Sabe o que é grime? Pois o gênero inglês ganha força no Brasil ao se misturar com funk, pagodão e samba-reggae - Jornal O Globo
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Sabe o que é grime? Pois o gênero inglês ganha força no Brasil ao se misturar com funk, pagodão e samba-reggae

Mutação da música dançante londrina dos anos 2000, ritmo de batidas metálicas e aceleradas vira realidade por aqui: 'A gente adaptou uma parada que não é nossa. Igual ao que fizemos com o futebol', compara Febem
Os produtores diniboy e Rennan Guerra, do Brasil Grime Show Foto: Divulgação/Wander Scheeffër
Os produtores diniboy e Rennan Guerra, do Brasil Grime Show Foto: Divulgação/Wander Scheeffër

O rapper paulistano Felipe Desiderio, mais conhecido pelo seu codinome artístico Febem, é cirúrgico ao explicar o sucesso do grime, uma mutação da música dançante da Inglaterra nos anos 2000, entre os jovens brasileiros.

— A gente adaptou uma parada que não é nossa. Igual ao que fizemos com o futebol. Não foram os ingleses que inventaram e a gente aperfeiçoou? — compara o MC, que em abril lançou seu quarto álbum solo, “Jovem OG”, e foi para Londres com os parceiros Cesrv e Fleezus gravar o EP “Brime!”, lançado em 2019.

Mas, afinal, o que é o grime? Antes de ser adaptado (ou “aperfeiçoado”) por uma nova geração de artistas brasileiros, ganhando sotaques musicais como funk , pagodão baiano e samba-reggae, o gênero chegava aqui apenas por notícias como a de que o rapper Stormzy, que já fez parcerias com Ed Sheeran e Kanye West, havia se tornado em 2019 o primeiro artista solo britânico a ser atração principal do icônico festival Glastonbury. Ou que outras estrelas locais, como Dizzee Rascal e Skepta, superaram astros pop em premiações britânicas.

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O grime surgiu na periferia de Londres no início dos anos 2000, fazendo uma mescla agressiva das batidas do hip hop com a música eletrônica, através de ritmos como dubstep, jungle e ragga. Os MCs geralmente rimam sobre beats de 140 batidas por minutos, sempre em oito compassos — o hip hop tradicional trabalha entre 60 e 100 BPM, e não tem compasso fixo —, com letras afiadas e cadências provocantes que narravam a periferia.

Show do baiano Vandal de Verdade, um dos expoentes do grime no Brasil Foto: Divulgação
Show do baiano Vandal de Verdade, um dos expoentes do grime no Brasil Foto: Divulgação

Por aqui, um dos primeiros expoentes do grime foi o baiano Vandal de Verdade. Destemido, ele subiu ao palco há dez anos e rimou em cima de batidas metálicas e aceleradas, causando espanto no público de Salvador que frequentava as festas de soundsystem. A inspiração veio do álbum “Boy in da corner” (2003), do londrino Dizzee Rascal.

— Eu cantava bem rápido com os instrumentais do grime, mas o público não aceitava. O que eu fiz? Desacelerei a minha voz e voltei com a cadência do samba-reggae misturado com o grime, a partir daí começamos a ser aceitos — explica Vandal, que no início da carreira se apresentava nos eventos organizados pela banda Ministéreo Público, liderada por Russo Passapusso, vocalista do BaianaSystem, grupo com o qual segue fazendo parcerias.

Vandal seguiu explorando as misturas, e além do samba-reggae injetou o grime com pagodão baiano, o que fica claro na mixtape “TIPOLAZVEGAH”, de 2015.

Com a entrada do funk, o grime ganhou espaço e conquistou o público de vez com o lançamento do programa de YouTube “Brasil Grime Show”, que acumula seis milhões de visualizações desde 2018. Inspirado em rádios londrinas, o programa funciona também como catalizador de artistas que formam uma cena nacional. A equipe de produção, composta por Rennan Guerra, Yvie Oliveira, Mateus Diniz (diniboy) e pelos videomakers Lucas Sá,Wander Scheeffër e Diego Padilha, pediu autorização para os criadores do formato original, “Grime Show”, de Londres, e o trabalho dos brasileiros teve boa aceitação no berço do grime.

— Assim que lançamos o primeiro, os ingleses viram e já pediram o segundo para transmitir lá no programa deles — comemora o carioca Rennan, que vê o grime tendo potencial a atingir outros patamares com o “toque” nacional. — O brasileiro tem a capacidade de melhorar as coisas. O funk é daqui, o samba e pagode também. A gente mistura tudo para ficar mais acessível e não restrito como é lá em Londres.

O programa, que já está na quinta temporada, é gravado no estúdio Casa do Meio, em Bangu, e reúne os MCs para rimar em cima de beats de grime. Agora, além do canal, o Brasil Grime Show é também um selo musical, e tem atingido não só o público mais jovem.

— O ritmo hoje soa diferente, é uma novidade que chama atenção, semelhante a quando o trap estourou aqui no Brasil — compara Yvie Olveira, produtora executiva do BGS. — A gente tem um público que vai do mais velho, com a galera cabeçuda, do cinema, até o público adolescente.

Apesar das letras dos MCs de grime relatarem em português claro vivências periféricas bem brasileiras — criminalidade, uso de drogas, amores fugazes, o desejo de melhorar a vida da mãe e até futebol —, as criações feitas aqui seguem tendo destaque lá fora. O EP “Brime!”, melhor porta de entrada para a versão brasileira do gênero, teve lançamento em vinil apenas na Inglaterra, por exemplo. E Rennan chamou atenção do exigente site de críticas musicais americano “Pitchfork”, que deu nota 7,8 para o álbum “40º.40”, que o carioca produziu para o MC de Bonsucesso SD9.

— Quando gravamos o disco, não tínhamos investimento. O SD9 teve que dormir no estúdio 15 dias. Agora, acabamos de fazer a versão deluxe numa mansão em Santa Teresa, com várias marcas por trás patrocinando. No intervalo de um ano, virou a chave do grime no Brasil — comemora Rennan.

* Estagiária sob a supervisão de Luccas Oliveira