(PDF) 100 Autores Mais Criativos Da Historia Da Literatura - Harold Bloom.rtf, Os - Harold Bloom.pdf | Edivaldo Achao - Academia.edu
Este livro foi digitalizado e corrigido por Raimundo do Vale Lucas, entre janeiro e fevereiro de 2008, com a intenção de dar aos cegos a oportunidade de apreciarem mais uma manifestação do pensamento humano. HAROLD BLOOM GÊN IO ' Os 100 autores mais criativos da história da literatura Ah, se nosso Génio tivesse um pouco mais de génio! - Ralph Waldo Emerson, "Experiência" Tradução JOSÉ ROBERTO 0'SHEA Revisão MARTA M. 0'SHEA (c) 2002 by Harold Bloom Limited Liability Company Todos os direitos reservatios Título original Genius: a mosaic of one hundred exemplary creative minds Todos os direitos desta edição reservados à EDITORA OBJETIVA LTDA., rua Cosme Velho, 103 Rio de Janeiro - RJ - CEP 22241-090 Tel.: (21) 2556-7824 - Fax: (21) 2556-3322 www.objetiva.com.br Capa Silvia Ribeiro Revisão Renato Bittencourt Umberto de Figueiredo Editoração Eletrônica FUTURA Bloom, Harold Génio: Os 100 autores mais criativos da história da literatura/Harold Bloom. Rio de Janeiro : Objetiva, 2003 826 p. ISBN 85-7302-510-7 Tradução de: Genius 1. Literatura - Crítica. 2. Escritores - Crítica. I. Título CDD 801.9 A memória querida de Mirjana Kalezic * SUMÁRIO Prefácio 11 Sobre a organização do livro: génio e cabala 13 Lustros 19 Gnosticismo: A religião da literatura 21 Introdução: O que é génio? 23 Génio: Uma definição pessoal 35 I. Keter 39 Lustro 1: William Shakespeare, Miguel de Cervantes, Michel de Montaigne, John Milton, Leon Tolstoi 41 Lustro 2: Lucrécio, Virgílio, Santo Agostinho, Dante Alighíeri, Geoffrey Chaucer 95 II. Hokmah 137 Lustro 3: O Javista, Sócrates e Platão, São Paulo, Maomé 139 Lustro 4: Samuel Johnson, James Boswell, Johann Wolfgang von Goethe, Sigmund Freud, Thomas Mann 181 III. Binah 211 * Lustro 5: Friedrich Nietzsche, Sõren Kierkegaard, Franz Kafka, Mareei Proust, Samuel Beckett 213 Lustro 6: Molière, Henrik Ibsen, Anton Tchekhov, Oscar Wilde, Luigi Pirandello 245 Hesed 275 Lustro 7: John Donne, Alexander Pope, Jonathan Swift, Jane Austen, Lady Murasaki 277 Lustro 8: Nadianiel Hawthorne, Herman Melville, Charlotte Bronte, Emily Jane Bronte, Virgínia Woolf 315 Din 349 Lustro 9: Ralph Waldo Emerson, Emily Dickinson, Robert Frost, Wallace Stevens, T. S. Eliot 351 Lustro 10: William Wordsworth, Percy Bysshe Shelley, John Keats, Giacomo Leopardi, Lorde Alfred Tennyson 393 Tiferet 435 Lustro 11: Algernon Charles Swinburne, Dante Gabriel Rossetti, Christina Rossetti, Walter Pater, Hugo von Hofmannsthal 437 Lustro 12: Victor Hugo, Gérard de Nerval, Charles Baudelaire, Arthur Rimbaud, Paul Valéry 469 Nezah 511 Lustro 13: Homero, Luis Vaz de Camões, James Joyce, Alejo Carpentier, Octávio Paz 513 Lustro 14: Stendhal, Mark Twain, William Faulkner, Ernest Hemingway, Flannery 0'Connor 567 Hod 597 Lustro 15: Walt Whitman, Fernando Pessoa, Hart Crane, Federico Garcia Lorca, Luis Cernuda 599 Lustro 16: George Eliot, Willa Cather, Edidi Wharton, F. Scott Fitzgerald, íris Murdoch 633 Yesod 665 Lustro 17: Gustave Flaubert, José Maria Eça de Queirós, Joaquim Maria Machado de Assis, Jorge Luis Borges, ítalo Calvino 667 Lustro 18: William Blake, D. H. Lawrence, Tennessee Williams, Rainer Maria Rilke, Eugénio Montale 707 X. Malkhut 745 Lustro 19: Honoré de Balzac, Lewis Carroll, Henry James, Robert Browning, WilliamButlerYeats 747 Lustro 20: Charles Dickens, Fiodor Dostoiévski, Isaac Babel, Paul Celan, Ralph Ellison 791 * Coda: O Futuro do Génio 827 PREFÁCIO Por que estes 100 autores? À certa altura, considerei incluir muitos outros nomes, mas uma centena me pareceu número suficiente. Excetuando aqueles que jamais poderiam ser omitidos - Shakespeare, Dante, Cervantes, Homero, Virgílio, Platão e companheiros -, minha seleção é totalmente arbitrária e idiossincrática. A lista não encerra, em absoluto, "os 100 melhores", na avaliação de quem quer que seja, inclusive na minha. Apenas estes autores são aqueles sobre os quais desejei escrever. Porquanto a minha competência se restringe às esferas da crítica literária e, até certo ponto, religiosa, este livro não trata de Einstein, Delacroix, Mozart, Louis Armstrong, ou quem mais o leitor quiser. Apresento um mosaico de génios da linguagem, embora Sócrates pertença à tradição oral, e o islamismo afirme que Alá ditou o Alcorão a Maomé. Constata-se um certo retrocesso, por parte de indivíduos que descartam o conceito de génio, por considerá-lo mero fetiche do século XVIII. O pensamento em bloco é a praga que assola a presente Era da Informação, atacando, de modo especialmente danoso, as nossas instituições académicas obsoletas, que, desde 1967, vêm cometendo um suicídio lento. O estudo da mediocridade, seja qual for a sua origem, gera mediocridade. Thomas Mann, descendente de fabricantes de móveis, previu que a obra José e Seus Irmãos haveria de sobreviver ao tempo por ser bem feita. Não aceitamos mesas e cadeiras cujos pés se despreguem, não importa quem as tenha fabricado, mas exortamos os jovens a estudarem escritos medíocres, pernetas. O presente livro, Génio, difere do meu trabalho anterior à medida que procuro, tão-somente, definir, da melhor maneira possível, a genialidade específica de cada um dos 11 Harold Bloom 100 personagens elencados. Recorro à mescla de crítica biográfica e formalista, e evito o historicismo. Ninguém haveria de implicar com a ideia de se estudar o contexto de uma obra. Mas reduzir literatura, espiritualidade ou ideias a um historicismo tendencioso é algo que não me interessa. As mesmas pressões sociais, económicas e culturais produzem, simultaneamente, obras imortais e obras datadas. Thomas Middleton, Philip Massinger e George Chapman vivenciavam a mesma energia cultural que, supostamente, moldou Hamlet e Rei Lear. Mas as 25 melhores peças de Shakespeare (de um total de 39) não são obras datadas. Se não conseguimos outro meio de explicar Shakespeare (ou Dante, Cervantes, Goedie, Walt Whitman), por que não retomar o estudo da antiga ideia de génio? Habilidade não é algo inato; genialidade o será, necessariamente. Sou grato a meus assistentes de pesquisa: Tara Mohr, Kate Cambor, Yoojin Grace Kim, Aislinn Goodman e Mei Chin. Agradeço, também, aos meus editores, Jamie Raab e Larry Kirshbaum, aos meus agentes literários, Glen Hartley e Lynn Chu, e à minha esposa, Jeanne. Harold Bloom Timothy Dwight College, Universidade de Yale 8 de dezembro de 2001 / 12 SOBRE A ORGANIZAÇÃO DO LIVRO Génio e Cabala Dividi a centena de génios da linguagem aqui relacionados em dez conjuntos, cada qual contendo dez nomes; em seguida, dividi cada conjunto em subconjuntos de cinco nomes. Todo génio, a meu ver, é idiossincrático, extremamente arbitrário e, em última instância, solitário. Qualquer contemporâneo de Dante poderia compartilhar da relação que o poeta teve com a tradição, do conhecimento e de algo semelhante ao amor do poeta por Beatriz, mas somente Dante escreveu a Comédia. Cada um dos 100 autores por mim selecionados é singular, mas, tanto quanto qualquer outro livro, este requer algum princípio de organização ou classificação. Estruturei-o como um mosaico, por acreditar no surgimento de contrastes e inspirações importantes. Desde o primeiro momento, anos atrás, em que pensei este livro, tive em mente a imagem dos Sefirot cabalistas. Meus dez conjuntos são denominados segundo os nomes mais frequentemente atribuídos aos Sefirot. A Cabala é uma ciência especulativa que depende de linguagem extremamente figurada. Dentre as principais figurações ou metáforas da Cabala destacam-se os Sefirot, atributos, a um só tempo, de Deus e de Adão Cadmo, ou Homem Divino, feito à imagem de Deus. Tais atributos, ou qualidades, emanam de um centro não-localizado, inexistente, por ser infinito, e movem-se em direção a uma circunferência localizada e finita. A ideia de emanação fiindamenta-se em Plotino, o maior dos neoplatonistas, mas, de acordo com Plotino, a emanação procede de Deus, ao passo que na Cabala os Sefirot encontram-se no próprio cerne de Deus, ou do Homem Divino. Uma vez que os cabalistas acreditavam que o universo 13 fora criado por Deus a partir de si mesmo, sendo ele Ayin (nada), os Sefirotdelineiam o processo da criação; encerram, portanto, os nomes de Deus, à medida que este trabalha na criação. Os Sefirot são metáforas tão abrangentes que se tornam, em si, poemas, ou mesmo poetas. A palavra hebraica sappir ("safira") é a provável origem do vocábulo Sefirot. É possível entender os Sefirot como luzes, textos ou estágios da criação. Neste livro, os 100 génios estão classificados em meus breves ensaios segundo os Sefirot que me parecem, respectivamente, mais pertinentes; mas duas almas jamais concordarão sobre o que lhes será mais pertinente. A minha classificação dessa centena de génios não pretende fixá-los em determinadas categorias, pois os Sefirot são imagens em movimento constante, e qualquer espírito criativo deve percorrer todos os Sefirot, passando por muitos labirintos de transformação. Gershom Scholem, precursor dos estudos modernos sobre a Cabala, identificou-a com o espírito da religião judaica. Moshe Idel, sucessor de Scholem, a despeito do surgimento aparentemente súbito da Cabala entre os judeus da Provença e da Catalunha, no século XIII, detecta na Cabala a recorrência de antigas especulações judaicas. Em certo sentido, Scholem e Idel concordam com a asserção expressa na Cabala de que nela voltamos a Adão e Eva, antes da queda, no Éden, e com a hipótese contundente de que Moisés a recebeu como o elemento esotérico da Lei Oral a ele comunicada por Javé no Monte Sinai. Os Sefirot constituem o centro da Cabala, pois pretendem representar a interioridade de Deus, os segredos do caráter e da personalidade divina. São atributos do génio de Deus, em todos os sentidos em que o termo "génio" é empregado neste livro. Keter, o primeiro Sefirah, poderia ser denominado "a coroa", uma vez que é representado por Adão Cadmo coroado, o Deus-Homem, antes da queda. Porém, assim como todos os Sefirot, Keter é um paradoxo, pois os cabalistas também o chamam de Ayin, ou nada. Borges observou que Shakespeare era todo mundo e ninguém, concepção por mim modificada, a tudo e nada, a coroa da literatura e, ao mesmo tempo, o nada primordial. Na qualidade de Bardólatra-Mor, não vejo audácia em considerar o génio de Shakespeare uma espécie de divindade secular, motivo pelo qual o posiciono em primeiro lugar, entre os 100 génios da linguagem. Em seguida a Shakespeare, ainda em Keter, incluo quatro figuras que a ele quase se comparam: Cervantes, o "primeiro romancista"; Montaigne, o primeiro autor de ensaios de natureza pessoal; Milton, que reinventou a poesia épica; e Tolstoi, que realizou a fusão entre o épico e o romance. Em um segundo grupo, apresento uma sequência de quatro grandes autobiógrafos: os poetas Lucrécio e Virgílio, o psicólogo e teólogo 14 Hokmah, o segundo Sefirah, é, com frequência, traduzido por "sabedoria", que remete à aura da "literatura sábia", relativa à Bíblia hebraica e respectivos comentários. Apresento Sócrates, Platão, o Javista, São Paulo e Maomé na condição de integrantes do primeiro grupo de figuras sábias, contrapostos a um segundo contingente, que reúne Samuel Johnson e seu biógrafo, Boswell, os sábios Goethe e Freud, e o irónico Thomas Mann, juntos, plêiade de sapiência secular. O terceiro Sefirah, Binah, é o intelecto em estado receptivo; não se trata da inteligência passiva, mas inteiramente aberta à ação da sabedoria. A meu ver, Nietzsche, Kierkegaard e Kafka representam a mente aberta, assim como Proust, o último dos grandes romancistas, e o visionário anglo-irlandês Beckett. Na segunda sequência, agrupei cinco dos maiores dramaturgos europeus - Molière, Ibsen, Tchekhov, Wilde e Pirandello -, todos dotados da rapidez de raciocínio que os cabalistas associam ao Binah. Em Hesed, que corresponde ao pacto de amor pleno que emana de Deus (ou de mulheres e homens), deparo-me, primeiramente, com as figuras de cinco grandes mestres da ironia, com efeito, ironistas do amor: John Donne, Alexander Pope, Jonathan Swift e - mais sutis, no domínio das aspirações irónicas - Jane Austen e Lady Murasaki. Um segundo grupo é formado por outros génios de Eros, embora estes lidem mais com a angústia decorrente da promessa divina: Hawthorne e Melville, as irmãs Bronté e Virgínia Woolf. Dm, que vem em seguida, também é conhecido por Gevurah. Din significa algo semelhante a "juízo rigoroso", enquanto Gevurah é a força que permite tal rigor. Aqui inicio com uma série de grandes poetas-visionários norte-americanos, rigorosos e geniais: Emerson, Emily Dickinson, Frost, Wallace Stevens, T. S. Eliot, todos exemplos da nossa estirpe nativa, outrora uma vertente de puritanismo. São seguidos de cinco poetas do Alto Romantismo que manifestaram a força e o rigor da imaginação: Wordswortli, Shelley, Keats, Tennyson e o italiano Leopardi. 15 Em Tiferet, cujo significado é beleza, também conhecida como Rahamin, ou compaixão, focalizo, primeiramente, cinco grandes nomes do Estetismo Swinburne, os Rossetti, Walter Pater e o austríaco Hofmannsthal - e, em seguida, os maiores poetas do Romantismo francês e seus herdeiros: Victor Hugo, Nerval, Baudelaire, Rimbaud e Valéry. O sétimo Sefirah, Nezah, pode ser entendido como a vitória de Deus, ou como a fortitude eterna, que jamais será derrotada. Aqui inicio com três gigantes do género épico - Homero, Camões e James Joyce -, seguidos do excepcional ficcionista épico de Cuba, Alejo Carpentier, e do poeta mexicano Octávio Paz, poderoso em seus "breves épicos". O segundo grupo talvez compartilhe menos em termos de vitórias e mais quanto à fortitude extrema: Stendhal, Mark Twain, Faulkner, Hemingway e Flannery 0'Connor, todos irónicos com relação à eternidade. Hod, esplendor, ou majestade da força profética, aqui rege, em primeiro lugar, uma série de poetas-profetas, a partir de Walt Whitman e outros três por ele influenciados: Pessoa, Hart Crane e Federico Garcia Lorca, este de Andaluzia (ao sul da Espanha). Cernuda, grande poeta espanhol moderno, que vive no exílio, completa esse grupo majestoso. Símbolo do esplendor moral, Hod determina, também, uma sequência de romancistas: George Eliot, Willa Cather, Edith Wharton, Scott Fitzgerald, e a falecida filósofa e ficciocista íris Murdoch. Em Yesod o nono Sefirah, às vezes traduzido por "origem", constata-se uma postura que remete ao antigo significado latino da palavra "génio", força geradora. Sob a égide de Yesod incluí, primeiramente, uma série de mestres da narrativa erótica: Flaubert, o português Eça de Queirós, o afro-brasileiro Machado de Assis, o argentino Borges e o fabulista moderno italiano, ítalo Calvino. Aqui, uma segunda série é constituída por cinco vitalistas heróicos: o profeta-poeta William Blake, o romancista profético D. H. Lawrence, o grande dramaturgo norte-americano Tennessee Williams, fortemente influenciado por Lawrence e Hart Crane, e dois poetas modernos originais, o austro-germânico Rilke e o italiano Montale. O décimo e último Sefirah é Malkhut, o reino, também conhecido por Atarah, o diadema. Embora Malkhut identifique-se com Shekhinah, radiação feminina de Deus descida à Terra, em vista da profunda interioridade de Malkhut, reuni dez génios do sexo masculino que transcendem a sexualidade. A meu ver, Malkhut é o mais fascinante dos Sefirot, porque demonstra a imanência divina no reino terrestre. Só é possível chegar aos demais Sefirot através de Malkhut, por conseguinte, recorro a Malkhut, a princípio, para situar uma série diversificada e, ao mesmo tempo, curiosamente inter-relacio-nada, de indivíduos que criaram suas próprias comédias humanas: Balzac, Lewis Carroll, o psicólogo e romancista Henry James, Robert Browning, criador do monólo16 go interior, e W. B. Yeats, dramaturgo lírico irlandês. O segundo grupo é constituído por Dickens e Dostoiévski, romancistas visionários do grotesco; Isaac Babel, contista judeu-russo; Paul Celan, judeu-romeno e criador de uma poesia pósHolocausto, na Alemanha, comparável à radiação inerente às narrativas em prosa de Kafka escritas em língua alemã. O falecido ficcionista afro-americano Ralph Waldo Ellison, cujo génio visionário alcançou a perfeição na obra O Homem Invisível, complementa essa descida de Malkhutem nossos tempos, sendo o último dos 100 génios estudados neste livro. 17 LUSTROS Cada um dos dez conjuntos regidos por determinado Sefirah está dividido em de grupos de cinco, aqui denominados "Lustros". A título de introdução a cada Lusti um ou dois parágrafos procuram indicar parte do processo utilizado na associação c cinco figuras respectivas. "Leio em busca de lustros", Emerson disse, em consonância com Plutarco e outi clássicos pertencentes à tradição platónica. "Lustros", nesse sentido, refere-se ao bril decorrente da luz refletida, o lustre, o esplendor de um génio refletido em outro, ui vez justapostos nesse meu mosaico. 19 GNOSTICISMO A Religião da Literatura Este livro adota dois paradigmas, ambos bem menos esotéricos do que parecem Cabala e gnosticismo. Convém, na verdade, acrescentar um terceiro, o Corpuí Hermético, ou Hermética, notável coletânea de tratados compostos na helênia Alexandria, no século I da Era Cristã (e. c). Os estudiosos denominam o respectivc culto místico pagão, de origem greco-egípcia, "Hermetismo", a fim de diferenciá-lo d ramificações renascentistas e modernas, geralmente designadas "hermeticismo". O Hermetismo exerceu imensa influência durante a Renascença, devido à noçãc equivocada de que os textos originários da seita seriam anteriores a Moisés, e não contemporâneos ao Evangelho de João, conforme, de fato, o eram. Os hermetistas eran platonistas que absorveram as práticas alegóricas dos judeus de Alexandria e que levaram adiante a especulação de origem judaica relativa ao primeiro Adão, o Antropos, 01 Homem Primevo, chamado Adão Cadmo, na Cabala, e "deus mortal", segundo os hermetistas: "o humano na Terra é um deus mortal [enquanto] deus no Céu é um humano imortal." Trata-se de gnose, ou conhecimento, decorrente do processo relativo à Criação e Queda que seria elaborado pelos cristãos gnósticos um século mais tarde. embora jamais com a eloquência característica do primeiro tratado hermetista, Poimandres, em que o deus mortal sucumbe à nossa aflição de "amor e sono": Quando o homem viu refletida na água uma forma semelhante à sua, assim como existia na natureza, sentiu amor pela forma e desejou nela habitar; desejo e ação ocorreram no mesmo instante (...). Embora ele seja imortal (...), a humanidade está sujeita à mortalidade (...), [e] ainda que esteja acima da estrutura cósmica, uma ves no interior da mesma, ele se tornou escravo. É andrógino porque foi gerado por pa 21 andrógino, e jamais dorme porque foi gerado por aquele que não tem sono. Todavia, o amor e o sono são seus senhores. Trata-se de uma concepção narcisista, e não edipiana, do processo de Criação e Queda, uma concepção platónica, e não judeu-cristã, que se aproxima do conceito de "Autoconfiança", em Emerson, segundo o qual os aspectos primordiais, superiores, do eu não são vistos como inerentes à natureza. O gnosticismo qualificava tais elementos do eu como pneuma, isto é, espírito ou sopro autêntico, a pessoa verdadeira. O termo "gnosticismo" foi empregado pela primeira vez no século XVII, para definir a antiga "heresia" surgida entre pagãos, judeus e cristãos no final do século I da Era Comum.1 Quase todos os textos gnósticos cuja autenticidade não foi contestada datam do século II, mas â antiga tradição judaica já venerava o primeiro Adão, considerado o verdadeiro profeta. O grande estudioso israelita da Cabala na atualidade, Moshe Idel, especula que o gnosticismo, assim como a Cabala judaica medieval, retomou antigas controvérsias judaicas sobre Adão, Deus, a criação e a queda. A literatura gnóstica cristã disponível em língua inglesa deve ser lida na tradução de Bentley Layton, intitulada The Gnostic Scriptures, com ênfase em Valentim, o génio poético entre os gnósticos de Alexandria. A partir de Valentim, passando pelo poeta romântico alemão Novalis, o romântico francês Nerval e o inglês William Blake, o gnosticismo tem-se mostrado inseparável da genialidade em termos de imaginação. Tendo meditado sobre o gnosticismo ao longo de toda a vida, arrisco afirmar que, na prática, a concepção constitui a religião da literatura. Decerto, há poetas cristãos geniais que jamais foram acusados de hereges, desde John Donne a Gerard Manley Hopkins e ao neocristão T. S. Eliot. Contudo, os poetas mais ousados da tradição romântica ocidental, que fizeram da poesia sua religião, foram gnósticos, de Shelley e Victor Hugo a William Butler Yeats e Rainer Maria Rilke. Proponho, para o entendimento da noção de génio, uma definição simplificada de gnosticismo: trata-se de um conhecimento que liberta a mente criativa dos ditames da teologia, do historicismo e de qualquer divindade que se anteponha àquilo que existe de mais criativo no eu. Um Deus alienado do eu interior é um Deus Carrasco, conforme o chamou James Joyce, o Deus que gera a morte. O gnosticismo, como religião do génio literário, repudia o Deus Carrasco. Hans Jonas, no meu entendimento, o estudioso mais lúcido do gnosticismo, disse que os antigos gnósticos experimentaram "a intoxicação causada pela falta de precedentes". Lembro-me de ter observado diante de Jonas, pessoa brilhante e genial, que ele acabara de descrever a busca permanente de grandes poetas: liberdade para o eu criativo, para a expansão da autoconsciência da mente. Isto é, Era Cristã, segundo os judeus. As reduções aqui utilizadas serão e.c. (Era Comum) e a.e.c (antes da Era Comum). [N. do T.] INTRODUÇÃO O Que É Génio Ao empregar um esquema, ou paradigma, cabalístico na organização deste livro baseio-me na convicção de Gershom Scholem de que a Cabala é o espírito da religião segundo a tradição judaica. As 100 figuras por mim selecionadas, começando poi Shakespeare até o falecido Ralph Ellison, talvez representem uma centena de atitude;s diferentes no que concerne à espiritualidade, abrangendo uma escala completa, de Sãc Paulo e Santo Agostinho à secularidade de Proust e Calvino. Ocorre que a Cabala, a meu ver, possibilita a anatomia do génio, seja mulher ou homem, assim como a anatomia do processo de fusão entre homem e mulher, em Ein Sof, a infinitude de Deus Pretendo recorrer aqui à Cabala como ponto de partida da minha visão pessoal sobre o conceito e a natureza do génio. Scholem observou que a obra de Franz Kafka constitui uma Cabala secular e, poi conseguinte, concluiu que os escritos de Kafka contêm "algo da luz intensa do canónico, de uma perfeição que destrói". Em contrapartida, Moshe Idel argumenta que o canónico, seja de ordem bíblica ou cabalística, é "a perfeição que absorve". Confrontai a plenitude da Bíblia, do Talmude e da Cabala é tentar "absorver perfeições". O que Idel define como "qualidade de absorção da Tora" assemelha-se à qualidade de absorção constatada em todos os génios autênticos, que sempre têm a capacidade de nos absorver. No inglês falado nos Estados Unidos, o verbo "to absorb" significa diversos processos relacionados: realizar a absorção de algo, por exemplo, através dos poros; dedicar total interesse ou atenção; ou assimilar plenamente. 22 23 Estou ciente de estar transferindo à noção de génio algo que Scholem e Idel, seguindo a Cabala, atribuem a Deus, mas, ao fazê-lo, apenas dou continuidade à antiga tradição romana que estabeleceu, pela primeira vez, as concepções de génio e autoridade. Em Plutarco, o génio de Marco António é o deus Baco, ou Dionísio. Na versão de Shakespeare, intitulada António e Cleópatra, o deus Hércules, nesse caso, génio de António, abandona o general romano. O Imperador Augusto, que derrota António, proclama que o deus Apolo é o próprio génio do Imperador (segundo Suetônio). O culto ao génio do Imperador tornou-se, portanto, um ritual romano, deslocando os dois significados anteriores, isto é, de força geradora da família e de alter ego de cada cidadão. Autoridade, ou*ro conceito romano fundamental, talvez seja mais relevante ao estudo do génio do que a própria noção de "génio", com seus significados contraditórios. As origens da autoridade, fenómeno que desapareceu da cultura ocidental, conforme Hannah Arendt demonstrou, de modo convincente, remontam a Roma, e não à Grécia ou à cultura hebraica. Na Roma antiga, o conceito de autoridade tinha caráter originário. Auctoritas derivava do verbo augere, "aumentar", e autoridade dependia sempre de um aumento na origem, desse modo transportando o passado vivo ao presente. Homero travou um embate dissimulado com a poesia que o precedeu e, creio eu, trabalhando na Babilónia, o Redator da Bíblia Hebraica, ao montar o arcabouço que abrange de Génesis a Reis, buscou truncar o autor que o precedeu, e que foi por ele inserido no texto, a fim de manter à distância a estranheza e a força excepcional do Javista, conhecido pela inicial J. Era impossível excluir o Javista, à medida que as histórias por ele (ou ela) relatadas tinham autoridade, mas quanto ao desconcertante Javé, humano-por-demais-humano, era plausível calar-lhe a voz, recorrendo-se a outras vozes divinas. Qual a relação entre um novo génio e a autoridade originária? No presente momento, início do século XXI, eu diria: "Absolutamente nenhuma." A confusão a respeito de padrões canónicos relativos à genialidade encontra-se atualmente institucionalizada, de modo que o juízo relativo ao discernimento entre talento e genialidade está à mercê da mídia, atendendo aos caprichos da política cultural. Visto que este livro, ao apresentar um mosaico composto por 100 génios autênticos, propõe-se estabelecer critérios de juízo, arriscarei aqui uma definição estritamente pessoal do conceito de génio, definição esta que pretende ser útil nesses primeiros anos do novo século. A ideia de que carisma, necessariamente, acompanha o génio parece-me problemática. Das 100 figuras incluídas neste livro, conheci, pessoalmente, três - íris Murdoch, Octávio Paz e Ralph Ellison -, todos falecidos há, relativamente, pouco tempo. Recordo-me, também, de breves encontros com Robert Frost e Wallace Stevens, muitos anos atrás. Embora fossem personalidades impressionantes, cada um à sua maneira, nenhum deles tinha a exuberância e a autoridade de Gershom Scholem, cujo génio o acompanhava de modo tangível, apesar de toda a ironia e elevada dose de bom humor. William Hazlitt escreveu um ensaio que discorre sobre indivíduos que gostaríamos de ter conhecido. Examino o meu sumário cabalístico e me pergunto quais personalidades escolheria. O crítico Sainte-Beuve aconselhava-nos a nos perguntar: o que este autor que estou lendo pensaria de mim? O meu herói pessoal nessa centena de nomes é Samuel Johnson, deus da crítica literária, mas não tenho a coragem de me expor ao seu juízo. O génio exerce autoridade sobre mim, sempre que eu admito estar diante de forças maiores do que as minhas. Emerson, sábio a quem procuro seguir, desaprovaria essa minha capitulação pragmática, mas o génio de Emerson era tão grande que lhe era plausível pregar a Autoconfiança. Há 45 anos, atuo, ininterruptamente, em magistério, e gostaria de conferir aos meus alunos uma autoconfiança emersoniana, mas, de modo geral, não sou capaz de fazê-lo, e não o faço. Tenho a esperança de cultuar-lhes a sua própria genialidade, mas só consigo incutir-lhes o génio da apreciação. Eis o objetivo principal deste livro: suscitar em meus leitores o génio da apreciação, se assim me for possível. Escrevo estas páginas uma semana após 11 de setembro de 2001, data do triunfo terrorista, concretizado na destruição do World Trade Center e das pessoas que se encontravam no interior das torres. Ao longo da semana passada, ministrei aulas sobre Wallace Stevens e Elizabeth Bishop, sobre as primeiras comédias shakespearianas e sobre a Odisseia. Não tenho como saber se, de fato, ajudei meus alunos, mas, quanto a mim, consegui, momentaneamente, lidar com o trauma, ao renovar a apreciação dos génios. O que será que eu, e tantas outras pessoas, apreciam no génio? Um registro (27 de outubro de 1831) nos Diários àt Emerson sempre paira em minha memória: Mas tudo não está dentro de nós? Que estranho! Olha esta congregação de homens... palavras são pronunciadas - embora não haja, aqui, neste momento quem as pronuncie -, palavras que talvez os fizessem cambalear e tremer como se estivessem alcoolizados. Quem poderá duvidar? Já recebeste instrução de um homen sábio e eloquente? Lembra, pois, se não foram as palavras que gelaram teu sangue que te fizeram enrubescer, que te fizeram tremer de satisfação - mas não achaste que tais palavras tinham a tua idade? Não é verdade que já sabias, ou esperas que o púlpi 24 25 to, ou qualquer homem que seja, possa comover-te com algo que não seja a pura verdade? Jamais. É Deus em ti que responde a Deus fora de ti, e que afirma as próprias palavras, trémulas, nos lábios de outrem. Os dizeres ainda queimam o meu ser: "não achaste que tais palavras tinham a tua idade?". Longino, crítico que viveu na Antiguidade, definia o génio literário como "Sublime", e reconhecia, no processo em questão, uma transferência de poder, do autor ao leitor: Tocada pelo autêntico sublime, a alma eleva-se, naturalmente, adquire altivez, enche-se de júbMo e vaidade, como se ela própria houvesse criado aquilo que acabara de ouvir. A genialidade literária, difícil de ser definida, para ser constatada, depende de uma leitura profunda. O leitor aprende a se identificar com aquilo que lhe parece uma grandeza que pode ser somada ao eu, sem com isso violar a integridade do ser. A noção de "grandeza" está fora de moda, assim como a ideia de transcendência, mas é difícil continuar vivendo sem alguma esperança de se deparar com o extraordinário. Encontrar o extraordinário em outra pessoa é experiência cujas propensões são enganosas ou ilusórias. A isso chamamos "apaixonar-se"; deparar-se com o extraordinário em um livro - seja a Bíblia, ou as obras de Platão, Shakespeare, Dante, Proust é benefício, praticamente, sem custo. Os escritos dos génios constituem o melhor caminho em direção à sabedoria, que é, creio eu, a verdadeira utilidade da literatura para a vida. Quando perguntado a respeito de que obra levaria consigo para uma ilha deserta, James Joyce respondeu: "Gostaria de responder: Dante, mas teria de levar o inglês, porque é mais fecundo." A resposta expressa bem a rispidez irlandesa de Joyce com relação aos ingleses, mas a opção por Shakespeare é justa, e, por isso, ele lidera o elenco das 100 personalidades incluídas neste livro. Conquanto alguns génios literários aproximem-se de Shakespeare - o Javista, Homero, Platão, Dante, Chaucer, Cervantes, Molière, Goethe, Tolstoi, Dickens, Proust, Joyce -, nem mesmo estes 12 mestres da representação conseguem igualar a milagrosa descrição da realidade criada por Shakespeare. Por causa de Shakespeare enxergamos o que, sem ele, jamais enxergaríamos, pois ele nos transforma. Dante, o rival mais próximo, convencenos da realidade terrível descrita no Inferno e no Purgatório, e quase nos induz a aceitar o Paraíso. Contudo, nem mesmo o personagem mais completo da Divina Comédia Dante, o Poeta-Peregrino - chega a sair das páginas da Comédia, para habitar o mundo em que vivemos, como o fazem Falstaff, Hamlet, lago, Macbeth, Lear e Cleópatra. A invasão da nossa realidade por parte das principais figuras shakespearianas atesta a vitalidade dos personagens literários, quando criados por um génio. Todos já experimentamos uma sensação de vazio, ao lermos ficção popular e constatarmos que as páginas contêm apenas nomes, e não pessoas. Com o passar do tempo, apesar dos elogios excessivos, esse tipo de ficção se torna datada, e acaba no lixo. Vale lembrar que a palavra "caráter" ainda hoje denota, no sentido primeiro, um grafismo, e.g., uma letra do alfabeto, refletindo a provável origem do vocábulo no termo do grego antigo "charac-tef, estilete afiado, ou a marca deixada pelas incisões de um estilete. A palavra moderna "caráter" também significa ethos, atitude diante da vida.2 Era moda, até pouco tempo atrás, falar da "morte do autor", mas essa noção também já virou lixo. O génio morto está mais vivo do que nós, assim como Falstaff e Hamlet estão bem mais vivos do que muita gente que conheço. A vitalidade é a medida do génio literário. Lemos em busca de mais vida, e só o génio é capaz de nos prover de mais vida. O que possibilita o surgimento de um génio? Sempre existirá um Espírito da Época, e sentimos certa satisfação em nos iludir com a ideia de que o mais importante a respeito de uma figura memorável é aquilo que em tal figura seria comum à era em que ela viveu. Segundo essa visão equivocada, seja no âmbito académico ou popular, os seres humanos são determinados por fatores sociais. A imaginação pessoal rende-se à antropologia social, ou à psicologia de massa, e, assim, é explicada de modo simplista. Este livro, Génio, fundamenta-se na minha certeza de que a apreciação é um meio mais produtivo de se compreender façanhas do que todos os métodos analíticos empregados na explicação do surgimento de indivíduos excepcionais. A apreciação pode expressar juízo, mas o faz sempre com reconhecimento, e, muitas vezes, com admiração e reverência. Com o termo "apreciação", sugiro algo além de "devida estima". Ela também abrange a noção de necessidade, à medida que nos voltamos ao génio de terceiros para compensar alguma carência em nós mesmos, ou encontramos no génio um estímulo às nossas próprias forças, seja lá quais forem. Apreciação pode desenvolver-se em amor, assim como tomar consciência de um génio desaparecido provoca o incremento da própria consciência. O desejo mais profundo do eu solitário é a sobrevivência, seja aqui e agora, ou em alguma dimensão transcendental. Crescer por efeito do génio de terceiros é aumentar as possibilidades de sobrevivência, ao menos no presente e no futuro próximo. 2 Os dois sentidos mencionados ocorrem em português; apenas o outro sentido da palavra, em língu; inglesa, "character", significando "personagem", não possui correspondente em português. [N. do T.J 26 27 Não sabemos como e/ou por que surge o génio, sabemos apenas que - para nossa imensa gratificação - génios existem, e talvez (em número menor) continuem a aparecer. Embora as nossas instituições académicas estejam repletas de impostores que conclamam o génio como nada mais do que um mito capitalista, apraz-me citar Leon Trotsky, que instava os escritores comunistas a ler e estudar Dante. Se o génio é um mistério da consciência ampla e aberta, o que há de menos misterioso no fenómeno é a sua relação íntima com a personalidade, e não com o caráter. A personalidade de Dante é intimidadora, a de Shakespeare, indefinível, enquanto a de Jesus (assim como a de Hamlet, embora ficcional) parece revelar facetas diferentes a cada leitor ou ouvinte. O que é a personalidade? Lamentavelmente, hoje em dia empregamos o termo, no uso popular, como sinonimo de "celebridade", mas insisto em não desistir da palavra em favor do mundo da moda. Quando se torna possível reunir dados suficientes sobre a biografia de um determinado génio, podemos compreender o significado de se falar da personalidade de Goethe, Byron, Freud ou Oscar Wilde. Em contrapartida, diante da carência de conhecimento biográfico, concordamos quanto às incertezas sobre a personalidade de Shakespeare, o que constitui um grande paradoxo, porquanto é viável especular que suas peças tenham inventado a personalidade conforme hoje tão prontamente a identificamos. Se me desafiarem, poderia escrever um livro sobre a personalidade de Hamlet, Falstaff ou Cleópatra, mas não arriscaria um livro a respeito da personalidade de Shakespeare ou de Jesus. O pai de Benjamin Disraeli, o literato Isaac D'Israeli, escreveu um livro bastante ameno, intitulado The Literary Character ofMen of Genius, obra precursora do presente livro, Génio, ao lado de Vidas Paralelas, de Plutarco, Homens Representativos, de Emerson, e Sobre os Heróis e o Culto do Herói, de Carlyle. Isaac D'Israeli observa que "é preciso surgir muitos génios, antes que apareça um determinado génio." Todo génio tem seus predecessores, ainda que, em um passado remoto, seja difícil identificá-los. Johnson considerava Homero o primeiro e mais original dos poetas; a nosso ver, Homero é figura relativamente tardia que enriqueceu a própria obra com frases e fórmulas criadas pelos antecessores. Emerson, no ensaio "Citação e Originalidade", observou, com astúcia: "Somente um inventor sabe tomar emprestado." As grandes invenções de um génio influenciam aquele mesmo génio por meio de procedimentos cuja apreciação nos leva tempo para consolidar. Falamos da presença do autor, ou autora, na obra; melhor seria falarmos da presença da obra na pessoa que a criou. Porém, mal sabemos como discutir a influência da obra no autor, ou de uma determinada mente em si mesma. Considero esse o objetivo primordial deste livro. Com relação a todas as figuras exibidas no meu mosaico, a ênfase há de recair sobre o embate que travam com elas mesmas. 28 A luta contra o próprio eu pode esconder-se atrás de algum outro processo, inclusive da inspiração em precursores idealizados: Platão, com relação a Sócrates; Confúcio e o duque de Chou; Buda e suas próprias encarnações anteriores. De modo especial, o autor da Bíblia Hebraica, na forma em que hoje a conhecemos, o Redator da sequência que compreende de Génesis a Reis, vale-se do próprio génio, ao recriar a Aliança, ao mesmo tempo em que celebra as virtudes (e falhas) dos antepassados. Todavia, conforme argumenta Donald Harmon Akenson, o autor-redator, ou editor-redator, alcançou uma "beleza excepcional", toda sua. Exilado na Babilónia, o Redator não poderia supor que estivesse criando Escrituras; na qualidade de historiador primeiro, é possível que acreditasse estar apenas defendendo a causa perdida do Reino de Judá. Contudo, sendo por demais perspicaz, não deixaria de notar que a invenção de uma continuidade e, portanto, de uma tradição era, em grande parte, fruto do seu trabalho. Tanto no caso do Redator, quanto nos casos de Confúcio e Platão, é possível observar a angústia na obra que, evidentemente, refletia-se no autor. Como estar à altura de antepassados que falavam, diretamente, com Javé, ou do grande Duque de Chou, que comandava o povo sem recorrer à violência? É possível ser um autêntico discípulo de Sócrates, que, sem se queixar, submeteu-se ao martírio para afirmar a sua verdade? Em última instância, a angústia da influência não decorre da impressão de que o espaço pretendido já foi ocupado, mas de que a grandeza talvez não consiga renovar-se a si mesma, que a inspiração seja maior do que o talento para concretizá-la. O termo génio não mais cativa a simpatia dos estudiosos, muitos dos quais se tornaram "niveladores culturais" um tanto imunes à admiração. Contudo, junto ao público, a noção de génio continua a ser prestigiada, apesar do desgaste sofrido do termo em si Precisamos do génio, por mais inveja ou constrangimento que a noção cause a muitos de nós. Não é necessário aspirarmos, pessoalmente, à condição de génio; todavia, no íntimo, lembramo-nos de que tínhamos, ou temos, um génio. O desejo pelo transcendental, pelo extraordinário, faz parte do nosso legado comum; quando tal desejo se vai, c faz lentamente, e jamais por completo. Afirmar que a obra está no autor, ou que a noção religiosa está no líder carismático não é um paradoxo. Shakespeare, hoje sabemos, era usurário, assim como Shylock; ma terá esse fato contribuído para a decisão de que O Mercador de Veneza fosse uma come dia? Não o sabemos. No entanto, buscar a obra no autor é buscar a influência e o efeito da peça no desenvolvimento de Shakespeare, partindo da comédia, passando pela tragi comédia, e chegando à tragédia. É perceber Shylock tornar Shakespeare mais sombria Examinar os efeitos das parábolas de Jesus no próprio Jesus é conduzir uma investiga ção em moldes similares. 29 A palavra "génio" possui dois sentidos antigos (em latim), dotados de ênfase bastante diversa. O primeiro sentido expressa a noção de gerar, fazer germinar, isto é, ser um pater famílias. O outro refere-se a um espírito que rege cada pessoa e lugar, a um espírito bom ou mau, portanto, à possibilidade de se exercer influência marcante sobre alguém, para o bem ou para o mal. O segundo sentido é mais importante do que o primeiro; nosso génio, por conseguinte, é nossa aptidão, nosso talento natural, nossa força intelectual ou criadora, inata, e não a capacidade de gerar vigor em terceiros. Todos aprendemos a distinguir, de modo firme e definitivo, entre génio e talento. Na Antiguidade, "talento" significava peso ou moeda, portanto, por mais que existisse, era, necessariamente, limitado. Já a palavra "génio", mesmo em sua origem linguística, não tem limites. ,, Atualmente, por génio, costumamos entender capacidade criativa, em contraposição à habilidade. O historiador vitoriano Froude observou que génio "é uma fonte cujo conteúdo é sempre mais caudaloso do que o líquido que jorra". Os maiores exemplos de génios estéticos que conhecemos são Shakespeare e Dante, Bach e Mozart, Michelangelo e Rembrant, Donatello e Rodin, Alberti e Brunelleschi. Diante do génio religioso, a questão se torna mais complexa, especialmente em um país obcecado por religião, como no caso dos Estados Unidos. Considerar Jesus e Maomé génios religiosos (ou seja lá o que mais forem) é torná-los, ao menos nesse aspecto, semelhantes não apenas entre si, mas a Zoroastro e a Buda, bem como a certas figuras seculares, génios da ética, tais como Confúcio e Sócrates. Definir a noção de génio mais precisamente do que nunca é um dos objetivos deste estudo. O outro é defender a noção de génio, atualmente aviltada por detratores e redu-cionistas, cujas fileiras abrangem desde sociobiólogos e materialistas da escola do genoma até os mais diversos historicistas. Porém, o meu objetivo precípuo é, a um só tempo, incrementar a apreciação da genialidade e demonstrar como, invariavelmente, o fenómeno é engendrado pelo estímulo de algum génio anterior, muito mais do que em função de contextos culturais e políticos. A influência que um génio exerce sobre si mesmo, conforme já mencionado, constitui um dos pontos de destaque do livro. Meu tópico é universal, nem tanto porque, no passado, existiram génios cuja obra alterou o mundo e, no futuro, existirão outros génios, mas porque, apesar de reprimida, a genialidade pode ser encontrada em tantos leitores. Emerson acreditava que todos os norte-americanos eram poetas e místicos em potencial. Este livro não ensina como ler, ou que autores ler, mas como pensar sobre vidas exemplares e seus aspectos mais criativos. Examinando-se o sumário deste livro é possível notar que exclui exemplos de génios ainda vivos, e inclui apenas três recentemente desaparecidos. Vejo-me forçado a ser breve, INTRODUÇÃO conciso em meu relato sobre cada génio, pois acredito ser possível aprender muito atravé da justaposição de diversas figuras, egressas de culturas distintas e períodos históricos con trastantes. As diferenças existentes entre os integrantes de uma centena de homens mulheres, selecionados em um espaço de tempo que abrange 25 séculos, superam, en muito, as analogias e semelhanças, e o propósito de reunir tudo isso em um único volurm pode parecer por demais ambicioso. Contudo, os génios têm características comuns, um; vez que a especulação intensa e individualizada bem como a espiritualidade e a criativida de dependem da originalidade, da audácia e da autoconfiança. Emerson, em Homens Representativos, inicia com um parágrafo animador: E natural acreditar em grandes homens. Se nossos companheiros de infância s tornarem heróis e assumirem nobre condição, não nos surpreenderemos. Todas a mitologias surgem a partir de semideuses, e as respectivas circunstâncias são elevada e poéticas; isto é, a ênfase recai sobre o génio. Nas lendas de Gautama, os primeiro homens devoraram a terra e acharam-na deliciosa. Gautama, o grande Buda, busca e obtém liberdade, como se fosse um dos primeiros homens. A história recontada por Emerson é mais norte-americana do que budista, poi os primeiros homens por ele mencionados sugerem a noção de Adãos americanos, ante de reencarnações de luminares anteriores. Talvez eu, também, consiga tãosomente pre conizar uma visão norte-americana, mas é possível que nisso resida a suprema utilizaçã dos génios do passado; temos de adaptá-los ao nosso tempo e lugar, para sermos pc eles iluminados ou inspirados. Emerson identificou seis grandes homens representativos: Platão, Swedenborç Montaigne, Shakespeare, Napoleão e Goethe. Quatro destes estão presentes neste livre substituí Swedenborg por Blake, e descartei Napoleão, assim como todos os generais políticos. Platão, Montaigne, Shakespeare e Goethe permanecem essenciais, assir como os demais por mim esboçados. Essenciais a quê? Ao nosso autoconhecimento, en relação ao outro, pois esses mortos poderosos fazem parte da alteridade que nos é possi vel conhecer, conforme diz Emerson, em Homens Representativos. Não precisamos temer o excesso de influência. A confiança generosa é permitid: Sirvamos aos grandes. E no entanto, assim é o livro concluído: O mundo é jovem: os grandes homens do passado chamam-nos com afeiçãc Nós, também, devemos escrever Bíblias, com o propósito de, novamente, unir o ce 30 31 e a terra. O segredo do génio é não tolerar qualquer ficção, a fim de existir para nós; realizar tudo o que sabemos. Realizar tudo o que sabemos, inclusive ficção, é empresa momentosa demais para nós, que vivemos um dorido século e meio depois de Emerson. O mundo já não parece jovem, e nem sempre ouço tons de afeto quando a voz de um génio me chama. Mas, vale lembrar, tenho a vantagem, ou a desvantagem, de viver depois de Emerson. O génio da influência transcende as angústias que a constituem, desde que delas tomemos ciência, e que possamos conjecturar nosso posicionamento com relação à contínua prevalência das mesmas. Thomas Carlyk, génio vitoriano escocês hoje fora de moda, escreveu um estudo admirável que quase ninguém mais lê: Sobre os Heróis, o Culto do Herói e o Heróico na História. A obra contém a melhor observação sobre Shakespeare de que tenho conhecimento: Se me pedirem para definir a faculdade de Shakespeare, eu diria superioridade de intelecto e, nisso, creio estar incluindo tudo. Prefigurando a observação, Carlyle, de modo característico, faz irromper utilíssima advertência relativa à equivocada divisão do génio em seus componentes ilusórios: O que são, de fato, as faculdades? Falamos de faculdades como se fossem distintas, elementos separados; como se um homem tivesse intelecto, imaginação, criatividade etc, assim como tem mãos, pés e braços. "Capacidade de discernimento", prossegue Carlyle, constitui a nossa força vital. Como reconhecer tal capacidade no génio? Podemos recorrer às suas obras, e à memória de suas personalidades. Emprego este último termo de modo bastante deliberado, seguindo Walter Pater, outro génio vitoriano, um génio que desafia os modismos, pois assemelha-se a Emerson e Nietzsche. Esses três pensadores argutos profetizaram grande parte do futuro intelectual do século que acaba de terminar e dificilmente deixarão de influenciar o que ora inicia. O prefácio escrito por Pater para o seu livro mais importante, A Renascença, salienta que o "crítico estético" ("estético", no sentido de "perceptivo") é capaz de identificar génios em cada período histórico: Em todas as eras existem alguns artífices excelentes, e alguma arte excelente. As perguntas por ele [o crítico estético] formuladas são sempre: Em quem pulsa o génio, em quem está localizado o espírito da era? Onde se encontrava o receptáculo do seu refinamento, a distinção, o bom gosto? "As eras são todas iguais", diz William Blake, "mas o génio está sempre acima da era em que vive." Blake, génio visionário quase sem par, é um modelo excepcional da relativa independência manifestada pelo génio com relação ao tempo: "o génio está sempre acima da era em que vive". Não podemos enfrentar o século XXI sem esperar que ele nos traga um Stravinski ou um Louis Armstrong, um Picasso ou um Matisse, um Proust ou um James Joyce. Desejar um Dante ou um Shakespeare, um J. S. Bach ou um Mozart, um Michelângelo ou um Leonardo é pedir demais, de vez que talentos de tal magnitude são muito raros. Contudo, desejamos, necessitamos de algo que esteja acima do século XXI, seja lá o que for. A utilidade do meu mosaico é auxiliar a nossa preparação para esse novo século, por meio da lembrança de traços da personalidade e de façanhas de muitos entre os indivíduos mais criativos que nos precederam. Na Antiguidade, o romano fazia uma oferenda ao seu próprio génio, no dia do aniversário, dedicando a data ao "deus da natureza humana", conforme o poeta Horácio chamava o espírito mentor de cada pessoa. Nosso costume do bolo de aniversário é descendente direto dessa oferenda. Acendemos velas, e convém lembrar aquilo que estamos celebrando. 32 33 GÉNIO Uma Definição Pessoal o ,'* Evitei, neste livro, falar de génios vivos, em parte para escapar à perturbação das provocações. Com meus botões, sou capaz de identificar na atualidade determinados escritores de génio tangível: o ficcionista português José Saramago, a poeta canadense Anne Carson, o poeta inglês Geoffrey Hill e, pelo menos, meia dúzia de romancistas e poetas norte e latino-americanos (cujos nomes abstenho-me de mencionar). Refletindo sobre o meu mosaico de uma centena de mentes criativas exemplares, chego a uma definição pessoal, tentativa, de génio literário. A questão do génio foi preocupação constante de Ralph Waldo Emerson, que é a mente dos Estados Unidos, assim como Walt Whitman é o poeta e Henry James o ficcionista da nação (o dramaturgo ainda está por surgir). Para Emerson, génio era o Deus interior, o eu de que fala o ensaísta em "Autoconfiança". Portanto, esse eu, segundo Emerson, não é constituído pela História, pela sociedade ou pela linguagem. E aborígine. Concordo, plenamente. Shakespeare, génio supremo, difere de seus contemporâneos, até mesmo de Christopher Marlowe e Ben Jonson. Cervantes destaca-se de Lope de Vega e de Calderón. Algo em Shakespeare e Cervantes, assim como em Dante, Montaigne, Milton e Proust (para citar apenas alguns exemplos), permanece, nitidamente, acima da era em que viveram. Uma originalidade arrebatadora é o componente crucial do génio literário, mas essa mesma originalidade é sempre canónica, à medida que reconhece e interage com os pre35 cursores. Até mesmo Shakespeare firma uma aliança implícita com Chaucer, seu maior predecessor na invenção do humano. Se génio é o Deus interior, é lá que devo buscá-lo, no abismo do eu aborígine, entidade desconhecida de quase todos os "Explicadores" dos dias atuais, localizados nas nossas universidades intelectualmente deprimidas e nos engenhos tenebrosos e satânicos da mídia. Emerson e o gnosticismo da Antiguidade concordam que o que há de melhor e primordial em cada um de nós não faz parte da Criação, da Natureza, ou do NãoEu. Cada um de nós, presume-se, é capaz de identificar o que tem de melhor, mas como identificar o que nos é primordial! Onde principia o eu? A resposta freudiana é que o ego faz um investimento em si mesmo, desse modo identificando um eu. Shakespeare chama de "eu mesmo" a noção que temos de identidade; quando Jack Falstaff se torna Falstaff? Quando Shakespeare se torna Shakespeare? A Comédia dos Erros já é obra de génio; no entanto, quem poderia prever Noite de Reis, baseando-se no advento da citada farsa, escrita no início da carreira de Shakespeare? Sempre reconhecemos um génio por meio de um processo retroativo, mas como o génio reconhece a si mesmo? A resposta, desde a Antiguidade, é que existe um deus dentro de nós, e esse deus fala. Definições materialistas do conceito de génio são inviáveis, motivo pelo qual a noção se encontra tão desacreditada na presente era, em que predominam as ideologias materialistas. A noção de génio, necessariamente, remete ao transcendental e ao extraordinário, por assumir plena consciência de tais fatores. Consciência é o que define o génio: Shakespeare, assim como o Hamlet por ele criado, em termos de consciência, excede a todos nós, vai além do nível mais elevado de consciência que somos capazes de alcançar sem o seu auxílio. O gnosticismo, por definição, é um saber, e não um credo. Em Shakespeare, não temos um sábio, nem um crente, mas uma consciência tão vasta que não tem, em absoluto, concorrente: seja em Cervantes ou Montaigne, em Freud ou Wittgenstein. Aqueles que escolhem uma das religiões do mundo, ou por elas são escolhidos, frequentemente, postulam uma consciência cósmica à qual atribuem origens sobrenaturais. Mas a consciência shakespeariana, que transforma matéria em imaginação, não precisa violar a natureza. A arte shakespeariana é a própria natureza, e a consciência de Shakespeare mais parece produto do que produtora dessa arte. Aos confins da mente, leva-nos o génio shakespeariano: uma consciência formada por todas as consciências por ele imaginadas. Shakespeare permanecerá, ao que se presume para sempre, o maior exemplo da utilidade da literatura para a vida, isto é, contribuir com o processo de conscientização. Embora a consciência de Shakespeare seja a mais vasta entre aquelas estudadas neste livro, todas as demais mentes criativas exemplares aqui incluídas contribuíram com a expansão da consciência dos respectivos leitores e ouvintes. As questões que devemos colocar a qualquer escritor são as seguintes: ele ou ela alarga a nossa consciência? E como isso se dá? Sugiro um teste simples, mas eficaz: fora o aspecto do entretenimento, a minha conscientização foi aguçada? Expandiu-se a minha consciência, tornou-se mais esclarecida? Se não, deparei-me com talento, e não com génio. Aquilo que há de melhor e de primordial em mim não terá sido tocado. 36 37 LUSTRO 1 William Shakespeare, Miguel de Cervantes, Michel de Montaigne, John Milton, Leon Tolstoi f: *" éter, ou coroa, na Cabala, simultaneamente, tudo e nada, inicia com este primeiro Lustro de mestres, cada qual tendo dominado, para sempre, seu respectivo género literário. Shakespeare arrebatou todo o teatro moderno; Cervantes, o romance; Montaigne, o ensaio; e Milton, o épico pós-clássico. Tolstoi, seja como romancista ou contista, aproxima-se do outro elemento arrebatado por Shakespeare: a própria natureza. Shakespeare, Cervantes e Montaigne foram contemporâneos, e Shakespeare, sempre propenso a absorver influência, utiliza em sua obra tanto Montaigne quanto Cervantes (embora a peça Cardênio, adaptação de Cervantes feita por Shakespeare e John Fletcher, não tenha sobrevivido). Milton, a contragosto, é profundamente influenciado por Shakespeare: Satanás reúne aspectos de lago, Macbeth e até mesmo de Hamlet. Tolstoi, apesar de odiar e condenar Shakespeare, a quem considerava imoral, apreciava Falstaff, e Hadji Murad o romance excepcional escrito por Tolstoi já idoso, é shakespeariano, em riqueza de personagens. 41 Gasto do espírito, em perda e vergonha, - A lascívia em ação; e até a ação Ela é falsa, é culpada e a medonha Selvagem assassina, é traição; Lenta em fruir-se, mas logo esquecida, E caça além do siso, relutante, Mas cansa além do siso, isca engolida Que ao que fisgou enlouquecera antes. Tanto no perseguir e em ter pegado, Coisa tida e havida irrefreável. Prazer provado e logo reprovado, " Promessa anterior - já sonho instável. O mundo o sabe - e não foge ao eterno Céu que os homens dirige a este inferno.1 - Soneto 129 Shakespeare, que ao menos alterou o nosso modo de representar a natureza humana, se não é que alterou a própria natureza humana, não retrata a si mesmo em nenhuma de suas peças. Se ele revela, nos 154 sonetos que compôs, o próprio interior, é discutível, mas seu génio é neles manifestado quase que infalivelmente. Publicados em 1609, os Sonetos podem ter sido escritos já em 1593, mas mesmo que sejam, de alguma maneira, autobiográficos, distanciam-se, propositadamente, da autorevelação. O mais incisivo de todos, o Soneto 129, sustém-se em um tom extraordinário, denotando uma intensidade controlada, ao mesmo tempo em que, com toda a cautela, poupa os personagens integrantes dos Sonetos: o belo jovem, a Dama Morena, o poeta rival e, de modo crucial, o "eu" que entoa quase todos os demais sonetos do ciclo. Vontade, desejo e até mesmo repulsa são aqui tornados impessoais, mas a energia estranha desses 14 versos expressa, com terrível eloquência, um julgamento negativo sobre o elemento indiscriminado inerente ao impulso sexual masculino, cujo clímax orgiástico é "um desperdício de vergonha". A "dissipação" sexual é mero "desperdício de espírito" no "inferno" qualquer vagina, como conclui o poema. Shakespeare, criador de Rosalinda, Falstaff, Hamlet, lago, Lear, Macbeth, Cleópatra _ figuras a quem somos capazes de conhecer melhor do que a nós próprios -, recusa-se a criar-se a si mesmo nos Sonetos. Apresenta-nos uma gama quase infinita de especulações, mas esquiva-se até da sua própria (suposta) humilhação erótica e do próprio sofrimento. Talvez a alienação a que o poeta se submete seja uma indicação que ele nos dá, a fim de suportarmos o intenso sofrimento estético que nos será causado pelas grandes tragédias. Willíam Shakespeare: Sonetos. Tradução e notas de Jorge Wanderley. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991, p. 289. [N. do T.] 42 43 WILLIAM SHAKESPEARE (1564-1616) O génio de Shakespeare constitui, ao mesmo tempo, o desespero e o êxtase do crítico. É duvidoso que, no leito de morte, Shakespeare, com apenas 52 anos, pudesse se consolar por ter criado Hamlet, Falstaff, Lear, lago, Cleópatra, Rosalinda e Macbeth: homens e mulheres cuja realidade, supostamente ficcional, transcende a nossa. Se eu pudesse entrevistar algum autor falecido, escolheria Shakespeare, e não perderia um segundo sequer, pedindo-lhe que revelasse a identidade da Dama Morena, ou que precisasse os elemento* homoeróticos do relacionamento com Southampton (ou qualquer outro indivíduo). Ingenuamente, deixaria escapar: foi para ti um alento ter criado mulheres e homens mais reais do que homens e mulheres de carne e osso? A linguagem de Shakespeare é fundamental à arte por ele praticada, e é uma linguagem exuberante. O poeta demonstrava imensa propensão a cunhar novos termos, e sempre me estarrece o fato de ele ter empregado mais do que 21 mil palavras diferentes. Dentro desse léxico, ele inventou, aproximadamente, uma em cada 12 palavras: cerca de 1.800 neologismos, muitos dos quais de uso ainda corrente. Racine, extraordinário praticante de uma arte antitética à de Shakespeare, empregou dois mil vocábulos, pouco mais do que o número de termos criados por Shakespeare. Embora, para a crítica retórica, analisar a grande celebração da linguagem realizada por Shakespeare configure uma tarefa tão produtiva quanto árdua, a diferença entre Shakespeare e um punhado de outros poetas de língua inglesa, cujos recursos verbais são, praticamente, infindáveis, é questão de grau, e não de natureza. O verdadeiro diferencial shakespeariano, a singularidade de seu génio, reside em outro aspecto: em sua universalidade, na convincente ilusão (será ilusão?) de que ele povoou um mundo, extraordinariamente semelhante ao nosso, de homens, mulheres e crianças dotadas de uma naturalidade sobrenatural. Cervantes rivaliza com Shakespeare na criação de duas personalidades gigantescas: Dom Quixote e Sancho Pança, mas Shakespeare produziu personalidades às centenas. Bernardino, em Medida por Medida, conta com apenas cinco falas em toda a peça, somando não mais do que sete sentenças, e, no entanto, temos a impressão de conhecê-lo inteiramente. Terá algum outro dramaturgo se destacado, igualmente, na comédia e na tragédia? Não temos comédias de Sófocles, ou tragédias de Aristófanes. Ben Jonson aventurou-se em ambos os géneros, mas somos-lhe mais gratos pelas comédias, Volpone e O Alquimista, e concordamos com seus contemporâneos: Sejanus quase não é encenável. Não esperamos comédias de Racine, ou tragédias de Molière. Ibsen recorre a uma forma mesclada: Peer Gynt não é bem uma comédia, e Hedda Gabler difere de tragédia. George Bernard Shaw, decerto, deveria ter ficado restrito à comédia: Pigmalião ainda viceja, mas Santa Joana é um fiasco. Apenas Shakespeare é capaz de escrever uma peça como Noite de Reis e outra como Rei Lear. Por quê? Ao final do Banquete de Platão, os participantes retornam às suas casas, ou adormecem, embriagados, exceto o trágico Agáton, Aristófanes e Sócrates, capazes de beber mais do que toda Atenas. Os três "sobreviventes" passam uma grande tigela de vinho, de mão em mão, e seguem bebendo, enquanto Sócrates defende a tese de que competia a um mesmo homem escrever comédias e tragédias. Vencidos pelos argumentos do sábio e pelo vinho, Aristófanes e Agáton adormecem, um em seguida ao outro. Depois de fazê-los dormir, Sócrates retira-se, ao alvorecer. Gracejos à parte, o próprio Platão parece estar participando do debate. Podemos especular a sua reação a Shakespeare, cuja arte, de grande abrangência, levaria o dramaturgo a ser, imediatamente, expulso da República platónica. De vez que somente Shakespeare responde ao desafio de Sócrates, vale a pena conjecturar como e por que o autor de Como Gostais pôde escrever Macbeth. Não há qualquer traço de família entre Sir John Falstaff e lago, nenhuma ligação aparente entre Shylock e Hamlet. Nem mesmo Feste, palhaço supremo, nem o Bobo, este em Rei Lear, têm qualquer elemento em comum, exceto a profissão. Shakespeare não era um grande dramaturgo trágico, até escrever Hamlet, na virada do século XVII. Tal feito ensejou, em sequência, Otelo, Rei Lear, Macbeth, António e Cleópatra e Coriolano. Entre as primeiras tragédias, Tito Andrônico é, ao mesmo tempo, caricatura e farsa sangrenta, com efeito, uma paródia. Romeu e Julieta é um esplêndido poema lírico, mas é tragédia de circunstância; nada no próprio caráter de Julieta conduz à catástrofe. Samuel Johnson considerava Júlio César uma peça fria, opinião com a qual concordo; a bem articulada tragédia de Bruto não nos comove, por se tratar de um homem vazio, preso ao solipsismo de sua própria nobreza. Shakespeare teve de aprender a escrever tragédias, e só dominou o género na quarta tentativa. Não era um trágico inato, e tragédia não era para ele o género inescapável; foi preciso pagar caro, intimamente, pela descida ao abismo de lago, Edmundo, Macbeth. Todavia, em comédia, Shakespeare foi brilhante, desde o início da carreira. A Comédic dos Erros é subestimada pela crítica. A peça não é apenas belamente estruturada; a caracterização de Antífolo de Siracusa possui grande ressonância psicológica, além de contorno preciso. Costumamos ler e encenar A Megera Domada de maneira equivocada, como uma estripulia misógina: a peça é exatamente o contrário, ao relatar, corr sutileza, como se faz um verdadeiro casamento, a fim de se defender da suposta sapiência do mundo. Trabalhos de Amor Perdidos é quase uma obra-prima desconhecida, quí 44 45 esconde a sua riqueza cómica atrás do esplendor barroco de uma retórica elevada. Sem Shylock, O Mercador de Veneza seria uma das comédias românticas mais inventivas; com Shylock, é um grande enigma. Os triunfos cómicos de Shakespeare, que nem mesmo Molière conseguiu igualar, são Sonho de Uma Noite de Verão, Como Gostais, Noite de Reis e, o que costumo chamar, as peças de Falstaff, isto é, as duas partes de Henrique IV. Na segunda parte, FalstaíF se torna sombrio, ao final, marginalizado, no limbo habitado por Shylock e pelo pobre Malvolio. Contudo, Falstaff é o que William Hazlitt definiu: o ápice da realização cómica, em toda a literatura, como convém a uma figura que se equipara a Hamlet e a Rosalinda, em espirituosidade, inteligência e agudeza psicológica. Seguindo o próprio impulso, Shakespeare escreveu comédias, até que sombras envolveram Tróilo e Créssida, Bem Está o Que Bem Acaba e Medida por Medida, scherzo que destrói o género. Contrafeito, Shakespeare compôs tragédias, até que Timão de Atenas, de modo similar, encerrou a prática do género para o dramaturgo. Quanto à fase final, equivocamo-nos, novamente, ao adotar a nomenclatura "romance", empregada por Edward Dowden, crítico irlandês que viveu no final do século XIX. Os trechos shakes-pearianos em Péricles e, já no final da carreira, Os Dois Nobres Parentes são tragicomé-dias, assim como Cimbeline, O Conto do Inverno e A Tempestade. Estas últimas são comédias diferentes, mas, sem dúvida, são comédias. Pelo que se supõe, um misto de interesses comerciais e pessoais guiavam o movimento de Shakespeare entre uma peça e outra, embora, provavelmente, jamais venhamos a ter conhecimento de suas motivações pessoais. Ocorre que estamos falando da consciência mais aberta e do intelecto mais penetrante de toda a literatura, ultrapassando até mesmo Dante. Embora Shakespeare, ao contrário de Ben Jonson, sempre misturasse géneros dramáticos, infringindo todas as regras, dificilmente, não teria ciência do alcance infinito da sua própria força. O teatralismo à moda antiga e o tumulto causado por encenadores e académicos entusiastas de um "Shakespeare francês" (como se fosse escrito por Foucault) têm tornado obscura a complexidade literária das principais peças shakespearianas. Mesmo que não existissem as peças publicadas in-quarto - sejam tais publicações autorizadas ou pirateadas -, se lermos com atenção, constataremos que Shakespeare contava com a leitura de seus textos dramáticos. Hoje em dia, afogamo-nos na mídia visual; o público à época de Shakespeare, habituado a frequentar a igreja, era mais capacitado a absorver complexidades através da audição. No entanto, mesmo os espectadores mais perspicazes teriam dificuldade de apreender a fala crucial do Ator Rei, na "peça-dentro-da-peça" (Ato 3, cena 2, linhas 183-209), composta de 26 versos de grande densidade e assim concluída: Cada fato é à ideia tão avesso, Que os planos ficam sempre insatisfeitos; As ideias são nossas, não os feitos.2 Refletir sobre o génio é, necessariamente, refletir sobre a originalidade autêntica e i primazia da criatividade. Em relação a Homero e à Bíblia, Shakespeare surgiu posteriormente, mas tanto Homero, na tradução de Chapman, quanto a Bíblia de Genebra não representaram mais do que fontes secundárias para Shakespeare, ambas menos importantes, em termos práticos, do que Ovídio. Exceto durante os primeiros anos da carrein de dramaturgo, em que a figura de Christopher Marlowe o incomodava um pouco, Shakespeare aceitou de bom grado a influência de predecessores. A criação de FalstaíF t Hamlet livrou-o de quaisquer resquícios da influência de Marlowe, a não ser por certo; aspectos que Shakespeare, ironicamente, transformaria em instrumentos de paródia. Com a prosa de Falstaff, assim como com a poesia e a prosa de Hamlet, Shakespeare celebra o seu próprio génio. Além dos personagens shakespearianos, há outros na literatura mundial que parecen sempre ter existido, desde muito antes do momento em que foram criados pelos respectivos autores. No entanto, a peculiaridade do triunfo de Shakespeare é que as mulhere; e os homens por ele imaginados (e foram muitos) fazem-nos supor que Shakespeare fo criado por eles, ou, pelo menos, que é um deles, um de seus companheiros. Willian Hazlitt, referindo-se a Falstaff, afirmou: "O próprio personagem é um ator, quase come se estivesse no palco." Aprecio, imensamente, quase tudo que FalstaíF diz, mas, principalmente, a declaração que faz a Hal: Fazes sempre citações execráveis; és capaz de corromper um santo. Tu me tens prejudicado muitíssimo, Hal; Deus te perdoe. Antes de conhecer-te, Hal, ignorava tudo; e agora, para dizer toda a verdade, valho pouco mais que um pecador.3 Haverá, em toda a literatura, personagem que tanto se divirta com aquilo que diz quanto FalstaíF nesse momento? Eis o ponto-chave da observação de Hazlitt: o própric FalstaíF é um ator, além de ser um papel. Falstaff sempre atua no papel de Sir Johr FalstaíF, assim como sua alma gémea shakespeariana, Cleópatra, jamais deixa de representar o papel de sábia serpente do Nilo. Atónito, sempre procuro me lembrar qu£ FalstaíF e Cleópatra são papéis destinados a atores, mas o lembrete é sempre ineficaz. 2 Hamlet. Tradução de Anna Amélia Carneiro de Mendonça. Rio de Janeiro: Editora Agir, 1968. p. 13 [N. do T.] 3 Henrique IV. Tradução de Carlos Alberto Nunes. São Paulo: Edições Melhoramentos, s.d. [N. do T.J 46 47 Não é para menos. A realidade de um personagem literário ou dramático é predicado necessário, a fim de que a leitora possa resguardar o sentido da sua própria realidade. Não existe a morte do autor, contrariamente ao que afirma o ilustre Foucault. Aos 71 anos de idade, um indivíduo, com toda a razão, torna-se impaciente diante dos que pretendem reduzir escritores à energia social, leitores a compiladores de fonemas, e Falstaff, Hamlet e Cleópatra a meros papéis destinados a atores e atrizes. Nossa morte é real o suficiente; será a nossa vida menos real? Tudo o que Hamlet, Falstaff e Cleópatra requerem de nós é que não os entediemos. Diante de que altar haveremos de nos prostrar? A quem mais adorar? Sancho Pança ou Dom Quixote talvez escolhessem Cervantes, mas esses dois personagens sublimes estão sozinhos. Com que frequência é possível desempenhar um papel que não é de Shakespeare? Quero dizer: que já não é de Shakespeare? Emerson considerava o criador de Falstaff o rei da folia junto à humanidade. Mas até Emerson assentia; Falstaff rivaliza o Sócrates de Montaigne, na posição de sábio da consciência humana. A despeito do elogio condicional de Johnson, e do entusiasmo de Hazlitt, Swinburne, A. C. Bradley e Harold Goddard, Falstaff ainda me parece - levando-se em conta talento e mérito - o personagem mais subestimado em toda a Literatura Ocidental. Portanto, detenho-me aqui no génio de Sir John Falstaff. O perene bom humor do personagem, embora demonstrando um encanto sublime, é mais uma questão de carisma do que genialidade, em qualquer sentido que tomemos a palavra "génio". Embora Falstaff, acertadamente, congratule-se consigo mesmo pela sua própria "espirituosidade" - termo que à época abrangia um campo semântico bem maior do que hoje -, Sir John não é mais espirituoso do que Hamlet, Rosalinda e Cleópatra, ou, na acepção negativa do conceito, lago e Edmundo. Falstaff, como sempre, acerta ao observar que não é apenas espirituoso, mas que suscita a espirituosidade de terceiros. Falstaff é um mestre, e a disciplina por ele ministrada é a espirituosidade, mesmo que à custa de si mesmo. A companhia de palhaços que o cerca é constituída de alunos relapsos, meros imitadores do mestre. Mas ele tem um aluno promissor: brilhante, racional, empedernido, hipócrita, o maquiavélico Príncipe Hal pupilo dotado de autêntico génio. Antes do início da ação na Primeira Parte de Henrique TV, os estudos de Hal já foram completados, e o escandaloso professor Falstaffirreprimível e onipre-sente - deve, na avaliação do Príncipe, ser liquidado, talvez com o máximo de parcialidade, na forca. Shakespeare, no entanto, não toleraria a ideia de entregar Falstaff ao carrasco. Na verdade, não foi capaz de mostrar a morte de Falstaff (ou Macbeth!) no palco. Mas Hal deseja ardentemente, e com efeito precisa retirar Falstaff de cena, pois, enquanto Falstaff detém a nossa atenção, Hal não consegue ser a estrela. Ao longo de toda a ação na Primeira Parte de Henrique Iv, Hal esforça-se para integrar a peça a um grande épico em torno dos reis de nome Henrique, destruindo Hotspur e, assim, usurpando-lhe a "honra" conquistada, e subjugando Falstaff, a qualquer custo. Hal, lutador imbatível, pergunta-se: Quem pode subjugar Falstaff? Shakespeare e o próprio Hal demonstram conhecer a resposta a essa pergunta quando, na Segunda Parte de Henrique IV, Hal compartilha (não será essa a palavra adequada!) com Falstaff não mais do que duas cenas. O Príncipe espiona Falstaff, de maneira, ao mesmo tempo, tocante e espalhafatosa, cortejar a prostituta Doll Tearsheet, e, ao final, fazendo uso de uma brutalidade moralista, rejeita e humilha o velho companheiro. Shakespeare, no epílogo, promete levar Falstaff à França, em Henrique V, mas, sabiamente, muda de ideia. Mesmo rejeitado, Falstaff roubaria a cena de Hal, na peça em que este constitui o centro. Sir John transformaria a Batalha de Agincourt em uma reprise da Batalha de Shrewsbury, e já não existiria mais a peça. Imagine Henique V conclamando - "Nós, poucos; nós, os poucos felizardos" - a um destacamento que incluísse Falstaff. É inconcebível. Agincourt não era o tipo de batalha do qual se participasse levando à cinta uma garrafa de xerez. E nem o autor nem o público tolerariam ver Sir John enforcado, como o fora o pobre Bardolfo, a fim de animar os demais. Shakespeare, embora incapaz de permitir a Falstaff uma morte em cena, concede a melhor fala de Henrique Va. Mistress Quickly, que canta uma esplêndida ária, em cock-ney, relatando o falecimento de 5/VJohn Falstaff: Não, ele não está no Inferno, não. Está perto de Artur; se é que algum homem se foi para perto de Artur. Teve um belo fim; foi-se como um bebezinho batizado. Foi-se entre doze e uma, na hora que a maré virou - quando o vi tatear o lençol, brincar com flores e sorrir para a ponta do próprio dedo, percebi que não tinha mais jeito. O nariz estava fino como pena de escrever, e esverdeado. "Ora, Sir John?", disse-lhe eu. "Vamos, homem! Não vais te animar?" E ele gritou "Deus, Deus, Deus", três ou quatro vezes. Então, para confortá-lo, disse-lhe que não ficasse pensando em Deus, que esperava ainda não ser chegada a hora de se preocupar com tais pensamentos. E ele me pediu que colocasse mais panos sobre seus pés. Enfiei a mão embaixo das cobertas e toquei-lhe os pés; estavam frios como pedra. Então, toquei-lhe até os joelhos, e mais acima, e mais.acima, e tudo estava frio como pedra. E assim, a Sir John é conferida uma canção fúnebre comparável à de Hamlet, enquanto Shakespeare murmura, pesaroso, referindo-se às suas maiores criações: 'Deixai-as em paz." 48 49 Contudo, não pretendo deixar em paz o génio da educação que é Falstaff, o Sócrates de Eastcheap, que também morre em consequência de veneno. Henrique V destrói o que há de mortal em SzVJohn, com o mesmo radicalismo com que aniquila o exuberante Hotspur. Mas Sócrates tinha o seu demónio, ou génio, tanto quanto Falstaff, e o génio é um deus que está além do alcance da vingança de Hal. Wyndham Lewis e William Empson insinuaram a existência de um antigo relacionamento homoerótico entre Hal e Falstaff, mas não encontro qualquer insinuação dessa natureza no texto shakespeariano. Alcibíades diz que tentou seduzir Sócrates, mas não obteve sucesso. É improvável que Hal pretendesse realizar peripécia tão grotesca, durante o longo período que antecede as aventuras encenadas nas peças em que figura Sir John Falstaff. Hal e Hotspur apresentam nuanças mais convincentes de homoerotismo, em seu relacionamento antagónico, mas o estilo de docência de Falstaff é muito diferente do de Sócrates. Sócrates professa sábia ignorância, mas SzVJohn exibe o próprio conhecimento, e sua didática é a do excesso, do transbordamento, e não de ascesis. Os predecessores de Falstaff na obra shakespeariana são Falconbridge, o Bastardo, em King John, e o tão subestimado Bottom, de Sonho de uma Noite de Verão. Mais do que esses precursores, Falstaff desafia todo revés, e triunfa até morrer de amor: amor de mestre, eu salientaria. Mas já ouvi céticos questionarem esse amor. Pois bem, o que vem a ser amor de mestre? No mundo académico de língua inglesa, dirigido por puritanos tão atentos, temos hoje em dia grupos de tricô semelhantes ao de Madame Defarges, esperando, com sadismo, o espetáculo da guilhotina, punição cabível em caso de "assédio sexual", essa pobre paródia do eros socrático. Conquanto aos 71 anos de idade e, portanto, um indivíduo para quem virtude e exaustão tornaram-se sinónimos, continuo a acreditar que um eros ainda mais dualista do que o de Sócrates seja necessário, com efeito, essencial ao magistério bem-sucedido. Emerson, com satisfação, fez lembrar aos norte-ameri-canos (e a todos os demais povos) que somente o transcendental, o extraordinário seria o bastante. A respeito do Gólgota, Emerson observou: "Foi uma Grande Derrota - nós exigimos a Vitória, a vitória dos sentidos, tanto quanto da alma." O atrevimento emer-soniano é, absolutamente, falstaffiano - Sir John, também, exige a vitória, em tudo, exceto no campo de batalha, para onde esse zombador da honra é arrastado, mesmo a contragosto. Por quê? A motivação do Príncipe Hal é suficientemente clara: qualquer morte honrosa haveria de redimir o mestre que se tornara inconveniente. Shakespeare responde com Falstaff: "Sir Walter Blunt! Que honra, que nada! Não me agrada o sorriso honroso que vejo em Sir Walter. Dêem-me vida!" Falstaff não seria integrado ao corpo docente de West Point, nem de Sandhurst. Seria contratado pela Universidade de Yale? Mesmo que, por talento ou malícia, fosse efetivado em Yale, teria de constituir, sozinho, o seu próprio departamento, sem colegas, embora atraísse muitos alunos. As instituições pedem aos professores que sejam "bons cidadãos académicos", o que significa, em época de eleição, sair cedo para votar, e fazê-lo sempre, bem como seguir a moda, seja lá qual for. Como eleitor, Falstaff é um tanto tinhoso (uma das melhores imagens norte-americanas), mas, em sua taverna-sala de aula, ele ensina a qualquer pessoa qualificada que o significado tem início a partir da auto-escuta, da vitalidade da mente, e que o sentido nasce para que a comédia floresça. Falstaff ou Hamlet, qual dos dois seria o centro da obra de Shakespeare? Orson Welles, zombando de si mesmo, imaginava que Hamlet teria se mudado para a Inglaterra, ficado velho e gordo e se tornado Sir John Falstaff Bernard Shaw, que odiava Falstaff e Cleópatra, despachou Falstaff para o Egito, submeteu-o a uma dieta rígida, a uma cirurgia e alteração de sexo, transformando-o, de Sir John, o sábio de Eastcheap, em Serpente do Nilo. Falstaff, Hamlet, Cleópatra: basta acrescentar Rosalinda, lago, Macbeth e o quarteto Lear, Edmundo, Edgar e o Bobo, e tenho um grupo de personagens sobre os quais poderia meditar para todo o sempre. Não pretendo com isso desistir do Bastardo Falconbridge, de Bottom, Julieta, Feste, Viola, Leontes, Imogênia, Próspero e outras duas dúzias mais; porém, meditar sobre Shylock é, para mim, algo por demais doloroso, assim como nos casos de Otelo, Desdêmona, António, Coriolano, Timão e alguns outros. Onde encontrar Shakespeare na obra de Shakespeare? Todos querem encontrá-lo nos Sonetos, mas ele é astuto demais, e só o próprio diabo seria capaz de encontrá-lo naqueles versos. Atuou no papel de Fantasma, em Hamlet, e do Velho Adão, o criado em Como Gostais. É possível que tenha feito o papel de António, respectivamente, em O Mercador de Veneza e Noite de Reis, e, ao que tudo indica, representou uma quantidade de reis e nobres idosos - Júlio César, Henrique IV, o Conde de Gloucester -, mas tudo não passa, admito, de conjectura. Na opinião de James Joyce, Shakespeare ficaria muito à vontade no papel do Fantasma do pai de Hamlet, e Joyce pode, de fato, estar certo. Poldy Bloom, porta-voz de Joyce, é assombrado por dois fantasmas: o do pai e o do filho. O pai e o filho único de Shakespeare morreram antes de a versão final de Hamlet ser encenada. Hamlet é um homem assombrado, até conseguir se livrar do fantasma do pai, durante a viagem marítima, e voltar, extraordinariamente diferente, a fim de passar pela catástrofe do quinto ato. O desenvolvimento de Hamlet, de aluno assustado a mestre de teatralismo, não e muito diverso do shakespeariano, mas isso me parece uma questão menor. De maior peso para a arte de Shakespeare foi a influência de Falstaff em Shakespeare, que ensejou Hamlet. Ainda mais importante foi a influência de Hamlet em Shakespeare, que ensejou tudo. 50 51 Wilhelm Meister, de Goethe, tenta desenvolver a própria persona dirigindo-se a si mesmo no papel de Príncipe da Dinamarca, em uma montagem de Hamlet, peça que ele acredita ser, em parte, um romance. Com bastante ironia, Goethe centra esse suposto aspecto romanesco, inteiramente, no Fantasma. Um estranho, encapuzado e misterioso, trajando capa branca, veste a armadura e atua como Fantasma, contracenando com o Hamlet desempenhado por Wilhelm. Wilhelm, convencido de que se trata do próprio pai já falecido, supera-se como ator, pois, em última instância, atua no papel de si mesmo. Talvez Goethe, no que diz respeito a Shakespeare, finalmente, atue no papel de si mesmo, no estranho ensaio intitulado Schãkespear und kein Endel, de 1815, em que Shakespeare parece, se tornar o fantasma do pai de Goethe. O verdadeiro pai, Johann Caspar Goethe, morto em 1782, amealhara fortuna e adquirira um brasão de armas, mas não conseguira ascender socialmente. Caspar Goethe passou então a se concentrar no filho, cujo sucesso se tornou para o pai uma obsessão. É impossível superar o sucesso obtido em vida pelo sábio e poeta Goethe, e, no entanto, Goethe continuou a ser assombrado por Shakespeare e, especialmente, por Hamlet. Goethe não tinha como saber se o próprio Shakespeare fora o primeiro a fazer o papel do Fantasma do pai de Hamlet, mas teria apreciado a ironia decorrente do fato de Shakespeare escalar a si mesmo para o papel. Goethe tampouco sabia que John Shakespeare, pai de William, havia perdido a condição de cavalheiro dotado de brasão de armas, o que lhe foi mais tarde resgatado por William. Goethe teve a imensa vantagem de carecer de precursores marcantes em alemão. A obra de Shakespeare, embora inserida na tradição inglesa, chauceriana, prestase, esplendidamente, à tradução à língua alemã, fato que incomodava Goethe mais do que ele estava disposto a admitir. A Segunda Parte de Fausto, magnificamente ultrajante, é, em diversos trechos, paródia a Shakespeare, especialmente a Hamlet. Incapaz de reinventar o humano, como o fizera Shakespeare, Goethe viu-se compelido a ironizar todas as representações do humano, inclusive em seu próprio Fausto, um mortovivo quando lido em comparação a Hamlet. Isso pouco importava a Goethe, pois sua personalidade transcendia qualquer inventividade de que ele fosse capaz. Shakespeare escondese no interior e atrás da própria obra; até mesmo a Segunda Parte de Fausto tem dificuldade em alcançar Goethe. Devemos a Goethe a interessante ideia - hoje em dia tão fora de moda no mundo anglófono - de que se lucra mais lendo Shakespeare do que assistindo a encenações de suas obras. Goethe estava certo, e sua suposição de que as grandes peças shakespearianas transcendem a questão do género está, fundamentalmente, correta. As duas partes de Henrique IV, lidas em sequência, constituem, ao mesmo tempo, grande teatro e romance extraordinário, ancestrais dos Irmãos Karamazov, assim como Hamlet é precursora de Crime e Castigo. O que pode um espectador fazer, diante das alusões obsessivas de Falstaff à parábola de Jesus sobre Lázaro e o glutão? Shakespeare desenvolve o tema na cena da rejeição, que conclui a Segunda Parte de Henrique IV, e leva a questão à apoteose, no relato feito por Mistress Quickly sobre a morte de Sr John Falstaff, em Henrique V. E os aspectos romanescos de Hamlet vão muito além das exigências perturbadoras feitas pelo Fantasma. A invenção do humano, por Shakespeare, foi elemento tão importante na invenção do romance quanto a transformação que Cervantes fez do picaresco, em análise de personagem, que configura o relacionamento entre Quixote e Sancho. Onde começa o nosso eu? Goethe, autoridade em questões de desenvolvimento, não se detinha a refletir sobre a própria origem. Shakespeare, psicólogo incomparável, inventou para nós uma nova origem, na ideia mais iluminada até hoje descoberta ou inventada por um poeta: o auto-reconhecimento gerado pela auto-escuta. Quando se deu o nosso princípio? Terá o Fantasma, em Hamlet, concebido Shakespeare e Goethe, e todos os grandes escritores desde então, ou terá o crime cometido por Cláudio, que é o crime de Caim, gerado todos nós, especialmente, nesses dois últimos séculos? Seríamos capazes de escutar a nós mesmos e, como consequência de certos impactos, passar por mudanças, se não nos confrontássemos com o fantasma do nosso pai, prefigurado no Fantasma do Rei Hamlet? Tenho sido mal compreendido quanto a essa noção; portanto, desejo aqui desenvolvê-la. John Stuart Mill observou que a poesia é ouvida por acaso, em vez de ser, simplesmente, ouvida. Não somos o Príncipe Hamlet, mas, às vezes, ouvimos a nós mesmos, por acaso, e nos assustamos. Despertamos para novos níveis de autoconsciência ou apenas percebemos que não somos o que pensávamos ser? Diante do espírito armado do pai, Hamlet fica tão surpreso quanto no momento em que escuta, por acaso, o próprio espírito? Oh Deus, eu poderia viver preso numa casca de noz e me sentir um rei de espaços infinitos, se não fossem esses maus sonhos que tenho. Eis a origem de Ham, na peça de Samuel Beckett intitulada Fim de Jogo, e a origem do próprio Beckett, mediado por Joyce e Proust, e, em último caso, como todos nós, por Hamlet, mestre da escuta por acaso. Kierkegaard, que desejava aprender a trabalhar a ironia a partir da dificuldade em se tornar cristão, na verdade, absorveu a noção de Tradução de Carneiro de Mendonça, op. cit., p. 92. [N. do T.] 52 53 ironia junto aos métodos de Hamlet, cujas palavras raramente expressavam o sentido mais óbvio. Proust, outro mestre da ironia, escreveu um ensaio extraordinário a respeito da leitura como processo de auto-escuta, no prefácio à sua própria tradução de Sesame and Lilies, de John Ruskin. Ler, diz Proust, não é conversar com terceiros. O diferencial da leitura consiste em cada um de nós receber a comunicação de um outro pensamento, mas enquanto permanecemos sozinhos, enquanto continuamos a desfrutar a força intelectual de que dispomos na solidão, força essa que a conversa dissipa, imediatamente. * A força intelectual de Hamlet jamais se dissipa, pois o Príncipe fala a todos, mas não ouve ninguém, exceto, talvez, o Fantasma. Tenho minhas dúvidas se qualquer personagem shakespeariano ouve alguém. Otelo é destruído pela genialidade de lago, em termos dé sugestão e insinuação; porém, se ouvisse lago com mais atenção, seria menos suscetível ao engano. Macbeth, após ouvir, brevemente, a esposa, fica a tal ponto imerso em auto-escuta que mal percebe a perda da mulher, primeiro, em consequência da loucura, e, em seguida, da morte. De maneira um tanto ou quanto hilariante, António e Cleópatra não ouvem ninguém, exceto eles mesmos. O pobre António exclama: "Morrendo, Egito, estou morrendo. Dá-me / Vinho, e me deixa falar um pouco." E Cleópatra responde: "Não, deixa eu falar!".5 Assim como Proust mais tarde, Shakespeare não tinha muitas ilusões, em se tratando de amizade e amor. Em Shakespeare, auto-escuta é o caminho real da mudança. Hamlet, notoriamente, sofre alterações cada vez que ouve as próprias palavras, motivo pelo qual não se pode falar em trecho principal nesse texto de quatro mil linhas, das quais 1.500 constituem o papel do Príncipe. Recriações de si mesmo realizadas por Hamlet através de um processo de auto-escuta permeiam a peça, mas recorro à primeira cena do quinto ato, linhas 66-216, a cena extraordinária de Hamlet no cemitério, que culmina com o príncipe contemplando o crânio de Yorick. É possível afirmar que a peça A Tragédia de Hamlet, Príncipe da Dinamarca - transcorre entre as relíquias medonhas dos dois pais de Hamlet, isto é, o Fantasma do Rei Hamlet e o crânio do bobo da corte, Yorick, substituto da figura paterna para o jovem Príncipe, a quem o verdadeiro pai não prestava muita atenção: Carregou-me nas suas costas mais de mil vezes; e agora como é horrível imaginar essas coisas! Aperta-me a garganta ao pensar nisso. Aqui ficavam os lábios que eu beijei nem sei quantas vezes. O Fantasma jamais diz ter amado o filho, sendo improvável que o Rei Hamlet levara o Príncipe às costas uma vez sequer, muito menos mil. É duvidoso que o Príncipe tenha beijado Ofélia e Gertrudes "não sei quantas vezes". Se, em criança, Hamlet foi amado, e amou, o objeto desse sentimento teria sido Yorick. Não creio que, quando adulto, Hamlet ame quem quer que seja, a despeito de suas declarações, o que torna ainda mais misterioso o motivo pelo qual nos juntamos à população dinamarquesa, em afeto a esse alienado tão carismático. Goethe parodia a cena do cemitério, ao compor o relato da morte e sepultamento de Fausto, mas o próprio Hamlet não deixa espaço para qualquer paródia posterior: Essa caveira já teve uma língua, já pôde cantar um dia; olha como esse idiota a atira ao solo, qual fosse a queixada de Caim, que cometeu o primeiro assassinato!7 E assim, o assassinato do Rei Hamlet, nas mãos de Cláudio, que faz lembrar o ato praticado por Caim, desaparece nesse excesso paródico de exuberância negativa. O que significa dizer que Hamlet escuta a si mesmo, ao fazer essa alusão a Caim? Haverá alguma diferença entre ouvir com atenção e ouvir por acaso as próprias palavras? Quando nos surpreendemos, ao ouvir nossas vozes em uma gravação, estamos ouvindo com atenção ou por acaso? Os dicionários definem "overhear" como "ouvir por acaso". Ouvir a si mesmo por acaso é não perceber, a princípio, a própria fala. Essa ausência de percepção é tão breve, que o processo de auto-escuta parece mesmo constituir algo metafórico, embora o momento de não-reconhecimento seja autêntico. Shakespeare, a meu ver, inspirando-se em Chaucer, aproveita-se desse momento para moldar uma nova versão da vontade que tem o ser humano de modificar-se. Tal processo teria uma dimensão suficiente para configurar a invenção (ou reinvenção) do humano? No mais famoso de seus sete solilóquios, Hamlet ouve (por acaso?) a si mesmo contemplar a possibilidade de armar-se contra um mar de desventuras e dar-lhes fim tentando evitá-las. Todos nós, que defendemos interesses literários, herdamos a noção equivocada de Hamlet, relativa ao poder da mente do poeta diante de um mar, de um universo mortal. O que Shakespeare inventa, de modo supremo, por meio de 5 António e Cleópatra. Tradução e notas de José Roberto 0'Shea. S5o Paulo: Mandarim, 1997, p. 297. [N. do T.] 54 6 7 55 Tradução de Carneiro de Mendonça, op. cit., p. 210. [N. do T.] Tradução de Carneiro de Mendonça, op. cit., p. 203. [N. do T.] Hamlet, é a afirmação interior de uma oposição àquilo que mais ameaça o sempre dinâmico espírito do eu. O estudo que Hamlet faz de si mesmo é algo absoluto, e reduz o que está fora do eu a um mar de desventuras. Sempre refletindo sobre as próprias palavras, como se fossem e não fossem ditas por ele mesmo, Hamlet torna-se teólogo da própria consciência, cujo perímetro é tão vasto que jamais pode ser apreendido. Será possível esbanjar toda a nossa inteligência na interpretação de Hamlet, sem nos tornarmos, de certo modo, Hamlet? Se em uma mesma montagem atuava como Fantasma e Ator Rei, visto que era comum à época um ator desempenhar esses dois papéis, Shakespeare confrontava Hamlet duas vezes: uma vez como pai, a outra como estudante de teatro. O pai e o filho único de Shakespeare (Hamnet) já haviam falecido, quando a versão definitiva de Hamlet foi encenada, em 1600-1601. Hamlet morre sem filho e sem pai, e sucumbe na plenitude do próprio carisma, sem clamar por ressurreição ou imortalidade poética, querendo apenas preservar a dignidade do seu nome. Um grande niilista, por exemplo, lago ou Svidrigailov, pouco se importaria com o fato de o próprio nome ser manchado para sempre. O Hamlet do quinto ato controla as nossas perspectivas: não sabemos mais do que ele, e ele acredita que sabemos menos. Será que Shakespeare sabia mais do que Hamlet? No sentido hegeliano, Hamlet é o mais livre dos artistas de si mesmo, e seria capaz de nos dizer muito mais sobre o que representa, se para tal houvesse tempo. Na minha interpretação, isso significa que Hamlet é o artista supremo da autoescuta acidental e, portanto, pode nos ensinar ao menos os princípios dessa arte desconcertante. Ouvir a si mesmo, ainda que por um instante, sem se dar conta, é abrir o espírito às tempestades da mudança. Shakespeare conferiu esse tipo de abertura, de modo mais abrangente, a Hamlet e Falstaff, mas a característica é uma constante em toda a obra madura do dramaturgo. Ilustro a questão, até onde posso fazê-lo, com Edmundo, agonizante, em Rei Lear, porque, no extremo, a mudança sofrida por esse personagem, em termos dramáticos, parece-me ser a mais convincente em toda a obra shakespeariana. Iago de Edgar, afilhado de Lear. Iago exibe uma satisfação um tanto traquinas, em sua bela perversidade, mas Edmundo está acima disso. Os niilistas de Dostoiévski - Svidrigailov e Stavrogin - aprenderam certas lições com Edmundo, mas são incapazes de igualar-lhe a frieza sublime. Amante de Goneril e Regan, monstros rivais das profundezas, e traidor do pai e do irmão, Edmundo supera-se ao ordenar a execução secreta de Lear e Cordélia. Remorso, compaixão, afeto, nem mesmo a luxúria autêntica têm lugar na natureza de Edmundo. Estirado no chão, agonizando em consequência do ferimento mortal desferido por Edgar, ele se torna cordato, ao saber que seu algoz é de estirpe tão nobre quanto a sua: "Girou a roda e completou o círculo, / Estou aqui."8 Um tanto comovido pelo relato de Edgar sobre a morte do pai, Edmundo torna-se propenso à mudança, que ocorre de modo decisivo, por meio de uma auto-escuta surpreendente. Os corpos de Goneril e Regan são trazidos ao palco, e Edmundo decifra sua própria situação: Mas Edmundo foi amado: Por mim, uma envenena a outra, e mata-se Depois.9 Extremamente surpreso ao se ouvir dizendo "Mas Edmundo foi amado", o filho bastardo de Gloucester só pode crer naquilo que ouve quando acrescenta o óbvio, tão doloroso: "Por mim, uma envenena a outra, e mata-se / Depois". Nesse momento, em que Edmundo ouve as próprias palavras, sem se dar conta, e com pouca intenção de fazê-lo, a auto-escuta por acaso não é apenas uma metáfora. Não há momentos similares em Homero ou na Bíblia, em Virgílio ou Dante. Temos aqui uma nova interioridade, que gera, em lugar de confrontar, mudança. Tardiamente, "oposto a mi'a maldade",10 Edmundo renega seus mandos assassinos e tenta salvar Cordélia e Lear. Para Cordélia, é tarde demais, e Lear, novamente louco, entra em cena trazendo nos braços o corpo da filha. Shakespeare aperfeiçoa a auto-escuta por acaso, tornando-a um mecanismo que será crucial a Tchekhov e Stendhal, Dostoiévski e Proust, e muitos outros escritores. Se inventar o sempre crescente espírito interior, inclusive a capacidade de auto-escuta por acaso, não constitui a invenção do humano, da maneira como temos entendido o ser humano, então, talvez estejamos por demais esmagados pela História Social e pelas ideologias, para reconhecermos nossa dívida com William Shakespeare. 8 Rei Lear. Tradução e notas de Ma de Oliveira Gomes. Rio dfrjailttio: EdUFRJ, 2000, p. 315. [N. do T.. 9 Tradução de Oliveira Gomes, op. cit" p. 321. [N. do T.] 10 Ibid. 56 57 MIGUEL DE CERVANTES "Mas de tudo o que vi enquanto estive lá, o mais doloroso foi o que aconteceu durante uma conversa com Montesinos, quando uma das duas companheiras desafortunadas de Dulcinéa aproximou-se de mim sem que eu percebesse, e, com lágrimas nos olhos, e voz tremula, disse: Minha senhora, Dulcinéa dei Toboso beija-lhe as mãos, excelência, e pede-me que obtenha notícias suas; e, também, porque a necessidade é grande, pede-me que pergunte a vossa excelência, com todo fervor, se não poderia emprestar-lhe seis pesos, ou qualquer importância que trouxer consigo, recebendo como garantia esta anágua de algodão, novinha em folha, que tenho comigo; e a senhora promete pagamento muito breve. Tais palavras deixaram-me absolutamente mudo; por conseguinte, voltei-me para Montesinos e perguntei-lhe: Senhor Montesinos, é possível, a pessoas de estirpe nobre, uma vez enfeitiçadas, passar necessidade? Ao que ele respondeu: Acredite, excelência, senhor Dom Quixote de la Mancha, a condição a que chama mos "necessidade" está em toda a parte, ignorando quaisquer fronteiras ou limites, e não poupa os que estiverem enfeitiçados; portanto, se a senhora Dulcinéa dei Toboso envia à vossa excelência esse pedido de seis pesos, e se a garantia oferecida é segura, parece-me recomendável confiar-lhe a soma estipulada, pois, sem dúvida, deve estar mesmo necessitada." - "Na Caverna de Montesinos", vol. 2, capítulo 23, Dom Quixote Será que o notável cavaleiro, Dom Quixote, acredita em seu próprio relato fabuloso sobre a descida à Caverna de Montesinos? Quixote não aceita a anágua de algodão oferecida pela pobre Dulcinéa como garantia e, consternado, envia-lhe apenas quatro dos seis pesos solicitados, pois é tudo o que possui. Em meio às maravilhas surrealistas da Caverna, o Cavaleiro pode ser ele mesmo: sagaz, bondoso, gentil, galante e não muito insano. Não temos como saber se ele acredita, literalmente, nas histórias que conta, porque, à semelhança do seu criador, Cervantes, Quixote é um génio da narrativa, tão metafísico quanto romântico. A defesa que Dom Quixote faz da própria carreira é, a um só tempo, ética e metafísica, e, notavelmente, ocorre no contexto das críticas que lhe faz um padre. O pobre clérigo equivoca-se, ao acusar o Cavaleiro de estar fora da realidade: "Vá para casa! (...) pare de errar por aí." A resposta de Quixote é arrasadora: "Acertei contas relativas a ofensas e insultos, corrigi injustiças, puni arrogância, derrotei gigantes e pisoteei monstros." O romance, de Cervantes a Proust, criou um esplendor ético e metafísico que só declinaria recentemente, com a Era do Cinema. O contributo de Cervantes a essa criação foi a coragem quixotesca - literal, moral, visionária. Cervantes compartilha com Shakespeare e Dante um aspecto específico do Keter (ou coroa) cabalista: a audácia de Adão no início da manhã (conforme dizia Walt Whitman), a participação na vontade divina, ao que os cabalistas chamavam Razon. Toda e qualquer emanação literária posterior irradia de Cervantes, assim como de Shakespeare. 58 59 MIGUEL DE CERVANTES (1547-1616) A vida de Cervantes foi tão repleta de incidentes e infortúnios que, em grande parte, parece exemplificar os relatos ficcionais desse que foi o maior escritor em língua espanhola, eminência, para todo o sempre, comparável a Dante, Shakespeare, Montaigne, Goethe e Tolstoi, que escreveram nos demais grandes idiomas vernáculos ocidentais. Pretendo discutir a influência de Dom Quixote em Cervantes, retomando um dos fios condutores (ao menos, no meu entender) deste livro: a obra dentro da vida, e não a vida dentro da obr*. Nessa abordagem, sigo o próprio Cervantes, que, na conclusão do seu incrível livro sem limites, declara: "E Dom Quixote nasceu apenas para mim, assim como para ele nasci: ele sabia atuar e eu, escrever; juntos, formamos uma unidade." Dom Quixote é obra de tamanha originalidade que, cerca de quatro séculos após ter sido escrita, continua sendo o trabalho de ficção em prosa mais avançado que existe. Tal asserção, porém, é reducionista; o livro é, também, o mais fluente e, em última instância, o mais complexo dos relatos romanescos. Eis o paradoxo que Cervantes compartilha com Shakespeare: Hamlet e Dom Quixote, Falstaff e Sancho Pança são universalmente constatáveis, ao mesmo tempo em que esgotam a capacidade de reflexão de qualquer mente. A influência somada de Cervantes e Shakespeare (que morreram na mesma data) define todo o percurso da Literatura Ocidental subsequente. A fusão de Cervantes e Shakespeare produziu Stendhal e Turgenev, Moby Dick e Huckleberry Finn, Dos-toiévski e Proust. Trinta anos atrás, Harry Levin registrou o paradoxo "de que um livro que versa sobre a questão da influência literária, na verdade, que se posiciona contrário a essa influência, tenha exercido influência literária tão ampla e decisiva". Dom Quixote trata de um herói enlouquecido em consequência de leituras, se tomarmos a situação no sentido mais literal. Contudo, dependendo do nosso entendimento sobre sabedoria, fantasia e loucura, o Cavaleiro é o indivíduo mais sensato do livro, mais sensato do que Sancho. Miguel de Unamuno (1864-1936), grande contista e crítico, escreveu o comentário sobre Cervantes que mais me agrada, intitulado, na versão em língua inglesa, Our Lord Don Quixote.11 Como o título sugere, Unamuno exorta-nos a vislumbrar Dom Quixote como nosso salvador, fundador da verdadeira religião espanhola - quixo-tismo -, em contrapartida ao catolicismo. Cervantes interessa a Unamuno apenas à medida que Dom Quixote é o génio, ou demónio de Cervantes. Unamuno, ironicamente, admite que Dom Quixote era louco, mas apenas segundo o ponto de vista cristão de 11 Isto é: "Nosso Senhor Dom Quixote." MIGUEL DE CERVANTES Alonso Quixano, de quem Quixote ressuscitou em carne e osso, e a quem retorna, na hora da morte: Grande era a loucura de Dom Quixote, e era grande porque a raiz da qual germinou era grande: o desejo insaciável de sobreviver, fonte das fantasias mais extravagantes, bem como dos atos mais heróicos. Os mais notáveis benfeitores da pátria e da humanidade são os que sonham com a fama e a posteridade. Erasmo, humanista holandês cuja obra foi, com toda certeza, lida por Cervantes, distingue, no Elogio da Loucura (1509), dois tipos de loucura, um pernicioso, o outro sublime: "ou seja, o tipo que se origina em mim e que é o mais digno de se desejar. Ocorre sempre que uma agradável desordem mental alivia o coração de ansiedades e preocupações e, ao mesmo tempo, acalma-o com o bálsamo constituído por prazeres diversos." Isso é mais Cervantes do que Unamuno, cujo Quixote estava mais desesperado para sobreviver do que ansioso para desfrutar do lúdico. Unamuno, grande leitor, considerava o trecho mais belo do livro o momento, no segundo volume, capítulo 58, em que Dom Quixote e Sancho Pança, novamente na estrada, reencontram a liberdade, após a longa estada na corte sádica do Duque e da Duquesa, onde o Cavaleiro sofrera a "cortesia pegajosa" de Altisidora, que, por zombaria, dissimulara grande paixão pelo Dom. Cavaleiro e Escudeiro deparam-se com um grupo de camponeses que levam com eles entalhes em baixo-relevo destinados à decoração de um altar. Dom Quixote contempla as imagens de São Jorge, São Martinho, São Diego Matamoros e São Paulo, e é levado a verbalizar a diferença existente entre os santos e ele próprio: "Eles (...) combateram em guerras de Deus, ao passo que eu, pecador, combato em guerras da humanidade. Conquistaram o céu através das armas, pois o céu não rejeita a força e a violência; quanto a mim, até o presente, não sei o que minha luta terá conquistado, mas, se minha Dulcinéa dei Toboso for libertada, minha sorte pode melhorar e minha mente se fortalecer; pode até ser que eu consiga me conduzir por um caminho melhor do que este que sigo agora." A Dulcinéa encantada, visível apenas como a rude camponesa Aldonza Lorenza, uma vez livre do perverso feitiço, talvez possa libertar Quixote da percepção complexa que se localiza na base problemática de sua busca. No entanto, sendo Dulcinéa génio de Dom Quixote, assim como Beatriz era de Dante, e Quixote é de Cervantes, o Cavaleiro tem consciência do potencial destrutivo inerente à libertação do ideal. Unamuno, plenamente consciente, leva-nos a mais ironia: Para mim, Dulcinéa dei Toboso sempre simbolizou a glória, isto é, a glória mundana, a sede insaciável de deixar o nome e a fama no mundo, para sempre. O 60 61 engenhoso Fidalgo, em um ataque de sanidade, declara que se fosse possível curar-se da sede de glória, de notoriedade mundana, voltar-se-ia para a obtenção de uma outra glória, na qual a devoção de cristão antigo o levara a crer. Se Cervantes - ao contrário de Quixote e Sancho - era um cristão-velho (isto é, não descendente de judeus convertidos), simplesmente, não o sabemos. Assustame um pouco o fato de Sancho, enumerando as suas qualidades, exclamar: "E também sou inimigo mortal dos judeus!" Uma sombra pairava sobre Cervantes; malgrado os feitos heróicos de guerra, ele jamais contou com o apoio real, e talvez fosse antipatizado por Felipe II. Cristãos-novos eram cidadãos de segunda categoria, sempre sob a suspeita da Igreja-Estado. Cervantes lutara bravamente na grande vitória naval sobre os turcos, em Lepanto, ocasião em que teve a mão esquerda mutilada. O heróico comandante de seu destacamento era Dom João da Áustria, filho bastardo do Imperador Carlos V, e meio-irmão (ressentido) de Felipe II da Espanha. Seja qual for o motivo, o governo nada fez em favor de Cervantes. Quatro anos após a Batalha de Lepanto, foi capturado pelos turcos e mantido como escravo em Argel, até ser resgatado pelos frades trinitários (e não pela casa real). Sendo-lhe negado qualquer auxílio financeiro, Cervantes fracassou, comercialmente, como dramaturgo, e recorreu à função de cobrador de impostos, tendo sido preso por (supostos) atrasos no processo de acerto de contas. A obra Dom Quixote foi iniciada durante um segundo período na prisão. Apesar do sucesso imediato do primeiro volume (1605), o editor reteve todos os direitos, e o pobre Cervantes nada ganhou com o livro, exceto a fama instantânea. Somente o tardio apoio do Conde de Lemos, de 1613 até a morte de Cervantes, em 1616, permitiu ao escritor um relativo conforto no final da vida. Assim como Quixote visava à fama e à posteridade na busca maravilhosa e absurda da encantada Dulcinéa, Cervantes buscava fama e posteridade em Quixote. O Cavaleiro e o autor encontraram tudo o que desejavam, em termos de reputação, o que Unamuno traduziu como imortalidade, a bênção de deixar a própria marca no tempo e no espaço. Influenciado por Kierkegaard e, talvez, por Kafka, Unamuno aspirava pelo indestrutível, noção nada fácil de definir. Cervantes, cuja vida foi sempre triste, dolorosa, sabia ter triunfado em Dom Quixote, e a percepção do autor é bastante comovente: Uma das maiores satisfações para um homem virtuoso e distinto é, ainda em vida, ver-se lançado em meio às nações e idiomas do mundo, impresso e encadernado, desfrutando de boa reputação. São palavras de Dom Quixote, referindo-se ao primeiro volume de seu livro, após ser informado, no segundo volume, a respeito de sua fama internacional. Ao longo do segundo volume, surgem os momentos impressionantes em que é impossível distinguir entre Cavaleiro e narrador. Recorro, mais uma vez, a Unamuno, que lutou contra o culto espanhol à morte, mesmo nos momentos finais, enquanto confrontava o general fascista Quiepo de Llano, que, de pistola em punho, gritava palavras de ordem: "Morte à inteligência!" e "Viva a morte!". Unamuno, aos 72 anos de idade, deposto do cargo de reitor da Universidade de Salamanca, resguardou a dignidade da instituição, mesmo sob a ameaça do fascista ensandecido. O verdadeiro espírito quixotesco torna-se, portanto, mais audível do que nunca em OurLordDon Quixote. Creio ser um equívoco, ao se falar do chamado culto espanhol à morte, afirmar que não amamos a vida, porque a consideramos por demais severa conosco, ou dizer que o espanhol jamais sentiu forte ligação com a vida. Ao contrário, creio que o espanhol tem com a vida uma grande ligação, precisamente porque a vida é tão severa com ele, e, dessa intensa ligação com a vida, nasce o que chamamos culto à morte. A vontade quixotesca de sobreviver é a religião de Unamuno, que ele considera a religião espanhola. Há muitas outras leituras menos proveitosas de Dom Quixote, pois a obra pode ser qualificada, legitimamente, como a Bíblia da Realidade. Ao longo de todo o livro, Cervantes dirige-se ao leitor solitário, que, cada vez mais, identifica-se com o Cavaleiro, e não com os outros dois protagonistas, Sancho Pança e o irónico narrador. A inovação desse primeiro romance é de tal ordem que a sua imensa originalidade não pode ser absorvida, mesmo depois de muitas releituras. Há tantos Dons Quixotes quanto leitores, assim como há mais Hamlets e Falstaffs do que atores que encenem tais papéis. Cervantes e Shakespeare realizam o milagre de unir a consciência infinita - os dois Cavaleiros e o Príncipe - à ordem do lúdico. Em uma história deliciosa, intitulada "Encontro em Valladolid", o falecido Anthony Burgess reúne Shakespeare e Cervantes, por ocasião da assinatura de um suposto tratado de paz entre Inglaterra e Espanha; no conto, a companhia dramática de Shakespeare encena várias peças do dramaturgo, merecendo apenas o desdém e a ironia de Cervantes. Um tanto irritado, Shakespeare replica de modo tão notável quanto satisfatório: Amanhã, ou depois de amanhã, encenaremos Hamlet. Mas agora introduzimos na peça algumas modificações, acrescentando-lhe Sir John Falstaff. Não vos espanteis. É fácil dispor da peça. Hamlet tem coerência já no ponto em que o 62 63 Príncipe é enviado à Inglaterra, onde será executado, sob as ordens do Rei. Na Inglaterra, após ler e destruir o despacho que contém a ordem de execução, o Príncipe é informado de que forças dinamarquesas estão prestes a invadir a Inglaterra, porque esta não tem pago os tributos devidos à Dinamarca. Finalmente, Hamlet decide agir, e tal decisão, aliada ao companheirismo de Falstaff e amigos, faz sustar os pensamentos de suicídio. Falstaff pode referir-se a Hamlet como "caro Ham", substituto de Hal, pois a diferença é de apenas uma letra. A guerra é cancelada, ao ser informada a morte do Rei Cláudio. Hamlet dirige-se a Elsinore, como herdeiro do trono. Falstaff e amigos seguem o Príncipe, mas são, obviamente, rejeitados ao final. * Quando Shakespeare e Cervantes se encontram depois do espetáculo, o espanhol protesta, "O gordo e o magro roubastes de mim", ao que Will retruca, "Oh, não. Estavam lá, nos teatros londrinos, muito antes de eu saber da vossa existência." Todavia, no leito de morte, em Stratford, o Shakespeare criado por Burgess ainda rumina a agilidade de Cervantes, que foi capaz de imaginar um personagem universal, amálgama de Hamlet e Falstaff em uma mesma alma, tendo em Sancho Pança uma figura córica, o aspecto mundano de SzVJohn Falstaff Burgess, ao lado de quem consumi várias garrafas de Fundador, enquanto explorávamos as complexidades de Hamlet/Falstaff e Dom Quixote/Sancho Pança, certa vez, observou que esse conjunto de peças e romance era o único que compensava uma abordagem comparatista. Em seguida, desenvolveu uma analogia musical cuja compreensão escapava à minha competência, sugerindo Verdi e Mozart como agentes capazes de reconciliar as diferenças entre Shakespeare e Cervantes. A meu ver, Falstaff é um pouco Dom Quixote, um pouco Sancho Pança, e, antes de mim, muitos já apontaram a semelhança entre Dom Quixote e Hamlet. W. H. Auden, que não gostava de Hamlet, considerava Dom Quixote e Falstaff santos cristãos, ao passo que o perverso Hamlet carecia de fé em Deus e em si mesmo. Quanto à interpretação de Quixote, prefiro Unamuno a Auden, e não vejo graça cristã em Falstaff, ou orgulho satânico em Hamlet. Dom Quixote, segundo Auden, é a antítese de Hamlet, o ator, porque o Cavaleiro é "absolutamente incapaz de ver a si mesmo como se estivesse desempenhando um papel". Esse Quixote "carece, totalmente, de reflexão". Confesso que não consigo ver o Quixote de Auden no livro. O Quixote de Cervantes diz: "Sei quem sou, e quem posso me tornar, se assim o decidir." Não convém santificar Dom Quixote, nem subestimá-lo. Ele joga duro com a realidade, com o Estado, com a Igreja-Estado e com a História social e religiosa da Espanha - um Quixote carente de reflexão é uma impossibilidade. Cervantes, a despeito da encantadora fantasia criada por Burgess, não chegou a ouvir falar de Shakespeare, mas este, na fase final da carreira, fez-se ciente de Cervantes. Shakespeare leu Dom Quixote, em 1611, quando a tradução de Shelton surgiu na Inglaterra, e observou os amigos, Ben Jonson e Beaumont e Fletcher, em suas respectivas obras, tornarem-se cientes de Cervantes. Em colaboração com Fletcher, Shakespeare escreveu uma peça, Cardênio, baseada no personagem homónimo de Dom Quixote, mas a peça, até o presente, ainda não foi encontrada. Concordo com a suposição de Burgess, relativa ao porquê de a obra de Cervantes incomodar um pouco Shakespeare. Entre os contemporâneos de Shakespeare, temos em Cervantes o único verdadeiro rival, cuja arte popular havia criado duas figuras que permaneceriam para sempre universais. Para igualar Dom Quixote, é preciso reunir as 25 melhores peças de Shakespeare, empreendimento só realizado com o advento do Primeiro Fólio, depois da morte de Shakespeare. O Shakespeare e o Cervantes criados por Burgess discutem de modo fascinante. Cervantes diz "Jamais produzireis um Dom Quixote", e Will retruca: "Já escrevi boas comédias, além de tragédias, que são realização máxima do talento de um dramaturgo", ao que Cervantes responde, em tom de repreensão: Não são e jamais o serão. Deus é autor de comédias. Deus não sofre as consequências trágicas de uma consciência falha. A tragédia é por demais humana. A comédia é divina. Shakespeare não precisa responder; Noite de Reis é a resposta a Dom Quixote, e cabe indagar se Dom Quixote seria uma comédia divina, ou mesmo se seria uma comédia, em que pese toda a violência cómica presente no romance. Decerto, a caracterização que José Ortega y Gasset faz de Dom Quixote como herói não se coaduna com qualquer herói cómico de que tenho conhecimento, ao menos na Literatura Ocidental: Não penso haver originalidade mais profunda do que essa originalidade "prática , ativa, do herói. A sua vida é uma resistência perpétua ao habitual, ao costumeiro. Cada movimento seu, primeiramente, precisa superar o costumeiro e inventar um novo tipo de gesto. Uma vida assim é um sofrimento perpétuo, um constante distanciamento da parte do ser que se rende ao hábito, e que é prisioneira da matéria. A comédia de Cervantes está ligada à dor e ao sofrimento: é uma modalidade de comédia tão original que se torna extremamente difícil de ser definida. Mas, na verdade, muitos aspectos de Dom Quixote estão além dos nossos parâmetros literários. Em 64 65 seguida, discuto a descida do Cavaleiro à Caverna de Montesinos, conforme descrita por Quixote, no segundo volume, capítulo 23, incidente que resiste a qualquer tipo de análise. Embora seja, talvez, o capítulo que cause maior perplexidade nesse extenso romance, o episódio narrado é bastante representativo do enigma que cerca a consciência e a busca do Cavaleiro, ao longo de toda a visão de realidade apresentada por Cervantes. Passadas 800 páginas, muito sabemos a respeito de Dom Quixote, no entanto ele permanece tão inescrutável quanto Hamlet, ao final das quatro mil linhas da peça, das quais a maioria consiste nas falas do Príncipe. Dotada de reputação lendária, a Caverna de Montesinos atrai Dom Quixote com a perspectiva de alguma aventura que lhe seja digna. O episódio permite ao Cavaleiro parodiar as descidas épicas de Ulisses e Eneas aos infernos. A descida de Quixote ocorre por meio de uma corda amarrada à cintura, sendo ele içado, aparentemente adormecido, tendo se passado não mais de uma hora. Ainda que o Dom seja ferrenho contador de verdades, não fica muito claro se ele acredita em seu próprio relato da jornada ao mundo inferior. Vale lembrar, ele está ciente de que a incomparável Dulcinéa é invenção sua, um poema, por assim dizer, e, supostamente, ele sabe que o relato da Caverna de Montesinos é mais um fruto de sua sublime imaginação. Cervantes, entretanto, evita nos dar qualquer certeza a esse respeito, assim como em relação a quase tudo o mais. Dom Quixote conta-nos que adormeceu e, ao despertar, viu-se na Caverna, onde Montesinos, saindo de um castelo de cristal, veio ao seu encontro. No interior do castelo, jaz o ilustre cavaleiro Durandarte, ao mesmo tempo, morto e loquaz, à semelhança do Caçador Gracchus, de Kafka, flutuando morto-vivo em seu navio da morte. Em meio a um bando de cavaleiros e heroínas, Belerma perambula, chorando a morte de Durandarte, trazendo nas mãos o coração do bravo. Merlin, feiticeiro perverso, é o responsável pela situação, mas não temos tempo de refletir sobre o ocorrido, porque, subitamente, aparece Dulcinéa, disfarçada de camponesa, e logo se retira, para enviar à Caverna as duas companheiras que pedirão ao Cavaleiro um empréstimo de seis pesos, oferecendo como garantia a anágua de algodão da solicitante! O amante heróico tem apenas quatro pesos e, generosamente, envia-os a ela. Espantosa, da primeira à última página, a história, ou sonho-visão, permanece além de qualquer análise, fazendo-me lembrar Kafka, que por ela foi, nitidamente, influenciado. O que move Kafka, em termos de ímpeto narrativo, é o propósito de se manter além da interpretação, de maneira que o que carece de interpretação é o porquê dessa opacidade do autor. "A Verdade sobre Sancho Pança" (título de uma parábola de Kafka) apresenta Sancho como o leitor obsessivo de romances de cavalaria, fato que tanto lhe desviou o demónio pessoal (Dom Quixote), ao ponto de torná-lo cavaleiro errante. Espontâneo, e propenso a filosofar, Sancho segue seu demónio e por ele é entretido diariamente. Cervantes, embora mantendo-se, de bom grado, além da interpretação, é um escritor de tal porte que nos premia, assim como o faz Shakespeare, com um verdadeiro mundo de entretenimento. Dom Quixote é demónio de si mesmo, e suas andanças não visam à salvação da Espanha de Felipe III, que, tanto quanto a de Felipe II, não pode ser salva, mas à nossa salvação, conforme insiste Unamuno. Haveremos de ser salvos (do ponto de vista secular) à medida que nos tornemos ficções? O efeito do primeiro volume de Dom Quixote na vida de Cervantes pode ser constatado, praticamente, em todas as páginas do segundo volume. O pobre Cervantes - herói mal recompensado, dramaturgo fracassado, escravo dos turcos, prisioneiro do Estado espanhol, eterno desafortunado - transformou-se em personalidade mundial porque Dom Quixote e Sancho Pança são celebridades. O segundo volume de Dom Quixote está sempre a invocar o primeiro, sempre definindo-o como livro, enquanto o segundo volume não o é. O segundo volume é o próprio Cervantes; esse segundo Dom Quixote é o que William Blake chamava "Homem Verdadeiro, a Imaginação". Defendendo-se da repreensão de um padre, Dom Quixote (no capítulo 32 do segundo volume) proclama suas façanhas: Acertei contas relativas a ofensas e insultos, corrigi injustiças, puni arrogância, derrotei gigantes e pisoteei monstros. Cervantes sabia escrever, Dom Quixote sabia atuar: juntos formam uma unidade; nasceram um para o outro. 66 67 MICHEL DE MONTAIGNE Qualquer tópico é, para mim, fértil. Uma mosca serve ao meu propósito; Deus permita que o tópico que ora tenho em mãos não tenha sido escolhido a partir de uma vontade volúvel! Que eu inicie com o tema que me aprouver, pois todos os temas estão interligados. - "Sobre Versos de Virgílio" * O segredo de Montaigne é a universalidade, ao menos para leitores do sexo masculino. Emerson, ensaísta discípulo de Montaigne, celebrou o precursor, definindo-o como "o mais franco e honesto dos escritores". T. S. Eliot, que não gostava de Montaigne, atribuía a força do ensaísta francês à articulação de um ceticismo universal. Porém, tanto Emerson quanto Eliot, isto é, admirador e detrator, parecem estar equivocados com respeito à universalidade do apelo de Montaigne. O ceticismo não é central ao génio de Montaigne, tampouco ao de Hamlet, claramente partidário de Montaigne. O ensaísta francês é um cómico carismático, um génio em termos de personalidade, e Shakespeare, estimulado pela leitura dos Ensaios, criou o lado brincalhão de Hamlet à imagem de Montaigne. Hamlet, no entanto, não é capaz de seguir Montaigne com relação à sabedoria de viver, de agir, uma vez que Montaigne rejeita a tragédia. Na perspectiva de Montaigne, a loucura de Hamlet decorre do desejo do Príncipe de escapar à condição humana. Montaigne rejeita o autodesprezo, considerando-o o mais * ensandecido dos posicionamentos, mas Hamlet só consegue se livrar de tal atitude no quin- to ato. O que faz de Montaigne um génio verdadeiramente universal é a eloquente sabedoria tocante à auto-aceitação, fundamentada em um profundo autoconhecimento. O que Freud tentou, em vão, ensinar-nos, Montaigne, mestre mais capaz, repete página após página: humanizai vosso idealismo, "desempenhai bem e dignamente o papel de homem". Aos 71 anos de idade, repito comigo, amiúde, o que há de mais eloquente em Montaigne: Detesto aquele arrependimento fortuito que surge com a idade. Jamais agradecerei à impotência qualquer benefício que ela porventura me traga (...). Remédio miserável, que faz com que a saúde dependa da doença! Tais palavras parecem configurar a universalidade de Falstaff, mas não a de Hamlet, e, nessa universalidade, ouço Montaigne convocar-nos ao regozijo da vida mundana. 4 # MICHEL DE MONTAIGNE (1533-1592) O primeiro dos ensaístas continua sendo o melhor; Montaigne criou o termo "ensaio", um experimento, um teste ao seu raciocínio, fundamentado na autoanálise. Os Ensaios de Montaigne foram um sucesso imediato, e continuam sendo, para leitores sérios em quase todas as nações. Mesmo confessando que, ao escrever sobre a sapiência, segue a tradição de Séneca e Plutarco, Montaigne é sempre muito original, nem tanto na modalidade do ensaio pessoal por ele praticado, mas no detalhado autoretrato, tão íntimo, sem precedentes. Agostinho oferece-nos uma autobiografia espiritual, culminando em conversão. Montaigne oferece-nos todo o seu eu; vem de Emerson o maior tributo conferido ao ensaísta francês: "Se cortadas, essas palavras sangram; são dotadas de vascularidade, de vida." Dirigindo-se ao leitor, Montaigne proclama, acertadamente: "O tópico deste livro sou eu mesmo." Pensando em se retirar da vida pública, em 1570, para escrever os Ensaios, Montaigne foi, no entanto, chamado a ser prefeito de Bordeaux e a atuar como mediador entre Henrique III, da França, e o protestante Henrique de Navarra, que se tornou Henrique IV, o mais talentoso dos reis franceses. Não fosse a intervenção da morte, Montaigne teria desempenhado um papel crucial como conselheiro da corte de Henrique IV. A despeito da admiração que sentia por Navarra, seu conterrâneo da Gasconha, Montaigne, sem dúvida, teria se arrependido de abrir mão do isolamento que lhe permitiu dedicar-se aos Ensaios. A influência de tais escritos na vida do autor é comparável ao efeito exercido por Dom Quixote em Cervantes. Após a primeira edição dos Ensaios (1580), Montaigne dedicou os últimos 12 anos de vida à revisão do livro. A "conversão" de Montaigne ocorreu em 1576, e envolveu a figura de Sócrates, que seria, para sempre, o mentor do ensaísta francês. O Sócrates de Montaigne (tanto quanto o seu Platão) era um "poeta isolado", o que seria inaceitável para o autor da República e dos Diálogos. Vale destacar a perspicácia de Montaigne, ao distinguir a diferença fundamental entre Sócrates e Platão. Para Platão, a natureza não é benigna, e toda sexualidade deve ser desencorajada, exceto visando à procriação. Sócrates vê de modo mais generoso o homem natural, visão essa que, após 1576, passa a ser a do próprio Montaigne, que se refere a Sócrates como "o homem mais sábio que já existiu". Embora Sócrates nada tenha escrito, o seu método dialético serviu de base aos "testes" de auto-avaliação realizados por Montaigne, de maneira que a ideia do ensaio é, na verdade, socrática. Ser um homem livre é "saber desfrutar da vida de acordo com a lei . Sócrates é imune à ansiedade, ou a qualquer tipo de medo. Um dos últimos ensaios de 68 69 Montaigne - "Sobre a Fisionomia" (1585-1588) - cita um longo trecho do discurso de Sócrates aos juízes, conforme consta da Apologia de Platão, e acrescenta o magnífico comentário: Não temos aqui uma defesa sóbria, sensata e, ao mesmo tempo, natural e humilde, extremamente digna, verdadeira, franca, absolutamente incomparável? (...) Sua vida não lhe pertencia; antes, era um exemplo que pertencia ao mundo. Essa última asserção não se aplicaria também ao próprio Montaigne? Ele, no entanto, não pensaria ser esse o caso, pois considerava-se imitador de Sócrates, um seguidor tardio. Contudo, "sperava que seu livro servisse ao mundo como exemplo de algo que o estudioso Herbert Luthy chamou "arte de ser verdadeiro". Montaigne escreve tão-somente para si, mas precisa de nós, leitores, para poder revelar-se a si mesmo. Conforme Montaigne observou, com toda correção, Sócrates não fala somente para si, mas para todos os que forem capazes de se beneficiar de seu discurso. O autor dos Ensaios é astuto e modesto, mas também é capaz de chocar, e nem sempre é bem recebido pelas feministas de hoje. Uma das obras-primas de Montaigne é o ensaio "Sobre Versos de Virgílio", uma reflexão sobre a sexualidade. Eis uma amostra de trechos que ilustram o que há de mais franco em Montaigne: Competem ao casamento a utilidade, a justiça, a honra e a constância: trata-se de um prazer raso, mas universal. O amor é fundamentado apenas no prazer e, na verdade, tal prazer é por demais estimulante, vivaz e intenso: um prazer inflamado pela dificuldade. Há que existir dor em tal prazer. Não será amor se não houver ferimento e fogo. A liberalidade das mulheres é excessiva no casamento, e faz cegar o fio do afeto e do desejo. As mulheres não estão, absolutamente, erradas, quando rejeitam as regras de conduta que vigoram no mundo, de vez que foram os homens que as criaram, sem consultá-las. Existe entre as mulheres e nós uma contenda, uma rixa natural: a comunhão mais íntima que tivermos com elas será sempre tumultuosa, tempestuosa. Ah, que vantagem decorre do senso de oportunidade! Se perguntado sobre a primeira questão do amor, diria que é saber agir no momento certo; a segunda e a terceira também; tudo depende do senso de oportunidade. A todos repele a visão de um homem queimado vivo, mas a vê-lo morrer todos correm. Para destruí-lo buscamos um espaço aberto, em plena luz do dia; para construí-lo buscamos um cantinho escuro. Montaigne era casado e apenas um de seus descendentes diretos, uma filha, sobreviveu. Os Ensaios contêm somente duas referências fugazes à mãe do autor; chamava-se Antoinette de Lopes, pertencente a uma importante família de judeus-espanhóis, originária de Tolouse. A filha de Montaigne é objeto de poucas referências, um tanto ou quanto desdenhosas. O afeto do autor era dirigido ao pai e ao melhor amigo, Étienne de La Boétie, morto em 1563, ao cabo de um período de quatro anos em que o ensaísta se viu livre da solidão interior que voltaria a prevalecer ao longo dos quase 30 anos de vida que ainda lhe restavam. Talvez Henrique de Navarra houvesse preenchido tal vazio, se Montaigne tivesse vivido além de 1592. Ao que parece, Montaigne, com seu comportamento gascão, "tipicamente, sensual", no íntimo, era um solitário shakespeariano, fazendo lembrar Hamlet, personagem que, sem dúvida, foi por ele influenciado (Shakespeare, obviamente, leu a tradução de John Florio ainda em forma manuscrita, visto que Florio era agregado do Conde de Southampton). Donald Frame, tradutor moderno de Montaigne para a língua inglesa, o mais eminente dos especialistas no autor francês, observa que cada um de nós tem o seu próprio Montaigne, assim como temos o nosso próprio Hamlet e o nosso próprio Dom Quixote. O comentário me agrada, pois o auto-retrato de Montaigne nos Ensaios é tão vívido ao ponto de ofuscar Santo Agostinho, Goethe e Samuel Johnson; trata-se, com efeito, de um personagem tão bem delineado que chega a parecer fictício, um personagem tão literário quanto o meu herói, Sir John Falstaff. Herbert Luthy enfatiza a marcante presença da arte, nos métodos adotados por Montaigne para ser verdadeiro: "Talvez seja esse o escândalo de Montaigne: contentar-se com o imperfeito e fragmentário, e, ao mesmo tempo, permanecer inteiramente nãotrágico. Assim como não existe um método para a crítica literária externo à pessoa do próprio crítico (espera-se que este, no desempenho de suas funções, seja o mais inteligente possível), Montaigne não dispõe de um método de autoconhecimento. O ensaísta procurou contemplar a si mesmo como contemplaria o próximo, e deixou de lado uma carreira pública honrosa e bem-sucedida, a fim de proceder a um auto-escrutínio. 1 odavia, Montaigne não é um reducionista, ao contrário da grande dame criada por Wallace Stevens, "Mrs. Alfred Uruguay", que canta: "Limpei a luz da lua como se fosse lama. Montaigne, nada romântico, não nos oferece a luz da lua, uma vez que a sua visão a respeito de sexo é extremamente pragmática, mas, com toda certeza, não acha que para conhecermos o seu verdadeiro ser, precisamos conhecer-lhe o lado pior. 70 71 Conduz-se com equanimidade, como o Cavaleiro de Chaucer, nos Contos de Canterbury, porque ninguém melhor do que Montaigne sabe que estamos sempre comparecendo a encontros que não marcamos. Católico moderado e monarquista abnegado, Montaigne viu-se dividido durante os sangrentos conflitos religiosos franceses. Cercos e incêndios eram frequentes na Gasconha, onde protestantes e aventureiros detinham relativo poder, e Montaigne vivenciou situações de perigo. Decidido a não ser herói nem santo, o racional e disciplinado Montaigne isolava-se em sua biblioteca, sempre que possível, e sobreviveu, para concluir o grandioso terceiro tomo dos Ensaios, que contém a obra-prima "Sobre a Experiência" (1587-1588). Preciso aqui me deter, a fim de produzir um comentário mais aprofundado, pois percorro agora terreno para mim sagrado. O melhot,ensaio de Emerson - "Experiência" - é rebento do derradeiro ensaio de Montaigne, e eu sou um (entre tantos) dos derradeiros rebentos de Emerson. "Sobre a Experiência", ao longo de cerca de 40 páginas, examina a condição do próprio Montaigne e da humanidade como um todo. Desconheço outro ensaio, na tradição que vai de Montaigne a Freud, que investigue, com tamanha profundidade, a metafísica do eu, e que de modo tão convincente nos exorte a aceitar a necessidade: Não pereceis por estardes enfermos, mas por estardes vivos. A morte vos consome perfeitamente bem, sem precisar do auxílio da enfermidade. A doença adia a morte de alguns, que vivem um pouco mais, pensando que estão prestes a escapar, e, enquanto isso, estão morrendo. O que sei eu? Sobre a morte, nada sei, e com relação a esse nada Montaigne adota a posição de Sócrates. Assim como Sócrates, Montaigne torna-se mais forte à medida que envelhece, alcançando total auto-aceitação: "É a perfeição absoluta, é algo potencialmente divino, saber desfrutar legalmente da existência." Isso, e não o conhecimento de um Deus distante e insondável, é o bem maior. E nenhuma redução da nossa existência deve ser sancionada: Eu, que me gabo de abraçar os prazeres da vida de modo tão aplicado e especial, neles encontro, quando os contemplo bem de perto, nada além de vento. E até mesmo o vento, mais sabiamente do que nós, se apraz de fazer ruído e correr, e se satisfaz com as próprias funções, sem almejar estabilidade e solidez, questões que não lhe dizem respeito. Eis a sabedoria que fica além da desilusão, além do desejo de não ser enganado. Apenas Shakespeare, entre os maiores escritores ocidentais, exibe algo semelhante à descrença de Montaigne quanto à possibilidade de transcendência: Querem sair de si mesmos e escapar da condição humana. Isso é loucura: em vez de se transformarem em anjos, transformam-se em feras; em vez de se elevarem, rebaixam-se. Esses humores transcendentais me assustam, como o fazem os píncaros inacessíveis e, na biografia de Sócrates, mais do que qualquer outro aspecto, tenho dificuldade em aceitar-lhe os êxtases e momentos em que é possuído por seu demónio. Emerson, que tinha o seu próprio demónio, e vários anseios transcendentais, sentia pelo pai, Montaigne, o devido respeito: Devemos afirmar que Montaigne foi sábio, e que, no que toca à conduta da vida, expressou a mente humana de modo definitivo e correto? Demonstrando reverência ao precursor, Emerson avança, defendendo o seu próprio êxtase: Pretendo valer-me dessa ocasião para celebrar nosso Santo Michel de Montaigne, enumerando e descrevendo as referidas dúvidas e refutações. Emerson aqui se refere às suas próprias dúvidas e refutações, relativas ao seu entendimento do ceticismo de Montaigne, mas o Montaigne que a nós se apresenta em "Sobre a Experiência" é o que Donald Frame denomina "Homem Inteiro". E, conforme Frame demonstra, esse homem é avesso à ideia da possessão demoníaca, mesmo que o demónio seja o de Sócrates. Em seu ensaio - "Experiência" -, Emerson, em última instância, cede à noção de que o demónio sabe como proceder. Tudo o que sei foi recebido; sou e tenho, mas nada obtenho. Digo ao génio, desculpando-me por recorrer a um cliché, miséria pouca é bobagem. Montaigne é por demais unitário para dirigir-se ao próprio génio, ou demónio. A seu ver, tais elementos não possuíam uma existência à parte, ao contrário do que pensavam Sócrates, Emerson, Goethe, W. B. Yeats e tantos outros. Mais do que Emerson e Goethe, Montaigne hoje é nosso contemporâneo, em parte devido à imagem da pessoa inteira por ele tão singularmente encarnada. 72 73 JOHN MILTON JOHN MILTON (.. .) Só não me encontro; Tu me acompanhas, sacrossanta Musa, Enquanto gozo do ligeiro sono E des'que surge a aurora purpurina. Meu canto sempre, ó tu, dirige, Urânia: Hábeis ouvintes dá-me, inda que poucos; Mas lança longe o bárbaro alarido Dessas bacantes loucamente alegres, Cuja terrível ascendência outrora No Ródope estroncou o trácio bardo Que encantava os rochedos e as florestas De sua voz coa mágica doçura, Té que o rude clamor da turba fera Os sons da lira e o canto lhe sufoca. Não pôde a Musa defender seu filho.12 - Paraíso Perdido, Canto 7, 28-42 Na Invocação do Canto 9 de Paraíso Perdido, o Canto da Queda, Milton roga à protetora celestial, a Musa, por um "estilo condizente". Para Milton, "condizente" significava, em primeiro lugar, um estilo que fizesse jus ao grandioso tema abordado, mas significava, também, um estilo que estivesse à altura do seu génio e de seu conceito sumamente individualizado de Deus. O sparagmos, o dilacerar de Orfeu pelas bacantes da Trácia, constitui verdadeira obsessão na obra de Milton. Mas a identificação com Orfeu é mais contundente em termos de orgulho do que de temor, pois a Musa do épico heróico, Calíope, é mãe de Orfeu. Ver a si mesmo como nova encarnação de Orfeu é promover uma identificação entre o próprio génio e a poesia. O orgulho poético de Milton, extraordinário e justificado, paira no cerne do seu talento. Milton, assombrado pela figura de Shakespeare, chegou a considerar uma versão de Macbeth, mas achou por bem desistir do projeto. A força de Paraíso Perdido e Sansão Agonistes, dramas restritos ao teatro da mente, decorre do fato de o género literário a que pertencem não constituir qualquer desafio a Shakespeare. O Satanás de Milton existe à sombra de Iago, mas Milton consegue imprimir o seu génio, extremamente individualizado, em Satanás. Paraíso Perdido. Tradução de António José Lima Leitão. Rio de Janeiro: W. M. Jackson Inc., 1952, p. 198. 74 75 (1608-1674) John Milton, glória da língua inglesa, ao lado de Shakespeare e Chaucer, nasceu na casa do pai, em 9 de dezembro de 1608. Shakespeare viveu até 1616, e, vale lembrar, Milton era um menino de oito anos de idade, quando seu principal precursor faleceu. Já aos 16 anos, Milton era poeta; em 1632, foi publicado o poema de sua autoria intitulado "Sobre Shakespeare", supostamente elogioso. Na propriedade rural do pai, em Horton, Milton dedicou-se à leitura de autores gregos e latinos. Comus, esplêndida mascarada mitológica de sua autoria, foi encenada em Horton, em 1634. A mãe de Milton (a quem ele pouco se refere) morreu em 1637; no ano seguinte, a partir da morte de um colega de sala, Edward King, Milton escreveu a extraordinária elegia clássica "Lycidas", talvez o melhor poema curto escrito em língua inglesa. Na minha leitura, "Lycidas" é uma pré-elegia para o próprio Milton, ainda que a morte da mãe permeie o poema. Em maio de 1638, Milton partiu em uma grande viagem pelo continente europeu: foi à França, e depois à Itália, mas a explosão da guerra civil na Inglaterra fez com que ele regressasse ao país já em julho de 1639. Por volta de 1641, Milton atuava, de modo contundente, na guerra panfletária, defendendo o lado Puritano. O casamento infeliz com Mary Powell, em 1642, ensejaria o tratado sobre o divórcio. Já em setembro de 1643, a visão do poeta começou a declinar, fato que não impediu o surgimento, em novembro de 1644, de Aeropagitica, tratado sobre a liberdade de imprensa. Planos de um novo casamento foram frustrados pelo retorno da primeira esposa, em 1645. No mesmo ano, a coletânea Poemas de John Milton foi registrada, com o propósito de publicação, o que ocorreu em janeiro de 1646. No ano seguinte, o pai de Milton faleceu. Na primavera de 1649, o poeta foi nomeado Secretário de Idiomas Estrangeiros, junto ao regime de Cromwell, cargo que fez de Milton o porta-voz oficial da Revolução. Após o nascimento de três filhas e um filho, faleceu a primeira esposa e, logo em seguida, o menino. Já em fevereiro de 1652, Milton estava totalmente cego. Casou-se em 1656, mas a esposa morreu dois anos mais tarde. Em 1659, a República inglesa claudicava; Milton continuou a publicar panfletos republicanos, mesmo após o advento da Restauração. Em maio de 1659, o poeta teve de se refugiar; em agosto, seus livros foram incinerados por um carrasco em Londres, e, em outubro, Milton foi detido, permanecendo encarcerado durante cerca de dois meses. Para o novo regime, Milton representava um grande problema: havia defendido o regicídio publicamente, mas estava cego, era famoso em toda a Europa e considerado JOHN MILTON o maior poeta e intelectual da época. A contragosto, os conselheiros de Carlos II preferiram libertar Milton a serem difamados por tê-lo executado. O relacionamento do poeta cego com as filhas não era dos melhores, e a situação deteriorou com o advento de uma terceira esposa, em 1663. Em agosto de 1667, foi publicado o poema Paraíso Perdido, ampliado na segunda edição, em 1674. Paraíso Recuperador. Sansão Agonistesforam publicados, simultaneamente, em 1671. Entre 8 e 10 de novembro, John Milton faleceu. Esses são os fatos externos da vida do poeta-profeta, mas, se considerarmos que nos seus últimos 20 anos Milton esteve totalmente cego, temos, em Paraíso Perdido, um oráculo de vida interior. Não existe em língua inglesa obra-prima mais premeditada, e, nesse caso, "obra-prima" é qualificação reducionista. Esse poema épico é um esplendor do barroco: presta-se à reflexão infinita; lido em voz alta, é assombroso, e constitui um eterno desafio, até aos admiradores mais ardorosos. A um leitor novato, leigo e carente de conhecimento de Literatura Clássica, convém ler Paraíso Perdido como uma espeta-cular obra de ficção científica. Os rivais de Milton em língua inglesa são poucos: Shakespeare, Pope, James Joyce - nossos maiores virtuosos. Embora Milton já tenha sido considerado o poeta protestante, assim como Dante ainda é o poeta católico, após 60 anos lendo Milton, incessantemente, tenho cada vez mais dúvidas se ele seria até mesmo um poeta cristão, a não ser à medida que se possa considerar William Blake e Emily Dickinson poetas cristãos. Individualmente, os três constituem seitas de um só seguidor, hereges extremamente originais, cujo cristianismo é bastante questionável. A. D. Nuttall (um dos melhores críticos vivos) duvida que, ao envelhecer, Milton acreditasse nos princípios do calvinismo normativo, e o historiador Christopher Hill (já falecido) sugeria que Milton se tornara seguidor de Muggleton, o que pode parecer um disparate, mas a noção de inspiração pessoal defendida por Lodowicke Muggleton, morto em 1698, cerca de 40 anos após ter fundado a seita que ficou conhecida pelo seu nome, aproxima-se bastante da versão miltoniana de Luz Interior. Sabemos que Milton rompera com os Congregacionistas ou Independentes, e Nuttall argumenta que o poeta tinha tendências gnósticas, assim como Christopher Marlowe e William Blake, e que formulara "trindades alternativas". O que parece óbvio é que Milton cometeu inúmeras heresias, todas a partir da rejeição do dualismo paulino e agostiniano que postulava uma separação rígida entre corpo e alma. Ardente defensor do monismo, Milton praticou ao menos quatro grandes heresias: a rejeição da criação a partir do nada; o mortalis-mo, i.e., o credo de que corpo e alma morrem juntos e juntos ressuscitam; o antitrinda-dismo, que afirmava ser Javé uma só Pessoa; e o arminianismo, i.e., a negação da predestinação calvinista. No entanto, tanto quanto Nuttall, tenho dúvidas se, nos últimos 76 77 anos de vida, Milton acreditava em algo. O poeta pensava ter conhecimento de certas verdades, mas não se tratava de um credo. Milton, tanto quanto Shakespeare e Dante, é um génio tão flagrante, que tentar des-crever-lhe o talento pode parecer redundância, assim como tentar descrever a beleza de Sophia Loren, nos dias da minha juventude longínqua. A força e a fertilidade de Milton são imensas, primárias, mas meu interesse principal recai sobre o julgamento que fazemos do seu tão criticado alter ego demoníaco, Satã. Se Satanás, por mais perverso que seja, não for um génio, o poema não existe, e muito me tem desagradado, ao longo de toda a minha vida, o fato de estudiosos cristãos, à imagem de C. S. Lewis, um dos pavões da crítica mpderna, arremedarem o veredicto de Lewis, que Satã é tolo. Shelley, com a mesma correção de Borges e Oscar Wilde, observou, astutamente: "O Diabo tudo deve a Milton". O Satanás de Paraíso Perdido é discípulo do Iago shakespeariano, grande mestre da cilada. Satanás não tem a estirpe pobre de Iago, mas é (por assim dizer) um diabo autêntico e esperto, que faz o melhor possível para progredir, e o leitor deve oferecer-lhe todo o estímulo. Ao contrário do que propõe C. S. Lewis, não devemos ter, com relação a Satanás, um ódio preconcebido, antes mesmo de lermos o poema. Conforme escrevi alguns anos atrás, devemos considerá-lo uma espécie de Tio Satã, longe de ser a Má Nova, em um poema em que a Boa Nova, Jesus Cristo, é transformado em um Rommel, ou um Patton, no comando de um ataque blindado, a bordo da Merkabah, ou Carruagem da Divindade Paterna (em cuja honra os israelenses batizaram seu principal tanque de guerra), veículo que cospe fogo e cuja função é expulsar Satã e suas hostes do Paraíso. O pobre Satã acaba mal, obviamente, desaparecendo no Mar Morto, como uma serpente virulenta, mas Milton (assim como a maioria dos grandes poetas, sempre à exceção de Shakespeare) não joga limpo. Milton tinha motivos para mágoas: Oliver Cromwell, seu grande ídolo, depois de morto, fora pendurado às portas de Londres, e Harry Vane, o melhor amigo do poeta, fora executado como regicida. Além disso, por mais corajoso que fosse, Milton, já totalmente cego, deve ter sofrido muito, ao ser preso, enquanto seus livros eram queimados, e o inimigo Belial, o Conde de Clarendon, provavelmente, teve de interceder por meio de procedimentos diplomáticos, para que o poeta fosse poupado. Milton e seu partido foram derrotados na guerra, assim como Satã e seus garbosos demónios haviam sido derrotados em uma outra luta. Perder uma guerra, mesmo que seja uma batalha cultural, não faz bem ao organismo: eu era uma pessoa mais amável, antes de as nossas universidades se renderem a um suposto bem social e passarem a selecionar textos de leitura com base em origem racial, género, preferência sexual e filiações étnicas de Novos Autores, do passado e do presente, sem levar em conta o fato de eles saberem ou não escrever. Satã, assim como o predecessor, Iago, sofre em decorrência de Mérito Ignorado, pois foi preterido por Cristo, assim como Iago foi preterido por Cássio. A sensação de Mérito Ignorado costuma gerar ressentimento, e tanto Iago quanto Satanás são verdadeiros arquétipos de todos os Ressentidos em nossos dias. Até que ponto, cabe a pergunta, o próprio Milton sofreria em decorrência de Mérito Ignorado? A minha resposta é que o referido mal não afligia, em absoluto, o poeta. Milton passara, isso sim, por um contra-apocalipse, diante do desmoronamento de esperanças nacionais e pessoais. O filho morrera, as filhas mantinham-se distantes, dois casamentos haviam terminado, a visão fora perdida, a imagem pública destruída, os amigos haviam sido condenados e executados, ou se refugiado no exílio. Paraíso Perdido e Sansão Agonistes surgem da derrota total, com força e energia extraordinárias, e manifestam autoridade, orgulho e autoconfiança sublimes, além de espantosa combatividade. Acorrentado, e ameaçado pelo gigante Harapha, Sansão lança o desafio: "Meus pés estão presos, mas meu punho está livre!" - um dos versos que mais me agradam em toda a obra de Milton. Em 1660, uma vez em curso a restauração dos Stuart, Milton, como um Jeremias, dirigiu-se a um povo que não o escutava: "agora que escolhestes um líder que vos levará de volta ao Egito, pensai um pouco, e considerai o destino que seguis". Depois disso, o poeta exilou-se internamente, dedicando-se a compor Paraíso Perdido. Quando, ainda jovem, contemplara o triunfo Puritano na Inglaterra, Milton escrevera, referindo-se aos hinos e aleluias dos santos: "Quiçá ouviremos alguém disposto a cantar e celebrar, em tons elevados e versos novos e altivos." Qual seria esse Canto Triunfal jamais saberemos, mas cabe a conjectura de que seria um romance no estilo de Spenser, tendo por tema a Britânia, elevada ao êxtase de nação redimida. Em vez disso, Cromwell morreu, a Revolução dos Santos fracassou, e, cego, Milton compôs Paraíso Perdido. Na minha juventude, Paraíso Perdido não era apreciado, pois o Vigário de Cristo do meio universitário, T. S. Eliot, não gostava do poema (bem mais tarde, Eliot permitiu o reingresso da obra no cânone). A maioria dos críticos lia o poema de Milton como se tivesse sido escrito por C. S. Lewis, um épico de exaltação ao cristianismo. Há muito tempo perdi a conta do número de vezes que li Paraíso Perdido e, como um judeu-gnostico, sou, necessariamente, suspeito, mas a releitura mais recente, que acabo de concluir, não me induz a classificar esse esplendor da poesia barroca como "épico cristão . Milton é mais circunspecto do que Blake e Emily Dickinson, mas a religião do primeiro é tão individualizada quanto a dos outros dois. Jesus Cristo quase não é personagem em Paraíso Perdido. Deus o proclama seu Filho, por conseguinte, causando a 78 79 rebelião de Satã, segundo William Empson. A próxima aparição de Cristo, ha qualidade de comandante armado, já foi aqui mencionada. Mas o trecho crucial, quase risível, de tão vexatório, é aquele em que John Milton fala da Crucificação: (...) em cruz alçada Mesmo os seus próprios nacionais o pregam. Morre ele para dar aos outros vida: Na sua mesma cruz pregar consegue Teus inimigos, a lei que te é contrária, E as culpas todas da progénie humana: Não mais hão de danar assim quem creia Remido ser por esse sacrifício. Morre Deus, porém vivo eis que ressurge.13 -Canto 12,415-23 O itálico foi acrescentado por mim. Um épico cristão em 12 livros e milhares de versos dedica apenas sete palavras à morte e ressurreição de Jesus Cristo! Milton é obrigado a fazer a referência, mas afasta-se da mesma com uma pressa que chega a ser hilariante; até um descrente é capaz de sentir aqui um certo constrangimento. A esse respeito, fas-cina-me um comentário de A. D. Nuttall: "Pelo menos aqui, Milton parece tão imperdoável e vivaz quanto Pope." A verdade é que Milton revela-se, no mínimo, insensível à Crucificação; com efeito, parece até constrangido pelo fato. O poema pode ser cristão, mas não será, absolutamente, cristológico. Na obra De Doctrina Cbristiana, cautelosamente reservada para publicação póstuma (só foi impressa em 1825), Milton declara-se implacável herege ariano, aceitando o Pai, mas rejeitando a Trindade. Agrada-me, mais uma vez, a crítica de Nuttall, que observa a inexistência de alusão a Prometeu em Paraíso Perdido; penso que algo profundo em Milton, partidário do arianismo, tenha levado o poeta a evitar Prometeu. Milton exalta a liberdade humana, inclusive a liberdade de pecar, mas tenta não exaltar a rebeldia humana contra um tirano celestial. Na percepção de Blake e Shelley, um Prometeu subjaz em Milton, mas tal imputação em muito desagradaria ao autor. Paraíso Perdido é um trabalho magnífico, mas a sublime ambição da obra explicar o mal de uma vez por todas - causa a queda de Milton no épico por ele próprio composto. O poeta não foi capaz de explicar o mal da Restauração monárquica, assim como 13 Tradução de A. J. L. Leitão, op. cit., p. 371. [N. do T.] não somos capazes de explicar os campos de extermínio instituídos por Hitler e os horrores de Stalin e de Pol Pot. Contudo, meu tema aqui não é o fracasso inevitável do argumento central de Paraíso Perdido, e sim o génio de John Milton. A despeito do gosto dos críticos normativos, algo extraordinário ocorre na poesia de Milton (e com a poesia de Milton) sempre que Satã fala. Não creio que Satanás seja o demónio, ou génio, do próprio Milton, mas o génio de Milton é ativado por Satã, pouco importa o número de vezes em que o narrador se expressa negativamente a respeito do personagem. Milton é um poeta erótico, nem tanto no estilo ovidiano de Shakespeare, mas ao modo hebraico, do Cântico dos Cânticos bíblico. Não será exagero afirmar que o génio de Milton é, essencialmente, erótico; Milton não consegue descrever Eva sem desejá-la, e nenhum outro poeta mostra-se tão fascinado pela ideia de brincar com os cabelos emaranhados de uma linda mulher. Nossa mãe Eva é uma beldade, e o pobre Satanás sofre a agonia voluptuosa de um voyeur. Assim disse Eva; conjugal ternura Rutilando-lhe então nos olhos lindos, Ela se entrega a Adão e se lhe encosta, Com transporte submisso, puro e meigo, Ao peito nu que ternamente abraça Jaz reclinada ali; somente a cobrem Das soltas tranças as douradas ondas; De deleites num mar ele nadando, Cativado de tanta formosura, De tanta submissão, de afagos tantos, Com ar de superior está sorrindo, E uma vez e outra vez da esposa os lábios Com puros beijos docemente aperta (Assim como Juno está Júpiter quando Nuvens gera que em maio espalham flores). Dali Satã de inveja o rosto vira; Mas com torcido olhar, ciumento, ervado, Vê de relance tão ditosa cena. Logo a si mesmo queixa-se destarte: "O vista odiosa, quanta dor me vibras! Um do outro em braços, habitantes do Éden, Outro Éden mais feliz inda desfrutam, Delícias tendo assim sobre delícias! 80 81 Enquanto eu sou lançado nos Infernos Onde amor e alegria nem vislumbram, Mas onde pertinaz, feroz desejo, Suplício não menor que os mais suplícios, Nunca se satisfaz, sempre atormenta! Contudo... não me passe da lembrança O que por eles mesmos hei sabido: Seu aqui, como entendo, não é tudo; De uma árvore fatal comer não podem, E essa... Arvore da Ciência se intitula. Vedar a ciêneia? Absurdo suspeitoso! E Deus, por que lhe veda? E culpa da ciência? Da ciência pode germinar a morte? Só na ignorância lhes é dada a vida? Neste estado feliz consiste a prova Da obediência e da fé que lhe tributam? Que belo fundamento onde se erija Plano infalível que os estrague em breve! Já lhes vou excitar a fantasia De ciência com desejo incontrastável; Rejeitarão preceitos invejosos Só inventados para seu ludíbrio, Se a ciência os pode erguer ao grau de numes; Pungidos pois por ambição tamanha, Hão de comer o proibido fruto E assim terão em recompensa a morte; Mais verossímil que isto.. . eu nada vejo. Porém primeiro com sagaz cuidado O jardim todo pesquisar me cumpre Sem que o menor recanto aqui me escape. Só pode o acaso conduzir-me aonde Algum celeste espírito descanse, Ou já sentado junto à fresca fonte, Ou retirado em marachão espesso, Que o mais me avente que saber preciso. No entanto, par feliz, da vida goza; Enquanto eu não voltar, exulta ovante: Que esses curtos prazeres vão sumir-se Num pélago de longos infortúnios".14 Canto 4, 492-53. É possível argumentar que um Milton lascivo ocupa a posição de Satã, visto que Milton, bem como o leitor, são, igualmente, voyeurs. Mas a atitude de Milton com relação a Eva é por demais apaixonada e complexa, como se o poeta, agressivamente heterossexual, precisasse buscar na ficção por ele mesmo criada todo o amor que, não importa o motivo, as esposas e filhas lhe haviam negado. Depois de Satanás, Eva é a glória estética de Paraíso Perdido, verdadeira manifestação de alteridade do génio milto-niano. A crítica feminista tende a interpretar o poema de modo literal, enfatizando a representação de Eva como objeto sexual magnífico, e, ao fazê-lo, ignora a sutil dimensão que Milton confere à contundente subjetividade da personagem, à sua consciência vivaz (e perigosa). Apraz-me citar a ilustre especialista em Milton, Barbara Lewalski, cuja advertência serve para reforçar o argumento deste livro sobre o génio: (...) grandes poetas têm a capacidade de, como a fénix, surgir das cinzas remanescentes de processos de revolução social e intelectual; portanto, em breve, poderemos voltar a ler Milton, valorizando os conteúdos de importância duradoura, e não aquilo que é condicionado historicamente, na concepção do poeta a respeito do masculino e do feminino. Assim como Shakespeare, Milton, na minha leitura, perpassa a História, permitin-do-nos contemplar o que está, e sempre esteve, presente, mas que, não fosse ele, jamais enxergaríamos. Nuttall comenta, com excepcional perspicácia, que "a rebeldia de Eva, com relação ao marido, torna-se uma viagem de descoberta, em que ela é o líder, Adão, o seguidor". Sob o impacto das declarações de Eva, temos motivo para esquecer o infeliz verso miltoniano: "Ele, só por Deus, Ela por Deus nele." Algo, ao mesmo tempo, radicalmente novo e antigo como a História transparece, quando Eva verbaliza uma das maiores ironias desse épico: "Não te admirava, Adão, minha demora? Nesta penosa ausência achei-te menos; Mui pungente saudade a fez mais longa. Que agonia a de amor! Nunca a sentira; Nunca, jamais a sentirei desde hoje: "Tradução de A. J. L. Leitão, op. cit., pp. 115-16. [N. doTJ 82 83 Não mais tenciono suportar a pena De te não ver; fui nisso leve e ignara. Porém a causa ouvir de tal demora Há de assombrar-te de estranheza e pasmo. Esta árvore não é (qual se nos disse), Para quem come dela, um dano imenso, Nem para risco algum abre caminho; Mas por divino efeito aclara os olhos E ergue quem come dela ao grau de nume; De tais prodígios há sobejas provas. A serpente diícreta (ou não obstada Como nós somos, ou porque é rebelde) Comeu do fruto, e... não morreu ainda (Castigo com que muito nos ameaçam); Pelo contrário, desde então possui Humana voz, entendimento humano, Persuasivo poder, razão pasmosa, Que por bons argumentos conseguiram Que eu comesse também tão grato fruto E nele encontre análogos efeitos. Sinto os olhos mais claros que eram dantes, Mais vasta a mente, o coração mais nobre. E ao ser de divindade ir-me elevando. Para ti mais busquei tais privilégios; Dispensá-los sem ti bem poderia. Tenho por dita a dita em que tens parte; Ódio e tédio me faz se não a partilhas. Come também: no amor como iguais somos, Nos dotes, na alta dita iguais fiquemos: E bem pondera que, se tu não comes, Diversa hierarquia nos desune; E, quando mesmo renunciar eu queira Ao grau de nume porque muito te amo, Talvez já seja tarde e o fado me obste".15 - Canto 9, 856-94. Tradução de A. J. L. Leitão, op. cit., pp. 272-73. [N. do T.] Dois leitores, sejam alunos ou críticos, jamais interpretam essa fala exatamente da mesma maneira, fato por mim constatado sempre que tento iniciar um debate sobre tais versos. Em parte, isso ocorre porque o próprio Milton encerra aqui atitudes antitéti-cas. De início, as palavras caem muito mal nos ouvidos de Adão, que delas depreende a sentença de morte da esposa e, em seguida, afirma que ao seu lado há de morrer. Todavia, Adão refere-se a Eva como "última e mais perfeita obra de Deus". Prometo doravante não mais malhar C. S. Lewis (a propósito, atual herói dos fundamentalistas do Sul dos Estados Unidos), mas ele ousa afirmar que Eva é culpada de tramar a morte de Adão! Com efeito, Eva receia ser substituída por uma segunda mulher, e os cabalistas especulam que ela própria já seria a segunda esposa de Adão, depois que este e Lilith, a primeira mulher, romperam, por discordarem a respeito da posição física adequada ao ato sexual. A questão central da fala de Eva é se o vasto conhecimento a torna uma divindade, conforme expressa Keats. A pergunta leva-nos de volta ao labirinto da imaginação de Milton e, inevitavelmente, à questão de Satanás, que, enfim, abordo. Em termos sha-kespearianos, Satanás é um herói-vilão, fazendo lembrar características de Macbeth e de lago. De vez que Milton reúne espírito e poder em um só conceito, o poeta é um vitalista teomórfico, nos moldes do Jacó, ou Tamar, de Javé. A maioria de nós não vê com a mesma seriedade de Milton a ideia de sermos criados à imagem de Deus. Milton acreditava no Deus interior, e não no Pai-de-Ninguém, pensado por Blake, conquanto seja essa a figura divina retratada pelo autor em Paraíso Perdido. O problema estético da obra é, precisamente, o Deus irado, ameaçador, um equívoco de um grande poeta. Milton deveria ter imitado o atrevimento do autor bíblico, que nos apresenta um Javé inteiramente humano, que, à sombra de uma árvore, devora o repasto preparado por Sara - vitela, pães, coalhada e leite - e, em seguida, tem a satisfação de profetizar que ela haverá de dar à luz um filho. Em vez disso, um Milton monístico apresenta-nos um Deus dualista, propenso a posturas espirituais. Nos momentos mais autênticos, Milton rejeita a perda dos sentidos humanos, pois, para ele, a realidade era apreendida através da sensação, certeza esta que a cegueira só viria reforçar. O génio miltoniano nega qualquer distinção entre o natural e o transcendental, motivo pelo qual Satanás assume uma representação tão extraordinária. A liberdade da imaginação miltoniana, segundo o próprio poeta, estava associada ao conceito de Luz Interior, preconizado pela tradição protestante radical, e à interpretação que o poeta advogava com respeito à Liberdade Cristã e à Liberdade dos Santos. A regeneração miltoniana aperfeiçoa a natureza sem a mutilar. Satã, dualista católico, não compreende a fusão de espírito e energia nele próprio contida - eis a sua tragédia. O crítico de Milton que mais me agrada, W. B. C. Watkins, afirma que "a paixão é sem84 85 pre mais forte, em Milton, do que a razão". Paraíso Perdido é o épico da paixão, e não da razão. Por isso, Satã é, esteticamente, superior a Adão, embora não a Eva. Na tentativa de distanciar-se de Satã, Milton, no Canto 5, apresenta-se como o serafim Abdiel, cujo nome (que significa "criado de Deus"), na Bíblia hebraica, pertence a um humano, não a um anjo. Abdiel é o único recalcitrante, em meio à numerosa hoste celestial de Satanás, o único anjo que se opõe a Satã, "envolto em chamas iradas". Na avaliação dos outros anjos, Abdiel "perdeu o momento", assim como Milton perdeu o momento, a partir de 1660, até falecer, em 1674. O desafio de Abdiel provoca a resposta de Satanás, a meu ver, a mais problemática encontrada em todo o poema, justamente porque essa resposta se aproxima do cerne do génio do próprio Milton: Lembras-te tu de como foste feito, De quando aprouve a Deus assim formar-te? Não conhecemos época nenhuma Em que não existíamos como hoje; Ninguém antes de nós não conhecemos.16 - Canto 5, 856-860 Satanás aqui não fala por Milton, o ser humano, mas não será esse o posicionamento de Milton, o poeta? Não teria ele dito, também, "a nossa pujança emana de nós mesmos", e não de Shakespeare, ou de Spenser? A liberdade do poeta é a maior aspiração de Milton, o âmago da sua integridade. O leitor pode afirmar, se quiser, que essa liberdade resulta de uma leal obediência à vontade de Deus, mas quem haverá de interpretar tal vontade? Milton a interpretava para si mesmo, confiando, exclusivamente, em sua própria autoridade, para ele, idêntica ao seu próprio génio. 16 Tradução de A. J. L Leitão, op. át., p. 164. [N. do TJ LEON TOLSTOI - Ah, que sujeito extraordinário! - exclamou o chefe. - Foi agraciado com muita terra! O empregado de Pahóm chegou, correndo, e tentou erguê-lo, mas viu que o sangue lhe jorrava da boca. Pahóm estava morto! Os Bashkir estalaram a língua, demonstrando compaixão. O criado pegou a pá e cavou uma sepultura suficientemente longa para conter o corpo do Pahóm, e ali o enterrou. Um metro e oitenta e cinco, dos pés à cabeça, era tudo o que ele precisava. - "De Quanta Terra Precisa um Homem?" James Joyce considerava o conto escrito por Tolstoi, já no final da carreira, intitulado "De Quanta Terra Precisa um Homem?", a melhor história escrita até então. O meu voto seria para a noveleta de Tolstoi, Hadji Murad, mas ninguém duvide que Tolstoi foi o melhor dos contistas, pois sua prática artística, assim como a de Shakespeare, confunde arte e natureza. Não surpreende o fato de Tolstoi não gostar de Shakespeare. Tolstoi insistia que Harriet Beecher Stowe era muito superior ao poeta dramático inglês. As narrativas de Tolstoi são de uma riqueza espantosa. Tolstoi enfurecia-se com Rei Lear, considerando a peça imoral. Em toda a obra shakespeariana, o escritor russo gostava apenas de Falstaff. Trata-se da reação de um génio a outro génio, algo que está fora do nosso alcance, mas sempre podemos aprender com Tolstoi e, mais do que nunca, quando ele está redondamente enganado. O génio de Tolstoi era, perigosamente, semelhante ao de Shakespeare, o que, de certo modo, estarrecia o criador de Guerra e Paz, Anna Karenina, Hadji Murad e A Sonata a Kreutzer. O leitor pode-se iludir com a ideia de que Shakespeare e Tolstoi são os mais naturais dos escritores, pois essa ilusão é quase universal. Tolstoi e Shakespeare são incomparáveis ao retratar mudanças, e o que há de mais natural do que um processo cuja forma final é a morte? Pierre, na conclusão de Guerra e Paz, é totalmente diferente daquilo que era no início do romance, mas a continuidade do personagem é mais do que convincente. Falstaff, ao percorrer o grande arco que vai da alegria à rejeição, é sempre Falstaff, e não um duplo. Tolstoi não perdoava Shakespeare, por este ter chegado antes dele. 86 87 LEON TOLSTOI (1828-1910) Em 1882, Tolstoi estudou hebraico com um rabino e dedicou-se, arduamente, à leitura da Bíblia, para desespero da esposa. Sempre que a religião o absorvia, o relacionamento do casal esfriava e, de modo geral, reaproximavam-se quando ele voltava a escrever ficção. Havia muito tempo, Tolstoi deixara de comungar com a Igreja Ortodoxa Russa, tornando-se um "tolstoiano", com muitos seguidores, na Rússia e no exterior. O comentário definitivo sobre a religião de Tolstoi partiu de Maxim Gorki: "As relações entre ele e Deus são bastante suspeitas; às vezes, fazem-me lembrar a relação entre dois ursos em uma mesma caverna." Era impossível para Deus ficar à vontade na companhia do conde Leon Tolstoi. Definir o génio de Tolstoi é empreendimento absurdo; o escritor russo possuía a exuberância e a criatividade de Balzac e Hugo, mas quase nada da inibição e do atrevimento dos colegas franceses. A avaliação que Tolstoi faz da grande literatura é mais enigmática do que afrontosa. Ele censura Shakespeare, especialmente Rei Lear, mas aceita Falstaff, porque o mestre da espirituosidade "não fala como um ator". De certa maneira, Tolstoi percebia que Shakespeare era o seu grande rival, como ficcionista. Cada vez mais constato que as duas partes de Henrique IV, consideradas em sequência, constituem o romance dos romances. Minha obra predileta de Tolstoi continua sendo Hadji Murad mas, tendo escrito sobre a mesma já em outras duas ocasiões, recorro a outra noveleta, para ilustrar a genialidade do autor: A Sonata a Kreutzer (1889), composta vários anos antes de Hadji Murad. Reler A Sonata a Kreutzer é quase uma experiência traumática: não sei se elogio Tolstoi, por hipnotizar-me, ou se estremeço diante do narrador da história, o insano Pozdnyshev. Esse personagem ensandecido não é Tolstoi, que, afinal, jamais assassinou a condessa, embora, flagrantemente, às vezes desejasse fazêlo. No entanto, o relato contém um posfácio em que Tolstoi endossa a tese de Pozdnyshev, de que todo relacionamento sexual é nocivo e, portanto, deve ser sustado, mesmo entre marido e mulher. No parágrafo anterior, isentei Tolstoi do atrevimento tímido de Balzac e Hugo; ocorre que atrevimento como esse que consta do referido posfácio excede qualquer ousadia, trans-portando-nos ao cosmo tolstoiano, que é dotado de princípios singulares. O génio de Tolstoi é tão absoluto que, de início, é preciso considerar a autoridade cosmológica do escritor, o que nos convence estarmos diante de uma ficção inigualável, e esse diferencial, por sua vez, reforça o que sou obrigado a denominar "autoridade estética", expressão que o deixaria furioso. 88 Tudo o que Tolstoi escreveu, inclusive os tratados morais e teológicos mais desvairados, constitui leitura sumamente interessante. À semelhança de Shakespeare, tem-se, em Tolstoi, a ilusão de que a natureza é quem escreve. O paradoxo, óbvio a todos os leitores, é que a arte clássica das narrativas de Tolstoi e dos dramas shakespearianos só parece ser arte depois que nos recuperamos do impacto mimético e nos forçamos à prática analítica. O crítico marxista Gyõrgy Lukács foi obrigado a considerar Tolstoi um "caso especial", de vez que a perspectiva formalista não dava conta da visão do autor, nem do mundo por ele criado. Lukács queria ver em Tolstoi a expressão derradeira do Romantismo europeu, mas, sendo um leitor extraordinário, rendeu-se aos momentos grandiosos em que Tolstoi "mostra-nos um mundo claramente diferenciado, concreto e realista". Um cosmo de tamanha dimensão transcende o género romance, e faz o épico renascer: O mundo é a esfera da realidade social pura, na qual o homem existe como homem, não como ser social, ou como essência isolada, singular, pura e, portanto, abstrata. Se o mundo vier a existir como algo natural e, simplesmente, percebido através da experiência, como se fosse a única realidade verdadeira, um novo e completo sistema poderá ser construído a partir das substâncias e relações existentes. Seria um mundo em que a nossa realidade dividida não seria mais do que um pano de fundo, onde estaria superado o nosso mundo dualista da realidade social, assim como superamos o mundo da natureza. Mas a arte jamais poderá ser o agente desse tipo de transformação: o grande épico é uma forma restrita ao momento histórico, e qualquer tentativa de retratar o utópico como real está fadada a destruir a forma, não a criar uma realidade. O romance é a forma da era do pecado absoluto, como disse Fichte, e há de permanecer a forma dominante, enquanto o mundo for regido pelos mesmos astros. Em Tolstoi, insinuações de avanço rumo a uma nova era são visíveis; mas tais insinuações permanecem polémicas, nostálgicas e abstratas. Lukács, eminente crítico, a um só tempo fortalecido e limitado pela perspectiva marxista, atesta a força suprema da capacidade de representação de Tolstoi, comparável apenas a um reduzido grupo de escritores: Homero, o autor bíblico, Dante, Chaucer, Shakespeare, Cervantes, Proust. Tal força provoca a ilusão de o autor de A Sonata a Kreutzer ser o menos "literário" dos escritores, ilusão que se deve a uma profunda ten-denciosidade e a uma perseguição incessante ao leitor, fatores que posicionam Tolstoi entre Santo Agostinho e Freud, mestres de uma retórica que se configura como um tipo de psicologia. Tolstoi almeja a salvação e a cura do leitor; na Sonata, o autor parece uni 89 tanto ou quanto insano, e espera garantir salvação e cura a partir da suspensão universal da prática do ato sexual, seja dentro ou fora do casamento. O fato de uma história baseada em tal premissa constituir leitura sumamente interessante, na verdade, irresistível, é uma prova desconcertante do génio quase singular de Tolstoi. Shakespeare, em sua última comédia, Medida por Medida, criou uma Viena mítica, onde a lei determina a decapitação de todo homem que praticar sexo fora do casamento. Na realidade, se tal lei fosse cumprida à risca, o mundo seria, rapidamente, despovoado, embora de modo menos radical do que aquele vislumbrado por Tolstoi, em carta ao companheiro Chertkov: Portanto, o ¦homem deve evitar o casamento e, se casado, deve viver com a esposa como se fossem irmãos (...). Dirias, em objeção, que isso implicaria o fim da espécie humana? (...) Grande infortúnio! Os animais que viviam antes do dilúvio desapareceram da Terra; os animais humanos desaparecerão também. Maxim Gorky, na obra Lembranças de Tolstoi, relata uma ocasião em que Tolstoi, assobiando, tentou acompanhar o canto de um tentilhão; incapaz de fazê-lo, afirmou: Criaturinha raivosa! Está enfurecido. Que pássaro é esse? Falei-lhe do tentilhão, de como é ciumento. A vida toda, um só canto - ele disse - e, ainda, ciumento. O homem traz no coração mil cantos e, mesmo assim, também é culpado de ciúme; isso é justo? Tolstoi falava em tom meditativo, como se dirigisse as perguntas a si mesmo. Em certos momentos, um homem diz a uma mulher mais do que ela deveria saber a seu respeito. Ele fala e se esquece, mas ela se lembra. Quiçá, o ciúme não decorre do medo de aviltar a alma, de ser humilhado, ridicularizado? Não é perigosa a mulher que domina o homem pela luxúria, mas a que o domina pela alma (...). Quando apontei a contradição existente entre tal pensamento e a Sonata, o brilho de um súbito sorriso irrompeu-lhe da barba, e ele disse: Não sou um tentilhão. A noite, enquanto caminhávamos, ele disse, repentinamente: O homem sobrevive a terremotos, epidemias, aos horrores da doença e à agonia da alma, mas, em todos os tempos, a sua maior tragédia tem sido, e sem pre o será, a tragédia da cama. O pobre Pozdnyshev é um tentilhão, que se torna assassino em consequência da "tragédia da cama". O crítico John Bayley esclarece Tolstoi, comparando-o a Goethe e pondo em xeque o contraste que Thomas Mann estabelece entre os dois grandes escritores: Tolstoi também era um grande egoísta, mas um egoísta bastante diferente. Enquanto Goethe interessava-se apenas por si mesmo, Tolstoi nada mais era, além de si mesmo; e o entendimento de Tolstoi, quanto ao sentido que a vida passara a ter para ele, é mais íntimo e mais tocante. Decerto, a aproximação entre Tolstoi e o leitor é algo intensamente misterioso e, no caso da Sonata a Kreutzer, desconcertante. Todavia, não conheço um único leitor que simpatize com o desgraçado Podznyshev, embora ninguém possa deixar de se comover diante do horror e do realismo da descrição do momento em que o marido enlouquecido de ciúme mata a esposa: - Não minta, infeliz! - gritei, agarrando-lhe o braço com a mão esquerda, mas ela conseguiu escapar. Então, sem largar o punhal, ainda com a mão esquerda, agarrei-lhe a garganta, atirei-a de costas no chão e tentei estrangulá-la. Que pescoço firme (...)! Com as duas mãos, ela agarrou a minha, tentando livrar a própria garganta; como se estivesse apenas esperando aquela reação, golpeei-a, com toda a minha força, enterrando-lhe o punhal abaixo das costelas. Quando alguém diz que não se lembra do que fez durante um acesso de fúria, é tudo mentira, falsidade. Lembro-me de tudo, e nem por um instante perdi a consciência do que estava fazendo. Quanto mais alucinado, mais claramente a luz da consciência brilhava dentro de mim, de modo que era impossível deixar de saber o que estava ocorrendo. Eu sabia o que fazia a cada segundo. Não posso dizer que já soubesse, antecipadamente, o que iria fazer; mas sabia o que fazia enquanto o fazia, e, creio, até pouco tempo antes de fazê-lo, como que para possibilitar o arrependimento e convencer-me de parar. Sabia que o golpe fora desferido abaixo das costelas e que, naquele ponto, o punhal penetraria. No momento do ato, sabia que estava fazendo algo terrível, algo que jamais fizera antes, algo que teria consequências terríveis. Mas tal pensamento passou-me pela mente como um relâmpago, e o ato seguiu de perto o pensamento. Agi com uma clareza extraordinária. Lembro-me de ter sentido, momentaneamente, a resistência do corpete, de outro elemento, e, em seguida, da sensação do punhal penetrando algo mole. Ela agarrou o punhal com as duas mãos, cortando-se, mas não foi capaz de impedi-lo. 90 91 Durante muito tempo, na prisão, tendo passado por uma mudança de natureza moral, pensei naquele momento, relembrei os detalhes da cena, e muito refleti. Lembrei-me de que, por uma fração de segundo, antes de cometer o ato, tomei consciência de estar matando, de ter matado, uma mulher indefesa, minha esposa! Lembro-me do horror da constatação e, por isso, segundo uma vaga lembrança, após enfiar o punhal, retirei-o, imediatamente, tentando remediar o que fizera, tentando parar com tudo aquilo. Permaneci imóvel, durante um segundo, esperando para ver o que sucederia, se havia algum meio de reverter a situação. Ela pôs-se de pé e gritou: - Criada! Ele me matou! Talvez, somente por se tratar de Tolstoi seja possível apontar genialidade no trecho acima, sem incorrer em moralismo, ou sadismo. Quando penso em Tolstoi, as lembranças chegam a me oprimir: o Príncipe André, apaixonando-se por Natasha, ao vê-la cantar ao clavicórdio; Anna Karenina, na cama, olhando a chama da última vela, que oscila e se extingue; Hadji Murad, ferido de morte, "trôpego, avançando (...), punhal na mão, diretamente, contra o inimigo". Somada a essas lembranças, a memória da mulher de Pozdnyshev, agarrada ao punhal, cortando as mãos, sem conseguir contê-lo, faz-me estremecer. Tem fundamento o chavão da crítica de que Tolstoi enxerga as coisas como se ninguém as houvesse visto antes, embora, ao mesmo tempo, revista de um sentido universal a estranheza daquilo que descreve. É um tanto desconcertante testar esse chavão recorrendo à cena em que Pozdnyshev assassina a esposa, mas o fato é que a máxima parece válida. A habilidade de Tolstoi como contador de história é tamanha, que torna esse homicídio fictício tão memorável quanto o assassínio de Duncan adormecido, perpetrado por Macbeth. Shakespeare perturbava Tolstoi porque o distanciamento deste, como autor, assemelha-se ao de Shakespeare e, nos momentos em que a arte suprema se afirma, o moralismo exacerbado cessa. Deixa-me aturdido a ideia de que, na opinião de Tolstoi, meus comentários seriam provenientes de mais uma vítima seduzida por sua arte, arte esta por ele próprio rejeitada, mesmo quando nela triunfa. Gary Saul Morson expressa o dilema, de modo irrefutável: "A Sonata a Kreutzer é uma obra-prima estética, construída com brilhantismo, que nos ensina a desprezar esse mesmo constructo, esse mesmo domínio artístico - eis a dupla estratégia da obra." Os diálogos de Platão, porém, expressam a mesma duplicidade: são esplendores estéticos que nos ensinam a marginalizar a experiência estética. Tolstoi, assim como Platão, condena a arte por ter certeza de conhecer a verdade, mas Tolstoi é o Sócrates de si mesmo, disposto a se martirizar pela verdade. Tanto Platão quanto Tolstoi, supremos artistas literários, são capazes de recorrer à sedução ao mesmo tempo em que a censuram. A Sonata a Kreutzer é concluída com um páthos, para mim, irresistível e imperdoável: Ele tentou continuar, mas, não conseguindo controlar os soluços, calou-se. Uma vez recomposto, prosseguiu: Só comecei a entender quando a vi no caixão... Acometeu-lhe mais um soluço, mas ele prosseguiu, falando depressa: Só quando a vi morta pude entender o que havia feito. Dei-me conta de que eu, eu, a matara; que, em consequência do meu ato, ela, que estava viva, mexendo-se, cálida, agora estava imóvel, uma estátua de cera, e fria, e que a situação não poderia, jamais, em lugar algum, de modo algum, ser revertida. Quem não pas sou por isso não pode compreender... -Após inúmeros soluços, ele se calou. Permanecemos em silêncio durante um longo tempo. Ele continuava a soluçar e tremer, calado, sentado à minha frente. Seu rosto tornara-se fino e comprido, e a boca parecia atravessar-lhe o semblante, de lado a lado. É - ele disse, subitamente. - Se eu soubesse o que sei agora, tudo seria dife rente. Nada me faria casar com ela... Jamais teria me casado. E voltou a ficar calado durante um bom tempo. Perdão... Deu-me as costas e deitou-se no assento, cobrindo-se com a manta de la. Quando chegamos à estação em que eu deveria desembarcar (eram oito horas da manhã), dirigi-me a ele, a fim de me despedir. Se dormia, ou se apenas fingia estar dormindo, o fato é que não se mexia. Toquei-o com a mão. Ele descobriu o rosto, e pude ver que não pregara os olhos. - Adeus - disse-lhe, estendendo-lhe a mão. Estendeu-me a sua, com um leve sorriso, tão digno de pena que quase me fez chorar. - Sim, perdão... - ele disse, repetindo as palavras com que havia concluído o relato. Tolstoi, decidido a nos punir por sermos incapazes de resistir à sua genialidade, não nos reserva qualquer perdão. Ele (que teve 13 filhos com a esposa), realmente, quer dizer que não deveria ter se casado, e que nós tampouco deveríamos tê-lo feito. O fato de autor e leitor/crítico não chegarem ao perdão mútuo não faz a menor diferença, quando se trata de apreender a ficção de Tolstoi - o que me parece um meio adequado de iden-tificar-lhe o génio. 92 93 LUSTRO 2 Lucrécio, Virgílio, Santo Agostinho, Dante Alighieri, Geoffrey Chaucer E stabeleci este segundo Lustro de Keter como o grupo da influência, de modo que surge aqui um reflexo obtido através de justaposição. Lucrécio permeia Virgílio com uma intensidade espantosa, o que explica a versão mais vibrante de epicurismo encontrada neste último. Agostinho, cujo pensamento levou a uma retórica cristã e a uma teoria de leitura, é perseguido por Virgílio, autor do principal texto nãobíblico que concorreu para a formação da mente do bispo de Hipona. Dante, cuja força justificaria, plenamente, a sua inclusão no Lustro 1, é aqui situado porque seu auto-retrato como Peregrino repete o de Agostinho, sendo, também, parodiado pelo Peregrino de Chaucer, um irónico que, afavelmente, censura a maioria dos valores absolutos. Chaucer poderia, também, ser situado no primeiro Lustro, pois suas maiores criações - o Vendedor de Indulgências e a Mulher de Bath - são os precursores fundamentais dos niilistas e vitalistas shakespearianos, embora não possuindo o estofo titânico do niilista e vitalista, Hamlet, Príncipe da Dinamarca. 95 TITO LUCRÉCIO LARO 6 iw í míP CUÍÈP LUCRÉCIO A amada não 'stá perto, para variar? Mas sua imagem 'stá, e o doce nome Ressoa em teus ouvidos. Mas devemos Dessas sombras fugir, afugentar O alento do amor, voltando a atenção Para outro alguém... lançando nosso suco Em corpos disponíveis, sem guardá-lo Para uma só amante, a nós mesmos Causando apenas dor e sofrimento. Alentada, a ferida vai crescendo, Empola-se, levando à aflição... Melhor é curar males co' algo novo, Andando atrás de quem anda na rua; Volta a atenção p'ra outra, enquanto podes! * Não será surpresa o fato de Lucrécio ter desaparecido durante mais de mil anos cristãos, até o grande poema de sua autoria ser revivido no século XV. É possível que Dante jamais tenha ouvido falar em Lucrécio, e teria ficado constrangido com De rerum natura (Sobre a Natureza das Coisas), especialmente porque, com certeza, perceberia o quanto Virgílio devia a Lucrécio. Poetas influenciados por Lucrécio - de Virgílio a Shelley e Wallace Stevens carac-terizam-se pelo distanciamento da superstição, mas o efeito mais marcante de Lucrécio pode ser percebido em poetas cristãos abalados pelo vigoroso materialismo do predecessor romano: Tasso, Spenser, Milton, Tennyson. Nada em Lucrécio é mais estimulante do que o desprezo do poeta pelo idealismo erótico, conforme ilustrado nos versos acima. Byron, com a sua argumentação em favor da "mobilidade" sexual, foi, talvez, o mais sábio pupilo do erotismo lucreciano. Os males e as perdas do amor não têm melhor médico do que Lucrécio, cuja visão do cosmo na condição de "plataforma em chamas" constitui uma perspectiva de cura para ansiedades de origem sexual. Um génio que nos adverte da proximidade da superstição organizada e do erotismo altado deveria estar em desvantagem nos dias atuais. Mas a grande relevância de Lucrécio é que nenhum outro poeta ensina-nos tão bem a não temer a morte, ensina-nto do qual Montaigne foi seguidor. Descartando, sumariamente, a sobrevivência e a imortalidade, Lucrécio procura livrar-nos do medo e da melancolia, libertação que a 96 97 TITO LUCRÉCIO CARO TITO LUCRÉCIO CARO (c. 99-c. 55 A.E.C.) Lucrécio, o mais eloquente defensor do "ateísmo" e do materialismo metafísico em nossa tradição, tem sido, constantemente, lido de maneira equivocada, fato, com toda certeza, inevitável, de vez que a filosofia epicurista de Lucrécio é inaceitável ao cristianismo, ao islamismo, ao judaísmo e a toda tradição religiosa ocidental. São Jerónimo descartou Lucrécio, difamando-o com tamanha eficácia que o poeta desapareceu durante mais de mil anos, sendo resgatado somente no século XV. Bom seria que Dante tivesse lido Lucrécio: níjp teria o poeta epicurista se tornado um contraste diabólico de Virgílio, Estácio, Ovídio e Lucano, presenças cruciais na Commediâ. Ninguém é capaz de cristianizar Lucrécio, nem mesmo Dante. Sobre a vida de Lucrécio, nada sabemos, exceto da difamação cristã imputada por São Jerónimo. Supostamente, a esposa do poeta, Lucília, reagindo à indiferença sexual do marido, ministrou-lhe um elixir do amor que o levou à loucura. Pelo que consta, Lucrécio compôs Sobre a Natureza das Coisas, seu esplêndido poema didático, em certos momentos de lucidez, e suicidou-se aos 44 anos. Talvez seja positivo o fato de Dante jamais ter encontrado sequer uma referência ao nome de Lucrécio. Seria revoltante contemplar o poeta-mor epicurista levantando-se do túmulo, no Inferno, para fazer um relato dantesco sobre a própria vida, seus enganos teológicos e o suicídio. Em todo caso, já temos algo semelhante, no magistral monólogo dramático de Tennyson - "Lucrécio" (1868) -, em que, envenenado, o bardo do materialismo filosófico vocifera a agonia de suas tempestuosas alucinações: Fez-se na natureza algum vazio; Romperam-se os vínculos em tudo; Vi riachos de átomos em chamas, Torrentes do confuso universo, Irrompendo em meio ao grande vácuo, Colidiram em pleno espaço aéreo, Construindo sucessivas ordens vivas, Para sempre: foi este, pois, meu sonho, Era só meu, assim como é do cão Dedicado a floresta percorrida: Mas a visão seguinte! Pensei ver Todo o sangue de Cila, como chuva Caindo sobre a Terra e, do vermelho Prado, não emergiam dragões guerreiros, Conforme eu esperava ver no sonho, Mas jovens, Hetairai, de ofício indigno, Animalismo escravo, tão vil quanto O que fez a má fama das orgias Do Ditador de faces azuladas, Orgias mais infames que as dos deuses. De mãos dadas, gritavam e giravam A meu redor, chegando-se a mim, E eu gritei, sufocado, dando um salto... Era o clarão do meu último dia? Então, em meio às sombras, vi os seios, Eram seios de Helena, protegidos Por espada, ora acima, ora por baixo, Ora à frente, disposta ao combate, Mas eis que se abateu ante à beleza; Enquanto eu contemplava, surge um fogo, Fogo que destelhou a antiga Tróia, Entre os seios, queimando-me - acordei. Nesse grandioso pesadelo sexual, Tennyson realiza uma estranha mescla de si mesmo, Lucrécio e Enéas (de Virgílio). Cila (Sula) é o ditador de faces azuladas, célebre pelas orgias que organizava, segundo consta, sensacionais, mesmo para padrões romanos. As Hetairai (prostitutas) cercam o Tennyson virgiliano, até o momento em que ele avista Helena, ameaçada pelo vingativo Enéas, mas os fabulosos seios desarmam a espada troiana, nitidamente, fálica. O que tudo isso tem a ver com Lucrécio e seu grande poema sobre a natureza das coisas? Muito pouco, exceto que a bisbilhotice cristã de Jerónimo transmite a Tennyson uma leitura equivocada do verdadeiro Lucrécio. Além disso, lennyson aqui reage contra o epicurismo contemporâneo dos poemas de Algernon Charles Swinburne e dos primeiros ensaios de Walter Pater. Epicuro (341-270 a.e.c.) propusera em Atenas um racionalismo hedonista, baseado em uma teoria materialista (atómica). O epicurismo nega a imortalidade da alma, descarta a noção de Divina Providência e ignora o idealismo platónico, especialmente na es era erótica, defendendo uma lépida e sensata promiscuidade, não gratuitamente, mas _ para evitar os desastres da paixão. Epicuro e seu discípulo poético, Lucrécio, afirmam a 98 99 alegria da existência natural e nos exortam a aceitar a realidade da morte, sem o falso consolo da religião. Os deuses existem, mas não têm relevância, mantendo-se distantes de nós e indiferentes ao nosso sofrimento e ao nosso prazer. Epicuro, assim como, mais tarde, Lucrécio, tem merecido poucos elogios por parte da cultura oficial do Ocidente, mas é inegável a grande influência de Lucrécio, às vezes tácita, sobre um leque de poetas que vai de Virgílio a Wallace Stevens. Meu aforismo emersoniano predileto é, estritamente, epicurista e central à tradição de Lucrécio: Assim como as preces dos homens são uma doença da vontade, suas crenças são uma doença do intelecto. * Os conteúdos de Lucrécio são fortes, e têm provocado sentimentos ambivalentes em seus admiradores, desde Virgílio, passando pelos poetas renascentistas (Tasso, Spenser, Du Bartas), chegando a Montaigne, Molière, Dryden, Shelley e Walt Whitman. De modo surpreendente, o dogmatismo hedonista do sublime Lucrécio sempre me remete à tendenciosidade de Agostinho e Dante, tão fervorosamente convictos de sua verdade cristã quanto Lucrécio de seu epicurismo. Sobre a Natureza das Coisas apresenta a poesia da crença, tomando Epicuro como o fundador de uma religião antireligiosa, da qual ele era, basicamente, uma espécie de líder, na Atenas de seus dias. Lucrécio procura ser o mais devoto dos epicuristas, mas é extremamente idiossincrático o seu temperamento, cuja melhor expressão, em língua inglesa, são as traduções de John Dryden (1685), que, infelizmente, verteu apenas alguns trechos do poema. Dryden observou, com correção, que "as características marcantes de Lucrécio (quero dizer, de sua alma e de seu génio) são uma espécie de orgulho nobre e a asserção positiva de suas opiniões". O mesmo poderia ser dito sobre Dante, o antiLucrécio, o que nos faz lembrar que as sensibilidades dos poetas são mais importantes do que suas ideologias. George Santayana, no livro Three Philosophical Poets (1910), aproxima Lucrécio de sua antítese, Dante, e de Goethe, este mais epicurista do que cristão. Porém, o estudo de Santayana foi escrito há quase um século, e, a meu ver, nenhum dos três poetas era, basicamente, filosófico. Lucrécio não é Epicuro em versos; Dante não é Agostinho em versos; e Goethe é tão-somente Goethe em versos. Nem mesmo a rapsódica invocação a Epicuro que abre o Livro 3 de Sobre a Natureza das Coisas exprime a voz do precursor grego, mas a severa sublimidade romana que faz de Lucrécio o anti-Dante: Quando a razão, surgida da mente divina, eleva a voz a fim de proclamar a natureza do universo, os pavores da mente são afugentados, os baluartes do mundo se abrem, e posso contemplar a marcha dos eventos através do espaço. São reveladas a majestade dos deuses e o plácido local onde residem, jamais sacudido por tempestades, nem encharcado por nuvens carregadas de chuva, nem desfigurado por nevascas congeladas. Um céu de éter sem nuvens os encima, e sorri, com um brilho pródigo e grandioso. Tudo o que necessitam lhes é suprido pela natureza, e nada, jamais, corrompe-lhes a paz de espírito. Não vejo, em parte alguma, as antesalas do Inferno, embora a Terra não me impeça de contemplar tudo o que se passa nos espaços inferiores. Diante disso, sou tomado por um deleite divino e um tremor reverente, pois, pela vossa força, a natureza se descobre e se manifesta em toda parte. tom vii Tais palavras, sem dúvida, advêm do Evangelho segundo Epicuro, mas a visão e o pertencem, exclusivamente, a Lucrécio. Seu "deleite divino" é expresso com um gor sustentado intensamente, um panorama do universo da natureza, contemplado das alturas. A autoconfiança cosmológica de Lucrécio leva-nos a deixar de lado o medo da morte, e considerá-lo irrelevante. Lucrécio enfrenta, com serenidade, o mundo violento com o qual o seu poema não foi capaz de ensinar a Virgílio a lidar (serenamente). A arte de Lucrécio é menos variada do que a de Virgílio, e o efeito estético da mesma sobre mim não é tão intenso quanto o de Virgílio; porém, ganho mais lendo Lucrécio. 100 101 VIRGÍLIO Eram tantas as almas, quanto folhas Que dos galhos se soltam e percorrem Matas na precoce geada outonal, Ou aves migratórias oceânicas Que o céu encobrem, quando chega o frio E a terras luminosas as impele; Lá estavam, implorando prioridade Na travessia, braços estendidos Ao litoral longínquo. - Eneida, Livro 6, 307-15 O Virgílio de Dante pouco tem a ver com o poeta romano, que não ansiava pela dis-pensação cristã. Virgílio, profundamente influenciado por Lucrécio, tinha uma visão epicurista da prevalência da dor e do sofrimento na existência, e não contemplava qualquer transcendência futura. Em vez de servir de guia a Dante, o Virgílio histórico estaria no Inferno, dividindo um mesmo túmulo com Farinata, ou correndo sobre as areias escaldantes com os sodomitas. A opção de Dante por um determinado guia foi de natureza estética, sem qualquer relação com a alegoria teológica. Como génio poético, Virgílio nada tem em comum com Dante, mas as afinidades do poeta romano com Lucrécio e Tennyson são autênticas e reveladoras, e certos aspectos de Robert Fiost são, igualmente, relevantes. Virgílio é o laureado do pesadelo: a sua versão da deusa Juno é a mais incisiva representação literária que conheço do medo universal masculino com relação à força da mulher. Na Eneida, o amor é uma espécie de suicídio. Dido, a figura mais cativante do épico, mata-se antes de suportar a humilhação de ser abandonada pelo puritano e carola Enéas, mais parecido com o protetor de Virgílio, o Imperador Augusto, do que com Aquiles ou Ulisses. Todos nós, em Virgílio, estendemos os braços ao litoral longínquo, deixando para trás os prazeres naturais e as dores eróticas, enquanto somos transportados ao sombrio além. Para Virgílio, não existe vitória na vitória, e seus deuses são tão pobres de espírito quanto poderosos no domínio que exercem sobre nós. No entanto, a eloquência de Virgílio é extraordinária: a litania da perda jamais voltaria a ter o mesmo primor. Cwi^ CmètJ Cm^J VIRGÍLIO (70-19 A.E.C.) Poeta, psicólogo-teólogo e poeta dos poetas (excluindo-se Shakespeare), os três estarão para sempre interligados, em consequência de uma nostalgia pela autoridade romana o anseio pela ordem, ao mesmo tempo, transcendental e mundana. Contudo, os três não viveram vidas paralelas. Virgílio morreu sem ter concluído o épico Eneida, e, claramente, desejava a destruição do manuscrito. Agostinho, Bispo de Hipona, região hoje correspondente à Argélia, morreu no momento em que os vândalos forçavam os portões da cidade em que ele habitava. Dante faleceu em consequência de malária, contraída em missão diplomática realizada em favor de um patrono que o auxiliara financeiramente durante o longo período em que esteve exilado de Florença. Uma tristeza é comum a essas três mortes: Virgílio queria ver sua obra destruída; Agostinho temia o futuro do seu rebanho, ameaçado por hereges bárbaros, e Dante morreu quando faltava apenas um quarto de século para chegar à idade "perfeita" (81 anos), ocasião em que a sua profecia seria concretizada. Contudo, cada um desses visionários realizou milagres de génio: a Eneida; as Confissões e A Cidade de Deus, e A Divina Comédia. Pensando em termos da nossa contemporaneidade, Virgílio teria sido um poeta profissional, com efeito, laureado pelo Império Agostinho, um professor de literatura convertido a bispo católico; e Dante, um político florentino fracassado transformado em poeta-profeta, à semelhança de Isaías e Ezequiel. No século que acaba de terminar, não tivemos quem se comparasse a esses titãs. Joyce, católico renegado, Proust, cético meio-judeu, e Kafka, epítome do judeu exilado, são as nossas pedras de toque, no que concerne à imaginação, e talvez não sejam, sumariamente, superados por Virgílio, Agostinho e Dante, em Lermos de originalidade criativa. E não há qualquer nostalgia pela ordem romana, em Joyce, Proust ou Kafka. Para detectarmos anseios por noções arcaicas de ordem, temos de recorrer a figuras menores, como Ezra Pound e T. S. Eliot. Pound, em que pese a eloquência esporádica, não é um Virgílio, e Eliot, apesar do rigor, não se iguala a Agostinho, como intelecto, nem a Dante, como poeta. Se (conforme achava W. H. Auden) o Dante dos nossos tempos foi Kafka, é possível designar Proust o nosso Agostinho, visionário da memória e do tempo, e Joyce o nosso Virgílio, ambos seguidores de Homero. Mas a tríade do século XX era composta de mestres do caos, não de defensores da ordem. O latim, elemento comum a Agostinho, cristão, e a Virgílio, pagão, foi o antepassado do vernáculo toscano de Dante, convertido em linguagem literária de toda a Itália, 102 103 precisamente por ter sido utilizado na Divina Comédia. Para um romano-africano erudito como Agostinho, a proximidade de Virgílio, passados quatro séculos, compara-se à que hoje existe entre Shakespeare e nós. Agostinho foi um leitor extraordinário, análogo a Samuel Johnson, na Inglaterra do século XVIII. Em um estudo recente, The Shadows ofPoetry: Verga in the Mind of Augustine (1998), Sabine MacCormack observa que o teólogo cristão "foi, sem dúvida, o mais inteligente e curioso leitor de Virgílio em toda a Antiguidade". Eu diria que o que atraía Dante a Agostinho não era tanto a questão teológica, mas a admiração de ambos por Virgílio. Os estudos atuais equivocam-se ao enfatizarem a ortodoxia católica de Dante, de vez que o poeta florentino impôs o próprio génio à fé tradicional de Paulo e Agostinho. Mas, cabe registrar, Dante batizou a imaginação de Virgílio,* convertendo um poeta epicurista em celebrante protocristão. Agostinho cita Virgílio, copiosamente, em contextos cristãos, a fim de salientar a moral cristã, mas esquiva-se de qualquer interpretação forte, pessoal, como a que Dante confere à obra do poeta romano. O Virgílio da Divina Comédia é, necessariamente, um personagem literário, tanto quanto Dante, o Peregrino. Dante é tão convincente em termos de autoridade poética que o leitor pode levar um certo tempo até perceber que, apesar dos nomes históricos, todas as figuras da Comédia são personagens literários. O poeta latino Estácio jamais se converteu ao cristianismo, mas Dante precisava dele, em uma cena crucial e comovente, um encontro com Virgílio, no Purgatório, e, assim, a reles verdade histórica foi alterada. Virgílio, conforme veremos, foi, em vários aspectos, discípulo do grande poeta epicurista, Lucrécio, evidentemente, desconhecido de Dante e cuja obra teria estarrecido o mestre toscano. A Comédia tem apenas três personagens principais: Dante, o Peregrino; Virgílio, o "pai"; e a figura magnífica, enigmática de Beatriz, elevada por Dante à extraordinária eminência na hierarquia celeste. O enigma de Beatriz é ser invenção do próprio Dante, audácia difícil de ser equiparada em toda a literatura. Não fosse Dante um dos dois poetas supremos do mundo ocidental, Beatriz seria a imposição ultrajante de um mito pessoal à formidável estrutura da teologia católica. Sugiro, no espírito deste livro, que pensemos Beatriz como o génio de Dante Alighieri, sua "amante interior", para usar uma expressão de Wallace Stevens. O génio de Virgílio era o pesadelo - Juno -, sempre um mau agouro. Para Dante, Beatriz era a boa-nova, o Evangelho segundo Dante. A Divina Comédia é um "poema sagrado", e não um épico, e, pode-se dizer, Dante considerava a obra o Terceiro Testamento, um complemento das Escrituras. Não encontramos em Shakespeare uma única figura que possa ser considerada seu génio: Hamlet, Falstaff, Cleópatra, lago, Macbeth, Lear, Rosalinda podem ser arrolados, mas apenas como um todo. O génio de Milton, segundo Blake e Shelley, é Satã; mas o apel cabe melhor à Luz Interior, convocada pelo poeta protestante na Invocação do Livro 3 de Paraíso Perdido. Toda grande poesia perde algo em tradução, e a Comédia, melhor poema, tem mais a perder do que a Eneida. Paradoxalmente, Dante sobrevive melhor à tradução do que Virgílio. O Purgatório, tradução do poeta norte-americano W. S. Merwin, que acabo de reler, expressa mais da originalidade inventiva de Dante do que trabalhos igualmente admiráveis, tais como as versões da Eneida, feitas por Robert Fitzgerald e Allen Mandelbaum. Dante, mestre da nuança, ainda mais do que Virgílio, é dotado de tamanho poder cognitivo, força de vontade e desejo, que o seu texto, mesmo quando carece de nuança, ainda assim denota uma potência sobrenatural. A autoconfiança de Dante é imensa, igualada pelos melhores poetas da Inglaterra - Shakespeare, Chaucer, Milton -, mas uma ironia comum a Shakespeare e Chaucer esconde-nos a autoconfiança que ambos têm. A exuberância de Milton constitui o caminho mais próximo para a de Dante, mas é difícil identificar um poeta de língua inglesa que se assemelhe muito a Virgílio. Tennyson e T.' S. Eliot têm seus aspectos virgilianos, e ambos se aproximam, embora de modo bastante distinto, da eloquência onírica e horripilante de Virgílio. A Eneida é um poema infinitamente paradoxal, pois, de certo modo, o herói épico, protagonista, é baseado em Otávio César, o Imperador Augusto (sobrinho e herdeiro de Júlio César), que derrotou António e Cleópatra e, indiscutivelmente, fundou o Império Romano. Augusto era protetor de Virgílio; foi Augusto que recebeu e preservou a Eneida, contrariando a vontade do autor no leito de morte. O Imperador necessitava do poema porque este conferia à era noções de ordem e grandiosidade, conquistas básicas da autoridade; Enéas sempre vislumbra o futuro, o surgimento de uma nova Tróia em Roma, que há de pôr um fim ao exílio e dar início à justiça. Dante, exilado dos exilados, encontrou justiça na Comédia, mas cabe inquirir se Enéas e Virgílio não teriam as suas diferenças. Tudo o que Virgílio encontra é sofrimento, sofrimento sem fim. Enéas é o herói do poema, mas não de Virgílio, divergência que torna o épico ainda mais interessante, pois inserir o herói errado no poema certo é antecipar a arte de Shakespeare. Fico deveras perplexo diante do fato de jamais ter encontrado um leitor que preferisse o herói, Enéas, por mais admirável que seja, a Dido, amada e abandonada por Enéas, e a Turno, morto por Enéas, embora só tenha conseguido fazê-lo depois que o herói italiano foi entorpecido por ação de uma fúria obscena, "enviada" por Juno. Qual seria o objetivo de Virgílio, concedendo ao herói uma vitória escusa, em que ele mata algo que, com efeito, já está morto? Os deuses de Epicuro e Lucrécio permanecem distantes de todas as questões humanas, mas o Virgílio epicurista, que lia Lucrécio como Escritura Sagrada, oferece-nos um Júpiter pouco mais benevolente que a esposa - Juno é um monstro. O génio de Virgílio 104 105 é ativado a partir de profunda compaixão pelo sofrimento humano, inclusive o dele próprio, e, no entanto, a essência desse mesmo génio parece ser a ansiedade constante, o terror extremo ante a ira interminável de Juno. Em Virgílio, a figura de Juno pode ser considerada a terrível projeção onírica de algo universal relacionado ao medo que o homem tem da força feminina. Com sutileza, Virgílio sugere uma orientação homoeró-tica (favorável a Dido, amante desprezada por Enéas), deflagrada por Turno, rival e vítima de Enéas. Virgílio, que celebrava Augusto César como a esperança de ordem, paz e justiça no mundo, não enfrentava a realidade com uma atitude que sequer se aproximasse da esperança. O génio de Virgílio está, em parte, contido na extraordinária capacidade de expressão do poeta e em sua fantástica sensibilidade ao sofrimento. Tais qualidades compensam a relativa fraqueza de Virgílio, no aspecto em que, geralmente, o génio manifesta toda a sua potência: a originalidade. Na primeira metade da Eneida, Virgílio dedica-se a imitar a Odisseia, na segunda, a Ilíada. E a filosofia religiosa do poeta baseia-se na intensidade epicurista de Lucrécio, poeta que jamais seria lido por Dante, mas cuja obra, supõe-se, estava sempre sobre a mesa de Virgílio. Virgílio talvez seja o primeiro autor europeu a demonstrar que, em termos de inventividade, o génio pode ser, relativamente, fraco, desde que possua sensibilidade marcante e versátil. Quando penso na Eneida, sem abrir as páginas do livro, lembro-me da humilhação de Dido, abandonada por Enéas, o cafajeste virtuoso, insuportável em sua nobreza. Entretanto, esta é apenas uma das perspectivas possíveis, pois Virgílio é, a um só tempo, frio com seus personagens femininos e extremamente sensível à sua realidade. Os personagens jovens, do sexo masculino, têm, para o autor, uma pungência de que Dido carece. Mulher alguma em Virgílio (segundo me recordo) é comparada a uma flor, mas os rapazes são como flores. Essa atitude transcende um homoerotismo latente, estando relacionada a uma visão de mundo que, ao mesmo tempo, aceita e repele a aridez lucreciana no que concerne ao domínio de Vénus. Notoriamente, sempre posicionando-se dos dois lados do muro, Virgílio talvez seja o mais ambivalente de todos os grandes poetas, superando até Baudelaire. A Eneida é, francamente, um épico; contudo, a tonalidade do poema é tão elegíaca que o torna absolutamente ímpar no género. O herói traz o coração partido, em luto eterno por Tróia, mesmo enquanto persegue a missão de fundar Roma. Poetas cristãos, de Dante a T. S. Eliot, insistem que Virgílio é um poeta em busca de revelação, ideia que me parece tão estranha quanto as supostas afinidades entre os Evangelhos e a Ilíada, apontadas por Simone Weil. Eliot, meio século atrás, escreveu: "Somos todos, à medida que herdamos a civilização europeia, cidadãos do Império Romano, e o tempo ainda não refutou Virgílio." Já bastante fatídica após o horror nazista, a observação de Eliot, nos dias de hoje, chega a ser bizarra. A ideologia augustiana que permeia a obra de Vireílio era compatível com a romanização do cristianismo, mas é arcaica na era atual do império da informação. O nosso Imperador Augusto é o segundo George Bush, que dispensa qualquer Virgílio. O fato de o génio de Virgílio ainda ser válido e atual susten-ta-se exclusivamente, devido à persistente sensibilidade do poeta, que pouco tem a ver com Enéas, ou com Augusto. O cosmo de Virgílio é comandado por um Júpiter surpreendente, nem homérico nem lucreciano. Em Homero, os deuses constituem a nossa audiência; em Lucrécio, nada têm a ver conosco. Em Virgílio, Júpiter decide os nossos destinos: sua vontade faz as nossas guerras, estabelece o perene domínio romano, o abandono de Dido por Enéas. O destino - ou vontade de Júpiter - é masculino, e não pode ser distinguido da força, do poder. Juno - irmã e esposa de Júpiter - é imagem digna de um pesadelo, e pode ser considerada a Musa da Eneida, pois a ira e o ressentimento da deusa empurram o poema como marcha fúnebre, um progresso rumo à destruição fulgurante. Um dos principais atributos estéticos da Eneida é o avanço constante da ação. Os eventos se sucedem sem remorso, contra Virgílio, extremamente suscetível a toda e qualquer angústia retratada. Essa discrepância, entre a inexorabilidade da narrativa e o sofrimento implícito do poeta, constitui um traço extremamente original da Eneida, raro até mesmo na literatura mais criativa. Dante, cuja afinidade com Virgílio é, em grande parte, um mito, não exibe (aos meus ouvidos) esse contracanto virgiliano. Virgílio era epicurista, mas, ao contrário de Lucrécio, o autor da Eneida não encontrava consolo nas advertências de Epicuro com relação ao medo e à ansiedade. Existirá poeta com uma angústia mais sublime do que Virgílio? Tanto quanto o seu protagonista, Enéas, Virgílio é impelido por uma vontade mais forte do que ele próprio, e que torna o heroísmo supérfluo. Todavia, Virgílio não é carola, ao contrário de Enéas. Não temos a impressão de que Virgílio idolatre o destino, assim como não venera a terrível Juno. Dido, Rainha de Cartago, ainda confere a Virgílio glória inusitada, passados tantos séculos da história literária. O amor que leva à morte de Dido possui energia ainda hoje espantosa: será possível que o incolor Enéas tenha nela provocado tamanha paixão? Temos a sensação de que ela encontrou o homem errado: Turno, o rei italiano morto por Enéas ao final da epopeia, teria sido parceiro mais adequado, um António, fosse ela uma Cleópatra. Os temperamentos de Dido e Turno são incendiários; Enéas, em dados momentos, pressagia Daniel Deronda, de George Eliot, o mais cioso dos puritanos. Mas Dido, vitimada por Vénus, por Juno e, na verdade, por Enéas, é inesquecível, em sua ousadia tão autêntica: - I or que esconder meus sentimentos? Com receio de que males piores devo me conter? Ele suspirou, enquanto eu chorava? Sequer olhou para mim? Cedeu, ver106 107 teu lágrimas ou compadeceu-se daquela que o amava? O. que devo dizer primeiro? E depois? Não, nem a poderosa Juno nem o velho Saturno encaram essas coisas com justiça! A boa-fé já não merece confiança. Eu o acolhi, náufrago, mendigo, e, loucamente, com ele dividi meu trono; resgatei-lhe a frota perdida, salvei da morte os tripulantes. Ai de mim! Rodopio em meio ao fogo. Primeiro, o profético Apolo, depois, os oráculos lícios, então, um mensageiro dos deuses, enviado pelo próprio Júpiter trazem-me pelo ar essa ordem terrível. Decerto, isso é trabalho para os deuses, é tribulação para lhes perturbar a paz! Não te deterei; não contestarei tuas palavras. Vai, parte para a Itália com o próximo vento; busca teu reino além das ondas. Mas, tenho fé, se os deuses justos têm algum poder, provarás da taça da vingança nos rochedos do caminho, e chamarás o nome de Dido. Ela já está decidida a se suicidar, e as traduções, por mais fiéis e literais, não expressam nem a humilhação nem o trauma de Dido, sentimentos dos quais Virgílio é o grande mestre. Dido tenta denunciar tudo ao mesmo tempo, a fim de exprimir a sensação de ser consumida pelas chamas. O desdém que ela demonstra pelo plantel de divindades, cuja função é levar a termo o abandono de uma única mulher apaixonada, é intenso, e sua fúria por ter sido traída faz lembrar Medeia. Seria interessante saber como Dante interpretaria esse trecho, pois, em sua vida amorosa, o poeta toscano deve ter provocado reações bastante semelhantes à de Dido. Não há misoginia em Virgílio, apesar das conclusões de estudiosos. Como sempre, o poeta não é imparcial; antes, de modo curioso, posiciona-se tanto do lado de Dido quanto de Enéas, feito, praticamente, impossível. Enéas não tem defesa: aproveita-se da viúva virtuosa, sem por ela estar apaixonado, e a melhor explicação que consegue apresentar para a sua própria cafajestada é patética: os deuses obrigaram-me a assim proceder, e por que não posso fundar a minha cidade, assim como fundaste a tua? Quem não desejaria que Dido tivesse atirado uma lança em Enéas? Chegando a Averno, o sedutor de viúvas passa por maus momentos, durante um encontro com a sombra de Dido, mas Virgílio cochila nesta cena, conforme denunciado pelo grande crítico, Samuel Johnson, para quem Virgílio não passava de um imitador do originalíssimo Homero. Chegando ao Hades, Ulisses é desprezado por Ajax, que para ele perdera as armas e a armadura de Aquiles. Muito aprecio a energia esplêndida de Johnson, ao destruir Virgílio: Enviado por Virgílio ao mundo das trevas, Enéas encontra Dido, Rainha de Cartago, levada ao túmulo pela perfídia do herói; ele a aborda, com carinhos e desculpas, mas a dama dá-lhe as costas, como o fizera Ajax, ignorando-o com desdém Ela se afasta, como Ajax, mas a este não se assemelha, quanto ao exercício das qualidades que conferem dignidade ou decoro ao silêncio. Ela bem poderia, de acordo com sua conduta prévia, ter irrompido em imprecações e denúncias, como qualquer outra mulher injuriada; mas a imaginação de Virgílio estava tomada por Ajax, e, portanto, foi incapaz de convencer o poeta a ensinar a Dido qualquer outro meio de expressar ressentimento. -The Rambler, N2121 Johnson é aqui injusto com Virgílio, mas o comentário não deixa de ser procedente. Acossada por Homero, a originalidade de Virgílio advém do páthos e da negatividade desdenhados por Johnson, mas que tanto apelam às nossas incertezas, assim como tocaram e convenceram os primeiros leitores de Virgílio. Tais visões negativas, inclusive a história de Dido, emergem de um conflito em Virgílio, entre a rejeição da glória política, militar e erótica (segundo Lucrécio), de um lado, e a exaltação romântica do heroísmo e a busca do reencontro com Penélope (na Odisseia), de outro. Do ponto de vista poético, felizmente, Virgílio não consegue resolver sua ambivalência. Houvesse Lucrécio convertido Virgílio, inexoravelmente, a um epicurismo severo, a morte não teria para Virgílio qualquer importância, e perderíamos uma sublimidade plangente, para sempre singular: Daqui, uma estrada leva às águas do Aqueronte tártaro. Aqui, em meio a espesso lodaçal e correntes profundas, um redemoinho regurgita, vomita areia no Cocito. Essas águas são guardadas por um barqueiro sisudo, esquálido - Caronte -, que tem no queixo um tufo de cabelos grisalhos, e olhos como globos em chamas; a capa suja lhe é presa ao ombro por um nó. Sozinho, com uma vara, ele impele o barco, iça as velas e, em seu ofício tenebroso, transporta os mortos - está velho, mas a velhice de um deus é intrépida, vigorosa. Para aqui corre a multidão, fluindo a estas margens; mães, homens, corpos de heróis de almas nobres, agora sem vida; meninos, jovens solteiras, filhos levados à pira diante dos olhos dos pais; são tantos quanto as folhas da floresta que, na primeira geada do outono, despregam-se e caem; tantos quantos os pássaros que, vindos do oceano, convergem para o litoral, quando o tempo frio os lança ao mar, em busca de terras ensolaradas. Lá estão, implorando preferência na travessia, braços estendidos, ansiando pela margem distante. Mas o barqueiro carrancudo escolhe a quem transportar, empurrando os demais para longe da orla. -Livro 6, 295-313 108 109 A metáfora das folhas como gerações de seres humanos é de Homero, mas é transformada por Virgílio, com uma criatividade que inspirou muitos poetas, de Dante a Spenser, Milton e Shelley, chegando a Whitman e Wallace Stevens, nos Estados Unidos. Passamos, das folhas outonais e das aves migratórias, ao grande páthos das almas infelizes, insepultas, empurradas para trás, destinadas a perambular pelas margens malditas das águas negras durante um século. Estender os braços, ansiando pela margem distante, é desejar o esquecimento, característica de Virgílio, não de Homero, nem de Lucrécio. Augusto e o destino romano recuam; o que permanece é esse anseio negativo. SANTO AGOSTINHO Eles lêem, eles selecionam, eles amam: lêem para todo o sempre, e o que lêem jamais fica ultrapassado. Ao ler, selecionam e, ao selecionar, amam. Seu códice jamais se fecha, seu livro jamais é cerrado, pois o próprio Deus é o seu texto, eternamente. - Confissões Os anjos não precisam ler, mas nós precisamos. Não são pegos pelos dilemas da memória e do tempo. O génio de Agostinho definiu tais dilemas, especialmente no que respeita à leitura, com uma clareza permanente. Brian Stock, no estudo Augustine the Reader (1996), atribuiu a Agostinho a primeira teoria de leitura elaborada no Ocidente; a meu ver, a teoria de Agostinho talvez ainda seja a melhor de que dispomos. Se a era do livro encontra-se em decadência (temporariamente, espero eu), é vital recordar que Agostinho teve muito a ver com a instituição do livro como base do pensamento. No entanto, sendo um cristão extremamente devoto, Agostinho duvidava que a leitura, de fato, promovesse o esclarecimento, conquanto insistisse que jamais poderíamos prosseguir em nosso crescimento espiritual sem leitura intensa e extensa. A memória autobiográfica, como base de reflexão, é, essencialmente, fruto da criatividade de Agostinho. Se alguns de nós pensamos em nossas vidas como textos, devemos a noção a Agostinho. Como narrador das Confissões, Agostinho torna-se um Enéas cristão, ao mesmo tempo, perturbando-nos e nos impressionando tanto quanto o Enéas de Virgílio. A fiel concubina de Agostinho, mãe de seu filho, foi, duramente, abandonada, à semelhança de Dido. Se Enéas pode parecer um puritano hipócrita, Agostinho pode parecer algo pior, um santarrão presunçoso. Vale lembrar, porém, que grandes génios nem sempre têm uma personalidade capaz de espalhar alegria à sua volta. Agostinho temia a vontade, que, tantas vezes, à moda de Hamlet, posiciona-se contraria à palavra. A vontade de Deus é inescrutável, a menos que se aceite uma grande margem de erro, e a não ser através de uma leitura da Bíblia profundamente informada pelo desejo sincero de conhecer Deus. Agostinho sabia que o único leitor ideal é o próprio Deus, e, no entanto, jamais existiu leitor cristão mais consumado. 110 111 SANTO AGOSTINHO SANTO AGOSTINHO (354-430) Santo Agostinho foi um escritor extraordinário, intelectual formidável, e o mosaico de génios aqui proposto não pode dispensá-lo, apesar de todo o meu constrangimento. Agostinho defendia a dispersão dos judeus, e não o seu extermínio, mas foi também o primeiro teórico da Inquisição, segundo o biógrafo oficial, Peter Brown. Atualmente, muitos leitores das duas obras mais célebres de Agostinho - Confissões e A Cidade de Deus - pendem a uma reação ambivalente, a não ser os crentes dogmáticos. Garry Wills, em recente estudo sucinto, sugere, com perspicácia, o emprego do título Testemunho, em lugar de Confissões, a fim de evitar implicações que, de maneira equivocada, remetam à noção de "confissões verdadeiras". Infelizmente, a estratégia não funciona; as referências a Testemunho, no estudo de Wills, irritam o leitor, já familiarizado com o título original. O tema de Agostinho é a formação de um cristão, conquanto sua história transcenda o que a maioria dos norte-amerícanos hoje chama "conversão" a Cristo. A originalidade de Agostinho é responsável pela invenção da autobiografia, mas eu não depositaria ali o seu génio. O pensamento é impossível sem a memória, e a memória, em uma consciência ampla, pode muito bem depender da leitura. Ainda hoje, Agostinho oferece mais reflexão sobre a memória do que qualquer outro estudioso, e talvez continue a ser o melhor professor de leitura. Sobrecarrega-me um pouco tal afirmação, pois prezo Samuel Johnson e Ralph Waldo Emerson, e não gosto de Agostinho, mas ele foi o primeiro grande leitor, na concepção defendida por Johnson e Emerson, e, de certo modo, ainda é o mais apto, descontando-se sua tendenciosidade, comparável à de Freud, embora em direção oposta. Em uma voga que só agora começa a chegar ao fim, temos sofrido a imposição de "teóricos" da leitura um tanto enfadonhos. Agostinho é apresentado por Brian Stock como o teórico que proveu os fundamentos de uma cultura baseada na leitura, o que me parece irrefutável. Grande parte do entendimento a que pude chegar sobre a minha própria obsessão pela leitura e pela memória advém de Agostinho (às vezes, a contragosto). Começo com Virgílio, pois em Virgílio tem início Agostinho, que sempre interagiu com o poeta romano. Embora criativa, a leitura que Dante fez de Virgílio foi distorcida, mas Agostinho leu Virgílio corretamente, o que produz uma fascinante curiosidade: o Virgílio de Dante é agostiniano, mas o Virgílio de Agostinho, absolutamente, não o é. Tanto para Agostinho quanto para Dante, Virgílio é o predecessor idealizado (no caso de Agostinho, confundido, estranhamente, com Santo Ambrósio), mas Virgílio não foi o verdadeiro precursor literário nem do bispo africano, nem do poeta florentiNo caso de Dante, tal figura seria um misto do humanista Brunetto Latini e do poeta florentino Guido Cavalcanti. Para Agostinho, os verdadeiros precursores foram os neoplatonistas Plotino e Porfírio, ambos tendo rejeitado Cristo. Virgílio, conforme já observei, viveu à sombra de Homero e, mais ainda, de Lucrécio. Agostinho leu Lucrécio e, como seria de se esperar, detestava-o, mas fascina-me a noção de Lucrécio não ter estado disponível a Dante, cuja reação à leitura de Lucrécio seria a fúria. Embora Agostinho, ao lado de Ambrósio e Jerónimo, tenha se tornado um dos "fundadores da Idade Média", conforme os chamou E. K. Rand, é importante ter em mente o fato de que o bispo-teólogo começou a carreira na função que hoje chamamos professor de literatura, e seu texto primordial era Virgílio, assim como o nosso texto central são as obras completas de Shakespeare. Agostinho inebriava-se nas palavras, sempre fascinado por linguagem figurada, embora, com o passar do tempo, só aprovasse o uso desse tipo de linguagem na Bíblia. Mais até do que Dante (sempre um político, mesmo no exílio), Agostinho era um homem de letras, uma personalidade literária antes mesmo de se tornar figura-chave da Igreja ocidental. Agostinho, o teólogo, pouco me interessa aqui, conquanto salientar-lhe a acuidade psicológica e a perspicácia literária signifique, igualmente, invocar-lhe a originalidade espiritual, mesmo que a aspereza dessa espiritualidade dificulte a sua aceitação. Os estudos da consciência, Agostinho, com efeito, iniciou com Plotino, mas rompeu, decisivamente, com o neoplatonismo ao entender o autoconhecimento como resultado da memória, e não da intuição. Vemos a nós mesmos, como um processo de continuidade, através do exercício de recriação ensejada pela memória: a autobiografia é, praticamente, inconcebível sem a memória, o que, em grande parte, constitui uma descoberta agostiniana. Virgílio, presença contínua para Agostinho, da infância à velhice, contribuiu, implicitamente, para essa formulação do papel da memória na construção da consciência individual. Contudo, para Virgílio, e para o Enéas por ele criado, memória implicava nostalgia, ou pesadelo. Virgílio é, por assim dizer, um aperitivo da insistência de Nietzsche de que a dor é mais memorável que o prazer. Para Agostinho, ate o esquecimento constitui parte vital da memória, pois tornase um mito cristão da memoria, no qual as três forças da alma refletem, em nós, a Trindade e sua unidade misteriosa. A noção de "entendimento" foi herdada da filosofia clássica, mas a "vontade agostiniana, assim como a "memória", é criação de Agostinho, por mais surpreendente que a asserção possa parecer. Todavia, para se revalorizar a memória, é preciso modificar a visão que se tem de intelecto, e, para Agostinho, o que une memória a intelecto é a vontade de Deus, atuando na alma como o princípio paulino de caritas, o amor do Deus criador por suas criaturas, homens e mulheres. A memória, conforme 112 113 reiterado nas Confissões, é o agente por meio do qual as outras forças da alma são forjadas à imagem de Deus. Apresento aqui uma amostra das Confissões, Livro 10: É prodigiosa a força da memória, meu Deus. E um santuário vasto, imensurável. Quem pode sondar-lhe as profundezas? Todavia, é uma faculdade da minha própria alma. Embora seja parte da minha natureza, não consigo entender tudo o que sou(...) Chegamos a denominá-la [a memória] mente(...) A força da memória é grande, O Senhor. É assombrosa, em sua complexidade profunda e incalculável. No entanto, é a minha própria mente: sou eu mesmo. O que, então, sotueu, meu Deus? Qual a minha natureza? Uma vida sempre a variar, cheia de mudanças, dotada de imensa força. As vastas planícies da minha memória e suas inúmeras cavernas e vales estão repletas de incontáveis elementos, de todos os tipos(...) Mas em que parte da minha memória estás presente, O Senhor? Que cela construíste para ti em minha memória? (...) Estavas no meu interior, e eu, no mundo exterior. Procurei por ti no mundo exterior. Procurei por ti no mundo exterior, e, embora desvirtuado, deparei-me com as tuas adoráveis criações. Estavas comigo, mas eu não estava contigo. Está implícita, nos trechos anteriormente citados, a transição, quase invisível, da memória à vontade, processo denominado conversão. Não somos capazes de recordar todo o conteúdo da nossa memória, e o que somos mais propensos a esquecer é a felicidade de ter conhecimento de Deus. A memória é força mais poderosa do que o eu, até que o eu chegue à seguinte percepção: "Estavas comigo, mas eu não estava contigo." A vontade de conhecer Deus supera a fraqueza que nos faz dele esquecermos. Tal fraqueza envolve um mistério a ela relacionado - o tempo: O que, então, é o tempo? Sei muito bem, desde que ninguém me pergunte; porém, se perguntado, ao tentar explicar, fico perplexo. Não podemos entender a eternidade, pois a nossa linguagem está inserida no tempo, e, portanto, como poderemos definir, precisamente, a natureza do tempo? O tempo presente é apenas uma ficção de permanência, um poema, ou um conto; todavia, tudo o que sabemos do passado ou do futuro está contido nesse poema, ou conto, à medida que o escrevemos. Não vejo a Trindade no trecho notável a seguir, ao contrário de Garry Wills, mas lembro-me dessas palavras sempre que recito um poema em voz alta, o que SANTO AGOSTINHO significa que, embora descrente, penso em Agostinho várias vezes todos os dias, pois quem mais teve essa percepção com respeito à experiência interior de recitar um poema que se tem na memória? Suponhamos que eu vá recitar um salmo, de memória. No momento inicial, a minha capacidade de expectativa é tomada pela totalidade do salmo. Após ter iniciado, os trechos do salmo por mim removidos da esfera da expectativa, previamente relegados ao passado, passam a ocupar a minha memória, e o escopo da ação por mim sendo realizada é dividido entre as duas faculdades, da memória e da expectativa, uma olhando, em retrospectiva, para o trecho já recitado, a outra contemplando o trecho que ainda falta ser recitado. Mas a faculdade da atenção está presente o tempo todo, e, através dela, aquilo que era futuro flui para o passado. À medida que o fenómeno prossegue, a esfera da memória estende-se, na proporção em que a esfera da expectativa se retrai, até a expectativa ser totalmente absorvida. Isso ocorre no momento em que concluo a recitação, e tudo já fluiu para a esfera da memória. O que vale para o salmo, como um todo, vale também para as partes, e para cada sílaba. Vale para qualquer ação de caráter mais demorado da qual eu me ocupe e na qual a recitação do salmo represente apenas uma pequena parte. Vale para a vida inteira de um homem, na qual todas as suas ações fazem parte. Vale para toda a História da humanidade, da qual a vida de cada homem faz parte. - Confissões, Livro 11, 28 Declamo um poema lírico de W. B. Yeats, ou uma meditação de Wallace Stevens, e, por causa de Agostinho, percebo que preciso confrontar a minha mortalidade, e até mesmo o meu conceito de História. Talvez o processo envolva a relação "três em um" (poema, vida, História da humanidade), talvez não, mas Agostinho transformou a minha atividade em um ato de consciência que vai muito além das minhas intenções, que se estendiam somente até o ponto da minha satisfação estética. A força especial de Agostinho é a capacidade de nos incomodar com seu poder de aguçar-nos a consciência de vulnerabilidade, por menos que nos interesse o fato de ele transcender tal abismo. O leitor, se assim desejar, pode entender Agostinho como uma ponte entre Virgílio e Dante, mas considero tal conexão enganosa. A devoção de Dante - assim como a de John Milton ou a de William Blake - tem um caráter bastante pessoal, e logra converter tao-somente os estudiosos anglo-americanos obcecados por teologia. Agostinho, igualmente idiossincrático, era um místico, interessado, em primeiro lugar, na elevação da alma a Deus através da contemplação. Dante louva os contemplativos, mas ninguém 114 115 que o lê com atenção, nem mesmo no Paraíso, o confundirá com São Bernardo. Embora Santo Agostinho tenha lutado contra a influência de Plotino e Porfírio, jamais conseguiu escapar da sombra de ambos. Peter Brown, mais uma vez, é conclusivo: Agostinho, no entanto, estava impregnado dos métodos de pensamento neoplatônicos. Para ele, o mundo se caracterizava pelo "devir", uma hierarquia de formas realizadas de modo imperfeito, cuja qualidade dependia da "participação" no Mundo Inteligível das Formas Ideais. O universo estaria em estado de tensão constante e dinâmica, em que as formas imperfeitas da matéria buscavam concretizar uma estrutura fixa, ideal. * A Igreja é a imagem sombria de uma igreja mais verdadeira, distante, situada na Eternidade não aparente. Mas tal Eternidade, diferentemente do sistema celestial dantesco, é plotiniana, sendo alcançada somente através dos recursos da alma interior. Esse neoplatonismo residual jamais abandona Agostinho, pois passa a fazer parte de sua natureza interior. Plotino é, para Agostinho, um ferimento mortal, assim como Virgílio, gradualmente, evolui, de consolo mortal a oponente querido, em A Cidade de Deus. Quando Agostinho pensava em "poesia", pensava em Virgílio; os Salmos estavam além da poesia, sendo verdade. Dido era poesia, para Agostinho, assim como o é para nós. Agostinho sabia que a Dido histórica, Rainha de Cartago, suicidara-se para não ter de casar com um rei africano um tanto doentio. A história do trágico amor de Dido pelo pilantra carola Enéas é invenção de Virgílio, em que Dido assume o papel de uma Cleópatra combatida por Augusto, e de profetisa das terríveis guerras romanas contra o general cartaginês, Aníbal. Virgílio dá-nos páthos, e não a verdade, conclusão que Agostinho estendeu ao mito, universalmente difundido, desde a era de Constantino, o imperador cristão, até os dias do próprio Agostinho. Em sua quarta Écloga (cerca de 40 a.e.c), Virgílio profetiza o advento de uma criança divina: E chegada a era final do canto de Cumas; a grande linhagem dos séculos é reiniciada. Agora a Virgem retorna, e retorna o reino de Saturno; agora desce dos céus uma nova geração (...); sob a vossa influência todo e qualquer resquício da nossa culpa tomar-se-á nulo, livrando a Terra do medo permanente. Ele terá o dom da vida divina. Retorna a idade de ouro de Saturno, e retorna, também, a Virgem Astréia, trazendo consigo a justiça divina. Equivocado, Constantino interpretou o messias infante de Virgílio como se fosse Jesus Cristo, assim transformando o pagão Virgílio em profeta do Advento Cristão. Agostinho, estudioso por demais competente para incorrer em tamanho absurdo, não pretendeu acrescentá-lo às Escrituras, mas aprazia-se de citá-lo, como mecanismo de conversão de pagãos. O que mais comovia Agostinho na obra de Virgílio era o sofrimento heróico de Dido, bem como o tema central do exílio de Enéas de Tróia. Porém, depois da queda de Roma ante os hereges visigodos, em 420, Agostinho passa a manifestar uma atitude diferente com relação a Virgílio, em A Cidade de Deus. Virgílio permanece o melhor e mais querido dos poetas, mas é rejeitado como o Virgílio de Augusto, que encontra na Roma antiga apenas deuses corruptos, e almas corruptas que os veneravam. À medida que envelhecia, Agostinho manifesta o que Peter Brown chamou de "humanismo obscurecido, que ligava o poeta pré-cristão ao presente cristão, na expressão de uma desconfiança comum quanto ao prazer sexual". O génio de Agostinho não tem a grandeza literária daquele de Dante, ou de Chaucer, mas é comparável à eloquência sombria de Lucrécio e ao lirismo elegíaco de Virgílio. No extremo, tal génio deve ser apreciado (ao menos por mim) com base em padrões que não são nem espirituais nem estéticos. Agostinho, o Leitor (conforme o celebra Brian Stock), é um dos heróis da arte da leitura, hoje em extinção. Qualquer pessoa que se dispuser a reler, ao longo de toda a vida, os seus livros prediletos, é discípula de Agostinho, embora este só reconhecesse o valor do aprendizado que conduzisse à aceitação da revelação cristã. 116 117 DANTE ALIGHIERI - Ó irmãos - eu disse -, que atravessando cem mil perigos alcançaram o oeste, não nos impeçais de experimentar esta breve vigília dos sentidos que nos resta, nos raios do sol, o mundo despovoado. Considerai a semente de onde germinastes. Não nascestes para viver como brutos, mas para seguir a virtude e o conhecimento. - Inferno, Canto 26, 112-20 Ulisses assim se dirige aos seus seguidores, no momento em que se aproximam do desastre, nos limites geográficos do mundo conhecido. Muitas das autoridades atuais em estudos dantescos pedem a nossa condenação a Ulisses, argumentando que a linguagem do viajante é unicamente autocentrada, e que exalta a aventura heróica sem levar em conta o dever moral. Será a moralidade ou o génio de Dante que nos leva a ler a sua obra? Benedetto Croce, o grande crítico italiano, preferia o génio: "Nenhum contemporâneo era mais impelido pela paixão do saber do que Dante", paixão essa que é a mesma do Ulisses de Dante, conquanto o personagem seja situado nas profundezas do Inferno, cercado de outros falsos conselheiros. O próprio Dante, Peregrino da Comédia, nada diz, em resposta à fala de Ulisses, for-çando-nos a conjecturar a reação do poeta à eloquência do herói. De vez que a viagem de Dante, no poema, constitui uma "fuga louca", semelhante à de Ulisses, a identidade poética entre os dois tem mais peso do que a divergência moral. Sendo um leitor de 71 anos de idade, não me soa bem ouvir Ulisses falar da "breve vigília dos sentidos que nos resta", sem, de certo modo, concordar com ele. Algo em Dante, a despeito dos entusiastas teológicos, também concorda com Ulisses. Nada destrói o génio de Dante mais prontamente do que comentários que lhe exaltem a suposta devoção religiosa e as virtudes humanas. Poeta algum, nem mesmo John Milton, foi um poço de orgulho assim como o foi Dante. Não podemos confiar na atitude de Dante, com relação a Brunetto Latini, seu "mestre", situado no Inferno devido a uma sodomia talvez inventada pelo próprio Dante. Estácio, poeta romano medíocre, que, decerto, se manteve pagão, surge na Comédia como grande poeta, secretamente, cristão. Não sendo, na verdade, um mártir, é possível que o Estácio de Dante seja uma insinuação ao próprio poeta florentino, cujo génio era para ele mais importante do que as santidades de Agostinho e Aquino. 118 (1265-1321) A vida de Dante Alighieri assemelha-se a um poema atribulado, mais próximo ao Inferno do que ao Purgatório criados pelo poeta, bem distante do Paraíso. A maioria das biografias existentes não faz jus ao génio de Dante, à exceção da primeira de todas, de autoria de Giovanni Boccaccio, devidamente descrita por Giuseppe Mazzotta como uma "obra ficcional discreta, similar à Vida Nova, do próprio Dante, trabalho bastante sensível à contínua autodramatização levada a termo por Dante em seus próprios escritos". Tal ideia não deve causar surpresa a ninguém; Dante, assim como Shakespeare, tem uma espécie de pensamento e imaginação tão vastos, que biógrafos, estudiosos e críticos tendem a contemplar apenas certos aspectos de um conjunto extraordinário. Sempre recomendo a meus alunos, em lugar de todas as biografias de Shakespeare, a obra do falecido Anthony Burgess, Nothing Like the Sun, um romance, de certo modo, joyciano, narrado por Shakespeare, na primeira pessoa. O tão louvado Dante considerava-se um profeta, comparável ao menos a Isaías ou Jeremias. Shakespeare, podemos supor, não se julgava profeta algum; o criador de Hamlet, FalstafF e Lear tem muito em comum com Geoffrey Chaucer, criador do Vendedor de Indulgências e da Mulher de Bath, e Chaucer, sutilmente, zomba de Dante. Só mesmo alguém da eminência de Chaucer teria condições de tratar Dante com ironia, e, na verdade, Chaucer admira muito mais do que diverge. Não se pode discutir a questão de génio na História mundial sem se enfocar a figura de Dante, pois somente Shakespeare, entre todos os génios da linguagem, é mais dotado do que o poeta florentino. Shakespeare, em grande parte, reinventou a língua inglesa: cerca de 1.300 palavras, entre as 21 mil por ele utilizadas, são de sua criação, e todas as vezes que leio o jornal encontro inúmeras expressões shakespearianas, frequentemente, sem que o respectivo autor se dê conta da alusão. Contudo, o inglês de Shakespeare foi herdado de Chaucer e William Tyndale, este o principal tradutor da Bíblia protestante. Mesmo que Shakespeare nada houvesse escrito, a língua inglesa, conforme hoje a conhecemos, teria prosperado, mas o dialeto toscano de Dante veio a ser a língua italiana, em grande parte, devido ao poeta. Dante é o poeta nacional, assim como o é Shakespeare, onde quer que se fale inglês, e Goethe, em regiões onde predomina o alemão. Nenhum poeta francês, nem Racine, nem Victor Hugo, mereceria semelhante honra de modo tão consensual, e nenhum poeta de língua espanhola é tão central quanto Cervantes. No entanto, Dante, embora tenha, praticamente, criado a língua iteraria italiana, mal se considerava toscano, muito menos italiano. Era um florentino, 119 obsessivamente, e esteve exilado da cidade natal durante os últimos 19 dos 56 anos em que viveu. Certas datas são cruciais para o leitor de Dante, a partir da morte de Beatriz, ideal de amante, ou amante idealizada, em 8 de junho de 1290, quando o poeta estava com 25 anos de idade. Segundo o relato do próprio Dante, o amor por Beatriz era o que denominamos platónico, embora tudo o que se refira a Dante só possa ser qualificado de dantesco, inclusive o seu catolicismo. Ao concluir, em 1314, o Inferno, a primeira e mais célebre parte da Divina Comédia, o poeta estabeleceu a Páscoa de 1300 como data fictícia da jornada por ele empreendida no poema. Nos sete anos de vida que lhe restavam, o poeta teve a fortuna sublime de compor o Purgatório e o Paraíso, de modo que o magnífico poema estava inteiramente concluído cerca de um ano antes da sua morte. Shakespeare morreu ao completar 52 anos, mas nada perdemos com a sua morte, pois ele havia parado de escrever cerca de três anos antes. Quanto a Dante, temos a impressão de que teria realizado outros feitos literários, se tivesse vivido um quarto de século a mais, para atingir a idade por elè considerada "perfeita" 81 anos, nove vezes nove, em uma perspectiva numerológica por ele próprio esboçada, impossível de ser, inteiramente, decifrada. Eis Dante, no Convívio (Livro 4, 24), dizendo-nos que a idade termina no 70a ano, mas que pode haver sublimidade, se vivermos mais: Daí consta que Platão - que (seja pela força da sua própria constituição, seja segundo a descrição de Sócrates, quando da primeira vez que o viu), podemos acreditar, deve ter tido uma natureza excelente - viveu 81 anos, conforme afirma Túlio, na obra Sobre a Velhice. E creio que se Cristo não tivesse sido crucificado, e vivesse o tempo que cabia, naturalmente, à sua vida, quando alcançasse a idade de 81 anos, seria transformado, de um corpo mortal, em um corpo eterno. Que transformação Dante esperava ao completar 81 anos? Teria Beatriz, a Dama dos Nove, ressurgido diante dele, nesta vida? George Santayana via em Beatriz a plato-nização do cristianismo; para E. R. Curtis, ela era o cerne do saber poético e pessoal de Dante. Beatriz tem uma relação decisiva com a transfiguração que Cristo sofreria ao completar 81 anos, pois a data de morte da dama, segundo a obra do amante intitulada Vida Nova, é estabelecida por um processo em que o número nove perfeito - é repetido nove vezes. Aos 25 anos, ela é transformada, de corpo mortal, em corpo eterno. Dante, implícita e explicitamente, afirma ao longo da Comédia que ele próprio, Dante, é a verdade. O mártir sufista Hallaj morreu por se autoproclamar a verdade, embora na Religião Norte-americana (em suas inúmeras vertentes) esse tipo de afirmação seja lugar-comum. Converso com mórmons dissidentes, sectários batistas e muitos pente-costais que, sinceramente, afirmam ser a verdade. Nem Agostinho nem Aquino teriam afirmado que eram a verdade. A Comédia não faria sentido se Beatriz não fosse a verdade e, no entanto, sem Dante, nenhum de nós teria ouvido falar de Beatriz, A meu ver, é impossível exagerar a importância dessa questão, e não consigo entender por que Dante, que hoje em dia define o catolicismo para tantos intelectuais, subjugou a possibilidade de o seu mito pessoal - Beatriz - ser uma heresia comparável aos mitos gnósticos de Sofia, ou princípio feminino, na Divindade. Simão, o Mago, encontrou a sua Helena em um prostíbulo de Tiro, proclamando-a, a um só tempo, Helena de Tróia e Sofia (ou Sabedoria Divina) desonrada. O samaritano Simão, sempre denunciado pelos cristãos, foi o primeiro Fausto, audacioso e criativo, mas hoje em dia é considerado um charlatão. Dante encontrou a sua versão da honrada Sabedoria Divina em uma jovem florentina, e a elevou à hierarquia celestial. Simão, o Mago, tanto quanto Jesus, o mago, pertence à tradição oral, ao passo que Dante à exceção de Shakespeare - é o poeta supremo de toda a história e cultura ocidentais. Todavia, Dante não foi menos arbitrário do que Simão, fato de que não devemos esquecer. Embora afirme o contrário, Dante apropria-se da autoridade poética e se estabelece em uma posição central à cultura do Ocidente. Como a centralidade de Dante difere da de Shakespeare! Dante impõe-nos a sua personalidade; Shakespeare, mesmo nos Sonetos, esquiva-se de nós, por meio de um distanciamento espantoso. Na obra Vida nova, Dante insere-nos na história do seu amor extraordinário por uma jovem que mal conhecia. O primeiro encontro se dá quando ambos têm nove anos de idade, conquanto esse "nove" seja uma advertência a respeito da literalização do relato. Nove anos depois que o poeta viu Beatriz pela primeira vez, ela dirigiu-lhe a palavra, um cumprimento formal, em plena via pública. Houve um ou dois encontros subsequentes: uma decepção, quando ele confessou, em poesia, o amor por outra dama, na verdade, um subterfúgio; e uma ocasião social, em que, segundo consta, Beatriz teria aderido a uma troça inofensiva, cujo alvo era o admirador apaixonado - todo o relacionamento parece reduzir-se a isso. O melhor comentário sobre esses poucos fatos partiu do fabulista argentino Jorge Luis Borges, que fala da "nossa certeza sobre um amor infeliz e supersticioso", não correspondido por Beatriz. odemos falar do "amor infeliz e supersticioso" de Shakespeare pelo belo e jovem nobre dos Sonetos, mas seria necessária alguma outra frase para qualificar a descida de Shakespeare ao Inferno da Dama Morena presente no mesmo ciclo de sonetos. Chamar 120 121 de neoplatônico o amor de Dante por Beatriz seria inexato, mas como definir tal amor? A paixão de alguém pelo seu próprio génio, a musa criada por esse alguém, poderia parecer auto-idolatria, em se tratando de qualquer outro indivíduo, mas não do homem central. O mito, ou a figura de Beatriz, funde-se à obra da vida de Dante; em um sentido crucial, ela é a Divina Comédia, e não pode ser compreendida fora do poema. Todavia, Dante a apresenta como a verdade, conquanto não deva ser confundida com o Cristo, que é o caminho, a verdade, a luz. Os estudos dantescos, extremamente úteis em se tratando do esclarecimento das complexidades da Comédia, no entanto, não oferecem grande ajuda à compreensão de Beatriz. Ela é mais cristológica em Vida Nova do que na Comédia, embora nesta última, em dados momentos, Beatriz me faça lembrar o que os gnósticos chamaram "o Cristo Anjo", pois ela desfaz a distinção entre o humano e o angélico. A fusão entre o divino e o mortal pode ser herética ou não, dependendo de como é apresentada. A visão de Dante não me parece agostiniana nem tomista, mas, embora hermética, não é, por assim dizer, hermetista. Em vez de identificar-se com a teologia, Dante busca identificar a teologia consigo mesmo. A presença do humano no divino não é algo idêntico à presença de Deus em uma pessoa, especialmente, em Beatriz. Isso pode parecer estranho, visto que Dante não foi William Blake, que nos instava a adorar apenas o que ele chamava Divina Forma Humana. Entretanto, desde logo, Dante definiu Beatriz como milagre. Tal milagre visava a Florença, como um todo, e não apenas a Dante, ainda que ele fosse o único celebrante do fenómeno. Mais tarde, o melhor amigo e mentor do poeta, Guido Cavalcanti, é condenado por Dante, por não se juntar à celebração, mas a relação entre Dante e Cavalcanti é similar à do jovem Shakespeare e Christopher Marlowe, uma sombra da angústia da influência. Devemos crer em Dante, quando sugere que Cavalcanti teria sido salvo, se houvesse reconhecido Beatriz? A originalidade compartilhada permanece original? Na condição de leitores, podemos deixar a suposta teologia de Dante para os exegetas, mas não podemos ler Dante sem procurar entender Beatriz. Ela é, certamente, uma Encarnação, fenómeno que, para o poeta, jamais rivaliza com a Encarnação. Beatriz, insiste o poeta, é toda a felicidade que ele teve na vida e, sem ela, não teria encontrado o caminho da salvação. Mas Dante não é Fausto, a ser condenado ou salvo, nem Hamlet, que morre em consequência da verdade. Dante busca o triunfo, a vingança total, a realização de uma profecia. Os "pais" do poeta, Brunetto Latini e Virgílio, transcendem pelo amor, mas são postos de lado. Os "irmãos" em poesia são reconhecidos (no caso de Cavalcanti, de modo bastante sombrio), mas não se tornam companheiros de jornada. Será que Dante chega a nos convencer, na Comédia, que Beatriz é algo além do génio do poeta? Dante está tanto dentro quanto fora do poema, assim como ocorre com Beatriz, em Vida Nova. Será que Beatriz tem uma realidade que lhe permita ser invocada por terceiros? Os maiores personagens shakespearianos têm a capacidade de sair de suas respectivas peças e viver na concepção que temos das mesmas. Terá Beatriz tal capacidade? A personalidade de Dante é tão grande, que não sobra espaço para mais ninguém; o Peregrino da Eternidade ocupa todos os espaços. Isso não constitui, absolutamente, um defeito poético, conforme seria o caso em se tratando de qualquer outro poeta. Em Dante, trata-se de uma qualidade poética, energizada por uma originalidade total, uma vitalidade que é incansável, a despeito de constantes releituras, e que não pode ser assimilada às fontes, literárias ou teológicas. Agostinho, opondo-se aos grandes neoplatonistas - Plotino e Porfírio -, insistia que autoconfiança e orgulho não bastavam para a ascensão a Deus. Eram necessárias orientação e ajuda, que só poderiam partir do próprio Deus. Haverá orgulho ou autoconfiança mais acirrados do que em Dante? Ele retrata a si mesmo como um peregrino, dependente de orientação, consolo e ajuda, mas, como poeta, é mais profeta atendendo a um chamado do que cristão em processo de conversão. Será que sequer se ocupa de nos convencer de sua humildade? Na prática, o heroísmo - espiritual, metafísico, criativo - faz de Dante, o poeta, um milagre comparável ao de sua Beatriz. Felizmente, o poeta apresenta-se como personalidade, não como milagre. Conhecemo-lo tão bem, o cerne e não apenas o contorno, que aceitamos as mudanças por que ele passa (a duras penas), ao longo da Comédia. Com efeito, só ele pode se desenvolver na Comédia, pois todos os demais encontram-se em um estágio final, embora os residentes do Purgatório devam passar por um processo de refinamento. Por mais extraordinariamente marcantes que sejam, os personagens da Comédia encontram-se além do estágio em que lhes é possível evoluir, em sua natureza. Não são passíveis de mudança, a partir do que Dante os faça dizer ou realizar. Isso torna possível a revelação total: a respeito dos personagens, Dante tem a palavra final, indisputável, sempre gerando perplexidade. Se ainda nos é possível ter personalidade, depois de nos ter sido imputado um julgamento final, é uma bela questão. Beatriz, como criação de Dante, tem pouca personalidade, porque, nitidamente, teve uma preexistência angelical, antes de nascer em Florença. Em Vida Nova, Dante mos-tra-nos apenas que ela possui uma beleza sobrenatural e que é capaz de agir com severidade, sendo que, no que toca à interação com Dante, esta última característica é exacerbada na Comédia, embora conserve o caráter retórico. Constata-se um salto, por assim izer, em Beatriz: enquanto vivia, pouco reconhecia o amante que a idealizava; depois e mona, demonstra uma preocupação cosmológica com a sua salvação. É tão óbvia a 122 123 condição de Beatriz, de génio, ou anjo protetor torna facilmente aceitável. Para nossa surpresa tristonho Laertes diz que Ofélia, rejeitada, será um anjo integrando as revoadas de anjos proclamadas por desde de Dante, que a transmutação se quando remoemos a questão, um bom após a morte, supõe-se, Horácio ao final da peça. Dante, logo preparando para si mesmo uma apoteose, submete Beatriz a um longo treinamento. Nenhum outro escritor é tão formidável quanto Dante, nem mesmo John Milton e Leon Tolstoi. Shakespeare, milagre de intangibilidade, é todo mundo e ninguém, conforme disse Borges. Dante é Dante. Ninguém pode simplificar Dante, recorrendo a um processo de historicização, ou imitando-lhe a audaciosa autoteologização. Se Cavalcanti tivesse vivido mais? sem dúvida, teria escrito poemas líricos ainda mais contundentes do que os que escreveu, mas não teria escrito o Terceiro Testamento, exatamente o que a Divina Comédia parece ser. A questão do génio shakespeariano está sempre fora do nosso alcance, mas o génio de Dante é uma resposta, não uma questão. Excetuando-se Shakespeare, que surgiu três séculos mais tarde, o poeta mais notável do mundo ocidental concluiu a maior obra literária do Ocidente por volta do final da segunda década do século XIV. Para igualar a Comédia e, de certo modo, superá-la, seria necessário considerar, como se fossem uma unidade, as 24 melhores peças shakespearianas, entre um total de 39. Mas é muito difícil considerar Dante e Shakespeare em sequência; se tentarmos ler Rei Lear após o Purgatório, ou Macbeth após o Inferno, sentiremos estranha perturbação. Esses dois poetas centrais são violentamente incompatíveis, ao menos segundo a minha experiência. Dante pretendia que o leitor considerasse Beatriz o Cristo da alma do poeta; essa noção pode causar constrangimento a muitos de nós, por vários motivos, e como nos assustaríamos, se Shakespeare, nos Sonetos, insinuasse que o belo e jovem lorde (Southampton, ou seja lá quem for) era uma espécie de Cristo para um poeta que viria a compor Hamlete Rei Lear. Para o leitor comum capaz de absorver a Comédia no original, Beatriz não constitui um enigma, pois os críticos italianos, cuja visão mundana de Dante permeia a cultura italiana, adotam uma abordagem bastante distinta da praticada pelos estudiosos anglo-americanos. Prezo muito o comentário de Giambattista Viço, de que até Homero se renderia a Dante, se o poeta toscano fosse menos erudito em teologia. Dante, assim como Freud (e os místicos), acreditava na possibilidade de sublimação erótica, nisso divergindo do amigo, Cavalcanti, para quem o amor era uma enfermidade que tinha de ser enfrentada. Dante, que, em consequência de adultério, situa Francesca e Paolo no Inferno, era célebre por sua luxúria com relação a mulheres muito diferentes (a seu ver) da sagrada Beatriz. O único ponto de contato entre Dante e Shakespeare é a supremacia de ambos na descrição do sofrimento causado pelo amor, em outros e neles mesmos: Riachos morro acima vão correr, Contrários, nesta mata úmida e verde, Até o fogo do amor arder, como arde Numa jovem, por mim, que a vida inteira Em pedra dormiria, ou, qual as feras, Relva ingeria, a ver sombras do traje. Os versos acima são de Dante Gabriel Rossetti, da sua versão da sextina "pedregosa" intitulada "Para a Luz Sombria", uma entre as "rimas pedregosas", apaixonadas, dirigidas por Dante a uma mulher chamada Pietra. Beatriz não é muito shakespeariana; Pietra, sim, e se sairia bem como a Dama Morena dos Sonetos: Consumir o espírito em vergonha É a luxúria em ação; e, até agir, A luxúria é falsa, sanguinária, Assassina, culpada, primitiva, Rude, cruel, extrema; desprezada Tão logo satisfeita... Interpretações carolas da obra de Dante não chegam a ser tão inúteis quanto as tentativas de cristianizar as tragédias de Hamlet e Lear, mas são mais danosas à Comédia do que o ressentimento feminista que costuma desconfiar da idealização de Beatriz. O louvor de Dante a Beatriz é imensamente tocante; a exaltação ao amor não-correspondido é mais problemática, a menos que nos lembremos de visões da nossa infância, quando nos apaixonamos por alguém que mal conhecíamos e, talvez, jamais tenhamos voltado a ver. T. S. Eliot concluiu, com perspicácia, que o amor de Dante por Beatriz deve ter surgido antes da idade de nove anos, e o paradigma numerológico pode, de fato, ter induzido Dante a localizar a experiência dois ou três anos após ela ter ocorrido. Não sendo Dante, a maioria de nós seria incapaz de tirar muito proveito de uma epifania ocorrida em idade tão tenra, e parte da façanha de Dante é ter conseguido criar grandeza a partir de uma epifania de infância. Embora, em suas origens, Beatriz seja universal, na Comédia, ela se torna uma figura esotérica, o centro da sapiência de Dante, pois é por ela, e através dela, que Dante articula conhecimentos bem menos ortodoxos do que a maioria dos exegetas está disposta a admitir. A notoriedade perene do Inferno não obscurece a eloquência dramática do Purgatório, que continua a contar com um público leitor razoavelmente amplo. O Paraíso é um livro imensamente difícil, mas essa dificuldade representa o que há de 124 125 Keter DANTE ALIGHIERI mais indiscutível no génio de Dante, rompendo os limites da literatura ficcional. Nada se assemelha ao Paraíso, a não ser certos trechos das Revelações de Meca, do andaluz sufi Ibn Arabi (1165-1240), que encontrara a sua Beatriz em Meca. Nizam, a Sofia de Meca, assim como a Beatriz de Florença, é o centro de uma teofania e converte Ibn Arabi a um amor idealizado, sublimado. Aos 71 anos, talvez eu ainda não esteja pronto para o Paraíso (onde, sendo judeu, afinal de contas, não serei admitido), e começo a recuar diante do Inferno, obra verdadeiramente horripilante, não obstante sublime. Surpreendo-me relendo o Purgatório, por motivos expressos de modo magistral por W. S. Merwin, no prefácio à sua admirável tradução do livro central da Comédia: * Das três partes do poema, somente o Purgatório localiza-se na Terra, assim como as nossas vidas, pés no chão, caminhando pela praia, escalando uma montanha (...). Até chegarmos ao cimo do monte, a esperança confunde-se com a dor, o que torna a experiência ainda mais próxima ao nosso presente, (xiii) Cada um dos meus amigos tem o seu Canto predileto do Purgatório; o meu é a visão de Matilde colhendo flores, no Paraíso Terrestre, Canto 28, os primeiros 51 versos: Vagar já nos recessos desejando Da selva divinal, vívida, espessa, Que ao novo dia o lume faz mais brando, Daquela encosta a me afastar dou pressa. Pela veiga me interno a passo lento, Doce aroma sentindo, que não cessa. Do ar, que circulava, o doce alento, Mas sempre igual, a fronte me afagando, Tinha o bafejo do suave vento. As folhas, molemente balançando, Do santo monte à parte se inclinavam, A que a sombra primeira vai baixando. Mas, no meneio seu, não se encurvavam Em modo, que na rama aos passarinhos Os hinos perturbassem, que entoavam. Pousados ledamente entre os raminhos Saudavam com seus cantos a alvorada Da fronde os acordando aos murmurinhos; Assim de Chiássi no pinhal soada De ramo em ramo corre quando a amara Prisão, abre ao mestre Eolo a entrada. Com demorado andar eu caminhara Na selva antiga tanto, que não via Mais o lugar, por onde penetrara. Eis andar um ribeiro me tolhia, Que, à sestra deslizando-se, beijava A ervinha, que às margens lhe crescia: O cristal dessa linfa superava Da terra água a mais pura e transparente; Quanto continha em si patente estava. Entanto, pela sombra permanente, Que luz da lua ou sol nunca atravessa, Negreja aquela plácida corrente. O pé detenho, e a vista se arremessa Além do humilde rio, contemplando Primores, com que maio se adereça, Então se of rece aos olhos, como quando De súbito um portento surge à mente, De outro pensar qualquer a desviando, Uma dama sozinha de repente, Que, cantando, escolhia, dentre as flores, Que o chão cobriam de matiz ridente. 126 127 "Bela dama, que sentes os fervores Do amor divino, se por teu semblante Da tua alma julgar devo os ardores" Assim falei - "se caminhar avante Até perto do rio te aprouvera, Te entendera esse canto inebriante. Tão linda, em tal lugar, lembras qual era Prosérpina, ao perdê-la a mãe querida E ao perder também ela a primavera."17 Embora um tanto à custa do significado literal, a tradução preserva a terça rima (inventada por Dante) e expressa a surpresa e o esplendor do advento de Matilde, revertendo a queda de Prosérpina e Eva e pressagiando o ressurgimento da visão de Beatriz diante de Dante. Shakespeare, na quarta cena do quarto ato de O Conto do Inverno, estabelece Perdita como equivalente de Matilde: (...) Ó Prosérpina! Se eu tivesse as flores que, assustada, ^ Deixaste cair do carro de Plutão! Narcisos, que antecipam andorinhas, E cujo encanto enleia o vento em março. Por que Dante chamou de Matilde essa jovem cantante do Éden é algo enigmático, que diversos estudiosos tentam em vão explicar. A Matilde de Dante faz apenas uma breve aparição, mas, perversamente, prefiro Matilde a Beatriz, que ralha e faz sermão, sempre superior a Dante. Assim como a Perdita de Shakespeare, Matilde nos encanta. Quem a não ser o impetuoso Dante poderia se apaixonar novamente pela Beatriz celestial? Quem não se apaixonaria por Matilde? "Saber igual aos outros comparando Não existe ao desta água. Ao teu pedido Satisfação hei dado assim falando. Corolário, porém, lhe seja adido: Não receio que assim te desagrade, Indo além do que fora prometido. Poetas que cantavam de ouro a idade E sua dita, em Pamasso, certamente Sonharam desta estância a f licidade. Estirpe humana aqui fora inocente; "18 Eterna primavera aqui domina; Foi este néctar, que inventou sua mente. Bela e graciosa, epítome da jovem apaixonada, Matilde caminha pelos prados, ao lado de Dante, como se a Idade de Ouro houvesse retornado. A jovem move-se como uma dançarina, e não há por que estorvar-lhe os passos, fazendo pesar-lhe às costas alegorias, ou identificando-a com figuras históricas da nobreza, ou com beatas contemplativas. Dante, notoriamente suscetível à beleza feminina, se apaixonaria por Matilde, se Beatriz, encantada, ao mesmo tempo mãe repressora e objeto de desejo, não estivesse aguardando por ele no próximo Canto. William Hazlitt, extraordinário crítico literário do Romantismo britânico, exibia uma reação a Dante muito mais ambivalente do que aquela observada em Shelley e Byron; no entanto, Hazlitt percebeu a verdade da originalidade de Dante, o efeito do seu génio: Ele nos interessa apenas por provocar a nossa simpatia através da emoção da qual está tomado no momento. Ele não posiciona à nossa frente os objetos que provocaram a referida emoção, mas cativa a nossa atenção, mostrando-nos o efeito que tais objetos produzem em seus sentimentos; e sua poesia, de fato, frequentemente, causa-nos a sensação emocionante, arrasadora, que sentimos ao contemplar o rosto de alguém que acaba de ver um objeto de pavor. Hazlitt pensava aqui no Inferno, e não em Matilde, no Purgatório, onde temos a sensação de contemplar o rosto de alguém que acaba de ver um objeto de total felicidade. Tradução de J. P. Xavier Pinheiro. W. M. Jackson, Rio de Janeiro, 1960. [N. do T.J 8 Tradução de J. P. Xavier Pinheiro. W. M. Jackson, Rio de Janeiro, 1960. [N. do T.] 128 129 GEOFFREY CHAUCER Meu Jesus Cristo! Quando me recordo Da minha juventude, da alegria, Arrepia-me a raiz do coração. Até hoje ao coração me faz um bem Ter tido o meu mundo no meu tempo. Mas a idade - ai de mim! - que tudo estraga Roubou-me a beleza e o vigor. Pois, que se vá, adeus! Para o diabo! Acabou-se a farinha, já não há: Resta-me, então, vender só o farelo. "Até hoje ao coração me faz um bem / Ter tido o meu mundo no meu tempo." É difícil não ceder ao encanto da Mulher de Bath, símbolo do génio de Chaucer, assim como Falstaff o é de Shakespeare. Que Shakespeare tinha em mente a Mulher de Bath, ao criar Falstaff, é algo verificável; os dois grandes vitalistas referem-se a São Paulo, quando afirmam não haver pecado na vocação de ambos os personagens. Todavia, a Mulher de Bath insinua ter se livrado de ao menos um marido, e o fato de ela não ter filhos é um tanto desconcertante. Chaucer, o Peregrino, é um grande admirador da Mulher de Bath, mas, na verdade, ele tem apreço pela maioria dos companheiros de peregrinação, e com eles se diverte, ou melhor, apraz-se de nos dizer o que sente sobre os viajantes. A ironia mais ubíqua resulta do auto-retrato de Chaucer como Peregrino, cujos julgamentos dos demais peregrinos não nos causam dúvida, porque Chaucer, o poeta, pretende nos fazer questionar quase todos os julgamentos de ordem moral. Ao que parece, Chaucer teve uma atitude correta de ambivalência com relação a Dante, cujos julgamentos de ordem moral são atrozes e constantes. O tão bem pensado bom humor da Mulher de Bath fala pelo próprio Chaucer: a alegria irrompe a todo momento. Os desejos da mulher não se aplacam, e o desafio que ela faz à velhice é maravilhoso: "Pois, que se vá, adeus! Para o diabo!" CwtiD C^iiP í#tií GEOFFREY CHAUCER (1340?~1400) O riso não acompanha a leitura de Lucrécio e Virgílio, Agostinho e Dante. O génio ômico de Geoffrey Chaucer, que se recusava a se deter em nostalgia, fosse de natureza fidalga ou espiritual, é ainda mais bem-vindo, considerando os companheiros dos quais o cerquei. A companhia não é arbitrária: existe uma relação de influência entre Dante e Chaucer, embora o verdadeiro precursor de Chaucer tenha sido Boccaccio, jamais mencionado pelo poeta inglês. Profundamente impressionado e irritado (ainda que de modo espirituoso) por Dante, Chaucer criou uma paródia de Dante, o Peregrino, com Chaucer, o Peregrino dos Contos de Canterbury. Especialistas em Dante têm motivos para reverenciar o poeta italiano. Chaucer, o escritor mais marcante da língua inglesa, excluindo-se Shakespeare, estava disposto a aprender com Dante, mas era por demais irónico para reverenciá-lo. Lucrécio tinha a convicção de conhecer a verdade: a verdade era epicurista. Virgílio, incerto com relação a tudo, é uma espécie de epicurista volúvel: não se sustenta na verdade do materialismo metafísico, aspira por uma certa transcendência e sabe que jamais a encontrará. Agostinho e Dante conheciam a verdade, mas esta constituía uma revelação àqueles que estavam dispostos a aceitá-la. Chaucer, com grande alento, duvida que qualquer escritor seja capaz de atingir a verdade por meio da linguagem. Com sua incerteza e hesitação, Chaucer é um poeta secular, portanto, o mais autêntico precursor de Shakespeare. Ainda hoje prefiro G. K. Chesterton, contista questionador e católico, a todos os demais estudiosos de Chaucer, visto que Chesterton possui o entendimento mais acertado sobre a grandeza do autor de Contos de Canterbury. O estudioso percebe que Chaucer tem a eminência de Dante e Shakespeare, e reconhece que Shakespeare, malgrado a sua fé interior, escreve uma poesia secular, até mesmo pagã, quando assim convém aos seus propósitos. No entanto, Chesterton não chega a apartar Dante de Chaucer, embora, penso eu, a distinção lhe fosse visível. Sabemos, exatamente, o julgamento de Dante, com respeito a cada figura em seu poema, conquanto o próprio Dante, às vezes, não tolere o julgamento por ele mesmo praticado, como no caso de rrancesca. Mas ninguém pode ter conhecimento da atitude de Chaucer com relação ao Vendedor de Indulgências, à Mulher de Bath ou ao Cavaleiro, e quem pode dizer o que Shakespeare sentia com relação a Falstaff e Hamlet, lago e Cleópatra? Chaucer e nakespeare não fingem ter as conclusões, e podemos deduzir que julgamentos de ordem moral provocavam-lhes a veia irónica. Dante parece, de fato, estar a par de todo o conhecimento disponível em 1300, mas o poeta insiste em conhecer e dizer a verda130 131 de, que não estava mais disponível à época do que hoje. Com efeito, a inventividade de Dante opera incessantemente, a fim de preencher o mapa do seu poema assombroso. Brunetto Latini era sodomita? Pouco nos importa (a não ser que sejamos fundamentalistas ou filiados ao Partido Republicano), mas Dante parece ter inventado a orientação sexual do velho professor. Virgílio, conforme já observei, era, basicamente, epicurista, e não um cristão antes de Cristo, e a Beatriz da vida real, decerto, não levou Dante muito a sério. Dante, como a maioria de nós, sofreu bastante, mas muitos de nós hesitaríamos, antes de povoar o Inferno de nossos inimigos pessoais. Chaucer, irónico demais para dizer coisas semelhantes às que disse Dante, certamente tem conhecimento delas e as sente, mas, nem no caso do Vendedor de Indulgências, presta-se a especular a respeito de condenações espirituais. Haverá ironia na Comédia que não seja cruel? Quero esclarecer que a questão aqui não é de fé. Shelley, conforme demonstrarei adiante, exibe um amor e um entendimento pela poesia de Dante mais profundos do que qualquer outro poeta de língua inglesa, inclusive T. S. Eliot. Shelley detestava o cristianismo, e não considerava o dogmatismo de Dante uma barreira: A poesia de Dante pode ser considerada uma ponte através do tempo, unindo o mundo moderno ao antigo. As noções distorcidas das coisas invisíveis idealizadas por Dante e seu rival Milton são apenas a máscara e o manto com os quais esses grandes poetas caminham pela eternidade, disfarçados. É difícil determinar até que ponto estavam conscientes da distinção que deve ter subsistido em suas mentes entre as suas crenças e a crença do povo. Dante, ao menos, parece querer registrar plena consciência da questão, ao posicionar Riphaeus, a quem Virgílio chama justissimus unus, no Paraíso, e ao praticar um verdadeiro capricho de heresia, por meio de seu sistema de recompensa e punição. (...) A Diviva Comédia e Paraíso Perdido conferiram à mitologia moderna uma forma sistemática; e quando as mudanças e o tempo houverem acrescentado mais uma superstição ao conjunto de superstições que surgem e desaparecem no mundo, os estudiosos se ocuparão de elucidar a religião da Europa ancestral, que só não terá sido totalmente esquecida porque foi sancionada pela eternidade do génio. A afável profecia de Shelley tem se realizado mais na Europa (à exceção da Irlanda) do que nos Estados Unidos, embora eu não reconheça muito da "religião da Europa ancestral" naquilo que insisto em chamar Religião Norte-americana, uma mistura de orfismo, gnosticismo e entusiasmo que vem propulsionando a espiritualidade dos A Unidos desde 1800. Os nossos pentecostais, mórmons, adventistas, inúmeros istas e demais invenções são apenas a ponta-de-lança, mas a maioria dos 89 por cen-de norte-americanos que afirmam que Deus os ama em uma dimensão pessoal, indi-¦A ai encontram-se um tanto ou quanto distantes da Europa ancestral, mesmo quando se denominam católicos, luteranos, metodistas, anglicanos ou presbiterianos. Shelley está certo, é claro, embora poucos estudiosos de Dante, e número ainda menor de especialistas em Milton, concordem com o que ele diz. O que faz Riphaeus no Paraíso? Rachel Jacoff esclarece que Dante levanta a questão a fim de não respondê-la: Entre os seis governantes nos olhos e sobrancelhas da águia encontra-se Riphaeus, personagem que é objeto de breve menção na Eneida. Dante pergunta, assim como o faria qualquer leitor: "Como isso é possível?". À semelhança da presença improvável de Cato às margens do Purgatório, a inesperada presença de Riphaeus no Paraíso nos faz refletir sobre a leitura que Dante fez dos clássicos e sobre os procedimentos de apropriação adotados pelo poeta. Riphaeus é, ao mesmo tempo, sinal da inescrutabilidade de Deus e da liberdade do poeta. Virgílio chamara Riphaeus "o mais justo", mas o relato de Dante sobre a rejeição de Riphaeus ao "paganismo fétido" é pura invenção. A teologia católica previa o "batismo voluntário", mas ninguém, a não ser Dante, teria apontado Riphaeus como exemplo de tal instituto. Por que Riphaeus? Por que não Virgílio? E por que Beatriz? Dante é o autor do poema, e faz o que mais convém à obra; no entanto, convém, igualmente, perceber que Dante era uma seita de um só seguidor, e não um tomista, agostiniano ou seja lá o que fosse. Milton, nitidamente, era uma seita de um só seguidor, e talvez a única diferença entre Shelley, Dante e Milton seja o fato de o primeiro recusar-se a se considerar cristão. A teologia de Dante não fazia a menor diferença para Chaucer, mas a aspereza e a arbitrariedade do florentino em nada agradavam o compassivo e irónico poeta inglês. Relutamos em falar da arrogância lancinante de Dante, mas, de modo geral, o poeta não considerava Deus inescrutável. Dante não nos revela todos os segredos de Deus, mas parece estar ciente da maioria deles, e talvez houvesse revelado mais, se tivesse vivido o quarto de século de que precisava para completar nove vezes nove. Mais do que um ceticismo comedido, com relação ao julgamento moral praticado por um Dante onipotente, observa-se em Chaucer um descontentamento relativo aos retratos de homens e mulheres congelados por Dante. Pode-se conjecturar que Chaucer seria a diferença entre Dante e Shakespeare porque a Mulher de Bath enseja o milagre de Sir John Falstaff, e o abismo niilista do Vendedor de Indulgências pressagia os gran- 132 133 des personagens shakespearianos, subversores de todos os valores, lago, e o Edmundo de Rei Lear. Em vez de focalizar a Mulher de Bath ou o Vendedor de Indulgências, optei pela totalidade da gama de personagens do "Prólogo" aos Contos de Canterbury. Dante é o precursor, sutilmente revisto e refutado, na outra obraprima de Chaucer, Troilus e Criseida, mas os Contos de Canterbury, de modo geral, abandonam Dante, em favor de uma contenda velada com Boccaccio, influência muito mais ameaçadora, pois o domínio da narrativa e do personagem constatados em Chaucer muito devem ao vigoroso autor do Decamerão. Quando estava com cerca de 46 anos, Chaucer começou a escrever os Contos de Canterbury, tarefe da qual se ocuparia até o fim da vida, em 1400. Dos 120 contos previstos, o autor concluiu 22 e deu início a mais dois. Assim como no restante de sua obra, Chaucer escrevia com o objetivo de ler seus próprios escritos, em voz alta, diante da corte e em residências de nobres. Mas Chaucer também contava com a possibilidade de ser lido por terceiros. É útil situar Chaucer historicamente, e constatar que ele serviu a Ricardo II e, depois, a Henrique IV. O mundo retratado nas peças que compõem as duas partes de Henrique IV, de Shakespeare, é uma visão da Inglaterra à época de Chaucer. Sir John FalstafTé contemporâneo de Chaucer, por assim dizer; mais importante do que isso, Fals-taff e a Mulher de Bath são autênticos parceiros, e teriam muitas conversas e experiências a compartilhar. Viviam em uma era de guerras civis, caótica, violenta, instável, uma época propícia às peregrinações, que, sem dúvida, tinham o seu lado espiritual, mas que também poderiam ser comparadas aos cruzeiros marítimos de hoje. A Mulher de Bath, tendo enterrado cinco maridos, parte em busca do sexto, ou, pelo menos, de um companheiro de jornada. Não gostaria de me ver no meio dos personagens dantescos, nem mesmo no Purgatório ou no Paraíso, mas, se pudesse recuperar um pouco do vigor de outrora, gostaria de estar ao lado de Chaucer, o Peregrino, do Hospedeiro e dos demais 28 romeiros. A originalidade de Chaucer, glória do seu génio, surge de modo intenso nos retratos esboçados no "Prólogo". A marca registrada desses retratos é a vitalidade, seja no caso do Monge que come ganso, do Frei que caça mulher, ou dos cinco biltres desclassificados: o Moleiro, o Despenseiro, o Magistrado, o terrível Oficial de Justiça e o atrevido e desconcertante Vendedor de Indulgências. Mais vital de todos os vitalistas, verdadeiro desafio a Falstaff e ao Panurgo, de Rabelais, é, naturalmente, a Mulher de Bath, que tanto cativa o leitor, mas que também tem o seu lado escuso. O que permitiu a Chaucer, dois séculos antes de Shakespeare, exercer tamanha maestria de caracterização de personagens? Embora não me renda aos modismos que determinam ^Wrédito de qualquer noção de genialidade individual, admito, aqui e ao longo naiu o uesi-icuii. -1-1 .A ..... , todo este livro, a probabilidade de uma interseçao entre uma consciência privilegiada cobros, o tempo oportuno, no ensejo de obras originais. Mas não penso que já tenhamos aprendido a maneira como essa interseção ocorre. Geoffrey Chaucer era filho de um taberneiro bem-sucedido, e, aos 17 anos, deixou esse ambiente de classe média para ingressar na casa real. Serviu, sucessivamente, a três reis - Eduardo III, Ricardo II e Henrique IV -, nas funções de soldado, diplomata, cortesão e administrador. Consta ter havido uma tensão aparentemente benéfica entre a origem modesta de Chaucer e a carreira vitalícia na corte, mas ele não era, em absoluto, a única pessoa com tal perfil na Inglaterra de então, mas somente ele se tornou o poeta supremo do país, antes do advento de Shakespeare. O momento histórico e a posição de Chaucer na corte foram fecundos em termos de matéria poética, mas, volto a pergunta: por que ele? Assim como nos casos de Virgílio, Agostinho e Dante, Chaucer exibe dons intelectuais, linguísticos e criativos singulares, surgidos a partir de energias estritamente individuais, e não culturais. Chaucer era um sagaz observador social, e a Mulher de Bath e o Vendedor de Indulgências são visões poéticas representadas com uma verve realista que é tão insinuante quanto distorcida, artisticamente falando. A ironia de Chaucer é tamanha que, às vezes, não é possível enxergá-la, conforme observou Chesterton. A Mulher de Bath é mais sombria do que aparenta sê-lo, e o Vendedor de Indulgências, mais sincero do que ele próprio imagina. De como interpretar o conto horrível da Prioresa, não faço a menor ideia. Será que Chaucer o escreve sem ironia? Será possível duvidar da linguagem e das narrativas, assim como Chaucer o fazia, e propor, sinceramente, a violência anti-semita desse conto difamatório, que faz O Mercador de Veneza parecer quase benévolo? A refinada Prioresa é absolutamente perversa em seu ódio aos judeus (que haviam sido expulsos da Inglaterra em 1290, pelo crime de terem sido vítimas do Massacre de York), sentimento que culmina em uma estrofe que só posso considerar irónica: Com tortura e com morte vergonhosa, O pretor condenou judeus à morte, Ao saber do homicídio, e sem demora; Jamais admitiria tal maldade. O mal é imputado a quem merece." Que fossem arrastados por cavalos, E, depois, enforcados, pela lei. As ironias mais sutis de Chaucer talvez não sejam tão exageradas, mas são maravilhosas e incessantes. Com muita competência, Talbot Donaldson comparou Chaucer, o 134 135 Peregrino, ao personagem criado por Jonathan Swift - Lemuel Gulliver -, apaixonado por cavalos racionais. Na interpretação de Chesterton, Chaucer divertia-se, cínica e discretamente, com todas as contradições com que se deparava, e deleitava-se com o próprio descaramento. Ninguém melhor do que Chaucer sabia que o mundo ao seu redor estava decadente, e talvez ninguém melhor do que ele soubesse aproveitar a situação, mesmo enquanto esta se deteriorava. Uma ironia que depende da percepção de que uma realidade magnífica desapareceu para sempre é tão chauceriana quanto chesterto-niana. Tecer narrativas irónicas cujo verdadeiro tema é o ato de narrar foi o método de Boccaccio, antes de ser o de Chaucer, provavelmente motivo pelo qual Chaucer jamais menciona Boccaccio. O que constitui uma originalidade puramente chauceriana é o tipo de ironia pocele praticada, que desafia qualquer descrição. A erudição da Mulher de Bath é espantosa, mas ela é irónica com relação ao seu próprio saber. O Vendedor de Indulgências é obcecado pelo Juízo Final, e demonstra um prazer autodestrutivo que reflete outra faceta de ironia. O próprio Chaucer, como poeta e Peregrino, adquire uma visão irónica em que a ironia se torna uma nova espécie de amor pelo mundo e pelos loucos pitorescos que o enchem de vida. Ironia amável desabrocha em amor irónico, uma bela e risonha percepção de peregrinos e peregrinações. Seja lá o que for, o sentimento é antitético ao que Dante celebra como amor. Pregando para a congregação que ele mesmo explora, o Vendedor de Indulgências entra em êxtase: Mi'a língua e minhas mãos correm tão rápidas, Que é uma alegria ver mi'a agilidade. Resta apenas vê-lo como um "televangelista", esplendor norte-americano atualmente em ocaso. E onde encontraremos nossa Mulher de Bath, com seu lema maravilhoso: "Boca insaciável requer rabo insaciável"? Era preciso uma voz poética secular vibrante o suficiente, e uma visão humana ampla o suficiente, para defender a vida mundana das exortações proféticas de Dante. A originalidade de Chaucer é menos sublime do que a de Dante, mas como é bem-vinda! Peregrinos do Absoluto jamais desistem de fazer julgamentos de ordem moral. Chaucer não confia em absolutos e, ironicamente, conven-ce-nos que a vida tende a desacreditar os que se especializam em condenar o próximo. II HOKMAH > 136 LUSTRO 3 O Javista, Sócrates e Platão, São Paulo, Maomé s* centro oculto deste Lustro é a figura de Jesus. Ele havia sido incluído, mas foi, por assim dizer, excluído, por um lado, devido à minha própria perplexidade, por outro, como resultado da sábia advertência dos meus editores. Génio é um livro que versa sobre a consciência autoral, e até mesmo Sócrates é autoral, na tradição da oralidade. No entanto, parece-me haver duas figuras diferentes, o Jesus histórico, sobre o qual pouco conhecemos, e o personagem literário, que pulsa ao longo dos quatro Evangelhos, assim como Javé é o grande personagem literário na obra do autor J, ou Javista. Jesus e Hamlet são os únicos personagens literários que parecem possuir consciência autoral, mas este livro não visa aos personagens literários, e sim às mentes criativas modelares. Considerar Maomé, emblema dos profetas, como génio autoral é contrariar o islamismo, pois o próprio Deus é quem pronuncia cada palavra do Alcorão. Mas o Alcorão não pode ser ignorado, porque se tiata de uma obra de génio que precisamos, urgentemente, estudar. Hokmah, sabedoria divina, não pode ser aventada, em suas formulações ocidentais, sem a justaposição do Javista e Platão, São Paulo e o Alcorão. 139 dfev> C&2 ííL? O JAVISTA Javé apareceu diante dele, próximo aos terebintos de Mambré;1 ele estava sentado à entrada da tenda, pois o dia começava a esquentar. Erguendo os olhos, avistou três homens à sua frente. Ao vê-los, correu em sua direção, a cumprimentá-los, e, prostrando-se por terra, disse: "Meus senhores, se for da vossa vontade, não ignoreis vosso servo. Deixai-me trazer-vos um pouco d'água; banhai vossos pés e reclinaivos debaixo da árvore. E permiti que eu vos traga pão, para recuperar a vossa energia; então, prossegui - sabendo que passastes diante de um servo vosso." Eles responderam, "Faz conforme disseste". Abraão entrou correndo na tenda, e disse a Sara: "Depressa, três seahs da melhor farinha! Amassa e prepara as broas!" Em seguida, Abraão correu até o rebanho, pegou um terneiro, tenro e de qualidade, e o confiou a um menino, que se apressou em prepará-lo. Apanhou coalhada e leite, e o terneiro já preparado, e apresentou-os aos homens; e os serviu, enquanto se alimentavam, debaixo da árvore. - Tanakh, Génese, 18:1-15 Eis o Javista (ou a Javista, se o leitor preferir), no que ele (ou ela) tem de mais fantástico. Quando o dia esquenta, Javé aparece a Abraão, próximo aos arbustos de terebintos, em Mambre. Ao lado desse Deus surpreendente estão dois Elohim, seres divinos, ou anjos que viajam em companhia de Javé, com destino a Sodoma e Gomorra, cidades pecadoras que hão de ser destruídas. Javé, assim como os dois companheiros, banha os pés, descansa à sombra dos terebintos e faz um repasto delicioso, que inclui vitela, broas, queijo e leite. Satisfeito com a hospitalidade de Abraão, e com os dotes culinários de Sara, Javé profetiza que o casal há de ter um filho, conquanto já idosos demais para conceber. Quando Sara, escondida no interior da tenda, ri da profecia, Javé se ofende e diz à mulher assustada, e que tudo nega, que ela tivera a ousadia de rir de suas palavras. Quem poderia declinar desse Javé, a despeito das lamúrias de teólogos e estudiosos que anseiam por um Deus menos humano? O Javista é um génio cómico, atuando 1 Antigo santuário na zona sul da Judeia, próximo de Hebron e ao oeste de Macpela. [N. do E.] 140 O JAVISTA em um campo onde menos esperamos encontrar comédia. A alegria e a exuberância traquinas desse autor só seriam igualadas em Shakespeare, cujo atrevimento precisava ser mais sutil, em uma Inglaterra onde hereges eram queimados e blasfemos podiam perder a orelha ou a língua. Mas o Javista nada sabe sobre heresia ou blasfémia. É um contador de histórias, dotado, ao mesmo tempo, de extrema sofisticação e objetivida-de infantil. William Blake dizia que a história da religião consistia em "escolher formas de adoração a partir de contos poéticos". O judaísmo, o cristianismo e o islamismo surgem em consequência desse processo, mas os três ficam a infinita distância da beleza exuberante do Javista. 141 c&p VISTA (980?-900?A.E.C.) E difícil precisar datas relativas a origens hebraicas. Consta que Abrão, que se tornou Abraão, pai dos judeus, cristãos e muçulmanos, tenha vivido no século XVIII antes da Era Comum. Presumivelmente, Israel desceu ao Egito um século mais tarde, e o Êxodo deve ter ocorrido por volta de 1280 a.e.c. Supõe-se que Canaã tenha sido conquistada 50 anos depois. O profeta Samuel e o Rei Saul remontam, aproximadamente, ao período que vai de 1020 a 1000 a.e.c, e Davi reinou em Judá e Israel de 1000 a 960, quando Salomão ascendeu ao trono, reinando até cerca de 922, ocasião de sua morte e da divisão do reino. O maior escritor de língua hebraica, conhecido pelos estudiosos como J, ou Javista, escreveu os textos cruciais que hoje chamamos Génese, Êxodo e Números, entre os anos 950 e 900. Uma vez que esse autor extraordinário permanece anónimo, temos a liberdade de conjecturar a respeito de seu género, se masculino ou feminino. O Livro de J, ou Javista, encontra-se inserido no vasto arcabouço que se estende desde Génese até Reis, criado por um grande autor-editor - o chamado Redator -, exilado na Babilónia, por volta de 550 a.e.c. Escrevi um comentário, intitulado O Livro de /(1990), onde assumi um posicionamento que continuo a defender, mas hoje desaprovo a tradução da Bíblia utilizada no referido estudo; portanto, passo a citar o Tanakh (1985), a versão judeu-americana das Sagradas Escrituras, em que a Tora, ou cinco Livros de Moisés (que englobam o texto de J), foi traduzida por um grupo ilustre, incluindo Harry M. Orlinsky, H. L. Ginsberg, Ephraim A. Speiser, entre outros. Samuel Butler, ficcionista vitoriano, autor do esplêndido O Caminho de Toda Carne, escreveu um livro em que defendia a hipótese de a Odisseia ter sido escrita por uma mulher. Buder é divertido, embora não muito convincente, mas, pensando retrospectivamente, percebo que fui por ele influenciado, na minha dedução de que o Javista teria sido uma mulher, uma dama da esplêndida corte de Salomão, o Sábio. Agrada-me a sugestão de Jack Miles, de que eu deveria ser audacioso o bastante para identificar essa ilustre dama como a hitita Bathsheba, mãe de Salomão. É célebre a artimanha de Davi, ao planejar a morte do marido de Badisheba, Uriah, em combate, a fim de somar Bathsheba as suas esposas. Como seria engraçado, se o génio cujas histórias permitiram ao Redator moldar a Tora fosse uma mulher hitita, e não um homem israelita! Sendo J um grande irónico, que não queria muito bem aos patriarcas hebreus, mas que se encantava com suas esposas, Bathsheba viria, admiravelmente, a calhar. Cabe registrar, ainda, a simpatia de J por Agar e Tamar, assim como Bathsheba, mulheres que não eram israelitas. O JAVISTA Gostaria de deixar claro que leio o texto de J como alta literatura, assim como leio Homero, Dante e Shakespeare. Malgrado a sua história real, as representações vitais de Abrão/Abraão, Jacó/Israel, Judá, Tamar, José e Moisés são todas de autoria de J, portanto, considero-as aqui personagens literários. Em vez de tratar a figura de Jesus como um personagem literário criado por Marcos em seu Evangelho, optei por excluir Jesus deste livro, conquanto ele pertença, ao menos em parte, à história do génio judaico, asserção com que apenas repito a avaliação do Reverendo John P. Meier, o mais ilustre biógrafo católico de Jesus. O génio do Javista apresenta uma determinada manifestação, tão extasiante que chega a transcender Shakespeare (embora me doa admiti-lo). O personagem mais surpreendente de J não é Abraão, nem Jacó, nem Moisés, nem mesmo José, que, na minha opinião, é um substituto, um retrato do Rei Davi; é, misteriosamente, o próprio Javé, Deus, não apenas como personagem literário, mas, de modo memorável, como Deus. Mais uma vez, não incorro em qualquer ultraje: há quase três mil anos o Javé bíblico é um escândalo, porque é humano, humano demais. Lembro-me de comentar, em O Livro dej, que, segundo os padrões normativos - judaicos, cristãos ou islâmicos -, a representação de Javé oferecida por J é blasfema. Hoje digo que fui pouco enfático: teólogos (antigos e modernos) e estudiosos chamam o Javé, segundo J, de "antropomórfico", o que constitui um subterfúgio absurdo. Esplêndida exceção, Gerhard von Rad, estudioso alemão, acerta em suas conclusões, embora eu trocaria Israel por J e o Antigo Testamento pela Bíblia Hebraica, ou Tanakh, na observação de von Rad: Na verdade, na concepção de Israel, até o próprio Javé tinha forma humana. Mas o nosso modo costumeiro de expressar tal condição vai exatamente de encontro às ideias do Antigo Testamento, pois, segundo o javismo, não se pode dizer que Israel considerava Deus antropomórfico, mas o contrário, que considerava o homem teomórfico. J, com toda sua ironia, considerava teomórficos os homens e as mulheres por ela retratados, ao passo que o dinâmico Javé é extraordinário, e livre, desde o princípio: Quando ainda não havia sobre a terra nenhum arbusto do campo, e nenhuma relva brotara, pois Javé ainda não tinha feito chover sobre a terra, e não havia homem que lavrasse o solo, e nem subia da terra a água para regar toda a superfí142 143 cie, Javé criou o homem {adam), do pó da terra {adamalò). Soprou-lhe nas narinas a vida, e o homem tornou-se um ser vivo. - Tanakh, Génese, 2:5-7 com "Javé" reintroduzido, em lugar de "o Senhor Deus". Estamos por demais habituados com essas palavras, para reconhecermos a sua infindável estranheza. Javé forma o molde de Adão a partir do barro, do adamah umedecido, não como um ceramista que trabalha com sua roda, mas como uma criança que faz um bolo de lama. E temos aqui um Deus infantil, que sopra a vida nas narinas de sua criatura, assim exaltando Adão à condição de ser vivente, não uma alma presa em um corpo, mas uma entidade mista, como o próprio Javé. Por mais original que seja o relato da criação do homem, J supera-se a si mesmo na criação de Eva, mais complexa, narrativa única sobre a formação da mulher, em toda a literatura do antigo Oriente Próximo: Javé disse: "Não é bom que o homem esteja só; farei para ele uma auxiliar adequada." E Javé formou da terra todas as feras e todas as aves do céu, e as apresentou ao homem para saber que nomes daria a elas; e conforme o homem chamasse cada criatura viva, assim ela se chamaria. E o homem deu nome ao gado e às aves do céu e a todas as feras, mas não se encontrava uma auxiliar adequada a Adão. Então Javé fez cair um sono profundo sobre o homem; enquanto este dormia, Ele tomou uma de suas costelas e no lugar fechou a carne. E, da costela que tinha tirado do homem, Javé modelou a mulher, e apresentou-a ao homem. Então o homem disse: - Esta sim é osso dos meus ossos e carne da minha carne. Esta será chamada Mulher, pois foi tirada do homem. A expressão hebraica, aqui traduzida como "auxiliar adequada", significa alguém ao lado de Adão, semelhante a ele, pois a mesma palavra é, mais adiante, empregada para qualificar a atitude de Javé conosco. Quando a versão da Bíblia encomendada pelo Rei Jaime I deu ao trecho a seguinte versão - "Farei para ele uma auxiliar que lhe esteja à altura" -, causou problemas dos quais talvez jamais nos livremos. O texto da autora J é ainda mais enigmático, quando Javé faz cair um sono profundo (tardemah, um repouso pesado, anestético, pois Adão está sob a ação de Javé). É claro (e irónico) que essa segunda criação de Javé seja mais bela. O homem surgiu do barro, a mulher, de algo vivo, e, portanto, é, imediatamente, animada. 144 Pulo o muro do jardim, passo por nosso pai Abraão, e chego à saga (descrita por J) do astuto Jacó, que se tornou Israel após lutar contra um anjo misterioso (um dos Elohim, ou seres divinos), em um embate desesperado que durou a noite inteira: Naquela mesma noite, Jacó se levantou, pegou suas duas mulheres, suas duas servas, seus 11 filhos e cruzou o vau do Jaboc. Após atravessar a família ao outro lado do rio, enviou para lá todos os seus pertences. E Jacó ficou sozinho. E um homem lutou com ele até o alvorecer. Vendo que não conseguia dominá-lo, o homem deslocou-lhe o osso do quadril, e o quadril ficou contundido enquanto Jacó lutava. Então o homem disse: "Solta-me, pois o dia está raiando." Mas Jacó respondeu: "Não te soltarei, enquanto não me abençoares." Disse o outro: "Qual é o teu nome?" Ele respondeu: "Jacó." O homem disse: "Teu nome já não será Jacó, mas Israel, pois lutaste contra seres divinos e humanos, e venceste." Jacó perguntou: "Peço-te, dize-me teu nome." Mas ele respondeu: "Não deves perguntar meu nome!" E dele se despediu. E Jacó deu a esse lugar o nome de Fanuel, dizendo: "Vi um ser divino face a face, e continuei vivo." O sol nascia, quando Jacó atravessou Fanuel, mancando por causa do quadril. O trecho constitui um triunfo do génio de J, mas temos dificuldade em confrontálo diretamente, pois a "Luta de Jacó" tornou-se um mito protestante, segundo o qual o patriarca trava um combate de amor contra o próprio Deus. Em lugar da versão judaico-americana - "lutaste contra seres divinos e humanos" -, eu diria "contra Elohim e homens", isto é, contra homens, anteriormente, e agora contra um dos Elohim, no vau do Jaboc (o trocadilho com o nome de Jacó é típico de J). Será benigno o ser contra o qual luta Jacó? A tradição judaica é ambígua a esse respeito e, de acordo com algumas fontes, o antagonista foi o demónio Samael, anjo da morte, o que, para mim, faz pleno sentido. Trata-se da véspera do encontro de Jacó com Esaú, seu irmão injustiçado, enganado com relação à primogenitura e à bênção de Isaac. Jacó, que não e guerreiro, está ciente da aproximação do inflamado Esaú, na companhia de quatro centenas de truculentos edomitas, milícia assustadora. Depois de providenciar a travessia da família, dos agregados e de suas posses, Jacó espreita, a fim de emboscar o anjo da sua própria morte, que vem, às pressas, ao local do encontro marcado para o dia seguinte - e Jacó bloqueia a passagem do rio. Esse Elohim anónimo tem algo de nefasto, qual um vampiro que teme a luz do dia: "Solta-me, pois o dia está raiando." E note-se que o encontro nada tem de amigável: Jacó haverá de mancar pelo resto da ¦ Umo explicar o vigor e a resistência com que Jacó combate o anjo/demônio? J ao explica, mas confere ao recém-criado Israel um resplendor epifânico, no momento 145 da partida: "O sol nascia, quando Jacó atravessou Fanuel, mancando por causa do quadril." "Israel", para J, pode significar "que Deus resista", ou talvez, "que vença o anjo". Em todo caso, o nome é irónico, pois é Jacó quem resiste, e quem triunfa. Ao longo de toda a vida, Jacó vinha lutando pela Bênção, e o génio de J manifesta-se na insinuação de que a vontade humana, isto é, de Jacó, pode resistir ao Anjo da Morte, ao menos em um ou mais encontros cruciais. Recorro agora a um terceiro episódio na narrativa do Javista, o momento mais enigmático e chocante da Bíblia Hebraica. Segundo J, Moisés não é o heróico Titã do Deuteronômio; arftes, é tratado, pelo autor, com uma ironia afável e, por Javé, com bastante aspereza. Esse Moisés é valente, mas ansioso, não muito paciente, e um tanto inseguro com relação à sua capacidade de liderança. Tem dificuldade de expressão e hesita em se tornar profeta de Javé: Mas Moisés disse a Javé: "Ó Senhor, nunca fui hábil com as palavras, nem no passado, nem agora que falastes ao vosso servo; minha fala e minha língua são pesadas." E Javé lhe disse: "Quem dá a fala ao homem? Quem o torna mudo ou surdo, cego ou capaz de ver? Não sou eu, Javé? Agora vai, e eu estarei contigo quando falares e lhe ensinarei o que dizer." Mas Moisés disse: "O Senhor, fazei de outra pessoa o vosso emissário." Javé irritou-se com Moisés e disse: "Não tens teu irmão Aarão, o levita? Sei que ele fala bem. Neste momento ele vem ao teu encontro, e ficará alegre em ver-te. Falarás com ele, fazendo dele as tuas palavras; estarei contigo e com ele, e direi a ambos o que fazer, e ele falará ao povo em teu lugar. Será, portanto, teu porta-voz, e serás para ele Deus; leva contigo este cajado, com o qual realizarás os sinais. - Tanabk, Êxodo 4:10-17 A ira de Javé, evidentemente, não é apaziguada pela anuência do profeta, e J oferece-nos uma cena chocante, quando Moisés foi para o Egito: Em um acampamento noturno, durante a viagem, o Senhor foi ao encontro dele [Moisés] e procurava matá-lo. Séfora pegou uma pedra aguda, cortou o prepúcio do seu filho e, com a pele, tocou a perna dele [Moisés], e disse: "Você é para mim, deveras, um esposo de sangue!" - Tanakh, Êxodo 4:24-25 Diante do atentado gratuito de Javé contra a vida de Moisés, o comentário bíblico ortodoxo foge, em todas as direções, deixando sozinhos a valente Séfora e o marido. O arande intérprete Rashi afirma que Moisés havia permanecido em uma hospedaria, em vez de seguir diretamente ao Egito, mas o texto em hebraico diz, claramente, "acampamento noturno", indispensável no Negev. Qual o motivo da ira de Javé? J não nos oferece motivo algum, e, com certeza, não encontrava qualquer explicação para o fato. A exegese tradicional, insatisfeita com as conclusões de Rashi, estabeleceu, de modo absurdo, que Moisés devia ser sacrificado porque não circuncidara o filho! Mas essa interpretação é tardia, e presumo que seja baseada em alguma interferência textual do Redator nesse trecho extraordinário. A tradição do Midras, descontente com a ironia chocante do Javista, simplesmente reescreveu o trecho: Satanás aparece como uma grande serpente do deserto e quase engole Moisés, até que Séfora circuncida o bebé do casal. Hereges gnósticos, do passado e do presente (e aqui me incluo), muito apreciam essa passagem bíblica, mas o sofisticado e irónico Javista não era crente nem herege. Penso que J pretendesse fazer-nos constatar, mais uma vez, que a identificação total com a vontade de Javé é impossível: ele não é previsível. Atualmente, os inefáveis Falwell e Robertson estão propondo que Deus permitiu a destruição das torres do World Trade Center porque somos tolerantes com defensores do aborto, homossexuais, feministas e gentalha similar. Não me interessaria a interpretação de Falwell e Robertson do porquê de Javé ter atentado contra a vida de Moisés. O génio do(a) Javista é absolutamente fabuloso - e sempre nos surpreende. Homero, nitidamente, não procurava surpreender os leitores, mas recriou a poesia do passado de modo mais memorável do que nunca. J foi absolutamente original, um génio jamais inteiramente ?ssimilado pela tradição bíblica que ele/ela, na verdade, não imaginava iniciar, mas que dela se escandalizaria, caso se conscientizasse da totalidade das implicações do texto em questão. 146 147 SÓCRATES E PLATÃO SÓCRATES E PLATÃO Quando ele chegou, Agáton, que estava sentado sozinho, à cabeceira da mesa, saudou-o: - Eis que surge Sócrates! Vem sentar-te ao meu lado; quero compartilhar do pensamento que acabaste de elaborar ao meditar sob o alpendre. Estou certo de que o concluíste, ou ainda estarias lá. - Meu caro Agáton - Sócrates respondeu, enquanto sentava-se ao lado dele -eu gostaria muito que o saber pudesse ser compartilhado, por simples contato, de quem dele está repleto com quem dele carece, como a água que, por um fio de lã, nivela-se em duas taças. Se assim ocorresse, estou certo de que me congratularia por sentar-me ao teu lado, pois em breve tu me encherias até a borda, com a mais sofisticada sabedoria. O meu saber, na melhor das hipóteses, é obscuro, duvidoso como um sonho, mas o teu, Agáton, brilha e se espraia - quem de nós poderá esquecer, que o tenha visto há pouco, resplandecente em tua juventude, visivelmente aclamado diante dos olhos de mais de 30 mil compatriotas gregos! - Platão, Banquete A ironia socrática se apresenta na forma de ignorância, e, com espirituosidade, pega a pessoa por meio da sabedoria. A ironia de Platão, a meu ver, se parece mais com a de Chaucer, que, segundo G. K. Chesterton, era grandiosa demais para ser apreendida. Emerson, meditando sobre o génio de Platão, observou, quanto ao seu espantoso alcance especulativo: Vem de Platão tudo o que ainda hoje é escrito e debatido entre os pensadores. Um grande dano é o que ele causa à nossa originalidade. Nele chegamos à montanha da qual rolaram todas as pedras. Percebe-se que Montaigne, mestre de Emerson, preferia Sócrates a Platão, ao passo que a estima do próprio Emerson pendia mais para o historiógrafo de Sócrates: "Com grande visão, Platão forneceu-nos as luzes e as sombras do génio da nossa vida." A classificação de seguidores de Platão proposta por Emerson é bastante abrangente: inclui Michelangelo, Shakespeare, Swedenborg e Goethe. A inclusão de Hamlet entre os platonistas é a que mais me agrada, embora discorde dos termos de Emerson: Hamlet é absolutamente platónico, e é apenas a magnitude do génio de Shakespeare que impede o personagem de ser classificado como o mais eminente da escola a que pertence. Emerson queria dizer que o instinto impenitente de Hamlet visava à transcendência, mas isso só se aplica ao Hamlet do quinto ato, e não ao estudante assassino, ao génio do início da peça. Os seguidores de Platão são homens e mulheres perigosos, com relação a si mesmos e a terceiros. As Leis de Platão causam-me maior apreensão do que o Deuteronômio, ou do que há de mais radical no Alcorão. A grande moralidade pode se tornar, rapidamente, selvagem e, após meio século na Universidade de Yale, cresce o meu desagrado diante do fato de que, a exemplo de todas as demais instituições académicas do mundo anglófono, as leis de Yale se transformam, cada vez mais, em uma paródia do platonismo. 148 149 6 wiiP CÈkú 6 #ti? SÓCRATES E PLATÃO SÓCRATES (469-399 A.E.C.) PLATÃO (C. 429-347 A.E.C.) Assim como dizem que Helena de Argos tinha uma beleza universal, que fazia com que todos se sentissem a ela ligados, a um leitor da Nova Inglaterra, Platão parece um géniojiorte-americano. - Emerson Emerson não tinha Sócrates na conta de génio norte-americano; sábios da tradição oral parecem pertencer aos seus próprios povos: Confúcio aos chineses, Jesus aos judeus, Sócrates aos atenienses. Platão, no entanto, possui a universalidade dos grandes escritores: Homero, Shakespeare, Cervantes, Montaigne, entre outros. Desse grupo, porém, apenas Platão teme o seu próprio talento artístico; somente em Tolstoi o fenómeno seria, novamente, observado. A falecida ficcionista íris Murdoch escreveu monografia notável que focaliza, precisamente, esse temor: The Fire and the Sun: Why Plato Banished the Artists (1977). Murdoch é aqui bastante lúcida, tanto quanto em seus romances mais representativos: O paradoxo mais óbvio do problema aqui abordado é que Platão é um grande artista (...). Travou longa batalha contra a sofística e a magia, e, no entanto, produziu algumas das imagens mais memoráveis da filosofia europeia: a Caverna, o Auriga, o esperto Eros, o Demiurgo, cortando em tiras a Anima Mundi (...). Platão desejava o que mais de uma vez ele próprio menciona: a imortalidade através da arte; ele sentia e satisfazia o desejo do artista de produzir objetos unificados, distintos, formais, duráveis. (87-88) Supõe-se que o principal evento na vida de Platão tenha sido o assassínio judicial de Sócrates. É válida também a hipótese de que a polémica sumamente artística de Platão contra a arte seja, antes de tudo, uma contenda por supremacia cultural travada com Homero, luta que Platão estava fadado a perder. O diálogo platónico é uma grande invenção, mas nem a República nem o Banquete têm a eminência estética da Ilíada. S u um crítico literário; não sou filósofo nem historiador, portanto, minha competência discorrer sobre o génio de Platão é limitada. Poucas obras literárias comovem-me mais do que o Banquete, por isso restrinjo minhas observações a esse diálogo específico. O génio, ou demónio, de Sócrates é um dos pontos de partida de Platão. Aprendemos com Sócrates que ele é capaz de comprovar a nossa ignorância, pois começa a pensar com base em sua própria - e formidável - "ignorância". Adotar Sócrates como predecessor, como o fez Platão, constitui, a meu ver, a exclusão de Homero. Sócrates considerava a Ilíada uma tragédia, ao menos, é o que Platão sempre sugere. Freud é uma espécie de antítese de Platão, que honra a imagem do pai; Freud jamais o faz, mas, na verdade, em sua vida não houve um Sócrates. A ironia socrática é idêntica ao génio socrático, e, consequentemente, a ironia platónica é bastante sutil, uma vez que, a exemplo da ironia do mestre, a do discípulo não é, a princípio, retórica; isto é, não afirma uma coisa querendo dizer outra. Sócrates é por demais natural, por demais coerente, para recorrer à ironia retórica, conforme insiste Montaigne: Foi ele [Sócrates] que fez a sabedoria humana descer, novamente, do céu, onde desperdiçava seu tempo, e ser restituída ao homem, ao qual ela desempenha as tarefas mais típicas, árduas e úteis. A ironia do próprio Montaigne é evidente. Gregory Vlastos, grande estudioso de Sócrates, concluiu que o pensador grego demonstrava uma "carência de amor". Poderia haver ironia ainda maior, se Vlastos estiver certo, uma vez que Sócrates, no Banquete, afirma ser uma autoridade tão-somente no amor? Eis o que diz Vlastos, sobre "O Paradoxo de Sócrates": Já demonstrei que Sócrates, de fato, confere importância às almas dos companheiros. Mas essa importância é limitada e condicional. Se as almas dos humanos haverão de ser salvas, devem sê-lo de acordo com os termos por ele pensados. E quando percebe que determinadas almas não se salvarão, ele as observa, ao longo do caminho da perdição, com pesar, mas sem angústia. Jesus chorou por Jerusalém. Sócrates adverte, repreende, exorta e condena Atenas. Mas não verte lágrimas pela cidade. Chegamos a conjeturar se Platão, que vociferava contra Atenas, apesar de toda a sua fúria e ódio, não a amava mais do que Sócrates, com suas repreensões melancólicas e comedidas. Percebemos uma zona de frigidez na alma do grande erótico; se amasse mais os concidadãos, não teria feito pesar sobre eles uma lógica despótica", impossível de ser suportada. - Sócrates, Plato, and Their Tradition (15) 150 151 Uma "lógica despótica", conforme observa Vlastos, é o que a Sócrates atribui Nietzsche, em A Origem da Tragédia, o primeiro encontro do embate que o pensador alemão travaria com Sócrates pelo resto da vida. Incomoda mais a quase todo mundo (não estou sendo irónico) o fato de Sócrates nada ter escrito do que Confúcio e Jesus terem se restringido a aforismos. Kierkegaard, embora menos hostil do que Nietzsche, também se incomodava com o silêncio de Sócrates. Jamais poderemos saber onde termina Sócrates e inicia o Sócrates de Platão, nem mesmo se tal distinção procede. Vlastos, após profundo estudo, concluiu que o Sócrates dos primeiros diálogos de Platão é, com efeito, a figura histórica, e não uma ficção platónica. A única alternativa é o Sócrates de Xenofonte, e o Xenofonte de Acontecimentos Memoráveis não é, nem de longe, tãd*interessante quanto o de Anábasis, relato da retirada heróica de um exército de mercenários gregos, desde a Pérsia até o mar Negro. Discípulo de Sócrates, tão fiel quanto Platão, Xenofonte era um soldado profissional, e não um filósofo dramático. Xenofonte, que apresenta um Sócrates destituído de ironia e originalidade moral, é destruído por Vlastos, no momento em que este afirma que o garboso general seria um ilustre súdito vitoriano, na visão de Lytton Strachey. Portanto, resta-nos apenas o relato de Platão, sem dúvida, um grande artista, mas que amava e honrava Sócrates como um pai. O Sócrates de Platão é obra de um dramaturgo comparável a Eurípedes e (com algumas restrições) a Aristófanes, mas entre os que liam Platão muitos haviam ouvido os discursos de Sócrates. Não temos aqui, absolutamente, uma situação similar à de São Paulo e dos autores dos Evangelhos, dos quais nenhum jamais viu ou ouviu Jesus. Todavia, Sócrates, com ou sem Platão, continua a ser um paradoxo, um enigma permanente. Ao contrário do Platão amadurecido, Sócrates não estabelece dogmas; gostaria de acreditar na imortalidade da alma, mas aceita a possibilidade do aniquilamento da consciência com o advento da morte. E a vocação, ou missão, de Sócrates parece contraditória. Professa ignorância, instrui quanto à sapiência e ao cuidado da alma, e, no entanto, quase toda a sua atividade caracteriza-se, essencialmente, pela refutação: alguém afirma uma posição, e ele rebate. Vlastos procura explicar o paradoxo, qualificando Sócrates como um ser em constante busca da verdade. Mas (com raras exceções) percebe-se menos a presença de um inquisidor irónico do que a de um ironista em busca da verdade. Sõren Kierkegaard, escritor religioso dinamarquês que viveu no século XIX, é objeto de outro capítulo deste livro. Aqui interessa-me a monografia académica "O Conceito de Ironia, com Referência Constante a Sócrates" - defendida por ele em 1841. O estudo é tão irónico que se torna impossível dele depreender um relato claro da ironia socrática, mas a Tese número XIII deixa-me sempre atónito: Ironia não é apatia, destituída das tenras emoções da alma; ao contrário, é ansiedade, resultante do fato de que terceiros também se divertem com o que ela requer para si. A reflexão não parece nem socrática, nem hegeliana, mas é puro Kierkegaard, e aponta-nos as ansiedades e a angústia das almas extremamente criativas, em competição com as demais. O paradoxo de Sócrates não incluiria a sua posição agonística, sempre central à cultura ateniense? O Banquete, que não tardo em abordar, é, decerto, uma competição: de bebida, de oratória, de eros, do cuidado com a alma e o ser, que, afinal, é a preocupação exclusiva de Sócrates. Somente após encontrar a virtude em outro ser, ele será capaz de encontrá-la em si mesmo. Mas, sendo ele o melhor dos atenienses, de qualquer maneira, haverá de prosseguir a busca. A Tese número XIII de Kierkegaard é, portanto, uma inversão irónica da ironia socrática, marcantemente proposital, uma vez que o argumento do pensador dinamarquês é que o Sócrates externo não passa de uma máscara, e que, internamente, Sócrates era o oposto do que simulava ser. A maior ironia, então, é que Sócrates seria o sofista autêntico, e não Górgias e seus asseclas, a quem Sócrates combatia. Alexander Nehamas, seguindo os passos de Vlastos, cita a ambivalência de Nietzsche com relação a Sócrates, ao mesmo tempo, criticado por buscar uma moralidade razoável e enfaticamente elogiado, pela "autenticidade" dialética. A noção é perturbadora, mas contribui para o profundo esclarecimento que Nehamas empresta à ironia socrática: Muitas vezes, ironia consiste em comunicar ao público que algo se passa em nosso interior que não pode ser, absolutamente, revelado. Além disso, de modo mais radical, a ironia deixa em aberto a questão relativa à nossa própria capacidade de perceber o que se passa. - Virtues ofAuthenticity (113) Sócrates percebe o que se passa em seu interior? Se estivéssemos falando do mais sublime dos ironistas, Hamlet, que tudo percebe, a questão teria uma resposta. Hamlet percebe tudo, em si mesmo e nos outros. Com o Sócrates de Platão, estamos no abismo da ironia de Platão, que não me parece retórica nem dramática. Saberá Platão mais a respeito de Sócrates do que o próprio Sócrates? Apesar de todo o seu génio, Platão não e onakespeare, e Sócrates jamais ouve a si mesmo como se fosse uma outra pessoa. ricariamos surpresos com a expressão "amor socrático", mas muitos de nós achamos que sabemos (com bastante afetação) o que significa "amor platónico". Na linguagem popular, a expressão é definida pelos dicionários como afeto que transcende o desejo sexual, e que busca uma dimensão ideal ou espiritual. Não é bem isso que o Banquete propõe, conquanto não seja fácil explicar o Banquete, triunfo da arte literária. 152 153 A melhor introdução ao Banquete é o estudo de K. J. Dover intitulado Greek Homosexuality (1978), que, com bom humor, adverte-nos de que o caso de Platão pode ser especial: Sobretudo em duas obras, Banquete e Fedro, Platão adota o desejo homossexual como ponto de partida para desenvolver sua teoria metafísica, e é sumamente importante o fato de ele encarar a filosofia não como uma atividade a ser desempenhada através da meditação solitária, e relatada em pronunciamentos ex cathe-dra por um mestre a seus discípulos, mas como um processo dialético que pode perfeitamente ser deflagrado pela reação de um homem amadurecido ao estímulo causado por um*homem mais jovem (...). Sendo um aristocrata ateniense, Platão vivia em uma classe social que, certamente, considerava normal o desejo e o sentimento homossexual (...). O tratamento filosófico dispensado por Platão ao amor homossexual pode ter resultado desse ambiente. Mas é preciso considerar a possibilidade de a própria disposição homossexual do pensador ter uma intensidade anormal. (12) É duvidoso que Platão fosse diferente dos homens que o cercavam, a não ser quanto ao génio inigualável. O Banquete situa-se, dramaticamente, no ano 416 a.e.c, quando Platão tinha apenas 13 anos. Se o banquete, de fato, ocorreu àquela época, Sócrates estaria com 53 anos, e Alcibíades detinha bastante poder político em Atenas, em um momento histórico que corresponderia ao 152 ano da Guerra do Peloponeso. A própria realização do banquete é, igualmente, dúbia, conquanto não impossível. O jovem trágico Agáton promove a festa a fim de celebrar o sucesso de sua primeira peça em um festival de teatro em Atenas. Presentes, além de Agáton e Sócrates (este o mais velho conviva), encontra-se Aristófanes, extraordinário autor de farsas, inclusive As Nuvens, ousada sátira à figura de Sócrates, peça, àquela altura, já encenada. Há outros quatro personagens: Alcibíades, que chega atrasado, Fedro, Pausânias e Erixímaco. São três os discursos mais importantes - de Aristófanes, Sócrates e Alcibíades -, embora o discurso de Agáton sobre o amor ocorra entre os de Aristófanes e Sócrates. Platão interrompe a sequência, pois não há continuidade entre as visões de Aristófanes e Sócrates, enquanto Alcibíades, focalizando o enigma do próprio Sócrates, apresenta a conclusão propícia à obra. Notoriamente, Aristófanes argumenta que o amor é o desejo e a busca do todo, que constitui uma criatura grotesca, de duas cabeças, quatro braços e quatro pernas. Pedaços desesperados, corremos a esmo, procurando a nossa outra metade. Zeus, por castigo, separou-nos em partes, e ansiamos por nos tornar, novamente, inteiros. Talvez Platão, por meio dessa criação brilhante, tenha saído quite com Aristófanes pela composição de As Nuvens, mas também satiriza o amor heterossexual e o respectivo desenlace social: o casamento. Em todo caso, Platão confere aqui a Aristófanes o mito mais célebre do Banquete. De modo atípico, Sócrates recorre a um mentor: a sábia Diotima, supostamente, uma sacerdotisa, mais provavelmente, uma ficção criada por Platão. Ela refuta Aristófanes (que pretende protestar, mas, no momento em que vai fazê-lo, chega Alcibíades, um tanto embriagado), observando, de modo sagaz, que o amor não pertence nem à metade, nem ao todo, mas apenas ao Bem. A beleza de um belo mancebo, em última instância, conduz o amante a uma escada que deve ser subida. De vez que "amor" vem a ser sinónimo de "filosofia", determinado objeto - qualquer rapazola - fica para trás, nos degraus inferiores, e aquele que busca ascende à revelação, à beleza estonteante que corresponde ao Bem. Tudo isso, que o platonismo, o neoplatonismo e o platonismo cristão tornaram, para nós, matéria familiar, configura a originalidade de Platão, a assinatura do seu génio, e não parece, em absoluto, formulação do Sócrates histórico. A originalidade literária é aqui tamanha, que fico inclinado a interpretá-la como uma resposta triunfante de Platão a Homero e aos dramaturgos trágicos atenienses, cuja visão de Eros em nada antecipa Platão; a meu ver, trata-se do maior triunfo literário de Platão, em seu interminável embate com Homero. Cons-tata-se aqui o êxtase da originalidade na doutrina de Diotima, em que o amor é transformado em ambição de gerar a Beleza, como um filho. A filosofia supera a poesia, gera (por assim dizer) a poesia, e alcança a imortalidade da alma, ao contemplar, finalmente, não a poesia ou a Beleza, mas a Forma do Belo. A justificativa educacional da pederastia eleva-se à vitória agonística da filosofia sobre todos os competidores, seja qual for o custo humano. Sócrates fala de seu demónio, mas o Platão que compôs o Banquete parece ainda mais "demoníaco", não um génio da personalidade, como Sócrates, mas um novo tipo de poeta, ancestral de Dante e John Milton, e de todo o Romantismo que os seguiu, inclusive W. B. Yeats, Wallace Stevens e Hart Crane, no século XX. No entanto, 1 latão, fiel ao Sócrates que o gerou como filósofo, não encerra o Banquete com o seu próprio triufalismo. Alcibíades, em uma aparição cómica e maravilhosa, conduz-nos de volta ao paradoxo de Sócrates. Sócrates, diz Alcibíades, é um sileno, ou a estátua de um sileno: externamente, grotesca, mas, internamente, repleta de belas imagens do divino. Sileno, espírito ligado a lonisio, o deus da mímica, está além da condição de humano e, por associação, o mesmo pode ser dito de Sócrates, o primeiro filósofo verdadeiro. Entretanto, ironicaente, Sócrates apenas finge estar apaixonado por Alcibíades ou por outros belos 154 155 jovens. Antes, é ele o objeto do desejo desses jovens, que, no extremo, encaramno como a forma do Bem. Eis a perfeição do paradoxo socrático. Ele encarna o ideal: amá-lo é amar a sabedoria, e, portanto, aprender a filosofar. Como leitor, isso me deixa descontente, pois não acredito em Platão, mas, do ponto de vista estético, rendo-me, inteiramente, a essa noção, pois o génio de Platão logra afirmar-se no eterno confronto com Homero. dfo ifc^ (^ SÃO PAULO Ora, se se prega que Cristo ressuscitou dos mortos, como podem alguns dentre nós dizer que não há ressurreição dos mortos? Se não há ressurreição dos mortos, também Cristo não ressuscitou. E, se Cristo não ressuscitou, vazia é a nossa pregação, vazia também é a vossa fé. Acontece mesmo que somos falsas testemunhas de Deus, pois atestamos contra Deus que ele ressuscitou a Cristo, quando de fato não o ressuscitou, se é que os mortos não ressuscitam. Pois, se os mortos não ressuscitam, também Cristo não ressuscitou. E, se Cristo não ressuscitou, ilusória é a vossa fé; ainda estais nos vossos pecados. Por conseguinte, aqueles que adormeceram em Cristo tão-somente para esta vida, somos os mais dignos de compaixão de todos os homens. Não, porém! Cristo ressuscitou dos mortos, primícias dos que adormeceram. Com efeito, visto que a morte veio por um homem, também por um homem vem a ressurreição dos mortos. Pois, assim como todos morrem em Adão, em Cristo todos receberão a vida. Cada um, porém, em sua ordem: como primícias, Cristo; depois aqueles que pertencem a Cristo, por ocasião de sua vinda. A seguir, haverá o fim, quando ele entregar o reino a Deus Pai, depois de ter destruído todo Principado, toda Autoridade, todo Poder. Pois é preciso que ele reine, até que tenha posto todos os seus inimigos debaixo dos seus pés. O último inimigo a ser destruído será a Morte, pois ele tudo colocou debaixo dos pés dele. Mas, quando ele disser: "Tudo está submetido", evidentemente excluir-se-á aquele que tudo lhe submeteu. E, quando todas as coisas lhe tiverem sido submetidas, então o próprio filho se submeterá àquele que tudo lhe submeteu, para que Deus seja tudo em todos.2 - 1 Coríntios 15: 12-28 1 alvez todos os génios da literatura e da retórica sejam enigmáticos, mas, entre as 100 figuras aqui comentadas, São Paulo me parece o maior enigma. Ele não se dirige aos coríntios como descrentes, mas como "espíritos", homens e mulheres que crêem já aver ressuscitado, sem que tenha sido necessário morrer. Quiçá foram precursores de 1 A Bíblia de Jerusalém. Novo Testamento. Coordenação de Fr. Gilberto da Silva Gorgulho, Ana Flora Anderson e Pe. Ivo Storniolo. São Paulo: Paulinas, 1981, pp. 475-76. 156 157 "hereges" que surgiriam mais tarde, os gnósticos que, referindo-se a Jesus, disseram: "Primeiro, ressuscitou e, depois, morreu." Wayne Meeks, autoridade em Paulo, observa quão benévolo o Apóstolo é com os coríntios (em comparação ao ataque que desfere contra os gálatas). E possível que São Paulo tenha reconhecido nos coríntios certas tendências com as quais se identificava, e, por conseguinte, argumenta com mais verve, pois, de certo modo, debate consigo mesmo. O génio literário de Paulo é inquestionável: "O último inimigo a ser destruído será a Morte." Contudo, Paulo, judeu helenista, entendia a Aliança conforme a denominação da Septuaginta (tradução greco-alexandrina da Bíblia Hebraica): diatheke, o testamento da graça de Deus, a expressão de sua vontade, e não no sentido hebraico, berith, i.e., aliança recíproca. ^Tenho muita dificuldade em aceitar a leitura equivocada que Paulo faz do judaísmo, pois se trata de um cristianismo helénico, em vez do cristianismo judaico de Tiago, o Justo, irmão de Jesus. Ainda assim, é positivo o fato de Wayne Meeks absolver o génio de Paulo do evangelismo norte-americano perpetrado em nome do Apóstolo: Paulo não era pietista luterano nem cristão renascido norte-americano. Paulo não reduziu o Evangelho ao perdão pelo pecado, muito menos à atenuação do sentimento de culpa. O génio de Paulo, conforme diz Meeks, é proteico. No instante em que julgamos tê-lo apreendido, ele procede a uma metamorfose. Paulo não foi "o segundo Fundador do Cristianismo", foi o primeiro, e aprendeu a "ser tudo para todos". dite dte dte SÃO PAULO Poucos seriam os leitores que não teriam dificuldades em aceitar a expressão "o génio de íesus", embora com ela eu queira dizer algo semelhante ao sentido atribuído por Plutarco à expressão "o daimon de Sócrates". Buscas pelo Jesus histórico tendem a se tornar romances, cruzadas académicas, jornadas espirituais em que estudiosos encontram aquilo que desejam encontrar. Existiu um Jesus histórico, mas sobre ele quase nada sabemos. A única fonte que merece alguma confiança é o historiador judeu Josefo, de quem é possível depreender certos fatos: Joshua, filho de José e Miriam, tomou-se discípulo de João Batista, carismático reformador da espiritualidade. Por sua vez, esse Joshua (Jeshua, em hebraico, Jesus, em latim) tornou-se um carismático mestre da sabedoria, seguido por muitos judeus, mas foi crucificado pelos romanos, evidentemente, após ter desafiado ao menos algumas autoridades religiosas judaicas. Novamente, segundo Josefo, o principal legatário de Jesus foi seu irmão, Tiago, o Justo, que liderou a comunidade de Jerusalém que ainda seguia Jesus. Tiago foi apedrejado até a morte, por ordem do grande sacerdote de Jerusalém, poucos anos antes da destruição do Templo, perpetrada pelos romanos, no ano 70 da Era Comum. Sendo o Novo Testamento uma polémica, e não História, tudo o que ali se diz é convincente aos convictos: trata-se de fé, argumento, mito, visão - o que o leitor quiser. Há, também, os aforismos de Jesus, nem todos relatados no Novo Testamento. Não existem bases concretas para a aceitação ou rejeição de tais aforismos. Os critérios de julgamento, a meu ver, restringem-se a gosto literário e discernimento espiritual, ambos reconhecidamente questionáveis. Uma vez que centenas de milhões de pessoas, no mundo inteiro, aceitam a divindade de Jesus, parece-me um tanto escandaloso que tenhamos tão poucos dados confiáveis a seu respeito. Falava aramaico ou grego, ou, talvez, ambos os idiomas? É possível situá-lo, com precisão, no emaranhado de crenças judaicas existentes na época em que ele viveu? Hillel, a quem se atribuem alguns aforismos semelhantes aos de Jesus, era fariseu, e, portanto, provável ancestral do que hoje denominamos judaísmo rabínico. Era Jesus fariseu, malgrado as censuras que o Novo estamento faz aos fariseus? A pergunta talvez não tenha o menor sentido, porque dispomos de tão poucos dados concretos sobre Hillel quanto sobre Jesus. Lembrome de aver-me recusado a escrever uma resenha do livro O Evangelho Segundo o Filho, de orman Mailer, porque se tratava de um auto-retrato do autor, mas todo livro sobre us, apresentado ou não como ficção, é autobiográfico, especialmente no que toca à questão da fé. 158 159 Embora, evidentemente, letrado, Jesus nada escreveu, assim como Sócrates e (provavelmente) Confúcio nada escreveram. Os três dirigiam-se, no mais das vezes, a discípulos, e sabiam que a sua sapiência seria transmitida, oralmente e por escrito. Não temos como avaliar a acuidade dos respectivos meios de transmissão, em nenhum dos três casos. A ironia, que afirma uma coisa e quer dizer outra, é, necessariamente, um meio indireto de comunicação, e tanto Jesus quanto Sócrates falavam como ironistas. O mesmo se aplica a Confúcio, segundo me consta. Mas a ironia de Jesus é mais problemática, pois, desses três mestres da sabedoria, ele foi o único a ser divinizado. Sócrates não fala em nome de um predecessor, ao contrário de Confúcio, que exalta o Duque de Chou. Qual foi, exatamente, a natureza do relacionamento de Jesus e João Batista? Sem dúvida, não deveria tal relação causar maior constrangimento do que costuma ser o caso, aos que insistem na divindade de Jesus? Deus seria batizado por um homem? Os autores do Novo Testamento apressam-se em apresentar João Batista proclamando a sua posição secundária à de Jesus, mas a situação não parece convincente. O aprendizado de Jesus com João Batista chega ao fim com a imersão nas águas do rio Jordão? E por que seria o batismo necessário ao Deus encarnado? Pelo que se supõe, a iniciação de Jesus como seguidor de João era por demais conhecida para ser excluída da história de Cristo, assim como o Redator da Bíblia Hebraica, na Babilónia, foi obrigado a incluir o chocante atentado de Javé contra a vida de Moisés, por ser, igualmente, fato notório. Que doutrina teria João ensinado a Jesus (se é que o fez)? Até que ponto foi o batismo de Jesus uma espécie de conversão (novamente, se foi isso que se passou)? E, em caso afirmativo, a conversão seria de qual doutrina a qual doutrina? Podemos pesquisar os estudos de teólogos e historiadores especializados em religião e encontrar quase nada que auxilie na elucidação dessas questões. Os primeiros cristãos são evasivos, quanto à relação entre João Batista e Jesus. No Evangelho de João, o batismo de Jesus passa despercebido, enquanto os Evangelhos sinóticos são ambíguos; em Mateus, João diz que Jesus é que deve batizá-/o e, em Lucas, Jesus é batizado por um desconhecido, pois João Batista já está preso. Estudiosos, especialmente nos últimos tempos, têm procurado vislumbrar a orientação de Jesus vis-à-vis as seitas judaicas do século I, mas, novamente, as especulações não convencem. Sempre falta algo. Talvez seja necessário partir de um ponto anterior. Teria sido João Batista seguidor de uma seita de um homem só? Teria esse credo se tornado uma seita de dois, com o advento de Jesus? Certamente que não, pois João era bastante subversivo ao ponto de garantir a sua própria execução. Mas João, é óbvio, teve vários discípulos, inclusive Jesus (que me perdoe o leitor) e o enigmático Simão, o Mago, considerado pela tradição cristã (provavelmente, sem fundamento) o fundador da "heresia" gnóstica. Tudo depende da autoridade académica em que se decide confiar. O católico John p Meier é um estudioso ilustre e ponderado da vida de Jesus; Meier intitula a sua obra A Marginal Jew, e conclui que os seguidores de Batista e de Jesus eram, igualmente, marginalizados. Uma visão bastante distinta é proposta por Robert Eisenman, cujo estudo, James the Brother of Jesus, extremamente polémico, reúne as figuras de João Batista, Jesus e Tiago, o Justo, posicionando-as no centro heróico da resistência judaica ao opressor romano. Diante de asserções conflitantes apresentadas pelos diversos pes-auisadores, o leitor consciente deve voltar a Josefo, o único testemunho histórico ainda válido (embora os textos de Josefo tenham sido retocados por exegetas cristãos), e, de modo crucial, aos aforismos de Jesus (se é que são, de fato, dele). A essa altura, cabe registrar, embora com certo acanhamento, que Deus e os deuses são, necessariamente, personagens literários. Fiéis, sejam académicos ou não, de modo geral, reagem violentamente a essa observação, por conseguinte, pretendo ser bastante claro. O Jesus do Novo Testamento é um personagem literário, tanto quanto o Javé da Bíblia Hebraica e o Alá do Alcorão. Porém, vale lembrar, Sócrates e Confúcio não eram deuses, mas são - na forma em que os conhecemos personagens literários, conquanto não haja motivo para duvidar da existência histórica deles. O Jesus histórico é uma espécie de fantasma, pois Josefo, o historiador judeu, embora dotado de memória prodigiosa, era um quisling, vendido aos romanos, propenso a mentir e distorcer os fatos, abertamente, quase sempre em benefício próprio. Contemplar Jesus através dos aforismos que lhe são atribuídos assemelha-se bastante a contemplar Confúcio através da obra Analetas, ou Sócrates através de Platão e Xenofonte. Aquilo que ouvimos, ou tentamos ouvir, foi mediado por discípulos. O autor do Evangelho de Marcos, escritor contundente, em termos pragmáticos, criou a figura que a maioria das pessoas, crentes e descrentes, tem de Jesus. Do mesmo modo, o mais antigo autor bíblico, o Javista, criou o personagem literário Javé, adorado como Deus por judeus, cristãos e muçulmanos. Volto a dizer: falo de um ponto de vista estritamente pragmático, embora seja desconcertante ouvir que algo que constitui objeto de fé seja apenas um personagem literário. Proponho a ideia de "génio" como a saída para tal impasse. Podemos falar dos génios de Hamlet e do Satã de Milton separadamente dos génios de Shakespeare e John Milton. Falar do génio de Jesus é falar dos aforismos a ele atribuídos, alguns dos quais manifestam, autenticamente, a autoridade, a memora-bilidade e a individualidade que caracterizam a marca do génio. Passo, então, a abordá-los, em busca da voz do génio, deixando de lado o debate sobre a autenticidade do Jesus histórico. 160 161 A fim de evitar igrejas e controvérsias, cito os aforismos de Jesus a partir da obra The Logia ofjeshua, traduzida por Guy Davenport e Benjamin Urrutia (Counterpoint: Washington, D.C., 1996), um pequeno volume, abençoadamente livre de tendências teológicas. O reino do Pai não será apontado por quem quer que seja. Ninguém poderá dizer: Olhai, lá está!, ou Aqui, bem aqui! Pois o reino está dentro de vós, esperando para ser encontrado por vós. O reino de Deus é, portanto, território desconhecido do eu interior, e não pode ser localizado no tempo e no espaço. Mas o que dizer com relação àqueles cujo eu interior é um abismo? Aquele que tem receberá mais, aquele que não tem tudo perderá. Este mundo é uma ponte. Não construais sobre ela a vossa casa. Sede viajantes que por ela trafegam. Se formos transeuntes (como Walt Whitman), encontraremos o reino dentro de nós. Encontrar Jesus, ele próprio afirma, não é muito difícil: Estou sempre convosco, até o final dos tempos. Levantai uma pedra, ali me encontrareis; rachai a lenha, ali estarei. John P. Meier, padre católico erudito, não admite qualquer relação entre o Jesus histórico e esse último aforismo, pois o mesmo pertence ao semignóstico Evangelho de Tomás, que data do século II e.c. Porém, conforme Meier bem o sabe, o aforismo pode ser anterior a essa data, e, em todo caso, ninguém ainda identificou o Jesus histórico. O que os estudiosos denominam gnosticismo cristão muitas vezes me parece uma versão tardia do Jesus aforístico. No Evangelho de Tomás, Jesus exalta apenas duas figuras: João Batista e Tiago, o Justo. Sabemos mais sobre a figura histórica de Tiago, o Justo, "irmão de Jesus", do que sobre Jesus; a respeito de João Batista, sabemos quase tão pouco quanto sobre Jesus. Todavia, é perfeitamente possível fazer deduções fundamentadas sobre João Batista, e pergunto a mim mesmo que doutrina (se é que havia uma doutrina) Jesus tomava em consideração, ao iniciar-se como discípulo do primo. João Batista teve outros discípulos, inclusive Simão, o Mago, vilão de tantos textos do cristianismo, e fonte primeira da lenda de Fausto. Supõe-se que Simão e outros gnósticos antigos muito tenham aprendido de João Batista, que batizava judeus e samaritanos, indiscriminadamente. ja ná ^guns samaritanos em Israel/Palestina, e ainda alguns gnósticos no Iraque, ue tanto quanto os samaritanos, aceitam João Batista como profeta. ^ Profeta de quem? De Jesus, responde a Igreja, porém é óbvio que o papel de João Batista por que não dizer, seu génio? - era mais importante. O Alcorão funde João e T us provavelmente porque Maomé encontrou nos ebionitas, ou seguidores tardios de Tiago, o Justo, os predecessores de sua própria revelação. Poderíamos citar João Batista mo o primeiro ebionita, antes de Jesus, mas não dispomos de informações precisas sobre as origens dos ebionitas (a palavra quer dizer "homens pobres"). Temos, no entanto, o testemunho de Josefo, de que João Batista, por volta do ano 20 a.e.c, era o defensor da probidade, pregador carismático cujo elevado número de seguidores assustou Herodes Antipas ao ponto de este condená-lo à morte. Josefo manifesta certa ansiedade, ao escrever sobre João, e omite o respectivo contexto histórico, na Transjordânia. João não se estabelecera na Terra Santa, mas no deserto, um novo Elias, talvez um novo Moisés. Desconfio que João não tenha profetizado a vinda do seguidor, Jesus, mas de Javé, que haveria de atravessar o Jordão a fim de expulsar os romanos, mas somente se os judeus voltassem a optar pela probidade, e se purificassem do pecado. Pergunto-me, também, se não haveria um elemento mais esotérico na visão de João Batista. Heresiólogos dos primeiros séculos do cristianismo insistiam que Simão, o Mago, declarava-se divino, mas é possível que a noção seja tão falsa quanto a cunhagem do termo "simonia", a partir do discípulo samaritano mais destacado entre os seguidores de João Batista. Os dicionários ainda hoje definem simonia como a compra ou venda de poderes espirituais, de maneira que a degradação de Simão, o Gnóstico, no Novo Testamento (Atos 8: 9-24) impregnou toda a nossa cultura, assim como a difamação anti-semita do mítico Judas Iscariotes (Judah), prenome que, simplesmente, significa "o judeu", enquanto Iscariotes é um cognome de significado controverso, embora, a meu ver, esteja relacionado aos Sicarii, de que fala Josefo, isto é, os zelotes ou judeus que, bravamente, faziam oposição a Roma, e cujo derradeiro bastião foi Masada. Historiadores do gnosticismo lamentam a dificuldade de investigar a figura histórica de Simão, o Mago, mas tal fato não me comove, pois tudo o que sabemos do Jesus histórico (conforme já disse) é que esteve ligado a João Batista e a Tiago, o Justo, e que foi crucificado pelos romanos. Paulo, o primeiro dos autores do Novo Testamento, não tinha qualquer interesse no Jesus histórico, provavelmente porque quase todos os que haviam conhecido Jesus eram oponentes de Paulo. A figura histórica de Simão, o Mago, apresenta uma relação com o lendário Fausto bastante similar à relação do Jesus histórico com o Jesus Cristo de Paulo (e do cristianismo). A tradição cristã relata que Simão chegou a Roma, assumiu a alcunha de Faustus ("o favorecido") e ali faleceu, em uma impro162 163 vável tentativa de levitação. O simonianismo perdurou por cerca de duas gerações e, então, fundiu-se ao gnosticismo heterodoxo, que teve o seu apogeu no século II. Seja lá em que circunstâncias tenha ocorrido a morte de Simão, a associação com João Batista sugere que, assim como outros discípulos samaritanos, Simão absorvera conhecimento esotérico de João. Seria a visão de Jesus, discípulo de João, mais próxima de Paulo, que jamais o conheceu, ou de Tiago, o Justo, que, ao lado dos outros discípulos, fundou a Igreja de Jerusalém? A congregação fugiu para Pela, na Transjordânia, após o assassinato de Tiago e antes da destruição do Templo, pelos romanos, em 70 e.c. Os ebionitas, uma ou duas gerações posteriores, descendiam do tronco original, de Jesus e Tiago, e sobreviveram até serem destruídos pela ortodoxia paulina. Considerando jque Simão, o Mago, não nos legou aforismos ou escritos, e que o nosso conhecimento a seu respeito foi passado por seus inimigos cristãos, só dispomos do mito, para servir de base a qualquer avaliação. Mas a lenda de Fausto é tão extraordinária que a sua primeira encarnação em nada nos parece obscura. Simão, o Mago, tremula, sinistramente, através dos séculos, como figura valente, ousada, propensa a grandiosos atos simbólicos e dramáticos. João Batista, segundo uma tradição ainda vigente entre os xiitas do Irã, pregava a doutrina do "Sempre de Pé", um Primeiro Adão que jamais tombava. João, um novo Elias, proclamava a volta do verdadeiro Adão. O vínculo de Jesus com tal anúncio, a despeito do que Jesus pensasse, foi alterado, de modo definitivo, por Paulo. Contudo, Simão identificava-se, diretamente, com a grande Força do Primeiro Adão, e, pelo que consta, fez muitos seguidores entre os samaritanos. Se Simão era mago, Jesus também o era, pois, na qualidade de curandeiros, ambos estavam sujeitos à acusação de feitiçaria. Assim como João Batista, Jesus era, evidentemente, celibatário, mas o exuberante Simão, decerto, não o era. Amasiou-se com uma mulher, uma tal Helena, prostituta de Tiro, e anunciou-a como a reencarnação simultânea de Helena de Tróia e da Primeira Ideia (Ennoià) de Deus, que sofrera uma queda e a quem ele, Simão, fora chamado a reerguer. Essa invenção faustina é o aspecto imortal da história de Simão e, como ato de criatividade, prossegue a incomodar a imaginação ocidental. Jesus, em seus aforismos e atos simbólicos, foi o maior dos ironistas. E possível que Simão, o Mago, tivesse intenções irónicas, ao amancebar-se com Helena de Tiro, mas, por não dispormos de registros do discurso de Simão, nada podemos saber a esse respeito. Mas Jesus, embora celibatário, teve a sua Helena, em Maria Madalena, outra prostituta arrependida. O mito de Jesus é o mais marcante registrado em todo o Ocidente, superando os de Homero, do Alcorão e da Bíblia Hebraica. E, apesar da longa História do cristianismo, em todas as suas vertentes, o mito fundamenta-se em uma voz: Acendi um fogo na terra e o guardarei até que resplandeça. T us não poderia prever o advento de Paulo, cuja carreira, iniciada como o judeu-f • u Saulo de Tarso, convertido após uma visão, prosseguiu por meio da rejeição dos conhecimentos do círculo dos próprios amigos e familiares de Jesus, chegando à inven-- de Tesus Cristo e do cristianismo. Conquanto Jesus havia acendido um fogo na terra, foi Paulo que o fez resplandecer. "O génio de Paulo" é expressão gasta pelo mas é exata; sem Paulo, o que hoje chamamos "cristianismo" não teria triunfado primeiro, no Império Romano, em seguida, nos reinos subsequentes. É célebre a proclamação de Paulo, em 1 Coríntios 9: 19-23: "Tornei-me tudo para todos." Para os opositores judeus-cristãos, adeptos de Tiago, o Justo, Paulo era o Inimigo, a encarnação de Satã. Na perspectiva da seita de Jesus em Jerusalém, o que mais Saulo de Tarso/Paulo, o Apóstolo, poderia parecer? Como fariseu, ele havia comandado violência, no Templo, contra o próprio Tiago e, após converter-se a Cristo (e não ao Jesus histórico), continuou a se desentender com a família e os amigos de Jesus. Poucos estudos sobre Paulo discutem o componente de violência em sua extraordinária personalidade. Até mesmo o mais ponderado dos estudiosos, Wayne Meeks, que, com perspicácia, define Paulo como "o cristão Proteu", evita tratar a questão da ferocidade da natureza do Apóstolo. Friedrich Nietzsche, o mais arguto dos filósofos morais, escrevendo em 1880, expõe o instinto perseguidor de Paulo: O homem era acometido de uma ideia fixa, ou melhor, de uma questão fixa, uma questão sempre presente, contumaz: qual o significado da Lei Judaica? Mais especificamente, do cumprimento dessa Lei? Na juventude, empenhara-se em cumpri-la, sedento da mais alta distinção imaginável por um judeu - esse povo que, mais do que qualquer outro, elevou o sentido de grandeza moral, e que foi o único a unir o conceito de um Deus santo à ideia do pecado como ofensa contra a santidade. São Paulo tornouse, a um só tempo, defensor fanático e guarda de honra desse Deus e da Sua Lei. Sempre combativo, e sempre à espreita de transgressores dessa Lei e dos que dela ousassem duvidar, Paulo foi implacável e cruel contra todos os malfeitores, os quais punia com o maior rigor possível. No entanto, Paulo tinha consciência do fato de que um homem como ele -violento, sensual, melancólico e perverso em seu ódio - era incapaz de cumprir a lei; ademais, e o que lhe causava mais estranheza: ele percebia que o seu infindável anseio de poder constituía uma pressão contínua no sentido do descumprimento dessa mesma lei, e que lhe era impossível deixar de ceder a tal impulso. Terá mesmo sido "a carne" que o fez transgressor repetidas vezes? Ou, conforme mais 164 165 tarde ele mesmo pensou, seria a Lei, impossível de ser cumprida, o que seduzia os homens à transgressão, com um fascínio irresistível? Mas, à época, Paulo não vislumbrara qualquer meio de escapar. Conforme, em certos trechos de seus escritos, ele mesmo sugere, trazia a consciência carregada - ódio, assassinato, feitiçaria, idolatria, devassidão, embriaguez, orgias; por mais que tentasse aliviar a própria consciência e, mais ainda, a ânsia de poder, através da adoração fanática e defesa à Lei, às vezes ocorria-lhe um pensamento: "É tudo em vão! A angústia do cumprimento da Lei não pode ser superada". Lutero deve ter tido sentimentos semelhantes, quando, no claustro, procurava ser o homem ideal por ele próprio imaginado; e, assim como Lutero, com um ódio ainda mais mortal por ser inconfessável, um dia passou a odiar o ideal eclesiástico, o Papa, os santos e todo o clero, um sentimento análogo tomou conta de São Paulo. A Lei foi a Cruz na qual se sentiu crucificado. Como odiava tal Lei! Que ressentimento nutria contra ela! Como começou a buscar, em toda parte, um meio de aniquilá-la, a fim de não mais precisar cumpri-la! Finalmente, uma ideia libertadora, acompanhada de uma visão - o que seria de se esperar, em se tratando de um epiléptico - veio-lhe à mente: a ele, severo defensor da Lei que, no fundo do coração, estava farto da lei - apareceu, no caminho solitário, o Cristo, no fulgor do Seu semblante, e Paulo ouviu as palavras: "Por que me perseguis?" - "Aurora" A conexão entre Paulo e Lutero é procedente, ainda que o perverso antisemitismo de Lutero o levasse mais longe, a proclamar "morte à Lei!". Contudo, entre Paulo e Lutero havia, decerto, uma afinidade de temperamento, bem como de teologia, e Nietzsche não pode ser superado, em sua definição de Paulo: "violento, sensual, melancólico e perverso em seu ódio". Oito anos mais tarde, em O Anticristo, Nietzsche esboçaria o seu entendimento do Apóstolo: Paulo é a encarnação de um tipo oposto ao do Salvador; é o génio do ódio, da perspectiva do ódio e da lógica implacável do ódio. E o que esse (dis)angelista não sacrificou em nome do ódio? Acima de tudo, o próprio Salvador; pregou-o à sua cruz. "Génio do ódio" foi o papel atribuído a Paulo por George Bernard Shaw, cujo ataque a Paulo, no entanto, enfatiza a genialidade do Apóstolo: ^ A mo;c rristão do que Jesus foi batista; e discípulo de Jesus apenas a medida Nao é mais crisiau uMJ lfT ¦ c ¦ J 1 ue Jesus foi discípulo de João. Nada que ele fez, Jesus teria feito, e nada que ele diz, Jesus teria dito. Até mesmo os que pensam que Nietzsche e Shaw vão longe demais têm de admitir Paulo não se interessa, absolutamente, por Jesus como figura histórica, apenas por ? us como Cristo. O Apóstolo parece supor que, por assim dizer, ele próprio é Jesus ptrTos gentios, sendo, por conseguinte, uma figura dotada de autoridade absoluta. Donald Harman Akenson sugere que Paulo presume que os leitores de suas epístolas sabem o suficiente sobre a vida de Jesus, o homem; portanto, detalhes sobre sua vida e morte são desnecessários. Isso nos deixa um tanto confusos, porque as epístolas autênticas de Paulo são as passagens mais antigas do Novo Testamento, compostas, provavelmente, entre os anos 49 e 64 e.c. De modo geral, a composição dos Evangelhos sinóti-cos é datada entre 70 e 85 e.c, enquanto o Evangelho de João pode ter sido escrito mais tarde, em 95 e.c. Isso quer dizer que Paulo foi executado pelos romanos antes da destruição do Templo, em 70 e.c, catástrofe que por ele jamais seria ignorada. Lutero, que idealizava Paulo, nas conferências sobre a Epístola de Paulo aos Gálatas, critica os judeus-cristãos, por indagarem: "Seja como for, quem é Paulo? Afinal não foi ele o último a ser convertido ao Cristo? Nós somos os pupilos dos Apóstolos, e os conhecíamos intimamente. Vimos Cristo realizar milagres e ouvimo-lo pregar. Paulo é um retardatário, nosso inferior." A Epístola aos Gálatas, a meu ver, demonstra extrema irritação, e penso que a sugestão de Lutero quanto ao motivo da fúria de Paulo tem fundamento: o Apóstolo não admitia a ideia de ser um retardatário. No entanto, no que diz respeito aos cristãos de Jerusalém, ele foi, sim, um retardatário; diferentemente desses cristãos, Paulo surgiu bem depois dos eventos da vida e da morte de Jesus. Sõren Kierkegaard, filósofo religioso dinamarquês, que viveu no século XIX, e cujo génio discuto mais adiante, escreveu dois ensaios brilhantes que constam da obra Fragmentos Filosóficos (1844): "Deus como Mestre e Salvador" e "O Caso do Discípulo Contemporâneo". Cristo, ao contrário de Sócrates, é dotado de autocompreensão, e prescinde do auxílio de discípulos, presentes apenas para receberem amor incomensurável. Um dos discípulos contemporâneos de Deus não foi contemporâneo do esplendor, jamais o tendo visto ou ouvido". O ironis-ta Kierkegaard é consoante com o polemista Paulo: nenhum dos dois permite ao discípulo qualquer contato com Deus. Os judeuscristãos de Jerusalém, inclusive Tiago, o 166 167 Justo, não ouviram nem enxergaram a grande luz que surgiu diante de Paulo no caminho de Damasco. Onde, precisamente, situar o génio de Paulo, deixando-se de lado a ideia de honrá-lo ou criticá-lo? Wayne Meeks salienta que "o cristianismo helénico" precedeu Paulo, pois Paulo foi um convertido. Todavia, mesmo que não tenha inventado o cristianismo não-judaico, Paulo apropriou-se de suas imagens e doutrinas para sempre. Na prática, o argumento de Paulo pode ser assim resumido: "Jesus, não; Cristo, sim." O génio de Paulo estava na sua marcante originalidade, ao ler de maneira distorcida a Aliança dos judeus com Javé, que, na sua leitura, deixa de ser um acordo mútuo e se torna a expressão unilateral da vontade de Deus. E fácil, para muitos norte-americanos, confundir Paulo com um adepto do despertar em Cristo, cuja ênfase recairia sobre o renascer através do perdão do pecado. Essa interpretação equivocada reduz Paulo, que foi mais do que um apóstolo da graça. O ex-fari-seu foi um grande inventor, que transformou o cristianismo helénico em nova religião mundial. Quem mais se aproxima de Paulo é Maomé, fundador de outra religião universal, e que, evidentemente, jamais ouviu falar de Paulo, que não é mencionado no Alcorão. O génio do universalismo talvez seja o talento mais raro nas religiões ocidentais: Paulo e Maomé, tão diferentes entre si, são os maiores exemplos que conhecemos dessa modalidade de génio. Contudo, entre o cristianismo de Jesus e o de Paulo interveio uma geração de silêncio. A fim de preencher esse vazio, novos manuscritos ainda não foram descobertos. Talvez jamais o sejam. A Epístola de Tiago, que Lutero pretendia expurgar do Novo Testamento, não apenas insiste que "a fé, se não tiver obras, será morta, em seu isolamento",3 mas renova as profecias de Jesus contra os ricos: Lembrai-vos de que o salário, do qual privastes os trabalhadores que ceifaram os vossos campos, clama.4 Não o chamamos de "Paulo, o Justo", assim como não associamos seus discípulos, Agostinho e Lutero, à justiça social. Podemos ler e reler as epístolas autênticas de Paulo, sem delas depreender que Jesus, assim como Amos e outros profetas, bem como William Blake, mais tarde, falava em defesa dos pobres, dos enfermos e dos marginalizados. 3Ibid. P. 614. 4 IbicLpp. 617-18. ákú cS& rí^ MAOMÉ Lede em nome do vosso Senhor, que criou, 2. Criou o homem de um embrião: 3. Lede, pois o vosso Senhor é mui benéfico, 4. E ensinou usando uma pena de escrever, 5. Ensinou ao homem o que este não sabia. 6. Contudo, ainda assim, o homem é rebelde, 7. Pois se considera auto-suficiente. 8. Decerto, retornareis ao vosso Senhor. Sura 98, O Embrião Ó vós, que estais protegidos em vosso manto (de reforma), 2. Levantai-vos e fazei as advertências, 3. Glorificai o vosso Senhor, 4. Purificai o vosso interior, 5. E livrai-vos do medo. - Sura 74, Os Protegidos - Alcorão5 O historiador F. E. Peters, excepcional estudioso do Islã, observa que o Alcorão é um texto desprovido de contexto. Portanto, inspira as interpretações mais diversas, mesmo entre os que são fiéis ao Profeta. O islamismo não sabe ao certo qual das duas passagens acima seria a primeira revelação a Maomé. Ambas são impressionantes, constituindo - como tudo o mais no Alcorão - pronunciamentos diretos de Deus. Os muçulmanos achariam um tanto estranho a menção ao génio do Profeta, mas o gemo de natureza religiosa ou espiritual não pode ser descartado. Profetas Isaías, Maomé ou Joseph Smith - são pessoas dotadas de muitos talentos, mestres da linguagem. De acordo com uma tradição muçulmana, Maomé não sabia ler ou escrever, e recitava o Alcorão (a palavra significa "recitação") seguindo a voz de Deus, possivelmente através da mediação do Anjo Gabriel. Sendo, antes da revelação profética, um merca-or bem-sucedido, Maomé, supõe-se, não seria o que chamamos "analfabeto", mas a A partir da tradução de Ahmed Ali, para a língua inglesa. [N. do T.] 168 169 tradição muçulmana parece subentender que o Profeta não havia lido a Bíblia Hebraica e o Novo Testamento grego. Embora Maomé, necessariamente, tenha uma dívida literária com textos judaicos e cristãos já desaparecidos, a arrasadora originalidade espiritual e criativa do Profeta não pode ser questionada. Nenhuma outra figura da História religiosa da humanidade legou-nos um texto em que a única voz presente é a de Deus. A audácia, característica precípua de Maomé, empresta um efeito literário ao Alcorão absolutamente singular. É impossível relaxar durante uma leitura do Alcorão, ou ao recitá-lo, seja a sós ou com outras pessoas. MAOMÉ (570?-632) Espiritualmente, o mundo ocidental surge a partir de três textos sagrados: a Bíblia Hebraica (Antigo Testamento, na perspectiva cristã), o Novo Testamento Grego e o Al-Qur'an Árabe (forma correta de Alcorão). A maioria de nós já leu, ou até mesmo já estudou, os dois primeiros, geralmente em tradução, porém, o que é um tanto chocante poucos tentaram ler o Alcorão. Alguns estudiosos, que deveriam ser mais avisados, ainda se referem ao Alcorão como uma versão bárbara das Escrituras judaicas e cristãs. Em uma boa tradução, como a de Ahmed Ali, para a língua inglesa (AlQur'an, Princeton University Press, 1988), a qual passarei a citar, o Alcorão é um livro bastante independente, comparável às Escrituras, obras às quais o Alcorão sucede e, de maneira notável, reinterpreta. Maomé, o Mensageiro de Deus, viveu no século VII da Era Comum, tendo morrido em 632, aos 62 anos. A partir da idade de 40 anos, ouviu a voz de Deus, mediada pelo Anjo Gabriel. Os pronunciamentos, memorizados pelos seguidores e, mais tarde, registrados por escrito, tornaram-se o Alcorão ("recitação"); segundo consta, Maomé não sabia ler nem escrever, e merece ser considerado um dos maiores poetas prosadores do mundo, inserido em uma tradição estritamente oral. O islã ("submissão" a Deus) depende muito mais do Alcorão do que o cristianismo depende do Novo Testamento, ou, a rigor, o judaísmo, da Bíblia Hebraica. O Alcorão, ao contrário das Escrituras que o geraram, parece não ter um contexto. Estudiosos do judaísmo e do cristianismo conseguem historicizar a maioria dos textos sagrados (embora não todos), mas o Alcorão (a não ser pela dimensão "judaicocristã") é, em si, a origem absoluta. Por mais estranho que pareça o arcabouço das demais Escrituras, elas parecem modelos de coerência, se contrastadas ao Alcorão. O livro do islamismo tem 114 capítulos ou seções (chamadas suras) desprovidas de continuidade, seja entre si, seja, de modo geral, internamente. A extensão das suras varia de modo marcante, e a ordem em que estão dispostas não apresenta cronologia; com efeito, o único princípio de organização aparente é que, à exceção da primeira sura, as demais decrescem, da mais longa à mais breve. Nenhum outro livro parece organizado de modo tão estranho e arbitrário quanto esse, o que pode ser apropriado, pois a única voz presente no Alcorão é a de Deus, e quem se atreveria a estruturarlhe os pronunciamentos? Nitidamente, o Alcorão é o registro do discurso profético de Maomé, desde a idade e 40 anos, quando recebeu o chamado, aos 62, quando morreu, subitamente. Cerca e 20 anos após a morte do Profeta, Uthman, o terceiro na linha de califas de Maomé, enou que o Alcorão fosse compilado a partir de todo o material disponível, oral e 170 171 escrito. Não há muitos motivos para se questionar a autenticidade do texto, ou a autoria do próprio Maomé (quanto à maior parte dos escritos). O equivalente norte-ameri-cano mais próximo seria a obra Doctrines and Covenants, do profeta mórmon Joseph Smith, cuja revelação foi para o judaísmo e o cristianismo um tanto similar ao que a visão de Maomé representou para as fontes judaicas e cristãs. Smith, embora fosse um génio religioso, não possuía, em absoluto, a força retórica de Maomé, cuja expressividade mais do que compensa a estranha falta de estrutura do Alcorão. Chego a pensar, às vezes, que essa organização estranha (ou ausência de organização) engrandece a eloquência de Maomé; a erradicação de contexto, narrativa e unidade formal obrigam o leitor a se concentrar na autoridade da voz, imediata, irresistível, que, embora enunciada pela boca do Profeta, mantém-se imponente, persuasiva, fazendo lembrar (e mesmo indo além) o discurso de Deus na Bíblia. John Wansbrough, no livro Qur'anic Studies: Sources and Metbods ofScriptural Interpretation (Oxford, 1977), tece um comentário importante: os ouvintes diretos de Maomé não devem ter experimentado dificuldade em compreender as diversas alusões a material bíblico. Evidentemente, os que escutavam o Profeta, em Meca e Medina, mesmo que não fossem judeus (ou sobreviventes dos judeus-cristãos contrários a Paulo?), tinham boa noção dos relatos bíblicos, não raro, em versões judaicas consolidadas tardiamente, e que não sobreviveram ao tempo. Os árabes aos quais Maomé profetizava viviam lado a lado com diversas tribos judaicas (ou árabes judaizadas), e tinham também contato com cristãos, inclusive cristãos monásticos. Decerto, hoje em dia, a impressão inicial de que judeus e cristãos têm ao ler o Alcorão é de perplexidade: os conceitos e os relatos são, ao mesmo tempo, inteiramente familiares e estranhos. O islã ("submissão" a Alá, o Elohim bíblico) até parece ser a religião de Abraão, quanto à contumácia, e a crença de Jesus, quanto à convicção, mas "Abraão" aqui significa a antiga religião judaica; segundo Maomé, evidentemente, tal religião seria o cristianismo judaico ao qual se opôs São Paulo, i.e., a fé que se refugiou na outra margem do Jordão e na Arábia, após a destruição perpetrada por Roma, em 70 e.c, a fé dos judeus de Jerusalém que seguiram Jesus, liderados por seu irmão Tiago, o Justo. É um homem, o Jesus de Maomé, não Deus, e não morre na cruz; outra pessoa morre em seu lugar, aliás, conforme certos relatos gnósticos, que talvez remontem à origem judaico-cristã. Muitos de nós estamos habituados a ler "a Bíblia como literatura", o que é inaceitável a judeus religiosos e cristãos devotos. Quero aqui propor o "Alcorão como literatura", o que é ainda mais inaceitável a muçulmanos fiéis. No entanto, os próprios muçulmanos falam do "glorioso Alcorão", ao invés de "o santo Alcorão", talvez porque o livro 'o seja visto como uma criação, sendo, literalmente, a Palavra de Deus. Por mais elo-n3° te que seja a Bíblia Hebraica (exceto nos casos de Levítico e Números) e por mais qU ," n,,p seia o Evanselho de Marcos, nenhuma dessas duas Escrituras depende da pungente que av-|" t> ,,,". , • j A 1 , utoridade da voz de Deus, conforme depende o Alcorão. A prosa poética do Alcorão, e I o não pode ser reproduzida com perfeição em outro idioma, mas várias traduções conseguem preservar uma força literária autêntica. O leitor deve persistir, sem se deter diante da repetição e da obscuridade, a fim de escutar a voz que converteu e amparou centenas de milhões de pessoas, que se voltaram para o islamismo, ou que nele se mantiveram, ao longo dos últimos 13 séculos. O Alcorão deve ser, para nós, uma obra central, pois o islã há de exercer crescente influência sobre nossas vidas, seja nos Estados Unidos ou no resto do mundo. Quanto a mim, o Alcorão exerce fascínio especial, pois trata-se do maior exemplo que conheço de algo que, nos últimos 25 anos, venho chamando "a angústia da influência". Embora Maomé seja um profeta de grande originalidade, o Alcorão manifesta um embate tremendo (e, nitidamente, triunfante) com a Tora e com as inserções rabínicas aos Cinco Livros de Moisés. A expressão "O Povo do Livro", ao longo de todo o Alcorão, refere-se tanto aos judeus quanto aos cristãos, mas, para Maomé, parece ter havido um só Evangelho, que não pode, em absoluto, ser identificado com qualquer dos Evangelhos que conhecemos. Jesus, para Maomé, é mais um profeta autêntico, em uma série que inicia em Adão e termina no próprio Maomé; todavia, Jesus é também mais do que profeta, embora menos do que o Filho de Deus. O Alcorão aceita o nascimento virginal e considera Jesus o verdadeiro Messias judaico, visto, no entanto, como uma reiteração do credo de Abraão. O golpe mais ousado do Alcorão, no embate com a Tora, é insistir que Abraão não era judeu ou cristão, mas o exemplo primeiro do islã, da submissão a "Deus", Alá. Com essa interpretação, Maomé integra a história sagrada do povo judaico e confere a Ismael, o filho árabe de Abraão, uma autoridade que se equipara à de Isaac e Jacó, ambos chamados de filhos de Abraão no Alcorão. Na qualidade de profeta reformista, a missão de Maomé, a um só tempo, é derrotar o paganismo da sua cidade natal, Meca, e combater o retrocesso por ele identificado, com relação à fé observada por Abraão e Ismael, por parte do judaísmo rabínico da Arábia e do cristianismo que seguiu São Paulo, em vez de Tiago, o Justo, de Jerusalém. Essa luta para resgatar Abraão é o cerne, a força majestática do glorioso livro, que reconhece a autoridade espiritual de Abraão e Maomé. Mais até do que a Bíblia Hebraica e o Novo Testamento Grego, o Alcorão Árabe destaca a autoridade como seu princípio norteador. Algumas passagens da Bíblia e vários trechos do Novo Testamento são polémicos, mas todo o Alcorão é uma polemica feroz: contra os pagãos de Meca, os judeus de Medina e cristãos que, porventura, vivessem na Arábia (não seriam muitos) e que não fossem ebio172 173 nitas ou judeus-cristãos. O tom combativo do Alcorão não lhe compromete o vigor da prosa poética, mas, sem dúvida, contribui para explicar por que tantos leitores não-muçul-manos, em uma primeira impressão, julgam a espiritualidade do livro inferior à das Escrituras, espiritualidade essa que o Alcorão pretende rivalizar e superar. A recitação de Maomé é sempre aguerrida, fazendo lembrar, nesse aspecto retórico, o tom dos Manuscritos do Mar Morto, em que os fiéis parecem confrontar o mundo inteiro. É pertinente conjeturar que o Profeta do Islã jamais tenha conseguido superar o impacto e o furor causados pelo fato de os judeus da Arábia terem se recusado a aceitá-lo como o apóstolo prometido por Deus, precisamente, nos escritos e na tradição oral do próprio povo judaico. Por mais que os judeus fiquem constrangidos ao lerem o Novo Testamento - de modo especial, o Evangelho de João -, com frequência, sentem a mesma ansiedade diante dos relatos do Alcorão que falam da hipocrisia e traição praticadas pelo povo judaico, no contexto da missão de Maomé. A contrariedade do Profeta é bastante compreensível, pois a visão do Alcorão, no que concerne à submissão a Deus, implica, em termos teológicos, heresia, mais no que toca à perspectiva do cristianismo paulino do que da religião ortodoxa judaica. O Alcorão pouco tem em comum com o Talmude, mas, enquanto interpretação dos patriarcas e profetas hebraicos, o livro me parece bastante convincente. Jesus, sendo o Verbo encarnado, substituiu a Tora pelo cristianismo paulino; Maomé anula tal substituição, não por voltar à Tora, mas por integrar o Livro ao seu próprio livro. O Alcorão não é nem substituição nem comentário da Bíblia; antes, é uma recitação religiosa que jamais deixa de se referir aos relatos sobre os profetas -Adão, Noé, Moisés, Jesus - e sobre alguns dos patriarcas, reis e altas personalidades do mundo judaico, vistas como se pertencessem, igualmente, aos árabes: Abraão, José, Davi e Salomão. Embora o contexto judaico esteja sempre presente, nada no Alcorão indica ao leitor não-muçulmano o Livro anterior. Mas, para Maomé, a Bíblia surge do passado, trazendo cores, sons e significados da própria revelação do Profeta, da leitura criativa (embora distorcida) que ele faz da revelação a Adão e Noé, a Moisés e Jesus. Parte dessa transferência configura um movimento amplo, da narrativa à lírica. Tudo se torna canto, a poesia em prosa criada por Deus, que se vale da mensagem anterior apenas para embelezar e refinar sua rapsódia final. "O Povo do Alcorão", contingente imenso, comparado aos sobreviventes do "Povo do Livro", tem, no que concerne às suas Escrituras, uma relação bastante semelhante àquela que têm os judeus, com respeito aos seus escritos sagrados. Um mar de comentários cerca ambos os textos, tratados como obras de Deus e, portanto, como seres vivos. A prece e a resposta divina à prece trafegam, livremente, de um texto ao outro. Contudo, existe uma diferença crucial entre a Bíblia e o Alcorão: o próprio Maomé é consiprincipal intérprete do livro que Deus, através de Gabriel, ditou ao Profeta. Maomé e seus companheiros detêm uma autoridade ímpar, na atribuição de significados ao Alcorão. Há analogias judaicas a essa situação, mas nem mesmo Moisés ocupa no judaísmo a posição isolada e crucial que cabe a Maomé na religião islâmica. Por conseguinte, causa certa perplexidade ao leitor não-muçulmano a relativamente reduzida percepção da personalidade de Maomé ensejada pelo Alcorão, em contraste à presença esmagadora da natureza e determinação de Deus na Bíblia. Do ponto de vista do islamismo, tal característica é perfeitamente adequada, mas, com certeza, aumenta o número de obstáculos iniciais que um não-muçulmano precisa superar. John Wansbrough, no livro Quranic Studies, classifica as imagens do Alcorão em quatro grandes grupos: castigo, sinal, exílio e aliança. Castigo, sempre divino, está relacionado ao destino das nações, cidades e povos que fracassam nas provas estabelecidas por Deus. Sinal é a manifestação de Deus ou a comprovação da autenticidade do Profeta. Exílio, característica do probo Abraão, é ilustrado pela hégira, isto é, a fuga de Maomé, de Meca para Medina, marcando o início da Era Islâmica. Aliança é um retorno aos antigos profetas - Noé, Abraão, Moisés e Jesus -, com ênfase especial em Moisés que, aparentemente, causa maior ansiedade a Maomé do que os demais. Em todo caso, os quatro grupos imagísticos são flagrantemente hebraicos, e o Alcorão, a meu ver, não os torna propriedade de Maomé. Com certeza, a originalidade do Alcorão não é uma questão de imagens ou personagens, mas de outros fatores, principalmente a atitude severa e absoluta do Profeta como veículo da voz de Deus. A força retórica arrasadora de Maomé demonstra sua exuberância no que poderíamos considerar uma reinvenção do credo de Abraão, seja lá o que tenha, de fato, ocorrido. Sob o peso imenso da voz de Deus, o leitor fica mais do que convencido da ameaça imposta pelos sinais de castigo e de exílio, caso não se submeta a Deus: Em nome de Alá, o mais benevolente, sempre misericordioso. Conclamo ao Testemunho do Dia da Ressurreição, E convido a alma repreendida a constatar: ; Pensa o homem Que não haveremos de lhe reunir os ossos? Deveras, podemos (re)formar-lhe até as pontas dos dedos. Mas o homem duvida Do que está bem à sua frente. E pergunta: "Quando será o Dia da Ressurreição?" Porém, quando os olhos se encandearem, A lua entrar em eclipse, 174 175 E o sol e a lua se alinharem, Nesse dia, dirá o homem: "Onde posso me refugiar?" Em lugar algum, pois não haverá refúgio. Somente junto ao vosso Deus Será possível nesse dia a retirada. Então, será revelado ao homem O que antes fora enviado (de bom) E o que fora deixado para trás. -Sura75:l-13 A severidade e a franqueza dessas palavras podem até ser imbatíveis, mas não são originais, de vez que seguem precedentes bíblicos. Original é um certo truncamento e obliquidade típicos do modo alusivo, elíptico com que Maomé utiliza os antecedentes bíblicos. Maomé nunca abandona o tom polémico, que conquista e afirma autoridade ao jamais permitir ao leitor um momento de descanso. É claro que a insistência é marca frequente de retórica também na Bíblia Hebraica e no Novo Testamento, mas nestes, raramente, a cadência é tão incansável como se observa ao longo de todo o Alcorão. A autoridade espiritual resoluta, malgrado as implicações políticas, requer do Alcorão e nele concretiza um estilo de resposta quase irresistível. A variedade, norma estilística observada em quase todos os outros contextos, encontra pouca justificativa, quando somos convidados a nos expor à voz de Alá. O esforço de Maomé raramente envolve qualquer confronto direto com os textos da Tora ou do Evangelho; talvez o Profeta tenha se esquivado ou, o que é mais provável, simplesmente, não os conhecia. Estava a par das tradições rabínicas, orais e escritas, e isso era tudo o que precisava, ou queria; essas tradições vinham-lhe à mente, e deixa-vam-no nas alturas: Em nome de Alá, o mais benevolente, sempre misericordioso. Conclamo ao testemunho da aurora E das Dez Noites, O múltiplo e o único; A noite enquanto avança, Não haverá nisso uma prova Para os sensatos? Não vistes o que o vosso Senhor 176 Fez ao 'Ad De Eram, com pilares imponentes (Erigidos como sinais no deserto), Cuja forma Jamais fora criada no reino; E a Tamud, Que esculpia pedras no vale; E ao grande Faraó, Que aterrorizava a região, E espalhava a corrupção. Pois, o vosso Senhor um flagelo De castigos fez pesar sobre eles. O vosso Senhor, deveras, espreita. Quanto ao homem, Sempre que o Senhor o testar, A fim de ser bondoso E prover-lhe de coisas boas, Ele diz: "Meu Senhor foi bondoso comigo." Mas quando Ele o testa, privando-o de algo, Ele diz: "Meu Senhor me despreza." -Sura89: 1-16 As Dez Noites são as dez primeiras e as dez últimas noites dos meses lunares, portanto, simbolizam aqui a ascensão e o declínio das coisas sublunares, inclusive os lendários jardins de 'Ad de Eram, a cidade perdida de Tamud, arrasada por um terremoto, e o Faraó que desafiou Moisés. O paralelo da ascensão e declínio da sorte humana fica expresso, de modo implacável, e com grande economia retórica, nas palavras: "O vosso Senhor, deveras, espreita." Assim como a sura 75, outra das revelações iniciais registradas em Meca, esse canto representa o que poderia ser chamado "primeiro Maomé", cuja ênfase recai sobre a incomensurabilidade de Alá e suas criaturas. Nas primeiras declarações, Maomé retoma os paradoxos do Javista, ou J, responsável pelo primeiro (e mais impressionante) conjunto de textos no que hoje denominamos Génese, Êxodo e JNumeros. Alá, "o Deus", havia muito era a principal divindade da Meca pagã (antes do advento de Maomé), o único deus não representado por um ídolo. F. E. Peters, no livro Muhammadand the Origins oflslam (Albany, 1994, p. 107), deduz que essa ausência e imagens de Alá atesta a crescente influência de judeus e cristãos na Arábia, antes de aomé. Mas no Ka'ba, santuário de Meca, segundo consta erigido por Abraão e seu 177 filho Ismael, ancestral dos Árabes, imagens de outros deuses dividiam o reino com Alá. A casa de Deus em Meca, conquanto fundada por Abraão quando visitava o filho Ismael, foi fixada em local consagrado pelo próprio Adão. Sendo o único edifício de pedra na antiga Meca, o Ka'ba, com certeza, continha imagens de Abraão e Jesus, por conseguinte, o paganismo pré-islâmico de Meca já era extremamente eclético, constituindo um nítido precursor do islã, com seus elementos judaicos e cristãos. Contudo, o Alá das primeiras suras de Maomé em Meca já não é o Alá pagão, mas o Deus bíblico de Abraão, Noé, Moisés e Jesus, o Deus judeu-cristão que, paradoxalmente, é, a um só tempo, todo transcendência e todo imanência. Maomé era profeta, não era teólogo, e, conquanto o Alcorão nos ensine a respeito da personalidade e do^aráter de Alá, não se presta a nos fornecer relatos descritivos e racionais da natureza interna de Deus. Embora cada uma das principais vertentes do islamismo (rivais entre si) - Sunni e Shiah - afirme a sua própria ortodoxia islâmica e considere a outra herege, nenhum leitor muçulmano teria a pretensão de decidir quem é mais fiel ao Alcorão, o Cairo ou Teerã. Maomé declara-se, incondicionalmente, o último profeta: "Não existirão outros profetas"; e, depois de Maomé, muçulmanos, de todos os tipos, não se apresentam como profetas: as heresias (ou não) constituem problema de interpretação, assim como no judaísmo e no cristianismo pós-bíblico. Contudo, o Alcorão é tão despojado que a interpretação islâmica tradicional pode nos parecer bem mais distante da recitação de Maomé do que as interpretações judaica e cristã, com relação à Bíblia. O Alcorão tem uma totalidade, uma finalidade retórica, bem como uma simplicidade aparente tão marcantes que, a princípio, torna o leitor impaciente com a exegese. A Bíblia Hebraica, no todo ou em parte, é um texto bastante difícil, e muito do conteúdo do Novo Testamento é confuso e contraditório, enquanto o Alcorão, de certo modo, aparenta ser sumamente aberto e claro, extremamente coeso e coerente. Embora esse efeito retórico seja bastante ilusório, é tanto uma característica do Alcorão quanto o uso oblíquo, quase referencial, que Maomé faz de relatos e episódios bíblicos. A singeleza da visão e o impulso revisionista do Alcorão em prol de um retorno ao credo autêntico de Abraão têm características tão absolutas que um leitor não-muçulmano dificilmente associaria a teologia do islã às suas origens corânicas. Na minha experiência de leitor de literatura, o Alcorão, raramente, causa uma impressão bíblica, especialmente do ponto de vista estético. De quando em vez, ao mergulhar no Alcorão, lembro-me de William Blake e Walt Whitman; em outros momentos, penso em Dante, que haveria de considerar blasfema a associação. De um lado, per-cebe-se que as analogias decorrem da autoridade pessoal contida na voz do visionário: Dante, Blake e Whitman (este último nos trechos em que demonstra toda a sua autoconfiança) aproximam-se de uma voz divina parecida com a que ouvimos o tempo todo Alcorão. De outro, observa-se a questão do chamado do Profeta, um contracanto e percorre todo o livro, embora seja mais óbvio em Dante, Blake e Whitman. O Alcorão é uma profecia em forma de poema em prosa que ressalta a centralidade e a ontinuidade da tradição profética. O mensageiro de Alá, solitário no início da missão, fala para (e em nome de) uma comunidade de fiéis, e o fardo da profecia é, ao mesmo tempo, o renascer da tradição e a ruptura, ensejando algo que vai além da tradição, cujo significado transcende a própria profecia. Nesse particular, o Alcorão é misterioso, e talvez justifique a existência dos místicos muçulmanos - os sufis - melhor do que quaisquer teocratas islâmicos, a despeito de vertente ou nação, possam fazê-lo. Pois o que é o Alcorão? Seja como for, não é um livro fechado, mesmo que se trate da última profecia. Tanto quanto a Bíblia, Dante, ou até mesmo Shakespeare, o Alcorão é o Livro da Vida, vital como um ser humano, seja lá quem ele ou ela for. Uma vez que Deus se dirige a quem quiser ouvi-lo, o livro é universal, tão aberto e generoso quanto as maiores obras da literatura secular, e.g., as obrasprimas de Shakespeare e Cervantes. Os sufis localizam o seu ponto central na sura 24:35, passagem sublime que fala de Deus como luz, um hino de louvor ao universalismo convincente do poeta-profeta Maomé: Deus é a luz do céu e da terra. Sua luz é como um nicho Com uma lamparina, uma chama dentro do vidro, O vidro é como uma estrela brilhante, acesa com o óleo De uma árvore bendita, a oliveira, nem do Oriente Nem do Ocidente, cujo óleo parece arder Embora o fogo não o toque - luz na luz. Deus guia à Sua luz quem Ele quiser. E oferece preceitos de sapiência aos homens, Pois Deus tudo sabe. Essas palavras constituem um poema, a um só tempo, milagroso e natural, e em nada sectário: luz na luz." O nicho pode ser o coração de Maomé, ou, em última instância, qualquer coração discernente: "Deus guia à Sua luz quem Ele quiser." A abençoada oliveira, nem do Oriente, nem do Ocidente, está em toda parte e em lugar nenhum, onde e quando ocorrer a visão purificada. Como desafio à percepção estética, essa célebre rapsó-ia da luz só se compara às grandes teofanias de Dante e Blake, e às apóstrofes bíblicas e pos-biblicas que invocam a luz libertadora. E mais, essa rapsódia é o epítome do Alcorão, mais uma prova da verdadeira importância desse livro para todos nós. 178 179 LUSTRO Samuel Johann Thomas 4 Johnson, James Boswell, Wolfgang von Goethe, Sigmund Freud, Mann este segundo Lustro de autores sábios, busquei desfazer fronteiras, permitindo que as figuras se mesclassem. Embora não volte a utilizar esse procedimento % no decorrer do livro (a fim de evitar o caos), decidi mantê-lo aqui, porque, cabalisticamente, Hokmah é indivisível. Embora Johnson e Boswell fossem cristãos moralistas (de modo um tanto exagerado, no caso de Boswell), e Goethe, Freud e Mann não fossem cristãos, os cinco convergem de maneira irresistível. Freud desaprovaria a minha asserção de que, à semelhança desses outros moralistas, ele pretendia demonstrar a utilidade da literatura à vida. Mas podese dizer que Freud não se auto-representava de maneira fidedigna, fosse na qualidade de cientista ou médico. Um ensaio como "Mourning and Melancholia" aproxima-se mais de Johnson e Goethe do que de Charles Darwin. Thomas Mann, exemplo do ficcionista sábio, enxergava Freud com clareza, ao associar o sábio judeu a Goethe, o mais sábio de todos os homens de letras. 181 SAMUEL JOHNSON (...) porquanto o génio, seja lá o que for, é como fogo de pedra, produzido somente através da colisão de elementos adequados, todo homem deve verificar se as suas faculdades não colaboram com os seus desejos, e, uma vez que aqueles cuja proficiência é admirada só se tornaram cientes da própria força através de um incidente, o homem deve buscar experiências afins, com o mesmo espírito, e pode alimentar a esperança de alcançar o mesmo sucesso. - Johnson, The Rambler, NB 25 Samuel Johnson, ainda o maior dos críticos literários de todos os tempos, exorta-nos a encontrar o nosso tema, a única força capaz de atiçar-nos o génio. Escrevendo ao seu biógrafo, Boswell, em 1763, Johnson desenvolve o princípio de ambição estética e intelectual: Espreita, talvez, em todo coração o desejo de sucesso, que leva todo homem, primeiro, a alimentar uma esperança e, depois, a acreditar que a Natureza o agraciou com algo singular. Essa vaidade faz uma mente nutrir aversões, outra, acionar desejos, até se elevarem, pela arte, muito acima da sua capacidade original; e como, com o tempo, a afetação se torna um hábito, aversões e desejos passam a tiranizar aquele que primeiro os estimulou. O custo do engrandecimento é a tirania da vaidade ou o páthos do escritor fracassado. O génio estabelece um equilíbrio perigoso, entre a imitação de um grande predecessor, conforme Johnson seguiu Alexander Pope, e a auto-ilusão de tantos contemporâneos, incluídos na obra Lives ofthe Poets, de autoria do próprio Johnson, porque os editores (e não Johnson) desejavam sua inclusão. Hoje em dia, o elenco constitui uma triste litania de autores datados: Roscommon, Pomfret, Stepney, Sprat, Sheffield, Fenton, Yalden, Tickell e muitos outros. O leitor pode se divertir abrindo qualquer antologia de poesia contemporânea e escolhendo exemplos correspondentes a Sprat e Yalden, candidatos à iniquidade do esquecimento. JAMES BOSWELL Durante toda a conversa, conduzi-me com uma compostura máscula, dignidade e polidez, que não deixariam de causar admiração, enquanto ela estava pálida como cinzas e tremia e gaguejava. Por três vezes, insistiu para que eu me demorasse um pouco mais, porque, provavelmente, não mais nos veríamos. Ela nada podia dizer a esse respeito. Permaneci calado. No momento em que eu partia, ela disse: "Espero que o senhor me permita pedir notícias da sua saúde." "Madame", disse eu, com altivez, "suponho que isso seja desnecessário, ao longo das próximas semanas." Ela reiterou o pedido. Não mais querendo ser importunado, dispensei-a, dizendo que talvez fosse para o interior, e retirei-me. Sua atitude, deveras, cau-sou-me constrangimento. Não havia a menor chance de ela ser inocente do crime de assédio. Fiquei perplexo diante de suas assertivas. Com toda certeza, trata-se de uma inveterada e fingida prostituta. Assim chegou ao fim o meu caso com a bela Louisa, da qual tanto me gabara, e com quem esperava ao menos copular com segurança durante todo o inverno. É mesmo muito difícil. Não posso dizer, conforme dizem os rapazes que contraem doenças venéreas em bordéis, que terei mais cuidado no futuro. Pois tomei bastante cuidado. No entanto, já que estava um tanto envolvido, decidi aproveitar-me da situação. Não foi uma questão de imprudência. São coisas que acontecem na guerra. - The London Journal Assim James Boswell se despede da bela Louisa, com quem "esperava ao menos copular com segurança durante todo o inverno". Congratula-se consigo mesmo pela compostura e polidez, e preza a sua própria demonstração de dignidade. Não temos a versão de Louisa dessa mesma despedida, mas é duvidoso que ela reagisse com "admiração , diante da conduta de Boswell. O génio cómico de Boswell precipita a nossa dúvida; ele se dirige a uma "inveterada e fingida prostituta", com a mesma autoconsciência dramática que demonstrava em relação a Johnson, Voltaire e Rousseau. Boswell é o mestre da ironia de retrospectiva: em vez de murmurar "quisera ter dito aquilo , ele expressa o pensamento que lhe ocorreu mais tarde, com toda espontaneidade, 182 183 A Vida de Johnson é um delicado milagre, capaz de manter um equilíbrio sutil entre a figura do formidável Samuel Johnson e a astuta provocação e manipulação do biógrafo. Contudo, o oportunismo de Boswell tem limites; Boswell não é Shakespeare, e Samuel Johnson não é Sir John Falstaff, triunfo da imaginação dramática. Ao longo de toda a obra, Boswell respeita e aprecia a realidade do sujeito por ele tratado, e, certamente, confere ao grande crítico muitos toques shakespearianos. ílifes JOHANN WOLFGANG VON GOETHE Poder ver tanta vida, tanta felicidade! Poder, ao lado de homens livres, pisar o solo livre! Poderei, então, dizer ao momento efémero, "Fica um pouco mais, és tão belo! As pegadas da minha passagem pela terra, Nem após milénios, haverão de desaparecer." Antevendo essas cenas de incomparável júbilo, Desfruto agora do supremo momento. [Fausto desfalece; os Lêmures amparam-no e deitam-no no chão.] - Fausto, Segunda Parte, ato 5, 7122-28 Aqui morre mais do que o Fausto de Goethe: chega ao fim toda a tradição literária ocidental, de Homero, passando por Dante e Shakespeare, até chegar a Goethe. Após a morte de Fausto, surge a cavalgada do Pós-iluminismo, dotada de tantos rótulos -Romantismo, Modernismo, Pós-modernismo -, mas tudo é, na verdade, um único fenómeno. Talvez somente agora, em um novo milénio, possamos detectar sinais do declínio desse fenómeno. Um tempo de conflitos religiosos, já diante de nós, provavelmente há de instigar uma nova Era Teocrática, conforme profetizou Giambattista Viço. O que sucederá com a literatura ocidental secular em um tempo como esse é algo que permanece bastante obscuro. Goethe é o último sábio da antiga literatura secular ocidental, que pode ser denominada Humanismo, Iluminismo, ou o que mais o leitor quiser. Uma das qualidades mais revigorantes de Goethe é a irreverência: a Segunda Parte de Fausto é obra que contém uma ousadia maravilhosa, cujo principal objetivo é manifestar a totalidade e a complexidade do génio de Goethe. Goedie acreditava em seus próprios demónios, que parecem tê-lo provido de energia misteriosa, que o capacitava a produzir apropriações paródicas da obra de todos os predecessores, de Homero ao Hamlet shakespeariano. A sabedoria, segundo o pensamento tardio de Goedie, consiste em renúncia, pois realizar todos os nossos desejos é incitar o caos. odavia, Goethe é vago em se tratando de suas próprias renúncias, e é difícil rec "ar a sapiência por ele conquistada com o atrevimento das suas posições, ra 184 185 sepultado em um quadro que parodia a cena do cemitério, em Hamlet, como se Goethe pretendesse roubar para o seu herói não dramático um pouco do carisma de Hamlet. Shakespeare, pessoa, evidente e propositadamente, desprovida de vivacidade, jamais sonharia em competir com Hamlet, sua criação mais brilhante e enigmática. Goethe, no entanto, brilha muito mais do que Fausto, a quem não é permitida qualquer participação na genialidade modelar do seu criador. Cêiú cStú C&P SIGMUND FREUD Um dia os irmãos que haviam sido banidos uniram-se, mataram e devoraram o pai, dando um fim à horda patriarcal (...). O pai violento fora, sem dúvida, o modelo temido e invejado por cada um dos irmãos, e, ao devorá-lo, estes concretizaram a sua identificação com ele, e cada um deles adquiriu um pouco de sua força. A refeição do totem, talvez a primeira celebração da humanidade, seria a repetição, a comemoração desse ato memorável e criminoso, o início de tantas coisas - da organização social, das restrições morais e da religião. Freud foi um grande construtor de mitos, e jamais o fez de modo tão marcante quanto em Totem e Tabu (1913). No entanto, considero um equívoco estabelecer distinções entre os escritos "culturais" e "científicos" de Freud. Ele próprio se ressentiria da sua atual reputação, pois acreditava, piamente, que a psicanálise era uma ciência que um dia seria vista como contribuição à biologia. De vez que isso não ocorreu, os inimigos de Freud voltam a desprezá-lo como charlatão. A prática da psicanálise sempre constituiu uma espécie de xamanismo, dependente da transferência, mais ou menos oculta, entre analista e paciente. Mas esse Freud foi desde sempre arcaico, embora não fosse mais charlatão do que o Sócrates do Banquete de Platão. O Freud sempre atual é o grande ensaísta das questões morais, escritor comparável a Montaigne. A literatura do século que acaba de passar teve, como maiores expoentes, Proust, Joyce, Kafka e Freud, ao lado dos principais poetas a eles contemporâneos. Tanto quanto Montaigne é companheiro de Cervantes e Shakespeare, Freud pertence ao grupo visionário de Joyce e Proust. Montaigne e Freud prenunciam, de maneira esplêndida, as ficções autobiográficas do eu: cada qual é o seu próprio grande assunto. Mais uma vez, Freud ficaria descontente com a comparação, porque buscava uma autoridade que transcendesse o nível pessoal. Contudo, a lição mais útil por ele deixada, até certo ponto, sem ter a intenção de fazê-lo, talvez seja a de que somente a autoridade pessoal resguarda alguma autenticidade. 186 187 THOMAS MANN Goethe sabia que, fosse a meia voz, ou em alto e bom som, as pessoas exclamariam uma palavra de alívio, quando ele morresse. Considerava-se uma manifestação daquela grandeza que, ao mesmo tempo, oprime e abençoa a Terra. E incorporava essa grandeza da maneira mais sutil, mais branda possível: na figura de um grande poeta. Porém, mesmo nessa condição, a referida grandeza não é nada reconfortante aos contemporâneos. Ela se caracteriza pela perplexidade e pela repulsa, pela afeição e pelo espanto. Mann, refletindo sobre "A Carreira de Goethe como Homem de Letras", em 1932, um ano antes da ascensão de Hitler ao poder, ainda tinha liberdade para se referir ao predecessor como um fenómeno estético. Em 1938, exilado, Mann profere uma conferência sobre Fausto, na Universidade de Princeton, e conclui, estabelecendo ênfase bastante distinta: Qualquer "palavra de clareza" e qualquer indicação sobre o melhor curso a seguir parecem impotentes hoje em dia; eventos mundiais transcorrem em meio a um descaso brutal. Mas vamos nos ater, com fervor, ao credo antidiabólico de que a humanidade possui, em última instância, um "saber arguto", e que palavras surgidas a partir do esforço pessoal podem fazer bem à humanidade e sobreviver em seu coração. Duas gerações mais tarde, que relevância tem, para nós, o humanismo iluminista de Goethe e Mann? Na sequência dos eventos do dia 11 de setembro de 2001, houve brados de "abaixo a ironia!", mas tais expressões desapareceram rapidamente. Tudo é ironia, nessa nova era de guerra religiosa e terror domesticado. A ênfase de Mann, em 1938, recaía sobre o uso da literatura na vida real, uso esse que transcende a ação do luto. A grandeza de Goethe tinha muito a ver com a dimensão das suas especulações, e com a ênfase sobre a salvação secular plausível de ser induzida pelo intelecto. Mann, seguindo Goethe, partiu da ambivalência e da ironia defensiva, quanto ao génio do precursor, e chegou a um entendimento ousado sobre a ação do humanismo relativo à sobrevivência dos valores, à manutenção de um credo "antidiabólico". Estou sempre a exortar os meus alunos, e os leitores que comparecem aos lançamentos dos meus livros, a retomar A Montanha Mágica nesses tempos turbulentos. A genialidade de Mann é ensinar um "ouvir arguto", sem o qual seremos mais facilmente seduzidos pela brutalidade. SAMUEL JOHNSON, JAMES BOSWELL, JOHANN WOLFGANG VON GOETHE, SIGMUND FREUD, THOMAS MANN I. Tenho por hábito avaliar os críticos literários, em parte, com base em sua ligação com Samuel Johnson (1709-1784), a meu ver, o crítico canónico, ou aquele que estabelece padrões. De vez que o método por mim adotado neste livro é a justaposição, muito me apraz reunir Johnson aos génios universais de Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), Sigmund Freud (1856-1939) e Thomas Mann (1875-1955). Quando Johnson morreu, Goethe estava com 35 anos. Johnson não o conheceu, e creio que o houvesse rejeitado, em bases morais e religiosas. Para Goethe, Literatura Inglesa era Shakespeare e Lorde Byron, não Johnson. Em um sentido concreto, os génios de Johnson e Goethe não foram, absolutamente, contemporâneos, embora florescessem na segunda metade do século XVIII. É possível ler Johnson sem levar em conta o grande biógrafo e amigo, o jornalista escocês James Boswell (1740-1795), mas temos em Boswell uma outra personalidade espiritual, um outro génio singular, a se justapor ao seu próprio mentor moral, bem como a Goethe, Mann e Freud, autoridades em relação à melancolia que afligia tanto a Johnson quanto a Boswell. Não fosse por isso, Boswell destoaria dos demais neste capítulo, embora, assim como Johnson, tenha sido um psicólogo genial, e uma autoridade em melancolia. No entanto, Boswell, na qualidade de escritor, equipara-se aos quatro sábios, por mais intimidadores que soem os nomes, enunciados em série: Johnson, Goethe, Mann e Freud. Ao chamar Boswell de jornalista, emprego a denominação em dois sentidos: um dos primeiros correspondentes internacionais, e o criador de um enciclopédico diário do eu e suas vicissitudes. Se aqui acrescentarmos o sucesso de Boswell como biógrafo literário, ainda não superado, ele há de parecer menos vulnerável na companhia desses quatro videntes da psicologia humana. Embora tenhamos hoje um quadro bastante completo da vida de Mann, conhecemos, necessariamente, muito menos a seu respeito do que sobre Johnson, Boswell, oetne e Freud, pois sabemos praticamente tudo a respeito destes. Não serão estas as quatro personalidades geniais cujas biografias contam' com a mais extensa documenta188 189 ção? Nada, ou quase nada, sabemos sobre as vidas interiores de Shakespeare, Dante e Cervantes, se comparadas a essas quatro biografias. Se o desejarmos, podemos absorver o eu interior de Johnson, Boswell, Goethe e Freud, como se fossem personagens dramáticos shakespearianos, semelhantes a Falstaff, ao Príncipe Hal, Hamlet e Macbeth. Assim como temos a impressão de que os protagonistas geniais de Shakespeare sempre existiram, parece-nos que Johnson, Boswell, Goethe e Freud existem, como personalidades, desde o início dos tempos. Mesmo no que respeita a Mann, contamos com extensa documentação sobre a consciência que tinha o escritor do seu próprio génio, marca que também distingue os outros quatro. Um livro sobre o génio, que ressalta a influência da obra sobre a vida, ou do génio sobre si mesmo, não pode deixar de situar um centro neste capítulo, pois, hoje em dia, as cinco biografias aqui invocadas circulam mais do que as obras dos respectivos autores. Freud é descrito como vilão ou herói, variando de acordo com as atitudes vis-à-vis à psicanálise, enquanto o pobre Boswell é mais conhecido pelo público porque o London Journal oferece relatos extremamente vívidos dos seus encontros com prostitutas. Johnson ainda é admirado (ou não) como o Sr. Excêntrico, ao passo que Mann é hoje considerado um homossexual enrustido, e Goethe ainda significa cultura na Alemanha, embora em outros locais, não. Sábios identificados com nações (Johnson e a Inglaterra; Emerson e os Estados Unidos; Goethe e os países de língua alemã; Montaigne e a França) já não constituem itens de exportação, de um lado, em consequência do declínio da confiança do Ocidente com relação ao seu próprio cânone, de outro, devido a um processo internacional que faz reduzir sabedoria à informação. Contudo, a necessidade do génio da sabedoria continua premente, e remete-nos a esses sábios. II. Boswell faleceu aos 54 anos, aniquilado pelo álcool, sucessivas infecções venéreas e por uma vida de luta contra a depressão. A despeito de sua imprudência, Boswell estudou a si mesmo e terceiros minuciosamente, e a sua percepção da melancolia talvez seja mais aguda do que a de Johnson, companheiro de sofrimento. Em outros escritos, examinei as associações tradicionalmente estabelecidas entre Saturno e melancolia, e considerei a relevância de tais associações à psicologia do génio. Samuel Johnson, entre todos os sábios, era acometido de "vil melancolia", notoriamente temeroso da "perigosa predominância da imaginação". O melhor poema de Johnson, A Vaidade do Desejo Humano, traz, no título, uma alusão ao Eclesiastes, no qual, segundo consta, o Rei Salomão, o mais sábio dos homens, confessa ser "tudo vaidade". Johnson, que tanto " JOHNSON, JAMES BOSWELL, JOHANN WOLFGANG VON GOETHE, SIGMUND FREUD, THOMAS MANN eciava a comédia, mal consegue evitar ser um moralista trágico, por simples força de de. Q romance em prosa, Rasselas, grava a fogo na memória de muitos leitores a f e- "A vida humana é sempre uma condição em que muito deve ser suportado e ouço deve ser desfrutado." O célebre estilo ondulante da prosa de Johnson, privilei do a universalidade e a generalidade, é bem exemplificado no belo equilíbrio dessa frase É curioso que Johnson fosse tão crítico com relação ao estilo de Jonathan Swift, cuia prosa, a meu ver, depois da de Shakespeare, é a melhor em língua inglesa, mas a paixão de Swift pela realidade ofendia Johnson, em cuja opinião a prosa devia possuir complexa musicalidade. Sem dúvida, Johnson teria considerado o crítico vitoriano Walter Pater moralmente decadente, mas a prosa johnsoniana em muito pressagia a de Pater. Johnson era dotado de sensibilidade clássica, mas a sua noção da morte como o triunfo da realidade levou-o a desenvolver um estilo mais barroco do que seria de se esperar. Como sempre, meu assunto é o génio e, portanto, cabe indagar: qual era a genialidade de Samuel Johnson? Sempre um romântico incorrigível, pergunto-me, às vezes, por que prefiro Johnson a William Hazlitt, ou Pater, no que respeita à crítica shakespearia-na, e estou sempre a constatar que a voz de Johnson parece ser a da própria crítica literária. Johnson é o génio da crítica: seu trabalho repercute com tal autoridade, que constitui uma resposta inteiramente condizente com a grandeza de Shakespeare e Milton. No entanto, a genialidade da crítica de Johnson se torna mais intensa quando ele nos faz lembrar o propósito da literatura, como nesses comentários sobre a versão feita pelo poeta John Dryden da Eneida, de Virgílio: Obras produzidas pela imaginação destacam-se pelo fascínio e encanto, pela capacidade de atrair e reter a atenção. É nulo o valor do livro que o leitor joga fora. Mestre é aquele capaz de manter a mente em um cativeiro agradável; aquele cuja obra é lida com atenção, e relida, em busca de renovado prazer; cuja conclusão é recebida com tristeza, como reage o viajante ao fim do dia. Certa vez citei esse trecho durante uma conferência, e alguém perguntou por que tais palavras não podiam também constituir uma defesa dos fãs de Harry Potter,.ou dos admiradores de Stephen King, mundo afora. Mas será que alguém relê Rowling ou ng, em busca de renovado prazer"? Para Johnson, o romance Dom Quixote deveria er ainda mais longo, ideia com a qual concordo. Será a mente o que Rowling e King mantém em "cativeiro agradável"? Na tentativa de impedir que o meu público ficasse aquele agressor, lembro-me que, na resposta, recorri a uma citação do "Prefácio nakespeare", de autoria de Johnson, a qual sei de cor: 190 191 As combinações erráticas da imaginação criadora podem até causar uma satisfação passageira, propiciando a novidade que o tédio da vida a todos nos faz buscar; mas o prazer da admiração súbita logo se exaure, e a mente somente descansa na solidez da verdade. Existe um excesso maravilhoso, shakespeariano, na atitude e na linguagem de Johnson, mas tal excesso não exclui a justiça crítica. A obra de Johnson é sempre agressiva; a polemica está sempre à sua volta. Ele busca a discussão, seja lá com quem for, e tenciona convencer-nos de que o importante é aquilo que nos está próximo, aquilo que podemos utilizar. A genialidade da crítica de Johnson reside no fato de a mesma rejeitar a indiferença e çjaltivar os interesses do leitor comum, independentemente da era em que viva. O génio, conforme estou sempre a reiterar, deve manifestarse na originalidade, que pode sugerir tão-somente estranheza, mas que, em última instância, defende e define a individualidade. Trago comigo, ao lado de outros trechos de Johnson que não me saem da memória, esse revigorante parágrafo do Rambler, N2125: Definições são igualmente difíceis e incertas na Crítica Literária e no Direito. A imaginação, faculdade licenciosa e errante, insuscetível à limitação e ao comedimento, sempre se empenha em confundir a lógica, desorientar o discernimento e romper a fronteira da regularidade. Dificilmente haverá, portanto, qualquer escrito cuja essência e cujos componentes podemos identificar; cada novo génio produz alguma inovação que, uma vez aprovada, subverte a prática estabelecida pelos autores que o precederam. Johnson, classicista ferrenho, rejeitaria a atual degradação da ideia de "génio". Ainda valorizamos a originalidade em um cientista ou em um tecnocrata, mas não nos mestres da linguagem. Caso surgisse outro James Joyce, outro Samuel Beckett, ou uma outra Gertrude Stein, demoraríamos para reconhecer tal figura, conquanto tenhamos hoje uma mestra da linguagem na poeta canadense Anne Carson. Idoso, Johnson resistiu à nova poesia surgida à sua volta, na obra dos bardos da Sensibilidade, tais como Thomas Gray e William Collins, mas ainda merece crédito por haver reconhecido e estimulado Oliver Goldsmith. Até mesmo o maior dos críticos, às vezes, cochila, e, lamentavelmente, Johnson observou que "Tristram Shandy não vingaria", conquanto a obra-prima de Laurence Sterne esteja mais viva e exerça mais influência do que nunca. Johnson merece toda a indulgência possível, pois era extremamente bondoso, dotado de grande coração. Jamais existiu crítico tão humano, tampouco alguém que melhor demonstrasse o verdadeiro valor que a alta literatura tem para a vida. Boswell, na obra A Vida de Johnson, descreve, com muito brilho, a grandeza de Johnson como crítico: A sua superioridade com relação a outros eruditos consistia, primordialmente, em algo que pode ser chamado de arte do pensamento, a arte de usar a mente; tratava-se de uma certa capacidade, sempre presente, de se apoderar da essência útil de todo o seu saber e exibi-lo de maneira clara e contumaz, de modo que o conhecimento, tantas vezes visto como entulho em homens de lerdo discernimento, nele constituía verdadeiro, evidente e concreto saber. Embora Boswell anotasse, copiosamente, as conversas que travava com Johnson, o biógrafo viveu muito antes da era do gravador, de modo que a sua inventividade, sem dúvida, muito contribuiu para a sabedoria acumulada e a pungência do que podemos denominar a tradição oral de Johnson. Frederick A. Pottle, o maior dos especialistas em Johnson (e meu reverenciado mentor), oferece-nos uma avaliação definitiva dessa mescla de Boswell e Johnson: Será que Boswell relata ipsis verbis as conversas com Johnson? Em determinadas frases e alguns trechos de natureza epigramática, sim. De modo geral, não. As palavras cruciais, aquelas que caracterizam a peculiaridade de Johnson são, deveras, ipsissima verba. Impregnado do éter johnsoniano, Boswell foi capaz de resgatar uma quantidade considerável da linguagem do crítico. Palavras implicam sentidos, e, quando elementos da linguagem relembrada se encontravam em posição de equilíbrio ou antítese, a lembrança de palavras e sentidos, quase automaticamente, ensejavam estruturas frasais "autênticas". Porém, no mais das vezes, Boswell contada com a referida impregnação do éter johnsoniano (i.e., um entendimento tornado intuitivo, com respeito aos hábitos de composição de Johnson), que o auxiliava a construir sentenças modelares, em que a literalidade ficasse bem à vontade. Após essa introdução, podemos adentrar A Vida de Johnson, a fim de encontrarmos os diálogos extraordinários entre um génio da crítica e um génio da biografia. Com um entrevistado enérgico como Johnson e um entrevistador insistente como Boswell, a interação pode se tornar tempestuosa, apesar da afeição mútua. Não deve ter sido fácil para Boswell ouvir seu herói exclamar: "Tens apenas dois assuntos tu e eu -, e estou ano de ambos." Os leitores não concordam com Johnson, mas Boswell estava à cata de in ormação sobre os primeiros anos em que o sábio viveu em Londres, na penúria, mui192 193 tas vezes, em companhia de um poeta desconhecido, Richard Savage, cuja biografia é narrada por Johnson na obra Vidas dos Poetas, provavelmente a obra-prima do crítico. Johnson, que, segundo Boswell, "dilacerava carne como um tigre", sempre se esquivava de falar das vicissitudes dos primeiros anos em Londres, mesmo mais tarde, nos tempos de prosperidade. Para Johnson, a mente devia estar repleta de leitura, mas também de "reflexão", ambas no que diz respeito à experiência humana e à experiência específica da literatura. Segundo Johnson, "reflexão" é o processo que permite ao génio inato desenvolver seus dotes, e que produz trabalho relevante. No sentido johnsoniano, "reflexão" abarca todos os significados da palavra, conforme sugere Robert J. Griffin. O espelho é posicionado diante da aatureza, mas a imagem é revertida, passando a refletir a meditação da mente sobre si mesma. "Génio", para Johnson, é termo mais abrangente do que a definição dada pelo próprio crítico em seu célebre Dicionário. A originalidade poética é o cerne da visão que Johnson tem do génio, mas trata-se de uma originalidade que surge através da antítese, da competição com realizações passadas, com os grandes poetas não-mortos, a quem se deve uma compensação. Shakespeare é, para Johnson, a grande exceção e, menos até do que Dante, não teve grandes predecessores, depois que Marlowe deixou de incomodar: "Shakespeare dedicou-se à poesia dramática tendo diante de si o mundo inteiro aberto." Com essas palavras, Johnson faz ecoar, propositadamente, a situação de Adão e Eva ao final de Paraíso Perdido, de modo que Shakespeare é, para Johnson, o Novo Adão, ainda que apenas em termos poéticos, visto que tal noção jamais seria advogada, em termos teológicos, pelo devoto Samuel Johnson. Homero, Shakespeare e Milton eram, para Johnson, os maiores entre os poetas, mas, pessoalmente, o crítico preferia o trabalho de Alexander Pope ao de qualquer outro poeta; Pope foi, com certeza, o maior poeta inglês no período que se estendeu desde a morte de Milton até o advento dos grandes românticos, William Blake e William Wordsworth. Ninguém condenaria a veneração de Johnson pelo poema épico satírico Dunciad, mas não consigo entender a sua paixão intensa pela versão frígida que Pope faz de Homero. Após citar a indagação hiperbólica de Johnson - "Se Pope não é poeta, onde estará a poesia?" -, Boswell procede a uma outra hipérbole, esta em tom mais coloquial: "Senhor, é possível que mil anos transcorram, antes de aparecer outro homem com capacidade de versificação semelhante à de Pope." O Johnson hiperbólico, segundo Boswell, é uma das glórias de A Vida de Johnson, característica que concorre para a aproximação entre o crítico e o Falstaff shakespeariano. Johnson desaprovava, em bases morais, a conduta de Falstaff (do que discordo, veementemente), mas perdoava o cavaleiro gorducho, observando, de modo perspicaz, que o maior personagem cómico criado Shakespeare, "devido à mais agradável das qualidades - a alegria constante - e à 'dade infalível de provocar o riso, faz-se necessário ao príncipe que o despreza". P de-se dizer que Johnson e Boswell, em dados momentos, altemam-se nos papéis de P I raffe Hal, à medida que ambos precisavam exorcizar o demónio da melancolia. III. Os talentos, a um só tempo, relacionados e distintos de Johnson e Boswell têm relevância especial no meu propósito de demonstrar que, em questões de génio, personalidade e intelecto são inseparáveis. Goethe expõe o mesmo nódulo intricado - do eu e da mente -, mas ainda não quero deixar para trás o sábio inglês e o jornalista escocês, em favor do semideus alemão. Johnson inicia o último parágrafo de A Vida de Milton com uma observação central: "O maior elogio ao génio é a criatividade original", o que me remete à afirmação seca de Shelley: "O Diabo tudo deve a Milton." A criatividade de Johnson não se compara à de Milton, mas, em língua inglesa, quem se equipara ou supera Milton, senão Shakespeare e Chaucer? Johnson, embora poeta e ficcionista extraordinário, era, em primeiro lugar, crítico literário, assim como Boswell era, em primeiro lugar, biógrafo e autobió-grafo. A criatividade johnsoniana, a meu ver, define o que deve ser a crítica literária (e o que, raramente, o é): a apreciação da originalidade e a rejeição do modismo. Johnson, confrontando Shakespeare ou Milton, amiúde nos faz voltar à busca constante de escapar da realidade ou do universo da morte. Na qualidade de crítico, Johnson quase sempre contrabalança a nossa tendência à auto-ilusão e a nossa necessidade de evitar um confronto direto com o nosso próprio fim. Poetas visionários como Milton e Blake tendem a afirmar o poder da imaginação, ou da mente poética, contra o universo da morte, mas Johnson fica distante de tal afirmativa. Profundamente ortodoxo em seu cristianismo anglicano, Johnson, no entanto, temia, diariamente, tanto a loucura quanto a morte. Enfrentava esse temor com energia e bravura, mas desconfiava da defesa da mente, ao substituir expectativas realistas por fantasia. Na condição de poeta, Johnson teve precursores em Dryden e Pope, cujas obras era capaz de recitar de cor. Penso que Pope tenha inibido a força poética de Johnson, com uma única exceção: A Vaidade do Desejo Humano. Quem terá sido o precursor de Johnson na crítica literária? Sir Francis Bacon exerceu influência sobre Johnson, como ensaísta de questões morais, mas Bacon não era crítico literário. As observações críticas e en Jonson, contidas na obra Timber or Discoveries (1640), eram do conhecimento omommo, e podem ter produzido algum efeito, mas o grande dramaturgo da e ia, amigo e rival de Shakespeare, não confronta a grandeza literária com a mesma 194 195 franqueza que Johnson. O neoclássico Jonson era, acima de tudo, um satirista, e a grandiosidade humana de Samuel Johnson vai além da sátira. Johnson era por demais natural, por demais primordial para ter inventado a si mesmo, mas James Boswell pode ser considerado a invenção literária de si mesmo. Nesse particular, já foi comparado a Norman Mailer (por mim e por outros), mas Boswell não alimentava ambições romanescas. Seus maiores anseios não eram literários, a despeito da adulação a Johnson. Ser rico, poderoso, famoso e politicamente influente: eis as aspirações frustradas de Boswell, pois a sua visão da Escócia era ainda mais feudal do a que de Tory. Ao morrer, era Lorde Auchinleck, esnobe ao ponto de descartar Robert Burns, que junto a ele buscava apoio. Boswell poderia ter sido para Burns o que Emerson foi para Whitman, mas não queria se dar ao trabalho de ler a obra de um camponês, que, por acaso, era o maior poeta da Escócia. Isso, porém, é o que há de pior em Boswell; o que nele há de melhor é a autocriação, a invenção do biógrafo de Johnson, e de sua própria autobiografia, o que é mais do que suficiente para estabelecer-lhe o génio. IV. Passar de Johnson e Boswell a Goethe causa um impacto extraordinário, ao menos para mim, pois a serenidade adquirida, a duras penas, por um Goethe amadurecido fica a um universo de distância da melancolia intensa do grande crítico inglês e seu pupilo. A energia demoníaca de Goethe constitui aqui o único elo imediato, uma vez que a exuberância do poeta alemão tem a mesma magnitude da de Johnson e Boswell. Génios carismáticos raramente se tornam figuras literárias: antes, manifestam-se como fundadores de religiões, conquistadores, políticos, destruidores do mundo. Lorde Byron e Oscar Wilde são exceções, e ainda há os falsos carismáticos, como Hemingway (embora fosse um contista maravilhoso), mas Goethe talvez seja o único messias em potencial a escolher a carreira de poeta. A extraordinária personalidade de Goethe (excepcionalmente bem documentada) é uma espécie de milagre, nada fácil de ser descrito. Emerson, com a perspicácia de sempre, definiu Goethe como a ideia "de que o homem existe para a cultura; não para o que pode realizar, mas para o que pode ser através dele realizado". O carismático ou carismática é, em si mesmo, tanto uma ideia quanto uma pessoa, uma ideia que transcende o magnetismo pessoal. Shakespeare é hoje o cânone ocidental sitiado; Goethe é hoje a cultura ocidental engolida pela Rede Mundial de Computadores, pela mídia, pela culpa equivocada, pelo semi-analfabetismo, pelos sistemas de ramificação educacional que rejeitam a leitura intensa. Para os seus contemporâneos, o jovem Goethe (já aos oucos anos!) era o génio alemão, aquele que se tornaria o Shakespeare nacional, 'deus da criatividade", conforme afirma Nicholas Boyle, o biógrafo definitivo de r h Em que os contemporâneos baseavam tais expectativas messiânicas, ou terá •ri Goethe desde sempre, um triunfo de personalidade? O imenso talento poético, na A de mais lírico do que dramático, está presente desde o início da obra, embora traí-, em tradução para a língua inglesa. Tieck e Schlegel, em traduções surpreendentes, erteram Shakespeare para o alemão, em esplêndido verso dramático, mas ninguém (exceto Shelley, em duas cenas de Fausto) conseguiu traduzir, adequadamente, para o inglês, as melhores obras de Goethe, e como Goethe, ao contrário de Shakespeare, era incapaz de criar personagens além de si mesmo, os romances e as peças do poeta alemão causam-nos estranheza. Fausto é uma ideia (ou matriz de ideias), mas não é um indivíduo. Shakespeare inventou o humano; Goethe não precisava inventar Goethe, que surgiu como obra-prima da natureza, génio do potencial da felicidade. Dante morreu aos 56 anos, um quarto de século antes da "idade ideal" (segundo ele próprio) de 81 anos, ocasião em que, segundo ele, seria capaz de concretizar as suas próprias profecias. Goethe, que ainda viveria mais de um ano e meio, aos 81 anos, compôs os trechos mais arrebatadores da Segunda Parte de Fausto, somando uma ousadia à outra, em uma obra que qualifico como o mais sublime filme de horror, mas que é, ao mesmo tempo, um grande poema. Goethe foi figura central para as culturas britânica e norte-americana à época de Carlyle e Emerson; entretanto, é hoje lido (ou não), em língua inglesa, apenas por uma minoria, mesmo entre os literatos. Considero esse fato extremamente desolador, no início deste terceiro milénio, pois Goethe seria, para nós, mais saudável do que nunca, agora que a alta cultura agoniza e a opinião contrária à ideia de génio alcança a força de uma ideologia perniciosa. Shakespeare criou um cosmo repleto de "eus", mas quase nada sabemos sobre o eu interior do próprio Shakespeare. Sobre o eu de Goethe, tudo sabemos, e podemos dizer que, há mais de um século, esse eu tem-se constituído no arquétipo do escritor genial. O lema que se aplica a qualquer escritor influente foi cunhado (talvez, para sempre) por Goethe, que exortava tal escritor a ter "persistência, torça de vontade e abnegação a fim de se familiarizar, inteiramente, com a tradição e, ao mesmo tempo, resguardar força e coragem suficientes para desenvolver a originalidade com independência e tratar à sua maneira os elementos assimilados". Esse conselho, embora jamais mais bem expresso, deve ser considerado no contexto de um dos aforismos mais sombrios de Goethe: "O génio é sempre o inimigo do génio, devido ao excesso de influência." Retomo uma questão central: qual é o segredo do génio de Goethe? O poeta perten> originariamente, à classe média, mas foi guindado à nobreza pelo grande patrono, o 196 197 Duque de Saxe-Weimar, e a arte do poeta engloba a transição de uma era aristocrática ao período pós-napoleônico. No entanto, é muito difícil consignálo a um determinado período histórico ou social, pois a sua ousadia intelectual é tão intensa quanto a sua originalidade. Até hoje Goethe é a glória do idioma alemão, e não há de ser superado, assim como Shakespeare não o será, em inglês, nem Cervantes, em espanhol, nem Dante, em italiano. É possível que, em países de língua inglesa, Goethe jamais recupere a posição central que chegou a ocupar na visão de Emerson, George Santayana ou T. S. Eliot. No entanto, Fausto, mesmo em tradução, ainda é obra essencial, se pretendemos alcançar um entendimento definitivo com relação à nossa própria cultura, mesmo enquanto sucumbimos. Somos cercados de mulheres e homens faustianos, e o nosso atrevimento tecnológico tem um elemento faustiano. Talvez a atual Era da Informação 'seja, basicamente, faustiana, e, em consequência de uma barganha faustiana, prossegue a construção de um mundo americanizado. A relevância de Goethe pode estar obscurecida, mas permanece viva, pois ele não fez qualquer barganha faustiana, uma vez que se manteve confiante quanto à sua genialidade independente. Seu biógrafo, Boyle, traça-lhe uma trajetória partindo da poesia do desejo e chegando à poesia da renúncia, em que o poeta reconhece os limites da própria poesia, mas esses limites, a meu ver, são transgredidos na ousadia afável da Segunda Parte de Fausto. Desde o início da carreira, Goethe foi um escritor inteiramente secularizado, pouco tendo a ver com Deus ou Cristo. A missão por ele perseguida, ao longo de toda a vida, foi a de livrar do cristianismo a poesia, jornada esta, precisamente, oposta à de T. S. Eliot. Nietzsche, assim como todos os demais escritores alemães pós-Goethe, bastante influenciado por Goethe, assumiu uma posição ainda mais decisiva, porém menos original, como Anticristo. Goethe, astutamente, declinou do papel de messias, mas proclamou à Alemanha que, embora estivesse presente à criação, era incapaz de asseverar qualquer entendimento específico sobre o mundo. Esse atrevimento teológico acompanha-o até as revisões finais da Segunda Parte de Fausto. Se a asserção é irónica, trata-se de uma ironia típica de Goethe, mais uma faceta da sua originalidade, i.e., a ironia da própria natureza falando através de um indivíduo. Não há outro termo se não "goethiana" para caracterizar a posição de Goethe. Pode-se recorrer a termos como "panteísta", "spinozis-ta", "naturalista", "vitalista", mas Goethe sempre escapa. Infinitamente metamórfico, tanto quanto a natureza, Goethe é o seu próprio Espírito da Terra, permanecendo um ou dois passos à frente da nossa compreensão. Em termos norte-americanos, ele seria um amálgama (improvável) de Emerson, Walt Whitman e Emíly Dickinson, ainda que fosse bem mais escabroso (em dados momentos) do que qualquer um desses três. As estranhas incursões do poeta nas ciências naturais - a metamorfose das plantas e a teoria das cores - refletem a sua profunda auto-identificação com uma natureza em constante de mutação, à espera do nascimento da não-divindade. Recusando-se, termimente, a ser profeta, Goethe não pregou uma religião do futuro. Antes, procurou nor a totalidade da história cultural, do Oriente e do Ocidente, clássica e cristã, encarnar^ e secular. Em suas fases finais, ele ensaia o milagre de se tornar um poeta sa e um poeta chinês em língua alemã, como se fosse o herdeiro legítimo de todas as eras. Deveras, não há outro como Goethe, conquanto ele tenha desempenhado os papéis de Píndaro e Shakespeare. O único rival, no âmbito da poesia alemã, foi o inquieto e mais jovem contemporâneo, Hõlderlin, cujos poemas característicos Goethe não chegou a conhecer. A exaltação diante da ausência de precedentes sempre acompanhou Goethe, de vez que, felizmente, não teve predecessores influentes na Alemanha; estabeleceu, de bom grado, uma parceria com Schiller, mas este era uma década mais novo do que ele. Até Shakespeare foi obrigado a absorver Christopher Marlowe, mas o jovem Goethe estava só, ao vento e às intempéries. A condição poética de Goethe era tão afortunada que a felicidade criativa em que ele vivia talvez explique a sua excepcional demora na iniciação sexual, ocorrida, em um primeiro momento, durante uma viagem pela Itália, aos trinta e tantos, e, mais tarde, com Christina Volpius, ao retornar a Weimar. Até então o que se poderia chamar de carreira erótica de Goethe caracterizara-se por relacionamentos intensos que evitavam qualquer consumação, dos quais o mais duradouro e autodestrutivo foi uma paixão fraternal e idealizada pela virtuosa Charlotte Von Stein. Talvez a originalidade de Goethe se estendesse até os domínios do desejo, com grandes benefícios à poesia das fases iniciais de sua carreira, embora à custa de muito sofrimento desnecessário, para ele e terceiros. Goethe era arguto demais para não saber que havia construído a própria felicidade e harmonia, ainda que, às vezes, quisesse crer que ambas decorressem de dons naturais. Seu último discípulo de génio, o ficcionista alemão do século XX, Thomas Mann, acerta em cheio, no ensaio "Goethe como Representante da Era Burguesa" (1932): Kevelam-se em Goethe, mediante análise acurada, tão logo terminada a inocência da juventude, sinais de profundo desajuste e mau humor, uma depressão canhestra, que, decerto, possui ligações fortes e misteriosas com a desconfiança do poeta relacionada às ideias, e com a sua indiferença de filho da natureza (...). A natureza nao propicia paz de espírito, simplicidade, ingenuidade; ela é elemento questionável, contradição, negação, dúvida total. Ate parece que Mann se refere a Johnson ou Boswell, ou a si mesmo. Goethe asso-a elicidade ao assombro, e se aprazia de refutar generalizações feitas a seu respeito. 198 199 Sem dúvida, rebateria qualquer sugestão de que elementos-chave da cultura ocidental houvessem chegado a um ponto definitivo, tanto na sua obra quanto na sua personalidade, mas, de fato, suspeito ter sido esse o caso. Ler Goethe é, para mim, algo de um rascínio interminável, mas os romances de Wilhelm Meister, Egmont e Os Sofrimentos do Jovem Wertber são hoje peças de museu, veículos de realidades passadas. Fausto, especialmente a esplêndida Segunda Parte, é fantasia grotesca, pesadelo erótico, analisado por mim em outro livro (O Cânone Ocidental), obra que insisto deve ser lida por todos os leitores capazes de suportar tal experiência. Não se trata de haver algo errado com Goethe {o escritor, conforme Emerson o chamava) - existe algo muito errado conosco. Não perdemos apenas sabedoria, mas as qualidades de espírito que constituem requisitos mínimos para uma leitura prazerosa de Goethe. E. R. Curtius, principal crítico literário alemão do século que acaba de se encerrar, aponta, de modo pertinente, que a Segunda Parte de Fausto é mais barroca do que clássica, e que o autor incorporava um individualismo aristocrático, segundo o qual "a verdade já foi descoberta há milhares de anos". Onde? Bem, mutatis mutandis, na Bíblia e em Platão e Aristóteles - contudo, o que Goethe quer dizer com tal afirmação, uma vez que hebreus e gregos em quase nada concordavam? Goethe adverte-nos a não nos deixarmos enganar por eventos de uma ou duas décadas, mas a contracultura tem triunfado no Ocidente há, pelo menos, três décadas, e promete continuar na ofensiva na era da Rede Mundial de Computadores. Brutalmente elitista, Goethe, já idoso, disse a Eckermann (o seu Boswell): "Meus escritos não podem se tornar populares (...), não se destinam às massas, mas aos indivíduos dotados de aspirações e propósitos semelhantes [aos meus]." Curtius acreditava que Goethe, como herdeiro de Dante e Shakespeare, devia ser considerado "a concentração da mente ocidental em uma pessoa", e não identificava um indivíduo sequer, após Goethe, sobre o qual o mesmo pudesse ser afirmado. Se é que houve tal figura, seria Sigmund Freud, e não Joyce ou Proust, os maiores escritores do século XX. Nenhum autor norte-americano - nem Emerson, nem Walt Whitman, nem Henry James - reúne o que há de melhor na tradição, como o fez Goethe. Esse esforço agregativo, em todo caso, não configura uma dinâmica norte-americana, ou, vale dizer, a ênfase emersoniana recai sobre outras questões. Freud também enfatiza outras questões, mas concordo com as palavras de Thomas Mann, em um discurso feito em Viena, em 9 de maio de 1936, por ocasião do 80" aniversário de Freud. Mann conclui comparando Freud à fala final do Fausto de Goethe, em que o personagem centenário, sempre em busca, declara o próprio triunfo contra o mar da morte. Freud, escritor de sapiência tanto quanto Goethe, talvez seja o último autor dentro da tradição ocidental que buscava afirmar o poder da mente criativa diante do universo da morte. O génio de Freud encontra-se, atualmente, obscurecido, porque suas asserções científicas são alvo de críticas, ou mesmo porque é defendido, como cientista, por um minguado número de fiéis seguidores. Tanto os que o difamam quanto os que o defendem me parecem irrelevantes; atacar Freud pelo seu cientificismo, em última instância, parece tão sem propósito quanto depreciar Goethe por suas pesquisas com plantas e cores. Ou, variando a analogia, a insistência de Freud de que a psicanálise faria uma contribuição à biologia é, a meu ver, tão interessante quanto as declarações de Dante de que a Divina Comédia é a pura verdade sobre Deus, Inferno, Purgatório e Paraíso. Lemos Dante com admiração e gratidão estética, ao mesmo tempo em que hesitamos diante da teologia do poeta. E assim lemos Freud, maior ensaísta do seu tempo, embora lhe descartemos a tendência de tornar literal as suas próprias metáforas. Freud é tão metafórico quanto Goethe ou Montaigne, e, como eles, é, antes de tudo, um escritor. Francis Crick, com satisfação, reduz Freud a um médico dotado de bela prosa; na verdade, o estilo da prosa de Freud é mesmo belo, mas a noção de Crick ignora as esplêndidas aplicações literárias a que se presta tal estilo. Freud junta-se a Johnson, Boswell e Goethe, na qualidade de autobiógrafo original e vital, bem como de dramaturgo do eu. O que é ainda mais importante, forma um trio, com Johnson e Goethe, de sábios autênticos, moralistas validados por dotes intelectuais extremamente raros. E vão o esforço de descartar Freud, pois ele está dentro de nós. A mitologia da mente por ele desenvolvida sobrevive à sua suposta ciência, e é impossível evitar-lhe as metáforas. Estou ciente de que falo como uma pessoa de 71 anos de idade e que leitores mais jovens talvez não tenham consciência de que neles sobrevivem as especulações de Freud. Contemplemos o leque maravilhoso das invenções freudianas: a libido, o instinto de morte, as agências psíquicas (id, ego e superego), o inconsciente, os mecanismos de defesa (repressão, projeção, regressão e tantos outros), bem como o desenvolvimento do instinto sexual através das fases oral, anal e genital. A psicologia dinâmica ou dramática é shakespeariana ou goethiana, ou seja, retórica ou literária. "Inventei a psicanálise porque não tinha literatura", Freud anunciou, mas essa s"literatura" era a própria literatura, especialmente Shakespeare e Goethe. De fato, não existe a libido, ou o instinto de morte, tampouco o inconsciente (embora, às vezes, identifico-o com as minhas costas), e as defesas são tão-somente notáveis metáforas. O filósofo Ludwig Wittgenstein atacou Freud, afirmando que psicanálise era especulação, e não hipótese. Na tentativa de rejeitar Freud, Wittgenstein refere-se a uma "poderosa mitologia", mas isso, a meu ver, não configura uma rejeição. Freud, em 200 201 1933, admitiu, com satisfação: "A teoria dos instintos é mitologia nossa. Instintos são entidades míticas, magníficas em sua indefinição." Eis o Sublime em Freud, com o seu humor proposital. Forças nos impelem, assim como o fizeram com Homero e com Shakespeare, na fase final da carreira. Existe algo de incognoscível em nosso erotismo, ao que Freud denomina instinto. Não há objeto ou propósito específico ao instinto. Trata-se de um conceito fronteiriço que perambula como um exilado, entre a psique e o corpo, perambulação que constitui as vicissitudes do instinto. Quando fronteiriças, as vicissitudes podem ser perversões ou defesas, daí a condição ambígua do sadomasoquis-mo, o instinto em exílio permanente. O que dizer desse tipo de especulação? Será que difere, em modalidade, dos mitos platónicos? Freud? que não era transcendentalista, agarrava-se a um certo platonismo, ao exaltar a prova da realidade. Era moralmente necessário conviver com a realidade, cuja forma final constituía-se na morte. Farto desse tipo de moralismo, um contemporâneo de Freud, o satirista vienense Karl Kraus, disparou a rajada indefensável: "A própria psicanálise é a doença que se propõe curar." A afirmativa merece uma reflexão serena. Será o próprio cristianismo a queda da qual se propõe livrar? Philip Rieff considerava Freud o primeiro moralista inteiramente desprovido de religião, mas assim pensar talvez signifique preterir Goethe, e ainda temos Montaigne, em cuja obra Sócrates está presente e Jesus, ausente. Quarenta anos atrás, Rieff podia descrever Freud como figura dominante em nossa cultura, mas tal dominância já se evaporou. Freud, que queria formar uma tríade com Copérnico e Darwin, formou um trio com Montaigne e Goethe. As minguantes sociedades psicanalíticas estarão extintas antes do advento da próxima geração. A expressão "o Freud literário" tomar-se-á redundante, tão estranha quanto dizer "o Montaigne literário" ou "o Goethe literário". A ciência (ou cientificismo) era a defesa de Freud contra o antisemitismo: a psicanálise não era para ter sido classificada como "a ciência judaica", conforme se tornou para o desequilibrado Jung, pseudognóstico mais próximo do Fausto original do que de Valentim. Freud, personalidade magnífica, não se assemelha ao Fausto incolor de Goethe, e era bem menos endiabrado do que o próprio Goethe e o seu Mefistófeles, personagem que consegue salvar Fausto de Fausto. Atualmente, um grupo de ressentidos e frustrados estigmatizam Freud, tachando-o de charlatão, o que constitui um avilte, sendo ele figura tão majestosa. O sábio de Viena, que, substituindo o judaísmo pela psicanálise, pretendia tomar-se nada menos do que um novo Moisés, ao invés disso, tornou-se um novo Próspero, mas um Próspero que se recusaria a quebrar o bastão e lançar o livro ao mar. Freud tinha prazer em se autodenominar um desbravador ou, se não, um Aníbal, inimigo semita de Roma, ou um Cromwell, que subjugou a igreja estabelecida. Exilou-se em Londres, não em Jerusalém, por acreditar que a Palestina seria sempre o berço de novas superstições. Muito me agrada a obra O Futuro de Uma Ilusão, ainda que seja talvez o livro mais fraco de Freud, somente porque me apraz imaginar T. S. Eliot, anti-semita respeitável, exasperando-se ao lê-lo. Disso, também Freud se agradaria. Moisés e o Monoteísmo, romance escrito por Freud, deixa bastante explícita a identificação entre as histórias da religião judaica e da vida do novo Moisés, Solomon Freud (esse seria o seu nome hebraico, que com ele muito mais combina do que o wagneriano Sigmund). O lema de Freud, tanto com relação a católicos quanto a judeus ortodoxos, bem poderia ter sido: "Ultrajai-os, ultrajai-os sempre." T. S. Eliot, com efeito, sentiu-se ultrajado, mas qualquer judeu, mesmo que fosse muito menos talentoso do que Freud, bastava para provocar o desdém de Eliot. O único génio judeu apreciado por Eliot era o personagem de Christopher Marlowe - Barrabás, O Judeu de Malta -, que morre derretido em óleo fervente, embora, para fazer justiça ao abominável Eliot, caiba registrar a sua admiração por Groucho Marx. Freud orgulhava-se de sua originalidade, e negava ter lido Schopenhauer e Nietzsche, negação que não me convence. Shakespeare, precursor autêntico, foi por Freud reduzido "ao sujeito de Stratford" que usurpou a glória do Conde de Oxford, verdadeiro autor de todas as peças (algumas escritas além-túmulo). Os detratores oxfordianos de Shakespeare formam um bando perverso, propenso a enviar cartas venenosas (eu mesmo já recebi diversas). O mapa freudiano da mente é criação do próprio Freud, mas Freud tinha um complexo de Hamlet, tanto quanto Goethe - Shakespeare, mais uma vez, atuando no papel de Fantasma do pai. Pairando à meia distância, estava a figura de Charles Darwin, sabiamente identificado por Alexander Welsh como um (afrontoso) precursor de Freud. Quão consternado ficaria Freud diante do fato de, atualmente, nos Estados Unidos, Darwin continuar a escandalizar os fundamentalistas, enquanto as provocações de Freud são esquecidas! Darwin prossegue desferindo golpes mais profundos do que Freud; diversos estados e conselhos educacionais norteamericanos hoje exigem a inclusão de disciplinas sobre "ciências da criação", mas desconheço a existência de disciplinas obrigatórias de conteúdo antifreudiano. Evolução é um tema vivo; inconsciente, instintos e repressão são como animais empalhados, objetos de decoração. Não digo isso para denegrir o grande génio de Freud, mas apenas para reiterar que vivemos em um novo tempo, em que a realidade se constitui do genoma e do computador, não da especulação freudiana. VI. Freud, a despeito da pletora de talentos, era um judeu-vienense, e, na década de 1870, quando frequentava a universidade, apenas certas profissões estavam-lhe disponíveis. Após assistir a uma leitura pública do hino à Natureza, de Goethe, Freud decidiu202 203 se pelo estudo da medicina. No entanto, jamais viria a se considerar um indivíduo que dispensava curas. A investigação de Freud - a psicanálise apresentava-se como abordagem interpretativa, mas trata-se de uma interpretação sumamente pessoal, e não de um método. Uma interpretação de quê? Até mesmo isso é, hoje em dia, disputado. Rieff escreveu, de modo cativante, que "Freud democratizou a genialidade, ao conferir a todas as pessoas um inconsciente criativo". Atualmente, esse tipo de ilusão afável nos faz arregalar os olhos. Terá o Presidente George W. Bush um inconsciente criativo? Posso até ser obsoleto, ao defender a volta a uma noção menos benevolente de génio, ou, quem sabe, Freud, em seu desprezo aristocrata pelos que demonstravam ambição intelectual menor do que a dele, estivesse sendo mais irónico do que até hoje imaginamos. Na geração passada, falávamos de fenómenos "pós-freudianos"; hoje creio que continuamos sendo pós-shakespearianos, mas pré-freudianos: a psicanálise adveio, obteve um triunfo dúbio, e partiu - para sempre. Finalmente, temos a liberdade de ver Freud com clareza, como génio da expressão e como profeta que denunciava o declínio cultural, e não como fundador de uma disciplina, ou de uma terapia universal. Na minha juventude, os freudianos praticavam uma melancólica idolatria, com relação ao pai da análise; para eles, a hagiografia, em três volumes, escrita por Ernest Jones, freudiano de origem galesa, era uma espécie de Talmude, e a Bíblia era a edição oficial das obras de Freud, traduzidas para a língua inglesa por James Strachey, em eloquente prosa edwar-diana que captava a dignidade e a contundência do mestre, muitas vezes à custa da ironia. Embora durante alguns anos, no meio da minha jornada, tenha sido um tanto freudiano, absorvi-o junto com grandes doses de Emerson, e já faz muito tempo que fiz dos críticos literários o meu Talmude e dos poetas a minha Bíblia. Porém, confrontando Freud, aprendi a ser reverente; um estudo sobre Freud, cujo título seria Transferência e Autoridade, foi o único livro que jamais consegui concluir. E fui obrigado a cancelar uma disciplina de pósgraduação sobre Freud ofertada anualmente porque, à medida que se aproximava o final do semestre letivo, meus lapsos verbais, parapraxias da Psicopatologia da Vida Cotidiana, tornavam-se cada vez mais frequentes, até que uma aula final resultou, inadvertidamente, cómica, pois eu mal conseguia me expressar. A verdadeira autoridade de Freud, assim como a de Johnson, Goethe e Emerson, sempre foi e continua sendo literária. O leitor deve ler Freud sem presumir que ele tudo sabe. Não há gnose ou sabedoria secreta em Freud, mas há uma visão extremamente aberta e muito conhecimento pragmático. Ele tem uma certa opacidade, mas o mesmo pode ser dito com relação a Santo Agostinho, Johnson e Goethe: sábios têm os seus defeitos. De modo geral, os génios sobrepostos neste livro dividem-se entre escritores sábios e criadores de maravilhas estéticas, mas tal divisão é dúbia. Goethe pertence a ambas as SAMUEL JOHNSON, JAMES BOSWELL, JOHANN WOLFGANG VON GOETHE, SIGMUND FREUD, THOMAS MANN categorias, assim como muitos outros aqui arrolados. Freud é um esplêndido escritor discursivo, certamente o maior ensaísta do século XX, comparável a Emerson, Hazlitt, Pater e John Stuart Mill, no século XTX. Ocorrem-me textos extraordinários, como "Luto e Melancolia" ou "Sobre o Narcisismo: uma Introdução", ou o impactante Totem e Tabu, mas prefiro invocar uma grandeza mais serena, condizente com um herdeiro de Goethe. Focalizo uma obra tardia - Inibições, Sintomas e Ansiedade (1926) -, cujo título, em uma tradução anterior, foi O Problema da Ansiedade. Trata-se da revisão feita pelo próprio Freud das suas primeiras teorias (um tanto tresloucadas) sobre ansiedade, segundo as quais ansiedades eram despertadas pela libido. A excitação não extravasada acumulava-se, e esse desejo frustrado surgia em forma de ansiedade. A ideia tem um certo apelo popular, mas Freud desconfiava da validade de uma origem comum ao instinto e à ansiedade e, corajosamente, admitiu o próprio erro: Enquanto a visão anterior supunha que a ansiedade resultava da libido, relacicnando-se a impulsos instintivos reprimidos, a atual, pelo contrário, propõe o ego como a origem da ansiedade. Em seu Estudo Autobiográfico (1935), Freud refere-se a esta como uma das suas percepções analíticas mais conclusivas, e a assertiva, com toda a sua objetividade, de fato constitui uma grande auto-revisão. Fica descartada a ansiedade inconsciente; a ansiedade passa a ser vista como um temor experimentado pelo ego consciente. O indômitc Macbeth, personagem predileto de Freud nas peças do Conde de Oxford (i.e., dí Shakespeare), é o modelo implícito. À medida que os crimes se multiplicam, cresce Í ansiedade de Macbeth, alertando-o do perigo, o que o faz cometer mais atrocidades Lady Macbeth sucumbe, mas Macbeth é impelido pela própria ansiedade. Ao contrarie de Johnson e Boswell, e de Goethe (em certas fases), Freud, tanto quanto Macbeth, imune à melancolia. Depressão e ansiedade (no sentido macbethfreudiano) são antité ticas. Na ironia mais elevada, a ansiedade é vitalizadora para o ego: provê energia demoníaca, impulsionando o génio de Macbeth - e de Sigmund Freud. Freud insistia na unidade entre sua vida e sua obra: Este Estudo Autobiográfico demonstra como a psicanálise veio a se tornar a totalidade do conteúdo da minha vida e, acertadamente, estabelece que as minhas experiências pessoais não têm o menor interesse, comparadas às minhas relações com a referida ciência. Já que tal ciência não existe, o que acontece com essa mesma afirmação, se substi tuirmos as palavras "psicanálise" e "ciência" pela palavra "poesia"? Se trocarmos a pala 204 205 h v "poesia" pela expressão "narrativa ficcional", poderia a afirmação ser atribuída a Goethe, ou a Thomas Mann? Freud, tanto quanto Montaigne, Goethe ou Mann, com efeito, mostra-nos a obra na vida, e não a vida na obra, mas ficaria furioso se lhe dissessem que seu trabalho era redigir ensaios. Assim como Johnson ou Emerson, Freud é um sábio prudente, mais um inusitado ensaísta que trata da moral. E, tanto quanto Goethe, Freud é uma sumidade no que diz respeito à relação entre cultura e caráter. Passei a vida toda ensinando Literatura e, cada vez mais, vejo-me cercado de académicos impostores que se autodenominam "críticos culturais". Não são nada disso: são trompe-tistas do ressentimento. Freud, no início do terceiro milénio, continua sendo o último crítico verdadeiro da nossa cultura, e, como tal, tem uma utilidade sublime. Pouco importa que desejaste ser Darwin e acabasse por se tornar Goethe. Seu génio, nutrido pelo cientificismo do século XIX, foi ativado por sua própria auto-ilusão. Wittgenstein, em cujo entendimento Freud estava quase sempre equivocado, e desprovido de sabedoria, no entanto, admirava-o "por ter algo a dizer". As avaliações culturais de Wittgenstein provocam em mim um certo tédio, inclusive porque ele se uniu a David Hume, integrando o grupo de filósofos que se ressentiam de Shakespeare. O que Emerson disse a respeito de Platão, a meu ver, vale também para Freud: Jamais houve tamanho alcance de especulação. Vem de Platão tudo o que ainda hoje é escrito e debatido entre os pensadores. Um grande dano é o que ele causa à nossa originalidade. Interrompo a citação neste ponto, porque a sentença seguinte se aplica a Platão, mas é demais para Freud: [Em Platão] chegamos à montanha da qual rolaram todas as pedras. Qual seria, precisamente, a originalidade de Freud, a assinatura autêntica do seu génio? Encontro essa originalidade, com muita nitidez, na sua visão de Eros, que não é de Platão, nem de Agostinho, nem de Dante, mas semelhante à de Shakespeare (embora bem mais redutiva). Freud conjecturava que nos apaixonamos para não adoecermos, de modo que, efetivamente, evitamos uma enfermidade aceitando outra. Por mais brilhante que seja a sua descrição dos pesares de Eros, a grande originalidade de Freud não reside nesses apuros do espírito. Porém, no que toca à motivação central do amor, Freud é de uma originalidade assustadora: o espírito murcha, gloriosamente, na atmosfera da solidão, e o transbordante eu interior corre o risco de se afogar em seus próprios excessos: Um forte egoísmo é uma proteção contra a enfermidade, mas, no extremo, precisamos começar a amar, a fim de evitar a doença, e haveremos de adoecer, se, em consequência de uma frustração, não conseguimos amar. A primeira dessas enfermidades é a mais irónica e mais interessante - pode-se até dizer, a mais freudiana. É preciso se ter um narcisismo psíquico extraordinário, um ambição similar à de Macbeth, para sentir receio de sucumbir (a menos que se tenh amor), em consequência de investimentos feitos no próprio eu. De todas as epifania freudianas, considero extremamente reveladora a observação feita por ele em um exem piar de uma das primeiras edições de A Psicopatologia da Vida Cotidiana. Fúria, indignação e, consequentemente, o impulso de morte são a origem da superstição em neuróticos obsessivos: um componente sádico, relacionado ao amor e, portanto, voltado contra a pessoa amada, e reprimido, exatamente, por causa dessa ligação e porque ela é intensa. A minha própria superstição tem origem na ambição suprimida (a imortalidade) e, no meu caso, substitui aquela ansiedade com relação à morte que brota da incerteza natural da vida. O desejo de imortalidade não é menos poético aqui do que nos sonetos de Petrarc ou de Shakespeare. O Eros de Freud ilumina, novamente, um componente centn daquilo que a tradição denomina "génio": o poder da vontade de realizar e eterniza Contrastemos, com a caracterização feita por Freud de sua "superstição", este célebi trecho de uma carta de Johnson a Boswell: Espreita, talvez, em todo coração o desejo de sucesso, que leva todo homem, primeiro, a alimentar uma esperança e, depois, a acreditar que a Natureza o agraciou com algo singular. Essa vaidade faz uma mente nutrir aversões, outra, acionar desejos, até se elevarem, pela arte, muito acima da sua capacidade original; e como, com o tempo, a afetação se torna hábito, aversões e desejos passam a tiranizar aquele que primeiro os estimulou. Para Johnson, somos todos o que Freud chamou "neuróticos obsessivos , e expressão "todo homem" parece frustrar as expectativas do génio. Johnson, no entanto, distingue entre "aversões" e "desejos", assim como Freud distingue entre comp( nente sádico" e "ambição suprimida (a imortalidade)". Em última instância, tant Johnson quanto Freud nos conduzem de volta ao saber melancólico do Kohelet (Eclesiastes): 206 207 Tudo o que puderes fazer, faça-o enquanto tens forças, porque no mundo dos mortos, para onde vais, não existe ação, nem pensamento, nem ciência, nem sabedoria. Esse Pregador bíblico não tem "ansiedade em relação à morte" ou ilusões a respeito da imortalidade. Parece estranho caracterizar Johnson e Freud pela nostalgia, mas o grande niilismo do Eclesiastes é pesado até para os mais vigorosos. VIL Em um dos seus Últimos Ensaios (publicados, postumamente, em 1958), Thomas Mann retorna a Goethe, em algo qualificado como "Fantasia", a fim de refletir sobre o milagre do génio da personalidade do precursor alemão. Mann inicia (estava prestes a completar 80 anos) com uma citação da última carta escrita por Goethe, aos 83 anos, ao amigo Wilhelm von Humboldt, o célebre filólogo: O melhor génio é o que tudo absorve, o que de tudo se apropria, sem prejuízo de sua própria disposição subjacente, ao que chamamos de caráter. Antes, o que vem de fora serve para aperfeiçoar tal caráter e, na medida do possível, somar à sua potencialidade. Comentando essa citação, Mann fala de um "narcisismo esplêndido", e cita o elogio de Goethe à personalidade como "a bem-aventurança suprema do homem mortal". O carisma de Goethe, decerto, não foi herdado pelo seu último grande discípulo, Thomas Mann, carisma esse que serve de estribilho ao divertido ensaio "Fantasia sobre Goethe". É lamentável que Mann, famoso nos Estados Unidos à época da minha juventude, venha desaparecendo, rapidamente, nos últimos anos, apesar do esplendor de A Montanha Mágica e de muitas das suas outras obras de ficção. Nos dias de hoje, Mann é submetido a irónico renascimento como escritor homossexual, recentemente exposto. Seria de se esperar que os tangíveis méritos estéticos de seus romances e contos bastassem para garantir-lhe a sobrevivência literária no terceiro milénio, mas Mann, tanto quanto o seu heróico Goethe, era um grande ironista, e a ironia é algo difícil de ser resguardado no momento atual. Mann, génio da ironia, não pôde dominar a arte que enseja a criação de personagens shakespearianos ou cervantinos, arte essa que, no século passado, talvez só tenha sido dominada por Proust e Joyce. Hans Castorp, protagonista de A Montanha Mágica, é imensamente admirável e querido, e aprendemos a não tomar no sentido literal a cons208 tante ironia de Mann com respeito à mediocridade do melhor herói por ele criado. A ironia, seja na literatura ou na vida, é gesto defensivo, e Mann ressentia-se dos críticos que consideravam sua obra mais irónica do que cómica. A Montanha Mágica e Doutor Fausto não são, absolutamente, romances cómicos, mas As Confissões do Vigarista Félix Krull certamente, o é, e demonstra o surgimento tardio da personalidade goethiana em um protagonista de Mann. Quero, porém, deter-me aqui em Doutor Fausto, romance tortuoso, sem dúvida, prejudicado por uma ironia interminável, mas que, apesar disso, é uma criação genial, que, receio, esteja fadada a cair no esquecimento, em todos os países. Mann angustiou-se demais com Doutor Fausto, e chegou a escrever um livro inteiro sobre o romance: História de um Romance. A epígrafe desse auto-estudo sumamente narcisista é, como seria de se esperar, extraída da fascinante autobiografia de Goethe, Poesia e Verdade. No momento em que é publicada, toda obra de criação deve sustentar-se por si mesma e provocar o efeito a que se propõe. Por isso, jamais fui propenso a suplementar meus trabalhos de prefácios ou posfácios, tampouco apresentei quaisquer justificativas aos críticos. Contudo, quanto mais esses trabalhos recuam no passado, tanto menos eficazes se tornam, comparados à eficácia original. Deveras, quanto mais consignados à cultura nacional, menos são estimados, assim como as mães são, facilmente, ofuscadas pelas belas filhas. Portanto, é justo e válido garantir o valor histórico dessas obras, discutindo-lhes as origens com homens de discernimento e boa vontade. Essas "belas filhas", supõe-se, seriam as obras dos autores pós-Goethe, conquanto a astuta apropriação de Mann aponte para escritos norte-americanos que ofuscaram Doutor Fausto. E penoso recordar que Mann, em a História de Um Romance, admite elevadas expectativas com relação a Doutor Fausto: Daquela feita eu sabia o que pretendia realizar, bem como o alcance da tarefa a que me propunha: escrever nada menos do que o romance da minha era, disfarçado da história da vida de um artista, um artista pecador, sujeito a grandes perigos. Goethe, mais do que o seu próprio Fausto, ronda o Fausto de Mann. O perfeccionista Thomas Mann tem plena consciência de que carece da espontaneidade de Goethe, do excesso sublime de uma personalidade carismática. Podemos conceber Goethe como personagem shakespeariano, mas não Mann, cuja representação seria a tal ponto problemática que até Shakespeare sentir-se-ia intimidado. Goethe ouvia-se a si mesmo 209 constantemente, e deleitava-se com suas consequentes metamorfoses. Mann transfor-mou-se a fim de sobreviver, especialmente nos anos de exílio, nos Estados Unidos, mas restringia as auto-revelações as obras, em vez de experimentá-las na vida. A sombra de GoetJie raramente o deixava; Mann, no entanto, tinha coragem bastante para não se esquivar de tal sombra, mas para torná-la mais luminosa. Bildung, visão goethiana de autodesenvolvimento, foi sempre o ideal de Mann, mesmo quando objeto de paródia feroz, como ocorre do princípio ao fim de Doutor Fausto. A conferência proferida em 1936 - "Freud e o Futuro" - estabeleceu, implicitamente, o projeto de imitação de Goethe, a ser perseguido por Mann ao longo de toda a vida: Alexandre ssguiu os passos de Miltiades; os antigos biógrafos de César, certos ou errados, unham convicção de que este tomara Alexandre por modelo. Mas essa "imitação" tinha um sentido bem mais amplo do que o de hoje em dia. Tratava-se de uma identificação mítica, peculiar à Antiguidade; no entanto, o procedimento é observado ainda nos tempos modernos, sendo, em qualquer período, fisicamente possível. Dois parágrafos adiante, Mann revela que o verdadeiro tópico do ensaio não é Freud, mas Goethe: Para mim, com toda seriedade, o elemento mais feliz, mais agradável do que chamamos educação {Bildung), o formador do sentimento humano, é a forte influência decorrente da admiração e do afeto, a identificação infantil com uma imagem paterna construída a partir de uma profunda afinidade (...). Imitatio Goethe, com suas fases de Werther e Wilhelm Meister, com o período final de Fausto e O Divã, ainda pode formar, moldar, em uma dimensão mítica, a vida de um artista. Nem Fausto, de Goethe, nem Doutor Fausto, de Mann, são obras muito lidas atual-mente nos Estados Unidos, ainda que a Segunda Parte de Fausto encerre uma sublimidade grotesca e o romance de Mann ainda fosse famoso até a época em que completei 40 anos (1970). O triunfo da contracultura destruiu o gosto do público pela ironia, em todo o mundo ocidental, e Mann parece fadado ao declínio (a menos que seja, de uma vez por todas, adotado pelos Estudos de Género). Essa tendência é absolutamente lamentável, pois algo muito valioso chegou ao fim com Thomas Mann. Somente os eruditos hoje lêem Johnson e Boswell, e Goethe é um emblema cultural apenas em regiões de língua alemã. Os dias de Freud já se passaram, e talvez já não seja possível revivê-lo como ensaísta, pois ele próprio insiste em ser mais do que isso. Mann, que associava Goethe a Freud, talvez venha a ser reduzido a uma relíquia de ambos. III BINAH 1 210 A LUSTRO 5 Friedrich Nietzsche, Sõren Kierkegaard, Franz Kafka, Mareei Proust, Samuel Beckett c M ssim como Keteré o ápice da consciência, e Hokmah é essa consciência elevada, meditando ou contemplando a si mesma, Binab é a inteligência realizada em .. sabedoria, ou um prisma que ilumina o que pode ser apreendido. Por conseguinte, reuni no quinto Lustro alguns dos extraordinários sábios da refração da luz. O perspectivismo de Nietzsche, o empenho de Kierkegaard para ser apóstolo e não apenas génio, bem como as visões desesperadas de indestrutibilidade constatadas em Kafka somam-se à imensa narrativa em busca da memória, em Proust, e à temática pós-protestante, de Beckett, relativa à nossa persistência, quando persistir parece ser tão impossível quanto a imortalidade. O que confere unidade a este Lustro é a espiritualidade exacerbada desses visionários. Até Mareei Proust, dândi leigo, ensina-nos que a mente criativa converte consciência em sabedoria espiritual, transformando perda amorosa em transcendência do eu, com relação à sua própria iminente dissolução. Maior artista entre os cinco, Proust não se iguala aos demais como ascetas do espírito, mas quem de nós pode se equiparar a Proust? 213 FRIEDRICH NIETZSCHE FRIEDRICH NIETZSCHE A concepção cristã de Deus - o Deus dos enfermos, o Deus na condição de espírito - é uma das noções mais corruptas de divindade desenvolvidas na Terra. Tal noção talvez seja o nível mais ínfimo observado no declínio de tipos divinos. E Deus reduzido à contradição da vida, em vez de ser a transfiguração da vida, o eterno Sim! Deus como declaração de guerra contra a vida, contra a natureza, contra a vontade de viver! Deus - fórmula de toda calúnia contra "este mundo", de toda mentira acerca do "além"! Deus - o endeusamento do nada, a vontade ao nada santificada! - O Anticristo, 18 Nietzsche proclamou o cristianismo a religião do niilismo e, portanto, decadente. O título O Anticristo induz a uma interpretação equivocada, pois Nietzsche não se opõe a Jesus, mas ao cristianismo histórico e institucional, à sua moralidade e teologia. O Novo Testamento, e especialmente Paulo, é rejeitado por Nietzsche, mas, em última instância, o filósofo identifica-se com o Nazareno crucificado. O argumento mais potente de O Anticristo apresenta o cristianismo como a religião do ressentimento e da vingança, e não do amor e do perdão. A despeito de qualquer avaliação do cristianismo, O Anticristo não expressa o que há de mais sólido em Nietzsche. Seu génio brilha em Genealogia da Moral que, antecipadamente, ocupa a posição que Freud tentaria assumir em Totem e Tabu. os ancestrais das tribos mais poderosas tornaram-se tão assustadores no campo da imaginação que, finalmente, recorreram a uma sombra numinosa: o ancestral tornase um deus. Talvez daí tenham surgido todos os deuses, do medo (...). E se alguém considerar necessário acrescentar - "mas, também, da piedade" -, tal argumento não se sustentaria diante do período mais longo e mais remoto da raça humana. Equivocamo-nos a respeito de Nietzsche, se não percebermos que, à semelhança de Sócrates e Hamlet, ele tem uma desconfiança profunda da linguagem: Já não nos estimamos o bastante, quando nos comunicamos. Nossas verdadeiras experiências não são, absolutamente, loquazes. Não conseguiriam se comunicar, mesmo que tentassem fazê-lo. Isso porque carecem da palavra correta. A tudo o que já atribuímos palavras, já ultrapassamos. Em toda prosa há um dedo de desprezo. O génio de Nietzsche é mais intenso quando nos adverte da probabilidade de expressarmos algo que já está morto em nossos corações. E génio algum jamais nos alertou, com tamanha contundência, sobre o preço que pagamos pelo génio de terceiros: É extraordinário o perigo subjacente a grandes homens e grandes eras; seguemnos todos os tipos de exaustão, além da esterilidade. O grande ser humano é uma conclusão; a grande era - a Renascença, por exemplo - é uma conclusão. O génio, em obras e atos, é, necessariamente, um esbanjador; no fato de esbanjar-se a si mesmo reside a sua grandiosidade. O instinto de autopreservação é suspenso, por assim dizer; a pressão irresistível de tal extravasamento o impede de qualquer preocupação ou cautela. Chamam isso "auto-sacrifício" e elogiam o "heroísmo" do génio, a sua indiferença no que concerne ao seu próprio bem-estar, a sua dedicação ao ideal, à grande causa, à pátria: sem exceção, tudo não passa de um grande equívoco. O génio extravasa, transborda, desgasta-se, não poupa a si mesmo -e isso constitui uma fatalidade involuntária, calamitosa, como um rio que inunda a terra. Porém, uma vez que muito se deve a esses rompantes, muito lhes é retribuído: por exemplo, uma espécie de alta moralidade. Afinal, assim procede a gratidão humana: interpreta mal os benfeitores. Decerto, interpretamos mal nosso benfeitor, Nietzsche, mas a interpretação correta é impossível, conforme ele próprio nos ensinou. Na loucura do último ano e meio de vida, ele achava que havia sofrido uma transfiguração, ressuscitado da crucificação. Talvez houvesse mesmo: identificou-se, inteiramente, com Dionísio. Algo chegou ao fim nele e com ele, e vivemos, em parte, sob o seu legado. 214 215 FRIEDRICH NIETZSCHE (1844-1900) A aurora trouxe-nos a Era da Informação. Onde encontraremos a sapiência? Minha resposta seria: "em Shakespeare, Goethe, Emerson, Nietzsche e seus poucos companheiros". Hoje em dia, Nietzsche é, antes de tudo, um escritor sábio, um grande aforis-ta. Ele se sobressaltaria com tal homenagem, pois considerava o estilo aforístico algo decadente. Contudo, à exceção da obra Genealogia da Moral, era esse o estilo exigido por seu temperamento. Aos 71 anos, um crítico literário já aprendeu a falar com franqueza, e não segundo os modismos, portanto, de início, descarto o "Nietzsche francês", atirando-o no cesto de lixo, junto com o "Freud francês". Considerarei somente o que Nietzsche fez, e continua a fazer, por mim. Cada palavra, escreveu Nietzsche, é um Vorurteil uma tendência, uma inclinação, o que em muito altera a minha leitura de Shakespeare. Para Shakespeare, cada palavra era, deveras, um Vorurteil, noção vital, quando escutamos as falas de Hamlet e Falstaff, os dois maiores mestres da linguagem em Shakespeare. Hamlet, diz Nietzsche, não pensa demais - pensa bem demais -, portanto, exemplifica a grande ideia expressa por Nietzsche, no Gòtzen-Dammerung, de que perdemos auto-estima quando nos expressamos, pois só encontramos palavras para exprimir o que já foi transcendido, de modo que o ato da fala traz consigo um certo desdém: "(...) Isto é decente, / Que eu (...) / Qual meretriz sacie com palavras / Meu coração, co'as pragas das rameiras."1 Assim fala Hamlet, que, a meu ver, não questionaria o saber de Nietzsche, mas pergunto-me se Sir John Falstaff não levantaria alguma objeção, pois, ao contrário de Nietzsche e Hamlet, tinha plena confiança na linguagem: Com os demónios! Já era tempo de fingir de morto, antes que esse escocês turbulento me livrasse das dívidas. Fingir? Minto; não fingi coisa alguma. Morrer é que é fingimento, porque quem não tem vida de homem, não passa de fingimento de homem; mas fingir de morto para conservar a vida, não é fingir a imagem da vida, senão representá-la com verdade e perfeição.2 Falstaff estabelece os limites de Hamlet, assim como Shakespeare estabelece os de Nietzsche, pois Shakespeare é mais fecundo. Nietzsche aguça-nos a habilidade da leitu1 Tradução de Ana Amélia Carneiro de Mendonça, op. cit., p. 108. [N. do T.] 2 A Primeira Parte de Henrique IV. Tradução de Carlos Alberto Nunes. São Paulo: Melhoramentos, s/d. [N. do T.] 216 ra, mas não nos lê como o faz Shakespeare. Em O Anticristo, Nietzsche nos diz que Deus, passeando em seu jardim, sente-se entediado e, por conseguinte, cria o homem, como divertimento. Mas o homem também fica entediado. Ao que eu resmungo: Sir John Falstaff jamais fica entediado, pois sua inventividade é infinita. Shakespeare, mais criativo do que o Deus de Nietzsche, deu-nos Falstaff, que jamais deixa de nos divertir. Nietzsche deu-nos Zaratustra, tédio sublime. Sem Nietzsche, a leitura atualmente prescindiria de um certo gume, mas precisamos de algo a mais do que Nietzsche. Nietzsche tinha grande admiração por Emerson, e fez o melhor comentário que conheço sobre o sábio norte-americano: Emerson possui aquela alegria inteligente e fascinante que desarma qualquer sisudez; simplesmente, não sabe a idade que tem, ou a idade que há de ter; podia dizer, referindo-se a ele próprio e citando Lope de Vega: "Sou herdeiro de mim mesmo." Seu espírito sempre encontra razões para se sentir realizado e grato; em dados momentos, Emerson se aproxima da transcendência jubilosa de um cavalheiro digno, ao regressar de um encontro de amor, "como quem acaba de realizar uma missão". "Embora a força esteja carente", ele diz, reconhecido, "o apetite sexual, no entanto, merece um elogio." Gotzen-Dammerung seção 13 Esse pensamento é tão precioso quanto sagaz, mas expressa o reconhecimento de uma perda: "não sabe a idade que tem, ou a idade que há de ter". Emerson, assim como Lope de Vega, este um dos monstros da literatura, foi, deveras, herdeiro de si mesmo, noção que não se aplica a Nietzsche, que viveu sob a sombra de Goethe (e de Schope-nhauer). Por isso, Nietzsche, tanto quanto Freud, mais tarde, foi profeta da angústia da influência. Nietzsche aprendeu com o colega, Jakob Burckhardt, que o espírito helénico era agonista: "Todo talento deve ser revelado através do confronto." O maravilhoso fragmento nietzschiano, de 1872, intitulado "A Disputa de Homero", foi o ponto de partida de um livro por mim publicado quase um século depois, Angústia da Influência (editado, nos Estados Unidos, em janeiro de 1973). Além de nos ensinar a ler melhor, Nietzsche adverte-nos dos perigos de idealizarmos, exageradamente, a psicologia da criatividade. "Génio" é termo hoje em dia fora de moda. O Historicismo (contra o qual Nietzsche nos preveniu) triunfou na Era de Foucault, mas essa era já está passando. Todavia, a Rede Mundial de Computadores não será amena ao conceito de génio. Em meio àquele imenso oceano de textos, quantos de nós seremos capazes de discernir uma obra de grandeza transcendental? Será que Nietzsche vai se tornar apenas mais um melancólicoí 217 representante da alta cultura ocidental cuja obra há de parecer datada? Goethe, praticamente, já não é lido nos Estados Unidos, e Emerson, cuja centralidade, para a cultura norte-americana, compara-se à de Goethe, para a cultura alemã, interessa apenas a académicos antiquados. O aspecto-Zaratustra, profético, de Nietzsche, tornou-se hoje em dia tão arcaico quanto o credo de Freud: "Onde estivesse, lá eu estaria." Nietzsche não parece, em absoluto, desprovido de superego; com efeito, assemelha-se a uma versão de Hamlet, por ele considerado um herói dionisíaco. Será que Nietzsche vai entrar em declínio, como Chamfort ou Lichtenberg, grandes aforistas, mas hoje lembrados apenas como tal? Nada do que está sendo aqui afirmado encerra uma crítica a Nietzsche; trata-se apenas de uma oportuna reflexão a respeito da sobrevivência em uma era irracional, em que telas substituem livros, e a sensação nega o pensamento. O papel exemplar de Nietzsche vai desaparecer, ao menos, como mestre da leitura. Talvez perdure o crítico da religiosidade, à semelhança de Kierkegaard. Refiro-me, sobretudo, à perspectiva norte-americana, pois somos um país obcecado por religião, onde cerca de 90 por cento das pessoas (segundo recentes pesquisas do Instituto Gallup) acreditam que Deus as ama, pessoal e individualmente. Nietzsche disse, a respeito de Goethe: "criou-se a si mesmo". Mas, referindose a Deus, observou que ou ele é a "vontade de poder" ou, então, torna-se o bem. Vem-nos à mente o Deus nietzschiano do esplêndido romance de José Saramago, O Evangelho Segundo Jesus Cristo, figura bastante perversa, cuja preocupação exclusiva é expandir o próprio poder. O Jesus Cristo de Saramago, o cristão único de Nietzsche, morre na cruz, instando-nos a perdoar Deus: "Humanidade, perdoai-o, pois Ele não sabe o que faz." Se é que o legado nietzschiano há de continuar, isso ocorrerá na imaginação de escritores como José Saramago, ou da poeta canadense Anne Carson, cujo livro Glass, Irony, and God pode ser comparado ao Evangelho de Saramago, enquanto crítica às ideias correntes acerca de Deus. Talvez Nietzsche aceitasse a ironia desse legado estético. "Pensai na Terra!" é a advertência mais contundente que ele fez, e que deve continuar repercutindo. SÒREN KIERKEGAARD A diferença entre o homem que enfrenta a morte em defesa de uma ideia e um falsário que busca o martírio é que, enquanto o primeiro expressa a sua ideia com mais completude na morte, o segundo se satisfaz, na verdade, com a estranha amargura que decorre do fracasso; o primeiro regozija-se com a vitória, o segundo, com o sofrimento. - Kierkegaard, Diários, março de 1936 Kierkegaard sempre desejou, ardentemente, ser apóstolo de Cristo, e não apenas um génio solitário. Não poderia ter apreciado a ironia terrível de que, para a maioria de nós, ele é um génio literário, a despeito de suas intensas aspirações espirituais. Nós (a maioria de nós) pensamos em Kierkegaard como o autor de Repetição, Um ou Outro, A Enfermidade Mortal e O Conceito de Angústia, obras extraordinárias em que predominam a ironia, a inventividade e a acuidade psicológica, e em que as noções religiosas tendem a ser secundárias. O Nabucodonosor de Kierkegaard, lembrando-se do tempo em que era uma fera e comia capim, reflete sobre o Deus dos hebreus e chega ao entendimento de que somente esse Todo-poderoso estava livre da necessidade de instrução. Falando por Kierkegaard, Nabucodonosor mostra-nos o ponto extremo da mente criativa, onde fica superada, finalmente, a dificuldade de se tornar cristão. "E ninguém sabe coisa alguma sobre Ele, quem foi Seu pai, como conquistou o poder, e quem lhe ensinou o segredo da força." O Deus de Kierkegaard é o Deus de Abraão, Isaac, Jacó, Moisés e Jesus. Mas os Estudos no Caminho da Vida desse visionário dinamarquês não afetaram a tradição literária com a mesma intensidade das suas fascinantes reflexões sobre sedução, repetição e a via negativa. 218 219 SÒREN KIERKEGAARD (1813-1855) O lema do ensaio "Método de Rotação", na obra de Kierkegaard intitulada Um ou Outro, é de Aristófanes: Ao final, tem-se um excesso de tudo: De pôr-do-sol, de repolho, de amor. Repito o comovente testemunho de fé, expresso por Heinrich Heine: "Existe um Deus, e seu nomeie Aristófanes." Kierkegaard, o Príncipe Hamlet de volta à Dinamarca, discordava de Heine, em questões teológicas, mas, como escritor, mantinha-se ciente de Aristófanes. Em vez de explorar o génio de Kierkegaard em determinada obra, percorrerei minhas lembranças dos escritos do filósofo dinamarquês acumuladas ao longo da vida, compilando lustros que jamais saíram de perto de mim. Kierkegaard, mestre de todos os conceitos de ironia, comparava os génios a uma tempestade de raios: Génios são como a tempestade de raios: investem contra o vento, aterrorizam pessoas, limpam o ar. A ordem estabelecida inventou vários pára-raios. E foi bem-sucedida. Sim, decerto, foi bem-sucedida; conseguiu tornar a. próxima tempestade ainda mais violenta. Seria Jesus Cristo, na visão de Kierkegaard, uma dessas tempestades de raios? Roger Poole mapeou a arte do pensador dinamarquês relativamente à "comunicação indireta", de modo geral, levada a termo por meio de complexa ironia, como neste trecho, em que ele compara o génio ao cristão: O fato de nem todos serem génios é, sem dúvida, algo que todo mundo admite. Mas que um cristão é mais raro do que um génio tem sido, de modo escuso, inteiramente, consignado ao esquecimento. A diferença entre o génio e o cristão é que o génio é um ato extraordinário da natureza; nenhum ser humano é capaz de se transformar em génio. O cristão é um ato extraordinário da liberdade ou, mais precisamente, um ato ordinário da liberdade, e, embora tal ocorra extraordinariamente pouco, é isso que cada um de nós deve ser. Portanto, é vontade de Deus que o cristianismo seja proclamado, incondicionalmente, a todos; por conseguinte, os apóstolos são gente simples, comum; portanto, o protótipo assume a forma inferior de um criado, tudo para indicar que esse extraordinário é o ordinário, acessível a todos - mas um cristão, mesmo assim, é algo mais raro do que um génio. Sobre Jesus, Kierkegaard observa que, em três anos e meio, conseguiu apenas 11 seguidores, um contraste marcante com o triunfo da evangelização observado desde aqueles tempos. Em célebre distinção entre génio e apóstolo, Kierkegaard registrou, correta-mente, que, "na condição de génio, Paulo não resiste a comparações a Platão ou Shakespeare". A diferença é uma questão de autoridade; mas quem, senão Kierkegaard (e o futuro adepto, o poeta Auden), haveria de comparar o génio ao apóstolo, Platão a São Paulo? Kierkegaard era, claramente, um génio; seria ele um apóstolo? Porquanto a noção central em Kierkegaard relaciona-se à imensa dificuldade em se tornar cristão, podemos dispensá-lo de tal chamado. O fulcro do génio de Kierkegaard é a sua percepção de que, em uma sociedade declaradamente cristã, é quase impossível tornar-se cristão. Às vezes, digo a mim mesmo que os dois pensadores que possuem o menor número de características norteamericanas são Spinoza e Kierkegaard. Baruch Spinoza afirma que devemos amar Deus sem esperar ser por ele amados. Kierkegaard afirma que cristãos não são cristãos, mas alguma outra coisa. Nietzsche, um passo adiante de Kierkegaard, declara ter havido apenas um cristão, e que este morreu na cruz, mas o autor de Discursos Cristãos e Prática Cristã muito combateu tal desespero. Kierkegaard rezava para se tornar cristão, embora entendesse a denúncia de Emerson de que a oração é a doença da vontade. A negação de realidades aparentes em uma sociedade francamente cristã é a essência do génio de Kierkegaard, mas o conceito constituía, para ele, uma angústia, pois Kierkegaard tinha de ser pós-hegeliano, assim como nós temos de ser pósfreudianos. Hegel nega a autoridade do fato, do que ele considera apenas como dado, e o que ele destrói, a fim de alcançar a verdade metafísica, através de um processo a que denomina "mediação". Embora dispusesse de um curioso senso de humor, Hegel não apreciava a ironia. Quanto à mediação hegeliana, Kierkegaard, ironicamente, substituiu-a por algo a que chamou "repetição", tópico de um livreto cujo título foi, precisamente, essa palavra, publicado em 1843, sob o pseudónimo de Constantin Constantins. Três anos antes, Kierkegaard havia ficado noivo de Regine Olson; após um ano de noivado, ele pôs fim ao relacionamento. Repetição é um tributo à própria capitulação do filósofo, pois o conceito significa a vontade de abraçar possibilidades capazes de se tornarem transcendentais, inclusive o casamento. 220 221 O verdadeiro herói da repetição é o marido fiel: Ele decifra o grande enigma de viver na eternidade e, ao mesmo tempo, ouvir as batidas do relógio do corredor, ouvindo-as de tal modo que o badalar das horas não encurta, mas prolonga a eternidade. Essa sentença é de génio, e a ironia se volta contra o próprio Kierkegaard, sabedor de que fora incapaz de decifrar esse mesmo enigma: "A ironia é um tumor anormal (...) em última instância, causa a morte do indivíduo"; e assim Kierkegaard, a exemplo do Jovem (que também rompe um noivado) do livro que promove a expiação do autor, torna-se, ele mesmo, uma paródia da repetição. Sedução não se qualifica como repetição porque priva o sedutor de qualquer esperança de alcançar experiências transcendentais. Kierkegaard, poeta da ideia, optara pela originalidade. Como o poeta de Keats que "morre na vida", a missão de Kierkegaard era tornar-se cristão, instruído apenas pelo próprio Cristo. Em 1844, publicou Fragmentos Filosóficos, um de seus esforços mais extraordinários, sob o pseudónimo de Johannes Climacus. Na folha de rosto, lê-se: E possível precisar o ponto de partida histórico de uma consciência eterna? Como é possível a esse ponto de partida ter mais do que interesse histórico? E possível construir-se felicidade eterna a partir do conhecimento histórico? O questionamento é formulado por alguém que, em sua ignorância, não sabe sequer o que o ensejou. Essa questão tripla separa o cristianismo de Kierkegaard do idealismo de Hegel e de Platão. Sócrates e seu pupilo não são capazes de trocar ensinamentos, mas um propicia ao outro meios de autocompreensão. Cristo compreende a si mesmo perfeitamente: a função dos discípulos é receber o amor de Cristo, para si mesmos e para toda a humanidade. A "repetição" dos discípulos é a perpétua renovação de sua perspectiva de se tornarem cristãos. "E possível conhecer a verdade?", pergunta Johannes Climacus. Em busca da resposta, podemos recorrer à última obra de Kierkegaard. Kierkegaard morreu aos 42 anos de idade. Sofreu um colapso, em plena via pública, após ter sacado os últimos valores de uma herança, derradeiro elo com o pai. Um mês mais tarde, faleceu em um hospital, pois já não tinha razão para viver. Seu último ensaio - "A Imutabilidade de Deus" - é iniciado por uma prece: 222 Ó Imutável, a quem nada altera! Vós que sois imutável no amor, que, apenas pelo nosso bem, não vos permitis mudar - fazei com que também desejemos o nosso bem; permiti o nosso crescimento, com obediência incondicional, na vossa imutabilidade, a fim de encontrarmos conforto na vossa imutabilidade! Não sois como o ser humano. Se for permitido ao ser humano preservar um mínimo de imutabilidade, que não lhe seja concedido muito que possa comovê-lo, e que não se deixe comover demais. Mas a vós tudo comove, e em amor infinito. Até o que nós humanos consideramos insignificante e o que é por nós ignorado, as necessidades de um pardal, a vós comove; algo que, tantas vezes, mal capta a nossa atenção, um suspiro humano, a vós comove, Amor Infinito. Mas nada vos faz mudar, Ó Imutabilidade! Vós, que, com amor infinito, vos deixais comover, deixai que esta prece vos comova a abençoá-la, a fim de que ela possa mudar este que reza, segundo a vossa vontade imutável, ó Imutável! Para mim, essas palavras são de uma pungência irresistível. Deus, a quem nada altera, comove-se com o amor infinito. Quanto a nós, se não desejarmos mudar, não podemos nos permitir o amor. Rompemos nossos noivados, e não logramos a "repetição" autêntica. Após a prece, Kierkegaard pronuncia um sermão, a nós, seus leitores, pois somos sua única congregação. O texto do sermão é Tiago 1:17-21, antítese da doutrina de Paulo, mas a palavra de Jesus, segundo seu irmão, Tiago, o Justo, líder dos cristãos hebreus de Jerusalém: Todo dom precioso e toda dádiva perfeita vêm do alto, descendo do Pai das luzes, no qual não há mudança nem sombra de variação. Por vontade própria ele nos gerou pela Palavra da verdade, a fim de sermos como as primícias dentre as suas criaturas. Isso podeis saber com certeza, meus amados irmãos. Que esteja cada um de vós pronto para ouvir, mas tardio para falar e tardio para vos encolerizar; porque a cólera do homem não é capaz de cumprir a justiça de Deus. Por essa razão, renunciando a toda imundície e a todos os excessos da maldade, recebei com humildade a Palavra que foi plantada em vossos corações e é capaz de salvar as vossas vidas.3 E maravilhoso que um conselho tão humano, universalmente relevante, seja a última expressão de Kierkegaard, somada à sua resposta eloquente, que prefiro extrair, não desse Bíblia de Jerusalém, op. cie, pp. 612-13. 223 ensaio-sermão, mas de um estudo anterior, Ponto de Vista da Minha Obra, escrito em 1848 e publicado, postumamente, em 1859. Em uma nova espécie de biografia espiritual, nada devendo a Santo Agostinho, Kierkegaard abandona a ironia, adota a "comunicação direta", e permite-se o páthos de ter sido "o génio de um pequeno entreposto comercial". E, ainda, homenageia um de nós, o leitor ideal, ou "amante" de sua obra: Só mais uma coisa. No dia em que meu amante chegar, poderá constatar que, quando fui considerado irónico, a ironia não era, em absoluto, aquilo que o público culto pensava que fosse - e, obviamente, meu amante não há de ser tolo ao ponto de presumir que o público possa ser o avaliador da ironia, o que é tão impossível quajito ser um só indivíduo en masse. Meu amante há de constatar que a ironia estava apenas no fato de neste autor estético, e por trás dessa aparência mundana, esconder-se o autor religioso, um autor religioso que, à época do seu amadurecimento pessoal, talvez consumisse a mesma quantidade de religiosidade que uma família inteira. Ademais, meu amante constatará a ironia presente no estágio seguinte, precisamente, naquele que o público culto julgava ser loucura. Para o ironista, não há mais o que fazer em tempos de ironia (grande epítome dos tolos), a não ser inverter a relação, e fazer de si mesmo o objeto da ironia geral. Meu amante há de constatar como tudo se encaixa perfeitamente, como as minhas relações existenciais se invertem, em correspondência exata às alterações da minha escritura. Se eu não tivesse percebido tal necessidade, ou carecesse de coragem para tanto, e tivesse alterado a escritura mas não as relações existenciais, a relação deixaria de ser dialética e tornar-se-ia confusa. Tais noções correm paralelas à dificuldade de se tornar cristão, e, talvez, pressuponham a evasão da verdade pragmática. A maioria de nós que apreciamos Kierkegaard chegamos a ele pela via das suas realizações estéticas, e não pelas questões espirituais; no entanto, creio que ele tem algo a nos dizer também nesse campo, mesmo que pouco nos interessem as dificuldades em nos tornarmos cristãos. Na minha leitura, Kierkegaard tem mais em comum com Nietzsche e Kafka, e até com Beckett, do que com o Cardeal John Henry Newman e outros autores religiosos do século XIX. A despeito do objeto dos seus anseios, Kierkegaard foi um génio, e não um apóstolo, conforme ele, decerto, bem o sabia. FRANZ KAFKA Tampouco talvez seja amor, quando digo que, para mim, és a mais amada; para mim, amor é seres a faca que reviro nas minhas entranhas. - Cartas a Milena Franz Kafka disputa com Rainer Maria Rilke uma posição de eminência negativa: a do génio literário mais exasperador a merecer a admiração de mulheres eruditas ao longo do século XX. Rilke talvez tenha sido o poeta mais egocêntrico em toda a História europeia, enquanto Kafka, inteiramente alienado com relação a si mesmo e ao resto do mundo, esquivou-se do amor, até o relacionamento com Dora Dymant, quando já se encontrava na fase terminal da tuberculose. Kafka, nas condições de indivíduo e de escritor, foi uma sequência de imensos paradoxos. As suas maiores obras de ficção - O Processo e O Castelo - não chegam a desafiar Em Busca do Tempo Perdido, de Proust, Ulisses, de James Joyce, ou mesmo A Montanha Mágica, de Mann. No entanto, pensamos o século XX como a era de Kafka e Freud, e não de Proust e Joyce. Os fragmentos, aforismos, contos e parábolas de Kafka competem com os ensaios de Freud sobre cultura, pela posição hegemónica na espiritualidade autêntica de seu tempo. Reconheço que tudo o que diz respeito a esse argumento é paradoxal, pois Freud desprezaria tal papel, e Kafka dele fugia. Mas do que não fugia Kafka? Em célebre carta a Milena Jesenká (que seria morta pelos nazistas), Kafka denuncia, com veemência, a escrita de missivas: Escrever cartas, entretanto, significa desnudar-se diante de fantasmas, algo pelo qual tais fantasmas esperam ansiosamente. Beijos escritos não atingem o destino, mas são sorvidos a caminho por fantasmas. Somente com base nessa farta nutrição é que eles se multiplicam de modo tão intenso. A humanidade percebe o problema e contra ele se bate, e, para eliminar, na medida do possível, o elemento fantasmagórico entre as pessoas, e propiciar a comunicação natural - a paz das almas -, essa mesma humanidade inventou a ferrovia, o automóvel, o avião. Porém, isso tudo já não serve, pois, evidentemente, são invenções criadas no momento do choque. O lado oposto é tão mais calmo e mais forte: após o serviço 224 225 postal, criou o telégrafo, o telefone e a radiografia. Os fantasmas não morrerão de fome, mas nós sucumbiremos. O elemento fantasmagórico que separa os amantes não pode ser anulado; seja qual for o valor que tivermos, como indivíduos, o referido elemento faz com que nos distanciemos uns dos outros. Kafka foi o génio do isolamento. Ensinou-nos que nada temos em comum com nós mesmos, muito menos com terceiros. FRANZ KAFKA (1883-1924) Existe apenas o mundo espiritual; o que chamamos de mundo físico é o mal do mundo espiritual. Tais palavras não são de Meister Eckhart nem de Jakob Boheme, mas do escritor judeu-checo Franz Kafka, que morreu de tuberculose antes de completar 41 anos. Se tivesse levado a termo um tempo de vida normal, provavelmente teria sido morto em algum campo de extermínio alemão, conforme ocorreu com suas três irmãs e com a amada Milena Jesenká. W. H. Auden chamou Kafka de Dante do século XX. Agora, no início do século XXI, Kafka parece dotado de uma autoridade espiritual que não costuma ser, necessariamente, atribuída aos poucos entre os contemporâneos que o rivalizaram em eminência estética: Joyce, Proust e Beckett. Como é estranha e, ao mesmo tempo, inquestionável essa autoridade espiritual: Kafka, decerto, não a reconhecia, e negava possuir sabedoria, ou percepção religiosa. Nietzsche profetizava, e Kierkegaard buscava uma verdade dignificante. O projeto de Kafka era diferente: o seu génio particular torna a vocação da escrita uma espécie de religião. Cabe precisar o problema: Flaubert, Proust e Joyce foram os sumos sacerdotes da arte literária. Kafka, mais uma vez, é diferente, e tal diferença é, praticamente, impossível de ser descrita. Ele era um escritor, assim como Goethe e Heine eram escritores dedicados, compulsivos. Mas, em Kafka, o ato de escrever tem uma aura que só posso considerar cabalística, conquanto Kafka não se dedicasse à Cabala. Fora da crença, além da crença, alienado da crença, Kafka escreve assim como o Caçador Gracchus, por ele criado, viaja ao infinito. Kafka é também um navio sem leme, impulsionado por um vento que surge das regiões geladas da morte. Na era de Proust e Joyce, e outros grandes autores originais, Kafka é mais original do que os originais (que, segundo Emerson, jamais são originais). É possível que Kafka estivesse sempre a mudar de ideia. Nada que seja explicável ocorre em um conto ou em um romance de Kafka; mesmo quando concluídas, as obras podem ser consideradas fragmentos. Os dicionários contêm atualmente o vocábulo "kafkiano"; o American neritage College Dictionary define o termo como "caracterizado por uma distorção surrealista e, de modo geral, pela sensação de perigo iminente".4 A definição está correta, a Segundo a definição que consta da versão eletrônica do Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa: que, forma semelhante à obra de Kafka, evoca uma atmosfera de pesadelo, de absurdo, esp. em um contexto burocrático que escapa a qualquer lógica ou racionalidade (diz-se de situação, obra artística, narração etc.)." 226 227 não ser pela noção "surrealista"; Kafka não é surrealista. Eu poderia questionar, também, a ideia de "distorção", pois as descrições de Kafka têm uma "normalidade" e uma "naturalidade" perturbadoras, mas, de fato, a dimensão de perigo iminente está quase sempre presente. Contudo, não se pode elucidar o génio de Kafka recorrendo-se ao adjetivo "kafkiano"; é preciso uma nova investida, mas como, e onde? O apelo de Kafka a um número imenso de leitores, no mundo inteiro, obviamente, transcende o judaísmo do autor; todavia, parece impossível pensar em Kafka ou em seus escritos sem refletir a respeito dos dilemas da identidade judaica. A questão se aplica também (embora, mais uma vez, de modo diferente) a escritores como Isaac Babel, Paul Celan e Philip Rotfi, em quem a identidade judaica não é, absolutamente, problemática, ou a Martdelstam, em quem, seja ele qual for, o enigma viu-se transformado pela brutalidade stalinista. Kafka é partido de um único adepto, arquétipo permanente da solidão judaica, conquanto Paul Celan viesse a constituir um segundo paradigma. A extraordinária autenticidade dos escritos de Kafka é singular: o crítico canónico da obra kafkiana continua a ser Walter Benjamin, embora o impacto sobre Gershom Scholem, o amigo mais íntimo de Benjamin, tenha sido ainda maior, e ainda hoje determine qualquer interpretação da Cabala procedida através do estudo histórico personalizado desenvolvido por Scholem. Na minha juventude, os intelectuais eram obcecados por Kafka. Não detecto o mesmo tipo de interesse entre os meus melhores alunos, embora se ocupem mais de Kafka do que de Proust e Joyce. A contenda desses alunos, com relação à fé e à falta de fé, seja qual for a religião, continua a constatar estigmas em Kafka de uma maneira, talvez, inevitavelmente relevante. Embora a obra de Kafka contenha narrativas que hão de permanecer, e O Castelo chegue bem próximo de ser um romance de busca espiritual, a maior realização do autor reside nos relatos mais curtos, nos fragmentos, aforismos, registros em diários, trechos de cartas e, acima de tudo, nas parábolas. A parábola "A Grande Muralha da China" é sempre uma excelente introdução a Kafka, e, até certo ponto, pode ser considerada uma anedota judaica, mas tratase da comédia dos intelectuais judeus de Praga de três gerações atrás. Sabemos que, quando Kafka leu, em voz alta, as primeiras páginas de "A Metamorfose" e O Processo para os literatos que integravam o seu círculo, todos riram, e que o próprio Kafka mal pôde prosseguir a leitura. Nós não rimos dessas mesmas páginas, mas não temos como resgatar a ironia do grupo que cercava Kafka. No entanto, quem, não fosse Kafka, pensaria na Grande Muralha como uma Torre de Babel chinesa? Kafka sentiu o peso da influência de Goethe e, de modo sensato, tentou evitá-la, em um procedimento que antecipa a ambivalência de Paul Celan com respeito à língua e à cultura alemãs. Estou cansado de me deparar com interpretações equivocadas, ao longo de quase 30 anos, mas volto a dizer que a angústia da influência nada tem a ver com complexo de Édipo. Kafka não tinha qualquer relação edipiana com Goethe, ou Celan com Rilke. A linguagem de Kafka e Celan trava uma disputa com a língua alemã, e o alemão empregado por eles, cada qual ao seu modo, distancia-se do idioma usado na tradição literária. O sutil e irónico narrador de "A Grande Muralha da China", um dos pedreiros, tem conhecimento da Torre de Babel, edificação rival, porém inferior, e cita um estudo que "afirma que somente a Grande Muralha propiciaria, pela primeira vez na História da humanidade, o alicerce seguro de uma nova Torre de Babel. Primeiro a muralha, e portanto, depois a torre". A ideia parece estapafúrdia ao narrador, mas: "a natureza humana, essencialmente, mutável, instável como a poeira, não pode ser contida; amarra-se a si mesma, logo tenta romper os grilhões, até arrebentar tudo, as muralhas, os grilhões e até a si mesma". Por que foi construída a Grande Muralha? Supostamente, para conter os povos do norte, mas somos informados que a decisão de construí-la remonta à eternidade. Não se pode tratar de uma ordem do atual Imperador, porque ninguém no sul sabe quem ele é, e se, agonizante, ele envia uma mensagem a determinada pessoa, tal mensagem jamais chega ao destinatário. Na realidade, talvez não exista um Imperador, ou, talvez, "exista uma certa debilidade de fé e força criativa, da parte do povo". Caso contrário, clamariam para si o Imperador e o Império, "ainda que uma só vez, a fim de sentir o toque e, então, morrer". Na condição de anedota sobre a relação do povo judaico com Deus, a parábola é um pouco excessiva; portanto, o narrador kafkiano conclui com o mais cínico dos gracejos: Essa atitude, então, não constitui uma virtude. É ainda mais notável que essa mesma fraqueza seja uma das maiores forças unificadoras do nosso povo; com efeito, se me permitem a ousadia da expressão, é o solo que pisamos. Tentar estabelecer aqui algum defeito fundamental implicaria abalar não apenas as nossas consciências, mas, o que é muito pior, os nossos pés. Por esse motivo, não vou prosseguir na minha investigação a respeito dessas questões. O génio de Kafka para a comédia sinistra quase não tem precedentes, embora o escritor checo talvez endossasse a minha obsessão pela afirmativa de Heinrich Heine: "Existe um Deus, e seu nome é Aristófanes." Coube ao génio de Philip Roth, especialmente na obra-prima O Teatro de Sabbath, retomar e desenvolver a ironia de Kafka. Embora, em vários outros livros, eu tenha escrito sobre o magnífico fragmento de Kafka, intitulado "Gracchus, o Caçador", volto a abordá-lo, pois o texto manifesta o 228 229 que há de mais intenso na ironia kafkiana. O pobre Gracchus, que vagueia como o Holandês Voador ou o Judeu Errante, demonstra uma paciência espantosa, ao suportar o seu dilema absurdo - errar de porto em porto, a bordo de um navio fantasma, sem qualquer culpa ou motivo. A impaciência é muitas vezes identificada por Kafka como o único pecado autêntico, conquanto seja endémica nos grandes escritores, desde Petrarca, pois todos são impacientes no que toca à imortalidade literária. É possível que Shakespeare seja uma exceção (a não ser em alguns dos sonetos), mas Kafka talvez seja o maior exemplo de imunidade a esse tipo de impaciência. Um de seus aforismos mais célebres brinca com essa imunidade: Os corvos afirrnam que um só corvo seria capaz de destruir os céus. Sobre isso não há dúvida, mas isso nada comprova contra os céus, pois o céu, simplesmente, significa: a impossibilidade de corvos. O nome "Kafka" não tem qualquer significado especial em checo, mas soa semelhante a kavka, que significa, gralha, pássaro da família do corvo. Gracchus, em latim, em última instância, remete a "corvo", e o Caçador Gracchus, que não consegue alcançar os céus, é uma impossibilidade, pois não está vivo nem morto. Kafka, que disse, referindo-se a si mesmo, "sou uma memória ressuscitada", estudava hebraico à época em que escreveu "Gracchus, o Caçador", no início de 1917, e prosseguiu nos estudos, com dedicação, durante seis anos, até ser acometido da doença fatal. As viagens de Gracchus têm uma relação enigmática com o judaísmo de Kafka, relação essa de difícil compreensão devido à ironia que permeia o belo fragmento. Mas o jogo de palavras relativo ao corvo, ou à gralha, é o ponto de partida, extremamente claro, em se tratando de Kafka, expressando mais do que o "K", em Kabbalistic ou em "Joseph K". A situação do grande caçador é a de Kafka, "borboleta" cujo papel na Jenseits (eternidade) é estar sempre na grande escadaria que a ela conduz. O destino de Gracchus não é nem o purgatório, nem o inferno: Gracchus é um nómade; como o pequeno Odradek, em "Tristezas de um Pater Famílias", Gracchus "não tem residência fixa". No entanto, tem uma dignidade impressionante, e de nada se queixa: Estou sempre em movimento. Mas sempre que alço vôo e vejo o portão reluzente diante de mim, logo desperto em meu velho navio, ainda isolado e tristonho em algum oceano da Terra. O erro fundamental da minha morte de outrora arreganha os dentes para mim, quando me deito na cabina. Júlia, mulher do piloto, bate à porta e me traz, aqui no meu esquife, a bebida matinal típica da região por cujo litoral estamos passando. Deito-me sobre um estrado de madeira; envolFRANZ KAFKA vo-me - não será um prazer contemplar-me - em um lençol imundo; meus cabelos e a barba, grisalhos, cresceram, formando uma massa inseparável; minhas pernas estão encobertas por um grande xale feminino, com flores estampadas e longas franjas. Na cabeceira, uma vela sacramental mantém-me iluminado. Da parede à minha frente pende um pequeno quadro, a figura de um selvagem, protegido por um escudo ricamente pintado, e com a lança apontada em minha direção. Quando se está a bordo, fica-se propenso a invenções estúpidas, mas esta é a mais estúpida de todas. Fora isso, minha cabina de madeira está bem vazia. Através de um buraco na parede lateral entram os ares cálidos das noites do sul, e ouço a água batendo no casco do velho barco. O xale de franjas longas e a vela sacramental não são judaicos; o selvagem é uma ironia hilária. A imagem da Galut, ou Diáspora, terá sido retratada de maneira tão memorável em algum outro escrito? Não existe aqui a imagem da cruz, como seria de se esperar no esquife de um caçador da Floresta Negra. Não, o caçador é o escritor, viajando pela linguagem, seja em alemão ou hebraico, preso, em uma situação absurda, entre a vida e a morte. Gracchus é absolutamente admirável: paciente, indestrutível, acima de tudo, ciente de todas as ironias. Embarcara no navio da morte confiante de que seria transportado à Jenseits, e sobreveio a má sorte, "das Ungluck", da qual ele não tem a menor culpa. A culpa, diz Gracchus, é do barqueiro, mas não sabemos como ou por que, e o caçador tampouco nos explica. Ao invés disso, faz uma profecia que me remete aos campos de extermínio que estariam à espera das amadas e das irmãs de Kafka, um quarto de século mais tarde, quando a cultura germânica triunfou: Ninguém há de ler o que aqui escrevo, ninguém virá me ajudar; mesmo que todos tivessem ordens para me acudir, portas e janelas permaneceriam fechadas, todos se enfiariam em suas camas e encobririam as cabeças com os lençóis, a Terra inteira se tornaria uma hospedagem noturna. E isso faz sentido, pois ninguém sabe da minha existência, e se alguém soubesse, não poderia me encontrar, e se soubesse onde me encontrar, não saberia lidar comigo, não saberia como me ajudar. A ideia de me ajudar é uma doença cuja cura depende de se enfiar na cama. Sei disso e, portanto, não grito, pedindo socorro, ainda que em dados momentos - em que perco o autocontrole, como acaba de acontecer, por exemplo -penso, seriamente, em fazê-lo. Mas, para me livrar de tais pensamentos, basta-me olhar em volta de mim mesmo e verificar onde estou e - posso afirmar, com segurança - tenho estado há centenas de anos. 230 231 "Das hat gutten Sinn", Gracchus diz, "isso faz sentido", porque, na interpretação judaica - talmúdica, cabalística, freudiana, kafkiana - existe sentido em tudo: cada letra da Tora, cada momento da História judaica requer análise minuciosa, em busca do significado total. Aqui não há estática, como se observa em Shakespeare e Goethe. O admirável Gracchus, condenado a ser ouvinte do burgomestre de Riva, assim como Kafka está condenado a nós, conclui esse fragmento inconclusivo observando que não pode prever a partida do navio da morte: "Meu navio não tem leme, e é impulsionado por ventos que sopram nas regiões mais profundas da morte." O génio de Franz Kafka parece ser menos um dote natural, ou alteridade demoníaca, do que um habitante do raríssimo, o terceiro reino da aspiração. Que Kafka é um dos sábios indispensáveis aos três mil anos da tradição judaica não tenho dúvida, embora a sua sabedoria só possa ser recebida da maneira como é expressa, através da ironia: O fato de que existe apenas o mundo espiritual priva-nos da esperança e nos pro picia a certeza. $ 40 * rftecitec&iJ MARCEL PROUST De um lado, estava certo, quando associei tudo isso a ela, pois se não tivesse caminhado por lá naquele dia... se não a tivesse conhecido, essas ideias jamais teriam sido desenvolvidas (a menos que o fossem por outra mulher). Mas, de outro, estava errado, pois esse prazer que gera algo interior e que, em retrospectiva, tentamos associar a um belo rosto feminino, vem dos nossos sentidos: contudo, as páginas que eu viria a escrever eram algo que Albertine, especialmente a Albertine daqueles dias, sem dúvida, jamais teria compreendido. Foi, entretanto, exatamente por essa razão (e isso demonstra que não devemos viver em uma atmosfera demasiadamente intelectual), por ser tão diferente de mim, que ela me fecundou, através da infelicidade e até mesmo, no início, através do simples esforço que eu era obrigado a fazer para imaginar algo diferente de mim mesmo. Os anos perdidos, desperdiçados, que o narrador, Mareei, dedicou à paixão possessiva por Albertine, amada que o traiu, incessantemente, com outras mulheres, são vistos, na conclusão de Em Busca do Tempo Perdido, como fonte da arte romanesca do autor. Albertine "fecundou [me], através da infelicidade", dádiva irónica do último grande ficcionista ocidental, dentro da antiga, elevada tradição. Proust é um génio cómico, mais sutil até do que James Joyce, embora, propositadamente, mais limitado em escopo. Leopold Bloom, personagem de Joyce, recusa-se a ser devorado pelo ciúme, mesmo quando, em um dos episódios de Ulisses, contempla Blazes Boylan transando com Molly, a mais infiel das esposas. Ciúme sexual em Joyce é piada sadomaso-quista, "elevação da recompensa ao estímulo", conforme disse Freud. Em Proust, como em Shakespeare, o ciúme sexual é inseparável da imaginação criadora. Muito tempo após a morte de Albertine, quando já deixou de venerar-lhe a memória, Mareei ainda prossegue na busca de cada detalhe da vida da amada na condição de lésbica. Em Proust, amor autêntico só pode ser vivido em relação à própria mãe, o que pode explicar por que Nerval era tão estimado pelo autor de Em Busca do Tempo Perdido. Amor carnal, para Proust, é sinónimo de ciúme sexual: para nós, contrastivamente, realidade nada significa. Freud pensava que nos apaixonamos para evitarmos a enfermidade, mas Proust via o processo como uma descida ao inferno do ciúme. O ciúme sexual, cómico para terceiros, é trágico para a própria pessoa, mas, em retrospectiva, pode ser transformado em algo precioso e exótico. 232 233 ri^d^íifcp MARCEL PROUST MARCEL PROUST (1871-1922) Marcel Proust e James Joyce, que, ao lado de Kafka e Freud, são os escritores essenciais ao século XX, encontraram-se, certa vez, em um jantar parisiense, em que compareceram, também, Stravinsky e Picasso; o encontro ocorreu em maio de 1922, meio ano antes da morte de Proust, e logo após a publicação da Segunda Parte de Sodoma e Gomorra e Ulisses. Joyce havia lido algumas páginas de Proust, mas não detectara qualquer talento especial; Proust sequer ouvira falar de Joyce. O aristocrático Stravinsky ignorou ambos, e l^icasso ocupou-se de admirar as mulheres presentes. Os relatos da conversa entre Proust e Joyce variam: decerto, Proust queixou-se de má digestão, e Joyce, de dores de cabeça. Esse é o único elo de que estou ciente, entre Proust e Joyce, a não ser pela breve monografia escrita por Samuel Beckett - Proust (1931)-, em que o maior discípulo de Joyce estabelece para si um armistício com Em Busca do Tempo Perdido. Beckett continua a ser o grande crítico de Proust, mas recomendo, também, os diversos estudos de Roger Shattuck, e a biografia definitiva - Marcel Proust: A Life (2000), de William C. Cárter. Não existe melhor exemplo, no século que acaba de passar, da obra dentro da vida, em última análise, da obra constituindo a vida, do que o romance Em Busca do Tempo Perdido e Marcel Proust. Não surpreende a ideia de os criadores de Charles Swann e Leopold Bloom terem como objeto de conversa apenas as suas mazelas físicas. Talvez Shakespeare, ressuscitado por um necromante, pudesse escrever um diálogo para Swann e Poldy, cujo único ponto em comum é o fato de serem judeus - Poldy de um modo um tanto débil, embora, sendo filho de pai judeu, se considerasse judeu, supostamente, porque Joyce, seu modelo, também fosse um exilado. Proust, que amava, profundamente, a mãe judia, foi batizado como católico e jamais se considerou judeu. Proust tinha imensa admiração por Balzac e Flaubert, mas se esquivava de sua influência. As tragédias de Racine, os poemas de Baudelaire e a crítica da arte (termo aqui inadequado) praticada por John Ruskin contribuíram mais para Em Busca do Tempo Perdido do que as tradições do romance francês. Especialmente Ruskin, cuja Bíblia de Amiens foi traduzida por Proust, pode ser considerado o principal precursor de Proust, e a autobiografia inacabada de Ruskin - Praeterita - é, a meu ver, o ponto de partida do célebre romance proustiano. Com toda correção, o Ruskin de Proust é, antes de tudo, um escritor sábio, e, embora a sabedoria de Proust, em último caso, rebele-se e supere a de Ruskin, como catalista, Ruskin é essencial a Proust. A avaliação que faz Beckett da visão profética que Proust tem do tempo configura, ainda, involuntariamente, um excelente comentário sobre o precursor de Ruskin - Wordswordi -, a respeito de quem Proust nada sabia. O génio de Proust é imenso, quase shakespeariano, em sua capacidade de criar personagens, embora Beckett seja extremamente perspicaz, ao comparar Proust a Dostoiévski, "que apresenta os personagens sem os explicar. Alguém poderia objetar que Proust pouco faz além de explicar seus personagens, mas tais explicações são experimentais, e não demonstrativas. Ele os explica a fim de que possam aparecer como o são inexplicáveis". Na minha leitura, Beckett quer dizer que Proust, tanto quanto Dostoiévski, volta a Shakespeare, cujos personagens - Falstaff e Hamlet, Cleópatra e Lear, Macbeth e lago -são, deveras, inexplicáveis. Tanto na comédia quanto na tragédia, Proust aproxima-se de Shakespeare, assim como o faz Dostoiévski, creio eu, deliberadamente. Proust evoca Como Gostais e Noite de Reis, em sua visão andrógina, e Hamlet e Rei Lear, em sua visão trágica do tempo. Dostoiévski, com o velho Karamazov, remete-nos a Falstaff e, com Svidrigailov e Stavrogin, insinua aspectos de lago e Edmundo, em Rei Lear. Voltarei a tecer comentários sobre a influência de Shakespeare quando analisar a figura de Dostoiévski. Aqui, seguindo as ideias de Beckett a respeito de Proust, o dramaturgo da tragédia do tempo, invoco Shakespeare, o verdadeiro mestre de Proust, assim como o foi de Dostoiévski. A mãe de Proust era versada em Shakespeare, e transmitiu ao filho o afeto que sentia pelo dramaturgo inglês, conquanto Proust viesse a identificar em Fedra, de Racine, o modelo de seu amor pela mãe. Shakespeare, que iniciou a carreira, basicamente, como dramaturgo de comédias, tornar-se-ia o mestre único da tragicomédia, não fosse por Proust, que ocupa uma segunda posição. Roger Shattuck ressalta a visão cómica de Proust; Samuel Beckett, outro génio da tragicomédia, refere-se à "tragédia de Albertine", querendo dizer com isso que Proust considera trágico todo amor de natureza sexual: "Certamente, em toda a literatura não existe estudo sobre o deserto de solidão e recriminação, a que os homens chamam amor, que seja apresentado e desenvolvido com falta de escrúpulo tão diabólica." Beckett reforça esse julgamento severo, quando insiste no total distanciamento de Proust com relação a questões morais. A tragédia proustiana, explica Beckett, e uma expiação do pecado original inerente ao nascimento: A tragédia afirma a expiação, mas não se trata da expiação miserável, relativa ao rompimento codificado de um acordo local, arquitetado por velhacos para ludibriar tolos. As palavras de Beckett poderiam se referir a Hamlet, ou a Rei Lear. Apesar de ser um aficionado da comédia do ciúme sexual segundo Proust, sinto-me inclinado a concor- 234 235 dar com Beckett, e não com Shattuck: a comédia proustiana, assim como as "peçaspro-blema" de Shakespeare, posiciona-se apenas a um passo do abismo. Mas devo aqui me ocupar de Proust. Seu génio particular, propõe Shattuck, particulariza-se como "intermitências", momentâneas suspensões de solidão. Tal princípio parece por demais amplo, e aplica-se, igualmente, a outros escritores. Como identificar o esplendor e a sapiência exclusivos de Proust? O personagem Mareei não viabiliza qualquer resposta a essa pergunta, ao menos enquanto não se funde ao narrador, nas páginas finais do romance. Os críticos admiram o narrador, com toda razão, considerando-o um génio em termos de perspectiva, pois permanece (avidamente) aberto a cada nova revelação dos personagens e, assim, aprende o ofício de*ficcionista. O inominado Mareei, protagonista, sofre as agonias do amor e do ciúme (na prática, inseparáveis), mas, ironicamente, parece incapaz de aprender, até se fundir no narrador. Proust manipula a questão com imensa destreza, mas o modelo é Dante, à semelhança da fusão final observada entre Dante, o Peregrino, e Dante, o poeta, no Paraíso. Vale lembrar, ainda, o que Walter Pater chamou "momentos privilegiados" e Joyce denominou "epifanias", elementos que tornaram Proust célebre. Beckett identificou 11 desses momentos, definindo-os, mordazmente, como "fetiches"; Shattuck classifica-os moments bienheureux. Os mais importantes, de acordo com Beckett, são "As Intermitências do Coração", que ocorrem entre o primeiro e o segundo capítulos da Segunda Parte de Sodoma e Gomorra. Exausto e doente, o narrador chega a Balbec, pela segunda vez, e se dirige ao quarto do hotel: Conturbação em todo o meu ser. Na primeira noite, sofrendo de palpitação cardíaca, curvei-me, lenta e cautelosamente, para desabotoar as botas, tentando controlar a dor. Mal tocara o primeiro botão, meu tórax estufou-se, tomado de uma presença divina, desconhecida, e estremeci em meio a soluços, lágrimas bro-tando-me nos olhos. O ser que viera em meu socorro, salvando-me da aridez do espírito, fora o mesmo que, anos antes, em um momento de exaustão e solidão idênticas, em um momento em que nada restava de mim, surgira e a mim mesmo me resgatara, pois esse ser era eu mesmo, e algo mais que eu. Na memória, eu acabara de perceber, curvando-se sobre o meu cansaço, o rosto meigo, preocupado, decepcionado de minha avó, naquela noite da nossa chegada; não era o rosto daquela avó cuja perda tão pouco lamentei, o que me causara perplexidade e remorso, e que com a qual nada tinha em comum, exceto o nome, mas da minha verdadeira avó, cuja realidade viva, pela primeira vez, desde a tarde em que ela sofrera o derrame, no Champs-Elysées, eu agora resgatava, em uma lembrança total e involuntária. Essa realidade não existe recriada pelo pensamento (caso contrário, todos titânicos seriam grandes poetas épicos); e, assim, em meu seus braços, foi somente naquele momento - mais para nós, a não ser quando os homens envolvidos em embates desejo incontido de atirar-me em de um ano depois de ela ter sido sepultada, devido ao anacronismo que tantas vezes impede a correspondência entre o calendário dos fatos e o calendário dos sentimentos - que me cons-cientizei de sua morte. Eu havia me referido a ela inúmeras vezes, e nela havia pensado, mas, por trás das palavras e dos pensamentos, típicos de um jovem ingrato, egoísta e cruel, jamais houvera algo que se assemelhasse à minha avó, porque, na minha frivolidade, no meu amor pelo prazer, na minha familiaridade com o espetáculo da sua doença, guardei no meu interior apenas um potencial da memória do que ela fora. Em qualquer momento determinado, a nossa alma tem apenas um valor mais ou menos fictício, a despeito do valioso património composto por seus bens, uma vez que tais bens, em momentos alternados, são inalienáveis, sejam eles concretos ou imaginados no meu caso, por exemplo, relativos não apenas à antiga estirpe dos Guermantes, mas, o que é muito mais sério, à verdadeira memória de minha avó. Pois às perturbações da memória estão ligadas as intermitências do coração. É, sem dúvida, a existência do nosso corpo, que podemos comparar a um vaso cujo conteúdo é a nossa natureza espiritual, que nos induz a supor que toda a nossa riqueza interior, as alegrias do passado, todas as tristezas, permanecem, para sempre, em nosso poder. Talvez seja igualmente incorreto supor que elas fogem ou retornam. Em todo caso, permanecem em nosso interior, pois, na maioria das vezes, deixam de nos ser úteis quando se encontram em uma região desconhecida, onde até o que existe de mais comum fica tomado de um outro tipo de memória, que impede a ocorrência simultânea das mesmas em nosso consciente. Mas, se o contexto das sensações em que são preservadas é resgatado, elas adquirem a capacidade de expulsar tudo o que com elas for incompatível, de instalar em nós o eu que, originalmente, as vivenciou. A medida que o "eu" que, subitamente, eu acabara de voltar a ser deixara de existir, desde aquela noite, tantos anos antes, quando minha avó me despiu após a minha chegada a Balbec, era muito natural, não ao fim do dia que acabara de terminar, sobre o qual eu nada sabia, mas - como se o Tempo consistisse em uma série de linhas distintas e paralelas -, sem qualquer solução de continuidade, imediatamente após a primeira noite em Balbec, muito antes que eu me agarrasse ao minuto em que minha avó se curvara diante de mim. O meu eu de então, há muito desaparecido, estava, novamente, tão próximo que eu ainda parecia ouvir as palavras que acabavam de ser pronunciadas, ainda que agora não passassem de 236 237 um fantasma, como um homem que, ainda sonolento, pensa ser capaz de ouvir os sons do sonho que se esvai. Agora eu era, exclusivamente, o indivíduo que buscara refugio nos braços da avó, que tentara esquecer as tristezas sufocando-a com beijos, aquela pessoa que deveria ter sido tão difícil para eu imaginar, quando eu era um ou outro dos que há algum tempo eu vinha sendo, assim como agora, para fazer o vão esforço de experimentar os desejos e as alegrias de um daqueles que, pelo menos por algum tempo, eu deixara de ser. Lembrei-me de que, uma hora antes do momento em que minha avó, vestida em sua camisola, curvara-se para desabotoar-me as botas, enquanto eu caminhava pela rua escaldante, ao passar pela confeitaria, percebi que jamais poderia, na minha necessidade de sentir os braços dela em .volta de mim, sobreviver à hora que ainda faltava para o nosso encontro. E agora que essa mesma necessidade fora revivida, eu sabia que poderia esperar horas a fio, que ela jamais voltaria a estar ao meu lado. Eu apenas acabara de descobrir isso porque, ao sentir minha avó, pela primeira vez, viva, real, levando o meu coração quase a explodir, ao, finalmente, encontrá-la, acabara de constatar que a perdera para sempre. Para sempre a perdera; não conseguia entender, e lutei para suportar a angústia dessa contradição: de um lado, uma existência e um carinho que em mim sobreviveram conforme os conheci, quero dizer, que foram criados para mim, um amor que em mim encontrou, de modo tão integral, o seu complemento, o seu objetivo, a sua constante estrela-guia, que o génio de grandes homens, toda a genialidade que existiu desde o começo do mundo, seria menos valiosa para minha avó do que um só dos meus defeitos; e, de outro lado, assim que revivi aquele contentamento, como se houvesse de fato ocorrido, sentindo-o crivado de certezas, latejando como uma dor recalcitrante, de um aniquilamento que apagara a imagem por mim construída daquele carinho, destruíra aquela existência, eliminara, retrospectivamente, a nossa mútua predestinação, fizera de minha avó, naquele momento em que eu a reencontrara como em um espelho, uma estranha a quem o acaso permitira conviver alguns anos comigo, assim como o faria com qualquer outra pessoa, mas para quem, antes e depois daqueles anos, eu nada fui e nada seria. Seja lá fetiche, epifania, ou o que o leitor quiser, o trecho anterior provoca em mim uma agonia de culpa, no que toca aos meus entes queridos já mortos ou em fase terminal. Não é fácil repelir a força desse longo parágrafo, mas somente o distanciamento ensinado por Proust é capaz de transformar a dor sombria em prazer raro. Faz um ano que a avó do narrador faleceu, mas apenas agora ele sente a mágoa causada pela realidade da ausência permanente. Quem já não teve uma experiência similar? E quem não se arrepende da própria falta de bondade com os entes queridos já falecidos? Contudo, não conheço qualquer outro trecho, em toda a literatura, que se assemelhe a esse, ao mesmo tempo em que fico atónito, ao constatar que um momento tão lugar-comum possa se tornar tão original e despertar tanta criatividade. O génio de Proust é, precisamente, chegar a afirmar, com toda severidade: "uma vez que os mortos existem apenas em nós, golpeamos a nós mesmos, quando insistimos em recordar os golpes que neles desferimos". Como categorizar essa força de Proust? Esse suposto sumo sacerdote da religião da arte, na verdade, não é nada disso: em termos de universalidade e profunda percepção da natureza humana, ele é tão primordial quanto Tolstoi, tão sábio quanto Shakespeare. A memória, involuntária ou voluntária, parece não vir ao caso; a questão é a cegueira de que necessitamos para prosseguirmos a nossa caminhada; porém, ao recobrarmos a visão, indagamos se valemos o esforço envidado. Proust, que não é moralista, não é Cristo, nem Buda: não veio ao mundo para nos ensinar a viver, ou como ser mais bondosos com aqueles que amamos, enquanto estiverem por aqui. Enquanto Em Busca do Tempo Perdido se desenrola, esbarramos, cada vez mais, nesses momentos luminosos (ou não), e estes nem sempre fazem parte do conjunto de 11 a 18 momentos de memória, ou "ressurreição" do espírito. Surgem através de algumas sentenças, às vezes, de uma só. Proust, conforme se sabe, pensava que o sofrimento erótico não tinha limite, que qualquer intrusão na nossa solidão prejudicava o nosso pensamento, que só podemos nos concentrar na dor se a mantivermos à distância, e que a amizade ficava a meio caminho entre o cansaço e o tédio. Proust não nos adula, mas a essência do autor não parece estar na espirituosidade nem no desencanto. Seu génio faz com que sejamos envolvidos por sua linguagem, de modo que, no extremo, os momentos privilegiados são, simplesmente, aqueles em que temos a felicidade de estar lendo a sua obra. 238 239 SAMUEL BECKETT A única busca fecunda é a escavação, a imersão, a contração do espírito, uma descida. O artista é ativo, embora negativamente, esquivando-se da nulidade dos fenómenos extracircunferenciais, atraído ao fulcro do redemoinho. O trecho acima é da monografia que Beckett escreveu sobre Proust (1931), mas não descreve a situação de Proust, tampouco a condição da presença não mencionada: Joyce. Ouvimos acfui um extraordinário auto-reconhecimento, e o presságio da grande obra a ser escrita por Beckett: a trilogia (Molloy, Malone Morre, O Inominável), Hotv It Is, Fim de Jogo, A Ultima Gravação de Krapp. Em tais escavações, imersões, contrações e descidas, Beckett permanece dentro da circunferência do eu, e descobre seu génio da negação. A afinidade autêntica de Beckett é com Kafka, grande rival da negativa. Pode haver centro em um redemoinho? Quase todo protagonista de Beckett faz lembrar o Caçador Gracchus (de Kafka), cujo navio da morte carece de leme. Krapp, reproduzindo sua última gravação, admite haver perdido a felicidade, mas ainda exulta ao sentir o fogo que lhe arde no interior. A energia negativa, tanto em Beckett quanto em Kafka, remete-nos à aterrorizante "vontade de viver", em Schopenhauer, que, cegamente, busca engendrar vida, seguir em frente, mesmo quando não se pode mais fazê-lo. Vem-nos à mente Pozzo, em Esperando Godof. "O parto é feito em cima de um túmulo; a luz brilha um instante, e, então, volta a noite." O pessimismo cósmico de Schopenhauer o aproxima do budismo, de um lado, e do gnosticismo, do outro. Para Beckett, o protestantismo era uma mitologia morta, mas a sensibilidade do escritor sempre revelou um protestantismo sombrio. Se havia centro no redemoinho, este era o protestantismo esvaziado de fé e esperança, mas não de caritas. SAMUEL BECKETT (1906-1989) O génio de Beckett era o de um retardatário dotado de uma percepção singular. Na tradição continental europeia à qual se filiou, ao escrever em língua francesa grande parte de sua obra inicial, Beckett era herdeiro de James Joyce e Mareei Proust, e, em menor escala, de Franz Kafka. Na tradição anglo-irlandesa protestante, ele surgiu após os irmãos Yeats: seu amigo, o pintor Jack Butler Yeats, e o poeta-dramaturgo William Butler Yeats. Joyce, que para Beckett era uma espécie de irmão mais velho, e Proust, sobre quem Beckett escreveu uma notável monografia, somados, haviam levado a termo o desenvolvimento do romance europeu como expressão artística. Ulisses, Finne-gans Wake e Em Busca do Tempo Perdido haviam conduzido a tradição literária ao seu ponto de ruptura. A trilogia de Beckett - Molloy, Malone Morre e O Inominável- configura um passo à frente, e nada denominado (equivocadamente) Pós-modernismo conseguiu alcançar Beckett. O teatro de Ibsen, Pirandello e Brecht também chega a um ponto culminante nas três grandes peças de Beckett: Esperando Godot, Fim de Jogo e A Ultima Gravação de Krapp. Depois de Beckett, voltamos ao passado literário, sejam quais forem as nossas intenções. Beckett representa a concretização de algo talvez iniciado por Flaubert, e que não poderia ir além de How ItlseA Ultima Gravação de Krapp. Mas a concretização final de Flaubert, de Proust, ou mesmo de Kafka não me interessa tanto quanto a maneira como Beckett finaliza James Joyce. Embora Murphy (composto em 1935-36, publicado em 1938) seja resultado do trabalho de um homem de menos de 30 anos, e muito influenciado por Joyce, trata-se de um romance perene, de génio, sendo também o livro mais engraçado de Beckett. Grandes romances cómicos são raros; Murphy divertiu-me imensamente, a primeira vez que o li, há mais de meio século, e ainda me alegra; portanto, aqui escreverei sobre esse romance. Lem-bro-me de compará-lo a uma das primeiras comédias de Shakespeare, Trabalhos de Amor Perdidos: as duas obras são grandes celebrações da linguagem. Beckett, assim como Shakespeare, descobre o potencial de seus recursos verbais, e concede-lhes irrestrita liberdade de ação. Beckett escreve Murphy em Londres, enquanto se submete a sessões de análise três vezes por semana, ao mesmo tempo, sofrendo e desfrutando da solidão. Lido, em ordem cronológica inversa, a partir de Watt, da trilogia e How It Is, Murphy é um romance surpreendentemente tradicional, escrito em inglês, com efeito, no inglês de James Joyce. Trata-se de um livro a partir do qual Beckett haveria de crescer e se desen240 241 Binah SAMUEL BECKETT volver, mas, para muitos leitores comuns, algo valioso e belo é deixado para trás em Murphy. Beckett tinha de partir para novas realizações, mas como eu prezo o meu velho exemplar de Murphy, adquirido e lido, pela primeira vez, em 1957! A alegria e a surpresa proporcionadas pela releitura do romance não têm diminuído em todos esses anos. Só mesmo Beckett poderia basear a estrutura de uma narrativa tão desregrada como a de Murphy em Jean Racine, cujas peças o jovem erudito Beckett, com grande aplicação, ensinara. Os personagens de Racine são levados por forças irresistíveis, assim como os de Murphy. Trata-se de um salto, no tempo e no espaço, da corte de Luís XTV, a Londres e Dublin, em meados da década de 1930, mas o jovem e ágil Beckett aprazia-se dessas incongruências. Também se aprazia de atribuir sentidos metafóricos a uma história vulgar: Baruch Spinoza une-se a James Joyce, como génios que guiam Murphy. O amor de Murphy por Murphy substitui o amor intelectual de Spinoza por Deus, e, ao longo do romance, faz repercutir, de modo plangente, a proposição mais expressiva de Spinoza: devemos aprender a amar Deus jamais esperando a contrapartida do seu amor (que pode ser considerada a menos norte-americana de todas as doutrinas). Dotado de delicioso obsoletismo, Murphy faz uso de um narrador que jamais hesita em interromper e interpretar a narrativa, enquanto o pobre Murphy, o protagonista, possui, comparativamente, quase nenhuma força de vontade. Murphy é (de certo modo) um herói esquizofrénico, à mercê de um narrador raciniano. Mas esse narrador, na verdade, é muito mais joyciano, e reflete o esforço de Joyce, em Ulisses, ao se distanciar tanto de Stephen quanto de Poldy. Em Murphy, bela farsa-pastelão, Beckett luta para se distanciar do protagonista. O melhor biógrafo do escritor, James Knowlson, expressa bem a questão: Acima de tudo, Murphy exprime, de modo radical e bastante focalizado, o impulso de auto-imersão, solidão e paz interior, cujas consequências Beckett tentava resolver, em sua vida pessoal, através da psicanálise. - Damned to Fame (1996), 203 Assim como Joyce consegue separar-se de Stephen, mas não de Poldy (apesar da arte e do esforço), Beckett confessou que a morte de Murphy tocou-o muito de perto: ele pretendia "manter a morte sob controle, prosseguir friamente, e concluir o mais rápido possível. Tal opção parecia-me consistente com o tratamento dado a Murphy ao longo da narrativa, mescla de compaixão, paciência e troça". Conforme o próprio Beckett sabia, a coisa não transcorre bem assim, e o autor subsiste como sobrevivente de Murphy, na verdade, um Murphy que sobrevive. Mas o leitor anseia por saborear o personagem e o livro; eis o esplêndido parágrafo de abertura: O sol brilhou, sem alternativas, sobre nada de novo. Murphy mantinha-se longe do sol, como se estivesse livre, em uma casa em West Brompton. Ali, ao longo de cerca de seis meses, ele tinha comido, bebido e dormido, vestira-se e se despira, em uma gaiola de tamanho médio, voltada para o noroeste, com vista desobstruída das gaiolas de tamanho médio voltadas para o sudeste. Logo teria de fazer novos planos, pois as casas estavam condenadas. Logo teria de se preparar para começar a comer, beber, dormir, vestir e se despir em algum lugar estranho. A primeira sentença é célebre, e Murphy não está livre. Sete cachecóis prendem-no à cadeira de balanço. Como pode ele escapar do próprio coração? "Preso e obrigado a atuar, era como Petrouchka dentro da caixa." Somos informados que Murphy, recentemente, estudara em Cork, com o grande pitagoriano Neary, um dos dois deleites do livro, o outro sendo o seu pupilo, Wylie. Agradáveis são, também, Célia, uma prostituta irlandesa apaixonada por Murphy, e o avô paterno de Célia, Willoughby Kelley. Assim como Beckett (naquela fase) era obrigado a tolerar pressão materna, para que buscasse algum emprego lucrativo, Murphy é instado por Célia a fazer o mesmo - tudo em vão, até que ela ameaça deixá-lo. Em retrospectiva, o fato de ceder à pressão de Célia marca o início do fracasso de Murphy. Antes do advento desse declínio, Beckett leva-nos a um local heróico, a Agência Central dos Correios, em Dublin, onde MacDonagh e MacBride, Connolly e Pearse e demais mártires empreenderam a derradeira resistência à Grã-Bretanha. Mas agora trata-se de uma cena em que o mestre pitagoriano Neary, louco de paixão, bate a cabeça contra as nádegas da estátua do herói celta agonizante, Cuchulain, na tentativa de arrebentar os miolos. Escapando da Polícia Civil por ação do aluno Wylie, que o declara insano, o sábio é conduzido pelo discípulo a um bar de subsolo, e revivido à base de brandy. Então, temos o relato do desespero da sua paixão: Nem bem Miss Dwyer, perdendo a esperança de se fazer notar pelo tenente-avia-dor Elliman, fez de Neary o mais feliz dos homens, ela e a terra se tornaram uma só, a terra dantes mero cenário àquela bela figura. Neary escreveu a Herr Kurt Koffka, exigindo uma explicação imediata. Ainda não recebera resposta. Pedra de toque da comicidade, eis Samuel Beckett, por maior complexidade que ele viesse a imprimir à sua arte. Desiludido pela assimilação da figura pela terra, Neary apaixona-se por Miss Cunihan, que se declara fiel a Murphy, agora em trânsito para Londres. Muitas desventuras mais tarde, já quando ninguém ama ninguém, o trio maravilhoso - Neary, Wylie e Miss Cunihan - transfere-se para Londres, reúne-se a 242 243 Célia e, juntos, vão identificar os restos mortais carbonizados de Murphy, vítima (se assim pudermos chamá-lo) de um incêndio ocorrido no manicômio onde trabalhava de atendente. Mas, em Murphy, enredo é nada - linguagem é tudo. Quem, até o dia da morte, pode esquecer "as nádegas quentes e amanteigadas de Miss Cunihan"? E, de todas as alusões de Beckett à dupla advertência de Santo Agostinho, no sentido de evitarmos o desespero e a exultação, pois um ladrão foi salvo e o outro, condenado, o que pode superar a brincadeira pitagoriana de Neary? - Sentem-se, os dois, aqui, à minha frente - disse Neary - e não se desesperem. Lembrem-se que não há triângulo, por mais obtuso, por cujos vértices infelizes não passe a circunferência de algum círculo. Lembrem-se também que um ladrão foi salvo. James Joyce, grande admirador de Murphy, sabia de cor o extraordinário parágrafo da penúltima seção, em que as cinzas de Murphy são espalhadas no assoalho de um bar: Algumas horas mais tarde, Cooper retirou o pacote das cinzas do bolso, onde, no início da noite, as depositara, por medida de segurança, e atirou-o, com raiva, no homem que tanto o ofendera. O pacote bateu na parede, estourou e caiu no chão, onde, imediatamente, tornou-se objeto de dribles, passes, marcação, chutes, socos, empurrões e até de algum reconhecimento, segundo o código de cavalheiros. Chegada a hora de fechar, o corpo, a mente e a alma de Murphy haviam sido, generosamente, distribuídos pelo chão do bar; e antes que mais um dia acinzentasse a terra, haviam sido varridos, junto com a areia, a cerveja, pontas de cigarro, cacos de vidro, palitos de fósforo, cusparadas e vómito. Esse trecho é de uma verve terrível, e maravilhosa. Beckett consegue redimirse da condição de retardatário, ao aduzir um Purgatório ao Inferno de Kafka. Juntos, Kafka e Beckett perfazem dois terços de um Dante do século XX, proporção máxima a ser alcançada, pois o Paraíso já não podia ser escrito. LUSTRO 6 Molière, Henrik Ibsen, Anton Tchekhov, Oscar Wilde, Luigi Pirandello F ormado por cinco grandes dramaturgos, tragicômicos do espírito, o grupo aqui reunido possui uma sabedoria menos elevada do que os santos da literatura situados no quinto Lustro. A luz é refratada com grande intensidade através do prisma da tragicomédia, a fim de revelar a inacessibilidade da verdade. Em Molière, a hilaridade aumenta na proporção em que diminui a verdade, enquanto a amargura de Ibsen atinge a apoteose em Hedda Gabler, que é tão Ibsen quanto o são Solness, o arquiteto, e Rubek, o escultor. Tchekhov, o mais humano dos autores depois de Shakespeare, compartilha conosco o amor pelas três irmãs, ao mesmo tempo em que, implacável, permite que desperdicem suas vidas. Em farsas da sociedade, que exaltam, de modo brilhante, o superficial, Wilde não concede qualquer amargura ou verdade interior. Em Pirandello, a tradição da sofística siciliana se estende ao teatralismo hamle-tiano de Henrique PVe Seis Personagens à Procura de um Autor. Esses cinco dramaturgos maravilhosos estão à procura de um autor que está sempre ausente: a verdade que escapa à representação. 244 245 MOLIÈRE Senhor, eis que o assunto é delicado; O fogo da poesia é sempre amado. A alguém inominável eu disse, um dia, Falando em poemas de sua autoria, Que homens de bem deviam se conter No que concerne à ânsia de escrever; Que convém controlar a propensão De expor a diminuta vocação; E que, ao exibir a obra de arte, - ¦¦• Muitas vezes, do bobo é a nossa parte. As palavras são de Alceste, protagonista de O Misantropo, com elas cativandome o coração, pois expressam o meu sofrimento diário, ao ser inundado de má poesia (a contragosto). Por ser um satirista, Alceste não desperta o fascínio da maioria dos críticos de Molière, que se melindram com os excessos das impagáveis tiradas do misantropo. Mas, vale lembrar, críticos não costumam ver com bons olhos personagens dramáticos ambivalentes, e Alceste, dotado de fervorosa sinceridade, proclama a própria autenticidade com demasiada veemência, sendo incapaz de enxergar o seu intenso amor-próprio e excessivo egocentrismo. É possível considerar Alceste um Hamlet cómico, que, ao contrário de Hamlet, não tem o menor senso de humor. Todavia, Hamlet, mesmo na loucura, não atua como bobo; Alceste, às vezes, o faz. Porém, mesmo nesses momentos, Alceste preserva uma contumaz dignidade estética. O génio cómico de Molière é tão absoluto quanto sutil: Alceste, quando bem representado, é cómico, mas, se houver uma verdade, e se for plausível representá-la no palco, Alceste pode muito bem encarnar um aspecto nítido dessa verdade. Tanto quanto Shakespeare, Molière iniciou compondo farsas e desenvolveu-se em um mestre da comédia intelectual. Aí termina a comparação: Molière, a despeito das ambiguidades de Domjuan, não procederia a escrever tagédias. A vida interior de Shakespeare permanece desconhecida; a de Molière, ao que tudo indica, foi extremamente infeliz. Era uma figura melancólica e, segundo consta, um marido enganado, além de depender, totalmente, da proteção do Rei Sol, Luís XIV, que, felizmente, era dotado de apurado gosto literário. De um modo bastante complexo, Molière está sempre presente em suas comédias, e talvez ele fosse mais Alceste do que o próprio Alceste. MOLIÈRE QEAN-BAPTISTE POQUELIN) (1622-1673) Depois de Shakespeare, os maiores dramaturgos ocidentais são Molière e Ibsen. Racine, Schiller, Strindberg e Pirandello têm os seus adeptos, e Racine, particularmente, é um artista excepcional, mas Molière parece ser a única alternativa válida a Shakespeare, o que não significa que alternativas a Shakespeare sejam necessárias. Tanto quanto a de Shakespeare, a personalidade de Molière nos é desconhecida. No mais das vezes, temos descrições de Molière, por parte de inimigos moralistas, o que não nos interessa. A auto-representação em Ensaio em Versalhes contém uma ironia heróica, e estabelece fascinante contraste com Hamlet ensaiando os atores, ou com Peter Quince dirigindo o indirigível Bottom. De modo geral, é possível afirmar que as melhores comédias de Molière não transpõem a fronteira da tragicomédia porque o autor, em absoluto, não faz uso de personagens normativos (à exceção da presença implícita do deus mortal, Luís XTV). Até as figuras mais admiráveis por ele construídas são crivadas de defeitos; a mais admirável de todas é Alceste, o misantropo, tantas vezes malhado por críticos que deveriam ser mais avisados. Admito que Alceste careça tanto de humor quanto de amor, mas é um grande satirista, dotado de inteligência moral superior, apanhado em uma comédia de génio, o génio de Molière. Molière não permite que seus personagens se desenvolvam, paradoxo no qual ele aprisiona Alceste. Toma-se possível perceber, mais uma vez, por que Voltaire, insensatamente, considerava Shakespeare um bárbaro: Hamlet é incapaz de dizer um único verso sem crescer enquanto personagem. Embora mais jovem, Molière foi contemporâneo de Pierre Corneille (1606-1684) e apoiou o início da carreira de Jean Racine (1639-1699). A corte de Luís XIV abrigou os três dramaturgos, os dois trágicos heróicos e o surpreendente cómico, cujas peças são inteiramente desvinculadas da glória do Império Romano. Um modo de apreender o génio singular de Molière é ler um pequeno livro, sábio e sutil, escrito pelo notável ficcionista Louis Auchincloss. O estudo, intitulado La Gbire: The Roman Empire of Corneille and Racine (1996), não faz menção a Molière, nem deveria fazê-lo, mas intriga-me a possibilidade de uma relação entre o impulso de autenticidade evidente em Alceste e a esplêndida definição proposta por Auchincloss para Gbire. Gbire pode ser definida como o elevado ideal que o herói (e, mais raramente, a heroína) estabelece para si mesmo, e que ele acredita ser seu destino ou missão no 246 247 mundo. Gloire deve ser defendida a todo custo, seja com a própria vida ou com a vida de terceiros, neste caso, não importa em que quantidades. (4) Não acredito que a busca de Alceste seja uma paródia a Comeille e Racine, mas uma redefinição cómica de Gloire, enquanto o Dom Juan de Molière exprime a transformação de Gloire em uma vertente erótica, que oscila, tropegamente, entre comédia, sátira e uma espécie de tragédia. Em 30 anos de teatro, Molière compôs apenas sete peças dignas de seu génio: A Escola de Mulheres, As Preciosas Ridículas, O Avarento, O Burguês Fidalgo e a grande tríade - Tartufo, Dom Juan e O Misantropo. Em que pese o apoio e a proteção do Rei Sol, Tartufo foi proibida e Dom Juan suspensa após 15 apresentações. A ansiedade de Shakespeare com respeito à autoridade, obviamente, levou-o a abandonar Tróilo e Créssida (que jamais foi encenada), mas e se as duas partes de Henrique IV, peças em que consta a grande figura de Falstaff, houvessem sido impedidas de ir à cena, e o mesmo ocorresse com António e Cleópatra! Será que Shakespeare teria vingado? Hipócritas religiosos, cheios de rancor por terem sido objeto da sátira de Molière, prejudicaram muito a carreira do dramaturgo. James Joyce estava certo quando, em Finnegans Wake, expressou inveja do público de Shakespeare, no Teatro Globe. Molière, cujos objetivos eram tão distintos, muito deveria àquele público. Shakespeare escreveu 39 peças, dentre as quais, a meu ver, 24 são obras-primas. Frustrado, Molière não se arriscou a compor outros Tartufos e Dom Juans, e desperdiçou o seu talento em peças para a diversão da corte, acompanhadas de música de bale, composta por Lully. Entendo que Molière criou três personagens que lhe exemplificam, claramente, o génio: Tartufo, Dom Juan e Alceste. Em Tartufo, o dramaturgo atuava como Orgon; em Dom Juan, como Sganarelle; somente em O Misantropo reservou para si o grande papel-título. Por que não atuou como Tartufo ou Dom Juan? Parece ter havido uma certa ansiedade de atuar, um receio de se expor aos muitos inimigos. A semelhança de Alceste, às vezes chamado de Quixote da sinceridade, Molière tinha liberdade para atuar sem qualquer inibição. Essa distribuição de papéis merece reflexão: como ficaríamos apreensivos, se o próprio Shakespeare houvesse desempenhado o papel de Hamlet, e não do Fantasma. Terá Molière representado Alceste como uma crítica sublime à figura do próprio dramaturgo? Richard Wilbur, cujas versões de Molière são as melhores e mais encenáveis em língua inglesa, observa que a intensidade histriónica do protagonista é uma tentativa desesperada de "acreditar na sua própria existência", noção que parece aplicável a Dom Juan, mas não a Alceste. O mesmo pode ser dito no que toca à hipótese, defendida por W. G. Moore, de que Alceste não tem consciência da própria necessidade de "reconhecimento, favorecimento, distinção", premissa perfeitamente válida para Dom Juan, mas nem tanto para Alceste/Molière, cuja eminência como satirista/dramaturgo exige o reconhecimento do público, o favor da crítica e a distinção do Rei. O comentário de Ramon Fernandez ainda procede: "Alceste é um Molière que perdeu a noção do cómico." A arte do satirista não é inteiramente adequada ao teatro cómico. A sociedade é insana, e se Alceste, assim como Swift, está contaminado por aquilo que ele mesmo critica, podemos ter aqui, na prática, uma advertência de Molière para si mesmo. Jamais vi Molière encenado em Paris; nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha, as três grandes peças do dramaturgo costumam ser dirigidas em um ritmo demasiadamente lento, o que também ocorre com as comédias de Shakespeare. Dom Juan, Tartufo e O Misantropo não são farsas, tampouco o são Como Gostais, Muito Barulho por Nada e Noite de Reis, mas a encenação de todos esses textos deve fluir com vigorosa energia, com toques absurdos e a erupção de forças reprimidas. O Misantropo e Noite de Reis, especialmente, são textos que devem zunir diante de nós, forçando-nos a um dispêndio comparável de energia, a fim de acompanharmos a ação. Nada há mais representativo do génio de Molière do que a energia demoníaca de Alceste, confundida por críticos moralistas como histeria: Não é só este homem, é a humanidade, Que só age com interesse e vaidade; Gabamse da verdade, honra e justiça, Mas mentem, trapaceiam, sem preguiça. É demais a maldade do humano; Deixemos a selva e os chacais do engano. Sim! Raça traiçoeira e ignara, Jamais vereis de novo a minha cara! O reduzido consenso crítico no caso de O Misantropo é comparável ao de Hamlet. Somos todos misantropos com relação a nós mesmos. Para muitos, Alceste é apenas um monstro da vaidade, como Dom Juan, ou mesmo o diabólico Tartufo. No entanto, algum outro personagem da peça será preferível a Alceste? Sempre fico atónito quando moralistas académicos me dizem que Falstaff é perverso. O que pretendem com tal afirmação? Quem, nas duas partes de Henrique IV, é menos perverso do que Sir John? Molière, assim como Shakespeare, é um realista moral, e mestre do perspectivismo. Um satirista, confinado a uma peça teatral, há de se tornar um maníaco: basta pensar em Timão de Atenas, versão apocalíptica de Alceste, ou, antes de Timão, em Mercucio, de 248 249 Romeu e Julieta, e Jacques, de Como Gostais. O exemplo extremo é a apoteose do azedume, Tersites, de Tróilo e Créssida. O Dom Juan de Molière, engolido pelo fogo do Inferno, não sofre tanto o destino do devasso, mas a condenação do dramaturgo satiris-ta. Para Molière, o destino de satirista se tornou um longo martírio, por haver criado Tartufo, príncipe dos hipócritas carolas, que deveria ser ressuscitado para concorrer à presidência dos Estados Unidos. Como estudioso amador da religião norte-americana, adoro Tartufo, cuja presença enfeitaria o já refulgente Senado dos Estados Unidos, e cujo desempenho propiciaria fama e prosperidade como "televangelista". Eis a sua entrada triunfal, propositadamente adiada, na segunda cena do terceiro ato: •* Preparai mi'a camisa de silício, Rezai, Laurent, aos céus pio meu suplício. Agora dirijo-me até a prisão, P'ra dividir moedas com o irmão. " Pouco tempo depois, o saudável e lascivo Tartufo é visto bolinando a tola Elmira, esposa do nobre que o protege, ao mesmo tempo em que pede mais graças aos céus, para, em seguida, apropriar-se da fortuna de Orgon, marido de Elmira; Orgon merece estudo aprofundado, e, com o devido respeito, discordo da análise de Richard Wilbur, de que o personagem seja vítima do declínio de autoridade e vitalidade sexual típicos da meia-idade, recorrendo ao sadismo e à intolerância como uma espécie de compensação, sob a tutela de Tartufo. A saúde psicológica de Orgon está bem mais comprometida do que Wilbur sugere, e, com relação a Tartufo, o personagem parece demonstrar uma transferência que ilumina os ensaios clínicos de Freud sobre transferência psicanalítica. Tartufo deseja, ardentemente, Elmira (um desejo sincero, sua única autêntica predile-ção), e o débil Orgon exibe por Tartufo um desejo reprimido. Quando Orgon grita para a filha "Casa-te com Tartufo, mortifica a tua carne!", percebemos o território em que nos encontramos. Se Orgon, embaixo da mesa, não escutasse a precisa avaliação que dele faz Tartufo, a mesma tornar-se-ia profética: Por que nos preocuparmos co' o sujeito? Por dia está mais tolo; não tem jeito. Aqui achar-nos, seria felicidade; Vendo o pior, duvida da maldade. Embora o deus tenha de descer na máquina, pela interseção do omnisciente e benigno Rei Sol, dispensando salvação a todos e preservando Tartufo ao género da comédia, seria desejável que o tão pressionado Molière pudesse lidar com tais questões de modo diferente. Na literatura, como na vida, os Tartufos triunfam, conforme o génio de Molière bem o sabia. A derrota de Tartufo, assim como a destruição de Dom Juan, exige intervenção divina. Por isso O Misantropo é a jóia de Molière, a demonstração mais pura de seu génio cómico. Alceste rejeita a única sociedade capaz de apoiálo, e parte para se arriscar na loucura da solidão. Sabemos que há de retornar, sem dúvida, para resguardar a própria sanidade escrevendo comédias, e talvez se dedique à arte dramática também, de vez que tem talento inato. Se o vício é rei (embora o próprio Rei seja a virtude absoluta), resta apenas a loucura da arte. 250 251 apertando as mãos]. Ah, por que você não completou o trabalho! Por que não me fuzilou, no momento da ameaça! HEDDA. Pois é... Eu tenho mesmo horror a escândalo. LÕVBORG. É, Hedda; no fundo, você é mesmo covarde. HEDDA. Muito covarde. •* A covardia de Hedda, tanto quanto a de Ibsen, tinha caráter social: nenhum dos dois se atrevia a escandalizar os vizinhos. Se Lõvborg é o rival maligno, Strindberg é a eterna vítima de Hedda. Ela não dorme com ele, tampouco o executa, mas o destrói de todo modo. Isso, porém, não nos incomoda demais: ele não é Otelo ou António, mas Hedda tem lago e Cleópatra dentro de si, e seu auto-sacrifício niilista tem um fascínio infindável. Assim como Anna Karenina está para Tolstoi e Emma Bovary está para Flaubert, Hedda está para Ibsen - mas com uma intensidade muito, muito maior. Se misturarmos Hedda Gabler e Peer Gynt em uma única consciência, e acrescentarmos Brand ao caldo, com uma pitada do Imperador Juliano, o Apóstata, chegamos a uma aproximação de Henrik Ibsen. Solness, Rubek e os demais são apenas instantâneos de Ibsen: sua alma está com os destruidores do mundo, e seu verdadeiro amor é a viperina Hedda. Muito me agrada que Hedda tenha se tornado heroína da causa feminista: isso me faz sugerir que Iago seja mulher e, portanto, merece um lugar no panteão. Hedda seria prisioneira de qualquer corpo - masculino ou feminino -, porque nada poderia ser suficientemente bom para a filha do General Gabler, e nada vem do nada. O génio de Ibsen, tanto quanto o de Hedda, é niilista: podemos esquecer o Ibsen à la Arthur Miller, o ferrenho reformador social. Hedda, temerosa da sociedade, não pretende reformá-la. Faria com ela uma fogueira, se pudesse, mas tem as suas limitações; por conseguinte, leva para a fogueira tão-somente Lõvborg, ela mesma e a criança que traz no ventre. Cabe a suposição de que seu último pensamento, no instante em que dispara contra si a arma, tenha sido uma vontade de atear fogo aos cabelos de Thea. Ibsen, extraordinário leitor de Shakespeare, percebera em lago a piromania. CÍkD dè& C§k£ HENRIK IBSEN (1828-1906) "Sempre há duendes nos meus escritos": Ibsen falando de Ibsen. Definindo o próprio génio como pertencente ao mundo espiritual, o maior dramaturgo do Ocidente desde Shakespeare refuta a noção repisada de ter sido o Arthur Miller do seu tempo. Abro um exemplar do mais recente Companion to Ibsen e encontro artigos sobre "Ibsen e o problema do teatro realista" e "Ibsen e o feminismo". Por que não há estudos sobre "Ibsen e orientalismo" ou "Ibsen e os estudos inuítes sobre o lesbianismo"? Por que não "Ibsen e a grande mídia"? Voltemos ao ponto de partida: os duendes. Todos conhecemos dois ou três: mulheres e homens destrutivos e maldosos, que jamais crescem, e que se fazem passar por carismáticos, ou dínamos sexuais. É mais frequente conhecermos (ou somos, nós mesmos) duendes limítrofes. Ibsen, que não era pessoa das mais amáveis, comportava-se, alternadamente, como duende limítrofe e duende total. Basta uma visita à casa sombria e escura de Ibsen, em Oslo, para termos a sensação de que morar ali dois ou três dias causaria depressão clínica em qualquer indivíduo. Contemplando a escrivaninha de Ibsen, estremeci ao lembrar-me de que sobre a mesma ele mantinha um escorpião dentro de um vidro, e que se divertia alimentando-o com frutas frescas. Nem todos os duendes são génios, tampouco são duendes todos os génios. Ibsen, conformista social, tinha o talento de extrair, do outro lado da fronteira, energia de duende. Seus grandes personagens imitam o criador nessa empreitada no mundo dos espíritos: Brand, o Imperador Juliano, Peer Gynt, Hedda Gabler (mistura maravilhosa da Cleópatra e do lago shakespearianos), Solness, o arquiteto. Quanto aos demais, já os analisei em outros estudos; aqui focalizo Solness, incluindo, também, um olhar final sobre Rubek, o mestre escultor, substituto de Ibsen na última peça escrita pelo dramaturgo, Quando Nós Mortos Ressurgimos (1899). No ano seguinte, Ibsen sofreu o primeiro derrame, e nada mais escreveu, conquanto vivesse até 1906. Nos dias atuais, é preciso um certo esforço para resgatar Ibsen, mesmo porque muitos dos que dirigem e atuam em suas peças pensam ser a sua obra do mesmo estofo que As Feiticeiras de Salém e Todos Eram meus Filhos. Dois irlandeses que o admiravam, George Bernard Shaw e James Joyce, tinham percepções bastante diferentes a seu respeito; a redução praticada por Shaw triunfou, e ainda hoje nos acompanha. Joyce, assim como Henry James e Oscar Wilde, via Ibsen como, de fato, ele era: um Shakespeare do norte, o único dramaturgo pós-shakespeariano capaz de inovar, criando o seu próprio método trágico. Em 1855, aos 27 anos, Ibsen fez uma palestra, em Bergen, 252 253 intitulada "A Influência de Shakespeare na Literatura Escandinava". Eu teria satisfação em ler o texto da conferência, mas, pelo que consta, Ibsen o destruiu. Shaw, que, ao mesmo tempo, temia e abominava Shakespeare (por motivos óbvios), cometeu o absurdo de colocar Ibsen acima do dramaturgo inglês, porque o Ibsen de Shaw era, antes de mais nada, um demolidor de ícones idealistas: Ibsen provê o que falta em Shakespeare (...) suas peças nos são muito mais importantes do que as de Shakespeare (...) são capazes de nos magoar, cruelmente, e de nos encher de esperanças, seja quanto à possibilidade de escaparmos da tirania do idealismo, seja quanto às visões de uma vida mais intensa no futuro. Tais palavras não se aplicam a Ibsen, mas a Homem e Super-homem, ou a Santa Joana. O Ibsen de Shaw é uma chibata para bater em Shakespeare, e não corresponde à relação do próprio Ibsen com Hamlet e António e Cleópatra. James Joyce, resenhando Quando Nós Mortos Ressurgimos, em 1900, esclareceu a relação entre Ibsen e a Era do Esteticismo, de Walter Pater: Diante de algum dito aleatório a mente é torturada por alguma questão, e, em meio a um relâmpago, extensas regiões da vida surgem à vista, mas a visão é momentânea. São essas as epifanias negativas de Ibsen, ovelhas negras, ou duendes que se contrapõem aos momentos privilegiados de Pater (vide a discussão sobre Pater). Hamlet pensa com demasiada clareza, toma conhecimento da verdade da nossa condição, ressuscita e, então, morre, o que é o máximo que a verdade nos permite fazer, contrariamente a Shaw. "Viver é combater duendes no coração e na mente; escrever é submeter-se a um julgamento diante de si mesmo." As palavras são de Ibsen, mas poderiam ser de Hamlet, se o Príncipe da Dinamarca houvesse se dedicado a estragar peças. O Arquiteto Solness poderia adotar o lema de Nietzsche: "O que não me destrói, revi-gora-me." A epígrafe seria irónica, pois o(a) jovem duende Hilde Wangel, na verdade, destrói o substituto de Ibsen, o arquiteto Halvard Solness, que, supostamente, tem 64 anos, a idade de Ibsen, em 1892, quando a peça foi escrita. Passada uma década, chega Hilde, que tem menos de 23 anos, com o intuito de estabelecer o seu reinado, que, na prática, implica o sparagmos de Solness, que se espatifa ao cair de uma elevada torre, por ter ficado tonto ao assistir, do alto, às traquinagens de Hilde. A cena pode parecer ridícula, mas Ibsen consegue realizála a contento. Seu génio faz da sua maior limitação um ponto forte, pois, fundamentalmente, o (a) duende Hilde e o duende limítrofe Solness HENRIK IBSEN são a mesma pessoa. Mais uma vez, Shaw se equivoca: Ibsen, ao contrário de Shakespeare, coloca apenas ele mesmo no palco. Essa hipótese foi demonstrada, com autoridade e justiça, por Hugo von Hofmannsthal, em 1893, no ensaio "O Povo no Teatro de Ibsen". Hofmannsthal inicia com o comentário de que ninguém faria uma palestra sobre "O Povo no Teatro de Shakespeare", porque "no drama shakespeariano não existe nada se não pessoas", ao passo que, "em Ibsen, todo o debate, o entusiasmo e o repúdio estão quase sempre ligados a algo externo aos personagens - ideias, problemas, perspectivas, reflexões, atmosferas". Contudo, prossegue Hofmannsthal, existe nas peças de Ibsen uma pessoa: "alguma versão da espécie humana, bastante complexa, bastante moderna e observada com bastante precisão". Pode-se chamar Juliano, o Apóstata; Peer Gynt; Solness; Brand; Hedda Gabler; Nora etc: Não é, absolutamente, uma criatura simples - deveras, é bastante complicada; fala em prosa enérgica, em staccato, desprovida de páthos (...) é [uma criatura] irónica consigo mesma, auto-reflexiva. O que tal pessoa deseja, Hofmannsthal sugere, é parar de escrever poesia e se tornar a própria matéria poética, "a essência da poesia". As diferentes versões dessas pessoas denominam essa essência de forma distinta: o milagre, a grande bacanal, o mar, a América. E essa pessoa - em todas as suas mutações - aprecia uma morte organizada, obsessão marcante de Hedda Gabler, bem como a missão de Hilde Wangel, i.e., organizar a morte do arquiteto Solness. Escrevendo um ano após o surgimento de O Arquiteto Solness, Hofmannsthal concentra na peça os seus comentários: A volta do artista está a vida, exigente, desdenhosa, confusa. Assim, a Princesa Hilde confronta o vacilante arquiteto. Ela é a pequena Hilde, filha adotiva, hoje adulta, da Dama do Mar. O arquiteto prometeu-lhe um reino, e ela agora veio reivindicá-lo. Se ele nasceu rei, a situação nada tem de complicada. Se não, simplesmente, está fadado a perecer. Tudo isso é tremendamente empolgante. O reino de Hilde, assim como os de Nora e Hedda, pertence à esfera do milagre -onde se é derrotado pela vertigem, onde se é tomado por uma força estranha, onde se é transportado. O próprio arquiteto tem na alma esse anseio, de se pôr de pé no alto de uma torre, onde o vento e a solidão crepuscular são dotados de uma beleza perturbadora, onde se fala com Deus, de onde se pode despencar para a 254 255 morte. Mas o arquiteto não está imune à vertigem; ele teme por si mesmo, pela sorte, pela vida, a vida tão misteriosa. Sente-se atraído por Hilde também por temor, um medo estranhamente fascinante, o respeito que sente o artista pela natureza, pelas cruéis, demoníacas e enigmáticas características inerentes à mulher, o temor místico da juventude. Pois a juventude tem algo de misterioso e perturbador. Tudo o que existe de problemático no arquiteto, todo o potencial místico nele reprimido, é precipitado pelo toque de Hilde. Nela, encontra a si mesmo, exige de si mesmo um milagre, dispõe-se a realizá-lo a qualquer custo, e, ao mesmo tempo, a observar e sentir reverência pelo momento em que "a vida se apodera de um homem e o torna a essência da poesia". Nesse ponto, ele despenca para a morte. * Indubitavelmente, o cerne de tudo isso é: "Nela, ele encontra a si mesmo." Estudiosos de Ibsen (ainda restam alguns punhados) discordam de Hofmannsthal, mas, claro está, Hedda Gabler, Solness e Ibsen são um só, e Hilde, quando amadurecer, há de gerir a própria morte, com a mesma arte que o faz Hedda. O que mantém a ação em movimento, conforme Hofmannsthal, em última instância, admite, é que, em Ibsen, encontramos a nós mesmos, mais belos e mais estranhos. Em Shakespeare, encontramos o outro, mas Ibsen, assim como Solness, exige milagres apenas de si mesmo. Shakespeare não precisava exigir coisa alguma. Joyce, que muito apreciava Irene, em Quando Nós Mortos Ressurgimos, só faltava chegar à conclusão de que Ibsen era mulher. Todavia, a peça é, absolutamente, ensandecida: tanto o seu resumo quanto a sua análise vão além do absurdo, e nem mesmo Ibsen consegue salvá-la. Saltar de uma torre em consequência do encantamento de uma feiticeira é gesto convincente, embora, para alguém como eu, incapaz de descer uma escada sem pensar no tombo de Humpty Dumpty, o ato parece um tanto barroco. Mas a noção de Rubek, em companhia de Irene, que enlouquecera porque ele jamais a tocara, ambos perambulando pela encosta de uma montanha em meio à neblina e à tempestade, é algo que fica além da representação cénica, ainda que uma avalanche constitua um grande desafio para qualquer construtor de cenário. Como emblema de ressurreição e liberdade, a peça paira próxima ao esquema de catástrofe-criação pelo qual Ibsen sempre anseia. Como pessoa, ele se submeteu à auto-imolação através da respeitabilidade; na condição de génio artístico, ele, no extremo, libertou o seu lado pertencente ao reino espiritual, e terminou à beira de um abismo. í~ TON TCHEKHOV Reclamas que meus personagens são sombrios. Ai de mim! Não é minha culpa! É algo involuntário; enquanto escrevo, o texto não me parece sombrio; em todo caso, quando trabalho, estou sempre de bom humor. É notável que os escritos de pessoas sombrias e melancólicas sejam sempre alegres, enquanto os sorridentes sempre nos deprimem com o que escrevem. E eu sou um homem sorridente; ao menos, pode-se dizer, aproveitei bem os primeiros 30 anos da minha vida. A bondade de Tchekhov sempre mitiga a ironia. Assim como Samuel Beckett, Tchekhov é um dos poucos santos da literatura. Ambos são escritores insubstituíveis, e suas biografias foram ainda mais impressionantes do que as respectivas obras. Tolstoi gostava imensamente de Tchekhov, fosse como escritor ou como pessoa, mas considerava a grandeza humana do autor superior àquela observada em seus contos e peças. A generosidade de Tchekhov estava relacionada ao seu respeito pela simplicidade do ser humano. Gorky, que, assim como Tolstoi, venerava Tchekhov, enfatizava a implacabi-lidade de Tchekhov com qualquer tipo de ato vulgar. No mais, Tchekhov era uma fonte de benignidade, com todas as pessoas. O génio de Tchekhov é shakespeariano, elogio perigoso para qualquer escritor, mas tenho em mente uma comparação específica, sem pretender sugerir que Tchekhov compartilhe da capacidade sobrenatural de Shakespeare no que concerne à caracterização de personagens. Em Shakespeare (como na vida), as pessoas raramente escutam umas as outras e, quando o fazem, têm imensa dificuldade em compreender o que a outra diz. Com frequência, essa questão nos escapa em Shakespeare, porque ficamos tão deslumbrados com as personalidades de seus personagens que não percebemos as evasivas que trocam entre si. Tchekhov não é capaz de criar personalidades com a destreza que o faz Shakespeare, mas, decerto, é capaz de representar, com uma força assombrosa, os hiatos e as evasões que ocorrem na interação dos personagens. O extraordinário distanciamento de Shakespeare com relação aos personagens, mesmo em se tratando de Hamlet e Falstaff, encontra um paralelo no princípio de moderação dramática, praticado por Tchekhov, necessariamente, mais visível nas peças do que nos contos. Parece estranho classificar um autor benigno como Tchekhov génio ao comedimento, mas tudo indica que a designação seja procedente. 256 257 TCHEKHOV ANTON TCHEKHOV (1860-1904) Maxim Gorky, escrevendo, em suas Memórias, sobre o amigo Tchekhov, afirma que, na presença do dramaturgo e contista, "todos sentiam um desejo inconsciente de serem menos dissimulados, mais verdadeiros, mais eles mesmos". A asserção de Gorky enseja a maneira mais eficaz de distinguir o génio de Tchekhov, que se esconde ao adotar a banalidade como tópico principal. Dostoiévski, por mais soturno que seja o ambiente por ele representado, fica sempre a apenas um passo do transcendental e do extraordinário. Tchekhov, discípulo de Tolstoi, tinha em comum com Dostoiévski apenas a veneração por Shakespeare, a quem Tolstoi desprezava. Assim como Turgenev, Tchekhov centra-se em Hamlet, ao passo que Dostoiévski aproxima-se mais de Macbeth e Rei Lear. Lev Shestov, sábio religioso russo do século XX, comparava Tchekhov ao Príncipe Hamlet, o que se explica, de vez que Tchekhov era obcecado pela peça; entretanto, no mais, Shestov está equivocado. O Hamlet shakespeariano é incapaz de amar quem quer que seja, embora insista no contrário, sendo, na verdade, um assassino incapaz de sentir remorso. Tchekhov, segundo o testemunho de todos que o conheciam bem, e levando-se em conta a gratidão de leitores e plateias, foi e ainda é merecedor do nosso afeto. Eis, novamente, Gorky, desta feita, relembrando Tolstoi: Ele amava Tchekhov, e quando o olhava, seus olhos ficavam ternos e pareciam querer acariciar o rosto de Anton Pavlovich. Certa vez, quando Anton Pavlovich caminhava pelo gramado na companhia de Alexandra Lvovna, Tolstoi, que à época ainda estava doente, sentado em uma poltrona no terraço, parecia querer alcançá-los, e murmurar: "Ah! Que homem belo, magnífico; é modesto e tranquilo como uma moça. E caminha como uma moça. É, simplesmente, maravilhoso." Tolstoi, juiz impiedoso, foi sempre um apaixonado por Tchekhov, e assim somos a maioria de nós. Robert Brustein fala, com eloquência, em nome das plateias e dos leitores de Tchekhov: Ninguém até hoje foi capaz de escrever a seu respeito sem demonstrar o mais profundo afeto e amor; e ele, o autor, é sempre o personagem mais positivo da sua própria ficção. Há grandes autores cujas personalidades tanto admiramos, mas que, ao mesmo tempo, são por demais incomuns para serem contemplados muito de perto: Blake, Shelley, Kafka, Hart Crane. Tchekhov é pessoa boa e afetuosa; Samuel Beckett parece ter sido modelar, em todos os sentidos, mas era reticente. Admito que não é fácil perceber ou dizer o que se segue, mas Tchekhov pode ser considerado o menos espiritual, o mais humano de todos os génios literários. Conforme o modelo, Shakespeare, Tchekhov não era dado a solucionar problemas, tampouco prescrevia remédios para os males da humanidade. Mas quase nada sabemos da pessoa de Shakespeare: ele nos confunde porque é, simultaneamente, todo mundo, inclusive todos os personagens de suas 39 peças. Tchekhov é sempre Tchekhov, mas há nisso grande arte, além do talento de um génio sumamente original. O leitor pode acreditar que, em Hamlet, Shakespeare é todo mundo; no entanto o Príncipe se destaca e, na cena com os atores, talvez se incorpore a Shakespeare, direta-mente. Na função de ator, Shakespeare destacava-se como o Fantasma do Rei e, creio eu, também no papel do Ator Rei. Em A Gaivota, todos são Tchekhov, em um sentido bastante diferente, farsesco. O dramaturgo satiriza a si mesmo no personagem do escritor Trigorin, e faz uma autoparódia também nas figuras do jovem teatrólogo, Treplyov, e da orgulhosa atriz Nina. Os três personagens apresentam elementos de Hamlet, embora a relação dos mesmos com o Príncipe não seja sequer paródica. O relacionamento de Treplyov com a mãe, a atriz narcisista Arkadina, apresenta paralelos que chegam a ser óbvios demais com o confronto de Hamlet e Gertrudes, e Nina é uma espécie de Ofélia. Mas Trigorin não é nenhum Cláudio, e a peça dentro da peça de Treplyov não configura um ataque a Trigorin, que está mais para Polónio do que para tio usurpador. Mesmo em A Gaivota, Tchekhov expressa uma sutileza sinuosa, sempre defendendo os interesses da vitalidade. Contudo, para Tchekhov, A Gaivota é obra menor. Seu génio brilha mais em As Três Irmãs, peça digna da admiração de Shakespeare, e em "Querida", conto muito apreciado por Tolstoi. Assimilar o que há de mais tchekhoviano nessa peça e nesse conto é chegar mais perto do génio de Tchekhov, embora, de todas as figuras estudadas neste livro, somente Shakespeare e Tolstoi têm, a meu ver, uma originalidade mais difícil de ser descrita do que a de Tchekhov. Os três são milagres de uma arte que em si é a própria natureza, tomando emprestado a frase de Shakespeare. Ninguém resiste a uma comparação minuciosa com Shakespeare ou Tolstoi, e Tchekhov teria deplorado esse tipo de triangulação. No entanto, Tchekhov torna mais claro aquilo que associa Hadji Murad, de Tolstoi, a António, de Shakespeare, guerreiros que são também magníficos heróis trágicos: uma paixão pela vida que não esmorece com a proximidade da morte. Tchekhov, poeta da vida não vivida, demonstra um ardor tácito, contrário à inutilidade da vida, enquanto Tolstoi e Shakespeare retratam, de modo contumaz, a 258 259 grandeza da vida, em protagonistas extremamente vivazes, como o líder chechênio e o romano predileto de Cleópatra. Entre todas as obras de Tchekhov, As Três Irmãs é a mais difícil de ser classificada, em parte, porque carece de um género definido. A peça pode ser considerada tragédia, tragicomédia, comédia ou o que o leitor quiser. Howard Moss, no ensaio mais tchekho-viano que existe a respeito do texto, observa que "a incapacidade de agir torna-se a ação da peça". Sempre me fascina, quando releio o ensaio de Moss sobre As Três Irmãs, o comentário de que Tchekhov (assim como Proust) jamais nos oferece o retrato de um casamento feliz. Nesse particular, sempre digo a meus alunos que o casal Macbeth é o mais feliz em Shakespeare. A maior lição que Tchekhov aprende de Shakespeare é fazer com que nenhum personagem se dê ao trabalho de escutar o que o outro diz, especialmente se forem amantes. Monólogos intermináveis e um solipsismo maravilhoso marcam os personagens de Tchekhov, assim como os de Shakespeare. Que Tchekhov é irónico fica muito claro, mas a ironia de Shakespeare, à semelhança da de Chaucer (segundo Chesterton), é grande demais para ser percebida. As três irmãs de Tchekhov, tão familiares quanto as nossas amigas mais íntimas, cha-mam-se Olga, Masha e Irina. A maternal Olga jamais se torna mãe e, no entanto, representa, de modo comovente, a generosidade e a bondade, embora o nervosismo a impeça de fazer oposição à cunhada, a vitalista e napoleônica Natasha. Das irmãs, Masha é a que se assemelha a Hamlet, sempre pronta a dizer a verdade, ardente mesmo em sua reticência tchekhoviana. Tchekhov também aprendeu com Shakespeare a arte da omissão, e a elíptica Masha, mais uma heroína de luto pela própria vida, é o personagem mais cativante da peça. Seu amante, Vershinin, é outra autoparódia tchekhoviana: culto, benigno, fraco, no extremo, insignificante, de vez que não consegue suportar o terrorismo ibseniano de Masha, que através da verdade nos bombardeia, até sermos por ela destruídos. Irina, menos complexa do que Masha, mesmo assim é tão assustadora quanto amável, embora seja incapaz de retribuir amor. Mais até do que Olga e Masha, Irina está convencida de que a volta a Moscou (onde as irmãs haviam sido educadas) resolveria o aperto em que as três se encontram e abriria, para ela, as portas de Eros. A Moscou de Irina, assim como a de suas irmãs, é uma ficção, e desapareceria logo na chegada. Irina e Masha, e até mesmo Olga, bem encenadas, despertam na plateia uma paixão que se torna desesperadora, porque as três irmãs jamais se arriscarão a viver as alternativas disponíveis, tampouco encontrarão forças para deixar de lado o desdém e enfrentar Natasha, a cunhada predadora. Isso tudo pode parecer telenovela tchekhoviana, mas, através de nuanças, é elevado a um excepcional nível artístico. Uma telenovela em que as ANTON TCHEKHOV três heroínas formam um coro que lamenta a própria ignorância constitui, de certo modo, novo género, no qual os imitadores de Tchekhov não têm conseguido rivalizar a atmosfera e o ritmo dramático do autor. Como articular a genialidade de As Três IrmÕst Moss resume bem a questão: "As irmãs anseiam por realizar o oposto daquilo que logram alcançar, anseiam por se tornar o oposto daquilo que são." Pairam aqui os infindáveis enigmas de Hamlet, mas o Príncipe da Dinamarca pode invocar anjos, ainda que estes não acorram. Levandose em conta o potencial do seu génio, Hamlet realiza tão-somente o desastre de oito mortes, inclusive a dele próprio. Embora a catástrofe seja memorável, o desperdício da consciência mais abrangente de toda a literatura seria espantoso, não fosse o extraordinário canto fúnebre de Hamlet, a ária à eternidade. As Três Irmãs causam um sofrimento bastante diferente, e indefinível. Todo o apreço que tenho pelo grande crítico canadense ' Northrop Frye (1912-1991) é incapaz de minimizar a minha insatisfação, quando, em | Anatomia da Crítica (1957), ele registra: Nos trechos de Tchekhov, especialmente, no último ato de As três irmãs, em que os personagens, um a um, isolam-se dos outros, recolhendo-se ao interior de suas celas subjetivas, aproximamo-nos da ironia pura, com a máxima intensidade que o palco comporta. Seja lendo o texto de As Três Irmãs ou assistindo à sua encenação, sou tomado de forte páthos, quando Masha grita "Precisamos viver... Precisamos viver...", Irina proclama: "Vou trabalhar, vou trabalhar...", e Olga abraça as duas irmãs, concluindo a peça com as palavras: "Se nós soubéssemos; se nós soubéssemos!". As irmãs estão presas em uma situação de ironia, mas, absolutamente, não se isolam. Onde há tanto amor, inclusive o nosso amor por elas, como é possível haver ironia pura? Querida" (1899), conto escrito dois anos antes de As Três Irmãs, narra a história de uma alma "bela e santa", Olenka, merecedora dessa descrição por parte de Tolstoi. Ela é tão infantil, e tão maternal, a um só tempo, que, quando não tem quem amar, sente-se vazia, em um estado morto-vivo. É como se não dispusesse de identidade, a não ser no amor. Tchekhov a adorava, Tolstoi tinha por ela sentimento idêntico, e o leitor não tem outra escolha. A vida, com toda a sua crueldade, reserva-lhe a morte de dois maridos, mas ela sobrevive através do filho adotivo, deixado aos seus cuidados. Os críticos seguem Tolstoi, ao deduzir que, nesse conto, o impulso original de chekhov é irónico, possivelmente satírico, mas que a história lhe escapa. Desprovida de personalidade e ideias próprias, Olenka pode ser encarada como uma versão absurda 260 261 de mulher, mas tal avaliação me parece superficial. Eu mesmo conheci algumas mulheres, e alguns homens, como Olenka. Talvez, todos sejamos como ela, embora a nossa sociedade não saiba lidar muito bem com "almas santas". Olenka possui mente simplória, mas não é, de maneira alguma, deficiente mental, e o modo como escolhemos ler a sua história constitui, inteiramente, um exercício de auto-avaliação. Em sua fase final de contista, Tchekhov adota um perspectivismo shakespeariano: que valor tem algo, senão aquele que lhe é atribuído? Os homens de Olenka são seres absurdos, e o filho adotivo é uma criatura fraca, que contra ela transborda um ressentimento reprimido. Como o próprio Tchekhov lia esse conto? Não o sabemos, e não creio que isso tenha importância. É difícil aceitar Olenka, e perigoso rejeitá-la, pois, se a desprezamos, ou mesmo se dela sentimos pena, perpetramos uma certa violência contra a alma. Condenado pela tuberculose, Tchekhov, aos 39 anos de idade, desistiu de censurar o próprio génio. A pobre Olenka não representa o génio de Tchekhov e, sem dúvida, merece a condenação de Gorky, a partir de sua perspectiva revolucionária. Todavia, é Tchekhov, e não Tolstoi, quem cria Olenka. Entre o advento de um e outro ser que possa ser objeto do seu amor, Olenka passa por mudanças. O leitor pode argumentar, conforme o fazem alguns críticos, que o sentimento de Olenka é devorador, tendo consumido os esposos, enxotado um admirador, e que, com o tempo, tal sentimento provocará a perda do filho adotivo. Não consigo ler a história nesses termos, e Olenka não me parece uma Psique, aguardando a volta de Cupido. Confrontado pela imagem de Olenka, algo em Tchekhov se rompe, profundamente. Talvez o seu génio, a despeito de toda a sua sapiência humana, resida mais no reino da aspiração do que os estudiosos puderam até o presente perceber. Segundo entendo, em última análise, Olenka é uma denúncia da aspereza irónica das nossas próprias almas. OSCAR WILDE Sr. Worthing! Corrija, senhor, essa postura semi-reclinada. E sumamente indecorosa. - Lady Augusta Bracknell, dirigindo-se a Jack A Importância de Ser Prudente Os mestres da linguagem surgem em grupos bastante variados, e apraz-me misturar personagens ficcionais e autores, a fim de constituir um todo. Imaginemos Jane Austen e a Rosalinda shakespeariana {Como Gostais) tomando chá, em uma atmosfera bem mais cordial do que aquela observada no encontro entre Cecily Cardew e Gwendolen Fairfax durante um lanche, em A Importância de Ser Prudente. Ou vislumbremos Samuel Pickwick esbarrando em SzVJohn Falstaff, no presídio de Newgate, e procedendo a uma discussão sobre dívidas e carceragem. A mais interessante de todas seria uma prosa de períodos ornados, entre Samuel Johnson e sua afetada parodista, Lady Bracknell. William Butler Yeats achava que Wilde era o tipo de homem que gostava de açao e que, frustrado como tal, desviara-se para a vida literária. Embora a avaliação de Yeats seja um tanto estranha, ela consegue captar algo enigmático em Wilde, pródigo com relação à própria genialidade e à vida, esbanjando ambas. Mesmo em A Importância de Ser Prudente, sempre falta algo do próprio Wilde. Embora fosse pupilo confesso de John Ruskin e Walter Pater, Wilde sentia-se perfeitamente à vontade no papel de celebridade, sendo precursor de Truman Capote, Andy Warhol e uma série de outros estetas superestrelas. Infelizmente, seu génio era grande demais para caber no papel por ele escolhido. Ao lamentar a morte prematura de Wilde, aos 46 anos, receio que minha tristeza tenha um caráter mais pessoal do que literário. De Profundis e A Balada do Cárcere de Reading são obras prolixas. Se Wilde tivesse escrito mais peças, teríamos alguma outra Salomé, e não outra A Importância de Ser Prudente. Ao afirmar que poupava o próprio génio para utilizá-lo na vida, e que, na arte, investia apenas habilidade, Wilde falava com exatidão, aliás, como sempre, mas, nesse caso específico, talvez tenha se arrependido de ser exato. 262 263 OSCAR WILDE (1854-1900) Wilde fomentou uma considerável tradição oral, em parte, sem dúvida, apócrifa. Seu neto, Merlin Holland, relembra, de modo fascinante, que Oscar Wilde "confessava que vivia sob constante pavor de não ser mal compreendido". Quando, aos 28 anos, Oscar, o Esteta, apresentou-se à alfândega da cidade de Nova York, consta que tenha dito: "Nada tenho a declarar, exceto o meu belo génio." Se não o disse, deveria tê-lo feito, assim como deveria ter expressado a sua decepção com o Oceano Atlântico: "Não cjiegou a rugir." Para W. B. Yeats, Wilde estava sempre representando o papel de Wilde, mas o mesmo se aplica a Lorde Byron, Hemingway e (ouso dizê-lo?) ao ilustre Goethe. Merlin Holland atribui ao avô o papel de Fausto, ainda que não fique claro se seria o Fausto de Marlowe, Goethe ou Mann. De vez que meu assunto é o génio de Wilde, e o divino Oscar é, ao mesmo tempo, proteico e objeto de minha adoração literária ao longo da vida, não vou me restringir a uma única obra, ainda que isso contrarie os meus procedimentos neste livro. O génio de Wilde aparece com mais força em A Importância de Ser Prudente e dois ensaios magníficos - "A Alma do Homem sob o Socialismo" e "A Decadência da Mentira". Passo a me referir a esses três trabalhos, aleatoriamente, e recorro a outras paragens de sua vida e obra. O ponto fundamental a ser considerado em se tratando de Wilde foi definido por Jorge Luis Borges: o grande Esteta estava quase sempre certo. A minha profissão suicida, outrora o ensino da literatura ficcional no mundo anglófono, ainda estaria viva, se tivesse aprendido a lição de Wilde: "Toda poesia medíocre é sincera." Infelizmente, é tarde demais, e os melhores alunos, com toda razão, fogem dos docentes que ainda não morreram, a despeito de facções. Precisamos de Wilde, mesmo nesse momento de fracasso; quem mais pode nos alegrar, em tempos tão sinistros? Descendo o poço de uma mina, em Leadville, Colorado, durante uma visita aos Estados Unidos, Oscar perfurou uma parede e, em seguida, voltou à superfície, acompanhando os mineiros e suas namoradas a um cassino: "em um canto havia um pianista, sentado ao piano, acima do qual se via um cartaz: 'Favor não fuzilar o pianista; ele faz o que pode.' Fiquei chocado diante da constatação de que a arte medíocre merece a pena de morte." Arte medíocre hoje em dia é estudada em universidade, exaltada na mídia e, supostamente, faz bem à nossa consciência política. Wilde, exato em suas profecias, um século após a sua morte, não tem rival, ao descrever a nossa condição literária: OSCAR WILDE Antigamente, livros eram escritos por homens de letras e lidos pelo público. Hoje em dia, livros são escritos pelo público e lidos por ninguém. Wilde ilustra os dois principais sentidos da noção de génio: uma força geradora inata, e um outro eu, que busca e encontra a destruição daquilo que é inato. Um século mais tarde, quando o homossexualismo já não provoca imolação social, Wilde seria obrigado a encontrar algum outro meio de sucumbir, algo além da imaginação. Byron encontrou a rebelião grega, Hemingway as diversas maneiras de "viver a vida até o último instante", até o suicídio; creio que Wilde teria encontrado algum meio ainda mais individualizado. A minha favorita, entre as "máximas para a instrução dos supercultos", é: Jamais devemos ouvir; ouvir é um sinal de indiferença pelos nossos ouvintes. Não fui agraciado com nenhum prémio de magistério, em meio século de carreira, porque acredito na paixão e no raciocínio contidos nesse aforismo. Uma das afinidades mais autênticas de Wilde (registrada, com astúcia, por sua editora, Isobel Murray) era com Emerson, de modo especial, o ensaio "Autoconfiança", que repercute tanto em "A Decadência da Mentira" quanto em "A Alma do Homem sob o Socialismo". Emerson, em "Autoconfiança", afirma tantas ideias ao mesmo tempo, que torna dúbio qualquer comentário, mas, ao que parece, o trecho que mais comovia Wilde era o seguinte: Afasto-me de pai e mãe e irmã e irmão, quando meu génio me chama. Escreveria acima das esquadrias das portas: Capricho. Espero que, em última instância, seja algo superior a capricho, mas não posso ficar o dia todo dando explicações. Capricho é o meio mais seguro para se chegar a ser mal compreendido, mais um objetivo que Wilde herdou de Emerson. Suponho que duas passagens de "Autoconfiança" provocassem em Wilde o mesmo efeito que causam em muitos dos meus alunos: Em toda obra de génio encontramos os nossos próprios pensamentos descartados: voltam para nós com uma certa majestade alienada. Assim como as preces dos homens são uma enfermidade da alma, suas crenças são uma enfermidade do intelecto. No leito de morte, Wilde converteu-se ao catolicismo. As perspectivas sobre conversões efetuadas em leito de morte variam e, vale lembrar, Wilde, durante toda a vida, 264 265 defendeu a ideia de que Jesus Cristo era, antes de tudo, um artista, e um gnóstico, e o escritor preferia o Evangelho de João, em bases extremamente hereges, como se vê neste trecho de De Profanais: Ao ler os Evangelhos - especialmente, o de São João, ou seja lá de qualquer gnóstico que tenha assumido o seu nome - vejo a constante assertiva da imaginação como a base de toda a vida espiritual e material, vejo também que, para Cristo, a imaginação era, simplesmente, uma forma de Amor, e o Amor era Senhor, no sentido mais pleno da frase. Wilde lembra-s* de ter comentado com Gide que tudo o que foi dito por Cristo podia ser transferido, de pronto, para a esfera da Arte, onde tais noções se concretizariam plenamente. "Uma verdade deixa de ser verdade quando mais de uma pessoa acredita nela" é um dos célebres aforismos wildianos, e não propicia muito espaço para conversões, exceto aquelas efetuadas no leito de morte. A discussão principal sobre Cristo ocorre no texto "A Alma do Homem sob o Socialismo", e, a exemplo do ensaio em sua totalidade, constitui um hino à personalidade, ao autocrescimento. Eis Wilde, no que nele há de menos irónico e, talvez, menos compreendido: E, portanto, quem mais vive de acordo com o modelo oferecido por Cristo é aquele que é perfeita e absolutamente autêntico. Pode tratar-se de um grande poeta; ou um grande cientista; ou um jovem universitário; ou um pastor de ovelhas, ou um dramaturgo, como Shakespeare; ou um pensador que reflete sobre Deus, como Spinoza; ou uma criança que brinca no jardim; ou um pescador que lança a rede ao mar. Não importa o que seja o homem, basta que leve a termo a perfeição da alma interior. Toda imitação, seja quanto à moralidade, seja quanto à vida, é falha. Pelas ruas de Jerusalém, hoje em dia, segue um lunático, carregando uma cruz de madeira às costas. Ele simboliza as vidas prejudicadas pela imitação. O Padre Damien agiu de acordo com o modelo oferecido por Cristo, quando foi viver com leprosos, porque, ao prestar tal serviço, levou a termo, plenamente, o que de melhor havia em seu interior. Porém, não seguiu mais de perto o modelo de Cristo do que Wagner, quando alcançou a realização da própria alma na música, ou do que Shelley, quando alcançou a realização da alma na canção. Não há apenas um tipo de homem. Há tantas perfeições quanto há homens imperfeitos. E, enquanto no que toca ao chamado da caridade o homem pode ceder e se tornar livre, ao chamado do conformismo não se pode, absolutamente, ceder e permanecer livre. Embora empregue a palavra "socialismo", Wilde tem em mente algo bem mais próximo da visão dos anarquistas catalães que lutaram contra Franco e contra os comunistas, e que preservaram as tradições dos cátaros (gnósticos provençais). A crença mais profunda de Wilde parece ter sido a de que precisamos "viver a vida do próximo, e não a nossa", conceito irreconciliável com o culto à personalidade individualista, mas, tanto quanto Emerson, o autor de "A Alma do Homem sob o Socialismo" deplorava qualquer "consistência tola". Wilde tinha o génio do paradoxo, e os momentos mais brilhantes dessa genialidade provocam o apagamento da linha que, supostamente, separa a crítica da criação literária. Eis Wilde, no que há de melhor em sua crítica, em um trecho do ensaio-diálogo "A Decadência da Mentira", falando através de um personagem, Vivian: Um grande artista jamais enxerga as coisas como elas, realmente, são. Se assim não fosse, deixaria de ser artista. Tomemos um exemplo atual; sei que gostas de objetos japoneses. Ora, achas que o povo japonês, conforme nos é apresentado na arte, de fato existe? Se pensas assim, é porque não entendes a arte japonesa. O povo japonês é criação deliberada, autoconsciente, de certos artistas. Se colocares um quadro de Hokusai, Hokkei, ou de qualquer um dos grandes pintores nativos, ao lado de uma dama ou de um cavalheiro japonês, em carne e osso, verás que entre eles não existe a menor semelhança. O povo que vive no Japão não difere da média do povo inglês; isto é, são pessoas comuns, que nada têm de especial ou extraordinário. Na verdade, o Japão é, em si, pura invenção. Não existe tal país; não existe tal povo. Um dos nossos pintores mais charmosos esteve, recentemente, na Terra do Crisântemo, com a tola esperança de observar os japoneses. Tudo o que ele viu, tudo o que lhe foi possível pintar, foram umas poucas lanternas e alguns leques. Ser, a um só tempo, tão sábio e tão espirituoso já é algo bastante raro, mas logo irrompe a verdadeira genialidade, expressa por meio de uma grande asserção: "Na verdade, o Japão é, em si, pura invenção. Não existe tal país; não existe tal povo." Trata-se de um daqueles poucos trechos memoráveis de crítica que contribuem para preservá-la como género literário. Tenho a satisfação de me autoplagiar, observando que esse Japão é a mesma terra distante onde vivem os Jumblies, de Edward Lear, ao lado de Dong, com seu nariz luminoso, Pobble, que não tem os dedos do pé, e o mais reliz dos casais: seu Coruja e dona Gatinha. Para lá segue Alice, seja por baixo da terra, seja através do espelho; é, precisamente, o país dos sanduíches de pepino, onde Lady Dracknell confronta Miss Prism. O nome do país encerra a crítica mais elevada: 266 267 Eis o que, deveras, constitui a crítica mais elevada: o registro da própria alma. É mais fascinante do que a História, pois diz respeito, simplesmente, à própria pessoa. E mais divertido do que a Filosofia, pois o objeto de estudo é concreto, e não abstrato; real, e não vago. É a única forma civilizada de autobiografia, pois não lida com eventos, mas com pensamentos desenvolvidos durante a vida; não contempla os acidentes físicos da vida, seja quanto às circunstâncias, seja quanto à morte, mas as inclinações espirituais e a paixão da mente criativa. Fui informado, há pouco tempo, que um ilustre estudioso do Novo Historicismo e da Poética Cultural, na introdução de um extenso trabalho sobre Shakespeare, registra que o livro por ele escrito é, de fato, sobre Shakespeare, ao contrário de uma obra recente, monstruosa, aparentemente sobre Shakespeare, mas que, na verdade, não passa de mais um capítulo da autobiografia continuada de um velho crítico. Radiante, faço minha a sabedoria de Wilde, ao mesmo tempo em que, espero, evito incorrer no maravilhoso solipsismo de Lady Bracknell, no meu trecho predileto de A Importância de Ser Prudente, e, portanto, em toda a obra de Wilde: LADY BRACKNELL [Puxa o relógio]. Vamos, querida. [Gwendolen levanta-se.] Já perdemos cinco ou seis trens. Perder outros pode provocar comentários a nosso respeito aqui na plataforma. LUIGIPIRANDELLO HENRIQUE IV. Ah, um pouco de luz! Sentai-vos em torno da mesa, não, assim não; com uma postura elegante, descontraída!... [dirigindo-se a Harold] Sim, tu, assim! [Posiciona-o] [Então, dirige-se a Bertbold] Tu, assim!... e eu, aqui! [Senta-se do lado oposto aos demais]. Viria bem a calhar um pouco de luz da lua, decorativa. É muito útil para nós, a luz da lua. Sinto grande necessidade dela, e fico horas a fio olhando a lua, da minha janela. Quem diria, olhando para ela, que ela sabe que 800 anos se passaram e que, sentado à minha janela, não posso ser, de fato, Henrique IV, contemplando a lua como qualquer pobre-diabo? Mas, olhai, olhai! Vede que magnífica cena noturna temos aqui: o imperador cercado de seus leais conselheiros!... O que achais? Podemos louvar o génio de Pirandello, especialmente na peça Henrique IV, dizendo que o lunático anónimo, que pensa que é Henrique IV, é uma versão de Hamlet, enquanto Belcredi, o palhaço apunhalado por "Henrique IV", é tanto uma figura que remete a Cláudio quanto um substituto do próprio Pirandello, obcecado pela ideia de reescrever Hamlet. O personagem anónimo, parecido com Hamlet, que pretende se fazer passar por Henrique IV, vinga-se de Pirandello, por ter sido por ele inserido em uma farsa, e não em uma tragédia. Pirandello, génio retórico pertencente à genuína tradição literária sici-liana, concede ao lunático um momento de elevada dignidade estética, mas, em seguida, retrocede, e voltamos à farsa melodramática. É irónico que o teatro pós-Ibsen tenha alcançado os momentos de maior originalidade nesse sofista siciliano, cuja principal suposição é que todos os seus personagens, em última instância, são loucos, e não apenas em aparência, como Hamlet. Sempre ciente de Shakespeare e Ibsen, Pirandello toma-lhes o teatralismo e o submete a algo que se aproxima da paródia. Até mesmo Seis Personagens à Procura de um Autor pode ser posicionada na fronteira da farsa paródica, como se Pirandello não pudesse resolver o dilema que se observa entre a assertiva dos personagens, de que o palco pertence à sua tragédia familiar, e a reivindicação dos atores, de que o palco lhes pertence, a fim de poderem divertir um público pagante. Sofista clássico, Pirandello sempre defendia os dois lados, em qualquer disputa dramática. 268 269 LUIGI PIRANDELLO LUIGI PIRANDELLO (1867-1936) Eric Bendey, autoridade ímpar em termos de teatro moderno, disse-me, certa vez, que minha exaltação a Fim de Jogo, de Beckett, como o supremo texto dramático moderno, era um equívoco, pois ignorava Pirandello, o dramaturgo mais importante desde Ibsen. E interessante que Bentley cite a avaliação de Pirandello: "Depois de Shakespeare, eu não hesitaria em dizer que o primeiro é Ibsen." Se, depois de Ibsen, devemos apontar Pirandello, é, a meu ver, uma questão difícil; a obra de Tchekhov e Strindberg, de Bjjecht e Beckett, quando lida, é mais contundente do que a de Pirandello, mas uma boa (e rara) encenação de Pirandello abala-me de uma maneira que, geralmente, não ocorre quando assisto a encenações dos demais grandes dramaturgos modernos. Uma vez que a tragédia, como forma pura, já não é possível, e a farsa trágica ainda é viável, o siciliano Pirandello pode ser considerado o autêntico mestre da farsa trágica do início do século XX, sendo, mais tarde, seguido por Brecht e Beckett. Somente duas peças justificam a classificação de Pirandello como génio dramático: Seis Personagens à Procura de um Autor (1921) e Henrique \IV (1922). Todos os demais trabalhos de sua autoria são secundários, marcantes apenas em determinados momentos. Qualquer resumo de Seis Personagens faz a peça parecer um desastre cénico. O estudo de Eric Bentley, intitulado The Pirandello Commentaries (1986), reúne os seus extraordinários escritos sobre Pirandello, enquanto os textos dramáticos mais importantes foram editados pelo próprio Bentley, sob o título Naked Masks (1952). Meu escopo, como sempre neste livro, limita-se à questão do génio. George Bernard Shaw supervalorizava Seis Personagens, apontando-a como a peça teatral mais original de todos os tempos, mas Shaw (que, na minha avaliação, não era um génio) estava tão-somente travando a antiga e desesperada batalha com Shakespeare. O Henrique PV, de Pirandello, é uma versão de Hamlet, certamente, a mais original de todas as peças, além de inspirar Seis Personagens. Shakespeare foi o seu próprio encenador e contra-regra, além de ator confiável. Os personagens de Pirandello (ao menos, dois deles) procuram Shakespeare, ou o seu substituto, o Ator-Empresário, ou diretor, que, em último caso, declina de escrever a peça solicitada pelo Pai e pela Filha-Adotiva. De início, o AtorEmpresário tenta começar o ensaio de uma comédia (incompreensível) de Pirandello, mas é interrompido pelos seis personagens. "Trazemos um texto para o senhor", protesta o Pai, e a sensual Filha-Adotiva declara, cheia de entusiasmo: "Talvez façamos a sua fortuna." Até então, a Mãe, a terceira entre os personagens, permanece calada, assim como o Filho, um jovem revoltado, o Adolescente Infeliz e a Criança, uma menina de cerca de quatro anos. A Filha-Adotiva (um papel e tanto, com toques de comédia musical) é a vida da peça, mas o centro da mesma é o Pai, acometido de culpa desesperadora, uma figura cujo páthos transcende o horripilante melodrama que se desenrola entre os seis personagens. Resumindo o melodrama em uma frase: o Pai "entrega" a Mãe ao secretário, com quem ela tem três filhos, após deixar o Filho com o Pai, que tenta abraçar a Filha-Adotiva em um bordel, sendo impedido pela Mãe; após a morte do secretário, o Pai aceita todos de volta, mas a Criança morre afogada, o Adolescente estoura os próprios miolos, e os seis personagens pressionam o Ator-Empresário. O génio de Pirandello arquiteta essa mixórdia e, ao longo de três atos, mistura personagens e atores de uma maneira tão inextricável, que tudo se torna representação. O modelo intrínseco é o extraordinário hiato na representação criado por Shakespeare em Hamlet, desde a chegada dos atores (na segunda cena do segundo ato), até o momento em que Cláudio se retira, às pressas, da plateia que assiste à encenação de A Ratoeira (na segunda cena do terceiro ato). Ao longo de mil versos, Shakespeare distrai o público com peças-dentro-de-peças, assim como a totalidade de Seis Personagens à Procura de um Autor consiste em papéis-dentro-de-papéis. Shakespeare inventa em Hamlet o apagamento de qualquer fronteira entre existência e autorepresentação, e Pirandello confere à invenção aplicações ibsenianas. Anne Paolucci percebe bem a questão: Os atores que representam os personagens, supostamente, não são atores. São personagens que os atores devem, supostamente, representar, embora não consigam fazê-lo. Tais personagens enfatizam a diferença entre aquilo que são e aquilo que constitui os chamados atores que tentam representá-los (...). Quando desce a cortina, aplaudimos os atores que atuaram nos papéis de personagens realistas demais para serem encenados. Isso nos remete, talvez, à fala de Hamlet a esse respeito, em que ele se diz maravilhado com a possibilidade de um mero ator representar um papel de modo tão realista, tão apaixonado, enquanto o próprio Hamlet, tão autêntico, é incapaz de igualar a expressão e o entusiasmo do ator. Os seis personagens de Pirandello devem atuar durante toda a peça segundo o espírito dessa fala de Hamlet. Tratase de um tour de force, assim como tour de force é a versão de Hamlet, de autoria do próprio Pirandello - Enrico IV. Noção admirável, se dela retirarmos o "talvez". Pirandello dizia-se admirador de almas que desprezam a possibilidade de se coagular ou se solidificar em qualquer forma predeterminada", e encontrava esse tipo de alma em Tristram Shandy e Hamlet. A descontinuidade do ser, infinita em Hamlet, é questão mais ampla, e difere do problema da representação de papéis. Somente o Pai, em Seis Personagens, é um pântano de 270 271 LUIGI PIRANDELLO descontinuidade, mas aqui tocamos o ponto fraco de Pirandello: Hamlet é uma personalidade carismática, o Pai, um vazio de sensatez. Existe apenas uma personalidade em Seis Personagens-, e não se trata de nenhum dos personagens, tampouco de alguém da companhia de atores. Madame Pace, a gerente do bordel, cujo próprio nome, ironicamente, sugere paz, é o trunfo da peça. Surge no palco como o sétimo personagem, mas, nitidamente, não está à procura de um autor. Os seis personagens já não parecem fazer parte da realidade, em contraste com a ilusão propiciada pela companhia de atores, pois a realidade vulgar de Madame Pace transforma o Pai e a FilhaAdotiva em ilusões. A peça tem apenas um personagem convincente, uma prostituta. Em sua grande defesa de Pirandello, Bentley insiste que o dramaturgo siciliano conferiu renovada importância à noção de papel (de natureza inescapável), seja na vida ou no palco. Bentley* expressa essa percepção claramente: "O teatro enseja uma imagem da vida, a imagem da vida, porque a vida é um teatro." Não sei se tenho condições de argumentar contra Pirandello ou Bentley. Mas não creio que 5zV John Falstaff, Hamlet, lago e Cleópatra concordassem com tal posição, o que significa que o próprio Shakespeare discordaria de Pirandello e Bentley, a despeito do assombroso grau de experimentação observado em Hamlet e. em outras peças. Shakespeare, engajando-se na Batalha dos Poetas, a fim de atacar o inimigoamigo Ben Jonson, diverte-se bastante brincando de política teatral em Hamlet, Noite de Reis e Tróilo e Créssida. Em Noite de Reis, de um modo, ao mesmo tempo, glorioso e desconcertante, o infeliz Malvolio é crucificado (socialmente), mas tudo é tão hilariante que custamos a perceber a vulnerabilidade universal que o golpe desferido contra Jonson deixa transparecer na própria plateia. Em Tróilo e Créssida e Hamlet (da segunda cena, do segundo ato, à segunda cena, do terceiro ato), Shakespeare não deixa a plateia esquecer que assiste a uma peça teatral tão autoconsciente que já não requer ser vista como sombra da verdade. A percepção de Bentley (via Pirandello), de que tudo é teatro, não constitui formulação shakespeariana. Pirandello frequentou a mesma escola de Shakespeare, por assim dizer, assim como o fizeram Ibsen e Tchekhov, mas o conteúdo assimilado por Pirandello foi por demais simplista e reducionista. A vida, às vezes, é um teatro, mas, outras vezes, é uma guerra, uma escola, um purgatório, uma descida ao inferno, um investimento, ou o que o leitor quiser. Sem dúvida, todos desempenhamos papéis, mas apenas em certas situações, ou momentos, sendo que, amiúde, não o fazemos em um palco. Teatro envolve palco, ator e espectador, e na vida estamos, quase sempre, sozinhos. Quem tentar ser ator que de si mesmo for espectador, será, em pouco tempo, destruído por ambos. Henrique /Vparece-me mais interessante do que Seis Personagens à Procura de um Autor, ao proporcionar algum alívio com relação à metafísica teatral de Pirandello, 272 conquanto tal dimensão não esteja ausente na referida peça. Novamente, Bentley é a nossa melhor indicação, e sua retórica é tão competente que, em dados momentos, chega a ofuscar o objeto de estudo, pois Henrique PVé plena de defeitos e confusões, embora a peça sobreviva a todos os problemas. O protagonista anónimo de Henrique PVsofre por um amor não correspondido. Um rival do herói na conquista da dama em questão provoca um acidente equestre durante um baile de máscaras. Ao recobrar a consciência, o protagonista, fantasiado de Henrique IV (o imperador alemão), passa a acreditar que é, de fato, Henrique IV. Protegido por uma irmã abastada, "Henrique IV vive o seu delírio, em uma mansão transformada em castelo. Doze anos mais tarde, recupera a sanidade, mas decide continuar a viver a loucura. Como exercício terapêutico, um psiquiatra introduz no círculo do Imperador a filha da antiga amada, na esperança de restaurar a sanidade de Henrique IV. Vinte anos já transcorreram, desde que a loucura se instalara, e, segundo se espera, um choque poderá devolver a Henrique IV a noção de tempo. Mas ele demonstra já haver recuperado a saúde mental, e tenta abraçar a jovem. O rival, que, mesmo passados 20 anos, ainda é amante da mãe da jovem, intervém, mas é morto por Henrique IV, com um golpe de espada. Suponho que Kleist transformasse tais eventos em tragédia, mas, obviamente, Pirandello não é capaz (nem tem intenção) de fazê-lo. A figura histórica do alemão Henrique IV é lembrada em consequência de um incidente em Canossa, quando se ajoelhou sobre a neve, fingindo submissão ao Papa, a fim de não ser destronado. Mas essa é toda a História de que precisamos. O protagonista anónimo está à procura de um autor, mas apenas no sentido em que Hamlet procura o fantasma do pai, pois Pirandello reescreveu Hamlet como se fosse uma farsa trágica, de autoria de Ibsen. Sendo uma entre muitas reescrituras de Hamlet, essa é bem-sucedida. O estudo intitulado Hamlet in His Modem Guises (2001), de Alexander Welsh, não inclui Henrique PV entre tais disfarces,5 mas investiga as relações da peça shakespeariana com vários romances: Os Anos de Aprendizagem de Wilhelm Meister, de Goethe; Redgauntlet, de Sir Walter Scott; Grandes Esperanças, de Dickens; Pierre, de Melville; Ulisses, de Joyce; e O Príncipe Negro, de íris Murdoch. A incisiva conclusão de Welsh é que 'o hamletismo da modernidade atesta a importância do papel do luto para a consciência , o que constitui uma válida indicação do motivo que leva o herói anónimo de Pirandello a concluir a peça com o assassinato de "Cláudio" Belcredi; o luto de Hamlet pela morte do pai, e pelo que ele considera a perda da honra da mãe, expande-se em uma Em língua inglesa, um dos sentidos da palavra guise, que consta do título da obra citada, é, precisamente, "disfarce". [N. do T.] 273 tristeza pela condição humana, mas ninguém espera que Pirandello seja Shakespeare. "Henrique IV" chora a perda da própria juventude, e vinga-se de Belcredi, fonte de sua infelicidade, pelos 20 anos em que viveu fantasiado (durante 12 esteve louco, nos outros oito fingiu). Contudo, o protagonista anónimo sobrevive, infeliz, nem louco, nem são, totalmente destruído por haver ousado penetrar a máscara da ilusão. Bentley o compara aos personagens de Beckett que praticam auto-imolação, e, com efeito, Pirandello leva-nos à fronteira de Fim de Jogo. IV 1 HESED 274 LUSTRO 7 John Donne, Alexander Pope, Jonathan Swift, Jane Austen, Lady Murasaki H esed, sendo a aliança do amor de Deus pelos homens e mulheres, manifesta-se ou através da ironia, conforme exemplificado neste Lustro, ou da perda do amor, conforme demonstrado no Lustro seguinte. A ironia de Donne, inicialmente libertina, transforma-se em ironia espiritual, à custa do próprio Donne, mas a ironia de Pope e Swift é selvagem e satírica, como lhes convém. Em Austen, a ironia se torna um método shakespeariano de criatividade, digna de Como Gostais, cuja Rosa-lindaé precursora de Elizabeth Bennet, de Orgulho e Preconceito. A ironia da sutil e elegante de Lady Murasaki é a ironia do paradoxal "esplendor do anseio", tão refulgente em A História de Genji, em que o anseio, o desejo incessante, ao mesmo tempo, revigora a existência e, no extremo, a aniquila. John Donne e Jane Austen (esta em Persuasão) teriam sabido apreciar o esplêndido anseio de Lady Murasaki, porque ambos também celebram a complexidade inerente aos desejos insatisfeitos. 277 JOHN DONNE "r&v r*L? cèkz JOHN DONNE Quando, assassina, o teu desdém me matar, E pensares que livre estás de mim, Aos meus muitos convites dado um fim, Virá o meu fantasma te assombrar, E tu, falsa vestal, o verás, sim; Oscilará da tua vela a chama, E aquele que então for o teu dono, Exausto da ação naquela cama, Conclui, do teu bulir e desabono, Uma mulher faminta agora o clama, E se esquivando, finge ele ter sono; Então, infeliz, pálida e esquecida, Terás no suor frio teu apogeu, E vais ser mais fantasma do que eu; O que direi na hora, mi'a querida, "" Hoje a ti não revelo, estejas crente; Se amei em vão, melhor és penitente, Do que ameaçada e inocente. "A Aparição", que consta do volume Canções e Sonetos (1633, publicado dois anos após a morte do poeta), é exemplo supremo da arte de Donne. Donne começa atribuindo sentido literal à metáfora de Petrarca, do amante que morre em consequência do desdém da amada, sendo, então, substituído por outro admirador. Como um fantasma que busca vingança, ele cometerá a indiscrição de se imiscuir na vida amorosa da mulher. Assombrada pela aparição, a "assassina" tenta despertar o atual amante, que, cansado de lhe satisfazer, finge estar dormindo. Sozinha diante do espectro de Donne, trémula e assustada, ela será "mais fantasma" do que ele. Talvez, mais tarde, John Donne, na qualidade de pregador religioso e decano da Catedral de São Paulo, interpretasse esse delicioso poema lírico como uma alegoria, em que a "assassina" correspondesse à "amada da minha juventude, a Poesia", a quem o poeta abandonara pela "esposa da idade madura, a Religião", mas tal leitura implicaria a inversão do enredo do poema. O decano da Catedral de São Paulo encontrou outros meios de dar vazão à sua espirituosidade libertina, presente na agilidade intelectual de seus sermões, em que a doutrina é humanizada e tornada acessível. O génio de Donne contém um elemento pragmático, seja a temática erótica ou religiosa. Elogiamos a sua "espirituosidade", que é palpável, mas devemos admirá-lo, igualmente, pelo intelecto versátil, maravilhoso arquiteto da transição de um tipo de amor, profano e salaz, a outro, sagrado, mas não menos aventuroso. 278 279 JOHN DONNE (1572-1631) Nascido oito anos depois de Shakespeare, John Donne, em 1595, vivia em Londres, na condição de jovem cavalheiro abastado, desfrutando de certa reputação de poeta erótico e satírico. Assíduo frequentador de teatro, provavelmente assistiu à encenação de Ricardo II, de Shakespeare, e saberia apreciar o progresso (ou declínio) do monarca martirizado, que, de governante autoritário, vem a ser poeta metafísico, bem ao estilo de Donne. O volume Canções e Sonetos só foi publicado dois anos após o falecimento de Donne, mas alguns dos poemas ali coligidos haviam circulado, amplamente, em versão manuscrita, e, talvez, tenham sido lidos por Shakespeare, embora seja mais provável que o poeta-dramaturgo tenha lido as elegias ovidianas de Donne, sumamente eróticas. Parece ter havido uma influência inversa: vez por outra, tem-se a impressão de que Canções e Sonetos é uma paródia do Ricardo II shakespeariano. A ascensão social de Donne, a partir da sua conversão, em 1602, do catolicismo ao anglicanismo, procedeu, inicialmente, em ritmo lento, pois ele adiou a própria ordenação religiosa até 1615. Após essa data, porém, Donne tornou-se, rapidamente, célebre pregador e, em 1621, foi nomeado decano da Catedral de São Paulo. Em sua maioria, os Sonetos Sagrados foram escritos antes da ordenação de Donne, assim como a grande meditação "Sexta-feira Santa, 1613. Cavalgando para o Oeste". Os dois hinos magníficos -"Para Deus, meu Deus, na Agonia" e "Para Deus Pai" - foram, provavelmente, compostos em 1623, em novembro e dezembro, período em que Donne esteve desenganado. A exceção desses escritos, Donne havia abandonado a poesia, em favor da teologia. Seus sermões, no que têm de melhor, figuram entre os mais contundentes em língua inglesa. Samuel Johnson, meu paradigma crítico, costumava identificar e definir génios (quando, de fato, existiam), conforme o faz, especialmente, na série Vidas dos Poetas (1779-81). Donne consta da referida série apenas como mais um integrante da Escola Metafísica, no volume intitulado A Vida de Cowley. Abraham Cowley é hoje esquecido, mas, no final do século XVII, foi o Ezra Pound de sua geração. Embora em declínio na Era de Johnson, Cowley ainda desfrutava de suficiente notoriedade para merecer o primeiro volume da série, como o suposto pai da antiga (e inferior) escola poética que fora suplantada por John Dryden e Alexander Pope, favoritos de Johnson. Johnson muito se orgulhava de seu próprio trabalho em A Vida de Cowley, porque o mesmo representava um avanço crítico com relação aos Metafísicos (embora a denominação do movimento coubesse a Dryden). Eis Johnson atribuindo a Donne o mesmo que atribuiu Dryden, na verdade, bem menos do que possa parecer: Aqueles que não os aceitam como poetas, entretanto aceitam-nos como intelectuais. Dryden confessa que ele próprio e seus contemporâneos são inferiores a Donne, em espirituosidade, mas afirma que o superam em poesia. No número 125 da revista The Rambler, Johnson observa que "cada génio que surge produz alguma inovação que, depois de inventada e aprovada, subverte regras estabelecidas pela prática de autores que o antecederam". Por que, precisamente nesses termos, Johnson não reconheceu a genialidade de Donne? Embora não o dissesse, o grande crítico sentia-se perplexo diante de Donne, a quem descrevera como "obscuro e profundo", mas cuja poesia condenara como "um voluntário desvio da natureza, em busca de algo novo ou estranho". Donne foi continuamente valorizado, ao longo do século XIX, desde Coleridge a Arthur Symons, de modo que o seu renascimento, no século XX, via T. S. Eliot, deve ser vislumbrado como uma espécie de reflexão posterior. O leitor comum é o grande juiz de Donne, e Donne está vivo, neste início de século XXI. Pretendo aqui definir essa vitalidade, e demonstrar o génio de Donne, estritamente segundo os critérios johnsonianos -criatividade e vigor permanentes, uma originalidade que não se pode descartar como datada. Cito, de Canções e Sonetos, o que há de mais popular na arte de Donne: Vai atrás da estrela cadente, Dá à mandrágora uso brabo, Diz, cadê o passado carente, E quem deu patas ao diabo; Quero ouvir sereia cantar, E o fogo da inveja evitar, E ainda tento Saber que vento Motiva a mente honesta a avançar. Se nasceste p'ra adivinho, E podes ver o invisível, Tens dez mil noites no caminho, Cabelo branco perecível; Ao voltares, o conto é meu, O que de estranho aconteceu, E vais jurar, Não ter lugar Onde haja mulher bela e não vulgar. 280 281 Se uma encontrares, diz-me logo, Feliz seria a romaria; Não, não digas nada, eu rogo; Nem à porta ao lado eu iria. Sendo honesta quando a encontraste, E quando a carta a mim postaste, Quando eu chegar, Já vai estar Traindo-me com mais de um só traste. Trata-se da "Canção" de um libertino, embora apresente um tom bastante leve e, portanto, não deva ser tomada no sentido literal. A ironia é que o próprio cantador talvez não seja honesto. A mandrágora era de grande interesse para Donne, que a essa planta dedicou quatro estrofes, no poema "O Progresso da Alma", em que diz que a maçã colhida por Satanás e oferecida a Eva é abandonada pela alma da fruta, que se transfere para a mandrágora. Surge a antiga tradição de magia e sexualidade segundo a qual a mandrágora, ou maçã de maio, pode ser utilizada para provocar lascívia, sono ou morte. Há, portanto, um certo componente sombrio nessa canção despretensiosa, mas prevalece um tipo de ironia libertina. O génio de Donne é mais original na extraordinária meditação erótica "O Êxtase", título que se refere a amantes "tomando ar puro", calados, em um intervalo do amor. O que torna o poema extremamente incisivo é a duplicidade do tom, que, ao mesmo tempo, celebra a metafísica do amor e constitui ato de sedução, pois o poeta conclui, exortando a dama a renovados prazeres físicos: Assim como requer o coração Espíritos gerar à imagem da alma, Se dedos necessários, pois, serão Para tecer o homem, trama calma, Devem descer as almas dos amantes, Provar de algum afeto e algum estado, Que alcançam os sentidos consoantes; Ou fica um grande rei encarcerado. Tomemos nossos corpos com ardor, Para ensinar paixão ao homem fraco: Brotam na alma os mistérios do amor Mas o corpo é seu livro, eu destaco. E se houver amante, como nós, Ouvindo este diálogo de um, Que atente bem: mudança pouca após Verá, quando dois corpos são nenhum. A alma unificada dos amantes, neoplatônica, deve separar-se em duas, e voltar aos corpos, caso contrário, será tão impotente quanto um prisioneiro: "Ou fica um grande rei encarcerado." A revelação de natureza erótica e divina torna-se una na Bíblia do corpo: "Mas o corpo é seu livro." Os dois êxtases são um só, seja no momento do descanso ou da atividade sexual. Sem dúvida, trata-se de um convite ao prazer, mas a sofisticação com o qual é formulado beira a santificação, sendo ilimitada a audácia de Donne. A célebre (e negativa) definição que Johnson formula sobre o intelecto da escola Metafísica estabelece: "As ideias mais heterogéneas são emparelhadas com violência." O génio de Donne é dado a aproximar, através de insinuações sutis, ideias que apenas parecem diferentes. Os místicos, na antiga tradição da exegese do Cântico dos Cânticos, identificam a união divina alegorizada através do jogo erótico. Mas Donne não é um poeta místico, nem mesmo quando compõe uma obra-prima religiosa como "Para Deus, meu Deus, na Agonia". O poeta viveu mais oito anos, mas, ao escrever este poema maravilhoso, esperava morrer a qualquer momento: Prestes à Santa câmara adentrar, Onde, com o teu coro consagrado, Serei a tua música, ao chegar, O instrumento à porta é testado, E o que hei de fazer, é aqui pensado. Enquanto o meu doutor tão dedicado E cosmógrafo e eu mapa de estudo, Aberto sobre o leito e apontado: Jornada ao sudoeste é isso tudo, Per fretum febris, pelo mal agudo, 282 283 Eu fico feliz, pois nestes estreitos Enxergo o meu oeste; muito embora As correntes não poupem os defeitos, Que mal fará o oeste a mim agora? Leste e oeste se tocam, morte e aurora. E o mar do Pacífico o meu lar? O fausto oriental? Jerusalém? Será, pois, Magalhães, ou Gibraltar, Estreitos, e estreitas rotas também, Onde mô"rar Jafé, ou Cam, ou Sem. Achamos que o Paraíso e o Calvário, A cruz de Cristo e a árvore de Adão, Formavam mesmo só um campanário; Suor do primeiro Adão na minha face, Sangue do último Adão minha alma abrace. Ampara-me, Senhor, com o teu manto; Dá-me, em troca de espinhos, a coroa; E, se a outras almas preguei teu canto, Seja este meu sermão a tua loa: Quem vai ser elevado Deus perdoa. Não temos aqui o êxtase do místico; temos, sim, a presença de grande espirituosida-de que se expõe no que tem de mais humana, e o faz com extrema vivacidade e humor. Devemos ser cautelosos, ao interpretar a "Santa câmara" como o céu, pois o decano da Catedral de São Paulo é sutil demais e não ensaiaria tamanha presunção. Pensando estar no leito de morte, compõe esse hino para afinar seu instrumento, a veia poética. Cercado do cosmógrafo atento, ele se vê como um mapa aberto, imagem que se torna central ao poema. Per fretum febris (através dos estreitos da febre), ele se dirige ao sudoeste, para morrer; mas oeste e leste se tocam do outro lado do globo e, portanto, a morte toca a ressurreição. Esse "toque" é bastante leve, e prossegue no jogo com a palavra "estreito". Ardendo em febre, o poeta pensa na queda de Adão, obrigado a ganhar o pão com o suor da fronte, e pede a Cristo, o último Adão, que o abrace. O páthos aqui contido é extraordinário, assim como a reticência teológica. Supostamente agonizante, o decano, no fundo, tinha plena consciência da sua própria trajetória religiosa. Nascido em família católica, com um tio e um irmão que haviam sofrido em nome da antiga fé, Donne recebeu instrução católica e demorou-se a abandonar a tradição da família, segundo consta, não antes de completar 30 anos. A decisão em favor da Igreja Anglicana não foi, em primeiro lugar, uma opção teológica, e o retardamento da ordenação como sacerdote anglicano demonstra que o interesse pessoal tampouco constituiu um motivo primário. Foi o seu temperamento poético que, de um modo complexo, determinou-lhe a carreira na igreja. Os críticos estão certos quando não constatam grande diferença entre o fervor e a espirituosidade constatados na poesia do início da carreira e nos sermões finais. Donne buscava continuidade com o passado cultural e com a sua própria juventude, e encontrou essa continuidade com os anglicanos, ponto médio entre o catolicismo romano e o protestantismo calvinista. Seus poemas religiosos, bem como os sermões, não têm na teologia a ênfase principal, e cabe a avaliação de que o seu génio manteve-se consistente, pois a "espirituosidade" desempenha papel central em toda a obra. Essa "espirituosidade" tem o significado antigo, de grande sagacidade, embora Johnson, seguindo Dryden e Pope, recusava-se a vê-la como "sagacidade verdadeira", noção de ordem neoclássica. Ben Jonson, contemporâneo de Donne, tanto admirava quanto depreciava a poesia de Donne, por demais idiossincrática para o gosto de Jonson. Um personalismo extremo, sempre presente em Donne, pode ser considerado a marca singular do seu génio. A voz de Donne ainda ressoa, sempre inconfundível: Minha vida é novamente gerada, Pela ausência, trevas, morte; coisas que são nada. 284 285 ALEXANDER POPE Alguns expressam zelo p'la linguagem, Amam livros, qual damas a roupagem; Cabe elogiar - o estilo é excelente, E o tema lhes ocorre humildemente. Palavras são qual folhas, se demais, De mui pouco sentido há sinais. A falsa eloquência, qual o prisma, Espalha as cores vivas do sofisma; O rosto da Natura já não vemos, Tudo é igual, distinção não mais fazemos. Mas, a real expressão, tal qual o sol, Clareia e ilumina - um farol; Doura, sem alterar, qualquer objeto. A expressão é roupagem do pensar, E deve ser decente e salutar. A imagem vil, pomposamente expressa, E palhaço que truques mil professa; Tem gosto para todos os estilos, Qual a moda, no campo, vila, e asilos. Uns, por velhas palavras, querem fama, Frases antigas, com moderna gama. Vãos esforços, estilo de aborrir, Pasmam o chulo e o culto fazem rir. Pope, no Ensaio sobre a Crítica, seu primeiro poema importante, adverte os críticos sobre os truques praticados pelos falsos poetas. Já no início da carreira, Alexander Pope assume o papel de moralista literário, por ninguém desempenhado, desde Ben Jonson, amigo e rival de Shakespeare. Nanico, e com o corpo deformado em consequência de tuberculose infantil, Pope seria um candidato improvável ao posto de grande poeta inglês do Iluminismo europeu. Para encontrarmos equivalentes da precoce genialidade técnica de Pope, precisamos invocar John Milton, Alfred Tennyson e o falecido James Merrill. Já na infância, Pope, assim como esses três poetas, era um artista do verso que se assemelhava mais a um mago do que a um escritor. À semelhança do amigo, Jonathan Swift, Pope foi mestre da sátira, género arriscado para qualquer autor. Raramente, o público leitor aprecia a sátira; banho de enxofre é estranho, conquanto saudável. Pope não é tão cáustico quanto Swift, mas vai além de qualquer satirista ativo na atualidade: Deixai Sporus tremer - "Aquela seda, Sporus, com a carinha tão azeda? Sátira ou boa-fé, ele tolera? Quem tortura borboleta é megera." Mas deixai-me matar o belo inseto, Esse infante que pica e é tão abjeto, Cujo zumbido amola o culto e justo, E cujo intelecto e gosto são um susto; Cãezinhos bem treinados que se aprazem De latir para a caça nada fazem. Sorrisos eternais traem-lhe o vazio, Radiante e borbulhante é o raso rio. Se em pomposa impotência se exprimir, Não passa de um boneco a repetir; Ou, se nos ouvidos de Eva, antiga presa, Descarrega o veneno, por "defesa", Com trocadilho, troça, falsa jura, Verso, ódio, despudor, mentira pura. Seu intelecto flui e, então, emperra, Tem altos e baixos, acerta e erra, É a antítese infame desta terra. Anfíbia criatura! Age em todo lado, Com a cabeça oca, e o amante errado, No toucador e à mesa é afetado, Saltita qual mulher, e anda aprumado. O tentador de Eva era funesto, Cara de anjo, de réptil todo o resto; Tinha um grande encanto, traiçoeiro, Orgulho vencido, intelecto rasteiro. Não importa a identidade de Sporus (Lorde Hervey, que criticara Pope). Diante desse trecho notável, o leitor é convidado a substituir Sporus pela atual perversidade literária que mais lhe aprouver. 286 287 ALEXANDER POPE (1688-1744) Há grandes poetas que protestam às margens, como William Blake, e poetas desconhecidos em vida, como Emily Dickinson e Gerard Manley Hopkins. O génio de Alexander Pope tornou-se público, assim como os de Ben Jonson, Lorde Byron ou Oscar Wilde. Essas figuras personificavam a notícia, com uma força que não se compara a nenhum eminente autor do presente, embora tenhamos génios criados pela publicidade, que não correspondem ao meu conceito de "génios públicos". Pope iniciou a carreira com sérias restrições. Era católico devoto (embora dúbio, em termos de doutrina), em uma Inglaterra onde os católicos eram impedidos de entrar na cidade de Londres e nas universidades. Assim como o Ricardo III de Shakespeare, Pope, além de anão, era corcunda. Todavia, como poeta, foi criança prodígio, cujo talento era universalmente reconhecido. Na capacidade de mestre do verso, em língua inglesa, ninguém o supera, embora tenha rivais: dentre os quais destacam-se Milton, Tennyson e James Merrill. Não há em Pope verso inferior: Ensaio sobre o Homem irrita-me, pelas frequentes banalidades de natureza moral, mas, em termos de expressão, é impecável. Basta folhear a poesia de Pope, para constatar o brilho das preciosidades: Se dançar à noite e enfeitar-se ao dia, Evitasse a varíola e a idade, Quem as prendas do lar não deixaria, Quem se importaria com utilidade? *** O Poeta está fadado à decadência, Como os que, de tanto ele elogiar, Ficaram surdos, mudos, na demência. *** A estrela brilha! Que ninguém duvide, Abriram-se os portões: Bedlam, Parnasso; Brilho em cada olhar, poema em cada lide: Gritam, recitam, loucura a cada passo. *** Quisera nas asas da Musa voar, Tuas armas, ações, teu ócio cantar! Mares que navegaste! Que lutaste, Que pela paz do país caro pagaste. Assim, quando ela chega e fortalece, Arte após Arte se esvai, anoitece. A união entre som e sentido em Pope é digna de elogio, mas aqui busco o seu génio, ou outro eu. Embora apóstolo da Razão, da Natureza e da Ordem, e louvado por tais atributos por Samuel Johnson, Pope tem uma. persona pública que leva a alguns equívocos de interpretação. Seu trabalho é impelido por uma energia vibrante, embora desprovida da ironia furiosa que incita a sátira do amigo íntimo de Pope, Jonathan Swift, que atravessa os limites da digressão. Pope mantém-se sob controle, assim como o faz Racine, mas o leitor percebe, do princípio ao fim, trevas que ameaçam, embora não cheguem a se precipitar. Trevas não faltavam. Pope tinha 16 anos quando uma infecção de tuberculose provo-cou-lhe um duplo entorse da coluna vertebral. Com cerca de 1,30m de altura, atormentado por dores de cabeça e exaustão, Pope criou uma arte que representava o triunfo sobre a deformação física. A elegância, o vigor, o equilíbrio e a memorabilidade da sua poesia conferiam-lhe forças morais para suportar a doença que o perseguiu por quase toda a vida. A energia que lhe propulsiona a obra, com efeito, faz de Pope o exuberante apogeu de uma tradição neoclássica formada por Ben Jonson, Denham, Waller e Dryden. Samuel Johnson, o Shakespeare da crítica, gostava muito de Dryden, mas considerava Pope a perfeição, em termos de poesia, motivo pelo qual (talvez) o grande Johnson tenha escrito apenas dois poemas de primeira linha: Londres e A Vaidade do Desejo Humano. Existe aqui um enigma: Dryden, Pope e Johnson sabiam que Shakespeare e John Milton possuíam uma grandeza criadora e intelectual que estava muito além da linha neoclássica (o inglês utilizado por Chaucer tornou-o menos acessível aos três). Pope e Johnson editaram as obras completas de Shakespeare, e Dryden os precedeu, proclamando a primazia do poeta-dramaturgo elisabetano. E Dryden, Pope e Johnson situavam Milton logo abaixo de Shakespeare. Temos aqui, portanto, uma complexa divisão: a versão que Pope executa da poesia de Homero, segundo Johnson, "afinou a língua inglesa" e, assim sendo, refinou Dryden. Segue, então, que Shakespeare e Milton careciam de refinamento? Será que se prestariam a tal? Será que representavam algo maior que refina288 289 mento, algo que instigaria poetas da década de 1740, como Collins, Gray e os Warton, a compor uma Nova Poesia, desaprovada por Johnson? A questão tornou-se mais premente com William Cowper e William Blake, a partir de 1780, e transformou-se em uma polémica central para Coleridge, Wordsworth, Shelley e Keats. Por mais que Pope o venerasse, Shakespeare não chegou a inibir-lhe a criatividade de autor de sátiras e paródias de épicos. As obras-primas de Pope, O Roubo da Madeixa e The Dunciad, ambas paródias de épicos, a primeira estabelecendo relações brilhantes com Paraíso Perdido, a segunda, com Milton e com a Bíblia. Johnson apreciava imensamente a tradução que Pope fez de Homero, mas tal fato é considerado por muitas pessoas um enigma. A tradução de Homero foi lucrativa para Pope, o primeiro poeta, desde Shakespeare", a alcançar estabilidade financeira através do trabalho, mas, hoje em dia, não conheço ninguém que leia (ou possa ler) a obra em questão. A paródia do épico, que ocupa o centro da poesia de Pope, foi definida, pelo falecido Maynard Mack, como "metáfora de tom", ambivalente, isto é, ao mesmo tempo cómica e destrutiva. Essa ambivalência triunfa na Dunciad maior obra de Pope, a qual passo a focalizar. Trata-se de uma grande comédia, mas é tão devastadora quanto a sátira de Swift. Estremeço quando leio História de um tonel, mas rio do princípio ao fim da Dunciad William Blake não gostava de Pope, embora, sendo escritores apocalípticos, ambos apresentassem afinidades curiosas: é elucidativo ler "Nona Noite, o Juízo Final", seção de Os Quatro Zoas, lado a lado ao Livro 4 da Dunciad. Blake escreve profecia, não paródia do épico, mas, em Pope, a paródia do épico é um género profético. Johnson não apreciava muito a Dunciad o que é fascinante. Johnson pensava que a "irascibilidade de Pope prevaleceu" porque "o poeta confessou a própria dor, por meio da raiva, mas não magoou aqueles que o provocaram". Decepcionado com Swift, Johnson detectou (cor-retamente) o estilo de Swift na Dunciad, que, para Johnson, continha "bastante petulância e malícia", além de um excesso de imagens de mau gosto. O que tanto a Dunciad quanto A História de um Tonel temem é a loucura cultural generalizada. Escrevo em 2001, quando o mundo cultural é um inferno, e dele nenhum de nós escapamos. Não precisamos de uma nova Dunciad, Pope é totalmente relevante e, com acerto, profetiza o triunfo do Reino do Imbecil, em nossas universidades e na mídia contracultural: Embaixo da bancada geme a Ciência, É exilada e punida a Sapiência. A Lógica, rebelde, é amordaçada, Retórica, despida, e amarrada; A linguagem grosseira, insolente, Adorna o manto sofista da mente. A Moral, defendida pelo falso - A Astúcia e o Casuísmo no encalço -Arfa e morre; vence a Imbecilidade. O Ensino, enlouquecido, corre à solta, Louco demais, para qualquer escolta. Presas com algemas Musas estão, Guardadas pela Inveja e Adulação; Um punhal, causador de grande dano, Volta a Tragédia a si, não ao tirano. A grave História evita o julgamento, Jura vingar o bárbaro momento. Atuo, no magistério de nível superior, em um local conforme aqui descrito, e o mesmo se aplica a todos os profissionais da área; e é nesse ambiente que prevalecem as especulações e as resenhas tendenciosamente culturais (basta consultar qualquer número do New York Times). A esplêndida conclusão da .DwwczWindica-nos para onde todos nos dirigimos atualmente, e aonde (evidentemente) a maioria de nós deseja chegar: Em vão, tudo em vão - eis a Hora fatal: A Musa obedece ao Poder final. Ela vem! Ela vem! Olhai o trono Da Noite primeva, do caos do sono! Diante dela, o ouro da nuvem escorre, O arco-íris, de vários matizes, morre. Desperdiça o intelecto o seu ardor, Despenca o meteoro, perde a cor. Temendo Medeia, a cada momento, As estrelas se vão do firmamento; Tal qual Hermes fechou olhos de Argo, Todos, um a um, em sono eterno e amargo, Quando ela vem, com seu secreto açoite, Arte após Arte some, e tudo é Noite. A Verdade, com medo, quer fugir, Sob montes de casuísmo vai dormir! A Ciência, que do Céu era penhor, A causa material dá mais valor. 290 291 A física não quer a metafísica, E esta pede auxílio à razão tísica! Mistério foge atrás da Matemátical Em vão! Tudo é tolice nesta prática. A Religião esconde o fogo santo, E a Moral desfalece, em franco pranto. Ao ardor público ou privado não há hino, Não há lampejo humano ou divino\ Olhai! O Império - Caos - agora é acerbo: Morre a Luz, sob o efeito do teu Verbo: Tua mão, ?\jiarquista! desce a cortina, E a Treva Universal será a ruína. O riso demoníaco de Pope, no que respeita a esse horror cultural, não deixa de revelar um certo prazer pela destruição. O Livro 4 da Dunciad surgiu em 1742; em 2001, o seu conteúdo me assusta. JONATHAN SWIFT Desde a semana passada, tenho permitido que minha esposa jante em minha companhia, sentada à cabeceira, do outro lado da mesa, e que responda (com a maior brevidade possível) às poucas perguntas que eu lhe fizer. No entanto, sendo o odor de um Yahoo sempre ofensivo, tenho sempre folhas de arruda, alfazema ou tabaco em minhas narinas. E, embora seja difícil para um homem maduro livrar-se de velhos hábitos, tenho a esperança de um dia poder tolerar a presença de um Yahoo, sem ficar apreensivo com relação às suas presas e garras. A minha reconciliação com a espécie dos Yahoo não seria tão difícil se eles se contentassem apenas com os vícios e os desatinos que lhes conferiu a natureza. Não me irrito, em absoluto, ao deparar-me com um advogado, um batedor de carteira, um coronel, um bobo, um lorde, um jogador, um político, um cafetão, um médico, um delator, um subornador, um promotor, um traidor etc; todas essas figuras estão de acordo com o estado das coisas. Mas, quando me deparo com uma massa disforme e infecta, tanto no corpo como na mente, acometida de orgulho, a situação acaba, imediatamente, com a minha paciência; tampouco serei capaz de compreender como podem se coadunar tal animal e tal vício. Eis Lemuel Gulliver, após retornar da Quarta Viagem à terra dos sábios e virtuosos Houyhnhnms (cavalos) e dos terríveis Yahoos (nós, seres humanos). Gulliver fala e não fala em nome de Jonathan Swift. Afinal, o pobre Gulliver é um Yahoo, tanto quanto Swift. Os cavalos, por mais idealizados, permanecem cavalos; os humanos, por mais humilhados, mantêm ao menos a imagem humana. Swift não pretende promover a nossa identificação com Gulliver, mas tampouco podemos repudiá-lo. As Viagens de Gulliver são uma sátira enlouquecida, e sempre há de causar estranheza o fato de a Primeira e a Segunda Viagem, às terras de Liliput e Brobdingnag, terem se celebrizado como literatura infantil. Swift refletiu, de modo contundente, a respeito da loucura, e terminou por enlouquecer, vitimado por uma condição fisiológica. Embora lembremo-nos de Swift como satirista, pois sua arte grotesca derrete as superfícies a fim de expor a realidade dos serei humanos, o centro de seu génio é a ironia, em que o verdadeiro sentido difere daquilc que se afirma. 292 293 Swift nos perturba porque sua ironia parece não ter limite. Os maiores autores de língua inglesa - Shakespeare e Chaucer - são ironistas heróicos, mas sua ironia é mantida sob controle, exceto em situações extremas, como, respectivamente, em Medida por Medida e O Conto do Vendedor de Indulgências. Mas em Swift a ironia predomina, e alcança uma turbulência irrefreável, especialmente em A História de um Tonel. WiUiam Blake escreveu: "Beleza é exuberância." Segundo esse parâmetro, o feroz Swift é criador de uma beleza imensa. JONATHAN SWIFT (1667-1745) Aos 75 anos, em 1742, Swift foi declarado insano. E importante estabelecer uma distinção entre esse fato e a eminência do escritor, o génio da ironia, pois, no exercício dessa ironia, não há loucura alguma. A enfermidade que destruiu a mente de Swift afe-tou-lhe o ouvido médio, uma labirintite vertiginosa que, às vezes, causava-lhe a ilusão de ouvir sinos, além de privar-lhe do senso de equilíbrio. Corre a história de que, em seu sofrimento, Swift certa vez pegou um exemplar da obra-prima A História de um Tonel, leu algumas sentenças, deixou-o de lado e disse, com um suspiro: "Grande era o meu génio, quando escrevi esse livro!" Releio A História de um Tonel duas vezes por ano, religiosamente, porque o livro me arrasa e, portanto, faz-me muito bem. Excluindo-se a prosa shakespeariana, a prosa dessa obra de Swift, a meu ver, é a melhor até hoje escrita em língua inglesa, e o livro constitui o corretivo mais salutar para qualquer pessoa com tendências visionárias ou entusiasmo romântico. A História de um Tonel ensina os usos da ironia, algo de que atualmente necessitamos mais do que nunca, todos nós, inclusive eu. A História de um Tonel reúne, em 100 páginas, um misto estonteante de paródia, sátira, infinda ironia e digressões intencionais. Com a idade, tornei-me um professor sumamente digressivo, que, amiúde, precisa perguntar aos alunos em que ponto estávamos, antes da minha última divagação. Por conseguinte, não sei ensinar sem invocar A História de um Tonel cujo método discursivo é interromper uma narrativa alegórica com digressões, até tudo se tornar divagação. Sátiras tendem a divagar; postas em movimento, as sátiras sempre são surpreendidas por novos objetos de ataque. As divagações de Swift excedem as de quase todos os demais satiristas: A História de um Tonel em sua totalidade, encerra uma grande digressão. O que Freud chamou de instintos (amor e morte), para Swift, são apenas digressões. Quando se divaga, faz-se um desvio, como quem jamais caminha em linha reta. Em geral, embora Swift combata muitos inimigos, seus principais oponentes são Hobbes e Descartes. O "tonel" do título tem inúmeros significados, inclusive o próprio objeto, irrelevante, mas que deve ter também algum sentido cómico, particular a Swift. Perseguidos por uma grande baleia, os navegantes atiravam um tonel ao mar, na esperança de desviar a ameaça, assim como Swift tenta distrair os leitores com relação à metafísica materialista do Leviatã, de Thomas Hobbes. Descartes, proponente do dualismo filosófico, é morto por Aristóteles, em A Batalha dos Livros, de wift. O satirista não concede a Descartes nem a honra de uma morte digna: a seta de Aristóteles fora apontada contra Sir Francis Bacon, mas "divaga" e alveja Descartes. 294 295 Tudo em A História de um Tonel é desconcertante: a parte crucial constitui um para-texto, um escrito paralelo - Discurso sobre o Funcionamento Mecânico do Espírito. Se espírito e matéria devem permanecer, radicalmente, separados, como queria Descartes, então, o espírito deve ser transportado além da matéria: há três maneiras de ejacular a alma (...). A primeira constitui um Ato Divino, e denomina-se Profecia ou Inspiração. A segunda é um ato do Diabo, e denomina-se Possessão. A terceira (...) resulta de uma forte Imaginação (...). A quarta -Entusiasmo Religioso -, ou o desprendimento da Alma, sendo, estritamente, Efeito de Artifício e Operação Mecânica, não tem sido muito empregada. Essa situação deve agora ser remediada, e o narrador de Swift informa que, na Era de Hobbes e Descartes, a Operação Mecânica do Espírito é, deveras, digressiva: a alma, sempre propensa à divagação, torna-se um vapor gasoso. Entre a contumaz indignação de Swift e o leitor interpõe-se o narrador, ele próprio, um mar de desinformação, como convém a um escritor charlatão que faz ponto em Grub Street, e que encarna muitas das noções atacadas. Swift, entretanto, não torna as coisas tão simples e claras assim: de quando em vez, em um acesso de fúria, permite que o narrador charlatão fale em nome do autor, conquanto o infeliz seja um ex-interno do manicômio. O charlatão escreve em prol do "Aperfeiçoamento Universal da Humanidade"; os propósitos de Swift são menos presunçosos, mas o porta-voz tem a tendência de expressar uma eloquência swiftiana. Os grandes sacerdotes da digressão, inimigos de Swift, seguidores do deus do vento, incluem "Todos os candidatos à Inspiração, de qualquer natureza", sendo descartados como vulgares visionários do apocalipse: Devido ao Hábito desses Sacerdotes, alguns Autores insistem que tais Eólios estão no Mundo desde a Antiguidade. Isto porque, os seus Mistérios, que acabo de mencionar, coincidem, exatamente, com aqueles de outros Oráculos antigos, cuja Inspiração decorria de certas Correntes de Vento subterrâneas, destinadas ao Sacerdote e que muito influenciavam o povo. É bem verdade, tais correntes eram, muitas vezes, dirigidas por praticantes Femininas, cujos órgãos eram, supostamente, mais propensos a tais Lufadas Oraculares, pois, nesses casos, atravessam um Receptáculo de maior Capacidade, causando, no Processo, um Frémito que, be/n trabalhado, elevase de um Êxtase Carnal a um Êxtase Demoníaco. E, para reforçar essa profunda Conjectura, insiste-se que esse Hábito das Sacerdotisas ainda hoje é preservado nos Educandários mais refinados dos nossos Eólios Modernos, que se aprazem de receber Inspiração exarada pelos Receptáculos acima mencionados, a exemplo das Ancestrais, as Sibilas. Embora Swift equipe o narrador com uma certa ironia, o trecho seguinte é chocante, e bastante ofensivo à visão feminista: Os Eruditos Eólios defendem as hipóteses de que a Causa Original de todas as Coisas é o Vento, Princípio a partir do qual todo o Universo foi construído, e ao qual deverá retornar; e que o mesmo Sopro que acendeu a Chama da Natureza, um Dia haverá de extingui-la. Na conclusão, o objeto da sátira são os Quakers, mas o trecho, como um todo, é caracterizado por um crescendo que faz lembrar Rei Lear. Susan Gubar, impaciente com defensores de Swift na academia, assinala, com correção, o horror do satirista no que diz respeito aos "irresistíveis aspectos físicos" da mulher. A natureza psicossexual de Swift não era das mais felizes, mas, mesmo que ele houvesse desfrutado enlevos genitais com "Estela" e "Vanessa", que jamais chegaram a ser suas amantes, não creio que esse génio encarnado da ironia houvesse escrito de modo diferente, e parece-me absurdo acusar Swift de misoginia, pois ele se sente igualmente indignado diante de toda a humanidade, homens e mulheres. Decerto, a principal contenda de Swift é que todos nós, de ambos os géneros, estamos sujeitos às Operações Mecânicas do Espírito. Condição que, portanto, também se aplica a Swift, nesse trecho magnífico, esse "vapor" sublime, que se volta contra "vapores": Além disso, existe nas Mentes humanas algo Individual que, facilmente, se aquece diante da Proximidade e do Impacto de determinadas Circunstâncias, que, embora de Aparência medíocre, muitas vezes se transformam nas maiores Emergências da Vida. Grandes Reviravoltas nem sempre são realizadas por Mãos vigorosas, mas por Circunstâncias do acaso, e pelo Momento certo; pouco importa de onde partiu o Calor, desde que o Vapor suba ao Cérebro, pois a Região superior do Homem é provida como a Região mediana do Ar; os Materiais são formados por Causas bastantes distintas, mas produzem, em último caso, a mesma Substância e o mesmo Efeito. Névoas surgem da Terra, Vapores emanam do Estrume, Exaltações emanam do Mar e Fumaça, do Fogo; todavia, os gases emitidos por uma Latrina fornecem vapor tão gracioso e útil quanto o Incenso em um Altar. Ate aqui, suponho, todos concordam comigo; segue, então, que, assim como a Natureza jamais produz a Chuva, senão quando está sobrecarregada e perturbada, 296 297 o Entendimento Humano, alojado no Cérebro, é afetado por Vapores que ascendem das Partes baixas, a fim de irrigar a Criatividade e fazê-la frutífera. Se isso ainda é sátira, então o próprio Swift é uma das vítimas, assim como é difícil deixar de vitimá-lo, desassociando-o de Gulliver, em Viagens de Gulliver. A História de um Tonel é uma obra mais importante, assim como Rei Lear supera Otelo, pois tanto em A História de um Tonel quanto em Rei Lear, somos levados a um limite perigoso, em que as forças retóricas e passionais parecem superar qualquer consideração formal. Norman O. Brown, no livro Life Against Death (1959), defendeu, com notoriedade, o que ele mesmo chamou "Visão Excrementícia" de Swift, tomando a expressão emprestada a Middleton JVlurray e Aldous Huxley. Décadas mais tarde, parece-me que tal noção dispensa tanto a piedade quanto o elogio, exatamente conforme nos casos de Rabelais e Blake, ambos satiristas imbuídos de energias demoníacas. O que assustava Samuel Johnson, com respeito a Swift, não era tanto a potência do génio do satirista, mas o "perigoso exemplo" da sátira swiftiana, com tantas tendências "religiosas". Swift considerava-se devoto sacerdote anglicano, servindo como decano da Catedral Protestante de São Patrício, em Dublin. Mas era parodista, ironista e satirista de génio incomparável. Na avaliação de Johnson, esse talento fugiu ao controle de Swift: os sinos fizeram a torre desabar. Tomei o cuidado de distinguir entre o génio e a loucura (final) de Swift, mas, quando releio A História de um Tonel não creio que consiga distinguir entre genialidade e fúria. De início, os alvos são Hobbes e Descartes, mas logo se expandem para incluir todos nós, o próprio Swift sendo mais uma vítima. Goneril e Regan são monstros das profundezas, mas a fúria de Lear supera as provocações feitas pelas filhas. É difícil não sentir que a ira de Swift vai além do Entusiasmo por ele criticado. E possível manifestar indignação profética contra a profecia? O que sanciona a aparente crueldade de Swift? "Aparente" é a palavra controversa nessa minha questão: Semana passada, vi uma mulher tosquiada, e o leitor mal pode imaginar como a condição fez piorar a aparência da mulher. A potência literária dessa ironia é indisputável; pode ser lida como uma paródia do sadismo, mas o sabor do próprio sadismo pode ser excluído? A História de um Tonel é sempre impactante porque se trata de um dos poucos livros totalmente originais escritos em língua inglesa. Os dois termos opostos, fundamentais à obra, são "mecânico" e "espírito", e Swift despreza a ambos: a máquina é o corpóreo, conforme designação de Hobbes, e o espírito é a consciência, isolada e reduzida por Descartes. Concebido como máquina, o corpo parece a Swift, primeiramente, o produtor de excremento e fluidos sexuais, enquanto o espírito cartesiano é vento, vapor nocivo. O cristianismo de Swift, em contraste, trilha o caminho do meio: razão e verdade não nos conduzem à felicidade (meta improvável, para Swift), mas à ordem e à decência. Infelizmente, esses termos perderam muito do seu brilho ao longo dos três séculos desde a publicação de A História de um Tonel George W. Bush e a Coalizão Cristã não seriam ideais swiftianos, que exaltava a mente, base legítima de seu orgulho feroz. Continuo a ler A História de um Tonel porque a obra pune a minha busca pelo espírito na poesia romântica e pós-romântica. Em um sentido menos pessoal, recomendo-a pela originalidade, intensidade demoníaca e pelo esplendor da sua prosa. E, desde que o meu interesse é a questão do génio, desconheço outra prosa (nãoficcional) em língua inglesa que encerre, tão claramente, semelhante explosão de genialidade tão perigosa e surpreendente. 298 299 JANE AUSTEN Devo confessar que a considero [Elizabeth Bennet] uma das figuras mais interessantes até hoje criadas pela ficção, e não sei como vou tolerar os que não gostam dela. - Jane Austen, em carta para a irmã, Cassandra, 29 de janeiro de 1813 A única pessoa que recordo não ter gostado da heroína de Orgulho e Preconceito foi Vladimir Nabokov, que fez com que eu me retirasse de um salão de conferências, na Universidade de Cornell (em 1947), devido à sua insistência na inferioridade de Jane Austen diante de Nikolai Gogol. Elizabeth Bennet, proclamava Nabokov (fazendo lembrar Humbert Humbert), é insípida. Tal avaliação equivale à descoberta de que a Rosalinda, de Shakespeare, em Como Gostais, é entediante. Nabokov ainda não escrevera Fogo Pálido, a prova mais cabal do seu génio, mas nem mesmo essa obra extraordinária apresenta a hilaridade memorável de Orgulho e Preconceito. O que Gogol (acometido de loucura sublime) pensaria de Jane Austen, não posso imaginar, mas a comparação entre os dois é iniciativa tão absurda quanto tentar aproximar Nabokov de George Eliot. A ironia mordaz de Gogol e Nabokov em nada se parece com a de Austen, que provém da interioridade dramática de Chaucer e Shakespeare. Elizabeth Bennet, assim como Rosalinda, é espirituosa, amável, bem-dotada de espírito e sensibilidade; ela realiza o milagre de ser, ao mesmo tempo, fascinante e normativa, o que, novamente, estabelece a sua descendência de Rosalinda. Somente os grandes génios são capazes de criar um tipo de divertimento que só ameaça as pessoas rancorosas. C. S. Lewis certa vez sugeriu que Jane Austen era filha literária de Samuel Johnson. Em termos de crítica, venero Johnson, o Sublime da minha vocação. Mas Austen é filha de Shakespeare: as heroínas de Austen desafiam as contingências da historicização, e constam das nossas mais raras imagens de liberdade interior. JANE AUSTEN (1775-1817) Em uma família de oito crianças, Austen foi a sétima a nascer. De vez que o objeto do meu estudo é o génio sumamente individualizado dessa escritora, que a distinguia dos irmãos e de quase toda a população da Grã-Bretanha, de início declaro o meu desinteresse na suposta relação entre os seus romances e as políticas e procedimentos imperiais da Inglaterra. Tenho encontrado um número elevado de docentes - eu não diria de Literatura, mas de Estudos Culturais - que afirmam jamais terem lido Mans-field Park, mas que dizem que o aspecto mais importante desse romance de Austen é o "lado escuro", financeiro: a usina de açúcar de propriedade de SzV Thomas Bertram, em Antígua. Na nossa realidade cada vez mais virtual, três autores parecem imunes ao declínio da leitura autêntica: Shakespeare, Austen e Dickens. Esse fenómeno não resulta de culto nem de política: ocorre que personalidades, principais e secundárias, irrorhpem das páginas desses escritores, em uma profusão jamais vista no âmbito da literatura de expressão inglesa. Poucos romancistas, e um número ainda inferior de dramaturgos, propiciaram-nos dois ou três milagres de personalidade. Shakespeare, pelos meus cálculos, criou quase 200; Austen, em seus cinco romances principais, criou mais de 30. Tendo falecido aos 41 anos, a fase mais importante da carreira da escritora durou apenas seis anos: 1811-1817. Se vivesse mais uma década, talvez alcançasse uma projeção que surpreenderia até mesmo os admiradores mais obstinados. Persuasão, publicado postumamente, a meu ver, é o romance mais profundo de Austen, demonstrando uma renovação da interioridade shakespeariana. Mais uma vez à semelhança de Shakespeare, é sempre frutífera a leitura da obra de Austen, a despeito da intensidade com que seja realizada. O domínio que a escritora exerce sobre o perspectivismo é outra forte característica shakespeariana. "Que valor tem algo, se não aquele que lhe é atribuído?" - a pergunta retórica formulada por Iróilo, em Tróilo e Créssida, é a questão implicitamente aventada pelos principais protagonistas de Austen: Elizabeth Bennet, Emma Woodhouse, Fanny Price e Anne Elliot. Os problemas da estimativa e da estima, do eu e do outro, são centrais, segundo Austen. Embora seja crucial em Shakespeare, a ironia shakespeariana, assim como a de Gnaucer, é grandiosa demais para ser vista, logo, convém permanecer cético com relação ao valor (ou aos valores) de qualquer personagem. Alistair Fowler insiste que Hamlet, na melhor das hipóteses, é um herói-vilão, mas poucos concordam com tal ideia. Austen dirime quase todas as dúvidas antes da conclusão de todos os seus roman300 301 ces: a arte de Austen depende da correta compreensão do leitor. Ninguém, ao ler Orgulho e Preconceito, poderá se equivocar quanto à interpretação de Ms. Bennet, Mr. Collins e Lady Catherine de Bourgh: são, nitidamente, hilariantes. Já Mr. Bennet causa-nos certa perplexidade, embora gostemos dele. Que relação haverá entre a escolha atroz em favor de Mrs. Bennet e a recusa de alimentar qualquer emoção que vá além do divertimento sardónico? Serão os amáveis Jane Bennet e Charles Bingley interessantes o bastante para justificar a sua importância na trama? A ironia de Austen é tão sutil que, talvez, tais personagens não tenham a função de justificar coisa alguma: por contraste, a insipidez deles ressalta a intensidade de Elizabeth e Darcy. Tendo escrito em outros livros sobre Emma e Persuasão, e sendo avesso a novas polemicas com os virtuosos dos Estudos Culturaisque infestam as abordagens praticadas no estudo de Mansfield Park, restrinjo-me aqui a Orgulho e Preconceito. O génio de Austen, no que concerne à invenção da personalidade através da força da ironia, não poderia ser mais bem ilustrado do que nesse carro-chefe da sua arte. Mr. Collins é um dos triunfos cómicos da literatura: sozinho, já seria bastante para estabelecer, para sempre, o génio de Austen. Eis Mr. Collins, no capítulo 19, propondo casamento a Elizabeth Bennet: - São os seguintes os meus motivos para me casar: primeiro, considero correto que todo clérigo que tenha uma vida confortável (como eu) dê o exemplo do matrimónio à sua paróquia; segundo, estou convicto de que o casamento aumentará, em muito, a minha felicidade; e terceiro, o que, talvez, devesse ter sido mencionado antes, faço-o segundo o conselho e a recomendação da nobilíssima dama a quem tenho a honra de chamar protetora. Por duas vezes ela se dignou a me oferecer a sua opinião sobre o assunto (e sem que eu houvesse pedido!); foi no sábado que antecedeu a minha partida de Hunsford - durante um intervalo da quadrilha, enquanto Mrs. Jenkins arrumava o banquinho em que Miss de Bourgh apoiava os pés - que ela disse: "Mr. Collins, o senhor deve se casar. Um clérigo como o senhor deve se casar. Escolha certo e, para o meu bem, escolha uma dama; e para o seu, que seja pessoa ativa e prendada, que não seja dada a caprichos, e que saiba ser económica. Eis o meu conselho. Encontre uma mulher assim, o quanto antes, traga-a a Hunsford, e eu a visitarei." A propósito, permita-me observar, cara prima, não considero a atenção e a bondade de Lady Catherine de Bourgh as menores vantagens que tenho a oferecer. Você vai constatar que as boas maneiras dessa dama são indescritíveis; e, creio eu, a espirituosidade e vivacidade da prima serão por ela bem aceitas, especialmente quando investidas do silêncio e do respeito impostos, inevitavelmente, pela classe de Lady Catherine. Quanto aos motivos em favor do matrimónio já basta; resta dizer por que estou inclinado a LongJANE AUSTEN bourn, ao invés da minha própria vizinhança, onde, posso garantir-lhe, vivem muitas jovens amáveis. O fato é que, como futuro herdeiro desta propriedade, após o falecimento do seu honrado pai (que, no entanto, pode viver ainda muitos anos), eu jamais poderia deixar de escolher uma esposa entre as filhas desse honrado senhor, a fim de que a perda lhes seja a menor possível, quando transcorrer o melancólico evento - o que, no entanto, conforme já disse, talvez demore vários anos para ocorrer. Eis o meu motivo, cara prima, e apraz-me pensar que ele não diminuirá o seu apreço. E agora resta-me apenas assegurar-lhe, através da linguagem mais enfática possível, a intensidade do meu afeto. Sou inteiramente indiferente à fortuna, e, nesse sentido, não farei qualquer exigência a seu pai, pois sei muito bem que não poderia ser atendida; assim como sei que uma quarta parte de mil libras, que só lhe caberão após o falecimento da senhora sua mãe, é todo o seu direito. Quanto a esse particular, portanto, permanecerei calado; e pode ter certeza de que jamais pronunciarei uma palavra de ingratidão, depois que nos casarmos. Nenhum ficcionista dotado de veia cómica pode superar um trecho como esse! Nem mesmo Dickens criou um personagem que se equipara ao notório Mr. Collins, cuja afeta-ção encontra a sua deusa na figura de Lady Catherine de Bourgh, infinitamente adulada. Talvez a sentença sublime no trecho seja: "E agora resta-me apenas assegurar-lhe, através da linguagem mais enfática possível, a intensidade do meu afeto." Feita a afirmação, Mr. Collins passa, imediatamente, para questões práticas, financeiras, lembrando a Elizabeth o valor reduzido de seu dote. Mas Austen quase se supera, na concisão estilística em que relata a "sobra" de Mr. Collins para a melhor amiga de Elizabeth, Charlotte Lucas: Assim que o longo discurso de Mr. Collins permitiu, tudo ficou acertado entre eles, em comum acordo; e, enquanto entravam na casa, Mr. Collins pediu-lhe que escolhesse o dia em que ele se tornaria o mais feliz dos homens; e, embora a solicitação ficasse, por ora, pendente, a dama não tinha qualquer pretensão de brincar com a felicidade de quem quer que fosse. A estupidez com que a natureza o favorecera impedia que a sua adulação tivesse qualquer tipo de charme que levasse uma mulher a desejar a sua continuidade; e Miss Lucas, que o aceitava, exclusivamente, devido ao desejo puro e simples de se estabelecer, pouco se importava quando tal fato viesse a ocorrer. 1 or trás dessa comédia e do humor de alto nível atinente ao namoro entre Darcy e Elizabeth, encontra-se a pungência da história pessoal de Austen. Em 1796, aos 20 302 303 anos de idade, apaixonara-se por Tom Le Froy, jovem irlandês, de ascendência hugue-note, também com 20 anos. A insuficiência do dote de Austen comprometeu o relacionamento. É possível que tenha havido uma outra relação amorosa, mais tarde, mas o indivíduo faleceu. Certo é que, no outono de 1802, Austen aceitou o pedido de casamento feito por um tal Harris Bigg-Wither. Contudo, após uma noite em claro, Austen informou ao jovem (ele tinha, na ocasião, 22 anos, ela, 27) que não poderia desposá-lo. Tudo leva a crer que essa relação tenha constituído o final da vida amorosa de Austen; vale registrar, no entanto, que Bigg-Wither casou-se dois anos mais tarde, e teve dez filhos. Se Austen tivesse se casado, talvez não houvesse concluído um romance sequer. Os precursores imediatos de Austen foram Samuel Richardson e Fanny Burney, que lhe mostraram como reunir Richardson e Henry Fielding em uma nova modalidade de narração. Embora Sir Charles Grandison, segundo consta, fosse o romance predileto de Austen, a obra-prima de Richardson é Clarissa, ficção tão extensa e, sob o ponto de vista estético, tão maravilhosa quanto Em Busca do Tempo Perdido, de Proust. Clarissa não conta com muitos leitores, atualmente, mas não creio que Austen, Dickens, George Eliot, Henry James ou Joyce tenham escrito obra tão impactante quanto esse romance de Richardson. Austen não tinha sensibilidade religiosa, mas seu temperamento era protestante, e o seu conceito de vontade protestante foi influenciado pelos romances de Richardson, pela poesia de William Cowper e pela crítica (literária e moral) de Samuel Johnson. As heroínas dos romances de Austen são modelos da vontade Puritana, que exalta a autonomia da alma. "Orgulho", em Orgulho e Preconceito, é a arte da vontade. Vejamos o trecho que, na minha opinião, é o melhor do livro: a recusa à proposta de casamento que Darcy faz a Elizabeth, no capítulo 34: Após um silêncio de vários minutos, ele aproximou-se dela, agitado, e disse: Tenho lutado em vão. Não é possível. Meus sentimentos não serão mais reprimidos. Você tem de permitir que eu lhe diga o quanto a admiro e a amo. A perplexidade de Elizabeth era tamanha que mal conseguia expressá-la. Atónita, ela manteve o olhar parado, as faces coradas, e permaneceu calada. Ele sentiu-se estimulado diante de tal reação, e a confissão de tudo o que, havia muito, sentia por ela aflorou, imediatamente. Falou com desenvoltura; mas havia sentimentos, além dos que ficam no coração, que precisavam ser detalhados; e ele não era mais eloquente no que dizia respeito ao afeto do que ao orgulho. A consciência da inferioridade dela - o que representava uma degradação - e dos obstáculos relativos a questões de família eram considerados com uma afeição que parecia resultar do sofrimento de Darcy, mas que pouco lhe favorecia os galanteios. A despeito da profunda antipatia, ela não conseguia ficar insensível à lisonja contida no afeto daquele homem, e, embora não vacilasse um instante sequer em sua intenção, ela, a princípio, lamentava o sofrimento pelo qual ele haveria de passar; porém, magoada e irritada pela linguagem que ele veio a empregar, ela deixou de lado a compaixão. Contudo, procurou manter-se calma, a fim de respon-der-lhe com paciência, quando ele terminasse. Ele concluiu reiterando a força dos seus sentimentos, que, por mais que tentasse, não conseguira dominar, e expressando a esperança de que tais sentimentos fossem recompensados, no momento em que ela aceitasse a proposta. Quando ele disse essa frase, ela percebeu, nitidamente, que ele não tinha dúvida quanto a uma resposta favorável. Ele falava de apreensão e ansiedade, mas seu semblante exprimia segurança total. Tal circunstância serviu apenas para exasperá-la ainda mais e, quando ele se calou, o rubor subiu às faces de Elizabeth, e ela disse: Em casos como este, creio ser de bom tom expressar agradecimento pelos sentimentos demonstrados, por menor que seja o grau de reciprocidade. É natural agradecer, e se eu pudesse sentir gratidão, eu agora lhe seria grata. Mas não posso -, jamais desejei a sua lisonja, com certeza, você a dispensou à toa. Lamento fazer sofrer quem quer que seja. Não o fiz de modo consciente, e espero que tal sofri mento dure pouco. Os sentimentos aos quais você diz ter resistido durante tanto tempo não serão difíceis de ser superados, depois dessa explicação. Mr. Darcy, encostando ao consolo da lareira, o olhar cravado no rosto de Elizabeth, aparentemente, reagia mais com surpresa do que ressentimento, diante das palavras a ele dirigidas. Ficou pálido de ódio, e a perturbação mental era visível em cada um dos seus traços faciais. Esforçava-se para manter a compostura, e não abriria a boca, até que tivesse certeza de estar sob controle. Para Elizabeth, a pausa foi terrível. Finalmente, em um tom de voz que deixava transparecer uma calma forçada, ele disse: E esta é a resposta pela qual tive a honra de esperar: talvez, eu gostasse de ser informado por que, com tão pouca demonstração de civilidade, estou sendo rejeita do. Mas isso não tem muita importância. Alguns dos melhores estudiosos de Austen exaltam a capacidade de mudança observada em Darcy e Elizabeth, e dizem que, assim, os dois garantem a felicidade quando se reúnem, mais tarde. O perspectivismo irónico de Austen, no entanto, deixa margens para outras interpretações. Darcy e Elizabeth, na verdade, não mudam muito, apenas aprendem a lidar com o orgulho recíproco, complementar, e que passa a ser visto como egitimo. O que os dois vêm a perceber, com clareza, é que são unidos pela vontade, 304 305 vontade de aceitar uma estima caracterizada pelo reconhecimento de alto valor mútuo. Ambos compreendem que não devem cometer um equívoco na escolha de uma "vontade" afim. Trata-se de um protestantismo enviesado, mas, sem dúvida, faz parte da tradição protestante, segundo a qual a Bíblia é lida à luz do entendimento do próprio leitor, e ninguém perde a autonomia em consequência de êxtases místicos. Das duas vontades, a de Elizabeth é mais pura, mas a de Darcy é mais ansiosa, portanto, mais insistente consigo mesma. Como definir o génio de Jane Austen? Henry James, com ironia defensiva, escreveu que "a chave do sucesso de Jane Austen na posteridade é, em parte, a graça extraordinária da sua naturalidade, com efeito, da sua inconsciência". Conforme o faz com Hawthorne e George Eliot, James tenta negar o talento artístico, consciente, de Austen, pois precisa defender-se dos predecessores. Basta inverter o comentário, e falar da graça da consciência de Austen, cujo perímetro, apesar de todas as limitações sociais (propositadas), expande-se, buscando conquistar dimensões shakespearianas. Não basta considerar Austen, primeiramente, uma ironista: ela foi um génio da vontade, foi um agente fundamental na secularização da vontade protestante. Contudo, o aspecto mais conspícuo dessa vontade é a direção em que a mesma se move: rumo à personalidade, à liberdade extrema da individuação. Quando toco meu koto, sozinha, sentindo a brisa fresca da noite, tenho receio de que alguém me ouça e perceba que "torno maior a tristeza circundante"; quanta vaidade, quanta melancolia. Agora meus dois instrumentos, o de 13 e o de seis cordas, ficam o dia todo dentro de um pequeno armário cheio de fuligem. Esquecidos - esquecia-me, por exemplo, de pedir que os cavaletes fossem retirados em dias de chuva -, acumulam poeira, encostados entre o guarda-louça e uma coluna. Ainda há outros dois guarda-louças entulhados. Um está cheio de velhos poemas e contos que servem de lar para incontáveis insetos que se espalham de modo tão repugnante que chegam a repelir o olhar; o outro está repleto de livros chineses que caíram em descuido desde que o homem que os colecionava faleceu. Sempre que a minha solidão me ameaça, folheio um ou dois desses volumes; e minhas aias falam de mim, pelas costas: "Por isso é tão infeliz. Que tipo de dama haveria de ler livros chineses?", cochicham. "No passado, não era comum nem a leitura de sutras!" "Sim", tenho vontade de dizer, "mas nunca encontrei alguém que conseguisse viver mais por acreditar em superstições!" Mas tal afirmação seria impensada. Existe uma certa verdade no que elas dizem. Lady Murasaki, em seu Diário, bem como em A História de Genji, realiza uma busca do tempo perdido quase proustiana, como convém a uma escritora que era, de fato, o génio da busca. O esplêndido Genji, paradoxalmente, é destruído pelo seu próprio anseio de amar. Quando o verdadeiro amor de sua vida, Murasaki, cujo nome é tão significativo, definha, em consequência de uma reação involuntária por ter sido rejeitada, Genji a ela sobrevive por muito pouco tempo. A História de Genji está a anos-luz de Proust, mas pergunto a mim mesmo se o anseio constante de Lady Murasaki não constitui uma analogia da busca de Proust. Em i roust, o amor morre, mas o ciúme é eterno; o narrador busca os mínimos detalhes dos relacionamentos homossexuais de Albertine, mesmo depois que as memórias da amante ralecida se atenuaram. Em Lady Murasaki, o ciúme é dominado, pois é impossível à mulher ter posse exclusiva do homem. Hesito em afirmar que a perspectiva de A História de Genji seja, inteiramente, feminina, se for levada em conta a intensidade da identificação entre Lady Murasaki e o 306 307 "brilhante Genji". Todavia, o louvor à busca da satisfação, do princípio ao fim do romance, pode ser uma indicação de que a visão masculina do amor sexual seja, essencialmente, secundária. O esplendor de Lady Murasaki, assim como o de Proust, é a visão abrangente, na qual uma nostalgia, em parte, demoníaca, em parte, estética, substitui uma ordem social decadente. Para ser um génio da busca, é preciso destacar-se em "paciência narrativa", e é impressionante a versatilidade ficcional de Lady Murasaki. LADY MURASAKI (MURASAKI SHIKIBU) (978?-1026?) A autora de A História de Genji é a única representante da Ásia neste livro, mas o extenso romance por ela escrito faz parte da cultura literária de língua inglesa desde que Arthur Waley concluiu a sua versão, em 1933. Já faz meio século que li a versão de Waley, e dela trago comigo impressões marcantes, mas só agora li a tradução (bastante diferente) de Edward G. Seidensticker, embora estivesse disponível desde 1976. Reler Waley ao lado de Seidensticker é instrutivo: Genji é obra tão sutil e esplêndida que ficamos na expectativa de outras tantas versões. A tradução alemã, de Oscar Benl (1966), proporciona mais uma reflexão sobre a imensa lenda de Murasaki, e instrui o leitor que desconhece tanto o japonês medieval quanto o moderno. Consta que a linguagem de Murasaki, com relação ao japonês falado por nossos contemporâneos, situa-se, analogamente, entre o inglês do período anglo-saxônico e o do período medieval. A linguagem não fica tão distante quanto a de Beowulf, nem tão próxima quanto a de Chaucer; logo, traduções para o japonês moderno são essenciais para os leitores da atualidade. Sem dúvida, culturalmente, A História de Genji nos é bem mais remota do que Waley, Seidensticker e Benl deixam transparecer, mas o génio literário é capaz de atingir uma universalidade extrema, e a obra de Lady Murasaki causa em mim a ilusão de ser acessível ao meu entendimento, assim como a de Jane Austen, Mareei Proust ou Virginia Woolf. Austen é uma ficcionista laica, tanto quanto Murasaki; a narrativa romanesca de Murasaki, à medida que se desenrola, apresenta crescentes características do romance, exceto pelo fato de conter uma pletora desnorteante de protagonistas. São quase 50 personagens principais, e não é nada fácil manter em mente quem desposou quem, ou teve um relacionamento sexual, ou é o verdadeiro pai ou verdadeira filha de alguém. Ao ler a versão de Seidensticker, de quase 1.100 páginas (é mais fiel e menos condensada do que a de Waley), o interesse jamais é sacrificado, mas é difícil não se perder. Genji, príncipe imperial exilado e que se torna plebeu dentro do seu próprio território, é um personagem apaixonante, dotado de anseios perpétuos, mutáveis, e impacientes quando frustrados. Talvez seja mais correto falar de "anseio" do que de anseios . Genji é a personificação do anseio, sendo, evidentemente, irresistível às extraordinárias (e extraordinariamente variadas) mulheres da corte e das províncias. Não devemos entender Genji como um Dom Juan, embora o personagem manifeste o que Lorde Byron chamava "mobilidade". A própria Lady Murasaki, por intermédio 0 narrador, é, abertamente, mais do que simpática a Genji; trata-se de uma figura que irradia luz, e que deve se tornar imperador. Eros, na obra de Murasaki e das principais 308 309 escritoras da época, não é, exatamente, o que entendemos por "amor romântico", mas entre obsessão, autodestruição e inevitabilidade, na prática, há pouca diferença. Embora todos os personagens em A História de Genji sejam budistas e, portanto, prevenidos contra o desejo, quase todos são bastante suscetíveis, principalmente Genji. A renúncia, que Emily Dickinson chamou "virtude cortante", no caso em questão, só é praticada após o desastre, dama após dama, e somente depois de muitas peripécias do sempre apaixonante Genji. Genji, que jamais será imperador, tem uma propensão especial para estabelecer ligações repentinas (e duradouras) com damas que não pertenciam à estirpe mais nobre, repetindo assim a paixão do pai (imperador) pela mãe do herói, que se viu expulsa da corte devido à malícia de consortes aristocráticas. Destruída pela experiência, a mãe de Genji morreu quando ele ainda era bebe, e a busca de Genji por intimidade está, claramente, relacionada a essa perda precoce. Mas Lady Murasaki, que, com sua História, antecipa-se a Cervantes no pioneirismo do romance, é, também, grande ironista. O segundo capítulo, delicioso - "A Árvore da Vassoura" -, encerra um festim sobre o amor, levado a termo por Genji e outros três cortesãos: Naquele momento, dois jovens cortesãos, um oficial da guarda e o outro funcionário do ministério de rituais, surgiram em cena, a fim de assistir o imperador em seu retiro. Ambos eram adeptos dos métodos do amor, além de verbalmente desenvoltos. Como se estivesse esperando por eles, To no Chujo pediu-lhes que se expressassem sobre a questão que acabara de ser formulada. A discussão prosseguiu, incluindo vários argumentos pouco convincentes. - Os que acabam de alcançar uma posição elevada - disse um dos recém-che-gados - não atraem o mesmo tipo de atenção que os que nasceram nobres. E os que nasceram na estirpe mais nobre, mas que, de certo modo, não têm o devido estofo, apesar de todo o orgulho e a nobreza demonstrados, não conseguem esconder as próprias deficiências. Portanto, acho que, em ambos os casos, devem ser designados a um nível mediano. - Há aqueles cujas famílias não pertencem à estirpe mais nobre, e que vão para as províncias, onde trabalham arduamente. Têm o seu lugar no mundo, a despeito das tantas pequenas diferenças, algumas das quais fazem parte da experiência de qualquer pessoa. Assim é hoje em dia. Quanto a mim, prefiro uma mulher de família mediana a outra que nada tenha, além da estirpe nobre. Digamos, alguém cujo pai esteja próximo ao nível de conselheiro, mas que não o seja. Uma mulher dotada de reputação decente, originária de família decente e que saiba apreciar um certo luxo. Pessoas assim podem ser bastante agradáveis. Não há nada de errado com acertos domésticos, e, na verdade, uma filha pode, às vezes, ser preparada de maneira fascinante. Nesse particular, conheço várias mulheres quase perfeitas. Quando postas a serviço da corte, são elas que cativam as benesses inesperadas. Já vi inúmeros casos assim, posso afirmar-lhes. A ironia de Lady Murasaki nos faz indagar quais seriam os "argumentos pouco convincentes". No incidente em que talvez resida a maior ironia da obra, Genji encontra o grande relacionamento de sua vida na pessoa de uma menina de dez anos, por ele chamada Murasaki, a quem adota e educa. O nome da menina (assim como o da autora) refere-se à perfumada alfazema, e o relacionamento de Genji com a menina é escandaloso, desde o início: Ela não pensava muito no pai. Tinham vivido separados e mal o conhecia. Agora sentia grande afeição pelo novo pai. Era a primeira a correr para saudá-lo, quando ele chegava em casa; sentava-se em seu colo, e conversavam alegremente, sem qualquer constrangimento. Ele muito se deliciava com ela. Uma mulher inteligente e atenta pode criar todo tipo de dificuldade. O homem deve sempre se precaver, e o ciúme pode ter as mais indesejáveis consequências. Murasaki era a companheira perfeita, um brinquedo. Ele jamais teria a mesma liberdade, a mesma desinibição com uma filha legítima. Há restrições quanto à intimidade paterna. Sim, ele descobrira um tesourinho notável. Contemplamos, novamente, um páthos irónico, o que me parece constituir o tom mais característico de Lady Murasaki. Ela própria pertencia ao segundo nível de aristocratas da corte, visto que, aos poucos, a família havia decaído socialmente. Na primeira vez que encontramos a criança cujo nome será trocado, para Murasaki, por um Genji apaixonado, a aia da menina chama-se Shonagon, o que sugere uma ironia dirigida a Sei Shonagon, cujo Livro Travesseiro de Sei Shonagon é o principal concorrente de A História de Genji; Shonagon é criticada no Diário de Lady Murasaki, como "terrivelmente orgulhosa", ao exibir a sua (falsa) competência no domínio dos caracteres chineses, quase como se fosse o Ezra Pound daquele tempo. Lady Murasaki, mais de 900 anos antes de Freud, compreendia que todas as transferências eróticas são substituições de relacionamentos passados. Antes dela, Platão ja pensava assim, embora, para ele, o relacionamento arquetípico fosse com a Ideia, e não com a imagem paterna. Aos 14 anos, Murasaki é desvirginada por Genji: 310 311 AKI Era uma época entediante. Ele já não se entusiasmava pelas perambulaçóes noturnas que outrora mantinham-no ocupado. Pensava muito em Murasaki. Ela parecia, absolutamente, incomparável. Acreditando que ela já tivesse idade suficiente para se casar, ele havia feito algumas demonstrações de afeto; mas ela não parecia entender. Passavam o tempo jogando Go e hentsugi. Ela era inteligente, e sabia muito bem agradá-lo, nas diversões mais banais. Ele ainda não pensara, seriamente, em desposá-la. Mas agora não conseguia mais se conter. Seria um impacto, com certeza. O que havia ocorrido? As aias não tinham como precisar o momento em que a fronteira fora atravessada. Certa manhã, Genji levantou-se cedo, e Murasaki permaneceu na cairia. Não tinha o hábito de dormir até tarde. Estaria doente? Ao se retirar para os seus aposentos, Genji deixara uma mensagem entre os lençóis. Finalmente, quando não havia ninguém por perto, ela sentou-se na cama e viu, ao lado do travesseiro, um pedaço de papel muito bem dobrado. Apática, desdobrou-o. Continha apenas dois versos, escritos em caligrafia informal: "Tantas noites passamos, os dois, juntos, E esses lençóis inúteis entre nós." Como pai adotivo, Genji impõe a Murasaki o estigma figurativo do incesto, e ela jamais será mãe. O narrador, como sempre, não faz qualquer julgamento, e a jovem deflorada passa a viver uma fase de felicidade com Genji, mas essa fase é, estritamente, irónica. Genji, sempre em busca de algo que não pode ser encontrado, recorre a outras amantes, ao mesmo tempo em que mantém Murasaki. Mas ela possui consciência notável, recusa a submeter-se, e se volta para a devoção budista, como um meio de reencontrar a si mesma e à sua própria infância. De vez que Genji não a autoriza a se tornar monja budista, ela providencia uma cerimónia em honra ao Sutra do Lótus, que permite às mulheres participarem da salvação. Depois disso, ela passa por um longo processo de purgação, no que toca à sua dor, conforme diria John Milton. Recuperada a sua beleza infantil, ela morre, causando a Genji uma perda concreta. Lady Murasaki não culpa Genji, assim como não pode repreender uma estação por suceder à outra. No entanto, o protagonista passa a percorrer um caminho que o leva, inevitavelmente, a ser derrotado pela vida. Após um ano, ele começa a se preparar para partir, e morre, entre os capítulos 41 e 42, como se Lady Murasaki estivesse por demais afeiçoada à sua criação para descrever-lhe a morte. O capítulo 42 assim inicia: "O brilhante Genji estava morto, e não havia outro igual a ele." O romance prossegue, por mais 150 páginas, e o génio do páthos irónico continua a se manifestar, mas trata-se de outra história. O livro tornou-se, e ainda é, uma espécie de Bíblia laica da cultura japonesa. O que Dom Quixote representava para Miguel de Unamuno, A História de Genji tem representado para uma infinidade de homens e mulheres no Japão, dotados de sensibilidade estética. Como Escritura secular, o imenso romance de Lady Murasaki assume um status bastante ambíguo, pois é quase impossível definir a relação do livro com o budismo. Na maioria das versões do budismo, o desejo, o anseio por outra pessoa, é a principal imperfeição. O anseio destrói Genji, bem como as mais dignas das mulheres que o cercam. Mas é a essência de Genji e, como leitores, somos cativados por ele, devido ao apelo emocional que ele provoca. O melhor estudo que conheço sobre a obraprima de Lady Murasaki, de Norma Field, intitula-se, correta e eloquentemente, The Splendor of Longingin the "Tale of Genji"1 (1987). Nesse particular, creio eu, localizase o génio de Murasaki, nesse oximoro do "esplendor do anseio", um anseio que jamais há de ser satisfeito, um desejo que jamais será aplacado. Depois de ler Lady Murasaki, experimentamos, com relação ao amor e à paixão, sentimentos inteiramente novos. Ela é o génio do anseio, e somos seus pupilos mesmo antes de encontrá-la. 1 bto é, O Esplendor do Anseio em A História de Genji. [N. do T.] 312 313 LUSTRO 8 Nathaniel Hawthorne, Herman Melville, Charlotte Brontê, Emily Jane Brontè, Virgínia Woolf I magens de isolamento, loucura e amor perdido unem esses romancistas tão diferentes entre si. A Hester, de Hawthorne, o Ismael, de Melville, a louca do sótão, criada por Charlotte Bronté (a primeira esposa de Rochester), Heathcliff, e Septimus Smith, de Virgínia Woolf (cujo suicídio pressagia o da autora) são figuras que se envolvem em alianças rompidas. Será Ismael a exceção, visto que é salvo pelo caixão de Queequeg? Em parte, sim, mas Ismael e Queequeg aliam-se a Ahab, no intuito de caçar e matar o grande Leviatã branco, exaltado por Deus no Livro de Jó, por se tratar da tirania autorizada da natureza sobre o homem. Melville confessava-se agnóstico e O Morro dos Ventos Uivantes, bem como os versos de Emily Brontê, escritos no período maduro de sua carreira, contêm, nitidamente, elementos gnósticos. A Hester, criada por Hawthorne, é emersoniana, mas Hawthorne nao o é, enquanto Charlotte Brontê, profundamente agressiva em sua arte, também lutava por afirmar o sentido da sua própria individualidade. Virgínia Woolf, esteta céti-ca influenciada por Pater, alcançou o domínio de uma arte com características tão pessoais que a sua escola é composta apenas por ela. 315 ciod NATHANIEL HAWTHORNE Não seguiremos nosso amigo porta afora. Ele nos deixou muito sobre o que refletir, e uma parte do fruto dessa reflexão há de emprestar sabedoria à moral, e ser moldada em uma figura. Em meio à confusão aparente em nosso mundo misterioso, os indivíduos são tão bem ajustados a um sistema, e os sistemas entre si, e com relação ao todo, que, ao se isolar, mesmo que momentaneamente, o homem arrisca-se a perder para sempre o seu lugar. Conforme Wakefield, ele pode se tornar, por assim dizer, o Pária do Universo. Assim é concluído o conto de Hawthorne intitulado "Wakefield", a história predile-ta de Jorge Luis Borges. O londrino Wakefield diz à esposa que vai viajar, aluga um cómodo em uma rua logo abaixo daquela em que se localiza a sua casa e ali permanece durante 22 anos, sem que a mulher (e ninguém mais) soubesse de seu paradeiro. Depois, volta para casa e torna-se "um cônjuge adorável" até morrer. Hawthorne jamais define o motivo do comportamento de Wakefield; ao completar dez anos de auto-exílio, encontra a esposa na rua, mas a multidão os separa. Dez anos mais tarde, volta ao lar, e a mulher o aceita. E isso é tudo. O génio contista de Nathaniel Hawthorne tem uma reputação que não condiz com a realidade. Hawthorne não é nem bom, nem melancólico; é tão surpreendente quanto Kafka, Borges e Calvino. O que teriam pensado a seu respeito os antepassados puritanos? Sua maior realização, Hester Prynne, expressa, sutilmente, uma sexualidade muito mais intensa, convincente e cativante do que a de qualquer de suas descendentes na Literatura Norte-americana. A Letra Escarlate é um romance profundamente vital e perturbador porque Hester é vital e perturbadora. O génio de Hawthorne abala as expectativas, não de maneira, necessariamente, proposital, mas porque obedece à moralidade da narrativa e não da História, da sociedade ou do que determinada era convencionou chamar natureza. Hester Prynne é pária de Boston, mas não do universo. NATHANIEL HAWTHORNE (1804-1864) A partir da presente análise de A Letra Escarlate (1850), passo a considerar a questão do génio dentro de uma sequência de grandes obras de ficção norteamericanas, a saber, Moby Dick (1851), de Herman Melville, As Aventuras de Huckleberry Finn (1884), de Mark Twain, O Sol Também se Levanta (1926), de Ernest Hemingway, concluindo com The Violent Bear ItAway,2 de Flannery 0'Connor (1960). Embora Hawthorne atribua o subtítulo "Narrativa Romanesca" à obra A Letra Escarlate, e conquanto não lhe faltem elementos romanescos, Hester Prynne é por demais complexa, por demais imbuída de um espírito dividido, para ser heroína de uma história romanesca. A afinidade de Hester não é com Jane Eyre ou Catherine Earnshaw, mas com Clarissa Harlowe, ancestral das heroínas da vontade protestante. D. H. Lawrence, génio da crítica (quando estava suficientemente enlouquecido), é impiedoso com a indómita Hester: Hester Prynne era um diabo. Mesmo quando aparentava a meiguice de uma enfermeira. Pobre Hester. Um lado seu desejava escapar da sua própria diabrura. O outro queria prosseguir com a diabrura, por vingança. Esse comentário é insano, mas reconhece, devidamente, que a vontade de Hester tem um potencial assustador. Austin Warren observou que Hester era pagã; eu diria, pagã protestante, na tradição de Anne Hutchinson (1591-1643), expulsa de Boston, em 1637, por afirmar a vontade pessoal quanto à autoconfiança na salvação. Génios religiosos do sexo feminino incomodavam terrivelmente os puritanos do período colonial, e Anne Hutchinson incomodava Hawthorne, embora ele não padecesse de nostalgia pelo puritanismo. Os companheiros de caminhada mais opostos da História mundial devem ter sido Emerson e Hawthorne, que, durante anos, caminharam por Concord lado a lado, a maior parte do tempo, em silêncio. Hester é, até certo ponto, irmã de Emerson, mas talvez o incomodasse ainda mais do que provocava Hawthorne, francamente apaixonado por ela, assim como tantos leitores o são (pelo menos eu, e inúmeros amigos e alunos). Depreende-se, quando se lê a biografia de Anne Hutchinson, que ela era sexualmente agressiva, além de corajosa e eloquente. Mais importante: de nada se 2 Ainda inédito no Brasil. [N. do T.] 316 317 NATHANIEL HAWTHORNE arrependia. Em que pese a opinião de alguns especialistas, não identifico qualquer arrependimento em Hester Prynne, nem mesmo no início da história. Que Hawthorne é ambivalente com relação ao "pecado" de Hester é fato reconhecido universalmente, mesmo que ele não o admita. O que mais importa sobre Hester Prynne é a sua condição de Eva norte-americana, fator particularmente importante porque, a despeito das profecias de Emerson, não dispomos de uma representação paralela ao Adão norteamericano na literatura dos Estados Unidos. Walt Whitman pode até se comparar a Adão, mas é figura, ao mesmo tempo, grandiosa e difusa demais, para ser, devidamente, adâmica. Hester Prynne é uma resposta norte-americana à Eva criada por Milton, e proponho que ela seja a fronteira do génio de Hawthorne. Isabel Archer, de Henry James, em Retratojle uma Senhora, é realização superlativa, mas, em última instância, menos tocante do que a sublime Hester. Somente a respeito de uma nova Eva teria Anthony Trollope escrito: "posso imaginar um leitor tão apaixonado pela imagem de Hester Prynne que chegue quase a trair a verdadeira Hester, de carne e osso, que a ele se imponha". Do ponto de vista estético, o que mais se destaca em A Letra Escarlate é a arte sofisticada e complexa de Hawthorne, ao expressar a força sexual de Hester. Em Paraíso Perdido, Eva tem em Satanás um rival estético, e em Adão um parceiro à altura. O Satanás criado por Hawthorne, Chillingworth, é muito menos digno da ancestralidade de lago do que o Satanás de Milton, e o Adão de Hawthorne é o sombrio e lúgubre Dimmes-dale. A grande tristeza do livro se traduz no impulso do leitor a se perguntar: será que a ardente Hester não poderia encontrar melhor pretendente? Em Hawthorne, assim como em Shakespeare, as mulheres acabam sempre por encontrar homens que lhes estão aquém. Os críticos costumam relacionar a beleza bíblica de Hester àquela da anglojudia Miriam, em O Fauno de Mármore (1860), mas Miriam não é bem desenvolvida por Hawthorne, que a ela confere algumas características irrelevantes de Beatrice Rappacini. Quanto à saúde de Hester, não resta a menor dúvida: poderia ser a mãe de toda a humanidade. A exemplo dos grandes protagonistas shakespearianos, Hester é grande demais para ser contida na obra. Hoje em dia, Milton é condenado pela crítica feminista que o considera patriarcal com relação a Eva. É difícil imaginar como Milton poderia tê-la representado de modo mais afável e respeitador, mas vivi o suficiente para ver os templos do aprendizado entregues ao serviço social mais amadorístico. Hawthorne aprende com Milton o quanto Eva deve ser desejada; porém, não aprende muito mais do que isso. A diferença entre Eva e Hester não é Anne Hutchinson, mas Emerson, cujo único ensinamento é a virtude singular da autoconfiança. Emersonianos, assim como nietzschianos, aprendem a avançar um passo à frente, na questão da graça. Todo o drama do pecado e da redenção é encenado no plano individual, e basta à pessoa perdoar a si mesma. Robert Penn Warren, admirável crítico da moral, fazia uma leitura de A Letra Escarlate bastante diversa da minha. O tempo agostiniano é, para Warren, o engano que não pode ser perdoado. Poeta prodigioso, Warren era um juiz implacável. Seja dentro ou fora do tempo, a Eva norte-americana em nada perdoa a si mesma, pois passa a crer que não há o que ser perdoado. A crítica feminista assumiu a defesa de Hester na condição de Eva norteamericana, em parte, a fim de refutar D. H. Lawrence e Leslie Fiedler, mas ambos os lados são antecipados pela própria (ambígua) defesa de Hawthorne no que concerne à sua paixão por Hester. A maior das epifanias do livro é a revelação da beleza da protagonista, quando esta encontra Dimmesdale na floresta: Livre do estigma, Hester suspirou, profundamente, expulsando do espírito o peso da vergonha e da angústia. Ah, que alívio maravilhoso! Impulsivamente, retirou a touca que lhe prendia os cabelos; e estes, negros e volumosos, ao mesmo tempo, sombra e brilho, caíram-lhe sobre os ombros, conferindo encanto e suavidade ao seu semblante. Brincava-lhe na boca, e brilhava-lhe nos olhos, o sorriso radiante e carinhoso, que parecia jorrar do cerne de sua condição de mulher. As faces, havia muito, pálidas, coravam em tom rosado. Sexualidade, juventude e toda a fartura da sua beleza surgiram de algo que os homens chamam passado irrevogável, e uniram-se à sua virgem esperança e a uma felicidade inusitada, no círculo mágico daquele momento. E a escuridão da terra e do céu desapareceu juntamente com a tristeza, como se fosse tão-somente um eflúvio desses dois corações mortais. Subitamente, como um sorriso do céu, rompeu o sol, inundando a floresta sombria, fazendo reluzir os troncos cinzentos das árvores solenes, e cada folha verde brilhar, transformando as amarelas em ouro. Os objetos, até então, sombras, agora incorporavam o brilho. O curso do riacho podia ser traçado, seguindo-se o seu alegre lampejo mata adentro, rumo ao coração misterioso da floresta, transformado em um mistério de júbilo. É impossível superestimar o heroísmo sexual de Hester e o fato de o seu carisma ser, implicitamente, sua própria força sexual, tragicamente frustrada. Igualmente frustrado é o impulso relativo à autonomia demoníaca, à semelhança do que ocorre com a ousada Anne: Hutchinson. Hawthorne a projeta e, em seguida, a faz recuar, o que nos deixa espiritualmente frustrados, mas, em último caso, gratifica-nos esteticamente. Talvez o 318 319 melhor caminho para se chegar a um entendimento de Hester seja a sua arte, o bordado, perfeitamente análoga à arte de Hawthorne, mescla de história romanesca e romance psicológico. A arte de Hester é impedida de florescer, exceto na confecção dos trajes da filha, Pérola, mas Hawthorne nos convence de que, em Hester, assim como em alguns de seus contos, a sua arte se realiza plenamente. Ter ofertado à literatura do seu próprio país a representação mais convincente de uma mulher é ter consagrado o próprio génio, de uma vez por todas. RMAN MELVILLE - Ouvi, mais uma vez - a camada inferior. Todos os objetos visíveis, homem, são mascaras de papelão. Mas em cada evento, no ato da vida - o feito indubitável -, algo desconhecido, mas racional, apresenta o contorno dos seus traços por trás da máscara irracional. Se o homem for atacar, que ataque para destruir a máscara! Como pode o prisioneiro escapar, a menos que rompa os muros da prisão? Para mim, a baleia branca é o muro que me oprime. Às vezes, penso não haver nada do outro lado. Mas já basta a baleia. Ela me desafia e me diminui; vejo nela a força absurda, impulsionada pela perversidade inescrutável. Essa coisa inescrutável é o que mais odeio; e seja a baleia branca agente ou principal, hei de descarregar sobre ela esse ódio. Não me faleis de blasfémia, homem; eu atacaria o sol, se me insultasse. Pois, se o sol pode me insultar, posso atacá-lo, de vez que sempre há nessas coisas uma espécie de justiça, pois o ciúme governa toda a criação. Mas nem essa justiça, homem, é minha senhora. Quem está acima de mim? A verdade não tem limite. O Capitão Ahab dirige-se à tripulação em "O Tombadilho", capítulo 36 de Moby Dick, instando-os a acompanhá-lo na busca prometeica, na caça e morte à baleia branca que o mutilara. O Ahab de Melville fala em prosa shakespeariana, metafísica, dramática, transformada pelo génio do autor em um elemento permanente do idioma norte-americano. "Ataque para destruir a máscara!" é a diretiva que Ahab nos oferece. Ficamos aprisionados dentro dos muros do universo visível, natural, e Moby Dick "é o muro que [nos] oprime". Talvez não exista nada além do muro, mas Ahab não haverá de remoer tal niilismo; Moby Dick já basta: "Ela me desafia e me diminui." Ouvimos aqui a voz da espiritualidade norte-americana instintiva, afirmando-se contra uma natureza por ela repudiada. O que há de melhor e mais primordial em Ahab expressa, em um brado, o desafio norte-americano: "Eu atacaria o sol, se me insultasse!" Quando acrescenta "Quem está acima de mim?", Ahab não está rejeitando o Deus desconhecido, mas a tirania da natureza em relação ao homem. Equivocamo-nos quanto a Ahab, figura tão majestosa, ao alardeamos a sua violência, conforme o fazem muitos estudiosos moralistas. Ahab não é vilão, nem mesmo herói-viião, como Macbeth. Não apenas a nossa simpatia é cativada por Ahab: nós somos Ahab. Ele nos desafia e oprime, pois é o herói norte-americano, nosso Dom Quixote trágico, em busca da justiça final diante da derradeira inimiga, a morte. 320 HERMAN MELVILLE - Ouvi, mais uma vez - a camada inferior. Todos os objetos visíveis, homem, são mascaras de papelão. Mas em cada evento, no ato da vida - o feito indubitável -, algo desconhecido, mas racional, apresenta o contorno dos seus traços por trás da máscara irracional. Se o homem for atacar, que ataque para destruir a máscara! Como pode o prisioneiro escapar, a menos que rompa os muros da prisão? Para mim, a baleia branca é o muro que me oprime. Às vezes, penso não haver nada do outro lado. Mas já basta a baleia. Ela me desafia e me diminui; vejo nela a força absurda, impulsionada pela perversidade inescrutável. Essa coisa inescrutável é o que mais odeio; e seja a baleia branca agente ou principal, hei de descarregar sobre ela esse ódio. Não me faleis de blasfémia, homem; eu atacaria o sol, se me insultasse. Pois, se o sol pode me insultar, posso atacá-lo, de vez que sempre há nessas coisas uma espécie de justiça, pois o ciúme governa toda a criação. Mas nem essa justiça, homem, é minha senhora. Quem está acima de mim? A verdade não tem limite. O Capitão Ahab dirige-se à tripulação em "O Tombadilho", capítulo 36 de Mob Dick, instando-os a acompanhá-lo na busca prometeica, na caça e morte à baleia branc que o mutilara. O Ahab de Melville fala em prosa shakespeariana, metafísica, dramáti ca, transformada pelo génio do autor em um elemento permanente do idioma nortí americano. "Ataque para destruir a máscara!" é a diretiva que Ahab nos oferece. Ficamos apri sionados dentro dos muros do universo visível, natural, e Moby Dick "é o muro qu [nos] oprime". Talvez não exista nada além do muro, mas Ahab não haverá de remoe tal niilismo; Moby Dick já basta: "Ela me desafia e me diminui." Ouvimos aqui a vo da espiritualidade norte-americana instintiva, afirmando-se contra uma natureza pc ela repudiada. O que há de melhor e mais primordial em Ahab expressa, em ur brado, o desafio norte-americano: "Eu atacaria o sol, se me insultasse!" Quando acrescenta "Quem está acima de mim?", Ahab não está rejeitando o Dei desconhecido, mas a tirania da natureza em relação ao homem. Equivocamo-nos quanto a Ahab, figura tão majestosa, ao alardeamos a sua violênci conforme o fazem muitos estudiosos moralistas. Ahab não é vilão, nem mesmo heró vilão, como Macbeth. Não apenas a nossa simpatia é cativada por Ahab: nós som Ahab. Ele nos desafia e oprime, pois é o herói norte-americano, nosso Dom Quixo trágico, em busca da justiça final diante da derradeira inimiga, a morte. 321 HERMAN MELVILLE (1819-1891) O Capitão Ahab é o Prometeu, e não o Adão norte-americano. Espírito contumaz, a um só tempo atraído e repelido por Emerson, Melville frequentava as conferências de Emerson e aduzia incisiva marginália aos ensaios do pensador. As afinidades entre os dois pesavam mais do que as divergências, e a voz que responde a Moby Dick surge em A Conduta da Vida. Pode-se dizer que Melville lê Emerson assim como o faria Ahab, em busca do Emerson no início da carreira, o órfico, agnóstico, não o idealista. Mas Moby Dick é dedicado ao génio de Hawthorne, a quem Melville venerava, e a dedicatória declara, implicitamente: eis o meu génio, Ahab é minha Hester, minha visão do norte-americano heróico. Trata-se, certamente, da visão mais extraordinária até hoje criada da figura do norte-americano heróico, superando os descendentes mais marcantes - Thomas Sut-pen, em Absalão, Absalão!, de Faulkner, e o Juiz Holden, em Meridiano de Sangue, de McCarthy. Ahab é herói-vilão, à semelhança de Macbeth e Hamlet, e não génio da vilania, como lago, ou como Edmundo, em Rei Lear. Contudo, Ahab, mais uma vez comparado a Hamlet, é um génio; é o génio, ou demónio da nação. Os Estados Unidos não têm um épico nacional, unificado, mas um amálgama de três obras bastante distintas: Moby Dick, Folhas de Relva e As Aventuras de Huckleberry Finn. Ahab não é figura que desperte o nosso afeto; Walt e Huck o são. Mas o aterrador Ahab, cuja grandeza causa justa admiração em Ismael e no leitor, junta-se ao Satã, criado por Milton, e ao Falstaff, de Shakespeare, indispondo estudiosos, da velha e da nova geração. W. H. Auden, na qualidade de crítico cristão, reprovava Ahab: "Passa a vida inteira, na verdade, carregando, de modo desafiador, uma cruz que não é obrigado a carregar." Depreende-se que Ahab devesse fazer o papel de Jó, mas, como diz Stubbs, "Ahab é Ahab". A observação de Auden é bastante comedida, se a compararmos ao desdém expresso por um crítico papista, com relação ao Capitão norte-americano: "o mundo em que ele atua é conturbado, assertivo, cheio de repúdio e destruição." O mesmo não seria verdade com respeito a Hamlet, Lear, Otelo, Macbeth? Ahab, a exemplo de Melville, não é cristão e, tanto quanto William Blake, acredita que o deus deste mundo, que atende pelos nomes Jesus e Javé, é um demiurgo atrapalhado, que designou Moby Dick para reinar em nosso meio, assim como Javé envia o Leviatã e Beemonte para acossarem o pobre Jó. Walt Whitman diz que o nascer do sol o mataria, se ele próprio não pudesse emitir sempre raios de luz, mas Ahab é ainda mais 322 norte-americano, e jura revidar, caso o sol o insulte. Não lhe caberia, portanto, tentai destruir a máscara que é Moby Dick? Ahab é o norte-americano infiel com dimensões de divindade; com efeito, ele é - ao lado de Emerson, Joseph SmitJi e William James -um dos fundadores da Religião Norte-americana, mescla (não assumida) de gnosticis-mo, entusiasmo e orfismo. O que existe de melhor e mais antigo em nós, norte-ameri-canos, não faz parte da Criação, mas remonta ao Abismo Primordial, aos nossos pai; primevos. O coro que denuncia Ahab, quando não lhe descarta o gnosticismo, deplora-o como velha heresia, ou como heresia romântica. Em outro livro (The Americar, Religion, 1992), proponho que, a partir de 1800, os Estados Unidos passam a se considerar um país protestante, mas que, de fato, apenas seguem certas variantes de gnosticismo. Em seu longo e esquecido poema intitulado Ciarei(1876), Melville profetiza um fenómeno crucial nessa Religião Norteamericana, atualmente manifestado nos pente-costais, novos-batistas e sábios negros e hispânicos: Conforme era hábito ser afirmado, Em velho escrito gnóstico manchado, Javé era tido como autor do mal, Na verdade, o seu deus, E somente a Cristo se venerava. <* Aqui há menos franqueza: ninguém diz, Javé é mal, ou nega que pune ateus; Ao contrário; é liberto, por um triz, Jesus é o benigno Deus. Ahab, um século e meio atrás, pertencia a uma fase mais turbulenta da Religião Norte-americana, e não esperava a indulgência de Jesus, pois Ahab é um Rei Lear norte-americano, ao mesmo tempo, democrático e tirânico, e tão pré-cristão quanto pós-cristão. Vale sempre lembrar que o Pequod, apesar de ser de propriedade Quaker, tem tripulação, predominantemente, pagã. Starbuck talvez seja o único cristão a bordo; Fedallah e seus companheiros são persas zoroastristas. Ismael é neoplatonista, Stubbs e Flask são ateus, e, entre os demais, constata-se ao menos uma dúzia de crenças animistas. Ahab é um emersoniano que rompeu todos os limites, em uma caçada ao adversário absoluto, o rei ungido de todos os filhos do orgulho. "Admiraivos, então, da caçada impetuosa?", Ismael nos pergunta, quando ele próprio já foi arrastado para as águas solitárias a que os antigos gnósticos denominavam kenoma (esvaziamento). Só um leitor totalmente surdo é incapaz de reagir diante do apelo de Ahab: 323 HERMAN MELVILLE Ela me desafia e me diminui; vejo nela força absurda, impulsionada pela perversidade inescrutável. Essa coisa inescrutável é o que mais odeio; e seja a baleia branca agente ou principal, hei de descarregar sobre ela esse ódio. Essa reação não configura, absolutamente, sentimento cristão; trata-se do credo de um guerreiro em uma causa metafísica. Porquanto o meu assunto é a problemática do génio, e Ahab - a despeito dos críticos - é o demónio de Melville, disponhome a definir o génio de Ahab, que se caracteriza por uma natureza demoníaca, assim como o de Emerson ou o de Joseph Smith. Dotado de um transcendentalismo aguerrido, Ahab é um misto de Emerson e Thomas Carlyle, em busca do apocalipse autêntico, e não pelo caminho da revolução, que sempre provoca novas reações. Os estudiosos censuram Ahab por condenar a tripulação a sucumbir com ele, mas quem, exceto o cristão Starbuck, vislumbra em Ahab um Capitão que há de retornar ao porto de partida? Irrita-me ler os adeptos de abordagens políticas e históricas da literatura, quando chamam Ahab de Napoleão. Melville preferiria identificar Ahab com Andrew Jackson ou Cervantes, pois o Capitão exerce a liderança através de uma força carismática e uma eloquência sobrenatural. Para Melville, Ahab é o génio da América democrática, líder de um grupo de marujos extremamente heróicos, e, em nome de Ahab, Melville invoca o deus norte-americano autêntico, o estranho e estrangeiro Deus dos gnósticos: Tu, que tiraste Andrew Jackson da lama, que a ele concedeste um cavalo de batalha, que o apoiaste a uma posição mais elevada do que o trono! Podemos dizer o que quisermos sobre o Presidente dos Estados Unidos - para tanto temos liberdade -, mas não podemos chamá-lo tirano, pois mesmo Andrew Jackson e Abraão Lincoln foram transitórios, e dependiam da vontade dos eleitores. Portanto, Ahab, o semideus norte-americano, o Andrew Jackson dos baleeiros, o Presidente do Pequod, comanda a tripulação com o consentimento da mesma. Os críticos moralistas cristãos são irrelevantes como a ralé afrancesada dos Estudos Culturais; Ahab constitui o ponto mais elevado de Melville, com relação a Shakespeare e à dignidade estética que ainda deve ser qualificada como genial. Ismael/Melville, na célebre meditação contida no capítulo 72, "A Brancura da Baleia", adota uma perspectiva a respeito de Moby Dick que não difere muito da de Ahab, mas que apresenta orientação menos pessoal: Assim, o ondular calado de um mar espumoso, o farfalhar triste das montanhas de grinaldas geladas, a passagem desolada da neve pelos prados, tudo isso, para Ismael, é como o sacudir do manto de búfalo para o potro assustado! F bora nem eu nem o potro conheçamos a origem das coisas anónimas que expligesto místico, para mim, assim como para o potro, em algum lugar tais coisas ¦ m Ainda que, em muitos aspectos, o mundo visível seja, aparentemente, formado de amor, as esferas invisíveis foram formadas pelo medo. Mas ainda não resolvemos o problema da encarnação branca, tampouco aprendemos r que a mesma apela à alma com tamanha força; e o que é mais estranho, e muito ais auspicioso - por que, como vimos, ela é, simultaneamente, o símbolo mais significativo das coisas espirituais, não, o próprio véu da Divindade Cristã, e o agente catalisador daquilo que há de mais aterrorizante para a humanidade. Será que, na sua indefinição, ela prenuncia as sombras e os imensos e impiedosos vazios do universo, portanto, apunhalando-nos pelas costas, com a ideia de aniquilamento, quando contemplamos a profundeza branca da Via Láctea? Ou será que, como essência, o branco não é cor, mas a ausência visível da cor e, ao mesmo tempo, a concretização de todas as cores; será por isso que existe uma brancura muda, repleta de significado, em uma paisagem coberta de neve - um ateísmo incolor, multicor, do qual nos esquivamos? E quando consideramos a outra teoria dos cientistas naturais, de que todas as cores da Terra, tudo que é belo e engalanado - os cálidos tons do céu ao pôr-do-sol e dos bosques, sim, o veludo dourado das borboletas, e as faces de borboleta das meninas -, constatamos que tudo isso não passa de um sutil engano, não pertence à substância, sendo apenas algo exterior; por conseguinte, toda a Natureza endeusada pinta-se como a meretriz, cuja dissimulação esconde o sepulcro interior; e quando, prosseguindo, percebemos que o cosmético místico que produz os tons da meretriz, o grande princípio da luz, será sempre branco ou incolor e que, se operasse diretamente sobre a matéria, tocaria todos os objetos, até as tulipas e as rosas, com a sua brancura, quando levamos tudo isso em conta, o universo paralisado surge à nossa frente como um leproso; então, como viajantes da Lapônia que se recusam a usar óculos escuros, o infiel miserável fica cego diante da imensa mortalha branca que envolve tudo o que está à sua volta. De todas essas coisas a Baleia Albina era o símbolo. Admirai-vos, então, da caçada impetuosa? O trecho acima é um dos alicerces da Literatura Norte-americana, bem como da psique nacional, constituindo, a meu ver, uma crítica às epifanias emersonianas ensejadas pelo Olho Transparente e pela "ruína ou branco", conforme descritos em sua obra Natureza. Os brancos visionários de Emily Dickinson e Wallace Stevens também configuram expressões cruciais do traço norte-americano. Nesse particular, Melville, mais 324 325 uma vez, diverge de Emerson, mas é também perceptível o sentido perturbador com que ele se acerca do visionário de Concord. Se é que existe uma afirmação central ao redemoinho de Moby Dick, tal afirmação seria: "Ainda que, em muitos aspectos, o mundo visível pareça ser formado de amor, as esferas invisíveis foram formadas pelo medo." Ismael, seja ele panteísta na linha de Spinoza, seja neoplatonista, adere ao gnos-ticismo de Ahab, no que concerne a essas esferas invisíveis. Só tomamos pleno conhecimento da espiritualidade de Ahab no capítulo 119, "As Velas", assim como só compreendemos o seu lado humano no capítulo 132, "A Sinfonia", que antecede os três dias da perseguição final e o salvamento de Ismael, no "Epílogo". Por mais extensa que seja, a obra está contida na dialética desses três capítulos: 42, 119 e 132.'*0 primeiro é o cerne metafísico do épico; o segundo expressa a religião de Ahab; e o terceiro apresenta o problema da identidade de Ahab, e as respectivas relações com Ismael e Fedallah. Os três capítulos são magníficos, mas "As Velas" é o meu favorito, porque define o génio de Ahab, bem como o de Melville. Durante uma tempestade, a tripulação do Pequod avista fogo-de-santelmo, chamas que surgem no topo dos mastros dos navios, produzidas por descargas elétricas. Melville arrisca um grande momento melodramático, semelhante à cena em que lago faz Otelo ajoelhar-se a seu lado, a fim de jurarem mútua fidelidade diabólica. Avistando os fogos-de-santelmo, Fedallah, o persa zoroastrista que adora o fogo, ajoelha-se aos pés de Ahab, a cabeça inclinada e voltada para o lado oposto de onde se encontrava o Capitão. Ahab, com a mão esquerda, agarra um dos cabos do mastro principal, apoia o pé no persa e, olhando para cima e elevando o braço direito, entoa este magnífico poema em prosa: - O espírito luminoso do fogo luminoso, que outrora nestes mares eu, como persa, adorei, e do ato sacramental queimado por ti até hoje trago a cicatriz; conheço-te agora, espírito luminoso, e agora sei que só o desafio é a tua devida adoração. Não recompensas o amor ou a reverência; e, por ódio, és capaz de matar; e todos são mortos. Nenhum tolo destemido te confronta. Conheço a tua força calada, nãolocalizada; até o último suspiro da minha vida turbulenta vais combater pelo domínio total, incondicional, do meu ser. Em meio ao impessoal personificado, eis aqui uma personalidade; de onde quer que eu venha, para onde quer que eu vá, enquanto viver, essa personalidade majestática há de viver em mim, e conhecer os seus direitos reais. Mas guerra é dor, e ódio é desgosto. Vem na tua forma mais reles de amor, e diante de ti me ajoelharei, e beijar-te-ei; na tua forma mais elevada, vem como força celestial; e embora ponhas em movimento as marinhas do mundo, algo aqui dentro continua indiHERMAN MELVILLE ferente. Ó espírito luminoso, fizeste-me com teu fogo e, como verdadeiro filho do fogo, sopro fogo sobre ti. {Subitamente, surgem vários relâmpagos, as nove chamas triplicam de altura; Ahab, seguido da tripulação, fecha os olhos, tapando-os com a mão direita] - Sou senhor da tua força calada, não-localizada; eu já não disse? Minha posição não me foi usurpada; tampouco abro mão desses elos. Tens o poder de cegar, mas eu posso tatear. Tens o poder de queimar, mas eu posso ser cinzas. Aceita a homenagem destes olhos infelizes e dessas mãos-persas. Não posso resistir. O relâmpago explode em meu crânio; meus olhos doem muito; meu cérebro sofrido parece decepado, rolando sobre o solo. Oh, oh! Ainda de olhos vendados, assim caminho em tua direção. Embora sejas luz, vens de dentro das trevas; mas eu sou trevas que vêm da luz, que vêm de ti! Parem os relâmpagos; abram-se os olhos; ver, ou não? Ali ardem as chamas! o magnânimo! Agora exulto da minha genealogia. Mas tu és meu pai impetuoso; minha mãe tão meiga, já não sei. 0 crueldade! O que fizeste com ela? Eis o meu enigma, mas o teu é maior. Não sabes como foste gerado, logo, chamas a ti mesmo nãogerado; decerto, desconheces teu início, daí chamas a ti mesmo sem-início. Sei sobre mim o que não sabes sobre ti, ó onipotente! Existe algo fixo além de ti, espírito luminoso, e para esse algo tua eternidade é apenas tempo, e tua criatividade é mecânica. Através de ti, do teu ser flamejante, meus olhos chamuscados vislumbram esse algo. O fogo enjeitado, eremita à margem do tempo, também tens o teu enigma inexprimível, teu pesar exclusivo. Aqui, mais uma vez, com uma agonia atrevida, leio meu pai. Salta! Salta mais alto, e lambe o céu! Eu salto contigo; queimo contigo; de bom grado, contigo me fundiria; desafiando-te, adoro-te! Memorizei esse trecho, involuntariamente, aos 12 anos de idade e ainda o declamo com frequência, embora, hoje em dia, o que nele mais me agrada é a rubrica em itálico. Ahab, uma personalidade, confronta os fogos e, se os adora, também os desafia. Ainda que Shakespeare paire nessa retórica (Hamlet não fica muito distante), o génio de Melville aqui triunfa, na intensidade rapsódica de Ahab, que inova a forma romanesca - com efeito, Moby Dick, como convém à sua dimensão shakespeariana, não pertence, exclusivamente, a um determinado género. À moda de Polónio, podemos atribuir à obra de Melville a classificação de épico-romanesco-dramático, tão adequada à era de merson quanto Folhas de Relva o seria, cinco anos mais tarde. A invocação feita por ab aos fogos-de-santelmo é marcada por uma ambivalência primária no que respeita ao mundo demoníaco. Outrora, o Capitão fora adepto do zoroastrismo, mas, conheço-te agora, e o conhecimento o liberta. Ahab confronta uma versão do génio, a força gerado326 327 ra do fogo, a partir da personalidade, ou génio demoníaco, e zomba do fogo por desconhecer a mãe primeva, o abismo dos gnósticos, a origem, antes da Criação e da Queda. Ismael é o único sobrevivente do desastre do Pequod, salvo pelo caixão vazio do amante, Queequeg. Mas o que é feito de Ismael, entre os capítulos 119, "As Velas", e o 132, "A Sinfonia"? Ele desaparece do livro, e volta a se ausentar durante os três dias da caçada final a Moby Dick, descritos nos três últimos capítulos do livro. O trecho que compreende os capítulos 120 ao 131 não tem narrador, a função sendo desempenhada pelo próprio Melville. No belo capítulo 132, "A Sinfonia", o Capitão Ahab é assimilado por Rei Lear, e duvida da própria identidade. Adams Sitney, em uma leitura notável de "A Sinfonia", observa a transferência do narcisismo inicial de Ismael para o velho Capitão, que, olhendo por cima da amurada, contempla os próprios olhos fundindo-se aos de Fedallah, no espelho da água do mar. Mas Fedallah não é o génio de Ahab, tampouco o Mefistófeles de uma barganha faustiana. Ahab, em seu momento heróico final, entrega-se ao destino de morrer arrastado por Moby Dick, porque troca de lugar com Fedallah (já morto), na função de arpoador: que eu seja, então, arrastado e despedaçado, sempre te perseguindo, amarrado a ti, maldita baleia! Assim, deponho o arpão! Ahab sofre um sparagmos órfico, despedaçado pelo inimigo triunfante. O melhor tributo advém de William Faulkner: "uma espécie de Calvário do coração, imutável na sonoridade da vertiginosa destruição (...). Eis a morte digna de um homem!". CHARLOTTE BRONTÊ Dobras de tecido escarlate obstruíam minha visão à direita; à esquerda, estavam as límpidas lâminas de vidro, que me protegiam, mas não me separavam do melancólico dia de novembro. De quando em vez, enquanto virava as páginas do livro, eu estudava o aspecto daquela tarde de inverno. A distância, apresentava uma pálida névoa e nuvens; perto, um cenário de grama molhada e arbustos açoitados pela tempestade, uma chuva incessante, impelida, violentamente, por lamentosa ventania. O trecho acima ocorre logo no início de Jane Eyre, romance saudado com grande entusiasmo, por Virgínia Woolf, em um ensaio sobre as irmãs Bronté: Devoramos o romance, sem ter tempo para pensar, sem tirar os olhos da página. É tamanha a nossa absorção que, se alguém se mexer na sala, o movimento parece ter ocorrido em Yorkshire. A autora leva-nos pela mão, faz com que vejamos aquilo que ela vê, jamais nos abandona, nem por um instante, tampouco permite que dela nos esqueçamos. Ao final, estamos encharcados da genialidade, da veemência, da indignação de Charlotte Bronté. Woolf fala da veemência e da indignação de Charlotte Bronté, mas tais termos são por demais comedidos. Narrador algum é tão agressivo com o leitor quanto Jane Eyre. Charlotte Bronté é mais Byron do que o próprio Byron e, de bom grado, golpeia os leitores. É dotada de uma força de vontade da qual Jane Eyre é a vivaz representante. O instinto sexual, que associamos a D. H. Lawrence e seus protagonistas, está mais próximo ao centro do cosmo de Charlotte Bronté do que no caso do mundo ficcional de Lawrence. Algo incipiente em Lawrence, talvez a sua problemática psicossexualidade, impede a liberação retórica que, de uma maneira sutil, porém palpável, predomina em Jane Eyre. 328 329 EMILY JANE BRONTÊ Não quero hoje correr regiões sombrias, Cuja imensidão se faz entediante, E onde as tantas legiões de visões frias, Trazem o mundo irreal, atordoante. O Morro dos Ventos Uivantes é uma grandiosidade solitária, surgida de uma experiência de vida que mé* deixa perplexo. Emily Bronté parece mais contemporânea da poeta canadense Anne Carson do que das irmãs, Charlotte e Anne. Constata-se uma força tenaz, em O Morro dos Ventos Uivantes e nos melhores poemas visionários de Emily Bronté, por exemplo, em "Tão reprimida, mas sempre insistindo", cuja segunda estrofe aparece citada acima. O génio, com frequência adaptável, raramente é tão intransigente como em Emily Bronté. A moralidade, de qualquer espécie, pouco tem a ver com O Morro dos Ventos Uivantes, romance ferino que ainda hoje choca os leitores. Supõe-se que a própria Emily Bronté não afirmasse, como o faz Catherine Earnshaw - "Eu sou Heathcliff!" -, mas a autora não tinha por que estabelecer uma identidade interior de modo tão concreto. Em "Últimos Versos", Emily saúda o Deus interior, que, obviamente, não corresponde à divindade da tradição normativa judaica-cristã-islâmica: Os milhares de credos são em vão, Embora toquem o coração do homem; Valem tanto quanto ervas pelo chão, Ou as espumas que no oceano somem. Apoiando Emerson, ela teria endossado o manifesto intitulado "Autoconfiança", que aqui, propositadamente, repito: Assim como as preces dos homens são uma doença da vontade, suas crenças são uma doença do intelecto. A gnose pessoal de Emily Bronté é mais complexa do que a de Emerson, mas O Morro dos Ventos Uivantes nos permite absorvê-la; na verdade, é difícil para nós deixarmos de nos converter à religião pessoal da autora, enquanto nos entregamos a O Morro dos Ventos Uivantes. CHARLOTTE BRONTÊ (1816-1855) EMILY JANE BRONTÊ (1818-1848) O enigma da veia de génio em uma mesma família desafia todos os tipos de redução, assim como o faz o génio individual. Em 1812, o Reverendo Patrick Bronté (que sobreviveria aos seis filhos) casou-se com Maria Bramwell, falecida em 1821. As filhas mais velhas, Maria e Elizabeth, morreram de tuberculose, em 1825. Bramwell, o único filho, viveu até 1848, sucumbindo à enfermidade que se instalara no seio da família. O talento precoce de Bramwell não vingou, mas Anne, a caçula, antes de morrer, em 1849, escreveu Ames Grey (1847) e O Inquilino de Wildfell Hall (1848), ambos romances ainda bastante legíveis. Anne tinha um talento extraordinário, mas Charlotte e Emily foram e sempre serão casos à parte, artistas visionárias que deram início a um estilo seguido por Thomas Hardy e D. H. Lawrence. Charlotte, antes de morrer de pré-eclâmpsia (1855), escreveu quatro romances que ficarão para sempre: Jane Eyre (1847), Shirley (1849), Villete (1853) e O Professor (publicado em 1857, mas, na verdade, o primeiro, em ordem de composição, terminado em 1846). Emily, que também morreu em consequência da tuberculose (1848, aos 30 anos), supera Charlotte (e quase todos os demais escritores) em O Morro dos Ventos Uivantes (1848), bem como em um punhado de poemas notáveis, que constam entre os melhores existentes em língua inglesa. Jamais considerei Jane Eyre um livro agradável, pois, do princípio ao fim do romance, tenho a nítida sensação de que Charlotte Bronté é óbvia demais em seus posicionamentos, mas sou forçado a aderir ao consenso geral, e não duvido da genialidade da obra. Mas, quanto a O Morro dos Ventos Uivantes, conheço-o quase de cor, e o mesmo posso dizer sobre vários dos poemas. Observa-se em Emily Bronté uma sublimidade refulgente, tão genial quanto a que existe nos poemas de William Blake, ou nos contos de D. H. Lawrence. Assim como o fazem tantos outros leitores, proponho-me a justapor Jane Eyre e O Morro dos Ventos Uivantes, contrastando o Rochester, criado por Charlotte, ao Heathcliff, de Emily, e ainda tecerei considerações (por demais breves) sobre a sua poesia. As irmãs Bronté, conforme muitas outras jovens da época, eram apaixonadas por eorge Gordon, Lorde Byron, morto, heroicamente, à frente de gregos insurretos, em 824, aos 36 anos de idade. Rochester e Heathcliff são, flagrantemente, heróis byronianos, ou heróis-vilões e, como tal, dificilmente estariam à vontade em romances. As fic330 331 CHARLOTTE BRONTÊ E EMILY JANE BRONTÊ ções das Brontês, assim como as de S/VWalter Scott (ou as de Nathaniel Hawthorne), são narrativas romanescas, mas, na qualidade de romances byronianos, diferem, necessariamente, do trabalho de Scott. Northrop Frye é a grande autoridade em narrativa romanesca em prosa, conforme demonstrado neste trecho do enciclopédico estudo Anatomia da Crítica (1957):3 Em romances considerados típicos, por exemplo, as obras de Jane Austen, enredo e diálogo têm elos diretos com as convenções da comédia de costumes. Já as convenções de O Morro dos Ventos Uivantes têm elos com a lenda e a bala.da. Demonstram maior afinidade com a tragédia, e as emoções trágicas - paixão e fúria -, que desíruiriam o equilíbrio do tom da narrativa de Austen, cabem, perfeitamente, na ficção de Emily. O mesmo pode ser dito quanto ao sobrenatural, ou à insinuação do sobrenatural, elemento difícil de ser introduzido em um romance. A estrutura do enredo é diferente: em vez de manobrar em torno de uma situação central, como o faz Jane Austen, Emily Brontê esboça a sua história com traços lineares, e parece necessitar de um narrador, figura que estaria absurdamente deslocada em Jane Austen. Convenções tão distintas justificam a classificação de O Morro dos Ventos Uivantes como forma de ficção em prosa diferente do romance, e a essa forma distinta chamaremos história romanesca. Mais uma vez, teremos de empregar a mesma expressão em vários contextos diferentes, mas, de modo geral, a forma história romanesca é mais adequada do que lenda, que parece definir melhor uma forma menos extensa. A diferença essencial entre romance e história romanesca está no conceito de caracterização. O autor da história romanesca não procura criar "pessoas verdadeiras", mas figuras estilizadas que se desenvolvem em arquétipos psicológicos. É na história romanesca que encontramos a libido, a anima e a sombra junguiana refletidas, respectivamente, no herói, na heroína e no vilão. Por isso a história romanesca tantas vezes irradia um brilho de intensidade subjetiva, carente no romance, e por isso ocorre a constante insinuação de alegoria. Certos elementos de caracterização florescem na história romanesca, o que a torna, naturalmente, mais revolucionária do que o romance. O romancista lida com a personalidade, com personagens que adotam personae, ou máscaras sociais. O romancista conta com o arcabouço de uma sociedade estável, e muitos dos nossos melhores praticantes dessa forma levam o convencionalismo ao extremo. O autor de história romanesca lida com a 3 Frye estabelece aqui as diferenças típicas entre novel (em português, romance) e romance (em português, história romanesca). [N. do T.] 'ndividualidade, com personagens em um vácuo idealizado pela fantasia e, por mais conservador que seja, tudo leva a crer que algo niilista e indomável irrompa de suas páginas. Se existe em O Morro dos Ventos Uivantes algum componente romanesco, estará centrado em Catherine Earnshaw, presa entre a realidade social de Edgar Linton e o byro-nismo demoníaco de HeathclifF. A partir da morte de Catherine Earnshaw e dos Linton, o livro é puro romance. O Morro dos Ventos Uivantes encerra, quase exclusivamente, uma história de casamento e morte precoces. Catherine Earnshaw morre aos 18 anos; Linton, filho de HeathclifF, aos 17; Hindley, aos 27; Edgar, aos 39; a pobre Isabelk, aos 31; e HeathclifF, com cerca de 38 anos (se a minha aritmética estiver correta). Edgar Linton tem 21 anos e Catherine Earnshaw, 17, quando se casam. Hindley casa-se com Francês aos 20 anos, e, quando se dá o casamento infernal de HeathclifF e Isabella, ele tem 19 anos e ela, 18. Os sobreviventes, Hareton Earnshaw e Catherine Linton, respectivamente, com 24 e 18 anos, formam o único casal feliz. Todos se casam cedo porque acham que não vão viver muito tempo. A menos que Hareton e a segunda Catherine possam desafiar a linhagem, nenhum protagonista do cosmo de Emily Brontê atinge os 40 anos, infelizmente, uma profecia do fato de que nem a robusta Charlotte chegaria à idade de 39 anos. Esses cálculos são um tanto entediantes, mas têm o propósito de contabilizar o custo da visão impiedosa de Emily. Embora a ralé formada de feministas tolas, pseudomarxis-tas e historicistas desqualificados fervilhem em torno de O Morro dos Ventos Uivantes, a fim de nos propiciar o que poderia ser chamado Emily Brontê francesa, mal conseguem lidar com uma obra que anula todos os contextos - moral, social e político. Dante Gabriel Rossetti, com a perspicácia de sempre, adiantou-se à crítica atual: É um livro endemoninhado, um monstro incrível, que soma as tendências femininas mais marcantes, de Mrs. Browning a Mrs. Brownrigg. A ação se passa no Inferno, e os nomes ingleses atribuídos a lugares e pessoas são mera aparência. O tranco D. G. Rossetti associa o moralismo conservador de Elizabeth Barrett Browning ao sadismo criminoso de Mrs. Brownrigg, executada no século XVIII por chicotear vários meninos até a morte. O mau gosto de Rossetti tem fundamento: Morro dos Ventos Uivantes, assim como Jane Eyre, deixa extravasar um explosivo sadismo feminino. O amigo de Rossetti, Algernon Charles Swinburne, sadomasoquista, surpreendentemente, defendeu o romance de Emily Brontê dessa imputação: 332 333 Uma acusação mais grave, e talvez mais viável, é apresentada contra a autora de O Morro dos Ventos Uivantes por indivíduos que detectam no livro o tom selvagem, ou o sintoma doentio, de uma ferocidade mórbida. Duas ou três vezes, os detalhes da brutalidade de Heathcliffno tratamento das suas vítimas provocam no leitor a sensação de estar diante de um relatório policial, ou de um romance escrito por algum naturalista francês da ordem mais recente e brutal. A atmosfera predominante no livro, porém, é tão elevada e saudável que o efeito dessas cenas tão vívidas e assustadoras, que prejudicaram Charlotte Bronte, é quase prontamente neutralizado - não se pode dizer atenuado, mas adoçado, dispersado e transfigurado -através de uma impressão geral de pureza e de uma franqueza apaixonada, que impedem, de uma vez por todas, qualquer possibilidade de associações ou comparações negativas. A obra como um todo é incomparável, seja quanto ao efeito de sua atmosfera e paisagem, seja quanto à natureza singular da paixão nela contida. O amor que devora a própria vida, que devasta o presente e desola o futuro, com um fogo violento e inextinguível, é pura chama, ou luz do sol. E essa castidade apaixonada e ardente é total e inequivocamente espontânea e inconsciente. É possível concordar com Swinburne, se o ponto central do seu comentário for: "O amor que devora a própria vida, que devasta o presente e desola o futuro." Eis o amor incomensurável, que alcança a dimensão horripilante da identificação total, o amor de Catherine Earnshaw e Heathcliff. "Horripilante" é percepção minha, mas não corresponde, em absoluto, à de Swinburne, ou de Emily Bronte. Quando Catherine grita "Eu sou Heathcliff!", somos transportados ao domínio de Emily Bronte, onde nenhum de nós pode sobreviver por muito tempo. Quem é Heathcliff? O que é ele? A despeito do estigma byroniano, Heathcliff não é um retrato grotesco de Byron, nem uma repetição dos heróis byronianos: Manfredo, Caim, Lara. Vale observar, de início, que a originalidade de Heathcliff, que torna a sua análise tão difícil, em si, é a assinatura, a asserção do génio anárquico de Emily Bronte. Quando criança, ela buscou espaço literário para a sua criatividade em um mundo fictício - Gondal -, redescoberto e reconstruído, embora em apenas um poema lírico, e ninguém se arriscaria a prever a grandeza da escritora com base nesse único trabalho. Além de Byron - e da tríade inevitável, a Bíblia, Shakespeare e Milton -, quem seriam os autênticos precursores de Emily? A única resposta plausível aponta para alguns romances góticos de importância menor: The Bridegroom ofBarma (anónimo), O Anão Negro, de Scott, e, talvez, mais um ou dois títulos. Porém, no caso, nenhuma dessas obras chega a fazer diferença, e a Bíblia e Milton são presenças terciárias. Byron, bastante transformado, paira proximamente, mas um esquema sutil e defensivo de alusão shakespeariaCHARLOTTE BRONTE E EMILY JANE BRONTE na surge na caracterização de Heathcliff: Edmundo, de Rei Lear, Hamlet, Macbeth e o óprio Lear aparecem imbricados no ser limítrofe criado por Emily Brome, tradicionalmente reconhecido como o amante demoníaco de Catfierine Earnshaw. Shakespeare é utilizado para elevar a dignidade trágica de Heathcliff, mas não tem permissão de usurpar a origem e a atmosfera um tanto obscuras do personagem. famais fica esclarecido (propositadamente) em O Morro dos Ventos Uivantes se confrontamos uma ou duas ordens da natureza. Temos Penistone Craggs, que brilha à noite e exibe aspectos sobrenaturais. Mais importante, temos a árdua busca de Heathcliff, após a morte de Catherine Earnshaw Linton: primeiro, a fim de encontrar o que eu chamaria (em termos gnósticos) a forma demoníaca da jovem, e, em seguida, para se unir a essa forma. A grande originalidade do livro é conter dois tipos de realidade: a de Heathcliff e a dos demais personagens, tendo apenas Catherine Earnshaw, intensa e frágil, como mediadora. Assim como em Heathcliff, em Catherine existe algo que remonta a um período anterior à Criação e à Queda, e algo que resiste a essa dimensão, e que é apenas natural, observável em qualquer um de nós. É quase inquestionável que Emily Bronte representa a sua persona lírica na alteridade de Catherine Earnshaw, à medida que exclama "Eu sou Heathcliff!". Mas é um mistério, esteticamente impressionante, a purgação de 18 anos imposta a Heathcliff, uma busca póstuma a fim de se unir a Catherine. Ele é uma criança, almejando uma realização transcendental que carece de qualquer explicação doutrinária. Embora fosse filha de pastor, Emily Bronte não tem sequer um pingo de cristianismo e, em O Morro dos Ventos Uivantes, a lacuna entre as visões fantasmagóricas e a realidade natural jamais é preenchida. Análises críticas de Heathcliff não funcionam, porque sempre falta um elemento, o qual a autora se recusa a identificar. No entanto, não se trata de obscurantismo, por parte de Emily Bronte; ela detém gnose, embora não deva ser incluída em qualquer seita gnóstica específica. Heathcliff nega toda e qualquer tradição, inclusive as afiliações byroniana e shakes-peariana. Até certo ponto, talvez jamais possível de ser determinado, Heathcliff encerra a crítica de Emily Bronte à tradição do Alto Romantismo, no que respeita à representação e exaltação do desejo masculino. Mas ninguém conseguiu até o presente desenvolver essa percepção; há quase tantos Heathcliffs quanto Hamlets. Rochester, por mais perturbador que seja, é figura convencional, contrastado com Heathcliff. Jane Eyre é a glória estética da história romanesca por ela própria narrada, enquanto o pobre Rochester é figura secundária. Porquanto Jane Eyre aproxima-se bastante de um auto-retrato de Charlotte Bronte, podemos pensar a obra como Um Ketrato da Artista Quando Jovem. Jane é pintora visionária, que retrata seus sonhos em 334 335 sua obra, sendo gratificante pensar o livro, Jane Eyre, como uma grande pintura, animada e visionária. Dentre os romancistas, Charlotte admirava, principalmente, William Makepeace Thackeray, mas o autor de A Feira das Vaidades teve um efeito apenas superficial na escrita de Charlotte Brontê. Os precursores, incrivelmente incompatíveis entre si, são John Bunyan e Lorde Byron, e somente o génio combativo de Charlotte Bronté poderia combinar A Viagem do Peregrino e Manfredo com uma obra coesa como Jane Eyre. Sandra Gilbert e Susan Gubar, decanas da crítica feminista, invocam a poeta Adrienne Rich para encontrar em Jane indícios da Grande Mãe, a um só tempo Diana, a caçadora, e Maria, a virgem. Embora Gilbert e Gubar não o afirmem, cabe indagar se não teria sido a Granda Mãe que cega e aleija Rochester. Rochester, com precisão, descreve Jane como figura indómita e, decerto, ela exulta na liberdade perpétua da sua vontade. O objeto dessa vontade é Rochester, e Jane o domesticará, tornando-o um marido dependente e, no processo, perdoandolhe o passado: Mr. Rochester tem uma natureza sensível e um bom coração; não é egoísta nem indulgente consigo mesmo; é mal-educado, mal-orientado, muito se engana, e seus enganos decorrem da impulsividade e da inexperiência; vive como muitos outros homens, mas, sendo radicalmente melhor do que a maioria deles, não gosta de levar uma vida desregrada, e jamais se sente feliz vivendo assim. Aprende as duras lições da experiência e, com bom senso, delas extrai sabedoria. Os anos o aperfeiçoam; a efervescência da juventude já se foi, mas o que nele existe de bom permanece. Sua natureza é como a do bom vinho, o tempo não o torna azedo, apenas o amadurece. Ao menos, assim tentei retratar o personagem. Embora as palavras acima expressem o pensamento de Charlotte em uma carta, caberiam, perfeitamente, a Jane, no livro. A energia byroniana de Jane Eyre é tão arrebatadora que reduz Rochester à figura do marido virtuoso. Não fica o leitor, igualmente, reduzido, diante do porrete fálico que é o estilo de Charlotte? Como devem os leitores entender a auto-satisfação de Jane, quando ela se encontra no melhor dos mundos possíveis? Faz dez anos, estou casada. Sei o que é viver inteiramente por alguém e com alguém que mais amo na vida. Considero-me sumamente abençoada - abençoada além do que as palavras possam expressar -, pois sou a vida do meu marido, com a mesma intensidade com que ele é a minha. Mulher alguma já foi tão íntima do companheiro como eu o sou; cada vez mais, somos a mesma carne, o mesmo sangue. Jamais me canso da companhia do meu Edward; ele jamais se cansa da minha, assim como não nos entediamos com a pulsação dos nossos corações; por conseguinte, estamos sempre juntos. Estar juntos, para nós, é estar tão livres quanto na solidão, tão alegres quanto com um grupo de amigos. Acho que conversamos o dia inteiro; falar com o outro é um meio animado e audível de pensar. Nele deposito toda a minha confiança, e toda a sua confiança é dedicada a mim; somos, perfeitamente, compatíveis - o resultado é a harmonia total. Mr. Rochester continuou cego durante os dois primeiros anos da nossa união; talvez tenha sido essa circunstância que tanto nos aproximou - que nos atou! Pois eu era a sua visão, assim como sou agora o seu braço direito. Literalmente, eu era (e assim ele muitas vezes me chamava) a menina dos seus olhos. Por meu intermédio, ele via a natureza, e via os livros, e eu jamais me aborrecia de enxergar por ele, de descrever o campo, uma árvore, a cidade, o rio, a nuvem, o raio de sol de uma paisagem à nossa frente, ou o clima à nossa volta; jamais me entediei de, através da audição, tentar prover o que a luz não mais podia estampar-lhe na vista. Jamais me cansei de ler para ele; jamais me cansei de guiá-lo aonde ele desejasse ir, de fazer o que me pedisse. E, em servi-lo, eu tinha uma satisfação imensa, rara, embora compadecida - pois ele solicitava os meus serviços sem qualquer constrangimento, vergonha ou humilhação. Amava-me tanto que não relutava em se beneficiar da minha assistência; sabia que eu o amava de um modo tão carinhoso, que aceitar a minha ajuda era satisfazer os meus desejos mais tenros. Temos aqui a Eva, de Génese 2:24, amando como mestra benigna de Adão. Gostaria que me esclarecessem se a atitude de Jane configura feminismo (ou não): sou uma espécie de pária da minha profissão, portanto, em um tema desses, peço orientação. Mas o leitor (seja lá quem for) que releia esses três parágrafos anteriores com atenção, e diga se não lhe provocam um calafrio. Reconheço no trecho uma certa força e agressividade muito bem moduladas, mas quem gostaria de ser Rochester, para se ver tripla-mente domesticado pela indómita Jane? Concluo esta análise contrastando a poesia de Charlotte com a de Emily. Eis a estrofe final do poema de Charlotte intitulado "Sobre a Morte de Emily Jane Brontê": Já que tu estás livre da dor, Não retorne aqui, por favor; O sobrevivente é quem chora; Deus que poupe o nosso castigo, E nos dê paz e luz contigo, Quando chegar a nossa hora! 336 337 Os versos são péssimos, servindo para ratificar a noção de Oscar W^ilde de que toda poesia medíocre é sincera. Em contraste, eis Emily Bronte saudando "Deus em Meu Seio", "afirmando o heroísmo da sua própria alma": Não há espaço para a Morte, Nem átomo algum será batido, Pois tu és o Ser e a Sorte, E o que tu és jamais será destruído. Emily Bronte, notadamente, como se abraçasse o gnosticismo da Antiguidade, diri-ge-se ao Deus interior, o pneuma, ou centelha que remonta a um período anterior às noções de Criação e Queda. Charlotte é ficcionista polemica, cuja agressividade, ou impulso, na prática, constitui-lhe o génio. Emily é visionária, que invoca o próprio génio como divindade, com grande firmeza e extrema eloquência. VIRGÍNIA WOOLF Se assim é, se ler um livro, devidamente, requer o exercício das faculdades mais raras da imaginação, da percepção e do julgamento, a conclusão talvez seja que a literatura é uma arte por demais complexa, e que, mesmo depois de passarmos a vida inteira lendo, dificilmente, conseguiremos fazer uma contribuição de real valor à critica. Devemos permanecer leitores; não devemos nos investir da glória que pertence àquelas criaturas raras que, além de leitores, são críticos. Mas, como leitores, temos as nossas responsabilidades e a nossa importância. Os padrões que elevamos e as avaliações que fazemos ascendem e integram a atmosfera que os escritores respiram enquanto trabalham. E exercemos uma influência que incide sobre eles, ainda que a mesma não se traduza em palavras impressas sobre páginas. E essa influência, se bem informada, vigorosa, individual e sincera, pode ser de grande valor atualmente, quando a crítica está em estado de suspensão, quando livros são resenhados como uma procissão de animais em um estande de tiros, e o crítico tem apenas um segundo para recarregar, apontar e disparar, e pode até ser perdoado se confundir coelho com tigre, águia com pato, ou se não acertar em nada e desperdiçar a munição, atingindo uma vaca que pasta tranquilamente ao fundo. Se, por trás dos disparos erráticos da imprensa, o autor sentisse a presença de um outro tipo de crítica, a opinião de pessoas que lessem por amor à leitura, com vagar e sem preocupações profissionais, que avaliassem com simpatia, mas com total severidade, isso não melhoraria a qualidade do trabalho desse autor? E se, por esse meio, os livros se tornassem mais marcantes, mais ricos e mais variados, valeria a pena atingir tal objetivo. Esse penúltimo parágrafo do ensaio "Como Ler um Livro", que encerra a coletânea de Woolf intitulada Second Common Reader (1932), agrada-me sobremaneira. O génio de Virgínia Woolf era duplo: como ficcionista visionária e como leitora notável comum. As admiradoras feministas exaltam-na como profeta, autora de Um Teto Todo Seu, às vezes esquecendo-se que, para ela, essa habitação era um local onde pudesse ler e escrever. Samuel Johnson forneceu a Woolf, e a todos nós, a ideia do leitor comum, na biografia do poeta Thomas Gray: 338 339 Muito me alegra concordar com o leitor comum, pois, segundo o bom senso dos leitores, não corrompido pelo preconceito literário, acima de todo o refinamento e dogmatismo da erudição, devem ser julgadas as pretensões à glória poética. #3 Woolf, em sua crítica literária, aproxima-se muito mais de Johnson do que das legiões que atualmente elogiam certos livros apenas com base em questões de género etnia, raça, preferência sexual ou ideologia dos respectivos autores. Amar a leitura com a paixão que o faz Woolf é ato que incide na capacitação da consciência. Woolf, como ficcionista, não possuía a profundidade e a universalidade dos seus maiores contemporâneos, Joyce e Proust, mas as suas extraordinárias percepções da consciência e das trevas que a circundam caracterizam-lhe o génio, marcantemente individual. Seus momentos de visão (comparados a Walter Pater e James Joyce) são menos privilegiados, mas são absolutamente fatais, posicionados no limite em que a percepção e a sensação cedem à dissolução. VIRGÍNIA WOOLF (1882-1941) Hermione Lee, autora da melhor biografia de Woolf, ressalta que a ficcionista e críti"desejava evitar todas as categorias". Sessenta anos após o suicídio da escritora, ocorrido durante a guerra, ela se encontra atada a categorias de todos os tipos: modernista, lésbica, "teórica" feminista, mas não é para menos, pois estamos na Era das Categorias. Tratando este livro da questão do génio, e da influência da obra na vida, posso, felizmente, esquivar-me da polémica. Definir o génio de Virgínia Woolf, se é que tenho condições de fazê-lo, já me basta. Tal génio manifestou-se, pela primeira vez, em 1925, e manteve-se, com todo vigor, ao longo dos 16 últimos anos de vida de Woolf. As obras definitivas da autora são Mrs. Dalloway (1925), O Farol (1927), As Ondas (1931), Os Anos (1937) e Entre os Atos (publicada postumamente, em 1941). Cinco romances extraordinários culminam em uma obra-prima; o meu livro predileto costumava ser O Farol, mas, aos 70 anos, releio Entre os Atos com mais frequência, e com uma satisfação ainda maior, portanto, aqui focalizarei essa obra. Reuben Brower, em 1951, observou que, "na singularidade da sua visão e no uso das palavras, Virgínia Woolf é dotada de uma imaginação shakespeariana", e sugeriu que a melhor preparação para se entender Mrs. Dalloway é ler O Conto do Inverno; com efeito, a peça é também o prelúdio adequado a Entre os atos. Mesmo que Woolf jamais houvesse escrito a fantasia Orlando (1928), que constitui uma carta de amor a Vita Sackville-West (cuja obra é hoje ilegível), qualquer leitor sério perceberá que a autora tem ambições shakespearianas, embora a aproximação a Shakespeare se dê através de uma maneira um tanto ou quanto oblíqua. O Shakespeare de Woolf é o mesmo de ^X/alter Pater, e depende da hipótese de que a força inigualável do dramaturgo resulta do que Woolf chama "submente" e Pater, "subtextura". Eis Woolf, refletindo sobre esse fenómeno: Talvez seja essa a minha maior satisfação. É o enlevo que sinto quando, ao escrever, parece-me estar descobrindo o lugar de cada coisa; acertando os detalhes de uma cena; tornando coeso um personagem. A partir desse ponto, alcanço o que poderia considerar uma filosofia; em todo caso, é uma ideia que me ocorre constantemente: que por trás do algodão cru existe um esboço, que nós - quero dizer, todos os seres humanos - estamos ligados a esse esboço, que o mundo inteiro é uma obra de arte, que integramos essa obra de arte. Hamlet, ou um quarteto de 340 341 Beethoven, é a verdade sobre essa massa extensa a que chamamos mundo. Mas não existe Shakespeare, não existe Beethoven; deveras, enfaticamente, não existe Deus; nós somos as palavras; nós somos a música; nós somos a coisa em si. E vejo isso sempre que sofro algum impacto. Nós somos as palavras. Enquanto trabalhava em Entre os Atos, Woolf escreveu "A Torre Inclinada", ensaio sobre influência literária: As teorias são, portanto, perigosas. Todavia, vamos, esta tarde, nos arriscar a desenvolver ufna teoria, pois discutiremos as tendências modernas. Falamos, explicitamente, de tendências ou movimentos com os quais nos comprometemos, acreditando haver uma força, influência ou pressão externa suficientemente vigorosa ao ponto de se tornar visível em um grupo de autores diferentes entre si, de modo que os seus escritos apresentem certos traços comuns. Precisamos, então, de uma teoria que dê conta dessa influência. Mas sempre vale lembrar: as influências são infinitamente numerosas; escritores são infinitamente sensíveis; cada escritor tem uma sensibilidade diferente. Logo, a literatura está em constante mutação, assim como o clima, como as nuvens do céu. Leiamos uma página de Scott; em seguida, uma de Henry James; tentemos compreender as influências causadoras da transformação de uma página na outra. Não temos competência para tanto. Portanto, o máximo que podemos pretender é identificar as influências mais óbvias, que possibilitam a formação de grupos de escritores. Ainda há grupos. Livros descendem de livros, assim como famílias descendem de famílias. Alguns descendem de Jane Austen; outros, de Dickens. Assemelham-se aos progenitores, assim como crianças assemelham-se aos pais; contudo, diferem dos pais, assim como diferem as crianças, e se revoltam, assim como se revoltam as crianças. Talvez seja mais fácil entender autores vivos, exa-minado-lhes alguns antepassados. O prefácio de Woolf ao romance Orlando arrola, na condição de precursores, Defoe, Sir Thomas Browne, Sterne, Scott, Macauiay, Emily Brontè, De Quincey e Pater. O mais importante é Pater, cujo posicionamento estético, equilibrado de maneira precária entre as entidades da personalidade e da morte, foi absorvido por Woolf. Shakespeare e Jane Austen foram omitidos, porque a presença de ambos é marcante demais para ser admitida. Às vezes, o lar de Leslie Stephen, onde Virgínia, ticamente, cresceu e foi educada, parece ser uma criação literária de Jane Austen, cialmente em Emma. E, em uma metáfora implícita woolfiana, Shakespeare pode considerado o autor de Entre os Atos, pois a ação do romance se passa no cosmo shakespeariano. Entre os Atos é um romance difícil de ser descrito, mas facílimo de ser lido. Toda a continuidade da tradição cultural inglesa está aqui implícita, sobretudo, através de momentos naturais, privilegiados, epifânicos, até que o público do vilarejo, assistindo ao desfile, percebe que é, em si, a conclusão: "Então, a cortina subiu. Eles falaram." Eles são as palavras, e Woolf, mais experimental do que nunca, faz com que nos unamos a esse público, sejamos nós ingleses ou não. Giles e Isa, marido e mulher, raramente são ouvidos trocando algumas palavras, sendo referidos indiretamente, porque representam a condição universal do próprio casamento, em que silêncio e conversa se fundem. Miss La Trobe realiza o desfile ao ar livre, e a primeira atração é uma menina: "A Inglaterra sou eu." Surgem os peregrinos de Canterbury, segundo a criação de Chaucer, passa a Rainha Elizabeth ("Para mim cantou Shakespeare"), e uma paródia das tragico-médias escritas por Shakespeare, na fase final de sua carreira: E ele pulou fora, como se a sua participação já houvesse terminado. Ainda bem que já acabou - disse Mrs. Elmhurst, descobrindo o rosto. O que vem agora? Um quadro vivo...? Auxiliares da produção, surgindo às pressas dentre os arbustos, e carregando pequenas divisórias, cercaram o trono da Rainha com painéis cobertos de papel, representando paredes. Cobriram o solo com junco. E os peregrinos, que prosseguiam em marcha, cantando ao fundo, agora cercavam a figura de Elizabeth em sua caixa de sabão, como se fossem a plateia. Estavam prestes a encenar uma peça na presença da Rainha Elizabeth? Seria o local, talvez, o Teatro Globe? -O que diz o programa? - perguntou Mrs. Herbert \Cinthrop, recorrendo ao binóculo. Ela murmurou, por trás de uma folha de carbono borrada. - Sim, foi alguma cena de alguma peça. Sobre um falso Duque; e uma Princesa disfarçada de rapaz; por causa de um sinal na bochecha, descobre-se que o herdeiro havia muito desaparecido é o men digo; e Carinthia - a filha do Duque, que esteve perdida, abrigando-se em uma 342 343 caverna - apaixona-se por Ferdinando, que fora depositado em um cesto por uma velhota. E os dois se casam. É isso que eu acho que acontece - ela disse, desviando do programa o olhar. - Encenem a peça- comandou a grande Elizabeth. Surge uma velha cambaleante. (- E Mrs. Otter da Casinha - alguém murmurou.) A paródia se torna mais intensa, com a bênção do padre: Dos emaranhados da vida, livrai-lhe as mãos. (Libertam-lhe as mãos.) Da sua falsidade, que nada mais seja lembrado. Chamai opapo-roxo e a cambaxirra. E atirai rosas sobre o pálio encarnado. (Pétalas são lançadas de cestos de vime.) Cobri o corpo. Descansai em paz. (Cobrem o corpo.) Em vós, caros senhores, (voltando-se ao casal feliz). Que os céus derramem a sua bênção! Apressai-vos, antes que o sol invejoso Desfaça a cortina da noite. Que soe a música, •"* E que o ar puro do céu embale o vosso sono! Iniciai a dança! Outras paródias ensandecidas seguem, entremeadas com cenas que contam com a participação da plateia. O objeto da paródia mais intensa é a comédia da Era da Restauração, mas, em termos de comicidade, nenhum momento anterior, em toda a obra de Woolf, equipara-se àquele em que a natureza vem ao auxílio da arte: - Mais alto, mais alto! - vociferava Miss La Trobe. Palácios tombam (os atores recomeçaram), a Babilónia, Níneve, Tróia... E a grande casa de César... tudo jaz sobre o solo... Onde o maçarico faz ninho ficava a arca... através da qual marcharam os romanos... Cavando e empurrando, com o arado abrimos os sulcos na terra... De onde Clitemnestra vigiava, protegendo o seu senhor... avistava as luzes brilhando no topo das colinas... nós vemos apenas a terra... Cavando e empurrando, passamos... e a Rainha e a Torre de Vigia tombam... pois Agamemnon se foi... Clitemnestra não passa de... As palavras desapareciam. Apenas alguns grandes nomes - Babilónia, Níneve, Clitemnestra, Agamemnon, Tróia - flutuavam no espaço aberto. Então, o vento ficou mais intenso e, no farfalhar das folhas, até as palavras grandiosas se tornaram inaudíveis; e o público fitava os habitantes do vilarejo, cujas bocas se moviam, mas sem emitir som. E o palco ficou vazio. Miss La Trobe encostou-se em uma árvore, paralisada. As forças lhe faltavam. Gotas de suor irrompiam-lhe na fronte. A ilusão fracassara. - É a morte - ela murmurou - a morte. Então, subitamente, enquanto a ilusão se esvaía, as vacas tomaram a frente. Uma delas havia perdido o novilho. Na hora exata, ergueu a cabeçorra, com olhos de lua, e mugiu. E todas as cabeçorras com olhos de lua se voltaram. De vaca após vaca ouviu-se o mesmo mugido nervoso. O mundo inteiro foi tomado desse nervosismo animal. Era a voz primeira soando alto nos ouvidos do momento presente. Então, todo o rebanho se contagiou. Sacudindo o rabo, os animais apontavam as cabeças para o alto e mugiam, como se Eros lhes houvesse espetado os flancos, incitando-os à fúria. As vacas eliminavam o abismo; diminuíam a distância; preenchiam o vazio e davam continuidade à emoção. Miss La Trobe acenou, estaticamente, para as vacas. - Graças a Deus! - ela exclamou. É maravilhoso, beirando a loucura e a auto-imolação, que Woolf seja capaz de expressar tamanha verve, resgatada no momento em que o desfile alcança a Era Vitoriana. Mas temos aqui uma sátira (se é que se trata de sátira) caracterizada por um matiz bastante escuro. Cenas de reconhecimento ocorrem durante todo o desfile, em cada período histórico, Woolf parodiando algo que é parodiado pelo próprio Shakespeare na conclusão de Cimbeline, Rei da Britânia. Escrevendo como grande crítica, Woolf ensina a si mesma, e a nós, o ponto central das cenas de reconhecimento em Shakespeare: a nossa incapacidade de auto-reconhecimento e de reconhecer o outro - seja no campo familiar ou erótico. De um modo indireto, e brilhante, Entre os Atos é um romance sobre a guerra: a Inglaterra sofre o bombardeio nazista, mas Woolf não se permite qualquer referência explícita ao fato. Tampouco apresenta sugestões impressionistas sobre o contexto mais amplo, que torna o desfile no vilarejo, ao mesmo tempo, mais sombrio e cómico. Impondo a si mesma um estilo expressionista, ela nos impele, mais uma vez, à constatação de que nós somos as palavras. O resultado é um romance tão original que 60 anos não lhe afetaram o frescor. O expressionismo elíptico pode parecer um estilo literário um tanto estranho, mas o pro344 345 cedimento foi inventado por Shakespeare nas peças tardias, e Woolf desenvolve o estilo em Entre os Atos. A ação do livro se passa em 1939, em parte, a fim de evitar o trauma causado pelos bombardeios, mas também para sugerir uma sensação de angústia crescente, agora, tragicamente, localizada no passado imediato. Temos, pois, um estranho livro sobre a guerra, que não enfatiza a angústia da guerra, mas "a angústia da arte", conforme salienta Maria Di Battista: Entre os atos do desfile transcorrido no vilarejo, a narrativa sugere (...) o desenrolar de uma tragédia sexual. Tal assertiva focaliza o relacionamento central do romance, entre Isa e Giles, em que Isa, com sua natureza poética, jamais tem certeza se ama ou odeia o marido, embora, para ela, a palavra "ódio" denote erotismo. Hermione Lee observa, sabiamente, que "todos os casamentos são inexplicáveis", reconhecimento tão woolfiano quanto shakespeariano. Aos 25 anos, Woolf antecipou muito de sua vida e de sua arte, em uma pergunta retórica nitidamente marcada pela influência de Walter Pater: Não somos, cada um de nós, na verdade, o centro de inúmeros raios que atingem uma única figura, e não é nossa responsabilidade refleti-los, imediatamente, e jamais permitir que um raio sequer se perca no nosso lado escuro? Não se trata, exatamente, de uma fórmula para o casamento. Deixemos de lado questões de bissexualidade e abuso infantil: Virgínia Woolf, tanto quanto Pater, era dotada de belo solipsismo, em dose suficiente para tornar qualquer casamento problemático, assim como pôs fim ao seu relacionamento sexual com Vita Sackville-West. Parece justo concluir, de acordo com Hermione Lee, que o casamento manteve a romancista viva por mais tempo do que lhe seria possível viver solteira. No contexto da vida e da morte da autora, Entre os Atos é uma espécie de milagre, tanto quanto a própria Virgínia Woolf. Como definir o génio de Woolf? Sir Thomas Browne e Thomas De Quincey não escreveram romances. Walter Pater escreveu ficção, mas Marius the Epicurean não é um livro dos mais woolfianos, tampouco o fragmentário Gaston de Latour. No entanto, um dos Retratos Imaginários de r Pater, "Sebastian Van Storck", constitui notável presságio de Mrs. Dalloivay, e a arte singular de Woolf, no que toca à representação da consciência, é profundamente influenciada por Pater. É cabível que poetas sejam influenciados por Pater: Yeats, Wallace Stevens e Hart Crane cultivam uma lírica de 'fanias seculares que não lhes compromete a arte. Woolf era mais propensa à lírica A aue à narrativa, mas foi capaz de desenvolver momentos de visão em narrativas traordinárias. O Farol, As Ondas e Entre os Atos estão entre os romances mais origi-ais da tradição ocidental. O génio literário, conforme nos ensinou Johnson, manifes-ta-se através da originalidade, de uma criatividade que reinventa o próprio autor e, até certo ponto, o leitor também. 346 347 LUSTRO 9 Ralph Waldo Emerson, Emily Dickinson, Robert Frost, Wallace Stevens, T. S. Eliot O Sefirah conhecido por Din serve de fronteira, ou horizonte, que delimita a aliança de amor de Hesed Aqui reúno a tradição norte-americana, inclusive Eliot, apesar de sua explícita rebeldia com relação a essa tradição. Emerson, classificado, de maneira simplória, como transcendentalista, tem no sisudo A Conduta da Vida o seu melhor livro. Emily Dickinson, rigorosamente original, é poeta de julgamentos sombrios, tanto quanto Robert Frost, mais tarde. Wallace Stevens equilibra o rigor com ímpetos de afirmação. Aqueles que, seguindo as palavras do próprio Eliot, considerarem mais adequado associá-lo a Dante ou Baudelaire, devem ler A Terra Devastada e "A Última Vez que Lilases Floresceram à Porta", de Whitman, lado a lado, com bastante atenção. Poetas, isto e, poetas influentes, não escolhem determinada tradição; é a tradição que os escolhe, e faz o que quer com a obra, dependendo da vitalidade da resistência demonstrada por essa obra. 351 RALPH WALDO EMERSON (íkp Ç&2 C^> RALPH WALDO EMERSON Não podemos descrever a ordem dos ventos variáveis. Como compreender a lei que governa o nosso estado de espírito e a nossa suscetibilidade, sempre inconstantes? E tais elementos estão sempre em transformação, da água para o vinho. Em lugar do firmamento de ontem, contemplado por nossos olhos, hoje parecemos estar presos dentro de uma casca de ovo; não podemos sequer enxergar as estrelas que, traçam o nosso destino. Dia após dia, os fatos cruciais da vida humana permanecem ocultados. Subitamente, a neblina desaparece e os revela, e nos damos conta do tempo bom que já passou, e que poderia ter sido mais bem aproveitado, se um simples sinal de tudo isso tivesse sido mostrado. Uma súbita elevação da estrada aponta-nos o desenho das montanhas, e todos os cumes que, embora presentes o ano inteiro, não captaram a nossa atenção. Mas essas alterações não deixam de ter a sua própria ordem, e somos cúmplices das nossas diversas venturas. Se a vida parece uma sucessão de sonhos, também nos sonhos existe a justiça poética. As visões dos homens bons são boas; a vontade que carece de disciplina é açoitada por maus pensamentos e más venturas. Quando desrespeitamos as leis, perdemos o controle da realidade central. Como os enfermos em um hospital, apenas passamos de um leito ao outro, de uma veleidade a outra; e não será grande o significado do destino dessas pobres coitadas criaturas queixosas, aparvalhadas, comatosas - transferidas de leito em leito, do nada da vida ao nada da morte. "Ilusões", de A Conduta da Vida "Emerson", o meu falecido amigo Angelo Bartlett Giamatti se aprazia em afirmar, "é suave como arame farpado." O Sábio de Concorde não é sempre implacável como em A Conduta da Vida, mas essa obra, a mais amadurecida de todas as que escreveu, é a que revela o Emerson mais verdadeiro, a expressão mais apurada do seu génio considerável. O génio de Emerson é sempre o génio dos Estados Unidos: foi ele que estabeleceu a nossa religião autêntica, com efeito, pós-protestante, embora tente parecer o contrário. Autoconfiança não é doutrina consoladora, pois nos adverte sobre a necessidade de recorrer ao nosso próprio génio, ou então entraremos em declínio total. "Destino", "Poder" e "Riqueza", além de "Ilusões", são os grandes ensaios de A Conduta da Vida. O ensaio intitulado "Riqueza" registra que "enquanto é o nosso génio uem compra, o investimento está seguro, embora gastemos como monarcas". Novas forças, inatas ao eu, haverão de surgir. "Todo poder pertence a uma mesma espécie, compartilhando da natureza do do." ^ esse poder Emerson chama "ação original", sinónimo de Autoconfiança. C ntudo, a ação, segundo o Emerson amadurecido, está circunscrita ao sentido de des-¦ o O Sábio retoma a convicção pré-socrática de que caráter é destino, ethos é demónio, e o seu génio se ocupa de erigir altares à Bela Necessidade: Por que devemos temer ser esmagados pelos elementos selvagens, nós que somos constituídos por tais elementos? Vamos celebrar a Bela Necessidade, que torna o homem valente, passando a crer que não pode se esquivar de um perigo já apontado, tampouco incorrer em algum que não o tenha sido. 352 353 RALPH WALDO EMERSON (1803-1882) Se Emerson tinha uma obsessão, era a problemática do génio norte-americano. "O Sábio Norte-americano", discurso proferido em Harvard, em 31 de agosto de 1837, continua sendo a reflexão central a respeito da originalidade literária norte-americana: "Os nossos dias de dependência, o nosso longo aprendizado junto aos saberes de outras terras, aproximam-se do fim." Uma declaração de independência literária torna-se o manifesto da genialidade: * O único fator que vale no mundo é a alma ativa (...). Em tal ação, identifica-se o génio (...). O génio é sempre inimigo do génio, devido ao excesso de influência. É extraordinária, a espécie de prazer que obtemos dos melhores livros, produzindo em nós a convicção de que a natureza que escreveu é a mesma que lê (...). É preciso ser inventor, para se ler bem (...). É perniciosa a noção de que chegamos à natureza tardiamente, de que o mundo foi concluído há muito tempo. Tais pensamentos são meras aspirações, que aquecem, mas não incendeiam. Um ano mais tarde, no "Discurso à Faculdade de Teologia", Emerson buscou fogo no céu: Jesus Cristo pertencia à verdadeira estirpe dos profetas (...). A inteligência ouviu o canto de louvor dos lábios do poeta e disse, na era seguinte: "Ele foi Javé, descido do céu. Eu vos matarei, se disserdes que ele era homem." As expressões de sua linguagem e as figuras de sua retórica usurparam-lhe a verdade; e as igrejas não são construídas com base em seus princípios, mas em suas imagens (...). Permiti que eu vos advirta, antes de mais nada, a seguir sozinhos, a rejeitar os bons modelos. Eis um dos catalisadores da religião norte-americana, erroneamente chamada de cristianismo por frequentadores de igrejas, pastores e estudiosos (que deveriam ser mais avisados). Uma das Escrituras dessa religião é o texto de Emerson intitulado "Autoconfiança", publicado em Ensaios - Primeira Série (1841): O homem deve aprender a identificar e observar o raio de luz interior que lhe atravessa a mente, mais do que o lustro do firmamento de bardos e sábios. No entanto, ele descarta, sem perceber, o seu próprio pensamento, apenas porque é seu. Em toda obra de génio encontramos os nossos próprios pensamentos descarI voltam para nós com uma certa majestade alienada (...). Afasto-me de pai e mãe e irmã e irmão, quando meu génio me chama. Escreveria acima das esquadrias das portas: Capricho. O princípio número um do génio emersoniano está aqui implícito: os lustros que ntemplamos na literatura são os nossos próprios, conquanto os tenhamos alienado de ós mesmos. Ler implica resgatar algo que é nosso, seja qual for o paradeiro do elemento perdido. Mas isso transcende a leitura, sendo, deveras, a própria transcendência: Ainda resta afirmar a verdade mais nobre sobre essa questão, embora seja provável que ela não possa ser afirmada, pois tudo o que dizemos são lembranças distantes invocadas pela intuição. Tal pensamento, tal qual posso afirmar, é o seguinte: quando o bem está próximo de ti, quando tens a vida no teu interior, isso não se deve a qualquer caminho conhecido; trata-se de um caminho em que não perceberás as pegadas de outrem; não verás o rosto de outro homem; não ouvirás qualquer nome pronunciado; o caminho, o pensamento, o bem serão inteiramente estranhos e novos. Estarão excluídos o exemplo e a experiência. Segues o caminho que vem, não o que leva ao homem. Todas as pessoas que já existiram são os seus ministros esquecidos. Tanto o medo quanto a esperança estão aquém desse caminho. Na hora da visão, não há o que possa ser chamado gratidão, ou alegria. A alma, elevada acima da paixão, contempla a identidade e a causalidade, percebe a existência da Verdade e da Correção, e se tranquiliza com a noção de que tudo vai bem. Grandes extensões da natureza, o Oceano Atlântico, os Mares do Sul - longos períodos de tempo, anos, séculos - não têm a menor importância. Segundo penso e sinto, é isso que subjaz a qualquer tipo de vida e circunstâncias anteriores, assim como subjaz ao meu presente, ao que chamamos vida, e ao que chamamos morte. Apenas a vida vale, não o ter vivido. O poder cessa no instante do descanso; reside no momento de transição, de um passado a um novo estado, no momento da travessia do golfo, do disparo ao alvo. Eis o fato que o mundo odeia: o devir da. alma, pois isso degrada o passado, transforma riqueza em pobreza, reputação em vergdnha, confunde o santo e o pândego, empurra para o lado tanto Jesus quanto Judas. Por que, então, tagarelamos a respeito da autoconfiança? Porquanto a alma esta presente, a força não será confidente, mas agente. Conversar sobre confiança e um meio externo, limitado, de falar. Antes, falemos àquilo que confia, porque isso funciona e existe. Quem é mais obediente do que eu me comanda, ainda que nao mexa um dedo sequer. Em torno de tal pessoa eu orbito, através da gravita354 355 ção dos espíritos. Consideramos tratar-se de retórica, quando falamos da virtude eminente. Ainda não percebemos que virtude é Elevação, e que um homem ou um grupo de homens dotados de princípios permeáveis, segundo a lei da natureza, há de se impor e comandar todas as cidades, nações, reis, magnatas e poetas que não o sejam. O trecho anterior traduz o génio de Emerson, ou o Sublime norte-americano Enfaticamente, não se trata de uma doutrina social, e não visa ao bem necessário, nem mesmo em se tratando de amigos e vizinhos. Emerson celebra a Novidade, o influxo de poder do espírito que sabe como a coisa é feita. Seguir o caminho que vem, não o que leva ao homem, é*descartar todo o contexto da sociedade. Eis o misticismo do génio, tão intenso em Emerson quanto em Meister Eckhart, São João da Cruz, ou Jakob Boheme e seu discípulo inglês, William Law. A vida que temos dentro de nós é, ao mesmo tempo, o pão nosso de cada dia e pneuma, a centelha louvada pelos antigos gnósticos, porque encerrava o que neles havia de melhor e mais puro, não fazendo parte do esquema da Criação e Queda. Ao contrário de um antigo especulador gnóstico, Valentim, Emerson não busca a completude, o pleroma original que perdemos em consequência da Criação, mas o momento de transição, a travessia norte-americana para uma novidade infinita. O descanso do pleroma exclui o poder, e o poder é o estigma do génio emersoniano, norte-americano: "reside no momento de transição, de um passado a um novo estado, no momento da travessia do golfo, do disparo ao alvo". Essa noção produz a mais subversiva de todas as sentenças escritas por Emerson, uma vez que as implicações da mesma se tornam aparentes: "Antes, falemos àquilo que confia, porque isso funciona e existe." A moralidade de caráter grupai é totalmente anulada por esse princípio. O que, então, é a Autoconfiança, ou o génio emersoniano? E algo menos amoral do que não-moral. A epígrafe ao ensaio, uma quadra de versos gnômicos compostos pelo próprio Emerson, faz lembrar o rompante do Juiz Holden, no livro Meridiano de Sangue, de Cormac McCarthy: "Os lobos caçam a si mesmos, homem!" Atira o pirralho ao rochedo, Que em teta de loba ele mame, E passe o inverno co' o falcão, sem medo, Forte e veloz, pés e mãos ele chame. Eu costumava discutir Emerson com meus amigos, agora falecidos, Angelo Bartlett Giamatti, reitor de Yale e comissário de beisebol, e Robert Penn Warren, poeta-ficcio- a l^mbro-me bem do seu rosnado: "Emerson é suave como arame farpado!", nista, e icni^^u •m como me lembro de Warren, citando o amigo Allen Tate: "Emerson é o Diabo." C atti e Warren, por quem sigo de luto, foram moralistas clássicos. Autoconfiança é A utrina perigosa, mas vitalizadora: gerou emersonianos de direita, como Henry Ford, de esquerda, como John Dewey. E conquanto seja a Religião Norte-americana, a dou-' a nos adverte quanto a crenças estáticas: "Assim como as preces dos homens são uma doença da vontade, suas crenças são uma doença do intelecto", citando, mais uma vez, minha sentença predileta, em toda a obra de Emerson. Emerson desejava que todos os norte-americanos fossem poetas e místicos, e a estranha religião pós-cristã que ele ajudou a promover éz poesia e o misticismo dos norte-americanos, pregados pelo Wall Street Journal e pela Harvard Business Review. Se a força do génio norte-americano reside na transição, em um nervoso disparo ao alvo, podemos evitar comandar o mundo, pois já o teremos contaminado. Uma visita a Portugal ou à Espanha, à Itália ou à Suécia, em aspectos essenciais, causa-nos a impressão de jamais termos saído de casa. Mesmo assim, se Emerson incentivou Henry Ford e John Dewey, também inspirou Walt Whitman e, de modo mais sutil, Henry e William James, Emily Dickinson e Hart Crane. No ensaio "Sobre a Experiência", o mais bem construído de todos os que escreveu, Emerson retoma, com cautela, a questão do génio: O tipo de pessoa mais cativante é aquele cujo poder é exercido obliquamente, e não pelo confronto direto: homens de génio, mas ainda não reconhecidos; percebe-se o brilho da sua luz, sem que seja preciso pagar um imposto muito elevado. Têm a beleza dos pássaros, ou da luz do dia, mas não da arte. No pensamento do génio sempre há uma surpresa, e é correto que o sentimento moral se chame a novidade", pois não será outro senão esse. Escrevendo sobre Montaigne, seu mestre ensaísta, Emerson leva essa ideia adiante: O génio se define como tal pelo primeiro olhar que dedica a qualquer objeto. Será a sua visão criativa? Não se detém em ângulos e cores, mas contempla a estrutura - tende, em breve, a depreciar o objeto. Em momentos importantes, seu pensamento dissolve as obras de arte e da natureza nas suas próprias causas, de modo que as palavras parecem pesadas e erradas. A medida que avança nessa direção, Emerson colide com a arte suprema de Shakespeare, e é detido, mas por pouco tempo. Enquanto o visionário da travessia e do 356 357 devir confronta os limites do pensamento, da linguagem e da imaginação, é tomado de impulsos antitéticos: "Agora, literatura, filosofia e pensamento são shakespearizados (sic). A mente de Shakespeare é o horizonte além do qual, no momento, não podemos enxergar." Trata-se de celebração ou queixa? Não creio que tenha a menor importância, pois Emerson é capaz de se expressar sabiamente sobre Shakespeare: Shakespeare é o único biógrafo de Shakespeare; e nem mesmo ele pode revelar algo, a não ser ao Shakespeare que temos dentro de nós; isto é, à nossa hora mais apreensiva e solidária. Tais afirmações* passam a configurar, ao lado do tributo feito por Samuel Johnson, o melhor que já foi dito sobre Shakespeare: Assim é o sábio Shakespeare e seu livro da vida. Ele escreveu as árias de toda a nossa música moderna; escreveu o texto da vida moderna, o texto dos costumes; desenhou o homem da Inglaterra e da Europa, pai do homem norte-ame-ricano; desenhou o homem, descreveu o dia e o que é feito no dia; leu os corações de homens e mulheres, a sua probidade, os seus expedientes e estratagemas; os estratagemas da inocência e as transições através das quais virtudes e defeitos trocam de lugar; era capaz de separar a parte da mãe da parte do pai, na fisionomia de uma criança, e traçar a fronteira ténue entre liberdade e destino; conhecia as leis da repressão que formam a polícia da natureza; absorvia na mente todas as canduras e todos os terrores da espécie humana, com a mesma verdade e meiguice que a paisagem é absorvida pelos olhos. E a importância dessa sabedoria de vida faz desaparecer a forma, seja o drama ou o épico. E como questionar o papel em que é escrita uma mensagem do rei. Shakespeare destaca-se na categoria de autores eminentes, assim como se destaca na multidão. E inconcebivelmente sábio, enquanto a sabedoria dos demais é concebível. Um leitor competente é capaz de alojar-se no cérebro de Platão, por assim dizer, e pensar a partir dali; mas não no de Shakespeare. Ainda não o penetramos. Em termos de capacidade de execução, de criação, Shakespeare é único. Homem algum pode imaginar com mais competência. Ele alcançou o ponto mais avançado de sutileza possível a um indivíduo - o mais sutil dos autores, sendo quase inaceitável a possibilidade de autoria. A sua sabedoria de vida iguala-se o dom da sua força lírica e criativa. Revestiu com formas e sentimentos as criaturas de suas histórias, como se fossem pessoas que viviam com ele sob o mesmo teto, e poucos homens de carne e osso tiveram personalidades tão bem delineadas auanto essas figuras ficcionais. E falam uma linguagem tão doce quanto convém. Todavia, o talento jamais o seduziu à ostentação, tampouco bateu na mesma tecla. A humanidade omnipresente coordena todas as faculdades shakespearianas. Se pedirmos a um homem talentoso que nos conte uma história, a sua parcialidade logo transparece. Determinadas observações, opiniões, tópicos merecerão certa proeminência, que ele se dispõe a exibir. Ressalta a parte que lhe interessa, e diminui a outra parte, desconsiderando a conveniência da coisa em si, e levando em conta apenas a sua. Mas Shakespeare não tem as suas peculiaridades, não tem tópicos inoportunos; tudo é oferecido, condignamente; não tem as suas veias, os seus interesses, não é maneirista; não tem qualquer egoísmo discernível; o grande, ele descreve com grandiosidade, o pequeno, com subordinação. é sábio sem ser enfático ou assertivo; é forte, como a natureza é forte, capaz de soerguer a terra, formando encostas de montanhas, sem esforço, e segue o mesmo princípio segundo o qual uma bolha flutua no ar, e se apraz, igualmente, de fazer uma coisa ou a outra. Daí o equilíbrio de forças entre farsa, tragédia, narrativa e canções de amor, um mérito tão constante que cada leitor chega a duvidar das percepções de outro leitor. Essa força de expressão, ou de se transformar a verdade mais íntima em música e verso, torna Shakespeare o modelo do poeta, e acrescenta mais um problema à metafísica. É isso que o empurra para a ciência natural, como importante produção do globo, anunciando novas eras e melhorias. O mundo é espelhado em sua poesia sem perdas ou borrões; era capaz de pintar o belo com precisão, o grande com alcance, o trágico e o cómico indiferentemente, e sem distorção ou favor. Desincumbe-se da tarefa nos menores detalhes, até um fio de cabelo: retoca um cílio ou uma covinha com a mesma firmeza que desenha a montanha; e tais detalhes, como os que produz a natureza, resistem ao exame do microscópio solar. Em suma, Shakespeare é o melhor exemplo para se demonstrar que mais ou menos produção, mais ou menos quadros, é indiferente. Tinha a capacidade de construir um quadro. Daguerre aprendeu a fazer com que uma flor gravasse a própria imagem em uma placa com iodo; daí, ele prossegue, à vontade, podendo reproduzir um milhão. Sempre há objetos; mas jamais houve representação. Eis a representação perfeita, finalmente; e agora, que o mundo das gravuras pose para os retratos. Não existe receita para a preparação de um Shakespeare, mas a possibilidade de se traduzir coisas em canção fica demonstrada. u que há de mais vital e abrangente em Shakespeare é captado por essas palavras, para sempre. No entanto, uma ou duas páginas adiante, o contracanto passa a ser uma 358 359 pergunta insistente, de vez que Emerson se sente frustrado pelo fato de Shakespeare não ter utilizado a sabedoria e a arte para nos salvar, ou, pelo menos, para nos tornar mais parecidos com ele: Foi o mestre-de-cerimônias da humanidade. Não que devamos receber, através dos poderes majestosos da ciência, os cometas entregues em nossas mãos, ou os planetas e suas luas, tampouco devemos retirá-los de suas órbitas, a fim de vislumbrá-los junto aos fogos de artifício, em uma noite de feriado municipal, anunciada pelas cidades vizinhas: "Esta noite - show de fogos jamais visto!". Valerão os agentes da natureza, e a capacidade de entendê-los, não mais do que uma serenata de rua, ou uma baforada de charuto? Relembramos o texto retumbante do Alcorão: "Os céus e a terra, e tudo o que entre eles se encontra, pensais que foi criado por brincadeira?" Interrompo aqui a citação, não a fim de objetar ao sagrado Emerson, mas para aventurar a resposta shakespeariana, ao menos do Shakespeare amadurecido, autor de uma parte de Os Dois Nobres Parentes, tudo o que podemos fazer é tentar nos comportar como o tempo, aprendendo a lição que nos é ensinada pelo Cavaleiro de Chaucer: estamos sempre comparecendo a encontros não marcados. A escolha entre os agentes da natureza e a serenata de rua não é difícil: a serenata não nos destrói, e compreender a destruição talvez valha menos do que a baforada de um charuto. Quanto às eloquentes trombetas de Alá, a resposta shakespeariana poderia ser: "Ora, sim, por brincadeira, com certeza." Contudo, Emerson prossegue a afastar a pilhéria, com o seu tributo mais vibrante: Fosse ele menor, houvesse apenas alcançado a dimensão comum aos grandes escritores, Bacon, Milton, Tasso, Cervantes, poderíamos relegar o fato ao crepúsculo do destino humano; mas esse homem entre os homens, que conferiu à ciência da mente uma temática nova e maior, sem precedentes, e avançou os padrões da humanidade centenas de metros em direção ao caos, que tal homem não se valesse da própria sabedoria... Haverá de entrar para a História que o melhor poeta levou uma vida obscura e profana, dedicando o seu génio ao divertimento do público. Ao mesmo tempo, reverenciamos e rejeitamos tal tributo. A questão do génio é aqui contundente: será o génio capaz de transcender e apontar-nos um além sem credo, atribuir alguma coerência e significância à ordem violenta? O que Charles Lamb disse a respeito de Coleridge é, ao menos uma vez, verdade com relação a Emerson: ele queria um pão melhor do que o trigo é capaz de fazer. EMILY DICKINSON Sua mente de homem é secreta, Quando o encontro, estremeço; Carrega à sua volta um círculo, Do qual não sou adereço O génio do isolamento é muito raro; nenhum outro poeta, nem mesmo Emily Bronté, parece-nos tão remota quanto Dickinson. Não contamos com qualquer abordagem "correta" à sua obra. Se Dickinson era emersoniana, a diferença entre os dois é que ela pôs em prática a autonomia quase total que ele defendia, mas não pôde praticar, pois era um centro cultural em si mesmo. Emerson evita o sofrimento; Dickinson faz do sofrimento sua atmosfera. Ambos temiam a cegueira, e tiveram com ela encontros psicossomáticos. Mas, enquanto, para Emerson, a experiência surgiu cedo e não durou muito tempo, com Dickinson o problema foi maior. Aprendemos com Emerson algo sobre a força do eu; Dickinson ensina a angústia da elevação sublime através da dor. Emerson negava o desespero; Dickinson é a mestra dos sentimentos negativos: a fúria, a carência erótica, o conhecimento (bastante privado) do exílio de Deus com relação a si mesmo. O génio de Dickinson é tão original, que chega a modificar o nosso entendimento quanto às possibilidades do génio poético. É, reconhecidamente, uma poeta pós-wordsworthiana; todavia, o diferencial norte-americano é tão marcante nela quanto em Whitman ou Melville. Talvez William Blake, génio também singular, seja o análogo mais verdadeiro de Dickinson. Ao contrário de Emerson ou Whitman, Dickinson não pode ser classificada de escritora regionalista norte-americana, pós-protestante, pois é seita de um só seguidor, como Blake. Dickinson desestabiliza todas as nossas ideias tradicionais, assim como o faz Blake, sem criar uma ficção suprema, pessoal, como ele buscou fazer. Se é possível a algum poeta partir do zero a cada novo poema, é questionável. Mas, se alguém é capaz de fazê-lo, esse alguém é Emily Dickinson. 360 361 EMILY DICKINSON EMILY DICKINSON (1830-1886) O meu assunto, felizmente, é o génio de Dickinson, sua originalidade tanto em termos cognitivos quanto estéticos. Da minha parte, não considero a religião de Dickinson (que, assim como no caso de Blake, era uma seita de um só seguidor) ou a sua preferência sexual questões prementes, embora nesse particular, como em tudo o mais, hoje pertenço a uma minoria amante em locais que fingem ser instituições de ensino superior. Corre pqr aí, atualmente, que "a prova dos asteriscos" indica um relacionamento sexual apaixonado entre Dickinson e sua cunhada, mas vejo apenas que suas cartas são poemas em prosa, compostos com o mesmo cuidado que a poesia, não sendo prova de coisa alguma, mesmo que os asteriscos signifiquem mais do que asteriscos. A melhor biografia de Dickinson continua sendo a de Richard B. Sewall (1974), que resume, com sensatez, a relação entre Dickinson e a cunhada temperamental, Sue. Mais importante, Sewall traça o amor frustrado de Dickinson por Samuel Bowles, e o amor, supostamente, correspondido, pelo Juiz Otis Phillips Lord, 18 anos mais velho do que ela. Lord morreu em 1884, aos 72 anos; Dickinson estava com 54, e viveu somente mais dois anos, enlutada pelo desaparecimento de Lord e dos demais entes queridos. Uma vez que a esposa de Lord faleceu em fins de 1877, o relacionamento íntimo entre Dickinson e o juiz, obviamente, data do início de 1878, ocasião em que ela estava com 45 anos e ele 65. As cartas dela para ele, embora escritas com o talento extraordinário de sempre no que diz respeito à elaboração retórica, não podem ser interpretadas se não como expressão de uma paixão de natureza sexual, conquanto não constituam, em absoluto, evidência de consumação. Com a cautela que sempre devemos ter quando se trata de Dickinson, concordo com Sewall, acreditando no amor de Dickinson por Bowles e na relação com Lord, que quase resultou em casamento. Ainda estamos aprendendo a ler a poesia de Dickinson, em primeiro lugar, devido à dificuldade genuína de sua obra. Emily é, amiúde, mais alusiva do que costumamos reconhecer, como nesta célebre quadra dirigida a si mesma, enquanto Lord agonizava: Circunferência, Noiva Reverente, Possuindo hás de ser Possuída por Cavaleiros ungidos Que ousem - te querer. -Poema 1636 Esses versos, ao menos em inspiração, poderiam ser considerados o hino de Dickinson ao amor livre, seguindo o estático Epipsychidion, de Shelley, em que Emilia Viviani, a amada de Shelley naquele momento, é chamada "Emily". Nesse aspecto, vou além de Sewall, pois a alusão a Shelley é um choque proposital que Dickinson nos transmite. Em sua consciência sublime, vasta, é ela a Circunferência; Reverente é o Juiz agonizante para todos os efeitos, o marido, e ela se declara disponível a qualquer Cavaleiro ungido que ouse cobiçá-la. O trecho respectivo em Epipsychidion ilumina a complexa metáfora de Dickinson - "Circunferência" -, revelando-lhe a natureza sexual: Nesse ínterim, Levantemo-nos, juntos caminhemos, Sob este céu de clima jónico, azul, Errando pelos prados, as montanhas Verdejantes subindo, onde se curva O céu, vento leve, a tocar a amada; Ou fiquemos na praia mais seixosa, Que, sob os beijos ágeis do oceano, Estremece e reluz em pleno êxtase -Possuindo e por tudo possuída, Calma circunferência de prazer, Possuindo-nos, até que seja o mesmo amar e viver Shelley e Emily, mutuamente possuídos, compartilham essa possessão com tudo o que existe de mais elevado no interior de suas circunferências. Voltemos à audaz Dickinson. Como Noiva Reverente (do Juiz), ela é possuidora, mas, depois que ele morre, ela prevê ser possuída, dependendo da ousadia dos que a cobiçarem. A poeta Dickinson oferece-nos aqui pouco espaço para ironia ou alegoria; ela toma emprestadas, junto à celebração mais explícita do amor livre feita por Shelley, as ideias de possuir, ser possuído e circunferência. Por mais abrangente que sejam as condições do ser e da imaginação atinentes à auto-identificação de Dickinson como Circunferência, o processo não pode ser compreendido, exclusivamente, como metafórico, pois implica, também, a diferença (observável nela própria) resultante do caso de amor com Otis Phillips Lord. E impossível ler Dickinson extensa e devidamente sem ser confrontado pela sua extraordinária autoconfiança como poeta, mulher e pensadora religiosa. Tal confiança se traduz em orgulho pela sua própria autoridade poética, e em autonomia demoníaca, sumamente individualizada. Recorro, de propósito, à noção emersoniana de autocon362 363 fiança: que relação tem Dickinson com Emerson, seu contemporâneo (embora mais velho)? Pessoalmente, ela o evitava. Em 11 de dezembro de 1857, Emerson proferiu conferência em Amherst, tendo, em seguida, jantado e passado a noite na casa do irmão e da cunhada da poeta, vizinhos de Dickinson. Aos 27 anos, à época, Dickinson ainda não era, absolutamente, uma reclusa; supõe-se que tenha assistido à palestra e jantado em companhia do sábio. Sue relembra que, na ocasião, Emily dissera que Emerson "parecia egresso de onde nascem os sonhos". Todavia, ela não enviou os seus poemas a Emerson, mas a Thomas Wentworth Higginson, herói de guerra, mas homem de letras de terceira categoria. Escrevendo a Higginson, ela fez uma pergunta que deve têlo deixado atónito: "Com o Reino do Céu no colo, poderia Emerson hesitar?" No meu entendimento, a pergunta tem uma deliciosa malícia, característica que raramente atribuímos a Dickinson. Diante de um volume de Folhas da Relva, em 1855, a reação de Emerson foi precisa, sob o ponto de vista da crítica, esplêndida, além de constituir forte incentivo. Diante dos poemas de Dickinson, teria ele reagido de modo diferente? As afinidades entre Dickinson e Emerson eram inúmeras, mas as diferenças eram maiores do que as observadas nos casos de Hawthorne e Melville. Tanto quanto Emerson, Dickinson tinha uma deficiência visual, fosse no sentido literal ou figurativo. Mas não compartilhava da fé infiel de Emerson, assim como não compartilhava da fé dos pais. A autoconfiança a impulsionou durante muito tempo, mas, no extremo, abandonou-a, ou foi por ela abandonada. E impossível definir a religião de Dickinson, em parte porque ela seguia Emerson ao exaltar o Capricho, que não pertence ao cosmo do judaísmo, do cristianismo ou do islamismo. A discussão mais inteligente da espiritualidade de Dickinson está contida no estudo de James Mclntosh intitulado Nimble Believing: Dickinson and the Unknown (2000), cujo título é extraído de uma das cartas da poeta para o Juiz Lord: A respeito de assuntos sobre os quais nada sabemos, ou, devo dizer, Seres [sobre os quais nada sabemos] - será "Phil" [o Juiz] um "Ser" ou um "Tema" - nós dois acreditamos e desacreditamos 100 vezes por Hora, o que torna flexível a fé.1 Em todo caso, a noção torna a ausência de fé, igualmente, flexível, e ninguém - nem a própria Dickinson - pode ter certeza absoluta quanto ao credo da poeta (se é que ela acreditava em algo). Encontro nos poemas pouca evidência de uma crença na Ressurreição de Jesus Cristo, e ela, certamente, não o aceitava como redentor. Mas o sofrimento de Jesus e seu triunfo sobre a dor eram de grande interesse para Dickinson, ao 1 Istoé, " nimble believing . [N. doT.] ' nasso que nada significavam para Emerson, que considerava o Gólgota uma Grande Derrota e, como norte-americano, dizia: "Queremos a Vitória, a Vitória dos sentidos e da alma." Dickinson encontrava no Gólgota uma vitória, mas por meio de uma postura afrontosa, como "Imperatriz do Calvário", ou seja, a noiva de Cristo. Insinua haver desposado o Espírito Santo, outra percepção tipicamente norte-americana. Mclntosh, talvez demonstrando um calvinismo residual maior do que o de Dickinson, considera a noção de "Reverência" da poeta um legado calvinista; no entanto, o termo parece ser um dos codinomes do homem com quem ela quase se casou, o Juiz Lord. Vale registrar que, embora, em última análise, o posicionamento religioso de Dickinson seja indescritível, Mclntosh está absolutamente certo quando diz que o mesmo não era contraditório. Ela desenvolvera um tipo de mitologia religiosa, mas declinava de expressá-la de maneira aberta e consistente, limitando-se a dramatizar nos poemas a sua posição nessa mitologia. A Reverência de Dickinson, tanto quanto o seu Enlevo, configura o Alto Romantismo, e ainda não estudamos bastante a sua complexa ligação com Words-wortli, Shelley e Keats. A exemplo de Emerson, Dickinson, de um modo que chega a ser constrangedor, idolatra o Poder, e faz troça, dizendo que, nas Escrituras, o Poder fica entre o Reino e a Glória, porque é o mais rebelde dos três. A "rebeldia" de Dickinson é a mesma de Emerson e, tanto quanto para ele, para ela a palavra denota "liberdade". Dickinson venerava Emerson, mas, ao contrário de Whitman e Thoreau, não pode ser considerada emersoniana, visto que fazia de tudo para manter o sábio, fisicamente, a distância. A suposta contenda com o calvinismo - onde estaria localizada? - pouco tem a ver com prudência. A proximidade de Emerson, como poeta e pensador, já era demasiada. Certos poemas poderiam ser atribuídos tanto a um quanto ao outro, o que, para Dickinson, não causaria a menor satisfação. Não seguir modelos é conselho do próprio Emerson, mas Dickinson não precisava de tal recomendação. Mas ambos são poetas das epifanias, no caso de Emerson, bem mais benevolentes. Como confrontar o génio de Dickinson? Melhor dizendo, como descrever um génio tão volátil, caprichoso, conceitualmente tão original? Ralph Franklin, editor definitivo da poesia de Dickinson, lembra-nos que é através da linguagem que adentramos a obra, pois Dickinson não se apropria de quaisquer normas públicas para a sua poesia". A observação mais útil sobre Dickinson de que tenho conhecimento partiu de Franklin: Como boa cidadã da era da imprensa, foi ávida leitora de jornais, revistas e livros, mas não era capaz de se expor ao ato comercial e impessoal que representava a publicação de seus trabalhos. Era uma poeta que, conhecendo os próprios limites, dizia: Não atravesso o terreno do meu Pai, rumo a qualquer Casa ou Cidade." 364 365 Disso eu depreendo que nos convém conhecer nossos limites, ao lermos a obra dessa mulher formidável, e ao tentarmos compreender-lhe o génio. Quantos escritores norte-americanos são igualmente ilustres? Eu diria, apenas três: Emerson, Whitman e Henry James. Há outros que muito se aproximam desse quarteto, dentre os quais Hawthorne, Melville, Mark Twain, Frost, Faulkner, Stevens, Eliot e Hart Crane. Se me fizessem a pergunta da ilha deserta, e só me permitissem um livro de autoria de um norte-america-no, eu diria Whitman, mas Dickinson e Emerson já bastariam. Seria tolice, com relação a Dickinson, ter qualquer atitude condescendente, ou recrutá-la para determinada ideologia ou crença. Hazlitt disse-o bem, que, em Wordsworth, tem-se a impressão de um novo começo, uma tabula rasa da poesia. A rigor, não se pode dizer o mesmo quanto à poesia de Dickinson, mas ela bem que se aproxima dessa situação. E, em termos de originalidade cognitiva, Dickinson supera qualquer poeta ocidental, exceto Shakespeare e Blake. Ela pensa com mais lucidez e sente com mais intensidade do que qualquer um de seus leitores, e tem plena consciência de sua superioridade. Portanto, procederei com cautela, ao tentar analisar-lhe o génio. A despeito da exuberância e da comicidade, Dickinson é uma poeta cujo método principal é o sofrimento intenso, às vezes tão dorido e grave, que propicia tãosomente o tipo de prazer mais difícil, tradicionalmente associado ao Sublime. Quando a leio durante algum tempo, e sempre que a interpreto em sala de aula, a experiência me exaure, tanto quanto se dá no caso de Rei Lear. Uma poeta que diz gostar de um rosto agonizante por sabê-lo verdadeiro arrisca-se a uma condenação, o que, de fato, ocorre, quando Camille Paglia a recruta para as fileiras do divino Marquês de Sade. Lembro-me de ter discutido a questão com Paglia (leitora esplêndida), mas não consegui convencê-la. Em Dickinson, prazer e dor mesclam-se, paradoxalmente, e, sempre vale registrar, em que pese a sua reputação, Dickinson pode ser uma poeta bastante erótica, embora o seu génio viceje no louvor/lamento do erotismo da perda. Morte e paixão nela travam um embate, e a morte vence, necessariamente. Em 1863, Dickinson atingiu a idade de Cristo, e viveu o ano mais fecundo de sua poesia. Por que motivo seria esse o seu annus mirabilis, só posso conjecturar. No final de abril de 1864, ela foi a Boston, a fim de se submeter a um tratamento oftálmico, e regressou a Amherst, em 28 de novembro; o ano anterior, no entanto, foi passado na tranquilidade do lar, sem grandes perdas pessoais. Em 1862, elegeu Higginson como preceptor, muito antes de ele assumir o posto de coronel em um regimento composto de soldados negros. As maiores perdas se acumulariam mais tarde: o pai, em 1874, Samuel Bowles, em 1878, Charles Wadsworth, em 1882, a mãe, nesse mesmo ano, o Juiz Lord, em 1884, Helen Hunt Jackson, em 1885, até que, em 15 de maio de 1886, ela própria faleceu. Em se tratando de um génio incrivelmente introspectivo, tão nosso desconhecido quanto o de Shakespeare, estímulos externos parecem desnecessários para instigar a imaginação. Não considero o ano de 1863 de modo arbitrário, pois a ele é atribuída a composição dos poemas compreendidos entre os números 499 e 793, segundo a edição de Franklin, quase 300 poesias e fragmentos de poesias, de um conjunto total de 1.789. Dentre os principais poemas desse intervalo incluem-se: "Uma Vala- mas o Céu acima" (508), "Eis minha carta ao Mundo" (519), "Sempre me pareceu - errado" (521), "Amarro o Chapéu - amarroto meu Xale" (522), "Avalio quando me disponho a enumerar" (533), "Meço cada dor que encontro" (550), "Ouvi uma Mosca zumbir - quando morri" (590), "O Cérebro - é mais vasto que o céu" (598), "Muita Loucura é divina Sensatez -" (620), "Os instantes Superiores da Alma" (630), "Não vi o Caminho - os Céus estavam costurados" (633), "Roda alguma pode me torturar -" (649), "Saí cedo - Levei meu Cão -" (656), "Uma Língua - para dizer a Ele que sou fiel!" (673), "Ó Criaturas Meigas-angelicais -" (675), "O Matiz que não me impregna - é o melhor" (696), "Não posso viver com Você" (706), "Minha Vida era -uma Pistola armada -" (764), "Renúncia - é Virtude cortante -" (782), "Publicação - é Leilão" (788). Selecionei esses 20 poemas de modo arbitrário, com base em meu gosto pessoal, e omito vários de valor singular; mas esses 20, por si só, formam um corpus de grande poesia. Como podem ter surgido em um ano, aparentemente, calmo? Examinado o ano anterior, na excelente edição compilada por Franklin, cabe indagar se 1862 não terá sido quase tão profícuo, com os poemas "Vais ter com Ele! Carta Feliz!" (277), "De todas as Almas criadas -" (279), "Devia sentir-me feliz, agora vejo -" (283), "De Bronze - e Brasa -" (319), "Existe uma certa luz oblíqua" (320), "Antes de o meu olho se apagar -" (336), "Senti um Funeral, no Cérebro" (340), "É tão assustador que diverte -" (341), "Não era a Morte, pois fiquei de pé" (355), "Após grande dor tem-se uma sensação formal" (372), "Não sei dançar na Ponta dos Pés -" (381), "Ousas ver Almas no 'Calor Branco'?" (401), "Não é preciso ser Casa - para ser Mal-assombrada" (407), "A Alma elege a própria Sociedade -" (409), "Foi como um Redemoinho, com um furo" (425), "Foi um Poeta -" (446), "Morri de Beleza - mas apenas acabava" (448), "Nossa jornada avançara -" (453), "Permaneço na Possibilidade -" (466), "Porque não pude me deter para a Morte -" (479), "De Branco em Branco -" (484). São 21, cada qual tão contundente quanto os 20 do grupo que pertence ao período posterior. Em 1864, Dickinson foi submetida a intenso tratamento ocular, e ausentou-se de casa. O ano em questão, sem dúvida, demonstra um declínio, mas um poema ao menos iguala-se a qualquer outro escrito por ela, em qualquer período: "Esta Consciência atenta" (817). A hipótese do efeito antitético produzido pela Guerra Civil no florescimento da ^e de Dickinson em 1862-63 foi defendida por Shira Wolosky, que entende a cres366 367 cente introspecção da poeta como reação à crise nacional. O argumento parece convincente, mas não temos meios de testá-lo. Por que se constata um declínio em Dickinson, após 1875? Nos últimos 11 anos de vida ela nos deu apenas cerca de 300 poemas, que mais parecem uma imitação, fruto do trabalho de algum pupilo da grande Dickinson. Desse período, apenas um poema é importante, ao menos segundo o meu ponto de vista: "A Bíblia é um velho Volume -" (1577). Dentre os poemas que Franklin não consegue datar, destacam-se o maravilhoso "A palavra Encarnada é raramente -" (1715), o tremendamente erótico "No Inverno no meu Quarto" (1742) e poucos outros. Pode-se aventar que a morte do pai, em 1874, talvez tenha destruído a motivação para a metáfora. Um mês após o falecimento de Edward Dickinson, ela escreveu, em céleb#e carta a Higginson: "Seu coração era puro e terrível, e não creio que exista outro similar." A relação entre os dois fora nitidamente distante, e profundamente reprimida; talvez a poesia, na melhor das hipóteses, surgira a partir da necessidade de preencher um vazio. Contudo, desagrada-me essa dedução, por mais óbvia que seja: Amherst e a Nova Inglaterra estavam repletas de pais calvinistas, matando-se de trabalhar para manter filhas solteironas, e, no entanto, não temos um bando de Emily Dickinsons, apenas uma, com seu génio singular. A irmã, Lavinia, também era solteira, mas não foi uma Charlotte ou Anne Brontè, para Emily. Diante de uma consciência tão inovadora, precisamos modificar, completamente, nossos procedimentos usuais, e concentrarmo-nos na influência da obra sobre a vida, e não no inverso. Tudo e todos, o Juiz Lord e a cunhada Sue, decepcionaram Emily Dickinson, exceto a sua poesia. À semelhança de William Blake e Gerard Manley Hopkins, ela contava com um pequeníssimo público leitor, e se beneficiou desse isolamento, conforme sucedeu com Blake e Hopkins. Decerto, existe na poesia lírica um elemento capaz de prosperar mesmo sem público, e isso se torna mais marcante quando a sociedade é excluída. Penso na poesia afro-ame-ricana, em que uma das maiores figuras é o recluso Jay Wright, quase desconhecido do público leitor, além de ser totalmente imune à bajulação ideológica e política, e de jamais ser atingido pela cantilena nacionalista. Emily Dickinson não foi apenas a religião de um só seguidor, mas não consigo detectar em sua poesia um único traço da política Whig praticada pelo pai e pelo amado de Emily, o Juiz Lord. O leitor pode ressaltar, se o quiser, que só a fortuna e a posição social da família Dickinson permitiram o florescimento da poeta, mas o argumento é inconclusivo, diante de Lavinia Dickinson e tantas outras jovens. O mundo académico, que valoriza a bajulação e abomina o génio, é o pior público leitor, e a pior autoridade possível, em Emily Dickinson, conforme demonstra, de modo patético, a grande massa de profissionais da atualidade. "Viva Emily!", gritam os chefes de torcida: "Ela era amante da cunhada, Sue!" Sucintamente, estabeleço aqui o meu entendimento com respeito ao génio de Dickinson. Conforme se observa em vários outros grandes poetas norte-americanos _ Whitman, Frost, Wallace Stevens -, ela começou a escrever tardiamente. Houvesse morrido aos 30 anos, talvez hoje não nos lembraríamos dela. Alguns poemas anteriores a 1861 têm valor, mas a força de Dickinson ainda não se manifestara. Aqui e ali é possível encontrar frases lapidares, bem como alguns poemas verdadeiramente sagazes. Mas, quando terminamos de ler o Poema 243, reconhecemos Emily Dickinson: A possibilidade - de passar Sem o menor embaraço -Diante da Conjetura É como uma Face de Aço Que, súbito, confronta a nossa Com sorriso de metal -Cordialidade da Morte Preparando a chegada triunfal "Conjectura" aqui é o que Stevens queria dizer com "uma abstraçãò sangrada, conforme ocorre com o homem, pelo pensamento". O que Dickinson pôs à prova, por meio do pensamento, foram os hinos de Isaac Watts, embora o intento da poeta se opusesse ao de um hino litúrgico. Dickinson atraiu Paul Celan, que a traduziu belissi-mamente, porque nos hinos de negação por ela compostos ele encontrou algo que se relacionava ao seu projeto, ainda que Celan se dirigisse "a ninguém", e Dickinson não deixe claro a quem se dirige. Certas dificuldades na interpretação de Dickinson, conforme, penso eu, Celan percebia, aproximam-se, de modo surpreendente, da recusa de Kafka em ser interpretado. Não há espíritos ou demónios em Dickinson (embora haja alguns fantasmas), e a palavra "génio" não é fácil de ser encaixada na métrica dos hinos; ela emprega o vocábulo apenas uma vez, em um poema cómico tardio (1873), sobre uma aranha, n° 1373: A Aranha como Artista Jamais foi empregada -Embora a sua Destreza Seja bem certificada 368 369 Por cada Vassoura e Criada, Em toda a Cristandade - Filha esquecida do Génio Tens a minha amizade Vêm-nos à mente o poema de Whitman, igualmente tardio, "Aranha Quieta e Paciente", mas o poema anterior não é dos melhores de Dickinson, ao passo que o de nQ 381, datado de 1862, certamente o é: Não sei dançar na ponta dos Pés -Homem nenhum me ensinou -Mas, amiúde, em minha mente, Um frémito me contagiou, E pensei saber dançar Bale -E a sensação se expressava Em Pirueta de causar inveja -Primeira bailarina eu superava, E embora não vestisse Gaze ,*' Meus Cabelos sem armar, Nem voasse ao Público - qual Ave Uma das garras ao ar Nem me torcesse em meio a Plumas, Nem rolasse em rodas de neve, Para assim deixar o cenário, O Teatro aplaudindo, como deve Nem soubessem que sou da Arte Que aqui - singela - me afeta - Nem Cartazes me promovessem -Como a Ópera a Casa estaria repleta Dickinson celebra o próprio génio, a exuberância demoníaca a que chama "frémito", querendo dizer "possuída". "Frémito" e "possessão", esta última em suas várias formas, para Dickinson, equivalem-se a génio e a demoníaco. "Êxtase", com suas variações, é o termo favorito de Dickinson, para designar o Sublime demoníaco, ou romântico, embora ela também brinque com a própria palavra "Sublime". O "júbilo" e o "deleite" do Alto Romantismo estão presentes em toda a sua obra, legados de Wordsworth e Coleridge, Shelley e Keats, mas "frémito" tem, para ela, conotação especial. Um dos meus poemas prediletos é o de n" 317, datado de 1862, o qual não arrolei anteriormente porque desagrada a alguns dos meus alunos; no entanto, aqui, neste maravilhoso poema-brincadeira, torna-se visível o génio singular de Dickinson: Deleitar é como voar -Ou uma Fração do ar, Como diriam na Escola - O Arco-íris gabola -Um novelo, Que a chuva tinge, com zelo, Viria bem a calhar, A não ser que voar Fosse um Sustento "Se ela resistisse", Ao Leste eu disse, Quando a Listra Curva Golpeou meu infantil Firmamento E eu, num frémito, Achei o Arco-íris a via comum, E os céus vazios A Excentricidade E assim com as Vidas - E assim com as Margaridas - Mágica vista - pelo susto E que se engana o justo -E grandes Dotes alentados -São por alguns lamentados -Nosso quinhão - na questão Terminado 370 371 O Frémito que a possui em "Não sei dançar na ponta dos pés" torna-se aqui o motivo da metáfora, quando, "num frémito", a poeta manipula os céus. Trago na memória um fragmento tardio (de 1879), nD 1508, desde a primeira vez que o li, na edição de Franklin: A voz dele, decrépita, trazia júbilo A palavra dela hesitava Que idade deve ter Nova de Amor Para Lábio idoso pôr, Que havia pouco em Frémito tinha Cor Será Deleite ou Pesar - pensava Ou Terror - que para decorar Esta vivida - entrevista Esse fragmento, provavelmente, retrata a relação erótica entre a poeta e o Juiz Lord, captando momentos preciosos, com o distanciamento típico de Dickinson. O Frémito, intensidade demoníaca da poeta, irradiara-se ao amante, mas apenas para torná-los mais velhos, pois a ironia da "Nova de Amor" é a eterna antiguidade. "Vivida" é a palavra adequada, seja lá o que possa "decorar" essa entrevista erótica Deleite, Pesar ou Terror. Não conheço ninguém que escreva assim, a não ser o Shakespeare tardio, no trecho que a ele cabe de Os Dois Nobres Parentes. Shakespeare e a Bíblia, ambos revalorizados, são os precursores mais autênticos de Dickinson, com os quais ela trava um embate na idade madura. Retorno ao frémito dickinsoniano, pela derradeira vez, invocando o poema n° 365, outro que deixei de incluir, novamente, porque desagrada a alguns alunos, que o consideram opaco: Eu sei que Ele existe. Em algum lugar - em silêncio - Escondeu a Sua vida preciosa Dos nossos olhos vulgares. E brinquedo de um instante -Ê carinhosa emboscada - Só para a Bênção que persiste Chegar a todos lugares! Mas - se a brincadeira do instante Se tornar cortante e séria - Se no frémito os olhares -Na Morte - dura - se vidrarem Não seria o divertimento Por demais dispendioso! Não teria a nossa pilhéria -Ido longe demais parar! Não sei se "Ele" se refere a Jesus Cristo, Charles Wadsworth ou Samuel Bowles, mas não creio que isso seja importante. A palavra central, mais uma vez, é "frémito", e tem origem em Dickinson, não em Jesus ou no amor humano fadado ao fracasso. Seja humano ou divino, Ele é um homem-deus, estranho ou alienado, que se sobressalta diante do frémito da "carinhosa emboscada"; no entanto, ela receia que o frémito, para ela natural, mas para ele intenso demais, possa se tornar uma pilhéria fatal. Parte da dificuldade gerada pela leitura desse poema resulta da falta de precedentes. O "frémito" dickinsoniano é a verdadeira intoxicação de falta de precedentes, o júbilo e o deleite da poeta com relação à sua própria autonomia e inventividade. Terá ela, afinal, se tornado reclusa por temer a sua própria força erótica? A linguagem de Dickinson reflete um tipo de laconismo consciente, tornando-se cada vez mais difícil, à medida que a obra prossegue. É indubitável a sua força poética, assim como nos casos da Bíblia, de Shakespeare, Blake e Whitman. Com o passar das décadas e dos séculos, Dickinson tornar-se-á um desafio cada vez maior. A exemplo de Whitman, ela há de se deter em algum lugar, à nossa espera. 372 373 ROBERT FROST A dor sozinha não basta: Eu quero ter força e peso P'ra sentir a terra gasta Ao longo do corpo indefeso. Essa quadra que conclui o poema "Para a Terra" é central à visão de Frost com relação a si mesmo. Sempre discípulo confesso de Emerson, Frost iguala-se ao oráculo, em termos de ferocidade demoníaca. "O mal abençoa e o gelo queima" é um verso de Emerson, mas poderia ser de Frost. Ambos os sábios norte-americanos acreditavam na coragem, mas ambos também percebiam, claramente, que a prova da vida poderia custar muito do nosso orgulho e, portanto, levar-nos à automistificação e ao sofrimento. Emerson e Frost compartilham da solidão norte-americana, a noção de que só podem se sentir livres se estiverem sozinhos. Frost é às vezes até mais severo do que Emerson, especialmente com ele próprio. O crítico e poeta Yvor Winters, que tanto desprezava Emerson quanto Frost, disse, com relação a este: "E um emersoniano que se tornou cético e inseguro, sem ter se reformado." O que Winters não conseguia perceber é que o ceticismo era central à visão de Emerson e Frost. Para Emerson, a Natureza era o Não-Eu, e Frost tampouco é um poeta da natureza. A principal diferença entre Emerson e Frost não diz respeito a argumento poético, mas a temperamento. Frost era propenso à depressão profunda e, em vários aspectos, era sonso, invejoso e cruel, o que dificulta qualquer comparação com o arguto, mas humano e desinteressado Emerson. Frost, porém, aprendeu a converter melancolia e niilismo em notável originalidade poética, uma negatividade sublime, dotada de eloquência triunfante, em poemas como "Diretiva", "O Máximo" e "O João-debarro". ROBERT FROST (1874-1963) Frost é confrade de Wallace Stevens, T. S. Eliot e Hart Crane, os principais poetas dos Estados Unidos no século passado. Nitidamente, Frost, que se tornou instituição nacional, destaca-se dos demais. Stevens era um advogado recluso, especializado em direito securitário, e Eliot exilou-se, voluntariamente, em Londres, onde trabalhou na função de editor. Hart Crane, nosso Rimbaud, nosso Christopher Marlowe, era, a um só tempo, pária e profeta. O Frost prata da casa, sábio nacional, o Emerson simplório, foi persona pública bastante útil, embora desprovida de valor intelectual ou estético. O Frost poeta era muito diferente: selvagem, em vez de sábio; revisionista do Emerson amadurecido e sombrio de A Conduta da Vida; acima de tudo, um artista difícil, complexo e, em seus poemas mais incisivos, sempre surpreendente. Para Frost, Emerson foi sempre a pedra de toque em questões de literatura, mas Frost era também extremamente versado na tradição literária: Emily Dickinson, Keats, Tennyson, Shelley e Browning tinham para ele especial importância, assim como o poeta romano Lucrécio, cuja postura epicurista assemelha-se à de Frost. A profunda amizade com o poeta inglês Edward Thomas decorria em parte de afinidades genuínas entre as obras dos dois poetas, e a sua leitura paralela é esclarecedora, conforme pretendo demonstrar. Em carta à filha (1934), Frost observou que "toda poesia afirma algo e subentende o resto. Então, por que fazer afirmações com a poesia? Por que não fazer com que ela se limite a tudo subentender? Hart Crane fez grandes avanços nesse sentido". Supõe-se que Frost esteja se referindo à capacidade de alusão e à "lógica da metáfora" em Crane. O método de Frost não se vincula ao de Crane, de Eliot ou de Stevens; no entanto, ele me parece um poeta igualmente difícil, muito à sua maneira. Os poemas de Frost que mais admiro são "Lenha Empilhada", "O João-de-barro", Destino", "O Máximo", "O Canto dos Pássaros Ficou Feio" e o arrasador "Diretiva", portanto, limitar-me-ei a esse arbitrário sexteto. Todos esses poemas afirmam algo, mas subentendem muito mais, porquanto Frost foi um dos génios da ironia especialmente soturna, caracterizada nem tanto pela afirmação de algo cujo verdadeiro significado difira do sentido mais óbvio, mas pela acepção que bate e volta, desconstruindo o sentido primeiro. Quanto autoconhecimento somos capazes de suportar? Frost concebeu a pergunta após refletir sobre Shakespeare, mas, em Frost, a questão assume um personalismo terrenho, quase intolerável, seja por ele ou pelo leitor atento. 374 375 ROBERT FROST Em "Lenha Empilhada", num dia nebuloso, o poeta caminha sobre a neve solidificada, em um pântano congelado. A perambulação não é agradável nem segura, e ele diz: "Eu estava longe de casa." Três entidades enigmáticas compõem o poema: o caminhante, um passarinho assustado e a pilha de lenha a que se refere o título. O pássaro receia (sem motivo) que Frost pretenda capturá-lo, a fim de arrancar-lhe a pena branca da cauda: "como quem leva / Para a esfera pessoal tudo o que é dito". Pelo que se supõe, a busca da pena explica o fato de esse pai de família se encontrar tão distante de casa, mas pássaro e poeta desaparecem, gradualmente, diante da eminência solitária de uma pilha de lenha, presença inexplicável no pântano congelado. Alguém, um ou dois anos antes, cortara, rachara, medira e abandonara a pilha de bordo, apoiada por uma estaca, prestes a ruir: Pensei que somente Alguém sempre disposto a novo achado Esqueceria o fruto do próprio trabalho, Que o fatigou, labor do machado, ;' E deixaria isso aqui, longe da lareira, Tentando aquecer o pântano gelado, No decompor lento e sem fumaça da madeira. Às vezes, uma pilha de lenha é apenas uma pilha de lenha; teremos aqui um poema abandonado, ou um casamento agonizante? Não o sabemos; "Lenha Empilhada" está no volume Norte de Boston (1914), publicado, pela primeira vez, em Londres, logo após Frost ter completado 40 anos; ao que tudo indica, o livro foi escrito em Gloucestershire, durante um período em que Frost conviveu de perto com Edward Thomas, poeta inglês morto na França, em 1917, pouco antes de completar 40 anos. Thomas e Frost trocaram influências, e, em certas ocasiões, quando leio a obra de um, sinto-me assediado pelo outro. Thomas tem um poema por demais comovente - "Liberdade" -, dotado de uma sapiência que Frost, no que tem de melhor, compartilha e leva adiante: Pessoa menos livre não pode haver Que aquele que nada tem a fazer, Livre apenas no que não tem em mente, E nada tem ele em mente. Esses versos aproximam-se do ethos de Frost, quando o poeta afirma - "Alguém sempre disposto a novo achado" -, o que significa viver apenas pelo poema que ainda está por ser escrito. Frost sobreviveu à esposa, Elinor, cerca de 25 anos; um dos filhos do casal morreu aos três anos de idade, outro suicidou-se, e uma filha, assim como a irmã de Frost, era doente mental. A natureza de Frost era resistente, e ele passou por muitas tristezas, na condição de marido e pai. O autoconhecimento, nele sempre marcante, é belamente ilustrado na célebre poesia "O João-de-barro", que consta do livro Intervalo na Montanha (1916), em que o poeta espera que saibamos que o referido passarinho constrói um ninho em forma de forno: O pássaro podia agir qual os demais, Mas ele sabe no canto não cantar. A pergunta sem palavras ou sinais É, o que fazer de algo menor e singular. Eis uma das marcas de Frost: uma negatividade sustentada, que reflete o seu posicionamento demoníaco emersoniano, pós-cristão. Na prática, Frost é um niilista assumido, assim como Emerson. Algum arconte gnóstico, ou demiurgo, criou o cosmo de Frost, em uma criação que, simultaneamente, implica a própria queda. O poema "Destino", ao mesmo tempo, elegante e sinistro, baseia-se em perguntas retóricas que promovem uma inversão do argumento cristão contrário à ideia de destino: O que levara a aranha àquela altura, E empurrara a mariposa a tal agrura? O que, se não o sombrio destino das trevas?Um poema impactante - "O Máximo" - foi incluído no volume Arvore do Testemunho (1942), embora tenha sido escrito muito antes da data de publicação dessa coletânea. O poema demonstra que Frost tinha plena consciência do seu próprio solip-sismo e sadismo. Emily Dickinson, a mais sutil precursora de Frost, dizia que a sua própria consciência se dava conta dos vizinhos e do sol. Frost, em uma de suas inúmeras auto-análises, sempre tão perspicazes quanto oblíquas, retrata uma figura masculina que pensava ser o único guardião do universo", e que ouve na natureza apenas um eco que zomba da sua voz: De manhã, à beira da praia pedregosa, Ele gritava p'ra vida, que ela não quer O próprio amor de volta, em voz enganosa, Mas outro amor, sincero, seja qualquer. 376 377 Din ROBERT FROST Em "Lenha Empilhada", num dia nebuloso, o poeta caminha sobre a neve solidificada, em um pântano congelado. A perambulação não é agradável nem segura, e ele diz: "Eu estava longe de casa." Três entidades enigmáticas compõem o poema: o caminhante, um passarinho assustado e a pilha de lenha a que se refere o título. O pássaro receia (sem motivo) que Frost pretenda capturá-lo, a fim de arrancar-lhe a pena branca da cauda: "como quem leva / Para a esfera pessoal tudo o que é dito". Pelo que se supõe, a busca da pena explica o fato de esse pai de família se encontrar tão distante de casa, mas pássaro e poeta desaparecem, gradualmente, diante da eminência solitária de uma pilha de lenha, presença inexplicável no pântano congelado. Alguém, um ou dois anos antes, cortara, rachara, medira e abandonara a pilha de bordo, apoiada por uma estaca, prestes a ruir: Pensei que somente Alguém sempre disposto a novo achado Esqueceria o fruto do próprio trabalho, Que o fatigou, labor do machado, E deixaria isso aqui, longe da lareira, Tentando aquecer o pântano gelado, No decompor lento e sem fumaça da madeira. Às vezes, uma pilha de lenha é apenas uma pilha de lenha; teremos aqui um poema abandonado, ou um casamento agonizante? Não o sabemos; "Lenha Empilhada" está no volume Norte de Boston (1914), publicado, pela primeira vez, em Londres, logo após Frost ter completado 40 anos; ao que tudo indica, o livro foi escrito em Gloucestershire, durante um período em que Frost conviveu de perto com Edward Thomas, poeta inglês morto na França, em 1917, pouco antes de completar 40 anos. Thomas e Frost trocaram influências, e, em certas ocasiões, quando leio a obra de um, sinto-me assediado pelo outro. Thomas tem um poema por demais comovente - "Liberdade" -, dotado de uma sapiência que Frost, no que tem de melhor, compartilha e leva adiante: Pessoa menos livre não pode haver Que aquele que nada tem a fazer, Livre apenas no que não tem em mente, E nada tem ele em mente. Esses versos aproximam-se do ethos de Frost, quando o poeta afirma - "Alguém sempre disposto a novo achado" -, o que significa viver apenas pelo poema que ainda está ser escrito. Frost sobreviveu à esposa, Elinor, cerca de 25 anos; um dos filhos do ai morreu aos três anos de idade, outro suicidou-se, e uma filha, assim como a irmã ¦ prost) era doente mental. A natureza de Frost era resistente, e ele passou por muitas ' tezas, na condição de marido e pai. O autoconhecimento, nele sempre marcante, é b lamente ilustrado na célebre poesia "O João-de-barro", que consta do livro Intervalo na Montanha (1916), em que o poeta espera que saibamos que o referido passarinho constrói um ninho em forma de forno: O pássaro podia agir qual os demais, Mas ele sabe no canto não cantar. A pergunta sem palavras ou sinais É, o que fazer de algo menor e singular. Eis uma das marcas de Frost: uma negatividade sustentada, que reflete o seu posicionamento demoníaco emersoniano, pós-cristão. Na prática, Frost é um niilista assumido, assim como Emerson. Algum arconte gnóstico, ou demiurgo, criou o cosmo de Frost, em uma criação que, simultaneamente, implica a própria queda. O poema "Destino", ao mesmo tempo, elegante e sinistro, baseia-se em perguntas retóricas que promovem uma inversão do argumento cristão contrário à ideia de destino: O que levara a aranha àquela altura, E empurrara a mariposa a tal agrura? O que, se não o sombrio destino das trevas?Um poema impactante - "O Máximo" - foi incluído no volume Arvore do Testemunho (1942), embora tenha sido escrito muito antes da data de publicação dessa coletânea. O poema demonstra que Frost tinha plena consciência do seu próprio solip-sismo e sadismo. Emily Dickinson, a mais sutil precursora de Frost, dizia que a sua própria consciência se dava conta dos vizinhos e do sol. Frost, em uma de suas inúmeras auto-análises, sempre tão perspicazes quanto oblíquas, retrata uma figura masculina que pensava ser o único guardião do universo", e que ouve na natureza apenas um eco que zomba da sua voz: De manhã, à beira da praia pedregosa, Ele gritava p'ra vida, que ela não quer O próprio amor de volta, em voz enganosa, Mas outro amor, sincero, seja qualquer. 376 377 Din ROBERT FROST Essa resposta do amor "sincero" constitui violenta ironia, nem tanto em termos de desumanidade (reação geral da crítica), mas de agressividade masculina, quando um grande peixe irrompe da superfície da água: E se bateu, vertendo qual cascata, E rolou pelas pedras com passo duro, E forçou a vegetação, sem mais bravata. , "Vertendo", "duro", "forçou" - são termos que enfatizam o masculino: o "outro amor" é reduzido a "o máximo", e qual seria a resposta se não uma rendição ao masculino? Imediatameiíte a seguir, Frost inclui o belo e difícil poema "O Canto dos Pássaros Ficou Feio", um soneto cujo título recorre no penúltimo verso: O canto dos pássaros ficou feio, P'ra fazê-los calar foi que ela veio. * A queda de Eva, segundo a interpretação de Freud, precipita-se na linguagem, que, por sua vez, se torna a queda da natureza, processo que feminiza o canto dos pássaros. O conceito é bastante miltônico, e não é preciso ser feminista para se ficar, ao mesmo tempo, impressionado e envergonhado diante dele. Todavia, esse complexo soneto foi composto logo após a morte de Elinor Frost, sendo uma espécie de elegia. Assim como em "O Máximo", Frost escreve na qualidade de um Adão despojado e, com honestidade implacável, não afirma haver aprendido muito com a experiência da perda. "Diretiva", publicado no volume Steeple Bush (1947), ao meu ver, de todos os poemas de Frost, é o mais incisivo e forte, amargo como um julgamento feito sobre um passado pessoal, mas bastante potente no que concerne à capacidade de retornar às origens, em uma busca das mais dolorosas. Aquele que busca, ao chegar a um local onde existe água de beber, é instado: "Bebe e revigora-te, além da confusão." Frost considerava "Uriel", de Emerson, "o maior poema ocidental", e essa "perplexidade", aqui e alhures, é, ironicamente, apropriada de "Uriel". Nesse poema, o deus Uriel (Emerson, proferindo o "Discurso à Faculdade de Teologia") afirma que "O mal abençoa e o gelo queima" e o céu, irado, parte-se ao meio: A trave do Destino já cedeu; O elo entre o bem e o mal se rompeu; O forte Hades não conteve seu povo, E reina a confusão de novo. "O poema é uma resistência temporária à confusão" - máxima registrada por Frost no ensaio "A Figura Formada pelo Poema" - refere-se a "Uriel". Supostamente, tanto Emerson quanto Frost sabiam que a raiz indo-européia da palavra "confusão" significava, inicialmente, ingestão de libações aos deuses. Beber e, por conseguinte, revigorar-se, além da confusão, seria transcender esse antigo culto. "Diretiva", poema escrito por um guia "Que tem no coração apenas a tua perda", conclui com uma alusão surpreendente a uma passagem bastante problemática do Evangelho de Marcos: Guardei, escondido no arco da raiz De um antigo cedro à beira d'água, Um cálice quebrado, como o Graal, Encantado, p'ra em mãos erradas não cair, P'ra não ser salvo, e diz São Marcos que eles não o sejam. (Roubei o cálice da casa de boneca das crianças.) Alcançaste o local onde há água de beber. Bebe e revigora-te, além da confusão. É perceptível a satisfação profana de Frost diante de Marcos 4:12: "a fim de que vendo, vejam e não percebam; e ouvindo, ouçam e não entendam; para que não se convertam e não sejam perdoados".2 Contudo, de modo implacável, Frost separa os leitores em dois grupos, desafiando-os: ou lêem "Diretiva" corretamente, ou serão condenados. O poeta relembra uma casa arruinada, uma fazenda arruinada, um casamento quase arruinado e observa, de maneira tocante: "Não era casa de boneca, era casa de verdade." Diretiva" exala "uma certa frieza" e constitui uma "experiência penosa", ambas dirigidas ao leitor. "Quando descumprimos leis, perdemos o controle da realidade central", escreve Emerson. O discípulo, Frost, grave e isolado (a despeito do status de celebridade pública), em última instância, dirige-se a uma elite e só lhe permite árduos prazeres. 1A Bíblia de Jerusalém, op. cit., p. 123. [N. do T.] 378 379 WALLACE STEVENS c$& d&p elkp WALLACE STEVENS Diz a X que a fala não é sujo silêncio Esclarecido. É silêncio encardido. É mais que imitação para o ouvido. Falta-lhe essa venerável complicação. Seus poemas*não são da segunda parte da vida. Não tornam o visível um pouco difícil. De se ver... - "As Criações do Som" X, devemos supor, é T. S. Eliot, que não era um dos poetas favoritos de Wallace Stevens. Se me pedirem para identificar a genialidade específica nos poemas de Stevens, eu diria que, deveras, "tornam o visível um pouco difícil / De se ver". Stevens, a exemplo de Dickinson, é avesso a denominações: Joga fora as luzes, as definições, E diz do que vires no escuro, Que é isto ou que é aquilo, Mas não uses os nomes infames. O visível, por exemplo, os nomes, é alheio a Stevens, porque o seu propósito é raspar o verniz, purificar a face do seu próprio demónio (segundo a frase de Blake). É estranho que Stevens, poeta visionário, raramente tenha seus escritos interpretados a contento. Poeta do Alto Romantismo disfarçado de advogado de seguradora, Stevens confundia o público leitor. Somente após a sua morte, em 1955, ele, gradualmente, passou a ser encarado como o poeta de sua geração, suplantando Eliot, Pound e William Carlos Williams. Assim como Shelley e Whitman, Stevens era um poeta lucreciano, celebrante de um cosmo centrado na entropia e na morte inevitáveis. Tal concepção não parece nada ale"". mas existe em Stevens uma alegria epicurista, e uma exuberância linguística similar àde Shakespeare, em Trabalhos de Amor Perdidos. Quanto mais velho, mais me comovo com a franqueza fina igualmente típica de Stevens, que nos oferece a mais convincente defesa da poesia apresentada nos tempos atuais: Disso brota o poema: de que vivemos alocados No que não é nosso e, mais ainda, não somos nós; E como é duro, apesar dos dias blasonados. 380 381 WALLACE STEVENS WALLACE STEVENS (1879-1955) Quando se conhece de cor, há mais de meio século, a maioria dos poemas de um autor, é difícil manter-se a perspectiva. Wallace Stevens é, depois de Whitman, Di-ckinson e Henry James, o grande mestre da nuança no idioma norte-americano. De modo singular, Stevens é o poeta do "zunido dos pensamentos perdidos na mente". O mais sutil dos grandes poetas norte-americanos é hoje em dia mal servido por estudos centrados no contexto sociopolítico; tais análises revelam o que qualquer exame superficial das cartas do ppeta revelaria: que esse advogado de seguradora era um republicano que apoiava Taft, e que sempre defendia os valores de Bucles County, no estado da Pensilvânia, onde ele cresceu, na década de 1880. Já não se realiza a árdua tarefa de confrontar, diretamente, a riqueza retórica da poesia de Stevens. Leio Stevens, constantemente, desde menino, aceitando como dada a sua genialidade. O presente livro não visa à análise e à leitura cerrada, mas à conjectura e à justaposição. Neste breve retorno a Stevens, sobre quem escrevi, detidamente, em outra obra, não pretendo me ocupar de determinados poemas, mas da problemática do génio, que, no caso, se traduz na força da sua postura estética, força tão intensa que transformou -nos poemas- um executivo de seguradora em visionário. Stevens era ríspido em se tratando de questões de influência: Pater e Emerson "ficavam em algum lugar do sótão", e Walt Whitman havia denegrido a condição dos poetas norte-americanos através da persona do desocupado. No entanto, estes - ao lado de Wordsworth, Coleridge, Shelley, Keats e Tennyson - foram os principais precursores do visionário de Hartford. Emerson, embora depreciado, paira sobre toda a obra de Stevens, cuja prosa crítica se confunde com a de Pater. Whitman é uma presença/ausência mais profunda e soturna. Muitas vezes, olhando, durante algum tempo, um ambicioso poema de Stevens, alguma figura submersa surge à superfície, à semelhança do nadador, no poema de Whitman intitulado "Adormecidos". Em "A Pedra", "As Auroras do Outono", "A Coruja no Sarcófago" e outras tantas visões de Stevens, a forma assumida pelo outro é a do desgrenhado Walt, melancólico demónio e irmão de Stevens. Não estou querendo dizer que o Velho Poeta do Brooklyn, de Manhattan, e de Camden, em Nova Jersey, fosse o esteta da Pensilvânia, mas que o que havia de mais forte na poesia de Stevens encontrou o génio da lâmpada no bardo da Noite, Morte, Mãe e Mar, quádruplo uníssono que ressoa em Stevens, com a mesma urgência e frequência observadas em Whitman e Crane. Afinal, em toda a literatura norte-americana, quem nos ofereceu o epítome mais eloquente do poeta nacional? No extremo Sul o sol do outono passa, Qual Walt Whitman, andando pelo litoral rubro. Ele canta as coisas que dele fazem parte, Mundos que já foram e que serão, morte e dia. Nada é final, ele canta. Homem algum verá o fim. Tem a barba em chamas e o cajado é uma labareda. Whitman é, ao mesmo tempo, o Moisés e o Aarão norte-americano e, à semelhança de ambos, é o profeta apocalíptico que canta a colheita da nossa "Terra Noturna". Inspirado pelo seu entendimento de Whitman, Stevens, momentaneamente, imita a voz do próprio Walt, cantando a canção do eu: Suspira por mim, vento noturno, nas folhas do carvalho. Estou cansado. Dorme por mim, céu sobre colina. Grita por mim, alto e alto, sol feliz, quando te levantares. Emerson, resenhando a edição de Folhas de Relva (1855), elogiou Whitman, acima de tudo, pela força. Stevens, ironista incorrigível, busca extrair um pouco da força de Whitman, muitas vezes sem saber que o faz. Na grande epifania - Apontamentos para uma Ficção Suprema - o oitavo canto do poema "Deve Dar Prazer", que inicia com as palavras "Em que devo crer?", Stevens funde Whitman em Wordsworth, produzindo um efeito extraordinário, a meu ver, sem se dar conta da interação alusiva: Wordsworth, no Prelúdio 14 (versos 91-120), diz, referindo-se aos grandes poetas que se ocupam De todo este compasso do universo: Podem, a partir de si, emanar Mutações afins; p'ra si mesmos criar Uma existência; e quando for criada, Podem agarrá-la, ou serem agarrados Pela sua maestria, Qual anjos detidos em vôo por sons... Anjo", Stevens escreve, "Cala-te (...) e ouve / A melodia luminosa do som puro." Mas a alusão a Wordsworth é uma espécie de memória seletiva, que esconde as mutações afins (ainda mais intensas) com relação a Whitman, presentes na décima oitava seção de As Margens do Ontário Azul 382 383 Hei de enfrentar as margens do dia e noite, Hei de saber se devo ser menos que elas, Hei de ver se sou tão majestoso quanto elas... "Estarei, eu que imagino o anjo, menos satisfeito?" é a pergunta retórica formulada por Stevens, que procede em busca de "um tempo / Em que a majestade é o espelho do eu". Sem Whitman, Stevens não saberia como celebrar o eu, o que (deixando de lado os exegetas) é uma preocupação central em sua poesia. As negações de Stevens (mais uma vez, a exemplo de Whitman) nunca são finais. De Whitman, Emerson e Dickinson, Stevens herdou a propensão norte-americana para o despojamento das denominações. Devemos nos livrar de luzes e definições, e ver no escuro isso e aquilo: "Mas não [usar] os nomes infames." O eu Verdadeiro, o Eu de mim mesmo, compreende Noite, Morte, Mãe e Mar; estes nomes não se deterioram. E instrutivo observar as paródias e as troças constrangidas de Whitman que povoam a poesia de Stevens. Especialmente um poema - "Do Berço que se Embala sem Cessar" - não deixava de atormentá-lo. Ouvimos em Stevens "Um oceano interno se agitando / De dedos e corais longos, caprichosos", um poeta "A quem agitações oraculares não deram trégua", e, segundo consta, "a noite não é o berço que elas choram". Todavia, o berço "que se embala sem cessar" segue o seu movimento, enquanto Stevens observa uma noite comum em New Haven (onde não há outros tipos de noite), considerando-a "um poema eternamente elaborado". Tanto quanto T. S. Eliot e Henry James, Stevens é perseguido pelo poema "A Ultima Vez que Lilases Floresceram à Porta", embora aqui, novamente, o poeta procure em vão se libertar de Whitman através da troça. Crispin, poeta fracassado de O Comediante como a Letra C, é "detido, bruscamente, / À porta, devido à sua volumosa florescência". Quando Stevens alcança a genialidade, em Apontamentos para uma Ficção Suprema, os "Lilases" assumem papel positivo, intensificado na meditação do poeta sobre a morte, em "A Coruja e o Sarcófago", "As Auroras do Outono" e "A Rocha". Como pode um poeta norte-americano confrontar "as imagens mais supremas da própria morte", sem recorrer à rica fonte de Whitman? A mãe - "Minha memória, mãe de todos nós, / Mãe primeira e mãe / Dos mortos" - junta-se à "palavra mais simples", morte, e aos lilases, um símbolo de salvação: "Os lilases chegaram e floresceram, como a cegueira purificada." A força poética de Stevens era sobrenatural, dotada de uma linguagem exuberante ao ponto de fazer lembrar Shakespeare, em Trabalhos de Amor Perdidos. No sentido primário, familiar, da palavra génio, a vocação poética de Stevens é indubitável e, para lhe servir de musa, tudo o que ele necessitava era de uma "amante interior" (bastante miltônica) Por que, então, precisava de Walt Whitman, na condição de demónio (mal) reprimido, de génio, no sentido de alter egd "Fui o mundo em que caminhei" é proposição de Whitman, mas o verso é de Stevens. Na minha juventude, a visão que os críticos tinham de Stevens era de uma espécie de poeta-dândi, obcecado pela linguagem afetada. Em seguida, na minha meia-idade, predominou a visão do Stevens Boneco de Neve, infinitamente negativo, aquele que percebia "o nada que é". Agora, na velhice, oferecem-me um novo Stevens, historiciza-do, determinado socialmente. Mas nenhum desses foi, é ou será o poeta Wallace Stevens, que seguiu, de modo evasivo e com resistência maciça, o génio dos poemas da nossa atmosfera, estabelecido por Emerson e Whitman. Jamais podendo evitá-lo, Stevens moveu-se na direção de se tornar o "mestre mais severo / Mais fustigante" de "Uma Noite Comum em New Haven". Durante uma conferência proferida em Yale, ele citou um breve poema, maravilhoso, "Clara Meia-noite", como exemplo do controle exercido por Walt Whitman sobre a sua temática, sobre o seu entendimento do mundo: Esta é a tua hora Ó Alma, tua fuga ao sem palavras, Longe dos livros, longe da arte, o dia apagado, a lição feita, Tu surgindo firme, calada, mirando, refletindo sobre os temas que mais gostas, Noite, sono, morte e as estrelas. Tais versos não são afetados, e não teriam sido escritos por um Boneco de Neve, tampouco são energizados por questões sociais: são puramente Walt Whitman, apropriados pela memória de Stevens. É também verdadeiro que os temas mais apreciados pela alma de Stevens são "Noite, sono, morte e as estrelas". Durante toda a vida amei a poesia de Stevens porque nela "os círculos se precipitam e as cores do cristal surgem / E se incendeiam". Em um poema subestimado, "Tema Paroquial", Stevens reúne a propensão pela afirmação de Whitman e o alcance de limites (bem à moda de Whitman): Esta saúde é santa, esta cantiga do eu, Este canto bárbaro do que é forte, este clamor. Mas, salvação aqui? E o chocalhar de gravetos Em latas e caixas? E os cavalos comidos pelo vento? 384 385 É possível que os dois primeiros versos sejam uma defesa de A Canção de Mim Mesmo, diante do ataque de George Santayana, que a qualificou de "poesia do barbarismo". Salvação, seja em Whitman ou em Stevens, jamais constitui problema: não são poetas cristãos, e sim lucrecianos. Nada é final, homem algum verá o fim. Emerson levara Whitman ao litoral da América do Norte, a fim de fundar uma poesia distintamente norte-americana. Wallace Stevens também realizou "O génio vital, infalível, / Concretizando meditações, grandes e pequenas". T. S. ELIOT Toca-me a fantasia que se enrosca Nesta imagem, e fica assim unida: Noção infinitamente gentil, Infinitamente, sofrida. O Eliot dos primeiros "Prelúdios" é herdeiro legítimo de Tennyson e Whitman. Após o sucesso internacional de A Terra Devastada (1922), Eliot, aos poucos, transfor-mou-se no monarquista anglo-católico e conservador de Quarta-feira de Cinzas (1930) e no visionário de The Sacred Wood e volumes subsequentes de exclusão crítica. Lem-bro-me de, quando jovem, ter reagido com fúria à avaliação que Eliot fez de William Blake: Blake era dotado de considerável capacidade para entender a natureza humana, de uma concepção notável e original da linguagem e da musicalidade da linguagem, bem como de um talento para a visão alucinatória. Se tais dons fossem controlados por um respeito à razão e ao bom senso, à objetividade da ciência, teria sido melhor para ele. O que o seu génio necessitava, e do que, infelizmente, carecia, era uma estrutura de ideias estabelecidas e tradicionais, que o teriam impedido de se entregar à sua própria filosofia e teriam feito com que ele concentrasse a atenção na problemática do poeta. Uma confusão de pensamento, emoção e visão é o que encontramos em uma obra como Assim Falou Zaratustra; não se trata, em absoluto, de uma virtude latina. A concentração resultante de um arcabouço que combina mitologia, teologia e filosofia é um dos motivos por que Dante é um clássico e Blake apenas um poeta genial. Talvez a falha não seja do próprio Blake, mas do ambiente, que não lhe propiciou aquilo que ele precisava; talvez as circunstâncias o tenham compelido a inventar, talvez o poeta demandasse o filósofo e o mitólogo, embora Blake talvez não tivesse consciência dessas motivações. Passado meio século, a reflexão de Eliot parece puro esnobismo. Dante, de fato, é um clássico, mas não devido a "uma estrutura de ideias estabelecidas e tradicionais"; era, tanto quanto Blake, um poeta genial. A crítica literária e cultural de Eliot parecem- 386 387 me um mal, mas, na qualidade de poeta, Eliot era dotado de genialidade singular, ainda que não se comparasse a Dante e Blake. É mais justo compará-lo aos contemporâneos norte-americanos, Frost e Stevens, logo antes, e Hart Crane, logo após. Eliot não me magoa, como o faz Frost, tampouco me conforta, como o faz Stevens em As Auroras do Outono, nem me transporta ao Sublime, como o faz Hart Crane. No entanto, as cadências de Eliot me perseguem: Tinhas uma visão da rua que a própria rua mal compreende. A exemplo dostlramaturgos jacobianos que tanto admirava - Cyril Tourneur e John Webster -, Eliot capta as nuanças precisas da traição, da má-fé, do nosso tédio com relação à nossa própria hipocrisia: Preciso encontrar Algum meio incomparavelmente claro e hábil, Algum meio que nós dois possamos compreender, Simples e falso como um sorriso e um aperto de mão. THOMAS STEARNS ELIOT (1888-1965) Eliot é, sem dúvida, um dos grandes poetas norte-americanos, apesar de alguns senões aqui registrados. Emily Dickinson, Walt Whitman, Hart Crane e Wallace Stevens são mais importantes para mim, mas, no que têm de melhor, Eliot e Robert Frost são eminentes. Na condição de crítico, é preciso saber dizer: não gosto dele, dela ou de determinada obra, mas o génio transcende a afeição literária. Deixo de lado as peças teatrais em verso escritas por Eliot, quase impossíveis de serem encenadas ou lidas, bem como a sua crítica, apesar de esta ser importante, do ponto de vista histórico. Quanto ao que atualmente seria denominado crítica cultural, ignoro, fazendo uma careta. Resta apenas o anti-semitismo, bastante cativante, para quem é anti-semita; mas para quem não é, não. A poesia do início da carreira de Eliot, até cerca de 1925, de modo geral, tem ótima qualidade. A produção continuaria por mais 40 anos, período em que a obra central é Quatro Quartetos, caracterizada por inúmeros trechos notáveis, apesar de uma certa prolixidade. Basicamente, Eliot teve uma década poética - 1915-1925 -, seguindo a tradição de Wordsworth e Whitman, que, após uma grande década, declinaram. Cabe registrar a questão da influência de Eliot, que tem ramificações internacionais. No que diz respeito à crítica, atualmente, essa influência diminuiu, mas já foi imensa. Quanto à influência da poesia, até meados do século XX, era também extremamente forte, mas encontra-se hoje desgastada. Pretendo aqui abordar Eliot sem ideias preconcebidas, na tentativa de isolarlhe o génio poético. É sabido que, como precursores, ele apontava Dante e Baudelaire, ou poetas franceses menores, em vez de qualquer autor de língua inglesa. Mas isso é, tipicamente, conversa fiada: os principais precursores de A Terra Devastada são "A Ultima Vez que Lilases Floresceram à Porta", de Whitman, e Maud: um Monodrama, de Tennyson. Eliot gostava de apontar dramaturgos jacobianos de menor expressão - John Webster e Cyril Tourneur -, mas a sua poesia é acossada por Hamlet, peça por ele, comicamente, classificada de "fracasso estético". E assim é: confiemos no poema, não no poeta. Uma maneira de ler Eliot, hoje menos corrente, mas ainda popular, é ver na obra, como um todo, um processo de autoconversão. Nessa ótica, todos os escritos até Quarta-feira de Cinzas tornam-se uma busca da graça, precipitada, finalmente, em Quatro Quartetos. Tomando emprestadas palavras do próprio Eliot, referindo-se a ennyson, a qualidade da sua dúvida é alta, a da fé, menos convincente. Na condição mestre da poesia religiosa, Eliot não se compara a George Herbert ou a Christina 388 389 Rossetti. A sua força era de outro tipo: localizava-se na ironia laica, na sátira a si mesmo, na intensidade alucinatória, no ataque ao Romantismo lírico, bem como no monólogo dramático, neste último caso, a grande dívida com Robert Browning tem sido, em parte, ignorada. O modernismo de Eliot ainda constituiu um episódio do Romantismo, fato que não pode ser considerado uma falha de Eliot, mas uma tendência desenvolvida contra a corrente. O poeta aprendeu a reconhecer Shelley como o melhor adaptador de Dante à poesia inglesa. Algumas das primeiras avaliações feitas por Eliot, jamais revistas, têm valor, se levadas em conta no sentido contrário àquele que expressam. Os ensaios de Emerson, ele dizia, eram um estorvo, e William Blake deveria ter sido salvo (pela cultura!) e "impedido de se entregar à sua própria filosofia". Quanto a Wah Whitman, na melhor das hipóteses, Eliot era evasivo. Preferia o poeta francês (menor) Jules Laforgue a Whitman, opinião que teria surpreendido Laforgue, que traduziu e reverenciava Whitman. Em 1928, filiando-se ao verso livre de Laforgue (aparentemente, sem saber que o verso de Laforgue era derivado de Whitman), Eliot afirmou: "Só li Whitman na idade madura e, para conseguir fazê-lo, tive de controlar uma aversão à forma e a grande parte do conteúdo da sua poesia." Tal asserção é inverídica, mas também denota uma ambivalência maravilhosa. Dois anos antes, Eliot havia anteposto Whitman a Baudelaire, observando que o poeta norte-americano confundia os limites entre o eu e o mundo, enquanto o poeta francês mantinha essa fronteira bem demarcada. Portanto, Baudelaire contemplava o abismo com bravura, ao passo que Whitman não enxergava com clareza. A obra Ara Vos Prec (1920), de Eliot, continha uma pequena "Ode" (de má qualidade), o único poema publicado, primeiramente, em um determinado livro e que, mais tarde, ele excluiria da coletânea de suas obras. A ode parece relatar o fracasso de uma noite de núpcias (supostamente a dele próprio) e inclui duas alusões diretas a Whitman: "Mal-entendidos / Os acentos da hoje aposentada / Profissão do Cálamo" e "O Hímen, Himeneu". Os poemas "Calamos" de Whitman constam dentre os mais abertamente homoeróticos (o cálamo é o caule aromático de uma planta, emblema fálico em Whitman), enquanto o breve vocativo "Ó Hímen! Himeneu!" é um lamento comovente aos deuses do matrimónio: "Ó Hímen! Himeneu! Por que me tentais assim?" Eliot, por conseguinte, associa a um homoerotismo whitmaniano o fracasso sexual do seu primeiro casamento. Detenho-me em Whitman e Eliot, aparentemente tão diferentes, porque, no fundo, compartilhavam de um mesmo génio, o demónio do Sublime norte-americano. Esse génio comum não os impediu de seguir em direções espirituais bastante distintas, Whitman rumo à sua versão da religião norte-americana, e Eliot, em 1927, converten-do-se ao anglicanismo; contudo, Whitman, no sentido que o próprio Eliot confere à palavra "influência", foi sempre o seu progenitor poético. Porém, Eliot só admitiria o fato tardiamente (em 1953), embora desde 1930 afirmasse que "debaixo das declamações [de Whitman] constata-se um outro tom, e por trás das ilusões, uma outra visão". Cleo McNelly Kearns, resumindo as semelhanças impressionantes entre "A Última Vez nue Lilases Floresceram à Porta" e o maior poema de Eliot, delineia o fluxo que segue fa poesia de Whitman à de Eliot: O poema de Whitman provê não apenas temas e imagens a A Terra Devastada, mas lilases e flores, passando pela "cidade irreal", pela lembrança perturbadora de cadáveres de soldados, pela presença de um eu duplo, um caro irmão ou sem-blable, pelo "murmúrio do lamento materno", por rostos que espreitam, chegando ao canto do tordo eremita sobre os ossos secos. O "terceiro que sempre caminha a teu lado", que de acordo com as notas anexas ao poema A Terra Devastada é o Cristo ressuscitado, vem a ser o "pensamento da morte" ou "conhecimento da morte", segundo Whitman, ou a fusão dos dois fenómenos. A Terra Devastada, assim como "Lilases", mais parece uma elegia ao próprio génio do poeta, do que um lamento pela civilização ocidental. Eliot oferece-nos mais uma grande canção norte-americana a celebrar a morte, ou a morte-em-vida que configura a crise poética. Quarta-feira de Cinzas e Quatro Quartetos, sem dúvida, tentam representar a redenção cristã, mas o mesmo não pode ser dito de A terra devastada, que reflete o colapso nervoso sofrido por Eliot, em 1921, em consequência da tensão vivida no primeiro casamento. As alucinações controladas que fazem parte do poema parecemme ser o seu verdadeiro esplendor: A mulher soltou longos cabelos, cor preta, E tocou música leve naquelas cordas, Morcegos cara de bebé na luz violeta Gritavam, e batiam asas em hordas, Arrastando-se nas paredes negras dos becos, Cabeça para baixo, eram torres sonoras, Tocando sinos das lembranças, batendo as horas, E vozes cantavam das cisternas e poços secos. como se Eliot houvesse misturado as obras Drácula, de Bram Stoker, e "Mariana" °u Maud, de Tennyson, acrescentado um toque de Salomé, de Oscar Wilde. 390 391 Somente um génio dotado de sensibilidade exacerbada poderia nos ofertar esplendor tão desconcertante. Cinquenta anos atrás, Eliot era o vigário do neocristianismo, e A Terra Devastada era um hino de salvação para os discípulos académicos do poeta. Naqueles dias, Eliot era aclamado autoridade moral, um verdadeiro sábio. Eu não saberia prever a reputação do poeta daqui a 50 anos, mas a sua eloquência demoníaca não terá desaparecido. LUSTRO 10 William Wordsworth; Percy Bysshe Shelley; John Keats; Giacomo Leopardi; Lorde Alfred Tennyson C , s poetas do Alto Romantismo formam o meu segundo Lustro de Din, por-.*; quanto seus poemas de crise, dotados de extrema consciência, habitam as regiões do amor, "as demarcações sutis, os sons penetrantes" procurados pelo descendente dos românticos, Wallace Stevens. A rigorosa originalidade de Wordsworth anulou grande parte da tradição pregressa, permitindo-lhe começar de novo, em "uma tabula rasada poesia", conforme observou o crítico romântico William Hazlitt. Shelley, um dos meus poetas favoritos, desde a infância (objeto do meu primeiro livro, mais de 40 anos atrás), buscava no espírito de Din, ou "julgamento severo", a descoberta dos limites do desejo. Keats, shakespeariano em seu naturalismo trágico, apresenta uma severidade exuberante que incrementa a dignidade estética das grandes Odes e dos fragmentos de Hipérion. A melancolia de Leopardi é bastante distinta daquela de Tennyson: a de Leopardi refletia-lhe a deformidade física, enquanto a de Tennyson resultava da perda precoce de Arthur Henry Hallam, querido amigo e mentor intelectual. Mas existe uma sombra keatsiana em Tennyson, que lhe agudiza a exuberante melancolia e contribui para a criação de uma poesia cuja música é encantadora. 392 393 dte dfcj> WILLIAM WORDSWORTH O Paraíso e os bosques Elísios, Campos Felizes - qual ontem Buscados no vasto Atlântico - seriam Apenas traços de coisas passadas, Mera ficção do que nunca existiu? O intelecto^discernente do Homem, Quando unido a esse formoso universo, Em amor e paixão santa, verá isso Como fruto simples de um dia qualquer. Eis Wordsworth em 1798, jovem defensor da revolução, conforme consta do admirável fragmento "Em Casa, em Grasmere", manifesto de humanismo naturalista que afetou, profundamente, Keats e Shelley. O paraíso terrestre pode ser "fruto simples de um dia comum", de acordo com o poeta-profeta, para quem "simples" e "comum" eram palavras que expressavam o maior elogio e a mais elevada honra. Wordsworth continua sendo, no século XXI, o que tem sido nos últimos 200 anos: criador de uma poesia chamada, de tempos em tempos, romântica, pós-romântica, moderna e pós-moderna, mas que, essencialmente, constitui um só fenómeno: a substituição do tema poético pela sensibilidade do poeta. Goethe foi o último poeta de uma longa sequência iniciada por Homero; Wordsworth foi algo diferente. Depois de Wordsworth, os poetas são wordsworhtianos, tenham eles consciência do fato - conforme Shelley, Keats, Tennyson e Frost - ou não. Parodiando "Resolução e Independência", de Wordsworth, Lewis Carroll, na "Balada do Cavaleiro Branco", e Edward Lear, com procedimento idêntico, em "Incidentes na Vida de Tio Zeno", muito se divertem com o egocentrismo de Wordsworth: Portanto, não tendo resposta a dar A afirmação que o velhote expressa, Restou-me - "Diz como vives!" bradar, E dar-lhe um piparote na cabeça. - Lewis Carroll Ah! o meu velho Tio Zeno! Sentado em um monte de Feno, No silêncio da madrugada, -Bem ao seu lado um matagal: -No nariz, um Grilo banal, -No chapéu, bilhete do trem central (Mas a bota estava apertada.) - Edward Lear Wordsworth, seja saco de pancada ou grilo, persegue até os parodistas. Seu gêni, assegurava Uma mente amparada P'lo triunfo de um poder transcendental. 394 395 WILLIAM WORDSWORTH (1770-1850) Todos os escritos importantes de Wordsworth concentram-se em uma década: 17971807. Os últimos 43 anos de sua vida poética foram lamentáveis. Infelizmente, a situação em muito se assemelha à de Walt Whitman, cuja melhor poesia foi escrita na década de 1855-1865, seguida de 27 anos de versos (em sua maioria) ruins, até a morte do poeta, em 1892. O génio de Wordsworth se exauriu aos 37 anos. Whitman só iniciou a carreira aos 36, e, aos 46, seu génio já se fora. Menciono essas privações porque a compreensão do declínio prematuro pode auxiliar a definição da natureza individual do génio. Shelley, em Adonais, diz, referindo-se a Keats: Do contágio da mácula do mundo Ele está livre, e já não se lamenta Do coração frio, cabeça grisalha; Nem, quando o espírito não mais arder, Irá de cinzas foscas a urna encher. A referência, certamente, é a Wordsworth, cujo velho narrador da história de Mar-garet, em O Chalé em Ruínas (1797-1799), fornecera ao jovem Shelley a epígrafe ao poema Alastor (1815): (...) os bons morrem primeiro, Os de alma seca, serragem de marceneiro, Ardem até o talo. Não sabemos por que Shakespeare parou de escrever peças nos três últimos anos de vida que lhe restavam, depois de haver colaborado com John Fletcher, em Os Dois Nobres Parentes (1613). O maior de todos os autores capitulou aos 49 anos, ao contrário de Dante, Chaucer, Cervantes, Montaigne, Goeuhe, Tolstoi, Joyce e Proust, que escreveram até o fim da vida. Sejam quais forem os motivos de Shakespeare, não incluíam o declínio do talento, considerando-se o trecho a ele atribuído em Os Dois Nobres Parentes. Bom seria se Wordsworth, aos 37 anos, e Whitman, aos 46, houvessem decidido descansar sobre os louros. Em outra seção deste livro, concluo que o serviço heróico prestado por Whitman nos hospitais de guerra, em Washington, D.C., esgotou-lhe o génio. Mas, no caso de Wordsworth, o fim esteve sempre implícito na origem do seu génio: um brilho visionário, resplandecente na infância, mas desfeito na luminosidade de um dia qualquer. Se o poeta investe tudo no "romance da natureza", conforme Geoffrey Hartman denominou o mito wordsworthiano da memória infantil, há de tudo perder, quando a natureza trai a criança que a amava. O génio de Wordsworth, comentou A. C. Bradley, era a estranheza, a sua espantosa originalidade. Na grande década criativa do poeta, essa estranheza é ubíqua: Uma presença já pude sentir, Que me perturba com a alegria De elevadas reflexões; um sentido Sublime de algo bem interligado, Cuja morada é a luz dos sóis poentes, O oceano redondo, o ar da vida, O céu azul e a mente dos humanos: Moção e espírito que impulsionam Tudo o que há de pensante, todo objeto Do pensamento, e que a tudo impregna. - "A Abadia de Tintem" VIII Não sei se foi por graça especial, Algum dom vindo de cima, algo dado, Ocorreu que, neste deserto local, Quando eu de ideia solta era tomado, Junto a um lago pelo céu vislumbrado, Vi um homem, distraído, à minha frente, O mais idoso grisalho decadente. DC Qual grande pedra que vai se alojar No calvo cocuruto da montanha, Para o espanto de todos a olhar, Como chegou ali, qual a artimanha; Parece ter juízo, tal a façanha: Qual monstro marinho, que tenta se mover As rochas ou à areia, no sol a se aquecer. 396 397 X E o homem parecia nem morto ou vivo, Nem adormecido - na avançada idade: O corpo curvado e o cérebro inativo Chegam ao fim da linha da verdade, Como se a dor, a falta de vitalidade, Que há muito tempo ele já sentia, Um peso mais que humano lhe atribuía. XI Apoiava-se, o corpo, a face pálida, Em um longo cajado de madeira; Enquanto eu me acercava, com paz cálida, Do lago pantanoso bem à beira, Estava o Homem, fixa nuvem sem eira, E não ouvia os ventos a chamar, Nada se movia, não saía do lugar. - "Resolução e Independência" IX O alegria! Que ela nos aborde, Pois segue ainda vivo Que a natura recorde De algo tão fugitivo! Lembrança do passado só me traz Perpétua bênção; porém não o faz Pelo que há de mais digno de abençoar - Prazer e liberdade, a crença audaz Da infância, seja a dormir ou brincar, Sempre a esperança o peito a alvoroçar Não é por isso que envio A canção do grato elogio; Mas pelas questões obstinadas Da razão, coisas herdadas, Perdas nossas, descartadas; Grandes dúvidas da Criatura, Movendo-se no mundo indefeso, Instintos ante os quais mortal Natura Treme qual Alguém culpado e surpreso: Quanto às primeiras afeições, Sombrias recordações, Que, fossem como eu queria, Ainda são a luz de todo dia, Ainda são a luz da minha visão; Que possam nos suster, amar, tornar Os anos barulhentos, de antemão, Em eterno Silêncio: a verdade acordar, Para jamais morrer; Que a displicência, nem o enlouquecer, Nem Homem nem Menino, Nem os que contra a alegria entoam hino, Possam destruíla, em meio ao desatino! Assim, na estação amena, Embora na terra central, Nossas almas, avistando o mar imortal Que nos trouxe até a arena, Podem voltar àquela cena, E ver Crianças brincarem praia afora, E ouvir ondas quebrando lá agora. - "Ode: Insinuações de Imortalidade, a Partir de Recordações da Infância" Mesmo que, por mais de meio século, se saiba de cor esses versos e se os tenha, inúmeras vezes, analisado em artigos e em sala de aula, eles jamais perdem impacto ou frescor. A familiaridade tampouco elimina-lhes a genuína dificuldade: sobre o quê, exatamente, fala wordsworth, e por quê? Já se escreveu quase uma biblioteca inteira, mas a questão ainda não foi totalmente respondida. Embora o amigo, Coleridge, tentasse oferecer uma metafísica a Wordsworth, esses trechos fazem pane de uma longa batalha travada entre a poesia e a filosofia. Tratam, insistia Wordsworth, de nada além da nossa existência, mas "a nossa existência jamais fora percebida ou sentida dessa maneira anteriormente. Pretendo abordar os trechos acima de "A Abadia de Tintem", "Resolução e Independência" e a ode "Insinuações", não através da "leitura cerrada", mas testando-os 398 399 diante da questão do génio. A grandeza de Wordsworth é um paradoxo que desafia a tradução. No entanto, o poeta não é um romântico barroco, como o foram Victor Hugo e Shelley (este no caso de Prometeu Libertado). O paradoxo mais denso de Wordsworth diz respeito a uma mescla de simplicidade e a certeza de ter uma profecia de salvação a todos destinada. William Hazlitt, com certa ambivalência, observou: "Pode-se dizer que Wordsworth tinha um interesse pessoal no universo." No trecho citado de "A Abadia de Tintem", Wordsworth não identifica esse "algo bem interligado", apenas menciona "moção e espírito". Será que se trata da presença de um vento, ainda que metafórica? Wordsworth não é profeta bíblico, tampouco é John Milton, embora seja sucessor de Milton, tanto quanto o foi William Blake. A inspiração é primordial: a •brisa lhe surge do interior. É peculiaridade do seu génio que presença, moção e espírito, paradoxalmente, pertençam e não pertençam a ele. Ao encontrar o catador de sanguessuga, em "Resolução e Independência", o poeta, de início, parece duvidar do que vê, e não escuta a resposta dada pelo velho à pergunta: "Que ofício tens?" Em vez disso, tem uma visão: XVI Ali estava o velho, a falar ao meu lado; Mas um riacho inaudível parecia; Palavras não tinham sentido separado, E a presença do Homem lembraria Alguém que em algum sonho me surgia, Ou que, de alguma região distante, Viesse me dar forças naquele instante. Quando a pergunta é reformulada - "Do que vives, e o que fazes?" -, o velho sorri, pacientemente, percebendo (tanto quanto nós) que o poeta é incapaz de escutar. O encontro suscitou duas paródias maravilhosas de "Resolução e Independência": a "Balada do Cavaleiro Branco", de Lewis Carroll, e "Incidentes na Vida de Tio Zeno". O solipsismo de Wordsworth é mesmo um alvo extraordinário, e a incapacidade de focalizar o velho conduz a outra visão sublime: XIX Enquanto ele falava, o local sombrio, Sua figura e discurso me incomodavam; Na mente, eu o via caminhar no frio, A charneca e a tristeza o fatigavam; Silêncio e solidão o acompanhavam. Enquanto eu remoía o pensamento, Voltou ele a falar, após breve momento. Wordsworth, à semelhança de Milton, dispunha de todos os talentos literários, exce-to humor; a comédia, nesses dois grandes poetas, é sempre involuntária. É impossível visualizá-los divertindo-se com as travessuras de S/>John Falstaff. Mas, se valorizarmos o contexto de Wordsworth - uma charneca solitária, com um lago pelo céu vislumbrado _; o génio do poeta assume total controle, e inventa o "poema-crise" moderno, o (novo) género mais característico da poesia ao longo dos dois últimos séculos. Poemas que falam de crises são tão profusos que não mais os reconhecemos: são, simplesmente, "poemas". Nesse tipo de poesia, o poeta busca escapar da depressão, do desespero, do suicídio, a fim de escrever o próximo poema. A poesia, conforme escreveu William Empson, tornou-se um embate de titãs, travado à beira do abismo. "Resolução e Independência", mais do que qualquer outra obra de Wordsworth, criou um novo género. A poesia deixou de ter outro tema, senão a própria subjetividade, levada ao extremo da autoconsciência. Nesse sentido crucial, Emily Dickinson, W. B. Yeats, T. S. Eliot, Wallace Stevens, Hart Crane e tantos outros são poetas wordsworthianos. Na ode "Insinuações", composta entre 1802 e 1804, mas publicada apenas em 1807, estamos diante do paradoxo de confrontar o que há de mais potente no génio de Wordsworth e, ao mesmo tempo, constatar o crescimento da sombra que haverá de destruí-lo. Citei a nona estrofe, composta, pelo menos, dois anos depois das quatro primeiras seções. O peso da ode advém do enfraquecimento de uma antiga luz visionária, que diminui à medida que amadurece a consciência de mortalidade. A palavra Mortalidade" seria mais adequada do que "Imortalidade", como título da ode (assim é chamada por muitos). O vôo do lampejo visionário ameaça Wordsworth com o pecado cometido por aqueles que, no Inferno de Dante, são punidos por terem sido soturnos na doce brisa", e conduz ao nadir do poema, ao final da oitava seção: "Pesado qual geada, e quase tão fundo quanto a vida." O divisor extraordinário introduzido pela nona estrofe talvez seja a expressão mais característica do génio paradoxal de Wordsworth. A partir de pura intuição, o poeta elogia e estabelece empatia com a resistência da criança à ideia de separação que, no extremo, leva à consciência da mortalidade: Não é por isso que envio A canção do grato elogio; 400 401 Mas pelas questões obstinadas Da razão, coisas herdadas, Perdas nossas, descartadas; Grandes dúvidas da Criatura, Movendo-se no mundo indefeso, Instintos ante os quais mortal Natura Treme qual Alguém culpado e surpreso: A criança questiona, obstinadamente, o fato de "ouvir" e "ver" se tornarem dois sentidos, em vez de um só, e ainda resiste ao mundo que lhe é externo. Wordsworth poderia ter aprendido isso através da observação, mas asseverar que as "primeiras afeições" do pequeno não podem ser divorciadas das "sombrias recordações", de uma esfera em que tudo parecesse interno, é uma percepção, ou mito, do poeta. Quando equacionamos a ode "Insinuações" através de um misto criativo e perda experimental, contemplamos, mais uma vez, a originalidade de Antes de Proust e, através de John Ruskin, influenciando Proust, o Wordsworth criou o novo mito da memória involuntária. próprio de ganho Wordsworth. génio de PERCY BYSSHE SHELLEY Tua sapiência fala em mim, e me desafia A sinalizar rochas que afundaram corações. Jamais fui atraído àquela grande seita, Cuja doutrina manda ficar à espreita E, na multidão, amante e amigo escolher, E, os demais, belos ou sábios, esquecer, Embora isso conste do código atual, E seja o caminho a ser seguido no final, Pelos pobres-diabos com passos cansados, Que viajam para casa entre os finados, Pela larga estrada do mundo, e assim, Com um amigo certo, quiçá, inimigo ruim, Seguem a mais longa, triste jornada, até o fim. Esse sermão lírico de Shelley sobre o amor livre, expresso em Epipsychidion, é também a descrição (sucinta) mais sombria que já li do casamento. O trecho propiciou a E. M. Forster o título de seu romance, A Viagem Mais Longa, e recomendo aos meus alunos mais aguerridos que leiam esses versos, em voz alta, na véspera do casamento. O génio de Shelley era lírico, em uma dimensão insuperável. Ele transforma quase qualquer género - sátira, romance, literatura dramática, epístola, elegia, inferno dantesco - em poesia lírica. A poesia, Shelley escreveu, registra os nossos melhores momentos, os mais felizes, mas, decerto, ele falava em sentido figurado, pois a sua lírica expressa profundo desespero. Os grandes temas de Shelley são a morte do amor e a destruição da integridade, ambas vistas por ele como a morte figurada, à qual a morte literal era preferível. O epítome do génio lírico de Shelley é o poema "Quando a Lâmpada se Estilhaça", em que o segundo verso - "A luz na poeira jaz morta" - pode assim ser traduzido: Morre o amor, permanece o desejo." A última estrofe faz soar, com eloquência, a morte do amor: 402 403 Vai sacudir-te a paixão, Como a tempestade sacode o corvo; Vai de ti zombar a razão, Como o sol em céu de inverno é estorvo. Todos os caibros do teu ninho Vão apodrecer, e da águia que é teu lar Vais ter escárnio p'lo caminho, Quando o vento chegar e o tempo esfriar. PERCY BYSSHE SHELLEY (1792-1822) Shelley morreu afogado, talvez por acidente, antes de completar 30 anos, desfecho que hoje nos parece inevitável e adequado. Contando com intelecto cético e potente, ele foi também um dos maiores poetas líricos da tradição ocidental, com admiradores e detratores em cada geração. Poucos igualam-se a ele, no que concerne ao seu espírito revolucionário. Não posso, em 2001, escrever sobre Shelley como o fiz na juventude, em meados dos anos 50, mas as alterações de perspectiva resultam do meu próprio envelhecimento. Desde menino, considero o génio lírico de Shelley algo dado como definitivo. É hora de examiná-lo com precisão. Grandes poetas líricos são raros: as literaturas alemã e inglesa os têm em profusão. A tradição norte-americana conta com apenas alguns de real qualidade; antes, temos uma procissão desditosa de poetas líricos medíocres, cujo modelo primeiro, e desolador, é Edgar Allan Poe, que realizou um amálgama de Coleridge, Byron e Shelley, com consequências lastimáveis. Poe conta com admiradores, até mesmo em países onde os críticos têm proficiência em leitura em língua inglesa, e especialmente na França, onde os críticos não sabem ler inglês, conforme demonstrado pela célebre tríade - Baudelaire, Mallarmé e Valéry -, que encontrou em Poe obras que não existiam. Jamais um poeta, ou contista, beneficiou-se tanto da tradução. Shelley foi o mais jovem contemporâneo de Wordsworth, fato que ensejou, ao mesmo tempo, um peso e uma provocação para o aristocrata (e rico) rebelde prometéi-co. Wordsworth havia alterado para sempre a natureza da poesia lírica na Inglaterra: ao contrário de Byron, e mesmo de Shelley, Wordsworth não exerceu qualquer influência em países onde não se fala inglês, inclusive a Alemanha e a Áustria, mas Wordsworth não é artigo de exportação. Embora tenha causado algum efeito em William Cullen Bryant, Emerson e Emily Dickinson, Wordsworth pouco significou para Whitman ou para poetas que surgiram mais tarde, e.g., T. S. Eliot e Hart Crane. Wallace Stevens, outro meditador solitário, tem afinidades wordsworthianas, mas, basicamente, Wordsworth tornou-se o poeta dos estudiosos, tanto quanto Milton. Para Shelley e Keats, em início de carreira, esse jamais seria o caso, pois Wordsworth era uma revelação, talvez negativa, conforme o foi Eliot para Hart Crane. Elizabeth Bishop (1911-1979), grande poeta norte-americana, tem um poema extraordinário, "O Descrente", composto no início da carreira, que contrasta três figuras: a nuvem, a gaivota e o descrente, as quais interpreto como três tipos de poeta. A 404 405 nuvem, o meditador solitário, é Wordsworth ou Wallace Stevens, enquanto a gaivota, construtora de uma torre visionária, é Shelley ou Hart Crane, e o descrente, obcecado por pesadelos, é Emily Dickinson ou Elizabeth Bishop, embora disfarçadas de "ele". O génio lírico de Shelley, a exemplo do de Hart Crane, localiza uma de suas imagens primárias de liberdade na "torre", que, inversamente, significa também a ruína da imaginação. A mais influente das torres de Shelley, que repercute em toda a poesia de William Butler Yeats, é o fragmento Príncipe Atandsio, escrito no início da carreira do poeta: Sua alma desposara a Sapiência, e o dote É o amor, a justiça, por ele investidos, Longe dos homens, em uma torre forte, Lamentando o tumulto, os fatos ocorridos. O ficcionista Thomas Love Peacock, amigo íntimo de Shelley, satirizou-o, amavelmente, na obra A Abadia do Pesadelo, em que o poeta Scythrop vive em uma torre não tão solitária, e espalha na multidão profecias inauditas. Shelley, ironista urbano, soube lidar com a sátira, e respondeu ao tratado mordaz de Peacock - As Quatro Idades da Poesia- com um ensaio vibrante: Uma Defesa da Poesia. As quatro idades definidas por Peacock são: ferro, ouro, prata e bronze. Na poesia inglesa, seguindo a deixa de Peacock, podemos arrolar Beowulf, Shakespeare, Pope e Wordsworth. Wordsworth, rei do bronze, é descartado como "sonhador mórbido", e o ensaio conclui pedindo-nos para "sorrir da ambição mesquinha e das percepções limitadas com que tolos e charlatães (...) competem pelos louros poéticos e pela cátedra da crítica". A resposta de Shelley configura mais uma rapsódia em prosa do que um ensaio e, até o presente, contém a melhor declaração em língua inglesa sobre poesia: "É, ao mesmo tempo, centro e circunferência do saber." Pretendo definir o génio de Shelley, precisamente, com base nesse princípio de centro e circunferência, que Emily Dickinson herdou de Shelley, e, para tal, recorrerei ao célebre texto de Adonais: Elegia sobre a Morte de John Keats. Uma vez que se trata de um complexo lamento lírico, composto de 59 estrofes de nove versos, sou obrigado a abstrair e condensar, o que é lamentável, pois parte da grandeza de Adonais reside no fato de Shelley suster o ímpeto lírico ao longo dos 495 versos. Keats morreu em Roma, em 23 de fevereiro de 1821, aos 25 anos e quatro meses, vitimado pela tuberculose. Shelley morreu no mar, perto de Livorno, em 8 de julho de 1822, um mês antes de completar 30 anos. A elegia Adonais foi composta nos primeiros dias de junho de 1821, sendo tanto uma auto-elegia profética quanto um hino formal celebrando Keats. Embora os dois poetas houvessem se encontrado e se correspondessem, eram apenas conhecidos, portanto a base do poema escrito por Shelley não é o luto pessoal. Tampouco o irónico e sutil Shelley acredita que a centelha da mente de Keats pudesse ter sido apagada por uma ou duas resenhas desfavoráveis oriundas da fria Escócia. Keats tinha personalidade combativa, e, embora eu esteja longe disso, sinto-me energizado pela infinita idiotice das críticas negativas a meu respeito. "Detesto ser elogiado no jornal", observou o sagaz Emerson, e nada destrói tanto a alma quanto um elogio no caderno de resenhas do New York Times. Shelley, a 13 meses da sua morte precoce, profetiza o próprio fim, e o aceita muito bem. Como precedente, ele conhecia o poema "Lycidas", de John Milton, talvez o mais contundente poema de extensão média escrito até o presente, uma elegia explícita a Edward King, poeta de menor importância e amigo de Milton, em Christ's College, Cambridge. King afogou-se em agosto de 1637 e, em 1638, seus contemporâneos em Cambridge publicaram um volume de versos elegíacos, que encerra com "Lycidas". Milton, o mais ambicioso dos poetas (ao lado de Dante), ao compor "Lycidas", estava com 29 anos, idade da qual se aproximava Shelley, enquanto escrevia Adonais. O que impulsiona "Lycidas" não é o medo de morrer, por parte do heróico Milton, mas o pavor de uma morte acidental que legasse ao mundo apenas os seus poemas menores, em vez das grandes obras que pretendia criar: Ora! De que vale o zelo contínuo, Seguir o ofício de pobre pastor, Ou muito venerar a musa ingrata? Não seria melhor, como fazem tantos, Brincar com Amarílis bem à sombra, Ou co' os cachos dos cabelos de Neara? Fama é grilhão p'lo espírito elevado (Última enfermidade da mente nobre), P'ra desdenhar prazer, buscar labuta; Mas quando esperamos que o prémio justo, Como súbita chama se apresente, A Fúria cega, co' as temíveis tesouras, Surge e corta o fio da vida. 406 407 Átropos é a irmã cega das outras duas Parcas; ao transformá-la em uma das Fúrias, Milton enfatiza o receio de ser cortado como celebridade canónica. Shelley, em Ado-nais, oferece-nos o triunfo de Milton: Morreu o pai de uma estirpe imortal, Cego, velho e só; e o orgulho do país, O padre, o escravo e o liberticida, Pisaram e zombaram em rito odiento, De luxúria e sangue; ele foi, sem medo, Ao encontro da morte; mas o Espírito Reina na Teora; terceiro dos filhos da luz. Homero, Dante, Milton: os poetas épicos são os filhos da luz, de Febo Apolo, deus da poesia e do sol. Keats, que escreveu o fragmento épico Hipérion seguindo essa tradição, é, portanto, saudado como herdeiro de Milton. Shelley, de cuja genialidade faz parte a capacidade de criar mitos, invoca as metáforas da poesia de Keats, para que estas possam aderir ao luto: Irmão do teu espírito, o rouxinol triste, Não chora p'lo parceiro, co' a dor de agora. Passados os floreios de Keats, os companheiros poetas choram-lhe a morte, mas o lamento cessa no terço final de Adonais, da estrofe 38 à 40. Shelley, que influenciou W. B. Yeats durante toda a sua vida, prefigura o hermetismo cético de Yeats, conforme observado em "Velejando para Bizâncio" e "Bizâncio", poemas nos quais o poeta, envelhecendo, busca a salvação oculta no "fogo sagrado" de uma cidade da arte. O espírito puro de Keats flui "De volta à fonte ardente de onde veio". Tendo despertado do sonho da vida, o espírito "paira mais alto que a sombra da noite", imagem retirada de Dante: a Terra projeta a sua sombra no firmamento, mas, na esfera de Vénus, a sombra alcança o limite. Com um lirismo difícil de ser igualado na poesia ocidental, a intensa celebração de Shelley toca a fronteira do Sublime, nas quatro estrofes finais: Só Um fica, são muitos os que passam; Luz do Céu sempre brilha, sombras da Terra se vão; A vida, como um domo de vidro multicor, Mancha o branco esplendor da Eternidade, Até que a morte o despedace. - Morre, Se queres ter com aquilo que procuras! Segue aonde fugiram todos! - céus de Roma, Flores, ruínas, estátuas, música, palavras São fracas para afirmar a glória da verdade. Por que hesitar, voltar, murchar, meu Coração? Tuas esperanças já se foram: de tudo aqui Se despediram; tu agora deves partir! Foi-se a luz do ano que ficou p'ra trás, O homem, a mulher; e o que ainda é caro Atrai p'ra destruir, repele p'ra intimidar. O céu suave sorri, - sussurra o vento: É Adonais quem chama! Oh, sigamos o chamado, Que a Vida não separe o que a Morte pode unir. A Luz cujo sorriso ilumina o Universo, A Beleza em que tudo opera e se move, A Bênção que pela Maldição do nascer Não pode ser extinta, aquele Amor Que, na rede dos seres, fabricada Com homem, fera, terra, ar e mar, Arde brilhante ou pálido, espelhos Do fogo do qual todos são sedentos, Brilha em mim, queimando nuvens da mortalidade. O sopro cuja força em canto invoquei Descende sobre mim; a barca do meu espírito Deixa a costa, distante da multidão trémula, Cujas velas jamais se entregaram à tempestade; Terra maciça e o céu esférico se partem! Sou levado p'ra longe, no escuro, temeroso; E, ardendo na esfera mais íntima do Céu, A alma de Adonais, qual uma estrela, Brilha na casa em que moram os Eternos. A linguagem aqui sugere a tradição neoplatônica, mas o idealismo é moderado por algo que pode ser denominado o ceticismo visionário de Shelley. A existência, domo de vidro multicor, é real como o branco esplendor do Eterno, e "manchar" aqui significa tanto "colorir" quanto "macular". Visto que os fragmentos do domo da vida, despeda408 409 çado pela morte, são idênticos às belezas de Roma - o céu, as flores, as ruínas, as estátuas, a música, as palavras de poesia -, as manchas mais parecem colorido do que nódoas. No entanto, todas essas cores do espírito não bastam para exprimir o Ser imutável, que se antepõe a muitos. Embora o ceticismo de Shelley perdure (assim como o de muitos), um impulso vigoroso, incitado pelo desespero, empurra o poeta ao "fogo do qual todos são sedentos". A elegia pastoral transforma-se em hino gnóstico, com a típica equação gnóstica entre nascimento e pecado: a "Maldição do nascer". Na estrofe anterior, Eros representara um processo que "Atrai p'ra destruir", noção que aparece de modo ainda mais severo em um poema dantesco escrito por Shelley, que aborda o tema da morte, o fragmentário (e convincente) O Triunfo da Vida. Posicionando-se à véspera de uma jornada derradeira, Shelley investe todo o seu génio lírico na última estrofe do poema. A voz poética de Shelley não é um grito solitário, considerando-se, especialmente, a riqueza barroca de Adonais, em que essa voz é orquestrada em um conjunto que absorve e cativa o leitor. A quem se dirige Shelley na última estrofe de Adonaisí A voz do poeta, conforme registra Shira Wolosky, é oracular, profética, urgente, feroz em suas implicações, como se constata na célebre, revolucionária, "Ode ao Vento do Oeste", invocada no primeiro verso da última estrofe de Adonais. A imagem do eu interior, a parte melhor e mais antiga do ser humano, livre da Criação, segundo o gnosticismo, é pneuma, ou sopro, frequentemente representado por uma centelha. E esse o sopro cuja força recai sobre Shelley, conduzindo-o em uma viagem oculta, impulsionada por uma tempestade; conquanto o preço da confirmação profética de Shelley ecoe no verso "Sou levado p'ra longe, no escuro, temeroso", o gesto aqui transfere o medo para a multidão trémula que permanece em terra. Uma alusão brilhante, antitética, à conclusão de "Lycidas", de Milton, auxilia-nos a distinguir entre a visão de Shelley e a do precursor protestante: Não mais, Lycidas, choram os pastores, Tu és agora o génio dessas praias, Eis a tua recompensa; e serás bom A todos que trafegam nas marés. Keats torna-se o génio, ou espírito protetor, do Céu mais íntimo, reino hermético das almas dos poetas, e de lá brilha, a fim de resguardar jornadas finais a uma realidade transcendental. Trelawny, que, em companhia de Byron, identificou o corpo do amigo na praia, diz que Keats talvez tenha sido a última leitura de Shelley: A figura alta, frágil, o paletó, o livro de Sófocles em um bolso, o dos poemas de Keats no outro, ainda virado, como se o leitor o houvesse guardado às pressas. íUti? Cifcú Cwiú JOHN KEATS Esta mão viva, cálida, e capaz De um aperto, se fria estivesse, No gelado silêncio do túmulo, Tanto assombraria teus dias e noites frias, Que desejarias sem sangue o coração, Que em minhas veias rubra vida corresse de novo, E tua consciência se acalmasse - vê - aqui está Estendo-a a ti. É possível que este fragmento dramático seja o último trecho de poesia escrito por Keats, talvez em janeiro de 1820, um ano antes da morte do poeta, em Roma, aos 25 anos de idade. Aguardando a morte precoce, em consequência da tuberculose, ciente de que o amor por Fanny Brawne jamais seria consumado, Keats, no último ano de vida, resistiu, desesperando-se estoicamente. Conforme a morte de Mozart, a de Keats sempre nos faz pensar nas grandes obras que deixamos de conhecer. Keats foi o génio da aceitação trágica, posição semelhante à de Shakespeare, cuja influência, em última instância, foi mais profunda do que a de Milton ou Wordsworth. O melhor exemplo do que John Keats chamava de "Capacidade Negativa" - postura criativa capaz de suportar impulsos de paixão fortes e contraditórios e, ao mesmo tempo, resguardar distanciamento e desinteresse - é Rei Lear, em contextos menores, porém maravilhosos, tal postura pode ser observada também em odes como "Ao Outono" e sonetos como "Estrela Brilhante". A consciência humana, secular, ao longo dos dois séculos subsequentes, não teve melhor representante do que John Keats, que nos ensina a enfrentar mistérios, embora nos recusando a adorá-los. Keats é sempre o cauteloso celebrante das "Estações Humanas", soneto que faz reviver certo esplendor de Shakespeare: Quatro estações preenchem cada ano; Quatro estações a mente do homem tem. É sadia primavera quando o plano Sonda toda a beleza sem porém; Será verão quando o homem se entreter 410 411 Com pensamentos bem primaveris, Até que desfeitos na alma possam ser Parte dele. Serão portos servis, De outono, enseadas de descanso, Quando, de asas dobradas, puder olhar A névoa em paz e o riacho manso, Quieto, por sua soleira passar. Terá o inverno, no rosto brumal, Ou se esquece da natureza mortal. JOHN KEATS (1795-1821) Keats, em vários aspectos, tornou-se, universalmente, o poeta inglês mais admirado desde Shakespeare. Trechos memoráveis de sua obra preenchem a minha consciência com um sentimento e precisão quase shakespearianos: "Sobre o Grilo e o Gafanhoto" A poesia da terra não morre jamais: Quando os pássaros se cansam do sol, Escondendo-se em árvores, escuta-se, De sebe em sebe, no prado roçado, O chichiar do Gafanhoto - é ele o líder, No fausto do verão - jamais termina A sua diversão, pois, se cansado, A vontade repousa sob as folhas. A poesia da terra não cessa jamais: Noite longa de inverno, se a geada Impôs o silêncio, da estufa ouve-se O canto do Grilo, sempre animado, Assim parece, ao que está entorpecido, Gafanhoto entre as colinas de relva. "Sobre o Mar" Sussurra eternamente, percorrendo Litorais desolados; com suas vagas Engole Grutas, mais de vinte mil, Até que o feitiço de Hécate as deixe em paz. Às vezes está de tão bom humor, Que a menor das conchinhas não se move, Durante dias, do local onde caiu, A última vez que os ventos do Céu uivaram. Vós, que tendes a vista fatigada, Voltai-a para a imensidão do Mar; Vós, cujo ouvido já não suporta barulho, 412 413 Ou esteja farto de música falsa, Sentai-vos bem à Gruta e refleti, E, num susto, ouvireis o coro das ninfas! "O grande Saber faz de mim um Deus. Nomes, feitos, lendas, desastres, rebeliões, Majestades, supremas vozes, agonias, Criação e destruição, de uma só vez, Transbordam nos vazios do meu cérebro, E me desafiam, como se algum vinho, Ou elixir se*n par eu ingerisse, E, assim, me tornasse imortal." E o Deus, Com o olhar tão franco quanto cálido, Entre têmporas brancas e suaves, Era luz tremula sobre Mnemosine. Logo, foi tomado de convulsões, Que lhe afetaram a beleza imortal; Era uma luta ante a porta da morte, Ou como alguém que vai se despedir Da morte pálida e, em meio à angústia, Quente quanto a morte é fria, num estertor, Morre entrando na vida. E lá bem me embalou até o sono, E lá sonhei - Ah, triste sina! O último sonho que um dia sonhei, Na encosta fria da colina. Pálidos reis eu vi e também príncipes, Guerreiros pálidos, na lividez da morte, Gritando: "La Belle Dame sans Merci Tem-vos serva da sorte!" Vi seus lábios à míngua no crepúsculo, Greta agourenta, grande e bem ferina, E despertei, aqui me achando, Na encosta fria da colina. E eis por que passo por aqui, Só em desalento vagando, Apesar dos cíperos secos do lago, E nenhum pássaro cantando. Os trechos anteriores foram extraídos da obra de Keats, entre 1816 e 1819, este o ano mais extraordinário do poeta, em que ele compôs as seis Grandes Odes e A Queda de Hipérion. Keats tem apenas 21 anos, quando escreve o soneto "Sobre o Grilo e o Gafanhoto", e já demonstra um ouvido aguçado, interno e externo. Tanto quanto Wordsworth, Keats fora deixado sozinho no mundo visível e audível bem cedo. O pai morrera em um acidente, quando Keats tinha oito anos, e a mãe fora vitimada pela tuberculose, quando ele estava com 14 anos. Em consequência de uma doença, Keats parou de crescer, e não media mais do que l,53m de altura, embora não fosse, absolutamente, desfigurado. A exemplo de tantas outras pessoas de baixa estatura, desenvolveu um temperamento obstinado, ainda que não fosse agressivo. Excetuando Shakespeare, sobre quem pouco sabemos que seja de real importância, Keats talvez tenha sido o mais sensato e normativo de todos os grandes poetas, em todos os tempos. Dentre os principais contemporâneos, Blake e Shelley eram profetas; Wordsworth, egoísta sublime; Coleridge, depressivo, e Byron, um turbilhão sexual: incestuoso, sadomasoquista, propenso à libertinagem (com ambos os sexos) e ávido pela morte heróica que encontrou na Grécia. No soneto "Sobre o Mar", de 1817, Keats responde à sua própria leitura da quinta cena do quarto ato de Rei Lear, em que, cego, Gloucester decide suicidarse. Conduzido por Edgar disfarçado (o filho leal), Gloucester é, supostamente, levado à beira de um penhasco: GLOUCESTER. Quando enfim chego ao topo desse monte? EDGAR. Já estamos subindo; veja como custa! GLOUCESTER. Sinto o chão plano. EDGAR. Horrivelmente íngreme! Escuta só. Não ouves o mar?3 De acordo com o próprio Keats, a pergunta de Edgar foi o ponto de partida do soneto. Trata-se de um mar imaginário, parecido com o "mar de desventuras" de Hamlet, mencionado no seu mais célebre solilóquio, "Ser ou não ser". Podemos deduzir que se trata, também, do mar da poesia, ao qual Keats se lançara, segundo registro 3 Tradução de Alia de Oliveira Gomes, op. cit., p. 255. [N. do T.] 414 415 seu, no poema Endimião, escrito no início da carreira. Porém, se o mar é o universo da poesia, é também o "universo da morte", o caos através do qual o Satanás criado por Milton empreendeu a jornada de herói-vilão, a fim de descobrir o Novo Mundo do Éden de Adão e Eva. Daí o brado de Apolo segundo Keats: "O grande Saber faz de mim um Deus", ainda que Apolo morra ao entrar na vida, dolorosa encarnação, representativa do renascimento de Keats na poesia. Os riscos envolvidos talvez sejam ironizados nas quatro estrofes finais da esplêndida balada "Zd Belle Dame sans Merci", em que aquele que busca desperta de uma visão "na encosta fria da colina". Às vésperas da "Ode à Psique", a primeira das Grandes Odes, Keats, aos 23 anos, já passara por um desenvolvimento poético quase sem precedentes. O génio de Keats, revelado tanto na poesia quanto em suas cartas singulares, talvez as mais eloquentes e sábias escritas em língua inglesa, é tão natural, compadecido e amplo que chega a questionar, seriamente, qualquer conceito de genialidade. Ele afirmava que a poesia era o seu demónio, mas a poesia não escreveu a si mesma, e poeta algum, desde Shakespeare, fica tão distante da condição de possuído, mesmo no caso da influência de caros precursores. Keats, no pouco tempo de vida que lhe restava, abandonou Milton e Wordsworth, retornando a Shakespeare, cuja presença nas Grandes Odes e em A Queda de Hipérion é reconhecida e absorvida com grande tato. Helen Vendler registra, acertadamente, o efeito de Hamlet sobre as Grandes Odes, e percebemos a voz de Hamlet também na agonia do personagem que busca, em A Queda de Hipérion. Mas é arriscado invocar o personagem de Hamlet, talvez porque ele próprio seja perseguido e perseguidor. Em "Ode à Melancolia", que haveria de inaugurar uma espécie de poema que se origina em Tennyson, passa pelos PréRafaelitas e chega até Yeats e Wallace Steven, Keats esquiva-se de Hamlet, recorrendo a outras obras shakespearianas, a saber, Tróilo e Créssida e Sonetos. Eis a "Ode à Melancolia": I Não, ao Letes não vá, nem das raízes Do acônito extraia vinho venenoso; Nem deixe ser beijada tua fronte pálida Pelo meimendro, uva rubi de Perséfone; Não faça teu rosário do fruto do teixo, Nem deixes o besouro ou a mariposa Ser tua Psique, nem a coruja penuda Participar dos teus ritos secretos; Pois a sombra atrai a sombra sonolenta, E afoga a angústia desperta na alma. 416 II Mas se a melancolia, de súbito, cair Do céu como uma nuvem bem chorosa, Fazendo tombar todas essas flores, Cobrindo o morro verde em mortalha de abril, Sacia tua tristeza na rosa da manhã, Ou no arco-íris das ondas do mar, Ou na riqueza das grandes peônias; Ou se tua amada raiva demonstrar, Segura-lhe a mão macia e deixe-a falar, E olha fundo, fundo, em seus olhos sem par. III Ela tem Beleza - Beleza que há de morrer; E enlevo, cuja mão sempre acena adeus, Estando o Prazer dorido bem por perto, Buscando veneno enquanto a abelha suga: Sim, é mesmo no templo da Alegria Que a Melancolia faz seu santuário, Sem ser vista, exceto por aquele Cuja língua explode a uva no céu da boca, E cuja alma há de provar da força da dor, E entre os seus troféus sombrios ser pendurada. O início da ode, abrupto e maravilhoso, decorre da decisão de Keats de cancelar uma estrofe original, grotesca e excessiva, em que ele, como um ser que busca, adverte a si mesmo que a deusa da Melancolia não será encontrada, se for procurada com demasiada intensidade: "(...) se ela / Sonhar em qualquer das ilhas do Letes". Mesmo que resida no Letes, a deusa desejada só poderá ser encontrada recorrendose à consciência, não ao veneno. Seja lá o que for, essa Melancolia não é o que hoje denominamos "depressão . Fica mais próxima dos prazeres perigosos do sadomasoquismo, e poucas entre as minhas alunas reagem de modo favorável à sequência proposta por Keats: rosa da manhã, arco-íris do mar, peônias e olhos sem par de amada raivosa, segura pela mão, a contragosto, apenas pelo prazer paradoxal de fazer ouvir as suas queixas. No entanto, Keats busca, primeiramente, exuberância, na ira dessa amada, uma exuberância louvada por seu desaparecimento: "Ela tem Beleza Beleza que há de morrer". No poema "Manhã de Domingo", de Stevens, a noção é transmudada em "A morte é mãe da beleza". 417 Keats transfere a ênfase, da deusa equívoca, supostamente sua Musa, para si mesmo, não através da invocação do perseguido, melancólico Hamlet, mas do ansioso Tróilo, que espera obter prazer sexual com Créssida: Estou tonto; a expectativa me faz girar; O prazer imaginário é tão doce, Que me encanta os sentidos; será como, Quando irá o palato úmido provar O néctar do amor, triplamente célebre? A morte temo, total destruição, Ou alegria rara, sutil, forte, Tornada por demais em algo doce, Pelo poder das mi'as forças grosseiras. - Tróilo e Créssida, Ato 3, cena 2, 18-25 Fazendo, com tamanha nitidez, ecoar esse trecho, Keats relaciona a amada Melancolia a Créssida, que trai Tróilo com Diomedes. Aquele que a busca, dotado de "língua persistente", tomar-se-á mais uma das relíquias de Créssida: E entre os seus troféus será pendurado. Esse ressonante verso final faz lembrar o Soneto 31 de Shakespeare, quando, em um processo de autodestruição, o poeta se dirige ao belo e jovem nobre por ele amado: És o túmulo em que vive o amor enterrado, Ao lado dos troféus do meu amor passado. O Tróilo de Shakespeare exagera nos preparativos do encontro; Shakespeare (ou a persona do soneto) oferece ao jovem nobre um tributo equívoco. Keats, não se esquecendo de Tróilo nem de Shakespeare, aceita o risco de um encontro direto com a sua deusa da poesia, que, na prática, pode ser um demónio feminino, mas o poeta demons-tra-se bastante ciente da tragicidade de tal aceitação. Melancolia, a própria Musa, é trágica, porque ela (e Keats) redefinem melancolia como a plena consciência da transformação natural, cuja forma final é a morte. Enfrentando a morte aos 25 anos, em Roma, Keats ainda foi capaz de refletir sobre a acuidade dos sentidos que lhe estavam sendo obliterados pela tuberculose. O génio do poeta pode ser definido pelas frases finais da sua última carta, escrita em Roma, três meses antes de falecer: "Mal posso dizer-te adeus, nem mesmo em uma carta. Minhas reverências sempre foram desajeitadas." Tanto quanto a sua poesia, Keats é uma perpétua saudação do espírito. dfcí &t£ dà? GIACOMO LEOPARDI Nenhuma profissão é tão estéril como a da literatura. Contudo, a pretensão é de tanta utilidade para o mundo que, a partir da sua assistência, até a literatura se torna edificante. O fingimento é a alma, por assim dizer, da vida social, uma arte sem a qual nenhuma outra arte, ou faculdade, levando-se em conta os efeitos surtidos na mente humana, será perfeita. Consideremos a sorte de duas pessoas, uma possuindo real valor, em todos os sentidos, a outra um valor falso. Veremos que esta última é mais afortunada do que a primeira; deveras, a falsa é, geralmente, bemsucedida, e a verdadeira não o é. O fingimento produz um efeito mesmo na ausência da verdade, mas a verdade sem fingimento nada pode fazer. Tampouco isso decorre, creio eu, das nossas inclinações malévolas, mas do fato de que a verdade nua e crua é sempre algo empobrecido e, portanto, se quisermos divertir ou comover o ser humano, devemos recorrer à ilusão e ao exagero, prometendo o melhor e mais do que aquilo que podemos fazer. A própria natureza é uma impostora, e torna a vida humana agradável, suportável, sobretudo devido à imaginação e à ilusão. Leopardi é descendente poético de Lucrécio, compartilhando essa ancestralidade com Shelley, Walt Whitman e Wallace Stevens, mas, em termos de espírito, parece mais próximo de Lucrécio do que qualquer outro poeta. Não existe transcendência para Leopardi, que aceitava a nossa condição como nulidade e considerava inútil o desejo. Por conseguinte, as ilusões são o nosso melhor consolo, além das raríssimas visitas da sublimidade poética. Leopardi define genialidade como algo a representar a nulidade com tamanha nitidez que nos devolve o entusiasmo, mesmo que seja com relação ao vazio. A exaltação da alma, ao criar ou apreender a obra do génio, paradoxalmente, promove vida nova ao afirmar o vácuo. Em Lucrécio, existe uma dose suficiente de epicurismo positivo que permite que o seu grande poema continue exuberante. Encontrar um sentimento positivo em Leopardi é tarefa árdua, se nos restringirmos à prosa. As nuanças da poesia lírica o redimem: o seu génio, no que concerne ao fraseado exato, compensa a noção assustadora do mal, que, para ele, assim como para Keats e Stevens, constitui a dor e o sofrimentc pelos quais devemos passar, na condição de homens e mulheres que somos, vivendo eir uma entropia que nos há de destruir. 418 419 GIACOMO LEOPARDI GIACOMO LEOPARDI (1798-1837) O Conde Giacomo Leopardi, maior poeta lírico da Itália desde Petrarca, teve uma vida desesperadora, e morreu aos 39 anos. Dotado de visão lucreciana, Leopardi escreveu com espantosa exuberância negativa, proclamando a má notícia da nossa existência, em poemas de forma, tonalidade e música cognitiva perfeitas. George Santayana, na introdução da clássica biografia escrita por íris Origo - Leopardi: A Study in Solitude (1953), captou, de modo memorável, o paradoxo desse génio do Alto Romantismo: A temperatura escaldante da angústia de Leopardi incinerava essa mesma angústia, e purificava o ar. Abaixo da monotonia gloriosa das estrelas, ele enxergava a mutação universal das coisas terrenas, bem como a sua vaidade, mas, em quase tudo, via também o princípio, se não a completude, da beleza; e essa intuição, ao mesmo tempo extasiante e triste, liberava-o das ilusões do passado e do futuro. A obra de Leopardi se presta muito mal à tradução, porquanto ele é, estritamente, um poeta lírico. As únicas traduções em verso (para a língua inglesa) que expressam algo da qualidade especial do poeta são do poeta inglês já falecido John HeathStubbs. Na prosa - "Diálogo entre Torquato Tasso e o Espírito que o Serve" {Génio familia-re, em italiano) -, Leopardi anuncia o cerne do seu sombrio credo sem credo, no momento em que o poeta épico italiano da Renascença, enlouquecido, confronta o próprio demónio ou génio: TASSO. (...) minha vida é só tormento, pois, além da dor, la noia está me destruindo. GÉNIO. O que é la noia?. TASSO. (...) Penso que la noia tenha a natureza do ar, que preenche todos os espaços entre as coisas materiais e todos os seus vazios internos; e sempre que um corpo sai do lugar, e não é, imediatamente, substituído por outro, la noia aparece. De modo que todos os intervalos da vida humana, entre o prazer e a dor, são ocupados por la noia (...) GÉNIO. (...) deveras, penso que la noia nada mais signifique do que a busca da felicidade pura, incapaz de ser satisfeita pelo prazer, e jamais ferida pela desgraça (de modo perceptível). E essa busca (...) jamais pode ser satisfeita (...). Portanto, a essência da vida humana é constituída, em parte, de tristeza e, em parte, de noia; e só escapamos de uma, caindo nas presas da outra (...). TASSO. Que remédios existem contra essa noiâ. GÉNIO. Sono, ópio, sofrimento (...) Leopardi vislumbra a vida como uma vertigem em que se alternam visões de nulla (nulidade) e da intraduzível noia ("melancolia" e "tédio" são termos inadequados). Noia é desejo onde e quando não há o que desejar. Assim como o "mal", em Wallace Stevens (outro lucreciano), significa a dor e o sofrimento impostos a qualquer homem ou mulher naturais, inseridos em um mundo natural, a noia de Leopardi é absolutamente natural. A maior originalidade de Leopardi é engendrar, a partir do pesadelo da noia, a sua própria versão do Sublime poético: As obras de génio têm algo em comum: mesmo quando captam, intensamente, a nulidade das coisas, quando, com toda a clareza, demonstram e nos fazem sentir a infelicidade inescapável da vida, e quando expressam o desespero mais terrível, ainda assim, para uma grande alma - mesmo que se encontre em estado de extrema coerção, desilusão, vazio, noia e desespero, ou passando pelos mais amargos e mortais infortúnios (causados por quaisquer sentimentos fortes) -, tais obras sempre confortam e trazem de volta o entusiasmo; e, embora abordem ou representem a morte, devolvem à alma, ao menos temporariamente, a vida que esta havia perdido. Portanto, a vida real aflige e mata a alma, abre e reanima o coração, quando aparece em imitações ou outras obras do génio artístico (como em poemas líricos, que, a rigor, não constituem imitações). Assim como o autor, ao descrever e sentir o vazio das ilusões, armazena um grande estoque de ilusões - demonstradas através da intensa descrição do seu vazio -, o leitor, por mais desencantado que esteja, através da leitura é atraído pelo autor a essa mesma ilusão, escondida nos recantos mais profundos da mente que o leitor observa. E o próprio reconhecimento da vaidade e falsidade irremediáveis de todas as coisas grandiosas e belas é, em si, algo grandioso e belo, que preenche a alma, quando tal reconhecimento ocorre através das obras de génio. E o próprio espetáculo da nulidade apresentada parece expandir a alma do leitor, exaltando-a, reconciliando-a consigo mesma e com o seu desespero. (Trata-se de algo estarrecedor e, decerto, fonte de prazer e entusiasmo: esse efeito magistral da poesia, quando contribui para despertar no leitor um conceito mais elevado do eu, de seus pesares, do seu espírito deprimido, aniquilado.) 420 421 epicurista e materialista que renegava o cristianismo, mas a quem uma vida sexual era impossível, Leopardi manteve a sanidade mental, exclusivamente, devido ao seu génio poético. Obcecado pela linguagem, ele buscou e alcançou uma pureza de expressão que, para ele, teve de substituir a noção cristã de pureza da alma. A meu ver, o segredo, o génio de Leopardi é que, de modo singular, ele transformou pureza de expressão em metáfora, constituída de um poema inteiro, e que traduz um sentido do infinito. Somente uma visão do infinito poderia curar a noia. O maior poema de Leopardi é a sublime ode La ginestra ou A Flor do Deserto, cuja ação se passa no Monte Vesúvio, no último ano de vida do poeta. A ode é magnífica, e absolutamente intraduzível; portanto, recorro à versão literal, em prosa, de autoria de George Kay. A gifiestra se atreve a florescer na encosta árida do vulcão; será que, perto do precipício, Leopardi se atreve a se identificar com essa flor heróica, "amante de locais sombrios, abandonados pelo mundo"? O movimento final do poema evita tal identificação, mas não a renega: E tu, que enfeitas esses áridos campos rurais com arbustos fragrantes, também em breve sucumbirás à força cruel do fogo subterrâneo, que, novamente atingindo o limite, há de estender a orla voraz sobre os teus bosques suaves. E vais curvar a cabeça inocente sob o peso mortal, sem lutar; mas trata-se de uma cabeça que não se curva em súplica covarde, inútil, ante o opressor; nem se ergue para as estrelas, com orgulho vaidoso, ou para o deserto, onde brotaste e cresceste, não por vontade tua, mas por acaso. Porém, terás sido mais sábia, e muito menos volúvel do que o homem, pois não acreditaste que o destino, ou tu mesma, pudesse tornar imortal a tua espécie tão frágil. A natureza, na contundente percepção de Leopardi, é nossa inimiga extrema, e o único recurso de que dispomos é sermos bondosos uns com os outros. Porém, a flor do deserto vulcânico é mais sábia e mais firme do que nós, com nossas ilusões de imortalidade. Aqui pureza de expressão não substitui o conforto do infinito; substitui a falta de coragem em aceitar todo o peso da nossa condição. O último poema escrito por Leopardi, "O Declínio da Lua", foi completado em Nápoles, em 14 de junho de 1837, poucas horas antes da morte do poeta: O encostas e colinas, Embora oculta esteja a luz que do oeste Prateou o manto da noite, Órfãs não mais sereis, Pois muito em breve vereis, Mais uma vez, céus do leste Pálidos na manhã, ante à alvorada, A quem segue o sol, surgindo, Em chamas, novamente, e luminoso, E com seus raios ardentes, Torrentes de brilho e luz, Inunda cumes e a planície etérea. Mas a vida mortal, extinto o tempo Bom da juventude, não brilha mais, Em novo esplendor, segunda alvorada. Até o fim viúvos; e na noite Em que pelo escuro nós chegamos, Os deuses nos deixam um sinal, o túmulo. Sombrio e singular, esse poema apresenta uma gravitas lucreciana. Leopardi não encontra consolo no final, senão na presença implícita do génio que o serve. Em seus extensos cadernos - Zibaldone (miscelânea) -, Leopardi escrevera: Parece absurdo, mas é verdadeiro: porquanto toda a realidade é nula, as ilusões são, neste mundo, as únicas coisas reais e substanciais. A medida que a lua declina e ressurge a alvorada, Leopardi percebe que suas últimas ilusões desaparecem, e ele também se vai. 424 425 £ wèàJ " w&"s 4 wb&J LORDE ALFRED TENNYSON Se muito perdemos, muito inda temos; Se não dispomos da força que outrora Movia céu e terra, o que somos, somos: Um grupo coeso, corações heróicos, Fracos no tempo e na vida, mas prontos: Lutar, buscar, chegar, jamais ceder. Esses versos finais do monólogo dramático de Tennyson, intitulado "Ulisses", vie-ram-me à mente, enquanto, incrédulo, eu assistia, de Washington Square Park, no dia 11 de setembro de 2001, ao desmoronamento das torres. O mais virgiliano dos poetas de língua inglesa, Tennyson saudou Virgílio, em 1882, a pedido dos mantuanos, 19 séculos após a morte de Virgílio: Luz em meio às eras passadas; Astro que ainda doura o litoral; ^ Ramo de ouro dentre as sombras, Reis e reinos se vão, chegam ao final. O próprio Virgílio tornou-se o ramo dourado que nos mantém seguros no mundo subterrâneo. E o próprio Tennyson, génio da elegia celebrado por Walt Whitman como "the boss" (embora Tennyson não fosse o Springsteen da Rainha Vitória), é hoje em dia um ramo dourado na descida às trevas que ora se nos apresentam, ao menos durante um longo período: Caros qual beijos lembrados após a morte, E doces como os que são imaginados, Em lábios que a outros se destinam; Profundos qual primeiro amor, e insanos, Tanto que se arrependem; Ó Morte em Vida, Os dias que não voltam mais. LORDE ALFRED TENNYSON (1809-1892) Os grandes mestres vitorianos da poesia nonsense - Edward Lear, Lewis Carroll, William Schwenk Gilbert - escreviam pastichos de Tennyson, ao ensaiarem versos "sinceros" que falavam de afeto e arrependimento. Em poesia, Tennyson era o próprio estilo da época, como há bastante tempo ocorre com John Ashbery, nos Estados Unidos. Terminado o século XX, a depreciação de Tennyson haverá de cessar, e seu génio mórbido será reconhecido por quem ainda for capaz de ler poesia. O desbotado "Modernismo" de 80 anos atrás, cujo derradeiro monumento poético foi A Terra Devastada, de T. S. Eliot, guardava um ressentimento contra o poeta laureado da rainha Vitória. Demonstrei, anteriormente, que A Terra Devastada, cuja pretensão era identificar Dante e Baudelaire como precursores, na verdade, foi originada por outros precursores, Tennyson e Walt Whitman. Tennyson, no que possui de mais característico, viveu à sombra de John Keats, mas (re)trabalhou o estilo de Keats, para alcançar a linguagem do seu próprio génio. Com Tennyson, retomo a noção do demónio, pois os seus melhores poemas muitas vezes se movem à revelia de intenções conscientes. Quando está inspirado, Tennyson é poeta encantatório, cuja obra deve ser lida em voz alta. Eis o poema "Mariana", composto pelo poeta aos 20 anos, realização impecável, perfeição de morte-em-vida: Encobertos de musgo negro, Estavam os canteiros todos; Pregos oxidados caíam Dos laços em que pendiam petas. Telheiros, sombrios, estranhos; Passado o ferrolho rangente; Velho e mal cuidado o telhado, Sobre o ermo e ilhado chalé. Ela só dizia, "Triste vida, Ele não vem", ela dizia; Ela dizia, "Estou cansada, Cansada, queria estar morta!" A noite lágrima era orvalho; Lágrima ante o orvalho secar; 426 427 Ela o céu não podia olhar, Nem pela manhã, nem à noite. Depois que esvoaçam os morcegos, Quando as trevas cruzam o céu, Ela abre o forro da janela E olha de lado os prados lúgubres. Ela só dizia, "Triste noite, Ele não vem", ela dizia; Ela dizia, "Estou cansada, Cansada, queria estar morta!" No meio da noite acordada, Ela ouvia as aves noturnas: O galo uma hora antes da luz; Do brejo escuro ela escuta Mugidos do boi; sem esperança, Em sonho, ela caminha, mísera, Até que ventos frios acordam A insone manhã do chalé ilhado. M Ela só dizia, "Triste dia, Ele não vem", ela dizia; Ela dizia, "Estou cansada, Cansada, queria estar morta!" Logo após o muro dormia Uma represa de águas negras, Em cuja superfície flutuavam Pequeninos tufos de musgo. Ao lado, um choupo balançava, Verde-prata, casca rugosa; Em léguas, nenhuma outra árvore Povoava o cinzento vazio. Ela só dizia, "Triste vida, Ele não vem", ela dizia; Ela dizia, "Estou cansada, Cansada, queria estar morta!" LORDE ALFRED TENNYSON Sempre que a lua estava baixa, E os ventos uivantes à solta, No vaivém da cortina branca, Ela via a sombra oscilando. Mas, se a lua era muito baixa, E os ventos presos na caverna, A sombra do choupo caía Sobre sua cama, sobre o rosto. Ela só dizia, "Triste noite, Ele não vem", ela dizia; Ela dizia, "Estou cansada, Cansada, queria estar morta!" O dia todo na casa-sonho Rangiam as portas dos cómodos; A mosca azul zumbia no vidro; O rato chiava no lambri, Ou das fissuras espiava. Velhos rostos surgem nas portas, Velhos passos, no andar de cima, Velhas vozes a chamam lá fora. Ela só dizia, "Triste vida, Ele não vem", ela dizia; Ela dizia, "Estou cansada, Cansada, queria estar morta!* O pio do pardal no telhado, O tique-taque do relógio, O ruído do choupo insistente, Atordoavam-lhe os sentidos; Mas a hora mais detestada Era quando o raio de sol Iluminava grãos de poeira, E o dia se inclinava ao oeste. Ela só dizia, "Triste sou, Ele não virá", dizia ela; Ela chorava, "Estou cansada, Oh Deus, eu queria estar morta!" 428 429 Pode constituir experiência de auto-hipnose, declamar esse poema, uma vez memorizado. Embora Tennyson tome a persona lírica dos versos e a epígrafe emprestados a Shakespeare - Medida por Medida (ato 3, cena 1) -, é o poema Isabella, de Keats, a obra vislumbrada pelo autor de "Mariana". No poema de Keats, a heroína, à semelhança de Mariana, aguarda o amante que jamais chegará: "Por prazeres frustrados chora apenas; / Muito chorou até o cair da noite. / E definhou, morreu de melancolia." A forma da estrofe é invenção do jovem Tennyson, mas o sentimento e o tom das Grandes Odes de Keats repercutem do princípio ao fim, comparação a que "Mariana" quase faz jus. A princípio, o demónio de Tennyson escreve o poema para si. Porém, quando se lê (ou se entoa) "Mariana" várias vezes, começa-se a perceber quão (deliciosamente) doentio é o poema. Embara pareçam constituir uma canção de desespero, os versos se caracterizam por tremenda exaltação. A Mariana, de Tennyson, muito se assemelha à Rosa Enferma, de Blake, cujo canteiro tem "alegria escarlate", antes de ser encontrada pela lagarta invisível, que na tormenta da noite se arrasta. Seria difícil articular-se de modo mais convincente do que em "Mariana" a profunda ambivalência com respeito ao amante ausente. Em outro trecho do presente livro, no qual abordo a obra de Keats, focalizo a "Ode sobre a Melancolia", que, suponho, provoca a ambivalência de Tennyson em "Mariana". Tanto quanto Goethe, Keats foi naturalista convicto, cantador da plenitude sensual. Tennyson, desde a juventude, foi impaciente com o processo natural. Sua persona, Mariana, encarna uma voz demoníaca, ardentemente apaixonada por si mesma. A bela Laura, personagem do conto mexicano de Katherine Anne Porter intitulado "Judas Florescente", apresenta um pouco dessa mesma autosuficiência destrutiva para a própria pessoa e para terceiros. A independência do génio lírico no que concerne à determinação histórica é ilustrada, de modo eloquente, em "Mariana". A própria heroína de Tennyson é poeta, constituindo ela mesma a sua matéria poética, e não precisa, absolutamente, do amado pelo qual espera. O substituto do amado, o choupo, já é bastante perturbador; a presença do amado destruiria o poema. A força da fantasmagoria é ameaçada por qualquer elemento intrusivo, e o amado seria um intruso muito mal recebido. A consciência lírica de Tennyson tende a evidenciar a imagem da mulher em um caramanchão, a amante interior, ou alter ego, o que nos faz retornar a uma das antigas definições romanas de génio. A sensibilidade exacerbada de "Mariana" pode ser encontrada em toda a obra de Tennyson. Focalizarei aqui o monodrama Maud, que, segundo consta, exercia efeito perene em T. S. Eliot. A persona alienada, do sexo masculino, cuja voz se ouve no poema, exclama: "Meu coração é um punhado de pó", verso que, em A Terra Devastada, torna-se "Mostrar-te-ei o medo em um punhado de pó". O título 430 LORDE ALFRED TENNYSON completo do monodrama de Tennyson é Maud, ou O Desvario, e o poema ronda as fontes da perigosa melancolia do poeta laureado. O pai de Tennyson perdera para um irmão mais jovem o direito à herança, e as consequências do fato incluíram relativa pobreza, ócio, alcoolismo grave, loucura e morte um tanto precoce. George Tennyson, prior de Lincolnshire, teve 12 filhos, dos quais Alfred foi o quarto. Todos os irmãos eram depressivos, sendo que um jamais se recuperou, e Alfred, muito depois de haver se tornado o bem pago poeta laureado da Rainha Vitória, ainda demonstrava precário equilíbrio mental. Maud (1855) era uma obra mórbida demais para alcançar sucesso popular, mas merece a defesa descritiva de Tennyson: Esse poema Maud, ou O Desvario é um pequeno Hamlet, a história de uma alma mórbida e poética sob a influência perniciosa de uma era imprudentemente especulativa. É herdeiro da loucura, um egoísta com estofo de cínico, elevado a um amor puro e sagrado que lhe promove toda a natuteza, e passando do auge do triunfo ao mistério mais profundo, levado ao desvario pela perda da amada, e, no momento em que, finalmente, sobrevive à fornalha escaldante, recupera a razão e se entrega ao trabalho, pelo bem da humanidade, através do altruísmo de uma grande paixão. A peculiaridade desse poema é que fases diferentes da paixão em uma mesma pessoa substituem os personagens. No trecho anterior, obviamente, fala o poeta laureado, não o demónio e, felizmente, foi o demónio quem compôs a maior parte do poema. Maud foi publicado durante a Guerra da Criméia, e o pequeno Hamlet (mais semelhante a um pequeno Byron) entre-ga-se ao trabalho pelo bem da humanidade, propondo-se, na conclusão do poema; altruisticamente, a exterminar os russos. Recordo-me do meu espanto, quando, em meados dos anos 50, em Londres, assisti a um espetáculo musical com Beatrice Lillie ("Um; Noite Intima com Bea Lillie), em que a estrela, dançando no palco, gritava para a plateia "Maud, somos podres até os ossos!". Em seguida, abria a capa, como asas de morcego, corria pelo palco, alegremente, enquanto um tenor irlandês, de traje a rigor, cantava c número mais famoso do monodrama, a canção que inicia: Vem para o jardim, Maud, Pois o morcego negro, noite, voou, Vem para o jardim, Maud, Sozinho ao portão eu estou: Flutua no ar o odor da madressilva, E o almíscar da rosa já soprou. 431 O cantor anónimo tem comportamento paranóico, logo constatamos; trata-se, com efeito, de uma paródia de Tennyson quando jovem. As percepções líricas da persona são intensas, tanto que é possível considerar a pobre Maud uma felizarda, por ter conseguido se isolar, a fim de conseguir se esquivar dessa mesma persona: Rolou uma esplêndida lágrima Da flor-da-paixão à entrada. Ela vem, pombinha querida; Ela vem, mi'a vida e destino; Grita a rosa vermelha: "Aí vem ela!" Chora a rosa branca, "Está atrasada"; Atenta a esporinha, "Já posso ouvi-la"; E sussurra o lírio: "Eu espero". Desse ponto ao País das Maravilhas ou ao País dos Espelhos de Lewis Carroll basta um pequeno passo. E nesse aspecto, a meu ver, reside a frágil grandeza da obra: como estabelecer o limite entre paixão sublime e nonsense sublime? Tennyson, naquilo que tem de mais impressionante, é impelido a ensinar ao seu demónio como realizar tal feito. Nos desertos belamente ornados, ainda que, um tanto áridos, do ponto de vista poético, do poema Idílios do Rei, a voz desse demónio, às vezes, é ouvida, conforme neste trecho, da canção de Vivien e do posfácio, em Balin e Balam Agora a íntegra música do bosque Calou-se por alguém do salão de Marco, Uma donzela-errante, gorjeando Pelos vales, Vivien e seu Escudeiro. "Fogo do Céu matou o frio estéril, Aquecendo a planície e o descampado. A folha nova sempre empurra a antiga. Fogo do Céu não é chama do Inferno. "Velho padre, rezando com o coro -Velho monge e madre, zombais do ardor, Mas em vosso frio claustro sentis fogo! Fogo do Céu não é chama do Inferno. "Fogo do Céu em vias empoeiradas. Flores do caminho se abrem ao calor. Em elogio repica toda a mata. Fogo do Céu não é chama do Inferno. "Fogo do Céu é senhor das coisas boas, Não deixeis morrer tal fogo no sangue, Segui Vivien p'lo dilúvio de fogo! Fogo do Céu não é chama do Inferno." Falando ao escudeiro: "Fogo do Céu, Adoração ao sol, ressurgirá, Derrotando a cruz, destruindo o Rei Bem como a sua Távola (...)" Esse hino a Eros é a verdadeira voz do sentimento em Tennyson, reagindo à repressão. Emanação escarpada das regiões ermas e dos pântanos musgosos de Lincolnshire (local da ação de "Mariana"), Tennyson era uma anomalia ambulante, muito bem descrito (por Thomas Carlyle) como "homem solitário e triste (...), levando consigo um pouco do Caos, em suma, algo que ele transforma em Cosmo". Mas esse Cosmo não nos interessa; já o pouco de Caos pode ser poeticamente fascinante. Vivien, que seduz e destrói Merlin, faz parte desse pouco de Caos. Tennyson considerava Maud o seu Inferno, e In Memoriam o seu Purgatório, ao final, o seu Paraíso. O que fica na memória em In Memoriam são, precisamente, os momentos que pressagiam as visões urbanas de T. S. Eliot, que tanto apreciava o poema 7, em que Tennyson se vê defronte à casa onde vivera Arthur Henry Hallam, o amigo eternamente chorado: Casa escura, que volto a confrontar, Nesta rua comprida e tão sem graça; Portas, onde sempre meu coração Disparava, à espera do cumprimento, Mão que já não pode ser apertada -Olhai -me, pois não consigo dormir, E, qual uma culpada criatura, A porta me arrasto em madrugadas. 432 433 Ele aqui não está; mas à distância Ressurgem os ruídos desta vida, E lívido, em meio à chuva fina, Pela rua banal, desponta o dia. Tennyson foi sempre o poeta das elegias, sempre lamentoso, bastante no estilo de Virgílio, o poeta clássico que ele mais apreciava, assim como Keats foi o seu crucial predecessor moderno. Christopher Ricks, elogiando o poema de Tennyson sobre a morte, o sempre popular "Cruzando o Limite", destaca a maestria com que cada uma das quatro estrofes depende de um "verso mais curto, conclusivo, que freia e domina o sentimento". Guardo tia memória a segunda das quatro estrofes, que, para mim, resume a singular musicalidade cognitiva de Tennyson: Tal maré, movendo-se, parece dormir, Cheia demais, p'ra ruído ou espuma, Quando algo que vem das profundezas, Retorna à casa. A casa faz parte do Caos primordial, e Tennyson desiste das fantasias relativas ao progresso da sociedade e de transformar em Cosmo sua herança demoníaca. VI TIFERET 434 435 LUSTRO 11 Algemou Charles Swinburne, Dante Gabriel Rossetti, Christina Rossettí, Walter Pater, Hugo von Hofmannsthal Cabala classifica o estetismo sob o Sefirah conhecido por Tiferet, a "misericórdia" de Deus manifesta como "beleza" de Deus, meditação frequentemente expressa como Shekhinah, a presença de Deus como bela forma feminina. O esteticismo inglês Swinburne, os irmãos Rossetti, Walter Pater - e seus contemporâneos vienenses, cuja figura mais representativa é Hofmannsthal, encaixam-se, quase inevitavelmente, neste primeiro Lustro de Tiferet. Embora, durante muito tempo, tenham sido avaliados negativamente pela crítica, Swinburne e Dante Gabriel Rossetti são poetas de grandes realizações, conforme pretendo demonstrar. Christina Rossetti, triunfo singular e tardio da poesia religiosa, é também extraordinária autora de elegias sobre frustração erótica. A crítica de Walter Pater, tão depreciada por T. S. Eliot, exerceu profunda influência sobre Joyce, Yeats, Virgínia Woolf e muitos outros "modernistas" (como parece antiquado agora esse termo), enquanto Hugo von Hofmannsthal precisa ser resgatado do destino injusto, de ser reconhecido apenas como libretista de Richard Strauss. Pro-ponho-me a realizar tal resgate. 437 ALGERNON CHARLES SWINBURNE ALGERNON CHARLES SWINBURNE Ninguém o terá visto, ninguém Pode vê-lo acima de deuses e coisas, Correndo sem pés, voando sem asas, Intolerável, despido de morte ou vida, Insaciável, desconhecido da noite ou dia, Senhor do arnoj, do ódio e da luta, Que oferece uma estrela e rouba um sol; Que molda a alma, e a torna mulher estéril Ao corpo terreno e ao cruel crescer do barro; Que transforma os membros em pequena chama, E subjuga o mar com um punhado de areia; Que provoca desejo, e o mata com vergonha; Que sacode o céu qual cinzas na mão; Que, vendo luz e sombra o mesmo serem, Ordena ao dia consumir a noite, M Assim como o fogo devora a lenha, Golpeia sem espada, e açoita sem chicote; O mal supremo, Deus. O atrevimento anti-religioso de Swinburne, expresso, de maneira extraordinária, nesse coro de Atlanta em Cálidon, demonstra uma tonalidade renovadora, à medida que adentramos o século XXI, época em que as guerras religiosas parecem fadadas a retornar. Mas o génio de Swinburne caracteriza-se pela audácia, seja no sadomasoquismo explícito, na polémica contra o cristianismo, ou no talento fabuloso de parodista. A melhor autoparódia proposital escrita em língua inglesa é "Poeta Loquitor" (O Poeta Fala), poema de Swinburne, que, por uma questão de espaço, infelizmente, não posso citar na íntegra. Eis o trecho que vai da quarta à sexta estrofes (de um total de dez), que antecipa qualquer crítica que Swinburne possa provocar junto aos cristãos: Loucas mesclas de lixo afrancesado, Com insultos à crença dos cristãos, Cega blasfémia, troça infantil, tudo Isso de estúpido me rotula. Deveras, considero-me alguém Cujo público jamais diminuirá, Mas será bastante estranho o pupilo Cujo mestre é vento. Em meus poemas, com enlevo arrebatador, Temporal me golpeia, acaricia, ferroa: Mas não sou ave a ser surpreendida Fora do ninho em meio às intempéries. Prefiro ficar longe desses males, Quando o humor faz tremer o arvoredo, E o vento, com seu braço onipotente, Faz do mar espuma. Agarrado a trapos a outros alugados, Que me precederam e superaram, Quero crê-los meus irmãos e irmãs, Embora bem conheça a minha laia. Ponho-me a ganir, só de ver igreja, Qual menino chutado em futebol! Mas a causa, decerto, está perdida, Cujo evangelho é vento! 438 439 ALGERNON CHARLES SWINBURNE (1837-1909) De todos os génios da linguagem analisados neste livro, o poeta Swinburne é o que está menos em voga. Sem dúvida, é tarde demais para reavivá-lo: foi morto por T. S. Eliot e Edmund Wilson, ambos ilustres exterminadores. Todavia, cito o poema "Agosto", na íntegra, porquanto são poucas as pessoas ainda vivas que já o terão lido. O leitor deve experimentar recitá-lo, em voz alta, sozinho ou acompanhado: No galho havia quatro maçãs, Ouro e rubi, p'ra revelar Que o sangue estava maduro; A cor das folhas parecia De espigas de milho que crescem Nos planos, em junho dourado. Servia o odor quente das frutas P'ra alimentar, e a lenha rachada, Com lábios peludos e manchas >a De musgo nos veios partidos, Era agradável, a quem estava Ao sol ou sob chuvas felizes. Na árvore havia quatro maçãs, O rubro no ouro, p'ra que vissem: Sol aquecia do núcleo à casca; Folhas verdes cegavam verão, No local doce a mim guardado, Maçã dourada ali trancada. Folhas tinham o ouro do sol, E, onde soprava o ar mais azul, Queriam canção p'ra ajudar o calor; Como a tocar os pés da amada, Achego-me ante o fim do dia, Lábios de sonhar ficam secos. ALGERNON CHARLES SWINBURNE Na tarde calada de agosto, Vibravam seguindo algum som De música no ar prateado; Era um prazer estar ali, Até o verde virar penumbra, E a lua dourar todo o milho. Naquele agosto foi deleite Ver lua rubra ficar branca, Pelos galhos da macieira; Sensação de grande harmonia Aumentava na noite paciente, Mais doce que música escrita. Cerca de três horas antes da lua, O ar, inda ávido do dia, Clamava o calor moribundo; Encostei a cabeça ao galho; A cor qual canção me acalmava, Folha verde, além do ouro e rubro. Fiquei até que o quente odor Aumentasse, e sinais de orvalho Surgissem nas folhas redondas, As cascas manchando; ouvi Um vento soprar e soprar, Débil demais p'ra dizer outra coisa. Folhas úmidas em torno da fruta Eram mais lisas, e a raiz Fez a terra mais quente: senti (Como a água sente o ouro derreter, Quando o dia se queima emudecido) A paz do tempo em que vivia o amor. 441 Na árvore havia quatro maçãs, O ouro no rubro, p'ra que vissem: Sangue doce lhes preenchia; Cor dos cabelos dela lembra Talos de ouro pálido e belo, Ceifados no auge da safra. Atualmente, quando Swinburne atrai alguma atenção, é por ter sido discípulo (em termos práticos) do Marquês de Sade; de fato, o poeta escreveu grande quantidade de versos masoquistas, dentre os quais a obra-prima é "Anactoria", monólogo dramático de Safo, poeta de Lesbos, dirigido à infeliz Anactoria, amada e vítima (nitidamente, projeção do próprio Swinburne, como assinala Camille Paglia, com a tocante acuidade de sempre). "Agosto", no entanto, não demonstra o desejo ardente de Swinburne de ser chicoteado por uma mulher, sendo, talvez, o mais keatsiano dos seus poemas, naturalista, ao invés de contra naturam. A um só tempo festivo e dorido, o poema remete ao grande amor não-consumado da vida do poeta, a paixão quase incestuosa por uma prima, Mary Gordon, companheira de infância na Ilha de Wight, segundo consta, local onde se passa a ação de "Agosto". As vezes, sinto-me inclinado a dizer, com relação a "Agosto" o que Johnson disse, referindo-se a Alexander Pope: se isto não é poesia, onde haveremos de encontrá-la? Contudo, a obra de Swinburne, com poucas exceções, demonstra que, sozinho, génio verbal não basta, infortúnio que, por si só, já justificaria a inclusão do poeta neste livro. Eis o melhor crítico de Swinburne, o falecido Ian Fletcher, delineando as imperfeições do poeta, e recorrendo ao poeta e classicista A. E. Housman, a fim de concluir a acusação: Os admiradores de Swinburne são chamados a responder a uma acusação. Se o poeta demonstra alguns sinais de genialidade - energia, prolificidade e forte identidade literária -, já a sua temática parece restrita. Os efeitos métricos, a princípio, surpreendentes, até espantosos, aos poucos, amortecem o impacto, por depender demais de anapestos e iambos; a intensidade inicial é logo domesticada por modulações previsíveis; ao contrário de Baudelaire, Swinburne não recorre à variação métrica e aliterações criadas pelo poeta são contínuas, estouvadas e auto-indulgentes. Possui um harém de vocábulos aos quais se mantém lamentavelmente fiel: amiúde, o léxico é sumamente bíblico, abusando das palavras Deus, Inferno, serpente, açoite, chama, trovão etc, característica inusitada em alguém que se propunha a ser o flagelo dos cristãos. A musa de Swinburne é, com efeito, uma espécie de Balaão às avessas: amaldiçoa Deus como o faria um profeta do Antigo Testamento, desprestigiado, ou talvez renitente com respeito à missão imposta. E os temas dos versos de Swinburne parecem se diluir em um único assunto. Pouca diferença faz, se ele está realizando uma pungente incursão sado-masoquista, trabalhando o mar como figura da Mãe, a libertação da Itália como emblema do fim de todas as tiranias que oprimem o ser humano, sejam religiosas ou políticas, ou celebrando as firmes convicções morais do Corpo Naval. As cadências medíocres, o vocabulário vago e genérico persistem, de modo que se torna difícil ao leitor distinguir se deve admirar um navio de guerra ou um seio. Housman, um dos críticos mais perspicazes de Swinburne, resume a questão: "O mar, o recém-nascido e a liberdade entravam na máquina de fazer linguiça, em que ele tudo enfiava; uma volta da manivela e, do outro lado, sai (...) ruído." Housman admirava alguns dos poemas, mas "não há motivo para que iniciem e terminem como o fazem; não há motivo para que o meio se posicione no meio; não há sequer motivo por que, uma vez iniciados, devam chegar a alguma conclusão; seria possível reorganizar as estrofes que os compõem em várias ordens, sem diminuir-lhes a coerência ou lhes comprometer o efeito". Mas o comentário de Tennyson é, igualmente, correto: "É um bambuzal e, através dele, todo sopro se transforma em música." As críticas que Eliot e Wilson fazem a Swinburne não me abalam tanto quanto as de Fletcher e Housman. Máquina de fazer linguiça que produz ruído é descrição que, se justificada, acaba com a carreira de qualquer um. Em suma, de modo geral, Swinburne é bastante maçante, e não desejamos ser aborrecidos, nem mesmo por um génio. Todavia, existem honrosas exceções, além de "Agosto". Há a poesia dramática Atlanta em Cálidon, ainda hoje bem mais legível do que Assassinato na Catedral ou Reunião em Família, de Eliot, e temos o melhor poema de Swinburne, "Ao Final de um Mês', composto de 33 quartetos majestosos, em que um homem e uma mulher, que já não se amam, caminham juntos, à noite, pela última vez, para admirar o mar. O poema, evidentemente, celebra o caso de amor (que durou um mês) entre Swinburne e a audaciosa Adah Isaacs Menken (1835-1868), atriz, aventureira e poeta, nascida em Memphis, no estado do Tennessee, mundialmente famosa pelas cavalgadas (no mais das vezes, nua) em cena, na peça Mazeppa, de Lorde Byron. É certo que Menken desistiu de Swinburne, pois, conforme revelou a Dante Gabriel Rossetti, "não consigo fazê-lo entender que é inútil morder". Em todo caso, "Ao Final de um Mês" apresenta um ritmo marcante, uma marcha fúnebre ao Eros perdido: 442 443 Atravessado, oblíquo, batido pelo vento, Nadava, mergulhava e roçava o mar: Unir-te a mim, não era meu sonho; Unir-me a ti, eu não poderia. Etimologicamente, a palavra "demoníaco" remete à raiz indo-européia que significa "dividir". Génio, ou demónio, é o espírito que divide o eu, em vez de unificá-lo. Swin-burne é um dos exemplos marcantes de uma natureza incapaz de suster o próprio génio. Deve ser valorizado como um dos poucos autores dados a descrever a morte do amor. O poema "Ao Final de um Mês" sempre me faz lembrar os melhores momentos da literatura modefna em que é invocado o fim de uma paixão. Lembro-me de Swann, em Proust, exclamando: "E pensar que tanto sofri por uma mulher que comigo não condizia, que sequer era o meu tipo!". Jack Burden, no romance de Robert Penn Warren, Todos os Homens do Rei, despede-se, em devaneio, da ex-esposa: "Adeus, Lois, e perdôo-te por tudo que te fiz." Talvez o melhor exemplo pertença à obra de íris Murdoch, em um de seus primeiros romances: "Deixar de gostar de alguém é uma das grandes experiências humanas; a gente parece ver o mundo com novos olhos." DANTE GABRIEL ROSSETTI Empilhados sob galhos da macieira, Deitam-se tendo em mãos maçãs mordidas: Alguns são tão-somente velhos ossos, Alguns tinham navios já lançados, E alguns já foram até donos de terras. E no vale, em meio às macieiras, Acima da cova escondida, ela fica, De lá sempre cantando, ela que ofertou Aos do vale o seu momento de paz, E as maçãs que trazem em suas mãos. Assim vejo em meus sonhos; seus cabelos Roçam meus lábios e meu sopro cálido; Seu canto abre no ar asas douradas, Olhos da Vida brilham em sua bela fronte, E em seu seio os graves olhos da Morte. Por mais que aprecie a poesia de Dante Gabriel Rossetti, atualmente esquecida, devo admitir que o génio do poeta transcende a melancolia, chegando à morbidez intensa. O fragmento "A Cova do Pomar", cujas primeiras estrofes cito acima, não pode ser considerado um tributo à amante adúltera do poeta, Jane Burden (Sra. William Morris, cujo marido, o poeta e artista Morris, foi durante a vida inteira o melhor amigo de Rossetti). Tenho um coala empalhado na sala de minha residência em New Haven, chamado McGregor, que pertenceu a Rossetti, e do qual Morris gostava muito. Segundo consta, Rossetti trazia consigo o animal, nas frequentes visitas à casa dos Morris, e, de acordo com um relato (do qual não duvido), o pobre McGregor era um subterfúgio. William Morris gostava de brincar com o animal, ou se dispunha a desenhá-lo, processo em que se detinha por uma ou duas horas; enquanto isso, o atrevido Rossetti e a bela e fogosa Jane Burden Morris corriam para o segundo andar da casa, a fim de extravasar a paixão que os consumia. O sinistro ronda Dante Gabriel Rossetti, e os seus quadros pré-rafaelitas, por demais elaborados, a meu ver, são muito inferiores à sua poesia extremamente original. A mes444 445 cia singular que o poeta realiza entre naturalismo e fantasmagoria funciona melhor nos poemas, cujas tonalidades, raramente, são opressivas, ao passo que, a não ser nos casos dos melhores retratos, os demais exibem uma sensualidade pesada e obsessiva. A obra-prima poética de Rossetti é O Segredo do Riacho, extenso devaneio sobre o desejo destrutivo e inescapável do poeta por Jane Burden. Sem dúvida, Rossetti e a Sra. Morris foram feitos um para o outro: a ideia de um casamento entre os dois abala o leitor de Rossetti tanto quanto, decerto, abalava os amantes. De vez que o cânone literário ocidental foi varrido do mapa pelo puritanismo iluminista das universidades do mundo anglófono, é possível que Rossetti jamais volte a ser estudado. Mas um leitor solitário, se for extremamente inteligente, deve buscar os sonetos intitulados A Casa da Vida, bem como as traduções feitas da obra de Dante e contemporâneos. Na era atual, ser excluído das universidades, provavelmente, constitui um brasão de excelência. CHRISTINA ROSSETTI Lembra de mim, quando eu me for, P'ra longe, p'ra terra calada, E não puderes mais ter minha mão, Nem eu desistir de sair, e ficar. Lembra de mim, quando dia após dia, Não puderes mais falar do nosso futuro: Apenas lembra de mim; será tarde, Então, p'ra conversar e p'ra rezar. Mas, se por um momento me esqueceres, E a lembrar voltares, não te lamentes: Pois se as trevas e a morte permitirem Vestígios das ideias que um dia tive, Melhor seria se esquecesses sorrindo, Do que se te lembrasses com tristeza. O soneto "Lembranças" é um exemplo esplêndido da originalidade discreta, atenuada, de Christina Rossetti. Poucas auto-elegias dirigem-se de modo tão adequado ao sobrevivente, através da voz da amada morta. A arte sutil de Christina brinca com cinco acepções de "lembrar", todas diferentes entre si. A primeira é a simples lembrança, literal, enquanto a segunda se refere à culpa potencial do sobrevivente. A terceira, "Apenas lembra de mim", expressa um pesar mais tocante, e "a lembrar voltares" não constitui reprimenda, uma vez que lamentações não cabem em se tratando de perdas eróticas. O último "lembrar" é o mais encantador, atestando o elemento altruísta presente no amor perdido. Christina Rossetti não compartilha da ilimitada originalidade de Emily Dickinson, e fica longe da sublimidade solitária contida em alguns dos poemas da lírica apocalíptica de Emily Bronté. Não obstante, possui génio majestoso e perene, dotado de postura diversa da de qualquer outro elegista das tristezas de Eros. O toque é sempre leve, a voz comedida, embora perturbadora. Ainda que raramente, tem seus momentos de êxtase e exaltação e, de bom grado, celebramos com ela "Um Aniversário": 446 447 Meu coração é qual ave cantante, Cujo ninho fica em ramo novato; Meu coração é qual a macieira, Cujos galhos pesam com tanto fruto; Meu coração é qual concha arco-íris, Que por mares tranquilos se arrasta; Meu coração é mais feliz que tudo, Pois meu amor veio ter junto a mim. Armai um tablado de seda e plumas; Ornai-Q.com peles e panos púrpuros; Talhai-o com pombos e romãzeiras, E pavões de uma centena de olhos; Em relevo, aplicai uvas em ouro e prata, Com folhas de flor-de-lis prateada; Porque o aniversário da minha vida Chegou: o meu amor veio me ver. DANTE GABRIEL ROSSETTI (1828-1882) CHRISTINA ROSSETTI (1830-1894) Christina Rossetti, poeta genial, sejam quais forem os parâmetros aplicados, em muitos aspectos, é sempre um enigma. Escritora de orientação anglicanocatólica, original e, até certo ponto, esotérica, Christina não se coaduna facilmente com os métodos e obje-tivos daquilo que hoje se denomina crítica literária feminista, que identifica na poeta "a estética da renúncia". A poesia da renúncia, com efeito, não precisa ser religiosa ou feminina: seu maior exemplo foi Goethe, que era pagão. Mais próximo a Christina, havia outro pagão, seu irmão mais velho, o notável poeta e pintor Dante Gabriel Rossetti, cuja intensa erotomania em muito provocou a rejeição da irmã, com respeito ao que nossa cultura ainda celebra como "amor romântico". A pintura de Dante Gabriel Rossetti pode ser considerada questão de gosto; quanto à sua poesia, esta tem hoje reputação inferior à da irmã, mas o tempo vai alterar tal situação, pois a força dos melhores versos de Dante Gabriel está além dos modismos, ao passo que as pinturas, em sua maioria, talvez sejam mesmo datadas. Reúno aqui os dois irmãos porque se iluminam mutuamente, e as semelhanças (e diferenças) entre os génios da família têm seu próprio valor e fascínio. Em outras partes deste livro reúno os irmãos James, bem como as irmãs Bronté, mas nenhuma dessas justaposições me parece tão fecunda quanto a leitura, lado a lado, dos poemas eróticos de Dante Gabriel Rossetti e dos poemas da irmã, à sua maneira, às vezes eróticos, mas sempre com algum diferencial. Malgrado as aparências, ambos são poetas difíceis. A leitura cerrada é hoje algo problemático: poucos querem (ou sabem) ensiná-la, e uma geração influenciada por estímulos visuais reluta em aprendê-la. Christina (recorro aos primeiros nomes, para evitar a repetição do nome Rossetti) é mais contundente quando anula as diferenças entre poesia sagrada e profana: Tudo passa, o Mundo diz, tudo passa: Beleza, juventude, dia a dia; Jamais há vida sem interrupção. 448 449 O olho embaça, grisalho está o cabelo, Sem ter ganho coroa ou laurel? Fecho na primavera e broto em maio: Tu, raiz doente, tua decomposição Não renovarás sobre o meu seio. Então, respondi: Sim. Tudo passa, minha Alma diz, tudo passa: Com a carga de medo e de esperança, De labor e lazer, ouve o passado: Ferrugem em teu ouro, traça em teu traje, Teu broto tem praga, a folha apodrece. A meia-noite, ao alvorecer, um dia, Eis que surge o Noivo, e sem demora; Fica atenta e reza. t Então, respondi: Sim. Tudo passa, meu Deus diz, tudo passa: O inverno passa, após longa demora; Novas uvas na vinha, novos figos, * Aves chamam aves no Céu de maio. Demoro, mas espera-me, confia, Observa e reza. Levanta, é dia, Amor, irmã, esposa, então direi. Então, respondi: Sim. Essas estrofes compõem a terceira das "Velhas e Novas Cançonetas de Ano-novo", mas são muito superiores às outras duas. Hesito em chamar Christina de mística, outra Teresa ou João da Cruz, porque a ênfase obsessiva de sua poesia, tanto quanto a de Dante Gabriel, sempre recai sobre o Inferno do amor carnal. Apesar da investigação dos biógrafos, Christina conseguiu guardar seus segredos. Pouco sabemos sobre sua "vida amorosa", expressão paradoxal para muitas pessoas, certamente para o irmão mais velho de Christina. Ela recusou ao menos duas propostas de casamento, segundo consta, por motivos religiosos, mas suspeito que o orgulho e a independência tenham determinado a sua condição de solteira, bem como a visão que tinha de si mesma na condição de escritora. Os trabalhos de cunho religioso, escritos, tardiamente, em prosa, conquista-ram-lhe muitos leitores, evidentemente, do sexo feminino. "Tudo Passa" (assim intitularei o poema) é sumamente pessoal, extraordinária despedida dos 20 anos da poeta, escrita no último dia da década de 1850. O leitor pode declamar "Tudo Passa", em voz alta, inúmeras vezes (conforme recomendo), antes de perceber a maestria de Christina no controle da sonoridade desses 28 versos. A modulação de "dia a dia", passando por "um dia", chegando a "Levanta, é dia", deixa transparecer um triunfalismo estático, pois o dia em que (na visão popular) a poeta deixa de ser jovem coincide com uma transfigurante renúncia ao mundo. Em 1860, Christina não tinha "ganho coroa ou laurel", e muito se preocupava com a reputação de poeta, preocupação posta de lado pela bela aplicação que fez Christina da parábola de Cristo a respeito das virgens sábias e tolas: "Atentai, pois não sabeis o dia ou a hora em que há de vir o Filho do homem." A maior parte da estrofe final se remete ao Cântico de Salomão: Veja: o inverno já passou! Olhe: a chuva já se foi! As flores florescem na terra, o tempo da poda vem vindo, e o canto da rola já se ouve em nosso campo... Levante-se, minha amada, formosa minha, e venha a mim!1 A dificuldade característica à obra de Christina, i.e., a fusão sumamente individual que ela realiza entre o sagrado e o profano, é bastante distinta da dificuldade inerente à arte pré-rafaelita, observada na obra do irmão. O próprio termo "prérafaelita" já é confuso, sendo mais proveitoso pensar o movimento como renovada expressão do Romantismo, transição entre a influência de Keats em Tennyson, e de Shelley em Browning, e o advento do esteticismo de Walter Pater e Oscar Wilde. Dante Gabriel Rossetti, decerto o epítome do poeta pré-rafaelita, constitui eterno paradoxo poético. Embora afirmasse a própria sensualidade - Elizabeth Siddal, Fanny Cornforth, Annie Miller, a Sra. William Morris (Jane Burden) -, ele escreve uma poesia que rejeita a natureza, em favor de algo que há de ser chamado de fantasmagoria. Ao longo de toda a principal série de sonetos de sua autoria, A Casa da Vida, não temos como saber se estamos em um cenário natural, relembrado, ou em um Inferno antinatural, luxuoso, opressivo e fantástico, e que não exemplifica qualquer esquema de julgamento moral ou religioso: Da primeira mulher de Adão, Lilith (Feiticeira que ele amou antes de Eva), Dizse que, antes da serpente, a sua língua Já iludia, e que seus cabelos encantados Foram o primeiro ouro. E sendo jovem, 1 Bíblia Sagrada. Edição Pastoral. São Paulo: Paulinas, 1990, pp. 872-73. [N. do T.] 450 451 Enquanto a terra é velha, e a contempla, Atrai homens a ver a rede que ela tece, Até coração, corpo e vida ali serem pegos. Rosa e papoula são suas flores; onde Está o homem, Ó Lilith, que escapa Do perfume e dos beijos e do torpor doce? Vê! Se ardeu ante o teu, o olhar do jovem Foi por ti enfeitiçado, a ti voltando-se, Ao peito um fio de cabelo dourado. Os versos anteriores descrevem o retrato que Dante Gabriel pintou de Fanny Corn-forth como Lilith, primeira esposa de Adão, que o abandonou (segundo a Cabala) porque ela não mais aceitava ficar na posição inferior durante o ato sexual. O historiador da arte George Hersey comenta, em tom mordaz, os retratos femininos pintados por Rossetti, tardiamente, após o suicídio da esposa, Elizabeth (Lizzie) Siddal: Em feições e físico, essas mulheres pintadas tardiamente são tão diferentes de Lizzie quanto parecidas entre si - deusas fortes, poderosas, suculentas, ao invés de virgens definhadas. No entanto, as mulheres desses retratos estão mortas rígidas e de olhar parado, a despeito da farta sensualidade. Coroadas de flores, recostadas em espaços rasos, trazendo nas mãos lembranças que, tipicamente, levariam consigo para o túmulo, mais parecem belos cadáveres estirados em esquifes abertos. A rede de Lilith são seus próprios cabelos dourados, serpentes mortais na visão do idólatra de fetiches, Dante Gabriel. Por rotas inversas, irmão e irmã alcançam a mesma visão de plenitude sexual: morte em vida, ou Inferno. Ambos os poetas têm a mesma convicção infeliz de que o amor entre homem e mulher é fundamentado em traição mútua, ideia nada romântica. Que tipo, então, de ideia será? Não parece se tratar de renúncia, seja por parte do desesperado Dante Gabriel ou da contemplativa Christina. Nenhum dos dois é sadomasoquista, embora as obras Mercado de Gnomos e "Da Casa ao Lar", de autoria de Christina, tenham sido interpretadas como tal, e poucos poemas sejam tão extremos quanto o "fragmento" assustador, escrito por Dante Gabriel e intitulado "A Cova do Pomar": Empilhados sob galhos da macieira, Deitam-se tendo em mãos maçãs mordidas: Alguns são tão-somente velhos ossos, Alguns tinham navios já lançados, E alguns já foram até donos de terras. E no vale, em meio às macieiras, Acima da cova escondida, ela fica, De lá sempre cantando, ela que ofertou Aos do vale o seu momento de paz, E as maçãs que trazem em suas mãos. Assim vejo em meus sonhos; seus cabelos Roçam meus lábios e meu sopro cálido; Seu canto abre no ar asas douradas, Olhos da Vida brilham em sua bela fronte, E em seu seio os graves olhos da Morte. Dizem-me que o sono tem muitos sonhos, Mas sonho eu conheço apenas um: De um leito seco, outrora do riacho, Ergue-se o vale; em sonho faz lembrar O local que acordado bem conheço. Chamo-a de amada, e bem ela me quer; Mas amo-a qual a pedra que, na taça Em remoinho, ama a folha apegada Que com ela em círculos percorre, E que este turbilhão há de engolir. Poucos casos de amor extraconjugais devem ter sido tão penosos, para todas as partes envolvidas, como o romance entre Dante Gabriel Rossetti e Jane Burden Morris, figura que aparece nesse fragmento como Perséfone, Rainha do Inferno, vampira muito mais assustadora do que as noivas do Drácula de Bram Stoker. Conforme quase sempre ocorre com os poemas de Dante Gabriel, "A Cova do Pomar" é meticulosamente elaborado. Em se tratando de uma poesia erótica tão amarga, os versos apresentam uma frieza bastante lúcida, na denúncia que fazem de Jane Burden, personalidade indómita. O que Christina achava de tudo isso, jamais saberemos, mas a sua visão do Inferno de Eros é bastante djversa. Os críticos ressaltam, corretamente, que não há seres humanos do sexo masculino em Mercado de Gnomos- apenas gnomos do sexo masculino. 452 453 Causa bastante estranheza o fato de, atualmente, ambos os Rossetti parecerem (a leitores desavisados) tão domesticados, pois, como poetas, tanto a irmã quanto o irmão, quanto mais reflito sobre o seu trabalho, assustam-me. Christina não cede à autodestruição de Dante Gabriel: a natureza da sua fé cristã, extremamente intelectualizada, constituía-lhe uma salvação. Entretanto, não é crença de fácil entendimento, a despeito do credo ou ceticismo daquele que a examina. Eis o extraordinário "Morro Acima", poema que tanto amei, embora o interpretasse erroneamente durante muitos anos: A estrada é tortuosa morro acima? Sim, até o fjnal. A jornada demora um dia inteiro? Da manhã à noite, amigo. Mas há onde se possa pernoitar? Teto p'ra quando chegar a hora escura. As trevas não o escondem dos meus olhos? Não deixarás de ver a estalagem. Hei de encontrar viajantes noturnos? Os que partiram antes. Devo bater, chamar quando chegar? Não vão deixar-te à porta. Abrigam-me, estando cansado e fraco? Verás que os cuidados somarão. Há camas para mim e os que buscam? Sim, camas para todos que vierem. Jerome McGann foi o primeiro a apontar a estranheza desses dois versos finais, que podem parecer uma paródia grotesca da esperança cristã, até que se perceba como ele demonstra - que Christina é adepta da excêntrica doutrina adventista conhecida como "Sono da Alma". O que transcorre com a alma cristã, entre o momento da morte e o grande Advento da Segunda Vinda de Cristo? A alma prossegue, diretamente, ao Juízo Final, e aguarda no Paraíso, com toda a paciência, até que o Corpo Ressuscitado venha juntar-se a ela? Ou dorme um longo sono, até ser acordada, para sempre, no Milénio? Christina defendia, com firmeza, essa última ideia, convicção que norteia não apenas Morro Acima", mas uma fração considerável dos seus poemas mais interessantes. Afasto-me (com gratidão) do historicismo muito bem informado de McGann, propondo que a noção do "Sono da Alma" propiciava a Christina a esperança de que o irmão mais velho, carismático e autodestrutivo, escapasse do seu inferno erótico durante o longo torpor que precede a ressurreição. O último livro religioso escrito por Christina _ The Face ofthe Deep (1892) - expressa o comentário menos crítico do apocalipse de São João, o Divino de que tenho conhecimento. Concluindo, refirome à encantadora lembrança, o poema "A Casa de Dante Gabriel Rossetti", também publicado em 1892, dois anos antes da morte da poeta. Christina relembra o grupo maravilhoso de amigos e criaturas que cercavam seu irmão, na casa localizada em Cheyne Walk, em Londres, incluindo Algemon Swinburne, George Meredith, uma coruja chamada Bobby e um coala chamado McGregor, e os contempla como em uma cena de Lewis Carroll: Com tais habitantes, a Casa Tudor e adjacências tornaram-se uma espécie de país das maravilhas e, certa vez, o autor de País das Maravilhas fotografou-nos no jardim. É alentador imaginar aquele momento, no outono de 1863, em que o Reverendo Charles Dodgson fotografou os Rossetti e entourage no jardim de Dante Gabriel. Depois de tanto sofrimento erótico, é um conforto pensar em Alice e no Snark. 454 455 WALTER PATER *mú ímt£ CÍ& WALTER PATER O tipo de génio de Botticelli se apropria dos dados que o precederam, como expoente de ideias, estados de espírito e visões próprias (...). Mas está longe de aceitar a ortodoxia convencional de Dante, que, ao reduzir toda ação humana à fórmula simplificada de purgatório, céu e inferno, confere à profunda poesia desse mesmo poeta um elemento insolúvel de prosa (...). Um de seus" quadros (...) representa a espécie humana como encarnação dos anjos que, insurgindo-se contra Lúcifer, não apoiavam nem Javé nem seus inimigos (...). (...) o sentimento peculiar, que ele empresta a seus personagens profanos e sagrados, graciosos e, de certo modo, angelicais, embora apresentem um aspecto de deslocamento, ou perda - a melancolia dos exilados (...) Portanto, aquilo que Dante despreza, como indigno do céu e do inferno, Botticelli aceita, o caminho do meio, no qual os homens, em se tratando de grandes conflitos, não tomam partido, evitam grandes decisões e fazem grandes recusas. O ensaio de Walter Pater sobre Sandro Botticelli, na obra A Renascença, sem sombra de dúvida, mais configura um auto-retrato espiritual e estético do que uma representação de Botticelli. Supõe-se que a visão de Pater, em A Renascença, tanto quanto a de Yeats, que o seguiu, é de uma Unidade de Ser perdida, redescoberta na renascença italiana e prefigurada no Romatismo britânico, que via a si mesmo como uma renascença da Renascença elisabetana, da época de Shakespeare e seus contemporâneos. A epígrafe de A Renascença sugere, sutilmente, o projeto de Pater, de salvar a percepção estética britânica da moralidade e da religião vitorianas: Enquanto vocês repousavam nos apriscos, As pombas batiam suas asas prateadas, Destilando ouro de suas plumas.2 -Salmo 68:14 Henry James conhecia muito bem a Bíblia, mas o uso subversivo que Pater fez dessa eloquente profecia pode ter afetado a escolha do título do romance As Asas da Pomba, de lames. O génio de Pater caracterizava-se por uma sutileza vacilante, evasiva, mas e, ng0 obstante, levou-o a efetuar a separação entre experiência estética e o ethos moral da cultura vitoriana. A grandeza de Pater é laicizar a epifania religiosa, deslocamento que levaria tantos a segui-lo: Wilde, Yeats, Joyce, Virgínia Woolf e talvez todas as figuras do Alto Modernismo. 2 Bíblia Sagrada, op.cit., pp. 741-42. [N. do T.] 456 457 WALTER PATER (1839-1894) A. C. Benson, em breve biografia, intitulada Walter Pater (1906), contribuiu para o processo de transmissão da tradição oral a respeito do recluso graduado de Oxford. Sempre me fascina a visão do sublime Walter Pater caminhando pelos prados de Oxford, no frescor da noite, resmungando que o perfume doce da ulmária causava-lhe mal-estar: "É falha da natureza, na Inglaterra, ser tão excessiva." A este, associo outro resmungo deliciosg: "Gostaria que não me chamassem de hedonista. Causa impressão tão errónea nos que não sabem grego." O hedonismo, que promove a identificação entre o prazeroso e o bom, fundamenta-se na palavra grega que significa "prazer", e adquiriu, como aura, o sentido da busca da sensação como um fim em si mesmo. Pater sabia que não podia emprestar a "hedonismo" uma boa reputação, mas ficou um tanto atónito quando "esteta" também alcançou condição duvidosa, a partir da opereta Patience, de Gilbert e Sullivan. O sentido moderno que atribuímos à palavra "estético" tem origem em Pater, remontando ao conceito do "crítico estético" que consta do prefácio de seu livro mais célebre, A Renascença (1873), e à classificação da obra de Dante Gabriel Rossetti e William Morris como "poesia estética", no livro Apreciação (1889). Esquecemos o que Pater tentou nos ensinar: o aisthetes grego é "aquele que percebe". O "crítico estético" é, simplesmente, o crítico bom, perceptivo, e "poesia estética" é a melhor, a mais autêntica, mais pessoal. Pater estará para sempre relacionado ao chamado Esteticismo inglês (circa 1870-1900), movimento que reunia o pintor norte-americano, expatriado, James Whistler, o poeta Swinburne, e os seguidores de Pater, inclusive Oscar Wilde, Aubrey Beardsley e William Butler Yeats. Mas a influência de Pater, tão sinuosa quanto perpétua, é difícil de ser mapeada. Yeats e James Joyce admitiam-na, e a mesma permeia Virgínia Woolf, Eliot e Pound, que depreciava Pater, sendo forte também em Wallace Stevens e Hart Crane. Perry Meisel, no livro The Cowboy and the Dandy: Crossing Over from Ro-manticism to Rock and Roll (1999), é convincente ao atribuir a Pater a formulação crucial do "sublime psicodélico", que nos é tão familiar, desde o final dos anos 60. Na célebre "Conclusão" de A Renascença, suprimida da segunda edição do livro, e resgatada a partir da terceira (embora com a atenuação das implicações anticristãs), o sublime psicodélico de Pater é intensificado pela cadência obstinada da prosa, escrita no estilo de devaneio, complexo, reticente, barroco, tão bem imitado por Yeats em Per Arnica Silentia Lunae. Eis o génio de Walter Pater, naquilo que tem de mais instigante: Ou se iniciarmos com o mundo interior, do pensamento e da emoção, o torvelinho é ainda mais veloz, a chama mais ávida e devoradora. Já não se constata o obscurecimento gradual da visão, o esmaecimento da cor da parede - o movimento da maré, quando as águas refluem, embora pareçam paradas -, mas o fluxo rápido, típico do meio da corrente, o rumo dos atos momentâneos da visão, paixão e pensamento. À primeira vista, a experiência parece nos soterrar em uma montanha de objetos externos, que a nós se impõem como uma realidade aguda e desconfortável, incitando-nos a nos abrir em milhares de tipos de ações. Mas, quando a reflexão começa a operar sobre esses objetos, estes se dissipam sob a influência daquela; a força coesiva parece suspensa, como um passe de mágica; cada objeto se isola, reunindo um conjunto de impressões - cor, odor, textura -na mente do observador. E, se continuarmos a refletir sobre esse mundo, não sobre os objetos, nem sobre a solidez de que são investidos pela linguagem, mas sobre as impressões instáveis, vacilantes, inconsistentes, que entram em combustão e se extinguem com a nossa consciência das mesmas, tal mundo se contrai ainda mais; todo o escopo de observação é reduzido à câmara estreita da mente individual. A experiência, já diminuída a um enxame de impressões, fica protegida pela parede espessa da personalidade individual, que voz alguma é capaz de atravessar a fim de que seja por nós ouvida, e que nos permite tãosomente conjecturar o que existe do outro lado. Cada uma dessas impressões é a de um indivíduo isolado, cada mente mantendo como prisioneiro solitário o seu próprio sonho do mundo. A análise vai um passo adiante, e nos garante que as impressões da mente individual, a qual, para cada um de nós, se reduz à experiência, encontram-se em fuga perpétua; que cada uma delas é limitada pelo tempo e que, sendo o tempo infinitamente divisível, cada uma delas é também infinitamente divisível, uma vez que tudo o que é real no tempo se reduz a um único momento, que se vai enquanto tentamos apreendê-lo, do qual é sempre mais verdadeiro dizer que já não existe do que afirmar o contrário. Com esse filete trémulo - constantemente se transformando em meio à torrente, a uma única impressão marcante, dotada de sentido, uma relíquia mais ou menos fugidia, desses momentos que já se foram -o que existe de real em nossa vida se afina. E com esse movimento, com a passagem e dissolução de impressões, imagens e sensações, que a análise cessa - com essa evanescência contínua, esse perpétuo fiar e desfiar de nós mesmos. A coerência da nossa consciência individual é uma afirmação contra o fluxo das sensações: caso contrário, ficaríamos dissolvidos em um êxtase de indiferença. Todavia, essa coerência é uma espécie de hábito que adotamos a fim de estabelecer um eu contínuo: a 458 459 nossa identidade é uma ficção desesperadora. Pater, materialista lucreciano, com grande ousadia, conclama o êxtase sobre a identidade, em renovada rapsódia: A cada momento, alguma forma se torna perfeita, em mão pu rosto; alguma tonalidade dos morros ou do mar supera as demais; algum estado de espírito, decorrente de paixão, percepção ou entusiasmo intelectual, torna-se, irresistivelmente, real e atraente para nós - apenas naquele momento (...). Não o fruto da experiência, mas a experiência em si é o objetivo. Apenas um número limitado de pulsações nos é concedido para uma vida diversificada, dramática. Como podemos ver em tais pulsações tudo o que pode ser visto pelos sentidos mais apurados? Como migrar, rapidamente, de um ponto ao outro, e estar sempre presente no foco onde o número mais elevado de forças vitais se unem para formar a energia mais pura? Sempre arder, nessa chama firme, preciosa, sempre suster esse êxtase, é o sucesso na vida (...). Enquanto tudo derrete sob nossos pés, podemos muito bem nos agarrar a alguma paixão singular, ou a alguma contribuição para o conhecimento que parece, através de um horizonte elevado, libertar, momentaneamente, o espírito, ou a qualquer comoção dos sentidos, pigmentos estranhos, cores estranhas, odores curiosos, ou à obra realizada pelas mãos do artista, ou ao rosto de um amigo. Não distinguir, em cada momento, uma atitude apaixonada naqueles que nos cercam, e não ver no brilho dos seus talentos algum trágico divisor de forças, neste dia curto de geada e sol, é dormir antes do anoitecer. A "chama firme, preciosa" é o princípio do fogo, no sombrio Heraclito: a essência da vida. Trata-se de um sermão anestesiante, mas, em todo caso, é um sermão: nasce a religião da arte, uma religião que nega a imortalidade, e oferece apenas o êxtase do efémero: dispomos de um intervalo e, então, o nosso lugar não mais nos reconhece (...); a nossa única chance é expandir esse intervalo, garantir o maior número possível de pulsações dentro do período de tempo alocado. Tanto quanto Yeats, mais tarde, Pater deslumbrou-se com a noção de Blake, da "pulsação de uma artéria (...), em que o trabalho do poeta é realizado". Nesse aspecto, Pater fica bastante próximo de algo que Yeats, figura mais oculta, chamaria "Condição do Fogo", mas, sobre o epicurista Pater, o oculto não exercia apelo. Ambos buscavam o momento espiritual, quando o privilégio do génio consumiria em fogo as superfícies aparentes e revelaria o cristal da forma perfeita, da expressão inescapável. Estilo, para Pater, é o teste da percepção, comprometendo-o com a estética da sentença única, por mais elaborada e extensa que seja. No entanto, para Pater, um poema, ou qualquer outra obra literária, é uma pessoa, um homem ou mulher de cristal, eterna revelação. Seu génio crítico, fora de moda em nossas autodestrutivas academias de instrução, a meu ver, torna-se extremamente útil nos dias de hoje, quando se prepara para encontrar pessoas, seja em Shakespeare ou Flaubert. O devaneio fabuloso, ou poema em prosa, escrito por Pater sobre a Mona Lisa de Da Vinci, sempre causa grande impacto, pois, decerto, deparamo-nos com uma pessoa, embora ela se pareça mais com Jane Burden Morris, de Dante Gabriel Rossetti, ou com Maud Gonne, de Yeats (conforme percebidas por esses poetas apaixonados), do que com o retrato de Da Vinci: A presença que surge, estranhamente, à beira da água expressa aquilo que os homens desejavam havia mil anos. Sobre o seu rosto "convergem todos os propósitos do mundo", e as pálpebras estão um pouco cansadas. E uma beleza engendrada por dentro, sobre a carne; é o depósito, célula por célula, de pensamentos estranhos, devaneios fantásticos e paixões primorosas. Posicionada ao lado de uma daquelas deusas gregas brancas, belas mulheres da Antiguidade, estas ficariam perturbadas diante de tamanha beleza, que absorveu a alma, com todas as suas mazelas! Todas as ideias e experiências do mundo estão ali gravadas e moldadas, com toda a força de que dispõem para refinar e tornar expressiva a forma exterior, o animalismo da Grécia, a luxúria de Roma, o devaneio da Idade Média, com sua ambição espiritual e amor criativo, a volta do mundo pagão, os pecados dos Borgia. É mais antiga do que as rochas que a cercam; tanto quanto o vampiro, ela morreu várias vezes, e aprendeu os segredos do túmulo; sondou as profundezas do oceano, e negociou tecidos exóticos com mercadores do Oriente; na condição de Leda, foi mãe de Helena de Tróia, e no papel de Santa Ana, foi mãe de Maria; e tudo isso é para ela como o som da lira e da flauta, e vive apenas na delicadeza com que moldou os traços faciais, coloriu as pálpebras e as mãos. A magia da vida perpétua, acumulando dez mil experiências, é antiga, e o pensamento moderno concebe a ideia de humanidade como se fosse criada (e resumisse) todas as modalidades de pensamento e vida. Certamente, Lisa pode simbolizar a encarnação dessa antiga magia, o emblema da ideia moderna. Na Primeira Carta aos Coríntios, em 10:11, São Paulo nos adverte com relação à idolatria: 460 461 Estas coisas lhes aconteceram para servir de exemplo e foram escritas para a nossa instrução, nós que fomos atingidos pelo fim dos tempos.3 Se as pálpebras de Lisa estão um pouco cansadas, a avaliação paulina exerce sobre ela apenas um efeito irónico, pois Lisa subverte as categorias cristãs de julgamento moral. Freud via na Mona Lisa uma defesa de Da Vinci contra o amor irresistível pela mãe, identificando-se com ela inteiramente, e, portanto, amando meninos, a sua própria imagem, assim como ela o amara. O homoerotismo de Pater jamais se torna explícito, mas ele, nitidamente, deseja e receia a musa (aos 14 anos, Pater perdeu a mãe), nesta que é a maior de suas epifanias, o momento privilegiado em que confronta uma deusa. Yeats observou, com perspicácia, que a Lisa de Pater encarna a doutrina de que "o indivíduo é nada", o que não constitui consolo a um poeta romântico. Mas essa deusa é um vampiro, o que não constitui consolo a quem quer que seja. Algo que faz troça de Pater transparece nessa visão: devemos supor que se trata da deusa da experiência estética? Refletindo sobre o génio de Platão, Pater destaca, mais uma vez, a relação entre sabedoria e personalidade: Para ele, deveras (segundo a sua visão de o que constituiria a forma mais elevada do saber), todo saber era como conhecer uma pessoa. O próprio Diálogo, sendo o que é, a principal criação de sua arte literária, torna-se, em suas mãos, e pelo modo magistral com que ele o conduz, semelhante a um ser vivo. Walter Pater concluiu a tradição romântica, em meio ao que ele bem sabia se tornara o mundo de Charles Darwin. Assim como o discípulo que ora escreve este livro, Pater desconfiava do historicismo, que tudo pode explicar, exceto o génio individual. O mundo de Darwin tornou-se o mundo do genoma, e talvez possamos ser programados a fim de evitar grande parte do nosso sofrimento - talvez, não. Pater ensina a percepção; talvez a engenharia genética crie novas formas de percepção - talvez, não. O valor de Pater, ao menos por enquanto, continua sendo a sua visão de génio literário, ou a percepção singular de que dispõem os indivíduos singulares. HUGO VON HOFMANNSTHAL DOUTOR. Como vos sentis, Majestade? Dai-me motivos para renovadas esperanças. SIGISMUNDO. Abandonai-as. Estou bem demais. - A Torre T. S. Eliot admirava A Torre mais do que qualquer outra peça de Hofmannsthal, observando que essa peça em prosa era, essencialmente, poesia dramática. De 1918 a 1927, Hofmannsthal trabalhou o texto da peça, cuja composição fora iniciada em 1902, como adaptação de A Vida é Sonho, texto dramático do dramaturgo barroco espanhol, Calderón. A Torre existe em duas versões finais, alternativas, a primeira sendo a mais visionária e mais fiel à consciência dividida e complexa de Hofmannsthal. Hofmannsthal abandonou a poesia lírica, na qual o seu génio era absoluto, na expectativa de se tornar o grande dramaturgo de Viena, no período de declínio após a Primeira Guerra Mundial. É uma amarga ironia que a celebridade de Hofmannsthal tenha se consolidado a partir de seu trabalho de libretista de Richard Strauss, especialmente em Der Rosenkavalier. Freud, ensaísta moral do século XX, o Montaigne do século, transcendeu Viena. Hofmannsthal, cujo génio era deveras transcendental, é hoje lembrado como sobrevivente do rococó, injustiça absurda. Hofmannsthal não pode ser descartado, tampouco relegado à esfera do entretenimento straussiano, porquanto a sua busca, partindo do esteticismo e chegando a uma espécie de cristianismo neoplatônico, é paradigma de grande parte da literatura ocidental do século XX. A afinidade com T. S. Eliot é básica, conquanto a imaginação de Hofmannsthal seja mais universal. Hofmannsthal encarnou a morte de uma cultura antiga - da Viena imperial - e rejeitou qualquer ideologia que tentasse substituí-la. Prefiro Hofmannsthal ao reducionismo marxista de Bertolt Brecht. Ademais, embora Hofmannsthal adaptasse livremente, era ele próprio o autor das adaptações. Aumentam as provas de que as imitações autênticas atribuídas a Brecht eram de autoria de mulheres geniais que o cercavam, de quem ele roubou a maior parte da marca hoje conhecida por "Brecht". 3 A Bíblia de Jerusalém, op. cit, p. 464. [N. do TJ 462 463 HUGO VON HOFMANNSTHAL (1874-1929) Hofmannsthal é muito apreciado por dezenas de milhares de frequentadores da ópera que o conhecem apenas como libretista de Richard Strauss, especialmente em Der Rosenkavalier (1911). Trata-se de um destino curioso, para um génio tão complexo quanto o de Hofmannsthal: poeta, dramaturgo, ensaísta, contista, acima de tudo, um escritor que tentou viver "na" literatura, mas fora das concepções existentes. Hofmannsthal é figura-chave da cultura do Império Austro-húngaro, que já se encontrava em crise muito antes do final do Estado Habsburgo, em 1918. Tendo sido intensamente fecunda em sua fase final, a referida cultura vienense exerce permanente atração sobre críticos e historiadores. Entre os escritores que nela amaram incluem-se Freud, Hofmannsthal, Rilke, Stefan George, Musil, Schnitzler e Broch, e os compositores Bruckner, Mahler, Schõnberg, Alban Berg e Webern. Se acrescentarmos Adolf Loos e Otto Wagner, na arquitetura, e Kokoschka, Schiele e Klimt, na pintura, e concluirmos com o Círculo de Viena e Wittgenstein, na filosofia, o quadro começa até a parecer excessivo, embora eu tenha omitido escritores importantes, sem falar no Dante da era, Franz Kafka, em Praga. Meu desagrado quanto à abordagem teórica que privilegia questões político-culturais baseia-se, francamente, na pobreza da cultura ocidental entre 1965 e 2000: por que se dar ao trabalho de explicar a literatura através da sociedade, se ambas se encontram adulteradas por uma ignorância agressiva e ideólogos rancorosos? A Viena entre 1880 e 1918 é uma outra situação; entretanto, hoje em dia nos é tão remota quanto a Alexandria do século II da Era Comum, cultura rica à qual tanto se assemelha. Um livro excelente, Fin-de-Siècle Vienna: Politics and Culture, de Cari E. Schors-ke (1980), que recomendo aos meus leitores, situa Hofmannsthal em seu tempo. A minha preocupação, como sempre, é mais limitada: como definir a singularidade do génio de Hofmannsthal? Se tal génio não estivesse, assim como os de Freud e Kafka, acima e à frente do seu tempo, o mesmo teria importância apenas para estudiosos. Existe em Hofmannsthal um vigor que prevalece, e o autor merece ter importância para leitores cultos, assim como para amantes das óperas de Richard Strauss. Em língua inglesa, a melhor edição de Hofmannsthal são os três volumes Selected Writings: Selected Prose (1952), Poems and Verse Plays (1961) e Selected Plays and Libretti (1963). Há também o estudo de Hermann Broch, ambivalente, mas marcante, Hugo von Hofmannsthal and His Time, traduzido por Michael Steinberg, e as excelentes introduções escritas por Michael Hamburger, ao volume de Selected Writings. O leitor deve iniciar a leitura com a prosa de Hofmannsthal, especialmente a célebre "Carta de Lorde Chandos" (1902), escrita quando o poeta estava com 26 ou 27 anos, cerca de dois anos após haver abandonado a composição de poesia lírica, quase toda da mais alta qualidade. Lorde Chandos é um jovem poeta e nobre elisabetano, figura imaginária, também afastada da literatura há dois anos, que escreve ao amigo mais velho, o filósofo e estadista Francis Bacon, explicando-lhe o motivo do silêncio: Sinto, com uma certeza que não está livre de um sentimento de pesar, que, nem no próximo ano, nem no seguinte, nem em todos os anos desta minha vida, jamais escreverei um livro, seja em inglês ou latim: e isso por um motivo estranho e vexatório, o qual delego à imensurável superioridade da sua mente a tarefa de situá-lo no âmbito dos valores físicos e espirituais dispostos, harmoniosamente, diante dos seus olhos imparciais: ei-lo - porque o idioma em que talvez eu saiba não apenas escrever mas pensar não é latim ou inglês, nem italiano ou espanhol, mas um idioma do qual não conheço uma só palavra, uma linguagem na qual os seres inanimados falam comigo. John Ruskin definira a poesia como "um homem a quem as coisas falam", e Chandos/Hofmannsthal aspira por essa condição impossível. Chandos, um tanto ou quanto insano, desiste da literatura; Hofmannsthal, frio e racional, renuncia à poesia lírica, mas dedica-se à narrativa, ao drama, à prosa reflexiva. Contudo, houve uma perda; quando penso em Hofmannsthal, lembro-me da sinistra "Balada da Vida Exterior": Crianças crescem com olhos que indagam, Profundamente, e nada sabem; crescem E morrem, e seguimos nossas rotas. O fruto amargo aos poucos fica doce, E como ave morta despenca à noite, E por alguns dias ali apodrece. E sempre sopra o vento, e recitamos, E voltamos a ouvir frases já gastas, Nos membros sentir langor ou prazer. 464 465 Vias correm p'Ia relva, aqui e ali Há locais de luz, lagos e arbustos, Alguns ameaçam, outros são frios, nus... Por que foram construídos? Diferenças Não menos numerosas que seus nomes? Por que o riso agora, o choro, a doença? Que benefício temos, e esses jogos, Que, grandes e sozinhos, assim serão, E embora os busquemos, fim não tenhamos? P'ra ter visões, viajantes deixam lares? Porém, diz muito o que murmura "noite", Palavra que exala pensamento e tristeza, Qual mel puro e escuro de favos ocos. Michael Hamburger observa, com precisão, que esses versos primorosos foram escritos "do ponto de vista de um homem despertado de um sonho", o que reflete a rejeição de FalstafT, por parte de Henrique V: "Uma vez acordado, desprezo meu sonho." Vêm-nos à mente (conforme, supõe-se, teria ocorrido com o erudito Hofmannsthal) o lamento do místico Meister Eckhart: "Estamos todos dormindo na vida exterior." Os seres inanimados não nos falam, mas como Ruskin e Walter Pater teriam gostado desse poema! Aos 16 ou 17 anos, o jovem poeta Hofmannsthal já havia ido além do esteticis-mo, mas fazendo uso de uma potência e melancolia (ainda inerentes ao esteticismo) que superavam qualquer dos seus contemporâneos mais velhos, fossem alemães, franceses ou ingleses. Ao renunciar a poesia lírica, Hofmannsthal voltou-se para os monólogos dramáticos de Browning, destarte prefigurando posicionamentos similares em Ezra Pound e T. S. Eliot, embora para Hofmannsthal o monólogo fosse apenas uma estação intermediária na jornada rumo à sua maior realização, o teatro. Tanto em verso quanto em prosa, a literatura dramática de Hofmannsthal é sempre poética, na tradição de Calderón, dramaturgo do Século de Ouro espanhol. Conforme ocorrera com Goethe, Hofmannsthal foi tão sábio que não tentaria imitar Shakespeare: ambos, o poeta alemão e o austríaco, dispunham de todos os talentos literários, exceto o principal mistério shakespeariano: criar pessoas, e não máscaras. Quando se lê ou se assiste a uma peça de Hofmannsthal, confronta-se uma arte de gestos, e não de personalidades. Hofmannsthal assimilava o ator ao dançarino: a fala era secundária ao movimento. A personalidade, para Hofmannsthal, devia ser universal, e não idiossincrática. Shakespeare teve a sabedoria de enxergar o oposto: Hamlet, FalstafT, Cleópatra e Iago propiciam interesse universal e permanente porque são indivíduos absolutos. Ao fugir da asserção lírica do eu, Hofmannsthal perdeu muito, conforme se verifica em A Torre e O Homem Dificil suas peças principais. Se nós e o mundo não somos coisas distintas, e se o eu é apenas uma metáfora, então, a autonomia dramática de Hamlet e de FalstafT seriam inviáveis. O génio de Shakespeare participava da irracionalidade do cosmo, ao mesmo tempo em que povoava o palco com homens e mulheres, algo que Hofmannsthal não chega, na verdade, a fazer. Acreditar, conforme Hofmannsthal (e o Lorde Chandos por ele criado), que nenhuma modalidade de esteticismo era capaz de suster representações individuais, é esquecer Shakespeare (de quem, cabe registrar, Hofmannsthal estava plenamente ciente). O romancista que Hofmannsthal mais admirava era Balzac, a quem se referia como "uma imaginação vasta, indescritivelmente substanciosa, a maior e mais criativa imaginação desde Shakespeare". Balzac, Hofmannsthal afirma, é mais imediato, mais acessível do que Shakespeare e Goethe: "é a alucinação mais completa e multiarticulada que já existiu". Tais palavras expressam uma introdução adequada ao diálogo de Hofmannsthal, "Sobre Personagens em Romances e Peças Teatrais", cujo subtítulo é "Um diálogo imaginário entre Balzac e Hammer-Purgstall, o orientalista, em um jardim perto de Viena, em 1842", escrito logo após a carta de "Chandos". Quando Hammer exorta Balzac a escrever para o palco, o romancista responde: "Não acredito na existência de personagens. Shakespeare acreditava. Era dramaturgo." Em contrapartida, esse Balzac se associa a Goethe, como magos que criam demónios e os chamam de personagens. Hofmannsthal, na maioria de suas peças, é o terceiro mago. Cria figuras obsessivas, ideias e loucuras, pois linguagem e individualidade não podem ser reconciliadas. É triste ironia que um génio tão abrangente, que deveria ter sido um novo Goethe, esteja fadado a sobreviver, em primeiro lugar, como libretista de Richard Strauss, como o foi Lorenzo da Ponte para Mozart, figura estimável, mas que não era nenhum Goethe: Hofmannsthal abandonou o génio lírico e deixou um romance promissor - Andreas - inacabado. Escreveu alguns contos, um dos quais, "O Conto da Cavalaria", é digno de Kleist ou Kafka. Os ensaios são muitas vezes brilhantes, como se fossem subdivisões de um mundo. Chego a crer que Hofmannsthal, ao renunciar a lírica e à narrativa em favor do teatro, tenha causado danos ao seu próprio génio. Ibsen e Pirandello, Brecht e Beckett pertencem ao teatro: encontramos Hofmannsthal no tea466 467 tro apenas na ópera de Strauss. Na qualidade de dramaturgo, mantém-se na periferia, ao lado de Yeats, Claudel e Eliot. Entretanto, Hofmannsthal, em uma escala drasticamente diversa, não difere de Goethe. Hamburger, corretamente, associa os propósitos dos dois autores: estender uma visão essencialmente pessoal e esotérica às esferas mais diversas, romper divisões e especializações estabelecidas, determinar relações por toda parte, e não produzir obras, mas literatura. Essa comparação encerra, implicitamente, uma melancolia, neste momento em que se inicia o século XXI e temos sérias dúvidas de que algum escritor volte um dia a produzir literatura. LUSTRO 12 Victor Hugo, Gérard de Nerval, Charles Baudelaire, Arthur Rimbaud, Paul Valéry s principais poetas românticos franceses formam um Lustro de Tiferet bastante especial. Victor Hugo é hoje em dia conhecido como romancista, mas é o poeta da Literatura Francesa, o mais ambicioso. A exemplo de Balzac, na verdade, ainda mais do que este, Victor Hugo pode ser visto mais como um demiurgo, um semideus, do que como humano, tamanha era a profusão da sua energia criativa. O gnóstico romântico Nerval, tanto quanto Victor Hugo, parece mais à vontade na companhia de visionários, e.g., Blake e Shelley, do que na tradição poética francesa, que alcançou uma espécie de epifania lúgubre em Baudelaire, frequentemente considerado o primeiro poeta "moderno", papel que cabe melhor ao adolescente Arthur Rimbaud, que abandonou a literatura (bastante revoltado), por uma vida de aventuras na África. Paul Valéry, discípulo do poeta Stephane Mallarmé, foi o intelectual mais inteligente e bem-sucedido da França, no século XX. Tal afirmação pode até ficar aquém do papel central exercido por Valéry na poesia moderna, em que a sua presença nos auxilia a situar ilustres admiradores de sua obra, como Rilke, Eliot e Stevens. 468 469 VICTOR HUGO Que ao menos este livro, esta mensagem, alcance O silêncio como um murmúrio, O litoral como uma onda! Que ali chegue - suspiro ou lágrima! Que entre no túmulo, em que juventude, alvorada, beijos, Orvalho, o riso da noiva, Brilho e alegria já entraram - e com eles meu coração: Deveras, de lá jamais voltou! E que seja Um canto de luto, brado de esperança que jamais mente, Som de um pálido adeus de lágrimas, sonho cujas asas Sentimos roçar levemente! Que ela possa dizer: "Tem alguém aí - ouço um ruído!" Que ressoe no escuro como passadas da minha alma!" - "Para Quem Ficou na França" Em 1843, aos 19 anos, Léopoldine, filha de Victor Hugo, morreu afogada, com o marido, em um acidente naval. Em 1851, desafiando Napoleão III, Victor Hugo exilou-se, estabelecendo residência nas Ilhas Normandas do Canal da Mancha (pertencentes à Inglaterra), onde permaneceu até o advento da revolução contrária a Napoleão III, em 1870. Châtiments (castigos), obra que contém ataques frontais ao Imperador, surgiu em 1853, sendo seguida por lamentos tardios pela perda de Léopoldine, Contemplações, em 1856, livro que tem como conclusão "Para Quem Ficou na França", extraordinária elegia, um dos maiores poemas de Victor Hugo, bastante representativo do seu génio. É difícil para o titânico Victor Hugo se conter, e a renúncia extraordinária que ele leva a termo nesse poema é bastante comovente. Impedido de fazer visitas