Laranja Mecânica: como jogava a Holanda de 1974

Futebol moderno. Taí um conceito interessante, um ideal. Praticamente um sinônimo para “jogar bem”. Mas uma maldade léxica, ainda assim. Até porque não há nada de realmente novo no “futebol moderno”. A pressão, a intensidade, a movimentação, tudo já foi visto — e admirado — há muito tempo atrás, naquela Holanda de 1974.

Apresentando muitas dás táticas e estratégias hoje tão exaltadas, a Seleção Holandesa de Johan Cruyff e Rinus Michels chegou à final da Copa do Mundo de 1974 e é até hoje lembrada como uma escola para times e técnicos que desejam praticar um futebol ofensivo e envolvente.

O título daquela Copa ficou com a Alemanha de Gerd Müller e Beckenbauer, mas foi a Laranja Mecânica que conquistou os corações dos torcedores. No Brasil, inspirou toda uma geração de “Johans”, “Yohans” e afins — o meia Hyoran, atualmente no Atlético Mineiro, teve o nome inspirado no craque holandês.

Quem lembra do meia Rosembrick, ex-Palmeiras? Seu nome é homenagem a Robert Rensenbrink, ponta-esquerda daquela Holanda (se é que podemos definir a posição de alguém naquele time), que faleceu no início de 2020.

Para as grandes cabeças do atual futebol mundial como Pep Guardiola, a lembrança não foi só afetiva, mas objetiva. Afinal, em 1974, o “Carrossel Holandês” passeou nos gramados alemães, fazendo uma ótima campanha em sete jogos, marcando 15 gols e sofrendo apenas dois.

Por isso, é tão importante relembrar a campanha e a maneira como jogava a Holanda de 1974, que encantou torcedores, inspirou alguns dos melhores treinadores e desenvolveu um estilo marcante, o tal do “Futebol Total”.

O Ajax de Rinus Michels

Algo que ecoou na crônica esportiva após a Copa do Mundo de 1974  (inclusive na brasileira) foi o que seria uma certa casualidade na formação daquela geração holandesa. Vale lembrar que até então a Holanda só tinha jogado as Copas de 1934 e 1938.

Ainda assim, é possível que estivessem falando mais da pouca probabilidade de algo dessa natureza acontecer novamente. Até porque o que foi visto na Alemanha já vinha acontecendo nos Países Baixos desde o início daquela década.

Ora, o Ajax foi o tricampeão da Liga dos Campeões entre 1971 e 1973, num processo iniciado por Rinus Michels — que comandou o time na primeira edição do torneio europeu e saiu para o Barcelona em seguida — e terminado pelo romeno Stefan Kovacs.

Aquele Ajax era meia Seleção Holandesa, com Suurbier e Krol na defesa, Neeskens no meio, Rep no ataque e Cruyff, bom, Cruyff em todos os lugares do campo. A outra metade era do Feyenoord, com os defensores Jansen e Rijsbergen e o meia Hanegem.

Ajax e Feyenoord dominavam o futebol holandês na década, com as mesma ideias de jogo mostradas ao mundo em 74. Ainda que com suas diferenças, ambos os times queriam a mesma coisa: jogar com a bola no campo de ataque e sempre se movimentando.

Como jogava a Holanda de 1974

No livro , o autor David Winner ensaia sobre como essa versão do futebol holandês foi fruto de seu contexto histórico e social. Antes do Futebol Total, por exemplo, havia a “Arquitetura Total” ou o “Design Total”.

O conceito de “total” era algo como o todo sendo a soma de várias partes, ou, como Winner descreve no livro, em que “os sistemas devem estar familiarizados uns com os outros”. Na arquitetura, a ideia era que cada obra, cada construção e cada fachada contribuísse para a estética da cidade como um todo.

Trazendo para o futebol, o total queria dizer que o movimento de cada jogador era crucial para o sucesso do sistema, do time como um todo.

A autobiografia de Cruyff tem uma passagem em que o eterno camisa 14 explica a importância da sincronia entre os jogadores da seleção holandesa.

Quando eu pressionava um destro, eu fechava o seu pé direito, obrigando ele a passar a bola com a esquerda. Ao mesmo tempo, o Johan Neeskens vinha babando do meio campo para fechar o seu lado esquerdo, forçando o adversário fazer o passe rapidamente, o que só piorava a situação para ele. Para isso acontecer, o Neeskens tinha que largar o jogador que ele estava marcando, mas esse cara também não ficava livre, porque o Suurbier já vinha voando da nossa defesa para ocupar o espaço deixado pelo Neeskens. Então, de maneira rápida e eficiente, a gente criou um 3 x 2 na marcação (…) e tudo acontecendo em um raio entre cinco e dez metros.

A mesma lógica de sincronizar movimentos (como subida na marcação de Cruyff e Neeskens) e de ocupar os espaços deixados pelos companheiros (como Suurbier preenchendo o vazio de Neeskens) se aplicava ao ataque.

A diferença era que na hora da marcação a Holanda queria “encurtar o campo” e na hora do ataque, queria alargá-lo, sempre com alguém aberto.

Novamente, Cruyff era quem dava início aos movimentos. Posicionado inicialmente no comando do ataque, ele recuava tanto pelo meio, tanto pelos lados, para receber a bola. Alguém, portanto, tinha que ocupar o espaço dele, geralmente algum dos pontas.

Esses, por sua vez, estavam bem abertos e, ao preencher o vazio deixado pelo recuo de Cruyff, também deixavam um vazio nas alas, que podiam ser preenchidos pelos laterais ou pelos meias, que também abriam buracos em seus posicionamentos originais e assim sucessivamente.

Dê só uma olhada no primeiríssimo minuto da final da Copa de 1974 e em como já desde a saída de bola (12:18) a Holanda começa a se mexer. Cruyff fica na linha do meio campo enquanto o time avança, e depois dá a arrancada, que termina num pênalti.

A movimentação acima foi apelidada de Carrossel Holandês, pela maneira em que o time vai girando a bola e seus jogadores. É também a base do chamado jogo de posição, a estratégia central dos trabalhos de Pep Guardiola.

A formação inicial, portanto, não importava muito. Ainda assim, o padrão é que começava num 4-3-3, mas que variava bastante para um 3-4-3, seja pelo recuo de Cruyff e o avanço de algum dos laterais, seja pela subida de algum dos zagueiros para o meio campo, principalmente Rijsbergen.

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A campanha da Holanda de 1974

A melhor maneira de ilustrar a maneira como a Holanda jogava em 1974 é mostrar a sua campanha. Cada partida ajuda a mostrar um aspecto do Futebol Total. O conceito era simples, mas os mecanismos eram diversos.

Holanda 2 x 0 Uruguai – O Carrossel Holandês

Na estreia, toda a movimentação do Carrossel Holandês surpreendeu o Uruguai. A seleção sul-americana veio marcando fechadinha, com um monte de gente dentro da área, que nem contra o Brasil na Copa de 1950, mas do que adiantava?

O adversário, afinal, não colocava ninguém na área. Era toque aqui, toque ali e de repente o ponta direita, que estava na meia, entrava e fazia o gol. Os dois de Rep aconteceram nesse exato roteiro.

Holanda 0 x 0 Suécia – A pressão

Mesmo com toda a ofensividade, acontecia muitas vezes da bola não entrar. Foi o que rolou na segunda partida, contra a Suécia, que terminou em 0 a 0.

O que fazia um time que se mexia inteiro até entrar na área na hora que perdia a bola? Pressionava. Muito. A ideia era não só encurtar o espaço do adversário e recuperar a posse, mas também compensar toda a bagunça que ficava depois do Carrossel.

Se você pesquisar vídeos sobre a “Holanda de 74” vai encontrar imagens em que os holandeses se juntam em grupos de cinco ou mais e corriam que nem loucos atrás da bola.

Esse movimento, apelidado de “manada”, foi usado em momentos estratégicos, mas não representava necessariamente como a equipe marcava em todo o jogo.

Na partida contra a Suécia, isso é bem visível. O mais comum eram quatro jogadores avançarem ao portador da bola — o que já é muita gente — mas visando mais fechar as linhas de passe do que fazer o desarme imediatamente.

É só lembrar da descrição do Cruyff  e no cuidado em primeiro fechar o pé bom do adversário.

Holanda 4 x 1 Bulgária -A primazia técnica

A terceira e última partida da Seleção Holandesa na primeira fase da Copa do Mundo de 1974 foi como um recado: há de se ter técnica.

De nada adianta, afinal, toda a movimentação, a pressão, as corridas, se quem está com a bola não resolve na hora “H”. Nesse sentido, o 4 a 1 sobre a Bulgária foi o melhor exemplo da primazia técnica daquela equipe.

Observe a jogada de Cruyff que resulta no pênalti do primeiro gol e a maneira como ele carrega a bola e atrasa a passada para dar o passe da segunda penalidade.

Depois, há o mano a mano de Rep que resulta na falta do terceiro gol e ainda a sequência de passes, de Hanegem para Cruyff e de Cruyff para Rep, no gol que fechou a conta.

Lá no fundo, não tinha tanto segredo assim. Era um time organizado cheio de bons jogadores.

Holanda 4 x 0 Argentina – A velocidade da Laranja Mecânica

Há sempre um peixe maior no mar, já diria a sabedoria popular. A Argentina ainda não tinha sido campeã do mundo, mas tinha um timaço, comandado pelo cabeludo Mario Kempes.

Com a técnica equiparada é que as táticas de Rinus Michels fizeram a diferença. Na primeira partida da segunda fase, a Holanda goleou os hermanos muito por conta da velocidade com a qual montavam as jogadas.

No vídeo abaixo, veja como o time de laranja tabela rápido logo nos primeiros segundos. Já no lance seguinte, em dois, três passes Cruyff já está na cara do gol. Depois, duas tabelas pela direita e um verdadeiro salseiro armado na área. Na terceira vez, sai o escanteio que resulta no segundo gol.

Holanda 2 x 0 Alemanha Oriental – Aumentando o campo

A Alemanha Oriental não ofereceu uma grande resistência à Laranja Mecânica, que também jogou de freio de mão puxado pensando no jogo contra o Brasil. Ainda assim, dá para ver a história de jogar com os pontas bem abertos funcionando.

No primeiro gol, o escanteio é gerado depois da passagem de Suurbier, no espaço que o ponta direita criou ao puxar a marcação.

Um pouco antes do segundo gol, Rep perde uma chance clara ao fechar a jogada na quinta direita da área. Durante todo o lance, mesmo com o espaço, ele se mantém aberto, para a defesa da Alemanha abrir junto.

Holanda 2 x 0 Brasil – A linha de impedimento

O Holanda 2 x 0 Brasil foi um baita jogo, talvez o melhor da Copa. A Seleção Brasileira tinha a base de 70 e a renovação, com Luís Pereira, Carpegiani e Dirceu, e conseguiu acompanhar a Holanda na corrida.

Tem muito o que falar sobre esse jogo, como a violência, a capacidade dos jogadores brasileiros em certos momentos de se livrar da pressão de três ou quatro holandeses, ou mesmo sobre o impedimento de Rensenbrink na origem do segundo gol.

Mas, para o fim deste “guia tático” da Holanda de 1974, vamos falar da linha de impedimento holandesa.

Em entrevista ao jornalista Jonathan Wilson para o livro “A Pirâmide Invertida”, o zagueiro Marinho admitiu que foi a principal dificuldade do jogo, e talvez o maior ponto do menosprezo da equipe em relação aos holandeses. Para os jogadores, bastaria jogar a bola por cima da linha e alta e já era.

Não foi o que aconteceu. O Brasil até tinha a capacidade técnica para se livrar da pressão de dois, três, quatro holandeses pressionando, mas não conseguia sincronizar os lançamentos por trás da defesa.

Holanda 1 x 2 Alemanha Ocidental – As individualidades

Como mostramos no começo deste texto, a finalíssima teve já no primeiro minuto uma mostra perfeita da movimentação do Futebol Total. Mas o que acabou definindo a partida foram as individualidades, se relacionando com outro ponto que falamos lá em cima.

Ainda que viabilizada por um sólido trabalho coletivo, o gol da Holanda foi fruto de uma jogada individual de Cruyff. Para o camisa 14, foi também numa falha individual que saiu o gol da virada da Alemanha, já que Krol deveria ter fechado as pernas no chute de Gerd Müller.

Lembra da história da arquitetura total, a soma das partes e a importância dos movimentos de cada um? A Seleção Alemã atacou justamente esse ponto do sistema holandês. Marcou todo mundo individualmente e forçou erros.

A marcação em cima de Cruyff, que tinha os movimentos mais importantes, foi especialmente implacável, feita por Vogts. Mas não pense você que a Laranja Mecânica foi anulada. Foram muitas chances criadas e muitas defesas de Sepp Maier.

Pode parecer meio óbvio marcar individualmente o craque de um time, mas, bom, ninguém mais conseguiu parar a Holanda. Por isso que reforçamos: no fundo, eram ideias fundamentalmente simples, muito bem executadas por ótimos jogadores.

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