(PDF) DURKHEIM Emile As regras do metodo sociologico | Filipe Latto - Academia.edu
JlmiJe Durkheim. llllllllJlilll P SR Q YP@ セ As Regras do Método Sociológico Émile Durkheim As Regras do Método Sociológico Tradução PAULO NEVES Revisão da tradU\'ão EDUARDO RRANDÃO Martins Fontes São Paulo 2007 INDICE Esta obra foi publicada originalmente em francês com o título LES REGLES DE LA METHODE SOCIOLOGIQUE. Copyright© Flammarion, 1988, para o aparelho crítico. Copyright© 1995, Livraria Martins Fontes Editora Ltda., São Paulo, para a presente edição. 1' edição 1995 3' edição 2007 Tradução PAULO NEVES Revisão da tradução Eduardo Brandão Revisões gráficas Luzia Aparecida dos Santos Maria Ceei/ia Vannucchi Dinarte Zorzanelli da Silva Nota sobre esta edição............................................... VII l'refácio da primeira edição..................................... XI l'refácio da segunda edição...................................... XV f1itrodução ................................................................. XXXIII Produção gráfica Geraldo Alves Composição Renato C. Carbone Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CW) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Durkheim. Émile. 1858-1917. As regras do método sociológico ( Émile Durkheim ; tradução Paulo Neves ; revisão da tradução Eduardo Brandão. - 3ª ed. - São Paulo: Martins Fontes, 2007. - (Coleção tópicos) Título original: Les rêgles de la méthode sociologiq ue. ISBN 978-85-336-2364-4 1. Sociologia - Metodologia l. Título. II. Série. 07-1664 l. O que é um fato social? .......................................... . 1 II. Regras relativas à observação dos fatos sociais ..... . 15 11 l. Regras relativas à distinção entre normal e patológico ....................................................................... . 49 IV. Regras relativas à constituição dos tipos sociais .. .. 77 V. Regras relativas à explicação dos fatos sociais ..... .. 91 VI. Regras relativas à administração da prova ............ . 127 CDD-301.018 Índices para catálogo sistemático: 1. Metodologia: Sociologia 301.018 2. Métodos sociológicos 301.018 Todos os direitos desta edição reservados à Livraria Martins Fontes Editora Ltda. Rua Conselheiro Ramalho. 330 01325-000 São Paulo SP Brasil Te/. (ll) 3241.3677 Fax (11) 3105.6993 e-mail: info@martinsfonteseditora.com.br http://www.martinsfonteseditora.com.br c<mclusão....................................................................... 145 Notas ............................................................................... 153 NOTA SOBRE ESTA EDIÇÃO A presente tradução foi baseada na primeira edição, de 1895, considerada texto de referência para As regras do método sociológico. Esta primeira edição, no entanto, difere em alguns pontos da versão inicial publicada na Revue /Jhilosophique. A'i modificações que constituem acréscimos ou implicam reformulações do texto estão assinaladas sistematicamente através de asteriscos que indicam e delimitam o texto corrigido, fornecendo-se em nota de rodapé a redação inicial. As duas notas acrescentadas à edição de 1901, a 2ª, publicada ainda em vida de Durkheim, foram também assinaladas. O trabalho do professor Jean-Michel Berthelot, da Universidade de Toulouse II (Flammarion, 1988), serviu de base para o estabelecimento da presente edição. À memória de Raymond LEDRUT Fundador elo Institut de sciences sociales e elo Centre de recherches sociologiques da Universidade de Toulouse. PREFÁCIO DA PRIMEIRA EDIÇÃO É tão pouco habitual tratar os fatos sociais cientificamente que algumas das proposições contidas nesta obra correm o risco de surpreender o leitor. Entretanto, se existe uma ciência das sociedades, cabe esperar que ela não consista cm uma simples paráfrase dos preconceitos tradicionais, mas nos mostre as coisas diferentemente de como as vê o vulgo; pois o objeto de toda ciência é fazer descobertas, e toda descoberta desconcerta mais ou menos as opiniões aceitas. Portanto, a menos que se atribua ao senso comum, em sociologia, uma autoridade que há muito de não possui nas outras ciências - e não se percebe de emde lhe poderia advir essa autoridade -, cumpre que o sociólogo tome decididamente o partido de não se intimidar com os resultados de suas pesquisas, se estas foram metodicamente conduzidas. Se buscar o paradoxo é próprio de um sofista, fugir dele, quando imposto pelos fatos, denota um espírito sem coragem ou sem fé na ciência. Infelizmente, é mais fácil admitir essa regra em princípio e teoricamente do que aplicá-la com perseverança. XII /jS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO Ainda estamos por demais acostumados a resolver essas questões com base nas sugestões do senso comum para que possamos facilmente mantê-lo a distância das discussões sociológicas. Quando nos cremos livres dele, ele nos impõe seus julgamentos sem que o percebamos. Somente uma prática longa e especial é capaz de prevenir semelhantes lapsos. Eis o que pedimos ao leitor para não perder de vista. Que tenha sempre presente no espírito que suas maneiras de pensar mais costumeiras são antes contrárias do que favoráveis ao estudo científico dos fenômenos sociais e, por conseguinte, que se acautele contra suas primeiras impressões. Se se entregar a elas sem resistência, arrisca-se a julgar-nos sem nos haver compreendido. Assim, pode acontecer que nos acusem de ter querido absolver o crime, sob pretexto de fazermos dele um fenômeno de sociologia normal. No entanto, a objeção seria pueril. Pois, se é normal que em toda sociedade haja crimes, não é menos normal que eles sejam punidos. A instituição de um sistema repressivo não é um fato menos universal que a existência de uma criminalidade, nem menos indispensável ã saúde coletiva. Para que não houvesse crimes, seria preciso um nivelamento das consciências individuais que, por razões que veremos mais adiante, não é possível nem desejável; mas, para que não houvesse repressão, seria preciso uma ausência de homogeneidade moral que é inconciliável com a existência de urna sociedade. Todavia, partindo do fato de que o crime é detestado e detestável, o senso comum conclui erradamente que ele deveria desaparecer por completo. Com seu simplismo costumeiro, não concebe que urna coisa que repugna possa ter uma razão de ser útil. No entanto, não há nenhuma contradição nisso. Não há no organismo funções repugnantes cuja atividade regular é necessária à saúde individual? Acaso não detestamos o sofrimento? E, não l 'N/:FÁCIO DA PRJMBRA Ef)JÇÂO XIII '>I istante, um ser que não o conhecesse seria um monstro. caráter normal de uma coisa e os sentimentos de averセ[QP@ que ela inspira podem inclusive ser solidários. A dor é 11m fato normal, contanto que não seja apreciada; o crime ,. normal, contanto que seja odiado 1 . Nosso método, porL1nto, nada tem de revolucionário. Num certo sentido, é .11C· essencialmente conservador, pois considera os fatos セ@ >ciais como coisas cuja natureza, ainda que dócil e maleá\ l'i, não é modificável à vontade. Bem mais perigosa é a '1, >utrina que vê neles apenas o produto de combinações 111cntais, que um simples artifício dialético pode, num instante, subverter de cima a baixo! Do mesmo modo, como é habitual representar-se a vida social como o desenvolvimento lógico de conceitos ideais, julgar-se-á talvez grosseiramente um método que L1z a evolução coletiva depender de condições objetivas, ( lcfinidas no espaço, e não é impossível que nos acusem ( lc materialista. Entretanto, poderíamos com maior justiça 1'L'ivindicar a qualificação contrária. Com efeito, não está 11;1 essência do espiritualismo a idéia de que os fenômenos psíquicos não podem ser imediatamente derivados dos fenômenos orgânicos? Ora, nosso método não é, em parte, senão uma aplicação desse princípio aos fatos so('iais. Assim como os espiritualistas separam o reino psico1,·>gico do reino biológico, separamos o primeiro do reino se >eia!; da mesma forma que eles, recusamo-nos a explicar t> mais complexo pelo mais simples. Na verdade, nem uma nem outra denominação nos convém exatamente; a 1ú1ica que aceitamos é a de racionalista. Nosso principal '>hjetivo, com efeito, é estender à conduta humana o racionalismo científico, mostrando que, considerada no passado, ela é redutível a relaçôes de causa e efeito que uma '>peração não menos racional pode transformar a seguir ('lll regras de ação para o futuro. O que chamamos nosso <l XIV AS REGRAS DO MÉTODO SOC10LÓGJCO positivismo não é senão uma conseqüência desse racionalismo2. Só podemos ser tentados a superar os fatos, seja para explicá-los, seja para dirigir seu curso, na medida em que os julgarmos irracionais. Se forem inteiramente inteligíveis, eles bastam à ciência e à prática: à ciência, pois não há motivo para buscar fora deles suas razões ele ser; à prática, pois seu valor útil é uma dessas razões. Parecenos portanto, sobretudo nesta época ele misticismo renascente, que tal empreendimento pode e eleve ser acolhido sem inquietude e mesmo com simpatia por todos aqueles que, embora divirjam ele nós em certos pontos, partilham nossa fé no futuro ela razão. PREFÁCIO DA SEGUNDA EDIÇÃO Quando foi publicado pela primeira vez, este livro suscitou controvérsias bastante fortes. As idéias correntes, como que desconcertadas, resistiram a princípio com tal l'nergia que, durante um tempo, nos foi quase impossível fazer-nos ouvir. Até nos pontos em que nos expressáramos mais explicitamente, atribuíram-nos gratuitamente idéias que nada tinham em comum com as nossas, e acreditaram refutar-nos ao refutá-las. Embora tenhamos declarado várias vezes que a consciência, tanto individual quanto social, nào era para nós nada ele substancial, mas ;1penas um conjunto mais ou menos sistematizado de fenômenos sui generis, tacharam-nos ele realismo e de ontologismo. Embora tenhamos dito expressamente e repetido de todas as maneiras que a vida social era inteiramente feita de representações, acusaram-nos de eliminar o elemento mental da sociologia. Houve até quem chegasse a restaurar contra nós procedimentos de disçussão que podiam se considerar definitivamente desaparecidos. Imputaram-nos, com efeito, certas opiniões que não havíamos XVI AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO sustentado, sob pretexto de que elas estavam "de acordo com nossos princípios". A experiência já havia mostrado • porém, todos os perigos desse método que, ー・イュゥエョ、セ@ construir arbitrariamente os sistemas em questão, permite também triunfar deles sem esforço. Não acreditamos nos enganar ao dizer que, desde então, as resistências progressivamente diminuíram. Claro que mais de uma proposição nos é ainda contestada. Mas não poderíamos nos surpreender nem nos queixar dessas contestaçôes salutares; não resta dúvida de que nossas fórmulas estão destinadas a ser reformadas no futuro. Resumo ele uma prática pessoal e forçosamente restrita, elas deverão necessariamente evoluir à medida que se adquira uma experiência mais ampla e aprofundada da realidade social. Em matéria de método, aliás, jamais se pode fazer senão o provisório, pois os métodos mudam à medida que a ciência avança. Apesar disso, nestes últimos anos, e a despeito das oposiçôes, a causa da sociologia objetiva, específica e metódica ganhou terreno sem interrupção. A fundação da revista Année sociologique certamente contribuiu em muito para esse resultado. Por abarcar a uma só vez todo o domínio da ciência, a Année pôde, melhor do que qualquer obra especial, dar uma idéia do que a sociologia pode e eleve se tornar. Deste modo foi possível ver que ela não estava condenada a permanecer um ramo ela filosofia geral, sendo capaz, por outro lado, de entrar em contato com o detalhe cios fatos sem degenerar em pura erudição. Por isso, nunca seria demais homenagear o ardor e a cleclicaçào de nossos colaboradores; foi graças a eles que essa demonstração pôde de fato ser tentada e pode prosseguir. No entanto, por reais que sejam tais progressos, é incontestável que os enganos e as confusôes passadas ainda não se dissiparam completamente. Eis por que gostaría- PREFÁCIO DA SEGUNDA EDIÇÃO XVII mos de aproveitar esta segunda edição para acrescentar algumas explicações a todas aquelas que já demos, responder a certas críticas e fazer sobre alguns pontos novos esclarecimentos. A proposição segundo a qual os fatos sociais devem ser tratados como coisas - proposição que está na base de nosso método - é das que mais têm provocado contradiçôes. Consideraram paradoxal e escandaloso que assimilássemos às realidades cio mundo exterior as do mundo social. Era equivocar-se singularmente sobre o sentido e o alcance dessa assimilação, cujo objeto não é rebaixar as formas superiores do ser às formas inferiores, mas, ao contrário, reivindicar para as primeiras um grau de realidade pelo menos igual ao que todos reconhecem nas segundas. Não dizemos, com efeito, que os fatos sociais são coisas materiais, e sim que são coisas tanto quanto as coisas materiais, embora de outra maneira. o que vem a ser uma coisa? A coisa se opôe à idéia assim como o que se conhece a partir de fora se opõe ao que se conhece a partir de dentro. É coisa todo objeto do conhecimento que não é naturalmente penetrável à inteligência, tudo aquilo de que não podemos fazer uma noção adequada por um simples procedimento de análise mental, tudo o que o espírito não pode chegar a comrreender a menos que saia de si mesmo, por meio de observações e experimentações, passando progressivamente dos caracteres mais exteriores e mais imediatamente 。」・セ@ síveis aos menos visíveis e aos mais profundos. Tratar os fatos ele uma certa ordem como coisas não é, portanto, classificá-los nesta ou naquela categoria do real; é obser- XVIII AS REGRAS DO MÉTODO SOCTOLÓGICO var diante deles uma certa atitude mental. É abordar seu estudo tomando por princípio que se ignora absolutamente o que eles são e que suas propriedades características, bem como as causas desconhecidas de que estas dependem, não podem ser descobertas pela introspecção, mesmo a mais atenta. Assim definidos os termos, nossa proposição, longe de ser um paradoxo, poderia ser quase considerada um truísmo, se ainda não fosse com muita freqüência desconhecida nas ciências que tratam do homem, sobretudo em sociologia. Com efeito, pode-se dizer, neste sentido, que todo objeto de ciência é uma coisa, com exceção talvez dos objetos matemáticos; pois, quanto a estes, como nós mesmos os construímos, dos mais simples aos mais complexos, é suficiente, para saber o que são, olhar dentro de nós e analisar interiormente o processo mental de que resultam. Mas, quando se trata de fatos propriamente ditos, eles são para nós, no momento em que empreendemos fazer-lhes a ciência, necessariamente coisas ignoradas, pois as representações que fizemos eventualmente deles ao longo da vida, tendo sido feitas sem método e sem crítica, são desprovidas de valor científico e devem ser deixadas de lado. Os próprios fatos da psicologia individual apresentam esse caráter e devem ser considerados sob esse mesmo aspecto. Com efeito, ainda que nos sejam interiores por definição, a consciência que temos deles não nos revela nem sua natureza interna nem sua gênese. Ela nos faz conhecê-los bem até um certo ponto, mas somente como as sensações nos fazem conhecer o calor ou a luz, o som ou a eletricidade; ela nos oferece impressões confusas, passageiras, subjetivas, mas não noções claras e distintas, conceitos explicativos desses fatos. E é precisamente por essa razão que se fundou neste século uma psicologia objetiva, cuja regra fundamental é es- l'REFÁCTO DA SEGUNDA EDIÇÃO XIX tudar os fatos mentais a partir de fora, isto é, como coisas. O mesmo deve ser dito dos fatos sociais, e com mais razão ainda; pois a consciência não poderia ser mais competente para conhecê-los do que para conhecer sua vida própria3. Objetar-se-á que, como eles são obra nossa, só precisamos tomar consciência de nós mesmos para saber o que neles pusemos e de que maneira os formamos. Mas, em primeiro lugar, a maior parte das instituições sociais nos são legadas inteiramente prontas pelas gerações anteriores; não tomamos parte alguma em sua formação e, por conseqüência, não é nos interrogando que poderemos descobrir as causas que lhes deram origem. Além disso, mesmo que tenhamos colaborado na gênese delas, só vislumbramos da maneira mais confusa, e muitas vezes mais inexata, as verdadeiras razões que nos determinaram a agir e a natureza de nossa ação. Mesmo quando se trata simplesmente de nossas atitudes privadas, conhecemos bastante mal as motivações relativamente simples que nos guiam; cremo-nos desinteressados e na verdade agimos como egoístas, julgamos obedecer ao ódio quando cedemos ao amor, à razão quando somos escravos de preconceitos irrefletidos, etc. Assim, como teríamos a faculdade de discernir com maior clareza as causas, muito mais complexas, de que procedem as atitudes da coletividade? l'ois, de mais a mais, cada um só participa dela numa ínfima parte; temos uma multidão de colaboradores e o que se passa nas outras consciências nos escapa. Nossa regra nào implica portanto nenhuma concepセNᄋ¢ッ@ metafísica, nenhuma especulação sobre o âmago dos seres. O que ela reclama é que o sociólogo se coloque no mesmo estado de espírito dos físicos, químicos, fisiologistas, quando se lançam numa região ainda inexplorada de seu domínio científico. É preciso que; ao penetrar no mundo social, ele tenha consciência de que penetra no desco- XX AS REGRAS DO MÉTODO SOG70LÓGICO nhecido; é preciso que ele se sinta diante de fatos cujas leis são tão insuspeitas quanto podiam ser as da vida, quando a biologia não estava constituída; é preciso que ele esteja pronto a fazer descobertas que o surpreenderão e o desconcertarão. Ora, a sociologia está longe de ter chegado a um grau de maturidade intelectual. Enquanto o cientista que estuda a natureza física tem o sentimento muito vivo das resistências que ela lhe opõe e que só são vencidas com dificuldade, parece que o sociólogo se move em meio a coisas imediatamente transparentes para o espírito, tamanha a facilidade com que o vemos resolver as questões mais obscuras. No estado atual da ciência, não sabemos verdadeiramente o que são nem sequer as principais instituições sociais, como o Estado ou a família, o direito de propriedade ou o contrato, a pena ou a responsabilidade; ignoramos quase completamente as causas de que dependem, as funções que cumprem, as leis de sua evolução; apenas começamos a vislumbrar algumas luzes em certos pontos. No entanto, basta percorrer as obras de sociologia para ver como é raro o sentimento dessa ignorância e dessas dificuldades. Os sociólogos não somente se consideram como que obrigados a dogmatizar sobre todos os problemas ao mesmo tempo, mas acreditam poder, em algumas páginas ou em algumas frases, atingir a essência mesma dos fenômenos mais complexos. Vale dizer que semelhantes teorias exprimem, não os fatos que não poderiam ser esgotados com tal rapidez, mas a prenoção que deles tinha o autor, anteriormente ã pesquisa. Certamente a idéia que fazemos das práticas coletivas, do que elas são ou do que devem ser, é um fator de seu desenvolvimento. Mas essa idéia mesma é um fato que, para ser convenientemente determinado, deve igualmente ser estudado desde fora. Pois o que importa saber não é a maneira como tal pensador individualmente concebe tal institui- XXI PREFÁG10 DA SEGUNDA EDIÇÃO ção, mas a concepção que dela tem o grupo; somente essa concepção é socialmente eficaz. Ora, ela não pode ser conhecida por simples observação interior, uma vez que não está inteira em nenhum de nós; é preciso, pois, encontrar alguns sinais exteriores que a tornem sensível. Além do mais, ela não surgiu do nada; ela própria é um efeito de causas externas que é preciso conhecer, para poder apreciar seu papel no futuro. Seja como for, é sempre ao mesmo método que é necessário voltar. II Outra proposição não foi menos vivamente discutida que a precedente: a que apresenta os fenômenos sociais como exteriores aos indivíduos. Concedem-nos de bom grado, atualmente, que os fatos da vida individual e os da viela coletiva são heterogêneos em certo grau; pode-se até dizer que um entendimento, se não unânime, pelo menós muito geral, está em via de se formar sobre esse ponto. Quase não há mais sociólogos que neguem à sociologia toda e qualquer especificidade. Mas, como a sociedade não é composta senão de indivíduos\ o senso comum julga que a vida social não pode ter outro substrato que a consciência individual; sem isso, ela parece solta no ar e pairando no vazio. Entretanto, o que se julga tão facilmente inadmissível quando se trata dos fatos sociais é normalmente admitido nos outros reinos ela natureza. Toda vez que elementos quaisquer, ao se combinarem, produzem, por sua combinaçào, fenômenos novos, cumpre conceber que esses fe-· ntnnenos estão situados, não nos elementos, mas no todo fc mnado por sua união. A célula viva nada contém senão partículas minerais, assim como a sociedade nada mais XXII AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO contém além dos indivíduos; no entanto, é evidentemente impossível que os fenômenos característicos da vida residam em átomos de hidrogênio, de oxigênio, de carbono e de azoto. Pois de que maneira os movimentos vitais poderiam se produzir no seio de elementos não vivos? De que maneira, além disso, as propriedades biológicas se repartiriam entre esses elementos? Elas não poderiam se verificar igualmente em todos, já que eles não são da mesma natureza; o carbono não é o azoto, portanto não pode adquirir as mesmas propriedades nem desempenhar o mesmo papel. Também não é admissível que cada aspecto da vida, cada um de seus caracteres principais, se encarne num grupo diferente de átomos. A vida nãó poderia se decompor desta forma; ela é una e, em conseqüência, só pode ter por sede a substância viva em sua totalidade. Ela está no todo, não nas partes. Não são as partículas não vivas da célula que se alimentam, se reproduzem, em suma, que vivem; é a própria célula, e somente ela. O que dizemos da vida poderia ser dito de todas as sínteses possíveis. A dureza do bronze não está nem no cobre, nem no estanho, nem no chumbo que serviram para formá-lo e que são corpos brandos ou flexíveis; está na mistura deles. A fluidez da água, suas propriedades alimentares e outras não estão nos dois gases que a compõem, mas na substância complexa que formam por sua associação. Apliquemos esse princípio à sociologia. Se, como nos concedem, essa síntese sui generis que constitui toda sociedade produz fenômenos novos, diferentes dos que se passam nas consciências solitárias, cumpre admitir que esses fatos específicos residem na sociedade mesma que os produz, e não em suas partes, isto é, em seus membros. Neste sentido, portanto, eles são exteriores às consciências individuais, consideradas como tais, assim como os caracteres distintivos da vida são exteriores às substân- PREFÁCIO DA SEGUNDA EDIÇÃO XXI II cias minerais que compõem o ser vivo. Não se pode reabsorvê-los nos elementos sem que haja contradição, uma vez que, por definição, eles supõem algo mais do que esses elementos contêm. Assim se acha justificada, por uma razão nova, a separação que estabelecemos mais adiante entre a psicologia propriamente dita, ou ciência do indivíduo mental, e a sociologia. Os fatos sociais não diferem apenas em qualidade dos fatos psíquicos; eles têm outro substrato, não evoluem no mesmo meio, não dependem das mesmas condições. O que não quer dizer que não sejam, também eles, psíquicos de certa maneira, já que todos consistem em modos de pensar ou de agir. Mas os estados da consciência coletiva são de natureza diferente dos estados da consciência individual; são representações de uma outra espécie. A mentalidade dos grupos não é a dos particulares; tem suas próprias leis. Portanto as duas ciências são tão claramente distintas quanto podem ser duas ciências, não importam as relações que possam existir entre elas. Todavia, convém fazer sobre esse ponto uma distinção que talvez lance alguma luz sobre o debate. Que a matéria da vida social não possa se explicar por fatores puramente psicológicos, ou seja, por estados da consciência individual, é o que nos parece de todo evidente. Com efeito, o que as representações coletivas traduzem é o modo como o grupo se pensa em suas relações com os objetos que o afetam. Ora, o grupo não é constituído da mesma maneira que o indivíduo, e as coisas que o ;1fetam são de outra natureza. Representações que não exprimem nem os mesmos sujeitos, nem os mesmos objetos, n;lo poderiam depender elas mesmas causas. Para com- · preender a maneira como a sociedade representa a si mesma e o mundo que a cerca, é a natureza da sociedade, e n;lo a dos particulares, que se deve considerar. Os símbo- XXIV AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLé>GJCO los com os quais ela se pensa mudam conforme o que ela é. Se, por exemplo, ela se concebe como originada de um animal epônimo, é que constitui um desses grupos especiais chamados clãs. Se o animal é substituído por um antepassado humano, mas igualmente mítico, é que o clã mudou de natureza. Se, acima das divindades locais ou familiares, ela imagina outras das quais julga depender, é que os grupos locais e familiares que a compõem tendem a se concentrar e a se unificar, e o grau de unidade que apresenta um panteão religioso corresponde ao grau de unidade atingido no mesmo momento pela sociedade. Se ela condena certos modos de conduta, é que eles ofendem alguns de seus sentimentos fundamentais; e esses sentimentos estão ligados à sua constituição, assim como os do indivíduo a seu temperamento físico e à sua organização mental. Deste modo, mesmo que a psicologia individual não tivesse mais segredos para nós, ela não poderia nos dar a solução de nenhum desses problemas, já que eles se relacionam a ordens de fatos que ela ignora. Mas, uma vez reconhecida essa heterogeneidade, pode-se perguntar se as representações individuais e as representações coletivas não se assemelham pelo fato de ambas serem igualmente representações, e se, devido a essas semelhanças, certas leis abstratas não seriam comuns aos dois reinos. Os mitos, as lendas populares, as concepções religiosas de toda espécie, as crenças morais, etc. exprimem uma realidade diferente da realidade individual; mas poderia acontecer que a maneira como essas realidades se atraem ou se repelem, se agregam ou se desagregam, fosse independente de seu conteúdo e se devesse unicamente à sua qualidade geral de representações. Embora feitas de uma matéria diferente, elas se comportariam em suas relações mútuas como fazem as sensações, as imagens ou as idéias no indivíduo. Acaso não se pode PREFÁCIO DA SEGUNDA EDIÇÃO xxv pensar, por exemplo, que a contigüidade e a semelhança, os contrastes e os antagonismos lógicos atuam da mesma forma, quaisquer que sejam as coisas representadas? Chega-se assim a conceber a possibilidade de uma psicologia inteiramente formal, que seria uma espécie de terreno comum à psicologia individual e à sociologia; e talvez esteja aí a causa do escrúpulo que sentem certos espíritos em distinguir com demasiada nitidez essas duas ciências. No estado atual de nossos conhecimentos, a questão assim colocada não poderia, a rigor, encontrar solução categórica. Com efeito, tudo o que sabemos, por um lado, sobre a maneira como se combinam as idéias individuais se reduz a algumas proposições, muito gerais e muito vagas, que chamamos comumente leis de associação de idéias. E, quanto às leis da ideação coletiva, elas são ainda mais completamente ignoradas. A psicologia social, que deveria ter por tarefa determiná-las, não é mais do que uma palavra que designa todo tipo de generalidades, variadas e imprecisas, sem objeto definido. Seria preciso investigar, pela comparação dos temas míticos, das lendas e tradições populares, das línguas, de que forma as representações sociais se atraem ou se excluem, se fundem umas nas outras ou se distinguem, etc. Ora, se o problema merece tentar a curiosidade dos pesquisadores, mal se pode dizer que ele foi abordado; e enquanto não se tiver encontrado algumas dessas leis, será evidentemente impossível saber com certeza se elas repetem ou não as da psicologia individual. Entretanto, na falta de certeza, é pelo menos provável que, se semelhanças existei,n entre essas duas espécies. de leis, as diferenças não devem ser menos acentuadas. Parece inadmissível, com efeito, que a matéria de que são feitas as representações não influencie a maneira como das se combinam. É verdade que os psicólogos falam às XXVI AS REGRAS DO MÉTODO SOG10LÓGJCO vezes das leis de associação de idéias como se elas fossem as mesmas para todos os tipos de representações individuais. Mas nada é mais inverossímil do que isso; as imagens não se compõem entre si como as sensações, nem os conceitos como as imagens. Se a psicologia fosse mais avançada, ela certamente constataria que cada categoria de estados mentais possui leis formais que lhe são próprias. Sendo assim, deve-se a fortíorí esperar que as leis correspondentes do pensamento social sejam tão específicas como esse pensamento mesmo. Na verdade, por pouco que se tenha praticado tal ordem de fatos, é difícil não ter o sentimento dessa especificidade. É ela, com efeito, que nos faz parecer estranha a maneira tão especial como as concepções religiosas (que são coletivas por excelência) se misturam, ou se separam, se transformam umas nas outras, dando origem a compostos contraditórios que contrastam com os produtos ordinários de nosso pensamento privado. Se, portanto, como é presumível, certas leis da mentalidade social lembram efetivamente algumas daquelas estabelecidas pelos psicólogos, não é que as primeiras são um simples caso particular das segundas, mas que entre ambas, ao lado de diferenças certamente importantes, há similitudes que a abstração poderá extrair, e que são ainda ignoradas. Vale dizer que em caso nenhum a sociologia poderia tomar pura e simplesmente de empréstimo à psicologia esta ou aquela de suas proposições, para aplicá-la tal e qual aos fatos sociais. O pensamento coletivo inteiro, em sua forma e em sua matéria, deve ser estudado em si mesmo, por si mesmo, com o sentimento do que ele tem de específico, e cabe deixar ao futuro a tarefa de saber em que medida ele se assemelha ao pensamento individual. Esse é inclusive um problema relacionado antes à filosofia geral e à lógica abstrata do que ao estudo científico dos fatos sociais'i. XXVII PREFÁCIO DA SEGUNDA EDIÇÃO III Resta-nos dizer algumas palavras da definição que demos dos fatos sociais em nosso primeiro capítulo. Dissemos que consistem em maneiras de fazer ou de pensar, reconhecíveis pela particularidade de serem capazes de exercer sobre as consciências particulares uma influência coercitiva. Sobre esse ponto produziu-se uma confusão que merece ser assinalada. É tão habitual aplicar às coisas sociológicas as formas do pensamento filosófico, que muitos viram nessa definição preliminar uma espécie de filosofia do fato social. Disseram que explicávamos os fenômenos sociais pela coerção, do mesmo modo que Gabriel Tarde os explica pela imitação. Não tínhamos uma tal ambição e não nos ocorreu sequer que pudessem atribuí-la a nós, por ser contrária a todo método. O que propúnhamos era, não antecipar por uma visão filosófica as conclusões da ciência, mas simplesmente indicar em que sinais exteriores é possível reconhecer os fatos que ela deve examinar, a fim de que o cientista saiba percebê-los onde se encontram e não os confunda com outros. Tratava-se de delimitar o campo da pesquisa tanto quanto possível, não de se envolver numa espécie de intuição exaustiva. Assim aceitamos de muito bom grado a censura feita a essa definição, de não exprimir todos os caracteres do fato social e, por conseguinte, de não ser a única possível. Não há nada de inconcebível, com efeito, em que o fato social possa ser caracterizado de várias maneiras diferentes; não há razão para que ele tenha apenas uma propriedade distintiva6. Tudo o que importa é escolher a que parece a melhor pa- · ra o objetivo proposto. É hem possível, até, empregar simultaneamente vários critérios, conforme as circunstâncias. Nós mesmos reconhecemos ser às vezes necessário isso :XXVIII AS REGRAS DO MfnDDO SOCIOLÓGICO em sociologia, pois há casos em que o caráter de coerção não é facilmente reconhecível. O que é preciso, já que se trata de uma definição inicial, é que as características utilizadas sejam imediatamente discerníveis e possam ser percebidas antes da pesquisa. Ora, é essa condição que não cumprem as definições que às vezes opusemos à nossa. Foi dito, por exemplo, que o fato social é "tudo o que se produz na e pela sociedade", ou ainda "aquilo que interessa e afeta o grupo de alguma forma". Mas só é possível saber se a sociedade é ou nào a caus;i de um fato ou se esse fato tem efeitos sociais quando a ciência já avançou. Tais definições não poderiam, pois, determinar o objeto da investigação que começa. Para que se possa utilizá-las, é preciso que o estudo dos fatos sociais já tenha avançado bastante e, portanto, que tenha sido descoberto algum outro meio preliminar de reconhecê-los lá onde se encontram. Ao mesmo tempo que consideraram nossa definição demasiado estreita, acusaram-na de ser demasiado vasta e de compreender quase todo o real. Com efeito, disseram, todo meio físico exerce uma coerção sobre os seres que sofrem sua ação, pois estes sào obrigados, numa certa medida, a adaptar-se a ele. Mas entre esses dois modos ele coerção existe toda a diferença que separa um meio físico de um meio moral. A pressão exercida por um ou vários corpos sobre outros corpos, ou mesmo sobre vontades, não poderia ser confundida com aquela que exerce a consciência ele um grupo sobre a consciência de seus membros. O que a coerção social tem ele inteiramente especial é que ela se eleve, não à rigidez ele certos arranjos moleculares, mas ao prestígio de que seriam investidas algumas representações. É verdade que os hábitos, individuais ou hereditários, têm, sob certos aspectos, a mesma propriedade. Eles nos dominam, nos impõem crenças ou práticas. Só que nos dominam desde dentro, pois estão in- PREFÁCIO DA SEGUNDA EmÇÀO XXIX teiros em cada um ele nós. Ao contrário, as crenças e as práticas sociais agem sobre nós desde fora; assim, a influência exercida por uns e por outras é, no fundo, muito diferente. Aliás, não devemos nos surpreender ele que os demais fenômenos ela natureza apresentem, sob outras formas, o mesmo caráter pelo qual definimos os fenômenos sociais. Essa similitude decorre simplesmente ele ambos serem coisas reais. Pois tudo o que é real tem uma natureza definida que se impõe, com a qual se deve contar e que, mesmo quando se consegue neutralizá-la, jamais é completamente vencida. E, no fundo, aí está o que há ele mais essencial na noção de coerção social. Pois tudo o que ela implica é que as maneiras coletivas ele agir e de pensar têm uma realidade exterior aos indivíduos que, a cada momento do tempo, conformam-se a elas. São coisas que têm sua existência própria. O indivíduo as encontra inteiramente formadas e não pode fazer que elas não existam ou que sejam diferentes do que sào; assim, ele é obrigado a levá-las em conta, sendo mais difícil (nào dizemos impossível) modificá-las na medida em que elas participam, em graus diversos, da supremacia material e moral que a sociedade exerce sobre seus membros. Certamente o indivíduo desempenha um papel na gênese delas. Mas, para que haja fato social, é preciso que vários indivíduos, pelo menos, tenham juntado sua ação e que essa combinação tenha produzido algo novo. E, como essa síntese ocorre fora de cada um de nós (já que envolve uma pluralidade de consciências), ela necessariamente tem por efeito fixar, instituir fora de nós certas maneiras de agir e certos julgamentos que não dependem de cada vontadeparticular isoladamente. Tal como foi assinalado 7 , há uma palavra que exprime bastante bem essa maneira ele ser muito especial (contanto que se estenda um pouco sua X.XX AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO acepção ordinária): é a palavra instituição. Com efeito, sem alterar o sentido dessa expressão, pode-se chamar instituição todas as crenças e todos os modos de conduta instituídos pela coletividade; a sociologia pode então ser definida como a ciência das instituições, de sua gênese e de seu funcionamentos. Sobre as outras controvérsias que este livro suscitou, parece-nos inútil voltar a falar, pois não se referem a nada de essencial. A orientação geral do método não depende dos procedimentos que se prefira empregar, seja para classificar os tipos sociais, seja para distinguir o normal do patológico. Aliás, essas contestações com muita freqüência resultaram da recusa em admitir, ou de não se admitir sem reservas, nosso princípio fundamental: a realidade objetiva dos fatos sociais. É nesse princípio, afinal, que tudo repousa e se resume. Por isso nos pareceu útil colocálo uma vez mais em evidência, separando-o de toda questão secundária. E estamos seguros de que, ao atribuir-lhe tal preponderância, permanecemos fiéis à tradição sociológica, pois, no fundo, é dessa concepção que a sociologia inteira emergiu. Com efeito, essa ciência só podia nascer no dia em que se pressentisse que os fenômenos sociais, embora não sejam materiais, não deixam de ser coisas reais que comportam o estudo. Para se chegar a pensar que havia motivos de pesquisar o que são, era preciso ter compreendido que eles existem de uma forma definida, que têm uma maneira de ser constante, uma natureza que não depende do arbítrio individual e da qual derivam relações necessárias. Assim a história da sociologia é apenas um longo esforço para precisar esse sentimento, aprofundá-lo, desenvolver todas as conseqüências que ele implica. Mas, apesar dos grandes progressos que foram feitos neste sentido, veremos pela continuação deste trabalho que ainda restam numerosas sobrevivências do postu- PREFÁCIO DA SEGUIVDA EDIÇÃO X.XXI lado antropocêntrico, o qual, aqui como alhures, barra o caminho à ciência. Desagrada ao homem renunciar ao poder ilimitado que por muito tempo ele se atribuiu sobre a ordem social, e, por outro lado, parece-lhe que, se existem realmente forças coletivas, ele estaria necessariamente condenado a sofrê-las sem poder modificá-las. É isso que o leva a negá-las. Em vão, experiências repetidas lhe ensinaram que essa onipotência, em cuja ilusão se mantém complacentemente, sempre foi para ele uma causa de fraqueza; que seu domínio sobre as coisas realmente só começou a partir do momento em que reconheceu que elas têm uma natureza própria, e se resignou a aprender com elas o que elas são. Expulso de todas as outras ciências, esse deplorável preconceito se mantém obstinadamente em sociologia. Portanto, não há nada mais urgente do que buscar libertar nossa ciência definitivamente dele. É esse o principal objetivo de nossos esforços. INTRODUÇÃO Até o presente, os sociólogos pouco se preocuparam em caracterizar e definir o método que aplicam ao estudo dos fatos sociais. É assim que, em toda a obra de Spencer, o problema metodológico não ocupa nenhum lugar; pois a Introdução ã ciência social, cujo título poderia dar essa ilusão, destina-se a demonstrar as dificuldades e a possibilidade da sociologia, não a expor os procedimentos que ela deve utilizar. Stuart Mill, é verdade, ocupou-se longamente da questão 1 ; mas ele não fez senão passar sob o crivo de sua dialética o que Comte havia dito, sem acrescentar nada de verdadeiramente pessoal. Um capítulo do Curso de filosofia positiva, eis praticamente o único estudo original e importante que possuímos sobre o assunto 2 . Essa despreocupação aparente, aliás, nada tem de surpreendente. De fato, os grandes sociólogos cujos nomes acabamos de mencionar raramente saíram das generalidades sobre a natureza das sociedades, sobre as relàções do reino social e do reino biológico, sobre a marcha geral do progresso; mesmo a volumosa sociologia de XXXIV AS REGRAS DO MÉTODO SOG70LÓGICO Spencer quase não tem outro objeto senão mostrar como a lei da evolução universal se aplica ãs sociedades. Ora, para tratar essas questôes filosóficas, não são necessários procedimentos especiais e complexos. Era suficiente, portanto, pesar os méritos comparados da dedução e da indução e fazer uma inspeção sumária dos recursos mais gerais de que dispõe a investigação sociológica. Mas as precauções a tomar na observação cios fatos, a maneira como os principais problemas elevem ser colocados, o sentido no qual as pesquisas elevem ser dirigidas, as práticas especiais que podem permitir chegar aos fatos, as regras que elevem presidir a administração das provas, tudo isso permanecia indeterminado. Uma série de circunstâncias felizes, entre as quais é justo destacar a iniciativa que criou em nosso favor um curso regular de sociologia na Faculdade de Letras de Bordéus, o qual possibilitou que nos dedicássemos desde cedo ao estudo da ciência social e inclusive fizéssemos dele o objeto ele nossas ocupações profissionais, nos fez sair dessas questões demasiado gerais e abordar um certo número de problemas particulares. Assim, fomos levados, pela força mesma das coisas, a elaborar um método que julgamos mais definido, mais exatamente adaptado ã natureza particular dos fenômenos sociais. São esses resultados de nossa prática que gostaríamos ele expor aqui em conjunto e de submeter ã discussão. Claro que eles estão implicitamente contidos no livro que publicamos recentemente sobre A divisão do trabalho social. Mas nos parece interessante destacá-los, formulá-los à parte, acompanhados de suas provas e ilustrados de exemplos tomados tanto dessa obra como de trabalhos ainda inéditos. Assim poderão julgar melhor a orientação que gostaríamos ele tentar dar aos estudos de sociologia. CAPÍTULO I O QUE É UM FATO SOCIAL? Antes de procurar qual método convém ao estudo cios fatos sociais, importa saber quais fatos chamamos assim. A questão é ainda mais necessária porque se utiliza essa qualificação sem muita precisão. Ela é empregada correntemente para designar mais ou menos todos os fenômenos que se dão no interior da sociedade, por menos que apresentem, com uma certa generalidade, algum interesse social. Mas, dessa maneira, não há, por assim dizer, acontecimentos humanos que não possam ser chamados sociais. Todo indivíduo come, bebe, dorme, raciocina, e a sociedade tem todo o interesse em que essas funções se exerçam regularmente. Portanto, se esses fatos fossem sociais, a sociologia não teria objeto próprio, e seu domínio se confundifia com o da biologia e da psicologia. Mas, na realidade, há em toda sociedade um grupo determinado de fenômenos que se distinguem por caracteres definidos daqueles que as outras ciências da n{ltureza estudam. Quando desempenho minha tarefa de irmão, de marido ou ele cidadão, quando executo os compromissos 2 AS REGRAS DO MÉTODO SOC!OlÓGJCO que assumi, eu cumpro deveres que estão definidos, fora de mim e de meus atos, no direito e nos costumes. Ainda que eles estejam de acordo com meus sentimentos próprios e que eu sinta interiormente a realiclacle deles, esta não deixa ele ser objetiva; pois não fui eu que os fiz, mas os recebi pela educação. Aliás, quantas vezes não nos ocorre ignorarmos o detalhe das obrigações que nos incumbem e precisarmos, para conhecê-las, consultar o Código e seus intérpretes autorizados! Do mesmo modo, as crenças e as práticas de sua vida religiosa, o fiel as encontrou inteiramente prontas ao nascer; se elas existiam antes dele, é que existem fora dele. O sistema ele signos de que me sirvo para exprimir meu pensamento, o sistema de moedas que emprego para pagar minhas dívidas, os instrumentos de crédito que utilizo em minhas relaçôes comerciais, as práticas observadas em minha profissão, etc. funcionam independentemente do uso que faço deles. Que se tomem um a um todos os membros de que é composta a sociedade; o que precede poderá ser repetido a propósito de cada um deles. Eis aí, portanto, maneiras de agir, de pensar e de sentir que apresentam essa notável propriedade de existirem fora das consciências individuais. Esses tipos de conduta ou de pensamento não apenas são exteriores ao indivíduo, como também são dotados de uma força imperativa e coercitiva em virtude da qual se impõem a ele, quer ele queira, quer não. Certamente, quando me conformo voluntariamente a ela, essa coerção não se faz ou pouco se faz sentir, sendo inútil. Nem por isso ela deixa de ser um caráter intrínseco desses fatos, e a prova disso é que ela se afirma tão logo tento resistir. Se tento violar as regras do direito, elas reagem contra mim para impedir meu ato, se estiver em tempo, ou para anulá-lo e restabelecê-lo em sua forma normal, se tiver sido efetuado e for reparável, ou para fazer com que O QUE É (JM FATO SOC!AU 3 eu o expie, se não puder ser reparado de outro modo. Em se tratando de máximas puramente morais, a consciência pública reprime todo ato que as ofenda através da vigilância que exerce sobre a conduta cios cidadãos e elas penas especiais de que dispõe. Em outros casos, a coerção é menos violenta, mas não deixa de existir. Se não me submeto ãs convençôes do mundo, se, ao vestir-me, não levo em conta os costumes observados em meu país e em minha classe, o riso que provoco, o afastamento em relação a mim produzem, embora de maneira mais atenuada, os mesmos efeitos que uma pena propriamente dita. Ademais, a coerção, mesmo sendo apenas indireta, continua sendo eficaz. Não sou obrigado a falar francês com meus compatriotas, nem a empregar as moedas legais; mas é impossível agir de outro modo. Se eu quisesse escapar a essa necessidade, minha tentativa fracassaria miseravelmente. Industrial, nada me proíbe de trabalhar com procedimentos e métodos do século passado; mas, se o fizer, é certo que me arruinarei. Ainda que, de fato, eu possa libertar-me dessas regras e violá-las com sucesso, isso jamais ocorre sem que eu seja obrigado a lutar contra elas. E ainda que elas sejam finalmente vencidas, demonstram suficientemente sua força coercitiva pela resistência que opõem. Não há inovador, mesmo afortunado, cujos empreendimentos não venham a deparar com oposiçôes desse tipo. ' Eis portanto uma ordem de fatos que apresentam características muito especiais: consistem em maneiras de agir, de pensar e de sentir, exteriores ao indivíduo, e que são dotadas de um poder de coerção em virtude do qual esses fatos se impõem a ele. Por conseguinte, eles não poderiam se confundir com os fenômenos orgânicos, já que consistem em representações e em ações; nem com os fenômenos psíquicos, os quais só têm existência na r 4 AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGJCO consciência individual e através dela. Esses fatos constituem portanto uma espécie nova, e é a eles que deve ser dada e reservada a qualificação de sociais. Essa qualificação lhes convém; pois é claro que, não tendo o indivíduo por substrato, eles não podem ter outro senão a sociedade, seja a sociedade política em seu conjunto, seja um dos grupos parciais que ela encerra: confissões religiosas, escolas políticas, literárias, corporações profissionais, etc. Por outro lado, é a eles só que ela convém; pois a palavra social só tem sentido definido com a condição de designar unicamente fenômenos que não se incluem em nenhuma das categorias de fatos já constituídos e denominados. Eles são portanto o domínio próprio da sociologia. É verdade que a palavra coerção, pela qual os definimos, pode vir a assustar os zelosos defensores de um individualismo absoluto. Como estes professam que o indivíduo é perfeitamente autônomo, julgam que o diminuímos sempre que mostramos que ele não depende apenas de si mesmo. Sendo hoje incontestável, porém, que a maior parte de nossas idéias e de nossas tendências não é elaborada por nós, mas nos vem de fora, elas só podem penetrar em nós impondo-se; eis tudo o que significa nossa definição. Sabe-se, aliás, que nem toda coerção social exclui necessariamente a personalidade individual1. Entretanto, como os exemplos que acabamos de citar (regras jurídicas, morais, dogmas religiosos, sistemas financeiros, etc.) consistem todos em crenças e em práticas constituídas, poder-se-ia supor, com base no que precede, que só há fato social onde há organização definida. Mas existem outros fatos que, sem apresentar essas formas cristalizadas, têm a mesma objetividade e a mesma ascendência sobre o indivíduo. É o que chamamos de correntes sociais. Assim, numa assembléia, os grandes movimentos de entusiasmo ou de devoção que se produzem não têm por O QUE É UM FATO SOC1AL? 5 lugar de origem nenhuma consciência particular. Eles nos vêm, a cada um de nós, de fora e são capazes de nos arrebatar contra a nossa vontade. Certamente pode ocorrer que, entregando-me a eles sem reserva, eu não sinta a pressão que exercem sobre mim. Mas ela se acusa tão logo procuro lutar contra eles. Que um indivíduo tente se opor a uma dessas manifestações coletivas: os sentimentos que ele nega se voltarão contra ele. Ora, se essa força de coerção externa se afirma com tal nitidez nos casos de resistência, é porque ela existe, ainda que inconsciente, nos casos contrários. Somos então vítimas de uma ilusão que nos faz crer que elaboramos, nós mesmos, o que se impôs a nós de fora. Mas, se a complacência com que nos entregamos a essa força encobre a pressão sofrida, ela não a suprime. Assim, também o ar não deixa de ser pesado, embora não sintamos mais seu peso. Mesmo que, de nossa parte, tenhamos colaborado espontaneamente para a emoção comum, a impressão que sentimos é muito diferente da que teríamos sentido se estivéssemos sozinhos. Assim, a partir do momento em que a assembléia se dissolve, em que essas influências cessam de agir sobre nós e nos vemos de novo a sós, os sentimentos vividos nos dão a impressão de algo estranho no qual não mais nos reconhecemos. Então nos damos conta de que sofremos esses sentimentos bem mais do que os produzimos. Pode acontecer até que nos causem horror, tanto eram contrários à nossa natureza. É assim que indivíduos perfeitamente inofensivos na maior parte do tempo podem ser levados a atos de atrocidade quando reunidos em multidão. Ora, o que dizemos dessas explosões passageiras aplica-se identicamente aos movimentos de opinião, mais duráveis, q11e se produzem a todo instante a nosso redor, seja em toda a extensão da sociedade, seja em círculos mais restritos, sobre assuntos religiosos, políticos, literários, artísticos, etc. 6 AS REGRAS DO MÉTODO SOG10LÓGJCO Aliás, pode-se confirmar por uma experiência característica essa definição do fato social: basta observar a maneira como são educadas as crianças. Quando se observam os fatos tais como são e tais como sempre foram, salta aos olhos que toda educação consiste num esforço contínuo para impor à criança maneiras de ver, de sentir e de agir às quais ela não teria chegado espontaneamente. Desde os primeiros momentos de sua vida, forçamolas a comer, a beber, a dormir em horários regulares, forçamo-las à limpeza, à calma, à obediência; mais tarde, forçamo-las para que aprendam a levar em conta outrem, a respeitar os costumes, as conveniências, forçamo-las ao trabalho, etc., etc. Se, com o tempo, essa coerção cessa de ser sentida, é que pouco a pouco ela dá origem a hábitos, a tendências internas que a tornam inútil, mas que só a substituem pelo fato de derivarem dela. É verdade que, segundo Spencer, uma educação racional deveria reprovar tais procedimentos e deixar a criança proceder com toda a liberdade; mas como essa teoria pedagógica jamais foi praticada por qualquer povo conhecido, ela constitui apenas um desideratum pessoal, não um fato que se possa opor aos fatos que precedem. Ora, o que torna estes últimos particularmente instrutivos é que a educação tem justamente por objeto produzir o ser social; pode-se portanto ver nela, como que resumidamente, de que maneira esse ser constituiu-se na história. Essa pressão de todos os instantes que sofre a criança é a pressão mesma do meio social que tende a modelá-la à sua imagem e do qual os pais e os mestres não são senão os representantes e os intermediários. Assim, não é sua generalidade que pode servir para caracterizar os fenômenos sociológicos. Um pensamento que se encontra em todas as consciências particulares, um movimento que todos os indivíduos repetem nem por isso O QUE É UM FATO SOCJAU 7 são fatos sociais. *Se se contentaram com esse caráter para defini-los, é que os confundiram, erradamente, com o que se poderia chamar de suas encarnações individuais. O que os constitui são as crenças, as tendências e as práticas do grupo tomado coletivamente; quanto às formas que assumem os estados coletivos ao se refratarem nos indivíduos, são coisas de outra espécie.* O que demonstra categoricamente essa dualidade de natureza é que essas duas ordens de fatos apresentam-se geralmente dissociadas. Com efeito, algumas dessas maneiras de agir ou de pensar adquirem, por causa da repetição, uma espécie de consistência que as precipita, por assim dizer, e as isola dos acontecimentos particulares **que as refletem**. Elas assumem assim um corpo, uma forma sensível que lhes é própria, e constituem uma realidade sui generis, muito distinta dos fatos individuais que a manifestam. O hábito coletivo não existe apenas em estado de imanência nos atos sucessivos que ele determina, mas se exprime de uma vez por todas, por um privilégio cujo exemplo não encontramos no reino biológico, numa fórmula que se repete de boca em boca, que se transmite pela educação, que se fixa através da escrita. Tais são a origem e a natureza das regras jurídicas, morais, dos aforismos e dos ditos populares, dos artigos de fé em que as seitas religiosas ou políticas condensam suas crenças, dos códigos de gosto que as escolas literárias estabelecem, etc. ***Nenhuma dessas maneiras de agir ou de pensar se acha por inteiro nas aplicações que os parti' "Tanto não é a repetição que os constitui, que eles existem fora dos casos particulares nos quais se realizam. Cada fato social consiste '>li numa crença, ou numa tendência, ou numa prática, que é a do grupo tomado coletivamente e que é muito distinta das ヲッイュ。セ@ em que ela se refrata nos indivíduos." (Revue philosophique, tomo XXXVII, 1:111./jun. 1894, p. 470.) ** '·em que elas se encarnam todo dia". (R.P., p. 470.) "* Frases que nào figuram no texto inicial. 8 AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGJCO colares fazem delas, já que elas podem inclusive existir sem serem atualmente aplicadas.••• Claro que essa dissociação nem sempre se apresenta com a mesma nitidez. Mas basta que ela exista de uma maneira incontestável nos casos importantes e numerosos que acabamos de mencionar, para provar que o fato social é distinto de suas repercussões individuais. Aliás, mesmo que ela não seja imediatamente dada à observação, pode-se com freqüência realizá-la com o auxílio de certos artifícios de método*; é inclusive indispensável proceder a essa operação se quisermos separar o fato social de toda mistura para observá-lo no estado de pureza*. Assim, há certas correntes de opinião que nos impelem, com desigual intensidade, conforme os tempos e os lugares, uma ao casamento, por exemplo, outra ao suicídio ou a uma natalidade mais ou menos acentuada, etc. *Trata-se, evidentemente de fatos sociais.* À primeira vista, eles parecem ゥョウ・ー。イ£セ@ veis das forrnas q'ue assumem nos casos particulares. Mas a estatística nos fornece o meio de isolá-los. Com efeito, eles são representados, não sem exatidão, pelas taxas de natalidade, de nupcialidade, de suicídios, ou seja, pelo número que se obtém ao dividir a média anual total dos nascimentos, dos casamentos e das mortes voluntárias pelo total de homens em idade de se casar, de procriar, de se suicidar2. Pois, como cada uma dessas cifras compreende todos os casos particulares sem distinção, as circunstâncias individuais que podem ter alguma participação na produção do fenômeno neutralizam-se mutuamente e, portanto, não contribuem para determiná-lo. *O que esse fato exprime é um certo estado da alma coletiva. Eis o que são os fenômenos sociais, desembaraçados de todo elemento estranho.* Quanto às suas manifestações * Frases que não figuram no texto inicial. O QUE É UM FA10 SOCIAL? 9 privadas, elas têm claramente algo de social, já que reproduzem em parte um modelo coletivo; mas cada uma delas depende também, e em larga medida, da constituição orgânico-psíquica do indivíduo, das circunstâncias particulares nas quais ele está situado. Portanto elas não são fenômenos propriamente sociológicos. Pertencem simultaneamente a dois reinos; poderíamos chamá-las sociopsíquicas. Essas manifestações interessam o sociólogo sem constituírem a matéria imediata da sociologia. No interior do organismo encontram-se igualmente fenômenos de natureza mista que ciências mistas, como a química biológica, estudam. Mas, dirão, um fenômeno só pode ser coletivo se for comum a todos os membros da sociedade ou, pelo menos, à maior parte deles, portanto, se for geral. Certamente, mas, se ele é geral, é porque é coletivo (isto é, mais ou menos obrigatório), o que é bem diferente de ser coletivo por ser geral. Esse fenômeno é um estado do grupo, que se repete nos indivíduos porque se impõe a eles. Ele está cm cada parte porque está no todo, o que é diferente de estar no todo por estar nas partes. Isso é sobretudo evidente nas crenças e práticas que nos são transmitidas inteiramente prontas pelas gerações anteriores; recebemolas e adotamo-las porque, sendo ao mesmo tempo uma obra coletiva e uma obra secular, elas estão investidas de uma particular autoridade que a educação nos ensinou a reconhecer e a respeitar. Ora, cumpre assinalar que a imensa maioria dos fenômenos sociais nos chega dessa forma. Mas, ainda que se deva, em parte, à nossa colaboração direta, o fato social é da mesma natureza. Um sentimento coletivo que irrompe numa assembléia não expi;irne simplesmente o que havia de comum entre todos os sentimentos individuais. Ele é algo completamente distinto, conforme mostramos. É uma resultante da vida co- 10 AS REGRAS DO MÉTODO SOOOLÔGICO mum, das ações e reações que se estabelecem entre as consciências individuais; e, se repercute em cada uma delas, é em virtude da energia social que ele deve precisamente à sua origem coletiva. Se todos os corações vibram em uníssono, nào é por causa de uma concordância espontânea e preestabelecida; é que uma mesma força os move no mesmo sentido. Cada um é arrastado por todos. Podemos assim representar-nos, de maneira precisa, o domínio da sociologia. Ele compreende apenas um grupo determinado de fenômenos. Um fato social se reconhece pelo poder de coerçào externa que exerce ou é capaz de exercer sobre os indivíduos; e a presença desse · poder se reconhece, por sua vez, seja pela existência de alguma sanção determinada, seja pela resistência que o fato opõe a toda tentativa individual de fazer-lhe violência. *Contudo, pode-se defini-lo também pela difusão que apresenta no interior do grupo, contanto que, conforme as observações precedentes, tenha-se o cuidado ele acrescentar como segunda e essencial característica que ele existe independentemente das formas individuais que assume ao difundir-se.* Este último critério, em certos casos, é inclusive mais fácil de aplicar que o precedente. De fato, a coerção é fácil de constatar quando se traduz exteriormente por alguma reação direta ela sociedade, como é o caso em relação ao direito, à moral, às crenças, aos costumes, inclusive às moelas. Mas, quando é apenas indireta, como a que exerce uma organização econômica, ela nem sempre se deixa perceber tão bem. A generalidade combinada com a objetividade podem então ser mais fáceis de estabelecer. Aliás, essa segunda definição não é senão * ''Pode-se defini-lo igualmente: uma maneira de pensar ou de agir que é geral na extensào do grupo, mas que existe independentemente de suas expressões individuais." (R.P., p. 472.) O QUE É' UM FATO SOCIAL? 11 outra forma da primeira; pois, se uma maneira de se conduzir, que existe exteriormente às consciências individuais, se generaliza, ela só pode fazê-lo imponclo-se3. Entretanto, poder-se-ia perguntar se essa definição é completa. Com efeito, os fatos que nos forneceram sua base são, todos eles, maneiras de fazer; são de ordem fisiológica. Ora, há também maneiras de ser coletivas, isto é, fatos sociais de ordem anatômica ou morfológica. A sociologia não pode desinteressar-se do que diz respeito ao substrato da vida coletiva. No entanto, o número e a natureza elas partes elementares ele que se compôe a sociedade, a maneira como elas estão dispostas, o grau ele coalescência a que chegaram, a distribuição da população pela superfície do território, o número e a natureza das vias ele comunicação, a forma das habitações, etc. não parecem capazes, num primeiro exame, de se reduzir a modos de agir, de sentir ou de pensar. Mas, em primeiro lugar, esses diversos fenômenos apresentam a mesma característica que nos ajudou a definir os outros. Essas maneiras de ser se impõem ao indivíduo tanto quanto as maneiras de fazer de que falamos. De fato, quando se quer conhecer a forma como uma sociedade se divide politicamente, como essas divisões se compôem, a fusão mais ou menos completa que existe entre elas, não é por meio de uma inspeção material e por observações geográficas que se pode chegar a isso; pois essas divisões são morais, ainda que tenham alguma hase na natureza física. É somente através do direito púhlico que se pode estudar essa organização, pois é esse direito que a determina, assim como determina nossas reLt<J'ies domésticas e cívicas. Portanto, ela não é menns ( ihrigatória. Se a população se amontoa nas cidades em Vl'Z de se dispersar nos campos, é que há uma corrente de opinião, um movimento coletivo que impõe aos incliví- 12 AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO duos essa concentração. Não podemos escolher a forma de nossas casas, como tampouco a de nossas roupas; pelo menos, uma é obrigatória na mesma medida que a outra. As vias de comunicação determinam de maneira imperiosa o sentido no qual se fazem as migrações interiores e as trocas, e mesmo a intensidade dessas trocas e dessas migrações, etc., etc. Em conseqüência, seria, quando muito, o caso de acrescentar à lista dos fenômenos que enumeramos como possuidores do sinal distintivo do fato social uma categoria a mais; e, como essa enumeração não tinha nada de rigorosamente exaustivo, a adição não seria indispensável. Mas ela não seria sequer proveitosa; pois essas maneiras de ser não são senão maneiras de fazer consolidadas. A estrutura política de uma sociedade não é senão a maneira como os diferentes segmentos que a compõem se habituaram a viver uns com os outros. Se suas relações são tradicionalmente próximas, os segmentos tendem a se confundir; caso contrário, tendem a se distinguir. O tipo de habitação que se impõe a nós não é senão a maneira como todos ao nosso redor e, em parte, as gerações anteriores se acostumaram a construir suas casas. As vias de comunicação não são senão o leito escavado pela própria corrente regular das trocas e das migrações, correndo sempre no mesmo sentido, etc. Certamente, se os fenômenos de ordem morfológica fossem os únicos a apresentar essa fixidez, poderíamos pensar que eles constituem uma espécie à parte. Mas uma regra jurídica é um arranjo não menos permanente que um modelo arquitetônico, e no entanto é um fato fisiológico. Uma simples máxima moral é, seguramente, mais maleável; porém ela possui formas bem mais rígidas que um simples costume profissional ou que uma moda. Há assim toda uma gama de nuances que, sem solução de continuidade, liga os fatos O QUE Í;' UM FA1D SOC1AU 13 estruturais mais caracterizados às correntes "livres da vida social ainda não submetidas a nenhum molde definido. É que entre os primeiros e as segundas apenas há diferenças no grau de consolidação que apresentam. Uns e outras são apenas vida mais ou menos cristalizada. Claro que pode haver interesse em reservar o nome de morfológicos aos fatos sociais que concernem ao substrato social, mas com a condição de não perder de vista que eles são da mesma natureza que os outros. Nossa definição compreenderá portanto todo o definido se dissermos: É fato social toda maneira de fazer, fixada ou não, suscetível de exercer sobre o indivíduo uma coerção exterior; ou ainda, toda maneira de fazer que é geral na extensão de uma sociedade dada e, ao mesmo tempo, possui uma existência própria, independente de suas man{festações individuais 4 . C:APÍTl JLO II REGRAS RELATIVAS À OBSERVAÇÃO DOS FATOS SOCIAIS A primeira regra e a mais fundamental é considerar osJàtos sociais como coisas. No momento em que uma nova ordem de fenômenos torna-se objeto de ciência, eles já se acham representados no espírito, não apenas por imagens sensíveis, mas por espécies de conceitos grosseiramente formados. Antes dos primeiros rudimentos da física e da química, os homens já possuíam sobre os fenômenos físico-químicos no,·(ies que ultrapassavam a pura percepção, como aquelas, por exemplo, que encontramos mescladas a todas as religiôcs. É que, de fato, a reflexão é anterior à ciência, que ;1 penas se serve dela com mais método. O homem não pode viver em meio às coisas sem formar a respeito delas idéias, de acordo com as quais regula sua conduta. AconlL'l'e que, como essas noçôes estão mais próximas de nós 16 AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO e mais ao nosso alcance do que as realidades a que correspondem, tendemos naturalmente a substituir estas últimas por elas e a fazer delas a matéria mesma de nossas especulações. Em vez de observar as coisas, de descrevêlas, de compará-las, contentamo-nos então em tomar consciência de nossas idéias, em analisá-las, em combinálas. Em vez de uma ciência de realidades, não fazemos mais do que uma análise ideológica. Por certo, essa análise não exclui necessariamente toda observação. Pode-se recorrer aos fatos para confirmar as noções ou as conclusões que se tiram. Mas os fatos só intervêm então secundariamente, a título de exemplos ou de provas confirmatórias; eles não são o objeto da ciência. Esta vai das idéias às coisas, não das coisas às idéias. É claro que esse método não poderia dar resultados objetivos. Com efeito, essas noções, ou conceitos, não importa o nome que se queira dar-lhes, não são os substitutos legítimos das coisas. Produtos da experiência vulgar, eles têm por objeto, antes de tudo, colocar nossas ações em harmonia com o mundo que nos cerca; são formados pela prática e para ela. Ora, uma representação pode ser capaz de desempenhar utilmente esse papel mesmo sendo teoricamente falsa. *Copérnico*, há muitos séculos, dissipou as ilusões de nossos sentidos referentes aos movimentos dos astros; no entanto, é ainda com base nessas ilusões que regulamos correntemente a distribuição de nosso tempo. Para que uma idéia suscite exatamente os movimentos que a natureza de uma coisa reclama, não é necessário que ela exprima fielmente essa natureza; basta que nos faça perceber o que a coisa tem de útil ou de desvantajoso, de que modo pode nos servir, de que modo nos contrariar. Mas as noções assim formadas só apresen* "Galileu" (R.P., p. 476.) NEGRAS RELATIVAS À OBSERVAÇÃO DOS FATOS SOCIAIS 17 tam essa justeza prática de uma maneira aproximada e somente na generalidade dos casos. Quantas vezes elas são tão perigosas como inadequadas! Não é portanto elaborando-as, pouco importa de que maneira o façamos, que chegaremos a descobrir as leis da realidade. Tais noções, ao contrário, são como um véu que se interpõe entre as coisas e nós, e que as encobre tanto mais quanto mais transparente julgamos esse véu. Tal ciência não é apenas truncada; falta-lhe também matéria de que se alimentar. Mal ela existe, desaparece, por assim dizer, transformando-se em arte. De fato, supõese que essas noções contenham tudo o que há de essencial no real, já que são confundidas com o próprio real. Com isso, parecem ter tudo o que é preciso para que sejamos capazes não só de compreender o que é, mas de prescrever o que deve ser e os meios de executá-lo. Pois é bom o que está de acordo com a natureza das coisas; o <1ue é contrário a elas é mau, e os meios para alcançar um t' evitar o outro derivam dessa mesma natureza. Portanto, Sl' a dominamos de saída, o estudo da realidade presente n:lo tem mais interesse prático, e, como esse interesse é a razão de ser de tal estudo, este se vê desde então sem finalidade. A reflexão é, assim, incitada a afastar-se do que é < > objeto mesmo da ciência, a saber, o presente e o passa<I< >, para lançar-se num único salto em direção ao futuro. 1·:111 vez de buscar compreender os fatos adquiridos e reali1.:1dos, ela empreende imediatamente realizar novos, mais '., mformes aos fins perseguidos pelos homens. Quando se 'rê saber em que consiste a essência da matéria, parte-se l<>go em busca da pedra filosofal. Essa intromissão da arte 11:1 ciência, que impede que esta se desenvolva, é aliás faci- . lít:1da pelas circunstâncias mesmas que determinam odesp1Ttar da reflexão científica. Pois, como esta só surge para Nセ[Qエゥウヲ。コ・イ@ necessidades vitais, é natural que se oriente para 18 AS REGRAS DO MÁTODO SOCIOLÓGICO a prática. As necessidades que ela é chamada a socorrer sào sempre prementes, portanto a pressionam para obter resultados; elas reclamam, nào explicaçôes, mas remédios. Essa maneira de proceder é tão conforme à tendência natural de nosso espírito que a encontramos inclusive na origem das ciências físicas. É ela que diferencia a alquimia da química, bem como a astrologia da astronomia. É por ela que Bacon caracteriza o método que os sábios de seu tempo seguiam e que ele combate. As noçôes que acabamos de mencionar sào aquelas notiones vulgares ou praenotiones1 que ele assinala na base de todas as ciências 2 , nas quais elas tomam o lugar dos fatos.o. Sào os idola, fantasmas que nos desfiguram o verdadeiro aspecto das coisas e que, no entanto, tomamos como as coisas mesmas. E é por esse meio imaginário nào oferecer ao espírito nenhuma resistência que este, nào se sentindo contido por nada, entrega-se a ambiçôes sem limite e julga possível construir, ou melhor, reconstruir o mundo com suas forças apenas e ao sabor de seus desejos. Se foi assim com as ciências naturais, com mais forte razão tinha de ser com a sociologia. Os homens não esperaram o advento da ciência social para formar idéias sobre o direito, a moral, a família, o Estado, a própria sociedade; pois nào podiam privar-se delas para viver. Ora, é sobretudo em sociologia que essas prenoçôes, para retomar a expressào de Bacon, estão em situaçào de dominar os espíritos e de tomar o lugar das coisas. Com efeito, as coisas sociais só se realizam através dos homens; elas são um produto da atividade humana. Portanto, parecem nào ser outra coisa senào a realizaçào de idéias, inatas ou nào, que trazemos em nós, senão a aplicação dessas idéias às diversas circunstâncias que acompanham as relaçôes dos homens entre si. A organizaçào da família, do contrato, da repressão, do Estado, da sociedade é vista assim como NEGRAS RELATIVAS À OBSERVAÇÃO DOS FA10S SOCIAIS 19 um simples desenvolvimento das idéias que temos sobre a sociedade, o Estado, a justiça, etc. Em conseqüência, esses fatos e outros análogos só parecem ter realidade nas e pelas idéias que são seu germe e que se tornam, com isso, a matéria própria da sociologia. O que reforça essa maneira de ver é que, como os detalhes da vida social excedem por todos os lados a consciência, esta não tem uma percepção suficientemente forte desses detalhes para sentir sua realidade. Não tendo em nós ligaçües bastante sólidas nem bastante próximas, tudo isso nos dá facilmente a impressão de não se prender a nada e de flutuar no vazio, matéria em parte irreal e indefinidamente plástica. Eis por que tantos pensadores nào viram nos arranjos sociais senão combinaçôes artificiais e mais ou menos arbitrárias. Mas, se os detalhes, se as formas concretas e particulares nos escapam, pelo menos nos representamos os aspectos mais gerais da existência coletiva de maneira genérica e aproximada, e são precisamente essas representações esquemáticas e sumárias que constituem as prenoções de que nos servimos para as práticas correntes da vida. Não podemos portanto pensar em pôr em dúvida a existência delas, uma vez que ;1 percebemos ao mesmo tempo que a nossa. Elas não :1penas estão em nós, como também, sendo um produto de experiências repetidas, obtêm da repeti<,:ão - e do há1>ito resultante - uma espécie de ascendência e de autori' Lide. Sentimos sua resistência quando buscamos libertar11os delas. Ora, não podemos deixar de considerar como rl'al o que se opôe a nós. Tudo contribui, portanto, para , 1ue vejamos nelas a verdadeira realidade social. E, de fato, até o presente, a sociologia tratou mais ou 111l'nos exclusivamente não de coisas, mas de conceitos. < :, >mte, é verdade, proclamou que os fenômenos sociais 20 AS REGRAS DO MÉ70DO SOCIOLÓGICO são fatos naturais, submissos a leis naturais. Deste modo, ele implicitamente reconheceu seu caráter de coisas, pois na natureza só existem coisas. Mas, quando, saindo dessas generalidades filosóficas, ele tenta aplicar seu princípio e extrair a ciência nele contida, são idéias que ele toma por objeto de estudo. Com efeito, o que faz a matéria principal de sua sociologia é o progresso da humanidade no tempo. Ele parte da idéia de que há uma evolução contínua do gênero humano que consiste numa realização sempre mais completa da natureza humana, e o problema que ele trata é descobrir a ordem dessa evolução. Ora, supondo que essa evolução exista, sua realidade só pode ser estabelecida uma vez feita a ciência; portanto, só se pode fazer dessa evolução o objeto mesmo da pesquisa se ela for colocada como uma concepção do espírito, não como uma coisa. E, de fato, é tão claro que se trata de uma representação inteiramente subjetiva que, na prática, esse progresso da humanidade não existe. O que existe, a única coisa dada à observação, são sociedades particulares que nascem, se desenvolvem e morrem independentemente umas das outras. Se pelo menos as mais recentes continuassem as que as precederam, cada tipo superior poderia ser considerado como a simples repetição do tipo imediatamente inferior, com alguma coisa a mais; poderse-ia, pois, alinhá-las umas depois das outras, por assim dizer, confundindo as que se encontram no mesmo grau de desenvolvimento, e a série assim formada poderia ser vista como representativa ela humanidade. Mas os fatos não se apresentam com essa extrema simplicidade. Um povo que substitui outro não é simplesmente um prolongamento deste último com algumas características novas; ele é outro, tem algumas propriedades a mais, outras a menos; constitui uma individualidade nova, e todas essas individualidades distintas, sendo heterogêneas, não podem se NHGRAS RELA77VAS À OBSERVAÇÃO DOS FATOS SOCIAIS 21 fundir numa mesma série contínua, nem, sobretudo, numa série única. Pois a seqüência elas sociedades não poderia ser figurada por uma linha geométrica; ela asseme1ha-se antes a uma árvore cujos ramos se orientam em sentidos divergentes. Em suma, Comte tomou por desenvolvimento histórico a noção que dele possuía e que não difere muito ela que faz o vulgo. Vista ele longe, ele fato, a história adquire bastante claramente esse aspecto serial e simples. Percebem-se apenas indivíduos que se sucedem uns aos outros e marcham todos numa mesma direção, porque têm uma mesma natureza. Aliás, como não se concebe que a evolução social possa ser outra coisa que não o desenvolvimento ele uma idéia humana, parece natural defini-la pela idéia que dela fazem os homens. Ora, procedendo assim, não apenas se permanece na ideologia, mas se dá como objeto à sociologia um conceito que nada tem de propriamente sociológico. Esse conceito, Spencer o descarta, mas para substituí1() por outro que não é formado de outro modo. Ele faz das sociedades, e não da humanidade, o objeto da ciência; セHᄏ@ que ele dá em seguida, elas primeiras, uma definição (1ue faz desaparecer a coisa de que fala para colocar no lug;1r a prenoção que possui dela. Com efeito, ele estabelece (·<>mo uma proposição evidente que "uma sociedade só (·xiste quando à justaposição acrescenta-se a cooperação", NセH@ ·ndo somente então que a união elos indivíduos se torna 11111a sociedade propriamente clita4. Depois, partindo do princípio de que a cooperação é a essência ela vida social, dl' distingue as sociedades em duas classes, conforme a 11;1t ureza da cooperação que nelas predomina. "Há, diz ( ·ll', uma cooperação espontânea que se efetua sem pre-· 11ll'ditação durante a perseguição de fins de caráter priva( 1( >: há também uma cooperação conscientemente instituí( L1 que supõe fins de interesse público claramente reco- 22 AS REGRAS DO MÉTODO SOGOLÓGJCO nhecidos." 5 Às primeiras, ele dá o nome de sociedades industriais; às segundas, de militares, e pode-se dizer dessa distinçào que ela é a idéia-mãe de sua sociologia. Mas essa definição inicial enuncia como coisa o que é tão-só uma noção do espírito. Com efeito, ela se apresenta como a expressão de um fato imediatamente visível e que basta à observação constatar, já que é formulada desde o início da ciência como axioma. No entanto, é impossível saber por uma simples inspeção se realmente a cooperação é a essência da vida social. Tal afirmação só é cientificamente legítima se primeiramente passarmos em revista as manifestações da existência coletiva e se mostrarmos que todas são formas diversas da cooperação. Portanto, é ainda certa maneira de conceber a realidade social que substitui essa realidade<>. O que é assim definido não é a sociedade, mas a idéia que dela faz o sr. Spencer. E, se ele não tem o menor escrúpulo em proceder deste modo, é que, também para de, a sociedade não é e não pode ser senão a realização de uma idéia, isto é, dessa idéia mesma de cooperação pela qual a define7. Seria fácil mostrar que, em cada um dos problemas particulares que aborda, seu método permanece o mesmo. Assim, embora dê a impressão de proceder empiricamente, como os fatos acumulados em sua sociologia são empregados para ilustrar análises de noções e não para descrever e explicar coisas, eles parecem estar ali apenas para figurar como argumentos. Em realidade, tudo o que há de essencial na doutrina de Spencer pode ser imediatamente deduzido de sua definição da sociedade e das diferentes formas de cooperação. Pois, se só pudermos optar entre uma cooperação tiranicamente imposta e uma cooperação livre e espontãnea, evidentemente esta última é que será o ideal para o qual a humanidade tende e deve tender. REGRAS RELATJVAS À 013StiRVAÇ'ÀO DOS FATOS SOCIAIS 23 Não é somente na base da ciência que se encontram essas noções vulgares; vemo-las a todo instante na trama dos raciocínios. No estado atual de nossos conhecimentos, não sabemos com certeza o que é o Estado, a soberania, a liberdade política, a democracia, o socialismo, ocomunismo, etc.; o método aconselharia, portanto, a que nos proibíssemos todo uso desses conceitos, enquanto eles não estivessem cientificamente constituídos. Entretanto, as palavras que os exprimem retornam a todo momento nas discussões dos sociólogos. Elas são empregadas correntemente e com segurança como se correspondessem a coisas bem conhecidas e definidas, quando apenas despertam em nós noções confusas, misturas indistintas de impressões vagas, de preconceitos e de paixões. Zombamos hoje dos singulares raciocínios que os médicos da Idade Média construíam com as noções de calor, de frio, de úmido, de seco, etc., e não nos apercebemos de que continuamos a aplicar esse mesmo método à ordem de fenômenos que o comporta menos que qualquer outro, por causa de sua extrema complexidade. Nos ramos especiais da sociologia, esse caráter ideológico é ainda mais pronunciado. É o caso sobretudo da moral. De fato, pode-se dizer que não há um único sistema em que ela não seja representada como o simples desenvolvimento de uma idéia inicial que a conteria por inteiro em potência. Essa idéia, uns crêem que o homem a encontra inteiramente pronta dentro dele desde seu nascimento; outros, ao contrário, que ela se forma mais ou menos lentamente ao longo da história. Mas, tanto para uns como para outros, tanto para ( >s empiristas como para os racionalistas, ela é tudo o que · há de verdadeiramente real em moral. No que concerne セQP@ detalhe das regras jurídicas e morais, elas não teriam, por assim dizer, existência por si mesmas, mas seriam 24 AS REGRAS DO MÉTODO SOGJOLÓG!CO apenas essa noção fundamental aplicada às circunstâncias particulares da vida e diversificada conforme os casos. Portanto, o objeto da moral não poderia ser esse sistema ele preceitos sem realidade, mas a idéia ela qual decorrem e ela qual não são mais que aplicações variadas. Assim, todas as questões que a ética se coloca ordinariamente se referem, não a coisas, mas a idéias; o que se trata ele saber é em que consiste a idéia cio direito, a idéia ela moral, e não qual a natureza ela moral e do direito considerados em si mesmos. Os moralistas ainda não chegaram à concepção muito simples ele que, assim como nossa representação das coisas sensíveis provém dessas coisas mesmas e as exprime mais ou menos exatamente, nossa representação ela moral provém do próprio espetáculo elas regras que funcionam sob nossos olhos e as figura esquematicamente; ele que, conseqüentemente, são essas regras, e não a noção sumária que temos delas, que formam a matéria da ciência, da mesma forma que a física tem como objeto os corpos tais como existem, e não a idéia que deles faz o vulgo. Disso resulta que se toma como base da moral o que não é senão o topo, a saber, a maneira como ela se prolonga nas consciências individuais e nelas repercute. E não é apenas nos problemas mais gerais da ciência que esse método é seguido: ele permanece o mesmo nas questões especiais. Das idéias essenciais que estuda no início, o moralista passa às idéias secundárias de família, de pátria, ele responsabilidade, de caridade, de justiça; mas é sempre a idéias que se aplica sua reflexão. Não é diferente com a economia política. Ela tem por objeto, diz Stuart Mill, os fatos sociais que se produzem principalmente ou exclusivamente em vista da aquisição de riquezas 8 . Mas, para que os fatos assim definidos pudessem ser designados, enquanto coisas, à observação do cientista, seria preciso pelo menos que se pudesse indicar REGRASRELA77VASÀ OBSERVAÇ'ÀODOSFATOS SOG1AJS 25 por qual sinal é possível reconhecer aqueles que satisfazem essa condição. Ora, no início ela ciência, não se tem sequer o direito de afirmar que existe algum, muito menos ainda se pode saber quais são. Em toda ordem ele pesquisas, com efeito, é somente quando a explicação dos fatos está suficientemente avançada que é possível estabelecer que eles têm um objetivo e qual é esse objetivo. Não há problema mais complexo nem menos suscetível ele ser resolvido ele saída. Portanto, nada nos garante de antemão que haja uma esfera da atividade social em que o desejo ele riqueza desempenhe realmente esse papel preponderante. Em conseqüência, a matéria da economia política, assim compreendida, é feita não de realidades que podem ser indicadas, mas ele simples possíveis, de puras concepções cio espírito; a saber, fatos que o economista concebe como relacionados ao fim considerado, e tais como ele os concebe. Digamos, por exemplo, que ele queira estudar o que chama a produção. De saída, acredita poder enumerar os principais agentes com o auxílio dos quais ela ocorre e passá-los em revista. Portanto, ele não reconheceu a existência desses agentes observando de quais condições dependia a coisa que ele estuda; pois então teria começado por expor as experiências de que tirou essa conclusão. Se, desde o início da pesquisa e em poucas palavras, ele procede a essa classificação, é que a obteve por uma simples análise lógica. Parte da idéia da produção; decompondo-a, descobre que ela implica logicamente as de forças naturais, ele trabalho, de instrumento ou de capital, e trata a seguir da mesma maneira essas idéias derivadas9. A mais fundamental de todas as teorias econômicas, · a cio valor, é manifestamente construída segundo o mesmo método. Se o valor fosse estudado como uma realidade deve sê-lo, veríamos primeiro o economista indicar em 26 AS REGRAS DO Mt"J'ODO SOCJOLÓGJCO que se pode reconhecer a coisa chamada com esse nome, depois classificar suas espécies, buscar por induções metódicas as causas em função das quais elas variam, comparar enfim os diversos resultados para obter uma fórmula geral. A teoria portanto só poderia surgir quando a ciência tivesse avançado bastante. Em vez disso, encontramola desde o início. É que, para fazê-la, o economista contenta-se em recolher, em tomar consciência da idéia que ele tem do valor, ou seja, de um objeto suscetível de ser trocado; descobre que ela implica a idéia do útil, do raro, etc., e é com esses produtos de sua análise que constrói sua definição. Certamente ele a confirma por alguns exemplos. Mas, quando se pensa nos inumeráveis fatos que semelhante teoria deve explicar, como atribuir o menor valor demonstrativo aos fatos, necessariamente muito raros, que são assim citados ao acaso da sugestão? Por isso, tanto em economia política como em moral, a parte da investigação científica é muito restrita; a da arte, preponderante. Em moral, a parte teórica se reduz a algumas discussões sobre a idéia do dever, do bem e do direito. Mesmo essas especulações abstratas não constituem uma ciência, para falar exatamente, já que têm por objeto determinar não o que é, de fato, a regra suprema da moralidade, mas o que ela deve ser. Do mesmo modo, o que mais preocupa os economistas é a questão de saber, por exemplo, se a sociedade deve ser organizada segundo as concepções dos individualistas ou segundo as dos socialistas; se é melhor o Estado intervir nas relações industriais e comerciais ou abandoná-las inteiramente à iniciativa privada; se o sistema monetário deve ser o monometalismo ou o bimetalismo, etc., etc. As leis propriamente ditas são pouco numerosas nessas pesquisas; mesmo as que nos habituamos a chamar assim geralmente não merecem essa qualificação, não passando de máximas de ação, pre- REGRAS RELA71VAS À 08Sh'RVAÇÂO DOS FATOS SOCJAJS 27 ceitos práticos disfarçados. Eis, por exemplo, a famosa lei da oferta e da procura. Ela jamais foi estabelecida indutivamente, como expressão da realidade econômica. Jamais uma experiência, uma comparação metódica foi instituída para estabelecer, de.fato, que é segundo essa lei que procedem as relações econômicas. Tudo o que se pôde fazer e tudo o que se fez foi demonstrar dialeticamente que os indivíduos devem proceder assim, caso entendam bem seus interesses; é que qualquer outra maneira de proceder lhes seria prejudicial e implicaria, da parte dos que se entregassem a isso, uma verdadeira aberração lógica. É lógico que as indústrias mais produtivas sejam as mais procuradas; que os detentores dos produtos de maior demanda e mais raros os vendam ao mais alto preço. Mas essa necessidade inteiramente lógica em nada se asseme1ha àquela que apresentam as verdadeiras leis da natureza. Estas exprimem as relações segundo as quais os fatos se encadeiam realmente, e não a maneira como é bom que eles se encadeiem. O que dizemos dessa lei pode ser dito de todas as que a escola econômica ortodoxa qualifica de naturais e que, por sinal, não são muito mais do que casos particulares da precedente. Elas são naturais, se quiserem, no sentido de que enunciam os meios que é ou que pode parecer natural empregar para atingir determinado fim suposto; mas elas não devem ser chamadas por esse nome, se, por lei natural, se entender toda maneira de ser ela natureza, indutivamente constatada. Elas não passam, em suma, de conselhos de sabedoria prática, e, se foi possível, mais ou menos especiosamente, apresentá-las como a expressão mesma da realidade, é que, com ou sem razão,· acreditou-se poder supor que tais conselhos eram efetivamente seguidos pela generalidade dos homens e na generalidade dos casos. 28 AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO No entanto, os fenômenos sociais são coisas e devem ser tratados como coisas. Para demonstrar essa proposição, não é necessário filosofar sobre sua natureza, discutir as analogias que apresentam com os fenômenos cios reinos inferiores. Basta constatar que eles são o único datum oferecido ao sociólogo. É coisa, com efeito, tudo o que é dado, tudo o que se oferece ou, melhor, se impõe à observação. Tratar fenômenos como coisas é tratá-los na qualidade de data que constituem o ponto de partida da ciência. Os fenômenos sociais apresentam incontestavelmente esse caráter. O que nos é dado não é a idéia que os homens fazem do valor, pois ela é inacessível; são os valores que se trocam realmente no curso de relações econômicas. Não é esta ou aquela concepção da idéia moral; é o conjunto das regras que determinam efetivamente a conduta. Não é a idéia do útil ou da riqueza; é toda a particularidade da organização econômica. É possível que a vida social não seja senão o desenvolvimento de certas noções; mas, supondo que seja assim, essas noções não são dadas imediatamente. Não se pode portanto atingi-las diretamente, mas apenas através da realidade fenoménica que as exprime. Não sabemos a priori que idéias estão na origem das diversas correntes entre as quais se divide a vida social, nem se existe alguma; é somente depois de tê-las remontado até suas origens que saberemos de onde elas provêm. É preciso portanto considerar os fenômenos sociais em si mesmos, separados dos sujeitos conscientes que os concebem; é preciso estudá-los de fora, como coisas exteriores, pois é nessa qualidade que eles se apresentam a nós. Se essa exterioridade for apenas aparente, a ilusão se dissipará à medida que a ciência avançar e veremos, por assim dizer, o de fora entrar no de dentro. Mas a solução não pode ser preconcebida e, mesmo que eles não tives- NfflRAS RELATIVAS À OBSERVAÇÃO DOS FA10S SOCIAIS 29 sem afinal todos os caracteres intrínsecos da coisa, deve-se primeiro tratá-los como se os tivessem. Essa regra aplica-se portanto à realidade social inteira, sem que haja motivos para qualquer exceção. Mesmo os fenômenos que mais parecem consistir em arranjos artificiais devem ser considerados desse ponto de vista. O caráter convencional de uma prática ou de uma instituição jamais deve ser presumido. Aliás, se nos for permitido invocar nossa experiência pessoal, acreditamos poder assegurar que, procedendo dessa maneira, com freqüência se terá a satisfação de ver os fatos aparentemente mais arbitrários apresentarem, ;1pós uma observação mais atenta dos caracteres de constfmcia e de regularidade, sintomas de sua objetividade. De resto, e de uma maneira geral, o que foi dito anteriormente sobre os caracteres distintivos do fato social é Nセオヲゥ」・ョエ@ para nos certificar sobre a natureza dessa objetividade e para provar que ela não é ilusória. Com efeito, reconhece-se principalmente uma coisa pelo sinal de que 11'10 pode ser modificada por um simples decreto da vont;1de. Não que ela seja refratária a qualquer modificação. Mas, para produzir uma mudança nela, não basta querer, é· preciso além disso um esforço mais ou menos laborioso, devido à resistência que ela nos opõe e que nem sempre, aliás, pode ser vencida. Ora, vimos que os fatos sociais têm essa propriedade. Longe de serem um produto de 1H >ssa vontade, eles a determinam de fora; são como moldes nos quais somos obrigados a vazar nossas ações. Com lrcqüência até, essa necessidade é tal que não podemos 1·scapar a ela. Mas ainda que consigamos superá-la, a e >posição que encontramos é suficiente para nos advertir 1 k que estamos em presença de algo que não depende 1 k- nós. Portanto, considerando os fenômenos sociais co1110 coisas, apenas nos conformaremos à sua natureza. 30 AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO Em suma, a reforma que se trata de introduzir em sociologia é em todos os pontos idêntica à que transformou a psicologia nos últimos trinta anos. Do mesmo modo que Comte e Spencer declaram que os fatos sociais são fatos de natureza, sem no entanto tratá-los como coisas, as diferentes escolas empíricas há muito haviam reconhecido o caráter natural dos fenômenos psicológicos, *embora continuassem a aplicar-lhes um método puramente ideológico*. Com efeito, os empiristas, **não menos que seus adversários, procediam exclusivamente por introspecção**. Ora, os fatos que só observamos em nós mesmos são demasiado raros, demasiado fugazes, ***demasiado maleáveis para poderem se impor às noções correspondentes que o hábito fixou em nós e estabelecer-lhes a lei. Quando estas últimas não são submetidas a outro controle, nada lhes faz contrapeso; por conseguinte, elas tomam o lugar dos fatos*** e constituem a matéria da ciência. Assim, nem Locke, nem Condillac consideraram os fenômenos psíquicos objetivamente. Não é a sensação que eles estudam, mas uma certa idéia da sensação. Por isso, ainda que sob certos aspectos eles tenham preparado o advento da psicologia científica, esta só surgiu realmente bem mais tarde, quando se chegou finalmente à concepção de que os estados de consciência podem e devem ser considerados de fora, e não elo ponto ele vista da consciência que os experimenta. Tal foi a grande revolução * "e declarado que eles deviam ser estudados segundo o método das ciências físicas. Entretanto, na realidade, todos os trabalhos que lhes devemos reduzem-se a puras análises ideológicas, nào menos que os da escola metafísica". (R.P., p. 486.) ** "também só empregavam o método introspectivo". (R.P., p. 486.) *** "para controlar eficazmente as noçôes correspondentes que o hábito fixou em nós. Estas permanecem portanto sem contrapeso; em conseqüência, elas se interpõem entre os fatos e nós" (RP., p. 487.) REGRAS REIA 77VAS À OBSERVAÇÃO DOS FATOS SOCIAIS 31 que se efetuou nesse tipo de estudos. Todos os procedimentos particulares, todos os métodos novos que enriqueceram essa ciência, não são mais que meios diversos de realizar mais completamente essa idéia fundamental. É o mesmo progresso que resta fazer em sociologia. É preciso que ela passe do estágio subjetivo, raramente ultrapassado até agora, à fase objetiva. Essa passagem, aliás, é menos difícil de efetuar do que em psicologia. Com efeito, os fatos psíquicos são naturalmente dados como estados do sujeito, do qual eles não parecem sequer separáveis. Interiores por definição, parece que só se pode tratá-los como exteriores violentando sua natureza. É preciso não apenas um esforço de abstração, mas todo um conjunto de procedimentos e de artifícios para chegar a considerá-los desse viés. Ao contrário, os fatos sociais têm mais naturalmente e mais imediatamente todas as características da coisa. O direito existe nos códigos, os movimentos da vida cotidiana se inscrevem nos dados estatísticos, nos monumentos da história, as modas nas roupas, os gostos nas obras de arte. Em virtude de sua natureza mesma eles tendem a se constituir fora das consciências individuais, visto que as dominam. Para vê-los sob seu aspecto de coisas, nào é preciso, portanto, torturá-los com engenhosidade. Desse ponto de vista, a sociologia tem sobre a psicologia uma séria vantagem que nào foi percebida até agora e que deve apressar seu desenvolvimento. Os fatos talvez sejam mais difíceis de interpretar por serem mais complexos, mas são mais fáceis de atinar. A psicologia, ao contrário, nào apenas tem dificuldade de elaborá-los, como também de percebê-los. Em conseqüência, é lícito imaginar que, no dia em que esse princípio elo método sociológico for unanimemente reconhecido e praticado, veremos a sociologia progredir com uma rapidez que a lentidão atual de seu de- 32 AS REGRAS DO MÉTODO SOG70LÓGJCO senvolvimento não faria supor, e inclusive reconquistar a dianteira que a psicologia deve unicamente à sua anterioridade histórica 10 II Mas a experiência de nossos predecessores nos mostrou que, para assegurar a realização prática da verdade que acaba de ser estabelecida, não basta oferecer uma demonstração teórica nem mesmo compenetrar-se dela. O espírito tende tão naturalmente a desconhecê-la que recairemos inevitavelmente nos antigos erros, se não nos submetermos a uma disciplina rigorosa, cujas regras principais, corolários da precedente, iremos formular. 1) O primeiro desses corolários é que: É preciso descartar sistematicamente todas as prenoçàes. Uma demonstração especial dessa regra não é necessária; ela resulta de tudo o que dissemos anteriormente. Aliás, ela é a base de todo método científico. A dúvida metódica de Descartes, no fundo, não é senão uma aplicação disso. Se, no momento em que vai fundar a ciência, Descartes impõe-se como lei pôr em dúvida todas as idéias que recebeu anteriormente, é que ele quer empregar apenas conceitos cientificamente elaborados, isto é, construídos de acordo com o método que ele institui; todos os que ele obtém de uma outra origem devem ser, portanto, rejeitados, ao menos provisoriamente. Já vimos que a teoria dos Ídolos, em Bacon, não tem outro sentido. As duas grandes doutrinas que freqüentemente foram opostas uma à outra, concordam nesse ponto essencial. É preciso, portanto, que o sociólogo, tanto no momento em que determina o objeto de suas pesquisas, como no curso de suas demonstrações, proíba-se resolutamente o emprego daqueles conceitos REGRAS RELA71VAS À OBSERVAÇ40 DOS FATOS SOCIAIS 33 que se formaram fora da ciência e por necessidades que nada têm de científico. É preciso que ele se liberte dessas falsas evidências que dominam o espírito do vulgo, que se livre, de uma vez por todas, do jugo dessas categorias empíricas que um longo costume acaba geralmente por tornar tirânicas. Se a necessidade o obriga às vezes a recorrer a elas, pelo menos que o faça tendo consciência de seu pouco valor, a fim de não as chamar a desempenhar na doutrina um papel de que não são dignas. O que torna essa libertação particularmente difícil em sociologia é que o sentimento com freqüência se intromete. Apaixonamo-nos, com efeito, por nossas crenças políticas e religiosas, por nossas práticas morais, muito mais do que pelas coisas do mundo físico; em conseqüência, esse caráter passional transmite-se à maneira como concebemos e como nos explicamos as primeiras. As idéias que fazemos a seu respeito nos são muito caras, assim como seus objetos, e adquirem tamanha autoridade que não suportam a contradição. Toda opinião que as perturba é tratada como inimiga. Por exemplo, uma proposição não está de acordo com a idéia que se faz do patriotismo, ou da dignidade individual? Então ela é negada, não importam as provas sobre as quais repousa. Não se pode admitir que seja verdadeira; ela é rejeitada categoricamente, e a paixão, para justificar-se, não tem dificuldade de sugerir razões que são consideradas facilmente decisivas. Essas noções podem mesmo ter tal prestígio que não toleram sequer um exame científico. O simples fato de submetêlas, assim como os fenômenos que elas exprimem, a uma análise fria e seca, revolta certos espíritos. Quem decide l'studar a moral a partir de fora e como uma realidade exterior é visto por esses delicados como desprovido de sl·nso moral, da mesma forma que o vivissecionista parel 'l' ao vulgo desprovido da sensibilidade comum. Em vez 34 AS REGRAS DO MÉTODO SOCJOLÓGJCO *de admitir que esses sentimentos são do domínio a* da ciência, é a eles que se julga dever apelar para fazer a ciência das coisas às quais se referem. "Infeliz o sábio'', escreve um eloqüente historiador das religiôes, "que aborda as coisas de Deus sem ter no fundo de sua consciência, no fundo indestrutível de seu ser, lá onde dorme a alma dos antepassados, um santuário desconhecido do qual se eleva por instantes um perfume de incenso, uma linha de salmo, um grito doloroso ou triunfal que, criança, lançou ao céu junto com seus irmãos e que o repôe em súbita comunhão com os profetas de outrora111" Nunca nos ergueremos com demasiada força contra essa doutrina mística que - como todo misticismo, aliás não é, no fundo, senão um empirismo disfarçado, negador de toda ciência. Os sentimentos que têm como objetos as coisas sociais não têm privilégio sobre os demais, pois não é outra sua origem. Também eles são formados historicamente; são um produto da experiência humana, mas de uma experiência confusa e inorganizada. Eles não se elevem a nào sei que antecipação transcendental da realidade, mas são a resultante de todo tipo ele impressões e de emoções acumuladas sem ordem, ao acaso das circunstâncias, sem interpretação metódica. Longe de nos proporcionarem luzes superiores às luzes racionais, eles são feitos exclusivamente de estados fortes, é verdade, mas confusos. Atribuir-lhes tal preponderância é conceder às faculdades inferiores da inteligência a supremacia sobre as mais elevadas, é condenar-se a uma logomaquia mais ou menos oratória. Uma ciência feita assim só pode satisfazer os espíritos que gostam ele pensar com sua sensibilidade e nào com seu entendimento, que preferem as sínteses imediatas e confusas da sensação às análises pa• "de submeter esses sentimentos ao controle" (R.P., p. 489.) NliGRAS RELA77VAS À OBSER\'AÇÀO DOS FATOS SOCIAIS 35 cientes e luminosas da razão. O sentimento é objeto de ciência, não o critério da verdade científica. De resto, não há ciência que, em seus começos, nào tenha encontrado resistências análogas. Houve um tempo em que os sentimentos relativos às coisas do mundo físico, tendo eles próprios um caráter religioso ou moral, opunham-se com não menos força ao estabelecimento das ciências físicas. Pode-se portanto supor que, expulso de ciência em ciência, esse preconceito acabará por desaparecer da própria sociologia, seu último refúgio, para deixar o terreno livre ao cientista. 2) Mas a regra precedente é inteiramente negativa. Ela ensina o sociólogo a escapar ao domínio das noçôes vulgares, para dirigir sua atenção aos fatos; mas não diz como deve se apoderar desses últimos para empreender um estudo objetivo deles. Toda investigação científica tem por objeto um grupo determinado de fenômenos que correspondem a uma mesma definição. O primeiro procedimento do sociólogo deve ser, portanto, definir as coisas de que ele trata, a fim de que se saiba e de que ele saiba bem o que está em questão. Essa é a primeira e a mais indispensável concli<,;ão ele toda prova e de toda verificação; uma teoria, com efeito, só pode ser controlada se se sabe reconhecer os fatos que ela deve explicar. *Além do mais, visto ser por essa definição que é constituído* o objeto mesmo da ciência, este será uma coisa ou não, conforme a maneira pela qual essa definição for feita. Para que ela seja objetiva, é preciso evidentemente que exprima os fenômenos, não em função de uma idéia do espírito, mas de propriedades que lhe são inerentes. É • "Concebe-se facilmente a importância dessa definição inicial já que é ela que constitui" (R.P., p. 490.) 36 AS REGRAS DO MfffODO SOCIOLÓGICO preciso que ela os caracterize por um elemento integrante da natureza deles, não pela conformidade deles a uma noção mais ou menos ideal. Ora, no momento em que a pesquisa vai apenas começar, quando os fatos não estão ainda submetidos a nenhuma elaboração, os únicos desses caracteres que podem ser atingidos são os que se mostram suficientemente exteriores para serem imediatamente visíveis. Os que estão situados mais profundamente são, por certo, mais essenciais; seu valor explicativo é maior, mas nessa fase da ciência eles são desconhecidos e só podem ser antecipados se substituirmos a realidade por alguma concepção do espírito. Assim, é entre os primeiros que deve ser buscada a matéria dessa definição fundamental. Por outro lado, é claro que essa definição deverá compreender, sem exceção nem distinção, todos os fenômenos que apresentam igualmente esses mesmos caracteres; pois não temos nenhuma razão e nenhum meio de escolher entre eles. Essas propriedades são, então, tudo o que sabemos do real; em conseqüência, elas devem determinar soberanamente a maneira como os fatos devem ser agrupados. Não possuímos nenhum outro critério que possa, mesmo parcialmente, suspender os efeitos do precedente. Donde a regra seguinte: jamais to- mar por objeto de pesquisas senão um grupo de fenômenos previamente 、セヲゥョッウ@ por certos caracteres exteriores que lhes são comuns, e compreender na mesma pesquisa todos os que correspondem a essa definição. Por exemplo, constatamos a existência de certo número de atos que apresentam, todos, o caráter exterior de, uma vez efetuados, determinarem de parte da sociedade essa reação particular que é chamada pena. Fazemos deles um grupo sui generis, ao qual impomos uma rubrica comum; chamamos crime todo ato punido e fazemos do crime assim definido o objeto de uma ciência especial, a criminologia. Do mes- Rh'C/RAS REIA TIVAS À OBSERVAÇÀO DOS FATOS SOGJAJS 37 1110 modo, observamos, no interior de todas as sociedades conhecidas, a existência de uma sociedade parcial, reconhecível pelo sinal exterior de ser formada de indivíduos consangüíneos uns dos outros, em sua maior parte, e que L'stão unidos entre si por laços jurídicos. Fazemos dos fatos que se relacionam a ela um grupo particular; são os fenômenos da vida doméstica. Chamamos família todo agregado desse tipo e fazemos da família assim definida o (ibjeto de uma investigação especial que ainda não recebeu denominação determinada na terminologia sociológica. Quando, mais tarde, passarmos da família em geral aos diferentes tipos familiares, aplicaremos a mesma regra. Quando abordarmos, por exemplo, o estudo do clã, ou da família maternal, ou da família patriarcal, começaremos por defini-los, e de acordo com o mesmo método. O objeto de cada problema, geral como particular, deve ser constituído segundo o mesmo princípio. Ao proceder dessa maneira, o sociólogo, desde seu primeiro passo, toma imediatamente contato com a realidade. Com efeito, o modo como os fatos são assim classificados não depende dele, da propensão particular de seu espírito, mas da natureza das coisas. O sinal que possibilita serem colocados nesta ou naquela categoria pode ser mostrado a todo o mundo, reconhecido por todo o mundo, e as afirmações de um observador podem ser controladas pelos outros. É verdade que a noção assim constituída nem sempre se ajusta, ou, até mesmo, em geral não se ajusta, à noção comum. Por exemplo, é evidente que, para 0 senso comum, os casos de livre pensamento ou as faltas à etiqueta, tão regularmente e tão severamente punidos numa série de sociedades, não são vistos como crtmes, inclusive em relação a essas sociedades. Assim também um clã não é uma família, no sentido usual da palavra. セ。ウ@ não importa; pois não se trata simplesmente de 38 AS REGRAS DO MÉTODO SOG10lCJGJCO descobrir um meio que nos permita verificar com suficiente certeza os fatos a que se aplicam as palavras da língua corrente e as idéias que estas traduzem. O que é preciso é constituir inteiramente conceitos novos, apropriados às necessidades da ciência e expressos com o auxílio de uma terminologia especial. Não, certamente, que 0 conceito vulgar seja inútil ao cientista; ele serve de indicador. Por ele, somos informados de que existe em alguma parte um conjunto de fenômenos reunidos sob urna mesma denominaçào e que, portanto, devem provavelmente ter características comuns; inclusive, como o conceito vulgar jamais deixa de ter algum contato com os fenômenos, ele n:)s indica ús vezes, mas de maneira geral, em que direçao estes devem ser buscados. Mas, como ele é grosseiramente formado, é natural que nào coincida exatamente com o conceito científico, instituído em seu lugar12. . セッイ@ !11ais. evidente e importante que seja essa regra, ela nao e muito observada em sociologia. Precisamente por esta tratar de coisas das quais estamos sempre falando, como a família, a propriedade, o crime, etc., na maioria das vezes parece inútil ao sociólogo dar-lhes uma definição preliminar e rigorosa. Estamos tão habituados a servir-nos dessas palavras, que voltam a todo instante no curso das conversaçôes, que parece inútil precisar 0 sentido no qual as empregamos. As pessoas se referem simplesmente à noção comum. Ora, esta é muito freqüentemente ambígua. Essa ambigüidade faz que se reúnam sob um mesmo nome e numa mesma explicação coisas, em realidade, muito diferentes. Daí provêm inextricáveis conヲオセ￵・ウN@ Assim, existem duas espécies de uniões monogâmicas: umas o são de fato, outras de direito. Nas primeiras, o marido só tem uma mulher, embora, juridicamente, possa ter várias; nas segundas ele é legalmente proibido de ser polígamo. A monogamia de fato verifica-se em vá- NHGRAS RELA 71VAS À OBSERVAÇÃO DOS FATOS SOOAJS 39 rias espécies animais e em certas sociedades inferiores, não de forma esporádica, mas com a mesma generalidade como se fosse imposta por lei. Quando a população está dispersa numa vasta superfície, a trama social é mais frouxa, portanto os indivíduos vivem isolados uns dos outros. Por isso, cada homem busca naturalmente obter uma mulher e uma só, porque, nesse estado de isolamento, lhe é difícil ter várias. A monogamia obrigatória, ao contrário, só se observa nas sociedades mais elevadas. Essas duas espécies de sociedades conjugais têm portanto uma significação muito diferente, no entanto a mesma palavra serve para designá-las; pois é comum dizer de certos animais que eles são monógamos, embora nada exista entre eles que se assemelhe a uma obrigação jurídica. Ora, o sr. Spencer, abordando o estudo do casamento, emprega a palavra monogamia, sem defini-la, com seu sentido usual e equívoco. Disso resulta que a evolução do casamento lhe parece apresentar uma incompreensível anomalia, já que ele crê observar a forma superior da união sexual já nas primeiras fases do desenvolvimento histórico, ao passo que ela parece desaparecer no período intermediário para retornar a seguir. Ele conclui daí que não há relação regular entre o progresso social em geral e o avanço progressivo em direção a um tipo perfeito de vida familiar. Uma definição oportuna teria evitado esse crro 13. Em outros casos, toma-se o cuidado de definir o objeto sobre o qual incidirá a pesquisa; mas, em vez de abranger na definição e de agrupar sob a mesma rubrica todos os fenômenos que têm as mesmas propriedades exteriores, faz-se uma triagem entre eles. Escolhem-se alguns, espécie de elite, que são vistos como os únicos com o direito a ter esses caracteres. Quanto aos demais, são considerados como tendo usurpado esses sinais distintivos e não são levados em conta. Mas é fácil prever que 40 AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO dessa maneira só se pode obter uma noção subjetiva e truncada. Essa eliminação, com efeito, só pode ser feita com base numa idéia preconcebida, uma vez que, no começo ela ciência, nenhuma pesquisa pôde ainda estabelecer a realidade dessa usurpação, supondo-se que ela seja possível. Os fenômenos escolhidos só o podem ter sido porque estavam, mais do que os outros, de acordo com a concepção ideal que se fazia desse tipo de realidade. Por exemplo, o sr. Garofalo, nà começo de sua Criminologie, demonstra muito bem que o ponto de partida dessa ciência deve ser "a noção sociológica elo crime"l 4 . Só que, para constituir essa noção, ele não compara indistintamente todos os atos que, nos diferentes tipos sociais, foram reprimidos por penas regulares, mas apenas alguns dentre eles, a saber, os que ofendem a parte média e imutável elo senso moral. Quanto aos sentimentos morais que desapareceram durante a evolução, eles não lhe parecem fundados na natureza das coisas, por não terem conseguido se manter; por conseguinte, os atos que foram considerados criminosos porque os violavam, lhe parecem dever essa denominação apenas a circunstâncias acidentais e mais ou menos patológicas. Mas é em virtude de uma concepção inteiramente pessoal ela moralidade que ele procede a essa eliminação. Ele parte da idéia ele que a evolução moral, tomada em sua fonte mesma ou nos arredores, arrasta todo tipo ele escórias e ele impurezas, que ela elimina a seguir progressivamente, e de que somente hoje ela conseguiu desembaraçar-se de todos os elementos adventícios que, primitivamente, perturbavam-lhe o curso. Mas esse princípio não é nem um axioma evidente nem uma verdade demonstrada; é apenas uma hipótese, que nada inclusive justifica. As partes variáveis do senso moral não são menos fundadas na natureza das coisas do que as partes imutáveis; as variações pelas quais as pri- REGRAS RELATIVAS À OBSERVAÇÃO DOS FATOS SOCIAIS 41 meiras passaram testemunham apenas que as próprias coisas variaram. Em zoologia, as formas específicas às espécies inferiores não são vistas como menos naturais elo que as que se repetem em todos os graus da escala animal. Do mesmo modo, os atos tachados de crimes pelas sociedades primitivas, e que perderam essa qualificação, sào realmente criminosos para essas sociedades, tanto quanto os que continuamos a reprimir hoje em dia. Os primeiros correspondem às condições mutáveis da vida social, os segundos às condições constantes; mas uns não sào mais artificiais que os outros. E tem mais: ainda que esses atos tivessem adquirido indevidamente o caráter criminológico, nem por isso deveriam ser separados radicalmente dos outros; pois a natureza das formas mórbidas de um fenômeno não é diferente da natureza das formas normais e, por conseqüência, é necessário observar tanto as primeiras quanto as segundas para determinar essa natureza. A doença não se opõe à saúde; trata-se de duas variedades do mesmo gênero e que se esclarecem mutuamente. Essa é uma regra há muito reconhecida e praticada, tanto em biologia como em psicologia, e que o sociólogo não é menos obrigado a respeitar. A menos que se admita que um mesmo fenômeno possa ser devido ora a causa, ora a uma outra, isto é, a 111enos que se negue o princípio de causalidade, as causas <1ue imprimem num ato, mas de maneira anormal, o sinal distintivo do crime não poderiam diferir em espécie das < 1ue produzem normalmente o mesmo efeito; elas distinguem-se apenas em grau ou porque não agem no mesmo , ·< injunto de circunstâncias. O crime anormal ainda é, por1:11110, um crime e deve, por conseguinte, entrar na defini• セ@ :10 do crime. Assim, o que ocorre? O sr. Garofalo toma 1H ir gênero o que não é senão a espécie ou mesmo uma Nセゥャー・ウ@ variedade. Os fatos aos quais se aplica sua fórmu- 42 AS REGRAS DO MÉTODO SOGJOLÓGJCO la da criminalidade não representam senão uma ínfima minoria entre os que ela deveria compreender; pois ela não convém nem aos crimes religiosos, nem aos crimes contra a etiqueta, o cerimonial, a tradição, etc., que, se desapareceram de nossos códigos modernos, preenchem, ao contrário, q;iase todo o direito penal das sociedades anteriores. E a mesma falta de método que faz que certos observadores recusem aos selvagens qualquer espécie ele moralicladel'i. Eles partem da idéia de que nossa moral é a moral; ora, é evidente que ela é desconhecida dos povos primitivos ou que só existe neles em estado rudimentar. Mas essa definição é arbitrária. Apliquemos nossa regra e tudo se modifica. Para decidir se um preceito é moral ou não, devemos examinar se ele apresenta ou não o sinal exterior da moralidade; esse sinal consiste numa sanção repressiva difusa, ou seja, numa reprovação da opinião pública que vinga toda violação do preceito. Sempre que estivermos em presença de um fato que apresenta esse caráter, não temos o direito ele negar-lhe a qualificação de moral; pois essa é a prova ele que ele é da mesma natureza que os outros fatos morais. Ora, regras desse gênero não só se verificam nas sociedades inferiores, como são セ。ゥウ@ numerosas aí do que entre os civilizados. Uma quantidade ele atos atualmente entregues à livre apreciação dos indivíduos são, então, impostos obrigatoriamente. Percebe-se a que erros somos levados quando não definimos, ou quando definimos mal. Mas, dirão, definir os fenômenos por seus caracteres aparentes não será atribuir às propriedades superficiais uma espécie de preponderância sobre os atributos fundamentais? Não será, por uma verdadeira inversão da ordem lógica, fazer repousar as coisas sobre seus topos e não sobre suas bases? É assim que, quando se define セ@ crime pela pena, corre-se quase inevitavelmente o risco de ser REGRAS RELA TIVAS À OBSERVAÇÀO DOS FATOS SOGJAJS 43 acusado de querer derivar o crime da pena ou, conforme uma citação bem conhecida, de ver no patíbulo a fonte ela vergonha, não no ato expiado. Mas a objeção repousa sobre uma confusão. Como a definição cuja regra acabamos de dar está situada no começo da ciência, ela não poderia ter por objeto exprimir a essência ela realidade; ela deve apenas nos pôr em condições de chegar a isso ulteriormente. Ela tem por única função fazer-nos entrar em contato com as coisas e, como estas não podem ser atingidas pelo espírito a não ser de fora, é por seus exteriores que ela as exprime. Mas isso não quer dizer que as explique; ela apenas fornece o primeiro ponto de apoio necessário às nossas explicações. Claro, não é a pena que faz 0 crime, mas é por ela que ele se revela exteriormente a nós, e é dela portanto que elevemos partir se quisermos chegar a compreendê-lo. A objeção só seria fundada se esses caracteres exteriores fossem ao mesmo tempo acidentais, isto é, se não estivessem ligados às propriedades fundamentais. De fato, nessas condições, a ciência, após tê-los assinalado, não teria meio algum de ir mais adiante; não poderia aprofundar-se mais na realidade, já que não haveria nenhuma relação entre a superfície e o fundo. Mas, a menos que o princípio de causalidade seja uma palavra vã, quando caracteres determinados se encontram identicamente e sem nenhuma exceção em todos os fenômenos de certa ordem, pode-se estar certo de que eles se ligam intimamente à natureza destes últimos e que são solidários com eles. Se um grupo dado de atos apresenta igualmente a particularidade de uma sanção penal estar a eles associada, é que existe uma ligação íntima entre a pena e os atributos . constitutivos desses atos. Em conseqüência, por mais superficiais que sejam, essas propriedades, contanto que tenham sido metodicamente observadas, mostram clara- 44 AS REGRAS DO MÉTODO SOG10LÓGICO mente ao cientista o caminho que ele deve seguir para penetrar mais fundo nas coisas; elas são o primeiro e indispensável elo da cadeia que a ciência irá desenrolar a seguir no curso de suas explicações. Visto ser pela sensação que o exterior das coisas nos é dado, pode-se portanto dizer, em resumo: a ciência, para ser objetiva, deve partir, não de conceitos que se formaram sem ela, mas da sensação. É dos dados sensíveis que ela deve tomar diretamente emprestados os elementos de suas definições iniciais. E, de fato, basta pensar em que consiste a obra da ciência para compreender que ela não pode proceder de outro modo. Ela tem necessidade de conceitos que exprimam adequadamente as coisas tais como elas são, não tais como é útil à prática concebê-las. Ora, aqueles conceitos que se constituíram fora de sua ação não preenchem essa condição. É preciso, pois, que ela crie novos e que, para tanto, afastando as noções comuns e as palavras que as exprimem, volte à sensação, matéria-prima necessária de todos os conceitos. É da sensação que emanam todas as idéias gerais, verdadeiras ou falsas, científicas ou não. Portanto, o ponto de partida da ciência ou conhecimento especulativo não poderia ser outro que o do conhecimento vulgar ou prático. É somente além dele, na maneira pela qual essa matéria comum é elaborada, que as divergências começam. 3) Mas a sensação é facilmente subjetiva. Assim é de regra, nas ciências naturais, afastar os dados sensíveis que correm o risco de ser demasiado pessoais ao observador, para reter exclusivamente os que apresentam um suficiente grau de objetividade. Eis o que leva o físico a substituir as vagas impressões que a temperatura ou a eletricidade produzem pela representação visual das oscilações do termômetro ou do eletrômetro. O sociólogo deve tomar as mesmas precauções. Os caracteres exteriores em função NEGRAS RELATIVAS À OBSERVAÇÃO DOS FATOS SOCIAIS 45 dos quais ele define o objeto de suas pesquisas devem ser tão objetivos quanto possível. Pode-se estabelecer como princípio que os fatos sociais são tanto mais suscetíveis de ser objetivamente representados *quanto mais completamente separados dos fatos individuais que os manifestam*. De fato, uma sensação é tanto mais objetiva quanto maior a fixidez do objeto ao qual ela se relaciona; pois a condição de toda objetividade é a existência de um ponto de referência, constante e idêntico, ao qual a representação pode ser relacionada e que permite eliminar tudo o que ela tem de variável, portanto, de subjetivo. Se os únicos pontos de referência dados forem eles próprios variáveis, se forem perpetuamente diversos em relação a si mesmos, faltará uma medida comum e não teremos meio algum de distinguir em nossas impressões o que depende de fora e o que lhes vem de nós. **Ora, a vida social, enquanto não chegou a isolar-se dos acontecimentos particulares que a encarnam para constituir-se à parte, tem justamente essa propriedade, pois, como esses acontecimentos não têm a mesma fisionomia de uma vez a outra, de um instante a outro, e como ela é inseparável deles, estes transmitem-lhe sua mobilidade. Ela consiste então em livres correntes** que estão perpetuamente em via de transformação e que o olhar do observador não consegue fixar. Vale dizer que não é por esse lado que o cientista pode abordar o estudo da realidade social. Mas sabemos que esta apresenta a particularidade de, sem deixar ele ser ela mesma, ser capaz de cristalizar-se. Fora dos atos indi'"quanto mais estiverem consolidados". (R.P., p. TセWN⦅I@ . " "Ora, a vida social, no estado de liberdade, e mfimtamente móvel e fugaz. Ela nào está isolada, pelo menos imediatamente, dos fenômenos particulares nos quais se encarna, e estes diferem de uma vez a outra, de um caso a outro. Sào correntes" (R.P., p. 497.) 46 AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO viduais que suscitam, os hábitos coletivos exprimem-se sob formas definidas, regras jurídicas, morais, ditos populares, fatos de estrutura social, etc. Como essas formas existem ele uma maneira permanente, *como não mudam com as diversas aplicaçôes que delas são feitas,* elas constituem um objeto fixo, um padrão constante que está sempre ao alcance cio observador e que não dá margem às impressões subjetivas e às observaçôes pessoais. Uma regra ele direito é o que ela é, e não há duas maneiras de percebê-la. Por outro lado, visto que essas práticas nada mais são que vicia social consolidada, é legítimo, salvo indicaçôes contráriasH', estudar esta através daquelas. Quando, portanto, o sociólogo empreende a explora- ção uma ordem qualquer defatos sociais, ele deve esforçarse em considerá-los por um lado em que estes **se apresenÉ em virtem isolados de suas man{festações ゥョ、カオ。MセJN@ tude desse princípio que estudamos a solidariedade social, suas formas diversas e sua evolução através do sistema das regras jurídicas que as exprimem 17. Do mesmo modo, se se tentar distinguir e classificar os diferentes tipos familiares com base nas descrições literárias que deles nos oferecem os viajantes e, às vezes, os historiadores, corre-se o risco de confundir as espécies mais diferentes, de aproximar os tipos mais afastados. Se, ao contrário, tomar-se por base dessa classificação a constituição jurídica da família e, mais especificamente, o direito sucessório, ter-se-á um critério objetivo que, sem ser infalível, evitará no entanto muitos erros 18 . Queremos classificar os diferentes tipos de crimes? Então nos esforçaremos por reconstituir as maneiras ele viver, os costumes profissionais praticados nos diferentes mundos do crime, e reconheceremos tantos tipos cri' Elemento que não figura no texto inicial. de crmsolidaçào". (R.P., p. 497.) " "apresentam um grau ウコセヲゥ」・ョエ@ Rh'GRAS RE!AT7VAS À OBSERVAÇÃO DOS FATOS SOCIAIS minológicos quantas forem as formas diferentes que essa organização apresenta. Para identificar os costumes, as crenças populares, recorreremos aos provérbios, aos ditados que os exprimem. Certamente, ao proceder assim, deixamos provisoriamente fora da ciência a matéria concreta da vida coletiva, e no entanto, por mais mutável que esta Nセ・ェ。L@ não ternos o direito de postular a priori sua ininteligibilidade. Mas, se quisermos seguir uma via metódica, precisaremos estabelecer os primeiros alicerces ela ciência sobre um terreno firme e não sobre areia movediça. É preciᄋセᄎ@ abordar o reino social pelos lados onde ele mais se :1hre à investigação científica. Somente a seguir será possível levar mais adiante a pesquisa e, por trabalhos ele aproximação progressivos, cingir pouco a pouco essa realidade fugidia, da qual o espírito humano talvez jamais possa se : 1poderar completamente. CAPÍTULO III REGRAS RELATIVAS À DISTINÇÃO ENTRE NORMAL E PATOLÓGICO A observação, conduzida de acordo com as regras que precedem, confunde duas ordens de fatos, muito desseme1hantes sob certos aspectos: os que são o que devem ser e e >s que deveriam ser de outro modo, os fenômenos normais e os fenômenos patológicos. Vimos inclusive que era 1wcessário abrangê-los igualmente na definição pela qual 'il've se iniciar toda pesquisa. Mas, se eles, em certa medida, são da mesma natureza, não deixam de constituir duas \';1riedades diferentes, que é importante distinguir. A ciên' ia dispõe de meios que permitem fazer essa distinção? A questão é da maior importância; pois da solução que se der a ela depende a idéia que se faz do papel que 'ompete ã ciência, sobretudo à ciência do homem. De .1c·()rdo com uma teoria cujos partidários se recrutam nas '""colas mais diversas, a ciência nada nos ensinaria sobre .1quilo que devemos querer. Ela só conhece, dizem, fatos • Jl ll' têm o mesmo valor e o mesmo interesse; ela os obセャGイカ。L@ os explica, mas não os julga; para ela, os fatos nada l«riam de censurável. O bem e o mal não existem para 50 AS REGRAS DO Mb'TODO SOOOLÓGJCO ela. A ciência pode perfeitamente nos dizer de que maneira as causas produzem seus efeitos, não que finalidades devem ser buscadas. Para saber, não o que é, mas o que é desejável, deve-se recorrer às sugestões do inconsciente, não importa o nome que se dê a ele: sentimento, instinto, impulso vital, etc. A ciência, diz um escritor já citado, pode muito bem iluminar o mundo, mas ela deixa a noite nos corações; compete ao coração mesmo fazer sua própria luz. A ciência se vê assim destituída, ou quase, de toda eficácia prática, não tendo portanto grande razão de ser; pois, de que serve trabalhar para conhecer o real, se o conhecimento que dele adquirimos não nos pode servir na vida? Acaso dirão que ela, ao nos revelar as causas dos fenômenos, nos fornece os meios de produzi-los a nosso gosto e, portanto, de realizar os fins que nossa vontade persegue por razôes supracientíficas? Mas todo meio é ele próprio um fim, por um lado; pois, para empregá-lo, é preciso querê-lo tanto como o fim cuja realização ele prepara. Há sempre vários caminhos que levam a um objetivo dado; é preciso, portanto, escolher entre eles. Ora, se a ciência não pode nos ajudar na escolha do objetivo melhor, como é que ela poderia nos ensinar qual o melhor caminho para chegar a ele? Por que ela nos recomendaria o mais rápido de preferência ao mais econômico, o mais seguro em vez do mais simples, ou vice-versa? Se não é capaz de nos guiar na determinação dos fins superiores, ela não é menos impotente quando se trata desses fins secundários e subordinados que chamamos meios. O método ideológico permite, é verdade, escapar a esse misticismo, e foi aliás o desejo de escapar a ele oresponsável, em parte, pela persistência desse método. Os que o praticaram eram, com· efeito, demasiadamente racionalistas para admitir que a conduta humana não tivesse necessidade de ser dirigida pela reflexão; no entanto, eles DISTINÇÃO EN'lNE NOR1V!AL E PA TOLÓGJCO 51 não viam nos fenômenos, tomados em si mesmos e independentemente de todo dado subjetivo, nada que permitisse classificá-los segundo seu valor prático. Parecia portanto que o único meio de julgá-los seria relacioná-los a algum conceito que os dominasse; com isso, o emprego de noções que presidiram à comparação dos fatos, em vez de derivar deles, tornava-se indispensável em toda sociologia racional. Mas sabemos que, se nessas condiçôes a prática se torna refletida, a reflexão, assim empregada, não é científica. O problema que acabamos de colocar nos permitirá reivindicar os direitos da razão sem cair de novo na ideologia. Com efeito, tanto para as sociedades como para os indivíduos, a saúde é boa e desejável, enquanto a doença é algo ruim e que deve ser evitado. Se encontrarmos portanto um critério objetivo, inerente aos fatos mesmos, que nos permita distinguir cientificamente a saúde da doença nas diversas ordens de fenômenos sociais, a ciência será capaz de esclarecer a prática, sem deixar de ser fiel a seu próprio método. É verdade que, como não consegue preNセ・ョエュ@ atingir o indivíduo, ela só é capaz de fornecer-nos indicações gerais que não podem ser convenientemente diversificadas, a não ser que se entre diretamente L'll1 contato com o particular através da sensação. O estado de saúde, tal como ela o define, não poderia convir l'xatamente a nenhum sujeito individual, já que só pode sn estabelecido em relação às circunstâncias mais co111uns, das quais cada um se afasta em maior ou menor grau; ainda assim, esse é um ponto de referência precioso p:1ra orientar a conduta. Do fato de ser preciso ajustá-lo a NセャGァオゥイ@ a cada caso especial, não se conclui que não haja 11l'nhum interesse em conhecê-lo. Muito pelo contrário, t ·ll' é a norma que deve servir de base a todos os nossos r;1ciocínios práticos. Nessas condições, não se tem mais o 52 AS REGRAS DO MÉTODO SOG10lÓGICO direito de dizer que o pensamento é inútil à ação. Entre a ciência e a arte não existe mais um abismo, mas se passa de uma à outra sem solução de continuidade. A ciência, é verdade, só pode descer aos fatos por intermédio da arte, mas a arte não é senão o prolongamento da ciência. Pode-se também perguntar se a insuficiência prática desta última não deverá diminuir, ã medida que as leis que ela estabelece exprimam cada vez mais completamente a realidade individual. Vulgarmente, o sofrimento é visto como o indicador da doença, e é certo que, em geral, existe entre esses dois fatos uma relação, mas que carece de constância e de precisão. Há graves diáteses que são indolores, ao passo que perturbações sem importância, como as que resultam da introdução de um grão de poeira no olho, causam um verdadeiro suplício. Em certos casos, inclusive, a ausência de dor ou ainda o prazer é que são os sintomas da doença. Há uma certa invulnerabilidade que é patológica. Em circunstâncias nas quais um homem são sofreria, acontece ao neurastênico experimentar uma sensação de gozo cuja natureza mórbida é incontestável. Inversamente, a dor acompanha muitos estados, como a fome, a fadiga, o parto, que são fenômenos puramente fisiológicos. Diremos que a saúde, consistindo num desenvolvimento favorável das forças vitais, se reconhece pela perfeita adaptação do organismo a seu meio, e chamaremos, ao contrário, doença tudo o que perturba essa 。、ーエQLᄋ[|ッセ@ Mas em primeiro lugar - mais adiante teremos de voltar a esse ponto - de modo nenhum está demonstrado que cada estado do organismo esteja em correspondência com IJ1ST7NÇÀO ENTRE NORMAL E PATOLÓGICO 53 algum estado externo. Além do mais, e mesmo que esse critério fosse realmente distintivo do estado de saúde, ele próprio teria necessidade de outro critério para poder ser reconhecido; pois seria preciso, em todo caso, que nos dissessem de acordo com que princípio se pode decidir que tal modo de se adaptar é mais perfeito que outro. Será de acordo com a maneira como um e outro afetam nossas chances de sobrevivência? A saúde seria o estado de um organismo em que essas chances estão em seu máximo, enquanto a doença seria tudo o que tem por ddto diminuí-las. Não há dúvida, de fato, de que em ger;d a doença tem realmente por conseqüência um enfraquecimento do organismo. Só que ela não é a única a produzir esse resultado. As funções de reprodução, em (·ertas espécies inferiores, ocasionam fatalmente a morte (', mesmo nas espécies mais elevadas, comportam riscos. N< > entanto elas são normais. A velhice e a infância têm os 111esmos efeitos; pois o velho e a criança estão mais ex1H >stos às causas de destruição. São eles, então, doentes e 11;10 se admitirá outro tipo são a não ser o adulto? Eis o domínio da saúde e da fisiologia singularmente encolhi1 I< >1 Aliás, se a velhice já for, por si só, uma doença, como distinguir o velho saudável do velho doentio? Do mesmo 1H >nto de vista, será preciso classificar a menstruação en1l'l' os fenômenos mórbidos; pois, pelas perturbações que , 11 ·termina, ela aumenta a receptividade da mulher à doenv; 1. Entretanto, como qualificar de doentio um estado cuja .111st'·ncia ou desaparecimento prematuro constituem in', 111ll'stavelmente um fenômeno patológico? Raciocina-se セᄋ@ 11 >rL' essa questão como se, num organismo sadio, cada tll'l;tlhe, por assim dizer, tivesse um papel útil a desempe1ili;1 r; como se cada estado interno correspondesse exata1111·11 te a uma condição externa e, por conseguinte, contri1n11s.<;L' para assegurar, por sua parte, o equilíbrio vital e a 54 AS REGRAS DO Mitf'ODO SOCIOLÓGICO redução das chances de morte. É legítimo supor, ao contrário, que certas disposiçôes anatômicas ou funcionais não servem diretamente para nada, mas simplesmente são porque são, porque não podem deixar de ser, dadas as condiçôes gerais da vida. Não se poderia no entanto qualificá-las de mórbidas; pois a doença é, antes de tudo, algo evitável que não está implicado na constituição regular do ser vivo. Ora, pode acontecer que, em vez de fortalecer o organismo, tais disposiçôes diminuam sua força de resistência e, conseqüentemente, aumentem os riscos mortais. Por outro lado, não é seguro que a doença tenha sempre o resultado em função do qual se quer defini-la. Acaso não há uma série de afecções demasiado leves para que possamos atribuir-lhes uma influência sensível sobre as bases vitais do organismo? Mesmo entre as mais graves, há algumas cujas conseqüências nada têm de deplorável, se soubermos lutar contra elas com as armas de que dispomos. Quem sofre ele problemas gástricos, mas segue uma boa dieta, pode viver tanto quanto o homem sadio. Claro que é obrigado a ter cuidados; mas não somos todos obrigados a isso, e acaso pode a vida manter-se de outro modo? Cada um de nós tem sua higiene; a do doente não se assemelha àquela praticada pela média dos homens de seu tempo e de seu meio; mas essa é a única diferença que existe entre eles desse ponto de vista. A doença nem sempre nos deixa desamparados, num estado de inadaptação irremediável; ela apenas nos obriga a adaptar-nos de modo diferente do da maior parte de nossos semelhantes. Quem nos diz, inclusive, que não existem doenças que acabam por se mostrar úteis? A varíola que nos inoculamos através da vacina é uma verdadeira doença que nos damos voluntariamente; no entanto ela aumenta nossas chances de sobrevivência. Talvez haja muitos outros casos I !ISTINÇÀO El'vTRE NORMAL E PATOLÓGICO 55 que o problema causado pela doença é insignificante comparado com as imunidades que ela confere. Enfim, e sobretudo, esse critério é na maioria das vezes inaplicável. Pode-se muito bem estabelecer, a rigor, que a mortalidade mais baixa que se conhece encontra-se l'lll determinado grupo de indivíduos; mas não se pode demonstrar que não pnderia haver outra mais baixa. <)uem nos diz que não são possíveis outras disposiçôes '1ue teriam por efeito diminuí-la ainda mais? Esse mínimo lk· fato não é portanto prova de uma perfeita adaptação, nem, por conseguinte, um indicador seguro do estado de s:1úde, se nos basearmos na definição precedente. Além , ャゥウNセッL@ um grupo dessa natureza é muito difícil de se constituir e de se isolar de todos os outros, como seria necessári< l, para que se pudesse observar a constituição orgânica dt' que ele tem o privilégio e que é a suposta causa dessa s11perioridacle. Inversamente, se é óbvio, quando se trata 'k · uma doença cujo desdobramento é geralmente mortal, 'llll' as probabilidades de sobrevivência do indivíduo são 'li111inuídas, a prova é singularmente difícil quando a afec" ;1< > não é ele natureza a ocasionar diretamente a morte. < :, >111 efeito, só há uma maneira objetiva de provar que intl i v íd uos situados em condições definidas têm menos , l1;1nces de sobreviver que outros: é demonstrar que, de l.1to, a maior parte deles vive menos tempo. Ora, se essa tl1·111onstração é freqüentemente possível nos casos ele 1l1 >< ·nc,·as puramente individuais, ela é inteiramente imprati' .1n·I em sociologia. Pois aqui não temos o ponto ele refe11 ·1ll'ia de que clispôe o biólogo, a saber, o número da 1111 >rt:didacle média. Não sabemos sequer distinguir com 1·\.1tid:lo simplesmente aproximada em que momento nas' 1· 11 ma sociedade e em que momento ela morre. Todos 1ᄋセNQ@ ·s problemas que, mesmo em biologia, estão longe ele 1·,t.1r claramente resolvidos, permanecem ainda, para o soL'm 56 AS REGRAS DO MfrJODO SOG10LÓG!CO ciólogo, envoltos em mistério. Aliás, os acontecimentos que se produzem no curso da vida social e que se repetem mais ou menos identicamente em todas as sociedades do mesmo tipo são demasiadamente variados para que seja possível determinar em que medida um deles pode ter contribuído para apressar o desenlace final. Quando se trata de indivíduos, como eles são muito numerosos, pode-se escolher aqueles que são comparados de maneira a que tenham em comum apenas uma única e mesma *anomalia*; **esta é assim isolada de todos os fenômenos concomitantes e, portanto, pode-se estudar a natureza de sua influência sobre o organismo**. Se, por exemplo, um grupo de mil reumáticos, tomados ao acaso, apresenta uma mortalidade sensivelmente superior à média, há boas razões para atribuir esse resultado à diátese reumática. Mas, em sociologia, como cada espécie social conta apenas um pequeno número de indivíduos, o campo das comparações é demasiado restrito para ***que agrupamentos desse gênero possam ser demonstrativos***. Ora, na falta dessa prova de fato, nada mais é possível senão raciocínios dedutivos cujas conclusões só podem ter o valor de conjeturas subjetivas. Demonstrar-se-á, não que tal acontecimento enfraquece efetivamente o organismo social, mas que ele deve ter esse efeito. Para isso, mostrar-se-á que ele não pode deixar de ocasionar esta ou aquela conseqüência que se julga nociva à sociedade e, por esse motivo, ele será declarado mórbido. Mas mesmo supondo que ele engendre de fato essa conseqüência, pode ocorrer que os inconvenientes que esta apresente sejam compensados, e até mais do que isso, * "doença" (R.P., p. 582.) ** Frase que não figura no texto inicial. *** "que se possa proceder a agrnpamentos desse gênero". (R.I'., p. 582.) I !/S11NÇÀO ENTRE NORMAL E PATOLÓGICO 57 por vantagens que não se percebem. Além do mais, há :1penas uma razão que permitiria chamá-la de funesta: ela perturbar o desempenho normal das funções. Mas tal prov:1 supõe o problema já resolvido; pois ela só é possível 'L' determinarmos previamente em que consiste o estado 1H mnal e, portanto, se soubermos sob que sinal ele pode 'lT reconhecido. Tentar-se-á construí-lo integralmente e a /1riori? Nào é necessário mostrar o que pode valer tal ' 'mstrução. Eis como, tanto em sociologia como em história, os mesmos acontecimentos podem vir a ser qualifica' I< is, conforme os sentimentos pessoais do estudioso, de .,:iJutares ou de desastrosos. Assim, acontece a todo mo111l'nto que um teórico incrédulo assinale, nos restos de fé <pie sobrevivem em meio ao desmoronamento geral das 'rl'nças religiosas, um fenômeno mórbido, enquanto, para <• crente, é a incredulidade mesma que é hoje a grande <I< >l'nça social. Do mesmo modo, para o socialista, a orga11i1.açào econômica atual é um fato de teratologia social, ·'' • passo que, para o economista ortodoxo, as tendências "' ll'ialistas é que são, por excelência, patológicas. E cada 11111 encontra em apoio de sua opinião silogismos que ' <insidera bem construídos. O erro comum dessas definições é querer atingir pre111: 11 uramente a essência dos fenômenos. Elas supõem co111< > admitidas proposições que, verdadeiras ou não, só 1>< >< il'm ser provadas se a ciência já estiver suficientemen1< · :1vançada. É o caso, porém, de nos conformarmos à rec セQN@ l'stabelecida anteriormente. Em vez de pretendermos d1·1nminar de saída as relações do estado normal e de .,, ., , contrário com as forças vitais, busquemos simples11w11ll' algum sinal exterior, imediatamente perceptível, 111.1s objetivo, que nos permita distinguir uma da outra esセᄋGB@ duas ordens de fatos. 58 AS REGRAS DO MÉTOlJO SOCIOLÓGICO Todo fenômeno sociológico, assim como, ele resto, todo fenômeno biológico, é suscetível ele assumir formas diferentes conforme os casos, embora permaneça essencialmente ele próprio. Ora, essas formas podem ser de duas espécies. Umas são gerais em toda a extensão da espécie; elas se verificam, se não em todos os indivíduos, pelo menos na maior parte deles e, se não se repetem identicamente em todos os casos nos quais se observam, mas variam de um sujeito a outro, essas variações estão compreendidas entre limites muito próximos. Há outras, ao contrário, que são excepcionais; elas não apenas se verificam só na minoria, mas também acontece que, lá mesmo onde elas se produzem, muito freqüentemente não duram toda a vida do indivíduo. Elas são uma exceção tanto no tempo como no espaço 1 . Estamos, pois, em presença de duas variedades distintas ele fenCm1enos que devem ser designadas por termos diferentes. Chamaremos normais os fatos que apresentam as formas mais gerais e daremos aos outros o nome de mórbidos ou patológicos. Se concordarmos em chamar tipo médio o ser esquemático que constituiríamos ao reunir num mesmo todo, numa espécie de individualidade abstrata, os caracteres mais freqüentes na espécie com suas formas mais freqüentes, poderemos dizer que o tipo normal se confunde com o tipo médio e que todo desvio em relação a esse padrão da saúde é um fenômeno mórbido. É verdade que o tipo médio não poderia ser determinado com a mesma clareza que um tipo individual, já que seus atributos constitutivos não estão absolutamente fixados, mas são suscetíveis de variar. Todavia o que não se pode pôr em dúvida é que ele possa ser constituído, já que é a matéria imediata da ciência; pois ele se confunde com o tipo genérico. O que o fisiologista estuda são as funções do organismo médio, e com o sociólogo não é diferente. Uma vez que se sabe ! !!S77iVÇÀO ENTRF NORMAL E PA10lé>GICO 59 distinguir as espécies sociais umas das outras - tratamos mais adiante a questão -, é sempre possível descobrir <1ual a forma mais geral que apresenta um fenômeno nu111a espécie determinada. Vê-se que um fato só pode ser qualificado de patológico em relação a uma espécie dada. As condições da セ[Q、・@ e da doença não podem ser definidas in ahstractu , . de maneira absoluta. A regra não é contestada em bio1< >gia; jamais ocorreu a alguém que o que é normal para 11111 molusco o é também para um vertebrado. Cada espé,·iL' tem sua saúde, porque tem seu tipo médio que lhe é 11r(iprio, e a saúde das espécies mais baixas não é menor <111e a das mais elevadas. O mesmo princípio aplica-se セ@ s< >ciologia, embora freqüentemente ele seja ignorado aí. E 1ireciso renunciar a esse hábito, ainda muito difundido, de 11dgar uma instituição, uma prática, uma máxima moral, <«>mo se elas fossem boas ou más em si mesmas e por si 111esmas, para todos os tipos sociais indistintamente. Visto que o ponto de referência em relação ao qual s< · pode julgar o estado de saúde ou de doença varia com .1.s espécies, ele pode variar também para uma única e 111L·sma espécie, se esta vier a mudar. É assim que, do 1H mto de vista puramente biológico, o que é normal para , , sl'lvagem nem sempre o é para o civilizado, e vice-vers.1 '. Há sobretudo uma ordem de variações que é imporl.i11tc levar em conta, porque elas se produzem regular111<·11te em todas as espécies: são aquelas relacionadas à 1d:idl'.. A saúde do velho não é a do adulto, assim como <'st:1 não é a da criança; e o mesmo ocorre com as socied.1des5. Um fato social não pode portanto ser dito normal p.1r:1 uma espécie social determinada, a não ser em relaセ@ .1< > a uma fase, igualmente determinada, de seu desen,., 1lvimento; em conseqüência, para saber se ele tem direi'' 1 :1 L'ssa denominação, não basta observar sob que forma 60 AS REGRAS DO MÉTODO SOOOLÓGJCO ele se apresenta na generalidade das sociedades que pertencem a essa espécie; é preciso também ter o cuidado de considerá-las na fase correspondente de sua evolução. Parece que acabamos de proceder simplesmente a uma definição de palavras; pois nada mais fizemos senão agrupar fenômenos segundo suas semelhanças e suas diferenças e impor nomes aos grupos assim formados. Mas, em realidade, os conceitos que constituímos, ao mesmo tempo que têm a grande vantagem de ser reconhecíveis por caracteres objetivos e facilmente perceptíveis, não se afastam da noção que se tem comumente da saúde e da doença. Com efeito, não é a doença concebida por todo o mundo como um acidente, que a natureza do ser vivo certamente comporta, mas não costuma engendrar? É o que os antigos filósofos exprimiam ao dizer que ela não deriva da natureza das coisas, que ela é o produto de uma espécie de contingência imanente aos organismos. Tal concepção, seguramente, é a negação de toda ciência; pois a doença não possui nada mais miraculoso que a saúde; ela está igualmente fundada na natureza dos seres. Só que não está fundada na natureza normal; não está implicada no temperamento ordinário dos seres, nem ligada às condições de existência das quais eles geralmente dependem. Inversamente, para todo o mundo, o tipo da saúde se confunde com o da espécie. Inclusive não se pode, sem contradição, conceber uma espécie que, por si mesma e em virtude de sua constituição fundamental, fosse irremediavelmente doente. Ela é a norma por excelência e, portanto, nada de anormal poderia conter. É verdade que, correntemente, entende-se também por saúde um estado geralmente preferível à doença. Mas essa definição está contida na precedente. De fato, se 011 caracteres cuja reunião forma o tipo normal puderam se generalizar numa espécie, há uma razão para isso. Ess11 1J/SllNÇÀ O ENTRE NORMAL E PA TOLÓGJCO 61 gl'neralidade é ela mesma um fato que tem necessidade iil' ser explicado e que, para tanto, reclama uma causa. < >ra, ela seria inexplicável se as formas de organização 111;1is difundidas não fossem também, pelo menos em seu 1mzjunto, as mais vantajosas. Como teriam elas podido se 111:1nter numa tão grande variedade de circunstâncias, se 11:10 capacitassem os indivíduos a resistir melhor às causas , k- destruição? Ao contrário, se as outras são mais raras, é , ·videntemente porque, na média dos casos, os indivíduos , 1uc as representam têm mais dificuldade de sobreviver. A 111:1ior freqüência das primeiras é portanto a prova de sua セQ@ pcrioridade4. II Essa última observação fornece inclusive um meio de , , introlar os resultados do precedente método. lJma vez que a generalidade, que caracteriza exterior1111 ·ntc os fenômenos normais, é ela própria um fenômeno ""Plicável, compete, depois que ela foi diretamente estal 11 ·l, ·cida pela observação, procurar explicá-la. Certamente i" ll il'mos estar seguros de antemão de que ela tem uma , NQセ[L@ mas o melhor é saber com precisão qual é essa cau·.. 1 < :, im efeito, o caráter normal do fenômeno será mais 1111, intestável se demonstrarmos que o sinal exterior que o 11.1\·1;1 revelado a princípio não é puramente aparente, mas "1111 lundado na natureza das coisas; em uma palavra, se 111111, ·rmos erigir essa normalidade de fato em normalidade ili· dirl'ito. Essa demonstração, de resto, nem sempre conセィャQイ[@ l'tn mostrar que o fenômeno é útil ao organismo, 11i11d:1 que este seja o caso mais freqüente, pelas razões IJlll" ;1c;1hamos de mencionar; mas pode ocorrer também, 11111111 ;issinalamos mais acima, que uma disposição seja 62 AS REGRAS no MÍ<.TODO SOCJOLÓG!CO normal sem servir a nada, simplesmente porque está necessariamente implicada na natureza do ser. Assim, talvez fosse útil que o parto não causasse problemas tão violentos ao organismo feminino; mas isso é impossível. Em conseqüência, a normalidade do fenômeno será explicada pelo simples fato de estar ligada às condições de existência da espécie considerada, seja como um efeito mecanicamente necessário dessas condições, seja como um meio que permite aos organismos adaptarem-se a elas". Essa prova não é simplesmente útil a título de controle. Convém não esquecer, com efeito, que, se há interesse em distinguir o normal do anormal, é sobretudo com vistas a esclarecer a prática. Ora, para agir com conhecimento ele causa não basta saber o que devemos querer, mas por que o devemos. As proposições científicas, relativas ao estado normal, serào mais imediatamente aplicáveis aos casos particulares quando estiverem acompanhadas de suas razões; pois então saberemos reconhecer melhor em que casos convém modificá-las, ao aplicálas, e em que sentido. Há inclusive circunstâncias em que essa verificação é rigorosamente necessária, porque o primeiro método, se fosse empregado sozinho, poderia induzir a erro. É o que acontece nos períodos de transição em que a espécie inteira está em via de evoluir, sem estar ainda definitivamente fixada em uma forma nova. Nesse caso, o único tipo normal que se encontra desde já realizado e dado nos fatos é o do passado; no entanto ele não está mais em harmonia com as novas condições de existência. Um fato pode assim persistir em toda a extensão de uma espécie, embora não mais corresponda às exigências da situação. Nesse caso, portanto, ele só tem as aparências da normalidade; a generalidade que apresenta não é senão um rótulo mentiroso, posto que, mantendo-se apenas pela força DJS7JNÇ'ÀO RNJRE NORMAL E PATOLÓGICO 63 cega do hábito, ela não é mais o indicador de que o fenCJmeno observado está intimamente ligado às condiçC>es gerais da existência coletiva. Essa dificuldade, aliás, é específica à sociologia. Ela não existe', por assim dizer, para o biólogo. Com efeito, é muito raro que as espécies animais 5ejam obrigadas a tomar formas imprevistas. As únicas modificaçôes normais pelas quais elas passam são aquelas que se reproduzem regularmente em cada indivíduo, principalmente sob a influência da idade. Portanto elas são conhecidas ou podem sê-lo, já que se realizaram numa grande quantidade de casos; em vista disso se pode saber, a cada momento do desenvolvimento do animal, e mesmo nos períodos de crise, em que consiste o estado normal. O mesmo acontece em sociologia em relação às Nセッ」ゥ・、。ウ@ que pertencem às espécies inferiores. Como muitas delas já cumpriram toda a sua carreira, a lei de sua l'volução normal está ou pelo menos pode ser estabelecida. Mas, quando se trata das sociedades mais elevadas e mais recentes, essa lei é desconhecida por definição, já < 1ue elas ainda não percorreram toda a sua história. O so<·iúlogo pode, assim, ter dificuldades para saber se um fe1H)meno é normal ou não, estando privado de qualquer 1H mto de referência. Ele sairá da dificuldade procedendo como acabamos <il' dizer. Após ter estabelecido pela observação que o fa1• >L' geral, ele remontará às condições que determinaram GBセᄋᆰ@ generalidade no passado e procurará saber, a seguir, »< · lais condições ainda se verificam no presente ou, ao '' >11tr;üio, se alteraram. No primeiro caso, ele terá o direi1• • dl' qualificar o fenômeno de normal e, no segundo, de 11 ·1 11s;1r-lhe esse caráter. Por exemplo, para saber se o es1.11 I• >l'conômico atual dos povos europeus, com a ausên' 1.1 1 il' organização6 que é a sua característica, é normal '111 11ao, investigar-se-á aquilo que, no passado, deu ori- 64 AS REGRAS DO MÉTODO SOC10LÓGJCO gema ele. Se essas condições são ainda aquelas nas quais se encontram atualmente nossas sociedades, é porque a situação é normal, a despeito dos protestos que provoca. Se, ao contrário, verificar-se que ela está ligada a essa velha estrutura social que qualificamos alhures de segmentar7 e que, após ter sido a ossatura essencial das sociedades, vai-se apagando cada vez mais, deveremos concluir que ela constitui presentemente um estado mórbido, por mais universal que seja. É de acordo com o mesmo método que deverão ser resolvidas todas as questões controversas desse gênero, como as de saber se o enfraquecimento das crenças religiosas ou se o desenvolvimento dos poderes do Estado são fenômenos normais ou nãoH. Contudo, esse método não poderia, em caso nenhum, substituir o precedente, nem mesmo ser empregado primeiro. A começar porque ele levanta questões que teremos de examinar adiante e que só podem ser abordadas quando a ciência já avançou suficientemente; pois ele implica, em suma, uma explicação quase completa dos fenômenos, na medida em que supõe sejam determinadas suas causas ou suas funções. Ora, é importante que, desde o início da pesquisa, se possam classificar os fatos em normais e anormais, ressalvando-se alguns casos excepcionais, a fim de poder atribuir à fisiologia e à patologia os respectivos domínios. Em seguida, é em relação ao tipo normal que um fato deve ser considerado útil ou necessário para poder ele próprio ser qualificado de normal. Caso contrário, poder-se-ia demonstrar que a doença se confunde com a saúde, já que ela deriva necessariamente do organismo afetado; é apenas com o organismo médio que ela não mantém a mesma relação. Do mesmo modo, a aplicação de um remédio, sendo útil ao doente, poderia ser vista como um fenômeno normal ' quando é evidente-1 mente anormal, pois só em circunstâncias anormais tem nIS77NÇÀO ENTRE NORMAL E PATOLÓGICO 65 essa utilidade. Portanto só podemos servir-nos desse método se o tipo normal estiver constituído, e isso somente é possível por outro procedimento. Enfim, e sobretudo, se é verdade que tudo o que é normal é útil, com a condição de ser necessário, é falso que tudo o que é útil seja normal. Podemos ter certeza de que os estados que se generalizaram na espécie são mais úteis do que os que permaneceram excepcionais, mas não de que os mais úteis é que existem ou que podem existir. Não temos nenhuma razão para acreditar que todas as combinações possíveis foram tentadas no curso da experiência e, entre aquelas jamais realizadas, mas concebíveis, talvez muitas sejam mais vantajosas que as que conhecemos. A noção de útil excede a de normal; ela está para esta assim como o gênero está para a espécie. Ora, é impossível deduzir o mais do menos, a espécie do gênero. Mas pode-se encontrar o gênero na espécie, já que esta o contém. Por isso, uma vez constatada a generalidade do fenômeno, podem-se confirmar os resultados do primeiro método, mostrando como ele serveY. Podemos assim formular as três regras seguintes: Um fato social é normal para um tipo social determinado, considerado numa fase determinada de seu desenvolvimento, quando ele se produz na média das sociedades dessa espécie, consideradas na fase correspondente de sua evolução. 2) Os resultados do método precedente podem ser verificados mostrando-se que a generalidade do fenômeno se deve às condições gerais da vida coletiva no tipo social considerado. 3) Essa verificação é necessária quando esse fato se relaciona a uma espécie social que ainda não consumou sua evolução integral. 1) 66 AS REGRAS DO MÉTODO SOCWLÔGJCO III Estamos tão habituados a resolver com uma palavra essas questões difíceis e a decidir rapidamente, a partir de observações sumárias e à base de silogismos, se um fato social é normal ou não, que esse procedimento talvez vá ser considerado inutilmente complicado. Não parece preciso dar-se tanto trabalho para distinguir a doença da saúde. Acaso não fazemos diariamente distinções desse tipo? É verdade; mas resta saber se as fazemos devidamente. O que nos mascara as dificuldades desses problemas é que vemos o biólogo resolvê-los com relativa facilidade. Mas esquecemos que é muito mais fácil para ele do que para o sociólogo perceber como cada fenômeno afeta a força de resistência do organismo e com isso determinar seu caráter normal ou anormal com uma exatidão praticamente suficiente. Em sociologia, a complexidade e a mobilidade maiores dos fatos obrigam a muitas precauções, como provam os julgamentos contraditórios feitos sobre o mesmo fenômeno por diferentes partidos. Para mostrar bem o quanto essa cautela é necessária, façamos ver, por alguns exemplos, em que erros se incorre quando ela não é respeitada e sob que luz nova os fenômenos mais essenciais aparecem quando são tratados metodicamente. Se há um fato cujo caráter patológico parece incontestável, é o crime. Todos os criminologistas estão de acordo nesse ponto. Ainda que expliquem essa morbidez de maneiras diferentes, eles são unânimes em reconhecêla. O problema, porém, deveria ser tratado com menos presteza. Apliquemos, com efeito, as regras precedentes. O crime não se observa apenas na maior parte das sociedades desta ou daquela espécie, mas em todas as sociedades de todos os tipos. Não há nenhuma onde não exista uma cri- f)JS11NÇÀO f;,iVTRE NORMAL E PATOLÔGJCO 67 minalidadc. Esta muda de forma, os atos assim qualificados não são os mesmos em toda parte; mas, sempre e em toda parte, houve homens que se conduziram de maneira a atrair sobre si a repressão penal. Se, pelo menos, à medida que as sociedades passam dos tipos inferiores aos mais elevados, o índice de criminalidade - isto é, a relação entre o número anual dos crimes e o da população - tendesse a diminuir, poder-se-ia supor que, embora permaneça um fenômeno normal, o crime tende, no entanto, a perder esse caráter. Mas não temos razão nenhuma que nos permita acreditar na realidade dessa regressão. Muitos fatos pareceriam antes demonstrar a existência de um movimento no sentido inverso. Desde o começo do século, a L'statística nos fornece o meio de acompanhar a marcha da criminalidade; ora, por toda parte ela aumentou. Na Fran<.;a, o aumento é de cerca de 300 por cento. Não há portanto fenômeno que apresente da maneira mais irrecusável todos os sintomas da normalidade, já que ele se mostra intimamente ligado às condições de toda vida coletiva. Fazer do crime uma doença social seria admitir que a doença nào é algo acidental, mas, ao contrário, deriva, em certos casos, da constituição fundamental do ser vivo; seria apagar toda distinção entre o fisiológico e o patológico. Certamente pode ocorrer que o próprio crime tenha formas anormais; é o que acontece quando, por exemplo, ele ;1tinge um índice exagerado. Não é duvidoso, com efeito, que esse excesso seja de natureza mórbida. O que é normal é simplesmente que haja uma criminalidade, contanto < 1ue esta atinja e não ultrapasse, para cada tipo social, certo nível que talvez não seja impossível fixar de acordo ('0111 as regras precedentesio. Eis-nos em presença de uma conclusão, aparenterm·nte, bastante paradoxal. Pois não devemos iludir-nos quanto a ela. Classificar o crime entre os fenômenos de 68 AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO sociologia normal é não apenas dizer que ele é um fenômeno inevitável ainda que lastimável, devido à incorrigível maldade dos homens; é afirmar que ele é um fator da saúde pública, uma parte integrante de toda sociedade sadia. Esse resultado, à primeira vista, é bastante surpreendente para que tenha desconcertado a nós próprios e por muito tempo. Entretanto, uma vez dominada essa primeira impressão de surpresa, não é difícil encontrar as razões que explicam essa normalidade e, ao mesmo tempo, a confirmam. Em primeiro lugar, o crime é normal porque uma sociedade que dele estivesse isenta seria inteiramente impossível. O crime, conforme mostramos alhures, consiste num ato que ofende certos sentimentos coletivos dotados de uma energia e de uma clareza particulares. Para que, numa sociedade dada, os atos reputados criminosos pudessem deixar de ser cometidos, seria preciso que os sentimentos que eles ferem se verificassem em todas as consciências individuais sem exceção e com o grau de força necessário para conter os sentimentos contrários. Ora, supondo que essa condição pudesse efetivamente ser realizada, nem por isso o crime desapareceria, ele simplesmente mudaria de forma; pois a causa mesma que esgotaria assim as fontes da criminalidade abriria imediatamente novas. Com efeito, para que os sentimentos coletivos protegidos pelo direito penal de um povo, num momento determinado de sua história, consigam penetrar nas consciências que lhes eram então fechadas ou ter mais influência lá onde não tinham bastante, é preciso que eles adquiram uma intensidade superior ã que possuíam até então. É preciso que a comunidade como um todo os sinta com mais ardor; pois eles não podem obter de outra fonte a força maior que lhes permite impor-se aos indivíduos que lJJSTTNÇÀO ENIRE NORil!fAL E PATOLÓGICO 69 até então lhes eram mais refratários. Para que os assassinos desapareçam, é preciso que o horror do sangue derramado torne-se maior naquelas camadas sociais em que se recrutam os assassinos; mas, para tanto, é preciso que ele se torne maior em toda a extensão da sociedade. Aliás, a ausência mesma do crime contribuiria diretamente para produzir esse resultado; pois um sentimento mostra-se muito mais respeitável quando ele é sempre e uniformemente respeitado. Mas não se percebe que esses estados fortes da consciência comum não podem ser assim reforçados sem que os estados mais fracos, cuja violação dava antes origem apenas a faltas puramente morais, sejam igualmente reforçados; pois os segundos são apenas o prolongamento, a forma atenuada dos primeiros. Assim, o roubo e a simples indelicadeza não ofendem senão um único e mesmo sentimento altruísta: o respeito à propriedade de outrem. Só que esse mesmo sentimento é ofendido de modo mais fraco por um desses atos do que pelo outro; e como, além disso, ele não tem na média das consciências uma intensidade suficiente para sentir viva mente a mais leve dessas duas ofensas, esta será objeto de uma maior tolerância. Eis por que se censura simplesmente o indelicado, ao passo que o ladrão é punido. Mas se o mesmo sentimento tornar-se mais forte, a ponto de fazer calar em todas as consciências aquilo que inclina o homem ao roubo, ele se tornará mais sensível às lesões que, até então, apenas o tocavam levemente; ele reagirá portanto com mais firmeza contra elas; tais lesões serão <>bjeto de uma reprovação mais enérgica que fará passar ;tlgumas delas, de simples faltas morais que eram, ao estado de crimes. Por exemplo, os contratos indelicados ou · indelicadamente executados, que implicam apenas uma reprovação pública ou reparações civis, se tornarão delitos. Imaginem uma sociedade de santos, um claustro 70 AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO exemplar e perfeito. Os crimes propriamente ditos nela serão desconhecidos; mas as faltas que parecem veniais ao vulgo causarão o mesmo escândalo que produz o delito ordinário nas consciências ordinárias. Portanto, se essa sociedade estiver armada do poder de julgar e de punir, ela qualificará esses atos de criminosos e os tratará como tais. É pela mesma razão que o homem honesto julga suas menores fraquezas morais com uma severidade que a multidão reserva aos atos verdadeiramente delituosos. Outrora, as violências contra as pessoas eram mais freqüentes do que hoje, porque o respeito pela dignidade individual era menor. Como este aumentou, esses crimes tornaram-se mais raros; em compensação, muitos atos que lesavam esse sentimento entraram no direito penal, no qual primitivamente não constavam li. Talvez se pergunte, para esgotar todas as hipóteses logicamente possíveis, por que essa unanimidade não se estenderia a todos os sentimentos coletivos sem exceção; por que mesmo os mais fracos não adquiririam suficiente energia para prevenir qualquer dissidência. A consciência moral da sociedade se manifestaria por inteiro em todos os indivíduos e com uma vitalidade suficiente para impedir todo ato que a ofendesse, tanto as faltas puramente morais como os crimes. Mas uma uniformidade tão universal e tão absoluta é radicalmente impossível; pois o meio físico imediato no qual cada um de nós se encontra, os antecendentes hereditários, as influências sociais de que dependemos variam de um indivíduo a outro e, por .conseguinte, diversificam as consciências. Não é possível que todos se assemelhem nesse ponto, pela simples razão de que cada um tem seu organismo próprio, e esses organismos ocupam porções diferentes do espaço. Por isso, mesmo nos povos inferiores, nos quais a originalidade individual é muito pouco desenvolvida, ela não chega a ser DIS11NÇÀO ENTRE NORMAL E PATOLÓGICO 71 nula. Assim, como não pode haver sociedade em que os indivíduos não divirjam em maior ou menor grau do tipo coletivo, é também inevitável que, entre essas divergências, haja algumas que apresentem um caráter criminoso. Pois o que confere a elas esse caráter não é sua importância intrínseca, mas a que lhes atribui a consciência comum. Se esta é mais forte, se tem suficiente autoridade para tornar essas divergências muito fracas em valor absoluto, ela será também mais sensível, mais exigente, e, reagindo contra os menores desvios com a energia que manifesta alhures apenas contra dissidências mais consideráveis, irá atribuir-lhes a mesma gravidade, ou seja, irá marcá-los como criminosos. O crime é portanto necessário; ele está ligado às condições fundamentais de toda vida social e, por isso mesmo, é útil; pois as condições de que ele é solidário são elas mesmas indispensáveis à evolução normal da moral e do direito. De fato, não é mais possível hoje contestar que não apenas o direito e a moral variam de um tipo social a outro, como também mudam em relação a um mesmo tipo, se as condições da existência coletiva se modificam. Mas, para que essas transformações sejam possíveis, é preciso que os sentimentos coletivos que estão na base da moral não sejam refratários à mudança, que tenham, portanto, apenas uma energia moderada. Se fossem demasiado fortes, deixariam de ser plásticos. Todo arranjo, com efeito, é um obstáculo a um novo arranjo, e isso tanto mais quanto mais sólido for o arranjo primitivo. Quanto mais fortemente pronunciada for uma estrutura, mais resistência ela oporá a qualquer modificação, e isso vale tanto para os arran• jos funcionais como para os anatômicos. Ora, se não houvesse crimes, essa condição não seria preenchida; pois tal hipótese supõe que os sentimentos coletivos teriam chega- 72 AS REGRAS DO MÉTODO SOC10LÓGJCO do a um grau de intensidade sem exemplo na história. Nada é bom indefinidamente e sem medida. É preciso que a autoridade que a consciência moral possui não seja excessiva; caso contrário, ninguém ousaria contestá-la e muito facilmente ela se cristalizaria numa forma imutável. Para que ela possa evoluir, é preciso que a originalidade individual possa vir à luz; ora, para que a do idealista que sonha superar seu século possa se manifestar, é preciso que a do criminoso, que está abaixo de seu tempo, seja possível. Uma não existe sem a outra. E não é tudo. Além dessa utilidade indireta, o próprio crime pode desempenhar um papel útil nessa evolução. Não apenas ele implica que o caminho permanece aberto às mudanças necessárias, como também, em certos casos, prepara diretamente essas mudanças. Não apenas, lá onde ele existe, os sentimentos coletivos encontram-se no estado de maleabilidade necessário para adquirir uma forma nova, como ele também contribui às vezes para predeterminar a forma que esses sentimentos irão tomar. Quantas vezes, com efeito, o crime não é senão uma antecipação da moral por vir, um encaminhamento em direção ao que será! De acordo com o direito ateniense, Sócrates era um criminoso e sua condenação simplesmente justa. No entanto seu crime, a saber, a independência de seu pensamento, era útil, não somente à humanidade, mas à sua pátria. Pois ele servia para preparar uma moral e uma fé novas, das quais os atenienses tinham então necessidade, porque as tradições segundo as quais tinham vivido até então não mais estavam em harmonia com suas condições de existência. Ora, o caso de Sócrates não é isolado; ele se reproduz periodicamente na história. A liberdade de pensar que desfrutamos atualmente jamais poderia ter sido proclamada se as regras que a proibiam não tivessem sido violadas antes de serem solenemente nIS77NÇÃO ENTRE NORMAL E PA1DLÓGJCO 73 abolidas. Entretanto, naquele momento, essa violação era um crime, já que era uma ofensa a sentimentos ainda muito fortes na generalidade das consciências. Todavia esse crime era útil, pois preludiava transformações que, dia após dia, tornavam-se mais necessárias. A livre filosofia teve por precursores os heréticos de todo tipo que o braço secular justamente perseguiu durante toda a Idade Média, até as vésperas dos tempos contemporâneos. Desse ponto de vista, os fatos fundamentais da criminologia apresentam-se a nós sob um aspecto de todo novo. Contrariamente às idéias correntes, o criminoso não mais aparece como um ser radicalmente insociável, como uma espécie de elemento parasitário, corpo estranho e inassimilável, introduzido no seio da sociedade 12 ; ele é um agente regular da vida social. O crime, por sua vez, não deve mais ser concebido como um mal que não possa ser contido dentro de limites demasiado estreitos; mas, longe de haver motivo para nos felicitarmos quando lhe ocorre descer muito sensivelmente abaixo do nível ordinário, podemos estar certos de que esse progresso aparente é ao mesmo tempo contemporâneo e solidário de alguma perturbação social. Assim, o número de agressões e de ferimentos jamais cai tanto como em tempos de penúria u. Ao mesmo tempo e por via indireta, a teoria da pena se mostra renovada, ou melhor, por renovar. Com efeito, se o crime é uma doença, a pena é seu remédio e não pode ser concebida de outro modo; assim, todas as discussões que da suscita têm por objeto saber o que ela deve ser para cumprir seu papel de remédio. Mas, se o crime nada tem de mórbido, a pena não poderia ter por objeto curá-lo e Nセオ。@ verdadeira função deve ser buscada em outra parte. Portanto as regras precedentemente enunciadas estão longe de terem como única razão de ser a satisfação de um formalismo lógico sem grande utilidade, uma vez que, 74 AS REGRAS DO MÉTODO SOC70LÓGICO ao contrário, conforme as apliquemos ou não, os fatos sociais mais essenciais mudam totalmente de caráter. Se esse exemplo, aliás, é particularmente demonstrativo - e por isso julgamos que era preciso nos determos nele -, há muitos outros que poderiam ser utilmente citados. Não existe sociedade na qual não seja de regra que a pena deve ser proporcional ao delito; entretanto, para a escola italiana, esse princípio não passa de uma invenção de juristas, desprovida de qualquer soliclez14 Inclusive, para esses criminologistas, é a instituição penal inteira, tal como funcionou até o presente em todos os povos conhecidos, que é um fenômeno antinatural. Já vimos que, para o sr. Garofalo, a criminalidade específica às sociedades inferiores nada tem de natural. Para os socialistas, é a organização capitalista, apesar de sua generalidade, que constitui um desvio elo estado normal, produzido pela violência e o artifício. Para Spencer, ao contrário, é nossa centralização administrativa, é a extensão dos poderes governamentais o vício radical ele nossas sociedades, e isso apesar de ambas progredirem de maneira mais regular e universal à medida que avançamos na história. Não cremos que em nenhum desses casos se aceite como critério sistemático decidir do caráter normal ou anormal elos fatos sociais com base no grau ele generalidade deles. É sempre à força ele muita dialética que essas questões são decididas. Entretanto, não respeitado esse critério, incorre-se não somente em confusões e em erros parciais, como os que acabamos de lembrar, mas a ciência mesma torna-se impossível. Com efeito, esta tem por objeto imediato o estudo do tipo normal; ora, se os fatos mais gerais podem ser mórbidos, é possível que o tipo normal jamais tenha existido nos fatos. Sendo assim, ele que serve estudá-los? Eles podem apenas confirmar nossos preconceitos e enraizar nossos erros, já que deles resultam. Se a pena, se a ! !IST!iVÇÀO ENTRE NORMAL E PA TOLÓG!CO 75 responsabilidade, tais como existem na história, não são senão um produto ela ignorância e da barbárie, ele que adianta dedicar-se a conhecê-las para determinar suas formas normais? Assim, o espírito é levado a afastar-se de uma realidade desde então sem interesse, voltando-se sohre si mesmo e buscando dentro ele si os materiais neces.s:trios para reconstruí-la. Para que a sociologia trate os fatos como coisas, é preciso que o sociólogo sinta a necessidade ele aprender com eles. Ora, como o objeto principal de toda ciência da vida, tanto individual como social, C-, em suma, definir o estado normal, explicá-lo e distingui-lo ele seu contrário, se a normalidade nào acontecer nas coisas mesmas, se, ao contrário, ela for um caráter que imprimimos desde fora nestas ou que lhes recusamos por razões quaisquer, acaba-se essa salutar dependência. <) espírito se acha à vontade diante elo real, que nada de muito importante tem a lhe ensinar; ele não mais é contido pela matéria à qual se aplica, uma vez que é ele, de certo modo, que a determina. As diferentes regras que estabelecemos até o presente são portanto intimamente solitbrias. Para que a sociologia seja realmente uma ciência de coisas, é preciso que a generalidade dos fenômenos .seja tomada como critério de sua normalidade. Nosso método, aliás, tem a vantagem de regular a ZQセNᄋ¢ッ@ ao mesmo tempo que o pensamento. Se o desejável 1üo é objeto de observação, mas pode e deve ser determinado por uma espécie ele cálculo mental, nenhum limite, por assim dizer, pode ser imposto às livres invenções da imaginação em busca do melhor. Pois, como atribuir à perl't·ic,;ào um termo que ela não pode ultrapassar? Ela escapa, por definição, a qualquer limite. O objetivo da humanidade· rl'cua portanto ao infinito, desencorajando uns por seu :11'astamento mesmo, estimulando e apaixonando outros que, para dele se aproximar um pouco, aceleram o passo e 76 AS REGRAS DO MiTODO SOCIOLÓGICO se precipitam nas revoluções. Escapamos desse dilema prático se o desejável for a saúde, e se a saúde for algo de definido e de dado nas coisas, pois o termo do esforço é dado e definido ao mesmo tempo. Não se trata mais de perseguir desesperadamente um fim que se afasta ã medida que avançamos, mas de trabalhar com uma regular perseverança para manter o estado normal, para restabelecê-lo se for perturbado, para redescobrir suas condições se elas vierem a mudar. O dever do homem de Estado não é mais impelir violentamente as sociedades para um ideal que lhe parece sedutor, mas seu papel é o do médico: ele previne a eclosão das doenças mediante uma boa higiene e, quando estas se manifestam, procura curá-lasl'i. CAPÍTULO IV REGRAS RELATIVAS À CONSTITUIÇÃO DOS TIPOS SOCIAIS Visto que um fato social só pode ser qualificado de normal ou de anormal em relação a uma espécie social determinada, o que precede implica que um ramo da sociologia é dedicado ã constituição dessas espécies e ã sua classificação. Essa noção de espécie social tem, aliás, a grande vantagem de nos fornecer um meio-termo entre as duas concepções contrárias da vida coletiva que por muito tempo dividiram os espíritos: refiro-me ao nominalismo dos historiadores1 e ao realismo extremo dos filósofos. Para o historiador, as sociedades constituem individualidades heterogêneas, incomparáveis entre si. Cada povo tem sua fisionomia, sua constituição específica, seu direito, sua moral, sua organização econômica que convêm só a ele, e toda generalização é praticamente impossível. Para o filósofo, ao contrário, todos esses agrupamentos particulares, que chamamos tribos, cidades, nações, não são mais que combinações contingentes e provisórias sem realidade própria. Apenas a humanidade é real e é dos atributos ge- 78 AS RHGRAS DO MÍffODO SOCIOLÓGICO rais da natureza humana que decorre toda a evolução social. Para os primeiros, portanto, a história não é senão uma seqüência de acontecimentos que se encadeiam sem se reproduzir; para os segundos, esses mesmos aconteci- · mentas só têm valor e interesse como ilustração das leis gerais que estão inscritas na constituição do homem e que dominam todo o desenvolvimento histórico. Para aqueles, o que é bom para uma sociedade não poderia aplicar-se às outras. As condições do estado de saúde variam de um povo a outro e não podem ser determinadas teoricamente; é uma questão de prática, de experiência, de tentativas. Para os outros, essas condições podem ser calculadas de uma vez por todas e para o gênero humano inteiro. Parecia, portanto, que a realidade social ou seria o objeto de uma filosofia abstrata e vaga, ou de monografias puramente descritivas. Mas escapamos a essa alternativa tão logo reconhecemos que, entre a multidão confusa das sociedades históricas e o conceito único, mas ideal, da humanidade, existem intermediários: são as espécies sociais. Na idéia de espécie, com efeito, acham-se reunidas tanto a unidade que toda pesquisa verdadeiramente científica exige, como a diversidade que é dada nos fatos, já que a espécie é a mesma em todos os indivíduos que *dela fazem parte* e, por outro lado, as espécies diferem entre si. Continua sendo verdade que as instituições morais, jurídicas, econômicas, etc. são infinitamente variáveis, mas essas variações não são de natureza a não permitir nenhuma apreensão pelo pensamento científico. Foi por ter desconhecido a existência de espécies sociais que Comte julgou poder representar o progresso das sociedades humanas como idêntico ao de um povo único "ao qual seriam idealmente referidas todas as modificações *"a encarnam" (R.P, p. 599.) NEGRAS RELA11VAS À CONS77TUJÇ'.4.0 DOS 77POS SOCIAIS 79 consecutivas observadas nas populações distintas" 2 • É que, de fato, se existe apenas uma única espécie social, as sociedades particulares não podem diferir entre si a não ser em graus, conforme apresentem mais ou menos completamente os traços constitutivos dessa espécie única, conforme *exprimam* mais ou menos perfeitamente a humanidade. Se, ao contrário, existem tipos sociais qualitativamente distintos uns dos outros, não se poderá fazer que eles se unam exatamente como as seções homogêneas de uma rela geométrica, por mais que os aproximemos. O desenvolvimento histórico perde deste modo a unidade ideal e simplista que lhe atribuíam; ele se fragmenta, por assim dizer, numa infinidade de pedaços que, por diferirem especificamente uns dos outros, não poderiam ligar-se de maneira contínua. A famosa metáfora de Pascal, retomada depois por Comte, mostra-se assim desprovida de verdade. Mas como fazer para constituir tais espécies? À primeira vista, pode parecer que não haja outra 1llaneira de proceder senão estudar cada sociedade em particular, fazer dela uma monografia tão exata e tão (·e impleta quanto possível, a seguir comparar todas essas 1llonografias entre si, ver em que ponto elas concordam e (·m que ponto divergem e, então, conforme a importância n·lativa dessas similitudes e dessas divergências, classifi( ·:1r os povos em grupos semelhantes ou diferentes. Em .qmio a esse método, faz-se notar que ele só é admissível 1n1ma ciência de observação. A espécie, com efeito, é o ョᄋNセオュッ@ dos indivíduos; portanto, como constituí-la se não ' "encarnem" (R.P, p. 599.) 80 AS REGRAS DO MÉ'TODO SOCIOLÓGICO se começa por descrever cada um deles e por descrevê-lo inteiramente? Acaso não é uma regra a de somente elevarse ao geral após se ter observado o particular e todo o particular? Foi por essa razão que se quis às vezes adiar a sociologia até uma época indefinidamente remota, em que a história, no estudo que realiza das sociedades particulares, terá chegado a resultados suficientemente objetivos e definidos para poderem ser proveitosamente comparados. Mas, em realidade, essa cautela só aparentemente é científica. É inexato, com efeito, que a ciência só possa instituir leis após ter passado em revista todos os fatos que elas exprimem, ou só formar gêneros após ter descrito, em sua integralidade, os indivíduos que eles compreendem. O verdadeiro método experimental tende, antes, a substituir os fatos vulgares - que só são demonstrativos com a condição de serem numerosos e que, portanto, permitem apenas conclusões sempre suspeitas - por fatos decisivos ou cruciais, como dizia Bacon\ que, por si mesmos e independentemente de seu número, têm um valor e um interesse científicos. É sobretudo necessário proceder deste modo quando se trata de constituir gêneros e espécies. Pois fazer o inventário de todas as características de um indivíduo é um problema insolúvel. Todo indivíduo é um infinito e o infinito não pode ser esgotado. Iremos nos ater às propriedades mais essenciais? Mas com base em que princípio faremos a triagem? Para isso é preciso um critério que supere o indivíduo e que as monografias mais bem-feitas não poderiam, portanto, nos fornecer. Mesmo sem levar as coisas a esse rigor, pode-se prever que, quanto mais numerosos os caracteres que servirão de base à classificação, tanto mais difícil será que as diversas maneiras como eles se combinam nos casos particulares apresentem semelhanças bastante claras e diferenças bastante nítidas para permitir a constituição de gmpos e subgmpos definidos. REGRAS RfiA1lVAS À CONSTTTUIÇÀO DOS TIPOS SOCIAIS 81 Mas ainda que uma classificação fosse possível com base nesse método, ela teria o grande defeito de não prestar os serviços que são sua razão de ser. Com efeito, ela deve, antes de tudo, ter por objeto abreviar o trabalho científico ao substituir a multiplicidade indefinida dos indivíduos por um número restrito de tipos. Mas ela perde essa vantagem se esses tipos só forem constituídos após todos os indivíduos terem sido passados em revista e analisados inteiramente. Uma tal classificação não facilitará muito a pesquisa, se não fizer mais que resumir as pesquisas já feitas. Ela só será verdadeiramente útil se nos permitir classificar outros caracteres que não aqueles que lhe servem de base, se nos proporcionar quadros para os fatos futuros. Seu papel é o de nos munir de pontos de referência aos quais possamos relacionar outras observações que não aquelas que nos forneceram esses próprios pontos de イ・セ@ ferência. Mas, para isso, é preciso que ela seja feita, não a partir de um inventário completo de todos os caracteres individuais, mas a partir de um pequeno número deles, cuidadosamente escolhidos. Nessas condições, ela não servirá apenas para pôr um pouco de ordem nos conhecimentos já obtidos; servirá para produzir outros. Ela poupar:1 muitos passos ao observador, porque irá guiá-lo. Assim, uma vez estabelecida a classificação sobre esse princípio, para saber se um fato é geral numa espécie, não será necessário ter observado todas as sociedades dessa espécie; algumas serão suficientes. Inclusive, em muitos casos, bastará somente uma observação bem-feita, assim como uma l'Xperiência bem conduzida é suficiente, muitas vezes, para o estabelecimento de uma lei. Devemos portanto escolher para nossa classificação l·aracteres particularmente essenciais. É verdade que não se 1l< >de conhecê-los a não ser que a explicação dos fatos es1l'ja suficientemente avançada. Essas duas partes da ciência 82 NI!< ;RAS REIA 77VAS À CONS71171!ÇÀO DOS 77POS SOCIAIS AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO sào solidárias e progridem uma através da outra. No entanto, mesmo sem avançar muito no estudo dos fatos, nào é difícil conjeturar onde é preciso buscar as propriedades características dos tipos sociais. Sabemos, com efeito, que as sociedades sào compostas de partes reunidas umas às outras. Já que a natureza de toda resultante depende necessariamente ela natureza, do número dos elementos componentes e de seu modo ele combinaçào, esses caracteres sào evidentemente aqueles que devemos tomar por base, e veremos a seguir, com efeito, que é deles que dependem os fatos gerais ela vida social. Por outro lado, como eles sào ele ordem morfológica, poderíamos chamar Mm:fologia social a parte da sociologia que tem por tarefa constituir e classificar os tipos sociais. Pode-se inclusive precisar ainda mais o princípio dessa classificaçào. Sabe-se, com efeito, que as partes constitutivas de que é formada toda sociedade sào sociedades mais simples do que ela. Um povo é formado pela reuniào de dois ou vários povos que o precederam. Portanto, se conhecêssemos a sociedade mais simples que até hoje existiu, precisaríamos apenas, para fazer nossa classificaçào, seguir a maneira como essa sociedade se compõe consigo mesma e como seus compostos se compõem entre si. II Spencer compreendeu muito bem que a classificaçào metódica elos tipos sociais não podia ter outro fundamento. "Vimos, diz ele, que a evolução social começa por pequenos agregados simples; que ela progride pela uniào de alguns desses agregados em agregados maiores e que, após se consolidarem, esses grupos se unem com outros Nセ」ュ・ャィ。ョエウ@ 83 a eles para formar agregados ainda maiores. Nossa classificaçào deve portanto começar por sociedades d:t primeira ordem, isto é, da mais simples." 4 Infelizmente, para pôr esse princípio em prática, seria ire ciso começar por definir com precisào o que se enten1 (!e por sociedade simples. Ora, essa definiçào, nào apenas .'ipcncer nào a dá, como também a considera mais ou menos impossível5. É que a simplicidade, tal corno ele a enlcnde, consiste essencialmente numa certa rudeza de organização. Ora, nào é fácil dizer com exatidão em que mo111ento a organização social é suficientemente rudimentar para ser qualificada de simples; é uma questão de apreciado. Assim, a fórmula que ele oferece é tão vaga que ccmvém a todo tipo de sociedades. "Nada de melhor temos a Lizer, diz ele, do que considerar corno sociedade simples :tquela que forma um todo nào subordinado a outro e cuj:1s partes cooperam com ou sem centro regulador, tendo l'll1 vista certos fins de interesse público."<> Mas há muitos povos que satisfazem a essa condição. Disso resulta que (·!e confunde, um pouco ao acaso, sob essa mesma rubric:t todas as sociedades menos civilizadas. Imagine-se o qt:e pode ser, com semelhante ponto de partida, o resto (!e sua classificação. Vemos aproximadas nela, na mais esp:1ntosa confusào, as sociedades mais diversas: os gregos l ll nnéricos postos ao lado dos feudos do século X e abaixo dos bechuanas, dos zulus e dos fijianos, a confederaçào :ttcniense ao lado dos feudos da França elo século XIII e .iliaixo dos iroqueses e dos araucanos. A palavra simplicidade só tem sentido definido se Nセゥァョヲ」。イ@ uma ausência completa ele partes. Por sociedade Nセゥューャ・ウL@ portanto, deve-se entender toda sociedade que 1i:1o encerra outras, mais simples do que ela; que nào .1penas está atualmente reduzida a um segmento único, 111as também que nào apresenta nenhum traço ele uma 84 AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO segmentação anterior. A horda, tal como a definimos alhures7 , corresponde exatamente a essa definição. Tratase de um agregado que não compreende e jamais compreendeu em seu seio nenhum outro agregado mais elementar, mas que se decompõe imediatamente em indivíduos. Estes não formam, no interior do grupo total, grupos especiais e diferentes do precedente; eles se justapõem à maneira de átomos. Concebe-se que não possa haver sociedade mais simples; esse é o protoplasma do reino social e, conseqüentemente, a base natural de toda classificação. É verdade que talvez não exista sociedade histórica que corresponda exatamente a essa identificação; mas, tal como mostramos no livro já citado, conhecemos uma quantidade delas que são formadas, imediatamente e sem outro intermediário, por uma repetição de hordas. Quando a horda se torna, assim, um segmento social em vez de ser a sociedade inteira, ela chama-se clã; mas conserva os mesmos traços constitutivos. O clã, com efeito, é um agregado social que não se decompõe em nenhum outro, mais restrito. Poderão talvez assinalar que, geralmente, lá onde o observamos hoje, ele encerra uma pluralidade de famílias particulares. Mas, em primeiro lugar, por razões que não podemos desenvolver aqui, cremos que a formação desses pequenos grupos familiares é posterior ao clã; além disso, essas famílias não constituem, para falar com exatidão, segmentos sociais porque elas não são divisões políticas. Onde quer que o encontremos, o clã constitui a última divisão desse gênero. Em conseqüência, ainda que não tivéssemos outros fatos para postular a existência da horda - e eles existem, como teremos a· ocasião de expor um dia -, a existência do clã, isto é, de sociedades formadas por uma reunião de hordas, nos autoriza a supor que houve primeiramente sociedades mais simples que se re- NfX;RAS RELAT!VAS À CONST/TTTIÇ'ÃO DOS T!POS SOCIAIS 85 duziam à horda propriamente dita e a fazer desta o tronco de onde saíram todas as espécies sociais. Uma vez estabelecida essa noção de horda ou sociedade de segmento único - seja ela concebida como uma realidade histórica ou como um postulado da ciência -, tem-se o ponto de apoio necessário para construir a escala completa dos tipos sociais. Iremos distinguir tantos tipos fundamentais quantas maneiras houver, para a horda, de se combinar consigo mesma dando origem a sociedades novas, e, para estas, de se combinarem entre si. Encontraremos primeiramente agregados formados por uma simples repetição de hordas ou de clãs (para dar-lhes seu novo nome), sem que esses clãs estejam associados entre si de maneira a formar grupos intermediários entre o grupo total que compreende a todos e cada um deles. Eles l'stão simplesmente justapostos como os indivíduos da horda. Encontram-se exemplos dessas sociedades, que poderiam ser chamadas pulissegmentares simples, em certas tribos iroquesas e australianas. O arch, ou tribo da Caliília, tem o mesmo caráter; trata-se de uma reunião de d;ls fixados em forma de aldeias. Muito provavelmente, houve um momento na história em que a cúria romana e ;1 /ratria ateniense eram sociedades desse gênero. Acima ,.i.riam as sociedades formadas por uma reunião de socie<Ltdes da espécie precedente, isto é, as sociedades polis'''/!,mentares simplesmente compostas. Tal é o caráter da <·< infederação iroquesa, daquela formada pela reunião das tribos cabilas; o mesmo aconteceu, na origem, com cada 111na das três tribos primitivas cuja associação deu origem, 111:1is tarde, à cidade romana. Encontraríamos a seguir as '"ciedades polissegmentares duplamente compostas, que キセオャエ。ュ@ da justaposição ou da fusão de várias sociedades 1" >i isscgmentares simplesmente compostas. É o caso da , idade, agregado de tribos, que são elas próprias agrega- 86 AS RHGRAS DO MÉTODO SOCWLÓGICO dos de cúrias, que, por sua vez, se decompôem em gentes ou clãs, e da tribo germânica, com seus condados, que se subdividem em centenas, os quais, por sua vez, têm por unidade última o clã transformado em aldeia. Não precisamos desenvolver nem levar mais adiante essas poucas indicaçôes, já que não é o caso de efetuar aqui uma classificação das sociedades. Esse é um problema demasiado complexo para poder ser tratado assim, de passagem; ele supôe, ao contrário, todo um conjunto de longas e especiais pesquisas. Quisemos apenas, por alguns exemplos, precisar as idéias e mostrar como deve ser aplicado o princípio do método. Inclusive não se deveria considerar o que precede como sendo uma classificação completa das sociedades inferiores. Simplificamos um pouco as coisas para maior clareza. Supusemos, com efeito, que cada tipo superior era formado por uma repetição de sociedades de um mesmo tipo, a saber, do tipo imediatamente inferior. Ora, não é impossível que sociedades de espécies diferentes, situadas em diferentes níveis da árvore genealógica dos tipos sociais, se reúnam de maneira a formar uma espécie nova. Sabe-se de pelo menos um caso: o Império romano, que compreendia em seu interior povos das mais diversas naturezasH. Mas, uma vez constituídos esses tipos, será preciso distinguir em cada um deles variedades diferentes, conforme as sociedades segmentares, que servem para formar a sociedade resultante, conservem uma certa individualidade, ou então, ao contrário, sejam absorvidas na massa total. Compreende-se, com efeito, que os fenômenos sociais devem variar, não apenas segundo a natureza elos elementos componentes, mas segundo seu modo de composição; eles devem sobretudo ser muito diferentes, conforme cada um dos grupos parciais conserve sua vida local ou sejam todos arrastados na vida geral, isto é, conforme estejam tmc;RAS RF!A 71VAS À CONS7171J!ÇÀO DOS TIPOS SOC!A!S 87 mais ou menos estreitamente concentrados. Deveremos portanto investigar se, num momento qualquer, se produz uma coalescência completa desses segmentos. Reconheceremos que ela ocorre se a composição original da sociedade não mais afetar sua organização administrativa e política. Desse ponto de vista, a cidade distingue-se nitidamente das tribos germânicas. Nestas últimas, a organização à base de clãs se manteve, embora apagada, até o término de sua história, ao passo que, em Roma, em Atenas, as gentes l' as yÉVll deixaram muito cedo de ser divisôes políticas para se tornarem agrupamentos privados. No interior dos lineamentos assim constituídos, poder-se-á buscar introduzir novas clistinçôes a partir elos caracteres morfológicos secundários. Entretanto, por razões que daremos mais adiante, não julgamos muito possível superar com proveito as divisões gerais que acabam de ser indicadas. Além disso, não precisamos entrar nesses detalhes, bastando-nos ter estabelecido o princípio de classificação que pode ser assim enunciado: Começar-se-á j)()r 」ャ。ウセヲゥイ@ as sociedades de acordo com o grau de cumposiçào que elas apresentam, tomando por base a so- ciedade pei:feitamente simples ou de segmento único; no i11terior dessas classes, distinguir-se-ào variedades diferentes conforme se produza ou nào uma coalescência com/1/eta dos segmentos iniciais. III Essas regras respondem implicitamente a uma questão o leitor talvez se tenha colocado ao nos ver falar de es1lL'cies sociais como se elas existissem, sem termos direta111cnte estabelecido sua existência. Essa prova está contida 1H> princípio mesmo do método que acaba de ser exposto. e 1ue 88 AS REGRAS DO MfTODO SOC!OLÓGJCO Acabamos de ver, com efeito, que as sociedades não eram mais que combinações diferentes de uma mesma e única sociedade original. Ora, um mesmo elemento só pode compor-se consigo mesmo, e os compostos que dele resultam só podem, por sua vez, compor-se entre si, segundo um número de modos limitado, sobretudo quando os elementos componentes são pouco numerosos, como é o caso dos segmentos sociais. A gama de combinações possíveis é portanto finita e, por conseguinte, a maior parte delas, pelo menos, deve se repetir. Do que se conclui que há espécies sociais. É possível, aliás, que algumas dessas combinações se produzam apenas uma vez. Isso não impede que haja espécies. Apenas se dirá, nesse caso, que a espécie tem somente um indivíduo9. Há portanto espécies sociais pela mesma razão que existem espécies em biologia. Estas, com efeito, devem-se ao fato de os organismos não serem senão combinações variadas de uma mesma unidade anatômica. Há todavia, desse ponto de vista, uma grande diferença entre os dois reinos. Pois, entre os animais, um fator especial confere aos caracteres específicos uma força de resistência que os outros não têm: é a geração. Os primeiros, por serem comuns a toda a linhagem dos ascendentes, estão bem mais fortemente enraizados no organismo. Portanto eles não se deixam facilmente afetar pela ação dos meios individuais, mas se mantêm idênticos a si mesmos, apesar da diversidade das circunstâncias exteriores. Há uma força interna que os fixa a despeito das solicitações para variar que podem vir de fora: a força dos hábitos hereditários. Por isso eles são claramente definidos e podem ser determinados com precisão. No reino social, falta-lhes essa causa interna. Os caracteres não podem ser reforçados pela geração, porque duram apenas uma geração. É de regra, com efeito, que as sociedades engendradas sejam de outra espécie tax;RAs RELA11VAS À CONSTTTTJJÇ'ÀO DOS 11POS SOCIAIS 89 que as sociedades geradoras, porque estas últimas, ao se combinarem, dão origem a arranjos inteiramente novos. Somente a colonização poderia ser comparada a uma geração por germinação; mesmo assim, para que a comparação seja exata, é preciso que o grupo de colonos não se misture com uma sociedade de outra espécie ou de outra variedade. Os atributos distintivos da espécie não recebem portanto da hereditariedade um acréscimo de !orça que lhe permita resistir às variações individuais. l·:les se modificam e se matizam ao infinito sob a ação das circunstâncias; assim, quando se quer atingi-los, depois de afastadas todas as variantes que os encobrem, com freqüência se obtém apenas um resíduo bastante indeterminado. Essa indeterminação cresce naturalmente unto mais quanto maior for a complexidade dos caracteres; pois, quanto mais complexa uma coisa, mais as partes que a compõem podem formar combinações diferentes. 1)isso resulta que o tipo social específico, para além dos l·aracteres mais gerais e mais simples, não apresenta contornos tão definidos como em biologia 10 . CAPÍTULO V REGRAS RELATIVAS À EXPLICAÇÀO DOS FATOS SOCIAIS Mas a constituição das espécies é antes de tudo um meio de agrupar os fatos para facilitar sua interpretação; a morfologia social é um encaminhamento para a parte realmente explicativa da ciência. Qual o método próprio desta última? A maior parte dos sociólogos acredita ter explicado os fenômenos uma vez que mostrou para que eles servem e que papel desempenham. Raciocina-se como se tais fenômenos só existissem em função desse papel e não tivessem outra causa determinante além do sentimento, claro ou confuso, dos serviços que são chamados a prestar. Por isso julga-se ter dito tudo o que é necessário para torná-los inteligíveis, quando se estabeleceu a realidade desses serviços e se mostrou a que necessidade social eles satisfazem. Assim Comte reduz toda a força progressiva da espé- 92 AS REGRAS DO MÉTODO SOC70LÓGICO cie humana à tendência fundamental "que impele diretamente o homem a melhorar sempre e sob todos os aspectos sua condiçào, seja ela qual for 1", e Spencer, à necessidade de uma maior felicidade. É em virtude desse princípio que ele explica a formação da sociedade pelas vantagens que resultam da cooperação, a instituição do governo pela utilidade que há em regularizar a cooperação militar2, as transformações pelas quais passou a família pela necessidade de conciliar cada vez mais perfeitamente os interesses dos pais, dos filhos e da sociedade. Mas esse método confunde duas questões muito diferentes. Mostrar em que um fato é útil não é explicar como ele surgiu nem como ele é o que é. Pois os usos a que serve supõem as propriedades específicas que o caracterizam, mas não o criam. A necessidade que temos das coisas não pode fazer que elas sejam deste ou daquele jeito セG@ セッョウ・アエュL@ não é essa necessidade que pode tira-las do nada e conferir-lhes o ser. É a causas de um outro gênero que elas devem sua existência. O sentimento que temos da utilidade que elas apresentam pode muito bem nos incitar a pôr em ação essas causas e a obter os efeitos que elas implicam, não a suscitar do nada esses efeitos. Essa proposição é evidente quando se trata apenas dos fenômenos materiais ou mesmo psicológicos. Ela tampouco seria contestada em sociologia se os fatos sociais, por causa de sua extrema imaterialidade, não nos parecessem, erradamente, destituídos de toda realidade intrínseca. *Como neles se vêem apenas combinações puramente mentais, parece que devem se produzir espontaneamente tão logo os concebemos, desde que os consideremos úteis.* Mas, visto que cada um desses fatos é uma força e essa força domina a nossa, visto que cada um * Frase que não figura no texto inicial. tax;RAs RELAT7VAS À EXPLICAÇÃO DOS FATOS SOOAJS 93 1em uma natureza que lhe é própria, ter desejo ou vontade deles não poderia ser suficiente para conferir-lhes exislência. É preciso também que forças capazes de produzir essa força determinada, que naturezas capazes de produ1.i r essa natureza especial, sejam dadas. Somente em tal condição o fato social será possível. Para reanimar o espírito da família onde ele se acha enfraquecido, não basta que todos compreendam as vantagens disso; é preciso fa1.er agir diretamente as causas que são as únicas capazes de engendrá-lo. Para devolver a um governo a autoridade que lhe é necessária, não basta sentir a necessidade disso; 0 preciso recorrer às únicas fontes de que deriva toda autoridade, ou seja, constituir tradições, um espírito comum, etc., etc.; para tanto, é preciso também remontar mais acima na cadeia das causas e dos efeitos, até se encontrar um ponto em que a ação do homem possa se inserir eficazmente. O que mostra hem a dualidade dessas duas ordens de pesquisas é que um fato pode existir sem servir a nada, seja porque jamais esteve ajustado a algum fim vital, seja porque, após ter sido útil, perdeu toda utilidade e continuou a existir pela simples força do hábito. Com efeito há bem mais sobrevivências na sociedade do que no ッイセ。ョゥウュN@ Há casos, inclusive, em que uma prática ou uma instituição social mudam de funções sem por isso mudar de natureza. A regra is pater est quem justae 1zuptiae declarant [é pai aquele que as núpcias indicam] permaneceu materialmente em nosso Código, tal como L'xistia no velho direito romano. Mas, se essa regra tinha então por objeto salvaguardar os direitos de propriedade do pai sobre os filhos provenientes ela esposa legítima, é antes o direito dos filhos que ela protege hoje. O juramento começou por ser uma espécie de prova judiciária, para tornar-se apenas uma forma solene e imponente elo 94 AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO testemunho. Os dogmas religiosos do cristianismo continuam os mesmos há séculos; mas o papel que desempenham em nossas sociedades modernas não é mais o mesmo que na Idade Média. É assim, ainda, que as palavras servem para exprimir idéias novas sem que sua contextura se modifique. De resto, é uma proposição verdadeira tanto em sociologia como em biologia que o órgão é independente da função, ou seja, que pode servir a fins diferentes embora permaneça o mesmo. Portanto, as causas que o fazem existir são independentes dos fins aos quais ele serve. Não queremos dizer, aliás, que as tendências, as necessidades, os desejos dos homens jamais intervenham, de maneira ativa, na evolução social. *Ao contrário, certamente lhes é possível, conforme a maneira como agem sobre as condiçc)es ele que depende um fato, acelerar ou conter o desenvolvimento deste. Só que, além de não poderem, em caso nenhum, tirar alguma coisa do nada, sua própria intervenção, sejam quais forem os efeitos dela, só pode ocorrer em virtude de causas eficientes.* De fato, mesmo nessa medida restrita, uma tendência só pode concorrer para a produção de um fenômeno novo se ela própria for nova, quer se tenha constituído a partir ele zero, quer seja devida a alguma transformação de uma tendência anterior. Pois, a menos que se postule uma harmonia preestabelecida verdadeiramente providencial, não Sl' poderia admitir que, desde a origem, o homem trouxesSl' em si, em estado virtual, mas inteiramente prontas para despertar com o concurso elas circunstâncias, t''odas as • "Se eles não podem tirar alguma coisa do nada, lhes é possiwl, ao agirem sobre as condições de que depende um fato, acell'rar 011 conter o desenvolvimento dele. Só que essa própria intervençào on irl't' em vi1tude de causas eficientes." (Revue philosophique, tomo XXXVlll, julho a dl'zemhro de 1894, p. 16.) NEGRAS RELA77VAS À EXPLICAÇÃO DOS FATOS SOCIAIS 95 tendências cuja oportunidade haveria de se fazer sentir na seqüência da evolução. Ora, uma tendência é também uma coisa; ela não pode portanto se constituir nem se modificar pelo simples fato de a julgarmos útil. É uma forc,;a que tem sua natureza própria; para que essa natureza Nセ・ェ。@ suscitada ou alterada, não basta que nela encontremos alguma vantagem. *Para determinar tais mudanças, é preciso que atuem causas que as impliquem fisicamente.* Por exemplo, explicamos os progressos constantes da divisão do trabalho social ao mostrar que eles são necessários para que o homem possa se manter nas condições novas de existência nas quais se vê colocado à medida que :1vança na história; atribuímos portanto a essa tendência, que muito impropriamente é chamada de instinto de conNセャGイカ。￧ ̄ッL@ um papel importante em nossa explicação. Mas, l'lll primeiro lugar, ela não poderia por si só explicar a espL'cialização, mesmo a mais rudimentar. Pois ela nada pode, se as condições de que depende esse fenômeno não エGNセゥカ・イュ@ já realizadas, isto é, se as diferenças individuais 11:!0 tiverem aumentado suficientemente em conseqüência da indeterminação progressiva da consciência comum e d;1s influências hereditáriasó. Inclusive foi preciso que adi1·is;lo do trabalho já tivesse começado a existir para que セエオ@ utilidade fosse percebida e sua necessidade se fizesse セャGョエゥイ[@ e somente o desenvolvimento elas divergências in(lividuais, ao implicar uma maior diversidade de gostos e dl · a pticlões, haveria necessariamente de produzir esse pri111l'iro resultado. Além disso, não foi por si mesmo e sem '.1t1sa que o instinto de conservação veio fecundar esse 11ri111ciro germe de especialização. Se ele se orientou e nos • "Mas é preciso algo hem diferente da representação dos .,,."·iro., que elas podem prestar para determinar tais mudanças." (RP., I' i(>.) AS REGRAS DO MJÓTODO SOG10LÓGJCO orientou nesse novo caminho, foi em primeiro lugar porque o caminho que ele seguia e nos fazia seguir anteriormente se viu como que barrado, pois a intensidade maior da luta, devida à maior condensação das sociedades, tornou cada vez mais difícil a sobrevivência dos indivíduos que continuavam a se dedicar a tarefas gerais. Foi assim necessário mudar de direção. Por outro lado, se esse instinto faz uma volta e virou principalmente nossa atividade, no sentido de uma divisão do trabalho sempre mais desenvolvida, é porque esse era também o sentido da menor resistência. As outras soluções possíveis eram a emigração, o suicídio, o crime. Ora, na média dos casos, os laços que nos ligam a nosso país, à vida, a simpatia que temos por nossos semelhantes, são sentimentos mais fortes e mais resistentes que os hábitos capazes de nos afastar de uma especialização mais estreita. São esses últimos portanto que haveriam necessariamente de ceder a cada nova arremetida. Assim, não se cai, nem mesmo parcialmente, no finalismo pelo fato de se aceitar dar um lugar às necessidades humanas nas explicações sociológicas. Pois estas só podem ter influência sobre a evolução social se elas próprias evoluírem, e as mudanças que elas atravessam só podem ser explicadas por causas que nada têm de final. Mas o que é mais convincente ainda que as considerações que precedem é a prática mesma dos fatos sociais. Lá onde reina o finalismo, reina também uma contingência maior ou menor; pois não existem fins, e muito menos meios, que se imponham necessariamente a todos os homens, ainda que os suponhamos situados nas mesmas circunstâncias. Sendo dado um mesmo ambiente, cada indivíduo, conforme seu humor, adapta-se a ele à sua maneira, que ele prefere a qualquer outra. Um procurará modificá-lo para colocá-lo em harmonia com suas necessidades; outro preferirá modificar a si mesmo e moderar sew1 REGRAS RELATIVAS À EXPLICAÇÃO DOS M70S SOCIAIS 97 desejos. Para chegar a um mesmo objetivo, quantos caminhos podem ser e são efetivamente seguidos! Portanto, se fosse verdade que o desenvolvimento histórico se fez em vista de fins claramente ou obscuramente sentidos, os fatos sociais deveriam apresentar a mais infinita diversidade, e qualquer comparação haveria de ser quase impossível. Ora, o contrário é que é a verdade. Claro que os acontecimentos exteriores, cuja trama constitui a parte superficial da vida social, variam de um povo a outro. Mas é assim que cada indivíduo tem sua história, embora as bases da organização física e moral sejam as mesmas em todos. Na verdade, quando entramos um pouco em contato com os fenômenos sociais, surpreendemo-nos, ao contrário, com a espantosa regularidade com que estes se reproduzem nas mesmas circunstâncias. Mesmo as práticas mais minuciosas e aparentemente mais pueris repetem-se com a mais espantosa uniformidade. Uma cerimônia nupcial que parece puramente simbólica, como o rapto da noiva, verifica-se exatamente em toda parte em que há certo tipo familiar, ligado ele próprio a toda uma organização política. Os costumes mais bizarros, como a couvade, o levirato, a exogamia, etc., observam-se nos povos mais diversos e sào sintomáticos de certo estado social. O direito de testar aparece numa fase determinada da história e, a partir das restriçôes mais ou menos consideráveis que o limitam, pode-se dizer em que momento da evolu,·;1o social nos encontramos. Seria fácil multiplicar os l'xemplos. Ora, essa generalidade das formas coletivas seria inexplicável se as causas finais tivessem em sociologia :1 preponderância que se atribui a elas. Portanto, quando se procura explicar um fenômeno· é preciso pesquisar separadamente a causa eficiente o produz e a função que ele cumpre. Servimo-nos da sr icial, 1111e p:ilavra função de preferência às palavras fim ou objetivo, 98 AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO precisamente porque os fenômenos sociais não existem de modo geral, tendo em vista os resultados úteis que ーイッセ@ duzem. O que é preciso determinar é se há correspondência entre o fato considerado e as necessidades gerais cio organismo social, e em que consiste essa correspondência, sem se preocupar em saber se ela foi intencional ou não. Todas as questões ele intenção, aliás, são demasiado subjetivas para poderem ser tratadas cientificamente. Essas duas ordens de problemas não apenas devem ser separadas, mas convém, em geral, tratar a primeira antes da セ・ァオョ、。N@ Esta ordem, com efeito, corresponde à dos fatos. E natural investigar a causa de um fenômeno antes de tentar determinar seus efeitos. Esse método é ainda mais lógico porquanto a primeira questão, uma vez resolvida, ajudará a resolver a segunda. De fato, o laço de solidariedade que une a causa ao efeito tem um caráter de reciprocidade que não foi suficientemente reconhecido. Certamente o efeito não pode existir sem sua causa mas esta por sua vez, tem necessidade de seu efeito. É dela que セ@ efeito tira sua energia, mas ele também lha restitui eventualmente e, em vista disso, não pode desaparecer sem que ela disso se ressinta4. Por exemplo, a reação social que constitui a pena é devida à intensidade dos sentimentos coletivos que o crime ofende; mas, por outro lado, ela tem por função útil manter esses sentimentos no mesmo grau de intensidade, pois estes não tardariam a se debilitar se as ofensas que sofrem não fossem castigadas'. Do mesmo modo, à medida que o meio social torna-se mais complexo e mais móvel, as tradições e as crenças estabelecidas são abaladas, adquirem um caráter mais indeterminado e mais flexível, e as faculdades de reflexão se desenvolvem· mas essas mesmas faculdades são indispensáveis para 。セ@ sociedades e os indivíduos se adaptarem a um meio mais móvel e mais complexo 6 . À medida que os homens são !<HGRAS RELAT7VAS À EXPLICAÇÀO DOS FATOS SOCIAIS 99 obrigados a fornecer um trabalho mais intenso, os produtos desse trabalho tornam-se mais numerosos e de melhor qualidade; mas esses produtos mais abundantes e melhores são necessários para reparar o desgaste ocasionado por esse trabalho mais consideráve17. Assim, longe de a causa dos fenômenos sociais consistir numa antecipação mental da função que eles são chamados a desempenhar, essa função consiste, ao contrário, pelo menos num bom número de casos, em manter a causa preexistente da qual des derivam; *portanto, descobriremos mais facilmente a primeira se a segunda já for conhecida*. Mas, ainda que só em segundo lugar devamos proceder à determinação da função, ela não deixa de ser necessária para que a explicação do fenômeno seja completa. C:om efeito, se a utilidade do fato não é aquilo que o faz existir, em geral é preciso que ele seja útil para poder se manter. Pois, para ser prejudicial, é suficiente que ele não tenha serventia, uma vez que, nesse caso, ele custa sem produzir benefício algum. Portanto, se a generalidade dos fenômenos sociais tivesse esse caráter parasitário, o orçamento elo organismo estaria em déficit, a vida social seria impossível. Em conseqüência, para proporcionar desta uma compreensão satisfatória, é necessário mostrar como e >s fenômenos que formam sua substância concorrem entre si, ele maneira a colocar a sociedade em harmonia consigo mesma e com o exterior. Certamente, a fórmula 11sual, que define a vida como uma correspondência entre < > meio interno e o meio externo, é apenas aproximada; rm entanto, ela é verdadeira em geral, e portanto, para l'Xplicar um fato ele ordem vital, não basta explicar a cauNセ。@ da qual ele depende, é preciso também, ao menos na rnaior parte dos casos, encontrar a parte que lhe cabe no t ·stahelecimento dessa harmonia geral. • Frase que não figura no texto inicial. 100 AS REGRAS DO MÍ"1DDO SOCIOLÓGICO II Distinguidas essas duas questões, devemos determinar o método pelo qual elas devem ser resolvidas. Ao mesmo tempo que é finalista, o método seguido geralmente pelos sociólogos é essencialmente psicológico. Essas duas tendências são solidárias uma da outra. De fato, se a sociedade não é senão um sistema de meios instituídos pelos homens tendo em vista certos fins, esses fins só podem ser individuais; pois, antes da sociedade, não podia haver senão indivíduos. É portanto do indivíduo que emanam as idéias e as necessidades que determinaram a formação das sociedades, e, se é dele que tudo procede, é necessariamente por ele que tudo deve se explicar. Aliás, não há nada na sociedade senão consciências particulares; é nestas últimas portanto que se acha a fonte de toda a evolução social. Por conseguinte, as leis sociológicas só poderão ser um corolário das leis mais gerais da psicologia; a explicação suprema da vida coletiva consistirá em mostrar como ela decorre da natureza humana em geral, seja por dedução direta e sem observação prévia, seja por associação à natureza humana depois de feita a observação. Esses termos são mais ou menos textualmente os que Augusto Comte utiliza para caracterizar seu método. "Uma vez, diz ele, que o fenômeno social, concebido em totalidade, não é, no fundo, senão um simples desenvolvimento da humanidade, sem nenhuma criação de faculdades quaisquer, tal como estabeleci anteriormente, todas as disposições efetivas que a observação sociológica puder sucessivamente revelar deverão portanto se verificar, pelo menos em germe, nesse tipo primordial que a biologia construiu de antemão para a sociologia."s É que o fato dominante da vida social, segundo ele, é o progresso e, REGRAS RELAT7VASÀ EXPLICAÇÀO DOS FATOS SOCIAIS 101 por outro lado, o progresso depende de um fator exclusivamente psíquico, a saber, a tendência que leva o homem a desenvolver cada vez mais sua natureza. Os fatos sociais derivariam inclusive tão imediatamente da natureza humana que, nas primeiras fases da história, poderiam ser diretamente deduzidos sem necessidade de recorrer ã observação9. É verdade que, como Comte reconhece, é impossível aplicar esse método dedutivo aos períodos mais avançados da evolução. Mas essa impossibilidade é puramente prática. Deve-se ao fato de a distância entre o ponto de partida e o ponto de chegada ser muito grande para que o espírito humano, se resolvesse percorrê-la sem guia, não corresse o risco de se extraviar 10 . Mas a relação entre as leis fundamentais da natureza humana e os resultados últimos do progresso não deixa de ser analítica. As formas mais complexas da civilização não são senão vida psíquica desenvolvida. Assim, ainda que as teorias da psicologia não sejam suficientes como premissas ao raciocínio sociológico, elas são a pedra de toque capaz de provar sozinha a validade das proposições indutivamente estabelecidas. "Nenhuma lei de sucessão social, diz Comte, indicada pelo método histórico, mesmo com toda a autoridade possível, deverá ser finalmente admitida senão após ter sido racionalmente ligada, de uma maneira direta ou indireta, mas sempre incontestável, ã teoria positiva da natureza humana."11 Portanto é sempre a psicologia que terá a última palavra. Tal é igualmente o método seguido por Spencer. Segundo ele, os dois fatores primários dos fenômenos sociais são o meio cósmico e a constituição física e moral do indivíduo12. Ora, o primeiro não pode ter influência sobre a . sociedade a não ser através do segundo, que acaba sendo ;1ssim o motor essencial da evolução social. Se a sociedade セ・@ forma, é para permitir ao indivíduo realizar sua nature- 102 AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO za, e todas as transformações pelas quais ela passou não têm como único objeto tornar essa realização mais fácil e mais completa. É em virtude desse princípio que, antes de proceder a alguma pesquisa sobre a organização social, Spencer acreditou dever dedicar todo o primeiro tomo de seus Princípios de sociologia ao estudo do homem primitivo físico, emocional e intelectual. "A ciência da sociologia, diz ele, parte das unidades sociais, submetidas às condições que vimos, constituídas física, emocional e intelectualmente, e de posse de certas idéias cedo adquiridas e dos sentimentos correspondentes." 13 E é nestes dois sentimentos, o temor dos vivos e o temor dos mortos, que ele encontra a origem do governo político e do governo religioso 14. Ele admite, é verdade, que, uma vez formada, a sociedade reage sobre os indivíduos 1'í. Mas disso não se segue que ela tenha o poder de engendrar diretamente o menor fato social; ela não tem eficácia causal desse ponto de vista, a não ser por intermédio das mudanças que determina no indivíduo. Portanto é sempre da natureza humana, seja primitiva, seja derivada, que tudo decorre. Aliás, a ação que o corpo social exerce sobre seus membros nada pode ter de específico, já que os fins políticos nada são em si mesmos, sendo uma simples expressão resumida dos fins individuais!<'. Ela só pode ser portanto uma espécie de retorno ela atividade privada a si própria. Sobretudo, não se percebe em que pode consistir tal ação nas sociedades industriais, que têm precisamente por objeto restituir o indivíduo a si mesmo e a seus impulsos naturais, desembaraçando-o de toda coerção social. Tal princípio não está apenas na base dessas grandt:'s doutrinas de sociologia geral; ele inspira igualmente um número muito grande de teorias particulares. É assim Cjlll' se explica a organização doméstica pelos sentimento.'! que OS pais têm em relação aos filhos e OS segundos a< IS REGRAS RELA11VAS À EXPLJCAÇÀO DOS FATOS SOCIAIS 103 primeiros; a instituição do casamento, pelas vantagens que apresenta para os esposos e sua descendência; a pena, pela cólera provocada no indivíduo por toda lesão grave a seus interesses. Toda a vida econômica, tal como a concebem e a explicam os economistas, sobretudo os ela escola ortodoxa, depende, em última instância, deste fator puramente individual: o desejo de riqueza. Trata-se de explicar a moral? Faz-se dos deveres do indivíduo para consigo mesmo a base da ética. A religião? Vê-se nela um produto das impressões que as grandes forças ela natureza ou certas personalidades eminentes despertam no homem, etc., etc. Mas tal método só é aplicável aos fenômenos sociológicos desnaturando-os. Para ter a prova disso, basta reportar-se à definição que demos desses fenômenos. Visto que sua característica essencial consiste no poder que eles têm ele exercer, de fora, uma pressão sobre as consciências individuais, conclui-se que eles não derivam destas e, por conseguinte, a sociologia não é um corolário da psicologia. Esse poder coercitivo testemunha *que eles exprimem uma natureza diferente da nossa, uma vez que só penetram em nós pela força ou, pelo menos, pesando mais ou menos sobre nós*. Se a viela social fosse apenas um prolongamento do ser individual, não a veríamos remontar deste modo à sua fonte e invadi-la impetuosamente. Se a :1utoridade diante da qual se inclina o indivíduo, quando l'Ste age, sente ou pensa socialmente, o domina a tal ponto conclui-se que ela **é um produto de forças que o suーセイ。ュ@ e que ele não poderia, conseqüentemente, explil·ar**. Não é dele que pode provir essa pressão exterior "que eles provêm ele algo que não apenas está fora セ・@ nós, ュセNウ@ é ele uma natureza diferente da nossa, Jª que lhe e supenor t/U'.. p. 23.) ** "não emana dele, mas é um produto de forças que o superam e 'I'"" portanto, não podem ser deduzidas dele". (R.P., p. 23.) * 1. 1111 hem 104 AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO que ele sofre, *portanto não é o que se passa dentro dele que pode explicá-la*. É verdade que não somos incapazes de coagir a nós mesmos; podemos conter nossas tendências, nossos hábitos, até mesmo nossos instintos e deter seu desenvolvimento por um ato ele inibição. セ。ウ@ os movimentos inibidores não poderiam ser confundidos com aqueles que constituem a coerção social. O processo dos primeiros é centrífugo; o elos segundos, centrípeto. Uns são elaborados na consciência individual e tendem em seguida a exteriorizar-se; outros são primeiramente exteriores ao indivíduo e tendem em seguida a modelá-lo desde fora à sua imagem. A inibição, se quiserem, é 0 meio pelo qual a coerção social produz seus efeitos psíquicos; ela não é essa coerção. Ora, descartado o indivíduo, resta apenas a sociedade; é portanto na natureza da própria sociedade que se eleve buscar a explicação ela viela social. Como ela supera infinitamente o indivíduo tanto no tempo como no espaço, concebe-se, com efeito, que seja capaz de impor-lhe as maneiras ele agir e ele pensar que consagrou por sua autoridade. Essa pressão, sinal distintivo dos fatos sociais ' é aquela que todos exercem sobre cada um. Mas, dirão, visto que os únicos elementos de アオセ@ é formada a sociedade são indivíduos, a origem primeira dos fenômenos sociológicos só pode ser psicológica. Raciocinando deste modo, pode-se também facilmente estabelecer que os fenômenos biológicos se explicam analiticamente pelos fenômenos inorgânicos. Com efeito, é bastante certo que na célula viva há apenas moléculas ele matéria bruta. Só que estas se encontram ali associadas, e essa associação é que é a causa dos fenômenos novos que caracterizam a vida e cujo germe é impossível descobrir em ' Frase que não figura no texto inicial. REGRAS RELATlVASÀ EXPLICAÇÀO DOS FATOS SOOAIS 105 qualquer um dos elementos associados. Um todo não é idêntico à soma de suas partes, ele é alguma outra coisa cujas propriedades diferem daquelas que apresentam as partes ele que é formado. A associação não é, como se acreditou algumas vezes, um fenômeno por si mesmo estéril, que consiste simplesmente em colocar em relaçües exteriores fatos realizados e propriedades constituídas. Não é ela, ao contrário, a fonte ele todas as novidades que se produziram sucessivamente no curso ela evolução geral elas coisas? Que diferenças existem entre os organismos inferiores e os demais, entre o ser vivo organizado e o simples plastídio, entre este e as moléculas inorgânicas que o compõem, senão diferenças ele associação? Todos esses seres, em última análise, decompõem-se em elementos da mesma natureza; mas esses elementos são, aqui, justapostos, ali, associados; aqui, associados de uma maneira, ali, ele outra. É lícito inclusive perguntar se essa lei não penetra até o mundo mineral, e se as diferenças que separam os corpos inorganizados não têm a mesma origem. Em virtude desse princípio, a sociedade não é uma simples soma de indivíduos, mas o sistema formado pela associação deles representa uma realidade específica que tem seus caracteres próprios. Certamente, nada ele coletivo pode se produzir se consciências particulares não são dadas; mas essa condição necessária não é suficiente. É preciso também que essas consciências estejam associadas, combinadas, e combinadas de certa maneira; é dessa combinação que resulta a vida social e, por conseguinte, é essa combinação que a explica. Ao se agregarem, ao se penetrarem, ao se fundirem, as almas individuais dão origem a um ser, psíquico se quiserem, mas que constitui uma indi-. vidualiclade psíquica de um gênero novo 17. Portanto, é na natureza dessa individualidade, não na das unidades componentes, que se elevem buscar as causas próximas e ele- 106 AS REGRAS DO MÉTODO SOG10LÓGICO terminantes dos fatos que nela se produzem. O grupo pensa, sente e age de maneira bem diferente do que o fariam seus membros, se estivessem isolados. Assim, se partirmos desses últimos, nada poderemos compreender do que se passa no grupo. Em uma palavra, há entre a psicologia e a sociologia a mesma solução de continuidade que entre a biologia e as ciências físico-químicas. Em conseqüência, toda vez que um fenômeno social é diretamente explicado por um fenômeno psíquico, pode-se ter a certeza de que a explicação é falsa. Responderão talvez que, se a sociedade, uma vez formada, é de fato a causa próxima dos fenômenos sociais, as causas que determinaram sua formação são de natureza psicológica. Concedem que, quando os indivíduos estão associados, sua associação pode dar origem a uma vida nova, mas dirão que ela só pode ocorrer por razões individuais. Todavia, em realidade, por mais longe que se remonte na história, o fato da associação é o mais obrigatório de todos; pois ele é a fonte de todas as outras obrigações. Por meu nascimento, estou obrigatoriamente ligado a um povo determinado. Diz-se que, daí por diante, uma vez adulto, dou minha aquiescência a essa obrigação pelo simples fato de continuar a viver em meu país. Mas que importa' Essa aquiescência não retira ao fato seu caráter imperativo. Uma pressão aceita e suportada de boa vontade não deixa de ser uma pressão. Aliás, qual pode ser a importância de tal adesão? Em primeiro lugar, ela é forçada, pois, na imensa maioria dos casos, nos é material e moralmente impossível despojar-nos de nossa nacionalidade; *tal mudança é inclusive considerada, geralmente, uma apostasia*. Em segundo lugar, ela não pode concernir ao passado que não pôde ser consentido e que, no ' Frase que não figura no texto inicial. REGRAS RELA11VAS À EXPLICAÇÃO DOS FA10S SOOAIS 107 entanto, determina o presente: eu não quis a educação que recebi; ora, é ela que, mais do que qualquer outra causa, me fixa ao solo natal. Enfim, ela não poderia ter valor moral em relação ao futuro, na medida em que este é desconhecido. Nem sequer conheço todos os deveres que podem me incumbir um dia ou outro em minha qualidade de cidadão; como poderia eu aquiescer a eles de antemão? Ora, tudo o que é obrigatório, conforme demonstramos, tem sua fonte fora do indivíduo. Assim, enquanto não sairmos da história, o fato da associação apresentará o mesmo caráter que os demais e, conseqüentemente, explica-se da mesma maneira. Por outro lado, como todas as sociedades nasceram de outras sociedades sem solução de continuidade, podemos estar certos de que, no curso de toda a evolução social, não houve um momento em que os indivíduos tenham realmente necessitado deliberar para saber se entrariam ou não na vida coletiva, e se nesta e não naquela. Para que a questão pudesse se colocar, seria preciso remontar até as origens primeiras de toda sociedade. Mas as soluções, sempre duvidosas, que podem ser dadas a tais problemas, de modo nenhum poderiam afetar o método segundo o qual devem ser tratados os fatos dados na história. Não precisamos portanto discuti-las. Mas seria um estranho equívoco sobre nosso pensamento se, do que precede, tirassem a conclusão de que a sociologia, para nós, deve ou mesmo pode fazer abstração do homem e de suas faculdades. Ao contrário, não há dúvida de que os caracteres gerais da natureza humana entram no trabalho de elaboração de que resulta a vida social. Só que não são eles que a suscitam nem que lhe. dão sua forma especial; eles apenas a tornam possível. As representações, as emoções, as tendências coletivas não têm por causas geradoras certos estados da consciência 108 AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO dos indivíduos, mas sim as condições em que se encontra o corpo social em seu conjunto. Certamente, estas só podem se realizar se as naturezas individuais não forem refratárias a elas; mas as naturezas individuais são apenas a matéria indeterminada que o fator social determina e transforma. Sua contribuição consiste exclusivamente em estados muito gerais, em predisposições vagas e, por conseguinte, plásticas que, por si mesmas, não poderiam adquirir as formas definidas e complexas que caracterizam os fenômenos sociais, se outros agentes não interviessem. Que abismo, por exemplo, entre os sentimentos que o homem experimenta diante de forças superiores ã sua e a instituição religiosa, com suas crenças, suas práticas tão variadas e complicadas, sua organização material e moral; entre as condições psíquicas da simpatia que dois seres do mesmo sangue sentem um pelo outro 18 e esse emaranhado de regras jurídicas e morais que determinam a estrutura da família, as relações das pessoas entre si, das coisas com as pessoas, etc.! Vimos que, mesmo quando a sociedade se reduz a uma multidão não organizada, os sentimentos coletivos que nela se formam podem, não apenas não se assemelhar, mas ser opostos ã média dos sentimentos individuais. Quão mais considerável ainda deve ser a distância quando a pressão que o indivíduo sofre é a de uma sociedade regular, na qual se acrescenta, à ação dos contemporâneos, a das gerações anteriores e da tradição! Uma explicação puramente psicológica dos fatos sociais só pode portanto deixar escapar tudo o que dt•s têm de específico, isto é, de social. O que mascarou aos olhos de tantos sociólogos a insuficiência desse métod, é que freqüentemente, tomando o efeito pela causa, lhes ocorreu atribuir como condições lk'· terminantes dos fenômenos sociais certos estados psíquicos, relativamente definidos e especiais, mas que, na vt'rda- REGRAS RE!ATIVAS À EXPLICAÇÃO DOS FATOS SOCIAIS 109 de são a conseqüência deles. Assim, considerou-se inato no' homem certo sentimento de religiosidade, um certo mínimo de ciúme sexual, de piedade filial, de amor paterno, etc., e deste modo se quis explicar a religião, o casamento, a família. Mas a história mostra que essas inclinaçôes, longe de serem inerentes à natureza humana, ou estão totalmente ausentes em certas circunstâncias sociais, ou, de uma sociedade a outra, apresentam tais variações que o resíduo obtido ao se eliminarem todas essas diferenças, o único a poder ser considerado como de origem psicológica, se reduz a algo vago e esquemático que deixa a uma distância infinita os fatos a serem explicados. É que esses sentimentos, longe de serem a base da organização coletiva, resultam dela. Inclusive não está de todo provado que a tendência à sociabilidade tenha sido, desde a origem, um instinto congênito ao gênero humano. É muito mais natural ver nele um produto da vida social, que lentamente se organizou em nós; pois é um fato de observação que os animais são saciáveis ou não conforme as disposições de seus hábitats eis obriguem à vida em comum ou dela os afastem. E cabe ainda acrescentar que, mesmo entre essas inclinações mais determinadas e a realidade social, a distância permanece considerável. Existe aliás um meio de isolar mais ou menos completamente o fator psicológico, de maneira a poder precisar a extensão de sua ação: é saber de que forma a raça ;1feta a evolução social. Com efeito, os caracteres étnicos s;10 de ordem orgânico-psíquica. A vida social deve por1;1nto variar quando eles variam, se os fenômenos psicológicos tiverem sobre a sociedade a eficácia causal que lhes .1tribuem. Ora, não conhecemos nenhum fenômeno social· qt1l' esteja colocado sob a dependência inconteste da raça. ( :l'rtamente, não poderíamos atribuir a essa proposição o \':dor de uma lei; mas podemos pelo menos afirmá-la co- 110 AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO mo um fato constante de nossa prática. Formas de organização as mais diversas verificam-se em sociedades da mesma raça, enquanto similitudes impressionantes observamse entre sociedades de raças diferentes. A cidade existiu tanto entre os fenícios como entre os romanos e os gregos; vemo-la em via de formação entre os cabi!as. A família patnarcal era quase tão desenvolvida entre os judeus quanto entre os hindus, mas ela não s.e verifica entre os eslavos, セオ・L@ não obstante, são de raça ariana. Em compensação, 0 tipo familiar que aí se encontra também existe entre os árabes. A família materna e o clã se observam em toda parte. Certos detalhes das provas judiciárias, das cerimônias nupciais são os mesmos nos povos mais dessemelhantes do ponto de vista étnico. Se isso ocorre, é porque a contribuição psíquica é demasiado geral para predeterminar 0 curso dos fenômenos sociais. Como essa contribuição não implica que haja uma forma social e não outra, ela não pode explicar nenhuma. É verdade que há um certo número de fatos que se costuma atribuir ã influência da raça. É assim que se explica, por exemplo, por que o desenvolvimento das letras e das artes foi tão rápido e intenso em Atenas, e tão lento e medíocre em Roma. Mas essa interpretação dos fatos, apesar de clássica, jamais foi metodicamente demonstrada; ela parece tirar quase toda a sua autoridade da mera tradição. Não se examinou sequer se seria possível uma explicação sociológica cios mesmos fenômenos, e estamos convencidos ele que esta poderia ser tentada com sucesso. Em suma, quando se relaciona com tal rapidez o caráter artístico ela civilização ateniense a faculdades estéticas congênitas, procede-se mais ou menos como fazia a Idade Média quando explicava o fogo pelo flogisto e os efeitos do ópio por sua virtude dormitiva. Enfim, se realmente a evolução social tivesse sua origem na constituição psicológica do homem, não se perce- REGRAS REIA11VAS À EXPLICAÇÃO DOS FATOS SOCIAIS 111 be como ela teria podido se produzir. Pois então seria preciso admitir que ela tem por motor algum impulso interior ã natureza humana. Mas qual poderia ser esse impulso? Seria aquela espécie de instinto ele que fala Comte e que leva o homem a realizar cada vez mais sua natureza? Mas isso é responder ã pergunta com a pergunta e explicar o progresso por uma tendência inata ao progresso, verdadeira entidade metafísica cuja existência, de resto, nada demonstra; pois as espécies animais, inclusive as mais elevadas, de maneira nenhuma são movidas pela necessidade ele progredir, e, mesmo entre as sociedades humanas, há muitas que se comprazem em permanecer indefinidamente estacionárias. Seria esse impulso, como parece acreditar Spencer, a necessidade de uma maior felicidade, que as formas cada vez mais complexas da civilização estariam destinadas a realizar sempre mais completamente' Seria preciso então estabelecer que a felicidade aumenta com a civilização, e expusemos alhures todas as dificuldades que essa hipótese levanta 19. Não é tudo. Ainda que um ou outro desses dois postulados devesse ser admitido, nem por isso o desenvolvimento histórico se tornaria inteligível; pois a explicação resultante seria puramente finalista, e mostramos mais acima que os fatos sociais assim como todos os fenômenos naturais, não são L'Xpl;caclos pelo simples fato de se mostrar que eles servem a algum fim. Quando se provou que as organizações sociais cada vez mais elaboradas que se sucederam ao longo da história tiveram por efeito satisfazer sempre mais 1 ᄋNセエ。@ ou aquela de nossas inclinações fundamentais, nem por isso se fez compreender como elas se produziram. O fato de serem úteis não nos ensina o que as fez existir. Ainda que se explicasse como chegamos a imaginá-las, 1raçanclo como que o plano antecipado capaz ele nos rei ire sentar os serviços que poderíamos esperar delas - e o 112 AS REGRAS no MÉTODO SOG10LÓGJCO problema já é difícil -, o desejo do qual elas seriam assim o objeto não teria a virtude de tirá-las do nada. Em uma palavra, admitindo-se que essas inclinações são os meios necessários para atingir o objetivo perseguido, a questão permanece inteira: como, isto é, de que e através de que esses meios foram constituídos? Chegamos portanto à regra seguinte: A causa deter- minante de um fato social deve ser buscada entre os fatos sociais 。ョエ・」、セ@ e não entre os estados da consciência individual. Por outro lado, concebe-se facilmente que tudo o que precede se aplica tanto à determinação da função quanto à da causa. A função de um fato social não pode ser senão social, isto é, ela consiste na produção de efeitos socialmente úteis. Certamente pode ocorrer, e acontece de fato, que, por via indireta, o fato social sirva também ao indivíduo. Mas esse resultado feliz não é sua razão de ser imediata. Podemos portanto completar a proposição precedente, dizendo: A função de umJàto social deve sempre ser buscada na relação que ele mantém com algum fim social. Foi por terem os sociólogos ignorado freqüentente essa regra e considerado os fenômenos sociais de um ponto de vista demasiado psicológico, que suas teorias afiguramse a numerosos espíritos excessivamente vagas, vacilantes e distantes da natureza especial das coisas que eles crêem explicar. O historiador, em particular, que vive na intimidade da realidade social, não pode deixar de sentir forte· mente o quanto essas interpretações demasiado gerais são incapazes de coincidir com os fatos; e certamente foi isso que produziu, em parte, a desconfiança que a história seguidamente demonstra em relação à sociologia. O que nüo quer dizer, por certo, que o estudo dos fatos psíquicos n:1o seja indispensável ao sociólogo. Se a vida coletiva não dl·· riva da vida individual, uma e outra estão intimamente rl'· REGRAS RELATIVAS À EXPLJCAÇÀO DOS FA1DS SOOAJS 113 !acionadas; se a segunda não pode explicar a primeira, ela pode, pelo menos, facilitar sua explicação. Conforme mostramos, é incontestável, em primeiro lugar, que os fatos sociais são produzidos por uma elaboração sui generis de fatos psíquicos. Além disso, essa própria elaboras;ão não deixa de ter analogia com a que se produz em cada ccmsciência individual e que transforma progressivamente os elementos primários (sensações, reflexos, instintos) de que ela é originalmente constituída. Não é sem razão que se pôde dizer do eu que ele próprio constituía uma sociedade, tanto quanto o organismo, ainda que de outra maneira, e os psicólogos há muito já mostraram a importância do fator associação para a explicação da vida do espírito. Uma cultura psicológica, mais ainda que uma cultura biológica, constitui portanto para o sociólogo uma propedêutica necessária; mas ela só lhe será útil se ele libertar-se dela após tê-la recebido e a superar, completando-a por uma cultura especialmente sociológica. É preciso que ele renuncie a fazer da psicologia, ele certo modo, o centro de suas operações, o ponto de partida e de chegada ele suas incursões no mundo social, e que se estabeleça no núcleo mesmo dos fatos sociais, a fim de observá-los de frente e sem intermediário, solicitando à ciência do indivíduo apenas uma preparação geral e, se preciso, úteis sugestões 20 . III Uma vez que os fatos de morfologia social são da mesma natureza que os fenômenos fisiológicos, eles devem se explicar segundo a mesma regra que acabamos de L'nunciar. Todavia, de tudo o que precede resulta que eles desempenham um papel preponderante na vida coletiva l', por conseguinte, nas explicações sociológicas. 114 AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO Com efeito, se a condição determinante dos fenômenos sociais consiste, como mostramos, no fato mesmo da associação, eles devem variar com as formas dessa associação, isto é, conforme as maneiras como são agrupadas as partes constituintes da sociedade. Por outro lado, já que o conjunto determinado, que os elementos de toda natureza que entram na composição de uma sociedade formam por sua reunião, constitui o meio interno dessa sociedade, assim como o conjunto dos elementos anatômicos, pela maneira como estão dispostos no espaço, constitui o meio interno dos organismos, poderemos dizer: A origem primeira de todo processo social de alguma importância deve ser buscada na constituição do meio social interno. É possível até precisar ainda mais. De fato, os elementos que compõem esse meio são de dois tipos: há coisas e pessoas. Entre as coisas, é preciso incluir, além dos objetos materiais que são incorporados à sociedade, os produtos da atividade social anterior, o direito constituído, os costumes estabelecidos, os monumentos literários, artísticos, etc. Mas é claro que não é nem de uns nem de outros que pode provir o impulso que determina as transformações sociais; pois eles não contêm nenhuma capacidade motora. Seguramente, há que levá-los em consideração nas explicações que tentarmos. Com efeito, eles pesam de alguma forma sobre a evolução social, cuja velocidade e mesmo a direção variam conforme o que forem; mas eles não possuem nada daquilo que é necessário para colocá-la em movimento. Eles são a matéria sobre a qual se aplicam as forças vivas da sociedade, mas, por si mesmos, não liberam nenhuma força viva. Resta portanto, como fator ativo, o meio propriamente humano. O esforço principal do sociólogo será portanto procurar descobrir as diferentes propriedades desse meio suscetíveis de exercer uma ação sobre o curso dos fent>- Rb'GRAS RELATTVASÀ hXPLICAÇÀO DOS FATOS SOCIAIS 115 menos sociais. Até o presente, encontramos duas séries de caracteres que correspondem de uma maneira eminente a essa condição: o número das unidades sociais ou, como dissemos também, o volume da sociedade, e o grau de concentração da massa, ou o que denominamos a densidade dinâmica. Por esta última palavra, convém entender não o estreitamento puramente material do agregado que nào pode ter efeito se os indivíduos, ou melhor, os grupos ele indivíduos, permanecem separados por vazios morais, mas o estreitamento moral do qual o precedente não é senão o auxiliar e, de maneira gastante geral, a conseqüência. A densidade dinâmica pode ser definida, para um volume igual, em função do número de indivíduos que estão efetivamente em relações não apenas comerciais, mas morais; ou seja, que não apenas trocam serviços ou se fazem concorrência, mas que vivem uma vida comum. Pois, como as relações puramente econômicas deixam os homens exteriores uns aos outros, essas relações podem ser muito freqüentes sem com isso participarem da mesma existência coletiva. Os negócios contratados por cima das fronteiras que separam os povos não fazem com que essas fronteiras não existam. Ora, a viela comum só pode ser afetada pelo número dos que nela colaboram eficazmente. Por isso, o que exprime melhor a densidade dinâmica de um povo é o grau de coalescência elos segmentos sociais. Pois, se cada agregado parcial forma um todo, uma individualidade distinta, separada das outras por uma barreira, é porque a ação de seus membros, em geral, permanece aí localizada; se, ao contrário, essas sociedades parciais se confundem todas no seio ela sociedade total ou tendem a nela se confundir, é porque, na mesma medida, *o círculo ela vida social se ampliou*. * "a vida social se generalizou". (R.P., p. 32.) 116 AS REGRAS DO MÉTODO SOCJOLÓGJCO Quanto à densidade material - se entendermos por isso não apenas o número de habitantes por unidade de superfície, mas o desenvolvimento das vias de comunicaçào e de transmissão -, ela marcha ordinariamente no mesmo passo que a densidade dinâmica e, em geral, pode servir para medi-la. Pois, se as diferentes partes da população tendem a se aproximar, é inevitável que elas abram caminhos que permitam essa aproximação, e, por outro lado, só podem se estabelecer relações entre pontos distantes da massa social se essa distância não for um obstáculo, isto é, se ela de fato for suprimida. Há no entanto exceções 21 , e incorreríamos em sérios erros se julgássemos sempre a concentração moral de uma sociedade com base no grau de concentração material que ela apresenta. As estradas, as vias férreas, etc., podem servir mais ao movimento dos negócios do que à fusão das poーオャ。￧￵・セL@ que elas então só exprimem muito imperfeitamente. E o caso da Inglaterra, cuja densidade material é superior à da França, e onde, não obstante, a coalescência dos segmentos é muito menos avançada, *como demonstra a persistência do espírito local e da vida regional*. Mostramos alhures como todo aumento no volume e na densidade dinâmica das sociedades, ao tornar a vida social mais intensa, ao estender o horizonte que cada indivíduo abarca com seu pensamento e preenche com sua ação, modifica profundamente as condições fundamentais da existência coletiva. Nào precisamos falar de novo da aplicação que fizemos entào desse princípio. Acrescentemos apenas que ele nos serviu para tratar não somente a questão ainda muito geral que era o objeto daquele estudo, mas muitos outros problemas mais específicos, e que pudemos assim verificar sua exatidão por um número já respeitável de experiências. Todavia, estamos longe de pensar ter des* Frase que não figura no texto inicial. REGRAS RELATIVAS À EXPLICAÇÃO DOS FATOS SOCIAIS 117 coberto todas as particularidades do meio social suscetíveis de desempenhar um papel na explicação dos fatos sociais. Tudo o que podemos dizer é que essas são as únicas que percebemos e que não fomos levados a buscar outras. Mas essa espécie de preponderância que atribuímos ao meio social e, mais particularmente, ao meio humano, não implica que se deva ver aí algo como um fato último e absoluto para além do qual não é preciso remontar. É evidente, ao contrário, que o estado no qual se encontra esse meio a cada momento da história depende ele próprio de causas sociais, algumas inerentes à própria sociedade, enquanto outras se devem às ações e reações entre essa sociedade e suas vizinhas. Aliás, a ciência não conhece causas primeiras, no sentido absoluto da palavra. Para ela, um fato é primário simplesmente quando for suficientemente geral para explicar um grande número de outros fatos. Ora, o meio social é certamente um fator desse gênero; pois as mudanças que nele se produzem, sejam quais forem suas causas, repercutem em todas as direções do organismo social e não podem deixar de afetar em maior ou menor grau todas as suas funções. O que acabamos de dizer do meio geral da sociedade pode ser dito dos meios específicos a cada um dos grupos particulares que ela encerra. Por exemplo, conforme a família for mais ou menos volumosa, mais ou menos voltada para si mesma, muito diferente será a vida doméstica. Do mesmo modo, se as corporações profissionais se organizarem de maneira a que cada uma delas se ramifique em toda a extensão do território, em vez ele permanecer encerrada, como outrora, nos limites de uma cidade, a ação que irão exercer será muito diferente ela que exerceram outrora. De uma maneira mais geral, a vida profissional será completamente diferente se o meio próprio a cada profissão for fortemente constituído ou se sua trama 118 AS REGRAS DO MÉTODO SOGJOLÓG/CO for frouxa, como é hoje. Todavia, a ação desses meios particulares não poderia ter a importância do meio geral; pois eles próprios submetem-se à influência deste último. É sempre a este que se deve voltar. É a pressão que ele exerce sobre os grupos parciais que faz variar a constituição destes. Tal concepção do meio social como fator determinante da evolução coletiva é da mais alta importância. Pois, se a rejeitarmos, a sociologia será incapaz de estabelecer qualquer relação de causalidade. De fato, descartada essa ordem de causas, não há condições concomitantes das quais possam depender os fenômenos sociais; pois, se o meio social externo, isto é, aquele formado pelas sociedades ao redor, é suscetível de exercer alguma ação, só a exerce sobre as funçc'Jes que têm por objeto o ataque e a defesa; além disso, ele só pode fazer sentir sua influência por intermédio do meio social interno. As principais causas do desenvolvimento histórico não estariam portanto entre as coisas, circunfusas, mas estariam todas no passado. Elas próprias fariam parte desse desenvolvimento, do qual constituiriam simplesmente fases mais antigas. Os acontecimentos atuais da vida social derivariam não do estado atual da sociedade, mas dos acontecimentos anteriores, dos precedentes históricos, e as explicaçôes sociológicas consistiriam exclusivamente em ligar o presente ao passado. Isso pode parecer, de fato, suficiente. Não se costuma dizer que a história tem precisamente por objeto encadear os acontecimentos segundo sua ordem de sucessão? *Mas é impossível conceber de que maneira o estado em * "M:is, se é certo que toda mudanp, uma vez realizada, deve ter repercussões que ela explica, o que não se percebe, nessa concepção, é de que maneira a própria mudança é possível." (R.P., p. 34.) REGRAS RELA TIVAS À EXPLICAÇÃO DOS FATOS SOCIAIS 119 que a civilização se encontra num momento dado poderia ser a causa determinante do estado seguinte. As etapas que a humanidade percorre sucessivamente n<lo se engendram urnas às outras.* Compreende-se hem que os progressos realizados numa época determinada na ordem jurídica, econômica, política, etc, tornem possíveis novos progressos; mas em que os primeiros predeterminam os segundos? Eles são um ponto de partida que permite ir mais adiante; mas o que é que nos incita a ir mais adiante? Seria preciso admitir então uma tendência interna que leva a humanidade a ultrapassar constantemente os resultados adquiridos, seja para se realizar completamente, seja para aumentar sua felicidade, e o objeto da sociologia seria descobrir a ordem segundo a qual se desenvolveu essa tendência. Mas, **sem voltar às dificuldades que semelhante hipótese implica**, a lei que exprime esse desenvolvimento nada teria de causal. Uma relação de causalidade, com efeito, só pode se estabelecer entre dois fatos dados; ora, tal tendência, que se supõe ser a causa desse desenvolvimento, não é dada; é apenas postulada e construída pelo espírito com base nos efeitos que se atribuem a ela. Trata-se de uma espécie de faculdade motora que imaginamos sob o movimento, a fim de explicá-lo; mas a causa eficiente de um movimento só pode ser um outro movimento, não uma virtualidade desse gênero. Portanto, tudo o que obtemos experimentalmente, aqui, é uma série de mudanças entre as quais não existe vínculo causal. O estado antecendente não produz o conseqüente, mas a relação entre eles é exclusivamente cronológica. Assim, nessas condições, toda previsão científica é impossível. Podemos· perfeitamente dizer como as coisas se sucederam até o presente, não em que ordem elas se suce** Elemento que não figura no texto inicial. 120 AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO <lerão daqui por diante, porque a causa de que supostamente dependem não é cientificamente determinada, nem determinável. Geralmente, é verdade, admite-se que a evolução prosseguirá no mesmo sentido do passado, mas isso em virtude de um simples postulado. Nada nos garante que os fatos realizados exprimam de maneira bastante completa a natureza dessa tendência para que se possa prejulgar o termo a que ela aspira com base naqueles pelos quais passou sucessivamente. Inclusive, por que seria retilínea a direção que ela segue e imprime? Eis aí, de fato, a razão de o número das relações causais, estabelecidas pelos sociólogos, ser tão restrito. Com poucas exceções, das quais Montesquieu é o mais ilustre exemplo, a antiga filosofia da história limitou-se unicamente a descobrir o sentido geral em que se orienta a humanidade, sem procurar ligar as fases dessa evolução a alguma condição concomitante. Por mais que Comte tenha prestado alguns grandes serviços à filosofia social, os termos nos quais ele coloca o problema sociológico não diferem dos precedentes. Assim, sua famosa lei dos três estados nada possui de uma relação ele causalidade; ainda que fosse exata, ela não é e não pode ser mais que empírica. Trata-se ele uma visão sumária ela história transcorrida elo gênero humano. É muito arbitrariamente que Comte considera o terceiro estado como o estado definitivo da humanidade. Quem nos diz que não surgirá outro no futuro? Do mesmo modo, a lei que domina a sociologia ele Spencer não parece ser ele outra natureza. Ainda que fosse verdade que tendemos atualmente a buscar nossa felicidade numa civilização industrial, nada assegura que, posteriormente, não venhamos a buscá-la em outra parte. Ora, o que faz a generalidade e a persistência desse método é que na maioria elas vezes se viu no meio social UJU meio pelo qual o progresso se realiza, não a causa que o determina. REGRAS RELATIVAS À J;XPLICAÇÀO DOS FATOS SOCIAIS 121 Por outro lado, é igualmente em relação a esse mesmo meio que se eleve medir o valor útil ou, como dissemos, a função dos fenômenos sociais. Entre as mudanças de que é a causa, servem aquelas que estão em relação com o estado no qual esse meio se encontra, já que ele é a condição essencial da existência coletiva. Também desse ponto ele vista, acreditamos, a concepção que acabamos de expor é fundamental; pois só ela permite explicar como o caráter útil dos fenômenos sociais pode variar sem no entanto depender ele arranjos arbitrários. Se, ele fato, representa-se a evolução histórica como movida por uma espécie de vis a tergo [força propulsara] que impele os homens para a frente, já que uma tendência motora só pode ter um objetivo e apenas um, não pode haver senão um ponto de referência em relação ao qual se calcula a utilidade ou a nocividade elos fenômenos sociais. Disso resulta que só pode haver um único tipo ele organização social perfeitamente adequado à humanidade e que as diferentes sociedades históricas são apenas aproximações sucessivas desse modelo único. Não é necessário mostrar o quanto semelhante simplismo é hoje inconciliável com a variedade e a complexidade reconhecidas elas formas sociais. Se, ao contrário, a conveniência ou não das instituições só puder ser estabelecida em relação a um meio dado, e como esses meios são diversos, haverá então uma diversidade ele pontos de referência e, por conseguinte, ele tipos que, embora qualitativamente distintos uns elos outros, estão todos igualmente fundados na natureza elos meios sociais. A questão que acabamos ele tratar está assim estreitamente vinculada à que diz respeito à constituição elos tipos sociais. Se há espécies sociais, é porque a vida coletiva depende antes ele tudo ele condições concomitantes que apresentam uma certa diversidade. Se, ao contrário, 122 AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO as principais causas cios acontecimentos sociais estivessem todas no passado, cada povo não seria mais que o prolongamento daquele que o precedeu, e as diferentes sociedades perderiam sua individualidade para se tornarem apenas momentos diversos ele um mesmo e único desenvolvimento. Uma vez que, por outro lado, a constituição elo meio social resulta do modo de composição dos agregados sociais e que essas duas cxpressôes são, elas próprias, no fundo, sinônimas, temos agora a prova de que não há caracteres mais essenciais do que aqueles que atribuímos como base para a classificação sociológica. Enfim, deve-se compreender agora, melhor do que antes, o quanto seria injusto apoiar-se nas palavras "condições exteriores" e "meio" para acusar nosso método e buscar as fontes da viela fora do que é vivo. Muito pelo contrário, as consideraçôes que acabam de ser lidas resumem-se na idéia ele que as causas elos fenômenos sociais são internas à sociedade. É antes a teoria que deriva a sociedade do indivíduo que se poderia justamente recriminar por querer tirar o interior do exterior, já que ela explica o ser social por outra coisa que não ele mesmo, e por querer tirar o mais do menos, já que ela empreende deduzir o todo da parte. Os princípios que precedem ignoram tão pouco o caráter espontâneo de todo vivente que, se aplicados à biologia e à psicologia, dever-se-á admitir que também a vida individual se elabora por inteiro no interior do indivíduo. IV Do grupo de regras que acabam de ser estabelecidas resulta certa concepção da sociedade e da vida coletiva. Sobre esse ponto, duas teorias contrárias dividem os espíritos. REGRAS RELA11VAS À EXPLICAÇÃO DOS FATOS SOCIAIS 123 Para uns, como Hobbes e Rousseau, hC1 ウッャオセZ[@ de continuidade entre o indivíduo e a sociedade. O homem é portanto naturalmente refratário à viela comum, somente forçado pode resignar-se a ela. Os fins sociais nào s;lo simplesmente o ponto de encontro dos fins individuais; são antes contrários a eles. Assim, para fazer o indivíduo buscar esses fins, é necessário exercer sobre ele uma coerção, e é na instituição e na organização dessa coerção que consiste, por excelência, a obra social. Só que, como o indivíduo é visto como a única e exclusiva realidade do reino humano, essa organização, que tem por objeto constrangê-lo e contê-lo, não pode ser concebida senão como artificial. Ela não está fundada na natureza, uma vez que se destina a fazer-lhe violência impedindo-a de produzir suas conseqüências anti-sociais. Trata-se de uma obra de arte, de uma máquina construída inteiramente pela mão dos homens e que, como todos os produtos desse gênero, é o que é apenas porque os homens a quiseram assim; um decreto da vontade a criou, um outro decreto pode transformá-la. Nem Hobbes nem Rousseau parecem ter percebido tudo o que há ele contraditório em admitir que o indivíduo seja ele próprio o autor de uma máquina que tem por tarefa essencial dominá-lo e constrangê-lo, ou pelo menos lhes pareceu que, para fazer desaparecer essa contradição, bastava dissimulá-la, aos olhos daqueles que são suas vítimas, pelo hábil artifício do pacto social. Foi na idéia contrária que se inspiraram tanto os teóricos do direito natural quanto os economistas e, mais recentemente, Spencer22. Para eles, a vida social é essencialmente espontânea e a sociedade uma coisa natural. Mas, se conferem a ela esse caráter, não é porque lhe reconheçam uma natureza específica; é porque encontram sua base na natureza do indivíduo. Do mesmo modo que os precedentes pensaclorés, eles não vêem na sociedade um 124 AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÔGICO sistema de coisas que exista por si mesmo, em virtude de causas que lhe sejam específicas. Mas, enquanto aqueles a concebiam apenas como um arranjo convencional que nenhum vínculo prende à realidade e que se sustenta, por assim dizer, no ar, estes lhe dão por base os instintos fundamentais do coração humano. O homem tende naturalmente à vida política, doméstica, religiosa, às trocas, etc., e é dessas inclinações naturais que deriva a organização social. Em conseqüência, sempre que for normal, esta não tem necessidade de impor-se. Quando ela recorre à coerção, é porque não é o que deve ser ou porque as circunstâncias são anormais. Em princípio, basta deixar as forças individuais desenvolverem-se em liberdade para que elas se organizem socialmente. Nenhuma dessas duas doutrinas é a nossa. Certamente, fazemos da coerção a característica de todo fato social. Só que essa coerção não resulta de uma maquinaria mais ou menos engenhosa, destinada a mascarar aos homens as armadilhas nas quais eles próprios se pegaram. Ela simplesmente se deve ao fato de o homem estar em presença de uma força que o domina e diante da qual se curva; mas essa força é natural. Ela não deriva de um arranjo convencional que a vontade humana acrescentou completamente ao real; ela provém das entranhas mesmas da realidade; é o produto necessário de causas dadas. Assim, para fazer o indivíduo submeter-se a ela de boa vontade, não é preciso recorrer a nenhum artifício· b :sta. faze-lo tomar consciência de seu estado de dependenc1a e de inferioridade naturais - quer ele faça disso uma representação sensível e simbólica pela religião, quer chegue a formar uma noção adequada e definida pela ciência. Como a superioridade que a sociedade tem sobre ele não é simplesmente física, mas intelectual e moral, ela nada tem a temer do livre exame, contanto que deste se fac;a A ) REGRAS RELA11VAS À bXPLJCAÇÀO DOS FATOS SOOAIS 125 um justo emprego. A reflexão, fazendo o homem compreender o quanto o ser social é mais rico, mais complexo e mais duradouro que o ser individual, não pode deixar de revelar-lhe as razões inteligíveis da subordina\·;1o que dele é exigida e dos sentimentos de apego e de respeito que o hábito fixou em seu coração 25. Portanto, somente uma crítica singularmente superficial poderia acusar nossa concepção da coerção social de reeditar as teorias de Hobbes e de Maquiavel. Mas, se, contrariamente a esses filósofos, dizemos que a vida social é natural, não é por encontrarmos sua fonte na natureza do indivíduo; é porque ela deriva diretamente do ser coletivo, que é, por si mesmo, uma natureza sui generis; é porque ela resulta dessa elaboração especial à qual estão submetidas as consciências particulares devido à sua associação e da qual se desprende uma nova forma de existência 24. Portanto, se reconhecemos com uns que a vida social apresenta-se ao indivíduo sob o aspecto da coerção, admitimos com os outros que ela é um produto espontâneo da realidade; e o que liga logicamente esses dois elementos, aparentemente contraditórios, é que a realidade da qual ela emana supera o indivíduo. Vale dizer que as palavras coerção e espontaneidade não têm, em nossa terminologia, o sentido que Hobbes confere à primeira e Spencer à segunda. Em resumo, à maior parte das tentativas que foram feitas para explicar racionalmente os fatos sociais, pôdese objetar ou que elas faziam desaparecer toda ideia de disciplina social, ou que só conseguiam manter essa idéia com o auxílio de subterfúgios mentirosos. As regras que acabamos de expor permitiriam, ao contrário, fazer uma sociologia que visse no espírito de disciplina a condição essencial de toda vida em comum, embora fundando-o na razão e na verdade. CAPÍTULO VI REGRAS RELATIVAS À ADMINISTRAÇÃO DA PROVA Temos apenas um meio de demonstrar que um fenômeno é causa de outro: comparar os casos em que eles estão simultaneamente presentes ou ausentes e examinar se as variações que apresentam nessas diferentes combinações de circunstâncias testemunham que um depende do outro. Quando eles podem ser artificialmente produzidos pelo observador, o método é a experimentação propriamente dita. Quando, ao contrário, a produção dos fatos não está à nossa disposição e só podemos aproximá-los tais como se produziram espontaneamente, o método empregado é o da experimentação indireta ou método comparativo. Vimos que a explicação sociológica consiste exclusivamente em estabelecer relações de causalidade, quer se trate de ligar um fenômeno à sua causa, quer, ao contrário, uma causa a seus efeitos úteis. Uma vez que, por outro lado, os fenômenos sociais escapam evidentemente à ação do operador, o método comparativo é o único que 128 AS REGRAS DO Mf'TODO SOCIOLÓGICO convém à sociologia. É verdade que Comte não o considerou suficiente; julgou necessário completá-lo por aquilo que ele chama o método histórico; mas isso se deve à sua concepção particular das leis sociológicas. Segundo Comte, estas devem principalmente exprimir, não relações definidas de causalidade, mas o sentido em que se dirige a evolução humana em geral; assim elas não podem ser descobertas com o auxílio da comparação, *pois, para poder comparar as diferentes formas que um fenômeno social assume em diferentes povos, é preciso tê-lo separado das séries temporais a que pertence. Ora, se se começa por fragmentar deste modo o desenvolvimento humano, surge a impossibilidade de reencontrar sua seqüência. Para chegar a ela, não é por análises, mas por largas sínteses que convém proceder. O que é preciso é aproximar uns dos outros. e reunir numa mesma intuição, de certo modo*, os estados sucessivos da humanidade de maneira a perceber "o crescimento contínuo de cada disposição física, intelectual, moral e política" 1• **Tal é a razão de ser desse método que Comte chama histórico e** que, por conseguinte, é desprovido de qualquer objeto, tão logo se rejeitou a concepção fundamental da sociologia comtiana. Também é verdade que Mil! declara a experimentação, mesmo indireta, inaplicável à sociologia. Mas o que já é suficiente para retirar de sua argumentação grande parte de sua autoridade é que ele a aplicava igualmente aos fenômenos biológicos, e mesmo aos fatos físico-químicos mais complexos 2 ; (xa, hoje não é mais preciso de• ·'já que estas têm por objeto considerar isoladamente os pares formados por cada fenômeno social com o grupo de suas condiçôes. É preciso, ao contrário, aproximar uns dos outros e reunir numa mesma síntese" (R.P., p. 169.) **"Tal é o papel desse método histórico" (R.P., p. 169.) REGRAS REIA71VAS À ADMINISTRAÇÀO f)A l'ROVA 129 monstrar que a química e a biologia sú podem ser ciências experimentais. Portanto não há razão para que suas críticas sejam mais bem fundamentadas no que concerne セQ@ sociologia; pois os fenômenos sociais distinguem-se dos precedentes apenas por uma maior 」ッューャ・クゥ、セQN@ Essa diferença pode de fato implicar que o emprego do raciocínio experimental em sociologia ofereça mais difirnldades ainda que nas outras ciências; mas não se percebe por que ele seria radicalmente impossível nesse caso. De resto, toda a teoria de Mill repousa sobre um postulado que, sem dúvida, está ligado aos princípios fundamentais de sua lógica, mas que está em contradição com todos os resultados da ciência. Com efeito, ele admite que nem sempre um mesmo conseqüente resulta de um mesmo antecedente, mas que pode ser devido ora a uma causa, ora a outra. Essa concepção do vínculo causal, retirando-lhe toda determinação, torna-o praticamente inacessível à análise científica; pois introduz tal complicação na trama das causas e dos efeitos que o espírito nela se perde sem retorno. Se um efeito pode derivar de causas diferentes, para saber o que o determina num conjunto de circunstâncias dadas, a experiência teria de ser feita em condições de isolamento praticamente impossíveis, sobretudo em sociologia. Mas esse pretenso axioma da pluralidade das causas é uma negação do princípio de causalidade. Certamente, se supusermos com Mill que a causa e o efeito são absolutamente heterogêneos, que nào há entre eles nenhuma relação lógica, não há nada de contraditório em admitir que um efeito possa acompanhar ora uma causa, ora outra. Se a relação que une C a A é puramente cronológica, ela não exclui uma outra relação do mesmo gênero que uniria C a B, por exemplo. Mas, se, ao contrário, o vínculo causal tem algo de inteligível, ele não poderia ser indt·- 130 AS REGRAS DO MÉ"JDDO SOCJOLÓGICO terminado a esse ponto. Se ele consiste numa relação que resulta da natureza das coisas, um mesmo efeito só pode manter essa relação com uma única causa, pois não pode exprimir mais que uma só natureza. Ora, somente os filósofos puseram em dúvida a inteligibilidade da relação causal. Para o cientista, ela não se questiona; ela é suposta pelo método da ciência. Como explicar de outro modo o papel tão importante da dedução no raciocínio experimental, assim como o princípio fundamental da proporcionalidade entre a causa e o efeito? Quanto aos casos que são citados e nos quais se pretende observar uma pluralidade de causas, para que eles fossem demonstrativos, seria preciso ter estabelecido preliminarmente ou que essa pluralidade não é simplesmente aparente, ou que a unidade exterior do efeito não recobre uma real pluralidade. Quantas vezes aconteceu ã ciência reduzir à unidade causas cuja diversidade, à primeira vista, parecia irredutível! O próprio Stuart Mil! dá um exemplo disso ao lembrar que, segundo as teorias modernas, a produção ele calor pelo atrito, pela percussão, pela ação química, etc. deriva de uma mesma e única causa. Inversamente, quando se trata do efeito, o cientista distingue com freqüência o que o vulgo confunde. Para o senso comum, a palavra febre designa uma mesma e única entidade mórbida; para a ciência, há uma quantidade de febres especificamente diferentes e a pluralidade elas causas está em relação com a dos efeitos; e, se entre todas essas espécies nosológicas há não obstante algo em comum, é que essas causas, igualmente, se confundem por alguns de seus caracteres. É importante exorcizar esse princípio da sociologia, sobretudo porque muitos sociólogos sofrem ainda sua influência, e isso apesar de não fazerem objeção contra o emprego do método comparativo. Assim, costuma-se dizer que o crime pode ser igualmente produzido pelas REGRAS RELA11VAS À ADMINISTRAÇÃO DA PROVA 131 mais diversas causas; que o mesmo acontece com o suicídio, com a pena, etc. Praticando-se com esse espírito oraciocínio experimental, por mais que se reúna um número considerável de fatos, jamais se poderão obter leis precisas, relações determinadas de causalidades. Apenas se poderá atribuir vagamente um conseqüente mal definido a um grupo confuso e indefinido de antecedentes. Portanto, se quisermos empregar o método comparativo de maneira científica, ou seja, conformando-se ao princípio de causalidade tal como ele se depreende da própria ciência, deveremos tomar como base das comparações que instituímos a proposição seguinte: A um mesmo efeito corresponde sempre uma mesma causa. Assim, para retomar os exemplos citados mais acima, *se o suicídio depende de mais de uma causa, é porque, em realidade, há várias espécies de suicídios. O mesmo acontece com o crime. Em relação à pena, ao contrário, se se acreditou que ela se explicava da mesma forma por causas diferentes, é porque não se percebeu o elemento comum que se verifica em todos esses antecedentes e em virtude do qual eles* produzem seu efeito comum:l. II Contudo, se os diversos procedimentos do método comparativo não são inaplicáveis à sociologia, nem todos têm, nela, uma força igualmente demonstrativa. * "se o crime, se o suicídio admitem causas diferentes, é que, em realidade, há espécies muito diferentes de crimes e de suicídios. Em relação à pena, ao contrário, é em virtude de um elemento comum a todas as causas aparentemente diferentes que lhe atribuem" (R.P., p. 171.) 132 AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO O método dito dos resíduos, se é que ele constitui uma forma de raciocínio experimental, não tem, por assim dizer, nenhuma utilidade no estudo dos fenômenos sociais. Além de só poder servir às ciências bastante avançadas, uma vez que ele supõe já conhecidas um número importante de leis, os fenômenos sociais sào demasiado complexos para que, num caso dado, se possa exatamente suprimir o efeito de todas as causas menos uma. A mesma razão torna dificilmente utilizáveis tanto o método de concordância como o de diferença. Eles supõem, com efeito, que os casos comparados ou concordam só num ponto, ou diferem num só. Sem dúvida, não há ciência que alguma vez tenha podido instituir experiências em que o caráter rigorosamente único de uma concordância ou de uma diferença fosse estabelecido de maneira irrefutável. Jamais estamos seguros de não ter deixado escapar algum antecedente que concorda ou difere como o conseqüente, ao mesmo tempo e da mesma maneira que o único antecedente conhecido. Entretanto, embora a eliminação absoluta de todo elemento adventício seja um limite ideal que não pode ser realmente atingido, as ciências físico-químicas e mesmo as ciências biológicas aproximam-se bastante dele para que, num grande número de casos, a demonstração possa ser vista como praticamente suficiente. Mas isso já não ocorre cm sociologia devido à complexidade demasiado grande dos fenômenos, acrescida da impossibilidade de qualquer experiência artificial. Como não se poderia fazer um inventário, ainda que só aproximadamente completo, de todos os fatos que coexistem no interior de uma mesma sociedade ou que se sucederam ao longo de sua história, jamais se pode estar seguro, mesmo de maneira aproximada, de que dois povos concordam ou diferem sob todos os aspectos, exceto um. As chances de deixar um fenômeno escapar são bem REGRAS RELA17VAS À ADMINISTRAÇÃO DA PROVA 133 superiores às de não negligenciar nenhum. Em conseqüência, tal método de demonstração só pode dar origem a conjeturas que, reduzidas a elas só, são quase desprovidas de todo caráter científico. Muito diferente é o que acontece com o método das variações concomitantes. Com efeito, para que ele seja demonstrativo, não é necessário que todas as variaçCies diferentes daquelas que se comparam tenham sido rigorosamente excluídas. O simples paralelismo dos valores pelos quais passam os dois fenômenos, contanto que tenha sido estabelecido num número suficiente de casos suficientemente variados, é a prova de que existe entre eles uma relação. Esse método deve esse privilégio ao fato de atingir a relação causal, não a partir de fora como os precedentes, mas a partir de dentro. Ele não nos mostra simplesmente dois fatos que se acompanham ou que se excluem exteriormente4, de sorte que nada prova diretamente que estejam unidos por um vínculo interno; ao contrário, tais fatos nos são mostrados participando um do outro e de maneira contínua, pelo menos no que diz respeito à sua quantidade. Ora, essa participação, por si só, é suficiente para demonstrar que eles não são estranhos um ao outro. A maneira como um fenômeno se desenvolve exprime sua natureza; para que dois desenvolvimentos se correspondam, é preciso que haja também uma correspondência nas naturezas que eles manifestam. A concomitância constante .é portanto, por si mesma, uma lei, seja qual for o estado dos fenômenos que permaneceram fora da comparação. Assim, para invalidá-la, não basta mostrar que ela é posta em xeque por algumas aplicações particulares do método de concordância ou de diferença; seria atribuir a esse tipo de provas uma autoridade que ele não pode ter em sociologia. Quando dois fenômenos variam regularmente tanto um como o outro, é 134 AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO preciso manter essa relação ainda que, em alguns casos, um desses fenômenos se apresentasse sem o outro. Pois pode ocorrer, ou que a causa tenha sido impedida de produzir seu efeito pela ação de alguma causa contrária, ou que ela se encontre presente, mas sob uma forma diferente daquela anteriormente observada. Sem dúvida, é o caso de conferir, como se diz, de セク。ュゥョイ@ os fatos de novo, mas não de abandonar de vez os resultados de uma demonstração regularmente conduzida. É verdade que as leis estabelecidas por esse procedimento nem sempre se apresentam ele imediato sob a forma de relações ele causalidade. A concomitância pode ser devida, não a um fenômeno ser a causa elo outro, mas a serem ambos efeitos de uma mesma causa, ou então por existir entre eles um terceiro fenômeno, intercalado, mas despercebido, que é o efeito do primeiro e a causa do segundo. Os resultados a que esse método conduz têm portanto necessidade de ser interpretados. Mas qual o método experimental que permite obter mecanicamente uma relação ele causalidade sem que os fatos que ele estabelece precisem ser elaborados pelo espírito? Tudo o que importa é que essa elaboração seja metodicamente conduzida, e eis aqui ele que maneira se poderá proceder a isso. Em primeiro lugar procuraremos saber, com o auxílio da dedução, como um dos dois termos foi capaz de produzir o outro; a seguir, nos esforçaremos por verificar o resultado dessa dedução com o auxílio ele experiências, isto é, de novas comparações. Se *a dedução é possível e a verificação bem-sucedida, poderemos considerar a prova como feita. Se, ao contrário*, não percebemos entre esses fatos nenhum vínculo direto, sobretudo se a hipótese de semelhante vínculo contradiz leis já demonstradas, saire* Frase que não figura no texto inicial. REGRAS RELA71VASÀ ADMINISTRAÇÃO f)A /'R(JVA 135 mos em busca de um terceiro fenômeno dos quais os dois outros dependam igualmente ou que tenha podido servir de intermediário entre eles. Por exemplo, pode-se estabelecer da maneira mais certa que a tendência ao suicídio v;uia de acordo com a tendência à instrução. Mas é impossível compreender como a instrução pode conduzir ao suicídio; tal explicação está em contradição com as leis da psicologia. A instrução, sobretudo reduzida aos conhecimentos elementares, não atinge senão as regiões mais superficiais da consciência; ao contrário, o instinto de conservação é uma de nossas tendências fundamentais. Portanto, este não poderia ser sensivelmente afetado por um fenômeno tão distante e de tão fraca repercussão. Assim somos levados a perguntar se um e outro fato não seriam a conseqüência de um mesmo estado. Essa causa comum é o enfraquecimento do tradicionalismo religioso que reforça ao mesmo tempo a necessidade de saber e a tendência ao suicídio. Mas há outra razão que faz do método das variações concomitantes o instrumento por excelência das pesquisas sociológicas. Com efeito, mesmo quando as circunstâncias lhes são mais favoráveis, os outros métodos só podem ser empregados proveitosamente se o número de fatos comparados for muito considerável. Se não é possível ・ョ」ッセ@ trar duas sociedades que diferem ou que se assemelham apenas num ponto, pode-se pelo menos constatar que dois fatos ou se acompanham, ou se excluem de maneira muito geral. Mas, para que essa constatação tenha um va lor científico, é preciso que tenha sido feita um grande número de vezes; seria preciso estar quase seguro de que todos os fatos foram passados em revista. Ora, não apenas um inventário tão completo é impossível, mas também os fatos assim acumulados jamais podem ser estabelecidos com uma precisão suficiente, justamente por serem dema- 136 AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO siado numerosos. Não apenas se corre o risco de omitir alguns essenciais e que contradizem os que são conhecidos, mas também não se tem certeza de conhecer bem estes últimos. Na verdade, o que muitas vezes desacreditou os raciocínios dos sociólogos é que, por terem empregado de preferência o método de concordância ou o de diferença, sobretudo o primeiro, eles se preocuparam mais em acumular documentos do que em criticá-los e escolhê-los. É assim que lhes acontece a todo momento colocar no mesmo plano as observações confusas e rápidas dos viajantes e os textos precisos da história. Diante de tais demonstrações, não apenas somos levados a afirmar que um único fato poderia ser suficiente para invalidá-las, mas também que os próprios fatos sobre os quais são estabelecidas nem sempre inspiram confiança. O método das variações concomitantes não nos obriga nem a essas enumerações incompletas, nem a essas observações superficiais. Para que ele dê resultados, poucos fatos são suficientes. Tão logo se prova que, em um certo número de casos, dois fenômenos variam um de acordo com o outro, podemos ter a certeza de estar em presença de uma lei. Não tendo necessidade de ser numerosos, os documentos podem ser escolhidos e, mais do que isso, estudados de perto pelo sociólogo que os emprega. Portanto ele não só poderá como deverá tomar por objeto principal de suas induções as sociedades cujas crenças, tradições, costumes e direito se materializaram em monumentos escritos e autênticos. Certamente, ele não desdenhará as informações da etnografia (não há fatos que possam ser desdenhados pelo cientista), mas irá colocá-las em seu verdadeiro lugar. Em vez de fazer delas o centro de gravidade de suas pesquisas, só as utilizará em geral como complemento daquelas que deve à história, ou pelo menos se esforçará por confirmá-las através destas últimas. Assim ele REGRAS RELA17VAS À ADMJNJSTRAÇ'ÀO lJA PROVA 137 não apenas circunscreverá, com mais discernimento, a extensão de suas comparações, mas as conduzirá com mais crítica; pois, exatamente por se prender a uma ordem restrita de fatos, poderá controlá-los com maior cuidado. Claro que ele não precisa refazer a obra dos historiadores; mas também não pode receber passivamente e indiscriminadamente as informações de que se serve. Mas não se deve pensar que a sociologia esteja num estado de sensível inferioridade em face das outras ciências por não poder utilizar muito mais que um único procedimento experimental. Esse inconveniente, com efeito, é compensado pela riqueza das variações que se oferecem espontaneamente às comparações do sociólogo e da qual não se encontra nenhum exemplo nos outros reinos da natureza. As mudanças que ocorrem num organismo ao longo de uma existência individual são pouco numerosas e muito restritas; as que podem ser provocadas artificialmente sem destruir a vida situam-se também dentro de estreitos limites. É verdade que outras mais importantes se produziram na seqüência da evolução zoológica, mas elas só deixaram raros e obscuros vestígios, e é ainda mais difícil descobrir as condições que as determinaram. Ao contrário, a vida social é uma série ininterrupta de transformações, paralelas a outras transformações nas condições da existência coletiva; e temos à nossa disposição não somente as que se relacionam a uma época recente, pois um grande número daquelas pelas quais passaram os povos desaparecidos também chegaram até nós. Apesar de suas lacunas, a história da humanidade é bem mais clara e completa que a das espécies animais. Além disso, existe uma quantidade de fenômenos sociais que se produzem em toda a extensão da sociedade, mas que assumem formas diversas conforme as regiões, as profissões, as confissões, etc. Tal é o caso, por exemplo, do crime, do suicí- 138 AS RHGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGJCC dio, da natalidade, da nupcialidade, da poupança, etc. D3 diversidade desses meios especiais resultam, para cada uma dessas ordens de fatos, novas séries de variaçôes, além daquelas que a evolução histórica produz. Portanto, se o sociólogo não pode empregar com igual eficácia todos os procedimentos da pesquisa experimental, o único método que ele deve utilizar, quase com exclusão dos outros, pode, em suas mãos, ser muito fecundo, pois, para fazê-lo funcionar, ele dispôe de recursos incomparáveis. *Mas esse método só produz os resultados que comporta se for praticado com rigor. Nada se prova quando, como acontece com freqüência, apenas se mostra, por exemplos mais ou menos numerosos, que, nesses casos esparsos, os fatos variaram como previa a hipótese. Dessas concordâncias esporádicas e fragmentárias não se pode tirar nenhuma conclusão geral. Ilustrar uma idéia não é demonstrá-la. O que é preciso é comparar, não variaçc)es isoladas, mas séries de variaçôes, regularmente constituídas, cujos termos se ligam uns aos outros por uma gradação tão contínua quanto possível e que, ademais, tenham uma extensão suficiente. Pois as variações de um fenômeno só permitem induzir sua lei se elas exprimem claramente a maneira como ele se desenvolve em circunstâncias dadas. Ora, para tanto é preciso que haja entre elas a mesma seqüência que entre os momentos diversos de uma mesma evolução natural e, além disso, que essa evolução que elas representam seja suficientemente prolongada para que seu sentido não seja duvidoso.* ' Esse parágrafo, em seu conjunto, está ausente do texto inicial. , RFXlRAS REIA11VAS À ADMINISTRA ç:4 O J)A f'R( J \1A 139 III Mas *a maneira como devem ser formadas essas séries* difere conforme os casos. Elas podem compreender fatos tomados ou de uma única sociedade - ou ele várias sociedades da mesma espécie -, ou ele várias espécies sociais distintas. O primeiro procedimento pode ser suficiente, a rigor, quando se trata ele fatos de uma grande generalidade e sobre os quais temos informações estatísticas bastante extensas e variadas. Por exemplo, aproximando-se a curva que exprime a evolução do suicídio, durante um período de tempo suficientemente longo, das variações que apresenta o mesmo fenômeno segundo as províncias, as classes, os hábitats rurais ou urbanos, os sexos, as idades, o estado civil, etc., pode-se chegar, mesmo sem estender a pesquisa para além de um único país, a estabelecer verdadeiras leis, ainda que seja sempre preferível confirmar esses resultados através de outras observaçôes, feitas sobre outros povos da mesma espécie. Mas só é possível contentar-se com comparações tão limitadas quando se estuda uma dessas correntes sociais que se espalham em toda a sociedade, embora variem de um ponto a outro. Quando, ao contrário, trata-se de uma instituição, de uma regra jurídica ou moral, de um costume organizado, que são idênticos e funcionam da mesma maneira em toda a extensão do país e que só se modificam com o tempo, não é possível restringir-se ao estudo de um único povo; pois, nesse caso, ter-se-ia como elemento da prova apenas um único par de curvas paralelas, a saber, as que exprimem a marcha histórica do fenômeno considerado e · da causa conjeturada, mas nessa única e exclusiva socie'"a natureza mesma das comparações sociológicas" (R.P.. p. 175.) 140 AS REGRAS DO MÉTODO SOC10LÓGJCO dade. Certamente, mesmo esse único paralelismo, se for constante, já é um fato considerável, mas não poderia, por si só, constituir uma demonstração. Fazendo entrar em consideração vários povos da mesma espécie, dispõe-se já ele um campo ele comparação mais extenso. Primeiramente, pode-se confrontar a história de um com a elos outros e ver se, em cada um deles isoladamente, o mesmo fenômeno evolui no tempo em função das mesmas condições. A seguir, podem-se estabelecer comparações entre esses diversos desenvolvimentos. Por exemplo, determinar-se-á a forma que o fato estudado adquire nessas diferentes sociedades no momento em que ele chega a seu apogeu. Como essas sociedades, embora pertençam ao mesmo tipo, são individualidades distintas, a forma em questão não é em toda parte a mesma*; ela é mais ou menos pronunciada conforme os casos*. Deste modo se terá uma nova série ele variações que serão aproximadas daquelas que apresenta, no mesmo momento e em cada um desses países, a condição **presumida**. Assim, após ter seguido a evolução da família patriarcal através ela história de Roma, de Atenas, de Esparta, essas mesmas cidades serão classificadas conforme o grau máximo de desenvolvimento que atinge em cada uma delas esse tipo familiar, e a seguir se verá, em relação ao estado elo meio social do qual parece depender o tipo familiar ele acordo com a primeira experiência, se elas se classificam ainda ela mesma maneira. Mas mesmo esse método não pode ainda ser suficiente. Ele só se aplica, com efeito, aos fenômenos que têm origem durante a viela dos povos comparados. Ora, uma sociedade não cria completamente sua organização; ela a * Frase que nào figura no texto inicial. ••"conjeturada." (R.P., p. 176.) REGRAS RELA77VAS À AlJMINISTRA(,ÀO f)A !'NOVA 141 recebe pronta, em parte, das socil:'dadl:'s qul' a prl'Cl'tkram. O que lhe é assim transmitido, no dl:'corrl'r dl:' sua história, não é o produto de um desl:'nvolviml'nto Sl'U, portanto não pode ser explicado se não sairmos dos limites da espécie ele que ela faz parte. Somente os acréscimos que se juntam a esse fundo primitivo l' o transformam podem ser tratados dessa maneira. Porém, quanto mais nos elevamos na escala social, tanto menor é a importância dos caracteres adquiridos por cada povo comparados aos caracteres transmitidos. Aliás, essa é a condição ele todo progresso. Assim, elementos novos que introduzimos no direito doméstico, no direito de propriedade, na moral, desde o começo ele nossa história, são relativamente pouco numerosos e pouco importantes, comparados aos que o passado nos legou. As novidades que se produzem não poderiam portanto ser compreendidas se primeiro não fossem estudados aqueles fenômenos mais fundamentais que são suas raízes, *e estes só podem ser estudados com o auxílio de comparações muito mais extensas. Para poder explicar o estado atual da família, elo casamento, da propriedade, etc., seria preciso conhecer quais são suas origens, quais os elementos simples que compõem essas instituições, e, sobre esses pontos, a história comparada das grandes sociedades européias não nos daria grandes esclarecimentos. É preciso remontar mais acima. Conseqüentemente, para explicar uma instituição social, pertencente a uma espécie determinada, iremos comparar as formas diferentes que ela apresenta não apenas nos povos dessa espécie, mas em todas as espécies anteriores. Trata-se, por exemplo, da organização doméstica? Constituiremos primeiramente o tipo mais rudimentar que * Elemento que nào figura no texto inicial. 142 AS REGRAS no MÉTODO SOC70LÓGICO possa ter existido, para em seguida acompanhar passo a passo a maneira como ele progressivamente se complicou. Esse método, que poderíamos chamar genético, efetuaria de uma só vez a análise e a síntese do fenômeno. Pois, por um lado, nos mostraria em estado dissociado os elementos que o compõem, pelo simples fato de nos mostrar esses elementos acrescentando-se sucessivamente uns aos outros; ao mesmo tempo, graças ao extenso campo de comparação, ele seria bem mais capaz de determinar as condições de que dependem a formação e associação desses mesmos elementos. Conseqüentemente, só se pode explicar um fato social de alguma complexidade se se acompanhar seu desenvolvimento integral através de todas as ・セー←」ゥウ@ sociais. A sociologia comparada não é um ramo particular da sociologia; é a sociologia mesma, na medida em que ela deixa de ser puramente descritiva e aspira a explicar os fatos. No decorrer dessas comparações extensas, comete-se com freqüência um erro que falseia os resultados. Algumas vezes, para julgar em que sentido se desenvolvem os acontecimentos sociais, simplesmente se comparou o que se passa no declínio de cada espécie com o que se produz no começo da espécie seguinte. Procedendo deste modo, acreditou-se poder afirmar, por exemplo, que o enfraquecimento das crenças religiosas e de todo tradicionalismo nunca podia ser mais que um fenômeno passageiro da vida dos povos, porque ele só aparece no último período de sua existência para cessar assim que uma nova evolução recomeça. Mas, com semelhante método, corre-se o risco de tomar como marcha regular e necessária do progresso o que é efeito de uma causa muito diferente. De fato, o estado em que se encontra uma sociedade jovem não é simplesmente o prolongamento do estado em que haviam chegado no final de sua carreira as socie- REGRAS REIATIVAS À AlJMINIS'f7<A(,ÁU IM l'NUVA 143 dades que ela substituí, mas provC·111 L'lll partl' dl'ssa pr(lpria juventude que impede qul' os produtos das L'Xpl'rí0ncias feitas pelos povos anteriores seja 111 todos illll'd ia tamente assimiláveis e utilizáveis. Assí111, a crianL·a rl'cehe de seus pais faculdades e predisposiçCles que sú tardiamente entram em jogo em sua vida. Portanto é possívl'I, para retomar o mesmo exemplo, que o retorno do tradicionalismo observado no começo de cada história seja devido, não ao fato de que um recuo do mesmo fenômeno só pode ser transitório, mas às condições especiais em que se acha colocada toda sociedade que começa. A comparação só pode ser demonstrativa se eliminamos esse fator da idade, que a perturba; para tanto, bastará considerar as sociedades comparadas no mesmo período de seu desenvolvimento. Assim, para saber em que sentido evolui um fenômeno social, iremos comparar o que ele é na juventude de cada espécie com aquilo em que se transforma na juventude da espécie seguinte, e, conforme apresentar, de uma etapa a outra, maior, menor ou igual intensidade, diremos que ele progride, recua ou se mantém. CONCLUSÃO Em resumo, as características desse método são as seguintes. Em primeiro lugar, ele é independente de toda filosofia. Por ter nascido das grandes doutrinas filosóficas, a sociologia conservou o hábito de se apoiar em algum sistema do qual se acha, pois, solidária. Assim, ela foi sucessivamente positivista, evolucionista, espiritualista, quando deve contentar-se em ser sociologia e nada mais. Inclusive hesitaríamos em qualificá-la de naturalista, a menos que com isso se queira simplesmente indicar que ela considera os fatos sociais como explicáveis naturalmente; nesse caso, o epíteto é inútil, pois significa apenas que o sociólogo pratica a ciência e não é um místico. Mas repelimos a palavra, se lhe quiserem dar um sentido doutrinal sobre a essência das coisas sociais, se, por exemplo, disserem que elas são redutíveis às outras forças cósmicas. A sociologia não tem de tomar partido por uma das grandes hipóteses que dividem os metafísicos. Ela não precisa afirmar a liberdade nem o determinismo. Tudo o que ela pe- 146 AS REGRAS DO MÉTODO SOGYOLÓGJCO de que lhe concedam é que o princípio de causalidade se ª?liqu: aos fenômenos sociais. E, ainda assim, esse principio e por ela estabelecido não como uma necessidade racional, mas somente como um postulado empírico, produto de uma indução legítima. Visto que a lei da causalidade fcú verificada nos outros reinos da natureza e que progressivamente ela estendeu seu domínio do mundo fíウゥ」セMアオ■ュ@ セッ@ mundo biológico, e deste ao mundo psicologico, e licito admitir que ela igualmente seja verdadeira para o mundo social; e é possível afirmar hoje que as pesquisas empreendidas sobre a base desse postulado tendem a confirmá-lo. Mas a questão de saber se a natureza do vínculo causal exclui toda contingência nem por isso está resolvida. De resto, a própria filosofia tem todo o interesse nesウセ@ emancipação da sociologia. Pois, enquanto o sociólogo nao se separou suficientemente do filósofo, ele só considera as coisas sociais por seu lado mais geral, aquele pelo qual elas mais se assemelham às outras coisas do universo. Ora, se *a, sociologia assim concebida pode servir para ilustrar com fatos curiosos uma filosofia, ela não poderia enriquecê-la com idéias novas, uma vez que ela nada assinala de novo no objeto que estuda. Mas em realidade se* os fatos fundamentais 、ッセ@ outros イ・ゥョセウ@ se カ・イゥヲ」。セ@ no reino social, é sob formas **especiais que fazem compreender melhor sua natureza, por serem sua expressão mais elevada**. Só que, para percebê-los sob esse aspecto, é preciso sair das generalidades e entrar no detalhe dos fatos. É deste modo que a sociologia, à medida que se especializar, irá fornecer materiais mais originais para a * Desenvolvimento que não figura no texto inicial. *' "novas e que por isso mesmo fazem compreender melhor sua natureza". (R.P., p. 179.) CONCLUSÃO 147 reflexão filosófica. O que precl'dl' p foi capaz dl' fazer entrever de que maneira no(,'(>es essenciais, U is como as de espécie, de órgão, de fun(;ão, de saúdl' L' dL· dol'll(,'a, de causa e de fim, apresentam-se nela sob luZl'S intl'iramente novas. Aliás, será que a sociologia não estará dest inada a realçar plenamente uma idéia que poderia muito bem ser a base não apenas de uma psicologia, mas de toda uma filosofia, a idéia de associação? Em face das doutrinas práticas, nosso método permite e requer a mesma independência. A sociologia, assim entendida, não será nem individualista, nem comunista, ném socialista, no sentido que se dá vulgarmente a essas palavras. Por princípio, irá ignorar essas teorias, às quais não poderia reconhecer valor científico, já que elas tendem diretamente, não a exprimir os fatos, mas a reformá-los. Pelo menos, se se interessa por elas, é somente na medida em que as vê como fatos sociais capazes de ajudá-la a compreender a realidade social, ao manifestarem as necessidades que movem a sociedade. Isso não quer dizer, porém, que a sociologia deva se desinteressar das questões práticas. Pôde-se ver, ao contrário, que nossa preocupação constante era orientá-la de maneira que pudesse alcançar resultados práticos. Ela depara necessariamente com esses problemas ao término de suas pesquisas. Mas, exatamente por só se apresentarem a ela nesse momento e por decorrerem portanto dos fatos e nào das paixões, pode-se prl'ver que tais problemas devam se colocar para o sociúlogo em termos muito diferentes do que para a mult id;ío, L' quv as soluções, aliás parciais, que ele é capaz dl' propor 11;1< > poderiam coincidir exatamente com nl'nliu111;1 LLiqtll'l;1s nas quais se detêm os partidos. O papl'l LLi sociologia, desse ponto de vista, deve justamcntl' consistir L'lll nos libertar de todos os partidos, não tanto por opor u111;1 drn1trina às doutrinas, e sim por fazer os l'spíritos assu111irc111, 148 AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO diante de tais questões, uma atitude especial que somente a ciência pode proporcionar pelo contato direto com as coisas. Com efeito, somente ela pode ensinar a tratar com respeito, mas sem fetichismo, as instituições históricas sejam elas quais forem, fazendo-nos perceber o que elas têm ao mesmo tempo de necessário e de provisório, sua força de resistência e sua infinita variabilidade. Em segundo lugar, nosso método é objetivo. Ele é inteiramente dominado pela idéia de que os fatos sociais são coisas e como tais devem ser tratados. Certamente, esse princípio se encontra, sob forma um pouco diferente, na base das doutrinas de Comte e de Spencer. Mas esses grandes pensadores deram muito mais sua fórmula teórica do que o puseram em prática. Para que ela não permanecesse letra morta, não bastava promulgá-la; era preciso torná-la a base de toda uma disciplina que se apoderasse do cientista no momento em que ele abordasse o objeto de suas pesquisas e que o acompanhasse em todos os seus passos. Foi a instituir essa disciplina que nos dedicamos. Mostramos como o sociólogo deveria afastar as noções antecipadas que possuía dos fatos, a fim de colocar-se diante dos fatos mesmos; como deveria atingi-los por seus caracteres mais objetivos; como deveria requerer deles próprios o meio de classificá-los em saudáveis e em mórbidos; como, enfim, deveria seguir o mesmo princípio tanto nas explicações que tentava quanto na maneira pela qual provava essas explicações. Pois, quando se tem o sentimento de estar em presença de coisas, nem sequer se pensa mais em explicá-las por cálculos utilitários ou por raciocínios de qualquer espécie. Compreende-se muito bem a distância que há entre tais causas e tais efeitos. Uma coisa é uma força que não pode ser engendrada senão por outra força. Buscam-se então, para explicar os fatos sociais, energias capazes de produzi-los. As explicações não apenas são CONCLUSÃO 149 outras como são demonstradas de outro modo, ou melhor, somente então que se sente a necessidade de demonstrá-las. Se os fenômenos sociológicos forem apenas sistemas de idéias objetivas, explicá-los é repens{1-los em sua ordem lógica e essa explicação é sua própria prova; quando muito será o caso de confirmá-la por alguns exemplos. Ao contrário, somente experiências metódicas são capazes de arrancar das coisas seu segredo. Mas, se consideramos os fatos sociais como coisas, é como coisas sociais. É um terceiro traço característico de nosso método o de ser exclusivamente sociológico. Muitas vezes se pensou que tais fenômenos, por causa de sua extrema complexidade, ou eram refratários à ciência, ou só poderiam entrar nela reduzidos a suas condições elementares, sejam psíquicas, sejam orgânicas, isto é, despojados de sua natureza própria. Procuramos estabelecer, ao contrário, que era possível tratá-los cientificamente sem nada retirar-lhes de seus caracteres específicos. Inclusive recusamos reduzir a imaterialidade sui generis que os caracteriza àquela, nào obstante já complexa, dos fenômenos psicolqgicos; com mais forte razão nos proibimos de absorvê-la, como faz a escola italiana, nas propriedades gerais da matéria organizada 1 . Mostramos que um fato social só pode ser explicado por outro fato social, e, ao mesmo tempo, indicamos de que maneira esse tipo de explicação é possível ao assinalarmos •no meio soda! interno o motor principal da evolução coletiva•. A sociologia, portanto, não é o anexo de nenhuma outra cii·rwia; ela própria é uma ciência distinta e auttmoma, t' o st•nti i • "uma ordem de causas dotadas dl' sulki<'lli<' <'li<'l<'11<'1;1 p.11.1 tornar inteligível a produçào dos l'fl'ilos q11<· lli<·s a1rili11111111s," li.is1.111lt' próximas desses efeitos para poder cxplicí-los .'<'Ili ljll<' st•j.1 IH'<'t'.'·'ª1lc 1 desnaturá-los por uma ウゥューャヲ」。セᄋZッ@ artifidal: traia"' d;L' p111p1l<·d;ult·., do meio social". (R.P., id., p. JHJ.) 150 AS REGRAS DO MÉTODO SOG10LÓGICO mento da especificidade da realidade social é inclusive tão necessário ao sociólogo, que somente uma cultura especificamente sociológica é capaz de prepará-lo para a compreensão dos fatos sociais. Consideramos que esse progresso é o mais importante dos que restam a ser feitos em sociologia. Certamente, quando uma ciência está por nascer, somos obrigados, para formá-la, a nos referir aos únicos modelos existentes, ou seja, às ciências já constituídas. Existe aí um tesouro de experiências proQtas que seria insensato não aproveitar. Entretanto, uma ciência só pode considerar-se definitivamente constituída quando conseguir formar-se uma personalidade independente. Pois ela só terá razào de ser, se tiver por objeto uma ordem de fatos que as outras ciências não estudam. Ora, é impossível que as mesmas noções possam convir identicamente a coisas de natureza diferente. Tais nos parecem ser os princípios do método sociológico. Esse conjunto de regras talvez parecerá inutilmente complicado, se o compararmos aos procedimentos correntemente utilizados. Todo esse aparato ele precauções pode parecer muito trabalhoso *para uma ciência que, até aqui, reclamava dos que a ela se consagravam pouco mais do que uma cultura geral e filosófica,* e é certo que pôr em prática tal método não poderia ter por efeito vulgarizar a curiosidade das coisas sociológicas. Quando se pede às pessoas, como condição de iniciação prévia, para se desfazerem dos conceitos que têm o hábito de aplicar a uma ordem de coisas para repensá-las com novos esforços, nào se pode esperar recrutar uma clientela numerosa: Mas esse não é o objetivo que almejamos. Acreditamos, ' "quando se sabe com que facilidade espíritos elegantes e sutis se divertem em meio aos fenômenos sociais," (R.P., p. 182.) CONCLUS'ÃO 151 ao contrário, que chegou, para a sociologia, o momento de renunciar aos sucessos mundanos, por assim dizer, e de assumir o caráter esotérico que convi.:·m a toda cil'ncia. Ela ganhará assim em dignidade e em autoridadl' o qul' perderá talvez em popularidade. Pois, enquanto lK'rmanecer misturada às lutas dos partidos, enquanto se contl'ntar em elaborar, com mais lógica do que o vulgo, as idi.:·ias comuns e, por conseguinte, enquanto não supuser nL·nhuma competência especial, ela não estará habilitada a falar suficientemente alto para fazer calar as paixôes e os preconceitos. Seguramente, ainda está distante o tempo em que ela poderá desempenhar essé papel com eficácia; no entanto, é para torná-la capaz de representá-lo um dia que precisamos, desde agora, trabalhar. NOTAS Prefácios 1. Mas, objetam-nos, se a saúde contém elementos execráveis, como apresentá-la, tal como fazemos mais adiante, como o objetivo imediato da conduta? Nisso não há nenhuma contradição. Acontece a todo instante que uma coisa, embora prejudicial por algumas de suas conseqüências, seja, por outras, útil ou mesmo necessária à vida; ora, se os maus efeitos que ela tem são regularmente neutralizados por uma influência contrária, verifica-se de fato que ela serve sem prejudicar, não obstante continue sendo execrável, pois nào deixa de constituir por si mesma um perigo eventual que só é conjurado pela ação de uma força antagônica. É o caso do crime; o mal que ele faz à sociedade é anulado pela pena, se esta funcionar regularmente. Portanto, o crime mantém com as condições fundamentais da vida as relações positivas que veremos a seguir, sem produzir o mal que implica. Só que, como ele se torna inofensivo contra sua vontade, por assim dizer, os sentimentos de aversão que suscita não deixam de ter fundamento. 2. O que significa que ele nào deve ser confundido com a metafísica positivista de Comte e de Spencer. 154 AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO 3. Vê-se que, para admitir essa proposição, não é necessário afirmar que a vida social é feita ele algo mais cio que representações; basta estabelecer que as representações, individuais ou coletivas, só podem ser estudadas cientificamente com a condição ele serem estudadas objetivamente. 4. A proposição, aliás, é só parcialmente exata. Além dos indivíduos, há as coisas que são elementos integrantes ela sociedade. É verdade, porém, que os indivíduos são seus únicos elementos ativos. 5. É inútil mostrar como, desse ponto de vista, a necessidade de estudar os fatos a partir do exterior afigura-se ainda mais evidente, uma vez que eles resultam de sínteses que ocorrem fora de nós e das quais não temos sequer a percepção confusa que a consciência pode nos dar dos fenômenos interiores. 6. O poder coercitivo que lhe atribuímos não representa a totalidade do fato social, tanto assim que este pode apresentar igualmente o caráter oposto. Pois, ao mesmo tempo que ·as instituições se impõem a nós, aderimos a elas; elas nos obrigam e as amamos; elas nos constrangem e vemos vantagens em seu funcionamento e nesse constrangimento mesmo. Essa antítese é a que os moralist;is com freqüência assinalaram entre as noções cio bem e do dever, que exprimem dois aspectos diferentes, mas igualmente reais, da vida moral. Ora, talvez não haja práticas coletivas que não exerçam sobre nós essa dupla ação, que só é contraditória, aliás, em aparência. Se não as definimos por essa adesão especial, ao mesmo tempo interessada e desinteressada, é simplesmente porque esta não se manifesta por sinais exteriores, facilmente perceptíveis. O bem tem algo de mais interno, de mais íntimo que o dever, portanto de menos discernível. 7. Ver o artigo "Sociologie" da Grande Encyclopédie, redigido por Fauconnet e Mauss. 8. Do fato de que as crenças e as práticas sociais nos penetram a partir do exterior, não se segue que as recebamos passivamente e sem lhes imprimir modificação. Ao pensarmos as instituiçües coletivas, ao assimilá-las internamente, nós as individualizamos, conferimos a elas, em maior ou menor grau, nossa marca pessoal; é assim que, ao pensar o mundo sensível, cada um NOTAS ele nós o colore ã sua maneira, e qul' sujl'itos dikrl'lltl's Sl' adaptam diferentemente a um mesmo meio físico. l'or is.,<>, L'lll Cl'rLI medida, cada um de nós faz sua moral, sua rl'ligi;10, sua t.:·c11ic1. Não há conformismo social que nào comportl' toda uma g;111u de nuances individuais. Não obstante, o campo das v;1riav·>l's permitidas é limitado. Ele é nulo ou muito pequeno no círculo cios fenômenos religiosos e morais, onde a variaçào torna-se facilmente um crime; é mais amplo em tudo o que concerne ;I viela econômica. Mas, cedo ou tarde, mesmo nesse último caso, chega-se a um limite que não pode ser franqueado. Introdução 1. .S)steme de Logique, I, VI, cap. VII-XII. 2. Ver Cours de philosophie positive, 2ª ed., pp. 294-336. Capítulo l 1. O que não quer dizer, todavia, que toda cocrçào seja normal. Voltaremos mais adiante a esse ponto. 2. As pessoas não se suicidam em qualquer idade, nem em todas as idades. com a mesma intensidade. 3. Vê-se o quanto essa definição cio fato social distancia-sl' da que serve ele base ao engenhoso sistema de Gabriel Tardl'. Primeiramente, devemos declarar que nossas pesquisas n;ío nos fizeram constatar em parte alguma essa influência prepondl'rantL' que o sr. Tarde atribui à imitação na gênese dos fatos coil'I ivo.,. Ademais, da defini<.;ão precedente, que não é uma tl'oria, 111;1., um simples resumo dos dados imediatos da ohsl'rv;11,·ao, p;m·n· resultar claramente que não apenas a ゥュャ。セᄋ[QP@ 1H·111 M'llljll'l' l'X prime, mas inclusive também jamais L'xprillll' o ljlll' lia dl' l"'-"'11 eia! e característico no fato social. Claro lJUl' tllllo 1:110 ·" ll·i;il l' imitado; ele possui, como acabamo,, dl' llll>.,lrar, 11111;1 tl'11d(·11l·ia .1 generalizar-se; mas isso por l'il' Sl'r sol'ial, i.'I' >l', ol>rigatorio ..'i11.1 força de expansão é, n;ío a causa, mas a l'<>llSl'ljÍÍl"1wi;1 dl' .'t'll c;1 156 AS REGRAS DO MÍ:TODO SOG10LÓGICO ráter sociológico. Se os fatos sociais fossem os únicos a produzir essa conseqüência, a imitação poderia ainda servir, senão para exprimi-los, ao menos para defini-los. Mas um estado individual que é imitado nem por isso deixa de ser individual. Além disso, pode-se perguntar se a palavra imitação é exatamente a que convém para designar uma propagação devida a uma influência coercitiva. Sob essa expressão única, confundem-se fenômenos muito diferentes e que precisariam ser distinguidos. 4. Esse íntimo parentesco da vida e da estrutura, do órgão e da função, pode ser facilmente estabelecido em sociologia porque, entre esses dois termos extremos, existe toda uma série de intermediários imediatamente observáveis e que mostra a ligação entre eles. A biologia não dispõe do mesmo recurso. Mas é lícito supor que as induções da primeira dessas ciências sobre tal questão são aplicáveis à outra e que, tanto nos organismos como nas sociedades, existem apenas diferenças de grau entre essas duas ordens de fatcis. Capítulo II 1. Novum organum, I, p. 26. 2. Jbid., l, p. 17. 3. Jbid., p. 36. 4. Social., tr. fr., III, pp. 331, 332. 5. Jbid., p. 332. 6. Concepção, aliás, controversa. (Ver Division du travai! social, II, p. 2, < > 4.) 7. "A cooperação não poderia portanto existir sem sociedade, e é o objetivo para o qual uma sociedade existe." (Principes de Social., III, p. 332.) 8. Systeme de Logique, III, p. 496. 9. Esse caráter sobressai das expressões mesmas empregadas pelos economistas. A todo instante se trata de idéias, da idéia do útil, da idéia de poupança, de emprego do dinheiro, de despesa. (Ver Gide, Principes d'économie politique, liv. III, cap. I, < > 1; cap. II,<> 1, cap. III,<> 1.) NOTAS 157 10. É verdade que a complexidade maior dos fatos sociais torna sua ciência mais árdua. Mas, em 」ッュー・ョウ。セZ[ャL@ precisamente porque a sociologia é a última a chegar, ela est:1 em condições de aproveitar os progressos realizados pelas ciências inferiores e de instruir-se na escola delas. Essa utilização das experiências realizadas não pode deixar de acelerar seu desenvolvimento. 11. J. Darmesteter, Les prophetes d'Israel, p. 9. • 12. Na prática, é sempre do conceito vulgar e da palavra vulgar que se parte. Busca-se saber se, entre as coisas que essa palavra confusamente conota, há ·algumas que apresentam caracteres comuns exteriores. Se houver.e se o conceito formado pelo grupamento dos fatos assim aproximados coincidir, se não totalmente (o que é raro), pelo menos na maior parte, com o conceito vulgar, poder-se-á continuar a designar o primeiro pela mesma palavra que o segundo e conservar na ciência a expressão empregada na língua corrente. Mas, se a distância for muito considerável, se a noção comum confundir uma pluralidade de noções distintas, a criação de termos novos e especiais se impõe. • Essa nota não figura no texto inicial. 13. É a mesma ausência de definição que fez dizer, às vezes, que a democracia se encontrava igualmente no começo e no fim da história. A verdade é que a democracia primitiva e a atual são muito diferentes uma da outra. 14. Criminologie, p. 2. 15. Ver Lubbock, Les origines de la civilisation, cap. VIII. Mais geralmente ainda, diz-se, não menos falsamente, que as religiões antigas são amorais ou imorais. A verdade é que elas têm uma moralidade própria. 16. Seria preciso, por exemplo, ter razões para acreditar que, num momento dado, o direito não mais exprima o estado verdadeiro das relações sociais, para que essa substituição não seja legítima. 17. Ver Division du travai! social, 1. I. 18. Cf. nossa lntroduction à la Sociologie de la familie, in Annales de la Faculté des lettres de Bordeaux, ano de 1889. 158 AS REGRAS DO MÉ7DDO SOC!Of,ÓG!CO Capítulo III * 1. Pode-se distinguir desse modo a doença da monstruosidade. A segunda só é uma exceção no espaço; ela não se verifica na média da espécie, mas dura toda a vida dos indivíduos nos quais se manifesta. Percebe-se, de resto, que essas duas ordens de fatos só diferem em graus e são, no fundo, da mesma natureza; as fronteiras entre elas são muito indecisas, pois a doença não é incapaz de qualquer fixidez, nem a monstruosidade de qualquer transformação. Não podemos portanto separá-las muito radicalmente quando as definimos. A distinção entre elas não pode ser mais categórica do que entre o morfológico e o fisiológico, uma vez que, em suma, o mórbido é o anormal na ordem fisiológica, assim como o teratológico é o anormal na ordem anatômica. * Essa nota não figura no texto inicial. 2. Por exemplo, o selvagem que tivesse o tubo digestivo reduzido e o sistema nervoso desenvolvido do civilizado sadio seria um doente em relação a seu meio. 3. Abreviamos essa parte de nossa exposição; pois não podemos senão repetir aqui, a propósito dos fatos sociais em geral, o que dissemos alhures a propósito da distinção dos fatos morais em normais e anormais. (Ver Division du travai! social, pp. 33-39.) *4. O sr. Garofalo tentou, é verdade, distinguir o mórbido cio anormal ( Criminologie, pp. 109, 110). Mas os dois únicos argumentos sobre os quais ele apóia essa distinção são os seguintes: 1) A palavra doença significa sempre algo que tende à destruição total ou parcial do organismo; se não houver destruição, há cura, jamais estabilidade como em várias anomalias. Mas acabamos de ver que também o anormal é uma ameaça ao ser vivo na média dos casos. f: verdade que nem sempre é assim; mas os perigos que a doença implica só existem igualmente na generalidade das circunstâncias. Quanto à ausência de estabilidade que distinguiria o mórbido, é esquecer as doenças crônicas e separar radicalmente o teratológico do patológico. As monstruosidades são fixas. 2) O normal e o anormal variam com as raças, dizem, enquanto a distinção do fisiológico e do patológico é válida pa- NOTAS 159 ra todo o genus homo. Acabamos de mostrar, ao contr;írio, que muitas vezes o que é múrhido para o sl'ivagl'm n;úi o(· para o civilizado. As condi<./ies da saúde física variam com os meios. • Essa nota não figura no texto inicial. 5. Pode-se perguntar, é verdade, se, quando um kntimL·no deriva necessariamente das condiç<les gerais da vida, l'k n;io l' útil por isso mesmo. Não podemos tratar essa quL'Sl;ío til' filosofia, mas iremos abordá-la um pouco mais adiante. 6. Ver sobre esse ponto uma nota que publicamos na Nl'vue philosophique (novembro ele 1893) sobre "A 、・ヲゥョセᄋ[■ッ@ do socialismo". 7. As sociedades segmentares, notaclamente as sociedades segmentares com base territorial, são aquelas cujas articula1;ôes essenciais correspondem às divisões territoriais. (Ver Division du travai! social, pp. 189-210.) 8. Em certos casos, pode-se proceder um pouco diferentemente e demonstrar que um fato cujo caráter normal é suspeito merece ou não essa suspeita, mostrando-se que ele está intimamente ligado ao desenvolvimento anterior elo tipo social considerado e, mesmo, ao conjunto ela evolução social em geral, ou, ao contrário, que contradiz a ambos. Foi dessa maneira que pudemos demonstrar que o enfraquecimento atual elas crenças religiosas e, ele maneira mais geral, elos sentimentos coletivos por objetos coletivos é apenas normal; provamos que esse enfraquecimento torna-se cada vez mais pronunciado à medida que as socieclacles se aproximam de nosso tipo atual e que este, por sua vez, é mais desenvolvido (Division du travai! social, pp. 73182). Mas, no fundo, esse método é apenas um caso particular elo precedente. Pois, se a normalidade desse fenômeno pôde ser estabelecida dessa forma, é que, com isso, ele foi associado às condições mais gerais ele nossa existência coletiva. De fato, por um lado, se essa regressão da consciência religiosa é tanto mais acentuada quanto mais determinada for a estrutura de nossas sociedades, é que ela se eleve não a uma causa acidental, mas à constituição mesma de nosso meio social; e como, por outro lado, as particularidades características desta última são certamente mais desenvolvidas hoje do que um tempo atrás, é normal 160 AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO que os fenômenos que delas dependem sejam eles próprios amplificados. Esse método difere do anterior somente no fato de que as condições que explicam e justificam a generalidade cio fenômeno sào induzidas e nào diretamente observadas. Sabe-se que esse fenômeno está ligado à natureza do meio social sem saber em que nem como. 9. Mas nesse caso, clirào, a realização do tipo normal nào é o objetivo mais elevado que se pode propor, e, para superá-lo, é preciso também superar a ciência. Não precisamos tratar aqui essa questão ex professo; respondamos apenas: 1) que ela é inteiramente teórica, pois, na verdade, o tipo normal, o estado de saúde, já é bastante difícil de realizar e muito raramente alcançado para que façamos funcionar a imaginaçào em busca de algo melhor; 2) que esses melhoramentos, objetivamente mais vantajosos, _nem por isso sào objetivamente desejáveis; pois, se não correspondem a alguma tendência latente ou em ato, eles nada acrescentariam à felicidade, e, se correspondem a alguma tendência, é porque o tipo normal não está realizado; 3) enfim que, para melhorar o tipo normal, é preciso conhecê-lo. Portanto, seja como for, só se pode superar a ciência apoiando-se nela. 10. Do fato ele o crime ser um fenômeno de sociologia normal, nào se segue que o criminoso seja um indivíduo normalmente constituído do ponto ele vista biológico e psicológico. As duas questões sào independentes uma da outra. Compreenderse-á melhor essa independência quando tivermos mostrado, mais adiante, a diferença existente entre os fatos psíquicos e os fatos sociológicos. 11. Calúnias, injúrias, difamação, dolo, etc. 12. Nós mesmos cometemos o erro de falar assim cio criminoso, por não termos aplicado nossa regra (Division du travai! social, pp. 395, 396). 13. Aliás, ele que o crime seja um fato ele sociologia normal nào se segue que não se eleva odiá-lo. Também a dor nada tem ele desejável; o indivíduo a odeia assim como a sociedade odeia o crime, e não obstante ela tem a ver com a fisiologia normal. Ela não apenas deriva necessariamente ela constituiçào mesma ele todo ser vivo, mas também desempenha um papel útil na vi- NOTAS 161 da, no qual nào pode ser substituída. *Seria portanto desnaturar singularmente nosso pensamento apresentá-lo como uma apologia cio crime. Nào pensaríamos sequer em protestar contra tal ine a terpretação, se nào soubéssemos a que estranhas 。」オウセᄋ・@ que mal-entendidos alguém se expõe, quando empreende estudar os fatos morais objetivamente e falar deles numa linguagem que não é a cio vulgo.* • Frases que não figuram no texto inicial. 14. Ver Garofalo, Criminologie, p. 299. * 15. Da teoria desenvolvida neste capítulo concluiu-se às vezes que, em nossa opinião, a marcha ascendente da criminalidade ao longo cio século XIX era um fenômeno normal. Nada mais distante de nosso pensamento. Vários fatos que indicamos a propósito do suicídio (ver Le Suicide, p. 420 e ss.) nos levam a pensar, ao contrário, que esse desenvolvimento é, em geral, mórbido. Contudo, poderia ocorrer que certo crescimento de algumas formas de criminalidade fosse normal, pois cada estado ele civilizaçào tem sua criminalidade própria. Mas a esse respeito não se podem emitir mais que hipóteses. * Nota introduzida na ediçào ele 1901. Capítulo/V 1. Chamo-o assim porque ele foi freqüente entre os historiadores, mas não quero dizer que se verifique em todos. 2. Cours de philos. pos., IV, p. 263. 3. Novum organum, II, < > 36. 4. Sociologie, II, p. 135. 5. "Nem sempre podemos dizer com precisào o que constitui uma sociedade simples." (lbid., pp. 135, 136.) 6. Jbid., p. 136. 7. Division du travai! social, p. 189. 8. Todavia é provável que, em geral, a distância entre as sociedades componentes nào fosse muito grande; caso contrário, nào poderia haver entre elas nenhuma comunidade moral. 9. Não é esse o caso cio Império romano, que parece nào ter equivalente na história? 162 AS REGRAS DO Mh70DO SOCJOL(JGICO * 10. Ao redigirmos este capítulo para a primeira edição desta obra, nada dissemos do método que consiste em classificar associedades segundo seu estado de civilização. Naquele momento, com efeito, não existiam classificações desse gênero que fossem propostas por sociólogos autorizados, exceto talvez aquela, evidentemente arcaica, de Comte. Desde então, várias tentativas foram feitas nesse sentido, notadamente por Vierkandt (Die Kulturtypen der Menscheit, in Archiv. .f Anthropologie, 1898), por Sutherland (The Origin and Growth of the Moral Instinct) e por Steinmetz ( Clas:>(fzcation des t}pes sociaux, in Année sociologique, III, pp. 43-147). Todavia, não nos deteremos a discuti-las, pois não respondem ao problema colocado neste capítulo. Nelas são classificadas, não espécies sociais, mas, o que é bem diferente, fases históricas. A França, desde suas origens, passou por formas de civilização muito distintas: começou por ser agrícola, passando a seguir ao artesanato e ao pequeno comércio, depois à manufatura e finalmente à grande indústria. Ora, é impossível admitir que uma mesma individualidade coletiva possa mudar de espécie três ou quatro vezes. Uma espécie deve ser definida por caracteres mais constantes. O estado econômico, tecnológico, etc., apresenta fenômenos demasiado instáveis e complexos para fornecer a base de uma classificação. É possível, inclusive, que uma mesma civilização industrial, científica, artística possa se verificar em sociedades cuja constituição congênita seja muito diferente. O Japão pode vir a incorporar nossas artes, nossa indústria, até mesmo nossa organização política; nem por isso deixará de pertencer a uma espécie social diferente das da França e da Alemanha. Acrescentemos que essas tentativas, embora conduzidas por sociólogos de valor, forneceram apenas resultados vagos, contestáveis e de pouca utilidade. * Nota introduzida na edição de 1901. Capítulo V 1. Cours de philus. pos., IV, p. 262. 2. Sociologie, III, p. 336. 3. Division du travai!, l. II, cap. III e IV. NOTAS 163 4. Não gostaríamos de levantar questües de filosofia geral,· que não estariam aqui em seu lugar apropriado. Notemos porém que, mais bem estudada, essa reciprocidade da causa e do efeito poderia proporcionar um meio de reconciliar o mecanismo científico com o finalismo que a existência e sobretudo a persistência da vida implicam. 5. Diuisiun du travai!, l. II, cap. II, e notadamente pp. lO'i e ss. 6. Jbid., pp. 52, 53. 7. Ibid., pp. 301 e ss. 8. Cours de philos. pus., IV, p. 333. 9. Jbid., p. 345. 10. Jhid., p. 346. 11. Ihid., p. 335. 12. Principes de sociologie, I, 14, p. 14. 1.3. Op cit., I, p. 583. 14. Jbid., p. 582. 15. Jbid., p. 18. 16. "A sociedade existe para o proveito de seus membros, os membros não existem para o proveito da sociedade ... : os direitos do corpo político nada são em si mesmos, eles só se tornam alguma coisa se encarnarem os direitos dos indivíduos que o compõem." ( Op. cit., II, p. 20.) *17. Eis em que sentido e por que razões se pode e se deve falar de uma consciência coletiva distinta das consciências individuais. Para justificar essa distinção, não é necessário hipostasiar a primeira; ela é algo de especial e deve ser designada por um termo especial, simplesmente porque os estados que a constituem diferem especificamente daqueles que constituem as consciências particulares. Essa especificidade decorre de esses estados não serem formados dos mesmos elementos. Uns, com efeito, resultam da natureza do ser orgânico-psíquico tomado isoladamente, os outros da combinação de uma pluralidade de seres desse tipo. As resultantes não podem portanto deixar de diferir, visto que os componentes diferem a tal ponto. Nossa definição do fato social, aliás, apenas assinalava de outra maneira essa linha de demarcaçao. • Essa nota não figura no texto inicial. 164 AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO 18. Se é que ela existe antes de toda vida social. Ver sobre esse ponto Espinas, Sociétés animales, p. 474. 19. Division du travai! social, 1. II, cap. I. 20. Os fenômenos psíquicos só podem ter conseqüências sociais quando se encontram tão intimamente unidos a fenômenos sociais que a ação de ambos se confunde. É o caso de certos fatos sociopsíquicos. Assim, um funcionário é uma força social, mas é ao mesmo tempo um indivíduo. Disso resulta que ele pode servir-se da energia social que detém, num sentido determinado por sua natureza individual e, deste modo, ter uma influência sobre a constituição da sociedade. É o que acontece com os homens de Estado e, de maneira mais geral, com os homens de gênio. Estes, mesmo que não cumpram uma função social, extraem dos sentimentos coletivos de que são objeto uma autoridade que constitui, ela própria, uma força social, que eles podem, em certa medida, pôr a serviço de idéias pessoais. Mas percebe-se que esses casos são devidos a acidentes individuais e, por conseguinte, não poderiam afetar os traços constitutivos da espécie social, que é o único objeto de ciência. A restrição ao princípio enunciado mais acima não é portanto de grande importância para o sociólogo. 21. Cometemos o erro, em nossa Division du travai! de realçar a densidade material como a expressão exata da 、セョウゥ。・@ dinâmica. Todavia, a substituição da primeira pela segunda é absolutamente legítima em relação a tudo o que concerne aos efeitos econômicos desta, por exemplo, a divisão do trabalho como fato puramente econômico. 22. A posição de Comte sobre esse assunto é de um ecletismo bastante ambíguo. 23. Eis por que nem toda coerção é normal. Somente merece esse nome a que corresponde a alguma superioridade social, isto é, intelectual ou moral. Mas a que um indivíduo exerce sobre outro por ser mais forte ou mais rico, sobretudo se essa riqueza não exprime seu valor social, é anormal e só pode ser mantida pela violência. 24. Nossa teoria é inclusive mais contrária à de Hobbes que a do direito natural. Com efeito, para os defensores desta última NOTAS 165 doutrina, a vicia coletiva só é natural na medida cm que pode ser deduzida da natureza individual. Ora, somente as formas mais gerais da organização social podem, a rigor, ser derivadas dessa origem. Quanto aos detalhes, encontram-se muito afastados da extrema generalidade das propriedades psíquicas para poderem ser ligados a elas; assim eles parecem, para os discípulos dessa escola, tão artificiais quanto para seus adversários. Para nós, ao contrário, tudo é natural, mesmo os arranjos mais especiais; pois tudo está fundado na natureza da sociedade. Capítulo VI 1. Cours de philosophie positive, IV, p. 328. 2. Systeme de Logique, II, p. 478. 3. Diuision du travai! social, p. 87. *4. No caso do método de diferença, a ausência da causa exclui a presença do efeito. * Essa nota não figura no texto inicial. Conclusão *l. Portanto, não há motivo para qualificar nosso método de materialista. * Essa nota não figura no texto inicial.