Na China dominada por homens, as chinesas encontram uma voz poderosa em Xangai - Estadão

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Na China dominada por homens, as chinesas encontram uma voz poderosa em Xangai

Mulheres de Xangai encontram-se em bares, rodas de debate e livrarias para reivindicar suas identidades, conforme o líder da China pede para o país adotar uma “cultura reprodutiva”

Por Alexandra Stevenson (The New York Times)
Atualização:

Em bares escondidos em becos, rodas de debate e livrarias de toda Xangai, mulheres discutem seu lugar num país em que os homens criam as leis.

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Algumas usam vestidos de noiva para fazer votos públicos de comprometimento consigo mesmas. Outras reúnem-se para assistir filmes sobre mulheres feitos por mulheres. As mais literatas encontram-se em livrarias feministas para ler obras como “A mulher destruída” e “Vivendo uma vida feminista”.

Mulheres de Xangai e outras grandes cidades da China têm negociado os frágeis termos da expressão pública em um momento politicamente precário. O governante Partido Comunista Chinês identificou o feminismo como uma ameaça à sua autoridade. Ativistas defensoras dos direitos das mulheres têm sido presas. Preocupações sobre assédio e violência contra as mulheres são ignorados ou silenciados diretamente.

Du Wen posa para foto em frente ao bar que ela fundou em Xangai no ano passado  Foto: Qilai Shen/NYT

O líder da China, Xi Jinping, diminuiu o papel das mulheres no mercado de trabalho e no funcionalismo público. Não há mulheres no alto escalão do Politburo de Xi, o organismo de formulação de políticas do Executivo chinês. Xi invocou papéis mais tradicionais para as mulheres, como cuidadoras e mães, no planejamento de uma nova “cultura reprodutiva” para responder ao encolhimento da população de seu país.

Mas grupos de mulheres em toda a China têm reivindicado silenciosamente suas próprias identidades. Muitas são de uma geração que cresceu com mais liberdade que suas mães. As mulheres de Xangai, profundamente abaladas pelo lockdown anticovid de dois meses, em 2022, são motivadas por uma necessidade de construir comunidade.

“Acho que todas as pessoas que vivem nesta cidade parecem ter chegado ao estágio em que querem explorar mais o poder das mulheres”, afirmou Du Wen, fundadora do bar Her, que organiza rodas de debate.

Mulheres em Xangai se encontram em bares, salões e livrarias para discutir questões identitárias  Foto: Qilai Shen/NYT

Eventos

Frustrada com o entendimento cada vez mais estreito das mulheres pelo público, a estudante de cinema e teatro Nong He organizou a projeção de três documentários sobre mulheres realizados por cineastas chinesas.

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“Acho que nós deveríamos ter um espaço maior para as mulheres criarem”, afirmou He. “Nossa intenção ao organizar eventos desse tipo é transmitir às pessoas como é nosso estilo de vida, como é a vida de outras mulheres, e com esse entendimento nós conseguimos nos conectar e ajudar umas às outras.”

Em eventos anunciados discretamente as mulheres questionam expressões misóginas da cultura chinesa. “Por que as almas solitárias são sempre femininas?”, uma mulher questionou recentemente, referindo-se à definição na literatura chinesa de mulheres sem-teto após a morte. Elas compartilham dicas para iniciantes no feminismo. Começam com a história, afirmou Tang Shuang, dona da livraria Paper Moon, que vende obras de mulheres. “É como a fundação da estrutura.”

Tang Shuang le um livro em sua livraria, a Paper Moon, em Xangai, China  Foto: Qilai Shen/NYT

Violência

Há poucas estatísticas confiáveis sobre violência de gênero e assédio sexual na China, mas incidentes de violência contra a mulher têm ocorrido com maior frequência, de acordo com pesquisadores e assistentes sociais. Relatos sobre mulheres sendo agredidas fisicamente ou assassinadas brutalmente por tentar deixar seus maridos ou espancadas com selvageria por resistir a atenções indesejadas de homens circulam amplamente nas redes sociais. O caso de uma mulher que foi acorrentada dentro de um barraco sem porta, na Província de Jiangsu, no leste da China, tornou-se um dos tópicos mais debatidos online em anos.

A cada relato, as reações foram altamente polarizadoras. Muitas pessoas denunciaram os agressores e o sexismo na sociedade. Muitas outras culparam as vítimas.

A maneira que essas discussões polarizam a sociedade inquieta Tang, uma empreendedora e ex-subeditora da Vogue China. Eventos que ela testemunhou em sua vida também. Conforme amigas compartilhavam sentimentos de vergonha e autodepreciação por não ter se casado, Tang buscou alguma estrutura para articular o que estava sentindo.

Wang Xia, a dona da livraria Xin Chao, em Xangai, atende uma cliente  Foto: Qilai Shen/NYT

“Então eu descobri, sabe, que eu também não tinha pensamentos muito claros sobre essas coisas”, afirmou ela. “As pessoas são ávidas para falar, mas não sabem do que estão falando.”Tang decidiu então abrir a Paper Moon, uma livraria para leitoras curiosas intelectualmente, como ela.

A loja é dividida em uma seção de obras acadêmicas sobre a história do feminismo e estudos sociais, assim como literatura e poesia. Há uma seção de biografias. “A gente precisa de histórias reais para encorajar as mulheres”, afirmou Tang.

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A ansiedade sobre atrair o tipo errado de atenção está sempre presente. Quando abriu sua livraria, Tang colocou um cartaz na porta descrevendo-a como um estabelecimento feminista em que pessoas de todos os gêneros são bem-vindas, assim como seus bichos de estimação. “Mas uma amiga me falou para tirar o cartaz, porque, sabe, eu poderia criar problemas por usar a palavra feminismo.”

Wang Xia, dona da Xin Chao Bookstore, decidiu se afastar completamente da palavra “F”. Em vez disso, ela descreve sua livraria como uma loja de “temática feminina”. Quando ela abriu, em 2020, a livraria era um espaço amplo, com recantos para incentivar conversas privadas e seis salas de estudo batizadas com nomes de autoras famosas, como Simone de Beauvoir.

Entrada da livraria com temática feminina Paper Moon, em Xangai, China  Foto: Qilai Shen/NYT

A Xin Chao Bookstore atendeu mais de 50 mil pessoas por meio de eventos, oficinas e palestras online, afirmou Wang. A loja tinha mais de 20 mil livros sobre arte, literatura e autoaperfeiçoamento — livros sobre mulheres e livros para mulheres. A livraria ganhou tanta proeminência que os meios de imprensa estatais fizeram reportagens e o governo de Xangai postou um artigo em seu website sobre o local.

Ainda assim, Wang foi cuidadosa em evitar qualquer declaração política. “Minha ambição não é desenvolver o feminismo”, afirmou ela.

Para Du, fundadora do bar Her, empoderar mulheres está no cerne de sua motivação. O isolamento da pandemia a motivou a tomar uma atitude: Xangai ordenou que seus moradores ficassem em seus apartamentos sob lockdown por dois meses, e o mundo dela se restringiu às paredes de seu apartamento.

Por anos Du sonhou em abrir um lugar em que ela pudesse elevar as vozes das mulheres, o que naquele momento parecia mais urgente do que nunca. Depois do lockdown, ela inaugurou o Her, um lugar onde as mulheres podem fazer amizades e debater a respeito das expectativas sociais que a sociedade lhes impõe.

No Dia Internacional das Mulheres, o Her organizou um evento chamado Case Consigo, no qual as mulheres faziam votos de fidelidade a si mesmas. O bar também organizou um encontro em que mulheres assumiam papéis de mães e filhas. Muitas jovens descreveram uma relutância em ser tratadas da mesma maneira que suas mães e afirmaram que não sabiam como falar com elas, afirmou Du.

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Autoridades reuniram-se com Du e indicaram que, contanto que os eventos no Her não fiquem populares demais, o bar poderá funcionar em Xangai, afirmou ela.

Mas na China a possibilidade de repressão das autoridades sempre está presente. “Eles nunca nos dizem claramente o que é proibido”, afirmou Tang, da Paper Moon.

Wang mudou recentemente a Xin Chao Bookstore para a Xangai Book City, uma loja famosa, com grandes pátios e extensas colunas de estantes. Uma coleção de quatro volumes com escritos de Xi em várias línguas é exibida com destaque.

A Book City é enorme. O espaço para a Xin Chao Bookstore, não, afirmou Wang, com várias prateleiras dentro e em torno de um pequeno recinto capaz de exibir, eventualmente, apenas cerca de 3 mil livros. “É um pequeno nicho da cidade, uma célula cultural”, afirmou Wang. Ainda assim, chama atenção na China. “Não é toda a cidade que tem uma livraria de uma mulher”, afirmou ela. “Em muitas cidades esse tipo de solo cultural não existe.” / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

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