Os grandes marcos do reinado de Elizabeth II e o que pode estar por vir - Revista Galileu | História
  • Laura Clancy | The Conversation*
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Os grandes marcos do reinado de Elizabeth II e o que pode estar por vir. Acima, a monarca em evento no Palácio de Buckingham em 2013. (Foto: UK Government/Wikimedia Commons)

Os grandes marcos do reinado de Elizabeth II e o que pode estar por vir. Acima, a monarca em evento no Palácio de Buckingham em 2013. (Foto: UK Government/Wikimedia Commons)

Quando a rainha Elizabeth II subiu ao trono em 1952, a Grã-Bretanha tinha saído há sete anos da Segunda Guerra Mundial. O trabalho de reconstrução ainda estava em andamento e o racionamento de produtos essenciais, como açúcar, ovos, queijo e carne, continuaria por mais um ano.

Mas a austeridade e contenção da década de 1940 estava dando lugar a uma década de 1950 mais próspera. Talvez não seja de admirar, então, que a sucessão da rainha tenha sido saudada como a “nova era elisabetana”. A sociedade estava mudando, e lá estava uma jovem e bela rainha para se sentar em seu leme.

Setenta anos depois, a Grã-Bretanha parece muito diferente. Elizabeth II governou talvez a mais rápida expansão tecnológica e mudança sociopolítica de qualquer monarca na história recente. Olhando para trás, a vida de Elizabeth II levanta questões-chave sobre não apenas como a monarquia mudou, mas também como a própria Grã-Bretanha se transformou ao longo do século 20 e 21.

Grã-Bretanha global

Se o reinado de Elizabeth I foi um período de expansão colonial, conquista e dominação, então a “nova era elisabetana” foi marcada pela descolonização e pela perda do Império.
Quando Elizabeth II sucedeu ao trono, os últimos vestígios do Império Britânico ainda estavam intactos. A Índia obteve a independência em 1947, e outros países logo seguiram [seu exemplo] ao longo das décadas de 1950 e 1960. Embora existisse desde 1926, a atual Commonwealth foi constituída na Declaração de Londres de 1949, tornando os estados membros “livres e iguais”. A Commonwealth tem um verniz de poder colonial, uma vez que compartilha uma história com o Império e continua a investir o monarca britânico com poder simbólico.

A Commonwealth apareceu fortemente na cerimônia de coroação de 1953, desde programas de televisão mostrando as celebrações da Commonwealth até o vestido de coroação da rainha, decorado com os emblemas florais dos países da Commonwealth. Ela continuou a celebrar a Commonwealth durante todo o seu reinado.

A história colonial da Commonwealth é reproduzida nos valores do Brexit e projetos nacionalistas relacionados que sofrem do que Paul Gilroy [sociólogo inglês e professor da University College de Londres] chama de “melancolia pós-colonial”. A rainha era a personificação viva do estoicismo britânico, “o espírito Blitz” e do poder imperial global do qual se apoiava grande parte da retórica do Brexit. O que a perda da monarca mais longeva da Grã-Bretanha fará com a nostalgia da qual a política de direita contemporânea se baseia?

A mídia e a monarquia

Imagem do primeiro -ministro britânico Winston Churchill (Foto: Wikimedia Commons)

Imagem do primeiro -ministro britânico Winston Churchill (Foto: Wikimedia Commons)

Na coroação, o primeiro-ministro britânico, Winston Churchill, supostamente respondeu às propostas para transmitir a cerimônia na televisão ao vivo que “arranjos mecânicos modernos” prejudicariam a magia da coroação e “aspectos religiosos e espirituais [não] deveriam ser apresentados como se foram um espetáculo teatral”.

A televisão era uma tecnologia nova na época, e temia-se que a transmissão da cerimônia fosse muito íntima. Apesar dessas preocupações, a transmissão televisiva da coroação foi um grande sucesso. O projeto de pesquisa “Mídia e Memória no País de Gales” descobriu que a coroação desempenhou um papel formador nas primeiras memórias da televisão das pessoas. Mesmo monarquistas não fervorosos podiam dar um relato íntimo de suas experiências.

A imagem real sempre foi mediada, desde o perfil do monarca nas moedas até os retratos. Para Elizabeth II, isso envolveu um desenvolvimento radical: do surgimento da televisão, passando pelos tabloides e paparazzi, às mídias sociais e ao jornalismo cidadão (processos relacionados à democratização e participação). Por causa disso, agora temos mais acesso à monarquia do que nunca.

Em meu livro Running The Family Firm: How the monarchy manages your image and our money [Administrando a empresa familiar: como a monarquia administra sua imagem e nosso dinheiro, em tradução livre, sem edição brasileira], argumento que a monarquia britânica depende de um equilíbrio cuidadoso de visibilidade e invisibilidade para reproduzir seu poder. A família real pode ser visível em formas espetaculares (cerimônias estatais) ou familiares (casamentos reais, bebês reais). Mas o funcionamento interno da instituição deve permanecer em segredo.

A luta da monarquia por esse equilíbrio pode ser vista durante todo o reinado da rainha. Um exemplo é o documentário da BBC-ITV de 1969, Família Real. A produção Família Real usou novas técnicas de "cinéma vérité" para acompanhar a monarquia por um ano – o que hoje reconheceríamos como reality show “fly-on-the-wall”.

O documentário nos deu vislumbres íntimos de cenas domésticas, como churrascos em família e a rainha levando o infante príncipe Edward a uma loja de doces. Apesar de sua popularidade, muitos estavam preocupados com o fato de o estilo voyeurista ter fraturado demais a mística da monarquia. De fato, o Palácio de Buckingham restringiu o documentário de 90 minutos para que não estivesse disponível para exibição pública, e 43 horas de filmagem permaneceram sem uso.

Imagem do  Palácio de Buckingham , onde a realeza britânica mora em Londres (Foto: Wikimedia Commons)

Imagem do Palácio de Buckingham , onde a realeza britânica mora em Londres (Foto: Wikimedia Commons)

Confissões reais, modeladas na cultura das celebridades e em noções de intimidade e divulgação, assombraram a monarquia nas últimas décadas. A entrevista de Diana no programa Panorama, em 1995, foi icônica, onde ela contou ao entrevistador Martin Bashir sobre adultério real, conspirações do palácio contra ela e adeterioração de sua saúde mental e física.

Mais recentemente, a entrevista do príncipe Harry e de Meghan Markle com Oprah Winfrey discutiu o que eles descreveram como racismo “da Firma”, falta de responsabilidade e sua rejeição da saúde mental de Markle. Essas entrevistas realmente expuseram o funcionamento interno da instituição e romperam o equilíbrio de visibilidade/invisibilidade.

Como o resto do mundo, a monarquia agora tem uma conta na maioria das principais plataformas de mídia social do Reino Unido. A conta do duque e da duquesa de Cambridge no Instagram, administrada em nome do príncipe William, Kate Middleton e seus filhos, é talvez o exemplo mais óbvio de familialismo real na era contemporânea.

As fotografias parecem naturais, improvisadas e informais, e o Instagram é enquadrado como o “álbum de fotos da família” de Cambridge, permitindo vislumbres “íntimos” da vida familiar de Cambridge. No entanto, como em todas as representações reais, essas fotografias são encenadas com precisão.

Figuras políticas

A rainha sucedeu ao trono durante um período de transformação política radical. Clement Atlee, do Partido Trabalhista, havia conquistado o cargo de primeiro-ministro em 1945, em uma eleição sensacional e esmagadora que parecia sinalizar o desejo de mudança dos eleitores. O estabelecimento do NHS, em 1948, como política central do estado de bem-estar do pós-guerra prometeu apoio do berço ao túmulo.

O partido conservador de Winston Churchill retomou o parlamento em 1952. Churchill falou para uma versão diferente da Grã-Bretanha: mais tradicional, imperialista e firmemente monarquista. Tais ideologias contrastantes eram visíveis em respostas à coroação da rainha em junho de 1953.

O cartoon satírico de protesto de David Low, The Morning After, publicado no Manchester Guardian em 3 de junho de 1953, mostrava lixo de festa (bandeiras, garrafas de champanhe) e o texto “farra de 100 milhões de libras" rabiscado no chão. A charge instigou prontamente 600 cartas de críticas por ser de “mau gosto” e chamou a atenção para ideologias políticas contrastantes.

Na década de 1980, o governo conservador de Margaret Thatcher iniciou um desmantelamento sistemático do estado de bem-estar do pós-guerra, enfatizando os mercados livres neoliberais, cortes de impostos e individualismo.

Na época dos anos “Cool Britannia” de Tony Blair, na virada do novo milênio, a rainha era uma mulher mais velha. A princesa Diana era notoriamente a “princesa do povo” da época, pois sua nova marca de intimidade e “autenticidade” ameaçava expor uma monarquia “fora de alcance”.

Em 2000, três anos após a morte de Diana em um acidente de carro em Paris, o apoio à monarquia estava em seu ponto mais baixo. Acreditava-se que a rainha agiu de forma inadequada, deixando de responder à dor pública e “representar seu povo”. O Express, por exemplo, publicou a manchete “Mostre-nos que você se importa: os enlutados pedem que a rainha lidere nossa dor”.

Eventualmente, ela fez um discurso na televisão que atenuou seu silêncio enfatizando seu papel como avó, ocupada “ajudando” William e Harry a lidar com sua dor. Também vimos esse papel de avó em outros lugares: em suas fotos de aniversário de 90 anos em 2016, tiradas por Annie Leibowitz, ela estava sentada em um ambiente doméstico cercada por seus netos e bisnetos mais novos.

Qual o proximo?

A rainha sempre se vestia impecavelmente com sua marca registrada, uma bolsa (Foto: Wikimedia Commons)

A rainha sempre se vestia impecavelmente com sua marca registrada, uma bolsa (Foto: Wikimedia Commons)

Esta é a imagem da rainha que muitos vão se lembrar: uma mulher mais velha, vestida impecavelmente, segurando sua bolsa icônica e familiar. Embora ela tenha sido chefe de Estado durante muitas das mudanças políticas, sociais e culturais sísmicas dos séculos 20 e 21, o fato de ela raramente dar uma opinião política significa que ela navegou com sucesso pela neutralidade política constitucional do monarca.

Ela também garantiu que permanecesse um ícone. Ela nunca cedeu ao status de “personalidade” como outros membros da realeza, que iniciaram uma relação de amor e ódio com o público porque sabemos mais sobre eles.

A rainha permaneceu uma imagem: de fato, ela é a pessoa mais representada na história britânica. Por sete décadas, os britânicos não conseguiram fazer uma compra em dinheiro sem encontrar o rosto dela. Essa banalidade cotidiana demonstra o entrelaçamento da monarquia – e da rainha – no tecido da Grã-Bretanha.

A morte da rainha deve levar a Grã-Bretanha a refletir sobre seu passado, seu presente e seu futuro. O tempo dirá como será o reinado de Charles III, mas uma coisa é certa: a “nova era elisabetana” já se foi. A Grã-Bretanha está agora se recuperando de recentes rupturas em seu status quo, do Brexit à pandemia de Covid-19, aos pedidos em andamento pela independência da Escócia.

Charles III herda um país muito diferente do de sua mãe. Que propósito, se houver, terá a próxima monarquia para o futuro da Grã-Bretanha?

*Laura Clancy é docente em Comunicação Social no departamento de Sociologia na Universidade de Lancaster e especialista na familia real britânica. Este artigo foi originalmente publicado em inglês no site The Conversation.