JlmiJe Durkheim.
llllllllJlilll
P SR Q YP@
セ
As Regras
do Método Sociológico
Émile Durkheim
As Regras
do Método Sociológico
Tradução
PAULO NEVES
Revisão da tradU\'ão
EDUARDO RRANDÃO
Martins Fontes
São Paulo 2007
INDICE
Esta obra foi publicada originalmente em francês com o título
LES REGLES DE LA METHODE SOCIOLOGIQUE.
Copyright© Flammarion, 1988, para o aparelho crítico.
Copyright© 1995, Livraria Martins Fontes Editora Ltda.,
São Paulo, para a presente edição.
1' edição 1995
3' edição 2007
Tradução
PAULO NEVES
Revisão da tradução
Eduardo Brandão
Revisões gráficas
Luzia Aparecida dos Santos
Maria Ceei/ia Vannucchi
Dinarte Zorzanelli da Silva
Nota sobre esta edição...............................................
VII
l'refácio da primeira edição.....................................
XI
l'refácio da segunda edição......................................
XV
f1itrodução ................................................................. XXXIII
Produção gráfica
Geraldo Alves
Composição
Renato C. Carbone
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CW)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Durkheim. Émile. 1858-1917.
As regras do método sociológico ( Émile Durkheim ; tradução
Paulo Neves ; revisão da tradução Eduardo Brandão. - 3ª ed. - São
Paulo: Martins Fontes, 2007. - (Coleção tópicos)
Título original: Les rêgles de la méthode sociologiq ue.
ISBN 978-85-336-2364-4
1. Sociologia - Metodologia l. Título. II. Série.
07-1664
l. O que é um fato social? .......................................... .
1
II. Regras relativas à observação dos fatos sociais ..... . 15
11 l. Regras relativas à distinção entre normal e patológico ....................................................................... . 49
IV. Regras relativas à constituição dos tipos sociais .. .. 77
V. Regras relativas à explicação dos fatos sociais ..... .. 91
VI. Regras relativas à administração da prova ............ . 127
CDD-301.018
Índices para catálogo sistemático:
1. Metodologia: Sociologia 301.018
2. Métodos sociológicos 301.018
Todos os direitos desta edição reservados à
Livraria Martins Fontes Editora Ltda.
Rua Conselheiro Ramalho. 330 01325-000 São Paulo SP Brasil
Te/. (ll) 3241.3677 Fax (11) 3105.6993
e-mail: info@martinsfonteseditora.com.br http://www.martinsfonteseditora.com.br
c<mclusão....................................................................... 145
Notas ............................................................................... 153
NOTA SOBRE ESTA EDIÇÃO
A presente tradução foi baseada na primeira edição,
de 1895, considerada texto de referência para As regras do
método sociológico. Esta primeira edição, no entanto, difere em alguns pontos da versão inicial publicada na Revue
/Jhilosophique. A'i modificações que constituem acréscimos
ou implicam reformulações do texto estão assinaladas sistematicamente através de asteriscos que indicam e delimitam o texto corrigido, fornecendo-se em nota de rodapé a
redação inicial. As duas notas acrescentadas à edição de
1901, a 2ª, publicada ainda em vida de Durkheim, foram
também assinaladas.
O trabalho do professor Jean-Michel Berthelot, da
Universidade de Toulouse II (Flammarion, 1988), serviu de
base para o estabelecimento da presente edição.
À memória de Raymond LEDRUT
Fundador elo Institut de sciences sociales e elo Centre de
recherches sociologiques da Universidade de Toulouse.
PREFÁCIO DA PRIMEIRA EDIÇÃO
É tão pouco habitual tratar os fatos sociais cientificamente que algumas das proposições contidas nesta obra
correm o risco de surpreender o leitor. Entretanto, se existe uma ciência das sociedades, cabe esperar que ela não
consista cm uma simples paráfrase dos preconceitos tradicionais, mas nos mostre as coisas diferentemente de como
as vê o vulgo; pois o objeto de toda ciência é fazer descobertas, e toda descoberta desconcerta mais ou menos as
opiniões aceitas. Portanto, a menos que se atribua ao senso comum, em sociologia, uma autoridade que há muito
de não possui nas outras ciências - e não se percebe de
emde lhe poderia advir essa autoridade -, cumpre que o
sociólogo tome decididamente o partido de não se intimidar com os resultados de suas pesquisas, se estas foram
metodicamente conduzidas. Se buscar o paradoxo é próprio de um sofista, fugir dele, quando imposto pelos fatos,
denota um espírito sem coragem ou sem fé na ciência.
Infelizmente, é mais fácil admitir essa regra em princípio e teoricamente do que aplicá-la com perseverança.
XII
/jS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO
Ainda estamos por demais acostumados a resolver essas
questões com base nas sugestões do senso comum para
que possamos facilmente mantê-lo a distância das discussões sociológicas. Quando nos cremos livres dele, ele nos
impõe seus julgamentos sem que o percebamos. Somente
uma prática longa e especial é capaz de prevenir semelhantes lapsos. Eis o que pedimos ao leitor para não perder de vista. Que tenha sempre presente no espírito que
suas maneiras de pensar mais costumeiras são antes contrárias do que favoráveis ao estudo científico dos fenômenos sociais e, por conseguinte, que se acautele contra suas
primeiras impressões. Se se entregar a elas sem resistência, arrisca-se a julgar-nos sem nos haver compreendido.
Assim, pode acontecer que nos acusem de ter querido absolver o crime, sob pretexto de fazermos dele um fenômeno de sociologia normal. No entanto, a objeção seria
pueril. Pois, se é normal que em toda sociedade haja crimes, não é menos normal que eles sejam punidos. A instituição de um sistema repressivo não é um fato menos
universal que a existência de uma criminalidade, nem menos indispensável ã saúde coletiva. Para que não houvesse crimes, seria preciso um nivelamento das consciências
individuais que, por razões que veremos mais adiante,
não é possível nem desejável; mas, para que não houvesse repressão, seria preciso uma ausência de homogeneidade moral que é inconciliável com a existência de urna
sociedade. Todavia, partindo do fato de que o crime é detestado e detestável, o senso comum conclui erradamente
que ele deveria desaparecer por completo. Com seu simplismo costumeiro, não concebe que urna coisa que repugna possa ter uma razão de ser útil. No entanto, não há
nenhuma contradição nisso. Não há no organismo funções
repugnantes cuja atividade regular é necessária à saúde
individual? Acaso não detestamos o sofrimento? E, não
l 'N/:FÁCIO DA PRJMBRA Ef)JÇÂO
XIII
'>I istante, um ser que não o conhecesse seria um monstro.
caráter normal de uma coisa e os sentimentos de averセ[QP@
que ela inspira podem inclusive ser solidários. A dor é
11m fato normal, contanto que não seja apreciada; o crime
,. normal, contanto que seja odiado 1 . Nosso método, porL1nto, nada tem de revolucionário. Num certo sentido, é
.11C· essencialmente conservador, pois considera os fatos
セ@ >ciais como coisas cuja natureza, ainda que dócil e maleá\ l'i, não é modificável à vontade. Bem mais perigosa é a
'1, >utrina que vê neles apenas o produto de combinações
111cntais, que um simples artifício dialético pode, num instante, subverter de cima a baixo!
Do mesmo modo, como é habitual representar-se a
vida social como o desenvolvimento lógico de conceitos
ideais, julgar-se-á talvez grosseiramente um método que
L1z a evolução coletiva depender de condições objetivas,
( lcfinidas no espaço, e não é impossível que nos acusem
( lc materialista. Entretanto, poderíamos com maior justiça
1'L'ivindicar a qualificação contrária. Com efeito, não está
11;1 essência do espiritualismo a idéia de que os fenômenos psíquicos não podem ser imediatamente derivados
dos fenômenos orgânicos? Ora, nosso método não é, em
parte, senão uma aplicação desse princípio aos fatos so('iais. Assim como os espiritualistas separam o reino psico1,·>gico do reino biológico, separamos o primeiro do reino
se >eia!; da mesma forma que eles, recusamo-nos a explicar
t> mais complexo pelo mais simples. Na verdade, nem
uma nem outra denominação nos convém exatamente; a
1ú1ica que aceitamos é a de racionalista. Nosso principal
'>hjetivo, com efeito, é estender à conduta humana o racionalismo científico, mostrando que, considerada no passado, ela é redutível a relaçôes de causa e efeito que uma
'>peração não menos racional pode transformar a seguir
('lll regras de ação para o futuro. O que chamamos nosso
<l
XIV
AS REGRAS DO MÉTODO SOC10LÓGJCO
positivismo não é senão uma conseqüência desse racionalismo2. Só podemos ser tentados a superar os fatos, seja
para explicá-los, seja para dirigir seu curso, na medida em
que os julgarmos irracionais. Se forem inteiramente inteligíveis, eles bastam à ciência e à prática: à ciência, pois
não há motivo para buscar fora deles suas razões ele ser; à
prática, pois seu valor útil é uma dessas razões. Parecenos portanto, sobretudo nesta época ele misticismo renascente, que tal empreendimento pode e eleve ser acolhido
sem inquietude e mesmo com simpatia por todos aqueles
que, embora divirjam ele nós em certos pontos, partilham
nossa fé no futuro ela razão.
PREFÁCIO DA SEGUNDA EDIÇÃO
Quando foi publicado pela primeira vez, este livro
suscitou controvérsias bastante fortes. As idéias correntes,
como que desconcertadas, resistiram a princípio com tal
l'nergia que, durante um tempo, nos foi quase impossível
fazer-nos ouvir. Até nos pontos em que nos expressáramos mais explicitamente, atribuíram-nos gratuitamente
idéias que nada tinham em comum com as nossas, e acreditaram refutar-nos ao refutá-las. Embora tenhamos declarado várias vezes que a consciência, tanto individual
quanto social, nào era para nós nada ele substancial, mas
;1penas um conjunto mais ou menos sistematizado de fenômenos sui generis, tacharam-nos ele realismo e de ontologismo. Embora tenhamos dito expressamente e repetido
de todas as maneiras que a vida social era inteiramente
feita de representações, acusaram-nos de eliminar o elemento mental da sociologia. Houve até quem chegasse a
restaurar contra nós procedimentos de disçussão que podiam se considerar definitivamente desaparecidos. Imputaram-nos, com efeito, certas opiniões que não havíamos
XVI
AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO
sustentado, sob pretexto de que elas estavam "de acordo
com nossos princípios". A experiência já havia mostrado •
porém, todos os perigos desse método que, ー・イュゥエョ、セ@
construir arbitrariamente os sistemas em questão, permite
também triunfar deles sem esforço.
Não acreditamos nos enganar ao dizer que, desde
então, as resistências progressivamente diminuíram. Claro
que mais de uma proposição nos é ainda contestada. Mas
não poderíamos nos surpreender nem nos queixar dessas
contestaçôes salutares; não resta dúvida de que nossas
fórmulas estão destinadas a ser reformadas no futuro. Resumo ele uma prática pessoal e forçosamente restrita, elas
deverão necessariamente evoluir à medida que se adquira
uma experiência mais ampla e aprofundada da realidade
social. Em matéria de método, aliás, jamais se pode fazer
senão o provisório, pois os métodos mudam à medida
que a ciência avança. Apesar disso, nestes últimos anos, e
a despeito das oposiçôes, a causa da sociologia objetiva,
específica e metódica ganhou terreno sem interrupção. A
fundação da revista Année sociologique certamente contribuiu em muito para esse resultado. Por abarcar a uma só
vez todo o domínio da ciência, a Année pôde, melhor do
que qualquer obra especial, dar uma idéia do que a sociologia pode e eleve se tornar. Deste modo foi possível ver
que ela não estava condenada a permanecer um ramo ela
filosofia geral, sendo capaz, por outro lado, de entrar em
contato com o detalhe cios fatos sem degenerar em pura
erudição. Por isso, nunca seria demais homenagear o ardor e a cleclicaçào de nossos colaboradores; foi graças a
eles que essa demonstração pôde de fato ser tentada e
pode prosseguir.
No entanto, por reais que sejam tais progressos, é incontestável que os enganos e as confusôes passadas ainda não se dissiparam completamente. Eis por que gostaría-
PREFÁCIO DA SEGUNDA EDIÇÃO
XVII
mos de aproveitar esta segunda edição para acrescentar
algumas explicações a todas aquelas que já demos, responder a certas críticas e fazer sobre alguns pontos novos
esclarecimentos.
A proposição segundo a qual os fatos sociais devem
ser tratados como coisas - proposição que está na base
de nosso método - é das que mais têm provocado contradiçôes. Consideraram paradoxal e escandaloso que assimilássemos às realidades cio mundo exterior as do mundo
social. Era equivocar-se singularmente sobre o sentido e o
alcance dessa assimilação, cujo objeto não é rebaixar as
formas superiores do ser às formas inferiores, mas, ao
contrário, reivindicar para as primeiras um grau de realidade pelo menos igual ao que todos reconhecem nas segundas. Não dizemos, com efeito, que os fatos sociais são
coisas materiais, e sim que são coisas tanto quanto as coisas materiais, embora de outra maneira.
o que vem a ser uma coisa? A coisa se opôe à idéia
assim como o que se conhece a partir de fora se opõe ao
que se conhece a partir de dentro. É coisa todo objeto do
conhecimento que não é naturalmente penetrável à inteligência, tudo aquilo de que não podemos fazer uma noção adequada por um simples procedimento de análise
mental, tudo o que o espírito não pode chegar a comrreender a menos que saia de si mesmo, por meio de observações e experimentações, passando progressivamente
dos caracteres mais exteriores e mais imediatamente 。」・セ@
síveis aos menos visíveis e aos mais profundos. Tratar os
fatos ele uma certa ordem como coisas não é, portanto,
classificá-los nesta ou naquela categoria do real; é obser-
XVIII
AS REGRAS DO MÉTODO SOCTOLÓGICO
var diante deles uma certa atitude mental. É abordar seu
estudo tomando por princípio que se ignora absolutamente o que eles são e que suas propriedades características, bem como as causas desconhecidas de que estas dependem, não podem ser descobertas pela introspecção,
mesmo a mais atenta.
Assim definidos os termos, nossa proposição, longe
de ser um paradoxo, poderia ser quase considerada um
truísmo, se ainda não fosse com muita freqüência desconhecida nas ciências que tratam do homem, sobretudo
em sociologia. Com efeito, pode-se dizer, neste sentido,
que todo objeto de ciência é uma coisa, com exceção talvez dos objetos matemáticos; pois, quanto a estes, como
nós mesmos os construímos, dos mais simples aos mais
complexos, é suficiente, para saber o que são, olhar dentro de nós e analisar interiormente o processo mental de
que resultam. Mas, quando se trata de fatos propriamente
ditos, eles são para nós, no momento em que empreendemos fazer-lhes a ciência, necessariamente coisas ignoradas, pois as representações que fizemos eventualmente
deles ao longo da vida, tendo sido feitas sem método e
sem crítica, são desprovidas de valor científico e devem
ser deixadas de lado. Os próprios fatos da psicologia individual apresentam esse caráter e devem ser considerados
sob esse mesmo aspecto. Com efeito, ainda que nos sejam interiores por definição, a consciência que temos deles não nos revela nem sua natureza interna nem sua gênese. Ela nos faz conhecê-los bem até um certo ponto,
mas somente como as sensações nos fazem conhecer o
calor ou a luz, o som ou a eletricidade; ela nos oferece
impressões confusas, passageiras, subjetivas, mas não noções claras e distintas, conceitos explicativos desses fatos.
E é precisamente por essa razão que se fundou neste século uma psicologia objetiva, cuja regra fundamental é es-
l'REFÁCTO DA SEGUNDA EDIÇÃO
XIX
tudar os fatos mentais a partir de fora, isto é, como coisas.
O mesmo deve ser dito dos fatos sociais, e com mais razão ainda; pois a consciência não poderia ser mais competente para conhecê-los do que para conhecer sua vida
própria3. Objetar-se-á que, como eles são obra nossa, só
precisamos tomar consciência de nós mesmos para saber
o que neles pusemos e de que maneira os formamos.
Mas, em primeiro lugar, a maior parte das instituições sociais nos são legadas inteiramente prontas pelas gerações
anteriores; não tomamos parte alguma em sua formação
e, por conseqüência, não é nos interrogando que poderemos descobrir as causas que lhes deram origem. Além
disso, mesmo que tenhamos colaborado na gênese delas,
só vislumbramos da maneira mais confusa, e muitas vezes
mais inexata, as verdadeiras razões que nos determinaram
a agir e a natureza de nossa ação. Mesmo quando se trata
simplesmente de nossas atitudes privadas, conhecemos
bastante mal as motivações relativamente simples que nos
guiam; cremo-nos desinteressados e na verdade agimos
como egoístas, julgamos obedecer ao ódio quando cedemos ao amor, à razão quando somos escravos de preconceitos irrefletidos, etc. Assim, como teríamos a faculdade
de discernir com maior clareza as causas, muito mais
complexas, de que procedem as atitudes da coletividade?
l'ois, de mais a mais, cada um só participa dela numa ínfima parte; temos uma multidão de colaboradores e o que
se passa nas outras consciências nos escapa.
Nossa regra nào implica portanto nenhuma concepセNᄋ¢ッ@
metafísica, nenhuma especulação sobre o âmago dos
seres. O que ela reclama é que o sociólogo se coloque no
mesmo estado de espírito dos físicos, químicos, fisiologistas, quando se lançam numa região ainda inexplorada de
seu domínio científico. É preciso que; ao penetrar no mundo social, ele tenha consciência de que penetra no desco-
XX
AS REGRAS DO MÉTODO SOG70LÓGICO
nhecido; é preciso que ele se sinta diante de fatos cujas
leis são tão insuspeitas quanto podiam ser as da vida,
quando a biologia não estava constituída; é preciso que
ele esteja pronto a fazer descobertas que o surpreenderão
e o desconcertarão. Ora, a sociologia está longe de ter
chegado a um grau de maturidade intelectual. Enquanto o
cientista que estuda a natureza física tem o sentimento
muito vivo das resistências que ela lhe opõe e que só são
vencidas com dificuldade, parece que o sociólogo se move em meio a coisas imediatamente transparentes para o
espírito, tamanha a facilidade com que o vemos resolver
as questões mais obscuras. No estado atual da ciência, não
sabemos verdadeiramente o que são nem sequer as principais instituições sociais, como o Estado ou a família, o direito de propriedade ou o contrato, a pena ou a responsabilidade; ignoramos quase completamente as causas de
que dependem, as funções que cumprem, as leis de sua
evolução; apenas começamos a vislumbrar algumas luzes
em certos pontos. No entanto, basta percorrer as obras de
sociologia para ver como é raro o sentimento dessa ignorância e dessas dificuldades. Os sociólogos não somente
se consideram como que obrigados a dogmatizar sobre todos os problemas ao mesmo tempo, mas acreditam poder,
em algumas páginas ou em algumas frases, atingir a essência mesma dos fenômenos mais complexos. Vale dizer
que semelhantes teorias exprimem, não os fatos que não
poderiam ser esgotados com tal rapidez, mas a prenoção
que deles tinha o autor, anteriormente ã pesquisa. Certamente a idéia que fazemos das práticas coletivas, do que
elas são ou do que devem ser, é um fator de seu desenvolvimento. Mas essa idéia mesma é um fato que, para ser
convenientemente determinado, deve igualmente ser estudado desde fora. Pois o que importa saber não é a maneira como tal pensador individualmente concebe tal institui-
XXI
PREFÁG10 DA SEGUNDA EDIÇÃO
ção, mas a concepção que dela tem o grupo; somente essa
concepção é socialmente eficaz. Ora, ela não pode ser conhecida por simples observação interior, uma vez que não
está inteira em nenhum de nós; é preciso, pois, encontrar
alguns sinais exteriores que a tornem sensível. Além do
mais, ela não surgiu do nada; ela própria é um efeito de
causas externas que é preciso conhecer, para poder apreciar seu papel no futuro. Seja como for, é sempre ao mesmo método que é necessário voltar.
II
Outra proposição não foi menos vivamente discutida
que a precedente: a que apresenta os fenômenos sociais
como exteriores aos indivíduos. Concedem-nos de bom
grado, atualmente, que os fatos da vida individual e os da
viela coletiva são heterogêneos em certo grau; pode-se até
dizer que um entendimento, se não unânime, pelo menós
muito geral, está em via de se formar sobre esse ponto.
Quase não há mais sociólogos que neguem à sociologia
toda e qualquer especificidade. Mas, como a sociedade
não é composta senão de indivíduos\ o senso comum julga que a vida social não pode ter outro substrato que a
consciência individual; sem isso, ela parece solta no ar e
pairando no vazio.
Entretanto, o que se julga tão facilmente inadmissível
quando se trata dos fatos sociais é normalmente admitido
nos outros reinos ela natureza. Toda vez que elementos
quaisquer, ao se combinarem, produzem, por sua combinaçào, fenômenos novos, cumpre conceber que esses fe-·
ntnnenos estão situados, não nos elementos, mas no todo
fc mnado por sua união. A célula viva nada contém senão
partículas minerais, assim como a sociedade nada mais
XXII
AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO
contém além dos indivíduos; no entanto, é evidentemente
impossível que os fenômenos característicos da vida residam em átomos de hidrogênio, de oxigênio, de carbono e
de azoto. Pois de que maneira os movimentos vitais poderiam se produzir no seio de elementos não vivos? De que
maneira, além disso, as propriedades biológicas se repartiriam entre esses elementos? Elas não poderiam se verificar
igualmente em todos, já que eles não são da mesma natureza; o carbono não é o azoto, portanto não pode adquirir
as mesmas propriedades nem desempenhar o mesmo papel. Também não é admissível que cada aspecto da vida,
cada um de seus caracteres principais, se encarne num
grupo diferente de átomos. A vida nãó poderia se decompor desta forma; ela é una e, em conseqüência, só pode
ter por sede a substância viva em sua totalidade. Ela está
no todo, não nas partes. Não são as partículas não vivas
da célula que se alimentam, se reproduzem, em suma, que
vivem; é a própria célula, e somente ela. O que dizemos
da vida poderia ser dito de todas as sínteses possíveis. A
dureza do bronze não está nem no cobre, nem no estanho, nem no chumbo que serviram para formá-lo e que
são corpos brandos ou flexíveis; está na mistura deles. A
fluidez da água, suas propriedades alimentares e outras
não estão nos dois gases que a compõem, mas na substância complexa que formam por sua associação.
Apliquemos esse princípio à sociologia. Se, como nos
concedem, essa síntese sui generis que constitui toda sociedade produz fenômenos novos, diferentes dos que se
passam nas consciências solitárias, cumpre admitir que
esses fatos específicos residem na sociedade mesma que
os produz, e não em suas partes, isto é, em seus membros. Neste sentido, portanto, eles são exteriores às consciências individuais, consideradas como tais, assim como
os caracteres distintivos da vida são exteriores às substân-
PREFÁCIO DA SEGUNDA EDIÇÃO
XXI II
cias minerais que compõem o ser vivo. Não se pode reabsorvê-los nos elementos sem que haja contradição, uma
vez que, por definição, eles supõem algo mais do que esses elementos contêm. Assim se acha justificada, por uma
razão nova, a separação que estabelecemos mais adiante
entre a psicologia propriamente dita, ou ciência do indivíduo mental, e a sociologia. Os fatos sociais não diferem
apenas em qualidade dos fatos psíquicos; eles têm outro
substrato, não evoluem no mesmo meio, não dependem
das mesmas condições. O que não quer dizer que não sejam, também eles, psíquicos de certa maneira, já que todos consistem em modos de pensar ou de agir. Mas os estados da consciência coletiva são de natureza diferente
dos estados da consciência individual; são representações
de uma outra espécie. A mentalidade dos grupos não é a
dos particulares; tem suas próprias leis. Portanto as duas
ciências são tão claramente distintas quanto podem ser
duas ciências, não importam as relações que possam existir entre elas.
Todavia, convém fazer sobre esse ponto uma distinção que talvez lance alguma luz sobre o debate.
Que a matéria da vida social não possa se explicar
por fatores puramente psicológicos, ou seja, por estados
da consciência individual, é o que nos parece de todo evidente. Com efeito, o que as representações coletivas traduzem é o modo como o grupo se pensa em suas relações
com os objetos que o afetam. Ora, o grupo não é constituído da mesma maneira que o indivíduo, e as coisas que o
;1fetam são de outra natureza. Representações que não exprimem nem os mesmos sujeitos, nem os mesmos objetos,
n;lo poderiam depender elas mesmas causas. Para com- ·
preender a maneira como a sociedade representa a si mesma e o mundo que a cerca, é a natureza da sociedade, e
n;lo a dos particulares, que se deve considerar. Os símbo-
XXIV
AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLé>GJCO
los com os quais ela se pensa mudam conforme o que ela
é. Se, por exemplo, ela se concebe como originada de um
animal epônimo, é que constitui um desses grupos especiais chamados clãs. Se o animal é substituído por um antepassado humano, mas igualmente mítico, é que o clã
mudou de natureza. Se, acima das divindades locais ou familiares, ela imagina outras das quais julga depender, é
que os grupos locais e familiares que a compõem tendem
a se concentrar e a se unificar, e o grau de unidade que
apresenta um panteão religioso corresponde ao grau de
unidade atingido no mesmo momento pela sociedade. Se
ela condena certos modos de conduta, é que eles ofendem alguns de seus sentimentos fundamentais; e esses
sentimentos estão ligados à sua constituição, assim como
os do indivíduo a seu temperamento físico e à sua organização mental. Deste modo, mesmo que a psicologia individual não tivesse mais segredos para nós, ela não poderia
nos dar a solução de nenhum desses problemas, já que
eles se relacionam a ordens de fatos que ela ignora.
Mas, uma vez reconhecida essa heterogeneidade, pode-se perguntar se as representações individuais e as representações coletivas não se assemelham pelo fato de
ambas serem igualmente representações, e se, devido a essas semelhanças, certas leis abstratas não seriam comuns
aos dois reinos. Os mitos, as lendas populares, as concepções religiosas de toda espécie, as crenças morais, etc. exprimem uma realidade diferente da realidade individual;
mas poderia acontecer que a maneira como essas realidades se atraem ou se repelem, se agregam ou se desagregam, fosse independente de seu conteúdo e se devesse
unicamente à sua qualidade geral de representações. Embora feitas de uma matéria diferente, elas se comportariam
em suas relações mútuas como fazem as sensações, as
imagens ou as idéias no indivíduo. Acaso não se pode
PREFÁCIO DA SEGUNDA EDIÇÃO
xxv
pensar, por exemplo, que a contigüidade e a semelhança,
os contrastes e os antagonismos lógicos atuam da mesma
forma, quaisquer que sejam as coisas representadas? Chega-se assim a conceber a possibilidade de uma psicologia
inteiramente formal, que seria uma espécie de terreno comum à psicologia individual e à sociologia; e talvez esteja
aí a causa do escrúpulo que sentem certos espíritos em
distinguir com demasiada nitidez essas duas ciências.
No estado atual de nossos conhecimentos, a questão
assim colocada não poderia, a rigor, encontrar solução categórica. Com efeito, tudo o que sabemos, por um lado,
sobre a maneira como se combinam as idéias individuais
se reduz a algumas proposições, muito gerais e muito vagas, que chamamos comumente leis de associação de
idéias. E, quanto às leis da ideação coletiva, elas são ainda mais completamente ignoradas. A psicologia social,
que deveria ter por tarefa determiná-las, não é mais do que
uma palavra que designa todo tipo de generalidades, variadas e imprecisas, sem objeto definido. Seria preciso investigar, pela comparação dos temas míticos, das lendas e
tradições populares, das línguas, de que forma as representações sociais se atraem ou se excluem, se fundem
umas nas outras ou se distinguem, etc. Ora, se o problema merece tentar a curiosidade dos pesquisadores, mal se
pode dizer que ele foi abordado; e enquanto não se tiver
encontrado algumas dessas leis, será evidentemente impossível saber com certeza se elas repetem ou não as da
psicologia individual.
Entretanto, na falta de certeza, é pelo menos provável que, se semelhanças existei,n entre essas duas espécies.
de leis, as diferenças não devem ser menos acentuadas.
Parece inadmissível, com efeito, que a matéria de que são
feitas as representações não influencie a maneira como
das se combinam. É verdade que os psicólogos falam às
XXVI
AS REGRAS DO MÉTODO SOG10LÓGJCO
vezes das leis de associação de idéias como se elas fossem as mesmas para todos os tipos de representações individuais. Mas nada é mais inverossímil do que isso; as
imagens não se compõem entre si como as sensações,
nem os conceitos como as imagens. Se a psicologia fosse
mais avançada, ela certamente constataria que cada categoria de estados mentais possui leis formais que lhe são
próprias. Sendo assim, deve-se a fortíorí esperar que as
leis correspondentes do pensamento social sejam tão específicas como esse pensamento mesmo. Na verdade, por
pouco que se tenha praticado tal ordem de fatos, é difícil
não ter o sentimento dessa especificidade. É ela, com efeito, que nos faz parecer estranha a maneira tão especial como as concepções religiosas (que são coletivas por excelência) se misturam, ou se separam, se transformam umas
nas outras, dando origem a compostos contraditórios que
contrastam com os produtos ordinários de nosso pensamento privado. Se, portanto, como é presumível, certas
leis da mentalidade social lembram efetivamente algumas
daquelas estabelecidas pelos psicólogos, não é que as primeiras são um simples caso particular das segundas, mas
que entre ambas, ao lado de diferenças certamente importantes, há similitudes que a abstração poderá extrair, e
que são ainda ignoradas. Vale dizer que em caso nenhum
a sociologia poderia tomar pura e simplesmente de empréstimo à psicologia esta ou aquela de suas proposições,
para aplicá-la tal e qual aos fatos sociais. O pensamento
coletivo inteiro, em sua forma e em sua matéria, deve ser
estudado em si mesmo, por si mesmo, com o sentimento
do que ele tem de específico, e cabe deixar ao futuro a tarefa de saber em que medida ele se assemelha ao pensamento individual. Esse é inclusive um problema relacionado antes à filosofia geral e à lógica abstrata do que ao
estudo científico dos fatos sociais'i.
XXVII
PREFÁCIO DA SEGUNDA EDIÇÃO
III
Resta-nos dizer algumas palavras da definição que
demos dos fatos sociais em nosso primeiro capítulo. Dissemos que consistem em maneiras de fazer ou de pensar,
reconhecíveis pela particularidade de serem capazes de
exercer sobre as consciências particulares uma influência
coercitiva. Sobre esse ponto produziu-se uma confusão
que merece ser assinalada.
É tão habitual aplicar às coisas sociológicas as formas
do pensamento filosófico, que muitos viram nessa definição preliminar uma espécie de filosofia do fato social.
Disseram que explicávamos os fenômenos sociais pela
coerção, do mesmo modo que Gabriel Tarde os explica
pela imitação. Não tínhamos uma tal ambição e não nos
ocorreu sequer que pudessem atribuí-la a nós, por ser
contrária a todo método. O que propúnhamos era, não
antecipar por uma visão filosófica as conclusões da ciência, mas simplesmente indicar em que sinais exteriores é
possível reconhecer os fatos que ela deve examinar, a fim
de que o cientista saiba percebê-los onde se encontram e
não os confunda com outros. Tratava-se de delimitar o
campo da pesquisa tanto quanto possível, não de se envolver numa espécie de intuição exaustiva. Assim aceitamos de muito bom grado a censura feita a essa definição,
de não exprimir todos os caracteres do fato social e, por
conseguinte, de não ser a única possível. Não há nada de
inconcebível, com efeito, em que o fato social possa ser
caracterizado de várias maneiras diferentes; não há razão
para que ele tenha apenas uma propriedade distintiva6.
Tudo o que importa é escolher a que parece a melhor pa- ·
ra o objetivo proposto. É hem possível, até, empregar simultaneamente vários critérios, conforme as circunstâncias.
Nós mesmos reconhecemos ser às vezes necessário isso
:XXVIII
AS REGRAS DO MfnDDO SOCIOLÓGICO
em sociologia, pois há casos em que o caráter de coerção
não é facilmente reconhecível. O que é preciso, já que se
trata de uma definição inicial, é que as características utilizadas sejam imediatamente discerníveis e possam ser percebidas antes da pesquisa. Ora, é essa condição que não
cumprem as definições que às vezes opusemos à nossa.
Foi dito, por exemplo, que o fato social é "tudo o que se
produz na e pela sociedade", ou ainda "aquilo que interessa e afeta o grupo de alguma forma". Mas só é possível saber se a sociedade é ou nào a caus;i de um fato ou se esse
fato tem efeitos sociais quando a ciência já avançou. Tais
definições não poderiam, pois, determinar o objeto da investigação que começa. Para que se possa utilizá-las, é preciso que o estudo dos fatos sociais já tenha avançado bastante e, portanto, que tenha sido descoberto algum outro
meio preliminar de reconhecê-los lá onde se encontram.
Ao mesmo tempo que consideraram nossa definição
demasiado estreita, acusaram-na de ser demasiado vasta e
de compreender quase todo o real. Com efeito, disseram,
todo meio físico exerce uma coerção sobre os seres que
sofrem sua ação, pois estes sào obrigados, numa certa medida, a adaptar-se a ele. Mas entre esses dois modos ele
coerção existe toda a diferença que separa um meio físico
de um meio moral. A pressão exercida por um ou vários
corpos sobre outros corpos, ou mesmo sobre vontades,
não poderia ser confundida com aquela que exerce a
consciência ele um grupo sobre a consciência de seus
membros. O que a coerção social tem ele inteiramente especial é que ela se eleve, não à rigidez ele certos arranjos
moleculares, mas ao prestígio de que seriam investidas algumas representações. É verdade que os hábitos, individuais ou hereditários, têm, sob certos aspectos, a mesma
propriedade. Eles nos dominam, nos impõem crenças ou
práticas. Só que nos dominam desde dentro, pois estão in-
PREFÁCIO DA SEGUNDA EmÇÀO
XXIX
teiros em cada um ele nós. Ao contrário, as crenças e as
práticas sociais agem sobre nós desde fora; assim, a influência exercida por uns e por outras é, no fundo, muito
diferente.
Aliás, não devemos nos surpreender ele que os demais fenômenos ela natureza apresentem, sob outras formas, o mesmo caráter pelo qual definimos os fenômenos
sociais. Essa similitude decorre simplesmente ele ambos
serem coisas reais. Pois tudo o que é real tem uma natureza definida que se impõe, com a qual se deve contar e
que, mesmo quando se consegue neutralizá-la, jamais é
completamente vencida. E, no fundo, aí está o que há ele
mais essencial na noção de coerção social. Pois tudo o
que ela implica é que as maneiras coletivas ele agir e de
pensar têm uma realidade exterior aos indivíduos que, a
cada momento do tempo, conformam-se a elas. São coisas que têm sua existência própria. O indivíduo as encontra inteiramente formadas e não pode fazer que elas não
existam ou que sejam diferentes do que sào; assim, ele é
obrigado a levá-las em conta, sendo mais difícil (nào dizemos impossível) modificá-las na medida em que elas participam, em graus diversos, da supremacia material e moral que a sociedade exerce sobre seus membros. Certamente o indivíduo desempenha um papel na gênese delas.
Mas, para que haja fato social, é preciso que vários indivíduos, pelo menos, tenham juntado sua ação e que essa
combinação tenha produzido algo novo. E, como essa síntese ocorre fora de cada um de nós (já que envolve uma
pluralidade de consciências), ela necessariamente tem por
efeito fixar, instituir fora de nós certas maneiras de agir e
certos julgamentos que não dependem de cada vontadeparticular isoladamente. Tal como foi assinalado 7 , há uma
palavra que exprime bastante bem essa maneira ele ser
muito especial (contanto que se estenda um pouco sua
X.XX
AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO
acepção ordinária): é a palavra instituição. Com efeito,
sem alterar o sentido dessa expressão, pode-se chamar
instituição todas as crenças e todos os modos de conduta
instituídos pela coletividade; a sociologia pode então ser
definida como a ciência das instituições, de sua gênese e
de seu funcionamentos.
Sobre as outras controvérsias que este livro suscitou,
parece-nos inútil voltar a falar, pois não se referem a nada
de essencial. A orientação geral do método não depende
dos procedimentos que se prefira empregar, seja para
classificar os tipos sociais, seja para distinguir o normal do
patológico. Aliás, essas contestações com muita freqüência resultaram da recusa em admitir, ou de não se admitir
sem reservas, nosso princípio fundamental: a realidade
objetiva dos fatos sociais. É nesse princípio, afinal, que tudo repousa e se resume. Por isso nos pareceu útil colocálo uma vez mais em evidência, separando-o de toda questão secundária. E estamos seguros de que, ao atribuir-lhe
tal preponderância, permanecemos fiéis à tradição sociológica, pois, no fundo, é dessa concepção que a sociologia inteira emergiu. Com efeito, essa ciência só podia nascer no dia em que se pressentisse que os fenômenos sociais, embora não sejam materiais, não deixam de ser coisas reais que comportam o estudo. Para se chegar a pensar que havia motivos de pesquisar o que são, era preciso
ter compreendido que eles existem de uma forma definida, que têm uma maneira de ser constante, uma natureza
que não depende do arbítrio individual e da qual derivam
relações necessárias. Assim a história da sociologia é apenas um longo esforço para precisar esse sentimento, aprofundá-lo, desenvolver todas as conseqüências que ele implica. Mas, apesar dos grandes progressos que foram feitos neste sentido, veremos pela continuação deste trabalho que ainda restam numerosas sobrevivências do postu-
PREFÁCIO DA SEGUIVDA EDIÇÃO
X.XXI
lado antropocêntrico, o qual, aqui como alhures, barra o
caminho à ciência. Desagrada ao homem renunciar ao
poder ilimitado que por muito tempo ele se atribuiu sobre
a ordem social, e, por outro lado, parece-lhe que, se existem realmente forças coletivas, ele estaria necessariamente condenado a sofrê-las sem poder modificá-las. É isso
que o leva a negá-las. Em vão, experiências repetidas lhe
ensinaram que essa onipotência, em cuja ilusão se mantém complacentemente, sempre foi para ele uma causa de
fraqueza; que seu domínio sobre as coisas realmente só
começou a partir do momento em que reconheceu que
elas têm uma natureza própria, e se resignou a aprender
com elas o que elas são. Expulso de todas as outras ciências, esse deplorável preconceito se mantém obstinadamente em sociologia. Portanto, não há nada mais urgente
do que buscar libertar nossa ciência definitivamente dele.
É esse o principal objetivo de nossos esforços.
INTRODUÇÃO
Até o presente, os sociólogos pouco se preocuparam
em caracterizar e definir o método que aplicam ao estudo
dos fatos sociais. É assim que, em toda a obra de Spencer,
o problema metodológico não ocupa nenhum lugar; pois
a Introdução ã ciência social, cujo título poderia dar essa
ilusão, destina-se a demonstrar as dificuldades e a possibilidade da sociologia, não a expor os procedimentos que
ela deve utilizar. Stuart Mill, é verdade, ocupou-se longamente da questão 1 ; mas ele não fez senão passar sob o
crivo de sua dialética o que Comte havia dito, sem acrescentar nada de verdadeiramente pessoal. Um capítulo do
Curso de filosofia positiva, eis praticamente o único estudo original e importante que possuímos sobre o assunto 2 .
Essa despreocupação aparente, aliás, nada tem de
surpreendente. De fato, os grandes sociólogos cujos nomes acabamos de mencionar raramente saíram das generalidades sobre a natureza das sociedades, sobre as relàções do reino social e do reino biológico, sobre a marcha
geral do progresso; mesmo a volumosa sociologia de
XXXIV
AS REGRAS DO MÉTODO SOG70LÓGICO
Spencer quase não tem outro objeto senão mostrar como
a lei da evolução universal se aplica ãs sociedades. Ora,
para tratar essas questôes filosóficas, não são necessários
procedimentos especiais e complexos. Era suficiente, portanto, pesar os méritos comparados da dedução e da indução e fazer uma inspeção sumária dos recursos mais
gerais de que dispõe a investigação sociológica. Mas as
precauções a tomar na observação cios fatos, a maneira
como os principais problemas elevem ser colocados, o
sentido no qual as pesquisas elevem ser dirigidas, as práticas especiais que podem permitir chegar aos fatos, as regras que elevem presidir a administração das provas, tudo
isso permanecia indeterminado.
Uma série de circunstâncias felizes, entre as quais é
justo destacar a iniciativa que criou em nosso favor um
curso regular de sociologia na Faculdade de Letras de
Bordéus, o qual possibilitou que nos dedicássemos desde
cedo ao estudo da ciência social e inclusive fizéssemos
dele o objeto ele nossas ocupações profissionais, nos fez
sair dessas questões demasiado gerais e abordar um certo
número de problemas particulares. Assim, fomos levados,
pela força mesma das coisas, a elaborar um método que
julgamos mais definido, mais exatamente adaptado ã natureza particular dos fenômenos sociais. São esses resultados de nossa prática que gostaríamos ele expor aqui em
conjunto e de submeter ã discussão. Claro que eles estão
implicitamente contidos no livro que publicamos recentemente sobre A divisão do trabalho social. Mas nos parece
interessante destacá-los, formulá-los à parte, acompanhados de suas provas e ilustrados de exemplos tomados tanto dessa obra como de trabalhos ainda inéditos. Assim
poderão julgar melhor a orientação que gostaríamos ele
tentar dar aos estudos de sociologia.
CAPÍTULO I
O QUE É UM FATO SOCIAL?
Antes de procurar qual método convém ao estudo cios
fatos sociais, importa saber quais fatos chamamos assim.
A questão é ainda mais necessária porque se utiliza
essa qualificação sem muita precisão. Ela é empregada
correntemente para designar mais ou menos todos os fenômenos que se dão no interior da sociedade, por menos
que apresentem, com uma certa generalidade, algum interesse social. Mas, dessa maneira, não há, por assim dizer,
acontecimentos humanos que não possam ser chamados
sociais. Todo indivíduo come, bebe, dorme, raciocina, e a
sociedade tem todo o interesse em que essas funções se
exerçam regularmente. Portanto, se esses fatos fossem sociais, a sociologia não teria objeto próprio, e seu domínio
se confundifia com o da biologia e da psicologia.
Mas, na realidade, há em toda sociedade um grupo
determinado de fenômenos que se distinguem por caracteres definidos daqueles que as outras ciências da n{ltureza estudam.
Quando desempenho minha tarefa de irmão, de marido ou ele cidadão, quando executo os compromissos
2
AS REGRAS DO MÉTODO SOC!OlÓGJCO
que assumi, eu cumpro deveres que estão definidos, fora
de mim e de meus atos, no direito e nos costumes. Ainda
que eles estejam de acordo com meus sentimentos próprios e que eu sinta interiormente a realiclacle deles, esta
não deixa ele ser objetiva; pois não fui eu que os fiz, mas
os recebi pela educação. Aliás, quantas vezes não nos
ocorre ignorarmos o detalhe das obrigações que nos incumbem e precisarmos, para conhecê-las, consultar o Código e seus intérpretes autorizados! Do mesmo modo, as
crenças e as práticas de sua vida religiosa, o fiel as encontrou inteiramente prontas ao nascer; se elas existiam antes
dele, é que existem fora dele. O sistema ele signos de que
me sirvo para exprimir meu pensamento, o sistema de
moedas que emprego para pagar minhas dívidas, os instrumentos de crédito que utilizo em minhas relaçôes comerciais, as práticas observadas em minha profissão, etc.
funcionam independentemente do uso que faço deles. Que
se tomem um a um todos os membros de que é composta
a sociedade; o que precede poderá ser repetido a propósito de cada um deles. Eis aí, portanto, maneiras de agir, de
pensar e de sentir que apresentam essa notável propriedade de existirem fora das consciências individuais.
Esses tipos de conduta ou de pensamento não apenas são exteriores ao indivíduo, como também são dotados de uma força imperativa e coercitiva em virtude da
qual se impõem a ele, quer ele queira, quer não. Certamente, quando me conformo voluntariamente a ela, essa
coerção não se faz ou pouco se faz sentir, sendo inútil.
Nem por isso ela deixa de ser um caráter intrínseco desses fatos, e a prova disso é que ela se afirma tão logo tento resistir. Se tento violar as regras do direito, elas reagem
contra mim para impedir meu ato, se estiver em tempo,
ou para anulá-lo e restabelecê-lo em sua forma normal, se
tiver sido efetuado e for reparável, ou para fazer com que
O QUE É (JM FATO SOC!AU
3
eu o expie, se não puder ser reparado de outro modo. Em
se tratando de máximas puramente morais, a consciência
pública reprime todo ato que as ofenda através da vigilância que exerce sobre a conduta cios cidadãos e elas penas
especiais de que dispõe. Em outros casos, a coerção é
menos violenta, mas não deixa de existir. Se não me submeto ãs convençôes do mundo, se, ao vestir-me, não levo
em conta os costumes observados em meu país e em minha classe, o riso que provoco, o afastamento em relação
a mim produzem, embora de maneira mais atenuada, os
mesmos efeitos que uma pena propriamente dita. Ademais, a coerção, mesmo sendo apenas indireta, continua
sendo eficaz. Não sou obrigado a falar francês com meus
compatriotas, nem a empregar as moedas legais; mas é
impossível agir de outro modo. Se eu quisesse escapar a
essa necessidade, minha tentativa fracassaria miseravelmente. Industrial, nada me proíbe de trabalhar com procedimentos e métodos do século passado; mas, se o fizer,
é certo que me arruinarei. Ainda que, de fato, eu possa libertar-me dessas regras e violá-las com sucesso, isso jamais ocorre sem que eu seja obrigado a lutar contra elas.
E ainda que elas sejam finalmente vencidas, demonstram
suficientemente sua força coercitiva pela resistência que
opõem. Não há inovador, mesmo afortunado, cujos empreendimentos não venham a deparar com oposiçôes
desse tipo.
' Eis portanto uma ordem de fatos que apresentam características muito especiais: consistem em maneiras de
agir, de pensar e de sentir, exteriores ao indivíduo, e que
são dotadas de um poder de coerção em virtude do qual
esses fatos se impõem a ele. Por conseguinte, eles não
poderiam se confundir com os fenômenos orgânicos, já
que consistem em representações e em ações; nem com
os fenômenos psíquicos, os quais só têm existência na
r
4
AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGJCO
consciência individual e através dela. Esses fatos constituem portanto uma espécie nova, e é a eles que deve ser
dada e reservada a qualificação de sociais. Essa qualificação lhes convém; pois é claro que, não tendo o indivíduo
por substrato, eles não podem ter outro senão a sociedade, seja a sociedade política em seu conjunto, seja um dos
grupos parciais que ela encerra: confissões religiosas, escolas políticas, literárias, corporações profissionais, etc.
Por outro lado, é a eles só que ela convém; pois a palavra
social só tem sentido definido com a condição de designar unicamente fenômenos que não se incluem em nenhuma das categorias de fatos já constituídos e denominados. Eles são portanto o domínio próprio da sociologia.
É verdade que a palavra coerção, pela qual os definimos,
pode vir a assustar os zelosos defensores de um individualismo absoluto. Como estes professam que o indivíduo é
perfeitamente autônomo, julgam que o diminuímos sempre que mostramos que ele não depende apenas de si
mesmo. Sendo hoje incontestável, porém, que a maior
parte de nossas idéias e de nossas tendências não é elaborada por nós, mas nos vem de fora, elas só podem penetrar em nós impondo-se; eis tudo o que significa nossa
definição. Sabe-se, aliás, que nem toda coerção social exclui necessariamente a personalidade individual1.
Entretanto, como os exemplos que acabamos de citar
(regras jurídicas, morais, dogmas religiosos, sistemas financeiros, etc.) consistem todos em crenças e em práticas
constituídas, poder-se-ia supor, com base no que precede,
que só há fato social onde há organização definida. Mas
existem outros fatos que, sem apresentar essas formas cristalizadas, têm a mesma objetividade e a mesma ascendência sobre o indivíduo. É o que chamamos de correntes sociais. Assim, numa assembléia, os grandes movimentos de
entusiasmo ou de devoção que se produzem não têm por
O QUE É UM FATO SOC1AL?
5
lugar de origem nenhuma consciência particular. Eles nos
vêm, a cada um de nós, de fora e são capazes de nos arrebatar contra a nossa vontade. Certamente pode ocorrer
que, entregando-me a eles sem reserva, eu não sinta a
pressão que exercem sobre mim. Mas ela se acusa tão logo procuro lutar contra eles. Que um indivíduo tente se
opor a uma dessas manifestações coletivas: os sentimentos
que ele nega se voltarão contra ele. Ora, se essa força de
coerção externa se afirma com tal nitidez nos casos de resistência, é porque ela existe, ainda que inconsciente, nos
casos contrários. Somos então vítimas de uma ilusão que
nos faz crer que elaboramos, nós mesmos, o que se impôs
a nós de fora. Mas, se a complacência com que nos entregamos a essa força encobre a pressão sofrida, ela não a
suprime. Assim, também o ar não deixa de ser pesado,
embora não sintamos mais seu peso. Mesmo que, de nossa parte, tenhamos colaborado espontaneamente para a
emoção comum, a impressão que sentimos é muito diferente da que teríamos sentido se estivéssemos sozinhos.
Assim, a partir do momento em que a assembléia se dissolve, em que essas influências cessam de agir sobre nós e
nos vemos de novo a sós, os sentimentos vividos nos dão
a impressão de algo estranho no qual não mais nos reconhecemos. Então nos damos conta de que sofremos esses
sentimentos bem mais do que os produzimos. Pode acontecer até que nos causem horror, tanto eram contrários à
nossa natureza. É assim que indivíduos perfeitamente inofensivos na maior parte do tempo podem ser levados a
atos de atrocidade quando reunidos em multidão. Ora, o
que dizemos dessas explosões passageiras aplica-se identicamente aos movimentos de opinião, mais duráveis, q11e
se produzem a todo instante a nosso redor, seja em toda a
extensão da sociedade, seja em círculos mais restritos, sobre assuntos religiosos, políticos, literários, artísticos, etc.
6
AS REGRAS DO MÉTODO SOG10LÓGJCO
Aliás, pode-se confirmar por uma experiência característica essa definição do fato social: basta observar a maneira como são educadas as crianças. Quando se observam os fatos tais como são e tais como sempre foram, salta aos olhos que toda educação consiste num esforço
contínuo para impor à criança maneiras de ver, de sentir
e de agir às quais ela não teria chegado espontaneamente. Desde os primeiros momentos de sua vida, forçamolas a comer, a beber, a dormir em horários regulares, forçamo-las à limpeza, à calma, à obediência; mais tarde,
forçamo-las para que aprendam a levar em conta outrem,
a respeitar os costumes, as conveniências, forçamo-las ao
trabalho, etc., etc. Se, com o tempo, essa coerção cessa de
ser sentida, é que pouco a pouco ela dá origem a hábitos,
a tendências internas que a tornam inútil, mas que só a
substituem pelo fato de derivarem dela. É verdade que,
segundo Spencer, uma educação racional deveria reprovar tais procedimentos e deixar a criança proceder com
toda a liberdade; mas como essa teoria pedagógica jamais
foi praticada por qualquer povo conhecido, ela constitui
apenas um desideratum pessoal, não um fato que se possa opor aos fatos que precedem. Ora, o que torna estes
últimos particularmente instrutivos é que a educação tem
justamente por objeto produzir o ser social; pode-se portanto ver nela, como que resumidamente, de que maneira
esse ser constituiu-se na história. Essa pressão de todos os
instantes que sofre a criança é a pressão mesma do meio
social que tende a modelá-la à sua imagem e do qual os
pais e os mestres não são senão os representantes e os intermediários.
Assim, não é sua generalidade que pode servir para
caracterizar os fenômenos sociológicos. Um pensamento
que se encontra em todas as consciências particulares, um
movimento que todos os indivíduos repetem nem por isso
O QUE É UM FATO SOCJAU
7
são fatos sociais. *Se se contentaram com esse caráter para
defini-los, é que os confundiram, erradamente, com o que
se poderia chamar de suas encarnações individuais. O que
os constitui são as crenças, as tendências e as práticas do
grupo tomado coletivamente; quanto às formas que assumem os estados coletivos ao se refratarem nos indivíduos,
são coisas de outra espécie.* O que demonstra categoricamente essa dualidade de natureza é que essas duas ordens
de fatos apresentam-se geralmente dissociadas. Com efeito, algumas dessas maneiras de agir ou de pensar adquirem, por causa da repetição, uma espécie de consistência
que as precipita, por assim dizer, e as isola dos acontecimentos particulares **que as refletem**. Elas assumem assim um corpo, uma forma sensível que lhes é própria, e
constituem uma realidade sui generis, muito distinta dos
fatos individuais que a manifestam. O hábito coletivo não
existe apenas em estado de imanência nos atos sucessivos
que ele determina, mas se exprime de uma vez por todas,
por um privilégio cujo exemplo não encontramos no reino
biológico, numa fórmula que se repete de boca em boca,
que se transmite pela educação, que se fixa através da escrita. Tais são a origem e a natureza das regras jurídicas,
morais, dos aforismos e dos ditos populares, dos artigos
de fé em que as seitas religiosas ou políticas condensam
suas crenças, dos códigos de gosto que as escolas literárias
estabelecem, etc. ***Nenhuma dessas maneiras de agir ou
de pensar se acha por inteiro nas aplicações que os parti' "Tanto não é a repetição que os constitui, que eles existem fora
dos casos particulares nos quais se realizam. Cada fato social consiste
'>li numa crença, ou numa tendência, ou numa prática, que é a do
grupo tomado coletivamente e que é muito distinta das ヲッイュ。セ@
em que
ela se refrata nos indivíduos." (Revue philosophique, tomo XXXVII,
1:111./jun. 1894, p. 470.)
** '·em que elas se encarnam todo dia". (R.P., p. 470.)
"* Frases que nào figuram no texto inicial.
8
AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGJCO
colares fazem delas, já que elas podem inclusive existir
sem serem atualmente aplicadas.•••
Claro que essa dissociação nem sempre se apresenta
com a mesma nitidez. Mas basta que ela exista de uma maneira incontestável nos casos importantes e numerosos que
acabamos de mencionar, para provar que o fato social é
distinto de suas repercussões individuais. Aliás, mesmo que
ela não seja imediatamente dada à observação, pode-se
com freqüência realizá-la com o auxílio de certos artifícios
de método*; é inclusive indispensável proceder a essa operação se quisermos separar o fato social de toda mistura
para observá-lo no estado de pureza*. Assim, há certas correntes de opinião que nos impelem, com desigual intensidade, conforme os tempos e os lugares, uma ao casamento, por exemplo, outra ao suicídio ou a uma natalidade
mais ou menos acentuada, etc. *Trata-se, evidentemente
de fatos sociais.* À primeira vista, eles parecem ゥョウ・ー。イ£セ@
veis das forrnas q'ue assumem nos casos particulares. Mas a
estatística nos fornece o meio de isolá-los. Com efeito, eles
são representados, não sem exatidão, pelas taxas de natalidade, de nupcialidade, de suicídios, ou seja, pelo número
que se obtém ao dividir a média anual total dos nascimentos, dos casamentos e das mortes voluntárias pelo total de
homens em idade de se casar, de procriar, de se suicidar2.
Pois, como cada uma dessas cifras compreende todos os
casos particulares sem distinção, as circunstâncias individuais que podem ter alguma participação na produção do
fenômeno neutralizam-se mutuamente e, portanto, não
contribuem para determiná-lo. *O que esse fato exprime é
um certo estado da alma coletiva.
Eis o que são os fenômenos sociais, desembaraçados
de todo elemento estranho.* Quanto às suas manifestações
*
Frases que não figuram no texto inicial.
O QUE É UM FA10 SOCIAL?
9
privadas, elas têm claramente algo de social, já que reproduzem em parte um modelo coletivo; mas cada uma delas
depende também, e em larga medida, da constituição orgânico-psíquica do indivíduo, das circunstâncias particulares nas quais ele está situado. Portanto elas não são fenômenos propriamente sociológicos. Pertencem simultaneamente a dois reinos; poderíamos chamá-las sociopsíquicas. Essas manifestações interessam o sociólogo sem
constituírem a matéria imediata da sociologia. No interior
do organismo encontram-se igualmente fenômenos de natureza mista que ciências mistas, como a química biológica,
estudam.
Mas, dirão, um fenômeno só pode ser coletivo se for
comum a todos os membros da sociedade ou, pelo menos, à maior parte deles, portanto, se for geral. Certamente, mas, se ele é geral, é porque é coletivo (isto é, mais ou
menos obrigatório), o que é bem diferente de ser coletivo
por ser geral. Esse fenômeno é um estado do grupo, que
se repete nos indivíduos porque se impõe a eles. Ele está
cm cada parte porque está no todo, o que é diferente de
estar no todo por estar nas partes. Isso é sobretudo evidente nas crenças e práticas que nos são transmitidas inteiramente prontas pelas gerações anteriores; recebemolas e adotamo-las porque, sendo ao mesmo tempo uma
obra coletiva e uma obra secular, elas estão investidas de
uma particular autoridade que a educação nos ensinou a
reconhecer e a respeitar. Ora, cumpre assinalar que a
imensa maioria dos fenômenos sociais nos chega dessa
forma. Mas, ainda que se deva, em parte, à nossa colaboração direta, o fato social é da mesma natureza. Um sentimento coletivo que irrompe numa assembléia não expi;irne simplesmente o que havia de comum entre todos os
sentimentos individuais. Ele é algo completamente distinto, conforme mostramos. É uma resultante da vida co-
10
AS REGRAS DO MÉTODO SOOOLÔGICO
mum, das ações e reações que se estabelecem entre as
consciências individuais; e, se repercute em cada uma delas, é em virtude da energia social que ele deve precisamente à sua origem coletiva. Se todos os corações vibram
em uníssono, nào é por causa de uma concordância espontânea e preestabelecida; é que uma mesma força os
move no mesmo sentido. Cada um é arrastado por todos.
Podemos assim representar-nos, de maneira precisa,
o domínio da sociologia. Ele compreende apenas um grupo determinado de fenômenos. Um fato social se reconhece pelo poder de coerçào externa que exerce ou é capaz de exercer sobre os indivíduos; e a presença desse
· poder se reconhece, por sua vez, seja pela existência de
alguma sanção determinada, seja pela resistência que o
fato opõe a toda tentativa individual de fazer-lhe violência. *Contudo, pode-se defini-lo também pela difusão que
apresenta no interior do grupo, contanto que, conforme
as observações precedentes, tenha-se o cuidado ele acrescentar como segunda e essencial característica que ele
existe independentemente das formas individuais que assume ao difundir-se.* Este último critério, em certos casos,
é inclusive mais fácil de aplicar que o precedente. De fato, a coerção é fácil de constatar quando se traduz exteriormente por alguma reação direta ela sociedade, como é o
caso em relação ao direito, à moral, às crenças, aos costumes, inclusive às moelas. Mas, quando é apenas indireta,
como a que exerce uma organização econômica, ela nem
sempre se deixa perceber tão bem. A generalidade combinada com a objetividade podem então ser mais fáceis
de estabelecer. Aliás, essa segunda definição não é senão
* ''Pode-se defini-lo igualmente: uma maneira de pensar ou de
agir que é geral na extensào do grupo, mas que existe independentemente de suas expressões individuais." (R.P., p. 472.)
O QUE É' UM FATO SOCIAL?
11
outra forma da primeira; pois, se uma maneira de se conduzir, que existe exteriormente às consciências individuais, se generaliza, ela só pode fazê-lo imponclo-se3.
Entretanto, poder-se-ia perguntar se essa definição é
completa. Com efeito, os fatos que nos forneceram sua base são, todos eles, maneiras de fazer; são de ordem fisiológica. Ora, há também maneiras de ser coletivas, isto é,
fatos sociais de ordem anatômica ou morfológica. A sociologia não pode desinteressar-se do que diz respeito ao
substrato da vida coletiva. No entanto, o número e a natureza elas partes elementares ele que se compôe a sociedade, a maneira como elas estão dispostas, o grau ele coalescência a que chegaram, a distribuição da população pela
superfície do território, o número e a natureza das vias ele
comunicação, a forma das habitações, etc. não parecem
capazes, num primeiro exame, de se reduzir a modos de
agir, de sentir ou de pensar.
Mas, em primeiro lugar, esses diversos fenômenos
apresentam a mesma característica que nos ajudou a definir os outros. Essas maneiras de ser se impõem ao indivíduo tanto quanto as maneiras de fazer de que falamos.
De fato, quando se quer conhecer a forma como uma sociedade se divide politicamente, como essas divisões se
compôem, a fusão mais ou menos completa que existe
entre elas, não é por meio de uma inspeção material e
por observações geográficas que se pode chegar a isso;
pois essas divisões são morais, ainda que tenham alguma
hase na natureza física. É somente através do direito púhlico que se pode estudar essa organização, pois é esse
direito que a determina, assim como determina nossas reLt<J'ies domésticas e cívicas. Portanto, ela não é menns
( ihrigatória. Se a população se amontoa nas cidades em
Vl'Z de se dispersar nos campos, é que há uma corrente
de opinião, um movimento coletivo que impõe aos incliví-
12
AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO
duos essa concentração. Não podemos escolher a forma
de nossas casas, como tampouco a de nossas roupas; pelo menos, uma é obrigatória na mesma medida que a outra. As vias de comunicação determinam de maneira imperiosa o sentido no qual se fazem as migrações interiores e as trocas, e mesmo a intensidade dessas trocas e
dessas migrações, etc., etc. Em conseqüência, seria, quando muito, o caso de acrescentar à lista dos fenômenos
que enumeramos como possuidores do sinal distintivo do
fato social uma categoria a mais; e, como essa enumeração não tinha nada de rigorosamente exaustivo, a adição
não seria indispensável.
Mas ela não seria sequer proveitosa; pois essas maneiras de ser não são senão maneiras de fazer consolidadas. A estrutura política de uma sociedade não é senão a
maneira como os diferentes segmentos que a compõem
se habituaram a viver uns com os outros. Se suas relações
são tradicionalmente próximas, os segmentos tendem a se
confundir; caso contrário, tendem a se distinguir. O tipo
de habitação que se impõe a nós não é senão a maneira
como todos ao nosso redor e, em parte, as gerações anteriores se acostumaram a construir suas casas. As vias de
comunicação não são senão o leito escavado pela própria
corrente regular das trocas e das migrações, correndo
sempre no mesmo sentido, etc. Certamente, se os fenômenos de ordem morfológica fossem os únicos a apresentar essa fixidez, poderíamos pensar que eles constituem
uma espécie à parte. Mas uma regra jurídica é um arranjo
não menos permanente que um modelo arquitetônico, e
no entanto é um fato fisiológico. Uma simples máxima
moral é, seguramente, mais maleável; porém ela possui
formas bem mais rígidas que um simples costume profissional ou que uma moda. Há assim toda uma gama de
nuances que, sem solução de continuidade, liga os fatos
O QUE Í;' UM FA1D SOC1AU
13
estruturais mais caracterizados às correntes "livres da vida
social ainda não submetidas a nenhum molde definido. É
que entre os primeiros e as segundas apenas há diferenças no grau de consolidação que apresentam. Uns e outras são apenas vida mais ou menos cristalizada. Claro
que pode haver interesse em reservar o nome de morfológicos aos fatos sociais que concernem ao substrato social,
mas com a condição de não perder de vista que eles são
da mesma natureza que os outros. Nossa definição compreenderá portanto todo o definido se dissermos: É fato
social toda maneira de fazer, fixada ou não, suscetível de
exercer sobre o indivíduo uma coerção exterior; ou ainda,
toda maneira de fazer que é geral na extensão de uma sociedade dada e, ao mesmo tempo, possui uma existência
própria, independente de suas man{festações individuais 4 .
C:APÍTl JLO II
REGRAS RELATIVAS À OBSERVAÇÃO
DOS FATOS SOCIAIS
A primeira regra e a mais fundamental é considerar
osJàtos sociais como coisas.
No momento em que uma nova ordem de fenômenos torna-se objeto de ciência, eles já se acham representados no espírito, não apenas por imagens sensíveis, mas
por espécies de conceitos grosseiramente formados. Antes
dos primeiros rudimentos da física e da química, os homens já possuíam sobre os fenômenos físico-químicos no,·(ies que ultrapassavam a pura percepção, como aquelas,
por exemplo, que encontramos mescladas a todas as religiôcs. É que, de fato, a reflexão é anterior à ciência, que
;1 penas se serve dela com mais método. O homem não
pode viver em meio às coisas sem formar a respeito delas
idéias, de acordo com as quais regula sua conduta. AconlL'l'e que, como essas noçôes estão mais próximas de nós
16
AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO
e mais ao nosso alcance do que as realidades a que correspondem, tendemos naturalmente a substituir estas últimas por elas e a fazer delas a matéria mesma de nossas
especulações. Em vez de observar as coisas, de descrevêlas, de compará-las, contentamo-nos então em tomar
consciência de nossas idéias, em analisá-las, em combinálas. Em vez de uma ciência de realidades, não fazemos
mais do que uma análise ideológica. Por certo, essa análise não exclui necessariamente toda observação. Pode-se
recorrer aos fatos para confirmar as noções ou as conclusões que se tiram. Mas os fatos só intervêm então secundariamente, a título de exemplos ou de provas confirmatórias; eles não são o objeto da ciência. Esta vai das idéias
às coisas, não das coisas às idéias.
É claro que esse método não poderia dar resultados
objetivos. Com efeito, essas noções, ou conceitos, não importa o nome que se queira dar-lhes, não são os substitutos legítimos das coisas. Produtos da experiência vulgar,
eles têm por objeto, antes de tudo, colocar nossas ações
em harmonia com o mundo que nos cerca; são formados
pela prática e para ela. Ora, uma representação pode ser
capaz de desempenhar utilmente esse papel mesmo sendo teoricamente falsa. *Copérnico*, há muitos séculos,
dissipou as ilusões de nossos sentidos referentes aos movimentos dos astros; no entanto, é ainda com base nessas
ilusões que regulamos correntemente a distribuição de
nosso tempo. Para que uma idéia suscite exatamente os
movimentos que a natureza de uma coisa reclama, não é
necessário que ela exprima fielmente essa natureza; basta
que nos faça perceber o que a coisa tem de útil ou de
desvantajoso, de que modo pode nos servir, de que modo
nos contrariar. Mas as noções assim formadas só apresen* "Galileu" (R.P., p. 476.)
NEGRAS RELATIVAS À OBSERVAÇÃO DOS FATOS SOCIAIS
17
tam essa justeza prática de uma maneira aproximada e somente na generalidade dos casos. Quantas vezes elas são
tão perigosas como inadequadas! Não é portanto elaborando-as, pouco importa de que maneira o façamos, que
chegaremos a descobrir as leis da realidade. Tais noções,
ao contrário, são como um véu que se interpõe entre as
coisas e nós, e que as encobre tanto mais quanto mais
transparente julgamos esse véu.
Tal ciência não é apenas truncada; falta-lhe também
matéria de que se alimentar. Mal ela existe, desaparece,
por assim dizer, transformando-se em arte. De fato, supõese que essas noções contenham tudo o que há de essencial no real, já que são confundidas com o próprio real.
Com isso, parecem ter tudo o que é preciso para que sejamos capazes não só de compreender o que é, mas de
prescrever o que deve ser e os meios de executá-lo. Pois é
bom o que está de acordo com a natureza das coisas; o
<1ue é contrário a elas é mau, e os meios para alcançar um
t' evitar o outro derivam dessa mesma natureza. Portanto,
Sl' a dominamos de saída, o estudo da realidade presente
n:lo tem mais interesse prático, e, como esse interesse é a
razão de ser de tal estudo, este se vê desde então sem finalidade. A reflexão é, assim, incitada a afastar-se do que é
< > objeto mesmo da ciência, a saber, o presente e o passa<I< >, para lançar-se num único salto em direção ao futuro.
1·:111 vez de buscar compreender os fatos adquiridos e reali1.:1dos, ela empreende imediatamente realizar novos, mais
'., mformes aos fins perseguidos pelos homens. Quando se
'rê saber em que consiste a essência da matéria, parte-se
l<>go em busca da pedra filosofal. Essa intromissão da arte
11:1 ciência, que impede que esta se desenvolva, é aliás faci- .
lít:1da pelas circunstâncias mesmas que determinam odesp1Ttar da reflexão científica. Pois, como esta só surge para
Nセ[Qエゥウヲ。コ・イ@
necessidades vitais, é natural que se oriente para
18
AS REGRAS DO MÁTODO SOCIOLÓGICO
a prática. As necessidades que ela é chamada a socorrer
sào sempre prementes, portanto a pressionam para obter
resultados; elas reclamam, nào explicaçôes, mas remédios.
Essa maneira de proceder é tão conforme à tendência
natural de nosso espírito que a encontramos inclusive na
origem das ciências físicas. É ela que diferencia a alquimia
da química, bem como a astrologia da astronomia. É por
ela que Bacon caracteriza o método que os sábios de seu
tempo seguiam e que ele combate. As noçôes que acabamos de mencionar sào aquelas notiones vulgares ou praenotiones1 que ele assinala na base de todas as ciências 2 ,
nas quais elas tomam o lugar dos fatos.o. Sào os idola, fantasmas que nos desfiguram o verdadeiro aspecto das coisas e que, no entanto, tomamos como as coisas mesmas. E
é por esse meio imaginário nào oferecer ao espírito nenhuma resistência que este, nào se sentindo contido por
nada, entrega-se a ambiçôes sem limite e julga possível
construir, ou melhor, reconstruir o mundo com suas forças
apenas e ao sabor de seus desejos.
Se foi assim com as ciências naturais, com mais forte
razão tinha de ser com a sociologia. Os homens não esperaram o advento da ciência social para formar idéias sobre
o direito, a moral, a família, o Estado, a própria sociedade; pois nào podiam privar-se delas para viver. Ora, é sobretudo em sociologia que essas prenoçôes, para retomar
a expressào de Bacon, estão em situaçào de dominar os
espíritos e de tomar o lugar das coisas. Com efeito, as coisas sociais só se realizam através dos homens; elas são
um produto da atividade humana. Portanto, parecem nào
ser outra coisa senào a realizaçào de idéias, inatas ou nào,
que trazemos em nós, senão a aplicação dessas idéias às
diversas circunstâncias que acompanham as relaçôes dos
homens entre si. A organizaçào da família, do contrato, da
repressão, do Estado, da sociedade é vista assim como
NEGRAS RELATIVAS À OBSERVAÇÃO DOS FA10S SOCIAIS
19
um simples desenvolvimento das idéias que temos sobre
a sociedade, o Estado, a justiça, etc. Em conseqüência, esses fatos e outros análogos só parecem ter realidade nas e
pelas idéias que são seu germe e que se tornam, com isso, a matéria própria da sociologia.
O que reforça essa maneira de ver é que, como os
detalhes da vida social excedem por todos os lados a
consciência, esta não tem uma percepção suficientemente
forte desses detalhes para sentir sua realidade. Não tendo
em nós ligaçües bastante sólidas nem bastante próximas,
tudo isso nos dá facilmente a impressão de não se prender a nada e de flutuar no vazio, matéria em parte irreal e
indefinidamente plástica. Eis por que tantos pensadores
nào viram nos arranjos sociais senão combinaçôes artificiais e mais ou menos arbitrárias. Mas, se os detalhes, se
as formas concretas e particulares nos escapam, pelo menos nos representamos os aspectos mais gerais da existência coletiva de maneira genérica e aproximada, e são
precisamente essas representações esquemáticas e sumárias que constituem as prenoções de que nos servimos
para as práticas correntes da vida. Não podemos portanto
pensar em pôr em dúvida a existência delas, uma vez que
;1 percebemos ao mesmo tempo que a nossa. Elas não
:1penas estão em nós, como também, sendo um produto
de experiências repetidas, obtêm da repeti<,:ão - e do há1>ito resultante - uma espécie de ascendência e de autori' Lide. Sentimos sua resistência quando buscamos libertar11os delas. Ora, não podemos deixar de considerar como
rl'al o que se opôe a nós. Tudo contribui, portanto, para
, 1ue vejamos nelas a verdadeira realidade social.
E, de fato, até o presente, a sociologia tratou mais ou
111l'nos exclusivamente não de coisas, mas de conceitos.
< :, >mte, é verdade, proclamou que os fenômenos sociais
20
AS REGRAS DO MÉ70DO SOCIOLÓGICO
são fatos naturais, submissos a leis naturais. Deste modo,
ele implicitamente reconheceu seu caráter de coisas, pois
na natureza só existem coisas. Mas, quando, saindo dessas
generalidades filosóficas, ele tenta aplicar seu princípio e
extrair a ciência nele contida, são idéias que ele toma por
objeto de estudo. Com efeito, o que faz a matéria principal de sua sociologia é o progresso da humanidade no
tempo. Ele parte da idéia de que há uma evolução contínua do gênero humano que consiste numa realização
sempre mais completa da natureza humana, e o problema
que ele trata é descobrir a ordem dessa evolução. Ora, supondo que essa evolução exista, sua realidade só pode
ser estabelecida uma vez feita a ciência; portanto, só se
pode fazer dessa evolução o objeto mesmo da pesquisa
se ela for colocada como uma concepção do espírito, não
como uma coisa. E, de fato, é tão claro que se trata de
uma representação inteiramente subjetiva que, na prática,
esse progresso da humanidade não existe. O que existe, a
única coisa dada à observação, são sociedades particulares que nascem, se desenvolvem e morrem independentemente umas das outras. Se pelo menos as mais recentes
continuassem as que as precederam, cada tipo superior
poderia ser considerado como a simples repetição do tipo
imediatamente inferior, com alguma coisa a mais; poderse-ia, pois, alinhá-las umas depois das outras, por assim dizer, confundindo as que se encontram no mesmo grau de
desenvolvimento, e a série assim formada poderia ser vista como representativa ela humanidade. Mas os fatos não
se apresentam com essa extrema simplicidade. Um povo
que substitui outro não é simplesmente um prolongamento deste último com algumas características novas; ele é
outro, tem algumas propriedades a mais, outras a menos;
constitui uma individualidade nova, e todas essas individualidades distintas, sendo heterogêneas, não podem se
NHGRAS RELA77VAS À OBSERVAÇÃO DOS FATOS SOCIAIS
21
fundir numa mesma série contínua, nem, sobretudo, numa série única. Pois a seqüência elas sociedades não poderia ser figurada por uma linha geométrica; ela asseme1ha-se antes a uma árvore cujos ramos se orientam em
sentidos divergentes. Em suma, Comte tomou por desenvolvimento histórico a noção que dele possuía e que não
difere muito ela que faz o vulgo. Vista ele longe, ele fato, a
história adquire bastante claramente esse aspecto serial e
simples. Percebem-se apenas indivíduos que se sucedem
uns aos outros e marcham todos numa mesma direção,
porque têm uma mesma natureza. Aliás, como não se
concebe que a evolução social possa ser outra coisa que
não o desenvolvimento ele uma idéia humana, parece natural defini-la pela idéia que dela fazem os homens. Ora,
procedendo assim, não apenas se permanece na ideologia, mas se dá como objeto à sociologia um conceito que
nada tem de propriamente sociológico.
Esse conceito, Spencer o descarta, mas para substituí1() por outro que não é formado de outro modo. Ele faz
das sociedades, e não da humanidade, o objeto da ciência;
セHᄏ@
que ele dá em seguida, elas primeiras, uma definição
(1ue faz desaparecer a coisa de que fala para colocar no lug;1r a prenoção que possui dela. Com efeito, ele estabelece
(·<>mo uma proposição evidente que "uma sociedade só
(·xiste quando à justaposição acrescenta-se a cooperação",
NセH@ ·ndo somente então que a união elos indivíduos se torna
11111a sociedade propriamente clita4. Depois, partindo do
princípio de que a cooperação é a essência ela vida social,
dl' distingue as sociedades em duas classes, conforme a
11;1t ureza da cooperação que nelas predomina. "Há, diz
( ·ll', uma cooperação espontânea que se efetua sem pre-·
11ll'ditação durante a perseguição de fins de caráter priva( 1( >: há também uma cooperação conscientemente instituí( L1 que supõe fins de interesse público claramente reco-
22
AS REGRAS DO MÉTODO SOGOLÓGJCO
nhecidos." 5 Às primeiras, ele dá o nome de sociedades industriais; às segundas, de militares, e pode-se dizer dessa
distinçào que ela é a idéia-mãe de sua sociologia.
Mas essa definição inicial enuncia como coisa o que
é tão-só uma noção do espírito. Com efeito, ela se apresenta como a expressão de um fato imediatamente visível
e que basta à observação constatar, já que é formulada
desde o início da ciência como axioma. No entanto, é impossível saber por uma simples inspeção se realmente a
cooperação é a essência da vida social. Tal afirmação só
é cientificamente legítima se primeiramente passarmos
em revista as manifestações da existência coletiva e se
mostrarmos que todas são formas diversas da cooperação. Portanto, é ainda certa maneira de conceber a realidade social que substitui essa realidade<>. O que é assim
definido não é a sociedade, mas a idéia que dela faz o sr.
Spencer. E, se ele não tem o menor escrúpulo em proceder deste modo, é que, também para de, a sociedade
não é e não pode ser senão a realização de uma idéia, isto é, dessa idéia mesma de cooperação pela qual a define7. Seria fácil mostrar que, em cada um dos problemas
particulares que aborda, seu método permanece o mesmo. Assim, embora dê a impressão de proceder empiricamente, como os fatos acumulados em sua sociologia
são empregados para ilustrar análises de noções e não
para descrever e explicar coisas, eles parecem estar ali
apenas para figurar como argumentos. Em realidade, tudo o que há de essencial na doutrina de Spencer pode
ser imediatamente deduzido de sua definição da sociedade e das diferentes formas de cooperação. Pois, se só pudermos optar entre uma cooperação tiranicamente imposta e uma cooperação livre e espontãnea, evidentemente esta última é que será o ideal para o qual a humanidade tende e deve tender.
REGRAS RELATJVAS À 013StiRVAÇ'ÀO DOS FATOS SOCIAIS
23
Não é somente na base da ciência que se encontram
essas noções vulgares; vemo-las a todo instante na trama
dos raciocínios. No estado atual de nossos conhecimentos, não sabemos com certeza o que é o Estado, a soberania, a liberdade política, a democracia, o socialismo, ocomunismo, etc.; o método aconselharia, portanto, a que
nos proibíssemos todo uso desses conceitos, enquanto
eles não estivessem cientificamente constituídos. Entretanto, as palavras que os exprimem retornam a todo momento nas discussões dos sociólogos. Elas são empregadas
correntemente e com segurança como se correspondessem a coisas bem conhecidas e definidas, quando apenas
despertam em nós noções confusas, misturas indistintas
de impressões vagas, de preconceitos e de paixões. Zombamos hoje dos singulares raciocínios que os médicos da
Idade Média construíam com as noções de calor, de frio,
de úmido, de seco, etc., e não nos apercebemos de que
continuamos a aplicar esse mesmo método à ordem de
fenômenos que o comporta menos que qualquer outro,
por causa de sua extrema complexidade.
Nos ramos especiais da sociologia, esse caráter ideológico é ainda mais pronunciado.
É o caso sobretudo da moral. De fato, pode-se dizer
que não há um único sistema em que ela não seja representada como o simples desenvolvimento de uma idéia
inicial que a conteria por inteiro em potência. Essa idéia,
uns crêem que o homem a encontra inteiramente pronta
dentro dele desde seu nascimento; outros, ao contrário,
que ela se forma mais ou menos lentamente ao longo da
história. Mas, tanto para uns como para outros, tanto para
( >s empiristas como para os racionalistas, ela é tudo o que ·
há de verdadeiramente real em moral. No que concerne
セQP@
detalhe das regras jurídicas e morais, elas não teriam,
por assim dizer, existência por si mesmas, mas seriam
24
AS REGRAS DO MÉTODO SOGJOLÓG!CO
apenas essa noção fundamental aplicada às circunstâncias
particulares da vida e diversificada conforme os casos.
Portanto, o objeto da moral não poderia ser esse sistema
ele preceitos sem realidade, mas a idéia ela qual decorrem
e ela qual não são mais que aplicações variadas. Assim,
todas as questões que a ética se coloca ordinariamente se
referem, não a coisas, mas a idéias; o que se trata ele saber é em que consiste a idéia cio direito, a idéia ela moral,
e não qual a natureza ela moral e do direito considerados
em si mesmos. Os moralistas ainda não chegaram à concepção muito simples ele que, assim como nossa representação das coisas sensíveis provém dessas coisas mesmas e as exprime mais ou menos exatamente, nossa representação ela moral provém do próprio espetáculo elas
regras que funcionam sob nossos olhos e as figura esquematicamente; ele que, conseqüentemente, são essas regras, e não a noção sumária que temos delas, que formam
a matéria da ciência, da mesma forma que a física tem como objeto os corpos tais como existem, e não a idéia que
deles faz o vulgo. Disso resulta que se toma como base
da moral o que não é senão o topo, a saber, a maneira
como ela se prolonga nas consciências individuais e nelas
repercute. E não é apenas nos problemas mais gerais da
ciência que esse método é seguido: ele permanece o mesmo nas questões especiais. Das idéias essenciais que estuda no início, o moralista passa às idéias secundárias de família, de pátria, ele responsabilidade, de caridade, de justiça; mas é sempre a idéias que se aplica sua reflexão.
Não é diferente com a economia política. Ela tem por
objeto, diz Stuart Mill, os fatos sociais que se produzem
principalmente ou exclusivamente em vista da aquisição
de riquezas 8 . Mas, para que os fatos assim definidos pudessem ser designados, enquanto coisas, à observação do
cientista, seria preciso pelo menos que se pudesse indicar
REGRASRELA77VASÀ OBSERVAÇ'ÀODOSFATOS SOG1AJS
25
por qual sinal é possível reconhecer aqueles que satisfazem essa condição. Ora, no início ela ciência, não se tem
sequer o direito de afirmar que existe algum, muito menos ainda se pode saber quais são. Em toda ordem ele
pesquisas, com efeito, é somente quando a explicação
dos fatos está suficientemente avançada que é possível
estabelecer que eles têm um objetivo e qual é esse objetivo. Não há problema mais complexo nem menos suscetível ele ser resolvido ele saída. Portanto, nada nos garante
de antemão que haja uma esfera da atividade social em
que o desejo ele riqueza desempenhe realmente esse papel preponderante. Em conseqüência, a matéria da economia política, assim compreendida, é feita não de realidades que podem ser indicadas, mas ele simples possíveis, de puras concepções cio espírito; a saber, fatos que
o economista concebe como relacionados ao fim considerado, e tais como ele os concebe. Digamos, por exemplo,
que ele queira estudar o que chama a produção. De saída, acredita poder enumerar os principais agentes com o
auxílio dos quais ela ocorre e passá-los em revista. Portanto, ele não reconheceu a existência desses agentes observando de quais condições dependia a coisa que ele estuda; pois então teria começado por expor as experiências
de que tirou essa conclusão. Se, desde o início da pesquisa e em poucas palavras, ele procede a essa classificação,
é que a obteve por uma simples análise lógica. Parte da
idéia da produção; decompondo-a, descobre que ela implica logicamente as de forças naturais, ele trabalho, de
instrumento ou de capital, e trata a seguir da mesma maneira essas idéias derivadas9.
A mais fundamental de todas as teorias econômicas, ·
a cio valor, é manifestamente construída segundo o mesmo método. Se o valor fosse estudado como uma realidade deve sê-lo, veríamos primeiro o economista indicar em
26
AS REGRAS DO Mt"J'ODO SOCJOLÓGJCO
que se pode reconhecer a coisa chamada com esse nome,
depois classificar suas espécies, buscar por induções metódicas as causas em função das quais elas variam, comparar enfim os diversos resultados para obter uma fórmula geral. A teoria portanto só poderia surgir quando a ciência tivesse avançado bastante. Em vez disso, encontramola desde o início. É que, para fazê-la, o economista contenta-se em recolher, em tomar consciência da idéia que
ele tem do valor, ou seja, de um objeto suscetível de ser
trocado; descobre que ela implica a idéia do útil, do raro,
etc., e é com esses produtos de sua análise que constrói
sua definição. Certamente ele a confirma por alguns
exemplos. Mas, quando se pensa nos inumeráveis fatos
que semelhante teoria deve explicar, como atribuir o menor valor demonstrativo aos fatos, necessariamente muito
raros, que são assim citados ao acaso da sugestão?
Por isso, tanto em economia política como em moral,
a parte da investigação científica é muito restrita; a da arte, preponderante. Em moral, a parte teórica se reduz a algumas discussões sobre a idéia do dever, do bem e do direito. Mesmo essas especulações abstratas não constituem
uma ciência, para falar exatamente, já que têm por objeto
determinar não o que é, de fato, a regra suprema da moralidade, mas o que ela deve ser. Do mesmo modo, o que
mais preocupa os economistas é a questão de saber, por
exemplo, se a sociedade deve ser organizada segundo as
concepções dos individualistas ou segundo as dos socialistas; se é melhor o Estado intervir nas relações industriais e comerciais ou abandoná-las inteiramente à iniciativa
privada; se o sistema monetário deve ser o monometalismo ou o bimetalismo, etc., etc. As leis propriamente ditas
são pouco numerosas nessas pesquisas; mesmo as que
nos habituamos a chamar assim geralmente não merecem
essa qualificação, não passando de máximas de ação, pre-
REGRAS RELA71VAS À 08Sh'RVAÇÂO DOS FATOS SOCJAJS
27
ceitos práticos disfarçados. Eis, por exemplo, a famosa lei
da oferta e da procura. Ela jamais foi estabelecida indutivamente, como expressão da realidade econômica. Jamais
uma experiência, uma comparação metódica foi instituída
para estabelecer, de.fato, que é segundo essa lei que procedem as relações econômicas. Tudo o que se pôde fazer
e tudo o que se fez foi demonstrar dialeticamente que os
indivíduos devem proceder assim, caso entendam bem
seus interesses; é que qualquer outra maneira de proceder lhes seria prejudicial e implicaria, da parte dos que se
entregassem a isso, uma verdadeira aberração lógica. É
lógico que as indústrias mais produtivas sejam as mais
procuradas; que os detentores dos produtos de maior demanda e mais raros os vendam ao mais alto preço. Mas
essa necessidade inteiramente lógica em nada se asseme1ha àquela que apresentam as verdadeiras leis da natureza. Estas exprimem as relações segundo as quais os fatos
se encadeiam realmente, e não a maneira como é bom
que eles se encadeiem.
O que dizemos dessa lei pode ser dito de todas as
que a escola econômica ortodoxa qualifica de naturais
e que, por sinal, não são muito mais do que casos particulares da precedente. Elas são naturais, se quiserem, no
sentido de que enunciam os meios que é ou que pode
parecer natural empregar para atingir determinado fim suposto; mas elas não devem ser chamadas por esse nome,
se, por lei natural, se entender toda maneira de ser ela natureza, indutivamente constatada. Elas não passam, em
suma, de conselhos de sabedoria prática, e, se foi possível, mais ou menos especiosamente, apresentá-las como a
expressão mesma da realidade, é que, com ou sem razão,·
acreditou-se poder supor que tais conselhos eram efetivamente seguidos pela generalidade dos homens e na generalidade dos casos.
28
AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO
No entanto, os fenômenos sociais são coisas e devem
ser tratados como coisas. Para demonstrar essa proposição, não é necessário filosofar sobre sua natureza, discutir
as analogias que apresentam com os fenômenos cios reinos inferiores. Basta constatar que eles são o único datum oferecido ao sociólogo. É coisa, com efeito, tudo o
que é dado, tudo o que se oferece ou, melhor, se impõe à
observação. Tratar fenômenos como coisas é tratá-los na
qualidade de data que constituem o ponto de partida da
ciência. Os fenômenos sociais apresentam incontestavelmente esse caráter. O que nos é dado não é a idéia que
os homens fazem do valor, pois ela é inacessível; são os
valores que se trocam realmente no curso de relações
econômicas. Não é esta ou aquela concepção da idéia
moral; é o conjunto das regras que determinam efetivamente a conduta. Não é a idéia do útil ou da riqueza; é
toda a particularidade da organização econômica. É possível que a vida social não seja senão o desenvolvimento
de certas noções; mas, supondo que seja assim, essas noções não são dadas imediatamente. Não se pode portanto
atingi-las diretamente, mas apenas através da realidade fenoménica que as exprime. Não sabemos a priori que idéias
estão na origem das diversas correntes entre as quais se
divide a vida social, nem se existe alguma; é somente depois de tê-las remontado até suas origens que saberemos
de onde elas provêm.
É preciso portanto considerar os fenômenos sociais
em si mesmos, separados dos sujeitos conscientes que os
concebem; é preciso estudá-los de fora, como coisas exteriores, pois é nessa qualidade que eles se apresentam a
nós. Se essa exterioridade for apenas aparente, a ilusão se
dissipará à medida que a ciência avançar e veremos, por
assim dizer, o de fora entrar no de dentro. Mas a solução
não pode ser preconcebida e, mesmo que eles não tives-
NfflRAS RELATIVAS À OBSERVAÇÃO DOS FA10S SOCIAIS
29
sem afinal todos os caracteres intrínsecos da coisa, deve-se
primeiro tratá-los como se os tivessem. Essa regra aplica-se
portanto à realidade social inteira, sem que haja motivos
para qualquer exceção. Mesmo os fenômenos que mais
parecem consistir em arranjos artificiais devem ser considerados desse ponto de vista. O caráter convencional de
uma prática ou de uma instituição jamais deve ser presumido. Aliás, se nos for permitido invocar nossa experiência pessoal, acreditamos poder assegurar que, procedendo
dessa maneira, com freqüência se terá a satisfação de ver
os fatos aparentemente mais arbitrários apresentarem,
;1pós uma observação mais atenta dos caracteres de constfmcia e de regularidade, sintomas de sua objetividade.
De resto, e de uma maneira geral, o que foi dito anteriormente sobre os caracteres distintivos do fato social é
Nセオヲゥ」・ョエ@
para nos certificar sobre a natureza dessa objetividade e para provar que ela não é ilusória. Com efeito,
reconhece-se principalmente uma coisa pelo sinal de que
11'10 pode ser modificada por um simples decreto da vont;1de. Não que ela seja refratária a qualquer modificação.
Mas, para produzir uma mudança nela, não basta querer,
é· preciso além disso um esforço mais ou menos laborioso, devido à resistência que ela nos opõe e que nem sempre, aliás, pode ser vencida. Ora, vimos que os fatos sociais
têm essa propriedade. Longe de serem um produto de
1H >ssa vontade, eles a determinam de fora; são como moldes nos quais somos obrigados a vazar nossas ações. Com
lrcqüência até, essa necessidade é tal que não podemos
1·scapar a ela. Mas ainda que consigamos superá-la, a
e >posição que encontramos é suficiente para nos advertir
1 k que estamos em presença de algo que não depende
1 k- nós. Portanto, considerando os fenômenos sociais co1110 coisas, apenas nos conformaremos à sua natureza.
30
AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO
Em suma, a reforma que se trata de introduzir em sociologia é em todos os pontos idêntica à que transformou
a psicologia nos últimos trinta anos. Do mesmo modo
que Comte e Spencer declaram que os fatos sociais são
fatos de natureza, sem no entanto tratá-los como coisas,
as diferentes escolas empíricas há muito haviam reconhecido o caráter natural dos fenômenos psicológicos, *embora continuassem a aplicar-lhes um método puramente
ideológico*. Com efeito, os empiristas, **não menos que
seus adversários, procediam exclusivamente por introspecção**. Ora, os fatos que só observamos em nós mesmos são demasiado raros, demasiado fugazes, ***demasiado maleáveis para poderem se impor às noções correspondentes que o hábito fixou em nós e estabelecer-lhes a
lei. Quando estas últimas não são submetidas a outro controle, nada lhes faz contrapeso; por conseguinte, elas tomam o lugar dos fatos*** e constituem a matéria da ciência. Assim, nem Locke, nem Condillac consideraram os fenômenos psíquicos objetivamente. Não é a sensação que
eles estudam, mas uma certa idéia da sensação. Por isso,
ainda que sob certos aspectos eles tenham preparado o
advento da psicologia científica, esta só surgiu realmente
bem mais tarde, quando se chegou finalmente à concepção de que os estados de consciência podem e devem ser
considerados de fora, e não elo ponto ele vista da consciência que os experimenta. Tal foi a grande revolução
* "e declarado que eles deviam ser estudados segundo o método
das ciências físicas. Entretanto, na realidade, todos os trabalhos que
lhes devemos reduzem-se a puras análises ideológicas, nào menos que
os da escola metafísica". (R.P., p. 486.)
** "também só empregavam o método introspectivo". (R.P., p.
486.)
*** "para controlar eficazmente as noçôes correspondentes que o
hábito fixou em nós. Estas permanecem portanto sem contrapeso; em
conseqüência, elas se interpõem entre os fatos e nós" (RP., p. 487.)
REGRAS REIA 77VAS À OBSERVAÇÃO DOS FATOS SOCIAIS
31
que se efetuou nesse tipo de estudos. Todos os procedimentos particulares, todos os métodos novos que enriqueceram essa ciência, não são mais que meios diversos
de realizar mais completamente essa idéia fundamental. É
o mesmo progresso que resta fazer em sociologia. É preciso que ela passe do estágio subjetivo, raramente ultrapassado até agora, à fase objetiva.
Essa passagem, aliás, é menos difícil de efetuar do
que em psicologia. Com efeito, os fatos psíquicos são naturalmente dados como estados do sujeito, do qual eles
não parecem sequer separáveis. Interiores por definição,
parece que só se pode tratá-los como exteriores violentando sua natureza. É preciso não apenas um esforço de
abstração, mas todo um conjunto de procedimentos e de
artifícios para chegar a considerá-los desse viés. Ao contrário, os fatos sociais têm mais naturalmente e mais imediatamente todas as características da coisa. O direito
existe nos códigos, os movimentos da vida cotidiana se
inscrevem nos dados estatísticos, nos monumentos da história, as modas nas roupas, os gostos nas obras de arte.
Em virtude de sua natureza mesma eles tendem a se constituir fora das consciências individuais, visto que as dominam. Para vê-los sob seu aspecto de coisas, nào é preciso,
portanto, torturá-los com engenhosidade. Desse ponto de
vista, a sociologia tem sobre a psicologia uma séria vantagem que nào foi percebida até agora e que deve apressar
seu desenvolvimento. Os fatos talvez sejam mais difíceis
de interpretar por serem mais complexos, mas são mais
fáceis de atinar. A psicologia, ao contrário, nào apenas
tem dificuldade de elaborá-los, como também de percebê-los. Em conseqüência, é lícito imaginar que, no dia em
que esse princípio elo método sociológico for unanimemente reconhecido e praticado, veremos a sociologia progredir com uma rapidez que a lentidão atual de seu de-
32
AS REGRAS DO MÉTODO SOG70LÓGJCO
senvolvimento não faria supor, e inclusive reconquistar a
dianteira que a psicologia deve unicamente à sua anterioridade histórica 10
II
Mas a experiência de nossos predecessores nos mostrou que, para assegurar a realização prática da verdade
que acaba de ser estabelecida, não basta oferecer uma demonstração teórica nem mesmo compenetrar-se dela. O
espírito tende tão naturalmente a desconhecê-la que recairemos inevitavelmente nos antigos erros, se não nos
submetermos a uma disciplina rigorosa, cujas regras principais, corolários da precedente, iremos formular.
1) O primeiro desses corolários é que: É preciso descartar sistematicamente todas as prenoçàes. Uma demonstração especial dessa regra não é necessária; ela resulta de
tudo o que dissemos anteriormente. Aliás, ela é a base de
todo método científico. A dúvida metódica de Descartes,
no fundo, não é senão uma aplicação disso. Se, no momento em que vai fundar a ciência, Descartes impõe-se
como lei pôr em dúvida todas as idéias que recebeu anteriormente, é que ele quer empregar apenas conceitos cientificamente elaborados, isto é, construídos de acordo com
o método que ele institui; todos os que ele obtém de uma
outra origem devem ser, portanto, rejeitados, ao menos
provisoriamente. Já vimos que a teoria dos Ídolos, em Bacon, não tem outro sentido. As duas grandes doutrinas
que freqüentemente foram opostas uma à outra, concordam nesse ponto essencial. É preciso, portanto, que o sociólogo, tanto no momento em que determina o objeto de
suas pesquisas, como no curso de suas demonstrações,
proíba-se resolutamente o emprego daqueles conceitos
REGRAS RELA71VAS À OBSERVAÇ40 DOS FATOS SOCIAIS
33
que se formaram fora da ciência e por necessidades que
nada têm de científico. É preciso que ele se liberte dessas
falsas evidências que dominam o espírito do vulgo, que
se livre, de uma vez por todas, do jugo dessas categorias
empíricas que um longo costume acaba geralmente por
tornar tirânicas. Se a necessidade o obriga às vezes a recorrer a elas, pelo menos que o faça tendo consciência de
seu pouco valor, a fim de não as chamar a desempenhar
na doutrina um papel de que não são dignas.
O que torna essa libertação particularmente difícil em
sociologia é que o sentimento com freqüência se intromete. Apaixonamo-nos, com efeito, por nossas crenças políticas e religiosas, por nossas práticas morais, muito mais
do que pelas coisas do mundo físico; em conseqüência,
esse caráter passional transmite-se à maneira como concebemos e como nos explicamos as primeiras. As idéias que
fazemos a seu respeito nos são muito caras, assim como
seus objetos, e adquirem tamanha autoridade que não suportam a contradição. Toda opinião que as perturba é tratada como inimiga. Por exemplo, uma proposição não está de acordo com a idéia que se faz do patriotismo, ou da
dignidade individual? Então ela é negada, não importam
as provas sobre as quais repousa. Não se pode admitir
que seja verdadeira; ela é rejeitada categoricamente, e a
paixão, para justificar-se, não tem dificuldade de sugerir
razões que são consideradas facilmente decisivas. Essas
noções podem mesmo ter tal prestígio que não toleram
sequer um exame científico. O simples fato de submetêlas, assim como os fenômenos que elas exprimem, a uma
análise fria e seca, revolta certos espíritos. Quem decide
l'studar a moral a partir de fora e como uma realidade exterior é visto por esses delicados como desprovido de
sl·nso moral, da mesma forma que o vivissecionista parel 'l' ao vulgo desprovido da sensibilidade comum. Em vez
34
AS REGRAS DO MÉTODO SOCJOLÓGJCO
*de admitir que esses sentimentos são do domínio a* da
ciência, é a eles que se julga dever apelar para fazer a ciência das coisas às quais se referem. "Infeliz o sábio'', escreve um eloqüente historiador das religiôes, "que aborda as
coisas de Deus sem ter no fundo de sua consciência, no
fundo indestrutível de seu ser, lá onde dorme a alma dos
antepassados, um santuário desconhecido do qual se eleva por instantes um perfume de incenso, uma linha de
salmo, um grito doloroso ou triunfal que, criança, lançou
ao céu junto com seus irmãos e que o repôe em súbita
comunhão com os profetas de outrora111"
Nunca nos ergueremos com demasiada força contra
essa doutrina mística que - como todo misticismo, aliás não é, no fundo, senão um empirismo disfarçado, negador de toda ciência. Os sentimentos que têm como objetos as coisas sociais não têm privilégio sobre os demais,
pois não é outra sua origem. Também eles são formados
historicamente; são um produto da experiência humana,
mas de uma experiência confusa e inorganizada. Eles não
se elevem a nào sei que antecipação transcendental da realidade, mas são a resultante de todo tipo ele impressões e
de emoções acumuladas sem ordem, ao acaso das circunstâncias, sem interpretação metódica. Longe de nos
proporcionarem luzes superiores às luzes racionais, eles
são feitos exclusivamente de estados fortes, é verdade,
mas confusos. Atribuir-lhes tal preponderância é conceder
às faculdades inferiores da inteligência a supremacia sobre as mais elevadas, é condenar-se a uma logomaquia
mais ou menos oratória. Uma ciência feita assim só pode
satisfazer os espíritos que gostam ele pensar com sua sensibilidade e nào com seu entendimento, que preferem as
sínteses imediatas e confusas da sensação às análises pa• "de submeter esses sentimentos ao controle" (R.P., p. 489.)
NliGRAS RELA77VAS À OBSER\'AÇÀO DOS FATOS SOCIAIS
35
cientes e luminosas da razão. O sentimento é objeto de
ciência, não o critério da verdade científica. De resto, não
há ciência que, em seus começos, nào tenha encontrado
resistências análogas. Houve um tempo em que os sentimentos relativos às coisas do mundo físico, tendo eles
próprios um caráter religioso ou moral, opunham-se com
não menos força ao estabelecimento das ciências físicas.
Pode-se portanto supor que, expulso de ciência em ciência, esse preconceito acabará por desaparecer da própria
sociologia, seu último refúgio, para deixar o terreno livre
ao cientista.
2) Mas a regra precedente é inteiramente negativa.
Ela ensina o sociólogo a escapar ao domínio das noçôes
vulgares, para dirigir sua atenção aos fatos; mas não diz
como deve se apoderar desses últimos para empreender
um estudo objetivo deles.
Toda investigação científica tem por objeto um grupo
determinado de fenômenos que correspondem a uma
mesma definição. O primeiro procedimento do sociólogo
deve ser, portanto, definir as coisas de que ele trata, a fim
de que se saiba e de que ele saiba bem o que está em
questão. Essa é a primeira e a mais indispensável concli<,;ão ele toda prova e de toda verificação; uma teoria, com
efeito, só pode ser controlada se se sabe reconhecer os
fatos que ela deve explicar. *Além do mais, visto ser por
essa definição que é constituído* o objeto mesmo da ciência, este será uma coisa ou não, conforme a maneira pela
qual essa definição for feita.
Para que ela seja objetiva, é preciso evidentemente
que exprima os fenômenos, não em função de uma idéia
do espírito, mas de propriedades que lhe são inerentes. É
• "Concebe-se facilmente a importância dessa definição inicial já
que é ela que constitui" (R.P., p. 490.)
36
AS REGRAS DO MfffODO SOCIOLÓGICO
preciso que ela os caracterize por um elemento integrante
da natureza deles, não pela conformidade deles a uma
noção mais ou menos ideal. Ora, no momento em que a
pesquisa vai apenas começar, quando os fatos não estão
ainda submetidos a nenhuma elaboração, os únicos desses caracteres que podem ser atingidos são os que se
mostram suficientemente exteriores para serem imediatamente visíveis. Os que estão situados mais profundamente são, por certo, mais essenciais; seu valor explicativo é
maior, mas nessa fase da ciência eles são desconhecidos e
só podem ser antecipados se substituirmos a realidade
por alguma concepção do espírito. Assim, é entre os primeiros que deve ser buscada a matéria dessa definição
fundamental. Por outro lado, é claro que essa definição
deverá compreender, sem exceção nem distinção, todos
os fenômenos que apresentam igualmente esses mesmos
caracteres; pois não temos nenhuma razão e nenhum
meio de escolher entre eles. Essas propriedades são, então, tudo o que sabemos do real; em conseqüência, elas
devem determinar soberanamente a maneira como os fatos devem ser agrupados. Não possuímos nenhum outro
critério que possa, mesmo parcialmente, suspender os
efeitos do precedente. Donde a regra seguinte: jamais to-
mar por objeto de pesquisas senão um grupo de fenômenos
previamente 、セヲゥョッウ@
por certos caracteres exteriores que
lhes são comuns, e compreender na mesma pesquisa todos
os que correspondem a essa definição. Por exemplo, constatamos a existência de certo número de atos que apresentam, todos, o caráter exterior de, uma vez efetuados,
determinarem de parte da sociedade essa reação particular que é chamada pena. Fazemos deles um grupo sui generis, ao qual impomos uma rubrica comum; chamamos
crime todo ato punido e fazemos do crime assim definido
o objeto de uma ciência especial, a criminologia. Do mes-
Rh'C/RAS REIA TIVAS À OBSERVAÇÀO DOS FATOS SOGJAJS
37
1110 modo, observamos, no interior de todas as sociedades
conhecidas, a existência de uma sociedade parcial, reconhecível pelo sinal exterior de ser formada de indivíduos
consangüíneos uns dos outros, em sua maior parte, e que
L'stão unidos entre si por laços jurídicos. Fazemos dos fatos que se relacionam a ela um grupo particular; são os
fenômenos da vida doméstica. Chamamos família todo
agregado desse tipo e fazemos da família assim definida o
(ibjeto de uma investigação especial que ainda não recebeu denominação determinada na terminologia sociológica. Quando, mais tarde, passarmos da família em geral
aos diferentes tipos familiares, aplicaremos a mesma regra. Quando abordarmos, por exemplo, o estudo do clã,
ou da família maternal, ou da família patriarcal, começaremos por defini-los, e de acordo com o mesmo método. O
objeto de cada problema, geral como particular, deve ser
constituído segundo o mesmo princípio.
Ao proceder dessa maneira, o sociólogo, desde seu
primeiro passo, toma imediatamente contato com a realidade. Com efeito, o modo como os fatos são assim classificados não depende dele, da propensão particular de seu
espírito, mas da natureza das coisas. O sinal que possibilita serem colocados nesta ou naquela categoria pode ser
mostrado a todo o mundo, reconhecido por todo o mundo, e as afirmações de um observador podem ser controladas pelos outros. É verdade que a noção assim constituída nem sempre se ajusta, ou, até mesmo, em geral não se
ajusta, à noção comum. Por exemplo, é evidente que, para 0 senso comum, os casos de livre pensamento ou as
faltas à etiqueta, tão regularmente e tão severamente punidos numa série de sociedades, não são vistos como crtmes, inclusive em relação a essas sociedades. Assim também um clã não é uma família, no sentido usual da palavra. セ。ウ@
não importa; pois não se trata simplesmente de
38
AS REGRAS DO MÉTODO SOG10lCJGJCO
descobrir um meio que nos permita verificar com suficiente certeza os fatos a que se aplicam as palavras da língua
corrente e as idéias que estas traduzem. O que é preciso é
constituir inteiramente conceitos novos, apropriados às
necessidades da ciência e expressos com o auxílio de
uma terminologia especial. Não, certamente, que 0 conceito vulgar seja inútil ao cientista; ele serve de indicador.
Por ele, somos informados de que existe em alguma parte
um conjunto de fenômenos reunidos sob urna mesma denominaçào e que, portanto, devem provavelmente ter características comuns; inclusive, como o conceito vulgar jamais deixa de ter algum contato com os fenômenos, ele
n:)s indica ús vezes, mas de maneira geral, em que direçao estes devem ser buscados. Mas, como ele é grosseiramente formado, é natural que nào coincida exatamente
com o conceito científico, instituído em seu lugar12.
.
セッイ@
!11ais. evidente e importante que seja essa regra,
ela nao e muito observada em sociologia. Precisamente
por esta tratar de coisas das quais estamos sempre falando, como a família, a propriedade, o crime, etc., na maioria das vezes parece inútil ao sociólogo dar-lhes uma definição preliminar e rigorosa. Estamos tão habituados a servir-nos dessas palavras, que voltam a todo instante no
curso das conversaçôes, que parece inútil precisar 0 sentido no qual as empregamos. As pessoas se referem simplesmente à noção comum. Ora, esta é muito freqüentemente ambígua. Essa ambigüidade faz que se reúnam sob
um mesmo nome e numa mesma explicação coisas, em
realidade, muito diferentes. Daí provêm inextricáveis conヲオセ・ウN@
Assim, existem duas espécies de uniões monogâmicas: umas o são de fato, outras de direito. Nas primeiras, o marido só tem uma mulher, embora, juridicamente,
possa ter várias; nas segundas ele é legalmente proibido
de ser polígamo. A monogamia de fato verifica-se em vá-
NHGRAS RELA 71VAS À OBSERVAÇÃO DOS FATOS SOOAJS
39
rias espécies animais e em certas sociedades inferiores,
não de forma esporádica, mas com a mesma generalidade
como se fosse imposta por lei. Quando a população está
dispersa numa vasta superfície, a trama social é mais frouxa, portanto os indivíduos vivem isolados uns dos outros.
Por isso, cada homem busca naturalmente obter uma mulher e uma só, porque, nesse estado de isolamento, lhe é
difícil ter várias. A monogamia obrigatória, ao contrário,
só se observa nas sociedades mais elevadas. Essas duas
espécies de sociedades conjugais têm portanto uma significação muito diferente, no entanto a mesma palavra serve para designá-las; pois é comum dizer de certos animais
que eles são monógamos, embora nada exista entre eles
que se assemelhe a uma obrigação jurídica. Ora, o sr.
Spencer, abordando o estudo do casamento, emprega a
palavra monogamia, sem defini-la, com seu sentido usual
e equívoco. Disso resulta que a evolução do casamento
lhe parece apresentar uma incompreensível anomalia, já
que ele crê observar a forma superior da união sexual já
nas primeiras fases do desenvolvimento histórico, ao passo que ela parece desaparecer no período intermediário
para retornar a seguir. Ele conclui daí que não há relação
regular entre o progresso social em geral e o avanço progressivo em direção a um tipo perfeito de vida familiar.
Uma definição oportuna teria evitado esse crro 13.
Em outros casos, toma-se o cuidado de definir o objeto sobre o qual incidirá a pesquisa; mas, em vez de
abranger na definição e de agrupar sob a mesma rubrica
todos os fenômenos que têm as mesmas propriedades exteriores, faz-se uma triagem entre eles. Escolhem-se alguns, espécie de elite, que são vistos como os únicos com
o direito a ter esses caracteres. Quanto aos demais, são
considerados como tendo usurpado esses sinais distintivos e não são levados em conta. Mas é fácil prever que
40
AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO
dessa maneira só se pode obter uma noção subjetiva e
truncada. Essa eliminação, com efeito, só pode ser feita
com base numa idéia preconcebida, uma vez que, no começo ela ciência, nenhuma pesquisa pôde ainda estabelecer a realidade dessa usurpação, supondo-se que ela seja
possível. Os fenômenos escolhidos só o podem ter sido
porque estavam, mais do que os outros, de acordo com a
concepção ideal que se fazia desse tipo de realidade. Por
exemplo, o sr. Garofalo, nà começo de sua Criminologie,
demonstra muito bem que o ponto de partida dessa ciência deve ser "a noção sociológica elo crime"l 4 . Só que, para constituir essa noção, ele não compara indistintamente
todos os atos que, nos diferentes tipos sociais, foram reprimidos por penas regulares, mas apenas alguns dentre
eles, a saber, os que ofendem a parte média e imutável
elo senso moral. Quanto aos sentimentos morais que desapareceram durante a evolução, eles não lhe parecem
fundados na natureza das coisas, por não terem conseguido se manter; por conseguinte, os atos que foram considerados criminosos porque os violavam, lhe parecem dever essa denominação apenas a circunstâncias acidentais
e mais ou menos patológicas. Mas é em virtude de uma
concepção inteiramente pessoal ela moralidade que ele
procede a essa eliminação. Ele parte da idéia ele que a
evolução moral, tomada em sua fonte mesma ou nos arredores, arrasta todo tipo ele escórias e ele impurezas, que
ela elimina a seguir progressivamente, e de que somente
hoje ela conseguiu desembaraçar-se de todos os elementos adventícios que, primitivamente, perturbavam-lhe o
curso. Mas esse princípio não é nem um axioma evidente
nem uma verdade demonstrada; é apenas uma hipótese,
que nada inclusive justifica. As partes variáveis do senso
moral não são menos fundadas na natureza das coisas do
que as partes imutáveis; as variações pelas quais as pri-
REGRAS RELATIVAS À OBSERVAÇÃO DOS FATOS SOCIAIS
41
meiras passaram testemunham apenas que as próprias
coisas variaram. Em zoologia, as formas específicas às espécies inferiores não são vistas como menos naturais elo
que as que se repetem em todos os graus da escala animal. Do mesmo modo, os atos tachados de crimes pelas
sociedades primitivas, e que perderam essa qualificação,
sào realmente criminosos para essas sociedades, tanto
quanto os que continuamos a reprimir hoje em dia. Os
primeiros correspondem às condições mutáveis da vida
social, os segundos às condições constantes; mas uns não
sào mais artificiais que os outros.
E tem mais: ainda que esses atos tivessem adquirido
indevidamente o caráter criminológico, nem por isso deveriam ser separados radicalmente dos outros; pois a natureza das formas mórbidas de um fenômeno não é diferente
da natureza das formas normais e, por conseqüência, é necessário observar tanto as primeiras quanto as segundas
para determinar essa natureza. A doença não se opõe à
saúde; trata-se de duas variedades do mesmo gênero e
que se esclarecem mutuamente. Essa é uma regra há muito reconhecida e praticada, tanto em biologia como em
psicologia, e que o sociólogo não é menos obrigado a respeitar. A menos que se admita que um mesmo fenômeno
possa ser devido ora a causa, ora a uma outra, isto é, a
111enos que se negue o princípio de causalidade, as causas
<1ue imprimem num ato, mas de maneira anormal, o sinal
distintivo do crime não poderiam diferir em espécie das
< 1ue produzem normalmente o mesmo efeito; elas distinguem-se apenas em grau ou porque não agem no mesmo
, ·< injunto de circunstâncias. O crime anormal ainda é, por1:11110, um crime e deve, por conseguinte, entrar na defini•
セ@ :10 do crime. Assim, o que ocorre? O sr. Garofalo toma
1H ir gênero o que não é senão a espécie ou mesmo uma
Nセゥャー・ウ@
variedade. Os fatos aos quais se aplica sua fórmu-
42
AS REGRAS DO MÉTODO SOGJOLÓGJCO
la da criminalidade não representam senão uma ínfima minoria entre os que ela deveria compreender; pois ela não
convém nem aos crimes religiosos, nem aos crimes contra
a etiqueta, o cerimonial, a tradição, etc., que, se desapareceram de nossos códigos modernos, preenchem, ao contrário, q;iase todo o direito penal das sociedades anteriores.
E a mesma falta de método que faz que certos observadores recusem aos selvagens qualquer espécie ele moralicladel'i. Eles partem da idéia de que nossa moral é a
moral; ora, é evidente que ela é desconhecida dos povos
primitivos ou que só existe neles em estado rudimentar.
Mas essa definição é arbitrária. Apliquemos nossa regra e
tudo se modifica. Para decidir se um preceito é moral ou
não, devemos examinar se ele apresenta ou não o sinal
exterior da moralidade; esse sinal consiste numa sanção
repressiva difusa, ou seja, numa reprovação da opinião
pública que vinga toda violação do preceito. Sempre que
estivermos em presença de um fato que apresenta esse
caráter, não temos o direito ele negar-lhe a qualificação de
moral; pois essa é a prova ele que ele é da mesma natureza que os outros fatos morais. Ora, regras desse gênero
não só se verificam nas sociedades inferiores, como são
セ。ゥウ@
numerosas aí do que entre os civilizados. Uma quantidade ele atos atualmente entregues à livre apreciação
dos indivíduos são, então, impostos obrigatoriamente.
Percebe-se a que erros somos levados quando não definimos, ou quando definimos mal.
Mas, dirão, definir os fenômenos por seus caracteres
aparentes não será atribuir às propriedades superficiais
uma espécie de preponderância sobre os atributos fundamentais? Não será, por uma verdadeira inversão da ordem
lógica, fazer repousar as coisas sobre seus topos e não
sobre suas bases? É assim que, quando se define セ@ crime
pela pena, corre-se quase inevitavelmente o risco de ser
REGRAS RELA TIVAS À OBSERVAÇÀO DOS FATOS SOGJAJS
43
acusado de querer derivar o crime da pena ou, conforme
uma citação bem conhecida, de ver no patíbulo a fonte
ela vergonha, não no ato expiado. Mas a objeção repousa
sobre uma confusão. Como a definição cuja regra acabamos de dar está situada no começo da ciência, ela não
poderia ter por objeto exprimir a essência ela realidade;
ela deve apenas nos pôr em condições de chegar a isso
ulteriormente. Ela tem por única função fazer-nos entrar
em contato com as coisas e, como estas não podem ser
atingidas pelo espírito a não ser de fora, é por seus exteriores que ela as exprime. Mas isso não quer dizer que as
explique; ela apenas fornece o primeiro ponto de apoio
necessário às nossas explicações. Claro, não é a pena que
faz 0 crime, mas é por ela que ele se revela exteriormente
a nós, e é dela portanto que elevemos partir se quisermos
chegar a compreendê-lo.
A objeção só seria fundada se esses caracteres exteriores fossem ao mesmo tempo acidentais, isto é, se não
estivessem ligados às propriedades fundamentais. De fato,
nessas condições, a ciência, após tê-los assinalado, não
teria meio algum de ir mais adiante; não poderia aprofundar-se mais na realidade, já que não haveria nenhuma relação entre a superfície e o fundo. Mas, a menos que o
princípio de causalidade seja uma palavra vã, quando caracteres determinados se encontram identicamente e sem
nenhuma exceção em todos os fenômenos de certa ordem, pode-se estar certo de que eles se ligam intimamente à natureza destes últimos e que são solidários com eles.
Se um grupo dado de atos apresenta igualmente a particularidade de uma sanção penal estar a eles associada, é
que existe uma ligação íntima entre a pena e os atributos .
constitutivos desses atos. Em conseqüência, por mais superficiais que sejam, essas propriedades, contanto que tenham sido metodicamente observadas, mostram clara-
44
AS REGRAS DO MÉTODO SOG10LÓGICO
mente ao cientista o caminho que ele deve seguir para
penetrar mais fundo nas coisas; elas são o primeiro e indispensável elo da cadeia que a ciência irá desenrolar a
seguir no curso de suas explicações.
Visto ser pela sensação que o exterior das coisas nos
é dado, pode-se portanto dizer, em resumo: a ciência, para ser objetiva, deve partir, não de conceitos que se formaram sem ela, mas da sensação. É dos dados sensíveis
que ela deve tomar diretamente emprestados os elementos de suas definições iniciais. E, de fato, basta pensar em
que consiste a obra da ciência para compreender que ela
não pode proceder de outro modo. Ela tem necessidade
de conceitos que exprimam adequadamente as coisas tais
como elas são, não tais como é útil à prática concebê-las.
Ora, aqueles conceitos que se constituíram fora de sua
ação não preenchem essa condição. É preciso, pois, que
ela crie novos e que, para tanto, afastando as noções comuns e as palavras que as exprimem, volte à sensação,
matéria-prima necessária de todos os conceitos. É da sensação que emanam todas as idéias gerais, verdadeiras ou
falsas, científicas ou não. Portanto, o ponto de partida da
ciência ou conhecimento especulativo não poderia ser
outro que o do conhecimento vulgar ou prático. É somente além dele, na maneira pela qual essa matéria comum é
elaborada, que as divergências começam.
3) Mas a sensação é facilmente subjetiva. Assim é de
regra, nas ciências naturais, afastar os dados sensíveis que
correm o risco de ser demasiado pessoais ao observador,
para reter exclusivamente os que apresentam um suficiente grau de objetividade. Eis o que leva o físico a substituir
as vagas impressões que a temperatura ou a eletricidade
produzem pela representação visual das oscilações do termômetro ou do eletrômetro. O sociólogo deve tomar as
mesmas precauções. Os caracteres exteriores em função
NEGRAS RELATIVAS À OBSERVAÇÃO DOS FATOS SOCIAIS
45
dos quais ele define o objeto de suas pesquisas devem ser
tão objetivos quanto possível.
Pode-se estabelecer como princípio que os fatos sociais são tanto mais suscetíveis de ser objetivamente representados *quanto mais completamente separados dos
fatos individuais que os manifestam*.
De fato, uma sensação é tanto mais objetiva quanto
maior a fixidez do objeto ao qual ela se relaciona; pois a
condição de toda objetividade é a existência de um ponto
de referência, constante e idêntico, ao qual a representação pode ser relacionada e que permite eliminar tudo o
que ela tem de variável, portanto, de subjetivo. Se os únicos pontos de referência dados forem eles próprios variáveis, se forem perpetuamente diversos em relação a si
mesmos, faltará uma medida comum e não teremos meio
algum de distinguir em nossas impressões o que depende
de fora e o que lhes vem de nós. **Ora, a vida social, enquanto não chegou a isolar-se dos acontecimentos particulares que a encarnam para constituir-se à parte, tem justamente essa propriedade, pois, como esses acontecimentos não têm a mesma fisionomia de uma vez a outra, de
um instante a outro, e como ela é inseparável deles, estes
transmitem-lhe sua mobilidade. Ela consiste então em livres correntes** que estão perpetuamente em via de transformação e que o olhar do observador não consegue fixar. Vale dizer que não é por esse lado que o cientista pode abordar o estudo da realidade social. Mas sabemos
que esta apresenta a particularidade de, sem deixar ele ser
ela mesma, ser capaz de cristalizar-se. Fora dos atos indi'"quanto mais estiverem consolidados". (R.P., p. TセWN⦅I@
.
" "Ora, a vida social, no estado de liberdade, e mfimtamente
móvel e fugaz. Ela nào está isolada, pelo menos imediatamente, dos
fenômenos particulares nos quais se encarna, e estes diferem de uma
vez a outra, de um caso a outro. Sào correntes" (R.P., p. 497.)
46
AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO
viduais que suscitam, os hábitos coletivos exprimem-se
sob formas definidas, regras jurídicas, morais, ditos populares, fatos de estrutura social, etc. Como essas formas
existem ele uma maneira permanente, *como não mudam
com as diversas aplicaçôes que delas são feitas,* elas
constituem um objeto fixo, um padrão constante que está
sempre ao alcance cio observador e que não dá margem
às impressões subjetivas e às observaçôes pessoais. Uma
regra ele direito é o que ela é, e não há duas maneiras de
percebê-la. Por outro lado, visto que essas práticas nada
mais são que vicia social consolidada, é legítimo, salvo indicaçôes contráriasH', estudar esta através daquelas.
Quando, portanto, o sociólogo empreende a explora-
ção uma ordem qualquer defatos sociais, ele deve esforçarse em considerá-los por um lado em que estes **se apresenÉ em virtem isolados de suas man{festações ゥョ、カオ。MセJN@
tude desse princípio que estudamos a solidariedade social,
suas formas diversas e sua evolução através do sistema das
regras jurídicas que as exprimem 17. Do mesmo modo, se
se tentar distinguir e classificar os diferentes tipos familiares com base nas descrições literárias que deles nos oferecem os viajantes e, às vezes, os historiadores, corre-se o
risco de confundir as espécies mais diferentes, de aproximar os tipos mais afastados. Se, ao contrário, tomar-se por
base dessa classificação a constituição jurídica da família e,
mais especificamente, o direito sucessório, ter-se-á um critério objetivo que, sem ser infalível, evitará no entanto muitos erros 18 . Queremos classificar os diferentes tipos de crimes? Então nos esforçaremos por reconstituir as maneiras
ele viver, os costumes profissionais praticados nos diferentes mundos do crime, e reconheceremos tantos tipos cri' Elemento que não figura no texto inicial.
de crmsolidaçào". (R.P., p. 497.)
" "apresentam um grau ウコセヲゥ」・ョエ@
Rh'GRAS RE!AT7VAS À OBSERVAÇÃO DOS FATOS SOCIAIS
minológicos quantas forem as formas diferentes que essa
organização apresenta. Para identificar os costumes, as
crenças populares, recorreremos aos provérbios, aos ditados que os exprimem. Certamente, ao proceder assim, deixamos provisoriamente fora da ciência a matéria concreta
da vida coletiva, e no entanto, por mais mutável que esta
Nセ・ェ。L@
não ternos o direito de postular a priori sua ininteligibilidade. Mas, se quisermos seguir uma via metódica, precisaremos estabelecer os primeiros alicerces ela ciência sobre um terreno firme e não sobre areia movediça. É preciᄋセᄎ@
abordar o reino social pelos lados onde ele mais se
:1hre à investigação científica. Somente a seguir será possível levar mais adiante a pesquisa e, por trabalhos ele aproximação progressivos, cingir pouco a pouco essa realidade
fugidia, da qual o espírito humano talvez jamais possa se
: 1poderar completamente.
CAPÍTULO III
REGRAS RELATIVAS À DISTINÇÃO
ENTRE NORMAL E PATOLÓGICO
A observação, conduzida de acordo com as regras que
precedem, confunde duas ordens de fatos, muito desseme1hantes sob certos aspectos: os que são o que devem ser e
e >s que deveriam ser de outro modo, os fenômenos normais e os fenômenos patológicos. Vimos inclusive que era
1wcessário abrangê-los igualmente na definição pela qual
'il've se iniciar toda pesquisa. Mas, se eles, em certa medida, são da mesma natureza, não deixam de constituir duas
\';1riedades diferentes, que é importante distinguir. A ciên' ia dispõe de meios que permitem fazer essa distinção?
A questão é da maior importância; pois da solução
que se der a ela depende a idéia que se faz do papel que
'ompete ã ciência, sobretudo à ciência do homem. De
.1c·()rdo com uma teoria cujos partidários se recrutam nas
'""colas mais diversas, a ciência nada nos ensinaria sobre
.1quilo que devemos querer. Ela só conhece, dizem, fatos
• Jl ll' têm o mesmo valor e o mesmo interesse; ela os obセャGイカ。L@
os explica, mas não os julga; para ela, os fatos nada
l«riam de censurável. O bem e o mal não existem para
50
AS REGRAS DO Mb'TODO SOOOLÓGJCO
ela. A ciência pode perfeitamente nos dizer de que maneira as causas produzem seus efeitos, não que finalidades devem ser buscadas. Para saber, não o que é, mas o
que é desejável, deve-se recorrer às sugestões do inconsciente, não importa o nome que se dê a ele: sentimento,
instinto, impulso vital, etc. A ciência, diz um escritor já citado, pode muito bem iluminar o mundo, mas ela deixa a
noite nos corações; compete ao coração mesmo fazer sua
própria luz. A ciência se vê assim destituída, ou quase, de
toda eficácia prática, não tendo portanto grande razão de
ser; pois, de que serve trabalhar para conhecer o real, se
o conhecimento que dele adquirimos não nos pode servir
na vida? Acaso dirão que ela, ao nos revelar as causas dos
fenômenos, nos fornece os meios de produzi-los a nosso
gosto e, portanto, de realizar os fins que nossa vontade
persegue por razôes supracientíficas? Mas todo meio é ele
próprio um fim, por um lado; pois, para empregá-lo, é
preciso querê-lo tanto como o fim cuja realização ele prepara. Há sempre vários caminhos que levam a um objetivo dado; é preciso, portanto, escolher entre eles. Ora, se
a ciência não pode nos ajudar na escolha do objetivo melhor, como é que ela poderia nos ensinar qual o melhor
caminho para chegar a ele? Por que ela nos recomendaria
o mais rápido de preferência ao mais econômico, o mais
seguro em vez do mais simples, ou vice-versa? Se não é
capaz de nos guiar na determinação dos fins superiores,
ela não é menos impotente quando se trata desses fins secundários e subordinados que chamamos meios.
O método ideológico permite, é verdade, escapar a
esse misticismo, e foi aliás o desejo de escapar a ele oresponsável, em parte, pela persistência desse método. Os
que o praticaram eram, com· efeito, demasiadamente racionalistas para admitir que a conduta humana não tivesse
necessidade de ser dirigida pela reflexão; no entanto, eles
DISTINÇÃO EN'lNE NOR1V!AL E PA TOLÓGJCO
51
não viam nos fenômenos, tomados em si mesmos e independentemente de todo dado subjetivo, nada que permitisse classificá-los segundo seu valor prático. Parecia portanto que o único meio de julgá-los seria relacioná-los a
algum conceito que os dominasse; com isso, o emprego
de noções que presidiram à comparação dos fatos, em
vez de derivar deles, tornava-se indispensável em toda sociologia racional. Mas sabemos que, se nessas condiçôes
a prática se torna refletida, a reflexão, assim empregada,
não é científica.
O problema que acabamos de colocar nos permitirá
reivindicar os direitos da razão sem cair de novo na ideologia. Com efeito, tanto para as sociedades como para os
indivíduos, a saúde é boa e desejável, enquanto a doença
é algo ruim e que deve ser evitado. Se encontrarmos portanto um critério objetivo, inerente aos fatos mesmos, que
nos permita distinguir cientificamente a saúde da doença
nas diversas ordens de fenômenos sociais, a ciência será
capaz de esclarecer a prática, sem deixar de ser fiel a seu
próprio método. É verdade que, como não consegue preNセ・ョエュ@
atingir o indivíduo, ela só é capaz de fornecer-nos indicações gerais que não podem ser convenientemente diversificadas, a não ser que se entre diretamente
L'll1 contato com o particular através da sensação. O estado de saúde, tal como ela o define, não poderia convir
l'xatamente a nenhum sujeito individual, já que só pode
sn estabelecido em relação às circunstâncias mais co111uns, das quais cada um se afasta em maior ou menor
grau; ainda assim, esse é um ponto de referência precioso
p:1ra orientar a conduta. Do fato de ser preciso ajustá-lo a
NセャGァオゥイ@
a cada caso especial, não se conclui que não haja
11l'nhum interesse em conhecê-lo. Muito pelo contrário,
t ·ll' é a norma que deve servir de base a todos os nossos
r;1ciocínios práticos. Nessas condições, não se tem mais o
52
AS REGRAS DO MÉTODO SOG10lÓGICO
direito de dizer que o pensamento é inútil à ação. Entre a
ciência e a arte não existe mais um abismo, mas se passa
de uma à outra sem solução de continuidade. A ciência, é
verdade, só pode descer aos fatos por intermédio da arte,
mas a arte não é senão o prolongamento da ciência. Pode-se também perguntar se a insuficiência prática desta
última não deverá diminuir, ã medida que as leis que ela
estabelece exprimam cada vez mais completamente a realidade individual.
Vulgarmente, o sofrimento é visto como o indicador
da doença, e é certo que, em geral, existe entre esses dois
fatos uma relação, mas que carece de constância e de precisão. Há graves diáteses que são indolores, ao passo que
perturbações sem importância, como as que resultam da
introdução de um grão de poeira no olho, causam um
verdadeiro suplício. Em certos casos, inclusive, a ausência
de dor ou ainda o prazer é que são os sintomas da doença. Há uma certa invulnerabilidade que é patológica. Em
circunstâncias nas quais um homem são sofreria, acontece
ao neurastênico experimentar uma sensação de gozo cuja
natureza mórbida é incontestável. Inversamente, a dor
acompanha muitos estados, como a fome, a fadiga, o parto, que são fenômenos puramente fisiológicos.
Diremos que a saúde, consistindo num desenvolvimento favorável das forças vitais, se reconhece pela perfeita adaptação do organismo a seu meio, e chamaremos,
ao contrário, doença tudo o que perturba essa 。、ーエQLᄋ[|ッセ@
Mas em primeiro lugar - mais adiante teremos de voltar a
esse ponto - de modo nenhum está demonstrado que cada estado do organismo esteja em correspondência com
IJ1ST7NÇÀO ENTRE NORMAL E PATOLÓGICO
53
algum estado externo. Além do mais, e mesmo que esse
critério fosse realmente distintivo do estado de saúde, ele
próprio teria necessidade de outro critério para poder ser
reconhecido; pois seria preciso, em todo caso, que nos
dissessem de acordo com que princípio se pode decidir
que tal modo de se adaptar é mais perfeito que outro.
Será de acordo com a maneira como um e outro afetam nossas chances de sobrevivência? A saúde seria o estado de um organismo em que essas chances estão em
seu máximo, enquanto a doença seria tudo o que tem por
ddto diminuí-las. Não há dúvida, de fato, de que em ger;d a doença tem realmente por conseqüência um enfraquecimento do organismo. Só que ela não é a única a
produzir esse resultado. As funções de reprodução, em
(·ertas espécies inferiores, ocasionam fatalmente a morte
(', mesmo nas espécies mais elevadas, comportam riscos.
N< > entanto elas são normais. A velhice e a infância têm os
111esmos efeitos; pois o velho e a criança estão mais ex1H >stos às causas de destruição. São eles, então, doentes e
11;10 se admitirá outro tipo são a não ser o adulto? Eis o
domínio da saúde e da fisiologia singularmente encolhi1 I< >1 Aliás, se a velhice já for, por si só, uma doença, como
distinguir o velho saudável do velho doentio? Do mesmo
1H >nto de vista, será preciso classificar a menstruação en1l'l' os fenômenos mórbidos; pois, pelas perturbações que
, 11 ·termina, ela aumenta a receptividade da mulher à doenv; 1. Entretanto, como qualificar de doentio um estado cuja
.111st'·ncia ou desaparecimento prematuro constituem in', 111ll'stavelmente um fenômeno patológico? Raciocina-se
セᄋ@ 11 >rL' essa questão como se, num organismo sadio, cada
tll'l;tlhe, por assim dizer, tivesse um papel útil a desempe1ili;1 r; como se cada estado interno correspondesse exata1111·11 te a uma condição externa e, por conseguinte, contri1n11s.<;L' para assegurar, por sua parte, o equilíbrio vital e a
54
AS REGRAS DO Mitf'ODO SOCIOLÓGICO
redução das chances de morte. É legítimo supor, ao contrário, que certas disposiçôes anatômicas ou funcionais
não servem diretamente para nada, mas simplesmente são
porque são, porque não podem deixar de ser, dadas as
condiçôes gerais da vida. Não se poderia no entanto qualificá-las de mórbidas; pois a doença é, antes de tudo, algo evitável que não está implicado na constituição regular
do ser vivo. Ora, pode acontecer que, em vez de fortalecer o organismo, tais disposiçôes diminuam sua força de
resistência e, conseqüentemente, aumentem os riscos
mortais.
Por outro lado, não é seguro que a doença tenha
sempre o resultado em função do qual se quer defini-la.
Acaso não há uma série de afecções demasiado leves para
que possamos atribuir-lhes uma influência sensível sobre
as bases vitais do organismo? Mesmo entre as mais graves,
há algumas cujas conseqüências nada têm de deplorável,
se soubermos lutar contra elas com as armas de que dispomos. Quem sofre ele problemas gástricos, mas segue
uma boa dieta, pode viver tanto quanto o homem sadio.
Claro que é obrigado a ter cuidados; mas não somos todos
obrigados a isso, e acaso pode a vida manter-se de outro
modo? Cada um de nós tem sua higiene; a do doente não
se assemelha àquela praticada pela média dos homens de
seu tempo e de seu meio; mas essa é a única diferença
que existe entre eles desse ponto de vista. A doença nem
sempre nos deixa desamparados, num estado de inadaptação irremediável; ela apenas nos obriga a adaptar-nos de
modo diferente do da maior parte de nossos semelhantes.
Quem nos diz, inclusive, que não existem doenças que
acabam por se mostrar úteis? A varíola que nos inoculamos através da vacina é uma verdadeira doença que nos
damos voluntariamente; no entanto ela aumenta nossas
chances de sobrevivência. Talvez haja muitos outros casos
I !ISTINÇÀO El'vTRE NORMAL E PATOLÓGICO
55
que o problema causado pela doença é insignificante
comparado com as imunidades que ela confere.
Enfim, e sobretudo, esse critério é na maioria das vezes inaplicável. Pode-se muito bem estabelecer, a rigor,
que a mortalidade mais baixa que se conhece encontra-se
l'lll determinado grupo de indivíduos; mas não se pode
demonstrar que não pnderia haver outra mais baixa.
<)uem nos diz que não são possíveis outras disposiçôes
'1ue teriam por efeito diminuí-la ainda mais? Esse mínimo
lk· fato não é portanto prova de uma perfeita adaptação,
nem, por conseguinte, um indicador seguro do estado de
s:1úde, se nos basearmos na definição precedente. Além
, ャゥウNセッL@
um grupo dessa natureza é muito difícil de se constituir e de se isolar de todos os outros, como seria necessári< l, para que se pudesse observar a constituição orgânica
dt' que ele tem o privilégio e que é a suposta causa dessa
s11perioridacle. Inversamente, se é óbvio, quando se trata
'k · uma doença cujo desdobramento é geralmente mortal,
'llll' as probabilidades de sobrevivência do indivíduo são
'li111inuídas, a prova é singularmente difícil quando a afec" ;1< > não é ele natureza a ocasionar diretamente a morte.
< :, >111 efeito, só há uma maneira objetiva de provar que intl i v íd uos situados em condições definidas têm menos
, l1;1nces de sobreviver que outros: é demonstrar que, de
l.1to, a maior parte deles vive menos tempo. Ora, se essa
tl1·111onstração é freqüentemente possível nos casos ele
1l1 >< ·nc,·as puramente individuais, ela é inteiramente imprati' .1n·I em sociologia. Pois aqui não temos o ponto ele refe11 ·1ll'ia de que clispôe o biólogo, a saber, o número da
1111 >rt:didacle média. Não sabemos sequer distinguir com
1·\.1tid:lo simplesmente aproximada em que momento nas' 1· 11 ma sociedade e em que momento ela morre. Todos
1ᄋセNQ@ ·s problemas que, mesmo em biologia, estão longe ele
1·,t.1r claramente resolvidos, permanecem ainda, para o soL'm
56
AS REGRAS DO MfrJODO SOG10LÓG!CO
ciólogo, envoltos em mistério. Aliás, os acontecimentos
que se produzem no curso da vida social e que se repetem
mais ou menos identicamente em todas as sociedades do
mesmo tipo são demasiadamente variados para que seja
possível determinar em que medida um deles pode ter
contribuído para apressar o desenlace final. Quando se
trata de indivíduos, como eles são muito numerosos, pode-se escolher aqueles que são comparados de maneira a
que tenham em comum apenas uma única e mesma *anomalia*; **esta é assim isolada de todos os fenômenos concomitantes e, portanto, pode-se estudar a natureza de sua
influência sobre o organismo**. Se, por exemplo, um grupo de mil reumáticos, tomados ao acaso, apresenta uma
mortalidade sensivelmente superior à média, há boas razões
para atribuir esse resultado à diátese reumática. Mas, em
sociologia, como cada espécie social conta apenas um pequeno número de indivíduos, o campo das comparações é
demasiado restrito para ***que agrupamentos desse gênero
possam ser demonstrativos***.
Ora, na falta dessa prova de fato, nada mais é possível senão raciocínios dedutivos cujas conclusões só podem ter o valor de conjeturas subjetivas. Demonstrar-se-á,
não que tal acontecimento enfraquece efetivamente o organismo social, mas que ele deve ter esse efeito. Para isso, mostrar-se-á que ele não pode deixar de ocasionar esta ou aquela conseqüência que se julga nociva à sociedade e, por esse motivo, ele será declarado mórbido. Mas
mesmo supondo que ele engendre de fato essa conseqüência, pode ocorrer que os inconvenientes que esta
apresente sejam compensados, e até mais do que isso,
* "doença" (R.P., p. 582.)
** Frase que não figura no texto inicial.
*** "que se possa proceder a agrnpamentos desse gênero". (R.I'.,
p. 582.)
I !/S11NÇÀO ENTRE NORMAL E PATOLÓGICO
57
por vantagens que não se percebem. Além do mais, há
:1penas uma razão que permitiria chamá-la de funesta: ela
perturbar o desempenho normal das funções. Mas tal prov:1 supõe o problema já resolvido; pois ela só é possível
'L' determinarmos previamente em que consiste o estado
1H mnal e, portanto, se soubermos sob que sinal ele pode
'lT reconhecido. Tentar-se-á construí-lo integralmente e a
/1riori? Nào é necessário mostrar o que pode valer tal
' 'mstrução. Eis como, tanto em sociologia como em história, os mesmos acontecimentos podem vir a ser qualifica' I< is, conforme os sentimentos pessoais do estudioso, de
.,:iJutares ou de desastrosos. Assim, acontece a todo mo111l'nto que um teórico incrédulo assinale, nos restos de fé
<pie sobrevivem em meio ao desmoronamento geral das
'rl'nças religiosas, um fenômeno mórbido, enquanto, para
<• crente, é a incredulidade mesma que é hoje a grande
<I< >l'nça social. Do mesmo modo, para o socialista, a orga11i1.açào econômica atual é um fato de teratologia social,
·'' • passo que, para o economista ortodoxo, as tendências
"' ll'ialistas é que são, por excelência, patológicas. E cada
11111 encontra em apoio de sua opinião silogismos que
' <insidera bem construídos.
O erro comum dessas definições é querer atingir pre111: 11 uramente a essência dos fenômenos. Elas supõem co111< > admitidas proposições que, verdadeiras ou não, só
1>< >< il'm ser provadas se a ciência já estiver suficientemen1< · :1vançada. É o caso, porém, de nos conformarmos à rec
セQN@
l'stabelecida anteriormente. Em vez de pretendermos
d1·1nminar de saída as relações do estado normal e de
.,, ., , contrário com as forças vitais, busquemos simples11w11ll' algum sinal exterior, imediatamente perceptível,
111.1s objetivo, que nos permita distinguir uma da outra esセᄋGB@
duas ordens de fatos.
58
AS REGRAS DO MÉTOlJO SOCIOLÓGICO
Todo fenômeno sociológico, assim como, ele resto,
todo fenômeno biológico, é suscetível ele assumir formas
diferentes conforme os casos, embora permaneça essencialmente ele próprio. Ora, essas formas podem ser de
duas espécies. Umas são gerais em toda a extensão da espécie; elas se verificam, se não em todos os indivíduos,
pelo menos na maior parte deles e, se não se repetem
identicamente em todos os casos nos quais se observam,
mas variam de um sujeito a outro, essas variações estão
compreendidas entre limites muito próximos. Há outras,
ao contrário, que são excepcionais; elas não apenas se
verificam só na minoria, mas também acontece que, lá
mesmo onde elas se produzem, muito freqüentemente
não duram toda a vida do indivíduo. Elas são uma exceção tanto no tempo como no espaço 1 . Estamos, pois, em
presença de duas variedades distintas ele fenCm1enos que
devem ser designadas por termos diferentes. Chamaremos
normais os fatos que apresentam as formas mais gerais e
daremos aos outros o nome de mórbidos ou patológicos.
Se concordarmos em chamar tipo médio o ser esquemático que constituiríamos ao reunir num mesmo todo, numa
espécie de individualidade abstrata, os caracteres mais
freqüentes na espécie com suas formas mais freqüentes,
poderemos dizer que o tipo normal se confunde com o tipo médio e que todo desvio em relação a esse padrão da
saúde é um fenômeno mórbido. É verdade que o tipo
médio não poderia ser determinado com a mesma clareza
que um tipo individual, já que seus atributos constitutivos
não estão absolutamente fixados, mas são suscetíveis de
variar. Todavia o que não se pode pôr em dúvida é que
ele possa ser constituído, já que é a matéria imediata da
ciência; pois ele se confunde com o tipo genérico. O que
o fisiologista estuda são as funções do organismo médio,
e com o sociólogo não é diferente. Uma vez que se sabe
! !!S77iVÇÀO ENTRF NORMAL E PA10lé>GICO
59
distinguir as espécies sociais umas das outras - tratamos
mais adiante a questão -, é sempre possível descobrir
<1ual a forma mais geral que apresenta um fenômeno nu111a espécie determinada.
Vê-se que um fato só pode ser qualificado de patológico em relação a uma espécie dada. As condições da
セ[Q、・@
e da doença não podem ser definidas in ahstractu
, . de maneira absoluta. A regra não é contestada em bio1< >gia; jamais ocorreu a alguém que o que é normal para
11111 molusco o é também para um vertebrado. Cada espé,·iL' tem sua saúde, porque tem seu tipo médio que lhe é
11r(iprio, e a saúde das espécies mais baixas não é menor
<111e a das mais elevadas. O mesmo princípio aplica-se セ@
s< >ciologia, embora freqüentemente ele seja ignorado aí. E
1ireciso renunciar a esse hábito, ainda muito difundido, de
11dgar uma instituição, uma prática, uma máxima moral,
<«>mo se elas fossem boas ou más em si mesmas e por si
111esmas, para todos os tipos sociais indistintamente.
Visto que o ponto de referência em relação ao qual
s< · pode julgar o estado de saúde ou de doença varia com
.1.s espécies, ele pode variar também para uma única e
111L·sma espécie, se esta vier a mudar. É assim que, do
1H mto de vista puramente biológico, o que é normal para
, , sl'lvagem nem sempre o é para o civilizado, e vice-vers.1 '. Há sobretudo uma ordem de variações que é imporl.i11tc levar em conta, porque elas se produzem regular111<·11te em todas as espécies: são aquelas relacionadas à
1d:idl'.. A saúde do velho não é a do adulto, assim como
<'st:1 não é a da criança; e o mesmo ocorre com as socied.1des5. Um fato social não pode portanto ser dito normal
p.1r:1 uma espécie social determinada, a não ser em relaセ@ .1< > a uma fase, igualmente determinada, de seu desen,., 1lvimento; em conseqüência, para saber se ele tem direi'' 1 :1 L'ssa denominação, não basta observar sob que forma
60
AS REGRAS DO MÉTODO SOOOLÓGJCO
ele se apresenta na generalidade das sociedades que pertencem a essa espécie; é preciso também ter o cuidado de
considerá-las na fase correspondente de sua evolução.
Parece que acabamos de proceder simplesmente a
uma definição de palavras; pois nada mais fizemos senão
agrupar fenômenos segundo suas semelhanças e suas diferenças e impor nomes aos grupos assim formados. Mas,
em realidade, os conceitos que constituímos, ao mesmo
tempo que têm a grande vantagem de ser reconhecíveis
por caracteres objetivos e facilmente perceptíveis, não se
afastam da noção que se tem comumente da saúde e da
doença. Com efeito, não é a doença concebida por todo o
mundo como um acidente, que a natureza do ser vivo
certamente comporta, mas não costuma engendrar? É o
que os antigos filósofos exprimiam ao dizer que ela não
deriva da natureza das coisas, que ela é o produto de
uma espécie de contingência imanente aos organismos.
Tal concepção, seguramente, é a negação de toda ciência;
pois a doença não possui nada mais miraculoso que a
saúde; ela está igualmente fundada na natureza dos seres.
Só que não está fundada na natureza normal; não está implicada no temperamento ordinário dos seres, nem ligada
às condições de existência das quais eles geralmente dependem. Inversamente, para todo o mundo, o tipo da
saúde se confunde com o da espécie. Inclusive não se pode, sem contradição, conceber uma espécie que, por si
mesma e em virtude de sua constituição fundamental, fosse irremediavelmente doente. Ela é a norma por excelência e, portanto, nada de anormal poderia conter.
É verdade que, correntemente, entende-se também
por saúde um estado geralmente preferível à doença. Mas
essa definição está contida na precedente. De fato, se 011
caracteres cuja reunião forma o tipo normal puderam se
generalizar numa espécie, há uma razão para isso. Ess11
1J/SllNÇÀ O ENTRE NORMAL E PA TOLÓGJCO
61
gl'neralidade é ela mesma um fato que tem necessidade
iil' ser explicado e que, para tanto, reclama uma causa.
< >ra, ela seria inexplicável se as formas de organização
111;1is difundidas não fossem também, pelo menos em seu
1mzjunto, as mais vantajosas. Como teriam elas podido se
111:1nter numa tão grande variedade de circunstâncias, se
11:10 capacitassem os indivíduos a resistir melhor às causas
, k- destruição? Ao contrário, se as outras são mais raras, é
, ·videntemente porque, na média dos casos, os indivíduos
, 1uc as representam têm mais dificuldade de sobreviver. A
111:1ior freqüência das primeiras é portanto a prova de sua
セQ@ pcrioridade4.
II
Essa última observação fornece inclusive um meio de
, , introlar os resultados do precedente método.
lJma vez que a generalidade, que caracteriza exterior1111 ·ntc os fenômenos normais, é ela própria um fenômeno
""Plicável, compete, depois que ela foi diretamente estal 11 ·l, ·cida pela observação, procurar explicá-la. Certamente
i" ll il'mos estar seguros de antemão de que ela tem uma
, NQセ[L@
mas o melhor é saber com precisão qual é essa cau·.. 1 < :, im efeito, o caráter normal do fenômeno será mais
1111, intestável se demonstrarmos que o sinal exterior que o
11.1\·1;1 revelado a princípio não é puramente aparente, mas
"1111 lundado na natureza das coisas; em uma palavra, se
111111, ·rmos erigir essa normalidade de fato em normalidade
ili· dirl'ito. Essa demonstração, de resto, nem sempre conセィャQイ[@
l'tn mostrar que o fenômeno é útil ao organismo,
11i11d:1 que este seja o caso mais freqüente, pelas razões
IJlll" ;1c;1hamos de mencionar; mas pode ocorrer também,
11111111 ;issinalamos mais acima, que uma disposição seja
62
AS REGRAS no MÍ<.TODO SOCJOLÓG!CO
normal sem servir a nada, simplesmente porque está necessariamente implicada na natureza do ser. Assim, talvez
fosse útil que o parto não causasse problemas tão violentos ao organismo feminino; mas isso é impossível. Em
conseqüência, a normalidade do fenômeno será explicada
pelo simples fato de estar ligada às condições de existência da espécie considerada, seja como um efeito mecanicamente necessário dessas condições, seja como um meio
que permite aos organismos adaptarem-se a elas".
Essa prova não é simplesmente útil a título de controle. Convém não esquecer, com efeito, que, se há interesse em distinguir o normal do anormal, é sobretudo
com vistas a esclarecer a prática. Ora, para agir com conhecimento ele causa não basta saber o que devemos
querer, mas por que o devemos. As proposições científicas, relativas ao estado normal, serào mais imediatamente
aplicáveis aos casos particulares quando estiverem acompanhadas de suas razões; pois então saberemos reconhecer melhor em que casos convém modificá-las, ao aplicálas, e em que sentido.
Há inclusive circunstâncias em que essa verificação é
rigorosamente necessária, porque o primeiro método, se
fosse empregado sozinho, poderia induzir a erro. É o que
acontece nos períodos de transição em que a espécie inteira está em via de evoluir, sem estar ainda definitivamente fixada em uma forma nova. Nesse caso, o único tipo normal que se encontra desde já realizado e dado nos
fatos é o do passado; no entanto ele não está mais em
harmonia com as novas condições de existência. Um fato
pode assim persistir em toda a extensão de uma espécie,
embora não mais corresponda às exigências da situação.
Nesse caso, portanto, ele só tem as aparências da normalidade; a generalidade que apresenta não é senão um rótulo mentiroso, posto que, mantendo-se apenas pela força
DJS7JNÇ'ÀO RNJRE NORMAL E PATOLÓGICO
63
cega do hábito, ela não é mais o indicador de que o fenCJmeno observado está intimamente ligado às condiçC>es
gerais da existência coletiva. Essa dificuldade, aliás, é específica à sociologia. Ela não existe', por assim dizer, para
o biólogo. Com efeito, é muito raro que as espécies animais 5ejam obrigadas a tomar formas imprevistas. As únicas modificaçôes normais pelas quais elas passam são
aquelas que se reproduzem regularmente em cada indivíduo, principalmente sob a influência da idade. Portanto
elas são conhecidas ou podem sê-lo, já que se realizaram
numa grande quantidade de casos; em vista disso se pode
saber, a cada momento do desenvolvimento do animal, e
mesmo nos períodos de crise, em que consiste o estado
normal. O mesmo acontece em sociologia em relação às
Nセッ」ゥ・、。ウ@
que pertencem às espécies inferiores. Como
muitas delas já cumpriram toda a sua carreira, a lei de sua
l'volução normal está ou pelo menos pode ser estabelecida. Mas, quando se trata das sociedades mais elevadas e
mais recentes, essa lei é desconhecida por definição, já
< 1ue elas ainda não percorreram toda a sua história. O so<·iúlogo pode, assim, ter dificuldades para saber se um fe1H)meno é normal ou não, estando privado de qualquer
1H mto de referência.
Ele sairá da dificuldade procedendo como acabamos
<il' dizer. Após ter estabelecido pela observação que o fa1• >L' geral, ele remontará às condições que determinaram
GBセᄋᆰ@
generalidade no passado e procurará saber, a seguir,
»< · lais condições ainda se verificam no presente ou, ao
'' >11tr;üio, se alteraram. No primeiro caso, ele terá o direi1• • dl' qualificar o fenômeno de normal e, no segundo, de
11 ·1 11s;1r-lhe esse caráter. Por exemplo, para saber se o es1.11 I• >l'conômico atual dos povos europeus, com a ausên' 1.1 1 il' organização6 que é a sua característica, é normal
'111 11ao, investigar-se-á aquilo que, no passado, deu ori-
64
AS REGRAS DO MÉTODO SOC10LÓGJCO
gema ele. Se essas condições são ainda aquelas nas quais
se encontram atualmente nossas sociedades, é porque a
situação é normal, a despeito dos protestos que provoca.
Se, ao contrário, verificar-se que ela está ligada a essa velha estrutura social que qualificamos alhures de segmentar7 e que, após ter sido a ossatura essencial das sociedades, vai-se apagando cada vez mais, deveremos concluir
que ela constitui presentemente um estado mórbido, por
mais universal que seja. É de acordo com o mesmo método que deverão ser resolvidas todas as questões controversas desse gênero, como as de saber se o enfraquecimento das crenças religiosas ou se o desenvolvimento
dos poderes do Estado são fenômenos normais ou nãoH.
Contudo, esse método não poderia, em caso nenhum,
substituir o precedente, nem mesmo ser empregado primeiro. A começar porque ele levanta questões que teremos de examinar adiante e que só podem ser abordadas
quando a ciência já avançou suficientemente; pois ele implica, em suma, uma explicação quase completa dos fenômenos, na medida em que supõe sejam determinadas suas
causas ou suas funções. Ora, é importante que, desde o
início da pesquisa, se possam classificar os fatos em normais e anormais, ressalvando-se alguns casos excepcionais, a fim de poder atribuir à fisiologia e à patologia os
respectivos domínios. Em seguida, é em relação ao tipo
normal que um fato deve ser considerado útil ou necessário para poder ele próprio ser qualificado de normal. Caso
contrário, poder-se-ia demonstrar que a doença se confunde com a saúde, já que ela deriva necessariamente do organismo afetado; é apenas com o organismo médio que
ela não mantém a mesma relação. Do mesmo modo, a
aplicação de um remédio, sendo útil ao doente, poderia
ser vista como um fenômeno normal ' quando é evidente-1
mente anormal, pois só em circunstâncias anormais tem
nIS77NÇÀO ENTRE NORMAL E PATOLÓGICO
65
essa utilidade. Portanto só podemos servir-nos desse método se o tipo normal estiver constituído, e isso somente é
possível por outro procedimento. Enfim, e sobretudo, se é
verdade que tudo o que é normal é útil, com a condição
de ser necessário, é falso que tudo o que é útil seja normal. Podemos ter certeza de que os estados que se generalizaram na espécie são mais úteis do que os que permaneceram excepcionais, mas não de que os mais úteis é
que existem ou que podem existir. Não temos nenhuma
razão para acreditar que todas as combinações possíveis
foram tentadas no curso da experiência e, entre aquelas jamais realizadas, mas concebíveis, talvez muitas sejam mais
vantajosas que as que conhecemos. A noção de útil excede a de normal; ela está para esta assim como o gênero está para a espécie. Ora, é impossível deduzir o mais do menos, a espécie do gênero. Mas pode-se encontrar o gênero
na espécie, já que esta o contém. Por isso, uma vez constatada a generalidade do fenômeno, podem-se confirmar
os resultados do primeiro método, mostrando como ele
serveY. Podemos assim formular as três regras seguintes:
Um fato social é normal para um tipo social determinado, considerado numa fase determinada de seu desenvolvimento, quando ele se produz na média das sociedades dessa espécie, consideradas na fase correspondente
de sua evolução.
2) Os resultados do método precedente podem ser verificados mostrando-se que a generalidade do fenômeno se
deve às condições gerais da vida coletiva no tipo social
considerado.
3) Essa verificação é necessária quando esse fato se
relaciona a uma espécie social que ainda não consumou
sua evolução integral.
1)
66
AS REGRAS DO MÉTODO SOCWLÔGJCO
III
Estamos tão habituados a resolver com uma palavra
essas questões difíceis e a decidir rapidamente, a partir de
observações sumárias e à base de silogismos, se um fato
social é normal ou não, que esse procedimento talvez vá
ser considerado inutilmente complicado. Não parece preciso dar-se tanto trabalho para distinguir a doença da saúde. Acaso não fazemos diariamente distinções desse tipo?
É verdade; mas resta saber se as fazemos devidamente. O
que nos mascara as dificuldades desses problemas é que
vemos o biólogo resolvê-los com relativa facilidade. Mas
esquecemos que é muito mais fácil para ele do que para
o sociólogo perceber como cada fenômeno afeta a força
de resistência do organismo e com isso determinar seu caráter normal ou anormal com uma exatidão praticamente
suficiente. Em sociologia, a complexidade e a mobilidade
maiores dos fatos obrigam a muitas precauções, como
provam os julgamentos contraditórios feitos sobre o mesmo fenômeno por diferentes partidos. Para mostrar bem o
quanto essa cautela é necessária, façamos ver, por alguns
exemplos, em que erros se incorre quando ela não é respeitada e sob que luz nova os fenômenos mais essenciais
aparecem quando são tratados metodicamente.
Se há um fato cujo caráter patológico parece incontestável, é o crime. Todos os criminologistas estão de
acordo nesse ponto. Ainda que expliquem essa morbidez
de maneiras diferentes, eles são unânimes em reconhecêla. O problema, porém, deveria ser tratado com menos
presteza.
Apliquemos, com efeito, as regras precedentes. O crime não se observa apenas na maior parte das sociedades
desta ou daquela espécie, mas em todas as sociedades de
todos os tipos. Não há nenhuma onde não exista uma cri-
f)JS11NÇÀO f;,iVTRE NORMAL E PATOLÔGJCO
67
minalidadc. Esta muda de forma, os atos assim qualificados não são os mesmos em toda parte; mas, sempre e em
toda parte, houve homens que se conduziram de maneira
a atrair sobre si a repressão penal. Se, pelo menos, à medida que as sociedades passam dos tipos inferiores aos mais
elevados, o índice de criminalidade - isto é, a relação entre o número anual dos crimes e o da população - tendesse a diminuir, poder-se-ia supor que, embora permaneça
um fenômeno normal, o crime tende, no entanto, a perder
esse caráter. Mas não temos razão nenhuma que nos permita acreditar na realidade dessa regressão. Muitos fatos
pareceriam antes demonstrar a existência de um movimento no sentido inverso. Desde o começo do século, a
L'statística nos fornece o meio de acompanhar a marcha da
criminalidade; ora, por toda parte ela aumentou. Na Fran<.;a, o aumento é de cerca de 300 por cento. Não há portanto fenômeno que apresente da maneira mais irrecusável todos os sintomas da normalidade, já que ele se mostra
intimamente ligado às condições de toda vida coletiva. Fazer do crime uma doença social seria admitir que a doença
nào é algo acidental, mas, ao contrário, deriva, em certos
casos, da constituição fundamental do ser vivo; seria apagar toda distinção entre o fisiológico e o patológico. Certamente pode ocorrer que o próprio crime tenha formas
anormais; é o que acontece quando, por exemplo, ele
;1tinge um índice exagerado. Não é duvidoso, com efeito,
que esse excesso seja de natureza mórbida. O que é normal é simplesmente que haja uma criminalidade, contanto
< 1ue esta atinja e não ultrapasse, para cada tipo social, certo nível que talvez não seja impossível fixar de acordo
('0111 as regras precedentesio.
Eis-nos em presença de uma conclusão, aparenterm·nte, bastante paradoxal. Pois não devemos iludir-nos
quanto a ela. Classificar o crime entre os fenômenos de
68
AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO
sociologia normal é não apenas dizer que ele é um fenômeno inevitável ainda que lastimável, devido à incorrigível maldade dos homens; é afirmar que ele é um fator da
saúde pública, uma parte integrante de toda sociedade sadia. Esse resultado, à primeira vista, é bastante surpreendente para que tenha desconcertado a nós próprios e por
muito tempo. Entretanto, uma vez dominada essa primeira impressão de surpresa, não é difícil encontrar as razões
que explicam essa normalidade e, ao mesmo tempo, a
confirmam.
Em primeiro lugar, o crime é normal porque uma sociedade que dele estivesse isenta seria inteiramente impossível.
O crime, conforme mostramos alhures, consiste num
ato que ofende certos sentimentos coletivos dotados de
uma energia e de uma clareza particulares. Para que, numa
sociedade dada, os atos reputados criminosos pudessem
deixar de ser cometidos, seria preciso que os sentimentos
que eles ferem se verificassem em todas as consciências individuais sem exceção e com o grau de força necessário
para conter os sentimentos contrários. Ora, supondo que
essa condição pudesse efetivamente ser realizada, nem por
isso o crime desapareceria, ele simplesmente mudaria de
forma; pois a causa mesma que esgotaria assim as fontes
da criminalidade abriria imediatamente novas.
Com efeito, para que os sentimentos coletivos protegidos pelo direito penal de um povo, num momento determinado de sua história, consigam penetrar nas consciências que lhes eram então fechadas ou ter mais influência
lá onde não tinham bastante, é preciso que eles adquiram
uma intensidade superior ã que possuíam até então. É
preciso que a comunidade como um todo os sinta com
mais ardor; pois eles não podem obter de outra fonte a
força maior que lhes permite impor-se aos indivíduos que
lJJSTTNÇÀO ENIRE NORil!fAL E PATOLÓGICO
69
até então lhes eram mais refratários. Para que os assassinos desapareçam, é preciso que o horror do sangue derramado torne-se maior naquelas camadas sociais em que
se recrutam os assassinos; mas, para tanto, é preciso que
ele se torne maior em toda a extensão da sociedade. Aliás,
a ausência mesma do crime contribuiria diretamente para
produzir esse resultado; pois um sentimento mostra-se
muito mais respeitável quando ele é sempre e uniformemente respeitado. Mas não se percebe que esses estados
fortes da consciência comum não podem ser assim reforçados sem que os estados mais fracos, cuja violação dava
antes origem apenas a faltas puramente morais, sejam
igualmente reforçados; pois os segundos são apenas o
prolongamento, a forma atenuada dos primeiros. Assim, o
roubo e a simples indelicadeza não ofendem senão um
único e mesmo sentimento altruísta: o respeito à propriedade de outrem. Só que esse mesmo sentimento é ofendido de modo mais fraco por um desses atos do que pelo
outro; e como, além disso, ele não tem na média das
consciências uma intensidade suficiente para sentir viva mente a mais leve dessas duas ofensas, esta será objeto
de uma maior tolerância. Eis por que se censura simplesmente o indelicado, ao passo que o ladrão é punido. Mas
se o mesmo sentimento tornar-se mais forte, a ponto de
fazer calar em todas as consciências aquilo que inclina o
homem ao roubo, ele se tornará mais sensível às lesões
que, até então, apenas o tocavam levemente; ele reagirá
portanto com mais firmeza contra elas; tais lesões serão
<>bjeto de uma reprovação mais enérgica que fará passar
;tlgumas delas, de simples faltas morais que eram, ao estado de crimes. Por exemplo, os contratos indelicados ou ·
indelicadamente executados, que implicam apenas uma
reprovação pública ou reparações civis, se tornarão delitos. Imaginem uma sociedade de santos, um claustro
70
AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO
exemplar e perfeito. Os crimes propriamente ditos nela
serão desconhecidos; mas as faltas que parecem veniais
ao vulgo causarão o mesmo escândalo que produz o delito ordinário nas consciências ordinárias. Portanto, se essa
sociedade estiver armada do poder de julgar e de punir,
ela qualificará esses atos de criminosos e os tratará como
tais. É pela mesma razão que o homem honesto julga suas
menores fraquezas morais com uma severidade que a
multidão reserva aos atos verdadeiramente delituosos.
Outrora, as violências contra as pessoas eram mais freqüentes do que hoje, porque o respeito pela dignidade
individual era menor. Como este aumentou, esses crimes
tornaram-se mais raros; em compensação, muitos atos
que lesavam esse sentimento entraram no direito penal,
no qual primitivamente não constavam li.
Talvez se pergunte, para esgotar todas as hipóteses
logicamente possíveis, por que essa unanimidade não se
estenderia a todos os sentimentos coletivos sem exceção;
por que mesmo os mais fracos não adquiririam suficiente
energia para prevenir qualquer dissidência. A consciência
moral da sociedade se manifestaria por inteiro em todos
os indivíduos e com uma vitalidade suficiente para impedir todo ato que a ofendesse, tanto as faltas puramente
morais como os crimes. Mas uma uniformidade tão universal e tão absoluta é radicalmente impossível; pois o
meio físico imediato no qual cada um de nós se encontra,
os antecendentes hereditários, as influências sociais de
que dependemos variam de um indivíduo a outro e, por
.conseguinte, diversificam as consciências. Não é possível
que todos se assemelhem nesse ponto, pela simples razão
de que cada um tem seu organismo próprio, e esses organismos ocupam porções diferentes do espaço. Por isso,
mesmo nos povos inferiores, nos quais a originalidade individual é muito pouco desenvolvida, ela não chega a ser
DIS11NÇÀO ENTRE NORMAL E PATOLÓGICO
71
nula. Assim, como não pode haver sociedade em que os
indivíduos não divirjam em maior ou menor grau do tipo
coletivo, é também inevitável que, entre essas divergências,
haja algumas que apresentem um caráter criminoso. Pois
o que confere a elas esse caráter não é sua importância
intrínseca, mas a que lhes atribui a consciência comum.
Se esta é mais forte, se tem suficiente autoridade para tornar essas divergências muito fracas em valor absoluto, ela
será também mais sensível, mais exigente, e, reagindo
contra os menores desvios com a energia que manifesta
alhures apenas contra dissidências mais consideráveis, irá
atribuir-lhes a mesma gravidade, ou seja, irá marcá-los como criminosos.
O crime é portanto necessário; ele está ligado às condições fundamentais de toda vida social e, por isso mesmo, é útil; pois as condições de que ele é solidário são
elas mesmas indispensáveis à evolução normal da moral e
do direito.
De fato, não é mais possível hoje contestar que não
apenas o direito e a moral variam de um tipo social a outro, como também mudam em relação a um mesmo tipo,
se as condições da existência coletiva se modificam. Mas,
para que essas transformações sejam possíveis, é preciso
que os sentimentos coletivos que estão na base da moral
não sejam refratários à mudança, que tenham, portanto,
apenas uma energia moderada. Se fossem demasiado fortes, deixariam de ser plásticos. Todo arranjo, com efeito, é
um obstáculo a um novo arranjo, e isso tanto mais quanto
mais sólido for o arranjo primitivo. Quanto mais fortemente pronunciada for uma estrutura, mais resistência ela oporá a qualquer modificação, e isso vale tanto para os arran•
jos funcionais como para os anatômicos. Ora, se não houvesse crimes, essa condição não seria preenchida; pois tal
hipótese supõe que os sentimentos coletivos teriam chega-
72
AS REGRAS DO MÉTODO SOC10LÓGJCO
do a um grau de intensidade sem exemplo na história. Nada é bom indefinidamente e sem medida. É preciso que a
autoridade que a consciência moral possui não seja excessiva; caso contrário, ninguém ousaria contestá-la e muito
facilmente ela se cristalizaria numa forma imutável. Para
que ela possa evoluir, é preciso que a originalidade individual possa vir à luz; ora, para que a do idealista que sonha
superar seu século possa se manifestar, é preciso que a do
criminoso, que está abaixo de seu tempo, seja possível.
Uma não existe sem a outra.
E não é tudo. Além dessa utilidade indireta, o próprio
crime pode desempenhar um papel útil nessa evolução.
Não apenas ele implica que o caminho permanece aberto
às mudanças necessárias, como também, em certos casos,
prepara diretamente essas mudanças. Não apenas, lá onde ele existe, os sentimentos coletivos encontram-se no
estado de maleabilidade necessário para adquirir uma forma nova, como ele também contribui às vezes para predeterminar a forma que esses sentimentos irão tomar.
Quantas vezes, com efeito, o crime não é senão uma antecipação da moral por vir, um encaminhamento em direção ao que será! De acordo com o direito ateniense, Sócrates era um criminoso e sua condenação simplesmente
justa. No entanto seu crime, a saber, a independência de
seu pensamento, era útil, não somente à humanidade,
mas à sua pátria. Pois ele servia para preparar uma moral
e uma fé novas, das quais os atenienses tinham então necessidade, porque as tradições segundo as quais tinham
vivido até então não mais estavam em harmonia com suas
condições de existência. Ora, o caso de Sócrates não é
isolado; ele se reproduz periodicamente na história. A liberdade de pensar que desfrutamos atualmente jamais
poderia ter sido proclamada se as regras que a proibiam
não tivessem sido violadas antes de serem solenemente
nIS77NÇÃO ENTRE NORMAL E PA1DLÓGJCO
73
abolidas. Entretanto, naquele momento, essa violação era
um crime, já que era uma ofensa a sentimentos ainda muito fortes na generalidade das consciências. Todavia esse
crime era útil, pois preludiava transformações que, dia
após dia, tornavam-se mais necessárias. A livre filosofia
teve por precursores os heréticos de todo tipo que o braço secular justamente perseguiu durante toda a Idade Média, até as vésperas dos tempos contemporâneos.
Desse ponto de vista, os fatos fundamentais da criminologia apresentam-se a nós sob um aspecto de todo novo. Contrariamente às idéias correntes, o criminoso não
mais aparece como um ser radicalmente insociável, como
uma espécie de elemento parasitário, corpo estranho e
inassimilável, introduzido no seio da sociedade 12 ; ele é um
agente regular da vida social. O crime, por sua vez, não
deve mais ser concebido como um mal que não possa ser
contido dentro de limites demasiado estreitos; mas, longe
de haver motivo para nos felicitarmos quando lhe ocorre
descer muito sensivelmente abaixo do nível ordinário, podemos estar certos de que esse progresso aparente é ao
mesmo tempo contemporâneo e solidário de alguma perturbação social. Assim, o número de agressões e de ferimentos jamais cai tanto como em tempos de penúria u. Ao
mesmo tempo e por via indireta, a teoria da pena se mostra renovada, ou melhor, por renovar. Com efeito, se o crime é uma doença, a pena é seu remédio e não pode ser
concebida de outro modo; assim, todas as discussões que
da suscita têm por objeto saber o que ela deve ser para
cumprir seu papel de remédio. Mas, se o crime nada tem
de mórbido, a pena não poderia ter por objeto curá-lo e
Nセオ。@
verdadeira função deve ser buscada em outra parte.
Portanto as regras precedentemente enunciadas estão
longe de terem como única razão de ser a satisfação de
um formalismo lógico sem grande utilidade, uma vez que,
74
AS REGRAS DO MÉTODO SOC70LÓGICO
ao contrário, conforme as apliquemos ou não, os fatos sociais mais essenciais mudam totalmente de caráter. Se esse exemplo, aliás, é particularmente demonstrativo - e
por isso julgamos que era preciso nos determos nele -, há
muitos outros que poderiam ser utilmente citados. Não
existe sociedade na qual não seja de regra que a pena deve ser proporcional ao delito; entretanto, para a escola
italiana, esse princípio não passa de uma invenção de juristas, desprovida de qualquer soliclez14 Inclusive, para
esses criminologistas, é a instituição penal inteira, tal como funcionou até o presente em todos os povos conhecidos, que é um fenômeno antinatural. Já vimos que, para o
sr. Garofalo, a criminalidade específica às sociedades inferiores nada tem de natural. Para os socialistas, é a organização capitalista, apesar de sua generalidade, que constitui um desvio elo estado normal, produzido pela violência
e o artifício. Para Spencer, ao contrário, é nossa centralização administrativa, é a extensão dos poderes governamentais o vício radical ele nossas sociedades, e isso apesar
de ambas progredirem de maneira mais regular e universal à medida que avançamos na história. Não cremos que
em nenhum desses casos se aceite como critério sistemático decidir do caráter normal ou anormal elos fatos sociais
com base no grau ele generalidade deles. É sempre à força ele muita dialética que essas questões são decididas.
Entretanto, não respeitado esse critério, incorre-se
não somente em confusões e em erros parciais, como os
que acabamos de lembrar, mas a ciência mesma torna-se
impossível. Com efeito, esta tem por objeto imediato o estudo do tipo normal; ora, se os fatos mais gerais podem
ser mórbidos, é possível que o tipo normal jamais tenha
existido nos fatos. Sendo assim, ele que serve estudá-los?
Eles podem apenas confirmar nossos preconceitos e enraizar nossos erros, já que deles resultam. Se a pena, se a
! !IST!iVÇÀO ENTRE NORMAL E PA TOLÓG!CO
75
responsabilidade, tais como existem na história, não são
senão um produto ela ignorância e da barbárie, ele que
adianta dedicar-se a conhecê-las para determinar suas formas normais? Assim, o espírito é levado a afastar-se de
uma realidade desde então sem interesse, voltando-se sohre si mesmo e buscando dentro ele si os materiais neces.s:trios para reconstruí-la. Para que a sociologia trate os fatos como coisas, é preciso que o sociólogo sinta a necessidade ele aprender com eles. Ora, como o objeto principal de toda ciência da vida, tanto individual como social,
C-, em suma, definir o estado normal, explicá-lo e distingui-lo ele seu contrário, se a normalidade nào acontecer
nas coisas mesmas, se, ao contrário, ela for um caráter
que imprimimos desde fora nestas ou que lhes recusamos
por razões quaisquer, acaba-se essa salutar dependência.
<) espírito se acha à vontade diante elo real, que nada de
muito importante tem a lhe ensinar; ele não mais é contido pela matéria à qual se aplica, uma vez que é ele, de
certo modo, que a determina. As diferentes regras que estabelecemos até o presente são portanto intimamente solitbrias. Para que a sociologia seja realmente uma ciência
de coisas, é preciso que a generalidade dos fenômenos
.seja tomada como critério de sua normalidade.
Nosso método, aliás, tem a vantagem de regular a
ZQセNᄋ¢ッ@
ao mesmo tempo que o pensamento. Se o desejável
1üo é objeto de observação, mas pode e deve ser determinado por uma espécie ele cálculo mental, nenhum limite,
por assim dizer, pode ser imposto às livres invenções da
imaginação em busca do melhor. Pois, como atribuir à perl't·ic,;ào um termo que ela não pode ultrapassar? Ela escapa,
por definição, a qualquer limite. O objetivo da humanidade·
rl'cua portanto ao infinito, desencorajando uns por seu
:11'astamento mesmo, estimulando e apaixonando outros
que, para dele se aproximar um pouco, aceleram o passo e
76
AS REGRAS DO MiTODO SOCIOLÓGICO
se precipitam nas revoluções. Escapamos desse dilema prático se o desejável for a saúde, e se a saúde for algo de definido e de dado nas coisas, pois o termo do esforço é dado e definido ao mesmo tempo. Não se trata mais de perseguir desesperadamente um fim que se afasta ã medida
que avançamos, mas de trabalhar com uma regular perseverança para manter o estado normal, para restabelecê-lo
se for perturbado, para redescobrir suas condições se elas
vierem a mudar. O dever do homem de Estado não é mais
impelir violentamente as sociedades para um ideal que lhe
parece sedutor, mas seu papel é o do médico: ele previne
a eclosão das doenças mediante uma boa higiene e, quando estas se manifestam, procura curá-lasl'i.
CAPÍTULO IV
REGRAS RELATIVAS À CONSTITUIÇÃO
DOS TIPOS SOCIAIS
Visto que um fato social só pode ser qualificado de
normal ou de anormal em relação a uma espécie social
determinada, o que precede implica que um ramo da sociologia é dedicado ã constituição dessas espécies e ã sua
classificação.
Essa noção de espécie social tem, aliás, a grande vantagem de nos fornecer um meio-termo entre as duas concepções contrárias da vida coletiva que por muito tempo
dividiram os espíritos: refiro-me ao nominalismo dos historiadores1 e ao realismo extremo dos filósofos. Para o
historiador, as sociedades constituem individualidades heterogêneas, incomparáveis entre si. Cada povo tem sua fisionomia, sua constituição específica, seu direito, sua moral, sua organização econômica que convêm só a ele, e
toda generalização é praticamente impossível. Para o filósofo, ao contrário, todos esses agrupamentos particulares,
que chamamos tribos, cidades, nações, não são mais que
combinações contingentes e provisórias sem realidade
própria. Apenas a humanidade é real e é dos atributos ge-
78
AS RHGRAS DO MÍffODO SOCIOLÓGICO
rais da natureza humana que decorre toda a evolução social. Para os primeiros, portanto, a história não é senão
uma seqüência de acontecimentos que se encadeiam sem
se reproduzir; para os segundos, esses mesmos aconteci- ·
mentas só têm valor e interesse como ilustração das leis
gerais que estão inscritas na constituição do homem e que
dominam todo o desenvolvimento histórico. Para aqueles,
o que é bom para uma sociedade não poderia aplicar-se
às outras. As condições do estado de saúde variam de um
povo a outro e não podem ser determinadas teoricamente; é uma questão de prática, de experiência, de tentativas. Para os outros, essas condições podem ser calculadas
de uma vez por todas e para o gênero humano inteiro.
Parecia, portanto, que a realidade social ou seria o objeto
de uma filosofia abstrata e vaga, ou de monografias puramente descritivas. Mas escapamos a essa alternativa tão
logo reconhecemos que, entre a multidão confusa das sociedades históricas e o conceito único, mas ideal, da humanidade, existem intermediários: são as espécies sociais.
Na idéia de espécie, com efeito, acham-se reunidas tanto
a unidade que toda pesquisa verdadeiramente científica
exige, como a diversidade que é dada nos fatos, já que a
espécie é a mesma em todos os indivíduos que *dela fazem parte* e, por outro lado, as espécies diferem entre si.
Continua sendo verdade que as instituições morais, jurídicas, econômicas, etc. são infinitamente variáveis, mas essas variações não são de natureza a não permitir nenhuma apreensão pelo pensamento científico.
Foi por ter desconhecido a existência de espécies sociais que Comte julgou poder representar o progresso das
sociedades humanas como idêntico ao de um povo único
"ao qual seriam idealmente referidas todas as modificações
*"a encarnam" (R.P, p. 599.)
NEGRAS RELA11VAS À CONS77TUJÇ'.4.0 DOS 77POS SOCIAIS
79
consecutivas observadas nas populações distintas" 2 • É que,
de fato, se existe apenas uma única espécie social, as sociedades particulares não podem diferir entre si a não ser em
graus, conforme apresentem mais ou menos completamente os traços constitutivos dessa espécie única, conforme *exprimam* mais ou menos perfeitamente a humanidade. Se, ao contrário, existem tipos sociais qualitativamente
distintos uns dos outros, não se poderá fazer que eles se
unam exatamente como as seções homogêneas de uma rela geométrica, por mais que os aproximemos. O desenvolvimento histórico perde deste modo a unidade ideal e simplista que lhe atribuíam; ele se fragmenta, por assim dizer,
numa infinidade de pedaços que, por diferirem especificamente uns dos outros, não poderiam ligar-se de maneira
contínua. A famosa metáfora de Pascal, retomada depois
por Comte, mostra-se assim desprovida de verdade.
Mas como fazer para constituir tais espécies?
À primeira vista, pode parecer que não haja outra
1llaneira de proceder senão estudar cada sociedade em
particular, fazer dela uma monografia tão exata e tão
(·e impleta quanto possível, a seguir comparar todas essas
1llonografias entre si, ver em que ponto elas concordam e
(·m que ponto divergem e, então, conforme a importância
n·lativa dessas similitudes e dessas divergências, classifi( ·:1r os povos em grupos semelhantes ou diferentes. Em
.qmio a esse método, faz-se notar que ele só é admissível
1n1ma ciência de observação. A espécie, com efeito, é o
ョᄋNセオュッ@
dos indivíduos; portanto, como constituí-la se não
' "encarnem" (R.P, p. 599.)
80
AS REGRAS DO MÉ'TODO SOCIOLÓGICO
se começa por descrever cada um deles e por descrevê-lo
inteiramente? Acaso não é uma regra a de somente elevarse ao geral após se ter observado o particular e todo o
particular? Foi por essa razão que se quis às vezes adiar a
sociologia até uma época indefinidamente remota, em que
a história, no estudo que realiza das sociedades particulares, terá chegado a resultados suficientemente objetivos e
definidos para poderem ser proveitosamente comparados.
Mas, em realidade, essa cautela só aparentemente é
científica. É inexato, com efeito, que a ciência só possa instituir leis após ter passado em revista todos os fatos que
elas exprimem, ou só formar gêneros após ter descrito, em
sua integralidade, os indivíduos que eles compreendem. O
verdadeiro método experimental tende, antes, a substituir
os fatos vulgares - que só são demonstrativos com a condição de serem numerosos e que, portanto, permitem apenas
conclusões sempre suspeitas - por fatos decisivos ou cruciais, como dizia Bacon\ que, por si mesmos e independentemente de seu número, têm um valor e um interesse
científicos. É sobretudo necessário proceder deste modo
quando se trata de constituir gêneros e espécies. Pois fazer
o inventário de todas as características de um indivíduo é
um problema insolúvel. Todo indivíduo é um infinito e o
infinito não pode ser esgotado. Iremos nos ater às propriedades mais essenciais? Mas com base em que princípio faremos a triagem? Para isso é preciso um critério que supere
o indivíduo e que as monografias mais bem-feitas não poderiam, portanto, nos fornecer. Mesmo sem levar as coisas
a esse rigor, pode-se prever que, quanto mais numerosos
os caracteres que servirão de base à classificação, tanto
mais difícil será que as diversas maneiras como eles se
combinam nos casos particulares apresentem semelhanças
bastante claras e diferenças bastante nítidas para permitir a
constituição de gmpos e subgmpos definidos.
REGRAS RfiA1lVAS À CONSTTTUIÇÀO DOS TIPOS SOCIAIS
81
Mas ainda que uma classificação fosse possível com
base nesse método, ela teria o grande defeito de não prestar os serviços que são sua razão de ser. Com efeito, ela
deve, antes de tudo, ter por objeto abreviar o trabalho científico ao substituir a multiplicidade indefinida dos indivíduos por um número restrito de tipos. Mas ela perde essa
vantagem se esses tipos só forem constituídos após todos
os indivíduos terem sido passados em revista e analisados
inteiramente. Uma tal classificação não facilitará muito a
pesquisa, se não fizer mais que resumir as pesquisas já feitas. Ela só será verdadeiramente útil se nos permitir classificar outros caracteres que não aqueles que lhe servem de
base, se nos proporcionar quadros para os fatos futuros.
Seu papel é o de nos munir de pontos de referência aos
quais possamos relacionar outras observações que não
aquelas que nos forneceram esses próprios pontos de イ・セ@
ferência. Mas, para isso, é preciso que ela seja feita, não a
partir de um inventário completo de todos os caracteres
individuais, mas a partir de um pequeno número deles,
cuidadosamente escolhidos. Nessas condições, ela não
servirá apenas para pôr um pouco de ordem nos conhecimentos já obtidos; servirá para produzir outros. Ela poupar:1 muitos passos ao observador, porque irá guiá-lo. Assim,
uma vez estabelecida a classificação sobre esse princípio,
para saber se um fato é geral numa espécie, não será necessário ter observado todas as sociedades dessa espécie;
algumas serão suficientes. Inclusive, em muitos casos, bastará somente uma observação bem-feita, assim como uma
l'Xperiência bem conduzida é suficiente, muitas vezes, para o estabelecimento de uma lei.
Devemos portanto escolher para nossa classificação
l·aracteres particularmente essenciais. É verdade que não se
1l< >de conhecê-los a não ser que a explicação dos fatos es1l'ja suficientemente avançada. Essas duas partes da ciência
82
NI!< ;RAS REIA 77VAS À CONS71171!ÇÀO DOS 77POS SOCIAIS
AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO
sào solidárias e progridem uma através da outra. No entanto, mesmo sem avançar muito no estudo dos fatos, nào é
difícil conjeturar onde é preciso buscar as propriedades características dos tipos sociais. Sabemos, com efeito, que as
sociedades sào compostas de partes reunidas umas às outras. Já que a natureza de toda resultante depende necessariamente ela natureza, do número dos elementos componentes e de seu modo ele combinaçào, esses caracteres sào
evidentemente aqueles que devemos tomar por base, e veremos a seguir, com efeito, que é deles que dependem os
fatos gerais ela vida social. Por outro lado, como eles sào
ele ordem morfológica, poderíamos chamar Mm:fologia social a parte da sociologia que tem por tarefa constituir e
classificar os tipos sociais.
Pode-se inclusive precisar ainda mais o princípio
dessa classificaçào. Sabe-se, com efeito, que as partes
constitutivas de que é formada toda sociedade sào sociedades mais simples do que ela. Um povo é formado pela
reuniào de dois ou vários povos que o precederam. Portanto, se conhecêssemos a sociedade mais simples que
até hoje existiu, precisaríamos apenas, para fazer nossa
classificaçào, seguir a maneira como essa sociedade se
compõe consigo mesma e como seus compostos se compõem entre si.
II
Spencer compreendeu muito bem que a classificaçào
metódica elos tipos sociais não podia ter outro fundamento.
"Vimos, diz ele, que a evolução social começa por
pequenos agregados simples; que ela progride pela uniào
de alguns desses agregados em agregados maiores e que,
após se consolidarem, esses grupos se unem com outros
Nセ」ュ・ャィ。ョエウ@
83
a eles para formar agregados ainda maiores.
Nossa classificaçào deve portanto começar por sociedades
d:t primeira ordem, isto é, da mais simples." 4
Infelizmente, para pôr esse princípio em prática, seria
ire ciso começar por definir com precisào o que se enten1
(!e por sociedade simples. Ora, essa definiçào, nào apenas
.'ipcncer nào a dá, como também a considera mais ou menos impossível5. É que a simplicidade, tal corno ele a enlcnde, consiste essencialmente numa certa rudeza de organização. Ora, nào é fácil dizer com exatidão em que mo111ento a organização social é suficientemente rudimentar
para ser qualificada de simples; é uma questão de apreciado. Assim, a fórmula que ele oferece é tão vaga que ccmvém a todo tipo de sociedades. "Nada de melhor temos a
Lizer, diz ele, do que considerar corno sociedade simples
:tquela que forma um todo nào subordinado a outro e cuj:1s partes cooperam com ou sem centro regulador, tendo
l'll1 vista certos fins de interesse público."<> Mas há muitos
povos que satisfazem a essa condição. Disso resulta que
(·!e confunde, um pouco ao acaso, sob essa mesma rubric:t todas as sociedades menos civilizadas. Imagine-se o
qt:e pode ser, com semelhante ponto de partida, o resto
(!e sua classificação. Vemos aproximadas nela, na mais esp:1ntosa confusào, as sociedades mais diversas: os gregos
l ll nnéricos postos ao lado dos feudos do século X e abaixo
dos bechuanas, dos zulus e dos fijianos, a confederaçào
:ttcniense ao lado dos feudos da França elo século XIII e
.iliaixo dos iroqueses e dos araucanos.
A palavra simplicidade só tem sentido definido se
Nセゥァョヲ」。イ@
uma ausência completa ele partes. Por sociedade
Nセゥューャ・ウL@
portanto, deve-se entender toda sociedade que
1i:1o encerra outras, mais simples do que ela; que nào
.1penas está atualmente reduzida a um segmento único,
111as também que nào apresenta nenhum traço ele uma
84
AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO
segmentação anterior. A horda, tal como a definimos
alhures7 , corresponde exatamente a essa definição. Tratase de um agregado que não compreende e jamais compreendeu em seu seio nenhum outro agregado mais elementar, mas que se decompõe imediatamente em indivíduos. Estes não formam, no interior do grupo total, grupos especiais e diferentes do precedente; eles se justapõem
à maneira de átomos. Concebe-se que não possa haver
sociedade mais simples; esse é o protoplasma do reino
social e, conseqüentemente, a base natural de toda classificação.
É verdade que talvez não exista sociedade histórica
que corresponda exatamente a essa identificação; mas, tal
como mostramos no livro já citado, conhecemos uma
quantidade delas que são formadas, imediatamente e sem
outro intermediário, por uma repetição de hordas. Quando a horda se torna, assim, um segmento social em vez
de ser a sociedade inteira, ela chama-se clã; mas conserva
os mesmos traços constitutivos. O clã, com efeito, é um
agregado social que não se decompõe em nenhum outro,
mais restrito. Poderão talvez assinalar que, geralmente, lá
onde o observamos hoje, ele encerra uma pluralidade de
famílias particulares. Mas, em primeiro lugar, por razões
que não podemos desenvolver aqui, cremos que a formação desses pequenos grupos familiares é posterior ao clã;
além disso, essas famílias não constituem, para falar com
exatidão, segmentos sociais porque elas não são divisões
políticas. Onde quer que o encontremos, o clã constitui a
última divisão desse gênero. Em conseqüência, ainda que
não tivéssemos outros fatos para postular a existência da
horda - e eles existem, como teremos a· ocasião de expor
um dia -, a existência do clã, isto é, de sociedades formadas por uma reunião de hordas, nos autoriza a supor que
houve primeiramente sociedades mais simples que se re-
NfX;RAS RELAT!VAS À CONST/TTTIÇ'ÃO DOS T!POS SOCIAIS
85
duziam à horda propriamente dita e a fazer desta o tronco
de onde saíram todas as espécies sociais.
Uma vez estabelecida essa noção de horda ou sociedade de segmento único - seja ela concebida como uma
realidade histórica ou como um postulado da ciência -,
tem-se o ponto de apoio necessário para construir a escala completa dos tipos sociais. Iremos distinguir tantos tipos fundamentais quantas maneiras houver, para a horda,
de se combinar consigo mesma dando origem a sociedades novas, e, para estas, de se combinarem entre si. Encontraremos primeiramente agregados formados por uma
simples repetição de hordas ou de clãs (para dar-lhes seu
novo nome), sem que esses clãs estejam associados entre
si de maneira a formar grupos intermediários entre o grupo total que compreende a todos e cada um deles. Eles
l'stão simplesmente justapostos como os indivíduos da
horda. Encontram-se exemplos dessas sociedades, que
poderiam ser chamadas pulissegmentares simples, em certas tribos iroquesas e australianas. O arch, ou tribo da Caliília, tem o mesmo caráter; trata-se de uma reunião de
d;ls fixados em forma de aldeias. Muito provavelmente,
houve um momento na história em que a cúria romana e
;1 /ratria ateniense eram sociedades desse gênero. Acima
,.i.riam as sociedades formadas por uma reunião de socie<Ltdes da espécie precedente, isto é, as sociedades polis'''/!,mentares simplesmente compostas. Tal é o caráter da
<·< infederação iroquesa, daquela formada pela reunião das
tribos cabilas; o mesmo aconteceu, na origem, com cada
111na das três tribos primitivas cuja associação deu origem,
111:1is tarde, à cidade romana. Encontraríamos a seguir as
'"ciedades polissegmentares duplamente compostas, que
キセオャエ。ュ@
da justaposição ou da fusão de várias sociedades
1" >i isscgmentares simplesmente compostas. É o caso da
, idade, agregado de tribos, que são elas próprias agrega-
86
AS RHGRAS DO MÉTODO SOCWLÓGICO
dos de cúrias, que, por sua vez, se decompôem em gentes
ou clãs, e da tribo germânica, com seus condados, que se
subdividem em centenas, os quais, por sua vez, têm por
unidade última o clã transformado em aldeia.
Não precisamos desenvolver nem levar mais adiante
essas poucas indicaçôes, já que não é o caso de efetuar
aqui uma classificação das sociedades. Esse é um problema demasiado complexo para poder ser tratado assim, de
passagem; ele supôe, ao contrário, todo um conjunto de
longas e especiais pesquisas. Quisemos apenas, por alguns exemplos, precisar as idéias e mostrar como deve
ser aplicado o princípio do método. Inclusive não se deveria considerar o que precede como sendo uma classificação completa das sociedades inferiores. Simplificamos
um pouco as coisas para maior clareza. Supusemos, com
efeito, que cada tipo superior era formado por uma repetição de sociedades de um mesmo tipo, a saber, do tipo
imediatamente inferior. Ora, não é impossível que sociedades de espécies diferentes, situadas em diferentes níveis da árvore genealógica dos tipos sociais, se reúnam de
maneira a formar uma espécie nova. Sabe-se de pelo menos um caso: o Império romano, que compreendia em
seu interior povos das mais diversas naturezasH.
Mas, uma vez constituídos esses tipos, será preciso
distinguir em cada um deles variedades diferentes, conforme as sociedades segmentares, que servem para formar a
sociedade resultante, conservem uma certa individualidade, ou então, ao contrário, sejam absorvidas na massa total. Compreende-se, com efeito, que os fenômenos sociais
devem variar, não apenas segundo a natureza elos elementos componentes, mas segundo seu modo de composição;
eles devem sobretudo ser muito diferentes, conforme cada
um dos grupos parciais conserve sua vida local ou sejam
todos arrastados na vida geral, isto é, conforme estejam
tmc;RAS RF!A 71VAS À CONS7171J!ÇÀO DOS TIPOS SOC!A!S
87
mais ou menos estreitamente concentrados. Deveremos
portanto investigar se, num momento qualquer, se produz
uma coalescência completa desses segmentos. Reconheceremos que ela ocorre se a composição original da sociedade não mais afetar sua organização administrativa e política. Desse ponto de vista, a cidade distingue-se nitidamente
das tribos germânicas. Nestas últimas, a organização à base de clãs se manteve, embora apagada, até o término de
sua história, ao passo que, em Roma, em Atenas, as gentes
l' as yÉVll deixaram muito cedo de ser divisôes políticas
para se tornarem agrupamentos privados.
No interior dos lineamentos assim constituídos, poder-se-á buscar introduzir novas clistinçôes a partir elos caracteres morfológicos secundários. Entretanto, por razões
que daremos mais adiante, não julgamos muito possível
superar com proveito as divisões gerais que acabam de
ser indicadas. Além disso, não precisamos entrar nesses
detalhes, bastando-nos ter estabelecido o princípio de
classificação que pode ser assim enunciado: Começar-se-á
j)()r 」ャ。ウセヲゥイ@
as sociedades de acordo com o grau de
cumposiçào que elas apresentam, tomando por base a so-
ciedade pei:feitamente simples ou de segmento único; no
i11terior dessas classes, distinguir-se-ào variedades diferentes conforme se produza ou nào uma coalescência com/1/eta dos segmentos iniciais.
III
Essas regras respondem implicitamente a uma questão
o leitor talvez se tenha colocado ao nos ver falar de es1lL'cies sociais como se elas existissem, sem termos direta111cnte estabelecido sua existência. Essa prova está contida
1H> princípio mesmo do método que acaba de ser exposto.
e 1ue
88
AS REGRAS DO MfTODO SOC!OLÓGJCO
Acabamos de ver, com efeito, que as sociedades não
eram mais que combinações diferentes de uma mesma e
única sociedade original. Ora, um mesmo elemento só
pode compor-se consigo mesmo, e os compostos que dele resultam só podem, por sua vez, compor-se entre si, segundo um número de modos limitado, sobretudo quando
os elementos componentes são pouco numerosos, como
é o caso dos segmentos sociais. A gama de combinações
possíveis é portanto finita e, por conseguinte, a maior
parte delas, pelo menos, deve se repetir. Do que se conclui que há espécies sociais. É possível, aliás, que algumas
dessas combinações se produzam apenas uma vez. Isso
não impede que haja espécies. Apenas se dirá, nesse caso, que a espécie tem somente um indivíduo9.
Há portanto espécies sociais pela mesma razão que
existem espécies em biologia. Estas, com efeito, devem-se
ao fato de os organismos não serem senão combinações
variadas de uma mesma unidade anatômica. Há todavia,
desse ponto de vista, uma grande diferença entre os dois
reinos. Pois, entre os animais, um fator especial confere
aos caracteres específicos uma força de resistência que os
outros não têm: é a geração. Os primeiros, por serem comuns a toda a linhagem dos ascendentes, estão bem mais
fortemente enraizados no organismo. Portanto eles não se
deixam facilmente afetar pela ação dos meios individuais,
mas se mantêm idênticos a si mesmos, apesar da diversidade das circunstâncias exteriores. Há uma força interna
que os fixa a despeito das solicitações para variar que podem vir de fora: a força dos hábitos hereditários. Por isso
eles são claramente definidos e podem ser determinados
com precisão. No reino social, falta-lhes essa causa interna. Os caracteres não podem ser reforçados pela geração,
porque duram apenas uma geração. É de regra, com efeito, que as sociedades engendradas sejam de outra espécie
tax;RAs RELA11VAS À CONSTTTTJJÇ'ÀO DOS 11POS SOCIAIS
89
que as sociedades geradoras, porque estas últimas, ao se
combinarem, dão origem a arranjos inteiramente novos.
Somente a colonização poderia ser comparada a uma
geração por germinação; mesmo assim, para que a comparação seja exata, é preciso que o grupo de colonos não
se misture com uma sociedade de outra espécie ou de
outra variedade. Os atributos distintivos da espécie não
recebem portanto da hereditariedade um acréscimo de
!orça que lhe permita resistir às variações individuais.
l·:les se modificam e se matizam ao infinito sob a ação
das circunstâncias; assim, quando se quer atingi-los, depois de afastadas todas as variantes que os encobrem,
com freqüência se obtém apenas um resíduo bastante indeterminado. Essa indeterminação cresce naturalmente
unto mais quanto maior for a complexidade dos caracteres; pois, quanto mais complexa uma coisa, mais as partes
que a compõem podem formar combinações diferentes.
1)isso resulta que o tipo social específico, para além dos
l·aracteres mais gerais e mais simples, não apresenta contornos tão definidos como em biologia 10 .
CAPÍTULO V
REGRAS RELATIVAS À EXPLICAÇÀO
DOS FATOS SOCIAIS
Mas a constituição das espécies é antes de tudo um
meio de agrupar os fatos para facilitar sua interpretação; a
morfologia social é um encaminhamento para a parte realmente explicativa da ciência. Qual o método próprio desta última?
A maior parte dos sociólogos acredita ter explicado os
fenômenos uma vez que mostrou para que eles servem e
que papel desempenham. Raciocina-se como se tais fenômenos só existissem em função desse papel e não tivessem outra causa determinante além do sentimento, claro
ou confuso, dos serviços que são chamados a prestar. Por
isso julga-se ter dito tudo o que é necessário para torná-los
inteligíveis, quando se estabeleceu a realidade desses serviços e se mostrou a que necessidade social eles satisfazem. Assim Comte reduz toda a força progressiva da espé-
92
AS REGRAS DO MÉTODO SOC70LÓGICO
cie humana à tendência fundamental "que impele diretamente o homem a melhorar sempre e sob todos os aspectos
sua condiçào, seja ela qual for 1", e Spencer, à necessidade
de uma maior felicidade. É em virtude desse princípio que
ele explica a formação da sociedade pelas vantagens que
resultam da cooperação, a instituição do governo pela utilidade que há em regularizar a cooperação militar2, as
transformações pelas quais passou a família pela necessidade de conciliar cada vez mais perfeitamente os interesses dos pais, dos filhos e da sociedade.
Mas esse método confunde duas questões muito diferentes. Mostrar em que um fato é útil não é explicar como
ele surgiu nem como ele é o que é. Pois os usos a que
serve supõem as propriedades específicas que o caracterizam, mas não o criam. A necessidade que temos das coisas não pode fazer que elas sejam deste ou daquele jeito
セG@ セッョウ・アエュL@
não é essa necessidade que pode
tira-las do nada e conferir-lhes o ser. É a causas de um
outro gênero que elas devem sua existência. O sentimento que temos da utilidade que elas apresentam pode muito bem nos incitar a pôr em ação essas causas e a obter os
efeitos que elas implicam, não a suscitar do nada esses efeitos. Essa proposição é evidente quando se trata apenas
dos fenômenos materiais ou mesmo psicológicos. Ela
tampouco seria contestada em sociologia se os fatos sociais, por causa de sua extrema imaterialidade, não nos
parecessem, erradamente, destituídos de toda realidade
intrínseca. *Como neles se vêem apenas combinações puramente mentais, parece que devem se produzir espontaneamente tão logo os concebemos, desde que os consideremos úteis.* Mas, visto que cada um desses fatos é
uma força e essa força domina a nossa, visto que cada um
* Frase que não figura no texto inicial.
tax;RAs RELAT7VAS À EXPLICAÇÃO DOS FATOS SOOAJS
93
1em uma natureza que lhe é própria, ter desejo ou vontade deles não poderia ser suficiente para conferir-lhes exislência. É preciso também que forças capazes de produzir
essa força determinada, que naturezas capazes de produ1.i r essa natureza especial, sejam dadas. Somente em tal
condição o fato social será possível. Para reanimar o espírito da família onde ele se acha enfraquecido, não basta
que todos compreendam as vantagens disso; é preciso fa1.er agir diretamente as causas que são as únicas capazes
de engendrá-lo. Para devolver a um governo a autoridade
que lhe é necessária, não basta sentir a necessidade disso;
0 preciso recorrer às únicas fontes de que deriva toda autoridade, ou seja, constituir tradições, um espírito comum,
etc., etc.; para tanto, é preciso também remontar mais acima na cadeia das causas e dos efeitos, até se encontrar
um ponto em que a ação do homem possa se inserir eficazmente.
O que mostra hem a dualidade dessas duas ordens
de pesquisas é que um fato pode existir sem servir a nada, seja porque jamais esteve ajustado a algum fim vital,
seja porque, após ter sido útil, perdeu toda utilidade e
continuou a existir pela simples força do hábito. Com
efeito há bem mais sobrevivências na sociedade do que
no ッイセ。ョゥウュN@
Há casos, inclusive, em que uma prática
ou uma instituição social mudam de funções sem por isso mudar de natureza. A regra is pater est quem justae
1zuptiae declarant [é pai aquele que as núpcias indicam]
permaneceu materialmente em nosso Código, tal como
L'xistia no velho direito romano. Mas, se essa regra tinha
então por objeto salvaguardar os direitos de propriedade
do pai sobre os filhos provenientes ela esposa legítima, é
antes o direito dos filhos que ela protege hoje. O juramento começou por ser uma espécie de prova judiciária,
para tornar-se apenas uma forma solene e imponente elo
94
AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO
testemunho. Os dogmas religiosos do cristianismo continuam os mesmos há séculos; mas o papel que desempenham em nossas sociedades modernas não é mais o mesmo que na Idade Média. É assim, ainda, que as palavras
servem para exprimir idéias novas sem que sua contextura se modifique. De resto, é uma proposição verdadeira
tanto em sociologia como em biologia que o órgão é independente da função, ou seja, que pode servir a fins diferentes embora permaneça o mesmo. Portanto, as causas que o fazem existir são independentes dos fins aos
quais ele serve.
Não queremos dizer, aliás, que as tendências, as necessidades, os desejos dos homens jamais intervenham,
de maneira ativa, na evolução social. *Ao contrário, certamente lhes é possível, conforme a maneira como agem
sobre as condiçc)es ele que depende um fato, acelerar ou
conter o desenvolvimento deste. Só que, além de não poderem, em caso nenhum, tirar alguma coisa do nada, sua
própria intervenção, sejam quais forem os efeitos dela, só
pode ocorrer em virtude de causas eficientes.* De fato,
mesmo nessa medida restrita, uma tendência só pode
concorrer para a produção de um fenômeno novo se ela
própria for nova, quer se tenha constituído a partir ele zero, quer seja devida a alguma transformação de uma tendência anterior. Pois, a menos que se postule uma harmonia preestabelecida verdadeiramente providencial, não Sl'
poderia admitir que, desde a origem, o homem trouxesSl'
em si, em estado virtual, mas inteiramente prontas para
despertar com o concurso elas circunstâncias, t''odas as
• "Se eles não podem tirar alguma coisa do nada, lhes é possiwl,
ao agirem sobre as condições de que depende um fato, acell'rar 011
conter o desenvolvimento dele. Só que essa própria intervençào on irl't'
em vi1tude de causas eficientes." (Revue philosophique, tomo XXXVlll,
julho a dl'zemhro de 1894, p. 16.)
NEGRAS RELA77VAS À EXPLICAÇÃO DOS FATOS SOCIAIS
95
tendências cuja oportunidade haveria de se fazer sentir na
seqüência da evolução. Ora, uma tendência é também
uma coisa; ela não pode portanto se constituir nem se
modificar pelo simples fato de a julgarmos útil. É uma forc,;a que tem sua natureza própria; para que essa natureza
Nセ・ェ。@
suscitada ou alterada, não basta que nela encontremos alguma vantagem. *Para determinar tais mudanças, é
preciso que atuem causas que as impliquem fisicamente.*
Por exemplo, explicamos os progressos constantes da
divisão do trabalho social ao mostrar que eles são necessários para que o homem possa se manter nas condições novas de existência nas quais se vê colocado à medida que
:1vança na história; atribuímos portanto a essa tendência,
que muito impropriamente é chamada de instinto de conNセャGイカ。 ̄ッL@
um papel importante em nossa explicação. Mas,
l'lll primeiro lugar, ela não poderia por si só explicar a espL'cialização, mesmo a mais rudimentar. Pois ela nada pode, se as condições de que depende esse fenômeno não
エGNセゥカ・イュ@
já realizadas, isto é, se as diferenças individuais
11:!0 tiverem aumentado suficientemente em conseqüência
da indeterminação progressiva da consciência comum e
d;1s influências hereditáriasó. Inclusive foi preciso que adi1·is;lo do trabalho já tivesse começado a existir para que
セエオ@
utilidade fosse percebida e sua necessidade se fizesse
セャGョエゥイ[@
e somente o desenvolvimento elas divergências in(lividuais, ao implicar uma maior diversidade de gostos e
dl · a pticlões, haveria necessariamente de produzir esse pri111l'iro resultado. Além disso, não foi por si mesmo e sem
'.1t1sa que o instinto de conservação veio fecundar esse
11ri111ciro germe de especialização. Se ele se orientou e nos
• "Mas é preciso algo hem diferente da representação dos
.,,."·iro., que elas podem prestar para determinar tais mudanças." (RP.,
I'
i(>.)
AS REGRAS DO MJÓTODO SOG10LÓGJCO
orientou nesse novo caminho, foi em primeiro lugar porque o caminho que ele seguia e nos fazia seguir anteriormente se viu como que barrado, pois a intensidade maior
da luta, devida à maior condensação das sociedades, tornou cada vez mais difícil a sobrevivência dos indivíduos
que continuavam a se dedicar a tarefas gerais. Foi assim
necessário mudar de direção. Por outro lado, se esse instinto faz uma volta e virou principalmente nossa atividade,
no sentido de uma divisão do trabalho sempre mais desenvolvida, é porque esse era também o sentido da menor
resistência. As outras soluções possíveis eram a emigração,
o suicídio, o crime. Ora, na média dos casos, os laços que
nos ligam a nosso país, à vida, a simpatia que temos por
nossos semelhantes, são sentimentos mais fortes e mais resistentes que os hábitos capazes de nos afastar de uma especialização mais estreita. São esses últimos portanto que
haveriam necessariamente de ceder a cada nova arremetida. Assim, não se cai, nem mesmo parcialmente, no finalismo pelo fato de se aceitar dar um lugar às necessidades
humanas nas explicações sociológicas. Pois estas só podem ter influência sobre a evolução social se elas próprias
evoluírem, e as mudanças que elas atravessam só podem
ser explicadas por causas que nada têm de final.
Mas o que é mais convincente ainda que as considerações que precedem é a prática mesma dos fatos sociais.
Lá onde reina o finalismo, reina também uma contingência maior ou menor; pois não existem fins, e muito menos
meios, que se imponham necessariamente a todos os homens, ainda que os suponhamos situados nas mesmas circunstâncias. Sendo dado um mesmo ambiente, cada indivíduo, conforme seu humor, adapta-se a ele à sua maneira, que ele prefere a qualquer outra. Um procurará modificá-lo para colocá-lo em harmonia com suas necessidades; outro preferirá modificar a si mesmo e moderar sew1
REGRAS RELATIVAS À EXPLICAÇÃO DOS M70S SOCIAIS
97
desejos. Para chegar a um mesmo objetivo, quantos caminhos podem ser e são efetivamente seguidos! Portanto, se
fosse verdade que o desenvolvimento histórico se fez em
vista de fins claramente ou obscuramente sentidos, os fatos sociais deveriam apresentar a mais infinita diversidade, e qualquer comparação haveria de ser quase impossível. Ora, o contrário é que é a verdade. Claro que os
acontecimentos exteriores, cuja trama constitui a parte superficial da vida social, variam de um povo a outro. Mas é
assim que cada indivíduo tem sua história, embora as bases da organização física e moral sejam as mesmas em todos. Na verdade, quando entramos um pouco em contato
com os fenômenos sociais, surpreendemo-nos, ao contrário, com a espantosa regularidade com que estes se reproduzem nas mesmas circunstâncias. Mesmo as práticas
mais minuciosas e aparentemente mais pueris repetem-se
com a mais espantosa uniformidade. Uma cerimônia nupcial que parece puramente simbólica, como o rapto da
noiva, verifica-se exatamente em toda parte em que há
certo tipo familiar, ligado ele próprio a toda uma organização política. Os costumes mais bizarros, como a couvade, o levirato, a exogamia, etc., observam-se nos povos
mais diversos e sào sintomáticos de certo estado social. O
direito de testar aparece numa fase determinada da história e, a partir das restriçôes mais ou menos consideráveis
que o limitam, pode-se dizer em que momento da evolu,·;1o social nos encontramos. Seria fácil multiplicar os
l'xemplos. Ora, essa generalidade das formas coletivas seria inexplicável se as causas finais tivessem em sociologia
:1 preponderância que se atribui a elas.
Portanto, quando se procura explicar um fenômeno·
é preciso pesquisar separadamente a causa eficiente
o produz e a função que ele cumpre. Servimo-nos da
sr icial,
1111e
p:ilavra função de preferência às palavras fim ou objetivo,
98
AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO
precisamente porque os fenômenos sociais não existem
de modo geral, tendo em vista os resultados úteis que ーイッセ@
duzem. O que é preciso determinar é se há correspondência entre o fato considerado e as necessidades gerais cio
organismo social, e em que consiste essa correspondência,
sem se preocupar em saber se ela foi intencional ou não.
Todas as questões ele intenção, aliás, são demasiado subjetivas para poderem ser tratadas cientificamente.
Essas duas ordens de problemas não apenas devem
ser separadas, mas convém, em geral, tratar a primeira antes da セ・ァオョ、。N@
Esta ordem, com efeito, corresponde à dos
fatos. E natural investigar a causa de um fenômeno antes
de tentar determinar seus efeitos. Esse método é ainda
mais lógico porquanto a primeira questão, uma vez resolvida, ajudará a resolver a segunda. De fato, o laço de solidariedade que une a causa ao efeito tem um caráter de reciprocidade que não foi suficientemente reconhecido. Certamente o efeito não pode existir sem sua causa mas esta
por sua vez, tem necessidade de seu efeito. É dela que セ@
efeito tira sua energia, mas ele também lha restitui eventualmente e, em vista disso, não pode desaparecer sem que
ela disso se ressinta4. Por exemplo, a reação social que
constitui a pena é devida à intensidade dos sentimentos
coletivos que o crime ofende; mas, por outro lado, ela tem
por função útil manter esses sentimentos no mesmo grau
de intensidade, pois estes não tardariam a se debilitar se as
ofensas que sofrem não fossem castigadas'. Do mesmo
modo, à medida que o meio social torna-se mais complexo e mais móvel, as tradições e as crenças estabelecidas
são abaladas, adquirem um caráter mais indeterminado e
mais flexível, e as faculdades de reflexão se desenvolvem·
mas essas mesmas faculdades são indispensáveis para 。セ@
sociedades e os indivíduos se adaptarem a um meio mais
móvel e mais complexo 6 . À medida que os homens são
!<HGRAS RELAT7VAS À EXPLICAÇÀO DOS FATOS SOCIAIS
99
obrigados a fornecer um trabalho mais intenso, os produtos desse trabalho tornam-se mais numerosos e de melhor
qualidade; mas esses produtos mais abundantes e melhores são necessários para reparar o desgaste ocasionado
por esse trabalho mais consideráve17. Assim, longe de a
causa dos fenômenos sociais consistir numa antecipação
mental da função que eles são chamados a desempenhar,
essa função consiste, ao contrário, pelo menos num bom
número de casos, em manter a causa preexistente da qual
des derivam; *portanto, descobriremos mais facilmente a
primeira se a segunda já for conhecida*.
Mas, ainda que só em segundo lugar devamos proceder à determinação da função, ela não deixa de ser necessária para que a explicação do fenômeno seja completa.
C:om efeito, se a utilidade do fato não é aquilo que o faz
existir, em geral é preciso que ele seja útil para poder se
manter. Pois, para ser prejudicial, é suficiente que ele não
tenha serventia, uma vez que, nesse caso, ele custa sem
produzir benefício algum. Portanto, se a generalidade dos
fenômenos sociais tivesse esse caráter parasitário, o orçamento elo organismo estaria em déficit, a vida social seria
impossível. Em conseqüência, para proporcionar desta
uma compreensão satisfatória, é necessário mostrar como
e >s fenômenos que formam sua substância concorrem entre si, ele maneira a colocar a sociedade em harmonia
consigo mesma e com o exterior. Certamente, a fórmula
11sual, que define a vida como uma correspondência entre
< > meio interno e o meio externo, é apenas aproximada;
rm entanto, ela é verdadeira em geral, e portanto, para
l'Xplicar um fato ele ordem vital, não basta explicar a cauNセ。@
da qual ele depende, é preciso também, ao menos na
rnaior parte dos casos, encontrar a parte que lhe cabe no
t ·stahelecimento dessa harmonia geral.
• Frase que não figura no texto inicial.
100
AS REGRAS DO MÍ"1DDO SOCIOLÓGICO
II
Distinguidas essas duas questões, devemos determinar o método pelo qual elas devem ser resolvidas.
Ao mesmo tempo que é finalista, o método seguido
geralmente pelos sociólogos é essencialmente psicológico. Essas duas tendências são solidárias uma da outra. De
fato, se a sociedade não é senão um sistema de meios instituídos pelos homens tendo em vista certos fins, esses
fins só podem ser individuais; pois, antes da sociedade,
não podia haver senão indivíduos. É portanto do indivíduo que emanam as idéias e as necessidades que determinaram a formação das sociedades, e, se é dele que tudo procede, é necessariamente por ele que tudo deve se
explicar. Aliás, não há nada na sociedade senão consciências particulares; é nestas últimas portanto que se acha a
fonte de toda a evolução social. Por conseguinte, as leis
sociológicas só poderão ser um corolário das leis mais gerais da psicologia; a explicação suprema da vida coletiva
consistirá em mostrar como ela decorre da natureza humana em geral, seja por dedução direta e sem observação
prévia, seja por associação à natureza humana depois de
feita a observação.
Esses termos são mais ou menos textualmente os que
Augusto Comte utiliza para caracterizar seu método. "Uma
vez, diz ele, que o fenômeno social, concebido em totalidade, não é, no fundo, senão um simples desenvolvimento
da humanidade, sem nenhuma criação de faculdades
quaisquer, tal como estabeleci anteriormente, todas as
disposições efetivas que a observação sociológica puder
sucessivamente revelar deverão portanto se verificar, pelo
menos em germe, nesse tipo primordial que a biologia
construiu de antemão para a sociologia."s É que o fato
dominante da vida social, segundo ele, é o progresso e,
REGRAS RELAT7VASÀ EXPLICAÇÀO DOS FATOS SOCIAIS
101
por outro lado, o progresso depende de um fator exclusivamente psíquico, a saber, a tendência que leva o homem
a desenvolver cada vez mais sua natureza. Os fatos sociais
derivariam inclusive tão imediatamente da natureza humana que, nas primeiras fases da história, poderiam ser
diretamente deduzidos sem necessidade de recorrer ã observação9. É verdade que, como Comte reconhece, é impossível aplicar esse método dedutivo aos períodos mais
avançados da evolução. Mas essa impossibilidade é puramente prática. Deve-se ao fato de a distância entre o ponto de partida e o ponto de chegada ser muito grande para
que o espírito humano, se resolvesse percorrê-la sem
guia, não corresse o risco de se extraviar 10 . Mas a relação
entre as leis fundamentais da natureza humana e os resultados últimos do progresso não deixa de ser analítica. As
formas mais complexas da civilização não são senão vida
psíquica desenvolvida. Assim, ainda que as teorias da psicologia não sejam suficientes como premissas ao raciocínio sociológico, elas são a pedra de toque capaz de provar sozinha a validade das proposições indutivamente estabelecidas. "Nenhuma lei de sucessão social, diz Comte,
indicada pelo método histórico, mesmo com toda a autoridade possível, deverá ser finalmente admitida senão
após ter sido racionalmente ligada, de uma maneira direta
ou indireta, mas sempre incontestável, ã teoria positiva da
natureza humana."11 Portanto é sempre a psicologia que
terá a última palavra.
Tal é igualmente o método seguido por Spencer. Segundo ele, os dois fatores primários dos fenômenos sociais
são o meio cósmico e a constituição física e moral do indivíduo12. Ora, o primeiro não pode ter influência sobre a .
sociedade a não ser através do segundo, que acaba sendo
;1ssim o motor essencial da evolução social. Se a sociedade
セ・@
forma, é para permitir ao indivíduo realizar sua nature-
102
AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO
za, e todas as transformações pelas quais ela passou não
têm como único objeto tornar essa realização mais fácil e
mais completa. É em virtude desse princípio que, antes de
proceder a alguma pesquisa sobre a organização social,
Spencer acreditou dever dedicar todo o primeiro tomo de
seus Princípios de sociologia ao estudo do homem primitivo físico, emocional e intelectual. "A ciência da sociologia,
diz ele, parte das unidades sociais, submetidas às condições
que vimos, constituídas física, emocional e intelectualmente, e de posse de certas idéias cedo adquiridas e dos sentimentos correspondentes." 13 E é nestes dois sentimentos, o
temor dos vivos e o temor dos mortos, que ele encontra a
origem do governo político e do governo religioso 14. Ele
admite, é verdade, que, uma vez formada, a sociedade reage sobre os indivíduos 1'í. Mas disso não se segue que ela
tenha o poder de engendrar diretamente o menor fato social; ela não tem eficácia causal desse ponto de vista, a
não ser por intermédio das mudanças que determina no
indivíduo. Portanto é sempre da natureza humana, seja
primitiva, seja derivada, que tudo decorre. Aliás, a ação
que o corpo social exerce sobre seus membros nada pode
ter de específico, já que os fins políticos nada são em si
mesmos, sendo uma simples expressão resumida dos fins
individuais!<'. Ela só pode ser portanto uma espécie de retorno ela atividade privada a si própria. Sobretudo, não se
percebe em que pode consistir tal ação nas sociedades industriais, que têm precisamente por objeto restituir o indivíduo a si mesmo e a seus impulsos naturais, desembaraçando-o de toda coerção social.
Tal princípio não está apenas na base dessas grandt:'s
doutrinas de sociologia geral; ele inspira igualmente um
número muito grande de teorias particulares. É assim Cjlll'
se explica a organização doméstica pelos sentimento.'!
que OS pais têm em relação aos filhos e OS segundos a< IS
REGRAS RELA11VAS À EXPLJCAÇÀO DOS FATOS SOCIAIS
103
primeiros; a instituição do casamento, pelas vantagens que
apresenta para os esposos e sua descendência; a pena, pela cólera provocada no indivíduo por toda lesão grave a
seus interesses. Toda a vida econômica, tal como a concebem e a explicam os economistas, sobretudo os ela escola
ortodoxa, depende, em última instância, deste fator puramente individual: o desejo de riqueza. Trata-se de explicar
a moral? Faz-se dos deveres do indivíduo para consigo
mesmo a base da ética. A religião? Vê-se nela um produto
das impressões que as grandes forças ela natureza ou certas
personalidades eminentes despertam no homem, etc., etc.
Mas tal método só é aplicável aos fenômenos sociológicos desnaturando-os. Para ter a prova disso, basta reportar-se à definição que demos desses fenômenos. Visto que
sua característica essencial consiste no poder que eles têm
ele exercer, de fora, uma pressão sobre as consciências individuais, conclui-se que eles não derivam destas e, por
conseguinte, a sociologia não é um corolário da psicologia. Esse poder coercitivo testemunha *que eles exprimem
uma natureza diferente da nossa, uma vez que só penetram em nós pela força ou, pelo menos, pesando mais ou
menos sobre nós*. Se a viela social fosse apenas um prolongamento do ser individual, não a veríamos remontar
deste modo à sua fonte e invadi-la impetuosamente. Se a
:1utoridade diante da qual se inclina o indivíduo, quando
l'Ste age, sente ou pensa socialmente, o domina a tal ponto conclui-se que ela **é um produto de forças que o suーセイ。ュ@
e que ele não poderia, conseqüentemente, explil·ar**. Não é dele que pode provir essa pressão exterior
"que eles provêm ele algo que não apenas está fora セ・@ nós, ュセNウ@
é ele uma natureza diferente da nossa, Jª que lhe e supenor
t/U'.. p. 23.)
** "não emana dele, mas é um produto de forças que o superam e
'I'"" portanto, não podem ser deduzidas dele". (R.P., p. 23.)
*
1. 1111 hem
104
AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO
que ele sofre, *portanto não é o que se passa dentro dele que pode explicá-la*. É verdade que não somos incapazes de coagir a nós mesmos; podemos conter nossas tendências, nossos hábitos, até mesmo nossos instintos e deter seu desenvolvimento por um ato ele inibição. セ。ウ@
os
movimentos inibidores não poderiam ser confundidos
com aqueles que constituem a coerção social. O processo
dos primeiros é centrífugo; o elos segundos, centrípeto.
Uns são elaborados na consciência individual e tendem
em seguida a exteriorizar-se; outros são primeiramente exteriores ao indivíduo e tendem em seguida a modelá-lo
desde fora à sua imagem. A inibição, se quiserem, é 0
meio pelo qual a coerção social produz seus efeitos psíquicos; ela não é essa coerção.
Ora, descartado o indivíduo, resta apenas a sociedade; é portanto na natureza da própria sociedade que se
eleve buscar a explicação ela viela social. Como ela supera
infinitamente o indivíduo tanto no tempo como no espaço, concebe-se, com efeito, que seja capaz de impor-lhe
as maneiras ele agir e ele pensar que consagrou por sua
autoridade. Essa pressão, sinal distintivo dos fatos sociais
'
é aquela que todos exercem sobre cada um.
Mas, dirão, visto que os únicos elementos de アオセ@
é
formada a sociedade são indivíduos, a origem primeira
dos fenômenos sociológicos só pode ser psicológica. Raciocinando deste modo, pode-se também facilmente estabelecer que os fenômenos biológicos se explicam analiticamente pelos fenômenos inorgânicos. Com efeito, é bastante certo que na célula viva há apenas moléculas ele matéria
bruta. Só que estas se encontram ali associadas, e essa associação é que é a causa dos fenômenos novos que caracterizam a vida e cujo germe é impossível descobrir em
' Frase que não figura no texto inicial.
REGRAS RELATlVASÀ EXPLICAÇÀO DOS FATOS SOOAIS
105
qualquer um dos elementos associados. Um todo não é
idêntico à soma de suas partes, ele é alguma outra coisa
cujas propriedades diferem daquelas que apresentam as
partes ele que é formado. A associação não é, como se
acreditou algumas vezes, um fenômeno por si mesmo estéril, que consiste simplesmente em colocar em relaçües
exteriores fatos realizados e propriedades constituídas.
Não é ela, ao contrário, a fonte ele todas as novidades que
se produziram sucessivamente no curso ela evolução geral
elas coisas? Que diferenças existem entre os organismos inferiores e os demais, entre o ser vivo organizado e o simples plastídio, entre este e as moléculas inorgânicas que o
compõem, senão diferenças ele associação? Todos esses
seres, em última análise, decompõem-se em elementos da
mesma natureza; mas esses elementos são, aqui, justapostos, ali, associados; aqui, associados de uma maneira, ali,
ele outra. É lícito inclusive perguntar se essa lei não penetra até o mundo mineral, e se as diferenças que separam
os corpos inorganizados não têm a mesma origem.
Em virtude desse princípio, a sociedade não é uma
simples soma de indivíduos, mas o sistema formado pela
associação deles representa uma realidade específica que
tem seus caracteres próprios. Certamente, nada ele coletivo
pode se produzir se consciências particulares não são dadas; mas essa condição necessária não é suficiente. É preciso também que essas consciências estejam associadas,
combinadas, e combinadas de certa maneira; é dessa combinação que resulta a vida social e, por conseguinte, é essa
combinação que a explica. Ao se agregarem, ao se penetrarem, ao se fundirem, as almas individuais dão origem a
um ser, psíquico se quiserem, mas que constitui uma indi-.
vidualiclade psíquica de um gênero novo 17. Portanto, é na
natureza dessa individualidade, não na das unidades componentes, que se elevem buscar as causas próximas e ele-
106
AS REGRAS DO MÉTODO SOG10LÓGICO
terminantes dos fatos que nela se produzem. O grupo
pensa, sente e age de maneira bem diferente do que o fariam seus membros, se estivessem isolados. Assim, se partirmos desses últimos, nada poderemos compreender do
que se passa no grupo. Em uma palavra, há entre a psicologia e a sociologia a mesma solução de continuidade que
entre a biologia e as ciências físico-químicas. Em conseqüência, toda vez que um fenômeno social é diretamente
explicado por um fenômeno psíquico, pode-se ter a certeza de que a explicação é falsa.
Responderão talvez que, se a sociedade, uma vez formada, é de fato a causa próxima dos fenômenos sociais,
as causas que determinaram sua formação são de natureza psicológica. Concedem que, quando os indivíduos estão associados, sua associação pode dar origem a uma vida nova, mas dirão que ela só pode ocorrer por razões individuais. Todavia, em realidade, por mais longe que se
remonte na história, o fato da associação é o mais obrigatório de todos; pois ele é a fonte de todas as outras obrigações. Por meu nascimento, estou obrigatoriamente ligado a um povo determinado. Diz-se que, daí por diante,
uma vez adulto, dou minha aquiescência a essa obrigação
pelo simples fato de continuar a viver em meu país. Mas
que importa' Essa aquiescência não retira ao fato seu caráter imperativo. Uma pressão aceita e suportada de boa
vontade não deixa de ser uma pressão. Aliás, qual pode
ser a importância de tal adesão? Em primeiro lugar, ela é
forçada, pois, na imensa maioria dos casos, nos é material
e moralmente impossível despojar-nos de nossa nacionalidade; *tal mudança é inclusive considerada, geralmente,
uma apostasia*. Em segundo lugar, ela não pode concernir ao passado que não pôde ser consentido e que, no
' Frase que não figura no texto inicial.
REGRAS RELA11VAS À EXPLICAÇÃO DOS FA10S SOOAIS
107
entanto, determina o presente: eu não quis a educação
que recebi; ora, é ela que, mais do que qualquer outra
causa, me fixa ao solo natal. Enfim, ela não poderia ter
valor moral em relação ao futuro, na medida em que este
é desconhecido. Nem sequer conheço todos os deveres
que podem me incumbir um dia ou outro em minha qualidade de cidadão; como poderia eu aquiescer a eles de
antemão? Ora, tudo o que é obrigatório, conforme demonstramos, tem sua fonte fora do indivíduo. Assim, enquanto não sairmos da história, o fato da associação apresentará o mesmo caráter que os demais e, conseqüentemente, explica-se da mesma maneira. Por outro lado, como todas as sociedades nasceram de outras sociedades
sem solução de continuidade, podemos estar certos de
que, no curso de toda a evolução social, não houve um
momento em que os indivíduos tenham realmente necessitado deliberar para saber se entrariam ou não na vida
coletiva, e se nesta e não naquela. Para que a questão pudesse se colocar, seria preciso remontar até as origens primeiras de toda sociedade. Mas as soluções, sempre duvidosas, que podem ser dadas a tais problemas, de modo
nenhum poderiam afetar o método segundo o qual devem ser tratados os fatos dados na história. Não precisamos portanto discuti-las.
Mas seria um estranho equívoco sobre nosso pensamento se, do que precede, tirassem a conclusão de que a
sociologia, para nós, deve ou mesmo pode fazer abstração do homem e de suas faculdades. Ao contrário, não há
dúvida de que os caracteres gerais da natureza humana
entram no trabalho de elaboração de que resulta a vida
social. Só que não são eles que a suscitam nem que lhe.
dão sua forma especial; eles apenas a tornam possível. As
representações, as emoções, as tendências coletivas não
têm por causas geradoras certos estados da consciência
108
AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO
dos indivíduos, mas sim as condições em que se encontra
o corpo social em seu conjunto. Certamente, estas só podem se realizar se as naturezas individuais não forem refratárias a elas; mas as naturezas individuais são apenas a
matéria indeterminada que o fator social determina e
transforma. Sua contribuição consiste exclusivamente em
estados muito gerais, em predisposições vagas e, por conseguinte, plásticas que, por si mesmas, não poderiam adquirir as formas definidas e complexas que caracterizam
os fenômenos sociais, se outros agentes não interviessem.
Que abismo, por exemplo, entre os sentimentos que
o homem experimenta diante de forças superiores ã sua e
a instituição religiosa, com suas crenças, suas práticas tão
variadas e complicadas, sua organização material e moral;
entre as condições psíquicas da simpatia que dois seres
do mesmo sangue sentem um pelo outro 18 e esse emaranhado de regras jurídicas e morais que determinam a estrutura da família, as relações das pessoas entre si, das
coisas com as pessoas, etc.! Vimos que, mesmo quando a
sociedade se reduz a uma multidão não organizada, os
sentimentos coletivos que nela se formam podem, não
apenas não se assemelhar, mas ser opostos ã média dos
sentimentos individuais. Quão mais considerável ainda
deve ser a distância quando a pressão que o indivíduo sofre é a de uma sociedade regular, na qual se acrescenta, à
ação dos contemporâneos, a das gerações anteriores e da
tradição! Uma explicação puramente psicológica dos fatos
sociais só pode portanto deixar escapar tudo o que dt•s
têm de específico, isto é, de social.
O que mascarou aos olhos de tantos sociólogos a insuficiência desse métod, é que freqüentemente, tomando o
efeito pela causa, lhes ocorreu atribuir como condições lk'·
terminantes dos fenômenos sociais certos estados psíquicos, relativamente definidos e especiais, mas que, na vt'rda-
REGRAS RE!ATIVAS À EXPLICAÇÃO DOS FATOS SOCIAIS
109
de são a conseqüência deles. Assim, considerou-se inato
no' homem certo sentimento de religiosidade, um certo mínimo de ciúme sexual, de piedade filial, de amor paterno,
etc., e deste modo se quis explicar a religião, o casamento,
a família. Mas a história mostra que essas inclinaçôes, longe
de serem inerentes à natureza humana, ou estão totalmente
ausentes em certas circunstâncias sociais, ou, de uma sociedade a outra, apresentam tais variações que o resíduo obtido ao se eliminarem todas essas diferenças, o único a poder ser considerado como de origem psicológica, se reduz
a algo vago e esquemático que deixa a uma distância infinita os fatos a serem explicados. É que esses sentimentos,
longe de serem a base da organização coletiva, resultam
dela. Inclusive não está de todo provado que a tendência à
sociabilidade tenha sido, desde a origem, um instinto congênito ao gênero humano. É muito mais natural ver nele
um produto da vida social, que lentamente se organizou
em nós; pois é um fato de observação que os animais são
saciáveis ou não conforme as disposições de seus hábitats
eis obriguem à vida em comum ou dela os afastem. E cabe
ainda acrescentar que, mesmo entre essas inclinações mais
determinadas e a realidade social, a distância permanece
considerável.
Existe aliás um meio de isolar mais ou menos completamente o fator psicológico, de maneira a poder precisar a extensão de sua ação: é saber de que forma a raça
;1feta a evolução social. Com efeito, os caracteres étnicos
s;10 de ordem orgânico-psíquica. A vida social deve por1;1nto variar quando eles variam, se os fenômenos psicológicos tiverem sobre a sociedade a eficácia causal que lhes
.1tribuem. Ora, não conhecemos nenhum fenômeno social·
qt1l' esteja colocado sob a dependência inconteste da raça.
( :l'rtamente, não poderíamos atribuir a essa proposição o
\':dor de uma lei; mas podemos pelo menos afirmá-la co-
110
AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO
mo um fato constante de nossa prática. Formas de organização as mais diversas verificam-se em sociedades da mesma raça, enquanto similitudes impressionantes observamse entre sociedades de raças diferentes. A cidade existiu
tanto entre os fenícios como entre os romanos e os gregos;
vemo-la em via de formação entre os cabi!as. A família patnarcal era quase tão desenvolvida entre os judeus quanto
entre os hindus, mas ela não s.e verifica entre os eslavos,
セオ・L@
não obstante, são de raça ariana. Em compensação, 0
tipo familiar que aí se encontra também existe entre os
árabes. A família materna e o clã se observam em toda
parte. Certos detalhes das provas judiciárias, das cerimônias
nupciais são os mesmos nos povos mais dessemelhantes
do ponto de vista étnico. Se isso ocorre, é porque a contribuição psíquica é demasiado geral para predeterminar 0
curso dos fenômenos sociais. Como essa contribuição não
implica que haja uma forma social e não outra, ela não pode explicar nenhuma. É verdade que há um certo número
de fatos que se costuma atribuir ã influência da raça. É assim que se explica, por exemplo, por que o desenvolvimento das letras e das artes foi tão rápido e intenso em
Atenas, e tão lento e medíocre em Roma. Mas essa interpretação dos fatos, apesar de clássica, jamais foi metodicamente demonstrada; ela parece tirar quase toda a sua autoridade da mera tradição. Não se examinou sequer se seria possível uma explicação sociológica cios mesmos fenômenos, e estamos convencidos ele que esta poderia ser
tentada com sucesso. Em suma, quando se relaciona com
tal rapidez o caráter artístico ela civilização ateniense a faculdades estéticas congênitas, procede-se mais ou menos
como fazia a Idade Média quando explicava o fogo pelo
flogisto e os efeitos do ópio por sua virtude dormitiva.
Enfim, se realmente a evolução social tivesse sua origem na constituição psicológica do homem, não se perce-
REGRAS REIA11VAS À EXPLICAÇÃO DOS FATOS SOCIAIS
111
be como ela teria podido se produzir. Pois então seria
preciso admitir que ela tem por motor algum impulso interior ã natureza humana. Mas qual poderia ser esse impulso? Seria aquela espécie de instinto ele que fala Comte
e que leva o homem a realizar cada vez mais sua natureza? Mas isso é responder ã pergunta com a pergunta e explicar o progresso por uma tendência inata ao progresso,
verdadeira entidade metafísica cuja existência, de resto,
nada demonstra; pois as espécies animais, inclusive as
mais elevadas, de maneira nenhuma são movidas pela necessidade ele progredir, e, mesmo entre as sociedades humanas, há muitas que se comprazem em permanecer indefinidamente estacionárias. Seria esse impulso, como parece acreditar Spencer, a necessidade de uma maior felicidade, que as formas cada vez mais complexas da civilização estariam destinadas a realizar sempre mais completamente' Seria preciso então estabelecer que a felicidade
aumenta com a civilização, e expusemos alhures todas as
dificuldades que essa hipótese levanta 19. Não é tudo. Ainda que um ou outro desses dois postulados devesse ser
admitido, nem por isso o desenvolvimento histórico se
tornaria inteligível; pois a explicação resultante seria puramente finalista, e mostramos mais acima que os fatos sociais assim como todos os fenômenos naturais, não são
L'Xpl;caclos pelo simples fato de se mostrar que eles servem a algum fim. Quando se provou que as organizações
sociais cada vez mais elaboradas que se sucederam ao
longo da história tiveram por efeito satisfazer sempre mais
1 ᄋNセエ。@
ou aquela de nossas inclinações fundamentais, nem
por isso se fez compreender como elas se produziram. O
fato de serem úteis não nos ensina o que as fez existir.
Ainda que se explicasse como chegamos a imaginá-las,
1raçanclo como que o plano antecipado capaz ele nos rei ire sentar os serviços que poderíamos esperar delas - e o
112
AS REGRAS no MÉTODO SOG10LÓGJCO
problema já é difícil -, o desejo do qual elas seriam assim
o objeto não teria a virtude de tirá-las do nada. Em uma
palavra, admitindo-se que essas inclinações são os meios
necessários para atingir o objetivo perseguido, a questão
permanece inteira: como, isto é, de que e através de que
esses meios foram constituídos?
Chegamos portanto à regra seguinte: A causa deter-
minante de um fato social deve ser buscada entre os fatos
sociais 。ョエ・」、セ@
e não entre os estados da consciência
individual. Por outro lado, concebe-se facilmente que tudo o que precede se aplica tanto à determinação da função quanto à da causa. A função de um fato social não
pode ser senão social, isto é, ela consiste na produção de
efeitos socialmente úteis. Certamente pode ocorrer, e
acontece de fato, que, por via indireta, o fato social sirva
também ao indivíduo. Mas esse resultado feliz não é sua
razão de ser imediata. Podemos portanto completar a proposição precedente, dizendo: A função de umJàto social
deve sempre ser buscada na relação que ele mantém com
algum fim social.
Foi por terem os sociólogos ignorado freqüentente essa regra e considerado os fenômenos sociais de um ponto
de vista demasiado psicológico, que suas teorias afiguramse a numerosos espíritos excessivamente vagas, vacilantes
e distantes da natureza especial das coisas que eles crêem
explicar. O historiador, em particular, que vive na intimidade da realidade social, não pode deixar de sentir forte·
mente o quanto essas interpretações demasiado gerais são
incapazes de coincidir com os fatos; e certamente foi isso
que produziu, em parte, a desconfiança que a história seguidamente demonstra em relação à sociologia. O que nüo
quer dizer, por certo, que o estudo dos fatos psíquicos n:1o
seja indispensável ao sociólogo. Se a vida coletiva não dl··
riva da vida individual, uma e outra estão intimamente rl'·
REGRAS RELATIVAS À EXPLJCAÇÀO DOS FA1DS SOOAJS
113
!acionadas; se a segunda não pode explicar a primeira, ela
pode, pelo menos, facilitar sua explicação. Conforme mostramos, é incontestável, em primeiro lugar, que os fatos
sociais são produzidos por uma elaboração sui generis de
fatos psíquicos. Além disso, essa própria elaboras;ão não
deixa de ter analogia com a que se produz em cada ccmsciência individual e que transforma progressivamente os
elementos primários (sensações, reflexos, instintos) de que
ela é originalmente constituída. Não é sem razão que se
pôde dizer do eu que ele próprio constituía uma sociedade, tanto quanto o organismo, ainda que de outra maneira, e os psicólogos há muito já mostraram a importância
do fator associação para a explicação da vida do espírito.
Uma cultura psicológica, mais ainda que uma cultura biológica, constitui portanto para o sociólogo uma propedêutica necessária; mas ela só lhe será útil se ele libertar-se
dela após tê-la recebido e a superar, completando-a por
uma cultura especialmente sociológica. É preciso que ele
renuncie a fazer da psicologia, ele certo modo, o centro de
suas operações, o ponto de partida e de chegada ele suas
incursões no mundo social, e que se estabeleça no núcleo
mesmo dos fatos sociais, a fim de observá-los de frente e
sem intermediário, solicitando à ciência do indivíduo apenas uma preparação geral e, se preciso, úteis sugestões 20 .
III
Uma vez que os fatos de morfologia social são da
mesma natureza que os fenômenos fisiológicos, eles devem se explicar segundo a mesma regra que acabamos de
L'nunciar. Todavia, de tudo o que precede resulta que eles
desempenham um papel preponderante na vida coletiva
l', por conseguinte, nas explicações sociológicas.
114
AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO
Com efeito, se a condição determinante dos fenômenos sociais consiste, como mostramos, no fato mesmo da
associação, eles devem variar com as formas dessa associação, isto é, conforme as maneiras como são agrupadas as
partes constituintes da sociedade. Por outro lado, já que o
conjunto determinado, que os elementos de toda natureza
que entram na composição de uma sociedade formam
por sua reunião, constitui o meio interno dessa sociedade,
assim como o conjunto dos elementos anatômicos, pela
maneira como estão dispostos no espaço, constitui o
meio interno dos organismos, poderemos dizer: A origem
primeira de todo processo social de alguma importância
deve ser buscada na constituição do meio social interno.
É possível até precisar ainda mais. De fato, os elementos que compõem esse meio são de dois tipos: há
coisas e pessoas. Entre as coisas, é preciso incluir, além
dos objetos materiais que são incorporados à sociedade,
os produtos da atividade social anterior, o direito constituído, os costumes estabelecidos, os monumentos literários,
artísticos, etc. Mas é claro que não é nem de uns nem de
outros que pode provir o impulso que determina as transformações sociais; pois eles não contêm nenhuma capacidade motora. Seguramente, há que levá-los em consideração nas explicações que tentarmos. Com efeito, eles pesam de alguma forma sobre a evolução social, cuja velocidade e mesmo a direção variam conforme o que forem;
mas eles não possuem nada daquilo que é necessário para colocá-la em movimento. Eles são a matéria sobre a
qual se aplicam as forças vivas da sociedade, mas, por si
mesmos, não liberam nenhuma força viva. Resta portanto,
como fator ativo, o meio propriamente humano.
O esforço principal do sociólogo será portanto procurar descobrir as diferentes propriedades desse meio
suscetíveis de exercer uma ação sobre o curso dos fent>-
Rb'GRAS RELATTVASÀ hXPLICAÇÀO DOS FATOS SOCIAIS
115
menos sociais. Até o presente, encontramos duas séries
de caracteres que correspondem de uma maneira eminente a essa condição: o número das unidades sociais ou, como dissemos também, o volume da sociedade, e o grau
de concentração da massa, ou o que denominamos a densidade dinâmica. Por esta última palavra, convém entender não o estreitamento puramente material do agregado
que nào pode ter efeito se os indivíduos, ou melhor, os
grupos ele indivíduos, permanecem separados por vazios
morais, mas o estreitamento moral do qual o precedente
não é senão o auxiliar e, de maneira gastante geral, a conseqüência. A densidade dinâmica pode ser definida, para
um volume igual, em função do número de indivíduos
que estão efetivamente em relações não apenas comerciais,
mas morais; ou seja, que não apenas trocam serviços ou
se fazem concorrência, mas que vivem uma vida comum.
Pois, como as relações puramente econômicas deixam os
homens exteriores uns aos outros, essas relações podem
ser muito freqüentes sem com isso participarem da mesma existência coletiva. Os negócios contratados por cima
das fronteiras que separam os povos não fazem com que
essas fronteiras não existam. Ora, a viela comum só pode
ser afetada pelo número dos que nela colaboram eficazmente. Por isso, o que exprime melhor a densidade dinâmica de um povo é o grau de coalescência elos segmentos
sociais. Pois, se cada agregado parcial forma um todo,
uma individualidade distinta, separada das outras por uma
barreira, é porque a ação de seus membros, em geral,
permanece aí localizada; se, ao contrário, essas sociedades parciais se confundem todas no seio ela sociedade total ou tendem a nela se confundir, é porque, na mesma
medida, *o círculo ela vida social se ampliou*.
*
"a vida social se generalizou". (R.P., p. 32.)
116
AS REGRAS DO MÉTODO SOCJOLÓGJCO
Quanto à densidade material - se entendermos por
isso não apenas o número de habitantes por unidade de
superfície, mas o desenvolvimento das vias de comunicaçào e de transmissão -, ela marcha ordinariamente no
mesmo passo que a densidade dinâmica e, em geral, pode servir para medi-la. Pois, se as diferentes partes da população tendem a se aproximar, é inevitável que elas
abram caminhos que permitam essa aproximação, e, por
outro lado, só podem se estabelecer relações entre pontos
distantes da massa social se essa distância não for um
obstáculo, isto é, se ela de fato for suprimida. Há no entanto exceções 21 , e incorreríamos em sérios erros se julgássemos sempre a concentração moral de uma sociedade com base no grau de concentração material que ela
apresenta. As estradas, as vias férreas, etc., podem servir
mais ao movimento dos negócios do que à fusão das poーオャ。・セL@
que elas então só exprimem muito imperfeitamente. E o caso da Inglaterra, cuja densidade material é
superior à da França, e onde, não obstante, a coalescência
dos segmentos é muito menos avançada, *como demonstra a persistência do espírito local e da vida regional*.
Mostramos alhures como todo aumento no volume e
na densidade dinâmica das sociedades, ao tornar a vida social mais intensa, ao estender o horizonte que cada indivíduo abarca com seu pensamento e preenche com sua ação,
modifica profundamente as condições fundamentais da
existência coletiva. Nào precisamos falar de novo da aplicação que fizemos entào desse princípio. Acrescentemos apenas que ele nos serviu para tratar não somente a questão
ainda muito geral que era o objeto daquele estudo, mas
muitos outros problemas mais específicos, e que pudemos
assim verificar sua exatidão por um número já respeitável
de experiências. Todavia, estamos longe de pensar ter des* Frase que não figura no texto inicial.
REGRAS RELATIVAS À EXPLICAÇÃO DOS FATOS SOCIAIS
117
coberto todas as particularidades do meio social suscetíveis
de desempenhar um papel na explicação dos fatos sociais.
Tudo o que podemos dizer é que essas são as únicas que
percebemos e que não fomos levados a buscar outras.
Mas essa espécie de preponderância que atribuímos
ao meio social e, mais particularmente, ao meio humano,
não implica que se deva ver aí algo como um fato último
e absoluto para além do qual não é preciso remontar. É
evidente, ao contrário, que o estado no qual se encontra
esse meio a cada momento da história depende ele próprio de causas sociais, algumas inerentes à própria sociedade, enquanto outras se devem às ações e reações entre
essa sociedade e suas vizinhas. Aliás, a ciência não conhece causas primeiras, no sentido absoluto da palavra.
Para ela, um fato é primário simplesmente quando for suficientemente geral para explicar um grande número de
outros fatos. Ora, o meio social é certamente um fator
desse gênero; pois as mudanças que nele se produzem,
sejam quais forem suas causas, repercutem em todas as
direções do organismo social e não podem deixar de afetar em maior ou menor grau todas as suas funções.
O que acabamos de dizer do meio geral da sociedade pode ser dito dos meios específicos a cada um dos
grupos particulares que ela encerra. Por exemplo, conforme a família for mais ou menos volumosa, mais ou menos
voltada para si mesma, muito diferente será a vida doméstica. Do mesmo modo, se as corporações profissionais se
organizarem de maneira a que cada uma delas se ramifique em toda a extensão do território, em vez ele permanecer encerrada, como outrora, nos limites de uma cidade, a
ação que irão exercer será muito diferente ela que exerceram outrora. De uma maneira mais geral, a vida profissional será completamente diferente se o meio próprio a cada profissão for fortemente constituído ou se sua trama
118
AS REGRAS DO MÉTODO SOGJOLÓG/CO
for frouxa, como é hoje. Todavia, a ação desses meios
particulares não poderia ter a importância do meio geral;
pois eles próprios submetem-se à influência deste último.
É sempre a este que se deve voltar. É a pressão que ele
exerce sobre os grupos parciais que faz variar a constituição destes.
Tal concepção do meio social como fator determinante da evolução coletiva é da mais alta importância.
Pois, se a rejeitarmos, a sociologia será incapaz de estabelecer qualquer relação de causalidade.
De fato, descartada essa ordem de causas, não há
condições concomitantes das quais possam depender os
fenômenos sociais; pois, se o meio social externo, isto é,
aquele formado pelas sociedades ao redor, é suscetível de
exercer alguma ação, só a exerce sobre as funçc'Jes que
têm por objeto o ataque e a defesa; além disso, ele só pode fazer sentir sua influência por intermédio do meio social interno. As principais causas do desenvolvimento histórico não estariam portanto entre as coisas, circunfusas,
mas estariam todas no passado. Elas próprias fariam parte
desse desenvolvimento, do qual constituiriam simplesmente fases mais antigas. Os acontecimentos atuais da vida social derivariam não do estado atual da sociedade,
mas dos acontecimentos anteriores, dos precedentes históricos, e as explicaçôes sociológicas consistiriam exclusivamente em ligar o presente ao passado.
Isso pode parecer, de fato, suficiente. Não se costuma dizer que a história tem precisamente por objeto encadear os acontecimentos segundo sua ordem de sucessão?
*Mas é impossível conceber de que maneira o estado em
* "M:is, se é certo que toda mudanp, uma vez realizada, deve ter
repercussões que ela explica, o que não se percebe, nessa concepção,
é de que maneira a própria mudança é possível." (R.P., p. 34.)
REGRAS RELA TIVAS À EXPLICAÇÃO DOS FATOS SOCIAIS
119
que a civilização se encontra num momento dado poderia
ser a causa determinante do estado seguinte. As etapas
que a humanidade percorre sucessivamente n<lo se engendram urnas às outras.* Compreende-se hem que os
progressos realizados numa época determinada na ordem
jurídica, econômica, política, etc, tornem possíveis novos
progressos; mas em que os primeiros predeterminam os
segundos? Eles são um ponto de partida que permite ir
mais adiante; mas o que é que nos incita a ir mais adiante? Seria preciso admitir então uma tendência interna que
leva a humanidade a ultrapassar constantemente os resultados adquiridos, seja para se realizar completamente, seja para aumentar sua felicidade, e o objeto da sociologia
seria descobrir a ordem segundo a qual se desenvolveu
essa tendência. Mas, **sem voltar às dificuldades que semelhante hipótese implica**, a lei que exprime esse desenvolvimento nada teria de causal. Uma relação de causalidade, com efeito, só pode se estabelecer entre dois fatos dados; ora, tal tendência, que se supõe ser a causa
desse desenvolvimento, não é dada; é apenas postulada e
construída pelo espírito com base nos efeitos que se atribuem a ela. Trata-se de uma espécie de faculdade motora
que imaginamos sob o movimento, a fim de explicá-lo;
mas a causa eficiente de um movimento só pode ser um
outro movimento, não uma virtualidade desse gênero.
Portanto, tudo o que obtemos experimentalmente, aqui, é
uma série de mudanças entre as quais não existe vínculo
causal. O estado antecendente não produz o conseqüente, mas a relação entre eles é exclusivamente cronológica.
Assim, nessas condições, toda previsão científica é impossível. Podemos· perfeitamente dizer como as coisas se sucederam até o presente, não em que ordem elas se suce** Elemento que não figura no texto inicial.
120
AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO
<lerão daqui por diante, porque a causa de que supostamente dependem não é cientificamente determinada, nem
determinável. Geralmente, é verdade, admite-se que a
evolução prosseguirá no mesmo sentido do passado, mas
isso em virtude de um simples postulado. Nada nos garante que os fatos realizados exprimam de maneira bastante completa a natureza dessa tendência para que se
possa prejulgar o termo a que ela aspira com base naqueles pelos quais passou sucessivamente. Inclusive, por que
seria retilínea a direção que ela segue e imprime?
Eis aí, de fato, a razão de o número das relações causais, estabelecidas pelos sociólogos, ser tão restrito. Com
poucas exceções, das quais Montesquieu é o mais ilustre
exemplo, a antiga filosofia da história limitou-se unicamente a descobrir o sentido geral em que se orienta a humanidade, sem procurar ligar as fases dessa evolução a alguma condição concomitante. Por mais que Comte tenha
prestado alguns grandes serviços à filosofia social, os termos nos quais ele coloca o problema sociológico não diferem dos precedentes. Assim, sua famosa lei dos três estados nada possui de uma relação ele causalidade; ainda que
fosse exata, ela não é e não pode ser mais que empírica.
Trata-se ele uma visão sumária ela história transcorrida elo
gênero humano. É muito arbitrariamente que Comte considera o terceiro estado como o estado definitivo da humanidade. Quem nos diz que não surgirá outro no futuro? Do
mesmo modo, a lei que domina a sociologia ele Spencer
não parece ser ele outra natureza. Ainda que fosse verdade
que tendemos atualmente a buscar nossa felicidade numa
civilização industrial, nada assegura que, posteriormente,
não venhamos a buscá-la em outra parte. Ora, o que faz a
generalidade e a persistência desse método é que na maioria elas vezes se viu no meio social UJU meio pelo qual o
progresso se realiza, não a causa que o determina.
REGRAS RELATIVAS À J;XPLICAÇÀO DOS FATOS SOCIAIS
121
Por outro lado, é igualmente em relação a esse mesmo meio que se eleve medir o valor útil ou, como dissemos, a função dos fenômenos sociais. Entre as mudanças
de que é a causa, servem aquelas que estão em relação
com o estado no qual esse meio se encontra, já que ele é
a condição essencial da existência coletiva. Também desse ponto ele vista, acreditamos, a concepção que acabamos de expor é fundamental; pois só ela permite explicar
como o caráter útil dos fenômenos sociais pode variar
sem no entanto depender ele arranjos arbitrários. Se, ele
fato, representa-se a evolução histórica como movida por
uma espécie de vis a tergo [força propulsara] que impele
os homens para a frente, já que uma tendência motora só
pode ter um objetivo e apenas um, não pode haver senão
um ponto de referência em relação ao qual se calcula a
utilidade ou a nocividade elos fenômenos sociais. Disso
resulta que só pode haver um único tipo ele organização
social perfeitamente adequado à humanidade e que as diferentes sociedades históricas são apenas aproximações
sucessivas desse modelo único. Não é necessário mostrar
o quanto semelhante simplismo é hoje inconciliável com
a variedade e a complexidade reconhecidas elas formas
sociais. Se, ao contrário, a conveniência ou não das instituições só puder ser estabelecida em relação a um meio
dado, e como esses meios são diversos, haverá então uma
diversidade ele pontos de referência e, por conseguinte,
ele tipos que, embora qualitativamente distintos uns elos
outros, estão todos igualmente fundados na natureza elos
meios sociais.
A questão que acabamos ele tratar está assim estreitamente vinculada à que diz respeito à constituição elos tipos sociais. Se há espécies sociais, é porque a vida coletiva depende antes ele tudo ele condições concomitantes
que apresentam uma certa diversidade. Se, ao contrário,
122
AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO
as principais causas cios acontecimentos sociais estivessem todas no passado, cada povo não seria mais que o
prolongamento daquele que o precedeu, e as diferentes
sociedades perderiam sua individualidade para se tornarem apenas momentos diversos ele um mesmo e único
desenvolvimento. Uma vez que, por outro lado, a constituição elo meio social resulta do modo de composição dos
agregados sociais e que essas duas cxpressôes são, elas
próprias, no fundo, sinônimas, temos agora a prova de
que não há caracteres mais essenciais do que aqueles que
atribuímos como base para a classificação sociológica.
Enfim, deve-se compreender agora, melhor do que
antes, o quanto seria injusto apoiar-se nas palavras "condições exteriores" e "meio" para acusar nosso método e buscar as fontes da viela fora do que é vivo. Muito pelo contrário, as consideraçôes que acabam de ser lidas resumem-se
na idéia ele que as causas elos fenômenos sociais são internas à sociedade. É antes a teoria que deriva a sociedade do
indivíduo que se poderia justamente recriminar por querer
tirar o interior do exterior, já que ela explica o ser social
por outra coisa que não ele mesmo, e por querer tirar o
mais do menos, já que ela empreende deduzir o todo da
parte. Os princípios que precedem ignoram tão pouco o
caráter espontâneo de todo vivente que, se aplicados à biologia e à psicologia, dever-se-á admitir que também a vida
individual se elabora por inteiro no interior do indivíduo.
IV
Do grupo de regras que acabam de ser estabelecidas resulta certa concepção da sociedade e da vida coletiva.
Sobre esse ponto, duas teorias contrárias dividem os
espíritos.
REGRAS RELA11VAS À EXPLICAÇÃO DOS FATOS SOCIAIS
123
Para uns, como Hobbes e Rousseau, hC1 ウッャオセZ[@
de
continuidade entre o indivíduo e a sociedade. O homem
é portanto naturalmente refratário à viela comum, somente
forçado pode resignar-se a ela. Os fins sociais nào s;lo
simplesmente o ponto de encontro dos fins individuais;
são antes contrários a eles. Assim, para fazer o indivíduo
buscar esses fins, é necessário exercer sobre ele uma coerção, e é na instituição e na organização dessa coerção que
consiste, por excelência, a obra social. Só que, como o indivíduo é visto como a única e exclusiva realidade do reino humano, essa organização, que tem por objeto constrangê-lo e contê-lo, não pode ser concebida senão como
artificial. Ela não está fundada na natureza, uma vez que
se destina a fazer-lhe violência impedindo-a de produzir
suas conseqüências anti-sociais. Trata-se de uma obra de
arte, de uma máquina construída inteiramente pela mão
dos homens e que, como todos os produtos desse gênero, é o que é apenas porque os homens a quiseram assim;
um decreto da vontade a criou, um outro decreto pode
transformá-la. Nem Hobbes nem Rousseau parecem ter
percebido tudo o que há ele contraditório em admitir que
o indivíduo seja ele próprio o autor de uma máquina
que tem por tarefa essencial dominá-lo e constrangê-lo,
ou pelo menos lhes pareceu que, para fazer desaparecer
essa contradição, bastava dissimulá-la, aos olhos daqueles
que são suas vítimas, pelo hábil artifício do pacto social.
Foi na idéia contrária que se inspiraram tanto os teóricos do direito natural quanto os economistas e, mais recentemente, Spencer22. Para eles, a vida social é essencialmente espontânea e a sociedade uma coisa natural. Mas,
se conferem a ela esse caráter, não é porque lhe reconheçam uma natureza específica; é porque encontram sua base na natureza do indivíduo. Do mesmo modo que os
precedentes pensaclorés, eles não vêem na sociedade um
124
AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÔGICO
sistema de coisas que exista por si mesmo, em virtude de
causas que lhe sejam específicas. Mas, enquanto aqueles
a concebiam apenas como um arranjo convencional que
nenhum vínculo prende à realidade e que se sustenta, por
assim dizer, no ar, estes lhe dão por base os instintos fundamentais do coração humano. O homem tende naturalmente à vida política, doméstica, religiosa, às trocas, etc.,
e é dessas inclinações naturais que deriva a organização
social. Em conseqüência, sempre que for normal, esta não
tem necessidade de impor-se. Quando ela recorre à coerção, é porque não é o que deve ser ou porque as circunstâncias são anormais. Em princípio, basta deixar as forças
individuais desenvolverem-se em liberdade para que elas
se organizem socialmente.
Nenhuma dessas duas doutrinas é a nossa.
Certamente, fazemos da coerção a característica de
todo fato social. Só que essa coerção não resulta de uma
maquinaria mais ou menos engenhosa, destinada a mascarar aos homens as armadilhas nas quais eles próprios se
pegaram. Ela simplesmente se deve ao fato de o homem
estar em presença de uma força que o domina e diante da
qual se curva; mas essa força é natural. Ela não deriva de
um arranjo convencional que a vontade humana acrescentou completamente ao real; ela provém das entranhas
mesmas da realidade; é o produto necessário de causas
dadas. Assim, para fazer o indivíduo submeter-se a ela de
boa vontade, não é preciso recorrer a nenhum artifício·
b :sta. faze-lo tomar consciência de seu estado de dependenc1a e de inferioridade naturais - quer ele faça disso
uma representação sensível e simbólica pela religião, quer
chegue a formar uma noção adequada e definida pela ciência. Como a superioridade que a sociedade tem sobre ele
não é simplesmente física, mas intelectual e moral, ela nada tem a temer do livre exame, contanto que deste se fac;a
A
)
REGRAS RELA11VAS À bXPLJCAÇÀO DOS FATOS SOOAIS
125
um justo emprego. A reflexão, fazendo o homem compreender o quanto o ser social é mais rico, mais complexo e mais duradouro que o ser individual, não pode deixar de revelar-lhe as razões inteligíveis da subordina\·;1o
que dele é exigida e dos sentimentos de apego e de respeito que o hábito fixou em seu coração 25.
Portanto, somente uma crítica singularmente superficial poderia acusar nossa concepção da coerção social de
reeditar as teorias de Hobbes e de Maquiavel. Mas, se,
contrariamente a esses filósofos, dizemos que a vida social
é natural, não é por encontrarmos sua fonte na natureza
do indivíduo; é porque ela deriva diretamente do ser coletivo, que é, por si mesmo, uma natureza sui generis; é
porque ela resulta dessa elaboração especial à qual estão
submetidas as consciências particulares devido à sua associação e da qual se desprende uma nova forma de existência 24. Portanto, se reconhecemos com uns que a vida
social apresenta-se ao indivíduo sob o aspecto da coerção, admitimos com os outros que ela é um produto espontâneo da realidade; e o que liga logicamente esses
dois elementos, aparentemente contraditórios, é que a realidade da qual ela emana supera o indivíduo. Vale dizer
que as palavras coerção e espontaneidade não têm, em
nossa terminologia, o sentido que Hobbes confere à primeira e Spencer à segunda.
Em resumo, à maior parte das tentativas que foram
feitas para explicar racionalmente os fatos sociais, pôdese objetar ou que elas faziam desaparecer toda ideia de
disciplina social, ou que só conseguiam manter essa idéia
com o auxílio de subterfúgios mentirosos. As regras que
acabamos de expor permitiriam, ao contrário, fazer uma
sociologia que visse no espírito de disciplina a condição
essencial de toda vida em comum, embora fundando-o na
razão e na verdade.
CAPÍTULO VI
REGRAS RELATIVAS À ADMINISTRAÇÃO
DA PROVA
Temos apenas um meio de demonstrar que um fenômeno é causa de outro: comparar os casos em que eles estão simultaneamente presentes ou ausentes e examinar se
as variações que apresentam nessas diferentes combinações
de circunstâncias testemunham que um depende do outro.
Quando eles podem ser artificialmente produzidos pelo
observador, o método é a experimentação propriamente
dita. Quando, ao contrário, a produção dos fatos não está à
nossa disposição e só podemos aproximá-los tais como se
produziram espontaneamente, o método empregado é o
da experimentação indireta ou método comparativo.
Vimos que a explicação sociológica consiste exclusivamente em estabelecer relações de causalidade, quer se
trate de ligar um fenômeno à sua causa, quer, ao contrário, uma causa a seus efeitos úteis. Uma vez que, por outro lado, os fenômenos sociais escapam evidentemente à
ação do operador, o método comparativo é o único que
128
AS REGRAS DO Mf'TODO SOCIOLÓGICO
convém à sociologia. É verdade que Comte não o considerou suficiente; julgou necessário completá-lo por aquilo
que ele chama o método histórico; mas isso se deve à sua
concepção particular das leis sociológicas. Segundo Comte, estas devem principalmente exprimir, não relações definidas de causalidade, mas o sentido em que se dirige a
evolução humana em geral; assim elas não podem ser
descobertas com o auxílio da comparação, *pois, para poder comparar as diferentes formas que um fenômeno social assume em diferentes povos, é preciso tê-lo separado
das séries temporais a que pertence. Ora, se se começa
por fragmentar deste modo o desenvolvimento humano,
surge a impossibilidade de reencontrar sua seqüência. Para chegar a ela, não é por análises, mas por largas sínteses
que convém proceder. O que é preciso é aproximar uns
dos outros. e reunir numa mesma intuição, de certo modo*, os estados sucessivos da humanidade de maneira a
perceber "o crescimento contínuo de cada disposição física, intelectual, moral e política" 1• **Tal é a razão de ser
desse método que Comte chama histórico e** que, por
conseguinte, é desprovido de qualquer objeto, tão logo se
rejeitou a concepção fundamental da sociologia comtiana.
Também é verdade que Mil! declara a experimentação, mesmo indireta, inaplicável à sociologia. Mas o que
já é suficiente para retirar de sua argumentação grande
parte de sua autoridade é que ele a aplicava igualmente
aos fenômenos biológicos, e mesmo aos fatos físico-químicos mais complexos 2 ; (xa, hoje não é mais preciso de• ·'já que estas têm por objeto considerar isoladamente os pares
formados por cada fenômeno social com o grupo de suas condiçôes. É
preciso, ao contrário, aproximar uns dos outros e reunir numa mesma
síntese" (R.P., p. 169.)
**"Tal é o papel desse método histórico" (R.P., p. 169.)
REGRAS REIA71VAS À ADMINISTRAÇÀO f)A l'ROVA
129
monstrar que a química e a biologia sú podem ser ciências
experimentais. Portanto não há razão para que suas críticas sejam mais bem fundamentadas no que concerne セQ@
sociologia; pois os fenômenos sociais distinguem-se dos
precedentes apenas por uma maior 」ッューャ・クゥ、セQN@
Essa
diferença pode de fato implicar que o emprego do raciocínio experimental em sociologia ofereça mais difirnldades ainda que nas outras ciências; mas não se percebe
por que ele seria radicalmente impossível nesse caso.
De resto, toda a teoria de Mill repousa sobre um postulado que, sem dúvida, está ligado aos princípios fundamentais de sua lógica, mas que está em contradição com
todos os resultados da ciência. Com efeito, ele admite que
nem sempre um mesmo conseqüente resulta de um mesmo antecedente, mas que pode ser devido ora a uma causa, ora a outra. Essa concepção do vínculo causal, retirando-lhe toda determinação, torna-o praticamente inacessível à análise científica; pois introduz tal complicação na
trama das causas e dos efeitos que o espírito nela se perde sem retorno. Se um efeito pode derivar de causas diferentes, para saber o que o determina num conjunto de
circunstâncias dadas, a experiência teria de ser feita em
condições de isolamento praticamente impossíveis, sobretudo em sociologia.
Mas esse pretenso axioma da pluralidade das causas
é uma negação do princípio de causalidade. Certamente,
se supusermos com Mill que a causa e o efeito são absolutamente heterogêneos, que nào há entre eles nenhuma
relação lógica, não há nada de contraditório em admitir
que um efeito possa acompanhar ora uma causa, ora outra. Se a relação que une C a A é puramente cronológica,
ela não exclui uma outra relação do mesmo gênero que
uniria C a B, por exemplo. Mas, se, ao contrário, o vínculo causal tem algo de inteligível, ele não poderia ser indt·-
130
AS REGRAS DO MÉ"JDDO SOCJOLÓGICO
terminado a esse ponto. Se ele consiste numa relação que
resulta da natureza das coisas, um mesmo efeito só pode
manter essa relação com uma única causa, pois não pode
exprimir mais que uma só natureza. Ora, somente os filósofos puseram em dúvida a inteligibilidade da relação
causal. Para o cientista, ela não se questiona; ela é suposta pelo método da ciência. Como explicar de outro modo
o papel tão importante da dedução no raciocínio experimental, assim como o princípio fundamental da proporcionalidade entre a causa e o efeito? Quanto aos casos que
são citados e nos quais se pretende observar uma pluralidade de causas, para que eles fossem demonstrativos, seria preciso ter estabelecido preliminarmente ou que essa
pluralidade não é simplesmente aparente, ou que a unidade exterior do efeito não recobre uma real pluralidade.
Quantas vezes aconteceu ã ciência reduzir à unidade causas cuja diversidade, à primeira vista, parecia irredutível!
O próprio Stuart Mil! dá um exemplo disso ao lembrar
que, segundo as teorias modernas, a produção ele calor
pelo atrito, pela percussão, pela ação química, etc. deriva
de uma mesma e única causa. Inversamente, quando se
trata do efeito, o cientista distingue com freqüência o que
o vulgo confunde. Para o senso comum, a palavra febre
designa uma mesma e única entidade mórbida; para a ciência, há uma quantidade de febres especificamente diferentes e a pluralidade elas causas está em relação com a
dos efeitos; e, se entre todas essas espécies nosológicas
há não obstante algo em comum, é que essas causas,
igualmente, se confundem por alguns de seus caracteres.
É importante exorcizar esse princípio da sociologia,
sobretudo porque muitos sociólogos sofrem ainda sua influência, e isso apesar de não fazerem objeção contra o
emprego do método comparativo. Assim, costuma-se dizer que o crime pode ser igualmente produzido pelas
REGRAS RELA11VAS À ADMINISTRAÇÃO DA PROVA
131
mais diversas causas; que o mesmo acontece com o suicídio, com a pena, etc. Praticando-se com esse espírito oraciocínio experimental, por mais que se reúna um número
considerável de fatos, jamais se poderão obter leis precisas, relações determinadas de causalidades. Apenas se
poderá atribuir vagamente um conseqüente mal definido
a um grupo confuso e indefinido de antecedentes. Portanto, se quisermos empregar o método comparativo de maneira científica, ou seja, conformando-se ao princípio de
causalidade tal como ele se depreende da própria ciência,
deveremos tomar como base das comparações que instituímos a proposição seguinte: A um mesmo efeito corresponde sempre uma mesma causa. Assim, para retomar os
exemplos citados mais acima, *se o suicídio depende de
mais de uma causa, é porque, em realidade, há várias espécies de suicídios. O mesmo acontece com o crime. Em
relação à pena, ao contrário, se se acreditou que ela se
explicava da mesma forma por causas diferentes, é porque não se percebeu o elemento comum que se verifica
em todos esses antecedentes e em virtude do qual eles*
produzem seu efeito comum:l.
II
Contudo, se os diversos procedimentos do método
comparativo não são inaplicáveis à sociologia, nem todos
têm, nela, uma força igualmente demonstrativa.
* "se o crime, se o suicídio admitem causas diferentes, é que, em
realidade, há espécies muito diferentes de crimes e de suicídios. Em
relação à pena, ao contrário, é em virtude de um elemento comum a
todas as causas aparentemente diferentes que lhe atribuem" (R.P.,
p. 171.)
132
AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO
O método dito dos resíduos, se é que ele constitui
uma forma de raciocínio experimental, não tem, por assim dizer, nenhuma utilidade no estudo dos fenômenos
sociais. Além de só poder servir às ciências bastante avançadas, uma vez que ele supõe já conhecidas um número
importante de leis, os fenômenos sociais sào demasiado
complexos para que, num caso dado, se possa exatamente suprimir o efeito de todas as causas menos uma.
A mesma razão torna dificilmente utilizáveis tanto o
método de concordância como o de diferença. Eles supõem, com efeito, que os casos comparados ou concordam só num ponto, ou diferem num só. Sem dúvida, não
há ciência que alguma vez tenha podido instituir experiências em que o caráter rigorosamente único de uma concordância ou de uma diferença fosse estabelecido de maneira irrefutável. Jamais estamos seguros de não ter deixado escapar algum antecedente que concorda ou difere
como o conseqüente, ao mesmo tempo e da mesma maneira que o único antecedente conhecido. Entretanto, embora a eliminação absoluta de todo elemento adventício
seja um limite ideal que não pode ser realmente atingido,
as ciências físico-químicas e mesmo as ciências biológicas
aproximam-se bastante dele para que, num grande número de casos, a demonstração possa ser vista como praticamente suficiente. Mas isso já não ocorre cm sociologia devido à complexidade demasiado grande dos fenômenos,
acrescida da impossibilidade de qualquer experiência artificial. Como não se poderia fazer um inventário, ainda
que só aproximadamente completo, de todos os fatos que
coexistem no interior de uma mesma sociedade ou que se
sucederam ao longo de sua história, jamais se pode estar
seguro, mesmo de maneira aproximada, de que dois povos concordam ou diferem sob todos os aspectos, exceto
um. As chances de deixar um fenômeno escapar são bem
REGRAS RELA17VAS À ADMINISTRAÇÃO DA PROVA
133
superiores às de não negligenciar nenhum. Em conseqüência, tal método de demonstração só pode dar origem
a conjeturas que, reduzidas a elas só, são quase desprovidas de todo caráter científico.
Muito diferente é o que acontece com o método das
variações concomitantes. Com efeito, para que ele seja
demonstrativo, não é necessário que todas as variaçCies
diferentes daquelas que se comparam tenham sido rigorosamente excluídas. O simples paralelismo dos valores pelos quais passam os dois fenômenos, contanto que tenha
sido estabelecido num número suficiente de casos suficientemente variados, é a prova de que existe entre eles uma
relação. Esse método deve esse privilégio ao fato de atingir a relação causal, não a partir de fora como os precedentes, mas a partir de dentro. Ele não nos mostra simplesmente dois fatos que se acompanham ou que se excluem exteriormente4, de sorte que nada prova diretamente que estejam unidos por um vínculo interno; ao
contrário, tais fatos nos são mostrados participando um
do outro e de maneira contínua, pelo menos no que diz
respeito à sua quantidade. Ora, essa participação, por si
só, é suficiente para demonstrar que eles não são estranhos um ao outro. A maneira como um fenômeno se desenvolve exprime sua natureza; para que dois desenvolvimentos se correspondam, é preciso que haja também uma
correspondência nas naturezas que eles manifestam. A
concomitância constante .é portanto, por si mesma, uma
lei, seja qual for o estado dos fenômenos que permaneceram fora da comparação. Assim, para invalidá-la, não basta mostrar que ela é posta em xeque por algumas aplicações particulares do método de concordância ou de diferença; seria atribuir a esse tipo de provas uma autoridade
que ele não pode ter em sociologia. Quando dois fenômenos variam regularmente tanto um como o outro, é
134
AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO
preciso manter essa relação ainda que, em alguns casos,
um desses fenômenos se apresentasse sem o outro. Pois
pode ocorrer, ou que a causa tenha sido impedida de
produzir seu efeito pela ação de alguma causa contrária,
ou que ela se encontre presente, mas sob uma forma diferente daquela anteriormente observada. Sem dúvida, é o
caso de conferir, como se diz, de セク。ュゥョイ@
os fatos de
novo, mas não de abandonar de vez os resultados de uma
demonstração regularmente conduzida.
É verdade que as leis estabelecidas por esse procedimento nem sempre se apresentam ele imediato sob a forma de relações ele causalidade. A concomitância pode ser
devida, não a um fenômeno ser a causa elo outro, mas a
serem ambos efeitos de uma mesma causa, ou então por
existir entre eles um terceiro fenômeno, intercalado, mas
despercebido, que é o efeito do primeiro e a causa do segundo. Os resultados a que esse método conduz têm portanto necessidade de ser interpretados. Mas qual o método experimental que permite obter mecanicamente uma
relação ele causalidade sem que os fatos que ele estabelece precisem ser elaborados pelo espírito? Tudo o que importa é que essa elaboração seja metodicamente conduzida, e eis aqui ele que maneira se poderá proceder a isso.
Em primeiro lugar procuraremos saber, com o auxílio da
dedução, como um dos dois termos foi capaz de produzir
o outro; a seguir, nos esforçaremos por verificar o resultado dessa dedução com o auxílio ele experiências, isto é,
de novas comparações. Se *a dedução é possível e a verificação bem-sucedida, poderemos considerar a prova como feita. Se, ao contrário*, não percebemos entre esses
fatos nenhum vínculo direto, sobretudo se a hipótese de
semelhante vínculo contradiz leis já demonstradas, saire* Frase que não figura no texto inicial.
REGRAS RELA71VASÀ ADMINISTRAÇÃO f)A /'R(JVA
135
mos em busca de um terceiro fenômeno dos quais os dois
outros dependam igualmente ou que tenha podido servir
de intermediário entre eles. Por exemplo, pode-se estabelecer da maneira mais certa que a tendência ao suicídio
v;uia de acordo com a tendência à instrução. Mas é impossível compreender como a instrução pode conduzir ao
suicídio; tal explicação está em contradição com as leis da
psicologia. A instrução, sobretudo reduzida aos conhecimentos elementares, não atinge senão as regiões mais superficiais da consciência; ao contrário, o instinto de conservação é uma de nossas tendências fundamentais. Portanto, este não poderia ser sensivelmente afetado por um
fenômeno tão distante e de tão fraca repercussão. Assim
somos levados a perguntar se um e outro fato não seriam
a conseqüência de um mesmo estado. Essa causa comum
é o enfraquecimento do tradicionalismo religioso que reforça ao mesmo tempo a necessidade de saber e a tendência ao suicídio.
Mas há outra razão que faz do método das variações
concomitantes o instrumento por excelência das pesquisas
sociológicas. Com efeito, mesmo quando as circunstâncias
lhes são mais favoráveis, os outros métodos só podem ser
empregados proveitosamente se o número de fatos comparados for muito considerável. Se não é possível ・ョ」ッセ@
trar duas sociedades que diferem ou que se assemelham
apenas num ponto, pode-se pelo menos constatar que
dois fatos ou se acompanham, ou se excluem de maneira
muito geral. Mas, para que essa constatação tenha um va lor científico, é preciso que tenha sido feita um grande número de vezes; seria preciso estar quase seguro de que todos os fatos foram passados em revista. Ora, não apenas
um inventário tão completo é impossível, mas também os
fatos assim acumulados jamais podem ser estabelecidos
com uma precisão suficiente, justamente por serem dema-
136
AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO
siado numerosos. Não apenas se corre o risco de omitir alguns essenciais e que contradizem os que são conhecidos,
mas também não se tem certeza de conhecer bem estes últimos. Na verdade, o que muitas vezes desacreditou os raciocínios dos sociólogos é que, por terem empregado de
preferência o método de concordância ou o de diferença,
sobretudo o primeiro, eles se preocuparam mais em acumular documentos do que em criticá-los e escolhê-los. É
assim que lhes acontece a todo momento colocar no mesmo plano as observações confusas e rápidas dos viajantes
e os textos precisos da história. Diante de tais demonstrações, não apenas somos levados a afirmar que um único
fato poderia ser suficiente para invalidá-las, mas também
que os próprios fatos sobre os quais são estabelecidas
nem sempre inspiram confiança.
O método das variações concomitantes não nos obriga nem a essas enumerações incompletas, nem a essas observações superficiais. Para que ele dê resultados, poucos
fatos são suficientes. Tão logo se prova que, em um certo
número de casos, dois fenômenos variam um de acordo
com o outro, podemos ter a certeza de estar em presença
de uma lei. Não tendo necessidade de ser numerosos, os
documentos podem ser escolhidos e, mais do que isso, estudados de perto pelo sociólogo que os emprega. Portanto
ele não só poderá como deverá tomar por objeto principal
de suas induções as sociedades cujas crenças, tradições,
costumes e direito se materializaram em monumentos escritos e autênticos. Certamente, ele não desdenhará as informações da etnografia (não há fatos que possam ser desdenhados pelo cientista), mas irá colocá-las em seu verdadeiro lugar. Em vez de fazer delas o centro de gravidade
de suas pesquisas, só as utilizará em geral como complemento daquelas que deve à história, ou pelo menos se esforçará por confirmá-las através destas últimas. Assim ele
REGRAS RELA17VAS À ADMJNJSTRAÇ'ÀO lJA PROVA
137
não apenas circunscreverá, com mais discernimento, a extensão de suas comparações, mas as conduzirá com mais
crítica; pois, exatamente por se prender a uma ordem restrita de fatos, poderá controlá-los com maior cuidado. Claro que ele não precisa refazer a obra dos historiadores;
mas também não pode receber passivamente e indiscriminadamente as informações de que se serve.
Mas não se deve pensar que a sociologia esteja num
estado de sensível inferioridade em face das outras ciências
por não poder utilizar muito mais que um único procedimento experimental. Esse inconveniente, com efeito, é
compensado pela riqueza das variações que se oferecem
espontaneamente às comparações do sociólogo e da qual
não se encontra nenhum exemplo nos outros reinos da
natureza. As mudanças que ocorrem num organismo ao
longo de uma existência individual são pouco numerosas
e muito restritas; as que podem ser provocadas artificialmente sem destruir a vida situam-se também dentro de
estreitos limites. É verdade que outras mais importantes se
produziram na seqüência da evolução zoológica, mas elas
só deixaram raros e obscuros vestígios, e é ainda mais difícil descobrir as condições que as determinaram. Ao contrário, a vida social é uma série ininterrupta de transformações, paralelas a outras transformações nas condições
da existência coletiva; e temos à nossa disposição não somente as que se relacionam a uma época recente, pois
um grande número daquelas pelas quais passaram os povos desaparecidos também chegaram até nós. Apesar de
suas lacunas, a história da humanidade é bem mais clara
e completa que a das espécies animais. Além disso, existe
uma quantidade de fenômenos sociais que se produzem
em toda a extensão da sociedade, mas que assumem formas diversas conforme as regiões, as profissões, as confissões, etc. Tal é o caso, por exemplo, do crime, do suicí-
138
AS RHGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGJCC
dio, da natalidade, da nupcialidade, da poupança, etc. D3
diversidade desses meios especiais resultam, para cada
uma dessas ordens de fatos, novas séries de variaçôes,
além daquelas que a evolução histórica produz. Portanto,
se o sociólogo não pode empregar com igual eficácia todos os procedimentos da pesquisa experimental, o único
método que ele deve utilizar, quase com exclusão dos outros, pode, em suas mãos, ser muito fecundo, pois, para
fazê-lo funcionar, ele dispôe de recursos incomparáveis.
*Mas esse método só produz os resultados que comporta se for praticado com rigor. Nada se prova quando,
como acontece com freqüência, apenas se mostra, por
exemplos mais ou menos numerosos, que, nesses casos
esparsos, os fatos variaram como previa a hipótese. Dessas concordâncias esporádicas e fragmentárias não se pode tirar nenhuma conclusão geral. Ilustrar uma idéia não
é demonstrá-la. O que é preciso é comparar, não variaçc)es
isoladas, mas séries de variaçôes, regularmente constituídas, cujos termos se ligam uns aos outros por uma gradação tão contínua quanto possível e que, ademais, tenham
uma extensão suficiente. Pois as variações de um fenômeno só permitem induzir sua lei se elas exprimem claramente a maneira como ele se desenvolve em circunstâncias
dadas. Ora, para tanto é preciso que haja entre elas a
mesma seqüência que entre os momentos diversos de
uma mesma evolução natural e, além disso, que essa evolução que elas representam seja suficientemente prolongada para que seu sentido não seja duvidoso.*
' Esse parágrafo, em seu conjunto, está ausente do texto inicial.
, RFXlRAS REIA11VAS À ADMINISTRA ç:4 O J)A f'R( J \1A
139
III
Mas *a maneira como devem ser formadas essas séries*
difere conforme os casos. Elas podem compreender fatos
tomados ou de uma única sociedade - ou ele várias sociedades da mesma espécie -, ou ele várias espécies sociais distintas.
O primeiro procedimento pode ser suficiente, a rigor,
quando se trata ele fatos de uma grande generalidade e
sobre os quais temos informações estatísticas bastante extensas e variadas. Por exemplo, aproximando-se a curva
que exprime a evolução do suicídio, durante um período
de tempo suficientemente longo, das variações que apresenta o mesmo fenômeno segundo as províncias, as classes, os hábitats rurais ou urbanos, os sexos, as idades, o
estado civil, etc., pode-se chegar, mesmo sem estender a
pesquisa para além de um único país, a estabelecer verdadeiras leis, ainda que seja sempre preferível confirmar
esses resultados através de outras observaçôes, feitas sobre outros povos da mesma espécie. Mas só é possível
contentar-se com comparações tão limitadas quando se
estuda uma dessas correntes sociais que se espalham em
toda a sociedade, embora variem de um ponto a outro.
Quando, ao contrário, trata-se de uma instituição, de uma
regra jurídica ou moral, de um costume organizado, que
são idênticos e funcionam da mesma maneira em toda a
extensão do país e que só se modificam com o tempo,
não é possível restringir-se ao estudo de um único povo;
pois, nesse caso, ter-se-ia como elemento da prova apenas um único par de curvas paralelas, a saber, as que exprimem a marcha histórica do fenômeno considerado e ·
da causa conjeturada, mas nessa única e exclusiva socie'"a natureza mesma das comparações sociológicas" (R.P.. p. 175.)
140
AS REGRAS DO MÉTODO SOC10LÓGJCO
dade. Certamente, mesmo esse único paralelismo, se for
constante, já é um fato considerável, mas não poderia,
por si só, constituir uma demonstração.
Fazendo entrar em consideração vários povos da
mesma espécie, dispõe-se já ele um campo ele comparação mais extenso. Primeiramente, pode-se confrontar a
história de um com a elos outros e ver se, em cada um deles isoladamente, o mesmo fenômeno evolui no tempo
em função das mesmas condições. A seguir, podem-se estabelecer comparações entre esses diversos desenvolvimentos. Por exemplo, determinar-se-á a forma que o fato
estudado adquire nessas diferentes sociedades no momento em que ele chega a seu apogeu. Como essas sociedades, embora pertençam ao mesmo tipo, são individualidades distintas, a forma em questão não é em toda parte
a mesma*; ela é mais ou menos pronunciada conforme os
casos*. Deste modo se terá uma nova série ele variações
que serão aproximadas daquelas que apresenta, no mesmo momento e em cada um desses países, a condição
**presumida**. Assim, após ter seguido a evolução da família patriarcal através ela história de Roma, de Atenas, de
Esparta, essas mesmas cidades serão classificadas conforme o grau máximo de desenvolvimento que atinge em cada uma delas esse tipo familiar, e a seguir se verá, em relação ao estado elo meio social do qual parece depender
o tipo familiar ele acordo com a primeira experiência, se
elas se classificam ainda ela mesma maneira.
Mas mesmo esse método não pode ainda ser suficiente. Ele só se aplica, com efeito, aos fenômenos que têm
origem durante a viela dos povos comparados. Ora, uma
sociedade não cria completamente sua organização; ela a
* Frase que nào figura no texto inicial.
••"conjeturada." (R.P., p. 176.)
REGRAS RELA77VAS À AlJMINISTRA(,ÀO f)A !'NOVA
141
recebe pronta, em parte, das socil:'dadl:'s qul' a prl'Cl'tkram. O que lhe é assim transmitido, no dl:'corrl'r dl:' sua
história, não é o produto de um desl:'nvolviml'nto Sl'U,
portanto não pode ser explicado se não sairmos dos limites da espécie ele que ela faz parte. Somente os acréscimos que se juntam a esse fundo primitivo l' o transformam podem ser tratados dessa maneira. Porém, quanto
mais nos elevamos na escala social, tanto menor é a importância dos caracteres adquiridos por cada povo comparados aos caracteres transmitidos. Aliás, essa é a condição ele todo progresso. Assim, elementos novos que introduzimos no direito doméstico, no direito de propriedade,
na moral, desde o começo ele nossa história, são relativamente pouco numerosos e pouco importantes, comparados aos que o passado nos legou. As novidades que se
produzem não poderiam portanto ser compreendidas se
primeiro não fossem estudados aqueles fenômenos mais
fundamentais que são suas raízes, *e estes só podem ser
estudados com o auxílio de comparações muito mais extensas. Para poder explicar o estado atual da família, elo
casamento, da propriedade, etc., seria preciso conhecer
quais são suas origens, quais os elementos simples que
compõem essas instituições, e, sobre esses pontos, a história comparada das grandes sociedades européias não
nos daria grandes esclarecimentos. É preciso remontar
mais acima.
Conseqüentemente, para explicar uma instituição social, pertencente a uma espécie determinada, iremos comparar as formas diferentes que ela apresenta não apenas
nos povos dessa espécie, mas em todas as espécies anteriores. Trata-se, por exemplo, da organização doméstica?
Constituiremos primeiramente o tipo mais rudimentar que
* Elemento que nào figura no texto inicial.
142
AS REGRAS no MÉTODO SOC70LÓGICO
possa ter existido, para em seguida acompanhar passo a
passo a maneira como ele progressivamente se complicou.
Esse método, que poderíamos chamar genético, efetuaria
de uma só vez a análise e a síntese do fenômeno. Pois, por
um lado, nos mostraria em estado dissociado os elementos
que o compõem, pelo simples fato de nos mostrar esses
elementos acrescentando-se sucessivamente uns aos outros; ao mesmo tempo, graças ao extenso campo de comparação, ele seria bem mais capaz de determinar as condições de que dependem a formação e associação desses
mesmos elementos. Conseqüentemente, só se pode explicar
um fato social de alguma complexidade se se acompanhar
seu desenvolvimento integral através de todas as ・セー←」ゥウ@
sociais. A sociologia comparada não é um ramo particular da
sociologia; é a sociologia mesma, na medida em que ela
deixa de ser puramente descritiva e aspira a explicar os
fatos.
No decorrer dessas comparações extensas, comete-se
com freqüência um erro que falseia os resultados. Algumas vezes, para julgar em que sentido se desenvolvem os
acontecimentos sociais, simplesmente se comparou o que
se passa no declínio de cada espécie com o que se produz no começo da espécie seguinte. Procedendo deste
modo, acreditou-se poder afirmar, por exemplo, que o
enfraquecimento das crenças religiosas e de todo tradicionalismo nunca podia ser mais que um fenômeno passageiro da vida dos povos, porque ele só aparece no último
período de sua existência para cessar assim que uma nova evolução recomeça. Mas, com semelhante método,
corre-se o risco de tomar como marcha regular e necessária do progresso o que é efeito de uma causa muito diferente. De fato, o estado em que se encontra uma sociedade jovem não é simplesmente o prolongamento do estado
em que haviam chegado no final de sua carreira as socie-
REGRAS REIATIVAS À AlJMINIS'f7<A(,ÁU IM l'NUVA
143
dades que ela substituí, mas provC·111 L'lll partl' dl'ssa pr(lpria juventude que impede qul' os produtos das L'Xpl'rí0ncias feitas pelos povos anteriores seja 111 todos illll'd ia tamente assimiláveis e utilizáveis. Assí111, a crianL·a rl'cehe
de seus pais faculdades e predisposiçCles que sú tardiamente entram em jogo em sua vida. Portanto é possívl'I,
para retomar o mesmo exemplo, que o retorno do tradicionalismo observado no começo de cada história seja devido, não ao fato de que um recuo do mesmo fenômeno só
pode ser transitório, mas às condições especiais em que
se acha colocada toda sociedade que começa. A comparação só pode ser demonstrativa se eliminamos esse fator
da idade, que a perturba; para tanto, bastará considerar
as sociedades comparadas no mesmo período de seu desenvolvimento. Assim, para saber em que sentido evolui
um fenômeno social, iremos comparar o que ele é na juventude de cada espécie com aquilo em que se transforma na juventude da espécie seguinte, e, conforme apresentar, de uma etapa a outra, maior, menor ou igual intensidade, diremos que ele progride, recua ou se mantém.
CONCLUSÃO
Em resumo, as características desse método são as
seguintes.
Em primeiro lugar, ele é independente de toda filosofia. Por ter nascido das grandes doutrinas filosóficas, a
sociologia conservou o hábito de se apoiar em algum sistema do qual se acha, pois, solidária. Assim, ela foi sucessivamente positivista, evolucionista, espiritualista, quando
deve contentar-se em ser sociologia e nada mais. Inclusive hesitaríamos em qualificá-la de naturalista, a menos
que com isso se queira simplesmente indicar que ela considera os fatos sociais como explicáveis naturalmente;
nesse caso, o epíteto é inútil, pois significa apenas que o
sociólogo pratica a ciência e não é um místico. Mas repelimos a palavra, se lhe quiserem dar um sentido doutrinal
sobre a essência das coisas sociais, se, por exemplo, disserem que elas são redutíveis às outras forças cósmicas. A
sociologia não tem de tomar partido por uma das grandes
hipóteses que dividem os metafísicos. Ela não precisa afirmar a liberdade nem o determinismo. Tudo o que ela pe-
146
AS REGRAS DO MÉTODO SOGYOLÓGJCO
de que lhe concedam é que o princípio de causalidade se
ª?liqu: aos fenômenos sociais. E, ainda assim, esse principio e por ela estabelecido não como uma necessidade
racional, mas somente como um postulado empírico, produto de uma indução legítima. Visto que a lei da causalidade fcú verificada nos outros reinos da natureza e que
progressivamente ela estendeu seu domínio do mundo fíウゥ」セMアオ■ュ@
セッ@
mundo biológico, e deste ao mundo psicologico, e licito admitir que ela igualmente seja verdadeira para o mundo social; e é possível afirmar hoje que as
pesquisas empreendidas sobre a base desse postulado
tendem a confirmá-lo. Mas a questão de saber se a natureza do vínculo causal exclui toda contingência nem por isso está resolvida.
De resto, a própria filosofia tem todo o interesse nesウセ@
emancipação da sociologia. Pois, enquanto o sociólogo
nao se separou suficientemente do filósofo, ele só considera as coisas sociais por seu lado mais geral, aquele pelo
qual elas mais se assemelham às outras coisas do universo. Ora, se *a, sociologia assim concebida pode servir para
ilustrar com fatos curiosos uma filosofia, ela não poderia
enriquecê-la com idéias novas, uma vez que ela nada assinala de novo no objeto que estuda. Mas em realidade
se* os fatos fundamentais 、ッセ@
outros イ・ゥョセウ@
se カ・イゥヲ」。セ@
no reino social, é sob formas **especiais que fazem compreender melhor sua natureza, por serem sua expressão
mais elevada**. Só que, para percebê-los sob esse aspecto, é preciso sair das generalidades e entrar no detalhe
dos fatos. É deste modo que a sociologia, à medida que
se especializar, irá fornecer materiais mais originais para a
* Desenvolvimento que não figura no texto inicial.
*' "novas e que por isso mesmo fazem compreender melhor sua
natureza". (R.P., p. 179.)
CONCLUSÃO
147
reflexão filosófica. O que precl'dl' p foi capaz dl' fazer
entrever de que maneira no(,'(>es essenciais, U is como as
de espécie, de órgão, de fun(;ão, de saúdl' L' dL· dol'll(,'a,
de causa e de fim, apresentam-se nela sob luZl'S intl'iramente novas. Aliás, será que a sociologia não estará dest inada a realçar plenamente uma idéia que poderia muito
bem ser a base não apenas de uma psicologia, mas de toda uma filosofia, a idéia de associação?
Em face das doutrinas práticas, nosso método permite
e requer a mesma independência. A sociologia, assim entendida, não será nem individualista, nem comunista, ném
socialista, no sentido que se dá vulgarmente a essas palavras. Por princípio, irá ignorar essas teorias, às quais não
poderia reconhecer valor científico, já que elas tendem diretamente, não a exprimir os fatos, mas a reformá-los. Pelo
menos, se se interessa por elas, é somente na medida em
que as vê como fatos sociais capazes de ajudá-la a compreender a realidade social, ao manifestarem as necessidades que movem a sociedade. Isso não quer dizer, porém,
que a sociologia deva se desinteressar das questões práticas. Pôde-se ver, ao contrário, que nossa preocupação
constante era orientá-la de maneira que pudesse alcançar
resultados práticos. Ela depara necessariamente com esses
problemas ao término de suas pesquisas. Mas, exatamente
por só se apresentarem a ela nesse momento e por decorrerem portanto dos fatos e nào das paixões, pode-se prl'ver que tais problemas devam se colocar para o sociúlogo
em termos muito diferentes do que para a mult id;ío, L' quv
as soluções, aliás parciais, que ele é capaz dl' propor 11;1< >
poderiam coincidir exatamente com nl'nliu111;1 LLiqtll'l;1s
nas quais se detêm os partidos. O papl'l LLi sociologia,
desse ponto de vista, deve justamcntl' consistir L'lll nos libertar de todos os partidos, não tanto por opor u111;1 drn1trina às doutrinas, e sim por fazer os l'spíritos assu111irc111,
148
AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO
diante de tais questões, uma atitude especial que somente
a ciência pode proporcionar pelo contato direto com as
coisas. Com efeito, somente ela pode ensinar a tratar com
respeito, mas sem fetichismo, as instituições históricas sejam elas quais forem, fazendo-nos perceber o que elas têm
ao mesmo tempo de necessário e de provisório, sua força
de resistência e sua infinita variabilidade.
Em segundo lugar, nosso método é objetivo. Ele é inteiramente dominado pela idéia de que os fatos sociais são
coisas e como tais devem ser tratados. Certamente, esse
princípio se encontra, sob forma um pouco diferente, na
base das doutrinas de Comte e de Spencer. Mas esses
grandes pensadores deram muito mais sua fórmula teórica
do que o puseram em prática. Para que ela não permanecesse letra morta, não bastava promulgá-la; era preciso torná-la a base de toda uma disciplina que se apoderasse do
cientista no momento em que ele abordasse o objeto de
suas pesquisas e que o acompanhasse em todos os seus
passos. Foi a instituir essa disciplina que nos dedicamos.
Mostramos como o sociólogo deveria afastar as noções antecipadas que possuía dos fatos, a fim de colocar-se diante
dos fatos mesmos; como deveria atingi-los por seus caracteres mais objetivos; como deveria requerer deles próprios
o meio de classificá-los em saudáveis e em mórbidos; como, enfim, deveria seguir o mesmo princípio tanto nas explicações que tentava quanto na maneira pela qual provava essas explicações. Pois, quando se tem o sentimento de
estar em presença de coisas, nem sequer se pensa mais
em explicá-las por cálculos utilitários ou por raciocínios de
qualquer espécie. Compreende-se muito bem a distância
que há entre tais causas e tais efeitos. Uma coisa é uma
força que não pode ser engendrada senão por outra força.
Buscam-se então, para explicar os fatos sociais, energias
capazes de produzi-los. As explicações não apenas são
CONCLUSÃO
149
outras como são demonstradas de outro modo, ou melhor, somente então que se sente a necessidade de demonstrá-las. Se os fenômenos sociológicos forem apenas
sistemas de idéias objetivas, explicá-los é repens{1-los em
sua ordem lógica e essa explicação é sua própria prova;
quando muito será o caso de confirmá-la por alguns
exemplos. Ao contrário, somente experiências metódicas
são capazes de arrancar das coisas seu segredo.
Mas, se consideramos os fatos sociais como coisas, é
como coisas sociais. É um terceiro traço característico de
nosso método o de ser exclusivamente sociológico. Muitas vezes se pensou que tais fenômenos, por causa de sua
extrema complexidade, ou eram refratários à ciência, ou
só poderiam entrar nela reduzidos a suas condições elementares, sejam psíquicas, sejam orgânicas, isto é, despojados de sua natureza própria. Procuramos estabelecer, ao
contrário, que era possível tratá-los cientificamente sem
nada retirar-lhes de seus caracteres específicos. Inclusive
recusamos reduzir a imaterialidade sui generis que os caracteriza àquela, nào obstante já complexa, dos fenômenos psicolqgicos; com mais forte razão nos proibimos de
absorvê-la, como faz a escola italiana, nas propriedades
gerais da matéria organizada 1 . Mostramos que um fato social só pode ser explicado por outro fato social, e, ao
mesmo tempo, indicamos de que maneira esse tipo de
explicação é possível ao assinalarmos •no meio soda! interno o motor principal da evolução coletiva•. A sociologia, portanto, não é o anexo de nenhuma outra cii·rwia;
ela própria é uma ciência distinta e auttmoma, t' o st•nti
i
• "uma ordem de causas dotadas dl' sulki<'lli<' <'li<'l<'11<'1;1 p.11.1
tornar inteligível a produçào dos l'fl'ilos q11<· lli<·s a1rili11111111s," li.is1.111lt'
próximas desses efeitos para poder cxplicí-los .'<'Ili ljll<' st•j.1 IH'<'t'.'·'ª1lc 1
desnaturá-los por uma ウゥューャヲ」。セᄋZッ@
artifidal: traia"' d;L' p111p1l<·d;ult·.,
do meio social". (R.P., id., p. JHJ.)
150
AS REGRAS DO MÉTODO SOG10LÓGICO
mento da especificidade da realidade social é inclusive
tão necessário ao sociólogo, que somente uma cultura especificamente sociológica é capaz de prepará-lo para a
compreensão dos fatos sociais.
Consideramos que esse progresso é o mais importante dos que restam a ser feitos em sociologia. Certamente,
quando uma ciência está por nascer, somos obrigados, para formá-la, a nos referir aos únicos modelos existentes, ou
seja, às ciências já constituídas. Existe aí um tesouro de experiências proQtas que seria insensato não aproveitar. Entretanto, uma ciência só pode considerar-se definitivamente constituída quando conseguir formar-se uma personalidade independente. Pois ela só terá razào de ser, se tiver
por objeto uma ordem de fatos que as outras ciências não
estudam. Ora, é impossível que as mesmas noções possam
convir identicamente a coisas de natureza diferente.
Tais nos parecem ser os princípios do método sociológico.
Esse conjunto de regras talvez parecerá inutilmente
complicado, se o compararmos aos procedimentos correntemente utilizados. Todo esse aparato ele precauções
pode parecer muito trabalhoso *para uma ciência que, até
aqui, reclamava dos que a ela se consagravam pouco
mais do que uma cultura geral e filosófica,* e é certo que
pôr em prática tal método não poderia ter por efeito vulgarizar a curiosidade das coisas sociológicas. Quando se
pede às pessoas, como condição de iniciação prévia, para
se desfazerem dos conceitos que têm o hábito de aplicar
a uma ordem de coisas para repensá-las com novos esforços, nào se pode esperar recrutar uma clientela numerosa:
Mas esse não é o objetivo que almejamos. Acreditamos,
' "quando se sabe com que facilidade espíritos elegantes e sutis
se divertem em meio aos fenômenos sociais," (R.P., p. 182.)
CONCLUS'ÃO
151
ao contrário, que chegou, para a sociologia, o momento
de renunciar aos sucessos mundanos, por assim dizer, e
de assumir o caráter esotérico que convi.:·m a toda cil'ncia.
Ela ganhará assim em dignidade e em autoridadl' o qul'
perderá talvez em popularidade. Pois, enquanto lK'rmanecer misturada às lutas dos partidos, enquanto se contl'ntar
em elaborar, com mais lógica do que o vulgo, as idi.:·ias
comuns e, por conseguinte, enquanto não supuser nL·nhuma competência especial, ela não estará habilitada a
falar suficientemente alto para fazer calar as paixôes e os
preconceitos. Seguramente, ainda está distante o tempo
em que ela poderá desempenhar essé papel com eficácia;
no entanto, é para torná-la capaz de representá-lo um dia
que precisamos, desde agora, trabalhar.
NOTAS
Prefácios
1. Mas, objetam-nos, se a saúde contém elementos execráveis, como apresentá-la, tal como fazemos mais adiante, como o
objetivo imediato da conduta? Nisso não há nenhuma contradição. Acontece a todo instante que uma coisa, embora prejudicial
por algumas de suas conseqüências, seja, por outras, útil ou
mesmo necessária à vida; ora, se os maus efeitos que ela tem
são regularmente neutralizados por uma influência contrária, verifica-se de fato que ela serve sem prejudicar, não obstante continue sendo execrável, pois nào deixa de constituir por si mesma um perigo eventual que só é conjurado pela ação de uma
força antagônica. É o caso do crime; o mal que ele faz à sociedade é anulado pela pena, se esta funcionar regularmente. Portanto, o crime mantém com as condições fundamentais da vida
as relações positivas que veremos a seguir, sem produzir o mal
que implica. Só que, como ele se torna inofensivo contra sua
vontade, por assim dizer, os sentimentos de aversão que suscita
não deixam de ter fundamento.
2. O que significa que ele nào deve ser confundido com a
metafísica positivista de Comte e de Spencer.
154
AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO
3. Vê-se que, para admitir essa proposição, não é necessário afirmar que a vida social é feita ele algo mais cio que representações; basta estabelecer que as representações, individuais
ou coletivas, só podem ser estudadas cientificamente com a condição ele serem estudadas objetivamente.
4. A proposição, aliás, é só parcialmente exata. Além dos
indivíduos, há as coisas que são elementos integrantes ela sociedade. É verdade, porém, que os indivíduos são seus únicos elementos ativos.
5. É inútil mostrar como, desse ponto de vista, a necessidade de estudar os fatos a partir do exterior afigura-se ainda mais
evidente, uma vez que eles resultam de sínteses que ocorrem fora de nós e das quais não temos sequer a percepção confusa
que a consciência pode nos dar dos fenômenos interiores.
6. O poder coercitivo que lhe atribuímos não representa a
totalidade do fato social, tanto assim que este pode apresentar
igualmente o caráter oposto. Pois, ao mesmo tempo que ·as instituições se impõem a nós, aderimos a elas; elas nos obrigam e as
amamos; elas nos constrangem e vemos vantagens em seu funcionamento e nesse constrangimento mesmo. Essa antítese é a
que os moralist;is com freqüência assinalaram entre as noções
cio bem e do dever, que exprimem dois aspectos diferentes, mas
igualmente reais, da vida moral. Ora, talvez não haja práticas coletivas que não exerçam sobre nós essa dupla ação, que só é
contraditória, aliás, em aparência. Se não as definimos por essa
adesão especial, ao mesmo tempo interessada e desinteressada,
é simplesmente porque esta não se manifesta por sinais exteriores, facilmente perceptíveis. O bem tem algo de mais interno, de
mais íntimo que o dever, portanto de menos discernível.
7. Ver o artigo "Sociologie" da Grande Encyclopédie, redigido por Fauconnet e Mauss.
8. Do fato de que as crenças e as práticas sociais nos penetram a partir do exterior, não se segue que as recebamos passivamente e sem lhes imprimir modificação. Ao pensarmos as instituiçües coletivas, ao assimilá-las internamente, nós as individualizamos, conferimos a elas, em maior ou menor grau, nossa marca pessoal; é assim que, ao pensar o mundo sensível, cada um
NOTAS
ele nós o colore ã sua maneira, e qul' sujl'itos dikrl'lltl's Sl' adaptam diferentemente a um mesmo meio físico. l'or is.,<>, L'lll Cl'rLI
medida, cada um de nós faz sua moral, sua rl'ligi;10, sua t.:·c11ic1.
Não há conformismo social que nào comportl' toda uma g;111u
de nuances individuais. Não obstante, o campo das v;1riav·>l's
permitidas é limitado. Ele é nulo ou muito pequeno no círculo
cios fenômenos religiosos e morais, onde a variaçào torna-se facilmente um crime; é mais amplo em tudo o que concerne ;I viela econômica. Mas, cedo ou tarde, mesmo nesse último caso,
chega-se a um limite que não pode ser franqueado.
Introdução
1. .S)steme de Logique, I, VI, cap. VII-XII.
2. Ver Cours de philosophie positive, 2ª ed., pp. 294-336.
Capítulo l
1. O que não quer dizer, todavia, que toda cocrçào seja
normal. Voltaremos mais adiante a esse ponto.
2. As pessoas não se suicidam em qualquer idade, nem em
todas as idades. com a mesma intensidade.
3. Vê-se o quanto essa definição cio fato social distancia-sl'
da que serve ele base ao engenhoso sistema de Gabriel Tardl'.
Primeiramente, devemos declarar que nossas pesquisas n;ío nos
fizeram constatar em parte alguma essa influência prepondl'rantL'
que o sr. Tarde atribui à imitação na gênese dos fatos coil'I ivo.,.
Ademais, da defini<.;ão precedente, que não é uma tl'oria, 111;1.,
um simples resumo dos dados imediatos da ohsl'rv;11,·ao, p;m·n·
resultar claramente que não apenas a ゥュャ。セᄋ[QP@
1H·111 M'llljll'l' l'X
prime, mas inclusive também jamais L'xprillll' o ljlll' lia dl' l"'-"'11
eia! e característico no fato social. Claro lJUl' tllllo 1:110 ·" ll·i;il l'
imitado; ele possui, como acabamo,, dl' llll>.,lrar, 11111;1 tl'11d(·11l·ia .1
generalizar-se; mas isso por l'il' Sl'r sol'ial, i.'I' >l', ol>rigatorio ..'i11.1
força de expansão é, n;ío a causa, mas a l'<>llSl'ljÍÍl"1wi;1 dl' .'t'll c;1
156
AS REGRAS DO MÍ:TODO SOG10LÓGICO
ráter sociológico. Se os fatos sociais fossem os únicos a produzir
essa conseqüência, a imitação poderia ainda servir, senão para
exprimi-los, ao menos para defini-los. Mas um estado individual
que é imitado nem por isso deixa de ser individual. Além disso,
pode-se perguntar se a palavra imitação é exatamente a que convém para designar uma propagação devida a uma influência coercitiva. Sob essa expressão única, confundem-se fenômenos muito
diferentes e que precisariam ser distinguidos.
4. Esse íntimo parentesco da vida e da estrutura, do órgão
e da função, pode ser facilmente estabelecido em sociologia
porque, entre esses dois termos extremos, existe toda uma série
de intermediários imediatamente observáveis e que mostra a ligação entre eles. A biologia não dispõe do mesmo recurso. Mas
é lícito supor que as induções da primeira dessas ciências sobre
tal questão são aplicáveis à outra e que, tanto nos organismos
como nas sociedades, existem apenas diferenças de grau entre
essas duas ordens de fatcis.
Capítulo II
1. Novum organum, I, p. 26.
2. Jbid., l, p. 17.
3. Jbid., p. 36.
4. Social., tr. fr., III, pp. 331, 332.
5. Jbid., p. 332.
6. Concepção, aliás, controversa. (Ver Division du travai!
social, II, p. 2, < > 4.)
7. "A cooperação não poderia portanto existir sem sociedade, e é o objetivo para o qual uma sociedade existe." (Principes
de Social., III, p. 332.)
8. Systeme de Logique, III, p. 496.
9. Esse caráter sobressai das expressões mesmas empregadas pelos economistas. A todo instante se trata de idéias, da
idéia do útil, da idéia de poupança, de emprego do dinheiro, de
despesa. (Ver Gide, Principes d'économie politique, liv. III, cap.
I, < > 1; cap. II,<> 1, cap. III,<> 1.)
NOTAS
157
10. É verdade que a complexidade maior dos fatos sociais
torna sua ciência mais árdua. Mas, em 」ッュー・ョウ。セZ[ャL@
precisamente porque a sociologia é a última a chegar, ela est:1 em condições de aproveitar os progressos realizados pelas ciências inferiores e de instruir-se na escola delas. Essa utilização das experiências realizadas não pode deixar de acelerar seu desenvolvimento.
11. J. Darmesteter, Les prophetes d'Israel, p. 9.
• 12. Na prática, é sempre do conceito vulgar e da palavra
vulgar que se parte. Busca-se saber se, entre as coisas que essa
palavra confusamente conota, há ·algumas que apresentam caracteres comuns exteriores. Se houver.e se o conceito formado pelo
grupamento dos fatos assim aproximados coincidir, se não totalmente (o que é raro), pelo menos na maior parte, com o conceito vulgar, poder-se-á continuar a designar o primeiro pela mesma
palavra que o segundo e conservar na ciência a expressão empregada na língua corrente. Mas, se a distância for muito considerável, se a noção comum confundir uma pluralidade de noções
distintas, a criação de termos novos e especiais se impõe.
• Essa nota não figura no texto inicial.
13. É a mesma ausência de definição que fez dizer, às vezes, que a democracia se encontrava igualmente no começo e
no fim da história. A verdade é que a democracia primitiva e a
atual são muito diferentes uma da outra.
14. Criminologie, p. 2.
15. Ver Lubbock, Les origines de la civilisation, cap. VIII.
Mais geralmente ainda, diz-se, não menos falsamente, que as religiões antigas são amorais ou imorais. A verdade é que elas têm
uma moralidade própria.
16. Seria preciso, por exemplo, ter razões para acreditar
que, num momento dado, o direito não mais exprima o estado
verdadeiro das relações sociais, para que essa substituição não
seja legítima.
17. Ver Division du travai! social, 1. I.
18. Cf. nossa lntroduction à la Sociologie de la familie, in
Annales de la Faculté des lettres de Bordeaux, ano de 1889.
158
AS REGRAS DO MÉ7DDO SOC!Of,ÓG!CO
Capítulo III
* 1. Pode-se distinguir desse modo a doença da monstruosidade. A segunda só é uma exceção no espaço; ela não se verifica na média da espécie, mas dura toda a vida dos indivíduos
nos quais se manifesta. Percebe-se, de resto, que essas duas ordens de fatos só diferem em graus e são, no fundo, da mesma
natureza; as fronteiras entre elas são muito indecisas, pois a doença não é incapaz de qualquer fixidez, nem a monstruosidade de
qualquer transformação. Não podemos portanto separá-las muito radicalmente quando as definimos. A distinção entre elas não
pode ser mais categórica do que entre o morfológico e o fisiológico, uma vez que, em suma, o mórbido é o anormal na ordem
fisiológica, assim como o teratológico é o anormal na ordem
anatômica.
* Essa nota não figura no texto inicial.
2. Por exemplo, o selvagem que tivesse o tubo digestivo
reduzido e o sistema nervoso desenvolvido do civilizado sadio
seria um doente em relação a seu meio.
3. Abreviamos essa parte de nossa exposição; pois não podemos senão repetir aqui, a propósito dos fatos sociais em geral, o
que dissemos alhures a propósito da distinção dos fatos morais em
normais e anormais. (Ver Division du travai! social, pp. 33-39.)
*4. O sr. Garofalo tentou, é verdade, distinguir o mórbido
cio anormal ( Criminologie, pp. 109, 110). Mas os dois únicos argumentos sobre os quais ele apóia essa distinção são os seguintes: 1) A palavra doença significa sempre algo que tende à destruição total ou parcial do organismo; se não houver destruição,
há cura, jamais estabilidade como em várias anomalias. Mas acabamos de ver que também o anormal é uma ameaça ao ser vivo
na média dos casos. f: verdade que nem sempre é assim; mas os
perigos que a doença implica só existem igualmente na generalidade das circunstâncias. Quanto à ausência de estabilidade que
distinguiria o mórbido, é esquecer as doenças crônicas e separar
radicalmente o teratológico do patológico. As monstruosidades
são fixas. 2) O normal e o anormal variam com as raças, dizem,
enquanto a distinção do fisiológico e do patológico é válida pa-
NOTAS
159
ra todo o genus homo. Acabamos de mostrar, ao contr;írio, que
muitas vezes o que é múrhido para o sl'ivagl'm n;úi o(· para o
civilizado. As condi<./ies da saúde física variam com os meios.
• Essa nota não figura no texto inicial.
5. Pode-se perguntar, é verdade, se, quando um kntimL·no
deriva necessariamente das condiç<les gerais da vida, l'k n;io l'
útil por isso mesmo. Não podemos tratar essa quL'Sl;ío til' filosofia, mas iremos abordá-la um pouco mais adiante.
6. Ver sobre esse ponto uma nota que publicamos na Nl'vue philosophique (novembro ele 1893) sobre "A 、・ヲゥョセᄋ[■ッ@
do
socialismo".
7. As sociedades segmentares, notaclamente as sociedades
segmentares com base territorial, são aquelas cujas articula1;ôes
essenciais correspondem às divisões territoriais. (Ver Division
du travai! social, pp. 189-210.)
8. Em certos casos, pode-se proceder um pouco diferentemente e demonstrar que um fato cujo caráter normal é suspeito
merece ou não essa suspeita, mostrando-se que ele está intimamente ligado ao desenvolvimento anterior elo tipo social considerado e, mesmo, ao conjunto ela evolução social em geral, ou,
ao contrário, que contradiz a ambos. Foi dessa maneira que pudemos demonstrar que o enfraquecimento atual elas crenças religiosas e, ele maneira mais geral, elos sentimentos coletivos por
objetos coletivos é apenas normal; provamos que esse enfraquecimento torna-se cada vez mais pronunciado à medida que as
socieclacles se aproximam de nosso tipo atual e que este, por
sua vez, é mais desenvolvido (Division du travai! social, pp. 73182). Mas, no fundo, esse método é apenas um caso particular
elo precedente. Pois, se a normalidade desse fenômeno pôde ser
estabelecida dessa forma, é que, com isso, ele foi associado às
condições mais gerais ele nossa existência coletiva. De fato, por
um lado, se essa regressão da consciência religiosa é tanto mais
acentuada quanto mais determinada for a estrutura de nossas sociedades, é que ela se eleve não a uma causa acidental, mas à
constituição mesma de nosso meio social; e como, por outro lado, as particularidades características desta última são certamente mais desenvolvidas hoje do que um tempo atrás, é normal
160
AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO
que os fenômenos que delas dependem sejam eles próprios amplificados. Esse método difere do anterior somente no fato de
que as condições que explicam e justificam a generalidade cio
fenômeno sào induzidas e nào diretamente observadas. Sabe-se
que esse fenômeno está ligado à natureza do meio social sem
saber em que nem como.
9. Mas nesse caso, clirào, a realização do tipo normal nào é
o objetivo mais elevado que se pode propor, e, para superá-lo,
é preciso também superar a ciência. Não precisamos tratar aqui
essa questão ex professo; respondamos apenas: 1) que ela é inteiramente teórica, pois, na verdade, o tipo normal, o estado de
saúde, já é bastante difícil de realizar e muito raramente alcançado para que façamos funcionar a imaginaçào em busca de algo
melhor; 2) que esses melhoramentos, objetivamente mais vantajosos, _nem por isso sào objetivamente desejáveis; pois, se não
correspondem a alguma tendência latente ou em ato, eles nada
acrescentariam à felicidade, e, se correspondem a alguma tendência, é porque o tipo normal não está realizado; 3) enfim que,
para melhorar o tipo normal, é preciso conhecê-lo. Portanto, seja como for, só se pode superar a ciência apoiando-se nela.
10. Do fato ele o crime ser um fenômeno de sociologia normal, nào se segue que o criminoso seja um indivíduo normalmente constituído do ponto ele vista biológico e psicológico. As
duas questões sào independentes uma da outra. Compreenderse-á melhor essa independência quando tivermos mostrado,
mais adiante, a diferença existente entre os fatos psíquicos e os
fatos sociológicos.
11. Calúnias, injúrias, difamação, dolo, etc.
12. Nós mesmos cometemos o erro de falar assim cio criminoso, por não termos aplicado nossa regra (Division du travai!
social, pp. 395, 396).
13. Aliás, ele que o crime seja um fato ele sociologia normal
nào se segue que não se eleva odiá-lo. Também a dor nada tem
ele desejável; o indivíduo a odeia assim como a sociedade odeia
o crime, e não obstante ela tem a ver com a fisiologia normal.
Ela não apenas deriva necessariamente ela constituiçào mesma
ele todo ser vivo, mas também desempenha um papel útil na vi-
NOTAS
161
da, no qual nào pode ser substituída. *Seria portanto desnaturar
singularmente nosso pensamento apresentá-lo como uma apologia cio crime. Nào pensaríamos sequer em protestar contra tal ine a
terpretação, se nào soubéssemos a que estranhas 。」オウセᄋ・@
que mal-entendidos alguém se expõe, quando empreende estudar os fatos morais objetivamente e falar deles numa linguagem
que não é a cio vulgo.*
• Frases que não figuram no texto inicial.
14. Ver Garofalo, Criminologie, p. 299.
* 15. Da teoria desenvolvida neste capítulo concluiu-se às
vezes que, em nossa opinião, a marcha ascendente da criminalidade ao longo cio século XIX era um fenômeno normal. Nada
mais distante de nosso pensamento. Vários fatos que indicamos
a propósito do suicídio (ver Le Suicide, p. 420 e ss.) nos levam a
pensar, ao contrário, que esse desenvolvimento é, em geral,
mórbido. Contudo, poderia ocorrer que certo crescimento de algumas formas de criminalidade fosse normal, pois cada estado
ele civilizaçào tem sua criminalidade própria. Mas a esse respeito
não se podem emitir mais que hipóteses.
* Nota introduzida na ediçào ele 1901.
Capítulo/V
1. Chamo-o assim porque ele foi freqüente entre os historiadores, mas não quero dizer que se verifique em todos.
2. Cours de philos. pos., IV, p. 263.
3. Novum organum, II, < > 36.
4. Sociologie, II, p. 135.
5. "Nem sempre podemos dizer com precisào o que constitui uma sociedade simples." (lbid., pp. 135, 136.)
6. Jbid., p. 136.
7. Division du travai! social, p. 189.
8. Todavia é provável que, em geral, a distância entre as
sociedades componentes nào fosse muito grande; caso contrário, nào poderia haver entre elas nenhuma comunidade moral.
9. Não é esse o caso cio Império romano, que parece nào
ter equivalente na história?
162
AS REGRAS DO Mh70DO SOCJOL(JGICO
* 10. Ao redigirmos este capítulo para a primeira edição desta
obra, nada dissemos do método que consiste em classificar associedades segundo seu estado de civilização. Naquele momento, com
efeito, não existiam classificações desse gênero que fossem propostas por sociólogos autorizados, exceto talvez aquela, evidentemente
arcaica, de Comte. Desde então, várias tentativas foram feitas nesse
sentido, notadamente por Vierkandt (Die Kulturtypen der Menscheit, in Archiv. .f Anthropologie, 1898), por Sutherland (The Origin
and Growth of the Moral Instinct) e por Steinmetz ( Clas:>(fzcation
des t}pes sociaux, in Année sociologique, III, pp. 43-147). Todavia,
não nos deteremos a discuti-las, pois não respondem ao problema
colocado neste capítulo. Nelas são classificadas, não espécies sociais,
mas, o que é bem diferente, fases históricas. A França, desde suas
origens, passou por formas de civilização muito distintas: começou
por ser agrícola, passando a seguir ao artesanato e ao pequeno comércio, depois à manufatura e finalmente à grande indústria. Ora, é
impossível admitir que uma mesma individualidade coletiva possa
mudar de espécie três ou quatro vezes. Uma espécie deve ser definida por caracteres mais constantes. O estado econômico, tecnológico, etc., apresenta fenômenos demasiado instáveis e complexos
para fornecer a base de uma classificação. É possível, inclusive, que
uma mesma civilização industrial, científica, artística possa se verificar em sociedades cuja constituição congênita seja muito diferente.
O Japão pode vir a incorporar nossas artes, nossa indústria, até
mesmo nossa organização política; nem por isso deixará de pertencer a uma espécie social diferente das da França e da Alemanha.
Acrescentemos que essas tentativas, embora conduzidas por sociólogos de valor, forneceram apenas resultados vagos, contestáveis e
de pouca utilidade.
* Nota introduzida na edição de 1901.
Capítulo V
1. Cours de philus. pos., IV, p. 262.
2. Sociologie, III, p. 336.
3. Division du travai!, l. II, cap. III e IV.
NOTAS
163
4. Não gostaríamos de levantar questües de filosofia geral,·
que não estariam aqui em seu lugar apropriado. Notemos porém que, mais bem estudada, essa reciprocidade da causa e do
efeito poderia proporcionar um meio de reconciliar o mecanismo científico com o finalismo que a existência e sobretudo a
persistência da vida implicam.
5. Diuisiun du travai!, l. II, cap. II, e notadamente pp. lO'i
e ss.
6. Jbid., pp. 52, 53.
7. Ibid., pp. 301 e ss.
8. Cours de philos. pus., IV, p. 333.
9. Jbid., p. 345.
10. Jhid., p. 346.
11. Ihid., p. 335.
12. Principes de sociologie, I, 14, p. 14.
1.3. Op cit., I, p. 583.
14. Jbid., p. 582.
15. Jbid., p. 18.
16. "A sociedade existe para o proveito de seus membros,
os membros não existem para o proveito da sociedade ... : os direitos do corpo político nada são em si mesmos, eles só se tornam alguma coisa se encarnarem os direitos dos indivíduos que
o compõem." ( Op. cit., II, p. 20.)
*17. Eis em que sentido e por que razões se pode e se deve
falar de uma consciência coletiva distinta das consciências individuais. Para justificar essa distinção, não é necessário hipostasiar
a primeira; ela é algo de especial e deve ser designada por um
termo especial, simplesmente porque os estados que a constituem
diferem especificamente daqueles que constituem as consciências
particulares. Essa especificidade decorre de esses estados não
serem formados dos mesmos elementos. Uns, com efeito, resultam da natureza do ser orgânico-psíquico tomado isoladamente,
os outros da combinação de uma pluralidade de seres desse tipo. As resultantes não podem portanto deixar de diferir, visto
que os componentes diferem a tal ponto. Nossa definição do fato social, aliás, apenas assinalava de outra maneira essa linha de
demarcaçao.
• Essa nota não figura no texto inicial.
164
AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO
18. Se é que ela existe antes de toda vida social. Ver sobre
esse ponto Espinas, Sociétés animales, p. 474.
19. Division du travai! social, 1. II, cap. I.
20. Os fenômenos psíquicos só podem ter conseqüências
sociais quando se encontram tão intimamente unidos a fenômenos sociais que a ação de ambos se confunde. É o caso de certos fatos sociopsíquicos. Assim, um funcionário é uma força social, mas é ao mesmo tempo um indivíduo. Disso resulta que ele
pode servir-se da energia social que detém, num sentido determinado por sua natureza individual e, deste modo, ter uma influência sobre a constituição da sociedade. É o que acontece
com os homens de Estado e, de maneira mais geral, com os homens de gênio. Estes, mesmo que não cumpram uma função social, extraem dos sentimentos coletivos de que são objeto uma
autoridade que constitui, ela própria, uma força social, que eles
podem, em certa medida, pôr a serviço de idéias pessoais. Mas
percebe-se que esses casos são devidos a acidentes individuais
e, por conseguinte, não poderiam afetar os traços constitutivos
da espécie social, que é o único objeto de ciência. A restrição ao
princípio enunciado mais acima não é portanto de grande importância para o sociólogo.
21. Cometemos o erro, em nossa Division du travai! de realçar a densidade material como a expressão exata da 、セョウゥ。・@
dinâmica. Todavia, a substituição da primeira pela segunda é
absolutamente legítima em relação a tudo o que concerne aos
efeitos econômicos desta, por exemplo, a divisão do trabalho
como fato puramente econômico.
22. A posição de Comte sobre esse assunto é de um ecletismo bastante ambíguo.
23. Eis por que nem toda coerção é normal. Somente merece esse nome a que corresponde a alguma superioridade social,
isto é, intelectual ou moral. Mas a que um indivíduo exerce sobre outro por ser mais forte ou mais rico, sobretudo se essa riqueza não exprime seu valor social, é anormal e só pode ser
mantida pela violência.
24. Nossa teoria é inclusive mais contrária à de Hobbes que
a do direito natural. Com efeito, para os defensores desta última
NOTAS
165
doutrina, a vicia coletiva só é natural na medida cm que pode
ser deduzida da natureza individual. Ora, somente as formas
mais gerais da organização social podem, a rigor, ser derivadas
dessa origem. Quanto aos detalhes, encontram-se muito afastados da extrema generalidade das propriedades psíquicas para
poderem ser ligados a elas; assim eles parecem, para os discípulos dessa escola, tão artificiais quanto para seus adversários. Para nós, ao contrário, tudo é natural, mesmo os arranjos mais especiais; pois tudo está fundado na natureza da sociedade.
Capítulo VI
1. Cours de philosophie positive, IV, p. 328.
2. Systeme de Logique, II, p. 478.
3. Diuision du travai! social, p. 87.
*4. No caso do método de diferença, a ausência da causa
exclui a presença do efeito.
* Essa nota não figura no texto inicial.
Conclusão
*l. Portanto, não há motivo para qualificar nosso método
de materialista.
* Essa nota não figura no texto inicial.