sir John Falstaff, e o abismo niilista do Vendedor de Indulgências pressagia os
gran-
132
133
des personagens shakespearianos, subversores de todos os valores, lago, e o
Edmundo de Rei Lear. Em vez de focalizar a Mulher de Bath ou o Vendedor de
Indulgências,
optei pela totalidade da gama de personagens do "Prólogo" aos Contos de
Canterbury. Dante é o precursor, sutilmente revisto e refutado, na outra obraprima de Chaucer,
Troilus e Criseida, mas os Contos de Canterbury, de modo geral, abandonam Dante,
em favor de uma contenda velada com Boccaccio, influência muito mais ameaçadora,
pois o domínio da narrativa e do personagem constatados em Chaucer muito devem
ao vigoroso autor do Decamerão.
Quando estava com cerca de 46 anos, Chaucer começou a escrever os Contos de
Canterbury, tarefe da qual se ocuparia até o fim da vida, em 1400. Dos 120
contos previstos,
o autor concluiu 22 e deu início a mais dois. Assim como no restante de sua
obra, Chaucer escrevia com o objetivo de ler seus próprios escritos, em voz
alta, diante
da corte e em residências de nobres. Mas Chaucer também contava com a
possibilidade de ser lido por terceiros.
É útil situar Chaucer historicamente, e constatar que ele serviu a Ricardo II
e, depois, a Henrique IV. O mundo retratado nas peças que compõem as duas partes
de Henrique IV, de Shakespeare, é uma visão da Inglaterra à época de Chaucer.
Sir John FalstafTé contemporâneo de Chaucer, por assim dizer; mais importante do
que
isso, Fals-taff e a Mulher de Bath são autênticos parceiros, e teriam muitas
conversas e experiências a compartilhar. Viviam em uma era de guerras civis,
caótica,
violenta, instável, uma época propícia às peregrinações, que, sem dúvida, tinham
o seu lado espiritual, mas que também poderiam ser comparadas aos cruzeiros
marítimos
de hoje. A Mulher de Bath, tendo enterrado cinco maridos, parte em busca do
sexto, ou, pelo menos, de um companheiro de jornada. Não gostaria de me ver no
meio dos
personagens dantescos, nem mesmo no Purgatório ou no Paraíso, mas, se pudesse
recuperar um pouco do vigor de outrora, gostaria de estar ao lado de Chaucer, o
Peregrino,
do Hospedeiro e dos demais 28 romeiros. A originalidade de Chaucer, glória do
seu génio, surge de modo intenso nos retratos esboçados no "Prólogo". A marca
registrada
desses retratos é a vitalidade, seja no caso do Monge que come ganso, do Frei
que caça mulher, ou dos cinco biltres desclassificados: o Moleiro, o
Despenseiro, o
Magistrado, o terrível Oficial de Justiça e o atrevido e desconcertante Vendedor
de Indulgências. Mais vital de todos os vitalistas, verdadeiro desafio a
Falstaff
e ao Panurgo, de Rabelais, é, naturalmente, a Mulher de Bath, que tanto cativa o
leitor, mas que também tem o seu lado escuso.
O que permitiu a Chaucer, dois séculos antes de Shakespeare, exercer tamanha
maestria de caracterização de personagens? Embora não me renda aos modismos que
determinam
^Wrédito de qualquer noção de genialidade individual, admito, aqui e ao
longo
naiu o uesi-icuii.
-1-1
.A
.....
,
todo este livro, a probabilidade de uma interseçao entre uma consciência
privilegiada cobros, o tempo oportuno, no ensejo de obras originais. Mas não
penso que
já tenhamos aprendido a maneira como essa interseção ocorre. Geoffrey Chaucer
era filho de um taberneiro bem-sucedido, e, aos 17 anos, deixou esse ambiente de
classe
média para ingressar na casa real. Serviu, sucessivamente, a três reis - Eduardo
III, Ricardo II e Henrique IV -, nas funções de soldado, diplomata, cortesão e
administrador.
Consta ter havido uma tensão aparentemente benéfica entre a origem modesta de
Chaucer e a carreira vitalícia na corte, mas ele não era, em absoluto, a única
pessoa
com tal perfil na Inglaterra de então, mas somente ele se tornou o poeta supremo
do país, antes do advento de Shakespeare. O momento histórico e a posição de
Chaucer
na corte foram fecundos em termos de matéria poética, mas, volto a pergunta: por
que ele? Assim como nos casos de Virgílio, Agostinho e Dante, Chaucer exibe dons
intelectuais, linguísticos e criativos singulares, surgidos a partir de energias
estritamente individuais, e não culturais. Chaucer era um sagaz observador
social,
e a Mulher de Bath e o Vendedor de Indulgências são visões poéticas
representadas com uma verve realista que é tão insinuante quanto distorcida,
artisticamente falando.
A ironia de Chaucer é tamanha que, às vezes, não é possível enxergá-la, conforme
observou Chesterton. A Mulher de Bath é mais sombria do que aparenta sê-lo, e o
Vendedor de Indulgências, mais sincero do que ele próprio imagina. De como
interpretar o conto horrível da Prioresa, não faço a menor ideia. Será que
Chaucer o escreve
sem ironia? Será possível duvidar da linguagem e das narrativas, assim como
Chaucer o fazia, e propor, sinceramente, a violência anti-semita desse conto
difamatório,
que faz O Mercador de Veneza parecer quase benévolo? A refinada Prioresa é
absolutamente perversa em seu ódio aos judeus (que haviam sido expulsos da
Inglaterra
em 1290, pelo crime de terem sido vítimas do Massacre de York), sentimento que
culmina em uma estrofe que só posso considerar irónica:
Com tortura e com morte vergonhosa, O pretor condenou judeus à morte, Ao saber
do homicídio, e sem demora; Jamais admitiria tal maldade. O mal é imputado a
quem
merece." Que fossem arrastados por cavalos, E, depois, enforcados, pela lei.
As ironias mais sutis de Chaucer talvez não sejam tão exageradas, mas são
maravilhosas e incessantes. Com muita competência, Talbot Donaldson comparou
Chaucer,
o
134
135
Peregrino, ao personagem criado por Jonathan Swift - Lemuel Gulliver -,
apaixonado por cavalos racionais. Na interpretação de Chesterton, Chaucer
divertia-se, cínica
e discretamente, com todas as contradições com que se deparava, e deleitava-se
com o próprio descaramento. Ninguém melhor do que Chaucer sabia que o mundo ao
seu
redor estava decadente, e talvez ninguém melhor do que ele soubesse aproveitar a
situação, mesmo enquanto esta se deteriorava. Uma ironia que depende da
percepção
de que uma realidade magnífica desapareceu para sempre é tão chauceriana quanto
chesterto-niana. Tecer narrativas irónicas cujo verdadeiro tema é o ato de
narrar
foi o método de Boccaccio, antes de ser o de Chaucer, provavelmente motivo pelo
qual Chaucer jamais menciona Boccaccio. O que constitui uma originalidade
puramente
chauceriana é o tipo de ironia pocele praticada, que desafia qualquer descrição.
A erudição da Mulher de Bath é espantosa, mas ela é irónica com relação ao seu
próprio
saber. O Vendedor de Indulgências é obcecado pelo Juízo Final, e demonstra um
prazer autodestrutivo que reflete outra faceta de ironia. O próprio Chaucer,
como poeta
e Peregrino, adquire uma visão irónica em que a ironia se torna uma nova espécie
de amor pelo mundo e pelos loucos pitorescos que o enchem de vida. Ironia amável
desabrocha em amor irónico, uma bela e risonha percepção de peregrinos e
peregrinações. Seja lá o que for, o sentimento é antitético ao que Dante celebra
como amor.
Pregando para a congregação que ele mesmo explora, o Vendedor de Indulgências
entra em êxtase:
Mi'a língua e minhas mãos correm tão rápidas, Que é uma alegria ver mi'a
agilidade.
Resta apenas vê-lo como um "televangelista", esplendor norte-americano
atualmente em ocaso. E onde encontraremos nossa Mulher de Bath, com seu lema
maravilhoso:
"Boca insaciável requer rabo insaciável"? Era preciso uma voz poética secular
vibrante o suficiente, e uma visão humana ampla o suficiente, para defender a
vida
mundana das exortações proféticas de Dante. A originalidade de Chaucer é menos
sublime do que a de Dante, mas como é bem-vinda! Peregrinos do Absoluto jamais
desistem
de fazer julgamentos de ordem moral. Chaucer não confia em absolutos e,
ironicamente, conven-ce-nos que a vida tende a desacreditar os que se
especializam em condenar
o próximo.
II
HOKMAH
>
136
LUSTRO 3
O Javista, Sócrates e Platão, São Paulo, Maomé
s*
centro oculto deste Lustro é a figura de Jesus. Ele havia sido incluído, mas
foi, por assim dizer, excluído, por um lado, devido à minha própria
perplexidade, por
outro, como resultado da sábia advertência dos meus editores. Génio é um livro
que versa sobre a consciência autoral, e até mesmo Sócrates é autoral, na
tradição
da oralidade. No entanto, parece-me haver duas figuras diferentes, o Jesus
histórico, sobre o qual pouco conhecemos, e o personagem literário, que pulsa ao
longo
dos quatro Evangelhos, assim como Javé é o grande personagem literário na obra
do autor J, ou Javista. Jesus e Hamlet são os únicos personagens literários que
parecem
possuir consciência autoral, mas este livro não visa aos personagens literários,
e sim às mentes criativas modelares.
Considerar Maomé, emblema dos profetas, como génio autoral é contrariar o
islamismo, pois o próprio Deus é quem pronuncia cada palavra do Alcorão. Mas o
Alcorão
não pode ser ignorado, porque se tiata de uma obra de génio que precisamos,
urgentemente, estudar. Hokmah, sabedoria divina, não pode ser aventada, em suas
formulações
ocidentais, sem a justaposição do Javista e Platão, São Paulo e o Alcorão.
139
dfev> C&2 ííL?
O JAVISTA
Javé apareceu diante dele, próximo aos terebintos de Mambré;1 ele estava
sentado à entrada da tenda, pois o dia começava a esquentar. Erguendo os olhos,
avistou
três homens à sua frente. Ao vê-los, correu em sua direção, a cumprimentá-los,
e, prostrando-se por terra, disse: "Meus senhores, se for da vossa vontade, não
ignoreis
vosso servo. Deixai-me trazer-vos um pouco d'água; banhai vossos pés e reclinaivos debaixo da árvore. E permiti que eu vos traga pão, para recuperar a vossa
energia;
então, prossegui - sabendo que passastes diante de um servo vosso." Eles
responderam, "Faz conforme disseste".
Abraão entrou correndo na tenda, e disse a Sara: "Depressa, três seahs da
melhor farinha! Amassa e prepara as broas!" Em seguida, Abraão correu até o
rebanho,
pegou um terneiro, tenro e de qualidade, e o confiou a um menino, que se
apressou em prepará-lo. Apanhou coalhada e leite, e o terneiro já preparado, e
apresentou-os
aos homens; e os serviu, enquanto se alimentavam, debaixo da árvore.
- Tanakh, Génese, 18:1-15
Eis o Javista (ou a Javista, se o leitor preferir), no que ele (ou ela) tem
de mais fantástico. Quando o dia esquenta, Javé aparece a Abraão, próximo aos
arbustos
de terebintos, em Mambre. Ao lado desse Deus surpreendente estão dois Elohim,
seres divinos, ou anjos que viajam em companhia de Javé, com destino a Sodoma e
Gomorra,
cidades pecadoras que hão de ser destruídas. Javé, assim como os dois
companheiros, banha os pés, descansa à sombra dos terebintos e faz um repasto
delicioso, que
inclui vitela, broas, queijo e leite. Satisfeito com a hospitalidade de Abraão,
e com os dotes culinários de Sara, Javé profetiza que o casal há de ter um
filho,
conquanto já idosos demais para conceber. Quando Sara, escondida no interior da
tenda, ri da profecia, Javé se ofende e diz à mulher assustada, e que tudo nega,
que ela tivera a ousadia de rir de suas palavras.
Quem poderia declinar desse Javé, a despeito das lamúrias de teólogos e
estudiosos que anseiam por um Deus menos humano? O Javista é um génio cómico,
atuando
1 Antigo santuário na zona sul da Judeia, próximo de Hebron e ao oeste de
Macpela. [N. do E.]
140
O JAVISTA
em um campo onde menos esperamos encontrar comédia. A alegria e a exuberância
traquinas desse autor só seriam igualadas em Shakespeare, cujo atrevimento
precisava
ser mais sutil, em uma Inglaterra onde hereges eram queimados e blasfemos podiam
perder a orelha ou a língua. Mas o Javista nada sabe sobre heresia ou blasfémia.
É um contador de histórias, dotado, ao mesmo tempo, de extrema sofisticação e
objetivida-de infantil.
William Blake dizia que a história da religião consistia em "escolher formas
de adoração a partir de contos poéticos". O judaísmo, o cristianismo e o
islamismo
surgem em consequência desse processo, mas os três ficam a infinita distância da
beleza exuberante do Javista.
141
c&p VISTA (980?-900?A.E.C.)
E difícil precisar datas relativas a origens hebraicas. Consta que Abrão, que
se tornou Abraão, pai dos judeus, cristãos e muçulmanos, tenha vivido no século
XVIII antes da Era Comum. Presumivelmente, Israel desceu ao Egito um século mais
tarde, e o Êxodo deve ter ocorrido por volta de 1280 a.e.c. Supõe-se que Canaã
tenha
sido conquistada 50 anos depois. O profeta Samuel e o Rei Saul remontam,
aproximadamente, ao período que vai de 1020 a 1000 a.e.c, e Davi reinou em Judá
e Israel
de 1000 a 960, quando Salomão ascendeu ao trono, reinando até cerca de 922,
ocasião de sua morte e da divisão do reino.
O maior escritor de língua hebraica, conhecido pelos estudiosos como J, ou
Javista, escreveu os textos cruciais que hoje chamamos Génese, Êxodo e Números,
entre
os anos 950 e 900. Uma vez que esse autor extraordinário permanece anónimo,
temos a liberdade de conjecturar a respeito de seu género, se masculino ou
feminino.
O Livro de J, ou Javista, encontra-se inserido no vasto arcabouço que se
estende desde Génese até Reis, criado por um grande autor-editor - o chamado
Redator -,
exilado na Babilónia, por volta de 550 a.e.c. Escrevi um comentário, intitulado
O Livro de /(1990), onde assumi um posicionamento que continuo a defender, mas
hoje
desaprovo a tradução da Bíblia utilizada no referido estudo; portanto, passo a
citar o Tanakh (1985), a versão judeu-americana das Sagradas Escrituras, em que
a
Tora, ou cinco Livros de Moisés (que englobam o texto de J), foi traduzida por
um grupo ilustre, incluindo Harry M. Orlinsky, H. L. Ginsberg, Ephraim A.
Speiser,
entre outros.
Samuel Butler, ficcionista vitoriano, autor do esplêndido O Caminho de Toda
Carne, escreveu um livro em que defendia a hipótese de a Odisseia ter sido
escrita
por uma mulher. Buder é divertido, embora não muito convincente, mas, pensando
retrospectivamente, percebo que fui por ele influenciado, na minha dedução de
que
o Javista teria sido uma mulher, uma dama da esplêndida corte de Salomão, o
Sábio. Agrada-me a sugestão de Jack Miles, de que eu deveria ser audacioso o
bastante
para identificar essa ilustre dama como a hitita Bathsheba, mãe de Salomão. É
célebre a artimanha de Davi, ao planejar a morte do marido de Badisheba, Uriah,
em
combate, a fim de somar Bathsheba as suas esposas. Como seria engraçado, se o
génio cujas histórias permitiram ao Redator moldar a Tora fosse uma mulher
hitita,
e não um homem israelita! Sendo J um grande irónico, que não queria muito bem
aos patriarcas hebreus, mas que se encantava com suas esposas, Bathsheba viria,
admiravelmente,
a calhar. Cabe registrar, ainda, a simpatia de J por Agar e Tamar, assim como
Bathsheba, mulheres que não eram israelitas.
O JAVISTA
Gostaria de deixar claro que leio o texto de J como alta literatura, assim
como leio Homero, Dante e Shakespeare. Malgrado a sua história real, as
representações
vitais de Abrão/Abraão, Jacó/Israel, Judá, Tamar, José e Moisés são todas de
autoria de J, portanto, considero-as aqui personagens literários. Em vez de
tratar a
figura de Jesus como um personagem literário criado por Marcos em seu Evangelho,
optei por excluir Jesus deste livro, conquanto ele pertença, ao menos em parte,
à história do génio judaico, asserção com que apenas repito a avaliação do
Reverendo John P. Meier, o mais ilustre biógrafo católico de Jesus.
O génio do Javista apresenta uma determinada manifestação, tão extasiante que
chega a transcender Shakespeare (embora me doa admiti-lo). O personagem mais
surpreendente
de J não é Abraão, nem Jacó, nem Moisés, nem mesmo José, que, na minha opinião,
é um substituto, um retrato do Rei Davi; é, misteriosamente, o próprio Javé,
Deus,
não apenas como personagem literário, mas, de modo memorável, como Deus. Mais
uma vez, não incorro em qualquer ultraje: há quase três mil anos o Javé bíblico
é um
escândalo, porque é humano, humano demais. Lembro-me de comentar, em O Livro
dej, que, segundo os padrões normativos - judaicos, cristãos ou islâmicos -, a
representação
de Javé oferecida por J é blasfema. Hoje digo que fui pouco enfático: teólogos
(antigos e modernos) e estudiosos chamam o Javé, segundo J, de "antropomórfico",
o
que constitui um subterfúgio absurdo.
Esplêndida exceção, Gerhard von Rad, estudioso alemão, acerta em suas
conclusões, embora eu trocaria Israel por J e o Antigo Testamento pela Bíblia
Hebraica, ou
Tanakh, na observação de von Rad:
Na verdade, na concepção de Israel, até o próprio Javé tinha forma humana. Mas o
nosso modo costumeiro de expressar tal condição vai exatamente de encontro às
ideias
do Antigo Testamento, pois, segundo o javismo, não se pode dizer que Israel
considerava Deus antropomórfico, mas o contrário, que considerava o homem
teomórfico.
J, com toda sua ironia, considerava teomórficos os homens e as mulheres por
ela retratados, ao passo que o dinâmico Javé é extraordinário, e livre, desde o
princípio:
Quando ainda não havia sobre a terra nenhum arbusto do campo, e nenhuma relva
brotara, pois Javé ainda não tinha feito chover sobre a terra, e não havia homem
que lavrasse o solo, e nem subia da terra a água para regar toda a superfí142
143
cie, Javé criou o homem {adam), do pó da terra {adamalò). Soprou-lhe nas narinas
a vida, e o homem tornou-se um ser vivo.
- Tanakh, Génese, 2:5-7
com "Javé" reintroduzido, em lugar de "o Senhor Deus".
Estamos por demais habituados com essas palavras, para reconhecermos a sua
infindável estranheza. Javé forma o molde de Adão a partir do barro, do adamah
umedecido,
não como um ceramista que trabalha com sua roda, mas como uma criança que faz um
bolo de lama. E temos aqui um Deus infantil, que sopra a vida nas narinas de sua
criatura, assim exaltando Adão à condição de ser vivente, não uma alma presa em
um corpo, mas uma entidade mista, como o próprio Javé.
Por mais original que seja o relato da criação do homem, J supera-se a si
mesmo na criação de Eva, mais complexa, narrativa única sobre a formação da
mulher, em
toda a literatura do antigo Oriente Próximo:
Javé disse: "Não é bom que o homem esteja só; farei para ele uma auxiliar
adequada." E Javé formou da terra todas as feras e todas as aves do céu, e as
apresentou
ao homem para saber que nomes daria a elas; e conforme o homem chamasse cada
criatura viva, assim ela se chamaria. E o homem deu nome ao gado e às aves do
céu e
a todas as feras, mas não se encontrava uma auxiliar adequada a Adão. Então Javé
fez cair um sono profundo sobre o homem; enquanto este dormia, Ele tomou uma de
suas costelas e no lugar fechou a carne. E, da costela que tinha tirado do
homem, Javé modelou a mulher, e apresentou-a ao homem. Então o homem disse:
- Esta sim é osso dos meus ossos e carne da minha carne. Esta será chamada
Mulher, pois foi tirada do homem.
A expressão hebraica, aqui traduzida como "auxiliar adequada", significa
alguém ao lado de Adão, semelhante a ele, pois a mesma palavra é, mais adiante,
empregada
para qualificar a atitude de Javé conosco. Quando a versão da Bíblia encomendada
pelo Rei Jaime I deu ao trecho a seguinte versão - "Farei para ele uma auxiliar
que lhe esteja à altura" -, causou problemas dos quais talvez jamais nos
livremos. O texto da autora J é ainda mais enigmático, quando Javé faz cair um
sono profundo
(tardemah, um repouso pesado, anestético, pois Adão está sob a ação de Javé). É
claro (e irónico) que essa segunda criação de Javé seja mais bela. O homem
surgiu
do barro, a mulher, de algo vivo, e, portanto, é, imediatamente, animada.
144
Pulo o muro do jardim, passo por nosso pai Abraão, e chego à saga (descrita por
J) do astuto Jacó, que se tornou Israel após lutar contra um anjo misterioso (um
dos Elohim, ou seres divinos), em um embate desesperado que durou a noite
inteira:
Naquela mesma noite, Jacó se levantou, pegou suas duas mulheres, suas duas
servas, seus 11 filhos e cruzou o vau do Jaboc. Após atravessar a família ao
outro lado
do rio, enviou para lá todos os seus pertences. E Jacó ficou sozinho. E um homem
lutou com ele até o alvorecer. Vendo que não conseguia dominá-lo, o homem
deslocou-lhe
o osso do quadril, e o quadril ficou contundido enquanto Jacó lutava. Então o
homem disse: "Solta-me, pois o dia está raiando." Mas Jacó respondeu: "Não te
soltarei,
enquanto não me abençoares." Disse o outro: "Qual é o teu nome?" Ele respondeu:
"Jacó." O homem disse: "Teu nome já não será Jacó, mas Israel, pois lutaste
contra
seres divinos e humanos, e venceste." Jacó perguntou: "Peço-te, dize-me teu
nome." Mas ele respondeu: "Não deves perguntar meu nome!" E dele se despediu. E
Jacó
deu a esse lugar o nome de Fanuel, dizendo: "Vi um ser divino face a face, e
continuei vivo." O sol nascia, quando Jacó atravessou Fanuel, mancando por causa
do
quadril.
O trecho constitui um triunfo do génio de J, mas temos dificuldade em confrontálo diretamente, pois a "Luta de Jacó" tornou-se um mito protestante, segundo o
qual
o patriarca trava um combate de amor contra o próprio Deus. Em lugar da versão
judaico-americana - "lutaste contra seres divinos e humanos" -, eu diria "contra
Elohim
e homens", isto é, contra homens, anteriormente, e agora contra um dos Elohim,
no vau do Jaboc (o trocadilho com o nome de Jacó é típico de J). Será benigno o
ser
contra o qual luta Jacó? A tradição judaica é ambígua a esse respeito e, de
acordo com algumas fontes, o antagonista foi o demónio Samael, anjo da morte, o
que,
para mim, faz pleno sentido. Trata-se da véspera do encontro de Jacó com Esaú,
seu irmão injustiçado, enganado com relação à primogenitura e à bênção de Isaac.
Jacó,
que não e guerreiro, está ciente da aproximação do inflamado Esaú, na companhia
de quatro centenas de truculentos edomitas, milícia assustadora. Depois de
providenciar
a travessia da família, dos agregados e de suas posses, Jacó espreita, a fim de
emboscar o anjo da sua própria morte, que vem, às pressas, ao local do encontro
marcado
para o dia seguinte - e Jacó bloqueia a passagem do rio. Esse Elohim anónimo tem
algo de nefasto, qual um vampiro que teme a luz do dia: "Solta-me, pois o dia
está
raiando." E note-se que o encontro nada tem de amigável: Jacó haverá de mancar
pelo resto da ¦ Umo explicar o vigor e a resistência com que Jacó combate o
anjo/demônio?
J ao explica, mas confere ao recém-criado Israel um resplendor epifânico, no
momento
145
da partida: "O sol nascia, quando Jacó atravessou Fanuel, mancando por causa do
quadril."
"Israel", para J, pode significar "que Deus resista", ou talvez, "que vença o
anjo". Em todo caso, o nome é irónico, pois é Jacó quem resiste, e quem triunfa.
Ao longo de toda a vida, Jacó vinha lutando pela Bênção, e o génio de J
manifesta-se na insinuação de que a vontade humana, isto é, de Jacó, pode
resistir ao Anjo
da Morte, ao menos em um ou mais encontros cruciais.
Recorro agora a um terceiro episódio na narrativa do Javista, o momento mais
enigmático e chocante da Bíblia Hebraica. Segundo J, Moisés não é o heróico Titã
do
Deuteronômio; arftes, é tratado, pelo autor, com uma ironia afável e, por Javé,
com bastante aspereza. Esse Moisés é valente, mas ansioso, não muito paciente, e
um tanto inseguro com relação à sua capacidade de liderança. Tem dificuldade de
expressão e hesita em se tornar profeta de Javé:
Mas Moisés disse a Javé: "Ó Senhor, nunca fui hábil com as palavras, nem no
passado, nem agora que falastes ao vosso servo; minha fala e minha língua são
pesadas."
E Javé lhe disse: "Quem dá a fala ao homem? Quem o torna mudo ou surdo, cego ou
capaz de ver? Não sou eu, Javé? Agora vai, e eu estarei contigo quando falares e
lhe ensinarei o que dizer." Mas Moisés disse: "O Senhor, fazei de outra pessoa o
vosso emissário." Javé irritou-se com Moisés e disse: "Não tens teu irmão Aarão,
o levita? Sei que ele fala bem. Neste momento ele vem ao teu encontro, e ficará
alegre em ver-te. Falarás com ele, fazendo dele as tuas palavras; estarei
contigo
e com ele, e direi a ambos o que fazer, e ele falará ao povo em teu lugar. Será,
portanto, teu porta-voz, e serás para ele Deus; leva contigo este cajado, com o
qual realizarás os sinais.
- Tanabk, Êxodo 4:10-17
A ira de Javé, evidentemente, não é apaziguada pela anuência do profeta, e J
oferece-nos uma cena chocante, quando Moisés foi para o Egito:
Em um acampamento noturno, durante a viagem, o Senhor foi ao encontro dele
[Moisés] e procurava matá-lo. Séfora pegou uma pedra aguda, cortou o prepúcio do
seu filho
e, com a pele, tocou a perna dele [Moisés], e disse: "Você é para mim, deveras,
um esposo de sangue!"
- Tanakh, Êxodo 4:24-25
Diante do atentado gratuito de Javé contra a vida de Moisés, o comentário
bíblico ortodoxo foge, em todas as direções, deixando sozinhos a valente Séfora
e o marido.
O arande intérprete Rashi afirma que Moisés havia permanecido em uma hospedaria,
em vez de seguir diretamente ao Egito, mas o texto em hebraico diz, claramente,
"acampamento noturno", indispensável no Negev.
Qual o motivo da ira de Javé? J não nos oferece motivo algum, e, com certeza,
não encontrava qualquer explicação para o fato. A exegese tradicional,
insatisfeita
com as conclusões de Rashi, estabeleceu, de modo absurdo, que Moisés devia ser
sacrificado porque não circuncidara o filho! Mas essa interpretação é tardia, e
presumo
que seja baseada em alguma interferência textual do Redator nesse trecho
extraordinário. A tradição do Midras, descontente com a ironia chocante do
Javista, simplesmente
reescreveu o trecho: Satanás aparece como uma grande serpente do deserto e quase
engole Moisés, até que Séfora circuncida o bebé do casal.
Hereges gnósticos, do passado e do presente (e aqui me incluo), muito apreciam
essa passagem bíblica, mas o sofisticado e irónico Javista não era crente nem
herege.
Penso que J pretendesse fazer-nos constatar, mais uma vez, que a identificação
total com a vontade de Javé é impossível: ele não é previsível. Atualmente, os
inefáveis
Falwell e Robertson estão propondo que Deus permitiu a destruição das torres do
World Trade Center porque somos tolerantes com defensores do aborto,
homossexuais,
feministas e gentalha similar. Não me interessaria a interpretação de Falwell e
Robertson do porquê de Javé ter atentado contra a vida de Moisés.
O génio do(a) Javista é absolutamente fabuloso - e sempre nos surpreende.
Homero, nitidamente, não procurava surpreender os leitores, mas recriou a poesia
do passado
de modo mais memorável do que nunca. J foi absolutamente original, um génio
jamais inteiramente ?ssimilado pela tradição bíblica que ele/ela, na verdade,
não imaginava
iniciar, mas que dela se escandalizaria, caso se conscientizasse da totalidade
das implicações do texto em questão.
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147
SÓCRATES E PLATÃO
SÓCRATES E PLATÃO
Quando ele chegou, Agáton, que estava sentado sozinho, à cabeceira da mesa,
saudou-o: - Eis que surge Sócrates! Vem sentar-te ao meu lado; quero
compartilhar
do pensamento que acabaste de elaborar ao meditar sob o alpendre. Estou certo de
que o concluíste, ou ainda estarias lá.
- Meu caro Agáton - Sócrates respondeu, enquanto sentava-se ao lado dele -eu
gostaria muito que o saber pudesse ser compartilhado, por simples contato, de
quem
dele está repleto com quem dele carece, como a água que, por um fio de lã,
nivela-se em duas taças. Se assim ocorresse, estou certo de que me congratularia
por sentar-me
ao teu lado, pois em breve tu me encherias até a borda, com a mais sofisticada
sabedoria. O meu saber, na melhor das hipóteses, é obscuro, duvidoso como um
sonho,
mas o teu, Agáton, brilha e se espraia - quem de nós poderá esquecer, que o
tenha visto há pouco, resplandecente em tua juventude, visivelmente aclamado
diante dos
olhos de mais de 30 mil compatriotas gregos!
- Platão, Banquete
A ironia socrática se apresenta na forma de ignorância, e, com
espirituosidade, pega a pessoa por meio da sabedoria. A ironia de Platão, a meu
ver, se parece mais
com a de Chaucer, que, segundo G. K. Chesterton, era grandiosa demais para ser
apreendida. Emerson, meditando sobre o génio de Platão, observou, quanto ao seu
espantoso
alcance especulativo:
Vem de Platão tudo o que ainda hoje é escrito e debatido entre os pensadores. Um
grande dano é o que ele causa à nossa originalidade. Nele chegamos à montanha da
qual rolaram todas as pedras.
Percebe-se que Montaigne, mestre de Emerson, preferia Sócrates a Platão, ao
passo que a estima do próprio Emerson pendia mais para o historiógrafo de
Sócrates:
"Com grande visão, Platão forneceu-nos as luzes e as sombras do génio da nossa
vida."
A classificação de seguidores de Platão proposta por Emerson é bastante
abrangente: inclui Michelangelo, Shakespeare, Swedenborg e Goethe. A inclusão de
Hamlet
entre os platonistas é a que mais me agrada, embora discorde dos termos de
Emerson:
Hamlet é absolutamente platónico, e é apenas a magnitude do génio de Shakespeare
que impede o personagem de ser classificado como o mais eminente da escola a que
pertence.
Emerson queria dizer que o instinto impenitente de Hamlet visava à
transcendência, mas isso só se aplica ao Hamlet do quinto ato, e não ao
estudante assassino,
ao génio do início da peça. Os seguidores de Platão são homens e mulheres
perigosos, com relação a si mesmos e a terceiros. As Leis de Platão causam-me
maior apreensão
do que o Deuteronômio, ou do que há de mais radical no Alcorão. A grande
moralidade pode se tornar, rapidamente, selvagem e, após meio século na
Universidade de
Yale, cresce o meu desagrado diante do fato de que, a exemplo de todas as demais
instituições académicas do mundo anglófono, as leis de Yale se transformam, cada
vez mais, em uma paródia do platonismo.
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149
6 wiiP CÈkú 6 #ti?
SÓCRATES E PLATÃO
SÓCRATES
(469-399 A.E.C.)
PLATÃO
(C. 429-347 A.E.C.)
Assim como dizem que Helena de Argos tinha uma beleza universal, que fazia com
que todos se sentissem a ela ligados, a um leitor da Nova Inglaterra, Platão
parece
um géniojiorte-americano.
- Emerson
Emerson não tinha Sócrates na conta de génio norte-americano; sábios da
tradição oral parecem pertencer aos seus próprios povos: Confúcio aos chineses,
Jesus aos
judeus, Sócrates aos atenienses. Platão, no entanto, possui a universalidade dos
grandes escritores: Homero, Shakespeare, Cervantes, Montaigne, entre outros.
Desse
grupo, porém, apenas Platão teme o seu próprio talento artístico; somente em
Tolstoi o fenómeno seria, novamente, observado. A falecida ficcionista íris
Murdoch
escreveu monografia notável que focaliza, precisamente, esse temor: The Fire and
the Sun: Why Plato Banished the Artists (1977). Murdoch é aqui bastante lúcida,
tanto quanto em seus romances mais representativos:
O paradoxo mais óbvio do problema aqui abordado é que Platão é um grande artista
(...). Travou longa batalha contra a sofística e a magia, e, no entanto,
produziu
algumas das imagens mais memoráveis da filosofia europeia: a Caverna, o Auriga,
o esperto Eros, o Demiurgo, cortando em tiras a Anima Mundi (...). Platão
desejava
o que mais de uma vez ele próprio menciona: a imortalidade através da arte; ele
sentia e satisfazia o desejo do artista de produzir objetos unificados,
distintos,
formais, duráveis. (87-88)
Supõe-se que o principal evento na vida de Platão tenha sido o assassínio
judicial de Sócrates. É válida também a hipótese de que a polémica sumamente
artística
de Platão contra a arte seja, antes de tudo, uma contenda por supremacia
cultural travada com Homero, luta que Platão estava fadado a perder. O diálogo
platónico
é uma grande invenção, mas nem a República nem o Banquete têm a eminência
estética da Ilíada.
S u um crítico literário; não sou filósofo nem historiador, portanto, minha
competência discorrer sobre o génio de Platão é limitada. Poucas obras
literárias comovem-me
mais do que o Banquete, por isso restrinjo minhas observações a esse diálogo
específico.
O génio, ou demónio, de Sócrates é um dos pontos de partida de Platão.
Aprendemos com Sócrates que ele é capaz de comprovar a nossa ignorância, pois
começa a pensar
com base em sua própria - e formidável - "ignorância". Adotar Sócrates como
predecessor, como o fez Platão, constitui, a meu ver, a exclusão de Homero.
Sócrates
considerava a Ilíada uma tragédia, ao menos, é o que Platão sempre sugere. Freud
é uma espécie de antítese de Platão, que honra a imagem do pai; Freud jamais o
faz,
mas, na verdade, em sua vida não houve um Sócrates. A ironia socrática é
idêntica ao génio socrático, e, consequentemente, a ironia platónica é bastante
sutil, uma
vez que, a exemplo da ironia do mestre, a do discípulo não é, a princípio,
retórica; isto é, não afirma uma coisa querendo dizer outra. Sócrates é por
demais natural,
por demais coerente, para recorrer à ironia retórica, conforme insiste
Montaigne:
Foi ele [Sócrates] que fez a sabedoria humana descer, novamente, do céu, onde
desperdiçava seu tempo, e ser restituída ao homem, ao qual ela desempenha as
tarefas
mais típicas, árduas e úteis.
A ironia do próprio Montaigne é evidente. Gregory Vlastos, grande estudioso de
Sócrates, concluiu que o pensador grego demonstrava uma "carência de amor".
Poderia
haver ironia ainda maior, se Vlastos estiver certo, uma vez que Sócrates, no
Banquete, afirma ser uma autoridade tão-somente no amor? Eis o que diz Vlastos,
sobre
"O Paradoxo de Sócrates":
Já demonstrei que Sócrates, de fato, confere importância às almas dos
companheiros. Mas essa importância é limitada e condicional. Se as almas dos
humanos haverão
de ser salvas, devem sê-lo de acordo com os termos por ele pensados. E quando
percebe que determinadas almas não se salvarão, ele as observa, ao longo do
caminho
da perdição, com pesar, mas sem angústia. Jesus chorou por Jerusalém. Sócrates
adverte, repreende, exorta e condena Atenas. Mas não verte lágrimas pela cidade.
Chegamos
a conjeturar se Platão, que vociferava contra Atenas, apesar de toda a sua fúria
e ódio, não a amava mais do que Sócrates, com suas repreensões melancólicas e
comedidas.
Percebemos uma zona de frigidez na alma do grande erótico; se amasse mais os
concidadãos, não teria feito pesar sobre eles uma lógica despótica", impossível
de ser
suportada.
- Sócrates, Plato, and Their Tradition (15)
150
151
Uma "lógica despótica", conforme observa Vlastos, é o que a Sócrates atribui
Nietzsche, em A Origem da Tragédia, o primeiro encontro do embate que o pensador
alemão
travaria com Sócrates pelo resto da vida. Incomoda mais a quase todo mundo (não
estou sendo irónico) o fato de Sócrates nada ter escrito do que Confúcio e Jesus
terem se restringido a aforismos. Kierkegaard, embora menos hostil do que
Nietzsche, também se incomodava com o silêncio de Sócrates. Jamais poderemos
saber onde
termina Sócrates e inicia o Sócrates de Platão, nem mesmo se tal distinção
procede. Vlastos, após profundo estudo, concluiu que o Sócrates dos primeiros
diálogos
de Platão é, com efeito, a figura histórica, e não uma ficção platónica. A única
alternativa é o Sócrates de Xenofonte, e o Xenofonte de Acontecimentos
Memoráveis
não é, nem de longe, tãd*interessante quanto o de Anábasis, relato da retirada
heróica de um exército de mercenários gregos, desde a Pérsia até o mar Negro.
Discípulo
de Sócrates, tão fiel quanto Platão, Xenofonte era um soldado profissional, e
não um filósofo dramático. Xenofonte, que apresenta um Sócrates destituído de
ironia
e originalidade moral, é destruído por Vlastos, no momento em que este afirma
que o garboso general seria um ilustre súdito vitoriano, na visão de Lytton
Strachey.
Portanto, resta-nos apenas o relato de Platão, sem dúvida, um grande artista,
mas que amava e honrava Sócrates como um pai. O Sócrates de Platão é obra de um
dramaturgo
comparável a Eurípedes e (com algumas restrições) a Aristófanes, mas entre os
que liam Platão muitos haviam ouvido os discursos de Sócrates. Não temos aqui,
absolutamente,
uma situação similar à de São Paulo e dos autores dos Evangelhos, dos quais
nenhum jamais viu ou ouviu Jesus.
Todavia, Sócrates, com ou sem Platão, continua a ser um paradoxo, um enigma
permanente. Ao contrário do Platão amadurecido, Sócrates não estabelece dogmas;
gostaria
de acreditar na imortalidade da alma, mas aceita a possibilidade do
aniquilamento da consciência com o advento da morte. E a vocação, ou missão, de
Sócrates parece
contraditória. Professa ignorância, instrui quanto à sapiência e ao cuidado da
alma, e, no entanto, quase toda a sua atividade caracteriza-se, essencialmente,
pela
refutação: alguém afirma uma posição, e ele rebate. Vlastos procura explicar o
paradoxo, qualificando Sócrates como um ser em constante busca da verdade. Mas
(com
raras exceções) percebe-se menos a presença de um inquisidor irónico do que a de
um ironista em busca da verdade.
Sõren Kierkegaard, escritor religioso dinamarquês que viveu no século XIX, é
objeto de outro capítulo deste livro. Aqui interessa-me a monografia académica "O
Conceito de Ironia, com Referência Constante a Sócrates" - defendida por ele em
1841. O estudo é tão irónico que se torna impossível dele depreender um relato
claro
da ironia socrática, mas a Tese número XIII deixa-me sempre atónito:
Ironia não é apatia, destituída das tenras emoções da alma; ao contrário, é
ansiedade, resultante do fato de que terceiros também se divertem com o que ela
requer
para si.
A reflexão não parece nem socrática, nem hegeliana, mas é puro Kierkegaard, e
aponta-nos as ansiedades e a angústia das almas extremamente criativas, em
competição
com as demais. O paradoxo de Sócrates não incluiria a sua posição agonística,
sempre central à cultura ateniense? O Banquete, que não tardo em abordar, é,
decerto,
uma competição: de bebida, de oratória, de eros, do cuidado com a alma e o ser,
que, afinal, é a preocupação exclusiva de Sócrates. Somente após encontrar a
virtude
em outro ser, ele será capaz de encontrá-la em si mesmo. Mas, sendo ele o melhor
dos atenienses, de qualquer maneira, haverá de prosseguir a busca. A Tese número
XIII de Kierkegaard é, portanto, uma inversão irónica da ironia socrática,
marcantemente proposital, uma vez que o argumento do pensador dinamarquês é que
o Sócrates
externo não passa de uma máscara, e que, internamente, Sócrates era o oposto do
que simulava ser. A maior ironia, então, é que Sócrates seria o sofista
autêntico,
e não Górgias e seus asseclas, a quem
Sócrates combatia.
Alexander Nehamas, seguindo os passos de Vlastos, cita a ambivalência de
Nietzsche com relação a Sócrates, ao mesmo tempo, criticado por buscar uma
moralidade
razoável e enfaticamente elogiado, pela "autenticidade" dialética. A noção é
perturbadora, mas contribui para o profundo esclarecimento que Nehamas empresta
à ironia
socrática:
Muitas vezes, ironia consiste em comunicar ao público que algo se passa em nosso
interior que não pode ser, absolutamente, revelado. Além disso, de modo mais
radical,
a ironia deixa em aberto a questão relativa à nossa própria capacidade de
perceber o que se passa.
- Virtues ofAuthenticity (113)
Sócrates percebe o que se passa em seu interior? Se estivéssemos falando do
mais sublime dos ironistas, Hamlet, que tudo percebe, a questão teria uma
resposta.
Hamlet percebe tudo, em si mesmo e nos outros. Com o Sócrates de Platão, estamos
no abismo da ironia de Platão, que não me parece retórica nem dramática. Saberá
Platão mais a respeito de Sócrates do que o próprio Sócrates? Apesar de todo o
seu génio, Platão não e onakespeare, e Sócrates jamais ouve a si mesmo como se
fosse
uma outra pessoa.
ricariamos surpresos com a expressão "amor socrático", mas muitos de nós
achamos que sabemos (com bastante afetação) o que significa "amor platónico". Na
linguagem
popular, a expressão é definida pelos dicionários como afeto que transcende o
desejo sexual, e que busca uma dimensão ideal ou espiritual. Não é bem isso que
o Banquete
propõe, conquanto não seja fácil explicar o Banquete, triunfo da arte literária.
152
153
A melhor introdução ao Banquete é o estudo de K. J. Dover intitulado Greek
Homosexuality (1978), que, com bom humor, adverte-nos de que o caso de Platão
pode ser
especial:
Sobretudo em duas obras, Banquete e Fedro, Platão adota o desejo homossexual
como ponto de partida para desenvolver sua teoria metafísica, e é sumamente
importante
o fato de ele encarar a filosofia não como uma atividade a ser desempenhada
através da meditação solitária, e relatada em pronunciamentos ex cathe-dra por
um mestre
a seus discípulos, mas como um processo dialético que pode perfeitamente ser
deflagrado pela reação de um homem amadurecido ao estímulo causado por um*homem
mais
jovem (...). Sendo um aristocrata ateniense, Platão vivia em uma classe social
que, certamente, considerava normal o desejo e o sentimento homossexual (...). O
tratamento
filosófico dispensado por Platão ao amor homossexual pode ter resultado desse
ambiente. Mas é preciso considerar a possibilidade de a própria disposição
homossexual
do pensador ter uma intensidade anormal. (12)
É duvidoso que Platão fosse diferente dos homens que o cercavam, a não ser
quanto ao génio inigualável. O Banquete situa-se, dramaticamente, no ano 416
a.e.c,
quando Platão tinha apenas 13 anos. Se o banquete, de fato, ocorreu àquela
época, Sócrates estaria com 53 anos, e Alcibíades detinha bastante poder
político em Atenas,
em um momento histórico que corresponderia ao 152 ano da Guerra do Peloponeso. A
própria realização do banquete é, igualmente, dúbia, conquanto não impossível. O
jovem trágico Agáton promove a festa a fim de celebrar o sucesso de sua primeira
peça em um festival de teatro em Atenas. Presentes, além de Agáton e Sócrates
(este
o mais velho conviva), encontra-se Aristófanes, extraordinário autor de farsas,
inclusive As Nuvens, ousada sátira à figura de Sócrates, peça, àquela altura, já
encenada. Há outros quatro personagens: Alcibíades, que chega atrasado, Fedro,
Pausânias e Erixímaco. São três os discursos mais importantes - de Aristófanes,
Sócrates
e Alcibíades -, embora o discurso de Agáton sobre o amor ocorra entre os de
Aristófanes e Sócrates. Platão interrompe a sequência, pois não há continuidade
entre
as visões de Aristófanes e Sócrates, enquanto Alcibíades, focalizando o enigma
do próprio Sócrates, apresenta a conclusão propícia à obra.
Notoriamente, Aristófanes argumenta que o amor é o desejo e a busca do todo,
que constitui uma criatura grotesca, de duas cabeças, quatro braços e quatro
pernas.
Pedaços desesperados, corremos a esmo, procurando a nossa outra metade. Zeus,
por castigo, separou-nos em partes, e ansiamos por nos tornar, novamente,
inteiros.
Talvez Platão,
por meio dessa criação brilhante, tenha saído quite com Aristófanes pela
composição de As Nuvens, mas também satiriza o amor heterossexual e o respectivo
desenlace
social: o casamento. Em todo caso, Platão confere aqui a Aristófanes o mito mais
célebre do
Banquete.
De modo atípico, Sócrates recorre a um mentor: a sábia Diotima, supostamente,
uma sacerdotisa, mais provavelmente, uma ficção criada por Platão. Ela refuta
Aristófanes
(que pretende protestar, mas, no momento em que vai fazê-lo, chega Alcibíades,
um tanto embriagado), observando, de modo sagaz, que o amor não pertence nem à
metade,
nem ao todo, mas apenas ao Bem. A beleza de um belo mancebo, em última
instância, conduz o amante a uma escada que deve ser subida. De vez que "amor"
vem a ser sinónimo
de "filosofia", determinado objeto - qualquer rapazola - fica para trás, nos
degraus inferiores, e aquele que busca ascende à revelação, à beleza estonteante
que
corresponde ao Bem. Tudo isso, que o platonismo, o neoplatonismo e o platonismo
cristão tornaram, para nós, matéria familiar, configura a originalidade de
Platão,
a assinatura do seu génio, e não parece, em absoluto, formulação do Sócrates
histórico. A originalidade literária é aqui tamanha, que fico inclinado a
interpretá-la
como uma resposta triunfante de Platão a Homero e aos dramaturgos trágicos
atenienses, cuja visão de Eros em nada antecipa Platão; a meu ver, trata-se do
maior triunfo
literário de Platão, em seu interminável embate com Homero. Cons-tata-se aqui o
êxtase da originalidade na doutrina de Diotima, em que o amor é transformado em
ambição
de gerar a Beleza, como um filho. A filosofia supera a poesia, gera (por assim
dizer) a poesia, e alcança a imortalidade da alma, ao contemplar, finalmente,
não
a poesia ou a Beleza, mas a Forma do Belo. A justificativa educacional da
pederastia eleva-se à vitória agonística da filosofia sobre todos os
competidores, seja
qual for o custo humano.
Sócrates fala de seu demónio, mas o Platão que compôs o Banquete parece ainda
mais "demoníaco", não um génio da personalidade, como Sócrates, mas um novo tipo
de poeta, ancestral de Dante e John Milton, e de todo o Romantismo que os
seguiu, inclusive W. B. Yeats, Wallace Stevens e Hart Crane, no século XX. No
entanto,
1 latão, fiel ao Sócrates que o gerou como filósofo, não encerra o Banquete com
o seu próprio triufalismo. Alcibíades, em uma aparição cómica e maravilhosa,
conduz-nos
de volta ao paradoxo de Sócrates.
Sócrates, diz Alcibíades, é um sileno, ou a estátua de um sileno:
externamente, grotesca, mas, internamente, repleta de belas imagens do divino.
Sileno, espírito
ligado a
lonisio, o deus da mímica, está além da condição de humano e, por associação,
o mesmo pode ser dito de Sócrates, o primeiro filósofo verdadeiro. Entretanto,
ironicaente, Sócrates apenas finge estar apaixonado por Alcibíades ou por outros belos
154
155
jovens. Antes, é ele o objeto do desejo desses jovens, que, no extremo, encaramno como a forma do Bem. Eis a perfeição do paradoxo socrático. Ele encarna o
ideal:
amá-lo é amar a sabedoria, e, portanto, aprender a filosofar. Como leitor, isso
me deixa descontente, pois não acredito em Platão, mas, do ponto de vista
estético,
rendo-me, inteiramente, a essa noção, pois o génio de Platão logra afirmar-se no
eterno confronto com Homero.
dfo ifc^ (^ SÃO PAULO
Ora, se se prega que Cristo ressuscitou dos mortos, como podem alguns dentre
nós dizer que não há ressurreição dos mortos? Se não há ressurreição dos mortos,
também
Cristo não ressuscitou. E, se Cristo não ressuscitou, vazia é a nossa pregação,
vazia também é a vossa fé. Acontece mesmo que somos falsas testemunhas de Deus,
pois
atestamos contra Deus que ele ressuscitou a Cristo, quando de fato não o
ressuscitou, se é que os mortos não ressuscitam. Pois, se os mortos não
ressuscitam, também
Cristo não ressuscitou. E, se Cristo não ressuscitou, ilusória é a vossa fé;
ainda estais nos vossos pecados. Por conseguinte, aqueles que adormeceram em
Cristo
tão-somente para esta vida, somos os mais dignos de compaixão de todos os
homens.
Não, porém! Cristo ressuscitou dos mortos, primícias dos que adormeceram. Com
efeito, visto que a morte veio por um homem, também por um homem vem a
ressurreição
dos mortos. Pois, assim como todos morrem em Adão, em Cristo todos receberão a
vida. Cada um, porém, em sua ordem: como primícias, Cristo; depois aqueles que
pertencem
a Cristo, por ocasião de sua vinda. A seguir, haverá o fim, quando ele entregar
o reino a Deus Pai, depois de ter destruído todo Principado, toda Autoridade,
todo
Poder. Pois é preciso que ele reine, até que tenha posto todos os seus inimigos
debaixo dos seus pés. O último inimigo a ser destruído será a Morte, pois ele
tudo
colocou debaixo dos pés dele. Mas, quando ele disser: "Tudo está submetido",
evidentemente excluir-se-á aquele que tudo lhe submeteu. E, quando todas as
coisas lhe
tiverem sido submetidas, então
o
próprio filho se submeterá àquele que tudo lhe submeteu, para que Deus
seja
tudo em todos.2
- 1 Coríntios 15: 12-28
1
alvez todos os génios da literatura e da retórica sejam enigmáticos,
mas, entre as
100 figuras aqui comentadas, São Paulo me parece o maior enigma. Ele não se
dirige
aos coríntios como descrentes, mas como "espíritos", homens e mulheres que crêem
já
aver ressuscitado, sem que tenha sido necessário morrer. Quiçá foram precursores
de
1 A Bíblia de Jerusalém. Novo Testamento. Coordenação de Fr. Gilberto da Silva
Gorgulho, Ana Flora Anderson e Pe. Ivo Storniolo. São Paulo: Paulinas, 1981, pp.
475-76.
156
157
"hereges" que surgiriam mais tarde, os gnósticos que, referindo-se a Jesus,
disseram: "Primeiro, ressuscitou e, depois, morreu." Wayne Meeks, autoridade em
Paulo,
observa quão benévolo o Apóstolo é com os coríntios (em comparação ao ataque que
desfere contra os gálatas). E possível que São Paulo tenha reconhecido nos
coríntios
certas tendências com as quais se identificava, e, por conseguinte, argumenta
com mais verve, pois, de certo modo, debate consigo mesmo.
O génio literário de Paulo é inquestionável: "O último inimigo a ser
destruído será a Morte." Contudo, Paulo, judeu helenista, entendia a Aliança
conforme a denominação
da Septuaginta (tradução greco-alexandrina da Bíblia Hebraica): diatheke, o
testamento da graça de Deus, a expressão de sua vontade, e não no sentido
hebraico, berith,
i.e., aliança recíproca. ^Tenho muita dificuldade em aceitar a leitura
equivocada que Paulo faz do judaísmo, pois se trata de um cristianismo helénico,
em vez do
cristianismo judaico de Tiago, o Justo, irmão de Jesus.
Ainda assim, é positivo o fato de Wayne Meeks absolver o génio de Paulo do
evangelismo norte-americano perpetrado em nome do Apóstolo:
Paulo não era pietista luterano nem cristão renascido norte-americano. Paulo não
reduziu o Evangelho ao perdão pelo pecado, muito menos à atenuação do sentimento
de culpa.
O génio de Paulo, conforme diz Meeks, é proteico. No instante em que julgamos
tê-lo apreendido, ele procede a uma metamorfose. Paulo não foi "o segundo
Fundador
do Cristianismo", foi o primeiro, e aprendeu a "ser tudo para todos".
dite dte dte
SÃO PAULO
Poucos seriam os leitores que não teriam dificuldades em aceitar a expressão
"o génio de íesus", embora com ela eu queira dizer algo semelhante ao sentido
atribuído
por Plutarco à expressão "o daimon de Sócrates". Buscas pelo Jesus histórico
tendem a se tornar romances, cruzadas académicas, jornadas espirituais em que
estudiosos
encontram aquilo que desejam encontrar. Existiu um Jesus histórico, mas sobre
ele quase nada sabemos. A única fonte que merece alguma confiança é o
historiador judeu
Josefo, de quem é possível depreender certos fatos: Joshua, filho de José e
Miriam, tomou-se discípulo de João Batista, carismático reformador da
espiritualidade.
Por sua vez, esse Joshua (Jeshua, em hebraico, Jesus, em latim) tornou-se um
carismático mestre da sabedoria, seguido por muitos judeus, mas foi crucificado
pelos
romanos, evidentemente, após ter desafiado ao menos algumas autoridades
religiosas judaicas. Novamente, segundo Josefo, o principal legatário de Jesus
foi seu irmão,
Tiago, o Justo, que liderou a comunidade de Jerusalém que ainda seguia Jesus.
Tiago foi apedrejado até a morte, por ordem do grande sacerdote de Jerusalém,
poucos
anos antes da destruição do Templo, perpetrada pelos romanos, no ano 70 da Era
Comum. Sendo o Novo Testamento uma polémica, e não História, tudo o que ali se
diz
é convincente aos convictos: trata-se de fé, argumento, mito, visão - o que o
leitor quiser.
Há, também, os aforismos de Jesus, nem todos relatados no Novo Testamento. Não
existem bases concretas para a aceitação ou rejeição de tais aforismos. Os
critérios
de julgamento, a meu ver, restringem-se a gosto literário e discernimento
espiritual, ambos reconhecidamente questionáveis. Uma vez que centenas de
milhões de pessoas,
no mundo inteiro, aceitam a divindade de Jesus, parece-me um tanto escandaloso
que tenhamos tão poucos dados confiáveis a seu respeito. Falava aramaico ou
grego,
ou, talvez, ambos os idiomas? É possível situá-lo, com precisão, no emaranhado
de crenças judaicas existentes na época em que ele viveu? Hillel, a quem se
atribuem
alguns aforismos semelhantes aos de Jesus, era fariseu, e, portanto, provável
ancestral do que hoje denominamos judaísmo rabínico. Era Jesus fariseu, malgrado
as
censuras que o Novo
estamento faz aos fariseus? A pergunta talvez não tenha o menor sentido, porque
dispomos de tão poucos dados concretos sobre Hillel quanto sobre Jesus. Lembrome
de aver-me recusado a escrever uma resenha do livro O Evangelho Segundo o Filho,
de
orman Mailer, porque se tratava de um auto-retrato do autor, mas todo livro
sobre
us, apresentado ou não como ficção, é autobiográfico, especialmente no que
toca à questão da fé.
158
159
Embora, evidentemente, letrado, Jesus nada escreveu, assim como Sócrates e
(provavelmente) Confúcio nada escreveram. Os três dirigiam-se, no mais das
vezes, a
discípulos, e sabiam que a sua sapiência seria transmitida, oralmente e por
escrito. Não temos como avaliar a acuidade dos respectivos meios de transmissão,
em nenhum
dos três casos. A ironia, que afirma uma coisa e quer dizer outra, é,
necessariamente, um meio indireto de comunicação, e tanto Jesus quanto Sócrates
falavam como
ironistas. O mesmo se aplica a Confúcio, segundo me consta. Mas a ironia de
Jesus é mais problemática, pois, desses três mestres da sabedoria, ele foi o
único a
ser divinizado.
Sócrates não fala em nome de um predecessor, ao contrário de Confúcio, que
exalta o Duque de Chou. Qual foi, exatamente, a natureza do relacionamento de
Jesus
e João Batista? Sem dúvida, não deveria tal relação causar maior constrangimento
do que costuma ser o caso, aos que insistem na divindade de Jesus? Deus seria
batizado
por um homem? Os autores do Novo Testamento apressam-se em apresentar João
Batista proclamando a sua posição secundária à de Jesus, mas a situação não
parece convincente.
O aprendizado de Jesus com João Batista chega ao fim com a imersão nas águas do
rio Jordão? E por que seria o batismo necessário ao Deus encarnado? Pelo que se
supõe,
a iniciação de Jesus como seguidor de João era por demais conhecida para ser
excluída da história de Cristo, assim como o Redator da Bíblia Hebraica, na
Babilónia,
foi obrigado a incluir o chocante atentado de Javé contra a vida de Moisés, por
ser, igualmente, fato notório.
Que doutrina teria João ensinado a Jesus (se é que o fez)? Até que ponto foi o
batismo de Jesus uma espécie de conversão (novamente, se foi isso que se
passou)?
E, em caso afirmativo, a conversão seria de qual doutrina a qual doutrina?
Podemos pesquisar os estudos de teólogos e historiadores especializados em
religião e
encontrar quase nada que auxilie na elucidação dessas questões. Os primeiros
cristãos são evasivos, quanto à relação entre João Batista e Jesus. No Evangelho
de
João, o batismo de Jesus passa despercebido, enquanto os Evangelhos sinóticos
são ambíguos; em Mateus, João diz que Jesus é que deve batizá-/o e, em Lucas,
Jesus
é batizado por um desconhecido, pois João Batista já está preso.
Estudiosos, especialmente nos últimos tempos, têm procurado vislumbrar a
orientação de Jesus vis-à-vis as seitas judaicas do século I, mas, novamente, as
especulações
não convencem. Sempre falta algo. Talvez seja necessário partir de um ponto
anterior. Teria sido João Batista seguidor de uma seita de um homem só? Teria
esse credo
se tornado uma seita de dois, com o advento de Jesus? Certamente que não, pois
João era bastante subversivo ao ponto de garantir a sua própria execução. Mas
João,
é óbvio, teve vários discípulos, inclusive Jesus (que me perdoe o leitor) e o
enigmático Simão, o Mago, considerado pela tradição cristã (provavelmente, sem
fundamento)
o fundador da "heresia" gnóstica.
Tudo depende da autoridade académica em que se decide confiar. O católico John p
Meier é um estudioso ilustre e ponderado da vida de Jesus; Meier intitula a sua
obra A Marginal Jew, e conclui que os seguidores de Batista e de Jesus eram,
igualmente, marginalizados. Uma visão bastante distinta é proposta por Robert
Eisenman,
cujo estudo, James the Brother of Jesus, extremamente polémico, reúne as figuras
de João Batista, Jesus e Tiago, o Justo, posicionando-as no centro heróico da
resistência
judaica ao opressor romano. Diante de asserções conflitantes apresentadas pelos
diversos pes-auisadores, o leitor consciente deve voltar a Josefo, o único
testemunho
histórico ainda válido (embora os textos de Josefo tenham sido retocados por
exegetas cristãos), e, de modo crucial, aos aforismos de Jesus (se é que são, de
fato,
dele).
A essa altura, cabe registrar, embora com certo acanhamento, que Deus e os
deuses são, necessariamente, personagens literários. Fiéis, sejam académicos ou
não,
de modo geral, reagem violentamente a essa observação, por conseguinte, pretendo
ser bastante claro. O Jesus do Novo Testamento é um personagem literário, tanto
quanto o Javé da Bíblia Hebraica e o Alá do Alcorão. Porém, vale lembrar,
Sócrates e Confúcio não eram deuses, mas são - na forma em que os conhecemos personagens
literários, conquanto não haja motivo para duvidar da existência histórica
deles. O Jesus histórico é uma espécie de fantasma, pois Josefo, o historiador
judeu,
embora dotado de memória prodigiosa, era um quisling, vendido aos romanos,
propenso a mentir e distorcer os fatos, abertamente, quase sempre em benefício
próprio.
Contemplar Jesus através dos aforismos que lhe são atribuídos assemelha-se
bastante a contemplar Confúcio através da obra Analetas, ou Sócrates através de
Platão
e Xenofonte. Aquilo que ouvimos, ou tentamos ouvir, foi mediado por discípulos.
O autor do Evangelho de Marcos, escritor contundente, em termos pragmáticos,
criou
a figura que a maioria das pessoas, crentes e descrentes, tem de Jesus. Do mesmo
modo, o mais antigo autor bíblico, o Javista, criou o personagem literário Javé,
adorado como Deus por judeus, cristãos e muçulmanos. Volto a dizer: falo de um
ponto de vista estritamente pragmático, embora seja desconcertante ouvir que
algo
que constitui objeto de fé seja apenas um personagem literário. Proponho a ideia
de "génio" como a saída para tal impasse. Podemos falar dos génios de Hamlet e
do
Satã de Milton separadamente dos génios de Shakespeare e John Milton. Falar do
génio de Jesus é falar dos aforismos a ele atribuídos, alguns dos quais
manifestam,
autenticamente, a autoridade, a memora-bilidade e a individualidade que
caracterizam a marca do génio. Passo, então, a abordá-los, em busca da voz do
génio, deixando
de lado o debate sobre a autenticidade do Jesus histórico.
160
161
A fim de evitar igrejas e controvérsias, cito os aforismos de Jesus a partir
da obra The Logia ofjeshua, traduzida por Guy Davenport e Benjamin Urrutia
(Counterpoint:
Washington, D.C., 1996), um pequeno volume, abençoadamente livre de tendências
teológicas.
O reino do Pai não será apontado por quem quer que seja. Ninguém poderá dizer:
Olhai, lá está!, ou Aqui, bem aqui! Pois o reino está dentro de vós, esperando
para
ser encontrado por vós.
O reino de Deus é, portanto, território desconhecido do eu interior, e não
pode ser localizado no tempo e no espaço. Mas o que dizer com relação àqueles
cujo eu
interior é um abismo?
Aquele que tem receberá mais, aquele que não tem tudo perderá. Este mundo é uma
ponte. Não construais sobre ela a vossa casa. Sede viajantes que por ela
trafegam.
Se formos transeuntes (como Walt Whitman), encontraremos o reino dentro de
nós. Encontrar Jesus, ele próprio afirma, não é muito difícil:
Estou sempre convosco, até o final dos tempos. Levantai uma pedra, ali me
encontrareis; rachai a lenha, ali estarei.
John P. Meier, padre católico erudito, não admite qualquer relação entre o
Jesus histórico e esse último aforismo, pois o mesmo pertence ao semignóstico
Evangelho
de Tomás, que data do século II e.c. Porém, conforme Meier bem o sabe, o
aforismo pode ser anterior a essa data, e, em todo caso, ninguém ainda
identificou o Jesus
histórico. O que os estudiosos denominam gnosticismo cristão muitas vezes me
parece uma versão tardia do Jesus aforístico. No Evangelho de Tomás, Jesus
exalta apenas
duas figuras: João Batista e Tiago, o Justo. Sabemos mais sobre a figura
histórica de Tiago, o Justo, "irmão de Jesus", do que sobre Jesus; a respeito de
João Batista,
sabemos quase tão pouco quanto sobre Jesus. Todavia, é perfeitamente possível
fazer deduções fundamentadas sobre João Batista, e pergunto a mim mesmo que
doutrina
(se é que havia uma doutrina) Jesus tomava em consideração, ao iniciar-se como
discípulo do primo. João Batista teve outros discípulos, inclusive Simão, o
Mago,
vilão de tantos textos do cristianismo, e fonte primeira da lenda de Fausto.
Supõe-se que Simão e outros gnósticos antigos muito tenham aprendido de João
Batista,
que batizava judeus e samaritanos, indiscriminadamente.
ja ná ^guns samaritanos em Israel/Palestina, e ainda alguns gnósticos no
Iraque, ue tanto quanto os samaritanos, aceitam João Batista como profeta. ^
Profeta de
quem? De Jesus, responde a Igreja, porém é óbvio que o papel de João Batista por que não dizer, seu génio? - era mais importante. O Alcorão funde João e T us
provavelmente
porque Maomé encontrou nos ebionitas, ou seguidores tardios de Tiago, o Justo,
os predecessores de sua própria revelação. Poderíamos citar João Batista mo o
primeiro
ebionita, antes de Jesus, mas não dispomos de informações precisas sobre as
origens dos ebionitas (a palavra quer dizer "homens pobres"). Temos, no entanto,
o testemunho
de Josefo, de que João Batista, por volta do ano 20 a.e.c, era o defensor da
probidade, pregador carismático cujo elevado número de seguidores assustou
Herodes Antipas
ao ponto de este condená-lo à morte. Josefo manifesta certa ansiedade, ao
escrever sobre João, e omite o respectivo contexto histórico, na Transjordânia.
João não
se estabelecera na Terra Santa, mas no deserto, um novo Elias, talvez um novo
Moisés. Desconfio que João não tenha profetizado a vinda do seguidor, Jesus, mas
de
Javé, que haveria de atravessar o Jordão a fim de expulsar os romanos, mas
somente se os judeus voltassem a optar pela probidade, e se purificassem do
pecado. Pergunto-me,
também, se não haveria um elemento mais esotérico na visão de João Batista.
Heresiólogos dos primeiros séculos do cristianismo insistiam que Simão, o
Mago, declarava-se divino, mas é possível que a noção seja tão falsa quanto a
cunhagem
do termo "simonia", a partir do discípulo samaritano mais destacado entre os
seguidores de João Batista. Os dicionários ainda hoje definem simonia como a
compra
ou venda de poderes espirituais, de maneira que a degradação de Simão, o
Gnóstico, no Novo Testamento (Atos 8: 9-24) impregnou toda a nossa cultura,
assim como a
difamação anti-semita do mítico Judas Iscariotes (Judah), prenome que,
simplesmente, significa "o judeu", enquanto Iscariotes é um cognome de
significado controverso,
embora, a meu ver, esteja relacionado aos Sicarii, de que fala Josefo, isto é,
os zelotes ou judeus que, bravamente, faziam oposição a Roma, e cujo derradeiro
bastião
foi Masada.
Historiadores do gnosticismo lamentam a dificuldade de investigar a figura
histórica de Simão, o Mago, mas tal fato não me comove, pois tudo o que sabemos
do Jesus
histórico (conforme já disse) é que esteve ligado a João Batista e a Tiago, o
Justo, e que foi crucificado pelos romanos. Paulo, o primeiro dos autores do
Novo Testamento,
não tinha qualquer interesse no Jesus histórico, provavelmente porque quase
todos os que haviam conhecido Jesus eram oponentes de Paulo. A figura histórica
de Simão,
o Mago, apresenta uma relação com o lendário Fausto bastante similar à relação
do Jesus histórico com o Jesus Cristo de Paulo (e do cristianismo). A tradição
cristã
relata que Simão chegou a Roma, assumiu a alcunha de Faustus ("o favorecido") e
ali faleceu, em uma impro162
163
vável tentativa de levitação. O simonianismo perdurou por cerca de duas gerações
e, então, fundiu-se ao gnosticismo heterodoxo, que teve o seu apogeu no século
II.
Seja lá em que circunstâncias tenha ocorrido a morte de Simão, a associação
com João Batista sugere que, assim como outros discípulos samaritanos, Simão
absorvera
conhecimento esotérico de João. Seria a visão de Jesus, discípulo de João, mais
próxima de Paulo, que jamais o conheceu, ou de Tiago, o Justo, que, ao lado dos
outros
discípulos, fundou a Igreja de Jerusalém? A congregação fugiu para Pela, na
Transjordânia, após o assassinato de Tiago e antes da destruição do Templo,
pelos romanos,
em 70 e.c. Os ebionitas, uma ou duas gerações posteriores, descendiam do tronco
original, de Jesus e Tiago, e sobreviveram até serem destruídos pela ortodoxia
paulina.
Considerando jque Simão, o Mago, não nos legou aforismos ou escritos, e que o
nosso conhecimento a seu respeito foi passado por seus inimigos cristãos, só
dispomos
do mito, para servir de base a qualquer avaliação. Mas a lenda de Fausto é tão
extraordinária que a sua primeira encarnação em nada nos parece obscura. Simão,
o
Mago, tremula, sinistramente, através dos séculos, como figura valente, ousada,
propensa a grandiosos atos simbólicos e dramáticos. João Batista, segundo uma
tradição
ainda vigente entre os xiitas do Irã, pregava a doutrina do "Sempre de Pé", um
Primeiro Adão que jamais tombava. João, um novo Elias, proclamava a volta do
verdadeiro
Adão. O vínculo de Jesus com tal anúncio, a despeito do que Jesus pensasse, foi
alterado, de modo definitivo, por Paulo. Contudo, Simão identificava-se,
diretamente,
com a grande Força do Primeiro Adão, e, pelo que consta, fez muitos seguidores
entre os samaritanos. Se Simão era mago, Jesus também o era, pois, na qualidade
de
curandeiros, ambos estavam sujeitos à acusação de feitiçaria. Assim como João
Batista, Jesus era, evidentemente, celibatário, mas o exuberante Simão, decerto,
não
o era. Amasiou-se com uma mulher, uma tal Helena, prostituta de Tiro, e
anunciou-a como a reencarnação simultânea de Helena de Tróia e da Primeira Ideia
(Ennoià)
de Deus, que sofrera uma queda e a quem ele, Simão, fora chamado a reerguer.
Essa invenção faustina é o aspecto imortal da história de Simão e, como ato de
criatividade,
prossegue a incomodar a imaginação ocidental.
Jesus, em seus aforismos e atos simbólicos, foi o maior dos ironistas. E
possível que Simão, o Mago, tivesse intenções irónicas, ao amancebar-se com
Helena de
Tiro, mas, por não dispormos de registros do discurso de Simão, nada podemos
saber a esse respeito. Mas Jesus, embora celibatário, teve a sua Helena, em
Maria Madalena,
outra prostituta arrependida. O mito de Jesus é o mais marcante registrado em
todo o Ocidente, superando os de Homero, do Alcorão e da Bíblia Hebraica. E,
apesar
da longa História do cristianismo, em todas as suas vertentes, o mito
fundamenta-se em uma voz:
Acendi um fogo na terra e o guardarei até que resplandeça.
T us não poderia prever o advento de Paulo, cuja carreira, iniciada como o
judeu-f • u Saulo de Tarso, convertido após uma visão, prosseguiu por meio da
rejeição
dos conhecimentos do círculo dos próprios amigos e familiares de Jesus, chegando
à inven-- de Tesus Cristo e do cristianismo. Conquanto Jesus havia acendido um
fogo
na terra, foi Paulo que o fez resplandecer. "O génio de Paulo" é expressão gasta
pelo mas é exata; sem Paulo, o que hoje chamamos "cristianismo" não teria
triunfado
primeiro, no Império Romano, em seguida, nos reinos subsequentes. É célebre a
proclamação de Paulo, em 1 Coríntios 9: 19-23: "Tornei-me tudo para todos." Para
os
opositores judeus-cristãos, adeptos de Tiago, o Justo, Paulo era o Inimigo, a
encarnação de Satã. Na perspectiva da seita de Jesus em Jerusalém, o que mais
Saulo
de Tarso/Paulo, o Apóstolo, poderia parecer? Como fariseu, ele havia comandado
violência, no Templo, contra o próprio Tiago e, após converter-se a Cristo (e
não
ao Jesus histórico), continuou a se desentender com a família e os amigos de
Jesus.
Poucos estudos sobre Paulo discutem o componente de violência em sua
extraordinária personalidade. Até mesmo o mais ponderado dos estudiosos, Wayne
Meeks, que,
com perspicácia, define Paulo como "o cristão Proteu", evita tratar a questão da
ferocidade da natureza do Apóstolo. Friedrich Nietzsche, o mais arguto dos
filósofos
morais, escrevendo em 1880, expõe o instinto perseguidor de Paulo:
O homem era acometido de uma ideia fixa, ou melhor, de uma questão fixa, uma
questão sempre presente, contumaz: qual o significado da Lei Judaica? Mais
especificamente,
do cumprimento dessa Lei? Na juventude, empenhara-se em cumpri-la, sedento da
mais alta distinção imaginável por um judeu - esse povo que, mais do que
qualquer outro,
elevou o sentido de grandeza moral, e que foi o único a unir o conceito de um
Deus santo à ideia do pecado como ofensa contra a santidade. São Paulo tornouse, a
um só tempo, defensor fanático e guarda de honra desse Deus e da Sua Lei. Sempre
combativo, e sempre à espreita de transgressores dessa Lei e dos que dela
ousassem
duvidar, Paulo foi implacável e cruel contra todos os malfeitores, os quais
punia com o maior rigor possível.
No entanto, Paulo tinha consciência do fato de que um homem como ele
-violento, sensual, melancólico e perverso em seu ódio - era incapaz de cumprir
a lei; ademais,
e o que lhe causava mais estranheza: ele percebia que o seu infindável anseio de
poder constituía uma pressão contínua no sentido do descumprimento dessa mesma
lei,
e que lhe era impossível deixar de ceder a tal impulso. Terá mesmo sido "a
carne" que o fez transgressor repetidas vezes? Ou, conforme mais
164
165
tarde ele mesmo pensou, seria a Lei, impossível de ser cumprida, o que seduzia
os homens à transgressão, com um fascínio irresistível? Mas, à época, Paulo não
vislumbrara
qualquer meio de escapar. Conforme, em certos trechos de seus escritos, ele
mesmo sugere, trazia a consciência carregada - ódio, assassinato, feitiçaria,
idolatria,
devassidão, embriaguez, orgias; por mais que tentasse aliviar a própria
consciência e, mais ainda, a ânsia de poder, através da adoração fanática e
defesa à Lei,
às vezes ocorria-lhe um pensamento: "É tudo em vão! A angústia do cumprimento da
Lei não pode ser superada". Lutero deve ter tido sentimentos semelhantes,
quando,
no claustro, procurava ser o homem ideal por ele próprio imaginado; e, assim
como Lutero, com um ódio ainda mais mortal por ser inconfessável, um dia passou
a odiar
o ideal eclesiástico, o Papa, os santos e todo o clero, um sentimento análogo
tomou conta de São Paulo. A Lei foi a Cruz na qual se sentiu crucificado. Como
odiava
tal Lei! Que ressentimento nutria contra ela! Como começou a buscar, em toda
parte, um meio de aniquilá-la, a fim de não mais precisar cumpri-la! Finalmente,
uma
ideia libertadora, acompanhada de uma visão - o que seria de se esperar, em se
tratando de um epiléptico - veio-lhe à mente: a ele, severo defensor da Lei que,
no fundo do coração, estava farto da lei - apareceu, no caminho solitário, o
Cristo, no fulgor do Seu semblante, e Paulo ouviu as palavras: "Por que me
perseguis?"
- "Aurora"
A conexão entre Paulo e Lutero é procedente, ainda que o perverso antisemitismo de Lutero o levasse mais longe, a proclamar "morte à Lei!". Contudo,
entre Paulo
e Lutero havia, decerto, uma afinidade de temperamento, bem como de teologia, e
Nietzsche não pode ser superado, em sua definição de Paulo: "violento, sensual,
melancólico
e perverso em seu ódio". Oito anos mais tarde, em O Anticristo, Nietzsche
esboçaria o seu entendimento do Apóstolo:
Paulo é a encarnação de um tipo oposto ao do Salvador; é o génio do ódio, da
perspectiva do ódio e da lógica implacável do ódio. E o que esse (dis)angelista
não
sacrificou em nome do ódio? Acima de tudo, o próprio Salvador; pregou-o à sua
cruz.
"Génio do ódio" foi o papel atribuído a Paulo por George Bernard Shaw, cujo
ataque a Paulo, no entanto, enfatiza a genialidade do Apóstolo:
^
A mo;c rristão do que Jesus foi batista; e discípulo de Jesus apenas a
medida
Nao é mais crisiau uMJ
lfT
¦
c ¦
J
1
ue Jesus foi discípulo de João. Nada que ele fez, Jesus teria feito, e nada que
ele
diz, Jesus teria dito.
Até mesmo os que pensam que Nietzsche e Shaw vão longe demais têm de admitir
Paulo não se interessa, absolutamente, por Jesus como figura histórica, apenas
por ?
us como Cristo. O Apóstolo parece supor que, por assim dizer, ele próprio é
Jesus ptrTos gentios, sendo, por conseguinte, uma figura dotada de autoridade
absoluta.
Donald Harman Akenson sugere que Paulo presume que os leitores de suas epístolas
sabem o suficiente sobre a vida de Jesus, o homem; portanto, detalhes sobre sua
vida e morte são desnecessários. Isso nos deixa um tanto confusos, porque as
epístolas autênticas de Paulo são as passagens mais antigas do Novo Testamento,
compostas,
provavelmente, entre os anos 49 e 64 e.c. De modo geral, a composição dos
Evangelhos sinóti-cos é datada entre 70 e 85 e.c, enquanto o Evangelho de João
pode ter
sido escrito mais tarde, em 95 e.c. Isso quer dizer que Paulo foi executado
pelos romanos antes da destruição do Templo, em 70 e.c, catástrofe que por ele
jamais
seria ignorada.
Lutero, que idealizava Paulo, nas conferências sobre a Epístola de Paulo aos
Gálatas, critica os judeus-cristãos, por indagarem:
"Seja como for, quem é Paulo? Afinal não foi ele o último a ser convertido ao
Cristo? Nós somos os pupilos dos Apóstolos, e os conhecíamos intimamente. Vimos
Cristo
realizar milagres e ouvimo-lo pregar. Paulo é um retardatário, nosso inferior."
A Epístola aos Gálatas, a meu ver, demonstra extrema irritação, e penso que a
sugestão de Lutero quanto ao motivo da fúria de Paulo tem fundamento: o Apóstolo
não admitia a ideia de ser um retardatário. No entanto, no que diz respeito aos
cristãos de Jerusalém, ele foi, sim, um retardatário; diferentemente desses
cristãos,
Paulo surgiu bem depois dos eventos da vida e da morte de Jesus. Sõren
Kierkegaard, filósofo religioso dinamarquês, que viveu no século XIX, e cujo
génio discuto
mais adiante, escreveu dois ensaios brilhantes que constam da obra Fragmentos
Filosóficos (1844): "Deus como Mestre e Salvador" e "O Caso do Discípulo
Contemporâneo".
Cristo, ao contrário de Sócrates, é dotado de autocompreensão, e prescinde do
auxílio de discípulos, presentes apenas para receberem amor incomensurável. Um
dos
discípulos contemporâneos de Deus não foi contemporâneo do esplendor, jamais o
tendo visto ou ouvido". O ironis-ta Kierkegaard é consoante com o polemista
Paulo:
nenhum dos dois permite ao discípulo qualquer contato com Deus. Os judeuscristãos de Jerusalém, inclusive Tiago, o
166
167
Justo, não ouviram nem enxergaram a grande luz que surgiu diante de Paulo no
caminho de Damasco.
Onde, precisamente, situar o génio de Paulo, deixando-se de lado a ideia de
honrá-lo ou criticá-lo? Wayne Meeks salienta que "o cristianismo helénico"
precedeu
Paulo, pois Paulo foi um convertido. Todavia, mesmo que não tenha inventado o
cristianismo não-judaico, Paulo apropriou-se de suas imagens e doutrinas para
sempre.
Na prática, o argumento de Paulo pode ser assim resumido: "Jesus, não; Cristo,
sim." O génio de Paulo estava na sua marcante originalidade, ao ler de maneira
distorcida
a Aliança dos judeus com Javé, que, na sua leitura, deixa de ser um acordo mútuo
e se torna a expressão unilateral da vontade de Deus.
E fácil, para muitos norte-americanos, confundir Paulo com um adepto do
despertar em Cristo, cuja ênfase recairia sobre o renascer através do perdão do
pecado.
Essa interpretação equivocada reduz Paulo, que foi mais do que um apóstolo da
graça. O ex-fari-seu foi um grande inventor, que transformou o cristianismo
helénico
em nova religião mundial. Quem mais se aproxima de Paulo é Maomé, fundador de
outra religião universal, e que, evidentemente, jamais ouviu falar de Paulo, que
não
é mencionado no Alcorão. O génio do universalismo talvez seja o talento mais
raro nas religiões ocidentais: Paulo e Maomé, tão diferentes entre si, são os
maiores
exemplos que conhecemos dessa modalidade de génio.
Contudo, entre o cristianismo de Jesus e o de Paulo interveio uma geração de
silêncio. A fim de preencher esse vazio, novos manuscritos ainda não foram
descobertos.
Talvez jamais o sejam. A Epístola de Tiago, que Lutero pretendia expurgar do
Novo Testamento, não apenas insiste que "a fé, se não tiver obras, será morta,
em seu
isolamento",3 mas renova as profecias de Jesus contra os ricos:
Lembrai-vos de que o salário, do qual privastes os trabalhadores que ceifaram os
vossos campos, clama.4
Não o chamamos de "Paulo, o Justo", assim como não associamos seus
discípulos, Agostinho e Lutero, à justiça social. Podemos ler e reler as
epístolas autênticas
de Paulo, sem delas depreender que Jesus, assim como Amos e outros profetas, bem
como William Blake, mais tarde, falava em defesa dos pobres, dos enfermos e dos
marginalizados.
3Ibid. P. 614. 4 IbicLpp. 617-18.
ákú cS& rí^ MAOMÉ
Lede em nome do vosso Senhor, que criou,
2. Criou o homem de um embrião:
3. Lede, pois o vosso Senhor é mui benéfico,
4. E ensinou usando uma pena de escrever,
5. Ensinou ao homem o que este não sabia.
6. Contudo, ainda assim, o homem é rebelde,
7. Pois se considera auto-suficiente.
8. Decerto, retornareis ao vosso Senhor.
Sura 98, O Embrião
Ó vós, que estais protegidos em vosso manto (de reforma),
2. Levantai-vos e fazei as advertências,
3. Glorificai o vosso Senhor,
4. Purificai o vosso interior,
5. E livrai-vos do medo.
- Sura 74, Os Protegidos
- Alcorão5
O historiador F. E. Peters, excepcional estudioso do Islã, observa que o
Alcorão é um texto desprovido de contexto. Portanto, inspira as interpretações
mais diversas,
mesmo entre os que são fiéis ao Profeta. O islamismo não sabe ao certo qual das
duas passagens acima seria a primeira revelação a Maomé. Ambas são
impressionantes,
constituindo - como tudo o mais no Alcorão - pronunciamentos diretos de Deus.
Os muçulmanos achariam um tanto estranho a menção ao génio do Profeta, mas o
gemo de natureza religiosa ou espiritual não pode ser descartado. Profetas Isaías,
Maomé ou Joseph Smith - são pessoas dotadas de muitos talentos, mestres da
linguagem. De acordo com uma tradição muçulmana, Maomé não sabia ler ou
escrever, e recitava
o Alcorão (a palavra significa "recitação") seguindo a voz de Deus,
possivelmente através da mediação do Anjo Gabriel. Sendo, antes da revelação
profética, um merca-or
bem-sucedido, Maomé, supõe-se, não seria o que chamamos "analfabeto", mas a
A partir da tradução de Ahmed Ali, para a língua inglesa. [N. do T.]
168
169
tradição muçulmana parece subentender que o Profeta não havia lido a Bíblia
Hebraica e o Novo Testamento grego.
Embora Maomé, necessariamente, tenha uma dívida literária com textos judaicos
e cristãos já desaparecidos, a arrasadora originalidade espiritual e criativa do
Profeta não pode ser questionada. Nenhuma outra figura da História religiosa da
humanidade legou-nos um texto em que a única voz presente é a de Deus. A
audácia,
característica precípua de Maomé, empresta um efeito literário ao Alcorão
absolutamente singular. É impossível relaxar durante uma leitura do Alcorão, ou
ao recitá-lo,
seja a sós ou com outras pessoas.
MAOMÉ
(570?-632)
Espiritualmente, o mundo ocidental surge a partir de três textos sagrados: a
Bíblia Hebraica (Antigo Testamento, na perspectiva cristã), o Novo Testamento
Grego
e o Al-Qur'an Árabe (forma correta de Alcorão). A maioria de nós já leu, ou até
mesmo já estudou, os dois primeiros, geralmente em tradução, porém, o que é um
tanto
chocante poucos tentaram ler o Alcorão. Alguns estudiosos, que deveriam ser mais
avisados, ainda se referem ao Alcorão como uma versão bárbara das Escrituras
judaicas
e cristãs. Em uma boa tradução, como a de Ahmed Ali, para a língua inglesa (AlQur'an, Princeton University Press, 1988), a qual passarei a citar, o Alcorão é
um
livro bastante independente, comparável às Escrituras, obras às quais o Alcorão
sucede e, de maneira notável, reinterpreta. Maomé, o Mensageiro de Deus, viveu
no
século VII da Era Comum, tendo morrido em 632, aos 62 anos. A partir da idade de
40 anos, ouviu a voz de Deus, mediada pelo Anjo Gabriel. Os pronunciamentos,
memorizados
pelos seguidores e, mais tarde, registrados por escrito, tornaram-se o Alcorão
("recitação"); segundo consta, Maomé não sabia ler nem escrever, e merece ser
considerado
um dos maiores poetas prosadores do mundo, inserido em uma tradição estritamente
oral. O islã ("submissão" a Deus) depende muito mais do Alcorão do que o
cristianismo
depende do Novo Testamento, ou, a rigor, o judaísmo, da Bíblia Hebraica. O
Alcorão, ao contrário das Escrituras que o geraram, parece não ter um contexto.
Estudiosos
do judaísmo e do cristianismo conseguem historicizar a maioria dos textos
sagrados (embora não todos), mas o Alcorão (a não ser pela dimensão "judaicocristã") é,
em si, a origem absoluta. Por mais estranho que pareça o arcabouço das demais
Escrituras, elas parecem modelos de coerência, se contrastadas ao Alcorão. O
livro
do islamismo tem 114 capítulos ou seções (chamadas suras) desprovidas de
continuidade, seja entre si, seja, de modo geral, internamente. A extensão das
suras varia
de modo marcante, e a ordem em que estão dispostas não apresenta cronologia; com
efeito, o único princípio de organização aparente é que, à exceção da primeira
sura,
as demais decrescem, da mais longa à mais breve. Nenhum outro livro parece
organizado de modo tão estranho e arbitrário quanto esse, o que pode ser
apropriado, pois
a única voz presente no Alcorão é a de Deus, e quem se atreveria a estruturarlhe os pronunciamentos?
Nitidamente, o Alcorão é o registro do discurso profético de Maomé, desde a
idade
e 40 anos, quando recebeu o chamado, aos 62, quando morreu, subitamente. Cerca
e 20 anos após a morte do Profeta, Uthman, o terceiro na linha de califas de
Maomé,
enou que o Alcorão fosse compilado a partir de todo o material disponível, oral
e
170
171
escrito. Não há muitos motivos para se questionar a autenticidade do texto, ou a
autoria do próprio Maomé (quanto à maior parte dos escritos). O equivalente
norte-ameri-cano
mais próximo seria a obra Doctrines and Covenants, do profeta mórmon Joseph
Smith, cuja revelação foi para o judaísmo e o cristianismo um tanto similar ao
que a
visão de Maomé representou para as fontes judaicas e cristãs. Smith, embora
fosse um génio religioso, não possuía, em absoluto, a força retórica de Maomé,
cuja expressividade
mais do que compensa a estranha falta de estrutura do Alcorão. Chego a pensar,
às vezes, que essa organização estranha (ou ausência de organização) engrandece
a
eloquência de Maomé; a erradicação de contexto, narrativa e unidade formal
obrigam o leitor a se concentrar na autoridade da voz, imediata, irresistível,
que, embora
enunciada pela boca do Profeta, mantém-se imponente, persuasiva, fazendo lembrar
(e mesmo indo além) o discurso de Deus na Bíblia.
John Wansbrough, no livro Qur'anic Studies: Sources and Metbods ofScriptural
Interpretation (Oxford, 1977), tece um comentário importante: os ouvintes
diretos
de Maomé não devem ter experimentado dificuldade em compreender as diversas
alusões a material bíblico. Evidentemente, os que escutavam o Profeta, em Meca e
Medina,
mesmo que não fossem judeus (ou sobreviventes dos judeus-cristãos contrários a
Paulo?), tinham boa noção dos relatos bíblicos, não raro, em versões judaicas
consolidadas
tardiamente, e que não sobreviveram ao tempo. Os árabes aos quais Maomé
profetizava viviam lado a lado com diversas tribos judaicas (ou árabes
judaizadas), e tinham
também contato com cristãos, inclusive cristãos monásticos. Decerto, hoje em
dia, a impressão inicial de que judeus e cristãos têm ao ler o Alcorão é de
perplexidade:
os conceitos e os relatos são, ao mesmo tempo, inteiramente familiares e
estranhos. O islã ("submissão" a Alá, o Elohim bíblico) até parece ser a
religião de Abraão,
quanto à contumácia, e a crença de Jesus, quanto à convicção, mas "Abraão" aqui
significa a antiga religião judaica; segundo Maomé, evidentemente, tal religião
seria
o cristianismo judaico ao qual se opôs São Paulo, i.e., a fé que se refugiou na
outra margem do Jordão e na Arábia, após a destruição perpetrada por Roma, em 70
e.c, a fé dos judeus de Jerusalém que seguiram Jesus, liderados por seu irmão
Tiago, o Justo. É um homem, o Jesus de Maomé, não Deus, e não morre na cruz;
outra
pessoa morre em seu lugar, aliás, conforme certos relatos gnósticos, que talvez
remontem à origem judaico-cristã.
Muitos de nós estamos habituados a ler "a Bíblia como literatura", o que é
inaceitável a judeus religiosos e cristãos devotos. Quero aqui propor o "Alcorão
como
literatura", o que é ainda mais inaceitável a muçulmanos fiéis. No entanto, os
próprios muçulmanos falam do "glorioso Alcorão", ao invés de "o santo Alcorão",
talvez
porque o livro
'o seja visto como uma criação, sendo, literalmente, a Palavra de Deus. Por mais
elo-n3° te que seja a Bíblia Hebraica (exceto nos casos de Levítico e Números) e
por mais qU
," n,,p seia o Evanselho de Marcos, nenhuma dessas duas
Escrituras depende da
pungente que av-|"
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utoridade da voz de Deus, conforme depende o Alcorão. A prosa poética do
Alcorão, e I o não pode ser reproduzida com perfeição em outro idioma, mas
várias traduções
conseguem preservar uma força literária autêntica. O leitor deve persistir, sem
se deter diante da repetição e da obscuridade, a fim de escutar a voz que
converteu
e amparou centenas de milhões de pessoas, que se voltaram para o islamismo, ou
que nele se mantiveram, ao longo dos últimos 13 séculos. O Alcorão deve ser,
para
nós, uma obra central, pois o islã há de exercer crescente influência sobre
nossas vidas, seja nos Estados Unidos ou no resto do mundo.
Quanto a mim, o Alcorão exerce fascínio especial, pois trata-se do maior
exemplo que conheço de algo que, nos últimos 25 anos, venho chamando "a angústia
da influência".
Embora Maomé seja um profeta de grande originalidade, o Alcorão manifesta um
embate tremendo (e, nitidamente, triunfante) com a Tora e com as inserções
rabínicas
aos Cinco Livros de Moisés. A expressão "O Povo do Livro", ao longo de todo o
Alcorão, refere-se tanto aos judeus quanto aos cristãos, mas, para Maomé, parece
ter
havido um só Evangelho, que não pode, em absoluto, ser identificado com qualquer
dos Evangelhos que conhecemos. Jesus, para Maomé, é mais um profeta autêntico,
em
uma série que inicia em Adão e termina no próprio Maomé; todavia, Jesus é também
mais do que profeta, embora menos do que o Filho de Deus. O Alcorão aceita o
nascimento
virginal e considera Jesus o verdadeiro Messias judaico, visto, no entanto, como
uma reiteração do credo de Abraão. O golpe mais ousado do Alcorão, no embate com
a Tora, é insistir que Abraão não era judeu ou cristão, mas o exemplo primeiro
do islã, da submissão a "Deus", Alá. Com essa interpretação, Maomé integra a
história
sagrada do povo judaico e confere a Ismael, o filho árabe de Abraão, uma
autoridade que se equipara à de Isaac e Jacó, ambos chamados de filhos de Abraão
no Alcorão.
Na qualidade de profeta reformista, a missão de Maomé, a um só tempo, é derrotar
o paganismo da sua cidade natal, Meca, e combater o retrocesso por ele
identificado,
com relação à fé observada por Abraão e Ismael, por parte do judaísmo rabínico
da Arábia e do cristianismo que seguiu São Paulo, em vez de Tiago, o Justo, de
Jerusalém.
Essa luta para resgatar Abraão é o cerne, a força majestática do glorioso
livro, que reconhece a autoridade espiritual de Abraão e Maomé. Mais até do que
a Bíblia
Hebraica e o Novo Testamento Grego, o Alcorão Árabe destaca a autoridade como
seu princípio norteador. Algumas passagens da Bíblia e vários trechos do Novo
Testamento
são polémicos, mas todo o Alcorão é uma polemica feroz: contra os pagãos de
Meca, os judeus de Medina e cristãos que, porventura, vivessem na Arábia (não
seriam
muitos) e que não fossem ebio172
173
nitas ou judeus-cristãos. O tom combativo do Alcorão não lhe compromete o vigor
da prosa poética, mas, sem dúvida, contribui para explicar por que tantos
leitores
não-muçul-manos, em uma primeira impressão, julgam a espiritualidade do livro
inferior à das Escrituras, espiritualidade essa que o Alcorão pretende rivalizar
e
superar. A recitação de Maomé é sempre aguerrida, fazendo lembrar, nesse aspecto
retórico, o tom dos Manuscritos do Mar Morto, em que os fiéis parecem confrontar
o mundo inteiro. É pertinente conjeturar que o Profeta do Islã jamais tenha
conseguido superar o impacto e o furor causados pelo fato de os judeus da Arábia
terem
se recusado a aceitá-lo como o apóstolo prometido por Deus, precisamente, nos
escritos e na tradição oral do próprio povo judaico. Por mais que os judeus
fiquem
constrangidos ao lerem o Novo Testamento - de modo especial, o Evangelho de João
-, com frequência, sentem a mesma ansiedade diante dos relatos do Alcorão que
falam
da hipocrisia e traição praticadas pelo povo judaico, no contexto da missão de
Maomé. A contrariedade do Profeta é bastante compreensível, pois a visão do
Alcorão,
no que concerne à submissão a Deus, implica, em termos teológicos, heresia, mais
no que toca à perspectiva do cristianismo paulino do que da religião ortodoxa
judaica.
O Alcorão pouco tem em comum com o Talmude, mas, enquanto interpretação dos
patriarcas e profetas hebraicos, o livro me parece bastante convincente.
Jesus, sendo o Verbo encarnado, substituiu a Tora pelo cristianismo paulino;
Maomé anula tal substituição, não por voltar à Tora, mas por integrar o Livro ao
seu
próprio livro. O Alcorão não é nem substituição nem comentário da Bíblia; antes,
é uma recitação religiosa que jamais deixa de se referir aos relatos sobre os
profetas
-Adão, Noé, Moisés, Jesus - e sobre alguns dos patriarcas, reis e altas
personalidades do mundo judaico, vistas como se pertencessem, igualmente, aos
árabes: Abraão,
José, Davi e Salomão. Embora o contexto judaico esteja sempre presente, nada no
Alcorão indica ao leitor não-muçulmano o Livro anterior. Mas, para Maomé, a
Bíblia
surge do passado, trazendo cores, sons e significados da própria revelação do
Profeta, da leitura criativa (embora distorcida) que ele faz da revelação a Adão
e
Noé, a Moisés e Jesus. Parte dessa transferência configura um movimento amplo,
da narrativa à lírica. Tudo se torna canto, a poesia em prosa criada por Deus,
que
se vale da mensagem anterior apenas para embelezar e refinar sua rapsódia final.
"O Povo do Alcorão", contingente imenso, comparado aos sobreviventes do "Povo
do Livro", tem, no que concerne às suas Escrituras, uma relação bastante
semelhante
àquela que têm os judeus, com respeito aos seus escritos sagrados. Um mar de
comentários cerca ambos os textos, tratados como obras de Deus e, portanto, como
seres
vivos. A prece e a resposta divina à prece trafegam, livremente, de um texto ao
outro. Contudo, existe uma diferença crucial entre a Bíblia e o Alcorão: o
próprio
Maomé é consiprincipal intérprete do livro que Deus, através de Gabriel, ditou ao Profeta.
Maomé e seus companheiros detêm uma autoridade ímpar, na atribuição de
significados
ao Alcorão. Há analogias judaicas a essa situação, mas nem mesmo Moisés ocupa no
judaísmo a posição isolada e crucial que cabe a Maomé na religião islâmica. Por
conseguinte, causa certa perplexidade ao leitor não-muçulmano a relativamente
reduzida percepção da personalidade de Maomé ensejada pelo Alcorão, em contraste
à
presença esmagadora da natureza e determinação de Deus na Bíblia. Do ponto de
vista do islamismo, tal característica é perfeitamente adequada, mas, com
certeza,
aumenta o número de obstáculos iniciais que um não-muçulmano precisa superar.
John Wansbrough, no livro Quranic Studies, classifica as imagens do Alcorão em
quatro grandes grupos: castigo, sinal, exílio e aliança. Castigo, sempre divino,
está relacionado ao destino das nações, cidades e povos que fracassam nas provas
estabelecidas por Deus. Sinal é a manifestação de Deus ou a comprovação da
autenticidade
do Profeta. Exílio, característica do probo Abraão, é ilustrado pela hégira,
isto é, a fuga de Maomé, de Meca para Medina, marcando o início da Era Islâmica.
Aliança
é um retorno aos antigos profetas - Noé, Abraão, Moisés e Jesus -, com ênfase
especial em Moisés que, aparentemente, causa maior ansiedade a Maomé do que os
demais.
Em todo caso, os quatro grupos imagísticos são flagrantemente hebraicos, e o
Alcorão, a meu ver, não os torna propriedade de Maomé. Com certeza, a
originalidade
do Alcorão não é uma questão de imagens ou personagens, mas de outros fatores,
principalmente a atitude severa e absoluta do Profeta como veículo da voz de
Deus.
A força retórica arrasadora de Maomé demonstra sua exuberância no que poderíamos
considerar uma reinvenção do credo de Abraão, seja lá o que tenha, de fato,
ocorrido.
Sob o peso imenso da voz de Deus, o leitor fica mais do que convencido da ameaça
imposta pelos sinais de castigo e de exílio, caso não se submeta a Deus:
Em nome de Alá, o mais benevolente, sempre misericordioso.
Conclamo ao Testemunho do Dia da Ressurreição,
E convido a alma repreendida a constatar:
;
Pensa o homem
Que não haveremos de lhe reunir os ossos?
Deveras, podemos (re)formar-lhe até as pontas dos dedos.
Mas o homem duvida
Do que está bem à sua frente.
E pergunta: "Quando será o Dia da Ressurreição?"
Porém, quando os olhos se encandearem,
A lua entrar em eclipse,
174
175
E o sol e a lua se alinharem,
Nesse dia, dirá o homem:
"Onde posso me refugiar?"
Em lugar algum, pois não haverá refúgio.
Somente junto ao vosso Deus
Será possível nesse dia a retirada.
Então, será revelado ao homem
O que antes fora enviado (de bom)
E o que fora deixado para trás.
-Sura75:l-13
A severidade e a franqueza dessas palavras podem até ser imbatíveis, mas não
são originais, de vez que seguem precedentes bíblicos. Original é um certo
truncamento
e obliquidade típicos do modo alusivo, elíptico com que Maomé utiliza os
antecedentes bíblicos. Maomé nunca abandona o tom polémico, que conquista e
afirma autoridade
ao jamais permitir ao leitor um momento de descanso. É claro que a insistência é
marca frequente de retórica também na Bíblia Hebraica e no Novo Testamento, mas
nestes, raramente, a cadência é tão incansável como se observa ao longo de todo
o Alcorão. A autoridade espiritual resoluta, malgrado as implicações políticas,
requer
do Alcorão e nele concretiza um estilo de resposta quase irresistível. A
variedade, norma estilística observada em quase todos os outros contextos,
encontra pouca
justificativa, quando somos convidados a nos expor à voz de Alá.
O esforço de Maomé raramente envolve qualquer confronto direto com os textos
da Tora ou do Evangelho; talvez o Profeta tenha se esquivado ou, o que é mais
provável,
simplesmente, não os conhecia. Estava a par das tradições rabínicas, orais e
escritas, e isso era tudo o que precisava, ou queria; essas tradições vinham-lhe
à mente,
e deixa-vam-no nas alturas:
Em nome de Alá, o mais benevolente, sempre misericordioso.
Conclamo ao testemunho da aurora
E das Dez Noites,
O múltiplo e o único;
A noite enquanto avança,
Não haverá nisso uma prova
Para os sensatos?
Não vistes o que o vosso Senhor
176
Fez ao 'Ad
De Eram, com pilares imponentes
(Erigidos como sinais no deserto),
Cuja forma
Jamais fora criada no reino;
E a Tamud,
Que esculpia pedras no vale;
E ao grande Faraó,
Que aterrorizava a região,
E espalhava a corrupção.
Pois, o vosso Senhor um flagelo
De castigos fez pesar sobre eles.
O vosso Senhor, deveras, espreita.
Quanto ao homem,
Sempre que o Senhor o testar,
A fim de ser bondoso
E prover-lhe de coisas boas,
Ele diz: "Meu Senhor foi bondoso comigo."
Mas quando Ele o testa, privando-o de algo,
Ele diz: "Meu Senhor me despreza."
-Sura89: 1-16
As Dez Noites são as dez primeiras e as dez últimas noites dos meses lunares,
portanto, simbolizam aqui a ascensão e o declínio das coisas sublunares,
inclusive
os lendários jardins de 'Ad de Eram, a cidade perdida de Tamud, arrasada por um
terremoto, e o Faraó que desafiou Moisés. O paralelo da ascensão e declínio da
sorte
humana fica expresso, de modo implacável, e com grande economia retórica, nas
palavras: "O vosso Senhor, deveras, espreita." Assim como a sura 75, outra das
revelações
iniciais registradas em Meca, esse canto representa o que poderia ser chamado
"primeiro Maomé", cuja ênfase recai sobre a incomensurabilidade de Alá e suas
criaturas.
Nas primeiras declarações, Maomé retoma os paradoxos do Javista, ou J,
responsável pelo primeiro (e mais impressionante) conjunto de textos no que hoje
denominamos
Génese, Êxodo e JNumeros. Alá, "o Deus", havia muito era a principal divindade
da Meca pagã (antes do advento de Maomé), o único deus não representado por um
ídolo.
F. E. Peters, no livro Muhammadand the Origins oflslam (Albany, 1994, p. 107),
deduz que essa ausência e imagens de Alá atesta a crescente influência de judeus
e
cristãos na Arábia, antes de aomé. Mas no Ka'ba, santuário de Meca, segundo
consta erigido por Abraão e seu
177
filho Ismael, ancestral dos Árabes, imagens de outros deuses dividiam o reino
com Alá. A casa de Deus em Meca, conquanto fundada por Abraão quando visitava o
filho
Ismael, foi fixada em local consagrado pelo próprio Adão. Sendo o único edifício
de pedra na antiga Meca, o Ka'ba, com certeza, continha imagens de Abraão e
Jesus,
por conseguinte, o paganismo pré-islâmico de Meca já era extremamente eclético,
constituindo um nítido precursor do islã, com seus elementos judaicos e
cristãos.
Contudo, o Alá das primeiras suras de Maomé em Meca já não é o Alá pagão, mas o
Deus bíblico de Abraão, Noé, Moisés e Jesus, o Deus judeu-cristão que,
paradoxalmente,
é, a um só tempo, todo transcendência e todo imanência.
Maomé era profeta, não era teólogo, e, conquanto o Alcorão nos ensine a
respeito da personalidade e do^aráter de Alá, não se presta a nos fornecer
relatos descritivos
e racionais da natureza interna de Deus. Embora cada uma das principais
vertentes do islamismo (rivais entre si) - Sunni e Shiah - afirme a sua própria
ortodoxia
islâmica e considere a outra herege, nenhum leitor muçulmano teria a pretensão
de decidir quem é mais fiel ao Alcorão, o Cairo ou Teerã. Maomé declara-se,
incondicionalmente,
o último profeta: "Não existirão outros profetas"; e, depois de Maomé,
muçulmanos, de todos os tipos, não se apresentam como profetas: as heresias (ou
não) constituem
problema de interpretação, assim como no judaísmo e no cristianismo pós-bíblico.
Contudo, o Alcorão é tão despojado que a interpretação islâmica tradicional pode
nos parecer bem mais distante da recitação de Maomé do que as interpretações
judaica e cristã, com relação à Bíblia. O Alcorão tem uma totalidade, uma
finalidade
retórica, bem como uma simplicidade aparente tão marcantes que, a princípio,
torna o leitor impaciente com a exegese. A Bíblia Hebraica, no todo ou em parte,
é um
texto bastante difícil, e muito do conteúdo do Novo Testamento é confuso e
contraditório, enquanto o Alcorão, de certo modo, aparenta ser sumamente aberto
e claro,
extremamente coeso e coerente. Embora esse efeito retórico seja bastante
ilusório, é tanto uma característica do Alcorão quanto o uso oblíquo, quase
referencial,
que Maomé faz de relatos e episódios bíblicos. A singeleza da visão e o impulso
revisionista do Alcorão em prol de um retorno ao credo autêntico de Abraão têm
características
tão absolutas que um leitor não-muçulmano dificilmente associaria a teologia do
islã às suas origens corânicas.
Na minha experiência de leitor de literatura, o Alcorão, raramente, causa uma
impressão bíblica, especialmente do ponto de vista estético. De quando em vez,
ao
mergulhar no Alcorão, lembro-me de William Blake e Walt Whitman; em outros
momentos, penso em Dante, que haveria de considerar blasfema a associação. De um
lado,
per-cebe-se que as analogias decorrem da autoridade pessoal contida na voz do
visionário: Dante, Blake e Whitman (este último nos trechos em que demonstra
toda a
sua autoconfiança) aproximam-se de uma voz divina parecida com a que ouvimos o
tempo todo
Alcorão. De outro, observa-se a questão do chamado do Profeta, um contracanto e
percorre todo o livro, embora seja mais óbvio em Dante, Blake e Whitman. O
Alcorão
é uma profecia em forma de poema em prosa que ressalta a centralidade e a
ontinuidade da tradição profética. O mensageiro de Alá, solitário no início da
missão,
fala para (e em nome de) uma comunidade de fiéis, e o fardo da profecia é, ao
mesmo tempo, o renascer da tradição e a ruptura, ensejando algo que vai além da
tradição,
cujo significado transcende a própria profecia. Nesse particular, o Alcorão é
misterioso, e talvez justifique a existência dos místicos muçulmanos - os sufis
- melhor
do que quaisquer teocratas islâmicos, a despeito de vertente ou nação, possam
fazê-lo. Pois o que é o Alcorão? Seja como for, não é um livro fechado, mesmo
que se
trate da última profecia. Tanto quanto a Bíblia, Dante, ou até mesmo
Shakespeare, o Alcorão é o Livro da Vida, vital como um ser humano, seja lá quem
ele ou ela
for. Uma vez que Deus se dirige a quem quiser ouvi-lo, o livro é universal, tão
aberto e generoso quanto as maiores obras da literatura secular, e.g., as obrasprimas
de Shakespeare e Cervantes. Os sufis localizam o seu ponto central na sura
24:35, passagem sublime que fala de Deus como luz, um hino de louvor ao
universalismo
convincente do poeta-profeta Maomé:
Deus é a luz do céu e da terra.
Sua luz é como um nicho
Com uma lamparina, uma chama dentro do vidro,
O vidro é como uma estrela brilhante, acesa com o óleo
De uma árvore bendita, a oliveira, nem do Oriente
Nem do Ocidente, cujo óleo parece arder
Embora o fogo não o toque - luz na luz.
Deus guia à Sua luz quem Ele quiser.
E oferece preceitos de sapiência aos homens,
Pois Deus tudo sabe.
Essas palavras constituem um poema, a um só tempo, milagroso e natural, e em
nada sectário: luz na luz." O nicho pode ser o coração de Maomé, ou, em última
instância,
qualquer coração discernente: "Deus guia à Sua luz quem Ele quiser." A abençoada
oliveira, nem do Oriente, nem do Ocidente, está em toda parte e em lugar nenhum,
onde e quando ocorrer a visão purificada. Como desafio à percepção estética,
essa célebre rapsó-ia da luz só se compara às grandes teofanias de Dante e
Blake, e
às apóstrofes bíblicas e pos-biblicas que invocam a luz libertadora. E mais,
essa rapsódia é o epítome do Alcorão, mais uma prova da verdadeira importância
desse
livro para todos nós.
178
179
LUSTRO
Samuel
Johann
Thomas
4
Johnson, James Boswell,
Wolfgang von Goethe, Sigmund Freud,
Mann
este segundo Lustro de autores sábios, busquei desfazer fronteiras, permitindo
que as figuras se mesclassem. Embora não volte a utilizar esse procedimento %
no decorrer do livro (a fim de evitar o caos), decidi mantê-lo aqui, porque,
cabalisticamente, Hokmah é indivisível. Embora Johnson e Boswell fossem cristãos
moralistas
(de modo um tanto exagerado, no caso de Boswell), e Goethe, Freud e Mann não
fossem cristãos, os cinco convergem de maneira irresistível.
Freud desaprovaria a minha asserção de que, à semelhança desses outros
moralistas, ele pretendia demonstrar a utilidade da literatura à vida. Mas podese dizer
que Freud não se auto-representava de maneira fidedigna, fosse na qualidade de
cientista ou médico. Um ensaio como "Mourning and Melancholia" aproxima-se mais
de
Johnson e Goethe do que de Charles Darwin. Thomas Mann, exemplo do ficcionista
sábio, enxergava Freud com clareza, ao associar o sábio judeu a Goethe, o mais
sábio
de todos os homens de letras.
181
SAMUEL JOHNSON
(...) porquanto o génio, seja lá o que for, é como fogo de pedra, produzido
somente através da colisão de elementos adequados, todo homem deve verificar se
as
suas faculdades não colaboram com os seus desejos, e, uma vez que aqueles cuja
proficiência é admirada só se tornaram cientes da própria força através de um
incidente,
o homem deve buscar experiências afins, com o mesmo espírito, e pode alimentar a
esperança de alcançar o mesmo sucesso.
- Johnson, The Rambler, NB 25
Samuel Johnson, ainda o maior dos críticos literários de todos os tempos,
exorta-nos a encontrar o nosso tema, a única força capaz de atiçar-nos o génio.
Escrevendo
ao seu biógrafo, Boswell, em 1763, Johnson desenvolve o princípio de ambição
estética e intelectual:
Espreita, talvez, em todo coração o desejo de sucesso, que leva todo homem,
primeiro, a alimentar uma esperança e, depois, a acreditar que a Natureza o
agraciou
com algo singular. Essa vaidade faz uma mente nutrir aversões, outra, acionar
desejos, até se elevarem, pela arte, muito acima da sua capacidade original; e
como,
com o tempo, a afetação se torna um hábito, aversões e desejos passam a
tiranizar aquele que primeiro os estimulou.
O custo do engrandecimento é a tirania da vaidade ou o páthos do escritor
fracassado. O génio estabelece um equilíbrio perigoso, entre a imitação de um
grande
predecessor, conforme Johnson seguiu Alexander Pope, e a auto-ilusão de tantos
contemporâneos, incluídos na obra Lives ofthe Poets, de autoria do próprio
Johnson,
porque os editores (e não Johnson) desejavam sua inclusão. Hoje em dia, o elenco
constitui uma triste litania de autores datados: Roscommon, Pomfret, Stepney,
Sprat,
Sheffield, Fenton, Yalden, Tickell e muitos outros. O leitor pode se divertir
abrindo qualquer antologia de poesia contemporânea e escolhendo exemplos
correspondentes
a Sprat e Yalden, candidatos à iniquidade do esquecimento.
JAMES BOSWELL
Durante toda a conversa, conduzi-me com uma compostura máscula, dignidade e
polidez, que não deixariam de causar admiração, enquanto ela estava pálida como
cinzas
e tremia e gaguejava. Por três vezes, insistiu para que eu me demorasse um pouco
mais, porque, provavelmente, não mais nos veríamos. Ela nada podia dizer a esse
respeito. Permaneci calado. No momento em que eu partia, ela disse: "Espero que
o senhor me permita pedir notícias da sua saúde." "Madame", disse eu, com
altivez,
"suponho que isso seja desnecessário, ao longo das próximas semanas." Ela
reiterou o pedido. Não mais querendo ser importunado, dispensei-a, dizendo que
talvez fosse
para o interior, e retirei-me. Sua atitude, deveras, cau-sou-me constrangimento.
Não havia a menor chance de ela ser inocente do crime de assédio. Fiquei
perplexo
diante de suas assertivas. Com toda certeza, trata-se de uma inveterada e
fingida prostituta.
Assim chegou ao fim o meu caso com a bela Louisa, da qual tanto me gabara, e
com quem esperava ao menos copular com segurança durante todo o inverno. É mesmo
muito
difícil. Não posso dizer, conforme dizem os rapazes que contraem doenças
venéreas em bordéis, que terei mais cuidado no futuro. Pois tomei bastante
cuidado. No entanto,
já que estava um tanto envolvido, decidi aproveitar-me da situação. Não foi uma
questão de imprudência. São coisas que acontecem na guerra.
- The London Journal
Assim James Boswell se despede da bela Louisa, com quem "esperava ao menos
copular com segurança durante todo o inverno". Congratula-se consigo mesmo pela
compostura
e polidez, e preza a sua própria demonstração de dignidade. Não temos a versão
de Louisa dessa mesma despedida, mas é duvidoso que ela reagisse com
"admiração ,
diante da conduta de Boswell. O génio cómico de Boswell precipita a nossa
dúvida; ele se dirige a uma "inveterada e fingida prostituta", com a mesma
autoconsciência
dramática que demonstrava em relação a Johnson, Voltaire e Rousseau.
Boswell é o mestre da ironia de retrospectiva: em vez de murmurar "quisera ter
dito aquilo , ele expressa o pensamento que lhe ocorreu mais tarde, com toda
espontaneidade,
182
183
A Vida de Johnson é um delicado milagre, capaz de manter um equilíbrio sutil
entre a figura do formidável Samuel Johnson e a astuta provocação e manipulação
do
biógrafo. Contudo, o oportunismo de Boswell tem limites; Boswell não é
Shakespeare, e Samuel Johnson não é Sir John Falstaff, triunfo da imaginação
dramática. Ao
longo de toda a obra, Boswell respeita e aprecia a realidade do sujeito por ele
tratado, e, certamente, confere ao grande crítico muitos toques shakespearianos.
ílifes
JOHANN WOLFGANG VON GOETHE
Poder ver tanta vida, tanta felicidade!
Poder, ao lado de homens livres, pisar o solo livre!
Poderei, então, dizer ao momento efémero,
"Fica um pouco mais, és tão belo!
As pegadas da minha passagem pela terra,
Nem após milénios, haverão de desaparecer."
Antevendo essas cenas de incomparável júbilo,
Desfruto agora do supremo momento.
[Fausto desfalece; os Lêmures amparam-no e deitam-no no chão.]
- Fausto, Segunda Parte, ato 5, 7122-28
Aqui morre mais do que o Fausto de Goethe: chega ao fim toda a tradição
literária ocidental, de Homero, passando por Dante e Shakespeare, até chegar a
Goethe.
Após a morte de Fausto, surge a cavalgada do Pós-iluminismo, dotada de tantos
rótulos -Romantismo, Modernismo, Pós-modernismo -, mas tudo é, na verdade, um
único
fenómeno. Talvez somente agora, em um novo milénio, possamos detectar sinais do
declínio desse fenómeno. Um tempo de conflitos religiosos, já diante de nós,
provavelmente
há de instigar uma nova Era Teocrática, conforme profetizou Giambattista Viço. O
que sucederá com a literatura ocidental secular em um tempo como esse é algo que
permanece bastante obscuro.
Goethe é o último sábio da antiga literatura secular ocidental, que pode ser
denominada Humanismo, Iluminismo, ou o que mais o leitor quiser. Uma das
qualidades
mais revigorantes de Goethe é a irreverência: a Segunda Parte de Fausto é obra
que contém uma ousadia maravilhosa, cujo principal objetivo é manifestar a
totalidade
e a complexidade do génio de Goethe.
Goedie acreditava em seus próprios demónios, que parecem tê-lo provido de
energia misteriosa, que o capacitava a produzir apropriações paródicas da obra
de todos
os predecessores, de Homero ao Hamlet shakespeariano. A sabedoria, segundo o
pensamento tardio de Goedie, consiste em renúncia, pois realizar todos os nossos
desejos
é incitar o caos.
odavia, Goethe é vago em se tratando de suas próprias renúncias, e é difícil
rec "ar a sapiência por ele conquistada com o atrevimento das suas posições, ra
184
185
sepultado em um quadro que parodia a cena do cemitério, em Hamlet, como se
Goethe pretendesse roubar para o seu herói não dramático um pouco do carisma de
Hamlet.
Shakespeare, pessoa, evidente e propositadamente, desprovida de vivacidade,
jamais sonharia em competir com Hamlet, sua criação mais brilhante e enigmática.
Goethe,
no entanto, brilha muito mais do que Fausto, a quem não é permitida qualquer
participação na genialidade modelar do seu criador.
Cêiú cStú C&P
SIGMUND FREUD
Um dia os irmãos que haviam sido banidos uniram-se, mataram e devoraram o pai,
dando um fim à horda patriarcal (...). O pai violento fora, sem dúvida, o modelo
temido
e invejado por cada um dos irmãos, e, ao devorá-lo, estes concretizaram a sua
identificação com ele, e cada um deles adquiriu um pouco de sua força. A
refeição do
totem, talvez a primeira celebração da humanidade, seria a repetição, a
comemoração desse ato memorável e criminoso, o início de tantas coisas - da
organização social,
das restrições morais e da religião.
Freud foi um grande construtor de mitos, e jamais o fez de modo tão marcante
quanto em Totem e Tabu (1913). No entanto, considero um equívoco estabelecer
distinções
entre os escritos "culturais" e "científicos" de Freud. Ele próprio se
ressentiria da sua atual reputação, pois acreditava, piamente, que a psicanálise
era uma ciência
que um dia seria vista como contribuição à biologia. De vez que isso não
ocorreu, os inimigos de Freud voltam a desprezá-lo como charlatão. A prática da
psicanálise
sempre constituiu uma espécie de xamanismo, dependente da transferência, mais ou
menos oculta, entre analista e paciente. Mas esse Freud foi desde sempre
arcaico,
embora não fosse mais charlatão do que o Sócrates do Banquete de Platão.
O Freud sempre atual é o grande ensaísta das questões morais, escritor
comparável a Montaigne. A literatura do século que acaba de passar teve, como
maiores expoentes,
Proust, Joyce, Kafka e Freud, ao lado dos principais poetas a eles
contemporâneos. Tanto quanto Montaigne é companheiro de Cervantes e Shakespeare,
Freud pertence
ao grupo visionário de Joyce e Proust. Montaigne e Freud prenunciam, de maneira
esplêndida, as ficções autobiográficas do eu: cada qual é o seu próprio grande
assunto.
Mais uma vez, Freud ficaria descontente com a comparação, porque buscava uma
autoridade que transcendesse o nível pessoal. Contudo, a lição mais útil por ele
deixada,
até certo ponto, sem ter a intenção de fazê-lo, talvez seja a de que somente a
autoridade pessoal resguarda alguma autenticidade.
186
187
THOMAS MANN
Goethe sabia que, fosse a meia voz, ou em alto e bom som, as pessoas exclamariam
uma palavra de alívio, quando ele morresse. Considerava-se uma manifestação
daquela
grandeza que, ao mesmo tempo, oprime e abençoa a Terra. E incorporava essa
grandeza da maneira mais sutil, mais branda possível: na figura de um grande
poeta. Porém,
mesmo nessa condição, a referida grandeza não é nada reconfortante aos
contemporâneos. Ela se caracteriza pela perplexidade e pela repulsa, pela
afeição e pelo espanto.
Mann, refletindo sobre "A Carreira de Goethe como Homem de Letras", em 1932,
um ano antes da ascensão de Hitler ao poder, ainda tinha liberdade para se
referir
ao predecessor como um fenómeno estético. Em 1938, exilado, Mann profere uma
conferência sobre Fausto, na Universidade de Princeton, e conclui, estabelecendo
ênfase
bastante distinta:
Qualquer "palavra de clareza" e qualquer indicação sobre o melhor curso a seguir
parecem impotentes hoje em dia; eventos mundiais transcorrem em meio a um
descaso
brutal. Mas vamos nos ater, com fervor, ao credo antidiabólico de que a
humanidade possui, em última instância, um "saber arguto", e que palavras
surgidas a partir
do esforço pessoal podem fazer bem à humanidade e sobreviver em seu coração.
Duas gerações mais tarde, que relevância tem, para nós, o humanismo iluminista
de Goethe e Mann? Na sequência dos eventos do dia 11 de setembro de 2001, houve
brados de "abaixo a ironia!", mas tais expressões desapareceram rapidamente.
Tudo é ironia, nessa nova era de guerra religiosa e terror domesticado. A ênfase
de
Mann, em 1938, recaía sobre o uso da literatura na vida real, uso esse que
transcende a ação do luto. A grandeza de Goethe tinha muito a ver com a dimensão
das suas
especulações, e com a ênfase sobre a salvação secular plausível de ser induzida
pelo intelecto. Mann, seguindo Goethe, partiu da ambivalência e da ironia
defensiva,
quanto ao génio do precursor, e chegou a um entendimento ousado sobre a ação do
humanismo relativo à sobrevivência dos valores, à manutenção de um credo
"antidiabólico".
Estou sempre a exortar os meus alunos, e os leitores que comparecem aos
lançamentos dos meus livros, a retomar A Montanha Mágica nesses tempos
turbulentos. A genialidade
de Mann é ensinar um "ouvir arguto", sem o qual seremos mais facilmente
seduzidos pela brutalidade.
SAMUEL JOHNSON, JAMES BOSWELL,
JOHANN WOLFGANG VON GOETHE,
SIGMUND FREUD, THOMAS MANN
I.
Tenho por hábito avaliar os críticos literários, em parte, com base em sua
ligação com Samuel Johnson (1709-1784), a meu ver, o crítico canónico, ou aquele
que
estabelece padrões. De vez que o método por mim adotado neste livro é a
justaposição, muito me apraz reunir Johnson aos génios universais de Johann
Wolfgang von
Goethe (1749-1832), Sigmund Freud (1856-1939) e Thomas Mann (1875-1955). Quando
Johnson morreu, Goethe estava com 35 anos. Johnson não o conheceu, e creio que o
houvesse rejeitado, em bases morais e religiosas. Para Goethe, Literatura
Inglesa era Shakespeare e Lorde Byron, não Johnson. Em um sentido concreto, os
génios de
Johnson e Goethe não foram, absolutamente, contemporâneos, embora florescessem
na segunda metade do século XVIII.
É possível ler Johnson sem levar em conta o grande biógrafo e amigo, o
jornalista escocês James Boswell (1740-1795), mas temos em Boswell uma outra
personalidade
espiritual, um outro génio singular, a se justapor ao seu próprio mentor moral,
bem como a Goethe, Mann e Freud, autoridades em relação à melancolia que afligia
tanto a Johnson quanto a Boswell. Não fosse por isso, Boswell destoaria dos
demais neste capítulo, embora, assim como Johnson, tenha sido um psicólogo
genial, e
uma autoridade em melancolia. No entanto, Boswell, na qualidade de escritor,
equipara-se aos quatro sábios, por mais intimidadores que soem os nomes,
enunciados
em série: Johnson, Goethe, Mann e Freud. Ao chamar Boswell de jornalista,
emprego a denominação em dois sentidos: um dos primeiros correspondentes
internacionais,
e o criador de um enciclopédico diário do eu e suas vicissitudes. Se aqui
acrescentarmos o sucesso de Boswell como biógrafo literário, ainda não superado,
ele há
de parecer menos vulnerável na companhia desses quatro videntes da psicologia
humana.
Embora tenhamos hoje um quadro bastante completo da vida de Mann, conhecemos,
necessariamente, muito menos a seu respeito do que sobre Johnson, Boswell, oetne
e
Freud, pois sabemos praticamente tudo a respeito destes. Não serão estas as
quatro personalidades geniais cujas biografias contam' com a mais extensa
documenta188
189
ção? Nada, ou quase nada, sabemos sobre as vidas interiores de Shakespeare,
Dante e Cervantes, se comparadas a essas quatro biografias. Se o desejarmos,
podemos
absorver o eu interior de Johnson, Boswell, Goethe e Freud, como se fossem
personagens dramáticos shakespearianos, semelhantes a Falstaff, ao Príncipe Hal,
Hamlet
e Macbeth. Assim como temos a impressão de que os protagonistas geniais de
Shakespeare sempre existiram, parece-nos que Johnson, Boswell, Goethe e Freud
existem,
como personalidades, desde o início dos tempos. Mesmo no que respeita a Mann,
contamos com extensa documentação sobre a consciência que tinha o escritor do
seu próprio
génio, marca que também distingue os outros quatro.
Um livro sobre o génio, que ressalta a influência da obra sobre a vida, ou do
génio sobre si mesmo, não pode deixar de situar um centro neste capítulo, pois,
hoje
em dia, as cinco biografias aqui invocadas circulam mais do que as obras dos
respectivos autores. Freud é descrito como vilão ou herói, variando de acordo
com as
atitudes vis-à-vis à psicanálise, enquanto o pobre Boswell é mais conhecido pelo
público porque o London Journal oferece relatos extremamente vívidos dos seus
encontros
com prostitutas. Johnson ainda é admirado (ou não) como o Sr. Excêntrico, ao
passo que Mann é hoje considerado um homossexual enrustido, e Goethe ainda
significa
cultura na Alemanha, embora em outros locais, não. Sábios identificados com
nações (Johnson e a Inglaterra; Emerson e os Estados Unidos; Goethe e os países
de língua
alemã; Montaigne e a França) já não constituem itens de exportação, de um lado,
em consequência do declínio da confiança do Ocidente com relação ao seu próprio
cânone,
de outro, devido a um processo internacional que faz reduzir sabedoria à
informação. Contudo, a necessidade do génio da sabedoria continua premente, e
remete-nos
a esses sábios.
II.
Boswell faleceu aos 54 anos, aniquilado pelo álcool, sucessivas infecções
venéreas e por uma vida de luta contra a depressão. A despeito de sua
imprudência, Boswell
estudou a si mesmo e terceiros minuciosamente, e a sua percepção da melancolia
talvez seja mais aguda do que a de Johnson, companheiro de sofrimento. Em outros
escritos,
examinei as associações tradicionalmente estabelecidas entre Saturno e
melancolia, e considerei a relevância de tais associações à psicologia do génio.
Samuel Johnson,
entre todos os sábios, era acometido de "vil melancolia", notoriamente temeroso
da "perigosa predominância da imaginação". O melhor poema de Johnson, A Vaidade
do
Desejo Humano, traz, no título, uma alusão ao Eclesiastes, no qual, segundo
consta, o Rei Salomão, o mais sábio dos homens, confessa ser "tudo vaidade".
Johnson,
que tanto
" JOHNSON, JAMES BOSWELL, JOHANN WOLFGANG VON GOETHE, SIGMUND FREUD, THOMAS MANN
eciava a comédia, mal consegue evitar ser um moralista trágico, por simples
força de
de. Q romance em prosa, Rasselas, grava a fogo na memória de muitos leitores a
f
e- "A vida humana é sempre uma condição em que muito deve ser suportado e
ouço deve ser desfrutado." O célebre estilo ondulante da prosa de Johnson,
privilei
do a universalidade e a generalidade, é bem exemplificado no belo equilíbrio
dessa
frase É curioso que Johnson fosse tão crítico com relação ao estilo de Jonathan
Swift,
cuia prosa, a meu ver, depois da de Shakespeare, é a melhor em língua inglesa,
mas a
paixão de Swift pela realidade ofendia Johnson, em cuja opinião a prosa devia
possuir
complexa musicalidade. Sem dúvida, Johnson teria considerado o crítico vitoriano
Walter Pater moralmente decadente, mas a prosa johnsoniana em muito pressagia a
de
Pater. Johnson era dotado de sensibilidade clássica, mas a sua noção da morte
como o
triunfo da realidade levou-o a desenvolver um estilo mais barroco do que seria
de se
esperar.
Como sempre, meu assunto é o génio e, portanto, cabe indagar: qual era a
genialidade de Samuel Johnson? Sempre um romântico incorrigível, pergunto-me, às
vezes,
por que prefiro Johnson a William Hazlitt, ou Pater, no que respeita à crítica
shakespearia-na, e estou sempre a constatar que a voz de Johnson parece ser a da
própria
crítica literária. Johnson é o génio da crítica: seu trabalho repercute com tal
autoridade, que constitui uma resposta inteiramente condizente com a grandeza de
Shakespeare e Milton. No entanto, a genialidade da crítica de Johnson se torna
mais intensa quando ele nos faz lembrar o propósito da literatura, como nesses
comentários
sobre a versão feita pelo poeta John Dryden da Eneida, de Virgílio:
Obras produzidas pela imaginação destacam-se pelo fascínio e encanto, pela
capacidade de atrair e reter a atenção. É nulo o valor do livro que o leitor
joga fora.
Mestre é aquele capaz de manter a mente em um cativeiro agradável; aquele cuja
obra é lida com atenção, e relida, em busca de renovado prazer; cuja conclusão é
recebida
com tristeza, como reage o viajante ao fim do dia.
Certa vez citei esse trecho durante uma conferência, e alguém perguntou por que
tais
palavras não podiam também constituir uma defesa dos fãs de Harry Potter,.ou dos
admiradores de Stephen King, mundo afora. Mas será que alguém relê Rowling ou
ng,
em busca de renovado prazer"? Para Johnson, o romance Dom Quixote deveria
er ainda mais longo, ideia com a qual concordo. Será a mente o que Rowling e
King
mantém em "cativeiro agradável"? Na tentativa de impedir que o meu público
ficasse
aquele agressor, lembro-me que, na resposta, recorri a uma citação do "Prefácio
nakespeare", de autoria de Johnson, a qual sei de cor:
190
191
As combinações erráticas da imaginação criadora podem até causar uma satisfação
passageira, propiciando a novidade que o tédio da vida a todos nos faz buscar;
mas
o prazer da admiração súbita logo se exaure, e a mente somente descansa na
solidez da verdade.
Existe um excesso maravilhoso, shakespeariano, na atitude e na linguagem de
Johnson, mas tal excesso não exclui a justiça crítica. A obra de Johnson é
sempre
agressiva; a polemica está sempre à sua volta. Ele busca a discussão, seja lá
com quem for, e tenciona convencer-nos de que o importante é aquilo que nos está
próximo,
aquilo que podemos utilizar. A genialidade da crítica de Johnson reside no fato
de a mesma rejeitar a indiferença e çjaltivar os interesses do leitor comum,
independentemente
da era em que viva. O génio, conforme estou sempre a reiterar, deve manifestarse na originalidade, que pode sugerir tão-somente estranheza, mas que, em última
instância,
defende e define a individualidade. Trago comigo, ao lado de outros trechos de
Johnson que não me saem da memória, esse revigorante parágrafo do Rambler,
N2125:
Definições são igualmente difíceis e incertas na Crítica Literária e no Direito.
A imaginação, faculdade licenciosa e errante, insuscetível à limitação e ao
comedimento,
sempre se empenha em confundir a lógica, desorientar o discernimento e romper a
fronteira da regularidade. Dificilmente haverá, portanto, qualquer escrito cuja
essência
e cujos componentes podemos identificar; cada novo génio produz alguma inovação
que, uma vez aprovada, subverte a prática estabelecida pelos autores que o
precederam.
Johnson, classicista ferrenho, rejeitaria a atual degradação da ideia de
"génio". Ainda valorizamos a originalidade em um cientista ou em um tecnocrata,
mas não
nos mestres da linguagem. Caso surgisse outro James Joyce, outro Samuel Beckett,
ou uma outra Gertrude Stein, demoraríamos para reconhecer tal figura, conquanto
tenhamos hoje uma mestra da linguagem na poeta canadense Anne Carson. Idoso,
Johnson resistiu à nova poesia surgida à sua volta, na obra dos bardos da
Sensibilidade,
tais como Thomas Gray e William Collins, mas ainda merece crédito por haver
reconhecido e estimulado Oliver Goldsmith. Até mesmo o maior dos críticos, às
vezes,
cochila, e, lamentavelmente, Johnson observou que "Tristram Shandy não
vingaria", conquanto a obra-prima de Laurence Sterne esteja mais viva e exerça
mais influência
do que nunca. Johnson merece toda a indulgência possível, pois era extremamente
bondoso, dotado de grande coração. Jamais existiu crítico tão humano, tampouco
alguém
que melhor demonstrasse o verdadeiro valor que a alta literatura tem para a
vida.
Boswell, na obra A Vida de Johnson, descreve, com muito brilho, a grandeza de
Johnson como crítico:
A sua superioridade com relação a outros eruditos consistia, primordialmente, em
algo que pode ser chamado de arte do pensamento, a arte de usar a mente; tratava-se
de uma certa capacidade, sempre presente, de se apoderar da essência útil de
todo o seu saber e exibi-lo de maneira clara e contumaz, de modo que o
conhecimento,
tantas vezes visto como entulho em homens de lerdo discernimento, nele
constituía verdadeiro, evidente e concreto saber.
Embora Boswell anotasse, copiosamente, as conversas que travava com Johnson, o
biógrafo viveu muito antes da era do gravador, de modo que a sua inventividade,
sem dúvida, muito contribuiu para a sabedoria acumulada e a pungência do que
podemos denominar a tradição oral de Johnson. Frederick A. Pottle, o maior dos
especialistas
em Johnson (e meu reverenciado mentor), oferece-nos uma avaliação definitiva
dessa mescla de Boswell e Johnson:
Será que Boswell relata ipsis verbis as conversas com Johnson? Em determinadas
frases e alguns trechos de natureza epigramática, sim. De modo geral, não. As
palavras
cruciais, aquelas que caracterizam a peculiaridade de Johnson são, deveras,
ipsissima verba. Impregnado do éter johnsoniano, Boswell foi capaz de resgatar
uma quantidade
considerável da linguagem do crítico. Palavras implicam sentidos, e, quando
elementos da linguagem relembrada se encontravam em posição de equilíbrio ou
antítese,
a lembrança de palavras e sentidos, quase automaticamente, ensejavam estruturas
frasais "autênticas". Porém, no mais das vezes, Boswell contada com a referida
impregnação
do éter johnsoniano (i.e., um entendimento tornado intuitivo, com respeito aos
hábitos de composição de Johnson), que o auxiliava a construir sentenças
modelares,
em que a literalidade ficasse bem à vontade.
Após essa introdução, podemos adentrar A Vida de Johnson, a fim de
encontrarmos os diálogos extraordinários entre um génio da crítica e um génio da
biografia.
Com um entrevistado enérgico como Johnson e um entrevistador insistente como
Boswell, a interação pode se tornar tempestuosa, apesar da afeição mútua. Não
deve ter
sido fácil para Boswell ouvir seu herói exclamar: "Tens apenas dois assuntos tu e eu -, e estou ano de ambos." Os leitores não concordam com Johnson, mas
Boswell
estava à cata de in ormação sobre os primeiros anos em que o sábio viveu em
Londres, na penúria, mui192
193
tas vezes, em companhia de um poeta desconhecido, Richard Savage, cuja biografia
é narrada por Johnson na obra Vidas dos Poetas, provavelmente a obra-prima do
crítico.
Johnson, que, segundo Boswell, "dilacerava carne como um tigre", sempre se
esquivava de falar das vicissitudes dos primeiros anos em Londres, mesmo mais
tarde, nos
tempos de prosperidade.
Para Johnson, a mente devia estar repleta de leitura, mas também de
"reflexão", ambas no que diz respeito à experiência humana e à experiência
específica da literatura.
Segundo Johnson, "reflexão" é o processo que permite ao génio inato desenvolver
seus dotes, e que produz trabalho relevante. No sentido johnsoniano, "reflexão"
abarca
todos os significados da palavra, conforme sugere Robert J. Griffin. O espelho é
posicionado diante da aatureza, mas a imagem é revertida, passando a refletir a
meditação da mente sobre si mesma. "Génio", para Johnson, é termo mais
abrangente do que a definição dada pelo próprio crítico em seu célebre
Dicionário. A originalidade
poética é o cerne da visão que Johnson tem do génio, mas trata-se de uma
originalidade que surge através da antítese, da competição com realizações
passadas, com
os grandes poetas não-mortos, a quem se deve uma compensação. Shakespeare é,
para Johnson, a grande exceção e, menos até do que Dante, não teve grandes
predecessores,
depois que Marlowe deixou de incomodar: "Shakespeare dedicou-se à poesia
dramática tendo diante de si o mundo inteiro aberto." Com essas palavras,
Johnson faz ecoar,
propositadamente, a situação de Adão e Eva ao final de Paraíso Perdido, de modo
que Shakespeare é, para Johnson, o Novo Adão, ainda que apenas em termos
poéticos,
visto que tal noção jamais seria advogada, em termos teológicos, pelo devoto
Samuel Johnson.
Homero, Shakespeare e Milton eram, para Johnson, os maiores entre os poetas,
mas, pessoalmente, o crítico preferia o trabalho de Alexander Pope ao de
qualquer
outro poeta; Pope foi, com certeza, o maior poeta inglês no período que se
estendeu desde a morte de Milton até o advento dos grandes românticos, William
Blake e
William Wordsworth. Ninguém condenaria a veneração de Johnson pelo poema épico
satírico Dunciad, mas não consigo entender a sua paixão intensa pela versão
frígida
que Pope faz de Homero. Após citar a indagação hiperbólica de Johnson - "Se Pope
não é poeta, onde estará a poesia?" -, Boswell procede a uma outra hipérbole,
esta
em tom mais coloquial: "Senhor, é possível que mil anos transcorram, antes de
aparecer outro homem com capacidade de versificação semelhante à de Pope." O
Johnson
hiperbólico, segundo Boswell, é uma das glórias de A Vida de Johnson,
característica que concorre para a aproximação entre o crítico e o Falstaff
shakespeariano.
Johnson desaprovava, em bases morais, a conduta de Falstaff (do que discordo,
veementemente), mas perdoava o cavaleiro gorducho, observando, de modo
perspicaz, que
o maior personagem cómico criado
Shakespeare, "devido à mais agradável das qualidades - a alegria constante - e à
'dade infalível de provocar o riso, faz-se necessário ao príncipe que o
despreza".
P de-se dizer que Johnson e Boswell, em dados momentos, altemam-se nos papéis de
P I raffe Hal, à medida que ambos precisavam exorcizar o demónio da melancolia.
III.
Os talentos, a um só tempo, relacionados e distintos de Johnson e Boswell têm
relevância especial no meu propósito de demonstrar que, em questões de génio,
personalidade
e intelecto são inseparáveis. Goethe expõe o mesmo nódulo intricado - do eu e da
mente -, mas ainda não quero deixar para trás o sábio inglês e o jornalista
escocês,
em favor do semideus alemão.
Johnson inicia o último parágrafo de A Vida de Milton com uma observação
central: "O maior elogio ao génio é a criatividade original", o que me remete à
afirmação
seca de Shelley: "O Diabo tudo deve a Milton." A criatividade de Johnson não se
compara à de Milton, mas, em língua inglesa, quem se equipara ou supera Milton,
senão
Shakespeare e Chaucer? Johnson, embora poeta e ficcionista extraordinário, era,
em primeiro lugar, crítico literário, assim como Boswell era, em primeiro lugar,
biógrafo e autobió-grafo. A criatividade johnsoniana, a meu ver, define o que
deve ser a crítica literária (e o que, raramente, o é): a apreciação da
originalidade
e a rejeição do modismo. Johnson, confrontando Shakespeare ou Milton, amiúde nos
faz voltar à busca constante de escapar da realidade ou do universo da morte. Na
qualidade de crítico, Johnson quase sempre contrabalança a nossa tendência à
auto-ilusão e a nossa necessidade de evitar um confronto direto com o nosso
próprio
fim. Poetas visionários como Milton e Blake tendem a afirmar o poder da
imaginação, ou da mente poética, contra o universo da morte, mas Johnson fica
distante de
tal afirmativa. Profundamente ortodoxo em seu cristianismo anglicano, Johnson,
no entanto, temia, diariamente, tanto a loucura quanto a morte. Enfrentava esse
temor
com energia e bravura, mas desconfiava da defesa da mente, ao substituir
expectativas realistas por fantasia.
Na condição de poeta, Johnson teve precursores em Dryden e Pope, cujas obras era
capaz de recitar de cor. Penso que Pope tenha inibido a força poética de
Johnson, com
uma única exceção: A Vaidade do Desejo Humano. Quem terá sido o precursor de
Johnson na crítica literária? Sir Francis Bacon exerceu influência sobre
Johnson, como
ensaísta de questões morais, mas Bacon não era crítico literário. As observações
críticas
e
en Jonson, contidas na obra Timber or Discoveries (1640), eram do
conhecimento
omommo, e podem ter produzido algum efeito, mas o grande dramaturgo da
e ia, amigo e rival de Shakespeare, não confronta a grandeza literária com a
mesma
194
195
franqueza que Johnson. O neoclássico Jonson era, acima de tudo, um satirista, e
a grandiosidade humana de Samuel Johnson vai além da sátira.
Johnson era por demais natural, por demais primordial para ter inventado a si
mesmo, mas James Boswell pode ser considerado a invenção literária de si mesmo.
Nesse
particular, já foi comparado a Norman Mailer (por mim e por outros), mas Boswell
não alimentava ambições romanescas. Seus maiores anseios não eram literários, a
despeito da adulação a Johnson. Ser rico, poderoso, famoso e politicamente
influente: eis as aspirações frustradas de Boswell, pois a sua visão da Escócia
era ainda
mais feudal do a que de Tory. Ao morrer, era Lorde Auchinleck, esnobe ao ponto
de descartar Robert Burns, que junto a ele buscava apoio. Boswell poderia ter
sido
para Burns o que Emerson foi para Whitman, mas não queria se dar ao trabalho de
ler a obra de um camponês, que, por acaso, era o maior poeta da Escócia. Isso,
porém,
é o que há de pior em Boswell; o que nele há de melhor é a autocriação, a
invenção do biógrafo de Johnson, e de sua própria autobiografia, o que é mais do
que suficiente
para estabelecer-lhe o génio.
IV.
Passar de Johnson e Boswell a Goethe causa um impacto extraordinário, ao menos
para mim, pois a serenidade adquirida, a duras penas, por um Goethe amadurecido
fica a um universo de distância da melancolia intensa do grande crítico inglês e
seu pupilo. A energia demoníaca de Goethe constitui aqui o único elo imediato,
uma
vez que a exuberância do poeta alemão tem a mesma magnitude da de Johnson e
Boswell. Génios carismáticos raramente se tornam figuras literárias: antes,
manifestam-se
como fundadores de religiões, conquistadores, políticos, destruidores do mundo.
Lorde Byron e Oscar Wilde são exceções, e ainda há os falsos carismáticos, como
Hemingway
(embora fosse um contista maravilhoso), mas Goethe talvez seja o único messias
em potencial a escolher a carreira de poeta.
A extraordinária personalidade de Goethe (excepcionalmente bem documentada) é
uma espécie de milagre, nada fácil de ser descrito. Emerson, com a perspicácia
de
sempre, definiu Goethe como a ideia "de que o homem existe para a cultura; não
para o que pode realizar, mas para o que pode ser através dele realizado". O
carismático
ou carismática é, em si mesmo, tanto uma ideia quanto uma pessoa, uma ideia que
transcende o magnetismo pessoal. Shakespeare é hoje o cânone ocidental sitiado;
Goethe
é hoje a cultura ocidental engolida pela Rede Mundial de Computadores, pela
mídia, pela culpa equivocada, pelo semi-analfabetismo, pelos sistemas de
ramificação
educacional que rejeitam a leitura intensa. Para os seus contemporâneos, o jovem
Goethe (já aos
oucos anos!) era o génio alemão, aquele que se tornaria o Shakespeare nacional,
'deus da criatividade", conforme afirma Nicholas Boyle, o biógrafo definitivo de
r
h
Em que os contemporâneos baseavam tais expectativas messiânicas, ou
terá •ri
Goethe desde sempre, um triunfo de personalidade? O imenso talento
poético,
na A de mais lírico do que dramático, está presente desde o início da obra,
embora traí-,
em tradução para a língua inglesa. Tieck e Schlegel, em
traduções surpreendentes,
erteram Shakespeare para o alemão, em esplêndido verso dramático, mas ninguém
(exceto Shelley, em duas cenas de Fausto) conseguiu traduzir, adequadamente,
para o
inglês, as melhores obras de Goethe, e como Goethe, ao contrário de Shakespeare,
era incapaz de criar personagens além de si mesmo, os romances e as peças do
poeta
alemão causam-nos estranheza. Fausto é uma ideia (ou matriz de ideias), mas não
é um indivíduo. Shakespeare inventou o humano; Goethe não precisava inventar
Goethe,
que surgiu como obra-prima da natureza, génio do potencial da felicidade. Dante
morreu aos 56 anos, um quarto de século antes da "idade ideal" (segundo ele
próprio)
de 81 anos, ocasião em que, segundo ele, seria capaz de concretizar as suas
próprias profecias. Goethe, que ainda viveria mais de um ano e meio, aos 81
anos, compôs
os trechos mais arrebatadores da Segunda Parte de Fausto, somando uma ousadia à
outra, em uma obra que qualifico como o mais sublime filme de horror, mas que é,
ao mesmo tempo, um
grande poema.
Goethe foi figura central para as culturas britânica e norte-americana à época
de Carlyle e Emerson; entretanto, é hoje lido (ou não), em língua inglesa,
apenas
por uma minoria, mesmo entre os literatos. Considero esse fato extremamente
desolador, no início deste terceiro milénio, pois Goethe seria, para nós, mais
saudável
do que nunca, agora que a alta cultura agoniza e a opinião contrária à ideia de
génio alcança a força de uma ideologia perniciosa. Shakespeare criou um cosmo
repleto
de "eus", mas quase nada sabemos sobre o eu interior do próprio Shakespeare.
Sobre o eu de Goethe, tudo sabemos, e podemos dizer que, há mais de um século,
esse
eu tem-se constituído no arquétipo do escritor genial. O lema que se aplica a
qualquer escritor influente foi cunhado (talvez, para sempre) por Goethe, que
exortava
tal escritor a ter "persistência, torça de vontade e abnegação a fim de se
familiarizar, inteiramente, com a tradição e, ao mesmo tempo, resguardar força e
coragem
suficientes para desenvolver a originalidade com independência e tratar à sua
maneira os elementos assimilados". Esse conselho, embora jamais mais bem
expresso,
deve ser considerado no contexto de um dos aforismos mais sombrios de Goethe: "O
génio é sempre o inimigo do génio, devido ao excesso de influência."
Retomo uma questão central: qual é o segredo do génio de Goethe? O poeta perten> originariamente, à classe média, mas foi guindado à nobreza pelo grande
patrono,
o
196
197
Duque de Saxe-Weimar, e a arte do poeta engloba a transição de uma era
aristocrática ao período pós-napoleônico. No entanto, é muito difícil consignálo a um determinado
período histórico ou social, pois a sua ousadia intelectual é tão intensa quanto
a sua originalidade. Até hoje Goethe é a glória do idioma alemão, e não há de
ser
superado, assim como Shakespeare não o será, em inglês, nem Cervantes, em
espanhol, nem Dante, em italiano. É possível que, em países de língua inglesa,
Goethe jamais
recupere a posição central que chegou a ocupar na visão de Emerson, George
Santayana ou T. S. Eliot. No entanto, Fausto, mesmo em tradução, ainda é obra
essencial,
se pretendemos alcançar um entendimento definitivo com relação à nossa própria
cultura, mesmo enquanto sucumbimos. Somos cercados de mulheres e homens
faustianos,
e o nosso atrevimento tecnológico tem um elemento faustiano. Talvez a atual Era
da Informação 'seja, basicamente, faustiana, e, em consequência de uma barganha
faustiana,
prossegue a construção de um mundo americanizado. A relevância de Goethe pode
estar obscurecida, mas permanece viva, pois ele não fez qualquer barganha
faustiana,
uma vez que se manteve confiante quanto à sua genialidade independente. Seu
biógrafo, Boyle, traça-lhe uma trajetória partindo da poesia do desejo e
chegando à poesia
da renúncia, em que o poeta reconhece os limites da própria poesia, mas esses
limites, a meu ver, são transgredidos na ousadia afável da Segunda Parte de
Fausto.
Desde o início da carreira, Goethe foi um escritor inteiramente secularizado,
pouco tendo a ver com Deus ou Cristo. A missão por ele perseguida, ao longo de
toda
a vida, foi a de livrar do cristianismo a poesia, jornada esta, precisamente,
oposta à de T. S. Eliot. Nietzsche, assim como todos os demais escritores
alemães pós-Goethe,
bastante influenciado por Goethe, assumiu uma posição ainda mais decisiva, porém
menos original, como Anticristo. Goethe, astutamente, declinou do papel de
messias,
mas proclamou à Alemanha que, embora estivesse presente à criação, era incapaz
de asseverar qualquer entendimento específico sobre o mundo. Esse atrevimento
teológico
acompanha-o até as revisões finais da Segunda Parte de Fausto. Se a asserção é
irónica, trata-se de uma ironia típica de Goethe, mais uma faceta da sua
originalidade,
i.e., a ironia da própria natureza falando através de um indivíduo. Não há outro
termo se não "goethiana" para caracterizar a posição de Goethe. Pode-se recorrer
a termos como "panteísta", "spinozis-ta", "naturalista", "vitalista", mas Goethe
sempre escapa. Infinitamente metamórfico, tanto quanto a natureza, Goethe é o
seu
próprio Espírito da Terra, permanecendo um ou dois passos à frente da nossa
compreensão. Em termos norte-americanos, ele seria um amálgama (improvável) de
Emerson,
Walt Whitman e Emíly Dickinson, ainda que fosse bem mais escabroso (em dados
momentos) do que qualquer um desses três. As estranhas incursões do poeta nas
ciências
naturais - a metamorfose das plantas e a teoria das cores - refletem a sua
profunda auto-identificação com uma natureza em constante
de mutação, à espera do nascimento da não-divindade. Recusando-se, termimente, a ser profeta, Goethe não pregou uma religião do futuro. Antes, procurou
nor a totalidade da história cultural, do Oriente e do Ocidente, clássica e
cristã,
encarnar^ e secular. Em suas fases finais, ele ensaia o milagre de se tornar um
poeta
sa e um poeta chinês em língua alemã, como se fosse o herdeiro legítimo de todas
as
eras.
Deveras, não há outro como Goethe, conquanto ele tenha desempenhado os papéis
de Píndaro e Shakespeare. O único rival, no âmbito da poesia alemã, foi o
inquieto e mais jovem contemporâneo, Hõlderlin, cujos poemas característicos
Goethe não
chegou a conhecer. A exaltação diante da ausência de precedentes sempre
acompanhou Goethe, de vez que, felizmente, não teve predecessores influentes na
Alemanha;
estabeleceu, de bom grado, uma parceria com Schiller, mas este era uma década
mais novo do que ele. Até Shakespeare foi obrigado a absorver Christopher
Marlowe,
mas o jovem Goethe estava só, ao vento e às intempéries. A condição poética de
Goethe era tão afortunada que a felicidade criativa em que ele vivia talvez
explique
a sua excepcional demora na iniciação sexual, ocorrida, em um primeiro momento,
durante uma viagem pela Itália, aos trinta e tantos, e, mais tarde, com
Christina
Volpius, ao retornar a Weimar. Até então o que se poderia chamar de carreira
erótica de Goethe caracterizara-se por relacionamentos intensos que evitavam
qualquer
consumação, dos quais o mais duradouro e autodestrutivo foi uma paixão fraternal
e idealizada pela virtuosa Charlotte Von Stein. Talvez a originalidade de Goethe
se estendesse até os domínios do desejo, com grandes benefícios à poesia das
fases iniciais de sua carreira, embora à custa de muito sofrimento
desnecessário, para
ele e terceiros.
Goethe era arguto demais para não saber que havia construído a própria
felicidade e harmonia, ainda que, às vezes, quisesse crer que ambas decorressem
de dons
naturais. Seu último discípulo de génio, o ficcionista alemão do século XX,
Thomas Mann, acerta em cheio, no ensaio "Goethe como Representante da Era
Burguesa" (1932):
Kevelam-se em Goethe, mediante análise acurada, tão logo terminada a inocência
da juventude, sinais de profundo desajuste e mau humor, uma depressão canhestra,
que,
decerto, possui ligações fortes e misteriosas com a desconfiança do poeta
relacionada às ideias, e com a sua indiferença de filho da natureza (...). A
natureza nao
propicia paz de espírito, simplicidade, ingenuidade; ela é elemento
questionável, contradição, negação, dúvida total.
Ate parece que Mann se refere a Johnson ou Boswell, ou a si mesmo. Goethe asso-a
elicidade ao assombro, e se aprazia de refutar generalizações feitas a seu
respeito.
198
199
Sem dúvida, rebateria qualquer sugestão de que elementos-chave da cultura
ocidental houvessem chegado a um ponto definitivo, tanto na sua obra quanto na
sua personalidade,
mas, de fato, suspeito ter sido esse o caso. Ler Goethe é, para mim, algo de um
rascínio interminável, mas os romances de Wilhelm Meister, Egmont e Os
Sofrimentos
do Jovem Wertber são hoje peças de museu, veículos de realidades passadas.
Fausto, especialmente a esplêndida Segunda Parte, é fantasia grotesca, pesadelo
erótico,
analisado por mim em outro livro (O Cânone Ocidental), obra que insisto deve ser
lida por todos os leitores capazes de suportar tal experiência. Não se trata de
haver algo errado com Goethe {o escritor, conforme Emerson o chamava) - existe
algo muito errado conosco. Não perdemos apenas sabedoria, mas as qualidades de
espírito
que constituem requisitos mínimos para uma leitura prazerosa de Goethe.
E. R. Curtius, principal crítico literário alemão do século que acaba de se
encerrar, aponta, de modo pertinente, que a Segunda Parte de Fausto é mais
barroca
do que clássica, e que o autor incorporava um individualismo aristocrático,
segundo o qual "a verdade já foi descoberta há milhares de anos". Onde? Bem,
mutatis
mutandis, na Bíblia e em Platão e Aristóteles - contudo, o que Goethe quer dizer
com tal afirmação, uma vez que hebreus e gregos em quase nada concordavam?
Goethe
adverte-nos a não nos deixarmos enganar por eventos de uma ou duas décadas, mas
a contracultura tem triunfado no Ocidente há, pelo menos, três décadas, e
promete
continuar na ofensiva na era da Rede Mundial de Computadores. Brutalmente
elitista, Goethe, já idoso, disse a Eckermann (o seu Boswell): "Meus escritos
não podem
se tornar populares (...), não se destinam às massas, mas aos indivíduos dotados
de aspirações e propósitos semelhantes [aos meus]."
Curtius acreditava que Goethe, como herdeiro de Dante e Shakespeare, devia ser
considerado "a concentração da mente ocidental em uma pessoa", e não
identificava
um indivíduo sequer, após Goethe, sobre o qual o mesmo pudesse ser afirmado. Se
é que houve tal figura, seria Sigmund Freud, e não Joyce ou Proust, os maiores
escritores
do século XX. Nenhum autor norte-americano - nem Emerson, nem Walt Whitman, nem
Henry James - reúne o que há de melhor na tradição, como o fez Goethe. Esse
esforço
agregativo, em todo caso, não configura uma dinâmica norte-americana, ou, vale
dizer, a ênfase emersoniana recai sobre outras questões. Freud também enfatiza
outras
questões, mas concordo com as palavras de Thomas Mann, em um discurso feito em
Viena, em 9 de maio de 1936, por ocasião do 80" aniversário de Freud. Mann
conclui
comparando Freud à fala final do Fausto de Goethe, em que o personagem
centenário, sempre em busca, declara o próprio triunfo contra o mar da morte.
Freud, escritor
de sapiência tanto quanto Goethe, talvez seja o último autor dentro da tradição
ocidental que buscava afirmar o poder da mente criativa diante do universo da
morte.
O génio de Freud encontra-se, atualmente, obscurecido, porque suas asserções
científicas são alvo de críticas, ou mesmo porque é defendido, como cientista,
por
um minguado número de fiéis seguidores. Tanto os que o difamam quanto os que o
defendem me parecem irrelevantes; atacar Freud pelo seu cientificismo, em última
instância,
parece tão sem propósito quanto depreciar Goethe por suas pesquisas com plantas
e cores. Ou, variando a analogia, a insistência de Freud de que a psicanálise
faria
uma contribuição à biologia é, a meu ver, tão interessante quanto as declarações
de Dante de que a Divina Comédia é a pura verdade sobre Deus, Inferno,
Purgatório
e Paraíso. Lemos Dante com admiração e gratidão estética, ao mesmo tempo em que
hesitamos diante da teologia do poeta. E assim lemos Freud, maior ensaísta do
seu
tempo, embora lhe descartemos a tendência de tornar literal as suas próprias
metáforas. Freud é tão metafórico quanto Goethe ou Montaigne, e, como eles, é,
antes
de tudo, um escritor. Francis Crick, com satisfação, reduz Freud a um médico
dotado de bela prosa; na verdade, o estilo da prosa de Freud é mesmo belo, mas a
noção
de Crick ignora as esplêndidas aplicações literárias a que se presta tal estilo.
Freud junta-se a Johnson, Boswell e Goethe, na qualidade de autobiógrafo
original
e vital, bem como de dramaturgo do eu. O que é ainda mais importante, forma um
trio, com Johnson e Goethe, de sábios autênticos, moralistas validados por dotes
intelectuais
extremamente raros.
E vão o esforço de descartar Freud, pois ele está dentro de nós. A mitologia
da mente por ele desenvolvida sobrevive à sua suposta ciência, e é impossível
evitar-lhe
as metáforas. Estou ciente de que falo como uma pessoa de 71 anos de idade e que
leitores mais jovens talvez não tenham consciência de que neles sobrevivem as
especulações
de Freud. Contemplemos o leque maravilhoso das invenções freudianas: a libido, o
instinto de morte, as agências psíquicas (id, ego e superego), o inconsciente,
os
mecanismos de defesa (repressão, projeção, regressão e tantos outros), bem como
o desenvolvimento do instinto sexual através das fases oral, anal e genital. A
psicologia
dinâmica ou dramática é shakespeariana ou goethiana, ou seja, retórica ou
literária. "Inventei a psicanálise porque não tinha literatura", Freud anunciou,
mas essa
s"literatura" era a própria literatura, especialmente Shakespeare e Goethe. De
fato, não existe a libido, ou o instinto de morte, tampouco o inconsciente
(embora,
às vezes, identifico-o com as minhas costas), e as defesas são tão-somente
notáveis metáforas.
O filósofo Ludwig Wittgenstein atacou Freud, afirmando que psicanálise era
especulação, e não hipótese. Na tentativa de rejeitar Freud, Wittgenstein
refere-se
a uma "poderosa mitologia", mas isso, a meu ver, não configura uma rejeição.
Freud, em
200
201
1933, admitiu, com satisfação: "A teoria dos instintos é mitologia nossa.
Instintos são entidades míticas, magníficas em sua indefinição." Eis o Sublime
em Freud,
com o seu humor proposital. Forças nos impelem, assim como o fizeram com Homero
e com Shakespeare, na fase final da carreira. Existe algo de incognoscível em
nosso
erotismo, ao que Freud denomina instinto. Não há objeto ou propósito específico
ao instinto. Trata-se de um conceito fronteiriço que perambula como um exilado,
entre
a psique e o corpo, perambulação que constitui as vicissitudes do instinto.
Quando fronteiriças, as vicissitudes podem ser perversões ou defesas, daí a
condição
ambígua do sadomasoquis-mo, o instinto em exílio permanente.
O que dizer desse tipo de especulação? Será que difere, em modalidade, dos
mitos platónicos? Freud? que não era transcendentalista, agarrava-se a um certo
platonismo,
ao exaltar a prova da realidade. Era moralmente necessário conviver com a
realidade, cuja forma final constituía-se na morte. Farto desse tipo de
moralismo, um contemporâneo
de Freud, o satirista vienense Karl Kraus, disparou a rajada indefensável: "A
própria psicanálise é a doença que se propõe curar." A afirmativa merece uma
reflexão
serena. Será o próprio cristianismo a queda da qual se propõe livrar?
Philip Rieff considerava Freud o primeiro moralista inteiramente desprovido de
religião, mas assim pensar talvez signifique preterir Goethe, e ainda temos
Montaigne,
em cuja obra Sócrates está presente e Jesus, ausente. Quarenta anos atrás, Rieff
podia descrever Freud como figura dominante em nossa cultura, mas tal dominância
já se evaporou. Freud, que queria formar uma tríade com Copérnico e Darwin,
formou um trio com Montaigne e Goethe. As minguantes sociedades psicanalíticas
estarão
extintas antes do advento da próxima geração. A expressão "o Freud literário"
tomar-se-á redundante, tão estranha quanto dizer "o Montaigne literário" ou "o
Goethe
literário". A ciência (ou cientificismo) era a defesa de Freud contra o antisemitismo: a psicanálise não era para ter sido classificada como "a ciência
judaica",
conforme se tornou para o desequilibrado Jung, pseudognóstico mais próximo do
Fausto original do que de Valentim. Freud, personalidade magnífica, não se
assemelha
ao Fausto incolor de Goethe, e era bem menos endiabrado do que o próprio Goethe
e o seu Mefistófeles, personagem que consegue salvar Fausto de Fausto.
Atualmente,
um grupo de ressentidos e frustrados estigmatizam Freud, tachando-o de
charlatão, o que constitui um avilte, sendo ele figura tão majestosa. O sábio de
Viena, que,
substituindo o judaísmo pela psicanálise, pretendia tomar-se nada menos do que
um novo Moisés, ao invés disso, tornou-se um novo Próspero, mas um Próspero que
se
recusaria a quebrar o bastão e lançar o livro ao mar.
Freud tinha prazer em se autodenominar um desbravador ou, se não, um Aníbal,
inimigo semita de Roma, ou um Cromwell, que subjugou a igreja estabelecida.
Exilou-se
em Londres, não em Jerusalém, por acreditar que a Palestina seria sempre o berço
de
novas superstições. Muito me agrada a obra O Futuro de Uma Ilusão, ainda que
seja talvez o livro mais fraco de Freud, somente porque me apraz imaginar T. S.
Eliot,
anti-semita respeitável, exasperando-se ao lê-lo. Disso, também Freud se
agradaria. Moisés e o Monoteísmo, romance escrito por Freud, deixa bastante
explícita a
identificação entre as histórias da religião judaica e da vida do novo Moisés,
Solomon Freud (esse seria o seu nome hebraico, que com ele muito mais combina do
que
o wagneriano Sigmund). O lema de Freud, tanto com relação a católicos quanto a
judeus ortodoxos, bem poderia ter sido: "Ultrajai-os, ultrajai-os sempre." T. S.
Eliot,
com efeito, sentiu-se ultrajado, mas qualquer judeu, mesmo que fosse muito menos
talentoso do que Freud, bastava para provocar o desdém de Eliot. O único génio
judeu
apreciado por Eliot era o personagem de Christopher Marlowe - Barrabás, O Judeu
de Malta -, que morre derretido em óleo fervente, embora, para fazer justiça ao
abominável
Eliot, caiba registrar a sua admiração por Groucho Marx.
Freud orgulhava-se de sua originalidade, e negava ter lido Schopenhauer e
Nietzsche, negação que não me convence. Shakespeare, precursor autêntico, foi
por Freud
reduzido "ao sujeito de Stratford" que usurpou a glória do Conde de Oxford,
verdadeiro autor de todas as peças (algumas escritas além-túmulo). Os detratores
oxfordianos
de Shakespeare formam um bando perverso, propenso a enviar cartas venenosas (eu
mesmo já recebi diversas). O mapa freudiano da mente é criação do próprio Freud,
mas Freud tinha um complexo de Hamlet, tanto quanto Goethe - Shakespeare, mais
uma vez, atuando no papel de Fantasma do pai. Pairando à meia distância, estava
a
figura de Charles Darwin, sabiamente identificado por Alexander Welsh como um
(afrontoso) precursor de Freud. Quão consternado ficaria Freud diante do fato
de, atualmente,
nos Estados Unidos, Darwin continuar a escandalizar os fundamentalistas,
enquanto as provocações de Freud são esquecidas! Darwin prossegue desferindo
golpes mais
profundos do que Freud; diversos estados e conselhos educacionais norteamericanos hoje exigem a inclusão de disciplinas sobre "ciências da criação",
mas desconheço
a existência de disciplinas obrigatórias de conteúdo antifreudiano. Evolução é
um tema vivo; inconsciente, instintos e repressão são como animais empalhados,
objetos
de decoração. Não digo isso para denegrir o grande génio de Freud, mas apenas
para reiterar que vivemos em um novo tempo, em que a realidade se constitui do
genoma
e do computador, não da especulação freudiana.
VI.
Freud, a despeito da pletora de talentos, era um judeu-vienense, e, na década
de 1870, quando frequentava a universidade, apenas certas profissões estavam-lhe
disponíveis. Após assistir a uma leitura pública do hino à Natureza, de Goethe,
Freud decidiu202
203
se pelo estudo da medicina. No entanto, jamais viria a se considerar um
indivíduo que dispensava curas. A investigação de Freud - a psicanálise apresentava-se
como abordagem interpretativa, mas trata-se de uma interpretação sumamente
pessoal, e não de um método. Uma interpretação de quê? Até mesmo isso é, hoje em
dia,
disputado. Rieff escreveu, de modo cativante, que "Freud democratizou a
genialidade, ao conferir a todas as pessoas um inconsciente criativo".
Atualmente, esse tipo
de ilusão afável nos faz arregalar os olhos. Terá o Presidente George W. Bush um
inconsciente criativo? Posso até ser obsoleto, ao defender a volta a uma noção
menos
benevolente de génio, ou, quem sabe, Freud, em seu desprezo aristocrata pelos
que demonstravam ambição intelectual menor do que a dele, estivesse sendo mais
irónico
do que até hoje imaginamos.
Na geração passada, falávamos de fenómenos "pós-freudianos"; hoje creio que
continuamos sendo pós-shakespearianos, mas pré-freudianos: a psicanálise adveio,
obteve
um triunfo dúbio, e partiu - para sempre. Finalmente, temos a liberdade de ver
Freud com clareza, como génio da expressão e como profeta que denunciava o
declínio
cultural, e não como fundador de uma disciplina, ou de uma terapia universal. Na
minha juventude, os freudianos praticavam uma melancólica idolatria, com relação
ao pai da análise; para eles, a hagiografia, em três volumes, escrita por Ernest
Jones, freudiano de origem galesa, era uma espécie de Talmude, e a Bíblia era a
edição oficial das obras de Freud, traduzidas para a língua inglesa por James
Strachey, em eloquente prosa edwar-diana que captava a dignidade e a
contundência do
mestre, muitas vezes à custa da ironia. Embora durante alguns anos, no meio da
minha jornada, tenha sido um tanto freudiano, absorvi-o junto com grandes doses
de
Emerson, e já faz muito tempo que fiz dos críticos literários o meu Talmude e
dos poetas a minha Bíblia. Porém, confrontando Freud, aprendi a ser reverente;
um estudo
sobre Freud, cujo título seria Transferência e Autoridade, foi o único livro que
jamais consegui concluir. E fui obrigado a cancelar uma disciplina de pósgraduação
sobre Freud ofertada anualmente porque, à medida que se aproximava o final do
semestre letivo, meus lapsos verbais, parapraxias da Psicopatologia da Vida
Cotidiana,
tornavam-se cada vez mais frequentes, até que uma aula final resultou,
inadvertidamente, cómica, pois eu mal conseguia me expressar.
A verdadeira autoridade de Freud, assim como a de Johnson, Goethe e Emerson,
sempre foi e continua sendo literária. O leitor deve ler Freud sem presumir que
ele
tudo sabe. Não há gnose ou sabedoria secreta em Freud, mas há uma visão
extremamente aberta e muito conhecimento pragmático. Ele tem uma certa
opacidade, mas o mesmo
pode ser dito com relação a Santo Agostinho, Johnson e Goethe: sábios têm os
seus defeitos.
De modo geral, os génios sobrepostos neste livro dividem-se entre escritores
sábios e criadores de maravilhas estéticas, mas tal divisão é dúbia. Goethe
pertence
a ambas as
SAMUEL JOHNSON, JAMES BOSWELL, JOHANN WOLFGANG VON GOETHE, SIGMUND FREUD, THOMAS
MANN
categorias, assim como muitos outros aqui arrolados. Freud é um esplêndido
escritor discursivo, certamente o maior ensaísta do século XX, comparável a
Emerson, Hazlitt,
Pater e John Stuart Mill, no século XTX. Ocorrem-me textos extraordinários, como
"Luto e Melancolia" ou "Sobre o Narcisismo: uma Introdução", ou o impactante
Totem
e Tabu, mas prefiro invocar uma grandeza mais serena, condizente com um herdeiro
de Goethe. Focalizo uma obra tardia - Inibições, Sintomas e Ansiedade (1926) -,
cujo título, em uma tradução anterior, foi O Problema da Ansiedade. Trata-se da
revisão feita pelo próprio Freud das suas primeiras teorias (um tanto
tresloucadas)
sobre ansiedade, segundo as quais ansiedades eram despertadas pela libido. A
excitação não extravasada acumulava-se, e esse desejo frustrado surgia em forma
de ansiedade.
A ideia tem um certo apelo popular, mas Freud desconfiava da validade de uma
origem comum ao instinto e à ansiedade e, corajosamente, admitiu o próprio erro:
Enquanto a visão anterior supunha que a ansiedade resultava da libido, relacicnando-se a impulsos instintivos reprimidos, a atual, pelo contrário, propõe o
ego
como a origem da ansiedade.
Em seu Estudo Autobiográfico (1935), Freud refere-se a esta como uma das suas
percepções analíticas mais conclusivas, e a assertiva, com toda a sua
objetividade,
de fato constitui uma grande auto-revisão. Fica descartada a ansiedade
inconsciente; a ansiedade passa a ser vista como um temor experimentado pelo ego
consciente.
O indômitc Macbeth, personagem predileto de Freud nas peças do Conde de Oxford
(i.e., dí Shakespeare), é o modelo implícito. À medida que os crimes se
multiplicam,
cresce Í ansiedade de Macbeth, alertando-o do perigo, o que o faz cometer mais
atrocidades Lady Macbeth sucumbe, mas Macbeth é impelido pela própria ansiedade.
Ao
contrarie de Johnson e Boswell, e de Goethe (em certas fases), Freud, tanto
quanto Macbeth, imune à melancolia. Depressão e ansiedade (no sentido macbethfreudiano)
são antité ticas. Na ironia mais elevada, a ansiedade é vitalizadora para o ego:
provê energia demoníaca, impulsionando o génio de Macbeth - e de Sigmund Freud.
Freud insistia na unidade entre sua vida e sua obra:
Este Estudo Autobiográfico demonstra como a psicanálise veio a se tornar a
totalidade do conteúdo da minha vida e, acertadamente, estabelece que as minhas
experiências
pessoais não têm o menor interesse, comparadas às minhas relações com a referida
ciência.
Já que tal ciência não existe, o que acontece com essa mesma afirmação, se
substi tuirmos as palavras "psicanálise" e "ciência" pela palavra "poesia"? Se
trocarmos
a pala
204
205
h
v "poesia" pela expressão "narrativa ficcional", poderia a afirmação ser
atribuída a Goethe, ou a Thomas Mann? Freud, tanto quanto Montaigne, Goethe ou
Mann, com
efeito, mostra-nos a obra na vida, e não a vida na obra, mas ficaria furioso se
lhe dissessem que seu trabalho era redigir ensaios. Assim como Johnson ou
Emerson,
Freud é um sábio prudente, mais um inusitado ensaísta que trata da moral. E,
tanto quanto Goethe, Freud é uma sumidade no que diz respeito à relação entre
cultura
e caráter. Passei a vida toda ensinando Literatura e, cada vez mais, vejo-me
cercado de académicos impostores que se autodenominam "críticos culturais". Não
são
nada disso: são trompe-tistas do ressentimento. Freud, no início do terceiro
milénio, continua sendo o último crítico verdadeiro da nossa cultura, e, como
tal, tem
uma utilidade sublime. Pouco importa que desejaste ser Darwin e acabasse por se
tornar Goethe. Seu génio, nutrido pelo cientificismo do século XIX, foi ativado
por
sua própria auto-ilusão. Wittgenstein, em cujo entendimento Freud estava quase
sempre equivocado, e desprovido de sabedoria, no entanto, admirava-o "por ter
algo
a dizer". As avaliações culturais de Wittgenstein provocam em mim um certo
tédio, inclusive porque ele se uniu a David Hume, integrando o grupo de
filósofos que
se ressentiam de Shakespeare.
O que Emerson disse a respeito de Platão, a meu ver, vale também para Freud:
Jamais houve tamanho alcance de especulação. Vem de Platão tudo o que ainda hoje
é escrito e debatido entre os pensadores. Um grande dano é o que ele causa à
nossa
originalidade.
Interrompo a citação neste ponto, porque a sentença seguinte se aplica a
Platão, mas é demais para Freud:
[Em Platão] chegamos à montanha da qual rolaram todas as pedras.
Qual seria, precisamente, a originalidade de Freud, a assinatura autêntica do
seu génio? Encontro essa originalidade, com muita nitidez, na sua visão de Eros,
que não é de Platão, nem de Agostinho, nem de Dante, mas semelhante à de
Shakespeare (embora bem mais redutiva). Freud conjecturava que nos apaixonamos
para não
adoecermos, de modo que, efetivamente, evitamos uma enfermidade aceitando outra.
Por mais brilhante que seja a sua descrição dos pesares de Eros, a grande
originalidade
de Freud não reside nesses apuros do espírito. Porém, no que toca à motivação
central do amor, Freud é de uma originalidade assustadora: o espírito murcha,
gloriosamente,
na atmosfera da solidão, e o transbordante eu interior corre o risco de se
afogar em seus próprios excessos:
Um forte egoísmo é uma proteção contra a enfermidade, mas, no extremo,
precisamos começar a amar, a fim de evitar a doença, e haveremos de adoecer, se,
em consequência
de uma frustração, não conseguimos amar.
A primeira dessas enfermidades é a mais irónica e mais interessante - pode-se
até dizer, a mais freudiana. É preciso se ter um narcisismo psíquico
extraordinário,
um ambição similar à de Macbeth, para sentir receio de sucumbir (a menos que se
tenh amor), em consequência de investimentos feitos no próprio eu. De todas as
epifania
freudianas, considero extremamente reveladora a observação feita por ele em um
exem piar de uma das primeiras edições de A Psicopatologia da Vida Cotidiana.
Fúria, indignação e, consequentemente, o impulso de morte são a origem da
superstição em neuróticos obsessivos: um componente sádico, relacionado ao amor
e, portanto,
voltado contra a pessoa amada, e reprimido, exatamente, por causa dessa ligação
e porque ela é intensa. A minha própria superstição tem origem na ambição
suprimida
(a imortalidade) e, no meu caso, substitui aquela ansiedade com relação à morte
que brota da incerteza natural da vida.
O desejo de imortalidade não é menos poético aqui do que nos sonetos de
Petrarc ou de Shakespeare. O Eros de Freud ilumina, novamente, um componente
centn daquilo
que a tradição denomina "génio": o poder da vontade de realizar e eterniza
Contrastemos, com a caracterização feita por Freud de sua "superstição", este
célebi trecho
de uma carta de Johnson a Boswell:
Espreita, talvez, em todo coração o desejo de sucesso, que leva todo homem,
primeiro, a alimentar uma esperança e, depois, a acreditar que a Natureza o
agraciou
com algo singular. Essa vaidade faz uma mente nutrir aversões, outra, acionar
desejos, até se elevarem, pela arte, muito acima da sua capacidade original; e
como,
com o tempo, a afetação se torna hábito, aversões e desejos passam a tiranizar
aquele que primeiro os estimulou.
Para Johnson, somos todos o que Freud chamou "neuróticos obsessivos , e
expressão "todo homem" parece frustrar as expectativas do génio. Johnson, no
entanto,
distingue entre "aversões" e "desejos", assim como Freud distingue entre
comp( nente sádico" e "ambição suprimida (a imortalidade)". Em última instância,
tant Johnson
quanto Freud nos conduzem de volta ao saber melancólico do Kohelet
(Eclesiastes):
206
207
Tudo o que puderes fazer, faça-o enquanto tens forças, porque no mundo dos
mortos, para onde vais, não existe ação, nem pensamento, nem ciência, nem
sabedoria.
Esse Pregador bíblico não tem "ansiedade em relação à morte" ou ilusões a
respeito da imortalidade. Parece estranho caracterizar Johnson e Freud pela
nostalgia,
mas o grande niilismo do Eclesiastes é pesado até para os mais vigorosos.
VIL
Em um dos seus Últimos Ensaios (publicados, postumamente, em 1958), Thomas
Mann retorna a Goethe, em algo qualificado como "Fantasia", a fim de refletir
sobre
o milagre do génio da personalidade do precursor alemão. Mann inicia (estava
prestes a completar 80 anos) com uma citação da última carta escrita por Goethe,
aos
83 anos, ao amigo Wilhelm von Humboldt, o célebre filólogo:
O melhor génio é o que tudo absorve, o que de tudo se apropria, sem prejuízo de
sua própria disposição subjacente, ao que chamamos de caráter. Antes, o que vem
de
fora serve para aperfeiçoar tal caráter e, na medida do possível, somar à sua
potencialidade.
Comentando essa citação, Mann fala de um "narcisismo esplêndido", e cita o
elogio de Goethe à personalidade como "a bem-aventurança suprema do homem
mortal".
O carisma de Goethe, decerto, não foi herdado pelo seu último grande discípulo,
Thomas Mann, carisma esse que serve de estribilho ao divertido ensaio "Fantasia
sobre
Goethe". É lamentável que Mann, famoso nos Estados Unidos à época da minha
juventude, venha desaparecendo, rapidamente, nos últimos anos, apesar do
esplendor de
A Montanha Mágica e de muitas das suas outras obras de ficção. Nos dias de hoje,
Mann é submetido a irónico renascimento como escritor homossexual, recentemente
exposto. Seria de se esperar que os tangíveis méritos estéticos de seus romances
e contos bastassem para garantir-lhe a sobrevivência literária no terceiro
milénio,
mas Mann, tanto quanto o seu heróico Goethe, era um grande ironista, e a ironia
é algo difícil de ser resguardado no momento atual.
Mann, génio da ironia, não pôde dominar a arte que enseja a criação de
personagens shakespearianos ou cervantinos, arte essa que, no século passado,
talvez só
tenha sido dominada por Proust e Joyce. Hans Castorp, protagonista de A Montanha
Mágica, é imensamente admirável e querido, e aprendemos a não tomar no sentido
literal
a cons208
tante ironia de Mann com respeito à mediocridade do melhor herói por ele criado.
A ironia, seja na literatura ou na vida, é gesto defensivo, e Mann ressentia-se
dos críticos que consideravam sua obra mais irónica do que cómica. A Montanha
Mágica e Doutor Fausto não são, absolutamente, romances cómicos, mas As
Confissões
do Vigarista Félix Krull certamente, o é, e demonstra o surgimento tardio da
personalidade goethiana em um protagonista de Mann. Quero, porém, deter-me aqui
em Doutor
Fausto, romance tortuoso, sem dúvida, prejudicado por uma ironia interminável,
mas que, apesar disso, é uma criação genial, que, receio, esteja fadada a cair
no
esquecimento, em todos os países. Mann angustiou-se demais com Doutor Fausto, e
chegou a escrever um livro inteiro sobre o romance: História de um Romance. A
epígrafe
desse auto-estudo sumamente narcisista é, como seria de se esperar, extraída da
fascinante autobiografia de Goethe, Poesia e Verdade.
No momento em que é publicada, toda obra de criação deve sustentar-se por si
mesma e provocar o efeito a que se propõe. Por isso, jamais fui propenso a
suplementar
meus trabalhos de prefácios ou posfácios, tampouco apresentei quaisquer
justificativas aos críticos. Contudo, quanto mais esses trabalhos recuam no
passado, tanto
menos eficazes se tornam, comparados à eficácia original. Deveras, quanto mais
consignados à cultura nacional, menos são estimados, assim como as mães são,
facilmente,
ofuscadas pelas belas filhas. Portanto, é justo e válido garantir o valor
histórico dessas obras, discutindo-lhes as origens com homens de discernimento e
boa vontade.
Essas "belas filhas", supõe-se, seriam as obras dos autores pós-Goethe,
conquanto a astuta apropriação de Mann aponte para escritos norte-americanos que
ofuscaram
Doutor Fausto. E penoso recordar que Mann, em a História de Um Romance, admite
elevadas expectativas com relação a Doutor Fausto:
Daquela feita eu sabia o que pretendia realizar, bem como o alcance da tarefa a
que me propunha: escrever nada menos do que o romance da minha era, disfarçado
da
história da vida de um artista, um artista pecador, sujeito a grandes perigos.
Goethe, mais do que o seu próprio Fausto, ronda o Fausto de Mann. O
perfeccionista Thomas Mann tem plena consciência de que carece da espontaneidade
de Goethe,
do excesso sublime de uma personalidade carismática. Podemos conceber Goethe
como personagem shakespeariano, mas não Mann, cuja representação seria a tal
ponto problemática
que até Shakespeare sentir-se-ia intimidado. Goethe ouvia-se a si mesmo
209
constantemente, e deleitava-se com suas consequentes metamorfoses. Mann
transfor-mou-se a fim de sobreviver, especialmente nos anos de exílio, nos
Estados Unidos,
mas restringia as auto-revelações as obras, em vez de experimentá-las na vida. A
sombra de GoetJie raramente o deixava; Mann, no entanto, tinha coragem bastante
para não se esquivar de tal sombra, mas para torná-la mais luminosa. Bildung,
visão goethiana de autodesenvolvimento, foi sempre o ideal de Mann, mesmo quando
objeto
de paródia feroz, como ocorre do princípio ao fim de Doutor Fausto.
A conferência proferida em 1936 - "Freud e o Futuro" - estabeleceu,
implicitamente, o projeto de imitação de Goethe, a ser perseguido por Mann ao
longo de toda
a vida:
Alexandre ssguiu os passos de Miltiades; os antigos biógrafos de César, certos
ou errados, unham convicção de que este tomara Alexandre por modelo. Mas essa
"imitação"
tinha um sentido bem mais amplo do que o de hoje em dia. Tratava-se de uma
identificação mítica, peculiar à Antiguidade; no entanto, o procedimento é
observado ainda
nos tempos modernos, sendo, em qualquer período, fisicamente possível.
Dois parágrafos adiante, Mann revela que o verdadeiro tópico do ensaio não é
Freud, mas Goethe:
Para mim, com toda seriedade, o elemento mais feliz, mais agradável do que
chamamos educação {Bildung), o formador do sentimento humano, é a forte
influência decorrente
da admiração e do afeto, a identificação infantil com uma imagem paterna
construída a partir de uma profunda afinidade (...). Imitatio Goethe, com suas
fases de
Werther e Wilhelm Meister, com o período final de Fausto e O Divã, ainda pode
formar, moldar, em uma dimensão mítica, a vida de um artista.
Nem Fausto, de Goethe, nem Doutor Fausto, de Mann, são obras muito lidas
atual-mente nos Estados Unidos, ainda que a Segunda Parte de Fausto encerre uma
sublimidade
grotesca e o romance de Mann ainda fosse famoso até a época em que completei 40
anos (1970). O triunfo da contracultura destruiu o gosto do público pela ironia,
em todo o mundo ocidental, e Mann parece fadado ao declínio (a menos que seja,
de uma vez por todas, adotado pelos Estudos de Género). Essa tendência é
absolutamente
lamentável, pois algo muito valioso chegou ao fim com Thomas Mann. Somente os
eruditos hoje lêem Johnson e Boswell, e Goethe é um emblema cultural apenas em
regiões
de língua alemã. Os dias de Freud já se passaram, e talvez já não seja possível
revivê-lo como ensaísta, pois ele próprio insiste em ser mais do que isso. Mann,
que associava Goethe a Freud, talvez venha a ser reduzido a uma relíquia de
ambos.
III
BINAH
1
210
A
LUSTRO 5
Friedrich Nietzsche, Sõren Kierkegaard, Franz Kafka, Mareei Proust, Samuel
Beckett
c
M
ssim como Keteré o ápice da consciência, e Hokmah é essa consciência elevada,
meditando ou contemplando a si mesma, Binab é a inteligência realizada em ..
sabedoria,
ou um prisma que ilumina o que pode ser apreendido. Por conseguinte, reuni no
quinto Lustro alguns dos extraordinários sábios da refração da luz. O
perspectivismo
de Nietzsche, o empenho de Kierkegaard para ser apóstolo e não apenas génio, bem
como as visões desesperadas de indestrutibilidade constatadas em Kafka somam-se
à imensa narrativa em busca da memória, em Proust, e à temática pós-protestante, de Beckett, relativa à nossa persistência, quando persistir parece ser
tão impossível
quanto a imortalidade.
O que confere unidade a este Lustro é a espiritualidade exacerbada desses
visionários. Até Mareei Proust, dândi leigo, ensina-nos que a mente criativa
converte
consciência em sabedoria espiritual, transformando perda amorosa em
transcendência do eu, com relação à sua própria iminente dissolução. Maior
artista entre os cinco,
Proust não se iguala aos demais como ascetas do espírito, mas quem de nós pode
se equiparar a Proust?
213
FRIEDRICH NIETZSCHE
FRIEDRICH NIETZSCHE
A concepção cristã de Deus - o Deus dos enfermos, o Deus na condição de
espírito - é uma das noções mais corruptas de divindade desenvolvidas na Terra.
Tal noção
talvez seja o nível mais ínfimo observado no declínio de tipos divinos. E Deus
reduzido à contradição da vida, em vez de ser a transfiguração da vida, o eterno
Sim!
Deus como declaração de guerra contra a vida, contra a natureza, contra a
vontade de viver! Deus - fórmula de toda calúnia contra "este mundo", de toda
mentira acerca
do "além"! Deus - o endeusamento do nada, a vontade ao nada santificada!
- O Anticristo, 18
Nietzsche proclamou o cristianismo a religião do niilismo e, portanto,
decadente. O título O Anticristo induz a uma interpretação equivocada, pois
Nietzsche não
se opõe a Jesus, mas ao cristianismo histórico e institucional, à sua moralidade
e teologia. O Novo Testamento, e especialmente Paulo, é rejeitado por Nietzsche,
mas, em última instância, o filósofo identifica-se com o Nazareno crucificado.
O argumento mais potente de O Anticristo apresenta o cristianismo como a
religião do ressentimento e da vingança, e não do amor e do perdão. A despeito
de qualquer
avaliação do cristianismo, O Anticristo não expressa o que há de mais sólido em
Nietzsche. Seu génio brilha em Genealogia da Moral que, antecipadamente, ocupa a
posição que Freud tentaria assumir em Totem e Tabu.
os ancestrais das tribos mais poderosas tornaram-se tão assustadores no campo da
imaginação que, finalmente, recorreram a uma sombra numinosa: o ancestral tornase
um deus. Talvez daí tenham surgido todos os deuses, do medo (...). E se alguém
considerar necessário acrescentar - "mas, também, da piedade" -, tal argumento
não
se sustentaria diante do período mais longo e mais remoto da raça humana.
Equivocamo-nos a respeito de Nietzsche, se não percebermos que, à semelhança
de Sócrates e Hamlet, ele tem uma desconfiança profunda da linguagem:
Já não nos estimamos o bastante, quando nos comunicamos. Nossas verdadeiras
experiências não são, absolutamente, loquazes. Não conseguiriam se comunicar, mesmo que tentassem fazê-lo. Isso porque carecem da palavra correta. A tudo
o que já atribuímos palavras, já ultrapassamos. Em toda prosa há um dedo de
desprezo.
O génio de Nietzsche é mais intenso quando nos adverte da probabilidade de
expressarmos algo que já está morto em nossos corações. E génio algum jamais nos
alertou,
com tamanha contundência, sobre o preço que pagamos pelo génio de terceiros:
É extraordinário o perigo subjacente a grandes homens e grandes eras; seguemnos todos os tipos de exaustão, além da esterilidade. O grande ser humano é uma
conclusão;
a grande era - a Renascença, por exemplo - é uma conclusão. O génio, em obras e
atos, é, necessariamente, um esbanjador; no fato de esbanjar-se a si mesmo
reside
a sua grandiosidade. O instinto de autopreservação é suspenso, por assim dizer;
a pressão irresistível de tal extravasamento o impede de qualquer preocupação ou
cautela. Chamam isso "auto-sacrifício" e elogiam o "heroísmo" do génio, a sua
indiferença no que concerne ao seu próprio bem-estar, a sua dedicação ao ideal,
à grande
causa, à pátria: sem exceção, tudo não passa de um grande equívoco. O génio
extravasa, transborda, desgasta-se, não poupa a si mesmo -e isso constitui uma
fatalidade
involuntária, calamitosa, como um rio que inunda a terra. Porém, uma vez que
muito se deve a esses rompantes, muito lhes é retribuído: por exemplo, uma
espécie de
alta moralidade. Afinal, assim procede a gratidão humana: interpreta mal os
benfeitores.
Decerto, interpretamos mal nosso benfeitor, Nietzsche, mas a interpretação
correta é impossível, conforme ele próprio nos ensinou. Na loucura do último ano
e meio
de vida, ele achava que havia sofrido uma transfiguração, ressuscitado da
crucificação. Talvez houvesse mesmo: identificou-se, inteiramente, com Dionísio.
Algo chegou
ao fim nele e com ele, e vivemos, em parte, sob o seu legado.
214
215
FRIEDRICH NIETZSCHE
(1844-1900)
A aurora trouxe-nos a Era da Informação. Onde encontraremos a sapiência? Minha
resposta seria: "em Shakespeare, Goethe, Emerson, Nietzsche e seus poucos
companheiros".
Hoje em dia, Nietzsche é, antes de tudo, um escritor sábio, um grande aforis-ta.
Ele se sobressaltaria com tal homenagem, pois considerava o estilo aforístico
algo
decadente. Contudo, à exceção da obra Genealogia da Moral, era esse o estilo
exigido por seu temperamento.
Aos 71 anos, um crítico literário já aprendeu a falar com franqueza, e não
segundo os modismos, portanto, de início, descarto o "Nietzsche francês",
atirando-o
no cesto de lixo, junto com o "Freud francês". Considerarei somente o que
Nietzsche fez, e continua a fazer, por mim.
Cada palavra, escreveu Nietzsche, é um Vorurteil uma tendência, uma
inclinação, o que em muito altera a minha leitura de Shakespeare. Para
Shakespeare, cada palavra
era, deveras, um Vorurteil, noção vital, quando escutamos as falas de Hamlet e
Falstaff, os dois maiores mestres da linguagem em Shakespeare. Hamlet, diz
Nietzsche,
não pensa demais - pensa bem demais -, portanto, exemplifica a grande ideia
expressa por Nietzsche, no Gòtzen-Dammerung, de que perdemos auto-estima quando
nos expressamos,
pois só encontramos palavras para exprimir o que já foi transcendido, de modo
que o ato da fala traz consigo um certo desdém: "(...) Isto é decente, / Que eu
(...)
/ Qual meretriz sacie com palavras / Meu coração, co'as pragas das rameiras."1
Assim fala Hamlet, que, a meu ver, não questionaria o saber de Nietzsche, mas
pergunto-me
se Sir John Falstaff não levantaria alguma objeção, pois, ao contrário de
Nietzsche e Hamlet, tinha plena confiança na linguagem:
Com os demónios! Já era tempo de fingir de morto, antes que esse escocês
turbulento me livrasse das dívidas. Fingir? Minto; não fingi coisa alguma.
Morrer é que
é fingimento, porque quem não tem vida de homem, não passa de fingimento de
homem; mas fingir de morto para conservar a vida, não é fingir a imagem da vida,
senão
representá-la com verdade e perfeição.2
Falstaff estabelece os limites de Hamlet, assim como Shakespeare estabelece os
de Nietzsche, pois Shakespeare é mais fecundo. Nietzsche aguça-nos a habilidade
da leitu1
Tradução de Ana Amélia Carneiro de Mendonça, op. cit., p. 108. [N. do
T.]
2
A Primeira Parte de Henrique IV. Tradução de Carlos Alberto Nunes. São
Paulo: Melhoramentos, s/d.
[N. do T.]
216
ra, mas não nos lê como o faz Shakespeare. Em O Anticristo, Nietzsche nos diz
que Deus, passeando em seu jardim, sente-se entediado e, por conseguinte, cria o
homem,
como divertimento. Mas o homem também fica entediado. Ao que eu resmungo: Sir
John Falstaff jamais fica entediado, pois sua inventividade é infinita.
Shakespeare,
mais criativo do que o Deus de Nietzsche, deu-nos Falstaff, que jamais deixa de
nos divertir. Nietzsche deu-nos Zaratustra, tédio sublime. Sem Nietzsche, a
leitura
atualmente prescindiria de um certo gume, mas precisamos de algo a mais do que
Nietzsche.
Nietzsche tinha grande admiração por Emerson, e fez o melhor comentário que
conheço sobre o sábio norte-americano:
Emerson possui aquela alegria inteligente e fascinante que desarma qualquer
sisudez; simplesmente, não sabe a idade que tem, ou a idade que há de ter; podia
dizer,
referindo-se a ele próprio e citando Lope de Vega: "Sou herdeiro de mim mesmo."
Seu espírito sempre encontra razões para se sentir realizado e grato; em dados
momentos,
Emerson se aproxima da transcendência jubilosa de um cavalheiro digno, ao
regressar de um encontro de amor, "como quem acaba de realizar uma missão".
"Embora a força
esteja carente", ele diz, reconhecido, "o apetite
sexual, no entanto, merece um elogio."
Gotzen-Dammerung seção 13
Esse pensamento é tão precioso quanto sagaz, mas expressa o reconhecimento de
uma perda: "não sabe a idade que tem, ou a idade que há de ter". Emerson, assim
como
Lope de Vega, este um dos monstros da literatura, foi, deveras, herdeiro de si
mesmo, noção que não se aplica a Nietzsche, que viveu sob a sombra de Goethe (e
de
Schope-nhauer). Por isso, Nietzsche, tanto quanto Freud, mais tarde, foi profeta
da angústia da influência. Nietzsche aprendeu com o colega, Jakob Burckhardt,
que
o espírito helénico era agonista: "Todo talento deve ser revelado através do
confronto." O maravilhoso fragmento nietzschiano, de 1872, intitulado "A Disputa
de
Homero", foi o ponto de partida de um livro por mim publicado quase um século
depois, Angústia da Influência (editado, nos Estados Unidos, em janeiro de
1973). Além
de nos ensinar a ler melhor, Nietzsche adverte-nos dos perigos de idealizarmos,
exageradamente, a psicologia da
criatividade.
"Génio" é termo hoje em dia fora de moda. O Historicismo (contra o qual
Nietzsche nos preveniu) triunfou na Era de Foucault, mas essa era já está
passando. Todavia,
a Rede Mundial de Computadores não será amena ao conceito de génio. Em meio
àquele imenso oceano de textos, quantos de nós seremos capazes de discernir uma
obra
de grandeza transcendental? Será que Nietzsche vai se tornar apenas mais um
melancólicoí
217
representante da alta cultura ocidental cuja obra há de parecer datada? Goethe,
praticamente, já não é lido nos Estados Unidos, e Emerson, cuja centralidade,
para
a cultura norte-americana, compara-se à de Goethe, para a cultura alemã,
interessa apenas a académicos antiquados.
O aspecto-Zaratustra, profético, de Nietzsche, tornou-se hoje em dia tão
arcaico quanto o credo de Freud: "Onde estivesse, lá eu estaria." Nietzsche não
parece,
em absoluto, desprovido de superego; com efeito, assemelha-se a uma versão de
Hamlet, por ele considerado um herói dionisíaco. Será que Nietzsche vai entrar
em declínio,
como Chamfort ou Lichtenberg, grandes aforistas, mas hoje lembrados apenas como
tal? Nada do que está sendo aqui afirmado encerra uma crítica a Nietzsche;
trata-se
apenas de uma oportuna reflexão a respeito da sobrevivência em uma era
irracional, em que telas substituem livros, e a sensação nega o pensamento.
O papel exemplar de Nietzsche vai desaparecer, ao menos, como mestre da
leitura. Talvez perdure o crítico da religiosidade, à semelhança de Kierkegaard.
Refiro-me,
sobretudo, à perspectiva norte-americana, pois somos um país obcecado por
religião, onde cerca de 90 por cento das pessoas (segundo recentes pesquisas do
Instituto
Gallup) acreditam que Deus as ama, pessoal e individualmente.
Nietzsche disse, a respeito de Goethe: "criou-se a si mesmo". Mas, referindose a Deus, observou que ou ele é a "vontade de poder" ou, então, torna-se o bem.
Vem-nos
à mente o Deus nietzschiano do esplêndido romance de José Saramago, O Evangelho
Segundo Jesus Cristo, figura bastante perversa, cuja preocupação exclusiva é
expandir
o próprio poder. O Jesus Cristo de Saramago, o cristão único de Nietzsche, morre
na cruz, instando-nos a perdoar Deus: "Humanidade, perdoai-o, pois Ele não sabe
o que faz." Se é que o legado nietzschiano há de continuar, isso ocorrerá na
imaginação de escritores como José Saramago, ou da poeta canadense Anne Carson,
cujo
livro Glass, Irony, and God pode ser comparado ao Evangelho de Saramago,
enquanto crítica às ideias correntes acerca de Deus. Talvez Nietzsche aceitasse
a ironia
desse legado estético. "Pensai na Terra!" é a advertência mais contundente que
ele fez, e que deve continuar repercutindo.
SÒREN KIERKEGAARD
A diferença entre o homem que enfrenta a morte em defesa de uma ideia e um
falsário que busca o martírio é que, enquanto o primeiro expressa a sua ideia
com mais
completude na morte, o segundo se satisfaz, na verdade, com a estranha amargura
que decorre do fracasso; o primeiro regozija-se com a vitória, o segundo, com o
sofrimento.
- Kierkegaard, Diários, março de 1936
Kierkegaard sempre desejou, ardentemente, ser apóstolo de Cristo, e não apenas
um génio solitário. Não poderia ter apreciado a ironia terrível de que, para a
maioria
de nós, ele é um génio literário, a despeito de suas intensas aspirações
espirituais. Nós (a maioria de nós) pensamos em Kierkegaard como o autor de
Repetição, Um
ou Outro, A Enfermidade Mortal e O Conceito de Angústia, obras extraordinárias
em que predominam a ironia, a inventividade e a acuidade psicológica, e em que
as
noções religiosas tendem a
ser secundárias.
O Nabucodonosor de Kierkegaard, lembrando-se do tempo em que era uma fera e
comia capim, reflete sobre o Deus dos hebreus e chega ao entendimento de que
somente
esse Todo-poderoso estava livre da necessidade de instrução. Falando por
Kierkegaard, Nabucodonosor mostra-nos o ponto extremo da mente criativa, onde
fica superada,
finalmente, a dificuldade de se tornar cristão. "E ninguém sabe coisa alguma
sobre Ele, quem foi Seu pai, como conquistou o poder, e quem lhe ensinou o
segredo da
força."
O Deus de Kierkegaard é o Deus de Abraão, Isaac, Jacó, Moisés e Jesus. Mas os
Estudos no Caminho da Vida desse visionário dinamarquês não afetaram a tradição
literária
com a mesma intensidade das suas fascinantes reflexões sobre sedução, repetição
e a via negativa.
218
219
SÒREN KIERKEGAARD
(1813-1855)
O lema do ensaio "Método de Rotação", na obra de Kierkegaard intitulada Um ou
Outro, é de Aristófanes:
Ao final, tem-se um excesso de tudo:
De pôr-do-sol, de repolho, de amor.
Repito o comovente testemunho de fé, expresso por Heinrich Heine: "Existe um
Deus, e seu nomeie Aristófanes." Kierkegaard, o Príncipe Hamlet de volta à
Dinamarca,
discordava de Heine, em questões teológicas, mas, como escritor, mantinha-se
ciente de Aristófanes. Em vez de explorar o génio de Kierkegaard em determinada
obra,
percorrerei minhas lembranças dos escritos do filósofo dinamarquês acumuladas ao
longo da vida, compilando lustros que jamais saíram de perto de mim.
Kierkegaard, mestre de todos os conceitos de ironia, comparava os génios a uma
tempestade de raios:
Génios são como a tempestade de raios: investem contra o vento, aterrorizam
pessoas, limpam o ar.
A ordem estabelecida inventou vários pára-raios.
E foi bem-sucedida. Sim, decerto, foi bem-sucedida; conseguiu tornar a.
próxima tempestade ainda mais violenta.
Seria Jesus Cristo, na visão de Kierkegaard, uma dessas tempestades de raios?
Roger Poole mapeou a arte do pensador dinamarquês relativamente à "comunicação
indireta",
de modo geral, levada a termo por meio de complexa ironia, como neste trecho, em
que ele compara o génio ao cristão:
O fato de nem todos serem génios é, sem dúvida, algo que todo mundo admite.
Mas que um cristão é mais raro do que um génio tem sido, de modo escuso,
inteiramente,
consignado ao esquecimento.
A diferença entre o génio e o cristão é que o génio é um ato extraordinário da
natureza; nenhum ser humano é capaz de se transformar em génio. O cristão é um
ato
extraordinário da liberdade ou, mais precisamente, um ato ordinário da
liberdade, e, embora tal ocorra extraordinariamente pouco, é isso que cada um de
nós deve
ser. Portanto, é vontade de Deus que o cristianismo seja proclamado,
incondicionalmente, a todos; por conseguinte, os apóstolos são gente simples,
comum; portanto, o protótipo assume a forma inferior de um criado, tudo para
indicar
que esse extraordinário é o ordinário, acessível a todos - mas um cristão, mesmo
assim, é algo mais raro do que um génio.
Sobre Jesus, Kierkegaard observa que, em três anos e meio, conseguiu apenas 11
seguidores, um contraste marcante com o triunfo da evangelização observado desde
aqueles tempos. Em célebre distinção entre génio e apóstolo, Kierkegaard
registrou, correta-mente, que, "na condição de génio, Paulo não resiste a
comparações a
Platão ou Shakespeare". A diferença é uma questão de autoridade; mas quem, senão
Kierkegaard (e o futuro adepto, o poeta Auden), haveria de comparar o génio ao
apóstolo,
Platão a São Paulo? Kierkegaard era, claramente, um génio; seria ele um
apóstolo? Porquanto a noção central em Kierkegaard relaciona-se à imensa
dificuldade em se
tornar cristão, podemos dispensá-lo de tal chamado.
O fulcro do génio de Kierkegaard é a sua percepção de que, em uma sociedade
declaradamente cristã, é quase impossível tornar-se cristão. Às vezes, digo a
mim mesmo
que os dois pensadores que possuem o menor número de características norteamericanas são Spinoza e Kierkegaard. Baruch Spinoza afirma que devemos amar
Deus sem
esperar ser por ele amados. Kierkegaard afirma que cristãos não são cristãos,
mas alguma outra coisa. Nietzsche, um passo adiante de Kierkegaard, declara ter
havido
apenas um cristão, e que este morreu na cruz, mas o autor de Discursos Cristãos
e Prática Cristã muito combateu tal desespero. Kierkegaard rezava para se tornar
cristão, embora entendesse a denúncia de Emerson de que a oração é a doença da
vontade.
A negação de realidades aparentes em uma sociedade francamente cristã é a
essência do génio de Kierkegaard, mas o conceito constituía, para ele, uma
angústia,
pois Kierkegaard tinha de ser pós-hegeliano, assim como nós temos de ser pósfreudianos. Hegel nega a autoridade do fato, do que ele considera apenas como
dado,
e o que ele destrói, a fim de alcançar a verdade metafísica, através de um
processo a que denomina "mediação". Embora dispusesse de um curioso senso de
humor, Hegel
não apreciava a ironia. Quanto à mediação hegeliana, Kierkegaard, ironicamente,
substituiu-a por algo a que chamou "repetição", tópico de um livreto cujo título
foi, precisamente, essa palavra, publicado em 1843, sob o pseudónimo de
Constantin Constantins. Três anos antes, Kierkegaard havia ficado noivo de
Regine Olson;
após um ano de noivado, ele pôs fim ao relacionamento. Repetição é um tributo à
própria capitulação do filósofo, pois o conceito significa a vontade de abraçar
possibilidades
capazes de se tornarem transcendentais, inclusive o casamento.
220
221
O verdadeiro herói da repetição é o marido fiel:
Ele decifra o grande enigma de viver na eternidade e, ao mesmo tempo, ouvir as
batidas do relógio do corredor, ouvindo-as de tal modo que o badalar das horas
não
encurta, mas prolonga a eternidade.
Essa sentença é de génio, e a ironia se volta contra o próprio Kierkegaard,
sabedor de que fora incapaz de decifrar esse mesmo enigma: "A ironia é um tumor
anormal
(...) em última instância, causa a morte do indivíduo"; e assim Kierkegaard, a
exemplo do Jovem (que também rompe um noivado) do livro que promove a expiação
do
autor, torna-se, ele mesmo, uma paródia da repetição. Sedução não se qualifica
como repetição porque priva o sedutor de qualquer esperança de alcançar
experiências
transcendentais.
Kierkegaard, poeta da ideia, optara pela originalidade. Como o poeta de Keats
que "morre na vida", a missão de Kierkegaard era tornar-se cristão, instruído
apenas
pelo próprio Cristo. Em 1844, publicou Fragmentos Filosóficos, um de seus
esforços mais extraordinários, sob o pseudónimo de Johannes Climacus. Na folha
de rosto,
lê-se:
E possível precisar o ponto de partida histórico de uma consciência eterna? Como
é possível a esse ponto de partida ter mais do que interesse histórico? E
possível
construir-se felicidade eterna a partir do conhecimento histórico?
O questionamento é formulado por alguém que, em sua ignorância, não sabe sequer
o que o ensejou.
Essa questão tripla separa o cristianismo de Kierkegaard do idealismo de Hegel
e de Platão. Sócrates e seu pupilo não são capazes de trocar ensinamentos, mas
um
propicia ao outro meios de autocompreensão. Cristo compreende a si mesmo
perfeitamente: a função dos discípulos é receber o amor de Cristo, para si
mesmos e para
toda a humanidade. A "repetição" dos discípulos é a perpétua renovação de sua
perspectiva de se tornarem cristãos. "E possível conhecer a verdade?", pergunta
Johannes
Climacus. Em busca da resposta, podemos recorrer à última obra de Kierkegaard.
Kierkegaard morreu aos 42 anos de idade. Sofreu um colapso, em plena via
pública, após ter sacado os últimos valores de uma herança, derradeiro elo com o
pai.
Um mês mais tarde, faleceu em um hospital, pois já não tinha razão para viver.
Seu último ensaio - "A Imutabilidade de Deus" - é iniciado por uma prece:
222
Ó Imutável, a quem nada altera! Vós que sois imutável no amor, que, apenas pelo
nosso bem, não vos permitis mudar - fazei com que também desejemos o nosso bem;
permiti
o nosso crescimento, com obediência incondicional, na vossa imutabilidade, a fim
de encontrarmos conforto na vossa imutabilidade! Não sois como o ser humano. Se
for permitido ao ser humano preservar um mínimo de imutabilidade, que não lhe
seja concedido muito que possa comovê-lo, e que não se deixe comover demais. Mas
a
vós tudo comove, e em amor infinito. Até o que nós humanos consideramos
insignificante e o que é por nós ignorado, as necessidades de um pardal, a vós
comove; algo
que, tantas vezes, mal capta a nossa atenção, um suspiro humano, a vós comove,
Amor Infinito. Mas nada vos faz mudar, Ó Imutabilidade! Vós, que, com amor
infinito,
vos deixais comover, deixai que esta prece vos comova a abençoá-la, a fim de que
ela possa mudar este que reza, segundo a vossa vontade imutável, ó Imutável!
Para mim, essas palavras são de uma pungência irresistível. Deus, a quem nada
altera, comove-se com o amor infinito. Quanto a nós, se não desejarmos mudar,
não
podemos nos permitir o amor. Rompemos nossos noivados, e não logramos a
"repetição" autêntica. Após a prece, Kierkegaard pronuncia um sermão, a nós,
seus leitores,
pois somos sua única congregação.
O texto do sermão é Tiago 1:17-21, antítese da doutrina de Paulo, mas a
palavra de Jesus, segundo seu irmão, Tiago, o Justo, líder dos cristãos hebreus
de Jerusalém:
Todo dom precioso e toda dádiva perfeita vêm do alto, descendo do Pai das luzes,
no qual não há mudança nem sombra de variação. Por vontade própria ele nos gerou
pela Palavra da verdade, a fim de sermos como as primícias dentre as suas
criaturas. Isso podeis saber com certeza, meus amados irmãos. Que esteja cada um
de vós
pronto para ouvir, mas tardio para falar e tardio para vos encolerizar; porque a
cólera do homem não é capaz de cumprir a justiça de Deus. Por essa razão,
renunciando
a toda imundície e a todos os excessos da maldade, recebei com humildade a
Palavra que foi plantada em vossos corações e é capaz de salvar as vossas
vidas.3
E maravilhoso que um conselho tão humano, universalmente relevante, seja a
última expressão de Kierkegaard, somada à sua resposta eloquente, que prefiro
extrair,
não desse
Bíblia de Jerusalém, op. cie, pp. 612-13.
223
ensaio-sermão, mas de um estudo anterior, Ponto de Vista da Minha Obra, escrito
em 1848 e publicado, postumamente, em 1859. Em uma nova espécie de biografia
espiritual,
nada devendo a Santo Agostinho, Kierkegaard abandona a ironia, adota a
"comunicação direta", e permite-se o páthos de ter sido "o génio de um pequeno
entreposto
comercial". E, ainda, homenageia um de nós, o leitor ideal, ou "amante" de sua
obra:
Só mais uma coisa. No dia em que meu amante chegar, poderá constatar que,
quando fui considerado irónico, a ironia não era, em absoluto, aquilo que o
público culto
pensava que fosse - e, obviamente, meu amante não há de ser tolo ao ponto de
presumir que o público possa ser o avaliador da ironia, o que é tão impossível
quajito
ser um só indivíduo en masse. Meu amante há de constatar que a ironia estava
apenas no fato de neste autor estético, e por trás dessa aparência mundana,
esconder-se
o autor religioso, um autor religioso que, à época do seu amadurecimento
pessoal, talvez consumisse a mesma quantidade de religiosidade que uma família
inteira.
Ademais, meu amante constatará a ironia presente no estágio seguinte,
precisamente, naquele que o público culto julgava ser loucura. Para o ironista,
não há mais
o que fazer em tempos de ironia (grande epítome dos tolos), a não ser inverter a
relação, e fazer de si mesmo o objeto da ironia geral. Meu amante há de
constatar
como tudo se encaixa perfeitamente, como as minhas relações existenciais se
invertem, em correspondência exata às alterações da minha escritura. Se eu não
tivesse
percebido tal necessidade, ou carecesse de coragem para tanto, e tivesse
alterado a escritura mas não as relações existenciais, a relação deixaria de ser
dialética
e tornar-se-ia confusa.
Tais noções correm paralelas à dificuldade de se tornar cristão, e, talvez,
pressuponham a evasão da verdade pragmática. A maioria de nós que apreciamos
Kierkegaard
chegamos a ele pela via das suas realizações estéticas, e não pelas questões
espirituais; no entanto, creio que ele tem algo a nos dizer também nesse campo,
mesmo
que pouco nos interessem as dificuldades em nos tornarmos cristãos. Na minha
leitura, Kierkegaard tem mais em comum com Nietzsche e Kafka, e até com Beckett,
do
que com o Cardeal John Henry Newman e outros autores religiosos do século XIX. A
despeito do objeto dos seus anseios, Kierkegaard foi um génio, e não um
apóstolo,
conforme ele, decerto, bem o sabia.
FRANZ KAFKA
Tampouco talvez seja amor, quando digo que, para mim, és a mais amada; para mim,
amor é seres a faca que reviro nas minhas entranhas.
- Cartas a Milena
Franz Kafka disputa com Rainer Maria Rilke uma posição de eminência negativa:
a do génio literário mais exasperador a merecer a admiração de mulheres eruditas
ao longo do século XX. Rilke talvez tenha sido o poeta mais egocêntrico em toda
a História europeia, enquanto Kafka, inteiramente alienado com relação a si
mesmo
e ao resto do mundo, esquivou-se do amor, até o relacionamento com Dora Dymant,
quando já se encontrava na fase terminal da tuberculose.
Kafka, nas condições de indivíduo e de escritor, foi uma sequência de imensos
paradoxos. As suas maiores obras de ficção - O Processo e O Castelo - não chegam
a desafiar Em Busca do Tempo Perdido, de Proust, Ulisses, de James Joyce, ou
mesmo A Montanha Mágica, de Mann. No entanto, pensamos o século XX como a era de
Kafka
e Freud, e não de Proust e Joyce. Os fragmentos, aforismos, contos e parábolas
de Kafka competem com os ensaios de Freud sobre cultura, pela posição hegemónica
na
espiritualidade autêntica de seu tempo. Reconheço que tudo o que diz respeito a
esse argumento é paradoxal, pois Freud desprezaria tal papel, e Kafka dele
fugia.
Mas do que não fugia Kafka?
Em célebre carta a Milena Jesenká (que seria morta pelos nazistas), Kafka
denuncia, com veemência, a escrita de missivas:
Escrever cartas, entretanto, significa desnudar-se diante de fantasmas, algo
pelo qual tais fantasmas esperam ansiosamente. Beijos escritos não atingem o
destino,
mas são sorvidos a caminho por fantasmas. Somente com base nessa farta nutrição
é que eles se multiplicam de modo tão intenso. A humanidade percebe o problema e
contra ele se bate, e, para eliminar, na medida do possível, o elemento
fantasmagórico entre as pessoas, e propiciar a comunicação natural - a paz das
almas -, essa
mesma humanidade inventou a ferrovia, o automóvel, o avião. Porém, isso tudo já
não serve, pois, evidentemente, são invenções criadas no momento do choque. O
lado
oposto é tão mais calmo e mais forte: após o serviço
224
225
postal, criou o telégrafo, o telefone e a radiografia. Os fantasmas não morrerão
de fome, mas nós sucumbiremos.
O elemento fantasmagórico que separa os amantes não pode ser anulado; seja
qual for o valor que tivermos, como indivíduos, o referido elemento faz com que
nos
distanciemos uns dos outros. Kafka foi o génio do isolamento. Ensinou-nos que
nada temos em comum com nós mesmos, muito menos com terceiros.
FRANZ KAFKA
(1883-1924)
Existe apenas o mundo espiritual; o que chamamos de mundo físico é o mal do
mundo espiritual.
Tais palavras não são de Meister Eckhart nem de Jakob Boheme, mas do escritor
judeu-checo Franz Kafka, que morreu de tuberculose antes de completar 41 anos.
Se
tivesse levado a termo um tempo de vida normal, provavelmente teria sido morto
em algum campo de extermínio alemão, conforme ocorreu com suas três irmãs e com
a
amada Milena Jesenká. W. H. Auden chamou Kafka de Dante do século XX. Agora, no
início do século XXI, Kafka parece dotado de uma autoridade espiritual que não
costuma
ser, necessariamente, atribuída aos poucos entre os contemporâneos que o
rivalizaram em eminência estética: Joyce, Proust e Beckett.
Como é estranha e, ao mesmo tempo, inquestionável essa autoridade espiritual:
Kafka, decerto, não a reconhecia, e negava possuir sabedoria, ou percepção
religiosa.
Nietzsche profetizava, e Kierkegaard buscava uma verdade dignificante. O projeto
de Kafka era diferente: o seu génio particular torna a vocação da escrita uma
espécie
de religião. Cabe precisar o problema: Flaubert, Proust e Joyce foram os sumos
sacerdotes da arte literária. Kafka, mais uma vez, é diferente, e tal diferença
é,
praticamente, impossível de ser descrita. Ele era um escritor, assim como Goethe
e Heine eram escritores dedicados, compulsivos. Mas, em Kafka, o ato de escrever
tem uma aura que só posso considerar cabalística, conquanto Kafka não se
dedicasse à Cabala. Fora da crença, além da crença, alienado da crença, Kafka
escreve assim
como o Caçador Gracchus, por ele criado, viaja ao infinito. Kafka é também um
navio sem leme, impulsionado por um vento que surge das regiões geladas da
morte.
Na era de Proust e Joyce, e outros grandes autores originais, Kafka é mais
original do que os originais (que, segundo Emerson, jamais são originais). É
possível
que Kafka estivesse sempre a mudar de ideia. Nada que seja explicável ocorre em
um conto ou em um romance de Kafka; mesmo quando concluídas, as obras podem ser
consideradas
fragmentos. Os dicionários contêm atualmente o vocábulo "kafkiano"; o American
neritage College Dictionary define o termo como "caracterizado por uma distorção
surrealista
e, de modo geral, pela sensação de perigo iminente".4 A definição está correta,
a
Segundo a definição que consta da versão eletrônica do Dicionário Houaiss da
Língua Portuguesa:
que,
forma semelhante à obra de Kafka, evoca uma atmosfera de pesadelo, de absurdo,
esp. em um contexto
burocrático que escapa a qualquer lógica ou racionalidade (diz-se de situação,
obra artística, narração etc.)."
226
227
não ser pela noção "surrealista"; Kafka não é surrealista. Eu poderia
questionar, também, a ideia de "distorção", pois as descrições de Kafka têm uma
"normalidade"
e uma "naturalidade" perturbadoras, mas, de fato, a dimensão de perigo iminente
está quase sempre presente. Contudo, não se pode elucidar o génio de Kafka
recorrendo-se
ao adjetivo "kafkiano"; é preciso uma nova investida, mas como, e onde?
O apelo de Kafka a um número imenso de leitores, no mundo inteiro, obviamente,
transcende o judaísmo do autor; todavia, parece impossível pensar em Kafka ou em
seus escritos sem refletir a respeito dos dilemas da identidade judaica. A
questão se aplica também (embora, mais uma vez, de modo diferente) a escritores
como Isaac
Babel, Paul Celan e Philip Rotfi, em quem a identidade judaica não é,
absolutamente, problemática, ou a Martdelstam, em quem, seja ele qual for, o
enigma viu-se
transformado pela brutalidade stalinista. Kafka é partido de um único adepto,
arquétipo permanente da solidão judaica, conquanto Paul Celan viesse a
constituir um
segundo paradigma.
A extraordinária autenticidade dos escritos de Kafka é singular: o crítico
canónico da obra kafkiana continua a ser Walter Benjamin, embora o impacto sobre
Gershom
Scholem, o amigo mais íntimo de Benjamin, tenha sido ainda maior, e ainda hoje
determine qualquer interpretação da Cabala procedida através do estudo histórico
personalizado
desenvolvido por Scholem. Na minha juventude, os intelectuais eram obcecados por
Kafka. Não detecto o mesmo tipo de interesse entre os meus melhores alunos,
embora
se ocupem mais de Kafka do que de Proust e Joyce. A contenda desses alunos, com
relação à fé e à falta de fé, seja qual for a religião, continua a constatar
estigmas
em Kafka de uma maneira, talvez, inevitavelmente relevante.
Embora a obra de Kafka contenha narrativas que hão de permanecer, e O Castelo
chegue bem próximo de ser um romance de busca espiritual, a maior realização do
autor
reside nos relatos mais curtos, nos fragmentos, aforismos, registros em diários,
trechos de cartas e, acima de tudo, nas parábolas.
A parábola "A Grande Muralha da China" é sempre uma excelente introdução a
Kafka, e, até certo ponto, pode ser considerada uma anedota judaica, mas tratase da
comédia dos intelectuais judeus de Praga de três gerações atrás. Sabemos que,
quando Kafka leu, em voz alta, as primeiras páginas de "A Metamorfose" e O
Processo
para os literatos que integravam o seu círculo, todos riram, e que o próprio
Kafka mal pôde prosseguir a leitura. Nós não rimos dessas mesmas páginas, mas
não temos
como resgatar a ironia do grupo que cercava Kafka. No entanto, quem, não fosse
Kafka, pensaria na Grande Muralha como uma Torre de Babel chinesa? Kafka sentiu
o
peso da influência de Goethe e, de modo sensato, tentou evitá-la, em um
procedimento que antecipa a ambivalência de Paul Celan com respeito à língua e à
cultura
alemãs. Estou cansado de me deparar com interpretações equivocadas, ao longo de
quase 30 anos, mas volto a
dizer que a angústia da influência nada tem a ver com complexo de Édipo. Kafka
não tinha qualquer relação edipiana com Goethe, ou Celan com Rilke. A linguagem
de
Kafka e Celan trava uma disputa com a língua alemã, e o alemão empregado por
eles, cada qual ao seu modo, distancia-se do idioma usado na tradição literária.
O sutil e irónico narrador de "A Grande Muralha da China", um dos pedreiros,
tem conhecimento da Torre de Babel, edificação rival, porém inferior, e cita um
estudo
que "afirma que somente a Grande Muralha propiciaria, pela primeira vez na
História da humanidade, o alicerce seguro de uma nova Torre de Babel. Primeiro a
muralha,
e portanto, depois a torre". A ideia parece estapafúrdia ao narrador, mas: "a
natureza humana, essencialmente, mutável, instável como a poeira, não pode ser
contida;
amarra-se a si mesma, logo tenta romper os grilhões, até arrebentar tudo, as
muralhas, os grilhões e
até a si mesma".
Por que foi construída a Grande Muralha? Supostamente, para conter os povos do
norte, mas somos informados que a decisão de construí-la remonta à eternidade.
Não
se pode tratar de uma ordem do atual Imperador, porque ninguém no sul sabe quem
ele é, e se, agonizante, ele envia uma mensagem a determinada pessoa, tal
mensagem
jamais chega ao destinatário. Na realidade, talvez não exista um Imperador, ou,
talvez, "exista uma certa debilidade de fé e força criativa, da parte do povo".
Caso
contrário, clamariam para si o Imperador e o Império, "ainda que uma só vez, a
fim de sentir o toque e, então, morrer".
Na condição de anedota sobre a relação do povo judaico com Deus, a parábola é
um pouco excessiva; portanto, o narrador kafkiano conclui com o mais cínico dos
gracejos:
Essa atitude, então, não constitui uma virtude. É ainda mais notável que essa
mesma fraqueza seja uma das maiores forças unificadoras do nosso povo; com
efeito,
se me permitem a ousadia da expressão, é o solo que pisamos. Tentar estabelecer
aqui algum defeito fundamental implicaria abalar não apenas as nossas
consciências,
mas, o que é muito pior, os nossos pés. Por esse motivo, não vou prosseguir na
minha investigação a respeito dessas questões.
O génio de Kafka para a comédia sinistra quase não tem precedentes, embora o
escritor checo talvez endossasse a minha obsessão pela afirmativa de Heinrich
Heine:
"Existe um Deus, e seu nome é Aristófanes." Coube ao génio de Philip Roth,
especialmente na obra-prima O Teatro de Sabbath, retomar e desenvolver a ironia
de Kafka.
Embora, em vários outros livros, eu tenha escrito sobre o magnífico fragmento de
Kafka, intitulado "Gracchus, o Caçador", volto a abordá-lo, pois o texto
manifesta
o
228
229
que há de mais intenso na ironia kafkiana. O pobre Gracchus, que vagueia como o
Holandês Voador ou o Judeu Errante, demonstra uma paciência espantosa, ao
suportar
o seu dilema absurdo - errar de porto em porto, a bordo de um navio fantasma,
sem qualquer culpa ou motivo. A impaciência é muitas vezes identificada por
Kafka como
o único pecado autêntico, conquanto seja endémica nos grandes escritores, desde
Petrarca, pois todos são impacientes no que toca à imortalidade literária. É
possível
que Shakespeare seja uma exceção (a não ser em alguns dos sonetos), mas Kafka
talvez seja o maior exemplo de imunidade a esse tipo de impaciência. Um de seus
aforismos
mais célebres brinca com essa imunidade:
Os corvos afirrnam que um só corvo seria capaz de destruir os céus. Sobre isso
não há dúvida, mas isso nada comprova contra os céus, pois o céu, simplesmente,
significa:
a impossibilidade de corvos.
O nome "Kafka" não tem qualquer significado especial em checo, mas soa
semelhante a kavka, que significa, gralha, pássaro da família do corvo.
Gracchus, em latim,
em última instância, remete a "corvo", e o Caçador Gracchus, que não consegue
alcançar os céus, é uma impossibilidade, pois não está vivo nem morto. Kafka,
que disse,
referindo-se a si mesmo, "sou uma memória ressuscitada", estudava hebraico à
época em que escreveu "Gracchus, o Caçador", no início de 1917, e prosseguiu nos
estudos,
com dedicação, durante seis anos, até ser acometido da doença fatal. As viagens
de Gracchus têm uma relação enigmática com o judaísmo de Kafka, relação essa de
difícil
compreensão devido à ironia que permeia o belo fragmento. Mas o jogo de palavras
relativo ao corvo, ou à gralha, é o ponto de partida, extremamente claro, em se
tratando de Kafka, expressando mais do que o "K", em Kabbalistic ou em "Joseph
K". A situação do grande caçador é a de Kafka, "borboleta" cujo papel na
Jenseits
(eternidade) é estar sempre na grande escadaria que a ela conduz. O destino de
Gracchus não é nem o purgatório, nem o inferno: Gracchus é um nómade; como o
pequeno
Odradek, em "Tristezas de um Pater Famílias", Gracchus "não tem residência
fixa". No entanto, tem uma dignidade impressionante, e de nada se queixa:
Estou sempre em movimento. Mas sempre que alço vôo e vejo o portão reluzente
diante de mim, logo desperto em meu velho navio, ainda isolado e tristonho em
algum
oceano da Terra. O erro fundamental da minha morte de outrora arreganha os
dentes para mim, quando me deito na cabina. Júlia, mulher do piloto, bate à
porta e me
traz, aqui no meu esquife, a bebida matinal típica da região por cujo litoral
estamos passando. Deito-me sobre um estrado de madeira; envolFRANZ KAFKA
vo-me - não será um prazer contemplar-me - em um lençol imundo; meus cabelos e a
barba, grisalhos, cresceram, formando uma massa inseparável; minhas pernas estão
encobertas por um grande xale feminino, com flores estampadas e longas franjas.
Na cabeceira, uma vela sacramental mantém-me iluminado. Da parede à minha frente
pende um pequeno quadro, a figura de um selvagem, protegido por um escudo
ricamente pintado, e com a lança apontada em minha direção. Quando se está a
bordo, fica-se
propenso a invenções estúpidas, mas esta é a mais estúpida de todas. Fora isso,
minha cabina de madeira está bem vazia. Através de um buraco na parede lateral
entram
os ares cálidos das noites do sul, e ouço a água batendo no casco do velho
barco.
O xale de franjas longas e a vela sacramental não são judaicos; o selvagem é
uma ironia hilária. A imagem da Galut, ou Diáspora, terá sido retratada de
maneira
tão memorável em algum outro escrito? Não existe aqui a imagem da cruz, como
seria de se esperar no esquife de um caçador da Floresta Negra. Não, o caçador é
o escritor,
viajando pela linguagem, seja em alemão ou hebraico, preso, em uma situação
absurda, entre a vida e a morte. Gracchus é absolutamente admirável: paciente,
indestrutível,
acima de tudo, ciente de todas as ironias. Embarcara no navio da morte confiante
de que seria transportado à Jenseits, e sobreveio a má sorte, "das Ungluck", da
qual ele não tem a menor culpa. A culpa, diz Gracchus, é do barqueiro, mas não
sabemos como ou por que, e o caçador tampouco nos explica. Ao invés disso, faz
uma
profecia que me remete aos campos de extermínio que estariam à espera das amadas
e das irmãs de Kafka, um quarto de século mais tarde, quando a cultura germânica
triunfou:
Ninguém há de ler o que aqui escrevo, ninguém virá me ajudar; mesmo que todos
tivessem ordens para me acudir, portas e janelas permaneceriam fechadas, todos
se
enfiariam em suas camas e encobririam as cabeças com os lençóis, a Terra inteira
se tornaria uma hospedagem noturna. E isso faz sentido, pois ninguém sabe da
minha
existência, e se alguém soubesse, não poderia me encontrar, e se soubesse onde
me encontrar, não saberia lidar comigo, não saberia como me ajudar. A ideia de
me
ajudar é uma doença cuja cura depende de se enfiar na cama.
Sei disso e, portanto, não grito, pedindo socorro, ainda que em dados momentos
- em que perco o autocontrole, como acaba de acontecer, por exemplo -penso,
seriamente,
em fazê-lo. Mas, para me livrar de tais pensamentos, basta-me olhar em volta de
mim mesmo e verificar onde estou e - posso afirmar, com segurança - tenho estado
há centenas de anos.
230
231
"Das hat gutten Sinn", Gracchus diz, "isso faz sentido", porque, na
interpretação judaica - talmúdica, cabalística, freudiana, kafkiana - existe
sentido em tudo:
cada letra da Tora, cada momento da História judaica requer análise minuciosa,
em busca do significado total. Aqui não há estática, como se observa em
Shakespeare
e Goethe. O admirável Gracchus, condenado a ser ouvinte do burgomestre de Riva,
assim como Kafka está condenado a nós, conclui esse fragmento inconclusivo
observando
que não pode prever a partida do navio da morte: "Meu navio não tem leme, e é
impulsionado por ventos que sopram nas regiões mais profundas da morte."
O génio de Franz Kafka parece ser menos um dote natural, ou alteridade
demoníaca, do que um habitante do raríssimo, o terceiro reino da aspiração. Que
Kafka é
um dos sábios indispensáveis aos três mil anos da tradição judaica não tenho
dúvida, embora a sua sabedoria só possa ser recebida da maneira como é expressa,
através
da ironia:
O fato de que existe apenas o mundo espiritual priva-nos da esperança e nos pro
picia a certeza.
$
40
*
rftecitec&iJ
MARCEL PROUST
De um lado, estava certo, quando associei tudo isso a ela, pois se não tivesse
caminhado por lá naquele dia... se não a tivesse conhecido, essas ideias jamais
teriam
sido desenvolvidas (a menos que o fossem por outra mulher). Mas, de outro,
estava errado, pois esse prazer que gera algo interior e que, em retrospectiva,
tentamos
associar a um belo rosto feminino, vem dos nossos sentidos: contudo, as páginas
que eu viria a escrever eram algo que Albertine, especialmente a Albertine
daqueles
dias, sem dúvida, jamais teria compreendido. Foi, entretanto, exatamente por
essa razão (e isso demonstra que não devemos viver em uma atmosfera
demasiadamente intelectual),
por ser tão diferente de mim, que ela me fecundou, através da infelicidade e até
mesmo, no início, através do simples esforço que eu era obrigado a fazer para
imaginar
algo diferente de mim mesmo.
Os anos perdidos, desperdiçados, que o narrador, Mareei, dedicou à paixão
possessiva por Albertine, amada que o traiu, incessantemente, com outras
mulheres, são
vistos, na conclusão de Em Busca do Tempo Perdido, como fonte da arte romanesca
do autor. Albertine "fecundou [me], através da infelicidade", dádiva irónica do
último
grande ficcionista ocidental, dentro da antiga, elevada tradição.
Proust é um génio cómico, mais sutil até do que James Joyce, embora,
propositadamente, mais limitado em escopo. Leopold Bloom, personagem de Joyce,
recusa-se a
ser devorado pelo ciúme, mesmo quando, em um dos episódios de Ulisses, contempla
Blazes Boylan transando com Molly, a mais infiel das esposas. Ciúme sexual em
Joyce
é piada sadomaso-quista, "elevação da recompensa ao estímulo", conforme disse
Freud. Em Proust, como em Shakespeare, o ciúme sexual é inseparável da
imaginação criadora.
Muito tempo após a morte de Albertine, quando já deixou de venerar-lhe a
memória, Mareei ainda prossegue na busca de cada detalhe da vida da amada na
condição de
lésbica.
Em Proust, amor autêntico só pode ser vivido em relação à própria mãe, o que
pode explicar por que Nerval era tão estimado pelo autor de Em Busca do Tempo
Perdido.
Amor carnal, para Proust, é sinónimo de ciúme sexual: para nós,
contrastivamente, realidade nada significa. Freud pensava que nos apaixonamos
para evitarmos a enfermidade,
mas Proust via o processo como uma descida ao inferno do ciúme. O ciúme sexual,
cómico para terceiros, é trágico para a própria pessoa, mas, em retrospectiva,
pode
ser transformado em algo precioso e exótico.
232
233
ri^d^íifcp
MARCEL PROUST
MARCEL PROUST
(1871-1922)
Marcel Proust e James Joyce, que, ao lado de Kafka e Freud, são os escritores
essenciais ao século XX, encontraram-se, certa vez, em um jantar parisiense, em
que
compareceram, também, Stravinsky e Picasso; o encontro ocorreu em maio de 1922,
meio ano antes da morte de Proust, e logo após a publicação da Segunda Parte de
Sodoma
e Gomorra e Ulisses. Joyce havia lido algumas páginas de Proust, mas não
detectara qualquer talento especial; Proust sequer ouvira falar de Joyce. O
aristocrático
Stravinsky ignorou ambos, e l^icasso ocupou-se de admirar as mulheres presentes.
Os relatos da conversa entre Proust e Joyce variam: decerto, Proust queixou-se
de
má digestão, e Joyce, de dores de cabeça. Esse é o único elo de que estou
ciente, entre Proust e Joyce, a não ser pela breve monografia escrita por Samuel
Beckett
- Proust (1931)-, em que o maior discípulo de Joyce estabelece para si um
armistício com Em Busca do Tempo Perdido.
Beckett continua a ser o grande crítico de Proust, mas recomendo, também, os
diversos estudos de Roger Shattuck, e a biografia definitiva - Marcel Proust: A
Life
(2000), de William C. Cárter. Não existe melhor exemplo, no século que acaba de
passar, da obra dentro da vida, em última análise, da obra constituindo a vida,
do
que o romance Em Busca do Tempo Perdido e Marcel Proust. Não surpreende a ideia
de os criadores de Charles Swann e Leopold Bloom terem como objeto de conversa
apenas
as suas mazelas físicas. Talvez Shakespeare, ressuscitado por um necromante,
pudesse escrever um diálogo para Swann e Poldy, cujo único ponto em comum é o
fato de
serem judeus - Poldy de um modo um tanto débil, embora, sendo filho de pai
judeu, se considerasse judeu, supostamente, porque Joyce, seu modelo, também
fosse um
exilado. Proust, que amava, profundamente, a mãe judia, foi batizado como
católico e jamais se considerou judeu.
Proust tinha imensa admiração por Balzac e Flaubert, mas se esquivava de sua
influência. As tragédias de Racine, os poemas de Baudelaire e a crítica da arte
(termo
aqui inadequado) praticada por John Ruskin contribuíram mais para Em Busca do
Tempo Perdido do que as tradições do romance francês. Especialmente Ruskin, cuja
Bíblia
de Amiens foi traduzida por Proust, pode ser considerado o principal precursor
de Proust, e a autobiografia inacabada de Ruskin - Praeterita - é, a meu ver, o
ponto
de partida do célebre romance proustiano. Com toda correção, o Ruskin de Proust
é, antes de tudo, um escritor sábio, e, embora a sabedoria de Proust, em último
caso,
rebele-se e supere a de Ruskin, como catalista, Ruskin é essencial a Proust. A
avaliação que faz Beckett da visão profética que Proust tem do tempo configura,
ainda,
involuntariamente, um excelente comentário sobre o precursor de Ruskin - Wordswordi -, a
respeito de quem Proust nada sabia.
O génio de Proust é imenso, quase shakespeariano, em sua capacidade de criar
personagens, embora Beckett seja extremamente perspicaz, ao comparar Proust a
Dostoiévski,
"que apresenta os personagens sem os explicar. Alguém poderia objetar que Proust
pouco faz além de explicar seus personagens, mas tais explicações são
experimentais,
e não demonstrativas. Ele os explica a fim de que possam aparecer como o são inexplicáveis". Na minha leitura, Beckett quer dizer que Proust, tanto quanto
Dostoiévski,
volta a Shakespeare, cujos personagens - Falstaff e Hamlet, Cleópatra e Lear,
Macbeth e lago -são, deveras, inexplicáveis. Tanto na comédia quanto na
tragédia, Proust
aproxima-se de Shakespeare, assim como o faz Dostoiévski, creio eu,
deliberadamente. Proust evoca Como Gostais e Noite de Reis, em sua visão
andrógina, e Hamlet
e Rei Lear, em sua visão trágica do tempo. Dostoiévski, com o velho Karamazov,
remete-nos a Falstaff e, com Svidrigailov e Stavrogin, insinua aspectos de lago
e
Edmundo, em Rei Lear. Voltarei a tecer comentários sobre a influência de
Shakespeare quando analisar a figura de Dostoiévski. Aqui, seguindo as ideias de
Beckett
a respeito de Proust, o dramaturgo da tragédia do tempo, invoco Shakespeare, o
verdadeiro mestre de Proust, assim como o foi de Dostoiévski. A mãe de Proust
era
versada em Shakespeare, e transmitiu ao filho o afeto que sentia pelo dramaturgo
inglês, conquanto Proust viesse a identificar em Fedra, de Racine, o modelo de
seu
amor pela mãe.
Shakespeare, que iniciou a carreira, basicamente, como dramaturgo de comédias,
tornar-se-ia o mestre único da tragicomédia, não fosse por Proust, que ocupa uma
segunda posição. Roger Shattuck ressalta a visão cómica de Proust; Samuel
Beckett, outro génio da tragicomédia, refere-se à "tragédia de Albertine",
querendo dizer
com isso que Proust considera trágico todo amor de natureza sexual: "Certamente,
em toda a literatura não existe estudo sobre o deserto de solidão e
recriminação,
a que os homens chamam amor, que seja apresentado e desenvolvido com falta de
escrúpulo tão diabólica." Beckett reforça esse julgamento severo, quando insiste
no
total distanciamento de Proust com relação a questões morais. A tragédia
proustiana, explica Beckett, e uma expiação do pecado original inerente ao
nascimento:
A tragédia afirma a expiação, mas não se trata da expiação miserável, relativa
ao rompimento codificado de um acordo local, arquitetado por velhacos para
ludibriar
tolos.
As palavras de Beckett poderiam se referir a Hamlet, ou a Rei Lear. Apesar de
ser um aficionado da comédia do ciúme sexual segundo Proust, sinto-me inclinado
a
concor-
234
235
dar com Beckett, e não com Shattuck: a comédia proustiana, assim como as "peçaspro-blema" de Shakespeare, posiciona-se apenas a um passo do abismo. Mas devo
aqui
me ocupar de Proust. Seu génio particular, propõe Shattuck, particulariza-se
como "intermitências", momentâneas suspensões de solidão. Tal princípio parece
por demais
amplo, e aplica-se, igualmente, a outros escritores. Como identificar o
esplendor e a sapiência exclusivos de Proust?
O personagem Mareei não viabiliza qualquer resposta a essa pergunta, ao menos
enquanto não se funde ao narrador, nas páginas finais do romance. Os críticos
admiram
o narrador, com toda razão, considerando-o um génio em termos de perspectiva,
pois permanece (avidamente) aberto a cada nova revelação dos personagens e,
assim,
aprende o ofício de*ficcionista. O inominado Mareei, protagonista, sofre as
agonias do amor e do ciúme (na prática, inseparáveis), mas, ironicamente, parece
incapaz
de aprender, até se fundir no narrador. Proust manipula a questão com imensa
destreza, mas o modelo é Dante, à semelhança da fusão final observada entre
Dante, o
Peregrino, e Dante, o poeta, no Paraíso.
Vale lembrar, ainda, o que Walter Pater chamou "momentos privilegiados" e
Joyce denominou "epifanias", elementos que tornaram Proust célebre. Beckett
identificou
11 desses momentos, definindo-os, mordazmente, como "fetiches"; Shattuck
classifica-os moments bienheureux. Os mais importantes, de acordo com Beckett,
são "As Intermitências
do Coração", que ocorrem entre o primeiro e o segundo capítulos da Segunda Parte
de Sodoma e Gomorra. Exausto e doente, o narrador chega a Balbec, pela segunda
vez,
e se dirige ao quarto do hotel:
Conturbação em todo o meu ser. Na primeira noite, sofrendo de palpitação
cardíaca, curvei-me, lenta e cautelosamente, para desabotoar as botas, tentando
controlar
a dor. Mal tocara o primeiro botão, meu tórax estufou-se, tomado de uma presença
divina, desconhecida, e estremeci em meio a soluços, lágrimas bro-tando-me nos
olhos.
O ser que viera em meu socorro, salvando-me da aridez do espírito, fora o mesmo
que, anos antes, em um momento de exaustão e solidão idênticas, em um momento em
que nada restava de mim, surgira e a mim mesmo me resgatara, pois esse ser era
eu mesmo, e algo mais que eu. Na memória, eu acabara de perceber, curvando-se
sobre
o meu cansaço, o rosto meigo, preocupado, decepcionado de minha avó, naquela
noite da nossa chegada; não era o rosto daquela avó cuja perda tão pouco
lamentei, o
que me causara perplexidade e remorso, e que com a qual nada tinha em comum,
exceto o nome, mas da minha verdadeira avó, cuja realidade viva, pela primeira
vez,
desde a tarde em que ela sofrera o derrame, no Champs-Elysées, eu agora
resgatava, em uma lembrança
total e involuntária. Essa realidade não existe
recriada pelo pensamento (caso contrário, todos
titânicos
seriam grandes poetas épicos); e, assim, em meu
seus braços, foi somente naquele momento - mais
para nós, a não ser quando
os homens envolvidos em embates
desejo incontido de atirar-me em
de um ano depois de ela ter sido
sepultada, devido ao anacronismo que tantas vezes impede a correspondência entre
o calendário dos fatos e o calendário dos sentimentos - que me cons-cientizei de
sua morte. Eu havia me referido a ela inúmeras vezes, e nela havia pensado, mas,
por trás das palavras e dos pensamentos, típicos de um jovem ingrato, egoísta e
cruel, jamais houvera algo que se assemelhasse à minha avó, porque, na minha
frivolidade, no meu amor pelo prazer, na minha familiaridade com o espetáculo da
sua
doença, guardei no meu interior apenas um potencial da memória do que ela fora.
Em qualquer momento determinado, a nossa alma tem apenas um valor mais ou menos
fictício,
a despeito do valioso património composto por seus bens, uma vez que tais bens,
em momentos alternados, são inalienáveis, sejam eles concretos ou imaginados no
meu caso, por exemplo, relativos não apenas à antiga estirpe dos Guermantes,
mas, o que é muito mais sério, à verdadeira memória de minha avó. Pois às
perturbações
da memória estão ligadas as intermitências do coração. É, sem dúvida, a
existência do nosso corpo, que podemos comparar a um vaso cujo conteúdo é a
nossa natureza
espiritual, que nos induz a supor que toda a nossa riqueza interior, as alegrias
do passado, todas as tristezas, permanecem, para sempre, em nosso poder. Talvez
seja igualmente incorreto supor que elas fogem ou retornam. Em todo caso,
permanecem em nosso interior, pois, na maioria das vezes, deixam de nos ser
úteis quando
se encontram em uma região desconhecida, onde até o que existe de mais comum
fica tomado de um outro tipo de memória, que impede a ocorrência simultânea das
mesmas
em nosso consciente. Mas, se o contexto das sensações em que são preservadas é
resgatado, elas adquirem a capacidade de expulsar tudo o que com elas for
incompatível,
de instalar em nós o eu que, originalmente, as vivenciou. A medida que o "eu"
que, subitamente, eu acabara de voltar a ser deixara de existir, desde aquela
noite,
tantos anos antes, quando minha avó me despiu após a minha chegada a Balbec, era
muito natural, não ao fim do dia que acabara de terminar, sobre o qual eu nada
sabia,
mas - como se o Tempo consistisse em uma série de linhas distintas e paralelas
-, sem qualquer solução de continuidade, imediatamente após a primeira noite em
Balbec,
muito antes que eu me agarrasse ao minuto em que minha avó se curvara diante de
mim. O meu eu de então, há muito desaparecido, estava, novamente, tão próximo
que
eu ainda parecia ouvir as palavras que acabavam de ser pronunciadas, ainda que
agora não passassem de
236
237
um fantasma, como um homem que, ainda sonolento, pensa ser capaz de ouvir os
sons do sonho que se esvai. Agora eu era, exclusivamente, o indivíduo que
buscara refugio
nos braços da avó, que tentara esquecer as tristezas sufocando-a com beijos,
aquela pessoa que deveria ter sido tão difícil para eu imaginar, quando eu era
um ou
outro dos que há algum tempo eu vinha sendo, assim como agora, para fazer o vão
esforço de experimentar os desejos e as alegrias de um daqueles que, pelo menos
por
algum tempo, eu deixara de ser. Lembrei-me de que, uma hora antes do momento em
que minha avó, vestida em sua camisola, curvara-se para desabotoar-me as botas,
enquanto
eu caminhava pela rua escaldante, ao passar pela confeitaria, percebi que jamais
poderia, na minha necessidade de sentir os braços dela em .volta de mim,
sobreviver
à hora que ainda faltava para o nosso encontro. E agora que essa mesma
necessidade fora revivida, eu sabia que poderia esperar horas a fio, que ela
jamais voltaria
a estar ao meu lado. Eu apenas acabara de descobrir isso porque, ao sentir minha
avó, pela primeira vez, viva, real, levando o meu coração quase a explodir, ao,
finalmente, encontrá-la, acabara de constatar que a perdera para sempre. Para
sempre a perdera; não conseguia entender, e lutei para suportar a angústia dessa
contradição:
de um lado, uma existência e um carinho que em mim sobreviveram conforme os
conheci, quero dizer, que foram criados para mim, um amor que em mim encontrou,
de modo
tão integral, o seu complemento, o seu objetivo, a sua constante estrela-guia,
que o génio de grandes homens, toda a genialidade que existiu desde o começo do
mundo,
seria menos valiosa para minha avó do que um só dos meus defeitos; e, de outro
lado, assim que revivi aquele contentamento, como se houvesse de fato ocorrido,
sentindo-o
crivado de certezas, latejando como uma dor recalcitrante, de um aniquilamento
que apagara a imagem por mim construída daquele carinho, destruíra aquela
existência,
eliminara, retrospectivamente, a nossa mútua predestinação, fizera de minha avó,
naquele momento em que eu a reencontrara como em um espelho, uma estranha a quem
o acaso permitira conviver alguns anos comigo, assim como o faria com qualquer
outra pessoa, mas para quem, antes e depois daqueles anos, eu nada fui e nada
seria.
Seja lá fetiche, epifania, ou o que o leitor quiser, o trecho anterior provoca
em mim uma agonia de culpa, no que toca aos meus entes queridos já mortos ou em
fase terminal. Não é fácil repelir a força desse longo parágrafo, mas somente o
distanciamento ensinado por Proust é capaz de transformar a dor sombria em
prazer
raro. Faz um ano que a avó do narrador faleceu, mas apenas agora ele sente a
mágoa causada pela realidade da ausência permanente. Quem já não teve uma
experiência
similar? E quem não se
arrepende da própria falta de bondade com os entes queridos já falecidos?
Contudo, não conheço qualquer outro trecho, em toda a literatura, que se
assemelhe a esse,
ao mesmo tempo em que fico atónito, ao constatar que um momento tão lugar-comum
possa se tornar tão original e despertar tanta criatividade. O génio de Proust
é,
precisamente, chegar a afirmar, com toda severidade: "uma vez que os mortos
existem apenas em nós, golpeamos a nós mesmos, quando insistimos em recordar os
golpes
que neles
desferimos".
Como categorizar essa força de Proust? Esse suposto sumo sacerdote da religião
da arte, na verdade, não é nada disso: em termos de universalidade e profunda
percepção
da natureza humana, ele é tão primordial quanto Tolstoi, tão sábio quanto
Shakespeare. A memória, involuntária ou voluntária, parece não vir ao caso; a
questão é
a cegueira de que necessitamos para prosseguirmos a nossa caminhada; porém, ao
recobrarmos a visão, indagamos se valemos o esforço envidado. Proust, que não é
moralista,
não é Cristo, nem Buda: não veio ao mundo para nos ensinar a viver, ou como ser
mais bondosos com aqueles que amamos, enquanto estiverem por aqui.
Enquanto Em Busca do Tempo Perdido se desenrola, esbarramos, cada vez mais,
nesses momentos luminosos (ou não), e estes nem sempre fazem parte do conjunto
de 11
a 18 momentos de memória, ou "ressurreição" do espírito. Surgem através de
algumas sentenças, às vezes, de uma só. Proust, conforme se sabe, pensava que o
sofrimento
erótico não tinha limite, que qualquer intrusão na nossa solidão prejudicava o
nosso pensamento, que só podemos nos concentrar na dor se a mantivermos à
distância,
e que a amizade ficava a meio caminho entre o cansaço e o tédio. Proust não nos
adula, mas a essência do autor não parece estar na espirituosidade nem no
desencanto.
Seu génio faz com que sejamos envolvidos por sua linguagem, de modo que, no
extremo, os momentos privilegiados são, simplesmente, aqueles em que temos a
felicidade
de estar lendo a sua obra.
238
239
SAMUEL BECKETT
A única busca fecunda é a escavação, a imersão, a contração do espírito, uma
descida. O artista é ativo, embora negativamente, esquivando-se da nulidade dos
fenómenos
extracircunferenciais, atraído ao fulcro do redemoinho.
O trecho acima é da monografia que Beckett escreveu sobre Proust (1931), mas
não descreve a situação de Proust, tampouco a condição da presença não
mencionada:
Joyce. Ouvimos acfui um extraordinário auto-reconhecimento, e o presságio da
grande obra a ser escrita por Beckett: a trilogia (Molloy, Malone Morre, O
Inominável),
Hotv It Is, Fim de Jogo, A Ultima Gravação de Krapp. Em tais escavações,
imersões, contrações e descidas, Beckett permanece dentro da circunferência do
eu, e descobre
seu génio da negação. A afinidade autêntica de Beckett é com Kafka, grande rival
da negativa.
Pode haver centro em um redemoinho? Quase todo protagonista de Beckett faz
lembrar o Caçador Gracchus (de Kafka), cujo navio da morte carece de leme.
Krapp, reproduzindo
sua última gravação, admite haver perdido a felicidade, mas ainda exulta ao
sentir o fogo que lhe arde no interior. A energia negativa, tanto em Beckett
quanto em
Kafka, remete-nos à aterrorizante "vontade de viver", em Schopenhauer, que,
cegamente, busca engendrar vida, seguir em frente, mesmo quando não se pode mais
fazê-lo.
Vem-nos à mente Pozzo, em Esperando Godof. "O parto é feito em cima de um
túmulo; a luz brilha um instante, e, então, volta a noite."
O pessimismo cósmico de Schopenhauer o aproxima do budismo, de um lado, e do
gnosticismo, do outro. Para Beckett, o protestantismo era uma mitologia morta,
mas
a sensibilidade do escritor sempre revelou um protestantismo sombrio. Se havia
centro no redemoinho, este era o protestantismo esvaziado de fé e esperança, mas
não
de caritas.
SAMUEL BECKETT (1906-1989)
O génio de Beckett era o de um retardatário dotado de uma percepção singular.
Na tradição continental europeia à qual se filiou, ao escrever em língua
francesa
grande parte de sua obra inicial, Beckett era herdeiro de James Joyce e Mareei
Proust, e, em menor escala, de Franz Kafka. Na tradição anglo-irlandesa
protestante,
ele surgiu após os irmãos Yeats: seu amigo, o pintor Jack Butler Yeats, e o
poeta-dramaturgo William Butler Yeats. Joyce, que para Beckett era uma espécie
de irmão
mais velho, e Proust, sobre quem Beckett escreveu uma notável monografia,
somados, haviam levado a termo o desenvolvimento do romance europeu como
expressão artística.
Ulisses, Finne-gans Wake e Em Busca do Tempo Perdido haviam conduzido a tradição
literária ao seu ponto de ruptura.
A trilogia de Beckett - Molloy, Malone Morre e O Inominável- configura um
passo à frente, e nada denominado (equivocadamente) Pós-modernismo conseguiu
alcançar
Beckett. O teatro de Ibsen, Pirandello e Brecht também chega a um ponto
culminante nas três grandes peças de Beckett: Esperando Godot, Fim de Jogo e A
Ultima Gravação
de Krapp. Depois de Beckett, voltamos ao passado literário, sejam quais forem as
nossas intenções. Beckett representa a concretização de algo talvez iniciado por
Flaubert, e que não poderia ir além de How ItlseA Ultima Gravação de Krapp.
Mas a concretização final de Flaubert, de Proust, ou mesmo de Kafka não me
interessa tanto quanto a maneira como Beckett finaliza James Joyce. Embora
Murphy (composto
em 1935-36, publicado em 1938) seja resultado do trabalho de um homem de menos
de 30 anos, e muito influenciado por Joyce, trata-se de um romance perene, de
génio,
sendo também o livro mais engraçado de Beckett. Grandes romances cómicos são
raros; Murphy divertiu-me imensamente, a primeira vez que o li, há mais de meio
século,
e ainda me alegra; portanto, aqui escreverei sobre esse romance. Lem-bro-me de
compará-lo a uma das primeiras comédias de Shakespeare, Trabalhos de Amor
Perdidos:
as duas obras são grandes celebrações da linguagem. Beckett, assim como
Shakespeare, descobre o potencial de seus recursos verbais, e concede-lhes
irrestrita liberdade
de ação.
Beckett escreve Murphy em Londres, enquanto se submete a sessões de análise
três vezes por semana, ao mesmo tempo, sofrendo e desfrutando da solidão. Lido,
em
ordem cronológica inversa, a partir de Watt, da trilogia e How It Is, Murphy é
um romance surpreendentemente tradicional, escrito em inglês, com efeito, no
inglês
de James Joyce. Trata-se de um livro a partir do qual Beckett haveria de crescer
e se desen240
241
Binah
SAMUEL BECKETT
volver, mas, para muitos leitores comuns, algo valioso e belo é deixado para
trás em Murphy. Beckett tinha de partir para novas realizações, mas como eu
prezo o
meu velho exemplar de Murphy, adquirido e lido, pela primeira vez, em 1957! A
alegria e a surpresa proporcionadas pela releitura do romance não têm diminuído
em
todos esses anos.
Só mesmo Beckett poderia basear a estrutura de uma narrativa tão desregrada
como a de Murphy em Jean Racine, cujas peças o jovem erudito Beckett, com grande
aplicação,
ensinara. Os personagens de Racine são levados por forças irresistíveis, assim
como os de Murphy. Trata-se de um salto, no tempo e no espaço, da corte de Luís
XTV,
a Londres e Dublin, em meados da década de 1930, mas o jovem e ágil Beckett
aprazia-se dessas incongruências. Também se aprazia de atribuir sentidos
metafóricos
a uma história vulgar: Baruch Spinoza une-se a James Joyce, como génios que
guiam Murphy. O amor de Murphy por Murphy substitui o amor intelectual de
Spinoza por
Deus, e, ao longo do romance, faz repercutir, de modo plangente, a proposição
mais expressiva de Spinoza: devemos aprender a amar Deus jamais esperando a
contrapartida
do seu amor (que pode ser considerada a menos norte-americana de todas as
doutrinas).
Dotado de delicioso obsoletismo, Murphy faz uso de um narrador que jamais
hesita em interromper e interpretar a narrativa, enquanto o pobre Murphy, o
protagonista,
possui, comparativamente, quase nenhuma força de vontade. Murphy é (de certo
modo) um herói esquizofrénico, à mercê de um narrador raciniano. Mas esse
narrador,
na verdade, é muito mais joyciano, e reflete o esforço de Joyce, em Ulisses, ao
se distanciar tanto de Stephen quanto de Poldy. Em Murphy, bela farsa-pastelão,
Beckett
luta para se distanciar do protagonista. O melhor biógrafo do escritor, James
Knowlson, expressa bem a questão:
Acima de tudo, Murphy exprime, de modo radical e bastante focalizado, o impulso
de auto-imersão, solidão e paz interior, cujas consequências Beckett tentava
resolver,
em sua vida pessoal, através da psicanálise.
- Damned to Fame (1996), 203
Assim como Joyce consegue separar-se de Stephen, mas não de Poldy (apesar da
arte e do esforço), Beckett confessou que a morte de Murphy tocou-o muito de
perto:
ele pretendia "manter a morte sob controle, prosseguir friamente, e concluir o
mais rápido possível. Tal opção parecia-me consistente com o tratamento dado a
Murphy
ao longo da narrativa, mescla de compaixão, paciência e troça". Conforme o
próprio Beckett sabia, a coisa não transcorre bem assim, e o autor subsiste como
sobrevivente
de Murphy, na verdade, um Murphy que sobrevive. Mas o leitor anseia por saborear
o personagem e o livro; eis o esplêndido parágrafo de abertura:
O sol brilhou, sem alternativas, sobre nada de novo. Murphy mantinha-se longe do
sol, como se estivesse livre, em uma casa em West Brompton. Ali, ao longo de
cerca
de seis meses, ele tinha comido, bebido e dormido, vestira-se e se despira, em
uma gaiola de tamanho médio, voltada para o noroeste, com vista desobstruída das
gaiolas
de tamanho médio voltadas para o sudeste. Logo teria de fazer novos planos, pois
as casas estavam condenadas. Logo teria de se preparar para começar a comer,
beber,
dormir, vestir e se despir em algum lugar estranho.
A primeira sentença é célebre, e Murphy não está livre. Sete cachecóis
prendem-no à cadeira de balanço. Como pode ele escapar do próprio coração?
"Preso e obrigado
a atuar, era como Petrouchka dentro da caixa." Somos informados que Murphy,
recentemente, estudara em Cork, com o grande pitagoriano Neary, um dos dois
deleites
do livro, o outro sendo o seu pupilo, Wylie. Agradáveis são, também, Célia, uma
prostituta irlandesa apaixonada por Murphy, e o avô paterno de Célia, Willoughby
Kelley. Assim como Beckett (naquela fase) era obrigado a tolerar pressão
materna, para que buscasse algum emprego lucrativo, Murphy é instado por Célia a
fazer o
mesmo - tudo em vão, até que ela ameaça deixá-lo. Em retrospectiva, o fato de
ceder à pressão de Célia marca o início do fracasso de Murphy.
Antes do advento desse declínio, Beckett leva-nos a um local heróico, a
Agência Central dos Correios, em Dublin, onde MacDonagh e MacBride, Connolly e
Pearse e
demais mártires empreenderam a derradeira resistência à Grã-Bretanha. Mas agora
trata-se de uma cena em que o mestre pitagoriano Neary, louco de paixão, bate a
cabeça
contra as nádegas da estátua do herói celta agonizante, Cuchulain, na tentativa
de arrebentar os miolos. Escapando da Polícia Civil por ação do aluno Wylie, que
o declara insano, o sábio é conduzido pelo discípulo a um bar de subsolo, e
revivido à base de brandy. Então, temos o relato do desespero da sua paixão:
Nem bem Miss Dwyer, perdendo a esperança de se fazer notar pelo tenente-avia-dor
Elliman, fez de Neary o mais feliz dos homens, ela e a terra se tornaram uma só,
a terra dantes mero cenário àquela bela figura. Neary escreveu a Herr Kurt
Koffka, exigindo uma explicação imediata. Ainda não recebera resposta.
Pedra de toque da comicidade, eis Samuel Beckett, por maior complexidade que
ele viesse a imprimir à sua arte. Desiludido pela assimilação da figura pela
terra,
Neary apaixona-se por Miss Cunihan, que se declara fiel a Murphy, agora em
trânsito para Londres. Muitas desventuras mais tarde, já quando ninguém ama
ninguém, o
trio maravilhoso - Neary, Wylie e Miss Cunihan - transfere-se para Londres,
reúne-se a
242
243
Célia e, juntos, vão identificar os restos mortais carbonizados de Murphy,
vítima (se assim pudermos chamá-lo) de um incêndio ocorrido no manicômio onde
trabalhava
de atendente. Mas, em Murphy, enredo é nada - linguagem é tudo. Quem, até o dia
da morte, pode esquecer "as nádegas quentes e amanteigadas de Miss Cunihan"? E,
de
todas as alusões de Beckett à dupla advertência de Santo Agostinho, no sentido
de evitarmos o desespero e a exultação, pois um ladrão foi salvo e o outro,
condenado,
o que pode superar a brincadeira pitagoriana de Neary?
- Sentem-se, os dois, aqui, à minha frente - disse Neary - e não se desesperem.
Lembrem-se que não há triângulo, por mais obtuso, por cujos vértices infelizes
não
passe a circunferência de algum círculo. Lembrem-se também que um ladrão foi
salvo.
James Joyce, grande admirador de Murphy, sabia de cor o extraordinário
parágrafo da penúltima seção, em que as cinzas de Murphy são espalhadas no
assoalho de um
bar:
Algumas horas mais tarde, Cooper retirou o pacote das cinzas do bolso, onde,
no início da noite, as depositara, por medida de segurança, e atirou-o, com
raiva,
no homem que tanto o ofendera. O pacote bateu na parede, estourou e caiu no
chão, onde, imediatamente, tornou-se objeto de dribles, passes, marcação,
chutes, socos,
empurrões e até de algum reconhecimento, segundo o código de cavalheiros.
Chegada a hora de fechar, o corpo, a mente e a alma de Murphy haviam sido,
generosamente,
distribuídos pelo chão do bar; e antes que mais um dia acinzentasse a terra,
haviam sido varridos, junto com a areia, a cerveja, pontas de cigarro, cacos de
vidro,
palitos de fósforo, cusparadas e vómito.
Esse trecho é de uma verve terrível, e maravilhosa. Beckett consegue redimirse da condição de retardatário, ao aduzir um Purgatório ao Inferno de Kafka.
Juntos,
Kafka e Beckett perfazem dois terços de um Dante do século XX, proporção máxima
a ser alcançada, pois o Paraíso já não podia ser escrito.
LUSTRO 6
Molière, Henrik Ibsen, Anton Tchekhov, Oscar Wilde, Luigi Pirandello
F
ormado por cinco grandes dramaturgos, tragicômicos do espírito, o grupo aqui
reunido possui uma sabedoria menos elevada do que os santos da literatura
situados no
quinto Lustro. A luz é refratada com grande intensidade através do prisma da
tragicomédia, a fim de revelar a inacessibilidade da verdade. Em Molière, a
hilaridade
aumenta na proporção em que diminui a verdade, enquanto a amargura de Ibsen
atinge a apoteose em Hedda Gabler, que é tão Ibsen quanto o são Solness, o
arquiteto,
e Rubek, o escultor. Tchekhov, o mais humano dos autores depois de Shakespeare,
compartilha conosco o amor pelas três irmãs, ao mesmo tempo em que, implacável,
permite
que desperdicem suas vidas. Em farsas da sociedade, que exaltam, de modo
brilhante, o superficial, Wilde não concede qualquer amargura ou verdade
interior. Em Pirandello,
a tradição da sofística siciliana se estende ao teatralismo hamle-tiano de
Henrique PVe Seis Personagens à Procura de um Autor. Esses cinco dramaturgos
maravilhosos
estão à procura de um autor que está sempre ausente: a verdade que escapa à
representação.
244
245
MOLIÈRE
Senhor, eis que o assunto é delicado;
O fogo da poesia é sempre amado.
A alguém inominável eu disse, um dia,
Falando em poemas de sua autoria,
Que homens de bem deviam se conter
No que concerne à ânsia de escrever;
Que convém controlar a propensão
De expor a diminuta vocação;
E que, ao exibir a obra de arte,
- ¦¦•
Muitas vezes, do bobo é a nossa parte.
As palavras são de Alceste, protagonista de O Misantropo, com elas cativandome o coração, pois expressam o meu sofrimento diário, ao ser inundado de má
poesia
(a contragosto). Por ser um satirista, Alceste não desperta o fascínio da
maioria dos críticos de Molière, que se melindram com os excessos das impagáveis
tiradas
do misantropo. Mas, vale lembrar, críticos não costumam ver com bons olhos
personagens dramáticos ambivalentes, e Alceste, dotado de fervorosa sinceridade,
proclama
a própria autenticidade com demasiada veemência, sendo incapaz de enxergar o seu
intenso amor-próprio e excessivo egocentrismo.
É possível considerar Alceste um Hamlet cómico, que, ao contrário de Hamlet,
não tem o menor senso de humor. Todavia, Hamlet, mesmo na loucura, não atua como
bobo;
Alceste, às vezes, o faz. Porém, mesmo nesses momentos, Alceste preserva uma
contumaz dignidade estética.
O génio cómico de Molière é tão absoluto quanto sutil: Alceste, quando bem
representado, é cómico, mas, se houver uma verdade, e se for plausível
representá-la
no palco, Alceste pode muito bem encarnar um aspecto nítido dessa verdade. Tanto
quanto Shakespeare, Molière iniciou compondo farsas e desenvolveu-se em um
mestre
da comédia intelectual. Aí termina a comparação: Molière, a despeito das
ambiguidades de Domjuan, não procederia a escrever tagédias.
A vida interior de Shakespeare permanece desconhecida; a de Molière, ao que
tudo indica, foi extremamente infeliz. Era uma figura melancólica e, segundo
consta,
um marido enganado, além de depender, totalmente, da proteção do Rei Sol, Luís
XIV, que, felizmente, era dotado de apurado gosto literário. De um modo bastante
complexo,
Molière está sempre presente em suas comédias, e talvez ele fosse mais Alceste
do que o próprio Alceste.
MOLIÈRE QEAN-BAPTISTE POQUELIN)
(1622-1673)
Depois de Shakespeare, os maiores dramaturgos ocidentais são Molière e Ibsen.
Racine, Schiller, Strindberg e Pirandello têm os seus adeptos, e Racine,
particularmente,
é um artista excepcional, mas Molière parece ser a única alternativa válida a
Shakespeare, o que não significa que alternativas a Shakespeare sejam
necessárias.
Tanto quanto a de Shakespeare, a personalidade de Molière nos é desconhecida. No
mais das vezes, temos descrições de Molière, por parte de inimigos moralistas, o
que não nos interessa. A auto-representação em Ensaio em Versalhes contém uma
ironia heróica, e estabelece fascinante contraste com Hamlet ensaiando os
atores, ou
com Peter Quince dirigindo o indirigível Bottom.
De modo geral, é possível afirmar que as melhores comédias de Molière não
transpõem a fronteira da tragicomédia porque o autor, em absoluto, não faz uso
de personagens
normativos (à exceção da presença implícita do deus mortal, Luís XTV). Até as
figuras mais admiráveis por ele construídas são crivadas de defeitos; a mais
admirável
de todas é Alceste, o misantropo, tantas vezes malhado por críticos que deveriam
ser mais avisados. Admito que Alceste careça tanto de humor quanto de amor, mas
é um grande satirista, dotado de inteligência moral superior, apanhado em uma
comédia de génio, o génio de Molière.
Molière não permite que seus personagens se desenvolvam, paradoxo no qual ele
aprisiona Alceste. Toma-se possível perceber, mais uma vez, por que Voltaire,
insensatamente,
considerava Shakespeare um bárbaro: Hamlet é incapaz de dizer um único verso sem
crescer enquanto personagem. Embora mais jovem, Molière foi contemporâneo de
Pierre
Corneille (1606-1684) e apoiou o início da carreira de Jean Racine (1639-1699).
A corte de Luís XIV abrigou os três dramaturgos, os dois trágicos heróicos e o
surpreendente
cómico, cujas peças são inteiramente desvinculadas da glória do Império Romano.
Um modo de apreender o génio singular de Molière é ler um pequeno livro, sábio e
sutil, escrito pelo notável ficcionista Louis Auchincloss. O estudo, intitulado
La Gbire: The Roman Empire of Corneille and Racine (1996), não faz menção a
Molière,
nem deveria fazê-lo, mas intriga-me a possibilidade de uma relação entre o
impulso de autenticidade evidente em Alceste e a esplêndida definição proposta
por Auchincloss
para Gbire.
Gbire pode ser definida como o elevado ideal que o herói (e, mais raramente,
a heroína) estabelece para si mesmo, e que ele acredita ser seu destino ou
missão
no
246
247
mundo. Gloire deve ser defendida a todo custo, seja com a própria vida ou com a
vida de terceiros, neste caso, não importa em que quantidades. (4)
Não acredito que a busca de Alceste seja uma paródia a Comeille e Racine, mas
uma redefinição cómica de Gloire, enquanto o Dom Juan de Molière exprime a
transformação
de Gloire em uma vertente erótica, que oscila, tropegamente, entre comédia,
sátira e uma espécie de tragédia. Em 30 anos de teatro, Molière compôs apenas
sete peças
dignas de seu génio: A Escola de Mulheres, As Preciosas Ridículas, O Avarento, O
Burguês Fidalgo e a grande tríade - Tartufo, Dom Juan e O Misantropo. Em que
pese
o apoio e a proteção do Rei Sol, Tartufo foi proibida e Dom Juan suspensa após
15 apresentações. A ansiedade de Shakespeare com respeito à autoridade,
obviamente,
levou-o a abandonar Tróilo e Créssida (que jamais foi encenada), mas e se as
duas partes de Henrique IV, peças em que consta a grande figura de Falstaff,
houvessem
sido impedidas de ir à cena, e o mesmo ocorresse com António e Cleópatra! Será
que Shakespeare teria vingado? Hipócritas religiosos, cheios de rancor por terem
sido
objeto da sátira de Molière, prejudicaram muito a carreira do dramaturgo. James
Joyce estava certo quando, em Finnegans Wake, expressou inveja do público de
Shakespeare,
no Teatro Globe. Molière, cujos objetivos eram tão distintos, muito deveria
àquele público. Shakespeare escreveu 39 peças, dentre as quais, a meu ver, 24
são obras-primas.
Frustrado, Molière não se arriscou a compor outros Tartufos e Dom Juans, e
desperdiçou o seu talento em peças para a diversão da corte, acompanhadas de
música de
bale, composta por Lully.
Entendo que Molière criou três personagens que lhe exemplificam, claramente, o
génio: Tartufo, Dom Juan e Alceste. Em Tartufo, o dramaturgo atuava como Orgon;
em Dom Juan, como Sganarelle; somente em O Misantropo reservou para si o grande
papel-título. Por que não atuou como Tartufo ou Dom Juan? Parece ter havido uma
certa
ansiedade de atuar, um receio de se expor aos muitos inimigos. A semelhança de
Alceste, às vezes chamado de Quixote da sinceridade, Molière tinha liberdade
para
atuar sem qualquer inibição. Essa distribuição de papéis merece reflexão: como
ficaríamos apreensivos, se o próprio Shakespeare houvesse desempenhado o papel
de
Hamlet, e não do Fantasma. Terá Molière representado Alceste como uma crítica
sublime à figura do próprio dramaturgo?
Richard Wilbur, cujas versões de Molière são as melhores e mais encenáveis em
língua inglesa, observa que a intensidade histriónica do protagonista é uma
tentativa
desesperada de "acreditar na sua própria existência", noção que parece aplicável
a Dom Juan, mas não a Alceste. O mesmo pode ser dito no que toca à hipótese,
defendida
por W. G. Moore, de que Alceste não tem consciência da própria necessidade de
"reconhecimento, favorecimento, distinção", premissa perfeitamente válida para Dom Juan, mas
nem tanto para Alceste/Molière, cuja eminência como satirista/dramaturgo exige o
reconhecimento do público, o favor da crítica e a distinção do Rei. O comentário
de Ramon Fernandez ainda procede: "Alceste é um Molière que perdeu a noção do
cómico."
A arte do satirista não é inteiramente adequada ao teatro cómico. A sociedade é
insana, e se Alceste, assim como Swift, está contaminado por aquilo que ele
mesmo
critica, podemos ter aqui, na prática, uma advertência de Molière para si mesmo.
Jamais vi Molière encenado em Paris; nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha, as
três grandes peças do dramaturgo costumam ser dirigidas em um ritmo
demasiadamente
lento, o que também ocorre com as comédias de Shakespeare. Dom Juan, Tartufo e O
Misantropo não são farsas, tampouco o são Como Gostais, Muito Barulho por Nada e
Noite de Reis, mas a encenação de todos esses textos deve fluir com vigorosa
energia, com toques absurdos e a erupção de forças reprimidas. O Misantropo e
Noite
de Reis, especialmente, são textos que devem zunir diante de nós, forçando-nos a
um dispêndio comparável de energia, a fim de acompanharmos a ação. Nada há mais
representativo do génio de Molière do que a energia demoníaca de Alceste,
confundida por críticos moralistas como histeria:
Não é só este homem, é a humanidade, Que só age com interesse e vaidade; Gabamse da verdade, honra e justiça, Mas mentem, trapaceiam, sem preguiça. É demais a
maldade
do humano; Deixemos a selva e os chacais do engano. Sim! Raça traiçoeira e
ignara, Jamais vereis de novo a minha cara!
O reduzido consenso crítico no caso de O Misantropo é comparável ao de Hamlet.
Somos todos misantropos com relação a nós mesmos. Para muitos, Alceste é apenas
um monstro da vaidade, como Dom Juan, ou mesmo o diabólico Tartufo. No entanto,
algum outro personagem da peça será preferível a Alceste? Sempre fico atónito
quando
moralistas académicos me dizem que Falstaff é perverso. O que pretendem com tal
afirmação? Quem, nas duas partes de Henrique IV, é menos perverso do que Sir
John?
Molière, assim como Shakespeare, é um realista moral, e mestre do
perspectivismo. Um satirista, confinado a uma peça teatral, há de se tornar um
maníaco: basta pensar
em Timão de Atenas, versão apocalíptica de Alceste, ou, antes de Timão, em
Mercucio, de
248
249
Romeu e Julieta, e Jacques, de Como Gostais. O exemplo extremo é a apoteose do
azedume, Tersites, de Tróilo e Créssida. O Dom Juan de Molière, engolido pelo
fogo
do Inferno, não sofre tanto o destino do devasso, mas a condenação do dramaturgo
satiris-ta. Para Molière, o destino de satirista se tornou um longo martírio,
por
haver criado Tartufo, príncipe dos hipócritas carolas, que deveria ser
ressuscitado para concorrer à presidência dos Estados Unidos.
Como estudioso amador da religião norte-americana, adoro Tartufo, cuja
presença enfeitaria o já refulgente Senado dos Estados Unidos, e cujo desempenho
propiciaria
fama e prosperidade como "televangelista". Eis a sua entrada triunfal,
propositadamente
adiada, na segunda cena do terceiro ato:
•*
Preparai mi'a camisa de silício,
Rezai, Laurent, aos céus pio meu suplício.
Agora dirijo-me até a prisão,
P'ra dividir moedas com o irmão.
"
Pouco tempo depois, o saudável e lascivo Tartufo é visto bolinando a tola
Elmira, esposa do nobre que o protege, ao mesmo tempo em que pede mais graças
aos céus,
para, em seguida, apropriar-se da fortuna de Orgon, marido de Elmira; Orgon
merece estudo aprofundado, e, com o devido respeito, discordo da análise de
Richard Wilbur,
de que o personagem seja vítima do declínio de autoridade e vitalidade sexual
típicos da meia-idade, recorrendo ao sadismo e à intolerância como uma espécie
de compensação,
sob a tutela de Tartufo. A saúde psicológica de Orgon está bem mais comprometida
do que Wilbur sugere, e, com relação a Tartufo, o personagem parece demonstrar
uma
transferência que ilumina os ensaios clínicos de Freud sobre transferência
psicanalítica. Tartufo deseja, ardentemente, Elmira (um desejo sincero, sua
única autêntica
predile-ção), e o débil Orgon exibe por Tartufo um desejo reprimido. Quando
Orgon grita para a filha "Casa-te com Tartufo, mortifica a tua carne!",
percebemos o
território em que nos encontramos. Se Orgon, embaixo da mesa, não escutasse a
precisa avaliação que dele faz Tartufo, a mesma tornar-se-ia profética:
Por que nos preocuparmos co' o sujeito? Por dia está mais tolo; não tem jeito.
Aqui achar-nos, seria felicidade; Vendo o pior, duvida da maldade.
Embora o deus tenha de descer na máquina, pela interseção do omnisciente e
benigno Rei Sol, dispensando salvação a todos e preservando Tartufo ao género da
comédia,
seria desejável que o tão pressionado Molière pudesse lidar com tais questões de
modo diferente. Na literatura, como na vida, os Tartufos triunfam, conforme o
génio
de Molière bem o sabia. A derrota de Tartufo, assim como a destruição de Dom
Juan, exige intervenção divina. Por isso O Misantropo é a jóia de Molière, a
demonstração
mais pura de seu génio cómico. Alceste rejeita a única sociedade capaz de apoiálo, e parte para se arriscar na loucura da solidão. Sabemos que há de retornar,
sem
dúvida, para resguardar a própria sanidade escrevendo comédias, e talvez se
dedique à arte dramática também, de vez que tem talento inato. Se o vício é rei
(embora
o próprio Rei seja a virtude absoluta), resta apenas a loucura da arte.
250
251
apertando as mãos]. Ah, por que você não completou o trabalho! Por que não me
fuzilou, no momento da ameaça! HEDDA. Pois é... Eu tenho mesmo horror a
escândalo.
LÕVBORG. É, Hedda; no fundo, você é mesmo covarde. HEDDA. Muito covarde.
•*
A covardia de Hedda, tanto quanto a de Ibsen, tinha caráter social: nenhum dos
dois se atrevia a escandalizar os vizinhos. Se Lõvborg é o rival maligno,
Strindberg
é a eterna vítima de Hedda. Ela não dorme com ele, tampouco o executa, mas o
destrói de todo modo. Isso, porém, não nos incomoda demais: ele não é Otelo ou
António,
mas Hedda tem lago e Cleópatra dentro de si, e seu auto-sacrifício niilista tem
um fascínio infindável.
Assim como Anna Karenina está para Tolstoi e Emma Bovary está para Flaubert,
Hedda está para Ibsen - mas com uma intensidade muito, muito maior. Se
misturarmos
Hedda Gabler e Peer Gynt em uma única consciência, e acrescentarmos Brand ao
caldo, com uma pitada do Imperador Juliano, o Apóstata, chegamos a uma
aproximação de
Henrik Ibsen. Solness, Rubek e os demais são apenas instantâneos de Ibsen: sua
alma está com os destruidores do mundo, e seu verdadeiro amor é a viperina
Hedda.
Muito me agrada que Hedda tenha se tornado heroína da causa feminista: isso me
faz sugerir que Iago seja mulher e, portanto, merece um lugar no panteão. Hedda
seria prisioneira de qualquer corpo - masculino ou feminino -, porque nada
poderia ser suficientemente bom para a filha do General Gabler, e nada vem do
nada.
O génio de Ibsen, tanto quanto o de Hedda, é niilista: podemos esquecer o
Ibsen à la Arthur Miller, o ferrenho reformador social. Hedda, temerosa da
sociedade,
não pretende reformá-la. Faria com ela uma fogueira, se pudesse, mas tem as suas
limitações; por conseguinte, leva para a fogueira tão-somente Lõvborg, ela mesma
e a criança que traz no ventre. Cabe a suposição de que seu último pensamento,
no instante em que dispara contra si a arma, tenha sido uma vontade de atear
fogo
aos cabelos de Thea. Ibsen, extraordinário leitor de Shakespeare, percebera em
lago a piromania.
CÍkD dè& C§k£
HENRIK IBSEN
(1828-1906)
"Sempre há duendes nos meus escritos": Ibsen falando de Ibsen. Definindo o
próprio génio como pertencente ao mundo espiritual, o maior dramaturgo do
Ocidente desde
Shakespeare refuta a noção repisada de ter sido o Arthur Miller do seu tempo.
Abro um exemplar do mais recente Companion to Ibsen e encontro artigos sobre
"Ibsen
e o problema do teatro realista" e "Ibsen e o feminismo". Por que não há estudos
sobre "Ibsen e orientalismo" ou "Ibsen e os estudos inuítes sobre o
lesbianismo"?
Por que não "Ibsen e a grande mídia"?
Voltemos ao ponto de partida: os duendes. Todos conhecemos dois ou três:
mulheres e homens destrutivos e maldosos, que jamais crescem, e que se fazem
passar por
carismáticos, ou dínamos sexuais. É mais frequente conhecermos (ou somos, nós
mesmos) duendes limítrofes. Ibsen, que não era pessoa das mais amáveis,
comportava-se,
alternadamente, como duende limítrofe e duende total. Basta uma visita à casa
sombria e escura de Ibsen, em Oslo, para termos a sensação de que morar ali dois
ou
três dias causaria depressão clínica em qualquer indivíduo. Contemplando a
escrivaninha de Ibsen, estremeci ao lembrar-me de que sobre a mesma ele mantinha
um escorpião
dentro de um vidro, e que se divertia alimentando-o com frutas frescas.
Nem todos os duendes são génios, tampouco são duendes todos os génios. Ibsen,
conformista social, tinha o talento de extrair, do outro lado da fronteira,
energia
de duende. Seus grandes personagens imitam o criador nessa empreitada no mundo
dos espíritos: Brand, o Imperador Juliano, Peer Gynt, Hedda Gabler (mistura
maravilhosa
da Cleópatra e do lago shakespearianos), Solness, o arquiteto. Quanto aos
demais, já os analisei em outros estudos; aqui focalizo Solness, incluindo,
também, um
olhar final sobre Rubek, o mestre escultor, substituto de Ibsen na última peça
escrita pelo dramaturgo, Quando Nós Mortos Ressurgimos (1899). No ano seguinte,
Ibsen
sofreu o primeiro derrame, e nada mais escreveu, conquanto vivesse até 1906.
Nos dias atuais, é preciso um certo esforço para resgatar Ibsen, mesmo porque
muitos dos que dirigem e atuam em suas peças pensam ser a sua obra do mesmo
estofo
que As Feiticeiras de Salém e Todos Eram meus Filhos. Dois irlandeses que o
admiravam, George Bernard Shaw e James Joyce, tinham percepções bastante
diferentes a
seu respeito; a redução praticada por Shaw triunfou, e ainda hoje nos acompanha.
Joyce, assim como Henry James e Oscar Wilde, via Ibsen como, de fato, ele era:
um
Shakespeare do norte, o único dramaturgo pós-shakespeariano capaz de inovar,
criando o seu próprio método trágico. Em 1855, aos 27 anos, Ibsen fez uma
palestra,
em Bergen,
252
253
intitulada "A Influência de Shakespeare na Literatura Escandinava". Eu teria
satisfação em ler o texto da conferência, mas, pelo que consta, Ibsen o
destruiu. Shaw,
que, ao mesmo tempo, temia e abominava Shakespeare (por motivos óbvios), cometeu
o absurdo de colocar Ibsen acima do dramaturgo inglês, porque o Ibsen de Shaw
era,
antes de mais nada, um demolidor de ícones idealistas:
Ibsen provê o que falta em Shakespeare (...) suas peças nos são muito mais
importantes do que as de Shakespeare (...) são capazes de nos magoar,
cruelmente, e de
nos encher de esperanças, seja quanto à possibilidade de escaparmos da tirania
do idealismo, seja quanto às visões de uma vida mais intensa no futuro.
Tais palavras não se aplicam a Ibsen, mas a Homem e Super-homem, ou a Santa
Joana. O Ibsen de Shaw é uma chibata para bater em Shakespeare, e não
corresponde
à relação do próprio Ibsen com Hamlet e António e Cleópatra. James Joyce,
resenhando Quando Nós Mortos Ressurgimos, em 1900, esclareceu a relação entre
Ibsen e a
Era do Esteticismo, de Walter Pater:
Diante de algum dito aleatório a mente é torturada por alguma questão, e, em
meio a um relâmpago, extensas regiões da vida surgem à vista, mas a visão é
momentânea.
São essas as epifanias negativas de Ibsen, ovelhas negras, ou duendes que se
contrapõem aos momentos privilegiados de Pater (vide a discussão sobre Pater).
Hamlet
pensa com demasiada clareza, toma conhecimento da verdade da nossa condição,
ressuscita e, então, morre, o que é o máximo que a verdade nos permite fazer,
contrariamente
a Shaw. "Viver é combater duendes no coração e na mente; escrever é submeter-se
a um julgamento diante de si mesmo." As palavras são de Ibsen, mas poderiam ser
de
Hamlet, se o Príncipe da Dinamarca houvesse se dedicado a estragar peças.
O Arquiteto Solness poderia adotar o lema de Nietzsche: "O que não me
destrói, revi-gora-me." A epígrafe seria irónica, pois o(a) jovem duende Hilde
Wangel, na
verdade, destrói o substituto de Ibsen, o arquiteto Halvard Solness, que,
supostamente, tem 64 anos, a idade de Ibsen, em 1892, quando a peça foi escrita.
Passada
uma década, chega Hilde, que tem menos de 23 anos, com o intuito de estabelecer
o seu reinado, que, na prática, implica o sparagmos de Solness, que se espatifa
ao
cair de uma elevada torre, por ter ficado tonto ao assistir, do alto, às
traquinagens de Hilde. A cena pode parecer ridícula, mas Ibsen consegue realizála a contento.
Seu génio faz da sua maior limitação um ponto forte, pois, fundamentalmente, o
(a) duende Hilde e o duende limítrofe Solness
HENRIK IBSEN
são a mesma pessoa. Mais uma vez, Shaw se equivoca: Ibsen, ao contrário de
Shakespeare, coloca apenas ele mesmo no palco. Essa hipótese foi demonstrada,
com autoridade
e justiça, por Hugo von Hofmannsthal, em 1893, no ensaio "O Povo no
Teatro de Ibsen".
Hofmannsthal inicia com o comentário de que ninguém faria uma palestra sobre
"O Povo no Teatro de Shakespeare", porque "no drama shakespeariano não existe
nada
se não pessoas", ao passo que, "em Ibsen, todo o debate, o entusiasmo e o
repúdio estão quase sempre ligados a algo externo aos personagens - ideias,
problemas,
perspectivas, reflexões, atmosferas".
Contudo, prossegue Hofmannsthal, existe nas peças de Ibsen uma pessoa: "alguma
versão da espécie humana, bastante complexa, bastante moderna e observada com
bastante
precisão". Pode-se chamar Juliano, o Apóstata; Peer Gynt; Solness; Brand; Hedda
Gabler; Nora etc:
Não é, absolutamente, uma criatura simples - deveras, é bastante complicada;
fala em prosa enérgica, em staccato, desprovida de páthos (...) é [uma criatura]
irónica
consigo mesma, auto-reflexiva.
O que tal pessoa deseja, Hofmannsthal sugere, é parar de escrever poesia e se
tornar a própria matéria poética, "a essência da poesia". As diferentes versões
dessas
pessoas denominam essa essência de forma distinta: o milagre, a grande bacanal,
o mar, a América. E essa pessoa - em todas as suas mutações - aprecia uma morte
organizada,
obsessão marcante de Hedda Gabler, bem como a missão de Hilde Wangel, i.e.,
organizar a morte do arquiteto Solness.
Escrevendo um ano após o surgimento de O Arquiteto Solness, Hofmannsthal
concentra na peça os seus comentários:
A volta do artista está a vida, exigente, desdenhosa, confusa. Assim, a Princesa
Hilde confronta o vacilante arquiteto. Ela é a pequena Hilde, filha adotiva,
hoje
adulta, da Dama do Mar. O arquiteto prometeu-lhe um reino, e ela agora veio
reivindicá-lo. Se ele nasceu rei, a situação nada tem de complicada. Se não,
simplesmente,
está fadado a perecer. Tudo isso é tremendamente empolgante. O reino de Hilde,
assim como os de Nora e Hedda, pertence à esfera do milagre -onde se é derrotado
pela
vertigem, onde se é tomado por uma força estranha, onde se é transportado. O
próprio arquiteto tem na alma esse anseio, de se pôr de pé no alto de uma torre,
onde
o vento e a solidão crepuscular são dotados de uma beleza perturbadora, onde se
fala com Deus, de onde se pode despencar para a
254
255
morte. Mas o arquiteto não está imune à vertigem; ele teme por si mesmo, pela
sorte, pela vida, a vida tão misteriosa. Sente-se atraído por Hilde também por
temor,
um medo estranhamente fascinante, o respeito que sente o artista pela natureza,
pelas cruéis, demoníacas e enigmáticas características inerentes à mulher, o
temor
místico da juventude. Pois a juventude tem algo de misterioso e perturbador.
Tudo o que existe de problemático no arquiteto, todo o potencial místico nele
reprimido,
é precipitado pelo toque de Hilde. Nela, encontra a si mesmo, exige de si mesmo
um milagre, dispõe-se a realizá-lo a qualquer custo, e, ao mesmo tempo, a
observar
e sentir reverência pelo momento em que "a vida se apodera de um homem e o torna
a essência da poesia". Nesse ponto, ele despenca para a morte. *
Indubitavelmente, o cerne de tudo isso é: "Nela, ele encontra a si mesmo."
Estudiosos de Ibsen (ainda restam alguns punhados) discordam de Hofmannsthal,
mas, claro
está, Hedda Gabler, Solness e Ibsen são um só, e Hilde, quando amadurecer, há de
gerir a própria morte, com a mesma arte que o faz Hedda. O que mantém a ação em
movimento, conforme Hofmannsthal, em última instância, admite, é que, em Ibsen,
encontramos a nós mesmos, mais belos e mais estranhos. Em Shakespeare,
encontramos
o outro, mas Ibsen, assim como Solness, exige milagres apenas de si mesmo.
Shakespeare não precisava exigir coisa alguma.
Joyce, que muito apreciava Irene, em Quando Nós Mortos Ressurgimos, só faltava
chegar à conclusão de que Ibsen era mulher. Todavia, a peça é, absolutamente,
ensandecida:
tanto o seu resumo quanto a sua análise vão além do absurdo, e nem mesmo Ibsen
consegue salvá-la. Saltar de uma torre em consequência do encantamento de uma
feiticeira
é gesto convincente, embora, para alguém como eu, incapaz de descer uma escada
sem pensar no tombo de Humpty Dumpty, o ato parece um tanto barroco. Mas a noção
de
Rubek, em companhia de Irene, que enlouquecera porque ele jamais a tocara, ambos
perambulando pela encosta de uma montanha em meio à neblina e à tempestade, é
algo
que fica além da representação cénica, ainda que uma avalanche constitua um
grande desafio para qualquer construtor de cenário. Como emblema de ressurreição
e liberdade,
a peça paira próxima ao esquema de catástrofe-criação pelo qual Ibsen sempre
anseia. Como pessoa, ele se submeteu à auto-imolação através da
respeitabilidade; na
condição de génio artístico, ele, no extremo, libertou o seu lado pertencente ao
reino espiritual, e terminou à beira de um abismo.
í~ TON TCHEKHOV
Reclamas que meus personagens são sombrios. Ai de mim! Não é minha culpa! É algo
involuntário; enquanto escrevo, o texto não me parece sombrio; em todo caso,
quando
trabalho, estou sempre de bom humor. É notável que os escritos de pessoas
sombrias e melancólicas sejam sempre alegres, enquanto os sorridentes sempre nos
deprimem
com o que escrevem. E eu sou um homem sorridente; ao menos, pode-se dizer,
aproveitei bem os primeiros 30 anos da minha vida.
A bondade de Tchekhov sempre mitiga a ironia. Assim como Samuel Beckett,
Tchekhov é um dos poucos santos da literatura. Ambos são escritores
insubstituíveis, e
suas biografias foram ainda mais impressionantes do que as respectivas obras.
Tolstoi gostava imensamente de Tchekhov, fosse como escritor ou como pessoa, mas
considerava
a grandeza humana do autor superior àquela observada em seus contos e peças. A
generosidade de Tchekhov estava relacionada ao seu respeito pela simplicidade do
ser
humano. Gorky, que, assim como Tolstoi, venerava Tchekhov, enfatizava a
implacabi-lidade de Tchekhov com qualquer tipo de ato vulgar. No mais, Tchekhov
era uma fonte
de benignidade, com todas as pessoas.
O génio de Tchekhov é shakespeariano, elogio perigoso para qualquer escritor,
mas tenho em mente uma comparação específica, sem pretender sugerir que Tchekhov
compartilhe da capacidade sobrenatural de Shakespeare no que concerne à
caracterização de personagens. Em Shakespeare (como na vida), as pessoas
raramente escutam
umas as outras e, quando o fazem, têm imensa dificuldade em compreender o que a
outra diz. Com frequência, essa questão nos escapa em Shakespeare, porque
ficamos
tão deslumbrados com as personalidades de seus personagens que não percebemos as
evasivas que trocam entre si. Tchekhov não é capaz de criar personalidades com a
destreza que o faz Shakespeare, mas, decerto, é capaz de representar, com uma
força assombrosa, os hiatos e as evasões que ocorrem na interação dos
personagens.
O extraordinário distanciamento de Shakespeare com relação aos personagens,
mesmo em se tratando de Hamlet e Falstaff, encontra um paralelo no princípio de
moderação
dramática, praticado por Tchekhov, necessariamente, mais visível nas peças do
que nos contos. Parece estranho classificar um autor benigno como Tchekhov génio
ao
comedimento, mas tudo indica que a designação seja procedente.
256
257
TCHEKHOV
ANTON TCHEKHOV
(1860-1904)
Maxim Gorky, escrevendo, em suas Memórias, sobre o amigo Tchekhov, afirma que,
na presença do dramaturgo e contista, "todos sentiam um desejo inconsciente de
serem
menos dissimulados, mais verdadeiros, mais eles mesmos". A asserção de Gorky
enseja a maneira mais eficaz de distinguir o génio de Tchekhov, que se esconde
ao adotar
a banalidade como tópico principal. Dostoiévski, por mais soturno que seja o
ambiente por ele representado, fica sempre a apenas um passo do transcendental e
do
extraordinário. Tchekhov, discípulo de Tolstoi, tinha em comum com Dostoiévski
apenas a veneração por Shakespeare, a quem Tolstoi desprezava. Assim como
Turgenev,
Tchekhov centra-se em Hamlet, ao passo que Dostoiévski aproxima-se mais de
Macbeth e Rei Lear. Lev Shestov, sábio religioso russo do século XX, comparava
Tchekhov
ao Príncipe Hamlet, o que se explica, de vez que Tchekhov era obcecado pela
peça; entretanto, no mais, Shestov está equivocado. O Hamlet shakespeariano é
incapaz
de amar quem quer que seja, embora insista no contrário, sendo, na verdade, um
assassino incapaz de sentir remorso. Tchekhov, segundo o testemunho de todos que
o
conheciam bem, e levando-se em conta a gratidão de leitores e plateias, foi e
ainda é merecedor do nosso afeto. Eis, novamente, Gorky, desta feita,
relembrando Tolstoi:
Ele amava Tchekhov, e quando o olhava, seus olhos ficavam ternos e pareciam
querer acariciar o rosto de Anton Pavlovich. Certa vez, quando Anton Pavlovich
caminhava
pelo gramado na companhia de Alexandra Lvovna, Tolstoi, que à época ainda estava
doente, sentado em uma poltrona no terraço, parecia querer alcançá-los, e
murmurar:
"Ah! Que homem belo, magnífico; é modesto e tranquilo como uma moça. E caminha
como uma moça. É, simplesmente, maravilhoso."
Tolstoi, juiz impiedoso, foi sempre um apaixonado por Tchekhov, e assim somos
a maioria de nós. Robert Brustein fala, com eloquência, em nome das plateias e
dos
leitores de Tchekhov:
Ninguém até hoje foi capaz de escrever a seu respeito sem demonstrar o mais
profundo afeto e amor; e ele, o autor, é sempre o personagem mais positivo da
sua própria
ficção.
Há grandes autores cujas personalidades tanto admiramos, mas que, ao mesmo
tempo, são por demais incomuns para serem contemplados muito de perto: Blake,
Shelley,
Kafka, Hart Crane. Tchekhov é pessoa boa e afetuosa; Samuel Beckett parece ter
sido modelar, em todos os sentidos, mas era reticente. Admito que não é fácil
perceber
ou dizer o que se segue, mas Tchekhov pode ser considerado o menos espiritual, o
mais humano de todos os génios literários. Conforme o modelo, Shakespeare,
Tchekhov
não era dado a solucionar problemas, tampouco prescrevia remédios para os males
da humanidade. Mas quase nada sabemos da pessoa de Shakespeare: ele nos confunde
porque é, simultaneamente, todo mundo, inclusive todos os personagens de suas 39
peças. Tchekhov é sempre Tchekhov, mas há nisso grande arte, além do talento de
um génio sumamente original.
O leitor pode acreditar que, em Hamlet, Shakespeare é todo mundo; no entanto o
Príncipe se destaca e, na cena com os atores, talvez se incorpore a Shakespeare,
direta-mente. Na função de ator, Shakespeare destacava-se como o Fantasma do Rei
e, creio eu, também no papel do Ator Rei. Em A Gaivota, todos são Tchekhov, em
um
sentido bastante diferente, farsesco. O dramaturgo satiriza a si mesmo no
personagem do escritor Trigorin, e faz uma autoparódia também nas figuras do
jovem teatrólogo,
Treplyov, e da orgulhosa atriz Nina. Os três personagens apresentam elementos de
Hamlet, embora a relação dos mesmos com o Príncipe não seja sequer paródica. O
relacionamento
de Treplyov com a mãe, a atriz narcisista Arkadina, apresenta paralelos que
chegam a ser óbvios demais com o confronto de Hamlet e Gertrudes, e Nina é uma
espécie
de Ofélia. Mas Trigorin não é nenhum Cláudio, e a peça dentro da peça de
Treplyov não configura um ataque a Trigorin, que está mais para Polónio do que
para tio
usurpador.
Mesmo em A Gaivota, Tchekhov expressa uma sutileza sinuosa, sempre defendendo
os interesses da vitalidade. Contudo, para Tchekhov, A Gaivota é obra menor. Seu
génio brilha mais em As Três Irmãs, peça digna da admiração de Shakespeare, e em
"Querida", conto muito apreciado por Tolstoi. Assimilar o que há de mais
tchekhoviano
nessa peça e nesse conto é chegar mais perto do génio de Tchekhov, embora, de
todas as figuras estudadas neste livro, somente Shakespeare e Tolstoi têm, a meu
ver,
uma originalidade mais difícil de ser descrita do que a de Tchekhov. Os três são
milagres de uma arte que em si é a própria natureza, tomando emprestado a frase
de Shakespeare. Ninguém resiste a uma comparação minuciosa com Shakespeare ou
Tolstoi, e Tchekhov teria deplorado esse tipo de triangulação. No entanto,
Tchekhov
torna mais claro aquilo que associa Hadji Murad, de Tolstoi, a António, de
Shakespeare, guerreiros que são também magníficos heróis trágicos: uma paixão
pela vida
que não esmorece com a proximidade da morte. Tchekhov, poeta da vida não vivida,
demonstra um ardor tácito, contrário à inutilidade da vida, enquanto Tolstoi e
Shakespeare
retratam, de modo contumaz, a
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259
grandeza da vida, em protagonistas extremamente vivazes, como o líder chechênio
e o romano predileto de Cleópatra.
Entre todas as obras de Tchekhov, As Três Irmãs é a mais difícil de ser
classificada, em parte, porque carece de um género definido. A peça pode ser
considerada
tragédia, tragicomédia, comédia ou o que o leitor quiser. Howard Moss, no ensaio
mais tchekho-viano que existe a respeito do texto, observa que "a incapacidade
de
agir torna-se a ação da peça". Sempre me fascina, quando releio o ensaio de Moss
sobre As Três Irmãs, o comentário de que Tchekhov (assim como Proust) jamais nos
oferece o retrato de um casamento feliz. Nesse particular, sempre digo a meus
alunos que o casal Macbeth é o mais feliz em Shakespeare. A maior lição que
Tchekhov
aprende de Shakespeare é fazer com que nenhum personagem se dê ao trabalho de
escutar o que o outro diz, especialmente se forem amantes. Monólogos
intermináveis
e um solipsismo maravilhoso marcam os personagens de Tchekhov, assim como os de
Shakespeare. Que Tchekhov é irónico fica muito claro, mas a ironia de
Shakespeare,
à semelhança da de Chaucer (segundo Chesterton), é grande demais para ser
percebida.
As três irmãs de Tchekhov, tão familiares quanto as nossas amigas mais
íntimas, cha-mam-se Olga, Masha e Irina. A maternal Olga jamais se torna mãe e,
no entanto,
representa, de modo comovente, a generosidade e a bondade, embora o nervosismo a
impeça de fazer oposição à cunhada, a vitalista e napoleônica Natasha. Das
irmãs,
Masha é a que se assemelha a Hamlet, sempre pronta a dizer a verdade, ardente
mesmo em sua reticência tchekhoviana. Tchekhov também aprendeu com Shakespeare a
arte
da omissão, e a elíptica Masha, mais uma heroína de luto pela própria vida, é o
personagem mais cativante da peça. Seu amante, Vershinin, é outra autoparódia
tchekhoviana:
culto, benigno, fraco, no extremo, insignificante, de vez que não consegue
suportar o terrorismo ibseniano de Masha, que através da verdade nos bombardeia,
até sermos
por ela destruídos.
Irina, menos complexa do que Masha, mesmo assim é tão assustadora quanto
amável, embora seja incapaz de retribuir amor. Mais até do que Olga e Masha,
Irina está
convencida de que a volta a Moscou (onde as irmãs haviam sido educadas)
resolveria o aperto em que as três se encontram e abriria, para ela, as portas
de Eros. A
Moscou de Irina, assim como a de suas irmãs, é uma ficção, e desapareceria logo
na chegada. Irina e Masha, e até mesmo Olga, bem encenadas, despertam na plateia
uma paixão que se torna desesperadora, porque as três irmãs jamais se arriscarão
a viver as alternativas disponíveis, tampouco encontrarão forças para deixar de
lado o desdém e enfrentar Natasha, a cunhada predadora. Isso tudo pode parecer
telenovela tchekhoviana, mas, através de nuanças, é elevado a um excepcional
nível
artístico. Uma telenovela em que as
ANTON TCHEKHOV
três heroínas formam um coro que lamenta a própria ignorância constitui, de
certo modo, novo género, no qual os imitadores de Tchekhov não têm conseguido
rivalizar
a atmosfera e o ritmo dramático do autor.
Como articular a genialidade de As Três IrmÕst Moss resume bem a questão: "As
irmãs anseiam por realizar o oposto daquilo que logram alcançar, anseiam por se
tornar
o oposto daquilo que são." Pairam aqui os infindáveis enigmas de Hamlet, mas o
Príncipe da Dinamarca pode invocar anjos, ainda que estes não acorram. Levandose
em conta o potencial do seu génio, Hamlet realiza tão-somente o desastre de oito
mortes, inclusive a dele próprio. Embora a catástrofe seja memorável, o
desperdício
da consciência mais abrangente de toda a literatura seria espantoso, não fosse o
extraordinário canto fúnebre de Hamlet, a ária à eternidade. As Três Irmãs
causam
um sofrimento bastante diferente, e indefinível. Todo o apreço que tenho pelo
grande crítico canadense ' Northrop Frye (1912-1991) é incapaz de minimizar a
minha
insatisfação, quando, em | Anatomia da Crítica (1957), ele registra:
Nos trechos de Tchekhov, especialmente, no último ato de As três irmãs, em que
os personagens, um a um, isolam-se dos outros, recolhendo-se ao interior de suas
celas
subjetivas, aproximamo-nos da ironia pura, com a máxima intensidade que o palco
comporta.
Seja lendo o texto de As Três Irmãs ou assistindo à sua encenação, sou tomado
de forte páthos, quando Masha grita "Precisamos viver... Precisamos viver...",
Irina
proclama: "Vou trabalhar, vou trabalhar...", e Olga abraça as duas irmãs,
concluindo a peça com as palavras: "Se nós soubéssemos; se nós soubéssemos!". As
irmãs
estão presas em uma situação de ironia, mas, absolutamente, não se isolam. Onde
há tanto amor, inclusive o nosso amor por elas, como é possível haver ironia
pura?
Querida" (1899), conto escrito dois anos antes de As Três Irmãs, narra a
história de uma alma "bela e santa", Olenka, merecedora dessa descrição por
parte de
Tolstoi. Ela é tão infantil, e tão maternal, a um só tempo, que, quando não tem
quem amar, sente-se vazia, em um estado morto-vivo. É como se não dispusesse de
identidade,
a não ser no amor. Tchekhov a adorava, Tolstoi tinha por ela sentimento
idêntico, e o leitor não tem outra escolha. A vida, com toda a sua crueldade,
reserva-lhe
a morte de dois maridos, mas ela sobrevive através do filho adotivo, deixado aos
seus cuidados.
Os críticos seguem Tolstoi, ao deduzir que, nesse conto, o impulso original de
chekhov é irónico, possivelmente satírico, mas que a história lhe escapa.
Desprovida
de personalidade e ideias próprias, Olenka pode ser encarada como uma versão
absurda
260
261
de mulher, mas tal avaliação me parece superficial. Eu mesmo conheci algumas
mulheres, e alguns homens, como Olenka. Talvez, todos sejamos como ela, embora a
nossa
sociedade não saiba lidar muito bem com "almas santas". Olenka possui mente
simplória, mas não é, de maneira alguma, deficiente mental, e o modo como
escolhemos
ler a sua história constitui, inteiramente, um exercício de auto-avaliação. Em
sua fase final de contista, Tchekhov adota um perspectivismo shakespeariano: que
valor
tem algo, senão aquele que lhe é atribuído? Os homens de Olenka são seres
absurdos, e o filho adotivo é uma criatura fraca, que contra ela transborda um
ressentimento
reprimido.
Como o próprio Tchekhov lia esse conto? Não o sabemos, e não creio que isso
tenha importância. É difícil aceitar Olenka, e perigoso rejeitá-la, pois, se a
desprezamos,
ou mesmo se dela sentimos pena, perpetramos uma certa violência contra a alma.
Condenado pela tuberculose, Tchekhov, aos 39 anos de idade, desistiu de censurar
o
próprio génio. A pobre Olenka não representa o génio de Tchekhov e, sem dúvida,
merece a condenação de Gorky, a partir de sua perspectiva revolucionária.
Todavia,
é Tchekhov, e não Tolstoi, quem cria Olenka. Entre o advento de um e outro ser
que possa ser objeto do seu amor, Olenka passa por mudanças. O leitor pode
argumentar,
conforme o fazem alguns críticos, que o sentimento de Olenka é devorador, tendo
consumido os esposos, enxotado um admirador, e que, com o tempo, tal sentimento
provocará
a perda do filho adotivo. Não consigo ler a história nesses termos, e Olenka não
me parece uma Psique, aguardando a volta de Cupido. Confrontado pela imagem de
Olenka,
algo em Tchekhov se rompe, profundamente. Talvez o seu génio, a despeito de toda
a sua sapiência humana, resida mais no reino da aspiração do que os estudiosos
puderam
até o presente perceber. Segundo entendo, em última análise, Olenka é uma
denúncia da aspereza irónica das nossas próprias almas.
OSCAR WILDE
Sr. Worthing! Corrija, senhor, essa postura semi-reclinada. E sumamente
indecorosa.
- Lady Augusta Bracknell, dirigindo-se a Jack
A Importância de Ser Prudente
Os mestres da linguagem surgem em grupos bastante variados, e apraz-me
misturar personagens ficcionais e autores, a fim de constituir um todo.
Imaginemos Jane
Austen e a Rosalinda shakespeariana {Como Gostais) tomando chá, em uma atmosfera
bem mais cordial do que aquela observada no encontro entre Cecily Cardew e
Gwendolen
Fairfax durante um lanche, em A Importância de Ser Prudente. Ou vislumbremos
Samuel Pickwick esbarrando em SzVJohn Falstaff, no presídio de Newgate, e
procedendo
a uma discussão sobre dívidas e carceragem. A mais interessante de todas seria
uma prosa de períodos ornados, entre Samuel Johnson e sua afetada parodista,
Lady
Bracknell.
William Butler Yeats achava que Wilde era o tipo de homem que gostava de açao
e que, frustrado como tal, desviara-se para a vida literária. Embora a avaliação
de Yeats seja um tanto estranha, ela consegue captar algo enigmático em Wilde,
pródigo com relação à própria genialidade e à vida, esbanjando ambas. Mesmo em A
Importância
de Ser Prudente, sempre falta algo do próprio Wilde.
Embora fosse pupilo confesso de John Ruskin e Walter Pater, Wilde sentia-se
perfeitamente à vontade no papel de celebridade, sendo precursor de Truman
Capote,
Andy Warhol e uma série de outros estetas superestrelas. Infelizmente, seu génio
era grande demais para caber no papel por ele escolhido. Ao lamentar a morte
prematura
de Wilde, aos 46 anos, receio que minha tristeza tenha um caráter mais pessoal
do que literário. De Profundis e A Balada do Cárcere de Reading são obras
prolixas.
Se Wilde tivesse escrito mais peças, teríamos alguma outra Salomé, e não outra A
Importância de Ser Prudente. Ao afirmar que poupava o próprio génio para
utilizá-lo
na vida, e que, na arte, investia apenas habilidade, Wilde falava com exatidão,
aliás, como sempre, mas, nesse caso específico, talvez tenha se arrependido de
ser
exato.
262
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OSCAR WILDE (1854-1900)
Wilde fomentou uma considerável tradição oral, em parte, sem dúvida, apócrifa.
Seu neto, Merlin Holland, relembra, de modo fascinante, que Oscar Wilde
"confessava
que vivia sob constante pavor de não ser mal compreendido". Quando, aos 28 anos,
Oscar, o Esteta, apresentou-se à alfândega da cidade de Nova York, consta que
tenha
dito: "Nada tenho a declarar, exceto o meu belo génio." Se não o disse, deveria
tê-lo feito, assim como deveria ter expressado a sua decepção com o Oceano
Atlântico:
"Não cjiegou a rugir." Para W. B. Yeats, Wilde estava sempre representando o
papel de Wilde, mas o mesmo se aplica a Lorde Byron, Hemingway e (ouso dizê-lo?)
ao
ilustre Goethe. Merlin Holland atribui ao avô o papel de Fausto, ainda que não
fique claro se seria o Fausto de Marlowe, Goethe ou Mann. De vez que meu assunto
é
o génio de Wilde, e o divino Oscar é, ao mesmo tempo, proteico e objeto de minha
adoração literária ao longo da vida, não vou me restringir a uma única obra,
ainda
que isso contrarie os meus procedimentos neste livro. O génio de Wilde aparece
com mais força em A Importância de Ser Prudente e dois ensaios magníficos - "A
Alma
do Homem sob o Socialismo" e "A Decadência da Mentira". Passo a me referir a
esses três trabalhos, aleatoriamente, e recorro a outras paragens de sua vida e
obra.
O ponto fundamental a ser considerado em se tratando de Wilde foi definido
por Jorge Luis Borges: o grande Esteta estava quase sempre certo. A minha
profissão
suicida, outrora o ensino da literatura ficcional no mundo anglófono, ainda
estaria viva, se tivesse aprendido a lição de Wilde: "Toda poesia medíocre é
sincera."
Infelizmente, é tarde demais, e os melhores alunos, com toda razão, fogem dos
docentes que ainda não morreram, a despeito de facções. Precisamos de Wilde,
mesmo
nesse momento de fracasso; quem mais pode nos alegrar, em tempos tão sinistros?
Descendo o poço de uma mina, em Leadville, Colorado, durante uma visita aos
Estados
Unidos, Oscar perfurou uma parede e, em seguida, voltou à superfície,
acompanhando os mineiros e suas namoradas a um cassino: "em um canto havia um
pianista, sentado
ao piano, acima do qual se via um cartaz: 'Favor não fuzilar o pianista; ele faz
o que pode.' Fiquei chocado diante da constatação de que a arte medíocre merece
a pena de morte."
Arte medíocre hoje em dia é estudada em universidade, exaltada na mídia e,
supostamente, faz bem à nossa consciência política. Wilde, exato em suas
profecias,
um século após a sua morte, não tem rival, ao descrever a nossa condição
literária:
OSCAR WILDE
Antigamente, livros eram escritos por homens de letras e lidos pelo público.
Hoje em dia, livros são escritos pelo público e lidos por ninguém.
Wilde ilustra os dois principais sentidos da noção de génio: uma força
geradora inata, e um outro eu, que busca e encontra a destruição daquilo que é
inato. Um
século mais tarde, quando o homossexualismo já não provoca imolação social,
Wilde seria obrigado a encontrar algum outro meio de sucumbir, algo além da
imaginação.
Byron encontrou a rebelião grega, Hemingway as diversas maneiras de "viver a
vida até o último instante", até o suicídio; creio que Wilde teria encontrado
algum
meio ainda mais individualizado. A minha favorita, entre as "máximas para a
instrução dos supercultos", é:
Jamais devemos ouvir; ouvir é um sinal de indiferença pelos nossos ouvintes.
Não fui agraciado com nenhum prémio de magistério, em meio século de carreira,
porque acredito na paixão e no raciocínio contidos nesse aforismo. Uma das
afinidades
mais autênticas de Wilde (registrada, com astúcia, por sua editora, Isobel
Murray) era com Emerson, de modo especial, o ensaio "Autoconfiança", que
repercute tanto
em "A Decadência da Mentira" quanto em "A Alma do Homem sob o Socialismo".
Emerson, em "Autoconfiança", afirma tantas ideias ao mesmo tempo, que torna
dúbio qualquer
comentário, mas, ao que parece, o trecho que mais comovia Wilde era o seguinte:
Afasto-me de pai e mãe e irmã e irmão, quando meu génio me chama. Escreveria
acima das esquadrias das portas: Capricho. Espero que, em última instância, seja
algo
superior a capricho, mas não posso ficar o dia todo dando explicações.
Capricho é o meio mais seguro para se chegar a ser mal compreendido, mais um
objetivo que Wilde herdou de Emerson. Suponho que duas passagens de
"Autoconfiança"
provocassem em Wilde o mesmo efeito que causam em muitos dos meus alunos:
Em toda obra de génio encontramos os nossos próprios pensamentos descartados:
voltam para nós com uma certa majestade alienada.
Assim como as preces dos homens são uma enfermidade da alma, suas crenças são
uma enfermidade do intelecto.
No leito de morte, Wilde converteu-se ao catolicismo. As perspectivas sobre
conversões efetuadas em leito de morte variam e, vale lembrar, Wilde, durante
toda
a vida,
264
265
defendeu a ideia de que Jesus Cristo era, antes de tudo, um artista, e um
gnóstico, e o escritor preferia o Evangelho de João, em bases extremamente
hereges, como
se vê neste trecho de De Profanais:
Ao ler os Evangelhos - especialmente, o de São João, ou seja lá de qualquer
gnóstico que tenha assumido o seu nome - vejo a constante assertiva da
imaginação como
a base de toda a vida espiritual e material, vejo também que, para Cristo, a
imaginação era, simplesmente, uma forma de Amor, e o Amor era Senhor, no sentido
mais
pleno da frase.
Wilde lembra-s* de ter comentado com Gide que tudo o que foi dito por Cristo
podia ser transferido, de pronto, para a esfera da Arte, onde tais noções se
concretizariam
plenamente. "Uma verdade deixa de ser verdade quando mais de uma pessoa acredita
nela" é um dos célebres aforismos wildianos, e não propicia muito espaço para
conversões,
exceto aquelas efetuadas no leito de morte. A discussão principal sobre Cristo
ocorre no texto "A Alma do Homem sob o Socialismo", e, a exemplo do ensaio em
sua
totalidade, constitui um hino à personalidade, ao autocrescimento. Eis Wilde, no
que nele há de menos irónico e, talvez, menos compreendido:
E, portanto, quem mais vive de acordo com o modelo oferecido por Cristo é
aquele que é perfeita e absolutamente autêntico. Pode tratar-se de um grande
poeta; ou
um grande cientista; ou um jovem universitário; ou um pastor de ovelhas, ou um
dramaturgo, como Shakespeare; ou um pensador que reflete sobre Deus, como
Spinoza;
ou uma criança que brinca no jardim; ou um pescador que lança a rede ao mar. Não
importa o que seja o homem, basta que leve a termo a perfeição da alma interior.
Toda imitação, seja quanto à moralidade, seja quanto à vida, é falha. Pelas ruas
de Jerusalém, hoje em dia, segue um lunático, carregando uma cruz de madeira às
costas. Ele simboliza as vidas prejudicadas pela imitação. O Padre Damien agiu
de acordo com o modelo oferecido por Cristo, quando foi viver com leprosos,
porque,
ao prestar tal serviço, levou a termo, plenamente, o que de melhor havia em seu
interior. Porém, não seguiu mais de perto o modelo de Cristo do que Wagner,
quando
alcançou a realização da própria alma na música, ou do que Shelley, quando
alcançou a realização da alma na canção. Não há apenas um tipo de homem. Há
tantas perfeições
quanto há homens imperfeitos. E, enquanto no que toca ao chamado da caridade o
homem pode ceder e se tornar livre, ao chamado do conformismo não se pode,
absolutamente,
ceder e permanecer livre.
Embora empregue a palavra "socialismo", Wilde tem em mente algo bem mais próximo
da visão dos anarquistas catalães que lutaram contra Franco e contra os
comunistas,
e que preservaram as tradições dos cátaros (gnósticos provençais). A crença mais
profunda de Wilde parece ter sido a de que precisamos "viver a vida do próximo,
e não a nossa", conceito irreconciliável com o culto à personalidade
individualista, mas, tanto quanto Emerson, o autor de "A Alma do Homem sob o
Socialismo" deplorava
qualquer "consistência tola".
Wilde tinha o génio do paradoxo, e os momentos mais brilhantes dessa
genialidade provocam o apagamento da linha que, supostamente, separa a crítica
da criação
literária. Eis Wilde, no que há de melhor em sua crítica, em um trecho do
ensaio-diálogo "A Decadência da Mentira", falando através de um personagem,
Vivian:
Um grande artista jamais enxerga as coisas como elas, realmente, são. Se assim
não fosse, deixaria de ser artista. Tomemos um exemplo atual; sei que gostas de
objetos
japoneses. Ora, achas que o povo japonês, conforme nos é apresentado na arte, de
fato existe? Se pensas assim, é porque não entendes a arte japonesa. O povo
japonês
é criação deliberada, autoconsciente, de certos artistas. Se colocares um quadro
de Hokusai, Hokkei, ou de qualquer um dos grandes pintores nativos, ao lado de
uma
dama ou de um cavalheiro japonês, em carne e osso, verás que entre eles não
existe a menor semelhança. O povo que vive no Japão não difere da média do povo
inglês;
isto é, são pessoas comuns, que nada têm de especial ou extraordinário. Na
verdade, o Japão é, em si, pura invenção. Não existe tal país; não existe tal
povo. Um
dos nossos pintores mais charmosos esteve, recentemente, na Terra do Crisântemo,
com a tola esperança de observar os japoneses. Tudo o que ele viu, tudo o que
lhe
foi possível pintar, foram umas poucas lanternas e alguns leques.
Ser, a um só tempo, tão sábio e tão espirituoso já é algo bastante raro, mas
logo irrompe a verdadeira genialidade, expressa por meio de uma grande asserção:
"Na
verdade, o Japão é, em si, pura invenção. Não existe tal país; não existe tal
povo."
Trata-se de um daqueles poucos trechos memoráveis de crítica que contribuem
para preservá-la como género literário. Tenho a satisfação de me autoplagiar,
observando
que esse Japão é a mesma terra distante onde vivem os Jumblies, de Edward Lear,
ao lado de Dong, com seu nariz luminoso, Pobble, que não tem os dedos do pé, e o
mais reliz dos casais: seu Coruja e dona Gatinha. Para lá segue Alice, seja por
baixo da terra, seja através do espelho; é, precisamente, o país dos sanduíches
de
pepino, onde Lady Dracknell confronta Miss Prism. O nome do país encerra a
crítica mais elevada:
266
267
Eis o que, deveras, constitui a crítica mais elevada: o registro da própria
alma. É mais fascinante do que a História, pois diz respeito, simplesmente, à
própria
pessoa. E mais divertido do que a Filosofia, pois o objeto de estudo é concreto,
e não abstrato; real, e não vago. É a única forma civilizada de autobiografia,
pois
não lida com eventos, mas com pensamentos desenvolvidos durante a vida; não
contempla os acidentes físicos da vida, seja quanto às circunstâncias, seja
quanto à
morte, mas as inclinações espirituais e a paixão da mente criativa.
Fui informado, há pouco tempo, que um ilustre estudioso do Novo Historicismo
e da Poética Cultural, na introdução de um extenso trabalho sobre Shakespeare,
registra
que o livro por ele escrito é, de fato, sobre Shakespeare, ao contrário de uma
obra recente, monstruosa, aparentemente sobre Shakespeare, mas que, na verdade,
não
passa de mais um capítulo da autobiografia continuada de um velho crítico.
Radiante, faço minha a sabedoria de Wilde, ao mesmo tempo em que, espero, evito
incorrer
no maravilhoso solipsismo de Lady Bracknell, no meu trecho predileto de A
Importância de Ser Prudente, e, portanto, em toda a obra de Wilde:
LADY BRACKNELL [Puxa o relógio]. Vamos, querida. [Gwendolen levanta-se.] Já
perdemos cinco ou seis trens. Perder outros pode provocar comentários a nosso
respeito
aqui na plataforma.
LUIGIPIRANDELLO
HENRIQUE IV. Ah, um pouco de luz! Sentai-vos em torno da mesa, não, assim não;
com uma postura elegante, descontraída!... [dirigindo-se a Harold] Sim, tu,
assim!
[Posiciona-o] [Então, dirige-se a Bertbold] Tu, assim!... e eu, aqui! [Senta-se
do lado oposto aos demais]. Viria bem a calhar um pouco de luz da lua,
decorativa.
É muito útil para nós, a luz da lua. Sinto grande necessidade dela, e fico horas
a fio olhando a lua, da minha janela. Quem diria, olhando para ela, que ela sabe
que 800 anos se passaram e que, sentado à minha janela, não posso ser, de fato,
Henrique IV, contemplando a lua como qualquer pobre-diabo? Mas, olhai, olhai!
Vede
que magnífica cena noturna temos aqui: o imperador cercado de seus leais
conselheiros!... O que achais?
Podemos louvar o génio de Pirandello, especialmente na peça Henrique IV,
dizendo que o lunático anónimo, que pensa que é Henrique IV, é uma versão de
Hamlet, enquanto
Belcredi, o palhaço apunhalado por "Henrique IV", é tanto uma figura que remete
a Cláudio quanto um substituto do próprio Pirandello, obcecado pela ideia de
reescrever Hamlet.
O personagem anónimo, parecido com Hamlet, que pretende se fazer passar por
Henrique IV, vinga-se de Pirandello, por ter sido por ele inserido em uma farsa,
e
não em uma tragédia. Pirandello, génio retórico pertencente à genuína tradição
literária sici-liana, concede ao lunático um momento de elevada dignidade
estética,
mas, em seguida, retrocede, e voltamos à farsa melodramática.
É irónico que o teatro pós-Ibsen tenha alcançado os momentos de maior
originalidade nesse sofista siciliano, cuja principal suposição é que todos os
seus personagens,
em última instância, são loucos, e não apenas em aparência, como Hamlet. Sempre
ciente de Shakespeare e Ibsen, Pirandello toma-lhes o teatralismo e o submete a
algo
que se aproxima da paródia. Até mesmo Seis Personagens à Procura de um Autor
pode ser posicionada na fronteira da farsa paródica, como se Pirandello não
pudesse
resolver o dilema que se observa entre a assertiva dos personagens, de que o
palco pertence à sua tragédia familiar, e a reivindicação dos atores, de que o
palco
lhes pertence, a fim de poderem divertir um público pagante. Sofista clássico,
Pirandello sempre defendia os dois lados, em qualquer disputa dramática.
268
269
LUIGI PIRANDELLO
LUIGI PIRANDELLO (1867-1936)
Eric Bendey, autoridade ímpar em termos de teatro moderno, disse-me, certa
vez, que minha exaltação a Fim de Jogo, de Beckett, como o supremo texto
dramático moderno,
era um equívoco, pois ignorava Pirandello, o dramaturgo mais importante desde
Ibsen. E interessante que Bentley cite a avaliação de Pirandello: "Depois de
Shakespeare,
eu não hesitaria em dizer que o primeiro é Ibsen." Se, depois de Ibsen, devemos
apontar Pirandello, é, a meu ver, uma questão difícil; a obra de Tchekhov e
Strindberg,
de Bjjecht e Beckett, quando lida, é mais contundente do que a de Pirandello,
mas uma boa (e rara) encenação de Pirandello abala-me de uma maneira que,
geralmente,
não ocorre quando assisto a encenações dos demais grandes dramaturgos modernos.
Uma vez que a tragédia, como forma pura, já não é possível, e a farsa trágica
ainda
é viável, o siciliano Pirandello pode ser considerado o autêntico mestre da
farsa trágica do início do século XX, sendo, mais tarde, seguido por Brecht e
Beckett.
Somente duas peças justificam a classificação de Pirandello como génio
dramático: Seis Personagens à Procura de um Autor (1921) e Henrique \IV (1922).
Todos os
demais trabalhos de sua autoria são secundários, marcantes apenas em
determinados momentos. Qualquer resumo de Seis Personagens faz a peça parecer um
desastre cénico.
O estudo de Eric Bentley, intitulado The Pirandello Commentaries (1986), reúne
os seus extraordinários escritos sobre Pirandello, enquanto os textos dramáticos
mais
importantes foram editados pelo próprio Bentley, sob o título Naked Masks
(1952). Meu escopo, como sempre neste livro, limita-se à questão do génio.
George Bernard
Shaw supervalorizava Seis Personagens, apontando-a como a peça teatral mais
original de todos os tempos, mas Shaw (que, na minha avaliação, não era um
génio) estava
tão-somente travando a antiga e desesperada batalha com Shakespeare. O Henrique
PV, de Pirandello, é uma versão de Hamlet, certamente, a mais original de todas
as
peças, além de inspirar Seis Personagens.
Shakespeare foi o seu próprio encenador e contra-regra, além de ator
confiável. Os personagens de Pirandello (ao menos, dois deles) procuram
Shakespeare, ou o
seu substituto, o Ator-Empresário, ou diretor, que, em último caso, declina de
escrever a peça solicitada pelo Pai e pela Filha-Adotiva. De início, o AtorEmpresário
tenta começar o ensaio de uma comédia (incompreensível) de Pirandello, mas é
interrompido pelos seis personagens. "Trazemos um texto para o senhor", protesta
o Pai,
e a sensual Filha-Adotiva declara, cheia de entusiasmo: "Talvez façamos a sua
fortuna." Até então, a Mãe, a terceira entre os personagens, permanece calada,
assim
como o Filho, um jovem revoltado, o Adolescente Infeliz e a Criança, uma menina
de cerca de quatro anos.
A Filha-Adotiva (um papel e tanto, com toques de comédia musical) é a vida da
peça, mas o centro da mesma é o Pai, acometido de culpa desesperadora, uma
figura cujo
páthos transcende o horripilante melodrama que se desenrola entre os seis
personagens. Resumindo o melodrama em uma frase: o Pai "entrega" a Mãe ao
secretário, com
quem ela tem três filhos, após deixar o Filho com o Pai, que tenta abraçar a
Filha-Adotiva em um bordel, sendo impedido pela Mãe; após a morte do secretário,
o Pai
aceita todos de volta, mas a Criança morre afogada, o Adolescente estoura os
próprios miolos, e os seis personagens pressionam o Ator-Empresário.
O génio de Pirandello arquiteta essa mixórdia e, ao longo de três atos,
mistura personagens e atores de uma maneira tão inextricável, que tudo se torna
representação.
O modelo intrínseco é o extraordinário hiato na representação criado por
Shakespeare em Hamlet, desde a chegada dos atores (na segunda cena do segundo
ato), até
o momento em que Cláudio se retira, às pressas, da plateia que assiste à
encenação de A Ratoeira (na segunda cena do terceiro ato). Ao longo de mil
versos, Shakespeare
distrai o público com peças-dentro-de-peças, assim como a totalidade de Seis
Personagens à Procura de um Autor consiste em papéis-dentro-de-papéis.
Shakespeare inventa
em Hamlet o apagamento de qualquer fronteira entre existência e autorepresentação, e Pirandello confere à invenção aplicações ibsenianas. Anne
Paolucci percebe
bem a questão:
Os atores que representam os personagens, supostamente, não são atores. São
personagens que os atores devem, supostamente, representar, embora não consigam
fazê-lo.
Tais personagens enfatizam a diferença entre aquilo que são e aquilo que
constitui os chamados atores que tentam representá-los (...). Quando desce a
cortina, aplaudimos
os atores que atuaram nos papéis de personagens realistas demais para serem
encenados. Isso nos remete, talvez, à fala de Hamlet a esse respeito, em que ele
se diz
maravilhado com a possibilidade de um mero ator representar um papel de modo tão
realista, tão apaixonado, enquanto o próprio Hamlet, tão autêntico, é incapaz de
igualar a expressão e o entusiasmo do ator. Os seis personagens de Pirandello
devem atuar durante toda a peça segundo o espírito dessa fala de Hamlet. Tratase de
um tour de force, assim como tour de force é a versão de Hamlet, de autoria do
próprio Pirandello - Enrico IV.
Noção admirável, se dela retirarmos o "talvez". Pirandello dizia-se admirador de
almas que desprezam a possibilidade de se coagular ou se solidificar em qualquer
forma predeterminada", e encontrava esse tipo de alma em Tristram Shandy e
Hamlet. A descontinuidade do ser, infinita em Hamlet, é questão mais ampla, e
difere do
problema da representação de papéis. Somente o Pai, em Seis Personagens, é um
pântano de
270
271
LUIGI PIRANDELLO
descontinuidade, mas aqui tocamos o ponto fraco de Pirandello: Hamlet é uma
personalidade carismática, o Pai, um vazio de sensatez. Existe apenas uma
personalidade
em Seis Personagens-, e não se trata de nenhum dos personagens, tampouco de
alguém da companhia de atores. Madame Pace, a gerente do bordel, cujo próprio
nome, ironicamente,
sugere paz, é o trunfo da peça. Surge no palco como o sétimo personagem, mas,
nitidamente, não está à procura de um autor. Os seis personagens já não parecem
fazer
parte da realidade, em contraste com a ilusão propiciada pela companhia de
atores, pois a realidade vulgar de Madame Pace transforma o Pai e a FilhaAdotiva em ilusões.
A peça tem apenas um personagem convincente, uma prostituta.
Em sua grande defesa de Pirandello, Bentley insiste que o dramaturgo
siciliano conferiu renovada importância à noção de papel (de natureza
inescapável), seja
na vida ou no palco. Bentley* expressa essa percepção claramente: "O teatro
enseja uma imagem da vida, a imagem da vida, porque a vida é um teatro." Não sei
se tenho
condições de argumentar contra Pirandello ou Bentley. Mas não creio que 5zV John
Falstaff, Hamlet, lago e Cleópatra concordassem com tal posição, o que significa
que o próprio Shakespeare discordaria de Pirandello e Bentley, a despeito do
assombroso grau de experimentação observado em Hamlet e. em outras peças.
Shakespeare, engajando-se na Batalha dos Poetas, a fim de atacar o inimigoamigo Ben Jonson, diverte-se bastante brincando de política teatral em Hamlet,
Noite
de Reis e Tróilo e Créssida. Em Noite de Reis, de um modo, ao mesmo tempo,
glorioso e desconcertante, o infeliz Malvolio é crucificado (socialmente), mas
tudo é
tão hilariante que custamos a perceber a vulnerabilidade universal que o golpe
desferido contra Jonson deixa transparecer na própria plateia. Em Tróilo e
Créssida
e Hamlet (da segunda cena, do segundo ato, à segunda cena, do terceiro ato),
Shakespeare não deixa a plateia esquecer que assiste a uma peça teatral tão
autoconsciente
que já não requer ser vista como sombra da verdade. A percepção de Bentley (via
Pirandello), de que tudo é teatro, não constitui formulação shakespeariana.
Pirandello
frequentou a mesma escola de Shakespeare, por assim dizer, assim como o fizeram
Ibsen e Tchekhov, mas o conteúdo assimilado por Pirandello foi por demais
simplista
e reducionista. A vida, às vezes, é um teatro, mas, outras vezes, é uma guerra,
uma escola, um purgatório, uma descida ao inferno, um investimento, ou o que o
leitor
quiser. Sem dúvida, todos desempenhamos papéis, mas apenas em certas situações,
ou momentos, sendo que, amiúde, não o fazemos em um palco. Teatro envolve palco,
ator e espectador, e na vida estamos, quase sempre, sozinhos. Quem tentar ser
ator que de si mesmo for espectador, será, em pouco tempo, destruído por ambos.
Henrique /Vparece-me mais interessante do que Seis Personagens à Procura de
um Autor, ao proporcionar algum alívio com relação à metafísica teatral de
Pirandello,
272
conquanto tal dimensão não esteja ausente na referida peça. Novamente, Bentley é
a nossa melhor indicação, e sua retórica é tão competente que, em dados
momentos,
chega a ofuscar o objeto de estudo, pois Henrique PVé plena de defeitos e
confusões, embora a peça sobreviva a todos os problemas.
O protagonista anónimo de Henrique PVsofre por um amor não correspondido. Um
rival do herói na conquista da dama em questão provoca um acidente equestre
durante
um baile de máscaras. Ao recobrar a consciência, o protagonista, fantasiado de
Henrique IV (o imperador alemão), passa a acreditar que é, de fato, Henrique IV.
Protegido
por uma irmã abastada, "Henrique IV vive o seu delírio, em uma mansão
transformada em castelo. Doze anos mais tarde, recupera a sanidade, mas decide
continuar a
viver a loucura. Como exercício terapêutico, um psiquiatra introduz no círculo
do Imperador a filha da antiga amada, na esperança de restaurar a sanidade de
Henrique
IV. Vinte anos já transcorreram, desde que a loucura se instalara, e, segundo se
espera, um choque poderá devolver a Henrique IV a noção de tempo. Mas ele
demonstra
já haver recuperado a saúde mental, e tenta abraçar a jovem. O rival, que, mesmo
passados 20 anos, ainda é amante da mãe da jovem, intervém, mas é morto por
Henrique
IV, com um golpe de espada.
Suponho que Kleist transformasse tais eventos em tragédia, mas, obviamente,
Pirandello não é capaz (nem tem intenção) de fazê-lo. A figura histórica do
alemão
Henrique IV é lembrada em consequência de um incidente em Canossa, quando se
ajoelhou sobre a neve, fingindo submissão ao Papa, a fim de não ser destronado.
Mas
essa é toda a História de que precisamos. O protagonista anónimo está à procura
de um autor, mas apenas no sentido em que Hamlet procura o fantasma do pai, pois
Pirandello reescreveu Hamlet como se fosse uma farsa trágica, de autoria de
Ibsen. Sendo uma entre muitas reescrituras de Hamlet, essa é bem-sucedida.
O estudo intitulado Hamlet in His Modem Guises (2001), de Alexander Welsh, não
inclui Henrique PV entre tais disfarces,5 mas investiga as relações da peça
shakespeariana
com vários romances: Os Anos de Aprendizagem de Wilhelm Meister, de Goethe;
Redgauntlet, de Sir Walter Scott; Grandes Esperanças, de Dickens; Pierre, de
Melville;
Ulisses, de Joyce; e O Príncipe Negro, de íris Murdoch. A incisiva conclusão de
Welsh é que 'o hamletismo da modernidade atesta a importância do papel do luto
para
a consciência , o que constitui uma válida indicação do motivo que leva o herói
anónimo de Pirandello a concluir a peça com o assassinato de "Cláudio" Belcredi;
o luto de Hamlet pela morte do pai, e pelo que ele considera a perda da honra da
mãe, expande-se em uma
Em língua inglesa, um dos sentidos da palavra guise, que consta do título da
obra citada, é, precisamente, "disfarce". [N. do T.]
273
tristeza pela condição humana, mas ninguém espera que Pirandello seja
Shakespeare. "Henrique IV" chora a perda da própria juventude, e vinga-se de
Belcredi, fonte
de sua infelicidade, pelos 20 anos em que viveu fantasiado (durante 12 esteve
louco, nos outros oito fingiu). Contudo, o protagonista anónimo sobrevive,
infeliz,
nem louco, nem são, totalmente destruído por haver ousado penetrar a máscara da
ilusão. Bentley o compara aos personagens de Beckett que praticam auto-imolação,
e, com efeito, Pirandello leva-nos à fronteira de Fim de Jogo.
IV 1
HESED
274
LUSTRO 7
John Donne, Alexander Pope, Jonathan Swift, Jane Austen, Lady Murasaki
H
esed, sendo a aliança do amor de Deus pelos homens e mulheres, manifesta-se ou
através da ironia, conforme exemplificado neste Lustro, ou da perda do amor,
conforme
demonstrado no Lustro seguinte. A ironia de Donne, inicialmente libertina,
transforma-se em ironia espiritual, à custa do próprio Donne, mas a ironia de
Pope e Swift
é selvagem e satírica, como lhes convém. Em Austen, a ironia se torna um método
shakespeariano de criatividade, digna de Como Gostais, cuja Rosa-lindaé
precursora
de Elizabeth Bennet, de Orgulho e Preconceito.
A ironia da sutil e elegante de Lady Murasaki é a ironia do paradoxal
"esplendor do anseio", tão refulgente em A História de Genji, em que o anseio, o
desejo incessante,
ao mesmo tempo, revigora a existência e, no extremo, a aniquila. John Donne e
Jane Austen (esta em Persuasão) teriam sabido apreciar o esplêndido anseio de
Lady
Murasaki, porque ambos também celebram a complexidade inerente aos desejos
insatisfeitos.
277
JOHN DONNE
"r&v r*L? cèkz
JOHN DONNE
Quando, assassina, o teu desdém me matar,
E pensares que livre estás de mim,
Aos meus muitos convites dado um fim,
Virá o meu fantasma te assombrar,
E tu, falsa vestal, o verás, sim;
Oscilará da tua vela a chama,
E aquele que então for o teu dono,
Exausto da ação naquela cama,
Conclui, do teu bulir e desabono,
Uma mulher faminta agora o clama, E se esquivando, finge ele ter sono; Então,
infeliz, pálida e esquecida, Terás no suor frio teu apogeu,
E vais ser mais fantasma do que eu;
O que direi na hora, mi'a querida,
""
Hoje a ti não revelo, estejas crente; Se amei em vão, melhor és penitente, Do
que ameaçada e inocente.
"A Aparição", que consta do volume Canções e Sonetos (1633, publicado dois
anos após a morte do poeta), é exemplo supremo da arte de Donne. Donne começa
atribuindo
sentido literal à metáfora de Petrarca, do amante que morre em consequência do
desdém da amada, sendo, então, substituído por outro admirador. Como um fantasma
que
busca vingança, ele cometerá a indiscrição de se imiscuir na vida amorosa da
mulher. Assombrada pela aparição, a "assassina" tenta despertar o atual amante,
que,
cansado de lhe satisfazer, finge estar dormindo. Sozinha diante do espectro de
Donne, trémula e assustada, ela será "mais fantasma" do que ele.
Talvez, mais tarde, John Donne, na qualidade de pregador religioso e decano
da Catedral de São Paulo, interpretasse esse delicioso poema lírico como uma
alegoria,
em que a "assassina" correspondesse à "amada da minha juventude, a Poesia", a
quem o poeta abandonara pela "esposa da idade madura, a Religião", mas tal
leitura
implicaria a inversão do enredo do poema. O decano da Catedral de São Paulo
encontrou outros
meios de dar vazão à sua espirituosidade libertina, presente na agilidade
intelectual de seus sermões, em que a doutrina é humanizada e tornada acessível.
O génio de Donne contém um elemento pragmático, seja a temática erótica ou
religiosa. Elogiamos a sua "espirituosidade", que é palpável, mas devemos
admirá-lo,
igualmente, pelo intelecto versátil, maravilhoso arquiteto da transição de um
tipo de amor, profano e salaz, a outro, sagrado, mas não menos aventuroso.
278
279
JOHN DONNE
(1572-1631)
Nascido oito anos depois de Shakespeare, John Donne, em 1595, vivia em
Londres, na condição de jovem cavalheiro abastado, desfrutando de certa
reputação de poeta
erótico e satírico. Assíduo frequentador de teatro, provavelmente assistiu à
encenação de Ricardo II, de Shakespeare, e saberia apreciar o progresso (ou
declínio)
do monarca martirizado, que, de governante autoritário, vem a ser poeta
metafísico, bem ao estilo de Donne. O volume Canções e Sonetos só foi publicado
dois anos
após o falecimento de Donne, mas alguns dos poemas ali coligidos haviam
circulado, amplamente, em versão manuscrita, e, talvez, tenham sido lidos por
Shakespeare,
embora seja mais provável que o poeta-dramaturgo tenha lido as elegias ovidianas
de Donne, sumamente eróticas. Parece ter havido uma influência inversa: vez por
outra, tem-se a impressão de que Canções e Sonetos é uma paródia do Ricardo II
shakespeariano.
A ascensão social de Donne, a partir da sua conversão, em 1602, do catolicismo
ao anglicanismo, procedeu, inicialmente, em ritmo lento, pois ele adiou a
própria
ordenação religiosa até 1615. Após essa data, porém, Donne tornou-se,
rapidamente, célebre pregador e, em 1621, foi nomeado decano da Catedral de São
Paulo. Em sua
maioria, os Sonetos Sagrados foram escritos antes da ordenação de Donne, assim
como a grande meditação "Sexta-feira Santa, 1613. Cavalgando para o Oeste". Os
dois
hinos magníficos -"Para Deus, meu Deus, na Agonia" e "Para Deus Pai" - foram,
provavelmente, compostos em 1623, em novembro e dezembro, período em que Donne
esteve
desenganado. A exceção desses escritos, Donne havia abandonado a poesia, em
favor da teologia. Seus sermões, no que têm de melhor, figuram entre os mais
contundentes
em língua inglesa.
Samuel Johnson, meu paradigma crítico, costumava identificar e definir génios
(quando, de fato, existiam), conforme o faz, especialmente, na série Vidas dos
Poetas
(1779-81). Donne consta da referida série apenas como mais um integrante da
Escola Metafísica, no volume intitulado A Vida de Cowley. Abraham Cowley é hoje
esquecido,
mas, no final do século XVII, foi o Ezra Pound de sua geração. Embora em
declínio na Era de Johnson, Cowley ainda desfrutava de suficiente notoriedade
para merecer
o primeiro volume da série, como o suposto pai da antiga (e inferior) escola
poética que fora suplantada por John Dryden e Alexander Pope, favoritos de
Johnson.
Johnson muito se orgulhava de seu próprio trabalho em A Vida de Cowley, porque
o mesmo representava um avanço crítico com relação aos Metafísicos (embora a
denominação
do movimento coubesse a Dryden). Eis Johnson atribuindo a Donne o mesmo que
atribuiu Dryden, na verdade, bem menos do que possa parecer:
Aqueles que não os aceitam como poetas, entretanto aceitam-nos como
intelectuais. Dryden confessa que ele próprio e seus contemporâneos são
inferiores a Donne, em
espirituosidade, mas afirma que o superam em poesia.
No número 125 da revista The Rambler, Johnson observa que "cada génio que
surge produz alguma inovação que, depois de inventada e aprovada, subverte
regras estabelecidas
pela prática de autores que o antecederam". Por que, precisamente nesses termos,
Johnson não reconheceu a genialidade de Donne? Embora não o dissesse, o grande
crítico
sentia-se perplexo diante de Donne, a quem descrevera como "obscuro e profundo",
mas cuja poesia condenara como "um voluntário desvio da natureza, em busca de
algo
novo ou estranho".
Donne foi continuamente valorizado, ao longo do século XIX, desde Coleridge a
Arthur Symons, de modo que o seu renascimento, no século XX, via T. S. Eliot,
deve
ser vislumbrado como uma espécie de reflexão posterior. O leitor comum é o
grande juiz de Donne, e Donne está vivo, neste início de século XXI. Pretendo
aqui definir
essa vitalidade, e demonstrar o génio de Donne, estritamente segundo os
critérios johnsonianos -criatividade e vigor permanentes, uma originalidade que
não se pode
descartar como datada. Cito, de Canções e Sonetos, o que há de mais popular na
arte de Donne:
Vai atrás da estrela cadente,
Dá à mandrágora uso brabo, Diz, cadê o passado carente,
E quem deu patas ao diabo; Quero ouvir sereia cantar, E o fogo da inveja evitar,
E ainda tento Saber que vento Motiva a mente honesta a avançar.
Se nasceste p'ra adivinho, E podes ver o invisível, Tens dez mil noites no
caminho,
Cabelo branco perecível; Ao voltares, o conto é meu, O que de estranho
aconteceu, E vais jurar, Não ter lugar Onde haja mulher bela e não vulgar.
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Se uma encontrares, diz-me logo,
Feliz seria a romaria; Não, não digas nada, eu rogo; Nem à porta ao lado eu
iria. Sendo honesta quando a encontraste, E quando a carta a mim postaste,
Quando eu
chegar, Já vai estar Traindo-me com mais de um só traste.
Trata-se da "Canção" de um libertino, embora apresente um tom bastante leve e,
portanto, não deva ser tomada no sentido literal. A ironia é que o próprio
cantador
talvez não seja honesto. A mandrágora era de grande interesse para Donne, que a
essa planta dedicou quatro estrofes, no poema "O Progresso da Alma", em que diz
que
a maçã colhida por Satanás e oferecida a Eva é abandonada pela alma da fruta,
que se transfere para a mandrágora. Surge a antiga tradição de magia e
sexualidade
segundo a qual a mandrágora, ou maçã de maio, pode ser utilizada para provocar
lascívia, sono ou morte. Há, portanto, um certo componente sombrio nessa canção
despretensiosa,
mas prevalece um tipo de ironia libertina.
O génio de Donne é mais original na extraordinária meditação erótica "O
Êxtase", título que se refere a amantes "tomando ar puro", calados, em um
intervalo do
amor. O que torna o poema extremamente incisivo é a duplicidade do tom, que, ao
mesmo tempo, celebra a metafísica do amor e constitui ato de sedução, pois o
poeta
conclui, exortando a dama a renovados prazeres físicos:
Assim como requer o coração
Espíritos gerar à imagem da alma, Se dedos necessários, pois, serão
Para tecer o homem, trama calma,
Devem descer as almas dos amantes,
Provar de algum afeto e algum estado, Que alcançam os sentidos consoantes;
Ou fica um grande rei encarcerado.
Tomemos nossos corpos com ardor,
Para ensinar paixão ao homem fraco: Brotam na alma os mistérios do amor
Mas o corpo é seu livro, eu destaco.
E se houver amante, como nós,
Ouvindo este diálogo de um, Que atente bem: mudança pouca após
Verá, quando dois corpos são nenhum.
A alma unificada dos amantes, neoplatônica, deve separar-se em duas, e voltar
aos corpos, caso contrário, será tão impotente quanto um prisioneiro: "Ou fica
um
grande rei encarcerado." A revelação de natureza erótica e divina torna-se una
na Bíblia do corpo: "Mas o corpo é seu livro." Os dois êxtases são um só, seja
no
momento do descanso ou da atividade sexual. Sem dúvida, trata-se de um convite
ao prazer, mas a sofisticação com o qual é formulado beira a santificação, sendo
ilimitada
a audácia de Donne.
A célebre (e negativa) definição que Johnson formula sobre o intelecto da
escola Metafísica estabelece: "As ideias mais heterogéneas são emparelhadas com
violência."
O génio de Donne é dado a aproximar, através de insinuações sutis, ideias que
apenas parecem diferentes. Os místicos, na antiga tradição da exegese do Cântico
dos
Cânticos, identificam a união divina alegorizada através do jogo erótico. Mas
Donne não é um poeta místico, nem mesmo quando compõe uma obra-prima religiosa
como
"Para Deus, meu Deus, na Agonia". O poeta viveu mais oito anos, mas, ao escrever
este poema maravilhoso, esperava morrer a qualquer momento:
Prestes à Santa câmara adentrar,
Onde, com o teu coro consagrado, Serei a tua música, ao chegar,
O instrumento à porta é testado, E o que hei de fazer, é aqui pensado.
Enquanto o meu doutor tão dedicado
E cosmógrafo e eu mapa de estudo, Aberto sobre o leito e apontado:
Jornada ao sudoeste é isso tudo,
Per fretum febris, pelo mal agudo,
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283
Eu fico feliz, pois nestes estreitos
Enxergo o meu oeste; muito embora As correntes não poupem os defeitos,
Que mal fará o oeste a mim agora?
Leste e oeste se tocam, morte e aurora.
E o mar do Pacífico o meu lar?
O fausto oriental? Jerusalém? Será, pois, Magalhães, ou Gibraltar,
Estreitos, e estreitas rotas também,
Onde mô"rar Jafé, ou Cam, ou Sem.
Achamos que o Paraíso e o Calvário,
A cruz de Cristo e a árvore de Adão, Formavam mesmo só um campanário;
Suor do primeiro Adão na minha face,
Sangue do último Adão minha alma abrace.
Ampara-me, Senhor, com o teu manto;
Dá-me, em troca de espinhos, a coroa; E, se a outras almas preguei teu canto,
Seja este meu sermão a tua loa:
Quem vai ser elevado Deus perdoa.
Não temos aqui o êxtase do místico; temos, sim, a presença de grande
espirituosida-de que se expõe no que tem de mais humana, e o faz com extrema
vivacidade e
humor. Devemos ser cautelosos, ao interpretar a "Santa câmara" como o céu, pois
o decano da Catedral de São Paulo é sutil demais e não ensaiaria tamanha
presunção.
Pensando estar no leito de morte, compõe esse hino para afinar seu instrumento,
a veia poética. Cercado do cosmógrafo atento, ele se vê como um mapa aberto,
imagem
que se torna central ao poema. Per fretum febris (através dos estreitos da
febre), ele se dirige ao sudoeste, para morrer; mas oeste e leste se tocam do
outro lado
do globo e, portanto, a morte toca a ressurreição. Esse "toque" é bastante leve,
e prossegue no jogo com a palavra "estreito". Ardendo em febre, o poeta pensa na
queda de Adão, obrigado a ganhar o pão com o suor da fronte, e pede a Cristo, o
último Adão, que o abrace.
O páthos aqui contido é extraordinário, assim como a reticência teológica.
Supostamente agonizante, o decano, no fundo, tinha plena consciência da sua
própria
trajetória religiosa. Nascido em família católica, com um tio e um irmão que haviam
sofrido em nome da antiga fé, Donne recebeu instrução católica e demorou-se a
abandonar
a tradição da família, segundo consta, não antes de completar 30 anos. A decisão
em favor da Igreja Anglicana não foi, em primeiro lugar, uma opção teológica, e
o retardamento da ordenação como sacerdote anglicano demonstra que o interesse
pessoal tampouco constituiu um motivo primário. Foi o seu temperamento poético
que,
de um modo complexo, determinou-lhe a carreira na igreja. Os críticos estão
certos quando não constatam grande diferença entre o fervor e a espirituosidade
constatados
na poesia do início da carreira e nos sermões finais. Donne buscava continuidade
com o passado cultural e com a sua própria juventude, e encontrou essa
continuidade
com os anglicanos, ponto médio entre o catolicismo romano e o protestantismo
calvinista.
Seus poemas religiosos, bem como os sermões, não têm na teologia a ênfase
principal, e cabe a avaliação de que o seu génio manteve-se consistente, pois a
"espirituosidade"
desempenha papel central em toda a obra. Essa "espirituosidade" tem o
significado antigo, de grande sagacidade, embora Johnson, seguindo Dryden e
Pope, recusava-se
a vê-la como "sagacidade verdadeira", noção de ordem neoclássica. Ben Jonson,
contemporâneo de Donne, tanto admirava quanto depreciava a poesia de Donne, por
demais
idiossincrática para o gosto de Jonson. Um personalismo extremo, sempre presente
em Donne, pode ser considerado a marca singular do seu génio. A voz de Donne
ainda
ressoa, sempre inconfundível:
Minha vida é novamente gerada,
Pela ausência, trevas, morte; coisas que são nada.
284
285
ALEXANDER POPE
Alguns expressam zelo p'la linguagem, Amam livros, qual damas a roupagem; Cabe
elogiar - o estilo é excelente, E o tema lhes ocorre humildemente. Palavras são
qual folhas, se demais, De mui pouco sentido há sinais. A falsa eloquência, qual
o prisma, Espalha as cores vivas do sofisma; O rosto da Natura já não vemos,
Tudo
é igual, distinção não mais fazemos. Mas, a real expressão, tal qual o sol,
Clareia e ilumina - um farol; Doura, sem alterar, qualquer objeto. A expressão é
roupagem
do pensar, E deve ser decente e salutar. A imagem vil, pomposamente expressa, E
palhaço que truques mil professa; Tem gosto para todos os estilos, Qual a moda,
no
campo, vila, e asilos. Uns, por velhas palavras, querem fama, Frases antigas,
com moderna gama. Vãos esforços, estilo de aborrir, Pasmam o chulo e o culto
fazem
rir.
Pope, no Ensaio sobre a Crítica, seu primeiro poema importante, adverte os
críticos sobre os truques praticados pelos falsos poetas. Já no início da
carreira,
Alexander Pope assume o papel de moralista literário, por ninguém desempenhado,
desde Ben Jonson, amigo e rival de Shakespeare. Nanico, e com o corpo deformado
em
consequência de tuberculose infantil, Pope seria um candidato improvável ao
posto de grande poeta inglês do Iluminismo europeu. Para encontrarmos
equivalentes da
precoce genialidade técnica de Pope, precisamos invocar John Milton, Alfred
Tennyson e o falecido James Merrill. Já na infância, Pope, assim como esses três
poetas,
era um artista do verso que se assemelhava mais a um mago do que a um escritor.
À semelhança do amigo, Jonathan Swift, Pope foi mestre da sátira, género
arriscado para qualquer autor. Raramente, o público leitor aprecia a sátira;
banho de enxofre
é estranho, conquanto saudável. Pope não é tão cáustico quanto Swift, mas vai
além de qualquer satirista ativo na atualidade:
Deixai Sporus tremer - "Aquela seda, Sporus, com a carinha tão azeda? Sátira ou
boa-fé, ele tolera? Quem tortura borboleta é megera." Mas deixai-me matar o belo
inseto, Esse infante que pica e é tão abjeto, Cujo zumbido amola o culto e
justo, E cujo intelecto e gosto são um susto; Cãezinhos bem treinados que se
aprazem De
latir para a caça nada fazem. Sorrisos eternais traem-lhe o vazio, Radiante e
borbulhante é o raso rio. Se em pomposa impotência se exprimir, Não passa de um
boneco
a repetir; Ou, se nos ouvidos de Eva, antiga presa, Descarrega o veneno, por
"defesa", Com trocadilho, troça, falsa jura, Verso, ódio, despudor, mentira
pura. Seu
intelecto flui e, então, emperra, Tem altos e baixos, acerta e erra, É a
antítese infame desta terra. Anfíbia criatura! Age em todo lado, Com a cabeça
oca, e o amante
errado, No toucador e à mesa é afetado, Saltita qual mulher, e anda aprumado. O
tentador de Eva era funesto, Cara de anjo, de réptil todo o resto; Tinha um
grande
encanto, traiçoeiro, Orgulho vencido, intelecto rasteiro.
Não importa a identidade de Sporus (Lorde Hervey, que criticara Pope). Diante
desse trecho notável, o leitor é convidado a substituir Sporus pela atual
perversidade
literária que mais lhe aprouver.
286
287
ALEXANDER POPE
(1688-1744)
Há grandes poetas que protestam às margens, como William Blake, e poetas
desconhecidos em vida, como Emily Dickinson e Gerard Manley Hopkins. O génio de
Alexander
Pope tornou-se público, assim como os de Ben Jonson, Lorde Byron ou Oscar Wilde.
Essas figuras personificavam a notícia, com uma força que não se compara a
nenhum
eminente autor do presente, embora tenhamos génios criados pela publicidade, que
não correspondem ao meu conceito de "génios públicos".
Pope iniciou a carreira com sérias restrições. Era católico devoto (embora
dúbio, em termos de doutrina), em uma Inglaterra onde os católicos eram
impedidos de
entrar na cidade de Londres e nas universidades. Assim como o Ricardo III de
Shakespeare, Pope, além de anão, era corcunda. Todavia, como poeta, foi criança
prodígio,
cujo talento era universalmente reconhecido. Na capacidade de mestre do verso,
em língua inglesa, ninguém o supera, embora tenha rivais: dentre os quais
destacam-se
Milton, Tennyson e James Merrill. Não há em Pope verso inferior: Ensaio sobre o
Homem irrita-me, pelas frequentes banalidades de natureza moral, mas, em termos
de
expressão, é impecável. Basta folhear a poesia de Pope, para constatar o brilho
das preciosidades:
Se dançar à noite e enfeitar-se ao dia, Evitasse a varíola e a idade, Quem as
prendas do lar não deixaria, Quem se importaria com utilidade?
***
O Poeta está fadado à decadência, Como os que, de tanto ele elogiar, Ficaram
surdos, mudos, na demência.
***
A estrela brilha! Que ninguém duvide, Abriram-se os portões: Bedlam, Parnasso;
Brilho em cada olhar, poema em cada lide: Gritam, recitam, loucura a cada passo.
***
Quisera nas asas da Musa voar, Tuas armas, ações, teu ócio cantar! Mares que
navegaste! Que lutaste, Que pela paz do país caro pagaste.
Assim, quando ela chega e fortalece, Arte após Arte se esvai, anoitece.
A união entre som e sentido em Pope é digna de elogio, mas aqui busco o seu
génio, ou outro eu. Embora apóstolo da Razão, da Natureza e da Ordem, e louvado
por
tais atributos por Samuel Johnson, Pope tem uma. persona pública que leva a
alguns equívocos de interpretação. Seu trabalho é impelido por uma energia
vibrante,
embora desprovida da ironia furiosa que incita a sátira do amigo íntimo de Pope,
Jonathan Swift, que atravessa os limites da digressão. Pope mantém-se sob
controle,
assim como o faz Racine, mas o leitor percebe, do princípio ao fim, trevas que
ameaçam, embora não cheguem a se precipitar.
Trevas não faltavam. Pope tinha 16 anos quando uma infecção de tuberculose
provo-cou-lhe um duplo entorse da coluna vertebral. Com cerca de 1,30m de
altura, atormentado
por dores de cabeça e exaustão, Pope criou uma arte que representava o triunfo
sobre a deformação física. A elegância, o vigor, o equilíbrio e a memorabilidade
da
sua poesia conferiam-lhe forças morais para suportar a doença que o perseguiu
por quase toda a vida. A energia que lhe propulsiona a obra, com efeito, faz de
Pope
o exuberante apogeu de uma tradição neoclássica formada por Ben Jonson, Denham,
Waller e Dryden. Samuel Johnson, o Shakespeare da crítica, gostava muito de
Dryden,
mas considerava Pope a perfeição, em termos de poesia, motivo pelo qual (talvez)
o grande Johnson tenha escrito apenas dois poemas de primeira linha: Londres e A
Vaidade do Desejo Humano. Existe aqui um enigma: Dryden, Pope e Johnson sabiam
que Shakespeare e John Milton possuíam uma grandeza criadora e intelectual que
estava
muito além da linha neoclássica (o inglês utilizado por Chaucer tornou-o menos
acessível aos três). Pope e Johnson editaram as obras completas de Shakespeare,
e
Dryden os precedeu, proclamando a primazia do poeta-dramaturgo elisabetano. E
Dryden, Pope e Johnson situavam Milton logo abaixo de Shakespeare. Temos aqui,
portanto,
uma complexa divisão: a versão que Pope executa da poesia de Homero, segundo
Johnson, "afinou a língua inglesa" e, assim sendo, refinou Dryden. Segue, então,
que
Shakespeare e Milton careciam de refinamento? Será que se prestariam a tal? Será
que representavam algo maior que refina288
289
mento, algo que instigaria poetas da década de 1740, como Collins, Gray e os
Warton, a compor uma Nova Poesia, desaprovada por Johnson? A questão tornou-se
mais
premente com William Cowper e William Blake, a partir de 1780, e transformou-se
em uma polémica central para Coleridge, Wordsworth, Shelley e Keats.
Por mais que Pope o venerasse, Shakespeare não chegou a inibir-lhe a
criatividade de autor de sátiras e paródias de épicos. As obras-primas de Pope,
O Roubo da
Madeixa e The Dunciad, ambas paródias de épicos, a primeira estabelecendo
relações brilhantes com Paraíso Perdido, a segunda, com Milton e com a Bíblia.
Johnson
apreciava imensamente a tradução que Pope fez de Homero, mas tal fato é
considerado por muitas pessoas um enigma. A tradução de Homero foi lucrativa
para Pope, o
primeiro poeta, desde Shakespeare", a alcançar estabilidade financeira através
do trabalho, mas, hoje em dia, não conheço ninguém que leia (ou possa ler) a
obra
em questão.
A paródia do épico, que ocupa o centro da poesia de Pope, foi definida, pelo
falecido Maynard Mack, como "metáfora de tom", ambivalente, isto é, ao mesmo
tempo
cómica e destrutiva. Essa ambivalência triunfa na Dunciad maior obra de Pope, a
qual passo a focalizar. Trata-se de uma grande comédia, mas é tão devastadora
quanto
a sátira de Swift. Estremeço quando leio História de um tonel, mas rio do
princípio ao fim da Dunciad
William Blake não gostava de Pope, embora, sendo escritores apocalípticos,
ambos apresentassem afinidades curiosas: é elucidativo ler "Nona Noite, o Juízo
Final",
seção de Os Quatro Zoas, lado a lado ao Livro 4 da Dunciad. Blake escreve
profecia, não paródia do épico, mas, em Pope, a paródia do épico é um género
profético.
Johnson não apreciava muito a Dunciad o que é fascinante. Johnson pensava que a
"irascibilidade de Pope prevaleceu" porque "o poeta confessou a própria dor, por
meio da raiva, mas não magoou aqueles que o provocaram". Decepcionado com Swift,
Johnson detectou (cor-retamente) o estilo de Swift na Dunciad, que, para
Johnson,
continha "bastante petulância e malícia", além de um excesso de imagens de mau
gosto. O que tanto a Dunciad quanto A História de um Tonel temem é a loucura
cultural
generalizada. Escrevo em 2001, quando o mundo cultural é um inferno, e dele
nenhum de nós escapamos. Não precisamos de uma nova Dunciad, Pope é totalmente
relevante
e, com acerto, profetiza o triunfo do Reino do Imbecil, em nossas universidades
e na mídia contracultural:
Embaixo da bancada geme a Ciência, É exilada e punida a Sapiência. A Lógica,
rebelde, é amordaçada, Retórica, despida, e amarrada; A linguagem grosseira,
insolente,
Adorna o manto sofista da mente. A Moral, defendida pelo falso - A Astúcia e o
Casuísmo no encalço -Arfa e morre; vence a Imbecilidade. O Ensino, enlouquecido,
corre
à solta, Louco demais, para qualquer escolta. Presas com algemas Musas estão,
Guardadas pela Inveja e Adulação; Um punhal, causador de grande dano, Volta a
Tragédia
a si, não ao tirano. A grave História evita o julgamento, Jura vingar o bárbaro
momento.
Atuo, no magistério de nível superior, em um local conforme aqui descrito, e o
mesmo se aplica a todos os profissionais da área; e é nesse ambiente que
prevalecem
as especulações e as resenhas tendenciosamente culturais (basta consultar
qualquer número do New York Times). A esplêndida conclusão da .DwwczWindica-nos
para onde
todos nos dirigimos atualmente, e aonde (evidentemente) a maioria de nós deseja
chegar:
Em vão, tudo em vão - eis a Hora fatal:
A Musa obedece ao Poder final.
Ela vem! Ela vem! Olhai o trono
Da Noite primeva, do caos do sono!
Diante dela, o ouro da nuvem escorre,
O arco-íris, de vários matizes, morre.
Desperdiça o intelecto o seu ardor,
Despenca o meteoro, perde a cor.
Temendo Medeia, a cada momento,
As estrelas se vão do firmamento;
Tal qual Hermes fechou olhos de Argo,
Todos, um a um, em sono eterno e amargo,
Quando ela vem, com seu secreto açoite,
Arte após Arte some, e tudo é Noite.
A Verdade, com medo, quer fugir,
Sob montes de casuísmo vai dormir!
A Ciência, que do Céu era penhor,
A causa material dá mais valor.
290
291
A física não quer a metafísica, E esta pede auxílio à razão tísica! Mistério
foge atrás da Matemátical Em vão! Tudo é tolice nesta prática. A Religião
esconde o
fogo santo, E a Moral desfalece, em franco pranto. Ao ardor público ou privado
não há hino, Não há lampejo humano ou divino\ Olhai! O Império - Caos - agora é
acerbo:
Morre a Luz, sob o efeito do teu Verbo: Tua mão, ?\jiarquista! desce a cortina,
E a Treva Universal será a ruína.
O riso demoníaco de Pope, no que respeita a esse horror cultural, não deixa
de revelar um certo prazer pela destruição. O Livro 4 da Dunciad surgiu em 1742;
em
2001, o seu conteúdo me assusta.
JONATHAN SWIFT
Desde a semana passada, tenho permitido que minha esposa jante em minha
companhia, sentada à cabeceira, do outro lado da mesa, e que responda (com a
maior brevidade
possível) às poucas perguntas que eu lhe fizer. No entanto, sendo o odor de um
Yahoo sempre ofensivo, tenho sempre folhas de arruda, alfazema ou tabaco em
minhas
narinas. E, embora seja difícil para um homem maduro livrar-se de velhos
hábitos, tenho a esperança de um dia poder tolerar a presença de um Yahoo, sem
ficar apreensivo
com relação às suas presas e garras.
A minha reconciliação com a espécie dos Yahoo não seria tão difícil se eles se
contentassem apenas com os vícios e os desatinos que lhes conferiu a natureza.
Não
me irrito, em absoluto, ao deparar-me com um advogado, um batedor de carteira,
um coronel, um bobo, um lorde, um jogador, um político, um cafetão, um médico,
um
delator, um subornador, um promotor, um traidor etc; todas essas figuras estão
de acordo com o estado das coisas. Mas, quando me deparo com uma massa disforme
e
infecta, tanto no corpo como na mente, acometida de orgulho, a situação acaba,
imediatamente, com a minha paciência; tampouco serei capaz de compreender como
podem
se coadunar tal animal e tal vício.
Eis Lemuel Gulliver, após retornar da Quarta Viagem à terra dos sábios e
virtuosos Houyhnhnms (cavalos) e dos terríveis Yahoos (nós, seres humanos).
Gulliver fala
e não fala em nome de Jonathan Swift. Afinal, o pobre Gulliver é um Yahoo, tanto
quanto Swift. Os cavalos, por mais idealizados, permanecem cavalos; os humanos,
por mais humilhados, mantêm ao menos a imagem humana. Swift não pretende
promover a nossa identificação com Gulliver, mas tampouco podemos repudiá-lo. As
Viagens
de Gulliver são uma sátira enlouquecida, e sempre há de causar estranheza o fato
de a Primeira e a Segunda Viagem, às terras de Liliput e Brobdingnag, terem se
celebrizado
como literatura infantil.
Swift refletiu, de modo contundente, a respeito da loucura, e terminou por
enlouquecer, vitimado por uma condição fisiológica. Embora lembremo-nos de Swift
como
satirista, pois sua arte grotesca derrete as superfícies a fim de expor a
realidade dos serei humanos, o centro de seu génio é a ironia, em que o
verdadeiro sentido
difere daquilc que se afirma.
292
293
Swift nos perturba porque sua ironia parece não ter limite. Os maiores
autores de língua inglesa - Shakespeare e Chaucer - são ironistas heróicos, mas
sua ironia
é mantida sob controle, exceto em situações extremas, como, respectivamente, em
Medida por Medida e O Conto do Vendedor de Indulgências. Mas em Swift a ironia
predomina,
e alcança uma turbulência irrefreável, especialmente em A História de um Tonel.
WiUiam Blake escreveu: "Beleza é exuberância." Segundo esse parâmetro, o feroz
Swift
é criador de uma beleza imensa.
JONATHAN SWIFT (1667-1745)
Aos 75 anos, em 1742, Swift foi declarado insano. E importante estabelecer uma
distinção entre esse fato e a eminência do escritor, o génio da ironia, pois, no
exercício dessa ironia, não há loucura alguma. A enfermidade que destruiu a
mente de Swift afe-tou-lhe o ouvido médio, uma labirintite vertiginosa que, às
vezes,
causava-lhe a ilusão de ouvir sinos, além de privar-lhe do senso de equilíbrio.
Corre a história de que, em seu sofrimento, Swift certa vez pegou um exemplar da
obra-prima A História de um Tonel, leu algumas sentenças, deixou-o de lado e
disse, com um suspiro: "Grande era o meu génio, quando escrevi esse livro!"
Releio A História de um Tonel duas vezes por ano, religiosamente, porque o
livro me arrasa e, portanto, faz-me muito bem. Excluindo-se a prosa
shakespeariana,
a prosa dessa obra de Swift, a meu ver, é a melhor até hoje escrita em língua
inglesa, e o livro constitui o corretivo mais salutar para qualquer pessoa com
tendências
visionárias ou entusiasmo romântico. A História de um Tonel ensina os usos da
ironia, algo de que atualmente necessitamos mais do que nunca, todos nós,
inclusive
eu.
A História de um Tonel reúne, em 100 páginas, um misto estonteante de paródia,
sátira, infinda ironia e digressões intencionais. Com a idade, tornei-me um
professor
sumamente digressivo, que, amiúde, precisa perguntar aos alunos em que ponto
estávamos, antes da minha última divagação. Por conseguinte, não sei ensinar sem
invocar
A História de um Tonel cujo método discursivo é interromper uma narrativa
alegórica com digressões, até tudo se tornar divagação. Sátiras tendem a
divagar; postas
em movimento, as sátiras sempre são surpreendidas por novos objetos de ataque.
As divagações de Swift excedem as de quase todos os demais satiristas: A
História
de um Tonel em sua totalidade, encerra uma grande digressão. O que Freud chamou
de instintos (amor e morte), para Swift, são apenas digressões. Quando se
divaga,
faz-se um desvio, como quem jamais caminha em linha reta. Em geral, embora Swift
combata muitos inimigos, seus principais oponentes são Hobbes e Descartes. O
"tonel"
do título tem inúmeros significados, inclusive o próprio objeto, irrelevante,
mas que deve ter também algum sentido cómico, particular a Swift. Perseguidos
por uma
grande baleia, os navegantes atiravam um tonel ao mar, na esperança de desviar a
ameaça, assim como Swift tenta distrair os leitores com relação à metafísica
materialista
do Leviatã, de Thomas Hobbes. Descartes, proponente do dualismo filosófico, é
morto por Aristóteles, em A Batalha dos Livros, de wift. O satirista não concede
a
Descartes nem a honra de uma morte digna: a seta de Aristóteles fora apontada
contra Sir Francis Bacon, mas "divaga" e alveja Descartes.
294
295
Tudo em A História de um Tonel é desconcertante: a parte crucial constitui um
para-texto, um escrito paralelo - Discurso sobre o Funcionamento Mecânico do
Espírito.
Se espírito e matéria devem permanecer, radicalmente, separados, como queria
Descartes, então, o espírito deve ser transportado além da matéria:
há três maneiras de ejacular a alma (...). A primeira constitui um Ato Divino, e
denomina-se Profecia ou Inspiração. A segunda é um ato do Diabo, e denomina-se
Possessão.
A terceira (...) resulta de uma forte Imaginação (...). A quarta -Entusiasmo
Religioso -, ou o desprendimento da Alma, sendo, estritamente, Efeito de
Artifício e
Operação Mecânica, não tem sido muito empregada.
Essa situação deve agora ser remediada, e o narrador de Swift informa que, na
Era de Hobbes e Descartes, a Operação Mecânica do Espírito é, deveras,
digressiva:
a alma, sempre propensa à divagação, torna-se um vapor gasoso.
Entre a contumaz indignação de Swift e o leitor interpõe-se o narrador, ele
próprio, um mar de desinformação, como convém a um escritor charlatão que faz
ponto
em Grub Street, e que encarna muitas das noções atacadas. Swift, entretanto, não
torna as coisas tão simples e claras assim: de quando em vez, em um acesso de
fúria,
permite que o narrador charlatão fale em nome do autor, conquanto o infeliz seja
um ex-interno do manicômio. O charlatão escreve em prol do "Aperfeiçoamento
Universal
da Humanidade"; os propósitos de Swift são menos presunçosos, mas o porta-voz
tem a tendência de expressar uma eloquência swiftiana. Os grandes sacerdotes da
digressão,
inimigos de Swift, seguidores do deus do vento, incluem "Todos os candidatos à
Inspiração, de qualquer natureza", sendo descartados como vulgares visionários
do
apocalipse:
Devido ao Hábito desses Sacerdotes, alguns Autores insistem que tais Eólios
estão no Mundo desde a Antiguidade. Isto porque, os seus Mistérios, que acabo de
mencionar,
coincidem, exatamente, com aqueles de outros Oráculos antigos, cuja Inspiração
decorria de certas Correntes de Vento subterrâneas, destinadas ao Sacerdote e
que
muito influenciavam o povo. É bem verdade, tais correntes eram, muitas vezes,
dirigidas por praticantes Femininas, cujos órgãos eram, supostamente, mais
propensos
a tais Lufadas Oraculares, pois, nesses casos, atravessam um Receptáculo de
maior Capacidade, causando, no Processo, um Frémito que, be/n trabalhado, elevase de
um Êxtase Carnal a um Êxtase Demoníaco. E, para reforçar essa profunda
Conjectura, insiste-se que esse Hábito das Sacerdotisas ainda hoje é preservado
nos Educandários
mais refinados dos nossos Eólios Modernos, que se
aprazem de receber Inspiração exarada pelos Receptáculos acima mencionados, a
exemplo das Ancestrais, as Sibilas.
Embora Swift equipe o narrador com uma certa ironia, o trecho seguinte é
chocante, e bastante ofensivo à visão feminista:
Os Eruditos Eólios defendem as hipóteses de que a Causa Original de todas as
Coisas é o Vento, Princípio a partir do qual todo o Universo foi construído, e
ao qual
deverá retornar; e que o mesmo Sopro que acendeu a Chama da Natureza, um Dia
haverá de extingui-la.
Na conclusão, o objeto da sátira são os Quakers, mas o trecho, como um todo, é
caracterizado por um crescendo que faz lembrar Rei Lear. Susan Gubar, impaciente
com defensores de Swift na academia, assinala, com correção, o horror do
satirista no que diz respeito aos "irresistíveis aspectos físicos" da mulher. A
natureza
psicossexual de Swift não era das mais felizes, mas, mesmo que ele houvesse
desfrutado enlevos genitais com "Estela" e "Vanessa", que jamais chegaram a ser
suas
amantes, não creio que esse génio encarnado da ironia houvesse escrito de modo
diferente, e parece-me absurdo acusar Swift de misoginia, pois ele se sente
igualmente
indignado diante de toda a humanidade, homens e mulheres. Decerto, a principal
contenda de Swift é que todos nós, de ambos os géneros, estamos sujeitos às
Operações
Mecânicas do Espírito. Condição que, portanto, também se aplica a Swift, nesse
trecho magnífico, esse "vapor" sublime, que se volta contra "vapores":
Além disso, existe nas Mentes humanas algo Individual que, facilmente, se aquece
diante da Proximidade e do Impacto de determinadas Circunstâncias, que, embora
de
Aparência medíocre, muitas vezes se transformam nas maiores Emergências da Vida.
Grandes Reviravoltas nem sempre são realizadas por Mãos vigorosas, mas por
Circunstâncias
do acaso, e pelo Momento certo; pouco importa de onde partiu o Calor, desde que
o Vapor suba ao Cérebro, pois a Região superior do Homem é provida como a Região
mediana do Ar; os Materiais são formados por Causas bastantes distintas, mas
produzem, em último caso, a mesma Substância e o mesmo Efeito. Névoas surgem da
Terra,
Vapores emanam do Estrume, Exaltações emanam do Mar e Fumaça, do Fogo; todavia,
os gases emitidos por uma Latrina fornecem vapor tão gracioso e útil quanto o
Incenso
em um Altar. Ate aqui, suponho, todos concordam comigo; segue, então, que, assim
como a Natureza jamais produz a Chuva, senão quando está sobrecarregada e
perturbada,
296
297
o Entendimento Humano, alojado no Cérebro, é afetado por Vapores que ascendem
das Partes baixas, a fim de irrigar a Criatividade e fazê-la frutífera.
Se isso ainda é sátira, então o próprio Swift é uma das vítimas, assim como é
difícil deixar de vitimá-lo, desassociando-o de Gulliver, em Viagens de
Gulliver.
A História de um Tonel é uma obra mais importante, assim como Rei Lear supera
Otelo, pois tanto em A História de um Tonel quanto em Rei Lear, somos levados a
um
limite perigoso, em que as forças retóricas e passionais parecem superar
qualquer consideração formal. Norman O. Brown, no livro Life Against Death
(1959), defendeu,
com notoriedade, o que ele mesmo chamou "Visão Excrementícia" de Swift, tomando
a expressão emprestada a Middleton JVlurray e Aldous Huxley. Décadas mais tarde,
parece-me que tal noção dispensa tanto a piedade quanto o elogio, exatamente
conforme nos casos de Rabelais e Blake, ambos satiristas imbuídos de energias
demoníacas.
O que assustava Samuel Johnson, com respeito a Swift, não era tanto a potência
do génio do satirista, mas o "perigoso exemplo" da sátira swiftiana, com tantas
tendências
"religiosas". Swift considerava-se devoto sacerdote anglicano, servindo como
decano da Catedral Protestante de São Patrício, em Dublin. Mas era parodista,
ironista
e satirista de génio incomparável. Na avaliação de Johnson, esse talento fugiu
ao controle de Swift: os sinos fizeram a torre desabar.
Tomei o cuidado de distinguir entre o génio e a loucura (final) de Swift, mas,
quando releio A História de um Tonel não creio que consiga distinguir entre
genialidade
e fúria. De início, os alvos são Hobbes e Descartes, mas logo se expandem para
incluir todos nós, o próprio Swift sendo mais uma vítima. Goneril e Regan são
monstros
das profundezas, mas a fúria de Lear supera as provocações feitas pelas filhas.
É difícil não sentir que a ira de Swift vai além do Entusiasmo por ele
criticado.
E possível manifestar indignação profética contra a profecia? O que sanciona a
aparente crueldade de Swift? "Aparente" é a palavra controversa nessa minha
questão:
Semana passada, vi uma mulher tosquiada, e o leitor mal pode imaginar como a
condição fez piorar a aparência da mulher.
A potência literária dessa ironia é indisputável; pode ser lida como uma
paródia do sadismo, mas o sabor do próprio sadismo pode ser excluído? A História
de um
Tonel é sempre impactante porque se trata de um dos poucos livros totalmente
originais escritos em língua inglesa. Os dois termos opostos, fundamentais à
obra, são
"mecânico" e "espírito", e Swift despreza a ambos: a máquina é o corpóreo,
conforme designação de Hobbes, e o espírito é a consciência, isolada e reduzida
por Descartes.
Concebido como
máquina, o corpo parece a Swift, primeiramente, o produtor de excremento e
fluidos sexuais, enquanto o espírito cartesiano é vento, vapor nocivo. O
cristianismo
de Swift, em contraste, trilha o caminho do meio: razão e verdade não nos
conduzem à felicidade (meta improvável, para Swift), mas à ordem e à decência.
Infelizmente,
esses termos perderam muito do seu brilho ao longo dos três séculos desde a
publicação de A História de um Tonel George W. Bush e a Coalizão Cristã não
seriam ideais
swiftianos, que exaltava a mente, base legítima de seu orgulho feroz.
Continuo a ler A História de um Tonel porque a obra pune a minha busca pelo
espírito na poesia romântica e pós-romântica. Em um sentido menos pessoal,
recomendo-a
pela originalidade, intensidade demoníaca e pelo esplendor da sua prosa. E,
desde que o meu interesse é a questão do génio, desconheço outra prosa (nãoficcional)
em língua inglesa que encerre, tão claramente, semelhante explosão de
genialidade tão perigosa e surpreendente.
298
299
JANE AUSTEN
Devo confessar que a considero [Elizabeth Bennet] uma das figuras mais
interessantes até hoje criadas pela ficção, e não sei como vou tolerar os que
não gostam dela.
- Jane Austen, em carta para a irmã, Cassandra, 29 de janeiro de 1813
A única pessoa que recordo não ter gostado da heroína de Orgulho e Preconceito
foi Vladimir Nabokov, que fez com que eu me retirasse de um salão de
conferências,
na Universidade de Cornell (em 1947), devido à sua insistência na inferioridade
de Jane Austen diante de Nikolai Gogol. Elizabeth Bennet, proclamava Nabokov
(fazendo
lembrar Humbert Humbert), é insípida. Tal avaliação equivale à descoberta de que
a Rosalinda, de Shakespeare, em Como Gostais, é entediante. Nabokov ainda não
escrevera
Fogo Pálido, a prova mais cabal do seu génio, mas nem mesmo essa obra
extraordinária apresenta a hilaridade memorável de Orgulho e Preconceito. O que
Gogol (acometido
de loucura sublime) pensaria de Jane Austen, não posso imaginar, mas a
comparação entre os dois é iniciativa tão absurda quanto tentar aproximar
Nabokov de George
Eliot. A ironia mordaz de Gogol e Nabokov em nada se parece com a de Austen, que
provém da interioridade dramática de Chaucer e Shakespeare.
Elizabeth Bennet, assim como Rosalinda, é espirituosa, amável, bem-dotada de
espírito e sensibilidade; ela realiza o milagre de ser, ao mesmo tempo,
fascinante
e normativa, o que, novamente, estabelece a sua descendência de Rosalinda.
Somente os grandes génios são capazes de criar um tipo de divertimento que só
ameaça as
pessoas rancorosas. C. S. Lewis certa vez sugeriu que Jane Austen era filha
literária de Samuel Johnson. Em termos de crítica, venero Johnson, o Sublime da
minha
vocação. Mas Austen é filha de Shakespeare: as heroínas de Austen desafiam as
contingências da historicização, e constam das nossas mais raras imagens de
liberdade
interior.
JANE AUSTEN
(1775-1817)
Em uma família de oito crianças, Austen foi a sétima a nascer. De vez que o
objeto do meu estudo é o génio sumamente individualizado dessa escritora, que a
distinguia
dos irmãos e de quase toda a população da Grã-Bretanha, de início declaro o meu
desinteresse na suposta relação entre os seus romances e as políticas e
procedimentos
imperiais da Inglaterra. Tenho encontrado um número elevado de docentes - eu não
diria de Literatura, mas de Estudos Culturais - que afirmam jamais terem lido
Mans-field
Park, mas que dizem que o aspecto mais importante desse romance de Austen é o
"lado escuro", financeiro: a usina de açúcar de propriedade de SzV Thomas
Bertram,
em
Antígua.
Na nossa realidade cada vez mais virtual, três autores parecem imunes ao
declínio da leitura autêntica: Shakespeare, Austen e Dickens. Esse fenómeno não
resulta
de culto nem de política: ocorre que personalidades, principais e secundárias,
irrorhpem das páginas desses escritores, em uma profusão jamais vista no âmbito
da
literatura de expressão inglesa. Poucos romancistas, e um número ainda inferior
de dramaturgos, propiciaram-nos dois ou três milagres de personalidade.
Shakespeare,
pelos meus cálculos, criou quase 200; Austen, em seus cinco romances principais,
criou mais de 30. Tendo falecido aos 41 anos, a fase mais importante da carreira
da escritora durou apenas seis anos: 1811-1817. Se vivesse mais uma década,
talvez alcançasse uma projeção que surpreenderia até mesmo os admiradores mais
obstinados.
Persuasão, publicado postumamente, a meu ver, é o romance mais profundo de
Austen, demonstrando uma renovação da interioridade shakespeariana.
Mais uma vez à semelhança de Shakespeare, é sempre frutífera a leitura da obra
de Austen, a despeito da intensidade com que seja realizada. O domínio que a
escritora
exerce sobre o perspectivismo é outra forte característica shakespeariana. "Que
valor tem algo, se não aquele que lhe é atribuído?" - a pergunta retórica
formulada
por Iróilo, em Tróilo e Créssida, é a questão implicitamente aventada pelos
principais protagonistas de Austen: Elizabeth Bennet, Emma Woodhouse, Fanny
Price e Anne
Elliot. Os problemas da estimativa e da estima, do eu e do outro, são centrais,
segundo Austen. Embora seja crucial em Shakespeare, a ironia shakespeariana,
assim
como a de Gnaucer, é grandiosa demais para ser vista, logo, convém permanecer
cético com relação ao valor (ou aos valores) de qualquer personagem. Alistair
Fowler
insiste que Hamlet, na melhor das hipóteses, é um herói-vilão, mas poucos
concordam com tal ideia. Austen dirime quase todas as dúvidas antes da conclusão
de todos
os seus roman300
301
ces: a arte de Austen depende da correta compreensão do leitor. Ninguém, ao ler
Orgulho e Preconceito, poderá se equivocar quanto à interpretação de Ms. Bennet,
Mr. Collins e Lady Catherine de Bourgh: são, nitidamente, hilariantes. Já Mr.
Bennet causa-nos certa perplexidade, embora gostemos dele. Que relação haverá
entre
a escolha atroz em favor de Mrs. Bennet e a recusa de alimentar qualquer emoção
que vá além do divertimento sardónico? Serão os amáveis Jane Bennet e Charles
Bingley
interessantes o bastante para justificar a sua importância na trama? A ironia de
Austen é tão sutil que, talvez, tais personagens não tenham a função de
justificar
coisa alguma: por contraste, a insipidez deles ressalta a intensidade de
Elizabeth e Darcy. Tendo escrito em outros livros sobre Emma e Persuasão, e
sendo avesso
a novas polemicas com os virtuosos dos Estudos Culturaisque infestam as
abordagens praticadas no estudo de Mansfield Park, restrinjo-me aqui a Orgulho e
Preconceito.
O génio de Austen, no que concerne à invenção da personalidade através da força
da ironia, não poderia ser mais bem ilustrado do que nesse carro-chefe da sua
arte.
Mr. Collins é um dos triunfos cómicos da literatura: sozinho, já seria bastante
para estabelecer, para sempre, o génio de Austen. Eis Mr. Collins, no capítulo
19,
propondo casamento a Elizabeth Bennet:
- São os seguintes os meus motivos para me casar: primeiro, considero correto
que todo clérigo que tenha uma vida confortável (como eu) dê o exemplo do
matrimónio
à sua paróquia; segundo, estou convicto de que o casamento aumentará, em muito,
a minha felicidade; e terceiro, o que, talvez, devesse ter sido mencionado
antes,
faço-o segundo o conselho e a recomendação da nobilíssima dama a quem tenho a
honra de chamar protetora. Por duas vezes ela se dignou a me oferecer a sua
opinião
sobre o assunto (e sem que eu houvesse pedido!); foi no sábado que antecedeu a
minha partida de Hunsford - durante um intervalo da quadrilha, enquanto Mrs.
Jenkins
arrumava o banquinho em que Miss de Bourgh apoiava os pés - que ela disse: "Mr.
Collins, o senhor deve se casar. Um clérigo como o senhor deve se casar. Escolha
certo e, para o meu bem, escolha uma dama; e para o seu, que seja pessoa ativa e
prendada, que não seja dada a caprichos, e que saiba ser económica. Eis o meu
conselho.
Encontre uma mulher assim, o quanto antes, traga-a a Hunsford, e eu a
visitarei." A propósito, permita-me observar, cara prima, não considero a
atenção e a bondade
de Lady Catherine de Bourgh as menores vantagens que tenho a oferecer. Você vai
constatar que as boas maneiras dessa dama são indescritíveis; e, creio eu, a
espirituosidade
e vivacidade da prima serão por ela bem aceitas, especialmente quando investidas
do silêncio e do respeito impostos, inevitavelmente, pela classe de Lady
Catherine.
Quanto aos motivos em favor do matrimónio já basta; resta dizer por que estou
inclinado a LongJANE AUSTEN
bourn, ao invés da minha própria vizinhança, onde, posso garantir-lhe, vivem
muitas jovens amáveis. O fato é que, como futuro herdeiro desta propriedade,
após o
falecimento do seu honrado pai (que, no entanto, pode viver ainda muitos anos),
eu jamais poderia deixar de escolher uma esposa entre as filhas desse honrado
senhor,
a fim de que a perda lhes seja a menor possível, quando transcorrer o
melancólico evento - o que, no entanto, conforme já disse, talvez demore vários
anos para ocorrer.
Eis o meu motivo, cara prima, e apraz-me pensar que ele não diminuirá o seu
apreço. E agora resta-me apenas assegurar-lhe, através da linguagem mais
enfática possível,
a intensidade do meu afeto. Sou inteiramente indiferente à fortuna, e, nesse
sentido, não farei qualquer exigência a seu pai, pois sei muito bem que não
poderia
ser atendida; assim como sei que uma quarta parte de mil libras, que só lhe
caberão após o falecimento da senhora sua mãe, é todo o seu direito. Quanto a
esse particular,
portanto, permanecerei calado; e pode ter certeza de que jamais pronunciarei uma
palavra de ingratidão, depois que nos casarmos.
Nenhum ficcionista dotado de veia cómica pode superar um trecho como esse! Nem
mesmo Dickens criou um personagem que se equipara ao notório Mr. Collins, cuja
afeta-ção
encontra a sua deusa na figura de Lady Catherine de Bourgh, infinitamente
adulada. Talvez a sentença sublime no trecho seja: "E agora resta-me apenas
assegurar-lhe,
através da linguagem mais enfática possível, a intensidade do meu afeto." Feita
a afirmação, Mr. Collins passa, imediatamente, para questões práticas,
financeiras,
lembrando a Elizabeth o valor reduzido de seu dote. Mas Austen quase se supera,
na concisão estilística em que relata a "sobra" de Mr. Collins para a melhor
amiga
de Elizabeth, Charlotte Lucas:
Assim que o longo discurso de Mr. Collins permitiu, tudo ficou acertado entre
eles, em comum acordo; e, enquanto entravam na casa, Mr. Collins pediu-lhe que
escolhesse
o dia em que ele se tornaria o mais feliz dos homens; e, embora a solicitação
ficasse, por ora, pendente, a dama não tinha qualquer pretensão de brincar com a
felicidade
de quem quer que fosse. A estupidez com que a natureza
o
favorecera impedia que a sua adulação tivesse qualquer tipo de charme
que
levasse uma mulher a desejar a sua continuidade; e Miss Lucas, que o aceitava,
exclusivamente, devido ao desejo puro e simples de se estabelecer, pouco se
importava quando tal fato viesse a ocorrer.
1
or trás dessa comédia e do humor de alto nível atinente ao namoro
entre Darcy e
Elizabeth, encontra-se a pungência da história pessoal de Austen. Em 1796, aos
20
302
303
anos de idade, apaixonara-se por Tom Le Froy, jovem irlandês, de ascendência
hugue-note, também com 20 anos. A insuficiência do dote de Austen comprometeu o
relacionamento.
É possível que tenha havido uma outra relação amorosa, mais tarde, mas o
indivíduo faleceu. Certo é que, no outono de 1802, Austen aceitou o pedido de
casamento
feito por um tal Harris Bigg-Wither. Contudo, após uma noite em claro, Austen
informou ao jovem (ele tinha, na ocasião, 22 anos, ela, 27) que não poderia
desposá-lo.
Tudo leva a crer que essa relação tenha constituído o final da vida amorosa de
Austen; vale registrar, no entanto, que Bigg-Wither casou-se dois anos mais
tarde,
e teve dez filhos. Se Austen tivesse se casado, talvez não houvesse concluído um
romance sequer.
Os precursores imediatos de Austen foram Samuel Richardson e Fanny Burney,
que lhe mostraram como reunir Richardson e Henry Fielding em uma nova modalidade
de
narração. Embora Sir Charles Grandison, segundo consta, fosse o romance
predileto de Austen, a obra-prima de Richardson é Clarissa, ficção tão extensa
e, sob o ponto
de vista estético, tão maravilhosa quanto Em Busca do Tempo Perdido, de Proust.
Clarissa não conta com muitos leitores, atualmente, mas não creio que Austen,
Dickens,
George Eliot, Henry James ou Joyce tenham escrito obra tão impactante quanto
esse romance de Richardson. Austen não tinha sensibilidade religiosa, mas seu
temperamento
era protestante, e o seu conceito de vontade protestante foi influenciado pelos
romances de Richardson, pela poesia de William Cowper e pela crítica (literária
e
moral) de Samuel Johnson. As heroínas dos romances de Austen são modelos da
vontade Puritana, que exalta a autonomia da alma. "Orgulho", em Orgulho e
Preconceito,
é a arte da vontade. Vejamos o trecho que, na minha opinião, é o melhor do
livro: a recusa à proposta de casamento que Darcy faz a Elizabeth, no capítulo
34:
Após um silêncio de vários minutos, ele aproximou-se dela, agitado, e disse: Tenho lutado em vão. Não é possível. Meus sentimentos não serão mais reprimidos.
Você
tem de permitir que eu lhe diga o quanto a admiro e a amo.
A perplexidade de Elizabeth era tamanha que mal conseguia expressá-la.
Atónita, ela manteve o olhar parado, as faces coradas, e permaneceu calada. Ele
sentiu-se
estimulado diante de tal reação, e a confissão de tudo o que, havia muito,
sentia por ela aflorou, imediatamente. Falou com desenvoltura; mas havia
sentimentos,
além dos que ficam no coração, que precisavam ser detalhados; e ele não era mais
eloquente no que dizia respeito ao afeto do que ao orgulho. A consciência da
inferioridade
dela - o que representava uma degradação - e dos obstáculos relativos a questões
de família eram considerados com uma afeição que parecia resultar do sofrimento
de Darcy, mas que pouco lhe favorecia os galanteios.
A despeito da profunda antipatia, ela não conseguia ficar insensível à lisonja
contida no afeto daquele homem, e, embora não vacilasse um instante sequer em
sua
intenção, ela, a princípio, lamentava o sofrimento pelo qual ele haveria de
passar; porém, magoada e irritada pela linguagem que ele veio a empregar, ela
deixou
de lado a compaixão. Contudo, procurou manter-se calma, a fim de respon-der-lhe
com paciência, quando ele terminasse. Ele concluiu reiterando a força dos seus
sentimentos,
que, por mais que tentasse, não conseguira dominar, e expressando a esperança de
que tais sentimentos fossem recompensados, no momento em que ela aceitasse a
proposta.
Quando ele disse essa frase, ela percebeu, nitidamente, que ele não tinha dúvida
quanto a uma resposta favorável. Ele falava de apreensão e ansiedade, mas seu
semblante
exprimia segurança total. Tal circunstância serviu apenas para exasperá-la ainda
mais e, quando ele se calou, o rubor subiu às faces de Elizabeth, e ela disse:
Em casos como este, creio ser de bom tom expressar agradecimento
pelos
sentimentos demonstrados, por menor que seja o grau de reciprocidade. É natural
agradecer, e se eu pudesse sentir gratidão, eu agora lhe seria grata. Mas não
posso -,
jamais desejei a sua lisonja, com certeza, você a dispensou à toa. Lamento fazer
sofrer quem quer que seja. Não o fiz de modo consciente, e espero que tal sofri
mento dure pouco. Os sentimentos aos quais você diz ter resistido durante tanto
tempo não serão difíceis de ser superados, depois dessa explicação.
Mr. Darcy, encostando ao consolo da lareira, o olhar cravado no rosto de
Elizabeth, aparentemente, reagia mais com surpresa do que ressentimento, diante
das palavras
a ele dirigidas. Ficou pálido de ódio, e a perturbação mental era visível em
cada um dos seus traços faciais. Esforçava-se para manter a compostura, e não
abriria
a boca, até que tivesse certeza de estar sob controle. Para Elizabeth, a pausa
foi terrível. Finalmente, em um tom de voz que deixava transparecer uma calma
forçada,
ele disse:
E esta é a resposta pela qual tive a honra de esperar: talvez, eu
gostasse de ser
informado por que, com tão pouca demonstração de civilidade, estou sendo rejeita
do. Mas isso não tem muita importância.
Alguns dos melhores estudiosos de Austen exaltam a capacidade de mudança
observada em Darcy e Elizabeth, e dizem que, assim, os dois garantem a
felicidade quando
se reúnem, mais tarde. O perspectivismo irónico de Austen, no entanto, deixa
margens para outras interpretações. Darcy e Elizabeth, na verdade, não mudam
muito,
apenas aprendem a lidar com o orgulho recíproco, complementar, e que passa a ser
visto como egitimo. O que os dois vêm a perceber, com clareza, é que são unidos
pela vontade,
304
305
vontade de aceitar uma estima caracterizada pelo reconhecimento de alto valor
mútuo. Ambos compreendem que não devem cometer um equívoco na escolha de uma
"vontade"
afim. Trata-se de um protestantismo enviesado, mas, sem dúvida, faz parte da
tradição protestante, segundo a qual a Bíblia é lida à luz do entendimento do
próprio
leitor, e ninguém perde a autonomia em consequência de êxtases místicos. Das
duas vontades, a de Elizabeth é mais pura, mas a de Darcy é mais ansiosa,
portanto,
mais insistente consigo mesma.
Como definir o génio de Jane Austen? Henry James, com ironia defensiva,
escreveu que "a chave do sucesso de Jane Austen na posteridade é, em parte, a
graça extraordinária
da sua naturalidade, com efeito, da sua inconsciência". Conforme o faz com Hawthorne e George Eliot, James tenta negar o talento artístico, consciente, de
Austen,
pois precisa defender-se dos predecessores. Basta inverter o comentário, e falar
da graça da consciência de Austen, cujo perímetro, apesar de todas as limitações
sociais (propositadas), expande-se, buscando conquistar dimensões
shakespearianas. Não basta considerar Austen, primeiramente, uma ironista: ela
foi um génio da
vontade, foi um agente fundamental na secularização da vontade protestante.
Contudo, o aspecto mais conspícuo dessa vontade é a direção em que a mesma se
move: rumo
à personalidade, à liberdade extrema da individuação.
Quando toco meu koto, sozinha, sentindo a brisa fresca da noite, tenho receio
de que alguém me ouça e perceba que "torno maior a tristeza circundante"; quanta
vaidade, quanta melancolia. Agora meus dois instrumentos, o de 13 e o de seis
cordas, ficam o dia todo dentro de um pequeno armário cheio de fuligem.
Esquecidos
- esquecia-me, por exemplo, de pedir que os cavaletes fossem retirados em dias
de chuva -, acumulam poeira, encostados entre o guarda-louça e uma coluna.
Ainda há outros dois guarda-louças entulhados. Um está cheio de velhos poemas
e contos que servem de lar para incontáveis insetos que se espalham de modo tão
repugnante
que chegam a repelir o olhar; o outro está repleto de livros chineses que caíram
em descuido desde que o homem que os colecionava faleceu. Sempre que a minha
solidão
me ameaça, folheio um ou dois desses volumes; e minhas aias falam de mim, pelas
costas: "Por isso é tão infeliz. Que tipo de dama haveria de ler livros
chineses?",
cochicham. "No passado, não era comum nem a leitura de sutras!" "Sim", tenho
vontade de dizer, "mas nunca encontrei alguém que conseguisse viver mais por
acreditar
em superstições!" Mas tal afirmação seria impensada. Existe uma certa verdade no
que elas dizem.
Lady Murasaki, em seu Diário, bem como em A História de Genji, realiza uma
busca do tempo perdido quase proustiana, como convém a uma escritora que era, de
fato,
o génio da busca. O esplêndido Genji, paradoxalmente, é destruído pelo seu
próprio anseio de amar. Quando o verdadeiro amor de sua vida, Murasaki, cujo
nome é tão
significativo, definha, em consequência de uma reação involuntária por ter sido
rejeitada, Genji a ela sobrevive por muito pouco tempo.
A História de Genji está a anos-luz de Proust, mas pergunto a mim mesmo se o
anseio constante de Lady Murasaki não constitui uma analogia da busca de Proust.
Em
i roust, o amor morre, mas o ciúme é eterno; o narrador busca os mínimos
detalhes dos relacionamentos homossexuais de Albertine, mesmo depois que as
memórias da
amante ralecida se atenuaram. Em Lady Murasaki, o ciúme é dominado, pois é
impossível à mulher ter posse exclusiva do homem.
Hesito em afirmar que a perspectiva de A História de Genji seja, inteiramente,
feminina, se for levada em conta a intensidade da identificação entre Lady
Murasaki
e o
306
307
"brilhante Genji". Todavia, o louvor à busca da satisfação, do princípio ao fim
do romance, pode ser uma indicação de que a visão masculina do amor sexual seja,
essencialmente, secundária.
O esplendor de Lady Murasaki, assim como o de Proust, é a visão abrangente,
na qual uma nostalgia, em parte, demoníaca, em parte, estética, substitui uma
ordem
social decadente. Para ser um génio da busca, é preciso destacar-se em
"paciência narrativa", e é impressionante a versatilidade ficcional de Lady
Murasaki.
LADY MURASAKI (MURASAKI SHIKIBU) (978?-1026?)
A autora de A História de Genji é a única representante da Ásia neste livro,
mas o extenso romance por ela escrito faz parte da cultura literária de língua
inglesa
desde que Arthur Waley concluiu a sua versão, em 1933. Já faz meio século que li
a versão de Waley, e dela trago comigo impressões marcantes, mas só agora li a
tradução
(bastante diferente) de Edward G. Seidensticker, embora estivesse disponível
desde 1976. Reler Waley ao lado de Seidensticker é instrutivo: Genji é obra tão
sutil
e esplêndida que ficamos na expectativa de outras tantas versões. A tradução
alemã, de Oscar Benl (1966), proporciona mais uma reflexão sobre a imensa lenda
de Murasaki,
e instrui o leitor que desconhece tanto o japonês medieval quanto o moderno.
Consta que a linguagem de Murasaki, com relação ao japonês falado por nossos
contemporâneos,
situa-se, analogamente, entre o inglês do período anglo-saxônico e o do período
medieval. A linguagem não fica tão distante quanto a de Beowulf, nem tão próxima
quanto a de Chaucer; logo, traduções para o japonês moderno são essenciais para
os leitores da atualidade.
Sem dúvida, culturalmente, A História de Genji nos é bem mais remota do que
Waley, Seidensticker e Benl deixam transparecer, mas o génio literário é capaz
de atingir
uma universalidade extrema, e a obra de Lady Murasaki causa em mim a ilusão de
ser acessível ao meu entendimento, assim como a de Jane Austen, Mareei Proust ou
Virginia
Woolf. Austen é uma ficcionista laica, tanto quanto Murasaki; a narrativa
romanesca de Murasaki, à medida que se desenrola, apresenta crescentes
características
do romance, exceto pelo fato de conter uma pletora desnorteante de
protagonistas. São quase 50 personagens principais, e não é nada fácil manter em
mente quem desposou
quem, ou teve um relacionamento sexual, ou é o verdadeiro pai ou verdadeira
filha de alguém. Ao ler a versão de Seidensticker, de quase 1.100 páginas (é
mais fiel
e menos condensada do que a de Waley), o interesse jamais é sacrificado, mas é
difícil não se perder. Genji, príncipe imperial exilado e que se torna plebeu
dentro
do seu próprio território, é um personagem apaixonante, dotado de anseios
perpétuos, mutáveis, e impacientes quando frustrados. Talvez seja mais correto
falar de
"anseio" do que de
anseios . Genji é a personificação do anseio, sendo, evidentemente,
irresistível às extraordinárias (e extraordinariamente variadas) mulheres da
corte e das províncias.
Não devemos entender Genji como um Dom Juan, embora o personagem manifeste o
que Lorde Byron chamava "mobilidade". A própria Lady Murasaki, por intermédio
0 narrador, é, abertamente, mais do que simpática a Genji; trata-se de uma
figura que irradia luz, e que deve se tornar imperador. Eros, na obra de
Murasaki e
das principais
308
309
escritoras da época, não é, exatamente, o que entendemos por "amor romântico",
mas entre obsessão, autodestruição e inevitabilidade, na prática, há pouca
diferença.
Embora todos os personagens em A História de Genji sejam budistas e, portanto,
prevenidos contra o desejo, quase todos são bastante suscetíveis, principalmente
Genji.
A renúncia, que Emily Dickinson chamou "virtude cortante", no caso em questão,
só é praticada após o desastre, dama após dama, e somente depois de muitas
peripécias
do sempre apaixonante Genji.
Genji, que jamais será imperador, tem uma propensão especial para estabelecer
ligações repentinas (e duradouras) com damas que não pertenciam à estirpe mais
nobre,
repetindo assim a paixão do pai (imperador) pela mãe do herói, que se viu
expulsa da corte devido à malícia de consortes aristocráticas. Destruída pela
experiência,
a mãe de Genji morreu quando ele ainda era bebe, e a busca de Genji por
intimidade está, claramente, relacionada a essa perda precoce. Mas Lady
Murasaki, que, com
sua História, antecipa-se a Cervantes no pioneirismo do romance, é, também,
grande ironista. O segundo capítulo, delicioso - "A Árvore da Vassoura" -,
encerra um
festim sobre o amor, levado a termo por Genji e outros três cortesãos:
Naquele momento, dois jovens cortesãos, um oficial da guarda e o outro
funcionário do ministério de rituais, surgiram em cena, a fim de assistir o
imperador em
seu retiro. Ambos eram adeptos dos métodos do amor, além de verbalmente
desenvoltos. Como se estivesse esperando por eles, To no Chujo pediu-lhes que se
expressassem
sobre a questão que acabara de ser formulada. A discussão prosseguiu, incluindo
vários argumentos pouco convincentes.
- Os que acabam de alcançar uma posição elevada - disse um dos recém-che-gados
- não atraem o mesmo tipo de atenção que os que nasceram nobres. E os que
nasceram
na estirpe mais nobre, mas que, de certo modo, não têm o devido estofo, apesar
de todo o orgulho e a nobreza demonstrados, não conseguem esconder as próprias
deficiências.
Portanto, acho que, em ambos os casos, devem ser designados a um nível mediano.
- Há aqueles cujas famílias não pertencem à estirpe mais nobre, e que vão para
as províncias, onde trabalham arduamente. Têm o seu lugar no mundo, a despeito
das
tantas pequenas diferenças, algumas das quais fazem parte da experiência de
qualquer pessoa. Assim é hoje em dia. Quanto a mim, prefiro uma mulher de
família mediana
a outra que nada tenha, além da estirpe nobre. Digamos, alguém cujo pai esteja
próximo ao nível de conselheiro, mas que não o seja. Uma mulher dotada de
reputação
decente, originária de família decente e que saiba apreciar um certo luxo.
Pessoas assim podem ser bastante agradáveis. Não há nada de errado com acertos domésticos, e, na verdade, uma filha pode, às vezes, ser
preparada de maneira fascinante. Nesse particular, conheço várias mulheres quase
perfeitas.
Quando postas a serviço da corte, são elas que cativam as benesses inesperadas.
Já vi inúmeros casos assim, posso afirmar-lhes.
A ironia de Lady Murasaki nos faz indagar quais seriam os "argumentos pouco
convincentes". No incidente em que talvez resida a maior ironia da obra, Genji
encontra
o grande relacionamento de sua vida na pessoa de uma menina de dez anos, por ele
chamada Murasaki, a quem adota e educa. O nome da menina (assim como o da
autora)
refere-se à perfumada alfazema, e o relacionamento de Genji com a menina é
escandaloso, desde o início:
Ela não pensava muito no pai. Tinham vivido separados e mal o conhecia. Agora
sentia grande afeição pelo novo pai. Era a primeira a correr para saudá-lo,
quando
ele chegava em casa; sentava-se em seu colo, e conversavam alegremente, sem
qualquer constrangimento. Ele muito se deliciava com ela. Uma mulher inteligente
e atenta
pode criar todo tipo de dificuldade. O homem deve sempre se precaver, e o ciúme
pode ter as mais indesejáveis consequências. Murasaki era a companheira
perfeita,
um brinquedo. Ele jamais teria a mesma liberdade, a mesma desinibição com uma
filha legítima. Há restrições quanto à intimidade paterna. Sim, ele descobrira
um tesourinho
notável.
Contemplamos, novamente, um páthos irónico, o que me parece constituir o tom
mais característico de Lady Murasaki. Ela própria pertencia ao segundo nível de
aristocratas
da corte, visto que, aos poucos, a família havia decaído socialmente. Na
primeira vez que encontramos a criança cujo nome será trocado, para Murasaki,
por um Genji
apaixonado, a aia da menina chama-se Shonagon, o que sugere uma ironia dirigida
a Sei Shonagon, cujo Livro Travesseiro de Sei Shonagon é o principal concorrente
de A História de Genji; Shonagon é criticada no Diário de Lady Murasaki, como
"terrivelmente orgulhosa", ao exibir a sua (falsa) competência no domínio dos
caracteres
chineses, quase como se fosse o Ezra Pound daquele tempo.
Lady Murasaki, mais de 900 anos antes de Freud, compreendia que todas as
transferências eróticas são substituições de relacionamentos passados. Antes
dela, Platão
ja pensava assim, embora, para ele, o relacionamento arquetípico fosse com a
Ideia, e não com a imagem paterna. Aos 14 anos, Murasaki é desvirginada por
Genji:
310
311
AKI
Era uma época entediante. Ele já não se entusiasmava pelas perambulaçóes
noturnas que outrora mantinham-no ocupado. Pensava muito em Murasaki. Ela
parecia, absolutamente,
incomparável. Acreditando que ela já tivesse idade suficiente para se casar, ele
havia feito algumas demonstrações de afeto; mas ela não parecia entender.
Passavam
o tempo jogando Go e hentsugi. Ela era inteligente, e sabia muito bem agradá-lo,
nas diversões mais banais. Ele ainda não pensara, seriamente, em desposá-la. Mas
agora não conseguia mais se conter. Seria um impacto, com certeza.
O que havia ocorrido? As aias não tinham como precisar o momento em que a
fronteira fora atravessada. Certa manhã, Genji levantou-se cedo, e Murasaki
permaneceu
na cairia. Não tinha o hábito de dormir até tarde. Estaria doente? Ao se retirar
para os seus aposentos, Genji deixara uma mensagem entre os lençóis.
Finalmente, quando não havia ninguém por perto, ela sentou-se na cama e viu,
ao lado do travesseiro, um pedaço de papel muito bem dobrado. Apática,
desdobrou-o.
Continha apenas dois versos, escritos em caligrafia informal:
"Tantas noites passamos, os dois, juntos,
E esses lençóis inúteis entre nós."
Como pai adotivo, Genji impõe a Murasaki o estigma figurativo do incesto, e
ela jamais será mãe. O narrador, como sempre, não faz qualquer julgamento, e a
jovem
deflorada passa a viver uma fase de felicidade com Genji, mas essa fase é,
estritamente, irónica. Genji, sempre em busca de algo que não pode ser
encontrado, recorre
a outras amantes, ao mesmo tempo em que mantém Murasaki. Mas ela possui
consciência notável, recusa a submeter-se, e se volta para a devoção budista,
como um meio
de reencontrar a si mesma e à sua própria infância. De vez que Genji não a
autoriza a se tornar monja budista, ela providencia uma cerimónia em honra ao
Sutra do
Lótus, que permite às mulheres participarem da salvação. Depois disso, ela passa
por um longo processo de purgação, no que toca à sua dor, conforme diria John
Milton.
Recuperada a sua beleza infantil, ela morre, causando a Genji uma perda
concreta.
Lady Murasaki não culpa Genji, assim como não pode repreender uma estação por
suceder à outra. No entanto, o protagonista passa a percorrer um caminho que o
leva,
inevitavelmente, a ser derrotado pela vida. Após um ano, ele começa a se
preparar para partir, e morre, entre os capítulos 41 e 42, como se Lady Murasaki
estivesse
por demais afeiçoada à sua criação para descrever-lhe a morte. O capítulo 42
assim inicia: "O brilhante Genji estava morto, e não havia outro igual a ele." O
romance
prossegue, por mais 150 páginas, e o génio do páthos irónico continua a se
manifestar, mas trata-se de outra história.
O livro tornou-se, e ainda é, uma espécie de Bíblia laica da cultura japonesa. O
que Dom Quixote representava para Miguel de Unamuno, A História de Genji tem
representado
para uma infinidade de homens e mulheres no Japão, dotados de sensibilidade
estética. Como Escritura secular, o imenso romance de Lady Murasaki assume um
status
bastante ambíguo, pois é quase impossível definir a relação do livro com o
budismo. Na maioria das versões do budismo, o desejo, o anseio por outra pessoa,
é a principal
imperfeição. O anseio destrói Genji, bem como as mais dignas das mulheres que o
cercam. Mas é a essência de Genji e, como leitores, somos cativados por ele,
devido
ao apelo emocional que ele provoca. O melhor estudo que conheço sobre a obraprima de Lady Murasaki, de Norma Field, intitula-se, correta e eloquentemente,
The Splendor
of Longingin the "Tale of Genji"1 (1987). Nesse particular, creio eu, localizase o génio de Murasaki, nesse oximoro do "esplendor do anseio", um anseio que
jamais
há de ser satisfeito, um desejo que jamais será aplacado. Depois de ler Lady
Murasaki, experimentamos, com relação ao amor e à paixão, sentimentos
inteiramente novos.
Ela é o génio do anseio, e somos seus pupilos mesmo antes de encontrá-la.
1 bto é, O Esplendor do Anseio em A História de Genji. [N. do T.]
312
313
LUSTRO 8
Nathaniel Hawthorne, Herman Melville,
Charlotte Brontê, Emily Jane Brontè,
Virgínia Woolf
I
magens de isolamento, loucura e amor perdido unem esses romancistas tão
diferentes entre si. A Hester, de Hawthorne, o Ismael, de Melville, a louca do
sótão, criada
por Charlotte Bronté (a primeira esposa de Rochester), Heathcliff, e Septimus
Smith, de Virgínia Woolf (cujo suicídio pressagia o da autora) são figuras que
se envolvem
em alianças rompidas. Será Ismael a exceção, visto que é salvo pelo caixão de
Queequeg? Em parte, sim, mas Ismael e Queequeg aliam-se a Ahab, no intuito de
caçar
e matar o grande Leviatã branco, exaltado por Deus no Livro de Jó, por se tratar
da tirania autorizada da natureza sobre o homem.
Melville confessava-se agnóstico e O Morro dos Ventos Uivantes, bem como os
versos de Emily Brontê, escritos no período maduro de sua carreira, contêm,
nitidamente,
elementos gnósticos. A Hester, criada por Hawthorne, é emersoniana, mas
Hawthorne nao o é, enquanto Charlotte Brontê, profundamente agressiva em sua
arte, também
lutava por afirmar o sentido da sua própria individualidade. Virgínia Woolf,
esteta céti-ca influenciada por Pater, alcançou o domínio de uma arte com
características
tão pessoais que a sua escola é composta apenas por ela.
315
ciod
NATHANIEL HAWTHORNE
Não seguiremos nosso amigo porta afora. Ele nos deixou muito sobre o que refletir, e uma parte do fruto dessa reflexão há de emprestar sabedoria à moral, e
ser
moldada em uma figura. Em meio à confusão aparente em nosso mundo misterioso, os
indivíduos são tão bem ajustados a um sistema, e os sistemas entre si, e com
relação
ao todo, que, ao se isolar, mesmo que momentaneamente, o homem arrisca-se a
perder para sempre o seu lugar. Conforme Wakefield, ele pode se tornar, por
assim dizer,
o Pária do Universo.
Assim é concluído o conto de Hawthorne intitulado "Wakefield", a história
predile-ta de Jorge Luis Borges. O londrino Wakefield diz à esposa que vai
viajar, aluga
um cómodo em uma rua logo abaixo daquela em que se localiza a sua casa e ali
permanece durante 22 anos, sem que a mulher (e ninguém mais) soubesse de seu
paradeiro.
Depois, volta para casa e torna-se "um cônjuge adorável" até morrer.
Hawthorne jamais define o motivo do comportamento de Wakefield; ao completar
dez anos de auto-exílio, encontra a esposa na rua, mas a multidão os separa. Dez
anos
mais tarde, volta ao lar, e a mulher o aceita. E isso é tudo.
O génio contista de Nathaniel Hawthorne tem uma reputação que não condiz com
a realidade. Hawthorne não é nem bom, nem melancólico; é tão surpreendente
quanto
Kafka, Borges e Calvino. O que teriam pensado a seu respeito os antepassados
puritanos? Sua maior realização, Hester Prynne, expressa, sutilmente, uma
sexualidade
muito mais intensa, convincente e cativante do que a de qualquer de suas
descendentes na Literatura Norte-americana. A Letra Escarlate é um romance
profundamente
vital e perturbador porque Hester é vital e perturbadora.
O génio de Hawthorne abala as expectativas, não de maneira, necessariamente,
proposital, mas porque obedece à moralidade da narrativa e não da História, da
sociedade
ou do que determinada era convencionou chamar natureza. Hester Prynne é pária de
Boston, mas não do universo.
NATHANIEL HAWTHORNE
(1804-1864)
A partir da presente análise de A Letra Escarlate (1850), passo a considerar a
questão do génio dentro de uma sequência de grandes obras de ficção norteamericanas,
a saber, Moby Dick (1851), de Herman Melville, As Aventuras de Huckleberry Finn
(1884), de Mark Twain, O Sol Também se Levanta (1926), de Ernest Hemingway,
concluindo
com The Violent Bear ItAway,2 de Flannery 0'Connor (1960).
Embora Hawthorne atribua o subtítulo "Narrativa Romanesca" à obra A Letra
Escarlate, e conquanto não lhe faltem elementos romanescos, Hester Prynne é por
demais
complexa, por demais imbuída de um espírito dividido, para ser heroína de uma
história romanesca. A afinidade de Hester não é com Jane Eyre ou Catherine
Earnshaw,
mas com Clarissa Harlowe, ancestral das heroínas da vontade protestante. D. H.
Lawrence, génio da crítica (quando estava suficientemente enlouquecido), é
impiedoso
com a indómita Hester:
Hester Prynne era um diabo. Mesmo quando aparentava a meiguice de uma
enfermeira. Pobre Hester. Um lado seu desejava escapar da sua própria diabrura.
O outro queria
prosseguir com a diabrura, por vingança.
Esse comentário é insano, mas reconhece, devidamente, que a vontade de Hester
tem um potencial assustador. Austin Warren observou que Hester era pagã; eu
diria,
pagã protestante, na tradição de Anne Hutchinson (1591-1643), expulsa de Boston,
em 1637, por afirmar a vontade pessoal quanto à autoconfiança na salvação.
Génios
religiosos do sexo feminino incomodavam terrivelmente os puritanos do período
colonial, e Anne Hutchinson incomodava Hawthorne, embora ele não padecesse de
nostalgia
pelo puritanismo. Os companheiros de caminhada mais opostos da História mundial
devem ter sido Emerson e Hawthorne, que, durante anos, caminharam por Concord
lado
a lado, a maior parte do tempo, em silêncio. Hester é, até certo ponto, irmã de
Emerson, mas talvez o incomodasse ainda mais do que provocava Hawthorne,
francamente
apaixonado por ela, assim como tantos leitores o são (pelo menos eu, e inúmeros
amigos e alunos). Depreende-se, quando se lê a biografia de Anne Hutchinson, que
ela era sexualmente agressiva, além de corajosa e eloquente. Mais importante: de
nada se
2 Ainda inédito no Brasil. [N. do T.]
316
317
NATHANIEL HAWTHORNE
arrependia. Em que pese a opinião de alguns especialistas, não identifico
qualquer arrependimento em Hester Prynne, nem mesmo no início da história. Que
Hawthorne
é ambivalente com relação ao "pecado" de Hester é fato reconhecido
universalmente, mesmo que ele não o admita. O que mais importa sobre Hester
Prynne é a sua condição
de Eva norte-americana, fator particularmente importante porque, a despeito das
profecias de Emerson, não dispomos de uma representação paralela ao Adão norteamericano
na literatura dos Estados Unidos. Walt Whitman pode até se comparar a Adão, mas
é figura, ao mesmo tempo, grandiosa e difusa demais, para ser, devidamente,
adâmica.
Hester Prynne é uma resposta norte-americana à Eva criada por Milton, e proponho
que ela seja a fronteira do génio de Hawthorne. Isabel Archer, de Henry James,
em
Retratojle uma Senhora, é realização superlativa, mas, em última instância,
menos tocante do que a sublime Hester. Somente a respeito de uma nova Eva teria
Anthony
Trollope escrito: "posso imaginar um leitor tão apaixonado pela imagem de Hester
Prynne que chegue quase a trair a verdadeira Hester, de carne e osso, que a ele
se imponha".
Do ponto de vista estético, o que mais se destaca em A Letra Escarlate é a
arte sofisticada e complexa de Hawthorne, ao expressar a força sexual de Hester.
Em
Paraíso Perdido, Eva tem em Satanás um rival estético, e em Adão um parceiro à
altura. O Satanás criado por Hawthorne, Chillingworth, é muito menos digno da
ancestralidade
de lago do que o Satanás de Milton, e o Adão de Hawthorne é o sombrio e lúgubre
Dimmes-dale. A grande tristeza do livro se traduz no impulso do leitor a se
perguntar:
será que a ardente Hester não poderia encontrar melhor pretendente? Em
Hawthorne, assim como em Shakespeare, as mulheres acabam sempre por encontrar
homens que lhes
estão aquém.
Os críticos costumam relacionar a beleza bíblica de Hester àquela da anglojudia Miriam, em O Fauno de Mármore (1860), mas Miriam não é bem desenvolvida
por Hawthorne,
que a ela confere algumas características irrelevantes de Beatrice Rappacini.
Quanto à saúde de Hester, não resta a menor dúvida: poderia ser a mãe de toda a
humanidade.
A exemplo dos grandes protagonistas shakespearianos, Hester é grande demais para
ser contida na obra.
Hoje em dia, Milton é condenado pela crítica feminista que o considera
patriarcal com relação a Eva. É difícil imaginar como Milton poderia tê-la
representado
de modo mais afável e respeitador, mas vivi o suficiente para ver os templos do
aprendizado entregues ao serviço social mais amadorístico. Hawthorne aprende com
Milton o quanto Eva deve ser desejada; porém, não aprende muito mais do que
isso. A diferença entre Eva e Hester não é Anne Hutchinson, mas Emerson, cujo
único ensinamento
é a virtude singular da autoconfiança. Emersonianos, assim como nietzschianos,
aprendem a
avançar um passo à frente, na questão da graça. Todo o drama do pecado e da
redenção é encenado no plano individual, e basta à pessoa perdoar a si mesma.
Robert
Penn Warren, admirável crítico da moral, fazia uma leitura de A Letra Escarlate
bastante diversa da minha. O tempo agostiniano é, para Warren, o engano que não
pode
ser perdoado. Poeta prodigioso, Warren era um juiz implacável. Seja dentro ou
fora do tempo, a Eva norte-americana em nada perdoa a si mesma, pois passa a
crer que
não há o que ser
perdoado.
A crítica feminista assumiu a defesa de Hester na condição de Eva norteamericana, em parte, a fim de refutar D. H. Lawrence e Leslie Fiedler, mas ambos
os lados
são antecipados pela própria (ambígua) defesa de Hawthorne no que concerne à sua
paixão por Hester. A maior das epifanias do livro é a revelação da beleza da
protagonista,
quando esta encontra Dimmesdale na floresta:
Livre do estigma, Hester suspirou, profundamente, expulsando do espírito o peso
da vergonha e da angústia. Ah, que alívio maravilhoso! Impulsivamente, retirou a
touca que lhe prendia os cabelos; e estes, negros e volumosos, ao mesmo tempo,
sombra e brilho, caíram-lhe sobre os ombros, conferindo encanto e suavidade ao
seu
semblante. Brincava-lhe na boca, e brilhava-lhe nos olhos, o sorriso radiante e
carinhoso, que parecia jorrar do cerne de sua condição de mulher. As faces,
havia
muito, pálidas, coravam em tom rosado. Sexualidade, juventude e toda a fartura
da sua beleza surgiram de algo que os homens chamam passado irrevogável, e uniram-se
à sua virgem esperança e a uma felicidade inusitada, no círculo mágico daquele
momento. E a escuridão da terra e do céu desapareceu juntamente com a tristeza,
como
se fosse tão-somente um eflúvio desses dois corações mortais. Subitamente, como
um sorriso do céu, rompeu o sol, inundando a floresta sombria, fazendo reluzir
os
troncos cinzentos das árvores solenes, e cada folha verde brilhar, transformando
as amarelas em ouro. Os objetos, até então, sombras, agora incorporavam o
brilho.
O curso do riacho podia ser traçado, seguindo-se o seu alegre lampejo mata
adentro, rumo ao coração misterioso da floresta, transformado em um mistério de
júbilo.
É impossível superestimar o heroísmo sexual de Hester e o fato de o seu
carisma ser, implicitamente, sua própria força sexual, tragicamente frustrada.
Igualmente
frustrado é o impulso relativo à autonomia demoníaca, à semelhança do que ocorre
com a ousada Anne: Hutchinson. Hawthorne a projeta e, em seguida, a faz recuar,
o que nos deixa espiritualmente frustrados, mas, em último caso, gratifica-nos
esteticamente. Talvez o
318
319
melhor caminho para se chegar a um entendimento de Hester seja a sua arte, o
bordado, perfeitamente análoga à arte de Hawthorne, mescla de história romanesca
e romance
psicológico. A arte de Hester é impedida de florescer, exceto na confecção dos
trajes da filha, Pérola, mas Hawthorne nos convence de que, em Hester, assim
como
em alguns de seus contos, a sua arte se realiza plenamente. Ter ofertado à
literatura do seu próprio país a representação mais convincente de uma mulher é
ter consagrado
o próprio génio, de uma vez por todas.
RMAN MELVILLE
- Ouvi, mais uma vez - a camada inferior. Todos os objetos visíveis, homem, são
mascaras de papelão. Mas em cada evento, no ato da vida - o feito indubitável -,
algo desconhecido, mas racional, apresenta o contorno dos seus traços por trás
da máscara irracional. Se o homem for atacar, que ataque para destruir a
máscara!
Como pode o prisioneiro escapar, a menos que rompa os muros da prisão? Para mim,
a baleia branca é o muro que me oprime. Às vezes, penso não haver nada do outro
lado. Mas já basta a baleia. Ela me desafia e me diminui; vejo nela a força
absurda, impulsionada pela perversidade inescrutável. Essa coisa inescrutável é
o que
mais odeio; e seja a baleia branca agente ou principal, hei de descarregar sobre
ela esse ódio. Não me faleis de blasfémia, homem; eu atacaria o sol, se me
insultasse.
Pois, se o sol pode me insultar, posso atacá-lo, de vez que sempre há nessas
coisas uma espécie de justiça, pois o ciúme governa toda a criação. Mas nem essa
justiça,
homem, é minha senhora. Quem está acima de mim? A verdade não tem limite.
O Capitão Ahab dirige-se à tripulação em "O Tombadilho", capítulo 36 de Moby
Dick, instando-os a acompanhá-lo na busca prometeica, na caça e morte à baleia
branca
que o mutilara. O Ahab de Melville fala em prosa shakespeariana, metafísica,
dramática, transformada pelo génio do autor em um elemento permanente do idioma
norte-americano.
"Ataque para destruir a máscara!" é a diretiva que Ahab nos oferece. Ficamos
aprisionados dentro dos muros do universo visível, natural, e Moby Dick "é o
muro
que [nos] oprime". Talvez não exista nada além do muro, mas Ahab não haverá de
remoer tal niilismo; Moby Dick já basta: "Ela me desafia e me diminui." Ouvimos
aqui
a voz da espiritualidade norte-americana instintiva, afirmando-se contra uma
natureza por ela repudiada. O que há de melhor e mais primordial em Ahab
expressa, em
um brado, o desafio norte-americano: "Eu atacaria o sol, se me insultasse!"
Quando acrescenta "Quem está acima de mim?", Ahab não está rejeitando o Deus
desconhecido, mas a tirania da natureza em relação ao homem.
Equivocamo-nos quanto a Ahab, figura tão majestosa, ao alardeamos a sua
violência, conforme o fazem muitos estudiosos moralistas. Ahab não é vilão, nem
mesmo herói-viião,
como Macbeth. Não apenas a nossa simpatia é cativada por Ahab: nós somos Ahab.
Ele nos desafia e oprime, pois é o herói norte-americano, nosso Dom Quixote
trágico,
em busca da justiça final diante da derradeira inimiga, a morte.
320
HERMAN MELVILLE
- Ouvi, mais uma vez - a camada inferior. Todos os objetos visíveis, homem, são
mascaras de papelão. Mas em cada evento, no ato da vida - o feito indubitável -,
algo desconhecido, mas racional, apresenta o contorno dos seus traços por trás
da máscara irracional. Se o homem for atacar, que ataque para destruir a
máscara!
Como pode o prisioneiro escapar, a menos que rompa os muros da prisão? Para mim,
a baleia branca é o muro que me oprime. Às vezes, penso não haver nada do outro
lado. Mas já basta a baleia. Ela me desafia e me diminui; vejo nela a força
absurda, impulsionada pela perversidade inescrutável. Essa coisa inescrutável é
o que
mais odeio; e seja a baleia branca agente ou principal, hei de descarregar sobre
ela esse ódio. Não me faleis de blasfémia, homem; eu atacaria o sol, se me
insultasse.
Pois, se o sol pode me insultar, posso atacá-lo, de vez que sempre há nessas
coisas uma espécie de justiça, pois o ciúme governa toda a criação. Mas nem essa
justiça,
homem, é minha senhora. Quem está acima de mim? A verdade não tem limite.
O Capitão Ahab dirige-se à tripulação em "O Tombadilho", capítulo 36 de Mob
Dick, instando-os a acompanhá-lo na busca prometeica, na caça e morte à baleia
branc
que o mutilara. O Ahab de Melville fala em prosa shakespeariana, metafísica,
dramáti ca, transformada pelo génio do autor em um elemento permanente do idioma
nortí
americano.
"Ataque para destruir a máscara!" é a diretiva que Ahab nos oferece. Ficamos
apri sionados dentro dos muros do universo visível, natural, e Moby Dick "é o
muro
qu [nos] oprime". Talvez não exista nada além do muro, mas Ahab não haverá de
remoe tal niilismo; Moby Dick já basta: "Ela me desafia e me diminui." Ouvimos
aqui
a vo da espiritualidade norte-americana instintiva, afirmando-se contra uma
natureza pc ela repudiada. O que há de melhor e mais primordial em Ahab
expressa, em
ur brado, o desafio norte-americano: "Eu atacaria o sol, se me insultasse!"
Quando acrescenta "Quem está acima de mim?", Ahab não está rejeitando o Dei
desconhecido, mas a tirania da natureza em relação ao homem.
Equivocamo-nos quanto a Ahab, figura tão majestosa, ao alardeamos a sua
violênci conforme o fazem muitos estudiosos moralistas. Ahab não é vilão, nem
mesmo heró
vilão, como Macbeth. Não apenas a nossa simpatia é cativada por Ahab: nós som
Ahab. Ele nos desafia e oprime, pois é o herói norte-americano, nosso Dom Quixo
trágico,
em busca da justiça final diante da derradeira inimiga, a morte.
321
HERMAN MELVILLE (1819-1891)
O Capitão Ahab é o Prometeu, e não o Adão norte-americano. Espírito contumaz,
a um só tempo atraído e repelido por Emerson, Melville frequentava as
conferências
de Emerson e aduzia incisiva marginália aos ensaios do pensador. As afinidades
entre os dois pesavam mais do que as divergências, e a voz que responde a Moby
Dick
surge em A Conduta da Vida. Pode-se dizer que Melville lê Emerson assim como o
faria Ahab, em busca do Emerson no início da carreira, o órfico, agnóstico, não
o
idealista. Mas Moby Dick é dedicado ao génio de Hawthorne, a quem Melville
venerava, e a dedicatória declara, implicitamente: eis o meu génio, Ahab é minha
Hester,
minha visão do norte-americano heróico.
Trata-se, certamente, da visão mais extraordinária até hoje criada da figura
do norte-americano heróico, superando os descendentes mais marcantes - Thomas
Sut-pen,
em Absalão, Absalão!, de Faulkner, e o Juiz Holden, em Meridiano de Sangue, de
McCarthy. Ahab é herói-vilão, à semelhança de Macbeth e Hamlet, e não génio da
vilania,
como lago, ou como Edmundo, em Rei Lear. Contudo, Ahab, mais uma vez comparado a
Hamlet, é um génio; é o génio, ou demónio da nação. Os Estados Unidos não têm um
épico nacional, unificado, mas um amálgama de três obras bastante distintas:
Moby Dick, Folhas de Relva e As Aventuras de Huckleberry Finn. Ahab não é figura
que
desperte o nosso afeto; Walt e Huck o são. Mas o aterrador Ahab, cuja grandeza
causa justa admiração em Ismael e no leitor, junta-se ao Satã, criado por
Milton,
e ao Falstaff, de Shakespeare, indispondo estudiosos, da velha e da nova
geração. W. H. Auden, na qualidade de crítico cristão, reprovava Ahab: "Passa a
vida inteira,
na verdade, carregando, de modo desafiador, uma cruz que não é obrigado a
carregar." Depreende-se que Ahab devesse fazer o papel de Jó, mas, como diz
Stubbs, "Ahab
é Ahab". A observação de Auden é bastante comedida, se a compararmos ao desdém
expresso por um crítico papista, com relação ao Capitão norte-americano: "o
mundo
em que ele atua é conturbado, assertivo, cheio de repúdio e destruição." O mesmo
não seria verdade com respeito a Hamlet, Lear, Otelo, Macbeth?
Ahab, a exemplo de Melville, não é cristão e, tanto quanto William Blake,
acredita que o deus deste mundo, que atende pelos nomes Jesus e Javé, é um
demiurgo
atrapalhado, que designou Moby Dick para reinar em nosso meio, assim como Javé
envia o Leviatã e Beemonte para acossarem o pobre Jó. Walt Whitman diz que o
nascer
do sol o mataria, se ele próprio não pudesse emitir sempre raios de luz, mas
Ahab é ainda mais
322
norte-americano, e jura revidar, caso o sol o insulte. Não lhe caberia,
portanto, tentai destruir a máscara que é Moby Dick? Ahab é o norte-americano
infiel com
dimensões de divindade; com efeito, ele é - ao lado de Emerson, Joseph SmitJi e
William James -um dos fundadores da Religião Norte-americana, mescla (não
assumida)
de gnosticis-mo, entusiasmo e orfismo. O que existe de melhor e mais antigo em
nós, norte-ameri-canos, não faz parte da Criação, mas remonta ao Abismo
Primordial,
aos nossos pai; primevos. O coro que denuncia Ahab, quando não lhe descarta o
gnosticismo, deplora-o como velha heresia, ou como heresia romântica. Em outro
livro
(The Americar, Religion, 1992), proponho que, a partir de 1800, os Estados
Unidos passam a se considerar um país protestante, mas que, de fato, apenas
seguem certas
variantes de gnosticismo. Em seu longo e esquecido poema intitulado
Ciarei(1876), Melville profetiza um fenómeno crucial nessa Religião Norteamericana, atualmente
manifestado nos pente-costais, novos-batistas e sábios negros e hispânicos:
Conforme era hábito ser afirmado, Em velho escrito gnóstico manchado,
Javé era tido como autor do mal, Na verdade, o seu deus,
E somente a Cristo se venerava.
<*
Aqui há menos franqueza: ninguém diz, Javé é mal, ou nega que pune ateus; Ao
contrário; é liberto, por um triz, Jesus é o benigno Deus.
Ahab, um século e meio atrás, pertencia a uma fase mais turbulenta da
Religião Norte-americana, e não esperava a indulgência de Jesus, pois Ahab é um
Rei Lear
norte-americano, ao mesmo tempo, democrático e tirânico, e tão pré-cristão
quanto pós-cristão. Vale sempre lembrar que o Pequod, apesar de ser de
propriedade Quaker,
tem tripulação, predominantemente, pagã. Starbuck talvez seja o único cristão a
bordo; Fedallah e seus companheiros são persas zoroastristas. Ismael é
neoplatonista,
Stubbs e Flask são ateus, e, entre os demais, constata-se ao menos uma dúzia de
crenças animistas. Ahab é um emersoniano que rompeu todos os limites, em uma
caçada
ao adversário absoluto, o rei ungido de todos os filhos do orgulho. "Admiraivos, então, da caçada impetuosa?", Ismael nos pergunta, quando ele próprio já
foi arrastado
para as águas solitárias a que os antigos gnósticos denominavam kenoma
(esvaziamento). Só um leitor totalmente surdo é incapaz de reagir diante do
apelo de Ahab:
323
HERMAN MELVILLE
Ela me desafia e me diminui; vejo nela força absurda, impulsionada pela
perversidade inescrutável. Essa coisa inescrutável é o que mais odeio; e seja a
baleia branca
agente ou principal, hei de descarregar sobre ela esse ódio.
Essa reação não configura, absolutamente, sentimento cristão; trata-se do
credo de um guerreiro em uma causa metafísica. Porquanto o meu assunto é a
problemática
do génio, e Ahab - a despeito dos críticos - é o demónio de Melville, disponhome a definir o génio de Ahab, que se caracteriza por uma natureza demoníaca,
assim
como o de Emerson ou o de Joseph Smith. Dotado de um transcendentalismo
aguerrido, Ahab é um misto de Emerson e Thomas Carlyle, em busca do apocalipse
autêntico,
e não pelo caminho da revolução, que sempre provoca novas reações. Os estudiosos
censuram Ahab por condenar a tripulação a sucumbir com ele, mas quem, exceto o
cristão
Starbuck, vislumbra em Ahab um Capitão que há de retornar ao porto de partida?
Irrita-me ler os adeptos de abordagens políticas e históricas da literatura,
quando
chamam Ahab de Napoleão. Melville preferiria identificar Ahab com Andrew Jackson
ou Cervantes, pois o Capitão exerce a liderança através de uma força carismática
e uma eloquência sobrenatural. Para Melville, Ahab é o génio da América
democrática, líder de um grupo de marujos extremamente heróicos, e, em nome de
Ahab, Melville
invoca o deus norte-americano autêntico, o estranho e estrangeiro Deus dos
gnósticos:
Tu, que tiraste Andrew Jackson da lama, que a ele concedeste um cavalo de
batalha, que o apoiaste a uma posição mais elevada do que o trono!
Podemos dizer o que quisermos sobre o Presidente dos Estados Unidos - para
tanto temos liberdade -, mas não podemos chamá-lo tirano, pois mesmo Andrew
Jackson
e Abraão Lincoln foram transitórios, e dependiam da vontade dos eleitores.
Portanto, Ahab, o semideus norte-americano, o Andrew Jackson dos baleeiros, o
Presidente
do Pequod, comanda a tripulação com o consentimento da mesma. Os críticos
moralistas cristãos são irrelevantes como a ralé afrancesada dos Estudos
Culturais; Ahab
constitui o ponto mais elevado de Melville, com relação a Shakespeare e à
dignidade estética que ainda deve ser qualificada como genial.
Ismael/Melville, na célebre meditação contida no capítulo 72, "A Brancura da
Baleia", adota uma perspectiva a respeito de Moby Dick que não difere muito da
de
Ahab, mas que apresenta orientação menos pessoal:
Assim, o ondular calado de um mar espumoso, o farfalhar triste das montanhas
de grinaldas geladas, a passagem desolada da neve pelos prados, tudo isso, para
Ismael,
é como o sacudir do manto de búfalo para o potro assustado!
F
bora nem eu nem o potro conheçamos a origem das coisas anónimas que expligesto místico, para mim, assim como para o potro, em algum lugar tais coisas ¦
m
Ainda que, em muitos aspectos, o mundo visível seja, aparentemente, formado de
amor, as esferas invisíveis foram formadas pelo medo.
Mas ainda não resolvemos o problema da encarnação branca, tampouco aprendemos r
que a mesma apela à alma com tamanha força; e o que é mais estranho, e muito ais
auspicioso - por que, como vimos, ela é, simultaneamente, o símbolo mais
significativo das coisas espirituais, não, o próprio véu da Divindade Cristã, e
o agente
catalisador daquilo que há de mais aterrorizante para a humanidade.
Será que, na sua indefinição, ela prenuncia as sombras e os imensos e
impiedosos vazios do universo, portanto, apunhalando-nos pelas costas, com a
ideia de aniquilamento,
quando contemplamos a profundeza branca da Via Láctea? Ou será que, como
essência, o branco não é cor, mas a ausência visível da cor e, ao mesmo tempo, a
concretização
de todas as cores; será por isso que existe uma brancura muda, repleta de
significado, em uma paisagem coberta de neve - um ateísmo incolor, multicor, do
qual nos
esquivamos? E quando consideramos a outra teoria dos cientistas naturais, de que
todas as cores da Terra, tudo que é belo e engalanado - os cálidos tons do céu
ao
pôr-do-sol e dos bosques, sim, o veludo dourado das borboletas, e as faces de
borboleta das meninas -, constatamos que tudo isso não passa de um sutil engano,
não
pertence à substância, sendo apenas algo exterior; por conseguinte, toda a
Natureza endeusada pinta-se como a meretriz, cuja dissimulação esconde o
sepulcro interior;
e quando, prosseguindo, percebemos que o cosmético místico que produz os tons da
meretriz, o grande princípio da luz, será sempre branco ou incolor e que, se
operasse
diretamente sobre a matéria, tocaria todos os objetos, até as tulipas e as
rosas, com a sua brancura, quando levamos tudo isso em conta, o universo
paralisado surge
à nossa frente como um leproso; então, como viajantes da Lapônia que se recusam
a usar óculos escuros, o infiel miserável fica cego diante da imensa mortalha
branca
que envolve tudo o que está à sua volta. De todas essas coisas a Baleia Albina
era o símbolo. Admirai-vos, então, da caçada impetuosa?
O trecho acima é um dos alicerces da Literatura Norte-americana, bem como da
psique nacional, constituindo, a meu ver, uma crítica às epifanias emersonianas
ensejadas
pelo Olho Transparente e pela "ruína ou branco", conforme descritos em sua obra
Natureza. Os brancos visionários de Emily Dickinson e Wallace Stevens também
configuram
expressões cruciais do traço norte-americano. Nesse particular, Melville, mais
324
325
uma vez, diverge de Emerson, mas é também perceptível o sentido perturbador com
que ele se acerca do visionário de Concord. Se é que existe uma afirmação
central
ao redemoinho de Moby Dick, tal afirmação seria: "Ainda que, em muitos aspectos,
o mundo visível pareça ser formado de amor, as esferas invisíveis foram formadas
pelo medo." Ismael, seja ele panteísta na linha de Spinoza, seja neoplatonista,
adere ao gnos-ticismo de Ahab, no que concerne a essas esferas invisíveis.
Só tomamos pleno conhecimento da espiritualidade de Ahab no capítulo 119, "As
Velas", assim como só compreendemos o seu lado humano no capítulo 132, "A
Sinfonia",
que antecede os três dias da perseguição final e o salvamento de Ismael, no
"Epílogo". Por mais extensa que seja, a obra está contida na dialética desses
três capítulos:
42, 119 e 132.'*0 primeiro é o cerne metafísico do épico; o segundo expressa a
religião de Ahab; e o terceiro apresenta o problema da identidade de Ahab, e as
respectivas
relações com Ismael e Fedallah. Os três capítulos são magníficos, mas "As Velas"
é o meu favorito, porque define o génio de Ahab, bem como o de Melville. Durante
uma tempestade, a tripulação do Pequod avista fogo-de-santelmo, chamas que
surgem no topo dos mastros dos navios, produzidas por descargas elétricas.
Melville arrisca
um grande momento melodramático, semelhante à cena em que lago faz Otelo
ajoelhar-se a seu lado, a fim de jurarem mútua fidelidade diabólica.
Avistando os fogos-de-santelmo, Fedallah, o persa zoroastrista que adora o
fogo, ajoelha-se aos pés de Ahab, a cabeça inclinada e voltada para o lado
oposto de
onde se encontrava o Capitão. Ahab, com a mão esquerda, agarra um dos cabos do
mastro principal, apoia o pé no persa e, olhando para cima e elevando o braço
direito,
entoa este magnífico poema em prosa:
- O espírito luminoso do fogo luminoso, que outrora nestes mares eu, como
persa, adorei, e do ato sacramental queimado por ti até hoje trago a cicatriz;
conheço-te
agora, espírito luminoso, e agora sei que só o desafio é a tua devida adoração.
Não recompensas o amor ou a reverência; e, por ódio, és capaz de matar; e todos
são
mortos. Nenhum tolo destemido te confronta. Conheço a tua força calada, nãolocalizada; até o último suspiro da minha vida turbulenta vais combater pelo
domínio
total, incondicional, do meu ser. Em meio ao impessoal personificado, eis aqui
uma personalidade; de onde quer que eu venha, para onde quer que eu vá, enquanto
viver,
essa personalidade majestática há de viver em mim, e conhecer os seus direitos
reais. Mas guerra é dor, e ódio é desgosto. Vem na tua forma mais reles de amor,
e
diante de ti me ajoelharei, e beijar-te-ei; na tua forma mais elevada, vem como
força celestial; e embora ponhas em movimento as marinhas do mundo, algo aqui
dentro
continua indiHERMAN MELVILLE
ferente. Ó espírito luminoso, fizeste-me com teu fogo e, como verdadeiro filho
do fogo, sopro fogo sobre ti.
{Subitamente, surgem vários relâmpagos, as nove chamas triplicam de altura;
Ahab, seguido da tripulação, fecha os olhos, tapando-os com a mão direita]
- Sou senhor da tua força calada, não-localizada; eu já não disse? Minha
posição não me foi usurpada; tampouco abro mão desses elos. Tens o poder de
cegar, mas
eu posso tatear. Tens o poder de queimar, mas eu posso ser cinzas. Aceita a
homenagem destes olhos infelizes e dessas mãos-persas. Não posso resistir. O
relâmpago
explode em meu crânio; meus olhos doem muito; meu cérebro sofrido parece
decepado, rolando sobre o solo. Oh, oh! Ainda de olhos vendados, assim caminho
em tua direção.
Embora sejas luz, vens de dentro das trevas; mas eu sou trevas que vêm da luz,
que vêm de ti! Parem os relâmpagos; abram-se os olhos; ver, ou não? Ali ardem as
chamas!
o magnânimo! Agora exulto da minha genealogia. Mas tu és meu pai impetuoso;
minha mãe tão meiga, já não sei. 0 crueldade! O que fizeste com ela? Eis o meu
enigma,
mas o teu é maior. Não sabes como foste gerado, logo, chamas a ti mesmo nãogerado; decerto, desconheces teu início, daí chamas a ti mesmo sem-início. Sei
sobre
mim o que não sabes sobre ti, ó onipotente! Existe algo fixo além de ti,
espírito luminoso, e para esse algo tua eternidade é apenas tempo, e tua
criatividade é
mecânica. Através de ti, do teu ser flamejante, meus olhos chamuscados
vislumbram esse algo. O fogo enjeitado, eremita à margem do tempo, também tens o
teu enigma
inexprimível, teu pesar exclusivo. Aqui, mais uma vez, com uma agonia atrevida,
leio meu pai. Salta! Salta mais alto, e lambe o céu! Eu salto contigo; queimo
contigo;
de bom grado, contigo me fundiria; desafiando-te, adoro-te!
Memorizei esse trecho, involuntariamente, aos 12 anos de idade e ainda o declamo
com frequência, embora, hoje em dia, o que nele mais me agrada é a rubrica em
itálico.
Ahab, uma personalidade, confronta os fogos e, se os adora, também os desafia.
Ainda que Shakespeare paire nessa retórica (Hamlet não fica muito distante), o
génio
de Melville aqui triunfa, na intensidade rapsódica de Ahab, que inova a forma
romanesca - com efeito, Moby Dick, como convém à sua dimensão shakespeariana,
não pertence,
exclusivamente, a um determinado género. À moda de Polónio, podemos atribuir à
obra de Melville a classificação de épico-romanesco-dramático, tão adequada à
era
de merson quanto Folhas de Relva o seria, cinco anos mais tarde. A invocação
feita por ab aos fogos-de-santelmo é marcada por uma ambivalência primária no
que respeita
ao mundo demoníaco. Outrora, o Capitão fora adepto do zoroastrismo, mas,
conheço-te agora, e o conhecimento o liberta. Ahab confronta uma versão do
génio, a força
gerado326
327
ra do fogo, a partir da personalidade, ou génio demoníaco, e zomba do fogo por
desconhecer a mãe primeva, o abismo dos gnósticos, a origem, antes da Criação e
da
Queda. Ismael é o único sobrevivente do desastre do Pequod, salvo pelo caixão
vazio do amante, Queequeg. Mas o que é feito de Ismael, entre os capítulos 119,
"As
Velas", e o 132, "A Sinfonia"? Ele desaparece do livro, e volta a se ausentar
durante os três dias da caçada final a Moby Dick, descritos nos três últimos
capítulos
do livro. O trecho que compreende os capítulos 120 ao 131 não tem narrador, a
função sendo desempenhada pelo próprio Melville. No belo capítulo 132, "A
Sinfonia",
o Capitão Ahab é assimilado por Rei Lear, e duvida da própria identidade. Adams
Sitney, em uma leitura notável de "A Sinfonia", observa a transferência do
narcisismo
inicial de Ismael para o velho Capitão, que, olhendo por cima da amurada,
contempla os próprios olhos fundindo-se aos de Fedallah, no espelho da água do
mar. Mas
Fedallah não é o génio de Ahab, tampouco o Mefistófeles de uma barganha
faustiana. Ahab, em seu momento heróico final, entrega-se ao destino de morrer
arrastado
por Moby Dick, porque troca de lugar com Fedallah (já morto), na função de
arpoador:
que eu seja, então, arrastado e despedaçado, sempre te perseguindo, amarrado a
ti, maldita baleia! Assim, deponho o arpão!
Ahab sofre um sparagmos órfico, despedaçado pelo inimigo triunfante. O melhor
tributo advém de William Faulkner: "uma espécie de Calvário do coração, imutável
na sonoridade da vertiginosa destruição (...). Eis a morte digna de um homem!".
CHARLOTTE BRONTÊ
Dobras de tecido escarlate obstruíam minha visão à direita; à esquerda, estavam
as límpidas lâminas de vidro, que me protegiam, mas não me separavam do
melancólico
dia de novembro. De quando em vez, enquanto virava as páginas do livro, eu
estudava o aspecto daquela tarde de inverno. A distância, apresentava uma pálida
névoa
e nuvens; perto, um cenário de grama molhada e arbustos açoitados pela
tempestade, uma chuva incessante, impelida, violentamente, por lamentosa
ventania.
O trecho acima ocorre logo no início de Jane Eyre, romance saudado com grande
entusiasmo, por Virgínia Woolf, em um ensaio sobre as irmãs Bronté:
Devoramos o romance, sem ter tempo para pensar, sem tirar os olhos da página. É
tamanha a nossa absorção que, se alguém se mexer na sala, o movimento parece ter
ocorrido em Yorkshire. A autora leva-nos pela mão, faz com que vejamos aquilo
que ela vê, jamais nos abandona, nem por um instante, tampouco permite que dela
nos
esqueçamos. Ao final, estamos encharcados da genialidade, da veemência, da
indignação de Charlotte Bronté.
Woolf fala da veemência e da indignação de Charlotte Bronté, mas tais termos
são por demais comedidos. Narrador algum é tão agressivo com o leitor quanto
Jane
Eyre. Charlotte Bronté é mais Byron do que o próprio Byron e, de bom grado,
golpeia os leitores. É dotada de uma força de vontade da qual Jane Eyre é a
vivaz representante.
O instinto sexual, que associamos a D. H. Lawrence e seus protagonistas, está
mais próximo ao centro do cosmo de Charlotte Bronté do que no caso do mundo
ficcional
de Lawrence. Algo incipiente em Lawrence, talvez a sua problemática
psicossexualidade, impede a liberação retórica que, de uma maneira sutil, porém
palpável, predomina
em Jane Eyre.
328
329
EMILY JANE BRONTÊ
Não quero hoje correr regiões sombrias,
Cuja imensidão se faz entediante, E onde as tantas legiões de visões frias,
Trazem o mundo irreal, atordoante.
O Morro dos Ventos Uivantes é uma grandiosidade solitária, surgida de uma
experiência de vida que mé* deixa perplexo. Emily Bronté parece mais
contemporânea da
poeta canadense Anne Carson do que das irmãs, Charlotte e Anne. Constata-se uma
força tenaz, em O Morro dos Ventos Uivantes e nos melhores poemas visionários de
Emily Bronté, por exemplo, em "Tão reprimida, mas sempre insistindo", cuja
segunda estrofe aparece citada acima.
O génio, com frequência adaptável, raramente é tão intransigente como em Emily
Bronté. A moralidade, de qualquer espécie, pouco tem a ver com O Morro dos
Ventos
Uivantes, romance ferino que ainda hoje choca os leitores. Supõe-se que a
própria Emily Bronté não afirmasse, como o faz Catherine Earnshaw - "Eu sou
Heathcliff!"
-, mas a autora não tinha por que estabelecer uma identidade interior de modo
tão concreto.
Em "Últimos Versos", Emily saúda o Deus interior, que, obviamente, não
corresponde à divindade da tradição normativa judaica-cristã-islâmica:
Os milhares de credos são em vão,
Embora toquem o coração do homem; Valem tanto quanto ervas pelo chão,
Ou as espumas que no oceano somem.
Apoiando Emerson, ela teria endossado o manifesto intitulado "Autoconfiança",
que aqui, propositadamente, repito:
Assim como as preces dos homens são uma doença da vontade, suas crenças são
uma doença do intelecto.
A gnose pessoal de Emily Bronté é mais complexa do que a de Emerson, mas O
Morro dos Ventos Uivantes nos permite absorvê-la; na verdade, é difícil para nós
deixarmos
de nos converter à religião pessoal da autora, enquanto nos entregamos a O Morro
dos Ventos Uivantes.
CHARLOTTE BRONTÊ
(1816-1855) EMILY JANE BRONTÊ
(1818-1848)
O enigma da veia de génio em uma mesma família desafia todos os tipos de
redução, assim como o faz o génio individual. Em 1812, o Reverendo Patrick
Bronté (que
sobreviveria aos seis filhos) casou-se com Maria Bramwell, falecida em 1821. As
filhas mais velhas, Maria e Elizabeth, morreram de tuberculose, em 1825.
Bramwell,
o único filho, viveu até 1848, sucumbindo à enfermidade que se instalara no seio
da família. O talento precoce de Bramwell não vingou, mas Anne, a caçula, antes
de morrer, em 1849, escreveu Ames Grey (1847) e O Inquilino de Wildfell Hall
(1848), ambos romances ainda bastante legíveis. Anne tinha um talento
extraordinário,
mas Charlotte e Emily foram e sempre serão casos à parte, artistas visionárias
que deram início a um estilo seguido por Thomas Hardy e D. H. Lawrence.
Charlotte,
antes de morrer de pré-eclâmpsia (1855), escreveu quatro romances que ficarão
para sempre: Jane Eyre (1847), Shirley (1849), Villete (1853) e O Professor
(publicado
em 1857, mas, na verdade, o primeiro, em ordem de composição, terminado em
1846). Emily, que também morreu em consequência da tuberculose (1848, aos 30
anos), supera
Charlotte (e quase todos os demais escritores) em O Morro dos Ventos Uivantes
(1848), bem como em um punhado de poemas notáveis, que constam entre os melhores
existentes
em língua inglesa.
Jamais considerei Jane Eyre um livro agradável, pois, do princípio ao fim do
romance, tenho a nítida sensação de que Charlotte Bronté é óbvia demais em seus
posicionamentos,
mas sou forçado a aderir ao consenso geral, e não duvido da genialidade da obra.
Mas, quanto a O Morro dos Ventos Uivantes, conheço-o quase de cor, e o mesmo
posso
dizer sobre vários dos poemas. Observa-se em Emily Bronté uma sublimidade
refulgente, tão genial quanto a que existe nos poemas de William Blake, ou nos
contos de
D. H. Lawrence. Assim como o fazem tantos outros leitores, proponho-me a
justapor Jane Eyre e O Morro dos Ventos Uivantes, contrastando o Rochester,
criado por Charlotte,
ao Heathcliff, de Emily, e ainda tecerei considerações (por demais breves) sobre
a sua poesia.
As irmãs Bronté, conforme muitas outras jovens da época, eram apaixonadas por
eorge Gordon, Lorde Byron, morto, heroicamente, à frente de gregos insurretos,
em
824, aos 36 anos de idade. Rochester e Heathcliff são, flagrantemente, heróis
byronianos, ou heróis-vilões e, como tal, dificilmente estariam à vontade em romances.
As fic330
331
CHARLOTTE BRONTÊ E EMILY JANE BRONTÊ
ções das Brontês, assim como as de S/VWalter Scott (ou as de Nathaniel
Hawthorne), são narrativas romanescas, mas, na qualidade de romances byronianos,
diferem,
necessariamente, do trabalho de Scott. Northrop Frye é a grande autoridade em
narrativa romanesca em prosa, conforme demonstrado neste trecho do enciclopédico
estudo
Anatomia da Crítica (1957):3
Em romances considerados típicos, por exemplo, as obras de Jane Austen, enredo
e diálogo têm elos diretos com as convenções da comédia de costumes. Já as
convenções
de O Morro dos Ventos Uivantes têm elos com a lenda e a bala.da. Demonstram
maior afinidade com a tragédia, e as emoções trágicas - paixão e fúria -, que
desíruiriam
o equilíbrio do tom da narrativa de Austen, cabem, perfeitamente, na ficção de
Emily. O mesmo pode ser dito quanto ao sobrenatural, ou à insinuação do
sobrenatural,
elemento difícil de ser introduzido em um romance. A estrutura do enredo é
diferente: em vez de manobrar em torno de uma situação central, como o faz Jane
Austen,
Emily Brontê esboça a sua história com traços lineares, e parece necessitar de
um narrador, figura que estaria absurdamente deslocada em Jane Austen.
Convenções
tão distintas justificam a classificação de O Morro dos Ventos Uivantes como
forma de ficção em prosa diferente do romance, e a essa forma distinta
chamaremos história
romanesca. Mais uma vez, teremos de empregar a mesma expressão em vários
contextos diferentes, mas, de modo geral, a forma história romanesca é mais
adequada do
que lenda, que parece definir melhor uma forma menos extensa.
A diferença essencial entre romance e história romanesca está no conceito de
caracterização. O autor da história romanesca não procura criar "pessoas
verdadeiras",
mas figuras estilizadas que se desenvolvem em arquétipos psicológicos. É na
história romanesca que encontramos a libido, a anima e a sombra junguiana refletidas,
respectivamente, no herói, na heroína e no vilão. Por isso a história romanesca
tantas vezes irradia um brilho de intensidade subjetiva, carente no romance, e
por
isso ocorre a constante insinuação de alegoria. Certos elementos de
caracterização florescem na história romanesca, o que a torna, naturalmente,
mais revolucionária
do que o romance. O romancista lida com a personalidade, com personagens que
adotam personae, ou máscaras sociais. O romancista conta com o arcabouço de uma
sociedade
estável, e muitos dos nossos melhores praticantes dessa forma levam o
convencionalismo ao extremo. O autor de história romanesca lida com a
3 Frye estabelece aqui as diferenças típicas entre novel (em português, romance)
e romance (em português, história romanesca). [N. do T.]
'ndividualidade, com personagens em um vácuo idealizado pela fantasia e, por
mais conservador que seja, tudo leva a crer que algo niilista e indomável
irrompa de
suas páginas.
Se existe em O Morro dos Ventos Uivantes algum componente romanesco, estará
centrado em Catherine Earnshaw, presa entre a realidade social de Edgar Linton e
o
byro-nismo demoníaco de HeathclifF. A partir da morte de Catherine Earnshaw e
dos Linton, o livro é puro romance. O Morro dos Ventos Uivantes encerra, quase
exclusivamente,
uma história de casamento e morte precoces. Catherine Earnshaw morre aos 18
anos; Linton, filho de HeathclifF, aos 17; Hindley, aos 27; Edgar, aos 39; a
pobre Isabelk,
aos 31; e HeathclifF, com cerca de 38 anos (se a minha aritmética estiver
correta). Edgar Linton tem 21 anos e Catherine Earnshaw, 17, quando se casam.
Hindley casa-se
com Francês aos 20 anos, e, quando se dá o casamento infernal de HeathclifF e
Isabella, ele tem 19 anos e ela, 18. Os sobreviventes, Hareton Earnshaw e
Catherine
Linton, respectivamente, com 24 e 18 anos, formam o único casal feliz. Todos se
casam cedo porque acham que não vão viver muito tempo. A menos que Hareton e a
segunda
Catherine possam desafiar a linhagem, nenhum protagonista do cosmo de Emily
Brontê atinge os 40 anos, infelizmente, uma profecia do fato de que nem a
robusta Charlotte
chegaria à
idade de 39 anos.
Esses cálculos são um tanto entediantes, mas têm o propósito de contabilizar o
custo da visão impiedosa de Emily. Embora a ralé formada de feministas tolas,
pseudomarxis-tas
e historicistas desqualificados fervilhem em torno de O Morro dos Ventos
Uivantes, a fim de nos propiciar o que poderia ser chamado Emily Brontê
francesa, mal conseguem
lidar com uma obra que anula todos os contextos - moral, social e político.
Dante Gabriel Rossetti, com a perspicácia de sempre, adiantou-se à crítica
atual:
É um livro endemoninhado, um monstro incrível, que soma as tendências femininas
mais marcantes, de Mrs. Browning a Mrs. Brownrigg. A ação se passa no Inferno, e
os nomes ingleses atribuídos a lugares e pessoas são mera aparência.
O tranco D. G. Rossetti associa o moralismo conservador de Elizabeth Barrett
Browning ao sadismo criminoso de Mrs. Brownrigg, executada no século XVIII por
chicotear
vários meninos até a morte. O mau gosto de Rossetti tem fundamento:
Morro dos Ventos Uivantes, assim como Jane Eyre, deixa extravasar um explosivo
sadismo feminino. O amigo de Rossetti, Algernon Charles Swinburne,
sadomasoquista,
surpreendentemente, defendeu o romance de Emily Brontê dessa imputação:
332
333
Uma acusação mais grave, e talvez mais viável, é apresentada contra a autora
de O Morro dos Ventos Uivantes por indivíduos que detectam no livro o tom
selvagem,
ou o sintoma doentio, de uma ferocidade mórbida. Duas ou três vezes, os detalhes
da brutalidade de Heathcliffno tratamento das suas vítimas provocam no leitor a
sensação de estar diante de um relatório policial, ou de um romance escrito por
algum naturalista francês da ordem mais recente e brutal. A atmosfera
predominante
no livro, porém, é tão elevada e saudável que o efeito dessas cenas tão vívidas
e assustadoras, que prejudicaram Charlotte Bronte, é quase prontamente
neutralizado
- não se pode dizer atenuado, mas adoçado, dispersado e transfigurado -através
de uma impressão geral de pureza e de uma franqueza apaixonada, que impedem, de
uma
vez por todas, qualquer possibilidade de associações ou comparações negativas. A
obra como um todo é incomparável, seja quanto ao efeito de sua atmosfera e
paisagem,
seja quanto à natureza singular da paixão nela contida. O amor que devora a
própria vida, que devasta o presente e desola o futuro, com um fogo violento e
inextinguível,
é pura chama, ou luz do sol. E essa castidade apaixonada e ardente é total e
inequivocamente espontânea e inconsciente.
É possível concordar com Swinburne, se o ponto central do seu comentário for:
"O amor que devora a própria vida, que devasta o presente e desola o futuro."
Eis
o amor incomensurável, que alcança a dimensão horripilante da identificação
total, o amor de Catherine Earnshaw e Heathcliff. "Horripilante" é percepção
minha, mas
não corresponde, em absoluto, à de Swinburne, ou de Emily Bronte. Quando
Catherine grita "Eu sou Heathcliff!", somos transportados ao domínio de Emily
Bronte, onde
nenhum de nós pode sobreviver por muito tempo.
Quem é Heathcliff? O que é ele? A despeito do estigma byroniano, Heathcliff
não é um retrato grotesco de Byron, nem uma repetição dos heróis byronianos:
Manfredo,
Caim, Lara. Vale observar, de início, que a originalidade de Heathcliff, que
torna a sua análise tão difícil, em si, é a assinatura, a asserção do génio
anárquico
de Emily Bronte. Quando criança, ela buscou espaço literário para a sua
criatividade em um mundo fictício - Gondal -, redescoberto e reconstruído,
embora em apenas
um poema lírico, e ninguém se arriscaria a prever a grandeza da escritora com
base nesse único trabalho.
Além de Byron - e da tríade inevitável, a Bíblia, Shakespeare e Milton -, quem
seriam os autênticos precursores de Emily? A única resposta plausível aponta
para
alguns romances góticos de importância menor: The Bridegroom ofBarma (anónimo),
O Anão Negro, de Scott, e, talvez, mais um ou dois títulos. Porém, no caso,
nenhuma
dessas obras chega a fazer diferença, e a Bíblia e Milton são presenças
terciárias. Byron, bastante transformado, paira proximamente, mas um esquema
sutil e defensivo
de alusão shakespeariaCHARLOTTE BRONTE E EMILY JANE BRONTE
na surge na caracterização de Heathcliff: Edmundo, de Rei Lear, Hamlet, Macbeth
e o óprio Lear aparecem imbricados no ser limítrofe criado por Emily Brome,
tradicionalmente
reconhecido como o amante demoníaco de Catfierine Earnshaw. Shakespeare é
utilizado para elevar a dignidade trágica de Heathcliff, mas não tem permissão
de usurpar
a origem e a atmosfera um tanto obscuras do personagem.
famais fica esclarecido (propositadamente) em O Morro dos Ventos Uivantes se
confrontamos uma ou duas ordens da natureza. Temos Penistone Craggs, que brilha
à
noite e exibe aspectos sobrenaturais. Mais importante, temos a árdua busca de
Heathcliff, após a morte de Catherine Earnshaw Linton: primeiro, a fim de
encontrar
o que eu chamaria (em termos gnósticos) a forma demoníaca da jovem, e, em
seguida, para se unir a essa forma. A grande originalidade do livro é conter
dois tipos
de realidade: a de Heathcliff e a dos demais personagens, tendo apenas Catherine
Earnshaw, intensa e frágil, como mediadora. Assim como em Heathcliff, em
Catherine
existe algo que remonta a um período anterior à Criação e à Queda, e algo que
resiste a essa dimensão, e que é apenas natural, observável em qualquer um de
nós.
É quase inquestionável que Emily Bronte representa a sua persona lírica na
alteridade de Catherine Earnshaw, à medida que exclama "Eu sou Heathcliff!". Mas
é um
mistério, esteticamente impressionante, a purgação de 18 anos imposta a
Heathcliff, uma busca póstuma a fim de se unir a Catherine. Ele é uma criança,
almejando
uma realização transcendental que carece de qualquer explicação doutrinária.
Embora fosse filha de pastor, Emily Bronte não tem sequer um pingo de
cristianismo e,
em O Morro dos Ventos Uivantes, a lacuna entre as visões fantasmagóricas e a
realidade natural jamais é preenchida. Análises críticas de Heathcliff não
funcionam,
porque sempre falta um elemento, o qual a autora se recusa a identificar. No
entanto, não se trata de obscurantismo, por parte de Emily Bronte; ela detém
gnose,
embora não deva ser incluída em qualquer seita gnóstica específica.
Heathcliff nega toda e qualquer tradição, inclusive as afiliações byroniana e
shakes-peariana. Até certo ponto, talvez jamais possível de ser determinado,
Heathcliff
encerra a crítica de Emily Bronte à tradição do Alto Romantismo, no que respeita
à representação e exaltação do desejo masculino. Mas ninguém conseguiu até o
presente
desenvolver essa percepção; há quase tantos Heathcliffs quanto Hamlets.
Rochester, por mais perturbador que seja, é figura convencional, contrastado
com Heathcliff. Jane Eyre é a glória estética da história romanesca por ela
própria
narrada, enquanto o pobre Rochester é figura secundária. Porquanto Jane Eyre
aproxima-se bastante de um auto-retrato de Charlotte Bronte, podemos pensar a
obra como
Um Ketrato da Artista Quando Jovem. Jane é pintora visionária, que retrata seus
sonhos em
334
335
sua obra, sendo gratificante pensar o livro, Jane Eyre, como uma grande pintura,
animada e visionária.
Dentre os romancistas, Charlotte admirava, principalmente, William Makepeace
Thackeray, mas o autor de A Feira das Vaidades teve um efeito apenas superficial
na escrita de Charlotte Brontê. Os precursores, incrivelmente incompatíveis
entre si, são John Bunyan e Lorde Byron, e somente o génio combativo de
Charlotte Bronté
poderia combinar A Viagem do Peregrino e Manfredo com uma obra coesa como Jane
Eyre. Sandra Gilbert e Susan Gubar, decanas da crítica feminista, invocam a
poeta
Adrienne Rich para encontrar em Jane indícios da Grande Mãe, a um só tempo
Diana, a caçadora, e Maria, a virgem. Embora Gilbert e Gubar não o afirmem, cabe
indagar
se não teria sido a Granda Mãe que cega e aleija Rochester.
Rochester, com precisão, descreve Jane como figura indómita e, decerto, ela
exulta na liberdade perpétua da sua vontade. O objeto dessa vontade é Rochester,
e
Jane o domesticará, tornando-o um marido dependente e, no processo, perdoandolhe o passado:
Mr. Rochester tem uma natureza sensível e um bom coração; não é egoísta nem
indulgente consigo mesmo; é mal-educado, mal-orientado, muito se engana, e seus
enganos
decorrem da impulsividade e da inexperiência; vive como muitos outros homens,
mas, sendo radicalmente melhor do que a maioria deles, não gosta de levar uma
vida
desregrada, e jamais se sente feliz vivendo assim. Aprende as duras lições da
experiência e, com bom senso, delas extrai sabedoria. Os anos o aperfeiçoam; a
efervescência
da juventude já se foi, mas o que nele existe de bom permanece. Sua natureza é
como a do bom vinho, o tempo não o torna azedo, apenas o amadurece. Ao menos,
assim
tentei retratar o personagem.
Embora as palavras acima expressem o pensamento de Charlotte em uma carta,
caberiam, perfeitamente, a Jane, no livro. A energia byroniana de Jane Eyre é
tão arrebatadora
que reduz Rochester à figura do marido virtuoso. Não fica o leitor, igualmente,
reduzido, diante do porrete fálico que é o estilo de Charlotte? Como devem os
leitores
entender a auto-satisfação de Jane, quando ela se encontra no melhor dos mundos
possíveis?
Faz dez anos, estou casada. Sei o que é viver inteiramente por alguém e com
alguém que mais amo na vida. Considero-me sumamente abençoada - abençoada além
do que
as palavras possam expressar -, pois sou a vida do meu marido, com a mesma
intensidade com que ele é a minha. Mulher alguma já foi tão íntima do
companheiro como
eu o sou; cada vez mais, somos a mesma carne, o mesmo sangue.
Jamais me canso da companhia do meu Edward; ele jamais se cansa da minha, assim
como não nos entediamos com a pulsação dos nossos corações; por conseguinte,
estamos
sempre juntos. Estar juntos, para nós, é estar tão livres quanto na solidão, tão
alegres quanto com um grupo de amigos. Acho que conversamos o dia inteiro; falar
com o outro é um meio animado e audível de pensar. Nele deposito toda a minha
confiança, e toda a sua confiança é dedicada a mim; somos, perfeitamente,
compatíveis
- o resultado é a harmonia total.
Mr. Rochester continuou cego durante os dois primeiros anos da nossa união;
talvez tenha sido essa circunstância que tanto nos aproximou - que nos atou!
Pois eu
era a sua visão, assim como sou agora o seu braço direito. Literalmente, eu era
(e assim ele muitas vezes me chamava) a menina dos seus olhos. Por meu
intermédio,
ele via a natureza, e via os livros, e eu jamais me aborrecia de enxergar por
ele, de descrever o campo, uma árvore, a cidade, o rio, a nuvem, o raio de sol
de uma
paisagem à nossa frente, ou o clima à nossa volta; jamais me entediei de,
através da audição, tentar prover o que a luz não mais podia estampar-lhe na
vista. Jamais
me cansei de ler para ele; jamais me cansei de guiá-lo aonde ele desejasse ir,
de fazer o que me pedisse. E, em servi-lo, eu tinha uma satisfação imensa, rara,
embora
compadecida - pois ele solicitava os meus serviços sem qualquer constrangimento,
vergonha ou humilhação. Amava-me tanto que não relutava em se beneficiar da
minha
assistência; sabia que eu o amava de um modo tão carinhoso, que aceitar a minha
ajuda era satisfazer os meus desejos mais tenros.
Temos aqui a Eva, de Génese 2:24, amando como mestra benigna de Adão. Gostaria
que me esclarecessem se a atitude de Jane configura feminismo (ou não): sou uma
espécie de pária da minha profissão, portanto, em um tema desses, peço
orientação. Mas o leitor (seja lá quem for) que releia esses três parágrafos
anteriores com
atenção, e diga se não lhe provocam um calafrio. Reconheço no trecho uma certa
força e agressividade muito bem moduladas, mas quem gostaria de ser Rochester,
para
se ver tripla-mente domesticado pela indómita Jane?
Concluo esta análise contrastando a poesia de Charlotte com a de Emily. Eis a
estrofe final do poema de Charlotte intitulado "Sobre a Morte de Emily Jane
Brontê":
Já que tu estás livre da dor, Não retorne aqui, por favor; O sobrevivente é quem
chora; Deus que poupe o nosso castigo, E nos dê paz e luz contigo, Quando chegar
a nossa hora!
336
337
Os versos são péssimos, servindo para ratificar a noção de Oscar W^ilde de que
toda poesia medíocre é sincera. Em contraste, eis Emily Bronte saudando "Deus em
Meu Seio", "afirmando o heroísmo da sua própria alma":
Não há espaço para a Morte, Nem átomo algum será batido, Pois tu és o Ser e a
Sorte, E o que tu és jamais será destruído.
Emily Bronte, notadamente, como se abraçasse o gnosticismo da Antiguidade,
diri-ge-se ao Deus interior, o pneuma, ou centelha que remonta a um período
anterior
às noções de Criação e Queda. Charlotte é ficcionista polemica, cuja
agressividade, ou impulso, na prática, constitui-lhe o génio. Emily é
visionária, que invoca
o próprio génio como divindade, com grande firmeza e extrema eloquência.
VIRGÍNIA WOOLF
Se assim é, se ler um livro, devidamente, requer o exercício das faculdades
mais raras da imaginação, da percepção e do julgamento, a conclusão talvez seja
que
a literatura é uma arte por demais complexa, e que, mesmo depois de passarmos a
vida inteira lendo, dificilmente, conseguiremos fazer uma contribuição de real
valor
à critica. Devemos permanecer leitores; não devemos nos investir da glória que
pertence àquelas criaturas raras que, além de leitores, são críticos. Mas, como
leitores,
temos as nossas responsabilidades e a nossa importância. Os padrões que elevamos
e as avaliações que fazemos ascendem e integram a atmosfera que os escritores
respiram
enquanto trabalham. E exercemos uma influência que incide sobre eles, ainda que
a mesma não se traduza em palavras impressas sobre páginas. E essa influência,
se
bem informada, vigorosa, individual e sincera, pode ser de grande valor
atualmente, quando a crítica está em estado de suspensão, quando livros são
resenhados como
uma procissão de animais em um estande de tiros, e o crítico tem apenas um
segundo para recarregar, apontar e disparar, e pode até ser perdoado se
confundir coelho
com tigre, águia com pato, ou se não acertar em nada e desperdiçar a munição,
atingindo uma vaca que pasta tranquilamente ao fundo. Se, por trás dos disparos
erráticos
da imprensa, o autor sentisse a presença de um outro tipo de crítica, a opinião
de pessoas que lessem por amor à leitura, com vagar e sem preocupações
profissionais,
que avaliassem com simpatia, mas com total severidade, isso não melhoraria a
qualidade do trabalho desse autor? E se, por esse meio, os livros se tornassem
mais
marcantes, mais ricos e mais variados, valeria a pena atingir tal objetivo.
Esse penúltimo parágrafo do ensaio "Como Ler um Livro", que encerra a
coletânea de Woolf intitulada Second Common Reader (1932), agrada-me
sobremaneira. O génio
de Virgínia Woolf era duplo: como ficcionista visionária e como leitora notável
comum. As admiradoras feministas exaltam-na como profeta, autora de Um Teto Todo
Seu, às vezes esquecendo-se que, para ela, essa habitação era um local onde
pudesse ler e escrever.
Samuel Johnson forneceu a Woolf, e a todos nós, a ideia do leitor comum, na
biografia do poeta Thomas Gray:
338
339
Muito me alegra concordar com o leitor comum, pois, segundo o bom senso dos
leitores, não corrompido pelo preconceito literário, acima de todo o refinamento
e dogmatismo da erudição, devem ser julgadas as pretensões à glória poética.
#3
Woolf, em sua crítica literária, aproxima-se muito mais de Johnson do que das
legiões que atualmente elogiam certos livros apenas com base em questões de
género
etnia, raça, preferência sexual ou ideologia dos respectivos autores.
Amar a leitura com a paixão que o faz Woolf é ato que incide na capacitação da
consciência. Woolf, como ficcionista, não possuía a profundidade e a
universalidade
dos seus maiores contemporâneos, Joyce e Proust, mas as suas extraordinárias
percepções da consciência e das trevas que a circundam caracterizam-lhe o génio,
marcantemente
individual. Seus momentos de visão (comparados a Walter Pater e James Joyce) são
menos privilegiados, mas são absolutamente fatais, posicionados no limite em que
a percepção e a sensação cedem à dissolução.
VIRGÍNIA WOOLF
(1882-1941)
Hermione Lee, autora da melhor biografia de Woolf, ressalta que a ficcionista e
críti"desejava evitar todas as categorias". Sessenta anos após o suicídio da
escritora, ocorrido durante a guerra, ela se encontra atada a categorias de
todos os tipos:
modernista, lésbica, "teórica" feminista, mas não é para menos, pois estamos na
Era das Categorias. Tratando este livro da questão do génio, e da influência da
obra
na vida, posso, felizmente, esquivar-me da polémica. Definir o génio de Virgínia
Woolf, se é que tenho condições de fazê-lo, já me basta.
Tal génio manifestou-se, pela primeira vez, em 1925, e manteve-se, com todo
vigor, ao longo dos 16 últimos anos de vida de Woolf. As obras definitivas da
autora
são Mrs. Dalloway (1925), O Farol (1927), As Ondas (1931), Os Anos (1937) e
Entre os Atos (publicada postumamente, em 1941). Cinco romances extraordinários
culminam
em uma obra-prima; o meu livro predileto costumava ser O Farol, mas, aos 70
anos, releio Entre os Atos com mais frequência, e com uma satisfação ainda
maior, portanto,
aqui focalizarei essa obra.
Reuben Brower, em 1951, observou que, "na singularidade da sua visão e no uso
das palavras, Virgínia Woolf é dotada de uma imaginação shakespeariana", e
sugeriu
que a melhor preparação para se entender Mrs. Dalloway é ler O Conto do Inverno;
com efeito, a peça é também o prelúdio adequado a Entre os atos.
Mesmo que Woolf jamais houvesse escrito a fantasia Orlando (1928), que
constitui uma carta de amor a Vita Sackville-West (cuja obra é hoje ilegível),
qualquer
leitor sério perceberá que a autora tem ambições shakespearianas, embora a
aproximação a Shakespeare se dê através de uma maneira um tanto ou quanto
oblíqua. O Shakespeare
de Woolf é o mesmo de ^X/alter Pater, e depende da hipótese de que a força
inigualável do dramaturgo resulta do que Woolf chama "submente" e Pater,
"subtextura".
Eis Woolf, refletindo sobre esse fenómeno:
Talvez seja essa a minha maior satisfação. É o enlevo que sinto quando, ao
escrever, parece-me estar descobrindo o lugar de cada coisa; acertando os
detalhes de
uma cena; tornando coeso um personagem. A partir desse ponto, alcanço o que
poderia considerar uma filosofia; em todo caso, é uma ideia que me ocorre
constantemente:
que por trás do algodão cru existe um esboço, que nós - quero dizer, todos os
seres humanos - estamos ligados a esse esboço, que o mundo inteiro é uma obra de
arte,
que integramos essa obra de arte. Hamlet, ou um quarteto de
340
341
Beethoven, é a verdade sobre essa massa extensa a que chamamos mundo. Mas não
existe Shakespeare, não existe Beethoven; deveras, enfaticamente, não existe
Deus;
nós somos as palavras; nós somos a música; nós somos a coisa em si. E vejo isso
sempre que sofro algum impacto.
Nós somos as palavras. Enquanto trabalhava em Entre os Atos, Woolf escreveu "A
Torre Inclinada", ensaio sobre influência literária:
As teorias são, portanto, perigosas. Todavia, vamos, esta tarde, nos arriscar a
desenvolver ufna teoria, pois discutiremos as tendências modernas. Falamos,
explicitamente,
de tendências ou movimentos com os quais nos comprometemos, acreditando haver
uma força, influência ou pressão externa suficientemente vigorosa ao ponto de se
tornar
visível em um grupo de autores diferentes entre si, de modo que os seus escritos
apresentem certos traços comuns. Precisamos, então, de uma teoria que dê conta
dessa
influência. Mas sempre vale lembrar: as influências são infinitamente numerosas;
escritores são infinitamente sensíveis; cada escritor tem uma sensibilidade
diferente.
Logo, a literatura está em constante mutação, assim como o clima, como as nuvens
do céu. Leiamos uma página de Scott; em seguida, uma de Henry James; tentemos
compreender
as influências causadoras da transformação de uma página na outra. Não temos
competência para tanto. Portanto, o máximo que podemos pretender é identificar
as influências
mais óbvias, que possibilitam a formação de grupos de escritores. Ainda há
grupos. Livros descendem de livros, assim como famílias descendem de famílias.
Alguns
descendem de Jane Austen; outros, de Dickens. Assemelham-se aos progenitores,
assim como crianças assemelham-se aos pais; contudo, diferem dos pais, assim
como diferem
as crianças, e se revoltam, assim como se revoltam as crianças. Talvez seja mais
fácil entender autores vivos, exa-minado-lhes alguns antepassados.
O prefácio de Woolf ao romance Orlando arrola, na condição de precursores,
Defoe, Sir Thomas Browne, Sterne, Scott, Macauiay, Emily Brontè, De Quincey e
Pater.
O mais importante é Pater, cujo posicionamento estético, equilibrado de maneira
precária entre as entidades da personalidade e da morte, foi absorvido por
Woolf.
Shakespeare e Jane Austen foram omitidos, porque a presença de ambos é marcante
demais para ser admitida. Às vezes, o lar de Leslie Stephen, onde Virgínia,
ticamente, cresceu e foi educada, parece ser uma criação literária de Jane
Austen, cialmente em Emma. E, em uma metáfora implícita woolfiana, Shakespeare
pode considerado
o autor de Entre os Atos, pois a ação do romance se passa no cosmo
shakespeariano.
Entre os Atos é um romance difícil de ser descrito, mas facílimo de ser lido.
Toda a continuidade da tradição cultural inglesa está aqui implícita, sobretudo,
através de momentos naturais, privilegiados, epifânicos, até que o público do
vilarejo, assistindo ao desfile, percebe que é, em si, a conclusão: "Então, a
cortina
subiu. Eles falaram." Eles são as palavras, e Woolf, mais experimental do que
nunca, faz com que nos unamos a esse público, sejamos nós ingleses ou não. Giles
e
Isa, marido e mulher, raramente são ouvidos trocando algumas palavras, sendo
referidos indiretamente, porque representam a condição universal do próprio
casamento,
em que silêncio e conversa se
fundem.
Miss La Trobe realiza o desfile ao ar livre, e a primeira atração é uma
menina: "A Inglaterra sou eu." Surgem os peregrinos de Canterbury, segundo a
criação de
Chaucer, passa a Rainha Elizabeth ("Para mim cantou Shakespeare"), e uma paródia
das tragico-médias escritas por Shakespeare, na fase final de sua carreira:
E ele pulou fora, como se a sua participação já houvesse terminado.
Ainda bem que já acabou - disse Mrs. Elmhurst, descobrindo o rosto. O
que vem agora? Um quadro vivo...?
Auxiliares da produção, surgindo às pressas dentre os arbustos, e carregando
pequenas divisórias, cercaram o trono da Rainha com painéis cobertos de papel,
representando
paredes. Cobriram o solo com junco. E os peregrinos, que prosseguiam em marcha,
cantando ao fundo, agora cercavam a figura de Elizabeth em sua caixa de sabão,
como
se fossem a plateia.
Estavam prestes a encenar uma peça na presença da Rainha Elizabeth? Seria o
local, talvez, o Teatro Globe?
-O que diz o programa? - perguntou Mrs. Herbert \Cinthrop, recorrendo ao
binóculo.
Ela murmurou, por trás de uma folha de carbono borrada. - Sim, foi alguma cena
de alguma peça.
Sobre um falso Duque; e uma Princesa disfarçada de rapaz; por causa
de um
sinal na bochecha, descobre-se que o herdeiro havia muito desaparecido é o men
digo; e Carinthia - a filha do Duque, que esteve perdida, abrigando-se em uma
342
343
caverna - apaixona-se por Ferdinando, que fora depositado em um cesto por uma
velhota. E os dois se casam. É isso que eu acho que acontece - ela disse,
desviando
do programa o olhar.
- Encenem a peça- comandou a grande Elizabeth. Surge uma velha cambaleante.
(- E Mrs. Otter da Casinha - alguém murmurou.)
A paródia se torna mais intensa, com a bênção do padre:
Dos emaranhados da vida, livrai-lhe as mãos.
(Libertam-lhe as mãos.)
Da sua falsidade, que nada mais seja lembrado.
Chamai opapo-roxo e a cambaxirra.
E atirai rosas sobre o pálio encarnado.
(Pétalas são lançadas de cestos de vime.)
Cobri o corpo. Descansai em paz.
(Cobrem o corpo.)
Em vós, caros senhores, (voltando-se ao casal feliz).
Que os céus derramem a sua bênção!
Apressai-vos, antes que o sol invejoso
Desfaça a cortina da noite. Que soe a música,
•"*
E que o ar puro do céu embale o vosso sono!
Iniciai a dança!
Outras paródias ensandecidas seguem, entremeadas com cenas que contam com a
participação da plateia. O objeto da paródia mais intensa é a comédia da Era da
Restauração,
mas, em termos de comicidade, nenhum momento anterior, em toda a obra de Woolf,
equipara-se àquele em que a natureza vem ao auxílio da arte:
- Mais alto, mais alto! - vociferava Miss La Trobe.
Palácios tombam (os atores recomeçaram), a Babilónia, Níneve, Tróia... E a
grande casa de César... tudo jaz sobre o solo... Onde o maçarico faz ninho
ficava a arca...
através da qual marcharam os romanos... Cavando e empurrando, com o arado
abrimos os sulcos na terra... De onde Clitemnestra vigiava, protegendo o seu
senhor...
avistava as luzes brilhando no topo das colinas... nós vemos apenas a terra...
Cavando e empurrando, passamos... e a Rainha e a Torre de Vigia tombam... pois
Agamemnon
se foi... Clitemnestra não passa de...
As palavras desapareciam. Apenas alguns grandes nomes - Babilónia, Níneve,
Clitemnestra, Agamemnon, Tróia - flutuavam no espaço aberto. Então, o vento
ficou mais
intenso e, no farfalhar das folhas, até as palavras grandiosas se tornaram
inaudíveis; e o público fitava os habitantes do vilarejo, cujas bocas se moviam,
mas sem
emitir som.
E o palco ficou vazio. Miss La Trobe encostou-se em uma árvore, paralisada.
As forças lhe faltavam. Gotas de suor irrompiam-lhe na fronte. A ilusão
fracassara.
- É a morte - ela murmurou - a morte.
Então, subitamente, enquanto a ilusão se esvaía, as vacas tomaram a frente.
Uma delas havia perdido o novilho. Na hora exata, ergueu a cabeçorra, com olhos
de
lua, e mugiu. E todas as cabeçorras com olhos de lua se voltaram. De vaca após
vaca ouviu-se o mesmo mugido nervoso. O mundo inteiro foi tomado desse
nervosismo
animal. Era a voz primeira soando alto nos ouvidos do momento presente. Então,
todo o rebanho se contagiou. Sacudindo o rabo, os animais apontavam as cabeças
para
o alto e mugiam, como se Eros lhes houvesse espetado os flancos, incitando-os à
fúria. As vacas eliminavam o abismo; diminuíam a distância; preenchiam o vazio e
davam continuidade à emoção.
Miss La Trobe acenou, estaticamente, para as vacas.
- Graças a Deus! - ela exclamou.
É maravilhoso, beirando a loucura e a auto-imolação, que Woolf seja capaz de
expressar tamanha verve, resgatada no momento em que o desfile alcança a Era
Vitoriana.
Mas temos aqui uma sátira (se é que se trata de sátira) caracterizada por um
matiz bastante escuro. Cenas de reconhecimento ocorrem durante todo o desfile,
em cada
período histórico, Woolf parodiando algo que é parodiado pelo próprio
Shakespeare na conclusão de Cimbeline, Rei da Britânia. Escrevendo como grande
crítica, Woolf
ensina a si mesma, e a nós, o ponto central das cenas de reconhecimento em
Shakespeare: a nossa incapacidade de auto-reconhecimento e de reconhecer o outro
- seja
no campo familiar ou erótico. De um modo indireto, e brilhante, Entre os Atos é
um romance sobre a guerra: a Inglaterra sofre o bombardeio nazista, mas Woolf
não
se permite qualquer referência explícita ao fato. Tampouco apresenta sugestões
impressionistas sobre o contexto mais amplo, que torna o desfile no vilarejo, ao
mesmo
tempo, mais sombrio e cómico. Impondo a si mesma um estilo expressionista, ela
nos impele, mais uma vez, à constatação de que nós somos as palavras.
O resultado é um romance tão original que 60 anos não lhe afetaram o frescor.
O expressionismo elíptico pode parecer um estilo literário um tanto estranho,
mas
o pro344
345
cedimento foi inventado por Shakespeare nas peças tardias, e Woolf desenvolve o
estilo em Entre os Atos. A ação do livro se passa em 1939, em parte, a fim de
evitar
o trauma causado pelos bombardeios, mas também para sugerir uma sensação de
angústia crescente, agora, tragicamente, localizada no passado imediato. Temos,
pois,
um estranho livro sobre a guerra, que não enfatiza a angústia da guerra, mas "a
angústia da arte", conforme salienta Maria Di Battista:
Entre os atos do desfile transcorrido no vilarejo, a narrativa sugere (...) o
desenrolar de uma tragédia sexual.
Tal assertiva focaliza o relacionamento central do romance, entre Isa e Giles,
em que Isa, com sua natureza poética, jamais tem certeza se ama ou odeia o
marido,
embora, para ela, a palavra "ódio" denote erotismo. Hermione Lee observa,
sabiamente, que "todos os casamentos são inexplicáveis", reconhecimento tão
woolfiano quanto
shakespeariano. Aos 25 anos, Woolf antecipou muito de sua vida e de sua arte, em
uma pergunta retórica nitidamente marcada pela influência de Walter Pater:
Não somos, cada um de nós, na verdade, o centro de inúmeros raios que atingem
uma única figura, e não é nossa responsabilidade refleti-los, imediatamente, e
jamais
permitir que um raio sequer se perca no nosso lado escuro?
Não se trata, exatamente, de uma fórmula para o casamento. Deixemos de lado
questões de bissexualidade e abuso infantil: Virgínia Woolf, tanto quanto Pater,
era
dotada de belo solipsismo, em dose suficiente para tornar qualquer casamento
problemático, assim como pôs fim ao seu relacionamento sexual com Vita
Sackville-West.
Parece justo concluir, de acordo com Hermione Lee, que o casamento manteve a
romancista viva por mais tempo do que lhe seria possível viver solteira. No
contexto
da vida e da morte da autora, Entre os Atos é uma espécie de milagre, tanto
quanto a própria Virgínia Woolf.
Como definir o génio de Woolf? Sir Thomas Browne e Thomas De Quincey não
escreveram romances. Walter Pater escreveu ficção, mas Marius the Epicurean não
é um livro
dos mais woolfianos, tampouco o fragmentário Gaston de Latour. No entanto, um
dos Retratos Imaginários de r
Pater, "Sebastian Van Storck", constitui
notável
presságio
de Mrs. Dalloivay, e a arte singular de Woolf, no que toca à representação da
consciência, é profundamente influenciada por Pater. É cabível que poetas sejam
influenciados
por Pater: Yeats, Wallace Stevens e Hart Crane cultivam uma lírica de
'fanias seculares que não lhes compromete a arte. Woolf era mais propensa à
lírica A
aue à narrativa, mas foi capaz de desenvolver momentos de visão em
narrativas
traordinárias. O Farol, As Ondas e Entre os Atos estão entre os romances mais
origi-ais da tradição ocidental. O génio literário, conforme nos ensinou
Johnson, manifes-ta-se
através da originalidade, de uma criatividade que reinventa o próprio autor e,
até certo ponto, o leitor também.
346
347
LUSTRO 9
Ralph Waldo Emerson, Emily Dickinson, Robert Frost, Wallace Stevens, T. S. Eliot
O
Sefirah conhecido por Din serve de fronteira, ou horizonte, que delimita a
aliança de amor de Hesed Aqui reúno a tradição norte-americana, inclusive Eliot,
apesar
de sua explícita rebeldia com relação a essa tradição. Emerson, classificado, de
maneira simplória, como transcendentalista, tem no sisudo A Conduta da Vida o
seu
melhor livro. Emily Dickinson, rigorosamente original, é poeta de julgamentos
sombrios, tanto quanto Robert Frost, mais tarde. Wallace Stevens equilibra o
rigor
com ímpetos de afirmação.
Aqueles que, seguindo as palavras do próprio Eliot, considerarem mais adequado
associá-lo a Dante ou Baudelaire, devem ler A Terra Devastada e "A Última Vez
que
Lilases Floresceram à Porta", de Whitman, lado a lado, com bastante atenção.
Poetas, isto e, poetas influentes, não escolhem determinada tradição; é a
tradição que
os escolhe, e faz o que quer com a obra, dependendo da vitalidade da resistência
demonstrada por essa obra.
351
RALPH WALDO EMERSON
(íkp Ç&2 C^>
RALPH WALDO EMERSON
Não podemos descrever a ordem dos ventos variáveis. Como compreender a lei que
governa o nosso estado de espírito e a nossa suscetibilidade, sempre
inconstantes?
E tais elementos estão sempre em transformação, da água para o vinho. Em lugar
do firmamento de ontem, contemplado por nossos olhos, hoje parecemos estar
presos
dentro de uma casca de ovo; não podemos sequer enxergar as estrelas que, traçam
o nosso destino. Dia após dia, os fatos cruciais da vida humana permanecem
ocultados.
Subitamente, a neblina desaparece e os revela, e nos damos conta do tempo bom
que já passou, e que poderia ter sido mais bem aproveitado, se um simples sinal
de
tudo isso tivesse sido mostrado. Uma súbita elevação da estrada aponta-nos o
desenho das montanhas, e todos os cumes que, embora presentes o ano inteiro, não
captaram
a nossa atenção. Mas essas alterações não deixam de ter a sua própria ordem, e
somos cúmplices das nossas diversas venturas. Se a vida parece uma sucessão de
sonhos,
também nos sonhos existe a justiça poética. As visões dos homens bons são boas;
a vontade que carece de disciplina é açoitada por maus pensamentos e más
venturas.
Quando desrespeitamos as leis, perdemos o controle da realidade central. Como os
enfermos em um hospital, apenas passamos de um leito ao outro, de uma veleidade
a outra; e não será grande o significado do destino dessas pobres coitadas criaturas queixosas, aparvalhadas, comatosas - transferidas de leito em leito,
do nada
da vida ao nada da morte.
"Ilusões", de A Conduta da Vida
"Emerson", o meu falecido amigo Angelo Bartlett Giamatti se aprazia em
afirmar, "é suave como arame farpado." O Sábio de Concorde não é sempre
implacável como
em A Conduta da Vida, mas essa obra, a mais amadurecida de todas as que
escreveu, é a que revela o Emerson mais verdadeiro, a expressão mais apurada do
seu génio
considerável.
O génio de Emerson é sempre o génio dos Estados Unidos: foi ele que
estabeleceu a nossa religião autêntica, com efeito, pós-protestante, embora
tente parecer o
contrário. Autoconfiança não é doutrina consoladora, pois nos adverte sobre a
necessidade de recorrer ao nosso próprio génio, ou então entraremos em declínio
total.
"Destino", "Poder" e "Riqueza", além de "Ilusões", são os grandes ensaios de A
Conduta da Vida. O ensaio intitulado "Riqueza" registra que "enquanto é o nosso
génio
uem compra, o investimento está seguro, embora gastemos como monarcas". Novas
forças, inatas ao eu, haverão de surgir.
"Todo poder pertence a uma mesma espécie, compartilhando da natureza do do." ^
esse poder Emerson chama "ação original", sinónimo de Autoconfiança. C ntudo, a
ação,
segundo o Emerson amadurecido, está circunscrita ao sentido de des-¦ o O Sábio
retoma a convicção pré-socrática de que caráter é destino, ethos é demónio, e o
seu
génio se ocupa de erigir altares à Bela Necessidade:
Por que devemos temer ser esmagados pelos elementos selvagens, nós que somos
constituídos por tais elementos? Vamos celebrar a Bela Necessidade, que torna o
homem
valente, passando a crer que não pode se esquivar de um perigo já apontado,
tampouco incorrer em algum que não o tenha sido.
352
353
RALPH WALDO EMERSON
(1803-1882)
Se Emerson tinha uma obsessão, era a problemática do génio norte-americano. "O
Sábio Norte-americano", discurso proferido em Harvard, em 31 de agosto de 1837,
continua
sendo a reflexão central a respeito da originalidade literária norte-americana:
"Os nossos dias de dependência, o nosso longo aprendizado junto aos saberes de
outras
terras, aproximam-se do fim." Uma declaração de independência literária torna-se
o manifesto da genialidade: * O único fator que vale no mundo é a alma ativa
(...).
Em tal ação, identifica-se o génio (...). O génio é sempre inimigo do génio,
devido ao excesso de influência. É extraordinária, a espécie de prazer que
obtemos dos
melhores livros, produzindo em nós a convicção de que a natureza que escreveu é
a mesma que lê (...). É preciso ser inventor, para se ler bem (...). É
perniciosa
a noção de que chegamos à natureza tardiamente, de que o mundo foi concluído há
muito tempo.
Tais pensamentos são meras aspirações, que aquecem, mas não incendeiam. Um ano
mais tarde, no "Discurso à Faculdade de Teologia", Emerson buscou fogo no céu:
Jesus Cristo pertencia à verdadeira estirpe dos profetas (...). A inteligência
ouviu o canto de louvor dos lábios do poeta e disse, na era seguinte: "Ele foi
Javé,
descido do céu. Eu vos matarei, se disserdes que ele era homem." As expressões
de sua linguagem e as figuras de sua retórica usurparam-lhe a verdade; e as
igrejas
não são construídas com base em seus princípios, mas em suas imagens (...).
Permiti que eu vos advirta, antes de mais nada, a seguir sozinhos, a rejeitar os
bons
modelos.
Eis um dos catalisadores da religião norte-americana, erroneamente chamada de
cristianismo por frequentadores de igrejas, pastores e estudiosos (que deveriam
ser
mais avisados). Uma das Escrituras dessa religião é o texto de Emerson
intitulado "Autoconfiança", publicado em Ensaios - Primeira Série (1841):
O homem deve aprender a identificar e observar o raio de luz interior que lhe
atravessa a mente, mais do que o lustro do firmamento de bardos e sábios. No
entanto,
ele descarta, sem perceber, o seu próprio pensamento, apenas porque é seu. Em
toda obra de génio encontramos os nossos próprios pensamentos descarI voltam para nós com uma certa majestade alienada (...). Afasto-me de pai e mãe
e irmã e irmão, quando meu génio me chama. Escreveria acima das esquadrias das
portas:
Capricho.
O princípio número um do génio emersoniano está aqui implícito: os lustros que
ntemplamos na literatura são os nossos próprios, conquanto os tenhamos alienado
de
ós mesmos. Ler implica resgatar algo que é nosso, seja qual for o paradeiro do
elemento perdido. Mas isso transcende a leitura, sendo, deveras, a própria
transcendência:
Ainda resta afirmar a verdade mais nobre sobre essa questão, embora seja
provável que ela não possa ser afirmada, pois tudo o que dizemos são lembranças
distantes
invocadas pela intuição. Tal pensamento, tal qual posso afirmar, é o seguinte:
quando o bem está próximo de ti, quando tens a vida no teu interior, isso não se
deve
a qualquer caminho conhecido; trata-se de um caminho em que não perceberás as
pegadas de outrem; não verás o rosto de outro homem; não ouvirás qualquer nome
pronunciado;
o caminho, o pensamento, o bem serão inteiramente estranhos e novos. Estarão
excluídos o exemplo e a experiência. Segues o caminho que vem, não o que leva ao
homem.
Todas as pessoas que já existiram são os seus ministros esquecidos. Tanto o medo
quanto a esperança estão aquém desse caminho. Na hora da visão, não há o que
possa
ser chamado gratidão, ou alegria. A alma, elevada acima da paixão, contempla a
identidade e a causalidade, percebe a existência da Verdade e da Correção, e se
tranquiliza
com a noção de que tudo vai bem. Grandes extensões da natureza, o Oceano
Atlântico, os Mares do Sul - longos períodos de tempo, anos, séculos - não têm a
menor importância.
Segundo penso e sinto, é isso que subjaz a qualquer tipo de vida e
circunstâncias anteriores, assim como subjaz ao meu presente, ao que chamamos
vida, e ao que chamamos
morte.
Apenas a vida vale, não o ter vivido. O poder cessa no instante do descanso;
reside no momento de transição, de um passado a um novo estado, no momento da
travessia
do golfo, do disparo ao alvo. Eis o fato que o mundo odeia: o devir da. alma,
pois isso degrada o passado, transforma riqueza em pobreza, reputação em
vergdnha,
confunde o santo e o pândego, empurra para o lado tanto Jesus quanto Judas. Por
que, então, tagarelamos a respeito da autoconfiança? Porquanto a alma esta
presente,
a força não será confidente, mas agente. Conversar sobre confiança e um meio
externo, limitado, de falar. Antes, falemos àquilo que confia, porque isso
funciona
e existe. Quem é mais obediente do que eu me comanda, ainda que nao mexa um dedo
sequer. Em torno de tal pessoa eu orbito, através da gravita354
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ção dos espíritos. Consideramos tratar-se de retórica, quando falamos da virtude
eminente. Ainda não percebemos que virtude é Elevação, e que um homem ou um
grupo
de homens dotados de princípios permeáveis, segundo a lei da natureza, há de se
impor e comandar todas as cidades, nações, reis, magnatas e poetas que não o
sejam.
O trecho anterior traduz o génio de Emerson, ou o Sublime norte-americano
Enfaticamente, não se trata de uma doutrina social, e não visa ao bem
necessário, nem
mesmo em se tratando de amigos e vizinhos. Emerson celebra a Novidade, o influxo
de poder do espírito que sabe como a coisa é feita. Seguir o caminho que vem,
não
o que leva ao homem, é*descartar todo o contexto da sociedade. Eis o misticismo
do génio, tão intenso em Emerson quanto em Meister Eckhart, São João da Cruz, ou
Jakob Boheme e seu discípulo inglês, William Law. A vida que temos dentro de nós
é, ao mesmo tempo, o pão nosso de cada dia e pneuma, a centelha louvada pelos
antigos
gnósticos, porque encerrava o que neles havia de melhor e mais puro, não fazendo
parte do esquema da Criação e Queda. Ao contrário de um antigo especulador
gnóstico,
Valentim, Emerson não busca a completude, o pleroma original que perdemos em
consequência da Criação, mas o momento de transição, a travessia norte-americana
para
uma novidade infinita. O descanso do pleroma exclui o poder, e o poder é o
estigma do génio emersoniano, norte-americano: "reside no momento de transição,
de um
passado a um novo estado, no momento da travessia do golfo, do disparo ao alvo".
Essa noção produz a mais subversiva de todas as sentenças escritas por Emerson,
uma vez que as implicações da mesma se tornam aparentes: "Antes, falemos àquilo
que confia, porque isso funciona e existe." A moralidade de caráter grupai é
totalmente
anulada por esse princípio.
O que, então, é a Autoconfiança, ou o génio emersoniano? E algo menos amoral
do que não-moral. A epígrafe ao ensaio, uma quadra de versos gnômicos compostos
pelo
próprio Emerson, faz lembrar o rompante do Juiz Holden, no livro Meridiano de
Sangue, de Cormac McCarthy: "Os lobos caçam a si mesmos, homem!"
Atira o pirralho ao rochedo,
Que em teta de loba ele mame,
E passe o inverno co' o falcão, sem medo,
Forte e veloz, pés e mãos ele chame.
Eu costumava discutir Emerson com meus amigos, agora falecidos, Angelo
Bartlett Giamatti, reitor de Yale e comissário de beisebol, e Robert Penn
Warren, poeta-ficcio-
a l^mbro-me bem do seu rosnado: "Emerson é suave como arame farpado!", nista, e
icni^^u
•m como me lembro de Warren, citando o amigo Allen Tate: "Emerson é o Diabo." C
atti e Warren, por quem sigo de luto, foram moralistas clássicos. Autoconfiança
é A utrina perigosa, mas vitalizadora: gerou emersonianos de direita, como Henry
Ford, de esquerda, como John Dewey. E conquanto seja a Religião Norte-americana,
a dou-' a nos adverte quanto a crenças estáticas: "Assim como as preces dos
homens são uma doença da vontade, suas crenças são uma doença do intelecto",
citando,
mais uma vez, minha sentença predileta, em toda a obra de Emerson.
Emerson desejava que todos os norte-americanos fossem poetas e místicos, e a
estranha religião pós-cristã que ele ajudou a promover éz poesia e o misticismo
dos
norte-americanos, pregados pelo Wall Street Journal e pela Harvard Business
Review. Se a força do génio norte-americano reside na transição, em um nervoso
disparo
ao alvo, podemos evitar comandar o mundo, pois já o teremos contaminado. Uma
visita a Portugal ou à Espanha, à Itália ou à Suécia, em aspectos essenciais,
causa-nos
a impressão de jamais termos saído de casa. Mesmo assim, se Emerson incentivou
Henry Ford e John Dewey, também inspirou Walt Whitman e, de modo mais sutil,
Henry
e William James, Emily Dickinson e Hart Crane.
No ensaio "Sobre a Experiência", o mais bem construído de todos os que
escreveu, Emerson retoma, com cautela, a questão do génio:
O tipo de pessoa mais cativante é aquele cujo poder é exercido obliquamente, e
não pelo confronto direto: homens de génio, mas ainda não reconhecidos; percebe-se
o brilho da sua luz, sem que seja preciso pagar um imposto muito elevado. Têm a
beleza dos pássaros, ou da luz do dia, mas não da arte. No pensamento do génio
sempre
há uma surpresa, e é correto que o sentimento moral se chame a novidade", pois
não será outro senão esse.
Escrevendo sobre Montaigne, seu mestre ensaísta, Emerson leva essa ideia
adiante:
O génio se define como tal pelo primeiro olhar que dedica a qualquer objeto.
Será a sua visão criativa? Não se detém em ângulos e cores, mas contempla a
estrutura
- tende, em breve, a depreciar o objeto. Em momentos importantes, seu pensamento
dissolve as obras de arte e da natureza nas suas próprias causas, de modo que as
palavras parecem pesadas e erradas.
A medida que avança nessa direção, Emerson colide com a arte suprema de
Shakespeare, e é detido, mas por pouco tempo. Enquanto o visionário da travessia
e do
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357
devir confronta os limites do pensamento, da linguagem e da imaginação, é tomado
de impulsos antitéticos: "Agora, literatura, filosofia e pensamento são
shakespearizados
(sic). A mente de Shakespeare é o horizonte além do qual, no momento, não
podemos enxergar." Trata-se de celebração ou queixa? Não creio que tenha a menor
importância,
pois Emerson é capaz de se expressar sabiamente sobre Shakespeare:
Shakespeare é o único biógrafo de Shakespeare; e nem mesmo ele pode revelar
algo, a não ser ao Shakespeare que temos dentro de nós; isto é, à nossa hora
mais apreensiva
e solidária.
Tais afirmações* passam a configurar, ao lado do tributo feito por Samuel
Johnson, o melhor que já foi dito sobre Shakespeare:
Assim é o sábio Shakespeare e seu livro da vida. Ele escreveu as árias de toda
a nossa música moderna; escreveu o texto da vida moderna, o texto dos costumes;
desenhou o homem da Inglaterra e da Europa, pai do homem norte-ame-ricano;
desenhou o homem, descreveu o dia e o que é feito no dia; leu os corações de
homens e
mulheres, a sua probidade, os seus expedientes e estratagemas; os estratagemas
da inocência e as transições através das quais virtudes e defeitos trocam de
lugar;
era capaz de separar a parte da mãe da parte do pai, na fisionomia de uma
criança, e traçar a fronteira ténue entre liberdade e destino; conhecia as leis
da repressão
que formam a polícia da natureza; absorvia na mente todas as canduras e todos os
terrores da espécie humana, com a mesma verdade e meiguice que a paisagem é
absorvida
pelos olhos. E a importância dessa sabedoria de vida faz desaparecer a forma,
seja o drama ou o épico. E como questionar o papel em que é escrita uma mensagem
do
rei.
Shakespeare destaca-se na categoria de autores eminentes, assim como se
destaca na multidão. E inconcebivelmente sábio, enquanto a sabedoria dos demais
é concebível.
Um leitor competente é capaz de alojar-se no cérebro de Platão, por assim dizer,
e pensar a partir dali; mas não no de Shakespeare. Ainda não o penetramos. Em
termos
de capacidade de execução, de criação, Shakespeare é único. Homem algum pode
imaginar com mais competência. Ele alcançou o ponto mais avançado de sutileza
possível
a um indivíduo - o mais sutil dos autores, sendo quase inaceitável a
possibilidade de autoria. A sua sabedoria de vida iguala-se o dom da sua força
lírica e criativa.
Revestiu com formas e sentimentos as criaturas de suas histórias, como se fossem
pessoas que viviam com ele sob o mesmo teto, e poucos homens de carne e osso
tiveram
personalidades tão bem delineadas
auanto essas figuras ficcionais. E falam uma linguagem tão doce quanto convém.
Todavia, o talento jamais o seduziu à ostentação, tampouco bateu na mesma tecla.
A
humanidade omnipresente coordena todas as faculdades shakespearianas. Se
pedirmos a um homem talentoso que nos conte uma história, a sua parcialidade
logo transparece.
Determinadas observações, opiniões, tópicos merecerão certa proeminência, que
ele se dispõe a exibir. Ressalta a parte que lhe interessa, e diminui a outra
parte,
desconsiderando a conveniência da coisa em si, e levando em conta apenas a sua.
Mas Shakespeare não tem as suas peculiaridades, não tem tópicos inoportunos;
tudo
é oferecido, condignamente; não tem as suas veias, os seus interesses, não é
maneirista; não tem qualquer egoísmo discernível; o grande, ele descreve com
grandiosidade,
o pequeno, com subordinação. é sábio sem ser enfático ou assertivo; é forte,
como a natureza é forte, capaz de soerguer a terra, formando encostas de
montanhas,
sem esforço, e segue o mesmo princípio segundo o qual uma bolha flutua no ar, e
se apraz, igualmente, de fazer uma coisa ou a outra. Daí o equilíbrio de forças
entre
farsa, tragédia, narrativa e canções de amor, um mérito tão constante que cada
leitor chega a duvidar das percepções de outro leitor.
Essa força de expressão, ou de se transformar a verdade mais íntima em música
e verso, torna Shakespeare o modelo do poeta, e acrescenta mais um problema à
metafísica.
É isso que o empurra para a ciência natural, como importante produção do globo,
anunciando novas eras e melhorias. O mundo é espelhado em sua poesia sem perdas
ou
borrões; era capaz de pintar o belo com precisão, o grande com alcance, o
trágico e o cómico indiferentemente, e sem distorção ou favor. Desincumbe-se da
tarefa
nos menores detalhes, até um fio de cabelo: retoca um cílio ou uma covinha com a
mesma firmeza que desenha a montanha; e tais detalhes, como os que produz a
natureza,
resistem ao exame do microscópio solar.
Em suma, Shakespeare é o melhor exemplo para se demonstrar que mais ou menos
produção, mais ou menos quadros, é indiferente. Tinha a capacidade de construir
um
quadro. Daguerre aprendeu a fazer com que uma flor gravasse a própria imagem em
uma placa com iodo; daí, ele prossegue, à vontade, podendo reproduzir um milhão.
Sempre há objetos; mas jamais houve representação. Eis a representação perfeita,
finalmente; e agora, que o mundo das gravuras pose para os retratos. Não existe
receita para a preparação de um Shakespeare, mas a possibilidade de se traduzir
coisas em canção fica demonstrada.
u que há de mais vital e abrangente em Shakespeare é captado por essas
palavras, para sempre. No entanto, uma ou duas páginas adiante, o contracanto
passa a
ser uma
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pergunta insistente, de vez que Emerson se sente frustrado pelo fato de
Shakespeare não ter utilizado a sabedoria e a arte para nos salvar, ou, pelo
menos, para
nos tornar mais parecidos com ele:
Foi o mestre-de-cerimônias da humanidade. Não que devamos receber, através dos
poderes majestosos da ciência, os cometas entregues em nossas mãos, ou os
planetas
e suas luas, tampouco devemos retirá-los de suas órbitas, a fim de vislumbrá-los
junto aos fogos de artifício, em uma noite de feriado municipal, anunciada pelas
cidades vizinhas: "Esta noite - show de fogos jamais visto!". Valerão os agentes
da natureza, e a capacidade de entendê-los, não mais do que uma serenata de rua,
ou uma baforada de charuto? Relembramos o texto retumbante do Alcorão: "Os céus
e a terra, e tudo o que entre eles se encontra, pensais que foi criado por
brincadeira?"
Interrompo aqui a citação, não a fim de objetar ao sagrado Emerson, mas para
aventurar a resposta shakespeariana, ao menos do Shakespeare amadurecido, autor
de
uma parte de Os Dois Nobres Parentes, tudo o que podemos fazer é tentar nos
comportar como o tempo, aprendendo a lição que nos é ensinada pelo Cavaleiro de
Chaucer:
estamos sempre comparecendo a encontros não marcados. A escolha entre os agentes
da natureza e a serenata de rua não é difícil: a serenata não nos destrói, e
compreender
a destruição talvez valha menos do que a baforada de um charuto. Quanto às
eloquentes trombetas de Alá, a resposta shakespeariana poderia ser: "Ora, sim,
por brincadeira,
com certeza." Contudo, Emerson prossegue a afastar a pilhéria, com o seu tributo
mais vibrante:
Fosse ele menor, houvesse apenas alcançado a dimensão comum aos grandes
escritores, Bacon, Milton, Tasso, Cervantes, poderíamos relegar o fato ao
crepúsculo do destino
humano; mas esse homem entre os homens, que conferiu à ciência da mente uma
temática nova e maior, sem precedentes, e avançou os padrões da humanidade
centenas de
metros em direção ao caos, que tal homem não se valesse da própria sabedoria...
Haverá de entrar para a História que o melhor poeta levou uma vida obscura e
profana,
dedicando o seu génio ao divertimento do público.
Ao mesmo tempo, reverenciamos e rejeitamos tal tributo. A questão do génio é
aqui contundente: será o génio capaz de transcender e apontar-nos um além sem
credo,
atribuir alguma coerência e significância à ordem violenta? O que Charles Lamb
disse a respeito de Coleridge é, ao menos uma vez, verdade com relação a
Emerson:
ele queria um pão melhor do que o trigo é capaz de fazer.
EMILY DICKINSON
Sua mente de homem é secreta, Quando o encontro, estremeço; Carrega à sua volta
um círculo, Do qual não sou adereço O génio do isolamento é muito raro; nenhum outro poeta, nem mesmo Emily
Bronté, parece-nos tão remota quanto Dickinson. Não contamos com qualquer
abordagem "correta"
à sua obra. Se Dickinson era emersoniana, a diferença entre os dois é que ela
pôs em prática a autonomia quase total que ele defendia, mas não pôde praticar,
pois
era um centro cultural em si mesmo.
Emerson evita o sofrimento; Dickinson faz do sofrimento sua atmosfera. Ambos
temiam a cegueira, e tiveram com ela encontros psicossomáticos. Mas, enquanto,
para
Emerson, a experiência surgiu cedo e não durou muito tempo, com Dickinson o
problema foi maior.
Aprendemos com Emerson algo sobre a força do eu; Dickinson ensina a angústia
da elevação sublime através da dor. Emerson negava o desespero; Dickinson é a
mestra
dos sentimentos negativos: a fúria, a carência erótica, o conhecimento (bastante
privado) do exílio de Deus com relação a si mesmo. O génio de Dickinson é tão
original,
que chega a modificar o nosso entendimento quanto às possibilidades do génio
poético. É, reconhecidamente, uma poeta pós-wordsworthiana; todavia, o
diferencial norte-americano
é tão marcante nela quanto em Whitman ou Melville.
Talvez William Blake, génio também singular, seja o análogo mais verdadeiro de
Dickinson. Ao contrário de Emerson ou Whitman, Dickinson não pode ser
classificada
de escritora regionalista norte-americana, pós-protestante, pois é seita de um
só seguidor, como Blake. Dickinson desestabiliza todas as nossas ideias
tradicionais,
assim como o faz Blake, sem criar uma ficção suprema, pessoal, como ele buscou
fazer. Se é possível a algum poeta partir do zero a cada novo poema, é
questionável.
Mas, se alguém é capaz de fazê-lo, esse alguém é Emily Dickinson.
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EMILY DICKINSON
EMILY DICKINSON (1830-1886)
O meu assunto, felizmente, é o génio de Dickinson, sua originalidade tanto em
termos cognitivos quanto estéticos. Da minha parte, não considero a religião de
Dickinson
(que, assim como no caso de Blake, era uma seita de um só seguidor) ou a sua
preferência sexual questões prementes, embora nesse particular, como em tudo o
mais,
hoje pertenço a uma minoria amante em locais que fingem ser instituições de
ensino superior. Corre pqr aí, atualmente, que "a prova dos asteriscos" indica
um relacionamento
sexual apaixonado entre Dickinson e sua cunhada, mas vejo apenas que suas cartas
são poemas em prosa, compostos com o mesmo cuidado que a poesia, não sendo prova
de coisa alguma, mesmo que os asteriscos signifiquem mais do que asteriscos. A
melhor biografia de Dickinson continua sendo a de Richard B. Sewall (1974), que
resume,
com sensatez, a relação entre Dickinson e a cunhada temperamental, Sue. Mais
importante, Sewall traça o amor frustrado de Dickinson por Samuel Bowles, e o
amor,
supostamente, correspondido, pelo Juiz Otis Phillips Lord, 18 anos mais velho do
que ela. Lord morreu em 1884, aos 72 anos; Dickinson estava com 54, e viveu
somente
mais dois anos, enlutada pelo desaparecimento de Lord e dos demais entes
queridos. Uma vez que a esposa de Lord faleceu em fins de 1877, o relacionamento
íntimo
entre Dickinson e o juiz, obviamente, data do início de 1878, ocasião em que ela
estava com 45 anos e ele 65. As cartas dela para ele, embora escritas com o
talento
extraordinário de sempre no que diz respeito à elaboração retórica, não podem
ser interpretadas se não como expressão de uma paixão de natureza sexual,
conquanto
não constituam, em absoluto, evidência de consumação. Com a cautela que sempre
devemos ter quando se trata de Dickinson, concordo com Sewall, acreditando no
amor
de Dickinson por Bowles e na relação com Lord, que quase resultou em casamento.
Ainda estamos aprendendo a ler a poesia de Dickinson, em primeiro lugar, devido
à
dificuldade genuína de sua obra. Emily é, amiúde, mais alusiva do que costumamos
reconhecer, como nesta célebre quadra dirigida a si mesma, enquanto Lord
agonizava:
Circunferência, Noiva Reverente, Possuindo hás de ser Possuída por Cavaleiros
ungidos Que ousem - te querer.
-Poema 1636
Esses versos, ao menos em inspiração, poderiam ser considerados o hino de
Dickinson ao amor livre, seguindo o estático Epipsychidion, de Shelley, em que
Emilia Viviani,
a amada de Shelley naquele momento, é chamada "Emily". Nesse aspecto, vou além
de Sewall, pois a alusão a Shelley é um choque proposital que Dickinson nos
transmite.
Em sua consciência sublime, vasta, é ela a Circunferência; Reverente é o Juiz
agonizante para todos os efeitos, o marido, e ela se declara disponível a
qualquer
Cavaleiro ungido que ouse cobiçá-la. O trecho respectivo em Epipsychidion
ilumina a complexa metáfora de Dickinson - "Circunferência" -, revelando-lhe a
natureza
sexual:
Nesse ínterim, Levantemo-nos, juntos caminhemos, Sob este céu
de clima jónico, azul, Errando pelos prados, as montanhas Verdejantes subindo,
onde
se curva O céu, vento leve, a tocar a amada; Ou fiquemos na praia mais seixosa,
Que, sob os beijos ágeis do oceano, Estremece e reluz em pleno êxtase -Possuindo
e por tudo possuída, Calma circunferência de prazer, Possuindo-nos, até que seja
o mesmo amar e viver Shelley e Emily, mutuamente possuídos, compartilham essa possessão com tudo o
que existe de mais elevado no interior de suas circunferências. Voltemos à audaz
Dickinson. Como Noiva Reverente (do Juiz), ela é possuidora, mas, depois que ele
morre, ela prevê ser possuída, dependendo da ousadia dos que a cobiçarem. A
poeta
Dickinson oferece-nos aqui pouco espaço para ironia ou alegoria; ela toma
emprestadas, junto à celebração mais explícita do amor livre feita por Shelley,
as ideias
de possuir, ser possuído e circunferência. Por mais abrangente que sejam as
condições do ser e da imaginação atinentes à auto-identificação de Dickinson
como Circunferência,
o processo não pode ser compreendido, exclusivamente, como metafórico, pois
implica, também, a diferença (observável nela própria) resultante do caso de
amor com
Otis Phillips Lord.
E impossível ler Dickinson extensa e devidamente sem ser confrontado pela sua
extraordinária autoconfiança como poeta, mulher e pensadora religiosa. Tal
confiança
se traduz em orgulho pela sua própria autoridade poética, e em autonomia
demoníaca, sumamente individualizada. Recorro, de propósito, à noção emersoniana
de autocon362
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fiança: que relação tem Dickinson com Emerson, seu contemporâneo (embora mais
velho)? Pessoalmente, ela o evitava. Em 11 de dezembro de 1857, Emerson proferiu
conferência
em Amherst, tendo, em seguida, jantado e passado a noite na casa do irmão e da
cunhada da poeta, vizinhos de Dickinson. Aos 27 anos, à época, Dickinson ainda
não
era, absolutamente, uma reclusa; supõe-se que tenha assistido à palestra e
jantado em companhia do sábio. Sue relembra que, na ocasião, Emily dissera que
Emerson
"parecia egresso de onde nascem os sonhos". Todavia, ela não enviou os seus
poemas a Emerson, mas a Thomas Wentworth Higginson, herói de guerra, mas homem
de letras
de terceira categoria. Escrevendo a Higginson, ela fez uma pergunta que deve têlo deixado atónito: "Com o Reino do Céu no colo, poderia Emerson hesitar?" No
meu
entendimento, a pergunta tem uma deliciosa malícia, característica que raramente
atribuímos a Dickinson. Diante de um volume de Folhas da Relva, em 1855, a
reação
de Emerson foi precisa, sob o ponto de vista da crítica, esplêndida, além de
constituir forte incentivo. Diante dos poemas de Dickinson, teria ele reagido de
modo
diferente? As afinidades entre Dickinson e Emerson eram inúmeras, mas as
diferenças eram maiores do que as observadas nos casos de Hawthorne e Melville.
Tanto quanto
Emerson, Dickinson tinha uma deficiência visual, fosse no sentido literal ou
figurativo. Mas não compartilhava da fé infiel de Emerson, assim como não
compartilhava
da fé dos pais. A autoconfiança a impulsionou durante muito tempo, mas, no
extremo, abandonou-a, ou foi por ela abandonada.
E impossível definir a religião de Dickinson, em parte porque ela seguia
Emerson ao exaltar o Capricho, que não pertence ao cosmo do judaísmo, do
cristianismo
ou do islamismo. A discussão mais inteligente da espiritualidade de Dickinson
está contida no estudo de James Mclntosh intitulado Nimble Believing: Dickinson
and
the Unknown (2000), cujo título é extraído de uma das cartas da poeta para o
Juiz Lord:
A respeito de assuntos sobre os quais nada sabemos, ou, devo dizer, Seres [sobre
os quais nada sabemos] - será "Phil" [o Juiz] um "Ser" ou um "Tema" - nós dois
acreditamos
e desacreditamos 100 vezes por Hora, o que torna flexível a fé.1
Em todo caso, a noção torna a ausência de fé, igualmente, flexível, e ninguém
- nem a própria Dickinson - pode ter certeza absoluta quanto ao credo da poeta
(se
é que ela acreditava em algo). Encontro nos poemas pouca evidência de uma crença
na Ressurreição de Jesus Cristo, e ela, certamente, não o aceitava como
redentor.
Mas o sofrimento de Jesus e seu triunfo sobre a dor eram de grande interesse
para Dickinson, ao
1 Istoé, " nimble believing . [N. doT.]
'
nasso que nada significavam para Emerson, que considerava o Gólgota uma Grande
Derrota e, como norte-americano, dizia: "Queremos a Vitória, a Vitória dos
sentidos
e da alma." Dickinson encontrava no Gólgota uma vitória, mas por meio de uma
postura afrontosa, como "Imperatriz do Calvário", ou seja, a noiva de Cristo.
Insinua
haver desposado o Espírito Santo, outra percepção tipicamente norte-americana.
Mclntosh, talvez demonstrando um calvinismo residual maior do que o de
Dickinson,
considera a noção de "Reverência" da poeta um legado calvinista; no entanto, o
termo parece ser um dos codinomes do homem com quem ela quase se casou, o Juiz
Lord.
Vale registrar que, embora, em última análise, o posicionamento religioso de
Dickinson seja indescritível, Mclntosh está absolutamente certo quando diz que o
mesmo
não era contraditório. Ela desenvolvera um tipo de mitologia religiosa, mas
declinava de expressá-la de maneira aberta e consistente, limitando-se a
dramatizar nos
poemas a sua posição nessa mitologia. A Reverência de Dickinson, tanto quanto o
seu Enlevo, configura o Alto Romantismo, e ainda não estudamos bastante a sua
complexa
ligação com Words-wortli, Shelley e Keats.
A exemplo de Emerson, Dickinson, de um modo que chega a ser constrangedor,
idolatra o Poder, e faz troça, dizendo que, nas Escrituras, o Poder fica entre o
Reino
e a Glória, porque é o mais rebelde dos três. A "rebeldia" de Dickinson é a
mesma de Emerson e, tanto quanto para ele, para ela a palavra denota
"liberdade". Dickinson
venerava Emerson, mas, ao contrário de Whitman e Thoreau, não pode ser
considerada emersoniana, visto que fazia de tudo para manter o sábio,
fisicamente, a distância.
A suposta contenda com o calvinismo - onde estaria localizada? - pouco tem a ver
com prudência. A proximidade de Emerson, como poeta e pensador, já era
demasiada.
Certos poemas poderiam ser atribuídos tanto a um quanto ao outro, o que, para
Dickinson, não causaria a menor satisfação. Não seguir modelos é conselho do
próprio
Emerson, mas Dickinson não precisava de tal recomendação. Mas ambos são poetas
das epifanias, no caso de Emerson, bem mais benevolentes.
Como confrontar o génio de Dickinson? Melhor dizendo, como descrever um génio
tão volátil, caprichoso, conceitualmente tão original? Ralph Franklin, editor
definitivo
da poesia de Dickinson, lembra-nos que é através da linguagem que adentramos a
obra, pois Dickinson não se apropria de quaisquer normas públicas para a sua
poesia".
A observação mais útil sobre Dickinson de que tenho conhecimento partiu de
Franklin:
Como boa cidadã da era da imprensa, foi ávida leitora de jornais, revistas e
livros, mas não era capaz de se expor ao ato comercial e impessoal que
representava
a publicação de seus trabalhos. Era uma poeta que, conhecendo os próprios
limites, dizia: Não atravesso o terreno do meu Pai, rumo a qualquer Casa ou
Cidade."
364
365
Disso eu depreendo que nos convém conhecer nossos limites, ao lermos a obra
dessa mulher formidável, e ao tentarmos compreender-lhe o génio. Quantos
escritores
norte-americanos são igualmente ilustres? Eu diria, apenas três: Emerson,
Whitman e Henry James. Há outros que muito se aproximam desse quarteto, dentre
os quais
Hawthorne, Melville, Mark Twain, Frost, Faulkner, Stevens, Eliot e Hart Crane.
Se me fizessem a pergunta da ilha deserta, e só me permitissem um livro de
autoria
de um norte-america-no, eu diria Whitman, mas Dickinson e Emerson já bastariam.
Seria tolice, com relação a Dickinson, ter qualquer atitude condescendente, ou
recrutá-la
para determinada ideologia ou crença. Hazlitt disse-o bem, que, em Wordsworth,
tem-se a impressão de um novo começo, uma tabula rasa da poesia. A rigor, não se
pode
dizer o mesmo quanto à poesia de Dickinson, mas ela bem que se aproxima dessa
situação. E, em termos de originalidade cognitiva, Dickinson supera qualquer
poeta
ocidental, exceto Shakespeare e Blake. Ela pensa com mais lucidez e sente com
mais intensidade do que qualquer um de seus leitores, e tem plena consciência de
sua
superioridade. Portanto, procederei com cautela, ao tentar analisar-lhe o génio.
A despeito da exuberância e da comicidade, Dickinson é uma poeta cujo método
principal é o sofrimento intenso, às vezes tão dorido e grave, que propicia tãosomente
o tipo de prazer mais difícil, tradicionalmente associado ao Sublime. Quando a
leio durante algum tempo, e sempre que a interpreto em sala de aula, a
experiência
me exaure, tanto quanto se dá no caso de Rei Lear. Uma poeta que diz gostar de
um rosto agonizante por sabê-lo verdadeiro arrisca-se a uma condenação, o que,
de
fato, ocorre, quando Camille Paglia a recruta para as fileiras do divino Marquês
de Sade. Lembro-me de ter discutido a questão com Paglia (leitora esplêndida),
mas
não consegui convencê-la. Em Dickinson, prazer e dor mesclam-se, paradoxalmente,
e, sempre vale registrar, em que pese a sua reputação, Dickinson pode ser uma
poeta
bastante erótica, embora o seu génio viceje no louvor/lamento do erotismo da
perda. Morte e paixão nela travam um embate, e a morte vence, necessariamente.
Em 1863, Dickinson atingiu a idade de Cristo, e viveu o ano mais fecundo de
sua poesia. Por que motivo seria esse o seu annus mirabilis, só posso
conjecturar.
No final de abril de 1864, ela foi a Boston, a fim de se submeter a um
tratamento oftálmico, e regressou a Amherst, em 28 de novembro; o ano anterior,
no entanto,
foi passado na tranquilidade do lar, sem grandes perdas pessoais. Em 1862,
elegeu Higginson como preceptor, muito antes de ele assumir o posto de coronel
em um regimento
composto de soldados negros. As maiores perdas se acumulariam mais tarde: o pai,
em 1874, Samuel Bowles, em 1878, Charles Wadsworth, em 1882, a mãe, nesse mesmo
ano, o Juiz Lord, em 1884, Helen Hunt Jackson, em 1885, até que, em 15 de maio
de 1886, ela própria faleceu. Em se tratando de um génio incrivelmente
introspectivo,
tão nosso
desconhecido quanto o de Shakespeare, estímulos externos parecem desnecessários
para instigar a imaginação. Não considero o ano de 1863 de modo arbitrário, pois
a ele é atribuída a composição dos poemas compreendidos entre os números 499 e
793, segundo a edição de Franklin, quase 300 poesias e fragmentos de poesias, de
um
conjunto total de 1.789. Dentre os principais poemas desse intervalo incluem-se:
"Uma Vala- mas o Céu acima" (508), "Eis minha carta ao Mundo" (519), "Sempre me
pareceu - errado" (521), "Amarro o Chapéu - amarroto meu Xale" (522), "Avalio quando me disponho a enumerar" (533), "Meço cada dor que encontro" (550), "Ouvi
uma
Mosca zumbir - quando morri" (590), "O Cérebro - é mais vasto que o céu" (598),
"Muita Loucura é divina Sensatez -" (620), "Os instantes Superiores da Alma"
(630),
"Não vi o Caminho - os Céus estavam costurados" (633), "Roda alguma pode me
torturar -" (649), "Saí cedo - Levei meu Cão -" (656), "Uma Língua - para dizer
a Ele
que sou fiel!" (673), "Ó Criaturas Meigas-angelicais -" (675), "O Matiz que não
me impregna - é o melhor" (696), "Não posso viver com Você" (706), "Minha Vida
era
-uma Pistola armada -" (764), "Renúncia - é Virtude cortante -" (782),
"Publicação - é Leilão" (788). Selecionei esses 20 poemas de modo arbitrário,
com base em
meu gosto pessoal, e omito vários de valor singular; mas esses 20, por si só,
formam um corpus de grande poesia. Como podem ter surgido em um ano,
aparentemente,
calmo?
Examinado o ano anterior, na excelente edição compilada por Franklin, cabe
indagar se 1862 não terá sido quase tão profícuo, com os poemas "Vais ter com
Ele! Carta
Feliz!" (277), "De todas as Almas criadas -" (279), "Devia sentir-me feliz,
agora vejo -" (283), "De Bronze - e Brasa -" (319), "Existe uma certa luz
oblíqua" (320),
"Antes de o meu olho se apagar -" (336), "Senti um Funeral, no Cérebro" (340),
"É tão assustador que diverte -" (341), "Não era a Morte, pois fiquei de pé"
(355),
"Após grande dor tem-se uma sensação formal" (372), "Não sei dançar na Ponta dos
Pés -" (381), "Ousas ver Almas no 'Calor Branco'?" (401), "Não é preciso ser
Casa
- para ser Mal-assombrada" (407), "A Alma elege a própria Sociedade -" (409),
"Foi como um Redemoinho, com um furo" (425), "Foi um Poeta -" (446), "Morri de
Beleza
- mas apenas acabava" (448), "Nossa jornada avançara -" (453), "Permaneço na
Possibilidade -" (466), "Porque não pude me deter para a Morte -" (479), "De
Branco
em Branco -" (484). São 21, cada qual tão contundente quanto os 20 do grupo que
pertence ao período posterior. Em 1864, Dickinson foi submetida a intenso
tratamento
ocular, e ausentou-se de casa. O ano em questão, sem dúvida, demonstra um
declínio, mas um poema ao menos iguala-se a qualquer outro escrito por ela, em
qualquer
período: "Esta Consciência atenta" (817).
A hipótese do efeito antitético produzido pela Guerra Civil no florescimento
da ^e de Dickinson em 1862-63 foi defendida por Shira Wolosky, que entende a
cres366
367
cente introspecção da poeta como reação à crise nacional. O argumento parece
convincente, mas não temos meios de testá-lo. Por que se constata um declínio em
Dickinson,
após 1875? Nos últimos 11 anos de vida ela nos deu apenas cerca de 300 poemas,
que mais parecem uma imitação, fruto do trabalho de algum pupilo da grande
Dickinson.
Desse período, apenas um poema é importante, ao menos segundo o meu ponto de
vista: "A Bíblia é um velho Volume -" (1577). Dentre os poemas que Franklin não
consegue
datar, destacam-se o maravilhoso "A palavra Encarnada é raramente -" (1715), o
tremendamente erótico "No Inverno no meu Quarto" (1742) e poucos outros. Pode-se
aventar
que a morte do pai, em 1874, talvez tenha destruído a motivação para a metáfora.
Um mês após o falecimento de Edward Dickinson, ela escreveu, em céleb#e carta a
Higginson: "Seu coração era puro e terrível, e não creio que exista outro
similar." A relação entre os dois fora nitidamente distante, e profundamente
reprimida;
talvez a poesia, na melhor das hipóteses, surgira a partir da necessidade de
preencher um vazio.
Contudo, desagrada-me essa dedução, por mais óbvia que seja: Amherst e a Nova
Inglaterra estavam repletas de pais calvinistas, matando-se de trabalhar para
manter
filhas solteironas, e, no entanto, não temos um bando de Emily Dickinsons,
apenas uma, com seu génio singular. A irmã, Lavinia, também era solteira, mas
não foi
uma Charlotte ou Anne Brontè, para Emily. Diante de uma consciência tão
inovadora, precisamos modificar, completamente, nossos procedimentos usuais, e
concentrarmo-nos
na influência da obra sobre a vida, e não no inverso. Tudo e todos, o Juiz Lord
e a cunhada Sue, decepcionaram Emily Dickinson, exceto a sua poesia. À
semelhança
de William Blake e Gerard Manley Hopkins, ela contava com um pequeníssimo
público leitor, e se beneficiou desse isolamento, conforme sucedeu com Blake e
Hopkins.
Decerto, existe na poesia lírica um elemento capaz de prosperar mesmo sem
público, e isso se torna mais marcante quando a sociedade é excluída. Penso na
poesia
afro-ame-ricana, em que uma das maiores figuras é o recluso Jay Wright, quase
desconhecido do público leitor, além de ser totalmente imune à bajulação
ideológica
e política, e de jamais ser atingido pela cantilena nacionalista. Emily
Dickinson não foi apenas a religião de um só seguidor, mas não consigo detectar
em sua poesia
um único traço da política Whig praticada pelo pai e pelo amado de Emily, o Juiz
Lord. O leitor pode ressaltar, se o quiser, que só a fortuna e a posição social
da família Dickinson permitiram o florescimento da poeta, mas o argumento é
inconclusivo, diante de Lavinia Dickinson e tantas outras jovens. O mundo
académico,
que valoriza a bajulação e abomina o génio, é o pior público leitor, e a pior
autoridade possível, em Emily Dickinson, conforme demonstra, de modo patético, a
grande
massa de profissionais da atualidade. "Viva Emily!", gritam os chefes de
torcida: "Ela era amante da cunhada, Sue!"
Sucintamente, estabeleço aqui o meu entendimento com respeito ao génio de
Dickinson. Conforme se observa em vários outros grandes poetas norte-americanos
_ Whitman,
Frost, Wallace Stevens -, ela começou a escrever tardiamente. Houvesse morrido
aos 30 anos, talvez hoje não nos lembraríamos dela. Alguns poemas anteriores a
1861
têm valor, mas a força de Dickinson ainda não se manifestara. Aqui e ali é
possível encontrar frases lapidares, bem como alguns poemas verdadeiramente
sagazes. Mas,
quando terminamos de ler o Poema 243, reconhecemos Emily Dickinson:
A possibilidade - de passar Sem o menor embaraço -Diante da Conjetura É como uma
Face de Aço Que, súbito, confronta a nossa Com sorriso de metal -Cordialidade da Morte Preparando a chegada triunfal "Conjectura" aqui é o que Stevens queria dizer com "uma abstraçãò sangrada,
conforme ocorre com o homem, pelo pensamento". O que Dickinson pôs à prova, por
meio
do pensamento, foram os hinos de Isaac Watts, embora o intento da poeta se
opusesse ao de um hino litúrgico. Dickinson atraiu Paul Celan, que a traduziu
belissi-mamente,
porque nos hinos de negação por ela compostos ele encontrou algo que se
relacionava ao seu projeto, ainda que Celan se dirigisse "a ninguém", e
Dickinson não deixe
claro a quem se dirige. Certas dificuldades na interpretação de Dickinson,
conforme, penso eu, Celan percebia, aproximam-se, de modo surpreendente, da
recusa de
Kafka em ser interpretado.
Não há espíritos ou demónios em Dickinson (embora haja alguns fantasmas), e a
palavra "génio" não é fácil de ser encaixada na métrica dos hinos; ela emprega o
vocábulo apenas uma vez, em um poema cómico tardio (1873), sobre uma aranha, n°
1373:
A Aranha como Artista Jamais foi empregada -Embora a sua Destreza Seja bem
certificada
368
369
Por cada Vassoura e Criada, Em toda a Cristandade - Filha esquecida do Génio
Tens a minha amizade Vêm-nos à mente o poema de Whitman, igualmente tardio, "Aranha Quieta e
Paciente", mas o poema anterior não é dos melhores de Dickinson, ao passo que o
de nQ 381,
datado de 1862, certamente o é:
Não sei dançar na ponta dos Pés -Homem nenhum me ensinou -Mas, amiúde, em minha
mente, Um frémito me contagiou,
E pensei saber dançar Bale -E a sensação se expressava Em Pirueta de causar
inveja -Primeira bailarina eu superava,
E embora não vestisse Gaze ,*'
Meus Cabelos sem armar,
Nem voasse ao Público - qual Ave Uma das garras ao ar Nem me torcesse em meio a Plumas, Nem rolasse em rodas de neve, Para assim
deixar o cenário, O Teatro aplaudindo, como deve Nem soubessem que sou da Arte Que aqui - singela - me afeta - Nem Cartazes me
promovessem -Como a Ópera a Casa estaria repleta Dickinson celebra o próprio génio, a exuberância demoníaca a que chama
"frémito", querendo dizer "possuída". "Frémito" e "possessão", esta última em
suas várias
formas, para Dickinson, equivalem-se a génio e a demoníaco. "Êxtase", com suas
variações, é o
termo favorito de Dickinson, para designar o Sublime demoníaco, ou romântico,
embora ela também brinque com a própria palavra "Sublime". O "júbilo" e o
"deleite"
do Alto Romantismo estão presentes em toda a sua obra, legados de Wordsworth e
Coleridge, Shelley e Keats, mas "frémito" tem, para ela, conotação especial. Um
dos
meus poemas prediletos é o de n" 317, datado de 1862, o qual não arrolei
anteriormente porque desagrada a alguns dos meus alunos; no entanto, aqui, neste
maravilhoso
poema-brincadeira, torna-se visível o génio singular de Dickinson:
Deleitar é como voar -Ou uma Fração do ar, Como diriam na Escola - O Arco-íris
gabola -Um novelo,
Que a chuva tinge, com zelo, Viria bem a calhar, A não ser que voar Fosse um
Sustento "Se ela resistisse",
Ao Leste eu disse,
Quando a Listra Curva
Golpeou meu infantil
Firmamento E eu, num frémito,
Achei o Arco-íris a via comum,
E os céus vazios
A Excentricidade E assim com as Vidas - E assim com as Margaridas - Mágica vista - pelo susto E
que se engana o justo -E grandes Dotes alentados -São por alguns lamentados
-Nosso
quinhão - na questão Terminado 370
371
O Frémito que a possui em "Não sei dançar na ponta dos pés" torna-se aqui o
motivo da metáfora, quando, "num frémito", a poeta manipula os céus. Trago na
memória
um fragmento tardio (de 1879), nD 1508, desde a primeira vez que o li, na edição
de Franklin:
A voz dele, decrépita, trazia júbilo A palavra dela hesitava Que idade deve ter Nova de Amor
Para Lábio idoso pôr,
Que havia pouco em Frémito tinha Cor Será Deleite ou Pesar - pensava
Ou Terror - que para decorar
Esta vivida - entrevista Esse fragmento, provavelmente, retrata a relação erótica entre a poeta e o
Juiz Lord, captando momentos preciosos, com o distanciamento típico de
Dickinson. O
Frémito, intensidade demoníaca da poeta, irradiara-se ao amante, mas apenas para
torná-los mais velhos, pois a ironia da "Nova de Amor" é a eterna antiguidade.
"Vivida"
é a palavra adequada, seja lá o que possa "decorar" essa entrevista erótica Deleite, Pesar ou Terror. Não conheço ninguém que escreva assim, a não ser o
Shakespeare
tardio, no trecho que a ele cabe de Os Dois Nobres Parentes. Shakespeare e a
Bíblia, ambos revalorizados, são os precursores mais autênticos de Dickinson,
com os
quais ela trava um embate na idade madura. Retorno ao frémito dickinsoniano,
pela derradeira vez, invocando o poema n° 365, outro que deixei de incluir,
novamente,
porque desagrada a alguns alunos, que o consideram opaco:
Eu sei que Ele existe. Em algum lugar - em silêncio - Escondeu a Sua vida
preciosa Dos nossos olhos vulgares.
E brinquedo de um instante -Ê carinhosa emboscada - Só para a Bênção que
persiste Chegar a todos lugares!
Mas - se a brincadeira do instante Se tornar cortante e séria - Se no frémito os olhares -Na Morte - dura - se vidrarem Não seria o divertimento Por demais dispendioso! Não teria a nossa pilhéria -Ido
longe demais parar!
Não sei se "Ele" se refere a Jesus Cristo, Charles Wadsworth ou Samuel Bowles,
mas não creio que isso seja importante. A palavra central, mais uma vez, é
"frémito",
e tem origem em Dickinson, não em Jesus ou no amor humano fadado ao fracasso.
Seja humano ou divino, Ele é um homem-deus, estranho ou alienado, que se
sobressalta
diante do frémito da "carinhosa emboscada"; no entanto, ela receia que o
frémito, para ela natural, mas para ele intenso demais, possa se tornar uma
pilhéria fatal.
Parte da dificuldade gerada pela leitura desse poema resulta da falta de
precedentes. O "frémito" dickinsoniano é a verdadeira intoxicação de falta de
precedentes,
o júbilo e o deleite da poeta com relação à sua própria autonomia e
inventividade. Terá ela, afinal, se tornado reclusa por temer a sua própria
força erótica? A
linguagem de Dickinson reflete um tipo de laconismo consciente, tornando-se cada
vez mais difícil, à medida que a obra prossegue. É indubitável a sua força
poética,
assim como nos casos da Bíblia, de Shakespeare, Blake e Whitman. Com o passar
das décadas e dos séculos, Dickinson tornar-se-á um desafio cada vez maior. A
exemplo
de Whitman, ela há de se deter em algum lugar, à nossa espera.
372
373
ROBERT FROST
A dor sozinha não basta: Eu quero ter força e peso P'ra sentir a terra gasta Ao
longo do corpo indefeso.
Essa quadra que conclui o poema "Para a Terra" é central à visão de Frost com
relação a si mesmo. Sempre discípulo confesso de Emerson, Frost iguala-se ao
oráculo,
em termos de ferocidade demoníaca. "O mal abençoa e o gelo queima" é um verso de
Emerson, mas poderia ser de Frost. Ambos os sábios norte-americanos acreditavam
na coragem, mas ambos também percebiam, claramente, que a prova da vida poderia
custar muito do nosso orgulho e, portanto, levar-nos à automistificação e ao
sofrimento.
Emerson e Frost compartilham da solidão norte-americana, a noção de que só
podem se sentir livres se estiverem sozinhos. Frost é às vezes até mais severo
do que
Emerson, especialmente com ele próprio. O crítico e poeta Yvor Winters, que
tanto desprezava Emerson quanto Frost, disse, com relação a este: "E um
emersoniano que
se tornou cético e inseguro, sem ter se reformado." O que Winters não conseguia
perceber é que o ceticismo era central à visão de Emerson e Frost.
Para Emerson, a Natureza era o Não-Eu, e Frost tampouco é um poeta da natureza.
A principal diferença entre Emerson e Frost não diz respeito a argumento
poético, mas a temperamento. Frost era propenso à depressão profunda e, em
vários aspectos,
era sonso, invejoso e cruel, o que dificulta qualquer comparação com o arguto,
mas humano e desinteressado Emerson. Frost, porém, aprendeu a converter
melancolia
e niilismo em notável originalidade poética, uma negatividade sublime, dotada de
eloquência triunfante, em poemas como "Diretiva", "O Máximo" e "O João-debarro".
ROBERT FROST
(1874-1963)
Frost é confrade de Wallace Stevens, T. S. Eliot e Hart Crane, os principais
poetas dos Estados Unidos no século passado. Nitidamente, Frost, que se tornou
instituição
nacional, destaca-se dos demais. Stevens era um advogado recluso, especializado
em direito securitário, e Eliot exilou-se, voluntariamente, em Londres, onde
trabalhou
na função de editor. Hart Crane, nosso Rimbaud, nosso Christopher Marlowe, era,
a um só tempo, pária e profeta. O Frost prata da casa, sábio nacional, o Emerson
simplório, foi persona pública bastante útil, embora desprovida de valor
intelectual ou estético. O Frost poeta era muito diferente: selvagem, em vez de
sábio; revisionista
do Emerson amadurecido e sombrio de A Conduta da Vida; acima de tudo, um artista
difícil, complexo e, em seus poemas mais incisivos, sempre surpreendente.
Para Frost, Emerson foi sempre a pedra de toque em questões de literatura, mas
Frost era também extremamente versado na tradição literária: Emily Dickinson,
Keats,
Tennyson, Shelley e Browning tinham para ele especial importância, assim como o
poeta romano Lucrécio, cuja postura epicurista assemelha-se à de Frost. A
profunda
amizade com o poeta inglês Edward Thomas decorria em parte de afinidades
genuínas entre as obras dos dois poetas, e a sua leitura paralela é
esclarecedora, conforme
pretendo demonstrar.
Em carta à filha (1934), Frost observou que "toda poesia afirma algo e
subentende o resto. Então, por que fazer afirmações com a poesia? Por que não
fazer com
que ela se limite a tudo subentender? Hart Crane fez grandes avanços nesse
sentido". Supõe-se que Frost esteja se referindo à capacidade de alusão e à
"lógica da
metáfora" em Crane. O método de Frost não se vincula ao de Crane, de Eliot ou de
Stevens; no entanto, ele me parece um poeta igualmente difícil, muito à sua
maneira.
Os poemas de Frost que mais admiro são "Lenha Empilhada", "O João-de-barro",
Destino", "O Máximo", "O Canto dos Pássaros Ficou Feio" e o arrasador
"Diretiva", portanto,
limitar-me-ei a esse arbitrário sexteto. Todos esses poemas afirmam algo, mas
subentendem muito mais, porquanto Frost foi um dos génios da ironia
especialmente soturna,
caracterizada nem tanto pela afirmação de algo cujo verdadeiro significado
difira do sentido mais óbvio, mas pela acepção que bate e volta, desconstruindo
o sentido
primeiro. Quanto autoconhecimento somos capazes de suportar? Frost concebeu a
pergunta após refletir sobre Shakespeare, mas, em Frost, a questão assume um
personalismo
terrenho, quase intolerável, seja por ele ou pelo leitor atento.
374
375
ROBERT FROST
Em "Lenha Empilhada", num dia nebuloso, o poeta caminha sobre a neve
solidificada, em um pântano congelado. A perambulação não é agradável nem
segura, e ele diz:
"Eu estava longe de casa." Três entidades enigmáticas compõem o poema: o
caminhante, um passarinho assustado e a pilha de lenha a que se refere o título.
O pássaro
receia (sem motivo) que Frost pretenda capturá-lo, a fim de arrancar-lhe a pena
branca da cauda: "como quem leva / Para a esfera pessoal tudo o que é dito".
Pelo
que se supõe, a busca da pena explica o fato de esse pai de família se encontrar
tão distante de casa, mas pássaro e poeta desaparecem, gradualmente, diante da
eminência
solitária de uma pilha de lenha, presença inexplicável no pântano congelado.
Alguém, um ou dois anos antes, cortara, rachara, medira e abandonara a pilha de
bordo,
apoiada por uma estaca, prestes a ruir:
Pensei que somente
Alguém sempre disposto a novo achado
Esqueceria o fruto do próprio trabalho,
Que o fatigou, labor do machado,
;'
E deixaria isso aqui, longe da lareira,
Tentando aquecer o pântano gelado,
No decompor lento e sem fumaça da madeira.
Às vezes, uma pilha de lenha é apenas uma pilha de lenha; teremos aqui um
poema abandonado, ou um casamento agonizante? Não o sabemos; "Lenha Empilhada"
está no
volume Norte de Boston (1914), publicado, pela primeira vez, em Londres, logo
após Frost ter completado 40 anos; ao que tudo indica, o livro foi escrito em
Gloucestershire,
durante um período em que Frost conviveu de perto com Edward Thomas, poeta
inglês morto na França, em 1917, pouco antes de completar 40 anos. Thomas e
Frost trocaram
influências, e, em certas ocasiões, quando leio a obra de um, sinto-me assediado
pelo outro. Thomas tem um poema por demais comovente - "Liberdade" -, dotado de
uma sapiência que Frost, no que tem de melhor, compartilha e leva adiante:
Pessoa menos livre não pode haver Que aquele que nada tem a fazer, Livre apenas
no que não tem em mente, E nada tem ele em mente.
Esses versos aproximam-se do ethos de Frost, quando o poeta afirma - "Alguém
sempre disposto a novo achado" -, o que significa viver apenas pelo poema que
ainda
está
por ser escrito. Frost sobreviveu à esposa, Elinor, cerca de 25 anos; um dos
filhos do casal morreu aos três anos de idade, outro suicidou-se, e uma filha,
assim
como a irmã de Frost, era doente mental. A natureza de Frost era resistente, e
ele passou por muitas tristezas, na condição de marido e pai. O
autoconhecimento,
nele sempre marcante, é belamente ilustrado na célebre poesia "O João-de-barro",
que consta do livro Intervalo na Montanha (1916), em que o poeta espera que
saibamos
que o referido passarinho constrói um ninho em forma de forno:
O pássaro podia agir qual os demais, Mas ele sabe no canto não cantar. A
pergunta sem palavras ou sinais É, o que fazer de algo menor e singular.
Eis uma das marcas de Frost: uma negatividade sustentada, que reflete o seu
posicionamento demoníaco emersoniano, pós-cristão. Na prática, Frost é um
niilista
assumido, assim como Emerson. Algum arconte gnóstico, ou demiurgo, criou o cosmo
de Frost, em uma criação que, simultaneamente, implica a própria queda. O poema
"Destino", ao mesmo tempo, elegante e sinistro, baseia-se em perguntas retóricas
que promovem uma inversão do argumento cristão contrário à ideia de destino:
O que levara a aranha àquela altura,
E empurrara a mariposa a tal agrura?
O que, se não o sombrio destino das trevas?Um poema impactante - "O Máximo" - foi incluído no volume Arvore do Testemunho
(1942), embora tenha sido escrito muito antes da data de publicação dessa
coletânea.
O poema demonstra que Frost tinha plena consciência do seu próprio solip-sismo e
sadismo. Emily Dickinson, a mais sutil precursora de Frost, dizia que a sua
própria
consciência se dava conta dos vizinhos e do sol. Frost, em uma de suas inúmeras
auto-análises, sempre tão perspicazes quanto oblíquas, retrata uma figura
masculina
que pensava ser o único guardião do universo", e que ouve na natureza apenas um
eco que zomba da sua voz:
De manhã, à beira da praia pedregosa, Ele gritava p'ra vida, que ela não quer O
próprio amor de volta, em voz enganosa, Mas outro amor, sincero, seja qualquer.
376
377
Din
ROBERT FROST
Em "Lenha Empilhada", num dia nebuloso, o poeta caminha sobre a neve
solidificada, em um pântano congelado. A perambulação não é agradável nem
segura, e ele diz:
"Eu estava longe de casa." Três entidades enigmáticas compõem o poema: o
caminhante, um passarinho assustado e a pilha de lenha a que se refere o título.
O pássaro
receia (sem motivo) que Frost pretenda capturá-lo, a fim de arrancar-lhe a pena
branca da cauda: "como quem leva / Para a esfera pessoal tudo o que é dito".
Pelo
que se supõe, a busca da pena explica o fato de esse pai de família se encontrar
tão distante de casa, mas pássaro e poeta desaparecem, gradualmente, diante da
eminência
solitária de uma pilha de lenha, presença inexplicável no pântano congelado.
Alguém, um ou dois anos antes, cortara, rachara, medira e abandonara a pilha de
bordo,
apoiada por uma estaca, prestes a ruir:
Pensei que somente
Alguém sempre disposto a novo achado
Esqueceria o fruto do próprio trabalho,
Que o fatigou, labor do machado,
E deixaria isso aqui, longe da lareira,
Tentando aquecer o pântano gelado,
No decompor lento e sem fumaça da madeira.
Às vezes, uma pilha de lenha é apenas uma pilha de lenha; teremos aqui um
poema abandonado, ou um casamento agonizante? Não o sabemos; "Lenha Empilhada"
está no
volume Norte de Boston (1914), publicado, pela primeira vez, em Londres, logo
após Frost ter completado 40 anos; ao que tudo indica, o livro foi escrito em
Gloucestershire,
durante um período em que Frost conviveu de perto com Edward Thomas, poeta
inglês morto na França, em 1917, pouco antes de completar 40 anos. Thomas e
Frost trocaram
influências, e, em certas ocasiões, quando leio a obra de um, sinto-me assediado
pelo outro. Thomas tem um poema por demais comovente - "Liberdade" -, dotado de
uma sapiência que Frost, no que tem de melhor, compartilha e leva adiante:
Pessoa menos livre não pode haver Que aquele que nada tem a fazer, Livre apenas
no que não tem em mente, E nada tem ele em mente.
Esses versos aproximam-se do ethos de Frost, quando o poeta afirma - "Alguém
sempre disposto a novo achado" -, o que significa viver apenas pelo poema que
ainda
está
ser escrito. Frost sobreviveu à esposa, Elinor, cerca de 25 anos; um dos filhos
do ai morreu aos três anos de idade, outro suicidou-se, e uma filha, assim como
a
irmã ¦ prost) era doente mental. A natureza de Frost era resistente, e ele
passou por muitas ' tezas, na condição de marido e pai. O autoconhecimento, nele
sempre
marcante, é b lamente ilustrado na célebre poesia "O João-de-barro", que consta
do livro Intervalo na Montanha (1916), em que o poeta espera que saibamos que o
referido
passarinho constrói um ninho em forma de forno:
O pássaro podia agir qual os demais, Mas ele sabe no canto não cantar. A
pergunta sem palavras ou sinais É, o que fazer de algo menor e singular.
Eis uma das marcas de Frost: uma negatividade sustentada, que reflete o seu
posicionamento demoníaco emersoniano, pós-cristão. Na prática, Frost é um
niilista
assumido, assim como Emerson. Algum arconte gnóstico, ou demiurgo, criou o cosmo
de Frost, em uma criação que, simultaneamente, implica a própria queda. O poema
"Destino", ao mesmo tempo, elegante e sinistro, baseia-se em perguntas retóricas
que promovem uma inversão do argumento cristão contrário à ideia de destino:
O que levara a aranha àquela altura,
E empurrara a mariposa a tal agrura?
O que, se não o sombrio destino das trevas?Um poema impactante - "O Máximo" - foi incluído no volume Arvore do Testemunho
(1942), embora tenha sido escrito muito antes da data de publicação dessa
coletânea.
O poema demonstra que Frost tinha plena consciência do seu próprio solip-sismo e
sadismo. Emily Dickinson, a mais sutil precursora de Frost, dizia que a sua
própria
consciência se dava conta dos vizinhos e do sol. Frost, em uma de suas inúmeras
auto-análises, sempre tão perspicazes quanto oblíquas, retrata uma figura
masculina
que pensava ser o único guardião do universo", e que ouve na natureza apenas um
eco que zomba da sua voz:
De manhã, à beira da praia pedregosa, Ele gritava p'ra vida, que ela não quer O
próprio amor de volta, em voz enganosa, Mas outro amor, sincero, seja qualquer.
376
377
Din
ROBERT FROST
Essa resposta do amor "sincero" constitui violenta ironia, nem tanto em termos
de desumanidade (reação geral da crítica), mas de agressividade masculina,
quando
um grande peixe irrompe da superfície da água:
E se bateu, vertendo qual cascata,
E rolou pelas pedras com passo duro,
E forçou a vegetação, sem mais bravata.
,
"Vertendo", "duro", "forçou" - são termos que enfatizam o masculino: o "outro
amor" é reduzido a "o máximo", e qual seria a resposta se não uma rendição ao
masculino?
Imediatameiíte a seguir, Frost inclui o belo e difícil poema "O Canto dos
Pássaros Ficou Feio", um soneto cujo título recorre no penúltimo verso:
O canto dos pássaros ficou feio,
P'ra fazê-los calar foi que ela veio.
*
A queda de Eva, segundo a interpretação de Freud, precipita-se na linguagem,
que, por sua vez, se torna a queda da natureza, processo que feminiza o canto
dos
pássaros. O conceito é bastante miltônico, e não é preciso ser feminista para se
ficar, ao mesmo tempo, impressionado e envergonhado diante dele. Todavia, esse
complexo
soneto foi composto logo após a morte de Elinor Frost, sendo uma espécie de
elegia. Assim como em "O Máximo", Frost escreve na qualidade de um Adão
despojado e,
com honestidade implacável, não afirma haver aprendido muito com a experiência
da perda.
"Diretiva", publicado no volume Steeple Bush (1947), ao meu ver, de todos os
poemas de Frost, é o mais incisivo e forte, amargo como um julgamento feito
sobre
um passado pessoal, mas bastante potente no que concerne à capacidade de
retornar às origens, em uma busca das mais dolorosas. Aquele que busca, ao
chegar a um local
onde existe água de beber, é instado: "Bebe e revigora-te, além da confusão."
Frost considerava "Uriel", de Emerson, "o maior poema ocidental", e essa
"perplexidade",
aqui e alhures, é, ironicamente, apropriada de "Uriel". Nesse poema, o deus
Uriel (Emerson, proferindo o "Discurso à Faculdade de Teologia") afirma que "O
mal abençoa
e o gelo queima" e o céu, irado, parte-se ao meio:
A trave do Destino já cedeu; O elo entre o bem e o mal se rompeu; O forte Hades
não conteve seu povo, E reina a confusão de novo.
"O poema é uma resistência temporária à confusão" - máxima registrada por Frost
no ensaio "A Figura Formada pelo Poema" - refere-se a "Uriel". Supostamente,
tanto
Emerson quanto Frost sabiam que a raiz indo-européia da palavra "confusão"
significava, inicialmente, ingestão de libações aos deuses. Beber e, por
conseguinte,
revigorar-se, além da confusão, seria transcender esse antigo culto. "Diretiva",
poema escrito por um guia "Que tem no coração apenas a tua perda", conclui com
uma
alusão surpreendente a uma passagem bastante problemática do Evangelho de
Marcos:
Guardei, escondido no arco da raiz
De um antigo cedro à beira d'água,
Um cálice quebrado, como o Graal,
Encantado, p'ra em mãos erradas não cair,
P'ra não ser salvo, e diz São Marcos que eles não o sejam.
(Roubei o cálice da casa de boneca das crianças.)
Alcançaste o local onde há água de beber.
Bebe e revigora-te, além da confusão.
É perceptível a satisfação profana de Frost diante de Marcos 4:12: "a fim de
que vendo, vejam e não percebam; e ouvindo, ouçam e não entendam; para que não
se convertam
e não sejam perdoados".2 Contudo, de modo implacável, Frost separa os leitores
em dois grupos, desafiando-os: ou lêem "Diretiva" corretamente, ou serão
condenados.
O poeta relembra uma casa arruinada, uma fazenda arruinada, um casamento quase
arruinado e observa, de maneira tocante: "Não era casa de boneca, era casa de
verdade."
Diretiva" exala "uma certa frieza" e constitui uma "experiência penosa", ambas
dirigidas ao leitor. "Quando descumprimos leis, perdemos o controle da realidade
central",
escreve Emerson. O discípulo, Frost, grave e isolado (a despeito do status de
celebridade pública), em última instância, dirige-se a uma elite e só lhe
permite árduos
prazeres.
1A Bíblia de Jerusalém, op. cit., p. 123. [N. do T.]
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379
WALLACE STEVENS
c$& d&p elkp WALLACE STEVENS
Diz a X que a fala não é sujo silêncio Esclarecido. É silêncio encardido. É mais
que imitação para o ouvido.
Falta-lhe essa venerável complicação.
Seus poemas*não são da segunda parte da vida.
Não tornam o visível um pouco difícil.
De se ver...
- "As Criações do Som"
X, devemos supor, é T. S. Eliot, que não era um dos poetas favoritos de
Wallace Stevens. Se me pedirem para identificar a genialidade específica nos
poemas de
Stevens, eu diria que, deveras, "tornam o visível um pouco difícil / De se ver".
Stevens, a exemplo de Dickinson, é avesso a denominações:
Joga fora as luzes, as definições, E diz do que vires no escuro,
Que é isto ou que é aquilo, Mas não uses os nomes infames.
O visível, por exemplo, os nomes, é alheio a Stevens, porque o seu propósito é
raspar o verniz, purificar a face do seu próprio demónio (segundo a frase de
Blake).
É estranho que Stevens, poeta visionário, raramente tenha seus escritos
interpretados a contento. Poeta do Alto Romantismo disfarçado de advogado de
seguradora,
Stevens confundia o público leitor. Somente após a sua morte, em 1955, ele,
gradualmente, passou a ser encarado como o poeta de sua geração, suplantando
Eliot, Pound
e William Carlos Williams.
Assim como Shelley e Whitman, Stevens era um poeta lucreciano, celebrante de
um cosmo centrado na entropia e na morte inevitáveis. Tal concepção não parece
nada
ale"". mas existe em Stevens uma alegria epicurista, e uma exuberância linguística
similar àde Shakespeare, em Trabalhos de Amor Perdidos.
Quanto mais velho, mais me comovo com a franqueza fina igualmente típica de
Stevens, que nos oferece a mais convincente defesa da poesia apresentada nos
tempos
atuais:
Disso brota o poema: de que vivemos alocados No que não é nosso e, mais ainda,
não somos nós; E como é duro, apesar dos dias blasonados.
380
381
WALLACE STEVENS
WALLACE STEVENS (1879-1955)
Quando se conhece de cor, há mais de meio século, a maioria dos poemas de um
autor, é difícil manter-se a perspectiva. Wallace Stevens é, depois de Whitman,
Di-ckinson
e Henry James, o grande mestre da nuança no idioma norte-americano. De modo
singular, Stevens é o poeta do "zunido dos pensamentos perdidos na mente". O
mais sutil
dos grandes poetas norte-americanos é hoje em dia mal servido por estudos
centrados no contexto sociopolítico; tais análises revelam o que qualquer exame
superficial
das cartas do ppeta revelaria: que esse advogado de seguradora era um
republicano que apoiava Taft, e que sempre defendia os valores de Bucles County,
no estado
da Pensilvânia, onde ele cresceu, na década de 1880. Já não se realiza a árdua
tarefa de confrontar, diretamente, a riqueza retórica da poesia de Stevens.
Leio Stevens, constantemente, desde menino, aceitando como dada a sua
genialidade. O presente livro não visa à análise e à leitura cerrada, mas à
conjectura e
à justaposição. Neste breve retorno a Stevens, sobre quem escrevi, detidamente,
em outra obra, não pretendo me ocupar de determinados poemas, mas da
problemática
do génio, que, no caso, se traduz na força da sua postura estética, força tão
intensa que transformou -nos poemas- um executivo de seguradora em visionário.
Stevens era ríspido em se tratando de questões de influência: Pater e Emerson
"ficavam em algum lugar do sótão", e Walt Whitman havia denegrido a condição dos
poetas norte-americanos através da persona do desocupado. No entanto, estes - ao
lado de Wordsworth, Coleridge, Shelley, Keats e Tennyson - foram os principais
precursores
do visionário de Hartford. Emerson, embora depreciado, paira sobre toda a obra
de Stevens, cuja prosa crítica se confunde com a de Pater. Whitman é uma
presença/ausência
mais profunda e soturna. Muitas vezes, olhando, durante algum tempo, um
ambicioso poema de Stevens, alguma figura submersa surge à superfície, à
semelhança do nadador,
no poema de Whitman intitulado "Adormecidos". Em "A Pedra", "As Auroras do
Outono", "A Coruja no Sarcófago" e outras tantas visões de Stevens, a forma
assumida pelo
outro é a do desgrenhado Walt, melancólico demónio e irmão de Stevens.
Não estou querendo dizer que o Velho Poeta do Brooklyn, de Manhattan, e de
Camden, em Nova Jersey, fosse o esteta da Pensilvânia, mas que o que havia de
mais forte
na poesia de Stevens encontrou o génio da lâmpada no bardo da Noite, Morte, Mãe
e Mar, quádruplo uníssono que ressoa em Stevens, com a mesma urgência e
frequência
observadas em Whitman e Crane. Afinal, em toda a literatura norte-americana,
quem nos ofereceu o epítome mais eloquente do poeta nacional?
No extremo Sul o sol do outono passa, Qual Walt Whitman, andando pelo litoral
rubro. Ele canta as coisas que dele fazem parte, Mundos que já foram e que
serão, morte
e dia. Nada é final, ele canta. Homem algum verá o fim. Tem a barba em chamas e
o cajado é uma labareda.
Whitman é, ao mesmo tempo, o Moisés e o Aarão norte-americano e, à semelhança
de ambos, é o profeta apocalíptico que canta a colheita da nossa "Terra
Noturna".
Inspirado pelo seu entendimento de Whitman, Stevens, momentaneamente, imita a
voz do próprio Walt, cantando a canção do eu:
Suspira por mim, vento noturno, nas folhas do carvalho. Estou cansado. Dorme por
mim, céu sobre colina. Grita por mim, alto e alto, sol feliz, quando te
levantares.
Emerson, resenhando a edição de Folhas de Relva (1855), elogiou Whitman, acima
de tudo, pela força. Stevens, ironista incorrigível, busca extrair um pouco da
força
de Whitman, muitas vezes sem saber que o faz. Na grande epifania - Apontamentos
para uma Ficção Suprema - o oitavo canto do poema "Deve Dar Prazer", que inicia
com
as palavras "Em que devo crer?", Stevens funde Whitman em Wordsworth, produzindo
um efeito extraordinário, a meu ver, sem se dar conta da interação alusiva:
Wordsworth,
no Prelúdio 14 (versos 91-120), diz, referindo-se aos grandes poetas que se
ocupam
De todo este compasso do universo: Podem, a partir de si, emanar Mutações afins;
p'ra si mesmos criar Uma existência; e quando for criada, Podem agarrá-la, ou
serem
agarrados Pela sua maestria, Qual anjos detidos em vôo por sons...
Anjo", Stevens escreve, "Cala-te (...) e ouve / A melodia luminosa do som
puro." Mas a alusão a Wordsworth é uma espécie de memória seletiva, que esconde
as mutações
afins (ainda mais intensas) com relação a Whitman, presentes na décima oitava
seção de As Margens do Ontário Azul
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383
Hei de enfrentar as margens do dia e noite, Hei de saber se devo ser menos que
elas, Hei de ver se sou tão majestoso quanto elas...
"Estarei, eu que imagino o anjo, menos satisfeito?" é a pergunta retórica
formulada por Stevens, que procede em busca de "um tempo / Em que a majestade é
o espelho
do eu". Sem Whitman, Stevens não saberia como celebrar o eu, o que (deixando de
lado os exegetas) é uma preocupação central em sua poesia. As negações de
Stevens
(mais uma vez, a exemplo de Whitman) nunca são finais. De Whitman, Emerson e
Dickinson, Stevens herdou a propensão norte-americana para o despojamento das
denominações.
Devemos nos livrar de luzes e definições, e ver no escuro isso e aquilo: "Mas
não [usar] os nomes infames." O eu Verdadeiro, o Eu de mim mesmo, compreende
Noite,
Morte, Mãe e Mar; estes nomes não se deterioram.
E instrutivo observar as paródias e as troças constrangidas de Whitman que
povoam a poesia de Stevens. Especialmente um poema - "Do Berço que se Embala sem
Cessar"
- não deixava de atormentá-lo. Ouvimos em Stevens "Um oceano interno se agitando
/ De dedos e corais longos, caprichosos", um poeta "A quem agitações oraculares
não deram trégua", e, segundo consta, "a noite não é o berço que elas choram".
Todavia, o berço "que se embala sem cessar" segue o seu movimento, enquanto
Stevens
observa uma noite comum em New Haven (onde não há outros tipos de noite),
considerando-a "um poema eternamente elaborado".
Tanto quanto T. S. Eliot e Henry James, Stevens é perseguido pelo poema "A
Ultima Vez que Lilases Floresceram à Porta", embora aqui, novamente, o poeta
procure
em vão se libertar de Whitman através da troça. Crispin, poeta fracassado de O
Comediante como a Letra C, é "detido, bruscamente, / À porta, devido à sua
volumosa
florescência". Quando Stevens alcança a genialidade, em Apontamentos para uma
Ficção Suprema, os "Lilases" assumem papel positivo, intensificado na meditação
do
poeta sobre a morte, em "A Coruja e o Sarcófago", "As Auroras do Outono" e "A
Rocha". Como pode um poeta norte-americano confrontar "as imagens mais supremas
da
própria morte", sem recorrer à rica fonte de Whitman? A mãe - "Minha memória,
mãe de todos nós, / Mãe primeira e mãe / Dos mortos" - junta-se à "palavra mais
simples",
morte, e aos lilases, um símbolo de salvação: "Os lilases chegaram e
floresceram, como a cegueira purificada."
A força poética de Stevens era sobrenatural, dotada de uma linguagem
exuberante ao ponto de fazer lembrar Shakespeare, em Trabalhos de Amor Perdidos.
No sentido
primário, familiar, da palavra génio, a vocação poética de Stevens é indubitável
e, para lhe servir de musa, tudo o que ele necessitava era de uma "amante
interior"
(bastante miltônica) Por que, então, precisava de Walt Whitman, na condição de demónio (mal)
reprimido, de génio, no sentido de alter egd "Fui o mundo em que caminhei" é
proposição
de Whitman, mas o verso é de Stevens.
Na minha juventude, a visão que os críticos tinham de Stevens era de uma
espécie de poeta-dândi, obcecado pela linguagem afetada. Em seguida, na minha
meia-idade,
predominou a visão do Stevens Boneco de Neve, infinitamente negativo, aquele que
percebia "o nada que é". Agora, na velhice, oferecem-me um novo Stevens,
historiciza-do,
determinado socialmente. Mas nenhum desses foi, é ou será o poeta Wallace
Stevens, que seguiu, de modo evasivo e com resistência maciça, o génio dos
poemas da nossa
atmosfera, estabelecido por Emerson e Whitman. Jamais podendo evitá-lo, Stevens
moveu-se na direção de se tornar o "mestre mais severo / Mais fustigante" de
"Uma
Noite Comum em New Haven". Durante uma conferência proferida em Yale, ele citou
um breve poema, maravilhoso, "Clara Meia-noite", como exemplo do controle
exercido
por Walt Whitman sobre a sua temática, sobre o seu entendimento do mundo:
Esta é a tua hora Ó Alma, tua fuga ao sem palavras, Longe dos livros, longe da
arte, o dia apagado, a lição feita, Tu surgindo firme, calada, mirando,
refletindo
sobre os temas
que mais gostas, Noite, sono, morte e as estrelas.
Tais versos não são afetados, e não teriam sido escritos por um Boneco de
Neve, tampouco são energizados por questões sociais: são puramente Walt Whitman,
apropriados
pela memória de Stevens. É também verdadeiro que os temas mais apreciados pela
alma de Stevens são "Noite, sono, morte e as estrelas". Durante toda a vida amei
a
poesia de Stevens porque nela "os círculos se precipitam e as cores do cristal
surgem / E se incendeiam". Em um poema subestimado, "Tema Paroquial", Stevens
reúne
a propensão pela afirmação de Whitman e o alcance de limites (bem à moda de
Whitman):
Esta saúde é santa, esta cantiga do eu,
Este canto bárbaro do que é forte, este clamor.
Mas, salvação aqui? E o chocalhar de gravetos Em latas e caixas? E os cavalos
comidos pelo vento?
384
385
É possível que os dois primeiros versos sejam uma defesa de A Canção de Mim
Mesmo, diante do ataque de George Santayana, que a qualificou de "poesia do
barbarismo".
Salvação, seja em Whitman ou em Stevens, jamais constitui problema: não são
poetas cristãos, e sim lucrecianos. Nada é final, homem algum verá o fim.
Emerson levara
Whitman ao litoral da América do Norte, a fim de fundar uma poesia distintamente
norte-americana. Wallace Stevens também realizou "O génio vital, infalível, /
Concretizando
meditações, grandes e pequenas".
T. S. ELIOT
Toca-me a fantasia que se enrosca Nesta imagem, e fica assim unida: Noção
infinitamente gentil, Infinitamente, sofrida.
O Eliot dos primeiros "Prelúdios" é herdeiro legítimo de Tennyson e Whitman.
Após o sucesso internacional de A Terra Devastada (1922), Eliot, aos poucos,
transfor-mou-se
no monarquista anglo-católico e conservador de Quarta-feira de Cinzas (1930) e
no visionário de The Sacred Wood e volumes subsequentes de exclusão crítica.
Lem-bro-me
de, quando jovem, ter reagido com fúria à avaliação que Eliot fez de William
Blake:
Blake era dotado de considerável capacidade para entender a natureza humana,
de uma concepção notável e original da linguagem e da musicalidade da linguagem,
bem
como de um talento para a visão alucinatória. Se tais dons fossem controlados
por um respeito à razão e ao bom senso, à objetividade da ciência, teria sido
melhor
para ele. O que o seu génio necessitava, e do que, infelizmente, carecia, era
uma estrutura de ideias estabelecidas e tradicionais, que o teriam impedido de
se entregar
à sua própria filosofia e teriam feito com que ele concentrasse a atenção na
problemática do poeta. Uma confusão de pensamento, emoção e visão é o que
encontramos
em uma obra como Assim Falou Zaratustra; não se trata, em absoluto, de uma
virtude latina. A concentração resultante de um arcabouço que combina mitologia,
teologia
e filosofia é um dos motivos por que Dante é um clássico e Blake apenas um poeta
genial. Talvez a falha não seja do próprio Blake, mas do ambiente, que não lhe
propiciou
aquilo que ele precisava; talvez as circunstâncias o tenham compelido a
inventar, talvez o poeta demandasse o filósofo e o mitólogo, embora Blake talvez
não tivesse
consciência dessas motivações.
Passado meio século, a reflexão de Eliot parece puro esnobismo. Dante, de
fato, é um clássico, mas não devido a "uma estrutura de ideias estabelecidas e
tradicionais";
era, tanto quanto Blake, um poeta genial. A crítica literária e cultural de
Eliot parecem-
386
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me um mal, mas, na qualidade de poeta, Eliot era dotado de genialidade singular,
ainda que não se comparasse a Dante e Blake.
É mais justo compará-lo aos contemporâneos norte-americanos, Frost e Stevens,
logo antes, e Hart Crane, logo após. Eliot não me magoa, como o faz Frost,
tampouco
me conforta, como o faz Stevens em As Auroras do Outono, nem me transporta ao
Sublime, como o faz Hart Crane. No entanto, as cadências de Eliot me perseguem:
Tinhas uma visão da rua
que a própria rua mal compreende.
A exemplo dostlramaturgos jacobianos que tanto admirava - Cyril Tourneur e
John Webster -, Eliot capta as nuanças precisas da traição, da má-fé, do nosso
tédio
com relação à nossa própria hipocrisia:
Preciso encontrar
Algum meio incomparavelmente claro e hábil, Algum meio que nós dois possamos
compreender, Simples e falso como um sorriso e um aperto de mão.
THOMAS STEARNS ELIOT
(1888-1965)
Eliot é, sem dúvida, um dos grandes poetas norte-americanos, apesar de alguns
senões aqui registrados. Emily Dickinson, Walt Whitman, Hart Crane e Wallace
Stevens
são mais importantes para mim, mas, no que têm de melhor, Eliot e Robert Frost
são eminentes. Na condição de crítico, é preciso saber dizer: não gosto dele,
dela
ou de determinada obra, mas o génio transcende a afeição literária.
Deixo de lado as peças teatrais em verso escritas por Eliot, quase impossíveis
de serem encenadas ou lidas, bem como a sua crítica, apesar de esta ser
importante,
do ponto de vista histórico. Quanto ao que atualmente seria denominado crítica
cultural, ignoro, fazendo uma careta. Resta apenas o anti-semitismo, bastante
cativante,
para quem é anti-semita; mas para quem não é, não.
A poesia do início da carreira de Eliot, até cerca de 1925, de modo geral, tem
ótima qualidade. A produção continuaria por mais 40 anos, período em que a obra
central é Quatro Quartetos, caracterizada por inúmeros trechos notáveis, apesar
de uma certa prolixidade. Basicamente, Eliot teve uma década poética - 1915-1925
-, seguindo a tradição de Wordsworth e Whitman, que, após uma grande década,
declinaram.
Cabe registrar a questão da influência de Eliot, que tem ramificações
internacionais. No que diz respeito à crítica, atualmente, essa influência
diminuiu, mas
já foi imensa. Quanto à influência da poesia, até meados do século XX, era
também extremamente forte, mas encontra-se hoje desgastada.
Pretendo aqui abordar Eliot sem ideias preconcebidas, na tentativa de isolarlhe o génio poético. É sabido que, como precursores, ele apontava Dante e
Baudelaire,
ou poetas franceses menores, em vez de qualquer autor de língua inglesa. Mas
isso é, tipicamente, conversa fiada: os principais precursores de A Terra
Devastada
são "A Ultima Vez que Lilases Floresceram à Porta", de Whitman, e Maud: um
Monodrama, de Tennyson. Eliot gostava de apontar dramaturgos jacobianos de menor
expressão
- John Webster e Cyril Tourneur -, mas a sua poesia é acossada por Hamlet, peça
por ele, comicamente, classificada de "fracasso estético". E assim é: confiemos
no
poema, não no poeta.
Uma maneira de ler Eliot, hoje menos corrente, mas ainda popular, é ver na obra,
como um todo, um processo de autoconversão. Nessa ótica, todos os escritos até
Quarta-feira de Cinzas tornam-se uma busca da graça, precipitada, finalmente, em
Quatro Quartetos. Tomando emprestadas palavras do próprio Eliot, referindo-se a
ennyson, a qualidade da sua dúvida é alta, a da fé, menos convincente. Na
condição
mestre da poesia religiosa, Eliot não se compara a George Herbert ou a Christina
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Rossetti. A sua força era de outro tipo: localizava-se na ironia laica, na
sátira a si mesmo, na intensidade alucinatória, no ataque ao Romantismo lírico,
bem como
no monólogo dramático, neste último caso, a grande dívida com Robert Browning
tem sido, em parte, ignorada. O modernismo de Eliot ainda constituiu um episódio
do
Romantismo, fato que não pode ser considerado uma falha de Eliot, mas uma
tendência desenvolvida contra a corrente. O poeta aprendeu a reconhecer Shelley
como o
melhor adaptador de Dante à poesia inglesa. Algumas das primeiras avaliações
feitas por Eliot, jamais revistas, têm valor, se levadas em conta no sentido
contrário
àquele que expressam. Os ensaios de Emerson, ele dizia, eram um estorvo, e
William Blake deveria ter sido salvo (pela cultura!) e "impedido de se entregar
à sua
própria filosofia".
Quanto a Wah Whitman, na melhor das hipóteses, Eliot era evasivo. Preferia o
poeta francês (menor) Jules Laforgue a Whitman, opinião que teria surpreendido
Laforgue,
que traduziu e reverenciava Whitman. Em 1928, filiando-se ao verso livre de
Laforgue (aparentemente, sem saber que o verso de Laforgue era derivado de
Whitman),
Eliot afirmou: "Só li Whitman na idade madura e, para conseguir fazê-lo, tive de
controlar uma aversão à forma e a grande parte do conteúdo da sua poesia."
Tal asserção é inverídica, mas também denota uma ambivalência maravilhosa.
Dois anos antes, Eliot havia anteposto Whitman a Baudelaire, observando que o
poeta
norte-americano confundia os limites entre o eu e o mundo, enquanto o poeta
francês mantinha essa fronteira bem demarcada. Portanto, Baudelaire contemplava
o abismo
com bravura, ao passo que Whitman não enxergava com clareza. A obra Ara Vos Prec
(1920), de Eliot, continha uma pequena "Ode" (de má qualidade), o único poema
publicado,
primeiramente, em um determinado livro e que, mais tarde, ele excluiria da
coletânea de suas obras. A ode parece relatar o fracasso de uma noite de núpcias
(supostamente
a dele próprio) e inclui duas alusões diretas a Whitman: "Mal-entendidos / Os
acentos da hoje aposentada / Profissão do Cálamo" e "O Hímen, Himeneu". Os
poemas "Calamos"
de Whitman constam dentre os mais abertamente homoeróticos (o cálamo é o caule
aromático de uma planta, emblema fálico em Whitman), enquanto o breve vocativo
"Ó
Hímen! Himeneu!" é um lamento comovente aos deuses do matrimónio: "Ó Hímen!
Himeneu! Por que me tentais assim?" Eliot, por conseguinte, associa a um
homoerotismo
whitmaniano o fracasso sexual do seu primeiro casamento.
Detenho-me em Whitman e Eliot, aparentemente tão diferentes, porque, no
fundo, compartilhavam de um mesmo génio, o demónio do Sublime norte-americano.
Esse génio
comum não os impediu de seguir em direções espirituais bastante distintas,
Whitman rumo à sua versão da religião norte-americana, e Eliot, em 1927,
converten-do-se
ao anglicanismo; contudo, Whitman, no sentido que o próprio Eliot confere à
palavra "influência", foi sempre o seu progenitor poético. Porém, Eliot só
admitiria
o
fato tardiamente (em 1953), embora desde 1930 afirmasse que "debaixo das
declamações [de Whitman] constata-se um outro tom, e por trás das ilusões, uma
outra visão".
Cleo McNelly Kearns, resumindo as semelhanças impressionantes entre "A Última
Vez nue Lilases Floresceram à Porta" e o maior poema de Eliot, delineia o fluxo
que
segue fa poesia de Whitman à de Eliot:
O poema de Whitman provê não apenas temas e imagens a A Terra Devastada, mas
lilases e flores, passando pela "cidade irreal", pela lembrança perturbadora de
cadáveres
de soldados, pela presença de um eu duplo, um caro irmão ou sem-blable, pelo
"murmúrio do lamento materno", por rostos que espreitam, chegando ao canto do
tordo
eremita sobre os ossos secos.
O "terceiro que sempre caminha a teu lado", que de acordo com as notas anexas
ao poema A Terra Devastada é o Cristo ressuscitado, vem a ser o "pensamento da
morte"
ou "conhecimento da morte", segundo Whitman, ou a fusão dos dois fenómenos. A
Terra Devastada, assim como "Lilases", mais parece uma elegia ao próprio génio
do poeta,
do que um lamento pela civilização ocidental. Eliot oferece-nos mais uma grande
canção norte-americana a celebrar a morte, ou a morte-em-vida que configura a
crise
poética.
Quarta-feira de Cinzas e Quatro Quartetos, sem dúvida, tentam representar a
redenção cristã, mas o mesmo não pode ser dito de A terra devastada, que reflete
o
colapso nervoso sofrido por Eliot, em 1921, em consequência da tensão vivida no
primeiro casamento. As alucinações controladas que fazem parte do poema parecemme
ser o seu verdadeiro esplendor:
A mulher soltou longos cabelos, cor preta, E tocou música leve naquelas cordas,
Morcegos cara de bebé na luz violeta Gritavam, e batiam asas em hordas,
Arrastando-se
nas paredes negras dos becos, Cabeça para baixo, eram torres sonoras, Tocando
sinos das lembranças, batendo as horas, E vozes cantavam das cisternas e poços
secos.
como se Eliot houvesse misturado as obras Drácula, de Bram Stoker, e "Mariana"
°u Maud, de Tennyson, acrescentado um toque de Salomé, de Oscar Wilde.
390
391
Somente um génio dotado de sensibilidade exacerbada poderia nos ofertar
esplendor tão desconcertante.
Cinquenta anos atrás, Eliot era o vigário do neocristianismo, e A Terra
Devastada era um hino de salvação para os discípulos académicos do poeta.
Naqueles dias,
Eliot era aclamado autoridade moral, um verdadeiro sábio. Eu não saberia prever
a reputação do poeta daqui a 50 anos, mas a sua eloquência demoníaca não terá
desaparecido.
LUSTRO 10
William Wordsworth; Percy Bysshe Shelley;
John Keats; Giacomo Leopardi;
Lorde Alfred Tennyson
C
, s poetas do Alto Romantismo formam o meu segundo Lustro de Din, por-.*; quanto
seus poemas de crise, dotados de extrema consciência, habitam as regiões do
amor,
"as demarcações sutis, os sons penetrantes" procurados pelo descendente dos
românticos, Wallace Stevens. A rigorosa originalidade de Wordsworth anulou
grande parte
da tradição pregressa, permitindo-lhe começar de novo, em "uma tabula rasada
poesia", conforme observou o crítico romântico William Hazlitt.
Shelley, um dos meus poetas favoritos, desde a infância (objeto do meu
primeiro livro, mais de 40 anos atrás), buscava no espírito de Din, ou
"julgamento severo",
a descoberta dos limites do desejo. Keats, shakespeariano em seu naturalismo
trágico, apresenta uma severidade exuberante que incrementa a dignidade estética
das
grandes Odes e dos fragmentos de Hipérion.
A melancolia de Leopardi é bastante distinta daquela de Tennyson: a de
Leopardi refletia-lhe a deformidade física, enquanto a de Tennyson resultava da
perda precoce
de Arthur Henry Hallam, querido amigo e mentor intelectual. Mas existe uma
sombra keatsiana em Tennyson, que lhe agudiza a exuberante melancolia e
contribui para
a criação de uma poesia cuja música é encantadora.
392
393
dte dfcj> WILLIAM WORDSWORTH
O Paraíso e os bosques Elísios, Campos Felizes - qual ontem Buscados
no vasto Atlântico - seriam Apenas traços de coisas passadas, Mera ficção do que
nunca
existiu? O intelecto^discernente do Homem, Quando unido a esse formoso universo,
Em amor e paixão santa, verá isso Como fruto simples de um dia qualquer.
Eis Wordsworth em 1798, jovem defensor da revolução, conforme consta do
admirável fragmento "Em Casa, em Grasmere", manifesto de humanismo naturalista
que afetou,
profundamente, Keats e Shelley. O paraíso terrestre pode ser "fruto simples de
um dia comum", de acordo com o poeta-profeta, para quem "simples" e "comum" eram
palavras
que expressavam o maior elogio e a mais elevada honra.
Wordsworth continua sendo, no século XXI, o que tem sido nos últimos 200 anos:
criador de uma poesia chamada, de tempos em tempos, romântica, pós-romântica,
moderna
e pós-moderna, mas que, essencialmente, constitui um só fenómeno: a substituição
do tema poético pela sensibilidade do poeta. Goethe foi o último poeta de uma
longa
sequência iniciada por Homero; Wordsworth foi algo diferente.
Depois de Wordsworth, os poetas são wordsworhtianos, tenham eles consciência
do fato - conforme Shelley, Keats, Tennyson e Frost - ou não. Parodiando
"Resolução
e Independência", de Wordsworth, Lewis Carroll, na "Balada do Cavaleiro Branco",
e Edward Lear, com procedimento idêntico, em "Incidentes na Vida de Tio Zeno",
muito
se divertem com o egocentrismo de Wordsworth:
Portanto, não tendo resposta a dar
A afirmação que o velhote expressa, Restou-me - "Diz como vives!" bradar,
E dar-lhe um piparote na cabeça. - Lewis Carroll
Ah! o meu velho Tio Zeno! Sentado em um monte de Feno,
No silêncio da madrugada, -Bem ao seu lado um matagal: -No nariz, um
Grilo banal, -No chapéu, bilhete do trem central (Mas a bota estava apertada.)
- Edward Lear
Wordsworth, seja saco de pancada ou grilo, persegue até os parodistas. Seu gêni,
assegurava
Uma mente amparada P'lo triunfo de um poder transcendental.
394
395
WILLIAM WORDSWORTH
(1770-1850)
Todos os escritos importantes de Wordsworth concentram-se em uma década: 17971807. Os últimos 43 anos de sua vida poética foram lamentáveis. Infelizmente, a
situação
em muito se assemelha à de Walt Whitman, cuja melhor poesia foi escrita na
década de 1855-1865, seguida de 27 anos de versos (em sua maioria) ruins, até a
morte
do poeta, em 1892. O génio de Wordsworth se exauriu aos 37 anos. Whitman só
iniciou a carreira aos 36, e, aos 46, seu génio já se fora. Menciono essas
privações
porque a compreensão do declínio prematuro pode auxiliar a definição da natureza
individual do génio. Shelley, em Adonais, diz, referindo-se a Keats:
Do contágio da mácula do mundo Ele está livre, e já não se lamenta Do coração
frio, cabeça grisalha; Nem, quando o espírito não mais arder, Irá de cinzas
foscas
a urna encher.
A referência, certamente, é a Wordsworth, cujo velho narrador da história de
Mar-garet, em O Chalé em Ruínas (1797-1799), fornecera ao jovem Shelley a
epígrafe
ao poema Alastor (1815):
(...) os bons morrem primeiro, Os de alma seca, serragem de marceneiro,
Ardem até o talo.
Não sabemos por que Shakespeare parou de escrever peças nos três últimos anos
de vida que lhe restavam, depois de haver colaborado com John Fletcher, em Os
Dois
Nobres Parentes (1613). O maior de todos os autores capitulou aos 49 anos, ao
contrário de Dante, Chaucer, Cervantes, Montaigne, Goeuhe, Tolstoi, Joyce e
Proust,
que escreveram até o fim da vida. Sejam quais forem os motivos de Shakespeare,
não incluíam o declínio do talento, considerando-se o trecho a ele atribuído em
Os
Dois Nobres Parentes. Bom seria se Wordsworth, aos 37 anos, e Whitman, aos 46,
houvessem decidido descansar sobre os louros. Em outra seção deste livro,
concluo
que o serviço heróico prestado por Whitman nos hospitais de guerra, em
Washington, D.C., esgotou-lhe o génio. Mas, no
caso de Wordsworth, o fim esteve sempre implícito na origem do seu génio: um
brilho visionário, resplandecente na infância, mas desfeito na luminosidade de
um dia
qualquer. Se o poeta investe tudo no "romance da natureza", conforme Geoffrey
Hartman denominou o mito wordsworthiano da memória infantil, há de tudo perder,
quando
a natureza trai a criança que a amava.
O génio de Wordsworth, comentou A. C. Bradley, era a estranheza, a sua
espantosa originalidade. Na grande década criativa do poeta, essa estranheza é
ubíqua:
Uma presença já pude sentir, Que me perturba com a alegria De elevadas
reflexões; um sentido Sublime de algo bem interligado, Cuja morada é a luz dos
sóis poentes,
O oceano redondo, o ar da vida, O céu azul e a mente dos humanos: Moção e
espírito que impulsionam Tudo o que há de pensante, todo objeto Do pensamento, e
que a
tudo impregna.
- "A Abadia de Tintem"
VIII Não sei se foi por graça especial, Algum dom vindo de cima, algo dado,
Ocorreu que, neste deserto local, Quando eu de ideia solta era tomado, Junto a
um
lago pelo céu vislumbrado, Vi um homem, distraído, à minha frente, O mais idoso
grisalho decadente.
DC Qual grande pedra que vai se alojar No calvo cocuruto da montanha, Para o
espanto de todos a olhar, Como chegou ali, qual a artimanha; Parece ter juízo,
tal
a façanha: Qual monstro marinho, que tenta se mover As rochas ou à areia, no sol
a se aquecer.
396
397
X E o homem parecia nem morto ou vivo, Nem adormecido - na avançada idade: O
corpo curvado e o cérebro inativo Chegam ao fim da linha da verdade, Como se a
dor,
a falta de vitalidade, Que há muito tempo ele já sentia, Um peso mais que humano
lhe atribuía.
XI Apoiava-se, o corpo, a face pálida, Em um longo cajado de madeira;
Enquanto eu me acercava, com paz cálida, Do lago pantanoso bem à beira, Estava o
Homem,
fixa nuvem sem eira, E não ouvia os ventos a chamar, Nada se movia, não saía do
lugar.
- "Resolução e Independência"
IX O alegria! Que ela nos aborde, Pois segue ainda vivo Que a natura recorde
De algo tão fugitivo! Lembrança do passado só me traz Perpétua bênção; porém não
o
faz Pelo que há de mais digno de abençoar - Prazer e liberdade, a crença audaz
Da infância, seja a dormir ou brincar, Sempre a esperança o peito a alvoroçar Não
é por isso que envio A canção do grato elogio; Mas pelas questões obstinadas Da
razão, coisas herdadas, Perdas nossas, descartadas; Grandes dúvidas da Criatura,
Movendo-se no mundo indefeso, Instintos ante os quais mortal Natura Treme qual
Alguém culpado e surpreso:
Quanto às primeiras afeições,
Sombrias recordações, Que, fossem como eu queria, Ainda são a luz de todo dia,
Ainda são a luz da minha visão;
Que possam nos suster, amar, tornar Os anos barulhentos, de antemão, Em eterno
Silêncio: a verdade acordar,
Para jamais morrer; Que a displicência, nem o enlouquecer,
Nem Homem nem Menino, Nem os que contra a alegria entoam hino, Possam destruíla, em meio ao desatino!
Assim, na estação amena,
Embora na terra central, Nossas almas, avistando o mar imortal
Que nos trouxe até a arena,
Podem voltar àquela cena, E ver Crianças brincarem praia afora, E ouvir ondas
quebrando lá agora.
- "Ode: Insinuações de Imortalidade, a Partir de Recordações da Infância"
Mesmo que, por mais de meio século, se saiba de cor esses versos e se os
tenha, inúmeras vezes, analisado em artigos e em sala de aula, eles jamais
perdem impacto
ou frescor. A familiaridade tampouco elimina-lhes a genuína dificuldade: sobre o
quê, exatamente, fala wordsworth, e por quê? Já se escreveu quase uma biblioteca
inteira, mas a questão ainda não foi totalmente respondida. Embora o amigo,
Coleridge, tentasse oferecer uma metafísica a Wordsworth, esses trechos fazem
pane de
uma longa batalha travada entre a poesia e a filosofia. Tratam, insistia
Wordsworth, de nada além da nossa existência, mas "a nossa existência jamais
fora percebida
ou sentida dessa maneira anteriormente.
Pretendo abordar os trechos acima de "A Abadia de Tintem", "Resolução e
Independência" e a ode "Insinuações", não através da "leitura cerrada", mas
testando-os
398
399
diante da questão do génio. A grandeza de Wordsworth é um paradoxo que desafia a
tradução. No entanto, o poeta não é um romântico barroco, como o foram Victor
Hugo
e Shelley (este no caso de Prometeu Libertado). O paradoxo mais denso de
Wordsworth diz respeito a uma mescla de simplicidade e a certeza de ter uma
profecia de
salvação a todos destinada. William Hazlitt, com certa ambivalência, observou:
"Pode-se dizer que Wordsworth tinha um interesse pessoal no universo."
No trecho citado de "A Abadia de Tintem", Wordsworth não identifica esse "algo
bem interligado", apenas menciona "moção e espírito". Será que se trata da
presença
de um vento, ainda que metafórica? Wordsworth não é profeta bíblico, tampouco é
John Milton, embora seja sucessor de Milton, tanto quanto o foi William Blake. A
inspiração é primordial: a •brisa lhe surge do interior. É peculiaridade do seu
génio que presença, moção e espírito, paradoxalmente, pertençam e não pertençam
a
ele. Ao encontrar o catador de sanguessuga, em "Resolução e Independência", o
poeta, de início, parece duvidar do que vê, e não escuta a resposta dada pelo
velho
à pergunta: "Que ofício tens?" Em vez disso, tem uma visão:
XVI Ali estava o velho, a falar ao meu lado; Mas um riacho inaudível
parecia; Palavras não tinham sentido separado, E a presença do Homem lembraria
Alguém que
em algum sonho me surgia, Ou que, de alguma região distante, Viesse me dar
forças naquele instante.
Quando a pergunta é reformulada - "Do que vives, e o que fazes?" -, o velho
sorri, pacientemente, percebendo (tanto quanto nós) que o poeta é incapaz de
escutar.
O encontro suscitou duas paródias maravilhosas de "Resolução e Independência": a
"Balada do Cavaleiro Branco", de Lewis Carroll, e "Incidentes na Vida de Tio
Zeno".
O solipsismo de Wordsworth é mesmo um alvo extraordinário, e a incapacidade de
focalizar o velho conduz a outra visão sublime:
XIX Enquanto ele falava, o local sombrio, Sua figura e discurso me
incomodavam; Na mente, eu o via caminhar no frio, A charneca e a tristeza o
fatigavam;
Silêncio e solidão o acompanhavam. Enquanto eu remoía o pensamento, Voltou ele a
falar, após breve momento.
Wordsworth, à semelhança de Milton, dispunha de todos os talentos literários,
exce-to humor; a comédia, nesses dois grandes poetas, é sempre involuntária. É
impossível
visualizá-los divertindo-se com as travessuras de S/>John Falstaff. Mas, se
valorizarmos o contexto de Wordsworth - uma charneca solitária, com um lago pelo
céu
vislumbrado _; o génio do poeta assume total controle, e inventa o "poema-crise"
moderno, o (novo) género mais característico da poesia ao longo dos dois últimos
séculos. Poemas que falam de crises são tão profusos que não mais os
reconhecemos: são, simplesmente, "poemas". Nesse tipo de poesia, o poeta busca
escapar da depressão,
do desespero, do suicídio, a fim de escrever o próximo poema. A poesia, conforme
escreveu William Empson, tornou-se um embate de titãs, travado à beira do
abismo.
"Resolução e Independência", mais do que qualquer outra obra de Wordsworth,
criou um novo género. A poesia deixou de ter outro tema, senão a própria
subjetividade,
levada ao extremo da autoconsciência. Nesse sentido crucial, Emily Dickinson, W.
B. Yeats, T. S. Eliot, Wallace Stevens, Hart Crane e tantos outros são poetas
wordsworthianos.
Na ode "Insinuações", composta entre 1802 e 1804, mas publicada apenas em
1807, estamos diante do paradoxo de confrontar o que há de mais potente no génio
de Wordsworth
e, ao mesmo tempo, constatar o crescimento da sombra que haverá de destruí-lo.
Citei a nona estrofe, composta, pelo menos, dois anos depois das quatro
primeiras
seções. O peso da ode advém do enfraquecimento de uma antiga luz visionária, que
diminui à medida que amadurece a consciência de mortalidade. A palavra
Mortalidade" seria mais adequada do que "Imortalidade", como título da ode
(assim é chamada por muitos). O vôo do lampejo visionário ameaça Wordsworth com
o pecado
cometido por aqueles que, no Inferno de Dante, são punidos por terem sido
soturnos na doce brisa", e conduz ao nadir do poema, ao final da oitava seção:
"Pesado qual geada, e quase tão fundo quanto a vida."
O divisor extraordinário introduzido pela nona estrofe talvez seja a expressão
mais característica do génio paradoxal de Wordsworth. A partir de pura intuição,
o poeta elogia e estabelece empatia com a resistência da criança à ideia de
separação que, no extremo, leva à consciência da mortalidade:
Não é por isso que envio A canção do grato elogio;
400
401
Mas pelas questões obstinadas Da razão, coisas herdadas, Perdas nossas,
descartadas; Grandes dúvidas da Criatura, Movendo-se no mundo indefeso,
Instintos ante os
quais mortal Natura Treme qual Alguém culpado e surpreso:
A criança questiona, obstinadamente, o fato de "ouvir" e "ver" se tornarem
dois sentidos, em vez de um só, e ainda resiste ao mundo que lhe é externo.
Wordsworth
poderia ter aprendido isso através da observação, mas asseverar que as
"primeiras afeições" do pequeno não podem ser divorciadas das "sombrias
recordações", de uma
esfera em que tudo parecesse interno, é uma percepção, ou mito, do
poeta. Quando equacionamos a ode "Insinuações" através de um misto
criativo e
perda experimental, contemplamos, mais uma vez, a originalidade de
Antes de Proust e, através de John Ruskin, influenciando Proust, o
Wordsworth
criou o novo mito da memória involuntária.
próprio
de ganho
Wordsworth.
génio de
PERCY BYSSHE SHELLEY
Tua sapiência fala em mim, e me desafia A sinalizar rochas que afundaram
corações. Jamais fui atraído àquela grande seita, Cuja doutrina manda ficar à
espreita
E, na multidão, amante e amigo escolher, E, os demais, belos ou sábios,
esquecer, Embora isso conste do código atual, E seja o caminho a ser seguido no
final, Pelos
pobres-diabos com passos cansados, Que viajam para casa entre os finados, Pela
larga estrada do mundo, e assim, Com um amigo certo, quiçá, inimigo ruim, Seguem
a
mais longa, triste jornada, até o fim.
Esse sermão lírico de Shelley sobre o amor livre, expresso em Epipsychidion, é
também a descrição (sucinta) mais sombria que já li do casamento. O trecho
propiciou
a E. M. Forster o título de seu romance, A Viagem Mais Longa, e recomendo aos
meus alunos mais aguerridos que leiam esses versos, em voz alta, na véspera do
casamento.
O génio de Shelley era lírico, em uma dimensão insuperável. Ele transforma
quase qualquer género - sátira, romance, literatura dramática, epístola, elegia,
inferno
dantesco - em poesia lírica.
A poesia, Shelley escreveu, registra os nossos melhores momentos, os mais
felizes, mas, decerto, ele falava em sentido figurado, pois a sua lírica
expressa profundo
desespero. Os grandes temas de Shelley são a morte do amor e a destruição da
integridade, ambas vistas por ele como a morte figurada, à qual a morte literal
era
preferível.
O epítome do génio lírico de Shelley é o poema "Quando a Lâmpada se
Estilhaça", em que o segundo verso - "A luz na poeira jaz morta" - pode assim
ser traduzido:
Morre o amor, permanece o desejo." A última estrofe faz soar, com eloquência, a
morte do amor:
402
403
Vai sacudir-te a paixão, Como a tempestade sacode o corvo;
Vai de ti zombar a razão, Como o sol em céu de inverno é estorvo.
Todos os caibros do teu ninho Vão apodrecer, e da águia que é teu lar
Vais ter escárnio p'lo caminho, Quando o vento chegar e o tempo esfriar.
PERCY BYSSHE SHELLEY
(1792-1822)
Shelley morreu afogado, talvez por acidente, antes de completar 30 anos,
desfecho que hoje nos parece inevitável e adequado. Contando com intelecto
cético e potente,
ele foi também um dos maiores poetas líricos da tradição ocidental, com
admiradores e detratores em cada geração. Poucos igualam-se a ele, no que
concerne ao seu
espírito revolucionário.
Não posso, em 2001, escrever sobre Shelley como o fiz na juventude, em meados
dos anos 50, mas as alterações de perspectiva resultam do meu próprio
envelhecimento.
Desde menino, considero o génio lírico de Shelley algo dado como definitivo. É
hora de examiná-lo com precisão.
Grandes poetas líricos são raros: as literaturas alemã e inglesa os têm em
profusão. A tradição norte-americana conta com apenas alguns de real qualidade;
antes,
temos uma procissão desditosa de poetas líricos medíocres, cujo modelo primeiro,
e desolador, é Edgar Allan Poe, que realizou um amálgama de Coleridge, Byron e
Shelley,
com consequências lastimáveis. Poe conta com admiradores, até mesmo em países
onde os críticos têm proficiência em leitura em língua inglesa, e especialmente
na
França, onde os críticos não sabem ler inglês, conforme demonstrado pela célebre
tríade - Baudelaire, Mallarmé e Valéry -, que encontrou em Poe obras que não
existiam.
Jamais um poeta, ou contista, beneficiou-se tanto da tradução.
Shelley foi o mais jovem contemporâneo de Wordsworth, fato que ensejou, ao
mesmo tempo, um peso e uma provocação para o aristocrata (e rico) rebelde
prometéi-co.
Wordsworth havia alterado para sempre a natureza da poesia lírica na Inglaterra:
ao contrário de Byron, e mesmo de Shelley, Wordsworth não exerceu qualquer
influência
em países onde não se fala inglês, inclusive a Alemanha e a Áustria, mas
Wordsworth não é artigo de exportação. Embora tenha causado algum efeito em
William Cullen
Bryant, Emerson e Emily Dickinson, Wordsworth pouco significou para Whitman ou
para poetas que surgiram mais tarde, e.g., T. S. Eliot e Hart Crane. Wallace
Stevens,
outro meditador solitário, tem afinidades wordsworthianas, mas, basicamente,
Wordsworth tornou-se o poeta dos estudiosos, tanto quanto Milton. Para Shelley e
Keats,
em início de carreira, esse jamais seria o caso, pois Wordsworth era uma
revelação, talvez negativa, conforme o foi Eliot para Hart Crane.
Elizabeth Bishop (1911-1979), grande poeta norte-americana, tem um poema
extraordinário, "O Descrente", composto no início da carreira, que contrasta
três figuras:
a nuvem, a gaivota e o descrente, as quais interpreto como três tipos de poeta.
A
404
405
nuvem, o meditador solitário, é Wordsworth ou Wallace Stevens, enquanto a
gaivota, construtora de uma torre visionária, é Shelley ou Hart Crane, e o
descrente, obcecado
por pesadelos, é Emily Dickinson ou Elizabeth Bishop, embora disfarçadas de
"ele". O génio lírico de Shelley, a exemplo do de Hart Crane, localiza uma de
suas imagens
primárias de liberdade na "torre", que, inversamente, significa também a ruína
da imaginação. A mais influente das torres de Shelley, que repercute em toda a
poesia
de William Butler Yeats, é o fragmento Príncipe Atandsio, escrito no início da
carreira do poeta:
Sua alma desposara a Sapiência, e o dote É o amor, a justiça, por ele
investidos, Longe dos homens, em uma torre forte,
Lamentando o tumulto, os fatos ocorridos.
O ficcionista Thomas Love Peacock, amigo íntimo de Shelley, satirizou-o,
amavelmente, na obra A Abadia do Pesadelo, em que o poeta Scythrop vive em uma
torre não
tão solitária, e espalha na multidão profecias inauditas. Shelley, ironista
urbano, soube lidar com a sátira, e respondeu ao tratado mordaz de Peacock - As
Quatro
Idades da Poesia- com um ensaio vibrante: Uma Defesa da Poesia.
As quatro idades definidas por Peacock são: ferro, ouro, prata e bronze. Na
poesia inglesa, seguindo a deixa de Peacock, podemos arrolar Beowulf,
Shakespeare,
Pope e Wordsworth. Wordsworth, rei do bronze, é descartado como "sonhador
mórbido", e o ensaio conclui pedindo-nos para "sorrir da ambição mesquinha e das
percepções
limitadas com que tolos e charlatães (...) competem pelos louros poéticos e pela
cátedra da crítica".
A resposta de Shelley configura mais uma rapsódia em prosa do que um ensaio e,
até o presente, contém a melhor declaração em língua inglesa sobre poesia: "É,
ao
mesmo tempo, centro e circunferência do saber." Pretendo definir o génio de
Shelley, precisamente, com base nesse princípio de centro e circunferência, que
Emily
Dickinson herdou de Shelley, e, para tal, recorrerei ao célebre texto de
Adonais: Elegia sobre a Morte de John Keats. Uma vez que se trata de um complexo
lamento
lírico, composto de 59 estrofes de nove versos, sou obrigado a abstrair e
condensar, o que é lamentável, pois parte da grandeza de Adonais reside no fato
de Shelley
suster o ímpeto lírico ao longo dos 495 versos.
Keats morreu em Roma, em 23 de fevereiro de 1821, aos 25 anos e quatro meses,
vitimado pela tuberculose. Shelley morreu no mar, perto de Livorno, em 8 de
julho de 1822, um mês antes de completar 30 anos. A elegia Adonais foi composta
nos primeiros dias de junho de 1821, sendo tanto uma auto-elegia profética
quanto
um hino formal celebrando Keats. Embora os dois poetas houvessem se encontrado e
se correspondessem, eram apenas conhecidos, portanto a base do poema escrito por
Shelley não é o luto pessoal. Tampouco o irónico e sutil Shelley acredita que a
centelha da mente de Keats pudesse ter sido apagada por uma ou duas resenhas
desfavoráveis
oriundas da fria Escócia. Keats tinha personalidade combativa, e, embora eu
esteja longe disso, sinto-me energizado pela infinita idiotice das críticas
negativas
a meu respeito. "Detesto ser elogiado no jornal", observou o sagaz Emerson, e
nada destrói tanto a alma quanto um elogio no caderno de resenhas do New York
Times.
Shelley, a 13 meses da sua morte precoce, profetiza o próprio fim, e o aceita
muito bem. Como precedente, ele conhecia o poema "Lycidas", de John Milton,
talvez
o mais contundente poema de extensão média escrito até o presente, uma elegia
explícita a Edward King, poeta de menor importância e amigo de Milton, em
Christ's
College, Cambridge. King afogou-se em agosto de 1637 e, em 1638, seus
contemporâneos em Cambridge publicaram um volume de versos elegíacos, que
encerra com "Lycidas".
Milton, o mais ambicioso dos poetas (ao lado de Dante), ao compor "Lycidas",
estava com 29 anos, idade da qual se aproximava Shelley, enquanto escrevia
Adonais.
O que impulsiona "Lycidas" não é o medo de morrer, por parte do heróico Milton,
mas o pavor de uma morte acidental que legasse ao mundo apenas os seus poemas
menores,
em vez das grandes obras que pretendia criar:
Ora! De que vale o zelo contínuo, Seguir o ofício de pobre pastor, Ou muito
venerar a musa ingrata? Não seria melhor, como fazem tantos, Brincar com
Amarílis bem
à sombra, Ou co' os cachos dos cabelos de Neara? Fama é grilhão p'lo espírito
elevado (Última enfermidade da mente nobre), P'ra desdenhar prazer, buscar
labuta;
Mas quando esperamos que o prémio justo, Como súbita chama se apresente, A Fúria
cega, co' as temíveis tesouras, Surge e corta o fio da vida.
406
407
Átropos é a irmã cega das outras duas Parcas; ao transformá-la em uma das
Fúrias, Milton enfatiza o receio de ser cortado como celebridade canónica.
Shelley, em
Ado-nais, oferece-nos o triunfo de Milton:
Morreu o pai de uma estirpe imortal, Cego, velho e só; e o orgulho do país, O
padre, o escravo e o liberticida, Pisaram e zombaram em rito odiento, De luxúria
e
sangue; ele foi, sem medo, Ao encontro da morte; mas o Espírito Reina na Teora;
terceiro dos filhos da luz.
Homero, Dante, Milton: os poetas épicos são os filhos da luz, de Febo Apolo,
deus da poesia e do sol. Keats, que escreveu o fragmento épico Hipérion seguindo
essa
tradição, é, portanto, saudado como herdeiro de Milton. Shelley, de cuja
genialidade faz parte a capacidade de criar mitos, invoca as metáforas da poesia
de Keats,
para que estas possam aderir ao luto:
Irmão do teu espírito, o rouxinol triste, Não chora p'lo parceiro, co' a dor de
agora.
Passados os floreios de Keats, os companheiros poetas choram-lhe a morte, mas
o lamento cessa no terço final de Adonais, da estrofe 38 à 40. Shelley, que
influenciou
W. B. Yeats durante toda a sua vida, prefigura o hermetismo cético de Yeats,
conforme observado em "Velejando para Bizâncio" e "Bizâncio", poemas nos quais o
poeta,
envelhecendo, busca a salvação oculta no "fogo sagrado" de uma cidade da arte. O
espírito puro de Keats flui "De volta à fonte ardente de onde veio". Tendo
despertado
do sonho da vida, o espírito "paira mais alto que a sombra da noite", imagem
retirada de Dante: a Terra projeta a sua sombra no firmamento, mas, na esfera de
Vénus,
a sombra alcança o limite. Com um lirismo difícil de ser igualado na poesia
ocidental, a intensa celebração de Shelley toca a fronteira do Sublime, nas
quatro estrofes
finais:
Só Um fica, são muitos os que passam;
Luz do Céu sempre brilha, sombras da Terra se vão;
A vida, como um domo de vidro multicor,
Mancha o branco esplendor da Eternidade,
Até que a morte o despedace. - Morre,
Se queres ter com aquilo que procuras!
Segue aonde fugiram todos! - céus de Roma,
Flores, ruínas, estátuas, música, palavras São fracas para afirmar a glória da
verdade.
Por que hesitar, voltar, murchar, meu Coração?
Tuas esperanças já se foram: de tudo aqui
Se despediram; tu agora deves partir!
Foi-se a luz do ano que ficou p'ra trás,
O homem, a mulher; e o que ainda é caro
Atrai p'ra destruir, repele p'ra intimidar.
O céu suave sorri, - sussurra o vento:
É Adonais quem chama! Oh, sigamos o chamado,
Que a Vida não separe o que a Morte pode unir.
A Luz cujo sorriso ilumina o Universo,
A Beleza em que tudo opera e se move,
A Bênção que pela Maldição do nascer
Não pode ser extinta, aquele Amor
Que, na rede dos seres, fabricada
Com homem, fera, terra, ar e mar,
Arde brilhante ou pálido, espelhos
Do fogo do qual todos são sedentos,
Brilha em mim, queimando nuvens da mortalidade.
O sopro cuja força em canto invoquei Descende sobre mim; a barca do meu espírito
Deixa a costa, distante da multidão trémula, Cujas velas jamais se entregaram à
tempestade; Terra maciça e o céu esférico se partem! Sou levado p'ra longe, no
escuro, temeroso; E, ardendo na esfera mais íntima do Céu, A alma de Adonais,
qual
uma estrela, Brilha na casa em que moram os Eternos.
A linguagem aqui sugere a tradição neoplatônica, mas o idealismo é moderado
por algo que pode ser denominado o ceticismo visionário de Shelley. A
existência, domo
de vidro multicor, é real como o branco esplendor do Eterno, e "manchar" aqui
significa tanto "colorir" quanto "macular". Visto que os fragmentos do domo da
vida,
despeda408
409
çado pela morte, são idênticos às belezas de Roma - o céu, as flores, as ruínas,
as estátuas, a música, as palavras de poesia -, as manchas mais parecem colorido
do que nódoas. No entanto, todas essas cores do espírito não bastam para
exprimir o Ser imutável, que se antepõe a muitos.
Embora o ceticismo de Shelley perdure (assim como o de muitos), um impulso
vigoroso, incitado pelo desespero, empurra o poeta ao "fogo do qual todos são
sedentos".
A elegia pastoral transforma-se em hino gnóstico, com a típica equação gnóstica
entre nascimento e pecado: a "Maldição do nascer". Na estrofe anterior, Eros
representara
um processo que "Atrai p'ra destruir", noção que aparece de modo ainda mais
severo em um poema dantesco escrito por Shelley, que aborda o tema da morte, o
fragmentário
(e convincente) O Triunfo da Vida. Posicionando-se à véspera de uma jornada
derradeira, Shelley investe todo o seu génio lírico na última estrofe do poema.
A voz poética de Shelley não é um grito solitário, considerando-se,
especialmente, a riqueza barroca de Adonais, em que essa voz é orquestrada em um
conjunto que
absorve e cativa o leitor. A quem se dirige Shelley na última estrofe de
Adonaisí A voz do poeta, conforme registra Shira Wolosky, é oracular, profética,
urgente,
feroz em suas implicações, como se constata na célebre, revolucionária, "Ode ao
Vento do Oeste", invocada no primeiro verso da última estrofe de Adonais. A
imagem
do eu interior, a parte melhor e mais antiga do ser humano, livre da Criação,
segundo o gnosticismo, é pneuma, ou sopro, frequentemente representado por uma
centelha.
E esse o sopro cuja força recai sobre Shelley, conduzindo-o em uma viagem
oculta, impulsionada por uma tempestade; conquanto o preço da confirmação
profética de
Shelley ecoe no verso "Sou levado p'ra longe, no escuro, temeroso", o gesto aqui
transfere o medo para a multidão trémula que permanece em terra. Uma alusão
brilhante,
antitética, à conclusão de "Lycidas", de Milton, auxilia-nos a distinguir entre
a visão de Shelley e a do precursor protestante:
Não mais, Lycidas, choram os pastores, Tu és agora o génio dessas praias, Eis a
tua recompensa; e serás bom A todos que trafegam nas marés.
Keats torna-se o génio, ou espírito protetor, do Céu mais íntimo, reino
hermético das almas dos poetas, e de lá brilha, a fim de resguardar jornadas
finais a uma
realidade transcendental. Trelawny, que, em companhia de Byron, identificou o
corpo do amigo na praia, diz que Keats talvez tenha sido a última leitura de
Shelley:
A figura alta, frágil, o paletó, o livro de Sófocles em um bolso, o dos poemas
de Keats no outro, ainda virado, como se o leitor o houvesse guardado às
pressas.
íUti? Cifcú Cwiú
JOHN KEATS
Esta mão viva, cálida, e capaz
De um aperto, se fria estivesse,
No gelado silêncio do túmulo,
Tanto assombraria teus dias e noites frias,
Que desejarias sem sangue o coração,
Que em minhas veias rubra vida corresse de novo,
E tua consciência se acalmasse - vê - aqui está Estendo-a a ti.
É possível que este fragmento dramático seja o último trecho de poesia escrito
por Keats, talvez em janeiro de 1820, um ano antes da morte do poeta, em Roma,
aos
25 anos de idade. Aguardando a morte precoce, em consequência da tuberculose,
ciente de que o amor por Fanny Brawne jamais seria consumado, Keats, no último
ano
de vida, resistiu, desesperando-se estoicamente. Conforme a morte de Mozart, a
de Keats sempre nos faz pensar nas grandes obras que deixamos de conhecer.
Keats foi o génio da aceitação trágica, posição semelhante à de Shakespeare,
cuja influência, em última instância, foi mais profunda do que a de Milton ou
Wordsworth.
O melhor exemplo do que John Keats chamava de "Capacidade Negativa" - postura
criativa capaz de suportar impulsos de paixão fortes e contraditórios e, ao
mesmo tempo,
resguardar distanciamento e desinteresse - é Rei Lear, em contextos menores,
porém maravilhosos, tal postura pode ser observada também em odes como "Ao
Outono" e
sonetos como "Estrela Brilhante".
A consciência humana, secular, ao longo dos dois séculos subsequentes, não
teve melhor representante do que John Keats, que nos ensina a enfrentar
mistérios, embora
nos recusando a adorá-los. Keats é sempre o cauteloso celebrante das "Estações
Humanas", soneto que faz reviver certo esplendor de Shakespeare:
Quatro estações preenchem cada ano;
Quatro estações a mente do homem tem. É sadia primavera quando o plano
Sonda toda a beleza sem porém; Será verão quando o homem se entreter
410
411
Com pensamentos bem primaveris, Até que desfeitos na alma possam ser
Parte dele. Serão portos servis, De outono, enseadas de descanso,
Quando, de asas dobradas, puder olhar A névoa em paz e o riacho manso, Quieto,
por sua soleira passar.
Terá o inverno, no rosto brumal, Ou se esquece da natureza mortal.
JOHN KEATS
(1795-1821)
Keats, em vários aspectos, tornou-se, universalmente, o poeta inglês mais
admirado desde Shakespeare. Trechos memoráveis de sua obra preenchem a minha
consciência
com um sentimento e precisão quase shakespearianos:
"Sobre o Grilo e o Gafanhoto"
A poesia da terra não morre jamais:
Quando os pássaros se cansam do sol,
Escondendo-se em árvores, escuta-se, De sebe em sebe, no prado roçado, O
chichiar do Gafanhoto - é ele o líder,
No fausto do verão - jamais termina
A sua diversão, pois, se cansado, A vontade repousa sob as folhas. A poesia da
terra não cessa jamais:
Noite longa de inverno, se a geada Impôs o silêncio, da estufa ouve-se O canto
do Grilo, sempre animado,
Assim parece, ao que está entorpecido, Gafanhoto entre as colinas de relva.
"Sobre o Mar"
Sussurra eternamente, percorrendo
Litorais desolados; com suas vagas
Engole Grutas, mais de vinte mil, Até que o feitiço de Hécate as deixe em
paz. Às vezes está de tão bom humor,
Que a menor das conchinhas não se move,
Durante dias, do local onde caiu, A última vez que os ventos do Céu uivaram.
Vós, que tendes a vista fatigada,
Voltai-a para a imensidão do Mar; Vós, cujo ouvido já não suporta barulho,
412
413
Ou esteja farto de música falsa, Sentai-vos bem à Gruta e refleti, E, num susto,
ouvireis o coro das ninfas!
"O grande Saber faz de mim um Deus. Nomes, feitos, lendas, desastres, rebeliões,
Majestades, supremas vozes, agonias, Criação e destruição, de uma só vez,
Transbordam
nos vazios do meu cérebro, E me desafiam, como se algum vinho, Ou elixir se*n
par eu ingerisse, E, assim, me tornasse imortal." E o Deus, Com o olhar tão
franco
quanto cálido, Entre têmporas brancas e suaves, Era luz tremula sobre Mnemosine.
Logo, foi tomado de convulsões, Que lhe afetaram a beleza imortal; Era uma luta
ante a porta da morte, Ou como alguém que vai se despedir Da morte pálida e, em
meio à angústia, Quente quanto a morte é fria, num estertor, Morre entrando na
vida.
E lá bem me embalou até o sono,
E lá sonhei - Ah, triste sina! O último sonho que um dia sonhei,
Na encosta fria da colina.
Pálidos reis eu vi e também príncipes, Guerreiros pálidos, na lividez da morte,
Gritando: "La Belle Dame sans Merci Tem-vos serva da sorte!"
Vi seus lábios à míngua no crepúsculo, Greta agourenta, grande e bem ferina,
E despertei, aqui me achando, Na encosta fria da colina.
E eis por que passo por aqui,
Só em desalento vagando, Apesar dos cíperos secos do lago,
E nenhum pássaro cantando.
Os trechos anteriores foram extraídos da obra de Keats, entre 1816 e 1819,
este o ano mais extraordinário do poeta, em que ele compôs as seis Grandes Odes
e A
Queda de Hipérion. Keats tem apenas 21 anos, quando escreve o soneto "Sobre o
Grilo e o Gafanhoto", e já demonstra um ouvido aguçado, interno e externo. Tanto
quanto
Wordsworth, Keats fora deixado sozinho no mundo visível e audível bem cedo. O
pai morrera em um acidente, quando Keats tinha oito anos, e a mãe fora vitimada
pela
tuberculose, quando ele estava com 14 anos. Em consequência de uma doença, Keats
parou de crescer, e não media mais do que l,53m de altura, embora não fosse,
absolutamente,
desfigurado. A exemplo de tantas outras pessoas de baixa estatura, desenvolveu
um temperamento obstinado, ainda que não fosse agressivo. Excetuando
Shakespeare,
sobre quem pouco sabemos que seja de real importância, Keats talvez tenha sido o
mais sensato e normativo de todos os grandes poetas, em todos os tempos. Dentre
os principais contemporâneos, Blake e Shelley eram profetas; Wordsworth, egoísta
sublime; Coleridge, depressivo, e Byron, um turbilhão sexual: incestuoso,
sadomasoquista,
propenso à libertinagem (com ambos os sexos) e ávido pela morte heróica que
encontrou na Grécia.
No soneto "Sobre o Mar", de 1817, Keats responde à sua própria leitura da
quinta cena do quarto ato de Rei Lear, em que, cego, Gloucester decide suicidarse. Conduzido
por Edgar disfarçado (o filho leal), Gloucester é, supostamente, levado à beira
de um penhasco:
GLOUCESTER. Quando enfim chego ao topo desse monte? EDGAR. Já estamos subindo;
veja como custa! GLOUCESTER. Sinto o chão plano. EDGAR.
Horrivelmente íngreme!
Escuta só. Não ouves o mar?3
De acordo com o próprio Keats, a pergunta de Edgar foi o ponto de partida do
soneto. Trata-se de um mar imaginário, parecido com o "mar de desventuras" de
Hamlet,
mencionado no seu mais célebre solilóquio, "Ser ou não ser". Podemos deduzir que
se trata, também, do mar da poesia, ao qual Keats se lançara, segundo registro
3 Tradução de Alia de Oliveira Gomes, op. cit., p. 255. [N. do T.]
414
415
seu, no poema Endimião, escrito no início da carreira. Porém, se o mar é o
universo da poesia, é também o "universo da morte", o caos através do qual o
Satanás criado
por Milton empreendeu a jornada de herói-vilão, a fim de descobrir o Novo Mundo
do Éden de Adão e Eva. Daí o brado de Apolo segundo Keats: "O grande Saber faz
de
mim um Deus", ainda que Apolo morra ao entrar na vida, dolorosa encarnação,
representativa do renascimento de Keats na poesia. Os riscos envolvidos talvez
sejam
ironizados nas quatro estrofes finais da esplêndida balada "Zd Belle Dame sans
Merci", em que aquele que busca desperta de uma visão "na encosta fria da
colina".
Às vésperas da "Ode à Psique", a primeira das Grandes Odes, Keats, aos 23 anos,
já passara por um desenvolvimento poético quase sem precedentes.
O génio de Keats, revelado tanto na poesia quanto em suas cartas singulares,
talvez as mais eloquentes e sábias escritas em língua inglesa, é tão natural,
compadecido
e amplo que chega a questionar, seriamente, qualquer conceito de genialidade.
Ele afirmava que a poesia era o seu demónio, mas a poesia não escreveu a si
mesma,
e poeta algum, desde Shakespeare, fica tão distante da condição de possuído,
mesmo no caso da influência de caros precursores. Keats, no pouco tempo de vida
que
lhe restava, abandonou Milton e Wordsworth, retornando a Shakespeare, cuja
presença nas Grandes Odes e em A Queda de Hipérion é reconhecida e absorvida com
grande
tato. Helen Vendler registra, acertadamente, o efeito de Hamlet sobre as Grandes
Odes, e percebemos a voz de Hamlet também na agonia do personagem que busca, em
A Queda de Hipérion. Mas é arriscado invocar o personagem de Hamlet, talvez
porque ele próprio seja perseguido e perseguidor. Em "Ode à Melancolia", que
haveria
de inaugurar uma espécie de poema que se origina em Tennyson, passa pelos PréRafaelitas e chega até Yeats e Wallace Steven, Keats esquiva-se de Hamlet,
recorrendo
a outras obras shakespearianas, a saber, Tróilo e Créssida e Sonetos. Eis a "Ode
à Melancolia":
I Não, ao Letes não vá, nem das raízes
Do acônito extraia vinho venenoso; Nem deixe ser beijada tua fronte pálida
Pelo meimendro, uva rubi de Perséfone; Não faça teu rosário do fruto do teixo,
Nem deixes o besouro ou a mariposa Ser tua Psique, nem a coruja penuda
Participar
dos teus ritos secretos;
Pois a sombra atrai a sombra sonolenta, E afoga a angústia desperta na alma.
416
II Mas se a melancolia, de súbito, cair
Do céu como uma nuvem bem chorosa, Fazendo tombar todas essas flores,
Cobrindo o morro verde em mortalha de abril, Sacia tua tristeza na rosa da
manhã, Ou no arco-íris das ondas do mar, Ou na riqueza das grandes peônias; Ou
se tua
amada raiva demonstrar,
Segura-lhe a mão macia e deixe-a falar, E olha fundo, fundo, em seus olhos sem
par.
III Ela tem Beleza - Beleza que há de morrer; E enlevo, cuja mão sempre acena
adeus, Estando o Prazer dorido bem por perto,
Buscando veneno enquanto a abelha suga: Sim, é mesmo no templo da Alegria Que a
Melancolia faz seu santuário, Sem ser vista, exceto por aquele Cuja língua
explode
a uva no céu da boca, E cuja alma há de provar da força da dor, E entre os seus
troféus sombrios ser pendurada.
O início da ode, abrupto e maravilhoso, decorre da decisão de Keats de
cancelar uma estrofe original, grotesca e excessiva, em que ele, como um ser que
busca,
adverte a si mesmo que a deusa da Melancolia não será encontrada, se for
procurada com demasiada intensidade: "(...) se ela / Sonhar em qualquer das
ilhas do Letes".
Mesmo que resida no Letes, a deusa desejada só poderá ser encontrada recorrendose à consciência, não ao veneno. Seja lá o que for, essa Melancolia não é o que
hoje
denominamos "depressão . Fica mais próxima dos prazeres perigosos do
sadomasoquismo, e poucas entre as minhas alunas reagem de modo favorável à
sequência proposta
por Keats: rosa da manhã, arco-íris do mar, peônias e olhos sem par de amada
raivosa, segura pela mão, a contragosto, apenas pelo prazer paradoxal de fazer
ouvir
as suas queixas. No entanto, Keats busca, primeiramente, exuberância, na ira
dessa amada, uma exuberância louvada por seu desaparecimento: "Ela tem Beleza Beleza
que há de morrer". No poema "Manhã de Domingo", de Stevens, a noção é
transmudada em "A morte é mãe da beleza".
417
Keats transfere a ênfase, da deusa equívoca, supostamente sua Musa, para si
mesmo, não através da invocação do perseguido, melancólico Hamlet, mas do
ansioso Tróilo,
que espera obter prazer sexual com Créssida:
Estou tonto; a expectativa me faz girar; O prazer imaginário é tão doce, Que me
encanta os sentidos; será como, Quando irá o palato úmido provar O néctar do
amor,
triplamente célebre? A morte temo, total destruição, Ou alegria rara, sutil,
forte, Tornada por demais em algo doce, Pelo poder das mi'as forças grosseiras.
- Tróilo e Créssida, Ato 3, cena 2, 18-25
Fazendo, com tamanha nitidez, ecoar esse trecho, Keats relaciona a amada
Melancolia a Créssida, que trai Tróilo com Diomedes. Aquele que a busca, dotado
de "língua
persistente", tomar-se-á mais uma das relíquias de Créssida:
E entre os seus troféus será pendurado.
Esse ressonante verso final faz lembrar o Soneto 31 de Shakespeare, quando, em
um processo de autodestruição, o poeta se dirige ao belo e jovem nobre por ele
amado:
És o túmulo em que vive o amor enterrado, Ao lado dos troféus do meu amor
passado.
O Tróilo de Shakespeare exagera nos preparativos do encontro; Shakespeare (ou
a persona do soneto) oferece ao jovem nobre um tributo equívoco. Keats, não se
esquecendo
de Tróilo nem de Shakespeare, aceita o risco de um encontro direto com a sua
deusa da poesia, que, na prática, pode ser um demónio feminino, mas o poeta
demons-tra-se
bastante ciente da tragicidade de tal aceitação. Melancolia, a própria Musa, é
trágica, porque ela (e Keats) redefinem melancolia como a plena consciência da
transformação
natural, cuja forma final é a morte. Enfrentando a morte aos 25 anos, em Roma,
Keats ainda foi capaz de refletir sobre a acuidade dos sentidos que lhe estavam
sendo
obliterados pela tuberculose. O génio do poeta pode ser definido pelas frases
finais da sua última carta, escrita em Roma, três meses antes de falecer: "Mal
posso
dizer-te adeus, nem mesmo em uma carta. Minhas reverências sempre foram
desajeitadas." Tanto quanto a sua poesia, Keats é uma perpétua saudação do
espírito.
dfcí &t£ dà? GIACOMO LEOPARDI
Nenhuma profissão é tão estéril como a da literatura. Contudo, a pretensão é de
tanta utilidade para o mundo que, a partir da sua assistência, até a literatura
se
torna edificante. O fingimento é a alma, por assim dizer, da vida social, uma
arte sem a qual nenhuma outra arte, ou faculdade, levando-se em conta os efeitos
surtidos
na mente humana, será perfeita. Consideremos a sorte de duas pessoas, uma
possuindo real valor, em todos os sentidos, a outra um valor falso. Veremos que
esta última
é mais afortunada do que a primeira; deveras, a falsa é, geralmente, bemsucedida, e a verdadeira não o é. O fingimento produz um efeito mesmo na
ausência da verdade,
mas a verdade sem fingimento nada pode fazer. Tampouco isso decorre, creio eu,
das nossas inclinações malévolas, mas do fato de que a verdade nua e crua é
sempre
algo empobrecido e, portanto, se quisermos divertir ou comover o ser humano,
devemos recorrer à ilusão e ao exagero, prometendo o melhor e mais do que aquilo
que
podemos fazer. A própria natureza é uma impostora, e torna a vida humana
agradável, suportável, sobretudo devido à imaginação e à ilusão.
Leopardi é descendente poético de Lucrécio, compartilhando essa ancestralidade
com Shelley, Walt Whitman e Wallace Stevens, mas, em termos de espírito, parece
mais próximo de Lucrécio do que qualquer outro poeta. Não existe transcendência
para Leopardi, que aceitava a nossa condição como nulidade e considerava inútil
o
desejo. Por conseguinte, as ilusões são o nosso melhor consolo, além das
raríssimas visitas da sublimidade poética.
Leopardi define genialidade como algo a representar a nulidade com tamanha
nitidez que nos devolve o entusiasmo, mesmo que seja com relação ao vazio. A
exaltação
da alma, ao criar ou apreender a obra do génio, paradoxalmente, promove vida
nova ao afirmar o vácuo.
Em Lucrécio, existe uma dose suficiente de epicurismo positivo que permite que
o seu grande poema continue exuberante. Encontrar um sentimento positivo em
Leopardi
é tarefa árdua, se nos restringirmos à prosa. As nuanças da poesia lírica o
redimem: o seu génio, no que concerne ao fraseado exato, compensa a noção
assustadora
do mal, que, para ele, assim como para Keats e Stevens, constitui a dor e o
sofrimentc pelos quais devemos passar, na condição de homens e mulheres que
somos, vivendo
eir uma entropia que nos há de destruir.
418
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GIACOMO LEOPARDI
GIACOMO LEOPARDI
(1798-1837)
O Conde Giacomo Leopardi, maior poeta lírico da Itália desde Petrarca, teve
uma vida desesperadora, e morreu aos 39 anos. Dotado de visão lucreciana,
Leopardi
escreveu com espantosa exuberância negativa, proclamando a má notícia da nossa
existência, em poemas de forma, tonalidade e música cognitiva perfeitas. George
Santayana,
na introdução da clássica biografia escrita por íris Origo - Leopardi: A Study
in Solitude (1953), captou, de modo memorável, o paradoxo desse génio do Alto
Romantismo:
A temperatura escaldante da angústia de Leopardi incinerava essa mesma angústia,
e purificava o ar. Abaixo da monotonia gloriosa das estrelas, ele enxergava a
mutação
universal das coisas terrenas, bem como a sua vaidade, mas, em quase tudo, via
também o princípio, se não a completude, da beleza; e essa intuição, ao mesmo
tempo
extasiante e triste, liberava-o das ilusões do passado e do futuro.
A obra de Leopardi se presta muito mal à tradução, porquanto ele é,
estritamente, um poeta lírico. As únicas traduções em verso (para a língua
inglesa) que expressam
algo da qualidade especial do poeta são do poeta inglês já falecido John HeathStubbs.
Na prosa - "Diálogo entre Torquato Tasso e o Espírito que o Serve" {Génio
familia-re, em italiano) -, Leopardi anuncia o cerne do seu sombrio credo sem
credo,
no momento em que o poeta épico italiano da Renascença, enlouquecido, confronta
o próprio demónio ou génio:
TASSO. (...) minha vida é só tormento, pois, além da dor, la noia está me
destruindo.
GÉNIO. O que é la noia?.
TASSO. (...) Penso que la noia tenha a natureza do ar, que preenche todos os
espaços entre as coisas materiais e todos os seus vazios internos; e sempre que
um
corpo sai do lugar, e não é, imediatamente, substituído por outro, la noia
aparece. De modo que todos os intervalos da vida humana, entre o prazer e a dor,
são ocupados
por la noia (...)
GÉNIO. (...) deveras, penso que la noia nada mais signifique do que a busca
da felicidade pura, incapaz de ser satisfeita pelo prazer, e jamais ferida pela
desgraça
(de modo perceptível). E essa busca (...) jamais pode ser satisfeita (...).
Portanto, a essência da vida humana é constituída, em parte, de tristeza e, em
parte, de noia; e só escapamos de uma, caindo nas presas da outra (...).
TASSO. Que remédios existem contra essa noiâ.
GÉNIO. Sono, ópio, sofrimento (...)
Leopardi vislumbra a vida como uma vertigem em que se alternam visões de nulla
(nulidade) e da intraduzível noia ("melancolia" e "tédio" são termos
inadequados).
Noia é desejo onde e quando não há o que desejar. Assim como o "mal", em Wallace
Stevens (outro lucreciano), significa a dor e o sofrimento impostos a qualquer
homem
ou mulher naturais, inseridos em um mundo natural, a noia de Leopardi é
absolutamente natural.
A maior originalidade de Leopardi é engendrar, a partir do pesadelo da noia, a
sua própria versão do Sublime poético:
As obras de génio têm algo em comum: mesmo quando captam, intensamente, a
nulidade das coisas, quando, com toda a clareza, demonstram e nos fazem sentir a
infelicidade
inescapável da vida, e quando expressam o desespero mais terrível, ainda assim,
para uma grande alma - mesmo que se encontre em estado de extrema coerção,
desilusão,
vazio, noia e desespero, ou passando pelos mais amargos e mortais infortúnios
(causados por quaisquer sentimentos fortes) -, tais obras sempre confortam e
trazem
de volta o entusiasmo; e, embora abordem ou representem a morte, devolvem à
alma, ao menos temporariamente, a vida que esta havia perdido.
Portanto, a vida real aflige e mata a alma, abre e reanima o coração, quando
aparece em imitações ou outras obras do génio artístico (como em poemas líricos,
que,
a rigor, não constituem imitações). Assim como o autor, ao descrever e sentir o
vazio das ilusões, armazena um grande estoque de ilusões - demonstradas através
da
intensa descrição do seu vazio -, o leitor, por mais desencantado que esteja,
através da leitura é atraído pelo autor a essa mesma ilusão, escondida nos
recantos
mais profundos da mente que o leitor observa. E o próprio reconhecimento da
vaidade e falsidade irremediáveis de todas as coisas grandiosas e belas é, em
si, algo
grandioso e belo, que preenche a alma, quando tal reconhecimento ocorre através
das obras de génio. E o próprio espetáculo da nulidade apresentada parece
expandir
a alma do leitor, exaltando-a, reconciliando-a consigo mesma e com o seu
desespero. (Trata-se de algo estarrecedor e, decerto, fonte de prazer e
entusiasmo: esse
efeito magistral da poesia, quando contribui para despertar no leitor um
conceito mais elevado do eu, de seus pesares, do seu espírito deprimido,
aniquilado.)
420
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epicurista e materialista que renegava o cristianismo, mas a quem uma vida
sexual era impossível, Leopardi manteve a sanidade mental, exclusivamente,
devido ao seu
génio poético. Obcecado pela linguagem, ele buscou e alcançou uma pureza de
expressão que, para ele, teve de substituir a noção cristã de pureza da alma. A
meu ver,
o segredo, o génio de Leopardi é que, de modo singular, ele transformou pureza
de expressão em metáfora, constituída de um poema inteiro, e que traduz um
sentido
do infinito. Somente uma visão do infinito poderia curar a noia.
O maior poema de Leopardi é a sublime ode La ginestra ou A Flor do Deserto,
cuja ação se passa no Monte Vesúvio, no último ano de vida do poeta. A ode é
magnífica,
e absolutamente intraduzível; portanto, recorro à versão literal, em prosa, de
autoria de George Kay. A gifiestra se atreve a florescer na encosta árida do
vulcão;
será que, perto do precipício, Leopardi se atreve a se identificar com essa flor
heróica, "amante de locais sombrios, abandonados pelo mundo"? O movimento final
do poema evita tal identificação, mas não a renega:
E tu, que enfeitas esses áridos campos rurais com arbustos fragrantes, também
em breve sucumbirás à força cruel do fogo subterrâneo, que, novamente atingindo
o
limite, há de estender a orla voraz sobre os teus bosques suaves. E vais curvar
a cabeça inocente sob o peso mortal, sem lutar; mas trata-se de uma cabeça que
não
se curva em súplica covarde, inútil, ante o opressor; nem se ergue para as
estrelas, com orgulho vaidoso, ou para o deserto, onde brotaste e cresceste, não
por vontade
tua, mas por acaso. Porém, terás sido mais sábia, e muito menos volúvel do que o
homem, pois não acreditaste que o destino, ou tu mesma, pudesse tornar imortal a
tua espécie tão frágil.
A natureza, na contundente percepção de Leopardi, é nossa inimiga extrema, e o
único recurso de que dispomos é sermos bondosos uns com os outros. Porém, a flor
do deserto vulcânico é mais sábia e mais firme do que nós, com nossas ilusões de
imortalidade. Aqui pureza de expressão não substitui o conforto do infinito;
substitui
a falta de coragem em aceitar todo o peso da nossa condição.
O último poema escrito por Leopardi, "O Declínio da Lua", foi completado em
Nápoles, em 14 de junho de 1837, poucas horas antes da morte do poeta:
O encostas e colinas,
Embora oculta esteja a luz que do oeste
Prateou o manto da noite,
Órfãs não mais sereis,
Pois muito em breve vereis,
Mais uma vez, céus do leste
Pálidos na manhã, ante à alvorada,
A quem segue o sol, surgindo,
Em chamas, novamente, e luminoso,
E com seus raios ardentes,
Torrentes de brilho e luz,
Inunda cumes e a planície etérea.
Mas a vida mortal, extinto o tempo
Bom da juventude, não brilha mais,
Em novo esplendor, segunda alvorada.
Até o fim viúvos; e na noite
Em que pelo escuro nós chegamos,
Os deuses nos deixam um sinal, o túmulo.
Sombrio e singular, esse poema apresenta uma gravitas lucreciana. Leopardi não
encontra consolo no final, senão na presença implícita do génio que o serve. Em
seus extensos cadernos - Zibaldone (miscelânea) -, Leopardi escrevera:
Parece absurdo, mas é verdadeiro: porquanto toda a realidade é nula, as ilusões
são, neste mundo, as únicas coisas reais e substanciais.
A medida que a lua declina e ressurge a alvorada, Leopardi percebe que suas
últimas ilusões desaparecem, e ele também se vai.
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LORDE ALFRED TENNYSON
Se muito perdemos, muito inda temos; Se não dispomos da força que outrora Movia
céu e terra, o que somos, somos: Um grupo coeso, corações heróicos, Fracos no
tempo
e na vida, mas prontos: Lutar, buscar, chegar, jamais ceder.
Esses versos finais do monólogo dramático de Tennyson, intitulado "Ulisses",
vie-ram-me à mente, enquanto, incrédulo, eu assistia, de Washington Square Park,
no
dia 11 de setembro de 2001, ao desmoronamento das torres. O mais virgiliano dos
poetas de língua inglesa, Tennyson saudou Virgílio, em 1882, a pedido dos
mantuanos,
19 séculos após a morte de Virgílio:
Luz em meio às eras passadas;
Astro que ainda doura o litoral;
^
Ramo de ouro dentre as sombras,
Reis e reinos se vão, chegam ao final.
O próprio Virgílio tornou-se o ramo dourado que nos mantém seguros no mundo
subterrâneo. E o próprio Tennyson, génio da elegia celebrado por Walt Whitman
como
"the boss" (embora Tennyson não fosse o Springsteen da Rainha Vitória), é hoje
em dia um ramo dourado na descida às trevas que ora se nos apresentam, ao menos
durante
um longo período:
Caros qual beijos lembrados após a morte, E doces como os que são imaginados,
Em lábios que a outros se destinam; Profundos qual primeiro amor, e insanos,
Tanto
que se arrependem; Ó Morte em Vida, Os dias que não voltam mais.
LORDE ALFRED TENNYSON (1809-1892)
Os grandes mestres vitorianos da poesia nonsense - Edward Lear, Lewis Carroll,
William Schwenk Gilbert - escreviam pastichos de Tennyson, ao ensaiarem versos
"sinceros"
que falavam de afeto e arrependimento. Em poesia, Tennyson era o próprio estilo
da época, como há bastante tempo ocorre com John Ashbery, nos Estados Unidos.
Terminado
o século XX, a depreciação de Tennyson haverá de cessar, e seu génio mórbido
será reconhecido por quem ainda for capaz de ler poesia. O desbotado
"Modernismo" de
80 anos atrás, cujo derradeiro monumento poético foi A Terra Devastada, de T. S.
Eliot, guardava um ressentimento contra o poeta laureado da rainha Vitória.
Demonstrei,
anteriormente, que A Terra Devastada, cuja pretensão era identificar Dante e
Baudelaire como precursores, na verdade, foi originada por outros precursores,
Tennyson
e Walt Whitman. Tennyson, no que possui de mais característico, viveu à sombra
de John Keats, mas (re)trabalhou o estilo de Keats, para alcançar a linguagem do
seu
próprio génio. Com Tennyson, retomo a noção do demónio, pois os seus melhores
poemas muitas vezes se movem à revelia de intenções conscientes.
Quando está inspirado, Tennyson é poeta encantatório, cuja obra deve ser lida
em voz alta. Eis o poema "Mariana", composto pelo poeta aos 20 anos, realização
impecável,
perfeição de morte-em-vida:
Encobertos de musgo negro,
Estavam os canteiros todos; Pregos oxidados caíam
Dos laços em que pendiam petas. Telheiros, sombrios, estranhos;
Passado o ferrolho rangente;
Velho e mal cuidado o telhado, Sobre o ermo e ilhado chalé.
Ela só dizia, "Triste vida, Ele não vem", ela dizia;
Ela dizia, "Estou cansada,
Cansada, queria estar morta!"
A noite lágrima era orvalho; Lágrima ante o orvalho secar;
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Ela o céu não podia olhar,
Nem pela manhã, nem à noite. Depois que esvoaçam os morcegos,
Quando as trevas cruzam o céu,
Ela abre o forro da janela E olha de lado os prados lúgubres.
Ela só dizia, "Triste noite, Ele não vem", ela dizia;
Ela dizia, "Estou cansada,
Cansada, queria estar morta!"
No meio da noite acordada,
Ela ouvia as aves noturnas: O galo uma hora antes da luz;
Do brejo escuro ela escuta Mugidos do boi; sem esperança,
Em sonho, ela caminha, mísera,
Até que ventos frios acordam
A insone manhã do chalé ilhado.
M
Ela só dizia, "Triste dia, Ele não vem", ela dizia;
Ela dizia, "Estou cansada,
Cansada, queria estar morta!"
Logo após o muro dormia
Uma represa de águas negras, Em cuja superfície flutuavam
Pequeninos tufos de musgo. Ao lado, um choupo balançava,
Verde-prata, casca rugosa;
Em léguas, nenhuma outra árvore Povoava o cinzento vazio.
Ela só dizia, "Triste vida, Ele não vem", ela dizia;
Ela dizia, "Estou cansada,
Cansada, queria estar morta!"
LORDE ALFRED TENNYSON
Sempre que a lua estava baixa,
E os ventos uivantes à solta, No vaivém da cortina branca,
Ela via a sombra oscilando. Mas, se a lua era muito baixa,
E os ventos presos na caverna, A sombra do choupo caía
Sobre sua cama, sobre o rosto.
Ela só dizia, "Triste noite, Ele não vem", ela dizia;
Ela dizia, "Estou cansada,
Cansada, queria estar morta!"
O dia todo na casa-sonho
Rangiam as portas dos cómodos; A mosca azul zumbia no vidro;
O rato chiava no lambri, Ou das fissuras espiava.
Velhos rostos surgem nas portas,
Velhos passos, no andar de cima, Velhas vozes a chamam lá fora.
Ela só dizia, "Triste vida, Ele não vem", ela dizia;
Ela dizia, "Estou cansada,
Cansada, queria estar morta!*
O pio do pardal no telhado,
O tique-taque do relógio, O ruído do choupo insistente,
Atordoavam-lhe os sentidos; Mas a hora mais detestada
Era quando o raio de sol
Iluminava grãos de poeira, E o dia se inclinava ao oeste.
Ela só dizia, "Triste sou, Ele não virá", dizia ela;
Ela chorava, "Estou cansada,
Oh Deus, eu queria estar morta!"
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Pode constituir experiência de auto-hipnose, declamar esse poema, uma vez
memorizado. Embora Tennyson tome a persona lírica dos versos e a epígrafe
emprestados
a Shakespeare - Medida por Medida (ato 3, cena 1) -, é o poema Isabella, de
Keats, a obra vislumbrada pelo autor de "Mariana". No poema de Keats, a heroína,
à semelhança
de Mariana, aguarda o amante que jamais chegará: "Por prazeres frustrados chora
apenas; / Muito chorou até o cair da noite. / E definhou, morreu de melancolia."
A forma da estrofe é invenção do jovem Tennyson, mas o sentimento e o tom das
Grandes Odes de Keats repercutem do princípio ao fim, comparação a que "Mariana"
quase
faz jus.
A princípio, o demónio de Tennyson escreve o poema para si. Porém, quando se
lê (ou se entoa) "Mariana" várias vezes, começa-se a perceber quão
(deliciosamente)
doentio é o poema. Embara pareçam constituir uma canção de desespero, os versos
se caracterizam por tremenda exaltação. A Mariana, de Tennyson, muito se
assemelha
à Rosa Enferma, de Blake, cujo canteiro tem "alegria escarlate", antes de ser
encontrada pela lagarta invisível, que na tormenta da noite se arrasta. Seria
difícil
articular-se de modo mais convincente do que em "Mariana" a profunda
ambivalência com respeito ao amante ausente. Em outro trecho do presente livro,
no qual abordo
a obra de Keats, focalizo a "Ode sobre a Melancolia", que, suponho, provoca a
ambivalência de Tennyson em "Mariana". Tanto quanto Goethe, Keats foi
naturalista convicto,
cantador da plenitude sensual. Tennyson, desde a juventude, foi impaciente com o
processo natural. Sua persona, Mariana, encarna uma voz demoníaca, ardentemente
apaixonada por si mesma. A bela Laura, personagem do conto mexicano de Katherine
Anne Porter intitulado "Judas Florescente", apresenta um pouco dessa mesma autosuficiência
destrutiva para a própria pessoa e para terceiros.
A independência do génio lírico no que concerne à determinação histórica é
ilustrada, de modo eloquente, em "Mariana". A própria heroína de Tennyson é
poeta, constituindo
ela mesma a sua matéria poética, e não precisa, absolutamente, do amado pelo
qual espera. O substituto do amado, o choupo, já é bastante perturbador; a
presença
do amado destruiria o poema. A força da fantasmagoria é ameaçada por qualquer
elemento intrusivo, e o amado seria um intruso muito mal recebido.
A consciência lírica de Tennyson tende a evidenciar a imagem da mulher em um
caramanchão, a amante interior, ou alter ego, o que nos faz retornar a uma das
antigas
definições romanas de génio. A sensibilidade exacerbada de "Mariana" pode ser
encontrada em toda a obra de Tennyson. Focalizarei aqui o monodrama Maud, que,
segundo
consta, exercia efeito perene em T. S. Eliot. A persona alienada, do sexo
masculino, cuja voz se ouve no poema, exclama: "Meu coração é um punhado de pó",
verso
que, em A Terra Devastada, torna-se "Mostrar-te-ei o medo em um punhado de pó".
O título
430
LORDE ALFRED TENNYSON
completo do monodrama de Tennyson é Maud, ou O Desvario, e o poema ronda as
fontes da perigosa melancolia do poeta laureado. O pai de Tennyson perdera para
um irmão
mais jovem o direito à herança, e as consequências do fato incluíram relativa
pobreza, ócio, alcoolismo grave, loucura e morte um tanto precoce. George
Tennyson,
prior de Lincolnshire, teve 12 filhos, dos quais Alfred foi o quarto. Todos os
irmãos eram depressivos, sendo que um jamais se recuperou, e Alfred, muito
depois
de haver se tornado o bem pago poeta laureado da Rainha Vitória, ainda
demonstrava precário
equilíbrio mental.
Maud (1855) era uma obra mórbida demais para alcançar sucesso popular, mas
merece a defesa descritiva de Tennyson:
Esse poema Maud, ou O Desvario é um pequeno Hamlet, a história de uma alma
mórbida e poética sob a influência perniciosa de uma era imprudentemente
especulativa.
É herdeiro da loucura, um egoísta com estofo de cínico, elevado a um amor puro e
sagrado que lhe promove toda a natuteza, e passando do auge do triunfo ao
mistério
mais profundo, levado ao desvario pela perda da amada, e, no momento em que,
finalmente, sobrevive à fornalha escaldante, recupera a razão e se entrega ao
trabalho,
pelo bem da humanidade, através do altruísmo de uma grande paixão. A
peculiaridade desse poema é que fases diferentes da paixão em uma mesma pessoa
substituem os
personagens.
No trecho anterior, obviamente, fala o poeta laureado, não o demónio e,
felizmente, foi o demónio quem compôs a maior parte do poema. Maud foi publicado
durante
a Guerra da Criméia, e o pequeno Hamlet (mais semelhante a um pequeno Byron)
entre-ga-se ao trabalho pelo bem da humanidade, propondo-se, na conclusão do
poema;
altruisticamente, a exterminar os russos. Recordo-me do meu espanto, quando, em
meados dos anos 50, em Londres, assisti a um espetáculo musical com Beatrice
Lillie
("Um; Noite Intima com Bea Lillie), em que a estrela, dançando no palco, gritava
para a plateia "Maud, somos podres até os ossos!". Em seguida, abria a capa,
como
asas de morcego, corria pelo palco, alegremente, enquanto um tenor irlandês, de
traje a rigor, cantava c número mais famoso do monodrama, a canção que inicia:
Vem para o jardim, Maud, Pois o morcego negro, noite, voou, Vem para o jardim,
Maud, Sozinho ao portão eu estou: Flutua no ar o odor da madressilva, E o
almíscar
da rosa já soprou.
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O cantor anónimo tem comportamento paranóico, logo constatamos; trata-se, com
efeito, de uma paródia de Tennyson quando jovem. As percepções líricas da
persona
são intensas, tanto que é possível considerar a pobre Maud uma felizarda, por
ter conseguido se isolar, a fim de conseguir se esquivar dessa mesma persona:
Rolou uma esplêndida lágrima Da flor-da-paixão à entrada. Ela vem, pombinha
querida; Ela vem, mi'a vida e destino; Grita a rosa vermelha: "Aí vem ela!"
Chora a rosa
branca, "Está atrasada"; Atenta a esporinha, "Já posso ouvi-la"; E sussurra o
lírio: "Eu espero".
Desse ponto ao País das Maravilhas ou ao País dos Espelhos de Lewis Carroll
basta um pequeno passo. E nesse aspecto, a meu ver, reside a frágil grandeza da
obra:
como estabelecer o limite entre paixão sublime e nonsense sublime? Tennyson,
naquilo que tem de mais impressionante, é impelido a ensinar ao seu demónio como
realizar
tal feito. Nos desertos belamente ornados, ainda que, um tanto áridos, do ponto
de vista poético, do poema Idílios do Rei, a voz desse demónio, às vezes, é
ouvida,
conforme neste trecho, da canção de Vivien e do posfácio, em Balin e Balam
Agora a íntegra música do bosque Calou-se por alguém do salão de Marco, Uma
donzela-errante, gorjeando Pelos vales, Vivien e seu Escudeiro.
"Fogo do Céu matou o frio estéril, Aquecendo a planície e o descampado. A folha
nova sempre empurra a antiga. Fogo do Céu não é chama do Inferno.
"Velho padre, rezando com o coro -Velho monge e madre, zombais do ardor, Mas em
vosso frio claustro sentis fogo! Fogo do Céu não é chama do Inferno.
"Fogo do Céu em vias empoeiradas. Flores do caminho se abrem ao calor. Em elogio
repica toda a mata. Fogo do Céu não é chama do Inferno.
"Fogo do Céu é senhor das coisas boas, Não deixeis morrer tal fogo no sangue,
Segui Vivien p'lo dilúvio de fogo! Fogo do Céu não é chama do Inferno."
Falando ao escudeiro: "Fogo do Céu, Adoração ao sol, ressurgirá, Derrotando a
cruz, destruindo o Rei Bem como a sua Távola (...)"
Esse hino a Eros é a verdadeira voz do sentimento em Tennyson, reagindo à
repressão. Emanação escarpada das regiões ermas e dos pântanos musgosos de
Lincolnshire
(local da ação de "Mariana"), Tennyson era uma anomalia ambulante, muito bem
descrito (por Thomas Carlyle) como "homem solitário e triste (...), levando
consigo
um pouco do Caos, em suma, algo que ele transforma em Cosmo". Mas esse Cosmo não
nos interessa; já o pouco de Caos pode ser poeticamente fascinante. Vivien, que
seduz e destrói Merlin, faz parte desse pouco de Caos. Tennyson considerava Maud
o seu Inferno, e In Memoriam o seu Purgatório, ao final, o seu Paraíso. O que
fica
na memória em In Memoriam são, precisamente, os momentos que pressagiam as
visões urbanas de T. S. Eliot, que tanto apreciava o poema 7, em que Tennyson se
vê defronte
à casa onde vivera Arthur Henry Hallam, o amigo eternamente chorado:
Casa escura, que volto a confrontar, Nesta rua comprida e tão sem graça; Portas,
onde sempre meu coração Disparava, à espera do cumprimento,
Mão que já não pode ser apertada -Olhai -me, pois não consigo dormir, E, qual
uma culpada criatura, A porta me arrasto em madrugadas.
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Ele aqui não está; mas à distância Ressurgem os ruídos desta vida, E lívido, em
meio à chuva fina, Pela rua banal, desponta o dia.
Tennyson foi sempre o poeta das elegias, sempre lamentoso, bastante no estilo
de Virgílio, o poeta clássico que ele mais apreciava, assim como Keats foi o seu
crucial predecessor moderno. Christopher Ricks, elogiando o poema de Tennyson
sobre a morte, o sempre popular "Cruzando o Limite", destaca a maestria com que
cada
uma das quatro estrofes depende de um "verso mais curto, conclusivo, que freia e
domina o sentimento". Guardo tia memória a segunda das quatro estrofes, que,
para
mim, resume a singular musicalidade cognitiva de Tennyson:
Tal maré, movendo-se, parece dormir,
Cheia demais, p'ra ruído ou espuma, Quando algo que vem das profundezas,
Retorna à casa.
A casa faz parte do Caos primordial, e Tennyson desiste das fantasias
relativas ao progresso da sociedade e de transformar em Cosmo sua herança
demoníaca.
VI
TIFERET
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435
LUSTRO 11
Algemou Charles Swinburne, Dante Gabriel Rossetti, Christina Rossettí, Walter
Pater, Hugo von Hofmannsthal
Cabala classifica o estetismo sob o Sefirah conhecido por Tiferet, a
"misericórdia" de Deus manifesta como "beleza" de Deus, meditação frequentemente
expressa como
Shekhinah, a presença de Deus como bela forma feminina. O esteticismo inglês Swinburne, os irmãos Rossetti, Walter Pater - e seus contemporâneos vienenses,
cuja
figura mais representativa é Hofmannsthal, encaixam-se, quase inevitavelmente,
neste primeiro Lustro de Tiferet. Embora, durante muito tempo, tenham sido
avaliados
negativamente pela crítica, Swinburne e Dante Gabriel Rossetti são poetas de
grandes realizações, conforme pretendo demonstrar. Christina Rossetti, triunfo
singular
e tardio da poesia religiosa, é também extraordinária autora de elegias sobre
frustração erótica.
A crítica de Walter Pater, tão depreciada por T. S. Eliot, exerceu profunda
influência sobre Joyce, Yeats, Virgínia Woolf e muitos outros "modernistas"
(como parece
antiquado agora esse termo), enquanto Hugo von Hofmannsthal precisa ser
resgatado do destino injusto, de ser reconhecido apenas como libretista de
Richard Strauss.
Pro-ponho-me a realizar tal resgate.
437
ALGERNON CHARLES SWINBURNE
ALGERNON CHARLES SWINBURNE
Ninguém o terá visto, ninguém Pode vê-lo acima de deuses e coisas, Correndo
sem pés, voando sem asas, Intolerável, despido de morte ou vida,
Insaciável, desconhecido da noite ou dia, Senhor do arnoj, do ódio e da
luta,
Que oferece uma estrela e rouba um sol; Que molda a alma, e a torna mulher
estéril
Ao corpo terreno e ao cruel crescer do barro; Que transforma os membros em
pequena chama,
E subjuga o mar com um punhado de areia; Que provoca desejo, e o mata com
vergonha;
Que sacode o céu qual cinzas na mão; Que, vendo luz e sombra o mesmo serem,
Ordena ao dia consumir a noite,
M
Assim como o fogo devora a lenha, Golpeia sem espada, e açoita sem chicote;
O mal supremo, Deus.
O atrevimento anti-religioso de Swinburne, expresso, de maneira
extraordinária, nesse coro de Atlanta em Cálidon, demonstra uma tonalidade
renovadora, à medida
que adentramos o século XXI, época em que as guerras religiosas parecem fadadas
a retornar. Mas o génio de Swinburne caracteriza-se pela audácia, seja no
sadomasoquismo
explícito, na polémica contra o cristianismo, ou no talento fabuloso de
parodista. A melhor autoparódia proposital escrita em língua inglesa é "Poeta
Loquitor" (O
Poeta Fala), poema de Swinburne, que, por uma questão de espaço, infelizmente,
não posso citar na íntegra. Eis o trecho que vai da quarta à sexta estrofes (de
um
total de dez), que antecipa qualquer crítica que Swinburne possa provocar junto
aos cristãos:
Loucas mesclas de lixo afrancesado,
Com insultos à crença dos cristãos, Cega blasfémia, troça infantil, tudo
Isso de estúpido me rotula. Deveras, considero-me alguém
Cujo público jamais diminuirá, Mas será bastante estranho o pupilo
Cujo mestre é vento.
Em meus poemas, com enlevo arrebatador,
Temporal me golpeia, acaricia, ferroa: Mas não sou ave a ser surpreendida
Fora do ninho em meio às intempéries. Prefiro ficar longe desses males,
Quando o humor faz tremer o arvoredo, E o vento, com seu braço onipotente,
Faz do mar espuma.
Agarrado a trapos a outros alugados,
Que me precederam e superaram, Quero crê-los meus irmãos e irmãs,
Embora bem conheça a minha laia. Ponho-me a ganir, só de ver igreja,
Qual menino chutado em futebol! Mas a causa, decerto, está perdida,
Cujo evangelho é vento!
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ALGERNON CHARLES SWINBURNE
(1837-1909)
De todos os génios da linguagem analisados neste livro, o poeta Swinburne é o
que está menos em voga. Sem dúvida, é tarde demais para reavivá-lo: foi morto
por
T. S. Eliot e Edmund Wilson, ambos ilustres exterminadores. Todavia, cito o
poema "Agosto", na íntegra, porquanto são poucas as pessoas ainda vivas que já o
terão
lido. O leitor deve experimentar recitá-lo, em voz alta, sozinho ou acompanhado:
No galho havia quatro maçãs, Ouro e rubi, p'ra revelar Que o sangue estava
maduro; A cor das folhas parecia De espigas de milho que crescem Nos planos, em
junho
dourado.
Servia o odor quente das frutas
P'ra alimentar, e a lenha rachada,
Com lábios peludos e manchas
>a
De musgo nos veios partidos,
Era agradável, a quem estava
Ao sol ou sob chuvas felizes.
Na árvore havia quatro maçãs, O rubro no ouro, p'ra que vissem: Sol aquecia do
núcleo à casca; Folhas verdes cegavam verão, No local doce a mim guardado, Maçã
dourada
ali trancada.
Folhas tinham o ouro do sol, E, onde soprava o ar mais azul, Queriam canção p'ra
ajudar o calor; Como a tocar os pés da amada, Achego-me ante o fim do dia,
Lábios
de sonhar ficam secos.
ALGERNON CHARLES SWINBURNE
Na tarde calada de agosto, Vibravam seguindo algum som De música no ar prateado;
Era um prazer estar ali, Até o verde virar penumbra, E a lua dourar todo o
milho.
Naquele agosto foi deleite Ver lua rubra ficar branca, Pelos galhos da macieira;
Sensação de grande harmonia Aumentava na noite paciente, Mais doce que música
escrita.
Cerca de três horas antes da lua, O ar, inda ávido do dia, Clamava o calor
moribundo; Encostei a cabeça ao galho; A cor qual canção me acalmava, Folha
verde, além
do ouro e rubro.
Fiquei até que o quente odor Aumentasse, e sinais de orvalho Surgissem nas
folhas redondas, As cascas manchando; ouvi Um vento soprar e soprar, Débil
demais p'ra
dizer outra coisa.
Folhas úmidas em torno da fruta Eram mais lisas, e a raiz Fez a terra mais
quente: senti (Como a água sente o ouro derreter, Quando o dia se queima
emudecido) A
paz do tempo em que vivia o amor.
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Na árvore havia quatro maçãs, O ouro no rubro, p'ra que vissem: Sangue doce lhes
preenchia; Cor dos cabelos dela lembra Talos de ouro pálido e belo, Ceifados no
auge da safra.
Atualmente, quando Swinburne atrai alguma atenção, é por ter sido discípulo
(em termos práticos) do Marquês de Sade; de fato, o poeta escreveu grande
quantidade
de versos masoquistas, dentre os quais a obra-prima é "Anactoria", monólogo
dramático de Safo, poeta de Lesbos, dirigido à infeliz Anactoria, amada e vítima
(nitidamente,
projeção do próprio Swinburne, como assinala Camille Paglia, com a tocante
acuidade de sempre). "Agosto", no entanto, não demonstra o desejo ardente de
Swinburne
de ser chicoteado por uma mulher, sendo, talvez, o mais keatsiano dos seus
poemas, naturalista, ao invés de contra naturam. A um só tempo festivo e dorido,
o poema
remete ao grande amor não-consumado da vida do poeta, a paixão quase incestuosa
por uma prima, Mary Gordon, companheira de infância na Ilha de Wight, segundo
consta,
local onde se passa a ação de "Agosto". As vezes, sinto-me inclinado a dizer,
com relação a "Agosto" o que Johnson disse, referindo-se a Alexander Pope: se
isto
não é poesia, onde haveremos de encontrá-la?
Contudo, a obra de Swinburne, com poucas exceções, demonstra que, sozinho,
génio verbal não basta, infortúnio que, por si só, já justificaria a inclusão do
poeta
neste livro. Eis o melhor crítico de Swinburne, o falecido Ian Fletcher,
delineando as imperfeições do poeta, e recorrendo ao poeta e classicista A. E.
Housman,
a fim de concluir a acusação:
Os admiradores de Swinburne são chamados a responder a uma acusação. Se o poeta
demonstra alguns sinais de genialidade - energia, prolificidade e forte
identidade
literária -, já a sua temática parece restrita. Os efeitos métricos, a
princípio, surpreendentes, até espantosos, aos poucos, amortecem o impacto, por
depender demais
de anapestos e iambos; a intensidade inicial é logo domesticada por modulações
previsíveis; ao contrário de Baudelaire, Swinburne não recorre à variação
métrica
e aliterações criadas pelo poeta são contínuas, estouvadas e auto-indulgentes.
Possui um harém de vocábulos aos quais se mantém lamentavelmente fiel: amiúde, o
léxico
é sumamente bíblico, abusando das palavras Deus, Inferno, serpente, açoite,
chama, trovão etc, característica inusitada em alguém que se propunha a ser o
flagelo
dos cristãos. A musa de Swinburne é, com efeito,
uma espécie de Balaão às avessas: amaldiçoa Deus como o faria um profeta do
Antigo Testamento, desprestigiado, ou talvez renitente com respeito à missão
imposta.
E os temas dos versos de Swinburne parecem se diluir em um único assunto. Pouca
diferença faz, se ele está realizando uma pungente incursão sado-masoquista,
trabalhando
o mar como figura da Mãe, a libertação da Itália como emblema do fim de todas as
tiranias que oprimem o ser humano, sejam religiosas ou políticas, ou celebrando
as firmes convicções morais do Corpo Naval. As cadências medíocres, o
vocabulário vago e genérico persistem, de modo que se torna difícil ao leitor
distinguir se
deve admirar um navio de guerra ou um seio. Housman, um dos críticos mais
perspicazes de Swinburne, resume a questão: "O mar, o recém-nascido e a
liberdade entravam
na máquina de fazer linguiça, em que ele tudo enfiava; uma volta da manivela e,
do outro lado, sai (...) ruído." Housman admirava alguns dos poemas, mas "não há
motivo para que iniciem e terminem como o fazem; não há motivo para que o meio
se posicione no meio; não há sequer motivo por que, uma vez iniciados, devam
chegar
a alguma conclusão; seria possível reorganizar as estrofes que os compõem em
várias ordens, sem diminuir-lhes a coerência ou lhes comprometer o efeito". Mas
o comentário
de Tennyson é, igualmente, correto: "É um bambuzal e, através dele, todo sopro
se transforma em música."
As críticas que Eliot e Wilson fazem a Swinburne não me abalam tanto quanto as
de Fletcher e Housman. Máquina de fazer linguiça que produz ruído é descrição
que,
se justificada, acaba com a carreira de qualquer um. Em suma, de modo geral,
Swinburne é bastante maçante, e não desejamos ser aborrecidos, nem mesmo por um
génio.
Todavia, existem honrosas exceções, além de "Agosto". Há a poesia dramática
Atlanta em Cálidon, ainda hoje bem mais legível do que Assassinato na Catedral
ou Reunião
em Família, de Eliot, e temos o melhor poema de Swinburne, "Ao Final de um Mês',
composto de 33 quartetos majestosos, em que um homem e uma mulher, que já não se
amam, caminham juntos, à noite, pela última vez, para admirar o mar. O poema,
evidentemente, celebra o caso de amor (que durou um mês) entre Swinburne e a
audaciosa
Adah Isaacs Menken (1835-1868), atriz, aventureira e poeta, nascida em Memphis,
no estado do Tennessee, mundialmente famosa pelas cavalgadas (no mais das vezes,
nua) em cena, na peça Mazeppa, de Lorde Byron. É certo que Menken desistiu de
Swinburne, pois, conforme revelou a Dante Gabriel Rossetti, "não consigo fazê-lo
entender
que é inútil morder". Em todo caso, "Ao Final de um Mês" apresenta um ritmo
marcante, uma marcha fúnebre ao Eros perdido:
442
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Atravessado, oblíquo, batido pelo vento,
Nadava, mergulhava e roçava o mar: Unir-te a mim, não era meu sonho;
Unir-me a ti, eu não poderia.
Etimologicamente, a palavra "demoníaco" remete à raiz indo-européia que
significa "dividir". Génio, ou demónio, é o espírito que divide o eu, em vez de
unificá-lo.
Swin-burne é um dos exemplos marcantes de uma natureza incapaz de suster o
próprio génio. Deve ser valorizado como um dos poucos autores dados a descrever
a morte
do amor. O poema "Ao Final de um Mês" sempre me faz lembrar os melhores momentos
da literatura modefna em que é invocado o fim de uma paixão. Lembro-me de Swann,
em Proust, exclamando: "E pensar que tanto sofri por uma mulher que comigo não
condizia, que sequer era o meu tipo!". Jack Burden, no romance de Robert Penn
Warren,
Todos os Homens do Rei, despede-se, em devaneio, da ex-esposa: "Adeus, Lois, e
perdôo-te por tudo que te fiz." Talvez o melhor exemplo pertença à obra de íris
Murdoch,
em um de seus primeiros romances: "Deixar de gostar de alguém é uma das grandes
experiências humanas; a gente parece ver o mundo com novos olhos."
DANTE GABRIEL ROSSETTI
Empilhados sob galhos da macieira,
Deitam-se tendo em mãos maçãs mordidas: Alguns são tão-somente velhos
ossos, Alguns tinham navios já lançados,
E alguns já foram até donos de terras.
E no vale, em meio às macieiras,
Acima da cova escondida, ela fica, De lá sempre cantando, ela que ofertou
Aos do vale o seu momento de paz,
E as maçãs que trazem em suas mãos.
Assim vejo em meus sonhos; seus cabelos
Roçam meus lábios e meu sopro cálido; Seu canto abre no ar asas douradas,
Olhos da Vida brilham em sua bela fronte,
E em seu seio os graves olhos da Morte.
Por mais que aprecie a poesia de Dante Gabriel Rossetti, atualmente esquecida,
devo admitir que o génio do poeta transcende a melancolia, chegando à morbidez
intensa.
O fragmento "A Cova do Pomar", cujas primeiras estrofes cito acima, não pode ser
considerado um tributo à amante adúltera do poeta, Jane Burden (Sra. William
Morris,
cujo marido, o poeta e artista Morris, foi durante a vida inteira o melhor amigo
de Rossetti). Tenho um coala empalhado na sala de minha residência em New Haven,
chamado McGregor, que pertenceu a Rossetti, e do qual Morris gostava muito.
Segundo consta, Rossetti trazia consigo o animal, nas frequentes visitas à casa
dos Morris,
e, de acordo com um relato (do qual não duvido), o pobre McGregor era um
subterfúgio. William Morris gostava de brincar com o animal, ou se dispunha a
desenhá-lo,
processo em que se detinha por uma ou duas horas; enquanto isso, o atrevido
Rossetti e a bela e fogosa Jane Burden Morris corriam para o segundo andar da
casa, a
fim de extravasar a paixão que os consumia.
O sinistro ronda Dante Gabriel Rossetti, e os seus quadros pré-rafaelitas, por
demais elaborados, a meu ver, são muito inferiores à sua poesia extremamente
original.
A mes444
445
cia singular que o poeta realiza entre naturalismo e fantasmagoria funciona
melhor nos poemas, cujas tonalidades, raramente, são opressivas, ao passo que, a
não
ser nos casos dos melhores retratos, os demais exibem uma sensualidade pesada e
obsessiva.
A obra-prima poética de Rossetti é O Segredo do Riacho, extenso devaneio sobre
o desejo destrutivo e inescapável do poeta por Jane Burden. Sem dúvida, Rossetti
e a Sra. Morris foram feitos um para o outro: a ideia de um casamento entre os
dois abala o leitor de Rossetti tanto quanto, decerto, abalava os amantes. De
vez
que o cânone literário ocidental foi varrido do mapa pelo puritanismo iluminista
das universidades do mundo anglófono, é possível que Rossetti jamais volte a ser
estudado. Mas um leitor solitário, se for extremamente inteligente, deve buscar
os sonetos intitulados A Casa da Vida, bem como as traduções feitas da obra de
Dante
e contemporâneos. Na era atual, ser excluído das universidades, provavelmente,
constitui um brasão de excelência.
CHRISTINA ROSSETTI
Lembra de mim, quando eu me for,
P'ra longe, p'ra terra calada,
E não puderes mais ter minha mão, Nem eu desistir de sair, e ficar. Lembra de
mim, quando dia após dia,
Não puderes mais falar do nosso futuro:
Apenas lembra de mim; será tarde, Então, p'ra conversar e p'ra rezar. Mas, se
por um momento me esqueceres,
E a lembrar voltares, não te lamentes:
Pois se as trevas e a morte permitirem
Vestígios das ideias que um dia tive, Melhor seria se esquecesses sorrindo,
Do que se te lembrasses com tristeza.
O soneto "Lembranças" é um exemplo esplêndido da originalidade discreta,
atenuada, de Christina Rossetti. Poucas auto-elegias dirigem-se de modo tão
adequado ao
sobrevivente, através da voz da amada morta. A arte sutil de Christina brinca
com cinco acepções de "lembrar", todas diferentes entre si. A primeira é a
simples
lembrança, literal, enquanto a segunda se refere à culpa potencial do
sobrevivente. A terceira, "Apenas lembra de mim", expressa um pesar mais
tocante, e "a lembrar
voltares" não constitui reprimenda, uma vez que lamentações não cabem em se
tratando de perdas eróticas. O último "lembrar" é o mais encantador, atestando o
elemento
altruísta presente no amor
perdido.
Christina Rossetti não compartilha da ilimitada originalidade de Emily
Dickinson, e fica longe da sublimidade solitária contida em alguns dos poemas da
lírica
apocalíptica de Emily Bronté. Não obstante, possui génio majestoso e perene,
dotado de postura diversa da de qualquer outro elegista das tristezas de Eros. O
toque
é sempre leve, a voz comedida, embora perturbadora. Ainda que raramente, tem
seus momentos de êxtase e exaltação e, de bom grado, celebramos com ela "Um
Aniversário":
446
447
Meu coração é qual ave cantante,
Cujo ninho fica em ramo novato; Meu coração é qual a macieira,
Cujos galhos pesam com tanto fruto; Meu coração é qual concha arco-íris,
Que por mares tranquilos se arrasta; Meu coração é mais feliz que tudo,
Pois meu amor veio ter junto a mim.
Armai um tablado de seda e plumas;
Ornai-Q.com peles e panos púrpuros; Talhai-o com pombos e romãzeiras,
E pavões de uma centena de olhos; Em relevo, aplicai uvas em ouro e prata,
Com folhas de flor-de-lis prateada; Porque o aniversário da minha vida
Chegou: o meu amor veio me ver.
DANTE GABRIEL ROSSETTI
(1828-1882)
CHRISTINA ROSSETTI
(1830-1894)
Christina Rossetti, poeta genial, sejam quais forem os parâmetros aplicados,
em muitos aspectos, é sempre um enigma. Escritora de orientação anglicanocatólica,
original e, até certo ponto, esotérica, Christina não se coaduna facilmente com
os métodos e obje-tivos daquilo que hoje se denomina crítica literária
feminista,
que identifica na poeta "a estética da renúncia". A poesia da renúncia, com
efeito, não precisa ser religiosa ou feminina: seu maior exemplo foi Goethe, que
era
pagão. Mais próximo a Christina, havia outro pagão, seu irmão mais velho, o
notável poeta e pintor Dante Gabriel Rossetti, cuja intensa erotomania em muito
provocou
a rejeição da irmã, com respeito ao que nossa cultura ainda celebra como "amor
romântico".
A pintura de Dante Gabriel Rossetti pode ser considerada questão de gosto;
quanto à sua poesia, esta tem hoje reputação inferior à da irmã, mas o tempo vai
alterar
tal situação, pois a força dos melhores versos de Dante Gabriel está além dos
modismos, ao passo que as pinturas, em sua maioria, talvez sejam mesmo datadas.
Reúno
aqui os dois irmãos porque se iluminam mutuamente, e as semelhanças (e
diferenças) entre os génios da família têm seu próprio valor e fascínio. Em
outras partes
deste livro reúno os irmãos James, bem como as irmãs Bronté, mas nenhuma dessas
justaposições me parece tão fecunda quanto a leitura, lado a lado, dos poemas
eróticos
de Dante Gabriel Rossetti e dos poemas da irmã, à sua maneira, às vezes
eróticos, mas sempre com algum diferencial.
Malgrado as aparências, ambos são poetas difíceis. A leitura cerrada é hoje
algo problemático: poucos querem (ou sabem) ensiná-la, e uma geração
influenciada por
estímulos visuais reluta em aprendê-la. Christina (recorro aos primeiros nomes,
para evitar a repetição do nome Rossetti) é mais contundente quando anula as
diferenças
entre poesia sagrada e profana:
Tudo passa, o Mundo diz, tudo passa: Beleza, juventude, dia a dia; Jamais há
vida sem interrupção.
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449
O olho embaça, grisalho está o cabelo, Sem ter ganho coroa ou laurel? Fecho na
primavera e broto em maio: Tu, raiz doente, tua decomposição Não renovarás sobre
o
meu seio. Então, respondi: Sim.
Tudo passa, minha Alma diz, tudo passa:
Com a carga de medo e de esperança,
De labor e lazer, ouve o passado:
Ferrugem em teu ouro, traça em teu traje,
Teu broto tem praga, a folha apodrece.
A meia-noite, ao alvorecer, um dia,
Eis que surge o Noivo, e sem demora;
Fica atenta e reza.
t
Então, respondi: Sim.
Tudo passa, meu Deus diz, tudo passa:
O inverno passa, após longa demora;
Novas uvas na vinha, novos figos,
*
Aves chamam aves no Céu de maio.
Demoro, mas espera-me, confia,
Observa e reza. Levanta, é dia,
Amor, irmã, esposa, então direi.
Então, respondi: Sim.
Essas estrofes compõem a terceira das "Velhas e Novas Cançonetas de Ano-novo",
mas são muito superiores às outras duas. Hesito em chamar Christina de mística,
outra Teresa ou João da Cruz, porque a ênfase obsessiva de sua poesia, tanto
quanto a de Dante Gabriel, sempre recai sobre o Inferno do amor carnal. Apesar
da investigação
dos biógrafos, Christina conseguiu guardar seus segredos. Pouco sabemos sobre
sua "vida amorosa", expressão paradoxal para muitas pessoas, certamente para o
irmão
mais velho de Christina. Ela recusou ao menos duas propostas de casamento,
segundo consta, por motivos religiosos, mas suspeito que o orgulho e a
independência tenham
determinado a sua condição de solteira, bem como a visão que tinha de si mesma
na condição de escritora. Os trabalhos de cunho religioso, escritos,
tardiamente,
em prosa, conquista-ram-lhe muitos leitores, evidentemente, do sexo feminino.
"Tudo Passa" (assim intitularei o poema) é sumamente pessoal, extraordinária despedida dos 20 anos da
poeta, escrita no último dia da década de 1850. O leitor pode declamar "Tudo
Passa",
em voz alta, inúmeras vezes (conforme recomendo), antes de perceber a maestria
de Christina no controle da sonoridade desses 28 versos. A modulação de "dia a
dia",
passando por "um dia", chegando a "Levanta, é dia", deixa transparecer um
triunfalismo estático, pois o dia em que (na visão popular) a poeta deixa de ser
jovem
coincide com uma transfigurante renúncia ao mundo. Em 1860, Christina não tinha
"ganho coroa ou laurel", e muito se preocupava com a reputação de poeta,
preocupação
posta de lado pela bela aplicação que fez Christina da parábola de Cristo a
respeito das virgens sábias e tolas: "Atentai, pois não sabeis o dia ou a hora
em que
há de vir o Filho do homem." A maior parte da estrofe final se remete ao Cântico
de Salomão:
Veja: o inverno já passou! Olhe: a chuva já se foi! As flores florescem na
terra, o tempo da poda vem vindo, e o canto da rola já se ouve em nosso campo...
Levante-se,
minha amada, formosa minha, e venha a mim!1
A dificuldade característica à obra de Christina, i.e., a fusão sumamente
individual que ela realiza entre o sagrado e o profano, é bastante distinta da
dificuldade
inerente à arte pré-rafaelita, observada na obra do irmão. O próprio termo "prérafaelita" já é confuso, sendo mais proveitoso pensar o movimento como renovada
expressão
do Romantismo, transição entre a influência de Keats em Tennyson, e de Shelley
em Browning, e o advento do esteticismo de Walter Pater e Oscar Wilde. Dante
Gabriel
Rossetti, decerto o epítome do poeta pré-rafaelita, constitui eterno paradoxo
poético. Embora afirmasse a própria sensualidade - Elizabeth Siddal, Fanny
Cornforth,
Annie Miller, a Sra. William Morris (Jane Burden) -, ele escreve uma poesia que
rejeita a natureza, em favor de algo que há de ser chamado de fantasmagoria. Ao
longo
de toda a principal série de sonetos de sua autoria, A Casa da Vida, não temos
como saber se estamos em um cenário natural, relembrado, ou em um Inferno
antinatural,
luxuoso, opressivo e fantástico, e que não exemplifica qualquer esquema de
julgamento moral ou religioso:
Da primeira mulher de Adão, Lilith (Feiticeira que ele amou antes de Eva), Dizse que, antes da serpente, a sua língua Já iludia, e que seus cabelos encantados
Foram
o primeiro ouro. E sendo jovem,
1 Bíblia Sagrada. Edição Pastoral. São Paulo: Paulinas, 1990, pp. 872-73. [N. do
T.]
450
451
Enquanto a terra é velha, e a contempla, Atrai homens a ver a rede que ela tece,
Até coração, corpo e vida ali serem pegos. Rosa e papoula são suas flores; onde
Está o homem, Ó Lilith, que escapa Do perfume e dos beijos e do torpor doce? Vê!
Se ardeu ante o teu, o olhar do jovem Foi por ti enfeitiçado, a ti voltando-se,
Ao peito um fio de cabelo dourado.
Os versos anteriores descrevem o retrato que Dante Gabriel pintou de Fanny
Corn-forth como Lilith, primeira esposa de Adão, que o abandonou (segundo a
Cabala)
porque ela não mais aceitava ficar na posição inferior durante o ato sexual. O
historiador da arte George Hersey comenta, em tom mordaz, os retratos femininos
pintados
por Rossetti, tardiamente, após o suicídio da esposa, Elizabeth (Lizzie) Siddal:
Em feições e físico, essas mulheres pintadas tardiamente são tão diferentes de
Lizzie quanto parecidas entre si - deusas fortes, poderosas, suculentas, ao
invés
de virgens definhadas. No entanto, as mulheres desses retratos estão mortas rígidas e de olhar parado, a despeito da farta sensualidade. Coroadas de flores,
recostadas
em espaços rasos, trazendo nas mãos lembranças que, tipicamente, levariam
consigo para o túmulo, mais parecem belos cadáveres estirados em esquifes
abertos.
A rede de Lilith são seus próprios cabelos dourados, serpentes mortais na
visão do idólatra de fetiches, Dante Gabriel. Por rotas inversas, irmão e irmã
alcançam
a mesma visão de plenitude sexual: morte em vida, ou Inferno. Ambos os poetas
têm a mesma convicção infeliz de que o amor entre homem e mulher é fundamentado
em
traição mútua, ideia nada romântica. Que tipo, então, de ideia será? Não parece
se tratar de renúncia, seja por parte do desesperado Dante Gabriel ou da
contemplativa
Christina. Nenhum dos dois é sadomasoquista, embora as obras Mercado de Gnomos e
"Da Casa ao Lar", de autoria de Christina, tenham sido interpretadas como tal, e
poucos poemas sejam tão extremos quanto o "fragmento" assustador, escrito por
Dante Gabriel e intitulado "A Cova do Pomar":
Empilhados sob galhos da macieira, Deitam-se tendo em mãos maçãs mordidas:
Alguns são tão-somente velhos ossos,
Alguns tinham navios já lançados, E alguns já foram até donos de terras.
E no vale, em meio às macieiras, Acima da cova escondida, ela fica, De lá sempre
cantando, ela que ofertou Aos do vale o seu momento de paz, E as maçãs que
trazem
em suas mãos.
Assim vejo em meus sonhos; seus cabelos Roçam meus lábios e meu sopro cálido;
Seu canto abre no ar asas douradas, Olhos da Vida brilham em sua bela fronte, E
em
seu seio os graves olhos da Morte.
Dizem-me que o sono tem muitos sonhos, Mas sonho eu conheço apenas um: De um
leito seco, outrora do riacho, Ergue-se o vale; em sonho faz lembrar O local que
acordado
bem conheço.
Chamo-a de amada, e bem ela me quer; Mas amo-a qual a pedra que, na taça Em
remoinho, ama a folha apegada Que com ela em círculos percorre, E que este
turbilhão
há de engolir.
Poucos casos de amor extraconjugais devem ter sido tão penosos, para todas as
partes envolvidas, como o romance entre Dante Gabriel Rossetti e Jane Burden
Morris,
figura que aparece nesse fragmento como Perséfone, Rainha do Inferno, vampira
muito mais assustadora do que as noivas do Drácula de Bram Stoker. Conforme
quase sempre
ocorre com os poemas de Dante Gabriel, "A Cova do Pomar" é meticulosamente
elaborado. Em se tratando de uma poesia erótica tão amarga, os versos apresentam
uma frieza
bastante lúcida, na denúncia que fazem de Jane Burden, personalidade indómita. O
que Christina achava de tudo isso, jamais saberemos, mas a sua visão do Inferno
de Eros é bastante djversa. Os críticos ressaltam, corretamente, que não há
seres humanos do sexo masculino em Mercado de Gnomos- apenas gnomos do sexo
masculino.
452
453
Causa bastante estranheza o fato de, atualmente, ambos os Rossetti parecerem
(a leitores desavisados) tão domesticados, pois, como poetas, tanto a irmã
quanto
o irmão, quanto mais reflito sobre o seu trabalho, assustam-me. Christina não
cede à autodestruição de Dante Gabriel: a natureza da sua fé cristã,
extremamente intelectualizada,
constituía-lhe uma salvação. Entretanto, não é crença de fácil entendimento, a
despeito do credo ou ceticismo daquele que a examina. Eis o extraordinário
"Morro
Acima", poema que tanto amei, embora o interpretasse erroneamente durante muitos
anos:
A estrada é tortuosa morro acima? Sim, até o fjnal.
A jornada demora um dia inteiro? Da manhã à noite, amigo.
Mas há onde se possa pernoitar? Teto p'ra quando chegar a hora escura. As trevas
não o escondem dos meus olhos? Não deixarás de ver a estalagem.
Hei de encontrar viajantes noturnos? Os que partiram antes. Devo bater, chamar
quando chegar? Não vão deixar-te à porta.
Abrigam-me, estando cansado e fraco? Verás que os cuidados somarão. Há camas
para mim e os que buscam? Sim, camas para todos que vierem.
Jerome McGann foi o primeiro a apontar a estranheza desses dois versos finais,
que podem parecer uma paródia grotesca da esperança cristã, até que se perceba como ele demonstra - que Christina é adepta da excêntrica doutrina adventista
conhecida como "Sono da Alma". O que transcorre com a alma cristã, entre o
momento
da morte e o grande Advento da Segunda Vinda de Cristo? A alma prossegue,
diretamente, ao Juízo Final, e aguarda no Paraíso, com toda a paciência, até que
o Corpo
Ressuscitado venha juntar-se a ela? Ou dorme um longo sono, até ser acordada,
para sempre, no Milénio? Christina defendia, com firmeza, essa última ideia,
convicção
que norteia não apenas Morro Acima", mas uma fração considerável dos seus poemas
mais interessantes.
Afasto-me (com gratidão) do historicismo muito bem informado de McGann, propondo
que a noção do "Sono da Alma" propiciava a Christina a esperança de que o irmão
mais velho, carismático e autodestrutivo, escapasse do seu inferno erótico
durante o longo torpor que precede a ressurreição. O último livro religioso
escrito por
Christina _ The Face ofthe Deep (1892) - expressa o comentário menos crítico do
apocalipse de São João, o Divino de que tenho conhecimento. Concluindo, refirome
à encantadora lembrança, o poema "A Casa de Dante Gabriel Rossetti", também
publicado em 1892, dois anos antes da morte da poeta. Christina relembra o grupo
maravilhoso
de amigos e criaturas que cercavam seu irmão, na casa localizada em Cheyne Walk,
em Londres, incluindo Algemon Swinburne, George Meredith, uma coruja chamada
Bobby
e um coala chamado McGregor, e os contempla como em uma cena de Lewis Carroll:
Com tais habitantes, a Casa Tudor e adjacências tornaram-se uma espécie de país
das maravilhas e, certa vez, o autor de País das Maravilhas fotografou-nos no
jardim.
É alentador imaginar aquele momento, no outono de 1863, em que o Reverendo
Charles Dodgson fotografou os Rossetti e entourage no jardim de Dante Gabriel.
Depois
de tanto sofrimento erótico, é um conforto pensar em Alice e no Snark.
454
455
WALTER PATER
*mú ímt£ CÍ&
WALTER PATER
O tipo de génio de Botticelli se apropria dos dados que o precederam, como
expoente de ideias, estados de espírito e visões próprias (...).
Mas está longe de aceitar a ortodoxia convencional de Dante, que, ao reduzir
toda ação humana à fórmula simplificada de purgatório, céu e inferno, confere à
profunda
poesia desse mesmo poeta um elemento insolúvel de prosa (...).
Um de seus" quadros (...) representa a espécie humana como encarnação dos
anjos que, insurgindo-se contra Lúcifer, não apoiavam nem Javé nem seus inimigos
(...).
(...) o sentimento peculiar, que ele empresta a seus personagens profanos e
sagrados, graciosos e, de certo modo, angelicais, embora apresentem um aspecto
de
deslocamento, ou perda - a melancolia dos exilados (...)
Portanto, aquilo que Dante despreza, como indigno do céu e do inferno,
Botticelli aceita, o caminho do meio, no qual os homens, em se tratando de
grandes conflitos,
não tomam partido, evitam grandes decisões e fazem grandes recusas.
O ensaio de Walter Pater sobre Sandro Botticelli, na obra A Renascença, sem
sombra de dúvida, mais configura um auto-retrato espiritual e estético do que
uma representação
de Botticelli. Supõe-se que a visão de Pater, em A Renascença, tanto quanto a de
Yeats, que o seguiu, é de uma Unidade de Ser perdida, redescoberta na renascença
italiana e prefigurada no Romatismo britânico, que via a si mesmo como uma
renascença da Renascença elisabetana, da época de Shakespeare e seus
contemporâneos. A
epígrafe de A Renascença sugere, sutilmente, o projeto de Pater, de salvar a
percepção estética britânica da moralidade e da religião vitorianas:
Enquanto vocês repousavam nos apriscos, As pombas batiam suas asas prateadas,
Destilando ouro de suas plumas.2
-Salmo 68:14
Henry James conhecia muito bem a Bíblia, mas o uso subversivo que Pater fez
dessa eloquente profecia pode ter afetado a escolha do título do romance As Asas
da Pomba,
de lames. O génio de Pater caracterizava-se por uma sutileza vacilante, evasiva,
mas
e, ng0 obstante, levou-o a efetuar a separação entre experiência estética e o
ethos moral da cultura vitoriana. A grandeza de Pater é laicizar a epifania
religiosa,
deslocamento que levaria tantos a segui-lo: Wilde, Yeats, Joyce, Virgínia Woolf
e talvez todas as figuras do Alto Modernismo.
2 Bíblia Sagrada, op.cit., pp. 741-42. [N. do T.]
456
457
WALTER PATER
(1839-1894)
A. C. Benson, em breve biografia, intitulada Walter Pater (1906), contribuiu
para o processo de transmissão da tradição oral a respeito do recluso graduado
de
Oxford. Sempre me fascina a visão do sublime Walter Pater caminhando pelos
prados de Oxford, no frescor da noite, resmungando que o perfume doce da ulmária
causava-lhe
mal-estar: "É falha da natureza, na Inglaterra, ser tão excessiva." A este,
associo outro resmungo deliciosg: "Gostaria que não me chamassem de hedonista.
Causa
impressão tão errónea nos que não sabem grego."
O hedonismo, que promove a identificação entre o prazeroso e o bom,
fundamenta-se na palavra grega que significa "prazer", e adquiriu, como aura, o
sentido da
busca da sensação como um fim em si mesmo. Pater sabia que não podia emprestar a
"hedonismo" uma boa reputação, mas ficou um tanto atónito quando "esteta" também
alcançou condição duvidosa, a partir da opereta Patience, de Gilbert e Sullivan.
O sentido moderno que atribuímos à palavra "estético" tem origem em Pater,
remontando
ao conceito do "crítico estético" que consta do prefácio de seu livro mais
célebre, A Renascença (1873), e à classificação da obra de Dante Gabriel
Rossetti e William
Morris como "poesia estética", no livro Apreciação (1889). Esquecemos o que
Pater tentou nos ensinar: o aisthetes grego é "aquele que percebe". O "crítico
estético"
é, simplesmente, o crítico bom, perceptivo, e "poesia estética" é a melhor, a
mais autêntica, mais pessoal.
Pater estará para sempre relacionado ao chamado Esteticismo inglês (circa
1870-1900), movimento que reunia o pintor norte-americano, expatriado, James
Whistler,
o poeta Swinburne, e os seguidores de Pater, inclusive Oscar Wilde, Aubrey
Beardsley e William Butler Yeats. Mas a influência de Pater, tão sinuosa quanto
perpétua,
é difícil de ser mapeada. Yeats e James Joyce admitiam-na, e a mesma permeia
Virgínia Woolf, Eliot e Pound, que depreciava Pater, sendo forte também em
Wallace Stevens
e Hart Crane. Perry Meisel, no livro The Cowboy and the Dandy: Crossing Over
from Ro-manticism to Rock and Roll (1999), é convincente ao atribuir a Pater a
formulação
crucial do "sublime psicodélico", que nos é tão familiar, desde o final dos anos
60.
Na célebre "Conclusão" de A Renascença, suprimida da segunda edição do livro,
e resgatada a partir da terceira (embora com a atenuação das implicações
anticristãs),
o sublime psicodélico de Pater é intensificado pela cadência obstinada da prosa,
escrita no estilo de devaneio, complexo, reticente, barroco, tão bem imitado por
Yeats em Per Arnica Silentia Lunae. Eis o génio de Walter Pater, naquilo que tem
de mais instigante:
Ou se iniciarmos com o mundo interior, do pensamento e da emoção, o torvelinho é
ainda mais veloz, a chama mais ávida e devoradora. Já não se constata o
obscurecimento
gradual da visão, o esmaecimento da cor da parede - o movimento da maré, quando
as águas refluem, embora pareçam paradas -, mas o fluxo rápido, típico do meio
da
corrente, o rumo dos atos momentâneos da visão, paixão e pensamento. À primeira
vista, a experiência parece nos soterrar em uma montanha de objetos externos,
que
a nós se impõem como uma realidade aguda e desconfortável, incitando-nos a nos
abrir em milhares de tipos de ações. Mas, quando a reflexão começa a operar
sobre
esses objetos, estes se dissipam sob a influência daquela; a força coesiva
parece suspensa, como um passe de mágica; cada objeto se isola, reunindo um
conjunto de
impressões - cor, odor, textura -na mente do observador. E, se continuarmos a
refletir sobre esse mundo, não sobre os objetos, nem sobre a solidez de que são
investidos
pela linguagem, mas sobre as impressões instáveis, vacilantes, inconsistentes,
que entram em combustão e se extinguem com a nossa consciência das mesmas, tal
mundo
se contrai ainda mais; todo o escopo de observação é reduzido à câmara estreita
da mente individual. A experiência, já diminuída a um enxame de impressões, fica
protegida pela parede espessa da personalidade individual, que voz alguma é
capaz de atravessar a fim de que seja por nós ouvida, e que nos permite tãosomente conjecturar
o que existe do outro lado. Cada uma dessas impressões é a de um indivíduo
isolado, cada mente mantendo como prisioneiro solitário o seu próprio sonho do
mundo.
A análise vai um passo adiante, e nos garante que as impressões da mente
individual, a qual, para cada um de nós, se reduz à experiência, encontram-se em
fuga perpétua;
que cada uma delas é limitada pelo tempo e que, sendo o tempo infinitamente
divisível, cada uma delas é também infinitamente divisível, uma vez que tudo o
que é
real no tempo se reduz a um único momento, que se vai enquanto tentamos
apreendê-lo, do qual é sempre mais verdadeiro dizer que já não existe do que
afirmar o contrário.
Com esse filete trémulo - constantemente se transformando em meio à torrente, a
uma única impressão marcante, dotada de sentido, uma relíquia mais ou menos
fugidia,
desses momentos que já se foram -o que existe de real em nossa vida se afina. E
com esse movimento, com a passagem e dissolução de impressões, imagens e
sensações,
que a análise cessa - com essa evanescência contínua, esse perpétuo fiar e
desfiar de nós mesmos.
A coerência da nossa consciência individual é uma afirmação contra o fluxo das
sensações: caso contrário, ficaríamos dissolvidos em um êxtase de indiferença.
Todavia,
essa coerência é uma espécie de hábito que adotamos a fim de estabelecer um eu
contínuo: a
458
459
nossa identidade é uma ficção desesperadora. Pater, materialista lucreciano, com
grande ousadia, conclama o êxtase sobre a identidade, em renovada rapsódia:
A cada momento, alguma forma se torna perfeita, em mão pu rosto; alguma
tonalidade dos morros ou do mar supera as demais; algum estado de espírito,
decorrente
de paixão, percepção ou entusiasmo intelectual, torna-se, irresistivelmente,
real e atraente para nós - apenas naquele momento (...).
Não o fruto da experiência, mas a experiência em si é o objetivo. Apenas um
número limitado de pulsações nos é concedido para uma vida diversificada,
dramática.
Como podemos ver em tais pulsações tudo o que pode ser visto pelos sentidos mais
apurados? Como migrar, rapidamente, de um ponto ao outro, e estar sempre
presente
no foco onde o número mais elevado de forças vitais se unem para formar a
energia mais pura?
Sempre arder, nessa chama firme, preciosa, sempre suster esse êxtase, é o
sucesso na vida (...). Enquanto tudo derrete sob nossos pés, podemos muito bem
nos agarrar
a alguma paixão singular, ou a alguma contribuição para o conhecimento que
parece, através de um horizonte elevado, libertar, momentaneamente, o espírito,
ou a qualquer
comoção dos sentidos, pigmentos estranhos, cores estranhas, odores curiosos, ou
à obra realizada pelas mãos do artista, ou ao rosto de um amigo. Não distinguir,
em cada momento, uma atitude apaixonada naqueles que nos cercam, e não ver no
brilho dos seus talentos algum trágico divisor de forças, neste dia curto de
geada
e sol, é dormir antes do anoitecer.
A "chama firme, preciosa" é o princípio do fogo, no sombrio Heraclito: a
essência da vida. Trata-se de um sermão anestesiante, mas, em todo caso, é um
sermão:
nasce a religião da arte, uma religião que nega a imortalidade, e oferece apenas
o êxtase do efémero:
dispomos de um intervalo e, então, o nosso lugar não mais nos reconhece (...); a
nossa única chance é expandir esse intervalo, garantir o maior número possível
de
pulsações dentro do período de tempo alocado.
Tanto quanto Yeats, mais tarde, Pater deslumbrou-se com a noção de Blake, da
"pulsação de uma artéria (...), em que o trabalho do poeta é realizado". Nesse
aspecto,
Pater fica bastante próximo de algo que Yeats, figura mais oculta, chamaria
"Condição do Fogo", mas, sobre o epicurista Pater, o oculto não exercia apelo.
Ambos
buscavam o momento espiritual, quando o privilégio do génio consumiria em fogo
as superfícies aparentes e revelaria o cristal da forma perfeita, da expressão
inescapável.
Estilo, para
Pater, é o teste da percepção, comprometendo-o com a estética da sentença única,
por mais elaborada e extensa que seja.
No entanto, para Pater, um poema, ou qualquer outra obra literária, é uma
pessoa, um homem ou mulher de cristal, eterna revelação. Seu génio crítico, fora
de moda
em nossas autodestrutivas academias de instrução, a meu ver, torna-se
extremamente útil nos dias de hoje, quando se prepara para encontrar pessoas,
seja em Shakespeare
ou Flaubert. O devaneio fabuloso, ou poema em prosa, escrito por Pater sobre a
Mona Lisa de Da Vinci, sempre causa grande impacto, pois, decerto, deparamo-nos
com
uma pessoa, embora ela se pareça mais com Jane Burden Morris, de Dante Gabriel
Rossetti, ou com Maud Gonne, de Yeats (conforme percebidas por esses poetas
apaixonados),
do que com o retrato de Da Vinci:
A presença que surge, estranhamente, à beira da água expressa aquilo que os
homens desejavam havia mil anos. Sobre o seu rosto "convergem todos os
propósitos do
mundo", e as pálpebras estão um pouco cansadas. E uma beleza engendrada por
dentro, sobre a carne; é o depósito, célula por célula, de pensamentos
estranhos, devaneios
fantásticos e paixões primorosas. Posicionada ao lado de uma daquelas deusas
gregas brancas, belas mulheres da Antiguidade, estas ficariam perturbadas diante
de
tamanha beleza, que absorveu a alma, com todas as suas mazelas! Todas as ideias
e experiências do mundo estão ali gravadas e moldadas, com toda a força de que
dispõem
para refinar e tornar expressiva a forma exterior, o animalismo da Grécia, a
luxúria de Roma, o devaneio da Idade Média, com sua ambição espiritual e amor
criativo,
a volta do mundo pagão, os pecados dos Borgia. É mais antiga do que as rochas
que a cercam; tanto quanto o vampiro, ela morreu várias vezes, e aprendeu os
segredos
do túmulo; sondou as profundezas do oceano, e negociou tecidos exóticos com
mercadores do Oriente; na condição de Leda, foi mãe de Helena de Tróia, e no
papel de
Santa Ana, foi mãe de Maria; e tudo isso é para ela como o som da lira e da
flauta, e vive apenas na delicadeza com que moldou os traços faciais, coloriu as
pálpebras
e as mãos. A magia da vida perpétua, acumulando dez mil experiências, é antiga,
e o pensamento moderno concebe a ideia de humanidade como se fosse criada (e
resumisse)
todas as modalidades de pensamento e vida. Certamente, Lisa pode simbolizar a
encarnação dessa antiga magia, o emblema da ideia moderna.
Na Primeira Carta aos Coríntios, em 10:11, São Paulo nos adverte com relação à
idolatria:
460
461
Estas coisas lhes aconteceram para servir de exemplo e foram escritas para a
nossa instrução, nós que fomos atingidos pelo fim dos tempos.3
Se as pálpebras de Lisa estão um pouco cansadas, a avaliação paulina exerce
sobre ela apenas um efeito irónico, pois Lisa subverte as categorias cristãs de
julgamento
moral. Freud via na Mona Lisa uma defesa de Da Vinci contra o amor irresistível
pela mãe, identificando-se com ela inteiramente, e, portanto, amando meninos, a
sua
própria imagem, assim como ela o amara. O homoerotismo de Pater jamais se torna
explícito, mas ele, nitidamente, deseja e receia a musa (aos 14 anos, Pater
perdeu
a mãe), nesta que é a maior de suas epifanias, o momento privilegiado em que
confronta uma deusa. Yeats observou, com perspicácia, que a Lisa de Pater
encarna a
doutrina de que "o indivíduo é nada", o que não constitui consolo a um poeta
romântico. Mas essa deusa é um vampiro, o que não constitui consolo a quem quer
que
seja. Algo que faz troça de Pater transparece nessa visão: devemos supor que se
trata da deusa da experiência estética?
Refletindo sobre o génio de Platão, Pater destaca, mais uma vez, a relação
entre sabedoria e personalidade:
Para ele, deveras (segundo a sua visão de o que constituiria a forma mais
elevada do saber), todo saber era como conhecer uma pessoa. O próprio Diálogo,
sendo o
que é, a principal criação de sua arte literária, torna-se, em suas mãos, e pelo
modo magistral com que ele o conduz, semelhante a um ser vivo.
Walter Pater concluiu a tradição romântica, em meio ao que ele bem sabia se
tornara o mundo de Charles Darwin. Assim como o discípulo que ora escreve este
livro,
Pater desconfiava do historicismo, que tudo pode explicar, exceto o génio
individual. O mundo de Darwin tornou-se o mundo do genoma, e talvez possamos ser
programados
a fim de evitar grande parte do nosso sofrimento - talvez, não. Pater ensina a
percepção; talvez a engenharia genética crie novas formas de percepção - talvez,
não.
O valor de Pater, ao menos por enquanto, continua sendo a sua visão de génio
literário, ou a percepção singular de que dispõem os indivíduos singulares.
HUGO VON HOFMANNSTHAL
DOUTOR. Como vos sentis, Majestade? Dai-me motivos para
renovadas esperanças.
SIGISMUNDO. Abandonai-as. Estou bem demais.
- A Torre
T. S. Eliot admirava A Torre mais do que qualquer outra peça de Hofmannsthal,
observando que essa peça em prosa era, essencialmente, poesia dramática. De 1918
a 1927, Hofmannsthal trabalhou o texto da peça, cuja composição fora iniciada em
1902, como adaptação de A Vida é Sonho, texto dramático do dramaturgo barroco
espanhol,
Calderón. A Torre existe em duas versões finais, alternativas, a primeira sendo
a mais visionária e mais fiel à consciência dividida e complexa de Hofmannsthal.
Hofmannsthal abandonou a poesia lírica, na qual o seu génio era absoluto, na
expectativa de se tornar o grande dramaturgo de Viena, no período de declínio
após
a Primeira Guerra Mundial. É uma amarga ironia que a celebridade de Hofmannsthal
tenha se consolidado a partir de seu trabalho de libretista de Richard Strauss,
especialmente em Der Rosenkavalier. Freud, ensaísta moral do século XX, o
Montaigne do século, transcendeu Viena. Hofmannsthal, cujo génio era deveras
transcendental,
é hoje lembrado como sobrevivente do rococó, injustiça absurda.
Hofmannsthal não pode ser descartado, tampouco relegado à esfera do
entretenimento straussiano, porquanto a sua busca, partindo do esteticismo e
chegando a uma
espécie de cristianismo neoplatônico, é paradigma de grande parte da literatura
ocidental do século XX. A afinidade com T. S. Eliot é básica, conquanto a
imaginação
de Hofmannsthal seja mais universal. Hofmannsthal encarnou a morte de uma
cultura antiga - da Viena imperial - e rejeitou qualquer ideologia que tentasse
substituí-la.
Prefiro Hofmannsthal ao reducionismo marxista de Bertolt Brecht. Ademais, embora
Hofmannsthal adaptasse livremente, era ele próprio o autor das adaptações.
Aumentam
as provas de que as imitações autênticas atribuídas a Brecht eram de autoria de
mulheres geniais que o cercavam, de quem ele roubou a maior parte da marca hoje
conhecida
por "Brecht".
3 A Bíblia de Jerusalém, op. cit, p. 464. [N. do TJ
462
463 HUGO VON HOFMANNSTHAL
(1874-1929)
Hofmannsthal é muito apreciado por dezenas de milhares de frequentadores da
ópera que o conhecem apenas como libretista de Richard Strauss, especialmente em
Der
Rosenkavalier (1911). Trata-se de um destino curioso, para um génio tão complexo
quanto o de Hofmannsthal: poeta, dramaturgo, ensaísta, contista, acima de tudo,
um escritor que tentou viver "na" literatura, mas fora das concepções
existentes. Hofmannsthal é figura-chave da cultura do Império Austro-húngaro,
que já se encontrava
em crise muito antes do final do Estado Habsburgo, em 1918. Tendo sido
intensamente fecunda em sua fase final, a referida cultura vienense exerce
permanente atração
sobre críticos e historiadores. Entre os escritores que nela amaram incluem-se
Freud, Hofmannsthal, Rilke, Stefan George, Musil, Schnitzler e Broch, e os
compositores
Bruckner, Mahler, Schõnberg, Alban Berg e Webern. Se acrescentarmos Adolf Loos e
Otto Wagner, na arquitetura, e Kokoschka, Schiele e Klimt, na pintura, e
concluirmos
com o Círculo de Viena e Wittgenstein, na filosofia, o quadro começa até a
parecer excessivo, embora eu tenha omitido escritores importantes, sem falar no
Dante
da era, Franz Kafka, em Praga. Meu desagrado quanto à abordagem teórica que
privilegia questões político-culturais baseia-se, francamente, na pobreza da
cultura
ocidental entre 1965 e 2000: por que se dar ao trabalho de explicar a literatura
através da sociedade, se ambas se encontram adulteradas por uma ignorância
agressiva
e ideólogos rancorosos? A Viena entre 1880 e 1918 é uma outra situação;
entretanto, hoje em dia nos é tão remota quanto a Alexandria do século II da Era
Comum, cultura
rica à qual tanto se assemelha.
Um livro excelente, Fin-de-Siècle Vienna: Politics and Culture, de Cari E.
Schors-ke (1980), que recomendo aos meus leitores, situa Hofmannsthal em seu
tempo.
A minha preocupação, como sempre, é mais limitada: como definir a singularidade
do génio de Hofmannsthal? Se tal génio não estivesse, assim como os de Freud e
Kafka,
acima e à frente do seu tempo, o mesmo teria importância apenas para estudiosos.
Existe em Hofmannsthal um vigor que prevalece, e o autor merece ter importância
para leitores cultos, assim como para amantes das óperas de Richard Strauss. Em
língua inglesa, a melhor edição de Hofmannsthal são os três volumes Selected
Writings:
Selected Prose (1952), Poems and Verse Plays (1961) e Selected Plays and
Libretti (1963). Há também o estudo de Hermann Broch, ambivalente, mas marcante,
Hugo von Hofmannsthal and His Time, traduzido por Michael Steinberg, e as
excelentes introduções escritas por Michael Hamburger, ao volume de Selected
Writings.
O leitor deve iniciar a leitura com a prosa de Hofmannsthal, especialmente a
célebre "Carta de Lorde Chandos" (1902), escrita quando o poeta estava com 26 ou
27
anos, cerca de dois anos após haver abandonado a composição de poesia lírica,
quase toda da mais alta qualidade. Lorde Chandos é um jovem poeta e nobre
elisabetano,
figura imaginária, também afastada da literatura há dois anos, que escreve ao
amigo mais velho, o filósofo e estadista Francis Bacon, explicando-lhe o motivo
do
silêncio:
Sinto, com uma certeza que não está livre de um sentimento de pesar, que, nem no
próximo ano, nem no seguinte, nem em todos os anos desta minha vida, jamais
escreverei
um livro, seja em inglês ou latim: e isso por um motivo estranho e vexatório, o
qual delego à imensurável superioridade da sua mente a tarefa de situá-lo no
âmbito
dos valores físicos e espirituais dispostos, harmoniosamente, diante dos seus
olhos imparciais: ei-lo - porque o idioma em que talvez eu saiba não apenas
escrever
mas pensar não é latim ou inglês, nem italiano ou espanhol, mas um idioma do
qual não conheço uma só palavra, uma linguagem na qual os seres inanimados falam
comigo.
John Ruskin definira a poesia como "um homem a quem as coisas falam", e Chandos/Hofmannsthal aspira por essa condição impossível. Chandos, um tanto ou
quanto
insano, desiste da literatura; Hofmannsthal, frio e racional, renuncia à poesia
lírica, mas dedica-se à narrativa, ao drama, à prosa reflexiva. Contudo, houve
uma
perda; quando penso em Hofmannsthal, lembro-me da sinistra "Balada da Vida
Exterior":
Crianças crescem com olhos que indagam, Profundamente, e nada sabem; crescem E
morrem, e seguimos nossas rotas.
O fruto amargo aos poucos fica doce, E como ave morta despenca à noite, E por
alguns dias ali apodrece.
E sempre sopra o vento, e recitamos, E voltamos a ouvir frases já gastas, Nos
membros sentir langor ou prazer.
464
465
Vias correm p'Ia relva, aqui e ali Há locais de luz, lagos e arbustos, Alguns
ameaçam, outros são frios, nus...
Por que foram construídos? Diferenças Não menos numerosas que seus nomes? Por
que o riso agora, o choro, a doença?
Que benefício temos, e esses jogos,
Que, grandes e sozinhos, assim serão,
E embora os busquemos, fim não tenhamos?
P'ra ter visões, viajantes deixam lares? Porém, diz muito o que murmura "noite",
Palavra que exala pensamento e tristeza,
Qual mel puro e escuro de favos ocos.
Michael Hamburger observa, com precisão, que esses versos primorosos foram
escritos "do ponto de vista de um homem despertado de um sonho", o que reflete a
rejeição
de FalstafT, por parte de Henrique V: "Uma vez acordado, desprezo meu sonho."
Vêm-nos à mente (conforme, supõe-se, teria ocorrido com o erudito Hofmannsthal)
o lamento
do místico Meister Eckhart: "Estamos todos dormindo na vida exterior." Os seres
inanimados não nos falam, mas como Ruskin e Walter Pater teriam gostado desse
poema!
Aos 16 ou 17 anos, o jovem poeta Hofmannsthal já havia ido além do esteticis-mo,
mas fazendo uso de uma potência e melancolia (ainda inerentes ao esteticismo)
que
superavam qualquer dos seus contemporâneos mais velhos, fossem alemães,
franceses ou ingleses.
Ao renunciar a poesia lírica, Hofmannsthal voltou-se para os monólogos
dramáticos de Browning, destarte prefigurando posicionamentos similares em Ezra
Pound e
T. S. Eliot, embora para Hofmannsthal o monólogo fosse apenas uma estação
intermediária na jornada rumo à sua maior realização, o teatro. Tanto em verso
quanto em
prosa, a literatura dramática de Hofmannsthal é sempre poética, na tradição de
Calderón, dramaturgo do Século de Ouro espanhol.
Conforme ocorrera com Goethe, Hofmannsthal foi tão sábio que não tentaria
imitar Shakespeare: ambos, o poeta alemão e o austríaco, dispunham de todos os
talentos
literários, exceto o principal mistério shakespeariano: criar pessoas, e não
máscaras. Quando se lê ou se assiste a uma peça de Hofmannsthal, confronta-se uma arte de
gestos, e não de personalidades. Hofmannsthal assimilava o ator ao dançarino: a
fala
era secundária ao movimento. A personalidade, para Hofmannsthal, devia ser
universal, e não idiossincrática. Shakespeare teve a sabedoria de enxergar o
oposto: Hamlet,
FalstafT, Cleópatra e Iago propiciam interesse universal e permanente porque são
indivíduos absolutos. Ao fugir da asserção lírica do eu, Hofmannsthal perdeu
muito,
conforme se verifica em A Torre e O Homem Dificil suas peças principais. Se nós
e o mundo não somos coisas distintas, e se o eu é apenas uma metáfora, então, a
autonomia
dramática de Hamlet e de FalstafT seriam inviáveis. O génio de Shakespeare
participava da irracionalidade do cosmo, ao mesmo tempo em que povoava o palco
com homens
e mulheres, algo que Hofmannsthal não chega, na verdade, a fazer. Acreditar,
conforme Hofmannsthal (e o Lorde Chandos por ele criado), que nenhuma modalidade
de
esteticismo era capaz de suster representações individuais, é esquecer
Shakespeare (de quem, cabe registrar, Hofmannsthal estava plenamente ciente).
O romancista que Hofmannsthal mais admirava era Balzac, a quem se referia como
"uma imaginação vasta, indescritivelmente substanciosa, a maior e mais criativa
imaginação desde Shakespeare". Balzac, Hofmannsthal afirma, é mais imediato,
mais acessível do que Shakespeare e Goethe: "é a alucinação mais completa e
multiarticulada
que já existiu". Tais palavras expressam uma introdução adequada ao diálogo de
Hofmannsthal, "Sobre Personagens em Romances e Peças Teatrais", cujo subtítulo é
"Um
diálogo imaginário entre Balzac e Hammer-Purgstall, o orientalista, em um jardim
perto de Viena, em 1842", escrito logo após a carta de "Chandos". Quando Hammer
exorta Balzac a escrever para o palco, o romancista responde: "Não acredito na
existência de personagens. Shakespeare acreditava. Era dramaturgo."
Em contrapartida, esse Balzac se associa a Goethe, como magos que criam
demónios e os chamam de personagens. Hofmannsthal, na maioria de suas peças, é o
terceiro
mago. Cria figuras obsessivas, ideias e loucuras, pois linguagem e
individualidade não podem ser reconciliadas. É triste ironia que um génio tão
abrangente, que
deveria ter sido um novo Goethe, esteja fadado a sobreviver, em primeiro lugar,
como libretista de Richard Strauss, como o foi Lorenzo da Ponte para Mozart,
figura
estimável, mas que não era nenhum Goethe: Hofmannsthal abandonou o génio lírico
e deixou um romance promissor - Andreas - inacabado. Escreveu alguns contos, um
dos
quais, "O Conto da Cavalaria", é digno de Kleist ou Kafka. Os ensaios são muitas
vezes brilhantes, como se fossem subdivisões de um mundo. Chego a crer que
Hofmannsthal,
ao renunciar a lírica e à narrativa em favor do teatro, tenha causado danos ao
seu próprio génio. Ibsen e Pirandello, Brecht e Beckett pertencem ao teatro:
encontramos
Hofmannsthal no tea466
467
tro apenas na ópera de Strauss. Na qualidade de dramaturgo, mantém-se na
periferia, ao lado de Yeats, Claudel e Eliot.
Entretanto, Hofmannsthal, em uma escala drasticamente diversa, não difere de
Goethe. Hamburger, corretamente, associa os propósitos dos dois autores:
estender uma visão essencialmente pessoal e esotérica às esferas mais diversas,
romper divisões e especializações estabelecidas, determinar relações por toda
parte,
e não produzir obras, mas literatura.
Essa comparação encerra, implicitamente, uma melancolia, neste momento em que
se inicia o século XXI e temos sérias dúvidas de que algum escritor volte um dia
a produzir literatura.
LUSTRO 12
Victor Hugo, Gérard de Nerval, Charles Baudelaire, Arthur Rimbaud, Paul Valéry
s principais poetas românticos franceses formam um Lustro de Tiferet bastante
especial. Victor Hugo é hoje em dia conhecido como romancista, mas é o poeta da
Literatura
Francesa, o mais ambicioso. A exemplo de Balzac, na verdade, ainda mais do que
este, Victor Hugo pode ser visto mais como um demiurgo, um semideus, do que como
humano,
tamanha era a profusão da sua energia criativa.
O gnóstico romântico Nerval, tanto quanto Victor Hugo, parece mais à vontade
na companhia de visionários, e.g., Blake e Shelley, do que na tradição poética
francesa,
que alcançou uma espécie de epifania lúgubre em Baudelaire, frequentemente
considerado o primeiro poeta "moderno", papel que cabe melhor ao adolescente
Arthur Rimbaud,
que abandonou a literatura (bastante revoltado), por uma vida de aventuras na
África.
Paul Valéry, discípulo do poeta Stephane Mallarmé, foi o intelectual mais
inteligente e bem-sucedido da França, no século XX. Tal afirmação pode até ficar
aquém
do papel central exercido por Valéry na poesia moderna, em que a sua presença
nos auxilia a situar ilustres admiradores de sua obra, como Rilke, Eliot e
Stevens.
468
469
VICTOR HUGO
Que ao menos este livro, esta mensagem, alcance O silêncio como um murmúrio,
O litoral como uma onda! Que ali chegue - suspiro ou lágrima! Que entre no
túmulo, em que juventude, alvorada, beijos, Orvalho, o riso da noiva,
Brilho e alegria já entraram - e com eles meu coração: Deveras, de lá jamais
voltou! E que seja Um canto de luto, brado de esperança que jamais mente, Som de
um
pálido adeus de lágrimas, sonho cujas asas Sentimos roçar levemente! Que ela
possa dizer: "Tem alguém aí - ouço um ruído!" Que ressoe no escuro como passadas
da
minha alma!" - "Para Quem Ficou na França"
Em 1843, aos 19 anos, Léopoldine, filha de Victor Hugo, morreu afogada, com o
marido, em um acidente naval. Em 1851, desafiando Napoleão III, Victor Hugo exilou-se,
estabelecendo residência nas Ilhas Normandas do Canal da Mancha (pertencentes à
Inglaterra), onde permaneceu até o advento da revolução contrária a Napoleão
III,
em 1870. Châtiments (castigos), obra que contém ataques frontais ao Imperador,
surgiu em 1853, sendo seguida por lamentos tardios pela perda de Léopoldine,
Contemplações,
em 1856, livro que tem como conclusão "Para Quem Ficou na França",
extraordinária elegia, um dos maiores poemas de Victor Hugo, bastante
representativo do seu génio.
É difícil para o titânico Victor Hugo se conter, e a renúncia extraordinária
que ele leva a termo nesse poema é bastante comovente. Impedido de fazer visitas